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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO SÓCIO ECONOMICO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL /MESTRADO
CLEIDIAMAR APARECIDA FURLANETTO
A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E A SAÚDE: um estudo sobre a atenção às
mulheres em situação de violência nos serviços básicos de saúde de Florianópolis /SC
FLORIANÓPOLIS
2007
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CLEIDIAMAR APARECIDA FURLANETTO
A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E A SAÚDE: um estudo sobre a atenção às
mulheres em situação de violência nos serviços básicos de saúde de Florianópolis /SC
Dissertação apresentada à Banca Examinadora do
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da
Universidade Federal de Santa Catarina como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em Serviço
Social.
Orientadora: Profª. Drª. Regina Célia Tamaso Mioto
FLORIANÓPOLIS
2007
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CLEIDIAMAR APARECIDA FURLANETTO
A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E A SAÚDE: um estudo sobre a atenção às
mulheres em situação de violência nos serviços básicos de saúde de Florianópolis /SC
Dissertação submetida à avaliação da Banca Examinadora para obtenção do título de Mestre em
Serviço Social e aprovada atendendo às normas da legislação vigente da Universidade Federal de
Santa Catarina/UFSC, Programa de Pós-Graduação em Serviço Social/Mestrado.
BANCA EXAMINDORA
________________________________________
Profª Drª Regina Célia Tamaso Mioto - UFSC
__________________________________________
Profª Drª Teresa Kleba Lisboa - UFSC
__________________________________________
Drª Magda Duarte dos Anjos Scherer - NESP/UNB e ANVISA/MS
FLORIANÓPOLIS, 16 de agosto de 2007.
4
AGRADECIMENTOS
À Universidade Federal de Santa Catarina pelo ensino público e de qualidade.
Aos professores, funcionários e bolsistas do Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social/ Mestrado da UFSC.
À professora Regina Célia Tamaso Mioto pelo companheirismo e ensinamentos sem
tamanho durante todos estes anos de percurso acadêmico. Também pela orientação que não se
limita ao presente trabalho.
À Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis que permitiu a realização da pesquisa, e
aos profissionais das UBSs que se disponibilizaram a participar do trabalho.
À amiga e ex-colega de residência Giseli dos Santos por ter me acompanhado fielmente
em diversos momentos e também na realização da pesquisa.
Aos amigos e colegas das “turmas” de Mestrado pela amizade e pela força para seguir em
frente.
À Terezinha e ao Angelim, meus pais, por tudo.
As minhas irmãs Gleicia e Kelli, e agora o Junior da Kelli.
Ao meu companheiro de todas as horas Jean... por estarmos no mesmo caminho!
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RESUMO
FURLANETTO, Cleidiamar Aparecida Furlanetto. A violência contra a mulher e a saúde: um
estudo sobre a atenção as mulheres em situação de violência nos serviços básicos de saúde de
Florianópolis /SC. Dissertação de Mestrado em Serviço Social. Florianópolis:
UFSC/CSE/PGSS, 2006. Orientadora: Regina Célia Tamaso Mioto.
Este trabalho coloca em discussão a violência contra a mulher enquanto uma questão de saúde.
As discussões aqui realizadas partiram do final dos anos de 1970, quando no Brasil, a violência
contra a mulher ganha maior visibilidade social passando a ser abordada também na esfera
pública, seja pela inclusão do tema na pauta dos objetos de pesquisas ou como objeto de
intervenção do Estado. No campo da saúde, o debate da violência também encontra espaço neste
período sendo sua inserção fundamentada pelo aumento, nas Américas, de traumas e mortes
decorrentes de causas violentas. No Brasil, abrem-se espaços para a discussão à medida que
emerge um grande movimento em prol da mudança do modelo teórico-assistencial e político de
pensar e fazer saúde no país, o Movimento Sanitário. A discussão que se deu em torno da saúde
brasileira marcou esse período onde diversos segmentos sociais e governamentais discutiram as
condições de vida da população e, a partir disso, propuseram ações que se traduziram em um
novo modelo de atenção à saúde denominado de Saúde Coletiva. Nessa perspectiva, considerou-
se o contexto histórico que possibilitou a implantação do atual modelo de saúde brasileiro, ou
seja, reconheceu-se que a gênese da construção das bases que sustentam e compõem esse modelo
de atenção está relacionada com as discussões advindas desde o movimento pela Reforma
Sanitária, o qual se manifestou em prol do rompimento de um modelo restrito de perceber as
questões que envolvem o processo saúde doença, e das lutas do movimento de mulheres pela
consideração da violência enquanto questão presente no cotidiano das mulheres e merecedora de
abordagens para além do setor policial. Assim, o objetivo deste trabalho é discutir a temática da
atenção as mulheres em situação de violência no âmbito da saúde, com ênfase na atenção básica à
saúde. Para tanto, realizou-se um debate sobre a relação entre o modelo de saúde coletiva, as
ações destinadas as mulheres em situação de violência e a operacionalização nos serviços de
atenção cuja centralidade está na compreensão da violência contra a mulher enquanto questão de
saúde. E, a partir dessa operacionalização da atenção analisou-se como a temática da violência
contra a mulher aparece no cotidiano dos serviços básicos de saúde de Florianópolis e como os
profissionais inseridos neste âmbito estão preparados para trabalhar com tal demanda. Buscando
contemplar os objetivos propostos o estudo está delineado pela revisão bibliográfica e pela
pesquisa qualitativa, enquanto procedimento metodológico empírico, realizada junto a nove
Unidades Locais de Saúde do município de Florianópolis/ SC. Os resultados da pesquisa apontam
para algumas dimensões que possibilitam e dificultam a atenção as mulheres em situação de
violência no nível de atenção básica, como: a invisibilidade da temática nos serviços de atenção
básica à saúde; a qualificação e/ou formação insuficiente dos trabalhadores em saúde para o
atendimento as demandas das mulheres em situação de violência; a indefinição do papel da saúde
na atenção as situações; a perspectiva das políticas publicas em relação a atenção as mulheres em
situação de violência e a organização do serviço que não favorece a integralidade da atenção.
Palavras-chave: política pública, violência contra a mulher; atenção básica à saúde.
6
ABSTRACT
FURLANETTO, Cleidiamar Aparecida Furlanetto. The violence against the woman and the
health: a study on the attention the women in situation of violence in the basic services of health
of Florianópolis /SC. Masters Dissertation in Social Work. Florianópolis: UFSC/CSE/PGSS,
2007. Advisor: Regina Célia Tamaso Mioto.
This work places in quarrel the violence against the woman while a health question. The quarrels
carried through here had left of the end of the years of 1970, when in Brazil, the violence against
the woman gains greater social visibility starting to be boarded in the public sphere, either for the
inclusion of the subject in the guideline of objects of research or as object of intervention of the
State. In the field of the health, the debate of the violence also finds space in this period being its
insertion based for the increase, in Americas, of traumas and decurrent deaths of violent causes.
In Brazil, spaces for the quarrel to the measure confide that emerges a great movement in favor of
the change of the model theoretician-assistencial and politician to think and to make health in the
country, the Sanitary Movement. The quarrel that if gave around the Brazilian health marked this
period where diverse social and governmental segments had argued the conditions of life of the
population and, from this, they had considered actions that if had translated a new model of
attention to the called health of Collective Health. In this perspective, the historical context was
considered that made possible the implantation of the current Brazilian model of health, that is,
was recognized that gênese of the construction of the bases that they support and they compose
this model of attention is related with the quarrels happened since the movement for the Sanitary
Reformation, which if revealed in favor of the disruption of a restricted model to perceive the
questions that they involve the process health illness, and of the fights of the movement of
women for the consideration of the violence while question gift in the daily one of the women
and deserving of boardings for beyond the sector policeman. Thus, the objective of this work is to
argue thematic of the attention the women in situation of violence in the scope of the health, with
emphasis in the basic attention to the health. For in such a way, a debate was become fullfilled on
the relation enters the model of collective health, the destined actions the women in violence
situation and the operacionalização in the attention services whose centralidade is in the
understanding of the violence against the woman while question of the health. And, from this
operacionalização of the attention was analyzed as the thematic one of the violence against the
woman appears in the daily one of the basic services of health of Florianópolis and as the inserted
professionals in this scope are prepared to work with such demand. Searching to contemplate the
considered objectives the study it is delineated by the bibliographical revision and the qualitative
research, while empirical metodológico procedure, carried through next to nine Basic Units of
Health of the city of Florianópolis/SC. The results of the research point with respect to some
dimensions that make possible and make it difficult the attention the women in situation of
violence in the level of basic attention, as: the invisibilidade of the thematic one in the services of
basic attention to the health; the qualification and/or insufficient formation of the workers in
health for the attendance the demands of the women in violence situation; the indefinição of the
paper of the health in the attention the situations; the perspective of the politics you publish in
relation the attention the women in violence situation and the organization of the service that does
not favor the completeness of the attention.
Key-words: public politics; violencia against the woman; basic attention of health;.
7
LISTA DE SIGLAS
ACS – Agente Comunitário de Saúde
BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento
CEVIC - Centro de Atendimento à Vítimas de Crime
CID - Código Internacional de Doenças
Conass - Conselho Nacional de Secretários de Saúde
Conasems - Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde
CS – Centro de Saúde
CSDH – Comissão de Determinantes Sociais de Saúde
CUT – Central Única dos Trabalhadores
DEAM - Delegacia Especial de Atendimento à Mulher
DP – Delegacia de Polícia
DST – Doença Sexualmente Transmissível
ESF - Estratégia de Saúde da Família
FMI - Fundo Monetário Internacional
FUNASA – Fundação Nacional de Saúde
IML - Instituto Médico Legal
INPS - Instituto Nacional de Previdência Social
NOBs - Normas Operacionais Básicas
MS - Ministério da Saúde
OPAS - Organização Pan-Americana da Saúde
OMS - Organização Mundial da Saúde
ONG – Organização Não Governamental
PACS - Programa de Agentes Comunitários de Saúde
PAISM - Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher
PNPM - Plano Nacional de Políticas para as Mulheres
PSF – Programa de Saúde da Família
SC – Santa Catarina
SEPM - Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres
SMS - Secretaria Municipal de Saúde
SUS - Sistema Único de Saúde
TCLE – Termo de Compromisso Livre e Esclarecido
UBS - Unidade Básica de Saúde
ULS - Unidade Local de Saúde
8
SUMARIO
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................09
1 O CENÁRIO PARA O DEBATE DA ATENÇÃO AS MULHERES EM SITUAÇÃO
DE VIOLÊNCIA NA SAÚDE ....................................................................................................17
1.1 Contextualizando a violência contra a mulher e a sua inserção no debate da saúde ..........17
1.2 A construção das novas formas de pensar e fazer saúde no Brasil: base para a
organização dos serviços de atenção à saúde......................................................................24
1.3 Os serviços básicos de saúde e a Estratégia de Saúde da Família ......................................33
1.3.1 A busca da integralidade na Atenção Básica: o vínculo e o acolhimento ................37
1.3.2 Modelo assistencial e atribuições profissionais ........................................................40
2 A CONSTRUÇÃO DA AGENDA PÚBLICA DE PROTEÇÃO AS MULHERES EM
SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA ...................................................................................................44
2.1 A atenção as mulheres em situação de violência no cenário governamental .....................44
2.2 A atenção as mulheres em situação de violência no contexto da política de saúde ...........56
3 A ATENÇÃO AS MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA NO COTIDIANO
DOS SERVIÇOS BÁSICOS DE SAÚDE DE FLORIANÓPOLIS/SC ...................................62
3.1 Metodologia ........................................................................................................................62
3.1.1 Procedimentos metodológicos ..................................................................................63
3.1.2 Sujeitos de pesquisa ..................................................................................................64
3.1.3 Instrumentos de pesquisa ..........................................................................................65
3.1.4 Procedimento da coleta de dados ..............................................................................66
3.1.5 Tratamento dos dados ...............................................................................................67
3.2 A atenção básica à saúde do município de Florianópolis/ SC: contexto da pesquisa .........70
3.3 Os resultados da pesquisa ...................................................................................................71
3.3.1 O cotidiano das UBSs de Florianópolis na atenção as mulheres em
situação de violência ..............................................................................................71
3.3.2 A qualificação dos profissionais de atenção básica para a atenção
as mulheres em situação de violência ....................................................................81
3.4 Considerações acerca dos dados da pesquisa .....................................................................87
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................................95
Referências .................................................................................................................................101
ANEXO: Roteiro de Entrevista ..................................................................................................108
9
Introdução
Neste trabalho pretende-se colocar em discussão a violência sob um recorte especial: a
violência contra a mulher enquanto uma questão de saúde. Um dos motivos para assim se
proceder é que, apesar de ser considerada enquanto tal, a violência contra a mulher tem pouca
visibilidade no setor saúde. As discussões aqui realizadas partiram do final dos anos de 1970,
quando no Brasil, a violência contra a mulher ganha maior visibilidade social passando a ser
abordada também na esfera pública, seja pela inclusão do tema na pauta dos objetos de pesquisas
ou como objeto de intervenção do Estado.
Violência é um termo que pode ser referido para nomear desde as formas mais cruéis de
assassinato e tortura até as formas mais sutis que se expressam no cotidiano da vida social como a
desigual distribuição de renda, algumas normas culturais, dentre outras formas. É um objeto
complexo e sensível à medida que incorpora incertezas, contradições, pluralidades, mobiliza
emoções no relato e na escuta, tanto na pesquisa quanto na intervenção. Também apresenta eixos
múltiplos de aproximação e recortes, definições e indefinições conceituais. No entanto, para
Minayo (1994b) as características gerais da violência é que esta coloca limites, oprime e nega a
integridade e direitos de outros, podendo ser acentuada pelas desigualdades sociais, deve ser
compreendida como um processo e não como simples males físicos e psicológicos causados pela
materialização da força.
No campo da saúde, o debate da violência só encontra espaço no final dos anos de 1970
sendo sua inserção fundamentada pelo aumento, nas Américas, de traumas e mortes decorrentes
de causas violentas. Nessa época, o tema começa a ganhar prioridade na agenda dos organismos
internacionais envolvidos com a saúde como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a
Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) tendo como justificativa que a violência, diante
do número de mortes e a magnitude das seqüelas orgânicas e emocionais que desencadeia, se
converteu em problema de saúde pública em vários países (OPAS/OMS, 2002). No Brasil não é
diferente, a violência também aumenta trazendo maiores impactos sobre o campo da saúde. Nessa
perspectiva começa a ser discutida a função da saúde que, tradicionalmente esteve ligada aos
cuidado dos agravos físicos e psíquicos gerados pelos conflitos sociais sendo que, estes conflitos
em si, sempre foram terrenos da polícia e do judiciário.
10
Em relação à violência contra a mulher, a literatura apresenta que esta não é um fato novo
na história, mas assume características diferenciadas nos diversos contextos sociais e culturais
construídos historicamente. Assim, desde que a violência contra a mulher aparece enquanto
questão que merece ser desvendada, diversos estudos e pesquisas acerca do tema vêm sendo
desenvolvidos a partir de diferentes linhas teóricas, as quais serão apresentadas sinteticamente no
capitulo 1 deste trabalho. No que concerne à violência contra a mulher e a saúde, ao final de 1970
diversos movimentos e, em especial o movimento social de mulheres, iniciaram uma discussão –
estratégica e consciente – com o objetivo de deslocar o problema exclusivo do campo policial
para o campo das relações de gênero, dos direitos humanos, do desenvolvimento social e da
saúde. Nesse período, o movimento encontra espaços para a discussão à medida que se abrem
caminhos para a emergência de outro grande movimento em prol da mudança do modelo teórico-
assistencial e político de pensar e fazer saúde no Brasil, o Movimento Sanitário
1
. A discussão que
se deu em torno da saúde brasileira marcou esse período com uma forte presença no cenário
nacional onde diversos segmentos sociais e governamentais discutiram as condições de vida da
população e, a partir disso, propuseram ações que se traduziram em um novo modelo de atenção
à saúde denominado de Saúde Coletiva.
Assim, é nesse movimento de luta pelo reconhecimento de um outro olhar sobre a saúde e
a violência que a violência passa a ser vista também como uma questão de saúde, ou seja, se
justifica pelo fato de que está incorporada na fundamentação de um modelo ampliado de pensar e
fazer a saúde, o qual busca compreender a mudança de práticas e conceitos para além de ações de
diagnóstico de sintomas e tratamento de lesões físicas e psicológicas provocadas pelos processos
violentos. De acordo com Minayo (1994a) o reconhecimento da especificidade do setor saúde
não retira, porém, sua cumplicidade com a problemática social mais ampla, seja no campo da
realidade empírica (considerando que a questão da saúde envolve o conjunto das relações sociais
vivenciadas), seja no âmbito conceitual, onde o específico é atravessado por distintas posições
face às possibilidades de organização da vida social. A saúde é um tema compartilhado por todos
os seguimentos sociais, porém as condições de vida e de trabalho qualificam de forma
diferenciada a forma com que os segmentos pensam, sentem e agem em relação à ela. Isso
1
O Movimento Sanitário se caracterizou como um processo de transformação da norma legal e do aparelho
institucional regulamentando e responsabilizando o Estado pela proteção à saúde dos cidadãos (Teixeira, 1989).
Também trouxe para a discussão brasileira a perspectiva de um conceito ampliado de saúde, para além de saúde
como ausência de doenças, conforme se aprofundará no Capitulo 1.
11
implica que, para todos os grupos, ainda que de forma específica e peculiar, a saúde e a doença
apresentam-se envolvidas em uma complexa inter-relação entre os aspectos físicos, psicológicos,
sociais e ambientais da condição humana, pois “a saúde e a doença sempre exprimem uma
relação que perpassa o corpo individual e social confrontando com as turbulências do ser humano
enquanto ser total” (Minayo, 1994 a, p.15).
Nessa perspectiva a violência contra a mulher também passa a ser considerada pelas
Nações Unidas como uma questão de saúde pública ao ser vista não como um fato isolado, mas
sim intrinsecamente relacionada aos processos sociais e que, para compreendê-la, devem ser
consideradas as condições sociais, políticas, econômicas e culturais do contexto (BRASIL,
2001a). Ao ser considerada enquanto processo social, a violência contra a mulher não é objeto
específico do setor saúde, mas se coloca a ele relacionada à medida que o setor participa do
conjunto das relações que permeiam a sociedade e se reconhece a insuficiência das disciplinas
isoladas na abordagem social.
Para alguns estudiosos, a interface da violência com a saúde se dá pelos riscos que
representa ao desenvolvimento humano, ameaça à vida, altera a saúde ao produzir doenças e pode
provocar a morte como realidade ou como possibilidade. Também influencia na qualidade e na
capacidade de vida das mulheres, inibindo-as, transformando-as e fragilizando-as (MINAYO,
1994b; MINAYO E SOUZA, 1998). Mulheres que sofrem violência, principalmente a perpetrada
pelo companheiro, tendem a utilizar mais os serviços de saúde devido ao aumento de diversos
problemas associados que vão desde os traumas óbvios das agressões físicas até aqueles que não
aparecem de forma explicitada. No entanto, os profissionais de saúde apresentam dificuldades
para identificar, acolher as demandas e as necessidades e, até mesmo, realizar os registros das
situações de violência nos prontuários das usuárias, como mostra um estudo realizado em um
serviço de atenção básica de São Paulo onde 57% das mulheres atendidas relataram algum
episódio de violência física e, apenas 10% das situações haviam sido registradas em seus
prontuários. Destes registros, a maioria havia sido realizada por profissionais da área de saúde
mental, serviço social e durante o atendimento pré-natal. Para as autoras do estudo estas áreas e
formas de atendimento tendem a propiciar um acompanhamento sistematizado e criação de
vínculo entre profissionais e usuárias dos serviços (SCHRAIBER e D’OLIVEIRA, 1999;
SCHRAIBER, 2007). Outro estudo importante apresentado pelo Ministério da Saúde indica que
12
uma em cada cinco mulheres maltratadas havia buscado o serviço de saúde em pelo menos onze
oportunidades apresentando traumas provocados pela violência continuada, porém não
diagnosticada nos atendimentos. Diante disso, afirma que os serviços de saúde têm dificuldades
de diagnosticar e registrar as situações de violência contra a mulher assim como contra qualquer
outro membro da família (BRASIL, 2001a).
Ao analisar a violência e sua interface com a saúde, Schraiber et al (2002) compreende
que cabe aos serviços básicos de saúde detectar previamente o problema da violência contra a
mulher, pois parte do pressuposto que é neste nível de atenção que há uma maior cobertura e
contato com as mulheres. Isso se justifica pela própria organização do Sistema de Saúde que
coloca como sua porta de entrada o nível de atenção básica e, este ao desenvolver suas ações em
consonância com a Estratégia de Saúde da Família pressupõe que os profissionais ali inseridos
tenham maior proximidade, vínculo e conhecimento da população que atendem. Dessa forma, a
autora considera que os profissionais inseridos na atenção básica estão em uma posição
estratégica para acolher a mulher em situação de violência, pois podem identificar tais situações
quando estas ainda não apresentam incidentes mais graves, ao contrário dos hospitais e
delegacias aonde a mulher que foi vítima chega quase sempre com a violência explicitada.
Já na realidade dos serviços básicos de saúde é comum as situações de violência
permanecerem ocultas, pois o motivo da procura pelo serviço é, geralmente, um problema como
estresse, insônia, ansiedade ou nervosismo, que podem ser sintomas da tensão presente no
cotidiano da mulher em situação de violência. Não estando sensibilizados e preparados os
profissionais não chegam a identificar, abordar ou direcionar o atendimento da mulher para estas
situações que envolvem violências. Geralmente o sintoma é medicalizado, porém, as questões
causadoras desses sintomas persistem. Schraiber e D’Oliveira (1999, p.23) chamam a atenção
para o cuidado que os profissionais de saúde devem ter ao abordar a questão da violência, pois o
maior risco é tratá-la como uma doença ou como um risco em saúde e deduzir daí um conjunto de
procedimentos e ações que a mulher deve seguir para poder “curar-se” do problema. Para as
autoras “se a violência é um problema com sérias conseqüências para a saúde, ela é uma situação
que extrapola em muito esta esfera, e continua sendo uma situação de vida, com toda a
complexidade que isto implica”.
13
Outro fator a ser considerado é o histórico da política brasileira de atenção à saúde da
mulher que em sua trajetória sempre esteve pautada em áreas muito específicas, principalmente
na questão materno-infantil onde a visão predominante é a da mulher como mãe e cuidadora dos
membros da família. Só a partir de meados da década de 1990 é que a temática da violência
começa a ser inserida nas políticas de atenção à mulher, primeiro a violência sexual e, bem
recentemente, a partir da perspectiva de atenção integral, outros tipos de violência, ainda que de
forma pontual e pouco explicativa tanto em termos conceituais como em termos de abordagem
prática. Pouco se abrem caminhos para uma abordagem mais ampla, inclusive sob a perspectiva
de gênero, como veremos no capitulo 2 do trabalho.
Diante do exposto, é de grande importância o desenvolvimento de trabalhos que venham
explicitar como estão sendo orientadas as práticas em saúde no contexto brasileiro. Assim, este
trabalho propõe contribuir neste debate apresentando como cenário de análise a atenção prestada
nos serviços básicos de saúde do município de Florianópolis /SC as mulheres em situação de
violência, partindo do pressuposto de que a violência contra a mulher é uma questão de saúde. O
interesse em estudar esse tema surgiu de questionamentos que se apresentavam no cotidiano de
trabalho, enquanto profissional de serviço social em uma Unidade Básica de Saúde (UBS)
2
de
Florianópolis /SC, onde mulheres que buscavam atendimentos específicos ou apresentavam,
durante o atendimento, situações relacionados a violências sofridas, principalmente as conjugais,
não tinham estas demandas ou necessidades efetivamente acolhidas pelo serviço, ou ainda, os
profissionais ali inseridos não percebiam tais situações como demandas possíveis de serem
acolhidas no setor saúde, a não ser para o tratamento de sinais físicos deixados pela violência. Na
realidade das práticas, o que se percebia cotidianamente é que muitos dos profissionais da UBS
se defrontavam com a dificuldade de intervir em situações que envolviam manifestações de
violência contra mulher. Por se tratar de uma UBS que contava com diversas áreas profissionais,
algumas situações eram encaminhadas ao serviço social ou à psicologia como se fossem
competências destas áreas, no entanto, a realidade da maioria das UBSs do município é formada
apenas por profissionais da equipe mínima da Estratégia da Saúde da Família, ou seja, das áreas
da medicina, enfermagem e agentes comunitários de saúde. A partir dessas percepções iniciou-se
2
A atuação profissional em uma UBS município de Florianópolis ocorreu no período de novembro de 2004 a
novembro de 2006 através do II Curso de Especialização em Saúde da Família/Modalidade Residência
Multiprofissional. Este Curso é promovido pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em parceria
com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e contempla as seguintes áreas da saúde: enfermagem, farmácia,
medicina, nutrição, psicologia, odontologia e serviço social.
14
um processo de investigação acerca da participação da saúde nas questões relacionadas à atenção
as mulheres em situação de violência, especificamente no nível da atenção básica. Buscando
compreender, a partir dos achados, qual seria o lugar da saúde nas questões relacionadas à
violência contra a mulher identificaram-se diversas normatizações e documentos expedidos pelo
Ministério da Saúde e órgãos relacionados que deveriam servir de instrumentos aos profissionais
na atenção a estas situações.
Nessa perspectiva, e considerando os estudos realizados anteriormente que permitiram
apreender a violência contra a mulher enquanto questão que deve ser abordada também no campo
da saúde, é reiterado o interesse pelo debate acerca da atenção prestada pelos serviços básicos de
saúde às mulheres em situação de violência. As hipóteses
3
que sustentam este estudo, decorrentes
da vivência profissional em uma UBS e também de reflexões acerca do tema, são duas: a
primeira é que a temática da violência contra a mulher tem pouca visibilidade no cotidiano dos
serviços básicos de saúde de Florianópolis/SC; e a segunda é que os profissionais de saúde
inseridos neste nível de atenção não percebem a temática como uma questão de saúde e estão
pouco qualificados para trabalhar com tal demanda. A importância em trabalhar estas duas
questões pressupõe uma análise sobre o debate histórico que envolve a política governamental,
principalmente a política de saúde, para a atenção as mulheres em situação de violência e o
momento de sua operacionalização a partir dos profissionais inseridos na atenção à saúde.
Assim, o objetivo deste trabalho é discutir a temática da atenção as mulheres em situação
de violência no âmbito da saúde com ênfase na atenção básica à saúde. Para isso os objetivos
específicos são: investigar a relação entre o atual modelo de atenção à saúde e as ações destinadas
às mulheres em situação de violência; identificar as propostas e ações dos organismos
representativos na saúde em relação à temática, principalmente o que o Ministério da Saúde
propõe para os serviços de atenção básica através de políticas, ações, normas operacionais e
outros documentos; investigar o processo de operacionalização da atenção às mulheres em
situação de violência no âmbito da atenção básica à saúde no município de Florianópolis e; a
3
De acordo com Minayo (1994a, p. 95) as hipóteses são “afirmações provisórias a respeito de determinado
fenômeno em estudo. São afirmações para serem testadas empiricamente e depois confirmadas ou rejeitadas.
Uma hipótese científica deriva de um sistema teórico e dos resultados de estudos anteriores e, portanto fazem
parte ou são deduzidas das teorias, mas também podem surgir da observação e da experiência nesse jogo
sempre impreciso e inacabado que relaciona teoria e prática”.
15
partir desta operacionalização da atenção analisar como a temática da violência contra a mulher
aparece no cotidiano dos serviços básicos de saúde de Florianópolis/SC e como os profissionais
inseridos neste âmbito estão preparados para trabalhar com tal demanda. Com a intenção de
contribuir na discussão sobre esta atenção realizou-se um debate sobre a relação entre o modelo
de saúde coletiva, as ações destinadas às mulheres em situação de violência e a operacionalização
nos serviços de atenção cuja centralidade está na compreensão da violência contra a mulher
enquanto questão que tem lugar na agenda da saúde. Nessa perspectiva, considerou-se o contexto
histórico que possibilitou a implantação do atual modelo de saúde brasileiro, ou seja, reconheceu-
se que a gênese da construção das bases que sustentam e compõem esse modelo de atenção está
relacionada com as discussões advindas desde o movimento pela Reforma Sanitária, o qual se
manifestou em prol do rompimento de um modelo restrito de perceber as questões que envolvem
o processo saúde doença, e das lutas do movimento de mulheres pela consideração da violência
enquanto questão presente no cotidiano das mulheres e merecedora de abordagens para além do
setor policial.
Buscando contemplar os objetivos propostos o estudo está delineado pela revisão
bibliográfica considerando que esta possibilita ao pesquisador ampliar o grau de conhecimento de
um determinado tema capacitando-o para melhor compreensão do problema pesquisado (GIL,
1994). E pela pesquisa qualitativa, enquanto procedimento metodológico empírico, realizada
junto a nove UBSs do município de Florianópolis/SC que buscou apontar como a questão da
mulher em situação de violência aparece no cotidiano dos serviços básicos de saúde e como os
profissionais inseridos neste âmbito estão preparados para trabalhar com tal demanda. Nesta
perspectiva, as informações obtidas na pesquisa foram analisadas e organizadas tendo como
referência o arcabouço teórico, o problema da pesquisa e os objetivos propostos. Dessa forma, os
dados coletados, as análises e leituras realizadas ao longo do desenvolvimento do trabalho
propiciaram a exposição deste em quatro capítulos.
