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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA
ATAFONA: FORMAS DE SOCIABILIDADE EM UM BALNEÁRIO NA REGIÃO
NORTE-FLUMINENSE
JULIANA BLASI CUNHA
NITERÓI
2007
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II
ATAFONA: FORMAS DE SOCIABILIDADE EM UM BALNEÁRIO NA REGIÃO
NORTE-FLUMINENSE
JULIANA BLASI CUNHA
Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello
NITERÓI
2007
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-
graduação em
Antropologia
, do Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia
ICFH, da Universidade Federal
Fluminense
UFF, como
requisito parcial para a
obtenção do Grau de Mestre em
Antropologia.
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III
ATAFONA: FORMAS DE SOCIABILIDADE EM UM BALNEÁRIO NA REGIÃO
NORTE-FLUMINENSE
JULIANA BLASI CUNHA
Orientador:
Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello
Dissertação submetida ao Programa de Pós-graduação em Antropologia do Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense, como requisito
parcial para a obtenção do Grau de Mestre em Antropologia.
Dissertação de mestrado aprovada por:
________________________________________________
Prof. Marco Antonio da Silva Mello – Orientador
(UFF e UFRJ)
________________________________________________
Prof.a Neiva Vieira da Cunha
(UERJ e UCAM)
________________________________________________
Prof.a Sylvia Schiavo
(UFF)
IV
AGRADECIMENTOS
Inicio os agradecimentos saudando àqueles que, de alguma forma, estiveram
presentes em todas as fases dessa pesquisa: meu pai, minha mãe, minha avó e irmãs.
Agradeço a todos que, por mais de uma vez, me abriram as portas de suas casas
dispostos a contribuir com essa pesquisa. Dentre eles estão Diva Goulart, Rosely Sanz
Blasi, Nídia Lysandro Albernaz, Dona Zélia e "seo" Delso Araújo, Lia Mirian Aquino
Cruz, Marinela e Walter Zulchner, César Caldas, Regina Cordeiro Povoa, Jair Vieira,
Zé Carlos Pereira, Hidemburgo Boeschestein e Silvia Salgado.
Muitas são as pessoas com quem convivi no Mercado de Peixes de Atafona e
seus arredores. Tal convivência foi de fundamental importância para a construção do
conhecimento de grande parte dessa etnografia. Minha sincera gratidão a Miri-Carla,
seu Benedito, D. Pedrina, Márcia, Paulinho Cravo e Zéso.
Agradeço a paciência de todas as pessoas envolvidas nos preparativos da Festa
da Penha de 2006 com quem conversei, convivi e muito aprendi, em especial: Gugu,
Gustavo e Alex. Agradeço também o interesse e consideração demonstrados por Sônia
Ferreira, atual diretora da Irmandade de Nossa Senhora da Penha. Por vezes, em
momentos de desânimo no processo de textualização, foi lembrando do tempo e atenção
que havia roubado dessas pessoas que me enchi de coragem para continuar.
Aos funcionários da prefeitura de São João da Barra, do Arquivo Municipal de
Campos e do Palácio da Cultura de Campos. Agradeço ainda ao professor Gilberto
Pessanha pelas informações e material cedido.
A amizade e apoio de Priscila Zulchner e Rodrigo Bruno, durante todo o período
em que permaneci em Atafona, foi de fundamental importância para a realização do
trabalho de campo dessa pesquisa. Por vezes, foi com eles que compartilhei
inquietações e personagens da pesquisa que não deixavam de figurar em meus
pensamentos nos momentos de descanso do trabalho de campo.
Sem as brilhantes idéias do professor Marco Antônio da Silva Mello, meu
orientador, essa etnografia em muito perderia. Agradeço por me iniciar no “universo
acadêmico”, mostrando-me os caminhos e, sobretudo colocando nele algumas pedras
que, não sem algum sofrimento, contribuíram para meu amadurecimento.
Agradeço à atenta leitura dos professores Arno Vogel e Neiva Vieira da Cunha,
não apenas no momento da qualificação, mas também nos congressos onde apresentei
trabalhos. Às professoras Simoni Lahud e Delma Pessanha que ao longo do curso de
métodos fizeram valiosas sugestões ao que, então, era apenas um projeto de pesquisa.
Aos professores Roberto Kant de Lima e Lygia Segala que através de suas aulas me
ajudaram a pensar meu material empírico. À professora Sylvia Schiavo pela sua
excelente argüição no momento da defesa dessa dissertação.
Agradeço à CAPES pela bolsa de estudos e pela possibilidade de me dedicar
exclusivamente a esta pesquisa.
Aos colegas Flavio Silveira, José Colaço, Felipe Berocan e ainda aos meus
colegas de turma com os quais tive a oportunidade de trocar experiências que foram
valiosas para o desenvolvimento da pesquisa. Aos grandes amigos Mirian Alves,
Luciana Alvear e ao casal Sra. e Sr. Luis Marola que me ajudaram em um difícil
momento desse percurso e ainda na etapa final com mapas, fotografias e configurações
dessa dissertação.
VI
“Estudar as instituições, costumes e códigos,
ou estudar o comportamento e mentalidade do homem,
sem atingir os desejos e sentimentos subjetivos pelos
quais ele vive, e sem o intuito de compreender o que é,
para ele, a essência de sua felicidade, é, em minha
opinião, perder a maior recompensa que se
possa esperar do estudo do homem.
Malinowski
VII
SUMÁRIO
CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO E ALGUMAS DISCUSSÕES METOLÓGICAS
I. Introdução ......................................................................................................................1
II. Sobre o trabalho de campo: as circunstâncias em que a pesquisa foi conduzida ........6
II.1 - O despertar de uma idéia e a escolha de um orientador .............................. 6
II.2 - Conhecendo uma “outra” Atafona .............................................................10
II.3 - “O encontro-consigo-mesmo-sendo-outro”................................................12
II.4 - O processo de incorporação do papel de pesquisadora ..............................14
II.5 - Morando no campo: o Mercado de Peixes e os “imponderáveis da vida
real”.....................................................................................................................18
II.6 - Os hóspedes indesejados ...........................................................................22
II.7 -Vestindo máscaras sociais para melhor trabalhar uma categoria ...............24
II. 8 - Da necessidade de apresentação nas entrevistas .......................................27
CAPÍTULO II - FESTA DA PENHA: UMA ANÁLISE SOBRE A FESTA DA
PADROEIRA DA CIDADE
I. A saída da procissão ..................................................................................................33
II. Breve contextualização histórica dos três segmentos .............................................. 36
III. A estrutura da Festa da Penha ................................................................................44
III.1 - O Tríduo ..................................................................................................47
III.2 - O “dia dela”..............................................................................................51
IV. A Festa da Penha de 2005: a construção de um modelo de interpretação da
organização social de Atafona .......................................................................................58
V. A Festa da Penha de 2006: novos dados e a crise do modelo interpretativo ............64
CAPÍTULO III - FORMAS DE SOCIABILIDADE DAS “FAMÍLIAS
TRADICIONAIS” DE CAMPOS EM ATAFONA
I. A ocupação do balneário e a busca pela vivência do lazer .........................................74
II. As famílias da “sociedade" campista ........................................................................80
VIII
III. Sobre a sociabilidade da “sociedade” campista em Atafona ...................................87
IV. Distância social .......................................................................................................94
V. Ruínas: o “avanço” do mar sobre Atafona e a crise econômica da “sociedade”
campista .......................................................................................................................102
VI. Considerações Finais .............................................................................................112
Referências Bibliográficas .........................................................................................119
Anexos ..........................................................................................................................124
IX
RESUMO
Atafona: formas de sociabilidade em um balneário na região Norte-Fluminense
Localizado ao norte do Estado do Rio de Janeiro, Atafona é um balneário
freqüentado por famílias de Campos dos Goytacases e São João da Barra. No primeiro
final de semana após a Páscoa, realiza-se no balneário a Festa da Penha, uma celebração
em homenagem à padroeira de Atafona. Tomando a Festa da Penha como um lócus
especial de análise, pretende-se discutir como os moradores locais, os moradores de São
João da Barra e veranistas de Campos dos Goytacazes se articulam e se representam
nessa ocasião extraordinária da vida social. Através desta “análise situacional”, visa-se a
alcançar a totalidade da dinâmica das relações sociais desse balneário.
Além disso, mais especificamente, busca-se analisar como as formas de
sociabilidade dos veranistas de Campos dos Goytacazes em Atafona conferem status
aos membros do grupo. Durante as últimas duas décadas, Atafona tem passado por um
processo de mudanças referente ao seu estilo de vida e à sua frequentação. Discute-se
este processo levando em consideração, entre outras coisas, a crise social e econômica
que atingiu muitas das famílias de veranistas de Campos e o avanço do mar sobre a
região, que destruiu, até o presente momento, quatorze quarteirões.
ABSTRACT
Atafona: Forms of sociability in a vacation town in the north of
Rio de Janeiro State
Located in the north of Rio de Janeiro State, Atafona is a small coastal vacation
town frequented by traditional families from Campos dos Goytacazes and São João da
Barra. Every year, one week after Easter, its largest religious and popular festival takes
place, Penha´s Festival, a celebration in honour of Nossa Senhora da Penha (Our Lady
of the Bluff), the patroness of Atafona. Taking Penha´s Festival for a special lócus of
analysis, we intend to discuss how local population and vacationers from both São João
da Barra and Campos dos Goytacazes represent themselves and relate to one another on
such an extraordinary occasion of social life. Through this "situational analysis", we aim
to reach some clear understanding of social relationships in the town in their totality.
In addition to that, we analyse how the forms of sociability of the vacationers
from Campos dos Goytacazes in Atafona give members of the group status. Over the
last decades, Atafona has been going through a process of changes regarding its lifestyle
and the kind of visitors it receives. We discuss this process taking into account, among
other things, the social and economic crisis vacationers from Campos dos Goytacazes
are being affected by and the sea level rise in Atafona area, which has destroyed
fourteen blocks so far.
XI
Cunha, Juliana Blasi.
Atafona: formas de sociabilidade em um balneário na região No
rte
Fluminense / Juliana Blasi Cunha – Niterói, 2007.
xi, 124 f.: il.
Dissertação (Mestrado em Antropologia)
Universidade Federal
Fluminense - UFF, Instituto de Pós-Graduação em Antropologia
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia,
PPGA,
2007.
Orientador: Marco Antonio da Silva Mello.
1. Balneário. 2. Formas de Sociabilidade.
3. Análise Ritual. 4. Morfologia Social. 5. Relações de Poder
I. Mello, Marco Antonio da Silva (Orient.).
II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Pós-Graduação
em
Antropologia.
III.
Atafona: formas de sociabilidade em um balneário na região Norte
Fluminense
1
CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO E ALGUMAS DISCUSSÕES
METODOLÓGICAS
I. Introdução
Tomando a Festa da Penha, padroeira de Atafona, como um lócus privilegiado
de análise, pretende-se discutir como se articulam e se representam, nessa ocasião
extraordinária de sua vida social, três distintos segmentos sociais que se destacam na
estrutura organizacional mais ampla do balneário. Localizado na margem direita do
segundo maior delta do país, o do Rio Paraíba do Sul, o balneário de Atafona integra
um dos distritos do município de São João da Barra, região Norte-Fluminense
1
. Tal
município faz divisa ao Norte, com são Francisco do Itabapoana; a Oeste e ao Sul, com
Campos dos Goytacazes; e a Leste, com o Oceano Atlântico.
Não consenso em relação à divisão interna do município de São João da
Barra em distritos que seriam formados por localidades como Grussaí, Cajueiro, u,
Barcelos, Degredo e a própria Atafona. Na página oficial da prefeitura de São João da
Barra na internet
2
, consta que o território está dividido em três distritos: Sede, Barcelos
e Pipeiras. Funcionários da prefeitura e moradores locais, no entanto, se referem
constantemente a determinadas localidades como pertencendo ao quinto ou sexto
distrito. Tal dissenso, muito provavelmente, deve-se a emancipação, em 1996, de 2/3 da
parte norte do município que passou a integrar o Município de São Francisco de
Itabapoana. Nas palavras de um morador “foi o único caso em que o filho nasceu
maior do que o pai”.
No IBGE de Campos, esse impasse em relação à divisão do Município de São
João da Barra em distritos é o argumento apresentado para justificar o fato de possuírem
dados do município em geral e não específicos a cada distrito. Segundo o Censo de
2000, a população total do município de São João da Barra é de 27.578 habitantes e sua
área territorial compreende 431, 9 Km². Alguns funcionários da prefeitura de São João
1
A Mesorregião Norte Fluminense é composta pelos municípios de Campos dos Goytacazes, São
Francisco do Itabapoana, Cardoso Moreira, São João da Barra, São Fidélis, Carapebus, Quissamã
Conceição de Macabu e Macaé.
2
http://www.sjb.rj.gov.br/
2
da Barra falam em uma estimativa de cinco mil habitantes para Atafona, ressaltando, no
entanto, de que esse não é um dado oficial.
A Festa da Penha apresentou-se durante o trabalho de campo como um momento
privilegiado da apreensão etnográfica no qual os elementos da ordem social cotidiana
apareceram articulados e representados. Como todo ritual, a Festa da Penha ressalta,
evidencia, revela e indica ao etnógrafo a estrutura organizacional mais ampla em
questão. Além do etnógrafo é como se também a sociedade precisasse de um modelo de
si mesma e o representasse através de seus ritos e dramas sociais para que se reconheça.
Segundo Leach, a função do rito é “exprimir o estatuto do indivíduo enquanto pessoa
social no sistema estrutural em que se encontra momentaneamente”. (LEACH apud
VOGEL, 1997, p. 39).
A Festa da Penha caracteriza-se, portanto, como uma típica “situação social”
através da qual é possível atingir a totalidade dinâmica das relações sociais, tal como
propõe Max Gluckmam na sua Análise de uma situação social na Zululândia Moderna
e, posteriormente, J.Clyde Mitchell em The Kalela Dance.
3
É através da análise dessa
situação social específica que se buscará discutir as regras e normas que orientam a
interação social
4
entre os moradores de São João da Barra e, sobretudo, os moradores do
lugar e os veranistas de Campos dos Goytacazes.
Em fins do culo XIX e início do XX, pouquíssimos moradores habitavam
Atafona e os que o faziam eram, em sua maioria, pescadores. Nesse período, o lugar
começou aos poucos a ser procurado e freqüentado como espaço de vilegiatura. Alguns
moradores de São João da Barra além de veranear no balneário, passaram a construir
casas de aluguel para as famílias de campistas que, ao longo do século XX, acabaram se
tornando seus mais assíduos “veranistas” e ocupando lugares de destaque na hierarquia
local de Atafona.
3
Esse método, que ficou conhecido como, situational analysis ou como extended-case method, foi o
dispositivo heurístico privilegiado em Manchester (Gluckman, 1961, 1965 e 1967; Mitchel, 1956;
Middleton, 1960; Van Velsen, 1967). “É com Turner, porém, que alcança sua forma mais acabada, tal
como encontramos em Schism and continuity in an african society (1957)” (MELLO&VOGEL, 2004, p.
52).
4
A interação (isto é, a interação face a face) pode ser definida, em linhas gerais, como a influência
recíproca dos indivíduos, sobre as ações uns dos outros, quando em presença física imediata(Goffman,
1989, p. 23).
3
Mapa extraído do Guia Turístico de São João da Barra, janeiro 2006.
Através da Festa da Penha, no segundo capítulo apresentar-se-á o tipo de
relacionamento que se estabelece entre moradores de o João da Barra e, sobretudo,
moradores locais e veranistas de Campos. Com isso, espera-se chegar a aspectos da
estrutura organizacional mais ampla da vida social do lugar. Considera-se aqui a
sociedade não como algo estático, harmônico acabado e cristalizado em instituições,
mas sim como algo que acontece e que está acontecendo. Busca-se construir uma
abordagem que enfatize os aspectos dinâmicos da comunidade dando lugar a conflitos e
tensões sociais A sociedade existe onde haja indivíduos em interação. Simmel
chamava atenção para o fato de que a sociologia deve tratar:
dos processos microscópicos-moleculares (...) de descobrir os
delicados fios das relações mínimas entre os homens, em cuja
repetição contínua se fundam aquelas grandes formações que
se fizeram objetivas e que oferecem uma história propriamente
Atafona
São João
da Barra
Campos
4
dita. Essas modalidades de relação devem ser submetidas ao
estudo formal” (SIMMEL, 1983, p. 83).
Após apresentar aspectos da totalidade dinâmica da vida social de Atafona, no
terceiro capítulo, as atenções voltam-se, mais especificamente, para o grupo dos
“veranistas” de Campos e suas formas de sociabilidade no balneário. Grande parte
desses veranistas era de famílias que pertenciam ao que, nas colunas sociais de Campos,
em meados do século XX, chamava-se de “sociedadecampista. Essa categoria nativa
será discutida no terceiro capítulo, sendo aqui necessário adiantar, no entanto, que eram
famílias com poder econômico variado que, através de hábitos compartilhados, uniam-
se compondo um grupo: a “sociedade campista. Essas famílias relacionavam-se
entre si por meio de um complexo e hierárquico sistema de prestígio, cabendo a cada
uma lugares e papéis sociais bem definidos. O grupo compõe-se de abastados usineiros
até comerciantes e professores que compartilham, por exemplo, dos mesmos salões dos
clubes sociais de Campos e do mesmo espaço de vilegiatura: Atafona.
Muitas famílias desse grupo escolheram Atafona como o balneário onde passam
a desfrutar os meses de férias em busca da vivência do lazer. Pretende-se mostrar como
esse grupo imprimiu suas marcas no espaço e na vida social local, contribuindo para que
o balneário atingisse notoriedade entre outras praias da região, sobretudo nas décadas de
60 e 70. Suas formas de sociabilidade, em Atafona, podem ainda ser pensadas como
uma das diversas exigências de representação social que orientava a ação das famílias
desse grupo.
A partir da metade da cada de 70, o mar inicia um processo no qual avança”
sobre essa região, destruindo casas de pescadores e residências de vilegiatura desses
veranistas. Conspira ainda contra o antigo estilo de vida desse balneário, uma crise que
se abateu sobre a “sociedade” campista, a partir da metade da década de 80, com o
processo de insolvência de muitas usinas. Essa crise econômica altera o antigo sistema
de status através do qual essas famílias se relacionavam entre si. É sob essa ameaça que
passam a evocar para si o título de “famílias tradicionais”, buscando através do
elemento “tradição”, distinguir-se dos novos ricos” que surgem em Campos,
concorrendo por espaço na “sociedade” campista.
5
O fato é que muitas dessas famílias perderam suas casas com o “avanço do mar”
sobre o balneário e outras tantas, por razões variadas, vêm aos poucos deixando de
freqüentá-lo. É comum que esses antigos veranistas de famílias tradicionais” de
Campos aloquem a responsabilidade dessas mudanças no avanço do mar sobre a região,
nunca tocando, em suas narrativas, na questão das alterações pelas quais o próprio
grupo passou. É com base nessas perspectivas que se pretende entender o processo de
alteração nas relações de poder, no estilo de vida e frequentação que se abate sobre o
balneário, sobretudo a partir da década de 90.
Essa dissertação difere-se dos estudos clássicos de comunidade, como, por
exemplo, Família e Comunidade (1962) de Oracy Nogueira, por não reunir um
inventário exaustivo de todo um sistema cultural e vida social. Aqui, como nos estudos
de comunidade realizados no Brasil a partir da cada de 70, busca-se, através do
material etnográfico, discutir algumas questões específicas, comuns ao repertório da
teoria antropológica. A presente etnografia pretende ressaltar, portanto, o que de
universal nas práticas sociais cotidianas do balneário, visto que:
são essas duas direções a especificidade do caso concreto e o
caráter universalista da sua manifestação que levam a
antropologia a um processo de refinamento de problemas e
conceitos e não, como propalam os estereótipos a respeito do seu
empirismo, a um acúmulo de informações sobre situações
bizarras(Peirano, 1995, p.18).
Como bem sabemos, a forma através da qual apreendemos os fenômenos sociais
está orientada não apenas pelas opções teóricas do antropólogo, mas também por nossa
personalidade e experiência biográfica. O método etnográfico, um dos principais
diferenciais da Antropologia, depende do contato estabelecido entre o pesquisador e os
indivíduos do grupo estudado. É, portanto, suscetível a humores, temperamentos,
preconceitos, euforias, paixões, medos e todos os outros ingredientes que perpassam
todo e qualquer tipo de interação social.
O reconhecimento dessa subjetividade pode ser considerado uma das mais fortes
contribuições do paradigma hermenêutico para a antropologia. A partir de tal
6
reconhecimento, que se buscar encontrar a forma mais apropriada de lidar com a
subjetividade que perpassa todas as pesquisas em nossa área. A maneira mais eficiente
parece ser, após seu reconhecimento, submeter as atitudes, opções e outros passos do
pesquisador também à etnografia. que se fazer o que Georges Condominas chamou
de “etnografar o etnógrafo”.
Essa necessidade deve-se ao fato o só de os etnógrafos tomarem consciência
desse tipo de influência sobre os resultados de sua pesquisa e, assim, poderem
relativizar algumas de suas posições, mas, também, para que leitores possam, com
clareza, melhor avaliar as condições em que a pesquisa foi realizada e,
conseqüentemente, como se chegou às questões abordadas. É necessário, portanto, um
investimento do antropólogo na análise do seu próprio modo de olhar e é, justamente,
isso que se buscou realizar nas próximas páginas desse primeiro capítulo.
II. Sobre o trabalho de campo: as circunstâncias em que a pesquisa foi
conduzida
II.1 - O despertar de uma idéia e a escolha de um orientador
Ao fim do primeiro semestre do ano de 2004, concluiria eu minha graduação no
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, IFCS/ UFRJ. Sem perspectiva do que faria
após tornar-me bacharel em ciências sociais, próximo a tal data, veio à tona a idéia de
desenvolver um projeto no qual tomaria a comunidade pesqueira da praia de Atafona
como objeto de estudo. A minha família materna é de Campos dos Goytacazes e, desde
a década de 30, como muitas outras famílias, não perde um verão nesse balneário.
Desde que nasci, passei meus verões em Atafona e, lá, na Igreja da Penha, fui batizada.
A paixão foi a motivação inicial para essa escolha. A impossibilidade de uma
relação permanente ou constante com Atafona era o que nutria esse meu sentimento em
relação ao lugar. Em Atafona, passava apenas dois meses do ano: janeiro e fevereiro.
Em todo o resto do ano ficava apenas a saudade alimentada pelas muitas recordações
dos momentos indizivelmente maravilhosos que uma criança e depois adolescente,
criada no Rio de Janeiro, desfrutava nesse lugar.
7
Eram os meses de férias que se passava junto à família, na casa dos avós.
Atafona era o lugar onde se reencontrava pessoas queridas e fazia novos amigos que
seriam vistos, novamente, no verão seguinte. Era o local onde não se usava relógio,
onde se andava descalço e onde devíamos menos satisfação aos pais. Atafona
representava lúdicos momentos de férias. A estrada de volta ao Rio de Janeiro
representava o corte entre aqueles mágicos momentos de férias e a “vida real”, da qual
fazia parte uma rotina de aulas, cursos e horários. A escolha deve-se, portanto, a uma
boa dose de vínculos emocionais que perpassam a minha relação com esse lugar.
Essa forma apaixonada de perceber Atafona foi, de fato, meu ponto de
partida nessa pesquisa. Tinha consciência, no entanto, desde o início, que essa
perspectiva o poderia se fazer presente no final da pesquisa. Sabia que essa minha
familiaridade poderia ser um impedimento ao bom desenvolvimento de minha pesquisa.
Se não fosse relativizada e submetida à reflexão sistemática, a familiaridade com meu
objeto poderia produzir um conhecimento comprometido pela minha rotina, hábitos e
estereótipos (VELHO, 1999).
A escolha do lugar em que desenvolveria minha pesquisa deu-se antes mesmo
que tivesse uma questão específica a tratar naquele local. O caminho foi inverso ao de
muitos pesquisadores que, primeiro, escolhem um determinado tema do repertório
antropológico e depois um lugar adequado para realizar suas verificações empíricas. O
local não foi escolhido por um profundo conhecimento que possuía a priori sobre a
complexa rede de relações sociais que se articula. As questões desenvolvidas nessa
dissertação foram surgindo, portanto, ao longo do trabalho de campo e nos diálogos
com meu orientador.
Após a primeira vez que a idéia de tomar a comunidade pesqueira de Atafona
como objeto de estudo acudiu em minha mente de forma consciente, logo começou a se
firmar e a se desenvolver. Restava saber quem me orientaria em meus projetos futuros.
Lembrei-me de que durante o curso de Antropologia III, ministrado no IFCS, pelo
professor Marco Antônio da Silva Mello, este havia passado um capítulo de sua tese
sobre os pescadores da praia de Zacarias para lermos. Lembrei-me ainda, perfeitamente,
de que na ocasião em que li tal texto passou pela minha cabeça, muito
despretensiosamente, que pudesse fazer algo parecido em relação à Atafona. No
entanto, achei que se o fizesse, seria muito mais interessante porque a “ameaça” aos
8
pescadores não era o processo de modernização, como em Zacarias, mas sim, o próprio
mar que avança sobre a região desde a década de 70.
Reli o texto e a vontade de conversar com o professor Mello sobre a idéia de
estudar a comunidade pesqueira de Atafona cresceu. Após conversar com Flavio
Silveira, amigo que havia estudado comigo na graduação e que estava sendo orientado
pelo professor Mello no mestrado da UFF, decidi procurá-lo, não sem receio, para uma
conversa. Minhas recordações de suas aulas eram tensas devido a seu alto grau de
exigência.
Minha idéia inicial era a de analisar as alterações causadas pelo avanço do mar,
na vida dos pescadores do lugar. Em nossa primeira conversa, o professor Mello propôs,
no entanto, que abordasse Atafona como um balneário freqüentado pelo que chamava
de famílias abastadas” do município vizinho, Campos dos Goytacazes. Chamou-me a
atenção para as formas de sociabilidade dessas famílias em Atafona e sugeriu que
fizesse uma espécie de etnografia retrospectiva” através de entrevistas com antigos
veranistas, de receitas, cartas, fotografias e outros documentos de arquivo privado. Saí
de sua sala um tanto atordoada porque o havia procurado para falar de um estudo sobre
comunidade pesqueira e pouca coisa ou quase nada foi discutido em relação a tal tema.
Apesar de não entender completamente o que me havia sido proposto pelo Mello
em nosso primeiro encontro, o sei bem ao certo o que me fez decidir que seguiria as
suas sugestões de leitura e de estratégias no campo e ainda que me submeteria ao
processo seletivo do PPGA/UFF, Programa de Pós- Graduação em Antropologia na
Universidade Federal Fluminense, onde seria sua orientanda. A razão para isso pode
estar no simples fato de que gostei do jeito dele. Gostei de como pensou e formulou as
questões que me propôs. Gostei de como questionou minhas “certezas absolutas”.
Talvez, esta possa ser razão não apenas suficiente, mas, sobretudo, indispensável para a
escolha de um orientador.
De início, como ainda possuía poucas certezas, suas “estratégias de orientação”
eram pouco penosas. Com o tempo, no entanto, após algum período de dedicação à
pesquisa, quando ele “tirava meu chão” questionando os dados apresentados por mim,
sentia uma enorme vontade de desistir de sua orientação, mas nunca da Antropologia e
do que chamava “projeto Atafona”. Tivemos, sim, algumas brigas. Passados alguns dias
do episódio, no entanto, a raiva transformava-se em força e, com isso, partia para buscar
9
mais informações para reconstruir o “chão” que me havia sido tirado. Depois que os
desentendimentos passam e a pesquisa avança, torna-se cil entender que “a produção
de certezas fáceis é um dos grandes desfavores que um orientador pode fazer a seu
orientando(PEIRANO, 2006, p.74). A sensação de estar sendo desafiada por ele, por
vezes, me deu novo ânimo para continuar quando o material parecia já estar bem
arrumado em um sistema harmônico, beirando a monotonia.
Comecei a pesquisa buscando reunir e ler livros de recordações e de
curiosidades que falassem sobre Atafona. Reuni também fotografias de minha família
tiradas no balneário nas décadas de 40 e 50, recortes de jornal, planta baixa e fotografias
aéreas do local. Logo nessa primeira conversa com o professor Mello, ele percebeu a
importância que minha avó acabaria assumindo em minha pesquisa. Ao ligar para
Beatriz Boeschestein, secretária e amiga do professor Arno Vogel, em Campos, para
saber com quem eu deveria conversar que pudesse me ajudar em relação aos nomes das
famílias de Campos, essa lhe disse para que procurasse, em Campos, Diva Goulart. Foi
então que, pela primeira vez, mencionei minha avó, Rosely Sanz Blasi, dizendo que as
duas eram grandes amigas.
Como “santo de casa não faz milagre”, não acatei a sugestão de meu orientador
de começar entrevistando minha avó, freqüentadora do balneário desde seus quatro anos
de idade. Desqualificando completamente, no início, aquela que viria a se tornar uma
das minhas principais interlocutoras, liguei do Rio de Janeiro para minha avó, em
Campos, e lhe pedi que marcasse uma entrevista minha com Diva Goulart. Já em
Campos, minha avó me acompanhou a o apartamento de Diva, fez as devidas
apresentações e se retirou. Nossa primeira “conversa durou cerca de três horas e a
interlocutura me contou tudo que considerava importante que eu soubesse em relação à
Atafona. Ao me perguntar se conhecia uma determinada família de Campos e eu
responder que não, logo me advertiu: “tem que conhecer, se não, você não penetra no
jogo!”. Essa foi a primeira das muitas vezes em que estive em sua casa. Passei a ser
convidada e também a me oferecer para seus almoços, tanto em Campos como em
Atafona.
10
II.2 - Conhecendo uma “outra” Atafona
Como havia terminado a graduação, resolvi passar o mês de julho em Atafona.
Essa seria a primeira vez em que a casa da minha família, construída em 1947, seria
aberta e freqüentada por um mês, fora da temporada de verão. As justificativas aos
familiares tinham de ser convincentes, pois não é habitual uma pessoa, menos ainda
uma moça de 22 anos, ficar em Atafona sozinha “durante o ano”. A questão o era a
viagem e nem a idade, mas, sim, o que faria eu em Atafona durante o ano? Não havia
nada para se fazer e era ainda isolado, ermo, deserto e perigoso!”.
Cheguei ao campo e, mesmo com as sugestões do professor Mello, o sabia ao
certo o que deveria fazer. Não sabia por onde começaria a trabalhar. Estava encantada
descobrindo uma Atafona que após 22 anos de frequentação “no verão” ainda o
conhecia: a Atafona de “durante o ano”. Esta se apresentava ainda mais lúdica, rústica e
cheia de possíveis aventuras e mistérios com sua praia e ruas desertas. Continuava indo
à praia e a bares, mantendo, assim, minha rotina de sempre no lugar. Observava que os
freqüentadores da praia eram outros, que poucos eram os bares que permaneciam
abertos, que o peixe custava mais barato e a qualidade dos produtos nas prateleiras do
mercado era inferior à dos produtos no verão”. Procurava desenvolver o tal “olhar
etnográfico” em tudo o que acontecia a minha volta e, sempre que possível, procurava
conhecer pessoas e lugares que não conhecia até então em Atafona.
Aos poucos, grande parte de minhas anotações, do mês de julho de 2004,
começou a girar em torno das especulações que eram feitas a respeito da minha
presença ali “durante o ano”. De início, achei, de alguma forma, engraçado ser alvo de
tanta curiosidade, mas, logo depois, passei a me dar conta de um outro aspecto, não tão
agradável da Atafona de “durante o ano”: a fofoca!
Busquei atribuir algum significado àquela ação das pessoas de dedicarem
algumas horas do seu dia à atividade de especular e tecer comentários sobre a vida
alheia. A fofoca ali, como em muitos outros lugares, funciona como um forte
mecanismo de controle social que seus moradores exercem uns sobre os outros e sobre a
“gente de fora,” assim como eu. Além, é claro, de apresentar-se com um prazeroso
passa-tempo ou entretenimento. mais tarde, viria a saber que as várias pessoas que
11
ficavam em determinados pontos, conversando ao longo da “rua da caixa d’água, eram
grupos de fofoca.
Ficava sabendo da fofoca a meu respeito através de alguns amigos que moravam
em Atafona e através de familiares que, no Rio de Janeiro, recebiam “notícias minhas”
através de um funcionário” da residência da família. Foi através da fofoca a meu
respeito que fui aprendendo o que era e o que não era permitido na Atafona de “durante
o ano”. As regras dessa outra Atafona eram completamente diferentes das existentes
“no verão”, que agora posso dizer ser, de certa forma, marcado por uma certa suspensão
das regras.
“No verão”, tudo parece ser permitido, sobretudo, aos seus “veranistas”. Tudo se
espera de pessoas que estão ali para desfrutar as férias. A questão se torna complicada
quando essas pessoas começam a freqüentar Atafona “fora de temporada”. Tal fato
aguça a curiosidade dos moradores locais, dando início a especulações a respeito do
motivo de sua presença ali, naquela época do ano. As suposições a meu respeito
pareciam basear-se em experiências com outros veranistas que por lá aparecem “durante
o ano” e acabam por revelar com que fins Atafona é, normalmente, procurada nessa
época por veranistas de Campos.
