Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS
CIÊNCIAS JURÍDICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
NÍVEL MESTRADO
Regina Helena Marchiori Canali
A CLÁUSULA GERAL DA BOA-FÉ OBJETIVA COMO POSSIBILIDADE DE
SOLUÇÃO DE CONFLITOS CONTRATUAIS PERANTE A CONCEPÇÃO SISTÊMICA
AUTOPOIÉTICA DO DIREITO
São Leopoldo
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
1
Regina Helena Marchiori Canali
A CLÁUSULA GERAL DA BOA-FÉ OBJETIVA COMO POSSIBILIDADE DE
SOLUÇÃO DE CONFLITOS CONTRATUAIS PERANTE A CONCEPÇÃO SISTÊMICA
AUTOPOIÉTICA DO DIREITO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Direito da Área das Ciências
Jurídicas da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos, para obtenção do título de Mestre em
Direito.
Orientador: Prof. Dr. Leonel Severo Rocha
São Leopoldo
2007
ads:
2
Ficha Catalográfica
C212c Canali, Regina Helena Marchiori
A cláusula geral da boa-fé objetiva como possibilidade de solução de
conflitos contratuais perante a concepção sistêmica autopoiética do direito /
Regina Helena Marchiori Canali. – 2007.
152 f. ; 30 cm.
Dissertação (Mestrado em Direito) Universidade do Vale do Rio dos
Sinos, São Leopoldo, 2007.
Orientação: Prof. Dr. Leonel Severo Rocha.
1. Contratos. 2. Boa-fé. 3. Autopoiese. 4. Sociedade. 5. Sociologia do
direito. I. Rocha, Leonel Severo, orientador. II. Título.
CDU: 347.44
Catalogação: bibliotecária Ana Paula Benetti Machado CRB10/1641
3
4
Ao Mateus, pelo carinho e aprendizado de todos os
dias.
À família, que ao mesmo tempo distante, sempre
presente.
Aos que partiram, pelas lembranças e pela saudade,
bem como pelo amor e carinho vividos, que, pela
intensidade, permanecem presentes.
5
A Deus, por tudo!
Ao Mateus, por ser o motivo de força e estímulo em
todos os momentos.
À família, em especial aos meus pais (in memoriam)
e irmãos, e aos meus sogros, pelo exemplo de vida e
pela dedicação.
Ao “zeca”, companhia constante no maior período
de estudos dedicados ao direito.
Ao professor Pós-Doutor Leonel Severo Rocha, pelo
exemplo de dedicação ao direito e pela confiança
como orientador deste trabalho.
Ao professor Msc. Mário José Martins da Silva
Mateiro, pelo incentivo, exemplo e apoio, desde os
primeiros até os últimos dias desta caminhada.
Ao professor Dr. Germano Schwartz, pela atenção e
disponibilidade dispensadas.
Ao professor Dr. Darci Ribeiro, pela “janela aberta”
ao processo civil.
6
La confianza no es la única razón del mundo; pero
una concepción muy compleja y estructurada del
mundo no podría establecerse sin una sociedad
definitivamente compleja, que a la vez no podría
establecerse sin la confianza.
Niklas Luhmann
7
RESUMO
Tendo em vista a mudança paradigmática ocorrida no sistema jurídico, responsável pela
substituição do sentido individualista pelo social, faz-se necessário proporcionar ao direito
uma nova concepção. Diante desse fato, delimitou-se o tema a ser pesquisado, que recaiu no
instituto contratual e na teoria sistêmica autopoiética do direito como um meio possível para
se trabalhar os conflitos contratuais na sociedade complexa e globalizada da atualidade. Dessa
forma, o trabalho destina-se a verificar a possibilidade de aplicação da cláusula geral da boa-
fé objetiva como um meio para a solução de conflitos contratuais perante a teoria sistêmica
autopoiética do direito. Para alcançar o objetivo proposto, a análise abordou, num primeiro
momento, o instituto contratual, através da sua conceituação, traçando um paralelo com as
concepções do Estado Liberal, Estado Social e os aspectos referentes às novas tendências do
instituto contratual, bem como a caracterização das fases contratuais. Num segundo momento,
a análise direcionou-se para os princípios contratuais, com ênfase no princípio da boa-
objetiva e na confiança como meio de satisfação das expectativas despertadas nas partes
contratantes durante o transcurso do negócio jurídico. Após, num terceiro momento, foram
abordados os temas referentes à cláusula geral da boa-fé objetiva, bem como à teoria
sistêmica autopoiética do direito, considerada um método possível para a resolução dos
conflitos contratuais. Como resultado da pesquisa realizada, após a análise dos temas
selecionados, constatou-se a efetividade do objetivo proposto, de se considerar a cláusula
geral da boa-fé objetiva como possibilidade de solução de conflitos contratuais perante a
concepção sistêmica autopoiética do direito.
Palavras-chave: Boa-fé, confiança, contrato, sistemas, autopoiese, expectativas, auto-
produção, complexidade, sociedade.
8
RESUMEN
Considerando el cambio paradigmático ocurrido en el sistema jurídico, responsable por la
substitución del sentido individualista por lo social, se hace necesario proporcionar al derecho
una nueva concepción. Ante tal hecho, se delimitó el tema a ser investigado, que recayó en el
instituto contractual y en la teoría sistémica autopoiética como un medio posible para trabajar
los conflictos contractuales en la sociedad compleja y globalizada de la actualidad. El trabajo
se destina a verificar la posibilidad de aplicación de la cláusula general de la buena fe objetiva
como un medio para la solución de conflictos contractuales según la teoría sistémica
autopoiética del derecho. Para lograr el objetivo propuesto, el análisis ha abordado, en un
primer momento, el instituto contractual, a través de su conceptuación, trazando un paralelo
con las concepciones del Estado Liberal, Estado Social y los aspectos referidos a las nuevas
tendencias del instituto contractual, así como la caracterización de las fases contractuales. En
un segundo momento, el análisis ha sido dirigido hacia los principios contractuales, con
énfasis en el principio de la buena fe objetiva y en la confianza como medio de satisfacción de
las expectativas despertadas en las partes contratantes durante el transcurso del negocio
jurídico. Más adelante, en un tercer momento, fueron abordados los temas referentes a la
cláusula general de buena fe objetiva, como también a la teoría sistémica autopoiética del
derecho, considerada un método posible para la resolución de los conflictos contractuales.
Como resultado de la investigación realizada, después del análisis de los temas seleccionados,
se constató la efectividade del objetivo propuesto, de se considerar la cláusula general de la
buena fe objetiva como posibilidad de solución de conflictos contractuales ante la concepción
sistémica autopoiética del derecho.
Palabras llave: buena fe, confianza, contrato, sistemas, autopoiesis, expectativas,
autoproducción, complejidad, sociedad.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................11
1 EVOLUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO DO CONTRATO..............................................17
1.1 NOTÍCIA HISTÓRICA...............................................................................................17
1.2 CONCEITUAÇÃO DE CONTRATO .........................................................................19
1.2.1 A clássica concepção do contrato..........................................................................20
1.2.1.1 A crise da teoria contratual tradicional e a transição da concepção clássica
para a concepção intervencionista ....................................................................24
1.2.2 A concepção de contrato no Estado Social............................................................25
1.2.3 Novas tendências da ciência jurídica e da concepção contratual ............................30
1.2.4 A ciência jurídica diante da concepção sistêmica autopoiética ...................................35
1.2.4.1 A teoria dos sistemas............................................................................................36
1.2.4.2 As três matrizes da teoria jurídica ........................................................................36
1.2.4.3 A teoria dos sistemas, a autopoiese e o direito .....................................................40
1.3 TEORIA GERAL DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS.....................................................51
1.3.1 A declaração de vontade........................................................................................53
1.4 AS FASES DO INSTITUTO CONTRATUAL...........................................................55
1.4.1 As tratativas contratuais...........................................................................................55
1.4.2 O pré-contrato..........................................................................................................58
1.4.3 O contrato ................................................................................................................59
1.4.4 O pós-contrato .........................................................................................................60
2 OS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS E A ÊNFASE AO PRINCÍPIO DA BOA- .....62
2.1 TRANSFORMAÇÕES NA TEORIA CONTRATUAL................................................62
2.2 OS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS ...............................................................................66
2.2.1 Conceito de princípios .............................................................................................67
2.2.2 Por uma concepção sistêmica dos princípios constitucionais e do princípio da
boa- ......................................................................................................................69
2.2.3 A normatividade e efetividade dos princípios e as expectativas normativas...........73
2.3 O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE E DA AUTONOMIA PRIVADA
DA VONTADE ....................................................................................................................78
2.4 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE..................................................................................84
10
2.5 O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ CONTRATUAL...............................................................87
2.5.1 Breve notícia histórica .............................................................................................88
2.5.2 A boa-fé como princípio geral do direito ................................................................91
2.5.3 A boa-fé subjetiva e a boa-fé objetiva .....................................................................92
2.6 O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL.........................................................................97
2.6.1 Notícia histórica.......................................................................................................98
2.6.2 A funcionalização dos institutos jurídicos...............................................................99
2.6.3 A função social no ordenamento jurídico..................................................................100
2.6.4 A função social do contrato ...................................................................................101
2.8 O DIREITO CIVIL E A TRAVESSIA RUMO AO NOVO HORIZONTE................103
3 A CLÁUSULA GERAL DA BOA-FÉ, O CONTRATO E A TEORIA SISTÊMICA
AUTOPOIÉTICA DO DIREITO.....................................................................................108
3.1 A CLÁUSULA GERAL COMO POSSIBILIDADE DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS
PERANTE A TEORIA SISTÊMICA AUTOPOIÉTICA ............................................108
3.1.1 As cláusulas gerais.................................................................................................108
3.1.2 A cláusula geral da boa-fé objetiva .......................................................................112
3.1.3 A cláusula geral da boa-fé objetiva como possibilidade de solução de conflitos
intersistêmicos ......................................................................................................117
3.2 A CLÁUSULA GERAL DA BOA-FÉ OBJETIVA COMO POSSIBILIDADE DE
SOLUÇÃO DE CONFLITOS CONTRATUAIS PERANTE A CONCEPÇÃO
SISTÊMICA AUTOPOIÉTICA DO DIREITO .................................................................128
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................138
11
INTRODUÇÃO
O tema escolhido para a pesquisa situa-se na área do direito contratual, tema altamente
relevante tendo em vista a mudança paradigmática ocorrida no sistema jurídico, que
questionou a efetividade do sentido individualista e conservador, mantidos pela dogmática
normativista, bem como demonstrou a necessidade de uma nova teoria, capaz de proporcionar
a compreensão e interpretação do sistema jurídico e do instituto contratual diante da sociedade
complexa e globalizada da atualidade.
A escolha do tema nesta área ocorreu em virtude da influência que o contrato exerce
na sociedade, bem como da influência que recebe da sociedade. Pode-se dizer que há uma
relação de reciprocidade entre as relações contratuais e o meio social no qual se desenvolvem
desde os primeiros indícios de relações sociais até os dias atuais. De fato, o direito contratual
mantém-se vigorante através dos tempos, caracterizando-se pela função de regulamentador
das relações negociais entre as partes contratantes.
Decorrente do processo de globalização, das transformações e das conseqüentes
características adquiridas pela sociedade, as quais originaram as mudanças conceituais,
estruturais e institucionais nas ciências e, no caso específico, no direito, tornou-se necessária a
análise do sentido adquirido pelo instituto contratual na atualidade, como também a sua
inserção em uma teoria, que lhe proporcionasse uma nova concepção. Nessa concepção,
sugere-se a análise do contrato perante a teoria sistêmica autopoiética, que possibilita ampliar
o seu campo de abrangência, proporcionando o seu desenvolvimento e adaptação em meio ao
contexto no qual se insere, se comunica e se produz.
Portanto, pela análise do contrato, busca-se alcançar um maior esclarecimento sobre
um tema influente e decisivo nas relações sociais, como também proporcionar, através de uma
nova teoria, outras formas de solução dos conflitos contratuais, considerando-se as influências
que recebe oriundas do processo de inter-relacionamentos que realiza. Outrossim, busca-se
favorecer a compreensão do seu desenvolvimento, bem como o processo de adaptação na
sociedade atual.
Tendo em vista a escolha do tema ter sido determinada na área do direito contratual,
tornou-se necessária a delimitação em torno de um aspecto instigante que proporcionasse o
estudo em face da teoria sistêmica autopoiética do direito, concepção já estabelecida como
foco de pesquisa. Nesse sentido, considerando-se as premissas da teoria sistêmica
12
autopoiética, tais como interdisciplinaridade, autoprodução, complexidade, busca-se a
interpretação do contrato de acordo com essa visão.
A teoria dos sistemas e a teoria da autopoiese proporcionam uma visão generalizada
da sociedade em sua complexidade, favorecendo, dessa forma, a compreensão e a
interpretação dos fenômenos de forma inter-relacionada e integrada, numa constante troca de
influências. Por meio dos sistemas autopoiéticos pode-se visualizar a sociedade em
movimento no contexto que a cerca. A sociedade passa a ser considerada como um conjunto
de sistemas formado por subsistemas, que se encontram em constante crescimento,
transformação e autoprodução. As relações acontecem inseridas num contexto envolto por
uma realidade complexa e globalizada, sendo, dessa forma, consideradas integrantes de um
todo maior, no qual adquirem o sentido específico que possuem, mas que somente se torna
valorado enquanto parte de um todo maior, resultante das comunicações que realiza.
A condição de sistemas autopoiéticos confere um sentido de abertura para o contexto
no qual se encontra inserido, bem como a característica de fechamento em si mesmo, por
meio do qual se realiza a sua autoprodução. Pode-se dizer que é um sistema aberto e fechado,
no qual acontecem simultaneamente a autoprodução, que conduz a sua autonomia, e a inter-
relação, pela qual se efetuam as trocas de influências com o meio circundante.
Dessa forma, a delimitação do tema recaiu, por sua vez, na área específica dos
princípios contratuais, mais precisamente, no princípio da boa-fé objetiva, também
considerado em sua versão de cláusula geral, e em torno da teoria sistêmica autopoiética do
direito, considerada como um novo meio de se trabalhar a ciência jurídica, pois facilita a
adaptação do direito à atual sociedade complexa e contingente.
Portanto, a partir da definição da área a ser trabalhada, no caso o instituto contratual,
bem como da delimitação dos temas referentes ao problema, no caso, os princípios contratuais
e a teoria sistêmica autopoiética, passou-se à definição do problema específico a ser
pesquisado. Nesse sentido, buscando definir o problema, a investigação orientou-se para os
assuntos na área do direito que apresentam uma certa dificuldade de resolução. Verificou-se
que existem na ciência jurídica, em especial no direito contratual, determinadas questões que
não apresentam soluções satisfatórias para as expectativas que as partes desenvolvem no
transcurso da relação jurídica. No caso específico dos contratos, salienta-se a dificuldade
encontrada para se alcançar a solução dos conflitos contratuais, quando deve haver a
consideração da boa-fé existente entre os contratantes, a qual revela a confiança que as partes
depositam no alcance do objetivo pretendido e que se traduz num fator determinante na
decisão do negócio jurídico realizado.
13
Em vista do exposto, o problema que se busca solucionar com o desenvolvimento do
trabalho é verificar a possibilidade de se utilizar a cláusula geral da boa-fé objetiva como um
mecanismo de solução de conflitos contratuais perante a teoria sistêmica autopoiética do
direito.
Como justificativas para a realização da pesquisa envolvendo o instituto contratual, a
boa-fé e a teoria sistêmica autopoiética, salienta-se, com relação ao contrato, a importância e a
influência que possui e exerce na sociedade. Com relação à boa-fé, justifica-se em vista da
abrangência que alcançou, bem como o direcionamento que proporciona para as relações
jurídicas. E com relação à teoria escolhida, justifica-se porque favorece uma outra
interpretação do direito, em especial do instituto contratual, em meio à complexidade, à
contingência e à autoprodução, possibilitando a adaptação do contrato à realidade, bem como
a satisfação das expectativas das partes com a conclusão do negócio realizado.
Dessa forma, com base no problema proposto, bem como considerando-se as
justificativas apresentadas, o objetivo que se busca solucionar com o desenvolvimento da
pesquisa centraliza-se em verificar a possibilidade de se utilizar a cláusula geral da boa-
objetiva como um mecanismo de solução dos conflitos contratuais usando-se como meio a
teoria sistêmica autopoiética do direito. Para alcançar os fins almejados, a pesquisa
desenvolver-se-á em três capítulos. Por meio dessa divisão pretende-se, de um modo geral,
demonstrar a realidade contratual, sua lenta evolução e desenvolvimento, o que o mantém em
constante inadaptação à evolução, às transformações e ao conseqüente aumento da
complexidade social, fato esse que justifica a abordagem contratual perante uma nova teoria,
como um meio capaz de favorecer a sua evolução e adaptação à sociedade complexa e
globalizada. Outrossim, de modo específico, por meio da divisão dos três capítulos e da
seleção dos temas pertinentes a cada um, favorecer-se-á a análise do contrato, da
principiologia e da teoria sistêmica autopoiética, que proporcionarão os subsídios necessários
para se atingir o objetivo proposto com a pesquisa.
Dessa forma, traçando um breve panorama sobre os capítulos que serão desenvol-
vidos, salienta-se que o primeiro capítulo analisa o direito contratual especificamente,
buscando apresentar um panorama geral sobre o instituto, possibilitando, dessa forma,
averiguar os aspectos principais, responsáveis pela sua caracterização, bem como procura
demonstrar a sua evolução. Para alcançar esses objetivos, são abordados os aspectos
referentes à conceitualização, tendo como fundamento a concepção clássica dos contratos
decorrente do Estado Liberal, responsável pela caracterização do contrato de índole
individualista e liberal. A isso se denomina de “concepção clássica dos contratos”. Segue uma
14
breve panorâmica da crise operada no instituto contratual, o que facilitou a transição da
concepção clássica ou tradicional para a fase intervencionista ocorrida nos contratos.
A análise segue com a concepção do contrato perante o Estado Social, para o que se
fará a caracterização deste Estado, salientando-se as suas premissas dominantes, baseadas na
função social, na coletividade, que influenciaram de modo determinante o instituto contratual,
ao qual foi incorporada a função social, que resultou na nova moldura adquirida pelo contrato.
Conforme se verificará, o contrato tornou-se funcionalizado, adquirindo a orientação de
princípios que possibilitam o alcance da justiça contratual e do equilíbrio nas relações,
objetivos prioritários dessa fase do desenvolvimento estatal e contratual.
Seguindo a fase respectiva ao Estado Social, o desenvolvimento alcança um período
evolucional que pode ser designado por pós-modernidade, referente às transformações
processadas na sociedade e que apresentam conseqüências marcantes no instituto contratual.
A esse período se denomina de “novas tendências da concepção contratual”, pois se refere a
um Estado com características complexas e globalizantes, também de pluralismo jurídico, que
resultam, automaticamente, na necessidade de reformulações na teoria contratual, para que o
contrato possa continuar a sua função de regulamentador das relações negociais e sociais.
Nesse primeiro capítulo também é abordada a teoria geral dos negócios jurídicos, com
ênfase na declaração da vontade, objetivando-se verificar o enquadramento do contrato como
um negócio jurídico, suas características de conformação, bem como salientando-se a
importância da declaração da vontade como elemento necessário para que possa atingir o
objetivo determinado.
Após, a pesquisa é direcionada para as fases do instituto contratual, onde são tratados,
brevemente, os tópicos referentes à fase das tratativas contratuais, do pré-contrato, do contrato
e do pós-contrato. O objetivo que se pretende com essa análise é a demonstração do
desenvolvimento do contrato como um todo, demonstrando-se, ao final, que as influências e
os efeitos que recebe e exerce se estendem desde os primeiros indícios da formação da relação
jurídica para além da conclusão do contrato firmado. Com isso busca-se demonstrar que a
transformação do contrato, decorrente das transformações sociais, envolve-o em seu todo, o
que torna necessária uma nova concepção contratual, que receba as mudanças ocorridas e que
o aparelhe para enfrentar os conflitos oriundos da sociedade em constante transformação,
facilitando-lhe a adaptação ao caso, para que possa, ao mesmo tempo, proporcionar decisões
bem integráveis, que auxiliem a adaptação dos conflitos às partes contratantes e à sociedade
como um todo, haja vista os efeitos que exerce.
O segundo capítulo trata, por sua vez, das transformações ocorridas no instituto
contratual, bem como do tema referente aos princípios contratuais, com ênfase no princípio da
15
boa-fé objetiva. As transformações ocorridas no instituto contratual são utilizadas como
justificativa e fundamento na busca de soluções para os conflitos surgidos nos contratos,
oriundos da sociedade complexa e globalizada.
Com relação aos princípios contratuais, a análise aborda os aspectos referentes à
conceituação, à normatividade e à sua caracterização como expectativas normativas, bem
como a efetividade que apresentam. Também é feita uma breve explanação sobre a concepção
sistêmica dos princípios constitucionais e do princípio da boa-fé e, dentro disso, da boa-
como um princípio constitucional, orientando-se a pesquisa para a conformação sistêmica
correspondente à linha de pesquisa eleita para a realização desta dissertação de mestrado.
Após, são analisados os princípios contratuais, dando-se especial atenção à influência
que exerceram e que exercem sobre as relações jurídicas, a qual, como se verá, ocorre em
vistas do tipo de sociedade determinante em cada época específica. Os princípios eleitos para
a análise são o da autonomia da vontade e da autonomia privada, que resultam na liberdade
contratual, no consensualismo, na obrigatoriedade e na relatividade contratual. Também é
feita uma abordagem sobre o princípio da igualdade, em sua versão formal e material, haja
vista encontrar-se diretamente relacionado com a concepção do Estado Liberal e do Estado
Social, o que determinou as características do contrato em cada fase evolucional.
Ao princípio da boa-fé, por sua vez, é dada uma ênfase especial, por compor o
objetivo principal deste trabalho, juntamente com a teoria sistêmica autopoiética do direito, na
busca por novas soluções aos conflitos surgidos nos contratos, decorrentes da sociedade
complexa e globalizante da atualidade. A análise do princípio da boa-fé aborda os aspectos
referentes à sua história, à sua concepção como princípio geral do direito, bem como à sua
versão subjetiva e objetiva. Posteriormente, é realizada a análise do princípio da função
social, haja vista atuar como um meio que proporciona a abertura do instituto contratual,
possibilitando a inclusão dos princípios que oportunizam uma releitura do contrato, tais como
o princípio da boa-fé, releitura mais adaptada à realidade e às expectativas das partes
contratantes com o negócio realizado.
Este capítulo é encerrado com uma exposição que objetiva demonstrar o direito civil
da atualidade e o caminho que percorre rumo ao desenvolvimento. O que se pretende é
desvendar as mudanças ocorridas no direito como um todo e no direito contratual
especificamente, e em torno delas deixar clara a necessidade de reformulação da teoria
contratual, justificando a escolha da teoria sistêmica autopoiética como uma nova forma de se
trabalhar o contrato. Visualiza-se a inclusão de termos, como “interdisciplinaridade”,
“transdisciplinaridade”, “complexidade”, “globalização”, “dobras do direito” e “recons-
16
trução”, que demonstram claramente a fase de transformações que se opera na ciência do
direito.
O terceiro e último capítulo trata da cláusula geral da boa-fé objetiva, do contrato e da
teoria sistêmica autopoiética, temas selecionados em vista do objetivo que se pretende
alcançar com a pesquisa. Dessa forma, num primeiro momento, faz-se a exposição da ciência
jurídica diante da concepção sistêmica autopoiética, parte em que são abordados os aspectos
específicos dessa teoria. Após, é feita uma breve explanação das três matrizes da teoria
jurídica com o intuito de se demonstrar a evolução do direito, encerrando por meio de um
breve paralelo entre a teoria acima referida e o direito.
Num segundo momento, a análise é dirigida para o estudo da cláusula geral como
possibilidade de solução de conflitos perante a concepção sistêmica autopoiética, momento
em que, para a obtenção do objetivo pretendido, o estudo se realiza mediante a análise das
cláusulas gerais de modo específico, bem como da cláusula geral da boa-fé objetiva,
culminando com a sua consideração como possibilidade de solução de conflitos intersis-
têmicos.
Como último momento deste trabalho, é feita a análise da cláusula geral da boa-
objetiva como possibilidade de solução de conflitos contratuais perante a concepção sistêmica
autopoiética do direito, com a qual se procura demonstrar a pertinência do objetivo que se
pretende alcançar com a realização desta pesquisa.
Outrossim, após tendo sido traçado o objetivo pretendido com o trabalho, bem como
após a seleção dos temas e da divisão dos capítulos por meio dos quais será desenvolvida a
pesquisa, a fase seguinte preocupa-se com os meios necessários para atingir os fins propostos.
Considerando-se que o conteúdo a ser pesquisado encontra-se, basicamente, na pesquisa
bibliográfica, delimitou-se como meio de pesquisa o método dialético, que se caracteriza pela
discussão e pela comparação. Por meio do método dialético possibilita-se a compreensão da
realidade como contraditória, como um processo em transformação e adaptação. O trabalho
realizou-se a partir da pesquisa histórica e comparada, por meio da revisão bibliográfica.
17
1 EVOLUÇÃO E CARACTERIZAÇÃO DO CONTRATO
Para alcançar o objetivo proposto neste trabalho, que trata de modo geral sobre o
instituto contratual, neste primeiro capítulo faz-se a análise do contrato, abordando-se
aspectos relevantes e características necessárias para o aprofundamento sobre o tema.
Num primeiro momento, a análise é direcionada à história, ao conceito, bem como às
características pertinentes a cada fase do desenvolvimento social que determinaram a
concepção do contrato em cada momento histórico. Após, o estudo aborda aspectos
específicos dos contratos, tais como a teoria geral dos negócios jurídicos, as fases contratuais
e os princípios que informam a teoria geral dos contratos, dispensando-se uma especial
atenção ao princípio da boa-fé contratual, haja vista ser o objetivo primordial deste trabalho.
1.1 NOTÍCIA HISTÓRICA
Pode-se dizer que o contrato surgiu juntamente com o homem, a partir do momento
em que este iniciou os seus relacionamentos com os outros indivíduos com quem aprendeu a
dividir o espaço que habitava. Segundo Humberto Theodoro Junior: “Tão velho como a
sociedade humana e tão necessário como a própria lei, o contrato se confunde com as origens
do direito”.
1
Antes do aparecimento da moeda, as relações comerciais ocorriam através de um
sistema de trocas dos mais variados produtos, que envolviam, apesar de tacitamente, direitos e
deveres das partes contratantes.
2
Percebe-se uma prática rudimentar do exercício da forma de
contratar. Embora sem existir o contrato propriamente dito, as relações aconteciam baseadas
numa troca de direitos e deveres, as quais representam o contrato em sua espécie singular.
1
THEODORO JUNIOR, Humberto. O contrato e seus princípios. Rio de Janeiro: Aide, 1999, p. 11. De acordo
com o autor: “Superado o estágio primitivo da barbárie, em que os bens da vida eram apropriados pela força ou
violência, e implantada a convivência pacífica em face dos bens utilizáveis na sobrevivência e desenvolvimento
do homem, o contrato se fez presente, de maneira intensa, nas relações intersubjetivas, como projeção natural da
vontade e do consenso. E quanto mais se ampliaram os grupamentos civilizados e mais volumosos se tornaram
os negócios de circulação de riquezas, mais constante e decisivo se mostrou o recurso ao contrato, em todos os
níveis da sociedade”.
2
RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 7.
18
Com a evolução social surgiram algumas formas típicas de contratos. A título de
conhecimento, registra-se o surgimento do contrato de empréstimo,
3
para o qual era redigido
um quirógrafo, que servia como meio de prova da existência de um efetivo negócio entre as
partes envolvidas, representando uma das primeiras formas de contrato existente entre os
indivíduos nas relações sociais. Também se encontra o registro do surgimento de formas
contratuais no antigo Egito, na Grécia e em Roma, os quais objetivavam a regulamentação da
vida em sociedade.
4
Com o advento da época medieval e após, com a Idade Moderna, correspondente ao
Estado Moderno, caracteriza-se a passagem “das relações de poder (autoridade, administração
da justiça, etc.) até então em mãos privadas do senhor feudal para a esfera pública (o
Estado centralizado)”.
5
O Estado Moderno, de acordo com Lenio L. Streck e José L. B. de
Morais, apresenta duas versões que se dividem entre o Estado absolutista e o Estado Liberal.
Na primeira versão, a forma estatal encontra-se alicerçada na idéia de soberania; na segunda,
no individualismo e na liberdade de consciência.
6
Surgida dessa segunda versão do Estado Moderno tem-se a concepção de contrato que
dominou a legislação, fornecendo os rumos das negociações até a entrada em vigor do novo
Código Civil brasileiro em 2002. A partir dessa concepção tradicional do contrato, faz-se a
introdução do tema pela conceituação do instituto contratual, bem como pela sua
caracterização de acordo com a evolução do Estado.
3
Segundo Jefferson Daibert “os hebreus conheceram o instituto do contrato antes da fundação de Roma. Na
época do cativeiro de Nínive, Tobias deu emprestado a Gabelo, que residia na cidade de Roges, na Média, dez
talentos de prata, e um quirógrafo foi redigido ficando em poder do credor”. DAIBERT, Jefferson, apud
RIZZARDO, Contratos, p. 7.
4
De acordo com Arnaldo Rizzardo, no antigo Egito foram conhecidas algumas formas de contratos utilizados na
regulamentação dos casamentos, como também com relação à translação da propriedade. Na Grécia, o contrato
aparecia apenas como forma de realização de casamentos. Em Roma, por sua vez, o contrato adquiriu três
formas, relativas à convenção, ao pacto e ao contrato propriamente dito, que se “referia às convenções previstas
e reconhecidas pelo direito civil, dotadas de força obrigatória e provida de ação”. RIZZARDO, Contratos, p. 8-9.
5
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria do estado. 5. ed. rev. e atual.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 43. Conforme os autores: “Se na Idade Média o poder político de
controle social permanecia em mãos privadas, confundindo-se com o poder econômico, a partir do Estado
Moderno e da economia de mercado formalizou-se uma separação relativa a tais poderes. Com isso, estabelecia-
se a dicotomia público-privado ou sociedade civil/sociedade política. [...] Dito de outro modo, o novo modo de
produção em gestação (capitalismo) demandava um conjunto de normas impessoais/gerais que desse segurança e
garantias aos súditos (burguesia em ascenção), para que estes pudessem comercializar e produzir riquezas (e
delas desfrutar) com segurança e com regras determinadas. Assim, enquanto no medievo (de feição
patrimonialista) o senhor feudal era proprietário dos meios administrativos, desfrutando isoladamente do produto
da cobrança de tributos, aplicando sua própria justiça e tendo seu próprio exército, no Estado
centralizado/institucionalizado, esses meios administrativos não são mais patrimônio de ninguém. É esta, pois, a
grande novidade que se estabelece na passagem do medievo para o Estado Moderno”.
6
STRECK; MORAIS, Ciência política e teoria do estado, p. 45-55.
19
1.2 CONCEITUAÇÃO DE CONTRATO
Para a conceituação do instituto contratual utiliza-se como ponto de partida a definição
de Pontes de Miranda: “O contrato é o negócio jurídico (ou instrumento jurídico) que
estabelece entre os figurantes, bilateralmente ou plurilateralmente, relações jurídicas, ou as
modifica, ou as extingue”.
7
No mesmo sentido, objetivando uma designação geral do instituto, conceitua-se o
contrato como um negócio jurídico por excelência, no qual o consenso de vontades das partes
contratantes objetiva um determinado fim. É um ato vinculante que cria e modifica direitos e
obrigações, sendo tanto os atos como os seus efeitos permitidos e protegidos pelo direito.
8
Também, o contrato pode representar um conjunto de valores dominantes numa
determinada época. O contrato do Estado Liberal não possui as mesmas características do
contrato do Estado Social.
9
O instituto contratual não deve possuir características imutáveis e
universalizantes que permaneçam inalteradas diante das transformações históricas. Aliás,
tanto o seu significado quanto o seu conceito modificaram-se e adaptaram-se de acordo com
as mudanças e com os valores desenvolvidos nas sociedades.
10
O contrato caracteriza-se como o instituto jurídico que apresenta determinados
princípios informadores, tais como o consensualismo, a autonomia da vontade, a relatividade,
bem como a igualdade, a liberdade, a boa-fé e a função social, que variaram em diferentes
graus de intensidade e de efetividade de acordo com a evolução social de determinada época,
singularizando as diferenças conceituais que aconteceram em seu desenvolvimento. A
evolução social refere-se às épocas do liberalismo, do Estado Social, bem como da
Contemporânea ou Pós-Modernismo, que, de acordo com seus princípios e ideologias
dominantes, imprimiram características específicas aos contratos.
7
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. 3, p. 210.
8
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações
contratuais. 4. ed. rev., atual. e ampl., 2. tir. São Paulo: RT, 2004, p. 38.
9
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 272.
10
LÔBO, Paulo. Contrato e mudança social. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 722, p. 41-45, dez. 1995, p. 41.
No mesmo sentido Lenio Luiz Streck e José Luis Bolzan de Morais referem que “cada momento histórico e o
correspondente modo de produção (prevalecente) engendram um determinado tipo de Estado. Observe-se, assim,
que o Estado moderno, em sua primeira versão (absolutista), nasce das necessidades do capitalismo ascendente,
na (ultra)passagem do período medieval. Ou seja, o Estado não tem uma continuidade (evolutiva), que o levaria
ao aperfeiçoamento; são as condições econômico-sociais que fazem emergir a forma de dominação apta a
atender os interesses das classes hegemônicas”. STRECK; MORAIS, Ciência política e teoria do estado, p. 28.
20
1.2.1 A clássica concepção do contrato
O direito dos contratos desenvolve-se de acordo com o desenvolvimento da
sociedade.
11
.A sociedade característica do século XIX, representada por economistas,
políticos e juristas, enaltecia uma determinada ordem econômica e social, denominada de
“liberalismo”,
12
a qual também possuía fundamentos morais de fonte religiosa, centrados na
idéia do homem como um valor supremo com “direitos naturais”, oponíveis à ordem estatal,
bem como possuía fundamentos políticos de oposição ao ancién regime de características
opressivas. A sociedade buscava uma nova forma de relacionamento, primando pela liberdade
e pela igualdade entre os homens, o que, de acordo com a concepção da época, seria
alcançado pela não-intervenção estatal e a total liberdade de contratar.
13
De uma sociedade
caracterizada como “liberal” tem-se o surgimento do contrato de concepção clássica ou
liberal. Essa concepção foi herdada do século XIX, período das codificações e das
construções doutrinárias, tais como de direito subjetivo, de pessoa jurídica e de negócio
jurídico.
14
Segundo Habermas, o Estado Liberal caracterizava-se por apresentar uma sociedade
econômica, institucionalizada por meio do direito privado, que priorizava os direitos de
propriedade e da liberdade dos contratos, devendo ser desacoplada do Estado enquanto esfera
da realização do bem comum e entregue à ação espontânea de mecanismos de mercado”.
15
“O
modelo de codificação do Estado Liberal vinculava-se a uma estrita e rígida separação entre o
11
Nesse sentido, para Cláudia Marques “a idéia de contrato vem sendo moldada, desde os romanos, tendo
sempre como base as práticas sociais, a moral e o modelo econômico da época. O contrato, por assim dizer,
nasceu da realidade social”. MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das
relações contratuais, p. 37.
12
Os autores, referindo o pensamento de Locke, salientam que o Estado Liberal “nasce limitado pelos direitos
naturais fundamentais vida e propriedade que são conservados pelos indivíduos quando da criação do Estado,
o qual também é restringido “porque o consenso é dado aos governantes somente sob a condição de que exerçam
o poder dentro dos limites estabelecidos”. STRECK; MORAIS, Ciência política e teoria do estado, p. 35.
13
Segundo Noronha, “a teoria jurídica construída pela ideologia liberal assentava em alguns dogmas, que hoje
estão em crise: a irredutível oposiçao entre o indivíduo e a sociedade (o Estado seria um mal necessário, cujas
atividades seria necessário restringir ao mínimo); o princípio moral da autonomia da vontade (a vontade humana
seria o elemento essencial na organizaçao do Estado, na assunção de obrigações, etc.); o princípio da liberdade
econômica (laissez faire, laissez passer) e, finalmente, a concepção formalista, meramente teórica, da igualdade
e da liberdade política (afirmava-se que os homens eram livres e iguais em direitos, sem se curar de saber se a
todos eles seriam proporcionadas as condições concretas necessárias para exercitarem tais liberdades).
NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé,
justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 64.
14
NORONHA, op. cit., p. 41.
15
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre faticidade e validade. 2 v., Rio de Janeiro: Tempo
brasileiro, 1997, p. 138.
21
Direito Público e o Privado”,
16
forjando uma doutrina do Estado limitado tanto com respeito
aos seus poderes quanto às suas funções”.
17
De acordo com Lênio Streck e José L. B. de Morais, o modelo econômico do Estado
Liberal caracteriza-se pela idéia dos direitos econômicos e de propriedade, bem como pelo
individualismo econômico ou sistema de livre empresa ou capitalismo. Suas idéias
primordiais dirigem-se para a propriedade privada e para a economia de mercado livre de
controles estatais. Salienta-se o aspecto voluntarístico nas relações, com a liberdade contratual
encontrando uma especial valorização. Pode-se dizer que a essência do Estado Liberal
concentra-se na transição do status (relações grupais fixas) para o contrato, representante da
autodeterminação individual.
18
As origens da concepção clássica ou tradicional dos contratos encontram-se no direito
canônico, na teoria do direito natural, nas teorias de ordem pública e da Revolução Francesa e
nas teorias econômicas e do liberalismo.
19
De fato, a ciência jurídica do século XIX era
determinada pela autonomia da vontade, como elemento principal do contrato, apresentando-
se como a única fonte e como legitimação para a criação dos direitos e deveres oriundos da
relação jurídica estabelecida.
20
A economia da época caracterizava-se pelo liberalismo, e o
direito, pelo voluntarismo. Às leis cabia somente a função de proteger a vontade e de
assegurar a realização dos efeitos pretendidos pelos contratantes. A proteção do direito visava,
apenas, garantir a estruturação das relações entre os indivíduos, assegurando autonomia,
liberdade e igualdade formal, desconsiderando a situação econômica e social dos
contratantes.
21
No contrato as partes tinham a liberdade de estipular as cláusulas contratuais segundo
a sua vontade e preponderava a liberdade de negociar visando apenas aos interesses das partes
16
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2004, p. 92.
17
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 17.
18
STRECK; MORAIS, Ciência política e teoria do estado, p. 60.
19
Segundo Cláudia Lima Marques, o direito canônico contribuiu para a formação da doutrina da autonomia da
vontade ao defender a força obrigatória da promessa por ela mesma, bem como ao defender que a palavra dada
era fonte de obrigação moral e jurídico para o indivíduo. A teoria do direito natural contribuiu com os dogmas da
autonomia da vontade e da liberdade contratual, já que a liberdade de contratar é uma das liberdades naturais do
homem, a qual só poderia ser restringida pela vontade do próprio homem. Com relação às teorias de ordem
política e da Revolução Francesa, destaca-se a influência da teoria do contrato social, que lançou a idéia do
contrato como base da sociedade e defendeu a vontade livre do homem. As teorias econômicas e do liberalismo
defendem a livre circulação das riquezas na sociedade. Sendo o contrato o instrumento colocado à disposição
para a circulação dessa riqueza, defendem a liberdade contratual. O contrato proporcionaria a eqüidade, a
harmonia social e econômica. MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das
relações contratuais, p. 43-47.
20
MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 39.
21
MARQUES, op. cit., p. 40.
22
contratantes.
22
A liberdade de contratar encontrava-se atrelada à ideologia que defendia a
igualdade de todos perante a lei. Essa igualdade referia-se ao modelo formal, o qual não
considerava as desigualdades naturais existentes entre os indivíduos.
23
Com o direito canônico “o contrato se firmou, assegurando à vontade humana a
possibilidade de criar direitos e obrigações”.
24
Surgiu o princípio pacta sunt servanda, o qual
determina que o pacto deve ser cumprido; preponderava a vontade única e exclusiva das
partes.
25
Para os canonistas, o contrato, quando firmado, deveria ser cumprido, fazendo lei
entre as partes. Contudo, o que se sobressaía na visão canonista era a relação do contrato com
a mentira e com o pecado, o que acarretava a obrigação de manter o pactuado até o fim, não
importando a possibilidade de alteração de condições financeiras dos contratantes, pois, ao
descumprir a palavra empenhada, a parte incorria em pecado, sendo, então, condenada
espiritualmente. A contribuição dos canonistas consistiu na relevância que atribuíram ao
consenso, à fé jurada e à autonomia da vontade.
26
As partes possuíam o direito de contratar livremente; empregadores e empregados
firmavam seus contratos de trabalho, considerando-se numa ilusória igualdade de condições, o
que favorecia a dominação do fraco pelo mais forte. Com base na concepção existente na
época, baseada no liberalismo, o contrato passou a ocupar a posição principal da vida
econômica. Pela formação de um contrato os rumos da negociação estavam decididos, sem
haver qualquer possibilidade de retrocesso ou de questionamento diante da possível
ocorrência de modificação econômica superveniente a qualquer das partes contratantes.
22
Nesse sentido Arnaldo Rizzardo comenta : “Dentro do espírito dominante, admitia-se a onipotência do cidadão
na administração e na disponibilidade de todos os bens, garantindo amplamente o direito de propriedade e a
faculdade de contratar com todas as pessoas nas condições e de acordo com as cláusulas que as partes
determinassem. Preponderou uma mística contratual; defendia-se que ao arbítrio de cada um ficava a decisão de
todas as questões econômicas”. RIZZARDO, Contratos, p. 10.
23
Segundo Orlando Gomes “o liberalismo econômico, a idéia basilar de que todos são iguais perante a lei e
devem ser igualmente tratados, e a concepção de que o mercado de capitais e o mercado de trabalho devem
funcionar livremente em condições, todavia, que favorecem a dominação de uma classe sobre a economia
considerada em seu conjunto permitiram fazer-se do contrato o instrumento jurídico por excelência da vida
econômica. GOMES, Orlando. Contratos. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 6.
24
RIZZARDO, op. cit., p. 9.
25
De acordo com Caio Mário, “os canonistas, imbuídos do espiritualismo cristão, interpretavam as normas de
direito romano animados de uma inspiração mais elevada. No tocante ao contrato, raciocinaram que o seu
descumprimento era uma quebra de compromisso, equivalente à mentira; e como esta constituía peccatum, faltar
ao obrigado atraía as penas eternas. Não podia ser, para os jurisconsultos canonistas, predominante a
sacramentalidade clássica, mas sobretudo prevalecia o valor da palavra, o próprio consentimento”. PEREIRA,
Caio Mário da Silva, apud RIZZARDO, op. cit., p. 9.
26
Conforme Orlando Gomes, “em valorizando o consentimento, preconizaram que a vontade é a fonte da
obrigação, abrindo caminho para a formulação dos princípios da autonomia da vontade e do consensualismo. A
estimação do consenso leva à idéia de que a obrigação deve nascer fundamentalmente de um ato de vontade e
que, para criá-lo, é suficiente a sua declaração. O respeito à palavra dada e o dever da veracidade justificam, de
outra parte, a necessidade de cumprir as obrigações pactuadas, fosse qual fosse a forma do pacto, tornando
necessária a adoção de regras jurídicas que assegurassem a força obrigatória dos contratos, mesmo os nascidos
do simples consentimento dos contraentes”. GOMES, Contratos, p. 5.
23
A partir do momento em que as partes declarassem a sua vontade, estava concretizada
a obrigação, pois a vontade era considerada fonte de obrigação. E havendo sido criada uma
obrigação, deveria ser cumprida, pois havia sido empenhada a palavra da parte, cujo respeito
deveria preponderar. Com o objetivo de assegurar o cumprimento da obrigação contratada,
surgiram as regras jurídicas, que buscavam impor a força obrigatória dos contratos. Verifica-
se que no surgimento das relações contratuais havia a intenção de proteger a palavra dada.
Tutelava-se a confiança da parte na realização do negócio, mas de um enfoque contrário ao
que acontece atualmente, pois, na busca dessa proteção, acreditava-se que o correto era
manter o vínculo sob qualquer condição. Hoje também se objetiva proteger a confiança, mas
faz-se possível e necessário, para alcançar esse objetivo, a revisão do que foi pactuado.
Como conseqüências resultantes da concepção clássica do contrato e da autonomia da
vontade no instituto contratual salienta-se a liberdade contratual, que representa uma vontade
livre, dependente apenas do indivíduo e que não é passível de receber influências externas.
Significa a liberdade de contratar ou de se abster de contratar, liberdade de escolher as partes
contratantes, bem como o conteúdo e os limites do contrato, tendo sempre a tutela do direito.
Também se salienta a força obrigatória dos contratos, que vincula as partes ao pacto firmado.
Diante da força obrigatória dos contratos, ao juiz não cabe questionar a vontade das partes,
mas somente respeitá-la e assegurar que atinjam seus objetivos. Com relação aos vícios do
consentimento, constata-se que somente a vontade livre e consciente, que não possui
influências externas coatoras, é que deverá ser considerada pelo direito.
27
As conseqüências referidas alcançaram o grau de princípios informadores e essenciais
da concepção tradicional dos contratos, tais como o princípio da liberdade contratual e o da
obrigatoriedade ou vinculatividade do contrato, também caracterizado como princípio da
intangibilidade do contrato. Esses dois princípios resultaram do princípio da autonomia da
vontade, segundo o qual o homem só pode ser vinculado pelas obrigações que ele mesmo
assumiu. O sistema contratual defendia como valor supremo das relações jurídicas o princípio
da autonomia da vontade.
28
Também resultantes do princípio da autonomia da vontade
surgem o princípio do efeito relativo do contrato e o do consensualismo.
29
27
MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais,
p. 48-51.
28
De acordo com Clóvis V. do Couto e Silva: “Colaborava, também, para adoção desse princípio, como
fundamento único do Direito contratual, o fato de as relações econômicas serem estáveis, sem as grandes crises
que se começaram a desenhar na primeira metade do nosso século...”. SILVA, Clóvis do Couto e. A teoria da
base do negócio jurídico no direito brasileiro. Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, n. 655, maio, 1990, p. 7.
29
Conforme o princípio do efeito relativo, os contratos não podem beneficiar ou prejudicar terceiros; conforme o
princípio do consensualismo, “se as partes são livres para contrair obrigações, então ficarão vinculadas apenas
pela manifestação dada nesse sentido, sem necessidade de se subordinarem a quaisquer formalidades”.
NORONHA, O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça
contratual, p. 43.
24
Da autonomia da vontade decorreram, segundo Wieacker:
(...) as grandes figuras do direito privado: o direito subjectivo como poder de
vontade, o negócio jurídico como activação da vontade autônoma das partes, o
contrato como estrita ligação intersubjectiva entre sujeitos autônomos de direito, a
propriedade (e os direitos limitados) como um direito em princípio ilimitado e total
de domínio e de exclusão, cuja função social não vem à luz no seu conceito; as
pessoas colectivas como sujeitos de direito segundo a imagem das pessoas físicas.
30
De fato, da autonomia da vontade decorreram as características voltadas ao
individualismo, que priorizavam a total liberdade de contratar, a igualdade formal, o direito
ilimitado de propriedade.
No entanto, a partir da industrialização, do progresso econômico e da democracia, tem
início uma nova fase no Estado Liberal, que se caracteriza pela justiça social.
31
Novas
necessidades, decorrentes do desenvolvimento que se opera, despertam a busca pela sua
satisfação. Por meio das reivindicações e das conquistas alcançadas, ao Estado cabe a função
de facilitar-lhes o acesso, o que não se torna acessível a todos os cidadãos em virtude da
discrepância entre o crescente aumento das necessidades e a impossibilidade de atendimento
de modo satisfatório. Diante disso, o que se verifica com as transformações ocorridas no
Estado é o surgimento da complexidade na sociedade, o que facilitará o surgimento das crises,
as quais ocasionarão, conseqüentemente, o surgimento de novos tipos estatais, com novas
necessidades, gerando o aumento da complexidade, e assim progressivamente, como será
demonstrado nas páginas que seguem, desembocando nos dias de hoje, com a sociedade
altamente complexa e globalizada da atualidade.
1.2.1.1 A crise da teoria contratual tradicional e a transição da concepção clássica para a
concepção intervencionista
De acordo com Cláudia Lima Marques, as mudanças que se operavam na sociedade
refletiam-se nas relações sociais, fazendo surgir a massificação da tecnologia informática e a
desmaterialização do objeto de desejo do consumidor, o que originou as duas crises da teoria
30
WIEACKER, Franz. A história do direito privado moderno. 3 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2004, p. 717.
31
STRECK; MORAIS, Ciência política e teoria do estado, p. 56.
25
contratual tradicional.
32
A massificação da tecnologia informática resultou na massificação
das relações contratuais, modificando a forma de contratação, tornando-se evidente que o
conceito de contrato baseado na concepção tradicional não mais se adaptava à realidade
socioeconômica vigente.