No primeiro capítulo apresenta-se o cenário para o debate da atenção as mulheres em
situação de violência no campo da saúde. Fazem parte deste cenário conceitos e categorias que
permeiam o tema da violência de forma geral e, especificamente, da violência contra a mulher.
Também, apresenta-se as principais características e diretrizes do atual modelo brasileiro de
atenção à saúde, o modelo de Saúde Coletiva, bem como a Saúde da Família como estratégia de
16
atenção básica. Além disso, busca-se discutir como essa organização do setor saúde permite uma
abordagem teórico-assistencial da violência contra a mulher.
No segundo capítulo discorre-se sobre a construção da agenda pública de proteção as
mulheres em situação de violência, tanto em âmbito geral quanto especifico do setor saúde. O
mapeamento realizado permitiu conhecer acordos e tratados governamentais acerca do tema de
abrangência nacional e internacional. Também, diversas ações como políticas, programas,
projetos, normas operacionais, protocolos e legislações que podem servir de instrumentos para a
atenção as mulheres em situação de violência, tanto em nível de gestão das ações quanto das
práticas. Esse mapeamento também foi realizado no nível estadual e municipal.
No terceiro capítulo descreve-se, inicialmente, o percurso metodológico da pesquisa
empírica, o processo de escolha dos sujeitos, os instrumentos de pesquisa utilizados e o percurso
de análise e tratamento dos dados, baseado na Análise de Conteúdo Temática proposta por
Minayo (1994 a). Ainda neste capítulo apresentam-se os dados da pesquisa desenvolvida junto as
UBSs do município de Florianópolis /SC buscando identificar e analisar o processo de
operacionalização da atenção às mulheres em situação de violência no âmbito da atenção básica à
saúde do referido município.
E, por fim, são desenvolvidas as considerações acerca da proposta de pesquisa e elencadas
as referências bibliográficas e que fundamentaram o trabalho.
17
1 O CENÁRIO PARA O DEBATE DA ATENÇÃO ÀS MULHERES EM SITUAÇÃO DE
VIOLÊNCIA NA SAÚDE
1.1 - Contextualizando a violência contra a mulher e a sua inserção no debate da saúde
A violência, em seu sentido geral, é um termo polissêmico, pois pode ser referido para
nomear desde as formas mais cruéis de tortura e assassinatos em massa até as formas mais sutis
que se expressam no cotidiano da vida social, porém consideradas opressivas, como a burocracia,
a má distribuição de renda, determinadas normas culturais, dentre outras formas (SCHRAIBER e
D’OLIVEIRA, 1999). Para Minayo (1994b), a característica geral da violência é que esta coloca
limites e nega a integridade e direito de outros sendo acentuada pelas desigualdades sociais,
portanto, deve ser entendida como um processo e não simplesmente como males físicos ou
psicológicos causados pela materialização da força. Nesse sentido, a violência não é entendida
somente pelo ato ou fato, mas sim como um processo analisado ou percebido a partir de um dado
contexto. Ao definir o campo de estudo da violência, a autora aponta a violência imperceptível
que perpassa a sociedade, sendo influenciada pela desigualdade de bens e informações e que
formaria uma rede menos aparente de violência, tendo em vista que apenas os aspectos mais
agudos, como a violência física explícita, tornam-se visíveis. Esta rede menos aparente seria
composta pela delinqüência, em seus fatores ligeiramente reconhecidos como violência, entre
eles ferimentos, assassinatos e mortes; pela violência estrutural do Estado e das instituições que
reproduzem as condições geradoras da violência; e pela resistência às condições de desigualdade,
que algumas vezes se expressa também pela agressão física. Estes três componentes -
delinqüência, estrutura e resistência – seriam intercessores e estariam articulados em rede.
No que concerne a violência contra a mulher, a literatura mostra que esta não é um fato
novo na história, nem mesmo na história brasileira, no entanto, assume características
diferenciadas nos diversos contextos sociais e culturais construídos historicamente. Alguns
autores chamam a atenção para o fato da violência contra a mulher torna-se um problema a partir
da modernidade e seus valores de liberdade e felicidade, norteados pela idéia de cidadania e de
mulher como sujeito de direitos. Com base nestes valores algumas práticas – culturalmente
construídas – passam a ser consideradas como formas de violência. Assim, comportamentos ditos
“naturais” passam a ser vistos como violência, por exemplo, impedir a mulher de trabalhar fora,
18
impedir sua participação em atividades sociais, agressões domésticas como beliscões, puxões de
cabelo, as relações sexuais forçadas no casamento, dentre outros (BOSELLI, 2006).
Estudos realizados em vários países mostram que a violência contra a mulher no contexto
familiar apresenta freqüência bastante elevada, sendo que em algumas situações a ocorrência de
violência de maridos e companheiros contra suas esposas é de um caso dentre quatro casais. No
Brasil, um estudo realizado em 1992 pelo Grupo Parlamentar Interamericano sobre a População
em Desenvolvimento fundamenta a preocupação com o tema ao apontar a ocorrência de mais de
205 mil agressões contra a mulher no período de um ano, registradas nas Delegacias da Mulher.
Estas Delegacias registram em média uma agressão à mulher a cada quatro minutos e, ainda,
deve-se levar em conta que nem todas as mulheres procuram as Delegacias (BRASIL, 2001a).
Outra pesquisa da Fundação Perseu Abramo realizada em 2001, diretamente nos domicílios e
independentemente de denúncia, com uma amostra de 2.502 entrevistas pessoais e domiciliares
estratificadas em cotas de idade e porte dos municípios, detalhou e analisou percentagens da
violência sofrida a partir do tipo, renda familiar mensal, local de residência e criação, região,
idade, estado conjugal e iniciação sexual, escolaridade, ascendência racial e vínculo com o
agressor. Foram entrevistadas mulheres de 15 anos ou mais, residentes em 187 municípios de 24
estados das cinco macro-regiões brasileiras. Os resultados apontaram que a responsabilidade do
marido ou parceiro como principal agressor varia entre 53% e 70% das ocorrências de violência.
A pesquisa também abordou algumas outras questões qualitativas, como a opinião das mulheres
sobre a importância de políticas públicas de combate à violência se colocando como uma das
pesquisas mais utilizadas atualmente e um dos principais subsídios para produção teórica,
formulação de estratégias e programas (BOSELLI, 2006).
Ainda outro estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) realizado em
1997 registrou que 25% dos dias de trabalho perdidos pelas mulheres são causados por algum
tipo de violência que sofreram, o que reduz seus ganhos financeiros entre 3 a 20% refletindo nas
desigualdades sócio-econômicas. A mesma pesquisa aponta que filhos e filhas de mães que
viveram situações de violência têm três vezes mais chances de ficarem doentes e 63% destes
filhos repetem pelo menos um ano na escola, abandonando os estudos aos nove anos de idade, em
média (BRASIL, 2001a).
19
A exposição de alguns dados estatísticos, embora importantes para a compreensão da
dimensão da violência no cotidiano da vida das mulheres, muitas vezes são problemáticos, pois o
tema se encontra num campo de invisibilidades e controvérsias. Nesse campo se coloca a questão
da sub-notificação que, por envolver fatores conflitivos presentes nas relações sociais e
implicações jurídicas relacionadas a informações médicas e policiais, uma parte considerável dos
dados se esvaziam por outras violências ou são ignoradas por não significarem infração jurídica.
No caso específico da saúde o desconhecimento dos profissionais sobre a obrigatoriedade da
notificação dos casos de violência contra a mulher é outra questão importante. As contribuições
de Schraiber et al (2003) em relação aos dados da violência apontam, ainda, para outro aspecto
também importante que são as diferentes compreensões que as mulheres e os profissionais de
saúde têm em relação à violência. Em seu estudo intitulado “Violência vivida: a dor que não tem
nome”, a autora entrevista mulheres que freqüentam serviços de saúde e encontra dados bastante
significativos em relação à compreensão destas do que é a violência. A maioria absoluta das
mulheres que relataram durante as entrevistas ter sofrido agressão física, psicológica ou sexual
não consideraram o episódio como “violência”. O termo “violência” para as mulheres
entrevistadas esteve relacionado a situações graves ocorridas na espera pública e assim, o espaço
doméstico não aparece na definição de violência. Isto vem expressar como a invisibilidade e a
compreensão da violência pode interferir nas relações usuárias/profissionais de saúde gerando
“impasses comunicacionais”.
Ao iniciar a discussão sobre os diferentes conceitos e expressões teóricas que permeiam a
questão da violência contra a mulher, é preciso demarcar a dificuldade em conceituá-la. Como se
tem colocado a “violência” é um objeto complexo e delicado que envolve aspectos subjetivos e
simbólicos do ser, incorpora incertezas, contradições e pluralidades permeada por dimensões
sócio-culturais, o que coloca dificuldades para enfrentá-la. Mesmo a dimensão jurídica que tenta
objetivá-la acaba muitas vezes não abrangendo as subjetividades vividas. Apesar disso, há um
certo consenso entre os estudiosos do tema, principalmente aqueles ligados ao movimento
feminista, que a expressão violência contra a mulher só pode ser compreendida historicamente.
Neste sentido, a expressão “violência contra a mulher” emergiu no cenário dos movimentos
feministas há pouco mais de duas décadas e se refere a situações diversas de violência como
física, sexual e psicológica cometida por parceiros íntimos, estupro e abuso de meninas, assédio
sexual no local de trabalho, violência racial e étnica, aquela cometida por ação ou omissão do
20
Estado, dentre outras. No cenário político o termo “violência contra a mulher” aparece como um
instrumento para denunciar as desigualdades na relação homem/mulher (SCHRAIBER e
D’OLIVEIRA, 1999; BRANDÃO, 1998).
A violência contra a mulher é definida como:
qualquer acto, omissão ou conduta que serve para infligir sofrimentos físicos,
sexuais ou mentais, directa ou indirectamente, por meio de enganos, ameaças,
coacção ou qualquer outro meio, a qualquer mulher, e tendo por objectivo e
como efeito intimidá-la, puni-la ou humilhá-la, ou mantê-la nos papéis
estereotipados ligados ao seu sexo, ou recusar-lhe a dignidade humana, a
autonomia sexual, a integridade física, mental e moral, ou abalar a sua
segurança pessoal, o seu amor próprio ou a sua personalidade, ou diminuir as
suas capacidades físicas ou intelectuais (EUROPA, 2002, p.4).
Recentemente, a categoria violência de gênero tem sido introduzida nos estudos e debates
acadêmicos, portanto para Saffioti (2002), esta categoria está intrinsecamente ligada à violência
contra a mulher, embora este conceito procure abranger, também crianças e adolescentes:
Violência de gênero é o conceito mais amplo, abrangendo vítimas como
mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos. No exercício da função
patriarcal, os homens detêm o poder de determinar a conduta das categorias
sociais nomeadas, recebendo autorização ou, pelo menos, tolerância da sociedade
para punir o que se lhes apresenta como desvio. Ainda que não haja nenhuma
tentativa, por parte das vítimas potenciais, de trilhar caminhos diversos do
prescrito pelas normas sociais, a execução do projeto de dominação-exploração
da categoria social homens exige que sua capacidade de mando seja auxiliada
pela violência. Com efeito, a ideologia de gênero é insuficiente para garantir a
obediência das vítimas potenciais aos ditames do patriarca, tendo este necessidade
de fazer uso da violência (SAFFIOTI, 2002, p.2).
A categoria gênero vem, na atualidade, expressar uma construção sócio-histórica-cultural
do movimento feminista que desloca a categoria do campo das classificações gramaticais para
abordar a construção social das relações e diferenças entre homens e mulheres nas suas
masculinidades e feminilidades. De acordo com alguns autores, dentre os quais Scott (1995),
gênero passa a ser uma categoria de análise e objeto de novos estudos e explicações sobre as
relações homem/mulher. Assim, a autora compreende gênero como um conjunto objetivo de
referências que estrutura a percepção e a organização concreta e simbólica de toda a vida social.
21
É um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças entre as representações
sociais construídas histórica e culturalmente baseadas na conexão integral entre duas proposições,
de homens e mulheres ou de papeis femininos e masculinos. Trata-se, assim, de uma forma
primeira de significar as relações de poder à medida que tais diferenças se configuram como
desigualdades. Nesta perspectiva, no momento em que se apreende que o poder perpassa as
relações de gênero, tanto a figura feminina quanto a masculina seriam sujeitos em relação, já a
violência passaria a ser o uso do poder estratégico sobre o outro, em que o outro fica em uma
posição coisificada e não consegue ser sujeito. Assim, a violência também é uma questão de
gênero, mas não a única.
De maneira geral, os estudos e pesquisas acerca do tema da violência contra a mulher e de
gênero vêm sendo desenvolvidos a partir de diferentes linhas teóricas, dentre as quais duas tem se
destacado. Sinteticamente, a primeira concentra os fundamentos da violência contra a mulher no
patriarcado, no racismo e no capitalismo perpassados pela idéia de gênero, e a segunda concentra
sua atenção na violência como resultante da relação afetivo/emocional presente nas relações
conjugais. A primeira concepção, liderada por Heleieth Saffioti, atribui um gênero como
causador da violência contra a mulher, o masculino, definindo a violência como um instrumento
de controle sobre o gênero feminino. Utiliza o conceito de dominação-exploração ou exploração-
dominação onde estas duas dimensões concebem o processo de sujeição de uma categoria social.
Assim, a mulher é percebida como vítima dessa violência fundamentada historicamente pelo
patriarcado, pelo racismo e pelo capitalismo (SAFFIOTI, 2002; BRANDÃO, 1998). Na mesma
linha explicativa Teles (1999), ao contextualizar o processo de opressão feminina iniciada desde
o Brasil Colônia, afirma que a forma patriarcal de organização da sociedade brasileira contribuiu
para a exploração e submissão da mulher. Através da estrutura de gêneros – enquanto atributos
culturais construídos coletivamente a respeito da masculinidade e feminilidade - as mulheres
foram educadas a se submeterem ao poder dos homens.
A segunda linha é liderada por Maria Filomena Gregori (1993) que entende a violência
contra a mulher como resultante de conflitos na negociação das relações de gênero. Nelas a
mulher aparece também como sujeito da relação geradora de violências em meio a um vínculo
afetivo/conjugal. Nessa perspectiva a violência contra a mulher aparece como resultado das
relações afetivas/emocionais que se apresentam de forma complexa. Grossi (1998), ao se incluir
22
nesta linha teórica, compreende que a violência tem como pressuposto o não isolamento do pólo
mulher para o entendimento da violência na relação conjugal, e que é necessário percebê-la a
partir do vinculo afetivo/conjugal criado através da comunicação de cada casal, bem como diante
do contexto cultural no qual o casal está inserido.
Estas concepções sobre a violência contra a mulher têm contribuído para aprofundar o
debate e dar visibilidade à temática no campo da saúde, pois, o Ministério da Saúde tem proposto
tratar do tema, também, a partir da categoria violência intrafamiliar. Entende a violência
intrafamiliar como “toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física,
psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de outro membro da família”,
pode ser cometida dentro ou fora de casa, por qualquer integrante da família que esteja em
relação de poder com a pessoa agredida (BRASIL, 2001a, p.16). Ou seja, é o resultado de
qualquer tipo de relação violenta praticada no espaço interno ou externo da casa que envolve os
membros da família, e também, deve ser compreendida no âmbito da questão de gênero e dos
ciclos de vida. No entanto, autores consideram que a expressão violência intrafamiliar poderia
ocultar a real visibilidade da violência contra a mulher no sentido de que não antecipa os agentes
e vítimas da agressão, podendo ser de pais contra filhos, de filhos contra avós, etc. Também,
pelos dados estatísticos que apontam ser a mulher a principal sofredora de violência no espaço
familiar, principalmente àquelas cometidas pelo namorado ou companheiro (TELES, 1999).
A proposição do Ministério da Saúde na abordagem da questão da violência, e
particularmente da violência contra a mulher, passou a ser possível à medida que houve uma
profunda alteração do modo de pensar e fazer saúde no Brasil. Enquanto questão visível, a
violência encontra espaço na área da saúde no final dos anos de 1970 sendo sua inserção
fundamentada pelo aumento nas Américas de traumas e mortes decorrentes de causas violentas.
Nessa época o tema começa a ganhar prioridade na agenda dos organismos internacionais
envolvidos com a saúde como, por exemplo, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).
Em documento, a OPAS justifica que “a violência, pelo número de vítimas e a magnitude das
seqüelas orgânicas e emocionais que produz, adquiriu um caráter endêmico e se converteu em
problema de saúde pública em vários países” (...) “o setor saúde constitui encruzilhada onde
confluem todos os corolários da violência” (OPAS/OMS, 2002).
23
No Brasil não é diferente, a violência também aumenta exercendo maior impacto sobre o
campo da saúde. Nesse contexto surgem alguns estudos que tentam aprofundar e articular
reflexões das ciências humanas – que tradicionalmente estuda o fenômeno - e da epidemiologia
4
em torno do tema da violência. No entanto, estes estudos ainda se apresentam de forma incipiente
no sentido de que as investigações estão mais direcionadas para a questão da mortalidade e muito
menos ao estudo de morbidades ocasionadas pelos processos violentos. Para Minayo (1994b) este
fato está relacionado com a complexidade das manifestações da violência que não permitem
classificações muito precisas e, ao mesmo tempo, compreensivas como exige a epidemiologia. À
medida que o fenômeno é classificado, este tende a se singularizar, se confundir e se excluir.
Documento publicado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e Organização
Panamericana de Saúde (OPAS), em 2002, apresenta que os objetivos da saúde pública no campo
da violência estão se ampliando, indo além do tratamento das conseqüências físicas e
psicológicas. Os objetivos se colocam na direção da prevenção e combate as raízes da violência
onde novas contribuições de instituições e disciplinas no campo da saúde, como psicologia e
epidemiologia, tendem a potencializar os esforços do campo jurídico e policial. Dessa forma
coloca como principal tarefa dos sistemas de saúde pública dos países a caracterização dos
diferentes tipos de violência, definição da magnitude e estudo das causas da violência e sua
repercussão na saúde pública incorporando nessas análises uma perspectiva baseada na
diferenciação entre os sexos. Também, como primeira resposta ao problema da violência, os
paises devem considerar que esta pode ser prevenida:
La violência se considera a menudo um componente ineludible de la condición
humana, uma realidad ante la que hemos de reaccionar en lugar de prevenirla.
Pero estos supuestos están cambiando, gracias al êxito de fórmulas de salud
pública aplicadas a otros problemas sanitários de origen medioambiental o
relacionados com el comportamiento. El sector de la salud está especialmente
interessado em la prevención de la violencia y tiene um papel clave que
desempenar al respecto. [...] los profesionales de la salud pública y sus
colaboradores parten de la sólida convicción, basada em pruebas científicas, de
que tanto la conducta violenta como sus consecuencias pueden prevenirse
(OMS/OPAS, 2002, p.4).
4
A epidemiologia é uma parte da saúde pública que se dedica a estudar as causas das enfermidades produzidas
por agentes infecciosos, agentes químicos, pelas condições do ambiente e, mais recentemente, aquelas de
natureza social (GUERRERO, 2000).
24
Para a OMS, há dificuldades em definir a violência no âmbito da saúde pública de forma
que abarque o conjunto de atos perpetrados e as experiências subjetivas das vítimas, por isso a
definição pode resultar tão ampla que acaba perdendo sentido ou vista como fenômenos
patológicos que se apresentam na vida cotidiana (OMS/OPAS, 2002). Diante disso, a OMS,
buscando dar um norte para o debate da violência no campo da saúde definiu a violência como:
El uso deliberado de la fuerza física o el poder, ya sea em grado de amenaza o
efectivo, contra uno mismo, outra persona o un grupo o comunidad, que cause o
tenga muchas probabilidades de causar lesiones, muerte, daños psicológicos,
trastornos Del desarrollo o privaciones (OMS/OPAS, 2002, p.5)
Classifica a violência em três grupos: A) violência dirigida a si mesmo, que compreende
os comportamentos suicidas e automutilações; B) violência interpessoal, infligida por outra
pessoa ou grupo pequeno e; C) violência coletiva, infligida por grupos maiores como Estados,
organizações, milícias e outros. Estas se subdividem para abordar tipos de violências mais
específicos. Uma subdivisão do grupo B é a violência intrafamiliar e contra a mulher, a qual
abarca formas de violência como o maltrato aos filhos, maltrato a companheira e aos idosos.
Diante disso, pode-se compreender que há um reconhecimento dos organismos
internacionais representativos na Saúde a respeito da abordagem da violência no campo da saúde
que deixa de ser algo abstrato e passa a ser pensada tendo em vista suas características, os atores
envolvidos e os espaços onde acontece. Assim, após a exposição de algumas categorias e
conceitos sobre a violência e, especificamente, da violência contra a mulher, nos próximos itens
deste capítulo busca-se aprofundar o debate sobre as novas formas de pensar e organizar a saúde
no Brasil, as quais servirão de cenário para compreender as práticas da atenção as mulheres em
situação de violência no nível de atenção básica à saúde.
1.2 A construção das novas formas de pensar e fazer saúde no Brasil: base para a
organização dos serviços de atenção à saúde
A perspectiva de mudança de modelo teórico-conceitual de pensar e fazer saúde emerge
no Brasil a partir da década de 1970. Nesse período, em meio à crise social que abalava o país e a
perspectiva de democratização, a sociedade brasileira vivenciava um processo de reordenamento
25
político que buscava superar o regime ditatorial instaurado desde 1964. A discussão em torno da
saúde brasileira marcou forte presença nesse cenário, onde diversos segmentos sociais e
governamentais discutiram as condições de vida da população e novas propostas de ações
governamentais para o setor que se traduziriam em um novo modelo ideológico, político e
assistencial de atenção à saúde pública denominado de Saúde Coletiva. Este movimento social foi
chamado de Movimento Sanitário que, para Teixeira (1989) se caracterizou como um processo de
transformação da norma legal e do aparelho institucional regulamentando e responsabilizando o
Estado pela proteção à saúde dos cidadãos. Correspondeu a um efetivo deslocamento de poder
político em direção as camadas populares, cuja expressão material se concretiza na busca do
direito universal a saúde na criação de um sistema único de saúde sob a égide do Estado.
Esse Movimento teve seu ápice com a organização da VIII Conferência Nacional de
Saúde, realizada em 1986 em Brasília, a qual foi considerada como marco no processo de
reordenamento do modelo de atenção à saúde e teve como temas de discussão: a saúde como
direito; a reformulação do Sistema de Saúde integrando aspectos orgânico-institucionais,
descentralização, universalização e participação, redefinição das atribuições das esferas de
governo no tocante à prestação de serviços; e o financiamento dos serviços. Outro resultado
desta Conferência foi um “consenso” político que permitiu dar continuidade ao desenvolvimento
do projeto da Reforma Sanitária, caracterizado pela adoção de um conceito de saúde ampliado,
explicitado como:
A saúde não é um conceito abstrato. Define-se no contexto histórico de
determinada sociedade e num dado momento de seu desenvolvimento, devendo
ser conquistada pela população em suas lutas cotidianas. Em seu sentido mais
abrangente, a saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação,
educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade,
acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. É assim, antes de tudo, o
resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar
grandes desigualdades nos níveis de vida (MINAYO, 1986).
Assim, esse modelo
5
, ao incorporar novos debates em torno de um conceito ampliado de
saúde, de novas linhas estratégicas de pensar e fazer saúde pública e abrir a discussão sobre a
5
Os modelos a que se refere este trabalho podem ser entendidos também como paradigmas, compreendidos
como um sistema dominante de crenças que não necessariamente significa unanimidade sobre a concepção de
26
extensão da cobertura dos serviços pelo Estado, teve a intenção de se contrapor ao modelo
Biomédico que tradicionalmente regeu a saúde no Brasil. O modelo Biomédico esteve pautado
num corte entre causas e efeitos de forte conotação médica, seja preventiva, curativa ou
reabilitadora. Levou a modelos explicativos restritivos que dão ênfase ao estudo das relações
entre uma ou diversas causas e entre um ou diversos efeitos em saúde, fomentando resposta
unilaterais, marcadas por uma visão clínica e de atenção ao indivíduo. Neste a saúde é entendida
como ausência de doença e a organização da atenção é medicamente definida tendo como
objetivo disponibilizar a população ações e serviços fundamentados, principalmente, nos
elementos ideológicos do flexnerianismo
6
(MENDES, 1996).
Durante quase todo o século XX, levando em conta os diferentes períodos históricos, a
saúde pública brasileira esteve pautada na focalização da assistência aos mais pobres, nas
campanhas que não deram conta de eliminar as doenças infecto-contagiosas ou a mortalidade
materno-infantil e no binômio assistência-repressão. A população que dispunha de recursos
optava pelo modelo privatista que girava em torno da corporação médica e dos interesses
capitalistas. Este último ganhou força no período da ditadura militar com o investimento de
grandes recursos governamentais na construção de hospitais e na compra de equipamentos
médicos. Com o novo arcabouço, a Saúde Coletiva passa a levantar como bandeira de luta a
determinação social da saúde e da doença, ressalta a relação entre política e direito à saúde e
insere categorias como democracia, políticas públicas e movimentos sociais. Coloca como
essência do movimento princípios como a universalidade do acesso; concepção de saúde como
direito de todo cidadão e dever do Estado; reestruturação do setor a partir de um sistema único de
saúde com um novo olhar sobre saúde coletiva e individual; descentralização das decisões e
competências para os Estados e municípios, além do delineamento do financiamento efetivo e
um fenômeno, mas certa estabilidade entre diferentes concepções que coexistem em um momento dado e numa
certa sociedade sobre um fenômeno. Também pode ser entendido como um conjunto de elementos culturais, de
conhecimento e códigos teóricos, técnicos e metodológicos compartilhados pelos membros de uma comunidade
cientifica (Mendes, 1996, p.235, 237).
6
O flexnerianismo consolidou-se pelas recomendações do Relatório Flexner, publicado em 1910 pela
Fundação Carnegie que cujas principais conclusões estiveram pautadas em mudanças no padrão de formações
dos profissionais médicos: expansão do ensino clinico, especialmente nos hospitais; ênfase na pesquisa
biológica como forma de superar a era empírica; estimulo a especialização médica e controle do exercício
profissional através da organização da profissão, dentre outras. Este relatório vingou em grande da América
Latina, principalmente, porque as fundações privadas americanas aplicaram muito dinheiro em sua
implementação, no período de 1910 a 1930 (MENDES, 1996).
27
democratização do poder local por meio de mecanismos de controle social, como as conferências
e os conselhos. Ao final da década de 1980 estes princípios se firmaram na Constituição Federal
de 1988. Dessa forma, o modelo nacional de Saúde Coletiva que se organizou em torno do
ideário do Movimento Sanitário buscou superar quase um século de práticas pautadas em uma
saúde pública que tinha como eixo norteador o modelo biomédico como paradigma dominante.
Cabe lembrar que, a partir da década de 1950, outras correntes também se colocaram como
alternativas ao modelo biomédico como a corrente Preventivista
7
e a da Medicina Comunitária
8
que, apesar dos esforços, não conseguiram o superar.
Para Carvalho, o novo modelo de saúde pública proposto no país nos fins dos anos de
1970 foi uma mudança radical. A então Saúde Pública foi rebatizada de Saúde Coletiva
significando, a partir de um prolongado trabalho de reelaboração teórico-prática, a constituição
de um novo paradigma, uma nova forma de compreender e agir sobre o processo saúde/doença. A
Saúde Coletiva influenciada por correntes mais revolucionárias como o marxismo “desconstruiu,
o quanto pôde, o império biomédico dominante em pesquisa, ensino e práticas em saúde”
(CARVALHO, 2005).
Assim, a partir do início da década de 1990 a política de saúde brasileira inicia um
processo de consolidação do debate em torno da Saúde Coletiva, tendo como marco a
Constituição de 1998 que estabelece o Sistema Único de Saúde (SUS). São elaboradas
legislações e normatizações específicas com o objetivo de traçar os novos caminhos da
assistência à saúde da população dando visibilidade para a condução da política de saúde. Como
exemplo tem-se a Lei Orgânica da Saúde – Lei 8080/1990 que estabelece o SUS, disciplina a
descentralização político-administrativa do Sistema, enfatizando seus aspectos de gestão e
7
Fundamentada pela história natural das doenças, no conceito ecológico de saúde/doença e na teoria da
multicausalidade. O conceito de saúde é representado por metáforas gradualistas do processo
saúde/enfermidade, que justificam intervenções prévias sobre a ocorrência concreta de sinais e sintomas. Ao
adjetivar a prevenção em níveis: primária, secundária e terciária, incorpora a totalidade da prática médica
(CARVALHO, 2005; PAIM & ALMEIDA, 1998).
8
Esta “recupera parte importante do arsenal discursivo do projeto Preventivista, e em particular a ênfase nas
então denominadas ‘ciências da conduta’ aplicadas a problemas de saúde”, se no plano do conhecimento dá
espaço a outros conceitos sociológicos, antropológicos, demográficos, ecológicoS, dentre outros, no plano
político-ideológico se expressa na medicina como modelo. Também propõe “uma nova forma de prestação de
serviços em que se postula a integração de cuidados curativos e preventivos, individuais e coletivos, valendo-se
de conceitos como atenção simplificada e participação comunitária”. Esta ultima é incorporada com o objetivo
de atenuar as tensões sociais e como meio de diminuição de custos através da auto-ajuda (CARVALHO, 2005,
p. 100; FLEURY, 1998).
28
financiamento, regulamentando as condições de promoção, proteção, recuperação e
funcionamento da política de saúde. Também, a Lei 8.142/1990 que complementa a primeira
referenciando os meios de participação da sociedade e as condições e formas de transferência de
recursos entre as três esferas estatais; além das diversas Normas Operacionais Básicas (NOBs) e,
mais recentemente Emendas Constitucionais e Pactos pela Saúde.