Assim, aos poucos, a sensação de total liberdade que sentia naquele lugar foi
se esgotando ao passo que fui me dando conta de que o tamanho do local obrigava as
pessoas a uma convivência diária: na padaria, no mercado, na peixaria, na Igreja, na
praia, anulando qualquer possibilidade de anonimato. Ao longo desse último semestre
de 2004, entre idas e vindas esporádicas ao campo, reuni um material que me
possibilitou escrever o projeto que apresentei no final de 2004 em minha entrevista para
o processo seletivo de mestrado no PPGA/UFF, no qual fui aprovada.
II.3 - “O encontro-consigo-mesmo-sendo-outro”
Em fevereiro de 2005, cheguei a Atafona a fim de passar o fim das férias.
Pretendia ficar, junto a minha família, descansando ao início das aulas do mestrado.
Essa seria a primeira vez, após o início da pesquisa, que iria para Atafona no verão”.
Algo, no entanto, havia mudado. Não me era mais possível passar as tão prazerosas
férias em Atafona. A obrigação de trabalhar passou a me perseguir na minha rotina de
praia, almoços, carangueijadas e churrascos em minha casa, na de familiares e na de
12
amigos. Sabia que aquela experiência podia ser um excelente material para minha
pesquisa, mas não sabia ao certo o que devia fazer. Se no mês de julho do ano anterior
entrei, de forma brusca, em contato com aspectos do lugar que não conhecia, “no verão”
tudo me era, excessivamente, familiar.
Ao mesmo tempo em que não conseguia curtir tranqüilamente minhas férias, não
conseguia, de fato, me sentir trabalhando ao buscar realizar a observação direta nessas
ocasiões. Em vários momentos nessas reuniões me pegava pensando: é isso o chamado
trabalho de campo? Acredito que tal impasse seja comum a qualquer etnógrafo
iniciando um novo trabalho de campo. William Foote Whyte em Sociedade de Esquina
coloca: Às vezes ficava pensando se simplesmente ficar parado na esquina seria um
processo suficientemente ativo para ser dignificado pelo termo pesquisa. Talvez devesse
fazer perguntas a esses homens”. (WHYTE, 2005, p.303)
Acredito, no entanto, que no caso de estar fazendo trabalho de campo em um
ambiente que lhe é excessivamente familiar tal sensação, ao menos na fase inicial, é
ainda mais complexa. Quando a etnografia é “feita em casa”, a sensação de estar
trabalhando ou pesquisando se faz ainda mais distante. Nenhum deslocamento físico era
necessário para chegar ao meu local de trabalho. Não era necessário ainda, naquela
ocasião, buscar estabelecer novos contatos. As pessoas, o cheiro e o paladar eram meus
antigos conhecidos.
Não aquela explosão de significados” inicial causada pelo estranhamento em
relação a um universo novo a ser desvendado, como para um antropólogo que vai
estudar, por exemplo, uma tribo indígena ou mesmo um grupo que pertença a uma
“camada social” distinta da sua. Simplesmente acordava e estava acontecendo uma
reunião na varanda entre amigos de minha avó e de meus pais que há muito não se viam
e sabia que isso também podia e devia ser submetido ao crivo da etnografia. Conseguir,
no entanto, perceber aspectos tão próximos como passíveis da análise etnográfica é
missão que requer alguma sensibilidade.
havia lido os textos de Roberto Da Matta e Gilberto Velho que tratam das
peculiaridades de “transformar o familiar em exótico” ou deobservar o familiar”.
5
Na
prática, no entanto, como se daria aquilo? Como faria eu para:
5
Ver DaMatta, 1978 e VELHO, 1999.
13
tirar a capa de membro de uma classe e de um grupo social
específico para poder- como etnólogo estranhar alguma
regra social familiar e assim descobrir (ou recolocar, como
fazem as crianças quando perguntam os” porquês”) o exótico
no que está petrificado dentro de nós pela reificação e pelos
mecanismos de legitimação”? (DA MATTA, 1978, p.29)
Como obteria o desligamento emocional necessário para fazer a tal “viagem
xamanística”?
Sabia, de certa forma, tudo sobre aquelas pessoas, mas não o sabia de modo
reflexivo. Não conseguia, nesse momento, apreender as articulações daquele universo
do qual fazia parte. De que maneira poderia enxergar além da minha experiência
cotidiana e imediata do social? O que deveria ser anotado em minha caderneta de
campo? E o meu caderno de campo? Temia que parecesse mais um diário de
adolescente confidenciando as férias em família.
Uma passagem do mês de fevereiro do meu caderno de campo ajuda a melhor
explicar a estranha sensação que me acompanhava nesse período em que não sabia
como aproveitar a minha condição ambígua de pesquisadora e “nativa” ao mesmo
tempo. Estava em uma condição privilegiada e, no entanto, achava que deveria me
afastar da minha rotina e da minha família para realizar o que considerava o
“verdadeiro” trabalho de campo:
Sinto que ainda não consegui deixar minha rotina e
conhecidos de lado para começar a descobrir e conhecer
outras coisas. Em nenhum momento passei a freqüentar
determinado lugar apenas para fazer observação direta. Faço
observações em minha casa, na dos vizinhos que conheço os
netos, na peixaria ou mercado, nos bares, no Pontal (...).
Apenas vou a lugares que já freqüentava e lá faço minhas
14
observações. Não sei se essa reflexão é válida ou se é apenas
um sentimento de culpa por meu trabalho de campo ser em
Atafona que é um lugar que adoro e daí não me sinto
trabalhando. Acho que devo começar a freqüentar a missa e
largar a praia e os bares!
Não é possível precisar com exatidão quando tal sensação se acalmou e aprendi
a refletir sobre questões relacionadas à Atafona, por diversas vezes, a partir de situações
ocorridas no interior do meu próprio agrupamento de parentesco e convívio. Acredito,
no entanto, que as aulas e conversas com o professor Mello tiveram fundamental
importância para que eu desenvolvesse ou despertasse a sensibilidade que requer este
mergulho em meu próprio universo social Foi através de suas muitas histórias de rara
sensibilidade contadas em sala de aula e reuniões que acredito ter alcançado o
encontro-consigo-mesmo-sendo-outro proposto em O Pastor Peregrino por Arno
Vogel (VOGEl, 1997, p. 62).
II.4 - O processo de incorporação do papel de pesquisadora
Além disso, nessa fase inicial, havia um certo constrangimento de minha parte,
em chegar a determinados lugares onde tivessem pessoas que me conheciam de vista
como veranista e me apresentar, agora, como uma pesquisadora mestranda em
Antropologia da Universidade Federal Fluminense. Passei a ter uma preocupação com
minha imagem no lugar. Decidi que deixaria, por exemplo, de andar com trajes de praia
e descalça até a noite e também que o mais freqüentaria alguns ambientes
considerados inadequados a uma moça. Estava, na época, preocupada com a forma
como algumas pessoas me viam, visto que a
construção da identidade é um fenômeno
que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade,
de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com
outros (POLLAK, 1992, s/p).
Pensei em uma redefinição de papéis. Em minhas próximas incursões ao campo
deixaria de lado minha identidade de veranista e assumiria a de pesquisadora. Essa
15
confusão inicial não passava apenas por tentar redefinir a imagem que faziam de mim,
que passava longe de uma pesquisadora, como também por aprender a lidar
internamente com esse meu novo papel em Atafona. Precisei mudar coisas relacionadas
aos meus antigos hábitos no lugar para que eu mesma acreditasse e internalizasse essa
nova identidade
6
.
Mesmo com a pesada carga de leitura das disciplinas a serem cursadas no
primeiro ano do mestrado, ainda encontrava tempo e disposição para, esporadicamente,
dar uma “fugidaaté Campos e Atafona. A Festa da Penha, padroeira de Atafona, que
no ano de 2005 aconteceu em abril, foi, na ocasião, uma oportunidade para testar a nova
postura que havia decidido adotar em relação ao lugar.
Lembro-me de, desde a infância, acompanhar minha família, que saia do RJ para
participar dessa festa. Minha falecida bisavó, Edith Blasi, era uma das festeiras e
oferecia, tradicionalmente, um almoço na segunda-feira da Festa, em sua casa de
vilegiatura em Atafona. Edith Blasi, por ser modista, era uma figura bastante conhecida
em Campos. Em Atafona, através de seu prestígio social, organizava festas no cassino e
no Atafona Praia Clube para angariar fundos junto aos veranistas de Campos para as
reformas e manutenção da Igreja de Nossa Senhora da Penha. Tal senhora em muito
contribuiu para as reformas da Igreja, sendo considerada uma “benemérita” por muitos
em Atafona
Com uma idade mais avançada, ia à Festa da Penha porque era uma
oportunidade de, logo após o verão, voltar a Atafona. Dessa vez, no entanto, ia com o
intuito de trabalhar. Nesse ano, acompanhei tanto as atividades sagradas, como as
profanas, relacionadas à festa. Anotei, entrevistei, terei fotos e observei. Foi essa
sensação de correria e cansaço que me fez começar a me sentir uma pesquisadora
fazendo seu trabalho de campo. A partir do trabalho realizado durante a Festa da Penha
escrevi um paper que em novembro do mesmo ano, 2005, apresentei na RAM de
Montevidéu, no Uruguai.
Aos poucos, a partir da Festa da Penha, algumas questões começaram a surgir
sobre a organização social de Atafona. Minhas idas até lá, após a Festa da Penha,
6
O termo identidade é usado aqui como “a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a
ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua
própria representação, mas também para ser percebida da maneira como quer ser percebida pelos
outros.” (POLLAK, 1992, s/p)
16
passaram a ter um objetivo mais ou menos definido: reunir todo e qualquer tipo de
material sobre a Festa. Fui ao Palácio da Cultura, em Campos e ao Centro Cultural
Narcisa Amália, em São João da Barra, buscando jornais que falassem sobre o assunto.
A Festa da Penha tornou-se, ainda um assunto para iniciar uma conversa nas mais
variadas ocasiões e com as mais diversas pessoas ao longo do trabalho do campo.
Enquanto isso, no Rio de Janeiro, além das disciplinas cursadas no mestrado da
UFF, que me possibilitavam melhor pensar nas questões que estavam surgindo para
mim a partir do trabalho de campo, comecei também a fazer parte do Laboratório de
Etnografia Metropolitana, LeMetro (IFCS/UFRJ), coordenado pelo professor Mello. No
LeMetro, encontrei parceiros para dividir as dúvidas, inquietações e angústias que
acompanham todo jovem antropólogo que está sendo iniciado no campo.
Após o término das aulas do primeiro semestre de disciplinas do mestrado, em
julho, fui para Atafona a fim de fazer meus trabalhos de fim de curso e, nas horas vagas,
desenvolver meu trabalho de campo. Preparei o de Antropologia Clássica. Para a
disciplina Antropologia e Imagem fiz um trabalho sobre o álbum de fotografias da
minha família, com fotos tiradas em Atafona nas décadas de 40 e 50 e que, em
novembro de 2005, tive a oportunidade de apresentar no II Seminário de Sociologia da
Cultura e Imagem, NUSC-IFCS/UFRJ.
Foi ainda no mês de julho que conheci “seu” Delso Araújo, um senhor de 94
anos, de família antiga de São João da Barra que muitos anos mora em Atafona.
Cheguei a tal senhor para entrevistá-lo como antigo freqüentador e atual morador de
Atafona. Não sabia, no entanto, que estava envolvido num conflito com o padre da
localidade e que havia levado o caso ao Ministério Público de São João da Barra. Foi a
partir de tal conflito que fiz meu trabalho de Antropologia Jurídica sobre a lógica local
de administração de conflito e que, no ano seguinte, em 2006, apresentei na RBA, em
Goiânia.
Delso Araújo foi “armador” de navios e sua família possuía trapiches em o
João da Barra na época em que o porto estava em plena atividade. O nome de sua
família esatrelado à história da Igreja e da Irmandade de Nossa Senhora da Penha,
visto que aparece em documentos desde a fundação da Irmandade. Sua casa em
Atafona, a famosa Vila Rosita”, é de 1900, sendo uma das mais antigas e ainda em
excelente estado de conservação.
17
Em nossas muitas tardes de conversas em sua casa, a partir do conflito, “seu”
Delso foi me fazendo conhecer um pouco da história da Irmandade da Igreja de Nossa
Senhora da Penha que muito me ajudou a entender a estrutura organizacional mais
ampla de Atafona. o é possível localizar na Igreja da Penha esse e nem outros
documentos relacionados à sua história. Funcionários que ali trabalham dizem,
simplesmente, que estes “sumiram”. Uma das únicas pessoas que tem posse de alguns
desses documentos é “seo” Delso Araújo.
Após o mês de julho todo em Atafona, voltei ao Rio de Janeiro muito animada
com os três trabalhos que havia produzido e com um rico material etnográfico, que
renderam muitas conversas com orientador e colegas. Dessa ocasião ao fim do ano,
devido às disciplinas do mestrado, tive poucas oportunidades de ir ao campo. Das vezes
que o fiz, voltei à casa de “seo” Delso e fiz novas entrevistas em Campos e Atafona,
tentando preencher as lacunas que apareciam em meu material enquanto escrevia sobre
a Festa e a Irmandade da Igreja de Nossa Senhora da Penha, mas sempre atenta às
novas questões que iam aparecendo nas conversas.
Ao fim das aulas do segundo semestre, em dezembro de 2005, tive que iniciar
novos trabalhos de fim de curso. Estes, no entanto, o poderiam, como os anteriores,
ser elaborados em Atafona. Nesse período do ano, não apenas o balneário, como
também a minha casa estariam cheios, não havendo, portanto, condições propícias à
concentração que esse tipo de atividade exige. Com isso, perdi o mês de janeiro e boa
parte de fevereiro que teriam me rendido um excelente trabalho de campo, visto que é a
época em que os antigos e os novos veranistas estão na praia, em suas casas e, diferente
do verão anterior, a essa altura a crise havia passado e eu sabia o que devia fazer
no campo. Ossos do ofício!
II.5 - Morando no campo: o Mercado de Peixes e os “imponderáveis da
vida real”
Contrariando o primeiro dos três princípios metodológicos propostos por
Malinowski em sua paradigmática obra Os Argonautas do Pacífico Ocidental, de que
“o pesquisador deve possuir objetivos genuinamente científicos”
7
, não posso
desconsiderar as motivações pessoais que me fizeram decidir que, passaria grande parte
7
MALINOWSKI, 1976, p.24.
18
do ano de 2006, morando na residência de minha família, em Atafona. Além de realizar
um trabalho de campo sistemático com uma tentativa de imersão nesse universo social,
não posso omitir que buscava me submeter a uma experiência de vida diferente da que
levara até então como estudante e moradora do bairro de Ipanema, no Rio de Janeiro.
Em fevereiro, concluídos os trabalhos de fim de curso e a qualificação, fui para
Atafona, onde parte de minha família ainda se encontrava. Nessa ocasião já sabia usar a
minha condição a favor da pesquisa, aproveitando melhor as oportunidades. Fiz
observação direta em casa, nas conversas de varanda, acompanhei minha avó em visitas
às suas amigas, em missas na Igreja da Penha e ao mercado. Enfim, já havia exorcizado
o fantasma que assombrava minha pesquisa.
A essa altura, sem maiores complicações, pensava no churrasco de sábado de
carnaval oferecido desde sempre em minha casa como um ritual de comensalidade de
um agrupamento de parentesco e convívio. A troca de presentes entre minha ae sua
antiga vizinha, realizada quando da chegada do fim da temporada de verão, me faziam
pensar no “Ensaio sobre a dádiva” e nas relações de vizinhança nas quais a geografia do
lugar inscreve seus veranistas.
Com o fim do carnaval, muitas famílias dão por encerrada a temporada de
verão. Com isso, Atafona esvaziou-se e nossa casa também. Após algum tempo
aprendendo coisas sobre o funcionamento da casa e buscando estabelecer minha nova
rotina, decidi que iniciaria essa nova etapa do trabalho de campo pelo Mercado de
Peixes de Atafona.
Talvez tivesse consciência de quão reveladores podem ser os mercados para se
entender a dinâmica organizacional dos lugares estudados, visto que o professor Mello
tem um projeto de pesquisa intitulado cidades e mercados” e havia assistido a
algumas discussões. Talvez ainda, não de forma consciente, o desejo inicial de trabalhar
com os pescadores e a população local tenha se manifestado, visto que, até o momento,
grande parte do material que compunha meu corpus etnográfico havia sido construído
junto a antigos veranistas de famílias de Campos.
Minha inserção no Mercado de Peixes deu-se através de Miri-Carla, uma
peixeira de Atafona, de 34 anos. Tinha recordações antigas de Miri Carla nas
procissões da Festa de Nossa Senhora da Penha. Lembrava-me dela “puxando” de
forma altiva e enérgica o “viva a Nossa Senhora da Penha!”. Ficava sempre ao lado
19
esquerdo do andor, mais especificamente, atrás da minha avó. Pela sua postura
corporal, vestimentas e tom de voz, Miri Carla me parecia uma mulher de
personalidade forte com uma visão muita crítica em relação ao seu universo. E foi,
justamente, por isso que a procurei pela primeira vez, no ano anterior, para falar sobre a
Festa da Penha.
Agora, no entanto, estávamos em fins do s de março e queria “acompanhar
um pouco da rotina do Mercado de Peixes”, onde sabia que Miri-Carla tinha uma
banca. Fui até ela e lhe pedi 1 kg de filé de cação. Ela como boa negociante, me
empurrou 1,5 kg e aproveitei para lhe pedir que, no dia seguinte, acompanhasse a rotina
do mercado.
Após o primeiro dia seguiu-se, aproximadamente, dois meses em que fiz visitas
quase diárias ao Mercado de Peixes. Nesse primeiro dia, fui, praticamente, cercada e
entrevistada por muitos que ali foram se aproximando para saber quem eu era e o que
queria. Saciada a curiosidade, sobretudo a masculina, muitos foram para suas casas
almoçar, restando apenas eu, Miri Carla e D. Pedrina.
Ficamos conversando e as duas faziam questão de fazer brincadeiras com as
quais ainda não estava socializada numa pica atitude joking
8
. Parecia estar sendo
testada para ver como reagiria diante das brincadeiras e gozações que faziam. Se não
agüentasse o primeiro dia, não precisaria nem voltar. Com o passar das semanas e
meses fomos nos aproximando e, de fato, chegamos a estabelecer aquilo que se chama
amizade, sobretudo eu e Miri Carla.
Desde a primeira vez em que a procurei, assim como eu a conhecia de vista,
ela também já me conhecia e sabia que era neta de D.Edith Brás”. Miri Carla, até um
determinado momento, me apresentava aos outros como neta de Da. Edith”. A partir
de algum tempo de convivência passou a me apresentar como uma amiga que fazia uma
pesquisa no lugar. Não acredito que tal fato se deva a eu ser um “milagre ambulante em
empatia”
9
me adaptando perfeitamente a situação e fazendo com que ela me visse
como uma igual, não mais me identificando com minha bisavó. Talvez, Miri Carla, em
nenhum momento, tenha deixado de associar a minha imagem à de minha bisavó e à
das famílias tradicionais de Campos que, na escala hierárquica local, ocupam
8
Tal atitude, em geral, pode ser expressa nas piadas que circulam quase que em sentido privado.
9
GEERTZ, 2004, p. 85
20
posições superiores. Apenas parou de me apresentar dessa forma porque sabia que me
incomodava, visto que já havíamos conversado sobre isso.
Apesar de ser sempre bem tratada e, diversas vezes, presenciar a emoção de
alguns ao se lembrar dela, achava que essa identidade poderia atrapalhar meus
objetivos. Durante algum tempo, acreditava nunca ter escutado deles uma confirmação
para as minhas perguntas sobre a hostilidade entre atafonenses e campistas por ser “neta
de D. Edith”, uma campista. Só depois fui entender que, na prática, a complexidade das
relações entre esses indivíduos não se adequava ao modelo que havia criado para
apreender aquela realidade social.
Miri-Carla revelou-se uma informante mais do que qualificada, visto que ela e
parte de sua família desempenham um importante papel nos bastidores e nas procissões
da Festa da Penha. Ter acompanhado de perto esse trabalho que realizam, parece ter
criado um vínculo entre nós que estreitou nossa amizade. Bastante constrangida no
início, Miri Carla passou a freqüentar as reuniões que eu fazia em casa com alguns
amigos nos fins de semana. Depois de algum tempo, quando estava mais a vontade,
havia um problema nessas reuniões: ela fazia questão de criticar o nosso robalo!
Comprávamos sempre o peixe a ela e fazíamos, mas ela dizia ser um “peixe nobre
valorizado pelo campista, mas que não tem sabor como, por exemplo, o bagre ou a
sarda”. A reação dos amigos de Campos era feroz: “bagre!?!? Erg!” A interação entre
Miri Carla e amigos de Campos, e ainda a nossa própria relação, era uma excelente
situação etnográfica que me possibilitou a confirmação e a refutação de algumas
hipóteses que trazia comigo.
Localizado entre a Igreja da Penha e um dos portos onde chegam e saem os
barcos para o mar pela “boca da barra” ou para o rio Paraíba do Sul, o Mercado de
Peixes revelou-se um lugar estratégico de observação da vida social local. Mesmo
“durante o ano”, sobretudo, dia de semana, quando o movimento é considerado fraco,
diariamente, muitas pessoas passam por ali para vender ou comprar peixes e camarões.
Outras tantas ali permanecem, sentados nas escadas da Igreja ou na porta mesmo do
mercado, como eu, observando e “batendo papo” sobre a vida alheia. O Mercado é o
local onde as notícias chegam e a fofoca circula.
Foi ali que aprendi o que era “fazer maré” para um pescador; que aprendi um
pouco dos preparativos de um barco para a saída para “mar aberto”; fiz contatos para ir
21
assistir aos barcos descarregarem no frigorífico; aprendi um pouco sobre os ventos;
conheci outros peixes que não o robalo ou carapeba, considerados nobres” de
campista; entendi quem vende e quem compra o quê, por quanto e, sobretudo quando.
O Mercado de Peixes foi o local onde conheci antigos moradores e filhos de moradores
da Ilha da Convivência que na cada de 50 se mudaram para o Antigo Pontal de
Atafona.
Apesar de, pessoalmente, estar me realizando com essa experiência, em
determinados momentos me perguntava o que isso acrescentaria à minha pesquisa que
tinha como foco de interesse principal as formas de sociabilidade das famílias abastadas
de Campos nesse balneário. Uma passagem de meu caderno de campo representa bem
esse momento de dúvida em relação ao caminho que estava seguindo no campo:
Quando digo a eles que a pesquisa é sobre Atafona,
que já havia conversado com antigos veranistas e que agora
quero saber das histórias deles, a conversa cai na pescaria.
Esse assunto me interessa pessoalmente, mas para a pesquisa
parece não ter muito sentido. Esse assunto parece ser, no
entanto, uma forma de aproximação com eles até poder
perguntar e ser respondida em relação a questões como o que
acham dos veranistas de Campos.”
Só com o tempo, fui entendendo como aquele contato diário era necessário para
compreender a percepção deles em relação ao seu universo e em relação ao campista e
ao o-joanense. Inequivocamente, durante algum tempo, procurei respostas para
minhas perguntas imediatas. Aos poucos fui entendendo que tais fenômenos, chamados
de “imponderáveis da vida real” por Malinowski, não podem ser apreendidos através de
perguntas, visto que o é do ser humano teorizar ou ter um discurso analítico sobre
aspectos ordinários da sua vida social. Se assim o fizesse, fracassaria nas atividades
mais elementares do seu dia-dia, absorto em pensamentos sobre o sentido ou
funcionamento da atividade que está a realizar. Tais informações seriam obtidas,
portanto, ali na observação em sua plena realidade quando do contato entre pescadores,
peixeiros e veranistas chegando de carro, no fim de semana, a procura de camarão VG
22
ou de um robalo no Mercado. As simpatias, hostilidades e amizades poderiam ser
apreendidas a partir daquele contato no Mercado de Peixes e também em situações
experenciadas no ônibus, praia ou padaria.
II.6 - Os hóspedes indesejados
Foi ainda a partir do Mercado de Peixes que estabeleci contatos que me
permitiram o apenas acompanhar, mas, também, participar dos preparativos da Festa
da Penha de 2006. Talvez meu engajamento na Festa da Penha desse ano tenha
extrapolado o que convém a um antropólogo no campo. Os moradores de Atafona e, de
certo modo, de toda a região não eram mais os únicos que aguardavam pelo início da
Festa. Eu aguardava ansiosa junto a eles pela chegada do “dia dela” contando mesmo os
dias nos dedos. A sensação de ansiedade era, por nós, compartilhada.
Não sei ao certo, se essa ansiedade deveu-se, meramente, ao fato da grande
responsabilidade que sentia como pesquisadora porque, naquele momento, tinha
consciência das condições em que estava no campo para realizar uma excelente
etnografia, visto que estava engajada e teria o apoio de quem precisasse. Digamos que
eu estava coma faca e o queijo na mão” e quando a Festa da Penha começasse, eu não
poderia, em hipótese alguma, falhar. Acredito que, além disso, me envolvi
emocionalmente com o q aquilo tudo representava para as pessoas daquele lugar,
sendo contagiada pela forte emoção que sentiam. Talvez ainda o fato de minha família,
sobretudo minha bisavó, ser devota, de alguma forma, possa ter colaborado para a
sensação que vivi na Festa da Penha do ano de 2006.
Ajudei na limpeza da Igreja, assisti a algumas missas, fui até a CEHAB levar os
acessórios para a decoração dos barcos que participariam da procissão fluvial, ajudei a
carregar os 14 andores para a sala onde seriam limpos. Tive ainda o privilégio de
acompanhar todo trabalho de equipe realizado, mais de cinco décadas, pela mesma
família de transportar, limpar, amarrar e ornamentar todos os 14 santos em seus
respectivos andores. A família em questão é a de Miri-Carla. Consegui acompanhar a
procissão fluvial no barco que leva a imagem de Nossa Senhora da Penha e, por fim,
acompanhei todo o trajeto próximo ao andor de Nossa Senhora da Penha.
23
Fui acometida pela euforia e exaltação que a Festa da Penha instaura entre os
moradores de Atafona e da região como um todo. O envolvimento emocional durante a
procissão no “dia Dela” foi tanto, que, em uma das principais paradas para a queima de
fogos, minha mera fotográfica foi furtada em minha bolsa e percebi momentos
depois. Com ela, se foram mais de cem fotografias feitas por mim ao longo da Festa.
Miri-Carla e seus parentes ficaram muito chateados com o ocorrido porque entenderam
que eu havia perdido todo meu material”. Apesar de bem triste, tentava lhes explicar
que meu material não estava apenas nas fotografias que se foram, mas em tudo o que
tinha ouvido, feito, aprendido, enfim, experenciado antes e durante a Festa com eles.
Após a procissão, tentei lhes explicar que, por vezes, o principal material do
antropólogo não está registrado em fotografias ou vídeos, mas sim, em seu próprio
corpo através de suas lembranças e sentimentos em relação a uma experiência vivida.
Além desse episódio, a Festa da Penha de 2006 trouxe novos dados que não se
encaixavam no modelo” que havia pensando para interpretar a organização social do
lugar. Dessa vez, quem estava destruindo meu chão o era o professor Mello a
questionar minhas certezas absolutas”, mas sim, meus próprios dados. Passada a Festa
da Penha, a recordação era de um evento intenso, cansativo e, sobretudo confuso. Com
isso senti necessidade de me afastar um pouco de Atafona a fim de tentar “decantar”
aquilo tudo.
Somente após a vivência dessa situação vim a entender o que Da Matta advertia
em O Ofício de Etnólogo, ou como ter Anthropological Blues. Tal texto havia sido lido
por mim no primeiro semestre da graduação e, nessa ocasião, não fizera muito sentido.
Foi após essa ocasião que, de fato, entendi que a “situação etnográfica não é realizada
num vazio e que tanto lá, quanto aqui, se pode ouvir os anthrpological blues!” O texto
traz à tona, influenciado por Lévi-Strauss em Tristes Tópicos, a presença não esperada
do sentimento e emoção que acometem os antropólogos em suas pesquisas de campo.
No início de maio de 2006 fui ao Rio de Janeiro, quando já estava há três meses
consecutivos em Atafona. Nos meses de maio e junho entre idas e vindas, de certo
modo, fiquei afastada do campo. Aproveitei para transcrever fitas, ler textos que me
ajudassem a pensar o material e escrever o paper que apresentei na RBA de 2006, em
Goiânia.
24
II.7 - Vestindo máscaras sociais para melhor trabalhar uma categoria
no fim de junho estava de volta a Atafona e disposta a seguir as sugestões
recebidas no GT 32 da RBA, em Goiânia, de melhor definir uma categoria com que
estava trabalhando desde o início da pesquisa: “famílias tradicionais” de Campos. As
famílias de Campos que veraneavam em Atafona algumas gerações identificam-se
entre si, aparecem nas colunas sociais de Campos e são reconhecidas pelos moradores
locais de Atafona como “tradicionais”. Desde o início da pesquisa utilizava essa
categoria nativa “famílias tradicionais de Campos sem ter uma discussão mais
profunda a esse respeito.
Em agosto, no entanto, resolvi mergulhar nesse universo para melhor
compreender essa categoria. Para tal, optei por reler todas as notas de campo e
entrevistas anteriores, selecionando os nomes que apareciam com mais freqüência e os
citados como de maior destaque. Voltei a procurar, em Campos, pessoas de “família
tradicional” que já havia entrevistado e entrevistei mais algumas buscando saber um
pouco da história de sua família, a relação com o balneário e, sobretudo entender, dentro
daquele universo, o que significava pertencer a uma dessas famílias.
O destaque, dentre os nomes, a que tinha chegado por meio de entrevistas
anteriores, foi por mim confirmado através das colunas sociais antigas de alguns jornais
locais. Passei a freqüentar o Arquivo Municipal de Campos, localizado em Tocos,
aproximadamente, a vinte e cinco minutos do centro de Campos. No Arquivo me
dediquei à leitura das colunas sociais de alguns anos, escolhidos aleatoriamente, das
décadas de 50, 60, 70 e 80, que são as décadas apontadas por essas famílias como as de
maior agitação social no balneário. Concentrei-me nos meses de janeiro e fevereiro
desses anos, pois eram os em que tais famílias estavam em Atafona, sendo assim os que
me interessavam. Nas colunas sociais dessa época, no entanto, as famílias não
apareciam sob o título de “tradicionais”, mas sim como famílias da “sociedade
campista. Começava a se delinear uma questão que se resolveu mais tarde. Como
essa questão só será desenvolvida no último capítulo, ao longo do segundo capítulo será
utilizada a expressão veranistas de Campos para se referir ao grupo das famílias da
“sociedade” ou “tradicionais” de Campos.
25
Fiquei os meses de julho, agosto e parte de setembro com a atenção voltada para
algumas dessas famílias de destaque a que tive acesso. Além de entrevistas, pesquisas no
arquivo e leitura de livros de recordações escritos por pessoas pertencentes a essas
famílias, sempre que encontrava com amigos de Campos, que pertenciam a uma família
tradicional, as “conversas guiadas” eram freqüentes. Aproveitava os momentos de
descontração, fazendo brincadeiras para levá-los a tentar pensar como seus avós e pais
reagiriam diante de determinadas situações e assim ficávamos: Ah, se seu avô visse você
fazendo uma coisa dessas. Uma pessoa de família tradicional não faz isso”.
Com Priscila, pertencente a uma “família tradicional” de Campos e vizinha em
Atafona desde a infância, este tipo de brincadeira passou a animar os fins de semanas em
que ela saía de Campos para me visitar em Atafona. Ela aderiu completamente à fase da
pesquisa que eu estava vivenciando e, em nossas conversas, ia me passando muitas
informações sobre a sua família. Pensávamos, assim, nos conselhos de nossos avós e pais
em relação aos “bons casamentos”, nos ditados sempre evocados, na reação deles diante
dos nossos rompantes de adolescência. Convidava-me ainda para festas, almoços e
jantares que sabia que poderiam me interessar, permitindo-me, assim, uma convivência
intensa no universo privado dessa família que foi de grande valia para a pesquisa.
Passávamos os fins de semana buscando pensar e agir (obviamente, por vezes,
caíamos no deboche) como uma pessoa de família tradicional” de Campos. Assim,
quando íamos à farmácia, por exemplo, e o atendente demorava a nos atender, nos
entreolhávamos e dizíamos entre nós: “Isso é um absurdo sou uma pessoa de família
tradicional. Não posso ser tratada dessa forma!”
Busquei nesses meses, de fato, ficar imersa nesse universo. Junto a Priscila fazia
um esforço para trazer à tona os valores que orientam as suas ações e, por que o,
também as nossas? A proposição de Arno Vogel em O pastor peregrino parece bem
representar tal momento: Para virar o outro de si mesmo é preciso vestir radicalmente
as máscaras sociais, deixando-se levar pelo desempenho do personagem, sendo possuído
pelo papel de maneira conseqüente(VOGEL,1997, p. 66).