33
Outrossim, com relação à desmaterialização do objeto de desejo do
consumidor, verifica-se uma troca de interesses. Surgem tempos de valorização dos serviços,
do lazer, do abstrato e do transitório, que levam a uma releitura dos princípios do direito civil,
influenciada pelo direito público e pelos direitos fundamentais do cidadão.
34
Tem início a transformação do Estado Liberal no Estado Social e a superioridade do
código nas relações privadas começa a perder a sua eficácia. De fato, enquanto o código se
mantinha fiel às idéias liberais, a legislação extravagante sugeria a preocupação com o social
e com a proteção dos interesses da coletividade. O direito codificado não atendia mais às
necessidades da nova realidade socializada, agora com características complexas e
conflituosas. Crescia o número de normas especiais destinadas a regulamentar as novas
situações sociais, as quais decorriam de negociações entre os segmentos interessados, tais
como governo, sindicatos, associações civis, grupos de interesse, etc.
35
1.2.2 A concepção de contrato no Estado Social
36
32
De acordo com a nota 62 da seguinte obra: MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o
novo regime das relações contratuais, p. 52.
33
De acordo com a autora, “em muitos casos o acordo de vontades era mais aparente do que real; os contratos
pré-redigidos tornaram-se a regra, e deixavam claro o desnível entre os contraentes um autor efetivo das
cláusulas, outro, simples aderente desmentindo a idéia de que assegurando-se a liberdade contratual,
estaríamos assegurando a justiça contratual. (...) Apesar de asseguradas, no campo teórico do direito, a liberdade
e a autonomia dos contratantes, no campo prático dos fatos, o desequilíbrio daí resultante já era flagrante”.
MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais,
p. 150-151.
34
MARQUES, op. cit., p. 155.
35
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2 ed., Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006,
p. 74. De acordo com o autor “no Brasil, como se sabe, o antigo Código Civil só veio a ser editado em 1916,
enquadrando-se no que Antonio Menezes de Cordeiro denominou de “codificação tardia”. Até então, vigoravam
no Brasil as Ordenações Filipinas, de Portugal, mantidas mesmo após a Declaração da Independência. Quando o
Código foi editado em 1916, já estava em franco declínio na Europa a Era das Codificações, e o
intervencionismo estatal começava a despontar. De qualquer forma, na década de 30, quando se instaura no país
o Welfare State, já se inicia um processo de intensa intervenção legislativa, com a edição de uma profusão de
normas contendo políticas públicas e espelhando diretrizes e valores que não se reconduziam ao liberalismo do
Código. O fenômeno se exacerba durante a década de 60, com a edição de uma pletora de leis versando matéria
de Direito Privado, como locação urbana, condomínios, estatuto da mulher casada, etc. Neste contexto, a
doutrina passa a tratar do processo de descodificação do direito Privado, consistente no advento de
microssistemas legislativos, que vicejam à margem do Código Civil, baseados sobre princípios muitas vezes
contraditórios àqueles refletidos na codificação. A descodificação, neste sentido, não se resume à multiplicação
de normas setoriais, fora do âmbito do Código. Ela reflete um fenômeno mais profundo, na medida em que os
microssistemas são independentes do Código Civil e se inspiram em objetivos e valores muito divergentes
daqueles que norteiam a codificação. O Código Civil não pode mais ser considerado como lei geral em face
destes microssistemas, apto a dirigir a interpretação de suas normas e a colmatar as suas lacunas, diante desta
irreconciliável divergência axiológica. Com a fragmentação do sistema de Direito Privado, a Constituição, que
no contexto do Estado Social passara também a disciplinar as relações econômicas e privadas, vai converter-se
em centro unificador do ordenamento civil”.
36
BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 6. ed. rev., e ampl. São Paulo: Malheiros, 1996, p.
186. Com relação ao Estado de índole social o autor refere: “Quando o Estado, coagido pela pressão das massas,
pelas reivindicações que a impaciência do quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado constitucional
ou fora deste, os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita
26
Para proceder à análise da transição operada entre a passagem do modelo de Estado
Liberal para o Estado Social utiliza-se o texto de Lenio L. Streck e José L. B. de Morais, para
quem a mudança de rumos do Estado Liberal começou a acontecer em meados do século
XIX, quando ao Estado coube a realização de tarefas positivas em prol do cidadão, bem como
a participação no jogo socioeconômico que se iniciava. Dessa forma, a liberdade contratual e
econômica até então existente foi reduzida, tanto na área econômica como na social. No
entanto, apesar da participação do Estado nos novos rumos econômicos e sociais, no final do
século um novo sentimento passou a influenciar a filosofia e a política liberal. Surgiu o anseio
de “justiça social”, que representava a necessidade de apoiar os indivíduos, que passaram a
fazer parte de uma coletividade e não mais eram vistos como seres individuais. Essa nova
imagem de coletividade despertou o sentimento de ajuda, de cooperação e de serviços mútuos,
incrementando-se no decorrer do século XX, inaugurando, dessa forma, a fase do Estado
Social.
37
Por meio da Revolução Industrial incentivou-se a distinção entre as classes sociais e os
problemas sociais cresceram, tornando necessária a intervenção do Estado nas relações
privadas. As idéias socialistas adquiriram força e passaram a ser defendidas por instituições e
doutrinadores. A Igreja Católica propôs, por meio de suas encíclicas, a mudança da moral
individual para uma ética social.
38
Verifica-se que, apesar da forte influência da autonomia da vontade na relação
contratual, característica do Estado Liberal, a concepção do contrato passou por uma
crescente evolução, tanto em virtude do surgimento de um novo tipo de sociedade
industrializada, de consumo, de informação, como da evolução natural do pensamento
jurídico. Dessa forma, o contrato evoluiu da rígida influência da autonomia da vontade para
uma posição mais flexível, tornando-se um instrumento jurídico mais social, passível de
controle na busca por soluções mais eqüitativas.
39
o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e
ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede crédito,
institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na
sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma,
estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa
individual, nesse instante o Estado pode, com justiça, receber a denominação de Estado Social”.
37
STRECK; MORAIS, Ciência política e teoria do estado, p. 63-66.
38
MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 150-
151. Nesse sentido Arnaldo Rizzardo complementa: “Também com relação à justiça social, salienta-se a
influência da Igreja Católica na busca pelo seu alcance nas estruturas dos sistemas econômicos “especialmente
por meio das encíclicas Rerum Novarum, Quadragésimo Anno, Mater et Magistra, Pacem in Terra e Populorum
Progressio”,
38
RIZZARDO, Contratos, p. 10.
39
MARQUES, op. cit., p. 39.
27
Sucedeu-se um momento de mudanças legislativas, políticas e sociais, um momento
de mudança no estilo de vida; passou-se a acumular bens imateriais, aos contratos de fazer, ao
modelo duradouro da relação contratual, à contratação a distância através de meios
eletrônicos, à terceirização, às parcerias fluidas, às privatizações e às relações particulares de
interesse social ou público.
40
Essas transformações ocorridas no contrato ocasionaram a
necessidade de adaptações dos juristas para a nova realidade que se apresentava, a qual
deixava para trás a concepção clássica, adquirindo progressivamente uma nova concepção
tanto em suas funções como em seu conteúdo.
41
O direito contratual foi obrigado a adaptar-se
às novas realidades econômicas, políticas e sociais, angariando uma nova função, a de buscar
a realização da justiça e do equilíbrio contratual. Conseqüentemente, no novo conceito de
contrato a eqüidade e a justiça passaram a ocupar o ponto central, o que ocasionou o
surgimento do novo limite à autonomia da vontade: a função social do contrato. Esta
socialização se dará pelo intervencionismo do Estado e pela imposição do princípio da boa-
objetiva nas obrigações.
42
Aquela concepção de contrato que se baseava em “partes igualmente livres” já não
encontrava espaço nas relações sociais, o que deu início às transformações do contrato que
tiveram entre seus motivos a forma padronizada de contratação; também o fato de que os
contratos concebidos na forma do acordo de vontades estariam perdendo importância, bem
como o reconhecimento de que o contrato aparecia de forma diferente da sua realidade na
concepção tradicional
43
. Esses motivos originaram a inexistência da “justiça contratual”, o
que levou à busca dessa justiça, por meio de novas formas de intervenção, que passaram a ser
denominadas de “dirigismo econômico”.
44
“Da propriedade privada dos meios de produção
40
MARQUES, op. cit., p. 159-160.
41
Conforme Noronha: “Nos livros, ensinava-se a concepção clássica do contrato, insistia-se que este resultava de
um processo iniciado por negociações preliminares, incluindo propostas, discussão delas, e por aí adiante, até
que as partes, livres e iguais, alcançassem o acordo, que poria em equilíbrio os pratos da balança da justiça.
NORONHA, O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça
contratual, p. 75.
42
MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 154-
155. De acordo com a autora, o intervencionismo deu-se através da renovação da teoria contratual a partir das
influências das tendências sociais, decorrentes do novo Estado Social e da nova realidade da sociedade de
massas, p. 207-209; a boa-fé objetiva, por sua vez, age como fonte de novos deveres especiais, os deveres
anexos, como causa limitadora dos direitos subjetivos dos contratantes, bem como na concreção e interpretação
dos contratos, p. 180.
43
NORONHA, op. cit., p. 77-78.
44
Segundo Noronha: “E outra coisa, afinal não visavam as formas de intervenção que ficaram conhecidas por
dirigismo econômico: tais formas também buscavam encontrar “a rota entre o socialismo autoritário e coercitivo
e o laissez-faire anárquico”, de que falava Vasseur, em célebre artigo, justamente intitulado “Un nouvel essor du
concept contractuel”. NORONHA, op. cit., p. 78.
28
passou a viger a função social da propriedade, e da liberdade contratual passou-se ao
dirigismo contratual”.
45
Apesar da preponderância da autonomia da vontade, alguns juristas perceberam a
necessidade de haver uma relação estreita do contrato com a realidade econômica subjacente,
para que se operasse com normalidade a sua função de troca, o que teve início por meio das
condições suspensivas e resolutivas e da teoria da impossibilidade.
46
Posteriormente, como a
finalidade era regular os riscos nos contratos, a relação do contrato com a realidade subjacente
ocorreu em torno da consideração da teoria do erro, da “pressuposição” de Windscheid e,
progressivamente, da teoria da imprevisão, da teoria da base subjetiva do negócio jurídico, da
hermenêutica integradora, da teoria da base objetiva no início associada à teoria da
impossibilidade, também denominada de “onerosidade excessiva”. Outro limite imposto à
autonomia da vontade encontra-se no princípio da boa-fé, que facilitou, em virtude da
objetivação do negócio jurídico, a criação do conceito de “base objetiva do contrato”, que
representa uma relação de valor entre a vontade e os aspectos econômicos que influenciam o
contrato.
47
Entretanto, a nova realidade social e contratual do século XX somente encontraria uma
solução na década de 1980, com a edição da nova Constituição Federal brasileira e do Código
de Defesa do Consumidor, que instituiu como valor máximo a eqüidade contratual.
48
O novo conceito de contrato apresenta uma concepção social, para a qual se considera
tanto a manifestação de vontade, o consenso, como os efeitos que o contrato exerce na
sociedade, ganhando em importância a condição social e econômica das pessoas.
49
O direito
desenvolve uma teoria contratual com função social, deixando de lado o ideal positivista da
45
STRECK; MORAIS, Ciência política e teoria do estado, p. 75. Também Bessone, referindo-se ao dirigismo
contratua,l acentua: “Tornou-se evidente que é necessário criar um sistema de defesas e garantias, para impedir
que os fracos sejam espoliados pelos fortes, assim como para assegurar o predomínio dos interesses sociais sobre
os individuais. Todos, diz Ripert, apelam para o Estado, exigindo-lhe a ordem econômica. Premido por tão
urgentes solicitações, o Estado passa a dirigir o contrato, não tanto segundo a vontade comum e provável dos
contratantes, mas atentando, sobretudo, nas necessidades gerais da sociedade. Legisla em nome da ordem
pública, cuja noção se alarga e enriquece. A lei deixa de ser a regra abstrata e permanente, para se tornar um
regulamento temporário e detalhado...Os princípios tradicionais, individualistas e severos, sofrem freqüentes
derrogações, em proveito da justiça contratual e da interdependência das relações entre os homens”. BESSONE,
Darci. Do contrato, Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 52-53.
46
SILVA, Clóvis do Couto e. A teoria da base do negócio jurídico no direito brasileiro. Revista dos Tribunais,
São Paulo: RT, n. 655, maio 1990, p. 7.
47
SILVA, op. cit., p. 7-11.
48
De acordo com a autora, na nova realidade contratual proliferam os contratos de adesão, os contratos cativos
de longa duração, a concentração de poder nas mãos das empresas e dos conglomerados industriais, o Estado
obrigando os particulares a contratar e o novo valor dado aos bens imateriais, autorais e aos direitos
fundamentais. MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações
contratuais, p. 152-153.
49
MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais,
p. 175-176.
29
ciência e passando a reconhecer a influência do costume, da moral, da harmonia e da tradição,
isto é, passa a concentrar seus esforços na solução dos problemas.
50
Também há que se considerar a nova concepção do contrato como “uma instituição
jurídica flexível, que é hoje ponto de encontro de direitos constitucionais dos sujeitos
envolvidos, alguns merecedores inclusive de serem sujeitos de direitos fundamentais”;
51
O contrato possui a função de fazer circular as riquezas nas sociedades, de proteção
dos direitos fundamentais do consumidor e de realização dos paradigmas de qualidade,
segurança e adequação dos produtos e serviços no mercado brasileiro.
52
Tratando-se do consumidor, deve-se considerar que, na nova concepção contratual, o
fato de este sujeito ter recebido direitos fundamentais influenciou na interpretação da relação
jurídica de que faz parte, gerando duas conseqüências: primeiro, que o contrato deve ser
interpretado de forma diferente, com especial proteção aos sujeitos de direitos especiais;
segunda, que o direito daí resultante deve receber uma interpretação teleológica (de proteção
dos mais fracos) e de acordo com a Constituição Federal brasileira.
53
Do exposto, percebe-se a mudança que se operou no Estado, na sociedade e no
contrato. De uma sociedade de cunho liberal, que delimitou as características do contrato em
torno da autonomia da vontade, da total liberdade de contratar e do consenso, passou-se,
progressivamente, para uma sociedade (Estado) de cunho social, que priorizava a intervenção
estatal objetivando alcançar a justiça social. Por meio dessa transformação o contrato adquiriu
como objetivo a funcionalização, e para o seu alcance utilizou-se de novos princípios, bem
como de uma nova versão aos princípios já existentes, entre os quais a boa-fé, o equilíbrio
contratual e a função social.
50
De acordo com a autora, “é um estilo de pensamento cada vez mais tópico, que se orienta para o problema,
criando figuras jurídicas, conceitos e princípios mais abertos, mais funcionais, delimitados sem tanto rigor
lógico, como veremos no CDC, pois só assumem significação em função do problema a resolver, são fórmulas
jurídicas de procura da solução do conflito, fórmulas que jamais perdem a sua qualidade de tentativa. Esta parece
ser a fase do direito atual, pois superado o ceticismo quanto ao declínio do pensamento sistemático, a infalível
descodificação, evoluímos para considerar a realidade positiva função do pensamento tópico e da re-etização do
direito”. MARQUES, op. cit., p. 176-179.
51
MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 210.
Com relação aos consumidores como sujeitos de direitos fundamentais na relação contratual, a autora acentua na
página 211: “Quando a Constituição de 1988 identificou os consumidores como agentes econômicos mais
vulneráveis e que deveriam ser protegidos pelo Estado (art. 5, XXXII, da CF/88), quando ordenou ao legislador
que esta proteção do sujeito refletisse na elaboração de um Código de Defesa do Consumidor, a proteger este
sujeito de direitos especial, acabou moldando uma nova visão mais social e teleológica do contrato como
instrumento de realização das expectativas legítimas deste sujeito de direitos fundamentais, os consumidores”.
52
De acordo com a autora, “estes paradigmas concretizam não só a nova ordem econômica constitucional (art.
170, V, da Constituição Federal), mas também os mandamentos constitucionais de igualdade entre os desiguais
(art. 5 da Constituição Federal), de liberdade material das pessoas físicas e jurídicas (art. 5 c/c art. 170, V, da
Constituição Federal) e, em especial, da dignidade deste sujeito quanto pessoa humana (art. 1, III c/c art. 5,
XXXII, da Constituição Federal). MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime
das relações contratuais, p. 213.
53
MARQUES, op. cit., p. 213-214.
30
Conforme se verificou, a mudança no instituto contratual é concreta e desenvolve-se
de acordo com o desenvolvimento social. Às novas características sociais, novas
características são incorporadas aos contratos, moldando a sua estrutura e proporcionando-lhe
uma nova feição, como se perceberá nas páginas que seguem.
1.2.3 Novas tendências da ciência jurídica e da concepção contratual
Analisar as novas tendências da ciência do direito, e especificamente do instituto
contratual, torna-se uma abordagem necessária, na medida em que a finalidade da pesquisa é a
análise do princípio da boa-fé objetiva como um mecanismo de solução de conflitos
contratuais, de acordo com a concepção sistêmica autopoiética do direito.
Até este ponto demonstrou-se a evolução do contrato através da sua concepção
tradicional, de cunho individualista e formal, bem como das influências que recebeu e que
operaram a sua transformação, tornando-o mais socializado e adaptado às necessidades
sociais, de acordo com as características de determinadas épocas. No entanto, diante das
transformações sociais, das quais emerge uma sociedade complexa e globalizada, faz-se
necessário uma breve exposição desse novo panorama, que faz surgir a necessidade de um
novo contexto contratual, para o qual se sugere a teoria sistêmica autopoiética, sobre a qual se
fundamenta esta pesquisa.
As novas tendências acontecem no panorama de um Estado denominado de
contemporâneo, Estado Democrático de Direito,
54
pós-moderno e que apresenta determinadas
características específicas, tais como a busca pela igualdade, pela solidariedade, que passam a
informar a teoria contratual, proporcionando-lhe uma nova moldura. Com o objetivo de
padronizar, utiliza-se neste item o termo “pós-moderno”. De acordo com Luhmann, a
sociedade pós-moderna pode ser caracterizada como funcionalmente diferenciada, ou seja:
La sociedad moderna puede ser descrita como un gran sistema social estructurado
primordialmente sobre la base de una diferenciación funcional. La política, la
economía, la religión, son sistemas funcionales que tienen la particularidad de
seleccionar un torno social en la medda de sus propias posibilidades estructurales,
54
STRECK; MORAIS, Ciência política e teoria do estado, p. 103. De acordo com os autores, “a novidade do
Estado Democrático de Direito não está em uma revolução das estruturas sociais, mas deve-se perceber que esta
nova conjugação incorpora características novas ao modelo tradicional. Ao lado do núcleo liberal agregado à
questão social, tem-se com este novo modelo a incorporação efetiva da questão da igualdade como um conteúdo
próprio a ser buscado garantir através do asseguramento jurídico de condições mínimas de vida ao cidadão e à
comunidade. Embora tal problemática já fosse visível no modelo anterior, há, neste último, uma redefinição que
lhe dá contornos novos onde tal objetivo se coloca vinculado a um projeto solidário a solidariedade agrega-se a
ela compondo um caráter comunitário. Aqui estão inclusos problemas relativos à qualidade de vida individual e
coletiva dos homens”.
31
autopoiéticas. De aquí que todo sistema esté diferenciado precisamente por la
función que desempeña en la sociedad.
55
De acordo com o exposto, pode-se dizer que a sociedade pós-moderna “é uma
sociedade composta por sistemas de diferenciação funcional própria que, a partir de sua
própria recursividade, (re)cria formas sociais (e de Direito) novas”.
56
Os tempos designados de “pós-modernos” caracterizam-se por apresentar dificuldades
para a ciência do direito tendo em vista as crescentes necessidades de repostas aos novos
problemas que perturbam a sociedade atual. Esses novos tempos valorizam os serviços, o
lazer, o transitório, demonstrando a insuficiência do direito contratual tradicional na resolução
dos conflitos e forçando, dessa forma, a evolução dos conceitos, a criação jurisprudencial,
bem como uma nova visão dos princípios do direito civil para uma solução mais adequada dos
conflitos sociais.
57
A realidade da sociedade pós-moderna caracteriza-se pela perda dos valores da
modernidade, os quais são substituídos por uma ética discursiva e argumentativa. A
legitimação se dá por meio da linguagem e do consenso, não mais pela lógica, pela razão ou
pelos valores que apresenta.
58
O pós-modernismo apresenta uma sociedade que se fundamenta
na circulação das informações, o que tornou a informação computadorizada imprescindível a
todas as áreas responsáveis pela produção do conhecimento.
59
De fato, ao se fazer uma
avaliação das tendências futuras do direito positivo, o que se verifica é a transposição da
descontinuidade jurídica existente entre os Estados modernos, para a realidade multinacional,
para a sociedade sem fronteiras, isso em razão do maior intercâmbio entre os homens, da
rapidez dos meios de comunicação e de transportes, bem como da globalização.
60
Como características da época pós-moderna, André-Jean Arnaud salienta o
pragmatismo, o descentramento do sujeito, o relativismo, a pluralidade de racionalidades, as
lógicas estilhaçadas, a complexidade, o retorno da sociedade civil e o risco.
61
55
LUHMANN, Niklas. Sociologia del riesgo. México: Triana Editores, 1998, p. 26.
56
SCHWARTZ, Germano. O tratamento jurídico do risco no direito à saúde. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2004, p. 38.
57
MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p.155.
58
Idem, p.161.
59
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Autopoiese do direito na sociedade pós-moderna. Introdução a uma teoria
social sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 23.
60
RAMOS, Carmem Lucia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem fronteiras. In:
FACHIN, Luiz Edson. (Coord.). Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro:
Renovar, 1998, p. 18.
61
ARNAUD, André-Jean. O direito entre modernidade e globalização. Lições de filosofia do direito e do
Estado. Tradução de Patrice Charles Wuillaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 201-203. Também o autor
32
Complementando, Cláudia Lima Marques refere como características da cultura pós-moderna
o pluralismo, a comunicação, a narração, a emocionalidade e a valorização dos direitos
humanos.
62
A complexidade, segundo Pietro Barcellona, é fundamental para a época pós-
moderna, pois se refere à multiplicidade dos fenômenos.
63
Corroborando o exposto, Germano
Schwartz acrescenta:
Nota-se que as características desse Direito pós-moderno divergem radicalmente das
características do que se convencionou chamar Direito moderno. Onde antes havia
simplicidade, hoje existe complexidade. Onde outrora havia perigo, há risco. Resta
cristalino, portanto, que os critérios a serem utilizados para problemas jurídicos pós-
modernos devem ser critérios aptos à nova realidade realidade complexa e de
risco, de uma sociedade com enorme rapidez na (re)produção dos eventos sociais
(comunicação).
64
Também com relação ao pluralismo jurídico, Gunther Teubner salienta que a
preocupação dos juristas deixou para trás o direito oficial do Estado centralizado, no qual
despontavam a abstração, a generalidade e a universalidade, direcionando sua atenção para
novas formas de criação legislativa, entre as quais o autor refere
a “lei do asfalto” das grandes cidades norte-americanas ou no “quase direito” das
favelas do Brasil, nas normas informais das culturas políticas alternativas, na colcha
de retalhos do direito das minorias, nas normas de grupos étnicos, culturais e
religiosos, nas técnicas disciplinares da “justiça privada” e, ainda, nos regulamentos
refere sobre a época pós-moderna: “A época pós-moderna se caracteriza pela coexistência contraditória do
retorno ao medo que impõe o sacrifício , e a percepção da infinita multiplicidade da experiência, que postula a
rejeição à renúncia. Aqueles que pensam os fundamentos do Direito, cada um no seu campo de especialidade são
hoje muitos a se esforçar para ter em conta esta contradição em suas investigações. Com a esperança não a
certeza, pois o pesquisador é antes de tudo um cético de superá-la, ao menos parcialmente, para melhorar as
condições de vida no seio da sociedade” ARNAUD, André-Jean. O Direito traído pela filosofia. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 248.
62
MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais,
p. 162-164. De acordo com a autora, o pluralismo manifesta-se na multiplicidade de fontes legislativas a regular
o mesmo fato, no pluralismo de sujeitos a proteger, no pluralismo da filosofia, onde o diálogo legitima o
consenso e no pluralis mo dos direitos assegurados. A comunicação seria um valor máximo da pós-modernidade.
A nova legitimação do direito estaria na comunicação e no revival da autonomia da vontade, associada à
valorização do tempo e do direito como instrumento de comunicação, de informação. A narração origina-se na
comunicação. Existiria um novo método para elaborar as normas, normas que narram seus objetivos e não
normas que regulamentam condutas. A emoção seria a procura de novos elementos sociais, ideológicos e/ou fora
do sistema, e o revival dos direitos humanos que é proposto como elemento guia, os direitos fundamentais
seriam as novas “normas fundamentais”.
63
BARCELLONA, Pietro. O egoísmo maduro e a insensatez do capital. Traduzido por Sebastião José Roque.
São Paulo: Ícone, 1995, p. 19.
64
SCHWARTZ, O tratamento jurídico do risco no direito à saúde, p. 38.
33
internos de organizações formais e redes informais, que se encontram todos os
ingredientes da pós-modernidade: o local, o plural, o subversivo.
65
O pluralismo jurídico surge por meio dos novos tipos informais de regras, que
complementam o ordenamento jurídico oficial. Conseqüentemente, passa a existir uma
duplicidade, que leva a que os fenômenos do pluralismo jurídico se tornem,
consecutivamente, “normas sociais e regras jurídicas, direito e sociedade, formais e informais,
orientados por normas e espontâneos”. A relação entre o direito e a sociedade torna-se
ambígua e paradoxal, pois os elementos, ao mesmo tempo em que se separam, se unem;
mesmo quando são autônomos, tornam-se interligados, fechados e abertos. Neste ponto
Teubner questiona a introdução da teoria autopoiética, referindo que, ao mesmo tempo em
que a autopoiese e a teoria pós-moderna apresentam pontos em comum, também se
diferenciam, pois o pós-modernismo desconstrói a teoria do direito, ao passo que a teoria do
sistema autopoiético questiona o que vem após a desconstrução. E a resposta se encontra no
fato de que, através dos paradoxos, das tautologias, das contradições e das ambigüidades das
práticas discursivas, possibilita-se a reconstrução, o início da análise autopoiética, pois aí se
encontram os “fundamentos da auto-organização das práticas sociais”.
66
O novo pluralismo jurídico caracteriza-se como contrário à legalidade, à hierarquia e à
institucionalização. O que predomina é a interação dinâmica entre as ordens jurídicas
existentes. Como conseqüência, verifica-se a dificuldade de descrever o que é realmente
jurídico, bem como de se estabelecer com precisão a idéia do inter-relacionamento entre o
social e o jurídico. De fato, considerando-se os contratos e as cláusulas, está-se diante da
ordem jurídica. Mas e diante de normas resultantes de transações informais, do
relacionamento econômico baseado na confiança no âmbito do mercado?
67
Complementando
o exposto, para Leonel Severo Rocha o pluralismo jurídico “deve ser visto como uma
multiplicidade de diversos processos comunicativos num dado campo social que observa a
ação social sob a codificação binária Direito e não-Direito”.
68
65
TEUBNER, Gunther. Direito no processo de globalização. As duas faces de Janus: Pluralismo jurídico na
sociedade pós-moderna. In: Direito, sistema e policontexturalidade. Piracicaba: Editora Unimep, 2005, p. 81.
66
TEUBNER, op. cit., p. 81-83.
67
TEUBNER, Direito no processo de globalização. As duas faces de Janus: Pluralismo jurídico na sociedade
pós-moderna. In: Direito, sistema e policontexturalidade, p. 87.
68
ROCHA, Leonel Severo; CARVALHO, Delton Winter de. Policontexturalidade jurídica e estado ambiental.
In: SANTOS, André Leonerdo Copetti, STRECK, Lenio Luiz, ROCHA, Leonel Severo, et al.. (Org.).
Constituição sistemas sociais e hermenêutica: programa de pós-graduação em Direito da Unisinos: mestrado e
doutorado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, São Leopoldo: Unisinos, 2007, p. 142.
34
Segundo Teubner, o novo pluralismo jurídico precisa priorizar “a fragmentação da
auto-reprodução social numa multiplicidade de discursos herméticos”. É na dimensão
horizontal, na relação entre o direito e outros jogos de linguagem, que se observam os
processos pluralistas de produção de normas. O problema não se encontra mais na tradução
das normas sociais para jurídicas, mas na integração de um grande número de comunicações
que são codificadas de modo diferenciado no código jurídico.
69
De fato, com relação ao direito, a crise da pós-modernidade reflete uma mudança no
modo de pensar e de reconstruir a sua ciência. Tanto demonstra uma apatia com relação às
novidades como ilumina uma desconcertante crise de ideais e confusão de valores e linhas
jurídicas, que influenciam o direito contratual. O modelo contratual tornou-se dinâmico,
complexo, reiterado de fazeres de longa duração; o contrato tornou-se múltiplo, conexo,
triangular ou plúrimo, em cujos pólos existem vários sujeitos. No novo modelo contratual
existe a revalorização da palavra empregada, do risco profissional, juntamente com uma
grande censura intervencionista do Estado com relação ao conteúdo do contrato; valorizam-se
a confiança e a informação.
70
Por meio da modificação do contrato encontra-se a garantia da sua preservação, pois,
assim, atenderá aos interesses de um sistema econômico também em transformação. “A
mudança estrutural e funcional do contrato se faz para que este mecanismo jurídico possa se
adequar bem ao atendimento de novas finalidades, de novos rumos sócio-econômicos”
71
.
Segundo Enzo Roppo, a disciplina jurídica do contrato definida pelas leis e regras da
jusrisprudência encontra-se atrelada à realização dos objetivos e valores políticos, por isso
contingentes e historicamente mutáveis; a conseqüência que se observa é que o modo de ser e
de se conformar do contrato está diretamente ligado ao tipo de organização político-social de
cada momento histórico. O contrato, dessa forma, altera sua estrutura, disciplina e funções de
acordo com o contexto econômico-social em que se encontra inserido
72
. O contrato deixou de
ser estável, encontrando-se em constante reconstrução; o credor deixou de possuir um direito
adquirido, tendo apenas a esperança de que o juiz passe a considerar suas pretensões como
legítimas.
73
De acordo com Inocêncio Galvão Telles:
69
TEUBNER, Gunther. Direito no processo de globalização. As duas faces de Janus: Pluralismo jurídico na
sociedade pós-moderna. In: Direito, sistema e policontexturalidade. Piracicaba: Editora Unimep, 2005, p. 95-96.
70
MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais,
p. 167-169.
71
SELEME, Sérgio. Contrato e empresa: notas mínimas a partir da obra de Enzo Roppo. In: FACHIN, Luiz
Edson. (Coord.). Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998,
p. 267.
72
ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 1999, p. 11.
73
RIPERT, Georges. O regimen democrático e o direito civil moderno. São Paulo: Saraiva, 1937 p. 314.
35
A principal lição que se colhe da história dos contratos, o conhecimento das suas
transformações por entre as vicissitudes dos séculos, é a sua permanente vitalidade,
como dúctil, como dócil instrumento que ora se amplia ora se restringe, ora
enfraquece ora adquire novo vigor, e sempre ao homem serve para satisfazer as
necessidades fundamentais da vida de relação.
74
Para concluir o exposto, como também lançando as bases para o objetivo proposto,
qual seja, averiguar a possibilidade de novos rumos para o direito contratual, por meio da boa-
fé e da teoria sistêmica autopoiética, tendo em vista a nova realidade que se descortina na
teoria contratual, salienta-se Luiz Edson Fachin sobre a dinâmica e a mudança que ora se
processa. Segundo o autor, a dinâmica proporciona vida e transformação, o que ocorre quando
a regra positivada não alcança todas as circunstâncias do fato, com suas especificidades.
Nesses espaços de “não-direito”, isto é, aqueles que a regra não alcança, gera-se uma nova
ordem, que depois se converte em regra.
75
Os fatos gerados no “não-direito” evidenciam, por sua vez, a crise. Há condutas que
proporcionam comportamentos não regulados, que facilitam a transformação, gerando novas
regulamentações.
76
Com a análise realizada, verificou-se a mudança operada no instituto contratual, que
deixou de ser individualista para se tornar socializado. Constatou-se a existência de um
processo dinâmico, que envolve tanto a sociedade como as relações contratuais, ambos se
desenvolvendo concomitantemente, fazendo surgir a necessidade de respostas e soluções para
os novos desafios que se apresentam, provenientes de uma sociedade com um nível cada vez
maior de complexidade.
A essa realidade nova e complexa, sugere-se como forma de possibilidade para o
direito contratual a concepção sistêmica autopoiética e a boa-fé objetiva no sentido de
cláusula geral, como um mecanismo de solução de conflitos para o direito contratual, que se
encontra em constante transformação.
1.2.4 A ciência jurídica diante da concepção sistêmica autopoiética
74
TELLES, Inocêncio Galvão. Manual dos contratos em geral. 3. ed. Lisboa: Coimbra, 1965, p. 65.
75
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 200.
76
FACHIN, op. cit., p. 224.
36
Para a análise deste item faz-se brevemente a explanação da teoria dos sistemas, das
três matrizes da teoria jurídica e da aplicação da teoria sistêmica autopoiética na ciência
jurídica.
1.2.4.1 A teoria dos sistemas
Como ponto de partida para a análise dessa nova visão denominada sistêmica
autopoiética, tornam-se necessários alguns apontamentos sobre a teoria dos sistemas. Como
marco inicial salientam-se as idéias de Ludwig von Bertalanffy,
77
segundo o qual os sistemas
caracterizam-se por serem “complexos de elementos em interação”. O sistema constitui-se por
um “todo” que se encontra inserido num contexto, e as propriedades essenciais que formam
esse todo surgem das relações entre suas partes.
78
As propriedades das partes podem ser
entendidas apenas a partir da organização do todo, concentrando-se o pensamento sistêmico
em princípios de organização básicos.
79
Como características do pensamento sistêmico salienta-se a mudança das partes para o
todo, considerando que as propriedades essenciais, ou sistêmicas, são propriedades do todo e
que não aparecem nas partes quando consideradas isoladamente. Outra característica é a sua
capacidade de deslocar a própria atenção de um lado para outro entre diferentes níveis
sistêmicos, o que significa que existem sistemas dentro de outros sistemas, bem como que a
comunicação se processa por meio dos mesmos conceitos, existindo, assim, afinidade entre
eles. Como terceira característica surge a percepção do mundo em termos de redes
interligadas, pois, para o pensador sistêmico, as relações são fundamentais.
80
1.2.4.2 As três matrizes da teoria jurídica
A pesquisa tem como objetivo a análise da teoria sistêmica haja vista ser a linha
fundamental da dissertação final do curso de mestrado. Com vistas a esse objetivo, faz-se uma
breve exposição das três matrizes da teoria jurídica, a analítica, a hermenêutica e a
pragmática, esta última considerada em termos de teoria sistêmica, segundo a concepção de
77
BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 56.
78
CAPRA, Fritjof. A teia da vida. 13. ed. São Paulo: Cultrix, 1999, p. 39.
79
CAPRA, op. cit., p. 41.
80
CAPRA, A teia da vida, p. 46.
37
Leonel Severo Rocha,
81
demonstrando-se a evolução do pensamento jurídico e da sociedade,
bem como a pertinência da aplicação da teoria sistêmica diante das novas tendências sociais.
A ciência do direito transformou-se, nos últimos tempos, de uma concepção baseada
em critérios sintático-semânticos para critérios pragmáticos; de uma perspectiva estrutural
(normas), para uma perspectiva funcionalista (função social), de um ponto de vista teórico,
para o político (democracia). Diante disso, constata-se a insuficiência das matrizes jurídicas
elencadas para tratar da complexidade social atual, fazendo-se necessário uma nova teoria
para reconstruir a teoria jurídica contemporânea. Nesse sentido, Leonel Severo Rocha relata o
surgimento da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, que, aliada à categoria do risco e à
democracia de Lefort, permite enfrentar a complexidade.
82
A teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, apta a pensar o Direito como componente
de uma estrutura social complexa e paradoxal, bem como os trabalhos referentes ao risco e ao
paradoxo permitem avançar um passo à frente na compreensão da hipercomplexidade da
sociedade atual. A partir de então, na classificação das matrizes, a matriz sistêmica e a matriz
pragmático-formal passam a denominar-se de “matriz pragmático-sistêmica”, caracterizando-
se por ser, ao mesmo tempo, histórica e social.
83
Na tentativa de aclaramento sobre o tema em questão, Leonel S. Rocha utiliza-se da
divisão da semiótica
84
de Carnap em três níveis. O primeiro, a sintaxe, tem como objetivo o
estudo da estrutura formal da linguagem, por meio da análise lógico-lingüística. Com relação
ao segundo nível, destaca-se a semântica, que visa averiguar o sentido das proposições, tendo
em vista as relações dos enunciados com a realidade. Tratando-se do terceiro nível, destaca-se
a pragmática, voltada ao estudo do uso das preferências discursivas, redefinida pela teoria
sistêmica. Por meio da matriz pragmático-sistêmica, torna-se possível analisar simulta-
neamente os três níveis da semiótica, verificando-se a predominância da pragmática e suas
conexões com o social, graças a sua perspectiva sistêmica. A pragmático-sistêmica preocupa-
se com as formas de comunicação e os procedimentos (Luhmann) utilizados nos processos de
decisão (De Giorgi, Ferraz Junior).
85
81
ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e democracia. 2. ed. São Leopoldo: Unisinos, 2003, p. 93.
82
Idem.
83
ROCHA, op. cit., p. 94. Com relação à classificação das matrizes teórico-políticas do direito, Leonel Severo
Rocha acentua que, entre a metodologia funcional (valores) e a metodologia estrutural (normas), existem três
matrizes teórico-políticas do direito, designadas de matriz neopositivista, matriz pragmática e matriz sistêmica.
A essas acrescenta a existência da matriz histórica e da matriz pragmático-formal. p. 85 ss.
84
Ciência geral dos signos e sistemas de comunicação.
85
ROCHA, Epistemologia jurídica e democracia,, p. 95. A essa divisão da semiótica Luis Alberto Warat
acrescenta que a sintaxe é a teoria de construção de toda a linguagem, conforme suas regras sintáticas de
formação e de derivação. A semântica, por sua vez, estuda os signos relacionados aos objetos a que se referem,
de forma verdadeira, objetiva. A pragmática estuda a relação dos signos com os seus usuários, isto é, com a
38
A filosofia analítica propunha uma linguagem rigorosa para a ciência, esta foi
adaptada para o direito por Hans Kelsen
86
e por Norberto Bobbio.
87
De acordo com Leonel
Severo Rocha, Kelsen desenvolveu uma teoria que pode ser estudada por meio da analítica, e
Bobbio foi quem aplicou a filosofia analítica através do neopositivismo às teses do
normativismo de Kelsen. A analítica prende-se aos aspectos descritivos e estruturais do
direito, mantendo politicamente um sentido de neutralidade, pois enquadra-se no Estado
Liberal, não interventor. Essa matriz, limitada politicamente, não apresenta capacidade de
tratar a complexidade da sociedade atualmente.
88
A hermenêutica prioriza as abordagens que privilegiam os contextos e funções de
imprecisão dos discursos, preocupando-se com a interpretação dos textos. Na ciência jurídica
a influência vem do positivismo de Herbert Hart, que se preocupa com as definições,
salientando que o modo de definição por gênero e diferença é inapropriado para tratar de
questões gerais e abstratas. Portanto, a preocupação deve voltar-se para a exploração das
relações essenciais que existem entre o direito e a moralidade, a força e a sociedade, isto é,
explorar a natureza de uma importante instituição social, não somente com a designação pura
do signo “direito”. O direito, considerado como uma instituição social, é um fenômeno
cultural constituído pela linguagem, sendo este o motivo que leva Hart a priorizar o uso da
linguagem normativa para que se possa compreender a normatividade do direito. Essa
normatividade é social. A concepção de Estado, para a matriz hermenêutica, volta-se para as
instituições sociais, possibilitando o Estado interventor.
89
A matriz pragmático-sistêmica teve como ponto de partida as análises de Niklas
Luhmann sobre a teoria dos sistemas de Parsons. Após, Luhmann voltou-se “para uma
perspectiva autopoiética (Varela-Maturana), acentuando a sistematicidade do Direito como
auto-reprodutor de suas condições de possibilidade de ser, rompendo com o funcionalismo
parsoniano”. Por meio da perspectiva sistêmica autopoiética (pragmático-sistêmica) pode-se
afirmar que, por trás das dimensões da semiótica, das funções pragmáticas da linguagem nas
decisões jurídicas, encontra-se presente, redefinida no interior dos sistemas, a problemática do
risco e do paradoxo. O direito passa a ser definido como uma “estrutura de generalização
congruente em três níveis: temporal, social e prático ou objetivo”. Isso acontece porque “o
significação, com os usos ou as funções da linguagem. A significação das palavras vai se modificar de acordo
com a intenção que se pretende. WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. Porto Alegre: SAFE, 1985,
p. 40-46.
86
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
87
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1997.
88
ROCHA, Epistemologia jurídica e democracia, p. 97.
89
ROCHA, op. cit., p. 98-100.
39
comportamento social em um mundo altamente complexo e contingente exige a realização de
graduações que possibilitem expectativas comportamentais recíprocas e que são orientadas a
partir de expectativas sobre tais expectativas”. Essas reduções acontecem em três dimensões:
temporal, social e prática.
90
A partir dessa concepção, a função do direito passa a girar em torno da sua eficiência
seletiva de expectativas comportamentais que possam ser generalizadas em todas as
dimensões. O direito é dinâmico, pois se encontra em constante evolução em virtude da
necessidade de agir como uma estrutura social que reduz a complexidade das possibilidades
de ser no mundo.
91
De acordo com Leonel Severo Rocha, a teoria dos sistemas de Luhmann proporciona
um novo estilo científico, mais apto para a compreensão das sociedades complexas da
atualidade. Esta teoria procura explicar a sociedade como um sistema social. Faz-se
necessário demonstrar que certos elementos básicos possibilitam diferentes formas, em
infinitas possibilidades de interação social, o que gera uma grande complexidade, a qual exige
novos subsistemas, tais como o direito, a economia, a religião, que também se diferenciam,
gerando novos subsistemas. Diante disso à sociedade se colocam a complexidade e a dupla
contingência. A sociedade torna-se possível em virtude da comunicação, que depende da
linguagem, das funções, da diferenciação e das estruturas, o que possibilita a evolução
social.
92
Na fase atual, denominada “autopoiética”, Luhmann direciona a sua crítica da
sociedade às suas concepções de risco e paradoxo, as quais permitem a discussão da
racionalidade do direito e da sociedade. A constante presença do risco e, conseqüentemente,
de não se obter o fim pretendido nas decisões gera o paradoxo da comunicação na sociedade
moderna, ou seja, impede a diferenciação entre as operações de fechamento e abertura dos
sistemas. O risco salienta a importância da racionalidade para a tomada de decisões nas
sociedades modernas, redefinindo a analítica, a hermenêutica e a pragmática numa teoria da
sociedade mais realista, denominada de pragmático-sistêmica, que redefina a comunicação
jurídica.
93
90
ROCHA, Epistemologia jurídica e democracia, p. 100. Sobre a dimensão temporal o autor refere: “essas
estruturas de expectativas podem ser estabilizadas contra frustrações através da normatização; na dimensão
social, essas estruturas de expectativas podem ser institucionalizadas, isto é, apoiadas sobre o consenso esperado
de terceiros; e, na dimensão prática, essas estruturas de expectativas podem ser fixadas também através da
delimitação de um sentido idêntico, compondo uma inter-relação de confirmações e limitações recíprocas”.
91
ROCHA, op. cit., p. 101.
92
ROCHA, op. cit., p. 102-104.
93
ROCHA, op. cit., p. 37-38.
40
Do exposto, verificou-se, brevemente, a evolução das três matrizes da teoria jurídica -a
analítica, a hermenêutica e a pragmático-sistêmica , bem como suas implicações no
desenvolvimento do direito, passando-se, a seguir, à análise sobre a teoria dos sistemas e da
autopoiese e sua influência sobre a ciência jurídica e o contrato especificamente.
1.2.4.3 A teoria dos sistemas, a autopoiese e o direito
Com base na análise realizada sobre as características das teorias sistêmicas e
autopoiéticas, bem como sobre a concepção acerca das “três matrizes da teoria jurídica”,
fazem-se pertinentes algumas breves colocações sobre a interpretação da ciência jurídica em
face dessa nova visão.
A sociedade, com o passar do tempo, evolui, levando a que os elementos e instituições
que a compõem desenvolvam os seus fundamentos no alcance de uma maior adaptação. A
ciência jurídica, em razão da concepção conservadora que manteve por longo período de
tempo não realizou o seu desenvolvimento conjunto com a sociedade, que, seguiu o seu
caminho, ao passo que a ciência do direito se manteve aquém da evolução social. Assim,
surgiu a necessidade de novas teorias, que proporcionassem um novo modo de se realizar o
direito na atual sociedade complexa e globalizada.
Diante dessa realidade, várias teorias surgiram na tentativa de imputar ao direito uma
visão mais dinâmica, que proporcionasse maiores condições de adaptabilidade às insurgências
sociais, bem como favorecesse novas interpretações dos conceitos jurídicos, ampliando, dessa
forma, o campo de abrangência do direito. Entre essas teorias salienta-se a “teoria da
sociedade”, assim explicada por Leonel Severo Rocha:
94
“O trabalho de Niklas LUHMANN
(Sistemi Sociali, Fondamenti di Uma Teoria Generale, 1990), em alguns trabalhos
conjuntamente com Raffaelle DE GIORGI (Teoria della Società, 1992), é exemplar para a
transformação do modo de pensar tradicional do direito.” (grifos do autor) A teoria da
sociedade, por meio da abordagem sistêmica, permite ultrapassar a concepção formada pelas
posturas analíticas e formalistas, bem como pelas teorias denominadas de “sociologismos” do
direito. “A ‘Teoria della società’ permite a descrição do direito, da economia, da ciência, da
política... como sistemas que constituem a sociedade, segundo perspectivas particulares a cada
94
ROCHA, Leonel Severo. Direito, complexidade e risco. Seqüência, Porto Alegre, n. 28, jun. 1994, p. 2.
41
um deles”.
95
Com a teoria da sociedade torna-se possível visualizar e atingir uma nova forma
de se fazer o direito, considerando-o por meio dos seus fundamentos, recriando-o. Deixa-se,
pois, de pensar o direito com base em aspectos individualistas e conservadores, que o fazem
permanecer aquém das necessidades sociais e individuais dos cidadãos.
Com essa nova teoria tornou-se possível a problematização da teoria jurídica, a qual se
encontrava circunscrita à linguagem da semiótica em seus três níveis: analítica, semântica e
pragmática, diretamente relacionados ao normativismo, à hermenêutica e aos usos retóricos e
decisionais da linguagem do direito, como verificado anteriormente. Essa condição
aperfeiçoou-se porque a teoria da sociedade permite uma abordagem do direito desde as suas
concepções temporais, sociais e práticas, colocando-o numa perspectiva teórico-prática mais
avançada.
96
A ciência jurídica adquiriu, então, uma nova concepção, que proporcionou a sua
alteração conceitual e estrutural, ampliando, dessa forma, a interpretação sobre os fenômenos
e as relações sociais. Novos direitos foram criados, para os quais existe a possibilidade de
constante reprodução com vistas à permanente adaptação dos fenômenos ao contexto que os
cerca. A partir da teoria da sociedade criou-se a concepção do direito como um “sistema
social”, o que conduz à análise da “teoria dos sistemas”.
No entanto, cabe ressaltar que a análise da “teoria dos sistemas” será direcionada de
acordo com a concepção de Niklas Luhmann, que iniciou seus estudos na perspectiva
sociológico-sistêmica de Talcott Parsons, afastando-se, posteriormente, do estruturalismo-
funcional parsoniano e direcionando-se ao funcionalismo-estrutural.
97
Após, continuando sua
evolução, a teoria sistêmica, segundo Leonel Severo Rocha,
98
voltou-se para uma
“perspectiva ‘autopoiética’ do direito (VARELA-MATURANA) que redefinida com
características originais, acentua a sistematicidade do direito (como sistema social) como
auto-reprodutor de suas condições de possibilidade de ser”. De fato, Niklas Luhmann
99
refere:
95
NICOLA, Daniela Ribeiro Mendes. Estrutura e função do direito na teoria da sociedade. In: ROCHA, Leonel
Severo (Org.). Paradoxos da auto-observação. Percursos da teoria jurídica contemporânea. Curitiba: JM, 1997,
p. 224.
96
ROCHA, op. cit., p. 2.