A Lei 8.080 de 1990 estabelece um modelo de política de saúde caracterizando-a como
uma política de cunho social dirigida para o reordenamento dos recursos e serviços na área da
saúde-assistência e médico-sanitária do país, sendo definida por princípios doutrinários como
universalidade, integralidade e eqüidade. Estes três princípios são considerados por Cecilio
(2001) como um conceito-signo com poder de expressar, de forma viva, o ideário da Reforma
Sanitária brasileira e que tem importantes implicações na organização das práticas em saúde. De
acordo com o autor a busca “pela integralidade implica, necessariamente, repensarmos aspectos
importantes da organização do processo de trabalho, gestão, planejamento e construção de novos
saberes e práticas em saúde” (CECILIO, 2001, p. 113).
A universalidade pressupõe que todos os brasileiros possuem pleno direito de acesso aos
serviços e ações de saúde em todos os níveis de assistência, independentemente de qualquer fator
ou critério de exclusão, como condição financeira, vínculo empregatício, raça, cor, religião, etc.
A universalidade veio romper com a estrutura anterior que diferenciava a forma de atendimento à
pessoa considerando seu vínculo ao mercado de trabalho, ou seja, quem possuía carteira de
trabalho registrada e, portanto, contribuía para o antigo Instituto Nacional de Previdência Social
(INPS), tinha acesso aos serviços, já os que não estavam na condição de contribuintes ou
compravam serviços privados ou, para aqueles que não tinham condições financeiras, ficavam a
mercê dos hospitais de caridade e algumas ações de saúde pública.
A idéia de atenção integral, vinculada ao principio da integralidade em saúde, pressupõe
que as ações de saúde devam ser combinadas e direcionadas, concomitantemente, para a
prevenção, a promoção e a recuperação, sendo que as ações de saúde devem estar direcionadas e
condicionadas ao reconhecimento do indivíduo enquanto um complexo bio-psico-social. Para
Cecílio (2001) a integralidade no campo das práticas em saúde (no micro) deve ser resultado do
esforço contínuo e confluência dos diversos saberes de uma equipe multiprofissional, no espaço
concreto dos serviços de saúde, seja uma Unidade Básica de Saúde, uma equipe de Saúde da
29
Família ou um hospital. Esta integralidade deve ser pensada como integrante de uma
integralidade mais ampla (no macro), ou seja, como resultante de uma articulação de cada serviço
de saúde, seja ele uma Unidade de Saúde, um ambulatório ou um hospital, a uma rede muito mais
complexa formada por outras ações e serviços de saúde ou ainda outras instituições fora do setor
saúde. Nesse sentido, a integralidade pressupõe a integração da rede de serviços de saúde em um
sistema racional em seus diferentes níveis de atendimento e outros setores das políticas sociais
sendo compreendida no cotidiano dos sujeitos como:
Uma ação social resultante da permanente interação de atores na relação entre
demanda e oferta, em planos distintos de atenção em saúde (plano individual onde
se constroem a integralidade no ato da atenção individual; e o plano sistêmico
onde se garante a integralidade das ações nas redes de serviços), nos quais os
aspectos subjetivos e objetivos sejam considerados (PINHEIRO, 2005, p. 65).
O princípio da eqüidade pressupõe que todos os indivíduos deverão ser atendidos
conforme as suas necessidades. Os serviços de saúde devem considerar que em determinadas
áreas existam grupos ou indivíduos que vivem de forma diferenciada, ou seja, cada região, grupo
ou indivíduo vivencia situações específicas que se caracterizam por diferentes modos de viver, de
adoecer e de ter oportunidades para satisfazer suas necessidades. De acordo com a OMS/CSDH
(2005) a eqüidade pode ser definida como a ausência de diferenças injustas, evitáveis ou
remediáveis na saúde das populações ou grupos sendo estes definidos com critérios sociais,
econômicos, demográficos e geográficos. Assim, a eqüidade em saúde é uma categoria moral que
se insere na realidade política e na negociação das relações sociais de poder. Uma política de
saúde eqüitativa é aquela que garante a igualdade de possibilidades de saúde, evitando as
condições sociais que limitam a capacidade de saúde de algumas pessoas em determinada
sociedade e geram desigualdades de oportunidade dessas pessoas no exercício de suas liberdades.
Para a CSDH essa definição de eqüidade fornece um fundamento ético para pensar a
saúde, pois considera que há uma relação muito próxima entre a eqüidade na saúde e os
determinantes sociais da saúde à medida que a eqüidade só poderá ser alcançada com ações sobre
estes determinantes sociais (OMS/CSDH, 2005). Os determinantes sociais de saúde são
condições sociais em que as pessoas vivem e trabalham ou, de acordo com a frase de Tarlov, “as
características sociais dentro das quais a vida transcorre”. Apontam tanto para as características
30
específicas do contexto social que afetam a saúde, como para a maneira com que as condições
sociais traduzem esse impacto sobre a saúde. Os determinantes são caracterizados em dois
grandes grupos: estruturais e intermediários. Os determinantes estruturais são aqueles que geram
estratificação social, tradicionalmente ligados à renda e a educação e, mais recentemente, ligados
ao gênero, etnicidade e sexualidade como estratificados sociais. Já os determinantes
intermediários determinam as diferenças na exposição e vulnerabilidade as condições
comprometedoras da saúde como condições de vida, condições de trabalho, disponibilidade de
alimento, comportamentos e barreiras para adoção de estilos de vida saudáveis (OMS/CSDH,
2005, p.5).
Cecílio (2001) ao debater os princípios do SUS, dentre os quais a eqüidade adota uma
definição de Malta que, para ele, é consenso entre os que pensam e militam na construção do
Sistema de saúde brasileiro. Para Malta
A equidade é entendia como a superação de desigualdades que, em determinado
contexto histórico e social, são evitáveis e consideradas injustas, implicando que
necessidades diferenciadas da população sejam atendidas por meio de ações
governamentais também diferenciadas (...) Subjacente a este conceito está o
entendimento de que as desigualdades sociais entre as pessoas não são dadas
“naturalmente”, mas sim criadas pelo processo histórico e pelo modo de produção
e organização da sociedade (MALTA apud CECILIO, 2001, p. 120).
Nessa perspectiva a eqüidade está fortemente relacionada à promoção de oportunidades
reais de saúde a partir das políticas públicas apropriadas que devem ter como foco o provimento
das necessidades de saúde individuais e coletivas. Seguindo a linha da militância, onde se insere
o pensamento crítico sanitário brasileiro e latino-americano, também se tem a discussão da
eqüidade no campo do conhecimento. De acordo com Cecílio (2001) este campo é onde a
epidemiologia e o planejamento em saúde se encontram, pois consideram que a epidemiologia ao
ter suas raízes na utilização da informação e uso de indicadores é capaz de fornecer indicações
para o diagnóstico das iniqüidades buscando orientar o planejamento das políticas de saúde.
Diante disto, as iniqüidades poderiam ser trabalhadas em diversos espaços – geral, particular e
singular - tanto para a compreensão de suas determinações, como para pensar estratégias de sua
superação. O espaço geral seria aquele em que são formuladas as macro-políticas econômicas que
resultam no valor dos salários, nos níveis de emprego, na distribuição da riqueza, ou seja, no
31
maior o ou menor acesso aos bens e riqueza. Neste espaço geral estaria situado o Ministério da
Saúde (MS) por seu enorme poder na definição das políticas de saúde, principalmente, a partir de
mecanismos de financiamento como orientador de práticas e maneiras de organização da
assistência nos níveis municipais e locais. O espaço particular seria o município, especificamente
sua Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e gestores municipais, e o espaço singular o dos
serviços de saúde. O autor ainda considera que as iniqüidades podem ser enfrentadas com
diferentes graus de governabilidade nestes espaços. Para ele,
Se por um lado há uma forte determinação do espaço geral para o particular e
deste para o singular, por outro é importante reconhecer que o espaço singular,
aquele dos serviços, pode trabalhar e trabalha, com alto grau de autonomia,
podendo gerar contravetores com capacidade de determinação das políticas
definidas nos espaços “superiores”, em particular se for capaz de escutar e fazer
ressoar as necessidades trazidas pelo usuário. Mais do que isto, entendo que tanto
a eqüidade como a integralidade só poderão ser trabalhadas com o necessário
radicalismo se forem tomadas como temas dos processo de gestão dos espaços
singulares, lugares de encontro dos usuários e dos trabalhadores de saúde
(CECILIO, 2001, p. 122).
Assim, analisar a superação e enfrentamento das iniqüidades só é possível a partir da
abordagem das diversas dimensões que perpassam o individuo em sociedade: individual,
subjetiva, singular, no espaço de cada serviço, no encontro de cada usuário com suas
necessidades de saúde únicas e os profissionais ou a equipe de saúde que ali atende. Outra
questão essencial é a sensibilização para formação dos trabalhadores de saúde, sejam gestores dos
diversos níveis ou executores diretos para a construção da eqüidade, como determinante da
integralidade e da universalidade no nível da macro e da micro-política.
O principio da eqüidade em saúde, assim como o da universalidade, também foi
duramente atingido pela Reforma do Estado
9
onde houve a ascensão do predomínio do
9
O processo de reforma do Estado, emergente em fins dos anos de 1980, ganhou expressividade no contexto
político, econômico e social brasileiro, a partir de 1995, quando é presente a forte interferência dos Organismos
Internacionais de financiamento, como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e
o Fundo Monetário Internacional (FMI) no contexto brasileiro. Para embasar as reformas o Banco Mundial
realizou um diagnóstico sobre o sistema de saúde brasileiro constatando várias implicações como: “A extensão
da cobertura a todos os cidadãos; [...] as pesadas cargas financeiras com que o modelo tem onerado o setor
público, criando expectativas para a população; além de o sistema unificado e descentralizado continuar não
indicando como ocorrem as relações entre o governo e o setor privado” (SIMIONATTO, 2001, p.18). A falha
da política de saúde a ineficiência no atendimento das camadas populacionais mais pobres e a centralização de
recursos em programas que não atingem as regiões mais necessitadas. Faz referências críticas à centralidade
32
pensamento liberal na formulação das políticas sociais com forte influencia das agências
financiadoras internacionais como o banco mundial. O tema da equidade foi redimensionado com
o propósito de domesticar a real expressão do conceito na sua origem. Por exemplo, John Ralws,
que representa o pensamento liberal contemporâneo e que dispõe de grande influencia nas
propostas atuais de proteção social afirma que a eqüidade se subdivide hierarquicamente em:
principio da diferença e da igualdade. Pelo princípio da diferença considera-se que as
desigualdades sócio-econômicas devem ser organizadas de maneira a oferecer melhores
perspectivas aos mais desfavorecidos; já em relação ao principio da igualdade, a igualdade
privilegiada é a igualdade de oportunidades entendida também no campo da liberdade. Dessa
forma, como um liberal, toma sempre a liberdade em detrimento da eqüidade (PEREIRA, 2006).
Além desses princípios doutrinários apresentados, as legislações referidas como a Lei
8.080 ainda apresentaram mecanismos para a operacionalização do SUS chamados de princípios
organizativos, sendo estes: descentralização da gestão com comando único; regionalização e a
hierarquização dos serviços; resolutividade no atendimento; participação efetiva da população no
controle das ações de saúde e ainda a complementaridade do setor privado. Dentre os princípios
organizativos destacam-se a regionalização e hierarquização como norteadores da estruturação
dos serviços de saúde a partir de níveis de atenção, dispostos numa área geográfica delimitada e
com definição da população a ser atendida. Os níveis de atenção estão estruturados da seguinte
maneira: nível de atenção primária ou de Atenção Básica; Atenção Secundária ou de Média
Complexidade; e Atenção Terciária ou de Alta Complexidade. De acordo com Schraiber &
Mendes-Gonçalves (2000), a definição de níveis de atenção à saúde está intrinsecamente
relacionada às necessidades e demandas
10
colocadas pela população, e também, as possibilidades
de conhecer outras necessidades.
nas ações de média e alta tecnologia, com pouco investimento na saúde preventiva. Diante destes
apontamentos, o Banco Mundial propõe uma reforma para as políticas sociais, incluindo a política de saúde
(FURLANETTO, 2004).
10
A demanda é o pedido explícito, a “tradução” de necessidades mais complexas do usuário. A demanda pode
ser por consulta médica, consumo de medicamentos, realização de exames; as necessidades podem ser bem
outras. Estas podem “ser a busca de algum tipo de resposta para as más condições de vida que a pessoa viveu
ou está vivendo (do desemprego à violência no lar), a procura de um vínculo efetivo com algum profissional, a
necessidade de ter maior autonomia de andar a vida ou, mesmo, de ter acesso a alguma tecnologia de saúde
disponível, capaz de melhorar e prolongar sua vida (CECILIO,2001, p. 116)”.
33
Considerando que o contexto deste trabalho é o nível de atenção básica busca-se
aprofundar, nos itens seguintes, a Estratégia governamental que vem moldando nos últimos anos
as ações neste nível de atenção. Também são abordados alguns fundamentos desta Estratégia,
como o acolhimento, o vínculo e a educação permanente dos profissionais de saúde,
compreendendo que estes são fundamentos para a melhoria de acesso e desenvolvimento de
práticas integrais em saúde, de abertura de possibilidades de maior compreensão e ampliação das
demandas da população, inclusive das demandas relacionadas a situações de violência.
1.3 Os serviços básicos de saúde e a Estratégia de Saúde da Família
A atenção primária tem sido associada a uma assistência de baixo custo, aparentando
tratar-se de um serviço simples que utiliza poucos equipamentos. Essa imagem teria raízes na
própria origem dos serviços
11
que, de fato, teriam sido criados como prestação de serviços
públicos destinados a ampliar a cobertura dos serviços para a população mais carente e excluída
dos serviços, ficando restrito a assistência médica simplificada e barata. No entanto, as
dificuldades que se colocaram na extensão dos serviços e até mesmo para manter a cobertura já
conquistada, tornaram este nível algo muito mais complexo do que aparentava ser, tanto em
termos de custo quanto de alternativas de simplificação da assistência que se revelaram muito
mais difíceis do que a redução de equipamentos médicos (OPAS, 1990). Assim, para Schraiber &
Mendes-Gonçalves (2000), as situações assistenciais que se colocam para os serviços básicos de
11
Diante de um quadro permeado por adversidades econômicas e sociais que assolaram a década de 1970 em
diversos paises do mundo, foi realizada em 1978 a Conferência Internacional sobre Cuidados Primários em
Saúde em Alma Ata (na antiga URSS). Esta Conferência foi chamada pela OMS e se consolidou como marco
histórico nas discussões de atenção primária e atenção básica à saúde. A Declaração de Alma Ata, produto da
referida Conferência, reconheceu a enorme desigualdade social e econômica presente entre os paises
desenvolvidos e os países em desenvolvimento e que a proteção e promoção da saúde dos povos são condições
supremas para o progresso econômico e social e, ao mesmo tempo, contribuem para melhorar a qualidade de
vida das populações. De acordo com Franco & Merhy (2003, p. 79), as propostas surgidas da Conferência
partem de uma perspectiva racionalizadora com a pretensão de dar respostas aos investimentos necessários à
assistência à saúde com menores custos possíveis. Isto, baseado em grande medida por uma determinada
conjuntura econômica em recessão vivenciada pelo capitalismo naquele momento. Articulando esses
argumentos, a Declaração propõe os “cuidados primários em saúde” como o princípio para a resolução dos
problemas do setor, entendendo-os como “cuidados essenciais de saúde baseados em métodos e tecnologias
práticas, cientificamente bem fundamentadas e socialmente aceitáveis (...) fazem parte integrante tanto do
sistema de saúde (...) do qual constituem a função central e o foco principal (...) representam o primeiro nível
de contato dos indivíduos, da família e da comunidade com o sistema nacional de saúde” (OPAS, 1978).
34
saúde, quase sempre podem ser compreendidas como situações complexas e esta complexidade
se transfere para o trabalho profissional.
Aprofundando um pouco mais a questão, a unidade de atenção básica à saúde é destinada
a parcela da população que se dirige ou procura serviços pela primeira vez. Não se trata, porém,
de uma primeira vez na vida das pessoas, mas na específica ocorrência ou demanda apresentada
em determinado momento. Daí surge a inter-relação entre atenção primeira e básica uma vez que
a atenção primária, “ao ser um primeiro atendimento, servirá obrigatoriamente de porta de
entrada para o sistema de assistência. Ao mesmo tempo, porém, constitui, no sistema, um nível
próprio de atendimento e deve ir resolvendo uma dada gama de necessidades que extrapolam a
esfera da intervenção curativa individual” (Schraiber & Mendes-Gonçalves, 2000, p.35-36).
Nesse sentido, a atenção básica à saúde
caracteriza-se por um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e
coletivo, que abrangem a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de
agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e a manutenção da saúde. É
desenvolvida por meio do exercício de práticas gerenciais e sanitárias
democráticas e participativas, sob forma de trabalho em equipe, dirigidas a
populações de territórios bem delimitados, pelas quais assume a responsabilidade
sanitária, considerando a dinamicidade existente no território em que vivem essas
populações. Utiliza tecnologias de elevada complexidade e baixa densidade, que
devem resolver os problemas de saúde de maior freqüência e relevância em seu
território. É o contato preferencial dos usuários com os sistemas de saúde
(BRASIL, 2006b, p.2).
Neste nível de atenção estão situadas as Unidades Básicas de Saúde (UBS), nomenclatura
dada pela Portaria 648 de 2006 que aprovou a Política Nacional de Atenção Básica. No entanto,
em diferentes períodos históricos estas Unidades assumiram outras nomenclaturas que ainda hoje
são referências para a população e utilizadas em diversos locais do país como posto de saúde e
unidade local de saúde
12
.
Em meados da década de 1990 o MS implantou o Programa de Saúde da Família (PSF)
12
No município de Florianópolis a nomenclatura dada às unidades de atenção básica até os anos 2000 foi
Centro de Saúde (CS), passando a ser nomeadas de Unidades Locais de Saúde (ULS) até fins de 2006.
Atualmente, ao passar por uma reestruturação, estão sendo re-denominadas de CS. Informação obtida através
de contato telefônico junto a Secretaria Municipal de Saúde do município, em junho de 2007.
35
com a pretensão de desenvolver ações e cuidados primários em saúde
13
que teve como objetivo:
a reorganização da prática assistencial em novas bases e critérios, em
substituição ao modelo tradicional de assistência, orientado para a cura de
doenças e realizado principalmente no hospital. A atenção está centrada na
família, entendida e percebida a partir de seu ambiente físico e social, o que vem
possibilitando às equipes de Saúde da Família uma compreensão ampliada do
processo saúde/doença e da necessidade de intervenções que vão além das
práticas curativas (BRASIL, 2001b ,P.5).
Ainda da década de 1990, em meio a um contexto de reformas e contra-reformas das
políticas brasileiras o PSF foi elevado à condição de Estratégia para reorientação da assistência
básica à saúde, que passa a ser guiada pelos princípios de uma política de atenção básica. Esse
movimento significou a resistência do Movimento Sanitário ao modelo proposto pelos
organismos internacionais e estabeleceu uma nova institucionalidade pautada na compreensão
ampliada do processo de saúde-doença. A Estratégia de Saúde da Família (ESF) veio com o
objetivo de reorganizar a prática assistencial no nível de atenção básica assumindo a família
como figura central no processo de atenção. A unidade de saúde da família compreende o
primeiro nível de ações e serviços locais de saúde, devendo a atenção básica estar articulada à
rede de serviços a fim de garantir atenção integral aos indivíduos, famílias e grupos, assim como
assegurar a referência e contra-referência para os demais níveis de complexidade do SUS. A
unidade trabalha na perspectiva da adscrição da população por equipe de profissionais; também
na formação da equipe multiprofissional que pode incorporar outros profissionais além da equipe
mínima preconizada pelo MS que é composta por médico generalista, enfermeira, auxiliar de
enfermagem, agentes comunitários de saúde e profissionais de odontologia. De acordo com
Campos (2005), em algumas localidades brasileiras há experiências que incorporam outros
profissionais no nível de atenção básica, alguns situam-nos no núcleo central da equipe e outros
procuram manter a equipe mínima como ordenadora da atenção e os demais profissionais
agregados como rede de Apoio Matricial
14
. Como exemplo têm-se profissionais de fisioterapia,
13
Sobre cuidados primários em saúde vide nota 12.
14
O Apoio Matricial é um arranjo organizacional dos serviços que complementa as equipes básicas. Já que a
equipe básica é responsável pelos SEUS usuários, ela geralmente não os encaminha, mas sim pede apoio aos
serviços de referência/especialidades. Estes últimos, ao dispor do apoio matricial, passam a ter dois “usuários”
sob sua responsabilidade: “os usuários do serviço” para o qual ele é referência e “o próprio serviço”. Isso
significa que o serviço de referência/especialidades participa junto com as equipes de saúde, sempre que
36
psicologia, serviço social, nutrição, farmácia, entre outros. Algumas cidades ainda mantêm
profissionais especialistas em territórios com maior demanda que também atuam na atenção
básica como pediatras, ginecologistas e psiquiatras.
Nessa perspectiva, a atenção básica orientada pela ESF tem como princípios a
universalidade, a acessibilidade e a coordenação do cuidado, o vínculo e continuidade, a
integralidade, a responsabilização, a humanização, a equidade e a participação social. Considera
o sujeito em sua singularidade, na complexidade, na integralidade e na inserção sócio-cultural e
busca a promoção de sua saúde, a prevenção e tratamento de doenças e a redução de danos ou de
sofrimentos que possam comprometer suas possibilidades de viver de modo saudável (BRASIL,
2006b).
Recentemente, a Portaria 648 de 28 de março de 2006 veio aprovar a nova Política
Nacional de Atenção Básica e, para isto, estabeleceu uma revisão de diretrizes e normas para a
organização da Atenção Básica, para a Estratégia de Saúde da Família e para o Programa de
Agentes Comunitários de Saúde (PACS)
15
. Esta revisão se deu em decorrência da necessidade de
adequação das normas nacionais ao atual momento de atenção básica no Brasil considerando a
expansão do PSF, o qual se consolidou como a estratégia prioritária para reorganização da
atenção básica, a experiência acumulada nos diversos estados e municípios brasileiros, além dos
princípios e diretrizes propostos nos Pactos pela Vida, em Defesa do SUS e de Gestão
16
que,
necessário elabora projetos terapêuticos dos usuários que são atendidos por ambas as equipes, e apóia as
equipes de saúde na incorporação de conhecimentos para lidar com casos mais simples. O apoio matricial é,
portanto, uma forma de organizar e ampliar a oferta de ações em saúde, que lança mão de saberes e práticas
especializadas, sem que o usuário deixe de ser cliente da equipe de saúde da família (BRASIL, 2004e, p.7-9).
15
O PACS foi implantado num contexto de ambigüidades na condução da política de saúde e atendendo as
indicações do Banco Mundial para a reorientação do sistema de saúde. Iniciado pela experiência do Ceará, em
1991 foi proposto pelo Ministério da Saúde para todo território nacional. Este Programa esteve, originalmente,
vinculado a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) sendo implantado nas Regiões Nordeste e Norte com a
finalidade de contribuir na redução da mortalidade infantil e materna. No ano de 1992 o PACS foi
implementado em outras regiões do país, através de convênio entre FUNASA, MS e Secretarias Estaduais de
Saúde, sendo estes responsáveis pelo repasse de recursos para o custeio do programa e do pagamento dos
Agentes Comunitários de Saúde (ACS) (BRASIL, 2002, P.13).
16
Pacto firmado entre os gestores do Sistema Único de Saúde publicado pela Portaria/GM nº. 399, de 22 de
fevereiro de 2006. Este Pacto Foi discutido e firmado conjuntamente com o Ministério da Saúde, o Conselho
Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde
(Conasems), os quais pactuaram responsabilidades entre os três níveis do SUS, no campo da gestão do Sistema
e da atenção à saúde, a partir de uma unidade de princípios que, guardando coerência com a diversidade
operativa, respeita as diferenças loco-regionais, agrega os pactos anteriores, reforça a organização das regiões
37
dentre outros fatores, vieram desfragmentar o financiamento da Atenção Básica. Tendo em vista
esta revisão da atenção básica, o MS propôs os seguintes fundamentos para Atenção Básica:
Possibilitar o acesso universal e contínuo a serviços de saúde de qualidade e resolutivos,
caracterizados como a porta de entrada preferencial do sistema de saúde, com território
adscrito de forma a permitir o planejamento e a programação descentralizada, e em
consonância com o princípio da eqüidade;
Efetivar a integralidade em seus vários aspectos, a saber: integração de ações programáticas e
demanda espontânea; articulação das ações de promoção à saúde, prevenção de agravos,
vigilância à saúde, tratamento e reabilitação, trabalho de forma interdisciplinar e em equipe, e
coordenação do cuidado na rede de serviços;
Desenvolver relações de vínculo e responsabilização entre as equipes e a população adscrita
garantindo a continuidade das ações de saúde e a longitudinalidade do cuidado;
Valorizar os profissionais de saúde por meio do estímulo e do acompanhamento constante de
sua formação e capacitação;
Realizar avaliação e acompanhamento sistemático dos resultados alcançados, como parte do
processo de planejamento e programação; e
Estimular a participação popular e o controle social (BRASIL, 2006b).
1.3.1 A busca da integralidade na Atenção Básica: o vínculo e o acolhimento
Ao analisar os fundamentos institucionais, políticos e sociais da ESF, Pinheiro (2005)
afirma que a centralidade na integralidade e na família amplia seu escopo de intervenção, a fim
de integrar ações contextualizadas, seja na organização ou na assistência de cuidados. Estes
objetivos e metas têm o sentido de resgatar a integração das ações de prevenção e promoção,
recuperação e reabilitação na oferta de respostas às demandas por saúde das famílias nos locais
de residência. Assim, podem propiciar condições que favoreçam o estabelecimento de um novo
olhar na relação entre profissionais, gestores e família, visando garantir o princípio da
sanitárias instituindo mecanismos de co-gestão e planejamento regional, fortalece os espaços e mecanismos de
controle social, qualifica o acesso da população à atenção integral à saúde, redefine os instrumentos de
regulação, programação e avaliação, além de propor financiamento tripartite que estimula critérios de eqüidade
nas transferências de fundo a fundo (BRASIL, 2006c, p. 7).
38
integralidade nas práticas cotidianas em saúde. Estas dimensões da Estratégia de Saúde da
Família, enquanto base para a atenção básica à saúde, delineadas pelo ideário da Saúde Coletiva
reiteram o lugar da violência contra a mulher no setor saúde, principalmente quando se fala em
princípios-chave como a integralidade da atenção e das ações e a intersetorialidade na busca de
respostas às demandas e necessidades por saúde das famílias e das mulheres no lugar onde
moram. Não que estas respostas tenham que ser dadas somente no e pelo nível de atenção local,
no entanto, enquanto porta de entrada, este nível deve ser resolutivo o suficiente para, caso não
seja de sua competência, inserir a família ou qualquer um de seus membros nos demais níveis de
atenção ou até mesmo em outros setores como assistência social e educação. Ou seja, a resolução
da situação de violência pode não se dar no âmbito especifico da saúde, mas a saúde deverá
abordá-la e, se necessário, estabelecer com cada mulher uma escuta responsável apresentando as
alternativas disponíveis e/ou necessárias em termos de acolhimento e intervenção.
O acolhimento e o vínculo também são fundamentos da Atenção Básica que merecem
destaque, pois são estratégias de melhoria de acesso e desenvolvimento de práticas integrais em
saúde, de abertura de possibilidades de maior compreensão e ampliação das demandas da
população, inclusive das demandas relacionadas a situações de violência. De acordo com Franco
et al (1999), o acolhimento - enquanto diretriz operacional - propõe uma inversão da lógica da
organização e do funcionamento do serviço de saúde fazendo com que este esteja centrado no
usuário e não no profissional ou no serviço. Para isto, os autores partem dos seguintes princípios:
1) Atender a todas as pessoas que procuram os serviços de saúde garantindo a
acessibilidade universal. Assim, o serviço de saúde assume sua função precípua, a
de acolher, escutar e dar uma resposta positiva, capaz de resolver os problemas de
saúde da população;
2) Reorganizar o processo de trabalho, a fim de que este desloque seu eixo
central, do médico para uma equipe multiprofissional – equipe de acolhimento,
que se encarrega da escuta do usuário, comprometendo-se a resolver seu
problema de saúde;
3) Qualificar a relação trabalhador-usuário, que deve dar-se por parâmetros
humanitários, de solidariedade e cidadania (FRANCO et al, 1999 p.347).
Nessa perspectiva, o acolhimento é um dispositivo para desenvolvimento de processos
intercessores que criam relações usuário/profissional nas práticas de saúde, buscando a criação da
39
responsabilização e a intervenção resolutiva. Assim, reconhece-se que sem acolher e vincular não
há produção desta responsabilização e nem otimização das resolutividades que efetivamente
possam trazer impactos aos processos sociais de produção da saúde e das doenças (FRANCO et
al, 1999).
