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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
INTERUNIDADES EM ESTÉTICA E HISTÓRIA DA ARTE
STELA GARCIA SPIRONELLI
A Imersão na História da Arte
um paralelo entre o passado e o presente
São Paulo
2007
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STELA GARCIA SPIRONELLI
A Imersão na História da Arte
um paralelo entre o passado e o presente
Dissertação apresentada ao Programa
Interunidades em Estética e História da
Arte da Universidade de São Paulo para
obtenção do título de Mestre em Estética e
História da Arte
Área de Concentração: Produção e
Circulação da Arte
Orientador: Prof. Dr. Artur Matuck
São Paulo
2007
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AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL
DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU
ELETRÔNICO, PARA FINS DE PESQUISA, DESDE QUE CITADA A
FONTE.
SPIRONELLI, Stela Garcia.
A Imersão na História da arte: um paralelo entre o passado e o presente
São Paulo, 2007, 102f:
Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo – Programa de Pós-
graduação Interunidades em Estética e História da Arte ECA/FAU/FFLCH.
Orientador: Prof. Dr. Artur Matuck
1. Produção e circulação da Arte 2. Artes Plásticas 3. Xxxxx A Imersão
na História da Arte. I. Título
FOLHA DE APROVAÇÃO
Stela Garcia Spironelli
A Imersão na História da Arte
um paralelo entre o passado e o presente
Dissertação apresentada ao Programa Interunidades
em Estética e História da Arte da Universidade de
São Paulo para obtenção do título de Mestre em
Estética e História da Arte
Área de Concentração: Produção e Circulação da
Arte
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof(a). Dr(a). _________________________________________________
Instituição: ___________________________Assinatura:_______________
Prof(a). Dr(a). _________________________________________________
Instituição: ___________________________Assinatura:_______________
Prof(a). Dr(a). _________________________________________________
Instituição: ___________________________Assinatura:_______________
Para Nonô,
minha primeira e mais querida Mestra,
que me ensinou muito mais que letras e números.
Suas lições vão ficar para sempre em minha vida...
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao Prof. Dr. Artur Matuck, orientador que muito contribuiu para
meu crescimento pessoal, pela oportunidade de realizar esta pesquisa.
Ao Programa Interunidades em Estética e História da Arte, que, com um
grande esforço de professores e alunos, tornou possível esta experiência.
Aos meus pais, grandes incentivadores do estudo e da pesquisa, por
sempre me estimularem e não me deixarem desanimar nos percalços desta
trajetória.
Aos meus irmãos, amigos e namorado, pelo carinho, apoio, paciência e
compreensão em todos os momentos.
À Comissão de pós-graduação, em especial a Neusa Brandão, que sempre
me ajudou e acolheu com uma palavra de incentivo.
À Profa. Dra. Élide Monzéglio, sempre empenhada no desenvolvimento da
pesquisa, que muito me estimulou a começar esta etapa.
À Profa. Esther Schapochnik, pelo auxílio e apoio incondicional na reta final
desta dissertação.
Resumo
SPIRONELLI, S. G. A Imersão na História da Arte: um paralelo entre o
passado e o presente. 2007. 102 f. Dissertação (Mestrado) – Interunidades
em Estética e História da Arte, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2007.
Esta pesquisa teve como objetivo mostrar que a imersão, a integração entre
as artes e a sinestesia não são conceitos exclusivos da arte do século XXI,
mas estão presentes ao longo da História da Arte. Para isso, enfocamos o
conceito de imersão e, com uma seleção de exemplos de importantes
ambientes imersivos da História da Arte, evidenciamos que as técnicas
utilizadas para a criação desse efeito variam de acordo com cada cultura,
tecnologia e período histórico. Por meio da análise técnica e perceptiva dos
ambientes selecionados, apresentamos algumas características
convergentes entre eles, pontos comuns que nos possibilitaram a
elaboração de uma linha de continuidade artística. Assim, traçamos
paralelos entre os ambientes imersivos do passado e as CAVE (Cave
Automatic Virtual Environment), que o consideradas um dos ambientes
mais imersivos da atualidade.
Palavras-chave: Imersão, História da Arte, Sinestesia, Integração, CAVE.
Abstract
SPIRONELLI, S. G. The Immersion within Art History: a parallel between
past and present. 2007. 102 f. Essay (Master Degree) Interunidades em
Estética e História da Arte, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
The aim of this research was to show that immersion, integration of arts and
synesthesia are concepts present throughout the Art History, and not only
exclusive of Art of the XXI century. For that, we focused on the concept of
immersion, and by selecting some important immersive environments of Art
History, we showed that the techniques used to create this immersive effect
vary according to each culture, technology and time. Though technical and
perceptive analysis of the selected environments, we pointed out some
convergent characteristics among them, common points that allowed us to
create a line of artistic continuity. Thus, this research drew parallels between
immersive environments in the past and the CAVE (Cave Automatic Virtual
Environment), which are considered one of the most immersive
environments nowadays.
Keywords: Immersion, Art History, Synesthesia, Integration, CAVE.
SUMÁRIO
1. Introdução _______________________________________ 01
2. Capítulo I
A imersão _______________________________________ 08
2.1 O conceito _______________________________________ 08
2.2 A alegoria de Platão ________________________________ 15
2.3 A imagem e seu espectador __________________________ 21
2.3.1 De Platão à Renascença ___________________________ 21
2.3.2 A câmera escura _________________________________ 22
2.3.3 O século XX ____________________________________ 25
3. Capítulo II
Os ambientes imersivos: de Lascaux à Idade Média ________ 27
3.1 As cavernas de Lascaux _____________________________ 28
3.2 O teatro grego _____________________________________ 37
3.3 As catedrais góticas ________________________________ 51
4. Capítulo III
Os ambientes imersivos: do Renascimento aos dias atuais __ 67
4.1 A pintura e sua perspectiva matemática _________________ 68
4.2 Os panoramas _____________________________________ 72
4.3 O cinema _________________________________________ 78
4.4 O Pós-cinema ______________________________________ 81
5. Considerações finais _________________________________ 92
6. Referências bibliográficas _____________________________ 99
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 01 – O homem vitruviano, de Leonardo da Vinci ___________ 10
Figura 02 – Modelo da CAVE, Universidade de Illinois (Chicago) ___ 19
Figura 03 – Câmera escura, 1646 __________________________ 22
Figura 04 – A Capela Sistina, em Lascaux, na França ___________ 28
Figura 05 – Mapa da caverna de Lascaux _____________________ 29
Figura 06 – Sala Redonda, Lascaux _________________________ 30
Figura 07 – Animais pintados e gravados, Divertículo Axial, Lascaux _ 31
Figura 08 – A pintura do ser humano, Lascaux _________________ 32
Figura 09 – Pinturas abstratas, Nave, Lascaux _________________ 33
Figura 10 – Skene _______________________________________ 41
Figura 11 – Teatro de Siracusa, Itália ________________________ 42
Figura 12 – Teatro Epidauro, Grécia (esquemático) _____________ 47
Figura 13 – Teatro Epidauro, Grécia _________________________ 47
Figura 14 – Vista para o teatro Delphi, Grécia _________________ 48
Figura 15 – Teatro Segesta, Grécia _________________________ 50
Figura 16 – A ogiva da catedral de Auxerre, França _____________ 52
Figura 17 – A fachada norte da catedral de Chartres, França ______ 54
Figura 18 – A fachada da catedral de Notre-Dame, Paris, França __ 56
Figura 19 – A Rosa Norte da catedral de Chartres, França ________ 59
Figura 20 – Plano cruciforme da catedral de Amiens, França ______ 62
Figura 21 – Vitrais do coro da catedral de Troyes, França _____ 64
Figura 22 – Salla delle prospettive, Roma, Itália _____________ 67
Figura 23 – Teto da igreja de Santo Inácio, Roma, Itália _______ 69
Figura 24 – O esquema do panorama _____________________ 72
Figura 25 – O Cineorama de Grimoin-Sanson _______________ 75
Figura 26 – A montagem das câmeras do Cineorama _________ 76
Figura 27 – Sensorama _________________________________ 81
Figura 28 – Sketchpad __________________________________ 83
Figura 29 – Ultimate Display _____________________________ 83
Figura 30 – Metaplay ___________________________________ 85
Figura 31 – Videoplace __________________________________ 85
Figura 32 – Ames VIEW system ___________________________ 87
Figura 33 – Ames VIEW system ___________________________ 87
Figura 34 – Luvas de informação __________________________ 88
Figura 35 – Arquitetura líquida ____________________________ 89
Figura 36 – Vários usuários na CAVE _______________________ 90
Figura 37 – CAVE ______________________________________ 91
Figura 38 – Óculos esterioscópicos ________________________ 93
Figura 39 – A interação na CAVE___________________________ 95
Figura 40 – Simulador de vôo______________________________ 98
1. INTRODUÇÃO
A imersão é um conceito-chave para o entendimento das
mídias atuais. O cinema, a televisão, os games interativos, entre outros
meios, utilizam-se dela para conseguir entrar no imaginário dos usuários.
Para que a imersão exista, é necessário haver um ambiente em que o grau
de consciência do homem seja diminuído em prol do aumento das
emoções.
Esta pesquisa baseia-se nas idéias de Oliver Grau, da
Universidade Humboldt, de Berlim, sobre a imersão. Para ele, trata-se de
um processo de estímulo intelectual, pois tanto no presente como no
passado, na maioria dos casos, ela é uma mudança, uma passagem de um
estado mental a outro. Segundo esse pesquisador, a imersão caracteriza-
se pela diminuição da distância crítica em relação ao que é mostrado e pelo
aumento do envolvimento emocional no que está acontecendo.”
1
A natureza da consciência do homem vem sendo muito
estudada e é fundamental para o entendimento do processo de imersão. O
sistema nervoso humano, através dos nervos sensoriais, do cérebro e dos
nervos motores, controla a consciência, que é um somatório de várias
1
GRAU, O. Virtual Art. Cambridge: MIT Press, 2003, p. 5
sensações simultâneas.
Segundo Packer e Jordan:
2
A consciência é composta por todas as impressões
sensórias que convergem para o cérebro através das
partes sensoriais que compõem o sistema nervoso - os
grandes órgãos receptores os olhos, os ouvidos, o nariz,
a boca e a pele.
Vários elementos relacionados com os órgãos sensoriais
afetam o estado de consciência humano. Assim:
1. para os olhos, temos a imagem periférica ( 180 graus horizontal x 150
graus vertical), a tridimensionalidade, as cores e movimentos;
2. para os ouvidos, o timbre, o volume, os ritmos, os sons, as palavras e
a música;
3. para o nariz e a boca, temos os odores e os gostos;
4. para o tato, há a temperatura, a textura e a pressão.
Estudos mostram que os sentidos monopolizam a atenção do
homem na seguinte proporção, como comentam Packer e Jordan:
3
visão
70%, audição 20%, olfato 5%, tato 4% e paladar 1%.”
Na realidade virtual, a visão panorâmica, associada à
exploração motora e sensorial de um espaço imagético, cria a impressão,
para o usuário, de estar em um ambiente vivo”, em uma outra “realidade”.
O objetivo tecnológico é que o usuário sinta-se no ambiente onde as
imagens estão. Packer e Jordan afirmam:
2
PACKER; JORDAN Multimedia. New York: Norton, 2001, p. 247
3
Idem, ibidem, p. 245
A fantasia de ser transportado para um outro mundo, de
ser levado inteiramente a um ambiente imaginário, é um
desejo primordial do ser humano. Com a multimídia, os
encontros com ambientes imersivos, mundos virtuais estão
se tornando comuns. A realidade virtual se torna, assim, a
extensão lógica da integração das artes.
4
Apesar de a visão ser o sentido mais estimulado nos
ambientes, os outros também devem ser instigados, já que a integração das
percepções sensórias (sinestesia) é fundamental para que a imersão seja
mais efetiva. Por isso, como veremos ao longo da pesquisa, os ambientes
imersivos utilizam-se cada vez mais de recursos sinestésicos.
5
Essa
integração ocorre há muito tempo e é essencial para o efeito imersivo.
O conceito multisensorial data de 15000 a.C. quando os
homens Cro-Magnon
6
pintaram representações de animais nas paredes das
cavernas de Lascaux, na região de Dordogne, no sul da França. Esses
murais ficavam dentro das cavernas, que eram ressonantes, e contavam
com a chama intermitente de velas feitas de pedra e com o cheiro de
gordura animal. Os rituais dos Cro-Magnon eram realizados lá, e podemos
deduzir que, dentro desse “teatro”, muitos sentidos eram estimulados
simultaneamente (visão, audição, olfato).
4
Idem, ibidem, p. xxii
5
Sinestesia é um termo do grego antigo (sin significa com” e aestesis “sensação”). É uma
condição neurológica involuntária em que dois ou mais sentidos são conjugados. O termo,
em arte, refere-se a uma grande gama de experimentos que associam diferentes atividades
artísticas (por exemplo, música e pintura). A arte sinestésica pode indicar a arte criada por
pessoas em estado sinestésico ou a arte feita para gerar uma “experncia sinestésica”.
Nesta pesquisa, usaremos essa segunda definição.
6
O Homem Cro-magnon é um dos grandes tipos do Homo sapiens do período do alto
Paleolítico europeu. As primeiras espécies foram encontradas no sudeste da França, nas
cavernas de Cro-magnon, daí seu nome. Viveram entre 40.000 e 10.000 anos atrás.
Os rituais dionisíacos no teatro grego e as cerimônias nas
catedrais góticas na Europa também são exemplos de celebrações que
integravam diversos tipos de arte para atingir um efeito imersivo.
Richard Wagner, famoso compositor alemão, acreditava no
conceito de Arte Total, uma fusão de artes, cuja dimensão não se
alcançava desde os gregos clássicos. Em seu ensaio de 1849, ele se
utilizou da ópera como veículo de unificação das artes em um único meio de
expressão. Wagner aplicou várias inovações no teatro, como o
escurecimento do ambiente, a reverberação acústica (surround sound) e a
revitalização do anfiteatro grego com ênfase na platéia. Essa inovações
permitiram ao público entrar em contato com a realidade virtual, pela
imersão no mundo imaginário do espetáculo, resultado da integração total
das artes (música, dança, poesia, artes visuais e o próprio palco). O objetivo
de Wagner era minimizar a sensação de dispersão e direcionar o
espectador para o mundo ilusório.
Artistas do século XX continuaram esse esforço para integrar
formas tradicionalmente separadas em trabalhos isolados e, assim,
aumentar o impacto da experiência sensorial dos espectadores.
