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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENFERMAGEM
CURSO DE DOUTORADO EM ENFERMAGEM
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FILOSOFIA, SAÚDE E SOCIEDADE
JADETE RODRIGUES GONÇALVES
O PROFISSIONAL DE SAÚDE EM ENFERMARIA DE
CRIANÇAS GRAVEMENTE ENFERMAS E AS IMPLICAÇÕES DO
COTIDIANO DO TRABALHO NA SUA SAÚDE
Florianópolis,
2007
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JADETE RODRIGUES GONÇALVES
O PROFISSIONAL DE SAÚDE EM ENFERMARIA DE CRIANÇAS
GRAVEMENTE ENFERMAS E AS IMPLICAÇÕES DO COTIDIANO
DO TRABALHO NA SUA SAÚDE
Tese apresentada à Banca Examinadora do Programa de
Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal
de Santa Catarina, como requisito para a obtenção do
título de Doutora em Enfermagem pelo Curso de
Doutorado em Enfermagem – Área de Concentração:
Filosofia, Saúde e Sociedade.
Orientadora: Dra. Flávia Regina S. Ramos
Florianópolis,
2007
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G635p Gonçalves, Jadete Rodrigues
O profissional de saúde em enfermaria de crianças gravemente enfermas
e as implicações do cotidiano do trabalho na sua saúde / Jadete Rodrigues
Gonçalves; orientador Flávia Regina Souza Ramos.
– Florianópolis, 2007.
188 f.
Tese(Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de
Ciências da Saúde. Programa de Pós-Graduação em Enfermagem.
Inclui bibliografia.
1. Saúde do trabalhador. 2. Estresse psicológico. 3. Criança hospitalizada.
4. Equipe de assistência ao paciente. I. Ramos, Flávia Regina Souza. II.
Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em
Enfermagem. III. Título.
CDU 616-083
Catalogação na fonte por: Vera Ingrid Hobold Sovernigo CRB-14/009
DEDICATÓRIA
Àqueles para quem esse trabalho justifica sua existência: os
trabalhadores da saúde do hospital infantil
AGRADECIMENTOS
Hoje, especialmente, me invade um sentimento de gratidão. Talvez, esteja tendo
a consciência do privilégio que representa a realização de uma tese. Um trabalho que
foi se realizando paulatinamente no encontro de muitos desejos, de muita contenção,
de muitos cuidados. Um processo do qual sou apenas uma parte e que sem todas as
pessoas significativas e momentos vividos, não teria sido possível. Minha gratidão e
carinho a todos que direta ou indiretamente fizeram parte dessa história. Agradeço
igualmente àqueles, a quem, certamente terei deixado de mencionar.
Um querido amigo, Marco da Ros, me apresentou Ludwck Fleck, médico,
serologista dos idos de 1920, 1930. Fleck discute sobre a construção coletiva do saber
científico a partir da história da sífilis. Como epistemólogo traz a complexidade entre
diferentes campos da produção do saber, pensado sobre diferentes pontos de vista. A
grandiosidade de sua concepção interdisciplinar frente ao saber científico e de sua
postura de humildade e delicadeza frente à vida me fez tomá-lo como uma referência
expressiva nesse momento. Portanto, quero dizer que para realizar esse estudo foram
necessários muitos saberes, muitos olhares, muitos afetos, inúmeras subjetividades.
Aprendi que construir conhecimento é uma tarefa de muitos, de um coletivo
contraditório, conflitivo e, sobretudo humano.
Assim, só desejo agradecer. Inicialmente, por ter tido a possibilidade de
conhecer esses trabalhadores, - sujeitos e parceiros de minha pesquisa - e pela
confiança na relação que construímos, permitindo que esse trabalho tomasse corpo.
Obrigada a cada um e ao que representam como trabalhadores da saúde no nosso país.
Obrigada por terem me emprestado suas lentes e dessa forma consentido em minha
aproximação as suas vulnerabilidades, assim como também me mostrado a coragem e
força que os diferencia e que foram parte de meu suporte.
Quero agradecer também, de maneira especial, ao primeiro profissional de
saúde que conheci, no aconchego de minhas lembranças infantis, quando acordava, por
vezes de madrugada e o via levantar-se em noites geladas tendo por fundo o som do
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minuano soprando nos pampas de minha pequena cidade para atender seus pequenos
doentes. Ariovaldo dos Santos Gonçalves, meu pai. Um médico de família do interior
com quem delineei meus primeiros passos nessa jornada. Com ele conheci o sujeito
mais do que o médico, o pai mais do que o homem, mas também a criança doente, o
sistema público de saúde, a instituição hospitalar, a dedicação, a entrega e o trabalho
como uma forma de vida. Obrigada por teres me ensinado a acreditar nos homens e
mulheres e a lutar pela saúde.
Agradeço à Jael Rodrigues Gonçalves, minha mãe, pela agudeza de sua
inteligência, pela sensibilidade, pelo humor, por me mostrar que a vida é cheia de
contradições e que o amor não é o contrário do ódio, mas sim a indiferença. Te
agradeço pela pessoa especial e única que és.
À Betânia Maria Rodrigues Gonçalves, por sua disponibilidade constante me
tornando confiante para dedicar-me ao trabalho de tese. Obrigada por me deixares
saber que estarias sempre por perto.
Ao Ricardo Rodrigues Gonçalves e a Maria Lúcia Celaro Teixeira que
desprendidamente me entregaram sua casa, em Garopaba, para que pudesse dedicar-
me inteiramente aos estudos no ano de 2005.
Ao Ariel Rodrigues Gonçalves, que previa meus vacilos antes mesmo que os
tivesse tido e que, com dedicação e cuidado e por vezes mesmo, muito assertivamente,
tomava para si a tarefa de cuidar de meus momentos de temores e inquietações me
acompanhando, passo a passo. Te agradeço pela presença tão forte e ao mesmo quase
invisível.
Agradeço igualmente ao Daniel Plentz, meu filho, que se fez homem tão cedo
buscando sua autonomia do outro lado do mundo e me dando esse presente de “missão
quase cumprida”, mas que permaneceu atento compartilhando, de longe, muitas idéias
e emoções. Obrigada, meu filho, pelo homem que te tornaste.
À Janette Cardoso e à Olga Nabuco serei eternamente grata. Delas foram as
primeiras palavras que semearam a idéia da realização de um doutoramento, algo que
foi lentamente se transformando em desejo.
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Sou muito grata também à Maria Aparecida Crepaldi, minha amiga, colega,
companheira de tantos anos de luta e trabalho sem a qual não teria concretizado essa
idéia. Obrigada Cida por esses anos, pelos sonhos e pelas realizações compartilhadas e
pelos fracassos também que muito nos têm ensinado. Obrigada igualmente à querida
Carmen Leontina Ojeda Ocampo Moré com quem tenho compartido os últimos anos
de trabalho e aprendido sobre humanidade, determinação e solidariedade no trabalho.
Minhas grandes companheiras que me incentivaram a fazer essa formação tornando
concreto e gratificante esse projeto.
À Vera Blank, quero agradecer pela forma assertiva e tranqüila em que me
encaminhou ao doutorado quando ainda não me sentia segura dessa possibilidade.
Deu-me a segurança que precisava. Obrigada Vera, por teres me mostrado que era
possível.
À Denise Pires quero agradecer o ser humano maravilhoso que é. Agradecer
pela seriedade no trabalho, pela capacidade ética, pelo modelo de profissional de
saúde, pelo compromisso com a competência e com o conhecimento. Quero agradecer
pela garra, pela fé nas pessoas, por ser tão determinada e tão solidária. E por todos
esses anos que pude fazer parte de sua vida. Obrigada por tudo que aprendi contigo e
por teres estado presente em tantas situações difíceis me ajudando a enfrentar cada
uma. Sem tua presença esse doutorado não teria sido possível.
Ao Jorge Lorenzetti, que quanto mais conheço mais admiro. Querido amigo que
torceu e acompanhou todo o processo desse doutoramento. Assim como o Stéfano
Lorenzetti, que está crescendo em meio a tanto academicismo, participando com as
idéias e reflexões que os seus treze anos lhe podem permitir. E à Denise, pela
franqueza em primeiro lugar e pelo apoio incondicional. Obrigada por serem parte de
minha família.
À minha querida Izoldinha Pires que com sua fé inabalável me dedicou um
lugar muito especial em seu altar e a sua maneira buscou proteger-me nesse momento
final da elaboração da tese. Obrigada pelos cuidados.
Meu agradecimento super especial aos meus queridos e grandes amigos Maria
Teresa Rosa e Dalton Bernardes que estiveram compartilhando todo esse processo e
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que são parte fundamental de minha família da alma aonde tantas vezes, durante esse
processo, fui aquietar meu coração. Obrigada pelos afetos e por serem parte de minha
vida.
Aos meus queridos sobrinhos, Renata Martins Meditsch e Eduardo Meditsch,
André Felipe Martins e Flávia Agra Martins que me deram um importante suporte
afetivo tendo tornado possível essa caminhada.
À Eliane Matos, querida Elianinha, colega de doutorado, amiga de muitas
caminhadas, de muitas noites passadas em claro estudando, discutindo, clareando
idéias, escrevendo e reformulando textos nem bem haviam terminado. Mais que amiga
foi uma “querência”, uma casa acolhedora cheia de generosidade. Obrigada por esses
anos, pela nossa amizade.
André da Silva Monteiro, “um pinguinho de luz”, chegou quando mais
precisávamos e suas primeiras palavras e gestos nos envolveram completamente no
mundo mágico do lúdico. Os momentos com o André transformavam um dia de
trabalho em puro prazer. Obrigada Sílvia, por esse maravilhoso presente no nosso dia-
a-dia.
Quero agradecer, muito especialmente, aos meus queridos amores Lara
Mascheroni e Arthur Mascheroni. Parte importante de minha vida, que souberam lidar
com as muitas faltas que lhes impunha no nosso cotidiano e, mais do que isso, ainda
assim, nutriram minha existência de afeto e doçura. Obrigada por terem me ajudado
nessa caminhada.
À Sílvia, ao Coqui, à Eva, à Lilo, ao Carlos que entraram em minha vida como
família e souberam, com extraordinária maestria, tornarem-se amigos. Obrigada pelo
carinho e pelos cuidados em Buenos Aires.
Ao José Maria Mascheroni, agradeço pela dedicação nesses anos de
doutoramento, aos esforços infindos para manter um suporte afetivo e “logístico”
mesmo quando meu cansaço e mau humor tornavam essa “missão” quase impossível.
À Susana Seidmann, co-orientadora de meu estágio em Buenos Aires, agradeço
pela sensibilidade, por ter estado tão atenta, por ter me possibilitado um novo
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horizonte e perspectivas teóricas, pela competência técnica. Agradeço também pela
presença suave me permitindo autonomia, pelas inúmeras formas de haver se
comprometido comigo e com meu trabalho me levando a entender que os vínculos
suplantam as diferenças culturais.
Aos tantos importantes e queridos atores de minha estadia na Argentina que de
diferentes maneiras me acolheram e tornaram possível um enriquecimento inestimável.
Aos colegas do Programa de Pós-Graduação da Universidade de Buenos Aires,
especialmente à Quimy e a Silvina Cid, “compañeras de clase y del corazón”. Gracias.
À Susana Seidmann que abriu todas as portas, à Susana Azzollin, à Vera Bail, por
terem disponibilizado muito receptivamente, um espaço para que conhecesse e
assistisse os trabalhos que desenvolvem nos diferentes hospitais que atuam e ademais,
discutindo suas experiências, assim como muitos outros profissionais da saúde em
Buenos Aires que tive a grata oportunidade de conhecer. Obrigada por toda
contribuição que recebi. À Beatriz Gomes e à Débora Serebrisky devo o acalanto de
meus medos e minhas ansiedades me ajudando a transformar insegurança em “abrigo”.
À Alejandrina Wagner sou imensamente grata, por sua sólida amizade, pela
constante disponibilidade, pelos cuidados, em todo período que passei em Buenos
Aires. Obrigada Ale, foste fundamental nessa trajetória.
Ao José Ottoni Outeiral que através de seu amor pela vida e pelo trabalho e da
dedicação à formação e transmissão do conhecimento, pela sua capacidade continente
aos meus muitos momentos de fragilidade e por sua imensa generosidade me ajudou a
crescer me mostrando o caminho da gratidão e do reconhecimento. Sou profundamente
grata.
Ao meu amigo, Carlos Alberto de Macedo Ducos, o Beto, que sempre fez parte
de minha vida à revelia da distância, com seu lugar insubstituível, absolutamente
presente nos momentos mais imprescindíveis. Meu irmão de alma. Obrigada.
À Maria Helena Moraes que muitíssimo me ajudou em momentos críticos dessa
jornada, meu agradecimento.
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Aos queridos amigos, solidários e também parte importante dessa trajetória:
Silvana Pereira, Kazia e Odilon, Edson e Eloiza, Reinaldo e Lúcia, Alda, Lúcia
Rodrigues, Graça, Zezé e Prudente, Rosane, Laureci. Obrigada por terem ficado por
perto.
Agradecimentos especiais também à Aline Anacleto, que me auxiliou no
processo inicial da pesquisa pelo puro interesse em aprender. À Rejane de Farias e
Helena Berton Eidt, que como alunas foram excelentes psicólogas e agora, como
psicólogas mostraram-se excelentes na capacidade de aprender e na generosidade
como profissionais de saúde que são. Obrigada por terem se mantido sempre tão perto
e pelo precioso auxilio no processo da coleta e organização dos dados.
Sinto-me muito grata ao presente que foi conhecer a Flávia Regina Souza
Ramos e, além disso, tê-la como orientadora. Agradeço pelo refinamento de sua
sensibilidade, pelo desprendimento de sua dedicação, pela sutileza de seus limites, de
sua assertividade, do exemplo de postura ética e comprometimento com o trabalho e
com as pessoas. Obrigada Flávia pela confiança, pelo respeito e pela autonomia.
Obrigada também pelo teu saber tão generosamente compartilhado.
Agradeço aos colegas do doutorado do ano de 2003, especialmente Elianinha,
Prêta, Nalú, Magda, Albertina. Através de diferentes trocas e solidariedade a
convivência nos permitiu criar laços que transcenderam as salas de aulas. Obrigada por
tudo que tenho aprendido.
Ao Oscar Reymond, com quem compartilhei os primeiros sinais de desejo e
dúvidas frente ao doutorado, sou extremamente grata por esse momento. Agradeço
pelo acolhimento, pelos espaços de reflexão interna, por ter continuado presente em
toda essa trajetória.
Aos meus queridos colegas e alunos da Especialização e Residência em Saúde
da Família que não desistem de acreditar em sonhos e continuam fazendo o “milagre
dos pães e dos peixes”. Obrigada por tudo que temos aprendido juntos.
Ao Luiz Carlos Osório, agradeço pela delicadeza de sua escuta, pela referência
de ser humano e de profissional de saúde, pelo seu saber, saber de livros e saber de dor
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da vida. Agradeço pela confiança, pelo vínculo, pela disponibilidade e afeto durante
todos esses anos de desenvolvimento da tese.
Ao Grupo Praxis, agradeço por ter sido, nesses quatro anos, um importante pilar
onde me apoiei e aprendi muito do que sei hoje sobre pesquisa, sobre trabalho
científico, sobre construção de um coletivo acadêmico, sobre produção de
conhecimento com outros parceiros da saúde, sobre solidariedade.
Ao professores Dra. Suzana Seidmann, Dr. Mauro L. S. Caldeira dos Santos,
Dra. Denise E. Pires de Pires, Dra. Maria Aparecida Crepaldi, Dra. Francine Lima
Gelcbcke, Dra. Beatriz B. Capella, Dra. Vera Lúcia G. Blank por aceitarem participar
desta banca. Obrigada pelas horas dedicadas a essa leitura e pelas valiosas
contribuições.
Agradeço à Universidade Federal de Santa Catarina que permitiu meu
afastamento integral das atividades docentes para dedicar-me a formação assim como
ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, que possibilitou minha formação
nesse Doutorado. Sem essa oportunidade proporcionada pelo ensino público,
certamente não teria sido possível realizar esse projeto.
As coordenações e aos professores do Programa de Pós-Graduação em
Enfermagem, que têm lutado pela qualidade deste Programa. À professora Drª. Marta
Lenise do Prado, pela gestão de qualidade, beneficiando o Programa e os alunos; à
professora Drª. Maria Itayra Coelho de Souza Padilha, um agradecimento especial,
pelos anos anteriores de coordenação, pelo carinho e pelas contribuições. Às
funcionárias da Pós-Graduação, especialmente à Cláudia, pela disponibilidade e
atenção dispensada durante o curso.
À Cláudia Crespi Garcia que gentilmente realizou a primeira formatação dessa
tese e à Luzia dos Santos que tão prontamente realizou a configuração final. A ambas,
meu profundo agradecimento. Agradeço da mesma forma ao senhor Jose Jorge Cortes
Siqueira, pela amabilidade e dedicação através de seu trabalho, durante todo o
processo de doutoramento.
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Quero agradecer ainda ao Departamento de Psicologia da Universidade Federal
de Santa Catarina, aos funcionários e aos meus colegas, que para permitir-me esses
anos de dedicação ao projeto de doutoramento tiveram a generosidade de assumir
minhas atividades docentes investindo igualmente em minha formação. Sou grata
também ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC, por ter
compartilhado da vinda da Professora Drª Susana Seidmann da Universidade de
Buenos Aires, para fazer parte de minha banca de defesa de tese em especial as
professoras Dras. Maria Aparecida Crepaldi e Carmen L. O. O. Moré.
Agradeço ao “Programa de Postgrado en Psicología de la Universidad de
Buenos Aires” que muito gentilmente me recebeu permitindo uma profícua troca de
saberes e culturas.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),
pelo financiamento e acompanhamento dos meus estudos na Argentina.
E, finalmente, quero registrar meu respeito e profundo agradecimento ao
Hospital Infantil Joana de Gusmão.
GONÇALVES, Jadete Rodrigues. O profissional de saúde em enfermaria de crianças
gravemente enfermas e as implicações do cotidiano do trabalho na sua saúde. 2007. 191f.
Tese (Doutorado em Enfermagem) – Programa de Pós-Graduação em Enfermagem,
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
RESUMO
Este estudo teve por objetivo compreender as implicações do processo de trabalho no sofrimento
psíquico, nos danos à saúde e na capacidade de resiliência das equipes de saúde que atuam junto a
crianças gravemente enfermas e / ou com risco de vida em hospitais públicos. Assim, buscou
reconhecer os fatores que podem levar ao adoecimento do profissional de saúde a partir da
organização de seu trabalho, na relação com a instituição, com a equipe, com a criança e seus
familiares; e os recursos de saúde por ele utilizados com vistas a construção individual e coletiva
de estratégias de enfrentamento. Para constituir o objeto de análise, em sua complexidade e em
suas fronteiras com diferentes conhecimentos, foram articuladas idéias e pressupostos do campo
da psicologia e da saúde, que compuseram a base teórica, subdividida em quatro tópicos: sobre o
ato de conhecer e a produção de um saber sobre a saúde e a doença; sobre o trabalhar com o
sofrimento e a doença - processo de trabalho, a instituição e o profissional de saúde; sobre a
criança e seu adoecer, a hospitalização e a iminência da morte. A investigação desenvolveu-se em
um hospital público de referência no sul do país, envolvendo vinte profissionais que compõem
equipes de saúde de um ambulatório e duas enfermarias com atendimento na especialidade em
estudo. A pesquisa foi de natureza qualitativa com delineamento do tipo estudo de caso, com foco
na equipe de saúde em sua diversidade e especificidades. A coleta de dados se deu sob o vértice
da observação participante – com acompanhamento dos profissionais em suas atividades diárias
nas unidades de atendimento, consultas, atendimentos ao leito, procedimentos e reuniões de
equipe além de situações do cotidiano em vários espaços da instituição hospitalar -; entrevistas
semi-estruturadas de profissionais, considerados pelo critério de representatividade das categorias
que compõem as equipes e de profissionais em cargos de direção e chefias; e estudo documental.
Os dados coletados foram centralizados em três categorias principais: a instituição hospitalar e os
aspectos subjetivos deste lugar; o sofrimento institucional, os limites da saúde no processo de
adoecimento do trabalhador de saúde, o significado que lhes conferem e como, nesse cenário, a
resiliência se constitui; e, por fim, as articulações finais acerca de todas as escutas, refletindo-se
para onde nos levam e quais são seus limites e possibilidades. Os resultados desse estudo
apontaram na direção de um insidioso processo de sofrimento e adoecimento dos trabalhadores de
saúde frente ao ato de cuidar de crianças e adolescentes gravemente enfermos ou com risco de
morte, em uma conjuntura que evidencia aspectos do trabalho como a alienação e a fragmentação,
somando-se às características do cenário político institucional no qual ele se desenvolve. As
implicações de enfrentamentos constantes nesse contexto de trabalho contribui para o descrédito
na sua capacidade de trabalhar criativamente com a equipe e instituição, enfraquecendo a
capacidade de resiliência e o desenvolvimento de estratégias defensivas de saúde na busca de
alternativas de superação aos impasses colocados no seu exercício profissional, no âmbito das
políticas de saúde, bem como da organização do trabalho.
Palavras-chave: Saúde do trabalhador, trabalhador da saúde; processo de trabalho com
crianças gravemente enfermas; psicologia e saúde.
GONÇALVES, Jadete Rodrigues. The Health Professional in children enfirmaries
seriously sick and the envolment in their daily work and in their health. 2007. 191f.
Doctoring (Degree of Nursery) – Pos Graduation Program of Nursery. Federal University of
the State of Santa Catarina, Florianópolis.
ABSTRACT
This application has as a goal to know the envolment of the process of psychic work of
suffering, in the damage that it brings to health and in the capacity of the health teams that act
together with serious sick children , and or be in danger of death in public hospitals. In this
way seek the factors that can take the health professional to be sick, from organizing his work,
his relationship with the institution, with the team, with the child and its relatives and the
resources of health that were used by him to build individual and general strattegies of facing
it. To build the object of analysis, inside its complexity and on the boarders with different
knowlegment, were articulate pressuposed from psychology and health areas that composed
the theorical basis, subdivided in four topics: about the act of knowing and the production of
health knowlege and the disease, about working with suffer and the disease, working process,
the institution and the health professional, about the child and how he or she get sick, to be in
a hospital and the eminence of death. The investigation was developed in a public hospital
that is a reference in the south of the country, envolving twenty professionals of the health
area from an ambulatory and two emercency places with attending inthe especiality
application. The research was of qualitative nature with outlined by studying the case,
focusing on the health team, its diversity and specifities. The data gathering was given by
participant observation, with attendance of the professionals in their daily activities at their
workplaces attends, consultation, attendences in berths, procedures and meetings of the team,
beyond the daily situations in various spaces of the hospital, interviews non-structured by
professionals, considered by the criteria of representative of the categories that compound the
team and from professional function management and leadership, and ducumental application.
The cataloged data were focused in three main categories: the hospital institution and the
subjective aspects of this place, the institutional suffering, the limits of health in the process of
getting sick of the health worker, the meaning that refers to them,in this scenery,the resilience
is constituend, and finaly all the articulations of all hearings, reflecting where do they take us
and which are their limitis and possibilities. The results of this application bet on the direction
of an insidious process of suffering and getting sick of health workers facing the act of taking
care of sick and damage children and teenagers or that are in danger of death, in a conjecture
that makes evidence work aspects, with the alienation and grinding adding to the
characteristics of the institutional political scenery in which it has been developed. The facing
constant implications in this work context helped in descredit in his capacity in working
creatively with the team and the institution weaken the resilience capacity and the
development of defensive health strategies looking for alternatives to overcome the
deadlocks in his professional job in the range of the health policies, as well as the work
organization.
Keywords: Worker’s health. Worker that works with health. Process of working with
children seriously sick. Psycology and health.
GONÇALVES, Jadete Rodrigues. El profesional de salud en la enfermería de niños
gravemente enfermos y las implicaciones del cotidiano de trabajo en su salud. 2007.191f.
Tesis (Doctorado en Enfermería) – Programa de Postgrado en Enfermería, Universidad
Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
RESUMEN:
El objetivo del presente estudio es el de comprender las implicaciones del proceso de trabajo en el
sufrimiento psíquico, en los daños a la salud y en la capacidad de resiliencia de los equipos de
salud que trabajan en los hospitales públicos con niños gravemente enfermos o con riesgo de vida.
En este estudio se reconocieron los factores que pueden conducir a la enfermedad del profesional
de salud a partir de la organización de su trabajo, en su relación con la institución, con el equipo,
con el niño y sus familiares; así como con los recursos de salud por él utilizados para la
construcción individual y colectiva de estrategias de enfrentamiento. Por su complejidad y su
relación fronteriza con diferentes áreas del conocimiento, el objeto de análisis se constituyó a
partir de la relación de ideas y presupuestos del área de la psicología y de la salud, las cuales
conformaron el marco teórico, que fue subdividido en cuatro temas, a saber: sobre el acto de
conocer y la producción de un saber sobre la salud y la enfermedad; sobre el trabajar con el
sufrimiento y la enfermedad – proceso de trabajo, la institución y el profesional de salud; sobre el
niño y su enfermedad, la hospitalización y la inminencia de la muerte. La investigación se
desarrolló en un hospital público del sur del país, con la participación de veinte profesionales
pertenecientes a los equipos de salud de un ambulatorio, así como dos enfermeras que atienden en
la especialidad en estudio. La investigación fue de naturaleza cualitativa, con delineamiento del
tipo de estudio de caso, focalizando el equipo de salud en su diversidad y especificidades. La
recolección de los datos se realizó a partir de la observación participante – con el
acompañamiento de los profesionales en la realización de sus actividades diarias en las unidades
de atención, consultas, atención al lecho, procedimientos y reuniones de equipo, además de
situaciones del cotidiano en varios espacios del hospital -. También se realizaron entrevistas
parcialmente elaboradas con profesionales, seleccionados a partir del criterio de representatividad
de las categorías que forman los equipos, así como de los profesionales con cargos de dirección y
jefatura. Además, se hizo un estudio documental. Los datos recolectados fueron organizados en
tres principales categorías: el hospital y los aspectos subjetivos de ese lugar; el sufrimiento
institucional, los límites de la salud en el proceso de enfermedad del trabajador de salud, el
significado que les confiere y cómo, en ese escenario, la resiliencia se constituye; y, finalmente,
las articulaciones finales a cerca de todas las escuchas, reflejando hacia dónde nos llevan y
mostrando cuáles son sus limites y posibilidades. Los resultados obtenidos con este estudio,
señalan un insidioso proceso de sufrimiento y enfermedad de los trabajadores de salud ante el acto
de cuidar de niños y adolescentes gravemente enfermos o con riesgo de muerte, en una coyuntura
tecnológica que evidencia aspectos del trabajo, tales como la alienación y la fragmentación,
sumándose a ello, las características del escenario político institucional en el cual él se desarrolla.
Las implicaciones de enfrentamientos constantes en ese contexto de trabajo contribuyen para el
descrédito en su capacidad de trabajar creativamente con el equipo y la institución, debilitando la
capacidad de resiliencia y el desarrollo de estrategias defensivas de salud en la búsqueda de
alternativas de superación de los conflictos que se presentan en el ámbito de las políticas de salud,
así como de la organización del trabajo.
Palabras Clave: Salud del trabajador; Trabajador de la salud; Proceso de trabajo con niños
gravemente enfermos; Psicología y salud.
LISTA DE QUADRO E FIGURAS
Figura 1 - Conceitos e concepções que constituem o objeto do estudo......................................... 28
Quadro 1 - Dados de internações...................................................................................................... 88
Quadro 2 - Informações complementares........................................................................................ 89
Quadro 3: Perfil dos sujeitos da pesquisa........................................................................................ 90
Figura 2: Tela principal de trabalho com o ATLAS TI 5.0............................................................ 99
SUMÁRIO
LISTA DE QUADRO E FIGURAS.................................................................................................. 17
CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO E OBJETIVOS............................................................................ 20
CAPÍTULO II - A LITERATURA.................................................................................................. 27
2.1 ALGUMAS PALAVRAS SOBRE A ABORDAGEM TEÓRICA DO OBJETO......................... 27
2.2 SOBRE O ATO DE CONHECER E A PRODUÇÃO DE UM SABER SOBRE A SAÚDE E A
DOENÇA............................................................................................................................................. 28
2.3 SOBRE O TRABALHAR COM O SOFRIMENTO E A DOENÇA: O PROCESSO DE
TRABALHO EM SAÚDE, O CENÁRIO INSTITUCIONAL E A SAÚDE DOS PROFISSIONAIS
DE SAÚDE.......................................................................................................................................... 40
2.3.1 O processo de trabalho em saúde - reflexões atuais............................................................... 40
2.3.2 A instituição e a sua função no processo saúde-doença dos trabalhadores.......................... 49
2.3.3 O trabalho em saúde como possibilitador de satisfação e também de sofrimento e
adoecimento do trabalhador ............................................................................................................. 55
2.4 SOBRE A CRIANÇA E SEU ADOECER, A HOSPITALIZAÇÃO E A IMINÊNCIA DA
MORTE................................................................................................................................................ 66
2.5 SOBRE OUTRAS POSSIBILIDADES PARA ABORDAGEM TEÓRICA DO OBJETO:
CONCEITOS ARTICULADOS .......................................................................................................... 73
CAPÍTULO III - O PROCESSO METODOLÓGICO................................................................... 80
3.1 A HISTÓRIA DE UM PERCURSO: O LUGAR DO PESQUISADOR....................................... 80
3.2 O ESTUDO................................................................................................................................... 83
3.3 O TIPO DE PESQUISA................................................................................................................. 85
3.4 O CENÁRIO E OS PARTICIPANTES......................................................................................... 87
3.5 COLETA DE DADOS - INSTRUMENTOS E PROCEDIMENTOS DE REGISTRO..................... 92
3.6 PROCESSO DE ANÁLISE DOS DADOS .................................................................................. 98
3.7 RIGOR ÉTICO............................................................................................................................. 102
CAPÍTULO IV - A INSTITUIÇÃO HOSPITALAR E O CENÁRIO QUE NÃO SE VÊ: OS
ASPECTOS SUBJETIVOS DESTE LUGAR ............................................................................... 103
4.1 O OLHAR DOS SUJEITOS SOBRE O SEU TRABALHO NA INSTITUIÇÃO: UM LUGAR DE
CONFLITOS E CONTRADIÇÕES................................................................................................... 104
4.1.1 Os constrangimentos institucionais: a importância, os desafios e as dores de trabalhar em
uma instituição pública de saúde.................................................................................................... 104
4.1.2 A organização do trabalho ..................................................................................................... 112
4.1.3 Condições de trabalho: o dilema de reinventar possibilidades no enfrentamento das
exigências e limites institucionais.................................................................................................... 117
4.1.4 Relações de trabalho na complexidade do cuidar de crianças gravemente enfermas....... 124
4.2 A MORTE NO CONTEXTO HOSPITALAR INFANTIL.......................................................... 127
4.2.1 Breve contextualização das principais morbidades clínicas no contexto pesquisado ....... 129
CAPÍTULO V - SOFRIMENTO INSTITUCIONAL: QUAL É O LIMITE DA SAÚDE? ...... 141
CAPÍTULO VI - CONSIDERAÇÕES FINAIS - TECENDO ESCUTAS. PARA ONDE?...... 165
REFERÊNCIAS............................................................................................................................... 175
APÊNDICES..................................................................................................................................... 183
APÊNDICE 1 - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA OS
PROFISSIONAIS DE SAÚDE.......................................................................................................... 183
APÊNDICE 2 - ROTEIRO DE ENTREVISTA................................................................................. 185
APÊNDICE 3 - ROTEIRO DE OBSERVAÇÃO............................................................................. 187
APÊNDICE 4 - AUTORIZAÇAO PARA PESQUISA ..................................................................... 188
ANEXOS........................................................................................................................................... 190
ANEXO 1 – PARECER DO COMITÊ DE ÉTICA HIJG................................................................. 190
CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO E OBJETIVOS
Este estudo apoiou-se em uma trajetória construída ao longo dos últimos 16 anos
de trabalho em psicologia hospitalar. Contudo, remete a uma trajetória de 25 anos ligada à
vida acadêmica, à universidade pública e seus percalços. Dessa forma, tornou-se
inevitável que as marcas dessa história se encontrassem impressas no caminho.
A construção de uma identidade profissional foi se consolidando gradativamente
através de uma prática em saúde nos diversos espaços de organização dos serviços, seja
em Unidades Locais de Saúde, seja em hospitais públicos. Percurso esse, junto à equipes
multidisciplinares e, particularmente, à criança hospitalizada e sua família.
A partir da experiência como educadora foi se colocando a necessidade de pensar a
formação profissional do psicólogo a luz da prática, em caminhos que pudessem
aproximar a academia da realidade de saúde brasileira, especialmente no que se refere a
inserção de alunos em instituições públicas hospitalares. Procurou-se aliar os
conhecimentos teóricos tradicionais à construção de um novo saber oriundo da vivência
do cotidiano das instituições hospitalares. Ao mesmo tempo se consolidava a necessidade
de contribuir com uma formação mais crítica em saúde e privilegiando-se o caráter
interdisciplinar.
Em 1991, dando continuidade a uma iniciativa de duas professoras do
departamento de Psicologia da UFSC, desenvolvi um projeto na Enfermaria de Pediatria
do Hospital Universitário (HU), desta Universidade. No início de 1992 iniciei um outro
projeto com características semelhantes em uma outra instituição pública hospitalar de
grande relevância no Estado.
Estes dois projetos tinham por objetivo possibilitar um espaço onde a prática e a
teoria pudessem ser pensadas de forma menos fragmentada e mais próxima à realidade.
Também visavam atender a comunidade de baixa renda, envolvendo um trabalho de
caráter multi e mesmo interdisciplinar que contribuísse para a formação de psicólogos
comprometidos com a saúde pública dentro do contexto hospitalar, considerando a
totalidade do sujeito doente tanto no âmbito curativo como no de prevenção e de
21
promoção à saúde.
Assim, nos dois hospitais deu-se início a um processo de investigação e de
intervenção fortemente articulado aos Serviços de Psicologia de ambas as instituições. As
atividades desenvolvidas contemplaram três grandes âmbitos: o da criança, o da família e
o da equipe de saúde.
Em 1997, os projetos foram reavaliados e sofreram um redimensionamento de sua
abrangência, com uma redução nas frentes de trabalho. Tal iniciativa orientou-se pela
necessidade de aprofundamento do ensino e de qualificação da participação junto às
equipes e à comunidade. Com isto, foi possível desenvolver-se trabalhos com caráter
também investigativo (projetos de pesquisa-ação) e uma razoável produção científica
1
. Já
em fins de 1995, em uma das instituições mencionadas, o projeto contribuiu, juntamente
com os esforços da equipe de psicologia do hospital, para a valorização e reafirmação da
necessidade do trabalho do psicólogo nas equipes de saúde. Nessa época, a direção da
instituição solicitou a ampliação da atuação da psicologia para diversas unidades do
hospital, assim como a contratação de mais profissionais desta área. Na ocasião foram
contratados mais quatro psicólogos, indicando o reconhecimento e a consolidação deste
profissional no quadro efetivo da Instituição.
Infelizmente, dados os trâmites burocráticos e as dificuldades de abertura de
concursos assim como de contratação, no momento atual este hospital conta com apenas
três profissionais efetivos de psicologia no quadro funcional.
No hospital universitário da UFSC, da mesma forma, foi possível uma significativa
produção científica
2
, assim como a criação de instrumentos de trabalho - cartilhas e outros
recursos técnicos - efetivamente incorporados à dinâmica do trabalho da equipe.
Esta breve retrospectiva histórica pretendeu clarificar o vínculo construído com a
temática escolhida para o trabalho de tese assim como a proximidade com o contexto e
com os sujeitos da pesquisa.
A pesquisa desenvolvida, portanto, nasceu como resultado da integração de uma
experiência de mais de uma década em psicologia hospitalar, na perspectiva de uma
1
Dentre as quais destaco: GONÇALVES, J., OLIVEIRA, J.S. (2003ª); GONÇALVES, J. et al (2003b);
GONÇALVES
1
, J., FARIAS, R. (2001); GONÇALVES, J., SILVA, J. S. G. (2001ª); GONÇALVES, J. et al
(1999).
2
GONÇALVES, J. (2002ª); GONÇALVES, J., MARCON, C., BEZ, A. S. (2002b); GONÇALVES, J. (2001b);
GONÇALVES, J. et al (2000); GONÇALVES , et al (2000); GONÇALVES , at al (2000).
22
formação acadêmica crítica, eticamente comprometida e contextualizada histórica, social
e culturalmente. Cabe também destacar que surgiu dos anseios dos próprios profissionais
de saúde. Tal iniciativa pôde justificar-se ao buscar responder a uma demanda da
instituição, a partir do desafio em se conceber alternativas teórico-metodológicas
orientadas em um pensamento menos fragmentado e em uma produção de conhecimento
articulada à realidade da população para a qual este conhecimento é gerado.
Dessa forma, parte-se do pressuposto de que um trabalho oriundo de uma
necessidade acadêmica poderá contribuir para a transformação da realidade. Isto, na
medida em que, através da formação de pesquisadores e de profissionais competentes,
produza conhecimento pautado no comprometimento com e para a comunidade da qual
obtém sustentabilidade.
A presente pesquisa desenvolveu-se em um hospital público de referência no sul
do país, de baixa, média e alta complexidade. O trabalho foi realizado com vinte
profissionais das áreas de enfermagem, medicina, serviço social, psicologia e nutrição que
compõem as equipes de saúde de um ambulatório e de duas enfermarias. Tais
profissionais, dentro do universo de sua atuação assistencial, atendem crianças e
adolescentes gravemente enfermos e ou com risco de morte. Apesar desta trajetória de
busca de conhecimento estar fortemente marcada pelo olhar da infância e seu universo de
desejos, de perplexidades, de dor, de medos, de fantasias e de segredos, seus e do
ambiente que a significa (família, hospital e equipe), o objeto deste estudo não foi a
criança. Mas entende-se que, a partir de seu olhar, se pode encontrar e escutar uma outra
demanda, a dos parceiros, profissionais da saúde, que no cotidiano de seu trabalho se
constroem - ou se mutilam - como possibilitadores, mediadores da vida.
Na experiência acima relatada observou-se, sistematicamente, no contexto
hospitalar, o quanto estes profissionais se vêem expostos a maciças e intensas expectativas
e projeções de angústias, desejos, dores, sofrimentos, idealizações, perdas simbólicas e
reais. São solicitados a disponibilizar um inesgotável “seio bom” - nutriente que acolha e
acalente os desconfortos físicos, psicológicos e sociais. Estão sujeitos a conluios e
cumplicidades com o explícito e o implícito estabelecido na relação com a clientela, com
a própria equipe e com a instituição. Colocam-se frente às incertezas do humano, aos
limites de seu conhecimento, à ambivalência de seus afetos, à fragmentação e alienação
23
do trabalho realizado.
Além desses aspectos, foram também identificados, em um trabalho realizado
anteriormente, com uma das equipes de saúde referidas: - falta de recursos científicos e
tecnológicos, como infra-estrutura, medicamentos necessários, equipamentos adequados,
entre outros; - percepção de dependência em relação aos colegas (saber) e à própria
instituição; - percepção de incompletude e de finitude frente à doenças crônicas, terminais,
morte, falta de aderência ao tratamento, entre outros
3
.
A análise desses dados evidenciou conflitos e contradições entendidos pelo grupo
como fatores que contribuem para empobrecer a sua capacidade de viver o cotidiano de
trabalho de forma saudável. Apontaram à necessidade de se desenvolver trabalhos junto
com a psicologia, que envolvessem atividades grupais com toda equipe de saúde, na busca
de estratégias para lidar melhor com os conflitos e ansiedades resultantes do trabalho com
crianças e familiares em situações de doença, dor e morte.
Conflitos e contradições fazem parte da complexidade da dinâmica institucional e
humana. No entanto, o processo de adoecimento institucional gerado, ora no âmbito
individual, ora no âmbito coletivo, pode se instalar e gradativamente obstacularizar o
potencial de saúde desses sujeitos, assim como a capacidade de produção criativa, levando
a desmotivação, à descrença na própria capacidade de trabalho e a morte da gratificação -
alimento de vida.
No enfrentamento desta realidade, portanto, os profissionais de saúde, muitas
vezes, se vêem coagidos e fragilizados. O sentimento de solidão, de fracasso e o
imobilismo gerado, podem levá-los à busca de soluções individualistas, corporativistas e
descompromissadas com o coletivo. (PITTA, 1994; GOMES, 1997).
Fela Moscovici (1996) traz um conceito interessante ao analisar organizações, se
utilizando da psicanálise para isso. Refere que nas organizações há aspectos de luz, ou os
visíveis, aparentes e racionais; e há aspectos de sombra, os que não conseguem ser vistos
com muita nitidez, ficam no escuro como se não existissem e não tivessem influência
sobre os aspectos “claros”, os permitidos. No entanto, a revelia dos usualmente
3
Este levantamento desenvolveu-se durante o ano de 2002, a partir da solicitação dos profissionais, das várias
categorias que compõem a equipe de saúde mencionada, e tratou-se de uma investigação sobre a compreensão
que estes profissionais tinham frente à organização do trabalho e a dinâmica das relações estabelecidas entre os
membros da equipe, entre equipe e usuários/familiares, entre equipe e instituição acerca do processo
saúde/doença vivenciado neste cotidiano de trabalho. Material não publicado.
24
reconhecidos - concernentes a tarefas, a objetivos e planos, a hierarquias, a tecnologia, a
produtividade, a cooperação, ao trabalho em equipe, entre outros - existem sistemas
intrínsecos com valores diferentes dos apregoados internamente. Coloca que a
organização
[...] aceita competição, agressão e a violência; minimiza e esconde fracassos de
pessoas e grupos; só vê um seguimento da pessoa (o elemento produtivo); utiliza
coerção, através de ameaças, punições e privações; ignora que casamento e família
dos empregados fazem parte de seu contexto; rejeita o irracional como um
componente sempre presente; repudia a idéia de que o sexo dos empregados e
suas implicações afetam o comportamento organizacional; nega a existência
espiritual em seu interior (MOSCOVICI, 1996, p. 15-16).
A autora cita ainda que “a compreensão da dinâmica organizacional requer o
estudo de ambos os aspectos, o claro e o escuro da organização” (MOSCOVICI, 1996,
p.16).
Assim, com inquietação de uma pretendida consciência interdisciplinar, colocou-se
este problema de uma complexidade tão imensa: um insidioso e implacável processo de
rupturas sócio-afetivas, de mascaramentos de si mesmos, de muros e abismos
sistematicamente construídos no limiar do exercício de trabalhar entre a vida e a morte.
Que prognósticos podem-se esperar? Como lidar com tais desafios? Com que recursos? A
partir de que estratégias?
Considerando-se a diversidade de fatores que podem contribuir para o
empobrecimento dos recursos e das capacidades destes profissionais de saúde estudados,
bem como os aspectos que os possibilitam trabalhar de modo saudável a partir da
complexidade de seu objeto de trabalho, e buscando identificar os subsídios potenciadores
de saúde, individuais e coletivamente construídos no exercício profissional, busquei
investigar o processo de adoecimento do profissional de saúde neste ambiente de trabalho.
Neste sentido não limitei a compreensão deste adoecimento ao que se pode delimitar em
termos de classificações diagnósticas que distinguem o trabalhador como “doente” e sobre
ele fazem incidir processos de tratamento, afastamento e direitos trabalhistas, ou seja,
numa acepção de adoecimento reconhecida no discurso oficial e suas estatísticas ou numa
visão instrumental de saúde
4
. Considerei adoecimento em uma relação estreita com o
sofrimento e com as perdas de potencialidades para o viver e trabalhar saudável, com
4
Conforme será tratado no item 2.2 desta tese.
25
sentido e com gratificações pessoais. Considerei ainda, neste contexto, a instituição e os
atores desta história: crianças, familiares e equipe de saúde, para responder a seguinte
questão de pesquisa:
Quais são as implicações do processo de trabalho no sofrimento psíquico, nos
danos à saúde e na capacidade de resiliência das equipes de saúde que atuam junto a
crianças gravemente enfermas e ou com risco de vida em hospitais públicos?
Este trabalho teve portanto, como objetivos:
Compreender as implicações do processo de trabalho no sofrimento psíquico,
nos danos à saúde e na capacidade de resiliência das equipes de saúde que
atuam junto a crianças gravemente enfermas e ou com risco de vida em
hospitais públicos.
Reconhecer os fatores que podem levar ao adoecimento do profissional de
saúde, a partir da organização de seu trabalho, na relação com a instituição,
com a equipe, com a criança e seus familiares; e os recursos de saúde por ele
utilizados com vistas a construção individual e coletiva de estratégias de
enfrentamento.
Enfim, gostaria de trazer ainda Eizirik (2001) quando refere que, se os
profissionais de saúde, ao invés de se colocarem na impossível tarefa de árbitros da
existência final, trocassem o papel de “curar” por cuidar, baseados no contato entre seres
humanos, despidos das defesas e convenções que os protegem; se, tolerassem a
consciência do pouco poder que se tem frente à imprevisibilidade da vida, das muitas
doenças implacáveis que acenam para o limite humano; se, frente à morte,
compreendessem sua restrita função de assistentes, de facilitadores desta passagem, talvez
pudessem desenvolver uma escuta do outro e, principalmente de si mesmos.
Talvez, pudessem ter menos medo de viver o risco de errar e pudessem aprender
com cada pessoa doente, com seu desprendimento, com o despudor, com o desejo, com a
falta e com a coragem com que generosamente os brindam, a cada dia.
Talvez, cada um de nós pudesse aceitar (apesar de tudo), o desafio de viver.
Considerando-se o cenário apresentado cumpre afirmar a provisoriedade da tese
que defendo neste estudo - a qual será certamente ajustada, modificada, negada,
transcendida a cada novo olhar sobre o fenômeno, a cada novo encontro com os atores e
26
com a imponderável complexidade da vida – formulando-a da seguinte maneira:
O ato de cuidar de crianças e adolescentes gravemente enfermos e ou com risco de
vida, mobiliza conflitos e angústias capazes de gerar sentimentos de desqualificação e
crise de identidade profissional (e pessoal) nos trabalhadores de saúde. As características
deste trabalho, aliadas a de cada sujeito trabalhador e a do cenário político institucional,
podem resultar em intenso desgaste físico e emocional, causando sofrimento psíquico
adoecedor e danos a sua saúde em geral, o que poderá favorecer o descrédito na sua
capacidade de trabalhar criativamente com a equipe e instituição, na busca por alternativas
de superação aos impasses colocados no âmbito de seu cotidiano profissional, das
relações, da organização do trabalho e das políticas de saúde.
CAPÍTULO II - A LITERATURA
2.1 ALGUMAS PALAVRAS SOBRE A ABORDAGEM TEÓRICA DO OBJETO
Para constituir o objeto de análise deste estudo, em sua complexidade e em suas
fronteiras com diferentes conhecimentos, procurou-se, em um primeiro momento,
identificar quais conceitos e concepções seriam fundamentais para compô-lo de forma a
ampliar seu horizonte contextual. A partir daí iniciou-se uma trajetória de pesquisa
bibliográfica acerca de estudos, pesquisas, teses e teorias que pudessem contribuir, através
de suas proposições e conceitos, para, em um segundo momento, explicitá-lo o mais
claramente possível. No diálogo com esses autores buscaram-se articulações que
destacassem idéias e pressupostos para compor este capítulo, o qual foi subdividido em
quatro tópicos. Dessa forma foi possível constituir-se a figura 1 a seguir com a estrutura
geral da abordagem teórica que deu suporte aos desafios enfrentados.
28
CONCEITOS E CONCEPÇÕES QUE CERCAM E CONSTITUEM O OBJETO
DE ESTUDO
Figura 1 - Conceitos e concepções que constituem o objeto do estudo
2.2 SOBRE O ATO DE CONHECER E A PRODUÇÃO DE UM SABER SOBRE A
SAÚDE E A DOENÇA
Uma das discussões mais empolgantes no ocidente moderno se desenvolve em
torno do que se pretende designar por ciência. A epistemologia, mais do que pensar a
ciência assume atualmente a tarefa de pensar todas as formas de conhecimento. As
Sobre o ato de
conhecer e a
produção de um
saber sobre a saúde
e a doença
Sobre o trabalhar
com
o sofrimento e a
doença: processo de
trabalho, a instituição e
o profissional de saúde
Sobre a criança
e seu
adoecer, a
hospitalização e a
iminência da morte
Sobre outras
possibilidades para
abordagem teórica
do objeto
conceitos
articulados
OBJETO DE ESTUDO:
y O Processo de Trabalhoy O conhecimento e
a ciência
y A relação entre os
saberes
y A saúde e a doença
y O trabalho em saúde
y A instituição
y O Sofrimento
y Processo saúde doença
do trabalhador
y A criança e seu
desenvolvimento
y O adoecimento,
hospitalização e morte
infantil
y Vínculo
y Comunicação
y Resiliência
Articulação e proposição dos conceitos e concepções, a partir da
contribuição de estudos e teorias.
Principais Referenciais Utilizados:
Santos, B.(2002)
Nigro (2004)
Da Ros (2000)
Berlinguer(1998)
Fleck (1986)
Capra (1982)
Osório, L.(2003)
Peduzzi (2001)
Pires, D.(1999)
Kaës (1998)
Bleger (1984)
Torres (2002)
Crepaldi (1999)
Winnicott(1982)
Freud, A. (1978)
Infante (2002)
Melillo et al.(2002)
Pichon-Riviere(1998)
Watzlawick (1993)
Jacques (2003)
Dejours (2000)
Codo W. (1994)
O processo de
trabalho em saúde –
reflexões atuais
A instituição e a sua
função no processo
saúde-doença dos
trabalhadores
O trabalho em saúde como
possibilidade de satisfação e
de sofrimento e adoecimento
do trabalhador
29
controvérsias sobre os critérios, alcance e limites do saber científico permanecem
enquanto, mais e mais, questiona-se qualquer pretensão de exclusividade de um saber,
como válido, verdadeiro ou absoluto.
Embora atualmente não possamos mais falar na hegemonia absoluta de um modo
de conceber ciência, ou tampouco, do modelo cartesiano, muitas das críticas ao processo
de desenvolvimento de saberes e práticas científicas são atribuídas ao forte impacto da
ciência moderna, desde sua emergência.
Santos (2002) ao referir o modelo de racionalidade científica do paradigma
dominante da modernidade assinala que, em alguns de seus principais traços, este modelo
atravessa uma profunda crise. Coloca que esta crise não é só profunda como irreversível;
que estamos vivendo um período de revolução científica que se iniciou com Einstein e a
mecânica quântica e não se sabe quando acabará; e que os sinais desta crise nos permitem
tão só especular acerca do paradigma que emergirá deste período revolucionário, mas que
desde já se pode afirmar que as distinções básicas em que se assenta o paradigma
dominante de ciência entrarão em colapso. O interessante é visualizar com Santos que o
aprofundamento do conhecimento permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda.
Na mesma direção, Capra (1982) refere que a crença na certeza do conhecimento
científico que está na base da filosofia cartesiana e na visão de mundo dela derivada
mostrou-se insuficiente para a física do século XX. Nesta, não existe verdade absoluta em
ciência, todos os conceitos e teorias são limitados e aproximados.