97
NICOLA, Estrutura e função do direito na teoria da sociedade. In: ROCHA, (Org.), Paradoxos da auto-
observação, p. 225. De acordo com a autora, “o estruturalismo-funcional parsoniano privilegiava o momento
estrutural de conservação do sistema, ao passo que o funcionalismo-estrutural ressaltava o aspecto dinâmico da
contínua modificação estrutural para a satisfação da função”. E, na p. 223, refere: “O funcionalismo-estrutural
luhmanniano concebe as evidências como problemas, buscando decompor todas as substâncias em funções a fim
de comparar tudo o que é atual com outras possibilidades. Nesta perspectiva, o mundo delineia-se como
horizonte de outras possibilidades de máxima complexidade (Luhmann, 1976)”.
98
ROCHA, Direito, complexidade e risco. Seqüência, p. 9.
99
LUHMANN, Niklas. O enfoque sociológico da teoria e prática do direito. Seqüência, Porto Alegre, n. 28, jun.
1994, p. 18.
42
Tanto o sistema jurídico como o científico, e, dentro deste último, a disciplina
específica da sociologia, hão de ser considerados, pois, como sistemas auto-
referentes. Cada um destes sistemas constitui, por si mesmos, tudo aquilo que
funciona como uma unidade para o sistema. Isto não se refere apenas à unidade do
sistema, as suas estruturas e processos, mas também aos elementos que o constituem
(autopoiésis).
Os sistemas jurídicos buscam no seu interior a sua fundamentação, formando a sua
unidade e autonomia. Por meio dessa circularidade realizam a sua autopoiese, a sua
capacidade de se auto-reproduzir. A partir da volta que realiza ao seu centro, o sistema refaz o
seu “direito”, adaptando-o ao caso concreto e utilizando como base as disposições e
orientações que já possui, mas interpretando-as conforme as necessidades daquele momento e
local.
100
Outrossim, de acordo com Luhmann, o “sistema” deve ser entendido como
[...] um entremado de operaciones fácticas que, como operaciones sociales, deben
ser comunicaciones, independientemente de lo que estas comunicaciones afirmen
respecto al derecho. Esto significa entonces que el punto de partida no o buscamos
en la norma ni en una tipologia de los valores, sino en la distinción entre sistema y
entorno.
101
De outro ponto de vista, acrescenta-se ao conceito de autopoiese a característica da
continuação, a qual acontece no tempo, operação após operação, acontecimento após
acontecimento de um determinado sistema que se tornou autônomo.
102
A autopoiese é um
processo contínuo que automaticamente vai ligando e integrando uma operação na outra,
trazendo consigo a sua essência, pois é auto-referencial. Dessas ligações surgem novas
interpretações, as quais proporcionam o aumento da visão que se tem sobre o sistema jurídico.
Segundo Luhmann, “los sistemas autopoiéticos son siempre sistemas históricos, que parten
100
LUHMANN, O enfoque sociológico da teoria e prática do direito. Seqüência, p. 20.
101
LUHMANN, op. cit., p. 26.
102
CLAM, Jean. A autopoiése no direito. In: ROCHA, Leonel Severo; SCHWARTZ, Germano; CLAM, Jean.
Introdução à teoria do sistema autopoiético do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 102.
43
del estado inmediatamente anterior que ellos mismos han creado. Lo que hacen lo hacen por
primera y por última vez. Toda repetición en custión de una fijación artificial”.
103
A identidade de um sistema resulta da sua auto-referencialidade, pois, a partir do
momento em que o sistema se volta circularmente para o seu centro, adquire autonomia e se
refaz constantemente. Verifica-se a característica da auto-referencialidade dos sistemas, a
volta constante para o seu centro, o que lhe propicia unidade e identidade. O sistema mantém-
se com base na sua estrutura, nas suas características intrínsecas e nas suas operações; não
busca a sua fundamentação no meio externo, embora receba as influências filtradas do
contexto no qual se encontra inserido
104
. Niklas Luhmann acentua a auto-referencialidade nos
seguintes termos:
El círculo autorreferencial dado com cada operación, tiene que repetirse en cada
momento. Así, el círculo autorreferencial se despliega en una infinitud linear en el
sucesivo operar del mismo sistema. De la misma manera, el sistema se refiere a sí
mismo y aparece entonces como sistema autorreferencial con autorreferencias
operativas copiadas en su propio interior.
105
Sobre a auto-referencialidade e a clausura organizacional, Gunther Teubner
106
salienta:
“Auto-referencialidade e clausura organizacional (organizational closure, selbstreferentielle
Geschlossenheit) significam assim uma e a mesma coisa: o caráter fechado, circular e
recursivo da organização dos processos auto-reprodutivos de um sistema”. O sistema é
circular e fechado. Nessa circularidade e volta constante para si mesmo reproduz a sua
matéria e fundamentação, de acordo com as orientações que possui. Assim, o sistema
apresenta uma órbita e gravita nela, reabastecendo-se e, ao mesmo tempo, multiplicando-a,
como se com base nos mesmos princípios gerasse novas interpretações, adaptáveis ao
contexto, ao meio envolvente. Por meio da autopoiesis, quer-se referendar que o sistema é, ao
mesmo tempo, aberto e fechado, apresentando-se “simultaneamente, operacionalmente
fechado para manter a sua unidade e cognitivamente aberto para poder observar a sua
103
LUHMANN, El derecho de la sociedad, p. 33.
104
TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. Tradução de José Engrácia Antunes. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 31.
105
LUHMANN, El derecho de la sociedad, p. 169.
106
TEUBNER, op. cit., p. 33.
44
diferença constitutiva”.
107
No entanto, segundo Luhmann, a autopoiese e a clausura operativa
ocorrem
[...] cuando las operaciones se reproducem a si mismas y com ello al sistema y
que dejan ver determinadas caracterísiticas. Estas operaciones construyen unidades
emergentes, que sólo pueden surgir gracias a la clausura operativa del sistema; como
unidades logran su propia reducción de complejidad tanto en lo que se refiere al
entorno del sistema como al sistema mismo. En la facticidade de la realización está
ya presupuesto que no todo que existe puede ser considerado. En lugar de esa
relacionalidad completa entra, en su lugar, una relación selectiva que hace posible el
acoplamiento y la reproducción de la red recursiva autopoiética
108
.
De fato, “o sistema autopoiético é aquele que é simultaneamente aberto e fechado, ou
seja, é um sistema que tem repetição e diferença, tendo que equacionar no seu interior esse
paradoxo, que os operadores do Direito vão usar como critério para tomar decisões”.
109
O termo “auto-organização”, também uma característica dos sistemas autopoiéticos,
significa a capacidade do sistema de se estruturar internamente, conforme suas características,
sem a interferência do meio externo, pela interação dos seus elementos.
110
Também cabe ressaltar a característica da autoprodutividade, que Gunther Teubner
111
conceitua como sendo “[...] o de este se auto-reproduzir a si próprio extraindo do fluxo ou
seqüência de eventos (que constitui assim a sua infraestrutura material, energética e
informacional) novas unidades que são depois articuladas selectivamente com os elementos
da sua própria estrutura”. (grifos do autor) A autoprodutividade surge da seqüência constante
de relacionamentos que ocorrem no interior do sistema, visto que da interação entre essas
relações novas prolongações de redes (relações) vão se desenvolvendo, gerando, dessa forma,
novas matérias sistêmicas.
107
ROCHA, Leonel Severo. Direito, cultura política e democracia. In: Anuário do Programa de Pós-Graduação
em Direito Unisinos 2000. São Leopoldo: Unisinos, 2000, p. 154.
108
LUHMANN, El derecho de la sociedad, p. 36.
109
ROCHA, Leonel Severo. O direito na forma de sociedade globalizada. In: Anuário do Programa de Pós-
Graduação em Direito Unisinos 2001. São Leopoldo: Unisinos, 2001, p. 135.
110
TEUBNER, O direito como sistema autopoiético, p. 42.
111
TEUBNER, op. cit., p. 46.
45
Complementando a análise sobre a teoria dos sistemas, Leonel Severo Rocha
112
adverte que, para Luhmann, “o fundamental é a produção da diferença. A sociedade tem que
ser observada com o critério de produção do diferente”, não através do consenso, como
preceitua a perspectiva de Habermas. De acordo com o exposto, Juliana N. Magalhães refere
que a aquisição evolutiva mais relevante dos sistemas sociais se dá de acordo com a
diferenciação funcional destes sistemas. Cada sistema funcionalmente diferente utiliza a
distinção própria para observar, orientando as suas operações de acordo com essa distinção. O
sistema do direito utiliza-se do código binário direito/não direito, codificação esta que
estabelece a diferença entre o direito e os demais sistemas sociais, como também é a
responsável pela auto-reprodução do sistema jurídico
113
. Essa estrutura binária é composta de
um valor positivo, que refere a capacidade comunicativa do sistema, e de um valor negativo,
“que reflete a contingência da inserção do valor positivo no contexto sistêmico”, resultando
numa unidade.
114
Com relação à diferenciação funcional, Gunther Teubner salienta:
A determinação de esferas e sentido autônomas na sociedade, sua constituição de
acordo com cada um dos próprios códigos e programas, e especialmente seu
fechamento mútuo permitem a elas um novo modo de lidar com a desconstrução.
Um de seus efeitos é a sua imunização em relação a outros mundos de sentido e seus
paradoxos. [...] No direito, a desconstrução somente conta mediante o paradoxo do
direito que ameaça a aplicação do código lícito/ilícito. [...] A diferenciação funcional
tem a força de desconstruir a desconstrução, abrindo a possibilidade de externalizar
os paradoxos fundantes, neutralizando-os por meio de um deslocamento de um a
outro sistema social.
115
112
ROCHA, Leonel Severo. Da epistemologia jurídica normativista ao construtivismo sistêmico. In: ROCHA,
Leonel Severo; SCHWARTZ, Germano; CLAM, Jean. Introdução à teoria do sistema autopoiético do direito.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 30. De fato, segundo o autor “a teoria de Luhmann é uma
concepção de mundo que pode ser chamada, na falta de outro nome, pós-moderna. Teoria que acentua não a
racionalidade, não o consenso, não a identidade, mas a produção da diferença, da fragmentação, da
singularidade. É uma teoria crítica nesse sentido avançando o máximo possível além de qualquer noção de
racionalidade tradicional. É claro que continua aproveitando um pouco das contribuiçõies de Weber e Parsons,
mas a sociedade, na perspectiva de Luhmann, é uma sociedade que visa à produção da diferença. (...) Weber
colocou a problemática da ação, da decisão; Parsosn, a problemática dos sistemas. E Luhmann vai rever tudo
isso e aprofundar numa teoria da sociedade contemporânea”.
113
MAGALHÃES, Juliana Neuenschwander. O uso criativo dos paradoxos do Direito. In: ROCHA, Leonel
Severo (Org.). Paradoxos da auto-observação. Percursos da teoria jurídica contemporânea. Curitiba: JM, 1997,
p. 247.
114
SCHWARTZ, A fase pré-autopiética do sistemismo luhmanniano. In: ROCHA; SCHWARTZ; CLAM, op.
cit., p. 75.
115
TEUBNER, Gunther. Reflexão do direito. Paradoxos, conflitos de discursos e policontexturalidade.
Economia da dádiva positividade da justiça: “assombração” mútua entre sistema e différance. In: Direito,
sistema e policontexturalidade. Piracicaba: Editora Unimep, 2005, p. 67.
46
Outrossim, Leonel Severo Rocha
116
salienta a complexidade existente na sociedade
atual, caracterizando-a como um dos principais problemas da teoria da sociedade e da teoria
dos sistemas sociais. A complexidade existente na sociedade resulta da rede de inter-relações
que existem nos sistemas. A partir de cada experiência concreta que o indivíduo realiza,
apresentam-se inúmeras outras possibilidades de ação, que são, ao mesmo tempo, complexas
e contingentes. Por complexidade entendem-se as diferentes possibilidades de agir; por
contingência, o fato de que as possibilidades poderiam ser diferentes das apresentadas
117
. A
contingência não se refere somente ao problema apresentado, mas, sim, a uma questão que
apresenta outras possibilidades para sua própria resolução
118
. Quanto maior o número de
ligações acontecendo nos sistemas, mais amplo ele será, o que resultará no aumento das
contingências a serem enfrentadas nas decisões aos problemas sociais. Diante da
complexidade existente na sociedade, Leonel Severo Rocha
119
salienta o pensamento de
Niklas Luhmann sobre o comportamento social:
Num mundo altamente complexo e contingente, o comportamento social, para
Luhmann, requer, portanto, reduções que irão possibilitar expectativas
comportamentais recíprocas e que são orientadas, a partir das expectativas sobre tais
expectativas. A consecução disso reside então em harmonizar as dimensões, através
de reduções que irão se dar em cada uma delas, por intermédio de mecanismos
próprios.
Em virtude da complexidade, a contingência aumenta e inúmeras respostas se tornam
possíveis para uma decisão. Inicia-se uma busca pela redução das contingências na tentativa
de alcançar a segurança, com o que se criam expectativas. Na concepção de Niklas
Luhmann,
120
“para encontrar soluções bem integráveis, confiáveis, é necessário que se possa
ter expectativas não só sobre o comportamento, mas sobre as próprias expectativas do outro”.
O comportamento social, dessa forma, cria expectativas do que pode vir a acontecer, bem
como expectativas sobre as expectativas que a outra parte possui, isso na tentativa de reduzir
as contingências, as quais ocasionam o risco. Essas expectativas conceituam-se como sendo
116
ROCHA, Direito, complexidade e risco. Seqüência, p. 2.
117
LUHMANN, Sociologia do direito I, p. 45.
118
SCHWARTZ, A fase pré-autopiética do sistemismo luhmanniano. In: ROCHA; SCHWARTZ; CLAM, Jean.
Introdução à teoria do sistema autopoiético do direito, p. 69.
119
ROCHA, Leonel Severo. Da epistemologia jurídica normativista ao construtivismo sistêmico. In: ROCHA;
SCHWARTZ; CLAM, op. cit., p. 31.
120
LUHMANN, Sociologia do direito I, p. 47.
47
“a antecipação de uma possibilidade que pode ou não se produzir”.
121
Nesse contexto,
verifica-se que o direito consubstancia-se numa estrutura de expectativas orientadas para o
futuro. Segundo Luhmann:
A relação entre o direito e o tempo já se insinua na normatividade enquanto
transposição temporal, e até mesmo já no caráter do direito enquanto estrutura de
expectativas mas apenas se insinua, permanecendo inicialmente impenetrável. A
expectativa contêm um horizonte futuro da vida consciente, significa antecipar-se ao
futuro e transcender além daquilo que poderia ocorrer inesperadamente. A
normatividade reforça essa indiferença contra eventos imprevisíveis, busca essa
indiferença tentando assim desvendar o futuro. O que acontecerá no futuro torna-se a
preocupação central do direito.
122
E complementando:
Las normas jurídicas constituyen un entremado de expectativas simbolicamente
generalizadas. Con ello no sólo se producen indicaciones generales
independientemente de las circunstancias, sino que los símbolos se refieren a lo
invisible: al futuro que no puede ser visible. [...] La referencia temporal del derecho
se encuentra en la función de las normas: en el intento de prepararse, al menos en el
nivel de la expectativas, ante un futuro incierto genuinamente incierto. Por eso con
las normas varía la medida en la que la sociedad produce un futuro acompañado de
inseguridad.
123
Também cabe referir que, em virtude da complexidade e da contingência, as
expectativas possuem a função de uma estrutura, de uma constância relativa. Essa estrutura
possui a função de fortalecimento da seletividade na medida em que possibilita a dupla
seletividade, que significa a restrição no âmbito das possibilidades de opções, isto é,
“delimitam o optável, transformam o indefinido em palpável, a amplidão em redução”.
124
No
121
NICOLA, Estrutura e função do direito na teoria da sociedade. In: ROCHA, (Org.), Paradoxos da auto-
observação. Percursos da teoria jurídica contemporânea, p. 233.
122
LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito II. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo
Brasileiro, 1983, p. 166.
123
LUHMANN, El derecho de la sociedad. Madrid: Ibero-Americana, 2000, p. 97.
124
LUHMANN, Sociologia do direito I, p. 54. De acordo com o autor: “Em um mundo constituído
sensorialmente, e portanto altamente complexo e contingente, torna-se vantajoso, e até mesmo imprescindível,
referir os diversos passos da seleção uns aos outros. No processo cotidiano de comunicação isso ocorre
inicialmente na medida em que alguém escolhe uma comunicação entre diversas outras comunicações possíveis,
e o seu destinatário trate o que foi comunicado não mais como seleção, mas sim como fato, ou como premissa de
suas próprias seleções, ou seja, incorporando a escolha do outro no resultado da seleção prévia. Isso alivia o
indivíduo em grande parte do exame próprio das alternativas. As estruturas potencializam esse efeito aliviante na
medida que estabelecem as referências de uma seleção a outra. Através de um ato de opção, geralmente não
48
entanto, existem novas possibilidades, que surgem no momento em que ocorrem
desapontamentos de expectativas; e é “nessa possibilidade de desapontamentos e não na
regularidade da satisfação que se evidencia a referência de uma expectativa à realidade”. As
estruturas limitam as possibilidades, não demonstrando a real complexidade do mundo, o que
favorece os desapontamentos. Conseqüentemente, as estruturas possuem o problema do
desapontamento, que deve ser sempre considerado. Dessa forma, a estabilização dessas
estruturas contém tanto o esboço coerente do seu perfil como a disponibilidade de
mecanismos para o encaminhamento de desapontamentos.
125
Diante desse contexto, surgem as expectativas normativas ou cognitivas, já analisadas
anteriormente, cabendo aqui um breve apontamento. As expectativas normativas
caracterizam-se por se manter mesmo quando alguém as transgride, não assimilando, dessa
forma, os desapontamentos. Em contrapartida, as expectativas cognitivas são aquelas que,
diante de um desapontamento, procuram adaptar-se à realidade
126
. Nesse sentido, de acordo
com Niklas Luhmann,
[...] o se renuncia a la expectativa a causa de la decepción, o se mantiene la
expectativa, a pesar da la decepción. Si alguien anticipa esta bifurcación y se
compromete de antemano con una de esas posibilidades, las expectativas se
determinan, en el primer caso, como cognitivas; en el segundo, como normativas.
127
Segundo Luhmann,
128
a função do direito na tentativa de redução das expectativas, e
conseqüentemente das contingências, “reside em sua eficiência seletiva, na seleção de
expectativas comportamentais que possam ser generalizadas em todas as três dimensões”.
Essas reduções podem dar-se por meio de três dimensões: temporal, social e prática.
129
percebido como tal, as estruturas restringem o âmbito da possibilidade de opções. Em termos imediatos elas
delimitam o optável. Elas transformam o indefinido em palpável, a amplidão em redução. Na medida em que a
seleção é aplicada sobre ela mesma, a estrutura a duplica, potenciando-a. O melhor exemplo disso é a linguagem
que, através da sua estrutura, ou seja, da seleção prévia de um ‘código’ dos significados possíveis, permite a
escolha rápida, fluente e coerente da verbalização correspondente”.
125
LUHMANN, Sociologia do direito I, p. 55.
126
LUHMANN, op. cit., p. 56.
127
LUHMANN, El derecho de la sociedad. Madrid: Ibero-Americana, p. 99.
128
LUHMANN, Sociologia do direito I, p. 116.
129
ROCHA, Epistemologia jurídica e democracia, p. 100. De acordo com o autor na dimensão temporal, “essas
estruturas de expectativas podem ser estabilizadas contra frustrações através da normatização”; na dimensão
social, essas estruturas de expectativas podem ser institucionalizadas, isto é, apoiadas sobre o consenso esperado
de terceiros; e, na dimensão prática, “estas estruturas de expectativas podem ser fixadas também através da
delimitação de um ‘sentido’ idêntico, compondo uma inter-relação de confirmações e limitações recíprocas”.
49
O direito é, assim, “a estrutura de um sistema social que se baseia na generalização
congruente de expectativas comportamentais normativas”.
130
Essa generalização congruente
conceitua-se como a possibilidade entre as diversas orientações de sentido que os indivíduos
podem manter diante de parceiros diferenciados, de forma que consigam atingir
conseqüências semelhantes.
131
Corroborando o exposto, acrescenta-se a citação de Luhmann
sobre as expectativas, as possibilidades de desapontamentos e a esperança para o futuro:
El derecho permite saber qué expectativas tienen un respaldo social (y cuáles no).
Existiendo esta seguridad que confieren las expectativas, uno se puede enfrentar a
los desencantos da la vida cotidiana; o por lo menos se puede estar seguro de no
verse desacreditado en relación a sus expectativas. Uno se permite un mayor grado
de confianza (hasta la imprudencia) o la desconfianza, cuando se puede confiar en el
derecho. Y esto significa que es posible vivir en una sociedad más compleja en la
que ya no bastan los mecanismos personalizados o de interacción para obtener la
seguridad de la confianza. Sin enbargo, el derecho tiene propensión a las crisis de
confianza que se transmiten simbólicamente. Cuando ya no se respeta el derecho o
cuando, hasta donde es posible, ya no se impone, las consecuencias rebasan por
mucho lo que de inmediato se presenta como violación de la ley. Entonces el sistema
tiene que recurrir a formas más naturales para restaurar, de nuevo, la confianza.
132
De acordo com a análise realizada, infere-se que a “nova sociedade” que se apresenta,
em razão da sua complexidade, sugere conceitos caracterizadores da sua nova situação, tais
como “diferenciação e risco”: “Na sociedade complexa, o risco torna-se um elemento
decisivo. O risco é um evento generalizado da comunicação, sendo uma reflexão sobre as
possibilidades da decisão”.
133
Dessa forma, com vistas a uma nova sociedade, que rompe com
o modelo tradicional do direito fechado proporcionando novas interpretações à ciência
jurídica, Leonel Severo Rocha
134
leciona:
A partir do momento em que rompemos com essa noção e começamos a pensar a
produção da diferença, a construção de nova realidade, a construção de futuro, temos
que discutir novamente que tipo de conseqüência vai ocorrer com as nossas
decisões. E é por isso que apontamos o que chamamos problemas do risco, pois,
cada vez que tomamos uma decisão com relação ao futuro e sabemos que não é
fácil tomá-la, porque existe muita complexidade -, temos que pensar no problema do
risco, a possibilidade de que ela não ocorra da maneira como estamos pensando.
(grifo do autor)
130
LUHMANN, Sociologia do Direito I, p. 121.
131
NICOLA, Estrutura e função do direito na teoria da sociedade. In: ROCHA, (Org.), Paradoxos da auto-
observação. Percursos da teoria jurídica contemporânea, p. 234.
132
LUHMANN, El derecho de la sociedad, p. 98.
133
ROCHA, Leonel Severo. Da epistemologia jurídica normativista ao construtivismo sistêmico. In: ROCHA;
SCHWARTZ; CLAM, Jean. Introdução à teoria do sistema autopoiético do direito, p. 36.
134
ROCHA, op. cit., p. 39.
50
A realidade de uma nova sociedade complexa, na qual é grande a contingência, faz
surgir, como conseqüência, a possibilidade do risco, pois, se são várias as possibilidades de
decisão, significa que existe o risco de se conseguir o que se almeja ou não. Nesse ponto
desvela-se a diferença entre os dois “direitos”: o primeiro caracterizado pelo sentido positivo
e conservador, que por meio das decisões do passado previa o futuro, reduzindo, dessa forma,
a possibilidade de risco; o segundo caracterizado pelo sentido aberto, questionador, criador de
contingências, as quais obrigam o surgimento de novos métodos para se fazer a ciência
jurídica, possibilitando o enfrentamento dos “riscos”. Aqui se insere a teoria sistêmica
autopoiética, por permitir considerar as contingências e os riscos, analisando-os e recriando o
seu “direito” conforme o momento atual, o contexto e, sobretudo, com relação às
características do caso concreto, bem como considerando as expectativas das partes e a
confiança depositada no negócio jurídico realizado.
Do exposto verifica-se a necessidade de alteração do modo de visualizar a ciência
jurídica. Há que se proporcionar uma maior interpretação dos fenômenos sociais e jurídicos
para que sejam considerados em relação com as interdependências, inter-relações, com os
processos, com a autoprodução, com a troca de influências que realizam no e com o meio no
qual se inserem. Para isso, utilizam-se as palavras de Jean Clam,
135
que salienta: “A grande
novidade da última sociologia jurídica luhmanianna é precisamente a tese de que a
positividade é, a partir de então, insuficiente para explicar isso que o sistema jurídico é hoje,
como ele realiza sua função e quais são as evoluções internas que ele conhece” (grifos do
autor). De acordo com Germano Schwartz, o “Direito deve ser analisado sob a ótica sistêmica,
que amplia o seu campo de atuação e o faz ser pensado como algo muito maior, mais
contextual e mais complexo do que sua hierarquização e forma de análise
verticalizada/organizacional”.
136
A função do direito passa a ser, então, diante dessa situação
de incerteza em relação ao futuro, que determina a precariedade da razão moderna, regular
essa incerteza por meio de estruturas de expectativas que permitam orientar o comportamento
na hipótese de ocorrência de violação do comportamento.
137
Dessa forma, constata-se a
urgência da aplicação desse novo direito, caracterizado como uma ciência sistêmica e
autopoiética, porque permite a apreciação da ciência jurídica de forma aberta,
135
CLAM, Jean. A autopoiese no direito. In: ROCHA; SCHWARTZ; CLAM, Introdução à teoria do sistema
autopoiético do direito, p. 113.
136
SCHWARTZ, Germano. A fase pré-autopiética do sistemismo luhmanniano. In: ROCHA; SCHWARTZ;
CLAM, Introdução à teoria do sistema autopoiético do direito, p. 67.
137
NICOLA, Estrutura e função do direito na teoria da sociedade. In: ROCHA, (Org.). Paradoxos da auto-
observação, p. 241.
51
autoproduzindo-se e desenvolvendo-se de acordo com a sociedade complexa, contingencial e
globalizada da atualidade.
Carreando-se para o trabalho que ora se desenvolve, sugere-se a aplicação da teoria
sistêmica autopoiética à ciência do direito e ao contrato, em razão das particularidades que a
caracterizam, como a complexidade, a inter-relação, a autoprodução, as expectativas, que
compõem o seu âmago e que favorecem a interpretação dos fatos e das condutas no meio em
que se encontram. A isso se acrescenta a pertinência da teoria descrita com relação ao
contrato e à cláusula geral da boa-fé objetiva como meio de solução de conflitos.
1.3 TEORIA GERAL DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS
Como visto na parte inicial deste trabalho, a vontade e a liberdade individual
imprimiram as características de uma época em virtude do desenvolvimento do Estado de
índole liberal. Conseqüentemente, as concepções da “vontade do indivíduo” e da liberdade
tornaram-se os dogmas da teoria contratual e, “como atuação dessa propalada liberdade
privada na esfera do Direito, o negócio jurídico é o resultado da versão jurídica da vontade,
quer das pessoas naturais, quer da pessoas jurídicas”.
138
O contrato enquadra-se na categoria dos negócios jurídicos, fazendo-se pertinente,
para uma maior clareza sobre o instituto, uma breve exposição sobre o tema. De acordo com
Pontes de Miranda:
O conceito surgiu exatamente para abranger os casos em que a vontade humana
pode criar, modificar ou extinguir direitos, pretensões, ações, ou exceções, tendo por
fito esse acontecimento do mundo jurídico. Naturalmente, para tal poder fático de
escolha supõe-se certo auto-regramento de vontade, dito ‘autonomia da vontade’,
por defeito da linguagem (nomos é lei); com esse auto-regramento, o agente
determina as relações jurídicas em que há de figurar como termo.
139
O negócio jurídico caracteriza-se como contrato ou bilateral quando apresenta duas ou
mais vontades, bem como conteúdos diversos que perseguem objetivos distintos na tentativa
138
FACHIN, Luiz Edson. O “aggiornamento”do direito civil brasileiro e a confiança negocial. In: FACHIN,
(Coord.). Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo, p. 119.
139
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1954, t. III, p. 3.
52
de alcançar um determinado resultado. A relação entre as partes traduz-se na proposta e na
aceitação; muitas vezes pode se apresentar como plurilateral, caso identificado no contrato de
sociedade.
140
Também o negócio jurídico é todo fato jurídico consistente em declaração de vontade,
para o qual o ordenamento atribui os efeitos desejados pelas partes, respeitados os
pressupostos de existência, validade e eficácia impostos pela norma jurídica que sobre ele
incidem.
141
Com relação ao fato jurídico, salienta-se que recebe a designação de fato jurídico
em sentido lato o acontecimento a que, dependendo da vontade humana ou não, o direito
atribui eficácia; em sentido restrito, considera-se fato jurídico “a manifestação de vontade que
provoca efeitos jurídicos, denominando-se então ato jurídico, negócio jurídico”.
142
Os fatos jurídicos classificam-se em voluntários e involuntários. Os fatos voluntários
apresentam a manifestação da vontade, ao passo que os involuntários existem por mera
intervenção das forças naturais, ou, então, a vontade humana que apresentam não possui
relevância jurídica. Outrossim, com relação aos fatos voluntários, o autor classifica-os em
voluntários lícitos e voluntários ilícitos. Aos lícitos refere-se como aqueles que estão de
acordo com a ordem jurídica, ao passo que os ilícitos apresentam-se contrários à ordem
jurídica, sendo, por isso, por ela reprovados.
143
Os fatos jurídicos voluntários lícitos, ou atos jurídicos em sentido lato, classificam-se
em negócios jurídicos e simples atos jurídicos.
Os negócios jurídicos são as ações humanas
lícitas que dependem da vontade do homem e às quais a ordem jurídica atribui os efeitos de
acordo com a vontade declarada. Aqui se insere o contrato, que, conforme verificado
anteriormente, ocorre pela manifestação de vontade das partes contraentes, as quais se
ajustam na persecução de um determinado objetivo.
144
O negócio jurídico, portanto, é um ato jurídico que se realiza por meio da declaração e
da manifestação de vontade dirigida a um fim determinado, que objetiva atingir um objetivo
predeterminado.
145
Os negócios jurídicos classificam-se em negócios jurídicos unilaterais,
formados apenas por uma declaração de vontade, ou bilaterais, formados por várias
declarações concorrentes ou paralelas. Nos negócios jurídicos bilaterais ou contratos, ressalta-
140
COSTA, Mário Júlio de Almeida. Noções de direito civil. 3. ed. rem. e actual. Coimbra: Almedina, 1991,
p. 42.
141
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. atual. São Paulo:
Saraiva, 2002, p. 16.
142
GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 237.
143
ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Teoria geral da relação jurídica. 7. reim. Coimbra: Almedina, 1992,
p. 2.
144
ANDRADE, Teoria geral da relação jurídica, p. 8.
145
NÉRI JÚNIOR, Nelson. Vícios do ato jurídico e reserva mental. São Paulo: RT, 1983, p. 7.
53
se a existência de duas ou mais declarações de vontade, com conteúdos diversos e até opostos,
mas que se harmonizam, por meio do contrato, para atingir um mesmo resultado jurídico
146
. A
bilateralidade demonstra a diferença dos interesses na relação contratual. Embora os
interesses se direcionem para um mesmo fim, apresentam características opostas; assim, é
necessário o contrato como meio de facilitar o acordo que proporcionará o alcance do fim
pretendido pelas partes. Por meio do contrato, realizado com o fim de atingir determinados
objetivos, as partes poderão constituir, modificar e extinguir as relações jurídicas.
Outrossim, o vocábulo “contrato”, em sentido amplo, designa todo negócio jurídico
que se forma pelo concurso de vontades; em sentido restrito, designa o acordo de vontades
que produz efeitos obrigacionais na esfera patrimonial.
147
1.3.1 A declaração de vontade
Considerando a exposição realizada até este momento, verifica-se a importância da
vontade para a realização do negócio jurídico. A vontade aparece como um elemento
essencial do negócio a ser realizado. Diante dessa realidade surge uma delicada questão sobre
o aspecto que deve predominar: se a vontade especificamente considerada ou a declaração da
vontade. Sobre essa questão existe uma oposição entre dois sistemas: o de Savigny, que
prioriza a vontade verdadeira do declarante, defendendo que somente essa vontade deve
produzir efeitos de direito, sistema designado de teoria da vontade”, e “sistema da
declaração”, que prioriza a vontade que se infere da declaração sobre a vontade verdadeira
148
.
Além da teoria da vontade e da teoria da declaração que se ocupam sobre a questão da
divergência existente entre a vontade (elemento interno) e a declaração (elemento externo),
elementos que constituem a declaração da vontade, registra-se, também com relação à
vontade, a teoria da culpa in contrahendo, teoria da responsabilidade e teoria da confiança.
149
146
ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Teoria geral da relação jurídica.7. reim. Coimbra: Almedina, 1992,
p. 37-39.
147
GOMES, Orlando. Contratos. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 9.
148
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed., atual., São Paulo:
Saraiva, 2002, p. 74-76. De acordo com o autor, “o direito francês é apresentado, em geral, como partidário da
teoria da vontade e o alemão, como da teoria da declaração”, ao que ele complementa acrescentando que, na
realidade, a diferença entre os dois sistemas não é assim tão grande.
149
NÉRI JUNIOR, Vícios do ato jurídico e reserva mental, p. 7-11. A teoria da culpa in contrahendo consiste na
celebração culposa de um negócio nulo (ou anulável); a teoria da responsabilidade defende a idéia de que o
negócio jurídico é produto da vontade, sendo que esta deve prevalecer sobre a declaração. Faltando a vontade, o
ato será nulo ou anulável. A teoria da confiança é uma variação da teoria da declaração. Defende a idéia de que,
havendo divergência entre a vontade e a declaração, esta deve prevalecer, devendo o declarante responder pela
confiança que o declaratário nele depositou ao contratar. No entanto, se o declaratário confiou indevidamente,
por má-fé, dolo, culpa ou negligência, deve-se procurar interpretar a vontade interna e não a declaração
propriamente dita.
54
Com relação às duas teorias apresentadas da vontade e da declaração - Antonio J. de
Azevedo defende seu ponto de vista asseverendo que “ambas admitem a existência de dois
elementos no negócio jurídico: a vontade e a declaração”; a divergência existente é somente
quanto à predominância de um ou de outro. A isso o autor acrescenta que a vontade não é
elemento do negócio jurídico, pois o negócio é somente a declaração. A existência do negócio
começa com a declaração, pois esta é o resultado do processo volitivo interno, que ao ser
proferido a incorpora; a vontade pode influenciar a validade e a eficácia do negócio, não
fazendo parte existencialmente do negócio jurídico.
150
De acordo com Emílio Betti, a vontade é o elemento psíquico que integra a
consciência do indivíduo, atingindo seu ponto culminante com a declaração, da qual surge a
vontade negocial, que influencia as relações sociais.
151
A declaração de vontade é considerada
um dos elementos integrantes e essenciais do negócio jurídico. Para que exista um negócio
jurídico, é necessária a declaração de vontade, a qual demonstra a intenção da parte de
formalizar o negócio ora entabulado.
152
Outrossim, o conceito da declaração de vontade é bastante amplo porque abrange toda
a declaração espontânea da parte, desde os documentos escritos até palavras e sinais. De fato,
à declaração de vontade incumbe a manifestação da vontade negocial, seja de forma escrita,
falada, ou mesmo por sinais. A vontade negocial é a vontade direcionada aos efeitos
econômicos, com a intenção de que esses efeitos sejam tutelados juridicamente, bem como
vinculantes.
153
Portanto, a partir do momento em que há a declaração da vontade, conjuntamente é
manifestada a intenção de realização do negócio jurídico. No instante em que a parte declara
a sua vontade, essa atitude atua como elemento completante para a existência de um ato
150
AZEVEDO, Negócio jurídico..., p. 82. Com relação à declaração como elemento existencial do negócio
jurídico e à vontade como elemento de validade e eficácia, o autor refere que “a vontade age sobre o negócio,
por exemplo, corrigindo-o no plano da validade, às vezes por que, in concreto, não existiu (declarações feitas sob
coação absoluta, atos realizados sob hipnose etc.) e às vezes porque não foi regular, isto é, ou não resultou de
uma exata noção da realidade (erro, dolo), ou não resultou de opção espontânea (coação, estado de perigo), ou,
ainda, não resultou de motivos lícitos (simulação culposa, fraude contra credores, lesão). Por onde se vê que a
relevância jurídica da vontade não ocorre no plano da existência”. p. 85.
151
BETTI, Emílio. Teoria geral do negócio jurídico. Coimbra: Coimbra, 1969, t. I, p. 109.
152
Nesse sentido, de acordo com o autor: “Se a capacidade e o objecto possível são elementos essenciais do
negócio jurídico, a declaração de vontade mais essencial é ainda. Onde não houver ao menos a aparência duma
declaração de vontade não pode sequer falar-se de negócio jurídico. É dizer que a declaração de vontade, além
de condição de validade, constitui ainda um elemento do próprio conceito e portanto da própria existência do
negócio jurídico”. ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Teoria geral da relação jurídica.7. reim. Coimbra:
Almedina, 1992, p. 121.
153
ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Teoria geral da relação jurídica.7. reim. Coimbra: Almedina, 1992,
p. 122.
55
jurídico, tornando a conduta passível de incidência de uma norma jurídica.
154
De fato, “[...]
um ato consciente de vontade dirigido a obter um resultado juridicamente regulado constitui
elemento nuclear do suporte fático e, portanto, à sua manifestação incidirá a norma
correspondente, fazendo surgir o ato jurídico específico”.
155
1.4 AS FASES DO INSTITUTO CONTRATUAL
No momento em que se analisa o contrato propriamente dito, não se pode deixar de
referir, mesmo que sucintamente, as fases do desenvolvimento da relação contratual. Sobre
esse tema tratará o próximo item, buscando aprofundar o assunto em questão através de uma
breve análise sobre as tratativas contratuais, o pré-contrato, o contrato e o pós-contrato.
1.4.1 As tratativas contratuais
As tratativas contratuais referem-se ao momento que antecede a realização do pré-
contrato e do contrato propriamente dito. Salienta-se essa por ser a fase na qual acontecem
vários trâmites que se realizam em virtude do intento de concretização da finalidade
almejada.
156
Também a fase das tratativas contratuais caracteriza-se por ser a responsável pela
geração das expectativas nas partes contratantes, bem como pela realização, em muitos casos,
de negócios secundários que servem de suporte para o negócio principal.
Por meio das tratativas contratuais, as partes vão amadurecendo as negociações, as
quais vão gerando as expectativas com relação ao futuro negócio, que pode se realizar ou não.
No caso de não alcançar o objetivo final, em razão do rompimento das tratativas, ocorre a
154
Segundo Marcos Bernardes de Mello: “Disto resulta evidente que a declaração e manifestação são modos
(=formas) de exteriorização de vontade e, por isso, constituem elementos completantes do suporte fático dos atos
jurídicos. Embora não sejam o próprio cerne, são dados que completam o núcleo, donde a sua presença constituir
elemento essencial à concreção do suporte fático suficiente à incidência da norma jurídica, portanto, à própria
existência do ato jurídico”. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 10. ed.
São Paulo: Saraiva, 2000, p. 122.
155
MELLO, Teoria do fato jurídico..., p. 132.
156
Como exemplo dos trâmites que acontecem na fase das tratativas contratuais o autor salienta: “tais como
entrevistas e outras formas de diálogo, estudos individuais ou em comum, experiências, consultas de técnicos,
viagens de esclarecimento pessoal, redução a escrito de aspectos parcelares ou acordos provisórios e a unificação
destes num projecto ou minuta, incitamentos recíprocos a propostas contratuais e, finalmente, a oferta e a
aceitação definitivas”. COSTA, Mário Júlio de Almeida. Noções de direito civil. 3. ed. rem. e actual. Coimbra:
Almedina, 1991, p. 48.
56
frustração das expectativas desenvolvidas na fase preliminar.
157
As expectativas despertam o
sentimento da boa-fé e da confiança de que a parte contrária vai agir com transparência e
clareza no desenvolvimento das fases contratuais, tanto no momento das primeiras
negociações como do contrato propriamente dito e, posteriormente, na fase do pós-contrato.
Nesse sentido, de acordo com Mário Júlio de Almeida Costa,
158
“[...] reconhece-se que
durante as negociações e na formação do contrato impendem sobre os contraentes certos
deveres impostos pela lealdade e pela boa fé”. Às partes cabe o direito e o dever de realizar
uma relação contratual baseada na boa-fé, devendo a sua conduta pautar-se pela lealdade, bem
como esperar que esta também seja a conduta da parte contrária.
Com relação às expectativas geradas nas partes contratantes, haja vista a sua
abrangência na teoria dos sistemas, objeto de estudo nas páginas que seguem, far-se-á neste
momento uma breve explanação, objetivando ressaltar a sua importância na formação e
desenvolvimento da relação contratual. Portanto, a parte específica das expectativas na teoria
sistêmica autopoiética será devidamente analisada no terceiro capítulo.
As expectativas geradas nas partes contratantes decorrem da existência de uma
situação que anuncia a realização de um negócio jurídico. Nesse sentido, de acordo com
Niklas Luhmann,
para encontrar soluções bem integráveis, confiáveis, é necessário que se possa ter
expectativas não só sobre o comportamento, mas sobre as próprias expectativas do
outro. Para o controle de uma complexão de interações sociais não é apenas
necessário que cada um experimente, mas também que cada um possa ter uma
expectativa sobre a expectativa que o outro tem dele.
159
Segundo Gerson Luiz Carlos Branco,
160
o fato de haver uma expectativa num
indivíduo significa que ele aguarda a concretização de um negócio jurídico: “Quando a
questão posta em discussão é uma expectativa, a conseqüência lógica imediata é a de que um
sujeito espera a constituição de um direito subjetivo”. A expectativa gerada na fase das
tratativas denota que houve a aproximação entre as partes, pois, se o sujeito espera a
157
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 3. ed. São
Paulo: Atlas, 2003, p. 515.
158
COSTA, Mário Júlio de Almeida. Noções de direito civil. 3. ed. rem. e actual. Coimbra: Almedina, 1991,
p. 49.
159
LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p. 47.
160
BRANCO, Gerson Luiz Carlos. A proteção das expectativas legítimas derivadas das situações de confiança.
Revista de Direito Privado, São Paulo, ano 3, n. 12, out-dez. 2002, p.177.
57
constituição de um direito subjetivo, significa que houve a declaração de intenção de
realização do negócio. Segundo Luhmann:
É claro que o trato social só é possível através da expectativa de expectativas, pois
ele não é apenas a satisfação de expectativas alheias, mas significa um
comportamento através do qual A se representa como aquele que B necessita como
parceiro, para que ele (B) possa ser aquele que ele gostaria de representar frente a A.
Esse comportamento só pode ser adotado por quem pode esperar expectativas.
161
Também cabe considerar, com relação às expectativas, que caracterizam uma questão
de fato, mas que, se forem qualificadas por uma norma ou um princípio, caracterizam um
negócio jurídico, tornando-se expectativas legítimas. No momento em que houver uma
expectativa sobre a realização de um negócio, sendo essa qualificada por um princípio que
tutela a relação, no caso específico, uma expectativa baseada na boa-fé, torna-se legítima,
podendo gerar direitos e deveres para as partes.
162
Do exposto verifica-se a necessidade de tutelar a fase das tratativas contratuais, haja
vista ser o momento do nascimento das expectativas positivas, fazendo surgir a boa-fé e o
sentimento de confiança na concretização do negócio.
Nessa altura do trabalho, permite-se vislumbrar o objetivo proposto, a análise da
relação contratual e a influência da boa-fé objetiva como uma possibilidade de solução de
conflitos contratuais, quando considerada através da concepção sistêmica autopoiética do
direito.
Outra figura contratual que participa ativamente em muitas relações jurídicas é o pré-
contrato, o qual aparece na fase imediatamente anterior à formação do contrato, tendo a
incumbência de ir clareando a relação jurídica pela especificação das intenções das partes, as
quais são regulamentadas nas cláusulas contratuais, que vão se firmando com o incremento
das negociações.
161
LUHMANN, op. cit., p. 48.
162
Segundo Gerson L. C. Branco: “Quando se fala de expectativa, a questão é de fato. Porém, quando há uma
expectativa, qualificada por uma norma ou princípio tutelando dita situação, o resultado é uma relação jurídica,
com direito e deveres, caracterizando uma expectativa legítima. [...] Sempre que houver uma expectativa
legítima, há mais do que “direitos subjetivos em sentido estrito”, há direitos a prestações, direitos potestativos,
como também deveres e obrigações. Se por um lado as expectativas legítimas identificam o elemento ativo da
eficácia de determinado ato, também existe uma eficácia passiva, consistente nos deveres, obrigações e ônus
decorrentes da existência da relação jurídica”. BRANCO, A proteção das expectativas legítimas derivadas das
situações de confiança, p. 178.
58
1.4.2 O pré-contrato
O pré-contrato é uma figura jurídica que se caracteriza por regulamentar a fase
imediatamente posterior às negociações preliminares e anterior à formação propriamente dita
do contrato. Também pode ser designado de “promessa de contrato”, “contrato preliminar”,
“contrato preparatório”, “compromisso de contrato” e “pré-contrato”,
163
forma adotada nesta
análise.
O pré-contrato é um instituto que foi introduzido no Código Civil de 2002, mas que já
existia no direito pátrio, sendo considerado mais como uma declaração unilateral de vontade,
do que como modo de concluir uma relação de fundo patrimonial. É uma forma de antecipar a
realização definitiva do contrato. Conceitua-se, “[...] como o contrato no qual as partes se
obrigam a realizar posteriormente um contrato definitivo”.
164
O pré-contrato antecipa a
realização definitiva do negócio jurídico, no qual se antecipam algumas cláusulas, formas de
pagamento, tempo, lugar. “É o pactum de contrahendo pelo qual assume a obrigação de
contratar em certo momento e em determinadas condições, criando o contrato preliminar uma
ou várias condições de fazer, mesmo quando o contrato definitivo origina obrigações de
dar”.
165
Ocorre, por parte das partes contratantes, uma manifestação preliminar da vontade de
contratar. O pré-contrato não cria uma situação definitiva, a qual só ocorrerá com a formação
do contrato propriamente dito, porém, com relação aos efeitos da promessa, considera-os
perfeitos e acabados.
166
Os requisitos necessários para que se configure a existência de um pré-contrato
encontram-se estipulados no artigo 462 do Código Civil de 2002. O pré-contrato deverá
indicar o nome das partes contratantes, o objeto lícito, possível e determinado ou determinável
e a data de celebração do contrato definitivo. Também é exigida a capacidade das partes e, no
caso de menores como partes contratantes, a devida autorização para contratar. A única
característica dispensada na formação do contrato preliminar é a forma exigida para sua
celebração, a qual é obrigatória somente na realização do contrato definitivo.
167
163
VENOSA, Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos, p. 420.
164
RIZZARDO, Contratos, p. 191.
165
WALD, Arnoldo. Obrigações e contratos. 13 ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: RT, 1998, p. 227.
166
Nesse sentido o autor refere: “É o que já deixava entender Adaucto Fernandes: “Ao invés do que ocorre no
contrato definitivo, no compromisso [...] há uma perspectiva de direito, muito embora as partes já se hajam
acordado na coisa e no preço. Sendo preliminar o contrato, é, no entanto, quanto aos efeitos da promessa,
perfeito e acabado como evidente manifestação da vontade preliminar de que, ulteriormente, decorrerá o contrato
definitivo”. RIZZARDO, Contratos, p. 191.
167
RIZZARDO, Contratos, p. 192.
59
De fato, o pré-contrato apresenta todos os requisitos necessários para a existência de
um contrato perfeito e acabado, sendo, dessa forma, o seu inadimplemento analisado sob o
prisma contratual.
168
1.4.3 O contrato
O instituto contratual é o tema central deste trabalho, que objetiva verificar as
condições de se considerar a cláusula geral da boa-fé, aplicada ao contrato como possibilidade
de solução de conflitos pela aplicação da teoria sistêmica autopoiética.
Dessa forma, o contrato está sendo analisado durante o desenvolvimento de todo o
trabalho, incluindo a sua conceituação, as fases, as características e os princípios que os
informam. Conseqüentemente, neste item específico faz-se uma breve exposição de suas
particularidades como uma das fases do desenvolvimento contratual, remetendo-se o leitor
para o restante da análise, que trata de modo geral sobre o instituto contratual.
A fase que caracteriza o contrato estende-se do momento da formação do vínculo
contratual até a sua extinção. Esse período é regulamentado pelo instrumento contratual, o
qual deve conter os elementos necessários para a formulação do contrato, sendo também
orientada pelos princípios que regem o direito contratual. Apesar da mudança ocorrida nas
relações sociais, as quais privilegiam a consideração dos princípios constitucionais nos
negócios jurídicos, tais como o princípio da boa-fé, tornando necessária a consideração das
fases anteriores e posteriores do vínculo contratual, mantém-se como de primordial
importância o instituto contratual, que enfatiza a livre-iniciativa, através da liberdade de
contratar, desde que praticada com respeito à tutela aos anseios do bem comum.
169
O novo modelo contratual incrementou a valorização da palavra empregada e do risco
profissional, bem como facilitou a intervenção do Estado como forma de controle sobre o seu
conteúdo. Atualmente, há uma grande preocupação com a informação que deve ser prestada
pelas partes e com a confiança despertada em torno da realização do negócio entabulado.