Acreditavam que a experiência moderna poderia ser evocativa desde que a
arte possuísse em si mesma um completo grau de percepção. Para eles,
somente por meio da integração das artes é que se atingiria uma elevada
gama de percepções simultâneas. Packer e Jordan explicam que formas
tradicionais que limitavam as palavras na página, a tinta na tela, a música
em um instrumento, foram consideradas inadequadas para capturar a
velocidade, a energia e a contradição da vida contemporânea.”
7
O cinema, por integrar imagem, sons, movimento e luz, foi
considerado, por muito tempo, a manifestação artística mais completa.
Vários artistas escreveram sobre a importância da sinestesia. Dentre eles,
Marinetti, em seu manifesto O cinema futurista, declarou que “somente o
cinema possuía o efeito totalizante na consciência humana”
8
e Kandinsky
considerava que “a arte monumental surgiria do uso adequado da
sobreposição das artes.”
9
os cientistas, a partir de 1950, começaram a
criar os “cinemas do futuro”, buscando envolver cada vez mais os
observadores por meio de estímulos perceptivos endereçados a todos os
sentidos.
A visão é o sentido que mais afeta o grau de consciência
humana, por isso, ao longo da história, a imersão vem se baseando nos
avanços científicos e tecnológicos do estudo da imagem.
Para atingir o efeito imersivo, busca-se sempre privar o
observador da percepção visual do ambiente em que ele está. Por exemplo,
no cinema apagam-se as luzes da sala quando o filme começa para que os
espectadores, fixando a visão somente na tela, percam a referência visual
de onde estão e entrem na história do filme.
A associação entre imagem e imersão não é algo recente.
7
PACKER; JORDAN Multimedia. New York : Norton, 2001, p. xxii
8
MARINETTI apud PARKER; JORDAN Multimedia. New York: Norton, 2001, p. xx
9
KANDINSKY apud PACKER; JORDAN Multimedia. New York: Norton, 2001, p. xv
Pelo contrário, desde os primórdios da civilização, essa relação, necessária
para a criação de um espaço imagético ilusório, está presente nas artes.
Segundo Grau , […] a realidade virtual é parte central das relações dos
homens com as imagens. Ela tem suas raízes nas tradições artísticas
[…]”.
10
Gilles Deleuze afirma que “assim como a câmera escura foi
para a sociedade do espetáculo, o panóptico para a sociedade disciplinar e
a televisão para a sociedade pós-industrial, a realidade virtual é o
dispositivo que melhor representa o papel das novas tecnologias da imagem
na sociedade contemporânea.”
11
Traçar uma linha histórica, por meio da análise de alguns
ambientes, é necessário para mostrar que sempre se buscou produzir
efeitos imersivos, utilizando o conhecimento tecnológico e científico de que
se dispunha em cada época. Isso permitirá ver que muitos artistas atingiram
esse objetivo, criando ilusões endereçadas aos sentidos, principalmente à
visão.
Fica evidente, contudo, que os ambientes imersivos do
passado não se comparam tecnologicamente aos atuais, que o
totalmente gerados por computador, como as CAVE, espaços que, a partir
da projeção de imagens em suas paredes, visam a dar ao espectador a
impressão de estar em um ambiente “vivo”, real. Entretanto, como esta
10
GRAU, O. Virtual Art. Cambridge: MIT Press, 2003, p. 5
11
DELEUZE. G. apud PARENTE, A. O virtual e o hipertextual. Rio de Janeiro: Pazulin,
1999, p. 41
pesquisa quer mostrar, o objetivo dos ambientes imersivos, tanto do
passado quanto do presente, é o mesmo, ou seja, gerar uma “ falsa
realidade” para que o observador experimente, ainda que por alguns
momentos, um outro “ mundo”.
Para atender nossos objetivos, a pesquisa foi estruturada em
três capítulos, além desta introdução e das considerações finais.
O primeiro capítulo, A Imersão, faz uma breve explanação
sobre o conceito de imersão e explica mais detalhadamente os objetivos
pretendidos, bem como os todos utilizados. Também mostra alguns
precursores das CAVE, incluindo-se aí a Alegoria da caverna, de Platão, e a
relação entre a imagem e seu espectador, desde esse filósofo grego até o
século XX.
O segundo capítulo, Os ambientes imersivos: de Lascaux à
Idade Média, mostra alguns enfoques imersivos escolhidos na História de
Arte desde a primitiva famosa caverna francesa, passando pelos teatros
gregos até as flamejantes catedrais góticas.
O terceiro capítulo, Os ambientes imersivos: do Renascimento
aos dias atuais, começa com o nascimento da perspectiva e seu uso na
pintura, mostra o panorama e sua evolução até chegar ao cinema e ao pós-
cinema.
2. CAPÍTULO I – A imersão
2.1 O conceito
Por associar arte, ciência e tecnologia, a imersão é um
conceito pouco estudado na História da Arte. Entretanto, sempre houve
experimentação com novas tecnologias. Assim, as fronteiras entre arte,
tecnologia e ciência se tornaram muito tênues, e vários artistas eram vistos
também como cientistas e vice-versa.
Há muito tempo, os pesquisadores vêm desenvolvendo teorias
sobre as funções dos artistas e dos cientistas e seu relacionamento. Vikebe
Sorensen, em seu artigo A contribuição do artista para a visualização
científica, explica:
12
Artistas são... pessoas que criam algo completamente
original e novo, algo além das fronteiras conhecidas das
bases de informação. Através do uso ou criação de novas
ferramentas, eles mostram novos usos e aplicações que
sintetizam e sinergizam campos. Os artistas levam a
tecnologia ao seu limite, e as utilizam para fins imprevistos.
Os artistas, assim como os cientistas, trabalham com
símbolos abstratos e suas representações para várias
realidades e ferramentas. Aa linguagem utilizada pelos
12
SORENSEN, V. apud WILSON, S. Information Art. Cambridge: MIT Press, 2002, p.19
dois grupos é similar. A ponte intelectual entre a
consideração abstrata e a estética é fundamental para
ambos os grupos.
A integração entre arte, ciência e tecnologia não é uma
característica da arte do século XXI e gerou muitos frutos ao longo da
História da Arte. As pinturas nas cavernas da Era Paleolítica foram
consideradas por alguns estudiosos como as primeiras ilustrações de
observações científicas. No Renascimento, dizia-se que alguém não poderia
ser somente um bom artista ou cientista, sem que tivesse conhecimento da
outra área.
Leonardo da Vinci foi um artista que criou integrando arte e
ciência. Seu desenho conhecido como o homem vitruviano ilustra bem esse
conceito de artista-cientista. Realizado por volta de 1490, ele traz também
várias notas do artista explicando a figura masculina desnuda em duas
posições: com os braços e pernas inscritos em um quadrado e em um
círculo. Conhecida como o Cânone das Proporções por estabelecer as
proporções matemáticas do corpo humano, essa figura é considerada uma
das grandes realizações que conduziram ao Renascimento italiano.
Figura 01 O homem vitruviano
Partindo dos exemplos que mostram a relação existente entre
as criações artísticas e as inovações científicas de cada época, a arte, neste
estudo, é definida como uma área de experimentação e quebra de
fronteiras.
Sobre o processo de criação artística, o programa de Arte
Educação, do Getty Museum, oferece uma descrição abrangente:
13
Fazer arte pode ser descrito como um processo de
resposta às observações, idéias, sentimentos e outras
experiências através da criação de obras feitas pela
aplicação pensada, planejada, habilidosa e imaginativa das
ferramentas e técnicas das rias mídias. Os objetos
artísticos resultantes são frutos do artista e suas intenções,
seus conceitos e atitudes, das circunstâncias sociais e
culturais, e dos materiais e mídias com os quais ele
escolheu trabalhar.
Alguns artistas contemporâneos, percebendo as qualidades
estéticas de imagens científicas ou técnicas, têm utilizado recursos da
ciência para explorar o imaginário e a fantasia, criando o efeito imersivo.
Arlindo Machado considera que “a iconografia científica e tecnológica é uma
referência constante no imaginário do homem contemporâneo”
14
. No
passado isso ocorria. No Renascimento, por exemplo, com o uso da
perspectiva na pintura, os artistas procuravam criar espaços ilusórios para
os observadores, gerando uma sensação imersiva.
O objetivo geral desta pesquisa foi mostrar a evolução da arte
integrada aos conceitos de tecnologia e experimentação, que resultaram
nos ambientes imersivos atuais. É preciso ressaltar que os ambientes
imersivos aqui estudados guardam uma continuidade, formando uma
13
Getty Museum apud WILSON, S. Information Art. Cambridge: MIT Press, 2002, p.19
14
MACHADO, A. Máquina e o imaginário. São Paulo: EDUSP, 1993, p.24
verdadeira História da Imersão.
O caminho da arte que se utiliza das técnicas de ilusionismo,
para atingir o atual elevado grau de integração multisensorial, foi longo. Por
isso, procuramos ilustrar a evolução da percepção visual e espacial do
homem, mostrando como os artistas dominaram novas tecnologias e as
utilizaram para criar novas experiências sensoriais e perceptivas.
Buscamos desvendar, nos ambientes escolhidos, as técnicas
utilizadas pelos artistas para produzir o efeito da imersão. Para isso, foi
importante destacar que ferramentas eram utilizadas, que sentidos eram
estimulados, que grau imersivo era alcançado, que percepções eram
esperadas dos observadores e que características eram peculiares a esses
ambientes.
O objetivo específico desta pesquisa foi comparar alguns
ambientes imersivos expressivos na História da Arte com as CAVE (Cave
Automatic Virtual Environment). Em uma CAVE, tudo é planejado
computacionalmente para que o usuário perca a noção de realidade
exterior. A intenção é instalar um mundo artificial que renda um espaço
imagético total ou que preencha pelo menos o campo de visão do
observador. Além da visão, ali outros sentidos também são calculados.
Estímulos sonoros, táteis e até olfativos podem ser utilizados para que o
usuário tenha uma experiência multisensorial que cause um maior grau de
imersão.
Nossa análise procurou comparar ambiente imersivos atuais e
do passado, tentando achar neles as características que possibilitassem ao
homem concretizar seu desejo de imergir em outra realidade, de sonhar, de
experimentar. Assim, a pesquisa inicia-se nas cavernas de Lascaux, na
França, passa pelos teatros gregos, pelas catedrais góticas, pela
perspectiva matemática na pintura, pelos panoramas, pelo cinema e por
algumas criações de artistas, que foram compiladas sob o nome de pós-
cinema, a partir de 1950.
Gaston Bachelard, em Poéticas do espaço, examinou o
potencial psicológico transformativo dos ambientes reais, mostrando que
eles podem nos submeter a alternados estados de consciência sem mesmo
mudarmos de espaço:
15
Através da troca de espaço, através da saída do espaço
das sensibilidades usuais de uma pessoa, essa pessoa
entra em comunicação com um espaço que é fisicamente
inovador. Para nós não mudarmos de espaço, nós
mudamos nossa natureza.
Esta pesquisa aborda espaços que facilitem ou mesmo
induzam a esses diferentes estados de consciência. Esse critério seleciona
lugares como desencadeadores de sensações imersivas, porque, sem tal
restrição, poderíamos considerar, por exemplo, o sonho como uma prática
imersiva. O fato de fechar os olhos (perder a referência visual do real) e
15
BACHELARD, G. apud PACKER; JORDAN Multimedia. New York: Norton, 2001, p. 295
sonhar faz com que a pessoa entre em um outro estado de consciência e,
consequentemente, de imersão.
Inúmeros outros estímulos também desencadeiam o estado
imersivo, tais como: a literatura, a memória, a fotografia, os games, etc.
Todavia, neste estudo, quase todos os exemplos que foram discutidos são
ambientes arquitetônicos, que entre outras finalidades, buscavam também
gerar um menor nível de senso crítico (consciência) e um maior
envolvimento emocional.
O espaço imersivo virtual, segundo Char Davies, em Changing
space, tem um potencial intrigante. “É como uma arena de construções de
metáforas sobre nossa existência como seres sobre a Terra e de
exploração da consciência de como isso é sentido”
16
. Para ele, esses
espaços são capazes de nos prover de um novo tipo de lugar’, onde
nossas mentes podem flutuar em um ambiente virtual, porém crível de ser
real.
A expressão realidade virtual” , cunhada por Jaron Lanier em
1989, é um paradoxo, uma contradição em si e descreve um espaço de
infinitas possibilidades formadas por ilusões perceptivas que enganam” os
sentidos. Esta pesquisa parte da idéia presente nas CAVE de que tudo é
possível na realidade virtual. Por meio de análises técnicas e artísticas,
buscamos mostrar que esse mesmo efeito ocorria nos ambientes imersivos
do passado.
16
DAVIES, C. apud PARKER; JORDAN Multimedia. New York: Norton, 2001, p. 293
Oliver Grau, em Virtual Art , concentrou-se na pesquisa de
espaços imersivos imagéticos. Ele construiu uma linha histórica, baseando-
se sobretudo no estudo da imagem. Nesta pesquisa, entretanto, buscamos
traçar uma história da imersão centrada não no desenvolvimento da
imagem, mas também no envolvimento de outros sentidos (sinestesia).
Além disso, procuramos mostrar que a arquitetura também é um elemento
importante na construção do efeito imersivo.
Iniciamos a pesquisa com uma explanação breve sobre Platão
e sua Alegoria da caverna, em que explorou as idéias de percepção,
realidade e ilusão. Ali, ele se utiliza da analogia com uma pessoa que,
presa, somente tinha a visão de sombras animadas à sua frente,
constituindo suas únicas referências do que era real. É importante ressaltar
que a caverna de Platão serviu como inspiração para o nome CAVE (Cave
Automatic Virtual Environment).
2.2 A alegoria de Platão
Platão serviu de inspiração para a construção dos sistemas
mais imersivos da atualidade, as CAVE. Na Alegoria da caverna, ele
propunha a harmonia, pela união entre sentimento e razão, no eixo
da coincidentia oppositorum.
Segundo Paulo Loução:
17
Platão, filósofo grego nascido no ano de 427 a.C.
provavelmente em Atenas constituí a síntese perfeita entre
o pensamento racional e a dimensão espiritual dos divinos
arquétipos. Ao contrário de Aristóteles, o mito platônico
não é visto como uma etapa pré-racional da consciência,
mas sim como um meio de comunicação entre a dimensão
racional e a (in)consciência arquétipa do ser humano.
A Alegoria da caverna encontra-se no Livro VII da República, o
maior tratado de Platão e que foi denominado originalmente Politeia. O
humanismo renascentista criou uma subversão semântica para essa
palavra, que, no século XVIII, era o oposto à Monarquia e à Aristocracia. A
República de Platão, contudo, refere-se à Cidade (talvez uma adaptação
mais propícia à palavra Politeia) vista como causa do povo. Esta obra data
do período de maturidade do autor.