De acordo com Campos (2007), a possibilidade de construção de vínculo depende de dois
fatores relacionais: o trabalho em saúde, o que o serviço tem a oferecer; e as necessidades a
serem atendidas. Ou seja, o vínculo é resultado da disposição de acolher por parte de uns – os
profissionais de saúde – e a decisão de outros em buscar apoio. Dessa forma, vínculo pode ser
compreendido como a circulação de afeto que se constrõe quando há o estabelecimento de
alguma forma de dependência mútua: alguns necessitam de apoio para resolver questões
sanitárias, alguns de apoio para ganhar a vida, outros para exercer a profissão escolhida, etc. Para
que exista vínculo positivo os indivíduos e grupos devem perceber na equipe de saúde uma certa
capacidade e responsabilização de resolução de questões de saúde. Já a equipe deve acolher as
demandas apostando que com apoio os usuários têm possibilidades de ser sujeitos do processo de
superação das condições de vida adversas. Neste caso, a prática norteada pelo vínculo
possibilitaria combinar autonomia do usuário e responsabilidade do profissional. Nesta direção, o
vínculo é entendido, na perspectiva da saúde coletiva, como a humanização da relação com o
usuário e a responsabilidade da unidade de saúde na resolução das questões de saúde da sua
região, a partir de ações qualificadas, eficazes e que estimulam a autonomia e a cidadania
permitindo o controle pelo usuário enquanto sujeito da ação (BRASIL, 1996). Também é “fruto
de uma construção social e parte de um esforço multiprofissional e interdisciplinar, que envolve
equipe, instituições e comunidade” requerendo “um processo de conhecimento gradual e de
interação permanente entre sujeitos” (SILVA et al apud GOMES e PINHEIRO, 2005, p.12).
Cecílio (2001) ao estudar as necessidades de saúde aponta para a criação de vínculos
efetivos entre usuários e uma equipe e/ou profissional como uma necessidade insubstituível,
principalmente quando este vínculo é visto enquanto relação de confiança, algo como o “rosto”
do sistema de saúde e referência para o usuário. Assim, o vínculo deve ser reconhecido para além
da simples adscrição dos usuários a um determinado serviço ou equipe, mas sim expressa o
estabelecimento de uma relação contínua e intransferível, um momento de promoção e expressão
de subjetividades. Assim, a noção de vínculo remonta reflexões sobre a responsabilidade e o
40
compromisso dos profissionais e gestores da saúde que, para Gomes e Pinheiro (2005), se
encontra em consonância com integralidade em saúde à medida que o vínculo e o acolhimento
são dispositivos institucionais que servem à materialização do princípio da integralidade no
cotidiano das práticas nos serviços de saúde.
1.3.2 Modelo assistencial e atribuições profissionais
A ESF expressa, também, a discussão de que a mudança do modelo assistencial na
atenção básica à saúde somente acontecerá a partir da reorganização do processo de trabalho em
saúde e, assim, propõe um novo modo de operacionalizá-lo que, como apontado anteriormente,
passa a se estruturar a partir de equipes multiprofissionais. No entanto, esta transformação
pautada em uma perspectiva somente multiprofissional
17
não seria suficiente para a consolidação
dos fundamentos da Atenção Básica e, de modo geral, dos princípios e diretrizes do SUS. A
incorporação de uma perspectiva interdisciplinar
18
de trabalho pelas equipes de saúde é fator
fundamental para a consolidação dos princípios e diretrizes, assim como para a consolidação do
conceito ampliado de saúde.
Nesse contexto, a ESF vem delineando desafios, especialmente as categorias profissionais
que trabalham nas unidades de saúde da família compostas por equipes mínimas e que procuram
viabilizar práticas interdisciplinares no contexto da atenção integral ao usuário. Considerando que
a atenção básica é vista como uma das principais portas de entrada para o sistema de saúde (por
exemplo, o pronto-socorro é outra porta possível e necessária), espera-se deste nível de atenção
muito mais do que isto. Nessa direção, Campos (2005) situa alguns apontamentos em que se
espera da atenção básica a resolução de 80% dos problemas de saúde da população e que, para
atingir essa capacidade resolutiva há atualmente um reconhecimento de que a atenção básica deve
17
Onde profissionais de diferentes áreas trabalham isoladamente, em geral sem cooperação e troca de
informação entre si, a não ser um sistema de referência e contra-referência dos clientes, com uma coordenação
apenas administrativa (VASCONCELOS, 1997, p.141).
18
É entendida como reciprocidade, enriquecimento mútuo, com tendência a horizontalização das relações de
poder entre os campos implicados [...] identificação de uma problemática comum, com levantamento de uma
axiomática teórica e/ou política básica e de uma plataforma de trabalho conjunto, colocando-se em comum os
princípios e os conceitos fundamentais [...] gerando uma fecundação e aprendizagem mútua que não se efetua
pela simples edição ou mistura, mas por uma recombinação dos elementos internos (VASCONCELOS, 1997,
p.141).
41
nortear-se de acordo com algumas diretrizes como o trabalho em equipe interdisciplinar, visto
que nenhum profissional conseguiria ter um acúmulo de conhecimentos e habilidades práticas
suficientes para cumprir simultaneamente todas as funções esperadas por este nível de atenção.
Esse debate em torno das equipes multiprofissionais e das ações intersetoriais instiga
reflexões e definições acerca das atribuições destas equipes, e mesmo das atribuições especificas
das áreas profissionais que compõem a equipe considerando que, pela própria formação
acadêmica, determinadas áreas estariam mais qualificadas para tratarem de determinadas
questões de saúde. Assim, nessa linha de raciocínio a Política Nacional de Atenção Básica de
2006 veio orientar o trabalho em saúde a partir de definições das atribuições das equipes e dos
profissionais nele inseridos. As atribuições específicas de cada área profissional
19
, de acordo
com a referida Política, devem ser normatizadas pelo município considerando as prioridades
definidas pela própria gestão e as prioridades pactuadas no nível nacional e estadual. Já as
atribuições da equipe - que são comuns a todos os profissionais - são as seguintes:
Participação do processo de territorialização e mapeamento da área de atuação da equipe
identificando grupos, famílias e indivíduos expostos a riscos, inclusive aqueles relativos ao
trabalho; atualização contínua dessas informações priorizando as situações a serem
acompanhadas no planejamento local;
Realização do cuidado em saúde da população adscrita, primeiramente no âmbito da unidade
de saúde, no domicílio e nos demais espaços comunitários (escolas, associações, etc.), quando
necessário; realização de ações de atenção integral conforme a necessidade de saúde da
população local, bem como as previstas nas prioridades e protocolos locais;
Garantia da integralidade da atenção por meio de ações de promoção, prevenção e cura;
garantia de atendimento da demanda espontânea, da realização das ações programáticas e de
vigilância à saúde; realização de busca ativa e notificação de doenças e agravos de notificação
compulsória e de outras situações de importância local;
19
Campos (1997), sugere a aplicação dos conceitos de núcleo e campo no planejamento da formação ou prática
profissional em saúde. Por núcleo entende-se o conjunto de saberes, de responsabilidades e ações específicas à
cada profissão ou especialidade marcando, desta forma, a diferença entre os membros da equipe. Por campo
compreendem-se os saberes e responsabilidades comuns ou confluentes a diversas profissões ou especialidades,
por exemplo, os saberes básicos sobre o processo saúde-doença, sobre o funcionamento corporal, sobre a
relação profissional/usuários, dentre outros (CAMPOS, 1997, p.248).
42
Realização da escuta qualificada das necessidades dos usuários em todas as ações,
proporcionando atendimento humanizado e viabilizando o estabelecimento do vínculo;
Responsabilização pela população adscrita mantendo a coordenação do cuidado mesmo
quando houver necessidade de atenção em outros níveis do sistema de saúde;
Participação das atividades de planejamento e monitoramento das ações de saúde a partir de
dados concretos; promoção do controle social; identificação de parceiros e recursos na
comunidade que possam potencializar ações intersetoriais com a equipe, sob coordenação da
Secretaria Municipal de Saúde;
Garantia da qualidade do registro das atividades nos sistemas nacionais de informação da
Atenção Básica; participação das atividades de educação permanente; e realização de outras
ações e atividades a serem definidas de acordo com as prioridades locais (BRASIL, 2006b).
Além destas ações gerais da Atenção Básica, a equipe da Estratégia de Saúde da Família
ainda deverá:
II - atuar no território, realizando cadastramento domiciliar, diagnóstico
situacional, ações dirigidas aos problemas de saúde de maneira pactuada com a
comunidade onde atua, buscando o cuidado dos indivíduos e das famílias ao
longo do tempo, mantendo sempre postura pró-ativa frente aos problemas de
saúde-doença da população;
III - desenvolver atividades de acordo com o planejamento e a programação
realizados com base no diagnóstico situacional e tendo como foco a família e a
comunidade;
IV - buscar a integração com instituições e organizações sociais, em especial em
sua área de abrangência, para o desenvolvimento de parcerias; e
V - ser um espaço de construção de cidadania (BRASIL, 2006b, p.8).
A partir destas ações, as UBS poderão ter um conhecimento geral e contínuo da
população adscrita a partir da leitura das realidades sociais, culturais, econômicas, demográficas e
epidemiológicas do território. E, a partir de abordagens individual, familiar e coletiva, poderão
conhecer e compreender um pouco mais a dinâmica da população inserida naquele território, seus
processos de saúde e adoecimento.
43
Em relação às mudanças assistenciais e à inserção de novas atribuições profissionais - que
não são tão novas assim, pois desde a década de 1990 vêm sendo inseridas no debate da
assistência à saúde – as contribuições de Franco & Merhy (2003) se mostram bastante relevantes.
Para os autores, a mudança das estruturas, dos recursos em jogo e seus formatos não significa
conseqüentemente a mudança assistencial, ou seja, a mudança da micro-política instituída. Para
eles, a realidade dos serviços tem sido cruel ao demonstrar que é necessário um conteúdo novo
que penetre agudamente nos valores e condutas dos profissionais de saúde, especialmente do
médico, considerando que os trabalhadores de saúde são grandes agentes de mudanças dos
serviços assistenciais.
Finalmente, se reconhece a necessidade de Educação Permanente em Saúde como uma
estratégia do SUS para a formação e o desenvolvimento de profissionais que trabalham no setor,
sendo esta normatizada por meio da Política de Educação e Desenvolvimento para o SUS:
caminhos para a Educação Permanente em Saúde de 2003, e da Política Nacional de Educação
Permanente em Saúde de 2004. De acordo com estas Políticas a Educação Permanente em Saúde
é entendida a partir de um “conceito pedagógico, no setor da saúde, para efetuar relações
orgânicas entre ensino e as ações e serviços e entre docência e atenção à saúde, sendo ampliado
na Reforma Sanitária Brasileira, para as relações entre formação e gestão setorial,
desenvolvimento institucional e controle social em saúde” (BRASIL, 2004f, p.1).
Após mais de dois anos de existência destas políticas e a pouca visibilidade, a Política
Nacional de Atenção Básica vem, em 2006, reafirmar a necessidade da formação profissional e
definir responsabilidades em relação à educação permanente dos profissionais da Atenção Básica
sinalizando para a implementação das diretrizes da Política Nacional de Humanização, incluindo
o acolhimento. De acordo com a referida Portaria, compete aos municípios, como gestores dos
sistemas locais de saúde, cumprir os princípios da Atenção Básica, organizar e executar as ações
em seu território, estimular e viabilizar a capacitação e a educação permanente dos profissionais
das equipes, dentre outras funções, sempre com apoio financeiro e técnico do nível federal e
estadual (BRASIL, 2006b). Compreende-se que a discussão das competências das equipes e dos
profissionais, assim como da educação permanente em saúde, vem contribuir para as reflexões
acerca das abordagens em torno da violência, das mulheres em situação de violência, bem como
da formação/ capacitação profissional para o atendimento a estas situações.
44
2 A CONSTRUÇÃO DA AGENDA PÚBLICA DE PROTEÇÃO AS MULHERES EM
SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
Ao final de 1970 o país vivenciou fortes iniciativas desencadeadas pelos movimentos
organizados da sociedade civil, como o Movimento Feminista
20
, que contribuíram para trazer ao
espaço público questões que até então estavam sendo tratadas no espaço privado, como a
violência contra a mulher. Em decorrência destes movimentos, no início dos anos de 1980 o tema
da violência contra a mulher passou a ser conhecido com o slogan “quem ama não mata”, o que
desencadeou algumas ações iniciais por parte do Estado, como as Delegacias Especiais para
atendimento de mulheres vítimas de violência. Também, na mesma década, é criado o Conselho
Nacional dos Direitos da Mulher como um órgão de caráter consultivo com principal objetivo de
promover o desenvolvimento de políticas sociais para as mulheres na perspectiva da eliminação
de todos os tipos de violência.
Dessa forma, os movimentos em defesa dos direitos da mulher foram se ampliando e, ao
acompanhar as mudanças políticas brasileiras dos anos de 1980, tiveram participação nas
legislações e ações que seguiram a Constituição Federal de 1988. Exemplo disso foram as duas
principais bandeiras levantadas pelo Movimento Feminista na década de 80: a violência e a saúde
da mulher. A partir de então, o movimento social de mulheres inicia uma discussão – estratégica
e consciente – deslocando o problema da violência contra a mulher do campo policial para o
campo dos direitos humanos, do desenvolvimento social e da saúde sendo estes consolidados
internacionalmente (SCHAIBER E D’OLIVEIRA, 1999). As ações que foram sendo
desenvolvidas nos diversos setores governamentais e não governamentais, e também acadêmico,
ora se apresentavam de forma integradas, ora desarticuladas, como veremos a seguir.
2.1 A atenção às mulheres em situação de violência no cenário governamental
20
O movimento feminista é um movimento político que propõe a transformação social, econômica, política e
ideológica da sociedade, embasado no questionamento das relações de poder e da exploração de grupos de
pessoas sobre outras. Contrapõe-se ao poder patriarcal e se caracteriza por uma “filosofia universal que
considera a existência de uma opressão específica a todas as mulheres” (TELES, 1999, p. 10). É um
movimento histórico organizado que luta pela liberação das mulheres para a expansão dos seus direitos civis e
políticos, rompendo com todas as formas de discriminação (sexo, raça, idade, opção sexual) existentes sobre a
mulher e colocá-la em pé de igualdade com os homens. (CUT, 1998, p.13).
45
Nas últimas duas décadas, o Brasil deu um passo à frente quando foi signatário de vários
acordos internacionais voltados - direta ou indiretamente – à defesa dos direitos humanos das
mulheres e ao combate à violência contra as mulheres. Estes acordos firmados pelo governo
perante a comunidade internacional, em primeiro lugar, criaram obrigações jurídicas para o país –
através dos tratados, acordos, convenções ou atos internacionais – que exigem sua ratificação
para que possam entrar em vigor e sejam reconhecidos. E em segundo lugar, as conferências
internacionais que, apesar de não exigirem obrigações jurídicas, criam consensos entre os países
sobre o tema e definem objetivos comuns. Isso faz com que as nações envolvidas assumam a
responsabilidade de implementar em suas políticas os princípios e programas aprovados nestes
espaços (FERNANDES, 2003). Como exemplo, o Brasil participou em 1994 da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como
Convenção de Belém do Pará e, em 1995, da IV Conferencia Mundial sobre a Mulher realizada
em Beijing, na China. Esta última foi de grande importância, pois ao fortalecer os consensos e
progressos das Conferências Mundiais anteriores, finalmente, insere nas discussões e nos
documentos produzidos a consolidação do avanço da consciência mundial sobre Igualdade,
Justiça e Direitos Humanos, à luz da transversalidade de gênero
21
e do reconhecimento da
desigualdade entre os sexos (FERREIRA apud BANDEIRA, 2005; BEIJING, 2007).
Como fruto desta Conferência Mundial foi elabora a Plataforma de Beijing sob o tema
“Estratégias das Desigualdades” em que os governos se comprometeram a implementá-la e
garantir que todas as suas políticas e programas de ação reflitam a perspectiva da transversalidade
de gênero, a qual foi assinada pelo Brasil em 1997 (Beijing, 2007, CUT, 1998). Em síntese, esta
Plataforma de Ação Mundial veio apresentar diagnósticos e recomendações de medidas a serem
tomadas pelos governos em diversas áreas e contextos como: saúde, educação, direitos sexuais e
reprodutivos, participação no poder e nos centros de decisão, comunicação e meio ambiente,
trabalho e emprego, direitos humanos, prevenção e combate às violências e, especialmente,
combate à pobreza. Segue abaixo alguns dos compromissos governamentais integrantes do
referido documento:
21
Entende-se por transversalidade de gênero nas políticas públicas “a idéia de elaborar uma matriz que permita
orientar uma nova visão de competências (políticas, institucionais e administrativas) e uma responsabilização
dos agentes públicos em relação à superação das assimetrias de gênero, nas e entre as distintas esferas do
governo. Esta transversalidade garantiria uma ação integrada e sustentável entre as diversas instâncias
governamentais e, conseqüentemente, o aumento da eficácia das políticas públicas, assegurando uma
governabilidade mais democrática e inclusiva em relação às mulheres” (BANDEIRA, 2005, p.45).
46
a) Planejar, estabelecer e implementar programas e políticas públicas, em todas as
áreas, com perspectiva de gênero, isto é, levando em conta a situação das
mulheres e homens devido à construção cultural e social das desigualdades e
atendendo à família, em suas diferentes formas;
b) Atualizar e propôr novas legislações e medidas de combate à discriminação da
mulher e promoção da igualdade em todos os âmbitos, incluindo ações
afirmativas para a igualdade de acesso a cargos públicos e mandatos eletivos,
cargos decisórios em todos os âmbitos, igualdade de oportunidades para o
trabalho e emprego;
c) Promover processos de atualização e capacitação de profissionais de todas as
áreas, especialmente agentes dos serviços públicos, sobre a condição da mulher e
as desigualdades de gênero;
d) Reconhecer a violência contra a mulher como um desrespeito aos direitos
humanos, seja ela o abuso sexual, o assédio sexual no trabalho e nos
estabelecimentos educacionais, a violência física e psíquica, a mutilação genital,
os estupros, a violência policial e nos serviços de saúde, o tráfico de mulheres, a
prostituição infantil, a prostituição forçada - e tomar medidas adequadas em nível
local, nacional e internacional, implementando serviços e programas de
prevenção e atendimento as mulheres;
e) Reconhecer o valor do trabalho não-remunerado da mulher, buscando medir
sua contribuição na economia nacional e minimizando sua carga sobre a mulher,
através de estímulo à divisão dos encargos familiares entre mulheres e homens e à
implementação de equipamentos sociais;
f) Promover formas não-violentas de resolução de conflitos dentro dos países e
entre países, reduzindo a incidência de violação de direitos humanos em situações
de conflito, racismo e xenofobia, com atenção especial às mulheres e meninas,
mais vulneráveis nas áreas de conflitos armados;
g) Respeitar os direitos reprodutivos, implementando serviços adequados de
atenção à saúde da mulher em todas as fases de sua vida, serviços de
planejamento familiar com respeito à livre decisão dos casais e dos indivíduos,
serviços de orientação sexual a crianças e adolescentes, com respeito ao seu
direito à informação e a confidencialidade ( atentando-se aos direitos e deveres
dos pais), respeito à vida sexual com harmonia, liberdade e responsabilidade,
livre de coerção;
h) Reconhecer o aborto como um problema de saúde pública, pedindo atenção aos
abortamentos inseguros, recomendando aos países que revisem suas leis que
penalizam as mulheres que fizeram abortos ilegais;
i) Elaborar programa amplo de educação sobre direitos humanos que aumente a
consciência da mulher acerca de seus direitos humanos e aumente a consciência
de todas as pessoas acerca dos direitos humanos das mulheres;
j) As organizações não governamentais e as organizações da comunidade têm
uma função específica a desempenhar na criação de clima social, econômico,
47
político e intelectual baseado na igualdade entre a mulher e o homem (BEIJING,
2007).
Estes compromissos objetivaram a garantia da incorporação de melhorias do status das
mulheres em todas as dimensões: social, econômica, política, cultural, com repercussões nas
esferas jurídicas e administrativas, mercado de trabalho, segurança, educação, arranjos familiares,
dentre outras. De acordo com as análises de Bandeira (2005), a contribuição maior deste evento
foi ter chamado atenção do mundo para a relação entre gênero e pobreza e, diante disso, da
necessidade de medidas que atendessem as especificidades da condição social das mulheres na
pobreza considerando, ainda, que a principal causa do aumento da pobreza entre as mulheres
tenha sido a maneira inadequada ou não aplicação da transversalidade de gênero nas análises
estruturais e conjunturais das políticas e setores sociais, principalmente da economia. Além deste
evento, outros também merecem ser lembrados como a Conferência Mundial dos Direitos
Humanos, ocorrida em Viena (Itália) em 1993, que reiterou os direitos humanos da mulher e da
menina como universais, integrais, intransferíveis e indivisíveis, e também a Conferência
Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas correlatas de Intolerância,
realizada em Durban no ano de 2001, a qual voltou a atenção para mulheres e jovens
afrodescendentes e indígenas afetadas tanto pelo preconceito sexual quanto pelo preconceito
racial (BANDEIRA, 2005).
Assim, é nesse movimento de lutas que direta ou indiretamente a questão da violência
contra a mulher ganha visibilidade social deixando de ser apenas descrição de episódios
vivenciados geralmente por casais, para se converter em signo político. Em termos assistenciais,
uma das primeiras ações institucionais produzidas pelas lutas das mulheres no Brasil foi, como
visto anteriormente, a criação em diversos Estados brasileiros das Delegacias Especiais de
Atendimento à Mulher (DEAMs). Estas Delegacias se colocaram como passo importante para o
reconhecimento público da violência contra a mulher contribuindo para explicitar demandas que
se encontravam escondidas ou dispersas. No entanto, quando se buscam estudos sobre as DEAMs
estes apresentam poucos consensos sobre sua eficácia e, principalmente, sobre a prevenção das
violências contra a mulher, o que se encontram são críticas de diversos setores vinculados à
polícia e até mesmo do movimento feminista. Exemplo disto está em um estudo de Soares e
Carneiro (1996), onde consideram que as DEAMs tenderam a
48
cristalização de mais uma caricatura, sob a qual se esconde enorme variedade de
relações humanas, muito mais ricas e complexas do que desejaria nossa vã
idealização do feminismo; idealização que acaba sendo, paradoxalmente, um
modelo unívoco e fechado, uma espécie de cárcere público, em que se aprisionam
múltiplas possibilidades de reinvenção do feminino, do masculino e de suas
interações (p. 66).
Para Brandão (1998), uma das respostas preconizadas pelos setores feministas foi a
punição dos agressores, alternativa esta geralmente excluída pela maioria das mulheres que
procura as DEAMs. Dessa maneira, essas Delegacias se configuram como espaços onde
compreensões contraditórias se encontram, de um lado o direito penal instituído pela via policial,
e de outro, as representações sociais das classes trabalhadoras recortadas em seu prisma de
gênero:
Se, por um lado, a expansão desse aparato institucional constitui um dado
favorável, por outro, sua utilização pelas classes trabalhadoras evidencia uma
discrepância entre a concepção feminista da violência (que impulsionou a
organização de tal aparato tendo em vista um determinado modelo de vítima) e a
convivência cotidiana dessas mulheres com os conflitos conjugais (BRANDÃO,
1998, p.58).
Também, Muniz (1996) analisa que as DEAMs, que seguem os limites das normas
policiais e jurídicas, deixam de analisar uma parte considerável dos serviços prestados pois
consideram que o diálogo, a mediação de conflitos ou a arbitragem, que são práticas constantes
nestes espaços, seriam algo extra-oficial e tenderiam à invisibilidade das denúncias não
registradas. Nesse sentido, essas práticas ditas alternativas - que não obedecem ao trajeto da
denúncia e processo judicial – não são registradas enquanto práticas oficiais das Delegacias
22
.
Para Brandão (1998), é justamente essa dimensão mediadora que se destaca como contribuição
singular das DEAMs no sentido de que correspondem as expectativas de sua clientela, já que a
tendência explicitada por muitas mulheres que procuram essas Delegacias não é o rompimento
das relações afetivo-conjugais, mas o recurso a policia buscando proteção para futuras agressões
22
“As funções da Polícia Civil no Brasil são oficialmente dividias em duas partes: a atividade administrativa
diz respeito aos trabalhos de vigilância da população para prevenção da criminalidade, e a atividade judiciária –
definida como um braço auxiliar da justiça – consiste nos expedientes de investigação criminal. Enquanto o
desempenho das chamadas funções administrativas pressupõe uma razoável liberdade de ação, a função
judiciária, em harmonia com o sistema judicial, goza de liberdade limitada” (Kant de Lima 1996 apud MUNIZ,
1996, p. 134).
49
ou gerenciamento dos impasses ocorridos no contexto doméstico. Sem a pretensão de dar conta
do debate acerca do tema das DEAMs o que se procurou foi localizar as discussões que a
permeiam considerando estas Delegacias como uma das primeiras ações governamentais e como
uma das poucas alternativas disponíveis para o enfrentamento público do problema.
Nos anos 2000, as ações governamentais relacionadas à temática da mulher iniciam um
pequeno processo de expansão, passando a ser estruturadas a partir da Secretaria Especial de
Políticas para as Mulheres (SEPM), da Presidência da República. Esta Secretaria tem como
objetivo desenvolver ações conjuntas com todos os Ministérios e Secretarias Especiais tendo
como desafio a incorporação das especificidades das mulheres nas políticas públicas e o
estabelecimento das condições necessárias para a sua plena cidadania (BRASIL, 2006a).
Conforme documento oficial da SEPM suas principais competências são: assessorar direta e
imediatamente o Presidente da República na formulação, coordenação e articulação de políticas
para as mulheres; elaborar e implementar campanhas educativas e não discriminatórias de caráter
nacional; elaborar o planejamento de gênero que contribua na ação do governo federal e das
demais esferas de governo; promover a igualdade de gênero; articular, promover e executar
programas de cooperação com organismos nacionais e internacionais, públicos e privados
voltados à implementação de políticas para as mulheres; promover o acompanhamento da
implementação de legislação de ação afirmativa e definição de ações públicas que visem ao
cumprimento dos acordos, convenções e planos de ação assinados pelo Brasil, nos aspectos
relativos à igualdade entre mulheres e homens e de combate à discriminação, tendo como
estrutura básica o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, o Gabinete e três Subsecretarias
(BRASIL, 2006a).
Esta Secretaria estruturou os serviços de atendimento específicos para a
Mulher – antigos e novos - que estão sendo prestados pelo governo federal, pelos governos
estaduais e municipais, além de diversas outras instituições da sociedade civil, conforme segue:
A Central de Atendimento à Mulher, através do nº 180, tem como objetivo o
atendimento qualificado em questões de gênero, políticas do Governo Federal para as mulheres,
orientações sobre o enfrentamento da violência contra a mulher e, principalmente, receber a
denúncia e acolher as mulheres. Além de encaminhar os casos para os serviços especializados, a
Central fornece orientações e alternativas para a mulher se proteger do agressor. Ela será
informada sobre seus direitos legais, os tipos de estabelecimentos que poderá procurar, dentre
50
eles as delegacias especializadas de atendimento à mulher, defensorias públicas, postos de saúde,
instituto médico legal, centros de referência, casas abrigo e outros mecanismos de promoção de
defesa de direitos da mulher (BRASIL, 2006a). Trazendo para o escopo do trabalho, em
Florianópolis esse atendimento já está em funcionamento em tempo ininterrupto
23
.
Centros de Referência à Mulher: alguns Estados possuem estes centros de referência
para atendimento à mulher. Na região Sul estes Centros estão situados no Estado do Paraná, nas
cidades de Curitiba, Londrina e Maringá. Segundo dados da SEPM Santa Catarina não possui
este tipo de serviço
24
.
As Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, nas quais, delegadas, escrivãs,
investigadoras, assistentes sociais e psicólogas devem ser capacitadas para tratar da formalização
das denúncias. No final de 2005 dados do IBGE apontaram que apenas 404 municípios
brasileiros (7,3%) contam com estas delegacias. Nos demais municípios as situações de violência
contra as mulheres são atendidas nas delegacias gerais (BRASIL, 2005). O município de
Florianópolis, assim como outras cidades do Estado
25
, conta com uma Delegacia de Proteção à
Mulher, à Criança ao Adolescente (6ª DP) que dispõe de delegada, escrivã, investigadora e
psicóloga para o atendimento as mulheres.
Defensorias Públicas da Mulher: existem no país 13 Defensorias Públicas direcionadas
às Mulheres, as quais estão situadas no Acre, Amapá, Ceará, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul,
Mato Grosso, Paraíba, Piauí, Rio de Janeiro e Tocantins (BRASIL, 2007).
As Casas Abrigo são instituições destinadas à proteção de mulheres que sofrem violência
doméstica e seus filhos. Devem ter seus endereços mantidos em sigilo e seu acesso restrito, isto
para que a mulher possa estar protegida do seu agressor. Em SC existem Casas Abrigo nas
cidades de Joinville, Blumenau e Balneário Camboriú (BRASIL, 2007).
23
No último dia 16 de maio foi realizado contato com a Central de Atendimento à Mulher - número 180 - e
verificado a abrangência deste serviço para o município de Florianópolis.
24
No dia 25/07/2007 foi realizada nova consulta junto a SEPM e constatou-se a existência em SC do Centro de
Referência e Atendimento à Mulher Vítima de Violência na cidade de Joinville. Acrescentou-se no Estado do
Paraná nas cidades de Apucarana e Campo Mourão. No Estado do Rio Grande do Sul houve a criação desses
Centros nas cidades de São Leopoldo, Porto Alegre e Caxias do Sul (BRASIL, 2007).
25
De acordo com a SEPM as demais cidades são: Araranguá, Joinville, Criciúma, Caçador, Lages, Rio do Sul,
Itajaí, Concórdia, Blumenau, Balneário Camboriú e Tubarão (BRASIL, 2007).