É provável que o fato de desde a adolescência possuir uma visão muito crítica
em relação aos valores dessas famílias tenha tornado tal exercício um pouco menos
penoso. tempos, de certo modo, tinha uma relação de estranhamento com o universo
das “famílias tradicionais” de Campos. Morava no Rio de Janeiro e quando ia para
26
Atafona de férias, as brigas com minha avó e mãe eram constantes quando levava algum
amigo em casa e iniciava-se o que chamava de “interrogatório”, no qual a primeira
pergunta era “de que família você é?. As brigas eram muitas e dizia-lhes, com ironia,
que deveriam logo perguntar “qual o salário do seu pai? Sua família tem dinheiro?
Como antropóloga agora, não podia incorporar o discurso da adolescente
rebelde que tinha um entendimento simplista, para os fins da antropologia, do complexo
universo de significados que permeiam a interação das famílias tradicionais” de
Campos.
As entrevistas realizadas nessa “reta final” da pesquisa tinham um caráter
diferente das iniciais, pois a essa altura abordavam questões mais especificas. O tipo de
entrevista realizado na fase inicial facilitou a produção de informações sintomáticas
que correriam o risco de serem censuradas num outro tipo de entrevista”
(MICHELAT, 1982, p. 193). Esse tipo de procedimento permite que o antropólogo não
incorra no erro de impor aos seus informantes categorias que não lhes dizem respeito,
dando condição ao informante de nos levar a ver outras dimensões e a pensar de
maneira mais criativa a problemática que, através deles, nos propomos a analisar.
Esse tipo de entrevista, realizada na fase inicial, chamada de não-diretiva, aberta
ou informal, procura transformar, portanto, o momento da entrevista num “verdadeiro
encontro etnográfico, buscando não privilegiar, a priori, nenhum pedaço do discurso.
Cria um espaço semântico partilhado por ambos os interlocutores, graças ao qual
pode ocorrer aquela fusão de horizonte-como os hermeneutas chamariam esse espaço”
(OLIVEIRA, 1998, p. 24). na fase final da pesquisa, as entrevistas tinham como
objetivo conseguir informações que me ajudassem a compreender o universo de
significações das chamadas “famílias tradicionais” de Campos.
Foi dado destaque a técnica da história de vida, que gozou de grande
popularidade na década de 20 na Escola de Chicago, nessas entrevistas finais. Não de
forma cronológica, ia perguntando aos informantes aspectos da vida privada da família
que conferiam uma base realista ao processo que tais famílias atravessaram por gerações
de frequentação em Atafona.
Michelat coloca que “existe uma espécie de paradoxo no fato de se dirigir a
indivíduos, em suas particularidades, através de suas vivências, de sua personalidade,
para atingir-se o que é social”. No entanto, depois ressalta que o indivíduo é considerado
27
como representativo porque detém uma imagem da cultura à qual pertence. Deve-se
buscar, portanto, em suas palavras “aprender o sistema, presente de um modo ou de
outro em todos os indivíduos da amostra, utilizando as particularidades das experiências
sociais dos indivíduos enquanto reveladores da cultura tal como é vivida” (MICHELAT,
1982, p. 199).
Através de relatos de memória da história de vida e de documentos
de arquivo privado como, por exemplo, álbum de retratos é possível, portanto,
conferir uma base realista a este processo, visto que fornece os detalhes sobre
como tudo isso se manifestou na experiência de vida da pessoa. Formulando-se,
portanto, dados a partir das categorias que pareçam relevantes para as pessoas
estudadas e não formulados a partir de categorias abstratas das teorias.
10
II. 8 - Da necessidade de apresentação nas entrevistas
Grande parte das entrevistas realizadas com membros das “famílias tradicionais”
de Campos deu-se a partir de contatos da rede social de minha avó. Entrevistas gravadas
e transcritas somam um total de 22. Tais entrevistas foram feitas com 13 pessoas e,
portanto, algumas pessoas foram entrevistadas por mais de uma vez.
11
Na maioria das
vezes, atendendo a meu pedido, minha avó ligava, marcava e, em alguns casos, ia junto
para fazer as apresentações. Muitas vezes ainda, não lhe pedia que marcasse nada, mas
quando ficava sabendo que iria visitar uma amiga, ou que teria um almoço, festa de
aniversário ou casamento relacionado a algumas dessas famílias de Campos que
10
Esses relatos sobre história de vida não foram tomados como um retrato fiel da
realidade. Como qualquer outro tipo de fonte, tais narrativas foram submetidas à
interpretação antropológica, levando-se em consideração, nesse caso, as discussões sobre
memória propostas por Michael Pollak (1992).
11
Das trezes pessoas entrevistadas, algumas destacam-se pela sensibilidade ou competência em articular
em suas narrativas situações e casos. Alguns se apresentam como verdadeiros contadores de história
ganhando destaque entre as citações. Quando pensava em não citá-los literalmente, ao tentar escrever com
minhas palavras o narrado, desistia. Impossível fazer melhor. Parecem ter escolhido as melhores palavras
para descrever o que havia sido contado por outras. Tornaram-se, por isso, personagens principais da
etnografia.
28
freqüentavam Atafona, simplesmente, me oferecia para lhe fazer companhia, em
Campos, Atafona ou ainda no Rio de Janeiro.
Houve uma fase, no entanto, em que pensei que como as entrevistas e
observação realizadas estavam atreladas à rede de relações sociais de minha avó, tal fato
poderia trazer um bias à minha pesquisa. Decidi que buscaria me afastar desses contatos
e, através da pesquisa no Arquivo, chegaria a diferentes nomes de destaque da
sociedade, independentemente, das indicações de minha avó e da sua rede de relações.
Nos Arquivos percebi que nas colunas sociais, de fato, havia um nome ou outro que não
me era familiar, mas que a grande maioria conhecia através de informações contidas
em minhas entrevistas. Confirmei ainda que as pessoas entrevistadas e observadas por
mim, tinham grande prestígio social que era expresso naquelas colunas sociais.
Resolvi tentar entrevistar Lia Miriam Aquino Cruz, pessoa de destaque e filha de
um ilustre casal falecido da sociedade campista. Apesar de conhecê-la, esta o era
uma pessoa com quem minha a tinha contato, até por pertencerem a gerações
diferentes. Liguei para Silvia Salgado, colunista social de “família tradicionale amiga
da nossa família, e pedi que tentasse uma entrevista com ela. Achei que essa entrevista
seria a primeira que faria como uma antropóloga mestranda da UFF e não como “neta
de Rosely Sanz Blasi”. Queria saber como seria recebida, sem ser apresentada por
minha avó. Logo no início da conversa, no entanto, Lia Miriam perguntou por minha
avó e família. No dia seguinte, para contrariar ainda mais minha tentativa de fugir aos
relacionamentos da minha avó, saíra uma nota na coluna social informando que a
antropóloga Juliana Blasi Cunha, “neta de Rosely Sanz Blasi”, havia entrevistado Lia
Mirian Aquino em sua casa de praia, em Atafona.
Percebi com tal experiência que as famílias tradicionais” de Campos formam
uma rede de contatos sólida em que todos se conhecem, com maior ou menor
intimidade. É bem verdade que o recomendei à colunista social que não me
apresentasse como neta de”. Não como negar, no entanto, que se aquele o fosse
um pré-requisito importante, o seria mencionado quando ligou para Lia Miriam para
marcar nosso encontro.
Essas afiliações fazem parte de como tais famílias dividem, ordenam, enfim,
classificam seu mundo. Tal entendimento trouxe-me progressos não apenas para a
pesquisa, como também para meu relacionamento em família. A essa altura,
29
compreendia que a clássica pergunta da minha avó para saber qual era a família de meus
amigos não tinha como fundo um simples interesse econômico.
Não havia, portanto, como fugir a identidade de neta de para conseguir
realizar tais entrevistas. Com isso, voltei a utilizar a minha avó para estabelecer contatos
e usá-los a meu favor. Sempre que me marcava uma entrevista, em seguida vinha uma
série de recomendações de minha avó em relação à roupa com que iria, ao cabelo e as
unhas e, sobretudo pedidos insistentes para que me controlasse em relação às gírias e
aos palavrões. Sua satisfação quando recebia um telefonema de algumas das pessoas
entrevistadas e estas comentavam minha boa educação era o que me garantia a
oportunidade de lhe pedir mais um favor.
O fato de pertencer a uma família tradicional” de Campos viabiliza o
estabelecimento de uma boa entrada em suas residências e, de certo modo, na
intimidade do universo privado dessas famílias. Essa minha condição contribui com a
distinta forma através da qual a antropologia constrói seu conhecimento, isto é, o
contato ou a relação com o “outro”.
Refletir sobre a minha própria condição me traz dados para pensar as formas
de sociabilidade dessas famílias. Pude ser eu mesma, em determinados momentos,
minha informante ideal. Pertencer a uma dessas famílias é, para eles, um excelente
predicado que me torna, assim como eles, “gente de bem”, “que tem berço”, “de nível”,
enfim, uma pessoa distinta”! Sempre bem recebida em suas casas com direito a,
dependendo do horário, um lanche ou almoço. Ao fim das entrevistas, recomendações à
família e a oferta de apoio ao que mais precisasse em relação à pesquisa. Através de
minha avó alguns me convidavam, fazendo mesmo questão de minha presença, em seus
almoços e outras atividades festivas.
Minha condição antecipa, de certo modo, a etapa na qual, se assim não fosse,
me ocuparia de conquistar a confiança desses interlocutores para estabelecer condições
mínimas de um bom relacionamento que viabilize o acesso ao interior de suas casas e,
porque o, de suas vidas. O fácil estabelecimento de contato e a boa receptividade
são um material no sentido de pensar em como essas famílias constituem um grupo
coeso que em muito se assemelha com a descrição de Oracy Nogueira envolvendo as
camadas dominantes do Município de Itapetininga. Essas famílias “mantêm
30
expectativas recíprocas de condescendência, simpatia, preferência e proteção entre
si.” ( NOGUEIRA, 1962: 267)
A idéia de trabalhar com a classe dominante de uma determinada sociedade não
me pareceu interessante de início. Os textos lidos na graduação e todas as engajadas
discussões de mesa de bar sobre desigualdades e injustiças sociais me traziam um
conforto em relação a uma culpa que trazia comigo. Dedicar-me aos estudos das classes
desfavorecidas deixava minha consciência mais tranqüila. As Ciências Sociais
pareciam, assim, ter por obrigação o estudo das classes desprivilegiadas, oprimidas ou
dominadas.
A partir de uma escala de valores dos objetos de estudo, o das famílias abastadas
era por mim classificado como hierarquicamente inferior. O estudo dessas classes era
considerado, por mim, um tema menor dentro das ciências sociais. Além desse forte
preconceito que trazia comigo, a excessiva proximidade com as atividades sociais
desenvolvidas por tais famílias no balneário contribuía para que não entendesse como
aquelas práticas, que me pareciam fúteis e sem maiores significados, poderiam ser
submetidas ao crivo da análise antropológica.
Sentia, de certa forma, medo da impressão que pessoas não conhecidas
formariam em relação a uma pessoa que estudava as formas de sociabilidade de uma
determinada classe dominante em um balneário. Era muita futilidade! Acrescenta-se o
fato que, além de haver escolhido trabalhar com a classe dominante, por razões
metodológicas, constantemente, tinha o meu pertencimento ao lugar e, de certa forma, a
uma dessas famílias exposto em sala de aula, colóquios, seminários e congressos. Por
vezes, nessas apresentações acabava me referindo às “famílias tradicionais” de Campos
de forma irônica. O deboche, durante algum tempo, foi um mecanismo utilizado por
mim na tentativa de me diferenciar do grupo estudado. Aos que não me conheciam,
queria deixar claro que, apesar de estar buscando entender a lógica das ações daquelas
famílias, não concordava com aquilo.
Essas questões me acompanharam durante um longo período da pesquisa e
parece que aprendi a lidar com ela pelo fim do ano de 2005. Se é que, de fato,
aprendi. É interessante perceber que o exposto por mim agora, acredito que, com
alguma clareza, durante um bom tempo, foram apenas dúvidas e confusões que, em
31
alguns momentos, me atordoavam em relação ao caminho que estava tomando dentro
das ciências sociais.
Não acredito que a empatia com o grupo estudado seja uma condição
imprescindível para a construção do conhecimento etnográfico, pois, como nos ensinou
toda a discussão teórico-metodológica gerada após a publicação do diário de
Malinowski, esta deve ser metodológica. Como bem ressalta Geertz, “entender a forma
e a força da vida interior de nativos parece-se mais com (...) interpretar um poema, do
que conseguir uma comunhão de espíritos” (GEERTZ, 1997, p.107).
Concordando ou o com os valores que orientam a ação dessas “famílias
tradicionais” ou da “sociedade” campista, como etnógrafa, tinha a missão de percebê-
los, entendê-los e evidenciá-los ao longo de minha etnografia. Acredito, no entanto,
que a fronteira entre a antipatia e o preconceito possui uma demarcação muito tênue
que, se o submetida à intensa reflexão, pode trazer graves conseqüências ao
desenvolvimento dessa tarefa etnográfica a qual me propus. Conseguir submeter meu
ponto de vista, no caso, inicialmente, “ponto de vista nativo”, à análise antropológica
foi sem dúvida tarefa das mais penosas ao longo dessa empreitada. Se o antropólogo
tem uma concepção prévia a respeito da vida de “seus nativos” e não a submete a
exercícios de reflexões e relativizações, como podeele se aventurar no movimento
em direção a buscar entender o ponto de vista do “outro”?
Ciente de que não somos capazes de esvaziar-nos de nossas concepções e
preconceitos a respeito do “outro”, considero que “a fusão de horizontes implica que,
na penetração do horizonte do outro, não abdicamos de nosso próprio horizonte.
Assumimos nossos preconceitos(OLIVEIRA, 1988, p. 199).
É a partir de um prazo externo que somos obrigados a encerrar nosso trabalho de
campo, visto que “o estudo de uma comunidade ou organização não tem um ponto final
lógico. Quanto mais você aprende, mais coisas para apreender(Whyte, 2005, p.
321). Em outubro, não sem alguma dificuldade, dei por encerrado o campo e decidi me
preparar para começar a escrever. Como em Atafona estava morando sozinha, supus
equivocadamente, que o silêncio e a paz de que desfrutava lá me ajudariam no processo
de textualização. Escrever envolve a tentativa de transformar em um texto coerente tudo
aquilo que havia sido vivenciado e observado, implicando, portanto, num desapego do
32
campo. Em início de dezembro, percebi que deveria voltar ao Rio de Janeiro para
avançar na escrita.
Iniciava, então, uma jornada cheia de opções e, a cada parágrafo escrito,
múltiplas possibilidades surgiam nessa tentativa de refazer, o para mim, mas,
sobretudo para o leitor, o trajeto percorrido até aqui. Ao longo da escrita, minha
narrativa me colocava diversas vezes ao dia em encruzilhadas”. Soma-se a essa
dificuldade, o estranho processo de estar “voltando para casa”, que acredito acometer
todo antropólogo que, de certo modo, se afastou, durante algum tempo, de sua cidade,
família e amigos. O desligamento do campo e o estabelecimento de uma nova rotina na
qual horários, personagens e bitos estavam sendo alterados ou substituídos, foi, por
vezes, confuso e inquietante.
o é possível ter certeza se os caminhos seguidos ou opções feitas durante o
processo de textualização foram os mais acertados. Foram, no entanto, os possíveis de
serem tomados no momento da escrita, quando o material empírico ainda estava sendo
“decantado” na e pela etnógrafa.
33
CAPÍTULO II - FESTA DA PENHA: UMA ANÁLISE
SOBRE A FESTA DA PADROEIRA DA CIDADE
I. A saída da procissão
“Me disseram, porém que eu viesse aqui
Pra pedir de romaria e prece
Paz nos desaventos
Como eu não sei rezar,
Só queria mostrar meu olhar.”
Renato Teixeira
O início do cortejo está marcado para as cinco da tarde. Às quatro, no entanto,
uma multidão de devotos já se aglomera na porta e nas adjacências da Igreja de Nossa
Senhora da Penha aguardando a saída de sua procissão. Os devotos da própria cidade
não param de chegar. Soma-se a esses, uma imensa quantidade de romeiros vindos das
cidades vizinhas. A expectativa para o momento da saída da procissão é grande. No
interior da Igreja, todos os 14 andores, que sairão no cortejo pelas ruas da cidade,
estão magnificamente ornamentados e expostos sobre os bancos. De cima da escada, no
interior da Igreja, a profusão de cores das flores que ornamentam os andores compõe
um belo cenário. Em torno de cada andor ficam seus respectivos “guardiões” e fiéis.
O andor de Nossa Senhora da Penha fica exposto logo à direita da entrada
principal da Igreja. Em torno dele, a maior quantidade de devotos querendo se
aproximar é visível. A maior procura de fiéis em torno do seu andor é justificável.
Afinal de contas, esse é o dia dela”, a padroeira da cidade. Nesse momento, que
precede ao início da procissão, um círculo de fiéis se forma em torno do seu andor.
Alguns devotos ajoelham-se aos seus pés e fazem suas orações. Outros buscam apenas
vê-la bem de perto antes do início do cortejo. Desejam conferir se o manto que usará
este ano na procissão está a altura “dela”. Permanecem parados, olhando, como que,
conversando com ela. Muitos querem tocá-la. Fazer-lhe um afago. Aquele momento é
ainda para muitos a oportunidade de renovar seu compromisso com Nossa Senhora da
Penha, visto que, por razões distintas, não poderão acompanhar todo seu cortejo.
34
Aos poucos, a Igreja vai se esvaziando e, em seu interior, apenas permanecem os
responsáveis por cada andor e alguns antigos fiéis com prestígio social elevado na
cidade. O sol se esconde atrás da torre da Igreja, quase se pondo no rio Paraíba do
Sul. São cinco e trinta da tarde, quando tem início a tão esperada procissão de Nossa
Senhora da Penha. O padre, acompanhado de um dos organizadores do evento, vai
anunciando, em ordem, as treze imagens que precedem a de Nossa Senhora da Penha ao
longo do trajeto: Sagrado Coração de Jesus, Nossa Senhora Aparecida, São Judas
Tadeu, Santa Edwiges, Santa Luzia, Santo Antônio, Nossa Senhora de Fátima, São
Benedito, Nossa Senhora das Graças, Santo Expedito, Santa Terezinha, Santa Rita de
Cássia e São José.
Quando Nossa Senhora da Penha, por fim, aparece em seu andor no adro da
Igreja, é chegado o momento da multidão de fiéis, reunida do lado de fora, expressar
publicamente toda sua emoção
12
. A imagem permanece ali parada por alguns instantes
como que dada à veneração. Muitos são os altivos viva Nossa Senhora da Penha!”.
Todos os olhares estão fixos em sua direção. Muitos batem palmas e acenam lenços.
Um senhor, num gesto de reverência, tira seu chapéu para “ela”. Os olhares expressam
um profundo respeito e forte emoção. Incontáveis são os rostos que derramam discretas
lágrimas de canto de olho. Outros tantos se entregam em um desesperado pranto ao ver
Nossa Senhora da Penha no adro, pronta para o início de sua procissão.
***
A procissão terrestre” é, indiscutivelmente, considerada pelos seus
participantes o ponto alto da “Festa da Penha”. Acompanhando a fase preparatória ao
rito, o momento mesmo do rito e suas seqüências finais foi possível obter uma visão
total e constatar que esse é o seu momento de maior dramatização. A procissão
terrestre é, portanto, o ponto crítico que fornece os elementos-chaves para a
1. Naquele momento, os devotos levantam às mãos aos céus, tiram o chapéu, rezam ou choram. Todas
essas o formas aceitas socialmente de expressar emoção na procissão e é dentro desse repertório que os
devotos devem escolher a sua maneira de expressar emoção. Assim, os que não sabem ou querem rezar,
choram para expressar seu sentimento. uma maneira correta, estabelecida socialmente por cada grupo,
de expressar sentimentos. Dizer isso em nada invalida a intensidade ou veracidade do que sentem.
Segundo Mauss: “Não são somente os choros, mas todos os tipos de expressões orais dos sentimentos
que são essencialmente, não fenômenos exclusivamente psicológicos, ou fisiológicos, mas fenômenos
sociais, marcados eminentemente pelo signo da não-espontaneidade, e da obrigação mais perfeita.”
(MAUSS, 1999, p. 323).
35
compreensão do significado da Festa. Tal Festa ocorre desde 1879, no primeiro final de
semana após a Páscoa, no balneário de Atafona.
A “Festa da Penha” pode ser pensada como um elemento aglutinador de três
segmentos sociais distintos que se mobilizam e se articulam em torno desse momento
extraordinário da vida coletiva de Atafona. Pode ser considerada, nos termos de Geertz,
como um dos planos da organização social” desse lugar. Cada um dos planos de
organização social, teoricamente separáveis, consiste em um conjunto de instituições
sociais baseadas num princípio de afiliação completamente diferente, uma forma
diferente de agrupar indivíduos ou mantê-los separados”. (GEERTZ, 1999, p. 280)
No “plano da organização social” do lazer, por exemplo, esses segmentos
sociais participam e se articulam em torno de atividades e instituições diferentes
ficando bem delimitada a distância social existente entre eles. A forma como se
distribuíram e se organizaram pelo espaço de Atafona, isto é, sua morfologia social
também parece indicar a distância social que marca a relação entre os grupos. Além
dessas formas bem delimitadas de estabelecer ou marcar o distanciamento social, a
ainda a que se expressa através de uma bem elaborada etiqueta que orienta a interação
social entre esses segmentos.
Ao longo desse capítulo, buscar-se-á demonstrar como os moradores de São
João da Barra e, sobretudo os moradores locais e veranistas de Campos se articulam e
se representam em torno da Festa Penha e, mais especificamente, em torno da procissão
terrestre. A Festa da Penha pode ser pensada, tal como propõe Geertz sobre a briga de
galos em Bali, como um “evento humano paradigmático”. Buscando ressaltar seu
caráter comunicativo, a Festa se tomada como “uma estória que (...) contam a si
mesmos sobre si mesmos”. (GEERTZ, 1989, p. 209)
Através dessa situação social específica é possível pensar nas relações sociais
estabelecidas entre os principais segmentos que compõem a estrutura organizacional
mais ampla do local. Participam da Festa da Penha pessoas de várias localidades da
região Norte-Fluminense como Grussaí, Gargaú, Ilha da Convivência e do Pessanha,
São Francisco do Itabapoana, São Fidélis e Macaé. Participam ainda devotos do Rio de
Janeiro, Cabo Frio e Minas Gerais, por exemplo. Como em um modelo, isolando os
elementos mais importantes para a compreensão da organização do lugar, será dado
enfoque aos três segmentos mais representativos dessa estrutura: os moradores de o
36
João da Barra e, sobretudo os moradores locais e os “veranistas” de Campos dos
Goytacazes. Uma breve contextualização das relações históricas entre essas três
localidades pode ser útil à compreensão da Festa da Penha e da estrutura organizacional
mais ampla de Atafona.
II. Breve contextualização histórica dos três segmentos
13
A povoação de Atafona teve início no mesmo local onde, desde 1882, encontra-
se a Igreja de Nossa Senhora da Penha. Segundo Lamego Filho:
“em princípios do século XVI todo o terreno onde hoje se acha
a risonha povoação de Atafona, era mar que se estendia até as
proximidades da atual igreja de N.S da Penha. Ali era o pontal
da barra e onde o pescador Lourenço do Espírito Santo, vindo
de Cabo Frio, em 1622, edificará sua morada. Fora ele o
primeiro morador daquela região...junto à sua choupana de
palha, assentará uma atafona (pequeno moinho manual) e foi
a origem do nome dessa povoação.” (LAMEGO, 1941, p.
321).
Logo após a vinda de Lourenço do Espírito Santo, chegaram de Cabo Frio
outros pescadores, quase todos portugueses, que ali também levantaram as suas
palhoças, precursoras da atual Atafona. Nessa ocasião, a região estava abandonada,
visto que, em 1619, o donatário Gil de Góes havia renunciado a Capitania da Paraíba do
Sul devido aos violentos embates com os índios goitacás que habitavam a região. À tal
donatário pertenciam as atuais cidades de Campos dos Goytacazes e de São João da
Barra.
13
Grande parte dessa contextualização histórica é feita com base na obra de Lamego Filho e Alberto
Ribeiro Lamego, dois dos mais ilustres intelectuais campistas. Tanto um quanto o outro aparecem como
referência obrigatória a todos que pretendem estudar a história de Campos e São João da Barra. É
indicado como referência no assunto o apenas no meio acadêmico, mas também por meus
interlocutores de Campos. Ao longo do trabalho de campo, por vezes, deparei-me com volumes das
obras dos dois nas prateleiras das bibliotecas de meus interlocutores. Na própria casa de minha a
encontrei um exemplar de O homem e o brejo um pouco danificado pelas traças, mas com uma
dedicatória a meu falecido bisavô Rafael Blasi.
37
A história da expansão desse povoado para o interior está diretamente ligada a
um infortúnio que se abateu sobre esse pescador. Segundo Lamego, a esposa de
Lourenço do Espírito Santo teria morrido afogada numa vazante da maré não
conseguindo se salvar devido à proximidade do mar. Por volta de 1630, o pescador
decidiu migrar para outro sítio distante “meia légua
14
da foz, onde edificou uma
capela dedicada a São João Batista. Mais uma vez, Lourenço foi acompanhado pelos
outros pescadores e suas respectivas famílias formando ali um povoado que,
atualmente, é a cidade de São João da Barra.
O autor registra anterior a tais fatos, em 1538, a fundação da Vila da Rainha no
extremo do norte-fluminense, ao sul da Barra do Itabapoana. Tal fundação teria sido
realizada por Pêro de Góis, primeiro donatário da Capitania da Paraíba do Sul e pai de
Gil de Góis. Esse povoado, no entanto, o perdurou por muito tempo devido aos
embates com os índios goitacás que habitavam a região.
Em O Homem e a Restinga, Lamego considera que o povoamento definitivo
desse território teria se dado com a chegada dos “Sete Capitães
15
à planície. Em 1627,
Os Setes Capitães obtiveram sesmarias na Capitania da Paraíba do Sul, que havia sido
abandonada por Gil de Góis.
Depois de obtida a posse, não sem dificuldade, os “Sete Capitães” espalharam-
se pelo território levantando currais e iniciaram a exportação de gados para o Rio de
Janeiro. Tal exportação de gados despertou a ambição dos frades jesuítas, beneditinos e
carmelitas.
“Não podendo por meio da hipocrisia entrarem em arranjos e
se apossarem das terras dos sete capitães, propuseram ao
General Salvador Correa de e Benavides, filho do
Visconde de Asseca, que acabava de chegar do Rio de Janeiro
com muitos escravos, de se associarem para, sob o pretexto de
catequizarem os gentios e salvarem aquelas almas perdidas, se
14
Segundo dicionário Aurélio, légua é uma antiga unidade brasileira de medida itinerária equivalente à
6.600m.
15
Os “Sete Capitães” vindos de Portugal se chamavam: Miguel Ayres Maldonado, Gonçalo Corrêa de Sá,
Manuel Corrêa, Duarte Corrêa, Antonio Pinto Pereira, João de Castilho e Miguel da Silva Riscado.
38
apoderarem daquele imenso território dos Campos dos
Goytacazes.” (FEYDIT, 2004, p.40)
Os frades e o general Salvador através de uma trama se apossaram das terras
que haviam sido doadas aos Sete Capitães. Em 1648, por determinação da coroa, essas
terras passaram a suas os. A história dessa época é fortemente marcada por intensas
e violentas lutas pelas terras férteis de Campos.
A vila de Campos teve sua fundação anulada por duas vezes, visto que não era
do interesse de seus novos donatários: os viscondes de Asseca. A criação de núcleos
urbanos acarretaria na chegada da justiça e, possivelmente, destruiria o absolutismo
desses mandatários que no Rio de Janeiro desfrutavam de uma gorda renda proveniente
da criação de gados e dos foreiros dessa Capitania.
A região era então regularmente povoada, mas sem uma vila. É somente em
1677 que o governo intervém e ordena a fundação de vilas na planície. As vilas de São
Salvador e de São João da Praia foram fundadas, então, por Salvador Correa de Sá, sob
intervenção e determinação do governo. A primeira corresponde a atual cidade de
Campos dos Goytacazes e foi fundada em 29 de maio de 1677, possuindo uma igreja
e 150 moradores. a segunda, corresponde a São João da Barra, tendo sido fundada
em 18 de junho do mesmo ano, com 24 moradores e uma igreja em construção.
(LAMEGO, 1945).
As cidades de São João da Barra e de Campos estão atadas pela mesma origem e
vizinhança. A história do desenvolvimento das duas cidades está entrelaçada. As terras
da planície campista são privilegiadamente férteis, no entanto, estão isoladas, não
possuindo saída própria para o mar.
“Além do esforço contra o meio seletivo e da pugna heróica
contra o donatário, resta ainda a grande tarefa de ligar a terra
ao Mundo. De nada vale todo o brilho cultural sem o
escoamento para os produtos e sem o intercâmbio com a
civilização. (LAMEGO, 1945, p. 152).
39
Fonte: http://maps.google.com/
A foz do Paraíba mesmo não sendo francamente navegável, vai servir como
local de escoamento da produção de Campos e também como receptora de idéias novas
que lhe chegam do Rio de Janeiro e da Baía. Sendo uma restinga e, com isso, não
possuindo fatores telúricos favoráveis a um investimento nas atividades agro-pecuária,
São João da Barra irá se desenvolver como um satélite indispensável à vida econômica
e comercial de Campos.
Durante os aproximadamente cem anos (1670-1750), em que perdura em
Campos aquilo que Lamego denomina de ciclo da pecuária”, a navegação pela foz do
Paraíba é escassa. A atividade predominante nessa época, em Campos, era a exportação
do gado para o Rio de Janeiro. A restinga era a estrada natural do gado que da Barra do
Açu marginava o litoral indo a Macaé, Barra de São João e Cabo Frio, de onde, pela
beira das lagunas ia até Niterói. São João da Barra tinha, então, segundo Lamego,
pouca utilidade e a pobreza marcava a vida do lugar.
São João
da Barra
Atafona
40
Por volta de 1750, tem fim o absolutismo dos Assecas. A luta do campista
contra o domínio dos Assecas tem como ícone principal a figura de Benta Pereira.
16
É
nesse período que começa a se desenvolver a cultura da cana-de-açúcar na região de
Campos. É somente com o início do “ciclo do açúcar” de Campos que começa a haver
um incremento na navegação da foz do Paraíba, fazendo crescer a renda da vizinha, São
João da Barra. O início do desenvolvimento de São João da Barra está atrelado,
portanto, à entrada da contígua cidade de Campos no “ciclo do açúcar”.
Em 1792, além da madeira, produtos diretos da lavoura e subprodutos da
pecuária, 4.000 caixas de açúcar anuais, saem por São João da Barra em barcos
quase todos ali feitos”. (LAMEGO,1974 [1946], 276). Em 1827, os engenhos deixam
de ser movidos à tração animal e passam a ser à vapor. Com o desenvolvimento do
“ciclo do açúcar”, prospera o porto de São João da Barra. O incremento da navegação
com o vertiginoso aumento do comércio de Campos demanda um aumento na
construção naval e embarcações cada vez maiores. A uma determinada altura não é
apenas Campos com seu ciclo de engenhos a vapor que se utiliza de tal porto. Descendo
a cordilheira, o café de São Fidélis e de Cantagalo passa a sair também pelo porto de
São João da Barra.
A vida comercial da, então, “Vila de São João da Praia” gira em torno de sua
atividade marítima que cresce na primeira metade do século XIX. O transporte de
mercadorias entre Campos e o porto do mar era feito pelo Paraíba através das famosas
“pranchas”
17
. Gargaú, São João da Barra, Cacimbas e São Fidélis delas se serviam para
transportar lenhas, cereais, farinha, café e açúcar para Campos.
“Sob tal pressão de contingências é que São João da Barra,
em 1868, já conta com cinco estaleiros onde se constroem
brigues e galeras de 10 000 arrobas. Seus mestres armadores
ganham fama. De todo o país chegam encomendas de navios.
Dois milhões de arrobas anuais saem pela foz do Paraíba,
16
Em seu Brazil Pittoresco, Rebeyrolles diz de Benta Pereira: No meio do motim no mais travado da
luta, apareceu uma mulher, que se chamava Benta Pereira, a cavalo como um gaúcho, com pistolas nos
coldres, espadas em punho, que atacava como Joana Darc, e os soldados recuavam quando ela
avançava” apud FEYDIT, 2004, p. 197.
17
Pranchas o longas embarcações de velas latinas que chegam a mais de dois metros de largura. (Brejo,
156)
41
quando surgem as primeiras usinas” (LAMEGO,1974 [1946],
p. 276)
É, inclusive, de um desses estaleiros que saem as primeiras barcas da Cantareira,
para a travessia da Guanabara. Encomendas de navios chegam ado Rio Grande do
Sul. São João da Barra torna-se, então, um dos portos de grande movimentação no
litoral e sob a pressão crescente do comércio a cidade sobe de importância. Como
“herança” dessa época, a cidade possui 4 Igrejas: São João Batista, Boa Morte, São
Pedro e São Benedito.
Em um pequeno guia turístico” distribuído pela prefeitura de o João da
Barra, no verão de 2006, há a seguinte referência ao porto:
“Por este porto, no auge da navegação, passavam cerca de 70
navios por mês. Falavam-se várias línguas no cais.