A República é constituída por dez livros, que podem ser
agrupados em conjuntos. O livro I é o prólogo, onde há um diálogo sobre a
justiça. O grupo de livros I a IV trata da justiça em uma cidade perfeita. Os
livros de V à VII enfocam a organização da cidade, a origem e a educação
da política e dos políticos, visando à justiça e à felicidade. Os livros VIII e IX
descrevem a cidade justa, a aliança entre justiça e sapiência. Finalmente, o
livro X mostra a recompensa eterna, ou seja, a ascensão à imortalidade dos
que tiverem agido com dignidade.
17
LOUÇÃO, Paulo na Introdução para a Alegoria da caverna. Lisboa: Ésquilo, 2002, p.79
O livro VII, onde se encontra a Alegoria da caverna, que
muitos preferem chamar de “Mito da caverna”, pode ser considerado o livro-
chave da obra de Platão, pois contém a padeia, a filosofia da educação a
serviço da cidade. A filosofia, nesse contexto, é entendida como uma arte
ou ciência, cujo objetivo é o governo justo da cidade.
No texto, o narrador (Sócrates) dialoga com Gláucon, seu
aprendiz. Platão não desenvolve ali apenas um parábola, mas, por meio do
pensamento simbólico, transpõe para a escrita uma realidade psicológica ,
passível de ser vivenciada, mas não redutível ao pensamento racional.
Além disso, como todos os mitos, a narrativa permite variadas leituras.
Platão imagina um grupo de homens morando dentro de uma
caverna subterrânea (spêlaion), que possui uma entrada longitudinal de luz.
Esses homens, que se encontram desde a infância, estão algemados
pelos s e pelo pescoço, de modo que não podem se mover e
enxergam o que está à sua frente. Uma fogueira atrás deles brilha ao longe
e, entre os prisioneiros e a fogueira, há uma trilha elevada por onde
passam homens e animais transportando todo tipo de objetos. Alguns
desses homens falavam.
Os prisioneiros vêem somente as sombras dessas
personagens, projetadas pelo fogo, desfilando nas paredes da caverna e
julgam que são coisas reais, até mesmo com vozes e sons. A realidade,
para eles, eram as sombras dos objetos. Caso um deles fosse libertando e
forçado a andar, a virar o pescoço e a olhar a luz , tais ações lhe causariam
imenso sofrimento. Por isso, segundo Platão, os prisioneiros teriam de ser
pouco a pouco habituados à luz, aos objetos reais, à nova realidade:
Agora, meu caro Gláucon, cumpre aplicar exatamente esta
imagem ao que antes dissemos; é necessário comparar o
mundo visível à caverna, e a luz do fogo que ilumina ao
efeito do sol; quanto à ascensão ao mundo superior e à
contemplação se suas maravilhas, intelige a ascensão
da alma ao mundo inteligível e não te enganarás acerca do
meu pensamento (...)
O Mito da caverna, apesar de datar de mais de 2000 anos,
ainda é atual por poder ser adaptado a variadas dimensões. Ele também é
importante para o mundo artístico midiático, que é um meio imersivo,
conhecido especialmente por captar e manipular imagens e, com isso, criar
aparências.
A metáfora do mito de Platão indica que o é possível a
nenhuma representação artística reproduzir a realidade em sua plenitude
(ilusão), aliás o objetivo da arte não é fazê-lo.
Na caverna de Platão, a realidade dos prisioneiros contrasta
com a do narrador. Resta aos prisioneiros somente a observação passiva
de tudo. Ali, tudo é artifício para que o ilusionismo seja criado. Ela também é
sinônimo de isolamento, uma vez que os prisioneiros estão presos dentro
da pseudo-realidade a que estão submetidos. Arlindo Machado, no
Simpósio Emoção Art’ficial, em São Paulo, em 2004, afirmou que “o mito
sugere também a dicotomia entre o conhecimento sensível e a visão
fulgurante, a aparência e a realidade.”
Platão não revela aos prisioneiros como cria o ilusionismo das
sombras na caverna. Ali as imagens não são reais, são simulacros.
Figura 02Modelo de CAVE
A experiência imersiva da CAVE faz uma alusão à caverna de
Platão; suas múltiplas telas e sistema de áudio surround evocam a metáfora
das representações de sombras da realidade, sugerindo como a percepção
sempre é filtrada pela ilusão da mente.
A primeira CAVE foi criada na Universidade de Illinois, em
Chicago, pelos pesquisadores Thomas de Fanti, Daniel Sandi e Carolina
Cruz-Neira, em 1991. São espaços que, partindo da projeção de imagens
em suas paredes, como na caverna de Platão, buscam dar ao interator
(palavra que substitui o termo espectador que possui um caráter passivo) a
impressão de estar em um outro espaço.
O principal diferencial entre a caverna de Platão e as CAVE
digitais é a interatividade. Os prisioneiros da realidade virtual têm seus
sentidos potencializados, vivem situações novas e sensações até então
impossíveis de serem experimentadas na realidade e extrapolam a
simulação do real.
A possibilidade de movimento livre caracteriza as CAVE (fato
que as diferencia dos demais ambientes imersivos). A dicotomia tão
ressaltada por Platão desaparece nesses novos ambientes digitais,
possibilitando a associação entre idéia e imagem, essência e aparência,
arte e interação, e gerando um ambiente extremamente favorável à criação
e experimentação artística.
2.3 A imagem e seu espectador
2.3.1 De Platão à Renascença
A imersão relaciona-se primordialmente com a imagem e seu
espectador. Desde Platão, as imagens eram analisadas como um mundo de
aparências. Enclausuradas em uma caverna escura, onde o espectador,
acorrentado, não podia observar o mundo real, as imagens eram simulacros
do real.
A Renascença, com o advento da perspectiva, não rompe com
os padrões de aparências. O isomorfismo entre imagem e mundo usa a
geometria para agregar à imagem algo sensível, não somente o inteligível.
Como explica Parente
18
,“ o uso da geometria servia, ao mesmo tempo,
para explicar a natureza e para construir uma imagem que representasse
essa natureza.
O grande diferencial criado pelo uso da perspectiva é a
valorização do ponto de vista do espectador. É a partir da altura de seus
olhos e de sua posição em relação à obra que se estabelecem o ponto de
fuga e o horizonte, e que toda a cena é construída. O observador entra e
participa da obra de arte, que é pensada a partir de sua presença.
2.3.2 A câmera escura
Jonathan Crary, em Techniques of the observer, descreve as
rupturas que os sistemas imagéticos sofreram no início do século XIX.
Mostra como, desde o século XVII, a visão da realidade foi se liberando de
acordo com o desenvolvimento científico. O autor conta que a câmera
18
PARENTE, A. em entrevista à revista Psicologia e Sociedade, maio/agosto 2004
escura foi muito usada como uma forma de auxiliar o pintor a retratar a
realidade tal como ela se apresenta e sem se envolver nela.
Realmente, a mera escura representou um feito pioneiro na
história dos modos de percepção cinematográficos por introduzir uma gama
de possibilidades de experiências visuais por meio das cnicas óticas. Foi
uma inovação comparável à descoberta da perspectiva e um importante
estágio para a construção da individualização do observador. O uso da
câmera escura exigia o isolamento do observador em um local escuro .
Esse isolamento, segundo Crary, fornecia ao observador um ponto de vista
vantajoso, comparável aos olhos de Deus.
Figura 03Câmera escura, 1646
A câmera escura foi uma ferramenta de percepção visual
resultante de um longo processo de descobertas científicas, como comenta
Oliver Grau:
Idéias rudimentares o encontradas em Euclides; as
descobertas de Copérnico e Galilei se depararam com o
problema físico descrito por Leonardo. Trabalhando
sobre os achados de Johannes Klepler e Athanasius
Kircher, tornou-se possível fazer um aparato menor,
redefinir a coordenação das lentes, melhorar os espelhos
refletores, e aperfeiçoar a relação do comprimento focal e
da distância da imagem. Finalmente, Johan Zahn, um
monge de Würzburg, fez uma versão portátil.
19
Com a perspectiva, a imagem passou a ser uma projeção
geométrica e tridimensional sobre a superfície da tela, ou seja, uma
representação racional. Com a câmera escura, a verdade do mundo pôde
se revelar de modo muito mais eficaz, reduzindo a incômoda interferência
dos sentidos humanos. Segundo Crary, Descartes comentava que o olho
ideal para ser usado na câmera escura seria um olho morto, desprovido de
nervos e impulsos óticos, sem cérebro, para que a apreensão da realidade
pelo artista e, consequentemente, sua concepção da obra fossem
totalmente objetivas e desprovidas das confusões dos sentidos.
De fato, com a câmera escura , a posição do homem é a de
um observador externo que recebe passivamente a imagem verdadeira do
mundo a paisagem projetada na tela. A câmera escura separa o
observador do mundo que o cerca e traduz a paisagem em uma
representação. E o sujeito, exterior ao mundo e a seu próprio corpo, analisa
a representação e compreende a realidade. Esse modelo de representação
19
GRAU, O. Virtual Art. Cambridge: MIT Press, 2003, p. 102
isenta de sentidos também entrou em decadência quando estudos
demonstraram que cada indivíduo percebe a obra de uma forma diferente e
que a experiência física e sensorial do espectador é essencial como parte
do processo de percepção da imagem.
A percepção do espectador, que anteriormente se dava
somente com os olhos da razão ou do espírito, passa a ocorrer por
completo. O espectador absorve a imagem em sua totalidade, em todos os
seus aspectos sensoriais. Com essa evolução, a imagem passa a ter um
caráter de imagem-sensação, e o espectador, por sua vez, não é mais um
ser passivo perante a obra, mas adquire um caráter participativo: é
transportado para dentro da obra e faz parte dela.
2.3.3 O século XX
Walter Benjamin, com o seu flaneur, ilustra o papel do novo
espectador. O flaneur é um observador que se transporta a diferentes
lugares e épocas por meio de dispositivos ópticos ( as galerias parisienses,
os espelhos, as vitrines). Assim, para ele, os lugares tornam-se “passagens”
para um outro mundo, um mundo ilusório.
As mudanças ocorridas na evolução da imagem e na
sociedade, entre os séculos XIX e XX, fazem surgir novas formas de arte
que estimulam o espectador a agir, é quando ele começa a se tornar
“interator”.
A partir do século XX, duas estéticas opostas surgem: a
estética da transparência e a estética da opacidade. Diderot, no final do
século XVIII, já comentava esse antagonismo:
Ou você cria uma imagem que vai valer como imagem e
vai manter o espectador à distância, vai criar um processo
de distanciamento em relação ao espectador; ou você cria
uma imagem que vai trazer o espectador para dentro da
imagem.
20
De acordo com a escolha da estética de cada obra, o papel do
espectador também estava sendo definido.
André Parente afirma que uma obra, ou uma imagem, não é
pré-determinada, acabada, em relação ao espectador. Se, na arte moderna,
a obra atribui um lugar para o espectador, na arte contemporânea, uma
tal interação entre o espectador e a obra que ambos vão existir a partir
da relação que se estabelece.
21
Por isso, o termo espectador passa a ser
inadequado para descrever esse ser que é agente e faz parte da obra.
Assim, a antiga discussão sobre o papel do observador frente à
representação da imagem, atualmente, foi substituída pelo conceito de
interação, quando o espectador participa da obra.
20
DIDEROT apud PARENTE, A. O virtual e o hipertextual. Rio de Janeiro: Pazulin, 1999,
p. 27
21
PARENTE, A. em entrevista à revista Psicologia e Sociedade, maio/agosto 2004
3. CAPÍTULO II Os ambientes imersivos: de Lascaux à Idade
Média
A religião sempre se utilizou de técnicas imersivas como forma
de potencializar a mensagem que quer passar a seus membros. Desde a
Antiguidade até hoje temos exemplos de cultos que envolvem tanto seus
fiéis que eles entram em transe e “saem” da realidade por alguns instantes.
Neste capítulo, enfocamos três “templos” imersivos da História
da Arte. Eles pertencem a períodos históricos diferentes e a civilizações e
culturas que, aparentemente, não possuem traços em comum. Sua
similaridade reside no fato de serem ambientes com forte conotação
religiosa, ou seja, os rituais que ali aconteciam eram ligados a algum tipo de
crença, e a imersão a que seus espectadores eram submetidos ocorria sob
o prisma da fé, do místico.
Esse efeito ocorria desde os homens Cro-Magnon, por isso
a caverna foi um palco de cerimônias religiosas. A construção do teatro
grego teve como objetivo a criação de um local de adoração do deus
Dionísio, embora mais tarde tenha perdido essa conotação. Finalmente, a
catedral gótica, símbolo do poder e da da religião católica da Idade
Média, também teve como função principal oferecer a seus milhares de
fiéis, que participavam das missas, um ambiente imersivo.
3.1 As cavernas de Lascaux
Os primeiros vestígios de ambientes virtuais podem ser
datados junto com as primeiras formas humanas de expressão, ou seja, as
pinturas em cavernas pré-históricas, como as de Lascaux, ao sul da França.
Os ambientes imersivos foram criados pelos homens magdalenianos há
17.000 anos e os historiadores os consideram teatros de rituais
performáticos por integrarem várias formas de mídia.
Os magdalenianos foram os povos do último período da Era
Paleolítica, que se caracteriza pelo apogeu da indústria do osso ( com a
construção de zagaias e arpões) e da arte mural (representada pelos
afrescos de Lascaux e de Altamira). Eles eram capazes de produzir
instrumentos e dominavam técnicas (pedra polida). Foram os primeiros
humanos a se aventurarem em cavernas profundas (os povos da primeira
fase contentavam-se em penetrar pequenas cavidades, como Lascaux).
As grutas, com suas as galerias e caminhos estreitos e
impenetráveis, para esses homens, eram um mundo sacro. Em algumas
delas, os magdalenianos provaram a sua capacidade de transpor
obstáculos naturais muito difíceis, marcando o local com signos e figuras
que demonstravam as dificuldades encontradas.
Os animais estão muito presentes na arte pré-histórica. Alguns
estudiosos até consideram que sua beleza está na representação dos
animais. A relação estética e simbólica entre os artistas dos povos
caçadores e a fauna selvagem manifesta-se por uma fantástica abstração
figurativa, comum tanto nas formas plásticas quanto nas gráficas.
A natureza, na época pré-histórica, é o horizonte imaginário do
artista. Ao criar imagens no osso, na rocha e na pedra, o artista não rompia
com seu ambiente natural, mas reforçava uma relação simbólica sublime e
manifestava a eterna associação entre formas inventadas e formas naturais.
Os artistas tiravam proveito da aparência das rochas, pintando sobre elas
de maneira a criar imagens com efeitos tridimensionais (como ocorre, por
exemplo, na caverna de Lascaux, na parte conhecida como Capela Sistina).