51
Ainda, a SEPM compreende os Serviços às Vitimas de Tráfico de Pessoas; as
Delegacias Regionais do Trabalho / Núcleos de Combate à Discriminação no Trabalho e
apoio a organizações não governamentais (ONGs) relacionadas aos Movimentos de Mulheres
fazem parte dos serviços de atenção à Mulher, estruturados pela Secretaria de Políticas para as
Mulheres do Governo Federal.
Outra ação importante da referida Secretaria foi a elaboração do Plano Nacional de
Políticas para as Mulheres (PNPM) em 2004. Este Plano foi construído com base nos
resultados da
I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres
26
que indicou as diretrizes da
política nacional para as mulheres na perspectiva da igualdade de gênero considerando a
diversidade de raça e etnia. Este Plano vem expressar “o reconhecimento do papel do Estado
como promotor e articulador de ações políticas que garantam um Estado de Direito, e o
entendimento de que cabe a ele, e aos governos que o representam, garantir políticas públicas que
alterem as desigualdades sociais existentes em nosso país” (BRASIL, 2004ª, p.11). O
Enfrentamento a violência contra as mulheres é tratado no capitulo 4 do referido Plano e tem
como objetivos implantar uma Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher;
garantir o atendimento integral, humanizado e de qualidade às mulheres em situação de violência;
reduzir os índices de violência contra as mulheres e garantir o cumprimento dos instrumentos
internacionais, além de revisar a legislação brasileira que trata do enfrentamento da problemática
(BRASIL, 2004a).
O PNPM está estruturado em torno de quatro áreas estratégicas de atuação que são:
autonomia, igualdade no mundo do trabalho e cidadania; educação inclusiva e não sexista; saúde
das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; e enfrentamento à violência contra as
mulheres. Nestas áreas estão contempladas as políticas e ações que devem ser desenvolvidas ou
aprofundadas para que mudanças qualitativas e quantitativas se efetivem na vida das mulheres
brasileiras. Foi pactuado pelos Ministérios envolvidos e deverá assim o fazer também com os
Estados e Municípios. Um estudo sobre a situação da pactuação permitiu conhecer a lista dos
26
A Primeira Conferência Municipal de Políticas para as Mulheres de Florianópolis ocorreu no dia 17 de abril
de 2004, no Conselho Regional de Contabilidade. O tema foi Mulher Cidadã, Direitos Humanos, Acesso à
vida, casa, abrigo, serviços de saúde, informação, integridade física, integridade moral, livre expressão sexual,
concepção e contracepção. Esta conferência foi convocada pelo Movimento de Mulheres de Florianópolis
devido ao fato de o governo municipal ter se recusado a fazê-la. Nesta conferência foram escolhidas delegadas
para participar da Conferência Estadual que aconteceu em junho de 2004 (Santos, 2006, p. 25).
52
Estados e Municípios que já aderiram ao Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Dados
mostram que no país, até o momento, existem 114 adesões, entre Estados e Municípios. O Estado
de Santa Catarina ainda não consta na lista, apenas alguns de seus
municípios realizaram
pactuação, no ano de 2005, sendo eles: Coronel Martins; Laguna; Guaraciaba, Ipira; Passos Maia;
Planalto Alegre e Tunápolis
27
.
Ainda em 2004 foi lançado o Programa Nacional de Prevenção, Assistência e
Combate a Violência contra a Mulher, desenvolvido pela SEPM que tem como objetivo
consolidar uma política de atenção e proteção às mulheres em situação de violência e, também,
garantir que os acordos firmados pelo país sejam cumpridos através de ações articuladas entre os
diversos Ministérios e Secretarias de Governo. Este Programa considera a violência como um
fenômeno social que deve ser enfrentado a partir de um conjunto de estratégias políticas e de
intervenção social direta, atuando em diferentes instâncias como educação, saúde, justiça,
segurança pública, trabalho e outros. Nesse sentido, o enfrentamento da violência exige a
construção de uma Rede considerando que alguns serviços funcionam como “porta de entrada”
para esta Rede. No que concerne à Saúde, especificamente, a orientação do Programa é que
é preciso desenvolver ações voltadas às unidades básicas de saúde da rede
pública, gerando estratégias que ressaltem a noção de violência contra a mulher
como um problema de saúde publica, principalmente no contexto da saúde da
mulher, garantindo um acolhimento receptivo, procedimentos adequados e,
sobretudo, atendimento integral. Os profissionais, homens e mulheres, devem
estar capacitados para identificar a vítima de agressão, garantir uma escuta não
julgadora e prestar todas as informações para que a denúncia e posterior
separação possam ser buscadas pela vítima, se assim ela decidir (BRASIL,
2003 a, p.51).
O documento do Programa aponta que há insuficiência do sistema de saúde na
sensibilização para diagnosticar, atender e encaminhar convenientemente mulheres nessa
situação, assim como ausência quase completa de abrigos para proteção de mulheres em situação
de risco. Os órgãos responsáveis pela proteção das vítimas e punição dos agressores – DEAM,s,
Instituto Médico Legal (IML) e órgãos do sistema judiciário - também encontram fortes
obstáculos ao cumprimento de suas funções (BRASIL, 2003a).
27
Em consulta recente junto a SEPM - realizada no dia 25/07/2007 - há novas adesões ao Plano como o
município de Fernandópolis em 30/04/2007 e o Governo de Estado em 12/07/2007 (BRASIL, 2007).
53
Como pode ser notado, em alguns dos planos, programas e ações governamentais mais
recentes, como é o caso do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres de 2004, aparece de
maneira bastante pontual e pouco explicativa, a categoria gênero
. Para Bandeira (2005), a
inserção desta categoria vem propôr que um recorte transversal de gênero esteja presente na
formulação e implementação de políticas públicas no país e, assim, permitir que as políticas
estejam voltadas para a redução das assimetrias de gênero, principalmente, quando transforma o
perfil institucional vigente, sendo que para isto há que se reconhecer a influência de diversos
outros fatores estruturais de reprodução e ampliação das diferenças de gênero como, por
exemplo, o tradicional padrão da divisão sexual do trabalho, os padrões de sexualidade e os
arranjos familiares. Além do mais, a idéia de transversalidade de gênero pressupõe aos governos
a incorporação desta perspectiva não somente em uma secretaria ou ministério responsável pela
atuação na área de atenção à mulher, mas sim que seja base de atuação para todas as políticas
públicas propostas pelo Estado, considerando as especificidades das mulheres e dos homens.
Também, a Plataforma de Ação adotada em Beijing, cujo protocolo foi assinado pelo
Brasil em 1997, já chamou a atenção para a necessidade do governo nacional assumir a inserção
da perspectiva de gênero na legislação, nas políticas públicas, nos programas e projetos, sendo
que deveriam, antes da tomada de decisões sobre as políticas governamentais, analisar suas
repercussões nas mulheres e nos homens. De acordo com Bandeira (2005), um dos contextos
exemplo de incorporação da perspectiva de gênero é no âmbito da União Européia que, desde
1993, todos os seus Estados membros se comprometeram a aplicar em suas políticas públicas a
transversalidade de gênero. Este comprometimento foi registrado na Carta dos Direitos
Fundamentais da União Européia e reafirmado, em 1999, no Tratado da União Européia.
Diante do contexto apresentado, a perspectiva de gênero nas políticas sociais não
pressupõe a negação das abordagens específicas para as mulheres, que são necessárias, mas sim
novas abordagens que possam abarcar necessidades e demandas que se colocam de maneiras
diferentes para os gêneros, o que inclui também os homens. Nesse sentido, Bandeira (2005),
explicar que as políticas de gênero são diferentes das políticas para as mulheres, enquanto as
políticas públicas de gênero consideram
a diversidade dos processos de socialização para homens e para mulheres, cujo
conseqüências se fazem presentes, ao longo da vida, nas relações individual e
coletiva (...) implicam e envolvem não só a diferenciação dos processos de
54
socialização entre o feminino e o masculino, mas também a natureza dos conflitos
e das negociações que são produzidos nas relações interpessoais, que se
estabelecem entre homens e mulheres e internamente entre homens ou entre
mulheres. Também envolvem a dimensão da subjetividade feminina que passa
pela construção da condição de sujeito (BANDEIRA, 2005, p.47-48).
As políticas para as mulheres mantêm centralidade no feminismo enquanto parte da reprodução
social, o que implica na não priorização da “importância e o significado que se estabelece no
relacionamento entre os sexos; ao contrário, a centralidade posta na mulher-família reafirma a
visão essencialista de que a reprodução e a sexualidade causam a diferença de gênero de modo
simples e inevitável (BANDEIRA, 2005, P. 47)”. Esta afirmação da autora pode ser
compreendida quando se considera a não existência de qualquer forma de abordagem que inclua
o homem como sujeito, principalmente, no tocante ao tema da violência que vem sendo estudado
neste trabalho.
Concomitantemente a este processo de estruturação de serviços de atenção à mulher em
situação de violência e, como conseqüência dos movimentos da sociedade civil e Estado, os
instrumentos jurídicos também avançam. Violência remete a violação de direitos e,
conseqüentemente, aos acordos sociais de proteção e de direitos das pessoas vítima da violência,
assim, ao ser violação da lei, a violência passa também a ser passível de punição. No que se
refere à violência contra a mulher, já existem legislações específicas que servem de base legal
para o atendimento da questão, como a Lei 10.778 de 24 de novembro de 2003 que estabelece a
notificação compulsória dos casos de violência contra a mulher atendidos em serviços de saúde
públicos ou privados. A legislação considera que a violência contra a mulher, apesar de ser um
problema de alta relevância e de elevada incidência, apresenta pequena visibilidade social, e que
o registro no SUS destes casos é fundamental para dimensionar o tamanho do problema e suas
conseqüências, a fim de contribuir para o desenvolvimento das políticas e atuações
governamentais em todos os níveis (BRASIL, 2003b, BRASIL, 2004b).
A Lei 10.714 de agosto de 2003 autoriza o Poder Executivo a disponibilizar, em âmbito
nacional, número telefônico, de acesso gratuito e composto por apenas três dígitos, destinado a
atender denúncias de violência contra a mulher, devendo ser operado pelas DEAMs em todo o
País, ou alternativamente, pelas Delegacias da Polícia Civil nos locais onde não exista tal serviço
55
especializado (como citado anteriormente, este serviço está sendo disponibilizado em todo o país
através do número 180) (BRASIL, 2003c). Recentemente foi sancionada a Lei n° 11.340 - agosto
de 2006 - Lei Maria da Penha
28
que altera o Código Penal e estabelece prisão em flagrante para o
agressor que cometeu violência doméstica, podendo este cumprir de três meses a três anos de
prisão, perder o direito de ver os filhos e entrar em casa. Estabelece a criação de Juizado Especial
de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, e também, várias medidas de proteção à
mulher agredida, que está em situação de agressão ou corre risco de morte. De acordo com esta
lei, a violência psicológica passa a ser reconhecida e caracterizada como violência doméstica
(BRASIL, 2006b).
Apesar de ser uma Lei relativamente nova já existem alguns estudos quanto às
conseqüências desta para as mulheres. Duran (2007) aponta que a maior rigidez contra os
agressores pode ser responsável pela diminuição de vítimas nas delegacias. Fundamenta esta
afirmação com um estudo realizado recentemente nas Delegacias da Mulher do Estado de São
Paulo em que aparece a diminuição de 18,8% das denúncias por lesão corporal durante os seis
primeiros meses da Lei Maria da Penha. A queda no número de denúncias foi registrada no
período de outubro do ano passado a março deste ano, quando foram registrados 132.649 boletins
de ocorrência. Entre outubro de 2005 e março de 2006, foram 163.441. Para o autor ainda não se
têm respostas para esta diminuição, porém suas impressões são de que a possibilidade de prender
o marido ou companheiro fez a mulher vítima pensar duas vezes antes de registrar a queixa, pois
agora ele poderia ser preso. Das 307 Delegacias da Mulher criadas até o início deste ano no País,
125 (ou 40,7%) ficam no Estado de São Paulo.
De modo geral, o que se observa é que as ações governamentais, apesar de existir um
forte movimento em prol de mudanças de perspectivas e estruturação destas ações, ainda se
apresentam de forma muito dispersas, mesmo se tratando de ações específicas para as mulheres.
Já as proposições e compromissos assinados pelo Brasil, que pressupõem a inserção da categoria
gênero nas políticas públicas e demais ações governamentais, mesmo que contemplem a palavra
gênero, esta aparece de forma bem pontual sem ter um aprofundamento conceitual ou mesmo
assistencial da categoria gênero transversalizada nas políticas públicas.
28
O nome Maria da Penha é uma homenagem a biofarmacêutica Maria da Penha Maia que lutou por 20 anos
para conseguir que seu agressor fosse condenado, após ter recebido um tiro pelas costas de seu marido, em
1983, e ter ficado paraplégica. Somente em 2003 seu agressor foi preso (CRESS, 2006).
56
Seguindo esse mapeamento das políticas públicas destinadas às mulheres em situação de
violência, traz-se no próximo item a organização das ações no campo da saúde buscando
identificar simetrias e assimetrias entre as proposições.
2.2 A atenção às mulheres em situação de violência no contexto da política de saúde
Constitucionalmente, a saúde no Brasil é explicitada como direito de cidadania construído
através de um conceito ampliado de saúde que reconhece a inter-relação entre direitos sociais,
econômicos e políticos. O reconhecimento da saúde como um direito social universal, tendo
como responsável o Estado, supõe a garantia de acesso a todos os cidadãos aos serviços de saúde
necessários com as conseqüentes implicações nas esferas políticas e econômicas para o Estado.
No Brasil, a saúde da mulher foi incorporada às políticas nacionais de saúde nas primeiras
décadas do século XX, acompanhando o movimento da saúde pública. Nesse período se limitava
ao atendimento das demandas relativas à gravidez e ao parto. Os programas materno-infantis,
elaborados nos anos 30, 50 e 70, traduziam uma visão restrita sobre a mulher, baseada na sua
especificidade de papel social de mãe e doméstica, responsável pela criação, cuidado com a saúde
e educação dos filhos e demais membros da família (BRASIL, 2004b). Como exemplo desse
reducionismo, Villela e Monteiro (2005) apontam a implementação, na década de 1970, do
Programa de Saúde Materno Infantil, cujo objetivo era prestar assistência aos filhos de
mulheres que estavam fora do sistema de proteção social da época. Nesse período a atenção pré-
natal era a única ação pública de saúde, de caráter universalista, voltada para as mulheres.
No que se refere às práticas de atenção à saúde da mulher no Brasil, o movimento
feminista levantou constantes críticas ao modo como a temática e os problemas de saúde da
mulher estavam sendo tratados nas políticas e nos serviços de saúde. As críticas vêm no sentido
de que, até então, a atenção à mulher estava sendo pensada de forma reducionista e não integral,
desconsiderando seu contexto social e cultural e as diversas formas de dominação que
estabeleciam especificidades ao adoecimento das mulheres. Em contrapartida, as respostas
governamentais não se apresentavam de forma adequada nem as especificidades do adoecimento,
nem tampouco se inseriam numa perspectiva da superação das formas de dominação (MATTOS,
57
2004). No cerne da crítica do movimento feminista, final dos anos de 1970 e década de 1980,
emerge um ideal de desenvolver políticas de atenção à mulher a partir de uma perspectiva mais
integral, em consonância com o modelo de Saúde Coletiva que vinha sendo proposto pelo
Movimento Sanitário. Para Mattos (2005) as mulheres já eram consideradas parte de uma
população que merecia atenção prioritária enquanto integrantes do grupo materno-infantil,
mediada pela sua função reprodutora. A luta do movimento feminista foi contra o reducionismo
colocado nessa acepção, visto a não aceitação da mulher enquanto mera reprodutora. Nessa
perspectiva foi criado, em meados dos anos de 1980, o Programa de Assistência Integral à Saúde
da Mulher (PAISM) cujo pressuposto era a valorização da mulher para além da função de
procriação. Ou seja, com a definição de assistência integral buscou-se ampliar o horizonte no
qual a saúde da mulher deveria ser pensada, atendendo ao principio da integralidade nas políticas
de saúde que significou a recusa de reduzir em objetos descontextualizados os sujeitos da política
pública.
O processo de implantação e implementação do PAISM apresentou especificidades no
período de 1984 a 1989 e, na década de 1990, sofreu influência das características da nova
política de saúde, do processo de municipalização e principalmente da reorganização da atenção
básica por meio do PSF (BRASIL. 2004 b). Todavia, Villela e Monteiro (2005, p. 21) consideram
que, apesar da tentativa de superar os pressupostos teórico-práticos do Programa Materno Infantil
– o qual reduzia o papel da mulher enquanto mera reprodutora biológica da espécie - “o PAISM
não conseguiu romper com a focalização em ações relacionadas à reprodução: contracepção,
atenção ao pré-natal, ao parto e ao puerpério”.
Um balanço das ações realizadas entre 1998 e 2002, elaborado por Correa e Piola (2002),
coloca que, nesse período, a atenção à saúde da mulher foi abordada numa perspectiva de
resolução de problemas, onde as ações de saúde reprodutiva e, em particular, as ações para
redução da mortalidade materna (pré-natal, assistência ao parto e anticoncepção) foram
priorizadas. Os problemas não foram tratados de forma isolada, havendo a inserção de um novo
tema, a violência sexual. Para os autores, embora se tenha mantido como imagem-objetivo a
atenção integral à saúde da mulher, essa definição de prioridades trouxe dificuldades na atuação
sobre outras áreas estratégicas da agenda ampla da saúde da mulher. Essa perspectiva de atuação
58
também comprometeu a transversalidade de gênero e raça, apesar de se perceber um avanço no
sentido da integralidade e uma ruptura com as ações verticalizadas do passado.
Na perspectiva de atenção integral foi elaborada, em 2004, em parceria com diversos
setores da sociedade como o movimento de mulheres, o movimento negro, de trabalhadoras
rurais, estudiosos da área, organizações não governamentais, gestores do SUS e agências de
cooperação internacional, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher –
princípios e diretrizes (BRASIL, 2004c). O principio da integralidade nas políticas de saúde
buscou ampliar o horizonte no qual a saúde da mulher deveria ser pensada, significando a recusa,
por parte dos que se engajaram na formulação de uma política, em reduzir a objetos
descontextualizados os sujeitos sobre os quais a política incide (MATTOS, 2004).
Assim, esta Política buscou incorporar, num enfoque de gênero,
a integralidade e a promoção da saúde como princípios norteadores e busca
consolidar os avanços no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, com ênfase
na melhoria da atenção obstétrica, no planejamento familiar, na atenção ao
abortamento inseguro e no combate à violência doméstica e sexual. Agrega,
também, a prevenção e o tratamento de mulheres vivendo com HIV/Aids e as
portadoras de doenças crônicas não transmissíveis e de câncer ginecológico.
Além disso, amplia as ações para grupos historicamente alijados das políticas
públicas, nas suas especificidades e necessidades (BRASIL, 2004 c, p 5).
O enfoque nos ciclos de vida visa a ampliação, qualificação e humanização da atenção à
saúde da mulher no SUS, a partir da criação de condições necessárias ao exercício dos direitos da
mulher “com destaque para a segurança, a justiça, trabalho, previdência social e educação”.
Quanto à respostas as situações de violência contra a mulher, a Política traz um objetivo
específico no sentido de “Promover a atenção às mulheres e adolescentes em situação de
violência doméstica e sexual”. Aponta como ações a organização de redes integradas de atenção
às mulheres em situação de violência sexual e doméstica; a articulação da atenção à mulher em
situação de violência com ações de prevenção de DST/Aids; a promoção de ações preventivas em
relação à violência doméstica e sexual (BRASIL, 2004 c). Nesta política observa-se que há o
inicio de um debate sobre gênero quando a política anuncia que sob o “enfoque de gênero”, no
entanto, o debate da categoria gênero ainda se dá de forma muito incipiente à medida que as
59
diretrizes e objetivos colocados pela referida política ainda abordam questões muito específicas
para as mulheres.
Tendo como base as políticas e programas, especificamente na área da saúde, diversos
instrumentos foram gerados na perspectiva de normatizar os atendimentos e capacitar os
profissionais responsáveis pela atenção às mulheres em situação de violência. A Norma Técnica
de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência contra Mulheres e
Adolescentes de 1998, é um instrumento que trata da violência sexual contra a mulher. Esta
norma surge como deliberação do Conselho Nacional de Saúde buscando atender às exigências
do Artigo 128 do Código Penal Brasileiro referente ao direito de interrupção da gravidez como
conseqüência de estupro. Também, normatiza o atendimento clínico e os cuidados médicos e de
enfermagem, além de organizar o espaço físico que se dá em serviço hospitalar de referência
(BRASIL, 1998).
Outra ação, elaborada em 2001, que veio como instrumento de orientação para a prática
em serviço dos profissionais que atuam na atenção básica à saúde é o Caderno de Atenção
Básica sobre a Violência Intrafamiliar – Orientações para a prática em serviço. Este tem
como objetivo subsidiar os profissionais de saúde nas ações de diagnóstico, tratamento e
prevenção da violência no âmbito domiciliar. Aborda os diferentes tipos da violência
intrafamiliar (violência física, violência sexual - estupro, abuso sexual na infância ou na
adolescência, abuso incestuoso, sexo forçado no casamento, assédio sexual - violência
psicológica, violência econômica ou financeira e violência institucional), bem como os sujeitos
mais comumente violentados, como mulheres, idosos, portadores de deficiência, crianças e
adolescentes. Com relação à violência intrafamiliar contra a mulher, o Caderno orienta sobre as
manifestações clínicas, diagnóstico, abordagem terapêutica e medidas específicas a serem
tomadas no caso de violência sexual, como a profilaxia de doenças transmissíveis, HIV – Aids e
prevenção da gravidez indesejada. Ao descrever os fatores de risco envolvidos na situação de
violência intrafamiliar, o Caderno enfatiza a importância do conhecimento e discussão do tema,
bem como a elaboração de ações a serem desenvolvidas pelas equipes de Saúde da Família, na
tentativa de enfrentar o problema da violência intrafamiliar através da adoção de medidas
adequadas (BRASIL, 2001a). Dessa forma, este Caderno se coloca como um importante
instrumento de trabalho aos profissionais de saúde que lidam com situações de violência
60
intrafamiliar na sua prática cotidiana: orienta sobre a necessidade de criar nos serviços públicos
de saúde a oportunidade sistemática de discussão, sensibilização e capacitação das equipes para
melhor enfrentamento da problemática devido ao contato com situações de sofrimento, risco,
insegurança e sensação de impotência que envolvem as situações de violência intrafamiliar.
A elaboração da Cartilha sobre Direitos Humanos e Violência Intrafamiliar, em 2001,
é resultado do Protocolo de Cooperação firmado entre os Ministérios da Saúde e da Justiça e tem
como objetivo o desenvolvimento de ações conjuntas no contexto do Programa Nacional de
Direitos Humanos e dos Programas de Agentes Comunitários de Saúde e de Saúde da Família.
Esta cartilha é destinada basicamente aos ACSs e dispõe de informações e orientações quanto à
prevenção e enfrentamento da violência no âmbito domiciliar. Dentre os diversos temas
abordados - como Direitos Humanos e Cidadania, as várias formas de manifestação da violência,
os sinais de alerta para detecção de violência intrafamiliar – destacam-se as orientações
relacionadas às ações e serviços desenvolvidos para o enfrentamento da demanda, como os
conselhos (Conselhos dos Direitos da Mulher, Conselhos Tutelares, etc) e órgãos de defensoria e
apoio (Ministérios Público, Defensoria Pública, Delegacias, Casas de Apoio para Mulheres em
Situação de Risco etc).
No nível Estadual, uma breve análise das proposições do Plano Estadual de Saúde de
2006, em relação a Saúde da Mulher, permitiu identificar dados relativos a questões que
envolvem a mortalidade materna, a qual estima a freqüência de óbitos femininos atribuídos a
complicações da gravidez, parto e puerpério, garantindo que este indicador “reflete a qualidade
da assistência à saúde da mulher”. Neste enfoque o Plano apresenta como principal causa de
morte entre as mulheres em idade entre 10 a 49 anos residentes no Estado são as neoplasias
(24,4%), seguidas das causas externas (22,3%) (Santa Catarina, 2007). As especificações em
relação às causas externas compreendem 54% de acidentes de trânsito, seguidas por homicídios e
suicídios, no entanto não faz especificações quanto aos homicídios e suicídios, os quais podem
esconder dados muito relevantes em relação à violência contra a mulher. Mas esta não é uma
questão específica do Estado de Santa Catarina, em termos nacionais têm-se grandes dificuldades
epidemiológicas para o desvendamento da realidade dessas “causas externas”.
No nível municipal foi apresentado pela Secretaria Municipal de Saúde de
Florianópolis/Setor de Atenção à Saúde, em junho de 2006, o Protocolo de Atenção Integral à
61
Saúde da Mulher. Este Protocolo vem instrumentalizar os profissionais na atenção às mulheres e
pressupõe uma abordagem mais global, enfatizando a prevenção dos agravos e a promoção da
saúde integral da mulher (FLORIANOPOLIS, 2006a, p. 5). O Protocolo ainda coloca que o
cuidado à mulher no SUS deve iniciar antes de sua chagada na UBS e que para isso os ACS
devem estar preparados e atentos para informar e encaminhar as mulheres, mediante surgimento
de questões relacionadas a sua saúde de modo geral e, em especial, a saúde sexual e reprodutiva.
Apesar do enfoque na atenção integral, o protocolo aborda ações voltadas apenas à saúde
materna, sexual e reprodutiva, com ênfase nos aspectos ginecológicos como consulta pré-natal,
consulta de climatério, aleitamento materno, métodos contraceptivos, entre outros. Não menciona
a questão da violência. Vale destacar que o Plano Municipal de Saúde vigente (Gestão 2002 –
2005) aponta para a ampliação da vigilância da saúde da mulher, incluindo o problema da
violência como uma das prioridades de gestão que deveria ser abordada no plano de ação,
contemplado pelo referido Protocolo (FLORIANOPOLIS, 2006b).
Ainda, o município de Florianópolis conta com a Rede de Atenção Integral às Vítimas da
Violência Sexual que tem como objetivo fornecer atendimento integrado e de qualidade às
vítimas de violência sexual, adultos ou crianças, homens ou mulheres. Esta Rede é formada por
profissionais de diversos setores do município, como saúde, segurança pública, justiça e
desenvolvimento social. Como produto das discussões da Rede, o município conta desde o ano
2000 com o Protocolo de Atenção a Vitimas de Violência Sexual que vem determinar os
caminhos a serem seguidos pelos profissionais da rede pública ou qualquer pessoa que tenha
conhecimento ou tenha vivenciado situações de violência sexual.
Observa-se que todas essas ações das políticas públicas, tanto em nível geral quanto
especifico do setor saúde, viriam formar uma rede de proteção social para as mulheres em
situação de violência. Porém, estas ações não são integradas o suficiente para que esta rede se
concretize. Para que isso ocorra, primeiramente, todas essas ações devem ser visíveis e de
conhecimento dos setores sociais, para então possibilitar o desenvolvimento de ações
intersetoriais e a atenção integral as mulheres em situação de violência. Nesta perspectiva de
análise, apresenta-se no capítulo seguinte como estão sendo desenvolvidas as ações voltadas às
mulheres em situação de violência nos serviços básicos de saúde de Florianópolis/SC.
62
3 A ATENÇÃO A MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA NO COTIDIANO DOS
SERVIÇOS BÁSICOS DE SAÚDE DE FLORIANÓPOLIS/SC
3.1 Metodologia
A metodologia é entendida por Minayo (1994a, p.22) como “o caminho e o instrumental
próprios de abordagem da realidade”. Desse modo, a metodologia “ocupa lugar central no interior
das teorias sociais” à medida que participa intrinsecamente da visão social de mundo veiculada
na teoria. A metodologia não é a forma exterior, mas sim a própria alma do conteúdo “porque ela
faz a relação entre o pensamento e a existência e vice-versa”. É a metodologia que explica as
escolhas teóricas fundamentais, o conjunto de técnicas que possibilitam apreender a realidade
explicitando as implicações do caminho a ser percorrido durante essa apreensão.
A partir da perspectiva dialética o conhecimento tem um caráter aproximado, pois é uma
construção que se faz a partir de outros conhecimentos sobre os quais se exercita a apreensão, a
crítica e a dúvida. É um processo de tentativas que multiplicam pontos de vista diferentes e vão
dando formas mais definidas ao objeto. De acordo com Minayo (1994a, p. 11) a dialética “abarca
não somente o sistema de relações que constrói o modelo de conhecimento exterior ao sujeito,
mas também as representações sociais que constituem a vivencia das relações objetivas pelos
atores sociais, que lhe atribuem significados”. Para a dialética, o conhecimento é totalizante e a
atividade humana, em geral, é um processo de totalização, que nunca alcança uma etapa
definitiva e acabada. Dialeticamente, isso significa que qualquer objeto que o homem consiga
perceber ou criar é parte de um todo e, em cada ação empreendida, o homem se defronta,
inevitavelmente, com problemas interligados. Para encaminhar soluções para tal problema é
necessário que o homem tenha uma certa visão de conjunto, para então avaliar a dimensão de
cada elemento que compõe tal conjunto. Konder (1981), ao analisar a totalidade em Marx,
explica que
A visão de conjunto – ressalve-se – é sempre provisória e nunca pode pretender
esgotar a realidade a que ele se refere. A realidade é sempre mais rica do que o
conhecimento que a gente tem dela. Há sempre algo que escapa às nossas
sínteses; isso, porém, não nos dispensa do esforço de elaborar sínteses, se
quisermos entender melhor a nossa realidade. A síntese é a visão de conjunto
que permite ao homem descobrir a estrutura significativa da realidade com que
se defronta, numa situação dada. E é essa estrutura significativa – que a visão
de conjunto proporciona – que é chamada de totalidade [...] a totalidade é mais
63
que a soma das partes que a constituem [...] Há totalidades mais abrangentes e
totalidades menos abrangentes [...] A maior ou menor abrangência de uma
totalidade depende do nível de generalização do pensamento e dos objetivos
concretos dos homens em cada situação dada (KONDER, 1981, p. 38-39).