Especiarias como queijo, feijão, carne, milho e açúcar, além
dos pianos Pleyel, sedas orientais, louças francesas e cristais
de Bacarat circulavam pelo porto. Em 1809, ancorou o Brigue
Real João, para embarcar lenha e açúcar para o Império, no
Rio de Janeiro. Devido à sua movimentação, havia duas linhas
regulares para a Europa: São João da Barra X Hamburgo e
São João da Barra X Liverpool”.
Segundo Lamego, o processo de decadência desse porto se deve às próprias
condições naturais da barra que inviabilizaram o escoamento da crescente produção de
açúcar de Campos com o surto de suas primeiras usinas, aproximadamente, em 1880.
As condições naturais da barra tornaram a exportação deficiente.
“A produção de Campos (...) continua em acelerado
crescimento e a estrangulada foz do rio já não tem capacidade
para escoá-la. Há necessidade de grandes navios. Mas estes só
poderão ancorar com segurança muito ao sul, na bela enseada
de Imbetiba.” (LAMEGO,1945, p. 156)
42
É, então, que o Governo Imperial decide rasgar a braços de escravos os 109
quilômetros do canal Macaé-Campos que se inaugurou em 1872. Estando Campos
ligada à Macaé através desse canal, a produção açucareira escoaria agora pelo porto
marítimo da enseada de Imbetiba. Não demorou, no entanto, para que o canal fosse
obstruído pela vegetação ou assoreado pelas descargas das águas serranas despejadas na
baixada.
A solução encontrada à época foi a estrada de ferro. Três anos após a abertura
desse canal, em 1875, inaugura-se por iniciativa privada, a linha férrea Campos-Macaé,
que logo atrai toda a exportação de Campos para o porto de Imbetiba. Os trilhos, no
entanto, logo são estendidos até Niterói e assim Macaé verá seu porto logo decair.
A navegação de São João da Barra vai com isso definhando. Em 1895 a Estrada
de Ferro Campista chegava à São João da Barra e, pouco depois, em 1897, à Atafona.
Em 1902 a Estrada de Ferro Campista passou a pertencer à firma inglesa Leopoldina
Railway. O porto de São João da Barra, assim:
“mingua aos poucos em concorrência com a Leopoldina, que,
encampando as estradas de ferro, é senhora de todo o
transporte regional. As tarifas ferroviárias baixam, até que o
porto da foz do Paraíba seja aniquilado, e então a companhia
inglesa começa a levantar absurdamente (...) fretes e
passagens (LAMEGO, 1945, p. 158)
O “Estaleiro Modelo” funcionou a1928 e o “Regaleira” até 1924, morrendo,
assim, a indústria da construção naval vinda de tempos coloniais. A navegação foi
aniquilada pelas linhas férreas e estas, algum tempo depois, também entrariam em
desuso com a chegada da estrada asfaltada à São João da Barra, aproximadamente, no
início da década de 60. Pode-se pensar que por trás desse processo não estavam apenas
as condições naturais da estrangulada foz do Paraíba, mas sim, interesses políticos e
econômicos que permitiram o rápido desenrolar de tais acontecimentos. O investimento
em melhorias para auxiliar as condições naturais do porto seria uma opção política que
43
não foi tomada. O comércio regional ficou, assim, dependente da companhia rrea
inglesa e depois passou a ser feito através das estradas asfaltadas.
Interessa aqui saber que ao longo do século XX, a cidade de Campos, através de
suas usinas, prospera de maneira a atingir notoriedade entre os municípios do Estado e,
até mesmo, do país. O município de Campos, durante longo período, alcançou o posto
de principal produtor do setor ucareiro do Estado. Sua classe dominante, com isso,
atingiu repercussão na política estadual e até nacional. Em 1970, Campos era o
município que concentrava o maior número de usinas no Estado do Rio de Janeiro com
15 em funcionamento: Cambaíba, Mineiros, Outeiro, Poço Gordo, Santa Cruz, Cupim,
Novo Horizonte, Paraíso, Santa Isabel, Queimados, Santo Amaro, Santo Antônio, São
João, São José, Sapucaia. A partir, no entanto, da segunda metade da década de 80,
muitas usinas entram num complexo processo que as leva ao fechamento de suas
portas. (NEVES, 1997) Esse processo traz gravíssimas repercussões sobre a vida
econômica e social da cidade.
Com a decadência do seu porto, São João da Barra sobreviveu das tarefas
agrícolas possíveis de serem realizadas no extremo-norte de suas terras
18
e comerciadas
na famosa feira de Gargaú; da fabricação de vassouras e palhões, do açúcar da Usina
Barcelos, da pesca e da fábrica de conhaque de alcatrão, fundada em 1915, por Joaquim
Tomás de Aquino.
As duas cidades vizinhas, gêmeas em sua fundação, seguiram, portanto,
caminhos distintos ao longo do século XX. Não tendo alcançado São João da Barra o
mesmo destaque da proeminente vizinha Campos, ficou dela dependente para muitos
serviços que o possuía ou possuía com menor qualidade e quantidade, como bancos,
escolas e hospitais, por exemplo. São João da Barra passou, portanto, de irmã-gêmea à
“prima pobrede Campos, a quem com freqüência seus moradores tinham que recorrer
em busca de serviços ou empregos.
O interesse econômico de Campos pela saída para o mar de o João da Barra
foi o elemento que, inicialmente, estreitou a relação entre as duas cidades. Mesmo com
a decadência do porto, no entanto, o campista continuou a procurar as terras são-
joanenses, mais especificamente, a cidade de Atafona. O interesse predominante, no
entanto, passou a ser as atividades ligadas à prática de vilegiautura.
18
Tais terras não mais pertencem ao município de São João da Barra. Após a emancipação, em 1996,
passaram a fazer parte do Município de São Francisco do Itabapoana.
44
Desde fins do culo XIX e início do XX, algumas poucas famílias de Campos
começaram a freqüentar o balneário de Atafona no verão”, seus meses de rias.
Inicialmente, alugavam casas rústicas construídas por são-joanenses, que a
freqüentavam. Raros eram seus moradores nessa época, visto que a maioria dos
pescadores da região habitava a Ilha do Pessanha e da Convivência. Ao longo do século
XX, os campistas vão construindo diversas residências de vilegiatura pelo balneário. A
presença desses vai atraindo serviços para Atafona e tais serviços, cada vez mais,
veranistas. Ter uma residência de vilegiatura em Atafona torna-se um dos símbolos de
status do campista.
Feita a contextualização das relações históricas estabelecidas entre as três
cidades, interessa, agora, saber como moradores de São João da Barra e, sobretudo os
moradores locais e veranistas de Campos se organizam em torno de um evento crucial
de Atafona: a “Festa da Penha”. É a partir da análise da Festa da Penha e, mais
especificamente, da procissão terrestre que se buscará pensar na dinâmica da vida social
de Atafona.
III. A estrutura da Festa da Penha
A devoção a Nossa Senhora da Penha de França se
fixou no Brasil por volta de 1655 nos arredores do
Rio de Janeiro. Tal devoção é de origem
portuguesa, sendo uma reminiscência das inúmeras
invocações de Nossa Senhora da Rocha, da Penha,
do Penedo, da Serra, da Lapa e de Nazaré. Na
cidade do Rio de Janeiro, o fundador da primitiva
capela da Penha foi o Coronel Baltasar de Abreu
Cardoso. Segundo a tradição oral, o coronel estava
caçando quando foi surpreendido por uma cobra
que ameaçava devorá-lo. Ajoelhado no chão com as
mãos súplices ao céu, exclamou: “Valha-me Nossa
Senhora da Penha!” No mesmo instante, um lagarto indolente, de forma inesperada, se
aproxima e espanta a gigantesca cobra. Em agradecimento a tal milagre, o coronel
Arquivo privado Rosely Sanz Blasi
45
constrói na crista de um rochedo a ermida de Nossa Senhora da Penha, no Rio de
Janeiro, dando origem ao bairro da Penha, zona norte do Rio de Janeiro.
Até as primeiras décadas do século XX, a Festa da Penha, no Rio de Janeiro, era
uma verdadeira romaria portuguesa, com as características do arraial”, romeiros
enfeitados com flores de papel e cantos. A multidão enchia o alto penedo onde se
abrem os 365 degraus simbolizando os dias do ano. O “dia dela”, no Rio de Janeiro, 3
de outubro era festa nacional, para a colônia portuguesa e para os numerosos devotos
brasileiros. (MORAES FILHO, 1979)
Festa da Penha, 1912: Em primeiro plano, de pé, da esquerda para a direita, João
Pernambuco, de chapéu branco, segurando o violão, Patrício Teixeira, de terno branco,
Pixinguinha, com a flauta, e Caninha, com o cavaquinho.
Fonte: http://cifrantiga3.blogspot.com/2006/09/festa-da-penha.html
Essa devoção criou ainda a ambiência para uma das mais importantes ocasiões
de encontros entre os sambistas cariocas. Personalidades que consolidaram esse gênero
musical urbano, como Tia Ciata, Pixinguinha, Donga, João da Baiana, Noel Rosa e
Cartola freqüentaram a festa em diferentes tempos e dedicaram a ela um vasto
repertório de composições. Dia 3 de outubro, antecedendo ao carnaval carioca, a Festa
da Penha era uma das mais importantes festas de largo da cidade.
Já, em Atafona, a Igreja e a Irmandade de Nossa Senhora da Penha são produtos
da época em que São João da Barra tornou-se um conhecido porto na região. As obras
de construção da Igreja de Nossa Senhora da Penha tiveram início em 1878. O pequeno
46
templo foi edificado no mesmo local onde existia a primeira choupana levantada pelo
pescador pioneiro, Lourenço do Espírito Santo
19
. A sua construção deve-se a iniciativa
de funcionários de uma companhia de navegação a vapor de São João da Barra, que
conseguiram apoio financeiro dos administradores da empresa para a construção do
templo. A Igreja ficou pronta em 1882, quatro anos após o início de sua construção.
A Irmandade de Nossa Senhora da Penha constituiu-se em 1878, sendo,
inicialmente, formada por moradores de São João da Barra.tiveram, no entanto, seu
primeiro estatuto aprovado em 1931 com o nome de Compromisso de Devoção
Religiosa de Nossa Senhora da Penha onde figuram a composição da Irmandade e as
diversas atribuições de cada um dos seus integrantes. Nessa fase, os cargos
administrativos estiveram nas mãos de famílias de moradores de São João da Barra,
sendo muitos desses cargos hereditários.
A partir de 1950, através de reportagens da coluna social do jornal “A Notícia”
de Campos dos Goytacazes, é possível, no entanto, notar também a intensa
participação dos veranistas de Campos nas questões relacionadas à reforma da Igreja e
à Festa da Penha. As festas benemerentes para as obras de melhoramento da Igreja
passam a fazer parte da lista de eventos sociais promovidos e, de todo modo, ligados a
esses veranistas, conforme lembrado por muitos interlocutores e encontrado nas colunas
sociais da época.
20
“Grande sucesso obteve a Sra. Edith Blasi com a festa em
benefício das obras da Igreja Nossa Senhora da Penha,
realizada nos salões do Cassino de Atafona. Festa muito
concorrida e animadíssima (...) Mais uma vez vitoriosa a
iniciativa e o trabalho da simpática senhora.”
19
Por ter sido construída no mesmo local em que o pescador chegou é comum que as histórias se
confundam e a fundação da Igreja seja a ele atribuída. Tal informação equivocada encontra-se em livros
de recordação sobre Atafona e no discurso de algumas pessoas.
20
O colunismo social em Campos tem início nesse período quando Hélvio Santafé, influenciado pelas
colunas sociais do notável jornalista Jacinto de Thormes, propõe a Hervê Salgado Rodrigues, dono do
jornal A Notícia” em Campos, uma coluna social em seu jornal. Segundo Santafé, em seu livro
Brummell, o society que vivi, a proposta foi de pronto aceita. A coluna social em Campos teve grande
destaque durante muitos anos. Faziam mesmo parte da vida do campista, sobretudo das famílias da
“sociedade”. A pesquisa feita nelas foi de grande valia para o enriquecimento dessa etnografia.
47
As senhoras, pertencentes à “sociedade campista, que participavam e
promoviam tais eventos ficaram conhecidas como damas de Nossa Senhora da
Penha”, chegando, por vezes, de fato, a fazer parte da Irmandade. Na maioria dos
casos, essas senhoras contavam com o apoio e a contribuição financeira de seus
maridos, pais e sogros ou, em alguns casos, apenas com seu próprio prestígio social.
Em Atafona, embora ainda não estivessem concluídas as obras da Igreja, teve
vez a primeira Festa da Penha em 1879. O complexo ritual que compreende a Festa da
Penha tem início na primeira sexta-feira após a Páscoa, terminando apenas na segunda-
feira à noite, após a procissão terrestre. Estando ligada à Páscoa, período que marca a
aparição de Cristo entre os homens, a Festa da Penha caracteriza-se como um rito de
calendário”, no caso, o romano. É, portanto, uma data móvel que se situa numa escala
cronológica cíclica.
III.1 - O Tríduo
“Na sacristia da famosa igreja o sacristão andava
numa roda viva. Corria daqui para acolá, já atendendo
aos portadores de promessas, já colocando em seus devidos
lugares os milagres de cera, de ouro e de prata,
as velas e painéis votivos que a gente da redondeza,
trazia nas vésperas do dia solene”.
Mello Moraes Filho
A Festa, em Atafona, inicia-se sempre, na sexta-feira, com uma missa de
abertura que se realiza no final da tarde. Tal cerimônia marca o início do tríduo, que
compreende o período de preparação dos devotos para o grande dia festivo de Nossa
Senhora da Penha: a segunda-feira ou o dia dela”. Durante o tríduo, a Igreja
permanece aberta quase o dia inteiro para a visitação, oração dos devotos, atendimento
de confissões, entrega de ex-votos, batizados e uma missa por dia. No sábado, a missa
realiza-se às sete da noite e no domingo às dez da manhã.
“Além de separar a ocasião especial do dia-a-dia, preparar
significa envolver. E envolver tem um sentido complexo. Não
48
se trata apenas de atrelar as pessoas a um determinado curso
de ações, conferindo-lhes certos papéis, mas de comprometê-
las com um processo orientado para um foco: o rito.”
(VOGEL, 1997, p. 78).
Não missas, confissões, terços e ladainhas, marcam o período do tríduo da
Festa da Penha. A quermesse na praça da Igreja aguarda os devotos para a diversão.
Famílias de moradores do lugar são, grosso modo, os responsáveis pelas barraquinhas,
que são montadas dias antes para que nesse momento estejam funcionando
ativamente. É ali que as pessoas vão passear ao sair da Igreja.
Nessas barracas encontram-se bebidas e comidas locais. Os doces em calda
feitos com frutas típicas da região como, por exemplo, o caju e a goiaba, tem presença
garantida. É possível ainda degustar caranguejos, abundantes nessa região de
manguezais. A “piruinha” e a “salsinha da praia” também estão presentes
21
. A Praça é
um ponto de encontro. Ali as pessoas vão para se divertir e, ainda para marcar sua
presença e observar os que estão presentes.
Passear na praça compreende além de sentar para comer e beber alguma coisa
com a família, “brincar” em uma das barracas de jogos como os de argola ou tiro ao
alvo. Ali se encontram em clima de descontração e informalidade moradores locais, de
São João da Barra e veranistas de Campos. A praça funciona, no entanto, como uma
continuação das atividades sagradas realizadas no interior da Igreja. o parece haver
uma oposição entre tais universos, mas sim uma coexistência entre o respeito e uma
certa informalidade.
É importante perceber que, no início da Festa da Penha, estão presentes alguns
veranistas de Campos que, ou ficaram direto da temporada de verão, ou que estavam
em Campos e tiveram a oportunidade de vir desde o início da Festa. A grande maioria
desses, no entanto, chega à Atafona, apenas na segunda feira.
Uma das atrações da Festa da Penha são os leilões realizados no domingo à
noite, no coreto dessa praça. Tais leilões são organizados pelas “damas de Nossa
Senhora da Penha” de Campos que, através de seu prestígio, obtêm a doação de prendas
21
“Piruinha” é uma mistura da cachaça, gelo e o caldo-de-cana tirado na hora. a “salsinha da praia” é
uma cachaça artesanal curtida na salsa, vegetação rasteira que nasce próxima à foz do Paraíba,
característica à restinga.
49
como carneiros, galos de briga e até bois para serem leiloados. Tratando-se de um leilão
não é difícil compreender que deste participavam com certa competição no “quem
mais” os veranistas de Campos e alguns poucos mais abastados de São João da Barra.
A renda de tais leilões, assim como a das barraquinhas da quermesse é revertida para a
Igreja. É na praça ainda que se realizam serestas e apresentações de “bandas de
músicas”.
No sábado e domingo, durante o dia, realizam-se competições esportivas e
brincadeiras como o “pau de sebo”, “cabo de guerra” e corridas de bicicleta. Tais
atividades preenchem o dia de sábado e parte do domingo. Dessas brincadeiras
participam os moradores locais e de lugares vizinhos, em sua maioria pescadores.
Rivalizam no cabo-de-guerra, por exemplo, os moradores da Ilha da Convivência
contra os do Pontal ou os de Gargaú contra a Ilha do Pessanha. Os veranistas de
Campos e moradores de São João da Barra divertem-se assistindo as acirradas disputas
entre os bravos competidores. São ainda, em alguns casos, os responsáveis por financiar
o prêmio obtido pelos vencedores.
Encerrando o tríduo ocorre no domingo a “procissão fluvial”. O cortejo sai por
volta das quinze horas da Igreja da Penha. Na Igreja, há duas imagens de Nossa
Senhora da Penha: uma grande que pesa, aproximadamente, 60 quilos e ocupa o altar-
mor; e uma segunda, menor, que fica no oratório. Na procissão fluvial, a imagem
carregada pelos devotos é a pequena. O cortejo segue pelas ruas percorrendo um trajeto
até o porto da “baixadaou “favela do sapo”
22
, onde residem famílias de moradores
locais, em sua maioria, ligados, direta ou indiretamente, a atividade pesqueira. Nesse
porto, os devotos se dividem entre os barcos de pesca que seguirão o trajeto, mais ou
menos enfileirados, até a Ilha da Convivência, localizada no delta do Paraíba.
Participam dessa procissão os pescadores não só de Atafona, mas também
daquela região toda como, por exemplo, de Gargaú, de São João da Barra e das Ilhas da
Convivência e do Pessanha. O barco, sorteado para conduzir a imagem de Nossa
Senhora da Penha em seu casario, vai à frente, puxando a procissão. Ao longo do
trajeto, muitos devotos conversam, fazem brincadeiras e, alguns, consomem bebidas
alcoólicas. Os trajes são condizentes com o horário e o local onde a procissão se realiza,
sendo usual as bermudas, camisetas, pés descalços e sandálias. Tal clima de
22
Esse é um dos, aproximadamente, cinco pequenos portos onde os barcos atracam ao longo do rio
Paraíba do Sul na cidade de Atafona.
50
descontração e informalidade, em nada anula ou põe em jogo o profundo respeito a
Nossa Senhora da Penha que expressam nessa procissão.
Todo esse traslado da imagem de Nossa Senhora da Penha ocorre sob a
vigilância de Roberto, morador de São João da Barra e membro da Irmandade de Nossa
Senhora da Penha. Roberto atua como uma espécie de guardião” ou “protetor” da
imagem. Além de zelar pela imagem ao longo das duas procissões e, em todos os
momentos da Festa, é ainda Roberto, ajudado por seu filho Gugu, quem cuida da
retirada das imagens do altares, da sua amarração e ornamentação nos andores.
Na Ilha da Convivência, os fiéis descem dos barcos e, em cortejo, conduzem a
imagem até a capela de São Sebastião, onde a ladainha será rezada. Terminada a
ladainha, seguem para a vizinha Ilha do Pessanha. De acordo com o horário e as marés,
forma-se um braço de areia ligando as duas ilhas e é por ali que o cortejo segue a pé.
Na capela de Nossa Senhora da Conceição, da Ilha do Pessanha, mais uma ladainha é
rezada. Já ao entardecer, os devotos, levando o andor, retornam para a Ilha da
Convivência, onde embarcam de volta a Atafona. É dessas duas ilhas que vieram
muitos dos pescadores de Atafona. Dali, saíram e, ainda saem, famílias de pescadores
que se instalam no Pontal de Atafona atraídos, inicialmente, por alguns serviços dos
quais não dispunham. Essas duas ilhas, portanto, além de seus lugares de origem, são
onde se encontram ainda muitos de seus parentes.
é quase noite quando a procissão chega à Atafona. O cortejo, no entanto, não
retorna ao mesmo porto de onde saiu. Sua chegada é aguardada com uma bonita queima
de fogos no porto da Igreja da Penha, mesmo local onde chegou, em 1622, o fundador
Lourenço do Espírito Santo. Nesse porto ao lado da Igreja, reunidos aguardando a
chegada da procissão, encontra-se uma grande quantidade de fiéis. Entre eles estão
veranistas de Campos, moradores de São João da Barra e moradores locais, que o
participam dessa procissão, mas aguardam sua chegada com grande expectativa.
Enquanto a imagem recebe os aplausos, os “viva Nossa Senhora da Penha!” e a
queima de fogos, os que estão chegando o tratando de encostar os barcos para todos
descerem. Forma-se novamente um cortejo que por terra segue ao adro da Igreja,
onde Nossa Senhora secoroada, consagrada “rainha” de Atafona. Essa homenagem
dos pescadores é por vezes apontada como um dos momentos mais emocionantes da
51
Festa. Após a coroação, os devotos divertem-se com o concorrido leilão e a quermesse,
encerrando-se, assim, o tríduo da Festa da Penha.
III.2 - O “dia dela
E eram tantos os que deixavam uma lembrança palpável
de seu extraordinário poder! (...) Quantos quadros representando
as curas milagrosas, navios escapos ao naufrágio (...)
lá estão para atestar que a ciência humana
não vale uma sombra de confiança na misericórdia divina!”
Mello Moraes Filho
A segunda-feira inicia-se logo cedo com a alvorada convidando os devotos para
o dia festivo. A banda-de-música “União dos Operários”, existente em o João da
Barra desde 1892, percorre as principais ruas do balneário acordando os fiéis. Alguns
“festeiros”, normalmente de Campos ou São João da Barra, tratam de recebê-la em suas
casas com um farto café- da- manhã. Junto à alvorada, estão alguns foliões que viraram
a noite na farra e, agora, percorrem as ruas do balneário acordando a população e
desfrutando do bolo, café, fruta, pão e suco oferecidos.
Às dez da manhã inicia-se a missa solene de Nossa Senhora da Penha. A porta
da Igreja é tomada por automóveis com pessoas que chegam para assisti-la, sobretudo
de Campos. Esse é o momento em que muitos devotos campistas, freqüentadores desse
balneário, que o puderam vir desde o início da Festa, chegam. Os lugares no interior
da Igreja são concorridíssimos. É necessário chegar cedo ou, então, contentar-se em
tentar assistir a missa ao lado de fora da Igreja, como acontece com muitos.
A missa termina, aproximadamente, ao meio-dia. Os fiéis encaminham-se para
suas casas ou, em outros casos, para a de algum parente ou amigo que esteja oferecendo
um almoço. Em tais ocasiões não podem faltar os famosos robalos e camarões VG da
região. No caso de “festeiros” de Campos, esses trazem de lá suas "banqueteiras"
23
para
garantir o sucesso da reunião. Após o rmino do almoço, tais agrupamentos de
23
Segundo Aurélio, Banqueteiro. [De banquete + eiro] S.m. Aquele que prepara banquetes ou refeições
de culinária esmerada.
52
parentesco e convívio permanecem reunidos em suas casas aguardando o momento de
ir para a Igreja antes da saída da procissão.
Pode-se dizer que todos os moradores e freqüentadores de Atafona, presentes na
ocasião, de certo modo, participam da “procissão terrestre”. A mobilização na cidade é
geral. Moradores de Atafona, veranistas, católicos, ex-moradores, espíritas, moradores
dos arredores, enfim, todos os presentes, acabam participando, de alguma maneira,
desse evento. Os que não participam como atores, acabam por fazer parte do público.
Há os que se realizam assistindo a sua emocionante saída ou chegada na porta da Igreja.
Muitos permanecem em casa para que quando ela passe a casa esteja com portas e
janelas abertas, com as luzes acesas e pessoas no portão para saúdá-la. Como é uma
procissão, até aqueles que não se interessaram em ir à Igreja ou acompanhá-la, ao
perceberem que ela se aproxima, se põem, mesmo que por curiosidade, do lado de fora
da casa para vê-la passar.
Arquivo privado Rosely Sanz Blasi
A grande maioria de fiéis, entretanto, faz questão de acompanhar a procissão
por todo seu trajeto. Muitos o percorrem de s descalço, pagando uma promessa.
Inúmeros são o que desejam carregar o andor em seus ombros por alguns instantes da
procissão. ainda os que a acompanham carregando membros de cera, os chamados
53
ex-votos, em agradecimento ao milagre de uma cura. O sacrifício para alguns consiste
no fato de vir de longe a qualquer custo para participar da Festa; estes são os romeiros.
Muitos ainda peregrinam para obter a graça de uma dádiva, como, por exemplo,
uma cura, um bom emprego ou ainda o retorno de um amor perdido. Nem um pouco
preocupados com um padrão de “racionalidade” ou com a relação entre causa e efeito
de seus atos, esses fiéis acreditam em uma relação direta entre o ato sacrifical de
peregrinar e a obtenção ou agradecimento de algum beneficio recebido por interseção
da padroeira. A idéia do sacrifício é comum a todos os que estão ali, tanto para fazer ou
pagar uma promessa. Esse é o momento do devoto fazer um pedido firmando um
“contratocom Nossa Senhora da Penha, ou retribuir a graça obtida, cumprindo com
sua parte no “contrato” estabelecido quando da aflição
24
.
A saída da procissão acontece no fim do dia, às cinco da tarde. O andor de
Nossa Senhora da Penha é o último a sair da Igreja. Nessa procissão, a imagem de
Nossa Senhora da Penha conduzida pelas ruas é a maior e mais antiga das duas que
ficam na Igreja. Além da ornamentação do andor com flores, a imagem sai toda
enfeitada com um lindo manto, colares, anéis e coroa de ouro. Todos esses acessórios
são doações de seus fiéis em retribuição a uma graça obtida.
Na saída da procissão, apenas alguns homens da Irmandade, devidamente
trajados com camisa social e calça comprida, podem carregar o andor de Nossa Senhora
da Penha. Cumprindo as prescrições, características a todo e qualquer ritual, é
necessário ainda que tais homens vistam a opa, uma espécie de jaleco branco com uma
grande gola azul por cima, que os distingue enquanto membros da Irmandade. Esses
homens são moradores de São João da Barra ou Atafona e exercem a função de
“guardiões” de Nossa Senhora da Penha. São três carregando o andor na frente e mais
três atrás.
Junto a esses “guardiões”, saem da Igreja, ao redor do andor de Nossa Senhora
da Penha, alguns veranistas de Campos e moradores de São João da Barra. A imagem
de Nossa Senhora da Penha é o objeto central desse rito. Para ela, todas as atenções
estão voltadas. É próximo a ela que todo e qualquer devoto deseja acompanhar o
cortejo. A proximidade com o objeto sagrado indica as posições de destaque que alguns
veranistas de Campos e moradores de São João da Barra ocupam na hierarquia local.
24
Sobre o papel do sacrifício nos rituais, ver especialmente Mauss, [1899]2001.
54
Essas pessoas têm como que lugares reservados ao lado do andor, ocupam lugares
sociais de destaque na procissão. Muitas dessas pessoas pagam também suas promessas
carregando o andor ou acompanhando o trajeto descalço, no mesmo espírito de
sacrifício dos outros devotos que flutuam” em seus arredores buscando um lugar
próximo ao objeto sagrado.
Edith Blasi, uma das “damas de
Nossa Senhora da Penha”, é uma senhora
que possui um nítido papel de destaque
nesse cortejo. Seu lugar na procissão,
cativo anos, é a frente, quase em baixo
do andor. O respeito e consideração dos
“guardiões” de Nossa Senhora para com
ela são nítidos. Sempre que a procissão
pára a fim de receber alguma homenagem
e o andor será posto nas “forquilhas”
25
, o
cuidado com D. Edith está presente. “Vai
parar, D. Edith. Chega mais para frente.
Cuidado com a cabeça. Tudo bem com a
senhora?. Assim como D. Edith, outros
são os veranistas de Campos e alguns
moradores de São João da Barra que
conquistaram lugares sociais de destaque
nesse concorrido cortejo. Essas pessoas
formam uma espécie de núcleo rígido em torno do andor e, em volta desse, encontra-se
a massa “flutuantecomposta por todos os outros devotos que não desfrutam de tanto
prestígio na vida social de Atafona.
A procissão obedece, ainda, a um itinerário pré-estabelecido, visto que
“etimologicamente, o ritual se define (...) como a maneira certa de fazer algo, como o
procedimento correto (=prescrito) que garante o desfecho certo de um plano de ação”.
(Vogel, 1997, p. 24). Saindo da Igreja, o cortejo segue em frente pela Avenida Nossa
Senhora da Penha. Após quatro quarteirões, entra à direita na Rua Feliciano Sodré,
25
Segundo Aurélio, Forquilha. [do esp. Horquilla] 2. vara bifurcada na qual descansa o braço do andor;
descanso.
Arquivo privado Rosely Sannz Blasi
55
mais conhecida como “Rua do Clube”. Percorridos mais quatro quarteirões, dobra
novamente à direita na Rua Carlos Silva de Oliveira ou “rua do Meirelles”. Dali, segue
reto atravessando mais cinco quarteirões até a Rua Carmelita Nascife. Nessa rua, o
cortejo dobra à direita vencendo mais quatro quadras até, finalmente, atingir a Avenida
Nossa Senhora da Penha. A procissão chega, portanto, pela lateral direita da Igreja e se
dirige ao adro, onde a imagem será coroada (ver anexo I).
Em condições normais é possível percorrer, caminhando tranquilamente, esse
trajeto em trinta minutos. Tratando-se, no entanto, da procissão da padroeira da cidade
o itinerário é percorrido em, aproximadamente, três horas. A demora para percorrer o
trajeto deve-se ao fato de que a procissão, além de caminhar a passos lentos, tem como
uma das principais características as diversas paradas que faz.
São dois os motivos principais de tantas paradas ao longo do trajeto. A
primeira é a grande quantidade de homenagens que a padroeira da cidade recebe pelas
ruas do balneário. Os donos das casas por onde a procissão passa querem prestar sua
homenagem a “ela”. A cada queima de fogos, a procissão pára a fim de receber a
homenagem. Ouve-se: Viva Nossa Senhora da Penha!” e os devotos no cortejo
respondem “Viva!”. Os donos das casas aguardam a procissão com as luzes acesas e
janelas abertas, em frente ao portão. Outra homenagem comum são quadros votivos que
se acendem, após explosões de faíscas coloridas percorrerem sua moldura.
Há pontos em que as homenagens são prestadas conjuntamente por alguns
vizinhos. Estes elaboram, por exemplo, uma rede cheia de talas de rosas que possa
ser presa no alto para que quando a procissão passe seja solta em cima da imagem de
Nossa Senhora da Penha, numa belíssima homenagem. Cada casa com sua respectiva
família quer a cada ano prestar uma homenagem mais bonita, abrilhantando, assim, o
cortejo. Todos que acompanham o cortejo sabem qual a casa e a família responsável
por cada homenagem prestada ao longo do trajeto. Essas homenagens contribuem para
o estabelecimento e o reforço da identidade dessas famílias em Atafona.
É interessante perceber que esse cortejo percorre as ruas principais” de
Atafona. Nessas ruas localizam-se, em grande e quase absoluta maioria, as residências
de vilegiatura de famílias de campistas e algumas poucas de São João da Barra
26
. Os
que têm a oportunidade ficam direto do verão a a Festa. Outros, já estavam em
26
A rua Feliciano Sodré, uma das mais largas e compridas de Atafona, por exemplo, foi conhecida
como Avenida dos Campistas.
56
Campos e voltaram, especialmente, para essa ocasião em que devem abrir suas casas
marcando presença. Ao mesmo tempo em que esses prestam uma homenagem à
padroeira do lugar, estão também sendo homenageados, visto que uma procissão ao
percorrer um determinado caminho, consagra-o. Nesse caso, o caminho consagrado
pela procissão de Nossa Senhora da Penha é o que compreende as ruas onde se
localizam as suas residências de vilegiatura, ressaltando o papel de destaque que tais
veranistas ocupam no âmbito da organização social local.
casos ainda em que o andor faz um pequeno desvio em seu trajeto para
homenagear um festeiro ou devoto, em geral de Campos ou São João da Barra. Ao
passar na rua perpendicular à casa de tal devoto, o cortejo pára e os guardiões” de
Nossa Senhora da Penha conduzem o andor até a frente da casa do homenageado,
retornando logo em seguida a fim de prosseguir seu itinerário. Em alguns casos, tal
desvio justifica-se pela idade avançada que o permite mais ao devoto acompanhar a
procissão. Em outros, é uma homenagem mesmo em agradecimento aos recursos e
serviços prestados em prol da Igreja e da Festa. Em tais homenagens revela-se a
importância de determinadas pessoas na cidade.