Uma das questões apontadas por esses autores se refere ao que Japiassu (1976, p.94),
assim como Gusdorf (apud JAPIASSU, 1976, p.26), resgatam ao falarem de
interdisciplinaridade. O alerta se faz sobre a forma caótica em que se encontra o saber
científico, sobre a necessidade de se instaurar um diálogo entre as várias disciplinas e sobre o
perigo do processo da especialização galopante, como tendência hermética e dogmática,
[...] sem portas nem janelas, cada um surdo em relação ao outro, voltado apenas
para seu ponto de vista próprio. Um saber cortado das condições sócio-históricas
de sua produção, onde ainda prevalece o espírito de concorrência epistemogica
[...] uma ilha de saber, cercada por um oceano de ignorância e a esse minifúndio
de saber se apegando com tremenda vaidade. [...] a verdade do conhecimento é
uma procura e não uma posse. O interdisciplinar não é algo que se ensine ou que
se aprenda. É algo que se vive [...] uma atitude de espírito feita de curiosidade,
de abertura, de sentido da aventura, de busca, de intuição das relações existentes
entre as coisas e que escapam a observação comum. Tentativa de apreender o
homem em sua totalidade (JAPIASSÙ, 1976, p. 102).
30
Discutindo acerca da configuração dos paradigmas de ciência, Santos
(2002, p.37-58) caracteriza e analisa o que identifica como “o fim de um ciclo
de uma certa ordem científica”. Especula o perfil de uma nova ordem científica
emergente, fazendo distinção entre as condições teóricas e as condições
sociológicas de sua emergência. As teses apresentadas por ele, acerca do
paradigma emergente foram trazidas na forma como ele as colocou justamente
pela aproximação com as idéias que orientam as reflexões deste trabalho.
Todo o conhecimento científico-natural é científico-social:
A distinção dicotômica entre ciências naturais e ciências sociais deixou de ter
sentido e utilidade. Esta distinção se baseia em uma concepção mecanicista da matéria e
da natureza a que se contrapõe, com pressuposta evidência, aos conceitos de ser humano,
cultura e sociedade. Os avanços recentes da física e da biologia põem em causa a distinção
entre o orgânico e o inorgânico, entre seres vivos e matéria inerte e mesmo entre o
humano e o não humano. Propõe-se um conhecimento, que se funda na superação das
distinções como natureza/cultura, natural/artificial, vivo/inanimado, mente/matéria,
observador/observado, coletivo/individual, subjetivo/objetivo, animal/pessoa. Tal
perspectiva dicotômica repercute nas disciplinas científicas que sobre elas se fundam. A
concepção humanista das ciências sociais, enquanto agente catalisador da progressiva
fusão das ciências naturais e ciências sociais, coloca a pessoa enquanto autor e sujeito do
mundo, no centro do conhecimento, mas, ainda coloca o que hoje designamos por
natureza no centro da pessoa. É necessário descobrir categorias de inteligibilidade globais,
conceitos quentes que derretam as fronteiras em que a ciência moderna dividiu e encerrou
a realidade.
Todo o conhecimento é local e total:
Na ciência moderna o conhecimento avança pela especialização. O dilema básico
da ciência moderna reside no fato do conhecimento ser tanto mais rigoroso quanto mais
específico. “O seu rigor aumenta na proporção direta da arbitrariedade com que espartilha
o real” (SANTOS, 2002, p. 46). Sendo disciplinar tende a ser um conhecimento
disciplinado, isto é, segrega uma organização do saber orientada para policiar as fronteiras
entre as disciplinas e reprimir os que as quiserem transpor. É hoje reconhecido que a
excessiva parcelização e disciplinarização do saber científico faz do cientista um ignorante
31
especializado. Os efeitos negativos são, sobretudo, visíveis nas ciências aplicadas como,
por exemplo, o impacto destrutivo da tecnologia nos ecossistemas, ou em como a
hiperespecialização do saber médico transforma o doente em uma quadrícula sem sentido.
No entanto, não haverá mudanças efetivas para este problema no seio do paradigma
dominante, justamente porque é este que constitui o verdadeiro problema do qual
decorrem todos os demais.
No paradigma emergente o conhecimento além de total é também local. É uma
ciência tradutora, isto é, incentiva os conceitos e as teorias desenvolvidos localmente a
emigrarem para outros lugares cognitivos, de modo a serem utilizados fora de seu
contexto de origem. Além disso, é um conhecimento sobre as condições de possibilidade
da ação humana projetada no mundo a partir de um espaço-tempo local. Constitui-se a
partir de uma pluralidade metodológica. “Só uma constelação de métodos pode captar o
silêncio que persiste entre cada língua que pergunta” (SANTOS, 2002, p.48). Essa
pluralidade de métodos só é possível mediante transgressão metodológica. Não há um
estilo unidimensional, há uma configuração de estilos, cada cientista constrói o seu estilo
segundo critério e imaginação pessoal. Um outro lado da pluralidade metodológica é a
tolerância discursiva.
Todo conhecimento é autoconhecimento:
A ciência moderna consagrou o homem enquanto sujeito epistêmico, mas
expulsou-o enquanto sujeito empírico. Um conhecimento objetivo, factual e rigoroso não
tolerava a interferência dos valores humanos ou religiosos. A distinção entre sujeito e
objeto teve de se articular metodologicamente com a distância empírica entre sujeito e
objeto. A mecânica quântica, assim como já havia sido feito pelas ciências sociais, trouxe
de volta o sujeito ao demonstrar que o ato de conhecimento e o produto do conhecimento
eram inseparáveis. Os avanços da microfísica, da astrofísica e da biologia das últimas
décadas restituíram à natureza as propriedades de que a ciência moderna a expropriou.
Hoje sabemos ou suspeitamos que a nossa trajetória de vida pessoal ou coletiva
(enquanto comunidades científicas) e os valores, as crenças e os prejuízos que transportam
são as provas íntimas do nosso conhecimento, sem o qual as nossas investigações
laboratoriais ou de arquivo, os nossos cálculos ou os nossos trabalhos de campo
constituiriam um emaranhado de diligências absurdas. No paradigma emergente, o caráter
32
autobiográfico e auto-referenciável da ciência é plenamente assumido. Hoje não se trata
tanto de sobreviver como de saber viver. Para isso é necessária uma forma de
conhecimento compreensivo e íntimo que não nos separe, mas, antes, nos una ao que
estudamos. A incerteza do conhecimento, que a ciência moderna sempre viu como
limitação técnica destinada a sucessivas superações, transforma-se na chave do
entendimento de um mundo que mais do que controlado têm que ser contemplado. Trata-
se da prudência indispensável a um mundo que nos mostra a precariedade do sentido de
nossas vidas por mais segura que possa estar a nossa sobrevivência.
A criação científica no paradigma emergente assume-se como próxima da criação
literária ou artística. E o discurso científico aproximar-se-á cada vez mais do discurso da
crítica literária. Cada um é a tradução do outro, ambos criadores de textos em distintas
línguas, necessárias para aprender a gostar das palavras e do mundo. Assim o
conhecimento científico ensina a viver e traduz-se num saber prático.
Todo conhecimento científico visa constituir-se em senso comum:
A ciência moderna produz conhecimentos e desconhecimentos. A ciência pós-
moderna sabe que nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma, racional. Só a
configuração de todas elas é racional. Procura dialogar com outras formas de
conhecimento deixando-se penetrar por elas; sendo a mais importante delas, o
conhecimento do senso comum. Apesar do senso comum ser um conhecimento que tende
a ser mistificado e mistificador, conservador, podendo legitimar prepotências, se
interpenetrado pelo conhecimento científico pode estar na origem de uma nova
racionalidade porque traz em si uma dimensão utópica e libertadora que pode ser
ampliada através deste diálogo. Dessa forma o grande salto é o que é dado do
conhecimento científico para o conhecimento do senso comum. Ao sensocomunicar-se,
não despreza o conhecimento que produz tecnologia, mas entende que o conhecimento
deve se traduzir em autoconhecimento, em sabedoria de vida. Na nossa aventura científica
a prudência é a insegurança assumida e controlada. No limiar da ciência pós-moderna,
devemos exercer a insegurança ao invés de sofrer.
Nesta fase de transição e de revolução científica nenhum de nós pode visualizar
projetos concretos de investigação que correspondam inteiramente ao paradigma
emergente delineado. Estamos divididos, fragmentados. Sabemos que estamos a caminho,
33
mas não exatamente onde estamos na jornada. A condição epistemológica da ciência
repercute-se na condição existencial dos cientistas. Se todo conhecimento é
autoconhecimento, também todo o desconhecimento é autodesconhecimento.
Esta introdução sobre o conhecimento e ciência pode, agora, mostrar-se em sua
profunda implicação sobre o campo de saberes e práticas da saúde. Embora quase sempre
as discussões da epistemologia tenham se dado sobre as ciências básicas ou puras – até
mesmo por seu tradicional foco na “ciência” e não no “conhecimento” - temos na
contribuição de Fleck um exemplo de reflexão epistemológica realizado com base no
desenvolvimento de um saber sobre a doença, bem como nas relações complexas entre
diferentes campos, na produção e aplicação destes saberes, que não aqueles estritamente
pensados como científicos ou da ciência de laboratório.
Ludwick Fleck
5
percebia as doenças como entidades complexas, que não podem
ser descritas em termos de casualidade simples. Referia que na doença existe sempre
interação entre dois organismos complexos - hospedeiro e parasita e estes são pensados de
diferentes pontos de vista, dependendo daquele que o aborda (médico, bioquímico,
serologista, sociólogo). Considerando que uma visão global ou unitária não era possível,
mas apenas diversos pontos de vista sobre um mesmo fenômeno, afirmou que a
enfermidade para ser compreendida deve ser considerada sobre distintos ângulos, ou seja,
deve envolver o olhar de cada uma das disciplinas. Uma compreensão global do
fenômeno exige a consideração das diversas perspectivas para uma aproximação da
totalidade. Tal visão pressupõe uma perspectiva interdisciplinar do saber acerca da
enfermidade, como evento.
Um de seus pressupostos básicos se refere a ciência como algo que não é realizado
individualmente, mas cooperativamente entre pesquisadores. A partir da forma como se
dá a construção do conhecimento na área médica, desenvolve sua teorização acerca dos
estilos e coletivos de pensamento. Destaca no desenvolvimento histórico do
descobrimento da reação de Wassermann para detecção da sífilis, o trabalho de inúmeros
5
Fleck foi médico, serologista e epistemólogo de origem judaico-polaca, nascido na cidade de Lwów, Polônia
em 1896. Com base na investigação médica, desenvolveu suas elaborações filosóficas, escreveu diversos artigos
científicos e em 1935 produziu seu livro “A Gênese e o desenvolvimento de um fato científico”, no qual discute
sobre a construção coletiva do saber científico a partir da história da sífilis e da reação de Wassermann para
detecção da doença. Desenvolveu parte de suas idéias acerca da ciência em meio à turbulenta realidade da
Polônia dividida, durante a segunda Guerra Mundial.
34
investigadores em diferentes lugares, de forma que participavam diferentes colaboradores,
inúmeras contribuições, um trabalho apoiando-se no outro. Ao descobrir-se à reação
tornava-se impossível distinguir a contribuição individual de cada um. Para a efetivação
da investigação Fleck vai afirmar que o trabalho científico é concebido a partir de um
coletivo de pensamento /estilo de pensamento.
Da Ros (2000, p.15), referindo Fleck, esclarece o que o autor chama de estilo/
coletivo de pensamento, colocando que estilo de pensamento se aproxima de “um
perceber dirigido, com a correspondente elaboração intelectiva e objetiva do percebido
[...]” e que todo estilo de pensamento corresponde a uma prática.
Portanto, um estilo de pensamento não existe individualmente. Existe no interior
de determinado coletivo de pensamento. Coletivo de pensamento para o autor designa a
unidade social da comunidade de cientistas, ou de um campo determinado do saber (grupo
profissional) (FLECK, 1986).
Um fato científico é como uma regra desenvolvida por um grupo de pessoas
unidas por um estilo de pensamento comum, que tenta abranger os pressupostos sobre os
quais o grupo constrói seu estoque específico de conhecimento, sua unidade conceitual e
prática. Um estilo de pensamento constrói seu corpo de práticas; métodos e ferramentas
para a investigação e critérios para julgar seus resultados. Define também o que deve ser
considerado como um problema científico e como lidar com este problema. O estilo de
pensamento de uma dada comunidade de cientistas molda, portanto, “os fatos científicos”
(conceitos, objetos ou métodos) produzidos por esta comunidade (FLECK, 1986, p.237).
Para o autor não existe na atividade investigativa o observar livre de
pressuposições. Cada descoberta, cada novo conhecimento, é um produto da comunidade
de cientistas, que foi moldada pelas múltiplas interações desta comunidade com outros
grupos e estruturas sociais: pacientes, familiares, clínicos gerais, políticos, profissionais de
várias áreas e lugares (LOWY, p. 236). Suas contribuições vão auxiliar no entendimento
do processo saúde /doença, nas diversas disciplinas na área da saúde, bem como na
questão da prática interdisciplinar.
Não se pode negar que o debate sobre o processo saúde–doença é complexo e
influenciado por diversas visões e significados, conforme a época e a cultura. O conceito
de saúde, como o conceito de vida, não pode ser definido com precisão; os dois estão, de fato,
35
intimamente relacionados. O que se entende por saúde depende da concepção que se possua
do organismo vivo e de sua relação com o meio ambiente. Como essa concepção muda de
uma cultura para outra e de uma era para outra, as noções de saúde também mudam.
Saúde é uma experiência subjetiva, portanto, impossível de ser definida com
precisão. Capra (1982, p. 314-315) define saúde como um estado de bem-estar que se
estabelece quando o organismo funciona de certa maneira, dependente de suas interações
com o meio ambiente. Dessa forma os conceitos afins de mal-estar, doença e patologia
não se referem a algo bem definido, mas são partes integrantes de modelos limitados e
aproximados que reflete uma teia de relações entre múltiplos aspectos do complexo e
fluído fenômeno da vida.
A partir deste entendimento evidencia-se que as noções de saúde e de doença são
fortemente influenciadas pelo contexto cultural em que elas ocorrem. Colocando de outra
forma, “o que é saudável e doente, normal e anormal, são e insano, varia de cultura para
cultura” (CAPRA, 1982, p.316). O modo e o significado da doença, assim como a forma
de sua comunicação, são fenômenos multidimensionais, envolvendo aspectos físicos,
psicológicos, sociais, políticos e econômicos, historicamente contextualizados.
Capra (1982) refere a filosofia oriental mostrando a visão holística de saúde–
doença que faz parte da concepção de mundo destas culturas. Cita a concepção chinesa de
saúde, na qual o equilíbrio é um conceito fundamental e a doença não é considerada
agente intruso, mas o resultado de um conjunto de causas que culminam em desarmonia e
desequilíbrio. A tendência do organismo (da natureza) é a volta a um estado dinâmico de
equilíbrio. As flutuações entre equilíbrio e desequilíbrio são vistas como um processo
natural que ocorre ao longo de todo ciclo vital. Não há uma linha divisória nítida entre
saúde e doença; tanto a saúde quanto a doença são parte de uma seqüência contínua,
aspectos do mesmo processo, em que o organismo individual muda continuamente em
relação ao meio ambiente inconstante. A doença, portanto, será inevitável no processo
vital e a saúde perfeita não é o objetivo essencial do sujeito doente ou do médico
(profissional de saúde). Nesta concepção o sujeito é visto como atuante e determinante é
responsável pela manutenção de sua própria saúde assim como pela sua recuperação e
estilo de vida, apenas tendo a participação do profissional de saúde neste processo. Por
outro lado, na prática, o sistema chinês, embora reconheça o valor dos problemas sociais
36
no desenvolvimento das doenças, parece não se preocupar em mudar a situação social.
No decorrer de toda história da ciência ocidental, o desenvolvimento da biologia
caminhou de mãos dadas com o da medicina. A concepção mecanicista das ciências
biológicas dominou a concepção da medicina em relação à saúde e à doença. A influência
do paradigma cartesiano sobre o pensamento médico resultou no chamado modelo
biomédico, que constitui o alicerce conceitual da moderna medicina científica. Apesar da
importância do método de Descartes na necessária mudança de paradigmas da época, o
espírito reducionista, que reinava contribuiu para que os fenômenos médicos passassem a
ser analisados através de estudos de fragmentos, com uma separação entre mente e corpo
percebendo-se o corpo como uma máquina que pode ser entendida em termos da
organização e do funcionamento de suas peças (CAPRA, 1982).
O modelo hegemônico de compreensão do adoecer utilizado pelos profissionais de
saúde de diversas áreas do conhecimento em saúde continua até hoje profundamente
enraizado no pensamento cartesiano que gerou este saber e o entendimento da etiologia
das doenças.
A par da evidente importância da especialização do conhecimento no avanço da
ciência e das respostas a uma série de problemas de saúde, a própria história da moderna
ciência médica mostrou repetidamente que a redução da vida a fenômenos moleculares não é
suficiente para se compreender a condição humana, seja na saúde seja na doença. Capra
(1982, p.313) assinala “que o meio ambiente criado por nosso sistema social e econômico,
baseada na visão de mundo cartesiana e reducionista, tornou-se uma séria ameaça à nossa
saúde. Uma abordagem ecológica da saúde só terá sentido se for acompanhada de profundas
mudanças em nossa tecnologia e em nossas estruturas sociais e econômicas”.
Já no final do século XVIII, como menciona Gutierrez e Oberdiek (2001), com a
concepção de causação social
6
, procura-se enfrentar a necessidade da construção de um
novo marco explicativo para a determinação do processo saúde-doença articulando-se
todos os aspectos que participam de forma essencial nesta produção.
A visão da Organização Mundial da Saúde – “a saúde é um estado de completo
6
Para analisar os complexos fatores que deram condição de emergência deste modelo explicativo seria
necessário aprofundar questões históricas importantes, que não podem ser superficializadas e que envolvem
experiências em contextos diversos, dos quais se destaca o processo de industrialização e urbanização dos países
europeus e muitas das suas conseqüências políticas, econômicas e sociais nas quais se estabelece uma relação
entre as condições de trabalho da população e o aparecimento das doenças.
37
bem-estar físico, mental e social, e não meramente a ausência de doenças ou
enfermidades”, por exemplo, descreve a saúde como um estado estático de perfeito bem-
estar, em vez de um processo em constante mudança e evolução. No entanto, apesar de
haver muitas críticas ela contempla a natureza holística da saúde (CAPRA, 1982, p. 117).
Há visões com base no modelo cartesiano, resultantes de um olhar reducionista, como já
foi mencionado antes definindo o agente etiológico como agente externo. Há outras que
relacionam as questões das condições de vida e as questões políticas com a possibilidade
de vida e saúde. Mas tem-se que considerar, também, o debate atual para o qual esta
perspectiva é insuficiente, fazendo-se necessário acrescentar a questão da singularidade na
vivência individual da doença, dentro do contexto coletivo.
Gomes (1997), alerta sobre a tendência a se apontar a doença como fruto de um
processo individual correndo-se o risco de se mascarar as relações sociais geradoras deste
quadro. Mostra como importante, também, a apropriação pelo sujeito doente de seu
processo de saúde - doença, através de informações claras acerca de seu diagnóstico e
prognóstico para que possa se tornar agente de sua própria saúde.
Campos (1995, p.50) contribui, nessa direção, assinalando que
[...] cada pessoa tem uma história singular, tendo necessidade de contar e re-
significar, ou seja, reprocessar sua história. Na história singular estão contidos seus
conteúdos inconscientes, sua sexualidade, sua condição sócio-econômica. Nesse
sentido, o conhecimento do doente vai além do entendimento da doença, pois vai
abranger a pessoa como um todo, sua história, suas aspirações, seus medos, enfim,
a sua vida e seu modo de adoecer.
Em Pitta (1994, p.26.), vemos o significado do adoecer em nossa sociedade,
marcado pelo aspecto pragmático da produção mercantilista. Refere o contexto hospitalar
colocando que o
[...] adoecer nesta sociedade é, conseqüentemente, deixar de produzir e, portanto,
de ser; é vergonhoso; logo, deve ser ocultado e excluído, até porque dificulta que
outros, familiares e amigos, também produzam [...]. Dessa forma, o hospital como
toda e qualquer instituição, reproduz as contradições sociais, e toda e qualquer
intervenção institucional não pode prescindir de tais reflexões.
A saúde deve ser pensada dentro de uma perspectiva global, abrangente, integrada
às condições de vida e trabalho de cada pessoa nas suas relações familiares e sociais. Indo
mais adiante, é importante considerar a necessidade de transformação da nossa sociedade,
como aponta Berlinguer: “Não basta uma ação preventiva de tipo técnico [...], mas é
38
necessário mudar profundamente a maneira de viver, de produzir, de relacionar-se entre
os homens. É exatamente para melhorar a saúde que não se pode aceitar passivamente
uma realidade que gera doenças” (BERLINGUER, 1988, p.138).
Berlinguer (1988), como diversos outros autores, critica a concepção de saúde
como estado, entendendo-a como processo. Observa que há um "ciclo contínuo saúde-
doença, que se desenvolve não somente no interior do organismo, mas entre esse e o
ambiente”. Assinala que seria mais exato se falássemos de doença no plural. Explicita a
necessidade de uma classificação dos fenômenos patológicos que supere os esquemas
dicotômicos normalmente usados. Segundo esses esquemas as doenças dividem-se
rigidamente em blocos que caminham dois a dois: dicotomia, do grego antigo, significa
exatamente “divisão em duas partes contrárias". Assim, as doenças deveriam ser:
endógenas e exógenas; infecciosas e não infecciosas; orgânicas e funcionais; idiopáticas e
traumáticas; agudas e crônicas; congênitas e adquiridas; profissionais e sociais; físicas e
mentais, entre outras. Destaca que esse tipo de esquema já está superado e manifesta três
convicções:
Primeira visão: que a doença é um fenômeno vital
7
, que não contrapõe a doença e
a saúde diretamente, mas a doença é um dos aspectos da vida, mesmo que seja de cunho
prevalecentemente negativo; os sinônimos listados são: enfermidades, indisposição, mal,
moléstia, incômodo, sofrimento, perturbação. Algumas destas palavras são naturalmente
negativas, outras fazem pensar mais em uma luta (perturbação, sofrimento, mas também
em uma indisposição que ocorre no organismo). No Léxico UniversalI ltaliano, encontrou,
na palavra doença, que esse fenômeno é tipicamente transitório, evolutivo “para um êxito
que pode ser segundo o caso, a cura, a morte, a adaptação às novas condições de vida".
Segunda visão: a doença é um processo, um movimento de ação-reação, um
conflito entre agressão e defesa. O organismo tende sempre à homeostasia, ao equilíbrio
funcional; mas pode ocorrer um curto-circuito nos seus aparelhos: por excesso de pressão
ou por defeito de resistência
8; os mecanismos imunitários, por exemplo, podem também
7
Observa que essa visão dialética já foi encontrada num velho Dicionário de Ciências Médicas e Veterinárias de
1875: “A doença não representa mais do que uma das maneiras na qual pode manifestar-se a vida dos corpos
organizados”.
8
Traz o pensamento de Enrico Ciaranfi para o qual a doença é um desvio da homeostasia (caracterizada pela
sintomatologia clínica e pelas modificações fisiopatológicas ou histopatológicas) em que os mecanismos de
controle não conseguem trazer às condições de partida, seja porque a perturbação é muito forte, seja porque
alguns sistemas de controle estão funcionando mal.
39
se exasperar, como é o caso das alergias, ou podem até vir a faltar. Alguns quadros
patológicos de fato desaparecem, e outros se manifestam, segundo a época do ano: existe
uma historicidade nas doenças, ligada a todos os acontecimentos do ser humano. A
doença é, assim, a incapacidade permanente ou transitória de manter a homeostasia, o
equilíbrio entre as funções do organismo, e é um processo: isto é, tem um início, uma
história e uma conclusão. Melhor seria falar de um ciclo contínuo saúde-doença, que se
desenvolve não somente no interior do organismo, mas entre esse e o ambiente.
A terceira visão: a de que se deva preferir o estímulo a uma maior saúde
substancial, isto é, atingir o bem-estar e o sentir-se bem independentemente de pressões
externas, ao invés da saúde instrumental, avaliada com base em critérios de produtividade
ou de adaptação; e que se deve preferir a solidariedade para com o doente (e o sadio) a ser
ajudado, ao invés de procurar o doente a ser explorado.
O amplo processo de reforma sanitária culminou não apenas com mudanças
políticas e estratégicas fundamentais, compostas sobre a base de um Sistema Único de
Saúde, mas, fundamentalmente, com claras opções quanto aos modelos de entender e
explicar a saúde e a doença. As contribuições atuais a estas discussões têm nos levado a
pensar a saúde e a doença a partir do entendimento de que este processo deve ser visto
como o resultado das condições de vida de um povo.
Da discussão inicialmente apontada, sobre o conhecimento e suas atuais exigências
interdisciplinares, pode-se retomar a fragmentação da produção do saber em saúde,
referida por Gomes (1997), ao observar que a interdisciplinaridade evolui no exercício da
própria prática, necessitando do desenvolvimento de um espírito crítico flexível, de uma
visão mais global do processo saúde-doença e da pulverização da hegemonia de alguns
saberes sobre outros.
Nesta direção, Gomes (1997), cita diversos obstáculos dificultadores do processo
de integração das equipes de saúde: dificuldades institucionais – expressas na falta de
espaço e horários comuns para reunião de equipes; dificuldades de comunicação –
hegemonia da linguagem, garantindo o poder de uma disciplina sobre outra; dificuldades
pertinentes à própria formação do profissional de saúde - visão compartimentalizada do
saber, mecanicista, reducionista; ou seja:
Desarticulação entre os diferentes campos do conhecimento;
40
Defasagem do conhecimento científico-tecnológico, inclusive frente a realidade
da população em geral;
Evidência de modelos educacionais que estimulam muito mais a memorização
do que a compreensão e a criatividade, voltando-se para práticas curativas ou
paliativas.
Destes elementos resulta que muitos profissionais revelam pouco interesse pela
investigação, apresentam dificuldades em unir a teoria à prática, assim como deficiências
em relação ao pensamento crítico e a criatividade na abordagem do processo saúde-doença.
2.3 SOBRE O TRABALHAR COM O SOFRIMENTO E A DOENÇA: O
PROCESSO DE TRABALHO EM SAÚDE, O CENÁRIO INSTITUCIONAL E A
SAÚDE DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE
O processo de trabalho em saúde institucionalizado, no atual contexto de grandes
transformações, que tem como objeto crianças gravemente enfermas e em situação de
risco de vida dentro de um cenário complexo, vem demonstrando exercer intensa
influencia nas possibilidades de adoecimento dos profissionais de saúde. Como identificar
as possibilidades de viver e ter saúde a partir das fragilidades e rupturas deste processo,
que possam apontar para um movimento de resgate das relações de confiança e
gratificação no trabalho?
2.3.1 O processo de trabalho em saúde - reflexões atuais
Leopardi (1999) retoma o conceito de processo de trabalho em Marx, para nortear
suas reflexões e destaca que o trabalho, como atividade humana, é, por natureza, relação
entre sujeito e objeto, cuja conseqüência não é uma modificação unilateral, mas uma
41
mútua transformação que se torna imediatamente movimento, de complexidade crescente.
Refere, ainda, que as questões do trabalho no mundo moderno mostram intensas
mudanças a partir da complexificação organizacional e tecnológica, ao lado das
transformações sociais
9
. E, que as instâncias que dão forma ao trabalho hoje, foram se
adequando a novas necessidades históricas. Dessa forma, entende que o trabalho e os
trabalhadores são mutantes por definição, formas transitórias. A perspectiva de olhar que
orienta esta produção “deverá afastar-se de toda tendência à cristalização conceitual e
metodológica” (LEOPARDI, 1999, p. 10). Tais contribuições vêm ao encontro das
inquietações identificadas na proposta de trabalho aqui contida.
Historicamente, com o intenso desenvolvimento da ciência a partir do século XIX
e a construção da hegemonia cartesiana expande-se a especialização e a fragmentação do
saber marcando fortemente o setor saúde até hoje. A aplicação deste modo de produzir
conhecimento gerou aspectos positivos e negativos como aponta Pires (1998, p.101)
[...] a superespecialização, que por um lado permitiu um aprofundamento do
conhecimento específico, por outro, trouxe o parcelamento do homem,
dificultando o entendimento da totalidade do seu funcionamento biológico e
desconsiderando-o como determinante e determinado por relações afetivas,
experiências de vida e como parte de uma totalidade.
Desta forma, no cotidiano do trabalho institucional esta especialização do
conhecimento e das práticas, observa Pires (1999, p. 32-33), se dão sem uma reflexão
sobre o processo de trabalho que as especifica e, em especial, sobre o objeto de trabalho
em saúde que são seres humanos, os quais são vistos como fragmentos e não como
totalidades complexas. A mesma autora ressalta ainda que os profissionais de saúde, ao
trabalharem de forma fragmentada e sob influência deste modelo, “não trabalham com
planejamento, não têm uma prática de participação dos trabalhadores no pensar e
organizar o trabalho” perdendo assim a riqueza da percepção dos diversos grupos
profissionais e deixando de fazer a integração interdisciplinar necessária ao salto
qualitativo que permitiria uma reflexão sobre a globalidade do processo assistencial.
“Assim, a especialização do conhecimento, ao invés de possibilitar avanço, gera
9
Referindo-se aos meios de produção, Marx (1985, p. 204) afirma que o que distingue as diferentes épocas
econômicas não é o que se faz, mas como, com que meios de trabalho se faz. Os meios de trabalho servem para
medir o desenvolvimento da força humana de trabalho e, além disso, indicam as condições sociais em que se
realiza o trabalho.
42
fragmentação e alienação”.
O trabalho em saúde é parte do setor de serviços (ou setor terciário da economia)
compartilhando características do processo de produção deste setor, mas ao mesmo tempo
tem características específicas que instigam estudos em profundidade com vistas ao
entendimento de sua dinâmica e complexidade (PIRES, 1999). Neste processo a autora
assinala que o trabalho em saúde é essencial para a vida humana e trata-se de um trabalho
da esfera da produção não-material, que se completa no ato da sua realização. O produto é
indissociável do processo que o produz, é a própria realização da atividade.
Há uma diversidade de formas de se fazer a prestação de serviço-assistência de
saúde, mas o trabalho hegemônico hoje, na maioria dos países ocidentais
desenvolvem-se em estruturas institucionalizadas envolvendo um trabalho do tipo
profissional, isto é, realizado por trabalhadores que dominam os conhecimentos e
técnicas especiais para assistir o indivíduo ou grupos com problemas de saúde ou
com risco de adoecer, em atividades investigativas, preventivas, curativas de
reabilitação ou de promoção à saúde[...] Envolve o diagnóstico ou identificação
dos problemas; a decisão sobre o tratamento; a realização dos cuidados ou
procedimentos; a avaliação dos resultados e a decisão de alta hospitalar ou de
conclusão da assistência (PIRES, 1999, p.30).
Segundo a mesma autora no âmbito hospitalar
10
, o trabalho cotidiano é realizado
por “médicos das diversas especialidades; por enfermeiros, técnicos de enfermagem,
auxiliares de enfermagem e atendentes de enfermagem; por nutricionistas e pessoal da
copa e, dependendo da instituição, incluí psicólogo, fonoaudiólogo, assistente social,
odontólogo, fisioterapeuta, além de profissionais que realizam exames complementares”
(PIRES, 1999, p.30). O ato assistencial em saúde inclui também o trabalho dos
farmacêuticos e bioquímicos, que pode ocorrer sem um envolvimento direto com o sujeito
cuidado como citou a autora, colocando ainda, que existe outro grupo de trabalhadores,
com diversas qualificações os quais “desenvolvem atividades que são igualmente
fundamentais para que a assistência institucional possa se realizar”, chamados por ela de
10
Segundo a Organização Mundial de Saúde o hospital é parte integrante de um sistema coordenado de saúde,
cuja função é dispensar à comunidade completa assistência médica, preventiva e curativa, incluindo serviços
extensivos à família em seu domicílio e ainda um centro de formação dos que trabalham no campo da saúde e
para as pesquisas biossociais. Este conceito de hospital tal como colocado pela OMS é, no entanto, muito recente
na história dos hospitais. Foucault (1985) refere que este era o lugar onde se depositavam os “desnecessários”,
pobres, doentes, inválidos, e dessa forma, esteve a serviço de resguardar a sociedade de seu lado feio e sujo.
Isolar e excluir os marginalizados era uma boa forma de negar sua existência. “O personagem ideal do hospital
até o século XVIII, não é o doente que é preciso curar, mas o pobre que está morrendo”. Os enfermos ficavam
sob os cuidados de monges e religiosos, que dessa forma podiam exercer a caridade. (FOUCAULT, 1985 p.101).
O processo de mudança do caráter do hospital é contemporâneo à decadência da ordem feudal e emergência do
modo de produção capitalista.
43
“atividades de apoio”. Mais adiante identifica este grupo de trabalhadores como “o
pessoal da limpeza; os escriturários; todos ‘os trabalhadores de escritório’, o pessoal da
cozinha; os que trabalham na área de segurança e portaria, etc” (PIRES, 1999, p.31). Em
minha experiência, tanto no trabalho profissional quanto nas atividades de apoio são
também incluídos outros agentes como pedagogos, reeducadores, terapeutas ocupacionais,
entre outros.
Considerando-se a complexidade de processos envolvidos no conjunto destes
trabalhos, bem como às especificidades de cada um, centrarei, orientada por Pires (1999),
no processo e organização do trabalho envolvido no ato assistencial em saúde. Nesse
sentido, entendo que o processo de trabalho dos profissionais de saúde tem
[...] como finalidade a ação terapêutica de saúde; como objeto o indivíduo ou
grupos doentes, sadios ou expostos a riscos, necessitando medidas curativas,
preservar a saúde ou prevenir doenças; como instrumental de trabalho, os
instrumentos e as condutas que representam o nível técnico do conhecimento que
é o saber de saúde. E, como produto final, a própria prestação da assistência de
saúde que é produzida no mesmo momento que é consumida (PIRES, 1999, p.32).
O ato assistencial resulta de um trabalho coletivo realizado por diferentes
profissionais que, para uma melhor apreensão da complexidade do sujeito que é o objeto
de trabalho dos profissionais de saúde, é necessário um inter-relacionamento entre as áreas
e profissões que fazem parte deste conjunto. No entanto, majoritariamente, o trabalho
destes diversos profissionais é compartimentalizado.
Não existe coordenação da assistência prestada pelos diversos grupos de
profissionais de saúde; não existem instâncias de planejamento onde se decida que
atividades e conhecimentos estão envolvidos na assistência a ser prestada pela
instituição; que profissionais são necessários para a realização de um trabalho
adequado; que papel cada um deve desempenhar; como as diversas atividades
podem integrar-se. Também não existem espaços conjuntos de avaliação da
assistência prestada e nem de avaliação dos resultados (PIRES, 1999, p.34).
A mesma autora chama a atenção para espaços que poderiam ser usados como
instrumentos de integração como, por exemplo, o prontuário ou mesmo as visitas dos
profissionais de saúde aos doentes internados e que, na grande maioria das vezes, não
ocorre. Estas atividades são feitas sem haver trocas ou compartilhamento entre os
profissionais, duplicando esforços, fragmentando as atividades e as relações. No setor
saúde, majoritariamente, até hoje, relata Pires (1999, p.45) “a organização do trabalho
44
assistencial segue duas lógicas básicas: a do trabalho profissional do tipo artesanal e a do
trabalho parcelado da divisão manufatureira do trabalho. As duas lógicas convivem no
mesmo espaço físico”. No entanto, no âmbito das diferentes profissões de saúde
identifica-se a especialização, a qual também influência a organização dos serviços. Essa
lógica das especialidades parcela o ser humano e corresponde ao modelo biológico
cartesiano aplicado ao entendimento das doenças. Apesar deste modelo hegemônico de
produção do conhecimento em saúde estar dando sinais de esgotamento ainda mostra-se
determinante na base da formação e da atuação dos trabalhadores de saúde.
Leopardi (1999) observa que as profissões na área da saúde têm características
diferentes quanto à sua natureza e dimensionamento no sistema assistencial. A lógica do
trabalho parcelado funda-se na separação entre concepção e execução e no controle
gerencial das tarefas parcelares típicas do modo capitalista de produção e encontra-se
presente internamente a profissões da saúde como, por exemplo, na enfermagem, nutrição
e fisioterapia.
Infelizmente o que se observa, na maioria das vezes, na atuação das diversas
categorias profissionais em instituição hospitalar é, justamente, o que está sendo levantado
pela autora, isto é, cada grupo profissional se organiza e presta sua parte da assistência
separada das demais, ocasionando desde sobreposição de trabalho até contradições na
dinâmica de atuação da assistência prestada. Quero ressaltar que tal fato ocorre também
dentro de uma mesma categoria, entre os próprios pares. A figura do médico centraliza o
processo assistencial e, apesar de certa autonomia mantida pelas demais categorias
profissionais, na maioria das ações, subordina-se a esta cultura hierárquica
institucionalizada. Embora saibamos de experiências muito ricas no sentido do diálogo
entre as diferentes profissões e mesmo de atuações conjuntas já efetivadas com sucesso
ainda há muito que se fazer para a implementação de políticas de trabalho que
efetivamente transforme trabalho meramente competitivo em trabalho cooperativo, ações
multidisciplinares em conquistas interdisciplinares e mesmo transdisciplinares apontando
para novas formas de desenvolvermos conhecimento onde interdependência seja sinônimo
de apropriação de saber e autonomia.
Pires (1999) assinala que algumas iniciativas têm sido realizadas indicando um
afastamento do modelo de compartimentalização multiprofissional e apontando para um
45
algum diálogo entre as diversas profissões em direção ao que poderia ser um trabalho
interdisciplinar. Cita, como exemplo, alguns trabalhos realizados em conjunto por
médicos(as) e enfermeiras(os), onde os dois dividem a realização de procedimentos com o
mesmo grau de competência técnica e discutem o melhor procedimento a ser realizado;
equipes de profissionais de saúde onde médicos (as), enfermeiros(as), psicólogos(as) ou
outros profissionais trabalham cooperativamente na avaliação, na realização de
procedimentos e na orientação da clientela; grupos multidisciplinares de estudo; o papel
desempenhado por alguns serviços de Controle de Infecção Hospitalar/ou Comissões de
Controle Hospitalar os quais têm uma composição multidisciplinar e desempenham um
trabalho reconhecido na instituição formulando diretrizes e normas a serem cumpridas em
toda instituição. As indicações de Pires (1999) são confirmadas no estudo de Matos
(2006) quando aborda experiências de trabalho interdisciplinar na atenção ao doente
oncológico em cuidados paliativos e na atenção a idosos, na qual atuavam conjuntamente
médicos(as), enfermeiros(as), psicólogos(as), nutricionistas, assistentes sociais,
fisioterapeuta, terapeutas ocupacionais, farmacêuticos e técnicos de enfermagem. Nas
experiências estudadas a autora constatou que a prática interdisciplinar contribui para uma
assistência de melhor qualidade, reconhecida pelos doentes e por seus familiares, os quais
percebem a diferença destas experiências em relação à assistência que recebem em outras
instituições de saúde. Também a autora sinaliza para a possibilidade de um trabalho mais
criativo e integrador para os profissionais envolvidos, em decorrência da construção e
implementação de um projeto assistencial comum, dos espaços de construção de
autonomia profissional; da possibilidade de articulação e integração dos diversos saberes e
fazeres envolvidos na prática assistencial de saúde.
Dessa forma, cada vez mais a opção por um trabalho em equipe passa a ser o
caminho de se tentar escapar a um modelo tão fracionado e individualizado de se planejar
e executar as ações em saúde.
Peduzzi (2001) buscando o conceito e a tipologia de equipe multiprofissional em
saúde ressalta que na literatura consultada, são relativamente raras as definições de
equipe, fato este também observado em nossas buscas. Relata que em seu levantamento
houve predominância da abordagem estritamente técnica, em que o trabalho de cada área
é apreendido como conjunto de atribuições, tarefas ou atividades. Aqui, a noção de equipe
46
é dada por ser composta de profissionais de diferentes áreas sem que a articulação dos
trabalhos especializados seja problematizada.
A autora cita as pesquisas de Fortuna e Mishima (apud FORTUNA, 1999) que
identificaram três concepções distintas sobre trabalho em equipe, cada uma delas
destacando os resultados, as relações e a interdisciplinaridade. Nos estudos que ressaltam
os resultados, a equipe é concebida como recurso para aumento da produtividade e da
racionalização dos serviços. Os estudos que destacam as relações tomam como referência
os conceitos da psicologia, analisando as equipes principalmente com base nas relações
interpessoais e nos processos psíquicos. Na vertente da interdisciplinaridade estão os
trabalhos que trazem para a discussão a articulação dos saberes e a divisão do trabalho.
Ressalta nesta linha os estudos de Gastão W. Campos que vêm produzindo reflexão
acerca das equipes de saúde como base principal de organização dos serviços de saúde.
A mesma autora toma como referencial teórico os estudos do trabalho em saúde e
a teoria do agir comunicativo de Habermas (1998). Em relação à divisão técnica do
trabalho assinala a importância em se considerar, simultaneamente, as dimensões técnica e
social da divisão do trabalho, uma vez que toda divisão técnica reproduz em seu interior
as relações políticas e ideológicas referentes às desiguais inserções sociais dos sujeitos.
Com base na literatura e no quadro teórico utilizado para sua pesquisa coloca uma
distinção entre duas noções encontradas da idéia de equipe: equipe como agrupamento e a
equipe como integração de trabalhos. A primeira é caracterizada pela fragmentação, e a
segunda, pela articulação consoante à proposta da integralidade das ações de saúde.
Entende por articulação as situações de trabalho em que o agente elabora correlações e
coloca em evidência as conexões entre as diversas intervenções executadas.
Dessa forma, a autora elabora uma tipologia referente a duas modalidades de
trabalho em equipe: equipe agrupamento, em que ocorre a justaposição das ações e o
agrupamento dos agentes, e equipe integração, em que ocorre a articulação das ações e a
interação dos agentes. A interação refere-se ao agir comunicativo simbolicamente
mediado e orientado por normas de vigência obrigatória, que definem as expectativas
recíprocas de comportamento e que têm que ser entendidas e reconhecidas por, pelo
menos, dois sujeitos. Regida por normas consensuais e fundadas na intersubjetividade do
entendimento e do reconhecimento mútuo, livre de coação interna ou externa. É
47
interessante observar que em ambas modalidades estão presentes as diferenças técnicas
dos trabalhos especializados e a desigualdade de valor atribuído a esses distintos
trabalhos, operando a passagem da especialidade técnica para a hierarquia de trabalhos.
Também em ambas estão presentes tensões entre as diversas concepções e os exercícios
de autonomia técnica, bem como entre as concepções quanto a independências dos
trabalhos especializados ou a sua complementaridade objetiva.
Considerando-se as contribuições já referidas e que vão ao encontro de nossas
reflexões, Peduzzi (2001) coloca que a recomposição que possa ser pretendida requer a
articulação das ações, a interação comunicativa dos agentes e a superação do isolamento
dos saberes.
Apesar de alguns avanços é imperativo buscar o trabalho cooperativo e a
perspectiva interdisciplinar rompendo com a visão fragmentada da superespecialização.
Há, ainda um longo processo a ser conquistado na saúde bem como é preciso conquistar
direitos de cidadania na perspectiva de mudança da submissão e dependência dos
indivíduos ao poder dos profissionais de saúde e das instituições assistenciais (PIRES,
1999).
Silva (2002) em sua tese de doutoramento, a partir das observações empíricas e
apoiada em estudos comparativos acerca de hospitais de outros países e de uma rica
revisão de literatura sobre o trabalho dos profissionais de saúde em hospitais, observou a
recorrência dos vários aspectos encontrados. A partir de tais evidências foi construindo
um conhecimento da dinâmica própria do processo de trabalho hospitalar. Chega a
assinalar que o trabalho em hospital apresenta traços da organização taylorista do trabalho,
da prescrição rígida do trabalho, da realização feita ao modo da linha de montagem e da
supervalorização da divisão e especialização do conhecimento. Observou também que
entre outras características do hospital, esses traços tayloristas se fazem presentes num
tipo de organização em que as linhas hierárquicas são múltiplas, com chefias organizadas
por categoria profissional; que cada categoria profissional luta, então, por preservar e
ampliar seu espaço de poder: a categoria médica com suas divisões internas luta por
manter sua centralidade, e as demais, por reduzir subordinações reais ou fictícias, numa
posição predominantemente defensiva. A organização da assistência ao doente no espaço
de cada serviço é dificultada por essa estrutura excessivamente vertical e de múltiplas
48
linhas de poder. Este quadro é agravado pelo avanço das tecnologias em saúde, com o
correlato aumento dos especialistas presentes no hospital.
Esta autora também chama a atenção para a organização das hierarquias, por
profissão e especialidade, acompanhada de uma definição estrita dos espaços de trabalho,
de descanso e de lazer. No entanto, refere que a organização taylorista introduz e mantém
suas marcas, mas não chega a se instalar; a realização das tarefas exige que se respeite um
objeto que tem alto grau de variabilidade: o ser humano doente. Dos diversos aspectos
citados, alguns me pareceram mais relevantes para efeito da pesquisa aqui proposta:
A fragmentação do objeto, ser humano doente, torna suas características
humanas mascaradas, o que tem sido interpretado como uma atitude defensiva
frente ao conteúdo do trabalho.
O corporativismo se expressa, entre outros traços, na preservação de linguagens
próprias de cada categoria ou especialidade.
O segredo e o sigilo são, ao mesmo tempo, frutos de atitudes defensivas e parte
do trabalho prescrito. São frutos de mecanismos defensivos quer coletivos quer
individuais, ora intencionais ora inconscientes, mas sempre consumidores de
energia.
Há predominância de queixas e a ausência de projetos.
As pesquisas em clínica médica e as pesquisas quantitativas em epidemiologia são
familiares ao ambiente hospitalar, enquanto as pesquisas qualitativas são quase
inteiramente ausentes.
Há um descrédito nas possibilidades de mudança, reagindo às propostas de
trabalhos coletivos, participativos, como acréscimo de carga de trabalho.
Os profissionais no hospital público brasileiro estão fragilizados por uma política
de desinvestimento, que se expressa na redução de pessoal sem discussão da
reorganização do trabalho e na falta constante de materiais e de manutenção dos
equipamentos e do espaço físico.
Os grupos profissionais valorizam diferentemente os diversos aspectos do trabalho
hospitalar e organizam-se para ele, enquanto grupo, também de formas diferentes. O
grupo de enfermagem é um apoio para a articulação dos múltiplos fragmentos do trabalho,
tem um papel importante na produção de encontros entre os muitos profissionais e objetos
49
necessários; busca formas de trabalhar enquanto grupo coeso, e valoriza o debate das
opiniões divergentes para alcançar a harmonia na ação, que entende como
necessariamente coletiva. O grupo médico valoriza a competência teórico-técnica, a
produção científica, dando relevo ao aspecto singular, individual, dessa produção.
No Serviço de Cardiologia observado e em grande parte dos serviços hospitalares,
a equipe multiprofissional, ou interdisciplinar, ou qualquer outra denominação similar,
não existe. No máximo, encontrou-se uma equipe bi-profissional, composta de médicos e
enfermeiras, com dificuldades de manter um trabalho articulado; os demais profissionais,
nutricionistas, psicólogos, assistentes sociais, fisioterapeutas, para citar os mais comuns,
permanecem, quando existem, ligados a seus núcleos profissionais específicos.
O virtuosismo, o perseguir o “trabalho bem feito” e o trabalho “em prol do doente”
subsistem como metas altamente valorizadas, embora insuficientemente alcançadas; em
um ambiente em que traços do taylorismo estão presentes, mas impõe-se a flexibilidade
na organização do trabalho, o poder de determinação dos acontecimentos por essa
categoria profissional é permanentemente atravessado pela multiplicidade de tarefas
exigidas para atingir a execução daquela que é central: cuidar dos doentes.
Observo ainda, como muito relevante, o fato das análises mais ricas referidas por
Silva (2002) terem sido as que foram feitas com o conceito operacional de rede.
Apontando, dessa forma, para alternativas viáveis em se trabalhar na saúde.
2.3.2 A instituição e a sua função no processo saúde-doença dos trabalhadores
Partindo do ponto de vista apresentado acima, parece apropriado nos focarmos um
pouco mais sobre o entendimento de instituição a partir de alguns autores que já, há uma
longa jornada, vêm desenvolvendo estudos nesta área.
Toda instituição tem sua própria organização e objetivos específicos; faz parte da
organização social e está presente desde há muito na vida das pessoas.
Osório (2003), ao referir a institucionalização dos primeiros agrupamentos
humanos, coloca que à medida que se consolidaram e adquiriram autonomia e identidade
50
própria, se tornaram, eles mesmos, instrumentos de dominação e poder de uns sobre
outros. Assinala que os sistemas sociais, as instituições e os grupos em geral são sempre, a
par de seus objetivos específicos, instrumentos de busca e manutenção do poder. Destaca
os elementos que identificam a natureza intrínseca de qualquer grupamento humano:
O caráter universal da tendência à institucionalização dos grupos humanos, por
meio de criação de normas ou regras restritivas à autonomia individual dos
membros do grupo;
O progressivo afastamento dos objetivos originais do grupo à medida que
ocorre seu processo institucionalizante;
A conquista ou a manutenção de “estados de poder” como objetivo imanente a
qualquer agrupamento humano.
Cita um exemplo do paradoxo que aparece no processo de transformação dos
grupos em instituições, em um progressivo afastamento de seus objetivos originais, ao
colocar que se a família, em suas origens, trazia como objetivo imanente oferecer um
espaço continente para os cuidados com a prole e a conseqüente sobrevivência da espécie,
ao longo do tempo foi tornando-se uma agência corporativa a serviço da manutenção do
poder de uma geração sobre a que lhe é subseqüente, assim como da preservação de
hierarquias de gênero. Observa que este processo não é diferente do que ocorre com
outras instituições, tais como hospitais, escolas ou mesmo o Estado.
Todo grupo se institucionaliza para a obtenção ou a manutenção de poder para
seus membros e, sobretudo, seus dirigentes. Este é um axioma que define o caráter
intrínseco das instituições, sejam elas quais forem. Portanto, não há como entendê-
las senão através do escrutínio da questão do poder à luz das contribuições das
várias instâncias epistemológicas que o investigam e procuram compreendê-lo em
sua essência (OSÓRIO, 2003, p.73).
Ao referir os processos obstrutivos nos grupos e nas instituições, assinala as formas
lentas, insidiosas, crônicas, nem sempre perceptíveis com que contínuas e reiteradas vezes
vão debilitando os organismos grupais e institucionais e minando seus objetivos
imanentes. Compara estes processos aos fenômenos regressivos nos indivíduos. Pode-se
dizer que vão desde as fronteiras da “normalidade” até o nível psicótico, onde já não
contempla as exigências da realidade e acaba se tornando uma “morte em vida”, pela
impossibilidade de dar curso a um projeto existencial.
51
Osório (2003) analisa como um grupo institucional pode ser um continente
propício a uma busca irrefreada de restauração do poder original perdido, que no registro
existencial de cada um de seus membros, situa-se no passado arcaico que remonta ao
estado de indiferenciação inicial do bebê, onde impera a condição narcísica primitiva, que
não reconhece a existência do outro, porque isso implica em revelar a si próprio sua
fragilidade e incompletude.
Isto quer dizer que todo processo de institucionalização é nocivo? A instituição é o
arcabouço, o que sustenta o exercício das funções sociais que dá sentido, nas palavras do
autor, “ao périplo existencial de todos nós”. No entanto, as instituições, assim como os
seres humanos, também adoecem. “E a doença institucional se instala a partir do
momento em que ela passa a operar como mero instrumento para o exercício do poder e
para servir aos interesses narcísicos de seus membros” (OSÓRIO, 2003, p.80).