Trazendo o debate para o campo da saúde, Minayo (1994 a) aponta que, ao se instituir
nem como uma disciplina nem como um campo separado das outras instancias da realidade
social, a saúde apresenta as mesmas vicissitudes, avanças, retrocessos, interrogações e
perspectivas da totalidade sociológica da qual faz parte. Sua especificidade é dada pelas inflexões
ideológicas, políticas e socio-econômicas ligadas ao saber teórico e prático sobre saúde e doença,
sobre a organização, a administração e avaliação das ações e serviços e dos usuários dos sistemas
de saúde. É a partir desse caráter que está sua abrangência multidisciplinar e o reconhecimento de
que o campo da Saúde mostra uma realidade complexa que demanda a integração de
conhecimentos distintos e que coloca de maneira imediata a questão da intervenção. E nessa
perspectiva que ele requer uma abordagem dialética que possa “compreender para transformar e
cuja teoria, desafiada pela prática, a repense permanentemente” (MINAYO, 1994ª, p.13).
Diante do exposto, o capítulo que segue apresenta dois momentos do processo
investigativo. No primeiro são descritos os procedimentos metodológicos tais como, tipo de
pesquisa, sujeitos, universo da pesquisa e instrumentos de coleta de dados que orientaram a
pesquisa. E no segundo momento são apresentados o percurso da pesquisa e os dados obtidos.
3.1.1 Procedimentos metodológicos
Este trabalho está delineado, por um lado, pela revisão bibliográfica, pois é ela que
permite o conhecimento de diferentes pontos de vista acerca do tema, os diferentes ângulos de
abordagem do problema que buscam identificar definições, categorias de análise, conexões e
mediações com outros temas. A importância da realização das leituras acerca do tema é um
exercício de crítica teórica e prática, além de, principalmente, proporcionar a reconstrução do
objeto de pesquisa. Por outro lado, este trabalho compreende também procedimentos empíricos
64
que viabilizam uma pesquisa
29
de caráter qualitativo considerando que esta se adequa a busca de
respostas para questões particulares, que para as ciências sociais são difíceis de serem
quantificadas. Trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores,
atitudes (MINAYO, 2000). A questão da amostragem em pesquisa qualitativa merece
comentários especiais, pois seu critério não é numérico como nas pesquisas quantitativas. Há
menos preocupação com generalizações e mais com o aprofundamento e abrangência da
compreensão dos sujeitos pesquisados. Para Minayo (1994a), a amostra ideal é aquela capaz de
refletir a totalidade nas suas múltiplas dimensões, ou seja, a “validade da amostragem está na sua
capacidade de objetivar o objeto empiricamente, em todas as suas dimensões” (MINAYO, 1994a,
p.103). Então, baseado nessa afirmação e mediante a preocupação com a representatividade do
estudo, foram definidos os sujeitos da pesquisa, os instrumentos e análise de dados.
3.1.2 Sujeitos de pesquisa
Os sujeitos de pesquisa são, primeiramente, construídos teoricamente enquanto elementos
do objeto de estudo. Na pesquisa empírica os sujeitos são parte de uma interação social com o
pesquisador, o que possibilita a criação de um produto novo e confrontante tanto com a realidade
concreta como com as hipóteses e questões teóricas, num processo amplo de construção de
conhecimento (MINAYO, 1994 a).
Os sujeitos desta pesquisa foram os coordenadores das UBSs de Florianópolis enquanto
representantes dos serviços de atenção básica. Entende-se que o profissional de saúde, ao ocupar
a posição de coordenador, tem conhecimento de todo o funcionamento e as ações desenvolvidas
na UBS a qual pertence. Além disso, é um profissional inserido na atenção básica e também,
mesmo ocupando a função de coordenador, não deixa de desenvolver a prática assistencial
enquanto membro de uma equipe de Saúde da Família. Ainda, enquanto coordenador, tem a
função de mediar as proposições da Secretaria Municipal de Saúde até o serviço, ou seja, fazer
com que estas proposições cheguem aos profissionais e fiscalizar se estão sendo desenvolvidas ou
29
A Pesquisa é entendida como a atividade básica das Ciências na sua indagação e descoberta da realidade. É
compreendida como uma atitude e uma prática teórica de permanente busca que define um processo
intrinsecamente inacabado e constante. É uma atividade de aproximação sucessiva da realidade que nunca
acaba, fazendo uma combinação particular entre teoria e dados (MINAYO, 1994 a).
65
não. Dessa forma, pressupõe-se que o coordenador teria conhecimento das ações desenvolvidas,
da organização do serviço, das angustias dos profissionais, como também das informações
privilegiadas sobre a política assistencial e de formação de recursos humanos. Finalmente, a
escolha recaiu sobre o coordenador tendo em vista que este trabalho não postula como objetivo
analisar o atendimento realizado por profissionais específicos, ou seja, basear-se em categorias
profissionais como a atenção prestada por enfermeiros, médicos ou dentistas.
Uma vez definidos os coordenadores como sujeitos de estudo, a escolha dos mesmos foi
realizada a partir de um levantamento do número total de UBS do município de Florianópolis e a
distribuição destas nas Regionais de Saúde. Neste levantamento encontrou-se um total de 47 UBS
distribuídas em 05 Regionais de Saúde: Regional Continente 10 UBS, Regional Leste 09 UBS,
Regional Norte 10 UBS, Regional Sul 13 e Regional Centro com 05 UBS. A partir deste dado
realizou-se sorteio buscando proporcionalidade de UBS’s a serem pesquisadas de acordo com o
número total de UBS de cada regional. Na busca de tornar esta pesquisa representativa foram
realizadas entrevistas com 09 coordenadores de UBS’s do município distribuídas
proporcionalmente entre as cinco Regionais de saúde. Dentre os coordenadores entrevistados
encontram-se 01 dentista, 02 médicos, 03 médicas e 03 enfermeiras sendo que, destas últimas, 02
foram indicadas pelos coordenadores para a entrevista. O tempo de experiência de coordenação
variou entre 40 dias a 03 anos, no entanto, antes de ocuparem o cargo já atuavam em serviços
básicos de saúde e, além das atividades de gestão, ainda desempenham ações na atenção à saúde.
3.1.3 Instrumentos de pesquisa
A abordagem dos sujeitos de uma pesquisa exige a seleção adequada de instrumentos
cabendo ao pesquisador, durante a seleção, considerar a viabilidade destes e o alcance dos
objetivos da pesquisa. A teoria
30
e as técnicas são essenciais para a investigação, mas a
experiência e a capacidade criadora do pesquisador também são de grande importância, pois é o
pesquisador que pode, pela arte, superar o instrumental técnico. Esta qualidade pessoal do
30
Teoria é entendida como um conjunto inter-relacionado de princípios e definições que servem para dar
organização lógica a aspectos selecionados da realidade empírica. [...] A essência de uma teoria consiste na sua
potencialidade de explicar uma gama ampla de fenômenos através de um esquema conceitual ao mesmo tempo
abrangente e sintétivo (MINAYO, 1994 a, p.91-92).
66
pesquisador, suas preocupações sociais, questões e indagações da realidade nenhuma técnica ou
teoria pode realmente suprir.
Para o desenvolvimento desta pesquisa utilizou-se como instrumento a entrevista semi-
estruturada, pois se considera que esta permite enumerar de forma mais abrangente possível as
questões que o pesquisador quer abordar no campo, tendo como norte os pressupostos advindos
da definição do objeto de pesquisa. Nesse sentido a entrevista semi-estruturada parte de
certos questionamentos básicos, apoiados em teoria e hipóteses, que interessam a
pesquisa, e que oferecem amplo campo de interrogativas, fruto de novas hipóteses
que vão surgindo à medida que se recebem as respostas do informante
(TRIVINUS, 1987, p.146).
O Roteiro de Entrevista utilizado em entrevistas semi-estruturadas difere do sentido
tradicional do questionário, enquanto o questionário compreende hipóteses e questões fechadas, o
roteiro contém poucas questões, no entanto visa apreender o ponto de vista dos atores sociais
previstos nos objetivos da pesquisa. Assim, o roteiro deve ser o facilitador de abertura, de
ampliação e de aprofundamento da comunicação entre o pesquisador e o sujeito da pesquisa
(MINAYO, 1994a). Para a efetivação desta entrevista foi desenvolvido um Roteiro de Entrevista
(Anexo) com questões introdutórias sobre o perfil e organização das UBSs e, questões
norteadoras para abordagem do tema, como: A violência contra a mulher faz parte do cotidiano
da UBS? Onde as situações de violência contra a mulher são identificadas na UBS? Quais os
profissionais que acolhem a demanda? Quais os tipos de violência contra a mulher que aparecem
com mais freqüência na UBS? Nas situações em que são identificadas situações de violência
contra a mulher, qual o procedimento adotado pela UBS? Estas situações são discutidas pela
equipe em algum momento? Quais as informações que os profissionais desta UBS dispõem para
o atendimento destas situações? As equipes de PSF da UBS receberam algum tipo de
capacitação/treinamento/orientação para o trabalho com tais situações?
3.1.4 Procedimento da coleta de dados
67
O contato com os sujeitos de pesquisa foi realizado a partir dos princípios éticos definidos
pelo Conselho Nacional de Ética em Pesquisa em que, após aval da Secretaria Municipal de
Saúde de Florianópolis /SC, os sujeitos foram esclarecidos sobre a finalidade e objeto da
pesquisa, firmando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). As entrevistas foram
agendadas previamente e realizadas nos locais de trabalho dos sujeitos, também foram gravadas
em fita cassete e transcritas posteriormente. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em
Pesquisas com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina em 29/05/2006 sob
processo número 150/06. O procedimento esteve de acordo com a Resolução 196/1996 do
Conselho Nacional de Saúde que regulamenta as pesquisas envolvendo seres humanos.
3.1.5 Tratamento dos dados
Para tratamento dos dados colhidos na pesquisa foi utilizada a análise de conteúdo
temática que, para Minayo
consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação cuja
presença ou freqüência signifiquem alguma coisa para o objetivo analítico visado.
Ou seja, tradicionalmente, a análise temática se encaminha para a contagem de
freqüência das unidades de significação como definitórias do caráter do discurso.
Ou, ao contrário, qualitativamente a presença de determinados temas denota os
valores de referência e os modelos de comportamento presentes no
discurso
(1994a, p.209).
Operacionalmente a análise de conteúdo temática compreende três etapas que foram
seguidas durante o desenvolvimento do presente estudo:
A pré-análise, que consiste em escolher os materiais a serem analisados; a retomada das
hipóteses e dos objetivos iniciais da pesquisa, reformulando-as frente ao material coletado; e
na elaboração de indicadores que norteiem a interpretação final;
A exploração do material que compreende essencialmente a operação de codificação, ou
seja, transformação dos dados brutos com o objetivo de alcançar o ponto de compreensão do
texto;
68
O tratamento dos resultados obtidos e interpretação. Esta última submete os resultados
brutos a operações simples ou complexas que permitem colocar em destaque as informações
obtidas. A partir daí são propostas interferências e realizadas interpretações previstas no seu
quadro teórico ou se abrirão pistas em torno de dimensões teóricas sugeridas pela leitura do
material.
A etapa de exploração do material permitiu desenvolver uma tabela com as principais
categorias de análise, os núcleos temáticos e seus núcleos de sentido, que pode ser visualizada a
seguir. Já as análises e interpretações dos dados obtidos nesta etapa são descritos no próximo
item do trabalho.
69
Tabela 1 – Síntese dos dados da pesquisa
Núcleos
Temáticos
Núcleos de sentido Elementos de
análise
Elementos de análise Elementos de
analise
1. A violência
contra a mulher
no cotidiano da
UBS
1.1 Não identificação
da Problemática
1.2 Identificação da
problemática
1.2.1 . Profissionais que
atendem a demanda
1.2.2. Tipos de violência
1.2.3. Abordagem e/ou
conduta em relação à
problemática
1.2.1.1. Nível superior
1.2.1.2. Nível técnico
1.2.1.3. Outros profissionais
1.2.2.1. Sexual
1.2.2.2. Física
1.2.2.3. Psicológica
1.2.3.1. Notificação
1.2.3.2. Busca de rede de
atenção
1.2.3.3. Desconhecimento e
dificuldade de como
conduzir
1.2.3.4. Acolhimento e
orientação
1.2.3.5. Visita Domiciliar
1.2.3.6. Encaminhamento
para Psicologia em
situações mais complexas
Psicólogo
Médico
Enfermeiro
Nutricionista
Técnico de
enfermagem
Recepcionista ACS
CEVIC Delegacia
da Mulher
Protocolo de
violência sexual
2. Formação
Profissional
2.1. Treinamentos
propostos pelo gestor
2.2. Falta de formação
para trabalhar com
questões emocionais e
abordagem à mulher
2.3. Reuniões de equipe
/ área como espaço de
formação
2.4. Ausência de
formação técnica
2.1.1. Protocolo de
atenção à vítima de
violência sexual
2.1.2. Introdutório do PSF
2.1.3. Violência
domestica
2.1.4. Violência (não
especificada)
2.3.1. Discussão do
protocolo de atenção à
vítima de violência sexual
2.3.2. Discussão de casos
clínicos
70
3.2 A atenção básica à saúde do município de Florianópolis/ SC: contexto da pesquisa
O município de Florianópolis/ SC tem como modelo de atenção básica à saúde a ESF e
conta com a equipe mínima de profissionais sugerida pelo MS /SMS que, como visto no Capítulo
1 do trabalho, é formada por profissionais da área médica, enfermagem, ACS e profissionais de
saúde bucal (dentista e auxiliar de consultório dentário). Ainda o município dispõe de
profissionais de outras áreas, como psicologia, pediatria, ginecologia, psiquiatria e homeopatia
que trabalham na perspectiva de áreas de referência. Estas áreas de referência estão organizadas
a partir das Regionais de Saúde objetivando atender os usuários referenciados pelas UBSs
pertencentes à determinada Regional. Identificou-se que duas UBSs do município desenvolvem
suas atividades com equipes ampliadas de atenção básica onde estão inseridos, além de
profissionais da equipe mínima, profissionais da farmácia, serviço social, psicologia e nutrição.
Esta inserção se dá a partir do Curso de Especialização em Saúde da Família na modalidade
Residência Multiprofissional que se desenvolve por meio de convênio entre SMS e UFSC.
Das 09 UBS pesquisadas, todas elas apresentaram dados sobre os números da população
adscrita em seu território de abrangência. Ao tomar como base os dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), os entrevistados sinalizam para uma discrepância entre estes
dados e a realidade local. Para eles - a partir das próprias percepções e dos dados dos cadastros
familiares dos ACS - o número real das pessoas residentes na área em que atendem é bem maior
do que aquele apontado pelo IBGE. Desta discrepância vem também uma preocupação, pois são
os dados do IBGE que servem de base para a alocação de determinado número de equipes nas
UBSs conforme o preconizado pelo MS
31
. Nesse sentido, das 09 Unidades pesquisadas 08
apontaram para um número insuficiente de equipes de Saúde da Família considerando o real
número de residentes em seu território e, ainda, em 01 das UBS as equipes se encontravam
incompletas. O número de equipes em cada UBS pesquisada variou entre 01 e 04 equipes.
31
De acordo com a Política Nacional de Atenção Básica, a equipe multiprofissional deve ser responsável por,
no máximo, 4.000 habitantes, sendo a média recomendada de 3.000 habitantes. Já o número de ACS deve ser
suficiente para cobrir 100% da população cadastrada, com um máximo de 750 pessoas por ACS e de 12 ACS
por equipe de Saúde da Família (BRASIL, 2006b).
71
3.3 Os resultados da pesquisa
Os resultados da pesquisa, de acordo com a Análise de Conteúdo Temática proposta como
procedimento metodológico, permitiram trabalhar o conjunto das informações colhidas em dois
núcleos temáticos: 1) o cotidiano da atenção às mulheres em situação de violência nas UBSs e; 2)
a qualificação dos profissionais inseridos nas UBSs para o atendimento a esta demanda. Para
melhor organização e exposição dos dados, estes núcleos temáticos foram subdivididos em
núcleos de sentido, conforme serão descritos a seguir. A importância em trabalhar estes núcleos
temáticos pressupõe uma análise sobre a inter-relação entre os princípios e fundamentos das
políticas públicas, principalmente da Política de Saúde de atenção às mulheres em situação de
violência e sua efetivação nos serviços básicos de saúde do município de Florianópolis/ SC. Vale
ressaltar que com a pesquisa muitos dados foram obtidos, porém tiveram que ser selecionados
para atender o objeto e objetivos propostos. Assim, a seguir apresentam-se os dados da pesquisa
que compreenderam os dois núcleos temáticos e, ao final, a sistematização das considerações
acerca dos dados apresentados. Para melhor exposição dos dados as UBSs foram enumeradas de
01 a 09.
3.3.1 O cotidiano das UBSs de Florianópolis na atenção às mulheres em situação de
violência
Este primeiro núcleo temático referido como o cotidiano da atenção às mulheres em
situação de violência nas UBSs trata das demandas das mulheres em situação de violência que
se apresentam no cotidiano das UBSs. A partir deste núcleo temático foram apreendidos dois
núcleos de sentido: a identificação das situações de violência contra a mulher nas UBSs; e a
não identificação da demanda.
O primeiro núcleo de sentido relacionado a identificação das situações de violência
contra a mulher nas UBSs pressupõe conhecer, no cotidiano das Unidades, quais os
profissionais que acolhem as situações, quais os tipos de violência identificados, bem como a
abordagem profissional diante das situações. Assim, no que se refere a este primeiro núcleo de
sentido as falas de três entrevistados enunciam a presença de mulheres que vivenciam violências
no cotidiano das UBSs:
72
Faz, mas é pouco vista, né (UBS 01);
... a demanda chega até nós (UBS 04);
Sim (UBS 05).
Uma das principais questões colocadas em relação a presença das situações nos serviços
básicos de saúde é justamente a identificação destas situações e possibilidades de atendimento
neste nível de atenção, pois, apenas ter conhecimento que as necessidades das mulheres em
situação de violência estão presentes na UBSs não significa, conseqüentemente, que elas serão
abordadas e discutidas como demandas possíveis de ser apreendidas no setor saúde, ou ainda,
como indica a UBS 01, se serão vistas. Outra questão importante é a freqüência com que as
situações são vistas pelos profissionais no cotidiano das UBSs, como ilustrada pela UBS 04 que,
apesar da fala vir no sentido da demanda estar presente em seu cotidiano, esta ao apresentar
dados sobre a freqüência das situações ressalta que apenas duas chegaram na Unidade, uma de
violência sexual e outra de violência física. Da mesma forma, as Unidades que trazem
apontamentos sobre os tipos de violência, ao tentar concretizar a freqüência com que estas
situações aparecem no cotidiano, limitaram-se a uma ou duas situações por UBS.
...esses dois casos que eu te falei, uma paciente que foi espancada e essa paciente
que foi violentada pelo padrasto (UBS 04).
um caso que nós encontramos de violência foi o estupro (...) outro caso, a pessoa
fez uma queixa de violência física (...) e justamente esses são os casos que a gente
toma conhecimento (UBS 07).
Em relação aos profissionais que acolhem e atendem as mulheres em situação de
violência, os entrevistados indicam que essas situações podem ser atendidas em diferentes
espaços da UBS e por aqueles profissionais que possuem contato com as usuárias do serviço.
Como pode ser observado nos apontamentos abaixo, das UBSs 04, 08 e 05, o atendimento não
está delimitado pela formação profissional, mas relacionado tanto com o vínculo estabelecido na
relação profissional-usuária, quanto pela disponibilidade dos profissionais no momento da
procura:
...o profissional que tá alí no balcão ... que faz, primeiramente, o acolhimento ...o
balcão que é a porta de entrada (UBS 04);
73
...o profissional que o paciente tem mais empatia, pode ser o técnico, o médico, o
enfermeiro (UBS 08).
Desde o técnico, enfermeiros, médicos, psicólogos, nutrólogos e todo tipo de
profissional que sabe acolher realmente (UBS 05).
Agora com as psicólogas também... se bem que elas estão há pouco tempo – 3
meses – e a gente não teve nenhum caso, mas com certeza se acontecer, tendo as
psicólogas no posto, a gente vai pegar uma orientação delas e tentar inserí-las na
situação. Eu acredito que elas vão estar bem mais preparadas do que a gente (...)
com as psicólogas aqui a gente vai poder fazer melhor. Acredito que elas tenham
como trabalhar isso da melhor forma. Como abordar a paciente de forma que ela
se sinta a vontade de falar, que ela consiga expressar sem medo (UBS 06).
No entanto, o sujeito da UBS 06, apesar de colocar que nunca houve demandas
envolvendo situações de violência contra a mulher na Unidade a qual pertence, sugere que a
inserção da psicologia na Unidade vai trazer maior qualificação na atenção as situações. Dessa
forma, delega a abordagem da temática a profissionais não inseridos na equipe mínima de Saúde
da Família, porém, como visto anteriormente, a realidade das equipes das UBSs do município
estudado segue a preconização mínima do MS. A inserção de outras áreas profissionais, como a
psicologia, tem a função de áreas de referência.
Em relação ao vínculo profissional-usuária os entrevistados o consideram, assim como a
escuta qualificada, como meio importante para o desenvolvimento da atenção às necessidades das
mulheres que muitas vezes não é trazida ao profissional como uma demanda explicitada, mas
pode ser desvendada durante a atenção prestada na UBS:
...essa mulher geralmente não vem com um discurso claro, mas quem exerce a
escuta qualificada sempre percebe essa mulher no meio da demanda do dia-a-dia
no serviço de saúde (UBS 05).
É muito difícil da pessoa falar, ela só fala quando a gente sente que ela tá
confiando naquele profissional, quando ela se sente um pouco amparada (UBS
07).
Ainda, ao olhar com atenção para as várias UBSs pesquisadas, percebe-se que existe uma
distinção na forma de recepção e acolhimento das demandas nestas Unidades, o que evidencia
processos de trabalhos distintos na construção desta etapa de atendimento, mesmo no contexto
interno do município. Nesse sentido, de acordo com Merhy (1997) podem existir maneiras
74
distintas de práticas no mesmo serviço, dependendo de quem está executando o trabalho, em que
momento e também da relação de vínculo que o usuário mantém com o profissional. Dessa
forma, o autor considera que o trabalhador de saúde dispõe de certa autonomia para “decidir
coisas” durante a atenção que presta ao usuário, assim, com a sabedoria e prática exerce um certo
“autogoverno” para intervir no modo como recebe o usuário, que pode ser de maneira mais
burocrática e padronizada ou mais acolhedora, pode decidir se o usuário está em situação de
maior ou menor “necessidade” por serviços naquele momento. Nesse sentido, qualquer
“trabalhador da saúde pode interferir claramente no conteúdo de uma dada etapa do processo de
trabalho, ou mesmo de todo o processo” (MERHY, 1997, p. 76).
Em relação aos tipos de violência contra a mulher que aparecem nas UBSs, os
entrevistados citam a violência física, a psicológica e a sexual. Uma das falas caracteriza o tipo
de violência pelo seu agressor:
Já chegou violência sexual, espancamentos, casos bem importantes, mas a
maioria é violência psicológica (UBS 03);
A física. A psicológica também a gente percebe, mas a sexual não chega (UBS
06).
Olha, a violência psicológica é difícil a gente perceber, talvez a psicóloga perceba
mais. O que nós percebemos foi a física (UBS 07).
...violência física a gente quase não vê aqui, assim... pelo menos não é atendida
aqui. Agora a psíquica é freqüente. A violência sexual não é detectada
agudamente, tem é a história pregressa do abuso sexual há anos atrás e tal..., mas
o abuso recente ou que tá acontecendo no momento, não (UBS 01).
O que a gente mais percebe é do esposo, do companheiro, que agride fisicamente,
verbalmente (UBS 08).
No que se refere a forma de abordagem dos profissionais no atendimento às mulheres
em situação de violência, os entrevistados sinalizam para diferentes abordagens. A realização da
notificação compulsória apareceu em duas falas como procedimento de atenção à violência
sexual, no entanto a legislação específica existente sobre a notificação compulsória nos serviços
de saúde coloca a notificação como obrigatória para todos os tipos de violências sofridas pela
mulher (Lei 10.778 de 2003). As entrevistas mostram que mesmo quando a notificação é
75
realizada, a atenção acaba nesse procedimento, não existindo a atenção na própria unidade de
saúde ou qualquer referência a outros serviços:
A gente acaba ligando e comunicando, porque tem que comunicar (ULS 04);
... a gente faz a notificação (ULS 02).
Outra abordagem adotada mediante a problemática diz respeito à busca da rede de
atenção do município de Florianópolis. Os entrevistados que chegam a abordar as situações
utilizam, além do encaminhamento para a Delegacia de Atenção à Mulher ou para o Centro de
Atendimento à Vítimas de Crime (CEVIC), o Protocolo de Atenção às Vítimas de Violência
Sexual do município, sendo que a opção por um desses encaminhamentos está relacionada ao tipo
de violência atendida:
A Delegacia da Mulher, a gente entra em contato. Primeiro socorre, é lógico,
porque a gente tem atenção a essa agressão física, dá orientação. Eu,
particularmente, peço orientação da Delegacia da Mulher, coloco à disposição à
ela, e tendo encaminhar e proteger essa mulher dentro dos parâmetros e sabendo
que ela está em risco (UBS 05).
Um caso que nós encontramos de violência foi o estupro e a pessoa engravidou,
então foi encaminhada pro Hospital Universitário, pro serviço de avaliação, e a
pessoa teve o aborto realizado (...) os encaminhamentos que tem que ser dados e a
conduta com relação ao caso: se precisa medicar, se precisa fazer exame, se
precisa encaminhar pra algum lugar. O encaminhamento, no caso, é procurar a
polícia (UBS 07).
Conforme abordado no Capítulo 2, Florianópolis dispõe de um Protocolo de atenção para
os casos de violência sexual, o qual inclui um Fluxograma com orientações práticas para todos os
profissionais da rede municipal, inclusive a saúde. Apesar da importância desse protocolo para a
abordagem da violência sexual, observa-se certa limitação quanto à orientação de atendimento
para os demais tipos de violência e, inclusive, para a própria violência sexual não explicitada (o
protocolo não sinaliza para assédios, sexo forçado na relação conjugal, dentre outros
considerados “menos” graves, para maiores de 18 anos, para os menores de 18 anos a indicação e
realizar notificação ao Conselho Tutelar). Quanto aos encaminhamentos preconizados pelo
Fluxograma o relato do entrevistado da UBS 07 coloca como função das UBSs - enquanto porta
76
de entrada - identificar a violência a partir de uma visão predominantemente biológica, focada em
exames clínicos e laboratoriais, e proceder ao encaminhamento para o nível hospitalar.
Já as situações de violência física envolvendo a mulher, principalmente no espaço
doméstico, vistas pelos profissionais de saúde apenas como um problema policial, muitas vezes,
não corresponde a real demanda das mulheres que procuram os serviços de saúde. De acordo com
as contribuições de Schraiber e D’Oliveira (1999) e Brandão (1996), as mulheres que se queixam
raramente consideram essas queixas como crimes ou passíveis de penas, como só têm nas
Delegacias um recurso visível para o enfrentamento do problema, as mulheres acabam buscando
nestes serviços uma forma de mediação do conflito vivido no espaço privado. Entretanto, assim
que percebem que o setor policial não reconhece suas demandas, as mulheres tentam adequá-las à
linguagem criminal, denunciando, por exemplo, que o companheiro está perturbando a família
com bebedeiras e amantes, considerando que assim enunciados não se enquadram como crimes
previstos de punição. Por outro lado, os trabalhadores das Delegacias tampouco compreendem
estas demandas das mulheres como possíveis de serem abordadas neste campo de atuação, pois,
muitas vezes, não são enquadradas como crimes e percebem nas mulheres a intenção de não
punirem seus maridos. E é desse movimento que até bem pouco tempo atrás (anteriormente a Lei
Maria da Penha), muitas das mulheres retiravam a queixa policial. Para Brandão (1998)
A retirada da queixa não é, entretanto, percebida pelas mulheres como
contraditória ao movimento que as levou a registrá-la. Ao contrário, elas tendem a
retomar a negociação com o acusado em uma posição superior à qual se
encontravam anteriormente. Na ótica dessas mulheres, a suspensão do processo
seria, então, não um ato contraditório à denúncia, mas um elemento que pode
favorecer o retorno da reciprocidade rompida, que é muitas vezes o seu interesse
principal (...) usuárias e trabalhadoras divergem, portanto, quanto às expectativas
de intervenção possíveis das Delegacias (BRANDÃO, 1998).
Diante disso, as mulheres que buscam os serviços de saúde, já o fazem porque consideram
que sua demanda não é para o setor policial, mas sim pode ser abordada na saúde, pois naquele
momento, está sendo sentida ou nomeada como causadora de alguma alteração vital:
Da perspectiva das mulheres, todo o sofrimento que levam aos serviços de saúde
é potencialmente doença, e como tal pode e deve ser diagnosticado e tratado com
base em um saber científico e, portanto, bastante legitimado. Esta nos parece ser a
expectativa das mulheres em serviços de saúde em razão de sua própria
constituição como usuárias (SCHRAIBER e D’OLIVEIRA, 1999, p.8).