A outra razão para tantas paradas ao longo do percurso é a troca de devotos que
desejam carregar o andor nos seus ombros pagando ou estabelecendo suas promessas.
Para carregar o andor de Nossa Senhora da Penha uma restrição: o devoto não
pode trajar bermuda ou camiseta. Estando devidamente vestido de calça e blusa, ao
menos, meia manga, o devoto tem apenas de aguardar a sua vez.
Os guardiões”, sob a supervisão de Roberto, vão escolhendo fiéis que regulem
mais ou menos a mesma altura. A preocupação com a estatura dos devotos é
importantíssima para que o andor o pese muito mais para um, correndo o risco de
pender para um dos lados. O papel dos “guardiões” é, portanto, de extrema importância
para evitar possíveis acidentes ao longo do trajeto. Através de gestos ou palavras,
Roberto ordena que o andor pare. Os “guardiõeso sustentam nas forquilhas para que
os devotos que o carregavam saiam e os próximos assumam seu posto. Cada devoto
carrega o andor por, aproximadamente, dois minutos variando conforme a resistência
física de cada um e a quantidade de fiéis que aguardam para carregá-lo.
Estando com a roupa adequada, a altura do pretendente é o único princípio que
define a escolha dos próximos fiéis a carregar o andor. A pessoa de mais elevado status
57
na organização social de Atafona terá de esperar até que apareça alguém de sua estatura
para, lado a lado, dividirem nos ombros o peso do andor. A palavra de ordem agora não
é status, mas, sim, estatura. O sacrifício coloca os devotos em igualdade de condições.
Nesse momento, independente das habituais distinções que orientam a interação social
entre esses segmentos, todos pertencem à mesma categoria: devotos de Nossa Senhora
da Penha.
Após, aproximadamente, três horas de muitas homenagens e paradas para
revezamento dos fiéis, o cortejo retorna ao adro da Igreja. Ali, Nossa Senhora da Penha
será coroada e consagrada a “rainha” de Atafona, encerrando, assim, a sua Festa.
***
Tal descrição foi elaborada e desenvolvida a partir de narrativas de moradores
locais, de São João da Barra e de veranistas de Campos sobre a Festa da Penha "de
antigamente". É difícil precisar a data a que se referem porque tais interlocutores
utilizam-se, frequentemente, de categorias temporais tais como “antigamente” ou “no
passado”. Em suas narrativas, referem-se a uma Festa da Penha idealizada que
compreende, grosso modo, as décadas de 50 a 80.
Toda e qualquer alteração pela qual a Festa tenha passado ao longo dessas
décadas são anuladas e reduzidas à Festa de antigamente”. O itinerário, por exemplo,
nem sempre foi exatamente o mesmo, bem como o número de santos, em seus
respectivos andores, cresceu nas procissões realizadas entre as décadas de 50 e 80. O
percurso descrito acima, no entanto, é o mencionado, freqüentemente, como sendo o
“antigo”. Existe, pois, no discurso social dos moradores e freqüentadores de Atafona,
duas Festas da Penha: a antiga e a de agora. Essas narrativas do passado ressaltam, na
verdade, as mudanças em relação à “Festa de hoje”.
Essa é uma descrição de “segundo-grau”, feita a partir das narrativas de
experiências de terceiros em relação à Festa. Não foi construída a partir de minha
observação ou experiência pessoal, não correspondendo, portanto, à “descrição densa”
proposta por Geertz
27
. O relato da “Festa antiga” nesse texto, no entanto, se justifica
pelo fato de que eram imagens esparsas dessa Festa que tinha em mente quando
27
GEERTZ, 1989.
58
cheguei ao campo, em 2005, para acompanhar a Festa da Penha como etnógrafa. Era
essa a Festa sobre a qual me contavam meus informantes nas entrevistas e conversas
guiadas” que havia feito até então. Tais recordações, narradas por meus interlocutores,
confundiram-se com as minhas da infância e adolescência, fazendo com que o mais
as consiga diferenciar.
É claro que a precisão de detalhes descrita acima não estava presente em minha
cabeça quando cheguei ao campo em 2005. Quando cheguei, possuía apenas imagens e
impressões misturadas e confusas sobre a Festa de “antigamente”. A partir do momento
em que percebi a diferenciação feita entre a Festa do passado e a do presente, passei a
realizar entrevistas e coletar dados específicos ao longo do campo sobre a “Festa de
antigamente” que acabaram por me permitir a descrição feita acima.
IV. A Festa da Penha de 2005: a construção de um modelo de
interpretação da organização social de Atafona
Essa imagem da Festa que tinha em mente, estruturou, de alguma forma, as
minhas percepções sobre a Festa de 2005. Estando, alguns anos, afastada da Festa,
ao chegar ao campo nessa ocasião, as comparações entre a imagem que tinha na cabeça
e a Festa que via foram inevitáveis. Minha percepção sobre a Festa de 2005 foi,
portanto, quase toda baseada em comparações.
A estrutura geral da Festa permanece inalterada, visto que ainda se inicia e se
encerra nos mesmos dias e da mesma forma. Como ainda estava cursando as disciplinas
do mestrado, pude chegar à Atafona na quinta-feira, dia anterior ao início da Festa.
Nítidas são as mudanças notadas em relação à proporção da Festa que, agora, parece
contar com um número muito maior de freqüentadores, precisando do apoio de polícia
militar e atendimento dico, enfim, da prefeitura para que tudo transcorra
corretamente. À noite na praça não se realizam mais serestas e bandas de músicas, mas
sim, shows em um palco montado para artistas da região e sempre algum de fama
nacional. Tais shows atraem muitos freqüentadores de toda a região para a Festa.
A cada ano que passa maior é o número de devotos que comparecem à ocasião.
Com isso, os antigos veranistas de Campos, que formavam um grupo de destaque na
Festa, parecem ter se perdido em meio à tamanha massa humana. A quantidade de
59
pessoas na praça é tamanha que identificá-las e classificá-las é missão difícil, se não
impossível. A principal mudança, no entanto, que me atraía era a ligada ao trajeto da
procissão terrestre. Logo ao chegar à Festa, em minhas “conversas guiadas” fiquei
sabendo que o trajeto havia mudado três anos e logo apostei minhas fichasnessa
questão.
Rosely Sanz Blasi, minha avó, como de costume nos últimos anos, só chegaria à
Atafona para o “dia dela”. Sabia que ela viria, no entanto, não previ as conseqüências
dessa presença para o meu trabalho. Apesar de freqüentar a Festa desde pequena, me
afastei durante alguns anos e minha presença agora lhe causava profundo orgulho. Em
2005 meu súbito interesse por missas, ladainhas, terços e procissões era motivo de
imenso prazer para minha avó que, sozinha na Festa, fazia questão da minha presença
ao seu lado durante a segunda-feira.
Ao chegar, na segunda-feira de manhã, me pediu que lhe fizesse companhia na
missa solene de Nossa Senhora da Penha. A missa continua sendo no mesmo horário de
“antigamente”, no entanto, desde 2002, é campal. Um altar é montado no adro da Igreja
e cadeiras são distribuídas na frente da Igreja para que os fiéis assistam à missa. Ao
encontrar nos arredores da Igreja alguma amiga ou parente de Campos, fazia questão de
enfatizar a presença da neta na Festa. O prazer, gerado por meu interesse pela Festa,
transbordava em suas palavras quando de um encontro.
Minha situação tornara-se complicada. Como etnógrafa achava que deveria
continuar o que havia começado antes de sua chegada a Atafona, isto é, circular
observando e conversando com as pessoas presentes na praça e adjacências da Igreja.
Ao mesmo tempo, no entanto, passava a compreender sociologicamente sua alegria
gerada por minha presença ao seu lado. Dado o desinteresse do resto da família pela
Festa, ela acabava de encontrar uma atual companhia e futura substituta para a Festa.
Depositava, portanto, em mim a esperança de dar continuidade a presença da família na
Festa; missão que, desde o falecimento de sua sogra, Edith Blasi, lhe cabia. Tal fato
tornava ainda mais difícil a tentativa de “livrar-me” dela.
Com ela assisti à missa, almocei em casa e voltei para a Igreja às quatro da
tarde. Nesse intervalo, as recordações da “Festa de antigamente” foram freqüentes,
sobretudo em relação ao tradicional almoço que sua falecida sogra, Edith Blasi,
realizava nesse dia. Sentia falta daquele ritual de comensalidade que reunia os amigos
60
nos momentos que antecediam a saída da procissão. Às quatro da tarde, quando
chegamos à Igreja, ela dirigiu-se diretamente à imagem de Nossa Senhora da Penha,
infiltrando-se com impressionante autoridade entre os muitos fiéis ali presentes. As
saudações mútuas entre ela e os “guardiões” de Nossa Senhora da Penha me
impressionaram. No interior da Igreja, Rosely se mantinha próxima ao andor de nossa
Senhora da Penha. Ali, em meio aos inúmeros fiéis, ela encontrava alguns amigos e
parentes de Campos que haviam chegado de manhã ou mesmo naquele momento para a
procissão. Aos presentes fazia questão de exibir a presença da neta, como que
enfatizando a resistência em relação à participação da família na Festa e, de certo
modo, em Atafona.
Chegando a hora da saída do cortejo, a
Igreja foi esvaziando-se. Em seu
interior permaneceram além dos
responsáveis pelos outros treze
andores e “guardiões” de Nossa
Senhora da Penha, apenas Rosely e
umas poucas pessoas que não
conhecíamos. Seus conhecidos de
Campos, presentes na ocasião,
acompanham de fora a saída da
procissão.
Fiquei na porta da Igreja do lado de fora para fotografar a saída da procissão e
depois juntar-me a ela no cortejo. Ao lado esquerdo do andor vinha Rosely em meio
aos “guardiões”, devidamente trajados com suas opas. Exatamente, atrás dela, vinha
uma moradora local, marcando sua presença. Tal moradora era Miri-Carla, mas, nessa
ocasião, apenas a conhecia de vista. Tirei algumas fotos e juntei-me a ela ainda no adro
da Igreja, onde o andor permanece parado por alguns minutos.
Quando a procissão desceu as escadas da Igreja passando em meio a enorme
quantidade de fiéis, comecei a sentir muita dificuldade de permanecer ali devido ao
“empurra-empurra” dos devotos que buscam aproximar-se do andor de Nossa Senhora
da Penha. Minha avó, no entanto, permanecia tranquilamente ao lado do andor com a
mão direita apoiada sobre ele. Sua presença e mão sobre o andor, me pareciam
Foto Juliana Blasi Cunha
Rosely
61
incomodar ou atrapalhar o difícil serviço dos “guardiões” na saída da procissão. Estes
nada diziam ou insinuavam, mas eu achava que sua presença ali fazia atrapalhar
aquela tensão dos momentos da saída do cortejo.
Constrangida em ficar junto a ela aproveitando-me de uma situação que me
parecia “estranha”, decidi que iria assistir o cortejo de fora. Quando lhe avisei que me
afastaria, ela me pediu que a encontrasse logo na primeira curva quando não mais
acompanharia a procissão. Apesar de, através das narrativas, saber da existência de
lugares sociais de prestígio no cortejo, ali, naquela situação experenciada, não estava
entendendo o que acontecia. Por que ela conseguia ficar ali tão próxima ao andor
tranquilamente sem ser empurrada? Quando a encontrei, fiz-lhe essa pergunta e ela,
com orgulho, respondeu: “ali sempre foi o meu lugar!”.
Rosely o mais acompanharia a procissão porque, segundo ela, está velha, o
caminho está mais longo e não tem mais condições. Tive que desdobrar-me entre as
funções de etnógrafa e neta ao mesmo tempo. Pedi-lhe que me aguardasse sentada em
algum lugar por uma hora, enquanto acompanharia mais um pouco da procissão e
voltaria para levá-la para casa. Não havia pensado em nada disso antes e o sabia, de
fato, como agir diante dessa situação.
Voltei ao cortejo para acompanhar seu “novo trajeto”, alterado desde 2002. Ao
sair da Igreja, a procissão dobra à direita, pega a Carmelita Nascife e dirige-se à Cehab,
percorrendo-a pela beira do canal. A Cehab é o local que compreende um conjunto de
casas construído e doado pela prefeitura, no final da década de 70, para abrigar os
pescadores que tiveram suas casas destruídas pelo avanço do mar no Pontal. Essa é uma
área onde a procissão em período algum passou e que, desde 2002, passou a ser seu
primeiro destino. Ao percorrê-la, o cortejo recebe inúmeras homenagens dos
pescadores como, por exemplo, queima de fogos dentro dos barcos parados no canal,
quadros votivos que se ascendem e a grande maioria das casas acesas e abertas com
seus moradores na calçada saudando a padroeira (ver anexo II).
Após percorrer o canal da Cehab tive que abandonar o cortejo para procurar
minha avó e levá-la para casa. A procissão chegaria ao trevo e desceria a “rua do
Meirelles” até a rua Felicíssimo Alves ou “rua do ônibus”. Ali, entraria a esquerda
seguindo até a Av. Nossa Senhora da Penha, onde dobraria de novo a esquerda e
chegaria de frente para a Igreja. Com exceção de uma rua pela qual não passa mais, o
62
resto do percurso é basicamente o mesmo de antigamente”, no entanto, o cortejo o
percorre em sentindo inverso, ou seja, passa por último nos locais que passava
primeiro. Sabia o trajeto porque me havia sido descrito nos dias anteriores. Não podia,
no entanto, acompanhá-lo até o fim.
Encontrei-a sentada conversando com alguns conhecidos de Campos que
também não acompanhavam mais o trajeto. Relembravam Atafona e a Festa de
“antigamente”. Referiam-se a esse passado como “bons tempos”. Fomos logo embora,
pois ainda tinha que levá-la a Campos, onde queria dormir. No caminho, minha avó
fazia comentários de que a Festa estava vazia e que muitos não participam mais. Aos
poucos foi se evidenciando a questão da “Festa de antigamente”. Quando voltei a
Atafona, a procissão havia acabado e a coroação sido realizada. A Festa de 2005
estava, portanto, encerrada.
A partir dessa experiência da Festa da Penha de 2005 e dos relatos sobre o
destaque do veranista de Campos na Festa de “antigamente deduzi um modelo de
interpretação da realidade social. A presença da minha avó, em minha interpretação,
“atrapalhando” sem qualquer constrangimento o trabalho dos “guardiõesfez com que
pensasse em uma relação de dominação do campista em relação aos moradores locais,
pautada na soberba. Meu preconceito de adolescente em relação às famílias da
“sociedade” campista fez com que pensasse em um sistema de status no qual os
veranistas ocupam as posições superiores através de um domínio indisfarçado. No
modelo criado, o papel de destaque desfrutado pelo campista na procissão, teria como
contrapartida, a hostilidade e a animosidade dos moradores locais. Pensava na relação
entre o campista e o morador local como a relação dominante X dominado, marcada
por exploração, soberba, diferenciação, hostilidades e inimizades.
Muitos são os veranistas de Campos de “famílias tradicionais” que comparecem
a Festa da Penha “de agora”, entretanto, parecem não mais compor um grupo de
destaque. Ficam dispersos, não ocupando, em sua maioria, os lugares sociais de
destaque na procissão. A alteração do trajeto da procissão foi interpretada com um
reflexo das alterações na antiga ordem estabelecida. Desde o início da pesquisa,
baseando-me ainda em impressões como veranista no balneário, trabalhava com a idéia
de que os veranistas de Campos vinham aos poucos deixando de freqüentar Atafona e
perdendo autoridade e prestígio no âmbito local. Enquanto isso, em minhas hipóteses
63
iniciais, moradores locais e “gente de fora” passavam a ocupar novos espaços nas
relações de poder local.
Tal alteração tornara-se mais evidente a partir da década de 90 e é,
frequentemente, atribuída ao avanço do mar sobre a região que, desde meados da
década de 70, vem assolando casas de pescadores e residências de vilegiatura das
famílias de campistas. O fato de a procissão passar agora em primeiro lugar pela Cehab,
local que antes nem sequer passava, corroborava com a minha hipótese do novo espaço
que os moradores locais vinham ganhando nas relações de poder local. A procissão
agora consagrava também as ruas em que residem muitos moradores locais, em sua
maioria pescadores.
Em julho de 2005, ocasião em que voltei ao campo após a Festa, a tomada de
consciência do conflito entre "seo" Delso Araújo e o pároco local só fez fortalecer essa
hipótese de alteração nas relações de poder local. Delso Araújo é um dos mais antigos
“definidores” da Irmandade de Nossa Senhora da Penha e havia encaminhado o que
considerava “os desmandos do padre” ao Ministério Público de São João da Barra.
Segundo o Compromisso de Devoção Religiosa de Nossa Senhora da Penha, a
Irmandade é uma “instituição religiosa fundada e mantida sob a legislação católica e
para a administração de seus bens tem personalidade jurídica de acordo com as leis
eclesiásticas e civis em rigor. (Constituição 687, 689 parágrafo 2ª. Código civil
brasileiro artigo. 16.)”. Dentre as atribuições previstas no compromisso, cabe à mesa
administrativa resolver sobre compra, venda ou quaisquer negócios de bens de raiz ou
outros, incluindo a venda de jóias. (Cânon 1529 a 1543). À mesa administrativa cabe
ainda examinar as contas anuais e exonerar do cargo qualquer membro da mesma que
tenha incorrido em falta prevista no compromisso ou quando o exigir o bom nome da
Irmandade.
Tal mesa é responsável, portanto, pela administração dos assuntos da Irmandade
que só podem ser deliberados por ela reunida. Sozinho, o poder de cada integrante é
muito limitado, sendo necessária, portanto, a reunião de pelo menos a metade e mais
um de seus integrantes. Ao vigário cabe apenas celebrar as missas do compromisso e
todas as que a Irmandade por gratidão mandar rezar; sendo considerado, portanto, um
funcionário da Irmandade.
64
O fato é que, segundo "seo" Delso, sem o consentimento dos definidores
(obrigatório segundo os termos do Compromisso), foram tomadas decisões em relação
a venda de um terreno da Irmandade à prefeitura de São João da Barra. "Seo" Delso
entendeu que a legitimidade da Irmandade de Nossa Senhora da Penha não estava
sendo reconhecida e levou o caso ao Ministério Público de São João da Barra.
28
Delso Araujo, na ocasião, afirmava que não queria “entrar na justiça para
prejudicar o padre”. Desejava apenas que, através de um acordo, este reconhecesse não
apenas a legitimidade da Irmandade, mas também, ao que tudo indica, sua autoridade
dentro dela. No entanto, as partes envolvidas, inclusive o padre, foram chamadas para
depor e, posteriormente, houve uma votação com os membros da Irmandade no
Ministério Público para eleger sua nova direção.
Esse conflito era por mim interpretado como uma baixa de prestígio e
autoridade por parte dos representantes dessas famílias de Campos e São João da Barra.
Esse conflito, como dimensão construtiva da dinâmica das relações sociais, ressalta o
jogo de interesses e identidades. Tal caso se configurava como um dos meus melhores
exemplos etnográficos que evidenciavam essa alteração nas relações de poder em
Atafona.
V. A Festa da Penha de 2006: novos dados e a crise do modelo
interpretativo
Esse ano estava disposta a acompanhar o que, de fato, acontece na atual Festa e,
não apenas, o que não mais acontece em relação a Festa de “antigamente”. Acredito,
em 2005, ter acabado incorporando a perspectiva de minha aem relação à Festa de
agora. em 2006, acreditava ser necessário observar suas características atuais e não
apenas negativá-las em relação a um passado idealizado.
Em março de 2006, morando no campo e buscando me inserir nos
preparativos para a Festa, tomei consciência de um fato que confundiu as “peças do
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Tal caso é exemplar para pensar na articulação entre as dimensões legal e moral dos direitos. Essa
dimensão foi ressaltada por Mauss que considerava que todos os fenômenos jurídicos são antes
fenômenos morais. Tal articulação explicita-se no fato de que o que parece mover a ação de Seu Delso
Araújo e dos outros definidores é menos a venda ilegal do terreno e a não prestação de contas do dinheiro,
do que a busca pelo reconhecimento da autoridade conferida pelo valor da tradição. O conflito
exemplifica, portanto, sobretudo uma agressão a direitos de “natureza ético-moral”.
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quebra-cabeça que vinha montando. Após o conflito na direção da Irmandade
envolvendo moradores de São João da Barra, veranistas de Campos, moradores locais e
o pároco, houve eleição para a direção da Irmandade de Nossa Senhora da Penha. De
tal eleição saiu vencedora para o cargo de presidente da Irmandade uma senhora de
importante família da “sociedade” campista e antiga veranista, que alguns anos
reside em Atafona.
Tal informação ia de encontro ao meu modelo de interpretação daquela
realidade social. Se, conforme minha interpretação, esse segmento vinha perdendo
autoridade e prestígio, como poderia tal senhora ter sido eleita a atual diretora da
Irmandade de Nossa Senhora da Penha? Esse novo dado não se encaixava em meu
esquema e, por vezes, admito, senti vontade de omiti-lo ou esquecê-lo.
Cerca de um mês antes da Festa, ela se torna assunto predileto em encontros
no supermercado, no ônibus, padaria e, sobretudo no Mercado de Peixes. A expectativa
é grande e é necessário programar-se para a Festa. Os pescadores de mar aberto”, por
exemplo, organizam os dias em que partirão para alto mar de maneira que na Festa
estejam de volta “em terra” e com dinheiro no bolso. É muito importante na ocasião
estar com um bom dinheiro para comer e beber com amigos, levar a família para se
divertir na praça ou comprar uma roupa nova para a esposa usar na procissão.
Na semana que antecede a Festa a agitação no porto próximo a Igreja já e
grande. Alguns aproveitam a ocasião para fazer uma boa pintura nos seus barcos para,
no dia da procissão fluvial, a homenagem sair bonita. Muitas pessoas chegam de
Gargaú procurando casas para alugar. Os moradores de Gargaú, tradicionalmente,
ficavam acampados nos fundos e adjacências da Igreja da Penha, o que lhe conferia o
título de “barraqueiros” da Festa. Esse ano, no entanto, ali foi construído um salão para
a realização de recepções de batizados e casamentos, inviabilizando a presença desses
naquele espaço. A prefeitura lhes cedeu um espaço a cerca de 50 metros da Igreja para
que acampassem esse ano. Tal fato anima as conversas no Mercado de Peixes. Todos
querem dar sua opinião a respeito e fazem suas apostas sobre o que acham que vai
acontecer em relação a essa questão.
Começa-se a fazer a marcação na praça do espaço alugado para cada barraca.
Tal atividade é realizada por membros da prefeitura de São João da Barra que registram
o vendedor, delimitam a área e lhes cobram vinte reais por metro corrido. Um membro
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da Irmandade acompanha tudo de perto, pois esse dinheiro será repassado ainda a tal
instituição. Delso Araújo, tradicionalmente, aluga um terreno que possui naqueles
arredores e repassa à Igreja. Esse ano, no entanto, após o conflito não doará tal verba a
Igreja, mas sim a APOE de o João da Barra. Na segunda-feira anterior à Festa,
havia sessenta e quatro barracas registradas para exporem seus produtos durante a Festa
na praça, sejam elas de comidas, bebidas, roupas, artesanatos ou CD e DVD piratas.
As barracas e o palco começam a ser montados, repara-se a iluminação da praça
e as pessoas, sentadas na escadaria da Igreja, admiram a movimentação. A agitação é
grande e, com esses preparativos, a rotina do balneário já está bem alterada. É nesse
clima que aparece ali no final da tarde, quando o Mercado já estava sendo fechado,
Gugu. Miri-Carla o apresenta a mim como seu tio e um dos principais responsáveis
pelo andor de Nossa Senhora da Penha. Gugu mora em Campos, é membro da
Irmandade e foi dar uma conferida nos preparativos da Festa.
Saímos eu, Miri-Carla, Gugu e seu filho, também chamado Gustavo, para tomar
uma cerveja. Em pouco tempo, tomei conhecimento que Gugu era filho de Roberto.
Roberto era figura importantíssima das procissões da Festa “de antigamente” que me
havia sido descrito em conversas e entrevistas anteriores e que inclui na descrição de
“segundo-grau” sobre a Festade antigamente”. Roberto havia abandonado seu posto e
Gugu o representava trinta e quatro anos. Gugu me conhecia de vista e
rapidamente nos identificamos. Além desse papel de guardião” de Nossa Senhora da
Penha, ele faz parte de uma espécie de bloco que sai todos os anos no carnaval de
Atafona e tem como uma das paradas para “reabastecer” o churrasco que se realiza aos
sábados de carnaval em minha casa. Logo tocou na figura de Edith Blasi e chegou ao
comentário de sempre: “ela ia na procissão ali na frente, quase em baixo do andor”.
Gugu estava preocupado com o novo andor que a atual direção mandara fazer
para Nossa Senhora da Penha. Miri-Carla lhe contava que já havia conversado com
Fabio Pedra, vice-presidente da Irmandade e este lhe contara que o novo andor possuía
uma cobertura e refletores. Não havia ainda, no entanto, visto o novo andor. Junto com
Miri-Carla e seu filho tentavam imaginá-lo, apreensivos com tal mudança e suas
implicações para a procissão.
Na sexta-feira de manhã, Miri-Carla é chamada no Mercado de Peixes para
ajudar a limpar a Igreja. Conhecida como uma mulher destemida, ela é a encarregada
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muitos anos de subir em uma alta escada a fim de limpar o adro da Igreja e, no seu
interior, os altos ventiladores. Com tudo organizado e já com a Igreja limpa, que venha
a Festa da Penha de 2006!!
Dois fatores contribuíram para que esse ano minha família comparecesse a
Festa. O primeiro era o fato de a casa estar aberta e limpa, facilitando a estadia. O
segundo, mas, não menos importante fator, era a minha animação ao telefone, nas
semanas anteriores, contando-lhes sobre os preparativos da Festa. O fato é que na sexta-
feira parte de minha família chegou para Festa.
Continuei a realizar minhas atividades normalmente. Fomos juntos à missa de
abertura, mas, como minha avó o estava sozinha, o me senti na obrigação de
acompanhá-la o tempo todo como no ano anterior. Atafona estava cheia como não se
via desde “no verão” devido à festividade. Meus familiares encontraram alguns
conhecidos, mas, no entanto, sempre acabava ouvindo-os dizer que a Festa estava
vazia. Sentiam falta dos seus conhecidos que em outros tempos formavam um grupo de
destaque na Festa. Foram embora no domingo, visto que, na segunda de manhã cedo,
trabalham. Rosely, no entanto, ficou para acompanhar a procissão de segunda-feira,
chamada de "terrestre".
Passei o domingo envolvida com a procissão fluvial, visto que fui cooptada
para ajudar a levar as bandeiras para a ornamentação dos barcos na Cehab. A prefeitura
e a secretaria de pesca de o João da Barra estavam oferecendo aos pescadores um
vale óleo para abastecerem seus barcos e os enfeites para a ornamentação. Os
pescadores deveriam retirar esse Kit” com "seo" Benedito, ex-pescador e atual
funcionário da prefeitura, no Mercado de Peixes, onde trabalha como fiscal do local.
No dia da procissão, quase nenhum pescador havia aparecido para retirar seu “kit”.
Ao chegarmos à CEHAB com as bandeirolas, "seo" Benedito oferecia o “Kit”
aos seus antigos companheiros, mas estes não se animavam. Reclamavam,
inicialmente, que deviam ter sido entregues antes e que agora não dava mais tempo para
ornamentar os barcos. depois de algum tempo, pude perceber o que de fato estava
acontecendo. Os pescadores estavam insatisfeitos com a prefeita e, de maneira muito
sensível, pareciam perceber que aquele “Kit” era uma maneira de tentar acalmá-los.
Ouvia-se dos pescadores frases como: “É bom mesmo ninguém pegar esse Kit...eles
vão ver só! A gente não precisa disso!” Sentiam-se ofendidos pela prefeita tentar se
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reparar por “seus erros” usando a devoção deles por Nossa Senhora da Penha. o
receber o “kit” tornou-se um protesto contra as decisões da prefeitura e da secretaria de
pesca.
Tão confusão não atrapalhou, no entanto, esse momento em que os pescadores
prestam a sua homenagem a padroeira de Atafona. A maioria acabou por sair na
procissão com óleo pago com o dinheiro do próprio bolso e alguns sem ornamentação.
A imagem pequena de Nossa Senhora da Penha, sai em seu andor da Igreja, carregado
por Gugu, seu filho, Miri-Carla e Zezinho, outro membro da Irmandade. Nessa
procissão, os trajes são informais, a opa não é necessária e poucos são os membros da
Irmandade a acompanhá-la. As pessoas vão se revezando no andor e seguindo a
procissão ao porto da “baixada” de onde partirá para a Ilha da Convivência no barco
sorteado para conduzi-la; o andor é posto sobre seu casario e Miri-Carla o segura por
todo trajeto.
Os barcos enfileiram-se e partem para a Capela de São Sebastião na Ilha da
Convivência, onde atualmente residem apenas quatro famílias. Ali é rezada a ladainha
no interior da capela e muitos permanecem do lado de fora conversando e matando as
saudades de pessoas que tempos não se viam. A procissão o segue mais até a Ilha
do Pessanha porque o tem mais passagem por terra e porque, atualmente, o reside
mais ninguém. Da Convivência mesmo, os pescadores voltam em seus barcos e são
recebidos no porto da Igreja da Penha, ao entardecer, com muitos fogos e palmas. Esse
momento em que tal porto fica repleto de pessoas esperando o retorno da procissão é,
freqüentemente, apontado como dos mais bonitos da Festa. Após a coroação no adro da
Igreja, Gugu e sua “equipe”, levam a imagem para o oratório da Igreja e encerram o
exaustivo dia com uma cerveja na praça. o demoram muito para ir para suas casas,
visto que no dia seguinte o “batidão” começa bem cedo com a alvorada. Marcamos de
nos encontrar às oito da manhã na porta da Igreja.
Após distribuirmos pela praça as cadeiras para a missa campal e levarmos os 13
andores antigos para os fundos da Igreja, fui a casa buscar minha apara a missa.
Deixei-a com uma amiga e fui para os fundos da Igreja acompanhar a preparação dos
andores para a grande procissão. Após limpar todos os andores, que retirar as treze
imagens dos santos de seus pequenos, porém elevados altares. Tarefa de tamanha
responsabilidade é realizada por Gugu que, com uma escada, os retira não sem alguma
69
dificuldade. Antes de tocar em cada santo, uma pequena conversa ou oração como que
pedindo autorização e devotando-lhe respeito.
De acordo com o conhecimento das preferências de sua equipe”, ao descer da
escada, passa cada santo para que seu devoto carregue. Assim, Miri-Carla sempre leva
São Benedito e Santo Antônio. Alex, leva santo Expedito e assim por diante. No
momento, no entanto, de carregar a imagem grande de Nossa Senhora da Penha, Gugu
manda chamar seu filho que estava ao lado de fora da Igreja, para fazê-lo. Nitidamente
assustado com tamanha responsabilidade, Gustavo com apenas 17 anos, não desaponta
o pai, carregando, pela primeira vez, a padroeira da cidade nos braços.
A amarração dos andores é feita, segundo Gugu, exatamente, da mesma forma
como aprendera com seu pai, Roberto. Os santos vão sendo preparados na ordem em
que sairão na procissão. Cada santo tem seu respectivo andor e nele é amarrado através
de um arame grosso. Para que a imagem não se danifique, entre ela e o arame colocam
um jornais, que foram, previamente, dobrados pela "equipe". Terminada a amarração
dos trezes santos, estes passam às mãos da floricultura que fará a sua ornamentação. A
missa campal já havia terminado quando fomos buscar o andor que é sempre preparado
por último: o de Nossa Senhora da Penha.
O novo andor estava numa sala próxima a Igreja e quando o encontramos a
surpresa foi grande. O andor era enorme, com uma cobertura e de madeira maciça!
Quando tentamos carregá-lo instalou-se na equipe” uma mistura de desespero e
indignação. O novo andor era absurdamente pesado. Estávamos presentes Gugu, Miri-
Carla, Gustavo, Alex, um amigo deles e eu. Ainda sem a imagem, que pesa mais ou
menos sessenta quilos, nós cinco sentimos sérias dificuldades em carregá-lo a os
fundos da Igreja.
Era necessário um número maior de pessoas para carregá-lo na saída e ao longo
de todo cotejo. Tal fato trouxe alterações na saída da procissão desse ano. Após colocar
Nossa Senhora no seu novo andor, vesti-la com um dos mantos doados, o andor foi
levado para a entrada da Igreja e posto sob cavaletes. era umas duas horas da tarde
quando toda a “equipe se separou e foi para a casa descansar e se preparar para a
procissão.
Voltei a Igreja, trazendo minha avó, por volta da quatro da tarde. Ela foi direto
ver o novo andor de Nossa Senhora da Penha e comentou que a nova cobertura
70
atrapalhava a visão da imagem. Como sempre, encontrava seus conhecidos chegados de
Campos para a procissão que também estranhavam e faziam comentários sobre o novo
andor.