Bleger (1984) compara o funcionamento da instituição ao da personalidade
humana, e diz que parte do seu funcionamento é regida pelo que os seres humanos
projetam nela, ou seja, por aspectos da sua personalidade que nela são depositados. Dessa
forma, ansiedades, neuroses, mecanismos defensivos, atuam indiscriminada-mente nas
instituições.
Uma instituição não é só um instrumento de organização, regulação e controle
social, mas também, ao mesmo tempo, é um instrumento de regulação e de
equilíbrio da personalidade, e da mesma maneira que a personalidade tem
organizado dinamicamente suas defesas, parte dessas se acham cristalizadas nas
instituições; nas mesmas se dão os processos de reparação tanto como os de defesa
contra as ansiedades psicóticas (BLEGER, 1984, p.85).
Bleger (1984) coloca, ainda, que as organizações institucionais tendem a ser
depositárias das partes mais imaturas da personalidade. Este fato leva a instituição a
executar suas tarefas e estabelecer uma relação de trabalho um tanto quanto estereotipada.
Ao entrar na submissão à estereotipia institucional o ser humano perde de se enriquecer
como pessoa, e ao contrário, acaba por se empobrecer e esvaziar.
Como uma organização humana, não se pode esperar de uma instituição a ausência
de conflitos. Faz-se necessário o desenvolvimento, junto aos atores da instituição, de
novos recursos criativos e mais eficazes para lidar com os problemas. É importante tornar
manifesto aquilo que está escondido, explicitar os “não ditos” que camuflam o conflito,
52
entender os dinamismos institucionais para poder instrumentalizar e fortalecer os seus
membros na busca de uma maior consciência crítica para o adequado encaminhamento
das problematizações.
Assim sendo, como falar em saúde, em desenvolvimento pleno das capacidades
dos trabalhadores, em relações institucionais e instituídas, em alteridade, em
estabelecimento de vínculos construindo-se dinamicamente no contexto das relações de
trabalho, sem falarmos em sofrimento? Sofrimento aqui entendido como condição
estruturante, de saúde, de possibilidade de reorganização intra e inter subjetiva, que subjaz
ao encontro com o outro. Uma construção coletiva e desta forma, conflitiva e
contraditória, mas que também oportuniza o crescimento e fortalecimentos como sujeitos
e como cidadãos, elo e matéria essencial da cultura humana.
Kaës (1998, p.32), nos traz uma concepção de sofrimento psíquico que nos
interessa para o entendimento das relações estabelecidas em uma instituição hospitalar,
mais ainda em se tratando de profissionais de saúde no seu dia a dia com crianças
gravemente enfermas e seus familiares.
El sufrimiento es la experiencia de displacer intenso inherente a la vida misma. Es
coextensivo tanto a la experiencia de la falta como del exceso, de la ausencia
como de la superpresencia, de la pérdida como de la plétora. Es un dato estructural
de nuestra vida psíquica, dividida, conflictiva, primigeniamente insatisfecha.
O sofrimento sobrevém tão bem comecem a fracassar nossas aptidões para manter
a continuidade e integridade de nosso eu, quando voltamos a tomar contato com o nosso
desamparo primitivo, quando se vêem ameaçadas nossas identificações fundamentais,
quando desaparece a confiança. Refere o autor que sofremos sempre por nós mesmos e, às
vezes, pelos objetos que amamos segundo as relações variáveis que mantemos com a
alteridade que lhe reconhecemos.
Dessa forma, Kaës (1998, p.33) contribui ao assinalar que todo encontro, todo
compromisso vincular supõem estas constantes do sofrimento: sofremos a desilusão, a
ambivalência, as agruras infindáveis do coração a causa dos investimentos e
representações de cada qual dentro do vínculo.
El análisis de la transferencia nos enseña que la formación de un vínculo puede
tener por meta y por función evitar um sufrimiento, desconocer lo que en él se
juega: enamorarse para evitar un sufrimiento amoroso, un duelo […] La
53
intolerancia para con el sufrimiento vital es un sufrimiento invalidante.
Referindo-se ao processo de institucionalização dos vínculos e das especificidades
dos vínculos institucionais, Kaës (1998) traz três grandes princípios organizadores: - a
passagem do estado de natureza ao estado de cultura de Lévi-Strauss; - a regulamentação
dos desejos, proibições e intercâmbios e, - a prescrição dos vínculos (lugares e funções
são determinados pela instituição em si, segundo os termos de uma organização e não pelo
sujeito considerado em sua singularidade). A instituição deve produzir e fazer reinar
ordem e controle social para efetuar a passagem da natureza a cultura: domesticar as
pulsões e humanizar as paixões, tão bem encarnadas pela multidão, pelo sexo, pelo
inconsciente e pela morte.
El horizonte asintótico de toda institución es la sociedad automática de las utopías
austeras, prefiguración de las sociedades cibernéticas en las que habrá
desaparecido toda pasión, mundos de la violencia y sociedades de lo mismo: la
meta de la institución es organizar [...], controlar mediante una métrica del sexo y
de la violencia [...] todas las pasiones: el amor, el odio, el miedo, la envidia
(KAËS , 1998, p.29)
Além disso, o autor também nos evidencia alguns indicativos do sofrimento
institucional que podem ser levantados tanto através da escuta dos membros de uma
instituição quanto a partir das condutas sintomáticas institucionais.
A paralisia e o apabullamiento
11
não são critérios unívocos: a agitação e o
ativismo são igualmente efeitos de defesas em massa. [...] na instituição, o
ativismo, o investimento em atividades secundárias ou em burocracia são recursos
equivalentes. Estes sintomas não só atestam a ausência de espaço para pensar,
senão que também contribuem para manter o pensamento fora de uso. Cabe inferir
de tais condutas a debilitação ou a destruição de dispositivos de contenção e de
transformação das ansiedades primitivas (KAËS, 1998 p.36).
O autor também destaca algumas fontes do sofrimento institucional: uma é
inerente ao próprio fato institucional; outra, a certa instituição com suas particularidades,
sua estrutura social e sua própria estrutura inconsciente; e uma outra ainda remete a
configuração psíquica do sujeito singular. A esta intrincação de várias fontes de
sofrimento na instituição é o que se qualifica como sofrimento institucional. Portanto, a
11
Apabullar: confundir, intimidar a alguém, fazendo exibição de força ou superioridade. Diccionario de la Lengua Española
© 2001, Editorial Espasa Calpe, S.A. On line. ISBN: 84-239-6814-6
54
instituição, objeto psíquico comum, não sofre; sofremos de nossa relação com a
instituição ou dentro desta relação. Nessa perspectiva nos parece, fundamental destacar, as
palavras de Kaës (1998, p.37):
[...] sufrimos también de no comprender la causa, el objeto, el sentido y el sujeto
mismo del sufrimiento que experimentamos en la institución. O fato de não
entendermos, não identificarmos o objeto de nosso sofrimento, de sermos
envolvidos por uma ansiedade difusa, sem clareza de seu significado contribui
intensamente para se instalar um sofrimento invalidante.
Kaës (1998, p.13) coloca uma definição de vínculo instituído particularmente
importante neste processo de reflexão:
Llamo vínculo instituído a un vínculo que se determina por efecto de una doble
conjunción: la primera determinación es la del deseo de sus sujetos de inscribir su
vínculo en una duración y en una cierta estabilidad. La realización de este
proyecto supone cierto número de formaciones intersubjetivas, tales como
alianzas entre formaciones psíquicas que encuentran, en cada sujeto, una
correspondencia o resonancia en el otro, de modo que estas alianzas resulten
suficientemente investidas y protegidas por el uno y por el otro en razón de los
intereses comunes y específicos que despiertan en cada uno de ellos. La segunda
determinación es la de las formas sociales que de diversas maneras (jurídica,
religiosa, cultural, económica), reconocen y sostienen la institución de este
vínculo. En esta doble conjunción se imponen tres componentes del vínculo
instituído: la alianza, la comunidad de realización de meta y la obligación. Las
parejas, las familias, las instituciones y sus subconjuntos son configuraciones de
vínculos instituidos.
Assinala também, que as funções do vínculo podem ser descritas desde que
cumpram um processo ou estabeleçam uma estrutura: por exemplo, a função continente
realiza um processo de delimitação, proteção e transformação da experiência psíquica
originária, contribui para instalar a estrutura do vínculo produzindo as oposições
articuladas bom-mau, dentro-fora, eu-outro. As funções fóricas (porta-voz, porta-sintoma,
tanáfora) cumprem os processos de representação, delegação ou projeção, mas também as
diferenciações organizadoras entre falante e falado, ator e atuado, bem como as
intermediações, sobre a base de formações de compromisso entre as correntes opostas da
realidade psíquica.
Observa Kaës (1998) que, embora o modelo prevalente do período clássico
ocidental da psicopatologia dos transtornos mentais seja o modelo individualista, o
período moderno, que produz e acompanha a primeira revolução psiquiátrica, propõe dois
55
modelos contrapostos: o primeiro libera o enfermo de sua contenção social e institui de
novo a comunidade como princípio terapêutico; o segundo separa-se de perspectivas
biologizantes e condutivistas sobre a psicopatologia, explicando-a por efeitos hereditários
e ambientais. Evidencia-se aí a idéia de que é o próprio vínculo que sofre e não somente
os sujeitos que o constituem. Entende-se aqui que a psicopatologia do vínculo não
implica, necessariamente, uma psicopatologia de seus sujeitos constituintes.
Essas contribuições serão especialmente importantes na medida em que nos
ajudam a identificar o trabalhador de saúde a partir de seu lócus de trabalho. Nesta
pesquisa, nosso olhar busca compreender este sujeito trabalhador através de sua inserção
na instituição hospitalar, como parte desta organização, com sua estrutura e leis e as
implicações desta dinâmica organizacional nas relações de trabalho que estabelece e no
seu processo de sofrimento institucional. Até que ponto os enfrentamentos cotidianos
nesta complexa trama de conflitos e contradições permitem que este trabalhador
desenvolva estratégias criativas como alternativas de saúde individuais e coletivas ou
levam-no, como sujeito participante, a alienação e ao adoecimento?
2.3.3 O trabalho em saúde como possibilitador de satisfação e também de
sofrimento e adoecimento do trabalhador
Os últimos 20 anos vêm sendo marcados por um número crescente de pesquisas
sobre a saúde do trabalhador em praticamente todos os países da América Latina. A maior
parte desses estudos tem uma abordagem desta problemática incluindo elementos
importantes das ciências sociais. Envolve tanto a sociologia do trabalho quanto a
sociologia médica. É, sobretudo, a corrente da medicina social latino-americana que tem
tentado constituir a saúde dos trabalhadores como um objeto de estudo específico.
Assinala Laurell (1989, p. 11), “isto nos têm levado a uma problematização da relação
trabalho-saúde, que coloca no centro da análise o caráter social do processo saúde-doença
e a necessidade de entendê-lo na sua articulação com o processo de produção”.
No caso especifico do setor saúde, por exemplo, mesmo com todos os avanços na
56
afirmação dos princípios que garantem os direitos moralmente e eticamente conquistados
pelos trabalhadores em um longo processo, incluindo diferentes atores, continua existindo
uma fragilidade no serviço público que não nos cabe ignorar.
O processo de privatização e o ineficiente comprometimento do Estado com a
saúde pública evidenciaram-se na precariedade do serviço público em suas diversas
facetas. A falta de verbas, a má administração do patrimônio público, a deficiência de
pessoal, os baixos salários, a descontinuidade de projetos e programas, o escasso
investimento na formação de pessoal, o clima de instabilidade generalizado, entre outros,
podem gerar no profissional de saúde sentimentos e comportamentos distintos que
poderão contribuir para o estabelecimento de frustrações e conflitos nas relações de
trabalho, na assistência à população atendida e no grau de satisfação pessoal e coletivo.
Dessa forma, torna-se esperado que esta força de trabalho possa entrar em um processo de
esgotamento de sua capacidade de saúde. Vale ressaltar que a força de trabalho em saúde
é representada pelos integrantes das diversas profissões que atuam no contexto
institucional.
Na tentativa de dar um contorno um pouco mais definido a este quadro tomarei
emprestados alguns olhares teóricos para refletir a amplitude desta temática.
Mendes e Morrone (2002) apresentam estudos cujo referencial teórico tem origem
na abordagem psicodinâmica do trabalho de Dejours. Tais pesquisas destacam a
organização do trabalho entendida como reflexo de um contexto sócio cultural e
econômico mais amplo, como um dos principais antecedentes do prazer-sofrimento, e as
estratégias de enfrentamento e transformação das situações geradoras de sofrimento como
elementos que caracterizam uma dinâmica particular a essas vivências. Iniciam
apresentando os pressupostos norteadores desta abordagem:
Primeiro, o trabalho como fonte de prazer fazendo com que a maioria dos
trabalhadores não perca o desejo de permanecer produzindo, além de, nesta atividade, ter
a oportunidade de realização e de identidade para construir-se como sujeito psicológico e
social. “O ato de produzir permite um reconhecimento de si próprio como alguém que
existe e tem importância para a existência do outro, transformando o trabalho em um meio
para a estruturação psíquica do homem” (MENDES; MORRONE, 2002, p. 27).
Segundo, a condição nas quais o trabalho é realizado pode transformá-lo em algo
57
penoso e doloroso, levando ao sofrimento. Esse sofrimento decorre do confronto entre a
subjetividade do trabalhador e as restrições das condições socioculturais e ambientais,
relações sociais e organização do trabalho, reflexo de um modo de produção capitalista.
Este modo de produção tem dado origem a uma diversidade contextual que envolve as
relações de trabalho em seus vários âmbitos.
Terceiro, o trabalho pode ser, ao mesmo tempo, fonte de prazer e de sofrimento.
“Essa dinâmica é responsável pela saúde psíquica, significando que não é a simples
existência do prazer ou do sofrimento os indicadores de saúde, mas a diversidade das
estratégias que podem ser utilizadas pelos trabalhadores para fazer face às situações
geradoras de sofrimento e transformá-las em situações geradoras de prazer” (MENDES;
MORRONE, 2002, p. 27).
A partir desses pressupostos, o modelo da psicodinâmica do trabalho tem como
objeto de estudo o saudável no espaço de trabalho, significando assim, que o sofrimento é
vivenciado diante de uma realidade que não oferece possibilidades de ajustamento das
necessidades do trabalhador pelas imposições e pressões do contexto de trabalho, mas não
se instala de forma permanente. Isso implica que o sofrimento em si não é patológico e
pode funcionar como um sinal de alerta para evitar o adoecimento, que acontece quando
os trabalhadores não conseguem utilizar estratégias para dar conta das adversidades da
organização do trabalho.
[...] A organização do trabalho é resultado de um processo intersubjetivo, no qual
encontram-se envolvidos diferentes sujeitos em interação com uma dada
realidade, implicando uma dinâmica de interações própria às situações de trabalho,
enquanto lugar de produção de significações psíquicas e de construção de relações
sociais [...] A organização do trabalho exerce influências multideterminadas no
funcionamento psíquico dos trabalhadores. Tais influências podem ser positivas
ou negativas, dependendo do confronto entre as características de personalidade e
a margem de liberdade admitida pelo modelo de organização vigente que
permite ou não a transformação da realidade do trabalho [...] a organização
do trabalho inscreve-se numa intersubjetividade em que o sujeito, com sua
história passada, presente e futura, envolve-se com a dinâmica de construção
do coletivo de trabalho e da sua identidade social. [...] Esses elementos da
organização do trabalho são estabelecidos a partir de padrões específicos do
sistema de produções que, por sua vez, determinam a estrutura
organizacional na qual o trabalho é desenvolvido. Cada categoria
profissional está submetida a um modelo específico de organização do
trabalho, o qual contém elementos homogêneos ou contraditórios,
facilitadores ou não das vivências de prazer e sofrimento do trabalhador.
Esta definição depende dos interesses econômicos e políticos daqueles que
definem o processo produtivo (MENDES; MORRONE, 2002, p. 28-29).
58
Com Jacques (2003) vamos ao encontro do cenário mais amplo sobre as condições
e ambiente de trabalho nos últimos anos. Apesar das mudanças observadas, refletidas na
redução das taxas de morbidade e mortalidade dos trabalhadores, principalmente nos
países de capitalismo avançado, não se pode deixar de observar que, por outro lado, em
várias atividades o agravo à saúde permanece em taxas elevadas de acidentes e doenças
ocupacionais, principalmente na maioria dos desprotegidos das leis previdenciário.
Assinala, também, que as transformações técnicas e organizativas introduzidas nos
processos de trabalho têm suscitado um acentuado desgaste no trabalhador, revelado
através de distúrbios orgânicos, psíquicos ou mistos, isto é, hipertensão, doenças
coronárias e digestivas, neuroses e psicoses classificadas genericamente, como doenças do
estresse ou tensão. Salienta que uma análise mais apurada evidencia a relação entre essas
doenças e as situações de trabalho, mesmo sendo poucas vezes reconhecida pela
legislação específica.
A autora traz ainda algumas representações dos próprios trabalhadores acerca de
trabalho /doença como, por exemplo: “o trabalho dignifica o homem; quem não trabalha
ou é vadio ou é doente”. Remete a Codo (1988) ao dizer que justificar a permanência
dessas representações, desde as de cunho econômico, até as de caráter não consciente,
implica em admitir a transformação do corpo em mera força de trabalho. Os mecanismos
desencadeados com o objetivo de controlar e domesticar o corpo passam pela sua sujeição
à organização do trabalho e a doença pode representar uma reação a essa sujeição, mesmo
quando as explicações de suas causas se inscrevam em uma perspectiva individualista e
na ideologia de sucesso e fracasso que lhe é associada, a partir da qual os indivíduos são
responsáveis pelas suas ações e pela sua sorte. A partir dessa lógica não se fica doente
devido ao trabalho, mas “à fraqueza individual” e a doença se instala ou remite de acordo
com a vontade dos indivíduos (JACQUES, 2003, p. 101).
Embora a compreensão da relação entre trabalho e saúde comporte diversas
abordagens teórico-metodológicas, não se pode deixar de lado o trabalhador e seu
histórico pessoal de vida e de trabalho para elucidar as complexidades das
condutas singulares, das construções coletivas e das articulações entre o singular e
o coletivo [...] Este genérico “modo de viver”, determinado historicamente,
definido e diferenciado socialmente, esculpe o corpo dos homens e se expressa em
modos de adoecer (JACQUES, 2003, p. 101).
A partir do contexto colocado acima nos parece bastante elucidativo
59
acompanharmos as questões postas por Codo (1994) ao estudar e analisar a temática sobre
o indivíduo, trabalho e sofrimento. A discussão sobre a questão da doença mental coloca-
se com toda sua pertinência. Nestes estudos o autor aponta para uma definição de doença
mental distinguindo, inicialmente os trabalhos de Canguilhem (1982). Assinala três
modos de compreender a relação existente entre saúde e doença. Na primeira, são opostas,
realidades distintas, capazes de fundar ciências diferentes; na segunda, são pontos
extremos de uma escala mensurável quantitativamente; e na terceira, são qualidades
diferentes de uma mesma realidade, formas de expressão do dinamismo vital, isto é, o que
não faz doença ser saúde, mas ao defini-las estarão presentes valores como o estatuto
social do corpo, da doença, do doente e do tratador. Os três modos se articulam com três
concepções sobre a produção da doença: ontogênica; dinâmica; e a terceira, a que mais
nos interessa para fins desse estudo, a concreta, a qual ultrapassa a idéia de causalidade
para a de determinação complexa; incorporando na análise os processos sociais, culturais
e econômicos nos quais o indivíduo se insere completando a relação entre realidade dos
objetos e realidade das representações.
Ao referir-se a essa última concepção deixa claro que saúde e doença não são
fenômenos isolados que possam ser definidos em si mesmos, estão profundamente
vinculados ao contexto sócio-econômico-cultural, tanto em suas produções como na
percepção do saber que investiga e propõe soluções. Todas as concepções de doença
pressupõem norma objetiva que permita determinar modelo referencial. Isto se torna
particularmente evidenciado na questão da doença mental, cujo conceito emerge da noção
de bem-estar coletivo e cuja idéia de anormal se inscreve na constituição do normal,
sempre remetido a diferentes instrumentais de compreensão (médico, psicológico,
filosófico, sociológico, antropológico, econômico e político).
Assim, Codo (1994, p. 253) observam que, independente do conjunto de sinais e
sintomas ou das variáveis causais diretamente operantes, só há doença mental quando a
história psíquica do indivíduo perde relação com a história da sociedade, quando as
reciprocidades e as compartilhações implícitas de significados se rompem, quando o
conflito entre as histórias se torna permanente na irresolução e esta não é sequer
compreendida; o sujeito é invadido pela dor sem estímulo concreto, é “invadido por uma
experiência de paralisação ou descontinuidade da percepção de sua própria vida como
60
curso coerente” (MOFFATT apud CODO, 1994).
Enfim, coloca ainda o autor, que quando se fala em sofrimento psíquico se está
falando em algum tipo de ruptura entre a subjetividade e a objetividade, em um divórcio
entre o eu e o mundo, entre o eu e o outro, intra-subjetivamente, entre eu e eu e, nas
tentativas de superação desse divórcio. Bem, parece que aqui se articula trabalho e saúde
/doença mental. Paralelamente à alienação, ao divórcio entre o homem e o produto do
homem, foi se concretizando a cisão entre trabalho e afeto, razão e paixão; refere Codo
(1994, p.267) que o afeto, a paixão, a liberdade ficaram sitiados na reprodução da força de
trabalho, expulsos da produção.
Este homem, obrigado a recolher do trabalho os pedaços de sua subjetividade,
empurrado a manifestar-se apenas depois do expediente, só pode expressar o seu
sofrimento depois que soa o apito, depois do cartão ponto. [...] Vê-se condenado a
expressar-se na reprodução, despejá-la na família, representá-la nos limites de sua
casa.
Refletindo com Codo (1994, p.263-264) sobre este modo de produção que cinde o
afeto e a razão no trabalho, no qual o trabalhador perde o controle sobre o processo de
trabalho, “onde o gesto se fragmenta levando com ele o autor e, o trabalho como
mercadoria expulsa o projeto e o sonho”, tomo emprestadas suas palavras, “floresce
simultaneamente a indústria do hobby, a enxurrada de telenovelas, cartomantes,
horóscopos onde a fantasia reinventa o devir”. Então, se a ruptura passa a ser inerente às
formas de organização da produção o ser humano precisará encontrar mecanismos que lhe
permitam conviver com as rupturas sem adoecer psiquicamente.
Dejours (2000), ao estudar a psicodinâmica do trabalho coloca a questão do
sofrimento em uma posição central, mostrando que o trabalho tem efeitos poderosos sobre
o sofrimento psíquico do trabalhador. Pode contribuir para agravá-lo ou para
transformá-lo em prazer podendo, em certas situações, preservar melhor a saúde dos que
trabalham do que daqueles que estão fora desta produção.
Por que o trabalho ora é estruturante, ora é patogênico?
Entende Dejours (1986), que o organismo está em constante movimento, mudando
de estado continuamente. Saúde, para este autor, é liberdade, autonomia e apropriação de
meios para se alcançar estados de bem-estar. Dentro desta concepção o trabalho ganha
destaque porque, pelo modo como é organizado, muitas vezes não permite a autonomia e
61
a liberdade, prejudicando, portanto, a conservação da vida.
O trabalho é o mediador privilegiado entre inconsciente e campo social. Por isso é
capaz, em certas condições, de oferecer uma solução favorável ao desejo e tornar-
se um instrumento, ao lado da sexualidade e do amor, na conquista do equilíbrio
psíquico e da saúde mental. Dir-se-á, neste caso, que o trabalho é estruturador
(DEJOURS, 1986, p. 5).
No entanto, apesar de haver um grande número de pesquisas e estudos acerca da
saúde do trabalhador, na prática os relatos dos estudos apontam para um espaço ainda
muito pequeno para a discussão e para o desenvolvimento de projetos de intervenção
sobre o sofrimento no trabalho, produzindo-se situações dramáticas, como é assinalado
por Dejours (2000, p. 44-45), evidenciada no grande contingente de tentativas de suicídios
e suicídios consumados. E o mais grave, relata, é a banalização a que se chegou: a morte
de um colega de trabalho pode fazer parte da situação de trabalho e ser relegada a um
incidente comum.
Contrapondo as teses neoliberais que hoje envolvem uma drástica mudança na
caracterização de uma empresa, isto é, não é mais sua produção, não é mais o trabalho,
mas sua organização, sua gestão, seu gerenciamento que passou a ocupar lugar central no
discurso neoliberal, Dejours, (2000) levanta algumas teses das quais privilegio três:
O trabalho continua sendo um importante mediador da realização do ego no campo
social, e não se vê atualmente nenhum candidato capaz de substituí-lo (REBÉRIOUX
apud DEJOURS, 2000). O autor refere “único” mediador, portanto, faço aqui uma
relativização.
O trabalho pode ser mediador da emancipação, mas, para os que têm um emprego,
também continua a gerar sofrimento, (as pesquisas em psicodinâmica do trabalho, nos
últimos 15 anos têm mostrado isso) como ainda novos sofrimentos especificamente
ligados à nova gestão, sobretudo entre os gerentes.
Quanto aos que sofrem por causa da intensificação do trabalho, pelo aumento da
carga e da fadiga, ou ainda pela degradação progressiva das relações de trabalho
(arbitrariedades das decisões, desconfianças, individualismo, concorrência desleal entre
agentes, arrivismo desenfreado, etc.) têm encontrado muitas dificuldades para reagir
coletivamente.
Assinala que se o sofrimento não provoca uma ruptura do equilíbrio psíquico
62
eclodindo numa doença mental é porque o sujeito utilizam defesas que lhe permitem
controlá-lo. Refere que o estudo clínico mostrou, através de seus estudos da
psicodinâmica do trabalho que, a par dos mecanismos de defesa classicamente descritos
pela psicanálise, existem defesas constrdas e empregadas pelos trabalhadores
coletivamente, chamadas por ele de estratégias coletivas de defesa, defesas estas que são
especificamente marcadas pelas pressões reais do trabalho.
A partir dessa premissa a questão de pesquisa, para ele, passou a ser a normalidade.
Como esses trabalhadores conseguem não enlouquecer, apesar das pressões que
enfrentam no trabalho? A normalidade passou a ser interpretada como o resultado de uma
composição entre o sofrimento e a luta individual e coletiva contra o sofrimento no
trabalho. Não significa ausência de sofrimento, muito pelo contrário. “Pode-se propor um
conceito de normalidade sofrente” (DEJOURS, 2000, p. 36).
Dessa forma, as estratégias defensivas passaram a se tornar um dos focos centrais
do entendimento do sofrimento no trabalho. Elas são ao mesmo tempo necessárias à
proteção da saúde mental, mas podem funcionar como armadilhas que insensibilizam
contra aquilo que faz sofrer. Assim, outro aspecto referido por Dejours (2000, p. 45) que é
particularmente interessante na nossa análise, diz respeito a percepção do sofrimento
alheio. “Perceber o sofrimento alheio provoca uma experiência sensível e uma emoção a
partir das quais se associam pensamentos cujo conteúdo depende da história particular do
sujeito que percebe: culpa, agressividade, prazer, etc.” Provoca, pois um processo afetivo.
Esse processo afetivo mostra-se fundamental à concretização da percepção pela tomada
de consciência. No caso de reação defensiva diante de sua emoção de negação ou rejeição,
o sujeito não memoriza a percepção do sofrimento alheio - perde a consciência dele.
Tais referências nos levam a refletir sobre o invisível trabalho da equipe de saúde
em hospitais públicos, com crianças gravemente enfermas, e na gama de emoções
cotidianamente experienciadas por esses trabalhadores. Identificar as rupturas e fortalecer
as estratégias coletivas de saúde destes trabalhadores realimentará a confiança e a
capacidade de criar alternativas de enfrentamentos a partir do reconhecimento de suas
próprias forças.
Dejours (2000) refere que no trabalho, o real se dá a conhecer ao sujeito
essencialmente pela defasagem irredutível entre a organização prescrita do trabalho e a
63
organização real do trabalho. Na verdade, independentemente da qualidade da
organização do trabalho e da concepção, é impossível, nas situações comuns de trabalho,
cumprir os objetivos da tarefa respeitando escrupulosamente as prescrições, as instruções
e os procedimentos. O zelo é precisamente tudo aquilo que os operadores acrescentam
à organização prescrita para torná-la eficaz; tudo aquilo que não depende da
“execução”. A gestão concreta da defasagem entre o prescrito e o real depende na
verdade da “mobilização dos impulsos afetivos e cognitivos da inteligência”
(DEJOURS, 2002, p. 30).
Colocando o sujeito como elemento de um coletivo e trazendo a baila a questão da
construção da identidade que se dá também no seu processo laboral o tema do
reconhecimento torna-se crucial no desenvolvimento e manutenção da saúde mental.
Dessa maneira na observação de Dejours (2000, p. 34) de que o sofrimento no trabalho
pode se dar também pelo não reconhecimento da atuação do trabalhador, ganha ênfase o
entendimento de que tal vivência torna-se muito ameaçadora para a saúde mental uma vez
que o referencial em que se apóia a identidade é desestabilizado.
Com isto chama a atenção para o fato do reconhecimento quanto a qualidade do
trabalho trazer junto o reconhecimento dos esforços empreendidos, das angústias vividas,
das dúvidas, das decepções sofridas, dos momentos de desânimo dando um sentido ao
próprio sofrimento. “Então todo este sofrimento não foi em vão”. O reconhecimento do
trabalho ou mesmo da obra, pode depois ser reconduzido pelo sujeito ao plano da
construção de sua identidade. Isto se traduz afetivamente por um sentimento de alívio, de
prazer. O trabalho se inscreve então na dinâmica de realização do ego. “A identidade
constitui a armadura da saúde mental. Não há crise psicopatológica que não esteja
centrada numa crise de identidade. Portanto, não há neutralidade do trabalho diante da
saúde mental” (DEJOURS, 2000, p. 35).
Retomando a questão das implicações da instituição hospitalar na complexa
dinâmica da criança, sob e com quem atuam os profissionais de saúde de um hospital
infantil, procurarei mostrar através da literatura encontrada, algumas implicações do
trabalho destes profissionais, enquanto equipe, no cotidiano deste contexto.
Ariés (1986) refere que por muito tempo na história, da Antigüidade até o fim do
século XVIII praticamente, as crianças não eram reconhecidas na sua particularidade, não
64
tinham a importância que têm hoje. Dessa forma, a sociedade pouco se preocupava com a
preservação da sua vida e saúde. A taxa de mortalidade infantil era bastante alta, se
acreditava que as doenças infantis eram originadas de um desequilíbrio entre a natureza e
o corpo humano, e dessa forma a própria natureza deveria encarregar-se de curá-la.
Apesar desse longo processo, já no início do século XVIII começou-se a se empreender
esforços na conservação da saúde das crianças; é o início da pediatria e em Paris é
fundado o primeiro hospital pediátrico francês, no qual eram tratadas as crianças pobres,
pois as de família rica recebiam os cuidados médicos na própria casa. Em 1901 surgem,
na Europa, hospitais mais modernos para as crianças.
Hoje, no Brasil, apesar de ainda vivenciarmos insuficiências políticas e técnicas
para a efetivação integral dos princípios que regem o SUS, com todos os avanços que ele
representa, ou os objetivos que definem a instituição hospitalar, como ditada pela OMS, já
se pode contar com mudanças importantes. Por exemplo, o reconhecimento efetivo da
especificidade e singularidade do ser criança como uma categoria diferenciada do adulto e
com necessidades próprias a esta condição. Direitos transformados em lei são efetivados
no cotidiano hospitalar infantil e isto pode ser ilustrado dentro do processo de
humanização dos hospitais, pela participação dos pais durante todo período de
hospitalização da criança (CREPALDI, 1999). Dessa forma, pode-se favorecer a
minimização da ansiedade despertada na criança e na família desde a comunicação
diagnóstica da doença - que é sempre vivida como uma ameaça à integridade corporal e
carregada de sofrimento - a todo processo da hospitalização, vivenciado como uma
ameaça à vida e ao bem estar. Por outro lado contribui também para “liberar” a equipe de
uma forte demanda psíquica. Demanda essa que sobrecarrega e muitas vezes, remete a
ansiedades de desamparo e finitude humana.
A qualidade da relação estabelecida entre paciente e profissional de saúde é um
fator de muita importância para o bem estar e uma melhor recuperação do doente. Quando
se trata de criança doente, esta relação, que se estende a uma configuração triangular
envolvendo o profissional de saúde, a criança e a família, tem um peso ainda maior.
Santos e Sebastiani (2001), referindo-se ao doente portador de doença crônica,
afirmam que 40% da eficácia de qualquer acompanhamento a esse tipo de paciente se
deve à boa relação equipe-paciente-família. Esta relação depende, por sua vez, de uma
65
adequada organização da identidade da equipe e do respeito e sintonia entre os seus
componentes. Assim sendo, o enfermo que se sente acolhido, seguro, apoiado pela equipe,
tem mais condições de enfrentar o processo de doença e hospitalização. Sendo ouvido e
devidamente esclarecido quanto às suas dúvidas sobre sua situação, sendo colocado como
um participante ativo no processo da doença, sua adesão ao tratamento torna-se mais
eficiente. Estes benefícios se revertem também para a equipe, que tem ganhos com a
maior inserção do paciente no seu tratamento, principalmente quando essa postura reverte
em sua melhora.
Além de toda a influência que a equipe exerce sobre o doente, vale ressaltar, que
esta, por sua vez, também sofre a influência direta do sujeito doente e familiar, sendo,
muitas vezes, depositária das angústias, agressividade, expectativas, exigências,
ansiedades, e projeções desses. A doença física do outro, e a tarefa que os profissionais de
saúde têm para prover cuidados e alcançar a “cura”, têm um grande impacto na sua
própria saúde física e psíquica. Estar em contato direto com as dores de quem sofre suscita
nos profissionais sentimentos dolorosos, muitas vezes contraditórios, ora de afeição, ora
de agressividade; de impotência perante a perda de uma vida; de dor por perceber sua
própria finitude no mundo.
A ansiedade e o estresse diário levam esses profissionais a uma tentativa saudável
de proteger-se dessa dor, lançando-se aos mais diversos mecanismos defensivos. No
entanto, nem sempre esses mecanismos são bem sucedidos, do ponto de vista do
estabelecimento de uma relação gratificante para ambos os envolvidos. Podem, por
exemplo, estabelecer uma convivência impessoal com o doente, tornando-se arredios, não
ouvindo ou dando pouca importância à suas queixas, evitando um envolvimento afetivo e
a ativação de estados emocionais depressivos e /ou ansiogênicos.
Chazan (2000, p. 164), a partir de um trabalho em hospital com uma equipe de
médicos reflete que “[...] nada é mais complexo que o homem”. E critica o ensino da
medicina: “preparamos o aluno para algo que não existe, isto é, uma biologia humana,
sem homem”. No entanto, cabe ressaltar que esta perspectiva de olhar criticada por
Chazan, “científica”, biologizante, flexneriana e ainda hegemônica, mantêm-se desde
1910 (a partir do modelo norte americano com ênfase no curativo, com uma lógica
biologicista e fragmentada do corpo humano) na formação acadêmica da grande maioria
66
dos profissionais de saúde e não só como “privilegio” da formação médica. Dessa forma
alijados de sua totalidade, esses profissionais, de modo geral, têm isolado os aspectos
sociais e emocionais dos biológicos, no exercício e enfrentamento diário de suas ações de
saúde, tornando-se presas vulneráveis de importantes conflitos da relação profissional de
saúde / cliente.
A situação de morte, por exemplo, mobiliza toda a equipe Feifel (apud KOVÁCS,
1992, p. 226), realizaram uma pesquisa com médicos, estudantes de medicina, pacientes e
indivíduos, na qual verificou que médicos apresentam um maior medo da morte que os
demais e que poderiam estar buscando na sua profissão um controle e domínio sobre ela.
Os profissionais de saúde que trabalham diretamente com os enfermos utilizam o
mecanismo de defesa da formação reativa, onde buscam dominar a doença, desafiar a
morte na tentativa de salvar o paciente. A morte da pessoa doente fere o narcisismo destes
profissionais, que se sentem impotentes. Refere como exemplo que muitas vezes, quando
o enfermo está em fase terminal é deixado, pelos médicos, sob os cuidados de
enfermeiros, como forma de evitar o contato com este sofrimento. Observa-se, nestas
situações, a clara falta de articulação e integração desta equipe, onde situações desta
natureza passam a ser tratadas através de busca de soluções mágicas aos sentimentos de
dor e impotência.
Segundo autores como Brim (apud KOVÁCS, 1992, p. 226),
[...] o médico muitas vezes não se permite conhecer os seus sentimentos em
relação à morte, entre os quais: a impotência, a culpa e a raiva. A impotência foi
associada à perda dos doentes, a culpa ao fato de enganá-los e a raiva como
decorrência das duas anteriores. O profissional de saúde pode reexperimentar
medos infantis de separação, abandono e o medo de sua própria mortalidade.
2.4 SOBRE A CRIANÇA E SEU ADOECER, A HOSPITALIZAÇÃO E A
IMINÊNCIA DA MORTE
A doença sempre foi objeto do pensamento humano, construindo modos de
entender e intervir; mas quando a dor, o sofrimento e a doença recaem sobre a criança,
aparece, mais claramente, a nossa perplexidade e a incompletude das diferentes
67
explicações. Pensar o adoecimento infantil como parte de um contínuo da vida e mesmo a
morte, como aspecto deste viver humano, é chegar ao limite do impensável. No entanto,
no cotidiano de trabalho dos profissionais de saúde, em hospitais, em ambulatórios ou
Unidades de Saúde, esta realidade torna-se irrefutável, com implicações no processo de
trabalho e de viver destes trabalhadores.
Através de diferentes contribuições e teorias buscaremos posicionar a criança em
um contínuo de seu desenvolvimento, em que a saúde e a doença assim como a
proximidade da morte vai se construindo gradativamente.
Através da teoria de Anna Freud (1987), de seu conceito de linha de
desenvolvimento, vislumbra-se a autonomização gradual da criança em diferentes
domínios de sua vida psicossocial. Anna Freud concebe cada etapa desse
desenvolvimento como a resultante de um equilíbrio sutil; por um lado, as restrições
exteriores encontradas pela criança e, por outro, o estado de diferenciação e de maturação
respectiva de suas diferentes instâncias intrapsíquicas.
A autora assinala que a criança não se desenvolve de maneira contínua e linear,
mas que cada uma dessas linhas de desenvolvimento é suscetível de ser mesclada por
pausas, por patamares, até mesmo por momentos regressivos que continuam fisiológicos,
se transitórios (FREUD, 1978, p. 46). A regressão, portanto, representa ao mesmo tempo
um mecanismo de defesa do ego e um processo estruturante, quando passageiro e não
muito intenso. As linhas de desenvolvimento apresentadas referem um processo de
desenvolvimento que vai: a) do estado de dependência à autonomia afetiva e às relações
de objeto de tipo adulto; b) da amamentação à alimentação racional; c) da incontinência
ao controle dos esfíncteres anal e uretral; d) do descuido ao senso de responsabilidade no
que concerne à maneira de tratar seu próprio corpo; e) do egocentrismo ao
companheirismo; f) do corpo ao brinquedo e do jogo ao trabalho.
O medo da morte emerge já na infância inicial. Sigmund Freud revelava uma série
de eventos que inevitavelmente ocorreriam no desenvolvimento de todas as crianças:
medo da perda de pessoas significativas, medo da perda do amor, a angústia de castração
e a angústia face ao superego.
Ao nascer, o bebê já possui os elementos suficientes para gradativamente, com a
ajuda da mãe, ir conhecendo o mundo. Em sua fantasia, é ele que cria o mundo. É a partir
68
de “seu olhar”, tanto sensorial quanto afetivo e cognitivo que este processo se constrói.
Inicialmente parecerá um prolongamento do paraíso intra-uterino, mas aos poucos
perceberá que há necessidades, sofrimentos, alegrias. Poder enxergar sua finitude, sua
mortalidade, será sua maior ferida, a qual carregará para sempre. Descobre desta forma
que é um homem e não um deus, como acreditava. “Um homem é humano porque é
mortal, e é saber que é mortal que o torna humano” (CASSORLA, 2002, p. 17).
Faz-se interessante observar que no processo de crescimento os lutos simbólicos e
reais fazem parte do desenvolvimento saudável do ser humano.
Orientando-nos por S. Freud (1905-1915), Anna Freud (1987), M. Malher (2002),
R. Spitz (2002), Winnicott (1983-2001), E. Erikson (1976-1987), Aberastury (1988-
1992), e tantos outros autores que contribuíram para a psicologia do desenvolvimento em
uma perspectiva psicodinâmica, podemos assinalar, momentos significativos na vivência
dos lutos (estruturantes) neste processo de desenvolvimento:
Desmame (entrada de outros alimentos – primórdios constância objetal,
percepção da diferenciação, o outro separado);
A aquisição da fala e da locomoção (dessimbiotização);
A socialização (triângulo edípico, “a falta”, a culpa e a reparação);
A entrada na escola (o simbólico - o superego);
A adolescência (perda do corpo infantil, perda dos pais da infância, perda da
identidade infantil);
O início da vida adulta (trabalho, independência econômica, relacionamento
amoroso mais estável, etc.);
A meia idade (perdas do corpo, inveja, “fantasia da juventude eterna”,
reavaliação da vida pessoal e profissional, crise existencial);
O envelhecimento (percepção mais presente da finitude).
Para Freud (1917), o luto responde a uma perda de objeto, que se situa na
realidade, englobando várias etapas na resolução de sua elaboração. Logo de início, ocorre
uma idealização do objeto perdido; a seguir, uma introjeção deste objeto perdido
idealizado, acompanhando um desinvestimento pronunciado da realidade externa, a favor
desta única identificação massiva com o objeto introjetado; finalmente, se desenvolve um
desapego progressivo, enfim, da libido que havia se fixado neste objeto interiorizado, daí
69
a possibilidade de reencontrar novos investimentos afetivos.
Torres (2002), tendo em vista que o conceito de morte é um dos princípios
organizadores mais importantes da vida, com grande impacto na formação da
personalidade e no desenvolvimento cognitivo, mostra em seus trabalhos o avanço de
pesquisas já entre os anos 60 e 80, assim como o grande número de pesquisas e trabalhos
desenvolvidos com esta temática nas últimas décadas (SCHILDER; WECHSLER, 1934;
NAGY, 1948, 1959 apud TORRES, 2002).
Considerando-se, com Torres (2002), que o conceito de morte não é um conceito
unitário, sua avaliação requer uma abordagem multidimensional para que se tenha uma
visão mais clara do que a criança nas diferentes etapas de seu desenvolvimento é capaz de
compreender acerca da morte. Assim, descreveremos a seguir as dimensões do conceito
de morte no desenvolvimento infantil.
Principais componentes ou dimensões do conceito de morte:
irreversibilidade - inclui o reconhecimento da impossibilidade de mudar o
curso biológico ou de retornar a um estado prévio. (Com-preensão de que o
corpo físico não pode viver depois da morte).
não-funcionalidade - reconhecimento de que todas as funções definidoras da
vida cessam com a morte.
universalidade - reconhecimento de que tudo que é vivo morre. Inevitabilidade.
Para avaliarmos a noção de morte na criança, faz-se importante nos remetermos a
evolução do conceito de morte no desenvolvimento infantil. Organiza-se em torno de dois
pontos essenciais, segundo Marcelli (1998): de uma parte, como perceber a ausência e, de
outra parte, como integrar a permanência da ausência. O problema, pois, que se coloca
para a criança é como atingir um conhecimento e uma consciência do que é imperceptível,
no limite impensável, introduzir em seu lugar uma representação e depois um conceito de
não-ser.
Quatro fases permitem localizar suas principais etapas, de acordo com
Ajuriaguerra e Marcelli (1986)
12
:
12
Cabe ressaltar que essas fases, na forma em que se encontram colocadas, respondem principalmente ao aspecto
didático. A prática vem nos apontando a necessidade deste entendimento ser relativizado considerando-se a
história de vida de cada criança, a história familiar e social, a cultura a qual faz parte, as crenças, os eventos
70
fase da incompreensão total (zero a dois anos – incompreensão total e uma
completa indiferença – salvo em situações após uma ausência ou separação.
Reações de pequena duração, a não ser em traumatismo ou situações muito
repetidas);
fase abstrata de percepção mítica da morte (dois a quatro, seis anos –
simplesmente avesso do real, mas não o oposto, cessação e desaparecimento.
Morte provisória, reversível, ao mesmo tempo reconhecida e negada em suas
conseqüências, vida e morte não se opõem.);
fase concreta de realismo e de personificação (até nove anos – domínio da
permanência do objeto, representações concretas: esqueleto, cadáver, cemitério
– tentativa de dominar o temor que representa o cadáver, “objeto transicional”.
A pessoa morre mas permanece representável no tempo e espaço,
simplesmente não consegue mover-se. Inicialmente, uma referencia individual,
minha morte, à uma referencia universal, todos os homens são mortais. Em
seguida vem a passagem do reversível ao irreversível e, temor da morte do ente
amado e não só a simples ausência. Por fim, modifica-se o sentido moral da
morte, punição ou vingança, para um sentido natural, processo biológico.);
fase abstrata de acesso à angústia existencial (a partir de dez, onze anos - acesso
à simbolização da morte e ao domínio deste concei-to, mas também o temor
pela perda real e pelo seu próprio destino).
Na ocorrência do processo de hospitalização diversas questões e fantasias podem
acompanhar a criança. De uma maneira geral, ela não entende porque tem que sair da sua
casa para um lugar tão estranho e ameaçador. Lugar onde pessoas que ela não conhece
vão manipulá-la, onde terá que passar por procedimentos desagradáveis, onde estará longe
das pessoas e objetos de que gosta (VALLE, 1997; CREPALDI, 1999; TORRES, 2002;
NIGRO, 2004). O representante maior da doença, morte e cura, qual seja o contexto
hospitalar, está imbuído de dolorosos sentimentos, como medo, ansiedade, abandono,
tristezas, mas também de esperança. Coloca-se, pois, as implicações do adoecer e da dor
no desenvolvimento psicológico da criança hospitalizada.
significativos em seu processo de vida, etc, que vão contribuir para diferentes matizes de compreensão e
amadurecimento, frente ao estabelecimento do conceito de morte.
71
Ao ficar doente a vida da criança sofre diversas modificações. A doença é um
evento que pode comprometer o desenvolvimento infantil, seu processo de escolarização e
suas relações com parentes e amigos. Para Bergmann e Anna Freud (1978), toda criança
doente é notadamente uma criança em processo de regressão.
Marcelli (1998) nos coloca que a experiência da doença remete a criança a
movimentos psicoafetivos diversos: - a regressão quase sempre acompanha a doença,
produzindo o retorno a uma relação de cuidados corporais e de dependência (lactente); - o
sofrimento pode ser vinculado a uma vivência de punição ou a um sentimento de falta,
sendo que o sentimento de culpa, freqüentemente presente pode ser reforçado pelo
discurso da família (“estás gripado porque não te cobriste bem” ou, “tomaste picolé, não
obedeceste à mãe [...]”), mas tem sua origem também, na vida de fantasias da criança; - o
acometimento do esquema corporal, em que se torna freqüente o sentimento de corpo
imperfeito, frágil, defeituoso, ameaçado, na dependência da gravidade, da duração e da
natureza do impedimento imposto pela doença; - a morte, por fim, aparece em alguma
medida em certas doenças mesmo que a criança, assim como sua família, pouco falem
disto.
Independente da idade da criança que é hospitalizada ou de sua capacidade de
entendimento ela percebe que alguma coisa ruim está acontecendo. A criança pode achar
que sua doença, e conseqüente hospitalização são formas de castigo por alguma atitude
“terrível” que tenha cometido Valle (1997, p. 63) coloca que, a criança atribui,
freqüentemente o estar doente a alguns conflitos banais da evolução afetiva, a
experiências familiares: não ter comido uma refeição, ter agredido o irmão, ter levado
uma pancada”.
Winnicott (1982) ressalta a importância de haver uma preparação para o processo
de hospitalização. Coloca que quando as crianças sabem da sua doença e são informadas
da necessidade de hospitalização, quase todos os problemas da internação ficam
amenizados, pois estará compreendendo o que está se passando com ela. Com o
entendimento de que a internação será realizada para sua melhora, a criança poderá
compreender e aceitar melhor a situação, mesmo que com lágrimas e protestos. Por outro
lado, quando a criança vai para o hospital sem se sentir doente, não tendo conhecimento
sobre sua patologia, o problema de adaptação pode se agravar.
72
Nas situações de doenças graves, terminais, Kubler Ross (1996), nos assinala que
distanciar a criança da morte e da doença é deixá-la tendo que sentir sua dor sozinha e, ao
invés de gradualmente perceber a morte como parte da vida, confirma a crença de que a
morte é desamparo. A esse respeito, Kovács (1992, p. 48), alerta que “ao não falar o
adulto crê estar protegendo a criança, como se esta proteção aliviasse a dor e mudasse
magicamente a realidade. O que ocorre, é que a criança se sente confusa e desamparada
sem ter com quem conversar”.
Outro aspecto a ser considerado é o amadurecimento que esse processo de
hospitalização pode favorecer. Segundo Valle (1997) as crianças que passam por uma
doença grave podem amadurecer mais rapidamente; experiências de dor e dificuldades
vividas podem ser um meio de alcançar maior autonomia.
Por outro lado, também há crianças que vivem esse momento com revolta ou
resignação, tendo atitudes aparentemente irracionais e absurdas. O modo pelo qual se
passará por esta experiência de vida é único, singular. A forma como a criança foi
preparada para vivenciar a doença, as explicações que lhe foram dadas e, principalmente,
as oportunidades que lhe foram oferecidas para que expressasse seus sentimentos, sem
dúvida, influenciarão na determinação do seu modo de reagir.
O imaginário corresponde às imagens que cada um cria desde a apreensão que
tem de seu corpo e de seu desejo, de seu ambiente imediato, de sua relação com os
outros, a partir do capital cultural que recebe e que adquire, bem como das
escolhas que provocam uma projeção no futuro. [...] O imaginário permanece
mais do que nunca necessário, sendo de algum modo o oxigênio sem o qual a vida
pessoal e coletiva se arruinaria (BALANDIER, 1997, p. 232).
Na situação da perda real a vivência do luto pela família traz, inevitavelmente,
tristeza e raiva. Quando morre uma criança, uma parte dos pais se sente morrendo com
ela. Dessa forma, em função da angústia do luto antecipatório, podem se afastar da
criança, tornando-se emocionalmente menos disponíveis para ela. Por seu lado, a criança
também se afasta de seus pais porque percebe que é o motivo da dor e não deseja fazê-los
sofrer.
Crepaldi (1999), nos alerta ainda que quando uma criança adoece toda a família
também adoece, na medida em que todos são afetados com a doença e a hospitalização.
Filhos e pais têm que conseguir estruturar uma nova configuração familiar para atender a
73
nova demanda. Dessa forma, na situação de hospitalização de uma criança, a dinâmica e
os padrões de funcionamento da família se alteram. Os sentimentos mais identificados em
um momento como esse são, além da culpa, a impotência, o temor e a ambivalência diante
do sofrimento do outro.
O luto passa por um curso que vai de um choque inicial, passando pelo desespero
para chegar a recuperação e restituição. Pode se manifestar por diversos sintomas: choro,
perturbações somáticas, perturbações de sono, reações hostis, culpa e depressão.
Torres (2002) referem que a raiva é pela própria impotência diante da morte, raiva
da tristeza da perda, raiva da própria criança que os abandona e culpa ao perceberem esta
raiva. Os pais podem dirigir esta raiva um para o outro ou para a equipe de saúde que
cuida da criança. Devem ser ajudados a compreender esta raiva a fim de que ela não
venha a devastar as relações familiares ou interferir no tratamento da criança.