77
Ou ao contrário da autora, podem não considerar como uma doença, mas vêem na UBS
uma possibilidade de abordagem da questão, ou porque não querem tratar a situação no setor
policial ou porque buscam dos profissionais que estão tão “próximos”, no nível local, uma
resposta positiva para suas necessidades. No entanto, podem se deparar com a não acolhida neste
último setor que, ainda lhe recoloca como única alternativa a Delegacia, e para as violências
sexuais, no caso o estupro, a emergência ginecológica hospitalar.
Ainda, a pesquisa sinaliza para a realização de encaminhamentos pelos profissionais da
Estratégia de Saúde da Família aos serviços de referência de psicologia, indicando o psicólogo
como o profissional de saúde mais capacitado para trabalhar com a questão:
A gente encaminha pra Psicologia fazer um trabalho mais de amparo, pra ver se a
pessoa se encoraja de uma forma ou de outra para agir em relação àquela situação
(ULS 07).
Nas UBSs onde há a identificação de situações e buscou-se prestar algum tipo de atenção
na própria UBS, o procedimento adotado pela equipe é a “orientação”. Um dos entrevistados,
apesar de inicialmente relatar que as situações de violência não estariam presentes no cotidiano
do serviço, sinaliza para formas de abordagem na própria UBS para as mulheres em situações de
violência psicológica, reafirmando a não existência de outros tipos de violência:
O que tem acontecido no caso da violência psíquica é a organização da conversa
com o paciente. Orientando quais são as entidades que ele pode procurar, se ele
quiser fazer qualquer denúncia ou qualquer efetivação do que ele tá reclamando...
A gente pode orientar o que fazer. Mas aqui não teve nenhum caso de violência
física e nem sexual que a gente tenha sabido (UBS 01);
Até tive um caso recente aqui que ela teve muito medo e ela muito preocupada e
ela sofre quieta com a situação. Ela vem ao posto para descarregar, para contar o
que está acontecendo. Enquanto profissional a gente acaba orientando a paciente
(UBS 08).
A pesquisa desenvolvida ainda aponta dificuldades vivenciadas pelos profissionais de
saúde na abordagem as situações de violência contra a mulher sendo que, algumas vezes, a
78
queixa pode ser identificada, porém os profissionais não se sentem amparados para proceder com
o atendimento, conforme a fala a seguir:
Algumas vezes até são identificadas, mas a gente não consegue ir além dessa
identificação. É uma identificação, até acho que subjetiva, uma coisa nova que a
gente percebe que ta acontecendo, que a gente identifica, mas não consegue sair
daquilo ali (UBS 06).
Contudo, não significa que essa não aconteça na comunidade ou que as usuárias não
tentam, de alguma forma, trazer a situação. De acordo com Schraiber et al (2003, p.44), a
revelação das mulheres pelo vivido guarda a essencial relação com o que as move para esta
revelação podendo ser compartilhada com pessoas de seu convívio íntimo ou partir para busca de
apoio institucional. “Quando há percepção da perda de um direito a mulher vai à delegacia ou ao
advogado em busca da recuperação desse direito”. A suposição dos autores é que “quando há
também a percepção de que é a situação de violência vivida a que responderia por agravos à
saúde, ou danos físicos e/ou mentais, a mulher que vive esta situação demandaria ao serviço de
saúde ajuda específica para lidar com seu sofrimento, ou para responder a suas necessidades de
terminar com este sofrimento, melhorando sua saúde. Assim, o modo de revelar e o que
exatamente será dito nesta revelação dependerá a quem, ou a qual instituição, a violência vivida
será contada”. Os próprios profissionais reconhecem essas dificuldades:
Não tenho como garantir que não atendi alguém, não que foi relatado... talvez
pelo próprio medo da mulher de fazer uma notificação do acontecido (UBS 02);
A gente vê alguns casos que a mulher apanhou do marido, mas elas não querem
denunciar, não querem falar (...) Mesmo que a gente desconfie que esteja
acontecendo, a gente não consegue uma abertura da mulher. Não é uma coisa que
chega pra gente (UBS 06);
Os outros que acontecem sutilmente, as vezes a pessoa não tem coragem de dizer
e passa, né, despercebido (UBS 07);
Teve um caso interessante que me chamou a atenção há algum tempo atrás que a
paciente foi medicada, estava cheia de hematomas e ela dizia que não, a gente via
que ela tava toda machucada e ela dizia que não (...) a gente vê casos, aparecem,
aí eu procuro orientar a paciente, mas percebo que elas tem muito medo, medo de
chamar a policia... (UBS 08).
79
Todas as falas remetem o não atendimento ao não relato da mulher, atribuindo este não
relato aos medos que a mulher sente ou mesmo a sua vontade de não revelar. Quanto aos medos,
duas das falas indicam que este estaria relacionado a realização da notificação. Vale ressaltar que
a realização da notificação compulsória (obrigatória) pelos profissionais de saúde não envolve
dados pessoais da mulher, apenas serve para obtenção e leitura de dados epidemiológicos de
determinado território e/ou população ou mesmo da população em geral. Assim, a partir da
leitura e sistematização destes dados poder-se-ia identificar quais as áreas com maior índice de
violência contra a mulher e, por exemplo, planejar ações no sentido da prevenção destas
situações. Não aparecem nas falas dos entrevistados indicações sobre o espaço de atendimento,
tanto físico quanto de tempo que, dependendo das condições, pode se apresentar mais ou menos
favorável para a escuta das mulheres. Ou seja, um local sem o mínimo de privacidade e um
período muito curto de tempo para realização de atendimentos poderiam contribuir para a não
abordagem da temática da violência.
O segundo núcleo de sentido denominado a não identificação das situações de violência
contra a mulher nas UBSs esteve bastante presente nas falas dos entrevistados predominando
um discurso que, de imediato, nega a existência da problemática:
... é muito pouco vista... nunca aconteceu que viesse aqui a queixa (UBS 01).
...não chega, eles vão direto para o hospital (UBS 03).
Não faz e é muito pouco discutida (...) nunca chegou pra gente (UBS 06).
Esta não identificação das situações nas UBSs vem sinalizar para a invisibilidade da
questão no setor saúde, que não é uma realidade exclusiva do município de Florianópolis. Como
já abordada por outros estudiosos do tema e até mesmo pelo próprio MS essa invisibilidade está
presente na realidade dos serviços brasileiros de atenção básica. Conforme dados de pesquisa
cerca de 30% das mulheres que utilizam os serviços básicos de saúde já viveram algum episódio
de violência, sendo que destes, em torno de 80% apontam para a violência conjugal que tem
como principais características a repetitividade e a tendência a se tornarem cada vez mais graves.
Por estar associada a maiores índices de queixas, dor de cabeça, insônia, ansiedade, problemas
intestinais, sofrimentos psíquicos em geral, dores pélvicas, dentre outras, as mulheres que sofrem
80
violência tendem a utilizar intensamente os serviços de saúde. Para Schraiber et al (2002, 1999),
apesar desta associação com aspectos fisiológicos, a violência não é reconhecida nos diagnósticos
realizados nos serviços de saúde visto que, ao não reconhecerem a violência contra a mulher
como uma “doença”, os profissionais, principalmente da área médica e de enfermagem, não a
reconhecem como situação que pode ser atendida na saúde, a não ser que haja alguma base
anátomo-patológica objetiva para justificá-la e, caso apareça este último diagnóstico, a doença
pode ser acolhida enquanto a violência perde seu sentido e importância.
Em relação aos dados da violência, as contribuições de Schraiber et al (2003) apontam
ainda para outro aspecto importante que são as diferentes compreensões que as mulheres e os
profissionais de saúde tem em relação à violência. Em seu estudo intitulado “Violência vivida: a
dor que não tem nome”, a autora entrevista mulheres que freqüentam serviços de saúde e
encontra dados bastante significativos em relação a compreensão destas do que é a violência. A
maioria absoluta das mulheres que relataram durante as entrevistas ter sofrido agressão física,
psicológica ou sexual não consideraram o episódio como “violência”. O termo “violência” para
as mulheres entrevistadas esteve relacionado a situações graves ocorridas na espera pública, o
espaço doméstico não aparece na definição de violência. Isto vem expressar como a compreensão
da violência tanto pelas mulheres quanto pelos profissionais de saúde pode gerar “impasses
comunicacionais” que interferem diretamente na atenção à estas situações. Isto pode ser
percebido em uma das entrevistas que, apesar de inicialmente o entrevistado colocar que no dia-
a-dia da UBS não chegam mulheres em situação de violência, no decorrer da entrevista situa que
A maioria é violência psicológica, muitas vezes nem a própria mulher se dá
conta, já está acostumada com aquilo (UBS 03);
Porém, no decorrer da entrevista, não apresenta dados que possa identificar qual o tipo de
abordagem ou procedimento adotado nestas situações. Assim, o profissional, além de saber
identificar a violência contra a mulher, como indicada na fala, deve saber acolher esta demanda e,
juntamente com a mulher, compreender as questões colocadas por ela naquele momento. Outra
questão preocupante é o sub-registro das situações de violência vivenciadas pelas mulheres em
que há a revelação do vivido ao profissional, mas este “não lhe dá a importância” e deixa de
abordar ou até mesmo anotar no prontuário da usuária, o que poderia servir de subsídios para
novas abordagens e até abordagens de outros profissionais que tem acesso aos registros. E ainda,
81
há profissionais que não acolhem a demanda trazida pela mulher, pois compreendem que a
queixa da mulher não corresponde com o ocorrido:
Não, algum tempo atrás uma enfermeira fez o acolhimento de uma mulher que
disse que havia sofrido violência sexual, mas acho que foi historia, a enfermeira
ficou em duvida e passou ao médico, e o medico que atendeu também ficou em
duvida, no final acharam que não era abuso sexual (UBS 02).
Esta percepção dos profissionais sobre a queixa de violência sexual trazida pelas mulheres
apresenta-se preocupante à medida que pode não haver uma abordagem técnica e sensibilizada da
questão, mas sim ser apreendida pelo profissional somente a partir de julgamentos do senso
comum. Além do mais, a centralidade da atenção estaria nos “achados” médicos e não na usuária
enquanto demandante do atendimento. Essa questão remete para o segundo núcleo de sentido,
descrito a seguir, que é a formação e/ou capacitação profissional para lidar com as demandas das
mulheres que vivenciam violência, que pressupõe uma abordagem com embasamento técnico
com possibilidades de compreensão e transformação das queixas das mulheres em demandas para
o serviço de saúde.
3.3.2 A qualificação dos profissionais de atenção básica na atenção as mulheres em situação
de violência
O segundo núcleo temático se refere ao conjunto de informações que o profissional dispõe
para lidar com mulheres em situação de violência. A partir das entrevistas, quatro núcleos de
sentido foram articulados: conhecimento de instrumentos que dão apoio à prática,
treinamentos propostos pelo gestor, treinamento em serviço e a formação insuficiente para
trabalhar na abordagem as mulheres em situação de violência.
Como identificado no capítulo 2 do trabalho, existem diversas proposições através dos
Ministérios e Secretarias Especiais sobre treinamentos, formação e/ou capacitação sobre a
violência contra a mulher. Especificamente na saúde, esta questão vem sendo tematizada a partir
de alguns instrumentos que servem de apoio para a prática profissional, como a Norma Técnica
de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência contra Mulheres e
82
Adolescentes; o Caderno de Atenção Básica sobre a Violência Intrafamiliar – Orientações para a
prática em serviço; a Cartilha sobre Direitos Humanos e Violência Intrafamiliar e os Protocolos
de Atenção desenvolvidos no nível municipal. Estas publicações enfatizam a necessidade de criar
nos serviços públicos de saúde a oportunidade sistemática de discussão, sensibilização e
capacitação das equipes para melhor enfrentamento da temática da violência, especialmente da
violência contra a mulher no âmbito familiar.
Em relação as informações e aos instrumentos que auxiliam os profissionais na
atenção às mulheres em situação de violência, a maioria dos entrevistados tem conhecimento do
Protocolo de Atenção às Vitimas de Violência Sexual desenvolvido pela SMS e a parceria com o
Centro de Atendimento à Vítimas de Crime (CEVIC):
Só esse protocolo que foi de dois anos e meio atrás, que a gente tem uma pasta
separada que a gente sabe que pode acessar quando necessário. Daí ali tem o
protocolo de atenção, que encaminha pro HU quando é adulta e pro Infantil
quando é criança (UBS 01);
Tem as competências do próprio fluxograma da secretaria de saúde, já desde
2004, que foi quando veio o fluxograma, basicamente é de referencia mesmo, na
ULS tem mais ações de acolhimento, orientação, se conseguir já prevenir,
prevenção de DST (...) eles centralizaram bastante no hospital (UBS 03);
A gente tem o protocolo, que tem até o fluxograma do atendimento. E tem o
CEVIC. São esses os lugares que a gente tem pra encaminhar. Daí ali, quando é
pelo fluxograma a gente encaminha pelo fluxograma. E a gente acaba dando um
jeitinho, quando a gente não consegue. Às vezes a gente tem um conhecido, liga
pra lá, liga pra cá, aí a gente acaba encaminhando. Nem sempre a gente consegue
(UBS 04);
O fluxograma do CEVIC. Da agressão intrafamiliar. Então, tem esse fluxograma
de encaminhamento (UBS 05);
A gente tem até o protocolo de encaminhamento no caso de violência à mulher e
nunca foi usado (UBS 06).
Conforme indicam as falas, para os atendimentos às mulheres em situação de violência, os
profissionais compreendem como informações e instrumentos de apoio ações exteriores à UBS
como o citado Protocolo de Atenção às Vitimas de Violência Sexual e o CEVIC. No entanto,
como já visto, o referido Protocolo atende apenas violência sexual e, como aponta duas das falas
acima, a atenção a partir deste Protocolo se realiza apenas no nível hospitalar.
83
Quando ao segundo núcleo de sentido apreendido através da formação e/ou capacitação
proposta pelo gestor, os profissionais que referem ter participado de algum tipo de formação
citaram a capacitação em relação ao Fluxograma da Rede de Atendimento à Vitima de Violência
Sexual e o curso introdutório do Programa de Saúde da Família (PSF), que abordaram
pontualmente a temática da violência.
Na semana passada, quinta e sexta enviamos dois enfermeiros (...) era um curso
de violência sexual (...) o curso foi lá na Eletrosul, foi uma parceria com a SMS
ligado a saúde da mulher, para funcionários da rede. Ontem os ACS tiveram
capacitação sobre violência, porque eles estavam meio por fora assim, não sabiam
como identificar, acho que a partir da capacitação já vão... até agora os ACS não
trouxeram nenhuma situação, até agora não, os ACS da nossa equipe eram
Agentes que entraram novos, então não. Eu acho que a partir de agora, dessa
capacitação eles vão começar a ficar mais... Até porque a gente cobra muito
marcador, então eles vão nas visitas e ficam mais preocupados com isso e as
vezes não direcionam para outras coisas, então a partir do momento que você
capacita eu acho que... Porque a gente ta fazendo curso, capacitação, toda semana
um tema diferente, se a entrevista fosse uma semana atrás não teria o curso dela
(da enfermeira), nem essa capacitação (UBS 03).
Todavia, as falas dos entrevistados sobre os treinamentos e/ou capacitações propostos
pelos gestores indicam disparidades entre o que é preconizado pelas políticas de atenção a
mulher em situação de violência e o que tem sido apresentado aos profissionais de saúde,
conforme aponta o entrevistado da UBS 08:
Acho importante, acho interessante a capacitação para todos os profissionais da
rede, da enfermagem, seria interessante, porque tem muita coisa que para a gente
aqui na ponta não chega (UBS 02);
Tem muita coisa que fica só no MS e não chega ao serviço (UBS 08).
A outra modalidade de formação e/ou capacitação foi trazida pela entrevistada da UBS
05, denominada por ela de treinamento em serviço. Vale destacar que esta Unidade é uma das
UBSs do município que conta com equipes ampliadas de Saúde da Família em virtude do
convênio entre SMS e UFSC que desenvolve o Curso de Especialização em Saúde da Família, na
modalidade Residência Multiprofissional. Dessa forma, a inserção de outros profissionais na
equipe de Saúde da Família, a partir do processo de trabalho multiprofissional, vem contribuir
84
para a troca de conhecimentos em relação a diversas temáticas e, especificamente, a temática da
mulher em situação de violência:
Tem um treinamento em serviço que é feito através do trabalho das residentes de
Psicologia e Serviço Social que no cotidiano vêm trazendo sistematicamente
essas informações pros trabalhadores de saúde (UBS 05).
E ainda, em algumas UBSs as falas vêm no sentido de que pouco se tem investido para
que as diretrizes das políticas, as normatizações e instrumentos sejam de conhecimento dos
profissionais, enquanto norteadores de suas práticas. Neste sentido, alguns referem não ter
participado de nenhum tipo de qualificação ou formação, por outro lado, alguns profissionais
que tiveram contato com a temática, indicam que este foi insuficiente para amparar a prática,
conforme os apontamentos:
Não me recordo desse tema (ULS 08);
Capacitação tem muito pouco. De como abordar o paciente, nada disso a gente
tem capacitação. É tudo meio que na intuição, na experiência do dia-a-dia. Aí a
gente tem o protocolo de atendimento, se a mulher chegou aqui, o quê que a gente
faz? Se encaminha, tal (...) O único treinamento que a gente teve foi do
fluxograma, de onde mandar, pra onde mandar. Mas como abordar o paciente,
não. Por exemplo, nessas famílias que a gente sabe que a mulher ta lá apanhando
do marido, ou que de repente sofre pressão psicológica, como é que eu vou
chegar pra esse paciente? Como abordar esse paciente? Isso a gente não teve. Aí
tu usa a experiência do dia-a-dia e a intuição. Achando que assim vai ser da
melhor forma. Mas a gente não tem uma orientação (UBS 06);
Eu desconheço, estou aqui há dois anos, nesse período nunca foi colocado um
curso sobre este tema (UBS 02);
No protocolo de atenção só. Teve uma capacitação naquela época. Mas essa
segunda equipe, que foi montada há seis meses, não teve essa capacitação. A
primeira equipe sim, essa segunda equipe foi montada só em dezembro de 2005.
Antes nós éramos uma equipe só pra toda essa unidade. Naquela época, 2 anos e
meio atrás, teve essa capacitação. Que era a Saúde da Mulher do município que
tocava (UBS 01);
Aí eu não sei te dizer. Eu não posso te dar essa informação porque eu não tenho
conhecimento. Eu recebi quando eles implantaram esse fluxograma, e eles
chamaram todo o pessoal da equipe pra fazer uma capacitação do protocolo. E
também, eu tive um treinamento sobre violência doméstica junto com os agentes
de saúde. Os agentes de saúde tiveram, mas não sei se todos. E agora faz bastante
tempo que os agentes não têm nenhuma capacitação, mas faz parte da capacitação
85
deles uma capacitação daquele pessoal que a gente encaminha as mulheres e
crianças vítimas de violência que faz parte do SOS criança. (...) Agora dos
agentes daqui eu não sei te dizer. Os mais antigos eu sei que fizeram, agora tem
uma turminha, de uns seis agentes que entraram que eu sei que não fizeram a
capacitação. E isso faz bastante falta no trabalho delas, porque elas captam
bastante coisa (UBS 04);
Não. Não, enquanto eu estou aqui. Faz um ano que estou na unidade (UBS 05);
Eles quando fazem treinamento, eles não treinam a equipe toda, eles treinam uma
parte, um elemento de cada equipe. Eu, particularmente, não recebi treinamento
ainda. E agora começou um curso preparatório pro PSF que vai até novembro... e
não me lembro se tem algo sobre violência nesse curso. Talvez esteja na parte de
protocolo de atenção que aí fala da conduta ao tipo de atendimento. Mas, aqui os
funcionários... nesta unidade, como é uma unidade muito nova e não foi feito
concurso pra cá, os funcionários vieram de outras unidades, então eles já podem
ter sido capacitados em outros momentos. Mas eu não (...) porque durante o
tempo que eu estou aqui, realmente, eu não me lembro (UBS 07).
Observa-se nas falas dos entrevistados que estes, enquanto coordenadores, não dispõe de
total conhecimento em relação aos cursos de formação e/ou capacitação em que os profissionais
alocados na UBS a qual pertencem participam. Um dos fatores que pode contribuir para que isto
ocorra é a maneira como são propostas essas ações de capacitação, como visto nas falas, se
direciona muito mais para as áreas profissionais do que para a equipe como um todo. Outra
questão que merece destaque é a rotatividade de profissionais no setor que pode estar relacionada
com a forma de vínculo empregatício. Sabe-se que no município estudado há um grande número
de profissionais vinculados ao setor saúde por meio de “contratos temporários” que, no serviço
público, não pode exceder a dois anos. Em relação aos ACS a situação ainda é mais delicada,
pois a profissão de ACS é bastante recente e se encontra em processo de regulamentação,
inclusive quanto a forma de vínculo. No município de Florianópolis os ACS são “vinculados” por
intermédio de uma Associação de Voluntárias, não se caracterizando, portanto, vínculo com o
serviço público. Entretanto, há um movimento da própria categoria de ACS que luta pela sua
inserção a partir de concurso público. A questão da rotatividade dos profissionais no setor saúde
também foi expressa no Plano Estadual de Saúde – 2006 como uma realidade não só do
município de Florianópolis, mas como um problema presente em todos os municípios do Estado
de SC, onde “a alta rotatividade aliada a insuficiência de oferta de cursos às equipes de saúde da
família e de agentes comunitários de saúde compromete a qualidade das equipes, ocasionando
baixa (...) qualidade no atendimento à população (SANTA CATARINA, 2007, p.148)”.
86
Ainda sobre a falta de formação para trabalhar com as mulheres em situação de violência
aparece a falta de formação para abordagem das mulheres de forma geral e, especificamente, a
falta de formação para abordar as questões emocionais que envolvem tais situações. A
abordagem as mulheres em situação de violência e dos sentimentos envolvidos na situação geram
inseguranças nos profissionais, principalmente, quando se referem aos casos em que a equipe
suspeita de violência, porém a mulher não se sente à vontade para falar. Uma das falas é marcante
quanto expressa a dificuldade na condução do caso para além das orientações e informações
objetivas de encaminhamentos:
Acho que na saúde a gente lida com o sofrimento do outro e eu acho que a gente
não tem formação pra isso, a gente tem formação só para a parte técnica e não
para o sofrimento psíquico, depende do profissional acaba não sabendo lidar,
como abordar a questão, geralmente só sabe tratar com medicamento, mas acho
que é questão de formação (UBS 08).
De modo geral, as falas em relação a falta de qualificação e/ou formação para trabalhar
com a temática da violência contra a mulher vêm evidenciar o percurso difícil que marca as
propostas de educação permanente dos profissionais de saúde que, na sua maioria não se
concretiza ou se realiza muito timidamente. Muitas vezes essas proposições acabam ficando no
nível em que foram elaboradas ou se perdem no percurso que deveria ter como fim os
profissionais de saúde, considerando que são o público sujeito destas ações. Esses instrumentos
propostos sinalizam também para novas práticas do trabalho em saúde, principalmente no
contexto da Saúde da Família, objetivando as mudanças assistenciais propostas por esta
Estratégia. Nesse sentido o resgate das contribuições de Franco & Merhy (2003) se mostram
bastante relevantes, pois, para os autores, a mudança das estruturas, dos recursos em jogo e seus
formatos não significa conseqüentemente a mudança assistencial, ou seja, a mudança da micro-
política instituída, do trabalho vivo em ato realizado pelo profissional de saúde. Para eles, a
realidade dos serviços tem sido cruel ao demonstrar que é necessário um conteúdo novo que
penetre agudamente nos valores e condutas dos profissionais de saúde. Dessa forma, não bastaria
os gestores criarem cartilhas, cadernos ou normatizações e distribuir aos profissionais, geralmente
no “lançamento” do documento, tem-se a necessidade de investimentos em sensibilização dos
profissionais para trabalharem com a temática e, principalmente, a necessidade de Educação
Permanente em Saúde.
87
3.4 Considerações acerca dos dados da pesquisa
A realidade da atenção às mulheres em situação de violência nos serviços básicos de
saúde de Florianópolis/SC, apreendida - ainda que de forma inicial e com suas limitações - a
partir da pesquisa realizada junto as UBSs do município, permitiu identificar um conjunto de
dimensões que se apresentam no campo da atenção básica e que definem o modelo de atenção à
estas mulheres. A discussão em torno destas dimensões, tanto pelos gestores da política de saúde
quanto pelos profissionais que estão inseridos na atenção direta as usuárias contribuiria para uma
maior visibilidade da temática da violência contra a mulher no setor abrindo caminhos para
melhores possibilidades de intervenção. As dimensões identificadas são as seguintes:
Invisibilidade, nos serviços de atenção básica à saúde, das situações de violência que
envolvem a mulher
Os estudos apresentados (SCHRAIBER et al, 2002, 2003) apontam para a alta freqüência
das mulheres em situações de violência nos serviços básicos de saúde. Ao mesmo tempo, a
invisibilidade da questão toma conta destes espaços, as mulheres pouco falam e os
profissionais pouco perguntam e pouco discutem. Tanto para os profissionais quanto para as
mulheres, o termo violência muitas vezes não corresponde ao sofrido no espaço doméstico
(onde ocorrem muitas das violências contra a mulher) que exige do profissional - enquanto
um trabalhador do setor saúde - uma maior capacidade comunicativa, um saber técnico
apropriado, uma escuta qualificada que permita a compreensão ou o estabelecimento de uma
comunicação compreensível na relação usuária e profissional. Para Schraiber et al (2003, p.42
e 44) as invisibilidades e silêncios são também questões de gênero, portanto, são realidades
que podem e devem ser abordadas no plano psico-emocional, sócio-cultural e ético-político
buscando uma aproximação primeira de sua complexidade. Dessa forma, entre o silêncio das
mulheres e a invisibilidade do vivido no campo da atenção, os questionamentos postos são:
“por que as mulheres não contam? E por que os profissionais não perguntam?” Para os
autores, ao ocorrer essa não resposta do profissional em tomar a situação de violência como
uma questão de intervenção no campo da saúde, esta passa a ser uma atitude cúmplice na
ocultação da violência.
88
O presente estudo não buscou identificar a freqüência das situações de violência, mas
reforçou os demais estudos no que se refere à invisibilidade da temática no setor saúde.
Assim, de acordo com a pesquisa apresentada no presente trabalho, muitos dos profissionais
atribuíram essa invisibilidade aos medos da mulher em contar os fatos vivenciados, no
entanto esta invisibilidade também é expressada pelos profissionais quando falam que não
conseguem ir além da identificação e também não estão preparados para lidar com as
questões emocionais que envolvem a violência. Deve-se considerar a violência um fenômeno
delicado que envolve altos níveis emocionais por parte da mulher, e também, pode mexer
com as emoções e com as violências do profissional que está realizando o atendimento. Dessa
forma, a invisibilidade da temática da violência também está relacionada à qualificação
profissional, pois nos espaços de capacitações e/ou formações os temas da violência contra a
mulher e da violência de gênero são abordados de forma insuficiente para amparar a prática
dos profissionais de saúde. Ainda, relacionado a isso, observou-se nas falas dos entrevistados
que muitos dos profissionais não dão a importância necessária ao tema, ou por acharem que o
atendimento não corresponde ao setor saúde ou, devido a sua categoria profissional,
compreendem que a abordagem da questão se daria por outras áreas profissionais atribuindo
tanto a atenção direta quanto os treinamentos para áreas profissionais que não estão incluídas
na equipe mínima da saúde da família, como a psicologia e o serviço social.
Organização dos serviços
O nível de atenção básica do município estudado, delineado geograficamente em 05
Regionais de Saúde que compreendem 48 UBSs, está organizada a partir da ESF. Nesse
sentido, as UBSs inseridas no nível “mais local” funcionam como a porta de entrada para o
SUS, tanto porta para o mesmo nível de atenção quanto para o nível secundário e terciário.
Assim, observa-se que a ampliação da equipe mínima para a Saúde da Família viria contribuir
fortemente para a atenção as situações que envolvem violências. Atualmente, tem-se uma
gama de 14 áreas profissionais da saúde reconhecidas pelo Conselho Nacional de Saúde,
algumas delas com um histórico de formação e atuação nas questões que envolvem a
violência que contribuiriam para uma abordagem na perspectiva da totalidade e menos
fragmentada.
89
Apesar da inserção de outros profissionais como ginecologistas, pediatras e psicólogas,
na função de áreas de referência, observou-se com a pesquisa e com o conhecimento empírico
sobre o funcionamento do setor, que estes profissionais não dão conta de atender a demanda
colocada, principalmente porque não fazem parte das equipes de saúde da família e sim que
devem atender toda a Regional de Saúde a qual pertence, o que significa, por exemplo, que
um profissional de referencia da Regional Norte deve atender uma população de cerca de 10
bairros onde estão localizadas as UBSs dessa Regional. Dessa forma, a organização dos
serviços não permite a efetivação da referência para todas as UBSs. Nas falas pode-se
observar que as UBSs que utilizam deste meio de atendimento são justamente aquelas onde o
profissional de referência fica alocado (o profissional de referência é alocado em uma das
UBSs pertencentes a Regional a qual trabalha).