Os “guardiões” da imagem já estavam ali desde cedo de calça e mangas
compridas com a opa por cima. Com as “forquetas” na o, ficam ali zelando pela
imagem nos momentos que antecedem à saída da procissão. Aproximando-se tal
momento, começam os pedidos para que os devotos se retirem. Como sempre, Rosely
permaneceu no interior da Igreja para sair ao lado do andor e, dessa vez, eu também.
Estava interessada no que aconteceria ali dentro com o novo andor.
Os 13 andores foram saindo na ordem habitual e “os guardiões” ficaram
estudando o peso do andor e como fariam em relação a isso. O andor precisava além
dos três homens para carregá-lo na frente e três atrás, de mais uns quatro de cada lado.
Dessa forma, seria impossível passarem juntos pela porta além de todos esse homens,
os antigos devotos como, por exemplo, a minha avó. Pediram, então, que se retirassem
para não atrapalhar a saída que, esse ano, devido às novas proporções do andor seria um
momento ainda mais tenso. Saímos do interior da Igreja, exatamente depois de São
José, o décimo terceiro santo, o que precede a padroeira da cidade.
Não era possível aguardar logo na saída Igreja porque ali, esse ano, havia sido
colocado tablado. Todos deveriam ficar depois das escadas da Igreja e assim fizemos.
Quando o andor desceu as escadas da Igreja, tentei me aproximar com minha avó. A
multidão, no entanto, dificultava nossa tentativa. Miri-Carla, que havia saído de
dentro carregando o andor, gritava para que empurrasse a minha avó para perto do
andor, ou seja, para “o lugar dela”. Ela, no entanto, não quis insistir e saiu da procissão
antes mesmo da primeira curva, a qual parara no ano anterior. Despedi-me de minha
avó e fui para perto de Miri-Carla e Gugu para acompanhar o trajeto, dessa vez, inteiro.
Após essa tensão inicial, a multidão vai se acalmando e o cortejo fluindo
tranquilamente pelas ruas. Os “guardiões” cedem a vez para os devotos se revezarem
no andor e pagarem suas promessas. Logo que possível, Miri-Carla aproximou-se de
mim demonstrado pesar por minha avó ter saído o cedo da procissão. Ao contrário de
tudo que podia pensar, ela parecia sentir falta da minha avó, tradicionalmente, em sua
frente ao longo do cortejo. Seguimos em procissão o trajeto realizado desde 2002 e que
descrevi acima.
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Esse foi o ano em que acompanhei todo cortejo e que, de fato, confirmei o que
me havia sido narrado em relação ao fato de que todos sem diferenciação de status
podem pagar suas promessas carregando o andor. Assim, como existiam os lugares
sociais de destaque na procissão para os campistas, pensava que havia também um
privilégio na hora de carregar o andor. Constatei, no entanto, que o critério para
carregá-lo era mesmo a estatura do devoto. Ao longo do cortejo via algumas pessoas
de destaque de Campos carregando lado a lado com os moradores locais. Vi a prefeita
de São João da Barra aguardar sua oportunidade. Ela carregou o andor ao lado de Miri-
Carla, peixeira de Atafona.
Ao longo do trajeto a quantidade de homenagens é visivelmente maior na
CEHAB do que nas “ruas principais do balneário. Apesar de muitas veranistas
comparecerem à Festa, poucos são os que abrem a casa e ainda prestam uma
homenagem com fogos, quadros votivos e vivas em frente aos pontos de suas
residências de vilegiatura. No momento de uma dessas poucas queimas de fogos, a de
Zezinho Terra, minha câmera fotográfica foi furtada em minha bolsa.
No final da procissão, após a coroação, os devotos enfrentam uma verdadeira
fila para “trocar” algum dinheiro por uma flor do andor de Nossa Senhora da Penha.
Após esse momento, me afastei e fiquei do lado de fora da Igreja esperando Miri-Carla
e Gugu que estavam controlando a “troca das flores. Quando terminaram, se
aproximaram e me entregaram flores que retiraram do andor para que eu entregasse a
minha avó, mostrando-se sentidos com sua ausência na saída da procissão.
Cansados, nos sentamos na praça para tomar uma cerveja e comer alguma coisa.
Esse é o momento em que, para a maioria dos devotos, a Festa se encerra. Pensei que
hoje a cerveja para a “equipe” fosse até mais tarde. No dia seguinte, no entanto, a tarefa
continuava de manhã cedo: retirar os santos dos andores e devolvê-los aos seus
respectivos altares, do qual só sairão novamente na Festa seguinte. São recolocados na
mesma ordem em que foram tirados. Por fim, Nossa Senhora da Penha é colocada no
altar-mor por Gugu, que ajeita seu manto e a coroa novamente. Nesse momento, a
“equipeestá sentada espalhada pelos bancos da Igreja virados de frente para o altar,
observando Gugu, nitidamente, emocionado. “Pronto! Todo mundo em casaé o que
ele diz após colocar as imagens em seus devidos altares. Agora sim, para eles a Festa,
72
de fato, terminou. Gugu e seu filho voltam para Campos; eu e Miri-Carla, para o
Mercado de Peixes.
Assim que nos sentamos no Mercado para conversar sobre tudo o que tinha
acontecido, Miri-Carla se apresentava, visivelmente, triste. O motivo para tal tristeza
não era apenas o fim dos momentos de alegria e diversão vividos durante a Festa, como
supus na ocasião. Miri-Carla já se preocupava com o período de dificuldades
financeiras que se inicia em Atafona após o término da Festa.
Até a Festa, a cidade continua a receber seus veranistas nos fins de semana que
continuam a movimentar os bares, restaurantes, mercados, peixarias, enfim, todo
comércio local. Passada a Festa, inicia-se o que chamam de “durante o ano” e, com essa
nova temporada, uma brusca alteração no comércio que é sentida, sobretudo pelo
pequeno comerciante.
“Duarante o ano”, a busca pelo lazer no balneário cai de forma brusca. Altera-
se não apenas a economia local, mas sua vida social. A cidade volta ao clima pacato e
sossegado do interior com ruas, praias e bares quase que vazios. Após um período de
intensa agitação, inicia-se outro de maior reclusão na vida social. Segundo Mauss, “a
vida social (geral) não se mantém no mesmo nível nos diferentes momentos do ano,
mas passa por fases sucessivas e regulares de intensidade crescente e decrescente, de
repouso e de atividade, de dispêndio e de reparação” (MAUSS, 2003, p. 501).
Em Atafona, como em todo balneário, o ano parece se dividir em duas estações:
“no verão” e “durante o ano”. O balneário tem atividades sociais, econômicas e rituais
específicas para essas duas estações. A Festa da Penha é justamente a responsável por
marcar a passagem entre as duas temporadas, ou seja, marca o fim da categoria
temporal “no verão” e o início de “durante o ano”.
Tal caráter da Festa é ressaltado nas narrativas dos interlocutores e em jornais.
A notícia do jornal de circulação local São João da Barra é enfática “Atafona fecha o
verão festejando a Senhora da Penha”. No próprio material distribuído pela prefeitura
durante a Festa tal caráter é ressaltado “extensa programação religiosa e profana
encerram a alta temporada no município”. Apesar de ter conhecimento de tal fato, foi
apenas permanecendo no campo, após o rmino da Festa, que pude perceber, de fato,
como a passagem entre uma e outra temporada é sentida por seus moradores na vida
social cotidiana do balneário.
73
Algum tempo depois dessa passagem, me afastei um pouco do campo sentindo-
me extremamente confusa. Alguns novos dados traziam dificuldades para a
interpretação daquela realidade social que vinha elaborando até o momento. Tais
confusões, agora, podem ser expressas através de dois exemplos emblemáticos que as
traduzem muito bem: a primeira, seria a relacionada à eleição de uma representante de
uma antiga família de veranistas de Campos para a presidência da direção da Irmandade
de Nossa Senhora da Penha, quando vinha trabalhando com a hipótese de que esse
segmento perdia autoridade e prestígio no balneário. A segunda, seria as concorridas
flores do andor de Nossa Senhora da Penha que Miri-Carla me pediu para entregar a
minha avó, desmoronando todo um modelo criado no qual os moradores locais
manteriam uma relação de animosidade em relação aos veranistas de Campos.
74
CAPÍTULO III - FORMAS DE SOCIABILIDADE DAS
“FAMÍLIAS TRADICIONAIS DE CAMPOS EM
ATAFONA
I. A ocupação do balneário e a busca pela vivência do lazer
Em fins do século XIX e início do XX, Atafona passou, por razões distintas, a ser
procurada e freqüentada por moradores de o João da Barra e veranistas de Campos
dos Goytacazes. Nesse período inicial, poucos eram os moradores de Atafona. Os
habitantes mais próximos eram os pescadores das vizinhas ilhas da Convivência e do
Pessanha e os moradores da cidade de São João da Barra. Apesar de diferentes, as
motivações iniciais para a frequentação do lugar estão associadas ao mesmo elemento:
seu “clima privilegiado”.
Nessa época, a prescrição médica aos doentes de beribéri
29
era para que
respirassem ar puro e praticassem atividades físicas ao ar livre. Era em busca do sol, “ar
puro” e do banho de mar que os doentes de beribéri, de Campos e de outras cidades
próximas da região, iam para Atafona. Os que possuíam algum recurso se hospedavam
na Pensão Ivan ou alugavam uma casa rústica, construída por algum morador de São
João da Barra. O galpão da estação ferroviária de Atafona acabou funcionando também
como uma espécie de “hospital improvisado”
30
ao ceder o espaço para a acolhida dos
doentes de “beribéri” que não dispunham de recursos para pagar pela estadia.
O vento Nordeste, a areia monazítica e a alta concentração de iodo são
características da praia de Atafona ressaltadas por seus antigos freqüentadores. Dizem
29
A deficiência de tiamina, ou vitamina B1, produz uma forma de polineurite conhecida como beribéri.
Atualmente, sabe-se que o bebéri tem como causa uma deficiência nutricional causada pela ingestão
inadequada da tiamina. Os principais sintomas da deficiência de tiamina estão relacionados com o sistema
nervoso (berebéri seco) e com o sistema cardiovascular (beribéri úmido). A força muscular é perdida
gradativamente e pode resultar em punho caído e paralisia completa de um membro. Os sintomas
cardiovasculares podem ser proeminentes e incluem dispnéia aos esforços, palpitação e taquicardia. É
interessante saber que isso aparece nos livros modernos de medicina, mas que foi apenas, em 1911, que as
vitaminas dos alimentos foram classificadas enquanto tais e que, portanto, o diagnóstico da doença não
tinha esse grau de precisão. (GOODMAM & GILMAN, 1996, p. 1151)
30
Essa informação me foi passada por dois antigos veranistas. No livro de recordações de Santafé, esse
diz que: “Em virtude de um alto índice de béri-béri, nos marujos da nossa Marinha de Guerra, o
Ministério da Marinha, construiu um hospital naval, no antigo trapiche, para tratamento do pessoal da
Armada”. (SANTAFÉ, 1999, p. 26)
75
que a praia possui o melhor clima do mundo. As “propriedades medicinais” de
Atafona são, quase sempre, o primeiro assunto de suas narrativas sobre o lugar. Muitos
são os casos narrados sobre parentes e conhecidos que, em Atafona, se curaram de
enfermidades variadas e, nessa época, principalmente beribéri.
“Em 1928, meu primo, Antonio de Oliveira Caldas, apareceu
com polineurite e não andava. Por recomendação de Dr. Sobral,
médico de Campos, o trouxemos para cá e o deixamos na Pensão
Ivan. Um mês depois, quando chegamos à pensão e perguntamos
por ele, disseram que ele não estava... tinha ido à praia jogar
bola. Eu sou testemunha disso e depois de muitos outros que
vieram e aqui se curaram”. (César Caldas, 83 anos, veranista de
Campos)
Esse repertório de casos, comum aos antigos veranistas, parece ter a função de,
ressaltando suas potencialidades, diferenciar Atafona das outras praias da região. É
através da exaltação das propriedades terapêuticas desse balneário que seus antigos
veranistas buscam singularizar esse lugar na região, no país e, até mesmo, no mundo.
Atafona, no início do século XX, servia, portanto, como uma espécie de cidade
sanatório que recebia enfermos da região.
31
Nas narrativas, o “clima privilegiado” de Atafona aparece também como
principal atrativo para as famílias da vizinha cidade, Campos dos Goytacazes. Atafona
foi o lugar escolhido por muitas dessas famílias como o balneário no qual desfrutariam
as o esperadas férias de fim de ano. Na virada do século XIX para o XX, iniciou-se,
aos poucos, a frequentação e ocupação de Atafona com fins terapêuticos ou de
vilegiatura.
Não havia água encanada, rede de esgoto, luz elétrica, e outros serviços básicos.
Para os poucos campistas que a freqüentavam, esse foi um período de muita
rusticidade” no balneário. Nesse período, as poucas famílias que saíam de Campos para
veranear por não possuíam casas de veraneio no balneário. Alguns moradores de São
João da Barra, aqueles de mais recursos e dotados de espírito empreendedor,
31
Na verdade, essa função se mantém nos dias atuais. Entre seis e oito horas da manhã é grande a
quantidade de idosos com osteoporose à beira-mar que passam a areia monazítica em suas pernas e
banham-se nas águas do mar.
76
construíam casas com a finalidade de alugar para os campistas e doentes de beribéri que
começavam a freqüentar Atafona. Alguns são-joanenses mais abastados, além de
construir casas para aluguel, também veraneavam no balneário.
As casas eram construídas nos arredores da estação de trem se expandido, pouco
depois, em direção ao Pontal (ver anexo IV; zona 1). Essa era a região central de
Atafona, pois, além da estação, ali se localizava a Igreja da Penha. É nessa região,
por exemplo, que se localiza a Vila Rosita”, datada de 1900 e construída pelo pai de
seu Delso Araújo.
Tais casas de aluguel” o ofereciam o padrão de conforto com o qual tais
veranistas eram acostumados em suas residências e, por vezes, palacetes, em Campos.
A fim de desfrutar o verão em um grau próximo ao seu padrão habitual de conforto,
faziam uma verdadeira mudança de Campos para Atafona. Os preparativos dessas
famílias para o verão começavam, então, desde fins de dezembro quando já se
organizavam os objetos e utensílios que seriam transportados para Atafona. Levava-se
desde louças, panelas, roupas de cama, colchão, camas, fogão, até os funcionários de
sua preferência com os quais estavam acostumados em Campos.
Até 1896, quando se inaugura a linha férrea, a única forma de se chegar a
Atafona era através dos vapores pelo mar ou, mais comumente, das “pranchas” pelo
Rio Paraíba do Sul. Era comum, nessa época, que os poucos veranistas fossem nessas
pranchas, que saíam às 22 h da Beira Rio em Campos, a favor da correnteza e contra o
vento nordeste, e chegava à Atafona às 6 h da manhã.
Com a inauguração da estação ferroviária em Atafona, o trem passou a ser a
opção mais procurada entre os veranistas para chegar e transportar seus utensílios.
Depois de 1930, o que era apenas uma trilha ligando Campos a Atafona passou a ser
uma estrada de chão batido, intransitável na época das chuvas e das cheias do Paraíba.
A viagem por essa estrada durava no nimo três horas e passou também a ser uma
opção para aqueles que possuíam carro e, sobretudo coragem e disposição.
Era essa a época dos vendedores que iam de casa em casa a pé, em cima de
cavalos ou em carroças, vendendo coquinho, ingá, araçá-pêra e cambuí. Nas
lembranças de, praticamente, todos os interlocutores tem destaque a voz do “olha aí o
bolinho de arroz!” que era vendido nas casas de manhã bem cedo.
77
Um dos mais importantes acontecimentos sociais da praia era ir esperar os
parentes vindos de Campos na estação de trem. A essa época era comum que as moças
se apresentassem em locais públicos acompanhadas de pai, irmão ou outro protetor.
Difícil era a oportunidade de um rapaz dirigir-se diretamente a uma moça
desacompanhada em público. Em meio a tantas pessoas e euforia, com os pais atentos a
chegada do trem, a estação era uma oportunidade para alguns jovens de um flirt ou
gracejo. Rosely Sanz Blasi (75 anos) e veranista desde criança, conta que:
“Tinha o célebre passeio da chegada do trem na Estação. A
melhor coisa que tinha em Atafona era a Estação... era uma
festa. Enquanto esperávamos, comia-se ingá, coquinho... Enfim,
essas coisas da própria praia. Quando os pais se distraíam, a
gente aproveitava para paquerar, mas de longe. Era aquela
folia até que o trem despontava com seu apito. E a gente ficava
naquela euforia na Estação.”
A maior parte das
atividades sociais realizava-se no
âmbito doméstico. As reuniões,
restritas a amigos e parentes, em
festas e refeições familiares eram
características nesse período. Após
o almoço, a reunião na varanda era
sempre movida por “brincadeiras e
farras”.
Algumas moças tocavam acordeom e eram acompanhadas na cantoria pelas
outras pessoas presentes. Diversão de criança, na ocasião, era esperar a hora de ajudar
os pais a preparar os lampiões para quando a tarde caísse À noite, como não havia
energia elétrica, os passeios restringiam-se a visitas aos vizinhos que se reuniam para
jogar víspora ou outros concorridos carteados. Até aproximadamente 1950, o balneário
Arquivo privado Rosely Sanz Blasi
78
foi marcado por rusticidade e esse, para fins de análise, pode ser classificado como o
período inicial.
A presença desses veranistas na região atraiu, ao longo de sua história, a
prestação de diversos serviços destinados a prover uma melhor estrutura para a
temporada de verão. Essas famílias de Campos, através de sua intrincada rede de
relações sociais e políticas, trouxeram investimentos para o local que elegeram como
balneário. À frente de praias vizinhas, Atafona começou a contar com água encanada,
luz elétrica, posto telefônico, pensões, um cassino, uma estrada asfaltada ligando-a a
Campos, um clube, alguns bares, restaurantes e até um improvisado cinema.
Atraídos por alguns desses serviços, algumas famílias de pescadores começam a
se mudar das Ilhas da Convivência e Pessanha e de outros lugares da região para o
Pontal de Atafona (ver anexo IV; zona 2). Ao que tudo indica, a estrada ligando o
balneário a Campos, construída em fins da década de 50, ao reduzir o tempo do
deslocamento e facilitar o acesso ao lugar, pode ser pensada como um marco que
acabou por atrair mais serviços e atividades recreativas, fazendo com que Atafona se
tornasse o balneário par excelance de Campos.
Nas décadas de 60 e 70, suas residências de vilegiatura alastram-se
consideravelmente marcando presença nas ruas do balneário. Essas famílias de
veranistas foram comprando e reformando as antigas casas que alugavam ou
construindo do zero suas residências de vilegiatura. Nas palavras de Delso Araújo: “O
campista começou a construir suas casas em Atafona quando não tinha mais para
alugar”. Grande parte dos terrenos foram “cedidos” pela Marinha, bastando fazer a
solicitação na Capitania dos Portos, em São João da Barra.
O balneário começa a se expandir em direção a Grussaí estendendo os antigos
limites, que adeterminado momento iam apenas até a atual “rua da caixa d’água”. O
marco que indicava o fim” de Atafona era o arrojado, para a época, sobrado de José
Alves de Azevedo, ex-prefeito de Campos. Dali em diante era “tudo areia”. As atuais
avenida “Atlântica”, as ruas “Feliciano Sodré”
32
e “Felicíssimo Alves” cresceram nesse
sentido. A paisagem de enormes “buracas de areia e pitangueiras, aos poucos foi
tomando formato de amplas avenidas com quadras bem delimitadas. Através de suas
32
Essa rua foi conhecida como “avenida dos campistas” e depois, com a construção do Atafona Praia
Clube, passou a ser a “rua do clube”.
79
residências de vilegiatura e serviços atraídos, essas famílias vão imprimindo as marcas
de seu grupo no espaço (ver anexo IV; zona 3).
Esse grupo passa a sair todos os anos de Campos para Atafona, a fim de passar os
meses de férias. Em uma de suas muitas tiradas irônicas, Diva Goulart me disse:
“Atafona é o Biarritz
33
do campista”. O lugar atinge notoriedade entre as praias da
região. A fama é a de um balneário freqüentado por famílias da “sociedade” campista
em busca da vivência do lazer.
O lazer corresponde a uma liberação periódica do trabalho seja no fim do dia, da
semana ou, como nesse caso, no fim do ano. Dumazedier
34
faz questão de enfatizar a
distinção entre o lazer nas sociedades modernas e a ociosidade característica à classe
aristocrática das sociedades tradicionais. Segundo Veblen, as classes aristocráticas
gastam seu tempo em atividades não-produtivas”, em primeiro lugar, pelo sentimento
de indignidade em relação ao trabalho; e, em segundo lugar, para demonstrar a
capacidade pecuniária de viver uma vida inativa. O trabalho, para a aristocracia, é a
marca da pobreza e sujeição. (VEBLEN, 1965).
A categoria lazer, segundo Dumazedier, diferencia-se da ociosidade porque o
suprime o trabalho, mas sim, o pressupõe. Nessas famílias de Campos não há pretensão
de ócio por parte dos chefes dos núcleos domésticos, não sendo o trabalho percebido
como indigno. A grande maioria adquiriu poder econômico e, conseqüente, status,
através de uma bem sucedida profissão ou capacidade empreendedora para os negócios.
Muitos “chefes de família”, durante a “temporada de verão” em Atafona, vão a Campos
com freqüência; não abandonando seu trabalho nem nesses meses de férias. Alguns vão
e voltam diariamente, outros passam a semana em Campos e vão para Atafona, onde se
encontram com suas famílias, apenas nos fins de semana. Os meses passados, em
Atafona, compensavam e complementavam a rotina de um ano inteiro de trabalho na
cidade.
Na percepção da economia, o lazer resume-se ao “não-trabalho”, o tempo
destinado a atividades “não-produtivas”, sendo considerado, por exemplo, por Keynes,
como o grande problema das economias modernas. Pensando no lazer como um
período em que se busca um afastamento de certos tipos de atividades, sobretudo
33
Biarritz é um elegante balneário localizado na região sudoeste da França banhado pelas águas do
Oceano Atlântico.
34
DUMAZEDIER, 1999.
80
profissionais, cabe aqui, para fins da análise antropológica, pensar quais os tipos de
atividades que se intensificam ou reforçam nesse período? Ao invés de negativar” o
período do lazer, pensando apenas na ausência de atividades economicamente
produtivas, buscar-se-á pensar nos tipos de atividades realizadas pelas famílias da
“sociedade” campista nesse período.
As práticas sociais cotidianas desenvolvidas por essas famílias no balneário
compõem um repertório variado de formas de convivência ou formas de estar junto”
buscando atividades recreativas que se destinam a passar o tempo, à distração, enfim,
ao entretenimento. O banho de mar”, o volibol, as caranguejadas e festas oferecidas
em suas residências, os concorridos carteados, os passeios em noites enluaradas, os
jogos de víspora, as serenatas e, mais tarde, os restaurantes, bares e bailes no Atafona
Praia Clube caracterizam as formas de sociabilidade dessas famílias nas férias.
II. As famílias da “sociedade campista”
As famílias de Campos que freqüentavam Atafona pertenciam ao que se
chamava “sociedade” campista. Em meados do século XX, esse grupo vivia seus “anos
dourados” em termos de eventos sociais. Desde o início do século XX, a cidade vinha
se destacando economicamente e, com isso, os salões do Automóvel Clube e do
Saldanha da Gama passaram a fervilhar com a intensa agitação social dessa sociedade.
Diversos, na ocasião, eram os bailes de gala para recepção de figuras ilustres da política
estadual e nacional em visita à proeminente cidade. Bailes de debutantes, festas de
casamentos, aniversários de quinze anos e bailes da primavera animavam a vida social
da cidade.
Grande parte das famílias que compunha a “sociedade” campista é oriunda de
zonas rurais nos arredores de Campos, que, para essa cidade, se mudaram. Muitos ainda
são descentes de imigrantes espanhóis, italianos, portugueses, franceses e árabes que se
estabeleceram na região. Ao longo das entrevistas, da pesquisa em colunas sociais e de
livros de recordações, foi possível adquirir um conhecimento amplo sobre a história de
muitas dessas famílias da sociedade” campista. O estudo mais detalhado, no entanto,
foi realizado em cima de quatro famílias. Essas famílias não foram apontadas,
durante minhas entrevistas, como famílias de destaque da “sociedade”, como tiveram
seu prestígio confirmado na pesquisa através das colunas sociais. Por mais de uma vez,
81
entrevistei representantes diretos de duas dessas familias: família Albernaz e família
Aquino. As outras duas, além de colunas sociais e livros escritos por seus membros,
foram famílias em torno das quais as entrevistas com seus conhecidos passaram a girar:
Pereira Pinto e Pinto. No mínimo um núcleo doméstico de cada uma dessas quatro
famílias tinham ou ainda tem residência de vilegiatura em Atafona.
Através do todo da história de vida é possível dizer que, em meados do
século XX, essas famílias se conheciam duas ou três gerações. Em alguns casos são
descendentes de abastados fazendeiros ou até mesmo Barões. Em outros tantos, porém,
são famílias de origem pobre, que se estabeleceram e ganharam dinheiro, criando
condições para investir “nos estudos” dos filhos. Muitos estudaram no exterior ou no
Rio de Janeiro, formando-se “doutores”. Outros seguiram as origens dos pais,
continuando à frente das fazendas ou usinas.
O fazendeiro que tinha quatro filhos varões, geralmente
destinava para eles os seguintes meios de vida: o que era
julgado como mais inteligente ia estudar para advogado; o
segundo para médico ou engenheiro; o terceiro para padre, e
aquele que era mais destituído de inteligência era o futuro
fazendeiro!” (FEYDIT, 2004, p. 271).
Em uma cidade que se destacava no país como uma de suas maiores produtoras
de açúcar e cana, os responsáveis por tal feito, isto é, os usineiros e os fazendeiros
abastados, desfrutavam do mais alto status na hierarquia local. Nas palavras de dia
Lysandro de Albernaz
35
:
“as usinas eram bricas de produzir dinheiro e uma família
como a nossa, que possuía duas, era uma coisa. Tudo que
precisávamos para organizar qualquer evento, conseguíamos
com a maior facilidade. Era pedir que todos faziam questão
de nos atender. Você não pode avaliar... tínhamos muito
prestígio”.
35
Tal senhora tem 83 anos e é uma dos quatros filhos de Bartolomeu Lysandro de Albernaz que foi dono
das Usinas de São João e Poço Gordo. A história contada sobre “Seu Lysandro é a de que era
funcionário da Usina São João e, com muito esforço, conseguiu comprá-la. Mais tarde veio ainda a
comprar a Usina de Poço Gordo.
82
José Cândido de Carvalho, ilustre escritor campista e membro da Academia
Brasileira de Letras, com uma frase ilustra um pouco do que representava ser usineiro
em Campos: “meu ideal era ser usineiro, viver no último andar de trezentos mil sacos
de açúcar! As festas nas usinas de encerramento das safras ou de benzimento das
máquinas eram aguardadas com enorme expectativa por toda sociedade.
Embora não desfrutassem do mesmo poderio econômico que os usineiros e os
abastados proprietários rurais, de grande prestígio usufruíam também certos dicos,
advogados, professores e comerciantes na estrutura organizacional mais ampla.
Considerando-se o padrão econômico, em muitos casos, deveriam pertencer a uma
outra camada ou grupo social, distinta da dos abastadíssimos usineiros e fazendeiros.
Formavam, porém um mesmo grupo: o da “sociedade” campista. Sobrepunha-se à
diferenciação econômica, a boa educação”, o refinamento do gosto e hábitos em
comum, como, por exemplo, estudar no colégio Auxiliadora e, posteriormente, no
Liceu de Humanidades de Campos.
Diversas eram as famílias que não dispunham de muito recurso, mas adquiriam
prestígio pela esmerada educação ou pelo destaque no âmbito profissional. Tais
famílias também tinham seu espaço no interior desse grupo. Nas palavras de Rosely
Sanz Blasi:
“Uma família sem ter muito dinheiro, mas que é educada, sabe
tratar as pessoas e se apresenta bem na sociedade, tem seu
lugar, ? Minha família veio de baixo, mas quando faziam
festa, todo mundo sabia que a festa que tinha na nossa casa
era com tudo do bom e do melhor. Meu pai era um
comerciante muito popular
36
, era muito bem visto. Sua bisavó
era modista, conhecia todo mundo e organizava as
festas...fazia também muita caridade. Assim, foram se
tornando conhecidos.”
36
João Sanz tinha uma loja no centro de Campos onde era representante das tintas Ypiranga na cidade.
Dono de incrível inteligência sociológica, patrocinava blocos de carnaval e outras atividades sempre
promovendo o nome da loja e de sua família. É sempre lembrado como figura das mais carismáticas. Uma
vez ouvi de um interlocutor, que convém não dizer o nome, a seguinte frase: “ele não fazia distinção de
gente, era uma pessoa muito boa mesmo... no carnaval, se metia até com aquela criolada”.
83
No interior do grupo da “sociedade” campista havia distinção de status de
acordo com a projeção econômica, ocupacional e política de cada integrante na
sociedade total. Essa diferenciação refletia-se na posição e papel ocupado por cada um
no interior do grupo. Os papéis de maior destaque cabiam aos usineiros e proprietários
abastados, que ficavam no topo dessa hierarquia.
Essa sociedade subdividia-se em grupos menores formados por parentes e
amigos. Um sub-grupo que ficou muito conhecido em Campos, nesse período, foi o
“Chacrinha”. A sede do grupo era um casarão na rua 13 de maio, a casa de Olympio
Pinto, dico e abastado fazendeiro da cidade. Nessa casa, uma de suas filhas e genro,
respectivamente, Stela e Solano Braga, realizavam festas concorridíssimas na
“sociedade”, chegando o grupo a ficar conhecido como uma espécie de “clube privé”.
Carnaval de 1960, Fotos do Arquivo Privado de José Carlos Pereira
84
Faziam parte do Chacrinha
além do núcleo doméstico de Olympio
Pinto, muitos primos e parentes de
elevado destaque social. O grupo
compunha-se ainda de amigos e
primos de não tão elevado prestígio,
sendo, no entanto (ou talvez, por isso
mesmo)
37
, convivas agradáveis para os
jogos de vôlei, de carteados e para as
festas. Todas essas pessoas formavam
uma espécie de “família extensa”.
“Como eles eram uma família muito
grande e conhecida, tinha uma corte
de amigos também rodeando. Então,
essa corte meio que se incorporou a
família”. (Diva Goulart)
Afora o "núcleo duro", freqüentavam as reuniões do grupo, pessoas de outros
agrupamentos que fossem de elevado prestígio, figuras de destaque da sociedade. No
casarão da rua 13 de maio, o grupo de amigos e parentes comemorava o reveillon,
carnaval, aniversários, jogava voleibol e realiza outras atividades.
A sociedade campista subdividia-se, portanto, em alguns agrupamentos de
parentesco e convívio ou “famílias extensas”. A “chefia” de cada uma dessas “famílias
extensas” era exercida por uma figura que se sobressaia aos demais pelo poder
econômico e prestígio social e político. Pelos atributos necessários, não é difícil
imaginar que, quase sempre, os “chefes” desses sub-grupos eram usineiros ou abastados
fazendeiros. Em torno deles, flutuavam parentes e amigos de status menos elevados que
o seu. Não formavam apenas um agrupamento para desfrutar de festas, uniam-se
também politicamente. Apesar de haver diferenciações em relação ao prestígio de cada
um, formavam um mesmo sub-conjunto de indivíduos que podia “contar com a
37
Norbert Elias em Sociedade de Corte mostra como e por que os indivíduos que ocupam posições
inferiores na corte acabam tornando-se excelentes “estrategistas de conversação”, por exemplo.
Reveillon de 1967
Foto Arquivo Privado José Carlos Pereira
85
condescendência, a simpatia, a preferência e a proteção, bem como que tomem posição
política em bloco.” (NOGUEIRA, 1962, p. 240).
As moças dessa “sociedade”, para fazerem “bons casamentos”, deveriam casar-
se com alguém de seu nível social para cima, nunca abaixo”, caracterizando o que se
classifica, em antropologia, como hipergamia. Algumas moças fugiam com seu amado
e tais casos são contados como verdadeiros escândalos na “sociedade”. O casamento
não seria admitido pelo pai porque o noivo não estava “a altura” de sua filha, restando-
lhe, a romântica opção da fuga. Quando o casal era encontrado, como “o que não tem
remédio, remediado está” os pais eram obrigados a oficializar a situação perante a
sociedade.
Ao rapaz, era permitido casar-se com uma moça um pouco abaixo do “nível
social” de sua família, desde que a família da moça também pertencesse à “sociedade”.
O fato das famílias serem conhecidas como que assegurava a “moral” e “boa educação”
dos conjugues. Eram comuns os casamentos entre primos e entre pessoas da mesma
“família extensa”. Recorrentes ainda são os casos de casamentos entre cunhados. Após
tornar-se viúvo, o homem casa-se com uma irmã ainda solteira de sua falecida esposa.