Raimbault (1979) e Torres (1999) assinalam o caráter que o hospital pode ter como
lugar de proteção e reparação para a família. Quando a mãe traz o filho para o hospital o
pedido que a mãe faz a equipe de saúde, muitas vezes representada pela enfermagem ou
pela medicina, não se refere apenas e necessariamente à cura, mas é também um pedido
de proteção e reparação: reparação para a mãe e proteção para ambos, contra os impulsos
de morte.
Também a equipe, na maioria das vezes, ao estabelecer vínculos afetivos com a
criança doente, terminal e mesmo com seus familiares, participa, sofre, têm esperanças e
perdas. Talvez a maior de todas as perdas seja a de não ter sido capaz de reparar a vida
para a família e para si mesma. É como se por um instante, acreditasse ser capaz.
2.5 SOBRE OUTRAS POSSIBILIDADES PARA ABORDAGEM TEÓRICA DO
OBJETO: CONCEITOS ARTICULADOS
As noções e os conceitos trazidos agora fazem parte do quadro teórico-
metodológico de análise que, juntamente com as demais temáticas já apresentadas,
buscam tecer idéias que trazem, no mesmo gesto que sustenta e desenha caminhos já
traçados, a desconcertante procura do novo. Novas leituras, novos olhares buscando novos
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caminhos com velhos parceiros. Temas como vínculo, rupturas, interações humanas,
comunicação, resiliência são apresentados como marcos do caminho que nos
impulsionam ao desafio onde o esperado torna-se o inusitado do dia a dia.
Assim, com Pichon-Rivière (1998) vemos a concepção de vínculo como uma
estrutura dinâmica em contínuo movimento, que engloba tanto o sujeito quanto o objeto
13
,
tendo esta estrutura características consideradas saudáveis e alterações consideradas como
patológicas. A todo o momento o vínculo é estabelecido pela totalidade da pessoa, em
constante processo de evolução. Refere que as relações que o sujeito estabelece com o
mundo são mistas, portanto, não existe um só tipo de vínculo e sim o emprego,
simultâneo, de diversas estruturas vinculares. Um bom vínculo é aquele que se estabelece
entre o sujeito e um objeto quando ambos têm possibilidade de fazer uma escolha livre de
um objeto, como resultado de uma boa diferenciação
14
entre ambos.
O autor entende o indivíduo não como um ser isolado, mas incluído dentro de um
grupo, basicamente o familiar; empreende assim, a investigação psicossocial e
sociodinâmica. Ao mesmo tempo, investiga a inclusão e significação que esse grupo tem
dentro da sociedade na qual está inserido; investigação que denomina institucional e que
consiste na investigação dos grandes grupos, sua estrutura, origem, composição, história,
economia, política, ideologia, entre outras. A tríplice investigação permite obter uma
análise mais completa do grupo que está sendo investigado. Analisam-se as tensões do
sujeito com os vários membros do grupo, analisa-se o grupo como uma totalidade em si e
investigam-se as funções do intragrupo, como no caso das lideranças daquele grupo.
Coloca Pichon-Rivière (1998, p.10), que a ruptura ou a perda de prestígio de alguém que
represente um líder pode acarretar o adoecimento em um dos membros que integra tal
grupo. Então este membro que adoeceu se transforma no porta-voz das tensões do grupo,
13
Em psicanálise a noção de objeto é vista sob três aspectos principais: a) enquanto correlativo de pulsão, isto é,
ele é aquilo em que e por que esta procura atingir sua meta, um certo tipo de satisfação. Pode tratar-se de uma
pessoa ou de um objeto parcial, de um objeto real ou de um objeto fantasístico; b) enquanto correlativo do amor
(ou do ódio), trata-se da relação da pessoa total, ou da instância do ego, com um objeto visado também como
totalidade (pessoa, entidade, ideal, etc.); c) no sentido tradicional da filosofia e da psicologia do conhecimento,
enquanto correlativo do sujeito que percebe e conhece, é aquilo que se oferece com características fixas e
permanentes, reconhecíveis de direito pela universalidade dos sujeitos, independentemente dos desejos e das
opiniões dos indivíduos (LAPLANCHE; PONTALIS, 1991).
14
Pichon-Rivière (1998 p. 14) considera que numa relação adulta, saudável, há um determinado limite entre o
sujeito e o objeto no sentido do intercâmbio de situações emocionais e de afetos, há uma relação de
independência em que não se encontram mutuamente confundidos e sim, diferenciados, podendo-se reconhecer o
que é de cada um.
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através do grupo. É preciso, portanto, considerar-se a totalidade do que ocorre dentro
deste grupo. Assim, a partir desta totalidade, trabalhar o grupo e a doença, como um
emergente dessa totalidade, torna possível um manejo dinâmico em espiral dialética da
relação médico-doente, ou do trabalho dos demais profissionais da equipe de saúde na sua
relação com a pessoa doente.
Em outras palavras, entende que quando há uma ruptura do equilíbrio psicológico
do sujeito que até o momento se mantinha mais ou menos estável, torna-se fundamental
investigar o conjunto de forças que atuam no contexto no qual emerge a doença mental.
Em relação ao fenômeno da despersonalização, entendida como um sinal que aponta para
o adoecimento, de acordo com a sua teoria do vínculo, Pichon-Rivière (1998) a interpreta
como a negação do vínculo, como uma tentativa de perda de si mesmo, de não ser
ninguém para não ter compromisso no vínculo com o outro.
O vínculo configura uma estrutura dinâmica em contínuo movimento, que
funciona acionada por motivações psicológicas, resultando daí uma determinada conduta,
que tende a se repetir tanto na relação interna como na relação externa com o objeto.
Dessa forma o vínculo se expressa através de dois campos psicológicos, o interno e o
externo. O vínculo é estabelecido pela totalidade da pessoa. O aparelho psíquico se
comporta como uma totalidade. Interpreta a loucura como resultante da colocação de um
vínculo interno sobre outro externo em relação ao qual tem prioridade. Freud já referia
que as diferenças entre normalidade e patologia são predominantemente quantitativas.
Coloca ainda Pichon-Rivière (1998) que os vínculos internos e externos se
integram em um processo que configura uma permanente espiral dialética produzindo
uma constante passagem daquilo que está dentro, para fora, e do que está fora, para
dentro. A teoria do vínculo permite que se compreenda o sujeito a partir de seu campo
intrapsíquico e as fantasias como resultado da vivencia singular desse sujeito, de acordo
com sua história particular. No entanto, a dicotomia que criou a divisão entre indivíduo e
sociedade aqui pode ser entendida em sua dimensão dialética. A sociedade está dentro e
fora, mas a sociedade que está dentro – internalizada - o está de uma forma particular para
cada indivíduo.
Outra característica importante trazida por essa teoria é a de que não existem
relações impessoais, uma vez que o vínculo de dois se estabelece sempre em função de
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outros vínculos condicionados historicamente no sujeito e que, acumulados nele,
constituem o que é denominado de inconsciente. Nessa perspectiva, torna-se
indispensável conhecer-se a representação de mundo interno de cada sujeito e grupo
social que queiramos trabalhar para que possamos compreender as interações
estabelecidas.
A psicologia social trouxe a questão das interações humanas. O autor também
clarifica que esse conceito permitiu um avanço em relação ao conceito de articulação, que
traz em si a idéia de separação sem incluir a relação dialética entre as estruturas, apenas
configurando a passagem. Assinala que anteriormente se estudava separadamente o
organismo e a situação, enquanto que atualmente o que centraliza os interesses é a
interação entre ambos. É um estudo que permite o conflito.
Na origem da personalidade, no desenvolvimento da conduta, as relações de tipo
pessoal são os fatores de maior importância. Essa noção de interação é
fundamental, já que indivíduo e meio estão em permanente interação. Uma pessoa
não pode representar uma conduta sem a estabelecer em relação com o outro
(PICHON-RIVIÈRE, 1998, p. 60).
Dada a importância da temática das relações na pesquisa proposta, trazemos Paul
Watzlawick (1993), colocando alguns aspectos de sua contribuição teórica sobre a
pragmática da comunicação humana. Este autor observa o comportamento humano a
partir do estudo das manifestações observáveis da relação, donde o veículo dessas
manifestações é a comunicação. Sugere que o estudo da comunicação humana seja
subdividido nas três áreas de sintaxe, semântica e pragmática estabelecidas por Morris
(1938) e adotadas por Carnap (apud WATZLAWICK, 1993), para o estudo da semiótica.
Para efeitos do nosso estudo interessa particularmente o seu aspecto pragmático,
isto é, o fato da comunicação afetar o comportamento. De qualquer forma sabemos que se
é possível separar essas três formas conceitualmente elas são, não obstante,
interdependentes. Focando nosso olhar nos efeitos comportamentais da comunicação,
Paul Watzlawick (1993) esclarece que os dados da pragmática não são só as palavras, mas
suas configurações e significados, que constituem os dados da semântica e da sintaxe,
assim como também os seus concomitantes não-verbais e a linguagem do corpo.
Acrescenta ainda às ações comportamentais pessoais as pistas de comunicação inerentes
ao contexto em que ela ocorre. Portanto, desde esta perspectiva, todo o comportamento é
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comunicação e toda comunicação – mesmo as pistas comunicacionais num contexto
impessoal – afeta o comportamento.
Refere o autor, então, que uma vez aceito todo comportamento como
comunicação, estamos diante de um complexo fluído e multifacetado de numerosos
modos de comportamento – verbais, tonais, posturais, contextuais, etc – que em seu
conjunto, condicionam o significado de todos os outros. Os vários elementos desse
complexo são capazes de permutas muito variadas e de grande complexidade, que vão
desde o congruente ao incongruente e paradoxal.
Assim, dentre os axiomas levantados pelo autor, destaco dois deles como forma de
ilustração da lógica em que foram construídos: não se pode não comunicar (mesmo em
etiologias como a esquizofrenia); e, qualquer comunicação implica um compromisso
(uma comunicação não só transmite informação, mas ao mesmo tempo, impõe um
comportamento).
Birdwhistell (apud WATZLAWICK, 1993, p. 64) com um olhar que “foi ainda
mais longe” em seu entendimento de comunicação:
Um indivíduo não comunica; ele se envolve em comunicação ou torna-se parte da
comunicação. Pode movimentar-se ou fazer ruídos [...] mas não comunica. De um
modo paralelo, ele pode ver, pode ouvir, cheirar, provar, ou sentir – mas não
comunica. Portanto, a comunicação como sistema não deve ser entendida como
um simples modelo de ação e reação, por mais complexamente que seja descrito.
Como sistema tem que ser compreendido no nível transacional.
Parece, pois, evidenciar-se a importância de se compreender também, as
perturbações da comunicação humana, a patologia dessa comunicação como instrumento
de resgate da saúde.
Na trajetória de busca de subsídios que referendem e instrumentalizem uma
reflexão sobre os desafios em promover a capacidade e potencial de saúde e criatividade
dos trabalhadores da saúde, a discussão sobre resiliência ganha especial importância.
Infante (2002) coloca que a resiliência vem sendo estudada principalmente em
crianças e tenta entender como crianças, adolescentes e adultos são capazes de sobreviver
e superar adversidades apesar de viver em condições de pobreza, violência intrafamiliar,
enfermidade mental dos pais, entre outras.
Refere que as pesquisas iniciais procuravam entender as causas e a evolução da
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psicopatologia e se defrontaram com grupos de crianças que contrariamente as
expectativas, pelas condições adversas de vida, não desenvolveram problemas
psicológicos ou de adaptação social. Demonstravam uma capacidade de
“invulnerabilidade”. Resistiam. Porém o conceito escolhido para definir essa constatação,
ao invés de invulnerabilidade foi resiliência. Isto se deu porque resiliência implica que o
indivíduo é afetado por um estresse ou uma adversidade e é capaz de superá-lo ou sair
fortalecido; além disso, a resiliência implica um processo que pode ser desenvolvido e
promovido, enquanto a invulnerabilidade é considerada um traço intrínseco do indivíduo
(RUTTER apud INFANTE, 2002).
Surge assim, a primeira geração de pesquisadores cujo interesse era descobrir
aqueles fatores protetores que se encontram na base dessa adaptação positiva (KAPLAN
apud INFANTE, 2002). Uma segunda geração de investigadores expandiu o tema de
resiliência em dois aspectos: a noção de processo, que implica a dinâmica entre fatores de
risco e de resiliência que permite que o indivíduo supere a adversidade, e a busca de
modelos para promover resiliência de forma efetiva no âmbito de programas sociais.
Melillo, Estamatti e Cuestas (2002, p. 85) ao colocarem a definição do conceito de
resiliência assinalaram que a palavra “Resilire, em buen latin, significa volver a entrar
saltando o saltar arriba. Curiosamente, también la acepción de apartarse, desviarse”.
Ressaltam que “resulta interesante esta última acepción para no olvidar el horizonte de
exclusión social que condiciona el tema [...]”.
Esses autores apresentam um exaustivo estudo colocando autores que se dedicaram
a investigar diferentes conteúdos do conceito de resiliência. Relatam as características do
sujeito resiliente assim como destacam os elementos cruciais encontrados nestes
conceitos. Enfatizo aqui, resumidamente alguns elementos evidenciados:
La resiliência se produce en función de procesos sociales e intrapsíquicos. no se
nace resiliente ni se adquiere “naturalmente” en el desarrollo: depende de ciertas
cualidades del proceso interactivo del sujeto con los otros seres humanos,
responsable de la construcción del sistema psíquico humano (MELILLO;
ESTAMATTI; CUESTAS, 2002, p. 87).
Assim, para esses autores, o que orienta o conceito de resiliência é uma
compreensão e conhecimento empírico dos fatores que protegem o sujeito dos efeitos
nocivos das más condições do ambiente humano e social que o rodeiam, e que permite o
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desenho de métodos práticos de promoção de tais fatores, para assegurar um
desenvolvimento favorável, prevenindo o aparecimento de enfermidades físicas ou
mentais.
Portanto, o interesse em compreender os fundamentos psicológicos da resiliência
reside na busca de um maior conhecimento desse processo para construção de estratégias,
junto aos trabalhadores da saúde, que possam promovê-la.
CAPÍTULO III - O PROCESSO METODOLÓGICO
3.1 A HISTÓRIA DE UM PERCURSO: O LUGAR DO PESQUISADOR
Ao pensar em metodologia e no caminho percorrido na elaboração desta tese me
vêm à mente as palavras de Brandão (1986, p. 9) quando se referiu ao educador popular
que preocupado com tantas questões de fundo e de método “às vezes esquece de pensar
sobre o que acontece dentro dele”. Como ele, me encontro buscando compreender como
existem e como se articulam os universos sociais e simbólicos no cotidiano mundo
invisível dos atores de uma pesquisa. Não os educadores populares citados por Brandão,
mas os igualmente trabalhadores, sujeitos da educação que se dá no dia-a-dia dos
hospitais, no enfrentamento da saúde e da doença, nas relações, nas trocas de saberes, no
“trabalho de formiguinha”
15
, conforme palavras de um membro da equipe de
enfermagem, sujeito deste estudo. Podemos ousar fazer aqui uma analogia com o trabalho
realizado nos hospitais, em uma dinâmica organizativa que não permite erros nem
desvios, incansavelmente. Como aparece na fala de um outro profissional da Instituição
estudada, (P2)
16
.
Se a gente passar nos ambulatórios vai ver que todo mundo sofre. Tinha
uma época que a gente fazia uma atividade de escuta e passava nos
ambulatórios e encontrava dois ou três funcionários trabalhando e
chorando. Por quê? Motivo tinha. A gente dava bom dia e eles respondiam
chorando porque a pressão é tanta que a pessoa não agüenta e tem que
estar ali trabalhando. Porque “se eu sair” não vai ter alguém para atender
o povo. Isto é, se o funcionário sair pra sofrer o povo não vai ser atendido.
Isso dá sofrimento mental, não é? E isso não está em estatística nenhuma.
Hospital, lugar onde a dor deve ser banida, cheio de mistérios da vida e da morte.
Lugar de encontros íntimos, insondáveis, da alcova. Novamente busco Brandão (1987, p.
7) quando coloca sobre o ofício do pesquisador.
15
E6 - Refere-se a fala de um dos profissionais entrevistados para fins desse estudo.
16
Sigla usada para identificar os profissionais participantes da pesquisa.
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Há segredos que se ocultam de teorias; assuntos do humano que há no ofício do
pesquisador e que somente o pensar sobre a prática pessoal revela. Durante anos
aprendemos que boa parte de uma metodologia científica adequada serve para
proteger o sujeito de si próprio, de sua própria pessoa, ou seja: de sua
subjetividade.
No entanto, a experiência da escuta de tantas vozes, em tantos gestos desvelados a
cada encontro com esses trabalhadores, capturou-me em nossas histórias de trabalho e de
vida. Para Brandão (1987) quando o outro se transforma em uma convivência, a relação
obriga a que o pesquisador participe de sua vida, de sua cultura. E quando o outro me
transforma em um compromisso, a relação obriga a que o pesquisador participe de sua
história. Assim, compartir com pessoas reais momentos redutores da distância do
outro no interior de seu cotidiano nos revela que a maneira de um entrevistado falar
sobre qualquer assunto é através de sua pessoa, sua cultura, seu grupo social, sua
lógica, seus mitos, seus temores, suas crenças. E que “o primeiro fio de lógica do
pesquisador deve ser não o seu, o de sua ciência, mas o da própria cultura que
investiga, tal como a expressam os próprios sujeitos que a vivem. Estava inventada a
observação participante” (BRANDÃO, 1987, p.12).
O autor refere ainda que quando esse sujeito da pesquisa torna-se companheiro de
uma trajetória e de um compromisso de luta, o pesquisador vê-se obrigado a repensar
além da posição de sua pesquisa a de sua própria pessoa. (BRANDÃO, 1987).
Buscando conexões com a experiência vivida como pesquisadora, me vi inúmeras
vezes como parte do grupo de profissionais estudados, como sujeito de minha própria
investigação, em um processo de busca e luta compartilhado. Se por um lado este vínculo,
pela trajetória comum, possibilitou um mergulho mais profundo na escuta e nas
observações “compartidas”, por outro me colocou em uma fronteira de risco. Risco com a
perda dos limites na diversidade encontrada; risco com o sofrimento institucional; risco
com a esperança não reconhecida. E ainda assim, continuava uma estrangeira. Nesse
sentido se faz fundamental ao pesquisador estar atento a seu “livro de receitas”, do qual
lança mão automaticamente sem precisar pensar, usando-o como esquema de
interpretação dos fenômenos do mundo. Tais são as palavras de Schutz, (1958) em “El
Forastero”, compilado por Arvid Brodersen (2003, p.106):
[…] la pauta cultural del grupo abordado es, para el forastero, no un refugio, sino
82
un campo de aventura; no algo que va se suyo, sino un tema cuestionable de
investigación; no un instrumento que le permite desentrañar situaciones
problemáticas, sino, en sí misma, una situación problemática y difícil de dominar.
No artigo referido, Schutz (2003) se propôs a estudar em termos de uma teoria
interpretativa geral, a situação típica na qual se encontra um forasteiro
17
quando procura
interpretar o esquema cultural de um grupo social do qual se aproxima e sua tentativa de
orientar-se dentro dele. Utiliza como exemplo a situação do imigrante. No entanto relata que
de modo algum a análise está limitada apenas a essas situações; incluindo dentro das
possibilidades de casos o do pretendente sócio de um clube fechado, o do rapaz que deseja
ser aceito pela família de sua namorada, o do filho de agricultores que ingressa na
universidade, o do habitante da cidade que se estabelece no meio rural, o do recruta que
entra no exército e inúmeras outras situações. Refere também que essa crise típica, esperada
na situação de “forastero”, possa aparecer apenas de forma suave ou nem mesmo aparecer.
Igualmente, torna-se relevante aqui a observação do autor quanto a deixar claro
que o conhecimento do homem que atua e pensa dentro do mundo de sua vida cotidiana
não é homogêneo; é incoerente, só parcialmente claro e de modo algum isento de
contradições (SCHUTZ, 2003). Uso como metáfora seu exemplo das dificuldades
encontradas na aprendizagem de um novo idioma. Schutz (2003, p. 104) refere que “para
poder dominar con soltura un idioma como esquema de expresión, es necesario haber
escrito en él cartas de amor, saber orar y maldecir en él, y decir cosas con todos los
matices adecuados al destinatario y a la situación”.
Por outro lado vemos nas palavras de Brandão (1987, p. 12), orientando-se em
Marx, não ser necessário que o pesquisador se faça operário ou como ele para conhecê-lo.
É necessário que o cientista e sua ciência sejam primeiro, um momento de
compromisso e participação com o trabalho histórico e os projetos de luta do
outro, a quem, mais do que conhecer para explicar, a pesquisa pretende
compreender para servir.
Dadas tais considerações iniciais apresentaremos o método de estudo e
descreveremos o processo de produção e de análise dos dados.
17
Utilizo o conceito de forastero em Schultz (2003, p.95): Para nuestros fines, el término “forastero” indicará una
persona adulta, perteneciente a nuestra época y civilización, que trata de ser definitivamente aceptada, o al
menos tolerada, por el grupo al que se aproxima.
83
3.2 O ESTUDO
A escolha pela metodologia de natureza qualitativa se deu, por um lado, pela
complexidade e intrincamento fronteiriço com uma vasta e diversificada gama de
conhecimentos necessários ao entendimento do objeto de estudo a partir da questão de
pesquisa formulada. Por outro lado, por uma longa prática orientada por uma perspectiva
de olhar comprometida com o social, historicamente contextualizada, e voltada para a
realização de projetos de inserção na instituição, concebidos e construídos com as
respectivas parcerias de trabalho.
Assim, esse estudo encontra-se fundamentado na possibilidade de compreender o
sentido das ações humanas dentro da realidade social e cotidiana de seu mundo de
relações; na necessidade de aproximar-se dos significados políticos e do caráter simbólico
e psicológico nas quais estão pautadas. Dessa forma buscou-se compreender o sujeito
trabalhador a partir da organização de seu trabalho, da instituição a qual faz parte,
procurando identificar os conflitos e contradições inerentes às relações intrinsecamente
estabelecidas no cotidiano de sua prática. Além disso, esse olhar procurou identificar os
aspectos de fragilidade e de resistência na dinâmica de trabalho dos profissionais de saúde
no seu cotidiano hospitalar. Foi privilegiada a equipe de saúde, com a diversidade e
complexidade de suas especificidades, procurando-se apreender daí a dinâmica
constitutiva do processo saúde/doença que a caracteriza.
Minayo (1998, p. 18), referindo-se ao processo de investigar, coloca que a pesquisa
vincula pensamento e ação, “nada pode ser intelectualmente um problema, se não tiver
sido, em primeiro lugar, um problema da vida prática”. Desta forma, a investigação é fruto
de determinada inserção no real, nele encontrando suas razões e objetivos. Em um outro
trabalho (MINAYO, 2000, p.21), a autora assinala seu ponto de vista de que a visão de
mundo do pesquisador e dos atores sociais está implicada em todo o processo de
conhecimento, desde a concepção do objeto até o resultado do trabalho. Complementa
referindo que esta é uma condição da pesquisa e que uma vez assumida, pode-se manter a
crítica tanto sobre a compreensão do objeto quanto sobre o próprio pesquisador,
possibilitando, como conseqüência, a tentativa de objetivação do conhecimento.
84
Pedro Demo (2002) nos ajuda na formulação do que se entende, nesse estudo,
como universo da pesquisa qualitativa.
Qualidade não pode ser apenas aquilo que não é quantidade, aquela fumaça para
além da chaminé, aquela coisa vaga que se pressente não sei onde, não sei como e
não sei por quê... Se qualidade é dimensão essencial da realidade social, deve
aparecer de alguma forma. E mais, deve ser algo cuja importância e presença
esteja no cotidiano, na vida real, na dor e na alegria (DEMO, 2002, p. 31).
O autor também refere que quando se pretende uma investigação com o olhar
qualitativo não se busca um fenômeno de grande porte em termos extensivos, mas se
prefere a aplicação a grupos menores, a comunidades pequenas, a instituições de tamanho
contornável. Tal observação parte do princípio de que a limitação metodológica “pode ser
amplamente compensada pela profundidade dos procedimentos estando nisso sua razão de
ser”. Para ele não seria alternativa a avaliação que apenas alcançasse “uma postura técnica
mais apurada, ou buscasse apenas a virtuosidade estatística das generalizações, ou, ainda,
trocasse a extensão em detrimento da intensidade”. Não despreza com isso o aspecto
quantitativo e nem o rigor, a meticulosidade do método. Talvez a diferença resida em que,
para ele, este rigor, “não passa de instrumentação. É caminho, não é chegada”. E explicita,
“mas não se chega sem caminho” (DEMO, 2002, p. 35-36).
Assim, voltando para o diálogo com Minayo (1998), Demo (2002) afirma a
importância de se cercar da base empírica no processo metodológico, assinalando que
qualidade não é a contradição lógica da quantidade, mas a face contrária da mesma
moeda. “Qualidade e quantidade são, pois, pólos contrários – como quer a dialética –, não
extremos contraditórios que apenas se excluem” (DEMO, 2002, p. 35).
Nesse sentido Minayo (1998, p.24) observa:
A dialética pensa a relação da quantidade como uma das qualidades dos fatos e
fenômenos. Busca encontrar, na parte, a compreensão e a relação com o todo; e a
interioridade e a exterioridade como constitutivas dos fenômenos entendidos nas
suas determinações e transformações dadas pelos sujeitos. Compreende uma
relação intrínseca de oposição e complementaridade entre o mundo natural e
social, e entre o pensamento e a base material. Vê também a necessidade de se
trabalhar com a complexidade, com a especificidade e com as diferenciações que
os problemas e /ou ‘objetos sociais’ apresentam.
E é neste lugar que nos colocamos como parte de um processo, sujeito e objeto de
uma aprendizagem sempre em mutação e em relação com o outro. Lembrando Demo
85
(2002, p.36) para o qual “é imprescindível observar que a boa teoria é aquela que sempre
recomeça, pois está em estado processual de aprendizagem criativa”.
3.3 O TIPO DE PESQUISA
A opção pela metodologia de estudo de caso está fortemente relacionada ao
contexto e a história profissional da pesquisadora, como professora e como psicóloga
hospitalar. Vindo a justificar, do mesmo modo, a escolha do local de estudo. Ao contexto
por se tratar de um hospital aonde viemos trabalhando com a formação e, portanto com a
capacitação profissional do psicólogo em projetos de inserção nesta realidade hospitalar.
E, à história profissional e mesmo de vida, como constituição da identidade laboral, que se
deu gradativamente, através desta vivência como psicóloga hospitalar. Entendendo que
esta experiência não teria sido possível sem a parceria com as demais categorias de
trabalhadores da saúde que fazem parte deste contexto. Assim, toda aprendizagem
realizada pelos alunos e por mim, todo o conhecimento desenvolvido nestes anos de
intercâmbio de saberes se deu pela disponibilidade e generosidade da população de
usuários e das equipes de trabalhadores de saúde desta instituição. Seja por nos terem
permitido uma aproximação tal, a ponto de nos falarem seus segredos, suas dores e,
algumas vezes nos presentearem com suas alegrias, seja por terem estado ao nosso lado
como cúmplices de uma luta pelo direito universal à saúde e ao cuidado com a criança
doente na perspectiva de responsabilidade pública.
Assim, reflexões acerca destas vivências no cotidiano destes profissionais foram
traduzidas em questões tais como: Quais as implicações do processo de trabalho no
cotidiano dos trabalhadores de saúde em instituição pública pediátrica com crianças
gravemente enfermas ou com risco de vida? Quais as decorrências do sofrimento psíquico
e dos danos à saúde dos trabalhadores desta instituição nas relações e dinâmica do
trabalho realizado? Como se manifesta a capacidade de resiliência destas equipes?
Esta pesquisa foi desenvolvida com profissionais de saúde de duas Enfermarias e
86
um Ambulatório que realizam tratamento com significativo número de crianças e
adolescentes gravemente enfermos e /ou com risco de morte. Teve como cenário um
hospital público de referência na região em que está inserido. Trata-se de um hospital
escola de pequena, média e alta complexidade.
O estudo de caso mostrou-se, portanto, adequado tanto ao objeto de estudo quanto
a realidade investigada. Isto é, através de uma parte específica da instituição escolhida -
equipes de saúde de duas Enfermarias e de um Ambulatório que guardam entre si uma
demanda em comum - tornou-se possível uma investigação mais minuciosa sobre o
cotidiano de trabalho destes profissionais. As singularidades desses sujeitos e as situações
particulares que envolvem cada história e contexto institucional em que se localizam
desvelaram-se em um cenário onde o invisível ostenta forças e constrói histórias de vida.
Yin, R.K. (2005) refere que o estudo de caso como estratégia de pesquisa é
utilizado em várias situações visando contribuir com o conhecimento que temos dos
fenômenos individuais, organizacionais, sociais, políticos e de grupo assim como de
outros fenômenos relacionados. Cita que em todas essas situações a necessidade pelo
estudo de caso surge claramente do desejo de se compreender fenômenos sociais
complexos. Além disso, é um estudo que permite uma investigação onde se podem
preservar características holísticas e significativas dos acontecimentos da vida real.
Triviños (1990) assinala que o estudo de caso é um desenho de pesquisa cujo
objeto é uma unidade que se analisa aprofundadamente. Suas características são dadas,
principalmente, pela natureza e abrangência da unidade, enquanto sua complexidade está
determinada pelos suportes teóricos que orientam a investigação. O autor observa que no
estudo de caso qualitativo a complexidade do exame aumenta à medida que se aprofunda
no assunto. Refere Bogdan (apud TRIVIÑOS, 1990, p. 136) ao distinguir vários tipos de
estudos de caso, entre os quais destaco alguns, pela pertinência em relação a justificativa
deste estudo. São eles: - os estudos de casos histórico-organizacionais, onde o interesse
do pesquisador é sobre a vida de uma instituição; - os estudos de casos observacionais,
típicos da pesquisa qualitativa onde o foco está em uma escola, um clube, uma associação,
por exemplo, porém não é a organização como um todo que interessa, senão uma parte
dela; - os estudos de casos denominados história de vida, onde a entrevista visa
aprofundar-se na história de vida de um sujeito, geralmente célebre ou interessante para
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determinada comunidade; - os estudos de casos de uma comunidade, geralmente
realizados por uma equipe multidisciplinar que setoriza a unidade a ser analisada
ressaltando os pontos em culminância, sem perder a visão integral do foco de análise. Cita
também os estudos de casos denominados de análise situacional e o microetnográfico. O
primeiro refere-se a eventos específicos que podem ocorrer em uma organização e o
segundo focaliza aspectos muito específicos de uma realidade maior. Enfim, cada um
deles irá utilizar as técnicas mais adequadas a sua operacionalização.
O tipo de estudo realizado nesta pesquisa apesar de ter elementos diferentes dos
estudos apontados faz diálogo com as etnografias. Isto é, caracterizou-se por ser um
estudo que buscou profundidade através de um recorte, voltado, mais especificamente, à
situação vivenciada pela equipe com crianças gravemente enfermas. Considerou-se nesse
processo o cenário institucional onde se dá a complexidade das relações e a dinâmica do
trabalho instituído.
3.4 O CENÁRIO E OS PARTICIPANTES
Características da instituição escolhida:
O estudo foi efetivado em duas Enfermarias e um ambulatório de um hospital
escola público de referência do sul do país com atendimento a crianças e adolescentes
gravemente enfermos. A instituição atua como pólo de referência Estadual para as
patologias de baixa, média e alta complexidade, sendo: 65,19% pacientes oriundos da
própria cidade ou dos municípios vizinhos e 34,81% de outros municípios do Estado. Está
vinculado à Secretaria Estadual de Saúde. Possui uma área de 22.000 m² e é dividido nas
unidades de internação: A (Adolescente e Apartamento), B, C, D, E, Berçário,
Emergência Interna, Isolamento, Oncologia, Queimados, UTI Geral e UTI Neonatal.
As unidades são especializadas em: Cardiologia, Cirurgia (Pediátrica Geral,
Plástica, Oftalmologia, Ortopedia, Otorrinolaringologia, Urologia, Vascular,
Bucomaxilofacial), Desnutrição, Gastroenterologia, Nefrologia, Neurocirurgia,
Neurologia, Oncologia, Queimadura, Pneumologia e Terapia Intensiva. Possui
88
profissionais em áreas afins, tais como: farmacêuticos, assistentes sociais, psicólogos,
pedagogos, nutricionistas, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, técnicos e auxiliares de
enfermagem, agentes operacionais e administrativos, direção e um grupo de voluntários.
São desenvolvidas atividades de ensino, através de programas de residência
médica em pediatria geral, neonatologia, cirurgia pediátrica, anestesiologia, radiologia e
terapia intensiva. Além de campo de treinamento e/ou estágio curricular e extracurricular
nas áreas de enfermagem, psicologia, fisioterapia, pedagogia, fonoaudiologia, educação
física.
Atualmente, conta com 138 leitos ativos, 856 funcionários e produziu em 2006:
8.203 internações
68.121 consultas ambulatoriais
105.007 atendimentos de emergência
5.159 cirurgias
Índice de mortalidade: 1,94%
Taxa de doentes com infecção hospitalar: 3,2%
Quadro 1 - Dados de internações
Mês Internações Altas Óbitos
Tx.
Mort.
Geral
(%)
Média
Diária
Pacientes
Média de
Permanência
% de
Ocupação
Janeiro 687 648 5 0,77 120 5,68 87,31
Fevereiro 668 681 11 1,59 117 4,72 85,19
Março 725 681 20 2,85 121 5,34 85,45
Abril 683 662 18 2,65 123 5,45 89,44
Maio 727 701 10 1,41 126 5,5 91,49
Junho 635 648 11 1,67 123 5,59 89,06
Julho 686 662 10 1,49 124 5,71 89,67
Agosto 727 725 15 2,03 121 5,07 84,01
Setembro 676 670 20 2,99 123 5,71 81,78
Outubro 699 672 14 2,04 130 5,88 84,85
Novembro 678 682 12 1,73 124 5,36 81,66
Dezembro 612 647 13 1,97 109 5,14 70,59
Total
8.203 8.079 159 - - - -
Média
683 673 13 - - - -
Fonte: SAME
89
Quadro 2 - Informações complementares
Atendimentos de Emergência
Mês
Pediatria
Geral
Ortopedia Cirurgia
Consultas
Ambulatorais
Exames
Radiológicos
Cirurgias
Realizadas
Janeiro 6.127 961 500 4.681 4.593 471
Fevereiro 5.351 950 479 4.918 4.280 386
Março 7.704 1.269 536 6.551 6.536 432
Abril 7.798 1.080 409 5.434 5.679 409
Maio 7.276 1.026 407 6.439 5.528 393
Junho 7.634 1.116 404 5.169 5.454 386
Julho 8.594 1.226 423 5.690 5.871 454
Agosto 7.376 1.316 434 6.810 5.882 504
Setembro 7.542 1.168 394 5.710 5.364 391
Outubro 7.555 1.265 428 6.315 6.241 474
Novembro 6.604 1.298 424 5.737 5.257 412
Dezembro 6.362 1.050 521 4.667 4.513 447
Total
85.923 13.725 5.359 68.121 65.198 5.159
Média
7.160 1.144 447 5.677 5.433 430
Fonte: SAME
Os profissionais de saúde convidados a participar da pesquisa foram os
profissionais que compõem a equipe de saúde do Ambulatório (Eq.1)
18
e os das duas
Enfermarias (Eq.2 e Eq.3) referidas. Isto é, os enfermeiros, os auxiliares de enfermagem,
os técnicos de enfermagem, os médicos, os nutricionistas, os psicólogos, os assistentes
sociais e os residentes que as compõem. Todas as equipes contam com pedagoga,
fisioterapeuta, fonoaudióloga em comum, sempre que se faz necessário (alguns desses
serviços não contam com esses últimos profissionais referidos como efetivos no quadro
funcional da instituição e sim com os serviços possibilitados por docentes das
universidades e seus respectivos alunos). Ao todo participaram efetivamente da pesquisa
vinte profissionais: sete médicos/as, duas psicólogas, uma assistente social, cinco
enfermeiras, uma auxiliar de enfermagem, duas técnicas de enfermagem, uma escriturária
– que também é e já trabalhou, nessa instituição, como auxiliar de enfermagem - e uma
nutricionista. Dentre eles dois profissionais possuem cargos de direção. Considerou-se
importante o olhar desde o ponto de vista administrativo em função de dados que
apareceram durante o processo de coleta, buscando-se contemplar diferentes pontos de
18
Siglas usadas para designar as equipes de profissionais que participaram da pesquisa.
90
vista sobre os fenômenos. A pesquisa foi desenvolvida nos três turnos, obedecendo à
disponibilidade dos profissionais e a dinâmica de trabalho específica de cada setor.
O critério que orientou a escolha dos sujeitos, além da disponibilidade e interesse
para a pesquisa, foi o da representatividade das equipes, por categoria, de modo que a
maioria das diferentes categorias de trabalhadores estiveram representadas. Em duas
situações foram também indicados por seus pares. A saturação de dados indicou o limite
para suspensão do trabalho de coleta.
Quadro 3: Perfil dos sujeitos da pesquisa
Siglas Idade
Sexo Tempo de trabalho na
instituição
Tempo de trabalho em
saúde Pública
19
M1 53 M 21anos 30anos
M2 48 F 21anos 22anos
M3 34 F 02anos 09anos
M4 66 M 36anos 36anos
M5 47 F 23anos 23anos
M6 46 F 19anos 19anos
M7 37 F 10meses 10anos
E1 40 F 14anos 14anos
E2 48 F 14anos 15anos
E3 39 F 03anos 11anos
E4 44 F 10anos 10anos
E5 50 F 10anos 15anos
E6 49 F 19anos 19anos
E7 33 F 10meses 06anos
E8 43 F 12anos 12anos
P1 42 F 12anos 12anos
P2 50 F 18anos 18anos
P3 46 F 19anos 23anos
P4 40 F 19anos 19anos
P5 34 F 07anos 10anos
Fonte: entrevista com os participantes da pesquisa.
Considerou-se aqui, como fator fundamental na realização do estudo, a
trajetória da pesquisadora nesta instituição. O conhecimento prévio da dinâmica e
mesmo do trabalho de parte destas equipes, através de mais de dez anos de atuação em
projetos de extensão e pesquisa com alunos do curso de graduação em psicologia nos
setores estudados. Junte-se a isto o bom vínculo estabelecido com a instituição
escolhida a partir da interação no processo de trabalho e produção conjunta realizada
19
Considerado como tempo de trabalho em instituição pública de saúde.
91
nos últimos anos.
O projeto deu entrada na instituição a partir de todas as instâncias formais
requeridas, desde a Direção até as Chefias específicas e Comitê de Ética da Instituição.
Após a aprovação do Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Catarina e do
Comitê de Ética da instituição, foi feito um convite a cada membro das equipes,
pessoalmente, pela pesquisadora, para um encontro grupal aonde foi apresentado e
discutido o projeto, colocando-se o objetivo da pesquisa assim como os passos
metodológicos para sua operacionalização. Formaram-se dois grupos contemplando-se
a viabilidade para os encontros. Para esse propósito foi realizado um encontro com
cada grupo. Em um grupo reuniu-se a Eq.1 e a Eq.2 juntas e em outro reuniu-se a Eq.3.
Cabe ressaltar que a Eq.1 e a Eq.2 têm em comum todos os profissionais com exceção
da equipe de enfermagem que é específica de seus setores. Nessa oportunidade, as
equipes aceitaram o trabalho, se colocaram disponíveis para participar, clarearam
dúvidas e manifestaram expectativa de que o resultado do estudo pudesse contribuir
para serem ouvidos e para possíveis melhoras nas condições de trabalho. Além desses
aspectos apareceu também, especialmente na Eq.3, uma visível desconfiança de que
essa pesquisa poderia apenas “servir para mobilizar nossas angústias e expectativas de
mudanças e na verdade não vai ter nenhum retorno para nós, como sempre a
universidade faz” (fala de um dos participantes da pesquisa, M7 – este profissional
havia entrado na instituição há dez meses). Esta fala, por outro lado, foi elucidativa de
um sentimento presente no grupo, de desconfiança e de falta de credibilidade em
trabalhos que pudessem reverter em benefício dos próprios trabalhadores. No entanto,
predominou neste grupo uma boa expectativa através do acolhimento demonstrado,
como revela a fala de outro membro desta mesma equipe (M6): “Para mim é muito
importante ter um espaço para sermos ouvidos e acredito que este trabalho vai ser
muito útil inclusive como espaço de reflexão!” A apresentação do projeto de estudo foi
feita também individualmente para as pessoas que não puderam comparecer a esses
encontros. A formalização do aceite dos profissionais em participar foi realizada por
meio do termo de consentimento livre e esclarecido (Apêndice 1) que fez parte do
contrato.
92
3.5 COLETA DE DADOS - INSTRUMENTOS E PROCEDIMENTOS DE REGISTRO
Triviños (1990) tem referido que o processo de pesquisa qualitativa não admite
visões isoladas, parceladas, estanques. Explicita que ele se desenvolve em interação
dinâmica, se retro-alimentando, se reformulando constantemente. Significa dizer que é um
processo em construção e que a partir dos dados e das situações que vão se constituindo
pode redimensionar-se a trajetória inicialmente traçada. Isto posto, o próximo passo é a
seleção dos métodos de coleta de dados. Pope e Mays (2005) assinalam a importância de
se assegurar que o processo seja dirigido por critérios de validade e de confiabilidade.
Colocam que um aspecto diferenciador, embora não singular, da pesquisa por estudo de
caso é o uso de múltiplos métodos e fontes de evidência para estabelecer sua validade.
Dessa forma referem que os estudos de casos freqüentemente utilizam a triangulação.
A técnica da triangulação, segundo Triviños (1990, p. 138), tem por objetivo
básico “abranger a máxima amplitude na descrição, explicação e compreensão do foco em
estudo. Parte do princípio de que é impossível conceber a existência isolada de um
fenômeno social, sem raízes históricas, sem significados culturais e sem vinculações
estreitas e essenciais com uma macrorrealidade social”. Neste processo, tanto a coleta
como a análise dos dados se retro-alimentaram constantemente. O tríplice enfoque do
estudo de um fenômeno social permite, no entendimento colocado, a possibilidade de
mudanças inclusive nos rumos ou mesmo em determinada estratégia, durante o
desenvolvimento metodológico.
Assim, optamos por utilizar uma triangulação de técnicas, a pesquisa documental,
a entrevista semi estruturada e a observação participante. A pesquisa documental como
fonte de dados foi realizada a partir da documentação acerca da própria instituição e,
particularmente, acerca dos locais específicos onde se desenvolveu o estudo, através dos
documentos formais e informais, livros ata de reuniões, protocolos, e outros materiais
existentes para auxiliar neste propósito. Gil (1987) refere que a pesquisa documental vale-
se de material que não recebeu ainda um tratamento analítico ou que pode ser reelaborado
de acordo com os objetivos da pesquisa. Como, de maneira geral, há um vasto material a
ser consultado, mas por outro lado, nem sempre sistematizado ou em condições de
93
fornecer as informações necessárias, pode-se necessitar de uma fonte da história oral (a
partir do relato de pessoas que vivenciaram as situações contempladas nestas fontes ou
que apreenderam, de alguma forma, tais informações). Dessa maneira, torna-se possível
identificar o cenário institucional no qual esta se dando a investigação, em uma
perspectiva histórica.
A pesquisa documental desenvolvida nesse estudo iniciou após os dois primeiros
meses de observação e inserção na dinâmica funcional da instituição trabalhada, tendo
continuidade por todo o processo de investigação, mediada pelas observações e
entrevistas que foram sendo realizadas. Foram utilizados documentos em geral acerca da
instituição, com a finalidade de contribuir na sua contextualização histórica, assim como
atas de reuniões, prontuários da clientela, livros de registro de internação e outros
materiais disponíveis
20
, além daqueles que estão disponíveis em bases de dados da World
Wide Web (www), e mesmo dissertações de mestrado ocorridas na mesma instituição,
considerados os últimos cinco anos. Apesar de existentes, os documentos encontrados nos
locais estudados na instituição nem sempre estavam sistematizados ou, quando
sistematizadas, mostravam lacunas que se procurou preencher através do discurso de
história oral. Profissionais mais antigos na instituição mostraram-se verdadeiros acervos
documentais vivos. Como indica a fala dessa funcionária da instituição (E6):
[...] eu tenho uma vivência nesse setor aqui, longa, então eu sempre digo
que ninguém conhece mais esse setor do que eu. Desde a história dele, como
é que ele funciona, até em termos assim, da divisão [...] Até de como é essa
dinâmica do cuidar, de como é o funcionamento [...]
A entrevista
21
, como mais uma fonte desta triangulação é parte fundamental em
uma pesquisa qualitativa, fornecendo as bases para a compreensão das relações entre os
atores sociais no contexto em que se está desenvolvendo o trabalho. Bauer e Gaskell
(2002) observam que o “objetivo da pesquisa é fazer uma compreensão detalhada das
crenças, atitudes, valores e motivações, em relação aos comportamentos das pessoas em
contextos sociais específicos [...] podendo desempenhar um papel vital na combinação
com outros métodos, podem, por exemplo, melhorar a qualidade do delineamento, de um
20
Como o site: www.saude.sc.gov.br/.
21
O termo entrevista é constituído a partir de duas palavras, entre e vista. Vista refere-se ao ato de ver, ter
preocupação com algo. Entre indica a relação de lugar ou estado no espaço que separa duas pessoas ou coisas.
Portanto, o termo entrevista refere-se ao ato de perceber realizado entre duas pessoas (RICHARDSON, 1999).
94
levantamento e de sua interpretação” (BAUER; GASKELL, 2002, p. 65).
Pope e Mays (2005) assinalam que há vários tipos de entrevistas na pesquisa
qualitativa: a estruturada (geralmente com um questionário estruturado previamente); a
semi-estruturada (com perguntas abertas); e, a em profundidade (um ou dois assuntos
cobertos detalhadamente /pequenas perguntas baseadas no que o entrevistado diz). Já
Triviños (1990), refere uma outra forma de classificação da técnica de entrevista que pode
ser usada em uma pesquisa qualitativa, sistematizando-as em: entrevista estruturada ou
fechada, a semi-estruturada e a entrevista livre ou aberta. Chama a atenção para não se
confundir esta última com a entrevista não-diretiva. Privilegia, no entanto, a entrevista
semi-estruturada como um dos principais meios que o investigador possui para realizar a
coleta de dados. Define a entrevista semi-estruturada como
[...]aquela que parte, em geral, de certos questionamentos básicos, apoiados em
teorias e hipóteses, que interessam à pesquisa, e que, oferecem amplo campo de
interrogativas, fruto de novas hipóteses que vão surgindo à medida que se recebem
as respostas do informante. Desta maneira, o informante, seguindo
espontaneamente a linha de seu pensamento e de suas experiências dentro do foco
principal colocado pelo investigador, começa a participar na elaboração do
conteúdo da pesquisa (TRIVIÑOS, 1990, p.146).
Uma outra contribuição trazida pelo autor, ajudando a explicitar a idéia acima
colocada, trata das perguntas orientadoras da entrevista semi-estrutura em uma pesquisa
de caráter qualitativo. Isto é, essas perguntas não nascem a priori, são resultados da teoria
que subsidia o trabalho do pesquisador, assim como de toda a informação que ele já
obteve sobre este fenômeno a ser estudado, incluindo-se seus contatos anteriores, que
possam convergir para o tema, abarcando-se aí, a escolha das pessoas a serem
entrevistadas (TRIVIÑOS, 1999).
Pautando-se na perspectiva apontada por Triviños (1990), a técnica utilizada para
este estudo foi a entrevista semi-estruturada com cada um dos profissionais que
concordou em participar do projeto, considerando-se o critério por representatividade das
categorias que fazem parte das equipes, assim como, da participação de profissionais que
representam categorias de direção e chefias. O roteiro da entrevista (Apêndice 2) foi fruto
de um conhecimento prévio da pesquisadora junto a essa população e de levantamentos
teóricos feitos durante essa trajetória. As entrevistas foram feitas individualmente,
considerando-se os horários e locais mais convenientes para os participantes da pesquisa.
95
Na maioria das vezes era realizada em espaços fechados, dentro do próprio local de
trabalho, denotando uma postura clara de preocupação com o sigilo e, em outras, eram
feitas onde se tornava possível dentro da rotina do trabalho. Isto é, uma sala improvisada
no corredor, salas de prescrição (com o entra e sai de profissionais), sala do cafezinho,
copa e até mesmo com participação de mais de um profissional, como aconteceu em uma
ocasião, por um tempo curto, quando dois colegas que chegaram ao local decidiram
colocar também sua contribuição. Houve uma outra situação na qual a profissional
entrevistada demonstrou interesse em estar discutindo os temas junto com um ou outro
colega específico, inteirando-os quando se aproximavam.
Apesar das entrevistas haverem sido feitas, em alguns casos, em momentos um
tanto caóticos dentro da dinâmica de trabalho – um ir e vir ou o atendimento de
telefonemas urgentes naquela hora, ou ter que dar um encaminhamento imprevisto – todos
os entrevistados se envolveram muito nessa tarefa e verbalizaram se sentir gratos pelo
objetivo da pesquisa, pela preocupação com eles e mesmo pelo espaço da própria
entrevista, para poderem falar de suas idéias e inquietações. Por outro lado, foi exatamente
realizar as entrevistas nesse clima peculiar ao trabalho deles que me permitiu entender
melhor a dinâmica de funcionamento característica da realidade institucional desses
trabalhadores. As entrevistas, num total de vinte, duraram entre 30 minutos e 120 minutos.
Foram realizadas no período de novembro de 2005 até agosto de 2006. Nos meses
compreendidos entre dezembro de 2005 e final de fevereiro de 2006, por ocasião do
período de férias escolares e férias de muitos dos trabalhadores da instituição tornou-se
difícil a disponibilidade dos profissionais, pelas mudanças em suas rotinas de trabalho,
que iam desde substituição de colegas até o aumento de carga de trabalho e o
remanejamento provisório de função. Assim, o tempo projetado para as entrevistas,
também foi alterado. Foram respeitadas as orientações e compromissos éticos contidos no
termo de consentimento livre e esclarecido, já referido (Apêndice 1). O registro das
entrevistas foi realizado através de gravações, com o consentimento dos sujeitos
envolvidos.
Quanto à observação, Pope e Mays (2005, p.46) chamam a atenção para o fato de
que neste lugar o pesquisador torna-se o instrumento de pesquisa, documentando o mundo
a partir de seu olhar. Nesta ótica, mais do que nunca é exigido do observador além de uma
96
boa capacidade de observação e memória, um registro claro, detalhado e sistemático. Há
técnicas específicas que podem ajudar na sistematização das observações, cujas
características deverão ser delineadas de acordo com cada realidade a ser estudada e com
as características do observador, sua bagagem pessoal e profissional e sua experiência
com o contexto e população em foco.
Entendo que a partir da inserção prévia da pesquisadora no contexto escolhido para
o desenvolvimento do estudo proposto, isto é, a partir de uma sensibilização e
aproximação gradativamente construída na relação estabelecida com este profissional de
saúde no cotidiano de seu trabalho já em anos anteriores, tem-se que considerar que os
resultados do trabalho inequivocamente mostrarão a cultura, a visão de mundo e a lógica
desse pesquisador, por maior que seja sua identidade e aproximação com a lógica dos
entrevistados. Porque sempre será a sua interpretação dos fenômenos do outro. Porém,
sem dúvida, um conhecimento prévio e uma aproximação do contexto e dos atores desse
fecundo cenário facilita e, mesmo, determina as possibilidades da pesquisa, como ocorreu
nessa experiência. Iniciamos o trabalho de observação em um contexto onde parte dos
entrevistados da pesquisa já vinha verbalizando interesse e mesmo solicitações para o
desenvolvimento de um trabalho centralizado na equipe. Trabalho que focalizasse seus
conflitos, angústias, dificuldades de interação, assim como a necessidade de superarem
distorções comunicacionais percebidas como obstáculos à produção profissional. Assim, a
técnica da observação participante mostrou-se congruente.