Também o número insuficiente de profissionais nas UBSs interfere na qualidade dos
serviços prestados. Como visto na pesquisa todas as UBS entrevistadas possuíam número
maior de população atendida em relação ao número de equipes e de profissionais alocados na
UBS. Este é um fator que sobrecarrega os serviços e capacidade de atendimento dos
profissionais que, para vencer a demanda, muitas vezes não dão as usuárias a atenção devida.
Porém, em nenhuma das entrevistas os sujeitos colocaram esta questão como um problema
em relação a pouca visibilidade da violência contra a mulher na UBS.
Diante disso, é necessário que os serviços contem com um espaço de expressão das
demandas das mulheres, que não se resuma à aproximações biomédicas ou busca de
patologias, outros profissionais que atuam na saúde, como os de psicologia, serviço social e
enfermagem têm experiência com a escuta de demandas que não são exclusivamente físicas
(SCHRAIBER e D’OLIVEIRA, 1999).
Outra questão relevante em relação à organização dos serviços é a persistência da
tendência a setorização. Como exemplo, tem-se o Programa de Combate a Violência contra as
Mulheres e a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher que, apesar de
apresentarem pontos convergentes em relação às diretrizes voltadas à integralidade e a
intersetorialidade, observa que cada uma destas políticas acaba ficando no setor que foi
desenvolvida. Assim, as “conversas” entre os setores que as desenvolvem não são suficientes
para garantir a promoção da intersetorialidade das ações, mesmo sendo destinadas para os
90
mesmos sujeitos e tendo objetivos e diretrizes muito próximas. Vale ressaltar que no
município pesquisado o Fluxograma de Atendimento à Vítimas de Violência Sexual, mesmo
estando alocado no setor saúde, representa um grande avanço das políticas públicas à medida
que se apresenta articulado aos demais setores sociais como educação, assistência social,
dentre outros, formando uma Rede de Atendimento.
Formação e/ou qualificação dos trabalhadores em saúde
A mudança de práticas em saúde não está somente no nível de formulação das políticas,
no nível macro, mas também no nível da micro-política, do processo de trabalho e da visão
dos trabalhadores de saúde em relação as suas práticas. De acordo com Cecílio (2001), as
macro-políticas tecem o terreno sócio-histórico em que o trabalho profissional é exercido,
limites e possibilidades são colocados e estão além da vontade do profissional, enquanto
sujeito individual. Já a micro-política está no campo das respostas ético-políticas e técnicas
apoiadas em fundamentos teóricos e práticos dos profissionais que atuam na saúde. Dessa
forma, o nível local de atenção à saúde e os profissionais nele inseridos dispõe de certa
autonomia e governabilidade para o desempenho de suas ações. Logicamente que se deve
levar em conta que, apesar do caráter político, as ações dos profissionais não decorrem apenas
das intenções pessoais dos trabalhadores de saúde, mas também dos condicionantes históricos
e sociais do contexto em que se inserem e atuam. Este contexto estaria envolvido por diversos
fatores como: constituição da política de saúde, organização do serviço local,
formação/educação permanente dos profissionais, equipe adequada, pré-disposição dos
gestores e trabalhadores, condições de trabalho, dentre outros.
A formação de recursos humanos para a Saúde pressupõe, como ponto de partida, a
discussão em torno do Modelo de atenção à saúde que se pretende desenvolver e, nesse
contexto, pensar nas competências e “habilidades” profissionais necessárias para que estes
sejam aportes fundamentais na concretização de tal modelo. Como descrito no Capitulo 1 do
trabalho, a ESF traça uma lista de ações que devem ser desenvolvidas pelos profissionais que
atuam neste âmbito, no entanto, será que a formação acadêmica dos profissionais da equipe
dá conta das exigências colocadas pela Estratégia? E as demais áreas da saúde (ao todo são
catorze) teriam a contribuir? A universidade é o fundamento da formação profissional e, no
caso da saúde, a inclusão de temas como a violência nos currículos dos cursos de graduação -
91
para além de dados epidemiológicos e de abordagens das seqüelas físicas por ela ocasionadas
- é fundamental para a mudança do modo de pensar e fazer a saúde coletiva brasileira.
Em relação aos sujeitos da pesquisa, os 05 entrevistados médicos relataram ter realizado
formação na área de Família e Comunidade, a qual se coloca como uma vertente da Saúde
Coletiva. No entanto, isso não significa que estes estejam totalmente sensibilizados para
temáticas apreendidas pela Saúde Coletiva como, por exemplo, a violência contra a mulher.
Assim, mesmo com formação no paradigma do ideário do Movimento Sanitário que
pressupõe conhecer os princípios e diretrizes básicas de atenção à saúde, o tema da violência
contra a mulher não lhes chama a atenção necessária para o seu reconhecimento a partir de
princípios como a integralidade e a eqüidade. Para Carvalho (2005) uma das maiores
dificuldades da Reforma Sanitária brasileira tem sido a fragilidade no enfrentamento da
questão da mudança do processo de trabalho e da participação dos trabalhadores de saúde na
mudança setorial. Na mesma direção, Merhy (1997) sugere que a mudança do modo de
produzir saúde, na perspectiva da Reforma Sanitária
é uma tarefa coletiva dos trabalhadores de saúde, no sentido de modificar o
cotidiano do seu modo de operar o trabalho no interior dos serviços de saúde, ou
os enormes esforços de reformas macro-estruturais e organizacionais, nas quais
nos temos metido, não servirão para quase nada (MERHY, 1997, p. 72).
Assim, ao compreender a saúde a partir de seu conceito mais amplo e das diretrizes e
fundamentos essenciais impulsionados pelo Movimento Sanitário, há também o
reconhecimento da importância da articulação de diversas áreas de conhecimento para pensar
e atuar no campo da saúde. No tocante as situações que envolvem a violência, algumas áreas
da saúde em seu processo de formação profissional mantêm um maior contato com a temática
como serviço social, enfermagem e psicologia. Dessa forma, a inserção destas áreas
profissionais nos serviços de atenção básica – a partir da organização dos serviços - poderia
contribuir tanto no diálogo do serviço sobre a temática da violência contra a mulher como na
atenção as necessidades e demandas das usuárias.
92
Indefinição do papel da saúde na atenção as mulheres em situação de violência
Outro fator que merece destaque é o “papel” da saúde em relação a violência contra a
mulher. Tendo em vista os estudos realizados sobre a temática, tanto teóricos quanto
empíricos, observa-se que a indefinição do papel da saúde no trato da questão está
intrinsecamente relacionado a invisibilidade da temática nos serviços de saúde. Como o tema
não é visto, este não é discutido pelos gestores e profissionais como algo presente no
cotidiano e, dessa forma, também não é considerado como uma questão que mereça ações no
campo da formação profissional, ou ainda, para possíveis práticas profissionais voltadas para
o campo da prevenção da violência. Como sugere Minayo (1994b, p.14), o papel preventivo
da violência no campo da saúde coletiva “exige a ultrapassagem de simplificações e a
abertura para integrar esforços e pontos de vista de várias disciplinas, setores, organizações e
comunidades”. Ou seja, a prevenção da violência não se dará somente pelo setor saúde, mas
sim juntamente com outros setores sociais considerando que a prevenção deve atuar, em
primeiro lugar, na sensibilização e na transformação da consciência social.
E quanto aos encaminhamentos apreendidos na pesquisa, ao considerar que existem
situações que não podem ser tratadas no setor saúde ou somente neste, os profissionais
encaminham as mulheres para a rede sócio-assistencial do município o que pode acarretar em
ações meramente mecânicas se não houver o acompanhamento deste encaminhamento pelo
profissional, sendo que estes encaminhamentos realizados sem a responsabilização do
profissional que encaminhou e do profissional que acolheu não garantem a integralidade da
atenção proposta pelo SUS como um princípio básico, e reafirmado na Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde da Mulher. O campo da saúde não se limitaria a realização de
encaminhamentos ao setor policial, mas sim teria uma função específica onde poderia acolher
aqueles casos, tão presentes no cotidiano das mulheres que, por diversos motivos, não
necessariamente pretendem resolver o problema na política ou no judiciário. O que faz
recolocar questões sobre o papel da saúde, da equipe como um todo ou de algumas áreas
profissionais com maior contato com a temática, as quais não podem ser respondidas com o
presente trabalho.
93
Perspectiva das políticas públicas na atenção às mulheres em situação de violência
As orientações gerais, sejam em termos de acordos assinados ou de objetivos colocados
nos planos governamentais que envolvem questões de gênero e questões específicas para as
mulheres, pouco refletem nas ações de programas, projetos e principalmente nos serviços
assistenciais. Quando aparecem, tais categorias são pouco discutidas conceitualmente e,
menos ainda, são transformadas em ações assistenciais, além do mais, faltam indicadores de
avaliação e monitoramento dessas ações. Na saúde, por exemplo, a violência contra a mulher
não é um “marcador” ou indicador de avaliação, nem de atenção básica, nem de outros níveis
de atenção, o que se tem são dados dispersos das Delegacias de Mulher, das mulheres que
utilizam os Protocolos de Violência Sexual e que utilizam o CEVIC. Como visto, a
notificação compulsória para os serviços de saúde não é uma realidade presente para os
profissionais que estão na linha de frente da atenção. Não há o conhecimento de que existe a
normatização que obriga a notificação, e tão pouco, o conhecimento necessário para tal
procedimento. Não se pretende aqui delegar que o acesso a estas informações seria de
responsabilidade única dos profissionais, mas sim trazer algumas observações em relação as
disparidades entre o que é preconizado pela política pública e o que é realizado nas práticas
cotidianas das UBSs, visto que esse caminho se apresenta como um percurso difícil, que não
se concretiza, ou se realiza muito timidamente. Tem-se a impressão que os acordos assumidos
internacionalmente apenas respingam teórica ou discursivamente nas políticas públicas, mas
pouco reflete no espaço da prática, da atenção dos serviços, como mostram os dados da
pesquisa.
Nesse sentido, a contribuição de Bandeira (2005) vem enfatizar que a perspectiva de
gênero nas políticas ainda não ressoou no plano governamental, pois se deve considerar que
quando a perspectiva de gênero é adotada as políticas trazem impactos diferenciados em
homens e mulheres. Ao levar tal afirmação para o campo da violência contra as mulheres que,
na leitura da realidade tem-se a violência nas relações conjugais como predominante, nota-se
que o homem não é visto como sujeito possível de atenção, a não ser a punição quando está
na posição de agressor e a mulher o denuncia. Especificamente na saúde, como visto no
Capítulo 2 do trabalho e reiterado pela pesquisa empírica, pouco se trabalha na perspectiva de
gênero, as ações priorizadas são caracterizadas como específicas para as mulheres. Apesar
94
dos avanços que se deram a partir dos anos de 1980 em nível de políticas públicas para as
mulheres, observa-se que no município de Florianópolis ainda há o predomínio de ações
voltadas as dimensões materno-infantil e saúde reprodutiva da mulher com o enfoque no pré-
natal e nos exames preventivos de câncer de colo de útero e mama. A própria política de
saúde fragmenta quando, mesmo em se tratando de saúde da família, segmenta ou direciona a
atenção para os ciclos de vida ou enfermidades, exemplo disto são os programas de saúde da
criança, saúde do adolescente, saúde do trabalhador, saúde da mulher, do idoso, hipertensão e
diabetes, dentre outros.
A perspectiva de gênero nas políticas em geral e também na política de saúde não nega e
nem substitui as especificidades das mulheres, mas se coloca como uma perspectiva
necessária pelas diferenças que perpassam a constituição dos gêneros. Na saúde, a perspectiva
de gênero pressupõe o princípio básico da eqüidade em saúde que estaria contemplado se
existissem ações para mulheres e para homens tendo em vista suas assimetrias e igualdades.
Não há políticas para homens, a não ser ações bem especificas como, por exemplo, exame
preventivo de para câncer da próstata. No tocante a violência conjugal, a abordagem do
homem enquanto sujeito de ações poderia contribuir, principalmente, no campo da prevenção
das violências, campo onde a saúde coletiva atua.
95
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenvolvimento deste estudo possibilitou, além da sistematização do conhecimento
relacionado ao objeto proposto, (re) conhecer a necessidade de discussões contínuas acerca da
temática da violência na agenda da saúde, especificamente da violência contra a mulher.
Organizar os conhecimentos até então produzidos, sejam as teorizações, as normatizações,
acordos ou legistações, e a tentativa de relacioná-los com o cotidiano da atenção às mulheres em
situação de violência nos serviços básicos de saúde de Florianópolis /SC, permitiu o encontro
com um cenário historicamente cheio de debates, críticas e contradições e, ao mesmo tempo,
pouco visível.
Nesse cenário, a partir dos fins da década de 1970 emergem esforços de organismos
internacionais e até organizações profissionais e acadêmicas para o desenvolvimento de estudos e
pesquisas com vistas a promover a sensibilização do setor saúde para atuar junto às mulheres que
vivenciam situações diversas de violência, buscando transformar as necessidades dessas mulheres
em demandas para a Saúde. Nesse sentido, o presente trabalho se insere nesse movimento de
busca pela visibilidade da temática da violência no setor Saúde e melhoria das práticas de atenção
integral e equânime à saúde da mulher. Ainda, o compartilhamento dos resultados obtidos a partir
da pesquisa desenvolvida junto aos serviços básicos de saúde de Florianópolis/SC vem contribuir
para a reflexão sobre as práticas em saúde no cotidiano de Atenção Básica à Saúde orientada pela
ESF. Para tanto, tomou-se como base de investigação a relação entre o atual modelo de atenção à
saúde e as ações destinadas às mulheres em situação de violência.
No que se refere ao modelo brasileiro de Saúde Coletiva, estudos como o de Carvalho
(2005) apresenta que a essência teórica deste modelo remete para duas correntes contemporâneas
que não se contrapõem, mas aprofundam determinados aspectos que lhes diferenciam: a
Vigilância da Saúde e a Em Defesa da Vida. A corrente da Vigilância da Saúde, liderada por
Eugênio Vilaça Mendes, se desenvolve a partir dos fins de 1980 trazendo como foco em seus
debates as políticas e práticas sanitárias para a década de 1990. De acordo com Mendes (1996,
p.243), a Vigilância em Saúde tem como norte a construção social de uma nova prática sanitária
que “se institui como unidade de inteligência para avaliar e monitorar a situação de saúde
segundo condições de vida de diferentes grupos sociais”, além disso, envolve operações não-
médicas sobre os determinantes dos problemas de saúde. Ao considerar que a saúde é produto de
96
um processo social resultante de fatores econômicos, políticos, ideológicos e cognitivos, sugere-
se que a vigilância da saúde deva ser apreendida por um olhar interdisciplinar, e que as práticas
sociais em saúde devam dar-se na ordem da intersetorialidade, o que também remete para a
mudança na organização tecnológica do trabalho em saúde. As estratégias de intervenção da
vigilância em saúde resultam da combinação de três grandes tipos de ações: a promoção da
saúde, a prevenção das enfermidades e acidentes e a atenção curativa sendo necessário para sua
construção estar alicerçada em três pilares básicos: o território, os problemas de saúde e a
intersetorialidade. Esta última tem como função essencial fazer com que os pilares se encontrem,
ou seja, tomar problemas concretos, de gentes concretas, em territórios concretos e não
distanciados dos problemas que emergem na concretude dos territórios (Mendes, 1996). No
entanto, apesar de trazer grandes contribuições para o SUS, para Carvalho (2005) esta corrente
apresenta certa limitação acerca das questões mais subjetivas que envolvem a saúde e sua
tendência é hiper-dimensionar o papel das macro-determinações sociais e das ciências – através
do saber epidemiológico – nas práticas em saúde.
A corrente em Defesa da Vida também surge nos fins dos anos de 1980 a partir de um
grupo de sanitaristas vinculados ao Departamento de Medicina Preventiva e Social da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e de trabalhadores da Secretaria Municipal de
Saúde de Campinas. A partir do desenvolvimento dos estudos, em meados da década de 1990, as
linhas de investigação foram se diversificando, porém, mantendo como uma das características
marcantes a estreita vinculação entre a teoria e a prática. As principais linhas de investigação
desta corrente se concentram no campo da gestão e processo de trabalho em saúde, liderado por
Emerson Merhy; da gestão, sujeitos e modelos de atenção por Gastão Wagner; e poder,
organização e gestão hospitalar delineada por Luis Cecílio. Essa corrente, a partir do inicio dos
anos 2000, ganha papel central nas estratégias do MS como, por exemplo, na Política Nacional de
Humanização e no projeto de Educação Permanente da Secretaria de Gestão e Trabalho em
Saúde. Diante disso coloca como principais propósitos a criação de mecanismos para a
incorporação de novos sujeitos na luta pelas mudanças setoriais; qualificação da gestão do setor
da saúde; e promoção de mudanças visando intervir no processo de trabalho em saúde
(CARVALHO, 2005). No que se refere ao processo saúde doença, o mesmo autor analisa que a
corrente em Defesa da Vida trabalha com um modelo social de determinação do processo
saúde/doença em que são enfatizados aspectos ideológicos, culturais e psicológicos da vida em
97
sociedade valorizando-se, aí, temáticas como a produção do sujeito e a emancipação social. [...]
não desconhece a importância de saberes vinculados às Ciências Naturais [...] criticando, porém,
a reivindicação de verdade (“cientificidade”) que permeia o discurso destas disciplinas (Campos,
1992; 1999 apud Carvalho, 2005, p.124).
A partir da análise destas duas correntes da Saúde Coletiva brasileira observa-se que
ambas apresentam dimensões que permitem o debate da atenção a mulheres em situação de
violência no âmbito da saúde. Ao abordar as dimensões relacionadas ao entendimento da saúde
enquanto produto do processo social, a primeira corrente sugere que a violência é uma das
expressões desse processo e quando chega aos serviços de saúde se torna uma demanda do setor
que deve ser apreendida por um olhar interdisciplinar e delineadas pela ordem da
intersetorialidade. A segunda corrente, ao priorizar o trabalho em saúde, sugere investir na
formação, na educação permanente dos profissionais de saúde, tendo em vista que a mudança de
modelo também está no espaço da micro-política.
Ao refletir sobre a relação de mudança do modelo de pensar e fazer saúde no Brasil,
principalmente com as conquistas do Movimento Sanitário, e o impacto destas na atenção à saúde
da população, observa-se que, de forma paradoxal, enquanto aparece um discurso de ampliação
conceitual do que é a saúde - explicitada não como um conceito abstrato, mas definida
historicamente pela sociedade num dado momento de seu desenvolvimento tem-se a impressão
de que na essência a realidade das práticas em saúde não conseguiu acompanhar, na mesma
intensidade, as diretrizes colocadas pelo atual modelo de Saúde Coletiva. Para Minayo e Souza
(1998) o modelo de Saúde Coletiva buscou compreender a saúde como uma questão complexa
que se fundamenta em torno de determinações sociais e condicionantes culturais, no entanto,
nenhum outro tema provocou “tantas reticências para sua inclusão como o impacto da violência
no setor”. Para as autoras um dos motivos viria do campo específico da saúde em que se
perpetua o monopólio do modelo biomédico, em que a racionalidade busca incorporar o social
apenas como uma das causas ou variável “ambiental” do surgimento das doenças representando,
ainda, a freqüente fragmentação e desarticulação entre o conhecimento científico e a intervenção
social. Dessa forma, a inclusão da violência no setor limitou-se, inicialmente, ao Código
Internacional de Doenças (CID) como “causas externas” de mortalidades. Isso fez com que, até
98
pouco tempo atrás, o setor saúde só tenha olhado para a violência como mais um evento a ser
computado.
Assim, para discutir a relação entre o modelo de saúde e a atenção às mulheres em
situação de violência no âmbito desse setor, com ênfase no nível de atenção básica, o presente
estudo também investigou o processo de operacionalização da atenção às mulheres em situação
de violência nas UBSs do município de Florianópolis. E, a partir desta operacionalização,
analisou como a temática da violência contra a mulher aparece no cotidiano das UBSs e como os
profissionais inseridos neste âmbito estão preparados para trabalhar com tal demanda. A
investigação da temática nos serviços de atenção básica do referido município possibilitou
apreender que, apesar da violência contra a mulher ser considerada por organismos
representativos do setor como uma questão de saúde, a realidade destes serviços aponta para
dificuldades do setor em relação à atenção as mulheres em situação de violência enquanto
demanda possível de ser apreendida na saúde. Os apontamentos da pesquisa realizada junto as
UBSs de Florianópolis vêm confirmar o que o MS problematiza sobre a dificuldade dos serviços
básicos de saúde – em todo o país - em intervir em situações cotidianas que envolvem
manifestações de violência contra mulher. A invisibilidade do tema nas UBSs pesquisadas, bem
como entre os profissionais nelas inseridos é outra questão bastante relevante e que vem coincidir
com estudo realizado por Schraiber et al (2002) junto a serviços básicos de saúde da cidade de
São Paulo/SP. Também, o Plano Estadual de Saúde do Estado de Santa Catarina de 2006
identifica que a invisibilidade da temática é uma realidade que se coloca como um problema
prioritário de todos os municípios do Estado, principalmente pela precariedade na estrutura e
organização assistencial e inexistência de políticas e ações relacionadas à abordagem da violência
contra a mulher (Santa Catarina, 2007).
No tocante a qualificação profissional, a partir do presente estudo observa-se que os
profissionais inseridos na atenção básica à saúde do município de Florianópolis/ SC não se
sentem qualificados para identificar a violência contra a mulher e abordá-la enquanto questão de
saúde. Apesar das políticas públicas e instrumentos normativos existentes destinados ao
enfrentamento da problemática, nota-se que estes não são utilizados enquanto norteadores das
práticas sendo que cada profissional aborda as situações de acordo com suas possibilidades e, na
maioria das vezes, com pouca qualificação profissional para o atendimento. Essa falta de
99
qualificação dificulta o atendimento na perspectiva da integralidade como categoria norteadora da
atual política de saúde e, em particular, da política de atenção à saúde mulher. Também, devem-
se levantar questionamentos a respeito dos instrumentos, como normatizações, legislações e
cartilhas, no sentido de que estes podem não dar conta da necessidade de instrumentalização dos
profissionais, pois não aprofundam questões relativas ao trabalho em saúde, ou seja, não sugerem
como deve ser a abordagem, como deve ser orientado o procedimento e, quando sugerem, fica
apenas no nível da identificação da violência, e no máximo sugere que deve ser encaminhado ao
setor policial ou hospitalar quando a violência se apresenta de forma explicitada.
A indefinição do papel do setor saúde no trato da violência contra mulher, principalmente
do nível básico de saúde, é uma questão ainda pouco pensada. Sabe-se que a saúde tem um papel
fundamental, porém, os apontamentos em relação a “qual é o papel” ainda são insuficientes para
arriscar qualquer definição. Nesse sentido, remete-se para grandes questionamentos não sendo
possível dar respostas com este trabalho como: quais as necessidades de saúde que emergem das
situações de violência contra a mulher? Quais as possibilidades de atendimentos a essas
necessidades no nível de atenção básica? E nos outros níveis de atenção? A equipe preconizada
pelo MS para a atenção básica dá conta da demanda? E a perspectiva de gênero? Ainda, de
acordo com as contribuições de Minayo (1994b, p.15), dada a longa experiência da Saúde
brasileira na intervenção comunitária, a Prevenção das violências é um âmbito onde o setor pode
lograr êxito, caso se articule ao serviço social, serviços de orientação familiar e também aos
profissionais de saúde mental. Além do mais, para a mesma autora “a complexidade real da
experiência e do fenômeno da violência exige a ultrapassagem de simplificações e a abertura para
integrar esforços e pontos de vista de varias disciplinas, setores, organizações e comunidades”.
Dessa forma, a articulação das políticas de saúde com outras políticas, a intersetorialidade e a
interdisciplinaridade seriam base para a integralidade, tanto dos serviços quanto da atenção
buscando trabalhar com os protocolos na perspectiva da integralidade e da eqüidade em saúde,
não só no setor saúde, mas também em outros setores como assistência social, educação,
segurança pública, dentre outras. Porém, qualquer um desses esforços só tem sentido se
refletirem no terreno das práticas em saúde.
Para tanto seria de fundamental contribuição o estabelecimento de instâncias que orientem
e definam melhor as ações do setor em relação as necessidades das mulheres e dos homens.
100
Também a introdução de temáticas sobre questões de gênero, sendo uma delas a violência, no
processo de educação permanente dos profissionais de saúde, com ênfase na sensibilização destes
para que possam compreendê-la, cuidá-la e prevení-la, assim como a implantação de
“protocolos” de atenção viáveis traduzidos em métodos, técnicas de atendimento e organização
do serviço centrados nas necessidades das usuárias. Não basta apenas emitir cartilhas e normas
para que os profissionais da atenção básica saibam como identificar e encaminhar para outros
setores situações que envolvem a violência, mas sim, demarcar quais as possibilidades de atuação
da saúde e quais as possibilidades de desenvolvimento de ações intersetoriais entre os níveis de
atenção à saúde e entre a saúde e os demais setores, como educação, assistencial social,
segurança pública, dentre outros. A violência é um tema delicado que pode mexer com as
próprias violências do profissional, enquanto ser humano, daí é um tema que merece atenção,
necessita de outras formas pedagógicas de transmitir conhecimento para o profissional para além
daquela transmissão mecânica trazida pelas cartilhas e legislações que, muitas vezes, ficam na
gaveta e não são postas em prática.
A partir da demanda colocada para os serviços básicos de saúde, compreende-se, de
acordo com os apontamentos de Schraiber e D’Oliveira (1999), que o caminho para a discussão
da função da atenção básica pode partir da identificação da violência por este nível de atenção,
principalmente quando os casos ainda não apresentam incidentes mais graves; o acolhimento
como espaço de expressão para as angústias e questões que não se resumem à busca e cura de
patologias; e o encaminhamento responsável focado na orientação e acompanhamento do
percurso a ser seguido, principalmente, respeitando a opinião quanto à recusa de seguir
determinada abordagem. Para isso, requer-se a sensibilização dos profissionais e dos gestores da
política de saúde, na lógica da educação permanente, fazer com que as diretrizes e apontamentos
da política pública de saúde, bem como suas normatizações, sejam efetivados enquanto
instrumentos norteadores da prática cotidiana dos profissionais na atenção à violência contra a
mulher. Por fim, aponta-se a urgente necessidade dos serviços existentes criarem e ampliarem
espaços para a reflexão das práticas e construção de um trabalho integrado e intersetorial nas
diversas esferas do poder público – Municipal, Estadual e Federal - potencializando a
possibilidade de alinhavar uma política de ação que ganhe força na agenda nacional e que venha
a alocar a violência contra a mulher a partir da perspectiva de gênero como um tema transversal
às políticas sociais.
101
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SCHRAIBER, Lilia Blima. Palestra proferida: violência contra a mulher e saúde: a
perspectiva de gênero e a invisibilidade para a pesquisa e os serviços de saúde. Florianópolis.
Centro de Ciências da Saúde/UFSC, 2007.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, vl.20, n.
2, p.71-99. Porto Alegre: Pannonica, 1995.
SIMIONATTO, Ivete. Mercosul e Reforma do Estado – implicações nas políticas sociais
públicas. Relatório de Pesquisa. Universidade Federal de Santa Catarina/Departamento de
Serviço Social. Florianópolis, 2001, mimeo.
SOARES, Luiz Eduardo, Bárbara Musumeci; CARNEIRO, Leandro Piquet. Violência contra a
mulher: as DEAMs e os pactos domésticos. Violência e Política no Rio de Janeiro. Luiz
Eduardo Soares (org). Rio de Janeiro : Reume Dumaré: ISER, 1996.
TEIXEIRA, Andréa Maria de Paula. Reforma e contra-reforma da Previdência Social no Brasil
hoje. Revista Kátálysis, nº 5. Florianópolis: Editora da UFSC, 2001.
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1999.
107
TRIVINUS, Augusto N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: pesquisa qualitativa
em educação. São Paulo: Atlas, 1987.
VASCONCELOS, A. M. Serviço Social e interdisciplinaridade: o exemplo da saúde mental.
Revista Serviço Social e Sociedade, nº 54. São Paulo: Cortez, 1997.
VILLELA, W., MONTEIRO, S. Atenção à Saúde das Mulheres: historicizando conceitos e
práticas. VILLELA, W., MONTEIRO (Org.), S. Gênero e Saúde: Programa Saúde da Família
em questão. Rio de Janeiro: ABRASCO-Associação Brasileira de pós-graduação em Saúde
Coletiva, 2005.
USP. Agência USP. Disponível em www.usp.br/agen/ . Acessado em 05/03/2006.
Sites consultados:
Ipas Brasil: http://www.ipas.org.br/
Ministério da Saúde: www.saude.gov.br
Organização Panamericana de Saúde: www.opas.org.br .
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres:
www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sepm/
108
ANEXO
ROTEIRO DE ENTREVISTA
1 – Identificação:
Profissão:
Tempo de coordenação:
Tempo de atuação na Atenção Básica à Saúde:
2 – Estrutura e organização da ULS:
População adscrita:
Número e composição das equipes:
3 – Questões norteadoras:
1 – A violência contra a mulher faz parte do cotidiano da ULS?
2- Onde as situações de violência contra a mulher são identificadas na ULS?
3 - Quais os profissionais que acolhem a demanda?
4 – Quais os tipos de violência contra a mulher que aparecem com mais freqüência na ULS?
5 - Nas situações em que são identificadas situações de violência contra a mulher, qual o
procedimento adotado pela ULS?
6 – Estas situações são discutidas pela equipe em algum momento?
7 – Quais as informações que os profissionais desta ULS dispõem para o atendimento destas
situações?
8 – As equipes de PSF desta ULS receberam algum tipo de capacitação/treinamento/orientação
para o trabalho com tais situações.
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