Tais casamentos acabam por manter no interior do mesmo grupo o patrimônio da
família. Os casamentos, então, realizavam-se, preferencialmente, entre as próprias
famílias da sociedadecampista. Era um grupo relativamente fechado, que primava
por manter relações sociais entre si. As colunas sociais noticiam: “Realizam-se, esse
fim de semana, dois casórios na nossa sociedade. Unem-se assim quatro de suas
destacadas famílias: Martins-Guimarães e Terra-Cardoso”. Casamentos com parceiros
“de fora”, só era admitido com pessoas de comprovado status em outra “sociedade.
38
Algumas dessas famílias recobriam suas ações em “obras de caridade” e outros
investimentos na cidade de Campos. A família Pereira Pinto, por exemplo, dona das
usinas Santa Maria e Santa Isabel, é conhecida como a responsável pela construção de
Santa Casa de Misericórdia de Campos. Tal obra, segundo me contaram alguns
interlocutores, foi realizada com o dinheiro dessa família e, em ocasião solene, com
toda a pompa e circunstância, entregue pelo senador José Carlos Pereira Pinto a Getúlio
38
Um caso interessante era o prestígio que os rapazes, mesmo de fora da cidade, que trabalhavam no
Banco do Brasil desfrutavam entre as moças em idade casadoira. “Altos funcionários do Banco do
Brasil” eram considerados excelentes partidos. Dois exemplos são os casais Nídia Lyzandro Albernaz e
Aylton Damas dos Santos e Estela Pinto e Solano Braga.
86
Vargas. Não é preciso entrar em tal instituição para ver a placa. Essa encontra-se
afixada na parede ao lado de fora com o nome de seus benfeitores.
o educandário São José Operário foi idealizado e construído por Nídia
Lysandro (citada acima) e outras damas da sociedade que ficaram conhecidas como
“damas de São José”. Essas senhoras promoviam concorridíssimos bailes de gala nos
salões dos Clubes locais para angariar fundos para as obras. Contavam também com o
apoio de seus maridos, pais e sogros.
“O primeiro benfeitor da instituição foi papai, mas ele não
sabia que eu é que estava convocando um grupo de amigas
para fundar a instituição. Disse a ele que era um grupo de
senhoras que estavam fazendo uma campanha e ele deu 10 mil.
Quando contei às meninas, Marília Aquino disse que iria pedir
a Joaquim Tomás (seu sogro) porque, se meu pai tinha dado
10 mil, ele ia querer contribuir também.” (Nídia Lysandro)
Jantar Dançante São José Operário, 1956
Arquivo Privado Nídia Lysandro de Albernaz
87
A coluna social do jornal A Notícia relata uma das festas, chamada de
"promoções", para a arrecadação de dinheiro: Foi de grande êxito o jantar dançante
realizado domingo no Automóvel Clube Fluminense pelas damas do São José
Operário. (...) Agradou muito também, a todos, os dizeres de um quadro iluminado: A
Caridade é o segundo mandamento em ação"
39
.
Nesses dois exemplos, as famílias benfeitoras o de usineiros. Esses, no
entanto, contavam com o apoio de sua “família extensa” para a realização desse e de
qualquer outro feito. Formavam uma intricada rede de interdependência. Apesar de um
sistema mais ou menos elaborado de status e posições pautadas no poder econômico de
cada família, em oposição ao grosso da população da cidade, abastados usineiros,
industriais, médicos, professores e comerciantes, formavam um só grupo: a “sociedade”
campista. É esse o grupo que elegeu Atafona como seu balneário, fazendo com que se
destacasse entre as outras praias da região. Atafona torna-se para a “sociedade
campista” um corolário de vida”. Toda família de “maior conceito” de Campos tinha
uma casa de praia em Atafona.
III. Sobre a sociabilidade da “sociedade” campista em Atafona
Novas relações se estabeleciam entre essas famílias pela vizinhança em que
Atafona as inscrevia. Atafona era um lugar onde o grupo se organizava e se distribuía
pelo território de uma maneira distinta a de Campos. Famílias que, em Campos, tinham
pouco ou nenhum contato, lá se tornavam convivas pela próxima relação de vizinhança.
Formavam-se grupos que só existiam durante a temporada de verão. São os “amigos da
praia”
40
, que, durante o ano, encontram-se apenas, ocasionalmente, em reuniões de
amigos em comum.
“Nem sempre quem tinha casa e ficava íntimo na praia durante
a temporada de verão, permanecia com esse relacionamento em
Campos. Então, se você tinha uma casa do lado de Manoel
Vieira e faltava um pouco de úcar, batia na casa da Diva
39
SANTAFÉ, 2002, p. 134.
40
O campista refere-se a Atafona como um todo com o termo “praia”. Assim dizem: “ela não tinha casa
na praia” ou “a casa dela era perto da minha na praia”.
88
aqui e pegava. Em Campos, seu Manoel Vieria morava na Rua
Sete e eu na Beira Rio. (Diva Goulart)
Os laços anteriores, estabelecidos em Campos, no entanto, não se anulavam.
Mantinham-se, mas eram acrescidos por outras famílias, obviamente, também da
“sociedade”. Em alguns casos, como o dos Aquinos
41
, a família criava, em Atafona,
uma oportunidade para uma convivência ainda mais intensa, visto que construíam ou
compravam suas residências de vilegiatura em uma mesma rua do balneário.
Local privilegiado para a paquera dos jovens, sobretudo nas décadas de 60 e 70, a
praia ficava lotada, na parte de manhã, quando tais famílias aproveitavam o “banho-.
de Campos, podiam desfrutar a praia. Segundo um interlocutor, à tarde era o horário do
"banho das canecas".
Além disso, marcou o balneário, nessa época, o surgimento de espaços públicos
voltados para as atividades recreativas dessas famílias. É a época em que, aos poucos,
se instalaram “no verão” bares, restaurantes e boates para atender a demanda dos
campistas. Por iniciativa de algumas das muitas famílias que, nessa época,
veraneavam, um grupo se reúne e funda o Atafona Praia Clube. Uma das principais
razões apontadas para sua fundação, em 1959, era não mais ter que interromper a
temporada de verão para “brincar” o carnaval nos salões dos clubes de Campos. Na
década de 70, muitas foram as atividades sociais que essas famílias ali promoveram
41
A origem dessa família é São João da Barra onde o casal, descendente de portugueses, Joaquim Tomás
e Maria Julia Aquino casou-se e teve vinte e três filhos. Através da indústria de bebidas (hoje, o famoso
Grupo Toquino) a família enriqueceu e mudou-se para Campos, onde alguns dos 23 filhos tornaram-se
figuras de destaque dessa sociedade. uma rua em Atafona que é ocupada, quase por completo, por
residências de Aquinos. A rua é a mesma em que Joaquim Tomás de Aquino construiu a sua residência.
Seus filhos, quando casavam e formavam seu próprio núcleo doméstico, construíam as suas casas ao
longo da mesma rua.
de-
mar". Cada família ficava
com seu grupo nos pontos em
direção a suas cas
as, sendo,
portanto, um excelente ponto de
encontro. Após a praia, as
famílias iam para casa almoçar.
Depois de servirem o almoço é
que seus funcionários, vindos
89
para o desfrute do seu grupo: shows com artistas de destaque nacional, bailes do Hawai,
festas a fantasia e concursos para eleger a “rainha do verão”. Dentre todas essas
atividades, é dos bailes de carnaval que os interlocutores recordam-se com maior
entusiasmo.
Tais espaços foram freqüentados e aproveitados, principalmente, pela nova
geração, que, nas colunas sociais, era conhecida como “geração goiabada”. São os
jovens que, na cada de 70, tinham “vinte e poucos anos” e procuravam um pouco
mais de liberdade fora do âmbito doméstico, onde ficavam sempre sob as vistas de
parentes e conhecidos. Esses, em alguns casos, faziam parte da terceira geração na
sua família a freqüentar o balneário. Seus avós seriam os pioneiros do início do século.
Seus pais foram os jovens que freqüentaram a Atafona rústica ou, nas palavras de
Santafé, “selvagem e romântica” da década de 40.
Os novos espaços, voltados para a sociabilidade dessas famílias e, sobretudo
jovens, em nada altera a atividade que parece ser a marca principal delas no balneário:
as reuniões de parentes e amigos, no âmbito doméstico. O Clube, bares e restaurantes
não suplantaram as antigas reuniões que realizavam em suas residências de vilegiatura.
É no interior, mais especificamente, nas varandas de suas casas que essas famílias mais
se reuniam para desfrutar as férias em Atafona. Assessoradas por uma equipe contendo
Arquivo privado César Caldas, ex-diretor do Atafona Praia Clube
90
em média cinco funcionários domésticos, em sua grande maioria trazidos de Campos
42
,
com freqüência as famílias abriam as portas de suas residências para “receber” parentes
e amigos.
Em muitas das conversas com os interlocutores foi utilizado, como suporte
metodológico, seus álbuns de família. Através das fotografias, o fio da memória era
acionado e as narrativas fluíam sem que muito precisasse lhes perguntar. Além disso, a
pesquisa nas colunas sociais de jornais de Campos, dos meses de janeiro e fevereiro de
anos variados entre as décadas de 50 e 80, em muito contribuiu para que alcançasse um
conhecimento detalhado a respeito das reuniões realizadas pelas famílias da
“sociedade” em Atafona.
Diversos eram os motivos que animavam essas reuniões. Podia ser um aniversário,
a chegada de algum membro do grupo que estava em viagem ao exterior ou um recital
infantil. Independente do motivo aparente, o que parecia mover mesmo essas reuniões
era o encontro entre os convivas, animados por aprazíveis bate-papos. Com freqüência,
abriam suas casas “recebendo” para almoços, nos quais tinham destaque o robalo e o
camarão VG. Por vezes, o charme dessas reuniões era dado por um mimo de
rusticidade e os anfitriões ofereciam pratos como, por exemplo, a dobradinha. Os
churrascos e as caranguejadas, na parte da tarde, eram, talvez, de todas as atividades, as
que ocorriam com maior freqüência.
Reuniões mais formais por ocasião, por exemplo, da comemoração de uma boda
de prata aconteciam, em geral, à noite. Alguns aniversários eram comemorados sempre
com grandes festas, chegando, quase que, a ser incluída no calendário das atividades
dos verões dessas famílias. Com antecedência, os convidados se ocupavam com os
trajes da festa, que não faziam parte das roupas mais despojadas que compõem o
“guarda-roupa” da praia. Muitos já traziam na mala os trajes mais refinados para essa
ocasião. Os esquecidos deveriam voltar a Campos para buscá-lo. Nessas ocasiões os
anfitriões “recebiam” com toda a pompa que a festividade pedia, servindo os pratos
42
As famílias enfrentavam alguma dificuldade em trazer seus funcionários de Campos, com os quais
estavam habituados. Muitos funcionários não queriam ir trabalhar “no verão” em Atafona porque
conheciam o “batidão das casas sempre cheias na qual o trabalho era dobrado ou até triplicado. Em
primeiro de janeiro de 1959, na página 8, o jornal A Notícia anuncia: “Cozinheira-precisa-se. Paga-se
Cr$ 1.500,00 por mês a uma boa cozinheira que apresente referências e queira ir passar o verão em
Atafona. Tratar à rua Ipiranga, 70”. Muitos anúncios como esses são encontrados. Tal anúncio
permaneceu por cerca de 20 dias nesse jornal, na página da coluna social.
91
elaborados pelas mais renomadas banqueteiras de Campos, os serviços das melhores
doceiras, as mais finas bebidas e música ao vivo.
A prática de esportes, sobretudo o voleibol, era também motivo para muitas
reuniões. Os que tinham quadras em suas casas “recebiam” os parentes e amigos,
freqüentemente, para uma partida
43
. Por vezes, organizavam ainda torneios com direito
a torcida, a medalhas e a todas as deferências à equipe vencedora.
O carteado tinha lugar de destaque entre os “passa-tempo” dos veranistas,
sobretudo os de meia-idade”.
44
Havia grupos certos de jogadores, entre as casas dos
quais a partida se revezava. Esse passa-tempo era concorrido tanto pelos homens como
por suas senhoras. Os casais iam juntos para a residência onde ocorreria a partida e lá se
dividiam em equipes por gênero. Não havia regras gidas quanto a isso, mas era
comum que homens jogassem o pocker ou o pif-paf, enquanto as mulheres, a beriba.
Nesses jogos “a competição é direta, dependendo o resultado, ao mesmo tempo da
habilidade do jogador e do azar(NOGUEIRA, 1962, p. 419)
Os jogadores do grupo revezavam-se na função de “receber” seus parceiros, ao
menos uma vez por semana, mantendo a prática ativa. O jornal A Notícia de 9/01/73
destaca: “Marinela e Walter Zuchner receberam grupo de amigos formado por Nídia e
Aylton Damas dos Santos, Stelinha e Solano Braga, Moema e Carlos Abdelcaber para
carteado”. Além de entrevistas com esse casal anfitrião, tenho recordações de infância
dos jogos em sua casa, que é vizinha a da minha família no balneário. Lembro-me de
Marinela, junto aos seus funcionários, organizando os preparativos para o jogo da tarde.
Dessa “recepção”, segundo Marinela, faziam parte um “lancinho com salgadinhos,
bolos variados, café, refrigerantes, doces em calda feitos com as frutas da terra.
Alguns dos entrevistados procuravam desconversar quando a conversa em pauta
era o bito dos carteados. O motivo para tal constrangimento parece ser o fato de tais
jogos serem estigmatizados moralmente por envolverem dinheiro. Quando aceitam o
assunto ressaltam logo que as apostas eram baixas como, por exemplo, uma entrada de
cinema. Outros dizem que o pouco dinheiro que ganhavam nas partidas doavam para
43
O voleibol na casa de Arlindo Aquino, de fato, marcou uma época. Além de ter sido lembrada por
muitos, figura nas colunas sociais da época. Em 17/01/59, o jornal A Noticia: “Informaram-me que em
Atafona continua em franca atividade o voleybol lá pela residência do Sr. Arlindo Aquino”.
44
Inicialmente, em suas residências, apenas jogavam víspora, ficando o carteado restrito ao cassino de
Atafona. Em 1946, o presidente Eurico Gaspar Dutra manda fechar todas as casas de jogos do país e o
Cassino funciona na clandestinidade até 1954 quando, por fim, fecha as suas portas. (NORONHA,
2003).A partir disso, o carteado começou a se disseminar nas casas de família.
92
instituições de caridade. Fazem questão de enfatizar que as apostas eram apenas porque
“tem que ter um estímulo, se não, não tem graça”.
Para muitos, o carteado era mesmo apenas uma atividade recreativa das tardes de
verão em Atafona. Diversas, no entanto, são as histórias contadas, em tom de
condenação, a respeito de famílias riquíssimas da “sociedade” que chegaram à ruína por
causa do “vício do jogo”. Lamego, em 1934, em A Planície do Solar e da Senzala
adverte: “Todo ano é a mesma força trágica da jogatina, em exaustivas patifarias
maquinadas, que arrasta irremissivelmente milhares de famílias campistas à ruína”
(LAMEGO, 1934, p. 64)
Em todas essas ocasiões o anfitrião deve, com naturalidade, demonstrar o
conhecimento em relação a regras e normas da etiqueta. Cabe a ele saber adequar as
regras a cada ocasião seguindo as prescrições a respeito da formalidade ou
informalidade. Em Atafona, a descontração, por vezes, dava o tom desses encontros
exigindo uma recepção menos formal. que saber, por exemplo, quando apresentar
um ou outro aparelho de jantar e que bebidas servir de acordo com as exigências da
ocasião.
Através das narrativas e colunas sociais, é possível apontar como uma
característica da maioria dessas reuniões certo despojamento tanto na “recepção” como
nos trajes dos convivas. Tal despojamento torna-se marcante quando se estabelece uma
relação de comparação com a maior formalidade que caracterizava os encontros e
reuniões em Campos. Pode-se dizer que esse despojamento era milimetricamente
calculado visando ao sucesso da reunião. Grande parte dessas ocasiões eram noticiadas
nas colunas sociais aumentando ainda mais a responsabilidade dos anfitriões em relação
ao êxito da “recepção” oferecida em sua residência. A elegante sra. Marília Peixoto
Aquino abriu sua residência de veraneio em Atafona, onde as reuniões se sucedem,
demonstrando em todas elas o bom gosto da anfitriã” (Jornal A Notícia, 13/01/1062,
p. 5)
Era comum que as residências de vilegiatura dessas famílias recebessem nomes
como, por exemplo, Vila Rosita, Vivenda Gaby, Vila Dora, “Vivenda Boeschestein” e
“Vila Dois Irmãos”. Tais nomes são fixados na parede da varanda. Além de
homenagear a “dona-do-lar”, figura tutelar dessas casas e famílias, por vezes, esses
nomes parecem servir para marcar a identidade das famílias no balneário. Através do
93
nome era possível identificar a localização de uma casa e seu respectivo dono em
Atafona. As casas estavam diretamente relacionadas à identidade das famílias a que
pertenciam.
Villa Rosita, casa construída pelo pai de Delso Araújo em 1900.
Fotografia por Juliana Blasi Cunha, 2006
Cada casa abriga normalmente um núcleo doméstico e mais os habituais hóspedes.
As visitas podem ser de um fim de semana, uma semana de carnaval ou mesmo as
férias inteiras. Quando os filhos do núcleo doméstico se casam e constituem seu próprio
núcleo é comum que deixem o interior da casa. Quando o terreno permite, é bem
comum que nele sejam construídos quartos isolados para abrigar o recém-casal. Com a
chegada dos filhos do novo casal, o quarto inicial vai sendo acrescido de outros
cômodos. É comum ver-se, no interior dos terrenos, edícolas próximas à casa original.
Em um passeio de carro com minha avó pelas ruas de Atafona, dificilmente, lhe
escapam os nomes das famílias a quem as residências de vilegiatura apontadas
pertencem ou, ao menos, pertenceram. Tal mapa cognitivo, através do qual é possível
associar as casas aos seus donos, não está presente apenas na memória dos membros da
“sociedade” campista. Assim que fui morar em Atafona, cheguei a uma “vendinha
para comprar gás e pedi para entregar em casa. Após explicar a localização da casa,
94
“rua do clube com a rua da caixa d’água”, o senhor me perguntou: É na Jangada
Ypiranga? Você é o que de D.Edith Blasi?”
Aos poucos fui percebendo que esse mapa também faz parte do imaginário dos
moradores locais. Conhecer a localização das residências de vilegiatura dessas famílias
é muito importante para entrega e venda de mercadorias. Sabem, melhor do que
ninguém, o nome das famílias e onde ficam as casas dos seus mais abastados fregueses
a quem já venderam muita verdura, fruta, queijos e, sobretudo peixes, camarões e
caranguejos.
São casas, por vezes, centenárias e que, através dos nomes ou reuniões que nela
se realizavam, marcaram a identidade dessas famílias no balneário. Através da história
da construção, inauguração e reformas de suas casas, meus interlocutores muito me
revelaram sobre a história de suas famílias em Atafona. A partir da casa rememoravam
episódios, pessoas e querelas.
O verão altera, portanto, não apenas a morfologia social de Atafona que recebe os
veranistas, como também a sociedade” campista. A “mudançasazonal para Atafona,
nos meses de férias, altera a forma como esse grupo se distribui pelo território,
estabelecendo novas relações de vizinhança. O grupo fica extremamente concentrado e
levando uma vida em comum em Atafona. Altera também o tipo de habitação visto que
em Campos não é usual que co-habitem um mesmo terreno.
IV. Distância social
As famílias da “sociedade” campista espalharam suas residências de vilegiatura
por espaços de Atafona que se tornaram as suas ruas “principais”; impondo, assim, de
maneira marcante sua presença no balneário. Os moradores de São João da Barra, que,
antes mesmo do campista, iniciaram a construção de casas nos arreadores da Estação,
parecem ter sumido ou se perdido, em meio a marcante presença do campista. Os
moradores locais, em sua maioria, famílias de pescadores vindos da região e das
vizinhas Ilha da Convivência e do Pessanha, instalaram-se no Pontal e em seus
arredores.
95
No Pontal de Atafona, além das casas desses pescadores, havia peixarias e bares
45
.
Aos fins de semana, ali, na parte da manhã, algumas senhoras da sociedade”,
acompanhadas de seus maridos, iam escolher os peixes de sua preferência. Essas
mulheres visitavam ainda o Pontal num passeio de carro, jipe ou bugre, no entanto,
sempre acompanhadas por pais, maridos, irmãos ou primos. Alguns ainda faziam
passeios de barco às ilhas vizinhas dos quais voltavam encantados com a rusticidade.
“Ficávamos admirados com aquelas panelas areadas brilhando penduradas sobre a
cerca de madeira das casas.(Rosely Sanz Blasi).
Foto aérea do Pontal, 1972 - arquivo privado César Caldas
Nos fins de semana, enquanto, em casa, suas esposas acompanhavam e
coordenavam a preparação do almoço, muitos chefes de família iam para o Pontal em
busca da pesca de linha na beira do rio Paraíba do Sul ou para jogar puçás em busca de
siris. No aprazível ambiente, aproveitavam para beber uma salsinha da praia, comer um
caranguejo e jogar conversa fora com os amigos.
45
Obviamente, para tal assertiva exceções. Na entrada do Pontal, havia residências de vilegiatura de
“famílias” de sociedade de Campos que lá foram construídas antes do estabelecimento de bares.
96
Por vezes se atrasavam para o almoço, deixando a família toda a esperar. Em
alguns casos, despertando a ira de suas esposas, acabavam voltando mesmo ao
entardecer. Na década de 70, muitos eram os bares e restaurantes que se espalhavam
pelo Pontal e suas imediações. Eram bares e restaurantes que preservavam uma certa
rusticidade adequando-se a ambiência do lugar, mas que, segundo contam, dispunham
de um bom serviço e excelente pratos de frutos-do-mar.
Para as senhoras da “sociedade campista, o Pontal era um ambiente onde “os
homens iam aprontar das suas”. Além de um ambiente diretamente associado às
incansáveis bebedeiras dos homens nos fins de semana, algumas interlocutoras contam
que lá havia ainda, nas palavras de Diva Goulart, as “deitadeiras de areia
46
. Segundo o
autor João Noronha, em Atafona existiu um bordel, sob o disfarce de bar, chamado
Esteirinha. O lugar foi idealizado e coordenado por dois são-joanenses, na cada de
70, para atender à demanda dos campistas e fechou suas portas em 1975
47
.
O Pontal era associado, pelas senhoras da sociedade” à promiscuidade. Pode-se
dizer que, para as senhoras da “sociedade” campista, o Pontal era uma zona moralmente
contaminada.
48
O antigo farol na entrada do Pontal pode ser pensado como um marco
que delimitava a passagem de uma a outra área. Interessante é perceber que a pecha de
promíscuos e sujos recaía, na concepção dessas senhoras, sobre os moradores do
Pontal. É raro encontrar casos em que aceitassem as mulheres do Pontal como
funcionárias para serviços domésticos, sendo comum aparecer a representação de que
não têm higiene e não gostam de trabalhar. Por vezes aparece nas entrevistas frases
como “esse povo de beira de praia não gosta de trabalhar... são ruins de serviço”.
Havia trajetos, mais ou menos delimitados, pelos quais os grupos de Atafona
costumavam se deslocar. São os caminhos pelos quais, habitualmente, os indivíduos
circulam no território. Assim como não convinha a senhoras da “sociedade” transitarem
a pé desacompanhadas pelo Pontal, não era habitual também às senhoras dos moradores
46
As interlocutoras contam que isso acontecia, mas nunca em sua casa com a sua família.
47
É justamente nesse local que se passa a primeira cena do filme Na Boca do Mundo dirigido por Antônio
Pitanga e Cacá Diegues. O filme, estrelado por Norma Benguel, Antonio Pitanga e Milton Gonaçalves,
foi gravado em 1972 e mostra aspectos interessantes de Atafona como, por exemplo, a idealização de uma
jovem moradora em relação à vida boa que poderia levar em Campos e no Rio de Janeiro. Na trama, a
moça faz de tudo, inclusive incentivar um caso entre seu noivo e uma veranista rica, para conseguir deixar
a vida que leva no Pontal.
48
Na verdade, tal associação perdura até os dias recentes. Tal fato se evidenciou para mim quando
lembrei da enorme preocupação e pavor demonstrados por minha mãe e avó quando, na adolescência,
fazíamos churrascos ou luais no Pontal. Diziam: “mas o que vão fazer lá? É um ligar perigoso, de
homens bêbados.”
97
locais circularem, sem qualquer propósito, entre as ruas de casas de veranistas. Não
uma regra e não qualquer prescrição em relação a isso. Essas fronteiras são
simbólicas, mais ou menos permeáveis e fazem parte da distribuição de grupos variados
em um determinado território, caracterizam a divisão sócio-espacial do lugar.
Os moradores locais não tinham o hábito, por exemplo, de ir à praia, mas, se “no
verão” resolvessem fazê-lo, iriam à tarde, junto às funcionárias domésticas, em horário
distinto ao da frequentação dos veranistas de Campos. Em contraponto ainda ao
Atafona Praia Clube e às festas nas residências dos veranistas, havia bailes no Pontal
que agregavam moradores locais e as funcionárias domésticas.
Os distintos segmentos não se articulavam em torno do “plano da organização
social” do lazer. Nesse âmbito, os segmentos distinguem-se através da participação em
atividades diferentes. Quando a atividade e o espaço são os mesmo, como no caso do
‘banho de mar”, dividem-se em turnos diferentes. Além da distância física ou
geográfica que os grupos parecem manter através de estratégias de evitação, ainda
uma distância social que orienta os indivíduos de grupos diferentes quando em
interação social.
Apesar de habitarem, freqüentarem e circularem por áreas distintas do balneário, a
interação social entre os dois grupos acabava acontecendo de maneira freqüente.
Grande parte das oportunidades de interação social entre os grupos dava-se, portanto,
através do comércio de frutas, verduras, farinha, peixes, camarões e caranguejos, por
exemplo. Tal comércio realizava-se nos mercados e peixarias ou, com freqüência, no
portão das residências de vilegiatura onde os vendedores ofereciam os produtos a seus
conhecidos clientes.
Até um determinado momento da pesquisa, pensava que os veranistas de Campos
ocupando lugares de prestígio em Atafona, exerciam um domínio indisfarçado sobre o
grupo hierarquicamente inferior, os moradores locais. Em oposição a isso, pensava
numa animosidade dos moradores locais em relação aos veranistas, que com eles, em
minha suposição, eram soberbos ou esnobes.
Durante o campo sempre que perguntava, a antigos moradores locais, o que
achavam do campista as respostas giravam sempre em torno de: “sempre foram muito
legais com a gente”. Pensava que me davam tal resposta pela associação com a
identidade de minha bisavó de família de sociedade” de Campos. Achava que
98
escondiam de mim uma inimizade em relação ao campista. Por vezes, os induzia a tal
resposta e, em meio a uma determinada conversa dizia: “esse pessoal de Campos é
meio metido, né não?!”. As respostas obtidas eram quase sempre iguais: sempre
foram muito gente boa com a gente”.
Com Miri-Carla, com quem tinha uma maior intimidade, chegava a discutir, quase
que, querendo lhe convencer de que os campistas eram esnobes e que não gostavam de
pobres como eles. Ela me dizia: “não tenho nada contra o campista, muito pelo
contrário tenho a favor... chegam aqui compram meu peixe e me tratam bem.” Miri-
Carla sempre me dizia: “sua bisavó, por exemplo, eu me amarrava naquela coroa. Ela
sempre que me via me cumprimentava. Ela dizia: oi loira e a família, tudo bem?”
Um campista que mora em Atafona, me disse que o povo dali não gosta do
campista. O argumento era de que os moradores locais querem se prevalecer”
vendendo peixe mais caro para o campista. Não me parece que ajustar os preços “no
verão” para os veranistas indique qualquer tipo de animosidade. A econômica é apenas
uma das alterações sazonais que um balneário vivencia.
Por vezes, alguns interlocutores fazem questão ainda de ilustrar o que estavam
dizendo, contando um caso em que receberam ajuda de algum campista. Contam casos,
por exemplo, em que veranistas da “sociedade” de Campos ajudaram a agilizar uma
internação num hospital público de Campos ou que arrumaram um emprego em
Campos.
Na ocasião, custei mesmo a entender o que me parecia impossível de acreditar. As
flores de Miri-Carla para minha avó me roubaram noites de sono. Pensava que ela mais
queria era que minha a sumisse da procissão de Nossa Senhora da Penha, onde
ocupava um lugar de destaque. Essas declarações dos moradores locais parecem
caracterizar uma relação de respeito e amesmo admiração em relação ao grupo de
campistas. Demorou até que desse conta de que essa hierarquia não era delimitada via
um domínio indisfarçado. Era através de uma refinada etiqueta que os veranistas
marcavam e delimitavam a distância social durante a interação social com os moradores
locais.
Devidamente educados, os veranistas da “sociedade campista demonstram
sempre “bons modos”. São educados para tratar bem todo tipo de gente”, expressão
que, frequentemente, utilizam. Através da etiqueta demonstram o grupo a que
99
pertencem marcando a distância social. Ao interagir com esse “tipo de gente”, usando
de cortesias precisamente calculadas, destacam sua benevolência, cativando muitas
vezes os moradores locais. Em tudo isso uma distância social bem definida, não
podendo os moradores locais se esquecerem de representar docilmente o seu papel de
subservientes, conhecendo bem o “seu lugar” nessa relação.
Veblen traz considerações que ajudam a pensar nesse tipo de relação:
“A etiqueta é em parte a elaboração do gosto e em parte é uma
sobrevivência simbólica e convencional de atos anteriores de
dominação, de serviço ou de contato pessoal. Em grande
parte, a etiqueta exprime uma relação de status- uma
pantomima simbólica de domínio, de um lado, e de
subserviência, do outro.” (VEBLEN, 1965, p. 57)
A animosidade que imaginava existir dos moradores locais em relação ao
campista, dá-se, no entanto, em relação ao morador de São João da Barra. Não foram
poucas as vezes, quando insisti em dizer que os campistas eram esnobes, em que ouvi
dos moradores locais: “metido a besta é o povo de São João da Barra... são aqui de
pertinho da gente, mas são metidos”. Tal percepção parece confirmar a idéia de quanto
maior a distância entre os grupos, nesse caso geográfica e social, mais fácil estabelecer
o respeito. Elias, em relação ao sentido da etiqueta de Luis XIV na relação com seus
súditos diz:
"Não se trata de mera cerimônia, mas de um instrumento de
dominação dos súditos. O povo não acredita em um poder que,
embora existindo de fato, não apareça explicitamente na figura
de seu possuidor. É preciso ver para crer. Quanto mais um
soberano se mantém distante, maior é o respeito que o povo
lhe confere". (Elias, 2001, p.133)
O sãojoanense, nessa escala de prestígio, ocupa um lugar intermediário: está entre
o campista e o morador local. É provável que, na intenção de diferenciar-se e marcar
sua posição mais elevada em relação ao morador local, acabem por adotar um
100
comportamento esnobe. Do campista aos moradores locais a distância social é grande.
Estando bem estabelecida, cabem algumas cortesias e gentilezas na etiqueta da
interação que, dificilmente, ameaçarão essa distância. Tais cortesias, no entanto, m
um padrão delimitado, passando longe de qualquer relação de maior intimidade.
o sãojoanense, em suas práticas cotidianas, parece ter que reafirmar essa
distinção no sistema de poder, visto que a distância social não está o bem
estabelecida. Tem que se diferenciar do grupo que lhe é diretamente inferior dentro da
hierarquia do lugar. Os moradores locais consideram-se próximos, o apenas pela
proximidade física, mas também social, não internalizando como uma coisa dada tal
distanciamento dos sãojoanenses.
Rivalidade declarada mesmo parece ter marcado as antigas relações entre o
sãojoanense e o campista. A rivalidade parece ser possível quando reais
condições de competição entre as partes. Se uma das partes é infinitamente superior nos
quesitos da competição, não se estabelece uma relação de rivalidade. É necessário que
as partes envolvidas representem uma ameaça um ao outro. A rivalidade entre o
campista e o sãojoanense se expressa, por exemplo, em um conflito vivenciado ainda
quando as duas cidades eram vilas. A querela se inicia quando o governador do Rio de
Janeiro nomeou um sãojoanense, Pedro Velho Barreto, para governar Campos, na
época, vila de S. São Salvador.
Segundo Feydit, “tanto os oficias da Câmara como os moradores da Vila
julgaram ter recebido uma afronta aos seus brios de campista (...) julgando-se
injuriados, humilhados, por serem governados por um praiano.(FEYDIT, 2001, p.
176). A revolta do campista diante dessa situação foi representada pelo Dr. José Manoel
da Costa Bastos em um soneto à cidade de São João da Barra:
“Não és cidade, não, terra apoucada,
Nem mesmo as honras te dou d’aldêa;
Só tens casesbres à que a suja área
Ás tortas ruas serve de calçada.
De sapos, cobras, rans és povoada,
De gente magra macilante e feia,
101
Teu melhor edifício é a cadeia
Da gente tua habitual morada.
Os habitantes teus vendem tomate,
Pimenta, limão, de lenha o feixe,
E a jacuba tem por chocolate.
Ah! Que tenho razão para que me queixe!
Todo homem aqui é calafate,
E o sexo gentil tresanda a peixe!”
Em resposta a esse soneto, o padre João Barreto, de São João da Barra, fez uma
paródia.
