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As fábulas de Millôr, apesar do diálogo que travam com aquelas
anteriores (as de Esopo), parecem ter tom mais paródico do que qualquer
outra possível associação. Nitidamente, Millôr toma como ponto de partida
para as suas fábulas, as esópicas fábulas, dando-lhes caráter irônico,
roupagem nova, moderna, subvertendo principalmente a condição da moral
propriamente dita. Apesar do texto sofrer algumas abruptas modificações, o
grande trunfo paródico parece mesmo ser a moral, já que ela toma nova
forma, abandona o lugar-comum que ocupava anteriormente, para
disponibilizar ao leitor do texto novas possibilidades.
Contudo, precisamos atentar para algo que pode soar
contraditório e incoerente em nosso estudo. Quando Millôr aponta uma “anti-
moral”, temos automática e inegavelmente uma “nova moral”. Assim sendo,
essa nova moral novamente não vem enclausurar interpretativamente o
receptor da fábula? Tudo aponta para uma resposta positiva, já que temos em
Millôr uma assertiva que diz que quando tem fome, o lobo não deve se meter
em filosofia. Ora, Millôr dirige sua fábula assim como as fábulas tradicionais,
clássicas. Mas isso se dá apenas no receptor que toma contato com a fábula
de Millôr desconhecendo a tradição clássica da história esópica, algo,
convenhamos, um tanto improvável. Aí, temos dois estados de coisas
completamente distintos e envolvem, sobretudo, as questões contextuais: por
um lado, vivemos em uma sociedade ocidental que tem por costume o ato de
contar histórias, parábolas, fábulas, no mais das vezes no intuito de
alfabetizar, ensinar, catequizar. Entretanto, alguém descontextualizado, que
desconhece as fábulas de Esopo (e os demais fabulistas que recontaram as
mesmas fábulas à sua maneira), receberá a fábula de Millôr como algo novo,
“puro”, e receberá uma moral, ainda que de cunho humorístico, moralizante e
tudo mais que falamos anteriormente da fábula esópica. Aí que está, então, a
grande problemática da questão: a fábula de Millôr só deixa de ser uma fábula
como todas as demais se levarmos em consideração a existência da
intertextualidade destas com as fábulas clássicas, sobretudo as de Esopo. E
as paródias de Millôr apresentam recursos intertextuais, retomando com
desvio de sentido (e não de forma, lembremos) as fábulas esópicas,