170
No esforço pela proteção dos mais fracos na relação contratual, salienta-se a importância de
seguir as orientações dos princípios contratuais, os quais almejam a manutenção do equilíbrio
das partes contratantes e a busca pela justiça contratual.
168
VENOSA, Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos, p. 421.
169
GOMES, Contratos, p. 16.
170
De acordo com Cláudia Lima Marques: “Alguns denominam de renascimento da autonomia da vontade
protegida. O esforço deve ser agora para garantir uma proteção da vontade dos mais fracos, como os
consumidores”. MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações
contratuais, p. 169.
60
1.4.4 O pós-contrato
A fase denominada de “pós-contratual” é aquela que se inicia imediatamente após o
término da relação contratual firmada pelos contratantes. Tendo em vista que os efeitos dos
contratos muitas vezes alcançam um período de tempo bem além do período estipulado para
sua duração, torna-se necessário ampliar a proteção às partes contratantes também para os
momentos que ultrapassam o período efetivo da contratação até a conclusão do contrato.
Salienta-se a necessidade de observância dos princípios que regem a relação contratual no seu
todo, desde a fase das tratativas até o período após a extinção do vínculo jurídico; no caso
específico deste trabalho, salienta-se o princípio da boa-fé, para que se torne possível o
alcance do equilíbrio contratual almejado pelos contratantes. De fato, a boa-fé deve estar
presente em todas as fases da relação contratual, desde as primeiras negociações até o
momento posterior a sua conclusão, relacionando-se aos possíveis efeitos advindos após o
término do negócio firmado.
171
A observância de deveres de lealdade e de confiança, corolários do princípio da boa-
fé, nos momentos posteriores à formação do contrato acentua a necessidade de as partes
contratantes agirem de acordo com o convencionado, mantendo o sigilo do conteúdo
contratual, bem como proporcionando a garantia necessária para os efeitos advindos da
relação contratual. Nesse sentido, salienta-se que o artigo 422
172
do novo Código Civil
brasileiro já apresenta propostas de reforma no sentido de expandir o alcance do princípio da
boa-fé para os momentos que antecedem a formação dos contratos fase das tratativas
contratuais, bem como para os momentos posteriores à conclusão dos contratos , o período
pós-contratual.
Do exposto, conclui-se que o contrato é uma relação jurídica que acontece no tempo;
que apresenta diversas fases que se encontram submetidas às influências sociais e
econômicas, bem como se encontra sob as influências e vicissitudes que interferem, durante o
171
VENOSA, Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos, p. 483. Também nesse
sentido o autor refere Maurício Jorge Mota, que corrobora o exposto: “A pós-eficácia das obrigações constitui,
portanto, um dever lateral de conduta de lealdade, no sentido de que a boa-fé exige, segundo as circunstâncias,
que os contratantes, depois do término da relação contratual, omitam toda conduta mediante a qual a outra parte
se veria despojada ou essencialmente reduzidas as vantagens oferecidas pelo contrato. Esses deveres laterais de
lealdade se consubstancializam primordialmente em deveres de reserva quanto ao contrato concluído, deveres de
segredo dos fatos conhecidos em função da participação na relação contratual e deveres de garantia da fruição
pela contraparte do resultado do contrato concluído”. (mesma página).
172
BRASIL. Código civil. Projeto nº 6.960/2002.
Art. 422: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim nas negociações preliminares e conclusão do contrato,
como em sua execução e fase pós-contratual, os princípios de probidade e boa-fé e tudo o mais que resulte da
natureza do contrato, da lei, dos usos e das exigências da razão e da eqüidade”.
61
seu curso, nas partes contratantes, influências essas oriundas da crescente complexidade
característica da sociedade atual. Conseqüentemente, a relação contratual transformou-se de
uma concepção estática para uma concepção dinâmica, que interage com o meio e com as
partes, a fim de proporcionar o alcance do fim objetivado.
O capítulo seguinte trata sobre o tema referente aos princípios contratuais, sua
definição, normatividade, efetividade e sistematicidade. Durante a análise será dispensada
ênfase ao princípio da boa-fé objetiva, haja vista compor o objetivo do presente trabalho, que
se fundamenta na cláusula geral da boa-fé objetiva como solução de conflitos contratuais
perante a concepção sistêmica autopoiética do direito.
Como introdução para o tema, faz-se uma breve exposição sobre as transformações
ocorridas na teoria contratual, as quais justificam a busca por novos horizontes que possam
facilitar a satisfação das expectativas das partes contratantes desenvolvidas durante a relação
contratual, bem como facilitar o alcance do objetivo a que as partes se propõem.
62
2 OS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS E A ÊNFASE AO PRINCÍPIO DA
BOA-
Para iniciar a análise deste capítulo referente aos princípios contratuais e, de modo
específico, ao princípio da boa-fé, fazem-se, primeiramente, breves colocações sobre as
transformações processadas na teoria contratual, nesse momento utilizadas como justificativa
e fundamento na busca de novas soluções para os conflitos surgidos no instituto contratual
oriundos da sociedade complexa e globalizada da atualidade.
2.1 TRANSFORMAÇÕES NA TEORIA CONTRATUAL
Tendo como base o estudo realizado no capítulo anterior, verificou-se que o instituto
contratual sofreu grandes transformações, deixando para trás a característica individualista,
dominante no Estado Liberal, passando a assumir, com o advento do Estado Social, uma
feição coletiva, socializada, o que se comprova pela releitura dos princípios, bem como das
novas figuras da função social e da boa-fé.
De fato, considerando-se as transformações ocorridas no direito contratual, as quais se
verificam através das novas orientações dispostas nos valores e nos princípios que orientam as
relações contratuais, percebe-se a mudança ocorrida na sociedade como um todo.
173
Embora se mantenha, como princípio, um direito centrado no homem construído em
consonância com o imaginário racionalista-liberal, este princípio passa a apresentar restrições
e limites, dirigidos para a preservação dos interesses coletivos e para o desenvolvimento e
173
MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 155.
De acordo com a autora, “com a sociedade de consumo massificada e seu individualismo crescente nasce
também uma crise sociológica, denominada por muitos de pós-moderna. Os chamados tempos pós-modernos são
um desafio para o direito. Tempos de ceticismo quanto à capacidade da ciência do direito de dar respostas
adequadas e gerais aos problemas que perturbam a sociedade atual e modificam-se com uma velocidade
assustadora. Tempos de valorização dos serviços, do lazer, do abstrato e do transitório, que acabam por decretar
a insuficiência do modelo contratual tradicional do direito civil, que acabam por forçar a evolução dos conceitos
do direito, a propor uma nova jurisprudência dos valores, uma nova visão dos princípios do direito civil, agora
muito mais influenciada pelo direito público e pelo respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos”.
63
preservação da dignidade do cidadão, os quais não foram contemplados pelo direito civil,
consolidado no Código de 1916”.
174
As relações jurídicas, que antes aconteciam somente entre sujeitos determinados, hoje
acontecem entre sujeitos indeterminados, entre pessoas jurídicas coletivas, forçando o
instituto contratual a adquirir novas feições para possibilitar a satisfação da sociedade
globalizada.
175
Dentre as novas feições do direito contratual destacam-se cinco características
essenciais nas tendências modernas do direito contratual, que são: o enfoque dado ao
conteúdo, que deixou de lado a neutralidade; a abordagem dinâmica, em contrariedade à
abordagem estática; a cooperação ao antagonismo; a coletividade em contrariedade ao
atomismo e a abordagem voltada à pessoa em contrariedade ao abstracionismo.
176
O contrato alterou a sua imagem em decorrência das transformações sociais. Como
conseqüência da sociedade complexa e globalizada, surgiram novas formas de contratos,
fazendo ressurgir valores que se encontravam adormecidos, com o objetivo de tornar possível
e efetivo o negócio contratual. Entre esses valores salientam-se a boa-fé, a confiança, a
transparência, as quais sempre existiram nas relações contratuais, porém, agora, em virtude
dos novos rumos do instituto, encontram-se revigorados com o intuito de ampliar e garantir a
segurança jurídica. Diante dessa nova tendência faz-se necessário proporcionar ao contrato
uma nova concepção, adequada ao contexto social, e que permita a realização e concretude do
instituto de acordo com as necessidades da época atual.
177
Outrossim, há que se considerar a segurança jurídica como integrante da nova
concepção do instituto contratual. A segurança não se encontra apenas no adimplemento da
obrigação por parte do devedor, mas em todos os momentos da relação contratual. Tratar de
segurança significa considerar o contrato como um todo jurídico que deixou de representar
174
RAMOS, Carmem Lucia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem fronteiras. In:
FACHIN (Coord.), Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo, p. 17.
175
Nesse sentido Cláudia Lima Marques refere que “a concepção de contrato, a idéia de relação contratual,
sofreu, porém, nos últimos tempos uma evolução sensível, em face da criação de um novo tipo de sociedade,
sociedade industrializada, de consumo, massificada, sociedade de informação e, em face, também, da evolução
natural do pensamento teórico-jurídico. O contrato evoluirá, então, de espaço reservado e protegido pelo direito
para a livre e soberana manifestação da vontade das partes, para ser um instrumento jurídico mais social,
controlado e submetido a uma série de imposições cogentes, mas eqüitativas”. MARQUES, Contratos no Código
de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 39.
176
WILHELMSSON, Thomas. Regulação de cláusulas contratuais. Revista de Direito do Consumidor, São
Paulo: RT, n. 18, abr./jun. 1996, p. 8.
177
Nesse sentido, Paulo Nalim: “[...] o contrato muda a sua disciplina, as suas funções, a sua própria estrutura
segundo o contexto econômico-social em que está inserido. A insistência em se manter uma visão do contrato e
das obrigações em geral, além de não resolver a questão de sua crise, nem ao menos a explica. Por outro lado, o
elogio ao dado histórico do contrato contextualiza no momento, principalmente, de sua interpretação,
autorizando um acertamento mais justo das lides dele decorrentes”. NALIM, Paulo. Do contrato: conceito pós-
moderno em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional. Curitiba: Juruá, 2001,
p. 120.
64
apenas os interesses das partes diretamente relacionadas no contrato credor e devedor ,
passando a representar também as partes que de modo indireto encontram-se submetidas aos
efeitos gerados pelos contratos. Também, há que se considerar o objetivo a alcançar em todas
as fases do desenvolvimento do negócio, referente ao equilíbrio contratual. Esse equilíbrio
efetiva-se no respeito à boa-fé, à confiança e à lealdade, atuais princípios e valores que
orientam as relações jurídicas.
178
De fato, com relação à confiança, especificamente, Niklas
Luhmann salienta que, “por médio de la confianza, el que confia se alivia él mismo de la
complejidad que no puede soportar”,
179
do fato de não saber qual será a reação da parte
contrária durante o desenvolvimento da relação contratual. Em virtude das transformações, o
contrato assume uma nova função, a de perseguir a segurança e o equilíbrio, o que se torna
possível de alcançar pelo incremento da confiança nas relações, aliviando a complexidade e a
incerteza do que pode vir a acontecer.
Também cabe ressaltar que na teoria contratual passou-se a priorizar a pessoa e suas
expectativas, não mais somente o sentido econômico do contrato.
180
O contrato adquiriu uma
feição mais humana e solidária, que considera o alcance dos seus efeitos para além do
compromisso firmado bilateralmente. Portanto, uma concepção de contrato, de acordo com a
nova sociedade que se apresenta e que se encontra em constante modificação, não pode ser
fechada, mas aberta para as mudanças do sistema. Conseqüentemente, de acordo com essa
nova realidade social, pode-se caracterizar o contrato como uma relação jurídica subjetiva,
baseada na solidariedade constitucional, que objetiva efeitos patrimoniais e existenciais entre
as partes e entre terceiros, o que o torna uma relação complexa solidária.
181
O objetivo
perseguido atualmente é o equilíbrio entre a sociedade, o Estado e o indivíduo. Há que se
buscar harmonizar a liberdade individual e a solidariedade social.
182
Pode-se dizer mais: o
178
NALIM, Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional,
p. 213.
179
LUHMANN, Niklas. Confianza. Barcelona: Anthropos, 1996, p. 110.
180
Nesse sentido Paulo Nalim: “A despatrimolialização guarda relação com a mudança que vai ocorrendo no
sistema entre personalismo (superação do individualismo) e patrimonialismo (superação da patrimonialidade
voltada a si mesma, primeiramente do “produtismo” e, mais atualmente, do consumismo). Nota-se, destarte, uma
prevalência do sujeito face ao patrimônio”. NALIM, Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua
formulação na perspectiva civil-constitucional, p. 250.
181
NALIM, Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional,
p. 255.
182
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do mercado
direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento função social do contrato e responsabilidade
aquiliana do terceiro que contribui para o inadimplemento contratual. Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, v.
750, abr. 1987/1998, p. 119. Nas palavras do autor: “Não é possível que, ao final do século XX, os princípios do
direito contratual se limitem àqueles da survival of the fittest, ao gosto de Spencer, no ápice do liberalismo sem
peias; seria fazer tabula rasa de tudo que ocorreu nos últimos cem anos. A atual diminuição do campo de
atuação do Estado não pode significar a perda da noção, conquistada com tanto sofrimento, de tantos povos e de
tantas revoluções, de harmonia social. O alvo, hoje, é o equilíbrio entre a sociedade, Estado e indivíduo. O
65
contrato passou a ser visto como “uma forma de co-operação flexível e cambiante com
respeito e entre diferentes atores no mercado que é efetivada como um meio de distribuição
racional na sociedade”. Por meio do contrato é possível criar uma cooperação social
saudável.
183
Do exposto verifica-se o surgimento de uma nova teoria dos contratos, em virtude das
profundas modificações acontecidas na sociedade, a qual se apresenta globalizada, complexa,
inter-relacionada, tornando imperativa e urgente a modificação do instituto contratual para
que consiga acompanhar o desenvolvimento social, oferecendo soluções satisfatórias aos
novos problemas.
No entanto, apesar dessa constatação, chama a atenção a colocação de José Carlos
Moreira da Silva Filho, advertindo que, mesmo em pleno processo de transformação no
ordenamento jurídico e em sua teoria, ainda permanece uma certa distância entre a teoria, os
acontecimentos e as relações sociais, as quais por si próprias apresentam inovações jurídicas,
resultantes mais dos seus próprios fatos e do seu processo de desenvolvimento do que do
trabalho dos operadores do direito.
184
Em meio a essas transformações sociais, a sociedade massificada fez surgir a
necessidade de um contrato que atingisse o maior número de pessoas, que possibilitasse a
concretização do maior número de negócios num período curto de tempo. Não havia mais a
possibilidade de examinar com retidão as cláusulas contratuais, de optar pela inclusão ou pelo
afastamento de determinada cláusula contratual. Dessa forma, surgiu um novo modelo
contratual, no qual as partes mais fortes da relação passaram a ditar as determinações
contratuais, cabendo às mais fracas simplesmente a adesão ao que fora estipulado. A esse tipo
de contrato denominou-se “contrato de adesão”.
185
contrato não pode ser considerado como um ato que somente diz respeito às partes; do contrário, voltaríamos a
um capitalismo selvagem, em que a vitória é dada justamente ao menos escrupuloso. Reduzido o Estado, é
preciso, agora, saber harmonizar a liberdade individual e a solidariedade social. É grande, nessa função, o papel
do Poder Judiciário; por isso, devem ser atuados, com a habilidade dos prudentes, os novos princípios do direito
contratual o da boa-fé e o da economia contratual, entre as partes, e o da função social, em relação à
coletividade e aos terceiros”.
183
WILHELMSSON, Thomas. Regulação de cláusulas contratuais. Revista de Direito do Consumidor, São
Paulo: RT, n. 18, abr./jun. 1996, p. 12.
184
SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Transformações jurídicas nas relações privadas. In: ROCHA, Leonel
Severo; STRECK, Lenio Luiz. (Org.). Anuário do programa de Pós-Graduação em Direito Mestrado e
Doutorado. Anuário 2003. São Leopoldo: Unisinos, 2003, p. 145.
185
Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas são preestabelecidas unilateralmente pelo parceiro contratual
economicamente mais forte (fornecedor), ne varietur, isto é, sem que o outro parceiro (consumidor) possa
discutir ou modificar substancialmente o conteúdo do contrato escrito.O contrato de adesão é oferecido ao
público em um modelo uniforme, geralmente impresso, faltando apenas preencher os dados referentes à
identificação do consumidor-contratante, do objeto e do preço. (grifos da autora) MARQUES, Contratos no
Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 58.
66
Há que se considerar o contrato de acordo com o momento e a época em que se
realiza; assim, é preciso interpretar o contrato de acordo com os valores e princípios eleitos
pela sociedade. Numa sociedade na qual se considera como fundamentais a boa-fé, a
confiança e a função social, não é possível a realização dos contratos sob a égide da
autonomia da vontade e da obrigatoriedade do convencionado. Verifica-se a preocupação do
direito contratual no sentido de considerar a outra parte contratante, bem como os demais
sujeitos que, mesmo indiretamente, encontram-se sob a influência do contrato realizado.
Portanto, o contrato tornou-se mais abrangente, mais humano e social. Valorizam-se as
expectativas das partes contratantes, a boa-fé depositada na efetiva realização do negócio, a
conduta das partes baseada na confiança e na lealdade. Pode-se, pois, dizer que existe a
procura pelos valores que sempre existiram, mas que, em virtude das transformações sociais e
das necessidades de cada sociedade em determinada época e local, acabaram encobertos por
outros valores identificados com a época e o momento histórico.
Nesse momento, tendo em vista a releitura dos valores que sempre existiram, mas que
adquirem, por meio da evolução social, novas molduras, passa-se à análise dos princípios
contratuais, representativos dos valores eleitos pela sociedade, para informar as suas relações
sociais e negociais.
2.2 OS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS
O direito contratual é orientado por princípios gerais, os quais almejam o alcance do
equilíbrio e da confiança nas relações firmadas, estendendo-se desde as primeiras
negociações, na fase das tratativas contratuais, passando pela execução propriamente dita do
contrato, a qual se alonga da formação até a conclusão do contrato, bem como atingindo a
fase pós-contratual. Os princípios orientam o vínculo contratual, objetivando a satisfação dos
anseios da nova sociedade complexa e globalizada.
Conforme observado anteriormente, a evolução contratual encontra-se diretamente
relacionada com a evolução estatal. De um Estado Liberal, temos o contrato com
características liberais, no qual predominam o individualismo e a total liberdade. De um
Estado com características sociais, temos o contrato funcionalizado. De um Estado complexo
e globalizado, necessitamos de um contrato que possibilite a adaptação das relações para o
67
futuro que se avizinha, possibilitando novos meios de solução dos conflitos nas relações
contratuais.
Percebe-se que as características estatais imprimem contornos especiais aos contratos,
transformando-se em princípios orientadores das suas relações jurídicas, possuindo influência
maior ou menor de acordo com a sociedade e com o momento histórico respectivo. De uma
sociedade liberal sobressai um contrato individualista; de uma sociedade social, um contrato
com características coletivas e solidárias.
Entre os princípios contratuais, com maior ou menor influência atualmente, destacam-
se a autonomia privada e a autonomia da vontade, do qual resultam a liberdade contratual, a
força obrigatória dos contratos e a relatividade contratual. Também de acordo com a nova
interpretação contratual, distingue-se o princípio da boa- confiança e transparência,
objetivo deste trabalho e, conseqüentemente, com uma abordagem mais abrangente, e a
função social do contrato, os quais proporcionam a remodelagem dos antigos princípios
contratuais, conferindo-lhes uma nova concepção. Outro princípio que mereceu destaque
nesta análise é o princípio da igualdade, tendo em vista a conformação contratual que oferece
quando considerado em sua versão formal e material, o que resulta numa relação na qual pode
predominar o poder de persuasão de uma das partes ou o equilíbrio contratual.
2.2.1 Conceito de princípios
Os princípios são considerados a base do ordenamento jurídico, indicando a direção
exata para as demais normas que compõem o sistema, como também definindo os seus
horizontes, pois possuem em seu bojo os valores eleitos pela sociedade
186
. No entanto, quando
considerados somente na esfera juscivilista, os princípios encontram-se submetidos à lei,
possuindo um baixo grau na hierarquia positiva, representando apenas uma fonte secundária
para a normatividade. No entanto, a partir da sua incorporação na esfera jusconstitucional,
passam a guiar e fundamentar as demais normas, ocupando lugar de destaque na pirâmide
normativa.
187
Dada a sua importância, a violação de um princípio constitucional significa a ruptura
da própria Constituição, pois representa os valores constitucionalmente regulamentados.
Violar os princípios é mais inconstitucional do que violar uma norma, visto que são a base das
186
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2002,
p. 807.
187
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 263.
68
normas.
188
No momento em que se viola uma norma, resta o princípio que a informou, que lhe
serviu de alicerce; então, recorre-se ao princípio. Contudo, no momento em que se violar um
princípio, estão sendo violados os valores fundamentais da sociedade, pois os princípios
representam a ideologia do Estado, ideologia esta representativa dos valores da sociedade.
189
Assim, os princípios contêm no seu conteúdo os valores que determinada sociedade elegeu
como ideais supremos a serem seguidos.
Os princípios orientam as normas, servindo-lhes de sentido e espírito, como também
corporificam as regras jurídicas, atingindo, assim, o sistema jurídico como um todo e erigindo
os seus ideais à categoria de normas plenamente aplicáveis.
190
Nesse sentido, Paulo
Bonavides acentua:
Postos no ponto mais alto da escala normativa, eles mesmos, sendo normas, se
tornam, doravante, as normas supremas do ordenamento. Servindo de pautas ou
critérios por excelência para a avaliação de todos os conteúdos normativos, os
princípios, desde sua constitucionalização, que é ao mesmo passo positivação no
mais alto grau, recebem como instância valorativa máxima categoria constitucional,
rodeada do prestígio e da hegemonia que se confere às normas inseridas na Lei das
Leis.
191
Para J. J. Gomes Canotilho, a Constituição encontra-se estruturada tanto em função
das regras como também dos princípios, o que a torna um sistema aberto. De acordo com o
autor, um sistema composto somente por regras, apesar de proporcionar segurança, não seria
propício ao desenvolvimento quando diante de uma sociedade aberta composta por conflitos,
valores e interesses discrepantes. Outrossim, num sistema composto somente por princípios
haveria a predominância da indeterminação que seria ocasionada pela inexistência de regras e
pela coexistência de princípios conflituantes, o que não proporcionaria a segurança jurídica e,
conseqüentemente, seria incapaz de reduzir a complexidade do sistema. Dessa forma,
Canotilho defende a idéia de um sistema misto de regras e princípios, no qual exista a
188
BORGES, Souto Maior apud DANTAS, Ivo. Princípios constitucionais e interpretação constitucional. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 1995, p. 59.
189
DANTAS, op. cit., p. 59.
190
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O princípio constitucional da igualdade. Belo Horizonte: Lê, 1990, p. 19.
Segundo a autora: “O princípio constitucional revela o sistema jurídico. É o elo que vincula e harmoniza os
valores normatizados; o princípio versa o coração do pensamento posto na palavra-norma. São os princípios,
pois, os elementos jurídicos normatizadores primários e informadores do sistema. De uma parte, eles inspiram o
sentido e demarcam o espírito do ordenamento constitucional e, de outra, corporificam as regras jurídicas
integrantes da elaboração normativa fundamental. Assim, são os princípios constitucionais os elementos internos
primários da ordem jurídica”.
191
BONAVIDES, Curso de direito constitucional, p. 260.
69
prioridade dos princípios no ordenamento jurídico, pois estes possuem a função de permitir a
entrada de novos conteúdos no ordenamento, em razão da sua abertura gramatical e
interpretativa, o que renova o direito.
192
Para Alexy, os princípios são suscetíveis de ponderação, o que significa que, diante de
um conflito entre os princípios, um prevalece, o que não significa declarar a invalidade dos
demais. Isso caracteriza uma dimensão de peso entre os princípios, o que representa a sua
relatividade, do que se conclui que não há princípios de valores absolutos.
193
Do exposto verifica-se que os princípios são a base do ordenamento jurídico, agindo
como orientadores das demais normas que compõem o sistema, como também que se
encontram positivados nas constituições, o que lhes atribui a característica de normas jurídicas
plenamente aplicáveis. Também se verifica que os princípios representam os valores eleitos
pela sociedade como métodos plausíveis de garantias dos direitos fundamentais dos cidadãos,
proporcionando-lhes viver com dignidade.
2.2.2 Por uma concepção sistêmica dos princípios constitucionais e do princípio
da boa-
Também com relação aos princípios e com relação ao enfoque proposto para este
trabalho, faz-se pertinente a análise dos princípios perante a teoria dos sistemas.
Numa sociedade globalizada, também denominada de “pós-moderna”, não é mais
possível manter a teoria jurídica presa à noção de racionalidade do direito através do
normativismo da concepção kelseniana. Faz-se necessário uma “noção mais alargada, uma
noção mais ampla, que inclua também regras, princípios, diretrizes políticas, com uma
participação maior da sociedade”.
194
Nesse sentido, de acordo com Luis Alberto Warat, a concepção do Estado de Direito
implica o reconhecimento de que os princípios atuam como suporte para o funcionamento do
direito na sociedade. No momento em que se perde a referência a esses princípios, a estrutura
jurídica torna-se imprevisível e até descontrolada.
195
192
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1999, p. 1088-1089.
193
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales, 2002, p. 89.
194
ROCHA, Leonel Severo. O direito na forma de sociedade globalizada. In: Anuário do Programa de Pós-
Graduação em Direito Unisinos 2001. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2001, p. 118-119.
195
WARAT, Luis Alberto. Por quien cantan lãs sirena: informe sobre eco-ciudadania, género y derecho
incidencias del barroco en el pensamiento jurídico. Joaçaba: Unoesc/CPGD/Efsc, 1996, p. 33.
70
O direito é um “sistema autopoiético de valores, de princípios, de conceitos básicos, de
normas e de fatos que visa à homeóstase (dinâmica) social e à distribuição eqüitativa dos bens
do mundo”.
196
Para Jean Clam, a autopoiese básica caracteriza-se como estruturada de forma
circular, operativamente paradoxal, enquanto a autopoiese derivativa caracteriza-se como
evolucionariamente circular e semanticamente paradoxal, ou seja, pela circularidade de suas
redes operativas supera os paradoxos de ordens subjacentes, pela abertura de novos espaços
de estruturação.
197
Nesse sentido, de acordo com Teubner, verifica-se que,
[...] com efeito, a realidade social do direito é feita de um grande número de relações
circulares. Os elementos componentes do sistema jurídico ações, normas,
processos, identidade, realidade jurídica constituem-se a si mesmos de forma
circular, além de estarem ligados entre si também circularmente por uma variedade
de meios.
198
A idéia de hiperciclo do sistema social surgiu com Teubner, o que possibilitou a
verificação da circularidade existente entre os princípios constitucionais, os quais interagem
auto-reproduzindo-se e comunicando-se com os demais elementos do sistema jurídico, bem
como com os demais subsistemas.
199
Com relação à autopoiese dos princípios, Benedito
Hespanha salienta que
a autopoiese significa a autoprodução de princípios, de cláusula e de regras, ou seja,
das unidades básicas do sistema que dão início à produção dos movimentos
subseqüentes: sem o desencadeamento do movimento inicial de natureza
autopoiética não poderia articular o conjunto dos outros movimentos que caracte-
rizam o sistema.
200
196
MATEIRO, Mário Martins da Silva. Pensar o direito: fragmentos de um ensaio de autopoiésis jurídica.
Revista Justiça do Direito, Passo Fundo: Ediupf, v. 11, 1997, p. 17.
197
CLAM, Jean. Questões fundamentais de uma teoria da sociedade: contingência, paradoxo, só-efetuação. São
Leopoldo: Unisinos, 2006, p. 15.
198
TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. Tradução de José Engrácia Antunes. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 6.
199
MARCO, Anelise de. Os princípios constitucionais no ordenamento jurídico brasileiro e a aplicação da teoria
dos sistemas. In: SCHWARTZ, Germano (Org.). Autopoiese e constituição: os limites da hierarquia e as
possibilidades da circularidade. Passo Fundo: UPF, 2005, p. 72.
200
HESPANHA, Benedito. A autopoiese na construção do jurídico e do político de um sistema constitucional.
Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, São Paulo, n. 28, jul./set. 1999, p. 63.
71
Portanto, verifica-se que os princípios se constituem em elementos da autopoiese do
direito. No entanto, caracterizam-se como autopoiéticos derivativos, pois interagem de forma
circular quando inseridos no sistema, superando os paradoxos existentes através de sua
evolução.
Conseqüentemente, para a sociedade dita “globalizada”, não é mais possível a
estrutura hierárquica do direito, proposta por Kelsen, como um sistema de normas pronto e
acabado. O mais adequado para esta nova sociedade é uma noção aberta, propícia aos
princípios e à maior participação dos integrantes da sociedade. Por meio da teoria dos
sistemas e da autopoiese, facilita-se a organização do direito de forma circular, no qual ocorre
a interação entre os seus elementos, não a hierarquização. Dessa forma, faz-se possível a
autoprodução dos elementos do direito por meio dos hiperciclos, que operam a circularidade
dos princípios, auto-reproduzindo o sistema jurídico.
Com base nessa exposição inicial, parte-se para uma breve análise sobre os princípios
constitucionais e a Constituição perante a teoria sistêmica autopoiética, segundo a concepção
de Germano Schwartz. Utiliza-se a especificação “princípios constitucionais” em relação ao
princípio da boa-fé objetiva, tendo em vista que a configuração da boa-fé como um princípio
obrigacional traz como conseqüência o fato de que, ao mesmo tempo em que se adapta aos
princípios constitucionais, ficando possibilitada a sua concreção jurídica, a boa-fé serve,
concomitantemente, de instrumento para a interpretação constitucionalizada das relações
patrimoniais interprivadas.
201
Necessariamente, a boa-fé enquadra-se na moldura dos
princípios constitucionais. Também nesse sentido verifica-se que a oposição existente entre a
boa-fé objetiva e a autonomia da vontade baseia-se no fato de a eficácia interprivada dos
princípios constitucionais importar numa nova configuração da liberdade dos contratos. Nesse
sentido, Teresa Negreiros, citando Ricardo Luiz Lorenzetti acentua que a novidade que se
apresenta se encontra
na tentativa de entrever na incidência do princípio da boa-fé a impreterível
conformação do direito contratual aos princípios constitucionais, uma vez que o
contrato deixa de ser considerado como um “instrumento economicamente neutro”,
porquanto “seus efeitos transcendem a ‘privacidade’ das partes”, devendo ser, por
isso, diretamente informado pelo “quadro axiológico do direito civil-consti-
tucional”.
202
201
NEGREIROS, Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Fundamentos para uma interpretação constitucional do
princípio da boa-fé. Rio ed Janeiro: Renovar, 1998, p. 138.
202
NEGREIROS, Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-, p. 190.
72
Portanto, de acordo com Germano Schwartz, faz-se uma breve consideração sobre a
Constituição e os princípios constitucionais, aos quais se agrega a boa-fé perante a teoria dos
sistemas e a autopoiese.
Segundo a concepção de Schwartz, a Constituição é o “acoplamento estrutural entre o
Direito e a Política, o momento por excelência onde há a comunicação do sistema jurídico
com o entorno”. Outrossim, a autopoiese constitucional baseia-se na sua auto-refe-
rencialidade, isto é, quando ocorre a operação jurídica, baseada na Constituição, o direito
produz sentido a partir da sua especificidade e da sua unidade. A distinção auto-referencial
possibilita a abertura exógena e cognitiva da Constituição ao entorno. Nessa comunicação
com os demais subsistemas, “a Constituição vai-se auto-regulando, e cada vez mais,
distinguindo-se do exterior, formulando uma unidade referencial própria de estruturas,
princípios e operações específicos”.
203
Nesse sentido, sobre os princípios constitucionais, aos
quais se relaciona o princípio da boa-fé,
os princípios constitucionais, por exemplo, são pré-requisitos de decisão, e não
condições de justiça. São esquemas operativos de natureza condicional limitados
pela função estrutural dada pelo sistema no qual estão inseridos (o Direito
decisão). As pré-condições dos princípios são fornecidas pela diferenciação
funcional, pois é ela que dá a individualização dos modos de comportamento. Aliada
à individualização dos princípios via diferenciação, a generalização das expectativas
normativas via Constituição, torna-se base e requisito estrutural do Direito.
204
Outrossim, de acordo com o autor, a Constituição, quando auto-observada, reforça o
entrelaçamento auto-referencial de seus componentes, pois os princípios remetem aos direitos
fundamentais, que remetem à organização do Estado, que se encontra relacionada à
organização dos poderes. Em vista do movimento cíclico-recursivo ocorre a auto-referência,
que possibilita a intracomunicação e a intraprodução da Constituição. Posteriormente, a
Constituição, por meio de decisões, comunica-se com as demais normas do sistema, o que
favorece a reprodução de novas normas tendo em vista as referências do próprio sistema
constitucional.
205
Com referência ao sentido normativo e à efetividade dos princípios, cabe uma breve
análise realçando o seu caráter de norma constitucional integrada no ordenamento jurídico e
203
SCHWARTZ, Germano. O tratamento jurídico do risco no direito à saúde. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2004, p. 120-121.
204
SCHWARTZ, O tratamento jurídico do risco no direito à saúde, p. 121.
205
Idem, p. 122.
73
passível de aplicação, ampliando, dessa forma, o seu alcance e ultrapassando o terreno da
mera abstração jurídica.
2.2.3 A normatividade e efetividade dos princípios e as expectativas normativas
Com relação à normatividade dos princípios constitucionais, salienta-se que os
princípios encontram-se no patamar das regras, distinguindo-se esses como duas espécies de
normas; não há mais a distinção entre normas e princípios, que conduzia os princípios para
um campo de abstração, longe do caso concreto. Considerando-se a distinção entre regras e
princípios, verifica-se que os princípios conceituam-se como sendo normas mais abstratas,
vagas, indeterminadas, que necessitam de uma mediação para sua aplicação ao caso concreto;
são normas que possuem um papel fundamental no ordenamento jurídico porque formam a
sua estrutura.
206
Os princípios apresentam a idéia de justiça e de direito e encontram-se na
base do ordenamento, possuindo também a função fundamentante das demais normas
jurídicas.
As regras são normas que apresentam um campo de atuação determinado, delimitado,
às quais não é permitido um amplo espectro de abrangência, ao passo que os princípios são
normas que possuem uma abrangência maior, não se caracterizando como taxativos ou
delimitadores; ao contrário, objetivam alcançar o direito considerando as condições fáticas e
jurídicas do caso concreto.
207
Portanto, tanto os princípios como as regras possuem a
qualidade de normas jurídicas, porém, apresentando as características de normas, devem ser
observados os primeiros com maior alcance e as segundas com alcance mais reduzido nas
relações entre os indivíduos.
A normatividade passou a ser característica fundamental dos princípios, não sendo
possível um conceito que não o considere em seu sentido de norma jurídica.
208
Outrossim, conforme Eros Roberto Grau, no momento em que os princípios são
positivados na Constituição, são normatizados, devendo, pois, ser cumpridos e ter aplicação
no caso concreto. De fato, considerando-se a não-normatização dos princípios, é de se
concluir que a Constituição não é passível de aplicação, pois os seus preceitos não
206
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5.ed. Coimbra: Almedina, 2002,
p. 1144. De acordo com o autor “A teoria da metodologia jurídica tradicional distinguia entre normas e
princípios (Norm-prinzip, Principles-rules, Norm und Grundsatz). Abandonar-se-á aqui essa distinção para, em
sua substituição, se sugerir: (1) as regras e princípios são duas espécies de normas; (2) a distinção entre regras e
princípios é uma distinção entre duas espécies de normas.
207
CANOTILHO, op. cit., p. 1239.
208
BONAVIDES, Curso de direito constitucional, p. 230.
74
ultrapassariam o campo da abstração.
209
Logo, os princípios são normas passíveis de
aplicação imediata, sobretudo porque foram eleitos como valores fundamentais da sociedade
que representam.
Após a constatação da característica normativa dos princípios, faz-se necessária a
verificação da sua efetividade. Com o surgimento das constituições da segunda metade do
século XX, os princípios deixaram de ser fonte subsidiária, ou seja, aquela utilizada somente
na falta de outras de mais alto valor, e atingiram o grau de fonte primária do direito, tornando
os valores supremos corporificados, tais como os direitos e garantias, passíveis de aplicação
imediata, pois se encontram normatizados nas constituições,
210
o que lhes possibilita a
efetividade imediata.
Com a valoração dos princípios em normas-chave, houve a retirada da sua
característica de conteúdo programático, isto é, conteúdo para ser realizado no futuro,
possibilitando, desse modo, a realização dos conteúdos principiais de imediato, tornando-os
auto-aplicáveis e, assim, efetivos.
211
Portanto, a partir do momento em que os princípios
descem da órbita da abstração e encontram-se positivados na carta constitucional, detentora
dos direitos e garantias fundamentais, tornam-se efetivos. Verifica-se, pois, a efetividade dos
princípios principalmente quando se salienta a sua positivação na Constituição, como também
pela sua normatização e utilização nas decisões dos tribunais, contribuindo, dessa forma, para
a formação da jurisprudência. Com sua inclusão na jurisprudência, os princípios vão se
materializando e se corporificando nas relações entre os cidadãos.
212
Outrossim, os princípios representam determinados valores que as partes buscam
alcançar, verdadeiras expectativas que as partes desenvolvem em torno da relação jurídica. As
expectativas surgem em meio à relação entre os indivíduos, ao que Luhmann refere “la
conducta interpersonal no es un asunto de una mera experiência ad hoc, sino algo interpretado
en términos de actitudes implícitas y usado para la formación de expectativas [...]”.
213
No
209
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p.
109. Nesse sentido o autor relata: “Pois bem, quanto aos princípios positivos do Direito, evidentemente
reproduzem a estrutura peculiar das normas jurídicas. Quem o contestasse, forçosamente teria de admitir,
tomando-se a Constituição, que nela divisa enunciados que não são normas jurídicas. Assim, p. ex., quem o
fizesse haveria de admitir que o art. 5º, caput, da Constituição de 1988 não enuncia norma jurídica ao afirmar
que “todos são iguais perante a lei [...]”.
210
BONAVIDES, Curso de direito constitucional, p. 254.
211
Idem, p. 257.
212
De acordo com o autor: “A esta altura, os princípios se medem normativamente, ou seja, têm alcance de
norma e se traduzem por uma dimensão valorativa, maior ou menor, que a doutrina reconhece e a experiência
consagra. Consagração observada de perto na positividade dos textos constitucionais, donde passam à esfera
decisória dos arestos, até constituírem com estes aquela jurisprudência principial, a que se reporta, com toda a
argúcia, García de Enterría. Essa jurisprudência tem feito a força dos princípios e o prestígio de sua
normatividade traço coetâneo de um novo Estado de Direito cuja base assenta já na materialidade e
preeminência dos princípios”. BONAVIDES, Curso de direito constitucional, p. 260.
213
LUHMANN, Niklas. Confianza. Barcelona: Anthropos, 1996, p. 129.
75
entanto, os princípios, como verificado anteriormente, não deixam de ser expectativas
normativas, pois possuem conteúdo e juridicidade. A boa-fé objetiva, como um princípio a
orientar as relações contratuais, entre os indivíduos, por meio da lealdade e da confiança,
representa uma expectativa normativa almejada pelas partes, que permite um constante
reconsiderar e recriar na relação jurídica. Este recriar é necessário quando se está numa
sociedade complexa e contingente. Essa recriação, que objetiva e proporciona a readaptação
do negócio ao meio e no futuro, solucionando os conflitos, será possibilitada quando
trabalhada por meio da concepção sistêmica autopoiética, momento adequado para tratá-los
como estrutura de manutenção da estabilidade sistêmica. Isso é obtido por meio da decisão,
que ocorre mediante a ponderação. A boa-fé, então, será tratada como uma premissa
decisória.
Tratando-se das expectativas que as partes apresentam numa relação jurídica, constata-
se que, numa sociedade complexa, os riscos de desapontamentos são constantes, o que faz
necessária a possibilidade de modificação da expectativa desapontada, adaptando-a à
realidade decepcionante, ou sustentando-a. Quando ocorre a adaptação das expectativas à
realidade, está-se diante das expectativas cognitivas. Quando se está diante de expectativas
que não se adaptam à realidade, que se mantêm mesmo na ocorrência de desapontamentos,
está-se diante de expectativas normativas, que se caracterizam por atribuir a discrepância
existente ao ator. O desapontamento não possui relevância para a expectativa.
214
Por meio
dessa diferenciação, à sociedade será permitido estabelecer um acordo entre a necessidade de
adaptação e às expectativas das partes. A sociedade institucionalizará cognitivamente as
expectativas comportamentais e trabalhará normativamente as expectativas quando forem
vitais tanto para a segurança quanto para a integração social das expectativas. Como
conseqüência, reduz-se o risco de desapontamentos, pois ocorre o encaminhamento dos
problemas para um ou outro modo de tratamento das expectativas, o que possibilita o
enfrentamento da complexidade e da contingência atual.
215
Diante disso, Niklas Luhmann
acrescenta:
O desapontamento pode então levar à formação de normas através da normatização
a posteriori. Assoma à consciência que não é possível abdicar-se dessa expectativa,
tornando-se necessária a exigência de um comportamento correspondente. Essa é a
forma de pensar o surgimento do direito a partir de desapontamentos.
216
214
LUHMANN, Sociologia do direito I, p. 56.
215
LUHMANN, op. cit., p. 58.
216
LUHMANN, Sociologia do direito I, p. 59.
76
Os princípios jurídicos, no caso específico da boa-fé, como visto anteriormente,
possuem a característica de normas. Representam, outrossim, conforme a sua particularidade,
expectativas que as partes possuem com o negócio realizado. Considerando-se as expectativas
normativas, as expectativas de confiança, de lealdade, que as partes desenvolvem em torno do
princípio da boa-fé, as quais se mantêm apesar do desapontamento, que é atribuído ao ator,
constata-se que é possível, segundo Luhmann, quando ocorrem a frustração e o desapon-
tamento, dar início a um processo de formação do direito:
No lugar de uma tal fundamentação por meio de uma hierarquia de fontes do direito
vemo-nos diante da fundamentação através de processos reflexivos da expectativa
de expectativas, que permitem uma diferenciação entre expectativas cognitivas e
normativas podendo, assim, por meio de diferentes constelações, fazer jus a
exigências as mais diferenciadas. Com isso, porém, apenas esboçamos o ponto de
partida para a compreensão dos processos de formação do direito. Uma expectativa
normativa e inabalável frente à decepções é, inicialmente, apenas uma projeção, um
projeto subjetivo.
217
Essa formação do direito acontece quando se está diante de um princípio jurídico
normatizado que não deixa de ser uma expectativa normativa que, mesmo diante de
desapontamentos, se mantém. A essas expectativas faz-se necessário um direito de satisfação,
um novo direito, pois, sendo inabalável perante os desapontamentos, necessita de uma regra
para sua satisfação. Para esse processo de formação do direito sugere-se a teoria sistêmica
autopoiética, pois por meio da complexidade, da contingência, da autoprodução, permite a
criação do direito para o caso concreto.
A análise até aqui realizada objetivou uma breve exposição dos princípios jurídicos,
seu conceito, normatividade, efetividade, bem como a sua caracterização como expectativas
normativas, o que possibilita a construção de um novo direito, facilitando a sua imediata
aplicação nas relações sociais. Os princípios são a base e a essência do ordenamento jurídico;
atuam como orientadores das demais normas que compõem o sistema, como também se
encontram corporificados na forma de normas a partir da sua positivação na Constituição
Federal. Possuem, dessa forma, aplicação imediata nas relações jurídicas.
Além da normatividade, da efetividade e da sistematicidade dos princípios, há que se
considerar a sua característica de “abertura”, o que os separa da categoria de normas estáticas,
217
LUHMANN, op. cit., p. 66.
77
possibilitando-lhes a constante interpretação e adaptação aos fatos sociais.
218
Esta assertiva
vem ao encontro do objetivo proposto com o trabalho.
A análise até aqui realizada objetivou uma breve exposição dos princípios jurídicos,
seu conceito, normatividade e efetividade, bem como a sua sistematicidade. Os princípios são
a base e a essência do ordenamento jurídico; atuam como orientadores das demais normas que
compõem o sistema, como também se encontram corporificados na forma de normas a partir
da sua positivação na Constituição Federal. Possuem, dessa forma, aplicação imediata nas
relações jurídicas.
Verifica-se que os princípios, num primeiro momento, pertenciam somente ao campo
filosófico e abstrato, tendo ingressado, posteriormente, no direito civil e, após, na
Constituição Federal, o que os arrebatou do campo da abstração, proporcionando-lhes a
característica de norma positivada, passível de plena e imediata aplicabilidade. Assim, quando
o princípio adquire a qualidade de norma constitucional, encontra-se positivado e, sendo
positivado, torna-se efetivo, como uma norma a ser seguida. Portanto, há de ser considerado
nas relações entre os indivíduos, pois é um valor supremo, eleito pela sociedade, além de ser
orientador do sistema jurídico como um todo.
Para proceder à análise dos princípios a seleção foi feita em vista do grau de influência
que exerceram e continuam a exercer sobre o contrato. Como prioridades elegeu-se o
princípio da autonomia da vontade e da autonomia privada, o princípio da igualdade, a boa-
e a função social. Ainda, a análise abordará aspectos concernentes à liberdade, à relatividade
contratual, à obrigatoriedade do pactuado e ao consensualismo.
218
LIMA, George Marmelstein. As funções dos princípios constitucionais. Disponível em:
http://www.jusnavegandi.net. Acesso em: 14 maio 2003. De acordo com o autor: “De fato, os princípios, em
relação às regras, têm uma grande vantagem: a abertura. Ou seja, os princípios têm uma “substância política
ativa”, uma “estrutura dialógica”, capaz de captarem as mudanças da realidade e estarem “afinados” às
concepções cambiantes da “verdade” e da “justiça”. Eles não são nem pretendem ser verdades absolutas ou
axiomas imutáveis; são, isto sim, “poliformes” (Cármem Rocha). Na medida das transformações ocorridas no
bojo do seio social, as interpretações dos princípios vão-se adaptando, vão-se moldando constantemente às
vicissitudes do meio sócio-político em que atuam. [...] Ou seja, eles transcendem a literalidade da norma mesma
em que estão inseridos, permitindo que se mude o sentido, isto é, a interpretação dos textos, sem que se precise,
com isso, alterar os seus enunciados normativos”.
78
2.3 O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE E DA AUTONOMIA PRIVADA DA
VONTADE
De acordo com Clóvis V. do Couto e Silva, entende-se por “autonomia de vontade” a
facultas que possuem os particulares para resolver seus conflitos de interesses, criar
associações, realizar a troca dos bens e, dessa forma, relacionar-se em sociedade. Para a
realização desses objetivos, as pessoas vinculam-se juridicamente por meio de sua vontade.
219
Por sua vez, o princípio da autonomia da vontade determinava que o contrato dependia
exclusivamente da vontade das partes, o que caracterizava a ciência do direito, manifestada
por meio da dogmática jurídica. A autonomia da vontade contratual fazia lei entre as partes,
prevalecendo apenas o pactuado no contrato. Os efeitos jurídicos do contrato dependiam da
vontade expressa ou tácita das partes, sendo tutelados de acordo com o que esta vontade
determinava.
220
O voluntarismo encontrou seu ápice no período do jusnaturalismo, quando a
organização do Estado passou a ser explicada como uma obra da vontade humana. De fato,
todas as relações baseavam-se na associação voluntária entre os indivíduos, desde o contrato
entre duas pessoas até as relações com o Estado. O fundamento ideológico e econômico da
teoria clássica encontrava-se no liberalismo, resultado da transformação socioeconômica
verificada no regime feudal, que originou o crescimento do voluntarismo. Na área social o
liberalismo determinou profundas alterações, pois as posições sociais antes ocupadas pelo
status e pelo nascimento passaram a ser determinadas pelo voluntarismo e pelo contrato.
221
Em matéria contratual era a primazia do consenso, o qual encontrou sua força na autonomia
219
SILVA, Clóvis V. do Couto e. A obrigação como processo. São Paulo: Bushatsky, 1976, p. 17.
220
NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé,
justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 112. Corroborando o exposto, Antonio J. de Azevedo refere que,
“para se chegar a essa concepção da vontade soberana, criando, por sua exclusiva força, direitos e obrigações, foi
preciso que, na obra lenta dos séculos, a filosofia espiritualizasse o direito, para libertar a vontade pura, das
formas materiais pelas quais ele se manifesta, que a religião cristã impusesse aos homens a fé na palavra
escrupulosamente guardada, que a doutrina do direito natural ensinasse a superioridade do contrato,
fundamentando nele a própria sociedade, que a teoria do individualismo liberal afirmasse a concordância dos
interesses privados, livremente debatidos, com o bem público. Então, pôde reinar a doutrina da autonomia da
vontade que é simultaneamente o reconhecimento e o exagero da onipotência do contrato”. AZEVEDO, Antonio
Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. atual., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 81.