May (2004, p. 202) vem contribuir nesta direção ao colocar que a observação
participante diz respeito ao engajamento na cena social, experienciando e procurando
entendê-la e explicitá-la a partir da escuta, vivência e reflexões desenvolvidas e
modificadas. Refere ser um estudo disciplinado e sistemático podendo contribuir no
entendimento das ações humanas.
No entanto, quanto ao acesso e aceitação do observador ao campo da pesquisa é
necessário ter cuidado com possíveis equívocos como, por exemplo, a falta de
familiaridade com a cultura e a linguagem empregada pelos atores da cena social. Se a
observação participante requer do pesquisador “tornar-se” parte para entendê-los, ele tem
que ser aceito em algum grau. Um “período de inserção [...] é importante tanto de forma
analítica quanto pessoal” (MAY, 2004, p.184). O autor evidencia também os aspectos das
97
relações de poder no acesso permitido. Cita Bruyn
Um observador participante que estuda uma organização social complexa deve
estar ciente do fato de que a permissão de acesso a um nível da organização não
assegura permissão a outros níveis. É muito importante que o pesquisador leve em
conta os níveis de poder e de tomada de decisão existentes no grupo (BRUYN
apud MAY, 2004, p.185).
Neste estudo, a observação participante foi realizada através do acompanhamento
aos profissionais em suas atividades diárias nas unidades de atendimento, em períodos
previamente combinados e delimitados ou, muitas vezes, a partir de convites para
acompanhar consultas, atendimentos ao leito, procedimentos e reuniões de equipe. Essas
situações aconteceram de forma espontânea, à medida que iam surgindo as demandas. Foi
utilizado um diário de campo para o registro detalhado logo após cada momento de
observação, utilizando-se a memória para isso. Elaborou-se um roteiro criado para este
fim (Apêndice 3), embora o seu uso não indique que a riqueza e diversidade das situações
não tenham sido consideradas. Essa atividade foi desenvolvida durante diferentes
períodos, sistematicamente, nos meses de novembro de 2005 a agosto de 2006. Em parte
desse período participei de reuniões semanais com uma das equipes e com outra foram
realizadas reuniões esporádicas para discutirem-se problemas internos e a até políticas e
estratégias de atuação. Em ambas, embora colocando minha função de pesquisadora, era
solicitada a ter algum grau de participação. Em outros momentos simplesmente sentava
no corredor, ou me aproximava e conversava sobre a rotina no posto de medicação ou na
recepção e me deixava levar pelas inúmeras situações rotineiras ou imprevisíveis.
Também, em alguns dias, almoçava no refeitório do hospital, tomava café na lanchonete,
visitava o centro de estudos, caminhava no pátio interno observando a dinâmica dos
acompanhantes e funcionários em pequenos “intervalos” que criavam para fumar ou para
conversar. Assistia as angústias, os desabafos, as preferências, alguns conluios.
Faz-se importante citar que embora, cronologicamente, a análise dos dados seja
feita posteriormente ao período da coleta, na prática esse processo analítico já se inicia na
própria coleta de dados e se dá de forma contínua. O pesquisador vai filtrando,
decodificando e dando sentido aos dados. As categorias emergentes já podem estar
surgindo neste momento, podendo ser testadas no próprio trabalho de campo (POPE;
MAYS, 2005).
98
A participação no acompanhamento de atividades grupais, às vezes encontros de
poucas pessoas e situações não formais, também fez parte da atividade de observação
participante nessa pesquisa. Sem dúvida, estes momentos auxiliam os pesquisadores a
perceber as muitas formas diferentes de comunicação que as pessoas usam na interação do
dia a dia, incluindo piadas, histórias, provocações e discussões. Por outro lado, “podem
revelar dimensões da compreensão que comumente permanecem despercebidas pelas
técnicas mais tradicionais de coleta de dados” (POPE; MAYS, 2005 p.32). Da mesma
forma, podem ser úteis em evidenciar valores culturais ou normas do grupo. Nesta
perspectiva, tornam-se favoráveis em estudos, por exemplo, sobre as maneiras “pela qual
a equipe de saúde de um hospital lida com o trabalho com doentes em estado terminal ou
lida com o estresse do trabalho hospitalar” (POPE; MAYS, 2005, p.33).
3.6 PROCESSO DE ANÁLISE DOS DADOS
O processo da análise dos dados foi iniciado, como citado antes,
concomitantemente com a coleta dos mesmos, à luz do suporte teórico e dos objetivos que
sustentam a presente pesquisa. Neste estudo, o tempo destinado à observação, ao número
de entrevistas e de coleta através de documentação foi definido pelo critério de saturação
qualitativa dos dados, ou seja, quando a pré-análise revelou uma sustentação pertinente e
sólida às interpretações possíveis. Cabe observar que a partir dos resultados analisados
optou-se por uma análise que, dentre os trabalhadores entrevistados, se considerasse a
totalidade dos sujeitos da pesquisa não os analisando por categorias profissionais e nem os
diferenciando quanto ao setor de trabalho. Consideraram-se, como critérios, as
características e vivências frente ao sofrimento no trabalho e as suas implicações na
capacidade de saúde e doença na totalidade dos trabalhadores.
Para analisar as entrevistas e os diários de campo foi utilizado o software para
análise de dados qualitativos, denominado de ATLAS TI 5.0 (Qualitative Research and
99
Solutions)
22
. Este instrumento auxiliou na codificação dos momentos significativos
evidenciados nos dados, e teve como base o referencial teórico assim como a experiência
prévia, em campo, da pesquisadora. Cabe salientar as reflexões de Minayo (2000, p. 228)
de que “no processo de conhecimento não há consenso e não há ponto de chegada. Há o
limite de nossa capacidade de objetivação e a certeza de que a ciência se faz em uma
relação dinâmica entre razão e experiência e não admite a redução de um termo a outro”.
A seguir está colocado um primeiro momento do processo de codificação através
desse Programa, com a finalidade de compreensão do instrumento e do processo de
interpretação dos dados, porém serve apenas como ilustração do mesmo, com dados
fictícios.
Entrevista Código AnotaçõesUnidade de SignificadoEntrevista Código AnotaçõesUnidade de Significado
Figura 2: Tela principal de trabalho com o ATLAS TI 5.0
22
O nome do programa é uma sigla que significa: Non-numeric and Unstructured Data – Index, Searching and
Theorizing, isto é, dados não numéricos e não estruturados, que se possam indexar, buscar e, a partir deles,
teorizar objetivando facilitar, assim, a análise qualitativa dos dados. Tal programa é projetado de modo a permitir
o armazenamento, a exploração e o desenvolvimento de idéias e/ou teorias sobre os dados (JUSTICIA, 2004).
100
Com esse software foi possível realizar o primeiro nível da análise dos dados. A
partir das entrevistas e das observações que foram salvas em RTF e introduzidas no
Programa puderam ser selecionadas as unidades significativas de análise, avançando-
se da condição de dados primários, brutos. Na coluna à direita já aparecem
codificações que geram, assim, as categorias prévias de análise.
A análise dos dados foi ganhando forma à medida que foram analisadas as
unidades de significado, posto não haver nenhum esquema de categoria previamente
construído. Desse modo, ao ser realizada uma segunda leitura em profundidade, tornava-
se possível dar um código a cada unidade de significado relevante, que correspondia ao
tema que emergia do texto. Assim, a análise dos dados procedentes das observações e das
entrevistas nos conduziu a três momentos progressivos de redução e estruturação do
processo de interpretação e análise desse material:
1º Momento:
Inicialmente foram selecionadas 958 respostas afins ou unidades de significado as
quais corresponderam 136 códigos. Depois de um minucioso e exaustivo trabalho de
análise foi possível agrupar 8 principais unidades de significado a partir da análise dos
fragmentos de textos anteriormente selecionados, com 126 códigos categorizados. Nesse
momento, 10 dos 136 códigos foram retirados por se entender que já estavam
contemplados nos demais ou por não serem significativos. Permaneceram então, 126
códigos categorizados nas 8 unidades de significado arroladas a frente:
Processo de trabalho: com 53 subcategorias
Sofrimento e adoecimento do trabalhador: com 26 subcategorias
O processo de construção profissional: com 12 subcategorias
Aspectos favoráveis no trabalho: com 10 subcategorias
A morte no ambiente de trabalho: com 09 subcategorias
Relações com a clientela: com 06 subcategorias
Formação e a busca de conhecimento: com 06 subcategorias
Caracterização dos sujeitos estudados: com 04 subcategorias
101
2º Momento:
Nesse segundo momento, procedendo-se uma leitura mais minuciosa e
aprofundada foi possível identificar que a grande maioria das respostas categorizadas
como subcategoria da unidade de significado Processo de Trabalho em realidade se
adequava mais a unidade de significado Sofrimento e Adoecimento do Trabalhador.
Depois desta segunda organização foi necessária uma outra leitura de todo o material,
articulando-se as observações e dados gerais sobre a dinâmica de trabalho do contexto
estudado. Pode-se observar, guardadas pequenas diferenças próprias das características de
cada local estudado, que as questões centrais evidenciadas nos dados indicavam que as
vivências de todos os atores mostravam-se muito semelhantes. Tanto quanto aos conflitos
nas relações de trabalho quanto ao sofrimento experimentado nesse cotidiano.
Apareceu também, como unidade de significado a todas as equipes participantes,
sentimentos de gratificação e satisfação no trabalho. Ainda foi possível identificar,
nesse momento, uma outra importante unidade significativa para todos os sujeitos
entrevistados, referente à necessidade de investimento na formação e capacitação
contínua do trabalhador de saúde.
3º Momento:
Novamente, todo o material foi refinado, modificado, depurado e redefinido em
função das novas unidades de significado que surgiam. Ao mesmo tempo, durante todo o
processo foram comparadas as unidades que pertenciam a diferentes categorias ajustando-
se os critérios de inclusão.
Buscou-se uma aproximação que permitisse entender primeiro para depois tentar
expressar em palavras o que transcende as palavras. Interpretar a dinâmica das relações
produzidas nesse cotidiano e desvendar a subjetividade que não pode mostrar-se
objetivamente, o invisível tão eloqüentemente presente nas vozes, nos olhares, nos
movimentos cadenciados das enfermarias. Com uma tarefa maior do que tal realidade
complexa nos permite alcançar realizou-se a análise dos dados, buscando-se compreender
os conteúdos manifestos e latentes, integrando-os com a perspectiva teórica trabalhada.
A partir de então se deu corpo ao encontro das vozes dos autores que subsidiou
todo o processo de investigação e reflexão desta pesquisa, com as histórias de vida e de
102
trabalho desses atores do cotidiano no hospital. Desse processo resultaram três macros
categorias que foram organizadas na forma de capítulos que sintetizam os principais
resultados da pesquisa conforme seguem:
A instituição hospitalar e o cenário que não se vê: os aspectos subjetivos
deste lugar.
Sofrimento institucional: qual é o limite da saúde?
As reflexões centrais acerca do processo de adoecimento do trabalhador de
saúde, o significado que lhes conferem e como, nesse cenário, a resiliência se
constitui.
Tecendo escutas. Para onde?
Reflexões sobre a pesquisa realizada a partir do universo de desejos e
possibilidades dos entrevistados. Reflete sobre o lócus de trabalho do
pesquisador, questionando sua função social e os limites de sua atuação.
Sinaliza para futuras pesquisas e possibilidades de mudanças para os
trabalhadores.
3.7 RIGOR ÉTICO
A pesquisa se orientou e obedeceu aos cuidados éticos colocados pela Resolução
nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, considerado o respeito aos sujeitos e a
Instituição participante de todo processo investigativo, quanto: - à preservação da
identidade e da liberdade de fazer parte ou não do estudo, podendo ter sido interrompido
sua participação em qualquer momento do processo; - a explicitação do uso que foi dado
ao material coletado, dos fins de divulgação de qualquer ordem e da publicação científica
de seus resultados, condicionada à expressa autorização da Entidade e dos participantes; -
ao amplo acesso a qualquer informação acerca do estudo; - o respeito a valores individuais
ou institucionais manifestos, sendo de caráter religioso, cultural ou moral, - à garantia de
que os registros, anotações e documentos coletados ficarão sob a guarda da pesquisadora
principal, em seu setor de trabalho na UFSC, bem como de que só terão acesso aos
mesmos os pesquisadores envolvidos.
CAPÍTULO IV - A INSTITUIÇÃO HOSPITALAR E O CENÁRIO QUE NÃO SE VÊ:
OS ASPECTOS SUBJETIVOS DESTE LUGAR
Então quando uma criança morre, é barra pesada. Ou quando se toca em
algum membro da equipe, quando se dá rosto pra algum membro da equipe.
Aí a coisa pega. Aí eu acho que aparece a equipe, aí eu acho que realmente
aparece a equipe. Aí emerge aquilo e que depois vai para baixo do mar e
ninguém sabe muito bem o que tem nesse mar
23
.
A intenção ao iniciar a elaboração deste capítulo é poder traduzir uma centelha da
instituição hospitalar que se esconde, que não está representada oficialmente. Fragmentos,
sem dúvida um olhar mesclado, contaminado pela cultura e pelo mundo de representações
da pesquisadora; no entanto, buscando significados genuínos e singulares de uma
realidade ao mesmo tempo invisível e, aparentemente, tão familiar como se pertencesse a
todos nós trabalhadores da saúde.
A caracterização do contexto institucional, buscando a lógica da subjetividade,
constitui-se pelos caminhos apontados nos dados. Nessa perspectiva pensar o hospital
coloca-nos frente a dois pontos fundamentais indicados nesse estudo. Um primeiro
momento no qual o trabalho na instituição se descortina com toda a complexidade de
emaranhados, conflitos e contradições. E um segundo momento onde se dá relevância às
vivências do universo infantil hospitalar em uma conjuntura composta das alegrias de cura
e pelos desafios do enfrentamento, da dor e da impotência. Essa conjuntura tão intricada,
permeada por amargos desafios e pela dor, é expressa através da fala de um dos
profissionais.
A gente lida com gente, com o sofrimento, a gente lida o tempo inteiro com o
sofrimento. Então eu acho que só por aí já é um risco da gente adoecer, enorme!
A gente lida com dor o tempo todo, com falta, com carência, com dor, com
sofrimento, com insegurança, com tristeza e isso em qualquer área. Você bota o
pé aqui dentro de um hospital é porque você está sofrendo alguma coisa, você
está em uma situação que não é legal e muitas vezes de total impotência, total
impotência! (M7)
.
Porém, além dos matizes de um sofrimento por vezes sussurrado aparece também,
23
Fala de um dos sujeitos entrevistados (M7).
104
na análise das falas dos entrevistados aspectos que se referem à instituição hospitalar e sua
relação com o Sistema Único de Saúde, à dinâmica institucional em si e a aspectos do
processo de trabalho; em especial, a organização, condições e relações de trabalho.
4.1 O OLHAR DOS SUJEITOS SOBRE O SEU TRABALHO NA INSTITUIÇÃO:
UM LUGAR DE CONFLITOS E CONTRADIÇÕES
Neste olhar sobre o trabalho foram relevantes algumas considerações sobre a
instituição e sua estreita relação com as políticas públicas e com as dificuldades existentes
no Sistema Único de Saúde (SUS). Destacaram-se, também, as dificuldades relativas à
organização, às condições e as relações de trabalho. O desafio é poder olhar o que está
apenas sugerido, é poder escutar o murmúrio.
4.1.1 Os constrangimentos institucionais: a importância, os desafios e as dores de
trabalhar em uma instituição pública de saúde
A VIII Conferência Nacional da Saúde foi um marco para a saúde no Brasil. A
partir de então ocorreu o movimento pela Reforma Sanitária que consegue aprovar a
criação do Sistema Único de Saúde (SUS) na Constituição de 1988.
A Carta Magna de 1988 garante a saúde como direito de todos e um dever do
Estado, tendo os usuários acesso igualitário e universal às ações de promoção, prevenção
e recuperação da saúde. Seus princípios básicos são a descentralização com delegação de
poderes para os níveis estatal e municipal, com atendimento integral e maior enfoque a
atividades preventivas na luta pela eqüidade, integralidade e universalidade da saúde.
Assim, foi possível estabelecer-se a organização dos serviços de saúde em uma rede
regionalizada e hierarquizada de serviços.
O desafio colocado para o gestor federal do SUS consiste em propor uma política
transversal, integrada e intersetorial, que faça dialogar as diversas áreas do setor
105
sanitário, os outros setores do Governo, os setores privados e não-governamental e
a sociedade, compondo redes de compromisso e co-responsabilidade quanto à
qualidade de vida da população em que todos sejam partícipes no cuidado com a
saúde (BRASIL, 2006, p.9).
No entanto, muitos estudiosos do trabalho em saúde e das políticas públicas de
saúde, têm apontado um significativo distanciamento entre o prescrito e o real, entre a
intenção e o gesto (PIRES, 1998; CAMPOS, 1992; CECÍLIO, 1994a, 1994b;). Assim,
mesmo com a universalização do direito á saúde, enquanto valor e preceito legal, muitos
são os entraves para que este direito seja de fato garantido para o conjunto da população.
Como um desafio de grande complexidade, essa situação também foi identificada no
hospital estudado, ao analisá-lo como uma unidade de atenção à saúde, de referência na
região sul do Brasil, e que faz parte da rede pública de serviços de saúde.
Mesmo limitando-se a um aspecto, do direito à saúde que é o direito ao cuidado
em situações de doença, há significativos limites para que isso aconteça quando as pessoas
necessitam e na qualidade esperada de um cuidado integral seguro e “humano”. No
cotidiano do trabalho na instituição estudada, identificaram-se entraves de ordem
burocrática, déficit de recursos financeiros e do contingente da força de trabalho. Déficit
de área física, de materiais e equipamentos, inadequação e deficiências de serviços na rede
de complexidade crescente prevista para a organização do SUS assim como problemas de
ordem do cotidiano das relações nas equipes de saúde.
As instituições hospitalares estão colocadas como parte do contexto em saúde,
podendo as políticas públicas de saúde interferir, positiva ou negativamente, em sua
dinâmica, tanto no que diz respeito à prestação de serviços como na vivência dos
profissionais no cotidiano de trabalho. Deste modo não podem ser estudadas
isoladamente.
Na percepção dos entrevistados/as, as políticas de saúde limitam o trabalho
institucional na medida em que nem sempre vem ao encontro das características dessa
demanda colocada pela instituição, não sendo condizentes com a realidade desses
usuários. No entendimento de alguns entrevistados os serviços oferecidos pelo SUS são
muitas vezes inadequados ou insuficientes para atender as necessidades dos usuários,
tendo reflexo na qualidade da assistência prestada e na satisfação do profissional.
Esta situação torna-se evidente nos mecanismos criados, por exemplo, para
106
garantir ao doente oncológico o acesso a exames de alto custo no tempo certo e na medida
de suas necessidades. Apesar dos gestores reconhecerem essa defasagem e buscarem
alternativas para minimizar a situação, no que tange a realização de exames de alto custo
no Estado onde se desenvolveu a pesquisa, há uma defasagem reconhecida de realização
dos mesmos. As regras do SUS colocam que alguns deles devem ser solicitados apenas
por especialistas. No intuito de atender essas necessidades, na instituição em questão, os
profissionais buscaram alternativas criando mecanismo a partir da quebra de algumas
normas. Dejours (2000) coloca que nas situações comuns de trabalho se torna impossível
cumprir todas as normas escrupulosamente prescritas e que, muitas vezes como saída, os
trabalhadores lançam mão de estratégias coletivas de defesa para tornar possível a
realização do trabalho e a preservação de sua saúde.
Que caminhos a gente desenvolveu? Internava as crianças pra fazer o
exame, pra facilitar. Que se fosse pelo SUS, um mês pra marcar e outro mês
pra fazer. Nós não temos esse tempo. [...]
24
Daí a gente chegou ao seguinte
consenso: a gente interna, de ficção, a criança fica lá no ambulatório com a
gente, a gente é responsável, depois ela vai pro exame, a gente busca, traz,
leva. Tanto que tem uma pessoa hoje em dia responsável pelos exames. [...]
Porque não tem como fazer um tratamento se tu vais esperar dois meses.
Não tem! O tratamento é pra ontem! (E1)
E outra coisa é que a gente às vezes precisa fazer diagnóstico de tumor, por
exemplo. A gente precisa de uma ressonância magnética, uma tomografia
computadorizada, isso é mais difícil do que ganhar um filho. É um parto
prolongado assim. É tipo tem que passar aqui autorizar, ir lá marcar.
Notadamente se essa criança estiver em ambulatório, não estiver internada.
Internada é mais fácil, mas, se estiver como externo eles botam numa fila.
Então, é bem complicado isso aí sabes? E acaba angustiando inclusive o
médico, porque nesse meio tempo se a criança está boa e eu pedir só para
fazer um controle e achar que a coisa diminuiu, desapareceu, curou e na
realidade não aconteceu isso ainda, pode voltar. Mas essa tomografia só vai
vir daqui a três meses, por exemplo, e nesse meio tempo se volta, volta com
tudo. Tudo o que eu fiz joguei fora (M1).
Outro aspecto ainda, onde fica evidenciado o quanto a falta de uma rede eficiente
de saúde repercute em todo o processo de trabalho no hospital estudado e que, da mesma
forma colocada anteriormente, pode determinar a ineficácia dos objetivos do tratamento
trazendo um sentimento de descrédito no sistema de saúde, está relacionada às
24
Todos os dados que pudessem identificar os entrevistados foram excluídos conforme compromisso ético
firmado com os sujeitos e a instituição. Cabe colocar também que o uso de colchetes indicará supressões, o uso
de parênteses indicará inclusões visando facilitar o entendimento do leitor. Haverá também o uso de reticências
para conservar as falas o mais genuínas possível.
107
deficiências no acompanhamento na rede de serviços ambulatoriais das crianças e
famílias, após a internação. Ao largo do tempo, essa condição influencia na própria
capacidade do trabalhador que vê seu trabalho com resultados ineficazes a cada vez que o
doente retorna com as mesmas queixas ou em situações mais agravadas.
Os pacientes mais graves, com famílias mais desestruturadas, um suicida,
por exemplo, está tudo bagunçado na casa. Ou essas crianças de Casa Lar,
a gente tem que organizar o que: a volta à escola, trazer a mãe pra dar
medicação, o psiquiatra, tudo bem amarrado, bem explicado, pra gente é
maravilhoso! Aí a gente encaminha, eles voltam pra casa. E aí escapa! Não
dá pra tu veres o que está lá fora. Então o paciente vai, chega ao posto de
saúde, não tem o psicólogo pra fazer a psicoterapia. Ou o paciente não
mora na no município, não dá pra referenciar pro CAPSI
25
, por exemplo.
Então a gente é quem vai atrás! Ligando, pra ver quem pode atender...
Então todo aquele investimento que a gente fez aqui dentro, enquanto equipe
estruturada, quando sai não tem pra onde... Então aqui até que funciona
porque a gente se organiza! Mas quando o paciente sai, daqui a pouco
volta, depois de dois meses, não tem psicoterapia, não foi no psiquiatra, na
escola não tem comida... (M5).
Também como parte desse processo das implicações da rede de saúde no
tratamento dos usuários evidencia-se, apesar dos esforços de capacitação, como por
exemplo, as estratégias em saúde da família em toda rede pública do país, uma
inadequada postura de muitos profissionais da saúde, denotando uma formação ainda
longe de contemplar especificidades básicas de sua população de atendimento e
necessitando a continuação de renovados investimentos assim como a criação de novos
projetos em educação para a saúde, que de fato possam se efetivar a curto e a longo prazo.
Às vezes a gente manda “então tu vais lá, tem o Dr. Tal, psiquiatra que a
gente consegue”. Aí eles vão à consulta e voltam aqui: "Olha, eu não quero
mais voltar naquele médico. Porque nem olhou pra mim, só escreveu o nome
do remédio, me deu e me mandou embora!”. Não dá pra atender um
adolescente assim! 90% do tempo tem que escutar o que eles tem pra dizer,
mais nada! Não é? É tão fácil! Mas assim, como é que serve pra atender um
adolescente um médico assim? Senta, dá a receita e manda pra casa? (M5).
É muito comum, nas falas desses trabalhadores, a vivência de situações no limite
das possibilidades profissionais. Experiências cotidianas nesse limiar de expectativas e
tensões vão contribuindo para que os trabalhadores se vejam com uma imagem
comprometida, afetando a auto-estima da equipe e a confiança em um trabalho coletivo
25
Centro de Atenção Psicossocial - Infantil
108
amparado nas possibilidades da garantia à saúde e na integralidade de um sistema de
saúde com os princípios preconizados no SUS. Que apesar de lutarem pela total
implementação das diretrizes que regem o SUS, possam duvidar de sua credibilidade.
Que eu acho que ele faz isso pra dificultar, pra que o SUS não dê certo, pra
que as pessoas comecem a fazer planos de saúde, pra desafogar realmente
os hospitais públicos, chega uma hora em que o paciente não agüenta mais,
vai lá e paga (P2).
Não consegue marcar, não consegue marcar! Então, essa equipe só pode
ficar se sentindo desacreditada. O que ela vai fazer com o paciente ali na
frente? Vai marcar uma tomografia pra saber que não vai conseguir
marcar, vai marcar pra daqui a dois, três meses. Bom, o tumor já invadiu, já
matou (P1).
Mais um aspecto a ser considerado diz respeito à participação dos trabalhadores na
gestão do SUS. Embora muitos mecanismos tenham sido criados nos últimos anos, como
os Conselhos Estaduais e Municipais de Saúde, os trabalhadores que atuam na rede não se
percebem como participantes das decisões. Refletem sobre os programas que são criados
e que não tem continuidade e sobre a impotência frente às limitações burocráticas e ao
processo decisório.
Então não falo nem em termos de política pública que não existe. Existem
políticas que vão pulando conforme a gestão. Nesses quatro anos agora foi
de aleitamento materno. Agora, as políticas públicas atrapalham demais
porque é a questão do salário, da insegurança, de não ter assistência
nenhuma, de não se entender a dinâmica da coisa, da não participação do
funcionário em coisa nenhuma, da Secretaria nunca, eu acho que nunca
alguém da Secretaria veio fazer o que se faz em um Hospital e não sei se
alguém daqui é chamado pra ir lá (P2).
Só que vai lá pro Congresso e os caras simplesmente falam “não, tem que
cortar 20%, não interessa onde”. Quer dizer, eles não vêem prioridade, não
é? Então, é essa coisa que é errada. E não adianta, tem que atender os
interesses políticos, tem que dar a verba do deputado tal e isso é feito na
educação, em tudo, não é só na saúde. Então não dá pra entender. E tem
gente qualificada, mas que não consegue vencer essa, porque a decisão lá é
política, sempre. Sempre política (M1).
O descrédito manifestado frente ao Sistema Único de Saúde também ganha formas
em uma desistência na tentativa de buscar alternativas. Como uma fadiga. Como se
houvessem desistido de acreditar em possibilidades de trabalho com continuidade em que
se pudessem ver os resultados. Referem um sentimento de insegurança e uma sensação de
109
instabilidade cumulativa que a cada mudança de governo, a cada quatro anos surge
mobilizando novas expectativas e vulnerabilidades. Não fazer parte do processo decisório
e enfrentar uma condição de impotência sobre ingerências básicas nas condições de
trabalho se expressa em um “serviço que está sempre flutuando. Sempre tem que mudar,
se adaptar as novas expectativas da direção” (P1).
Nessa perspectiva vivem pequenas mortes de si mesmos se entendermos o trabalho
como parte da identidade laboral desses sujeitos (DEJOURS, 2000; KAËS, 1998;
JAÚREGUI, 2005).
O sentimento de impotência frente à morte que o médico tem faz sofrer, mas
eu acho que o sentimento de impotência frente a projetos que estão todos
prontos, maravilhosos e só falta alguém assinar e te dizem: “não, nós agora
não vamos mais fazer isso”, esse machuca mais. Isso é pior, muitas vezes,
do que ver o paciente morrer, pra quem convive bem com a morte, porque
mata enquanto está vivo. (P2).
Mas quando o indivíduo quer fazer um negócio e não tem condições, se
sente tolhido, se sente limitado nas suas possibilidades de trabalho. Isso é
uma vivência também típica de serviço público. Porque você tem uma idéia
hoje, que você acha que é boa e tal, aí você faz lá um projetozinho leva lá
pros canais competentes. E essa coisa só vai ser viabilizada dali a dez anos.
[...] Depois de dez anos sai, mas aí já sai defasado, porque se passou muito
tempo, muito do que podia ser feito já não tem mais. Então eu acho que isso
aí é uma das coisas que contribui para a falta de estímulo para o
desenvolvimento também. Você está numa instituição dessas que se você
quer fazer alguma coisa, você tem que fazer por sua conta. Você não tem
apoio de ninguém. Se quiser sair, ir a um Congresso, se quiser fazer um
curso, é tudo por você. E você volta um pouquinho melhor, mas também não
tem retribuição nenhuma por causa disso, continua no mesmo (M1).
Assim, aparece nas falas destacadas acima uma clara relação entre a vivência de
impotência frente à morte e uma correlata vivência de impotência frente a uma dinâmica
institucional marcada por mortes nas possibilidades de trabalho. Pode-se pensar que matar
a possibilidade de vida dos trabalhadores através de constantes frustrações à sua
capacidade criativa no trabalho parece trazer um sentimento de morte frente ao sistema de
saúde. Vou me apropriar de um conceito de Pauline Boss (1998) sobre perdas na família,
estudado por ela como “ambigüidade de fronteira”, por me parecer muito apropriado para
essa discussão. A autora denomina esse fenômeno para uma situação familiar que resulta
da perda ambígua. A falta de clareza a respeito da perda de um membro da família gera
confusão e conflito sobre quem está dentro e quem está fora do sistema, resultando em
110
muito estresse. Situações de desaparecidos, por exemplo. A falta de clareza traz como
implicação uma incapacidade de reorganizar-se, como “se o sistema familiar ficasse no
limbo”. Há duas situações de perda, trazidas por Boss, que para efeitos desse estudo, se
torna útil examinar. A primeira na qual os fatos que cercam a perda são incompletos ou
pouco claros; não existe certeza sobre o que está acontecendo ou como as coisas vão
terminar. A segunda pode-se ver através das doenças crônicas. Os familiares sabem que a
pessoa doente vai morrer, mas não sabem quando. Sem um diagnóstico preciso, não existe
uma solução clara. Além disso, é importante ressaltar que se um grau de ambigüidade
muito alto persiste ao longo do tempo o sistema familiar está em risco de tornar-se
disfuncional. Em outras palavras, tal desgaste torna a família imobilizada.
Em um exercício de analogia, podemos pensar a equipe de saúde de uma
instituição hospitalar como a família que vem sofrendo perdas ambíguas em seus projetos,
em suas expectativas laborais e sem conseguir dar significado a esse sofrimento. Nessa
perspectiva fica colocada também a urgência de frentes de atuação voltadas, primeiro,
para uma escuta desses atores e depois para a construção de iniciativas horizontais,
descentralizadas, transparentes e com os atores dessas realidades.
A diversidade de demandas que estão colocadas para os trabalhadores que atuam
nos setores estudados, assim como a impossibilidade para solucioná-las, gera um
sentimento de frustração e angústia na ordem do pessoal. Jacques (2003) chama a atenção
para o fato de que a doença representa uma reação a essa sujeição, embora as explicações
de suas causas se inscrevam em uma perspectiva individualista com a ideologia de
sucesso e fracasso que lhe é associada, sendo os indivíduos responsáveis pelas suas ações
e pela sua sorte. Coloca que se nos orientarmos por essa lógica a doença aparece como
resultado de uma fragilidade individual e é esse indivíduo por sua vontade quem
determina a instalação da doença ou não. Portanto, não se fica doente devido ao trabalho.
Essa preocupação se justifica mais ainda quando tais questões aparecem, principalmente,
dentro de um panorama onde o sistema de saúde encontra-se distorcido, colocando em
risco a sua eficácia mínima tanto do ponto de vista de quem é cuidado quanto da
perspectiva dos profissionais de saúde.
Porque fazer um tratamento oncológico, isso é muito dispendioso pro
município e ele não quer investir nisso, não está preocupado com isso.
111
Então, eu tenho 80% dos meus pacientes de fora do município, como é que
os pacientes vêm semanalmente? Cada protocolo é um protocolo diferente.
Um que vem a cada semana, um que vem a cada quinze dias, um que vem a
cada três semanas, é claro que isso eu coloco pro município, ainda mais
quando é pra um município novo, que não tinha nenhum paciente, só coloco
como funciona ali, e coloco pra família. Só que a família quer sempre a
resposta positiva pra tudo, que resolva os problemas deles. Quando esse
paciente chegou aqui a situação social, econômica, cultural, psíquica dele já
existia, ela não se deflagrou aqui, em absoluto não é? Ela não aconteceu
aqui, mas eles querem que eu resolva aqui também. E fazer com que eles
entendam que não é a minha função, é a maior dificuldade pra mim! (P1).
Ele chega ao hospital achando que vai resolver todos os problemas. [...] E
isso persiste. O que é uma distorção. Ainda hoje existe uma série de falhas
na assistência à saúde, por causa disso, não é? E aquela visão de que saúde
é despesa, não é a mesma coisa que a educação. É gasto, tem que quebrar o
galho. Eu sempre vi a saúde pública como uma enganação. Então eles
pegam, abrem uma salinha lá, põem um posto de saúde, colocam lá um
médico, um atendente, uma enfermeira e vão dar consultinhas. Quer dizer,
não vai resolver nada. É engambelação da população. Isso aí a gente vê
hoje aqui no hospital, o pessoal que chega à emergência do hospital pra
consultar, não porque o caso dele seja de emergência [...] Mas o pessoal
vem porque não tem aonde ir. Aí não tem seqüência no atendimento, as
mães chegam agressivas, chegam descontentes porque o caso delas não é
resolvido, mas vem na emergência. O guri esta bem, ele precisa de
acompanhamento, de controle, de retorno, de exame, com o mesmo
profissional. Elas não têm condição desse acesso. A enganação continua a
mesma (M4).
Essa temática coloca uma importante reflexão quando a distorção do sistema de
saúde, evidenciado na rede básica de serviços ineficientes, demanda implicações na rede
de assistência. Em outras palavras, quando o descrédito no SUS, frequentemente
levantado pelos usuários, passa a ser confirmado pelos próprios profissionais de saúde.
Essa é uma perigosa bola de neve porque uma análise mais criteriosa que poderia
contribuir ao avanço do sistema de saúde pelas constantes retro-avaliações e modificações
no sistema, tornam-se, ao invés, fontes de um hiato do pensamento, uma obscura zona de
entendimento mesclada por sentimentos de frustrações, de baixa auto-estima levada ao
âmbito do sujeito. Kaës (1998) contribui para essa reflexão ao referir-se ao seu conceito
de sofrimento invalidante.
Muito significativo para esse estudo é o sentimento de frustração freqüentemente
expresso pelos entrevistados e relativo à necessidade de poder ver os resultados de seus
esforços de trabalho e até mesmo de poder avaliar suas ações através de um retorno na
própria demanda atendida. Há sonhos verbalizados que vão ao encontro dos preceitos
112
preconizados pelo SUS e que almejam soluções para alguns impasses do dia-a-dia como,
por exemplo, uma disponibilidade dos profissionais de saúde nas unidades locais de saúde
em ouvir, em acolher, como coloca essa entrevistada ao verbalizar a falta dessa
interlocução: “isso é muito frustrante. Isso é uma grande frustração, a gente sempre
discute isso” (M5).
Faz uma proposta de se trabalhar juntos para que se possa ir afinando os
instrumentos:
Um posto de saúde com alguém da saúde mental lá dentro, que fosse
capacitado pra atender aquele paciente, aquela família, que se importasse
realmente com aquela situação, não é? Não precisa muito, a gente sabe que
não precisa. Não precisa nem grande preparo! É um bom ouvido, é aquele
feeling pra entender o que está acontecendo, e entra em contato, se é uma
coisa mais importante, entra em contato com a gente de novo, vamos
trabalhar juntos, não é? (M5).
Parece evidente a necessidade de fortalecimento das idéias preconizadas nos
princípios do SUS uma vez que os desafios impostos necessitam um grande esforço para o
seu enfrentamento em um cenário sócio-histórico cada vez mais complexo. Redes de
compromisso e co-responsabilidade quanto à proteção e qualidade no cuidado a vida
necessitam estar concretizadas em ações que revertam em produção de saúde ao mesmo
tempo para a sociedade e para aqueles que cuidam da saúde (BRASIL, 2006).
4.1.2 A organização do trabalho
A realidade atual vem exigindo dos pesquisadores envolvidos com a temática da
saúde maiores esforços na tentativa de abranger os fenômenos complexos que abarcam as
dimensões humanas implicadas no trabalho, pois o modo das pessoas fazerem uso de suas
capacidades afetivas, físicas e cognitivas para produzir foi transformado. A organização
do trabalho, ao atingir o indivíduo, modifica a sua maneira de enfrentar os riscos e traz
efeitos sobre a saúde ainda não perfeitamente conhecidos ou dimensionados; os sintomas
nem sempre são específicos, ademais se referem à complexidade dos seres humanos e à
dinamicidade das situações de trabalho (ASSUNÇÃO, 2003).
113
Na pesquisa desenvolvida o sofrimento vivenciado pelos sujeitos no enfrentamento
da rotina do trabalho fica evidenciado em questões levantadas na fala de muitos
profissionais. Destacam-se os limites impostos pela excessiva burocratização da
instituição e pelo excesso de normas, trazidas como um fator de insatisfação para o grupo.
Referem-se à burocratização da estrutura hospitalar como limitante para a realização do
trabalho e muitas vezes como fator de ansiedade. As críticas sinalizadas parecem apontar
na expectativa de resolutividade através de diálogo.
Oh, a gente está aqui, a minha mesa aqui, eu estou com um computador que
está desligado há um ano, tá? Eu podia estar no computador, fazendo a
evolução. Isso é resultado da burocracia! Eu tenho isso aqui, um atestado,
então tu tens que estar (escreve) só escrevendo, está louco! Aqui tem uma
folha de evolução, tens que dizer que o paciente está assim, está assado. Só
pra te mostrar as coisas que precisam ter na mesa. Quando tem que
internar, tem que pegar mais fichas, que é a autorização de internação
hospitalar. Às vezes a criança chega aqui no meu consultório e fica 40
minutos, 35 minutos e eu fiquei preenchendo papéis e 5 minutos ali na maca
com ela. Isso é característica de quê? De hospital público! É claro que
atrapalha! Atrapalha, mas é assim que esta funcionando! Eu tenho o
computador aqui, mas o programa parece que não rodou, não funcionou, não
sei! Mas eu não vou também sair na (televisão) por aí dizer com megafone mão,
aí não! A gente tem outras maneiras de sentar e conversar! (M1).
Observa-se em outras falas o entendimento de que muitas vezes o trabalhador é o
responsável pelo descumprimento dessas normas, por uma determinada flexibilização em
relação ao estabelecido como normas e rotinas Há uma cobrança por parte deles mesmos
em manter as normas impostas. No entanto, em outros momentos, criticam o excessivo
rigor como impeditivo para possibilitar o desenvolvimento do trabalho. Kaës (1998)
reflete sobre os efeitos de defesas em massa, a partir de condutas sintomáticas
institucionais. Coloca a burocratização dos serviços como uma das manifestações
institucionais que atestam a ausência de espaços para pensar e mais do que isso,
contribuindo para manter o pensamento fora de uso. Portanto, parece pertinente à
dinâmica institucional o surgimento de contradições nas relações de trabalho,
contribuindo para criação de espaços “confusos” e de vazios na comunicação,
desmotivando a busca de saídas enquanto grupos de trabalho.
Eu estou atendendo um paciente que precisa de oxigênio, então assim, não
tem nunca uma rotina. O médico nunca sabe como preencher aquilo, eu vou
mostro pro médico, o médico não preencheu corretamente, daí volta pra
mim, eu mando pra secretaria, volta, vem pra secretaria, não chegou nas
114
minhas mãos, já chegou direto na mão da mãe, a funcionaria da secretaria
mandou direto pra mão da mãe, não passou por mim, eu não estou sabendo
de nada, tudo foi resolvido. De repente tu tens lá uma norma, que eu acho
que hoje já foi bem resolvida, mas tinha uma norma da casa de apoio que tu
dizias não pra mãe, a mãe ia à Direção, a Direção dizia sim. Então, são
essas coisas dentro da instituição essas buro... Não deixa de ser uma
burocracia em certos momentos não é? Eu tenho uma televisão, tem várias
crianças precisando da televisão, eu preciso preencher um papel com
número, com isso, com aquilo. Tudo bem, acho que até precisa, mas que
fosse imediato (P1).
É, não conseguem segurar a barra. E... Às vezes até pela assim, não digo
que as outras unidades não sejam cobradas, mas a nossa unidade aqui ela
tem muitas regras muitas normas então, tem coisa que dá para tu seguires,
mas outras... Eu digo assim, (esta) é uma unidade que não tem regra
específica, porque assim oh, visita é tal hora, mas às vezes pela situação da
criança tu deixas ficar um pouquinho mais. Então, tu deixas um, aí não
deixa o outro, aí o outro já vem cobrar... (E4)
Bom, o respeito à instituição seria aquele próprio zelo, aquela própria
responsabilidade com a instituição. E as normas são as coisas que são
estabelecidas e não são cumpridas, não é? Então você pode observar aqui,
que o pessoal chega lá na frente, ta lá, eles tinham que esperar a vez deles
ser chamados para vir ao consultório. Mas eles pegam e adentram, vão ao
consultório, interrompem uma consulta, porque faltou um atestado, faltou
isso, faltou não sei o quê, parará... [...] Não pode ficar nesse vai e vem nessa
coisa. Porque tem normas técnicas... Isso também é culpa dos próprios
funcionários. Que quando você pega um funcionário que quer cumprir a
norma, ele fica sendo visto como um chato, não é? Pelos usuários. E os
outros pra não se incomodar deixam acontecer. Então... (M4)
Ocorrem situações internas a própria organização do trabalho institucional como o
depoimento colocado na fala de um dos entrevistados sobre as dificuldades que
enfrentam, por vezes, com as famílias quando os exames não são realizados na hora. Na
tentativa de conseguir viabilizar marca-se para determinado dia e horário como um
encaixe, mas a família e a criança não sabem e a criança fica em jejum durante um tempo
muito maior do que o necessário e podendo terminar por não realizar esse exame. Outra
situação possível de acontecer é a marcação e preparo para se fazer uma biópsia que
deveria ser feita no centro cirúrgico, também suspensa por impedimentos imprevisíveis de
natureza estrutural ou tecnológica do trabalho. Mas são percebidas, pelos usuários, como
atitudes discriminatórias da equipe a suas precárias condições de vida, tornando-se um
fator de sofrimento emocional para ambos os lados.
Elas não entendem. Acham que é porque é do SUS (E4).
115
Nesses casos alia-se o fato de serem procedimentos mobilizadores de ansiedade,
trazendo consigo dúvidas frente ao diagnóstico ou mesmo a manutenção ou não do
tratamento com todas as implicações para cada família e enfermos em particular. Para a
equipe de saúde perceber-se como provocadora de tamanho mal estar a essas pessoas
torna-se igualmente danoso.
Em outras situações se pode ver como a organização do trabalho atua diretamente
no sofrimento dos trabalhadores em uma dinâmica que aparece como invisível, sem que
se consiga eleger um “responsável”. Kaës (1998) observa que o sofrimento que advém
dessas situações pode tornar-se um sofrimento invalidante, por não se poder entender o
significado, não se identificar o objeto, a causa, o sentido desse sofrimento. Atua como
uma ansiedade difusa, que invalida os sujeitos. Dessa forma o trabalhador pode tornar-se
uma presa fácil tanto de suas próprias fantasias quanto das fantasias e neuroses
institucionais, ficando mais exposto, mais vulnerável (BLEGER, 1984).
Ao mesmo tempo têm coisas que não funcionam. E a gente não consegue ver
o que não dá certo, o que puxa pra trás, o que faz sofrer, o que é pesado, o
que é ruim. É uma coisa invisível e é horrível, é como um fantasma! (P2).
E o que a gente acha dificultoso é quando a gente precisa do médico aqui
em cima porque eles demoram pra vir, porque eles também atendem lá em
baixo. Então, daí muitas vezes demora pra chegar aqui em cima não é? Se
tiver alguém mais grave pra atender na emergência eles têm que ficar
atendendo lá. Pra depois subir. Então isso aí é uma coisa que dá muita
preocupação. Porque às vezes é coisa que não dá pra esperar muito. Tem
que ser na hora daí a família, o acompanhante fica ali nos cobrando, nos
cobrando e nós ficamos numa situação difícil não é? E vendo a angústia, a
necessidade então a gente fica também chamando, ligando. Muitas vezes
eles podem até não acreditar que seja tão grave, tão urgente. Só que a gente
informa. A gente passa tudo pra eles por telefone. E também como só fica
uma enfermeira aqui em cima, no caso, fica difícil pra ela também porque a
gente poderia chamar, chamá-la e ela interceder junto com o médico não é?
Só que ela também pode estar atendendo outras crianças em outros setores
e ela também não pode de dividir tanto (E5).
Os trabalhadores trazem um sentimento difuso, de ansiedade, de inconformismo
como se não coubessem nos papéis que a instituição lhes outorga. Fica expresso na
verbalização de um dos profissionais pesquisados, descrita logo em seguida, quando este
questiona a dimensão de autoridade indiscutível que pode ser conferida ao profissional
detentor do saber em uma instituição. Traz o perene desafio de não se deixar seduzir pelas
artimanhas de poder que uma instituição pode barganhar em troca da manutenção de suas
116
regras e contra-regras cotidianas. A consciência desses meandros institucionais coloca o
trabalhador em uma situação de risco porque estar ciente de fenômenos intersubjetivos e
mais ainda, exposto às emoções que perpassam as relações institucionais o coloca em
contato com suas próprias emoções. Se não houver recursos internos ao sujeito, ao grupo
ou a instituição para lidar com essa realidade subjetiva pode lançar mão de estratégias
defensivas que insensibilizam contra aquilo que faz sofrer (DEJOURS, 2000).
Ela (instituição) te engole! Senão você vai virando crença, acha que já está
pronto e vai virando crença. Os pacientes estão na vida, eles sempre vão te
trazer coisas novas e você tem que acompanhar a vida! E é difícil você tentar
acompanhar a vida dando um tratamento, entre aspas, científico pra aquilo. É
difícil fazer isso, é muito difícil. Pra mim, às vezes é muito difícil separar entre
essa vivência cotidiana e essa cientificidade. Porque eu fui formada pra ser
científica, racional, a minha formação é pra ser racional. (M7).
Campos (1997) refere que um dos principais segredos para assegurar a qualidade
em saúde estaria na adequada combinação de autonomia profissional com certo grau de
definição de responsabilidade para os trabalhadores. Coloca que não há apriorísticamente
uma combinação ideal que resolva os impasses para os múltiplos desenhos institucionais.
Teriam que ser buscados arranjos, guardando as singularidades de cada realidade, e que
funcionassem como balizadores assegurando o cumprimento de pelo menos três
critérios: o máximo de eficácia, de qualidade e de produção de saúde; o máximo de
produtividade, de eficiência e de viabilidade possíveis; e o máximo de satisfação
profissional. “[...] analisados de forma conjunta. Um contra e a favor do outro, sempre
e ao mesmo tempo. Um limitando e potencializando o desenvolvimento dos outros”
(CAMPOS, 1997, p. 234).
Nessa linha de entendimento vê-se no cotidiano da instituição na qual se
desenvolveu o estudo um paradoxo importante, na maneira em que se organiza o trabalho.
Fenômeno comum a profissionais com maior ou menor qualificação do ponto de vista
acadêmico, o trabalho fragmentado, parcelarizado e sem o reconhecimento dos seus
resultados parece trazer um desencanto gradativo no estímulo e na motivação a sua
realização. Por outro lado, mesmo verbalizando indignação demonstram ambivalência de
sentimentos frente à instituição. Pode-se apreender daí o quanto esses sujeitos ainda lutam
para dar um sentido ao seu trabalho ao mesmo tempo em que tais verbalizações podem
estar indicando um pedido de ajuda.
117
Então vai pegando abuso da coisa, sabes, vai pegando desgosto, é bem
desgosto mesmo. Branco pra mim, meu Deus, é um orgulho, ainda é! Eu
saio de casa de branco. E me sinto orgulhosa de sair de casa de branco, de
vestir o branco! Mas eu acho que eu vou perder isso também. Tu vês já
estou vindo de jeans, eu nunca vim trabalhar de jeans! Estou vindo
trabalhar de jeans, já estou perdendo a[...] (E8).
Cabe ressaltar que as limitações e dificuldades trazidas pelos entrevistados acerca
da organização do trabalho em uma instituição hospitalar pública, sobre o funcionamento
das tecnologias, sobre o gerenciamento e controle de custos, entre outros aspectos
apresentados, não se configura como um problema apenas do âmbito das instituições
públicas, mas também estão colocadas no setor privado. Um desses estudos foi
demonstrado por Pires (1998), no aprofundado trabalho que desenvolveu em dois
hospitais, um público e um privado, nas regiões sul e sudeste do país e que trouxe
importantes contribuições para pesquisas nessa área.
4.1.3 Condições de trabalho: o dilema de reinventar possibilidades no
enfrentamento das exigências e limites institucionais
O cenário onde o trabalho se desenvolve é um importante elemento potencializador
do desgaste e do adoecimento ou da satisfação e da saúde dos trabalhadores. Autores
como Codo (1994); Pitta (1994); Dejours (1986; 2000); Campos (1997); têm apontado a
influência das condições de trabalho na saúde dos profissionais de saúde.
Uma das situações fortemente assinaladas pelos sujeitos pesquisados e que
interfere na satisfação profissional é o déficit da força de trabalho, a falta de infra-
estrutura, a falta de material e dos equipamentos necessários à realização do trabalho. Os
relatos sobre as condições de trabalho na instituição e suas conseqüências para o
trabalhador e para a assistência prestada são de uma gama diversificada, indo desde a falta
de pessoal até questões de falta ou precariedade doe recursos materiais. Os trabalhadores
denotam constrangimento e às vezes desespero com as condições existentes; por outro
lado verbalizam não conseguir se verem “fazendo outra coisa na vida” (M5).
118
Por outro lado também referem ter havido uma significativa melhora nos recursos
materiais nos últimos anos.
Matos (2006), Gelbcke (2002) e Azambuja (2007) encontraram em seus estudos,
realizados no meio hospitalar, dados semelhantes quanto a dificuldades com os recursos
materiais. O fato de esses problemas aparecerem em diversos estudos, realizados em
instituições diferentes, demonstra a importância desse aspecto para condições de trabalho
e para a satisfação do trabalhador.
Às vezes é falta de material, falta de funcionários, não é? [...] E aí os
escalpes são de péssima qualidade. O escalpe, então, o mais grosso, o 21,
que seria pra sangue, eles não são bons. A gente machuca as crianças. Aí às
vezes falta um abocath, então dificulta porque com abocath é melhor. É um
dispositivo, ele é mais flexível, ele é muito bom, mas às vezes falta. Então
pra nós dificulta quando há crianças com veias muito difíceis de ver. (E2).