“Inteligência curta e apoucada,
Própria de ignaro rábulo d’aldeia,
Língua que nunca viu côco e areia,
Vassoura de varrer porca calçada.
Alma de bandalheira povoada,
Que se espelha na cara magra e feia
Corpo que de imundice é uma cadeia
De burrical luxuria vil morada.
Cada olho assimelha-se a um tomate
Eis os dotes gentis postos em feixe,
Do grão letrado, cor do chocolate.
Ah! Que tenho razão para que me queixe!
A natureza qual de calafate,
Estampou num macaco o pior peixe.”
102
Com a decadência do Porto de São João da Barra e a proeminência de Campos
desde fins do século XIX e início de XX, a rivalidade foi perdendo sua força e se
transformando em hostilidade por parte do ojoanense e um sentimento de
superioridade por parte do campista. Assim como os sãojoanenses se diferenciam dos
moradores locais de Atafona, os campistas fazem o mesmo com os seus imediatamente
inferiores na hierarquia local. Piadas de campistas bem exprimem a relação de
superioridade que o campista estabelece para com o sãojoanense. Quando a Leopoldina
Railway desativou os trilhos em São João da Barra, circulava entre o campista a
seguinte frase: “o são joanense é tão atrasado que perdeu o trem”. ainda piadas,
que fizeram parte da minha infância em Atafona, que procuram marcar a mesma
relação: “P: - Quem nasce em São Paulo é paulista. E quem nasce em São João da
Barra é o que? R: Burro porque se esperasse mais um pouco nascia em Campos”.
Não tomei conhecimento de piadas de sãojoanense em relação ao campista.
Aparece em minhas entrevistas por duas vezes, no entanto, um receio de pedras serem
jogadas por sãojoanenses em campistas que passavam de automóvel pela cidade rumo a
Atafona. Nenhum dos informantes contou casos em que viram isso acontecer, mas que
isso era um receio que tinham.
Configura-se, então, um sistema de status em que o campista ocupava as mais
elevadas posições de prestígio, o sãojaoanense vinha abaixo do campista, mas acima do
morador local. Tal sistema parecia figurar na percepção dos segmentos em questão e
estabelecer distâncias sociais com “barreiras” mais ou menos permeáveis. Pode-se dizer
que tais percepções orientavam as interações sociais entre eles.
V. Ruínas: o “avanço” do mar sobre Atafona e a crise econômica
da “sociedade” campista
"(...) la destrucción de la obra
arquitectónica aparece como la venganza que
toma la naturaleza contra la violencia que
hizo el espíritu, cuando la moldeó y conformo
a su imagen y semejanza."
Simmel
103
A partir da metade da década de setenta o balneário passa a sofrer um processo
acelerado de transformação do friso litorâneo e, com ele, uma inusitada transformação
de suas praias. O mar, que segundo Lamego, em 1622, era onde hoje se encontra a
Igreja da Penha, após um recuo ao longo dos séculos, parece querer voltar ao seu lugar
de origem. Segundo Lamego:
“A misteriosa origem das restingas desvendou-se-nos com um
fenômeno maremático ocorrido em Gargaú em 1926, que,
salteando, a pequena vila de improviso, privou-a de sua praia.
Ao soprar de uma violenta suestada, foram os vagalhões
trazendo a massa silicosas. E do pontal da Convivência na
foz do Paraíba -, veio estirando-se para o norte uma lingüeta
de areia, de cem metros de largo por dois de alto, paralela à
costa primitiva. De permeio, afundou-se uma laguna idêntica
em largura, retilínea por quatro quilômetros de extensão. Quer
isso dizer que o Oceano recuou duzentos metros no curto
espaço de semanas! E a lagoa rasa, entulhando-se aos poucos
pela ação dos alísios sobre a duna móvel, é uma futura
restinga! Outras provas existem da retirada das águas pelo
solevanteamento contínuo do platô continental de São Tomé.
As primitivas casas da praia de Grussaí estão hoje há quase
um quilometro do mar. O farolete de Atafona, que em 1898
piscava perto da água, arredou-se uns duzentos metros. Num
período de trinta anos, isto dá-nos uma fuga do Atlântico, de
mais de seis metros por ano.” (LAMEGO, 1934, p. 18-19).
Nesse processo dinâmico, o mar, desde a década de 70, avança sobre o local em
que se formou o balneário de Atafona. Desde então vem destruindo inúmeras casas de
pescadores e residências de vilegiatura da sociedade” campista. Em 15 de março de
1983, segundo o jornal Monitor Campista, o mar já havia destruído cerca de quatro ruas
no Pontal de Atafona.
104
Entre as muitas explicações para o fenômeno ressalta a oferecida por alguns
pescadores. Segundo eles, o mar está avançando em Atafona devido a um castigo
divino. E para tal infortúnio encontram justificativa no inusitado fato de a capela de
Nossa Senhora dos Navegantes ter sido construída no Pontal, em fins dos anos 50, de
costas para o mar. Tal explicação não anula, no entanto, as refinadas explicações,
baseadas no conhecimento naturalístico, que também fornecem. Seu Benedito, por
exemplo, por vezes me deu verdadeiras aulas sobre como a dinâmica dos ventos e
marés influía e alterava a forma física do Pontal, das Ilhas e até mesmo de Gargaú.
Estabelecem uma relação de causalidade entre ventos, marés e represas
construídas ao longo do Rio Paraíba e o “avanço” do mar sobre Atafona. Isso, porém,
não basta para a compreensão do fenômeno. Para isso, buscam uma “segunda causa” ou
explicação de ordem sobrenatural, tal como os Azandes e nós mesmos pertencentes “a
sociedade ocidental capitalista moderna”.
49
O entendimento “racional” do fenômeno
não explica o porquê de tal “avanço” ter acontecido daquela forma, justamente, ali e
com eles.
ainda estudos acadêmicos sobre o infortúnio que se abate sobre a cidade.
Entre esses se destaca o do grupo que envolve o professor Gilberto Pessanha,
engenheiro cartográfico da UERJ; o prof. Alberto Garcia Figueiredo, geólogo da UFF;
e um amplo grupo de estudantes de geografia da graduação da UFF. Esse grupo
monitora o fenômeno na “frente erosiva ativa costeira” em Atafona. Segundo seus
relatórios, o fenômeno ocorre desde antes da década de 60 e a “erosão em progresso” já
destruiu 183 construções distribuídas sobre 14 quadras. O Pontal, literalmente, "sumiu
do mapa" (ver anexos V e VI).
Nas recordações dos antigos moradores locais e veranistas, no entanto, tal
fenômeno passa a fazer parte de suas vidas a partir da metade da década de 70 quando o
mar passou, de maneira perceptível, a avançar sobre a região do Pontal destruindo as
casas dos pescadores. A prefeitura de São João da Barra, em fins da década de 70,
construiu casas para abrigar tais pescadores. As casas "originais" e outras construídas
49
Essa justificativa dos pescadores é frequentemente ressaltada pelos freqüentadores do balneário em um
tom romântico. Com uma visão paternalista acham interessante sua inocente explicação para o fenômeno.
Falam do caso como uma coisa muito distante das explicações que buscam em suas vidas sociais
cotidianas para qualquer episódio. Assim como esses pescadores, além de uma explicação “racional”,
frequentemente, também buscamos uma "outra explicação" para entender o porquê de um determinado
infortúnio se abater sobre nós.
105
em suas adjacências formaram a região conhecida como CEHAB (ver anexo IV; zona
4).
Nídia Lysandro de Albernaz foi dona de uma das maiores residências de
vilegiatura de Atafona. Apesar de veranear no balneário desde a infância, foi em 71,
que resolveu construir sua imponente casa com sete suítes e alguns salões. Nídia se
recorda que da sua casa até a beira da praia iam de jipe, porque eram uns 380 metros.
“Quando teve a primeira invasão da água na região dos
pescadores, que se chama de Pontal, eu tive um grande pesar
por eles. Agora, eu não podia imaginar que o mar chegasse até
a nossa casa... Eu nunca mais fui a Atafona, desde que o mar
se aproximou da nossa casa. Eu sabia (...) eu tinha notícias,
mas não queria saber como o mar estava (...) não tinha
interesse. O muro da minha casa era enorme e os portões de
madeira com barras de ferro... eram três: um para entrada de
carro, outro de entrada para a casa e outro de serviço.
Primeiro, disseram que o mar tinha tombado os portões.
Depois, não sei. Dizem até que a água chegou até a porta do
living e dos quartos da frente... Eu e o arquiteto planejamos
tudo de tal modo que sentada da minha mesa da sala de jantar
eu via o alto-mar... a distância era imensa. O areal você não
pode imaginar”.
106
O "areal", que distanciava a casa de Nydia do mar, sumiu. O mar, que Nídia da
mesa da sala de jantar avistava de longe, hoje, bate quase na metade de sua antiga
residência de vilegiatura. As ruínas dessa casa são um dos mais chocantes exemplos do
avanço do mar na região e tornaram-se ponto turístico de Atafona.
Foto por Juliana Blasi Cunha, 2005.
MAR
Casa de Nídia
Lysandro de Albernaz
Arquivo privado César Caldas, 1972
107
Como a de Nídia, tantas outras foram as residências de vilegiatura destruídas pelo
avanço do mar na região. Muitas foram e ainda são as casas destruídas que fazem parte
da família duas, três ou quatro gerações. Do patrimônio material e simbólico de
muitas dessas residências, junto a tijolos e vergalhões soltos pela praia, o mar deixou
apenas recordações dos diversos momentos de sociabilidade vividos, pelo agrupamento
de parentesco e convívio, no interior dessas casas. Segundo Simmel: “La ruína es la
forma actual de la vida pretérita, la forma presente del passado.” (Simmel, 1924, p.
226)
Além do mar, conspirou ainda contra essas residências de vilegiatura a crise
econômica que, a partir da metade da cada de 80, se abateu sobre essa “sociedade
com o processo de insolvência de muitas usinas em Campos. Direta ou indiretamente,
muitas foram as famílias de “sociedade” de Campos duramente afetadas por essa crise
econômica.
50
Como costumam dizer, “o dinheiro mudou de mãos” e novas famílias
passaram a se destacar em Campos. Segundo Paula Virgínia de Souza Oliveira,
colunista do jornal Monitor Campista, “com a chegada dos anos 90... os espaços foram
ocupados pelos chamados emergentes ou os novos ricos, outros sobrenomes passaram
a freqüentar e promover festas e outros eventos.” (SANTAFÉ, 2002, p.420)
50
A máxima “pai rico, filho nobre, neto pobre” parece se encaixar bem à situação vivenciada por muitas
famílias da “sociedade” de Campos.
Ruínas
da Usina Cambaíba, 2003
-
Foto por Quésia de Souza Francisco
108
Com a crise econômica
altera-se a antiga
configuração do sistema de
status através do qual essas
famílias se classificavam e
relacionavam. Junto com
suas residências de
vilegiatura em Atafona,
muitas foram as famílias que
ruíram econômica e
socialmente. Um trecho da entrevista de Nídia Lysandro, que além da casa de Atafona
viu as duas usinas da família em ruínas parece bem ilustrar um processo experenciado
por muitas famílias de Campos: “você olha para trás e não consegue imaginar que
raízes suas... plantadas... tão profundas, tenham se soltado da terra e ter ido não sei
para onde".
Perdendo poder econômico, muitas famílias perdem seus lugares de prestígio e é
diante dessa nova situação de crise que a “sociedade” campista começa a evocar para si
e a ser reconhecida pelo título de “tradicionais”. Referem-se uns aos outros como
“tradicionais”. Tal categoria aparece ainda nas colunas sociais das últimas cadas e
entre outros grupos que os reconhecem enquanto tal. Tornaram-se nome de ruas em
Campos. É possível perceber hoje em muitos membros dessas famílias um desejo de
reviver as “glórias do passado”
51
.
Através das fotografias de seus álbuns de famílias é freqüente construírem
narrativas sobre os “bons tempos” da sociedade campista”. Tais fotografias em muito
contribuem para essa idealização do passado, visto que não se fotografa qualquer coisa,
mas apenas aquilo que desejamos destacar da fluidez da existência cotidiana e tornar,
não apenas eterno, mas exemplar. o é das ausências, nem das brigas e contradições
que permeiam seu cotidiano que falam as fotografias, mas sim de um:
51
Segundo Hobsbawn, as tradições “inventadas” são “reações a situações novas que ou assumem a forma
de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que
obrigatória”(HOBSBAWN, 1997, p. 10)
109
“elo mais permanente e mais profundo que, subjacente àquelas
relações, significado e consistência àquele grupo: os laços
de sangue e afeto, os sentimentos de solidariedade e
pertencimento que os une e a partir dos quais se identificam,
diante de si mesmos e dos outros, como uma família feliz”.
(Lins de Barros & Strozemberg, 1993, p. 22)
Essa idealização do passado, se expressa ainda em livros de recordações em que
exaltam seus “anos de glória”. Nas palavras da colunista social, Maria Ester Balbi:
"Tomava-se champagne Veuve Clicquot e whisky Old Par à
vontade. Não se admitia repetir vestidos em festas a rigor que
aconteciam com grande freqüência. As casemiras inglesas,
rendas francesas, mariscot e galpure enriqueciam os trajes do
"society". Nossa sociedade era rica. Rica e fechada".
(SANTAFÉ, 2002, p. 409)
Reviver as “glórias do passado” parece ser uma forma que essas famílias
encontraram para se distinguir dos “novos ricos” que passaram a concorrer pelos
lugares de prestígio na vida social de Campos. Diferenciam-se dos emergentes em
nome do princípio da antiguidade ou o que chamam “tradição”. Orgulham-se de se
conheceram três gerações ou mais e terem atravessado juntos um mesmo processo
grupal. Atravessaram juntas um processo grupal que lhes dera um estoque de
lembranças, apegos e aversões comuns(ELIAS & SCOTSON, 2000, p. 38)
As alterações no interior desse grupo contribuem para as mudanças no estilo de
vida e relações de poder do balneário que outrora freqüentavam. Além daqueles que
perderam suas casas no balneário pelo avanço do mar, muitos são os que deixaram de
freqüentá-lo por falta de condições, visto que, como foi descrito acima, veranear em
Atafona não significava, para esse grupo, apenas estar . Era necessário marcar sua
existência social através de festas e as mais diversas “recepções”.
Soma-se a esses dois fatores, a questão da sucessão do patrimônio. Muitos núcleos
domésticos se reúnem como que por obrigação em torno de certas figuras, em alguns
110
casos os próprios fundadores da casa. Com o envelhecimento ou morte das figuras
tutelares da casa é comum que a família perca o compromisso de se reunir ali. Esse
desinteresse não se dá apenas pela questão econômica, visto que em alguns casos
passam a veranear em outros balneários que oferecem atrativos a seus filhos como
Búzios, Guarapari e outros. Com isso é comum que vendam a casa e, em alguns casos,
simplesmente a abandonem.
Idealizado e construído, essencialmente, para a frequentação das famílias da
“sociedade” campista, o Atafona Praia Clube, em meados da década de 90, começa a
viver uma séria crise gerada pelo alto índice de inadimplência dos seus sócios. Através
de atas de reunião do Atafona Praia Clube é possível perceber a intenção de seus
diretores na ocasião de anistiarem seus antigos devedores, mas não venderem tulos a
preços promocionais visando a manter a “qualidade dos sócios”. Tal fato parece indicar
a alteração no estilo de vida e frequentação que se fazia perceptível nessa época em
Atafona.
É comum que os antigos veranistas aloquem a responsabilidade das alterações na
vida social de Atafona no avanço do mar. Raramente, tocam no assunto das alterações
que o grupo sofreu com a crise econômica pela qual passou. Esse processo de alteração
no estilo de vida, frequentação e relações de poder do balneário deve ser entendido de
maneira dinâmica, visto que muitas são as “famílias tradicionais” que ainda fazem
questão de freqüentá-la e Atafona continua sendo um lugar onde antigos amigos sempre
se encontram. Com o crescimento e popularização do balneário, no entanto, essas
famílias parecem ter se perdido umas das outras. Nas palavras de Sônia Ferreira :
“Atafona era muito menor e as famílias, praticamente, todas se
conheciam. Então, as pessoas que vinham para Atafona eram
todas amigas, era todo mundo conhecido. Era tipo uma família
que sai de um lugar e vai passar o verão numa colônia de
férias. Atafona cresceu muito e nisso perdeu um pouco dessa
personalidade que ela tinha de ser uma coisa muito familiar”.
O balneário passou aos poucos a partir da década de 80 a ser habitado e
freqüentado também por “gente de fora”. Famílias de Campos e outras cidades da
111
região de uma extração social distinta das “famílias tradicionais” passaram a freqüentar
o balneário. Com o passar das décadas, formou-se em Atafona a região da Coréia e
Carrapicho, composta de casas populares e que se expande consideravelmente.
Não são apenas os antigos veranistas de “famílias tradicionais” que rememoram
Atafona dos “velhos tempos”. Membros das famílias de antigos moradores também
parecem preferir a Atafona de antigamente”, onde “todo mundo era conhecido”.
Paulinho Cravo, pescador de uma família antiga na região, disse: “nossa praia tinha
nome na região. Era todo mundo conhecido (...) só freqüentava aqui gente de bem.” É
comum que antigos moradores digam que os antigos veranistas eram de famílias
“distintas” de Campos e que agora Atafona está cheia de gente das favelas “TG” (Tira
Gosto) e “Bala” (Balieira) de Campos que lá foram morar e fazer o “movimento”.
Frequentemente, tudo de ruim que acontece em Atafona é atribuído, pelos antigos
moradores, ao pessoal "de fora". Dizem: "isso não é coisa de gente daqui!". O pessoal
"de fora", em sua maioria, habita uma região chamada de Coréia e Carrapicho. Lá,
segundo contam, mora uma “turma ruim de bandidos”, portanto, roubos e furtos são,
frequentemente, a eles atribuídos (ver anexo IV; zona 5)
52
.
Não foi apenas no interior do grupo que algumas famílias da "sociedade" campista
perderam espaço e prestígio social. Essa situação atingiu as relações de poder do
balneário que "tradicionalmente" freqüentavam. Esses antigos veranistas de Campos
parecem vir perdendo autoridade e prestígio nas relações de poder local, ao passo que
moradores locais e gente de fora” de mais recurso ocupam ali novos lugares sociais.
Como exemplo disso podemos citar a alteração no trajeto da procissão da padroeira da
cidade. As antigas estratégias de evitação e distância social parecem também não serem
mais o bem delimitadas, sendo comum, por exemplo, encontrar na praia pela manhã
“todo tipo de gente” e não mais, como nos “bons tempos” apenas os “distintos”
veranistas de “família tradicional”.
A eleição de Sônia Ferreira, integrante de uma “família tradicional” de Campos,
para a direção da Irmandade de Nossa Senhora da Penha, durante algum tempo, me
parecia contradizer essa hipótese de alteração nas relações de poder local e me trouxe
bastante inquietação.
52
A planta baixa mais recente, disponibilizada pela prefeitura de São João da Barra, é do ano de 80 e
ainda não aparece demarcada nela a região da Coréia e do Carrapicho.
112
Comecei por pensar que a eleição de Sônia Ferreira podia estar relacionada a um
acaso qualquer; o, interferindo, portanto, em minha interpretação. Tal questão se
resolveu, no entanto, ao nível da teoria antropológica. Foi necessário algum tempo até
que me desse conta de que estava engessando meus dados nas amarras do
estruturalismo e que tudo que fugisse às regras dessa estrutura me traria problemas. Foi
apenas após um aprofundamento das discussões teóricas que inauguram a crise do
estruturalismo, em que os grandes modelos passaram a ser questionados, que consegui
pensar na vida social de Atafona de maneira mais dinâmica. e aceitar que esse fato é
parte integrante e constitutiva desse processo.
Turner, por exemplo, enxergava no mundo social “o movimento tanto quanto a
estrutura, a persistência tanto quanto a mudança, na verdade, a persistência como um
aspecto marcante da mudança” (TURNER, 1947, p. 32 apud Mello & Vogel, 2004, p.
52). Entendi que precisava analisar meus dados de maneira mais dinâmica porque eles
continham não apenas regularidades, mas, também, mudanças, reatualizações,
ambigüidades e negociações. Na prática, isso significa pensar essa alteração das
relações de poder local, que envolvem a perda de autoridade e prestígio de antigos
veranistas de Campos e de São João da Barra, sempre pautada pela idéia de processo tal
como propõe, por exemplo, Sahlins
53
. A eleição de Sonia Ferreira para a Irmandade de
Nossa Senhora da Penha não contradiz a idéia de que tal segmento vem perdendo
autoridade e prestígio nessas relações, apenas revela como esse processo se ao nível
da interação social entre os indivíduos na prática.
VI. Considerações Finais
A partir da etnografia de "segundo grau" da Festa da Penha é possível desenvolver
algumas questões relacionadas à totalidade dinâmica das relações sociais do balneário
em "seus anos de glória". No período do tríduo da Festa "de antigamente", as atenções
dos moradores de o João da Barra, dos veranistas de Campos e moradores locais
estavam centradas nas atividades sagradas e profanas que antecedem e preparam para o
53
Durante a crise do estruturalismo, Marshal Sahlins é um dos autores que buscou repensá-lo. O
autor visa, em Ilhas de História, a incorporar a noção de processo, de história, de diacronia à criticada
concepção de estrutura vigente na época. A idéia é “historicizar a noção de estrutura” e, ao mesmo
tempo, verificar como as estruturas se realizam no interior da ordem cultural
.
113
“dia dela”. Os três segmentos estavam, então, articulados em torno da Festa. Era
comum, no entanto, que participassem de atividades diferentes ou, então, que
desempenhassem papéis diferentes nas atividades que participavam juntos. Nas
brincadeiras populares como pau de sebo ou cabo de guerra, por exemplo, os veranistas
de Campos e moradores de São João da Barra apenas assistiam e financiavam as
prendas, não participando da competição em si. Esse tipo de comportamento adotado,
no tríduo da Festa de antigamente”, parece já apontar para a distância social que
orientava a relação entre os três segmentos em sua vida social cotidiana.
Durante a procissão terrestre de antigamente”, os lugares sociais de destaque ao
lado do andor e o trajeto percorrido pela procissão, põe em evidência uma bem
delimitada hierarquia social que marcava a interação entre os três segmentos. Através
desses lugares e trajetos os três segmentos em questão se articulam e se representam
nesse ritual, enfatizando aspectos de seu complexo sistema de hierarquia local. Apesar
dos lugares sociais de destaque e trajeto da procissão acentuarem a estrutura hierárquica
local, tais fatos em nada anulam o sentimento de communitas ou de suspensão
momentânea de barreiras sociais que parecia ser experenciado durante o momento da
pagação de promessa
54
. Na hora de carregar o andor nos ombros, as distinções sociais
existentes entre os três segmentos pareciam perder a vez. Ali, importava, aos
“guardiões de Nossa Senhora da Penha”, na decisão a respeito de quem e, em que
momento, carregaria o andor, apenas a estatura física de cada indivíduo. A preocupação
era a de que o andor não pendesse para nenhum dos lados visando sempre ao bom
desempenho da performance ritual.
Segundo Turner, esse seria um período liminar onde a sociedade é:
“considerada como um comitatus não-estruturado, ou
rudimentarmente estruturado e relativamente indiferenciado,
uma comunidade, ou mesmo comunhão, de indivíduos iguais que
se submetem em conjunto à autoridade dos anciãos rituais”.
(TURNER, 1974, p. 119)
54
Ver ALVES, 1980.
114
Entendendo a vida social de forma dinâmica, o autor ressalta que “a liminaridade
implica ainda que o alto não poderia ser alto sem que o baixo existisse, e quem está no
alto deve experimentar o que significa estar em baixo
55
A hierarquia sob a qual se pautava a relação social estabelecida entre esses
indivíduos, no momento da pagação de promessa, parece se afrouxar ou "neutralizar",
tal como propõe Matta a respeito das procissões das “festas de santo”
56
. Entre outras,
uma passagem narrada por Delso Araújo, em muito contribuiu para meu entendimento
acerca do sentimento expereciado entre os três segmentos sociais de "suspensão
momentânea de barreiras sociais":
“D. Edith era uma senhora mais velha e também mais
importante do que eu. Então, eu não tinha muita intimidade
com ela, mas ali naquele momento, eu brincava com ela
dizendo que ela não devia ficar embaixo do andor porque
podia ser perigoso e tal. Ela sorria”.
No momento da pagação de promessas, as usuais distinções sociais pareciam
perder espaço, cabendo até uma brincadeira com caráter de maior intimidade. No
"plano da organização social" religioso, os três distintos segmentos sociais, nesse
momento, pareciam integrar uma única categoria: a de devotos de Nossa Senhora da
Penha. Essa “comunidade”, formada por "fiéis" que compartilham de uma mesma
devoção religiosa, existe, no entanto, durante esse específico momento da procissão
da Festa. Em momentos diferentes da própria procissão, as hierarquias ora são
ressaltadas, ora são inibidas. Segundo Da Matta, as procissões “não estariam
engendrando nem uma communitas nem acentuando a estrutura, mas teriam todas
essas facetas ao mesmo tempo”. (DA MATTA, 1997, p. 66)
A partir do material empírico reunido ao longo do trabalho de campo realizado
durante a Festa da Penha dos anos de 2005 e 2006 é possível dizer que na Festa "de
55
Não tendo existido espaço e nem tempo nessa dissertação para o desenvolvimento de tal tema, acredito
ser possível apenas sugerir que dadas as suas características de liminaridade e de marcação da passagem
entre as duas estações em que o balneário se divide, a Festa da Penha possa ainda ser pensada como um
ritual de passagem, tal como propôs Van Gennep (1960).
56
Mais ver Da Matta em “Carnavais, Malandros e Procissões”.
115
agora" os veranistas de Campos e moradores de São João da Barra, parecem ter perdido
espaço em meio a enorme quantidade de novos freqüentadores da Festa. Alguns de seus
membros acompanham toda a procissão, outros apenas saem da Igreja ao lado do andor.
ainda os que comparecem à missa solene, mas o ficam para a saída da procissão.
O fato é que muitos dos integrantes do grupo de veranistas de Campos e também dos
moradores de São João da Barra comparecem à Festa, mas não mais se mantém
reunidos destacando-se como grupos de elevado prestígio social na cidade como antes.
Além dos veranistas de Campos e moradores de São João da Barra, não mais
serem maioria nos lugares de destaque em torno do andor, desde 2002, o cortejo, logo
em sua saída, percorre a área da CEHAB. Ali, residem os "antigos" moradores locais
que passam a ter as ruas de suas casas também consagradas pela procissão de Nossa
Senhora da Penha. A inclusão desse trecho ao trajeto da procissão parece significativo
para o entendimento da dinâmica das relações sociais de Atafona como um todo.
Os lugares de destaque e o trajeto, que na Festa "de antigamente" destacavam um
sistema de hierarquia na qual se pautava a interação entre os segmentos em questão,
sofreram alterações. Submetendo tais dados ao crivo da análise antropológica pode-se
discutir a idéia de que o "antigo" sistema hierárquico que orientava a interação social
entre os três segmentos ruiu juntamente com muitas casas e ruas desse balneário. O
nítido distanciamento social de antes parece não mais existir entre esses segmentos.
O ritual da Festa da Penha, padroeira da cidade, ao longo do trabalho de campo
em muito contribuiu, portanto, para pensar a dinâmica das relações sociais no balneário.
“É nele e através dele que se torna possível surpreender a sociedade como demiurgo
de si mesma, no fugidio e preciso instante de sua mímesis.” (MELLO & VOGEL,
2004, p. 53).
Essas alterações na dinâmica das relações sociais de Atafona foram pensadas à luz
do elemento ao qual grande parte dos interlocutores atribuiu tais mudanças: o "avanço
do mar" sobre a região. É indiscutível que a destruição de muitas casas de pescadores e
residências de vilegiatura dos veranistas de Campos tenha contribuído para as
alterações nas relações de poder local, estilo de vida e frequentação do balneário. Para
fins de análise antropológica, no entanto, faz-se necessário buscar uma interpretação
116
que “não fique limitada pelos horizontes mentais daquele povo (...) nem que fique
sistematicamente surda às tonalidades de sua existência"
57
.
Não como pensar as alterações em distintos aspectos pelas quais a
organização social geral de Atafona vem passando, sem considerar as mudanças
sofridas no interior do próprio grupo de veranistas de Campos. Com a crise econômica
que assolou muitas famílias da "sociedade" campista, o grupo passa a evocar a sua
"tradição", numa nítida tentativa de se diferenciar, enquanto perdiam poder para os
"novos ricos" em Campos. Pode-se pensar que a perda de poder e prestígio dessas
famílias, agora "famílias tradicionais", não se limitaram ao interior desse grupo na
cidade de Campos, mas também se refletiram na organização social do local que
escolheram como balneário.
As formas de sociabilidade das famílias da “sociedade” campista em
Atafona reforçavam os laços da própria família e aproximavam os membros desse
grupo. Ali, estavam sujeitos a uma intensa convivência social, em muitos casos, sem
interrupções para compromissos profissionais ou escolares, por parte, respectivamente,
dos chefes de família e crianças ou jovens. Havia que se ocupar o tempo liberado com
atividades recreativas que, quase sempre, implicavam em reunir as pessoas.
Ter uma residência de vilegiatura em Atafona parece ter se tornado, durante
os "anos de glória" da "sociedade" campista, uma maneira de expressar o pertencimento
a esse grupo. Veranear em Atafona implicava em "abrir a casa", demonstrando
conhecimento de etiqueta, bom gosto e fino trato para “receber” seus convidados.
Muitos eram os esforços de auto-afirmação e por conquista de prestígio que moviam a
intricada rede de relações que essas famílias compunham.
Para marcarem seu lugar no interior do grupo era comum, por exemplo, que
promovessem festas de 15 anos e bailes de debutantes, freqüentassem os salões do
Automóvel Clube e Saldanha da Gama e oferecessem jantares e festas em sua
residência. Toda e qualquer ação de seus membros relacionadas à "caridade" e
investimentos na cidade de Campos se convertiam ainda em mecanismos para destacar
57
(Geertz, 1997, p. 88).
117
a existência social de certas famílias na "sociedade" campista. Era ainda através de tal
destaque que muitos afirmavam seus nomes na cena política local como "benfeitores".
Da família Pereira Pinto, por exemplo, saiu um senador da república e deputado
estadual.
Ter uma residência de vilegiautura em Atafona tornou-se um dos símbolos
de status das famílias da "sociedade" campista. As diversas “recepções” que
caracterizam a sociabilidade desse grupo em Atafona podem ser pensadas à luz daquilo
que Veblen chama de “consumo conspícuo”. Segundo o autor:
“Para o homem ocioso, o consumo conspícuo de bens valiosos
é um instrumento de respeitabilidade. À medida que acumula
riqueza, ele é incapaz, sozinho, de demonstrar a própria
opulência pelo consumo conspícuo. Recorre ao auxílio de
amigos e concorrentes, dando-lhes presentes valiosos e
convidando-os para festas e divertimentos dispendiosos.”
(VEBLEN, 1965, p. 80).
O “veranear” em Atafona, seguindo todo o modus vivendi relativo às formas
de sociabilidade desse grupo lá, parece ter se tornado, em meio a outras, uma excelente
oportunidade para a afirmação ou reafirmação da existência social de muitas dessas
famílias no interior desse grupo. Além das “recepções” e outras atividades dispendiosas
que nesse balneário realizavam, a própria participação nas questões relacionadas à
Festa da Penha, podem ser pensadas, não apenas, como simples mecanismos de
ostentação, mas sim como verdadeira necessidade de se representar socialmente na
"sociedade" campista.Toda família “de maior conceito” tinha uma casa em Atafona.
Essas famílias pareciam ter como obrigação se representar socialmente de acordo com a
sua posição nessa “sociedade”.
Segundo Elias, em seu estudo sobre a corte francesa de Luis XIV:
“alguém que não pode mostrar-se de acordo com seu nível
perde o respeito da sociedade. Permanece atrás de seus
concorrentes numa disputa incessante por status e prestígio,
118
correndo o risco de ficar arruinado e ter de abandonar a
esfera de convivência do grupo de pessoas de seu nível e
status.(ELIAS, 2001, p. 86)
Essas estratégias tinham, portanto, um forte caráter coercitivo na vida dessas
famílias. Com a crise econômica e social pela qual o grupo passou, essas famílias
tiveram seus espaços ameaçados não apenas no interior do grupo, mas também na
antiga ordem estabelecida no local que elegeram como balneário, Atafona. Junto ao
"avanço do mar", as alterações no interior desse grupo parecem ter contribuído de
maneira significativa para as mudanças no estilo de vida, freqüentação e relações de
poder em Atafona.
119
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Jornal São João da Barra, publicações desde 2002 até 2006.
Arquivos Privados
César Caldas, José Carlos Pereira, Rosely Sanz Blasi, Nídia Lysandro de Albernaz e
Delso Araújo.
124
ANEXOS
a
ANEXO I
b
ANEXO II
c
ANEXO III
d
ANEXO IV
e
ANEXO V - Vista Aérea do Antigo Pontal de Atafona, 1974. Fonte: http://www.uff.br/atafona/fotos.html
f
ANEXO VI - Vista Aérea do Antigo Pontal de Atafona, 2004. Fonte: http://www.uff.br/atafona/fotos.html
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