221
OLIVEIRA, Ubirajara Mach de. Princípios informadores do sistema de direito privado: a autonomia da
vontade e a boa-fé objetiva. Revista de Direito do Consumidor,. São Paulo: RT, n. 23-24, jul./dez. 1997, p. 49-
50. Segundo o autor, na Idade Média a terra era a principal fonte de riqueza. Com o surgimento da economia
capitalista salientou-se a importância dos bens oriundos do comércio e da indústria explorados pelos burgueses,
que desenvolveram um sistema jurídico que facilitasse a livre circulação dos bens e dos sujeitos (mercantilismo
capitalista). Nesse aspecto a autonomia da vontade representou a liberdade de contratar, escolher com quem
contratar e o conteúdo do contrato. A legislação priorizava a vontade. A base da autonomia privada eram a
liberdade e a igualdade formal.
79
da vontade. Encontrava-se estabelecido o regime do laissez-faire, laissez-passer, laissez-
contracter, considerado imprescindível para a rapidez e segurança dos negócios, tendo em
vista o desenvolvimento industrial e comercial da época.
222
Também Immanuel Kant, referindo a autonomia da vontade, salienta que o princípio
significa “não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas
simultaneamente, no querer mesmo, como lei universal”.
223
No entanto, apesar da preponderância da autonomia da vontade, faz-se necessário
registrar que nos direitos históricos sempre existiu uma autoridade pública (Estado) que se
encarregava de arbitrar e de sancionar (de reconhecer e, reconhecendo, proteger) os próprios
modos de composição espontânea modos que, de resto, pela sua repetição, tornavam-se
direito costumeiro. E nessa conversão e sancionamento aconteciam uma certa seleção por
determinados modos de composição, os quais passavam a submeter-se a um controle social.
Por esse processo o jus imperi passou a interferir reforçando as opções dos indivíduos,
sujeitando-as às suas próprias opções. Ao consagrar a sua juridicidade, o poder não serviu
somente aos poderes: serviu-se, igualmente, desses poderes. Disso se verifica que a referida
composição inter pares nunca surgiu historicamente em estado puro, sendo a sua autonomia
sempre uma autonomia relativa, fazendo do poder dos indivíduos um poder que podia ser
exercido nos limites da ordem jurídica existente, como que conferido ou atribuído por essa
ordem externa.
224
Nesse sentido, de acordo com Pontes de Miranda “não há autonomia
222
De acordo com o autor: “Os aplicadores do Direito, inclusive os juízes, pensavam, retratando o espírito da
época, que não devia ocorrer intromissão naquilo que as partes clausuraram no negócio jurídico”. OLIVEIRA,
Princípios informadores do sistema de direito privado: a autonomia da vontade e a boa-fé objetiva, p. 52.
223
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições
70 Printefólio, 1995, p. 85. Também de acordo com Kant: “Se agora lançar-mos um olhar para trás sobre
todos os esforços até agora empreendidos para descobrir o princípio da moralidade, não nos admiraremos ao ver
que todos eles tinham necessariamente de falhar. Via-se o homem ligado a leis pelo seu dever, mas não vinha à
idéia de ninguém que ele estava sujeito só à sua própria legislação, embora esta legislação seja universal, e que
ele estava somente obrigado a agir conforme a sua própria vontade, mas que, segundo o fim natural, essa vontade
era legisladora universal. Porque, se nos limitávamos a conceber o homem como submetido a uma lei (qualquer
que ela fosse), esta lei devia ter em si qualquer interesse que o estimulasse ou o constrangesse, uma vez que,
como lei, ela não emanava da sua vontade, mas sim que a vontade era legalmente obrigada por qualquer outra
coisa a agir de certa maneira. Em virtude desta conseqüência inevitável, porém, todo o trabalho para encontrar
um princípio supremo do dever era irremediavelmente perdido; pois o que se obtinha não era nunca o dever, mas
sim a necessidade da acção partindo de um determinado interesse, interesse esse que ora podia ser próprio ora
alheio. Mas então o imperativo tinha que resultar sempre condicionado // e não podia servir como mandamento
moral. Chamarei, pois, a este princípio, princípio da Autonomia da vontade, por oposição a qualquer outro que
por isso atribuo à Heteronomia.” KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de
Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70 Printefólio, 1995, p. 75.
224
CARVALHO, Orlando de. A teoria geral da relação jurídica seu sentido e limites. 2. ed. atual. Coimbra:
Centelha, 1981, p. 27.
80
absoluta ou ilimitada de vontade; a vontade tem sempre limites, e a alusão à autonomia é
alusão ao que se pode querer dentro desses limites”.
225
Entretanto, o contrato adquiriu uma nova feição, resultante das transformações sociais,
o que gerou um novo paradigma para a ciência jurídica. Passou-se, então, para uma ciência
jurídica funcionalizada, na qual a autonomia da vontade passou a sofrer maiores limitações
pelo poder estatal. O princípio da autonomia da vontade tornou-se limitado, surgindo a
autonomia privada da vontade, que possibilita a liberdade para os contratantes desde que
observados determinados limites que visem à justiça contratual e ao bem social, tais como os
desígnios da boa-fé e da função social do contrato.
226
Infere-se que, de uma concepção liberal
e individualista, passou-se para uma concepção social e coletiva, o que resultou na tutela do
bem-estar social, com vistas a valores humanizados e dignificantes. Outrossim, com relação à
terminologia “autonomia da vontade” e “autonomia privada”, cabe registrar a concepção de
Francisco dos Santos Amaral Neto, que salienta ser a autonomia da vontade um princípio que
possibilita ao indivíduo praticar um ato jurídico, podendo determinar-lhe a forma, o conteúdo,
bem como os efeitos; em contrapartida, a autonomia privada caracteriza-se como o poder que
o indivíduo tem de estabelecer as regras jurídicas que irão regulamentar o seu compor-
tamento.
227
Ao lado da autonomia da vontade e da autonomia privada da vontade, aparecem outros
princípios de fundamental importância e que também acarretam características aos contratos.
Entre esses princípios destacam-se a liberdade contratual, o consensualismo, a
obrigatoriedade dos contratos e a relatividade contratual, que serão a seguir analisados. Além
desses, destacam-se o princípio da boa-fé e a função social do contrato, aos quais se junta o
225
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. Parte especial, 2. ed.,Rio de Janeiro: Borsoi, 1962, t.
XXXVIII, p. 39.
226
De acordo com o autor: “Na lição de Larenz e mais concretamente “é a possibilidade, oferecida e assegurada
aos particulares, de regularem suas relações mútuas dentro de determinados limites por meio de negócios
jurídicos, em especial mediante contratos”. É o poder “de auto-regulamentação dos próprios interesses e
relações, exercidos pelo próprio titular deles”, de que falava Betti, a ser exercido nos limites e com as finalidades
assinadas pela função social do contrato”. NORONHA, O direito dos contratos e seus princípios fundamentais:
autonomia privada, boa-fé, justiça contratual, p. 115.
227
AMARAL NETO, Francisco dos Santos. Autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica.
Perspectivas estrutural e funcional. Revista de Direito Civil,. São Paulo: RT, v. 46, p. 7-26, 1988, p. 10. Com
relação à questão terminológica vale acrescentar a noção de Teresa Negreiros, que refere, “a rigor, entendemos
que ambas as expressões exprimem uma mesma realidade, embora a autonomia da vontade esteja historicamente
mais associada ao voluntarismo jurídico que em determinado momento nela se legitimava. Assim, optou-se por
utilizar a expressão ‘autonomia da vontade’ ou ‘princípio da autonomia da vontade’ sempre que se tivesse em
mira o modelo de contrato clássico, no qual, como será amplamente demonstrado no decorrer do trabalho, o
poder jurígeno da vontade era exacerbado, assumindo contornos fundamentalmente diversos dos que hoje se
verificam. A expressão ‘autonomia privada’ é, sob este prisma, mais genérica, não estando tão essencialmente
associada ao voluntarismo e ao individualismo jurídicos”. NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos
paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 3-4.
81
princípio da igualdade, que objetiva uma relação de equilíbrio entre as partes contratantes, que
serão analisados de modo mais amplo, haja vista corresponderem diretamente à época e às
necessidades atuais. À boa-fé será dado um relevo especial, por corresponder ao objetivo do
presente trabalho.
Como reflexos da autonomia da vontade manteve-se a liberdade contratual. Ocorre
que a idéia de autonomia de vontade encontra-se ligada à idéia de uma vontade livre e dirigida
exclusivamente pelo indivíduo, que não é passível de sofrer influências externas. A liberdade
contratual, por sua vez, significa a liberdade de contratar ou não, de escolher o parceiro
contratual, de estabelecer o conteúdo do contrato, enfim, liberdade para expor a sua vontade,
sendo tutelado pelo direito. Por sua vez, a união entre a liberdade e a autonomia originou
efeitos na teoria contratual, como, por exemplo, o princípio da liberdade da forma das
convenções, o da livre estipulação das cláusulas contratuais, bem como a faculdade de criar
novos tipos de contratos. De fato, a liberdade encontra-se ligada à autonomia da vontade,
“pois é a vontade, na visão tradicional, que legitima o contrato e é fonte das obrigações, sendo
a liberdade um pressuposto desta vontade”.
228
Do mesmo ponto de vista, de acordo com Mário Júlio de Almeida Costa, a liberdade
contratual refere-se à liberdade de celebração do contrato, à seleção do tipo contratual e à
liberdade de estipulação, que podem ser reunidas na liberdade de fixação do conteúdo
contratual.
229
No entanto, a liberdade contratual passou a sofrer limitações no seu campo de
abrangência, oriundas da nova concepção contratual influenciada por determinações éticas e
sociais, que busca proporcionar às relações a justiça e a eqüidade,
230
isso em conseqüência da
desigualdade resultante dos novos modos de contratação. De fato, a liberdade de contratar
aparece nos contratos paritários, sendo totalmente ignorada nos contratos de adesão, também
chamados “contratos de massa”, nos quais a parte mais fraca se vê obrigada a contratar, não
podendo sequer opinar com relação às cláusulas contratuais, como também, em muitas
situações, não podendo sequer apresentar vontade de contratar ou não. Outrossim, o que se
busca proteger com a limitação à liberdade de contratar é a inclusão de cláusulas abusivas que
fatalmente acarretarão a injustiça e o desequilíbrio da relação contratual. Por meio da lei
228
MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais,
p. 48-49.
229
COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das obrigações. Coimbra: Almedina, 1994, p. 196-197.
230
COSTA, Direito das obrigações, p. 207.
82
busca-se implementar uma superioridade jurídica àquele que possui uma inferioridade
econômica.
231
Para finalizar esta exposição sobre a “liberdade contratual” como reflexo da autonomia
da vontade, faz-se pertinente uma breve análise das chamadas “liberdades positiva e
negativa”. Refere Norberto Bobbio que a liberdade positiva (politicamente), segundo
Rousseau, designa a situação na qual o sujeito tem a possibilidade de orientar o seu querer no
sentido de uma finalidade, de decidir sem ser influenciado pelo desejo dos demais. Essa
liberdade também é denominada de “autonomia”, que se refere ao sentido de se
autodeterminar.
232
A liberdade negativa, por sua vez, “compreende tanto a ausência de
impedimento, ou seja, a possibilidade de fazer, quanto a ausência de constrangimento, ou seja,
a possibilidade de não fazer”.
233
Outro princípio da concepção clássica da teoria contratual é o da força obrigatória do
contrato, que representa a força que possui a vontade das partes quando manifestada, pois, a
partir do momento em que se encontram vinculadas pelo contrato, possuem direitos e
obrigações, não podendo mais se desvincular, a não ser por meio de um novo acordo ou
quando da ocorrência do caso fortuito ou da força maior, acontecimentos que não dependem
da vontade das partes envolvidas. Ao poder jurisdicional cabe apenas fazer valer a vontade
das partes, assegurando que os efeitos pretendidos sejam alcançados. Ao direito cabe apenas
interpretar e proteger a vontade das partes.
234
231
VENOSA, Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos, p. 375.
232
BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. Tradução de Nelson Carlos Coutinho, Rio de Janeiro: Ediouro,
1996, p. 51. “A definição clássica de liberdade positiva foi dada por Rousseau, para quem a liberdade no estado
civil consiste no fato de o homem, enquanto parte do todo social, como membro do eu comum, não obedecer
outros e sim a si mesmo, ou ser autônomo no sentido preciso da palavra, no sentido de que dá leis a si mesmo e
obedece apenas às leis que ele mesmo se deu: A obediência às leis que prescrevemos para nós é a liberdade
(Contrat social, I, 8). Este conceito de liberdade foi retomado, sob a influência direta de Rousseau, por Kant, no
qual, porém encontra-se também o conceito de liberdade negativa. No ensaio Para a paz perpétua, no momento
mesmo em que ele exclui que a liberdade jurídica possa ser definida como a faculdade de fazer tudo o que se
queira contanto que não cause injustiça a ninguém (trata-se da definição de justiça acolhida nas Declarações de
direito, como, por exemplo, no art. 4 da Declaração de 1789 e no art. 5 da Declaração de 1793), Kant especifica
na nota ao primeiro artigo definitivo que é melhor definir minha liberdade exterior (isto é, jurídica) como a
faculdade de só obedecer às leis externas às quais pude dar o meu assentimento. Ele diz o mesmo na Metafísica
dos costumes, onde a liberdade jurídica é definida como a faculdade de não obedecer a outra lei que não aquela
à qual os cidadãos deram o seu consentimento (II, 46). O filósofo que celebrou a liberdade como autonomia,
desdenhando da liberdade negativa, foi Hegel; para ele, a liberdade política se realiza apenas no Estado, através
da manifestação da sua vontade racional, que é a lei: A lei é a objetividade do espírito e a vontade em sua
verdade; e somente a vontade que obedece à lei é livre: com efeito, ela obedece a si mesma, está em si mesma e,
portanto, é livre (G.W.F. Hegel, Lezioni sulla filosofia della storia, Florença, vol. 1, p. 109)”.
233
BOBBIO, op. cit., p. 49.
234
MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 50.
83
Também cabe referir, segundo Arnaldo Rizzardo, que o cumprimento do pactuado
decorre da palavra empenhada, cabendo à lei impor a obediência ao que fora pactuado e
sanções quando do incumprimento.
235
No entanto, com o desenvolvimento e as transformações ocorridas no instituto
contratual, verificou-se um amadurecimento no sentido de amenizar o brocardo pacta sunt
servanda, que deixou de possuir a força para impor a conclusão do contrato de acordo com o
pactuado. Atualmente, observa-se que princípios como a boa-fé, a solidariedade, a
transparência e a função social tornam possível a revisão contratual quando o contrato deixa
de ser uma relação de equilíbrio e justiça para as partes contratantes, minimizando a
obrigatoriedade do pactuado.
Com relação à relatividade contratual, a concepção tradicional defendia que “o
contrato só ata àqueles que dele participaram. Seus efeitos não podiam prejudicar, nem
aproveitar a terceiros”.
236
De fato, “como corolário da liberdade e da autonomia da vontade, a
força obrigatória dos contratos fica limitada às pessoas que dele participaram, manifestando a
sua vontade”.
237
Entretanto, a nova teoria contratual realça o interesse social do contrato, de tal modo
que, além dos efeitos causados entre as partes contratantes, há que se considerar também os
possíveis efeitos causados a terceiros e à sociedade como um todo, o que será regulado pelo
crescente intervencionismo do Estado, que, como conseqüência, acarretará a relativização do
dogma da autonomia da vontade. Com essa nova conduta, impõe-se o princípio da boa-
objetiva, buscando-se alcançar a função social do contrato.
238
Nesse sentido, Marta Maria
Vinagre complementa que, apesar de dizer-se que os efeitos do contrato só ocorrem entre as
partes contratantes, tem-se de considerar a função social do contrato e a sua projeção na
coletividade, o interesse difuso que suscita em virtude do papel desempenhado na
economia.
239
Também se faz necessário uma breve análise sobre o princípio do consensualismo, que
representa o acordo entre duas ou mais vontades, sendo esse acordo suficiente para a criação
do contrato. Este princípio originou-se com os canonistas, baseando-se em valores morais e
religiosos e na necessidade de cumprimento da palavra empenhada. Somente o consentimento
forma os contratos, o que não significa que os contratos são somente consensuais, pois ao lado
235
RIZZARDO, Contratos,. p. 37.
236
VENOSA, Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos, p. 377.
237
MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 50.
238
MARQUES, op. cit., p. 176.
239
VINAGRE, Marta Maria. A outra face do contrato. Revista de Direito Civil: imobiliário, agrário e
empresarial, n. 44, ano 12, abr./jun. 1988, p. 109.
84
desses existem os contratos formais e solenes e os contratos reais.
240
Também segundo Mário
Júlio de Almeida Costa, por meio do princípio consensualista basta o acordo de vontades para
que o contrato se encontre perfeito.
241
2.4 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Tratando-se do instituto contratual e dos princípios que o informam, não se pode
deixar de fazer uma breve análise do princípio da igualdade, tanto em seu aspecto formal
como material, haja vista a forte influência que exerceram e exercem nas relações contratuais,
determinando os efeitos dessas relações, bem como a influência que exerce sobre as partes
contratantes e a sociedade, conforme o aspecto formal ou material predominante.
Como introdução ao tema, bem como tendo-se em vista que o que se almeja com o
trabalho é proporcionar novos métodos de alcance da efetiva justiça e equilíbrio nas relações
contratuais, registra-se a concepção de Norberto Bobbio sobre a igualdade e sua estreita
relação com a justiça. Segundo o autor, a igualdade consiste numa relação que se torna uma
meta desejável na medida em que é considerada justa, pela qual se compreende tanto uma
ordem a instituir ou a restituir como a harmonia das partes de um todo.
242
Tratando-se do sentido formal da igualdade, traduzido como igualdade perante a lei,
registra-se que denotava a abolição de privilégios pessoais, bem como a extinção dos
privilégios existentes.
243
Pode-se caracterizá-lo como um princípio genérico e que prescreve a
exclusão de qualquer discriminação arbitrária, ou seja, uma discriminação não justificada e,
portanto, injusta.
244
Considerado somente num sentido formal, este princípio se traduziria num simples
princípio de prevalência da lei em face da jurisdição e da administração. Portanto, é preciso
240
VINAGRE, op. cit. p. 107-108.
241
COSTA, Direito das obrigações, p. 229.
242
BOBBIO, Igualdade e liberdade, p. 15. A essa idéia de igualdade e justiça o autor refere: “Dos dois
significados clássicos de justiça que remontam a Aristóteles, um é o que identifica justiça com legalidade, pelo
que se diz justa a ação realizada em conformidade com a lei (não importa se leis positivas ou naturais), justo o
homem que observa habitualmente as leis, e justas as próprias leis (por exemplo, as leis humanas) na medida em
que correspondem a leis superiores, como as naturais ou divinas; o outro significado é, precisamente, o que
identifica justiça com igualdade, pelo que se diz justa uma ação, justo um homem, justa uma lei que institui ou
respeita, uma vez instituída, uma relação de igualdade”. BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. Tradução de
Nelson Carlos Coutinho, Rio de Janeiro: Ediouro, 1996, p. 14.
243
BIANCHINI, Alice. A igualdade formal e material. Revista dos Tribunais. Cadernos de Direito Constitucio-
nal e Ciência Política, São Paulo, out./dez. 1996. p. 207.
244
BOBBIO, Igualdade e liberdade, p. 28.
85
especificar o princípio da igualdade em sentido material, para que se possa resolver o
problema a respeito de quem são os iguais e quem são os desiguais.
245
No caminho percorrido entre a igualdade formal e a igualdade material, a introdução
do princípio da igualdade no texto das constituições do Estado Moderno não representou a
etapa final de construção e efetivação do seu conteúdo. Do Estado Liberal até o Estado Social,
o constitucionalismo modificou-se, buscando fazer com que os direitos contemplados e
formalmente assegurados passassem a ter materialidade em sua aplicação e efetividade em
sua assunção pelos indivíduos. De uma igualdade formal, passou-se a uma igualdade material,
pela qual se busca torná-la efetiva”.
246
De fato, a igualdade entendida como equalização dos
diferentes é um ideal dos homens vivendo em sociedade. A superação das discriminações é
interpretada como o progresso da civilização.
247
Nesse sentido, cabe referir a colocação de
Carmem Lúcia Silveira Ramos, para quem a igualdade formal, baseada na autonomia da
vontade, e na iniciativa privada, denota a prevalência dos bens sobre o ser, o que impede o
alcance da dignidade humana, a justiça distributiva e da igualdade material ou substancial.
248
Considerando-se a Constituição Federal brasileira de 1988, constata-se que esta adotou
o princípio da igualdade de direitos, prevendo a “igualdade de aptidão, uma igualdade de
possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm o direito de tratamento idêntico pela
lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico”. Dessa forma, o
que se veda são as discriminações absurdas, pois o tratamento desigual dos casos desiguais é
uma exigência de Justiça, visto que o que realmente protege são certas finalidades, somente se
tendo por lesado o princípio quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de
uma finalidade acolhida pelo direito.
249
(grifos do autor)
O princípio da igualdade não proíbe que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o
arbítrio, ou seja, as diferenciações de tratamento sem fundamento material; proíbe, também,
que se tratem por iguais situações essencialmente desiguais.
250
Atualmente, nos contratos, a
igualdade significa a repressão às cláusulas abusivas para impedir as desproporções entre as
partes contratantes. Para atingir esse objetivo, permite-se a revisão econômica e financeira dos
contratos
251
. Busca-se implementar a igualdade material, tornando os indivíduos iguais apesar
245
CANOTILHO, Direito constitucional e teoria da constituição, p. 425.
246
ROCHA, O princípio constitucional da igualdade, p. 34.
247
BOBBIO, op. cit., p. 43.
248
RAMOS, Carmem Lúcia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem fronteiras. In:
FACHIN, Luiz Edson. (Coord). Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo. Rio de
Janeiro: Renovar, 1998, p. 5.
249
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 31.
250
CANOTILHO, Direito constitucional e teoria da constituição, p. 427.
251
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 230.
86
de suas desigualdades. A partir do momento em que se reprimem as cláusulas abusivas,
oriundas da parte mais forte da relação contratual, eleva-se a uma condição mais igualitária a
parte hipossuficiente, procurando-se diminuir o fator responsável pela desigualdade.
Para que se alcance esse objetivo, permite-se a revisão contratual, econômica e
financeiramente. Por meio da revisão, oportuniza-se a mudança das cláusulas, o que levará à
recriação do direito daquela relação jurídica. Novamente se pode fazer a análise do prisma da
concepção sistêmica autopoiética, quando se considera o princípio da igualdade material
como possibilidade de adaptação do contrato no futuro, buscando a efetiva igualdade entre as
partes. Ficam aqui um incentivo e um desafio para o aprofundamento sobre o tema.
Conforme J. J. Gomes Canotilho, atualmente se exige uma igualdade material através
da lei, devendo tratar-se por “igual o que é igual e desigualmente o que é desigual”. A
igualdade pressupõe diferenciações, designando uma relação entre diversas pessoas e
coisas.
252
O discurso que se coloca é o do reconhecimento das desigualdades; o que passa a
importar nas relações é a necessidade de reconhecimento de que certas diferenças não são
discriminatórias, mas, sim, necessárias para que se alcance um estágio de equilíbrio entre as
partes.
253
Niklas Luhmann, sobre o princípio da igualdade, assinala:
En una sociedad diferenciada por funciones se modifica el punto de referencia.
Desigual es ahora, aquello que debe ser tratado desigualmente en las operaciones
internas de los sistemas para que ellos puedan cumplir con su función. La forma de
la igualdad ya no es más el reconocimiento de las esencias de acuerdo a similitudes
y diferencias, sino la dinamización del sistema global por medio de la continua
repetición de la pregunta: esto ¿es igual o desigual?.
254
De acordo com o exposto, verifica-se que é nos próprios acontecimentos que se
buscarão diferenças justificadoras de direitos e deveres distintos, não em fatores alheios a
eles, pois é ilógico e irracional buscar em um elemento estranho a uma dada situação o fator
de sua peculiarização. O princípio da igualdade determina que sejam tratadas igualmente as
situações iguais e desigualmente as desiguais. Portanto, não há como desequiparar pessoas e
situações quando nelas não se encontram fatores de desequiparação.
255
252
CANOTILHO, Direito constitucional e teoria da constituição, p. 426.
253
FACHIN, Teoria crítica do direito civil, p. 286.
254
LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Madrid: Iberoamericana, 2000, p. 82.
255
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo:
Malheiors, 1999, p. 34.
87
Como fechamento dessa breve análise sobre o princípio da igualdade registra-se a
lição de Carmem Lúcia Antunes Rocha:
[...] não se aspira uma igualdade que frustre e desbaste as desigualdades que
semeiam a riqueza humana da sociedade plural, nem se deseja uma desigualdade tão
grande e injusta que impeça o homem de ser digno em sua existência e feliz em seu
destino. O que se quer é a igualdade jurídica que embase a realização de todas as
desigualdades humanas e as faça suprimento ético de valores poéticos que o homem
possa desenvolver. As desigualdades naturais são saudáveis, como são doentes
aquelas sociais e econômicas, que não deixam alternativas de caminhos singulares a
cada ser humano.
256
Do exposto, verifica-se a pertinência da análise do princípio da igualdade nas relações
contratuais, campo fértil em desigualdades.
2.5 O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ CONTRATUAL
O princípio da boa-fé contratual, por ser um dos temas que fundamentam o objetivo
deste trabalho, será alvo de uma análise mais específica, o que se justifica por dois motivos
principais: primeiro, em virtude das transformações do contrato, que proporcionaram à boa-
um campo mais abrangente diante da sociedade complexa e globalizada; segundo, diante da
proposta realizada, de verificar a possibilidade de solução de conflitos do direito contratual
por meio da cláusula geral da boa-fé quando considerada numa perspectiva sistêmica
autopoiética.
Para facilitar o alcance desses objetivos, na análise da boa-fé abordam-se brevemente a
sua história, sua inclusão como princípio geral, sua concepção subjetiva e objetiva e o seu
enfoque em termos da confiança despertada entre os indivíduos da relação jurídica, o que
caracteriza as peculiaridades de sua aplicação no sistema jurídico brasileiro. A versão como
cláusula geral é analisada posteriormente, no terceiro capítulo, que trata especificamente da
aplicação da cláusula geral da boa-fé e da teoria sistêmica autopoiética no instituto contratual.
A autonomia da vontade permaneceu praticamente intocável até que surgiram as
primeiras mudanças políticas e sociais no final do século XIX, prevalecendo a liberdade
256
ROCHA, O princípio constitucional da igualdade, p. 118.
88
contratual como forma de regramento das relações jurídicas. No entanto, atualmente, no
direito privado vai-se destacando a influência da boa-fé como um fenômeno de ética
jurídica.
257
Verifica-se uma inquietude dos operadores do direito em tornar as relações nas
quais atuam mais humanizadas e solidárias. Para tanto, a boa-fé foi erigida à categoria de
princípio contratual, buscando implementar a dignidade pessoal objetivada pela sociedade de
nosso tempo.
2.5.1 Breve notícia histórica
A boa-fé tem suas origens num passado remoto, caracterizando-se por apresentar
diversos sentidos conforme a época, a cultura e a sociedade na qual está inserida. Entre os
seus diversos sentidos salientam-se três vertentes principais, representantes dos direitos
romano, germânico e canônico. Com relação ao direito romano, constata-se que a idéia de
fides possuía diversos significados, que variavam conforme a influência filosófica que
recebia, bem como de acordo com a área do direito na qual se encontrava.
258
Apesar do formalismo imperante no direito romano, os contratos mercantis
realizavam-se com base na fides, a qual se apresentava como “um elemento catalisador” do
conteúdo econômico dos contratos, fazendo com que as partes tivessem claramente a idéia
dos interesses constantes nos contratos que realizavam, originando, dessa maneira, o
adimplemento normal da obrigação contraída. Portanto, mesmo antes da regulamentação
contratual, os negócios eram realizados na base da confiança de que alcançariam seu intento,
pois eram baseados na boa-fé que as partes possuíam entre si.
259
257
ALMEIDA COSTA, Mário Júlio de. Aspectos modernos do direito das obrigações. Estudos de direito civil
brasileiro e português. São Paulo: RT, 1980, p. 80. Também nesse sentido Couto e Silva: “A história da
importância do princípio da boa-fé relaciona-se com a da autonomia da vontade. Pode-se mencionar que no
século XIX o princípio da autonomia foi o mais importante, e o conceito de pacta sunt servanda, o seu corolário
necessário. A essa amplitude de aplicação correspondeu uma profunda restrição no princípio da boa-fé,
resultante do predomínio absoluto do voluntarismo jurídico, da obediência ao direito estrito, da metodologia da
Escola da Exegese”. SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. O princípio da boa-fé no direito brasileiro e
português. In: FRADERA, Vera Jacob (Org.). O direito privado brasileiro e português na visão de Clóvis do
Couto e Silva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 34.
258
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São
Paulo: RT, 2000, p. 111. Nesse sentido a autora refere: “[...] importa, contudo, registrar apenas três dos setores
aos quais se dirigiu, quais sejam o das relações de clientela, o dos negócios contratuais e o da proteção
possessória: o primeiro porque lhe marca a mais remota origem; o segundo, incidente no direito obrigacional; e o
terceiro, nos direitos reais.
259
MARTINS-COSTA, op. cit., p. 116-117. Conforme a autora: “Betti observa que a prática relatada revela ser o
negócio, mesmo inexistente uma ordem jurídica que o regule, reconhecido como plenamente vinculativo por
aqueles que o realizam. Esta vinculação, reconhecida, deriva da boa-fé, entendida como confiança na conduta
adotada. Até que a ordem jurídica “partindo de valorações gerais de contingente oportunidade, lhes garanta os
efeitos, com as sanções que lhes são próprias”, desenvolve-se a prática negocial privada exclusivamente sob a
tutela do costume e da correção, impondo a boa-fé, o respeito pela palavra dada, e atribuindo a esta “um valor
vinculativo de consideração social”.
89
Portanto, do direito romano perpetuou-se a idéia da boa-fé como base para a realização
dos negócios, pois os litígios eram decididos sob sua fundamentação mesmo sem a presença
de uma lex para sua regulamentação.
Considerando-se a boa-fé no direito germânico, ressalta-se que “a cultura germânica
inseriu, na fórmula, as idéias de lealdade (Treu ou Treue) e crença (Glauben ou Glaube), as
quais se reportam a qualidades ou estados humanos objetivados”.
260
Passou-se, portanto, a
considerar a boa-fé como uma lealdade devida no desenvolvimento do negócio, bem como o
sentimento de crença de que os negócios realizados e os fins objetivados seriam positivos e
alcançados.
Outrossim, tendo em vista o direito canônico, verifica-se que “nesse direito a boa-fé é
vista como a ‘ausência de pecado’, vale dizer, como estado contraposto à má-fé”. E “no
direito das obrigações, agir com boa-fé significa respeitar fielmente o pactuado, cumprir
punctualmente a palavra dada, sob pena de agir com má-fé, rectius, em pecado”.
261
Após essa nova concepção dada à boa-fé no direito canônico, esta se torna abstrata e
subjetiva, deixando o sentido concreto e objetivo, o que facilitou a sua caracterização como
um princípio geral ordenador, que serviria de base para os ordenamentos futuros.
A partir do relato sobre o surgimento da boa-fé no direito romano, germânico e
canônico, faz-se uma referência à boa-fé nos códigos francês e alemão, em razão da grande
influência que exerceram para a formação do conteúdo jurídico deste princípio do direito
contratual.
O Código Civil francês, o “Code”, regulamentou a boa-fé objetiva no art. 1.134, mas,
em virtude da grande influência do princípio da autonomia da vontade, não possuiu a força
reguladora que almejava. Isso aconteceu em virtude de dois motivos distintos: de um lado, a
ideologia; de outro, o positivismo exegético, que não apreciava a aplicação de um princípio
tido como cláusula geral, neste caso a boa-fé.
262
No entanto, a influência da boa-fé foi
aumentando progressivamente, de tal modo que atualmente se encontra reconhecida em todas
as fases do desenvolvimento contratual.
263
260
MARTINS-COSTA, A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional, p. 124. Também
a autora citando Christiane Marchello Nizia: A boa-fé se encontrava associada às tradições cavalheirescas, bem
como ao ideal de vida sublime, apresentando como características, a “[...] generosidade, lealdade contratual,
elegância de coração e de maneiras, polidez constante, em suma, capacidade de conduzir-se bem em sociedade
em relação a quem quer que seja” NIZIA, Christiane Marchello, apud MARTINS-COSTA, A boa-fé no direito
privado: sistema e tópica no processo obrigacional, p. 125.
261
MARTINS-COSTA, A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional, p. 129-130.
262
NEGREIROS, Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé, op. cit., p. 45.
263
NEGREIROS, op. cit., p. 48.
90
Com relação ao Código Civil alemão, o “BGB”, a cláusula geral da boa-fé encontra-se
regulamentada no parágrafo 242. Neste caso, também nos primeiros tempos de sua vigência
atuou como mero “reforço material do contrato”, porque o BGB caracterizava-se por
constituir um sistema fechado, operado por meio de uma atividade interpretativa subsuntiva, o
que impedia a aplicação de uma cláusula geral como a da boa-fé. Após, por meio das
transformações ocorridas com a Segunda Guerra, iniciou-se uma nova fase de aplicação do
princípio da boa-fé, o que se deu por meio da jurisprudência aos casos concretos.
264
No Brasil, o caminho percorrido pelo princípio da boa-fé é longo.
265
Apesar de se
encontrar regulamentado em diversas legislações, não apresentava a vertente objetiva da boa-
fé, não alcançando, dessa maneira, a característica de regra de conduta, situando-se apenas em
sua versão subjetiva. No entanto, foi por meio do Código de Defesa do Consumidor, lei
8.078/90, que se deu a positivação do princípio da boa-fé objetiva nas relações contratuais no
Brasil, tanto como linha teleológica de interpretação, art. 4
o
, III, quanto como cláusula geral,
no art. 51, IV, positivando em todos os seus preceitos a existência de deveres anexos nas
relações contratuais.
266
De outra parte, cabe registrar que o CDC possui suas origens nos
ditames constitucionais, mais precisamente, nos artigos 5
o
, XXXII; 170, V, da Constituição
Federal brasileira.
Atualmente, o princípio da boa-fé encontra-se regulamentado também no Código Civil
de 2002, no art. 422.
267
264
NEGREIROS, op. cit., p. 49-51.
265
NEGREIROS, op. cit., p. 72-82. A autora refere como exemplo o “Anteprojeto de Código das Obrigações, de
1941, art. 66; o Projeto de Código das Obrigações, 1965, art. 23; o Anteprojeto de Código Civil, de 1972-1973,
art. 111; o Projeto de Lei n. 634-B, de 1975 Código Civil em vigor, art. 422; o Código Comercial, de 1850, art.
131”.
266
MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 185.
No mesmo sentido José Carlos Moreira da Silva Filho “é mister destacar que foi o Código de Defesa do
Consumidor, anterior ao novel Código Civil, que primeiro positivou a boa-fé objetiva como linha interpretativa
(arts. 4, III, e 51, IV). Conferiu ao intérprete amplas possibilidades de valoração dos elementos que compõem o
caso e reconheceu, de forma concludente, a existência dos deveres denominados laterais, inerentes à conduta dos
contratantes, tais como os deveres de proteção, de informação, de cooperação e de cuidado. São deveres laterais
aqueles que defluem do comportamento dos contratantes e do complexo de circunstâncias que os envolvem.
Dizem respeito a fatos que não visam, de maneira imediata, à consecução da prestação convencionada e cuja
existência se explica em razão da complexidade da relação obrigacional, não adstrita, tão-só, aos deveres de
prestação direcionados ao devedor. Por isso, a violação a um dever lateral pode motivar a resolução do contrato,
por descumprimento contratual (é a chamada violação positiva do contrato)”. SILVA FILHO, José Carlos
Moreira da. Pessoa humana e boa-fé objetiva nas relações contratuais: a alteridade que emerge da ipseidade. In:
COPETTI, André; STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo. Constituição, sistemas sociais e
hermenêutica: programa de pós-graduação em Direito da Unisinos: mestrado e doutorado. Porto Alegre: Livraria
do Advogado. São Leopoldo: Unisinos, 2006, p. 82.
267
SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Pessoa humana e boa-fé objetiva nas relações contratuais: a
alteridade que emerge da ipseidade. In: Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: programa de pós-
graduação em Direito da Unisinos: mestrado e doutorado. Orgs.: André Copetti, Lenio Luiz Streck, Leonel
Severo Rocha. Porto Alegre: Livraria do Advogado. São Leopoldo: Unisinos, 2006, p. 83. De acordo com o
autor: “recentemente positivada no Código Civil sob a forma de cláusula geral (art. 422) e, como tal, ao menos
em tese, mais apta a lidar com as reveses concretas, a boa-fé objetiva figura soberana como preceito de conduta
amplo e flexível, socialmente indicado e arranjado sobre padrões de correção, probidade e lhaneza, próprios do
bônus pater famílias ou do dito homem médio entendido pela doutrina dominante como parâmetro comum
aceitável de atuação adotado pela média da sociedade”.
91
2.5.2 A boa-fé como princípio geral do direito
Como princípio geral do direito entende-se aquele que orienta o sistema jurídico no
seu todo. “A boa-fé, ao lado de outros princípios jurídicos como os da liberdade e dignidade
da pessoa humana, exemplificativamente, compõe o quadro dos ditos princípios gerais do
Direito”. Correspondem aos princípios gerais do direito porque se encontram disseminados
em todo o ordenamento jurídico, alastrando-se em todos os seus preceitos com seu sentido
orientador.
268
Tendo em vista que o objetivo do trabalho se refere à boa-fé em sua concepção de
cláusula geral, versão que será trabalhada na terceira parte deste estudo, faz-se pertinente a
distinção entre princípio e cláusula geral. De acordo com Judith Martins-Costa:
268
NALIN, Paulo R. Ribeiro, apud FACHIN, Luiz. Repensando fundamentos do direito civil brasileiro
contemporâneo, p. 185-186. Com relação a essa visão, faz-se pertinente a colocação de Judith Martins-Costa,
que refere “a boa-fé, ainda que bem definida e plena de conteúdos em Grotius, percorrerá o caminho da diluição,
a ponto de tornar-se um ineficaz princípio geral, esvaziado de qualquer conteúdo prático”, p. 155; como causas
dessa diluição refere a mudança de significado do princípio da boa-fé salientando-se a predominância do critério
matemático o que se estrutura como o encadeamento de proposições reguladas a partir de proposições
primeiras para constituir a totalidade de um saber; o primado da certeza sobre a verdade o que é afirmado
como conforme ao método ou ao procedimento é tido como “certo”: a verdade da coisa é identificada com a
verdade do conceito atribuído à coisa; a certeza do ser pensante a afirmação da inteligibilidade do real está
ligada ao primado da subjetividade; e a unicidade da verdade algo que é partido, secionado, que é muitas
coisas ao mesmo tempo, que não pode ser visto desde uma fattispecie unitária, nada é, porque impede a
totalização. MARTINS-COSTA, A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional,
p. 167-168.
92
Na verdade, a confusão entre princípio jurídico e cláusula geral decorre, no mais das
vezes, do fato de uma norma que configure a cláusula geral conter um princípio,
reenviando ao valor que este exprime, como ocorre com o reiteradamente citado par.
242 do BGB. Aí, sim, se poderá dizer que determinada norma é, ao mesmo tempo,
princípio e cláusula geral. Para ter clareza neste ponto, devemos, todavia, atentar
para as seguintes circunstâncias: a) não se pode pensar em ‘cláusula geral
inexpressa’. Constituindo uma técnica legislativa, não há o que falar em sua
‘implicitude’. Ou estão formuladas na lei ou não estão. Portanto, um dos dois setores
em que se divide a classificação dos princípios acima aludida, qual seja, a que a
distingue entre princípios inexpressos e os expressos, resta completamente afastado
da possibilidade de sinonímia ou equiparação às cláusulas gerais; b) considerando o
setor que resta, vale dizer, o dos princípios expressos, nem aí se justifica a
equiparação. É que não se pode pensar em cláusula geral que não promova o
reenvio, seja a outros espaços do próprio ordenamento, seja a standards, jurídicos ou
ainda extrajurídicos, ou a valores, sistemáticos ou extra-sistemáticos, podendo-se
apontar, contudo, como acima se aludiu, a um considerável quadro de princípios que
não contém conceitos dotados de vagueza semântica, nem sequer de vagueza
(semântica) socialmente típica, e que, portanto, não promovam o mencionado
reenvio; c) têm-se, então, no campo residual, os princípios expressos que
referenciam valores e que se traduzem em linguagem dotada de alto grau de vagueza
semântica, tal como “boa-fé”, “correção”, “moralidade pública”, “razoabilidade” etc.
Mesmo aí é indevida a equiparação. O que se poderá dizer é que aí se trata de uma
cláusula geral que contém um princípio, embora possa haver outras que nem de
longe contêm princípios, apenas reenviando a outros estatutos, como é o caso do art.
7
o
do CDC.
269
Considerando-se que os princípios podem ser inexpressos, ao passo que as cláusulas
gerais encontram-se regulamentadas legislativamente, bem como considerando-se que as
cláusulas gerais promovem o reenvio para standards e valores jurídicos e extrajurídicos, bem
como a vagueza semântica, não há que se fazer a equiparação entre princípios e cláusulas
gerais. As cláusulas gerais podem conter um princípio, mas não se equiparar a ele.
2.5.3 A boa-fé subjetiva e a boa-fé objetiva
O princípio da boa-fé apresenta-se sob dois aspectos: a boa-fé objetiva e a boa-
subjetiva. A boa-fé subjetiva encontrava-se em sintonia com a razão lógica do sistema
voluntarista e individualista, o que tornava o contrato caracteristicamente convencional: “O
contrato é pura manifestação da autonomia da vontade, expressada por meio da auto-decisión,
auto-regulación e auto-obligarse”.
270
Existirá a boa-fé subjetiva “quando o indivíduo estiver
convencido que o seu obrar está em conformidade com o direito aplicável, isto é, ele acredita,
269
MARTINS-COSTA, A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional, p. 323. Em
contrapartida vale registrar Manuel Júlio de Almeida Costa, que refere: “pela respectiva estrutura, as cláusulas
gerais apenas representam a expressão gramatical dos correspondentes princípios normativos, não fornecendo ao
julgador conceitos aptos à imediata subsunção lógico-formal, mas simples critérios valorativos. COSTA, Manuel
Júlio de Almeida. Direito das Obrigações. 5. ed., Coimbra: Almedina, 1991, p. 92.
270
NALIN. Paulo R. Ribeiro. Ética e boa fé no adimplemento contratual. In: FACHIN, Luiz Edson (Coord.).
Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo. Rio de janeiro: Renovar, 1998, p. 191.
93
ele crê que a sua intenção é legítima”.
271
A boa-fé subjetiva aparece como o estado de
consciência do indivíduo no momento da contratação, pois protege o indivíduo que tem
consciência de estar agindo de acordo com o direito, apesar do estado de ignorância no
sentido do desconhecimento da situação verdadeira, sendo outra a realidade dos fatos.
272
É a
confiança e a intenção que a parte deposita no negócio, acreditando que é detentora de um
direito.
273
Também pode denotar, através da vinculação ao pactuado, um reforço à
obrigatoriedade do pacto, como uma condição psicológica de convencimento do próprio
direito, bem como um desconhecimento de lesão do direito alheio.
274
A boa-fé objetiva, por sua vez, é tida como regra de conduta, como um dever de se
comportar de acordo com regras e padrões socialmente recomendados, baseados na correção,
na lisura e na honestidade, tendo em vista não frustrar a confiança da parte contrária da
relação jurídica.
275
A boa-fé denota a confiança que deve existir entre as partes durante a
realização dos negócios jurídicos. De fato, a boa-fé objetiva far-se-á presente numa relação
quando “o obrar do indivíduo se enquadra no modelo objetivo de conduta social, no standard
jurídico exigido a um homem reto, probo, leal. Aqui não tem qualquer relevância a intenção, o
ânimo do indivíduo na realização da sua conduta”.
276
Refere-se à ação das partes no sentido
de agirem com lealdade e confiança, desempenhando uma conduta diligente e leal, tendo em
consideração as expectativas da parte contrária de que o negócio será desenvolvido de modo
equilibrado e seguro. Quanto à lealdade como forma de conduta esperada das partes
contratantes, exemplifica-se no dever de informação, que superou o contrato formal e legalista
para um contrato de boa-fé. Como conseqüência, resultou na revisão contratual, na rejeição
271
RIBEIRO, Darci Guimarães. O sobreprincípio da boa-fé processual como decorrência do comportamento da
parte em juízo. In: ROCHA, Leonel Severo; STRECK, Lenio Luiz (Org.). Anuário do Programa de Pós-
Graduação em Direito: Mestrado e Doutorado 2003. São Leopoldo: Unisinos, 2003, p. 79.
272
AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. 2.ed. Rio de
Janeiro: Aide, 2003, p. 243. Também nesse sentido, vale registrar a lição de Fernando Noronha que refere: “na
situação de boa-fé subjetiva, uma pessoa acredita ser titular de um direito, que na realidade não tem, porque só
existe na aparência. A situação de aparência gera um estado de confiança subjetiva, relativa à estabilidade da
situação jurídica, que permite ao titular alimentar expectativas, que crê legítimas. NORONHA, O direito dos
contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual, p. 132.
273
NALIN, Paulo R. Ribeiro, apud FACHIN, Repensando fundamentos do direito civil brasileiro
contemporâneo, p. 194.
274
MARTINS, A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional, p. 411.
275
NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé,
justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 136.
276
RIBEIRO, Darci Guimarães. O sobreprincípio da boa-fé processual como decorrência do comportamento da
parte em juízo. In: ROCHA, Leonel Severo; STRECK, Lenio Luiz (Org.). Anuário do Programa de Pós-
Graduação em Direito: Mestrado e Doutorado 2003. São Leopoldo: Unisinos, 2003, p. 79.
94
das cláusulas resolutórias e na impossibilidade de se complementar os preços nos contratos
em via de execução.
277
Como visto, a boa-fé tanto denota a confiança que a parte possui no sentido de que é
detentora de um direito, como a confiança que deve existir entre as partes durante a realização
do negócio a que se propõe. Está-se diante da boa-fé, em sua variante de “confiança”, perante
as concepções subjetiva e objetiva. E, por meio da confiança surgida durante as relações, as
partes direcionam suas ações no sentido de alcançar o objetivo proposto, seguindo padrões de
conduta que reduzem o risco de frustrações, reduzindo a complexidade existente. De acordo
com Niklas Luhmann:
Donde hay confianza hay aumento de posibilidades para la experiência y la acción,
hay un aumento de la complejidad del sistema social y también del número de
posibilidades que pueden reconciliarse con su estructura, porque la confianza
constituye una forma más efectiva de reducción de la complejidad.
278
Complementando a assertiva de que a confiança opera a redução da complexidade,
Luhmann descreve:
La confianza educa. Esto es cierto tanto en el nível emocional como en el nível
táctico, y neutraliza los peligros que hay en un control solamente táctico de lãs
relaciones de confianza. El vínculo emocional existente en la confianza que há sido
dada es, por decírlo asi, una continuación de la reducción de la complejidad
internamente, simplificando la reacción a través de la internalización de las
expectativas del que confía. [...] En vez de amarse uno mismo contra la
incertidumbre de la otra persona en la intensa complejidad de todas as posibilidades,
uno puede tratar de reducir la complejidad concentrándose en la creación y
conservación de la confianza mutua, y comprometerse en una acción más
significativa con respecto a un problema ahora más estrechamente definido.
Presumiblemente, si esto se conociera mejor podría dársele un mejor uso de las
oportunidades que esta circunstancia ofrece.
279
277
NALIN, Paulo R. Ribeiro, apud FACHIN, Repensando fundamentos do direito civil brasileiro
contemporâneo, p. 196-197.
278
LUHMANN, Confianza, p. 14.
279
LUHMANN, op. cit., p. 111-112. Também de acordo com o autor “Y en la simplificación, en la reducción de
la complejidad, siempre hay un momento inestable, incalculable. Si el problema de la confianza o desconfianza
se hace agudo, entonces la situación se torna por una parte, más problemática, más compleja, más rica en
posibilidades; y por otra parte, los procesos simplificadores entran en el juego de la reducción, de la orientación
a unas cuantas experiencias claves y prominentes. Los objetivos y los sucesos que parecen tener valor como
indicadores, gana especial relevancia y controlan la interpretación de otras situaciones”. p. 130.
95
Também derivado do princípio da boa-fé surge o dever de cooperação, que se traduz
na solidariedade que deve permear o contrato. Por meio do dever de cooperação, as partes
devem colaborar para que ambos alcancem os objetivos visados com o negócio jurídico para o
cumprimento da obrigação, tendo em vista os usos, costumes e a boa-fé. A cooperação deixa
de atingir primordialmente o devedor para alcançar também o credor, em igualdade de
condições.
280
Por meio da nova feição contratual, busca-se alcançar a paz social e a justiça
contratual, evitando-se prejuízos e danos, os quais podem ser ocasionados quando da violação
do princípio em questão.