(E.) fez um levantamento, ela disse que nós estamos dentro de índices muito
bons, mas eu assim, eu me frustro muito, eu digo pra ela que eu não acredito
nisso, “ah eu fiz”, eu não acredito. Eu sinceramente eu não acredito, porque
eu acho que enquanto eu fico aqui tentando conseguir uma ambulância
porque a ambulância quebra no meio do caminho - a ambulância toda
quebrada, toda sem condições nenhuma para trazer o paciente pra consulta
que me quebra no caminho- com o médico aqui esperando o paciente. O
paciente não chega e a mãe em lágrimas, nervosíssima! Em outros países
conseguem um avião pra levar o paciente de um local para o outro. Claro
que é uma estrutura diferente, não dá nem pra comparar. Mas, é assim
gritante (P1).
Quando falta remédio, é complicado porque tu sabes, que se ficar sem
aquela droga a doença pode recidivar. [...] Politicamente é complicado,
entendes? Eu não uso esse método de mandar no Procon da criança, eu não
faço isso. Mas é complicado quando faltam remédios, a vontade que dá é de
fazer (uma denúncia), dar uma de Procon da criança. Mas, é complicado.
[...] Então a coisa é complicada de resolver. Essa do remédio... É bom
nunca faltar (M1).
Ainda acerca das condições de trabalho, os participantes do estudo ressaltam
especificamente a insuficiência de recursos humanos como uma das grandes dificuldades
para a realização de um trabalho de qualidade na instituição. Relatam situações nas quais
ultrapassam a carga horária prevista em função da demanda que é totalmente imprevisível.
Além disso, a complexidade crescente da conjuntura hospitalar exige trabalhadores, por
um lado, mais especializados e, por outro, mais capacitados a trabalhar em equipe.
Contraditoriamente, a realidade não raras vezes, acena com pequenas ironias. Por
119
exemplo, durante parte das observações realizadas em uma das unidades de internação
pude observar que haviam sido contratados cinco funcionários de enfermagem. Esses
funcionários recém chegados necessitam de um período de adaptação e de aprendizagem.
O tempo necessário para essa integração não pode ser medido no tempo requerido para a
instituição. Assim, vários fatores podem ir se agregando como: tempos diferentes a cada
sujeito, adaptação maior ou menor dada a especificidade da unidade, expectativas
diversas, inclusive por parte dos funcionários antigos que devem, além de acolher, estar
dispostos a orientar. Em dados momentos a duplicidade da situação, ao invés de trazer
alívio, traz uma considerável sobrecarga. Com o agravante de um ou outro desses
funcionários “treinados” poderem ser deslocados, posteriormente para outro setor do
hospital.
Tem horas que a gente fica só servindo pra ensinar e depois eles vão
embora, é uma sobrecarga e não ganho por isso (E2).
Porque não é só tu medicares o paciente, tem que ter toda uma estrutura.
Então, não adianta ter só um assistente social, só um psicólogo. Tu tens que
ter um médico disponível, tens que ter um radiologista, tens que ir num
cirurgião oncológico, nós não temos! (P1).
Ah... Essa parte assim, realmente fica difícil. Porque aqui está faltando
profissional em todo o hospital, em todas as unidades principalmente aqui
(nessa unidade). Uma unidade que assim, é estressante emocionalmente (E4).
Há uma compreensão da complexidade que envolve a situação, vê-se um esforço
de organização para suprir e criar alternativas nas condições de trabalho, um empenho em
possibilitar uma efetiva “implementação” do SUS que realmente dê resultados. Esse
comprometimento em “lutar” carrega junto tristeza e sofrimento por sentirem-se sem
possibilidades de realizar uma intervenção efetiva e que resulte integralmente nas
mudanças requeridas.
É dificultoso. Realmente a solicitação a gente faz, porque é o nosso objetivo,
vamos dizer, o hospital tem 26 anos e ele tem mais ou menos o mesmo
número de leitos de UTI e centro cirúrgico. Nós estamos solicitando a
ampliação de UTI e Centro Cirúrgico. A criança (de) alta complexidade,
por exemplo, neurocirurgia, cirurgia cardíaca, sai do centro cirúrgico tem
que ir pra UTI, (se) não tem vaga na UTI, emperra toda a fila. Então a gente
precisa ter mais quantitativo, tanto equipamento quanto material e recursos
humanos. Já foi feito um projeto e está lá na Secretaria da Saúde. E eles têm
interesse em investir nessa área, só que tem que obedecer aos trâmites... E é
um investimento bem alto. [...] É que o poder público tem que atender, não
só a saúde, mas todas as áreas, não é? (M2).
120
Relatam a preocupação sobre estas condições de trabalho, pois além de causarem
danos às crianças doentes se constituem em um risco constante à saúde do próprio
profissional. Muitas pesquisas vêm estudando riscos à saúde do trabalhador, como as
realizadas por Borges at all. (2004); Lipko; Dumeynieu (2004); Lacaz (2000) apontando
nessa mesma direção.
A extraordinária capacidade de adaptação dos trabalhadores contribui para que,
sem desconsiderar as condições muitas vezes precárias de trabalho, praticamente
“naturalizem o flerte com o perigo”. Por outro lado essas situações são também resolvidas
através de mecanismos criativos por alguns desses sujeitos, nos remetendo a capacidade
de resiliência, construída nesses contextos, individualmente ou coletivamente.
Galende (2002, p. 23) assinala que pensar a resiliência é justamente subverter a
idéia de causalidade que governa o pensamento médico hegemônico e algumas
concepções da saúde. Relata que este conceito introduz o acaso, o aleatório, altera a idéia
de relações necessárias entre os fenômenos da vida. Introduzir o acaso é introduzir o
sujeito capaz de valorar, de dar sentido a sua vida, de produzir novas significações em
relação aos acontecimentos de sua existência. “É pensar em um indivíduo não como
vítima passiva de suas circunstâncias senão como sujeito ativo de sua experiência”.
Na hora de instalar uma quimioterapia pode acontecer de desadaptar o
equipo do frasco do soro. A gente pode até tomar um banho de
quimioterapia enquanto a gente está ali, porque daí na hora de pendurar ele
pode despencar lá de cima, não é? Como algumas vezes até já aconteceu
(E5).
Quantas vezes faltaram escalpes, quantas vezes faltaram extensão e a gente
foi lá e ficou emendando. Como a gente já tem uma experiência de hospital e
faltam mesmo as coisas, a gente acaba criando. E tiveram algumas coisas
que foram bem administrativas assim: numa época a gente não tinha uma
medicação pra fazer intratecal, só conservante. A secretaria só comprou
com conservante, e só mandaram com conservante pra nós. Então a gente
fazia a punção e a criança uivava de dor. Não era gritar, era uivar. Por
causa do conservante. Que dá encefalite. Então o que eu fiz? Escrevi um
documento, coloquei lá quanto custava, quanto não custava e porque que
era bom. Pronto! Eu passei um ano falando que não era pra ser aquele
remédio, não deu certo. Quando eu falei em preço, na semana seguinte
estava aqui o remédio! Sabes? Então eu tenho que achar caminhos pra
resolver aquilo que está... Complifuso! Complifuso! (complicado e confuso)
Mistura os dois e dá essa, essa palavra. Então, são invenções que a gente
acaba adotando (E1).
De modo geral os trabalhadores entendem que o sistema de saúde e a instituição
121
hospitalar estudada colocam limites para a satisfação no trabalho. Muitas das condições
existentes são percebidas como adoecedoras. A remuneração que percebem pelo seu
trabalho, por exemplo, é vista como inadequada e incompatível com o serviço que
realizam. Isso leva os trabalhadores a buscar outras possibilidades profissionais para
suprir suas necessidades. Há uma proliferação do segundo vínculo empregatício o que,
além de provocar desgaste no trabalhador pode comprometer o próprio trabalho no
sentido de uma inevitável diminuição da qualidade. Adoece, assim, o trabalhador e o
sistema.
Eu vou dizer que falta tempo, porque aqui quando pega o serviço é para
valer, e às vezes tu sais daqui e já dás um plantão. Porque o Estado paga
mal, quer dizer, então tu precisas fazer uma outra coisa, ou de tarde, ou à
noite toda dando plantão (M1).
[...] Tu não podes te dedicar exclusivamente aqui porque eu acho que a
pessoa tem que ter um x pra viver. [...] tu tens que ter um outro emprego,
num outro período não é? [...] geralmente todos eles tem, 2, 3, 4. Sim, a
pessoa tem outros empregos, acaba que trabalha em um, trabalha noutro,
tem plantão, etc., às vezes dorme pouco, vem pra cá cansado, não é? Um
desgaste maior, estressado. (M2).
O aumento do duplo vínculo empregatício entre os trabalhadores de saúde é um
aspecto já discutido por Matos (2002), especialmente em relação aos trabalhadores de
enfermagem. Corroboram na direção dos dados encontrados pela autora os depoimentos
desses trabalhadores, revelando que, algumas vezes, pelo envolvimento muito grande com
o trabalho, perdem a capacidade de discriminar o grau de desgaste sofrido nesse cotidiano.
Soma-se a isso a preocupação com os colegas que ficarão sobrecarregados bem como com
a qualidade da assistência aos usuários.
Um outro aspecto importante que esses resultados assinalaram diz respeito ao fato
de se perceberem sem poder oferecer ao doente as condições adequadas de atendimento
em função do limite de pessoal, de material e equipamento. As conseqüências que tal fato
acarreta para a assistência parece ser um fator de ansiedade significativo para esses
trabalhadores.
Ah, algumas coisas básicas, assim... Essa sala, pra gente conseguir essa
sala, foram anos! Aí nós viemos pra sala do lado, depois de volta pra nossa
sala que não tinha ar condicionado; como é que a gente ia fazer pra atender
uma família, um paciente, num calor terrível? Então pedi um ar-
condicionado. Depois pedi um armário. Nós fizemos uma listagem de coisas
que a gente precisava: mesa, cadeira. Aí a gente vai ganhando a sucata,
122
agora está até bonito, mas antes era vergonhoso! Armário não tinha então a
gente mandou a lista de coisas que a gente precisava, pra ter uma sala de
atendimento, aí a direção manda de volta: “o hospital só tem condições de
fornecer um item por ano”. (risos). Mandou a gente escolher! A gente
escolheu o armário! (M5).
Isso já há alguns anos, a promotoria vem pressionando a direção pra que a
gente comece a atender o dependente químico. Como? Agora que a gente
está começando a se organizar pra atender os pacientes psiquiátricos, entre
aspas, que são só as coisas mais leves, que a unidade comporta, porque é
uma unidade aberta, não tem equipe treinada, agora que conseguimos um
psiquiatra; [...] a gente tem que ir toda hora à direção pra dizer que não
está estruturado pra atender dependente químico! Não dá pra botar um
adolescente em abstinência aqui dentro! Vai quebrar tudo, vai agredir os
outros pacientes, não tem pessoal treinado, eu não sou capacitada em
dependência química, a nossa psiquiatra também não[...] (M5).
Os trabalhadores revelam sentirem-se presas das condições de trabalho na
instituição. Percebe-se que tais condições são causadoras de descontentamento e
sofrimento, instaurando uma contradição: por um lado necessitando melhores condições
de trabalho e salário e, por outro, reafirmando suas ideologias e compromissos com a
saúde pública e com seu próprio bem estar.
Tu assinaste um contrato, não é? Sabias que pagavam pouco mesmo, é uma
vergonha, tanto pra médico como para o professor. Acho que são as duas
classes que estão se arrombando, não é? Então eu vou fazer o quê? Eu
assinei que aceitava ser remunerado pelo SUS e aí... Acho que (em relação
a) esses órgãos de classe, a gente tem que se reunir, e tem que se unir, pra
reivindicar um pró-labore, ou um salário, sei lá o que é melhor aí, só não
deixar de atender! Isso não, isso eu não faço, jamais! (M1).
Nessa trama de desejos, de histórias de vida, de projetos idealizados e perdidos nos
caminhos das singularidades desses trabalhadores da saúde e noutros tantos projetos
construídos coletivamente, quando postos em risco nas mínimas condições do viver
humano, confrontam os caminhos do sujeito no âmbito do pessoal com o sujeito do
trabalho. Nesse enfrentamento especular que remete a vivências primitivas de desamparo
- próprias das vivências das crianças internadas, dada sua vulnerabilidade pela condição
da doença, - o sujeito adulto profissional da saúde pode ser levado a um enfrentamento
consigo mesmo, funcionando a criança enferma como uma espécie de espelho no qual se
vê ameaçado em sua segurança e estabilidade corporal e emocional. Ameaçado, portanto
de ruptura na sua unidade narcísica, esse profissional pode viver ansiedades de perdas
importantes e mesmo, de profundo terror (Nigro, 2004). Assim, tem que fazer uso de seus
123
recursos mais saudáveis para lidar com os limites e frustrações colocadas pela instituição,
a partir de sua condição de co-participe desse processo, buscando formas de superação aos
obstáculos que lhe permitam o máximo de bem estar. Nos relatos colocados podemos ver
duas facetas dessa busca
O paciente te traz coisas do teu cotidiano. E coisas que às vezes estão
acontecendo semelhantes, na tua casa! Só muda o contexto, ele (o médico)
vai de carro para casa e o paciente vai de ônibus. O médico foi formado pra
achar que ele é diferente dessas pessoas e aí tem uma coisa que ele faz, ele
tem quinhentos empregos pra manter uma fantasia (M7).
Eu tenho um colega lá da emergência que diz: “pobrete, mas alegrete”.
(risos). Ele não tem carro, ele diz: “eu vivo de acordo com o meu salário de
médico!”. Agora que aumentou o valor da hora plantão, ele diminuiu o
número de horas (risos). Ele quer ir surfar! (M6).
Os trabalhadores reconhecem e valorizam a riqueza do campo de trabalho em uma
instituição pública hospitalar. Apontam para as possibilidades no campo da produção do
saber em saúde e educação articulada a uma assistência à população sem recursos e que se
beneficiaria dos avanços da ciência e da tecnologia. No entanto, apesar do seu grande
potencial como campo de pesquisa e de ensino, lastimavelmente, o que se observa
também é um investimento muito pequeno em pesquisa e em capacitação e/ou educação
permanente das equipes.
Com relação ao hospital público, pra mim é gratificante trabalhar num
hospital público. Por quê? Porque o nosso hospital ele é um hospital de
ensino, tá? E eu gosto de trabalhar com ensino e pesquisa, acho que é um
ponto positivo porque a pessoa fica continuamente se atualizando na área.
Segundo, porque nós temos cerca de 90 - 95% dos pacientes que são do
Sistema Único de Saúde, então acho importante porque tu estás lidando
realmente com a realidade brasileira e acaba, como é um centro de
referência, a gente atendendo nas diversas especialidades pediátricas.
Então tu ficas com uma amostra significativa das doenças mais freqüentes
na população com relação à média e alta complexidade (M2).
[...] apesar de ser um hospital público, eu acho que ele tem todos os
recursos que precisa pras crianças com câncer, de certa maneira. A gente
consegue fazer os exames - o que não tem aqui a gente manda pra fora
daqui, quando é uma coisa mais específica. Então, eu acho que a gente
consegue atender, no básico da oncologia, consegue. Eu acho que consegue
fazer de certa maneira, bem. E eu acho que o hospital, pra SUS, funciona
muito bem também. Dos que eu já vivi, funciona bem (M3).
No trabalho de campo realizado na instituição aonde a pesquisa se desenvolveu me
124
surpreendi constantemente com a capacidade de grande parte desses trabalhadores em
manterem-se dedicando todos seus esforços à saúde. Saúde como grupos de trabalho;
saúde como sustentação a cada um; saúde como única saída à fragmentação das relações
nesse contexto. Não porque houvesse como resultado um sucesso assegurado frente a
essas intrincadas condições de trabalho, mas pela coragem, pela audácia, por serem
suficientemente “sanos” ou resiliêntes apesar do sofrimento e das fragilidades
encontradas.
4.1.4 Relações de trabalho na complexidade do cuidar de crianças gravemente
enfermas
Os sujeitos entrevistados reconhecem a necessidade da atuação de diversas áreas
do saber em saúde em sua equipe de trabalho. Ao mesmo tempo, apontam os limites e as
dificuldades da construção da interdisciplinaridade no agir cotidiano. Dentre esses limites
destacam a postura mais individualista e corporativa de muitos profissionais da área
médica. No entanto, em minha experiência com as equipes estudadas e mesmo na
instituição de maneira geral, essa postura mais centrada em si mesmo e em seu saber
excludente pareceu-me estar democraticamente distribuída entre todas as categorias de
trabalhadores, isto é, as implicações de uma formação e de uma cultura com heranças
cartesianas e hegemônicas em relação ao saber infelizmente não é “privilégio” da
categoria médica, mas de praticamente todas as categorias trabalhadas. As diferenças de
posturas encontradas parecem dever-se muito mais ao âmbito da singularidade “daquele
sujeito”. O que coloca a necessidade de uma reflexão mais profunda sobre o tema.
É, e não vejo em outros serviços, eu não sei se isso acontece de maneira tão
interdisciplinar assim mesmo, não é? Mal ou bem existem alguns médicos que
acham que são superiores, hierarquicamente na equipe. E eu aprendi muito,
durante todo tempo que eu estou aqui, eu aprendi muito com o pessoal da
enfermagem. Imagina, a gente entra aqui cruzinho assim mal saída das fraldas e
tem gente aqui que trabalha há vinte anos na emergência! [...] mas eu vejo ainda
muita gente numa postura assim de sobreloja. (risos) (M6)
.
125
Revelam, através da prática, o reconhecimento de ações “interdisciplinares”, ou
melhor, de diferentes olhares podendo contribuir para diminuir o desconforto dos doentes.
São ações que mesmo isoladas parecem absorvidas pela instituição. Isto fica evidenciado
quando relatam situações como a da atuação de uma funcionária do setor de limpeza,
“atendendo” e resolvendo ocorrências com os usuários.
Às vezes a faxineira, eu já vi fazer isso! No outro dia, eles contam:
aconteceu tal coisa, eu fui lá e fiz tal coisa. Beleza! Resolveu! (M5).
Assim, parecem reconhecer o momento em que um problema foi bem absorvido.
Contudo, também identificam situações nas quais, “seria esperada da equipe”, uma
postura interdisciplinar, e esta não ocorre. Manifestam aflição em relação a um difícil e
conflituoso compartilhamento do objeto de trabalho. Tal dinâmica indica-nos o quanto
essa matéria merece ser mais profundamente examinada.
Aí cabe a pergunta: se o paciente chora, de quem é a tarefa de atender esse
paciente que chora? É do psiquiatra? É do psicólogo? É do médico, é da
enfermeira, ou é do profissional que está cuidando, do atendente de
enfermagem? É uma coisa pra gente pensar! (M5).
Apesar da iniciativa de muitos desses trabalhadores como grupo ou
individualmente no caminho de posturas interdisciplinares, ainda se está muito longe do
desenvolvimento de frentes de trabalho nessa direção. Fazenda (2002) observa, sobre a
prática interdisciplinar, que é necessário se vencer obstáculos. Coloca sobre a necessidade
de se instaurar uma prática dialógica na qual barreiras precisam ser eliminadas, tanto entre
as disciplinas quanto entre as pessoas que buscam desenvolvê-la.
É necessário transpor determinados obstáculos: obstáculos epistemológicos e
institucionais, ou seja, a inter torna-se possível quando se respeita a verdade e a
reatividade de cada disciplina, tendo-se em vista um conhecer melhor, a
eliminação entre as barreiras, entre as disciplinas o que exigiria a quebra da rigidez
das estruturas institucionais; obstáculos psicossociológicos e culturais; obstáculos
metodológicos; obstáculos quanto à formação, ou seja, teoria e prática como
forma de construção do conhecimento e obstáculos materiais, pois para o
exercício da inter é necessário que se programe espaço e tempo, orçamento
(FAZENDA, 2002, p.33).
Matos (2006), em sua tese sobre a contribuição da prática interdisciplinar para a
construção de Novas Formas de Organização do Trabalho (NFOT) assistencial em saúde,
126
faz uma reflexão sobre a organização e as relações de trabalho a partir de duas
experiências de atenção à saúde que atuam com a perspectiva interdisciplinar. Seu estudo
desenvolveu-se em duas instituições hospitalares públicas de saúde, situadas em uma
capital da região sul do Brasil e apontou a construção do trabalho de caráter
interdisciplinar como uma das possibilidades para saída de impasses nas relações de
trabalho. Experiências analisadas sinalizaram para a construção de um projeto
compartilhado de atenção ao usuário (a), com base na atenção integral à saúde;
aproximação do (a) trabalhador (a) com os resultados do trabalho; melhores relações entre
trabalhadores (as); relações mais solidárias dos trabalhadores (as) entre si e, destes/as com
os usuários (as) levando a maior satisfação no trabalho.
O ato assistencial é resultado de um trabalho realizado por diferentes profissionais
e, para uma melhor apreensão da complexidade do sujeito que é o objeto de trabalho dos
profissionais de saúde, é necessário um inter-relacionamento entre as áreas e profissões
que fazem parte deste conjunto. O objeto do trabalho em saúde dos profissionais que
participaram desse estudo é comum a todos – a “criança gravemente enferma” e este
objeto é um sujeito multidimensional e complexo, nunca suficientemente apreendidos
pelos conhecimentos e proposições de uma única profissão, mas sempre demandando
abordagens mais complexas e ações mais interdisciplinares. Não há receitas nem saberes
absolutos, mas práticas a serem construídas a partir da disponibilidade de cada um em um
coletivo de saberes intercambiante e sempre provisório.
Peduzzi (2001) observa a necessidade da superação do isolamento dos saberes e
chama a atenção acerca da super especialização que acabou por desconsiderar o homem
como determinante e determinado por relações afetivas, experiências de vida e como parte
de uma totalidade. Pires (1999), assim como Peduzzi, refere que essa especialização dos
saberes se dá sem uma reflexão sobre o processo de trabalho que as especifica e em
especial sobre o objeto de trabalho em saúde que é o ser humano. Assinala também que se
o trabalho em saúde se dá seguindo esse modelo fragmentado, a partir do qual o
desenvolvimento esperado, é a especialização do conhecimento, o resultado, ao invés de
avanço, será de mais alienação e fragmentação.
Cabe ainda colocar as palavras de Balandier (1997) sobre todos os temas que
compuseram esse delicado tecido tramado dos ditos e não ditos desse cenário, acerca da
127
força do imaginário que permanece mais do que nunca necessário, sendo de algum modo
o oxigênio sem o qual a vida pessoal e coletiva se arruinaria.
De outra parte busco também Moscovici (1996) para contemplar a importância da
cultura organizacional na vida dos sujeitos trabalhadores de uma instituição. Pode-se dizer
que a cultura de uma organização lhe confere as referências (o que pode e o que não pode,
o que é certo ou errado, o permitido e o não permitido; fornece indicação sobre a
linguagem em comum, categorias conceituais, critérios de inclusão/exclusão, poder e
status, fronteiras de grupos, por exemplo) que vão permitir ao trabalhador diminuir a
ansiedade e poder enfrentar as tarefas do dia-a-dia com confiança e produtividade. É
também a mesma cultura organizacional que possivelmente será a maior fonte de entraves
a mudanças na organização, pois trará em si o medo, a ameaça de irrupção de grande
ansiedade pela perda de pontos de referências já conhecidos e “dominados”.
A importância das temáticas tratadas até aqui foi a de dar voz, através de alguns
aspectos do processo de trabalho em uma instituição pública hospitalar, ao que está
contido - ao sofrimento ignorado ou silenciado – para contribuir à construção de um
espaço de esperança, de escuta e de cuidados, a partir dos sujeitos dessa cena, a partir da
vida desse seu lugar, de um desejo que se torne trabalho (JAÚREGUI, 2005).
4.2 A MORTE NO CONTEXTO HOSPITALAR INFANTIL
A morte liberta o escravo, a morte submete o rei e papa e paga a cada um
seu salário, e devolve ao pobre o que ele perde e toma ao rico o que ele
abocanha
26
.
O hospital, inevitavelmente, já traz em seu contexto um misto de apreensão e
busca de alívio, de mágoas e dores reativadas e mesmo experimentadas pela primeira vez
e, talvez por tudo isso, também medos. No entanto, do mesmo modo carrega e transmite
imagens e memórias de gratidão pela contenção da agonia, pelo conforto da aflição sem
fim, pelas noites mal dormidas no acalanto de corpos vestidos de branco compartilhando
os medos do desamparo. Este é um aspecto do mundo do trabalho da população escolhida
26
Hélinand de Froidmont, em ‘Os Versos da Morte’.
128
que se torna indispensável caracterizar, desde a ótica dos atores. É um espaço também de
uma parte da vida que emerge e vibra intensamente e que resiste em se abrandar. Falo dos
sentimentos porque foi isso, mais do que tudo, o que encontrei em todo o discurso. Às
vezes difuso, às vezes perdido, às vezes pleno de desejo e de fantasias poderosas e,
muitas, muitas vezes, solitário.
Acho que quem trabalha na área da saúde está sempre lutando contra isso,
essa sensação de “não”, eu vou superar a dor, eu vou superar o sofrimento!
E vai ter hora em que você não vai conseguir! Então isso eu acho que é um
fator de risco que a gente tem aqui dentro. A gente se pergunta: o que é que
eu estou fazendo? Eu não consigo superar a dor, não consigo superar o
sofrimento, eu não consigo superar a morte, o que é que eu estou fazendo?
Então eu acho que isso é o grande fator de risco. (M7).
Buscar compreender alguns dos elementos que compõem as complexas relações
subjetivas que o trabalhador constrói com seu próprio trabalho remete claramente aos
modos objetivos como este se desenvolve, a um conjunto de exigências que este impõe ao
sujeito, como venho tratando até aqui; mas também remete a aspectos que escapam das
descrições objetivas dos atos e rotinas, que possam ser feitas pelo próprio trabalhador ou
por qualquer observador externo. Para esta busca torna-se importante reunir diferentes
elementos de análise, afinar o olhar e a escuta, entender as pessoas e as necessidades para
as quais o trabalho se dirige, de modo a ampliar as fontes que possam dar conta de
tamanha complexidade, incluindo sentimentos, percepções, histórias contadas,
experiências construídas individualmente ou coletivamente. Assim, na busca de
documentos que me dessem dados da história desses grupos de trabalho foram os relatos
de alguns entrevistados, a história oral, que contribuiu para clarificar e entender a
dinâmica das relações de trabalho desses sujeitos. Além de aspectos peculiares ao
ambulatório e a cada unidade estudada, a própria especificidade da morbidade da
população assistida também contribuiu nessa caracterização. Dentre os muitos quadros
clínicos atendidos pelos profissionais entrevistados destaquei alguns dos que me
pareceram mobilizadores de maior sofrimento no dia-a-dia do trabalho, bem como por
terem denotado importante significado na construção da referência e mesmo da identidade
do trabalhador. Segue breve caracterização e principalmente as estimativas e desafios aos
profissionais da saúde.
129
4.2.1 Breve contextualização das principais morbidades clínicas no contexto
pesquisado
O progresso no desenvolvimento do tratamento do câncer na infância foi
espetacular nas últimas quatro décadas. Atualmente, 70% das crianças acometidas de
câncer podem ser curadas, se diagnosticadas precocemente e tratadas em centros
especializados. A maioria dessas crianças terá vida praticamente normal.
Nos EUA, o câncer constitui a segunda causa de mortalidade entre crianças e
adolescentes abaixo de 15 anos de idade. A incidência anual estimada de câncer infantil é
de 124 casos a cada 1 milhão de habitantes brancos, e de 98 casos por milhão de
habitantes negros, sendo que são estimados 7 mil casos novos anualmente
27
.
Estimou-se
28
para o ano de 2006 a ocorrência 472.050 casos novos de câncer no
Brasil. “Uma vez que o percentual dos tumores infantis observados nos registro de câncer
de base populacional (RCBP)
29
brasileiros variou entre 1 e 4%, depreende-se que os
tumores infantis deverão corresponder a valores compreendidos aproximadamente entre
4.700 e 19.000 casos novos”
30
.
O câncer infantil corresponde a um grupo de várias doenças que têm em comum a
proliferação descontrolada de células anormais e que pode ocorrer em qualquer local do
organismo. Representa cerca de 0,5 a 3% de todas as neoplasias na maioria das
populações; em geral a incidência total de tumores malignos na infância é maior no sexo
masculino. As neoplasias mais freqüentes na infância são as leucemias (glóbulos brancos),
tumores do sistema nervoso central e linfomas (sistema linfático). Também acometem
crianças o neuroblastoma (tumor de gânglios simpáticos), tumor de Wilms (tumor renal),
retinoblastoma (tumor da retina do olho), tumor germinativo (tumor das células que vão
dar origem às gônadas), osteossarcoma (tumor ósseo), sarcomas (tumores de partes
27
Fonte: INCA. Disponível em: <www.inca.gov.br/estimativa/2006 Consulta em 18/06/2007>
28
Fonte: INCA. Disponível em: <www.inca.gov.br/estimativa/2006 Consulta em 18/06/2007>
29
Registros de Câncer de Base Populacional (RCBP), supervisionados pelo INCA/MS, e do Sistema de
Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, centralizado nacionalmente pela Secretaria de
Vigilância à Saúde - SVS/MS. A partir destas informações, desde 1995, o Instituto Nacional de Câncer (INCA)
estima e publica anualmente a incidência de câncer que tem sido um recurso indispensável para o planejamento
destas ações.
30
Fonte: INCA. Disponível em: <www.inca.gov.br/estimativa/2006> Acesso em 18/06/2007.
130
moles). A Leucemia Linfóide Aguda (LLA) é o câncer de maior ocorrência em crianças,
particularmente de 3 a 5 anos e, entre os Linfomas, o mais incidente na infância é o
Linfoma não-Hodgkin. Os tumores de sistema nervoso, que predominam no sexo
masculino, ocorrem principalmente em crianças menores de 15 anos, com um pico na
idade de 10 anos, e representam cerca de 20% dos tumores infantis. Os tumores ósseos
têm sua maior ocorrência nos adolescentes. O retinoblastoma é responsável por cerca de
2% dos tumores infantis.
Diferentemente do câncer de adulto, o câncer da criança geralmente afeta as
células do sistema sangüíneo e os tecidos de sustentação, enquanto que o do adulto afeta
as células do epitélio, que recobre os diferentes órgãos (câncer de mama, câncer de
pulmão). Doenças malignas da infância, por serem predominantemente de natureza
embrionária, são constituídas de células indiferenciadas. Do ponto de vista clínico, os
tumores infantis apresentam menores períodos de latência, em geral crescem rapidamente
e são mais invasivos, porém respondem melhor ao tratamento e são considerados de bom
prognóstico. A taxa de sobrevida média cumulativa em cinco anos, nos Estados Unidos,
para tumores infantis é de 77%.
Infelizmente muitos pacientes infantis ainda são encaminhados ao centro de
tratamento com doenças em estágio avançado, o que se deve a vários fatores:
desinformação dos pais, medo do diagnóstico de câncer (podendo levar à negação dos
sintomas), desinformação dos médicos. Outras vezes este diagnóstico e tratamento tardio
também está relacionado com as características de determinado tipo de tumor. No adulto,
em muitas situações, o surgimento do câncer está associado claramente aos fatores
ambientais como, por exemplo, fumo e câncer de pulmão. Nas malignidades da infância
não se observa claramente essa associação. As causas associadas a grande maioria dos
tumores infantis ainda são desconhecidas. Assim, a ênfase atual esta sendo dada ao
diagnóstico precoce, tornando a prevenção um dos grandes desafios.
Nesse sentido é interessante observar que na instituição estudada os depoimentos
dos profissionais tanto ilustraram idéias preconcebidas dos usuários quanto deles próprios
frente ao câncer. Referem que é um ambiente de muito estresse para a família trazendo a
representação social da doença como um estigma respeitável. São familiares que já
chegam assustados, que já em face de uma suspeita diagnóstica solicitam para não se usar
131
a palavra câncer. Referem que
[...]em um hospital geral que tem paciente oncológico, existe um medo,
existe um preconceito, existe isso, a gente sente isso! Imagina assim, “ah,
paciente oncológico, vai morrer, será que vale a pena investir?” (M3).
Porque até então, a criança careca é a criança que tem câncer. Porque você
acha que as mães preferem ficar aqui? Não é só pela comodidade, pelo
pessoal. É também porque as outras crianças estão na mesma situação do
filho dela. Ela se identifica com isso aqui. É diferente de tu estares numa
outra unidade, onde as pessoas apontam: “ah, coitadinho, tem câncer!”.
Sabes quantas coisas eles ouvem nas outras unidades? Até crianças que se
afastam, não se aproximam muito, com medo. Tem essa crença que
“pega”(a doença), que tem que se tomar cuidado. (E3).
São falas que denotam as dificuldades em se trabalhar cotidianamente com a
possibilidade de perdas; não apenas a perda real sofrida pelos familiares, mas também a
perda dos vínculos estabelecidos, sofrida pela equipe. Às vezes, inclusive, há uma rejeição
ao trabalho com essa demanda, por parte dos funcionários de outras unidades ou por parte
de novos funcionários contratados para o setor.
O pessoal vem, (mas) tem um pessoal novo que não consegue trabalhar aqui
por causa da questão do câncer, da doença. (E4).
Aí eu chorava não é? Além de eu ter medo porque achava que câncer
pegava, principalmente a leucemia. Olha só como a gente é. Quando a gente
não está aqui dentro a gente é desinformada e tem medo, por isso que às
vezes há o preconceito, mas às vezes não é preconceito, é medo. [...] Eu
disse para ela, a gente tem que beijar o pé do morto para perder o medo não
é? Essas coisas assim. (E4).
Então essas coisas são difíceis! O lado emocional é muito intenso! Muito,
muito. O M., um paciente nosso que morreu antes de ontem... São crianças
assim que você sofre, eu sofro bastante! (M3).
Por outro lado, a representação da morte nos dias de hoje, com o avanço das
técnicas médicas e medicamentosas de preservação da vida, passou a ser vista como
um fracasso daquele que cuidava do doente. Deste modo, “a morte já não é um
fenômeno natural e sim, fracasso, impotência ou imperícia; por isso deve ser ocultada.
O triunfo da medicalização é manter a doença e a morte na ignorância e no silêncio”
(KOVÁCS, 1991, p. 81).
É importante, porém, salientar que também se agrega a essas representações
132
preconceitos de profissionais de outras especialidades médicas ou outras categorias da
saúde, trazendo um tom desqualificatório, nas palavras de alguns entrevistados, por
haverem escolhido uma área de “perdedores” (M1). Há um status que confere poder e
prestígio a cura; status que certamente não seria a meta central para os profissionais que
trabalham com crianças e adolescentes gravemente enfermos e com o risco mais iminente
de morte, muito embora o reconhecimento pelos resultados de seus esforços se faça
fundamental. Talvez a proximidade da morte inverta, forçosamente, a hierarquia de
valores por experimentarem, cotidianamente, sua pequenez (KOVÁCS, 1992); (OSÓRIO,
2003).
Tem fatos que acontecem com a gente que assim, tu tentas salvar, a enfermagem
foi feita pra salvar. Tu juras lá, que tu vais salvar todo mundo! (E).
Quanto à incidência de casos de suicídio e tentativa de suicídio, associado ou não à
depressão, em um estudo realizado sobre acompanhamento terapêutico em intervenção a
depressão e a tentativa de suicídio, Estellita-Lins, Oliveira e Coutinho (2006) referem que
o suicídio encontra-se entre as dez principais causas de morte no mundo, sendo uma das
três primeiras causas de morte na faixa etária entre quinze e trinta e cinco anos. Segundo
dados da WHO/OMS (2000), esta estatística cresce vertiginosamente, caracterizando-se
como problema de saúde pública (JUURLINK, 2004).
Os autores colocam que além de mobilizar negativamente sociedade e familiares, o
impacto psicológico do suicídio permanece bastante intenso mesmo para aqueles que não
têm ligação direta com a pessoa que se matou ou que fez uma tentativa de suicídio. Por
todas essas razões, a OMS lançou em 1999 um manual de prevenção intitulado SUPRE
31
(OMS, 2000), direcionado aos diversos profissionais envolvidos na prevenção do suicídio.
Desde Durkheim (2003), o estudo do suicídio não pode excluir aspectos
etnográficos e culturais, nem deixar de considerar a regularidade sociológica do
fenômeno. O suicídio culturalmente sancionado é mais raro nas faixas etárias mais jovens
ou entre idosos, encontrando-se articulado com a questão da violência nos estudos de
antropologia cultural. Aspectos culturais permanecem importantes na sintomatologia do
suicídio. As estratégias de intervenção clínica valorizam progressivamente o ambiente e o
contexto psíquico, assim como determinantes intrapsíquicos acessíveis a intervenções
31
“Suicide Prevention Program”.
133
psicoterápicas e psicanalíticas. Embora o enquadramento clínico seja necessário, a saúde
coletiva tem tematizado estratégias de prevenção com algum impacto. A qualidade da
informação parece ser muito relevante na prevenção do suicídio. Quando pensamos em
promoção da saúde, devemos assumir que intervenções psicossociais à comunidade e à
família, fomento de uma rede social, qualidade e estilo de vida constituem aspectos
imprescindíveis O acompanhamento terapêutico possui um papel relevante na prevenção
secundária e terciária do risco de suicídio (ESTELLITA-LINS, 2001b).
Werlang, Borges e Fensterseifer (2005) em estudo desenvolvido sobre fatores de
risco ou proteção para a presença de ideação suicida na adolescência citam o estudo de
Souza, Minayo e Malaquias (2002), com jovens entre 15 e 24 anos, demonstrando a
incidência de casos de suicídio em onze capitais brasileiras (Belém, Fortaleza, Natal,
Recife, Belo Horizonte, Vitória, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto
Alegre), entre os anos de 1979 e 1998. Todas as cidades estudadas apresentaram um
aumento de seus índices de suicídio durante esse período. Salvador e Rio de Janeiro
tiveram as menores taxas de suicídio, enquanto Porto Alegre e Curitiba apresentaram as
maiores. O suicídio na adolescência torna-se singular, na medida em que, geralmente,
nesta fase do desenvolvimento aparecem sentimentos intensos de baixa auto-estima e
mesmo quadros psiquiátricos de grande risco (SUKIENNIK, 2000).
Atitudes de arrogância e enfrentamento, que procuram demonstrar muita força
interior, na realidade, podem representar um pedido de ajuda, de limites, de carinho, de
expressão de dúvidas e angústias. Werlang, Borges e Fensterseifer (2005) assinalam que
os adolescentes podem adotar condutas deliberadamente danosas à sua integridade e
atravessar toda uma gama de manifestações indicativas de uma patologia, crescendo os
riscos de problemas emocionais, dentre os quais, os sintomas depressivos e a ideação
suicida parecem estar entre os mais preocupantes.
Conhecer esse contexto a partir dos vários pontos de vista que vão compondo sua
totalidade nos permite entender melhor os diferentes significados e sentidos do trabalho
para esses sujeitos.
Kovács (1992), Campos (1995), referem que, diferentemente do século passado,
nossos mortos morrem sozinhos, cercados de aparelhos e tubos e longe dos familiares. A
morte que antes ocorria nos lares foi “transferida” para os hospitais. Essa mudança ao
134
longo das décadas provoca uma mudança também na forma de se perceber e lidar com a
morte. O hospital, especialmente em unidades que assistem crianças, foi tomando feições
de um ambiente que busca a alcova, a intimidade, o acolhimento. À noite, por exemplo,
cuidar de crianças que estão em sofrimento é uma tarefa onde a ambivalência dos afetos
ganha força.
Os fantasmas todos aparecem à noite. Todos de noite. É complicado. [...]. E
quase sempre no nosso plantão ele ficava muito ruim. A mãe até dizia que
era uma coincidência, quando era o nosso ele ficava muito ruim e ele...
Acabou, eu digo, então ele vai a óbito conosco. (E5).
Outro dia a E. ouviu o nome dela “E.” (sussurrando), e ela disse “ai,
alguém está me chamando”. E no outro dia a mãe disse “a menina quer
falar contigo, “E”, ela quer porque quer falar contigo”. Aí a E. disse “tá,
então, tá, eu vou lá, não gosto, mas eu vou”! Porque aqui a maioria não
gosta. (E1).
São profissionais que se vêem invadidos pela tristeza e pelo desamparo dos
enfermos e dos acompanhantes. Não raras vezes tendem a creditar a si, ao “seu lugar”,
algo quase transcendental da ordem do fatídico, do sinistro. Há algumas crianças sem
famílias ou outras que quando as têm nem sempre podem tê-las presentes, tamanha a
gama de dificuldades pessoais, que vão desde o conflito em abandonar os outros filhos em
casa até a falta de recursos para atender as necessidades básicas. Esses profissionais
experimentam sentimentos de profunda tristeza quando sabem que o prognóstico é
reservado ou mal, e mais ainda, quando as crianças vão à óbito. Para alguns, poder ficar
um pouco sozinhos, chorar ou conversar com um colega é uma forma de recompor-se
parcialmente. O espaço criado, “a salinha”, parece funcionar como um ambiente de
contenção desses afetos. Ouso aqui fazer uma correlação rudimentar e parcial com o
conceito usado por Winnicott de espaço transicional
32
. Área intermediária entre a
subjetividade e aquilo que pode objetivamente ser percebido. Área entre o bebê e a mãe
que com o passar dos anos vai se alargando e permanecerá para sempre com ele. É um
campo neutro de experiências, pertencendo ao domínio da ilusão. Um lugar onde não será
contestado e que não terá, igualmente, que justificar LAPLANCHE (1991). Este campo
32
Bleichmar e Bleichmar (1992 p. 228) sobre a contribuição teórica de Winnicott, refere “Esta zona
intermediária da experiência, inquestionada, no que tange a sua pertinência à realidade interior ou exterior
(compartilhada), constitui a maior parte da experiência da criança, e é conservada ao longo de toda sua vida,
dentro das intensas experiências próprias da arte, religião e viver imaginativo, assim como do trabalho criador
científico”.
135
intermediário é o campo onde o sujeito trabalhador, em uma analogia com o hospital no
qual se desenvolveu a pesquisa, pode ficar só e através de sua capacidade criativa,
imaginativa, produtiva do ponto de vista psíquico, se recompor, a sua maneira. Em uma
outra perspectiva teórica, o conceito de estratégias defensivas de Dejours (2000) também
contribui para nosso entendimento na medida em que o trabalhador cria um espaço, em
meio ao trabalho mais extenuante, para parar e ficar só ou com colegas e poder se
recuperar.
[...] eu sou um cara que me apego muito às crianças, sabes, porque são
crianças que vivem aqui contigo dois anos se tratando, três anos, quatro
anos, e de repente tu sabes onde ela mora, onde ela estuda o que ela gosta, o
time de futebol que ela torce... E aí, vai que ela está incluída nesses 30 que
não vão conseguir êxito, que vão obituar, pô! Mas depois de quatro anos, é
como se fosse um ente querido teu, pô! Daí tu tens que dar uma saidinha
pra dar uma choradinha. Ali na nossa salinha do nosso cantinho, a gente ía
lá, ficava 15 minutos, tomava um cafezinho, virava de costas pra porta, não
queria ver ninguém... Ficava ali, para a gente se recompor, não é? Ia lá ao
banheiro, lavava o rosto e voltava pra atender os outros, entendesse? [...]
Têm outros fatores inconvenientes, como a criança que não tem dinheiro
para vir. Crianças que não tem dinheiro para se alimentar, para comprar
lanche. O frio, tu vês que ele está com frio, está com uma blusinha fininha.
Então, é uma coisa que limita até psicologicamente quando tu olhas aquilo
assim. A mim me bloqueia um pouco, entendes? (M1).
A idéia de morte aparece sobre diferentes ângulos, porém em qualquer das
perspectivas encontradas o embate com o sofrimento e a finitude humana se mostram com
toda sua magnitude. E vai além, perceber o quão limitado é o seu poder sobre a saúde da
criança, muitas vezes sobre o controle da dor e da aflição familiar vem junto com a
inequívoca realidade de seu próprio sofrimento KOVÁCS (1992). Os profissionais de
saúde parecem se encontrar em uma gangorra onde ora pendem para uma sensação de
poder ora para a frustração de não ter qualquer controle sobre a imprevisibilidade da vida.
Vivenciam medos infantis de abandono, enfrentando-se com a dor narcísica da finitude
humana (OSÓRIO, 2003).
Um outro aspecto importante que esse estudo provoca como reflexão, a partir do
confronto com nosso próprio espectro frente à morte, diz respeito a morte da dignidade
humana que Cassorla (1991, p. 20) levanta ao referir-se a quantas vezes no nosso
cotidiano, no trabalho, nas ruas, nas desigualdades sociais perdemos a capacidade da
indignação “isso é morte, ou melhor, é suicídio de uma nossa parte humana”. Os
trabalhadores desse estudo, ao revés do trabalho citado, mostraram-se envolvidos
136
sobremaneira com a demanda da totalidade dos sujeitos assistidos, mesmo que para isso
não estejam conseguindo atingir o pretendido no discurso evidenciado.
Eu acho que a grande questão do médico aqui dentro é a seguinte: ele tem
medo de deixar o paciente morrer porque isso apavora a gente, apavora a
gente, a gente morre de medo de deixar que o paciente da gente morra, morre
de medo e é horrível perder o paciente, é horrível perder o paciente. (M7).
É uma coisa doída! Tu lutaste tanto por aquela criança, tu também estás
perdendo! (E1).
É muito difícil, muito difícil. Têm horas que você fica... Eu tive situações de
estar no quarto de uma criança e ter que sair pra não desmaiar. Assim, eu
sentia a energia indo embora! Sentia sair, sair, me sentia sugada, era uma
coisa que me sugava ali! (M3).
De impotência. De impotência e de questionamento em cima de tudo, não é?
Porque a gente não consegue entender. Se o paciente não consegue
entender, nem nós também. Por que tanto sofrimento, por que tanta dor?
(E5).
Uma outra situação mobilizadora de angústias na equipe de saúde no hospital diz
respeito a relação estabelecida com a família das crianças enfermas. Ao receber a
comunicação diagnóstica de uma doença grave e, principalmente, se esta estiver associada
a uma representação social ameaçadora ao equilíbrio familiar, a reação provocada na
família pode ser imprevisível e inclusive levar um período longo para ser assimilada e
compreendida. Nem sempre os profissionais da saúde estão preparados para esse processo
de tolerância e acolhimento. Muitas vezes, mesmo quando a racionalidade lhes indica que
sim, ainda se surpreendem com a “morosidade” dos pais em “se dar conta”. É muito
difícil para esses trabalhadores ter que se confrontar tantas vezes com esse diagnóstico ou
prognóstico, quando não é bom. Nesses casos a sensação é de ser o responsável por esse
sofrimento e o fato de necessitarem ficar dias, ou até meses, relatando detalhadamente o
que interpretam como sua fraqueza acaba gerando mais e mais sofrimento e os coloca em
uma situação de viver “homeopaticamente” seu limite frente ao sofrimento humano.
(a formação profissional prepara) Pra tratar, pra curar, pra vida e acho que
a faculdade tem a ver com isso, a gente não é preparado pra aceitar a
morte. Quando ela tem uma hora que tem que ser aceita, não é? E ainda
mais numa criança pequena que a expectativa de vida dela seria maior do
que um adulto. (M2).
[...] isso a gente vê muito aqui, até o terceiro mês de gestão da doença,
137
sabes? Até o terceiro mês os pais não sabem “Isso aqui é pra tomar, é, mas
o que é? Pra que é que eu vou dar isso? Por que é que eu vou fazer?” Sabes,
eles não conseguem! Uma vez uma mãe só acordou quando ela deu o
remédio de um mês em uma semana! Ela disse “Meu Deus, eu estou
matando o meu filho!”. Ela simplesmente se jogou na parede - uma mãe,
toda pequeninha, toda magrinha- “meu Deus, eu estou matando o meu filho!”.
Sabes? Nossa, essas coisas que me dá vontade de proteger, de dizer “não,
calma, a gente consegue! A gente vai dar soro, a gente vai dar isso, vai dar
aquilo” E assim “Não, eu fiz tudo errado!”. Isso dói muito, isso dói muito! E se
tu pensas na tua vida, quantas vezes tu fizeste isso? Deixou o teu filho de castigo
e depois doeu só em você e não nele? É, é, “complications”! (E1).
Não conseguem entender porque que uma mãe desiste assim do filho, não é?
Ao vê-lo doente. E porque não? Ele está doente, ele vai morrer
(sussurrando), por que não desistir? Sabe, é uma loucura, loucura
generalizada! A família toda fica assim. (E1).
Autores como Raimbault (1979) e Torres (2002) observam que na situação de
morte há um sentimento profundo de perda por parte dos pais que vivenciam o luto com
um misto de emoções, que podem ir do desespero e da raiva à recuperação e restituição. Se
sentem morrendo junto com os filhos e, nos momentos finais, essa dor da morte pode levá-los
a se afastar, como parte do luto antecipatório, assim como a criança que também pode afastar-
se dos pais por sentir que os faz sofrer e mesmo se aproximar de alguém da equipe que esteja
mais disponível afetivamente. Tais emoções também são encontradas nos profissionais de
saúde quando estabeleceram um vínculo importante com as crianças enfermas e os familiares.
A raiva faz parte do luto. Raiva pela impotência diante da morte, pela tristeza da perda, do
abandono sofrido pela criança e, ademais, culpa por sentirem raiva. Às vezes dirigem essa
raiva um para o outro, às vezes para a equipe de saúde que cuida da criança.
Nesse sentido, o que pensar quando os profissionais de saúde, além do sentimento
de perda iminente do vínculo com cada criança, ainda tem que lidar com estes aspectos de
ser a pessoa que faz a criança sofrer? Essa é uma importante fonte de sofrimento para
essas equipes, cotidianamente.
É trabalhar com dor, com morte, com sofrimento. Não tem nem um pai que
goste da gente, odeiam a gente. Por quê? Porque a gente lembra a eles que
os filhos estão doentes. (P2).
Então até quando a gente recebe um sorriso nós nos sentimos assim, no
auge. Porque sorriu, porque abanou. Porque depois a gente passa a ser uma
ameaça para eles. Como é que eles vão entender aquela tia que só entra no
quarto pra fazer sofrer. (E5).
138
Raimbault, (apud TORRES, 2002), coloca que há um pedido de proteção e de
oportunidade de reparação que a mãe faz ao médico, que não se refere apenas e
necessariamente à cura. Reparação para a mãe e proteção para ambos, contra os impulsos
de morte. Entendo que dependendo do significado, da mobilização que haja nesses
profissionais, igualmente se sentem necessitando proteção contra os impulsos de morte e
precisando “da cura” pela reparação de seus impulsos.
Ainda a mãe da C. falou assim “ai doutora, como essa doença deforma, não
é? Não deforma só a criança, mas deforma a vida da gente. (M3).
O familiar cobra do médico, cobra de Deus, cobra de nós funcionários,
muitas vezes é aquela revolta, não é? (E5).
Aí o menino dizia “pára (falava seu nome), pára que eu não agüento mais”.
E eu também não agüentava mais. [...] Quando eu cheguei na portaria de
ponto, fui bater meu ponto, o pai estava lá aos prantos. Claro que tu vais
chegar perto, não é? Tu brigaste com a criança na outra tarde todinha, aí
ele disse assim “(cita seu nome), nós maltratamos muito o meu filho, mas ele
morreu”. Ele não estava dizendo isso dele, ele estava dizendo isso de mim.
Aí eu cheguei lá em cima, e chorei tudo o que tinha pra chorar e botei a
trabalhar. Só que assim, eu não conseguia me conformar com aquilo. Eu, eu
sei que eu desci, pra ir embora ao final da tarde, eu fui andando e quando
eu me vi estava em casa. O caminho todo eu fui chorando, o que aconteceu
durante o dia também eu não lembro. [...] E eu fui, eu cheguei em casa, e
acho que foi instinto, o cheiro, o cheiro me levou pra casa. (E1).