Figura 04A Capela Sistina de Lascaux
A maior parte das pinturas e gravuras existentes no dispositivo
parietal de Lascaux são de animais selvagens que viviam nos arredores da
caverna: cavalos, bovinos, caprinos, mamutes, bisões, veados, entre outros.
Há cerca de 2000 imagens, sendo que algumas estão desaparecendo,
enquanto outras se deterioram completamente. Nessas pinturas, o
referências ao ambiente ou à vegetação, e os animais estão sempre de
perfil.
A caverna foi descoberta por garotos que brincavam na região,
em 1940. Em seu interior, nos vinte primeiros metros, um declive que
permite o acesso à primeira sala, a Sala dos Touros. Trinta metros à frente,
encontramos o Divertículo Axial. À direita da Sala dos Touros há uma
galeria baixa, conhecida como Passagem, que leva a Nave e ao Divertículo
dos Felinos e, no outro sentido, à l’Abside e seu prolongamento, o Poço.
Figura 05Mapa da caverna de Lascaux, França
Galerias estreitas e baixas como a Passagem e o Divertículo
dos Felinos se alternam com galerias mais espaçosas e de tetos mais altos,
como a Divertículo Axial e a Nave e com duas salas, a Sala dos Touros
(também conhecida como Sala Redonda) e l’Abside. Essa arquitetura
natural simétrica foi magnificamente utilizada pelos artistas magdalenianos.
Seqüências lineares de figuras executadas sobre as paredes
planas e subverticais de galerias amplas, como a Nave e o fundo do
Divertículo Axial , opõem-se às saídas das estruturas geológicas circulares
das salas. Na Redonda, uma sala de forma oval, há pinturas monumentais,
muito famosas. São frisos, à grande altura, com figuras de imensos touros
cercados de veados e de cavalos, além de signos lineares.
Figura 06 – A Sala Redonda
O teto do Divertículo Axial serve de suporte para figuras de
vacas magras e vermelhas, que preenchem o espaço de uma parede à
outra. Um veado, cavalos “chinesese outros signos as acompanham. Ao
fundo, as formas intensificam-se em dois cantos: uma vaca rebaixada ao
lado, caprinos e outros signos, sendo um muito característico de Lascaux,
os cavalos em relevo.
Figura 07Animais pintados e gravados no Diverículo Axial
Na Arte Paleolítica, quase não existem representações de
seres humanos. Normalmente, elas aparecem em desenhos esquemáticos
e não de forma naturalista, como acontece com os animais. Em Lascaux,
somente uma dessas imagens, pintada em uma das paredes do Poço.
Figura 08A pintura do ser humano em Lascaux
Lascaux caracteriza-se por uma grande quantidade de
desenhos abstratos. Suas pinturas e gravuras concentram-se no teto e nas
paredes. A maior parte delas fica longe da entrada da caverna, em “salas”
de difícil acesso. As grandes dimensões dessas pinturas, sua magnitude e
suas concentrações demonstram que essas salas” mais remotas serviam
de palco de cerimônias para os magdalenianos, eram locais sacros.
Figura 09Pinturas abstratas da Nave
Os materiais mais usados para pintar eram o sangue, os
excrementos, além da argila e outros minerais. Esses elementos geravam
pigmentos vermelho, marrom, roxo, amarelo e preto. Pincéis não foram
encontrados, levando os estudiosos a acreditarem que os artistas pintavam
com chumaços de cabelos, pêlos e palha. Como dentro da caverna não
havia luz, tochas de gordura animal deveriam ter sido utilizadas na
realização das pinturas.
A Arte Paleolítica tem cunho ritualístico. teorias que
consideram que as pinturas desse período foram feitas pelos xamãs
22
do
grupo dos Cro-magnon. Na escuridão das cavernas, eles entrariam em
estado de transe e pintariam imagens de suas visões, talvez com a intenção
22
Xamã é um termo dos tunguska (povo nativo da Sibéria) e significa “o portador de função
religiosa”, aquele que pode voar” para outros mundos, entrar em estado exstático (transe)
e ter contato com seres de outras dimensões e espíritos ancestrais.
de extrair a força dos animais para eles mesmos. Isso favorece a explicação
sobre a antigüidade de algumas pinturas e a variedade de seus motivos:
animais, de presas a predadores, e desenhos de mãos humanas.
Em Lascaux, as mensagens foram codificadas com cuidado e
evocam a escuridão eterna da gruta, a mitologia, as crenças e os
pensamentos de seus criadores.
Essa integração entre o espaço natural e a vontade de
representar por meio de figuras (na maioria das vezes abstratas, mas
também figurativas) marca um fenômeno de comunicação visual e reúne
todos os elementos de crença do homem na parede. A integração da
própria gruta com as imagens define a construção de um espaço e é um
fenômeno cultural, pois mostra o quadro de atividades domésticas e
cotidianas dessa civilização. A imagem era uma forma que o homem pré-
histórico utilizava para demarcar seu território.
Em Lascaux, a miscigenação entre animais e outros signos
mostra a união da obra com a arquitetura natural do ambiente, o que faz
emergir, no observador, a emoção do prazer estético, uma catarse. Na
plástica da obra pré-histórica, o suporte é determinante, fundamental. O
historiador Denis Vialou comenta:
Gravados ou pintados, os signos e os animais de Lascaux
representam uma beleza frágil e envolvente resultante de
uma das maiores civilizações que a Europa teve. A
estreita união entre figuras e seus suportes rochosos e a
arquitetura admirável da gruta ao dispositivo parietal de
Lascaux uma dimensão monumental, uma profundidade
teatral incomparável.
Ao penetrar em Lascaux, ninguém escapa a uma emão
estética intensa: a arte está presente em todos os cantos.
E esarte é fruto de uma concepção simbólica dos signos
abundantes e variados e suas ligações espaciais com os
animais.
23
Lascaux, cnica e artisticamente, constitui o ambiente
imersivo mais primitivo de que se tem conhecimento. A caverna, com suas
inúmeras galerias e estreitos, serviu de espaço para os rituais dos homens
pré-históricos. Lá, durante esses rituais, homens ficavam imersos em um
ambiente quase totalmente escuro; a luz que existia era intermitente, pois
vinha das velas de osso que alguns deles carregavam. Com essa luz, era
possível observar as pinturas “tridimensionais” criadas, signos da cultura
desse povo. Era nesse espaço que aconteciam suas celebrações. É
possível que, durante essa experiência sensorial e perceptiva, eles
conseguissem se envolver emocionalmente, perdendo o grau de
consciência da realidade externa e imergindo em outro “mundo”.
3.2 O teatro grego
O teatro grego como um ambiente imersivo tem suas origens
nos primitivos rituais religiosos da antiga Grécia. Ele era considerado um
local sagrado, pois as peças que eram ali encenadas homenageavam o
23
VIALOU, D. Lascaux et l’art magdalein. Paris: Histoire et archeologie, 1984, p. 67
deus Dionísio. Os espectadores faziam parte dessa cerimônia como em
uma congregação religiosa, por isso o lugar ideal para a construção de um
teatro era nas imediações do templo de um deus.
Dionísio foi primeiramente o deus dos Poderes da Natureza.
Seus seguidores renunciavam seu próprio ser (ectasy) e se tornavam um
outro, humano ou bestial. Assim, o uso de máscaras e disfarces foi parte do
seu culto desde o início.
Formaram-se, em meados do culo VI, dois grupos de
encenação, um sério e outro cômico. Nesse período, os corais, vestidos
como homens-cavalos (satyrs), dançavam e cantavam em honra ao deus
um hino chamado ditirambo.
Ditirambo era um canto em coro feito de elementos alegres e
tristes, que narrava algumas passagens da vida de Dionísio. Esse canto
acabou se definindo como trágico e dele se originou a tragédia: uma
representação viva que narra fatos acontecidos no plano mítico.
O coro, que a princípio cantava em uníssono, dividiu-se em
perguntas e respostas, mas ainda sem caráter trágico. Um corifeu
24
coordenava esse diálogo. Em algum momento, uma voz se distinguiu do
canto coletivo, tornando-se uma unidade autônoma e recebendo as
24
Corifeu é um membro destacado do coro e pode cantar sozinho. Em geral, tem três tipos
de funções: a) exortar o coro à ação, a começar o canto; b) antecipar, ou resumir, as
palavras do coro; c) representar o coro popular, dialogando com os atores.
respostas do coro. Surgia, assim, o hypokrites, o ator protagonista,
simbolizado por Téspis
25
.
Esse ator provocava sentimentos na platéia, que se
transformava em um coro popular e lhe respondia, concordando ou
discordando. Ou seja: a platéia envolvia-se emocionalmente na
representação.
A peça narrava eventos míticos, em que o ator personificava
uma figura mitológica. A imaginação, estimulada pela construção mítica, cria
uma outra realidade que envolve os espectadores, imergindo-os na peça
teatral. Sara Lopes Pereira explica que “a raiz do mito está na tentativa
humana de penetrar, pela imaginação, os esconderijos do que não se pode
explicar de outra maneira: o mistério da existência.”
26
Tematicamente , Dionísio foi perdendo a importância, pois as
pessoas comuns não estavam contentes com o fato de ele ter tomado uma
outra forma. O coral também não mais assumiu o papel de satyrs. Levando
em conta a insatisfação popular, uma peça extra, satírica, começou a ser
apresentada pelos sileni , anões com rabos e orelhas de cavalo, que
compunham o coral, divertindo os espectadores com sua aparência
esquisita.
Os teatros eram ambientes imersivos, pois as pessoas que
participavam das peças (atores e coral) abandonavam o seu ser e
25
Téspis (c.534 a.C.): poeta ático que primeiro colocou em cena um ator cujo papel era
conduzir o diálogo com o coro.
26
LOPES, Sara Pereira. Revista do Instituto das Artes da UNICAMP, Campinas, 1999
assumiam uma outra personalidade. O ator entrava em uma outra realidade
para representar um papel. E a platéia, reconhecendo-se nos personagens
encenados, também entrava em contato com um outro mundo, um mundo
composto de atores, ações, poesia, música, cenários, fantasias, máscaras e
emoções.
Durante o período das guerras persas e a partir da aparição
de Ésquilo
27
, o espírito e os temas das peças ficaram mais sérios. Em
termos míticos e até em eventos históricos de ordem trágica, os temas
apresentavam uma exposição mais profunda dos grandes problemas da
vida. Do mito de Dionísio, as tragédias estenderam-se a toda a mitologia.
Sara Pereira Lopes considera que a tragédia grega teve como
finalidade principal o ensinamento:
A fusão do mito divino com o mito heróico tem sua gica:
os heróis eram a ligação entre o mundo humano e o divino,
além de simbolizarem a existência humana naquilo que ela
tem de mais altivo e profundo. Criando heróis, a
imaginação popular protestava contra as injustiças.
Colocar os heróis no palco, frente aos deuses e o destino,
exaltava os ânimos e convocava os cidadãos a uma nova
maneira de pensar e de agir. [ ] Cabia ao autor encadear
os acontecimentos e encaminhar seu texto de modo a
atualizar o mito, mantendo a platéia num processo de
projeção/identificação entre seus mitos e a realidade,
levando-a, pelo terror e pela compaixão, à purgação de
27
Ésquilo (Elêusis c. 525 a.C. - Gela 456 a.C.): poeta trágico grego, é considerado o
fundador da tragédia. Foi soldado em Maratona, Salamina e Plateias (o que explica suas
várias peças militaristas). Na sua obra, destaca-se a importância do sofrimento. Escreveu
79 tradias (segundo alguns autores cerca de 90), das quais se conservaram apenas sete
completas.
suas emoções e à catarse final.
28
A partir do final do século VI, a tragédia e as peças satíricas
começaram a fazer parte do Grande Dioniso, um festival blico feito todos
os anos, na primavera.
Da reação barulhenta (komoi), comum nos festivais
dionisíacos, com suas chacotas, piadas sujas, murmúrios de todo o tipo e
mostras de pênis como símbolo da fertilidade, surgiu, por volta de 500 a.C.,
em Atenas, um novo tipo de representação, conhecida como “comédia”.
Enquanto isso, nas cidades dóricas, imitações e apresentações com
pessoas travestidas foram muito desenvolvidas.
A emoção era o elemento essencial para que a imersão
ocorresse, tanto na tragédia quanto na comédia. A tragédia e a comédia
propunham a embriaguez, estado que permite o distanciamento do real e a
entrada numa outra dimensão da realidade, proposta que permaneceu
como um dos fundamentos da arte teatral.
Pouco depois de 490 a.C., a performance de comédias passou
a fazer parte do Grande Dioniso de Atenas. Desde a era pericliana
29
, as
comédias, as tragédias e as peças satíricas eram oferecidas ao deus em
um outro festival: o Lenaea, durante o inverno. Para a apresentação dessas
peças, a primeira coisa necessária era um local de dança (orquestra).
28
LOPES, Sara Pereira. Revista do Instituto das Artes da UNICAMP, Campinas, 1999
29
A era pericliana (461 a.C. a 429 a.C.) foi o período em que Péricles liderou Atenas na
Guerra do Peloponeso. Péricles foi um importante e influente governante, orador e general
de Atenas, em seu período de Ouro (entre as guerras persas e as peloponesas).
O primeiro teatro a ser construído era muito primitivo e
constituía-se de uma orquestra circular com o altar para o deus no centro.
Uma estrutura de madeira (skene), o palco atual, era colocada para cada
ocasião, ao sul da orquestra. A performance, feita por um grupo de atores e
o coral, era apresentada na orquestra. Dança e música tinham um papel
essencial na apresentação. Assentos eram dados somente a padres e
oficiais.
Mesmo com uma estrutura tão simples, não faltavam ao teatro
a decoração e outros apetrechos de palco. Pintando a skene de madeira,
representavam um templo ou palácio, por exemplo, enquanto a abertura da
parede possibilitava que as pessoas vissem o que estava sendo
representado ou, ao menos, tivessem uma idéia do que estava acontecendo
lá dentro.
Uma paisagem podia ser simulada em pilares de madeira com
formas de prisma na frente da skene, e divindades e deuses podiam ser
feitos para ali flutuar. Somente no século V, uma skene de pedra foi
construída, com a elevação de uma parede longa com a estrutura central
voltada para o sul da orquestra.
Figura 10Skene
Ao mesmo tempo, na skene foi criada uma parede ao norte
com abertura para o Santuário de Dionísio. A multidão continuava a ficar na
escadaria da Acrópoles, agora com galerias, mas esse auditório natural não
podia enxergar a skene por causa das paredes de cada lado da orquestra.
Isso mostra que ninguém se preocupava com o conforto das milhares de
pessoas que se agachavam nas íngremes escadarias. Afinal, o blico não
estava ali para ser entretido, mas fazia parte de um serviço religioso público.
O cenário principal, em todos os teatros gregos, era a
natureza circundante, que era levada em conta na construção dos teatros
ao ar livre. Em Siracusa , na Itália, por exemplo, o mar é pano de fundo para
quem entra no anfiteatro.
Figura 11Teatro de Siracusa, Itália
Esses anfiteatros, portanto, eram os locais externos das
performances dramáticas do festival Grande Dioniso, que começou com a
busca de uma antiga imagem de Dionísio, que era cultuada em um pequeno
santuário a oeste da cidade, do qual ela havia sido retirada. Para o povo,
anualmente, na noite desse dia, o deus entrava pela luz da tocha nesse
antigo templo e em outros dois que ele possuía abaixo de Acrópoles. Na
manhã seguinte, ele demonstrava o poder e o esplendor do estado Ático em
um festival, como o de Panathenaea
30
.
Dionísio recebia grandes sacrifícios. Sua imagem ficava na
orquestra e os duelos aconteciam em meio a hinos e ditirambos. Havia
procissões de mascarados com comportamento barulhento, acompanhados
30
Panathenaea era um festival religioso que ocorria, anualmente, em homenagem à deusa
Atenas. A cada quarto anos era realizado o Grande Panathenaea, com competições
atléticas, musicais e teatrais. Seus jogos eram os mais importantes para os cidadãos de
Atenas, mas não tanto quanto os jogos olímpicos.
de piadas, noite a fora. Em cada um dos três dias, três tragédias e uma
peça satírica eram apresentadas e, no quarto dia, normalmente havia cinco
comédias.
Os trabalhos dos escritores tanto das três tragédias quanto da
peça satírica ou comédias era aprovado ou não, no Grande Dioniso, pelo
arconte
31
e, no Lenaea, pelo mais alto oficial sacro, o basileu. Se a peça
fosse aceita, o arconte ou o basileu considerava o autor um corego,
responsável pela preparação do coral (dança e canto), que, nas tragédias,
era formado por 12 a 15 homens e, nas comédias, por 24.
No início, o corego era também o único ator. Mais tarde,
quando o número de atores aumentou, ele era o protagonista. Tinha que ser
eficiente na dança, na música, na direção e em gestos. A expressão facial
não tinha tanta importância já que os rostos ficavam escondidos pelas
máscaras, que mudavam de acordo com os papéis que os atores
desempenhavam na peça. As máscaras grotescas, as barrigas gordas e os
pênis grandes não permitiam a mesma mobilidade das peças atuais.
evidência de uma extraordinária produção artística em
Atenas, e seus autores criaram muitas peças, ou seja, 386 tragédias e 339
comédias. Assim, ano a ano, Dionísio recebia presentes especialmente
preparados para o festival e todo mundo podia fazer parte desse grande
evento.
31
Arconte, na Grécia antiga, era o magistrado que ocupava um dos cargos mais
importantes do governo da cidade.
Todo o acontecimento era uma cerimônia religiosa, e todos os
cidadãos deveriam poder participar. Os padres, que tinham posição
privilegiada nos cultos, sentavam-se perto da orquestra, assim como os
grandes chefes civis e militares daquele ano e convidados de honra do
exterior. Atrás deles, a multidão lotava a colina. Desde Péricles, os mais
pobres não pagavam a entrada.
Nas apresentações de tragédias, era permitida a presença de
mulheres, que eram proibidas, por motivos desconhecidos, nas comédias.
O nível intelectual das peças encenadas era impressionante.
Nelas, prevaleciam nas primeiras os temas universais. Os grandes autores
trágicos enfocavam os problemas fundamentais da vida, enquanto os
comediantes se valiam desses problemas para escreverem seus alegres e
divertidos versos. Exatamente por esse motivo é que as tragédias resistiram
mais ao tempo, se comparadas às comédias.
Enquanto as tragédias lidavam com os aspectos éticos,
religiosos e intelectuais da problemática dos indivíduos e da comunidade, as
comédias do culo V ridicularizavam os cidadãos, os poetas, os filósofos,
os demagogos e os generais. Segundo Junito Brandão:
Não era somente o valor poético das peças sérias e
alegres que colocavam as performances do festival
Dioniso entre os eventos mais importantes da vida pública;
comparecendo a eles, as pessoas sentiam-se
espiritualmente unidas e acima da sua condição de
indivíduo, e agregadas sobre a justiça e a ponderação.
32
O poder unificador desse festival começou a declinar com o
passar do tempo e os interesses privados dos cidadãos ganharam primeiro
plano. As peças produzidas em nome de Dionísio não tinham mais
conotação religiosa, eram profanadas. O coral perdeu importância até
finalmente desaparecer. A tragédia tornou-se uma peça com problemática
psicológica, e a comédia uma peça divertida sobre a vida doméstica.
Somente quando as performances começaram a oferecer
mais prazer estético e entretenimento do que exaltação religiosa e
intelectual, foi que Atenas construiu um teatro maior, feito de pedra.
Essa estrutura, construída por volta de 330 a.C. sobre o local
do antigo teatro, corresponde ao que se pode observar hoje nas ruínas
abaixo de Acrópoles, apesar das várias alterações posteriores. Era um
enorme semicírculo com assentos de pedra totalmente novos. Ascendendo
até a base do muro da cidade, era dividido, horizontalmente, por um
corredor e, verticalmente, por doze fileiras de degraus, que formavam 13
estacas.
Os assentos de pedra das fileiras debaixo eram reservados
para os padres e oficiais. Uma construção com asas e três portas levava à
orquestra, e o espaço anterior tinha duas estruturas de projeção quadradas
e com colunas. Dentro delas, ficam estátuas de poetas e governantes
32
BRANDÃO, J. Mitologia grega. São Paulo: Vozes, 2004, p. 68
famosos. A nova skene, como as antigas de madeira, mostrava somente
uma história, para que houvesse uma ampla vista da paisagem.
Fora de Atenas, as peças foram apresentadas nos festivais
rurais a Dionísio. Durante muito tempo, as performances ocorriam em
condições precárias, mas esses locais mais tarde construíram seus próprios
teatros.
A fama e a glória das celebrações áticas fizeram com que
outros deuses fossem homenageados, como Dionísio o fora. Quanto mais
as tragédias gregas se libertavam das raízes religiosas e políticas, mais elas
se espalhavam pelo mundo grego. Muitos teatros, em santuários,
testemunharam sua expansão. Todos eles foram erguidos depois da
construção em Atenas, por volta de 330
a.C.
O clássico teatro Epidauro, construído com um nobre arco e
impressionante acústica, foi ovacionado por sua harmonia e beleza no
mundo antigo, mas ele data somente do fim do século IV. Hoje, ele é
considerado Patrimônio da Humanidade, tombado pela UNESCO no ano de
1988. As ruínas de Siracusa, Delphis, Pergamum e Segesta são
posteriores.
Figura 12Teatro Epidauro
Figura 13Teatro Epidauro
As arquibancadas do teatro grego destinadas aos
espectadores eram originalmente de madeira. Entretanto, devido a um
terrível desastre nessas estruturas por volta do século V, elas foram refeitas
de modo a serem mais permanentes. Foram construídas sobre encostas
naturais e uniformizadas artificialmente, formando diferentes patamares,
com muros de arrimo, principalmente na frente. Na forma mais antiga do
teatro ateniense, as arquibancadas eram entalhadas na encosta, em linhas
retas, com assentos de madeira.
Figura 14Vista para o Teatro Delphi
Em meados do século IV, uma grande atenção foi dedicada às
propriedades acústicas do auditório e diversos artifícios foram empregados
para ampliar sua ressonância. Os gregos empregavam a tecnologia de que
dispunham em prol de uma maior qualidade do espetáculo, o que resultou
em um maior nível de imersão dos espectadores. A audição, assim, foi outro
sentido estimulado, além da visão (sinestesia) nos teatros.
Para Junito Brandão:
o teatro grego é a evolução dos teatros que haviam se
desenvolvido aentão, uma evolução que é apresentada
justamente por retratar outras formas do homem, dando
importância ao belo, à criatividade humana, ao
sentimentalismo, à representação da representação das
mais diversas ações.
33
Esse autor afirma, ainda, que os primeiros teatros ficaram, de
certa forma, estagnados, justamente por não se desprenderem do aspecto
religioso.
O teatro grego atingiu seu esplendor entre o culo V e o
século IV
a.C., período conhecido como Século de Ouro” , quando a
cultura grega, como um todo, também alcançou seu apogeu.
33
BRANDÃO, J. Mitologia grega. São Paulo: Vozes, 2004, p.97
Figura 15Teatro Segesta
3.3 As Catedrais Góticas
O termo “gótico”, embora designe um estilo arquitetônico e um
período muito civilizado da Idade Média (que se estende da metade do
século XII ao fim do século XV) vem da palavra Goth, ou Visigodo, povos
bárbaros vencidos por Clóvis, no culo VI, que não deixaram traços de
sua passagem pela Europa Ocidental.
Alguns estudiosos remetem a palavra góticoao grego goés-
goéts, que significa bruxaria, sugerindo a idéia de uma arte mágica. Outros
associam a expressão ‘arte gótica’ à palavra francesa argot (seria, portanto,
uma corruptela), que quer dizer uma linguagem convencional, particular de
um grupo, de uma profissão, de uma classe social
34
. É o que os linguístas
chamam de gíria profissional.
A arquitetura conhecida como gótica é genuinamente
francesa, pois nasceu nas províncias que formariam, mais tarde, a França
moderna: l’Acquitaine, l’Anjou, le Maine e, no domínio real, l’Île-de-France,
onde fez suas criações mais significativas, que se irradiaram para toda a
Europa.
A simbologia é muito importante para se entender as catedrais
góticas como templos imersivos da Idade Média. Por meio dela,
percebemos melhor algumas características da arquitetura dessas
catedrais, que apresentam rastros até mesmo dos druidas (sacerdotes
celtas que reverenciavam as florestas como divindades), uma vez que seu
conjunto arquitetônico lembra um bosque petrificado.
As catedrais ticas são símbolos da religiosidade católica e
também dos mistérios profanos que imperavam na Idade Média. Nelas,
sinais cabalísticos por toda parte: nas altas colunas de mármore, nos
capitéis, nos arcos e nos altares.
A característica peculiar da arquitetura gótica é a ogiva ou o
arcobotante. A ogiva é composta por duas curvas opostas que se
encontram formando um ângulo agudo. Sua aplicação, conhecida muito
tempo pelos persas, armênios e egípcios, servia para dar mais resistência
34
Ver Dictionnaire encyclopédique Petit Larousse. Paris: Larousse, 1960
ao arco. Por seus complexos e simétricos empregos do arco, as catedrais
góticas, criadas no século XI no norte da França, superaram as igrejas
ocidentais precedentes em termos tanto simbólicos como arquitetônicos.
Desde a Antiguidade, a esfera e o arco, pelo fato de não possuírem nem
começo nem fim, eram associados à eternidade e, por extensão, à
imortalidade e ao paraíso.
Figura 16A ogiva da catedral de Auxerre
O historiador Hurlimann explica algumas características das
catedrais góticas:
As grandes catedrais se caracterizam por possuírem um
plano cruciforme, com uma nave mais longa que os outros
três braços; uma nave e outros braços que formam o
esquema da basílica, com asas laterais e um centro mais
amplo e alto que recebe a luminosidade de uma claraia;
uma divisória mediana que separa a clarabóia das
arcadas, separando a parte central das asas; arcos sobre
as asas e a parte central; uma divisão longitudinal dos
braços em uma rie de unidades espaciais uniformes ou
baias articuladas como um sistema de arcos interligados
ou eixos cilíndricos; uma terminação oriental do plano
complexo, mais comumente com capelas radiais; e uma
ou mais torres integradas ao corpo principal da igreja,
geralmente do corpo da cruz, ou da fachada oeste da
nave. Muitas catedrais possuem todas essas
características, e todas possuem a maioria delas.
35
Toda igreja medieval era uma evocação da paradisíaca
Jerusalém, a moradia dos salvos, estabelecida após o Último Julgamento.
Esse primeiro significado dos prédios ficava claro no momento da
consagração do ritual católico, quando aquela visão de João era
mencionada. Obviamente, a função prometida de portal da cidade nunca foi
cumprida e a catedral permaneceu, em essência, como um local amplo para
se orar. Sua simplicidade, desde o início, foi aparente. O plano cruciforme,
35
HURLIMANN, M. Cathédrales gotiques en France du nord. Paris: Les Éditions Braun,
1951, p. 129
sua mais importante característica simbólica, prende-se ao fato de a cruz
ser um signo do triunfo de Cristo.
Figura 17A fachada norte da catedral de Chartres
A funcionalidade tinha pouca interação com as formas
arquitetônicas das catedrais góticas. Elas contavam com um santuário ao
redor do altar; um coro litúrgico e uma sacristia, que compunham uma
capela para os clérigos; acessos a altares subordinados; rotas de
procissões para domingos e dias santos e um acesso, atrás do altar
principal, para um pedestal, caso houvesse alguma relíquia que fosse foco
de um culto popular.
O interior da catedral gótica era formado por uma reunião de
partes uniformes. Contudo, a separação arquitetônica que existia entre a
nave e o clero, instalado próximo ao altar, demonstrava que essa divisão
temporal transcenderia até o paraíso.
O tamanho o é critério para inclusão de uma igreja na
categoria de catedral gótica. Sua arquitetura é produto de uma continuação
ininterrupta, lógica e regular da arquitetura românica, apesar de se
contrapor a ela. Os templos românicos eram escuros como cavernas e
apoiavam-se em largas paredes. as catedrais góticas são claras,
exuberantes e suas sustentações estão nas abóbadas. A cúpula de origem
oriental dá vida aos arcos-ogivas, ou ogivas cruzadas. A estabilidade das
construções antigas lugar ao equilíbrio, nas catedrais góticas. Sobre
elas, Christopher Wilson diz:
A catedral tica, opondo-se às formas simples e puras do
templo grego, parece proclamar a complexidade do
homem e do mundo. Ela contém em seu seio múltiplas
moradias, e sua arquitetura tem por missão distribuí-las
com clareza e religá-las: a catedral convoca os homens de
todas as partes, com seus campanários, fachadas,
múltiplos acessos de seus portais.
36
O pensador católico Bernard Chairveaux, que mapeou as
catedrais góticas, afirma que “elas ficam próximas a antigos menires
36
WILSON, C. The gothic cathedral. London: Thames and Hudson, 1990, p.45
(pedras sagradas), considerados centros de energia do mundo”.
37
Explica
ainda que, como a entrada desses templos está sempre voltada ao
Ocidente, ao se caminhar em direção ao santuário, volta-se
obrigatoriamente ao Oriente, lugar onde nasce o sol (saindo-se das trevas
rumo à luz), e em direção ao berço das grandes tradições espirituais.
Figura 18A fachada da catedral de Notre-Dame, Paris
Para ele, a forma da catedral gótica parece modelada sobre os
movimentos da multidão, cuja caminhada e visão ela orienta. Além disso,
seu vasto espaço o se completa sem a potência sonora do órgão e do
coral, que ecoam em sua profundidade.
Auguste Rodin comenta:
37
CHAIRVEAUX, B. apud MAGALHÃES, J. Mistérios dos livros de pedra. Folha de São
Paulo, São Paulo, 2002
Sem seu ritual e suas pessoas, a catedral perde muito do
seu significado; ela conserva sempre sua qualidade
cósmica, seu valor de meditação sobre as dádivas do
universo. Assim, ela trabalha e organiza com uma ciência
profunda a matéria e o pensamento, o espaço e a luz, e
também as massas humanas; e a multiplicidade de ritmos
ecoados entre suas paredes, e os movimentos que
proporciona em seu interior parecem identificar os
fundamentos do espírito e da natureza.
38
O espaço imersivo da catedral nasce do fato de ser um local
onde vários sentidos são evocados ( visão, audição, olfato, percepção
espacial) e dos muitos detalhes pensados para que o envolvimento
emocional e a conseqüente perda de consciência sejam alcançados. Os
jogos de luz e sombra, claro e escuro, pedras e cores, estátuas rebuscadas
que se contrapõem a parede lisas, monstros versus natureza geram um
grande teatro de sensações. A música tem uma função fundamental nas
catedrais, pois ali ela é potencializada pelas reverberações acústicas
criadas por grandes espaços vazios.
Outro elemento importante presente nas catedrais ticas o
os vitrais multicoloridos, que se multiplicam entre as divisórias translúcidas e
causam ricos efeitos de cor. As rosáceas, presentes nos vitrais, constituem
um dos mbolos mais importantes da Ordem dos cavaleiros templários e
dos maçons. Elas são a principal fonte de entrada de luz no interior das
catedrais góticas. Há, geralmente, duas delas nas laterais e uma sobre a
38
RODIN, A. Grandes catedrais. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 57
entrada principal (para muitos estudiosos essa última é a fronteira entre o
sagrado e o profano). O pesquisador Leo Reisler afirma que “uma das
chaves para a interpretação das rosáceas são suas cores, as mesmas do
arco-íris – um símbolo da aliança de Deus com o homem, no fim do
dilúvio.”
39
Para os alquimistas, a rosácea central era chamada de A roda
e indicava o tempo necessário para o fogo agir sobre a matéria,
transmutando-a. Essa visão era reforçada pelo esquema de incidência de
luz sobre todas elas. A rosácea da lateral esquerda, por exemplo, nunca era
iluminada pelo sol. Sua cor negra simbolizava a matéria em estado bruto, a
morte. a da direita irradia, ao meio-dia, uma luminosidade branca ( cor
das vestes do iniciado que acaba de abandonar as trevas). A rosácea
central, ao receber a luz do pôr-do-sol, parece incendiar-se e banha o
templo com um tom rubro, sinônimo de perfeição absoluta, da
predominância do espírito sobre a matéria. Os signos zodiacais também
estão presentes nos vitrais, prova de que a astrologia era admitida pelos
papas da época.
João Magalhães, em artigo sobre as catedrais góticas, diz:
A intenção dos arquitetos ao pintar as rosáceas era fazer
com que a luminosidade criasse a sensação de um fogo
iniciático, durante as speras e na hora mariana (horários
canônicos correspondentes a seis e 18 horas).
40
39
REISLER, L. apud MAGALHÃES, J. Mistérios dos livros de pedra. Folha de São Paulo,
São Paulo, 2002
40
MAGALHÃES, J. Mistérios dos livros de pedra. Folha de São Paulo, São Paulo, 2002
Figura 19A Rosa Norte, catedral de Chartres
A escultura das catedrais é alinhada em cordões de folhagem,
em seqüências de capitéis de decoração vegetal, em séries de figuras de
uma extraordinária liberdade de expressão, concentrando-se em fachadas
com imensas composições. No cristianismo medieval, os animais, com
exceção dos peixes, eram considerados funestos. Entretanto, a fauna está
representada nas catedrais góticas pelos dragões, grifos (figuras
mitológicas meio leão meio pássaro, que representavam os invólucros do
demônio), cavalos (usados pelas forças das trevas), bodes (luxúria), lobas
(avareza), tigres (arrogância), escorpiões (traição), leões (violência), corvos
(malícia), raposas (heresia), aranhas (o diabo), sapos (pecados) e até os
avestruzes (impureza).
A figura mais temida da fauna que povoava o imaginário
medieval era o Bafomé, que aparece com destaque na porta de todas as
igrejas góticas. Metade homem, metade bode, por muito tempo foi
confundido com o demônio cristão. Mas seu sentido é bem outro, como
explica o teólogo Victor Franco:
O Bafomé é um símbolo templário que expressa a
necessidade humana de transcender seus instintos
básicos, a fim de ascender espiritualmente e cumprir seu
papel evolutivo. Ser parte de Deus, até se confundir com
Ele, é o sentido da verdadeira humanização. E este era o
ensinamento maior dos idealizadores do gótico, que
criaram uma arquitetura viva. As catedrais estão tão
perfeitamente integradas ao cosmo e são praticamente
forças da natureza.
41
As abadias romanas haviam criado o esplendor, abriam-se
a multidões de peregrinos e operavam a síntese das atividades humanas.
Porém, continuavam submissas às suas atividades convencionais, aos
horários rígidos dos cantos de hora em hora, em um ritmo estrangeiro à vida
daquele século.
Pode-se afirmar que a catedral gótica resume toda uma época
da humanidade, de uma estrutura social, de um pensamento teológico e de
41
FRANCO, V. apud MAGALHÃES, J. Mistérios dos livros de pedra. Folha de São Paulo,
São Paulo, 2002
uma herança técnica e sensível. Cada catedral gótica tem sua
personalidade, seus temas e seus motivos favoritos. Porém alguns
historiadores afirmam que a essência comum ao estilo gótico reside em
uma textura de teias e em um tipo de purificação traçada com filamentos em
uma pedra dura, talhada com pesquisas de acuidade jamais vistas. A
catedral gótica engrandece a escala subumana. Seu grafismo não é um fim
em si mesmo: ele serve para desenhar e escrever seus volumes. É à essa
arte de manejar os espaços que se deve o prestígio dessas catedrais.
Para se entender o significado da catedral gótica, deve-se
analisar o papel da religião cristã durante o período da arquitetura gótica e
as propostas a que a catedral se destinava. Seu objetivo mais amplo era o
culto, a devoção religiosa. Isso agregava-lhe uma gama enorme de idéias e
sentimentos: a contemplação, a continuidade, a resolução de não mais
pecar, a consolação e a esperança. O significado da igreja, portanto, residia
na crença, na fé.
Figura 20Plano cruciforme da catedral de Amiens
Os ambientes imersivos góticos representavam a verticalidade
da fé e convidavam os que ali entravam a saírem da realidade e a se unirem
com a Divindade. Nesse caso, o misticismo era uma condição para que a
imersão ocorresse. O indíviduo deveria sair de sua condição singular,
transcender ao plano espiritual e coletivo e participar do ritual. Deveria
imergir na celebração por meio dos hinos, da contemplação, da luz, da
acústica e do ambiente.
Algumas inovações arquitetônicas ocorridas no período gótico
tinham suas raízes no período romanesco, como a construção de coros
maiores para abrigar um maior número de clérigos.
Uma outra inovação foi a exibição de novas relíquias no altar e
a transposição de velhas relíquias da cripta para o altar de cima. Em St.
Denis, Suger preservou as criptas antigas por acreditar que elas estavam
em solo sagrado e as sacralizou. A construção de criptas resultava em
coros acima do nível da nave: com o desaparecimento delas, o coro e as
naves ficaram no mesmo nível.
Os clérigos necessitavam de alguma barreira que os
separasse dos demais fiéis, para que o fossem perturbados durante as
rezas, que ocorriam sete vezes ao dia. Foram construídas, então, divisórias,
que separavam o coral em partes. Essas telas, que às vezes têm forma de
uma parede, tiram a visão vasta, pretendida originalmente. Essa exclusão
da congregação foi considerada muito aristocrática, e parte do clero foi
contra ela, julgando-a muito presunçosa.
É importante ressaltar neste estudo que, no ambiente imersivo
das catedrais góticas, ao contrário do que ocorre no cinema por exemplo, a
escuridão não era um recurso utilizado, pois a luz ali era essencial como
elemento que transfigura a aparência sombria das paredes, propiciando aos
observadores sensações de ausência gravitacional.
A finalidade principal de todos esses recursos arquitetônicos
das catedrais góticas era evocar nos fiéis o estado de purificação e
elevação espiritual, para com isso alcançarem um outro estado de
consciência.
Figura 21Vitrais do coro da catedral de Troyes
4. Capítulo III Os ambientes imersivos: do Renascimento aos
dias atuais
O Renascimento, movimento cultural importante na História,
marca o final da Idade Média e o início da Moderna. Representa uma
ruptura no plano cultural da civilização da Europa medieval. Uma de suas
principais características, no campo da pintura, foi a representação realista
da natureza, por meio do uso dos princípios matemáticos na criação da
perspectiva.
Neste capítulo, mostramos que o emprego da perspectiva na
pintura resultou nos ambientes imersivos surgidos a partir do século XV.
Alguns exemplos ilustram como a ilusão torna-se possível, aliando-se a
visão à percepção espacial.
Outro famoso dispositivo foi analisado, o panorama, que se
utiliza dessa mesma união, no final século XVIII. De sua evolução, nasceu
o cinema, cujos princípios imersivos são os mesmos até os dias de hoje.
Para terminar, apresentamos uma série de mecanismos
imersivos feitos a partir de 1950, denominados pós-cinema.
4.1 A pintura e sua perspectiva matemática
Brunelleschi, Masaccio, Ghiberti e outros artistas italianos do
século XV abriram a dimensão do espaço pelo uso da perspectiva. Alberti
até criou a metáfora da janela, segundo a qual “a pintura é uma janela que
se abre em outra, [para] diferentes realidades”.
42
Tanto ele quanto
Leonardo, mais tarde, utilizaram-se desse dispositivo na elaboração de suas
obras.
O emprego das cnicas perspectivas permitiu que os artistas
pintassem a realidade mais convincentemente e que as estratégias de
imersão tivessem um grande desenvolvimento.
No trabalho de Brunelleschi, a percepção visual é o ponto de
convergência entre os achados das ciências naturais e o controle da
natureza. Sobre o emprego da perspectiva, Oliver Grau afirma:
A perspectiva artificialis renascentista introduz a distância
e as quebras na percepção, enquanto que anteriormente a
percepção baseava-se tão somente na representação
natural dos objetos. Agora, todo o processo de
representação baseava-se na forma matemática.
43
42
ALBERTI apud GRAU, O. Virtual Art. Cambridge: MIT Press, 2003, p. 37
43
GRAU, O. Virtual Art. Cambridge: MIT Press, 2003, p. 38
A perspectiva possibilita à arte a representação objetiva da
realidade, ou seja, tal qual ela aparece ao olho humano. O amplo trabalho
desenvolvido por Piero della Francesca fez com que a perspectiva se
tornasse o modo italiano de visualização, em sua época.
Baldassare Peruzzi pintou a Salla delle prospettive entre 1516
e 1518, na Villa Farnesina, em Roma. Ela constitui um dos pontos mais
altos do ilusionismo no Alto Renascimento. Peruzzi, contratado por um
banqueiro de Siena ( Agostino Chisi) e com vasta experiência na pintura de
cenários para teatro, pintou, nos afrescos dessa obra, em exata perspectiva,
colunas que envolvem o visitante; entre os pilares vê-se Roma com seus
belos edifícios e suas pradarias.
Figura 22Salla delle prospettive
A imersão ali ocorre não pelo uso da perspectiva
matemática, mas também pela inter-relação entre ela e os elementos de
decoração da própria construção. Peruzzi cria uma unidade espacial
juntando paredes com vistas individuais. Portas reais foram emolduradas
por elementos arquitetônicos em perspectiva, contribuindo para a ilusão.
Contrastando com elas, foram pintados dois corredores de colunas dóricas
em frente à paisagem. Acima das colunas e abaixo do teto real, foi
construído um teto ornado que parece ser suportado por elas. A melhor
vista deste espaço imersivo é pela entrada oeste, pois foi desse ponto que a
perspectiva foi calculada. Na sala, até o padrão do chão de mármore foi
continuado por meio de pinturas no espaço ilusório.
Vasari, em seu tratado, comenta que até mesmo Tiziano, ao
visitar a sala, recusou-se a acreditar que estava diante de uma pintura.
44
Os espaços ilusórios tornaram-se tão freqüentes durante o
século XVI que vários artistas se dispuseram a recriá-los. Andrea Mantegna
foi o primeiro, contudo, a utilizar o teto como espaço ilusório. Esses tetos
culminaram nas pinturas de tetos barrocos, como o feito pelo jesuíta Andrea
Pozzo na nave da igreja de Santo Inácio, em Roma, realizado entre 1688 e
1694.
Pozzo pintou a imagem do paraíso no teto dessa igreja. Nesse
espaço aéreo, em diferentes níveis, importantes figuras da religião cristã e
anjos circundam Inácio de Loyola, fundador da ordem jesuítica. Assim, a
44
VASARI apud GRAU, O. Virtual Art. Cambridge: MIT Press, 2003, p. 37
igreja adquiriu um aspecto de estar ao ar livre, sem telhado. Pozzo
empregou técnicas de ilusionismo para unir elementos arquitetônicos reais
com a “figura” do paraíso, é como se a igreja e o paraíso fossem um único
espaço. Para contrastar com o teto, a arquitetura real circunda o
observador, e a imersão ocorre quando ele olha para cima, pois a ilusão
criada pela pintura faz com que pareça que o teto não existe.
Figura 23Teto da igreja de Santo Inácio, Roma
A ópera também foi palco do ilusionismo na Academia
Fiorentina. Ali, pintores e arquitetos tentaram recriar as tragédias gregas
dando-lhes um caráter multisensorial e imersivo. O uso da perspectiva
artística criou imponentes espaços, com complexos corredores de colunas e
fantástica arquitetura. Baseados no cálculo matemático, eles deram vida ao
espetáculo com o uso de reflexões de luzes, espelhos curvos e máquinas
que geravam efeitos ilusórios no palco. A Academia expandiu o palco,
criando um novo espaço teatral, onde os atores se tornavam figuras
minúsculas, em múltiplas esferas ilusórias.
Todos os exemplos citados desse período histórico são
importantes do ponto de vista imagético e da percepção espacial, que a
perspectiva da pintura gera um “espaço” ilusório. Contudo, eles não
apresentam características que estimulem os demais sentidos e que, assim,
gerem a sinestesia. Isso faz com que esses ambientes sejam menos
imersivos se comparados, por exemplo, ao teatro grego.
4.2 Os Panoramas
O panorama é um dispositivo imersivo que cerca o espectador
e usa seus sentidos para convencê-lo de que se encontra no lugar
apresentado pela imagem. Alguns estudiosos consideram-no o primeiro
sistema de tele-presença, por isso é em sistema muito importante na linha
histórica imersiva e sensorial.
O termo panorama foi inventado no final do século XVIII, para
designar um conjunto complexo, composto não só por uma imagem circular,
mas também por toda uma estrutura especialmente planejada para tornar
possível a imersão do sujeito num espaço simulado. É formado por duas
raízes gregas, pan (que significa todo) e horama (que quer dizer vista) e se
expandiu devido à imensa popularidade do dispositivo durante o início do
século XIX.
O primeiro panorama foi construído pelo escocês Robert
Barker, em 1787, em Londres. Era uma pintura que reproduzia em 360º a
paisagem da cidade de Edimburgo, na Escócia. Barker não usou o termo
panorama ao patentear sua arte, ele a descreveu como la nature `a coup
d’oeil”. Genericamente, hoje ele é utilizado para descrever uma vista total de
um ponto elevado de uma paisagem ou cidade ou, ainda, formatos amplos e
alongados da imagem de fotografia e vídeo.
Para que o espectador tivesse uma ilusão realista da cena
pintada e se sentisse verdadeiramente naquele local (geralmente era um
ponto alto de onde se pudesse observar uma paisagem ou uma cidade),
Barker desenvolveu uma série de técnicas de perspectiva e de pontos de
fuga. Pintou uma paisagem em uma tela circular, utilizando uma perspectiva
correta. Por meio de métodos empíricos, desenvolveu um sistema de curvas
em uma superfície côncava, que, vista do centro de uma plataforma com
uma certa elevação, parecia verdadeira e sem distorções.
Figura 24O esquema do panorama
O panorama era considerado, na época de sua criação, um
“tableau sans bornes”, uma pintura sem bordas. Isso por que representava
uma nova experiência ótica em uma forma pictórica, ou seja, a possibilidade
de uma visão ampla, sem a obstrução de bordas nem tampouco a
interrupção dos limites do horizonte. E o observador é colocado dentro
desse dispositivo, ocupando uma posição central nele. O historiador de arte
Stephan Oettermann explica, em The panorama, que os panoramas
expressavam na época o recém adquirido direito da burguesia de ver as
coisas de um novo ângulo”, tanto no sentido literal quanto no metafórico.
45
O telhado do panorama, na forma de um imenso guarda-sol,
era escondido por um teto de vidro, que tinha dupla função: deixar passar a
45
OETTERMANN, S. The panorama. New York: Zone Books, 1997, p. 12
luz durante o dia e esconder a borda superior do dispositivo. A luz era
refletida na tela para depois chegar nos observadores, mantendo-os na
penumbra. Os corredores subterrâneos, que os levavam à plataforma, eram
escuros, sem portas ou interrupções. Assim, eles acostumavam os olhos à
escuridão e eram surpreendidos ao encontrarem a paisagem iluminada.
A estrutura complexa do panorama tinha como ponto de
partida o sujeito imerso. Seu formato, que envolvia o observador numa
esfera de imagem e cenografia cuidadosamente construída, pôde ser
pensado a partir do momento em que o homem se posicionou no mundo por
inteiro - com seu corpo, sentidos e emoções.
Inúmeros artigos de jornais demonstraram a empolgação do
público dos panoramas ao descreverem a possibilidade de “visitarem” locais
exóticos e distantes num piscar de olhos, como em um sonho. Essa fuga da
realidade evidencia o alto grau de imersão a que os espectadores eram
submetidos. Oettermann afirma que, nos panoramas, os espaços
imagéticos “reais eram criados à medida em que o observador se
locomovia dentro deles.
A borda inferior da pintura foi escondida mais tarde, com a
criação de um fosso entre a plataforma e a tela, pelo oficial Jean-Charles
Langlois. Isso fez com que o local do observador se prolongasse
indefinidamente na pintura, tornando sua imersão mais efetiva.
A técnica de faux terrain, criada na Renascença e utilizada,
particularmente, nas pinturas Barrocas, foi adicionada mais tarde aos
panoramas, por volta de 1830. As pinturas ilusionistas dos tetos das
catedrais eram combinadas com figuras tridimensionais de gesso,
aumentando o grau de ilusionismo e, consequentemente, a imersão dos
observadores. Esses elementos tridimensionais, nos panoramas, ficavam
localizados no fosso.
O panorama pode ser considerado um dos precursores do
cinema, por aliar o movimento à arquitetura e às pinturas ilusionistas.
46
Os panoramas americanos eram conhecidos como Moving picture e foram
concebidos para produzir imagens em movimento e, assim, substituir o
percurso do observador. O observador era instalado em um espaço que
simulava um barco ou um trem e ali assistia a uma longa imagem que
desfilava diante dele por horas. Isso gerava a sensação de estar viajando
por um rio ou por uma paisagem. A imersão do espectador no Moving
picture ocorria por que esse dispositivo unia imagem, movimento e
cenografia.
As pinturas pouco a pouco foram substituídas por imagens
cinematográficas. Na Exposição Universal de 1900, Raul Grimoin-Sanson
apresentou o Cineorama (patenteado em 1897). Tratava-se de uma cena
panorâmica de 36 mostrando a subida de um balão, projetada por dez
aparelhos. Para sua exibição, foi criado um espaço especial. O Cineorama
foi o primeiro panorama cinematográfico imersivo existente. Era um
dispositivo formado por um prédio circular de 100 metros de circunferência.
46
PARENTE, A. O virtual e o hipertextual. Rio de Janeiro: Pazulin, 1999, p. 35
Suas paredes brancas serviam de tela contínua, onde eram projetadas as
imagens de dez projetores, compondo uma imagem de 360º que parecia
única. O centro da sala era ocupado por uma imensa cesta de balão,
munida de âncora, cordas, contrapeso e escada. O teto era coberto por uma
cortina imitando um envelope de aeróstato. Sob a cesta, eram fixados os
dez aparelhos sincronizados que, uma vez obscurecida a sala, projetavam
vistas de uma viagem de balão.
Figura 25O Cineorama de Grimoin-Sanson
duas grandes novidades nesse dispositivo. A primeira e
mais óbvia é o fato de a imagem ser cinematográfica, aumentando seu
realismo. A segunda é a confirmação de que o emprego do movimento,
experimentado no moving picture, fortalecia a simulação de uma ação.
Tanto o Cineorama quanto os panoramas tinham como
intenção imergir o observador na cena de uma paisagem ou de uma
viagem, permitindo-lhe sentir o movimento.
Figura 26A montagem dasmeras
do Cineorama
Os dispositivos imersivos, geralmente, apresentavam uma
estrutura gigantesca. Ela envolvia por completo o observador e, assim, ele
não podia ver nada além do espaço simulado, passava a apreender a obra
por todos os seus sentidos e o mais somente pelos olhos. Isso evidencia
uma importante característica do espectador moderno a necessidade da
visão total. Aliás, essa visão total, ao posicionar o observador no espaço
(percepção espacial), acentua seu grau de imersão.
4.3 O Cinema
A predisposição do espectador para entrar em uma outra
realidade e abandonar a consciência do real é essencial para que a imersão
ocorra em qualquer ambiente.
Muitos estudiosos analisaram o impacto imersivo do cinema
em seus espectadores. A audiência, extasiada pelas novas e não-
convencionais experiências visuais criadas no cinema, perdeu a capacidade
psicológica de distinguí-las do meio.
O diretor russo Andrey Tarkovsky caracterizava os filmes
como “realidades emocionais”, por que permitia aos espectadores a
experiência de uma segunda realidade”, ou seja, a imersão. Portanto, para
ele, o cinema tem como função a percepção emocional e dirige-se aos
sentidos. E acrescenta:
Todos os elementos gerados pela tecnologia que fazem
com que a audiência creia em uma segunda realidade por
alguns momentos faz com o diretor tenha uma grande
responsabilidade.
47
Sergei Eisenstein, nos anos 40, via a evolução da história da
arte como um processo inseparável do desenvolvimento tecnológico e, na
47
TARKOVSKY, A. apud GRAU, O. Virtual Art. Cambridge: MIT Press, 2003, p. 153
perspectiva de seu tempo, considerava o cinema como o estágio mais
avançado da arte.
48
em 1916, Filippo Tommaso Marinetti, em seu Manifesto
futurista do cinema, declarou que “o cinema é o meio mais dinâmico de
expressão humana por aliar as formas tradicionais de arte às novas
mídias.”
49
O cinema futurista demoliu as limitações e estruturas da
literatura, por meio do impacto de suas imagens e de outros recursos, que
geravam a vários aos outros sentidos (sinestesia).
Rudolf Arheim explica que “o cinema se tornou uma dia
imagética poderosa, pois foi capaz de cativar a audiência das massas
urbanas, preenchendo os requisitos pretendidos por seus precursores”.
50
O cinema foi um dispositivo que proporcionou uma volta à
caverna de Platão, pois essa alegoria pode ser considerada o primeiro filme
em movimento e com uma história sendo relatada. A sucessão de imagens
(sombras) e sons exibidos aos prisioneiros de Platão, em sua caverna,
representavam a realidade, mas também contavam uma história.
O cinema serve-se de alguns recursos utilizados pelos
gregos em seus cultos de mistérios , que eram acompanhados de
representações por meio de sombras, originadas a partir do mito platônico.
Tanto a caverna de Platão quanto as salas de cinema são ambientes
48
EISENSTEIN, apud GRAU, O. Virtual Art. Cambridge: MIT Press, 2003, p. 155
49
MARINETTI, F. apud PACKER; JORDAN Multimedia. New York: Norton, 2001, p. xx
50
ARHEIM, R. apud GRAU, O. Virtual Art. Cambridge: MIT Press, 2003, p. 147
escuros, que se tornam animados, fascinantes, pela projeção de sombras
em suas paredes. Além disso, em ambas, a luz que projeta as sombras é
sempre artificial. Nos dois ambientes, a escuridão, gerando a imersão (que
está entre as sombras e a realidade) acentua o grau de participação do
espectador.
Morin comenta o poder que o cinema possui ao diminuir o
grau de consciência do espectador e colocá-lo em outra realidade por
alguns momentos:
Eu sentia que havia uma ligação profunda entre o
reino dos mortos e o reino do cinema: era o reino das
sombras, o reino pois claro! da caverna de Platão. (...)
Eis um novo filão: a relação entre modernidade e arcaísmo
(...). Não investigação que eu tenha feito que não
comporte o reconhecimento o apenas de uma latência ,
mas também de um renascimento do arcaísmo no próprio
desenvolvimento da nossa modernidade.
Aquilo que se oculta é o que é precisamente essencial:
vós, nós, eu, ao mesmo tempo em que somos
intensamente envolvidos, possuídos, erotizados,
exaltados, assustados, que amamos, sofremos, gozamos,
odiamos, nunca deixamos de saber que estamos numa
cadeira a contemplar um espetáculo imaginário: vivemos o
cinema num estado de dupla consciência. Ora, este estado
de dupla consciência, apesar de evidente, não é
percebido, não o analisamos, por que o paradigma de
disjunção nos impede de conceber a unidade de duas
consciências antinômicas num mesmo ser. O que é
necessário precisamente interrogar é este fenômeno
espantoso em que a ilusão da realidade é inseparável da
consciência de que ela é realmente uma ilusão, sem que,
no entanto, esta consciência destrua o sentimento de
realidade.
51
Realmente, as emoções afloram quando assistimos a um
filme, entretanto, é preciso ressaltar que sempre que um novo modo de
imersão (mídia) é introduzido, ele abre uma lacuna entre o poder da
imagem e a consciência do observador. Essa lacuna tende a desaparecer à
medida que aumenta a exposição do observador a essa mídia. O hábito
diminui a imersão, e logo a mídia perde seu poder de cativar.
A imaginação, por sua vez, é uma condição primordial para
que o cinema se torne mágico. O cinema exige não somente a percepção
do real na tela, mas também a predisposição do espectador para sonhar.
4.4 O Pós- Cinema
No fim dos anos 50, o cinematógrafo americano Morton Heilig
propôs a criação do “cinema do futuro”, no qual imitações da vida tão
convincentes circundavam a audiência que ela acreditava estar sendo
transportada para um outro domínio. Tal cinema, segundo ele,
iria reproduzir o mundo exterior humano tal qual o homem
o percebe em sua consciência; iria ajudar a criar
sensações materiais totalmente novas para cada um dos
51
MORIN, E. O cinema e o homem imaginário. Lisboa: Moraes Editores, 1970, p. 87
sentidos... as quais ele nunca conhecera antes, e agrupá-
los em formas de conscncia nunca experimentada pelo
homem em seu contato com o mundo exterior.
52
Heilig acreditava que esse cinema expandido deveria
estimular não somente a visão e a audão, mas também o tato, o toque e o
olfato. Tratava-se de um verdadeiro “teatro de experiências”, que foi
chamado de Sensorama, uma máquina que catapultava os observadores
para excursões multisensoriais pelas ruas do Brooklyn.
Figura 27Sensorama
52
HEILIG, M. apud PACKER; JORDAN Multimedia. New York: Norton, 2001, p. 239
Na busca por uma experiência virtual, Heilig desenvolvia um
trabalho em que aplicava as tecnologias disponíveis em sua época, mas foi
somente como conseqüência dos avanços da ciência computacional que a
imersão tornou-se mais efetiva.
Em 1965, Ivan Sutherland tinha conquistado o seu lugar
entre os prestigiados cientistas computacionais como inventor do legendário
Sketchpad, o primeiro software interativo:
Um display conectado a um computador digital nos a
chance de ganhar familiaridade com conceitos não
realizáveis no mundo sico. É uma visão através de um
vidro em um paraíso matemático.
53
Por volta de 1970, suas pesquisas culminaram no Ultimate
Display”, que apresentava a informação na forma tridimensional, permitindo
a construção de um mundo inteiramente crível, controlado por computador,
e virtual.
O Ultimate Display era uma sala dentro da qual o
computador controlava a existência do problema. Sutherland sugeriu que o
display apresentasse realidades antes o imaginadas. Seria, portanto, a
aliança entre o computador e o design, a construção, a navegação e a
habitação de mundos virtuais. Essa proposta lançou uma investigação
científica no campo artístico.
53
SUTHERLAND, I. apud PACKER; JORDAN Multimedia. New York: Norton, 2001, p.252
Figura 28Sketchpad
Figura 29Ultimate Display
Essa gama de novas possibilidades encheu a imaginação de
toda uma geração de artistas. Um dos primeiros a considerar as
possibilidades de experiências virtuais digitalmente construídas foi Myron
Krueger.
No início dos anos 70, Krueger criou os trabalhos pioneiros
Metaplay e Videoplace, que visavam a explorar o potencial da interatividade
mediada por computador. Eram ambientes artísticos interativos,
influenciados pelos happenings
54
e desenvolvidos para dar liberdade de
escolha e oportunidades de expressão pessoal aos participantes. O
Videoplace conectou participantes em diferentes locais pela tecnologia de
rede, criando a ilusão de espaços compartilhados. Explicava ele:
Nossa teleconferência criou um lugar feito de informação
que nós compartilhávamos... um mundo no qual a inteira
participação física seria possível. Esse mundo é uma
realidade artificial.
55
54
Happenings
, segundo John Cage, “eram eventos teatrais espontâneos e sem trama”.
Nesse tipo de obra, quase sempre planejada, incorpora-se algum elemento de
espontaneidade ou improvisação, que nunca se repete da mesma maneira a cada nova
apresentação. Geralmente envolve a participação, direta ou indireta, do público espectador
e acontece em ambientes diversos, fora de museus e galerias, nunca preparados para
esse fim. Esse termo foi utilizado pela primeira vez por Allan Kaprow, em 1959. Para ele, o
intuito dos happenings era "tirar a arte das telas e trazê-la para a vida".
55
KRUEGER apud PACKER; JORDAN Multimedia. New York: Norton, 2001, p. 104
Figura 30Metaplay
Figura 31Videoplace
Nos anos 70 e 80, muitos projetos de engenharia ativaram
sistemas de display de ambiente virtual que representariam uma realidade
artificial. Talvez o mais significante deles, em meados de 1980, tenha sido o
Ames VIEW system (Virtual Interface Environmental Workstation), de Scott
Fisher, criado na NASA-Ames Research Center.
A intenção de Fisher foi engajar todo o sistema nervoso
humano em uma apresentação multisensorial do espaço virtual,
estendendo os meios multimídia para além da tela. O Ames VIEW system
incluía um headset com duas telas de cristal líquido, um microfone para
reconhecimento de voz, fones de ouvido para efeitos de surround, um
monitor de head-tracking
56
e uma luva de informação para o
reconhecimento dos gestos do usuário e a localização dele no ambiente
virtual. Fisher, em 1989, no artigo Ambientes de interface virtual, afirmou:
com a total capacidade de tracking do corpo, seria possível
para os usuários serem apresentados no espaço virtual
com representações virtuais deles mesmos, em tamanho
natural, em quaisquer formas que eles escolhessem.
Ambientes imersivos poderiam gerar uma nova forma
participatória, um teatro eletrônico interativo.
57
56
O sistema de tracking localiza os movimentos do usuário no espaço virtual, permitindo
que ele se sinta mais à vontade, aja mais intuitivamente e interaja com o ambiente.
Rastrear, geralmente, envolve a cabeça e a mão do usuário. O rastreamento da cabeça
permite calcular a correta perspectiva do mundo do ponto de vista do usuário. O da mão
serve para gerar interação.
57
FISHER apud PACKER; JORDAN Multimedia. New York: Norton, 2001, p. 257
Figura 32Ames VIEW system
Figura 33Ames VIEW system
Figura 34Luvas de informação
Por meio do tracking, não somente a percepção espacial do
observador estava sendo calculada nos ambientes imersivos, mas também
os sentidos (visão, audição, tato). Nesses espaços, para que haja uma
imersão total, o conceito de sinestesia é muito presente.
A concretização desse “lugar” de infinitas possibilidades tomou
forma na imaginação do público. E William Gibson aproveitou-se dela para
escrever o Neuromancer, uma extensa novela, publicada em 1984, que
descreve em detalhes um futuro no qual a realidade virtual era parte da
vida. As personagens de Gibson habitavam um ambiente virtual que era
possível por meio de uma rede de computadores, a qual ele denominou
Cyberspace. O Cyberspace de Gibson foi a primeira definição literária dos
computadores, servidores e databases que compõem as matrizes das
redes.
Marcus Novak usou o ambiente virtual de Gibson como ponto
de partida para suas próprias explorações teóricas e artísticas. Em seu
ensaio de 1991, Arquitetura líquida no ciberespaço, ele mostra as possíveis
e profundas implicações do uso dessa nova realidade” na arquitetura, nas
noções de espaço e na organização de informação e conclui:
No ciberespaço, como todas as estruturas são
programáveis, todos os ambientes podem ser fluidos. O
artista que planejava esses habitats digitais imersivos é
capaz de transcender as leis do mundo físico. Como
conseqüência, formas arquitetônicas no ciberespaço
podem responder aos observadores, encorajando
interações provocativas e iluminadas. No ciberespaço, a
arquitetura se torna poesia.
58
Figura 35Arquitetura líquida
58
NOVAK, M. apud PACKER; JORDAN Multimedia. New York: Norton, 2001, p. 272
Enquanto a maioria dos pesquisadores de realidade virtual
tentavam projetar o observador dentro do ambiente virtual por meio de
displays head-mounted
59
, alguns engenheiros tomaram um outro caminho.
No início dos anos 90, Daniel Sandin e Thomas de Fanti
conceberam um sistema de realidade virtual que colocava o corpo humano
dentro de um ambiente criado por computador, as CAVE (Cave Automatic
Virtual Environment). Ali, os habitantes”, diferentemente dos usuários do
sistema de realidade virtual baseados nos vídeos, não precisam usar
visores (que limitariam sua visão e mobilidade no mundo real) para
experimentar o ambiente virtual imersivo. Em vez disso, os participantes
são circundados por uma caverna pintada, imersiva e digital, que traz a
evolução de todo círculo de imersão de volta às pré-históricas cavernas de
Lascaux, consideradas um dos primeiros esforços humanos de expressão
pessoal.
Figura 36Vários usuários na CAVE
59
Displays head-mounted o dispositivos que possuem um par de telas em frente aos
olhos do usuário. As telas são montadas em um capacete e podem ser de tubos de raios
cartódicos (CRT) ou de cristal líquido (LCD).
O movimento livre é o principal diferencial das CAVE em
relação aos demais ambientes imersivos aqui citados. Não sendo invasiva,
a CAVE permite um compartilhamento fácil com os outros usuários. A
diminuição da sensação de descrença e do senso crítico é uma das
qualidades da interface das CAVE.
Figura 37CAVE
A CAVE começou como uma pequena sala de três metros
cúbicos, onde o usuário era cercado por imagens esterioscópicas
projetadas e sincronizadas nas três paredes e no chão. Seu sistema de
projeção é estéreo, cobre todo o campo de visão do usuário, mesclando
objetos reais e virtuais. Ali, os usuários têm a visão total de seus corpos, ao
interagir com objetos virtuais.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Hoje, muitas pessoas pensam que a imersão e a sinestesia
estão presentes somente nas formas artísticas atuais, geradas inteiramente
por computador. Ao longo de nossa pesquisa, entretanto, procuramos
mostrar que esses conceitos apareciam em diversos momentos da
História da Arte. Para isso, enfocamos alguns ambientes que ilustram como
os mecanismos imersivos e sinestésicos eram usados para que a imersão
ocorresse, desde a caverna de Lascaux até as moderníssimas CAVE.
Com o desenvolvimento das tecnologias, as artes buscaram
propiciar uma experiência, em vez de limitar-se a criar uma representação,
que no início não levava em conta a presença do observador. Essa
evolução do papel da arte passou pelo uso da perspectiva na pintura
(quando o ponto de vista do observador começou a ser calculado pelo
artista para que a obra fosse realista) e por outros dispositivos, como o
panorama, que coloca o observador dentro do espaço da obra, convidando-
o a participar dela.
A expressão realidade virtual gera muita polêmica, que tudo
que se pensa, escreve ou representa pode ser considerado parte de um
mundo virtual, um simulacro. Neste estudo, a realidade virtual é vista como
uma experiência feita por computador para simular efeitos da realidade
física mais fiéis do que os criados somente por telas e alto-falantes. A arte
virtual produzida por computador tem apenas 30 anos e nos remete aos
pioneiros experimentos de Myron Krueger com sistemas de respostas em
tempo real.
Segundo Stephen Wilson:
60
A realidade virtual é uma experiência imersiva tanto visual
quanto auditiva, que foi criada pelas inovações
tecnológicas e perceptivas. A percepção ocorre mais
intensamente pela maior utilização de recursos visuais
como visores 3D esterioscópicos, projeções em todas as
superfícies que circundam o indivíduo (surround ) e
também por recursos auditivos como o som 3D, além de
outros recursos sensoriais como luvas e malhas. O
princípio da imersão faz com que arte e aparato imagético
convirjam, tornando o meio e a mensagem inseparáveis.
Através das mídias ilusionárias, as quinas imersivas
salientam as percepções dos espectadores maximizando a
intensidade da mensagem, e tornando o meio invisível. O
espaço ilusório que circunda o observador em 360° através
da perspectiva, realismo ( cor, luz, proporção) forma uma
imagem temporal e espacial que corta completamente o
campo de visão real do espectador.
Figura 38Óculos esterioscópicos
60
WILSON, S. Information Arts. Cambridge: MIT Press, 2002, p. 703
Para a maioria dos pesquisadores, a realidade virtual é
encarada como uma forma de cinema super-realista, criando simulações
para concretizar as ilusões de realidade. os artistas estão menos
interessados em criar realidades identificáveis. Para eles, o importante é
representar a realidade como um meio de confrontar os usuários com
paradoxos, de explorar novos espaços e mundos, de criar relações entre o
real e o virtual.
Roy Ascott, em Connectivity, redefine o papel do novo artista:
O antigo artista, como sujeito da arte, gerava idéias que
visualisassem ou representassem o objeto artístico. Em
vez disso, o novo artista interage no espaço eletrônico com
outros usuários eletrônicos, cujo comportamento é virtual
para constituir a presença. Essa arte, cujo sujeito é a
conecção humana, gerou um envolvimmento teletico
em telas, monitores, no espaço acústico, no ambiente
articulado, que é transformado continuamente pela
interação das presenças virtuais, as extensões digitais dos
usuários remotamente localizados uns dos outros tanto
espacialmente quanto temporalmente.
61
Colocado dentro da obra, o usuário interage com ela e a
modifica. A obra integra-o ao ambiente, gerando uma experiência individual
única. Além disso, o usuário também se torna co-autor da obra, pois a
interatividade é essencial para que ela exista. Sem a ação do público, a arte
criada pela realidade virtual torna-se inviável técnica ou esteticamente.
61
ASCOTT, R. Connectivity: art and interactive telecommunications In: Leonardo
Magazine, vol. 24, n. 2 p. 115-117, 1991
A criatividade surge da cooperação e a autoria é coletiva. A
arte não é mais vista como algo linear, completo, hermético, algo que
trabalha com a harmonia e a resolução. Agora ela é aberta, experimental,
virtual, incompleta. Ela celebra o processo, os sistemas imersivos, o caos.
A tecnologia desses sistemas transformadores preenche um profundo
desejo humano: o de transcender as limitações do corpo, do tempo e do
espaço. Desejo que vinha sendo alcançado ao longo da História como
mostram os ambientes imersivos analisados nesta pesquisa.
Figura 39A interação na CAVE
Assim, o termo espectador (de caráter passivo), sob o prisma
das novas expressões artísticas, passa a não ser mais adequado a esse
novo usuário dos ambientes virtuais, que ele possui um caráter ativo.
Nasce, então, o interator.
Luis Racionero explica que:
novas formas de arte e novos sentidos eram necessários
para permitirem ao cérebro uma expansão das sensões.
E essas novas formas de arte viriam, no século XX, com a
inovação tecnológica, baseada na engenharia genética,
nos hologramas, laser, viagem espacial, transmutação
nuclear.
62
De fato, a realidade virtual traz à tona aspectos extremamente
ligados à arte no que tange à exploração e à manifestação dos sentidos.
Por isso, a tecnologia é vista, nesta pesquisa, como um ambiente favorável
para a exploração da criatividade e de sensações não do artista como
dos usuários da obra. A realidade virtual, aqui, representa uma potente
forma de mídia por permitir aos artistas inverter a ordem convencional das
coisas. A arte não pode ser sinônimo de representação, mas sim de
transformação. A resolução estética é substituída pela evolução conectiva.
A sensibilidade do indivíduo é ampliada, sua percepção é expandida pela
consciência aumentada, gerando uma visão global.
Para mostrar o potencial das novas tecnologias na arte,
analisamos o ambiente imersivo de obras de vários períodos. Tal como
fazia Leonardo com seu conceito de artista-cientista, atualmente, Brenda
62
RACIONERO, L. apud WILSON, S. Information Arts. Cambridge: MIT Press, 2002, p.39
Laurel defende a importância das novas tecnologias, vendo-as como
desencadeadoras e estimuladoras de mudanças:
O computador serve como uma superfície de projeção das
nossas próprias esperanças e medos do fato de o que
significa ser humano hoje ... A cultura compreende a
tecnologia através das narrativas e mitos, e essas
narrativas influenciam a forma do futuro e as propostas da
tecnologia. O circuito cultural-tecnológico es no coração
da evolução cultural... Acho que é necessária uma
intervenção em nível popular.
63
Os ambientes imersivos sempre tiveram como objetivo
principal salientar a percepção dos espectadores, por meio do aumento das
emoções em detrimento do senso crítico, maximizando a mensagem e
tornando o meio invisível. Hoje, a realidade virtual utiliza-se da tecnologia de
que dispomos para que os usuários “entrem” em um outro “mundo”. A
natureza da arte não se prende mais ao objeto, mas ao espaço em que as
interações acontecem. Isso ocorre nos games, nos simuladores, nas
teleconferências, nas CAVE...
63
LAUREL, B. apud WILSON, S. Information Arts. Cambridge: MIT Press, 2002, p. 702
Figura 40Simulador deo
Esse mesmo efeito era alcançado pelos Cro-Magnon,
17.000 anos, em seus rituais nas cavernas; pelos gregos, em seus cultos
religiosos; pelos fiéis que participavam das missas, nas catedrais góticas;
pelos observadores das pinturas com perspectiva matemática; pelos
observadores dos panoramas no século XIX; e ahoje, em todo o mundo,
pelas pessoas que lotam as salas de cinema e pelos interatores que
participam de experiências com a realidade virtual.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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