281
Em decorrência da boa-fé objetiva e subjetiva sobressaem-se as funções da boa-fé, que
Cláudia Lima Marques refere como a complementação ou concretização da relação ou função
interpretativa, por meio da qual o aplicador da lei pode precisar os direitos e deveres que
decorrem da relação específica; a função de controlar e limitar as condutas, no sentido de
proibir as cláusulas e as práticas abusivas, e a possibilidade de correção e adaptação em caso
de mudança das circunstâncias que envolvem o negócio, como exemplo a quebra da base
objetiva do negócio jurídico. Também a autora salienta a permissão para decidir por eqüidade,
o que ocorre quando o julgador participa ativamente buscando a eqüidade contratual,
adaptando a relação contratual à sociedade e às necessidades atuais.
282
Também com relação às funções da boa-fé, Ruy R. de Aguiar Junior salienta outras
duas funções principais: criar deveres secundários de conduta (anexos ou acessórios) e impor
limites ao exercício de direitos. Com relação aos deveres secundários, salienta-se o dever de
informação, de cooperação, de lealdade que a parte deve apresentar em todos os momentos da
relação negocial. Quanto ao fato de impor limites ao exercício de direitos, refere-se ao fato de
que limita a autonomia da vontade, o exercício de direitos subjetivos.
283
A boa-fé limita o agir
com arbitrariedade, tendo em vista a satisfação da parte contrária; conseqüentemente, está
impondo limites às partes contratantes.
Complementando a exposição sobre as funções da boa-fé objetiva, destaca-se a lição
de Judith Martins-Costa, segundo a qual a boa-fé objetiva possui três funções, destacando-se a
da hermenêutica-integrativa do contrato, a de norma de criação de deveres jurídicos e a de
norma de limitação ao exercício de direitos subjetivos. Na função hermenêutico-integrativa
280
NALIN, Paulo R. Ribeiro, apud FACHIN, Luiz Edson. Repensando fundamentos do direito civil brasileiro
contemporâneo, p. 198.
281
NALIN, op. cit., p. 200. De acordo com o autor: “O contrato, nesse momento, deixa de ser um instrumento do
egoísmo individual, atingindo o nível de serviço às necessidades humanas. Fala-se no contrato enquanto
instrumento da paz social e ao bem comum, conectando-o à uma certa justiça contratual. E por justiça
contratual, segundo CANARIS, citado por ALPA, devem os contratantes não agir injustamente na relação, sem
necessariamente se aproximarem de um senso de justiça, mas definitivamente evitar qualquer ato injusto grave.
Tudo em vista de ter se tornado o homem um núcleo de preocupações legais, sempre na perspectiva do coletivo,
e o contrato um instrumento de desenvolvimento da personalidade humana”
282
MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 186.
283
AGUIAR JUNIOR, Extinção dos contratos por incumprimento do devedor, p. 249 .
96
atua como meio para o preenchimento de lacunas, já que a relação contratual apresenta
diversos eventos e situações nem sempre previstos pelas partes contratantes. Nesse sentido, a
boa-fé atua qualificando os comportamentos não previstos, mas essenciais para a proteção da
fattispecie contratual, bem como para a produção dos efeitos pretendidos com o contrato. Para
a realização desta técnica, o juiz deve considerar as normas contratuais como um conjunto
significativo, formado pelos direitos e deveres, bem como pela função social. Também neste
conjunto significativo, tem-se de considerar as circunstâncias concretas do desenvolvimento e
da execução contratual visualizadas como um todo.
284
Com relação à boa-fé e à criação de deveres jurídicos, verifica-se que a relação
contratual é composta por deveres de prestação, que se subdividem em deveres principais, ou
primários de prestação, os quais formam o núcleo da relação obrigacional e definem o tipo
contratual, os deveres secundários e os laterais, anexos ou instrumentais. Os deveres
instrumentais, por sua vez, derivam de cláusula contratual, ou de dispositivos da lei ou da
incidência da boa-fé objetiva. Denominam-se deveres de cooperação e proteção dos
recíprocos interesses, dirigindo-se a ambos os contratantes.
285
Com relação à função da boa-fé objetiva que limita os direitos subjetivos, salienta-se
que a função de criação de deveres para uma parte, ou para ambas, pode desenvolver,
concomitantemente, a função de limitação ou de restrição de direitos, inclusive os direitos
formativos.
286
Como visto, as funções da boa-fé, entre elas a adaptação, a complementação, a busca
de eqüidade, a criação de deveres secundários e a imposição de limites, corroboram a tese
defendida sobre a consideração da boa-fé como mecanismo de solução de conflitos, pois
facilitam a flexibilização do contrato, conduta necessária diante do contexto social atual.
Diante da análise realizada sobre o princípio da boa-fé, constata-se que existiu nas
relações jurídicas desde o início da civilização, apresentando-se de modo mais vigorante em
determinadas épocas, em razão das características sociais predominantes em determinado
tempo e local. Com relação ao seu sentido, verificou-se que tanto pode representar a crença de
que se possui um direito como o dever de agir com lealdade e confiança
287
durante o
284
MARTINS-COSTA, A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional, p. 428-430.
285
MARTINS-COSTA, op. cit., p. 438-439.
286
MARTINS-COSTA, op. cit., p. 454.
287
Niklas Luhmann, referindo a abrangência da confiança nas relações entre os indivíduos, afirma que “hasta
que el problema de la confianza sea el punto focal de uma relación consciente, cultivada mutuamente, este
compromiso com uno mismo adquiere um nuevo, casi impersonal carácter, y ello supone que los aspectos
relevantes de la confianza tienen um cierto grado de especificación. El si mismo se presenta desde el principio
como digno de confianza. El compromiso con uno mismo es anticipado por la sumisión a las condiciones de la
confianza. El actor en su autopresentación se muestra como interesado en la confianza, como tratando de ganar
confianza. Como este interés se hace obvio, y la manipulación de la presentación también, el que confía puede
poner su confianza en ello y controlar la conducta del actor por medio de su interés, señalándole las condiciones
para la continuación o el retiro de la confianza”. LUHMANN, Confianza, p. 109.
97
desenvolvimento da relação jurídica. Considerando-se o alcance, verifica-se que, com a sua
inclusão no Código de Defesa do Consumidor, bem como no Código Civil, adquiriu a
característica de norma, sendo passível de aplicação imediata, bem como de imputar o dever
de reparação quando de sua violação pelo dano causado.
2.6 O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL
O princípio da função social merece destaque nesta análise tendo em vista a sua
estreita relação com a boa-fé na transformação ocorrida no direito contratual.
De fato, constata-se desde a Primeira Guerra a preocupação ética com a socialização
do indivíduo e sua responsabilidade social, o que favorece a ampliação do alcance do
princípio da boa-fé, a proteção da confiança, a busca da justiça contratual, a função social da
propriedade, como também a funcionalização dos direitos de crédito.
288
Também nesse
sentido, Ruy Rosado de Aguiar Junior salienta a proximidade entre a boa-fé e a função social
na nova fase do direito contratual:
A aproximação dos termos ordem econômica-boa-fé serve para realçar que esta não
é apenas um conceito ético, mas também econômico, ligado à funcionalidade
econômica do contrato e a serviço da finalidade econômico-social que o contrato
persegue. São dois os lados, ambos iluminados pela boa-fé: externamente, o contrato
assume função social e é visto como um dos fenômenos integrantes da ordem
econômica, nesse contexto visualizado como um fator submetido aos princípios
constitucionais de justiça social, solidariedade, livre concorrência, liberdade de
iniciativa, etc., que fornecem os fundamentos para uma intervenção no âmbito da
autonomia contratual; internamente, o contrato aparece como o vínculo funcional
que estabelece uma planificação econômica entre as partes, às quais incumbe
comportar-se de modo a garantir a realização dos seus fins e a plena satisfação das
expectativas do negócio.
289
Com relação à funcionalização dos institutos jurídicos, salienta-se o re-direcionamento
dado ao direito, o qual se caracteriza pela função social predominante em todas as áreas da
ciência jurídica. A assertiva encontra justificativa, em primeiro lugar, na Carta constitucional
288
BECKER, Anelise. A doutrina do adimplemento substancial no direito brasileiro e em perspectiva
comparativista. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Livraria do Advogado, v. 9, n. 1, nov de 1993,
Porto Alegre: p. 60-77, p. 69-70.
289
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. A boa- na relação de consumo. Revista de Direito do Consumidor, São
Paulo: RT, n. 14, p. 20-32, abr./jun. 1995. p. 22-23..
98
de 1988, a qual apresenta como princípio a função social na busca por uma maior igualização
entre os cidadãos, bem como no Código Civil de 2002, o qual a estabelece no art. 421. Com
vistas ao estudo do assunto em questão, a análise aborda, de um modo geral, os aspectos
referentes à função social do ordenamento como um todo e, especificamente, a função social
do instituto contratual.
2.6.1 Notícia histórica
Como introdução ao tema, faz-se pertinente uma rápida passagem sobre o contrato
vigente no Código Civil de 1916, para se obter um breve panorama da extensão da
transformação ocorrida. Conforme verificado no decorrer deste trabalho a característica do
então código era essencialmente individualista. Defendia-se a idéia de liberdade e igualdade,
as quais significavam, perante o contrato, o indivíduo acordar livremente os seus pactos e
cláusulas contratuais. De fato, “o Direito dos Contratos passou a ser conformado por dois
princípios básicos, que condensavam juridicamente todas as idéias sociais, políticas e
econômicas de então: a liberdade de contratar e a igualdade dos contratantes”.
290
A liberdade
de contratar conferia ao contratante a faculdade de realizar ou não o contrato, estipulando as
cláusulas que julgasse necessárias. Também, o contrato deveria ser cumprido até suas últimas
conseqüências, pois imperava o princípio pacta sunt servanda, que significa a obrigatoriedade
do pactuado.
Entretanto, com o advento da industrialização e o surgimento de novas ideologias,
surgiram outras formas de negociação, que necessitavam de regulamentações por meio da
intervenção do Estado, antes apático e observador. Nesse sentido, “com o advento do Estado
de índole social, marcado pela intervenção no domínio econômico como forma de regular o
mercado teve início as exceções aos princípios fundamentais da autonomia da vontade e da
igualdade”. A autonomia da vontade, antes absoluta, encontrou certos limites de ordem
pública que deram origem à possibilidade de revisão dos contratos que sofressem a influência
de alguma circunstância alheia causadora de disparidade entre os contratantes.
291
Diante dessa
290
SELEME, Sérgio. Contrato e empresa: notas mínimas a partir da obra de Enzo Roppo. In: FACHIN, (Coord.).
Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo, p. 260.
291
SELEME, Contrato e empresa: notas mínimas a partir da obra de Enzo Roppo. In: FACHIN, Luiz Edson
(Coord.). Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo, p. 264-265. De acordo com o
autor: “Primeiramente, no que se refere aos limites estabelecidos pela lei à liberdade de contratar, devendo os
contratantes atender a determinadas imposições de ordem pública (o que se tornou conhecido como “dirigismo
contratual”). Ao depois, com a mitigação da intangibilidade dos contratos através da idéia de sua revisão por
causas supervenientes que influiam no seu equilíbrio econômico (da qual são exemplos a teoria da imprevisão e
a resolução por excessiva onerosidade). Pouco a pouco, foi-se restringindo a liberdade contratual através das
intervenções do legislador e do papel criativo da jurisprudência”.
99
realidade, com o advento da Constituição Federal de 1988 novos paradigmas foram lançados,
entre os quais a “função social”, que abriu novos horizontes, abrangendo o ordenamento como
um todo, e que, após, solidificou-se pela vigência do Código Civil de 2002, de acordo com os
princípios e valores que orientam o ordenamento jurídico.
Portanto, tendo em vista a concepção “coletiva” em posição superior à “individual”,
fez-se necessária a reinterpretação dos contratos, dando-lhe a conotação da função social.
2.6.2 A funcionalização dos institutos jurídicos
Por meio da nova ordem constitucional, a funcionalização dos institutos foi declarada
como o novo paradigma do sistema jurídico, responsável pela releitura do direito civil e do
contrato, em especial, proporcionando a nova “função singular do contrato”.
292
De acordo com José Carlos Moreira da Silva Filho, a funcionalização determina o
“poder-dever” para o titular do direito agora funcionalizado. Somente haverá o
reconhecimento jurídico desse direito quando houver a satisfação da sua função social, pois o
não-atendimento dessa função pode acarretar para o proprietário restrições e até a perda do
seu direito. Entre os institutos que se encontram funcionalizados salienta-se a família, a
propriedade e os contratos, objeto de estudo dessa análise.
293
Outrossim, em se tratando da funcionalização, faz-se pertinente registrar a visão de
Paulo Nalin, que salienta a conduta da ciência jurídica, a qual, por meio da
interdisciplinariedade, recepcionou outras áreas científicas, adquirindo uma nova feição, o que
lhe facilitou a busca pelo alcance da dignidade humana e da justiça social, adaptando-se à
sociedade complexa da atualidade, através da funcionalização. A função social acontece no
momento em que interagem as diversas ciências que compõem a sociedade, pois todos em
conjunto atuam sobre o indivíduo e sobre os fatores que conformam as condições de vida, tais
como o econômico, o social, o emocional e o cultural. A dignidade do homem, a
personalidade, o seu meio ambiente, bem como a igualdade entre os cidadãos, formam-se e
perpetuam-se quando todos os fatores que os circundam interagem em harmonia.
294
292
NALIN, Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional,.
p. 215.
293
SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Transformações jurídicas nas relações privadas. In: ROCHA, Leonel
Severo; STRECK; Lenio Luiz (Org.). Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito: Mestrado e
Doutorado 2003. São Leopoldo: Unisinos, 2003, p. 172.
294
NALIN, Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional,
p. 217. De acordo com o autor: “Funcionalizar, na perspectiva da Carta de 1988, significa oxigenar as bases
(estruturas) fundamentais do Direito com elementos externos à sua própria ciência. Sociologia, filosofia,
economia, antropologia, biologia, psicanálise, história e especialmente a ética, acabam, nesse prisma
interdisciplinar, se revelando como instrumentos de análise do Direito em face de sua função, com o objetivo de
100
2.6.3 A função social no ordenamento jurídico
A função social que engloba o ordenamento baseia-se no princípio da socialidade. Na
tentativa de melhor colher o sentido da função social, cabe uma breve análise do sentido da
socialidade proposto no projeto do Código Civil agora em vigor. Através do projeto, de suas
normas, buscou-se proporcionar uma igualdade maior entre os cidadãos a partir do momento
em que o sentido puramente individual do sistema cedeu seu espaço à busca do coletivo. As
relações e os negócios adquiriram o sentido do coletivo, o fim social.
295
Na atualização das
normas civis incrementou-se o fim social, pois as relações sociais e as ideologias clamavam
antes pelo bem-estar coletivo do que pelo individual. Com esses objetivos, justificou-se a
elaboração do novo código, com vistas a um direito social em sua origem e destino para obter
uma correlação entre os valores coletivos e os individuais.
296
De fato, a funcionalização
significa que a expressão “relações privadas” passou a abranger não apenas as partes
diretamente envolvidas na relação, como também os demais setores que envolvem o “elo da
cadeia”, cadeia essa resultante da crescente complexidade social. A função social nos
contratos, que representam a circulação das riquezas, passa a significar a inclusão de
parâmetros éticos de conduta, de equivalência e de equilíbrio nas relações
297
.
atender às respostas da sociedade, em favor de uma ordem jurídica e social mais justa. É romper com a auto-
suficiência do Direito, hermético em sua estrutura e tecnicismo, outrora mais preocupado com os aspectos
formais das regras, do princípio e do instituto, que com sua eficácia social. Por isso a função perseguida é a
social. Funcionalizar, sobretudo, em nosso contexto é atribuir ao instituto jurídico uma utilidade ou impor-lhe
um papel social, “[...] atinentes à dignidade da pessoa humana e à redução das desigualdades culturais e
materiais, [...]”.
295
REALE, Miguel. O projeto do novo Código Civil. 2.ed. ref. e atual. São Paulo: Saraiva, 1999, p.7. Segundo o
autor: “O “sentido social” é uma das características mais marcantes do Projeto, em contraste com o sentido
individualista que condiciona o Código Civil ainda em vigor. Seria absurdo negar os altos méritos da obra do
insigne Clóvis Beviláqua, mas é preciso lembrar que ele redigiu sua proposta em fins do século passado, não
sendo segredo para ninguém que o mundo nunca mudou tanto no decorrer do presente século, assolado por
profundos conflitos sociais e militares. Se não houve a vitória do socialismo, houve o triunfo da “socialidade”,
fazendo prevalecer os valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, do valor fundante da pessoa
humana. Por outro lado, o Projeto se distingue por maior aderência à realidade contemporânea, com a necessária
revisão dos direitos e deveres dos cinco principais personagens do Direito privado tradicional: o proprietário, o
contratante, o empresário, o pai de família e o testador” (grifo nosso).
296
REALE, O projeto do novo Código Civil, p. 46.
297
SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Transformações jurídicas nas relações privadas. In: ROCHA, Leonel
Severo; STRECK, Lenio Luiz (Orgs.). Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito: Mestrado e
Doutorado 2003. São Leopoldo: Unisinos, 2003, p. 172.
101
2.6.4 A função social do contrato
298
A análise até aqui empreendida pautou-se por um breve esboço sobre as características
contratuais sob a égide do Código Civil de 1916 e, para introdução ao assunto da
funcionalização dos contratos, realizou-se uma rápida passagem sobre o significado e
abrangência da função social para o ordenamento jurídico. Verificou-se que a função social
passou, com o implemento da Constituição Federal de 1988 e com a vigência do Código Civil
de 2002, a ser um dos fundamentos da ordem jurídica vigente no país.
A função social dos contratos encontra-se diretamente relacionada com os efeitos que
apresenta no meio no qual se realiza, preocupação que não é originária do novo Código Civil,
pois se encontrava, além da Constituição, artigo 170, caput, também no Código Civil de 1916,
artigo 159, sendo apenas uma questão de interpretação da norma jurídica ali exposta
299
. A
introdução da função social no instituto contratual reflete na modificação do contrato, a qual é
necessária e bem-vinda, pois quando se modifica, acompanhando os interesses de um sistema
econômico modificado, o contrato garante a sua preservação. “A mudança estrutural e
funcional do contrato se faz para que este mecanismo jurídico possa se adequar bem ao
atendimento de novas finalidades, de novos rumos sócio-econômicos”.
300
Outrossim, com relação à função social, pode-se dividi-la em funções intrínseca e
extrínseca. À função intrínseca cabe a observância do princípio da boa-fé, da igualdade
material e da eqüidade; por sua vez, à função extrínseca cabe a atenção às repercussões
causadas nas relações sociais, às demais pessoas envolvidas.
301
Desse modo, cai por terra a
relação única e exclusiva entre credor e devedor que dominou a relação contratual por longo
tempo, redefinindo os contornos da relativização contratual. Diante dessa nova realidade, a
298
Para Junqueira de Azevedo, “a idéia de função social do contrato está claramente determinada pela
Constituição, ao fixar, como um dos fundamentos da República, o valor da livre iniciativa (art. 1, inc. IV); essa
disposição impõe, ao jurista, a proibição de ver o contrato como um átomo, algo que somente interessa às partes,
desvinculado de tudo o mais. O contrato, qualquer contrato, tem importância para toda a sociedade e essa
asserção, por força da Constituição, faz parte, hoje, do ordenamento positivo brasileiro de resto, o art. 179,
caput, da Constituição da República, de novo salienta o valor geral, para a ordem econômica, da livre iniciativa”.
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do mercado
direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento função social do contrato e responsasbilidade
aquiliana do terceiro que contribui para o inadimplemento contratual. Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, v.
750, abr. 1998, p. 116.
299
NALIN, Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional,
p. 221. De acordo com o autor: “Conforme parecer civil de lavra de Junqueira de Azevedo, é exatamente esta a
noção que se extrai da leitura do já multicitado artigo 170, caput, da Constituição da República, sendo preceito
destinado a que os contratos se estabeleçam em uma “ordem social harmônica”, visando inibir qualquer prejuízo
à coletividade, por conta da relação estabelecida. O autor vai mais adiante, também inovando ao sustentar que a
regra constitucional veio tornar mais evidente o que já era consagrado em nível infraconstitucional, fundada na
regra de responsabilidade prevista no artigo 159 do CC, que invariavelmente exige um comportamento social
sempre adequado”.
300
SELEME, Contrato e empresa: notas mínimas a partir da obra de Enzo Roppo. In: FACHIN, Luiz Edson
(Coord.). Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo, p. 267.
301
NALIN, op. cit., p. 198.
102
função social nos contratos adquiriu como característica a integração entre os contratantes
diretamente relacionados no negócio, bem como dos terceiros possíveis interessados que
venham a ser atingidos pelo negócio realizado. O contrato passa a considerar as demais
pessoas que se encontram sujeitas aos seus efeitos.
302
Por meio da função social, que
proporciona a consideração dos terceiros e da sociedade, os quais podem sofrer os efeitos do
contrato, houve uma releitura do princípio da relatividade contratual, que adquiriu uma feição
mais aberta e coletiva, auxiliando a busca pelo fim social. Nesse sentido, Giselda Hironaka
refere que a doutrina da função social surgiu com o objetivo de limitar os institutos de cunho
individualista, tendo em vista o interesse coletivo, bem como objetiva igualar os sujeitos de
direito, de modo que a liberdade seja igual para todos.
303
No entanto, de acordo com Paulo Nalin, a função social não se refere à função social
do contrato em si, mas à função social da liberdade de contratar. Na realidade, a função social
do contrato encontra-se atrelada à liberdade dos contratantes no momento de contratar.
304
Não
é o contrato em si que deve possuir uma função social, no sentido de respeitar a coletividade e
os princípios constitucionais envolvidos no negócio, mas os grandes responsáveis pela função
social, que, por sua vez, são responsáveis pela garantia dos valores e princípios; é a liberdade
dos contratantes, que, ao firmarem um contrato e acordarem sobre as cláusulas que o regem,
devem manter sempre presentes os efeitos que este produzirá nos indivíduos direta e
indiretamente relacionados, bem como na sociedade como um todo. A autonomia da vontade
e a liberdade contratual continuam existindo para os contratantes, mas profundamente
atreladas aos efeitos que surgem do negócio realizado. Pode-se afirmar que não existem
apenas direitos e obrigações entre os contratantes, mas entre os contratantes e a sociedade
como um todo. A autonomia da vontade, outrora determinante individual dos contratos,
passou a existir como dirigente contratual em parceria com o coletivo. Trata-se de uma
autonomia privada da vontade, privada no sentido de limitada à função social, à boa-fé, à
confiança e aos valores que levam ao fim social.
Do exposto, verifica-se a relação do princípio da boa-fé com a função social, pois por
meio da confiança, da solidariedade, da transparência, atuando em parceria com a fun-
cionalização e o coletivo, estes princípios fundamentam e reforçam a transformação social e
jurídica, em especial a contratual.
302
NALIN, op. cit., p. 198.
303
HIRONAKA, Giselda M. Fernandes Novaes. A função social do contrato. Revista de Direito Civil, São
Paulo, n. 45, p. 141-152, jul./set. 1988, p. 141.
304
NALIN, Do contrato: conceito pós-moderno em busca da sua formulação na perspectiva civil-constitucional,
p. 230.
103
Na primeira parte deste trabalho realizou-se, basicamente, a análise do contrato. Foram
abordados, num primeiro momento, os temas referentes à sua história, às suas características e
à sua evolução. Constatou-se que os contratos possuem as características específicas da época
social na qual se enquadram, ocorrendo uma influência recíproca entre o contrato e a
sociedade. Com relação aos princípios, fez-se uma rápida abordagem sobre aspectos
pertinentes ao conceito, passando, após, à análise dos princípios relativos ao direito
contratual, consensualismo, obrigatoriedade, relatividade, igualdade e, sobretudo, função
social e boa-fé.
Também se constatou a relação existente entre a boa-fé e a função social, o que
contribuiu para formar a base para o objetivo que se propõe, da verificação da boa-fé como
um mecanismo de solução de conflitos no direito contratual para o futuro diante da concepção
sistêmica autopoiética. Portanto, com a análise realizada constatou-se que as mudanças que
ocorreram, e que continuam a se processar, na sociedade e no contrato fazem surgir a
necessidade de uma nova teoria contratual, que possibilite a sua adaptação aos novos tempos
complexos e contingentes. Essas mudanças, além de criar a necessidade de uma nova teoria,
anunciam, conjuntamente, a chegada de “algo novo” e a entrada do contrato numa nova
época, numa nova realidade, rumo a um “novo horizonte”.
Sob a influência da esperança do “algo novo” que se descortina, lenta, mas
progressivamente, é que se iniciará a caminhada rumo a um “novo horizonte”, utilizando-se as
palavras de Luiz Edson Fachin, que possibilite uma nova visão sobre a teoria contratual, para
a qual se sugerem a cláusula geral da boa-fé e a teoria sistêmica autopoiética.
2.8 O DIREITO CIVIL E A TRAVESSIA RUMO AO NOVO HORIZONTE
Este item foi inserido no trabalho com o intuito de proporcionar um panorama do
contexto jurídico atual segundo a visão de Luis Edson Fachin.
305
Durante a leitura de sua
obra, objeto desta rápida exposição, constatou-se a importância da sua inclusão no trabalho,
em virtude do entusiasmo despertado durante a sua leitura, haja vista vir ao encontro do
objetivo proposto, bem como pela esperança que fez surgir de que, pela necessidade de um
novo caminho a trilhar na ciência do direito, está-se no rumo certo.
305
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
104
Melhor dizendo, também se justifica quanto ao entusiasmo despertado, pois refere as
inquietações diante de uma ciência jurídica em transformação, de um direito contratual ávido
de equilíbrio, justiça e solidariedade. Quanto à esperança surgida, justifica-se porque salienta
a urgência de uma nova teoria, de um novo método ou meio de se fazer o direito contratual,
ao que se sugere a cláusula geral da boa-fé aliada à teoria sistêmica autopoiética do direito
para a solução dos conflitos.
Portanto, para tratar da transformação que se processa no direito civil em geral, utiliza-
se como texto-base a obra citada, pois, diante da realidade que apresenta e analisa, estimula a
busca de novos “horizontes” para as inquietações que surgem no dia-a-dia da lide jurídica,
bem como funciona como uma ponte entre a realidade do contrato analisada até este
momento, suas características e especificidades e a teoria sistêmica autopoiética, objeto deste
estudo, que será analisada posteriormente.
De acordo com Fachin, o direito, atualmente, encontra-se num momento de crise, que
denota a ruptura existente entre o direito civil tradicional e o direito civil do terceiro milênio.
Aliás, a crise que se manifesta não ocorre particularmente no direito civil, mas no sistema
jurídico moderno. Essa crise se manifesta na dificuldade que o Estado atualmente encontra no
exercício de sua função de produção das regras; também, quando a regra do direito em si
mesma é confrontada com a crise de racionalidade e, quando o instrumental jurídico começa a
ter sua legitimidade contestada quando tenta agir como fonte de regulamentação social. A
crise comprova-se pela existência de relações fora do campo de abrangência do direito. Os
fatos e relações começam a acontecer no plano da “dobra do direito”, ou seja, “do não-
direito”. Surgem condutas e comportamentos que não possuem regulamentação, bem como
condutas contrárias ao que já se encontra regulamentado. Esse modo de agir exige uma nova
regulamentação, não se contentando somente com a adaptação ao que está pacificado.
Verifica-se, muitas vezes, uma “ruptura total de padrões, não tão-só “ressignificações”. Há
que se ter “coragem e ousadia para prosseguir no debate”.
306
“Outro tempo, novos conceitos.
A crise pressupõe idéia de superação, a expressão segmentada que tem como premissa a
possibilidade de encontrar sentido em outras perspectivas”.
307
Conforme Fachin, o que se está metodologicamente reconhecendo é o fato de que o
presente não passa de um elo nessa cadeia sucessiva, de tal modo que não é possível o
306
FACHIN, Teoria crítica do direito civil, p. 223-225. Com relação à crise vivenciada, o autor acrescenta “Não
há, necessariamente, uma passagem do ‘não-direito’ para o Direito; há determinado caminho em que deve trilhar
essa passagem no espaço das dobras do mundo jurídico, onde se revelam valores que nem sempre o próprio
sistema reconhece ou incorpora”, p. 199.
307
FACHIN, op. cit., p. 320.
105
esgotamento da corrente. É essa a visão que a travessia da interdisciplinaridade pretende
oferecer, ou seja, de que existe, concomitantemente, tanto um horizonte que denota um
caminho a seguir como alguns limites durante essa caminhada. A travessia se faz no diálogo
entre conceitos diversos e, ao mesmo tempo, familiares e estrangeiros. Trata-se com conceitos
conhecidos que se põem ao lado de outros dos quais nos apropriamos culturalmente. Novos
fatos e novos conceitos vão surgindo a todo instante, pois a reconstrução se faz
indefinidamente”.
308
Junto a isso, Fachin assinala:
[...] eis o relançamento, forma e fundo sob novos ares de comunicações, abertas,
porosas e atentas aos valores mais despidos de formalidade”. Diante dessa
reconstrução não há que se pensar em destruição dos institutos que aí estão, pois
dessa turbulência nascem novos sinais para se poder pensar e trabalhar o Direito
309
.
Também se deve deixar espaço para a transdisciplinaridade, supressão das tradicionais
fronteiras epistemológicas, permitindo-se uma união que favoreça a diversidade. Daí a
necessidade de um novo mapeamento, cuja descrição não pode ser previamente construída
nem se deve antecipar à emolduração do objeto ainda em curso. Diante dessa flexibilidade,
que permite as descobertas futuras, o direito civil pode se permitir reconhecer no singular as
possibilidades da regulação jurídica sem aprisionamentos conceituais. “Do singular novo
saber se constrói na transversalidade, afrontando a verticalidade da cognição insossa e a
horizontalidade do conhecimento pouco profundo”. De fato, “para apreender e não clausurar
as relações, existe um Direito Civil novo e que se renova, bem como outras possibilidades do
direito”.
310
A projeção do que está a nossa frente, aparecendo pouco a pouco, envolve
rompimento e superação. Por certo, não se apresenta como uma travessia tranqüila. Futuro,
ruptura e transformação seguem, concomitantemente, para a construção desse caminho, novo
ou renovado, que nasce do choque inevitável entre a realidade e as categorias jurídicas
ultrapassadas; entre “o novo que surge e o velho que declina”.
311
308
FACHIN, Teoria crítica do direito civil, p. 242-243. Com relação aos conceitos, o autor conclui: “Parece
fundamental, todavia, abandonar-se a postura da segurança dos conceitos, uma vez que, em uma certa medida, as
explicações segmentadas conduzem a uma banalização da complexidade dos problemas. Hoje, mais do que
nunca, deve o estudioso afeiçoar-se a perguntas sem respostas” p. 195.
309
FACHIN, op. cit., p. 321.
310
FACHIN, op. cit., p. 322.
311
FACHIN, Teoria crítica do direito civil, p. 329.
106
Do exposto se conclui que a “crise” demonstra uma realidade de relações fora do
direito, fazendo-se necessário coragem e ousadia para seguir em frente, pois são outros
tempos, novos conceitos. Há que se ter superação e rompimento nessa cadeia sucessiva de
acontecimentos; há que se reconstruir e se relançar continuamente inter e transdiscipli-
narmente. E nesse contexto o indivíduo se encontra, modificando e se modificando, razão
porque Hannah Arendt, afirma:
[...] pelo fato de que se movimenta sempre entre e em relação a outros seres
atuantes, o ator nunca é simples ‘agente’, mas também, e ao mesmo tempo, paciente.
Agir e padecer são como as faces opostas da mesma moeda, e a história iniciada por
uma ação compõe-se de seus efeitos e dos sofrimentos deles decorrentes. Estas
conseqüências são ilimitadas porque a ação, embora possa provir do nada, por assim
dizer, atua sobre um meio no qual toda reação se converte em reação em cadeia, e
todo processo é causa de novos processos. (...) Além disso, seja qual for o seu
conteúdo específico, a ação sempre estabelece relações, e tem, portanto, a tendência
inerente de violar todos os limites e transpor todas as fronteiras.
312
Com essa breve exposição, causa de entusiasmo e esperança, procurou-se demonstrar
as modificações na realidade e no direito, bem como no indivíduo, constatando-se a
transformação que ocorre e a necessidade de novas possibilidades, que favoreçam o encontro
de possíveis soluções para os fatos que aí se encontram. Os fatos acontecem e produzem
modificações sociais e pessoais; as relações acontecem e vão produzindo e reproduzindo as
soluções, estejam elas dentro da regulamentação jurídica ou não, no plano da “dobra do
direito”, ou seja, do “não-direito”. O indivíduo relaciona-se, e nesse relacionamento atua e
participa como agente e como paciente. Há um entrelaçamento entre o sujeito da relação e a
relação: um acontece e se faz, influenciando o outro e interagindo com o outro. O
acontecimento, quando se faz, revela novos acontecimentos, tanto dependentes quanto
independentes. As situações se dão em cadeia, continuamente; as decisões apresentam
soluções aqui e seus efeitos também acontecem amanhã e depois.
Portanto, urge um novo meio de encontrar soluções para um mundo flexível, poroso e
em constante mutação. A essa necessidade sugere-se a teoria sistêmica autopoiética, porque
permite a visão da realidade em movimento, em interação, em forma de redes interligadas, em
complexidade, em globalização, num contexto. E dentro da análise que se propõe, objetiva-se
enquadrar o contrato, agora transformado, dentro dessa nova realidade, permitindo-lhe
312
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 203.
107
encontrar as soluções necessárias para os seus conflitos, por meio da cláusula geral da boa-
objetiva, já que situado em uma realidade complexa e em constante transformação.
Conforme o objetivo proposto inicialmente, bem como diante da realidade que se
constatou com a análise realizada, passa-se à explanação da boa-fé como cláusula geral diante
da teoria sistêmica autopoiética por ser a linha de pesquisa eleita para esta dissertação, como
também por ser o meio possível de adequar a ciência do direito, mais especificamente, o
instituto contratual, à realidade complexa atual.
108
3 A CLÁUSULA GERAL DA BOA-FÉ, O CONTRATO E A TEORIA
SISTÊMICA AUTOPOIÉTICA DO DIREITO
Neste capítulo aborda-se o tema referente à cláusula geral da boa-fé como
possibilidade de solução de conflitos no direito contratual, quando considerada perante a
teoria sistêmica autopoiética do direito. Para o estudo do tema é utilizada como exemplo a
concepção do contrato relacional, que apresenta o traço da continuidade, exigindo
constantemente, em virtude das vicissitudes e influências que sofre, a adaptação e recriação
do direito, das cláusulas contratuais, para o caso concreto. Nessa altura é que se encaixa a
pertinência da teoria sistêmica autopoiética, em razão dos aspectos que comporta, tais como
complexidade, contingência, meio envolvente, autoprodução, recriação, os quais se ligam
diretamente com o assunto em questão; logo, juntos podem proporcionar um novo meio de
solução para as questões jurídicas, no caso específico, para as relações contratuais.
3.1 A CLÁUSULA GERAL COMO POSSIBILIDADE DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS
PERANTE A TEORIA SISTÊMICA AUTOPOIÉTICA
Neste item aborda-se o tema referente às cláusulas gerais, sua concepção da boa fé
objetiva, bem como a sua possibilidade de solução de conflitos intersistêmicos.
3.1.1 As cláusulas gerais
Tendo em vista o objetivo do trabalho centralizar-se em torno da cláusula geral da
boa-fé diante da concepção sistêmica autopoiética e a consideração como possibilidade de
solução de conflitos contratuais diante da complexidade atual, faz-se neste item uma breve
explanação sobre as cláusulas gerais como introdução para o tema que segue.
Vivencia-se um momento de mudança: da acumulação de bens materiais para os bens
imateriais; dos contratos de dar para os de fazer; do modelo imediatista da compra e venda
para a relação contratual continuada; de relações privadas para relações particulares de
iminente interesse social ou público. Vivencia-se a crise dos antigos paradigmas e do
109
aparecimento de novos paradigmas para o direito. A atividade jurídica acontece por meio de
instrumentos jurídicos antigos e novos; “instrumentos da ciência moderna do direito,
esculpidos pelos ideais da Revolução Francesa, de liberdade, igualdade e fraternidade, com a
necessária leitura atual da sociedade industrial e massificada”.
313
Entretanto, em meio a essa mudança verifica-se que, atualmente, não é mais
admissível o modelo estático da positividade. O acelerar da história impõe a configuração de
um paradigma metodológico diferente, baseado na pluralidade e na complexidade das
relações sociais. A essa nova realidade faz-se necessário um novo tipo de legislação, inspirada
na Constituição, repleta de modelos jurídicos abertos. Destacam-se, legislativamente, os
valores, bem como os programas que objetivam o bem comum e o social. Novas normas têm
sido formuladas, as quais, de um lado, empregam conceitos de significados imprecisos e
abertos, denominados de “conceitos jurídicos indeterminados”; de outro, surgem normas que
apresentam apenas uma vaga moldura, permitindo a incorporação de valores, princípios,
diretrizes e máximas de conduta, as quais se denominam “cláusulas gerais”.
314
De fato, um
código capaz de enfrentar as mudanças operadas na sociedade e que facilite a adaptação às
novas necessidades sociais deve apresentar-se como portador de cláusulas gerais, as quais
facilitem o “maior grau possível de flexibilidade”.
315
Judith Martins-Costa, sobre as cláusulas gerais, salienta que
[...] constituem o meio legislativamente hábil para permitir o ingresso, no
ordenamento jurídico, de princípios valorativos, expressos ou ainda inexpressos
legislativamente, de standards, máximas de conduta, arquétipos exemplares de
comportamento, das normativas constitucionais e de diretivas econômicas, sociais e
políticas, viabilizando a sua sistematização no ordenamento positivo.
316
Outrossim, a cláusula geral, quando considerada como um instrumento hermenêutico,
manifesta-se indispensável para o magistrado na função de proteção das partes vulneráveis e
na consecução da justiça social diante de uma realidade complexa e em constante mutação
317
.
313
MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais,
p. 85-86.
314
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. 2. tir. São
Paulo: RT, 2000, p. 284-286.
315
ANDRADE, Fábio Siebeneichler. Da codificação. Crônica de um conceito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1997, p. 165.
316
MARTINS-COSTA, A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional, p. 274.
317
HORA NETO, João. O princípio da função social do contrato no código civil de 2002. Revista de Direito
Privado, São Paulo: RT, v. 14, p. 38-48, 2003, p. 42.
110
As cláusulas gerais, além de admitirem uma grande quantidade de conteúdos, apresentam-se
sob três tipos distintos: tipo restritivo, tipo regulativo e tipo extensivo.
318
Também se faz pertinente uma breve colocação sobre a distinção entre cláusula geral,
princípios jurídicos e conceitos jurídicos indeterminados. A distinção entre cláusula geral e
princípio já foi devidamente analisada no item 2.6.2, bastando referir que de fato não se
confundem, pois a diferença existe, o que se verifica quando se consideram os princípios
expressos e os inexpressos. Isso já não ocorre com as cláusulas gerais, pois ou estão
formuladas na lei, ou não. Ainda é preciso considerar que as cláusulas gerais operam o
reenvio a outros espaços do ordenamento, ao passo que os princípios que não possuem
vagueza semântica não o fazem. Por último, mesmo se considerando os princípios que
possuem vagueza semântica, como a boa-fé, não existe a equiparação, visto que neste caso
está-se diante de uma cláusula geral que contém um princípio.
319
No entanto, cabe a análise sobre a diferença entre as cláusulas gerais e os conceitos
jurídicos indeterminados, haja vista determinada parte da doutrina negar tal distinção por
considerar em ambos um alto grau de vagueza, bem como o “reenvio a standards valorativos
extra-sistêmicos”. Os conceitos jurídicos indeterminados integram a descrição do fato em
exame, com vistas à aplicação do direito, de modo que a liberdade do aplicador se exaure na
fixação da premissa. Coincidindo ou não o modelo normativo e o fato, a solução já se
encontrará predeterminada; ocorre uma subsunção, não havendo possibilidade de criação do
direito, mas apenas de interpretação. Dessa forma, Judith Martins-Costa refere que, na
cláusula geral, existe a exigência para que o juiz concorra ativamente na formação da norma,
ao passo que, nos conceitos indeterminados, ao juiz basta reportar ao fato concreto o elemento
indicado na fattispecie.
320
Também a cláusula geral apresenta grande importância para a abertura do sistema
jurídico por causa da sua vagueza semântica e da imprecisão do seu conteúdo, pois permite a
mobilidade ao direito para que enfrente este momento atual de grandes mudanças diante da
sociedade globalizada.
321
Neste ponto encontra-se uma ligação entre a cláusula geral e o
318
MARTINS-COSTA, A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional, p. 295. Com
relação ao tipo restritivo a autora salienta que opera contra uma série de permissões singulares, delimitando-as,
como nos casos da restrição à liberdade contratual; de tipo regulativo, quando regula através dos princípios, todo
um vasto domínio de casos, e de tipo extensivo, quando amplia uma determinada regulação através da
possibilidade, expressa, de aí serem introduzidos princípios e regras dispersos em outros textos.
319
MARTINS-COSTA, A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional, p. 323.
320
Idem.
321
HORA NETO, João. O princípio da função social do contrato no código civil de 2002. Revista de Direito
Privado, São Paulo: RT, v. 14, p. 38-48, 2003, p. 43. Também nesse sentido, Karl Engisch refere: “graças à sua
generalidade, elas tornam possível sujeitar um mais vasto grupo de situações, de modo a ilacunar e com
possibilidade de ajustamento, a uma conseqüência jurídica”. ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento
jurídico. Traduzido por João Baptista Machado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 233.
111
objetivo deste trabalho. Por meio da “vagueza” semântica e da imprecisão do seu conteúdo, as
cláusulas gerais possibilitam ao direito a adaptação à realidade complexa atual. Por meio da
mobilidade, favorecem ao direito o crescimento no sentido de permitir o enfrentamento de
novas situações, bem como de encontrar novas e atuais soluções para as questões jurídicas.
Diante dessa nova realidade operada por meio das cláusulas gerais, cabe ao juiz um
novo e decisivo papel no trato dos casos concretos. O magistrado, a partir das cláusulas
gerais, tem a incumbência de encontrar medidas próprias de valoração diante do caso
concreto.
322
Conseqüentemente, faz-se pertinente uma nova atitude do órgão julgador, o qual
vai examinar o fato concreto segundo os valores eleitos pela sociedade, o que só acontece
diante da perspectiva de um sistema aberto, que possibilite essa nova atuação, desde que
plenamente motivada. No caso, haverá a consideração do princípio da boa-fé em relação à
conduta das partes no desenvolvimento da relação jurídica. Também cabe explicitar que às
cláusulas gerais correspondem às normas que dependem de preenchimento de seu conteúdo, o
que acontece por meio das valorações realizadas pelo aplicador, isto é, os critérios para a sua
concreção somente se darão quando da observação do caso concreto.
323
Corroborando o exposto sobre as cláusulas gerais, Gunther Teubner esclarece sobre a
relação entre as cláusulas gerais e a ciência jurídica:
Um direito funcional de conflitos exige, portanto, mecanismos internos de resolução
dos conflitos entre os subsistemas sociais, entre as ordens quase-jurídicas de esferas
sociais semi-autônomas, e entre os vários setores internos do sistema jurídico. Um
exemplo paradigmático desses mecanismos podemos encontrá-lo porventura nas
conhecidas cláusulas gerais do direito privado (“boa-fé”, “interesse público”).
324
322
WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Traduzido por A. M. Botelho Hespanha. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1980, p. 626. Também nesse sentido, Judith Martins-Costa refere que, “[...] a
cláusula geral introduz no âmbito normativo no qual se insere um critério ulterior de relevância jurídica, à vista
do qual o juiz seleciona certos fatos ou comportamentos para confrontá-los com um determinado parâmetro e
buscar, neste confronto, certas conseqüências jurídicas que não estão pré-determinadas. Daí uma distinção
fundamental: as normas cujo grau de vagueza é mínimo implicam que ao juiz seja dado tão-somente o poder de
estabelecer o significado do enunciado normativo; já no que respeita às normas formuladas através de cláusula
geral, compete ao juiz um poder extraordinariamente mais amplo, pois não estará tão-somente estabelecendo o
significado do enunciado normativo, mas, por igual, criando direito, ao completar a fattispecie e ao determinar
ou graduar as conseqüências”. MARTINS-COSTA, A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo
obrigacional, p. 330.
323
MELLO, Heloísa Carpena Vieira de. A boa-fé como parâmetro da abusividade no direito contratual. In:
TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 316.
324
TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. Tradução de José Engrácia Antunes. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 1993, p. 230.
112
Para encerrar a consideração sobre as cláusulas gerais, salienta-se a sua função de
possibilitar a abertura, como também a mobilidade do sistema jurídico. Com relação à
mobilidade, verifica-se que ocorre em duplo sentido: interno e externo. A mobilidade interna
é responsável pelo retorno para as demais disposições do sistema, ao passo que a mobilidade
externa possibilita a abertura do sistema para o recebimento de valores extrajurídicos,
favorecendo, dessa forma, a adequação valorativa.
325
3.1.2 A cláusula geral da boa-fé objetiva
No item anterior tratou-se da análise das cláusulas gerais. Agora, inicia-se a análise da
cláusula geral da boa-fé objetiva, já que compõe o objetivo proposto. A boa-fé,
especificamente, justifica-se pelo campo de abrangência que apresenta no direito contratual, o
que se conclui pelo entendimento de Clóvis do Couto e Silva, segundo o qual a boa-fé possui
um valor por si só, que não se relaciona com a vontade. A extensão do conteúdo da relação
obrigacional deve ser medida também pelas circunstâncias ou fatos que se relacionam com o
contrato, de modo que se possa construir objetivamente o regramento do negócio em questão,
através de um constante dinamismo
326
. A boa-fé objetiva é o caminho que possibilita a
construção de uma noção substancialista do direito, bem como a elaboração de um sistema
aberto, “que evolui e se perfaz dia-a-dia pela incorporação dos variados casos apresentados
pela prática social, um sistema no qual os operadores do direito passam a ser vistos como seus
verdadeiros autores, e não meramente aplicadores recipiendários ou destinatários”.
327
A boa-
fé objetiva “qualifica uma norma de comportamento leal”, constituindo-se em um modelo
jurídico e revestindo-se de variadas formas; o seu conteúdo depende das circunstâncias
concretas do caso; constitui-se em uma norma proteifórmica, que convive num sistema aberto,
o qual enseja a sua própria e permanente construção e controle.
328
325
MARTINS-COSTA, A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional, p. 341.
326
COUTO E SILVA, Clóvis do. O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português. Estudos de Direito
Civil Brasileiro e Português. São Paulo: RT, 1980, p. 54. No mesmo sentido, Judith Martins-Costa anota que “a
utilização da cláusula geral da boa-fé mostrou-se particularmente frutífera na jurisprudência alemã do pós-
guerra, por forma a permitir a construção ou o desenvolvimento, no direito obrigacional, dos casos de exceptio
doli, da inalegabilidade de nulidades formais, de culpa na formação dos contratos (culpa in contrahendo), de
abuso da posição jurídica, de modificação das posições contratuais por alteração superveniente das
circunstâncias. Serviu ainda para evidenciar a complexidade do conteúdo da relação obrigacional e o seu
intrínseco dinamismo. Os tribunais, muitas vezes em oposição à doutrina, apoiavam-se nas cláusulas tidas como
“vagas”, conferindo-lhes sentido e aplicabilidade prática”. MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito
privado: sistema e tópica no processo obrigacional. 1. ed. 2. tir. São Paulo: RT, 2000, p. 292.
327
MARTINS-COSTA, A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional, p. 382.
328
MARTINS-COSTA, A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional, p. 412-413.
113
Entretanto, tratando-se da cláusula geral da boa-fé, cabe uma breve consideração da
relação jurídica, a qual passa a ser considerada como um todo. Judith Martins-Costa, citando
Larenz, assevera que o vínculo obrigacional engloba constante e progressivamente os
elementos de todas as relações obrigacionais que se apresentam na prática jurídico-social, isto
é, a relação obrigacional, em razão das influências que sofre no seu percurso, pode gerar
outros direitos e deveres que não os diretamente resultantes do vínculo criado, podendo
acarretar ônus jurídicos e deveres laterais, anexos e secundários ao dever principal, aos quais
poderão corresponder novos deveres. Uma vez ocorridas essas vicissitudes e os efeitos
jurídicos resultantes, faz-se possível completar o conceito para que se torne concretamente
geral, para que possua uma “unidade do todo articulado que contém em si a diferença”, sendo
unitário do ponto de vista estrutural e funcional, como também total com relação ao conteúdo.
Constatando-se a totalidade concreta da relação obrigacional, passa-se a considerar a relação
como um vínculo dinâmico, inaugurando um novo paradigma para o direito obrigacional,
baseado na boa-fé objetiva.