Ainda na busca do diálogo com autores que vem procurando entender os
determinantes do sofrimento em contextos de perdas estendo seus estudos, acerca dessas
experiências com pais, para entender o processo das vivências de culpa a partir dos
trabalhadores entrevistados em meu estudo. Miles & Demi (1983-1984), citados por
Torres (2002), identificam quatro fontes potenciais de sentimentos de culpa nos pais:
Culpa por haver causado a morte (eu não percebi os sintomas logo...);
Culpa em função do papel social ou cultural (se baseiam no mito cultural
delegado aos pais como seres super humanos – culpa por terem se zangado
com os filhos, por não terem passado mais tempo com eles...);
Culpa moral (morte como punição por haverem violado algum padrão moral,
ético ou religioso...);
Culpa por ter sobrevivido (resultante da violação de uma ordem natural, isto é,
os pais devem morrer primeiro).
139
Entendo que também esses trabalhadores mobilizam sentimentos de culpa frente à
criança e aos acompanhantes, dada a natureza ambivalente das relações que se
estabelecem nesse setting.
Participar das atividades corriqueiras das unidades observadas me permitiu
experiências intensas. As falas, na grande maioria das vezes, confirmavam as observações
realizadas. Houve uma situação, por exemplo, em que acompanhei procedimentos de
punção lombar em um cenário indescritível entre o médico, o técnico de enfermagem, a
mãe, a criança deitada em uma maca e eu. A cena vivida foi de tamanha dramaticidade
que me envolveu intensamente, deixando-me impactada. Pode ser gratificante e reparador
o impacto subjetivo de uma ação, mesmo quando o trabalhador se percebe causando
sofrimento a uma criança doente, se é visualizado um retorno da saúde, um sentido claro,
metas realizáveis e resultados esperados e possíveis. Isto devolve o sentido e a identidade
do trabalho ou, do contrário, é uma fonte de frustrações e dores. Como o trabalhador vai
lidar com esta realidade vai depender dos recursos disponíveis, tanto dele próprio quanto
do ambiente, dos demais trabalhadores ou das condições e organização do trabalho
(DEJOURS, 2000). As experiências vividas como parceiros da dor, que coliga diferentes
categorias profissionais a familiares e acompanhantes, além do principal ator dessa cena, a
criança enferma, se manifesta nas entrevistas colocadas e evidencia o que não deve ser
dito, o proibido e, também, o mais revelador.
Daí assim, todo mundo constrangido, todo mundo brigando, a gente
brigando pela vida e ele dizendo a frase “tu sabes que eu vou morrer”
Sabes, são palavras assim que arrasam qualquer coração! Se o teu filho diz
que ele não quer mais viver, ou que ele vai morrer, que depressão uma mãe
vai ter? A total! A total, a fundo do poço mesmo! (E1).
Então, tu estás com o paciente, o paciente dizer para ti - eu estou morrendo,
oh a minha perna agora está dura, a minha barriga agora ficou dura, agora
eu vou... Agora eu não consigo mais enxergar, estou cego. Isso aí te deixa...
(E4).
Se entendermos que os profissionais de saúde fazem parte dessa intrincada trama
de emoções que permeia o ambiente e a dinâmica de trabalho em uma instituição
hospitalar, que a fronteira desses espaços da intersubjetividade é sempre tênue e muito
complexa, talvez seja favorecido o desenvolvimento de um trabalho a partir da escuta de
todos os atores. Permitir e estimular que os pais possam participar do tratamento e dos
140
cuidados ao filho doente, assim como compartilhar e colocar-se junto em uma escuta
terapêutica, talvez contribua para romper o silêncio da dor e da culpa que tanto encarcera
e mutila a vida. Penso que possa ajudar a resignificar a vida destas famílias e a aumentar
as possibilidades de um trabalho real, reparador de vínculos para os trabalhadores da
saúde.
CAPÍTULO V - SOFRIMENTO INSTITUCIONAL: QUAL É O LIMITE DA SAÚDE?
Este genérico “modo de viver”, determinado historicamente, definido
e diferenciado socialmente, esculpe o corpo dos homens e se expressa
em modos de adoecer.
33
Dejours (2000), ao estudar a psicodinâmica do trabalho coloca a questão do
sofrimento em uma posição central, mostrando que o trabalho tem efeitos poderosos sobre
o sofrimento psíquico do trabalhador. O trabalho pode contribuir para agravar o
sofrimento psíquico ou para transformá-lo em prazer, podendo, em certas situações,
representar um diferencial importante na preservação da saúde dos que trabalham em
relação àqueles que estão fora desta produção.
Em algumas situações analisadas o trabalho mostrou-se, de modo ambíguo, tanto
como motivo de vivo desgaste emocional como também fonte de significados para a vida
dos trabalhadores. Obviamente que não pode ser negligenciada a importância e o impacto
das circunstâncias complexas de todos aqueles que vivem a precarização do trabalho, o
desemprego, a aposentadoria e seus reflexos – que mais ainda demonstram este duplo
potencial do trabalho. Ao mesmo tempo em que o trabalho ganha expressão por
possibilitar satisfação, colaborar para resignificar o próprio sujeito e, assim, cumprir um
papel de mediador da emancipação, paradoxalmente, se expressa como fonte de
sofrimento e de grandes dificuldades vividas que, por isso mesmo, mobiliza diferentes e
amplas reivindicações por parte dos trabalhadores.
Mas na verdade eu sempre vi o meu trabalho como tábua de salvação pra mim!
Acho que muitas vezes na vida, eu flertei com o perigo. Mal ou bem, o meu
trabalho sempre foi uma referência para mim. Eu não sei se o meu
adoecimento... Se o trabalho pra mim é recurso de saúde, de resiliência! (M6).
Não foram poucos os exemplos em que o sofrimento mostrou-se como uma
condição da própria vida, ou, ainda, em uma estreita ligação com experiências de
33
JACQUES, G. 2003, p.101.
142
conflitos; estes, por sua vez, vistos como inalienáveis de todo contexto institucional
“humano”. Kaës (1998) ressalta que o sofrimento é um dado estrutural de nossa vida
psíquica, cindida e primitivamente insatisfeita. Assim como o sofrimento remete a
configuração psíquica do sujeito singular é, também, inerente ao próprio fato institucional,
a uma determinada instituição e suas particularidades, sua estrutura social e sua estrutura
inconsciente. É desse intrincamento que vem a fonte do sofrimento institucional. Podemos
dizer, com o autor, que a instituição não sofre, enquanto objeto psíquico comum, mas
sofremos de nossa relação com a instituição, sofremos de nossos vínculos com a
instituição. Então, nessa perspectiva se pode concluir que a psicopatologia do vínculo não
implica, necessariamente, a de seus sujeitos constituintes. Em outras palavras, o sujeito
pode tornar-se doente em seu vínculo com determinadas instituições e em determinadas
circunstâncias.
Para Bleger (1984) a instituição, além de instrumento de organização, de regulação
e de controle social, é também instrumento de equilíbrio e regulação da personalidade dos
sujeitos. Assim, da mesma forma como a personalidade se protege organizando
dinamicamente suas defesas, parte de suas defesas se cristalizam nas instituições. Nessa
concepção nas instituições acontecem os processos de reparação e de defesa contra as
ansiedades psicóticas presentes na dinâmica das próprias instituições, ou seja, todos os
atores, trabalhadores e usuários, estão envolvidos nestes processos.
Os dados da pesquisa levaram a resultados, em sua maioria, confirmatórios das
premissas colocadas sobre a vivência do sofrimento institucional. Os aspectos
identificados e eleitos para a composição desse capítulo referem-se a três pontos
principais. Primeiramente os achados levaram aos vínculos estabelecidos por esses
profissionais na diversidade de suas relações de trabalho, especialmente com a criança
doente e seus acompanhantes; a partir disso, ao sofrimento vivido no dia-a-dia de
trabalho, ao adoecimento silencioso que se vai estabelecendo, quase sem estranheza, pelos
próprios sujeitos e pela instituição e, à precariedade e insuficientes cuidados e assistência
à saúde desses trabalhadores. Por fim, como contra partida, chegou-se às estratégias de
defesas construídas, individualmente ou coletivamente, que podem contribuir ao
desenvolvimento e manutenção da resiliência, nesse contexto.
Parece importante nesse momento, no qual a subjetividade do trabalhador da saúde
143
se torna evidenciada, que seja explicitado o entendimento dado ao termo afetividade nessa
análise. Dejours (2000) refere Henry (1965) para definir o sentido de sujeito que
empregou em seus estudos. Sujeito para ele é “quem vivencia afetivamente a situação em
questão”. Aqui faço uso do termo afetividade, trazido por Dejours (2000, p.29) para
elucidar a subjetividade do sofrimento e do prazer, a propósito do estudo realizado.
Afetividade é o modo pelo qual o próprio corpo vivencia seu contato com o
mundo. A afetividade está na base da subjetividade. A subjetividade é dada,
acontece, não é uma criação. O essencial da subjetividade é da categoria do
invisível. O sofrimento não se vê. Tampouco a dor. O prazer não é visível. Esses
estados afetivos não são mensuráveis. São vivenciados “de olhos fechados”. O
fato de que a afetividade não possa jamais ser medida nem avaliada
quantitativamente, de que ela pertença ao domínio das trevas, não justifica que se
lhe negue a realidade nem que se desprezem os que dela ousam falar de modo
obscurantista. Ninguém ignora o que sejam o sofrimento e o prazer, e todos sabem
que isso só se vivencia integralmente na intimidade da experiência interior. Tudo
quanto se possa mostrar do sofrimento e do prazer não é senão sugerido. Negar ou
desprezar a subjetividade e a afetividade é nada menos que negar ou desprezar no
homem o que é sua humanidade, é negar a própria vida.
Dada essa premissa básica podemos entender as vivências subjetivas verbalizadas
por significativo número dos atores da pesquisa. Por exemplo, quando um entrevistado (a)
se refere a falta de capacitação de alguns profissionais para lidar com perdas e com lutos.
No caso destacado se expressa uma critica à formação técnica da maioria dos cursos de
medicina, pelo pouco desenvolvimento de competências para o enfrentamento de
situações onde haja dor e a iminente presença da morte. O foco da discussão é a
comunicação diagnóstica em quadros graves e em situações nas quais foram esgotados
todos os recursos da equipe, mas fica evidente um sofrimento intenso de ambos os
profissionais, daquele que critica e do que é alvo da crítica.
Tu podes gostar de estudar a teoria, porque no livro não estão escritas as
emoções! O problema é que as pessoas estão acostumadas a tratar o tumor!
O tumor não chora, o tumor não tem medo, o tumor não tem esperança. Ele
simplesmente age! [...] É por isso que é muito mais fácil tu tapares os
ouvidos e (dizeres) “eu não quero falar pra ela que é grave, eu não preciso
falar. Vamos ver até onde vai essa situação”. Só que eu não estou tratando
o tumor, eu estou tratando uma pessoa! Estou tratando uma família inteira
junto. [...] Quando morre (uma criança), morre um pedaço de cada um,
entendes? (E3).
Estas diferenças de entendimentos e de posturas, quando não podem ser
explicitadas e acolhidas na equipe - como formas distintas de se lidar com problemáticas
144
comuns ao grupo de trabalho e como possibilidade de construção de alternativas - gera um
conflito que pode trazer rupturas ao funcionamento de toda equipe de saúde. O que
aparece ao primeiro olhar, como simples conflito de posições pautadas em diferentes
concepções do fenômeno, pode, sob uma observação mais atenta, aproximar os extremos
aparentes sob uma lógica semelhante - a do compromisso para com a criança doente, com
um ideal de trabalho e com a defesa do direito universal à saúde e ao cuidado na
perspectiva de responsabilidade pública. Sob duplo impacto, tanto do desejo de curar a
dor e a doença das crianças, como da tristeza e sofrimento pela impotência frente a algo
que não se pode controlar, diferentes ações são mobilizadas assim como também diversas
manifestações das singularidades dos sujeitos. Lastimavelmente, quando não se pode
compreender os fenômenos que produzem as diferenças (identificações, posições, formas
de ser e agir) estas passam a significar a negação do outro - uma ameaça ao eu -
especialmente em vivências com tamanha carga emocional (OSÓRIO, 2003). Então,
cresce o risco de transformar o que poderia ser uma oportunidade de criação de
conhecimento pautado na diversidade dos saberes (JAPIASSÚ, 1976) em obstáculo ao
crescimento e a saúde do grupo.
A formação da grande maioria dos profissionais da área da saúde ainda hoje vem
reproduzindo o modelo médico biologicista, pautado na dicotomia do conhecimento que
separa mente e corpo, razão e afeto. E mais, como coloca Codo (1994) ao referir-se a
perda de controle do processo de trabalho pelo trabalhador, “o gesto se fragmenta levando
com ele o autor e, o trabalho como mercadoria expulsa o projeto e o sonho”. Inúmeros
estudos vêm colaborando para se entender criticamente o processo de formação
profissional, em especial no campo da saúde. Zimerman (apud MELLO FILHO, 1992),
ao falar na formação do profissional médico, coloca alguns atributos necessários à
formação desse profissional, que me parecem imprescindíveis a todos os profissionais da
saúde. Dentre eles enfatizei alguns por entender que contribuem à análise desenvolvida
nesse estudo.
Capacidade de empatia: é uma capacidade da área afetiva e significa poder
colocar-se no lugar do outro, do doente, do colega, conforme a etimologia da palavra
indica em (estar dentro) + pathos (sofrimento). No entanto é preciso estar atento para que,
em nome da empatia, o profissional não dedique um extremo desvelo ao enfermo – quase
145
sempre a serviço de sua própria ansiedade – podendo “levá-lo a borrar os limites
indispensáveis” ao exercício dos objetivos de seu trabalho favorecendo uma confusão de
papéis e de funções. (ZIMERMAN, 1992, p. 68)
Capacidade de ser continente: o termo continente vem do latim contenere
(conter). Trata-se da capacidade do profissional de saúde poder conter – como faz uma
mãe tranqüila com seu filho pequeno - as angústias, as fantasias e as necessidades de seu
doente aflito, especialmente aquelas que acompanham as vivências de morte e as
agudizações das crises existenciais. Igualmente importante é que este profissional possa
ser continente de suas próprias angústias, dúvidas e do “não saber”. A falta dessa
capacidade no médico é responsável, para o autor, pela atitude que se caracteriza, por
exemplo, nos excessos de medicação, de encaminhamentos, de pedidos de exames, por
uma dedicação exagerada ou por algumas formas de fugir do doente.
Capacidade para se deprimir: todas as pessoas têm virtudes e defeitos,
limitações, alcances, cometem erros, acertos. A prática para o profissional de saúde é seu
maior campo de aprendizagem, principalmente a partir das frustrações, desde que tenha
condições de se deprimir, ou seja, reconhecer e se responsabilizar por suas falhas e
limitações, sendo capaz de utilizar essas experiências de frustrações em seu aprendizado.
No entanto, quando se tem traços caracterológicos exageradamente paranóides ou
nascisistas, no primeiro caso busca-se sempre ver a responsabilidade nos outros e, no
segundo caso, há a convicção de que o acerto e a verdade sempre lhes pertencem,
respondendo com intolerância a qualquer contestação ou para com situações de
enfermos que não melhoram rapidamente. “Uma boa elaboração depressiva abre
caminhos para a discriminação, individuação, autonomia, reflexão e criatividade”
(ZIMERMAN, 1992, p. 68).
Capacidade de comunicação: William Motsloy (apud ZIMERMAN,1992, p. 68)
cerca de cem atrás escreveu “Quando o sofrimento não pode se expressar através do
pranto, ele faz chorar outros órgãos” assinalando, ademais da sua importância, que a
comunicação humana não se dá unicamente pela via verbal. O autor chama a atenção para
alguns distúrbios da comunicação para os quais os profissionais de saúde precisam estar
atentos sob o risco de se estabelecer um diálogo de surdos. Como por exemplo, não saber
escutar (diferente de ouvir que é uma simples função fisiológica); saber ver (bem mais
146
complexo do que olhar); ter a mente saturada por preconceitos (pré-conceitos); incorrer no
vício chamado por Balint de “função apostólica” (categorizar os doentes por julgamentos
morais e padrões de comportamento); haver envolvimento contra-transferêncial com
perda na delimitação de papéis; uso de palavras e jargões técnicos; dificuldade em lidar
com a verdade, que diz respeito a capacidade do profissional em ouvir, reconhecer e
comunicar verdades penosas.
O reconhecimento: refere sua proposta da existência de um quarto vínculo
(além do vínculo do conhecimento introduzido por Bion), a partir do qual se torna
possível perceber o quanto cada indivíduo necessita, de forma vital, ser reconhecido
pelos demais do grupo como alguém que, de fato, pertence ao grupo (é o fenômeno
grupal conhecido como ‘pertencência’) “e também alude à necessidade de que cada
um reconheça ao outro como alguém que tem o direito de ser diferente e emancipado
dele” (ZIMERMAN, 1997, p. 39).
Dessa forma os atributos colocados poderão auxiliar como pressupostos
orientadores, sabendo-se que o processo do conhecimento passa, necessariamente, pela
construção e experimentação e que a prática tem suas leis e arranjos próprios. Assim,
dentro das possibilidades permitidas nas relações estabelecidas entre o que se pretende e o
que é possível, evidencia-se a tênue fronteira entre o eu e o outro.
Mas eu acho que têm profissionais aqui para os quais (o vínculo) atrapalha.
Seguramente, atrapalha bastante. É pelo próprio envolvimento, parece que
a pessoa trás aquilo pra ela, não gerencia a problemática, não administra
aquilo, parece que aquilo é dela. Aí realmente são dois postes no banhado,
não é? Um não sustenta o outro. Eu acho que é uma coisa (do âmbito)
individual o modo de utilizar esse relacionamento. Tanto ele pode ajudar
quanto pode atrapalhar. (M4).
Teve uma paciente nossa que, na verdade era paciente (de outra unidade)
que faleceu três meses atrás, a gente tinha uma relação muito boa, eu
fiquei... Eu fiquei sonhando direto com ela depois! Acordava de noite, às
vezes não conseguia dormir. Fiquei por um bom tempo assim, fiquei muito
(envolvida)... (M3).
Conforme o paciente... tem paciente que, por mais que a gente não queira
levar problema pra casa, de repente te pegas pensando, sais daqui
pensando, chegas em casa fazes um comentário. Ou, às vezes estou
sonhando, estou dormindo e acordo sobressaltada: “o que é que está
acontecendo com Fulano?”. Quantas vezes... E acontece. Acontece
realmente. É um ser humano, não tem como... (E6).
Meu Deus, meu Deus, meu Deus! É não saber o que é que é da gente (e o
147
que é deles). Acho que aí mistura muito, eu pelo menos sinto
particularmente isso. Eu acho que mistura muito sabes? (P1).
É interessante observar que mesmo percebendo o sofrimento ao qual estão
expostos, através de uma vinculação tão intensa com as crianças doentes e seus familiares,
ainda assim valorizam o significado da qualidade do relacionamento estabelecido para o
resultado do tratamento. Por outro lado, parece também se sentirem como algozes de sua
própria condição.
Eu acho que para a criança facilita quando o profissional de saúde sabe
detalhes da vida da criança, (quando) procura se relacionar com a criança,
com a família, conversar, por telefone mesmo. Essas crianças evoluem
melhor, respondem melhor à droga, aceitam melhor o tratamento assim,
com maior facilidade. Agora quando o profissional médico se coloca muito
assim, na defensiva, sabes? Eu noto que a coisa não vai bem, não. Essas
crianças às vezes não respondem bem. Quer dizer, pode ser que eu seja um
bobão falando besteira aqui, mas, é o que eu tenho observado. (M1).
Facilita (o vínculo) no sentido de que tu entendes a criança de uma maneira
integral, podes trabalhar melhor com isso, não só no aspecto da doença
física. E ao mesmo tempo te dificulta porque é impossível tu não te
envolveres afetivamente com o paciente. Daí vem a questão de perda no
caso de uma recaída, quando tem um óbito, não é? Infelizmente é impossível
separar, tu acabas sofrendo junto. Eu acho que ele tem duas vias, tanto
ajuda quanto dificulta. Mas, eu acho que apesar do sofrimento ele te ajuda
mais do que dificulta, acho que a gente sofre mais com isso, mas é a
maneira que acho correta de tratar o paciente. Que ele seja integralmente
tratado. Então, pra isso é preciso um contato maior e um acompanhamento
interdisciplinar mesmo. (M2).
Porque se tu estabeleces o vínculo afetivo e depois não sabes o que vai dar
no outro lado, que seja de perda... Tu realmente não consegues mais
levantar. Esses pacientes que eu relato que fui visitar são pacientes muito
significativos pra mim. Eu realmente, eu precisava estar me despedindo
deles. (E1)
Ao serem questionados sobre o sofrimento no trabalho, sobre o adoecimento ou
sobre o que achavam mais difícil de enfrentar no dia-a-dia do trabalho as falas eram quase
ininterruptas. Muitas vezes emocionadas, com relatos doídos, com lágrimas, com detalhes
tão vivos como se houvessem voltado às cenas vividas.
Agora, um sofrimento que eu sei que não vai ter um retorno satisfatório, me
dá essa sensação de impotência. Acho que é o que mais pode me levar a um
ciclo vicioso e manifestar alguma coisa, orgânica, uma depressão,
inapetência, uma anorexia, às vezes uma palpitação[...] (M3).
148
E mais aquele sentimento que a gente tem em cima daquela pessoa que foi
batalhado tanto em cima, foi feito tanta medicação, houve tantos cuidados,
tanto esforço da parte médica, da parte da enfermagem pra nada, bem dizer,
porque se o paciente vai a óbito parece que aquilo tudo então se perdeu... (E5).
A maior dificuldade aqui dentro acho que é lidar com a não vida. Olhar e
ver uma criança que morreu, sem vida. Com a não vida, com a morte física,
com a dor física. Com a falta de esperança. Com a morte da expectativa. Eu
vou te dizer, mas tu não vais saber o que é isso! Ver a não vida é muito
forte. É muito difícil. Se a gente tivesse uma proteção[...] (P5).
Dejours (2000) discute a questão da percepção do sofrimento alheio e em como
esta provoca um processo afetivo nos sujeitos envolvidos. Assinala que perceber o
sofrimento do outro mobiliza emoções e associações de pensamentos cujo conteúdo
dependerá da história particular do sujeito que percebe, fazendo emergir sentimentos de
culpa, de agressividade, de satisfação, entre outros. O sujeito pode, inclusive, não
memorizar a percepção desse sofrimento do outro, não tendo a consciência dele por um
processo de negação defensiva diante da emoção que lhe provoca. Esse é um tema
particularmente interessante nessa análise por tratar-se da realidade dos atores da pesquisa.
Nigro (2004), em sua experiência com crianças e adolescentes hospitalizados, observa que
a doença e o doente grave e deteriorado fisicamente, o doente terminal, o doente crônico,
trazem para o profissional que o está atendendo uma imagem futura de cada um e de si
mesmo doente e deteriorado, duplicado no enfermo. Essa imagem retorna de fora para se
impor com força de realidade em um tempo que não distingue passado, presente e futuro.
O profissional é invadido pela possibilidade de estar no lugar do outro e na situação em
que esse outro (enfermo) se encontra, tornando presente um futuro ameaçador. Coloca
Nigro (2004, p. 104),
[...] o espelho mostra nossa imagem por inteiro, mas como um outro, ‘o paciente
internado’. Assim, acompanhando o pensamento freudiano, posso dizer que o
recalcado volta de fora, favorecido por uma ‘impressão exterior’ (o paciente), que
reaviva complexos arcaicos aparentemente ‘superados’. Tánatos, o medo da
morte, que como todo sentimento primitivo foi reprimido, retorna em
determinados momentos com características do assustador e estranho.
Um outro aspecto chama a atenção, quanto ao dano ao qual está exposto este
trabalhador. Muitas vezes, nem mesmo ele identifica o crescente grau de amargura e
tristeza ou as implicações destas em sua saúde. Outras vezes, ainda, se encontram em
149
situações de risco químico para o corpo. A forma insidiosa como vão se instalando e se
ampliando estes riscos parece tornar o trabalhador incapaz de identificar seus limites,
naturalizando uma constante fronteira de temeridade, como bem demonstra o profissional
entrevistado.
Eu tenho certa paixão pela UTI, sabes? Eu acho que eu acabei me estressando lá
dentro, entrando em depressão séria, mas... Assim, a gente perdia muito menino, e
eu acabei... Eu achava que não! Eu achava... Até eu ir pra psicóloga e dizer isso,
isso, isso e aquilo. E ela dizia “tu tens que sair, tu tens que sair”, e eu “mas
não é aquilo lá que está me fazendo mal”. Sabe, era uma coisa assim que eu
achava que não. Achava que eu era poderosa, não é! Doía pé, doía cabeça,
doía cérebro, doía tudo no final do dia!! Mas, eu queria voltar no outro dia.
Eu queria! (risos). (E1).
Têm profissionais que trabalham aqui no nosso meio, por exemplo, quem prepara
a droga, ou quem usa a droga ali para aplicar no paciente, ele está inalando
aquela droga. Ele provavelmente vai ficar doente por um motivo desses de
preparar a droga, ou de usar a droga sem a máscara, aí já é um erro dele. Ele
devia usar máscara também porque esses gases são muito voláteis, não é? Então,
às vezes ‘eu posso estar com febre, porque a minha quantidade de leucócitos
diminuiu no sangue, é como se fosse um paciente portador de AIDS. E eu não sei,
porque eu não fiz um hemograma para controlar. Mas, é porque eu usei muito
essa droga durante alguns meses sem parar e posso ficar doente, pegar uma
pneumonia, uma diarréia infecciosa, uma meningite’. (M1).
Os limites parecem decisões individualizadas; decisões produzidas na confluência
e nas oscilações entre poderosos desejos humanistas e sentimentos de impotência e
fracasso. De outro lado, a percepção inconsistente e flutuante dos limites manifestada na
instituição, aparece nos meandros de um sistema de saúde que não demonstra possuir a
necessária dimensão do depauperamento da saúde desses trabalhadores. Os sintomas do
adoecimento parecem astuciosos, mesmo à instituição, como tão bem nos mostram Bleger
(1984) e Osório (2003) em seus estudos. A instituição também adoece ao deixar de
cumprir suas finalidades como lugar igualmente de proteção e de reparação aos
profissionais da saúde.
Se não puder cumprir os objetivos do teu trabalho. Quer dizer, você vai até
certo ponto, depois começam uma série de dificuldades ou complicações,
pedras no caminho. Então, por todas essas coisas que nós já conversamos,
vai dificultando. Isso leva a esse adoecimento, que pode ser assim, uma
indiferença, a pessoa não se empenha mais porque acha que não adianta,
não é? Ou ela se torna reativa, negativamente, se desestimula. E isso aí, eu
acharia que a causa maior estaria nas carências da instituição, nas
dificuldades, não é? Na questão da administração, nas políticas de saúde,
na possibilidade de acesso a coisas que se precisa e não se dispõe. Vai
desmotivando também. Porque o sentimento de impotência também estaria
150
presente nessa situação. De dificuldades, de relacionamento. Às vezes a
sensação é que não adianta, não há mais o que fazer e melhor é se isolar,
tocar a vida mais individualmente, não apostar mais no trabalho conjunto...
“Por que eu estou me incomodando aqui se eu não consigo fazer o que eu
quero?”. Então, eu vou ser funcionário público, cumprir o meu horário. Se
estiver indo bem, se estiver indo mal, não é problema meu. Então aí pessoa
deixa de se envolver, deixa de contribuir. (M4).
Dentre as situações vivenciadas há as que denotam gradativo desinsvestimento na
importância do trabalho como fonte de gratificação. Muitos trabalhadores trouxeram
situações semelhantes, de desistências motivadas pelas freqüentes frustrações com os
colegas, com a organização do trabalho, com a falta de reconhecimento, com a descrença
em um trabalho de equipe integrado. Bleger (1984) chama a atenção para o cuidado com a
esteriotipia institucional que acaba por esvaziar o sujeito e o sentido de seu trabalho.
Eu acho que essa falta dessa visão de equipe é uma coisa que atrapalha. É
uma unidade de clínica médica a nossa não é? Então internam pacientes
que não são nossos. Tem patologias clínicas que não são de alguma
especialidade, por exemplo, uma pneumonia pode até internar com a gente,
mas uma pneumonia grave a gente supõe que o pneumologista vai ver, assim
como o cardio, como o nefro. Então internam pacientes da ortopedia, da
cirurgia... Então no início também eu tentei participar disso, tá? Estava ali
o guri internado porque tinha amputado um dedo, num trabalho, ele estava
trabalhando com uma máquina lá e tinha amputado o dedo. Pro cirurgião
tudo que interessa é a reconstrução do dedo, assim. Enquanto que eu ia e
tentava fazê-lo se interessar ou tentava interferir de alguma maneira,
querendo saber porque ele estava trabalhando, quais eram as condições de
trabalho dele, se ele estava na escola, se não estava, coisas da vida dele [...]
eu atendia esse paciente também e tentava fazer anotações no prontuário,
esperando que isso provocasse algum tipo de interesse, de resposta e tal,
mas isso nunca aconteceu também, sabes? Então também assim, eu sou
altamente adaptável. Tudo bem, eu não vou brigar! Isso que eu digo que eu
queria brigar mais, por algumas coisas, eu queria ser mais ambiciosa, mais
persistente talvez. Mas não assim. Ah, tá, não quer, tudo bem! Com o passar
do tempo, o paciente que é da (cita a unidade), às vezes eu já não sei nem o
nome! (M6).
Aparece frequentemente entre profissionais de saúde, em contextos como esse,
uma postura ambivalente de amor e ódio face às situações de frustração, nas quais sentem-
se coagidos, impotentes frente às dificuldades do percurso. Kaës (1998) quando refere o
processo de institucionalização dos vínculos e das especificidades dos vínculos
institucionais coloca três grandes princípios organizadores. Aponto aqui para a
regulamentação dos desejos, proibições e intercâmbios onde a instituição tem por
preceito produzir e fazer reinar a ordem e o controle social para possibilitar a passagem da
151
natureza à cultura, através da domesticação das pulsões e da humanização das paixões
representada pelo sexo, pelo inconsciente, pela morte. Em outras palavras controlar todas
as paixões, o ódio, o amor, o medo, a inveja. Esses profissionais, em momentos de intenso
dano físico e emocional, expressam sentimentos de culpabilização a que parece juntar-se a
idéia de haver falhado, corroborando para a confirmação de seus “erros” frente às metas
da instituição.
É o pessoal de saúde e isso é uma das razões de adoecimento, não é? É que
ele é pára-choque. Parece que você que está atendendo é o culpado da
situação. (M4).
Não dá pra explicar! Não dá pra explicar! E vem uma sensação de
impotência muito grande, e eu não consigo às vezes separar isso. Quando eu
chego em casa, eu tenho que separar, mas às vezes eu vejo os meus filhos e,
graças a Deus, estão ótimos. Então você sabe que está com um paciente seu
que está morrendo e você ali em casa feliz com os seus filhos, não é? Você
não tem culpa disso, porque você fez seu trabalho! Mas às vezes me dá uma
sensação tão de egoísmo. (M3).
Eu sinto que perdi tudo. Eu não consegui nada com aquela criança. Eu fui
um inútil, então para mim a morte é a pior situação. (M1).
Codo (1988) refere a lógica individualista e a ideologia do sucesso e do fracasso a
ela associada, deixando a sorte aos indivíduos. Nessa perspectiva a doença se aloja devido
a fraqueza individual e o adoecimento se instala ou remite devido a vontade de cada um e
não como uma possível implicação do trabalho (JACQUES, 2003; CAMPOS, 1995 ).
Sob outra faceta desta mesma lógica, “o sistema” (entidade) passa a ser visto
como uma máquina esmagadora que não lhes permite saída, impondo a adoção da
perspectiva do vitimado, como em alguns casos observados. No entanto, alguns sujeitos
parecem conter uma capacidade pessoal em lidar com os obstáculos e as constantes
frustrações desse cotidiano, buscando freqüentemente alternativas criativas, apoiando-se
nos vínculos, apostando no trabalho de uma forma quase imbatível. Outros se
sensibilizam e se fragilizam a ponto de só poderem exercer seu trabalho a um alto custo
para sua saúde, mostrando desistência e descrédito na superação dos problemas
enfrentados. Infante (2002) confirma os dados observados nessa pesquisa a partir de seus
estudos, ao assinalar que também são significativos os aspectos individuais no
desenvolvimento da resiliência. Em muitos momentos nos quais observei as correrias para
buscar material, o desânimo quanto a mudanças nas relações de trabalho ou nas vivências
152
de luto por perda de uma criança, me perguntava, com Dejours (2000), como não
enlouquecem? Todavia se a instituição, os gestores, as políticas, enfim, os atores que
fazem a organização do trabalho no setor saúde não estiverem sensíveis a esse processo
adoecedor que vem se instalando tão mansamente no coração dessa força humana de
trabalho - para buscar criar, junto com os trabalhadores as condições e os recursos
minimamente necessários -, talvez não seja mais possível reverter o processo.
Se esse estresse do dia-a-dia for um estresse agudo e tu não souberes, tu não
tiveres os instrumentos pra resolvê-los, tu adoeces. (P1).
Contudo, nem sempre os mecanismos de defesa observados e relatados são bem
sucedidos, do ponto de vista do estabelecimento de uma relação gratificante para ambos
os envolvidos. Este insucesso pode se manifestar, por exemplo, numa convivência
impessoal com o doente, tornando-se o trabalhador arredio, ausente ou surdo às queixas
do doente, na tentativa de evitar um envolvimento afetivo que mobilize conteúdos
ansiogênicos e depressivos. Apesar disto, nesse estudo poucas foram as referências a
profissionais que mantivessem distanciamento afetivo dos usuários assistidos. Mesmo
quando, como nas falas anteriores, verbalizam manter uma postura que os preserve
saudavelmente, na prática, ao se tratar de crianças com as quais mantinham vínculos de
maior proximidade, ou quando havia um grande número de perdas em um período curto,
o distanciamento era ameaçado e às vezes, francamente rompido. Ao contrário, o que
caracterizou a quase totalidade das achados, considerando-se as três equipes que
participaram da pesquisa, foi uma forte vinculação aos doentes.
[...] é bastante estressante o serviço. Muita energia que a gente gasta ali.
Porque a gente trabalha, com o sofrimento da criança, o sofrimento do
familiar e o nosso, e com o nosso sofrimento! (E2).
Ficou assim, todo mundo ficou arrasado. Se sete vão embora (óbitos) tudo
numa semana só! Quem é que consegue sobreviver? Tu não tens mais
vontade de ir lá. “Eu vou lá hoje de novo?” Esse é o pensamento. Não é?
“Eu vou lá hoje de novo? Pra sofrer?”. Porque tu não vens mais trabalhar,
depois de tantos abalos sísmicos! Tu não tens noção. (E1).
Como já foi assinalado no capítulo anterior, o que está sendo marcado é o
“fracasso do trabalhador”, que a cada perda vão esgotando suas fontes narcísicas! É como
se a cada morte morresse partes de si mesmo. O trabalhador precisa acreditar que sua
153
força de trabalho contribui, faz diferença e, talvez, para isso precise suportar a angústia de
se ver frágil através do olhar daqueles que são o seu objeto de trabalho, que significam sua
existência laboral. A empatia, capacidade essencial à esse trabalhador, precisa ser sua
aliada nesse caminho, para que não haja tantas mortes em vida. E a instituição precisa
desenvolver uma capacidade continente como um espaço de reparação e proteção a seus
impulsos e dores.
Nesse sentido, um fato significativo na análise dos dados foi a debilidade de
mecanismos de auto proteção identificados nesses sujeitos, a fragilidade do
desenvolvimento de estratégias defensivas coletivas ou mesmo individuais demonstradas
pela grande maioria dos atores. Defesas de distanciamento afetivo, de impessoalidade
foram observadas no contexto macro da instituição, porém com os sujeitos da pesquisa
esse fato aparece em uma freqüência pequena. Há um permanente e significativo
envolvimento dos afetos das equipes nas relações cotidianas. Talvez a natureza do
contexto de trabalho com população infantil, doenças e situações graves como câncer,
intentos de suicídio, anorexia e outros, muitas vezes se atrelando a isso contatos longos
por reinternações freqüentes - o que favorece o estabelecimento de vínculos - seja
determinante para essa característica. De maneira geral, portanto, há um intenso
sofrimento mobilizando as relações de trabalho.
De outra parte há uma sensação de falta de reconhecimento pelos seus pares, um
sentimento de ser explorado pelos usuários e pelo sistema de saúde, assim como também
de comprometimento e responsabilização pela precariedade das condições de vida da
clientela habitual. Além disso, a falta de rede de apoio no sistema de saúde pública e na
vida familiar e comunitária dos usuários implica numa ruptura dos esforços e
investimento à saúde dessa comunidade, contribuindo para uma fragmentação do
tratamento. Contextos dessa ordem podem gerar desde um sentimento de impotência até
um esvaziamento da competência profissional e perda do sentido de sua identidade no
trabalho, aspectos já referidos por Dejours (2000). A sensação de invisibilidade se coloca
desde o objetivo de seu trabalho até os resultados, com o conseqüente sentimento de perda
e de fracasso frente ao sentido de sua identidade como trabalhador da saúde (CAMPOS,
1997; KAËS, 1998; PIRES, 1998).
Uma pessoa que não sabe claramente o que ela esta fazendo, cujo lugar que
154
ela trabalha não sabe o que quer dela e que por não saber o que quer dela
não vai oferecer as condições que ela precisa pra trabalhar, é um peixe fora
d’água, não é? Peixe fora d’água morre! A gente passa quantas horas do
dia da gente trabalhando? Faz parte da vida da gente. São horas, muitas
horas da vida da gente dedicada a um objetivo, mas se você não tem clareza
de qual é seu objetivo ou se você sabe qual é seu objetivo, mas o lugar que
você está não sabe o que quer de você aí fica complicado porque qual é a
referencia que você tem? (M7).
Então tem um lado que é fantástico, acho que não existe lugar melhor pra
trabalhar, pra mim, do que o hospital só que tem esse outro lado perverso
que é uma coisa que não se vê, que eu não sei aonde é que está. Em algum
lugar tem alguma coisa ruim que não é nas equipes, é invisível, não é nas
equipes que a gente trabalha. Aqui têm pessoas maravilhosas e que são
assim porque trabalham nesse ambiente, com morte, com dor, com
sofrimento. Acho que se sentem tão desamparados lá fora que acabam se
amparando aqui dentro. Então por essas equipes também é muito
maravilhoso trabalhar. (P2).
Dejours (2000) observa situações comuns do dia-a-dia do trabalho onde o
desconforto por vivências mal sucedidas nos esforços dos trabalhadores, de ordem técnica
ou organizativa, pode levá-los ao sofrimento. Situações, por exemplo, em que os
trabalhadores não têm como saber se suas falhas se devem à sua falta de competência ou a
anomalias do sistema técnico. Transpondo essa idéia para a instituição hospitalar,
podemos ver as distorções do sistema institucional de saúde em geral, como por exemplo,
a burocracia excessiva, as dificuldades na comunicação, a falta de pessoal, a precariedade
nas condições de trabalho; que funcionam como fonte retro alimentadora de angústias e
sofrimentos - expressos em medo de ser incompetente, de não fazer jus ao que esperam
dele (a), de se mostrar incapaz de enfrentar situações incomuns que requeiram capacidade
e responsabilidade.
Eu acho que a gente está desacreditado, a gente mesmo, será que isso dá
certo? Será que faz? [...] Às vezes o inimigo és tu mesmo. Isso eu vejo muito
e não é só na equipe assim, eu vejo muito na equipe médica, mas eu vejo um
pouco na equipe de enfermagem. (P1).
Não, desmotiva totalmente. Porque você passa um ano, passa dois, passa
três e você não vê o negócio andar, você vai ficar maluco. E aí ter outra
idéia? Não vai adiantar nada, porque vai continuar o mesmo. (M4).
Dejours (2000) ainda nos faz refletir sobre a importância do reconhecimento no
contexto do trabalho. Se por um lado há os desonestos e os que se utilizam da “garantia de
estabilidade” no emprego público para um exercício irresponsável e descomprometido de
155
suas funções, há os que se empenham e se esforçam em fazer o melhor, colocando paixão
e investimento pessoal em seu agir. Se não podem ser reconhecidos nesse empenho,
passando despercebidos em meio a indiferença ou mesmo sendo desconsiderados, vistos
como parte de uma massa indiscriminada, o sofrimento que se instala, em decorrência, é
da ordem da perda do referencial em que se apóia a identidade. Na instituição estudada os
trabalhadores manifestaram diferentes vivencias que podem ilustrar tal pensamento.
Ai é muito estressante, muito estressante, demais! Gosto! De tudo o que eu
faço eu gosto! Da limpeza? Adorava! Quer ver limpar banheiro, adorava
limpar esses banheiros, deixar tudo branquinho! Fui pra (equipe técnica,
cita o setor), tudo o que eu faço gosto! Tudo o que eu meto a mão pra
fazer... O que eu não gosto eu não faço! Já digo “não gosto, não quero, não
vou fazer!”. Só faço aquilo que eu gosto, entendesses? Mas é muito
cansativo e não te traz... Como eu posso te dizer... É assim, só sabem cobrar
de ti! Não te dão um elogio, “oh Fulana, pô, te saísses bem ali na
cobrança”. Se tu fazes uma coisinha errada eles vêm pra cima de ti, agora
se tu fazes uma coisa boa, passa despercebido! Isso aí vai te desanimando,
sabe aquela coisa assim, vai te desanimando, vai perdendo, desculpa falar,
o tesão pela coisa, não é? Eu fui perdendo, eu adorava, adorava, adorava!
Essa unidade pra mim era tudo, [...]. Eu queria vir pra cá de qualquer jeito!
Eu adorava essa unidade! Que eu iniciei aqui. (E8).
É você fazer um trabalho bem feito, que se possa ter algum resultado, que se
possa avaliar esse resultado. Então trabalhar por trabalhar, eu acho que
também leva a insatisfação. Estar todo dia atendendo doente, mas você não
ter uma condição de avaliar aquilo que você está fazendo, se está sendo
bom, se está sendo ruim. Você esta fazendo o que se preconiza, mas e o
resultado disso? Então uma situação seria insatisfação, irritabilidade, às
vezes intolerância, fuga, dá até vontade de sair daqui. (M4).
O reconhecimento desempenha um papel fundamental no desenvolvimento de
estratégias de enfretamento, no destino do sofrimento no trabalho e na possibilidade de
transformar o sofrimento em prazer. É como se ao ter seu trabalho reconhecido o
profissional desse sentido ao sofrimento que viveu. As angústias, as decepções, os
esforços e até mesmo os desânimos ganham significado. Sentindo-se capaz de contribuir
com a organização do trabalho este reconhecimento pode ser traduzido afetivamente por
um sentimento de alívio e de prazer ou mesmo de elevação “reconduzido pelo sujeito, ao
plano da construção da identidade” (DEJOURS, 2000, p. 34). O reconhecimento também
mostra-se imbricado na noção de autonomia e liberdade para se expressar, atuar e se
relacionar com os diferentes atores com os quais interage em seu cotidiano e dos quais
necessita diretamente para a realização de seu trabalho.
156
Tem de certa maneira, uma autonomia profissional, eu sinto isso nesse
momento profissional que eu vivo em termos de direção. Em termos assim,
puxando pra (cita sua unidade) eu me sinto altamente autônoma pra
qualquer decisão. Eu sempre respeito às hierarquias ali dentro, mas... Não é
questão de poder, não é nesse sentido. Também não estou conseguindo me
expressar, mas assim, essa liberdade que eu tenho enquanto profissional. Eu
tenho essa liberdade, entendes? Talvez até em função de ter uma relação
boa com a equipe. De ter constituído essa relação, essa relação não se deu
de um dia pro outro. Então, é uma construção que eu fiz. Eu sinto muita
liberdade com a equipe. [...] Essa autonomia, essa liberdade, do meu ir e vir
enquanto profissional, eu acho que isso é muito bom. (P1).
De outra forma se vê reconduzido somente a seu sofrimento, como mostra o relato
de uma profissional entrevistada (P4) falando com indignação sobre a generalização que
se faz do funcionário público. Referiu-se a uma colega que considera “excelente, que
nunca faltava e se esforçava muito”, e como a encontrou chorando no corredor do
hospital, porque sua chefia imediata estava lhe fazendo cobranças que julgava injustas. A
perda da capacidade discriminatória e de reconhecimento das diferenças parece estar
colocada na própria dinâmica institucional, que necessita de regras iguais para todos,
pautadas em um ideal de justiça igualitária que, se não manifestas e visíveis, colocam-se
como contradições da própria organização. Também a fala de outro profissional manifesta
a importância do reconhecimento como um retorno de sua atuação e uma referência a sua
identidade profissional. Ademais, coloca o trabalhador no âmbito do humano, daquele que
nem sempre ou em todas as circunstancias representará um triunfo.
[...] a insatisfação, seria o cara estar sempre irritado, chega ao trabalho já
se sente mal. Quando deveria chegar aqui e estar satisfeito. Vamos nos
envolver, vamos buscar um objetivo, vamos ter algum resultado. Porque
num trabalho que, vamos dizer assim, que a gente realiza, se você já não
tem condições de trabalho, você não tem remuneração então você busca é
um reconhecimento do que se faz, uma consideração por quem recebe o teu
trabalho. [...] Então o mínimo que se tem que ter é um pouquinho de
satisfação com o teu trabalho, ter algum resultado e um pouquinho de
reconhecimento pra quem presta o trabalho. A própria consideração e a
valorização entre os membros, quer dizer, às vezes a pessoa contribui muito
bem num setor, contribui mal no outro. Então vamos valorizar aquele no
qual ela contribui bem. (M4).
Nesse trabalho que a gente faz aqui, dentro de hospital, especificamente esse que
eu faço, [...] que a equipe toda aqui faz, se a gente não se cuidar, pifa! Acho que
tem que ter toda uma estratégia que a gente vai aprendendo a desenvolver. Eu
estou aqui há muito tempo, mas eu vejo pessoas que chegaram depois de mim, e
eu me vejo também lá no começo, é trabalhoso, não é? A gente desenvolve
estratégias de saúde pra conseguir ficar bem fazendo esse tipo de trabalho. É
157
difícil! É difícil! Eu passei por muitas etapas. Era muito difícil. A gente leva coisas
pra casa, fica muito estressada, tem que resolver (muitas) coisas. Agora eu já
estou aqui na plenitude (risos), madura, então é outra história na minha vida, é
um momento bom, pra mim, consigo lidar melhor com isso. Eu acho até que
sobrevivi bem aqui dentro. Em relação à saúde mental. (M5).
A instituição hospitalar é um lugar onde ansiedades primitivas estão sendo
mobilizadas constantemente. Sintomas institucionais referidos por Kaës (1998), como
burocratização, investimento em atividades secundárias, ativismo (correr o tempo todo,
sem tréguas, para resolver demandas institucionais) - defesas em massa - mostram a falta
de espaços para exercitar a habilidade do pensamento, para usar a capacidade de
entendimento e objetivação, bem como para o desenvolvimento de recursos como
proteção à excessiva carga emocional das vivencias diárias na instituição ou ainda, para o
uso da criatividade na busca de alternativas para a própria saúde. Dessa forma
mecanismos saudáveis de contenção e transformação das ansiedades primitivas são
debilitados ou mesmo destruídos.
Mendes e Morrone (2002) a partir dos estudos dejourianos referem a
provisoriedade da situação de sofrimento não o entendendo como instalado de forma
permanente. Assim o sofrimento em si funcionaria como um sinal de alerta para o não
adoecimento, porém não se constituindo, necessariamente, como patológico. O
adoecimento advém quando os trabalhadores não conseguem fazer uso de estratégias
defensivas para dar conta das adversidades vividas no trabalho. Nos relatos abaixo se
revela, a partir das vivências dos sujeitos da pesquisa, o ponto onde identifico a passagem
do sofrimento ao adoecimento na perspectiva teórica colocada.
Problema de coluna e estresse eu acho que já passei do limite do aceitável
há uns cinco, seis anos. Eu acho que agora realmente vou me tratar. Vou
procurar ajuda. E realmente o estresse é do trabalho. Eu tenho muitos
mecanismos de reverter, mas não estou conseguindo mais. De uns cinco a
seis anos pra cá meus mecanismos não estão funcionando mais. Qualquer
coisinha eu acho que é o fim do mundo, por qualquer coisinha posso ficar
sem dormir a noite, fico com azia. Eu não era de xingar no telefone, eu estou
xingando, quase digo um palavrão! Mas eu acho que chega um ponto em
que a tolerância esta acabando. Então eu acho que não estou mais tendo
mecanismos de defesa pra lidar com o estresse. (P2).
Eu comecei a sentir uma dor, quer coisa mais clara do que essa, e foi
exatamente uma semana depois que eu tinha visto uma paciente oncológica,
que era uma paciente que estava no limite. Eu não suportei aquilo, eu não
suportei e senti uma dor violenta, uma dor a ponto de eu não conseguir
158
falar, nem comer, nem me mexer. Impressionante e exatamente na semana
em que eu não vim - eu não vim por uma semana - a paciente faleceu. Não é
à toa não, eu não queria ver aquela menina morrer, eu não queria ver
aquela menina morrer. Eu adoeci, eu somatizei. Como talvez não esteja
tendo espaço pra dizer isso aqui (com essa equipe, nessa instituição): não
estou agüentando ver essa paciente, está sendo muito sofrimento, [...] é
demais, está pesado pra mim! O único jeito que eu consegui de me
preservar foi assim, não vou para o hospital, estou impossibilitada! E é
incrível! E fiquei impossibilitada em casa. Não conseguia me mexer de dor,
de dor, deitada em casa, a minha família dizia, mas dá uma levantadinha e
eu dizia, não dá! Eu me paralisei totalmente! Então como é que isso se
manifesta? Com o adoecimento físico. (M7).
Algumas outras formas de manifestações do adoecimento no trabalho são também
explicitadas nas vozes desses trabalhadores, às vezes indiretamente, às vezes
evidentemente colocadas. É importante destacar a referência que fazem a sinalização do
adoecimento como algo possível de ser detectado antes de haver se instalado em seus
corpos e mentes. Denotando que há um tempo anterior ao adoecimento no qual o sujeito
já dá mostras, já se evidencia indícios sintomáticos desse processo. No entanto, apesar de
parecer identificado em suas falas, o adoecimento segue seu curso sem maiores
impedimentos, quase inexorável, senhor de todos os espaços. Que névoa é essa que cega
nosso olhar e que ruído é esse que, embora saído de nós, nos parece tão estranho?
A meu ver quem trabalha na área da saúde tinha que ter duas férias por
ano, licença especial. A licença depende de nós vermos a nossa necessidade,
mas eu acho que tinha que ter alguém olhando porque neurose, doenças a
gente sozinha não percebe. Quando a pessoa chega a perceber já passou
dos limites. (P2).
Eu fico mais agressiva, eu acho. Eu fico mais agressiva. Eu sinto isso, que
eu fico mais agressiva não é? Porque daí eu acabo não raciocinando tanto
[...] parece que eu fico cega, eu não consigo ver as coisas! (Dizer a mim
mesma:) “Calma não é meu, é dele”. (P1).
E o pior é assim, a minha funcionária se tornou tão improdutiva que eu não
sei aonde é que ela pode ser feliz agora. Entendes? Não sei onde ela poderia
trabalhar, trabalhar de verdade. [...] Na UTI, eu emagreci 11 quilos mais ou
menos (E1).
Acho que é diminuição no sono, irritabilidade, a gente tem um limiar mais
baixo, um pouco. Aqui, nem considerando remuneração não é? (M2).
Eu acho que (o adoecimento aparece) no nosso organismo, em tudo.
Seguramente isso tudo vai influir. Você começa aí a ter umas gastrites, não
é? Se sente assim cansado, se sente sem vontade. Tem momentos que, em
função de uma série de coisinhas, você quer sair, você não quer mais ver
doente, você não quer mais atender ninguém, porque a água já está por
159
aqui. E é uma coisa interessante, que às vezes a gente sai e volta assim como
novo. Mas dois dias depois, já está tudo (de volta)[...] (M4).
Problema de taquicardia, eu sei que estou estressado, sudorese de extremidade.
Às vezes eu não tenho vontade de me encontrar com as pessoas com quem eu
trabalho. Isso são sinais de as coisas não vão bem. Mas, em contrapartida eu não
me incomodo de encontrar uma criança que está doente, entendes? (M1).
Uma outra coisa que eu observo muito aqui dentro por parte dos médicos e da
enfermagem também, porém um pouco menos, é o (hábito de) se auto medicar.
A auto-medicação é freqüente entre os profissionais de saúde. (M7).
Embora esteja explicitada a necessidade de políticas de investimento que dêem
conta da preocupante realidade em que se encontra a saúde do trabalhador nas instituições
hospitalares, especialmente quando há uma significativa vivência de perdas ou mesmo
cronicidade no seu local de trabalho; e embora muito já tenha sido dito bem como
importantes iniciativas já tenham sido tomadas nessa direção - considerando-se o disposto
nos arts. 198 e 200 da Constituição Federal de 1988; considerando a Lei Orgânica de
Saúde nº 8080, de 19 de setembro de 1990, com destaque para os dispositivos contidos em
seu art. 6º; e considerando a implementação de ações em saúde do trabalhador em todos
os níveis de atenção do Sistema Único de Saúde (BRASIL, 2006) - na prática, no dia-a-
dia da instituição hospitalar há um paradoxo frente à saúde do profissional de saúde que o
mantém cativo. Cativo de um sistema econômico perverso que lhe restringe as escolhas,
os sonhos e os ideais do trabalho, que lhe seqüestra da complexidade das relações sociais
e humanas; cativo de um sistema adoecedor com o qual se mantém familiarizado. O medo
de adoecer parece colocar-se no âmbito do conflito entre sua extraordinária capacidade de
adaptar-se e continuar produzindo, a qualquer custo, e o sentimento de perda de
identidade profissional - confirmado pela cultura narcísica em nossa sociedade - em se ver
como “fracassado”.
Nós estamos cheios de funcionários que precisam de ajuda. Teve um que
tinha que ser afastado e não por ser mau funcionário, mas porque estava
precisando de ajuda! É mais do que um problema emocional, é psiquiátrico
e ninguém encaminha porque vai encaminhar para onde? Só se enlouquecer
de vez em quando ou fizer uma besteira, ou quando tiver um processo
administrativo. Se tiver (alternativa de tratamento via Secretaria) eu não
conheço. Eu nunca consegui ajudar um colega pela Secretaria de Saúde.
[...] Deve existir o setor, a gerência, uma pessoa que ganha pra (trabalhar
com a) Saúde do Trabalhador, mas não existe nenhuma ação que possa
pegar o cara que adoeceu no serviço que fez... Alguém já deveria ter visto
que ele era um risco e já ter tirado ele de lá. Quer dizer, colocar uma pessoa
em risco pra ele e para os outros e no final, no fim da vida ele ganhar uma
160
ficha com suspensão, com processo administrativo, com sindicância e
ninguém nunca viu nada! Quem é que vai ajudar esse funcionário? Os
hospitais psiquiátricos? Por que a Secretaria de Saúde não trata o
funcionário? A gente tem que ir aonde é mais barato, como qualquer outro,
como qualquer cidadão. (P2).
No entanto as evidencias parecem não ser suficientes para as relações entre
trabalho e doença profissional, ou seja, para o que deve ser medido, examinado,
fotografado, medicado. Quando existe um dano físico, é possível traçar o nexo causal
entre algumas doenças e o trabalho como, por exemplo, no caso de uma perda auditiva
por exposição ao ruído. No entanto, ainda se encontra muita resistência quando o
ambiente de trabalho ou o trabalho em si parecem “inofensivos” à saúde física. Nestes
locais parece que não há motivos para adoecer, ou seja, todo adoecimento do trabalhador
tende a ser visto como um caso isolado e individual, sem relação possível com sua
ocupação. Assim, as doenças ocupacionais são facilmente reconhecidas como efeitos dos
riscos ambientais aos quais os trabalhadores estão expostos. Todavia, bem menos
esclarecedora está a relação entre transtornos psíquicos e trabalho, os chamados riscos
psicossociais que incluem os fenômenos de ordem neurofisiológica, cognitiva,
psicológica, social e organizacional (RAMMINGER, 2002).
Mendes e Morrone (2002), ao referirem os pressupostos que orientam a abordagem
da psicodinâmica do trabalho em Dejours, destacam que o trabalho pode ser fonte de
prazer e de sofrimento ao mesmo tempo. Então a simples presença de prazer ou
sofrimento não é suficiente para indicar saúde ou doença e sim a diversidade de
estratégias criadas e utilizadas pelos trabalhadores para fazer frente às situações que
possam gerar sofrimento e transformá-las em situações geradoras de prazer.
Durante todo período observado os trabalhadores indicavam a necessidade de buscar
formas de bem estar na rotina diária, no entanto, a correria intensa da rotina, assim como
solicitações constantes, próprias da imprevisibilidade característica desses locais, contribuía
para a falta de espaços de encontro entre eles, de espaços para o diálogo. Mesmo assim,
observei momentos, no “postinho” de enfermagem, por exemplo, em meio a movimentação
circundante de olhares preocupados de acompanhantes ou de membros da própria equipe
que passavam nos corredores - em um aparente ensimesmamento - quando se juntavam três
ou quatro profissionais, quase se esbarrando nas tarefas que realizavam, que começavam a
161
rir muito, sem parar, durante cinco, dez minutos. E depois continuavam as atividades
normalmente, retomando o olhar preocupado que novamente vinha lhes roubar o tempo. Às
vezes, na sala de prescrição de uma das unidades, a conversa tornava-se animada com
conteúdos que iam da comunicação de alta de um doente ou gravidade de outro até temas
da vida particular de cada um, tornando público e compartilhado temas de um caráter
aparentemente reservado. A ansiedade e o estresse diário levam esses profissionais a uma
tentativa saudável de proteger-se do sofrimento, criando formas coletivas ou mesmo
solitárias de gerar prazer, no âmbito pessoal, utilizando-se de diversos mecanismos
defensivos. Ao falar na relação que estabelecem com a criança enferma colocam
Se eu não mantiver uma maneira de distanciamento, um não envolvimento,
eu não consigo trabalhar com esse paciente, eu acho que dificultaria a
minha questão profissional. Então, o que é que eu faço? Eu me mantenho em
uma distância saudável, eu entendo que é uma distância saudável. (P1).
Por isso, por esses motivos que a UTI me ensinou, eu realmente, me
preservo! As mães sentem muito “ai, tu não foi visitar o meu filho!” Mas eu
realmente não vou! Eu não consigo mais trabalhar essa coisa comigo! E na
oncologia isso é muito visível, é muito doído. (E1).
Procuro não me apegar muito porque eu sou uma pessoa extremamente
sensível e eu sofro demais com as coisas, então se não me apegar eu vou
estar me poupando, vou tratar bem, vou tratar com todo carinho, mas vou
fazer esforço de não me apegar. Agora tenho conseguido. Antes, logo que eu
entrei aqui eu não conseguia, eu me apegava demais às crianças, porque
criança por si só já é uma coisa maravilhosa não é? Não dá pra negar. Mas,
daí eu chegar ao ponto de, muitas vezes, ter que me isolar pra dar uma
choradinha, só tem acontecido muito raramente, porque não tem como se
manter insensível ao sofrimento! (E5).
Em relação as estratégias defensivas utilizadas na relação com o trabalho, de
maneira geral colocam que se sentir parte do grupo é o que os mantém com motivação
para trabalhar; outros procuram se desligar totalmente quando saem do trabalho e outros
ainda referem que o prazer que têm no seu trabalho é o principal responsável por não
adoecerem. Mas muito ainda poderia ser dito ou muitos outros depoimentos poderiam ser
representativos destas estratégias:
Eu acho que passa muito também pela participação, pela construção
coletiva, não é? E depende também das características individuais, que é o
poder de resiliência de cada um. Às vezes a gente não tem muito como
interferir; a gente tem como estimular, mas acho que vai depender dele
também. (M2)
162
Isso é um trabalho de muito tempo! Da gente começar a se enxergar, não é?
Já tive outras fases, de ficar meio assim, ficar mais frustrada, não conseguir
fazer coisas, mas aí, com toda essa gente por perto me ajudando, o pessoal
que trabalha comigo, a gente vai se dando conta dessas coisas. E vai
pegando nessa coisa boa que a gente consegue fazer! O que a gente não
consegue? Paciência, a gente tem que lidar com isso, não é? (risos). E focar
na coisa boa. A gente consegue um monte de coisa boa! Não se consegue
algumas coisinhas que a gente gostaria, mas perfeito não vai ser nunca! E
vamos focar no que é bom. (M5).
Porque eu, eu penso que isso faz parte do meu trabalho. Eu não levo isso
pro meu lado pessoal. Eu sou a profissional aqui dentro. E se eu tenho essa
responsabilidade aqui, até essa incomodação faz parte do meu trabalho! É
assim que eu procuro me guiar, entendeu? Quando eu estou em casa eu
desligo daqui. Eu consigo desligar. (E3).
Se esses profissionais evidenciam modos de trabalhar que os mantém driblando a
excessiva e nebulosa carga emocional e física, assim como as difíceis condições de
trabalho, em uma relação tantas vezes infrutífera - como quando pensada no plano macro
organizativo do sistema de saúde, ou no plano das necessidades de sobrevivência, de
prazer, de necessidades de pertencência, ou ainda quando não conseguem ver outras
saídas - ou pelo ideal ou por suas fantasias de poder é imperioso que possam trabalhar
dentro de uma lógica que lhes devolva uma condição ética, de atores da própria vida.
Sujeitos que não são anônimos, que têm um rosto, uma história, um tempo. E têm uma
voz, muitas vozes marcadas pela diferença; marcas inscritas em seus corpos na relação
com o trabalho.
Como não poderia deixar de ser, dentro da fascinante complexidade humana, esses
sujeitos, trabalhadores da saúde, nos contam ainda, aspectos de suas desditas de amor.
Falam do trabalho, do seu lugar, com olhos de enamorados.
Esse hospital é uma ilha da fantasia. Eu acho que dentro do sistema público
local de saúde, o hospital sempre ocupou um lugar privilegiado, em termos
de material mesmo, de material humano, de medicação, de exames. (M6).
E por ser hospital público, eu acho ótimo. Eu acho ótimo mesmo, sabes?
Porque tu vês todas as classes sociais aqui dentro. Todas, até aquela pobre,
que não tem o que comer dentro de casa e que tem que salvar o filho de
câncer, com mais cinco em casa passando fome; aquela pobre que os filhos
foram todos arrecadados pelo serviço social da comunidade porque o pai
estava em casa e estava maltratando os filhos; e daí tu tens a de classe
média, que já sabe alguma coisa, já tem alguém que morreu de câncer, ou
que tem alguma experiência, cuida de alguém... (E1).
A equipe aqui tem muita boa vontade, sabe aquela coisa assim, se o vizinho
163
te pede alguma coisa e você vai lá e ajuda? Aqui funciona muito assim... A
boa vontade ajuda. (M7).
Mas esse lado do público é uma coisa que eu acho bem legal. Eu
pessoalmente não gostaria de trabalhar só em consultório atendendo meus
pacientes privados. Eu gosto, é uma característica minha, gosto de atender
os pacientes. Porque é ali que eu me sinto realmente ajudando. A função
social que a gente tem ali é fantástica! (M5).
Mas ainda vejo que é uma das equipes (referindo-se a unidade em que
trabalha) dentro do hospital, das mais humanas no relacionamento médico-
paciente, no relacionamento equipe-profissional, no relacionamento equipe
multidisciplinar. É o único, é o único centro dentro do hospital que tem toda
(semana) reunião com todos os membros e nós temos um espaço pra falar e
todos nós temos direito de falar o que queremos. Nos é dado esse espaço. Eu
acho que aqui dentro, ainda, pra mim, ela é assim, o SUS que deu certo,
parece assim, a sensação que eu tenho é que a gente não está no SUS. Mas
eu acho que poderia melhorar muito mais. (P1).
Dejours (2000) nos traz seu conceito de normalidade sofrente, por um lado. Kaës
(1998) assinala a importância do sofrimento como um dado estrutural de nossa vida
psíquica conflitiva, cindida, e torna seu conceito mais claro ao referir que “a intolerância
para com o sofrimento vital é um sofrimento invalidante”. E com Berlinguer (1988)
vemos um conceito de saúde-doença que critica a concepção de saúde como estado,
entendendo-a como processo em um ciclo contínuo saúde-doença, que se desenvolve não
somente no interior do organismo, mas entre esse e o ambiente. O que nos provoca essa
discussão? Tomarei duas convicções assinaladas por Berlinguer:
a primeira, na qual vê a doença como um fenômeno vital, não se contrapondo
ao conceito de saúde mas sim sendo um dos aspectos da vida.
a segunda, na qual a doença é um processo, um movimento de ação-reação, um
conflito entre agressão e defesa. A doença aparece então como uma
incapacidade permanente ou transitória de manter o equilíbrio entre as funções
do organismo, e como processo, tem um início, uma história e uma conclusão.
Podendo ser a cura, a morte ou a adaptação às novas condições de vida.
Quando pensamos em sujeitos para os quais vida e morte se expressam em
condições explicitamente demarcadas como objeto de trabalho e para os quais sua força
de trabalho se transforma em alimento da vida no limiar da inesgotável luta das pulsões -
onde a morte sempre tem o seu lugar -, torna-se inevitável a pergunta: qual é o limite do
sofrimento? Qual é o limite da saúde?
164
Do diálogo com os vários autores vem, nesse momento, a reflexão sobre a
fragilidade humana e sobre a extraordinária plasticidade do psiquismo dos seres humanos,
sobre a capacidade em se adaptar. Quem são os resiliêntes? Muitos deles, certamente, são
os trabalhadores da saúde. Melillo, Estamatti, Cuestas (2002) observam que a resiliência
se produz em função de processos sociais e intra-psíquicos. Afirmam que não se nasce
resiliente nem mesmo se adquire resiliência ‘naturalmente’ no desenvolvimento, mas esta
depende de determinadas qualidades do processo interativo do sujeito com os outros seres
humanos, responsáveis pela construção do sistema psíquico. A compreensão dos
fundamentos trazidos por estes autores nos auxilia na busca da promoção de estratégias
junto aos trabalhadores, parceiros desse estudo. Se as instituições não puderem criar a
função continente, referida por Zimerman (1992), e se tornarem um espaço para
reparações e gratificações a seus trabalhadores, como assinalou Bleger (1984),
certamente, parafraseando Cassorla (1991) estaremos “suicidando” uma parte de cada um
de nós, de nossa humanidade.
Ela, (referindo-se a autora de um livro sobre câncer, Naomi) tem uma frase
que eu acho assim, maravilhosa! É (a seguinte): “compreender o sofrimento
está fora do meu alcance, compreender a cura também, mas nesse momento
eu estou aqui, então use-me” (M3).
CAPÍTULO VI - CONSIDERAÇÕES FINAIS - TECENDO ESCUTAS. PARA ONDE?
De repente tu vais dizer “olha, não era bem isso que a gente queria”,
mas por quê? Por que não houve esse diagnóstico para saber
realmente o que a gente estava querendo
34
.
O que esta pesquisa me permitiu está além do que as palavras contidas no texto
possam expressar. Uma experiência que parece não encontrar espaço nas palavras, parece
não encontrar ainda os códigos para expressá-la. O lugar do avesso. Como falar desse
lugar? Quisera poder trazê-los ou, pelo menos, poder falar, não por eles, mas com eles,
para eles. As palavras? As fui recolhendo “nos frios corredores” das lembranças que
tinham quando chegaram pela primeira vez ao hospital. Corredores que intimidam os
olhos de quem chega, de quem inicia sua trajetória como trabalhador da saúde, o mesmo
olhar que mansamente se desnuda em um amor construído por sonhos e ilusões e que se
transforma em trabalho.
Quando tudo começou, a cerca de quinze anos atrás, foi o início de uma maior
aproximação com a psicologia hospitalar e a construção de uma identidade de trabalho,
nessa área, em seus passos quase iniciais. O hospital com seus multifacetados encantos me
seduziu. Quis conhecê-lo, quis mostrá-lo aos meus alunos, à academia e estabelecer um
vínculo sem o caminho de volta. O encontro com os trabalhadores da saúde desse lugar
foi um desafio instigante e se deu, em um primeiro momento, através das crianças, - nosso
objeto comum de trabalho - e também na parceria da formação dos alunos estagiários.
Posteriormente, o convívio e a confiança estabelecida, permitiram a possibilidade de um
trabalho com os próprios profissionais, a partir da generosidade que caracteriza esses
sujeitos com quem tive o privilégio de estar próxima todos esses anos. Assim nasceu essa
pesquisa. Um convite para caminharmos juntos, para que os conhecesse através do mundo
do trabalho. Em confiança, me emprestaram suas lentes.
A base teórica que veio juntar-se a esse empenho em desatar alguns nós e tirar os
34
P1(um dos profissionais entrevistados).
166
possíveis véus e, assim, permitir uma leitura aproximada dessa realidade, já vinha sendo
utilizada como instrumental desde a concepção inicial do trabalho. No entanto, foi na
medida em que a investigação tomava corpo que a necessidade de aprofundamento e,
mesmo, de novas leituras e autores motivou incorporações gradativamente sedimentadas.
Dessa maneira, com os limites dessa abordagem, da complexidade do objeto de estudo e
da própria instituição fez-se possível essa análise.
Inicialmente busquei encontrar alguns aspectos que já vinham sendo apontados
pela maioria das pesquisas nessa temática como, por exemplo, o absenteísmo. Mas logo,
nas primeiras inserções como pesquisadora, percebi que os dados se manifestavam,
ganhavam vida de tal maneira que a necessidade de busca de indicativos perdeu o sentido.
Sem desconsiderar aqui a grande importância trazida pelos resultados deste tipo de
investigação, no decorrer do processo tais dados passaram a ser secundários, em vista das
manifestações de um mundo intensamente vivenciado e sofrido.
Tentarei retomar os caminhos trilhados buscando uma síntese objetiva da riqueza
desse material analisado a partir dos resultados encontrados.
Para contextualizar o lócus de trabalho desses profissionais se fez necessário vê-lo,
pelo menos, sob dois pontos de vista iniciais. Primeiro sob o foco da instituição hospitalar
com a complexidade de seus intrincados conflitos e contradições na sua relação com o
Sistema Único de Saúde (SUS); com a dinâmica institucional em si e com aspectos do
processo de trabalho, como a organização, as condições e as relações de trabalho que
perpassam esse lugar. E, também, sob o ponto de vista das vivências do universo infantil
hospitalar com o enfrentamento dos desafios peculiares a situação de dores e de
impotência, mediados pelas conquistas da cura ou da minimização do sofrimento.
Os desafios colocados a quem hoje se dedica à saúde, do ponto de vista dos
gestores ou dos trabalhadores e usuários, dada a complexidade crescente das tecnologias,
da estrutura das instituições públicas hospitalares, do relacionamento com o SUS e do
modo como ocorre o financiamento dos serviços, bem como da estrutura hierárquica
vigente, sem dúvida vão determinar a gestão e a organização do trabalho. Portanto, não se
pode prescindir de uma contextualização sócio histórica, dos efeitos de um modelo
hegemônico de assistência e das implicações da produção de conhecimentos nesse campo,
no qual os sujeitos da pesquisa se encontram inseridos. Ainda que, para efeitos desse
167
estudo, tal contextualização se dê de uma forma parcial e focal.
Muitos estudiosos do trabalho em saúde e das políticas públicas de saúde têm
apontado um significativo distanciamento entre o prescrito e o real, apontando para
entraves na garantia do direito à universalização da saúde ao conjunto da população. Essa
situação também foi identificada no hospital estudado, ao analisá-lo como uma unidade de
atenção à saúde, de referência na região sul confirmando, a realidade examinada, como
um desafio de grande complexidade.
No cotidiano do trabalho na instituição estudada, identificaram-se dificuldades de
ordem burocrática, déficit de recursos financeiros e do contingente da força de trabalho.
Inadequação e deficiências de serviços na rede de complexidade crescente prevista para a
organização do SUS, déficit de área física, de materiais e equipamentos, assim como
problemas do âmbito das relações de trabalho.
Os entrevistados assinalaram que as políticas de saúde limitam o trabalho
institucional na medida em que nem sempre são condizentes com a realidade desses
usuários, produzindo reflexos na qualidade da assistência prestada e na satisfação do
profissional. Apesar dos gestores reconhecerem essa defasagem e buscarem alternativas
para minimizar a situação, no que tange a realização de exames de alto custo, por
exemplo, a solução para garantir ao doente o acesso a esses exames no tempo certo e na
medida de suas necessidades deu-se a partir da quebra de algumas normas, de modo a
criar mecanismos para tal atendimento. Os trabalhadores utilizam estratégias coletivas de
defesa para tornar possível a realização do trabalho e a preservação de sua saúde.
A falta de uma rede eficiente de saúde repercute em todo o processo de trabalho no
hospital estudado, o que é trazido por eles como um dos fatores determinantes da ineficácia
dos objetivos do tratamento, ademais, trazendo um sentimento de descrédito no sistema de
saúde, apesar das inovações e esforços de capacitação promovidas pelo governo, como a
estratégia em saúde da família em toda rede pública do país. Mesmo num cenário de busca
por mudanças, essa formação ainda está longe de contemplar especificidades básicas da
população assistida, necessitando um constante investimento e a criação de novos projetos em
educação para a saúde, que de fato possam se efetivar a curto e a longo prazo.
Os trabalhadores que atuam na rede não se percebem como participantes das
decisões. Refletem sobre os programas que são criados e que não tem continuidade e
168
sobre a impotência frente às limitações burocráticas e ao processo decisório. Apesar de
muitos mecanismos terem sido criados nos últimos anos, como os Conselhos Estaduais e
Municipais de Saúde. É importante ressaltar que o sentimento de intensa frustração frente
a projetos criados e não desenvolvidos, remetidos às promessas e expectativas
constantemente “fracassadas”, parece ser vivido por esses sujeitos como uma forma de
morte. Morte da esperança. Como se houvessem desistido de acreditar em possibilidades
de trabalho com continuidade. Referiram um sentimento de insegurança e uma sensação
de instabilidade cumulativa a cada mudança de governo. As freqüentes frustrações à sua
capacidade criativa no trabalho parecem trazer um sentimento de morte frente ao sistema
de saúde.
Evidencia-se a necessidade de fortalecimento das idéias preconizadas nos
princípios do SUS, entendendo-se que os desafios impostos necessitam um grande esforço
para o seu enfrentamento, tornando imprescindível a construção de redes de compromisso
e co-responsabilidade quanto à proteção e qualidade no cuidado a vida.
Os trabalhadores referem-se à burocratização da estrutura hospitalar como um
importante obstáculo para a realização do trabalho além de funcionar como fonte de
grande ansiedade. Kaës (1998) coloca a burocratização dos serviços como uma das
manifestações institucionais que atestam a ausência de espaços para pensar. Dessa forma
acaba por favorecer, à dinâmica institucional, o surgimento de contradições nas relações
de trabalho, contribuindo para criação de espaços “confusos” e de vazios na comunicação,
desmotivando a busca de saídas enquanto grupos de trabalho.
Na relação com as crianças doentes e os familiares, os profissionais se vêem como
provocadores de vivencias de desconforto e dor, na medida em que são responsáveis por
procedimentos, muitas vezes, dolorosos. Isso se dá, principalmente com os trabalhadores
da área de enfermagem e da medicina, do universo estudado. Relatam um profundo
sentimento de tristeza e mesmo de temor pelo sofrimento que “causam” nos doentes, mas
também a si próprios.
Um outro fator apontado como causador de intenso sofrimento, se dá através da
organização do trabalho, atuando diretamente sobre os trabalhadores em uma dinâmica
que aparece como invisível, sem que se consiga eleger um “responsável”. Uma ansiedade
difusa sem que se possa entender o significado, nas palavras de Kaës (1998) é uma
169
ansiedade invalidante.
O trabalho fragmentado, parcelarizado e sem o reconhecimento dos seus resultados
parece trazer um desencanto gradativo no estímulo e na motivação a sua realização.
Todavia, suas falas a esse respeito, parecem carregadas de ambivalência. Buscam um
sentido e lutam por esse trabalho ao mesmo tempo em que tais verbalizações parecem
indicar um pedido de ajuda.
Verbalizam angústia frente a complexidade crescente da conjuntura hospitalar que
exige trabalhadores, por um lado, mais especializados e, por outro, mais capacitados a
trabalhar em equipe.
Demonstram empenho em possibilitar uma efetiva implementação do SUS que
realmente dê resultados mostrando compreender as dificuldades nessa direção. Os
trabalhadores entrevistados reconhecem o esforço de organização para suprir e criar
alternativas nas condições de trabalho.
Por outro lado, em situações de imenso desgaste e risco à saúde psíquica e física
demonstram, paradoxalmente, ficar à vontade como se tivessem naturalizado a situação.
Parecem, pelo envolvimento muito grande com o trabalho, perderem a capacidade de
discriminar o grau e o risco de desgaste sofrido nesse cotidiano.
A capacidade de não se desesperar apesar de manterem-se indignados, também foi
observada em alguns sujeitos entrevistados ao resolverem impasses por obstáculos de
ordem burocrática, como por exemplo, falta de material ou material deteriorado,
consertando-os com extrema criatividade em situações emergenciais. Estas condições de
trabalho, além de causarem danos às crianças doentes tornam-se riscos constantes à saúde
do próprio profissional.
Percebem muitas das condições existentes como adoecedoras. A remuneração que
percebem pelo seu trabalho, por exemplo, os leva a buscar outras possibilidades
profissionais para suprir suas necessidades. O segundo vínculo empregatício tornou-se
condição de sobrevida e, além de provocar desgaste no trabalhador, provoca uma
inevitável diminuição na qualidade do trabalho, adoecendo o trabalhador e o sistema.
A grande maioria dos trabalhadores entrevistados referiu um sentimento de
gratificação por trabalharem em uma instituição pública com um vasto e rico campo de
possibilidades, indo desde a diversidade cultural e econômica da clientela até os diferentes
170
quadros clínicos a que têm acesso a conhecer e estudar. Apesar do seu grande potencial
como campo de pesquisa e de ensino, os recursos para o investimento em formação e
produção do conhecimento ainda são insuficientes. Essa foi uma das mais significativas
reivindicações entre os profissionais participantes.
Apontam para a necessidade de um trabalho integrado com várias áreas do saber
em saúde atuando interdisciplinarmente, porém percebem os obstáculos, no cotidiano,
para o desenvolvimento de ações dessa natureza. Alguns trabalhadores identificaram na
formação da medicina importantes dificuldades em ações voltadas ao trabalho de caráter
interdisciplinar. No entanto, essa constatação apareceu de maneira indistinta nas demais
áreas da saúde, independente de sua categoria profissional. Posturas interdisciplinares
também foram observadas em alguns profissionais de maneira isolada, denotando que
essa característica está muito mais orientada devido às singularidades dos sujeitos do que
determinada por conquistas grupais. Tal fato revela que ainda há um longo caminho a ser
conquistado no desenvolvimento de frentes de trabalho visando a superação dos saberes
estanques e incomunicáveis.
Os dados analisados acerca de alguns aspectos do processo de trabalho desses
profissionais da saúde tiveram como objetivo contextualizar a importância desse lugar no
sofrimento e adoecimento do trabalhador de saúde estudado. Quanto aos aspectos surgidos
no âmbito do universo hospitalar infantil foram principalmente da ordem da subjetividade,
do mundo do simbólico, das fantasias e das emoções, dos segredos, do contido.
A complexidade e a delicadeza das relações estabelecidas entre os próprios
profissionais e entre eles e as crianças doentes e seus familiares vai ao requinte das
sutilezas do inconsciente. As vivências de doenças que provocam dores, que imobilizam,
algumas vezes de diagnósticos e prognósticos incertos, outras vezes claramente definidos,
como as expectativas de morte iminente, os fazem entrar em contato com aspectos da vida
e da morte sob os quais não possuem controle.
A dor psíquica aparece em toda sua exuberância, através de familiares queixosos,
aflitos, agressivos e intolerantes, ou simplesmente calados, taciturnos, chorosos. Assim,
também, estão presentes os abandonos, a miséria, a fome, os fantasmas da noite. Talvez
seja o lugar onde o embate com o sofrimento e a finitude humana se mostre em sua
plenitude, sem maquiagem, colocando os trabalhadores da saúde frente a frente com um
171
espelho e com seu próprio desamparo. Vêem-se sozinhos e frágeis confrontando-se
cotidianamente com a vulnerabilidade do humano e com sua irrefutável pequenez. Este é
um aspecto que poderia apontar para a saúde e para o desenvolvimento de recursos
benéficos de enfrentamentos deste cotidiano, para a criação de estratégias defensivas
saudáveis e necessárias a um trabalho nesse contexto.
Frente a tamanha manifestação da agudeza da vida a ambivalência dos afetos toma
expressão no dia-a-dia do trabalho desses profissionais. Esse é um espaço onde se torna
ameaçado o controle das pulsões do bem e do mal, dos medos, da irracionalidade, da
sexualidade, do místico, do religioso, do não consentido. Tudo escapa ao domínio do
instituído e a transgressão torna-se a norma, com toda sua paradoxal contradição.
Facilmente o profissional da saúde sente-se responsável e se culpa por não possuir a
capacidade de aplacar a dor, pelo sofrimento do outro ou pela precariedade da vida dos
usuários que sofrem. O sentimento colocado pela grande maioria dos entrevistados diz
respeito a essa dor, a dor do outro. Verbalizaram que o pior sentimento com o qual se
confrontam é a impotência. Sentem-se culpados pelos momentos de medo, de não terem
tido respostas ou soluções prontas e imediatas para seus pares e para cada doente. Parecem
marcados por uma meta idealizada implacável, que não perdoa o humano. Raimbault
(1979) e Torres (2002) referem que nas situações de vivências de morte há um sentimento
profundo de perda por parte dos pais. Também os profissionais entrevistados expressaram
intensos sentimentos de perda, tristeza e culpa quando havia vínculo na relação com as
crianças assistidas e seus familiares. A função continente que acolhe e permite a reparação
de suas pulsões mais ameaçadoras não parece muito presente no âmbito do pessoal e do
coletivo institucional. Dessa maneira esses trabalhadores mostraram-se exposto às
ansiedades e neuroses institucionais (BLEGER, 1984), invadidos que são cotidianamente
pelas tristezas e desamparos dos enfermos e acompanhantes. A instituição, deixando de
cumprir sua função cuidadora à saúde de seus trabalhadores, abre espaço para um
sofrimento que adoece o trabalhador e a si própria. Adoece com isso o sistema de saúde.
Sendo o hospital, especialmente em se tratando de crianças e adolescentes
gravemente enfermos ou com risco de morte, um lugar onde as fronteiras dos espaços da
intersubjetividade mostram-se muito tênues e complexas, certamente os profissionais de
saúde precisam desenvolver recursos mais saudáveis para fazer frente a tantas rupturas e
172
projeções emocionais as quais encontram-se frequentemente expostos.
Por outro lado, o sofrimento faz parte da vida e não se pode prescindir de conflitos
no âmbito das instituições. Os dados analisados levaram a resultados que confirmam, em
sua maioria, as premissas colocadas acerca das vivências do sofrimento institucional
desses trabalhadores, no sentido do risco em que se encontram por estarem expostos a um
sofrimento invalidante, sem significado e que, numa linguagem de Dejours (2000), poderá
levá-los ao adoecimento.
Esse trabalho de riscos constantes se caracteriza pela perigosa fronteira dos
vínculos estabelecidos entre o eu e o outro, bem como pelo insuficiente desenvolvimento
dos recursos necessários. Muitas vezes os trabalhadores relataram situações nas quais se
viam como mães (pais) dessas crianças doentes ou mesmo “misturadas” (os) em uma
relação contra-transferencial. São múltiplas as manifestações, no trabalho ou ao voltar
para casa, olhar os filhos e sentir angústia, dormir e acordar em sobressaltos chamando
por uma ou outra das crianças internadas, não conseguir fazer um procedimento invasivo
ou não poder “visitar” um doente que se encontra com um quadro muito crítico.
Mais preocupante parece ser essa incapacidade insidiosa de poder identificar em si
mesmo o grau de danos, de amarguras e tristezas e suas implicações para a própria saúde.
Preocupante porque se não pode perceber o dano a sua saúde não pode perceber também a
necessidade de se proteger, nem mesmo de lutar por sua saúde junto com seus pares.
Muitos trouxeram um gradual desinvestimento no trabalho como fonte de
gratificação. Relacionaram esse desinteresse às constantes frustrações nas relações de
trabalho, com a organização, com a descrença em um trabalho em equipe integrado e,
especialmente, com a falta do reconhecimento profissional. Muitas foram as situações
relatadas no que se refere a falta do reconhecimento por seus pares, pelos usuários, pelo
sistema de saúde. Tal sentimento parece ter possibilitado que se vissem sob uma lente de
desqualificação, abalando sua auto-estima e a confiança em sua identidade profissional.
Concomitantemente, apareceu a manifestação de desconfiança em relação aos colegas e
um profundo sentimento de solidão no trabalho.
As três equipes que fizeram parte do estudo, diferentemente de muitos outros
profissionais da instituição, predominantemente se caracterizaram por uma forte
capacidade de vincular-se às crianças doentes e com importante capacidade de
173
acolhimento. Todavia, nem sempre mantiveram preservados seus recursos de saúde para
proteger-se da imensa carga de dores e de perdas que, para esses trabalhadores, eram
vividos como mortes de partes de si mesmos.
Dessa forma, o sofrimento excessivo que sobrecarrega, exige e impõe pesadas
demandas aos mecanismos de proteção do sujeito - que funcionariam como sinalizador da
ameaça ao adoecimento – leva ao risco de invalidar essa função e tornar o sujeito
suficientemente familiarizado com estes excessos, a ponto de não mais lhe causar
estranheza ou indignação. Tal foi a gama de relatos escutados nas entrevistas realizadas.
Tamanha é nossa capacidade adaptativa que o perigo é naturalizarmos a doença e
perdermos o limite da sanidade e da indignidade humana.
No entanto, esses sujeitos cuidadores da saúde ainda mostram enamoramento
quando falam do trabalho. O conteúdo de suas falas é carregado de emoções, mesmo as
amarguras relatadas mostram nostalgia de um sonho ou muitos sonhos quase realizados,
em parte possíveis, em parte a serem recriados. Parecem sonhos coletivos como os
realizados em algum plano, na luta que orienta os princípios do SUS pela eqüidade, pela
integralidade e universalidade na saúde.
A capacidade resiliente dessas mulheres e homens ainda é o que ampara a saúde
daquelas crianças e jovens doentes no hospital. As estratégias defensivas relatadas para
proteger-se do sofrimento criando formas coletivas ou individuais de não perder o afeto e,
tampouco, desistirem de si mesmos, centraram-se em três pontos:
Se sentirem parte do grupo, reconhecidos e valorizados na realização de seu
trabalho é o que lhes mantêm com motivação, com “tesão” para trabalhar.
Buscam desligar-se totalmente ao sair do hospital, procurando se envolver em
atividades prazerosas com a família, com os amigos ou sozinhos.
Referem que o prazer que sentem no seu trabalho, em suas atividades, é o
principal responsável por não adoecer.
Os resultados trazidos parecem vir ao encontro da tese por mim elaborada na quase
totalidade dos resultados analisados. No entanto é importante ressaltar que muito há a ser
estudado nessa temática. É necessário que outros pesquisadores possam investigar distintos
aspectos que aqui não puderam ser contemplados, pela própria delimitação do trabalho, assim
como sob outras abordagens, outros olhares sobre o mesmo fenômeno, o que sem dúvida
174
trará novas dimensões de compreensão da imensidão das possibilidades humanas.
Deste modo, cabe uma vez mais reafirmar aquele que foi um importante ponto de
partida e de orientação das buscas realizadas ao longo deste estudo, ou seja, a tese inicial:
“O ato de cuidar de crianças e adolescentes gravemente enfermos e ou com risco
de vida, mobiliza conflitos e angústias capazes de gerar sentimentos de desqualificação e
crise de identidade profissional (e pessoal) nos trabalhadores de saúde. As características
deste trabalho, aliadas a de cada sujeito trabalhador e a do cenário político institucional,
podem resultar em intenso desgaste físico e emocional, causando sofrimento psíquico
adoecedor e danos a sua saúde em geral, o que poderá favorecer o descrédito na sua
capacidade de trabalhar criativamente com a equipe e instituição, na busca por alternativas
de superação aos impasses colocados no âmbito de seu cotidiano profissional, das
relações, da organização do trabalho e das políticas de saúde.”
Esta tese continua, para mim, sendo indicadora de uma imensa diversidade de
possibilidades de estudos e reflexões, uma vez que as nuances até aqui exploradas
reafirmam, ampliam e expõem novas questões deste complexo e importante objeto. Por
fim, ao “tecer” esta tese, tecendo tantas escutas, penso mostrá-la como possível e
fundamental, mostrando ao mesmo tempo a sua provisoriedade, uma vez que o mesmo
ato de fazê-la já a concebe como outras tantas escutas.
Os objetivos desse trabalho, mesmo que considerados como atingidos, levam a
busca da promoção de estratégias de saúde a serem desenvolvidas, imperativamente, junto
aos sujeitos desse estudo; estratégias que possam se multiplicar e fortalecer o que esses
trabalhadores já trazem consigo no limiar do seu trabalho, onde a morte, em suas várias
facetas, nos fala em vida.
Quem sabe ao final não se possa mais distinguir o lugar que começa um
conhecimento e onde termina outro, tais os pontos de interseção entre eles? E, ao
mesmo tempo, quem sabe se possa fazer tal integração sem ocultar o que cada
traço tem de singular? Não é o que se deseja com um sistema de saúde que tenha
por princípio a defesa da vida? Afinal, a vida é individual e coletiva; é singular e
plural; é frágil e forte; é definitiva e efêmera
35
[...]
35
L’ABBATE (1997 p. 290).
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APÊNDICES
APÊNDICE 1 - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA
OS PROFISSIONAIS DE SAÚDE
Meu nome é Jadete Rodrigues Gonçalves e estou desenvolvendo a pesquisa “O
profissional de saúde em enfermaria de crianças gravemente enfermas e as implicações
do cotidiano do trabalho na sua saúde”. Na busca de identificar os aspectos de saúde, de
criatividade, de satisfação construídos neste contexto de trabalho, individualmente e /ou
coletivamente, considerando-se a diversidade de fatores que podem contribuir para o
empobrecimento da capacidade e dos recursos dos profissionais de saúde no contexto
institucional bem como os aspectos que o possibilitam trabalhar de modo saudável a partir da
complexidade que envolve o cuidar de crianças gravemente enfermas em uma conjuntura de
trabalho muitas vezes permeada por importantes dificuldades, pretendo investigar o processo
de adoecimento do profissional de saúde neste ambiente de trabalho. Assim, tenho por
objetivo compreender fatores que podem levar ao adoecimento desse profissional, a partir da
organização de seu trabalho, na relação com a instituição, com a equipe, com a criança e seus
familiares e quais recursos de saúde são por ele utilizados, visando a construção individual e
coletiva de estratégias de enfrentamento.
Entendo que este estudo é importante para compreendermos a dinâmica do trabalho
dos profissionais de saúde no dia a dia das enfermarias e ambulatórios no sentido de
podermos identificar as fragilidades construídas neste cotidiano de estresse hospitalar de
modo a se poder criar e potencializar estratégias possibilitadoras de um trabalho coletivo que
produza saúde também nos cuidadores.
O estudo será realizado em quatro etapas. As três primeiras etapas se darão
concomitantemente. Uma destas etapas constará de entrevista com os profissionais integrantes
do grupo. Outra etapa se dará através de observação sistemática das atividades realizadas pela
equipe, sejam elas atividades envolvendo os próprios profissionais (reuniões, passagem de
plantões, discussões de caso, elaboração de materiais, etc) ou atividades desenvolvidas com os
usuários (procedimentos, atendimentos no leito, visita médica, reuniões, atividades com os
acompanhantes ou familiares, consultas, etc). Sendo realizada em períodos previamente
combinados e delimitados. Para registro das observações será utilizado um diário de campo.
Uma terceira etapa será feita através de pesquisa documental, isto é, a partir de registros que
possam ajudar a entender o processo de trabalho das referidas equipes como, atas de reuniões,
protocolos, documentos formais e informais que possam estar disponíveis. A quarta etapa se
fará através de grupo focal. Este encontro grupal deverá ser realizado para apresentação e
discussão do material pesquisado já em sua primeira elaboração dos dados colhidos na
pesquisa. Espera-se que os grupos possam discutir com base neste material apresentado e que
possam contribuir com as colocações que julgarem pertinentes. Dessa forma permite-se, ao
mesmo tempo, uma validação desses dados apresentados. Os grupos serão formados em cada
setor de trabalho dos membros participantes da pesquisa, ou seja, três grupos focais distintos,
um encontro com cada equipe, em cada uma das três unidades. Estima-se, a princípio, um
encontro de cerca de duas horas de duração. Para registro do material desenvolvido nos
encontros grupais e nas entrevistas serão utilizados gravador (desde que autorizado e
preservando-se o sigilo) e outros recursos a serem criados a partir dos encontros. O período de
tempo esperado no processo de coleta de dados na instituição deverá ser de cerca de três a
quatro meses considerando-se a disponibilidade conveniente às equipes.
184
Neste sentido, gostaria de contar com a sua participação através deste processo
relatado acima, bem como gostaria de obter sua autorização para participar das atividades
realizadas por você. Se tiver alguma dúvida em relação ao estudo antes ou durante seu
desenvolvimento, ou desistir de fazer parte dele, poderá entrar em contato comigo
pessoalmente ou através do telefone (0xx48) 99981914 ou 2331268. Os dados fornecidos
serão confidenciais, e os nomes dos participantes não serão identificados em nenhum
momento. As informações coletadas serão utilizadas em minha tese de doutorado, e
eventualmente na publicação em livros, periódicos ou divulgação em eventos científicos.
Você terá pleno acesso a todo material fornecido por você estando livre para
acrescentar ou retirar as informações que julgar pertinente. Ainda, se desejar, poderá deixar de
responder às perguntas que julgar conveniente. A qualquer momento lhe é dado o direito de
desistir da participação no estudo. Cabe também ressaltar que não haverá riscos e nem
desconfortos aos participantes. Não estará previsto ressarcimento por não haver ônus
financeiro de espécie alguma para os sujeitos da pesquisa ou para a instituição.
Desde já agradeço sua inestimável colaboração, que poderá contribuir para a busca
de aprofundamento do conhecimento já produzido nesta área, nos últimos anos assim como, a
partir deste conhecimento, se subsidiar ações mais contundentes que revertam em uma prática
transformadora e possível, dentro do panorama das políticas públicas para a saúde no contexto
atual das instituições hospitalares brasileiras.
_____________________________..... ______________________________
Jadete Rodrigues Gonçalves Dra. Flávia Regina Ramos
Pesquisadora Orientadora
Consentimento Pós-informação
Eu,................................................................................, fui esclarecido(a) sobre a pesquisa “O
profissional de saúde em enfermaria de crianças gravemente enfermas e as implicações
do cotidiano do trabalho na sua saúde” e concordo que meus dados sejam utilizados na
realização da mesma, desde que respeitadas as condições acima.
Florianópolis, _____ de ________________ de 2005.
Assinatura:______________________________________ RG:____________
APÊNDICE 2 - ROTEIRO DE ENTREVISTA
Identificação
Nome:
Codinome:
Idade:
Profissão:
Cargo ou função:
Tempo de trabalho em saúde pública:
Tempo nesta Instituição:
1) O que te levou a trabalhar em um hospital?
2) De que maneira o aspecto público da instituição hospitalar interfere no trabalho que
realizas?
3) No teu entendimento, quais as principais dificuldades encontradas, pelos profissionais de
saúde, no exercício de seu trabalho (nas condições de trabalho):
Em relação ao trabalho em equipe
Em relação aos acompanhantes
Em relação ao paciente infantil
4) Quais os aspectos que identificas como favoráveis à realização de teu trabalho em
enfermaria/ ambulatório:
Em relação ao trabalho em equipe
Em relação aos acompanhantes
Em relação ao paciente infantil
5) Existe relação entre adoecimento do profissional de saúde e trabalho? Como?
6) O trabalho que realizas pode provocar adoecimento no profissional de saúde? Que fatores
identificas como determinante deste adoecimento ? De que maneira se manifesta?
7) Já tiveste alguma doença relacionada ao trabalho ou algum acidente de trabalho?
8) Conhecer aspectos da vida pessoal do paciente, desenvolver vínculos afetivos com ele,
pode ajudar ou dificultar teu trabalho?
9) Qual, ou quais as situações mais difícies de serem vivenciadas pela equipe de saúde?
10) Quantas vezes e por que, considerando os últimos 5 anos, solicitaste licença por
problemas de saúde, faltas e, ou afastamento do trabalho nesta Instituição?
11) Como lidas com as dificuldades encontradas em teu dia a dia de trabalho?
12) Em termos de formação te consideras adequadamente preparado (a) / capacitado (a) para
o trabalho que exerces? A que atribuis o preparo ou despreparo?
13) Qual a relação entre teu trabalho e qualidade de vida?
186
14) O que achas que deveria ser feito para melhorar as condições de teu trabalho? Como
poderias contribuir?
15) Que sugestões poderias dar para viabilizar um bom trabalho em equipe?
APÊNDICE 3 - ROTEIRO DE OBSERVAÇÃO
1) Data da observação:
2) Atividade Observada:
3) Profissionais presentes durante a observação:
4) Atividades realizadas por profissional durante a observação:
5) Usuários envolvidos na atividade:
6) Envolvimento de cada profissional na solução de problemas que surgirem, relacionados aos
usuários, encaminhamentos:
7) Ocorrências durante e no intervalo das atividades (observar registros, comunicação entre os
profissionais, comunicação profissional-usuário, profissionais envolvidos na orientação do
usuário, decisões tomadas e outros):
8) Condições de trabalho (ambiente físico /adequação à atividade, instrumentos de trabalho
utilizados por cada um dos profissionais, técnicas utilizadas...):
9) Ocorrência de conflitos, profissionais envolvidos, soluções encontradas, comunicação:
10) Situações de apoio na execução da atividade, trocas estabelecidas, integração /articulação
dos profissionais na atividade, construções conjuntas:
11) Questionamentos das competências específicas, sobreposição de ações, contradições
aparentes e outras:
12) Satisfações /insatisfações manifestas:
13) Apoio institucional:
14) Trocas estabelecidas em relação ao conhecimento específico de cada área envolvida,
elaborações teóricas:
15) Impressões, sentimentos mobilizados e reflexões da observadora acerca da experiência
observada:
APÊNDICE 4 - AUTORIZAÇAO PARA PESQUISA
De: Jadete Rodrigues Gonçalves
Para: _____________________________________________
Assunto: Autorização para Pesquisa
Prezado(a) Sr.(a):
Na condição de aluna do Curso de Doutorado em Filosofia da Saúde e Enfermagem da
UFSC, solicito a autorização desta Direção / Gerência, para realização de atividades de
pesquisa previstas em meu projeto de tese de doutorado nas dependências desta Instituição. O
projeto de pesquisa intitulado “O profissional de saúde em enfermaria de crianças
gravemente enfermas e as implicações do cotidiano do trabalho na sua saúde”, nasce a
partir de uma trajetória construída ao longo dos últimos treze anos de trabalho em psicologia
hospitalar, entendendo que esta experiência não teria sido possível sem a parceria com as
demais categorias de trabalhadores da saúde que fazem parte deste contexto institucional.
Tem por objetivo compreender fatores que podem levar ao adoecimento do
profissional de saúde, a partir da organização de seu trabalho, na relação com a instituição,
com a equipe, com a criança e seus familiares assim como identificar quais recursos de saúde
são por ele utilizados, visando a construção individual e coletiva de estratégias de
enfrentamento.
O estudo pretende ser desenvolvido em duas Enfermarias e um Ambulatório deste
Hospital com atendimento a crianças e adolescentes gravemente enfermos. Os participantes
da pesquisa serão os profissionais que compõem a equipe de saúde do Ambulatório e das duas
Enfermarias referidas. O critério que guiará a escolha dos sujeitos além da disponibilidade e
interesse para a pesquisa, será o da representatividade das equipes, por categoria, de modo que
os diferentes agentes possam estar todos representados. Se, no decorrer do processo,
considerar-se necessária a participação de outros agentes qualificados, com cargos de direção,
de chefias, estes também serão convidados a participar.
As atividades previstas constarão de uma multiplicidade de técnicas de coleta de
dados: a pesquisa documental, a entrevista semi estruturada, a observação participante,
e o grupo focal. Cada uma destas atividades será devidamente acordada com cada
participante respeitando-se as orientações e compromissos éticos contidos no termo de
189
consentimento livre e esclarecido que fará parte do contrato. O registro dos dados colhidos
será feito através de gravações, caso haja consentimento dos sujeitos envolvidos. Pretende-se,
também, que as entrevistas sejam transcritas pela pesquisadora para preservar todas as
impressões não verbalizadas assim como a manutenção do sigilo.
A pesquisa se orientará e obedecerá aos cuidados éticos colocados pela Resolução nº
196/96 do Conselho Nacional de Saúde, considerado o respeito aos sujeitos e a Instituição
participante de todo processo investigativo, quanto: - à preservação da identidade e da
liberdade de fazer parte ou não do estudo, podendo interromper sua participação em qualquer
momento do processo; - a explicitação do uso que será dado ao material coletado, dos fins de
divulgação de qualquer ordem e da publicação científica de seus resultados como
condicionado à expressa autorização da Entidade e dos participantes; - ao amplo acesso a
qualquer informação acerca do estudo; - o respeito a valores individuais ou institucionais
manifestos, sejam de caráter religioso, cultural ou moral; - à garantia de que os registros,
anotações e documentos coletados ficarão sob a guarda da pesquisadora principal, em seu
setor de trabalho na UFSC, bem como de que só terão acesso aos mesmos os pesquisadores
envolvidos. Cabe também ressaltar que não haverá riscos e nem desconfortos aos
participantes. Não estará previsto ressarcimento por não haver ônus financeiro de espécie
alguma para os sujeitos da pesquisa ou para a instituição.
Parte-se do pressuposto de que um trabalho oriundo de uma necessidade acadêmica
poderá contribuir para a transformação da realidade na medida em que, através da formação
de pesquisadores e de profissionais competentes, produza conhecimento a partir do
comprometimento com e para a comunidade da qual obtém sustentabilidade.
Na certeza de contar com a colaboração desta instituição, agradeço antecipadamente.
Atenciosamente,
Jadete Rodrigues Gonçalves Drª Flávia Regina S. Ramos
Pesquisadora Profª Orientadora
190
ANEXOS
ANEXO 1 – PARECER DO COMITÊ DE ÉTICA HIJG
191
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