329
A boa-fé é considerada uma cláusula geral porque possibilita a consideração dos
fatores metajurídicos e dos princípios jurídicos gerais para a solução dos casos. A boa-
encontra no sistema a sua fundamentação e do próprio sistema retira o caráter juridicamente
normativo de seu enunciado.
330
A partir do momento em que os contratantes agirem de acordo
com a boa-fé, proporcionarão o implemento dos valores que a sociedade elegeu como
fundamentais, tais como a confiança e a transparência no negócio realizado.
Conseqüentemente, por meio das cláusulas gerais, tais como o princípio da boa-fé,
renasce a possibilidade de julgamentos mais criativos, que proporcionem a verdade, bem
como a consideração de novos valores, expectativas e intenções das partes. Considerando-se a
boa-fé como uma cláusula geral, verifica-se que compete ao juiz definir a regra de conduta
329
MARTINS-COSTA, op. cit., p. 394. Referindo brevemente, a boa-fé subjetiva denota estado de consciência,
ou convencimento individual de obrar (a parte) em conformidade ao direito (sendo) aplicável, em regra, ao
campo dos direitos reais, especialmente em matéria possessória. A boa-fé objetiva, por sua vez, modelo de
conduta social, arquétipo ou standart jurídico, segundo o qual, “cada pessoa deve ajustar a própria conduta a
esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade e probidade”. Por este modelo
objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural
dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standart, de tipo meramente subsuntivo.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. 2. tir. São
Paulo: RT, 2000, p. 411.
330
AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. 2.ed. Rio de
Janeiro: Aide, 2003, p. 248. Nesse sentido, de acordo com Heloísa Mello “A boa-fé que delimita o exercício dos
direitos constitui verdadeira “válvula” do sistema, por onde penetram elementos dele ausentes, inclusive
metajurídicos, permitindo sua permanente adaptação à realidade social e econômica, em constante e veloz
mutação, sem que se faça necessária qualquer mudança legislativa. A realização da justiça contratual depende,
indubitavelmente, da capacidade do sistema de permanentemente se atualizar, pois jamais se poderia prever
exaustivamente todas as condutas possíveis, tidas como indesejáveis”. MELLO, Heloísa Carpena Vieira de. A
boa-fé como parâmetro da abusividade no direito contratual. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de
direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 318.
114
com que as partes deveriam ter agido diante do fato concreto. Com base na confiança e na
lealdade do princípio da boa-fé, o juiz deverá estabelecer a conduta das partes; após, há o
confronto com a conduta efetivamente realizada.
331
Ao juiz cabe a tarefa de formar novas
instituições para responder aos novos fatos, criando um direito específico para o caso, no qual
seja permitida a influência das reais circunstâncias ou fatos do contrato, o que facilita o
surgimento de um regramento específico para o negócio, que escapa, muitas vezes, do
controle das partes.
332
Para que ocorra a aplicação da cláusula da boa-fé, é necessário um sistema aberto,
tanto interna quanto externamente, mas com um rígido controle do arbítrio que se dará por
meio da fundamentação da decisão, bem como de sua conformidade com o ordenamento
333
.
Com o sistema aberto possibilita-se a composição de valores opostos, alcançando-se uma
solução que atenda os diversos interesses em questão. Segundo essa concepção, tanto a
vontade quanto os efeitos externos dos negócios possibilitariam uma resposta aceitável ao
problema proposto.
334
Também, com relação à boa-fé, em especial à confiança, faz-se
pertinente a colocação de Niklas Luhmann:
En una situación que es relativamente abierta y donde ambas as partes pueden operar
elecciones selectivas que originan influencia mutua, es posible poner en movimiento
un proceso que forme la confianza, atajando el problema de la reducción de
complejidad sobre varios pasos discretos, es decir, secuencialmente.
335
A partir do momento em que as partes se relacionam e que nessa relação ocorre um
processo de influência mútua, naturalmente nasce a confiança, que atua como um mecanismo
de redução da complexidade que existe naturalmente nas relações negociais, complexidade
essa, resultante da indeterminação diante de uma nova situação, de um novo percurso a seguir.
331
AGUIAR JUNIOR, Extinção dos contratos por incumprimento do devedor, p. 248. Complementando, o autor
refere: “Estabelecido este modelo criado pelo juiz para a situação, cabe confrontá-lo com o comportamento
efetivamente realizado. Se houver contrariedade, a conduta é ilícita porque violou a cláusula da boa-fé, assim
como veio a ser integrada pela atividade judicial naquela hipótese. Somente depois dessa determinação, com o
preenchimento do vazio normativo, será possível precisar o conteúdo e o limite dos direitos e deveres das partes.
Esse método é indispensável para a aplicação da cláusula geral”.
332
SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português. In: FRADERA,
Vera Maria Jacob (Org.) O direito privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 1997, p. 42.
333
AGUIAR JUNIOR, Extinção dos contratos por incumprimento do devedor, p. 249.
334
SILVA, O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português. In:FRADERA, op. cit., p. 43.
335
LUHMANN, Confianza,: Anthropos, 1996, p. 71.
115
Do exposto se verifica que o princípio da boa-fé sempre existiu nas relações humanas
e jurídicas, em determinadas épocas de forma mais latente, saliente; em outras, encoberto por
ideais contrários à sua orientação. Com a análise realizada, verificou-se que a função primária
da boa-fé é orientar o sistema como um todo, possibilitando o alcance da justiça e da
eqüidade; por isso a denominação de “cláusula geral”, pois a estas cabe orientar e direcionar o
ordenamento jurídico, como também proporcionar mais segurança e estabilidade às relações
jurídicas, haja vista a sua condição de norma jurídica com plena efetividade. A boa-fé passa a
ser considerada uma premissa decisória que prioriza a justiça, a eqüidade, valorizando a
confiança, a lealdade e a transparência.
Com relação à consideração da boa-fé como “premissa decisória”, salienta-se o fato de
que por meio da “decisão” o direito torna-se capaz de produzir diferença e de (re)iniciar a sua
própria autopoiesis. “É o próprio Direito que define suas premissas de validade por
intermédio de uma norma jurídica e das decisões judiciais. Tal é o início do movimento
autopoiético do sistema jurídico que se descortina em sua auto-referencialidade”.
336
O direito
caracteriza-se como uma organização complexa e que apresenta como sentido decisões
voltadas para o futuro, apesar da possibilidade de risco. Com essa realidade são possibilitados
os meios que favorecem a (re)criação constante do direito; conseqüentemente, essas decisões
apresentam caráter autopoiético e paradoxal. “Paradoxal porque só se deve decidir pela
impossibilidade de não-decidir. Autopoiética porque, do resultado da recusa de não julgar, o
Direito vai-se recriando, testando e se reutilizando das decisões anteriores”. A decisão jurídica
caracteriza-se como uma seleção contingencial, que procura reconstruir o futuro com base no
passado, buscando apreender o presente. Conseqüentemente, a decisão jurídica produz tempo;
futuro, se produzir diferença, passado, quando se detiver na repetição.
337
Sobre essa
característica de produção da diferença a partir de decisões, Leonel Severo Rocha acentua:
336
SCHWARTZ, Germano. O tratamento jurídico do risco no direito à saúde. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2004, p. 68.
337
SCHWARTZ, op. cit., p. 146-147. O autor, citando Weber, salienta: “Na linha de Weber, decidir é ação
social. Tomando-se como base tal pensamento, pode-se apontar que decidir no Direito é um processo reflexivo
entre várias escolhas possíveis, com a finalidade da produção de diferença a partir da complexidade. Dita
complexidade advém do fato de o Direito se legitimar por haver, na maioria das vezes, duas ou mais versões
(expectativas) sobre o mesmo fato (daí o princípio do contraditório e da ampla defesa)”.
116
Ao se assinalar a repetição de diferenças, fica-se fora da produção da diferença,
entra-se num grave processo de alienação e cria-se um tempo especial para o direito.
Isto é, por exemplo, um processo pode demorar anos, para o jurista isso não é
surpreendente, mas para a sociedade que deseja soluções mais rápidas isso é uma
crise.
338
Nesse sentido, complementando o exposto, Gunther Teubner refere a tese de Luhmann
e Derrida sobre o processo decisório:
A rotina das decisões jurídicas e econômicas contém um componente de loucura, de
irracional, de misterioso, da sacro, que não deve ser visto simplesmente como uma
sobra desprezível num processo crescente de racionalização, mas como a verdadeira
dinâmica condutora da própria decisão.
339
Por intermédio das decisões, faz-se possível ao direito recriar-se, produzir diferenças e
dirigir-se para o futuro em meio a um “tempo” complexo e contingente. E orientando-se pela
boa-fé nestas decisões, faz-se possível considerar as expectativas das partes decidindo de
acordo com a confiança depositada no negócio realizado. De fato, as decisões possibilitam a
mudança necessária ao direito, já que este não é estático, encontrando-se, diante da sociedade
atual, em constante desenvolvimento. Sobre isso acrescentam-se as lições de Niklas
Luhmann:
[...] el derecho de la sociedad moderna debe salir adelante sin un futuro cierto. Los
parámetros naturales, en tanto que se refieren a la sociedad, no pueden aceptarse
como algo constante aunque, por supuesto, podemos partir de que el sol seguirá
brillando todavía por mucho tiempo; ni los valores pueden ser proyectados al futuro,
en la medida en que proporcionan instrucciones para la decisión, esto es, en tanto
que deben funcionar como reglas de colisión. Todo futuro se expone en el mediun de
lo (más o menos) probable y de lo (más o menos) improbable. Esto significa, sin
embargo, que las estimaciones relativas al futuro pueden divergir y que no existe
tampoco una línea general en la forma de una “historia sagrada”, un “progreso” o de
un “fin del mundo” a lo que uno pudiera atenerse.
340
338
ROCHA, Leonel Severo. O direito na forma de sociedade globalizada. In: ROCHA, Leonel Severo;
STRECK, Lenio Luiz. (Org.). Anuário do Programa de Pós Graduação em Direito Mestrado e Doutorado. São
Leopoldo: Unisinos, 2001, p. 133.
339
TEUBNER, Gunther. Reflexão do direito. Paradoxos, conflitos de discursos e policontexturalidade.
Economia da dádiva positividade da justiça: “assombração” mútua entre sistema e différance. In: ______
Direito, sistema e policontexturalidade. Piracicaba: Editora Unimep, 2005, p. 57.
340
LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Madrid: Iberoamericana, 2000, p. 470.
117
As decisões são tomadas numa sociedade complexa, devendo-se considerar as
expectativas das partes e, portanto, pautando-se, no momento de decidir, pela confiança e pela
boa-fé despertadas com o contrato. Considerando-se que o momento futuro para o qual se
decide é incerto e invisível, exige-se dessa forma, que a decisão seja consciente, com base nos
fatores da situação vivenciada.
A análise até aqui realizada direciona-se ao encontro do objetivo proposto com o
presente trabalho, qual seja, a verificação da possibilidade de solucionar conflitos no instituto
contratual por meio da cláusula geral da boa-fé perante a concepção sistêmica autopoiética do
direito, pois permite um maior grau de flexibilidade, tanto permitindo a entrada de valores,
máximas de conduta, arquétipos exemplares de comportamento, como também para a função
criativa do juiz, que escapa da simples subsunção do fato à lei. Também porque por meio da
vagueza semântica e da imprecisão do seu conteúdo possibilita a mobilidade ao direito no
enfrentamento aos novos desafios sociais. Torna-se possível, por meio das cláusulas gerais,
em especial da boa-fé, a construção do direito relativo ao caso concreto. Em termos de teoria
sistêmica autopoiética, faz-se possível a autoprodução das cláusulas contratuais para o
negócio em questão.
Entretanto, para isso é necessário que se realize uma mudança na forma de
compreender a relação obrigacional. Para que se consiga captar a totalidade dos vínculos
criados por um contrato, na sua unidade e funcionalidade, faz-se necessário considerar “a
totalidade que permite encontrar os deveres instrumentais através de quadros materiais,
complexos, superadores da falsa simplicidade, considerados funcionalmente em direção a fins
imersos na vida social”.
341
3.1.3 A cláusula geral da boa-fé objetiva como possibilidade de solução de conflitos
intersistêmicos
Para a análise deste tópico da pesquisa, utiliza-se como base a teoria dos sistemas
autopoiéticos do direito, de acordo com a concepção de Gunther Teubner, seguidor de Niklas
Luhmann, para o que serão feitos como introdução breves apontamentos sobre o
entendimento de Teubner acerca da teoria dos sistemas autopoiéticos, passando-se, após, para
as cláusulas gerais, objeto do presente estudo.
341
MARTINS-COSTA, A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional, p. 454.
118
Com relação às cláusulas gerais, Teubner refere a “abertura” do sistema e tenta
descobrir de que modo ocorrem as intervenções jurídicas indiretas e os seus respectivos
problemas. A essa intervenção indireta relaciona três formas, que são: a observação sistêmica
mútua, a articulação pelas interferências e a comunicação pela organização. No entanto, para
compreendê-las faz-se necessário verificar como ocorre a regulação social através do direito
reflexivo. De acordo com Teubner, o direito reflexivo acontece “se, e apenas se, o sistema
jurídico se identifica a si mesmo como um sistema autopoiético num mundo de sistemas
autopoiéticos, e extrai dessa identificação conseqüências operacionais”.
342
Para a concepção de sistema jurídico autopoiético, Teubner sugere uma perspectiva
mais elaborada, acrescentando a noção de “hiperciclo”. De acordo com essa concepção, o
sistema jurídico autonomiza-se na medida em que consiga constituir os seus elementos em
ciclos auto-referenciais, atingindo o termo máximo de sua autonomia quando os componentes
do sistema se articularem entre si, formando um hiperciclo.
343
Em outras palavras, “a auto-
referência de sistemas sociais presume uma dualidade imanente para que se crie um círculo,
cujo rompimento permite a criação de estruturas”.
344
Com relação à clausura autopoiética, Teubner salienta que implica a impossibilidade
de se conceber o direito como produto da evolução social como um todo, ou de localizar
qualquer dos mecanismos de evolução fora do sistema. De fato, modelos evolutivos que
associam desenvolvimentos sociais e jurídicos só poderiam ocorrer quando referidos a
estágios pré-autopoiéticos do sistema jurídico. As mudanças ocorridas no sistema jurídico
derivam de mudanças nas estruturas sociais como um todo e, em particular, nas estruturas
normativas por estas geradas. As normas sociais determinam as possibilidades das normas
jurídicas, cuja retenção resulta de idéias partilhadas e discutidas na sociedade. Pela
autopoiese, os mecanismos intra-sistêmicos absorvem e assumem as funções evolutivas, que
podem ser estimuladas, não causadas do exterior, seguindo assim sucessivamente. Dessa
forma, os processos extrajurídicos somente podem ter efeito “modelador” na variedade que se
produz no direito. Os conflitos sociais operam como estimulantes dos processos sistêmicos
internos de formulação de expectativas, inovando, assim, o direito. Como decorrência, as
variações sofridas pelo direito, responsáveis pela sua evolução, derivam da comunicação
interna do sistema jurídico. A seleção jurídica também ocorre dentro do sistema. A
342
TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. Tradução de José Engrácia Antunes. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 1993, p. 138-139.
343
TEUBNER, op. cit., p. 58.
344
TEUBNER, Gunther. Reflexão do direito. Paradoxos, conflitos de discursos e policontexturalidade. Economia
da dádiva positividade da justiça: “assombração” mútua entre sistema e différance. In: ______. Direito,
sistema e policontexturalidade. Piracicaba: Univel, 2005, p. 66.
119
determinante da evolução passa a ser a aprovação sistêmica interna, que se realiza
autopoieticamente. A seleção dá-se por meio de processos jurídicos internos, e os critérios da
seleção referem-se à adaptabilidade da inovação às estruturas normativas existentes, bem
como a sua compatibilidade com a autopoiesis jurídica. Com relação às expectativas, somente
serão aceitas aquelas que foram selecionadas por atos jurídicos cujos pressupostos sejam
definidos pelo próprio sistema. A estabilidade das estruturas é assegurada por mecanismos
gerados dentro do sistema, que assim retém as normas jurídicas.
345
Outrossim, de acordo com Teubner, não se deve excluir o meio envolvente da
evolução. As relações entre o sistema e o meio envolvente dão-se sob a forma de processos de
co-evolução dos sistemas, que produzem influência recíproca indireta. O centro de gravidade
da co-evolução é o processo jurídico individual, no qual as expectativas dos vários
subsistemas coincidem, complementam-se e conflituam entre si; é no contexto de interação
que se negoceiam as expectativas que serão impostas, determinando-se as várias estruturas
subsistêmicas. Com relação ao processo de retenção, verifica-se que opera pela aferição da
compatibilidade da expectativa eleita com as várias culturas, multividências e dogmáticas, o
que pode representar uma influência recíproca entre os vários subsistemas. No entanto, na co-
evolução muitas vezes surgem problemas de conciliação entre os subsistemas, o que ocorre
nos processos de interação, quando as exigências funcionais desses sistemas entram em
conflito. Quando isso ocorre, surgem mecanismos de regulação, que se destinam a mediar a
interação entre os sistemas e a renovar o processo de co-evolução. Essa regulação se dá por
meio do direito reflexivo,
346
sobre o qual Leonel Severo Rocha salienta:
A Sociedade Mundial fecha-se operacionalmente numa auto-reprodução de sua
comunicação, diferenciando-se do seu entorno. Esse fechamento é condicionado e
condicionante da própria abertura do sistema, que atua sensitiva ou cognitivamente
às irritações provocadas pelo seu ambiente. Os subsistemas sociais constituem-se,
por sua vez, em autonomizações internas, ambiente (sociais) no próprio sistema
(social geral). As comunicações ocorridas no sistema social, à medida que adquirem
um alto grau de perficiência e complexidade, autonomizam-se, formando sistemas
sociais funcionalmente diferenciados dotados de um alógica e racionalidade
específica. Tais sistemas operam de forma enclausurada, segundo sua comunicação
e racionalidade específica, e abrem-se sensitivamente ao seu ambiente (demais
sistemas sociais).
347
345
TEUBNER, O direito como sistema autopoiético, p. 115-119.
346
TEUBNER, op. cit., p. 122-125.
347
ROCHA, Leonel Severo; CARVALHO, Delton Winter de. Policontexturalidade jurídica e estado ambiental.
In: Constituição sistemas sociais e hermenêutica: programa de pós-graduação em Direito da Unisinos: mestrado
e doutorado. SANTOS; STRECK; ROCHA (Org.). p. 134.
120
A regulação social ocorre por meio de dois mecanismos, a informação e a
interferência, que asseguram a mediação entre a clausura operativa e a abertura ao meio
envolvente. De um lado, gerando informação interna a partir do seu próprio sistema, o direito
produz uma realidade jurídica autônoma, que orienta as suas operações sem contato com o
meio envolvente; de outro, o direito liga-se ao meio envolvente por mecanismos de
interferência intersistêmica.
348
A observação intersistêmica, por sua vez, é um processo que ocorre dentro do próprio
sistema, não permitindo o acesso da realidade ao sistema, nem do sistema à realidade. De fato,
representa o fato de um sistema introduzir distinções nas operações internas que realiza e, ao
mesmo tempo, retirando indicações destas.
349
No entanto, a esses circuitos fechados de auto-
observação, Teubner sugere a interferência de sistemas autopoiéticos homogêneos, resultantes
de um processo interno de diferenciação de um sistema autopoiético mais abrangente, que
possibilita o contato direto recíproco entre os diferentes sistemas sociais, indo além da
observação. Outrossim, o mecanismo de interferência atua como uma ponte entre os
subsistemas sociais, que, além de ultrapassar a auto-observação, articulam-se num mesmo
evento comunicativo, isso em virtude de três motivos: todos utilizam como matéria-prima o
“sentido”, todos se desenvolvem tendo como base a comunicação e porque todas as formas de
comunicação especializada entre os subsistemas constituem comunicações sociais gerais.
350
Com relação ao contrato, refere que se utiliza da interferência intersistêmica, sendo
que nesses institutos coincidem três ações, a jurídica, a econômica e a social.
351
No entanto,
com relação à comunicação pela organização, refere que os principais subsistemas sociais
(política, direito, economia e ciência), não apresentam a capacidade de ação coletiva, sendo
que para assegurar essa capacidade, necessitam de organizações operacionais capazes de agir.
Essas organizações formais (atores coletivos) comunicam-se através das fronteiras dos
subsistemas funcionais se existir um sistema de comunicações intersistêmicas. Essa estrutura
multiplica as relações de observação operativamente fechadas. Aqui, o conjunto também é
suportado por mecanismos de interferência intersistêmica.
352
348
TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. Tradução de José Engrácia Antunes. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 1993, p. 130.
349
TEUBNER, op. cit., p. 157.
350
TEUBNER, O direito como sistema autopoiético, p. 172-173.
351
TEUBNER, op. cit., p. 184. De acordo com o autor, “um contrato é sempre e simultaneamente uma
comunicação do tipo econômico, pois constitui um acto de pagamento que, enquanto obrigação, prenuncia outros
actos de pagamento; de tipo jurídico, pois não apenas altera uma situação jurídica como origina novas normas
jurídicas; e permanece ainda uma comunicação geral de caráter social”.
352
TEUBNER, op. cit., p. 191-192.
121
Outrossim, “informação e interferência são os dois mecanismos que asseguram a
abertura de sistemas sociais autopoiéticamente fechados”. De um lado, o direito produz o seu
modelo interno do mundo externo; de outro, as interferências externas que ocorrem entre o
direito e a envolvente social são responsáveis pela “articulação estrutural” entre eles. Por
meio desses mecanismos torna-se possível a regulação social pelo direito. O direito torna-se
reflexivo e aumenta a sua eficácia regulatória, no sentido de que orienta suas normas e
processos em função dessa situação social.
353
Também Teubner destaca o surgimento de um novo elemento na teoria dos sistemas
recursivos, denominados de “atratores”. Teubner, citando Krohn & Krüppers, esclarece que,
“na linguagem da teoria de sistemas dinâmicos, as diferentes possibilidades de solução são
chamadas da atratores. Diferentes condições iniciais colocam o sistema na zona de entrada de
diversos atratores, para os quais o desenvolvimento está sendo direcionado”. Com essa
constatação, surgem novas possibilidades para o direcionamento através do direito. Ocorre
que, a partir do momento em que sistemas recursivos e auto-organizados realizam valores
próprios, em vista das perturbações externas, ao direito faz-se possível tentar, por meio da
produção normativa geral ou de atos jurídicos especiais, gerar perturbações de forma
orientada, irritando os sistemas recursivos, fazendo com que mudem de um estado atrator a
outro que esteja de acordo com o objetivo legal. No entanto, essa ação ocasiona riscos, pois
nada garante que a direção conduza ao atrator desejado.
354
Com relação à utilização das cláusulas gerais para a intermediação nos conflitos,
Teubner salienta o fenômeno da indeterminação do direito. A indeterminação encontra-se
associada aos conflitos entre sistemas sociais autônomos, aos quais a doutrina pode reagir
utilizando-se de um “novo direito de conflitos intersistêmicos”, que o autor denomina de
“cláusulas gerais”.
355
A nova indeterminação surge quando determinadas esferas de
comunicação, tais como política, direito, economia, educação, atuando sobre a base de uma
comunicação social geral, tornam-se independentes do sistema autopoiético de primeiro grau.
Está-se, pois, diante de um problema de autopoiésis de segundo grau.
356
As esferas
comunicativas constituem os seus próprios componentes, que diferem da comunicação geral.
O efeito desta clausura hipercíclica resulta na adaptação dos sistemas nas relações com o meio
envolvente. No entanto, o aspecto perturbador desta harmonia verificada nas inter-relações
353
TEUBNER, op. cit., p. 195.
354
TEUBNER, Gunther. Reflexão do direito. Paradoxos, conflitos de discursos e policontexturalidade. Direito
regulatório: crônica de uma morte anunciada. In: ______ Direito, sistema e policontexturalidade. Piracicaba:
Editora Unimep, 2005, p. 37-38.
355
TEUBNER, O direito como sistema autopoiético, p. 202.
356
TEUBNER, op. cit., p. 205.
122
das esferas sociais encontra-se nos conflitos entre informação e interferência. Os subsistemas,
por sua vez, interferem uns nos outros, tanto quando uma comunicação participa
simultaneamente em vários circuitos autopoiéticos, como quando uma pessoa atua em
contextos sistêmicos diferentes. Também cabe relacionar um terceiro tipo de interferência,
relacionado ao “entrecruzamento” entre o subsistema funcional e a sociedade.
357
As
conseqüências das interferências resultam em conflitos entre informação e interferência, trata-
se de um conflito entre o modo como o meio envolvente é construído no interior do sistema e
as operações que têm lugar nos sistemas envolventes, o qual é autopoieticamente fechado. Por
causa desse fechamento, “as operações reais dos sistemas envolventes não são acessíveis ao
sistema considerado”. Como solução, pressupõe-se a separação entre o código e o programa
sistêmico, isto é, deixar intacto o código do próprio sistema, adaptando o seu programa às
autodescrições dos demais sistemas, enquanto houver compatibilidade com o código. A
conseqüência é a indeterminação do programa sistêmico, pois deve, simultaneamente, adaptar
as exigências da envolvente social, bem como se manter compatível com o código
sistêmico.
358
Outrossim, não é tarefa fácil identificar as unidades conflituantes nas quais a colisão
deve ser regulada, isto mesmo partindo-se de uma teoria autopoiética. Para resolver este
problema, Teubner sugere a diferenciação entre as seguintes áreas de conflitos: conflitos entre
subsistemas sociais, conflitos entre o direito estadual e os quase-diretos dos vários campos
sociais semi-autônomos e conflitos entre as várias subordens no interior do próprio direito
estadual. Entre essas áreas, o autor salienta que o direito deve ocupar-se, de imediato, dos
conflitos existentes entre os diferentes subsistemas sociais autopoiéticos, quer se trate de
subsistemas funcionais, tais como a política, a economia, a família, a religião, cultura, ciência,
quer de organizações formais ou de interações especializadas.
359
No entanto, de acordo com
Leonel Severo Rocha:
A sociedade diferenciada funcionalmente possui uma autonomia que dificulta
qualquer planejamento. Os efeitos colaterais de decisões juridicamente corretas, por
exemplo, podem ser socialmente desastrosos. E sequer é possível uma decisão
jurídica capaz de observar toda a realidade policontextural da sociedade
contemporânea.
360
357
TEUBNER, O direito como sistema autopoiético, p. 206-207.
358
TEUBNER, O direito como sistema autopoiético, p. 208-209.
359
TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. Tradução de José Engrácia Antunes. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 1993, p. 218-219.
360
ROCHA, CARVALHO, Policontexturalidade jurídica e estado ambiental. In: Constituição sistemas sociais e
hermenêutica: programa de pós-graduação em Direito da Unisinos: mestrado e doutorado. SANTOS; STRECK;
ROCHA, (Org.) et al.. Porto Alegre: Livraria do Advogado, São Leopoldo: Unisinos, 2007, p. 133.
123
Entretanto, tentando solucionar os conflitos, verifica-se que as tentativas de instaurar
uma unidade conceptual e axiológica por meio da dogmática ou da doutrina não alcançam
sucesso. Também a especialização que enfatiza a existência de princípios específicos para
cada área jurídica não alcança o sucesso. O isolacionismo jurídico não previne o surgimento
dos conflitos intersistêmicos. De fato, as soluções são construídas de modo contingente, com
relação às contradições dos casos particulares, não havendo, dessa forma, possibilidade de se
construir uma teoria geral dos conflitos.
361
Diante do exposto, em que se constatou a existência de um direito funcional de
conflitos, surge a necessidade de mecanismos internos para solucioná-los, que alcancem as
três áreas de conflitos antes referidos: os subsistemas sociais, as ordens quase-jurídicas de
esferas sociais semi-autônomas e os vários setores internos do sistema jurídico. Gunther
Teubner sugere as “cláusulas gerais do direito privado”, em virtude do seu elevado grau de
indeterminação e abertura, tornando-as apropriadas para o tratamento dos conflitos existentes
entra as esferas sociais autônomas.
362
O conceito de materialização do direito privado deve ser utilizado para designar os
esforços feitos para enfrentar os problemas resultantes do alto grau de diferenciação social,
como processo de harmonização e coordenação das exigências sociais contraditórias que se
manifestam no centro da relação contratual. A materialização, portanto, “significa assegurar a
dependência de estruturas de expectativas contratuais de mecanismos regulatórios não-
consensuais extremamente variados, incluindo mecanismos intervencionístico-estaduais, e a
respectiva coordenação no seio do próprio contrato”.
363
No entanto, para compreender esse sentido da materialização, faz-se necessário
reformular a relação contratual no seu todo, definindo-a como um sistema autopoiético num
universo de sistemas autopoiéticos. Essa nova definição substitui a visão tradicional do
contrato, baseada no acordo de vontades, por uma nova visão do contrato, que o considera
como uma relação social juridificada.
364
Diante disso, Teubner destaca várias concepções contratuais que o reinterpretam “à luz
da idéia de sistema”, isto é, um todo que se constitui pelos seus elementos e relações.
Acrescenta que o contrato relacional direciona-se no mesmo sentido, pois realça a interação e
a cooperação entre as partes, a emergência de valores e necessidades específicas, a
processualização das relações contratuais, a incidência do direito contratual formal na práxis
361
TEUBNER, O direito como sistema autopoiético, p. 228-229.
362
TEUBNER, O direito como sistema autopoiético, p. 230.
363
TEUBNER, op. cit., p. 231.
364
TEUBNER, op. cit., p. 232.
124
negocial e a ambivalência da “juridificação” do contrato originada na seqüência de numerosas
intervenções estatais. Isso implica “uma análise microscópica das expectativas particulares e
percepções de reciprocidade das partes contratantes e uma avaliação macroscópica das
mutações dos nossos níveis de expectativas no moderno estado social”.
365
Essas idéias
resultaram num conceito de contrato como sistema social aberto ao meio envolvente, que,
além de exprimir o consenso entre as partes, também é portador de problemas funcionais
próprios que devem ser resolvidos em interação com o respectivo meio sem violar as suas
próprias fronteiras. A relação contratual passa a ser definida como um conjunto de ações que
dependem do consenso e, também, simultaneamente, das exigências próprias das diferentes
esferas sociais. Essa dupla dependência prefigura a problemática conflitual, na qual a relação
contratual é colocada sob exigências estruturais contraditórias”.
366
Esse modelo, entretanto, mantém-se aprisionado na teoria dos sistemas abertos, como
uma espécie de “teoria da contingência do contrato”, no contexto da qual as estruturas
contratuais aparecem como variáveis dependentes da envolvente sistêmica. Dessa forma,
Teubner sugere uma reformulação, ou melhor, uma radicalização autopoiética dessa
problemática, que poderia modificar este modelo numa direção construtivista, fornecendo
níveis adicionais de observação. Nessa concepção, a relação contratual apareceria como um
sistema de interação auto-reprodutivo entre as partes contratantes, cujas estruturas seriam
construídas justamente graças à relação conflitual com um meio envolvente autodefinido (ou
seja, um meio envolvente construído comunicativamente entre as partes contratantes).
367
Considerando-se que os impulsos regulatórios externos não conseguem influenciar o
quadro contratual, visto que se manifestam antes por meio dos conflitos existentes entre
informação (interna) e a interferência (externa), geram como conseqüência a indeterminação.
Como recurso para solucionar o problema da indeterminação, Teubner sugere a cláusula da
“boa-fé”, que agiria na reconstrução e no balanceamento das exigências externas no seio
contratual. Os elementos não consensuais do contrato constituem a reconstrução interna das
diversas exigências do meio envolvente social no contrato concreto, as quais surgem como
estruturas de expectativas do sistema contratual nos seguintes níveis: interação, institucional e
nível societário.
368
365
TEUBNER, op. cit., p. 232-233.
366
TEUBNER, O direito como sistema autopoiético, p. 234.
367
TEUBNER, op. cit., p. 235.
368
TEUBNER,. O direito como sistema autopoiético, p. 235-236. Com relação aos níveis, o autor salienta que o
nível de interação refere-se às relações pessoais entre as partes contratantes; o nível institucional refere-se ao
mercado e à organização além do contrato individual; o nível societário, por sua vez, refere-se à inter-relação
entre os grandes subsistemas sociais, como política, economia e direito”.
125
Dessa forma, “a cláusula geral pode ser vista como uma regra de conflitos, como
quadro de referência quer para a resolução de conflitos ou colisões em qualquer desses três
níveis de formação sistêmica, quer para a respectiva sincronização jurídica”. Diante disso, o
debate referente às cláusulas gerais “materializadas” direciona-se à questão da harmonização
de exigências sociais contraditórias da relação contratual concreta, podendo se falar de uma
“socialização” do direito pelas cláusulas gerais, bem como da intrusão da “factualidade
social” no direito dos contratos. A função “concretizadora” das cláusulas gerais consiste em
“reduzir o caráter indefinido dessa socialização, transformando a sua natureza casuística em
algo de mais sistemático”.
369
Realizando-se a distinção entre os três níveis e entre as exigências próprias no
contexto contratual, faz-se possível reformular o problema da indeterminação jurídica.
Identificando-se os níveis em que operam os “elementos não-consensuais do contrato”,
abrem-se as perspectivas para a elaboração dos critérios de seleção entre as diferentes
alternativas de indeterminação, que variam de acordo com o nível respectivo. De acordo com
um ponto de vista substantivo, o nível de abstração da integração das expectativas variará de
acordo com a interação entre as partes, suscitando expectativas de condutas contratuais que
sofrem a influência externa do mercado ou organização sobre o contrato, ou com a
incorporação no contrato individual de tarefas regulatórias sociais ou políticas. Outrossim,
considerando-se um ponto de vista temporal verifica-se a necessidade de uma determinação
mais precisa do grau de consolidação normativa ou da flexibilidade cognitiva das expectativas
de conduta que se afiguram mais apropriadas para cada nível particular. De acordo com um
ponto de vista social, significa que é necessário questionar sobre qual o grau de
institucionalização pressuposto para cada nível, decidindo-se em cada caso ora pela referência
a mecanismos sociais auto-regulatórios, ora, em caso de falha desses mecanismos, pela
necessidade de reformulação jurídica compensatória das expectativas de conduta. Como
conseqüência, constata-se que, no nível de interação, em se tratando de expectativas de
condutas informais, falhando a interação, caberá ao juiz a definição dos fins contratuais e dos
deveres de conduta “objetivos”. No nível institucional, quando ocorrer a “falha de mercado”,
os usos e costumes do comércio passam a ser substituídos pelo direito jurisprudencial das
relações econômico-comerciais, de deveres de informação e de padrões profissionais. No
nível societário, cabe às cláusulas gerais encontrar numa “política da lei” a sua referência,
369
TEUBNER, Gunther. op. cit., p. 237.
126
cabendo ao juiz, quando ocorrerem falhas dos mecanismos políticos, decidir sobre a definição
concreta da política jurídica”.
370
Retornando aos três níveis salientados anteriormente, verifica-se que, em nível de
interação, está-se perante um conflito entre o acordo contratual e a moral da interação. De
fato, as normas contratuais formalizadas no acordo negocial precisam de complementação de
expectativas informais, cuja origem não se encontra nas declarações de vontade nem são
derivadas de uma interpretação ex lege das normas jurídico-estaduais que determinam o
contrato. A coordenação recíproca das condutas e a estabilização no tempo propiciam o
surgimento e o desenvolvimento das normas informais de conduta, que possuem a função de
conformar a conduta das partes de modo algum inferior aos acordos realizados. No nível
institucional o conflito se dá entre o contrato e as instituições sociais, como o mercado e a
organização. Os contratos encontram-se integrados num contexto institucional mais amplo,
originando restrições que o direito contratual deve considerar. Nesse sentido, surge a cláusula
geral assumindo a função de regra de conflitos para as relações externas do contrato, ora
impondo obrigações contratuais adicionais, ora limitando os direitos contratuais e
assegurando, dessa forma, a adaptação das obrigações contratuais nas estruturas adicionais.
Constata-se que a redução da indeterminação ocorre nas dimensões fatual, temporal e
social.
371
Com relação à dimensão social, ocorre a substituição dos padrões sociais de
moralidade do tráfico econômico pela formulação de diretivas judiciais, isto é, no momento
em que houver uma falha de mercado, as normas complementadoras desse mercado serão
substituídas por medidas compensatórias, passando os pressupostos consensuais a serem
determinados pelas instâncias jurisdicionais. Isso modifica o nível de generalização na
dimensão fatual ou objetiva. No lugar das normas universais encontra-se agora, expectativas
funcionais particulares, para cuja consecução são utilizados novos conceitos dogmáticos, tais
como fim contratual, função e organização, que possuem a função de regular a definição
substantiva dos pressupostos de conduta. Tratando-se da dimensão temporal, a cláusula geral
torna-se mais flexível, assumindo um estilo cognitivo, isto é, as exigências funcionais
definem-se de forma a se adaptarem a cada situação, podendo, inclusive, ocorrer a sua
estabilização contra o consenso das partes. Por fim, tratando-se do nível societário, constata-
370
TEUBNER, O direito como sistema autopoiético, p. 237-239.
371
TEUBNER, O direito como sistema autopoiético, p. 239.
127
se um conflito entre o contrato e o seu meio envolvente social, isto é, subsistemas sociais
funcionais (política, economia, família, cultura e religião).
372
Verifica-se que, quando a diferenciação funcional aumenta, também aumenta a
autonomia desses subsistemas sociais e a interdependência. Na medida em que se intensificam
as fricções, as contradições e os conflitos, intensificam-se também as regulações sistêmicas
próprias. Os contratos agem como estabilizadores dessa interdependência. No entanto, muitas
vezes, além da estabilização corriqueira, faz-se necessária a introdução de mecanismos de
mediação capazes de resolver os conflitos surgidos entre os contratos e a envolvente social.
Nesse sentido, constata-se que a primazia ilimitada do consenso individual não pode
determinar a ordem contratual, mesmo que se trate de questões relativas à consciência
individual, às proibições religiosas, às regulações políticas ou de controle econômico.
Conseqüentemente, as cláusulas gerais, em virtude do seu alto grau de indeterminação,
tornam-se particularmente adequadas para conciliar as envolventes sociais instáveis,
possuidoras de exigências constantemente mutáveis e discrepantes.
373
Nesse sentido, fazendo-
se um paralelo com a cláusula geral da boa-fé, e sua variante da confiança, registra-se o
pensamento de Niklas Luhmann:
[...] la confianza reduce la complejidad social yendo más allá de la información
disponible y generalizando las expectativas de conducta en que remplaza la
información que falta con una seguridad internamente garantizada. De este modo, es
dependiente de otros mecanismos de reducción desarrollados paralelamente con
ésta, por ejemplo los de la ley, de la organización y, por supuesto, los del lenguaje,
sin embargo, no puede reducirse a ellos. La confianza no es la única razón del
mundo; pero una concepción muy compleja y estructurada del mundo no podrí
establecerse sin una sociedad definitivamente compleja, que a la vez no podría
establecerse sin la confianza.
374
Com base nessa assertiva, que encerra o ponto referente à cláusula geral da boa-
como meio de solução de conflitos intersistêmicos, faz-se a introdução do tópico seguinte,
conclusivo do trabalho até aqui exposto.
372
TEUBNER, op. cit., p. 241.
373
TEUBNER, O direito como sistema autopoiético, p. 241.
374
LUHMANN, Confianza, p. 164.
128
3.2 A CLÁUSULA GERAL DA BOA-FÉ OBJETIVA COMO POSSIBILIDADE DE
SOLUÇÃO DE CONFLITOS CONTRATUAIS PERANTE A CONCEPÇÃO SISTÊMICA
AUTOPOIÉTICA DO DIREITO
Conforme verificado no transcorrer do trabalho, a sociedade atual caracteriza-se pela
complexidade, pelas profundas mudanças sociais, pela troca de paradigmas nas diversas áreas
de conhecimento, pela transposição do sentido individual para o coletivo. Dessas
características sociais resultaram características aos contratos, imprimindo-lhes uma moldura
socializada, bem como a inquietação por uma concepção contratual adaptada às atuais
necessidades sociais, de cunho complexo e contingente.
A partir dessa realidade que dificulta as operações contratuais, Leonel Severo Rocha e
Jeferson Dutra salientam que por meio dos sistemas de comunicação faz-se possível
introduzir mecanismos de redundância com a finalidade de simplificar e facilitar a
compreensão para a contratação: as cláusulas gerais. De acordo com os autores, as cláusulas
gerais atuam material, temporal e socialmente, reduzindo a complexidade pela introdução de
uma complexidade organizada no sistema jurídico. A boa-fé, bem como a função social e o
equilíbrio econômico transformam-se em mecanismos reflexivos do próprio sistema jurídico,
permitindo o desdobramento auto-reflexivo, o que permite a satisfação das necessidades de
plasticidade e estabilidade das estruturas diante de um contexto complexo.
375
De acordo com os autores, a boa-fé objetiva, a função social e o equilíbrio contratual
permitem a auto-referência e a reflexividade do sistema jurídico. No entanto, a auto-
referência não representa apenas uma redundância, pois significa uma busca constante de
novas possibilidades a partir do que se tem. Com isso podem-se alcançar mais segurança e
coerência no direito, permitindo sua evolução e adaptação; adquirem-se novos direitos,
mantendo-se os já existentes.
376
No instituto contratual, por meio das cláusulas gerais, especificamente da boa-
objetiva, facilita-se a contratação, reduzindo-se a complexidade pela introdução de uma
complexidade organizada no sistema jurídico, o que resulta no aumento de possibilidades
disponíveis para a seleção. A boa-fé, atuando como um mecanismo reflexivo do próprio
375
ROCHA, Leonel Severo; DUTRA, Jeferson Luiz Dellavalle. Notas introdutórias à concepção sistêmista de
contrato. In: Anuário do programa de pós-graduação em Direito: mestrado e doutorado. ROCHA; STRECK
(Org.) São Leopoldo: Unisinos, 2005, p. 304.
376
ROCHA; DUTRA, op. cit.,. 307.
129
sistema jurídico, permite-lhe o desdobramento auto-reflexivo, que facilita a satisfação das
necessidades num contexto altamente complexo.
Com a introdução da cláusula geral da boa-fé objetiva nas relações contratuais agindo
com indeterminação, vagueza semântica e abertura, permite-se tratar da complexidade
aumentando as possibilidades, pois, quando age como um mecanismo reflexivo, permite o
desdobramento auto-reflexivo, possibilitando a reprodução do direito, das cláusulas
contratuais, de forma a adaptá-las ao caso, o que justifica o enquadramento do contrato na
teoria sistêmica autopoiética. Nesse sentido, utiliza-se como exemplo de aplicação da cláusula
geral da boa-fé nos contratos os “contratos cativos de longa duração” ou “contratos
relacionais”, que Cláudia Lima Marques define como uma série de novos contratos que se
utilizam dos métodos de contratação de massa, fornecendo serviços especiais ao mercado, o
que origina relações jurídicas complexas de longa duração, utilizando diversos fornecedores e
colocando o cliente numa posição de dependência.
377
A autora, entre outros que serão a seguir relacionados, quando salienta as noções sobre
os contratos relacionais, refere as lições de Ian McNeil, para quem os contratos cativos de
longa duração receberam a denominação de “contratos relacionais”, os quais priorizam os
elementos sociológicos que condicionam o nascimento e a estabilidade destes contratos.
Ocorre que, pela análise das relações não contratuais, que se baseiam em relações de troca, de
confiança, de solidariedade e de cooperação, desenvolveu-se a noção de um contrato “aberto”,
contínuo e duradouro, sendo plenamente modificável pelos usos e costumes, bem como pelas
necessidades atuais das partes.
378
Especificamente com relação à confiança, elemento
essencial no desenvolvimento dos contratos de longa duração, Niklas Luhmann salienta:
377
MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 79.
De acordo com a autora, “a posição de dependência ou, como aqui estamos denominando, de ‘catividade’, só
pode ser entendida no exame do contexto das relações atuais, onde determinados serviços prestados no mercado
asseguram (ou prometem) ao consumidor e sua família status, ‘segurança’, ‘crédito renovado’, ‘escola ou
formação universitária certa e qualificada’, ‘moradia assegurada’ ou mesmo ‘saúde’ no futuro. A catividade há
de ser entendida no contexto do mundo atual, de indução ao consumo de bens materiais e imateriais, de
publicidade massiva e métodos agressivos de marketing, de graves e renovados riscos na vida em sociedade, e de
grande insegurança quanto ao futuro”.
378
MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, 2004,
p. 82.
130
La comunicación de interés en la exposición de la confianza, la presentación del sí
mismo como confiable, la aceptación y el intercambio de la confianza son todos
esforzos para intensificar y generalizar las relaciones sociales que resultan ser, al
menos en las relaciones a largo plazo, tanto la oportunidad como la restricción. De
este modo, se forma el elemento de control social en las relaciones de confianza. La
confianza se acumula como una especie de capital que ofrece más oportunidades
para una acción más extensa, pero que debe usarse y dirigirse continuamente y que
obliga al que la utiliza a una autopresentación confiable de la que solamente puede
escapar con gran dificultad.
379
Quem atua com confiança possui maiores oportunidades, mas deve se conduzir
continuamente com base na confiança, tanto em suas ações como em seu sentimento; assim,
estará possibilitando o aumento de oportunidades. No caso da cláusula geral da boa-fé,
baseando-se na confiança das partes no contrato firmado torna-se possível alcançar novas
formas de solução dos conflitos, pela autoprodução do direito relativo ao caso, que,
prioritariamente, atenda às necessidades das partes.
Gunther Teubner, referindo Ian McNeil, salienta sobre os contratos relacionais:
Em contraste com o modelo simplista do consenso negocial, o modelo relacional
sublinha a “interação e cooperação entre os participantes, a emergência de valores e
necessidades específicas, a processualização das relações contratuais, a incidência
marginal do direito contratual formal na práxis negocial, e a ambivalência da
‘juridificação’ do contrato originada na seqüência de numerosas intervenções
estatais”. Köndgen descreveu este pensamento relacional do direito dos contratos
como um “afastamento do dogma da validade última quase codificada do consenso
contratual”, o que implica “uma análise ‘microscópica’ das expectativas particulares
e percepções de reciprocidade das partes contratantes e uma avaliação
‘macroscópica’ das mutações dos nossos níveis de expectativas no moderno estado
social”.
380
O modelo relacional afasta-se da idéia do contrato como criação da vontade única das
partes envolvidas na relação jurídica. Essas novas idéias denotam a flexibilidade existente
entre a relação obrigacional e a realidade social, o que acabou resultando num conceito de
contrato como sistema social aberto ao meio envolvente, isto é, um contrato, uma relação
contratual, que, além do consenso entre as partes, também apresenta problemas funcionais que
devem ser resolvidos através de uma relação com o meio. No entanto, essa dupla dependência
coloca a relação contratual diante de um conflito de exigências estruturais contraditórias. No
entanto, segundo Teubner, este modelo encontra-se dentro da moldura da teoria dos sistemas
379
LUHMANN, Confianza, p. 111.
380
TEUBNER, O direito como sistema autopoiético, p. 233.
131
abertos, teoria da contingência do contrato, na qual as estruturas contratuais aparecem como
variáveis que dependem da envolvente sistêmica. Diante desse fato, o autor sugere uma
reformulação, uma “radicalização autopoiética”, por meio da qual se poderia dar uma direção
construtivista a essa situação, fornecendo níveis adicionais de observação. A partir disso, a
relação contratual apareceria como um sistema de interação auto-reprodutivo entre as partes,
sendo as estruturas formadas através da relação conflitual com o meio envolvente
autodefinido. De acordo com o autor, essa situação representa uma versão sistêmico-subjetiva
da teoria da contingência de Deggau, na qual impulsos externos não influenciam diretamente
o contrato, mas manifestam-se pelo conflito antes descrito, resultando na indeterminação.
Como solução, aplica-se a boa-fé com o objetivo de diminuir a indeterminação, pela
reconstrução e balanceamento das exigências externas na relação contratual.
381
Por meio da boa-fé e da confiança, faz-se possível diminuir a indeterminação e a
contingência, possibilitando a solução dos conflitos contratuais e a satisfação das expectativas
das partes contratantes.
No entanto, Teubner, no artigo denominado “Mundos contratuais: o direito na
fragmentação de regimes de private governance”,
382
formulou uma nova concepção para a
teoria dos contratos relacionais, considerando a intertextualidade, isto é, a relação não entre
pessoas, mas entre textos, em vista da pluralidade de discursos que dominam a sociedade pós-
moderna. O autor inicia sua análise referindo as radicais transformações sociais ocorridas em
vista do processo crescente de globalização. A partir disso, surge a questão referente à
possibilidade de “reconstrução do direito privado”, o que traz à tona o fato de que a obrigação
deixou de existir entre dois contratantes, situando-se entre dois textos. Diante disso, o autor
refere que o direito contratual deveria ser reconstruído nos moldes do “contrato relacional”,
não baseando-se somente na cooperação, na simpatia, hoje predominantes, também através de
uma relação fria e impessoal de intertextualidade.
O contrato deveria se tornar um espaço de compatibilidade entre vários projetos
discursivos. A sociedade mundial, atualmente, encontra-se fragmentada em vários discursos
fechados, em diferentes linguagens. A essa realidade, chama-se policontexturalidade,
383
sendo
381
TEUBNER, op. cit., p. 234-236.
382
TEUBNER, Gunther. Mundos contratuais: o direito na fragmentação de regimes de private governance.
In:_______. Direito, sistema e policontexturalidade. Piracicaba: Editora Unimep, 2005, p. 270-297.
383
TEUBNER, op. cit., p. 289. Com relação à policontexturalidade, o autor salienta que a transformação do
direito privado deveria se dar tendo em vista a policontexturalidade. O direito privado opera num acoplamento
estrutural com o sistema econômico, intermediado pela propriedade e pelo contrato, dessa forma, se reduz a um
acoplamento monocontextural. O direito privado acaba recebendo as informações sobre a sociedade através do
cálculo custo-benefício do discurso econômico, para após proceder à solução do conflito. A partir dessa
constatação se verifica a necessidade de o direito privado manter contato com outros subsistemas sociais que
132
o novo desafio do direito a sua reconstrução em vista dessa nova realidade. A sociedade
global é formada por vários contratos. O contrato aparece como uma relação entre vários
discursos, e é intertextualidade.
384
Leonel Severo Rocha apresenta a característica
policontextural do direito referindo:
Por policontexturalidade, entende-se a proposta de uma metáfora dotada de um valor
heurístico para a observação de vários sistemas (política, economia, Direito) que
atuam segundo racionalidades específicas, e, sobretudo, levam a produção de
ressonância nos demais sistemas (economia, por exemplo) através da utilização de
instrumentos jurídicos, num processo social co-evolutivo.
385
A perspectiva relacional introduz a dimensão temporal, na qual ocorre a mudança de
expectativas, a institucionalização por meio da qual as obrigações formais de trocas se tornam
materiais, e a geração normativa estende-se além da celebração do contrato, ocasionada pela
interação e pela cooperação. O contrato relacional inclui a adaptação informal recíproca,
novas interpretações em vista de novas ocorrências, como também uma moral interativa.
386
Com base nessa breve introdução, constata-se que um novo conceito de contrato
relacional deve revelar as diferentes lógicas que se encontram em contradição na sociedade.
Quando se utiliza o termo “relacional”, deve-se pensar tanto em adequar o contrato às
exigências de cooperação, adaptação e boa-fé (já descrita na análise deste tópico), como às
exigências que se contradizem, oriundas de vários âmbitos de atuação, como uma relação de
conflitos entre discursos, jogos lingüísticos, sistemas, textualidades e projetos colidentes. A
seguem critérios racionais. Como exemplo o autor cita o uso pelo direito contratual das “cláusulas gerais dos
bons costumes” para declarar inválido um contrato que economicamente faz sentido, usando como fundamento
critérios não econômicos, ou utilizando-se da “boa-fé” acaba compensando os critérios econômicos com outros
critérios da sociedade. P. 293, Também segundo o autor, objetiva-se transformar o direito privado em si, em um
novo direito constitucional, isto é, a constituição social dos “private governance regime” que agem
politicamente. Se os sistemas de regulamentação privada produzem direitos que normatizam e regulamentam,
submetendo à sua jurisdição grandes áreas de atividade social, faz-se necessário uma constituição para esses
regimes privados. Um direito privado alterado poderia assumir o papel de uma constituição social que proteja as
autonomias do direito civil. Com isso, buscam-se instituições jurídicas e políticas impostas externamente contra
as tendências autodestrutivas de sistemas sociais em expansão.
384
TEUBNER, op. cit., p. 271-277.
385
ROCHA, CARVALHO, Policontexturalidade jurídica e estado ambiental. In: SANTOS; STRECK; ROCHA
(Org.) et al. p. 143.
386
TEUBNER, Mundos contratuais: o direito na fragmentação de regimes de private governance. In: Direito,
sistema e policontexturalidade, p. 280.
133
intersubjetividade do contrato, representada por duas ou mais pessoas, está sendo ultrapassada
por relações mais complexas de intertextualidades.
387
Conseqüentemente, o nexo contratual inicia um movimento ultracíclico entre os
sistemas sociais, possibilitando que através da autopoiesis, ad hoc e momentaneamente,
possam-se explorar os ciclos de auto-reprodução de outros sistemas, não questionando sua
autonomia.
388
De acordo com Cláudia Lima Marques, a contribuição desses novos estudos sobre os
contratos relacionais para a teoria contratual brasileira centraliza-se
na criação de um modelo teórico contínuo que engloba as constantes renegociações
e as novas promessas, bem destacando que a situação externa e interna de catividade
e interdenpendência dos contratantes faz com que as revisões, novações ou
renegociações contratuais naturalmente continuem ou perenizem a relação de
consumo, não podendo estas, porém, autorizar abusos da posição contratual
dominante ou validar prejuízos sem causa ao contratante mais fraco ou superar
deveres de cooperação, solidariedade e lealdade que integram a relação em toda a
sua duração.
389
De fato, a teoria do contrato relacional, por meio do seu modelo contínuo e que
favorece as renegociações, pode contribuir, especialmente nos contratos de mútuo e de
fornecimento de serviços, para uma nova compreensão da confiança despertada pela atividade
dos fornecedores, bem como para a aceitação de uma nova conduta, que favoreça a
readaptação permanente nas relações de longa duração, de forma que se dificulte a frustração
387
TEUBNER, op. cit., p. 281-284. O entendimento intertextual comporta três dimensões, que correspondem à
relação entre colagens de expectativas. O contrato vincula os interesses que existem como textos. A segunda
dimensão reconstrói o contrato como um “projeto discursivo”. Prevalece o dualismo de textos, representado
tanto pelo discurso originário como pela sua transformação em um novo texto através de promessas e
cumprimentos contratuais. “A obrigação do contrato é a obrigação de um texto, em face de sua transformação
recursiva em um outro texto, com uma indicação da direção que é definida pelo contrato”. A terceira dimensão
salienta que o contrato se aperfeiçoa como uma “tradução” mútua de projetos discursivos. O contrato traduz
informações do projeto produtivo para o econômico e o jurídico e vice-versa. No entanto, entre discursos, a
transmissão de sentidos é impossível, mas necessária, ocorrendo por meio de “mal-entendidos” produtivos. Um
discurso somente reconstrói o sentido de outro com seus próprios termos, em seu contexto, no entanto pode, por
meio de irritação externa, se aproveitar do material de sentido dos demais discursos, criando algo novo no seu
interior. Isso vai gerar valor agregado. Por meio da tradução contratual cada discurso pode entender mal aos
demais, de forma reconstrutiva, tirando proveito quando lhe aprouver.
388
TEUBNER, Mundos contratuais: o direito na fragmentação de regimes de private governance. In: Direito,
sistema e policontexturalidade, p. 286.
389
MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p. 83.
134
das expectativas das partes contratantes, apesar da limitada vontade manifestada.
390
Corroborando o exposto, Niklas Luhmann refere: “La confianza emerge gradualmente en las
expectativas de continuidad, que se forman como princípios firmes com los que podemos
conducir nuestras vidas cotidianas”.
391
Entre as características dos contratos relacionais destaca-se, muitas vezes, como objeto
principal um evento futuro, certo ou incerto, e a transferência (onerosa e contratual) de riscos
referentes à futura necessidade. Outrossim, para atingir o objetivo contratual os consumidores
manterão relações de convivência e de dependência com os fornecedores desses serviços,
relações que se prolongam no tempo, pagando mensalmente suas contribuições e seguindo as
instruções regulamentadoras dos fornecedores, os quais podem usufruir ou não dos serviços
contratados. Os contratos de longa duração geralmente são controlados pelo Estado ou por
conselhos profissionais; são negócios jurídicos privados, mas que, em virtude da sua
importância econômica e social, levam o Estado a autorizar e fiscalizar o seu funcionamento e
conteúdo.
392
Portanto, está-se diante de uma nova visão da obrigação, caracterizada como um
complexo de atos, condutas e deveres que se prolongam no tempo, estendendo-se do
nascimento à extinção do vínculo. Aceitar a existência de deveres de conduta anexos aos
contratos ou obrigações acessórias oriundas do princípio da boa-fé objetiva (como o dever de
informar, de cooperar, dever de cuidado, de sigilo, de conselho, de lealdade etc.) significa
reconhecer um novo espaço para a boa-fé no mercado, boa-fé criadora de deveres de conduta
contratual. De fato, reconhecer a boa-fé objetiva como um novo princípio para orientar as
condutas nos contratos cativos, relacionais, é o mesmo que reconhecer a limitação para o
exercício dos direitos subjetivos.
393
390
MARQUES, op. cit., p. 84. Com relação aos contratos de serviços, a autora salienta que “a estrutura dos
contratos cativos de longa duração caracterizam-se, através dos contratos de serviços, como serviços que
prometem segurança e qualidade, serviços cuja prestação se protrai no tempo, de trato sucessivo, com uma fase
de execução contratual longa e descontínua, de fazer e não fazer, de informar e não prejudicar, de prometer e
cumprir, de manter sempre o vínculo contratual e o usuário cativo. São serviços contínuos e não mais imediatos,
serviços complexos e geralmente prestados por fornecedores indiretos, fornecedores-‘terceiros’, aqueles que
realmente realizam o ‘objetivo’ do contrato, daí a grande importância da noção de cadeia ou organização interna
de fornecedores e sua solidariedade. O contrato é de longa duração, de execução sucessiva e protraída, trazendo
em si expectativas outras que os contratos de execução imediata. Estes contratos baseiam-se mais na confiança,
no convívio reiterado, na manutenção do potencial econômico e da qualidade dos serviços, pois trazem implícita
a expectativa de mudanças das condições sociais, econômicas e legais na sociedade nestes vários anos de relação
contratual. A satisfação da finalidade perseguida pelo consumidor (por exemplo, futura assistência médica para
si e sua família) depende da continuação da relação jurídica fonte de obrigações. A capacidade de adaptação, de
cooperação entre contratantes, de continuação da relação contratual é aqui essencial, básica”. p. 87.
391
LUHMANN, Confianza, p. 41.
392
MARQUES, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais,
p. 88-89.
393
MARQUES, op. cit., p. 91.
135
O contrato passou a ser visto como uma relação complexa, cativa e de longa duração,
o que lhe acarretou uma visão dinâmica, demonstrando a sua especialidade e importância
social, bem como a necessidade de uma nova interpretação das obrigações assumidas, de uma
visualização mais precisa dos deveres principais e secundários existentes nessas relações
contratuais e de que, tendo em vista a confiança despertada nas partes contratantes, o
paradigma máximo há de ser o princípio da boa-fé objetiva.
394
Nesse sentido, Luhmann
assevera:
En vez de amarse uno mismo contra la incertidumbre de la otra persona en la intensa
complejidad de todas as posibilidades, uno puede tratar de reducir la complejidad
concentrándose en la creación y conservación de la confianza mutua, y
comprometerse en una acción más significativa con respecto a un problema ahora
más estrechamente definido. Presumiblemente, si esto se conociera mejor podría
dársele un mejor uso de las oportunidades que esta circunstancia ofrece.
395
Também José Carlos Moreira da Silva Filho, referindo a necessidade de um novo
enfoque para a “pessoa humana”, salienta tanto a ênfase constitucional na dignidade da pessoa
humana, como a análise da complexidade das relações contratuais, que se prolongam no
tempo indicando a necessidade de haver uma maior interação entre as partes durante o
desenvolvimento do contrato, o que favorece a inclusão das teorias relacionais do contrato. A
conexão entre o conceito de pessoa e o plano das relações contratuais ocorre por meio do
princípio da boa-fé,
396
corroborando as idéias expostas anteriormente.
Outrossim, justificando a relação existente entre as teorias relacionais e o princípio da
boa-fé, cita-se Ronaldo Porto Macedo Júnior, estudioso dos contratos relacionais:
394
MARQUES, op. cit., p. 92.
395
LUHMANN, Confianza, p. 112.
396
SILVA FILHO, Pessoa humana e boa-fé objetiva nas relações contratuais: a alteridade que emerge da
ipseidade. In: COPETTI; STRECK; ROCHA (Org.) Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: programa de
pós-graduação em Direito da Unisinos: mestrado e doutorado. p. 133.
136
Há elementos que evidenciam a importância da boa-fé dentro da perspectiva
relacional, notadamente o fato de que, em primeiro lugar, ela lembra a incompletude
dos contratos, os limites da capacidade de previsão humana, os custos e as ameaças
à solidariedade, as barreiras insuperáveis para a comunicação perfeita e sem ruídos.
Em segundo lugar, ela enfatiza, valoriza e torna juridicamente protegido o elemento
de confiança (‘trust’), sem o qual nenhum contrato pode operar. Em terceiro lugar,
ela evidencia a natureza participatória do contrato, que envolve comunidades de
significados e práticas sociais, linguagem, normas sociais e elementos de vinculação
não-promissórios (não-contratuais). Assim, a boa-fé realça o elemento moral das
relações contratuais. Por fim, a boa-fé contratual envolve uma concepção moral de
fazer algo corretamente e, neste sentido, reporta-se a uma concepção de Justiça
Social [...].
397
A boa-fé, em sua dimensão objetiva, faz surgir a necessidade social e institucional de
haver confiança entre as pessoas, o que origina determinados parâmetros de comportamento
que transcendem a vontade das partes. Esses parâmetros relacionam-se com as circunstâncias
e peculiaridades de cada relação e dos sujeitos. O tempo dos contratos deixou de ser o tempo
estagnado, tornando-se o tempo da continuidade, que abrange, além do atual, o tempo anterior
e posterior à realização do contrato.
398
Outrossim, constata-se que a previsibilidade do contrato, além da reafirmação das
cláusulas estipuladas, ocorre também pela renegociação que deve se dar constantemente entre
as partes, o que leva à revisão ou, mesmo, à alteração do pactuado, para que o contrato possa
atingir o seu objetivo. Em virtude da velocidade das relações econômicas, ao contrato é
exigida uma constante flexibilidade e capacidade de adaptação.
399
Segundo José Carlos Moreira da Silva Filho:
Através da boa-fé objetiva, fica evidente o apelo a uma concretização do contrato no
plano das efetivas e cambiantes relações entre pessoas de carne e osso, sujeitas à
imprevisibilidade e desvios que sua condição histórico-temporal lhes traz, e que
apresenta, na contrapartida, a possibilidade de que as relações sociais, mesmo entre
pessoas de interesses opostos, possam crescentemente se apoiar na confiança mútua,
na qual a palavra dada se mantém através de um entendimento que se firma a cada
vez, no cenário real do mundo da vida, e não simplesmente no plano abstrato do ato
jurídico perfeito.
400
397
MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto. Contratos relacionais e defesa do consumidor. São Paulo: Max
Limonad, 1998, p. 231.
398
SILVA FILHO, Pessoa humana e boa-fé objetiva nas relações contratuais: a alteridade que emerge da
ipseidade. In: COPETTI; STRECK; ROCHA (Org.) Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: programa de
pós-graduação em Direito da Unisinos: mestrado e doutorado. p. 134.
399
SILVA FILHO, op. cit., p. 134.
400
SILVA FILHO, Pessoa humana e boa-fé objetiva nas relações contratuais: a alteridade que emerge da
ipseidade. In: COPETTI; STRECK; ROCHA (Org.) Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: programa de
pós-graduação em Direito da Unisinos: mestrado e doutorado, p. 136.
137
Do exposto verifica-se que os contratos cativos, complexos de longa duração, também
denominados “contratos relacionais”, protraem-se no tempo, tendo de ser constantemente
adaptados às circunstâncias sociais, bem como às possibilidades e necessidades dos
contratantes, o que lhes permite reconstruir o direito e as cláusulas contratuais de acordo com
as circunstâncias atuais e com as partes da relação, quando consideradas a boa-fé e a
confiança como fundamento da relação jurídica estabelecida.
Essa situação criada pelos contratos relacionais exemplifica e justifica a aplicação da
cláusula geral da boa-fé objetiva e da concepção sistêmica autopoiética ao instituto contratual,
como meio possível de solução dos conflitos, pois permite a autoprodução do direito para o
caso num mundo complexo, contingente e global.
138
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista a nova visão do direito, originada nas constantes transformações
sociais que ocorrem em decorrência do processo de globalização vivenciado atualmente,
torna-se necessária a realização de estudos, que proporcionem uma releitura, bem como uma
outra compreensão sobre os institutos jurídicos. Diante dessa assertiva, realizou-se a presente
pesquisa, que primou pela seleção de um tema importante tanto para o direito como para as
relações sociais.
A partir dessa posição, procedeu-se à escolha do tema, que recaiu no instituto
contratual, delimitando-se na área dos princípios contratuais, mais especificamente no
princípio da boa-fé objetiva, considerado como cláusula geral, bem como em torno da
concepção sistêmica autopoiética, considerada uma nova teoria para se trabalhar a ciência do
direito. A partir da delimitação do tema, o problema proposto questionou a possibilidade de
aplicação da cláusula geral da boa- objetiva como possibilidade de solução dos conflitos
contratuais perante a concepção sistêmica autopoiética do direito.
O princípio da boa-fé tornou-se um dos focos do trabalho em vista da abrangência que
adquiriu através das novas disposições legais, possuindo a função de orientador dos negócios
jurídicos com fundamento na confiança, na lealdade e na transparência. A teoria sistêmica
autopoiética, por sua vez, tornou-se outro foco de pesquisa, porque proporciona uma releitura
do direito, por meio da qual introduz conceitos como “complexidade, contingência,
autoprodução, flexibilidade”, que favorecem uma nova interpretação, originando a adaptação
das relações negociais ao meio social em que se desenvolvem.
Para alcançar o objetivo proposto, o trabalho realizou-se em três capítulos. O primeiro
referiu-se ao instituto contratual, priorizando-se sua conceituação, as fases, bem como as
características adquiridas de acordo com as transformações sociais. O segundo tratou dos
princípios contratuais, com ênfase ao princípio da boa-fé objetiva, e o terceiro capítulo
centralizou-se nas cláusulas gerais e na teoria sistêmica autopoiética do direito. Após as
análises realizadas sobre os temas selecionados, faz-se possível sistematizar algumas
considerações com o intuito de se verificar o alcance do objetivo proposto.
Com relação ao instituto contratual, verificou-se por meio da análise realizada que o
contrato sempre existiu nas relações entre os indivíduos, ressaltando-se que, em paralelo com
a evolução social, ocorreu o desenvolvimento das características contratuais.
139
Com o advento do Estado moderno, em sua versão liberal, caracterizada pelo
individualismo e pela total liberdade, o contrato adquiriu a moldura tradicional e clássica que
dominou a legislação até a entrada em vigor das novas disposições legais regulamentadas na
Constituição Federal brasileira, no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil de
2002. Oriundo da fase liberal destaca-se o contrato de concepção clássica, que apresentava
como princípios orientadores a autonomia da vontade, a liberdade de contratar, a
obrigatoriedade do pactuado, o relativismo, a igualdade formal e o consensualismo, entre
outros. Tem-se um contrato formado unicamente por meio da vontade das partes contratantes,
ao qual não era permitido qualquer modo de intervenção estatal, o que fez surgir a regra de
que o contrato fazia lei entre as partes.
O contrato ocupou a posição principal na vida econômica, assegurando às partes a
plena capacidade de criar direitos e obrigações. Decorrente dessa situação, a função do direito
limitava-se à proteção da vontade dos contratantes, bem como a assegurar os efeitos
pretendidos com o negócio realizado.
No entanto, durante a fase do Estado Liberal iniciou-se a busca pela justiça social
como conseqüência das novas necessidades resultantes do crescente desenvolvimento e da
impossibilidade de satisfação de todos os cidadãos. Dessa forma, aumenta a complexidade na
sociedade, tornando-a um meio propício para o desencadeamento das crises decorrentes das
ideologias sociais. Como resultado dessa crise, operou-se também a crise da teoria contratual
tradicional. Surgiu a massificação das relações contratuais, que alterou drasticamente a forma
de contratação, bem como a troca do objeto de interesse pelo consumidor. Passou-se à
valorização dos serviços, do lazer e do transitório, o que levou a uma releitura dos princípios
do direito civil, influenciada pelo direito público e pelos direitos fundamentais. Dessa forma,
iniciou-se a transformação do Estado Liberal no Estado Social, trazendo como característica
marcante o surgimento da legislação extravagante voltada ao social e à defesa da coletividade.
O Estado Social tinha como características a proteção do cidadão e o intervencionismo
em áreas até então pertencentes unicamente à esfera privada. Iniciou-se a limitação da
liberdade contratual e econômica. Despertou na sociedade da época a idéia de coletividade, de
cooperação e de ajuda mútua. Isso resultou numa nova concepção do contrato, que foi
obrigado a adaptar-se às realidades sociais, políticas e econômicas, adotando uma postura
mais flexível e social, buscando soluções mais justas e eqüitativas. A partir desse momento,
limitou-se a autonomia da vontade por meio do intervencionismo estatal, criando-se espaço
para o desenvolvimento de uma principiologia, voltada para a funcionalização, o coletivo e a
140
solidariedade, os quais proporcionaram a releitura dos princípios existentes por meio da sua
limitação.
Dessa forma, o conceito de contrato passou a apresentar uma concepção social, na
qual passaram a interagir a manifestação da vontade, o consenso, o efeito que exerce na
sociedade e nos terceiros.
No entanto, a sociedade atual, caracterizada pela complexidade e pela globalização,
fez surgir a necessidade de novas tendências para a ciência jurídica, especificamente para o
contrato. De fato, como conseqüência do aumento da complexidade, ocorre o aumento dos
conflitos sociais, que necessitam de outras soluções para as questões apresentadas. A essa
sociedade denominada “pós-moderna”, o direito não consegue proporcionar todas as
respostas, o que demonstra a expressiva distância entre o desenvolvimento social e o
desenvolvimento contratual. A sociedade adquire as características do pragmatismo, do
relativismo, da pluralidade, da complexidade e do risco, passando a encontrar o seu
fundamento na circulação das informações, o que facilita a realidade multinacional, a
sociedade sem fronteiras.
Em conseqüência dessa transformação social, o contrato tornou-se dinâmico,
complexo, com fazeres de longa duração; tornou-se múltiplo, conexo, triangular ou plúrimo,
compondo seus pólos com vários agentes. Diante dessa realidade e da falta de regras capazes
para sua regulamentação, passou-se a valorizar a confiança, a informação, a palavra
empregada e a consideração do risco. Valorizam-se as expectativas das partes contratantes, a
boa-fé depositada na efetiva realização do negócio e a conduta das partes baseada na
confiança e na lealdade, o que resulta em um contrato mais abrangente, humano e social.
Conforme se verificou, as transformações ocorridas no direito em geral, bem como nos
contratos, evidenciaram a releitura dos valores da sociedade, os quais adquiriram, por meio da
evolução social, novas configurações. Como representativos dos valores sociais salientam-se
os princípios que informam e orientam as relações e que atuam como meio possível para o
alcance do equilíbrio e da segurança jurídica.
Os princípios são considerados a base do ordenamento jurídico, representando os
valores fundamentais da sociedade; atuam como orientadores do sistema no qual se
encontram inseridos, agindo como suporte para o funcionamento jurídico na sociedade. Os
princípios, através da circularidade que realizam em seu meio interagem, autoproduzem-se e
comunicam-se com os demais elementos do sistema e dos subsistemas. São considerados
elementos da autopoiese do direito, superando os paradoxos da ciência jurídica por meio da
sua evolução.
141
Também, os princípios apresentam-se como expectativas normativas, pois possuem
conteúdo e juridicidade. A boa-fé objetiva, como um princípio que orienta as relações
contratuais por meio da lealdade e da confiança, representa uma expectativa normativa
almejada pelas partes, que permite a constante reprodução na relação jurídica, produzindo o
direito.
A boa-fé, como em geral todos os princípios, teve a sua concepção modelada segundo
a ideologia dominante. De uma concepção subjetiva que denotava crença e estado subjetivo,
passou a ser considerada uma regra de conduta, responsável pela existência de deveres anexos
nas relações contratuais. Estes deveres são de lealdade, confiança, transparência e de
cooperação no desenvolvimento do negócio firmado. Por meio desses deveres, a relação passa
a ser considerada como um todo, tanto do ponto de vista estrutural e funcional como também
com relação ao conteúdo. A relação passa a ser considerada como um vínculo dinâmico,
baseado na boa-fé objetiva.
Conseqüentemente, passam-se a considerar as expectativas e intenções das partes
contratantes diretamente relacionadas com os deveres e os valores, o que faz surgir a
necessidade de um sistema que tanto possibilite a composição dos valores opostos que surgem
durante o desenvolvimento da relação jurídica como torne possível a produção de decisões
que satisfaçam aos interesses em questão. De fato, a boa-fé, em vista da abrangência que
exerce nas relações contratuais, é considerada uma premissa decisória, que prioriza a justiça e
a eqüidade através da valorização da confiança, da lealdade e da transparência. Ocorre que,
por meio da decisão, o direito produz diferença e reinicia a sua própria autopoiese. A partir do
momento em que decide com base na boa-fé, o direito recria suas premissas de validade,
enfrentando por meio das decisões as possibilidades de risco. Quando, diante de um caso
concreto, decide com base na boa-fé, em vistas das expectativas das partes, produz diferença e
direciona-se para o futuro. Dessa forma, ao se decidir utilizando-se a cláusula geral da boa-
objetiva como meio de solucionar conflitos no direito contratual, por meio da concepção
sistêmica autopoiética do direito, o direito se autoproduz, produz diferenças e direciona-se
para o futuro, um futuro incerto e invisível, inserido numa sociedade complexa e globalizada.
Portanto, infere-se que a cláusula geral da boa-fé objetiva pode ser utilizada como solução de
conflitos intersistêmicos.
Por meio da confiança despertada na relação contratual, as partes direcionam suas
ações seguindo determinados padrões de conduta com o intento de reduzir o risco de
frustrações, reduzindo também, dessa forma, a complexidade existente. Como funções da boa-
fé que auxiliam a atingir esse objetivo destaca-se a função interpretativa, a controladora de
142
condutas, bem como a função que possibilita a correção e adaptação no caso de alteração das
circunstâncias que envolvem o negócio. Como visto, as funções da boa-fé corroboram a idéia
defendida sobre a consideração da boa-fé como um mecanismo de solução de conflitos, que
facilita a flexibilização do contrato, conduta necessária diante do contexto social atual.
Com base no exposto, verificou-se que o direito se encontra em um momento de crise,
que denota a ruptura existente entre o direito civil tradicional e o novo direito civil,
originando novos conflitos na sociedade. A crise manifesta-se na dificuldade encontrada pelo
direito na sua função de produção de regras, como também quando tem a sua legitimidade
contestada em vista de não encontrar soluções que satisfaçam os conflitos surgidos. Começam
a surgir relações fora do direito, na “dobra do direito”, com condutas não regulamentadas,
bem como contrárias ao que se encontra regulamentado. Surgem novos fatos e conceitos, que
se colocaram ao lado do que estava definitivamente regulamentado, gerando o
questionamento. Faz-se necessário encontrar um meio que possibilite soluções adaptadas ao
contexto flexível, poroso e em constante transformação. A essa situação utiliza-se a teoria
sistêmica autopoiética como meio para a solução dos conflitos, pois permite a visão da
realidade em interação, em movimento, em sua complexidade e contingência. Desta forma,
dentro desta realidade, faz-se a análise do contrato, o que possibilitou encontrar as soluções
necessárias para os conflitos pelo uso da cláusula geral da boa-fé objetiva. De fato, por meio
da concepção sistêmica autopoiética, faz-se possível ir além da concepção de contrato até aqui
descrita.
A teoria dos sistemas e a teoria da autopoiese proporcionam uma visão generalizada
da sociedade em sua complexidade, favorecendo, dessa forma, a compreensão e a
interpretação dos fenômenos de forma inter-relacionada e integrada, numa constante
autoprodução. Através dos sistemas autopoiéticos pode-se visualizar uma nova realidade em
constante movimento no contexto que a cerca. A sociedade passa a ser considerada como um
conjunto de sistemas, formado por subsistemas, que se encontram em constante crescimento,
transformação e autoprodução. As relações acontecem inseridas num contexto envolto por
uma realidade complexa e globalizada, sendo, dessa forma, consideradas integrantes de um
todo maior, no qual adquirem o sentido específico que possuem, mas que somente se torna
valorado enquanto parte de um todo maior, resultante das comunicações que realiza.
A condição de sistemas autopoiéticos confere um sentido de abertura para o contexto
no qual se encontra inserido, bem como a característica de fechamento em si mesmo, por
meio do qual realiza a sua autoprodução. Pode-se dizer um sistema aberto e fechado, no qual
143
acontecem simultaneamente a autoprodução, que conduz a sua autonomia, e a inter-relação,
através da qual efetua as trocas de influências com o meio circundante.
Do exposto, constatou-se com a pesquisa realizada a necessidade de alteração do
modo de se visualizar o direito. Deve-se favorecer uma maior interpretação dos fenômenos
sociais e jurídicos para que sejam considerados em relação com as inter-relações, a
autoprodução, a interdependência e a influência que realizam no e com o meio no qual se
inserem. Deve-se oportunizar a caracterização do direito como uma ciência sistêmica e
autopoiética, que permite a apreciação da ciência jurídica de forma aberta, autoproduzindo-se
e desenvolvendo-se em sintonia com a sociedade complexa, contingencial e globalizada da
atualidade.
De fato, a sociedade complexa, com grande contingência, faz surgir a possibilidade do
risco. Com isso, verifica-se a pertinência da teoria sistêmica autopoiética, pois permite a
consideração das contingências e dos riscos, analisando-os e recriando o seu direito, conforme
o momento atual, o contexto e o caso concreto, como também conforme as expectativas e a
confiança depositadas na realização do negócio jurídico. Isso torna possível viver em uma
sociedade mais complexa, pois resulta na redução da complexidade. A esta nova realidade
complexa e contingencial, fazem-se necessários novos meios, que possibilitem a consideração
dos valores que proporcionem o alcance do bem comum e social. Entre esses meios destacam-
se as cláusulas gerais, que permitem a incorporação de valores, princípios e máximas de
conduta.
Por meio das cláusulas gerais possibilita-se a abertura do sistema jurídico, em vista da
imprecisão do seu conteúdo e da sua vagueza semântica, permitindo, dessa forma, a
mobilidade ao direito para que enfrente este momento de transformações sociais. De fato, as
cláusulas gerais possibilitam o crescimento no sentido de permitir o enfrentamento das
situações jurídicas gerando soluções para os conflitos surgidos. Conseqüentemente, as
cláusulas gerais, tais como a boa-fé, apresentam-se como mecanismos internos aptos a
solucionar os conflitos existentes entre os subsistemas, entre as ordens quase-jurídicas e entre
os vários setores internos que compõe o sistema jurídico.
Portanto, a cláusula geral pode ser vista como uma regra de conflitos, como quadro de
referência para a solução de conflitos, bem como para a sincronização jurídica. Nesse sentido,
considerando-se os mecanismos de solução de conflitos contratuais perante a teoria sistêmica
autopoiética, verifica-se que por meio dos sistemas de comunicação se faz possível introduzir
mecanismos que visem simplificar a compreensão para a contratação: as cláusulas gerais. De
fato, atuam material, temporal e socialmente reduzindo a complexidade, por meio da
144
introdução de uma complexidade organizada. Por meio da boa-fé, que se torna um mecanismo
reflexivo, permite-se o desdobramento auto-reflexivo, o que auxilia a satisfação das
necessidades de flexibilidade e de estabilidade das estruturas num contexto complexo. A boa-
fé permite a auto-referência e a reflexividade do sistema jurídico. A auto-referência significa
uma busca constante de novas possibilidades a partir do que se tem, o que proporciona mais
segurança, permitindo a evolução e a adaptação: adquirem-se outros direitos, mantendo-se os
já existentes.
Como exemplo da aplicação da cláusula geral da boa-fé nos contratos utilizaram-se os
contratos relacionais, que salientam a cooperação e a interação, os valores e as necessidades
específicas. Os contratos relacionais demonstram uma outra visão da obrigação, que se
caracteriza como um complexo de atos, condutas e deveres que se prolongam no tempo.
O contrato relacional denota a idéia de flexibilidade que existe entre a relação
obrigacional e a realidade social, o que resultou num conceito de contrato como um sistema
social aberto ao meio envolvente, isto é, uma relação contratual que, além do consenso entre
as partes, também apresenta problemas funcionais que devem ser resolvidos através de uma
relação com o meio. De acordo com a concepção autopoiética, poder-se-ia dar uma direção
construtivista a essa situação, fornecendo níveis adicionais de observação. A relação
contratual apareceria, então, como um sistema de interação auto-reprodutivo entre as partes,
sendo as estruturas formadas por meio da relação conflitual com o meio envolvente auto-
definido. Os impulsos externos manifestam-se por meio do conflito antes descrito, resultando
na indeterminação. Como solução aplica-se a cláusula geral da boa-fé objetiva para diminuir a
indeterminação através da reconstrução e do balanceamento das exigências externas na
relação contratual.
O contrato passou a ser visto como uma relação complexa e dinâmica, o que gerou a
necessidade de uma nova interpretação para as obrigações assumidas e que, em vista da
confiança despertada nas partes contratantes, apresenta como fundamento o princípio da boa-
fé objetiva. Com base na boa-fé objetiva, é possível reduzir a complexidade, proporcionando
um uso mais adequado das possibilidades que se tem.
Portanto, após o trabalho realizado, constata-se que, por meio da cláusula geral da boa-
fé objetiva, os contratantes desenvolvem a confiança de que as partes irão se conduzir
adequadamente durante o desenvolvimento da relação contratual. Esta é uma forma de se
reduzir a complexidade. No entanto, no momento da quebra desta confiança ocorrem a
frustração e o desapontamento das expectativas, o que, por meio da teoria sistêmica
autopoiética, se reconstrói, em vista da autoprodução e da flexibilidade que proporciona ao
145
contrato. Isso confirma o problema proposto, bem como satisfaz ao objetivo que se propôs a
alcançar, de que a cláusula geral da boa-fé objetiva pode ser utilizada como um meio para
solucionar os conflitos contratuais através da concepção sistêmica autopoiética do direito.
146
REFERÊNCIAS
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. A boa-fé na relação de consumo. Revista de Direito do
Consumidor, São Paulo: RT, n. 14, p. 20-32, abr./jun. 1995.
______. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. 2. ed. Rio de Janeiro: Aide,
2003.
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de estudios políticos
y constitucionales, 2002.
ALMEIDA COSTA, Mário Júlio de. Aspectos modernos do direito das obrigações. Estudos
de direito civil brasileiro e português. São Paulo: RT, 1980.
AMARAL NETO, Francisco dos Santos. Autonomia privada como princípio fundamental da
ordem jurídica. Perspectivas estrutural e funcional. Revista de Direito Civil, São Paulo: RT,
v. 46, p. 7-26, 1988.
ANDRADE, Fábio Siebeneichler. Da codificação. Crônica de um conceito. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1997.
ANDRADE, Manuel A Domingues de. Teoria geral da relação jurídica. 7. reim. Coimbra:
Almedina, 1992.
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
ARNAUD, André-Jean. O direito traído pela filosofia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,
1991.
______. O direito entre modernidade e globalização. Lições de filosofia do direito e do
estado. Tradução de Patrice Charles Wuillaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed.
atual. São Paulo: Saraiva, 2002.
______. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do mercado direito de
exclusividade nas relações contratuais de fornecimento função social do contrato e
responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para o inadimplemento contratual.
Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, ano 87, v. 750, p. 113-120, abr. 1998.
______. Responsabilidade pré-contratual no Código de Defesa do Consumidor: estudo
comparativo com a responsabilidade pré-contratual no direito comum. Cadernos da Pós-
Graduação da Faculdade de Direito da UERJ, Rio de Janeiro, n. 2, abr. 1996.
BARCELLONA, Pietro. O egoísmo maduro e a insensatez do capital. Tradução de Sebastião
José Roque. São Paulo: Ícone, 1995.
147
BECKER, Anelise. A doutrina do adimplemento substancial no direito brasileiro e em
perspectiva comparativista. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre:
Livraria do Advogado, vol. 9, n. 1, p. 60-77, nov. 1993.
BERTALANFFY, Ludwig Von. Teoria geral dos sistemas. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1977.
BESSONE, Darci. Do contrato. Rio de Janeiro: Forense, 1959.
BETTI, Emílio. Teoria feral do negócio jurídico. Coimbra: Coimbra, 1969.
BIANCHINI, Alice. A igualdade formal e material. Cadernos de Direito Constitucional e
Ciência Política. São Paulo: RT, out/dez, 1996.
BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. Tradução de Nelson Carlos Coutinho. Rio de
Janeiro: Ediouro, 1996.
______. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 1988.
______. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1997.
BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 6. ed. rev. e ampl. São Paulo:
Malheiros, 1996.
______. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
BRANCO, Gerson Luiz Carlos. A proteção das expectativas legítimas derivadas das situações
de confiança. Revista de Direito Privado, São Paulo, ano 3, n. 12, out/dez., 2002.
BRASIL. Código Civil. Projeto n. 6.960/2002.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra:
Almedina, 2002.
CAPRA, Fritjof. A teia da vida. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 1999.
CARVALHO, Orlando de. A teoria geral da relação jurídica seu sentido e limites. 2. ed.
atual. Coimbra: Centelha, 1981.
CLAM, Jean. A autopoiese no direito. In: ROCHA, Leonel Severo; SCHWARTZ, Germano;
CLAM, Jean. Introdução à teoria do sistema autopoiético do direito. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2005.
______. Questões fundamentais de uma teoria da sociedade: contingência, paradoxo, só-
efetuação. São Leopoldo: Unisinos, 2006.
COSTA, Mário Júlio de Almeida. Aspectos modernos do direito das obrigações. Estudos de
direito civil brasileiro e português. São Paulo: RT, 1980.
______. Direito das obrigações. Coimbra: Almedina, 1994.
148
______. Noções de direito civil. 3. ed. rem. e actual. Coimbra: Almedina, 1991.
COUTO E SILVA. Clóvis do. A obrigação como processo. São Paulo: J. Bushatsky, 1976.
DANTAS, Ivo. Princípios constitucionais e interpretação constitucional. Rio de Janeiro:
Lúmen Júris, 1995.
ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Traduzido por João Baptista Machado.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001.
FACHIN, Luiz Edson. O “aggiornamento” do direito civil brasileiro e a confiança negocial.
In: FACHIN, Luiz Edson (Coord). Repensando fundamentos do direito civil brasileiro
contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
______. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
GOMES, Orlando. Contratos. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994.
______. Introdução ao direito civil. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979.
______. Introdução ao direito civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo:
Malheiros, 1998.
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Autopoiese do direito na sociedade pós-moderna.
Introdução a uma teoria social sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre faticidade e validade. Rio de Janeiro:
Tempo brasileiro, 1997. v. II.
HESPANHA, Benedito. A autopoiese na construção do jurídico e do político de um sistema
constitucional. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, São Paulo, n. 28,
jul./set. 1999.
HIRONAKA, Giselda M. Fernandes Novaes. A função social do contrato. Revista de Direito
Civil, São Paulo, n. 45, p. 141-152, jul./set. 1988.
HORA NETO, João. O princípio da função social do contrato no Código Civil de 2002.
Revista de Direito Privado, São Paulo: RT, v. 14, p. 38-48, 2003.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela.
Lisboa: Edições 70 Printefólio, 1995.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
LIMA, George Marmelstein. As funções dos princípios constitucionais. Disponível em:
http://www.jusnavegandi.net. Acesso em 14 maio 2003.
149
LÔBO, Paulo. Contrato e mudança social. Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, n. 722,
p. 41-45, dez. 1995.
LUHMANN, Niklas. Confianza. Barcelona: Anthropos, 1996.
______. El derecho de la sociedad. Madrid: Iberoamericana, 2000.
______. O enfoque sociológico da teoria e prática do direito. Seqüência, Porto Alegre, n. 28,
p. 15-29, jun. 1994.
______. Sociologia del riesgo. México: Triana Editores, 1998.
______. Sociologia do direito I. Traduzido por Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1983.
______. Sociologia do direito II. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo
Brasileiro, 1983.
MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Contratos relacionais e defesa do consumidor. São
Paulo: Max Limonad, 1998.
MAGALHÃES, Juliana Neuenschwander. O uso criativo dos paradoxos do direito. In:
ROCHA, Leonel Severo (Org.). Paradoxos da auto-observação. Percursos da teoria jurídica
contemporânea. Curitiba: JM, 1997.
MARCO, Anelise de. Os princípios constitucionais no ordenamento jurídico brasileiro e a
aplicação da teoria dos sistemas. In: SCHWARTZ, Germano (Org.). Autopoiese e
Constituição: os limites da hierarquia e as possibilidades da circularidade. Passo Fundo: UPF,
2005.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime
das relações contratuais. 4. ed. rev. atual. e ampl. 2. tir. São Paulo: RT, 2002.
______. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações
contratuais. 4. ed. rev. atual. e ampl. 2. tir. São Paulo: RT, 2004.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo
obrigacional. São Paulo: RT, 2000.
MATEIRO, Mário Martins da Silva. Pensar o direito: fragmentos de um ensaio de autopoiesis
jurídica. Revista Justiça do Direito, Passo Fundo: Ediupf, v. 11, n. 11, p. 11-20, 1997.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São
Paulo: Malheiros, 1999.
______. Curso de direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
MELLO, Heloísa Carpena Vieira de. A boa-fé como parâmetro da abusividade no direito
contratual. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2001.
150
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 10. ed. São
Paulo: Saraiva, 2000.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006.
NALIM, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na
perspectiva civil-constitucional. Curitiba: Juruá, 2001.
______. Ética e boa fé no adimplemento contratual. In: FACHIN, Luiz Edson (Coord.).
Repensando fundamentos do Direito Civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro:
Renovar, 1998, p. 191.
NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da
boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
______. Teoria do Contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
NERY JÚNIOR, Nelson. Vícios do ato jurídico perfeito e reserva mental. São Paulo: RT,
1983.
NICOLA, Daniela Ribeiro Mendes. Estrutura e função do direito na teoria da sociedade. In:
ROCHA, Leonel Severo (Org.). Paradoxos da auto-observação. Percursos da teoria jurídica
contemporânea. Curitiba: JM, 1997.
NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia
privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994.
OLIVEIRA, Ubirajara Mach de. Princípios informadores do sistema de direito privado: a
autonomia da vontade e a boa-fé objetiva. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: RT,
p. 41-78, jul./dez. 1997.
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. III.
______. Tratado de direito privado. 2. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1962, t. XXXVIII.
PRATA, Ana. A tutela constitucional da autonomia privada. Coimbra: Almedina, 1982.
RAMOS, Carmem Lúcia Silveira. A constitucionalização do direito privado e a sociedade
sem fronteiras. In: FACHIN, Luiz Edson. (Coord.). Repensando fundamentos do direito civil
contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
REALE, Miguel. O projeto do novo Código Civil. 2. ed. rev., e atual. São Paulo: Saraiva,
1999.
RIBEIRO, Darci Guimarães. O sobreprincípio da boa-fé processual como decorrência do
comportamento da parte em juízo. In: ROCHA, Leonel Severo, STRECK, Lenio Luiz. (Org.).
Anuário do programa de pós-graduação em direito: mestrado e doutorado. São Leopoldo:
Unisinos, 2003.
151
RIPERT, Georges. O regimen democrático e o direito civil moderno. São Paulo: Saraiva,
1937.
RIZZARDO, Arnaldo, Contratos. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O princípio constitucional da igualdade. Belo Horizonte:
Lê, 1990.
ROCHA, Leonel Severo. Da epistemologia jurídica normativista ao construtivismo sistêmico.
In: ROCHA, Leonel Severo; SCHWARTZ, Germano; CLAM, Jean. Introdução à teoria do
sistema autopoiético do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
______. Direito, complexidade e risco. Seqüência, Porto Alegre, n. 28. p. 1-13, jun. 1994.
______. Direito, cultura política e democracia. In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel
Severo (Org.). Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito: mestrado e doutorado.
São Leopoldo: Unisinos, 2000.
______. Epistemologia jurídica e democracia. 2. ed. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2003.
______; DUTRA, Jeferson Luiz Dellavalle. Notas introdutórias à concepção sistemista de
contrato. In: ROCHA, Leonel Severo; STRECK, Lenio Luiz (Org.). Constituição, sistemas
sociais e hermenêutica: programa de pós-graduação em Direito da Unisinos: mestrado e
doutorado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
______. O direito na forma de sociedade globalizada. In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA,
Leonel Severo.(Org.). Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito: mestrado e
doutorado. São Leopoldo: Unisinos, 2001.
______; CARVALHO, Delton Winter de. Policontexturalidade jurídica e estado ambiental.
In: SANTOS, André Leonardo Copetti; STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo
(Org.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: programa de pós-graduação em Direito
da Unisinos: mestrado e doutorado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 1999.
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen
Júris, 2004.
______. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006.
SCHWARTZ, Germano. A fase pré-autopoiética do sistemismo luhmanniano. In: ROCHA,
Leonel Severo; SCHWARTZ, Germano; CLAM, Jean. Introdução à teoria do sistema
autopoiético do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
______. O tratamento jurídico do risco no direito à saúde. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2004.
152
SELEME, Sérgio. Contrato e empresa: notas mínimas a partir da obra de Enzo Roppo. In:
FACHIN, Luiz Edson (Coord.). Repensando fundamentos do direito civil brasileiro
contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
SILVA, Clóvis V. do Couto e. A obrigação como processo. São Paulo: Bushatsky, 1976.
______. A teoria da base do negócio jurídico no direito brasileiro. Revista dos Tribunais, São
Paulo: RT, n. 655, maio 1990.
______. O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português. In: FRADERA, Vera Maria
Jacob de (Org.). O direito privado brasileiro e português na visão de Clóvis do Couto e Silva.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 13. ed. São Paulo:
Malheiros, 1997.
SILVA FILHO, José Carlos Moreira da; ALMEIDA, Lara Oleques de; ORIGUELLA,
Daniela. O princípio da boa-fé objetiva no direito contratual e o problema do homem médio:
da jurisprudência dos valores à hermenêutica filosófica. In: ROCHA, Leonel Severo;
STRECK, Lenio Luiz (Org.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: programa de
pós-graduação em Direito da Unisinos: mestrado e doutorado. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2005.
______. Pessoa humana e boa-fé objetiva nas relações contratuais: a alteridade que emerge da
ipseidade. In: COPETTI, André; STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo (Org.).
Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: programa de pós-graduação em Direito da
Unisinos: mestrado e doutorado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
______. Transformações jurídicas nas relações privadas. In: ROCHA, Leonel Severo;
STRECK, Lenio Luiz. (Org.). Anuário do programa de pós-graduação em direito: mestrado e
doutorado. São Leopoldo: Unisinos, 2003.
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria do Estado. 5.
ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
TELLES, Inocêncio Galvão. Manual dos contratos em geral. 3. ed. reimp. Lisboa: Lex, 1995.
TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. Lisboa: Calouste Gulbenkian,
1993.
TEUBNER, Gunther. Direito no processo de globalização. As duas faces de Janus: pluralismo
jurídico na sociedade pós-moderna. In: TEUBNER, Gunther. Direito, sistema e
policontexturalidade. Piracicaba: Editora Unimep, 2005.
______. Policontexturalidade e reflexos no direito privado. Mundos contratuais: o direito na
fragmentação de regimes de private governance. In: ______. Direito, sistema e
policontexturalidade. Piracicaba: Editora Unimep, 2005.
153
______. Reflexão do direito. Paradoxos, conflitos de discursos e policontexturalidade. Direito
regulatório: crônica de uma morte anunciada. In: ______. Direito, sistema e
policontexturalidade. Piracicaba: Editora Unimep, 2005.
______. Reflexão do direito, Paradoxos, conflitos de discursos e policontexturalidade.
Economia da dádiva positividade da justiça: “assombração” mútua entre sistema e
différance. In: ______. Direito, sistema e policontexturalidade. Piracicaba: Editora Unimep,
2005.
THEODORO JUNIOR, Humberto. O contrato e seus princípios. Rio de Janeiro: AIDE, 1999.
VENOSA, Silvio de Salvo. Teoria geral dos contratos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1996.
______. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 3. ed. São
Paulo: Atlas, 2003.
VINAGRE, Marta Maria. A outra face do contrato. Revista de Direito Civil: imobiliário,
agrário e empresarial, ano 12, n. 44, p. 102-124, abr./jun. 1988.
WALD, Arnoldo. Obrigações e contratos. 13. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: RT, 1998.
WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. Porto Alegre: Safe, 1985.
______. Por quien cantan las sirenas: informe sobre eco-ciudadania, género y derecho
incidencias del barroco en el pensamiento jurídico. Joaçaba: Unoesc/CPGD/Efsc, 1996.
WIEACKER, Franz. A história do direito privado moderno. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2004.
WILHELMSSON, Thomas. Regulação de cláusulas contratuais. Revista de Direito do
Consumidor, São Paulo: RT, n. 18, p. 9-22, abr./jun. 1996.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo