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Bernardo Andrade Marçolla
A POROSIDADE POÉTICA
DE RIOBALDO, O CERZIDOR:
RITMO, TRANSCENDÊNCIA E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA
EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação
em Letras da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, como parte dos requisitos para
obtenção do grau de Doutor em Literaturas de
Língua Portuguesa, elaborada sob a orientação da
Profª. Drª. Márcia Marques de Morais.
Belo Horizonte
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
2006
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FICHA CATALOGRÁFICA
Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Marçolla, Bernardo Andrade
M321p A porosidade poética de Riobaldo, o cerzidor: ritmo, transcendência e
experiência estética em grande sertão, veredas/ Bernardo Andrade
Marçolla. – Belo Horizonte, 2006.
328f., il.
Orientadora: Profª. Drª Márcia Marques de Morais.
Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
Programa de Pós Graduação em Letras, Literaturas de Língua Portuguesa.
Bibliografia
1. Literatura brasileira – Crítica e interpretação – Tese. 2. Poética.
3. Análise do discurso narrativo. I. Rosa, João Guimarães. Grande Sertão:
Veredas – Crítica e interpretação. II. Morais, Márcia Marques de. III.
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós
Graduação em Letras, Literaturas de Língua Portuguesa. IV. Título.
CDD: B869.09
CDU: 869.0(81).09
Bibliotecária : Erica Fruk Guelfi – CRB 6/2068.
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Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Programa de Pós-graduação em Letras
Tese intitulada “A porosidade poética de Riobaldo, o cerzidor: ritmo, transcendência e experiência
estética em Grande sertão: veredas, de autoria do doutorando Bernardo Andrade Marçolla,
defendida publicamente e aprovada pela banca examinadora constituída pelos seguintes
professores:
_________________________________________________________
Profª. Drª. Cleusa Rios Pinheiro Passos – USP
_________________________________________________________
Prof. Dr. Reinaldo Martiniano Marques – UFMG
_________________________________________________________
Prof. Dr. Audemaro Taranto Goulart – PUC Minas
_________________________________________________________
Profª. Drª. Melânia Silva de Aguiar – PUC Minas
_________________________________________________________
Profª. Drª. Márcia Marques de Morais – Orientadora – PUC Minas
Belo Horizonte, 07 de dezembro de 2006.
_________________________________________________________
Prof. Dr. Hugo Mari
Coordenador do Programa de Pós-graduação
em Letras da PUC Minas
Às infinitas possibilidades de expressão,
alma de todos nós.
AGRADECIMENTOS
O ato de agradecer – e tudo mais na vida – pode se transformar em uma
formalidade ou pode significar a expressão verdadeira de uma intenção. Na esperança de
estar trilhando esse segundo caminho a maior parte do tempo, agradeço. Sou grato às forças
que nos inspiram e movimentam – e que não precisam ter nome. Agradeço às forças vivas da
natureza, sempre a me animar. Agradeço a João Guimarães Rosa, Riobaldo e Diadorim – nas
esferas extra-ordinárias nas quais se encontram neste momento. Agradeço a todas as pessoas
e eventos que, de forma direta ou indireta, contribuíram para a realização deste trabalho.
Aos meus familiares, amigos e colegas de trabalho, expresso minha gratidão por todo o
suporte e incentivo. Meu agradecimento mais especial à Dri, companheira de travessia,
interlocutora amorosa e paciente.
Academicamente também tenho bastante a agradecer. Sou muito grato à
orientação da professora Márcia Morais, em seu duplo movimento: o olhar próximo e
acurado que se junta ao acolhimento respeitoso da alteridade. Agradeço também à
professora Lúcia Helena Vilela, primeira a me acompanhar e incentivar, ainda quando este
trabalho buscava nascer como projeto. Agradeço aos professores que participaram de meu
exame de qualificação, Melânia Aguiar e Reinaldo Marques, que muito contribuíram para o
aperfeiçoamento desta pesquisa. Agradeço, ainda, aos professores Audemaro Goulart, Hugo
Mari, Lélia Duarte, Márcio Serelle, Maria Nazareth S. Fonseca e Suely de Paula e Silva Lobo –
pela rica oportunidade de convívio e aprendizado, em sua pluralidade de perspectivas. Meu
reconhecimento também aos funcionários da secretaria do Programa – em especial Berenice
e Vera –, por todo seu auxílio e disponibilidade. Finalmente, agradeço à PUC Minas, pelo
apoio institucional que tornou possível a construção desta tese.
“[...] Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o
senhor souber, sabe; não sabendo, não me entenderá.
Ao que, por outra, ainda um exemplo lhe dou. [...]”
Riobaldo
(ROSA, 1978: 119)
RESUMO
A porosidade poética de Riobaldo, o cerzidor:
ritmo, transcendência e experiência estética em Grande sertão: veredas
O presente estudo aborda Grande sertão: veredas a partir de uma perspectiva
multidimensional, compreendendo a obra através do entrelaçamento dinâmico de vários
níveis narrativos, tornado possível pela via da narração de um aprendizado poético. Tal
aprendizado, corporificado na trajetória de Riobaldo, implica a compreensão da arte como
um fluxo, movimento a ser apreendido através da vivência de três suportes fundamentais:
ritmo, transcendência e experiência estética. Tendo como base a interação que se dá entre
essas três dimensões da experiência, a operar na lógica da simultaneidade, temos as
expressões artísticas de Riobaldo, configuradas pela via de uma poética que se apresenta com
contornos bem específicos. Aqui nomeada como “porosidade poética”, essa pressuporia a
permeabilidade e o trânsito entre níveis ordinários e extra-ordinários de realidade, assim
como seria marcada por um afastamento do lugar tradicional atribuído ao artista. Assim
constituído, este conceito é então utilizado como chave de leitura para que se lance um novo
olhar sobre Grande sertão: veredas, em diálogo com dimensões presentes na própria poética
rosiana. Percebe-se, então, a pluralidade de níveis sob os quais a narrativa de Riobaldo pode
ser lida – de um modo simultâneo, dinâmico e poroso – o que, por sua vez, remete a uma
dimensão metapoética da obra literária.
PALAVRAS-CHAVE: Guimarães Rosa; Poética; Estética; Ritmo; Porosidade
ABSTRACT
The poetics porosity of Riobaldo, the “cerzidor”:
rhythm, transcendence and aesthetic experience in “Grande sertão: veredas”
The present study analyses “Grande sertão: veredas” from a multidimensional perspective,
approaching the dynamic interweaving of the novel’s different narrative levels, allowing, by way of
the narrative, poetic learning to occur. Such learning, embodied in Riobaldo’s life path, demands
the understanding of art as a flow, as a movement to be apprehended through the experience with
three main pillars: rhythm, transcendence, and aesthetic experience. If we take as a basis the
interaction among these three dimensions operating the logic of simultaneity, we have Riobaldo’s
artistic expressions, shaped by a poetic path of well defined contours. Referred to in this paper as
“poetics porosity”, it presupposes the permeability and the transit across the ordinary and
extraordinary levels of reality, in the same way as if it were marked by the withdrawal from the
traditional place attributed to artist. Thus constructed, this concept is then used as the key for the
reader to launch a new glance, do a new reading of “Grande sertão: veredas”, by dialoguing with
the dimensions present in the very Rosean poetic composition. It is then that the reader realizes
that the multiplicity of levels in Riobaldo’s narrative can be read – in a simultaneous, dynamic and
porous way – which, in turn, lends the literary work a methapoetical dimension.
KEY-WORDS: Guimarães Rosa; Poetics; Aesthetics; Rhythm; Porosity
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
QUADROS
1
Perspectivas críticas diante da natureza multidimensional de GSV _______ 41
2
As subdivisões de GSV __________________________________________ 59
3
O fluxo rítmico da linguagem em GSV ______________________________ 72
4
O redemoinho de versos _________________________________________ 73
5
A relação entre a porosidade poética e seus três suportes _______________ 236
6
Um paralelo entre a Poética de Aristóteles e a porosidade poética ________ 261
FIGURAS
1
As curvas de ida e volta na dinâmica de GSV _________________________ 37
2
GSV e os níveis de realidade ______________________________________ 43
3
GSV e a periodicidade da onda sonora ______________________________ 76
4
A natureza multidimensional dos chakras ___________________________ 119
5
A imagem celta da alma transformada ______________________________ 120
6
Nehelania _____________________________________________________ 131
7
A representação do xamã nas cavernas Le Gabillou e Les Trois Frères ______ 149
8
Cernunnos ____________________________________________________ 150
9
O despertar da Kundalini ________________________________________ 155
10
Esferas e direções da porosidade poética ____________________________ 276
11
O movimento recursivo e a relativização de fronteiras _________________ 285
12
O duplo Uróboro ________________________________________________ 287
13
Os fluxos metapoéticos de GSV ___________________________________ 311
14
O vôo do beija-flor ______________________________________________ 315
SUMÁRIO
1
Presença de beija-flor? (uma breve introdução)
___________________ 11
2
O sertão multidimensional e o aprendizado poético ______________ 16
2.1
Do universo ordinário ao multiverso rosiano: pressupostos _____________ 17
2.2
Dimensões metafísicas em GSV ___________________________________ 21
2.3
Transitando pelo sertão multidimensional __________________________ 32
2.4
A arte como veículo _____________________________________________ 43
3
Ritmo _______________________________________________________ 51
3.1
O prelúdio ____________________________________________________ 56
3.2
Natureza e “sobrenatureza” do ritmo _______________________________ 67
3.2.1
Veredas de versos: o fluir da linguagem rítmica _______________________ 67
3.2.2
Nas bordas do som _____________________________________________ 75
3.2.3
O sertão mântrico ______________________________________________ 79
3.3
A interpretação do movimento ____________________________________ 86
3.3.1
Entre Deus e o demo ____________________________________________ 88
3.3.2
Riobaldo e os ritmos: entre o medo e a coragem ______________________ 96
3.3.2.1
A travessia do São Francisco ______________________________________ 96
3.3.2.2
O desespero quieto _____________________________________________ 103
3.3.2.3
A afinação do instrumento _______________________________________ 109
3.4
Possibilidades e impossibilidades de trânsito ________________________ 115
3.4.1
Hermógenes, a ausência de mobilidade _____________________________ 115
3.4.2
Os ritmos do pactário ___________________________________________ 122
4
Transcendência _______________________________________________ 132
4.1
A constituição do centauro _______________________________________ 133
4.2
As outras faces do demo _________________________________________ 147
4.2.1
Entre xamãs e celtas ____________________________________________ 149
4.2.2
Kundalini e daimon: o fogo e a inspiração ____________________________
152
4.3
Diadorim, a vida da alma e aquela visão dos pássaros __________________ 161
5
Experiência estética __________________________________________ 176
5.1
Desconstruindo fronteiras _______________________________________ 177
5.2
Vivência estética e mudança do ser ________________________________ 184
5.2.1
Uma perspectiva iniciática _______________________________________ 188
5.2.2
O pacto ______________________________________________________ 193
5.3
Das plenipotências ao reconhecimento da alma _______________________ 199
5.3.1
Identidade, intersubjetividade e diferenciação _______________________ 200
5.3.2
O reconhecimento do humano: a abertura do coração __________________ 208
5.3.3
A visão de Diadorim como experiência estética _______________________ 224
6
A porosidade poética __________________________________________ 235
6.1
O desenvolvimento da arte do cerzidor ______________________________
237
6.2
Os fluxos desviantes de uma “porosidade poética” _____________________ 255
6.2.1
Entre o autor e o narrador ________________________________________ 262
6.2.2
Realidade e ficção ______________________________________________ 267
6.2.3
A arte como redemoinho: movimento, permutação e porosidade _________ 275
6.2.4
Ecologia, identidade e literatura: transversalidades ____________________ 290
6.3
Desdobramentos: reflexões metapoéticas ___________________________ 298
6.3.1
Paradoxos da poética rosiana _____________________________________ 299
6.3.2
Entre Rosa e Riobaldo, e além _____________________________________ 307
7
Do infinito, movimento (uma brevíssima conclusão)
_______________ 314
Referências __________________________________________________ 317
11
1
PRESENÇA DE BEIJA-FLOR?
(uma breve introdução)
Em 1947, Rosa responde a uma carta anteriormente enviada por seu tio Vicente
Guimarães e que trazia a sua crítica em relação a um “artigo” publicado pelo sobrinho –
Histórias de Fadas. Em sua resposta, espécie de depoimento, Rosa não apenas fala de si, fala
do artista. Para além dos elementos a que se refere nessa ocasião
1
– ligados a uma
compreensão bem particular de humildade, independência, coragem, sinceridade e paciência
–, ressalto a associação por ele efetuada entre arte, natureza e religião, unidas por meio de
sua importância. Ainda que de forma enigmática, o autor também nos dá a indicação de que
essa perspectiva permearia o texto que era então objeto de sua correspondência com o tio.
[…] segundo concebo, arte é coisa seríssima, tão séria quanto a natureza e a religião.
Aliás, filosoficamente, essa é uma das idéias contidas, de modo discreto e difuso, nas
“Histórias de Fadas”. (ROSA apud GUIMARÃES, 1972: 137)
1
Em seu estudo, reconhecendo a importância de certos elementos ali presentes, Marcelo Marinho (2001) já faz
referência a essa correspondência.
12
Diante da remissão a Histórias de Fadas, imagino ser pertinente voltar a esse
texto com o intuito de sondar o modo “discreto e difuso” pelo qual a referida associação
permeia suas páginas.
Publicado originalmente no Correio da Manhã em 20 de abril de 1947, o texto a
que Rosa se refere como uma “crônica-fantasia” foi reproduzido no livro de autoria de seu tio
Vicente Guimarães (1972: 140-151) e, em uma versão revisada e encurtada pelo autor, veio a
ser novamente publicado em Ave, palavra (ROSA, 2001a: 34-41).
A primeira versão, tal como publicada originalmente em 1947, discorre
longamente sobre várias possibilidades em que animais poderiam ser transportados pelos
aviões
2
. A princípio, nenhuma alusão explícita à arte. Entretanto, segundo o narrador dessa
crônica-fantasia, após este pot-pourri, vem um caso só, único no gênero, que realmente o
motivou a escrever. Trata-se do relato de como dois dinamarqueses, encantados com a beleza
dos beija-flores brasileiros, resolvem levar para o jardim zoológico de Copenhague quinze
desses pássaros.
Eram quinze, num só gaiolão misturados, como florida mensagem do sertão. Meu
amigo Jensen só sabe informar que eram de qualidades diversas, alguns grandes, da
variedade rabo de andorinha (sic), outros misculos, do tamanho de besouros, mais ou
menos. – E as côres, Sr. Jensen? – “As côres variavam, verde e azul predominando.
Também, umas mais alegres... Mas, principalmente, côres de metal...” Sabia que não era
fácil. Êles têm de tudo: limão, romã e brinjela; bordeaux, absinto e groselha; malaquita,
atacamita, azurita; e mais todo o colorido universo, e tal. Depois, mudam com a
luz, bruxos prêtos, uns sacis de espertos, vertiginosos, elétricos, com valôres
instantâneos. Chegam de repente, não se sabe de onde, se enflecham para uma
flor, e pulam no ar, esfuziantes, que não há olhos que os firam. Riscam retas
quebradas, bruscas, e são capazes mesmo de voar para trás. Na minha terra,
vinham do mato, e eram realeza: môsca azul, arco-íris, papel de bombom, confetti, bôlha
de sabão ao sol ou bola de árvore de Natal. Mas só entravam pelas janelas, em minha
casa, de manhã cedo, uns pequeninos, verdes, que davam sorte. Em Itaguara, vi maiores,
2
O primeiro episódio narrado é sobre uma vaca, que já traz a alusão explícita às relações entre religião e
filosofia. A esse episódio, seguem-se vários outros, envolvendo a alusão a sapos, periquitos, patos, gatos (e
carrapatos), macaquinhos (e piolhos), peixes e cães – culminando com o episódio que narra o encontro de um
“gâmbia” que acidentalmente havia entrado em um avião que rumava da África em direção ao Brasil e que, com
ele, trazia a epidemia de malária.
13
inclusive uma flor-de-maracujá, roxo e verde, que se apagava em corropio, num frufru
imenso de ventilador. Mas os da Colômbia são tão sortidos, e tão diversos, tantos, que
acho que lá os inventaram e terão por lá a fábrica deles.
[...] E – antes que me esqueça – que comiam? Nada. Bebiam. Bebiam água com
açúcar, posta em tubo de vidro com a extremidade inferior dobrada e recurva:
uma proveta fina, em forma de J, prêsa à gradilha ou pendurada do teto gaiola.
Porque eles não pousam, para as refeições: ficam-se liberando, às ruflazinhas,
no ar, e agulhando no tubo, com seus brinquedos compridões. Pousam, isto sim, para
repousar, em pequenos poleiros macios. São divinos. (ROSA apud GUIMARÃES, 1972:
146-147 – grifos meus)
3
Dois morrem brigando, um foge e os outros doze são embarcados em gaiolas
separadas. A narrativa aborda o modo como é violento tal deslocamento para os pássaros –
gerando a necessidade de que as pessoas se adaptem às condições propícias à vida dos beija-flores.
O avião e os homens, normalmente gelados, tiveram que ser aquecidos. Onze pássaros
chegam vivos ao seu destino e lá são festejados, encerrando o que o narrador nomeia como a
“Saga dos Beija-Flores” (ROSA apud GUIMARÃES, 1972: 151).
A segunda versão do texto (ROSA, 2001a), revista e encurtada por Rosa, é bem
diferente: além de descartar muitos elementos presentes na versão anterior, modifica
também a ordem de apresentação daquilo que permanece
4
. Não há todo o pot-pourri de
viagens de animais, há somente a presença dos beija-flores e do “gâmbia”. Minha impressão
é que as modificações efetuadas nessa segunda versão talvez tenham o mérito de colocar em
evidência as dimensões mais fundamentais de Histórias de fadas.
Nessa versão revisada, o que temos, a rigor, é a presença de um grande contraste.
Inicia-se já com o relato das delicadas estratégias para se preservar a vida do beija-flor em
trânsito e termina-se com o relato da descoberta acidental de um “gâmbia” e da malária daí
advinda. Ambas as situações narram não apenas a possibilidade de trânsito, mas a própria
3
Optei por reproduzir o texto tal como publicado originalmente no Correio da Manhã, em 1947 – o que explica a
sua peculiar ortografia.
4
Há também outras minúcias, nas quais não pretendo adentrar.
14
natureza daquilo que é transportado e os efeitos resultantes dessa transposição. Há
possibilidades: entre o deslumbramento e a doença.
Acredito que a descrição que Rosa faz dos beija-flores em trânsito seja uma
imagem da própria inspiração artística. Bela, frágil – e que demanda trabalho. Sua vida e sua
cor só podem ser manuseadas se pudermos nos adaptar à sua leveza, calor e energia. Seu
alimento não é sólido; bebem do néctar que se aloja nos canais das flores – e dos homens.
Digo dos homens pelo fato de que Rosa descreve um tubo fino de vidro que se curva, em
forma de “J” – o que remete a “João”, João Rosa. Homem e flor.
Igualmente importante é o fato dessa possibilidade de trânsito, corporificada na
“saga dos beija-flores”, ser nomeada como uma história de fadas – o que alude a seu caráter
“mágico” ou extraordinário. Ao mesmo tempo, esse texto já antecipa a presença de um sertão
– do qual os pássaros surgem como “florida mensagem”. Representam, ainda, “todo o
colorido universo”; trazem consigo a capacidade de mudar com a luz – cujos “valores
instantâneos” parecem remeter à própria natureza da experiência estética. Fluxos rítmicos,
os beija-flores são capazes de riscar retas no ar; mas são igualmente capazes de voar “do meio
p’ra trás”. São divinos. Seriam também “diabólicos”?
Cinqüenta anos atrás, em 1956, Rosa publicou um outro texto no qual os beija-
flores também fazem suas aparições – efêmeras, como de hábito. Mas o sertão cresceu; agora
15
é Grande Sertão: Veredas
5
. E, do mesmo modo como surgem neste outro cenário, imagino que
lá também tenham lugar os processos envolvidos com um ritmo, o cultivo do
relacionamento com o transcendente e a vivência estética – instantânea e contundente – que
se aproxima do “zúo de um minuto mito: briga de beija-flor” (ROSA, 1978: 260).
Apresentando-se nos interstícios e pelos hibridismos, somos remetidos a um tipo de
movimento que transforma homem e mundo:
[...] Com o que peguei, aos poucos, o costume de pular, num átimo, da rede, feito fosse
para evitar aquela inteligencinha benfazeja, que parecia se me dizer era mesmo do meio
do meu coração. Num arranco, desfazia aquilo – faísca de folga, presença de beija-flor,
que vai começa e já se apaga – e daí já estava inteirado no comum, nas meias-alegrias: a
meia-bondade misturada com maldade a meio. [...] (ROSA, 1978: 371)
Se Rosa, desde cedo, se ocupa da compreensão da expressão poética, creio que o
mesmo seja realizado por Riobaldo: atravessar o sertão multidimensional implica produzir-
se como artista. E não creio que seu caminho conduza a qualquer arte; mas àquela permeável
à presença dos beija-flores, perpassante: porosidade poética.
5
Com o intuito de facilitar a leitura, no decorrer deste trabalho muitas vezes utilizarei a sigla “GSV” ao me
referir a Grande Sertão: Veredas. Ainda no que tange à informação do leitor, outro dado importante é que a
edição da obra tomada como referência no presente estudo vem a ser a 12ª, publicada em 1978 pela editora
José Olympio. Devo também salientar que todas as citações de trechos da obra transcritos na presente tese
seguem a grafia original daquela edição. Tal escolha, delicada, por vezes contraria a reforma ortográfica pelo
que passou nossa língua, mas tem o mérito de preservar a riqueza e as minúcias de uma linguagem onde nada –
nem mesmo uma vírgula ou acento – parece ser desprovido de importância.
16
2
O SERTÃO MULTIDIMENSIONAL
E O APRENDIZADO POÉTICO
Grande Sertão: Veredas tem sido objeto de inúmeros estudos críticos, plurais em
termos de suas abordagens, referenciais dialógicos, focos de visão. Assim – pensando já no
foco delimitado pela presente pesquisa – temos estudos que se aprofundam nos mecanismos
e nos meandros que a linguagem de Rosa desenha em GSV, temos aqueles que colocam em
evidência as dimensões metafísicas que fazem sua aparição no sertão de Riobaldo, temos
também trabalhos importantes que apontam a coexistência de distintas dimensões do real
presentes na obra, assim como pesquisas que focalizam os aspectos metalingüísticos
envolvidos na narrativa. O que talvez não tenhamos é um estudo que, tendo como eixo a
compreensão da narrativa de Riobaldo como um aprendizado poético, busque caracterizar a
poética
6
que daí resulta pela via da descrição sistematizada de seus elementos fundamentais.
E mais: que compreenda essa possibilidade poética como veículo de trânsito entre as
6
Já adianto que esse conceito, no decorrer deste estudo, será objeto do aprofundamento que merece.
17
incontáveis dimensões do real. Assim, ao invés de negar ou contrapor-se a estudos prévios,
esta pesquisa pretende percorrer uma linha de compreensão que facilite a articulação de
algumas perspectivas que antes foram desenvolvidas de forma isolada.
O objetivo deste capítulo, de natureza introdutória, vincula-se, portanto, à
fundação de bases que possibilitem e justifiquem essa trajetória.
2.1 DO UNIVERSO ORDINÁRIO AO MULTIVERSO ROSIANO: PRESSUPOSTOS
Antes de proceder a uma leitura dos estudos críticos acerca de GSV, creio ser
fundamental começar a explicitar os pressupostos que fundamentam este estudo. Não
considero esta uma tarefa fácil – nem para mim, nem para o leitor – já que adoto um
posicionamento que não costuma ser o mais aceito no contexto do ocidente moderno. Este,
marcado, via de regra, pelo positivismo e pelo cientificismo, faz que se adote uma tendência
a desqualificar ou a se tomar imediatamente como fantasiosas todas as outras interpretações
que se efetuam acerca da realidade e que não se pautem pelos seus critérios.
Por outro lado, em termos acadêmicos, muitos estudiosos (e aí me incluo) se têm
dedicado a essa discussão e, de uma maneira geral, apontam para uma grande mudança no
modo não apenas de se conceber a ciência, mas também no modo de construí-la e nas
concepções acerca de seus objetos.
Fundamentalmente, aponta-se uma grande crise do modelo mais tradicional da
ciência ocidental, detentora de uma racionalidade presente desde a Revolução Científica do
séc. XVI, fundada a partir de duas distinções básicas (SANTOS, 1996): (a) conhecimento
científico x conhecimento do senso comum e (b) natureza x pessoa humana. Vários autores
18
apontam evidências construídas pela própria ciência de que as concepções sob as quais essas
distinções se embasam estão equivocadas. Assim, as descobertas na física, na química, na
biologia e na matemática vêm-nos mostrar que o universo em que vivemos é bastante
distinto daquele suposto pelo modelo da ciência moderna
7
– e que não mais faria sentido
excluir do rol das ciências os estudos humanísticos (dentre os quais se inclui a literatura) e a
própria experiência subjetiva do homem na sua relação com o mundo.
Assim, ao lado dessa crise, surgem também novas possibilidades quanto ao modo
de se conceber a ciência. Boaventura de Sousa Santos (1996) aponta as direções daquilo que
se poderia configurar como “paradigma emergente”, dentre as quais destaco como as mais
importantes no contexto do presente estudo: (a) todo conhecimento é local e total – o que
significa dizer que se, na ciência moderna, o rigor do conhecimento incide na restrição do
objeto, fragmentando o real, no “paradigma emergente”, o conhecimento é total, mas
também local; (b) todo conhecimento é autoconhecimento – o caráter autobiográfico e auto-
referenciável da ciência é plenamente assumido assim como nossas trajetórias pessoais,
juízos e crenças são a prova íntima do nosso conhecimento; (c) todo conhecimento científico
visa a constituir-se em senso comum – nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma,
racional, só a configuração de todas elas, quando então pode traduzir-se em sabedoria de
vida.
Hilton Japiassú (1996), por sua vez, aborda a especificidade da ciência moderna:
fundada na busca da racionalidade, consiste em uma técnica voltada para a dominação e
manipulação dos fenômenos. Essa busca, entretanto, transformou-se em uma ênfase no
7
Santos (1996) aponta algumas destas evidências: (a) Einstein nos mostrou que matéria e energia
compartilham uma mesma natureza, ainda que vibrando em intensidades diferentes; (b) A mecânica quântica
(no campo da microfísica) percebe que é impossível medir ou observar um objeto sem nele interferir, de forma
que nada conhecemos do real senão a nossa intervenção nele; (c) O rigor da matemática é questionado - é possível
formular proposições indecidíveis, que não se podem demonstrar ou refutar (Teorema da Incompletude); (d) A
Teoria das Estruturas Dissipativas (Prigogine) traz uma noção de matéria incompatível com a física clássica,
mudando nossa concepção acerca da matéria.
19
racionalismo, uma tentativa de associação entre “racional” e “realidade”, conduzindo-nos a
uma visão puramente mecanicista do homem e do mundo, menosprezando as intuições
espontâneas e substituindo o “mistério do mundo” por um sentimento determinista. O
homem contemporâneo fica privado do contato com o “Ser”, impedido de fundar as bases de
um sistema de valores. Triunfante e onipresente – segundo Japiassú – a ciência
contemporânea cada vez monopoliza tudo o que diz respeito ao verdadeiro sobre o real e
desqualifica (ou simplesmente ignora), como suspeitos de ilusão e de mistificação, todos os
saberes míticos, místicos, religiosos ou metafísicos. Tudo se passa como se só existisse
verdade “científica”. Em suma, há uma substituição dos antigos dogmas religiosos (pré-
modernos) pelos dogmas da ciência.
Entretanto, assim como Santos, Japiassú também nos fala da emergência de uma
“nova ciência”, que não defenderia uma razão fechada, nem uma racionalidade científica
auto-suficiente, mas a abertura para as demais formas de saber. Propõe-se uma nova aliança
entre ciência e consciência, onde se condena a separação radical entre espírito e matéria. Os
novos modelos científicos nos levam a repensar a unidade do mundo e do homem, onde “[...]
o que se busca é restaurar o diálogo entre as explicações racionais e os ensinamentos das
tradições sobre os aspectos ocultos da realidade do universo” (JAPIASSÚ, 1996: 12). Nessa
revolução intelectual, o centro do debate reside no sentido novo que se procura dar às velhas
dualidades corpo-espírito, alma-matéria – trata-se de definir um novo campo onde ciência e
imaginário não se excluam
8
. Algo que, diga-se de passagem, está no cerne de toda a obra
rosiana.
8
Uma ressalva importante em todo esse processo é que Japiassú enfatiza a importância de se adotar a lógica do
diálogo, evitando-se qualquer tentação “dogmática”. O grande risco é o de se transformarem sabedorias
tradicionais em dogmas, e talvez resida aí o grande mérito do método científico: precaver-nos contra todo o
risco de dogmatismo.
20
Creio que o grande desafio diante da perspectiva aqui apresentada – trazida à
tona pelas contribuições de Santos e Japiassú – não é compreender, racionalmente, o
sentido desse posicionamento, tampouco os seus pressupostos, mas aceitá-lo,
subjetivamente, não como verdade, mas como possibilidade. Só assim este estudo poderá ser
lido.
Inspirado por tais reflexões e, envolvido ainda com a constituição de uma base
que possibilite a compreensão desta pesquisa, gostaria de apontar dois diálogos importantes
a serem efetuados com a crítica rosiana.
A primeira interlocução se volta para aqueles estudos que, de modos distintos,
consideram, em GSV, a existência de mais de uma dimensão. Busco focalizar,
principalmente, a natureza de tais dimensões e, ainda, a forma de abordagem dos
relacionamentos entre os diferentes níveis apontados. Já adianto que alguns estudos
“clássicos” consideram a natureza multidimensional de GSV, o que os aproxima do objeto
desta tese. Ao mesmo tempo, como se verá, podem-se perceber também alguns
distanciamentos, já que, na maior parte das vezes, esses estudos não avançam nas formas de
relacionamento entre as dimensões apontadas – o que para mim é central no contexto deste
estudo, constituindo o núcleo de seu enfoque.
Outro elemento fundamental a ser considerado em uma leitura
multidimensional de GSV – o que constitui outro foco de interlocução – é o modo como as
dimensões metafísicas são consideradas nesse contexto. O extra-ordinário é considerado em
relacionamento com as dimensões ordinárias do real ou se procede a uma ruptura entre essas
esferas? Iniciemos por essa via.
21
2.2 DIMENSÕES METAFÍSICAS EM GSV
Penso que seria oportuno iniciar uma reflexão acerca das dimensões metafísicas
em GSV a partir do posicionamento do próprio Rosa. Para tanto, busco valer-me da
entrevista concedida a Günter Lorenz
9
e publicada na coletânea de Eduardo Coutinho (1983)
com o intuito de buscar a compreensão de Rosa acerca da metafísica
10
. Naquela ocasião,
Rosa, além de ser questionado especificamente a esse respeito, também faz referências à
metafísica em vários momentos, principalmente ao discorrer acerca da linguagem.
Um primeiro ponto que poderia ser ressaltado é a forma como, para Rosa, a
metafísica se relaciona a algumas dimensões centrais: (a) o acesso a uma outra dimensão de
realidade, ligada à sabedoria, à eternidade, à profundidade; (b) a linguagem como via de
acesso a essa dimensão. Tomemos a imagem, por ele construída, do crocodilo:
O crocodilo vem ao mundo como um magister da metafísica, pois para ele cada rio é um
oceano, um mar de sabedoria, mesmo que chegue a ter cem anos de idade. Gostaria de ser
um crocodilo, porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na
superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como
os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua
eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade. A estas alturas,
você já deve estar me considerando um charlatão ou um louco. (ROSA apud LORENZ,
1983: 72)
9
Entrevista concedida por Guimarães Rosa a Günter Lorenz, durante a realização do Congresso de Escritores
Latino-americanos, em Gênova, no ano de 1965.
10
Kathrin Rosenfield, ao comentar o cunho universal e metafísico da obra rosiana, chama a atenção para o fato
de que “a veneração aparentemente convencional dos clássicos não exclui uma concepção moderna e complexa
da metafísica” (2001: 87). Tal complexidade se faria revestir por uma “fingida” simplicidade. Benedito Nunes
(1998: 259) mostra a forma como, em Rosa, o discurso poético está ligado à elevação metafísica, sendo
impregnado de tradições heterodoxas como o hermetismo, concepções gnóstico-cabalísticas e alquímicas (que
podem ser englobadas no ocultismo) que, por sua vez, estariam misturadas em GSV com referências a livros
taoístas, bramânicos, induístas e budistas (que estariam relacionadas à teosofia, espectro simbólico inclusivo de
todas as religiões).
22
Partindo, então, dessa compreensão rosiana da metafísica como o acesso à esfera
da eternidade e da sabedoria, propiciado pela via da linguagem, podemos delinear mais
algumas características que parecem emergir como correlatas a essa concepção. Destaco,
assim, o modo como Rosa concebe como estreito o relacionamento entre religião
11
,
metafísica, poética e linguagem:
[…] Eu não sei bem o que sou. Posso bem ser cristão de confissão sertanista, mas também
pode ser que eu seja taoísta à maneira de Cordisburgo, ou um pagão crente à la Tolstoi.
No fundo, tudo isto não é importante. Como homem inteligente, às vezes pode-se sentir
necessidade de se tornar um beato ou um fundador de religiões. A religião é um
assunto poético e a poesia se origina da modificação de realidades lingüísticas.
Desta forma, pode acontecer que uma pessoa forme palavras e na realidade esteja criando
religiões. Cristo é um bom exemplo disso. [...] é importante antes de tudo reconhecer que
a sabedoria é algo distinto da lógica. A sabedoria é saber e prudência que nascem do
coração. Minhas personagens, que são sempre um pouco de mim mesmo, um pouco muito,
não devem ser, não podem ser intelectuais pois isso diminuiria sua humanidade. (ROSA
apud LORENZ, 1983: 92 – grifos meus)
Ressalto, também, a associação que o autor faz entre todo esse processo e o
irracional. Sua metafísica, portanto, não parece ligar-se ao pensamento lógico
12
, mas a um
saber apenas alcançável por outra via:
Inteligência, prudência, tal como eu as interpreto, cultura elevada, tudo isso está bem,
pois o escritor atual deve possuir todas estas qualidades. Mas não deve se transformar em
um computador. Não deve abandonar as zonas do irracional, ou então deixa de produzir
literatura e só produz papel. (ROSA apud LORENZ, 1983: 93)
Longe de esgotar o que significaria para Rosa o “metafísico” – até porque isso
seria impossível a partir das suas armadilhas de linguagem – creio podermos considerar
11
A rigor, acredito que seria mais adequado fazer referência à “religiosidade” (que remete a uma dimensão da
experiência humana do transcendente) ao invés da referência à “religião” (que pode remeter a um aspecto já
institucionalizado, e eventualmente reducionista, da dimensão anterior) –, mas optei pela segunda via por ser
este o caminho utilizado por Rosa na entrevista citada.
12
Consuelo Albergaria (1977: 17) refere-se ao “enfoque orientalizante” que Rosa dá ao termo metafísica,
diferenciando-o dos postulados de natureza aristotélico-tomista.
23
algumas dimensões como centrais. Resumidamente, teríamos: a valorização de uma
dimensão metafísica, ligada à esfera da eternidade e da sabedoria, que teria a linguagem
como veículo de aproximação e que se relacionaria ao religioso e ao irracional. Longe de
considerá-lo um “charlatão” ou “louco”, tomarei essas referências na construção deste
estudo.
Visando a começar a estabelecer uma revisão bibliográfica da fortuna crítica
rosiana, busquei identificar estudos dedicados à compreensão de dimensões metafísicas
13
de
GSV, entrando em contato, assim, com autores que trabalham sob as mais diversas
perspectivas e no diálogo com distintas tradições. Dada a sua diversidade, eu os dividiria em
dois grandes grupos
14
, tomando como critério a forma como abordam a própria noção de
metafísica
15
: (a) um primeiro grupo que focaliza a metafísica do ponto de vista da filosofia
ocidental, compreendendo-a como possibilidade de acesso a um saber, que inclui e privilegia
a lógica e racionalidade – ligada, sobretudo, ao pensamento organizado, especulação mental
13
De um ponto de vista filosófico, tomando as contribuições de José Ferrater Mora (1994b), pode-se ver que a
noção de “metafísica” se revela bastante ampla quando se busca compreendê-la de um ponto de vista filosófico.
O termo "metafísica" foi cunhado por Andrónico de Rodas, ainda no século I a.C., em referência à série de livros
de Aristóteles, ordenados pelas letras do alfabeto grego, que concerniam ao que o próprio Aristóteles chamou
de “filosofia primeira”, “teologia” ou “sabedoria”. Uma vez que esses livros, a partir de uma questão de ordem de
classificação e publicação, situavam-se depois dos livros da “Física”, foram chamados “os que estão detrás da
física” – ou, mais exatamente, “as coisas que estão detrás das coisas físicas” (MORA, 1994b: 2378). Há,
entretanto, controvérsias em relação a essa origem. Trata-se, de todo modo, de um saber que, em linhas gerais,
transcende o saber físico-natural, ligado àquilo que escapa à apreensão dos sentidos. É também importante
ressaltar que o conceito de metafísica pode dar origem a perspectivas plurais, muitas vezes contraditórias e
polêmicas.
14
Creio que ambas as perspectivas trazem questões que devem ser discutidas, o que procurarei fazer – ainda
que de forma breve – a seguir. Mas já posso apontar que a presente pesquisa se localiza mais no segundo grupo,
motivo pelo qual esse tipo de estudos foi priorizado quando do levantamento de uma literatura crítica acerca
da obra rosiana.
15
Willi Bolle (1973), em sua leitura acerca das tendências que regem a crítica rosiana, refere-se de modo
bastante desfavorável à abordagem dessa “temática metafísica”. Em primeiro lugar, o estudioso critica a falta
de clareza diante dessa temática, afeita às caracterizações mais heterogêneas. Em segundo lugar – e essa crítica
se estende ao próprio Rosa – questiona o fato de que tal temática é concebida como um valor em si – já que há
uma tendência a se tratar da universalidade às custas de uma ligação com o regionalismo concreto.
24
e reflexão; (b) um segundo grupo que associa a metafísica a sistemas religiosos, esotéricos ou
tradições místicas, mais ligados a uma perspectiva oriental, onde o “irracional”
16
pode ser
considerado como uma de suas dimensões centrais.
Creio ser importante, antes de mais nada, discorrer acerca dos questionamentos
que, para mim, emergem diante do contato com as “abordagens metafísicas” da obra rosiana.
Em primeiro lugar, coloco em questão a abordagem dos trabalhos que tomam a questão
metafísica segundo um ponto de vista que privilegia demasiadamente os aspectos
orientalizantes do universo rosiano, dificultando o acesso do leitor a obra que corre o risco
de se tornar extremamente “hermética”. Tal procedimento seguiria de forma contrária ao
posicionamento rosiano em relação à crítica, que seria o de promover o acesso desse leitor à
obra:
A crítica literária, que deveria ser uma parte da literatura, só tem razão de ser quando
aspira a complementar, a preencher, em suma a permitir o acesso à obra. (ROSA apud
LORENZ, 1983: 75)
Meu questionamento não se refere ao fato de que, nesses casos, sejam
enfatizadas as dimensões mais “orientais” da metafísica rosiana, mas que as construções em
torno da obra – e, conseqüentemente, o acesso à mesma – fiquem restritas a um pequeno
grupo que esteja imerso nesses sistemas de referência.
Esse tipo de estudo, traz, ainda, um outro grande risco: o de fomentar
posicionamentos preconceituosos contra aproximações entre a obra e dimensões metafísicas
(compreendidas do ponto de vista “místico”) – justamente por causa das conexões mais
16
O “irracional” aqui é colocado entre aspas já que, a rigor, vincula-se não à irracionalidade propriamente dita,
mas a outras formas de racionalidade, distintas daquela postulada pelos discursos de referência do ocidente
moderno. No contexto de tais discursos de referência, tudo aquilo que não se encaixe no seu modelo de
racionalidade é considerado como “irracional” – o que remete às discussões efetuadas por Japiassú e Santos, às
quais me referi no começo deste capítulo.
25
frágeis que se estabelecem entre essas dimensões e outras tantas dimensões do real e da
própria obra. É como se se reforçasse a idéia de que os elementos de natureza metafísica
fossem algo de “outro mundo”, desconectados da realidade cotidiana com a qual nos
relacionamos ordinariamente e tornando ainda mais cristalizadas as barreiras que
construímos para separar as esferas do real – e as formas de entrar em contato com o
mesmo.
O estudo de Francis Utéza (1994) seria um exemplo de estudo crítico que, a meu
ver, incorre nesses dois questionamentos sobre os quais busquei refletir. Ao relacionar a
obra a uma dimensão metafísica, tomando tradições esotéricas orientais e ocidentais tais
como o hermetismo, o taoísmo e o zen, o autor concentra sua análise em elementos
lingüísticos como vias de acesso aos elementos “metafísico-religiosos” ocultos no texto
17
.
Apesar de seu trabalho de interpretação – com o qual estabeleço inúmeros
diálogos no decorrer desta pesquisa –, apontar a pertinência de uma leitura das dimensões
metafísicas de GSV, tenho também a impressão de que esse tipo de abordagem possa
incorrer em uma outra distorção: o risco de desconsiderarmos a natureza da própria
literatura e a complexidade inerente a uma obra de arte e abordar o texto como mero veículo
de expressão de outros sistemas semióticos – dando origem a interpretações “forçadas”
acerca de elementos pinçados no texto, desconsiderando a sua natureza multidimensional
18
.
17
Para além dos questionamentos que formulo a partir do diálogo com o trabalho de Utéza, gostaria também
de ilustrar um ponto de sintonia. Refiro-me a uma parte específica de seu trabalho – “Hierogamias do céu e da
terra” (UTÉZA, 1994: 227-254) –, quando o autor aborda aspectos de sacralização da natureza, presentes no
casamento sagrado entre céu e terra, discorrendo, portanto, acerca da articulação entre dimensões.
18
No que se refere a tais ressalvas, creio ser importante apontar outros exemplos que ilustram os riscos que
pretendo evitar e que, a meu ver, fomentam grande parte das reservas que, frequentemente, se percebe em
relação às abordagens metafísicas da obra rosiana.
Um dos trabalhos por mim consultado – já que inicialmente buscava apoio em um referencial que articulasse
psicologia e literatura e, ao mesmo tempo, considerasse as dimensões “metafísicas” – foi o de José Maria
Martins (1995). O que esse autor faz é justamente estabelecer o diálogo entre a perspectiva da psicologia
transpessoal e diversas apresentações na obra rosiana. Apesar de considerar a sua pertinência, o estudo parece
apenas apontar algumas relações, carecendo de maior profundidade e sistematização metodológica. De
qualquer forma, creio ser interessante o fato de a obra rosiana remeter à abordagem transpessoal em
psicologia, justamente por aquilo que caracteriza o seu objeto: os estados alterados da consciência e o acesso
26
Não creio que esta seja a intenção de Utéza; mas acredito que esse tipo de abordagem pode
conduzir às distorções que busquei ilustrar.
Mas voltemos aos dois grandes grupos de possibilidades de “abordagens
metafísicas” que vislumbrei no contato com a crítica rosiana. Meu posicionamento em
relação ao primeiro grupo apontado – ligado ao pensamento organizado, à reflexão e à
racionalidade, sob a óptica da filosofia ocidental – é o de considerá-lo mais distanciado do
enfoque que este estudo está construindo. Apesar de considerar a sua riqueza, apresentaria
uma perspectiva bem distinta daquela aqui retratada. Relaciono o presente estudo ao
segundo grupo, ainda que com certas ressalvas – sendo que a principal delas se refere à
aos seus diversos níveis. Além dos questionamentos aos quais já aludi, outra restrição que tenho a esse tipo de
abordagem é que ela se limita a listar e apresentar os fenômenos “paranormais” em suas apresentações na obra
rosiana, mas sem abordar as relações entre tais apresentações e o próprio texto literário. Outra impressão,
igualmente desfavorável, é que a apresentação dos fenômenos dessa maneira favorece a construção de uma
concepção que lida com as dimensões metafísicas de forma não conectada aos processos vividos
ordinariamente – tal como foi questionado no caso do estudo de Utéza – ainda que possivelmente essa não seja
a concepção de Martins.
Já Sebastião Rafael Gontijo (1998) desenvolve uma dissertação de mestrado onde busca relacionar aspectos da
narrativa com certos elementos xamânicos. O trabalho subdivide-se em dois grandes momentos. Inicialmente,
é feita uma aproximação dos conceitos de mito e de xamã, para que então se possa avançar apresentando
algumas personagens – Joca Ramiro e Hermógenes – como xamãs. A segunda parte do trabalho também
avança nesse tipo de associação, com Diadorim sendo apresentado como iniciador de Riobaldo que, por sua vez,
faz sua travessia xamânica. Chamo a atenção para o fato de que o trabalho estabelece uma aproximação da
noção de mito, ao mesmo tempo em que parece também se guiar por um viés etnográfico. Tomando este último
aspecto, parece haver uma contradição em uma suposta abordagem mítica e a consideração de aspectos
culturais bem específicos, obtidos a partir de entrevistas com pajés brasileiros (em anexo na dissertação), para
conceituar o xamanismo. Outro ponto que me causou estranheza foi o objetivo do trabalho, segundo palavras
do autor: “[...] procuramos uma leitura diferente do Grande sertão: veredas, abordando a mitologia, a
religiosidade e a crença do sertanejo” (GONTIJO, 1998: 09). Da forma como é colocado, parece que o
xamanismo – e também as diversas questões existenciais e metafísicas que se apresentam em GSV – são
tomados pelo viés da crença e do misticismo do sertanejo. Mas não acredito que GSV seja só sobre o homem do
sertão; é sobre o homem. Assim como também não acredito que o xamanismo diga respeito apenas aos homens
primitivos, “simples” ou iletrados, mas, igualmente, ao homem. Tristão de Ataíde (1983), ao apontar o caráter
transrealista da obra rosiana – “que refoge a qualquer limitação dos sentidos” (ATAÍDE, 1983: 143) – relaciona-
a com seu universalismo, que alcança não apenas o estrangeiro. Como diz Riobaldo: “Eu queria decifrar as
coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria
vertente.” (ROSA, 1978: 79).
Meus comentários acerca do estudo de Gontijo devem-se ao fato de que, inicialmente, vi no xamanismo uma
possibilidade de encontrar um referencial específico capaz de se ocupar, de forma sistematizada, dos
movimentos que se dão entre as esferas da realidade. Por outro lado, vi que talvez eu corresse o risco de
incorrer nas mesmas falhas que têm sido objeto de minhas críticas. Entretanto, apesar de eu optar por não
pautar meu estudo pela via do xamanismo, em alguns momentos não vou me furtar a trazer à tona alguns de
seus elementos, visando a estabelecer relações com conteúdos que emergem da minha leitura do texto rosiano
e que, a meu ver, podem ser enriquecidos por esse diálogo.
27
premissa de que não se pode abordar o metafísico como algo desconectado dos níveis
ordinários do real e da própria complexidade inerente à obra de arte.
Vários estudos podem ser relacionados a esse tipo de perspectiva metafísica.
Entretanto, mais que proceder a uma leitura exaustiva de todos, busquei estabelecer
conexões entre essas produções e uma referência à obra com base na abordagem que aqui
venho delineando. Ressalto então o grande “recorte” efetuado neste meu movimento:
fortuna crítica da obra rosiana críticas metafísicas críticas metafísicas “místicas”
identificação de ressonâncias com a abordagem proposta por esse estudo
19
.
O estudo de Consuelo Albergaria (1977) – precursor do estudo de Utéza no que
se refere à abordagem da obra rosiana em diálogo com pressupostos “metafísicos” –, por sua
vez, evita cair em algumas das armadilhas que aqui tenho descrito. Apesar de seu foco básico
ser a utilização de tradições ocultistas
20
como chave hermenêutica de GSV e da obra rosiana,
a pesquisadora considera tal linha como uma dentre outras tantas possíveis ao abordar a
obra literária. Do seu ponto de vista, o metafísico não se apresenta desconectado de outras
dimensões, configurando-se, de forma inversa, como um eixo capaz de organizar essas
outras esferas. Em suas palavras:
Esse sentido metafísico aparece ao lado de sentidos emergentes que se organizam em
torno de eixos interpretativos de caráter filosófico-teológico, político-social ou mesmo
puramente literal, como coordenador e unificador e, sem destruir ou se opor aos outros,
funciona como harmonizador do todo, completando-o e nivelando as multiplicidades
ópticas apresentadas pelos demais eixos. [...] (ALBERGARIA, 1977: 17)
19
Gostaria que ficasse muito claro que meu objetivo, neste momento, não é “dissecar” cada um desses estudos,
mas buscar identificar, em cada um, pontos de sintonia com o recorte descrito. Acredito que, pela complexidade
inerente a muitos desses trabalhos, seria leviano considerar que os comentários que teço acerca de cada um
referem-se a um olhar que os toma em toda a sua complexidade e detalhes.
20
Estas seriam: corpus hermeticum e mistérios da antiguidade, concepções gnóstico-cabalísticas, astrologia,
alquimia, taoísmo, bramanismo, budismo e hinduísmo.
28
Se, por um lado, Albergaria apresenta o metafísico sem desconsiderar outros
níveis ou dimensões, por outro, o apresenta como a possibilidade de articulação entre tais
níveis. Entretanto, minha leitura reconhece em seu trabalho mais a abordagem metafísica da
obra rosiana à luz das tradições ocultistas do que exatamente uma tentativa de articulação
entre vários os níveis presentes na narrativa.
A diferença do seu posicionamento em relação àquele que vem sendo construído
nesta tese pode ser percebida, assim, como uma diferença de foco e perspectiva. A posição
aqui defendida é a de que, mesmo reconhecendo o metafísico como um dos eixos presentes
na obra, a este não caberia o papel de articulação atribuído por Albergaria, uma vez que tal
função estaria relacionada a um outro eixo – o fazer poético. Este, por sua vez, aqui não é
compreendido senão por sua capacidade de articular outros níveis ou dimensões da obra e do
real.
Outro trabalho digno de nota vem a ser a tese de Lúcia Helena de Azevedo Vilela
(1996). Ao abordar Rosa – principalmente GSV –, numa perspectiva comparada com o poeta
irlandês Yeats, Vilela estabelece conexões entre aspectos das obras desses autores e os
processos alquímicos de transmutação, em metodologia inspirada por elementos textuais.
Há também um outro tipo de aproximação que considero muito pertinente no contexto do
presente estudo: ao aproximar Rosa do poeta irlandês, a autora estabelece conexões entre o
mesmo e a mitologia celta. Como será abordado oportunamente neste trabalho, há uma
conexão estreita entre os elementos da cultura celta e a possibilidade de permutação entre
dimensões.
Marcelo Marinho (2001) aborda GSV como um “enigma”, construído sob a forma
de um meta-romance. Tomando-o de um ponto de vista lingüístico, o autor aponta diversas
conexões que teriam como objetivo uma espécie de decifração da obra. Uma associação que
considero sintonizada com a perspectiva que defendo é a aproximação de Riobaldo à figura
29
de bardo
21
. O grande mérito que vejo no estudo de Marinho é proceder a uma leitura de GSV
que, além de não desconsiderar seus aspectos “metafísicos”, busca relacioná-los à arte –
tomando a última como o grande mote da narrativa.
Por outro lado, uma diferença fundamental que vejo entre a sua perspectiva e a
aqui adotada – além do enfoque eminentemente lingüístico que caracteriza o seu estudo – é
o fato de que, a todo o momento, Marinho enfatiza a relação entre o caráter metanarrativo
de GSV e a própria experiência de Rosa, buscando demonstrar o caráter uno das duas
manifestações. Sem desprezar essa relação possível – na qual eu pessoalmente acredito – o
foco do presente estudo incide não sobre a figura de Rosa, mas de Riobaldo, como um ente
relativamente autônomo – algo que o próprio autor de GSV parece dar a entender: “Riobaldo
é o sertão feito homem e é meu irmão.” (ROSA apud LORENZ, 1983: 95). Se, no estudo de
Marinho, há o reconhecimento de um fazer poético que se enlaça com as dimensões
metafísicas – e que por sua vez, entrelaça GSV e o fazer poético de Rosa –, na presente tese o
que mais interessa é o desvelamento de tais mecanismos poéticos e sua caracterização a
partir da trajetória de Riobaldo. Além disso, um limite por mim identificado no estudo de
Marinho é que, ao enfatizar a dimensão metanarrativa presente em GSV, faltaria uma maior
sistematização da poética descrita na obra.
Voltando o olhar para os estudos críticos como um todo, é importante também
explicitar que a crítica rosiana que aborda a obra a partir de um viés metafísico não
concentra seus esforços apenas em GSV. Heloisa Vilhena de Araújo (1992) estabelece a
relação entre os sentidos apreendidos das personagens das novelas de Corpo de Baile e a
dimensão mítica associada ao movimento dos planetas. Já em uma publicação de 1996,
Araújo apresenta dois estudos, sendo um dedicado a GSV – O roteiro de Deus – e outro
voltado para o mesmo tipo de enfoque já construído em Corpo de BaileA pedra brilhante.
21
E aí, novamente, uma conexão com a cultura celta, além de sua aproximação com a figura do poeta.
30
Com relação ao estudo voltado para GSV, este se vale de referências a elementos míticos e à
Divina comédia de Dante, compreendendo Riobaldo como um viajante em direção a Deus.
José Miguel Wisnik (1998), em seu estudo acerca de “O recado do morro”,
aborda a forma como, através do conto, desenvolvem-se duas viagens entrelaçadas. Ao lado
da narrativa do caso sertanejo, há também a viagem metafórica relacionada ao recado que
vem dos subterrâneos do morro. O primeiro aspecto que gostaria de ressaltar, neste
trabalho, é a forma como Wisnik faz sua leitura numa perspectiva multidimensional,
considerando a coexistência de mais de um nível narrativo, ao mesmo tempo em que se
baseia em elementos textuais e, hermeneuticamente, introduz elementos relacionados a
tradições místicas (ligados principalmente à simbologia cosmológica). Outro aspecto
importante que acredito dever ser colocado em evidência é a própria discussão efetuada pelo
crítico em torno da noção de “recado” – ligado à “viagem do sentido”. Muitas considerações
são feitas a partir dessa idéia, relacionada pelo pesquisador a processos mais amplos
presentes na produção rosiana, como em GSV, por exemplo.
Melânia Aguiar (2001) apresenta um estudo acerca da constituição da visão em
dois contos de Tutaméia, buscando analisar a forma como, através desse sentido, há a
abertura para novas formas de percepção e ampliação da consciência individual. Tendo como
ponto de partida os elementos textuais e estabelecendo diálogos com alguns sistemas de
referência (sem se prender a uma tradição específica), Aguiar aborda a visão como
possibilidade de acesso a outras realidades. Apesar de não se tratar de um estudo ambicioso
em termos de sua extensão, gostaria de assinalar que este é um estudo que se aproxima da
perspectiva aqui adotada já que, mesmo não tratando de GSV, ilustra bem a perspectiva
metodológica que valorizo no contexto dos estudos “metafísicos”.
Em A matéria vertente, Benedito Nunes (1983a) parte de uma abordagem
filosófica e utiliza GSV como terreno para suas férteis articulações entre literatura e filosofia.
31
Apesar de o eixo central de sua articulação se dar por meio das relações entre a
temporalidade com a temática do romance – “figurações da temporalidade” (p. 18) na obra –,
Nunes também chega a discutir a questão metafísica na produção rosiana. Assim, lembrando
o valor atribuído a essa dimensão pelo autor e o modo como este a estendia ao elemento
religioso do pensamento, Nunes se refere ao amálgama produzido por Rosa, a englobar: “[...]
as correntes místicas ocidentais e orientais que se interligam no conjunto heterogêneo e
fluido do Ocultismo, amálgama das idéias neoplatônicas e das doutrinas heterodoxas do
cristianismo – o hermetismo e a alquimia – da Cabala e dos ensinamentos maçônicos”
(NUNES, 1983a: 12).
O estudioso também cita a forma como Rosa “verteu” tantas perspectivas na
“matéria” de suas narrativas, citando como exemplos “São Marcos”, de Sagarana, “Recado do
Morro” e “Cara-de-Bronze”, de Corpo de Baile. Grande ênfase é dada à apresentação de tais
conteúdos em GSV, quando, para além de uma significação literal, Nunes ressalta a
coexistência de uma significação mística (ligada tanto a uma dimensão moral, quanto a uma
dimensão propriamente mística, chamada “anagógica”). Apesar de este não ser o foco central
do estudo de Nunes – e sim a “figuração da temporalidade” na obra – fica clara a sua posição
no que tange à pertinência de abordagens “metafísicas” de GSV
22
.
Nunes aponta que a narrativa é sustentada por um tipo específico de figuração
da temporalização, por ele chamada de “temporalização extática” – ao que acrescenta o
comentário tecido em nota: “A temporalidade é, pois, um ek-statikon: movimento fora de si, de
que cada componente constitui um ek-stase, em recíproca ligação com os demais.” (NUNES,
1983a: 29). Faço alusão a esse comentário já que uma das idéias fundamentais defendidas
22
Em um trabalho mais recente, Crivo de papel (1998), Nunes reafirma este último posicionamento. Ao incluir
os estudos metafísicos dentro de uma recepção hermenêutica da obra rosiana, com sua ocorrência a partir do
início da década de 1970, Nunes faz referência aos estudos de Consuelo Albergaria e Francis Utéza, validando a
possibilidade de se associar a obra aos elementos ligados ao Ocultismo – o que aproximaria a narrativa e o mito.
32
nesta tese relaciona-se justamente às relações entre a constituição de uma poética e a
experiência extática. Tem-se, portanto, a associação entre as dimensões transcendentes e o
fazer poético. Ou, em outras palavras, a impossibilidade de sua dissociação – como parece
afirmar Nunes, no que se aplica a Rosa. Como veremos, tal perspectiva pressupõe a “saída de
si mesmo” em direção ao outro e ao mundo, para que a arte tenha lugar.
Vistos como um conjunto diante da perspectiva proposta pelo presente estudo,
ouso afirmar que os estudos críticos “metafísicos” aos quais me referi até o momento não
coincidem com o foco aqui desenvolvido. Se, por um lado, apresentam, pontualmente,
elementos interpretativos que podem constituir contribuições a partir do estabelecimento
de diálogos futuros – por outro lado, mesmo com seu enfoque “metafísico”, não focalizam
ainda o trânsito e as permutações entre as dimensões em GSV pela via de uma poética, cujo
aprendizado constituiria a travessia de Riobaldo – tal como aqui se busca focalizar.
2.3 TRANSITANDO PELO SERTÃO MULTIDIMENSIONAL
Neste momento, a partir do diálogo com outros estudos que buscaram abordar a
natureza multidimensional de GSV, pretendo verificar quanto do caminho que conduz ao
objeto de estudo, por mim delimitado, já foi percorrido por outros autores – e quanto ainda
há de se percorrer. Para tanto, faço referência a um aspecto fundamental apontado por
muitos estudos críticos: a coexistência de pelo menos duas linhas narrativas que se articulam
em Grande Sertão: Veredas.
33
Tomando inicialmente o estudo de Cavalcanti Proença (1958)
23
, vemos que o
autor chega a propor a existência de três planos sobrepostos em GSV: (a) um plano objetivo,
dos combates e andanças, ligado a uma dimensão coletiva; (b) um plano subjetivo, das “[...]
marchas e contramarchas de um espírito estranhamente místico, oscilando entre Deus e o
Diabo” (PROENÇA, 1958: 06), a refletir o antagonismo entre os elementos da alma humana,
ligado a uma dimensão individual; (c) um plano “telúrico-mítico”
24
, composto por elementos
naturais que se tornam personagens vivas.
Antonio Candido (1983), em trabalho publicado originalmente em 1957
25
,
também aborda o caráter multidimensional constitutivo de GSV. O autor aponta três
elementos estruturais que comporiam a obra: a terra (ligada ao espaço, ao meio físico, à
natureza – e também cenário das apresentações do “fantástico”), o homem (agente que atua
na natureza) e a luta (resultado do conflito entre os homens que se situam no espaço
físico)
26
.
Para além da caracterização das dimensões por ele consideradas principais,
Candido também tem o mérito de ressaltar o caráter dinâmico das relações que se
estabelecem na obra. Ao considerá-las organizadas não de forma lógica e sucessiva, mas por
uma “trança constante dos três elementos” (1983: 296), o caráter complexo de sua dinâmica
é reconhecido. O autor vai ainda mais longe em termos de sua compreensão – e explanação
clara – acerca dessa complexidade:
23
Aspectos presentes em Trilhas no Grande Sertão já haviam sido abordados por Cavalcanti Proença em uma
publicação anterior: “Alguns aspectos formais de Grande sertão: veredas”. Revista do Livro, n° 5, março de 1957,
p. 37-54.
24
No meu entender, esse terceiro plano estaria relacionado a uma espécie de interseção entre os dois
anteriores.
25
Diálogo. São Paulo (8), nov. 1957, sob o título “O sertão e o mundo”.
26
Morais (1998: 14) aponta, na leitura de Candido, a paráfrase à estrutura de Os sertões, de Euclides da Cunha –
no que se refere ao poder recíproco da terra e do homem. Entretanto, se há uma tese que aproxima as duas
obras, uma antítese as separa: enquanto homem, terra e luta (problema) são tratados de modo lógico e
sucessivo em Os sertões, em GSV estes se apresentam entrelaçados.
34
Estas considerações sobre o poder recíproco da terra e do homem nos levam à idéia de que
há em Grande sertão: veredas uma espécie de grande princípio geral de reversibilidade,
dando-lhe um caráter fluido e uma misteriosa eficácia. A ela se prendem as diversas
ambigüidades que revistamos, e as que revistaremos, daqui por diante. Ambigüidade da
geografia, que desliza para o espaço lendário; ambigüidade dos tipos sociais, que
participam da Cavalaria e do banditismo, ambigüidade afetiva, que faz o narrador
oscilar, não apenas entre o amor sagrado de Otacília e o amor profano da encantadora
“militriz” Nhorinhá, mas entre a face permitida e a face interdita do amor, simbolizada
na suprema ambigüidade da mulher-homem que é Diadorim; ambigüidade metafísica,
que balança Riobaldo entre Deus e o Diabo, entre a realidade e a dúvida do pacto, dando-
lhe o caráter de iniciado no mal para chegar ao bem. Estes diversos planos da
ambigüidade compõem um deslizamento entre pólos, uma fusão de contrários, uma
dialética extremamente viva, – que nos suspende entre o ser e o não ser para sugerir
formas mais ricas de integração do ser. E todos se exprimem na ambigüidade inicial e
final do estilo, a grande matriz, que é popular e erudito, arcaico e moderno, claro e escuro,
artificial e espontâneo.
Assim vemos misturarem-se em todos os níveis o real e o irreal, o aparente e o oculto, o
dado e o suposto. A soberania do romancista, colocado na sua posição-chave, a partir da
qual são possíveis todos os desenvolvimentos virtuais, nos faz passar livremente duma
esfera à outra. A coerência do livro vem da reunião de ambas, fundindo o homem e a terra
e manifestando o caráter uno, total, do Sertão-enquanto-Mundo. (CANDIDO, 1983:
305-306)
Tomei a liberdade de citar de forma tão extensa o trabalho de Candido para
colocar em evidência aquilo que ele, magistralmente, conseguiu expressar: o caráter dual,
ambíguo e complexo de GSV, que se traduz em um movimento dinâmico entre as suas
múltiplas esferas, tornado uno e coerente pela habilidade poética de Rosa. Chamo a atenção
para o papel desempenhado pela arte nesse tipo de articulação multidimensional – ainda que
neste momento a referência seja Rosa, e não Riobaldo.
Walnice Galvão (1983; 1986) é também uma autora que, além de reconhecer a
dualidade constitutiva da obra, ao mesmo tempo chama a atenção para um aspecto dinâmico
que articula suas partes. Ao trabalhar as ambigüidades em GSV, Galvão aponta para a
importância do caso de Maria Mutema como revelador do caráter dual presente em toda a
narrativa. A autora desenvolve argumentos em torno de um mecanismo presente em toda a
obra onde uma “imagem concreta” e uma “imagem abstrata” convivem, sendo que há a
presença de uma dentro da outra – somos assim remetidos à lógica de dimensões que se
interpenetram. Como uma das estratégias utilizadas para dar forma a essa dinâmica, ela
35
aponta os efeitos de superposição: “A coisa contida é sugerida como estando embaixo,
denunciando-se aos sentidos por algo que de lá se escapa, em movimento para cima.”
(GALVÃO, 1983: 414) – onde chamo a atenção para a dinâmica de movimento que se
estabelece entre essas dimensões do concreto e do abstrato. A autora ressalta, inclusive, a
importância do movimento, representado pela mudança e pela linguagem, como uma forma
de se viver, de entrar em contato com a essência da vida. Se, tanto para Candido quanto para
Galvão, o caráter multidimensional presente na narrativa é articulado por meio de um
movimento, para ambos este movimento tem como veículo a própria linguagem.
José Carlos Garbuglio (1972; 1983) se inspira no trabalho de Proença para
desenvolver idéias relacionadas aos dois planos narrativos que coexistem em GSV. Um
primeiro nível, objetivo, estaria mais diretamente relacionado à narrativa propriamente dita.
Ali estariam situados os fatos narrados, que serviriam de modelo às especulações do leitor (e
do suposto interlocutor de Riobaldo). Este primeiro nível
27
atuaria também como uma
espécie de “canal de sustentação” de uma segunda linha narrativa. Esta segunda linha, a
configurar um outro nível narrativo – subjetivo – relacionar-se-ia ao modo como os
acontecimentos narrados vão sendo submetidos ao processo de análise do narrador, na sua
busca de compreensão acerca da realidade do mundo e de seu próprio ser. Estaria ligada a um
processo prospectivo, com o fim de “romper o exterior para conferir o interior”; estaria
ligada também à metalinguagem e à especulação acerca da própria arte literária.
Para Garbuglio, esses dois níveis, ao entrecruzarem-se durante toda a obra,
sustentam vivência e experiência, dúvida e especulação. Funcionariam em uma dinâmica em
que, à intensificação da ação em um nível, corresponderia o rebaixamento da mesma no
27
Uma peculiaridade desse primeiro nível, é que ele mesmo seria bipartido. Para Garbuglio (1983), o
julgamento de Zé Bebelo marcaria uma divisão entre duas partes desse nível objetivo da narrativa: na primeira
haveria a aparição de todos os chefes que vão se revezando; na segunda Riobaldo (virtual e, depois,
efetivamente) passa a liderar não apenas o bando, mas a própria narrativa.
36
outro. Ao desdobramento dessas duas linhas narrativas também corresponderiam outros
desdobramentos, explorados pelo autor em um de seus estudos (1972), relacionados ao
próprio aspecto dual da realidade e dos seres.
Suzi Frankl Sperber (1982), ao desenvolver suas reflexões acerca da importância
atribuída ao “tema do meio”
28
na obra rosiana, traz também uma perspectiva que considera
o relacionamento dinâmico que se dá entre distintas dimensões de GSV. No caso desta obra,
teríamos um romance inteiro e terminado até o “meio” do livro (com todos os dados da ação,
símbolos e temas centrais) – de modo que até este o momento o relato “vai”; a partir daí,
“voltará”. Marcando as idas e voltas que constituem o romance, a estudiosa observa que este
seria um dos principais temas da obra: a “ida” estaria relacionada ao numinoso e a “volta” à
interpretação do numinoso (pela via da palavra). Visto de outro ângulo, este movimento de
“ida e volta” representaria uma parada no tempo, em que o “fio do passado é compreendido
nas suas ligações com o futuro” (SPERBER, 1982: 125). Haveria uma parada no tempo,
depois da iniciação, para que esta pudesse ser apreendida. Entretanto, para que essa pudesse
se realizar seria necessária a travessia – da ida e da volta, que se constituiriam através de
curvas sinuosas, misturadas e não-lineares. Graficamente, esta dinâmica é representada por
Sperber da seguinte maneira (FIG. 1):
28
A pesquisadora observa que, no tocante à importância atribuída por Rosa ao “meio”, vale ressaltar o lugar
“central” que GSV ocupa no rol das obras publicadas em vida pelo autor, tendo vindo depois de Sagarana e
Corpo de baile e antes de Primeiras estórias e Tutaméia. Vale também assinalar que o “tema do meio”, no
contexto de GSV, será retomado no próximo capítulo desta tese.
37
FIGURA 1 – As curvas de ida e volta na dinâmica de GSV
Fonte: SPERBER, 1982: 125.
Para Sperber, essa dinâmica
29
estaria também relacionada à presença de duas
dimensões na obra: (a) o cosmo – ligado ao microcosmo humano, mundo fechado; (b) o caos
– que se estende a partir das fronteiras da dimensão anterior, ligado ao domínio do
desconhecido, não-formado e perigoso. A oposição entre esses dois espaços existiria
conotada em GSV, de forma que o “centro”, espaço que se apresenta entre dualidades, estaria
relacionado a uma hierofania, a um ponto de interseção entre três regiões cósmicas: céu,
terra, inferno. Quando essa comunicação se dá, há uma ruptura de nível, o que justificaria,
segundo Sperber, a ruptura do relato. Dessa forma, o meio, definindo-se como elemento
estruturalmente importante, não teria apenas valor simbólico-mítico, mas também um valor
metalingüístico.
Outros autores também têm o mérito de apontar – ainda que sob perspectivas
distintas – a presença de, pelo menos, dois níveis narrativos em GSV. A produção de Eduardo
Coutinho (1991; 1994) volta-se para a compreensão das dimensões do real em GSV, ocasião
em que contrapõe a realidade “objetiva” aos outros níveis de realidade às quais a obra
remete, numa dualidade composta por Logos e Mythos – relacionada, por sua vez, à dualidade
29
Note-se que, à junção das curvas de ida e volta, temos a lemniscata, símbolo intimamente ligado à dinâmica
de GSV. Adianto que no último capítulo desta tese farei referência novamente a essa figura.
38
que se opera entre perspectivas racionais e míticas de apreensão da natureza do real. A
ambigüidade do sertão multifacetado mostraria a tensão que se dá entre essas duas
dimensões, assim como é a partir desses dois níveis que opera a consciência de Riobaldo.
No que tange aos aspectos relacionados ao Mythos, Coutinho faz alusão à forma
de apresentação do elemento sobrenatural em Rosa, numa perspectiva que valorizo e busco
fortalecer no presente estudo. Vale então ressaltar:
[...] À diferença que ocorre no fantástico ou no realismo maravilhoso, categorias, aliás,
pouco presentes na obra de Guimarães Rosa, fato que o distingue muitas vezes de outros
grandes autores latino-americanos do mesmo período, sobretudo os de língua espanhola,
o elemento da sobrenaturalidade não contém a dimensão de ruptura que se verifica
naqueles casos. O sobrenatural em Rosa é tratado como parte do complexo mental do
homem do sertão, do aspecto mítico-sacral de sua Weltanschauung, e, como tal, passível
também de questionamento. O mito é, do mesmo modo que a lógica racionalista, uma
entre outras possibilidades de apreensão do real, e o que o autor assinala a toda hora é o
caráter não-excludente dessas categorias. (COUTINHO, 1994: 22)
Davi Arrigucci, em seu ensaio intitulado O mundo misturado (1994), refere-se
também à natureza multidimensional – constituída pelas mais diversas misturas – presente
em GSV. Destaco o caráter metapoético de sua leitura, ao abordar a obra como a mescla não
apenas de diferentes níveis narrativos, mas de distintas modalidades narrativas. O épico
30
a que o autor relaciona as aventuras dos grandes chefes jagunços, em uma história que tem,
como uma de suas marcas, a busca da vingança que é incitada pela paixão amorosa – e o
romance de formação
31
– que se constrói sobre a narrativa épica, em que um Riobaldo-
narrador se dedica à construção de um significado acerca do sentido da vida – seriam, dessa
30
Roberto Schwarz (1983), em ensaio originalmente publicado em 1965, já faz alusão à presença do gênero
épico em GSV que, do seu ponto de vista, estaria articulado na obra com o gênero dramático – de modo a
configurar dois níveis narrativos, aos quais acrescenta o tom lírico.
31
Partindo do estudo de Marcus Mazzari (1999), pode-se compreender o romance Os anos de aprendizado de
Wilhelm Meister, publicado na Alemanha entre os anos de 1793-95, como um protótipo do gênero que viria a
ser denominado “romance de formação” – tido como subgênero do “romance social burguês”. Sua estrutura
comportaria dois pontos fundamentais: (a) o conceito teleológico do desdobramento gradativo das
potencialidades do indivíduo, no sentido de uma enteléquia (o que priorizaria o resultado ou uma forma final,
em oposição ao processo); (b) a teoria da socialização e seu lugar na busca da interação necessária entre
indivíduo e sociedade.
39
forma, as principais
32
modalidades narrativas que, entrelaçando-se, constituiriam o todo da
narrativa de Riobaldo. Tal dualidade colocaria em tensão também uma forma narrativa oral
ligada ao épico e a narrativa escrita, corporificada no romance. A esses dois planos básicos,
viriam somar-se as misturas e reversibilidades ligadas a várias outras dimensões, indo “do
sexual ao metafísico, do moral ao político” (ARRIGUCCI, 1994: 08). O crítico tem o mérito, a
meu ver, de colocar em evidência a relação orgânica que se estabelece entre a forma de
contar e a matéria da qual trata a obra.
Para além da possibilidade de uma leitura metapoética a partir de GSV, Arrigucci
vê a trajetória de Riobaldo culminando com seu desgarramento definitivo da transcendência,
num “mundo já desencantado”. Creio podermos refletir a partir de tais colocações e buscar
compreendê-las de uma forma bem ampla. Visando, portanto, a avançar nessa direção, às
contribuições de Arrigucci somo as de Charles Taylor, estudioso do terreno da história das
idéias, quando esse discorre acerca do processo de “desencantamento do mundo” no
contexto do ocidente moderno:
A liberdade moderna se inicia quando conseguimos escapar de horizontes morais do
passado. Em alguns casos, tratava-se de uma ordem cósmica, uma “grande cadeia do ser”,
na qual os seres humanos ocupavam o lugar que lhes correspondia junto aos anjos, aos
corpos celestes e às criaturas que são nossos congêneres na Terra. Esta ordem hierárquica
se refletia nas hierarquias da sociedade humana. As pessoas se encontravam confinadas
em um lugar, um papel e uma posição determinados que eram estritamente os seus e dos
quais era impossível desvincular-se. A liberdade moderna sobreveio graças ao descrédito
destas ordens.
Mas ao mesmo tempo em que nos limitavam, essas ordens davam sentido ao mundo e às
atividades da vida social. As coisas que nos rodeiam não eram apenas matérias-primas ou
instrumentos potenciais para nossos projetos, mas possuíam um significado que lhes
conferia seu lugar na cadeia do ser. A águia não era somente uma ave como outra
qualquer, mas era o rei de um domínio da vida animal. Do mesmo modo, os rituais e
normas da sociedade tinham um significado que não era meramente instrumental. Ao
32
Segundo Arrigucci (1994: 18), outros tipos de narrativa também estariam entrelaçadas às duas formas
anteriormente citadas. Teríamos assim os provérbios, como “forma simples” e as frases aforismáticas de
Riobaldo, como “formas similares” – que em comum têm o fato de serem elementares e de certa forma
arcaizantes. Há também os “causos”, ligados às narrativas exemplares próprias dos narradores anônimos – o
que remete a uma tradição oral.
40
descrédito dessas ordens é o que se tem denominado “desencantamento” do mundo. Com
ele, as coisas perderam parte de sua magia. (TAYLOR, 1994: 38-39 – tradução minha)
33
Poderíamos então, diante da realidade do homem se percebe em um mundo já
“desencantado”, ampliar o alcance daquilo que é reconhecido por Arrigucci. O
“desgarramento definitivo da transcendência” talvez não signifique, a rigor, a
impossibilidade de acesso à mesma, mas o estabelecimento de uma relação mediada com essa
esfera, onde sua presença é reconhecida através de uma falta que marca a sua ausência. Os
lugares passam a ser fluidos; o mundo, desconhecido; o movimento, necessário. Indo além,
poderíamos nos perguntar se é justamente essa ausência o que dá origem ao protagonista do
romance, dotado agora de uma interioridade e voltado para a busca de respostas acerca do
mundo que o cerca. Tudo isso configuraria, para mim, não apenas um ponto nevrálgico
dentro de uma abordagem multidimensional (e metapoética) de GSV, mas também uma das
marcas fundamentais da poética de Riobaldo.
Enfim, os posicionamentos variam (QUADRO 1), mas suas construções se
referem a algo semelhante – a presença de, pelo menos, duas dimensões em Grande Sertão:
Veredas e de mecanismos dinâmicos que as conectam:
33
"La libertad moderna se logró cuando conseguimos escapar de horizontes morales del pasado. En algunos casos, se
trataba de un orden cósmico, una gran cadena del Ser, en la que los seres humanos ocupaban el lugar que les
correspondía junto a los ángeles, los cuerpos celestes y las criaturas que son nuestros congéneres en la Tierra. Este orden
jerárquico se reflejaba en las jerarquías de la sociedad humana. La gente se encontraba a menudo confinada en un
lugar, un papel y un puesto determinados que eran estrictamente los suyos y los que era casi impensable apartarse. La
libertad moderna sobrevino gracias al descrédito de dichos órdenes. Pero al mismo tiempo que nos limitaban, esos
órdenes daban sentido al mundo y a las actividades de la vida social. Las cosas que nos rodean no eran tan sólo materias
primas o instrumentos potenciales para nuestros proyectos, sino que tenían el significado que les otorgaba su lugar en
la cadena del ser. El águila no era solamente un ave como otra cualquiera, sino el rey de un dominio de la vida animal.
Del mismo modo, los rituales y normas de la sociedad tenían una significación que no era meramente instrumental. Al
descrédito de esos órdenes se le ha denominado 'desencantamiento' del mundo. Con ello, las cosas perdieron parte de su
magia." (TAYLOR, 1994: 38-39)
41
QUADRO 1
Perspectivas críticas diante da natureza multidimensional de GSV
PROENÇA
(1958)
CANDIDO
(1983)
GALVÃO
(1983; 1986)
GARBUGLIO
(1972; 1983)
SPERBER
(1982)
COUTINHO
(1991; 1994)
ARRIGUCCI
(1994)
Dimensão 1
Objetivo Terra
Imagem
concreta
Objetivo Cosmos
Logos
Narrativa
épica
oralidade
Dimensão 2
Subjetivo Homem
Imagem
abstrata
Subjetivo Caos
Mythos
Narrativa
romanesca
escrita
Dimensão 3
Telúrico-
mítico
(Luta) – – – – –
Mecanismo
dinâmico
– Linguagem
Movimento
e linguagem
Idas e voltas
articuladas
em um centro
Encontros e
desencontros
Não quero dar a entender, a partir do desenho deste pequeno quadro –
construído apenas com “fins didáticos” – que haja uma relação direta e inequívoca entre as
dimensões propostas pelos autores. Definitivamente, não há. Pelo contrário: creio que as
mesmas se interpenetram e se misturam. Meu objetivo é simplesmente demonstrar que o
caráter dual e multidimensional de GSV é amplamente aceito pela crítica.
Identifico esse entrecruzamento de dimensões, entre as quais o narrador oscila e
transita, como o cerne do próprio objeto do qual este estudo se ocupa. Uma das principais
características de Riobaldo seria justamente a sua possibilidade de transitar entre “níveis
distintos da realidade”
34
, utilizando o conhecimento adquirido em um nível em construções
que efetua no outro, a partir de seu retorno.
Diante dos diversos níveis passíveis de abordagem no contexto de GSV, parte de
minha proposta consiste em “dividi-los”
35
em dois grandes grupos. Teríamos, assim, um
primeiro grande grupo relacionado aos níveis, possibilidades de apreensão e sistemas de
representação da realidade que são validados no contexto do ocidente moderno e que,
ordinariamente, constituem os alicerces daquilo que consideramos “real”. Dimensões
34
Arrigucci (1994: 17) refere-se a algo semelhante quando, em seu estudo, considera que em GSV haja
“articulações sutis entre níveis distintos de representação da realidade”.
35
É muito importante frisar que essa “divisão” é absolutamente didática, recurso necessário neste momento.
Como pretendo demonstrar no decorrer desta tese, a rigor, essa divisão, artificial, pode ser desfeita.
42
históricas, geográficas, biológicas, sociais, culturais, psicológicas, psicanalíticas, filosóficas -
ainda que eventualmente sejam contraditórias entre si – podem ser consideradas como
discursos legítimos frente ao desafio de “dar conta” do real no contexto ocidental. No
contexto deste trabalho, convenciono chamar de realidade ordinária esse conjunto composto
por diversos níveis de apreensão da realidade.
Mas há também um outro grupo, gerador de um certo estranhamento em nosso
contexto cultural específico, e que se refere a outros níveis de apreensão da realidade, a
partir de referências e experiências às quais, normalmente, não validamos
36
como parte da
nossa experiência de realidade. Incluo aí as experiências místicas ligadas às mais diversas
tradições, o reconhecimento de uma dimensão espiritual da realidade, bem como a variedade
de explicações míticas que, a seu modo, também buscam “dar conta” do real. Ligado a um
contexto mais oriental e às culturas “primitivas”, esse tipo de experiência se relaciona ao
grupo de estudos “metafísicos místicos” que busquei abordar em contato com a crítica
rosiana. Por ser composto por formas de apreensão da realidade que apenas
extraordinariamente experimentamos ou reconhecemos no contexto do ocidente moderno,
convenciono nomear esse grupo como realidade extra-ordinária.
São estes, a meu ver, os dois grandes grupos de níveis de realidade pelos quais
Riobaldo transita em GSV (FIG. 2):
36
É importante compreender a sutileza deste processo de invalidação. Alguns discursos advindos de outros
contextos de referência podem até circular em nossa cultura, mas não são considerados válidos a partir de seu
próprio sistema de significação. Para serem validados, são reinterpretados a partir de nossos próprios sistemas,
quando então passam a ter um sentido válido. A meu ver esse mecanismo pode ser perverso. O discurso mítico
pode, por exemplo, perder o valor intrínseco que possuía em sua cultura de origem, para tornar-se apenas um
“rico” produto cultural. Reconhece-se o mito em seu valor cultural, mas a realidade espiritual do qual o mesmo
se ocupa é diplomaticamente descartada. O grande desafio talvez seja encarar a experiência da alteridade como
uma possibilidade, sem reduzi-la às nossas próprias possibilidades de significação.
43
FIGURA 2 – GSV e os níveis de realidade
Acredito que um avanço em relação aos estudos críticos que busquei revisar
significaria buscar um aprofundamento na compreensão dos processos envolvidos nesse
entrecruzamento de realidades e dimensões. O objetivo não é, de forma alguma, desvelar
cada uma dessas dimensões ou níveis de realidade; pelo contrário. Ao focalizar os
mecanismos que revelam um trânsito possível entre essas dimensões, o que se faz é o
caminho oposto, a indicar a fragilidade dos rígidos conceitos que utilizamos para representar
(e, consequentemente, delimitar) a complexidade do real. Este trânsito, movimento do qual
me ocupo, em GSV toma a forma de um aprendizado poético – complexo formado pela rede
intrincada de ritmo, transcendência e experiência estética –, o qual, por sua vez, busco
nomear como “porosidade poética”.
2.4 A ARTE COMO VEÍCULO
No que se refere aos conceitos que acabei de citar, buscarei explicitar o modo
como compreendo e abordo cada um no decorrer deste estudo – mas, até mesmo para que
isso aconteça, é fundamental que fique clara a forma como busco me aproximar do “poético”,
base fundamental sobre a qual os demais conceitos adquirem sentido.
44
Uma primeira diferenciação que se faz necessária é que, na abordagem proposta
por esta pesquisa, não há a identificação do poético com uma função poética da linguagem
37
,
nem com um gênero literário específico
38
– ao mesmo tempo em que essas dimensões não
são excluídas das construções que aqui têm lugar. GSV está repleto de poesia, assim como a
natureza específica da linguagem que constitui a obra é uma de suas marcas fundamentais –
mas pretendo percorrer o sertão de Riobaldo utilizando o “poético” para tomar a criação
artística em sua forma mais ampla.
Para tanto, tomo como ponto de partida as contribuições de Paul Valéry (1975)
em discurso pronunciado em 1937, quando, ao apresentar a sua compreensão da estética, faz
referência ao conceito de poética. Ao propor a transição entre uma “ciência do belo” para uma
“ciência das sensações”, Valéry pergunta a si mesmo o que preferiria – o destino de um
homem que sabe porque uma coisa é chamada bela e o destino daquele que sabe o que é sentir
– confessando escolher o segundo, mesmo temendo que não seja possível.
Eis como o autor descreve – inicialmente – a experiência estética:
Este é o ponto. Um prazer que às vezes se desenvolve até comunicar uma ilusão de
compreensão íntima do objeto que o causa; um prazer que excita a inteligência, a desafia
e a faz amar sua derrota; mais ainda, um prazer que pode despertar a estranha
necessidade de produzir, ou reproduzir, a coisa, o acontecimento, o objeto ou o estado ao
qual ele parece vinculado, tornando-se por causa disso a fonte de uma atividade sem
limite determinado, capaz de impor uma disciplina, um cuidado, tormentos a toda uma
vida, capaz de preenchê-la, quando não de excedê-la – tal prazer propõe à razão um
enigma particularmente especioso, que não poderia escapar ao desejo e ao abraço da hidra
metafísica. [...] A aliança de uma forma, de uma matéria, de um pensamento, de uma
ação e de uma paixão; a ausência de um fim bem determinado e de qualquer acabamento
que pudesse exprimir em noções finitas; um desejo e sua recompensa regenerando-se
37
Jakobson (2005) considera que o problema fundamental tratado pela poética reside na busca dos motivos
que fazem de uma mensagem verbal uma obra de arte, compreendendo-a, por conseguinte, como parte da
lingüística, tomada numa perspectiva semiótica. Retornarei às suas contribuições no próximo capítulo, ao
abordar uma dimensão rítmica presente na linguagem de GSV. Neste momento, gostaria apenas de deixar
assinalado meu posicionamento em relação ao conceito de poética que, a meu ver, incluiria uma dimensão
lingüística, mas não se restringiria à mesma.
38
Para Héctor Olea (2006), que busca analisar GSV dentro de uma perspectiva poética, o caráter “poiético” da
obra, associado não deve ser confundido com a sua identificação a um subgênero literário. O pesquisador
associa essa característica ao que há de mais essencial na obra, de modo a caracterizar o seu processo de
composição como um todo.
45
mutuamente; este desejo se tornando criador e, assim, causa de si mesmo; destacando-se
às vezes de qualquer criação particular e de qualquer modo de satisfação última, para se
revelar desejo de criar por criar [...]
Mas um espírito que almeja este estágio sublime, onde espera estabelecer-se com
supremacia, modela o mundo que pensa estar apenas representando. Ele é poderoso
demais para ver apenas o visível. Ele é levado a se afastar insensivelmente de seu modelo,
cujo verdadeiro rosto recusa, pois este lhe propõe somente o caos, a desordem instantânea
das coisas observáveis: ele é tentado a negligenciar as singularidades e irregularidades
que se exprimem desajeitadamente, tumultuando a uniformidade distributiva dos
métodos. Ele analisa logicamente o que é dito, extraindo, do próprio adversário, o que
este nem desconfiava que pensava. Ele lhe mostra uma invisível substância sob o visível
(que é acidente); muda-lhe o real em aparência, compraz-se em criar nomes que faltam à
linguagem, para satisfazer os equilíbrios formais das proposições: se carece de algum
sujeito, engendra-o por um atributo; se a contradição ameaça, a distinção se insinua no
jogo, salvando a partida.
E tudo isto vai bem – até um certo ponto. (VALÉRY, 1975: 48)
Tomo a liberdade de me estender nesta citação literal por considerá-la de uma
riqueza incomum em se tratando da descrição da estética. Um tipo de experiência que se
relaciona com a constituição de um saber, mas que derrota a inteligência. Experiência que
não visa a um fim pré-estabelecido, que não se contenta em ver apenas o visível –
transformando este último em acidente, mudando o real em aparência, criando os nomes
que faltam à linguagem.
Mais adiante, Valéry se refere aos esforços dos filósofos e intelectuais diante da
experiência estética e que – não podendo separar o objeto de seu olhar, a necessidade do
arbitrário, a contemplação da ação, nem a matéria do espírito – não deixaram de querer
reduzi-la pela via de seus “processos ordinários de exaustão e de divisão progressiva”. Valéry
compara a experiência estética às imagens do centauro
39
e da sereia – “em quem a sensação,
a ação, o sonho, o instinto, as reflexões, o ritmo e a desproporção se compõem tão
intimamente quanto os elementos químicos nos corpos vivos” (1975: 48). Valéry também
aborda o fato de que o trabalho do artista, mesmo quando em sua parte inteiramente
mental, não pode ser reduzido a operações guiadas pela razão – ao mesmo tempo em que
considera que, querendo ou não, seu trabalho não pode ser desligado do sentido do
39
Como se verá, atribuo um importante sentido a essa imagem no contexto da trajetória de Riobaldo.
46
arbitrário
40
(1975: 52). Não pretendo, entretanto, percorrer todos os meandros das
considerações que Valéry tece buscando apresentar sua compreensão da estética. Interessa-
me, sobretudo, a nomeação que faz acerca de dois grupos de perspectivas que se dedicam a
estudá-la.
A primeira perspectiva, por ele batizada de “Estésica”, estaria relacionada ao
estudo das sensações. Seu objeto estaria voltado para as excitações e reações sensíveis que
não possuem um papel fisiológico uniforme e bem definido. Para Valéry, o tesouro da
condição humana residiria justamente no conjunto de modificações sensoriais pertencentes
ao ser vivo – veio inesgotável da arte.
A segunda perspectiva que apresenta seria por ele denominada “Poética” – ou,
como prefere, “Poiética”. Essa outra perspectiva reuniria tudo o que concerne à produção das
obras, adquirindo o caráter de “uma idéia geral da ação humana completa, de suas raízes
psíquicas e fisiológicas até sua atualização sobre a matéria ou sobre os indivíduos” (VALÉRY:
1975: 54). Haveria, por um lado, (a) o estudo da invenção e da composição, do papel do
acaso, da reflexão, da imitação, da cultura e do meio-ambiente; somado (b) ao estudo e
análise das técnicas, procedimentos, materiais, meios e suportes da ação.
O próprio Valéry considerava essa classificação grosseira, haja vista poder-se
considerar uma terceira perspectiva onde as duas anteriores se confundem. Essa terceira via,
portanto, deveria considerar não apenas os aspectos de percepção envolvidos na experiência
estética, como também todos os processos que envolvessem a própria criação artística.
Ressalto o modo como Valéry considera a poética como uma idéia geral da ação
humana. Considero essa concepção rica, pois nos permite abordar a poética não apenas como
uma teoria da arte – mas abordar a arte como uma dimensão que se relaciona à experiência
40
Todo esse posicionamento já se mostra sintonizado com o modo como a experiência estética é tomada nesta
pesquisa.
47
humana total. Se, além do mais, a essa compreensão pudermos incorporar uma dimensão
estésica, vemos que a arte nos coloca diante de possibilidades de percepção e de expressão
inextrincavelmente ligadas. E é justamente nesse emaranhado que repousa a concepção
poética com a qual esta pesquisa busca lidar. Importa, sobretudo, o foco apontado pelo
próprio Valéry (1999a: 180) em outro de seus textos: ao refletir sobre o conceito de poética a
partir de seu radical grego – poïen –, confessa se sentir impelido a considerar mais “a ação que
faz” do que “a coisa feita”.
Avançando, portanto, na terceira perspectiva sugerida por Valéry – em que os
processos de criação artística não são cindidos dos processos de percepção – podemos nos
perguntar até que ponto a trajetória de Riobaldo pode nos conduzir nessa direção.
Mas um questionamento pode ser feito. Antonio Candido (1983), ao abordar o
caráter dual e dinâmico de GSV, discorre acerca do modo como a habilidade poética do autor
empírico Rosa possibilita a construção do universo complexo da obra. Sendo assim – e
considerando o contexto desta pesquisa –, faria sentido focalizarmos a figura de Riobaldo em
detrimento de um foco no autor Rosa?
Pois bem: considerando, sim, a habilidade poética (tomada de forma ampla)
como um recurso dinâmico capaz de proporcionar essa construção relacionada ao trânsito
entre os diversos níveis de realidade, proponho inverter um pouco essa perspectiva. Ao invés
de tomar Rosa como aquele que efetua essa construção, pretendo tomá-la pela perspectiva
da personagem Riobaldo. Considerando-se a relação complexa que se dá entre essas duas
instâncias (autor e personagem/narrador; Rosa e Riobaldo), a diferença implícita, nessa
inversão, parece para mim implicar um maior grau de liberdade. Explico: ao invés de
48
permanecer no terreno das especulações e do paradoxo em torno de uma suposta realidade da
poética rosiana, concentro meus esforços nas construções que versam sobre a poética de
Riobaldo – construções estas que serão, a rigor, tão ficcionais quanto a própria
personagem
41
.
Considerando tais premissas, a poética narrada por Riobaldo poderia também ser
compreendida através de várias perspectivas, simultâneas e concomitantes: (a) o
aprendizado poético de Riobaldo, a partir dos embates e das permutações entre os níveis
ordinários e extra-ordinários de realidade; (b) a constituição de sua narrativa como o próprio
aprendizado da habilidade narrativa; (c) o aprendizado poético de Riobaldo tomado,
hipoteticamente, como análogo à própria poética de Rosa; (d) o aprendizado poético de
Riobaldo como exemplaridade de um processo poético possível no nível de realidade no qual
se situa o leitor; (e) a compreensão desse aprendizado poético como um aprendizado
aplicável não somente às artes, mas à própria vida, ao que corresponderia dizer acerca da
semelhança entre arte e vida.
Iniciei este capítulo discutindo a forma como a atual crise paradigmática na
ciência ocidental abre as portas para que a validade de outros discursos e outras formas de
conhecimento – dentre os quais se inclui a arte – sejam considerados. Pretendo então
terminá-lo fazendo o caminho oposto, na forma de uma indagação: poderiam esses outros
41
Essa perspectiva contrapõe-se ao posicionamento de Marcelo Marinho, para quem Riobaldo seria um “[...]
desdobramento ficcional do romancista João Guimarães Rosa, sob a forma de mot-valise: ‘R’ de Rosa, ‘io’ ou eu
em italiano, e ‘bardo’ ou poeta” (MARINHO, 2002: 258-259). Já Olea (2006) considera Riobaldo – a quem se
refere como “Professor Riobaldo” – como a personagem rosiana que veicula sua “sensibilidade teórica aplicada
(aos pedaços) à literatura” (OLEA, 2006: 05). Na condição de poeta-jagunço, Riobaldo atualizaria, em GSV, uma
poética que seria de Rosa, composta basicamente por dois movimentos: (a) o do poeta que penetra nas coisas
que são importantes e (b) o do tradutor que faz sua decifração – sempre em torno de um caráter enigmático.
49
saberes – e aí ressalto o lugar da arte – representar possibilidades de mudança no que se
refere àqueles ordinariamente reconhecidos na cultura ocidental contemporânea?
Diante disso, acredito não ser inoportuno lembrar que, de um ponto de vista
físico, as concepções de universo com as quais lidamos hoje – no contexto do ocidente
moderno – são muitas e fluidas. A ciência, ao promover novas possibilidades de leitura
acerca da realidade, também cria novas possibilidades para as artes e também para a
consciência humana – que transita por esses dois tipos de construções. Mas o contrário
também é verdadeiro: novos movimentos artísticos também abrem as portas para que não
apenas a ciência, mas a própria consciência, sejam transformadas.
Um exemplo interessante é dado por Géza Szamosi (1988) que, em um estudo
acerca da história da física, focaliza as relações entre a percepção do espaço-tempo e a
música. Segundo o ponto de vista do autor (p. 228), a influência da música sobre a percepção
do tempo é bastante ampla, já que ela representaria uma imagem abstrata de movimento
muito importante. Nossa sensação, enquanto seres humanos, é que a música se move – não
importa se de modo rápido ou lento, retardando-se ou acelerando-se. Szamosi nos lembra,
entretanto, que esse movimento é puramente simbólico, já que se torna “movimento”
apenas para a mente humana. Percebido em relação a alguma coisa “fixa”, não podemos
imaginar um movimento sem lhe agregar um estado de repouso. E se, em cada período
histórico, o movimento musical refletia o que era considerado importante naquele momento
específico, nesse movimento também se desenvolveria uma representação de repouso. No
caso da música, o repouso seria expresso por meio daquilo que é chamado de “lealdade ao
tom central” (SZAMOSI, 1988: 229). Por trás do progresso de qualquer melodia estaria uma
força motriz, ligada a um sentimento intuitivo de que o movimento musical deve encontrar
seu ponto natural de repouso e um sentido de que o tom central atrai para si a linha
melódica.
50
Na era do tempo e do espaço clássicos, o movimento musical se realizava,
portanto, em relação a esse “centro imóvel”. Com o início do século XX, na música se assiste
a um colapso de tais conceitos clássicos de espaço-tempo. Composições atonais não mais se
realizavam tendo como eixo um centro tônico; a distinção entre movimento e pausa foi
abolida na música. Também por outras formas a música do século XX abandonou as imagens
de um tempo clássico. Teríamos, assim, como exemplos: (a) a polirritmia – método
musicalmente poderoso e eficaz, com o uso de ritmos contrastando fortemente e utilização
de métricas musicais contraditórias simultaneamente; (b) a politonalidade – que, em vez de
utilizar um único centro tonal ou um simples sistema de repouso, utilizaria dois ou três
desses sistemas, simultaneamente.
[...] muitas pessoas acham difícil concordar que a sucessão de tons e acordes na música
atonal possa ser de alguma forma caracterizada como música. Se um movimento musical
é desprovido de tonalidade, parece deixar de corresponder a qualquer modelo mental
intuitivo de movimento que tenhamos em nosso sistema nervoso. Instintivamente,
percebemos que tal movimento musical é arbitrário, descontínuo, convulsivo e difícil de
fazer sentido. As estranhas leis a que obedece podem ser formal e intelectualmente
compreendidas, mas o produto final não corresponde às nossas intuições congênitas nem
“se ajusta” às nossas percepções normais. [...] É possível que esse tipo de música
simplesmente não faça sentido para a maioria dos ouvintes, mesmo depois de ouvida
muitas vezes. [...] (SZAMOSI, 1988: 234-235)
Supostamente, a citação acima se refere à fruição da música atonal. Será? Sim –
mas não somente. Parto do pressuposto que poderíamos compreender Grande Sertão:
Veredas como um movimento complexo ou uma grande música – com letra e melodia, ritmos
distintos, capaz de produzir estados de consciência e percepções de realidade as mais
variadas. Arte: capaz de mudar as nossas concepções e os nossos posicionamentos frente ao
real. Mas qual(is) seria(m) o(s) seu(s) ritmo(s)?
51
3
RITMO
Parto da hipótese e da intuição de que, diante do sertão complexo e
multidimensional apresentado por GSV, tornado concreto através da linguagem pouco
ortodoxa de Rosa, o próprio ritmo atue como o grande suporte a partir do qual outras
dimensões da experiência e dos sentidos possam ter lugar. Compreendida como freqüência
ou repetição, a noção de ritmo traz à tona, fundamentalmente, a idéia de movimento – que,
por sua vez, pode expressar-se de diversas maneiras: podemos estar referindo-nos ao som ou
à energia, forças que são, usual ou inusualmente, perceptíveis, aplicadas às frases, aos
gêneros textuais ou ao sem tamanho do sertão. Mas, independente de como se expressem,
uma coisa que não podemos negar é que somos afetados pelas mesmas – tenhamos ou não
consciência desse fato. E normalmente não temos.
Acredito que abordar GSV nessa perspectiva rítmica possa trazer vários
caminhos possíveis para nos aproximarmos de sua complexidade. Deus e o demo, caos e
cosmos, Riobaldo e Diadorim, homem e sertão, narrador e personagem, leitor e obra, texto e
52
mundo: freqüências diferentes que se combinam e se interpenetram
42
. O que nos resta é
encontrar formas de interpretá-las.
Aristóteles, em sua Poética
43
(BRUNA, 1997), já aponta o ritmo como um dos
meios fundamentais – a atuar isoladamente ou em conjunto com a linguagem e a harmonia –
através dos quais a arte é produzida.
Focalizando a articulação possível entre música e literatura, George Steiner
(2003) também aponta para a noção de ritmo, quando fala de vários aspectos relacionados à
sua composição:
[...] A intensidade, o tom, a função harmônica e o timbre são componentes do ritmo, que é
o tempo organizado. A dinâmica não pode se separar da duração temporal da nota ou de
seu intervalo (isto é, o silêncio). [...] Mas, pela forma como são executadas e ouvidas, é
impossível sistematizar ou padronizar com exatidão a duração ou cadência da unidade de
cada estrutura musical. Há fatores acústicos intrincados que dependem do espaço real no
qual cada peça é executada; nenhum instrumento é capaz de soar em perfeita
uniformidade com o outro. São fatores que interagem com expectativas e disposições
psicológicas e com convenções técnicas que são tão culturais e públicas como
extremamente pessoais. [...] Mas em todo compasso, de certa forma, o compositor e o
executante podem subverter completamente o efeito esperado. [...] Em nenhum outro
modo de expressão humana as possibilidades de sincronicidade e desacordo entre o tempo
e a duração são tão multifacetadas e férteis como na música. (STEINER, 2003: 260-261)
É a partir desse paralelo com a linguagem musical que o autor discorre acerca da
presença desses mesmos elementos na literatura, de modo que as categorias de cadência,
42
Deepak Chopra (2005: 52-53) desenvolve idéias interessantes acerca da forma como diferentes ritmos
interagem uns com os outros. Referindo-se ao corpo humano e sua conexão com o universo, vemos como
temos que combinar diversos ritmos ou ciclos distintos para que funcionemos em harmonia. Temos os ritmos
sazonais formados pelo movimento que a Terra efetua ao redor do sol e que formam as estações do ano, o
ritmo circadiano formado pelo giro diário da Terra ao redor de seu eixo, temos os ciclos lunares de 28 dias que
afetam as marés e os nossos corpos. Todos esses ritmos – sazonal, lunar, circadiano – se apresentam em
harmonia uns com os outros e não somos alheios a esse processo, somos parte dele. Existem ritmos dentro de
ritmos, ecoando dentro de nós e ao nosso redor – tal como uma pulsação do universo.
43
Buscarei estabelecer um diálogo mais próximo com outros elementos presentes na Poética de Aristóteles no
capítulo que dedico à “porosidade poética”.
53
ritmo, ênfase, repetição ou variação temática seriam igualmente funcionais na poesia, na
prosa literária e na música.
Já no terreno específico da literatura e no âmbito dos estudos críticos rosianos,
não sou o primeiro a recorrer a essa noção. Wilton Cardoso (1966) já há muito levantara a
questão do ritmo no que se refere à obra rosiana. Percorrendo inicialmente o conto “São
Marcos” de Sagarana, Cardoso esmiúça o modo como, no conto, a arquitetura da paisagem
deixa de ser construída por elementos visuais e passa a constituir-se a partir de elementos
auditivos.
Sensível ao poder fônico dos vocábulos, Guimarães Rosa se deixa entregar a combinações
léxicas, cujo fim é sem dúvida explorar o seu manancial sonoro. Aqui mesmo, na sua
história “São Marcos”, observa-se a prática desse recurso, que, se algumas vezes pretende
ilustrar conteúdo semântico, à maneira onomatopaica, em outros casos dá à nota sonora
valor próprio e exclusivo, já que não se relaciona com o contexto. [...] (CARDOSO, 1966:
39)
Considerando também a importância do recurso sonoro em “O burrinho pedrês”
(p. 40), destacando o ritmo do pentassílabo que se intromete na prosa do narrador, o
pesquisador acredita que, nesse outro conto, a gama sonora das palavras terá sido
aproveitada ao máximo.
Com base na análise dos dois contos, Wilton Cardoso defende a hipótese de que
haveria uma relação estreita entre o ritmo
44
da composição e aquilo que é representado; em
outras palavras, identifica o tema com a expressão. Considerando a validade de tal
proposição como sugestão crítica, para Cardoso faria sentido estender-se por outras obras de
Rosa – dentre as quais se inclui GSV
45
.
44
Maria Luísa Ramos (1966) é outra pesquisadora que, à sua maneira, aponta a importância do elemento
rítmico em GSV.
45
Em seu ensaio Cardoso chama a atenção para o caráter descontínuo da narrativa de Riobaldo, ao que segue
tecendo outras considerações. Não aborda, entretanto, a perspectiva rítmica e sonora com a qual trabalhou nos
contos.
54
Partindo também da análise de “O burrinho pedrês”, Ângela Vaz Leão (1983)
46
é
mais uma voz que vem somar-se ao reconhecimento da importância da dimensão rítmica na
obra rosiana.
Dos elementos que constituem a poesia talvez seja o ritmo o mais característico, o mais
essencial. Há poesia sem rima, sem estrofe, sem verso. Mas dificilmente haverá poesia
sem ritmo. Aliás, a exigência de ritmo não é somente da poesia e da música. É de qualquer
arte. Apenas ocorre que, em cada arte, em cada época, em cada gênero, em cada obra,
busca o homem novas soluções para o mesmo problema. Em outras palavras, busca o
artista o seu próprio ritmo. E, através do ritmo encontrado, a composição se estrutura.
(LEÃO, 1983: 248)
Além do ritmo que pode se apresentar pela via da própria linguagem, podemos
também pensar – como outra vez nos alerta Ângela Vaz Leão – no ritmo envolvido na
própria estrutura de uma narrativa não-linear, “com idas e voltas no tempo e no espaço”
(LEÃO, 1983: 249), e que pode ser entremeada por outras narrativas.
Para Arrigucci, a linguagem em GSV poderia ser compreendida como o meio
concreto utilizado na construção da mescla que é o sertão: espaço ficcional e universo
literário. O autor ressalta ainda o caráter de movimento adquirido por esta linguagem, que
“retém e reconcentra a carga expressiva, para melhor soltar e expandir o conteúdo
significativo” (1994: 11). Ainda em relação a esta, também acrescenta:
É quase um idioleto próprio do escritor, chamando a atenção sobre si todo o tempo, pelo
inusitado da invenção, os achados constantes, a graça verbal, a forte ênfase. Um idioma
maleável, feito de “compensações”, em curso de contínua oralidade, com largo
aproveitamento dos materiais lingüísticos mais heterogêneos, fundidos em liga incomum,
mas homogeneizante [...].
Diante do relevo quase topográfico dessa linguagem, que se alça, opaca e ambígua, frente
ao leitor, como se imitasse na materialidade do signo – por meio do ritmo e da
sintaxe, dos recursos sonoros e imagéticos –, a áspera beleza da terra do sertão, o
leitor pode ter a impressão de que se tende a absolutizar o valor da palavra em si mesma,
tomando-a como a verdadeira palavra-coisa da poesia, conforme a conhecida distinção de
Sartre. (ARRIGUCCI, 1994: 13 – grifos meus)
46
Ensaio originalmente publicado no suplemento literário do jornal O Estado de São Paulo, de 30 nov. 1968.
55
Vemos assim que, ao nos aproximarmos dos estudos rosianos, faz sentido o
aprofundamento nas dimensões que envolvem a oralidade, a musicalidade e a dimensão do
ritmo. Em outras palavras, deve-se prestar atenção aos recursos rítmicos presentes em GSV.
Dentro da perspectiva de Arrigucci apresenta-se a possibilidade da palavra em si
mesma, como poesia – o que remete a uma dimensão lírica de GSV. Para Schwarz (1983:
379), um dos precursores
47
no que tange a esse reconhecimento, o lirismo coexistiria com os
gêneros épico e dramático na obra. Sua presença estaria mais ligada a uma atitude frente à
linguagem e à realidade – o que remete ao relacionamento que se dá entre essas duas
instâncias e ao estabelecimento de um tom – do que a uma concepção de arquitetura
narrativa.
Rosenfield (1993), por sua vez, relaciona essa linguagem à própria montagem da
trama ficcional em GSV, a transcender a história dos fatos narrados:
[...] Todas as reflexões, divagações, distorções lexicais e sintáticas refratam obliquamente
várias dimensões que as palavras não dizem e nomeiam diretamente. Repetições,
anáforas e vínculos sonoros (aliterações, homofonias, rimas etc.) criam tramas
suplementares que recortam em níveis variados o texto e a história. [...] (ROSENFIELD,
1993: 178)
Resumidamente, todas essas perspectivas colocadas pela crítica rosiana, ao
mesmo tempo em que apontam a pertinência do foco em uma dimensão rítmica na obra,
apontam também a pluralidade de caminhos que são possíveis ao fazê-lo. Creio, entretanto,
que ainda haja espaço para que algumas “trilhas rítmicas” sejam abertas.
47
Outro precursor seria Cavalcanti Proença (1958).
56
3.1 O PRELÚDIO
É famoso e corrente o fato de que muitas pessoas, na tentativa de empreender a
leitura de GSV, “perdem-se” no começo de sua leitura e não conseguem ultrapassar uma
primeira parte da narrativa
48
. Paulo Rónai (2001), em ensaio publicado originalmente em
1956, já narra um pouco desse estranhamento vivenciado pelo leitor:
Como prêmio do esforço exigido pela leitura, saímos dela com a impressão de termos
participado um pouco da obra de ficção, de termos compartilhado não só as vicissitudes
das personagens, mas também a alegria criadora do autor.
Essa impressão faz esquecer de vez o susto que se experimenta à entrada, ao sopesar o
volume grosso, bloco maciço, sem claros, sem divisão em capítulos, sem índice. Ainda
mais: que vem a ser esse título estranho, com dois pontos no meio? A linguagem
condensada, elíptica, regional e individual ao mesmo tempo, embora dentro da linha dos
livros anteriores, impõe ao interesse um período de adaptação. Além disso, a história
tarda a começar, o narrador parece experimentar vários rumos, embrenha-se num atalho,
marca passo, desvia-se, volta ao ponto inicial, recomeça a ação, parece fragmentar-se
num labirinto de episódios desconexos. Mas, lembrados de Sagarana e Corpo de baile,
confiemo-nos sem reserva ao autor, sigamo-lo por seus caminhos tortuosos: de repente,
após uma travessia do Rio São Francisco, ele nos faz desembocar numa estrada real, de
horizonte dilatado, por onde a estória se desenrola ampla, épica, irresistível, levando de
roldão qualquer estranheza ou resistência. (RÓNAI, 2001: 15-16)
Esta também foi a minha vivência pessoal, na primeira vez que – como leitor
incauto, sem nenhuma pretensão acadêmica – me aventurei a fazer a travessia que significa
fruir GSV. Eu me sentia imerso no caos, em batalha para conseguir manter a minha atenção
e meu entendimento em um texto que se apresentava com uma linguagem que parecia
estrangeira e para a qual não havia dicionário disponível
49
. Após um (in)certo número de
48
Flávio Aguiar (2001: 62) refere-se a esta como o tipo de experiência vivenciada por seus alunos diante da
leitura de GSV. Luiz Otávio Savassi Rocha (1981: 27) também se refere a esse tipo de experiência, ocasião em
que cita o artigo intitulado “Escritores que não conseguem ler Grande Sertão: Veredas”, publicado na revista
Leitura em outubro de 1958, em que o poeta Ferreira Gullar referira-se ao fato de não conseguir ir além das 70
primeiras páginas do romance.
49
Naquela época (por volta de 1989), já havia sim um “dicionário” disponível o Universo e vocabulário do grande
sertão, de Nei Leandro de Castro (publicado em 1968); hoje também temos acesso ao trabalho de Nilce
Sant’Anna Martins (2001) – mas ainda assim acredito que um léxico ou dicionário não amenize o primeiro
57
páginas e algum esforço – que me demandaram, confesso, alguns dias e bastante desânimo –
parece que, de repente, comecei a “entender” aquela língua, ainda que o suposto
entendimento não fosse tamanho a ponto de, por exemplo, “traduzir” para o português, o
que ali eu conseguia apreender. O fato é que, passado esse primeiro esforço, pude fluir com o
livro. Minha impressão de todo esse processo foi de uma certa iniciação exigida do leitor,
uma certa prova de merecimento e perseverança para o que vinha adiante. Essas percepções
parecem estar sintonizadas com o que Arrigucci diz acerca da relação entre o leitor e GSV, no
que tange ao envolvimento do primeiro:
A história que afinal acabamos por ler no Grande sertão: Veredas não preenche todo o
livro. É uma história de aventura de violência, amor e morte –, extraordinariamente
atraente e impositiva, capaz de envolver por completo o leitor. Tarda, no entanto, a
começar, como se nos jogasse primeiro numa espécie de limbo ou de labirinto liminar,
entre fios entrecruzados, antes de definir o rumo. (ARRIGUCCI, 1994: 22)
Já Roberto Schwarz, referindo-se também à fruição de GSV, aponta uma técnica
pontilhista que a caracterizaria:
Podemos afirmar mesmo, dado encontrarmos frases irredutíveis ao esquema comum,
serem estas as que devem orientar o nosso modo de ler, por realizarem mais radicalmente
a dicção do livro. Através de umas tantas orações sem fio gramatical definível, fica
instaurado um universo lingüístico em que mesmo as proposições de lógica perfeita
passam a pedir uma leitura diversa, que poderíamos chamar de lançadeira. O discurso
anuncia uma direção, lança uma gestalt que se sobrepõe à gramática e tem força para
incorporar, segundo a sua dinâmica de sentido, os segmentos mais diversos; estes não
precisam entrar em conexão gramatical explícita, podem simplesmente se acumular,
guardando seu modo de ser mais próprio; não é a sintaxe normativa que determina seu
posto, ainda quando com ela concordam; enquadram-se na configuração (referentes,
misturadamente, a dados sensíveis emocionais), visando uma recriação quanto possível
integral da experiência. Trata-se de uma espécie de técnica pontilhista. Caminho
semelhante deverá seguir a fruição da obra: deixa-se tomar pela dinâmica da frase e vai
recebendo a seqüência das impressões; importante não é o desenho lógico da sucessão,
mas o acúmulo; o efeito é dado pelo curto-circuito (recurso poético) entre segmentos cuja
ligação gramatical, fosse importante, seria precária. (SCHWARZ, 1983: 380)
contato do leitor com GSV. Pelo contrário: acredito que essa aventura deva ser travada sem esse tipo de auxílio
– pelo menos em uma primeira leitura.
58
O que parece se repetir nesses diversos depoimentos é o fato de que, diante do
desafio inicial colocado ao leitor – penetrar o inescrutável sertão – alguns se perdem, outros
tantos desistem, mas há quem consiga fazer essa ultrapassagem primeira. Dentre os
elementos que eu acredito contribuírem para que o incauto leitor siga um ou outro desses
caminhos é a questão do ritmo – de como conseguimos aderir, ou não, à dimensão rítmica
que o sertão nos apresenta. Para que então se possa melhor explicitar esse posicionamento,
faz-se ainda necessária uma outra proposição: a de que se poderia pensar uma divisão
orgânica da narrativa que compõe GSV de forma distinta ao que normalmente tem sido
postulado pela crítica.
Uma grande parcela da crítica rosiana refere-se a uma divisão da narrativa de
Riobaldo em duas partes, marcada pelas indicações do narrador e situadas em torno do
episódio da Guararavacã do Guaicuí
50
. Sperber (1982), ao enfatizar a importância do “centro”
na obra rosiana, também faz menção a essa divisão em GSV. Benedito Nunes (1983a: 21) é
outro autor que também vê esse episódio como “divisória” do romance. Márcia Morais
(1998: 144), partindo dessa perspectiva, defende a idéia de que o episódio na Guararavacã
aponte uma divisão da narrativa em duas partes, no meio do romance, relacionando-o a uma
“travessia de fantasmas”.
50
Em maio de 2006, na abertura do “Semirio Internacional João Guimarães Rosa”, promovido pelo IEB/USP
em comemoração aos 50 anos de publicação de Grande sertão: veredas e Corpo de baile, Antonio Candido fez
referência a uma quase “confissão” que lhe fizera Rosa. O ponto abordado era justamente a Guararavacã do
Guaicuí, onde residiria, segundo o autor de GSV (e não exatamente com essas palavras), importante enigma a
ser desvendado.
59
Rosenfield (1993: 207) chama a atenção para o fato de que o corte ali efetuado
divida o romance em duas partes quantitativamente iguais – mas essa pesquisadora vai mais
além no que se refere à divisão orgânica da obra. Segundo a mesma, ambas as metades que se
situam separadas por este corte mediano seriam, cada uma, subdivididas em três seqüências
de tamanho equilibrado (em torno de 80 páginas). Desta forma, segundo Rosenfield,
teríamos (QUADRO 2):
QUADRO 2
As subdivisões de GSV
51
Seqüência Foco Páginas
52
1
- “Abertura” que expõe a problemática da ordem a partir de considerações gerais e
objetivas
- Formas alocutivas com forma prospectiva
- Aponta para a progressão da narração
09-86
2A
- Resumo biográfico de
Riobaldo
2
- Recoloca o problema da ordem na
perspectiva do destino subjetivo
- Formas alocutivas dobram-se sobre o
relato, abrindo um movimento retrospectivo
2B
- Descrição minuciosa da
desordem infernal no
acampamento de
Hermógenes
87-159
1ª metade do romance
3
- Modificação do enfoque “objetivo”, de modo a inflexionar a descrição “de fora”
para o relato da participação subjetiva e suas implicações
- Reelabora a polaridade do bem e do mal sob o ponto de vista de sua mistura
160-234
Corte
mediano
4
(Guararavacã do Guaicuí)
- Ponto de suspensão na ordem narrativa
- Reúne de maneira condensada figuras mestras presentes nas outras seis
seqüências
234-237
5
- Predominância de uma metáfora específica: imagens da negatividade 237-316
6
- Tema da ruptura com a lei selvagem dos antigos chefes (a lei da guerra perpétua)
sob a forma da encenação carnavalesca
316-401
2ª metade do
romance
7
- Problemática da ruptura com o ser-maligno, a partir de dois confrontos
sucessivos: (1°) marcado pelo triunfo de Urutu-Branco vitorioso; (2°) sob o estigma
de preocupações alheias ao triunfo guerreiro
401-460
Não me importa discutir, no âmbito desta pesquisa, a validade ou a sintonia com
cada uma das seqüências de GSV tal como compreendidas por Rosenfield. O que gostaria de
51
Baseado nas idéias de Rosenfield (1993: 207-217).
52
Esta paginação refere-se à edição de 1976, publicada pela José Olympio – e que parece coincidir com a
paginação da edição de 1978, publicada pela mesma editora e por mim utilizada como referência nesta tese.
60
ressaltar é a coincidente percepção de que, efetivamente, haveria uma “primeira parte” da
narrativa a ser considerada em menor escala – que não implica todo o relato até o episódio
na Guararavacã do Guaicuí. Ressalto também o caráter de “abertura” que a pesquisadora
atribui a essa seqüência.
Minha percepção é que, de fato, essa primeira parte da narrativa se estenderia até
a página 79, na edição de 1978 da editora José Olympio – imediatamente antes de Riobaldo
se colocar a narrar o primeiro encontro com o Menino no porto do de-Janeiro. Em minha
visão, a importância dessa seqüência é que ela possa dizer respeito a um grande processo
fundante, relacionado, entre outros, não apenas (1°) à constituição e preparação do leitor de
GSV, ou (2°) à constituição dos alicerces e dimensões básicas sob as quais a obra como um
todo se estrutura – mas (3°) à imposição de um ritmo, um convite formulado ao leitor para que
faça a adesão a um movimento e a uma sonoridade específicos e abdique dos sentidos usuais
atribuídos ao mundo e às palavras. Esse terceiro ponto é o que, a meu ver, possibilitaria a
concretização dos dois primeiros objetivos citados. Este, que seria um prelúdio de GSV, daria
o tom de toda a obra e da possibilidade – ou impossibilidade – de fruí-la
53
.
Mas há ainda mais coisas nessa seqüência a que me refiro como sendo a primeira
parte da narrativa. Creio que neste momento também são apresentados os alicerces de
53
Utéza (1994: 64) vê GSV como um bloco maciço, onde o leitor é mergulhado “sem preâmbulo” num magma
informe. A única exceção, em seu ponto de vista, corresponderia às quinze páginas iniciais, relacionadas a uma
pausa concedida pelo escritor, onde predominam as refencias espaciais, cujo intuito seria dar ao título um
conteúdo geográfico localizável.
61
Grande Sertão: Veredas, dentre os quais eu destacaria a afirmação das funções narrativa e
poética
54
, bem como a forma como as mesmas são compreendidas no âmbito da obra.
A função poética – intimamente relacionada à função narrativa no contexto de
GSV – se apresenta como uma espécie de veículo que permite o trânsito entre as dimensões
da realidade. Arte que surge como ritmo e movimento. Em diversos momentos – nesse
especialmente, preliminar da narrativa – Riobaldo faz referência às apresentações artísticas e
dá margem ao caráter interacional ou mesmo “veicular” dessas expressões.
Eu também citaria a forma como, a todo momento, ele exercita a arte narrativa –
não apenas em relação à sua própria história, mas como contador de uma infinidade de
histórias ocorridas com outros
55
. Temos as de Aleixo e seus filhos cegos (ROSA, 1978: 12); de
Pedro Pindó e seu filho Valtêi (ROSA, 1978: 13); do delegado Jazevedão (ROSA, 1978: 16-
17); do jagunço que se arrepende ao ver a Virgem, Joé Cazuzo (ROSA, 1978: 18); da moça do
Barreiro-Novo que jejuou e começou a fazer milagres (ROSA, 1978: 48); do padre castrado no
Riacho Ciz (ROSA, 1978: 59); de Rudugério de Freitas (ROSA, 1978: 60); dos pactários
Davidão e Faustino (ROSA, 1978: 66) – fora as muitas outras histórias que terão lugar no
decorrer da obra e também aquelas associadas às personagens principais.
Assim, ao entremear a sua própria história com a história dos outros, Riobaldo
nos faz afrouxar os limites estreitos que costumamos manter entre histórias individuais.
Assim como as histórias de muitos dão cor à sua própria, Riobaldo pode estar nos
conduzindo à reflexão de que a sua própria história – e qualquer história – pode misturar-se
com a do outro, conferindo novas cores e sentidos. Percebe-se que, entre as possibilidades de
54
Convém ressaltar que a “função poética”, tal como abordada neste momento, difere da perspectiva
apresentada por Jakobson (2005) – a ser abordada na presente pesquisa.
55
Poder-se-ia, aqui, discutir as relações entre os termos “estória” e “história”. Usualmente partimos do
princípio de que o primeiro desses termos se vincula de forma mais próxima às narrativas (muitas vezes tidas
como ficcionais) enquanto o segundo se relaciona a uma suposta objetividade dos fatos ou mesmo à
historiografia. Pessoalmente, creio que ambas as perspectivas se mesclem: todahistória é, no fundo, uma
“estória”, impregnada das marcas e da perspectiva de quem a conta.
62
ser padre sacerdote ou chefe jagunço, Riobaldo encontrou ainda um outro ofício: contador de
histórias, storyteller. Este é um primeiro movimento: aquele que conecta as pessoas,
aproxima o “eu” e o outro, traz à tona a esfera da intersubjetividade
56
.
Ao descobrir que o final da história de Davidão e Faustino tinha sido inventado,
Riobaldo já nos traz elementos para que comecemos a pensar a arte:
Apreciei demais essa continuação inventada. A quanta coisa limpa verdadeira uma
pessoa de alta instrução não concebe! Aí podem encher este mundo de outros
movimentos, sem os erros e volteios da vida em sua lerdeza de sarrafaçar. A vida
disfarça? [...] No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam.
Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito
perigoso... (ROSA, 1978: 67 – grifos meus)
Riobaldo traz à tona a reflexão acerca das relações entre ficção e realidade, algo
que este estudo há de retomar. O “inventado” é contraposto ao “real da vida”, que disfarça...
“Pelejar por exato dá erro contra a gente. Não se queira”. A pessoa de alta instrução – pessoa
instruída pelo alto? – torna-se, por outra via, capaz de conceber muita “coisa limpa
verdadeira”. Aí os “outros movimentos” podem ter lugar nesse mundo. Riobaldo coloca em
xeque o saber tácito que busca opor ficção e realidade, abordando essa relação como se
representasse a oposição entre falso e verdadeiro. “A vida disfarça?”; diz farsa?
Em outros momentos, Riobaldo também exercita outras artes poéticas. Jõe
Engrácio nos dá a dica: “– ‘Versar viagem a cavalo sem ter estradas – só dôido é quem faz
isso, ou jagunz...’ [...]” (ROSA, 1978: 36). “Versar” como fazer versos é a própria possibilidade
de viagem, contendo já em si a idéia de ida e volta. Coisa de “doido”, daquele que utiliza os
caminhos ainda não demarcados, outros caminhos que não os dos níveis ordinários de
56
No que concerne à intersubjetividade, convém citar a posição de Morais (1998: 29) que, no contexto de GSV,
aponta os mecanismos utilizados pelo sujeito para converter-se em linguagem: (a) a presença real ou virtual do
outro (que implica o diálogo); (b) o tempo presente do reconto (ligado ao relato oral); (c) a auto-
referencialidade (como volta normal da linguagem para si mesma). Morais (1998: 30), indo além dessa
perspectiva dialógica, refere-se, ainda, à polifonia de Riobaldo que em si agregaria a voz de narrador e a voz de
personagem e, por vezes, a do próprio autor.
63
realidade. E são muitos os versos que a sua voz traz à tona; o mais famoso talvez seja a
“Canção de Siruiz”
57
, cuja primeira apresentação na narrativa se dá já nesse prelúdio (ROSA,
1978: 53-54).
Em um momento de forte impacto nesse início de narrativa, quando do
falecimento de Medeiro Vaz , seu “dia de alta tarefa”, Riobaldo também relata a forma como
é arrebatado por versos:
Era seu dia de alta tarefa. Quando estiou a chuva, procuramos o que acender. Só se
trouxe uma vela de carnaúba, o toco, e um brandão de tocha. Eu tinha passado por um
susto. Agora, a meio a vertigem me dava, desnorteado na vontade de falar aqueles versos,
como quem cantasse um coreto:
Meu boi preto mocangueiro,
árvore para te apresilhar?
Palmeira que não debruça:
burití – sem entortar...
Deviam de tocar os sinos de todas as igrejas! (ROSA, 1978: 63)
A força que impele Riobaldo parece não ser algo ligado apenas à sua vontade
pessoal – ele se vê “desnorteado na vontade de falar aqueles versos” – não é ele quem está no
controle. E o que ele canta (ou aquilo por que ele é cantado...) é um coreto: o que remete a um
conjunto de vozes. Os versos se impõem a ele, e não o contrário. Surge aqui também uma
outra associação a qual gostaria de ressaltar: a forma como os versos são precedidos por uma
“vertigem”, um estado alterado de consciência. Outro detalhe: esses versos se impõem para
marcar a passagem de Medeiro Vaz, no seu deslocamento entre dimensões: do mundo dos
vivos para o mundo dos mortos, do material para o espiritual. Som e movimento estão
sempre presentes.
57
Os significados que pude construir em torno da presença marcante desta canção em GSV ainda serão
abordados nesta pesquisa.
64
Tendo em vista o papel das funções narrativa e poética como veículo de trânsito
entre dimensões e também a premissa da quebra de um saber tácito que associa o ficcional
ao falso – creio podermos agora refletir acerca do momento em que Riobaldo encerra essa
primeira parte da narrativa e, ao mesmo tempo, explicita o que constituiria um grande
sentido da obra.
Antes disso, porém, mas de forma a preparar-nos para esse momento, Riobaldo
aborda o sentido de uma narrativa não-linear:
[...] Eu estou contando assim, porque é o meu jeito de contar. Guerras e batalhas? Isso é
como jogo de baralho, verte, reverte. Os revoltosos depois passaram por aqui, soldados de
Prestes, vinham de Goiás, reclamavam posse de todos animais de sela. Sei que deram
fogo, na barra do Urucúia, emo Romão, aonde aportou um vapor do Governo, cheio de
tropas da Bahia. Muitos anos adiante, um roceiro vai lavrar um pau, encontra balas
cravadas. O que vale, são outras coisas. A lembrança da vida da gente se guarda em
trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem
não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa
importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez
daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado.
Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas
que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo
sabe. (ROSA, 1978: 77-78)
Nesse sucedido desgovernado, a cada vivimento se é uma pessoa diferente.
Contar alinhavado, só as coisas sem importância. A arte poética impõe uma ordem que
diferem daquela “objetiva”, dos acontecimentos empíricos, mas que pode se revelar muito
mais verdadeira. Há de se, portanto, aceitar outros parâmetros, que não sejam aqueles
pautados pela realidade cotidiana, para se entrar em contato com as coisas importantes.
Um pouco mais além, Riobaldo compartilha com seu interlocutor uma passagem
que eu considero reveladora e, que, de meu ponto de vista, marca a conclusão desse prelúdio:
Sendo isto. Ao dôido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel
como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como
conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe
falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda
65
não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que
muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção. (ROSA, 1978: 79 – grifos meus)
Nesse pequeno parágrafo, surge pela primeira vez (e talvez única) o nome da
obra – Grande sertão: veredas – a obra dentro da obra. A perspectiva que esse nome traz, da
forma como é apresentado, também é interessante: “Um grande sertão!” – o uno, o
indivisível, o absoluto, aquilo do que não se sabe – que se contrapõe às “veredas,
veredazinhas” – o pequeno, o múltiplo, associado a raríssimas pessoas, a uma possibilidade
de saber. Ao mesmo tempo em que se contrapõem, essas polaridades também podem ser
vistas como contrapartes de uma mesma realidade. Um macrocosmo e um microcosmo que
se permeiam mutuamente. Porosidade, diante da qual Riobaldo nos pede “fineza de
atenção”. Refinemos a nossa percepção.
Ao mesmo tempo, diante dessa unidade-multiplicidade que é a própria obra, é
delineado também o sentido de uma relação muito específica que pauta a tomada de contato
com essa realidade: a relação entre o narrador e o leitor. Note-se que, novamente Riobaldo se
refere ao doido – aquele que trilha os caminhos pouco “convencionais”. Riobaldo compara
seu interlocutor ao (fiel) papel: capaz de ouvir, pensar e repensar, redizer, e então ajudar –
escrevendo? Trata-se, pois, de uma relação e de uma construção conjunta. Ao comparar seu
interlocutor ao papel, Riobaldo também parece conceber a arte narrativa como uma espécie
de escritura
58
– ele nos diz então que, ao narrar, estará a escrever um livro (dentro do livro).
Todo esse processo de escritura, por sua vez, não pode ser separado do processo de leitura –
o que remete à dimensão da intersubjetividade, também já apontada por Riobaldo.
Com essa dupla perspectiva, Riobaldo parece explicitar: (1°) o objeto do qual se
ocupará – o grande sertão e as veredas, o uno/múltiplo; (2°) a forma pela qual apresentará
58
O que, mais uma vez, remete à interpretação de Arrigucci (1994), ao relacionar essa perspectiva à presença
do romance como gênero.
66
este objeto – a narrativa tomada como escritura, tornada viva pelo ritmo da linguagem.
Tenho a impressão de que, em seu arrebatamento metalingüístico, Riobaldo nos dá uma aula
de literatura.
Um último elemento que, acredito, deve ser considerado quando falamos desse
prelúdio, é o fato de que a leitura de GSV conduz o leitor a uma vivência ímpar, para isso
transportando-o para longe do universo com o qual opera normalmente. O suposto
“regionalismo” presente na obra remete esse leitor – pelo menos o leitor urbano e
cosmopolita – a um primeiro nível de realidade bastante distinto do seu: o sertão. Esse
choque com a alteridade que assim se configura, forma a base para o contato com outras
formas de alteridade: a relatividade das coisas, o acaso, a reflexão sobre o “demo” e as
dimensões mítico-místicas às quais a obra remete a todo o momento.
Como veículo para apresentação de tais temáticas, apresenta-se uma linguagem
viva e original, prenhe de significados múltiplos e sobrepostos, que conduz o leitor a uma
outra musicalidade e ritmo diante de um texto que se apresenta como um bloco, sem a
âncora da demarcação por capítulos. Em minha percepção, tudo isso pode fazer que o leitor
vá, aos poucos, abandonando as referências às quais ordinariamente se vê submetido e,
assim, possa imergir em um novo fluxo “rítmico-lingüístico-sonoro” que, por sua vez, o
conduz a outros níveis de realidade. Espécie de mantra? Acredito que o desafio que é
colocado para o leitor neste momento é o de alterar o funcionamento normal de sua
consciência, tanto em termos dos temas ou questões com os quais normalmente se ocupa,
quanto da forma pela qual esta funciona – sob o risco de, malograda essa imersão, tornar-se
impossível (ou bastante limitado) o fruir da obra.
67
3.2 NATUREZA E “SOBRENATUREZA” DO RITMO
Esse ritmo do qual nos ocupamos, se apresenta de forma muito especial em GSV
através da própria sonoridade que subjaz às palavras. Para além de seu significado, as
palavras que dão corpo à obra, vistas (ouvidas) como um conjunto, remetem a uma
dimensão rítmica que, sutilmente, se impõe e nos enlaça. A meu ver, dessa maneira, duas
dimensões se apresentam – muitas vezes sem que as percebamos. Temos, assim: (a) o ritmo
que se coloca através da linguagem ímpar que compõe o GSV e (b) as outras “paragens”,
extra-ordinárias, para onde podemos ser conduzidos através dessa sonoridade. Mescla que
não pode ser separada.
3.2.1 VEREDAS DE VERSOS: O FLUIR DA LINGUAGEM RÍTMICA
Pretendo, neste momento, sondar um pouco mais a perspectiva rítmica que se
expressa através da linguagem que compõe o caminho de Riobaldo. Minha hipótese
fundamental é de que essa linguagem que a princípio surge como uma narrativa, traga em si
uma espécie de versificação, ritmos frasais que se propagam e revelam um fluxo que nos
aproxima da poesia.
Com o intuito de fundamentar essa hipótese, recorro inicialmente à perspectiva
trazida à tona por Octavio Paz (1982: 61), quando este aponta o caráter complexo e
indivisível da linguagem, bem como a frase como sua célula constituinte. A seu ver, diferença
fundamental entre prosa e poesia também seria encontrada nessa unidade básica: enquanto
68
na prosa o que constitui a frase como tal é o seu sentido (ou direção significativa), no poema
o que a constitui é o ritmo. As palavras seriam unidas ou separadas a partir de certos
princípios rítmicos – e é justamente essa função predominante que distinguiria o poema de
outras formas literárias
59
.
Compreendido então como a divisão do tempo em proporções homogêneas, o
ritmo também revela uma “certa intenção”, algo que Paz entende como uma espécie de
direção que “provoca uma expectativa, suscita um anelo” (p. 68):
[…] Sentimos que o ritmo é um “ir em direção a” alguma coisa, ainda que não saibamos o
que seja essa coisa. Todo ritmo é sentido de algo. Assim, o ritmo não é exclusivamente
uma medida vazia de conteúdo, mas uma direção, um sentido. […] (PAZ, 1982: 68-69)
Mais adiante, explorando as relações entre metro e ritmo no contexto da frase
poética, Paz (1982: 85) relata não acreditar que uma perspectiva rítmica tenha que se
enquadrar em formas fixas, pelo contrário. Para ele, essa associação impossibilitaria o
reconhecimento do caráter poético de muitas obras pelo simples fato de não se pautarem por
critérios métricos. Isso cria um paradoxo, uma vez que em algumas dessas obras às quais é
negado o estatuto de poema, há também a negação da prosa “a si mesma”, já que a sucessão
de frases não obedece a uma ordem conceitual, antes se pautando pelas leis da imagem e do
ritmo
60
. Por outro lado, se a perspectiva rítmica surge como condição para o poema, Paz não
acredita poder haver prosa apenas com ritmo.
Valéry (1999b: 203), por sua vez, traça um paralelo entre o par de movimentos
andar/dançar e sua relação com os gêneros prosa/poesia. Enquanto o primeiro elemento de
59
A rigor, para Paz (1982: 82), o ritmo se dá espontaneamente em toda forma verbal, mas só se manifesta
plenamente no poema.
60
Também Jakobson (2005: 156) aponta o desafio imposto por certas “variedades prosaicas da arte verbal” que
se apresentam como uma transição entre uma linguagem estritamente poética e a linguagem estritamente
referencial.
69
cada um dos pares constitui-se a partir de uma mobilidade que apresenta direção e um fim
definidos, o segundo constitui-se a partir de um conjunto de movimentos cujo fim está em si
mesmo, configurando uma espécie de estado. Entretanto, por distintas que sejam as
características desses dois movimentos, Valéry nos lembra que se servem dos mesmos
elementos, coordenados e excitados de maneiras diferentes.
Como ficaria GSV no meio dessa discussão? Considerando uma perspectiva
rítmica, creio fazer sentido considerarmos a dimensão lírica presente na narrativa de
Riobaldo. Por outro lado, a consideração do ritmo – por mais relevante que seja sua
apresentação na obra – não apaga outras dimensões que também têm força em seu corpo. A
solução talvez seja considerar um hibridismo constitutivo da própria obra, transitando por
entre a mescla “prosa-poesia”; “andadura-dança”. Na prática isso implicaria, necessariamente,
mais de um modo de fruição – e a sobreposição desses distintos modos.
Assim, ao lado (melhor seria dizer: para além) da construção de sentidos que se
acopla à sua dimensão de prosa – o caminho que habitualmente buscamos seguir –, há
também a possibilidade da fruição de uma dimensão rítmica, que se aproxima da poesia ao
criar expectativas, adesões e predisposições anímicas, bem como ao enfatizar a própria
natureza do movimento.
Focalizemos então essa segunda perspectiva. Imediatamente, um desafio já se
apresenta: a fruição de uma “poesia” com cerca de 460 páginas
61
– o que nos leva a
questionar, dentre outras coisas, acerca da possibilidade de garantir a unidade dessa
experiência.
61
Refiro-me à edição de 1978.
70
Emil Staiger (1975: 30-31), referindo-se à poesia, aponta justamente o ritmo
como o elemento capaz de preservar essa unidade. Tomado fundamentalmente como
repetição
62
, o ritmo é o que protege os versos da “desintegração” – quer seja transformado
em compasso (quando reproduz unidades de tempo idênticas), quer se apresente a partir de
métricas irregulares
63
.
A perspectiva de se deixar levar mais pelo ritmo frasal que pela construção de um
sentido implica, portanto, uma predisposição diferenciada diante das possibilidades de se
adentrar o sertão. Talvez o importante não seja apenas o significado de cada palavra ou
frase, mas para onde, ritmicamente, essas instâncias nos conduzem.
Retomo então as contribuições de Jakobson (2005) quando, ao discutir as
funções
64
que se mesclam na linguagem, aponta a natureza da função poética. Caracterizada
por sua ênfase sobre a própria mensagem, essa função seria dominante na poesia – apesar de
esta não excluir outras funções. Mas, se na poesia também há lugar para outras funções, o
oposto também é verdadeiro: a função poética não tem lugar apenas na poesia.
Ultrapassando os limites dos gêneros textuais, vemos então que os versos
sempre implicam o uso, em alguma medida, da função poética. Referindo-se a dois processos
básicos envolvidos nessa imbricação, Jakobson aponta a seleção e a combinação. Unidos
através de um princípio de equivalência, o eixo formado pelo primeiro seria projetado sobre
aquele formado pelo segundo. Considerando as sílabas como unidades de medida, na prática
62
Jakobson (2005) também faz alusão à repetição quando aponta a medida de seqüências como recurso
utilizado pela função poética. Refere-se, nessa ocasião, à conceituação de verso proposta por Gerard Manley
Hopkins: “discurso que repete, total ou parcialmente, a mesma figura sonora” (p. 131).
63
A seu ver, quanto mais lírica a poesia, mais se distancia de uma “repetição neutra de compassos” em direção a
um ritmo que varia de acordo com uma disposição anímica.
64
Jakobson (2005: 122-130) aponta seis funções: (a) Emotiva – ligada à 1ª pessoa, enfatizando o remetente; (b)
Conativa – ligada à 2ª pessoa, a enfatizar o destinatário; (c) Referencial – ligada à 3ª pessoa, ligada a um
contexto ou àquilo do que se fala; (d) Fática – voltada para o prolongamento ou interrupção da comunicação; (e)
Metalingüística – numa referência ao código, voltada para o esclarecimento acerca da própria linguagem; (f)
Poética – a enfatizar a mensagem por ela mesma. Cabe salientar, entretanto, que as três primeiras funções
citadas já faziam parte de um modelo tradicional da linguagem, anteriormente proposto por Bühler.
71
teríamos a constituição de uma seqüência em que as palavras seriam igualadas por seus
acentos ou pela ausência dos mesmos.
Coloquemos os pés no sertão:
[…] Do vento. Do vento que vinha, rodopiando. Redemoinho: o senhor sabe – a briga dos
ventos. O quando um esbarra com outro, e se enrolam, o dôido espetáculo. A poeira subia,
a dar que dava escuro, no alto, o ponto às voltas, folharada, e ramarêdo quebrado, no
estalar de pios assovios, se torcendo turvo, esgarabulhando. Senti meu cavalo como meu
corpo. Aquilo passou, embora, o ró-ró. A gente dava graças a Deus. […] (ROSA, 1978:
187)
65
Acredito que, ritmicamente, o trecho acima apresente o redemoinho de forma
mais eficaz do que o sentido das palavras é capaz de traduzir. Deixemos (por ora) os sentidos
de lado; concentremos-nos no ritmo que a eles subjaz (QUADRO 3):
65
Creio ser interessante explicitar o critério por mim utilizado para selecionar este trecho no contexto da obra:
optei por abrir o livro ao acaso e ler o parágrafo que para mim se apresentasse naquele momento.
72
QUADRO 3
O fluxo rítmico da linguagem em GSV
Do vento.|
Do vento que vinha,
| rodopiando.|
Redemoinho:
| o senhor sabe –| a briga dos ventos|
O quando um esbarra com outro,| e se enrolam,| o dôido espetáculo.|
A poeira subia,| a dar que dava escuro,| no alto,| o ponto às voltas,| folharada,| e ramarêdo quebrado,| no estalar de pios assovios,| se torcendo turvo,| esgarabulhando.|
Senti meu cavalo como meu corpo.
|
Aquilo passou,
| embora,| o ró-| ró.|
A gente dava graças a Deus.
|
1 2 3 4 5 6 7 8
Ao mesmo tempo em que pode ser identificada uma onda rítmica, convém
ressaltar o efeito sobreposto de movimento e sentido. Discorre-se sobre o redemoinho; o
movimento é o do próprio redemoinho. Partindo de um ponto de repouso, um movimento
73
se apresenta e acelera; no seu ponto máximo descreve uma revolução e, numa desaceleração
contínua, ruma novamente para um novo ponto de repouso – que também constitui ponto
de partida para novos movimentos. Temos, assim, um fluxo rítmico espiralado: o
redemoinho se apresenta em som, movimento e sentido (QUADRO 4).
QUADRO 4
O redemoinho de versos
(1) “Do vento.”
Começa-se com
uma pausa, ponto
de partida.
"
(2) “Do vento que vinha, rodopiando.”
Uma breve aceleração se segue.
"
(3) “Redemoinho: o senhor sabe
– a briga dos ventos.”
Dos ritmos que se cruzam e se
potencializam mutuamente, surge uma
aceleração ainda maior.
"
(4) “O quando um esbarra com outro, e se
enrolam, o dôido espetáculo.”
A aceleração é crescente.
"
(5) “A poeira subia, a dar que dava escuro, no alto, o
ponto às voltas, folharada, e ramarêdo quebrado, no
estalar de pios assovios, se torcendo turvo,
esgarabulhando.”
O próprio fluxo rítmico do redemoinho é então
deflagrado. Não apenas a frase vai se prolongando,
suspendendo o próprio final, como também a última
palavra não parece querer terminar.
(8) “A gente dava graças a Deus.”
Depois da pausa, um novo ciclo rítmico parece
se anunciar. O momento “8” remete ao
momento “2”, indicando o início de uma nova
aceleração. Percebe-se então que o movimento
suscitado pelo ritmo frasal é espiralado como o
próprio redemoinho.
(6) “Senti meu cavalo como
meu corpo.”
Após sua aparição, temos
novamente uma diminuição da
velocidade.
(7) “Aquilo passou, embora, o ró-ró.”
O próprio ritmo frasal vai, paulatinamente,
mostrando a necessidade de pausa. Há uma
desaceleração contínua. No “ró-ró”, tudo já
parou. O momento “7” remete ao momento “1”:
ponto de chegada e ponto de partida.
74
Mas podemos ir adiante. Mesmo compreendendo o verso como uma “figura de
som” recorrente, Jakobson não considera que ele seja apenas isso. Assim, para além das
convenções poéticas relacionadas ao plano sonoro (metro, aliteração, rima), vale também a
projeção do princípio de equivalência na seqüência – ao que identifica (p. 144) o modo como
Valéry
66
compreendia a poesia, tida como “hesitação entre o som e o sentido”. O que então
se se coloca em pauta é a questão da ambigüidade, apontada como corolário de toda
mensagem voltada para si mesma – como é o caso da poesia. Percebe-se, dessa forma, como a
predominância da função poética sobre a função referencial não oblitera a referência, mas a
torna ambígua. Na prática, seqüências em que a similaridade se sobrepõe à contigüidade
indicam que palavras de som semelhante se aproximam quanto ao seu significado.
Vejamos o que ocorre em GSV:
[…] Redigo ao senhor: quando o raio, quando arraso, o Gerais responde com esses urros.
[…] (ROSA, 1978: 275 – grifos meus)
67
No pequeno trecho destacado, chamo a atenção, inicialmente, para a aliteração
formada pelo som da letra “R”, a formar um eixo melódico e rítmico. Entretanto, além dessa
relação de contigüidade proporcionada pelo som, podemos também perceber como se
estabelece um efeito de sentido – para além de uma função estritamente referencial da frase
– mas que se sustenta justamente pelo som. Vemos, assim, como as palavras se ligam e seus
sentidos se misturam: Redigo raio arraso responde urros. A meu ver, estabelece-se
uma relação entre esses significantes de modo a enfatizar a força de um “diálogo” (redigo +
responde) que se estabelece, em que o redizer e o responder encontram-se atravessados por
raio, arraso, urros. E mais: a própria a ênfase sonora na letra “R” parece reforçar a relação de
66
VALÉRY, P. The art of poetry. New York: Bollingen, 1958.
67
Este trecho também foi escolhido a partir do mesmo critério apontado na análise anterior.
75
sentido que assim se constitui – reproduzindo, literalmente, um som que se aproxima da
natureza do raio, do arraso e do urro. Isso adquire mais importância quando retomamos a
frase e vemos que, quem responde são os Gerais, o próprio sertão.
O ritmo e a sonoridade que compõem as palavras podem remeter-nos para longe.
Assim, ao lado da fluidez e multiplicidade das veredazinhas de versos – e talvez justamente
por sua causa –, há também a unidade absoluta do grande sertão
68
. Versamos viagem.
3.2.2 NAS BORDAS DO SOM
O som, natural e ao mesmo tempo construção artística, merece ter alguns de
seus contornos desvelados antes que prossigamos. Para tanto, tomo como referência as
idéias de José Miguel Wisnik que, em O som e o sentido (2002), fala sobre o uso humano do
som e da sua história
69
.
68
Poderíamos, então, relacionar a fluidez das veredas à poesia ao passo que a unidade do sertão poderia ser
relacionada ao romance.
69
Essa história da música se estrutura a partir de um eixo tríplice: (a) modal – relacionada às tradições pré-
modernas (músicas dos povos africanos, indianos, chineses, japoneses, árabes, indonésios, indígenas das
Américas, entre outros), bem como à tradição grega antiga e ao canto gregoriano (que seriam estágios modais
da música ocidental); (b) tonal – que abrange todo um momento histórico que vai da polifonia medieval ao
atonalismo – indo do barroco ao romantismo tardio, passando pelo clássico; (c) serial – ligada a formas radicais
da música de vanguarda do séc. XX, que chega à música eletrônica e às tendências recentes da música
minimalista repetitiva. Para o autor, a história da música ocidental envolve um grande ciclo de uma música
voltada para o parâmetro das alturas melódicas em detrimento do pulso (dominante nas músicas modais). Esse
ciclo se teria consumado na metade do séc. XX e, a partir de então estaríamos vivendo “o intermezzo de um
grande deslocamento de parâmetros – onde o pulso é novamente valorizado” (WISNIK, 2002: 11). A proposta
de Wisnik é interpretar esse movimento não como uma “anomalia” que perturba a tradição musical erudita,
mas como o elo de um processo que nela está contido desde suas origens. Assim, há uma sincronia em que
erudito e popular se encontram; a música ocidental encontra as músicas modais. O próprio pensamento tem
que ser investido de uma propriedade musical, já que a polifonia se relaciona à possibilidade de aproximar
linguagens que – pelo menos aparentemente – são tidas como distantes e incompatíveis. Quanto a mim, não
posso deixar de notar como a publicação de GSV, em 1956, coincide justamente com esse momento da hisria
musical.
76
Em uma parte de seu trabalho intitulada “Física e metafísica do som”, o autor
explora diversas características físicas do som e, a partir das mesmas, nos conduz a
importantes constatações. Antes de mais nada, devemos compreender o seu aspecto “físico”.
O som vem a ser uma onda produzida quando os corpos vibram. Essa vibração se transmite
para a atmosfera através de uma propagação ondulatória que é captada por nossos ouvidos –
sendo então interpretada pelo cérebro que, por sua vez, lhe acrescenta sentidos e
configurações. Considerar o caráter ondulatório do som implica dizer que ele seja uma
ocorrência que se repita dentro de uma freqüência composta de impulsões e repousos (FIG.
3). Em outras palavras: quando nos referimos ao som, permanecemos ainda diante de uma
perspectiva rítmica.
FIGURA 3 – GSV e a periodicidade da onda sonora
Chamo a atenção para o fato de que tal imagem remeta não apenas ao símbolo da
lemniscata, mas àquela imagem construída por Sperber (1982)
70
e que busca representar a
dinâmica de GSV, constituída por curvas sinuosas, misturadas e não-lineares. Essa mesma
dinâmica representaria, para a autora, as dimensões do caos e do cosmos. É então
interessante notar, a partir das explicações de Wisnik, que essas mesmas idéias estão
presentes na constituição da onda sonora.
Como se pode perceber na figura, os impulsos (representados pela ascensão da
onda) são seguidos por quedas cíclicas e, novamente, há sua reiteração. Pode-se, dessa
70
Vide FIG. 1, localizada no capítulo anterior.
77
forma, compreender a onda sonora como um microcosmo que contém sempre “a partida e a
contrapartida do movimento” (WISNIK, 2002: 17). O pesquisador compara o som ao Tao
71
,
considerando a complementaridade de seu movimento
72
. Explicando de outra forma, diz que
a onda é formada por um sinal que se apresenta e de uma ausência que pontua desde dentro,
ou desde sempre, a apresentação do sinal. O som – que é presença e ausência ao mesmo
tempo – não poderia existir se não fosse permeado de silêncio.
Outro aspecto a ser considerado é o princípio da pulsação, seguido pela onda
sonora. Obedecendo a um pulso, repetindo certos padrões no tempo, os sons são
interpretados segundo os pulsos corporais, somáticos e psíquicos. As músicas se fazem
justamente nesse ligamento em que diferentes freqüências se combinam e se interpretam
porque se interpenetram mutuamente. Ritmos que se cruzam.
Vemos, ainda, que as ondas sonoras se apresentam a partir de duas grandes
dimensões: durações e alturas. Quando um pulso rítmico é acelerado (a partir de 10 hertz
73
),
ele muda de caráter e passa a um estado de “granulação veloz” (WISNIK, 2002: 20) que, por
sua vez, salta para outro patamar – o da altura melódica. Assim, a partir de certo limiar de
freqüência (por volta de 15 hertz)
74
, o ritmo vira melodia.
Convém notar que nosso ouvido só percebe sinais discretos, separados –
portanto, rítmicos – até o ponto de aproximadamente 10 hertz. Entre 10 e 15 hertz, o som
entra numa faixa difusa entre duração e altura, só definida mais tarde, nos registros
oscilatórios mais acelerados. Segundo Wisnik, a diferença quantitativa produz então um
“ponto de inflexão”, uma espécie de salto qualitativo, em que o parâmetro da escuta muda.
71
Convém lembrar que o Tao é um dos sistemas com os quais Utéza (1994) estabelece diálogos ao analisar GSV.
72
Um detalhe que considero relevante: não é a matéria do ar que caminha levando o som consigo; o que há é a
densificação de um padrão de movimento que passa a ser ouvido através das camadas de ar.
73
Unidade de medida utilizada pela física em que 1 ciclo por segundo corresponde a 1 hertz.
74
Estabilizando-se só em 100 hertz e disparando em direção ao agudo até a faixa audível de 15.000 hertz.
78
Começam-se, assim, a ouvir as fluidas distinções que passam dos graves aos
agudos. No enlace corporal que aí se dá, o som grave tende a ser associado ao peso da
matéria (que emite vibrações mais lentas) em oposição à ligeireza e leveza do agudo. A partir
de certa altura, os sons agudos vão saindo progressivamente da faixa de percepção humana –
da nossa percepção ordinária, acrescentaria eu –, desaparecendo para nós.
Outro detalhe fascinante é que, na música, ritmo e melodia – durações e alturas –
se apresentam ao mesmo tempo, em co-dependência, um funcionando como portador do
outro. São inseparáveis. E isso não é tudo: o ponto de inflexão que os separa – entre 10 e 15
hertz, limiar oscilante entre as figuras rítmicas e a altura melódica – coincide com a
freqüência vibratória do ritmo alfa
75
, situado entre 8 e 13 hertz. Referindo-se às idéias de
Alain Daniélou, Wisnik traz a concepção de que tal ritmo determinaria o valor do tempo
relativo e, por conseguinte, todas as interações dos seres vivos com seu ambiente –
determinando, em grande parte, aquilo que, para nós, se torna perceptível ou imperceptível.
Vemos ainda que, em diversas culturas, o som é associado às propriedades do
espírito, possuindo um poder mediador ao constituir-se como o elo comunicante entre o
mundo material e o mundo espiritual.
São fenômenos de outra ordem, dos quais a música se aproxima, ao oferecer o modelo de
um universo concebido como pura energia, cuja densidade é dada pela interpretação do
movimento. A estrutura subatômica da matéria também pode fazer com que esta seja
concebida como uma enorme e poderosa densificação do movimento. A música traduz
para a nossa escala sensorial, através das vibrações perceptíveis e organizadas das
camadas de ar, e contando com a ilusão do ouvido, mensagens sutis sobre a intimidade
anímica da matéria. E dizendo intimidade anímica da matéria, dizemos também a
espiritualidade da matéria. A música encarna uma espécie de infra-estrutura rítmica dos
fenômenos (de toda ordem). […] (WISNIK, 2002: 29)
75
Wisnik (2002: 22) a compreende como a freqüência cerebral que é considerada uma espécie de “fundo
condutor”, recoberto por outros ritmos quando nossa atenção é solicitada. Relaciona-se ao estado de vigília
com olhos fechados ou ao nosso estado quando olhamos para algo sem fixar o olhar.
79
Partindo da materialidade do som e através dos interstícios que se constituem
entre fora e dentro, visível e invisível, material e espiritual, nos encontramos com a música
do sertão.
3.2.3 O SERTÃO MÂNTRICO
Partindo do pressuposto de que em GSV haja um mecanismo fundamental – o
ritmo sonoro veiculado pela linguagem – ouso acreditar que, além de possibilitar a expressão
da função poética, esse suporte também pode promover o acesso a dimensões extra-
ordinárias do real.
Somos remetidos ao que Benedito Nunes (1998) se refere como sendo o efeito
evocativo e encantatório da poesia:
Próprio da poesia é servir-se da expressão verbal para desgastá-la. Ser poeta significa
aprofundar esse desgaste até romper com as lindes da expressão verbal que o silêncio já
circunda; ultrapassando esses limites, só a música, quebrando o silêncio que o verbo não
preenche, é capaz de fazer ouvir. Quanto mais poética, mais musical se torna a obra
literária [...]. (NUNES, 1998: 79)
Mais adiante, referindo-se à Art poétique de Verlaine, Nunes fala da compreensão
da música não apenas através de seu caráter melódico e do timbre do verso, mas pelo efeito
total produzido pela mobilização das palavras. Este seria um efeito “encantatório” –
relacionado não apenas à música, mas também à poesia.
Apropriando-nos dessas idéias – além das contribuições de Wisnik (2002), acerca
da natureza do som – e voltando a GSV, podemos ver também que, desde bem cedo,
80
Riobaldo já nos oferece pistas que nos levam a considerar, também sob uma perspectiva
hermenêutica, sentidos pouco usuais associados à idéia de ritmo na obra:
[...] Melhor, para a idéia se bem abrir, é viajando em trem-de-ferro. Pudesse,
vivia para cima e para baixo, dentro dele. Informação que pergunto: mesmo no Céu,
fim de fim, como é que a alma vence se esquecer de tantos sofrimentos e maldades, no
recebido e no dado? [...] (ROSA, 1978: 19 – grifos meus)
Considero muito rica a imagem desse “trem-de-ferro” ao qual Riobaldo faz
menção. Em Minas Gerais, há uma tendência natural para se compreender “trem” como
sinônimo de qualquer coisa; uma palavra “coringa” – a própria palavra está associada a um
sentido extremamente móvel e fugidio
76
. Gostaria de ressaltar, nas palavras de Riobaldo,
algumas de suas características fundamentais: (a) além de ser meio de transporte, (b) refere-
se à materialidade (de ferro!) e (c) também ao ritmo, (d) capaz de “abrir idéia”, conduzindo
“para cima e para baixo”. Veículo, ligado à realidade ordinária (capaz de conduzir ao extra-
ordinário?) e que funciona por meio do ritmo. Poderíamos, assim, compreender o
movimento do “trem” como o próprio som que emana da palavra escrita
77
, ou mesmo como
o fluxo ligado a uma oralidade – o que nos remete às considerações que já tive oportunidade
de tecer.
Outra imagem me ocorre: representaria esse “trem-de-ferro” uma referência
metalingüística à máquina de escrever? Essa impressão se reforça quando, além de nela
poder incluir as características que enumerei há pouco, também a ela se somar a perspectiva
sonora. O ritmo se impõe ainda com mais força, quando pensamos no trabalho de escrita
efetuado naquele instrumento. Considerando tal hipótese metalingüística, poderíamos
76
Em “Aletria e hermenêutica”, um dos prefácios de Tutaméia, Rosa (2001c: 35) também se refere a esse
aspecto fugidio que a palavra “trem” adquire no contexto mineiro.
77
Curiosamente, Paul Valéry (1999b: 209) compara o poema a “uma espécie de máquina de produzir o estado
poético através das palavras” – ocasião em que traça um paralelo entre o trabalho efetuado pelo poeta e aquele
efetuado por um engenheiro diante da construção de uma locomotiva.
81
compreender o “grande sertão”
78
como o papel – base sólida, suporte estático – por onde
circulam as “veredas” de tinta – fluidas, móveis e múltiplas; possibilidades extáticas. O
Grande Sertão: Veredas – unidade composta por esses dois elementos básicos – tornado uno
pelo movimento criativo e rítmico da escrita
79
?
Creio podermos traçar uma espécie de paralelismo entre o “trem-de-ferro”, a
máquina de escrever e a própria linguagem melódica que compõe GSV. Todas as instâncias às
quais me referi há pouco me remetem à imagem do mantra
80
– o som melódico e
repetitivo
81
, entoado com fins rituais e que conduz a estados alterados de consciência,
elevação a estados místicos e à comunicação com níveis extra-ordinários do real – espécie de
reza. As orações convertem-se em oração.
Partindo das contribuições de Arya (1992), vemos que, antes de mais nada, o
mantra – transmitido pelas culturas orais e iniciáticas – vem a ser um método de meditação,
sendo esta, por sua vez, relacionada à aquisição de conhecimento acerca da verdadeira
natureza do self.
78
A interpretação de Arrigucci (1994: 23) vai em uma direção um pouco diferente. Para ele o grande sertão
estaria relacionado ao vasto mar da guerra jagunça, à narrativa épica; enquanto as múltiplas veredas relacionar-
se-iam aos muitos fios do discurso e caminhos possíveis da narrativa. O fluxo do rio é então, associado ao fluxo
da fala.
79
Avançando um pouco nesse “ensaio” metalingüístico, poderíamos fazer uma relação entre o processo de
escritura de GSV, composto por dois rascunhos (LARA, 1998) e as duas tentativas de travessia do Liso do
Sussuarão? Tomando o Liso como análogo ao papel, teríamos as duas tentativas de atravessá-lo como o próprio
movimento da escritura, dando origem, assim, aos dois rascunhos.
80
Utéza (1994: 394) refere-se ao mantra associando-o ao poder mágico contido no nome de Diadorim. Em
nota, o autor explica que o mantra teria sua origem na sílaba sagrada “OM”.
81
Benedito Nunes (1983a: 18) aborda a temporalidade em GSV, de modo que o sertão tematizaria o mundo, e o
tempo a travessia. Essa figuração da temporalidade, por sua vez, relacionar-se-ia ao próprio tempo da narrativa:
à ordem dos fatos narrados e sua duração (1983a: 20). Partindo dessas idéias, Morais (1998) refere-se à
passagem cíclica do tempo como uma espécie de repetição – que deixaria suas marcas na fala de Riobaldo. Todo
esse raciocínio me evoca também a noção de ritmo, tal como vem sendo abordada neste capítulo. Temos,
portanto, duração e repetição na fala de Riobaldo – marcação de um ritmo, a conduzir a tempos díspares e,
ainda, a um trabalho de memória. Alteração da consciência ordinária?
82
Visando a transmitir a compreensão indiana acerca de tais conceitos, partindo do
pressuposto de que a língua inglesa seria derivada direta ou indiretamente do sânscrito, o
autor toma aquela que seria a origem das palavras inglesas man (homem) e mind (mente). O
que é por ele desenvolvido de forma extensa, pode-se resumir no fato de que tanto as
palavras inglesas man, mind e mental, bem como a palavra latina mens e a grega menos,
derivam todas da raiz do verbo sânscrito man – que significa pensar, contemplar, meditar.
Segundo Arya (1992: 14), a transposição dessa palavra para outros idiomas não pôde
considerar e compreender a natureza multidimensional do sânscrito. Se man significa algum
tipo de atividade mental, esta não pode ser compreendida sem que se apreenda a natureza e
as funções da mente – considerada pelos yogis como uma entidade multidimensional, um
campo de força composto por camadas sobre camadas de energia, onde, em cada nível, sua
função difere e suas faculdades são diversas. É oportuno notar, portanto, o fato de que a
palavra mantra também deriva dessa mesma raiz do verbo man.
O mantra vem a ser, dessa maneira, um objeto do pensamento, contemplação e
meditação – progressivamente. Se em seus primeiros estágios surge apenas como algo que é
repetido, no ápice de sua experiência, o mantra permeia toda a mente. Substituindo
pensamentos aleatórios por processos intelectuais e estes últimos por um estado
contemplativo, o mantra viria a purificar impulsos e emoções “inconscientes”, conduzindo o
iniciado da transitoriedade finita ao infinito transcendental. O processo de meditação
estaria embasado, portanto, na tríade homem ' mente ' mantra. Segundo Arya (1992: 21),
diz-se que quando um homem cultiva seu mantra, o próprio mantra o cultiva. O homem é
considerado a personificação do princípio do mantra, no sentido de que uma criatividade
universal manifesta a si mesma através da mente humana.
Apesar da associação que comumente é feita entre o mantra e a linguagem, há
uma diferenciação importante a ser feita. Se, em termos de linguagem, é considerada a
83
atribuição de um significado às palavras e às unidades sonoras que as compõem, no mantra o
fundamental é considerar a vibração que corresponde a cada sílaba ou fonema e a ligação
dessa vibração com a energia de uma mente supraconsciente. A importância das palavras
nessa tradição liga-se, portanto, muito mais à sua sonoridade (e vibração energética) do que
aos sentidos a elas associados. Trata-se do som, não do significado.
É algo como se cada sílaba despertasse como a forma de um pensamento,
constituindo, na mente, a fusão de dois diferentes tipos de energia, criando vibrações sutis.
Na história da tradição Yoga, bem como no sânscrito, reconhece-se que cada sílaba do
alfabeto está sintonizada a forças, faculdades e atributos específicos da mente – ao que
corresponderia dizer que diferentes sílabas têm diferentes efeitos na energia mental. Um
quanta silábico poderia, assim, ser também considerado um quanta psíquico: a mente
humana pensaria em termos de unidades de som. Arya busca ressaltar que tais colocações
não têm efeito apenas na linguagem, na psicologia ou na comunicação, mas que,
fundamentalmente, isso implica o fato de que tal dinâmica tem um impacto profundo e
abrangente no próprio desenvolvimento da mente. O autor busca complementar sua
argumentação dando exemplos de como sons que não possuem uma significação traduzível,
ainda assim, conduzem uma impressão à mente (o que não está limitado a onomatopéias) –
apenas um exemplo grosseiro de como todos os sons produzem um efeito mental.
Assim, aquilo que, repetidamente, é introduzido na mente torna-se um hábito
para essa mente, de modo que um certo tipo de pensamento emerge – ressaltando que as
unidades silábicas (e as unidades de pensamento e energia que a acompanham) não são
meros processos da mente consciente, aquela que a linguagem ordinária pode traduzir. No
caso do cultivo do mantra, que opera em um nível subliminar, esperam-se dois tipos de
efeitos positivos: (a) a limpeza de tendências indesejáveis da mente, curando suas doenças e
fraquezas e (b) o cultivo de suas tendências desejáveis, fortalecendo os mais positivos
84
potenciais latentes da mente. O mantra trabalha de muitos modos diferentes em distintos
níveis da consciência – simultaneamente. Gradualmente, e não de modo dramático, uma
mudança tem lugar.
Uma última observação, ao mesmo tempo curiosa e importante no que se refere
especificamente à presente pesquisa: diz-se que todo som manifesto deriva de um som
cósmico indiferenciado, um princípio unitário do qual todos os sons derivam. Este princípio
ou som cósmico indiferenciado é chamado nada. É ao menos curioso que GSV tenha sua
abertura a partir de “Nonada” – no nada? Este princípio traz em si, ao mesmo tempo, a
singularidade do não-manifesto e a unidade da diversidade infinita. O nada se transforma
em mantra na medida em que se produz na forma de som manifesto.
Acredito que todo o trabalho textual de GSV tenha efeito no leitor tal como o
mantra sobre o qual discorri anteriormente – o que parece estar sintonizado com as
vivências relatadas pelos seus leitores. Não é, portanto, fácil embarcar nesse “trem”: há de se
deixar levar pelo ritmo construído pelas palavras.
Vale lembrar a concepção que o próprio Rosa nutria acerca da linguagem:
Sou precisamente um escritor que cultiva a idéia antiga, porém sempre moderna, de que o
som e o sentido de uma palavra pertencem um ao outro. Vão juntos. A música da língua
deve expressar o que a lógica da língua obriga a crer. (ROSA apud LORENZ, 1983: 88)
Considerando a idéia de mantra, sou também remetido a elementos das culturas
xamânicas, que utilizam os ritmos repetidos produzidos por instrumentos de percussão para
induzir estados de transe. Na perspectiva dessas culturas, o transe seria condição, por sua
85
vez, para o estabelecimento de contato com outras esferas da realidade. As chamadas
“jornadas xamânicas” teriam como seu veículo o som, motivo pelo qual o tambor
82
também é
considerado um cavalo nessas culturas – sendo ele quem nos transporta.
Ryan (2002: 128-139) refere-se ao fato de que, em muitas culturas xamânicas,
tanto o som quanto a dança são considerados formas de acesso à vida cósmica e ao seu
poder: “Os sons controlam o mundo e tudo que nele há.” (RYAN, 2002: 132 – tradução
minha)
83
. O som é considerado o idioma básico na Native American culture; sendo enfatizado
pela percussão, seu ritmo, tempo de execução e beleza duplicariam a força potente que
aquela cultura acredita animar o universo. Nesse contexto, o tambor se transforma em
símbolo e veículo relacionado às viagens extáticas, assim como o chocalho
84
. No caso deste
último, sua freqüente ornamentação com penas sugere ainda a imagem do “vôo da alma”,
funcionando então como veículo de um trânsito que é induzido pelo som.
Voltando ao “trem-de-ferro” e sua contraparte rítmica, penso também que a sua
imagem pode ainda remeter a outro fator de relevância no que tange à obra. A coisa bruta, o
“trem-de-ferro”, que atua como suporte para o acesso a outras paragens mais sutis, poderia
também ser associado ao próprio papel que o enredo da narrativa adquire na obra – o que
gera um determinado ritmo. Isso remete às colocações de Proença (1958) e Garbuglio (1972;
1983) que sustentam a presença de dois níveis narrativos em GSV: um mais objetivo que,
por sua vez, serviria para suporte para um segundo nível, mais subjetivo.
82
Wisnik (2002: 35) lembra que, num sermão, Agostinho comparara Cristo a um tambor: “pele esticada na
cruz, corpo sacrificado como instrumento para que a música (ou ruído) do mundo se torne a cantilena da Graça,
holocausto necessário para que soem as aleluias”. Referindo-se aos comentários de Marius Schneider acerca
dessa comparação, o autor chama ainda atenção para o fato de que a palavra “aleluia” deriva de jubilare,
associada, na sua origem, à imitação onomatopéica das aves de rapina em seu canto.
83
“Songs controlled the world and all in it.” (RYAN, 2002: 132)
84
Ainda segundo Ryan (2002: 133) o tambor e o chocalho são também frequentemente associados à imagem do
centro, a atuar como axis mundi – eixo central que uniria a consciência individual, o inconsciente e o cosmos.
Tal idéia remete às construções de Sperber (1982), discutidas no capítulo anterior.
86
Creio que os trilhos do trem corresponderiam a esse nível objetivo, ligado à
própria trama da narrativa, não-linear – esse é o chão. Mas, ao invés de conduzi-lo apenas
horizontalmente, esse trem conduz Riobaldo para cima e para baixo, verticalizando seu
movimento. Esse movimento, incessante, implica não apenas distintas direções, mas a
imposição de um ritmo – conduzindo-o a destinos que se identificaria com o segundo nível
proposto pelos autores, a que poderia corresponder, no meu entender, o contato com níveis
extra-ordinários de realidade.
3.3 A INTERPRETAÇÃO DO MOVIMENTO
Partindo dos aspectos sonoros envolvidos numa abordagem rítmica de GSV,
poderíamos também nos colocar a pensar acerca dos tipos de movimentos que circulam pela
obra e que, a rigor, também estão intimamente ligados ao ritmo. As ambigüidades, aparentes
dicotomias e pares tensionais que transitam pela obra merecem ser analisados. Com esse
intuito, recorro novamente à estrutura da onda sonora – para que dessa vez busquemos
compreendê-la como uma força em movimento.
Para Wisnik (2002), quando se diz que o sinal sonoro corresponde a uma onda,
se faz uma redução simplificadora. Na realidade, cada som concreto se relaciona não a uma
onda pura, mas a um feixe de ondas que se sobrepõem em suas freqüências de
comprimentos bastante desiguais. Os sinais sonoros, dessa forma, estão longe de ser simples
e unidimensionais, mostrando seu caráter de sobreposição e complexidade. E são justamente
os componentes desse aglomerado complexo o que confere aos sinais sonoros o seu timbre –
a “cor do som”. Além do timbre, os sons variam em intensidade, caracterizada pela maior ou
87
menor amplitude da onda sonora – ao que corresponde um certo grau de energia da fonte
sonora.
Através das alturas e durações, timbres e intensidades, repetidos e/ou variados, o som se
diferencia ilimitadamente. Essas diferenças se dão na conjugação dos parâmetros e no
interior de cada um (as durações produzem as figuras rítmicas; as alturas, os
movimentos melódico-harmônicos; os timbres, a multiplicação colorística das vozes; as
intensidades, as quinas e curvas da força na sua emissão).
Os pulsos rítmicos são complexos e se traduzem em tempos e contratempos; os pulsos
melódico-harmônicos são complexos e projetam estabilidades e instabilidades
harmônicas. Tempo e contratempo, consonância e dissonância são modos como
interpretamos determinadas combinações de certas propriedades básicas do som […]. Os
sons entram em diálogo e “exprimem” semelhanças e diferenças na medida em que põem
em jogo a complexidade da onda sonora. É o diálogo dessas complexidades que engendra
as músicas. As músicas só são possíveis por causa das correspondências e desigualdades
no interior dos pulsos. Todos os parâmetros são modos de uma mesma coisa: vibrações,
séries intervaladas de atritos, ruídos respirantes que projetam ondas. (WISNIK, 2002:
26)
Dentro desse “diálogo de complexidades”, jogo intrincado de múltiplas
interconexões, Wisnik nos fala de dois grandes modos de experiência da onda complexa
formada pelo som. O primeiro seria composto por freqüências regulares, constantes,
estáveis; relacionadas ao som afinado, com altura definida. Vem a ser um complexo
ondulatório cuja sobreposição tende à estabilidade já que é dotado de uma periodicidade
interna. Um exemplo seriam as batidas do coração. Este seria o som. O segundo modo estaria
relacionado a freqüências irregulares, inconstantes, instáveis; relacionadas à produção de
barulhos, manchas, rabiscos sonoros, ruídos. Sua sobreposição tende à instabilidade, já que
são marcadas por períodos irregulares, descontínuos, não coincidentes. Como exemplos
Wisnik cita o espirro e o trovão, ressaltando a sua descontinuidade ruidosa. Este seria o
ruído.
Ao fazer música, as culturas lidam exatamente com a faixa em que som e ruído se
opõem e se misturam. A música estaria relacionada justamente à extração do som ordenado
e periódico do meio turbulento do ruído – construção relativa, que implica escolhas e modos
88
de relação frente à realidade. Som e ruído não se opõem na natureza: trata-se de um
continuum, onde cada cultura define qual a margem de separação entre essas duas instâncias.
Outra peculiaridade do sentido cultural do som é que ele se diferencia dos
objetos concretos porque, por mais nítido que possa ser, ainda assim é invisível e impalpável
– prestando-se à identificação de uma outra ordem do real, para além da esfera tangível.
Através da interpretação do movimento, unem-se visível e invisível.
3.3.1 ENTRE DEUS E O DEMO
Recorrendo novamente às contribuições de Octavio Paz, vemos como, para além
dos gêneros textuais, ainda de uma perspectiva rítmica derivam implicações bastante
amplas. Refiro-me aqui ao ritmo como uma base subjacente às nossas possibilidades de
atribuição de sentido frente à realidade.
O ritmo não é melodia – é visão de mundo. Calendários, moral, política, técnica, artes,
filosofias, tudo enfim que chamamos cultura tem suas raízes no ritmo. […] (PAZ, 1982:
71)
Riobaldo inicia sua narrativa falando de como exercita sua mira todos os dias e
de como um dia vieram lhe chamar por causa de um bezerro branco
85
, nascido defeituoso.
Inspirado pelas feições desse bezerro, houve quem determinasse: era o demo. Ainda que,
nesse momento, Riobaldo não se aprofunde nas especulações acerca da existência e do papel
85
Podemos notar como essa expressão também já vem marcar, desde o início da obra, a forte marca das
aliterações. Temos, assim: “[...] Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –;
e com máscara de cachorro. [...]” (ROSA, 1978: 09 – grifos meus).
89
de tal entidade, gostaria de deixar marcado que, já na primeira página da obra, surge uma
alusão a essa figura, situada no sem tamanho do sertão. Ao lado das reflexões sobre o diabo,
há as muitas reflexões sobre Deus.
Assim, desde aquela que concebo como a primeira parte da narrativa, é
apresentada a tensão que marca o paralelo sempre efetuado entre essas duas forças. A meu
ver, mais que entidades espirituais, há indícios, desde o início da obra, que podem nos levar a
compreender essas forças como espécies distintas de movimento – implicando diferentes
formas de ação, tipos de mudança, possibilidades de tomada de consciência, modos de
percepção, posturas diante dos acontecimentos, ritmos.
[...] E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de
traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus vem
vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca
bonito, se divertindo, se economiza. [...] (ROSA, 1978: 21)
O diabo
86
é às brutas, visível, ligado ao tempo perceptível. Deus é traiçoeiro, atua
de mansinho, não se vê sua ação no tempo; Deus é invisível – o que remete aos sons de alta
freqüência, imperceptíveis ao ouvido humano. Em um outro momento (ROSA, 1978: 46),
86
Em termos da crítica rosiana, a associação mais consagrada vem a ser aquela que relaciona o demo ao pacto
fáustico. Schwarz (1983: 382) faz uma leitura comparativa de GSV e o Dr. Faustus, de Thommas Mann,
acreditando tratarem-se de dramas fáusticos, onde o pacto diabólico implica a troca da alma pela possibilidade
de levar a cabo a missão proposta (a “genialidade bandoleira ou musical”). É dessa forma também que Arrigucci
(1994: 09) associa a freqüente alusão ao demo em GSV à psicologia demoníaca de outros personagens do
romance moderno, como Fausto e Dr. Faustus. Por outra via, o autor também associa a figura do diabo à
própria interioridade dividida de Riobaldo. Galvão (1986: 126-127), ao trabalhar com “a coisa dentro da outra”
em GSV, aponta a figura do diabo como aquilo que se internou homem adentro; instrumentalizando as
pessoas, o demo cumpriria sua missão. A meu ver, essas duas últimas perspectivas também têm o mérito de
ilustrar como aquela primeira interpretação mais freqüente não exclui outras possibilidades de sentido. Morais
(1998: 233), por exemplo, refere-se à idéia do daimon – a qual abordarei no capítulo seguinte – em sua acepção
positiva de iluminação interior, ressaltando a dualidade da figura do diabo na obra. Já Utéza (1994: 57), tanto
se refere à idéia do diabo associado ao grego Diaballein (dividir-se; fazer mexer tudo o que está condensado),
quanto se refere à perspectiva do daimon socrático (1994: 72), enfatizando seu caráter positivo, ligado à
iluminação interior e à presença do sopro divino dentro do homem. Wisnik (2002: 143), em seu trabalho acerca
da história da música, faz alusão ao modo como o tema fáustico aparece associado à produção musical – na sua
ambivalência angelical e demoníaca.
90
essa concepção é reafirmada: Deus come escondido enquanto o diabo sai por toda a parte
lambendo o prato. Tudo parece ser uma questão de percepção – e seus impactos no homem.
Pode-se substituir a aparente oposição entre Deus e o diabo por uma perspectiva
onde essas forças surgem não exatamente como oposições, mas como complementaridades,
a se manifestarem no próprio homem. Compreendendo essas forças como movimentos ou
talvez como vetores, vemos que estes não se anulam, tampouco significam, necessariamente,
direções distintas. Reafirma-se, por outro lado, a perspectiva de ritmos distintos. Aprecio
essa perspectiva rítmica porque ela implica alguns elementos importantes: a noção de
velocidade (rapidez x lentidão); a noção de percepção (consciência x inconsciência); a noção
de “adesão” (ritmo x arritmia).
Um mesmo movimento pode ser complexo: pode alternar momentos de uma
velocidade extrema com aqueles de uma aparente estagnação; pode-nos possibilitar
perspectivas distintas onde ora somos cônscios de nosso rumo e ora nos sentimos
completamente perdidos; a ele podemos aderir como quem dança uma música (e assim,
tornarmos-nos unos com esse movimento) ou a ele resistir como quem se assusta com um
barulho. Ritmo: direção, velocidade, percepção, adesão. Creio termos aí uma outra pista
fundamental: ao associarmos Deus e o diabo a ritmos, podemos também começar a nos
perguntar acerca de uma perspectiva estética ligada à sua apreensão.
E o homem? Diante dos ritmos representados pelas forças divinas e diabólicas,
cabe ao homem um lugar de mediação. Cabe a ele, no seu contato com o mundo, lidar com
essas forças, o que o coloca diante de temas fundamentais da experiência humana, dentre as
quais se destacam, sob meu ponto de vista, as relações tensionais entre três pares de
opostos: bem x mal; destino x acaso; medo x coragem. Frente a elas, cabe a Riobaldo efetuar
suas construções e posicionamentos.
91
Talvez seja este o primeiro grande aprendizado de Riobaldo – o posicionamento
frente aos opostos
87
, cujo emblema maior poderia ser representado pela própria oposição
entre Deus e o diabo. O que talvez marque a apresentação dessas díades na dimensão
ordinária do real é que, nessa esfera, a perspectiva de oposição não é superada. De forma
distinta, Riobaldo já nos dá indícios de que, em outros momentos, mais próximos à
experiência de contato com níveis extra-ordinários da realidade, a perspectiva dos opostos
talvez possa ser vivenciada de uma outra forma.
Voltemos às oposições anteriormente citadas. Como conseqüência natural das
reflexões entre Deus e o diabo, Riobaldo nos conduz a construções acerca das noções de bem
e mal. A associação mais imediata é óbvia e corrente: Deus associado ao bem; o diabo, ao mal.
Mas seria subestimar Riobaldo acreditar que suas reflexões cessassem por aí:
[...] Deus não queira; Deus que roda tudo! Diga o senhor, sobre mim diga. Até podendo
ser, de alguém algum dia ouvir e entender assim: quem-sabe, a gente criatura ainda é tão
ruim, tão, que Deus só pode às vezes manobrar com os homens é mandando por
intermédio do diá? Ou que Deus – quando o projeto que ele começa é para muito adiante,
a ruindade nativa do homem só é capaz de ver o aproximo de Deus é em figura do Outro?
Que é que de verdade a gente pressente? Dúvido dez anos. Os pobres ventos no burro da
noite. Deixa o mundo dar seus giros! Estou de costas guardadas, a poder de minhas rezas.
[...] (ROSA, 1978: 33-34)
Deus, vinculado ao bem, se contrapõe ao “Temba”, relacionado ao mal. Seguindo
de perto as associações efetuadas por Riobaldo a essas duas forças, podemos chegar ainda a
outras elaborações menos óbvias. Ao bem e ao mal, vinculam-se também as perspectivas do
destino (ou do sentido) e do acaso, vivências possíveis no fluir do tempo. Deus é associado à
impossibilidade de apreensão de um sentido por parte do homem, ao passo que este sentido
acaba sendo a ele apresentado em um momento que escapa ao seu controle – Deus é “de
87
O que remete ao título da terceira parte do trabalho de Walnice Galvão (1986: 75): “O ponteador de opostos”.
92
mansinho”. Deus é aquele que faz sua vontade valer ainda que seja por intermédio da ação de
outros agentes, dentre os quais se podem incluir o homem e o próprio diabo.
Outra noção fundamental também é associada a Deus: “Senhor sabe: Deus é
definitivamente; o demo é o contrário Dele...” (ROSA, 1978: 35). Deus, definitivo, está além
das dimensões do tempo e do espaço. Estas últimas configurariam o espaço do diabo: o
espaço da mudança, do movimento visível, da transformação, da separação. Por analogia,
poderíamos então compreender o posicionamento de Riobaldo em alguns momentos, ao
associar, por exemplo, o bem à harmonia total, que, por sua vez, representaria o definitivo, a
ausência de mudanças, movimentos e transformação.
O demo é o contrário. A “ruindade nativa do homem” se aproxima mais da figura
dele do que da figura de Deus. Nas palavras de Riobaldo, esse Deus definitivo estaria tão
inacessível que o contato com ele se torna possível apenas a partir da mediação do diabo. Se
pudermos deixar de lado uma postura tácita imersa no total maniqueísmo, herança de nossa
cultura ocidental, e lidar de forma distinta com esse Deus e esse diabo, poderemos
vislumbrar outros sentidos nas falas de Riobaldo. Primeiro: deixa de fazer sentido falar em
bem e mal. A “ruindade” – o ruim – à qual a personagem se refere talvez não configure uma
oposição ao “bem”, mas ao “bom”. Talvez ele esteja a fazer não um julgamento de valor, mas
a testemunhar o próprio desconforto do homem imerso em um mundo diabólico: mundo da
eterna mudança, das transformações, do acaso, do sem sentido, das perdas. Mundo
ordinário.
Diante dessa condição, que o homem não pode controlar, cabe-lhe um desafio:
carece de ter coragem!
[...] Refiro ao senhor: um outro doutor, doutor rapaz, que explorava as pedras turmalinas
no vale do Arassuaí, discorreu me dizendo que a vida da gente encarna e reencama, por
progresso próprio, mas que Deus não há. Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus
93
existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se
não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das
grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo
Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas, se não tem
Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do
homem está presa encantoada – erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem
pernas e braços. Dor não dói até em criancinhas e bichos, e nos dôidos – não dói sem
precisar de se ter razão nem conhecimento? E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo
tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo mistério. O senhor não vê? O que
não é Deus, é estado do demônio. [...] (ROSA, 1978: 48-49)
Às vezes nossa impressão é de que a vida é mesmo burra: somos nós contra todos
os acasos. Não vemos Deus, o definitivo, aquele que dá sentido. E o que não é Deus, é estado
do demônio. Deparamo-nos então com o diabo, no nosso medo do que virá, no vai-vem da
vida. O grande medo mistério; que dói. Mas seria o acaso a ausência do sentido ou apenas a
impossibilidade de consciência do sentido? Seria o diabo um Deus “de costas”?
Viver é muito perigoso... Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar
sendo se querendo o mal, por principiar. Esses homens! Todos puxavam o mundo para si,
para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo. [...]
(ROSA, 1978: 16)
Viver é mesmo muito perigoso. Diante do estado do demo, o medo
88
, seu
anagrama. Mas o que seria medo, e o que seria coragem? Construir respostas para essas
questões talvez esse seja um dos maiores desafios que o nível ordinário de realidade,
caracterizado justamente pelas apresentações desse Deus-diabo, reserva a Riobaldo, maestro
encarregado de executar esse concerto, aprendendo acerca da harmonia e desarmonia de cada
ritmo e da combinação das notas.
88
Albergaria (1977: 36), tomando como base o contexto da iniciação esotérica, aponta o medo – compreendido
como o resultado da ignorância – como o principal obstáculo a ser vencido. A pesquisadora lembra também que
o medo vem a ser um anagrama de demo.
94
No tocante ainda a essa tensão entre ritmos distintos, simbolizados pelas forças
de Deus e do diabo – tão presente em toda a narrativa que constitui GSV – gostaria de
avançar, contando agora com as contribuições de Umberto Eco, presentes em Necessidade e
possibilidade nas estruturas musicais (1972). Confesso não ser o leitor mais indicado para
compreender a fundo todas as considerações que tece nesse seu trabalho – considerando que
sou um leigo no que se refere à teoria musical. Mesmo com esses limites, fui “capturado” por
algumas idéias ali descritas. E a primeira delas relaciona-se justamente à idéia de ritmo.
Eco (1972: 164) refere-se a um estudo de Leonard B. Meyer sobre as estruturas e
sobre os modelos de reação musicais. Vê-se que, no “discurso musical”, um estímulo se
apresenta como ambíguo e inconcluso à atenção do fruidor, produzindo uma tendência para
obter satisfação. Esta última seria descrita da seguinte forma: o estímulo ambíguo seria
gerador de uma crise que, por sua vez, gera a necessidade de que o auditor encontre um
“ponto firme” que resolva a ambigüidade. Talvez essa constitua uma chave interessante para
que possamos compreender a famosa ambigüidade constitutiva de GSV – cristalizada na
contradição de forças Deus-diabo. Um recurso utilizado na narrativa durante muito tempo é,
portanto, a afirmação da ação de uma dessas forças em detrimento da outra – o que
superaria a crise gerada pela ambigüidade, mas manteria uma perspectiva dicotômica.
Mas Eco (p. 168) também se refere a um outro conjunto de idéias que pode nos
ajudar a avançar na compreensão da ambigüidade de GSV a partir desse raciocínio. O autor –
ainda inspirado no trabalho de Meyer – nos diz que todas as civilizações musicais elaboram a
sua sintaxe, surgindo no âmbito de cada uma um “modo de ouvir” orientado segundo sua
tradição cultural
89
. A dinâmica das crises e soluções, dessa forma, obedeceria a direções
89
O que está sintonizado com a perspectiva anteriormente apresentada através das contribuições Wisnik
(2002).
95
relativamente fixas. Assim, no sertão de Riobaldo, as forças são nomeadas (ouvidas) como
Deus ou como diabo.
Entretanto, Eco (p. 176) ainda acrescenta um outro elemento a esse raciocínio –
elemento este que considero fundamental. Quanto mais previsível e arraigada estiver essa
forma cultural de “ouvir”, menos possibilidades se tem de dizer algo novo. Se, pelo contrário,
pode-se sustentar a ambigüidade por algum tempo, nos vemos diante de possibilidades
ainda por determinar, já que os termos ainda não estão fixados definitivamente num
significado. Daí, segundo o autor, adviria o conceito de “informação”: quando há a
ambigüidade, há também uma gama de significados possíveis que estão abertos. A
possibilidade de informação (tomada como originalidade) dependeria, assim, da
improbabilidade da mensagem que se recebe.
Grande Sertão: Veredas, tomado sob essa perspectiva, afasta qualquer
possibilidade séria de ser “explicado” – ao mesmo tempo em que potencializa sua dimensão
aberta, sempre a produzir novas significações. A própria linguagem utilizada por Rosa traz à
tona não apenas a ambigüidade e as crises que evoca, mas também o potencial ilimitado das
novas informações.
Quanto a Riobaldo, ao final de sua narrativa parece superar a representação
estabelecida que versa acerca das forças de Deus e do diabo. O movimento – travessia – passa
a se localizar no próprio homem, que se apropria dos ritmos, fluidos.
96
3.3.2 RIOBALDO E OS RITMOS: ENTRE O MEDO E A CORAGEM
Tendo apenas indicado a dualidade medo x coragem que se somara aos ritmos
opostos de Deus e do demo, pretendo agora avançar na compreensão de seus meandros. A
tensão que compõe essa díade produz movimentos importantes na trajetória de Riobaldo,
constituindo formas diversas de relacionamento com a dimensão rítmica no decorrer da
narrativa.
3.3.2.1 A TRAVESSIA DO SÃO FRANCISCO
Acredito que a primeira parte da narrativa de Riobaldo termine pouco antes de
ele se voltar para suas lembranças do encontro com o Menino, no porto do de-Janeiro.
Se deu há tanto, faz tanto, imagine: eu devia de estar com uns quatorze anos, se.
Tínhamos vindo para aqui – circunstância de cinco léguas – minha mãe e eu. No porto do
Rio-de-Janeiro nosso, o senhor viu. Hoje, lá é o porto do seo Joãozinho, o negociante.
Porto, lá como quem diz, porque outro nome não há. Assim sendo, verdade, que se chama,
no sertão: é uma beira de barranco, com uma venda, uma casa, um curral e um paiol de
depósito. Cereais. Tinha até um pé de roseira. Rosmes!... [...] (ROSA, 1978: 79)
Chamo a atenção para o ponto de partida desse novo momento da narrativa: um
porto – lugar de partidas e chegadas, de trânsitos. Porto que pode ser compreendido como
lugar de confluência e passagem entre distintos elementos constitutivos da natureza (água e
terra – que também atuam como espaços de trânsito), assim como também poderia ser
compreendido como espaço de confluência e passagem entre distintas esferas da realidade
97
(ordinárias e extra-ordinárias, por exemplo). Porto lá, porque outro nome não há. É também
interessante notar que a localização desse porto coincide – “circunstância de cinco léguas”
com o espaço físico no qual se situa o Riobaldo que se debruça em suas memórias e reflexões
no exercício de narrá-las.
Porto do seo Joãozinho – ao que me sinto remetido à figura do próprio autor, o
que é reforçado, inclusive, pela presença de um pé de roseira no local. Há um pé de João
Guimarães Rosa plantado no texto
90
? Tal elocubração fica ainda mais interessante se
pensarmos que a esse “Joãozinho” pertence o porto, lugar dos trânsitos, partidas e chegadas.
Seria esse o lugar da função autoral, funcionar como porto, como lugar de passagem
91
? Esse
Joãozinho é também “negociante”: mais uma pista acerca do lugar do autor, a efetuar
acordos e trocas – de conteúdos, de valores – entre as esferas da realidade?
Ainda no tocante à caracterização desse porto
92
, Riobaldo explica sua localização
onde o de-Janeiro desemboca no São Francisco. Ressalta, ainda, que o porto tem que se
localizar “naquele lugar mais alto”, para evitar febre de maresia. Este é o ponto de quem
principia viagem – seja buscando a travessia do de-Janeiro, seja do São Francisco.
Esse porto, que marca o encontro e o relacionamento entre os dois rios, traz uma
característica que também considero interessante: “O São Francisco represa o de-Janeiro,
90
Morais (2005) efetua uma discussão quanto à presença autoral na obra rosiana. Sua posição é a de que, sem
que se pretenda “uma incursão biográfica reducionista da leitura” (MORAIS, 2005: 201), pode-se reconhecer a
presença de uma subjetividade que ecoa a voz do autor na polifonia da narrativa – o que se aplicaria a GSV.
91
Confesso-me remetido à imagem que Benjamin (1994) constrói acerca dos tipos de narradores: o “camponês
sedentário” e o “marinheiro comerciante”. Enquanto o primeiro se dedica a narrar histórias e tradições que
ouviu sem sair de seu país, o segundo tem muito a contar por causa de suas muitas viagens. Talvez aí já esteja
uma pista acerca de qual será o estilo de narração a ser adotado por Riobaldo futuramente. Arrigucci (1994) em
seu ensaio acerca de GSV, também faz uma alusão a essas categorias cunhadas por Benjamin: frente ao mar
(relacionado ao sertão, do ponto de vista de Arrigucci), ou o narrador assume a posição do poeta épico (aquele
que, da margem, receberia os ecos das ações do mundo marítimo) ou assume a posição do romancista, que se
arrisca na solitária travessia marítima.
92
Utéza (1994) explora bastante essa idéia do porto como lugar de troca, lugar do negociante (Hermes), lugar
de transição entre lugares. Antonio Candido (1983) é outro autor que aponta a forma como a travessia do São
Francisco assume uma importância crucial na narrativa. Candido ressalta o simbolismo associado às margens
direita e esquerda do rio, assim como traz à tona o relacionamento entre o real e o fantástico. Flávio Aguiar
(2001) em seu estudo sobre o tempo em GSV, aponta o episódio da travessia como “marco temporal zero”
fundante da narração, não apenas a organizar o sentido de tempo na narrativa, mas ligado também ao processo
de formação da consciência de Riobaldo.
98
alto em grosso, às vezes já em suas primeiras águas de novembro. Dezembro dando, é certo.”
(ROSA, 1978: 79). Chama-me a atenção o fato de que o “de-Janeiro”, além de se referir ao
nome de um rio – e de um outro estado, espaço geográfico –, também faz referência ao nome
de um mês; o rio como veículo do espaço e do tempo
93
.
Nesse porto o menino Riobaldo se encontra com o Menino, que o convida para a
travessia do rio embarcados em uma pequena canoa. Chamo atenção para o fato de que a
canoa, veículo da travessia, era escavada em árvore. A própria árvore, em muitas tradições
antigas, é tida como axis mundi
94
– a unir terra e céu, assim como a conectar as realidades
espirituais inferiores e superiores (ELIADE, 1970; METZNER, 1988). A árvore do mundo: daí
se escava uma canoa.
O que Riobaldo descreve é justamente a travessia pelos opostos, representados
pelo de-Janeiro e o São Francisco. No primeiro, por sobre águas claras o Menino começa a
lhe mostrar as formas da natureza: o cágado, o mato na beira, as flores, os pássaros que
cantam e voam. Sua percepção começa a se abrir. A esse respeito, quero registrar a idéia que
93
Utéza (1994: 256) refere-se ao lugar do primeiro encontro de Riobaldo e Diadorim fazendo uma alusão a
Jano, deus latino das passagens, com sua dupla face que se volta para duas direções ao mesmo tempo,
simultaneamente no passado e no futuro. O rio-de-janeiro seria, assim, o rio de Jano.
94
Segundo Eliade (1970: 325), na história de todas as religiões, assim como nas tradições populares de todo o
mundo, metafísicas e místicas, encontram-se árvores sagradas, ritos e símbolos vegetais. Essas diversas
perspectivas poderiam ser agrupadas por: “(1) o conjunto pedra-árvore-altar, que constitui um microcosmos
efectivo nas camadas mais antigas da vida religiosa (Austrália, China, Indochina-India; Fenícia-Egeu); (2) a
árvore-imagem do cosmos (India, Mesopotâmia, Escandinávia, etc.); (3) a árvore-teofania cósmica
(Mesopotâmia, India, Egeu); (4) a árvore-símbolo da vida, da fecundidade inesgotável, da realidade absoluta;
em relação com a Grande Deusa ou o simbolismo aquático, [...] identificada à fonte da imortalidade (‘A árvore
da Vida’); (5) a árvore-centro do mundo e suporte do universo (Altaicos, Escandinavos); (6) ligações místicas
entre árvores e homens (árvores antropogenésicas; a árvore como receptáculo das almas dos antepassados; o
casamento das árvores; a presença da árvore nas cerimônias de iniciação); (7) a árvore símbolo da ressurreição
da vegetação, da Primavera e da ‘regeneração’ do ano (por exemplo o ‘Maio’).”. Eliade (1960: 141) também
associa a árvore ao tambor xamânico – também comparado a um cavalo –, tido como o “veículo” através do qual
se atingem os estados alterados de consciência e, portanto, o acesso a outras esferas. A “árvore cósmica” seria o
eixo que une céu e terra. O tambor, feito de sua madeira, permitiria a viagem mágica tanto ao “centro da Terra”
(relacionado aos mundos inferiores), quanto uma ascensão aos céus (tidos como mundos superiores). Temos
então a árvore como eixo a partir do qual se estabelece o trânsito entre as esferas; árvore que não apenas está
presente como veículo de travessia do São Francisco, como também ocupa lugar significativo no pacto efetuado
por Riobaldo, (a) uma vez que este tem lugar debaixo dum pau-cardoso e (b) é uma árvore – um pé de breu-
branco – aquilo com que se abraça logo após a experiência.
99
defendo, o papel de iniciador em uma esfera natural, assumido pelo Menino
95
em relação a
Riobaldo. Essa idéia está sintonizada com o papel de hierofante a ele atribuído por Utéza
(1994) em seu estudo.
De forma a marcar um grande contraste, chegam ao São Francisco:
Mas, com pouco, chegávamos no do-Chico. O senhor surja: é de repentemente, aquela
terrível água de largura: imensidade. Medo maior que se tem, é de vir canoando num
ribeirãozinho, e dar, sem espera, no corpo dum rio grande. Até pelo mudar. A feiúra com
que o São Francisco puxa, se moendo todo barrento vermelho, recebe para si o de-Janeiro,
quase só um rego verde só. [...] (ROSA, 1978: 82)
Ao claro, se contrapõe o escuro. Ao mensurável e pequeno, se contrapõe a
imensidão. Ao esperado, a mudança. Riobaldo pede para voltar, assaltado pelo medo.
“Atravessa!” (ROSA, 1978: 83) – com essa ordem, proferida pelo Menino, não há mais
retorno. Vemos que Riobaldo é remetido àquilo que seria o objeto mesmo de sua morte e
ressurreição: a linha que une o medo à coragem, na cruz dos rios.
Tive medo. Sabe? Tudo foi isso: tive medo! Enxerguei os confins do rio, do outro lado.
Longe, longe, com que prazo se ir até lá? Medo e vergonha. A aguagem bruta, traiçoeira –
o rio é cheio de baques, modos moles, de esfrio, e uns sussurros de desamparo. [...] (ROSA,
1978: 83)
[...] Eu tinha o medo imediato. E tanta claridade do dia. O arrojo do rio, e só aquele
estrape, e o risco extenso d’água, de parte a parte. Alto rio, fechei os olhos. Mas eu tinha
até ali agarrado uma esperança. Tinha ouvido dizer que, quando canoa vira, fica boiando,
e é bastante a gente se apoiar nela, encostar um dedo que seja, para se ter tenência, a
constância de não afundar, e aí ir seguindo, até sobre se sair no seco. Eu disse isso. E o
canoeiro me contradisse: – “Esta é das que afundam inteiras. É canoa de peroba. Canoa
de peroba e de pau-d’óleo não sobrenadam...” Me deu uma tontura. O ódio que eu quis:
ah, tantas canoas no porto, boas canoas boiantes, de faveira ou tamboril, de imburana,
vinhático ou cedro, e a gente tinha escolhido aquela... Até fosse crime, fabricar dessas, de
madeira burra! A mentira fosse – mas eu devo de ter arregalado dôidos olhos. Quieto,
composto, confronte, o menino me via. – “Carece de ter coragem...” – ele me disse. Visse
que vinham minhas lágrimas? Doí de responder: – “Eu não sei nadar...” O menino sorriu
bonito. Afiançou: – “Eu também não sei.” Sereno, sereno. Eu vi o rio. Via os olhos dele,
produziam uma luz. – “Que é que a gente sente, quando se tem medo?” – ele indagou, mas
95
Para Olea (2006: 71), o Menino poderia ser visto como uma espécie de guia-iniciático de Riobaldo, atuando
como um “daimon-mestre”.
100
não estava remoqueando; não pude ter raiva. – “Você nunca teve medo?” – foi o que me
veio, de dizer. Ele respondeu: – “Costumo não...” [...] (ROSA, 1978: 83)
Tendo como suporte a canoa que é de árvore, mas também de madeira burra, que
afunda inteira, e também sem saber nadar, Riobaldo é lançado à aguagem bruta, traiçoeira.
O medo imediato, diante da tanta claridade do dia.
No rio cheio de baques, modos moles, esfrio e sussurros de desamparo – ritmos –,
Riobaldo vê o próprio medo. A tanta claridade do dia desnuda sua ausência de controle
diante da vida, conferindo-lhe a consciência acerca da própria condição. Além do medo, há
vergonha. Na busca por alguma segurança, tenta agarrar-se à estabilidade da canoa: não há, é
daquelas que afunda inteira. Riobaldo é lançado à vida, matéria bruta, natureza rítmica.
Onde nos sentimos pequenos, sós e perdidos.
“Carece de ter coragem...” – é o Menino quem diz. Incapaz de mudar o curso do
rio, sua profundidade e balanço, Riobaldo tenta justificar o seu medo: não sabe nadar. Mas o
Menino também não sabe. Ninguém sabe. O Menino pergunta: “Que é que a gente sente,
quando se tem medo?” – já que ele não costumava ter.
Normalmente se busca superar o medo através de alguma possibilidade de
controle, e aquele medo do rio iria embora, se se soubesse nadar. Mas não se sabe, e mesmo
que se soubesse, esse controle seria ilusório: de nada valeria, diante da profundidade dessas
águas e da força dessa correnteza. O Menino propõe uma outra alternativa ao controle;
diante do medo: carece de ter coragem. Nada se controla, mesmo assim, pode-se permanecer
sereno: do controle, se passa à confiança. Confiança diante do não saber e do não controlar.
Essa é a coragem.
Alguns chamam essa coragem de fé – o que me remete a uma aproximação entre
a imagem desse rio – que seria a própria imagem da condição do homem lançado aos níveis
101
ordinários de realidade – e a imagem do diabo, tal qual retratada por Riobaldo. Conforme foi
comentado anteriormente, a imagem do demo associa-se à ausência de controle, ao bruto e
traiçoeiro, àquilo que nos leva sem sabermos como e nem para onde. Seriam, então, muito
próximas a imagem desse diabo e a possibilidade de consciência normalmente acessível ao
homem na realidade ordinária, mais bruta e material. O “inferno” – compreendido como
território do diabo – é aqui. E toda tentativa de controle, gerada pelo medo, só potencializa
esse mesmo sentimento. Carece de ter coragem.
E fica mais fácil ter coragem quando o Menino mostra a Riobaldo uma outra
realidade que, às vezes, passa despercebida: apesar do sentimento de completo desamparo
por sobre essa canoa de madeira burra que afunda de uma vez, não se está só nesse
desamparo: o Menino põe a mão na de Riobaldo, fazendo “parte melhor” de sua pele, como
se desse a suas carnes “alguma coisa” – é o texto que nos mostra (ROSA, 1978: 84).
Reconhecem-se, e esse é um reconhecimento de almas: “Você também é animoso...” – diz o
Menino, dirigindo-se a Riobaldo. A dimensão intersubjetiva, implicada na jornada pela esfera
dos níveis ordinários de realidade, é afirmada. E de forma interessante: o reconhecimento
mútuo que constitui esse processo se dá pela relação entre algo aparente (pele) e algo
essencial (carne). O contato que se dá por uma via aparente, material, sensível pode dar
origem ao reconhecimento anímico, espiritual, não ordinário. São esferas que se tocam: o
acesso a outras dimensões, tendo, como base, a materialidade bruta e rítmica da natureza.
Quando Riobaldo pode amanhecer “sua aurora”, a outra margem é alcançada. O
que essa aurora anuncia é um nascimento: anuncia a presença de uma alma, em um corpo,
imerso nos ritmos da natureza. O que está agora na terra, nasce pela água. E para marcar
essa aurora, nascimento, travessia, o barranqueiro-barqueiro
96
– condutor de almas – canta,
96
Uma imagem me ocorre: a de Caronte, o barqueiro que conduz a alma dos mortos no mundo infernal, no
contexto da mitologia greco-romana (COMMELIN, 1983: 163). Um deus, representado como velho grande e
102
um canto que é também uma prece: “... Meu Rio de São Francisco, nessa maior turvação: vim
te dar um gole d’água, mas pedir tua benção...” (ROSA, 1978: 84). Chamo a atenção para o
modo como a arte se apresenta para marcar momento tão decisivo, estabelecendo e
narrando as relações entre as esferas ordinárias e extra-ordinárias. Os versos do
barranqueiro exaltam o caráter do rio, como aquele que mata a sede do corpo e abençoa a
alma.
Rio, aliás, que também carrega o nome de um santo. E não é de qualquer um: é
um santo ligado tanto à natureza quanto à arte poética. Convém assinalar que São Francisco,
considerado padroeiro da ecologia e santo do amor, teve grande influência não apenas
religiosa, mas também literária. Seu Cantico Fratris Solis
97
– mais conhecido entre nós como
“Cântico do Sol”
98
– é considerado, segundo Fülop-Miller (1957), o primeiro poema em
língua italiana. São Francisco é o artista que se eleva ao transcendente pelo contato com a
magro, Caronte cobrava para atravessar os mortos em sua barca. Como ainda a questão dos ritos iniciáticos
ainda será abordada nesta tese, gostaria apenas de adiantar que tais processos, além de estarem associados à
superação de doenças ou desequilíbrios, em sua maior parte se dão, simbolicamente, pela via do processo de
morte ao qual se segue um renascimento. Esse barqueiro, que conduz Riobaldo e o Menino em uma canoa tão
especial, talvez esteja a atravessar mais que um rio; esteja a conduzi-los a um rito iniciático. Interessante
também é notar que, considerando tal associação, ainda assim ela se faz às avessas: a imagem do velho
barqueiro Caronte se contrapõe à do jovem canoeiro que conduz Riobaldo e o Menino. Ao invés de conduzi-los
para a morte, parece conduzi-los através desta, num processo que marca o seu oposto, o nascimento.
97
No original em italiano, citado por Fülop-Miller (1957: 320): "Altissimo omnipotente bom signore:/ Tue son le
laude, la gloria et l’honore et ogni benedictione:/ A te solo se confano:/ Et nullo homo è degno de nominar te.// Laudato
sia Dio mio signore com tutte le tue creature, specialmente messer lo frate sole:/ La quale giorna et illumina nui per
lui:/ Et ello è bello et radiante cum grande splendore:/ De te signore porta significatione.// Laudato sia mio signore per
sor luna et per la stelle:/ In celo le hai formate clare et belle.// Laudato sia mio signore per frate vento et per l’aire et
nuuolo et sereno et omne tempo:/ Per la quale dai a le tue creature sustentamento.// Laudato sia mio signore per sor
aqua:/ La quale è muito utile et humile et pretiosa et casta.// Laudato sia mio signore per frate foco, per lo quale tu
allumini la nocte:/ Et ello è bello et jucundo et robustissimo et forte.// Laudato sia mio signore per nostra matre terra:/
La quale ne sostenta et guberna et produce diuersi fructi et coloritti fiore et herbe.// Laudate et benedicte mio signore
et regratiate:/ Et seruite a lui cum grande humilitate" .
98
“Altíssimo, onipotente bom Senhor,/ A Ti glória, louvor, honras e bênção:/ Pois só Tu as mereces/ E nenhum
homem é digno de dizer o Teu nome.// Sê louvado, Senhor meu, com todas as tuas criaturas,/ E mais que todos
pelo Senhor Irmão Sol,/ Que o dia produz e a luz nos dá./ Ele é belo, radioso e cheio de esplendor:/ Uma
amostra de Ti, Senhor.// Sê louvado, Senhor meu,/ Por causa da Irmã Lua e das estrelas:/ Lá no céu as
formaste, belas e luminosas.// Sê louvado, Senhor meu, pelo Irmão Vento,/ E pelo ar e pela nuvem e por todas
as estações,/ Pelas quais alimentas todas as Tuas criaturas.// Sê louvado, Senhor meu, pela Irmã Água,/ Tão
útil, tão humilde e preciosa e casta.// Sê louvado, Senhor meu, pelo Irmão Fogo,/ Com o qual as noites
iluminas./ Ele é belo e alegre e tão robusto e forte.// Sê louvado, Senhor meu, por nossa mãe a Terra,/ Que nos
sustenta e conserva e produz para nós/ Ervas, frutos diversos e coloridas flores.// Louvai, agradecei e bendizei
ao Senhor,/ E a Ele servi, com grande humildade.” (FRANCISCO apud FÜLOP-MILLER, 1957: 320)
103
natureza. A travessia do São Francisco marca, portanto, não apenas a adesão ao ritmo, mas a
adesão a um ritmo que conduz níveis ordinários e extra-ordinários de realidade ao mesmo
tempo.
3.3.2.2 O DESESPERO QUIETO
Diversa forma de relacionamento com os ritmos e a dualidade medo x coragem
pode ser observada em outro momento da narrativa, no Córrego do Batistério, quando
Riobaldo se reencontra com o Menino. No reconhecimento de sua valentia por parte daquele
que então já era conhecido como Reinaldo, vem também a reflexão acerca das conexões entre
a valentia e a bondade.
[...] E perfez: – “Não sabe que quem é mesmo inteirado valente, no coração, esse também
não pode deixar de ser bom?! Isto ele falou. Guardei. Pensei. Repensei. Para mim, o
indicado dito, não era sempre completa verdade. Minha vida. Não podia ser. Mais eu
pensando nisso, uma hora, outra hora. Perguntei ao compadre meu Quelemém. – “Do que
o valor dessas palavras tem dentro” – ele me respondeu – “não pode haver verdade
maior...” […] (ROSA, 1978: 116)
A coragem aparece no coração misturada à bondade, surgindo como uma espécie
de ética. Creio que ainda nos cabe compreender melhor essa coragem, essa bondade.
Estaríamos falando da possibilidade de superar a fonte do medo, representada pelas
dualidades erro x acerto, bem x mal, Deus x diabo?
[...] Medo. Medo que maneia. Em esquina que me veio. Bananeira dá em vento de todo
lado. Homem? É coisa que treme. O cavalo ia me levando sem data. Burros e mulas do
lote de tropa, eu tinha inveja deles... Tem diversas invenções de medo, eu sei, o senhor
sabe. Pior de todas é essa: que tonteia primeiro, depois esvazia. Medo que já principia
104
com um grande cansaço. Em minhas fontes, cocei o aviso de que um suor meu se esfriava.
Medo do que pode haver sempre e ainda não há. O senhor me entende: costas do mundo.
[...] Não pude, não pensava demarcado. Medo não deixava. Eu estando com um vapor na
cabeça, o miolo volteado. Mudei meu coração de posto. E a viagem em nossa noite seguia.
Purguei a passagem do medo: grande vão eu atravessava. (ROSA, 1978: 118)
Homem é coisa que treme. As invenções do medo, o que tonteia e esvazia,
começam com um cansaço. Medo do que pode haver sempre e ainda não há. Diante disso, o
coração há de mudar de posto: vão que convida à travessia. Mas ainda há medo.
Diante dessa condição, Riobaldo busca formas de superá-la ou, ao menos, lidar
com ela. Sua primeira providência é buscar a solidão – ocasião em que, de forma diversa,
parece mesmo é falar de desapego:
[...] Sozinho sou, sendo, de sozinho careço, sempre nas estreitas horas – isso procuro. O
Reinaldo comigo par a par, e a tristeza do medo me eivava de a ele não dar valor. Homem
como eu, tristeza perto de pessoa amiga afraca. Eu queria mesmo algum desespero.
Desespero quieto às vezes é o melhor remédio que há. Que alarga o mundo e
põe a criatura solta. Medo agarra a gente é pelo enraizado. Fui indo. De repente,
de repente, tomei em mim o gole de um pensamento – estralo de ouro: pedrinha de ouro.
E conheci o que é socorro.
Com o senhor me ouvindo, eu deponho. Conto. Mas primeiro tenho de relatar um
importante ensino que recebi do compadre meu Quelemém. E o senhor depois verá que
naquela minha noite eu estava adivinhando coisas, grandes idéias.
Compadre meu Quelemém, muitos anos depois, me ensinou que todo desejo a gente
realizar alcança – se tiver ânimo para cumprir, sete dias seguidos, a energia e paciência
forte de só fazer o que dá desgosto, nojo, gastura e cansaço, e de rejeitar toda qualidade
de prazer. Diz ele; eu creio. Mas ensinou que, maior e melhor, ainda, é, no fim, se rejeitar
até mesmo aquele desejo principal que serviu para animar a gente na penitência de glória.
E dar tudo a Deus, que de repente vem, com novas coisas mais altas, e paga e
repaga, os juros dele não obedecem medida nenhuma. Isso é do compadre meu
Quelemém. Espécie de reza? (ROSA, 1978: 118-119 – grifos meus)
Vejo o “desespero quieto” buscado por Riobaldo como um exercício de desapego.
O medo agarra pelo enraizado. Aí está um dos grandes perigos da realidade ordinária: ao
mesmo tempo em que essa esfera nos convida a fazer parte de seus caminhos e a comungar
com a beleza e com o outro, há o perigo do enraizado, do apego. O vento não pára de soprar
quando o homem enraíza. E então ele treme e balança como bananeira: vem o medo. Medo
105
de perder aquilo em que se enraizou; medo de que algo mude. O medo parece vir quando não
se pode mais seguir os ritmos da vida.
A “espécie de reza” ensinada por compadre Quelemém
99
vem justamente para
minar essa perspectiva apegada, para trazer um pouco de “desespero” – que não é
desesperança, nem desencanto, é desapego. Desespero quieto, que não é descontrole; é
abdicar do controle. Compadre Quelemém dá uma “receita”. (1) Com vistas a alcançar um
desejo, deve-se abster de todos os prazeres e gostos pessoais – com ânimo, paciência e
energia fortes. (2) Só fazer o que dá desgosto e rejeitar toda espécie de prazer. (3) Rejeitar o
desejo principal que motivou tudo. (4) Dar tudo a Deus, que de repente vem com “novas
coisas mais altas”. Desapego puro que, no meu entender, está menos a ligado a “não querer”
do que a “não querer controlar”. Literalmente: “colocar nas mãos de Deus”. Esse desespero
alarga o mundo e coloca a criatura solta. Espécie de reza? Não sei. Mas exercício espiritual e
de desapego, com certeza. Chamo também a atenção para o modo como esses ensinamentos
estarão presentes nos preparativos que Riobaldo faz diante da perspectiva de efetuar pacto
com o diabo.
O fato é que Riobaldo já coloca em prática o que mais tarde aprenderia com
compadre Quelemém:
Bem, rezar, aquela noite, eu não conseguia. Nisso nem pensei. Até para a gente se
lembrar de Deus, carece de se ter algum costume. Mas foi aquele grão de idéia que me
acuculou, me argumentou todo. Ideiazinha. Só um começo. Aos pouquinhos, é que a gente
abre os olhos; achei, de per mim. E foi: que, no dia que amanhecia, eu não ia pitar, por
forte que fosse o vício de minha vontade. E não ia dormir, nem descansar sentado nem
deitado. E não ia caçar a companhia do Reinaldo, nem conversa, o que de tudo mais
99
Suzi Frankl Sperber (1976: 26-28) refere-se a este ensinamento como algo relacionado à manifestação da
vontade. Para a estudiosa, os conselhos de compadre Quelemém estariam ligados às recomendações do
esoterismo, que diferem da doutrina kardecista (por ele seguida, a princípio). A segunda parte do conselho –
relacionada a “dar tudo a Deus”, seria sim de cunho espírita. Sperber também chama a atenção para o fato de
que Riobaldo só conheceu Quelemém muitos anos depois, estando a agir naquele momento a partir de outras
solicitações: a vontade seria conseqüência da consciência. Esta última, como força concentrada, seria
manifestada e exercitada através da vontade, de modo a eliminar o medo e a falta de confiança (considerados
os grandes cerceadores da vontade).
106
prezava. Resolvi aquilo, e me alegrei. O medo se largava de meus peitos, de minhas
pernas. O medo já amolecia as unhas. Íamos chegando numa tapera, nas Lagoas do
Córrego Mucambo. Lá nós tínhamos pastos bons. O que resolvi, cumpri. Fiz.
Ah, aquele dia me carregou, abreviei o poder de outras aragens. Cabeça alta –
digo. Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o senhor souber, sabe; não
sabendo, não me entenderá. Ao que, por outra, ainda um exemplo lhe dou. O que há, que
se diz e se faz – que qualquer um vira brabo corajoso, se puder comer crú o coração de
uma onça-pintada. É, mas, a onça, a pessoa mesma é quem carece de matar; mas matar à
mão curta, a ponta de faca! Pois, então, por aí se vê, eu já vi: um sujeito medroso, que tem
muito medo natural de onça, mas que tanto quer se transformar em jagunço valentão – e
esse homem afia sua faca, e vai em soroca, capaz que mate a onça, com muita inimizade;
o coração come, se enche das coragens terríveis! O senhor não é bom entendedor? Conto.
De não pitar, me vinham uns rangidos repentes, feito eu tivesse ira de todo o mundo.
Aguentei. Sobejante saí caminhando, com firmes passos: bis, tris; ia e voltava. Me deu
vontade de beber a da garrafa. Rosnei que não. Andei mais. Nem não tinha sono nenhum,
desmenti fadiga. Reproduzi de mim outro fôlego. Deus governa grandeza. Medo
mais? Nenhum algum! Agora viesse corja de zebebelos ou tropa de meganhas, e me
achavam. Me achavam, ah, bastantemente. Eu aceitava qualquer vuvú de guerra, e ia em
cima, enorme sangue, ferro por ferro. Até queria que viessem, duma vez, pelo definitivo.
[...] (ROSA, 1978: 119-120 – grifos meus)
Riobaldo completa sua primeira travessia – iniciada no rio e terminada no grande
vão do medo. Com outro fôlego, carregado pelo poder do dia, abreviando o poder de outras
aragens, Riobaldo segue sua dança, sem medo, pelos ocultos caminhos. “Medo mais?
Nenhum algum!”
Mais adiante na narrativa, Riobaldo tece outras elaborações acerca do medo:
[...] Mas, medo, tenho; mediano. Medo tenho é porém por todos. É preciso de Deus existir
a gente, mais; e do diabo divertir a gente com sua dele nenhuma existência. O que há é
uma certa coisa – uma só, diversa para cada um – que Deus está esperando que esse faça.
Neste mundo tem maus e bons – todo grau de pessoa. Mas, então, todos são maus. Mas,
mais então, todos não serão bons? [...] (ROSA, 1978: 237)
O medo do qual Riobaldo fala nesse momento não é o medo de antigamente. É
medo “mediano” – que, para além de indicar sua intensidade, poderia ser compreendido a
107
partir do papel de mediação que passa a exercer. Mediação entre o Deus que “nos existe” e
do diabo que inventamos para dar sentido ao que não podemos compreender. Mediação
entre o “eu” e o outro – todos juntos. Tal tipo de compreensão, que enxerga o “bem” e o
“mal” (consciência e inconsciência?) como forças constitutivas de todos, nos faz também
quebrar a posição dicotômica que muitas vezes nos leva a crer que as pessoas se enquadram
em uma ou outra dessas categorias.
Em outro momento, ao saber da condição pactária de Hermógenes, Riobaldo tem
acesso ao que poderia ser compreendido como uma série de instruções para se realizar tal
tipo de pacto:
Eu ouvi aquilo demais. O pacto! Se diz – o senhor sabe. Bobéia. Ao que a pessoa vai, em
meia-noite, a uma encruzilhada, e chama fortemente o Cujo – e espera. Se sendo, há-de
que vem um pé-de-vento, sem razão, e arre se comparece uma porca com ninhada de
pintos, se não for uma galinha puxando barrigada de leitões. Tudo errado, remedante,
sem completação... O senhor imaginalmente percebe? O crespo – a gente se retém –
então dá um cheiro de breu queimado. E o dito – o Coxo – toma espécie, se forma! Carece
de se conservar coragem. Se assina o pacto. Se assina com sangue de pessoa. O pagar é a
alma. Muito mais depois. O senhor vê, superstição parva? Estornadas!... “O
Hermógenes tem pautas...” Provei. Introduzi. Com ele ninguém podia? O Hermógenes
– demônio. Sim só isto. Era ele mesmo. (ROSA, 1978: 40 – grifos meus)
Aquilo a que somos “imaginalmente” convidados por Riobaldo a perceber talvez
seja que a decisão para tornar-se pactário dependa de um ato de coragem. Bem adiante na
narrativa, entretanto, vemos que esta, mais do que coragem de decisão, era também
“recebida”, em consciência:
108
Afora eu. Achado eu estava. A resolução final, que tomei em consciência. O aquilo. Ah,
que – agora eu ia! Um tinha de estar por mim: o Pai do Mal, o Tendeiro, o Manfarro.
Quem que não existe, o Sôlto-eu, o Ele... Agora, por que? Tem alguma ocasião diversa das
outras? Declaro ao senhor: hora chegada. Eu ia. Porque eu estava sabendo – se não é que
fosse naquela noite, nunca mais eu ia receber coragem de decisão. Senti esse intimado.
[...] (ROSA, 1978: 316)
Chamo a atenção para os preparativos aos quais Riobaldo dedica a sua atenção
com o intuito de possibilitar esse “intimado”:
[...] Digo! Comecei. Tinha preceito. O que seja – primeiro, não se coma, não se beba, e é;
se bebe cachaça... um gole que era fogo solto na goela e nos internos. Não quebrava o
jejum do demo. [...] (ROSA, 1978: 305)
Interessante é notar que esses preparativos são uma fusão de dois ensinamentos
distintos por ele anteriormente recebidos. O primeiro é o ensinamento relacionado à
possibilidade de se efetuar um pacto com o diabo, tendo como base o que ouvira acerca de
Hermógenes (ROSA, 1978: 40) – onde se preconiza a possibilidade de se postar a esperar o
Cujo em uma encruzilhada, à meia-noite. O segundo vem a ser o ensinamento recebido de
compadre Quelemém (ROSA, 1978: 118), relacionado a uma “espécie de reza”, ao “desespero
quieto”, ao desapego – quando se pratica o jejum
100
e se abstém de todos os gostos a fim de
alcançar um desejo e no fim se abre mão desse desejo primeiro, oferecendo tudo a Deus.
Riobaldo faz as duas coisas ao mesmo tempo – seu “pacto” se dá pelo
cumprimento dos dois ensinamentos. Não há uma separação entre um pacto com o diabo e
um pacto com Deus. Ao mesmo tempo, há indícios que apontam para um pacto consigo
mesmo, que parece ser a entrega total a um ritmo que não controla.
100
A regra que dita o jejum de comida e bebida tem como exceção a ingestão de cachaça. Para além da aparente
incongruência, tal prática parece se alinhar com procedimentos rituais adotados em culturas xamânicas, onde o
jejum é acompanhado, por exemplo, da ingestão do Peiote. A prática de purificação representada pelo jejum é
então complementada pela ingestão cerimonial da substância psicoativa, cujo objetivo seria ampliar as
possibilidades de contato com outros níveis de realidade.
109
3.3.2.3 A AFINAÇÃO DO INSTRUMENTO
Um terceiro posicionamento frente à dualidade medo x coragem poderia ser
encontrado no momento da narrativa em que, no convívio com os jagunços, Riobaldo
começa a forjar a percepção de que atua como um instrumento. Atirando bem e se gabando
da própria pontaria, o jagunço recebe, então, a alcunha de Tatarana:
[...] E pois, conforme dizia, por meu tiro me respeitavam, quiseram pôr apelido em mim:
primeiro, Cerzidor, depois Tatarana, lagarta-de-fogo. Mas firme não pegou. Em mim,
apelido quase que não pegava. Será: eu nunca esbarro pelo quieto, num feitío? (ROSA,
1978: 126)
O apelido “Tatarana” é precedido por outro: “Cerzidor”, para o qual, além de uma
associação imediata ao tiro, também pode nos remeter a outros dois sentidos interessantes.
Tomando o primeiro desses sentidos, temos o cerzidor como aquele que cirze, que pratica o
cerzir – relacionado não apenas ao costurar (tecidos), mas igualmente relacionado à
possibilidade de se unir e juntar (níveis de realidade?), assim como à possibilidade de se tecer
ou compor. A este primeiro, se acopla também um segundo sentido, depreciativo: considera-
se cerzidor também o escritor cujos escritos são a compilação de trechos de outros
101
.
Como podemos ver, a mira e o tiro não são associados apenas à desagregação ou à
destruição, mas à possibilidade de unir o que estava separado, de se costurar. E o diabo não é
aquele que “separa”
102
? O tiro é associado ao tecer e ao compor. Esse tiro que se transforma
em verbo ao mesmo tempo traz à tona mais uma dimensão da composição: ela talvez não
101
Sob certo viés, poderíamos pensar nesse mecanismo como a presença da intertextualidade, algo
absolutamente presente na obra rosiana.
102
Numa referência a diabolus – aquele que separa.
110
seja originada naquele que atira, mas esse atua como um compilador de algo que vem de
outrem
103
.
Mas Riobaldo não é apenas Cerzidor, é também Tatarana – lagarta-de-fogo. A
tatarana (ou taturana) é aquela revestida por pêlos urticantes capazes de provocar
queimaduras na pele de quem as toca. Creio estarmos diante de diversos significados a
conviver nessa alcunha. Antes de mais nada, temos a lagarta, símbolo maior das etapas
intermediárias dos processos de transformação e metamorfose. A lagarta simboliza aquela
parte do ser que, limitada em sua própria condição e consciência, está fadada a morrer para
dar origem a uma perspectiva mais ampliada. Seu ritmo é lento, mas pode mudar: o que hoje
rasteja, um dia pode alçar vôo. Mas essa não é uma lagarta qualquer, ela é de fogo – fogo da
purificação, da transmutação e da inspiração. Creio que os simbolismos da lagarta e do fogo
potencializam-se mutuamente. Outro aspecto que creio complementar esse raciocínio: assim
como a lagarta acaba por trocar de pele, o efeito da tatarana é justamente sobre a pele,
queimando-a. Simbolicamente, a pele, por sua vez, pode nos trazer dois sentidos bem
importantes: assim como pode representar a nossa identidade (o modo como nos
mostramos ao outro), a pele também demarca os limites e as possibilidades de contato que
estabelecemos com o mundo. Tatarana, lagarta-de-fogo, põe-se então em um processo de
transmutação que coloca em xeque não apenas a sua própria identidade pessoal, mas a
demarcação de fronteiras que marca a sua relação com um universo complexo, composto por
incontáveis níveis de realidade: “Será: eu nunca esbarro pelo quieto, num feitio?”. O
movimento é o do seu próprio ser. E isso se faz pela via do tiro e da pontaria, ao mesmo
tempo inspiração e composição. Mire veja: o tiro acurado e o foco da visão referem-se a um
mesmo movimento.
103
Relacionado ao próprio ofício do escritor, podemos nos perguntar se esse tiro já nos remete ao lugar do
autor tal como compreendido por Barthes (1990) – algo que será retomado e discutido no decorrer desta tese.
111
Faço referência a Eugen Herrigel (2001), quando esse descreve seu aprendizado
com um mestre zen na arte do tiro com arco. Segundo seu relato, todo seu esforço pessoal,
como aprendiz, não era suficiente para atingir os altos feitos alcançados pelo mestre em seus
tiros. Ao se esforçar para acertar o alvo, algo se perdia e o alvo não era atingido. Como
arqueiro, aprende então a tensionar o arco mantendo-se relaxado. Simplesmente espera, se
desprendendo de si mesmo, buscando um estado ao qual denominam “tensão sem nenhuma
intenção”. Ele não sabe quando soltar a flecha, nem onde se encontra o alvo. Ocorre que,
quando chega à máxima tensão, livre da intenção do disparo, a flecha simplesmente se
desprende de sua mão – e o alvo é atingido. Este processo é denominado vontade passiva:
“algo” que é ele mesmo atira a partir de si próprio
104
. Quando pôde então, se desprender de si
mesmo e do próprio objetivo de alcançar o alvo, pôde deixar que algo – através de si –
atirasse, de modo a atingir o alvo. Algo atira e algo acerta.
Riobaldo diz que atira bem, que sua bala raciocina. Diz o alemão Vupes: “Senhor
atira bem, porque atira com o espírito. Sempre o espírito é que acerta...” (ROSA, 1978:
97)
105
. Podemos então pensar no tiro como uma espécie de rito, movimento cujo objetivo não
é exatamente o alvo, mas o contato com o espírito.
Talvez de forma a corroborar essas idéias, Riobaldo também traz a imagem
daquilo que parece ser uma espécie de “sintonia”:
[...] Lembro que naquela manhã também o calor era menos, e o ar era bondoso. Aí eu à
paz – com vontade de alegria – como se estimasse recebendo um aviso. Demorei bom
estado, sozinho, em beira d’água, escutei o fife dum pássaro: sabiá ou sací. De repente, dei
fé, e avistei: era Diadorim que chegando, ele já parava perto de mim. (ROSA, 1978: 181 –
grifos meus)
104
Utéza refere-se a algo semelhante, também ligado ao contexto do zen, ocasião em que também faz alusão à
fala do alemão Vupes: “o atirador, para unir o alvo ao projétil, deve-se transformar no intermediário pelo qual
passa o influxo do Cosmos – o espírito é que acerta.” (UTÉZA, 1994: 167).
105
Há autores como ainda teremos oportunidade de ver, e dentre os quais me incluo (KEENEY, 1991;
MARÇOLLA, 1996) – que utilizam a imagem desse arqueiro para melhor compreender os mecanismos
envolvidos na vivência estética. Seria a essa vivência o que a adesão a esse movimento nos conduz?
112
Por que digo sintonia? A uma disposição e estado interior (de paz), fazem-se
acompanhar os sinais que vêm da natureza (na figura dos pássaros) e que, por sua vez, estão
acoplados a um acontecimento externo aparentemente desconexo (a volta de Diadorim
106
).
Estimando – pela via do sentimento – se recebe um aviso. Diante de tal sintonia, pode-se
questionar a sensação de desamparo e de falta de sentido associados à vida. A sintonia
parece trazer à tona a possibilidade de que as coisas se pautem por outras ordens que não
apenas aquelas que regem a realidade ordinária. Acontecimentos e dimensões que, nos níveis
ordinários de realidade, nenhuma relação guardam entre si – podem mostrar uma estranha
sintonia entre si. Coincidências da vida, sintonia: Riobaldo afina os seus ritmos, exercitando
fineza de atenção.
[...] O que é de paz, cresce por si: de ouvir boi berrando à forra, me vinha idéia de tudo só
ser o passado no futuro. Imaginei esses sonhos. Me lembrei do não-saber. E eu não tinha
notícia de ninguém, de coisa nenhuma deste mundo – o senhor pode raciocinar. [...]
(ROSA, 1978: 218)
[...] O tanto assim, que até um corguinho que defrontei – um riachim à-tôa de
branquinho – olhou para mim e me disse: – Não... – e eu tive que obedecer a ele. Era para
eu não ir mais para diante. O riachinho me tomava a benção. Apeei. O bom da vida é para
o cavalo, que vê capim e come. Então, deitei, baixei o chapéu de tapa-cara. Eu vinha tão
afogado. Dormi, deitado num pelego. Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras,
vira flor. O que sinto, e esforço em dizer ao senhor, repondo minhas lembranças, não
consigo; por tanto é que refiro tudo nestas fantasias. Mas eu estava dormindo era para
reconfirmar minha sorte. Hoje, sei. E sei que em cada virada de campo, e debaixo de
sombra de cada árvore, está dia e noite um diabo, que não dá movimento, tomando conta.
Um que é o romãozinho, é um diabo menino, que corre adiante da gente, alumiando com
lanterninha, em o meio certo do sono. Dormi, nos ventos. Quando acordei, não cri:
tudo o que é bonito é absurdo – Deus estável. [...] (ROSA, 1978: 219 – grifos meus)
Dormindo nos ventos, Riobaldo transita pelas realidades ordinárias e extra-
ordinárias, pelo dia e pela noite, pela vigília e pelo sono. Através do reconhecimento das
forças que consegue nomear como “diabólicas”, por via da alteração de seu estado de
consciência, Riobaldo transcende o visível da própria natureza até alcançar o Deus estável,
106
Há de se ressaltar também a estreita associação entre Diadorim e os pássaros – a ser abordada nesta tese.
113
escondido atrás de tudo. E Deus surge como uma experiência estética, ao mesmo tempo
bonito e absurdo: é a força que constrói novos e inusitados sentidos para o que se supõe
conhecer.
[...] Mas o demônio não existe real. Deus é que deixa se afinar à vontade o
instrumento, até que chegue a hora de se dansar. Travessia, Deus no meio.
Quando foi que eu tive minha culpa? Aqui é Minas; lá já é a Bahia? Estive nessas vilas,
velhas, altas cidades... Sertão é o sozinho. Compadre meu Quelemém diz: que eu sou
muito do sertão? Sertão: é dentro da gente. [...] (ROSA, 1978: 235 – grifos meus)
Partindo dessas reflexões, Riobaldo antecipa elementos fundamentais dentro de
sua trajetória. A primeira, visível já na citação anterior, é a possibilidade de não dissociar as
forças de Deus e do diabo – que, aliás, não há. Se há, é a afinação do instrumento. Há uma
travessia pelo sertão – o dentro da gente – com Deus no meio, para que se afine o
instrumento e possamos dançar. Percebamos: tornamo-nos o instrumento, a música e o
próprio dançarino. Mas não estamos sós:
Eu penso é assim, na paridade. O demônio na rua... Viver é muito perigoso; e não é não.
Nem sei explicar estas coisas. Um sentir é o do sentente, mas outro é o do sentidor. O que
eu quero, é na palma da minha mão. Igual aquela pedra que eu trouxe do Jequitinhonha.
Ah, pacto não houve. Pacto? [...] (ROSA, 1978: 237)
Ao mesmo tempo em que viver é muito perigoso, não é não. Riobaldo apresenta
um mistério: “um sentir é o do sentente, mas outro é o do sentidor”. Parece a mesma lógica
do instrumento. O “sentente” seria aquele que emite o sentimento, a fonte da força, do
movimento – é o sopro, o compositor. O “sentidor” seria aquele que faz o papel do
instrumento, aquele através do qual o sentente se manifesta; o movimento visível. A
consciência do sentir de cada um é bem distinta, mas a música e o ritmo se dão pela união
dos dois. Essa idéia é central dentro a noção de “porosidade poética” que busco aqui
114
construir. Como terei ainda a oportunidade de aprofundar, a idéia básica é aquela que
concebe o artista como uma espécie de veículo, capaz de entrar em contato com outras
esferas, outros níveis de consciência, com forças “sententes”. Ao artista, “sentidor”, cabe
então retornar – ao seu nível ordinário de consciência, à sua esfera de origem – e expressar
essas forças e movimentos na forma de arte. O sentir do “sentente” se faz presença pela mão
do artista; assim torna-se concreto.
[...] Daí, depois, tudo recomeçou de novo, em mais bravo. E nisto, que conto ao senhor, se
vê o sertão do mundo. Que Deus existe, sim, devagarinho, depressa. Ele existe – mas
quase só por intermédio da ação das pessoas: de bons e maus. Coisas imensas no mundo.
O grande-sertão é a forte arma. Deus é um gatilho? (ROSA, 1978: 260)
[...] O que é que uma pessoa é, assim por detrás dos buracos dos ouvidos e dos olhos? Mas
as pernas não estavam. Ah, fiquei de angústias. O medo resiste por si, em muitas formas.
Só o que restava para mim, para me espiritar – era eu ser tudo o que fosse para eu ser, no
tempo daquelas horas. Minha o, meu rifle. As coisas que eu tinha de ensinar à minha
inteligência. (ROSA, 1978: 270)
O que é uma pessoa por detrás dos buracos dos olhos e ouvidos? Um oco?
Preenchido pelo quê? A Riobaldo restava se espiritar: ser tudo que era para ser naquele
momento. Mescla de desapego e confiança? A sua mão (não é Deus quem puxa o gatilho?),
seu rifle (a arma não é o sertão?): as coisas que tinha que ensinar à sua inteligência.
115
3.4 POSSIBILIDADES E IMPOSSIBILIDADES DE TRÂNSITO
Diante da natureza e “sobrenatureza” rítmica do sertão, entre as forças de Deus e
do demo, no enlace do medo ou no permeio da coragem, colocam-se possibilidades e
impossibilidades – modos de se transitar pela vida.
3.4.1 HERMÓGENES, A AUSÊNCIA DE MOBILIDADE
Se, até esse momento, vimos a forma como o movimento pode ser apreendido no
contexto de GSV, convém também que sondemos outras possibilidades. Por exemplo:
teríamos, no contexto da narrativa, representações da impossibilidade do movimento?
Após a morte da mãe e a ida para a fazenda São Gregório, onde ficaria com seu
padrinho, Riobaldo tem a oportunidade de conhecer Joca Ramiro, que chega com Ricardão e
Hermógenes ao seu lado. Chama atenção a descrição desse último:
[...] O outro – Hermógenes – homem sem anjo-da-guarda. Na hora, não notei de uma vez.
Pouco, pouco, fui receando. O Hermógenes: ele estava de costas, mas umas costas
desconformes, a cacunda amontoava, com o chapéu raso em cima, mas chapéu redondo de
couro, que se que uma cabaça na cabeça. Aquele homem se arrepanhava de não ter
pescoço. As calças dele como que se enrugavam demais da conta, enfolipavam em
dobrados. As pernas, muito abertas; mas, quando ele caminhou uns passos, se arrastava
– me pareceu – que nem queria levantar os pés do chão. Reproduzo isto, e fico pensando:
será que a vida socorre à gente certos avisos? Sempre me lembro dele, me lembro mal,
116
mas atrás de muitas fumaças. Naquela hora, eu estava querendo que ele não virasse a
cara. Virou. A sombra do chapéu dava até em quase na boca, enegrecendo. (ROSA, 1978:
91)
Esse homem que se apresenta pelos avessos, nas costas desconformes, é
mostrado a partir de características singulares se tomarmos como referência um simbolismo
em especial: consideremos o corpo humano como um grande mapa. Grosso modo, de um
ponto de vista da interpretação psicológica, a cabeça simbolizaria a morada da consciência,
diferenciando-o dos animais; o corpo estaria ligado à materialidade biológica constitutiva do
homem e seus instintos básicos; o pescoço estaria ligado às possibilidades de relacionamento
entre essas duas instâncias
107
.
No caso de Hermógenes, o que vemos é um chapéu raso em cima – como se fosse
uma cabaça por sobre sua cabeça – e sem pescoço. Ao andar arrastava as pernas, parecia que
não queria levantar os pés do chão. “Será que a vida socorre à gente certos avisos?” – pouco
depois de formular essa pergunta, Riobaldo, por detrás das fumaças de suas lembranças, se
recorda de quando o Hermógenes vira a sua cara e a sombra do chapéu enegrece todo o seu
rosto.
Esse aspecto sombrio de sua apresentação, tomado à luz do simbolismo há pouco
anunciado, me faz compreender essa personagem de forma oposta àquela pela qual é
compreendida em alguns estudos. Autores como Utéza (1994) – e não sem motivo –
associam Hermógenes à figura de Hermes
108
, mensageiro de Zeus na mitologia greco-
107
Adélia Bezerra de Menezes (2004), em um ensaio acerca de GSV, refere-se à obra Princípios de uma ciência
nova, do filósofo Giambatista Vico, publicada no século XVII. A partir da premissa de que a poesia precederia a
prosa, o filósofo aponta a importância do corpo no processo de formação de imagens e metáforas. Assim, nas
várias línguas, a maior parte das expressões das “coisas inanimadas” é efetuada por meio da translação do corpo
humano às coisas circundantes: à cabeça corresponderia o princípio, a frente e costas corresponderiam adiante
e atrás, à boca corresponderia abertura – entre outros exemplos citados. Mesmo que esta se diferencie da
interpretação que faço a partir do corpo de Hermógenestalvez essa perspectiva apresente interessante paralelo,
considerando os critérios diversos pelos quais se pauta.
108
Rosenfield (1989: 66-67) também faz alusão à figura de Hermes, mas de um modo um pouco distinto. A
estudiosa associa a figura de Hermógenes a , filho de Hermes – por relacioná-lo a uma forma de
117
romana. Segundo Commelin (1983: 56), Hermes representa o mensageiro ou intérprete,
exercendo seu ofício muitas vezes de forma pouco lícita, capaz de movimentos pelo céu,
terra e mundos infernais. Também chamado Mercúrio, era considerado o deus da eloqüência
e da arte de bem falar. Hermes também assume o papel de psicopompo, condutor da alma
dos mortos.
A minha interpretação, entretanto, conduziria à idéia de que Hermógenes
constitui a antítese de Hermes: o que o definiria seria justamente a ausência de mobilidade,
de trânsito e, conseqüentemente, de comunicação
109
. Retomo então os simbolismos
explicitados de cabeça, corpo e pescoço. A personagem surge como aquela que se apresenta
pelas costas desconformes do corpo. Há, em meu entender, uma ênfase na sua constituição
enquanto ser natural, corporal, ligado à dimensão material. E da matéria bruta, manifesta
pelos seus avessos e escuros. Como um complemento a essa hipertrofia corporal, temos uma
cabeça coberta pelas sombras, tapada por um chapéu raso de couro, espécie de escudo.
Reforçando essa idéia, não há pescoço. O que vejo é a atrofia da dimensão relacionada à
consciência, idéia trazida pelo chapéu “raso”, que se torna ainda mais evidente com a
ausência de pescoço, denotando a ausência de comunicação entre corpo e cabeça –
consciência e corporalidade.
Toda essa interpretação pode ficar ainda mais contundente se considerarmos um
elemento ligado à anatomia sutil humana, tal como considerada pelos orientais, que faz
racionalidade ligada ao prazer sádico e à destruição violenta. Do mesmo modo, a figura de Hermógenes
apareceria associada à vida indeterminada e não diferenciada. Em outro de seus estudos, Rosenfield (1993: 28-
29) considera a natureza do mal em GSV como um movimento mercuriano, não propriamente ligado à
metáfora demoníaca convencional, mas relacionado à problemática da abertura significante. O movimento
mercuriano de sentido seria aquele que põe em perigo regras, normas e limites que subsidiam o julgamento e a
ordem do pensamento. O movimento fugidio do mercúrio escaparia a toda possibilidade de controle e limite
racional. Vemos então que, para Rosenfield, Hermógenes não estaria associado à ausência de mobilidade, mas a
uma mobilidade e fluidez excessivas, geradoras de desordem.
109
Marinho (2002) também associa Hermógenes a uma linhagem que descende de Hermes e acrescenta que,
etimologicamente, daí também deriva a hermenêutica. Hermógenes – ao contrário do que sugere uma ciência
da interpretação – seria, segundo Marinho, uma personagem completamente privada de suas habilidades
discursivas.
118
referência a centros de energia localizados no corpo humano, designados chakras. Com
origem no sânscrito, onde significa “roda” ou “círculo”, o movimento da energia que circula
através de si de modo espiralado forma o desenho de um redemoinho (FIG. 4). Considerados
por Gerber como “[…] centros de energia especializados que nos ligam ao universo
multidimensional” (GERBER, 1997: 304), sua ativação se dá através das práticas espirituais
como a meditação ou a recitação de mantras. O importante é notar, na caracterização dos
chakras, como esses centros de energia constituem um modelo dinâmico que descreve a
forma como o homem e o mundo permutam energia
110
, de forma a romper a imagem das
rígidas barreiras que separariam um e outro. É também oportuno assinalar, no contexto
específico do que vem sendo abordado neste capítulo, que cada chakra é considerado um
centro energético
111
que vibra em uma freqüência específica – dotado, portanto, de uma
natureza eminentemente rítmica.
110
Retomarei esse ponto ao abordar a Kundalini, no capítulo seguinte.
111
Cada um dos chakras também estaria associado a lições emocionais e espirituais específicas, a serem
aprendidas. Tomados em conjunto, os chakras funcionariam em uma dinâmica energética, onde se torna
importante que cada um desses centros de energia não seja nem hipo nem hiperativo, de modo que o fluxo
energético sutil possa circular harmoniosamente. Os dois chakras inferiores são considerados como de natureza
fisiológica, estando ligados a processos de absorção, assimilação, excreção e reprodução. Estão também
relacionados ao senso de realidade, à ligação com a terra, à sexualidade e ao instinto de sobrevivência. Essas
seriam consideradas as questões mais “terrenas” do desenvolvimento espiritual e, enquanto não forem
corretamente elaboradas, a consciência ficaria impedida de ascender a níveis de concentração mais elevados. O
conjunto formado pelo terceiro, quarto e quinto chakras relacionam-se às questões ligadas ao desenvolvimento
pessoal e formação da individualidade. Incluiriam a criação de um senso de poder pessoal (em relação a si
mesmo e aos relacionamentos externos), ao desenvolvimento de uma modalidade mais elevada de amor
(dirigido a si e aos outros), assim como à comunicação e domínio da vontade (disciplina). Fisiologicamente,
estariam relacionados aos processos de digestão, purificação, circulação, respiração e defesa imunológica. Os
chakras principais superiores, por sua vez, são de natureza basicamente espiritual. O centro da testa ajudaria a
direcionar as forças espirituais superiores para o “terceiro olho”, numa relação direta com a intuição e a
clarividência. O chakra da coroa é o centro que ocupa a posição mais elevada, sendo ativado de forma especial a
partir de práticas meditativas ou buscas superiores. De maneira global, podemos compreender os três
primeiros chakras formando uma “tríade inferior com funções fisiológicas e de ligação com a terra”. Os três
chakras mais elevados formam a “tríade espiritual superior” – sendo que o chakra da garganta é aqui incluído
que também está relacionado à receptividade de influências vibracionais superiores através do mecanismo de
clariaudiência. O chakra cardíaco é compreendido como uma ponte para as tríades inferior e superior – já que se
considera que apenas a partir da manifestação da forma mais elevada de amor que o indivíduo poderá reunir
energias superiores e inferiores.
119
FIGURA 4 – A natureza multidimensional dos chakras
Fonte: BRENNAN, 2000: 74-75.
O sétimo chakra, situado no topo da cabeça, seria aquele responsável por
estabelecer a ligação entre o indivíduo e as influências espirituais superiores. No contexto da
cultura celta (MATTHEWS, 1999) há uma representação da alma em meditação (FIG. 5), em
que, no estágio de desenvolvimento espiritual ali representado, o topo da cabeça não mais se
encontra fechado, simbolizando a abertura a toda uma abrangência de forças espirituais. No
caso de Hermógenes vemos o contrário: seu chapéu-cabaça bloqueia essa possibilidade de
contato.
120
FIGURA 5 – A imagem celta da alma
transformada
Fonte: MATTHEWS, 1999: 45.
De forma resumida, a figura de Hermógenes remete à total impossibilidade de
comunicação e mobilidade, sob vários aspectos: (a) a impossibilidade de comunicação
intersubjetiva, já que se apresenta de costas e com a boca enegrecida; (b) a impossibilidade
de comunicação entre a dimensão corporal e a consciência humana; (c) a impossibilidade de
comunicação entre a consciência humana e influências espirituais superiores; (d) a
impossibilidade de comunicação em si, pela boca enegrecida de sombras; (e) a fixação
112
estática na própria esfera da natureza, pela via dos pés que resistem a se desgrudar do chão –
o que desvirtua a própria esfera, feita de movimentos, transformação e ritmo.
112
Para Utéza (1994: 163), GSV aborda a forma como o desejo humano de fixação só pode ser fonte de
problemas. Só se poderia confiar numa única permanência: a da mudança perpétua – de modo que o desafio do
homem liga-se à possibilidade de vincular sua vontade às orientações impostas pelo Cosmos a seus
componentes.
121
Por todos esses motivos, associo a figura de Hermógenes a um aspecto sombrio
da natureza
113
, aos níveis mais materiais da realidade ordinária, assim como também associo
a sua figura à própria imagem do diabo. Consideremos então a tríplice associação:
Hermógenes ' aspecto sombrio dos níveis ordinários de realidade ' diabo. É importante,
entretanto, que fique claro que não há uma total correspondência entre as figuras de
Hermógenes e o diabo: é como se o primeiro fosse uma parte ou aspecto do segundo. Associo
a figura do Diabo à esfera da realidade ordinária como um todo, na sua dinâmica de ritmos e
transformações; Hermógenes, por sua vez, estaria associado a um aspecto sombrio dessa
mesma esfera. Nessa lógica, Hermógenes seria uma espécie de degeneração do próprio diabo.
Riobaldo traz um outro elemento crucial para esta reflexão, ao perguntar a
Diadorim o motivo pelo qual alguém como Joca Ramiro – homem subido, de nobres
costumes, “rei da natureza” – teria como alferes Hermógenes, do mal. A essa indagação,
Diadorim apresenta um argumento decisivo: “Você acha que a gente corta carne é com quicé,
ou é com colher-de-pau?” (ROSA, 1978: 132).
O papel de “quicé” – faca velha e carcomida – atribuído a Hermógenes lembra a
própria imagem de seu corpo. Seu uso também remete à associação à qual tenho feito alusão
em alguns momentos, relacionando a figura de Hermógenes a uma deturpação, estagnação
ou sombra da esfera da natureza, dos níveis ordinários do real. Dentre as funções de Joca
Ramiro – rei da natureza – há aquelas “menos nobres”, porém necessárias, para as quais o
alferes Hermógenes justifica sua existência. A quicé que corta a carne remete à imagem do
lado mais cru, material e instintivo da realidade ordinária – ligado à violência, à
agressividade, à assimilação e destruição da matéria. Processos necessários para que a
113
Essa percepção parece sintonizada com a de Arrigucci (1994: 17) ao relacionar a figura de Hermógenes a um
fundo arcaico do sertão, ao reino de uma mitologia ctônica. Sperber (1982: 127) também parece seguir essa
direção relacionando Hermógenes a um aspecto caótico, fluido e amorfo do mundo – inimigo da organização.
122
natureza se mantenha em movimento, para que a mudança tenha lugar, para que um ritmo
se imponha.
Em meu entender, as figuras de Joca Ramiro e Hermógenes – representantes de
distintas dimensões da natureza – relacionam-se a forças que, atuando conjuntamente,
compreendem certo equilíbrio. Forças harmônicas e de destruição, funcionando em
conjunto, conferem possibilidade de desenvolvimento à dimensão ordinária; juntas,
significam movimento e transformação – ritmo. Qualquer uma delas atuando
separadamente, conduzirá à estagnação. Como se vê adiante na narrativa, a morte de Joca
Ramiro pelas forças de Hermógenes e conseqüente ímpeto de vingança – principalmente por
parte de Diadorim – talvez tenha como fundamento a restauração dessa dinâmica que, por
sua vez não significa a harmonia absoluta, mas, repito, o equilíbrio de forças.
3.4.2 OS RITMOS DO PACTÁRIO
Seria imprudente, ao buscarmos analisar o ritmo em GSV, não abordar a relação
entre essa perspectiva e um dos elementos centrais presentes na narrativa: o
estabelecimento do pacto. Acredito que uma das grandes transformações que se operam em
Riobaldo ao tornar-se o chefe Urutu-Branco diga respeito justamente à sua adesão ao ritmo.
Ressalto o modo como, a partir do pacto, muitos dos elementos que busquei abordar neste
diálogo com o ritmo são novamente trazidos à tona.
123
O primeiro ponto que destaco e o modo como esse Riobaldo pactário nos dá
pistas de como a grande transformação que se opera é na sua própria consciência, agora
capaz de se conduzir, ordinariamente, de forma extra-ordinária. Uma nova forma de se
movimentar pela vida.
[...] Assaz a gente vive, assaz alguma vez raciocina. Sonhar, só, não. [...]
Sabendo que, de lá em diante, jamais nunca eu não sonhei mais, nem pudesse; aquele jogo
fácil de costume, que de primeiro antecipava meus dias e noites, perdi pago. Isso era um
sinal? Porque os prazos principiavam... E, o que eu fazia, era que eu pensava sem querer,
o pensar de novidades. Tudo agora reluzia com clareza, ocupando minhas idéias, e de
tantas coisas passadas diversas eu inventava lembrança, de fatos esquecidos em muito
remoto, neles eu topava outra razão; sem nem que fosse por minha própria vontade. Até
eu não puxava por isso, e pensava o qual, assim mesmo, quase sem esbarrar, o todo
tempo.
Nos começos, aquilo bem que achei esquipático. Mas, com o seguinte, vim aceitando esse
regime, por justo, normal, assim. E fui vendo que aos poucos eu entrava numa alegria
estrita, contente com o viver, mas apressadamente. [...] (ROSA, 1978: 321)
Ocorre uma mudança radical no seu nível de consciência, como se de repente
entendesse que o antes vivido era sonho – agora ele estava desperto. E desperto, era um
visionário, tomando consciência de fatos distantes no tempo e no espaço; sua razão havia
mudado. Ao mesmo tempo, essa nova forma de estar no mundo parece trazer a ele um
estado de leveza e alegria. Em outras passagens ele se referira a esse mesmo sentimento, o
qual eu descreveria como confiança – o contrário do medo. Não há mais uma necessidade de
controle; todos os caminhos são bons:
[...] foi então que me disse que o extravio nosso tinha sido mais completo; porque a gente
tinha vindo em má rota, em vez da Virgem-Mãe para a Virgem-da-Laje. Eu escutei, tei.
Em outras ocasiões, uma notícia dessas era capaz de me perturbar. Mas, dessa viagem, eu
achava até divertido. Figuro explicando ao senhor: desde por aí, tudo o que vinha a
124
suceder era engraçado e novo, servia para maiores movimentos. Com essas levezas eu
seguia a vida. (ROSA, 1978: 324)
Bem mais adiante em sua trajetória como Urutu-Branco, o modo como Riobaldo
enxerga os próprios caminhos revela um pouco mais dessa nova perspectiva:
[...] Aonde eu ia, todos achavam natural. Chefe é chefe. Será que eles não sabiam que eu
não sabia aonde ia? Isto é – digo – isto é. Não soubessem os começos e os finais. Dalgum
modo, eu estava indo e sabendo. Sobre como é que a coruja conseguiu modo de poder voar
sem se escutar o rumor do vôo? [...] (ROSA, 1978: 367)
Começa a surgir a perspectiva de que, pessoalmente, não se sabe e não se
comanda. Riobaldo ia e sabia por outros meios – como a coruja cujo vôo não se escuta.
Riobaldo começa a perceber que é diverso em si mesmo.
O tema da coragem, presente desde sempre em suas travessias, vem de novo à
tona. Para nos mostrar o que mudou em relação a tal questão, Riobaldo conta a história do
que se passou num arraial triste, chamado Carujo (ROSA, 1978: 379). Tendo o povo de lá
fugido às pressas por conta de guerra ou pressa, deixaram dentro da igreja um morto entre
as velas. Passados alguns meses, ao reabrirem a igreja, o defunto havia secado sozinho.
Riobaldo não dá maiores explicações acerca do sentido que atribui à história, mas logo após
vem falar de coragem e de coração.
A idéia de coragem parece adquirir um novo sentido, agora relacionado à
fidelidade em relação ao próprio coração, cuja conquista é a grande travessia: “Que: coragem
– é o que o coração bate; se não, bate falso. Travessia – do sertão – é toda travessia.” (ROSA,
125
1978: 379). Não se pode deixar matar o próprio coração e deixá-lo esquecido como um
defunto para que seque sozinho. A coragem é a de não abandonar nunca esse coração. Essa
parece ser a travessia.
Com esse novo tom, Riobaldo se vê às voltas com um caminho novo, o seu
projeto: atravessar o Liso do Sussuarão. Travessia que tem como condição uma outra
travessia, preliminar: a travessia dos vãos, dos ocos – os quais se esmera em descrever
(ROSA, 1978: 380-381), e que, acredito, remetam à travessia do próprio coração, sede do
ritmo interno. Coração e vão: espaços de dentro do homem e de dentro do sertão, onde os
dois se misturam.
A idéia de Riobaldo era atravessar o Liso e atacar a fazenda de Hermógenes. Essa
era a segunda vez que tentaria atravessar aquele lugar, sendo a primeira – com todos os
preparativos feitos e ainda sob o comando de Medeiro Vaz – extremamente sofrida e
infrutífera. Dessa vez tudo era bem diferente:
Porque, o que eu estava mandando, nem Medeiro Vaz mesmo não teria sido capaz de crer:
eu queria tudo, sem nada! Aprofundar naquele raso perverso – o chão esturricado,
solidão, chão aventêsma – mas sem preparativos nenhuns, nem cargueiros repletos de
bom mantimento, nem bois tangidos para carneação, nem bogós de couro-crú
derramando de cheios, nem tropa de jegues para carregar água. Para que eu carecia de
tantos embaraços? Pois os próprios antigos não sabiam que um dia virá, quando
a gente pode permanecer deitada em rede ou cama, e as enxadas saindo
sozinhas para capinar roça, e as fôices, para colherem por si, e o carro indo por
sua lei buscar a colheita, e tudo, o que não é o homem, é sua, dele, obediência?
Isso, não pensei – mas meu coração pensava. Eu não era o do certo: eu era era o da
sina! E nem enviei adiante nenhuma patrulha de farejadores – nem Suzarte, Nelson ou o
Quipes, que tapejassem; nem o Tipote para trilhar e entender, ver se divulgava os
socorros: alguma grota duvidável d’água. (ROSA, 1978: 382-383 – grifos meus)
Seu coração pensava; orientação através do ritmo. Sendo assim, acredito
podermos compreender essa segunda tentativa de travessia do Liso como uma segunda
forma de adesão ao ritmo da realidade ordinária – não mais pautada pela necessidade de
controle e de antecipação. Riobaldo confia na possibilidade da travessia e pronto. E se confia,
126
não é a partir de um movimento reflexivo ou esforço intelectual: confia sem sequer saber;
quem sabe é o seu coração. Riobaldo parece assumir uma outra forma de lidar com a
realidade, confiando que o rumo das coisas não depende exatamente de sua intenção e de
suas forças, mas que há algo que independe do homem e que pode agir por si.
A palavra de ordem do bando diante da partida iminente é uma abertura para a
possibilidade de morte – em brados que anunciam não uma atitude que antecipa o fim, mas
que escancara o desapego e a confiança. Ao contrário da morte, o que se anuncia é a
possibilidade de vida da alma:
– “Se amanhã meu dia for, em depois-d’amanhã não me vejo.”
– “Antes de menino nascer, hora de sua morte está marcada!”
– “Teu destino dando em data, da meia-noite tu vivente não passa...”
Os que diziam assim eram todos eles, secundando os cabecilhas. Valentes que eram, e
como foram se animando. [...] (ROSA, 1978: 383 – grifos meus)
“Soltando rédeas”, Riobaldo entra nos horizontes:
O senhor vê e vê? Alguém a alto me levou, alguém, salvo a um seguinte. Águas não
desmanchavam meu torrão de sal. Ah, nem eu não tive incerteza em mente. Assim
fomos. Aí eu em frente adiante.
A fortes braços de anjos sojigado. O digo? Os outros, a em passo em passo,
usufruíam quinhão da minha andraja coragem. Rasgamos sertão. Só o real. Se passou
como se passou, nem refiro que fosse difícil-ah; essa vez não podia ser! Sobrelégios? Tudo
ajudou a gente, o caminho mesmo se economizava. As estrelas pareciam muito quentes.
Nos nove dias, atravessamos. Todos; bem, todos, tirante um. Que conto.
O que era – que o raso não era tão terrível? Ou foi por graças que achamos todo
o carecido, nãostante no ir em rumos incertos, sem mesmo se percurar? De
melhor em bom, sem os maiores notáveis sofrimentos, sem em-errar ponto. O que era,
no cujo interior, o Liso do Sussuarão? – era um feio mundo, por si, exagerado.
[...] (ROSA, 1978: 384 – grifos meus)
Temos aqui a idéia do Liso como o “real”, a esfera dos níveis ordinários de
realidade, que não é tão terrível assim. A idéia é do Liso como uma condensação dos aspectos
mais densos da realidade ordinária – “um feio mundo, por si, exagerado”. Ao mesmo tempo,
127
temos o esboço de um novo agir, ao qual antes também fiz alusão: a possibilidade de
transitar pela vida conduzido por outras forças que não a força do intelecto ou a intenção
consciente. Riobaldo se vê conduzido por algo do “alto”, em fortes braços de anjos. Essa
atitude de abrir mão de um controle teleológico, ao invés de torná-lo inseguro, parece fazer o
contrário: revelar sua coragem, desfazer suas incertezas. O contraste entre um agir
“teleológico” (ligado a uma primazia do “eu”) e um agir “intuitivo” (ligado a algo que
transcende o indivíduo) é explicitado um pouco adiante: “[...] Mas Zé Bebelo era projetista.
Eu, eu ia era por meu constante palpite. Usando de toda a ajuda que me vinha [...].” (ROSA,
1978: 386). Com essa postura, a segunda travessia do Liso não apenas é possível, como
infinitamente mais tranqüila do que a tentativa inicial.
Outra dimensão presente nessa segunda travessia é também revelada por
Riobaldo: a afirmação da intersubjetividade. A idéia é anônima. A força se dá pela informação
que circula entre todos, diversos em seus caminhos. Isso torna a travessia possível. Não há
mais a primazia de um:
De justiça, digo, também: uma regra se teve, sem se saber de quem foi que veio a idéia
dessa combinação. Qual foi que a gente se apartou, em grupos de poucos, jornadeando
com a maior distância aberta. Mas que, assim, quando um avistasse qualquer coisa
diversa, podia dar sinal, chamando os outros para novidade boa. (ROSA, 1978: 384-385)
Outro elemento a ser destacado é o modo como, a partir desses novos
movimentos, se transforma também a percepção que se tem da realidade. Essa perspectiva é
128
ilustrada no momento em que Riobaldo chega ao Verde-Alecrim (ROSA, 1978: 397), povoado
com apenas sete casas, para logo depois retomar seu caminho que agora permeia e mistura:
Pelo que, do trecho, voltamos. Para mais poente do que lá, só urubùretamas. E o
caminho nosso era retornar por essas gerais de Goiás – como lá alguns falam.
O retornar para estes gerais de Minas Gerais. Para trás deixamos várzeas,
cafundão, deixamos fechadas matas. O joão-congo piava cânticos, triste lá e ali em mim.
Isto é, minto: hoje é triste, naquele tempo eram as alegrias. Suassú-apara corria da gente,
com a cabeça empinada quase nas costas, protegendo para não prender nas árvores sua
galhadura dele. Galheiro suassú-pucú com sua fêmea suassú-apara. Um dia, vez, se
matou uma sucurí, de trinta-e-seis palmos, que de ar engravidava. Dava lugares, em que,
de noite, se estava de repente no cabo do revólver, ou em carabinas, mesmo; e carecia de
se acender maiores fogueiras, porque, no cheio oco do escuro, podia vir cruzar permeio à
gente algum bicho estranhão: formas de grandes onças, que rodeando esturravam, ou a
mãe-da-lua, de vôo não ouvido, corujante; ou de supetão, às brutas, com forte
assovio, vindo do lado do vento, algum macho d’anta, cavalo-rão. E foi aí que o Veraldo,
que era do Serro-Frio, reconheceu uma planta, que se chamasse guia-torto, se
certo suponho, mas que se chamava candêia na terra dele, a qual se acendia e
prendia em forquilha de qualquer árvore, ela aí ia ardendo lumiosa, clara,
feito uma tocha. (ROSA, 1978: 401 – grifos meus)
Considero essa passagem interessante pois ela revela a forma como as
“substâncias” vão se misturando umas às outras. Essa parece ser uma característica especial
da arte e da linguagem de GSV: pela sua própria constituição e ritmo, suas formas são
sempre híbridas
114
, a mostrar a interpenetração das substâncias. Um bom exemplo são as
próprias palavras – vivas e novas – que constituem GSV e que muitas vezes revelam
justamente o modo como os elementos se interpenetram.
O trecho anterior é um bom exemplo desse funcionamento. “Gerais” são essas ou
estes, de Goiás ou Minas Gerais. A mãe-da-lua, corujante, é de fato uma coruja, também
conhecida como “urutau”: o que remete a urutu e nos coloca diante do híbrido cobra-coruja.
Temos ainda os muitos nomes para as mesmas coisas: a planta “guia-torto” é também
“candêia”. Os sentidos da realidade são móveis – como os lugares. Sentidos que iluminam. A
114
É também no Verde-Alecrim que temos um outro exemplo interessante desse hibridismo: Riobaldo passa a
noite com Maria-da-Luz e Ageala – entre a morena e a branca, “no meio delas duas, juntamente” (p. 398), no
meio da noite, descobrindo que seu corpo tinha “duros e macios”.
129
todo o tempo Riobaldo repete a seu interlocutor: “Eu conto; o senhor me ponha ponto.”
(ROSA, 1978: 401) – numa referência possível justamente a esse caráter móvel das palavras,
dos sentidos e da própria realidade. Riobaldo parece confirmar essas idéias um pouco
adiante:
[...] E glose: manter firme uma opinião, na vontade do homem, em mundo transviável tão
grande, é dificultoso. Vai viagens imensas. O senhor faça o que queira ou o que não queira
– o senhor toda-a-vida não pode tirar os pés: que há-de estar sempre em cima do sertão.
O senhor não creia na quietação do ar. Porque o sertão se sabe só por alto. Mas, ou ele
ajuda, com enorme poder, ou é traiçoeiro muito desastroso. O senhor... (ROSA, 1978:
402)
Iniciando a batalha que tem lugar no Paredão, Riobaldo nos mostra, ainda, um
modo do seu comandar completamente novo: parando quieto e tendo coragem.
[...] Eu tinha de comandar. Eu estava sozinho! Eu mesmo, mim, não guerreei. Sou Zé
Bebelo?! Permaneci. Eu podia tudo ver, com friezas, escorrido de todo medo. Nem ira eu
tinha. A minha raiva já estava abalada. E mesmo, ver, tão em embaralhado, de que é que
me servia? Conservei em punho meu revólver, mas cruzei os braços. Fechei os
olhos. Só com o constante poder de minhas pernas, eu ensinava a quietidão a
Siruiz meu cavalo. E tudo perpassante perpassou. O que eu tinha, que era a minha
parte, era isso: eu comandar. Talmente eu podia lá ir, com todos me misturar, enviar por?
Não! Só comandei. Comandei o mundo, que desmanchando todo estavam. Que
comandar é só assim: ficar quieto e ter mais coragem.
Mais coragem que todos. Alguém foi que me ensinou aquilo, nessa minha hora? Me
vissem! Caso que, coragem, um sempre tem poder de mais sorver e arcar um excesso –
igual ao jeito do ar: que dele se pode puxar sempre mais, para dentro do peito,
por cheio que cheio, emendando respiração... À fé, que fiz. Se não vivei Deus, ah,
também com o demo não me peguei – refiro –; mas um nome só eu falava, fortemente
falado baixo, e que pensado com mais força ainda. E que era: – Urutú Branco!... Urutú
Branco!... Urutú Branco!... Cujo era eu mesmo. Eu sabia, eu queria. (ROSA, 1978: 418-
419 – grifos meus)
130
Parar quieto é também uma forma de deixar o mundo se movimentar. E ele se
movimenta mesmo; então carece de muita coragem: “E tudo perpassante perpassou.”.
Desprovido de ira, pôde montar o seu cavalo debaixo de uma árvore, cruzar seus braços e
fechar os olhos. Coragem e confiança. Não era mais Deus nem demo. Era ele e o mundo ao
redor, perpassantes. O “Cujo” era ele mesmo. Como o ar que puxa de fora e vem para seu
peito – para depois ser devolvido ao mundo; depois retornando novamente para o dentro de
si. Coragem ou ritmo? Riobaldo parece, neste momento, chegar ao ápice de um longo
processo marcado pelo desmonte de estruturas outrora rigidamente construídas: a primazia
do próprio “eu”, as barreiras que separam as dimensões e esferas, a dualidade constitutiva da
realidade, a ilusão das formas e dos opostos. Porosidade?
O tiroteio de guerra continua. Riobaldo atira em Ricardão quando este se
aproxima de Diadorim. Será, no entanto, ele mesmo quem atira?
[...] Caminhou mais. Sendo que – e, aí, foi minha idéia? – ah, não; mas vi que
Diadorim, de ódio, ia pular nele, puxar faca. Só fiz fim: num tirte-guarte: atirei, só um
tiro. O Ricardão arriou os braços, deu o meio do corpo, em bala varado. Como no cair,
jogou uma sua perna para lá e para lá. Como caíu, se deitou. Se deitou, conforme quase
não estivesse sabendo que morria; mas nós estávamos vendo que ele já morto já estava.
Acho deveras que todo o mundo respirou com suspiro. Digo que esta minha mão
direita, quase por si, era que tinha atirado. Segundo sei, ele devolveu Adão à lama.
Só estas minhas artes de dizer – as fantasias... (ROSA, 1978: 422 – grifos meus)
Lembro-me do arqueiro zen: algo atira e algo acerta... Poroso, Riobaldo tem uma
mão que atira “quase por si” a partir de uma idéia que não foi dele. Tornando-se instrumento
do mundo, Riobaldo dá uma outra “dica” interessante: ao movimento que por si passou,
acrescenta o comentário acerca das artes de dizer. Estas, “as fantasias”, são seguidas por
reticências, sugerindo a possibilidade de outras significações.
131
Percorrendo “os ritmos do pactário”, vemos o modo como, através de sua
travessia, Riobaldo vai modificando seus movimentos, formas de relação e sentidos que
atribui à realidade. Algumas fronteiras tornam-se menos rígidas. A possibilidade de
transcender os limites da realidade ordinária, bem como o caráter estético envolvido em
novas formas de relação com o mundo, com o outro e consigo mesmo já estão colocados em
pauta. Sobre o suporte formado pelo ritmo, outras construções têm lugar.
Diante de tudo isso, considero significativa a imagem de Nehelania, deusa celta
que protege e abre os caminhos, retratada como dançarina. A partir da adesão aos ritmos do
mundo, essa deusa é aquela que guarda e abre passagem não apenas para os caminhos das
estradas e das águas, mas também para os caminhos dos sonhos.
FIGURA 6 – Nehelania
Fonte: MATTHEWS, 1999: 35.
Muitos são os caminhos. Alguns, ordinários; outros, transcendentes. Haveria
ocasiões em que eles se encontram.
132
4
TRANSCENDÊNCIA
Em GSV, a partir da base formada pelo ritmo, constituem-se diversas aberturas
para dimensões transcendentes, relacionadas não apenas à ampliação da consciência, mas
também à constituição de fenômenos não pertencentes aos níveis de realidade que
ordinariamente consideramos. Transcender implica fazer a ultrapassagem dessas fronteiras
– tornando-as mais flexíveis e porosas. Sua importância não estaria ligada apenas ao contato
com o extra-ordinário, mas a uma articulação entre níveis distintos de realidade, à
constituição de novas formas de relação com o mundo – construções onde a arte ocupa um
lugar privilegiado.
133
4.1 A CONSTITUIÇÃO DO CENTAURO
Uma dos elementos que considero mais fundamentais na trajetória de Riobaldo
liga-se de forma direta ao relacionamento que esse estabelece com os cavalos
115
:
Ah, eu estou vivido, repassado. Eu me lembro das coisas, antes delas acontecerem... Com
isso minha fama clarêia? Remei vida solta. Sertão: estes seus vazios. O senhor vá.
Alguma coisa, ainda encontra. Vaqueiros? Ao antes – a um, ao Chapadão do Urucúia –
aonde tanto boi berra... Ou o mais longe: vaqueiros do Brejo-Verde e do Córrego do
Quebra-Quináus: cavalo deles conversa cochicho – que se diz – para dar sisado
conselho ao cavaleiro, quando não tem mais ninguém perto, capaz de escutar.
Creio e não creio. Tem coisa e cousa, e o ó da raposa... [...] (ROSA, 1978: 27 – grifos
meus)
Na passagem acima, chamo a atenção, inicialmente, para o modo como o
“lembrar das coisas antes delas acontecerem”, ao mesmo tempo em que remete ao caráter
não-linear da narrativa de Riobaldo frente a seu interlocutor, também pode ser
compreendido como um estado alterado de consciência, ligado à possibilidade de “vidência”.
A este último aspecto, soma-se o caráter também extra-ordinário da comunicação que se dá
entre os vaqueiros e seus cavalos. Esse primeiro indício do relacionamento que o homem
estabelece com o cavalo em GSV é seguido por muitos outros.
No primeiro encontro que Riobaldo tem com Joca Ramiro e seus companheiros,
chegam à fazenda São Gregório uns cem cavaleiros:
115
No contexto das culturas xamânicas (RICE, 2000) o cavalo é visto como o grande meio de transporte, não
apenas físico, mas também espiritual – sendo associado ao tambor. Tendo como base o seu ritmo – as passadas
do cavalo, a batida do tambor – o xamã tem acesso às suas jornadas pelos níveis extra-ordinários de realidade.
No contexto da cultura celta (MATTHEWS, 1999: 31), por sua vez, temos também a valorização desse animal,
reverenciado através do culto a Epona, que não apenas é considerada a deusa dos cavalos, a divindade a quem se
recorre quando há obstáculos a serem superados, como também é aquela que abre os portais do Underworld
para a alma dos mortos. Temos, desta forma, mais uma associação dos cavalos à possibilidade de acesso a
outras dimensões ou níveis de realidade.
134
Aí mês de maio, falei, com a estrela-d’alva. O orvalho pripingando, baciadas. E os grilos
no chirilim. De repente, de certa distância, enchia espaço aquela massa forte,
antes de poder ver eu já pressentia. Um estado de cavalos. Os cavaleiros.
Nenhum não tinha desapeado. E deviam de ser perto duns cem. Respirei: a gente
sorvia o bafejo – o cheiro de crinas e rabos sacudidos, o pêlo deles, de suor velho, semeado
das poeiras do sertão. Adonde o movimento esbarrado que se sussurra duma
tropa assim – feito de uma porção de barulhinhos pequenos, que nem o dum
grande rio, do a-flor. A bem dizer, aquela gente estava toda calada. Mas uma sela
range de seu, tine um arreaz, estribo, e estribeira, ou o coscós, quando o animal lambe o
freio e mastiga. Couro raspa em couro, os cavalos dão de orelha ou batem com o pé.
Daqui, dali, um sopro, um meio-arquejo. E um cavaleiro ou outro tocava manso sua
montada, avançando naquele bolo, mudando de lugar, bridava. Eu não sentia os
homens, sabia só dos cavalos. Mas os cavalos mantidos, montados. É diferente.
Grandeúdo. E, aos poucos, divulgava os vultos muitos, feito árvores crescidas lado a
lado. E os chapéus rebuçados, as pontas dos rifles subindo das costas. Porque eles não
falavam – e restavam esperando assim – a gente tinha medo. Ali deviam de estar alguns
dos homens mais terríveis sertanejos, em cima dos cavalos teúdos, parados
contrapassantes. Soubesse sonhasse eu? (ROSA, 1978: 92 – grifos meus)
Ao falar com a estrela d’alva, sabendo-sonhando, Riobaldo depara com os
cavaleiros. E “[...] não sentia os homens, sabia só dos cavalos. Mas os cavalos mantidos,
montados. É diferente.. Grandeúdo”. O movimento da tropa produz um som que é também
o som dos rios. Cavalos mesclam-se às veredas. O que encanta Riobaldo não são nem os
homens, nem os cavalos; encanta-se é com algo de natureza distinta, que não é um nem
outro, mas os dois ao mesmo tempo. É diferente e “grandeúdo”. Trago a imagem do
centauro
116
, e não a trago por acaso.
Fazendo um grande contraponto à perspectiva representada por Hermógenes – a
impossibilidade de contato entre níveis de consciência e entre esferas da realidade – a figura
do centauro vem a representar justamente a possibilidade ampliada desses contatos.
Tomando como referência inicial a mitologia greco-romana, vemos que o
centauro está associado à figura de Quíron (COMMELIN, 1983: 219). Meio homem e meio
cavalo, o centauro representa o ser que consegue integrar suas características humanas e
116
Consuelo Albergaria (1977: 105), ao discutir o simbolismo e importância do cavalo na obra, já faz alusão à
figura do centauro em GSV, compreendendo-o como o duplo aspecto do homem: racional e bestial. O duplo
Riobaldo-Siruiz, por sua vez, representaria o binômio bem x mal, em que o “cavalo diabólico” representa as
forças do instinto controladas pelas forças da razão.
135
animais. Sábio, conhecedor das plantas medicinais e da astronomia, foi quem ensinou a
Hércules a medicina, a música e a justiça. Seu nome, uma derivação do grego queir (mão), é
uma referência às suas habilidades. Outro detalhe interessante é que foi Quíron quem
preparou o calendário que serviu à expedição dos argonautas. Está relacionado também ao
arquétipo do “curandeiro ferido” – por causa de uma flecha disparada por Hércules que o
atinge no joelho, causando um ferimento incurável.
Não desconsidero a importância de todo esse simbolismo associado ao centauro
Quíron, aquele que lida com a música, com as plantas, com as estrelas, com o tempo, com a
dor e com os limites – encarnando muitas das dimensões relacionadas à experiência na
esfera da natureza e na realidade ordinária. Mas talvez signifique ainda mais que isso.
Para mim é muito significativo que a canção de Siruiz faça sua apresentação
justamente a partir da aparição dos cavaleiros na madrugada. Como se verá, há a freqüente
associação entre essa condição específica do ser – homem e cavalo; centauro – e o fazer
poético.
[...] Um falou mais alto, aquilo era bonito e sem tino: – “Siruiz, cadê a moça virgem?”
Largamos a estrada, no capim molhado meus pés se lavavam. Algum, aquele Siruiz,
cantou, palavras diversas, para mim a toada toda estranha:
Urubú é vila alta,
mais idosa do sertão:
padroeira, minha vida –
vim de lá, volto mais não...
Vim de lá, volto mais não?...
Corro os dias nesses verdes,
meu boi mocho baetão:
burití –água azulada,
carnaúba – sal do chão...
Remanso de rio largo,
viola da solidão:
quando vou p’ra dar batalha,
convido meu coração...
Vinham quebrando as barras. Dia de maio, com orvalho, eu disse. Lembrança da gente é
assim.
136
Me emprestaram um cavalo, e eu fui, com o Alaripe, esperar a chegada da tropa de
burros, adiante, na boca da ponte. [...] O dia já estava clareando completo. Meu coração
restava cheio de coisas movimentadas. (ROSA, 1978: 93-94)
Essa talvez seja a única vez em que o jagunço Siruiz
117
aparece na narrativa, ao
contrário de sua canção
118
, adotada por Riobaldo a partir de então. Novamente, a expressão
artística se faz presente após um momento significativo da experiência de Riobaldo – tal
como se deu nos versos cantados pelo barranqueiro no momento em que se completa a
travessia do São Francisco. Mas essa não parece ser uma arte qualquer: em resposta àquele
que fala bonito e sem tino, Siruiz canta uma toada estranha. Essa arte parece lidar com outras
lógicas... altas artes dos jagunços?
Em muitos momentos na narrativa de Riobaldo surgem alusões à relação que se
dá entre o humano e o animal – não apenas como entes distintos, mas como elementos
constitutivos de um mesmo ser. Assim, em um outro momento, após o retorno de Diadorim
que estava ausente, temos novamente a alusão a esses aspectos: ao montar num cavalo,
Riobaldo parece remetido a uma condição mais que humana.
[...] Daí, tivemos mando, no Poço-Triste, de tornar a amontar nos animais. Aquilo
era uma alegria. Minha alma estava: o troteio, a poeirada que levantavam, os
117
Como veremos, Siruiz vai se transformando em um depositário de múltiplas significações e sentidos no
decorrer da obra: jagunço (inicialmente vivo, depois em espírito), canção e cavalo.
118
No tocante à importância das canções na narrativa, Gabriela Reinaldo (2000) aborda GSV de forma a
relacioná-las a uma expressão do pensamento mitopoético. No caso da canção de Siruiz, a autora chama a
atenção inclusive para seu caráter oracular – uma vez que, surgindo a partir do chamado pela “moça virgem”, a
canção já remeteria à verdadeira condição de Reinaldo/Diadorim. Para Utéza (1994: 275) a canção de Siruiz
estaria dirigida exclusivamente a Riobaldo, já que nenhum outro jagunço a canta. Estaria relacionada a uma
“emanação do além”, relacionada ao sopro de Mnemósine, a mãe das Musas, que preside a função poética. O
poder encantatório desta canção estaria ligado à saída do tempo profano e à possibilidade de regresso ao
divino.
137
cavalos que rinchavam bem. [...] Aí – cavalaria chusma, arruá que chegando, aos
estropes, terras arribavam: – “Eta, é?!” Sendo que era não. Só era Só Candelário, de
repente. Apareceu, com aqueles muitos homens.
Sús, esbarrou o cavalo tão de repente, que o corpo dele se encurtou pela
metade. Só Candelário. [...] (ROSA, 1978: 183 – grifos meus)
[...] Sô Candelário – como vou explicar ao senhor? Ele era um. [...] (ROSA, 1978: 185)
Riobaldo nos descreve sua alegria e estado de alma ao poder, novamente, montar
um cavalo. Logo depois, nos apresenta a imagem montada de Sô Candelário: montado no
cavalo, seu corpo se encurta pela metade – imagem do centauro? Ao mesmo tempo, um
pouco adiante, esse, cujo corpo se encurta pela metade quando montado no cavalo, é aquele
descrito como “sendo um” – íntegro, não fragmentado, mais inteiro que o homem
“ordinário”.
Intimamente ligada à primeira visão que Riobaldo teve dos cavaleiros, Siruiz –
agora na forma de versos e canção – se apresenta novamente pouco depois dessa chegada de
Sô Candelário. Riobaldo pede a um companheiro que cante para ele aquela canção, da qual
não se esquecera jamais. Nesse momento, entende que só ele valorizava a beleza daqueles
versos. Parece haver uma percepção diferenciada em Riobaldo, ligada, ao mesmo tempo, à
sua experiência estética e à constituição da imagem do centauro. Esse centauro seria aquele,
por excelência, capaz de uma sensibilidade diferenciada – além do humano, e ao mesmo
tempo humano e animal – sensibilidade possível (ainda que não a mais comum) nos níveis
ordinários de realidade.
[...] Montei, fui trotando travado. Diadorim e o Caçanje iam já mais longe, regulado
umas duzentas braças. Arte que perceberam que eu vinha, se viraram nas selas. Diadorim
levantou o braço, bateu mão. Eu ia estugar, esporeei, queria um meio-galope, para logo
alcançar os dois. Mas, aí, meu cavalo f’losofou: refugou baixo e refugou alto, se
puxando para a beira da mão esquerda da estrada, por pouco não deu comigo no chão. E o
que era, que estava assombrando o animal, era uma folha seca esvoaçada, que sobre se
viu quase nos olhos e nas orelhas dele. Do vento. Do vento que vinha, rodopiado.
Redemoinho: o senhor sabe – a briga de ventos. O quando um esbarra com
138
outro, e se enrolam, o dôido espetáculo. A poeira subia, a dar que dava escuro, no
alto, o ponto às voltas, folharada, e ramarêdo quebrado, no estalar de pios assovios, se
torcendo turvo, esgarabulhando. Senti meu cavalo como meu corpo. Aquilo passou,
embora, o ró-ró. A gente dava graças a Deus. Mas Diadorim e o Caçanje se estavam lá
adiante, por me esperar chegar. – “Redemunho!” – o Caçanje falou, esconjurando. –
“Vento que enviesa, que vinga da banda do mar...” – Diadorim disse. Mas o Caçanje não
entendia que fosse: redemunho era d’Ele – do diabo. O demônio se vertia ali, dentro
viajava. Estive dando risada. O demo! Digo ao senhor. Na hora, não ri? Pensei. O que
pensei: o diabo, na rua, no meio do redemunho... Acho o mais terrível da minha vida,
ditado nessas palavras, que o senhor nunca deve de renovar. Mas, me escute. A gente
vamos chegar lá. E até o Caçanje e Diadorim se riram também. Aí, tocamos.
Até à barra dos dois riachos, onde tem a cachoeira de escadinhas. Nem pensei mais no
redemoinho de vento, nem no dono dele – que se diz – morador dentro, que viaja, o Sujo:
o que aceita as más palavras e pensamentos da gente, e que completa tudo em
obra; o que a gente pode ver em folha dum espelho preto; o Ocultador. [...] (ROSA,
1978: 187-188 – grifos meus)
Ao montar, Riobaldo sente seu cavalo como seu corpo. E esse cavalo é aquele que
“filosofa” e tem uma sensibilidade diferenciada para o real, podendo ver o oculto. Montado
em seu cavalo, corpo que o faz sentir, Riobaldo entra em contato com aquilo de extra-
ordinário que se pode acessar pela via do ordinário. A folha seca e o vento podem ser mais.
Riobaldo pode entrar em contato com a dinâmica da dualidade constitutiva dessa esfera – os
ventos opostos que brigam e formam o “redemunho”, o que enreda e mói, o ocultador, o
demo. Riobaldo entra em contato com aquela dimensão extra-ordinária da natureza onde
vislumbra sua dinâmica, onde descobre que o concreto se dá pelas palavras e pensamentos
que se materializam – até os maus. Ordinário e extra-ordinário se interpenetram. Na
condição de centauro – homem integrado aos ritmos da natureza – Tatarana pode ver o
diabo por um outro ângulo: sob a ilusão da matéria. No meio da rua, no cotidiano ordinário
do dia-a-dia, há o oculto, que turva a visão. Superar o demo passa a significar ver além do
oculto, do imediatamente visível, da natureza ordinária.
É assim que Riobaldo pode, aos poucos, ir aprendendo “[...] a achar graça no
desassossego” (ROSA, 1978: 189), a ter coragem. Surge então a figura de Joca Ramiro, cuja
figura também se apresenta pela imagem do cavalo:
139
[...] E Joca Ramiro. A figura dele. Era ele, num cavalo branco – cavalo que me olha
de todos os altos. Numa sela bordada, de Jequié, em lavores de preto-e-branco.
As rédeas bonitas, grossas, não sei de que trançado. E ele era um homem de largos
ombros, a cara grande, corada muito, aqueles olhos. Como é que vou dizer ao senhor? Os
cabelos pretos, anelados? O chapéu bonito? Ele era um homem. Liso bonito. Nem tinha
mais outra coisa em que se reparar. A gente olhava, sem pousar os olhos. A gente tinha
até medo de que, com tanta aspereza da vida, do serão, machucasse aquele homem maior,
ferisse, cortasse. E, quando ele saía, o que ficava mais, na gente, como agrado em
lembrança, era a voz. Uma voz sem pingo de dúvida, nem tristeza. Uma voz que
continuava. (ROSA, 1978: 189-190 – grifos meus)
A figura de Joca Ramiro, ao surgir num cavalo branco que olha de todos os altos,
parece corroborar as reflexões aqui desenvolvidas. Nesse conjunto formado por homem e
cavalo, outros elementos aparecem e dão margem para que se fortaleça a idéia de um laço
que os une dois entes que, trançados, formam algo maior. Temos a sela bordada em preto e
branco e também as rédeas de um trançado desconhecido. Ambas as peças me remetem à
idéia do “cerzidor”: a possibilidade de costura que une dimensões distintas da realidade,
funcionando não apenas como base (sela), como elemento de direção, velocidade e ritmo
(rédeas), mas também como elementos de contato e relação entre homem e cavalo.
E Joca Ramiro presenteia Riobaldo:
[...] A tento, Joca Ramiro, tornando a me ver, fraseou: “Tatarana, pêlos bravos... Meu
filho, você tem as marcas de conciso valente. Riobaldo... Riobaldo...” Disse mais: –
“Espera. Acho que tenho um trem, para você...” Mandou vir o dito, e um cabra chamado
João Frio foi lá nos cargueiros, e trouxe. Era um rifle reiúno, peguei: mosquetão de
cavalaria. Com aquilo, Joca Ramiro me obsequiava! Digo ao senhor: minha satisfação
não teve beiras. [...] (ROSA, 1978: 190 – grifos meus)
O trem
119
que Joca Ramiro tem para Riobaldo vem a ser um rifle, de modo que
evoco a associação entre mira, tiro, visão, vivência estética e a possibilidade de
119
O que me remete, imediatamente, à imagem do trem-de-ferro à qual já tive a oportunidade de me referir no
decorrer deste estudo. Do meu ponto de vista, não apenas confirmaria a utilização da palavra “trem” como
espécie de “significante coringa”, virtualmente aberto a qualquer significado, como também traria a
possibilidade desse presente, por si mesmo, também se constituir como veículo de acesso a outras esferas, tal
qual o ritmo associado ao trem-de-ferro e à linguagem mântrica.
140
estabelecimento de outras relações – menos ordinárias – com o real. Rifle reiúno – cujo
significado está associado não apenas à arma fornecida a um soldado, como também a um
cavalo (ainda que feio e de má qualidade). Tal perspectiva se associa à idéia do “mosquetão
de cavalaria” – onde também temos associadas as idéias do instrumento (de mira e tiro) e do
cavalo. Arma de centauro?
E os cavalos fazem realmente falta no sertão. O próprio Riobaldo faz alusão ao
desconforto que sentiu no dia em que teve que entregar seu cavalo, “completo no
contragosto”, sentindo-se “a pé, como sem segurança nenhuma” (ROSA, 1978: 130).
No episódio da fazenda dos Tucanos, Riobaldo é surpreendido com os
Hermógenes a matar os cavalos no curral. A morte dos cavalos – “o rasgável da alma da
gente” (ROSA, 1978: 257) – causa grande dor a todos, mas acrescento que seu impacto pode
crescer ao considerarmos todo o simbolismo e importância atribuídos ao encontro de
homens e cavalos durante toda a narrativa. O que Riobaldo descreve com a morte dos
cavalos são cenas de morte, desespero e sofrimento. Fundamentalmente, creio que aqui haja
uma aproximação da condição dos cavalos e dos homens: nenhum deles entendia a dor.
Quando o bando parte da fazenda dos Tucanos em direção ao Currais-do-Padre
buscando “renovame”, é porque lá se tinha guardada boa cavalaria pertencente a Medeiro
Vaz. Há, nesse meio tempo, uma pesada viagem a pé, onde se constata que o homem sem
cavalo é comido pelos Gerais – a assinalar a importância de se trilhar os caminhos com
auxílio de outros pés. Chegando aos Currais-do-Padre, onde pegam seus cavalos, Riobaldo
escolhe o seu – sendeiro e historiento – ao qual resolve dar o nome de Padrim Selorico. Ao
141
batizar o cavalo com o nome do pai, além da referência ao caráter “historiento” de ambos, há
novamente a mistura entre a figura do homem e do cavalo. Batismo, diga-se de passagem,
bem apropriado ao local em que ocorre: Currais-do-padre, do pai.
Adiante na narrativa, Zé Bebelo sugere que sigam para o Chapadão-do-Urucuia,
mas no caminho se perdem: ao invés de seguir pelo caminho que passaria pela Virgem-Mãe,
sem saber seguem para Virgem-da-Lage. Enfrentam chuvas, trovoadas e um calor terrível. A
maior parte do bando começa a ficar doente. Poucas pessoas encontravam no caminho,
sentiam falta de fala humana. Montado no seu cavalo ruim, tendo como destino, um lugar
onde reinava a doença e a miséria, Riobaldo localiza a si mesmo naquele momento:
[...] Com Zé Bebelo da minha mão direita, e Diadorim da minha banda esquerda: mas, eu,
o que é que eu era? Eu ainda não era ainda. Se ia, se ia. O cavalo pombo de Zé Bebelo era
o de mais armada vista, o maior de todos. Cavalo selado, montado, e muito chão adiante.
Viajar! – mas de outras maneiras: transportar o sim desses horizontes!... (ROSA, 1978:
296)
Os cavalos de Riobaldo e de Zé Bebelo já revelam o contraste que existe entre
ambos: em oposição ao cavalo ruim do primeiro, há o maior de todos pertencente ao outro,
capaz de viajar de outras maneiras. Riobaldo, Tatarana, ainda não era. Apoiando-se nas
bordas, ele ainda não havia atingido o centro de si mesmo. Seu cavalo parece refletir isso,
assim como o de Zé Bebelo parece trazer à tona outros potenciais. E assim Riobaldo segue
em direção ao pacto que vem a ocorrer nas nas Veredas-Mortas.
142
É também fundamental perscrutar a relação que Riobaldo estabelece com os
cavalos após o estabelecimento de seu pacto. A partir desse momento, os animais começam a
reconhecer Riobaldo, na sua nova força e transformação – estabelecendo com ele um novo
nível de relação. Devido a este tipo de reconhecimento, a ele é dado seu novo cavalo, mais
forte – batizado como o cavalo Siruiz. É também interessante notar como – considerando ser
este um animal tão fundamental no contexto da narrativa – essa troca de cavalos
120
efetuada
por Riobaldo também poderia ser compreendida como a própria evolução de seu poder
pessoal, poder para empreender suas jornadas como centauro. Siruiz, a força que agora o
movimenta e transporta, é – ao mesmo tempo – o cavalo, o nome do jagunço que naquele
momento é espírito e lembrança, o nome dos versos e canções que tanto animam Riobaldo.
Essa é a nova constituição do cavaleiro, revelando as forças que integra.
Quando, então, trouxeram reunidos todos os animais, estavam ajuntando a cavalhada.
Regulava subida manhã, orçado o sol, e eles redondeavam no aprazível – tropilha grande,
pondo poeira, dado o alvoroço de muitos cascos. Fiz um rebuliz? Dou confesso o que foi:
era de mim que eles estavam espantados. Aí porque a cavalaria me viu chegar, e se
estrepoliu. O que é que cavalo sabe? [...] (ROSA, 1978: 324-325)
120
Morais (1998: 60) refere-se às trocas e nomeações dos cavalos de Riobaldo no decorrer da narrativa: (1°) um
“cavalinho pedrês”, o “Manuelzinho-da-Croa” – que morre na batalha dos Tucanos; (2°) o cavalo sendeiro e
historiento, Padrim Selorico, que Riobaldo pegou no Currais-do-Padre; (3°) o cavalo inicialmente chamado
“Barzabu” e rebatizado Siruiz, presenteado por seo Habão após o pacto; (4°) no Tuim, após a morte de
Diadorim, Riobaldo muda de cavalo; (5°) o “ruço-rodado, ordem de valor e estampa”, também dado por seo
Habão quando Riobaldo já era herdeiro de Selorico. A estudiosa chama a atenção para o fato de os dois últimos
cavalos não serem nomeados. A meu ver, este fato estaria relacionado a um apagamento da primazia do eu
(ligado à figura do centauro) e que se coaduna com a perspectiva de uma porosidade poética – com há de ficar
mais claro. Cabe também salientar que a importância atribuída aos cavalos, tal como reconhecida nesta
pesquisa, não costuma ser muito enfatizada no contexto da crítica rosiana. Utéza (1994: 87), por exemplo, faz
pouquíssimas alusões a essas apresentações na obra, limitando-se a compreender os cavalos como
intermediários entre a fixidez da terra (machucada por seus cascos) e a fluidez do ar (que se ligam às suas
qualidades corredoras). Em outro momento (1994: 265), lembrando o primeiro contato de Riobaldo com os
cavaleiros na madrugada, o pesquisador os relaciona ao medo: “entes de pesadelo, centauros vegetais, fixaram-
se na noite numa rigidez paradoxal cavalos teúdos, parados contrapassantes.”.
143
[...] E o animal dele, o gateado formoso, deu que veio se esbarrar ante mim. Foi o seô
Habão saltando em apeio, e ele se empinou: de dobrar os jarretes e o rabo no chão; o
cabresto, solto da mão do dono, chicoteou alto no ar. – “Barzabú!” – xinguei. E o cavalão,
lão, lão, pôs pernas para adiante e o corpo para trás, como onça fêmea no cio mor. Me
obedecia. Isto, juro ao senhor: é fato de verdade. (ROSA, 1978: 325)
[...] Agora, daquela hora, era meu o cavalo grande, com suas manchas e riscas – ah, como
ele pisava peso no chão, e como ocupava tão grande lugar! [...] (ROSA, 1978: 325)
[...] Só por causa daquele cavalo, até, eu fui ficando mais e mais, enfrentava. Não me
riram. (ROSA, 1978: 326)
Montado em seu novo cavalo, visionário e vidente, Riobaldo passa a ver um
outro nível de realidade das coisas e das pessoas:
A dado sincero; eu senti. Ao perante diante de minhas presenças, todos tinham mesmo de
ser sinceros. Só nos olhos das pessoas é que eu procurava o macio interno delas; só nos
onde os olhos. (ROSA, 1978: 322)
[...] Dentro de mim eu tenho um sono, e mas fora de mim eu vejo um sonho – um sonho eu
tive. [...] (ROSA, 1978: 329)
Com o intuito de retomar o impacto de Riobaldo em sua relação com os cavalos e
os cavaleiros, e, principalmente, aprofundar a idéia do centauro – me valho das contribuições
de Ken Wilber (2002), quando este propõe um modelo para a compreensão do homem, por
ele chamado de “Psicologia Integral”. O motivo da escolha por esse referencial específico se
dá pela possibilidade de, a partir do mesmo, não apenas compreendermos a expansão de
uma consciência que transita por entre realidades “naturais” e “metafísicas” – como também
compreendermos esses mesmos movimentos a partir da possibilidade de ampliação da noção
144
de “eu”. Estamos, assim, a tratar, concomitantemente, de dois processos fundamentais
vivenciados por Riobaldo: aquele que diz respeito ao trânsito entre esferas da realidade e
aquele que diz do processo de transformação de sua identidade – uma dupla transcendência.
A perspectiva de Wilber considera diversos aspectos ou dimensões do ser
humano – incluindo sua dimensão espiritual, tida como uma esfera da sua constituição e do
seu desenvolvimento. Seu estudo toma vários aspectos constitutivos da consciência humana,
abordando, entre outros, aqueles relacionados às suas estruturas (incluindo corpo, mente,
alma, espírito), aos seus estados (normais e alterados) e ao seu desenvolvimento (de forma a
abranger todo um espectro, indo do pré-pessoal ao pessoal e ao transpessoal).
O autor passa a compreender o desenvolvimento da “noção de eu” a partir de
uma seqüência de estágios alinhados ao longo de um espaço de desenvolvimento comum.
Nesse caminho, a exclusividade de uma identidade como um dado “eu” (ego corporal,
persona, ego, centauro, alma) seria dissipada e liberada com cada estágio superior do seu
crescimento, ao passo que as capacidades funcionais mais importantes de cada um desses
estágios seriam conservadas, incorporadas e até mesmo fortalecidas.
O estágio de desenvolvimento da consciência ao qual Wilber se refere como
“centauro” ou “Eu centáurico” assume um importante papel em todo esse processo, já que
estaria ligado à maturidade psíquica média relacionada à constituição do homem na cultura
ocidental. Se, para a maioria, a concepção de “eu” e de mundo construída nesse estágio é
considerada como o máximo de desenvolvimento a ser alcançado, para outros esse estágio
seria visto como uma pré-condição e um ponto de partida para outros estágios de
desenvolvimento da consciência, mais amplos. A partir deste momento, começamos a entrar
nos domínios da alma, superando a condição de Eu centáurico (corpo-mente integrados) – de
modo que as questões que se colocam para nós deixam de ser existenciais e passam a ser
transpessoais e espirituais. Considerado um momento crítico, assinala um momento de
145
transição entre estágios de desenvolvimento do “eu” normalmente aceitos no ocidente
moderno e os estados transpessoais, mais relacionados às culturas orientais. Marca, da
mesma forma, a mudança de uma noção de “eu” que se fixa no ego para uma outra que busca
integrá-lo em um todo mais amplo e espiritual.
É dessa forma que vejo Riobaldo, em seu reconhecimento especial dirigido aos
cavaleiros – nem aos homens, nem aos cavalos – mas aos “cavalos mantidos, montados”. Ao
montar em um cavalo e, pouco depois, tornar-se jagunço, Riobaldo assume a condição de
centauro – marcando não o fim, mas o começo de uma jornada. O simbolismo do cavalo é,
ainda, muito utilizado nas culturas xamânicas, sendo associado à possibilidade de acesso a
outros níveis de consciência – aspecto este já comentado quando anteriormente discorri
sobre o ritmo do tambor. Vale lembrar, portanto, a associação estreita entre o cavalo e o
ritmo – seria essa a base do centauro?
Tornando-se cavaleiro montado, centauro, Riobaldo busca sua integração à
esfera dos níveis ordinários de realidade ao mesmo tempo em que torna possível o acesso a
esferas que os transcendam. Também é relevante notar como é a partir desse
reconhecimento que o jagunço pode se vincular às artes – já que não podemos nos esquecer
da profusão de versos que passa a compor a partir do contato com os cavaleiros.
O centauro – representado pelo Urutu-Branco montado no cavalo Siruiz –
poderia ser compreendido, grosso modo, como a expansão da consciência para a condição
definitiva de Eu centáurico, a se deparar com os processos que hão de advir no contato com as
esferas mais espirituais. Poderíamos dizer que há uma ampliação do “eu” de Riobaldo – mas,
pelo menos até um certo momento da narrativa, essa ampliação traz um caráter distorcido.
Ao invés de a ampliação do “eu” significar sua imersão num mundo que o transcende, o
movimento de Urutu-Branco é inverso: ele expande o seu “eu” para que o mundo caiba
dentro dele.
146
Os processos ligados ao desenvolvimento espiritual, nas mais diversas tradições,
normalmente conduzem a pessoa para que esta possa aos poucos ir se desidentificando do
seu ego, do seu “eu”, para, aos poucos, ir se identificando com um todo maior. Um dos riscos
presentes no começo do desenvolvimento espiritual é ligado justamente a um
“desvirtuamento” desse processo: ao sentir suas capacidades ampliadas, o caminho do
neófito passa a ser o de inflar o próprio ego, o de orgulhar-se por suas conquistas espirituais
e por seus dons recém-adquiridos – como se estes fossem efetivamente seus. O chefe Urutu-
Branco parece se enredar nessa armadilha.
Mais duas referências significativas são feitas ao “cavalo” em GSV a partir do
momento em que o chefe Urutu-Branco assume o bando.
Uma delas se dá quando o bando recém reunido parte com a intenção de chegar
ao Chapadão-do-Urucúia. Nesse caminho, o chefe Urutu-Branco passa pela fazenda de seo
Ornelas, ainda pleno dos seus “altos”: amarrando seu cavalo no mastro destinado à bandeira
do santo, sentando-se à cabeceira na mesa. Este gesto talvez revele o lugar atribuído ao
animal.
Outra referência – talvez a última que se apresente em GSV – se dá depois da
morte de Diadorim, quando Riobaldo busca se recuperar dos males que o acometem.
Novamente na fazenda de seo Ornelas – mas agora de uma forma completamente distinta –
recebe a visita de seo Habão, trazendo um outro cavalo de presente. Junto do cavalo chega
também a notícia do falecimento do padrinho Selorico Mendes e das duas fazendas que
havia herdado. Pouco depois, Riobaldo parte para Os-Porcos, onde tem contato com o
registro de batismo e a origem de Diadorim.
147
4.2 AS OUTRAS FACES DO DEMO
Para além dos cavalos, outro elemento que marca de forma decisiva as relações
de Riobaldo com o transcendente pode ser identificado na própria relação com o demo.
Desde o início de sua narrativa, Riobaldo aborda e se questiona acerca da possibilidade de
um pacto:
Agora, bem: não queria tocar nisso mais – de o Tinhoso; chega. Mas tem um porém:
pergunto: o senhor acredita, acha fio de verdade nessa parlanda, de com o demônio se
poder tratar pacto? Não, não é não? Sei que não há. Falava das favas. Mas gosto de toda
boa confirmação. Vender sua própria alma... Invencionice falsa! E, alma, o que é? Alma
tem de ser coisa interna supremada, muito mais do de dentro, e é só, do que um se pensa:
ah, alma absoluta! Decisão de vender alma é afoitez vadia, fantasiado de momento, não
tem a obediência legal. Posso vender essas boas terras, daí de entre as Veredas-Quatro –
que são dum senhor Almirante, que reside na capital federal? Posso algum!? Então, se um
menino menino é, e por isso não se autoriza de negociar... E a gente, isso sei, às vezes é só
feito menino. Mal que em minha vida aprontei, foi numa certa meninice em sonhos –
tudo corre e chega tão ligeiro –; será que se há lume de responsabilidades? Se sonha; já se
fez... Dei rapadura ao jumento! Ahã. Pois. Se tem alma, e tem, ela é de Deus estabelecida,
nem que a pessoa queira ou não queira. Não é vendível. [...] (ROSA, 1978: 22)
Ao questionar a possibilidade de realização de um pacto com o diabo, a primeira
impressão é a de que Riobaldo refute esta possibilidade pela via da negação de sua existência.
Como se tornar pactário daquilo que não há? Mas a perspectiva que ele nos oferece nesse
momento é bem diferente, e muito mais interessante. O que fundamentalmente se coloca
em questão não é exatamente a existência do demo: o que se coloca em questão é a própria
natureza da alma. Quando Riobaldo afirma não crer na possibilidade de pacto, quando
afirma não se poder vender a própria alma, é porque não crê que o homem seja seu senhor.
Em seu posicionamento poder-se-ia ler um questionamento do tipo: “Como se pode negociar
com o alheio?” – mas também não creio que seja essa a grande questão.
148
A pista talvez seja dada pela dupla analogia por ele construída – e para isso peço
licença para repetir um pequeno trecho da citação anterior: “Posso vender essas boas terras,
daí de entre as Veredas-Quatro – que são dum senhor Almirante, que reside na capital
federal? Posso algum!? Então, se um menino menino é, e por isso não se autoriza de
negociar...”. Em primeiro lugar vejo a analogia entre as terras alheias, localizadas nas
Veredas-Quatro, com uma certa amplidão da própria alma. A alma não é só algo ligado a uma
dimensão individual; como posso negociar todo esse espaço que se encontra ao meu redor? A
impressão que tenho, portanto, é a de uma concepção de alma capaz de transcender a
perspectiva da consciência individual. A outra analogia, agora focalizando a figura do
menino, também remete à condição limitada e imatura que nossa consciência nutre em
relação a essa alma. O que essas duas perspectiva talvez traduzam é uma inversão: a alma
não é nossa; nós é que pertencemos a ela.
Por último, Riobaldo afirma: “Se tem alma, e tem, ela é de Deus estabelecida,
nem que a pessoa queira ou não queira. Não é vendível.” – o que, acredito, também possa ser
lido à luz das analogias anteriores. Assim, a própria compreensão do que seria “Deus”, pode
associar-se à idéia de uma dimensão que transcende (ao mesmo tempo em que inclui) o
individual, abarcando uma possibilidade de consciência que supera a nossa condição
cotidiana. Pacto então pode até haver – contanto que seja com Deus?
Para além dessas reflexões e das associações que podem ser feitas entre a figura
do demo e os ritmos, creio que essa imagem também pode ser portadora de outras
significações ricas no contexto de GSV se considerarmos a dimensão metapoética (e extra-
ordinária) da obra.
149
4.2.1 ENTRE XAMÃS E CELTAS
Uma primeira perspectiva que considero frutífera poderia vir pela compreensão
da figura do diabo sob um outro viés, a partir das contribuições de Robert Ryan (1999,
2002). Tomando como base figuras desenhadas nas cavernas por homens de culturas
“primitivas” – as famosas figuras presentes nas cavernas como Lascaux, Le Gabillou e Les
Trois Frères (FIG. 7) – o autor mostra como as imagens ali retratadas se mostram próximas
às representações que, tradicionalmente, temos da figura do diabo.
FIGURA 7 – A representação do xamã nas cavernas
Le Gabillou e Les Trois Frères
Fonte: RYAN, 1999: 37.
Entretanto, mais do que seres que mesclam características humanas e animais, o
que ali parece ser retratado é a figura do xamã, hierofante, atuando como mediador do grupo
nas relações com o sagrado a partir do acesso a estados alterados de consciência. Digno de
150
nota também é o fato como estão associados, nessas culturas, não apenas a função de
mediação entre esferas, mas o próprio exercício da arte. O “diabo”, visto nesse contexto, não
apenas atua como mediador entre níveis ordinários e extra-ordinários de realidade, como
também está intimamente associado à vivência da arte. Estaria então o pacto com o diabo
relacionado à ativação dessas duas funções – a transcendência e a possibilidade de expressão
artística?
Um outro contexto, o da cultura celta, também nos oferece uma visão do demo
que talvez nos auxilie em sua compreensão numa perspectiva menos maniqueísta do que a
cultivada pelo imaginário ocidental. Cernunnos (FIG. 8), o deus celta com chifres de veado,
foi associado pelo cristianismo ao diabo (MATTHEWS, 1999; SMITH, 2005).
FIGURA 8 – Cernunnos
Fonte: COWAN, 1993.
Seu simbolismo original, entretanto, está ligado à vivência dos ciclos da natureza
e também aos ciclos de vida, morte e reencarnação. Ao mesmo tempo em que é considerado
151
um mestre dos animais, ele é considerado um deus dos mundos subterrâneos e astrais.
Muitas vezes é representado segurando um cajado em forma de serpente e cercado por três
caveiras. O simbolismo da cobra
121
é mais do que fundamental na narrativa de Riobaldo, de
modo que, neste momento, talvez caiba a explicitação daquele relacionado às caveiras:
segundo Cowan (1993), para os celtas, elas estariam relacionados à própria essência do ser –
aquilo que permanece e sobrevive à morte física. Poderíamos, então, também dizer que ao
pacto se relaciona a possibilidade de trânsito pelos ciclos – ordinários e extra-ordinários –
que marcam a nossa passagem pela esfera da natureza?
As duas perspectivas que apresento na verdade se mesclam: a cultura celta,
permeada pelo fazer dos bardos e dos druidas, também é considerada uma cultura que tem
em sua base a experiência xamânica, se compreendida a partir de determinadas bases
arquetípicas. E são estas o que eu gostaria de ressaltar neste momento, uma vez que acredito
poderem caracterizar esse tipo de trânsito entre níveis distintos de realidade que a figura do
demo pode estar indicando no contexto de GSV. Teríamos, assim, segundo Cowan (1993:
13): (a) a jornada a uma realidade “não-ordinária”; (b) a ajuda de espíritos guias,
normalmente na figura de animais; (c) o retorno da jornada com algum conhecimento ou
poder para servir a outros de sua comunidade; (d) algum tipo de “crise” traumática
iniciatória, freqüentemente envolvendo alguma debilitação ou doença; (e) a habilidade de
fazer sucessivas jornadas a um Otherworld à sua vontade; (f) uma transformada visão de
realidade, que incluiria um certo senso de unidade e inter-relação de todas as coisas criadas
com uma força de vida que perpassaria o universo; (g) a habilidade do “trabalho mágico”, que
pode ser a cura, a vidência, ou ainda a habilidade de controlar aspectos da realidade ordinária
121
O que ainda será abordado nesta tese.
152
que poderia ser considerada extra-ordinária nos padrões usuais; (h) o estado de transe ou
estado alterado de consciência que caracterizaria a experiência xamânica plena.
Acredito que esses elementos estejam todos presentes na experiência do
Riobaldo pactário. Aquele com quem se firma um pacto – o demo, em toda a sua gama de
significações possíveis –, estaria a nos dizer acerca da possibilidade de, através da nossa
consciência, transcender os limites da realidade tal como a conhecemos?
4.2.2 KUNDALINI E DAIMON: O FOGO E A INSPIRAÇÃO
Outro diálogo que poderia ser estabelecido no contexto da narrativa de Riobaldo
relaciona-se, inicialmente, ao elemento fogo – associado ao demo – e à Kundalini.
Atentemos para a marca temporal que assinala a partida do bando recém reunido
pelo chefe Urutu-Branco em direção ao Chapadão-do-Urucuia: logo após o dia de São João e
antes da festa de São Pedro (ROSA, 1978: 341). Comemorada a 24 de junho, a festa de São
João não tem origem católica, sendo uma festa pagã relacionada ao deus Agni: seria uma
festa pagã do fogo, a comemorar, no hemisfério norte, o solstício de verão (BARROSO
122
apud JANGADA BRASIL, 2001). No Brasil, temos não apenas a mudança de estações
marcada por esta data, como também a noite mais longa do ano
123
. Outro elemento que
remete à passagem e transformação: o costume de “pular a fogueira”, associado à passagem
purificadora pelo fogo.
122
BARROSO, Gustavo. O sertão e o mundo. Rio de Janeiro: Livraria Leite Ribeiro, 1923.
123
Utéza (1998: 128) lembra que a festa de São João Batista (comemorada em 25 de junho) marca um solstício,
momento crucial em que no céu a luz muda de signo, assim como lembra que a festa também remete à
passagem iniciatória do primeiro sacramento do catolicismo.
153
A apresentação do fogo se dá também em um outro momento importante da
narrativa, pouco antes do início do grande combate final. Com o calor que parte dos pés, o
jagunço Riobaldo não consegue ver o chão, mas sentir os avisos do ar:
[...] Vi: o que guerreia é o bicho, não é o homem. O capinzal repartia tudo diverso: o abafo
do ar e o fresco de lugar de grota – frio e calor, lado dum doutro, nas finas folhas mesmo
da folhagem. Mas o calor vinha subindo era pernas acima, no meu corpo: o que os
meus pés, de tão quentes, suavam. E eu não enxergava o chão; mas o cheiro do lugar
ali era de barro amarelo massal. Suspensos no parar, mesmo, a gente se embalançava na
sela, banda para banda, na suavidade essa – conforme temperação, de que o
espírito necessitava. Sendo o mundo quieto, para não assustar os pássaros que comem
sementes no capim, porque o revôo deles havia de dar ao inimigo alto aviso no ar. (ROSA,
1978: 417 – grifos meus)
Um último episódio, já no final da trajetória narrada, merece destaque. Ocorre
após a morte de Diadorim, quando Riobaldo é acometido de uma grande febre, chegando a
perder a consciência. É curioso, entretanto, que no decorrer dos acessos que o acometiam em
tal estado, Riobaldo passava a exercer função de narrador – contando histórias que não eram
as suas:
[...] Que a febre que eu tinha era tamanha tanta, como nunca se viu – o Alaripe depois me
disse –; que no decorrer dos acessos eu tresvariava. Do que, no ouvir contado, recordei a
estória dum fazendeiro, o mais maldoso, que o demônio por fim salteou, por suas
ruindades: e que, endemoninhado, no quarto de sua casa, uivando lobúm, suplicava alívio
do calorão, e carecia mesmo que os escravos despejassem nele latas e baldes d’água, ao
constantemente, até para evitar que, de tudo devorante tão quente, não viesse e desse de
pegar fogo no cômodo, de incêndios... Doidice. Em dansa de demônios, que nem não
existem. Pois, então, só a doença não bastasse? [...] (ROSA, 1978: 455-456)
Riobaldo parece dar um exemplo conciso e claro de uma poética peculiar: em um
estado alterado de consciência (o que significa o acesso a dimensões extra-ordinárias do
real), Riobaldo se coloca, de forma não diretiva, a transmitir e narrar histórias que ouviu.
Riobaldo não se coloca como autor dessas histórias, mas como um canal de sua expressão.
154
No que se refere ao conteúdo da história que narra, acredito que mesmo ela
tenha um sentido muito especial: está a nos falar do demônio – tema (e dúvida) presente em
toda a narrativa que constitui GSV. Além do demo, o outro elemento presente no conteúdo
da história é o fogo. Um fazendeiro fica “endemoniado” e começa a sentir fortes calores que
não podem ser aplacados, havendo até o risco de que incêndios viessem a ter início nos
cômodos da casa. Dança de demônios – “que nem não existem”.
Vamos primeiro ao fogo
124
– que vem associado não apenas à figura do demônio
(que se apossa do fazendeiro), mas ao próprio ato de narrar.
Anteriormente, nesta pesquisa, introduzi a noção de chakra. Gostaria de, neste
momento, ressaltar a importância de tal compreensão diante de uma dinâmica das energias
que circulam pelo ser humano – de um ponto de vista oriental, tal como abordado, por
exemplo, pela medicina chinesa e pelas tradições védicas indianas. Tais tradições indicam a
necessidade de abertura dos chakras – do mais inferior em direção ao mais superior, já que se
alinham da base da coluna ao topo da cabeça – a fim de que a energia espiritual e universal
possa fluir livremente pelo corpo humano. Uma das forças principais que se dedica a esse
processo de abertura dos chakras é chamada pelos indianos de Kundalini.
Associada ao fogo e também conhecida como Shakti (relacionada à energia
feminina de Deus), ela se localiza – em estado latente e adormecido – na base da coluna, na
região que coincide com o primeiro chakra. A Kundalini não ativada é vista como uma
serpente enrolada na base da coluna, ao passo que, com seu despertar (ou ativação), temos a
sua ascensão ou desenrolar (FIG. 9).
124
Morais (1998: 185) relaciona o elemento fogo (e o elemento ar) à figura de Zé Bebelo, ressaltando seu
caráter de mediação. Já Rosenfield (1989: 66) vê o fogo como estigma comum a Riobaldo e Zé Bebelo, ao que
não apenas relaciona uma identificação com Hermógenes, como também uma alusão ao apelido Tatarana.
155
FIGURA 9 – O despertar da Kundalini
Fonte: LE CHAKRAS (2006)
O despertar da Kundalini
125
é considerado um tema extremamente polêmico.
Essa é uma energia – segundo os místicos e estudiosos – que pode permanecer em estado
latente durante toda a vida sem que seja ativada; aliás, esta é a condição mais comum. Sua
ativação, porém, tanto pode se dar a partir de práticas que a estimulem (como a meditação e
a prática de mantras, por exemplo), assim como pode se dar de forma espontânea. Em
qualquer dos dois casos, relata-se (SANNELLA, 1989; KRISHNA, 2004) que seu despertar
súbito normalmente vem acompanhado de grandes crises, relacionadas à dissolução de
desequilíbrios ainda presentes no indivíduo – ligadas, portanto, a um processo de
purificação. Literalmente, a Kundalini queimaria os nódulos ou bloqueios energéticos
presentes em seu caminho. Não pretendo entrar em detalhes a respeito de como se dão essas
crises, mas gostaria apenas de comentar que podem ser tão intensas que chegam a ser
125
Chamo também a atenção para o modo como a imagem da ativação da Kundalini integra não apenas o
caduceu de Hermes (dupla serpente), mas também o bastão de Esculápio (serpente única).
156
confundidas com surtos psicóticos, envolvendo também sensações corporais modificadas e
alterações na sexualidade.
Mas o que realmente me motiva a discorrer acerca da Kundalini neste trabalho é
a sua origem e a sua expressão final. Gopi Krishna (2004), considerado um dos maiores
sábios e codificadores acerca dessa força, nos relata a origem do termo:
O versículo 125 do décimo livro do Rig Veda, escrito há aproximadamente 3.500 anos,
trata Kundalini como Vak, a deidade da fala. Isto significa que desde a remota
Antiguidade tem sido reconhecido que a real manifestação da Kundalini é o talento para
falar e escrever por inspiração, de maneira bela e sábia. (KRISHNA, 2004: 25)
Krishna relata que após dezessete anos de meditação, teve uma experiência
mística relacionada ao despertar completo da Kundalini – marcada pela superação de sua
identificação com o ego e pelo acesso a uma consciência que descreve como “cósmica”. No
período após essa experiência, o autor relata sentir uma ânsia irrestível de escrever em
versos – ânsia que culminou na escrita de um pequeno livro de poesias em nove idiomas, dos
quais apenas quatro lhe eram desconhecidos.
Jamais escrevera uma só linha poética na vida e, em condições normais, era incapaz de
escrever algumas poucas linhas em rima e métrica, mesmo tendo levado dias esforçando-
me. Agora, no entanto, constatava que linhas acabadas de poesia, parágrafos inteiros, até
mesmo poemas completos, vinham a mim em um jorro, como se emergissem de lacunas
circunjacentes. Por vezes sentia dificuldade em colocar tudo aquilo no papel, tão rápido
era o fluxo captado.
O modo como escrevo assemelha-se ao que alguns poetas, filósofos e inclusive cientistas
descreveram como uma inspiração. Através de sua mente, eles viam passagens inteiras,
estrofes, poemas, capítulos de livros, produtos acabados de arte etc. Tudo lhes cruzava a
mente velozmente, ou, como disse Nietzsche, era como se lhes caísse no colo. Tudo que
essas pessoas fazem é registrar o material que emerge das profundezas de suas mentes
126
.
Isto constituiria um campo de estudos muito interessante, posto que muitos dos grandes
126
Cabe lembrar que o conceito oriental de “mente” é bem distinto do que usualmente utilizamos. Essa mente
estaria relacionada a uma consciência universal, ao todo do qual fazemos parte. Em outro sentido, alguns
poderiam associar essas “profundezas da mente” a um inconsciente psicanalítico, de onde emergiriam os
conteúdos que brotam nos versos descritos por Gopi Krishna; entretanto, eu reafirmo que a “mente” à qual faz
alusão tem características bem distintas, talvez se assemelhando mais à idéia de um “inconsciente coletivo”,
presente em uma perspectiva jungiana.
157
poetas, compositores, artistas e escritores reconheceram claramente esse dom e
atribuíram a ele alguns de seus trabalhos. (KRISHNA, 2004: 29-30)
O autor relata a alternância entre períodos estéreis e períodos criativos. Em seu
relato, podemos, ainda, ter contato com mais detalhes acerca da participação do ego em tais
processos.
Durante os períodos criativos, percebo distintamente que as idéias surgidas de súbito em
minha mente, assim como as palavras que uso para expressá-la, provêm do vazio
circunjacente. O ego nunca está ausente na formulação de idéias. Sei que a idéia é minha
e, portanto, eu é que sou seu autor. Entretanto, “eu” e “idéia” estão agora confinados na
estreita periferia de minha mente individual, mais parecendo partes de um vasto
reservatório de pensamento que me envolve. As idéias e a linguagem para sua expressão
emergem deste reservatório e, logo em seguida, dependendo do estado de ânimo,
desaparecem e tornam a afundar nele novamente.
Não é fácil explicar a experiência. Isso significa que existe um mundo de pensamento,
como existe um mundo de matéria à nossa volta. (KRISHNA, 2004: 34)
Considero importante, dentro de todo esse contexto, abordar a discussão acerca
da noção de “autoria” presente neste relato. A origem do ato criativo (os versos, por
exemplo) não estaria no ego, mas ele participaria na sua execução. Assim, Gopi Krishna o
identifica como “autor” – na mesma medida em que concebe o “eu” e as “idéias” que surgem
como partes de um todo maior. O que compreendo desse raciocínio é que o “eu” permanece
no lugar de autor desde que esse mesmo “eu” seja modificado: deslocando-se de um lugar
onde prevalece a noção de individualidade radical a um lugar onde o ego se torna expressão
de uma mente mais ampla.
Creio haver uma grande sintonia entre todos esses processos e aqueles relatados
por Riobaldo, em seu aprendizado como narrador. Processos estes que também parecem
estar presentes no processo de daemonização
127
, sobre o qual agora pretendo discorrer.
127
Rosenfield (1993: 56-57) refere-se aos daimones ao abordar GSV, compreendendo-os como “forças cósmicas,
energias naturais”, aos quais associa a figura de Hermógenes – enfatizando sua dimensão mítica e arcaica,
“energia indeterminada anterior a qualquer dimensão ética e a interrogação da própria existência”.
158
Aquilo a que nos referimos como “demônio” – para além do significado judaico-
cristão associado a um espírito maligno, a um anti-Cristo – tem sua origem em daimon
(HEFNER, 2005; MERTON, 2005) – ou daemon – entidade espiritual grega. Semi-deus,
espírito ou ser imaterial, um daimon se coloca num lugar intermediário entre homens e
deuses. É também considerado o “gênio” individual, um espírito tutor ou mesmo um tipo de
voz interna. Daimons eram igualmente considerados espíritos protetores, guiando e zelando
por aqueles a quem vigiavam. Também significam “repletos de conhecimento”.
O daimon é frequentemente relatado como uma “voz”, associada a um ser
inteligente capaz de aconselhar de forma inspirada. Segundo Reginald Merton (2005),
Sócrates relatava sua relação de admiração com um daimon pessoal, que o acompanhava
desde a infância e se manifestava como uma voz. Já Tony Thwaites (2000: 264) nos lembra a
referência metafórica a tal tipo de entidade feita por Descartes em suas Meditações
metafísicas, de 1641 – onde essa surgiria como uma força maligna e enganadora, cuja
intenção seria trazer à tona o caráter ilusório da realidade.
Harold Bloom (2002) também se refere a tais forças. Em seu trabalho, o autor
busca apresentar uma teoria da poesia a partir de uma história das relações intrapoéticas –
enfatizando a descrição das influências poéticas. Apesar de Freud e Nietzsche constituirem
as suas próprias influências básicas neste caminho, o autor traça um paralelo com algumas
forças presentes no imaginário ocidental – dentre as quais se inclui o daimon
128
, como ilustro
a seguir:
128
Quero deixar claro que Bloom não compreende essas forças a partir dos mesmos sentidos que aqui estão
sendo construídos, utilizando-as apenas como uma metáfora para descrever a forma como um poeta se
relaciona com as produções advindas de outros poetas. Entretanto, as informações que fornece acerca desses
seres, presentes no imaginário ocidental, complementam os elementos dos quais já dispomos, uma vez que os
relaciona mais diretamente à literatura.
159
O poder que faz de um homem um poeta é demoníaco, porque é o poder que distribui e
divide (significado radical de daeomai). Distribui nossos destinos, e divide nossos dons,
compensando sempre que nos tira. Essa divisão traz ordem, confere conhecimento,
desordena onde se sabe, abençoa com ignorância para criar outra ordem. Os daemons
criam quebrando [...], mas têm apenas suas vozes, que é só o que têm os poetas.
Os daemons de Ficion existiam a fim de baixar vozes dos planetas para os homens
favorecidos. Esses daemons eram influência, que passava de Saturno para gênios
embaixo, transmitindo as mais generosas Melancolias. (BLOOM, 2002: 148)
Mas não há daemonização sem intrusão do numinoso, e nenhuma explicação dessa
relação revisionária pode excluir a idéia do Sagrado. [...]
O efebo aprende a adivinhação quando apreende a apavorante energia de seu próprio
precursor como sendo Inteiramente Outro, mas também uma força possessiva. Essa
apreensão, que em seus primeiros estágios parece mais dom de conjetura que de
adivinhação, independe da vontade, mas é completamente consciente. (BLOOM, 2002:
149)
Considero ilustrativas as contribuições de Bloom pois este nos mostra o processo
de constituição do poeta como um processo de daemonização
129
. Seria este o pacto de
Riobaldo? Ao mesmo tempo, temos elementos que nos permitem não mais dissociar a figura
de um daimon de uma apresentação do sagrado – rompendo a dicotomia entre Deus e o
diabo. Por último, o daimon surge como força de mediação, entre os homens e os deuses,
entre o ordinário e o extra-ordinário. Seria esse o papel do poeta e da arte? Seria este o
redemoinho?
Interessante também é notar como essa idéia se aproxima da imagem que
Riobaldo constrói do demo e seus ritmos – às brutas, operando pela via da aparente
desordem que cria outras ordens. Novamente, tem-se um rompimento da dicotomia entre os
ritmos distintos de Deus e do diabo.
Ainda neste capítulo tratei da relação de Riobaldo com os cavalos e também a
constituição simbólica do centauro. Se, por outro lado, à idéia dos cavalos somarmos a
129
Sônia Viegas (ANDRADE, 1975: 25) referindo-se à mediação entre particular e universal efetuada pela obra
de arte, discorre sobre o modo como, a partir da possibilidade de apreensão de um sentido universal
concretizado em situações singulares, o artista passa ser considerado um “ser demoníaco” – ao que a estudiosa
associa as idéias platônicas, em que os poetas falariam inspirados e possuídos por um deus.
160
perspectiva da inspiração daemoníaca, encontramos um outro elemento de sintonia
130
. É
neste sentido que Marinho (2001) chama a atenção para o tipo de inspiração poética que
acomete Riobaldo, próxima a uma possessão, a qual associa aos processos vivenciados pelo
próprio Rosa:
[...] Ora, “cavalo” é o nome dado, em certas religiões de crenças mediúnicas
131
, ao médium
que pode “receber” ou “incorporar” entidades espirituais, à pessoa em estado de possessão
espiritual, em transe. Para Guimarães Rosa, conforme suas correspondências e
declarações, o ato de escrita é um ato somente possível em estado de possessão, como o
foram os dias que antecederam a entrega de Grande Sertão: Veredas à editora José
Olympio, nas palavras do autor. Note-se que a imagem do cavalo está presente na
expressão “De repente o diabo me cavalga” (Mich reitet auf einmal der Teufel),
utilizada por Rosa em entrevista a Günter Lorenz
132
, ao buscar explicar, de forma
alusiva, a sua concepção do processo de inspiração: “Não preciso inventar contos, eles vêm
a mim, me obrigam a escrevê-los”. Dessa forma, Guimarães terá a ocasião de declarar que
a semana que antecedeu a entrega de Grande Sertão: Veredas ao editor José Olympio
foi um período de intensa mediunidade. Nesse período o romancista passou “três dias e
duas noites trabalhando sem interrupção, sem dormir, sem tirar a roupa, sem ver a cama:
foi uma verdadeira experiência trans-psíquica, estranha, sei lá, eu me sentia um espírito
sem corpo, pairante, levitando, desencarnado – só lucidez e angústia”
133
, escreve Rosa.
(MARINHO, 2001: 95)
Vemos, assim, como elementos aparentemente díspares se tocam: a imagem do
daimon se funde à do centauro. Rosa e Riobaldo cavalgam juntos?
130
Neste contexto, considero significativo um breve comentário de Utéza (1994: 172) quando este diz que o
daimon estaria encarnado no cavalo Siruiz – numa alusão ao modo como Riobaldo agia sob “o impulso de um
entusiasmo vindo d’alhures”. Já Albergaria (1977: 104) relaciona o simbolismo do cavalo ao domínio do
espírito sobre os sentidos, bem como o relaciona aos ritos de possessão e iniciação: quando o homem é
“possuído” se transforma no cavalo a ser montado pelo espírito.
131
Valéry (1999b: 207) comenta a comparação, por vezes efetuada, entre o poeta e o médium, chamando a
atenção para a distorção que aí pode estar contida: a consideração do trabalho poético como “pura inspiração”,
(como mera transmissão daquilo que se recebe) reduziria a complexidade do processo de criação artística.
Retomarei essa discussão ao abordar as relações entre “inspiração” e “trabalho”, no último capítulo desta tese.
132
Lorenz (1983: 71).
133
Relato originalmente publicado em Rosa e Rosa (1983: 322).
161
4.3 DIADORIM, A VIDA DA ALMA E AQUELA VISÃO DOS PÁSSAROS
Até o presente momento pouco me dediquei à figura de Diadorim. Este é o
momento – e a relação com o transcendente, o contexto.
Em muitos momentos da narrativa, a figura de Diadorim aparece associada aos
pássaros
134
. Em alguns momentos com eles se confunde, em outros, ensina a Riobaldo a
tomar contato com sua beleza. Acredito que estes sejam fluxos de apresentação do
transcendente em GSV – a produzir a constituição de uma visão diferenciada e, também, a
discorrer acerca da presença da alma.
[...] Diadorim me esbarrava, no tolher, não me entendia. A vivo, o arisco do ar: o pássaro
– aquele poder dele.” (ROSA, 1978: 140)
Somente que me valessem, indas que só em breves e poucos, na idéia do sentir, uns
lembrares e sustâncias. Os que, por exemplo, os seguintes eram: a cantiga de Siruiz,
a Bigrí minha mãe me ralhando; os buritís dos buritís – assim aos cachos; o existir de
Diadorim, a bizarrice daquele pássaro galante: o manuelzinho-da-crôa; a imagem de
minha Nossa Senhora da Abadia, muito salvadora; os meninos pequenos, nùzinhos
como os anjos não são, atrás das mulheres mães deles, que iam apanhar água na praia do
Rio de São Francisco, com bilhas na rodilha, na cabeça, sem tempo para grandes tristezas;
e a minha Otacília.
No sirgo fio dessas recordações, acho que eu bateava outra espécie de bondade. [...]
(ROSA, 1978: 391 – grifos meus)
Na passsagem anterior, o que se contrapõe à vivência do Urutu-Branco é outra
espécie de bondade, repleta de lembranças e substâncias. Essas são as substâncias do afeto,
da arte, do transcendente e do belo. Chamo a atenção para o modo como cada uma das
referências concretas que Riobaldo traz nessas suas lembranças constitui um híbrido entre
os tipos de substâncias às quais me referi. Quando Riobaldo fala de “pássaro galante”, não
134
Albergaria (1977: 132) tece análises acerca dos “bichos de asas” em GSV, mas, curiosamente, deixa de fora os
pássaros.
162
sabemos se está se referindo a Diadorim ou ao manuelzinho-da-crôa – ou seja: esses dois
entes são fundidos no híbrido “pássaro galante”. Diadorim também se encontra entre a
imagem de Nossa Senhora e as apresentações da natureza (buritis, pássaros). Entre Nossa
Senhora da Abadia e os meninos no rio, temos os anjos – que remetem às duas realidades,
novamente constituindo um híbrido. As mulheres, mães desses meninos-anjos que estão no
rio, conduzem, por sua vez, à lembrança de Otacília. Note-se que toda essa cadeia de
associações começa com uma função poética – a canção de Siruiz – que conduz à mãe Bigri,
aos buritis, a Diadorim, ao manuelzinho-da-crôa, a imagem de Nossa Senhora da Abadia, os
meninos, suas mães e Otacília. Fio de recordações que não termina aí, não tem fim.
No que se refere ainda ao manuelzinho-da-crôa, vale recordar o momento exato
em que este é apresentado a Riobaldo por Diadorim:
[...] O rio, objeto assim a gente observou, com uma crôa de areia amarela, e uma praia
larga: manhãzando, ali estava re-cheio em instância de pássaros. O Reinaldo mesmo
chamou minha atenção. O comum: essas garças, enfileirantes, de toda brancura; o
jaburú; o pato-verde, o pato-preto, topetudo; marrequinhos dansantes; martim-pescador;
mergulhão; e até uns urubús, com aquele triste preto que mancha. Mas, melhor de todos –
conforme o Reinaldo disse – o que é o passarim mais bonito e engraçadinho de rio-abaixo
e rio-acima: o que se chama o manuelzinho-da-crôa.
Até aquela ocasião, eu nunca tinha ouvido dizer de se parar apreciando, por prazer de
enfeite, a vida mera deles pássaros, em seu começar e descomeçar dos vôos e pousação.
Aquilo era para se pegar a espingarda e caçar. Mas o Reinaldo gostava: – “É formoso
próprio...” – ele me ensinou. Do outro lado, tinha vargem e lagoas. P’ra e p’ra, os bandos
de patos se cruzavam. – “Vigia como são esses...” Eu olhava e me sossegava mais. [...]
(ROSA, 1978: 111)
Este momento, que também marca o reencontro de “Reinaldo” e Riobaldo e a
ocasião em que começam novamente a estabelecer uma relação de troca e aprendizado –
talvez até não seja um começo, mas a continuação daquele mesmo aprendizado que teve
início na travessia do São Francisco. Reinaldo chama a atenção de Riobaldo em relação aos
pássaros, mas de um modo até então desconhecido: não mais para serem caçados com a
espingarda, mas para serem mirados com o olhar, na sua beleza e vida. A abertura desse olhar
163
para o belo que há na natureza teve início no primeiro encontro dos dois, ainda na travessia
do São Francisco. Riobaldo é então relembrado do caráter estético – beleza e movimento –
presente na natureza.
Diante de tanta vida e de tantos pássaros, Reinaldo expressa sua preferência em
relação ao manoelzinho-da-crôa
135
– sempre em casal, machozinho e fêmea – dando-nos,
quem sabe, uma pista acerca do caráter dual presente não apenas em seu próprio ser.
Poderia, por outro lado ser também uma pista acerca da valorização da dimensão
intersubjetiva, terreno sobre o qual a amizade com Riobaldo floresce, de modo que aqueles
que antes eram dois, passam a constituir uma unidade. Essa perspectiva é antecipada pelo
próprio Reinaldo, ao reconhecer a sintonia que há entre o nome de ambos:
Depois, conversamos de coisas miúdas sem valor alheio, e eu tive uma influência para
contar artes de minha vida, falar a esmo leve, me abrir em amáveis, bom. Tudo me
comprazia por diante, eu não necessitava de prolongares. – “Riobaldo... Reinaldo...”
de repente ele deixou isto em dizer: – “... Dão par, os nomes de nós dois...” A de dar,
palavras essas que se repartiram: para mim, pincho no em que já estava, de alegria; para
ele, um vice-versa de tristeza. Que por que? Assim eu ainda não sabia. (ROSA, 1978:
112)
Esse Diadorim que sempre se apresenta junto dos pássaros, no decorrer da
travessia de GSV, chama a atenção de Riobaldo para algo que se mostrará fundamental em
toda a sua trajetória; tão importante para Riobaldo que ele inclusive transmite a outras
pessoas. No caso, a Otacília:
[...] Aí, falei dos pássaros, que tratavam de seu voar antes do mormaço. Aquela visão dos
pássaros, aquele assunto de Deus, Diadorim era quem tinha me ensinado. [...] (ROSA,
1978: 146)
135
Recentemente tive a oportunidade de ler um livro de Astronomia e só então descobri que o filósofo
Immanuel Kant também se dedicava à Física e compreendia as galáxias como “universos-ilhas” (MOURÃO,
2001: 187). Ocorreu-me a imediata associação com o manoelzinho-da-crôa, a fazer seus ninhos em ilhas
impermanentes de areia, por sobre o rio (do tempo?). Seria essa uma referência a Kant? Essa idéia ainda me
parece mais provável a lembrar também das contribuições desse filósofo em relação à Estética.
164
A visão – aquela visão dos pássaros – começa a surgir na narrativa como
possibilidade de trânsito e contato entre as esferas da realidade. Essa simples visão pode
trazer grandes implicações. Mas o que ela significaria
136
?
Riobaldo tem pressentimentos, ainda que na hora não os reconheça – e talvez
nem o leitor, já que só adquirem sentido e confirmação ao final da narrativa. Pouco depois
desse diálogo com Otacília, Riobaldo antecipa a morte e revelação de Diadorim como mulher:
[...] Como foi que não tive um pressentimento? O senhor mesmo, o senhor pode imaginar
de ver um corpo claro e virgem de môça, morto à mão, esfaqueado, tinto todo de seu
sangue, e os lábios da boca descorados no branquiço, os olhos dum terminado estilo, meio
abertos meio fechados? E essa moça de quem o senhor gostou, que era um destino e uma
surda esperança em sua vida?! Ah, Diadorim... E tantos anos já se passaram. (ROSA,
1978: 147)
Esse mesmo movimento é identificado por Riobaldo no próprio modo como
estrutura e formula sua narrativa: conta-se não o fato em si, mas a “sobre-coisa”, a “outra-
coisa”
137
:
[...] O senhor tolere minhas más devassas no contar. É ignorância. Eu não converso com
ninguém de fora, quase. Não sei contar direito. Aprendi um pouco foi com o compadre
meu Quelemém; mas ele quer saber tudo diverso: quer não é o caso inteirado em si, mas a
sobre-coisa, a outra-coisa. [...] (ROSA, 1978: 152)
Após essas reflexões, Riobaldo se volta novamente para o relato da trajetória
“concreta” com a qual está envolvido naquele momento. Coloca-se, dessa forma, a narrar os
136
Para Utéza (1994: 275) esta visão está relacionado a um aprendizado estético que tem como função
exorcizar o medo. A primeira lição de harmonia a ela associada está ligada ao espetáculo de um bailado, onde a
ave pertence tanto ao ar como à terra – no seu “começar e descomeçar de vôos e pousação”. De forma paralela,
coloca-se também em evidência a fusão dos elementos masculinos e femininos.
137
Cabe salientar que, do ponto de vista da fortuna crítica, aquilo nomeado por Riobaldo como as “más
devassas no contar” já foi explorado por Márcia Marques de Morais (2001) em diálogo com os pressupostos
psicanalíticos – podendo, nessa perspectiva, adquirir sentidos bem diversos daqueles que aponto.
165
preparativos e as batalhas ligadas ao combate contra os bebelos – ocasião em que também
tece outras considerações relevantes dentro do fio que estou a seguir.
Riobaldo fala sobre o caminhar de noite – explica a forma como se transcende a
ausência de luz – o que, para mim, remete à consciência limitada constitutiva dos níveis
ordinários de realidade, como se a matéria natureza fosse uma noite escura. Diante disso,
estratégias da visão:
[...] Há-de: que se acostumar com o escuro nos olhos. Conto tudo ao senhor. O caminhar
da gente se media em silencioso, nem o das alpercatas não se ouvia. De tantos matos
baixos, carrascal, o chio dos bichinhos era um milhão só. Por lá a coruja grande avoa, que
sabe bem aonde vai, sabe sem barulho. A quando o vulto dela assombrava em frente da
gente no ar, eu fechava os olhos três vezes. [...] (ROSA, 1978: 156)
Ou se fosse que algum perigo se produzia por ali, e eu colhia o aviso? Não é que, com
muitos, dose disso sucedesse? Eu sabia, tinha ouvido falar: jagunços que pegam esse
condão, adivinham o invento de qualquer sobrevir, por isso em boa hora escapam. O
Hermógenes. João Goanhá, mais do que todos, era atreito a esses palpites de fino ar,
coraçãoados. Atual isso comigo? [...] (ROSA, 1978: 167)
Faz parte das artes dos jagunços a possibilidade de adivinhar. Pelo contato
estreito com a matéria, pegam “palpites de fino ar, coraçãoados”. Essas estratégias, extra-
ordinárias, vão se mostrando cada vez mais refinadas – ainda que se apresentem pela via da
mescla ao que, ordinariamente, se vê. Riobaldo escuta “outros” pássaros:
[...] Muita vez a gente cumpria por picadas no mato, caminho de anta – a ida da vinda...
De noite, se é de ser, o céu embola um brilho. Cabeça da gente quase esbarra
nelas. Bonito em muito comparecer, como o céu de estrelas, por meados de fevereiro!
Mas, em deslúa, no escuro feito, é um escurão, que pêia e péga. É noite de muito volume.
Treva toda do sertão, sempre me fez mal. Diadorim, não, ele não largava o fogo de gelo
daquela idéia; e nunca se cismava. Mas eu queria que a madrugada viesse. Dia quente,
noite fria. Arrancávamos canela-de-ema, para acender fogueira. Se a gente tinha o que
comer e beber, eu dormia logo. Sonhava. Só sonho, mal ou bem, livrado. Eu tinha uma lua
recolhida. Quando o dia quebrava as barras, eu escutava outros pássaros. Tirirí,
graúna, a fariscadeira, juriti-do-peito-branco ou a pomba-vermelha-do-mato-
virgem. Mas mais o bem-te-vi. Atrás e adiante de mim, por toda a parte, parecia que era
um bem-te-vi só. – “Gente! Não se acha até que ele é sempre um, em mesmo?” –
perguntei a Diadorim. [...] (ROSA, 1978: 27-28 – grifos meus)
166
O caminho da anta: “a ida da vinda...” – o que remete a um ritmo, à composição
do verso. O acesso, de encontro que ao pode vir? A idéia que me passa é de movimento e
trânsito, pela via dos caminhos da natureza rumo ao extra-ordinário. E, quando se
quebravam as barras do dia, podiam-se escutar outros pássaros. Riobaldo faz referência a
esses que surgem com o dia – tirirí, graúna, fariscadeira, juriti-do-peito-branco, pomba-
vermelha-do-mato-virgem, bem-te-vi – mas não explicita quais seriam os outros, antes
escutados, tampouco explicita o que deles escutou. Pássaros dos sonhos.
Mas esses outros, não seriam os mesmos? No suporte do nome composto dos
pássaros – por sobre o substrato da linguagem que pode ser compreendida ordinária ou
extra-ordinariamente –, a mensagem oculta, antecipatória, “visionária”: o peito branco, que
se torna vermelho, quando se mata a virgem... Bem se vê, então. Diadorim: era ele sempre
um, o mesmo? Parece que não. Há uma permeabilidade inerente às palavras, que atravessa o
tempo, as dimensões e os níveis de consciência. Chamo a atenção para a constituição de uma
visão que é associada aos pássaros, que rompe os limites do tempo e do espaço.
Em um momento posterior da narrativa, pouco antes do começo da grande
batalha, Riobaldo – “amontado no instante” (ROSA, 1978: 418) – ainda tem tempo para se
envergonhar de si e para sentir que “Diadorim não era mortal”. E ainda: que a presença dele
não o obedecia. Há um reconhecimento da alma de Diadorim – ou de Diadorim como alma? – a
transcender as formas e a matéria?
No dia seguinte, Riobaldo tem notícias da aproximação de Hermógenes. Ao
mesmo tempo, o Trigoso dá notícia de um vaqueiro que relatava ter visto homem chamado
Abrão com uma moça bem arrumada. Imaginando ser Otacília, e com a intenção de protegê-
167
la, Riobaldo parte com Alaripe e Quipes em sua direção. Partindo, abalado, Riobaldo se refere
a Reinaldo como “Diadorim” pela primeira vez na frente dos jagunços (ROSA, 1978: 429) –
até então um segredo pertencente apenas aos dois. Ao que, nessa primeira vez em que o
nome é pronunciado, surge sua associação com o nome de um pássaro:
[...] Mas, aí, eu desmanchei o encoberto, dado dando o do passado, me desimportava;
consoante expliquei: – “Diadorim” é o Reinaldo... Alaripe ficou em silêncio, para melhor
me entender. Mas o Quipes se riu: – “Dindurinh’... Boa apelidação... Falava feito fosse o
nome de um pássaro. [...] (ROSA, 1978: 429)
Ressalto a importância da nomeação de Diadorim. Nomeação da alma? A seguir,
em referência à suposta presença de seo Habão e Otacília naquele local, Riobaldo lembra-se
da pedra:
[...] – O seô Habão entregou a ela a pedra de ametista... – eu falei. Alto falei; e não
queria que o Alaripe ressoasse: “... entregou a ela a pedra...” Isto é: a pedra era de
topázio!
– só no bocal da idéia de contar é que erro e troco – o confuso assim. Diadorim sofria mais
de tudo, quem sabe, por conta da dávdiva daquela pedra. [...] (ROSA, 1978: 430)
Dádiva, dívida, “dávdiva”. É interessante o fato de que Riobaldo se remeta ao fato
de o nome da pedra mudar: ametista ou topázio, a mudança é atribuída a um erro do contar.
Mas atentemos, porque a mudança é grande, já que não é apenas o destinatário das pedras o
que muda – sendo para Diadorim ou Otacília – mas até as próprias pedras podem se
transformar: turmalina (p. 48), topázio (p. 49), safira (p. 282), “pedra de valor” (p. 334),
ametista (p. 430 e 454). Tal fato remete novamente ao processo de “pontuação”, a que antes
me referi: a possibilidade de sentidos móveis no contar. Até pedra muda
138
. Entretanto, não
vejo a mudança como erro, mas como a construção de novos sentidos. Riobaldo está a nos
dizer como a arte de contar dá vida até a pedras...
138
Utéza (1994: 121) refere-se ao caráter “flutuante” dessa pedra.
168
[...] Porque era dia de antevéspera: mire veja. Mas isso, tão em-pé, tão perto, ainda
nuveava, nos ocultos do futuro. Quem sabe o que essas pedras em redor estão aquecendo,
e que em uma hora vão transformar, de dentro da dureza delas, como pássaro
nascido? [...] (ROSA, 1978: 425 – grifos meus)
Me debruço tanto sobre a imagem dessa pedra justamente pela vida que esta
adquire: seria um ovo, essa pedra que muda e é aquecida? Ovo-pedra que também é bola de
cristal, guardando em si a semente do futuro. Somos remetidos assim a uma grande cadeia
associativa: Diadorim ' pássaro ' visão ' alma ' pedra que muda ' ovo. À morte
antecipada de Diadorim far-se-á acompanhar um nascimento? Riobaldo começa a perceber
como sua percepção das coisas “ordinárias” da vida está transformada – “desparelha” da
percepção e do sentir dos demais.
Creio podermos resumir muitas das idéias presentes nessa associação pela
constatação de que o contato com o extra-ordinário se dá pela constituição de uma visão
139
. Visão
da alma. No contato com o que transcende a realidade ordinária das coisas, Riobaldo se
torna visionário.
Chamo também a atenção para o fato de que esta possibilidade, desde cedo, vem
sendo anunciada em sua narrativa. Como já antecipei, em certo momento Riobaldo revela:
Aquela visão dos pássaros, aquele assunto de Deus, Diadorim é quem tinha me
ensinado.” (ROSA, 1978: 146 – grifos meus). Talvez esse se constitua um importante ponto
de partida para as questões que agora pretendo lançar: qual seria então a relação entre a
constituição dessa visão e a literatura; qual a sua relação com as artes em geral?
139
Convém lembrar que abordar a constituição da visão na obra rosiana não constitui fato novo. Melânia
Aguiar (2001), citada anteriormente, se dedica justamente a essa dimensão ao abordar contos de Tutaméia.
169
Vejamos. Para começar, aquela visão dos pássaros, na perspectiva de um
visionário, seria dupla. (a) Em primeiro lugar, essa visão pode ser compreendida como a
faculdade de ver como os pássaros vêem – do alto, os “assuntos de Deus”, o transcendente e
extra-ordinário. Diadorim na verdade inicia Riobaldo na comunhão com a natureza, de modo
que seu mundo (e também seu ser) se amplia. Pode-se ver de uma outra forma,
“espiritualmente”; abrem-se as portas para aquilo que os olhos
140
comuns não conseguem
enxergar. (b) Por outro lado, essa mesma visão pode também ser compreendida como a
faculdade de enxergar aquilo que antes não se via, mas que esteve sempre presente. É assim
que os pássaros ganham existência para Riobaldo apenas quando Diadorim os nomeia. Em
outros termos, eu diria que à visão também corresponderia a articulação da palavra. Talvez
seja este o papel desempenhado pela arte: a representação e nomeação do inefável.
Essas duas dimensões na verdade se complementam. Como se pode perceber, há
uma estreita relação entre aquele que nomeia (o que tem a visão) e aquilo que é nomeado (o
que é visto): ambos são o pássaro – de forma que parece haver uma espécie de comunhão
entre sujeito e mundo, o que remete à vivência do inefável, narrada por Riobaldo em seu
pacto. Seria aquela visão dos pássaros uma experiência estética?
Antes de mais nada, podemos constatar, diante desses elementos, que a palavra
ocupa um lugar central frente à visão. Chamo a atenção para a articulação do “inefável”,
presente no suposto pacto com o demo. A tentativa de resgate do poder, da identidade, do
sentido – talvez se dê justamente pela tentativa de articulação da palavra. Em todo o Grande
Sertão: Veredas somos remetidos ao poder do nome – do nome próprio, do nome dos animais
e das coisas, do nome dos locais. Nomes mutantes e vivos. Apropria-se de algo, na medida
em que se pode nomeá-lo. Riobaldo ganha todos os pássaros de presente quando Diadorim
140
Tomando esses “olhos” numa perspectiva um pouco diferente – mas ainda assim relacionada à construção de
outros sentidos – Morais (1998: 74) chama a atenção para o modo como os olhos verdes de Diadorim remetem,
num deslocamento metonímico, aos olhos da mãe de Riobaldo.
170
chama a atenção para sua existência e ensina seus nomes; só assim eles passam a existir,
passando a serem vistos. Temos assim a relação intrincada entre a visão e a representação
pela palavra. A visão poderia significaria um convite, um chamado relacionado à função da
literatura. Um convite à articulação – não apenas àquela já formulada no corpo da narrativa,
mas a todas as articulações possíveis a partir do encontro da obra com suas leituras e leitores
possíveis.
Essas reflexões não deixam de lado a imagem dos pássaros, associada à visão. As
jornadas xamânicas – em essência marcadas pela experiência visionária – são
freqüentemente descritas como vôos da alma. O pássaro finalmente vê a si mesmo. Ryan
(1999: 09) utiliza a imagem do olho para referir-se a essas experiências: para ele, enquanto
os ocidentais obsessivamente olham “para fora”, os xamãs cultivam aquilo que é chamado
pelos aborígines australianos como o olho “forte” ou “interior” – the strong eye. A articulação
da palavra parece possuir esse poder. Podemos, então, nos perguntar: somos nós que lemos
o livro, ou é ele que nos lê?
Mas não nos esqueçamos também de que, além de voar, os pássaros também
cantam. Articulando a palavra, o visionário atuaria não como um compositor, mas como um
instrumento por onde a música pode se expressar – a “aragem do sagrado” e as “infinitas
estrelas!” de Riobaldo (ROSA, 1978: 319). Barthes (1990: 228), ao se referir à “morte do
autor”, faz justamente esta alusão ao xamã (visionário) como um mediador da linguagem – a
narrar algo que não emana de si mesmo. No contexto da mitologia celta (MATTHEWS, 1999:
29), temos Ogma, deus da linguagem e da eloqüência. Sua história é ligada à figura do velho
gaulês Ogmios, que ataria homens com correntes, unindo suas línguas aos seus ouvidos –
numa referência à forma como os homens eram presos por sua eloqüência. Ao mesmo
171
tempo, diz-se que essa era a experiência de quem escuta o bardo
141
, o poeta celta. Portador
do conhecimento de seu povo – no contexto de uma cultura predominantemente oral – ele
seria capaz de relatar centenas de histórias e de discorrer com propriedade acerca de
questões legais, genealógicas e até mesmo divinatórias.
José Miguel Wisnik (1995), em ensaio intitulado Iluminações profanas (poetas,
profetas e drogados), aborda a experiência visionária como um tema ao mesmo tempo muito
antigo e excessivamente atual. Em seu trabalho, o autor nos apresenta outros elementos que
nos permitem relacionar a visão ao fazer poético e à literatura. Ao falar dessa experiência da
visão, tida como “evidência do invisível, do indizível e do indivisível” (1995: 283), Wisnik a
localiza não apenas na nossa vivência cotidiana (como quando sonhamos), mas também a
relaciona a diversas práticas presentes nas culturas ancestrais e contemporâneas. O que há
de comum nesses diversos contextos é que, em todos, há uma aproximação das figuras do
poeta e do adivinho; ou seja: são apontados os laços que unem a visão às artes.
O pesquisador cita o papel exercido pelos xamãs, como um modelo da fusão
entre o mito, a profecia, a poesia, o canto, a dança e os alucinógenos – estes últimos ligados à
obtenção de um estado alterado de consciência em situações ritualísticas. Outro exemplo,
talvez mais “palatável” para a cultura ocidental, é localizado na época de Platão, onde se
reconhecia a mania (“loucura divina”, ligada a um estado de entusiasmo – estar tomado por
um Deus) composta por quatro campos de manifestação: a poesia, a adivinhação, a
possessão dionisíaca e a paixão amorosa.
141
É interessante notar que a figura do bardo é muitas vezes representada ao lado da harpa (MATTHEWS,
1999: 29) – o que nos remete à sua ligação com a música e a uma dimensão rítmica que também se acopla a essa
figura.
172
Outra dimensão apontada por Wisnik está ligada ao papel ambivalente
socialmente atribuído aos visionários. Ao atuarem como canalizadores de conteúdos
normalmente não expressos no contexto social, a eles é atribuído o papel de bode expiatório
– ao mesmo tempo vítima sacrificial e veículo de purificação. Confesso que a imagem do
bode me remete às representações que temos do diabo: estaríamos nos aproximando da
figura demoníaca supostamente presente no pacto de Riobaldo? Esse caráter dual associado
à experiência visionária parece também estar associado ao duplo caráter do fármaco –
pharmakós; phármakon – cujo significado remete tanto a remédio como a doença. Wisnik
considera que o visionário, poeta ou profeta teria para a sociedade esse mesmo valor
ambivalente – buscado como remédio e marginalizado como doença.
Concordando com seu posicionamento, eu teria ainda algo a acrescentar. No
papel de “fármaco”, ao visionário (poeta, profeta...) também é reservado, em muitas
tradições e até mesmo no mundo contemporâneo, o papel de curador. Stanley Krippner e
seus colaboradores (VILLOLDO e KRIPPNER, 1987; KRIPPNER e WELSH, 1992) abordam
diversas tradições da chamada “cura espiritual” que, em comum, têm como base o estado
alterado de consciência do curador – temos aí uma ampla gama, que perpassa curandeiros,
magos, religiosos, médiuns e xamãs.
Tomando como referência as contribuições de Arrien (1993), além das
dimensões relacionadas ao xamã aqui já apontadas – visionário, profeta e curador –
teríamos, ainda, a associação a mais uma grande imagem arquetípica: a de guerreiro. E
Diadorim não é também o arquétipo da “donzela guerreira”? Essa última dimensão me
remete ao que Wisnik diz acerca da “iluminação profana”: estando a experiência visionária
relacionada ao contato com uma outra dimensão do tempo e da realidade, aquilo que tem
seu modelo na experiência solitária poderia transformar-se – revolucionariamente – numa
173
experiência coletiva. Notemos que esse aspecto revolucionário também está ligado à
ultrapassagem de uma dimensão individual para uma esfera intersubjetiva.
Ao avançar nas relações entre visionarismo e poética, Wisnik também introduz
nessa reflexão algo a que já me referi anteriormente: o lugar do ego diante de todo esse
processo. Pressupõe-se uma mudança na posição do sujeito para que o processo visionário-
poético tenha lugar. Grosso modo, o “eu” tem que abrir mão de seus lugares estabelecidos
para que possa atuar como canal de uma experiência visionária, que transcende os seus
limites usuais. O ego cede lugar à alma?
A vivência do ego diante da experiência visionária pode ser de extrema felicidade
ou de extrema angústia. Neste caminho ele pode se integrar a esse novo mundo ou pode
despedaçar-se. A diferença entre o drogado e o escritor é que o primeiro perderia o domínio
discursivo, enquanto o segundo viajaria pelo campo assim aberto de forma a nele fundar um
novo lugar de enunciação, de modo a compatibilizar a linguagem usual com a “figural”. Peço
licença para abusar das citações literais:
Para o poeta, a visão terá que convergir para aquele “reino das palavras” em que ele
“penetra surdamente” à procura da poesia, como no poema de Drummond [“Procura da
poesia”, em Rosa do povo]. Sua matéria serão as palavras em “estado de dicionário”,
tecido de significantes se apresentando um ao outro, numa mobilidade infinita, onde o
ego não firma a sua baliza num lugar fixo, nem mantém a distância que cria o referente
como “termo objetivo”. Em algum lugar, “a poesia elide sujeito e objeto”, põe em abismo
sujeito e objeto perante as palavras, imersas em sua neutralidade de esfinge. O poeta é
um mediador hermético e órfico: quer ir ao avesso da visão e voltar. Ou não. Mas de
algum modo deve vazar esse outro estado da linguagem no seu estado comum, até como
se fossem o mesmo. (WISNIK, 1995: 297)
O drogado é apossado, no limite, pelo demônio da visão, que se antecipa à linguagem e ao
imaginário, dominando-o à sua maneira. [...] (WISNIK, 1995: 297)
Se a experiência visionária conduz a um lugar semelhante, o que parece
realmente importar é a forma como se volta – e o que se produz – a partir dessa experiência.
174
Mais uma vez surge a figura do diabo: seria o “demônio da visão”, a apossar-se
completamente do sujeito, alijando-o da linguagem?
No que se refere ainda aos laços que unem a experiência visionária e a
experiência poética, Wisnik expõe uma dimensão que considero fundamental: a de como a
experiência “metafísica” não se dissocia da experiência cotidiana. A arte, portanto, é e não é
(como diria Riobaldo) de “outro mundo”. Ao final de seu trabalho, a conclusão fundamental a
que Wisnik nos conduz é a de que a uma experiência visionária corresponde uma expressão
poética. Acredito que tal constatação possa nos levar a formular um questionamento
inverso, quando então podemos perguntar se determinadas expressões poéticas com as
quais ordinariamente temos contato têm como origem experiências visionárias.
Vem à tona então a polêmica que há em torno da gênese de algumas obras de
arte, e que é muito comum no contexto da crítica rosiana: fruto de trabalho deliberado e/ou
fruto de inspiração metafísica?
[…] Diante do enigma, o sagrado nomeia a sua vertigem com o nome de Deus, o profano
nomeia a mesma vertigem como o vazio e o acaso. A profecia moderna é a frágil tangência
e a linha de fuga dessas duas nomeações. Enquanto nomeações, e com todas as
conseqüências disso, elas divergem (e a modernidade é o corte, dessacralizador, que
fundou essa divergência). Enquanto visão, da qual o jogo estético é um sucedâneo, eles
podem ser uma só (pois a contradição entre o sentido transcendente e o não-sentido não é
excludente na lógica visionária). (WISNIK, 1995: 297-298)
Para Wisnik, a visão não é mais da ordem do sagrado (não se fixando mais no
rito e no mito), assim como também não é da ordem do profano (já que recusa a forma da
linguagem usual, corrente e visível) – seu lugar é o da aparição fugaz, assentada sobre uma
“coluna ausente”. As fronteiras entre ordinário e extra-ordinário parecem se tornar menos
rígidas. Aquela visão dos pássaros parece remeter, assim, à presença de beija-flor:
175
Mas acontece que o instante entre o sono e o acordado era assaz curto, só perpassava, não
dava pé. Eu não podia me firmar em coisa nenhuma, a clareza logo cessava. Daqueles
avisos e propósitos, o montante movimento do mundo me delia, igual a um secar. E eu
mesmo estava contra mim, o resto do tempo. Não estava? Todo o mundo, cada dia, me
obedecia mais, e mais me exaltavam. Com o que peguei, aos poucos, o costume de pular,
num átimo, da rede, feito fosse para evitar aquela inteligencinha benfazeja, que parecia
se me dizer era mesmo do meio do meu coração. Num arranco, desfazia aquilo – faísca de
folga, presença de beija-flor, que vai começa e já se apaga – e daí já estava inteirado no
comum, nas meias-alegrias: a meia-bondade misturada com maldade a meio. Agora
levantava, puxava e arreava meu Siruiz, cavalo para alvoradas. Saía sozinho. (ROSA,
1978: 371)
Experiência estética?
176
5
EXPERIÊNCIA ESTÉTICA
A partir do trânsito que se dá entre os níveis ordinários e extra-ordinários da
realidade e, ainda, através relações que estabelece com o mundo e com o outro, Riobaldo se
vê diante do desafio de representar e compartilhar as novas dimensões a que tem acesso. E o
desafio não é pequeno: inicialmente, implica a desconstrução dos modelos cristalizados que
utiliza para dar sentido às próprias vivências; num segundo momento, implica a construção
de formas mais porosas de relação com o mundo, com o outro e consigo mesmo. A esse
desafio duplo, associo a experiência estética por excelência.
177
5.1 DESCONSTRUINDO FRONTEIRAS
Costa Lima (2002), ao referir-se à experiência estética proporcionada pela leitura
da obra poética, compara este tipo de experiência a uma certa “perda de peso”, provocada por
algum tipo de evento que nos faça perder nosso sentido de orientação costumeiro, sem que
fiquemos desatinados por isso. A partir de uma oscilação entre o sintático (tomado como
mecanismo formal de articulação entre os membros de um enunciado) e o semântico
(tomado como a significação formulada e transmitida pela via da sintaxe) – a experiência
estética do texto artístico seria capaz de produzir uma suspensão provisória da primazia
desse último, implicando “[...] tomar-se a sintaxe como espera e intervalo que, provisória e
contingencialmente, anteceda a (re)ocupação semântica” (LIMA, 2002: 47). Isso significa
que, pela via da experiência estética, torna-se viável a construção de novos e impensados
sentidos, que nos possibilitam retornar às nossas referências cotidianas, mas já de posse da
mudança provocada por essa experiência sutil. Essa é a esfera da arte. Diante do numinoso,
do inefável, do transcendente, voltamos à condição terrena transformados, capazes de fazer
com que a nossa apresentação no mundo se dê por caminhos diferentes dos convencionais.
Ao trazer para a vida cotidiana e compartilhada as visões a que se tem acesso em
níveis extra-ordinários da existência, a arte coloca em parênteses todas as representações
cristalizadas que se cultivava até então. Tudo pode mudar – as pedras, o sexo, os nomes. O
próprio “eu” tem que mudar nesse processo: não está mais alijado do mundo como antes
pensava, tampouco é tão grande e poderoso a ponto de comandar o real. O próprio “eu” se
torna uma ponte – o que vale tanto no contexto de uma dimensão intersubjetiva, como na
mediação que se estabelece entre as esferas da realidade. Canal assim constituído, o “eu” se
torna um artista.
178
Mas como compreender o movimento espiralado da arte – que promove
articulações entre o ordinário e o extra-ordinário e coloca em questão os limites de nossas
concepções e referências acerca da própria realidade – como uma experiência estética
tomada sob uma perspectiva porosa? Antes de avançar nessa direção, creio ser necessário
delimitar um pouco mais a compreensão da experiência estética, tal como aqui será
considerada. Acredito podermos compreender a estética de uma forma um pouco distinta do
lugar-comum “estudo do belo”.
De um ponto de vista filosófico, pode-se compreender o conceito de estética
142
como uma possibilidade de apreensão da realidade – neste sentido, valho-me das
contribuições de Mora (1994a).
Chamada por Kant de “estética transcendental”, esta seria “a ciência de todos os
princípios a priori da sensibilidade” (MORA, 1994a: 1115 – tradução minha)
143
. Este filósofo
considera dois pontos fundamentais ao abordar este conceito: (1) a sensibilidade separada
do entendimento; e, num segundo movimento (2), separa da intuição tudo o que pertence à
sensação. Faz, ainda, uma diferenciação entre a idéia de “estética transcendental” e a idéia de
142
A noção de estética considerada como disciplina filosófica, sem que exclua a existência de outras reflexões ou
sistemas estéticos anteriores à filosofia, tem sido empregada desde Alexander G. Baumgarten. Segundo este
autor, seu problema fundamental é a “essência do belo” (MORA, 1994a: 1115). Esta, por sua vez, seria uma
questão abordada já na antiguidade, especialmente por Platão, Aristóteles e Plotino. Seguia-se uma antiga
tendência de identificação do belo com o bem, na unidade de um real perfeito. Ao tratar de definir a essência do
belo (e não de averiguar em detalhes os problemas estéticos), subordinaram o valor da beleza a valores “extra-
estéticos”, particularmente a entidades metafísicas. Em um contexto mais atual, vemos a identificação do belo
com o bem como próprio da filosofia moral inglesa e também em algumas direções do idealismo romântico.
Apenas há relativamente pouco tempo tem se buscado construir uma “estética” independente, desprovida de
considerações do tipo metafísico, lógico, psicológico ou gnoseológico. Nos últimos anos, várias definições têm
sido propostas para a estética, onde algumas das mais importantes seriam a axiológica – considerando a
estética como uma ciência de um grupo de valores (a serem descritos e interpretados) – e a semiótica –
considerando o objeto estético como um signo e veículo de comunicação. Para muitos autores, uma teoria
completa seria aquela apoiada tanto em uma teoria dos signos quanto dos valores.
143
“ciencia de todos los principios a priori de la sensibilidad” (MORA, 1994a: 1115)
179
“lógica transcendental”. Enquanto a primeira estaria voltada para uma ciência do belo ou
uma filosofia da arte, a segunda examinaria os princípios do entendimento puro.
Até Baumgarten, o estético era tido como uma forma de conhecimento inferior e
confusa frente ao consciente e racional. Kant tratou o juízo estético ao lado do teleológico
(orientado para um fim, intencional) – examinando o que há de a priori no sentimento.
Embora ambos estes juízos sejam reflexivos e se caracterizem pela finalidade, uma
diferenciação pode ser efetuada. No juízo teleológico propriamente dito, a finalidade é
objetiva; no juízo estético, por sua vez, esta é considerada subjetiva, no sentido em que a
finalidade da forma do objeto é adequada de acordo com o sujeito. Sujeito esse que não se
relaciona necessariamente ao sujeito individual, mas a uma unidade da natureza subjetiva.
Tem-se, assim, a abertura para que o belo não seja reconhecido objetivamente como um
valor absoluto.
Outro aspecto relevante é o “desinteresse” que caracteriza a atitude estética, a
complacência sem finalidade útil ou moral: “Por isso o estético é independente e não pode
estar a serviço de fins alheios a ele; é, em suas próprias palavras [Kant], ‘finalidade sem fim.’”
(MORA, 1994a: 1115 – tradução minha)
144
.
Percebe-se então que, ao lado de distintas considerações acerca do belo, o
produto desta referência à subjetividade é o fato de que “[...] a atitude do sujeito seja sempre
plena e puramente desinteressada, dedicada à contemplação” (MORA, 1994a: 1116 –
tradução minha)
145
. E, nesse sentido: “A prioridade do juízo estético requer, apesar de sua
144
“Por eso lo estético es independiente y no pude estar al servicio de finos ajenos a él; es, en sus propias palabras,
‘finalidad sin fin’.” (MORA, 1994a: 1115)
145
“[...] la actitud del sujeto sea siempre plena y puramente desinteresada, dedicada a la contemplación.” (MORA,
1994a: 1116)
180
referência ao sujeito, um desprendimento deste para que esteja imbuído do desinteresse e da
finalidade sem fim.” (MORA, 1994a: 1116 – tradução minha)
146
.
Essa concepção de estética – chamada subjetiva – tem sido desenvolvida desde o
século XIX por um grande número de pensadores. Considerada desde o sujeito, tem sido
elaborada a partir da compreensão do juízo estético fundamentalmente como fruto de uma
vivência – quer se apresente como uma intuição obscura ou como uma clara apreensão. Em
contrapartida, a estética desenvolvida a partir do objeto tem tendido particularmente a uma
redução do estético ao “extra-estético”, a uma tentativa de definição do belo a partir de
características próprias do mesmo.
De posse dessas considerações, eu gostaria de retomar alguns pontos principais
identificados ao discutir filosoficamente o conceito de estética e que estão intimamente
relacionados ao modo como esta noção está sendo compreendida no âmbito deste estudo. (a)
Compreende-se a estética como uma possibilidade de apreensão da realidade pela via da
sensibilidade e não exatamente pela via do entendimento. De forma complementar, faz-se
uma distinção entre a sensação (tomada como estímulo externo) e a intuição (tomada como
elemento que se apresenta e emerge no contato com o estímulo). Sensibilidade e intuição
seriam então palavras-chave ao lidarmos com o conceito de estética. (b) Pode-se
compreender a estética como uma outra forma de conhecimento, distinta da consciente e
racional. (c) Uma atitude que marca uma apreensão estética da realidade é o “desinteresse” –
no sentido da ausência de finalidade ou, segundo Kant, “finalidade sem fim”. É necessária
uma atitude verdadeiramente “desinteressada” por parte do sujeito, voltada para a
contemplação; em outras palavras, um certo “desprendimento” deste sujeito. (d)
Considerada desde o sujeito (e não a partir de atributos do objeto), a formulação de um juízo
146
“la prioridad del juicio estético requiere, a pesar de su referencia al sujeto, el desprendimiento en éste de cuanto sea
ajeno al desinterés y a la finalidad sin fin.” (MORA, 1994a: 1116)
181
estético é, fundamentalmente, fruto de uma vivência. (e) A idéia de “sujeito” aqui
considerada não se relaciona necessariamente com um sujeito individual, mas refere-se a
“todo o sujeito”, ou a uma unidade da natureza subjetiva.
Considerando, por outro lado, as contribuições de um referencial sistêmico-
cibernético, oriundo da psicologia, tomamos contato com as contribuições de Bradford
Keeney (1991). Esse autor retoma alguns aspectos discutidos do ponto de vista filosófico –
principalmente o “desinteresse” – ao assumir um posicionamento onde a estética poderia ser
compreendida como a possibilidade de nos abstermos da nossa intencionalidade visando a
fins pré-estabelecidos na relação com o mundo, de forma a “deixar” o sistema (formado pelo
sujeito em relação com o mundo, sendo este último tomado da forma mais ampla possível)
agir. Segundo sua concepção, quando se pode ser mais espontâneo e menos dirigido de um
ponto de vista racional
147
, abrimos espaço para que a mudança (compreendida como
possibilidade de crescimento) ocorra. Assim, além da ausência de uma intencionalidade,
Keeney enfatiza o valor positivo da mudança, do movimento.
Desenvolvendo esses argumentos, o autor toma o próprio fazer artístico como
um exemplo, fazendo uma distinção entre o fazer do artesão (ou técnico) àquele do artista:
estes empregam as mesmas técnicas e habilidades para alcançar uma meta determinada –
com a diferença no caso do artista que, em seu fazer, transcende a aplicação consciente dos
meios, visando a qualquer fim pré-concebido. A arte inclui a técnica, mas a transcende. A
147
À primeira vista, poderíamos até mesmo questionar este posicionamento, argumentando que, ao propor tal
postura, esta seria feita a partir de um fundamento de racionalidade, um movimento intencional. Mas como
ficará um pouco mais claro adiante, o que esse autor propõe não é exatamente a substituição do fundamento
racional pela espontaneidade, mas justamente a articulação entre os dois fundamentos.
182
arte está relacionada à possibilidade de uma relação recursiva
148
entre as diversas ordens do
processo mental, envolvendo o consciente e o inconsciente. Por sua vez, ela não poderia ser
confundida com uma mera expressão desse último termo, mas ela se ocuparia justamente
das relações entre os diversos níveis da consciência. Cabe então a pergunta: ao artista estaria
relacionada um tipo de produção mais “verdadeira” em oposição a uma produção mais
“artificial” ligada ao artífice?
Tomando o paralelo entre a arte e o desenvolvimento em uma disciplina
espiritual, Keeney
149
também compara este movimento àquele efetuado pelo arqueiro Zen
(HERRIGEL, 2001) – já abordado neste estudo – em seu aprendizado. Seu desenvolvimento
não é considerado um mérito pessoal, mas parte de um contexto muito mais amplo, de
forma que a mestria nunca é atribuída a si mesmo, mas ao “todo” do qual faz parte. Após
anos de aprendizado em determinada técnica, vivenciando todo um processo de
“descentramento”, o discípulo é “esvaziado” passando a agir como um canal, por onde flui
um movimento maior que o leva a produzir feitos pouco usuais. A presença de um fim pré-
concebido seria apenas um obstáculo para que este processo se realizasse, configurando algo
a ser superado.
148
O que remete ao conceito de “recursividade”, a ser explorado no próximo capítulo.
149
É interessante notar, não apenas na obra acadêmica desse autor, mas no contato com seu relato auto-
biográfico (KEENEY, 1994), o modo como a sua história pessoal e desenvolvimento como terapeuta estão
relacionados à arte (através da música) e também ao contato com uma tradição espiritual – o xamanismo. Em
relação à música, Keeney relata que sempre se esforçou para tocar bem. Em determinado momento, no entanto,
diante de uma certa frustração com seus esforços, deixou de se esforçar tanto para aprender a música – e
começou a deixá-la acontecer. Foi então que – a partir de suas palavras – percebeu que ele era o instrumento, e
que ele era tocado pela música; e não o contrário. Muito mais do que um aprendizado conceitual, o processo que
esse autor descreve refere-se a algo da ordem da vivência pessoal, tanto que esse é o tom do seu relato.
183
Diante de possibilidades de desconstrução de fronteiras e referências, de
relativização do próprio conceito de belo e de um convite ao “esvaziamento” subjetivo frente
à nossa relação com o mundo, creio ser absolutamente incoerente “fechar” a forma como o
conceito de estética vem sendo abordado nesta pesquisa. Recorro novamente ao discurso
que Valéry (1975) faz sobre a estética, ressaltando a conclusão fundamental a que chega: a
de que, considerando todas as sua reflexões, sua grande conclusão é que sua compreensão de
estética se dá apenas por proposições negativas:
Existe uma forma de prazer que não se explica; que não se circunscreve, que não fica
restrita ao órgão do sentido onde nasce, e nem mesmo ao domínio da sensibilidade; que
difere da natureza, ou de motivo, de intensidade, de importância e de consequência
segundo as pessoas, as circunstâncias, as épocas, a cultura, a idade e o meio-ambiente;
que induz a ações sem causa universalmente válida, ordenadas segundo fins incertos, de
indivíduos distribuídos como que ao acaso dentro do conjunto de um povo; e essas ações
engendram produtos de diversas categorias, cujo valor de uso e de troca dependem muito
pouco do que eles são realmente. Finalmente, última negativa: todos os esforços feitos
apra definir, regularizar, regulamentar, medir, estabilizar ou garantir esse prazer e sua
produção foram, até agora, vãos e infrutíferos; mas como acontece que tudo, neste
domínio, é impossível de circunscrever, só foram vãos de modo imperfeito e seu fracasso
não deixou de ser, às vezes, curiosamente criador e fecundo... (VALÉRY, 1975: 55)
O que eu gostaria de ressaltar, a partir de um discurso tão enfático, não é apenas
a fragilidade das construções que até então efetuamos acerca da questão estética – e,
conseqüentemente, do fazer poético – mas também a falta de “controle”, por parte do
homem, que parece se impôr em nossas tentativas. Ao mesmo tempo, a arte se coloca como
uma força viva: diante de nossas tentativas fracassadas de classificá-la e normatizá-la, ainda
assim, há algo criativo e construtivo que parece emergir – além do nosso controle.
Quando fazemos nos aproximamos da narrativa de Riobaldo a partir dessa
perspectiva estética menos cristalizada revelam-se contornos importantes além daqueles
diretamente relacionados à constituição da obra de arte. Creio que, nessa perspectiva, três
importantes dimensões poderiam ser ressaltadas.
184
(a) A primeira vincula-se ao modo como as transformações fundamentais às
quais o jagunço/narrador é submetido operam – ou pelo menos têm o seu ápice – pela via de
uma experiência estética. O caráter quase “iniciático” desse tipo de vivência é então colocado
em evidência. (b) Outra dimensão importante está vinculada ao modo como, pela via da
constituição de uma sensibilidade diferenciada – relacionada a uma perspectiva estética –
ocorre uma modificação substancial do posicionamento subjetivo de Riobaldo. Deslocando-
se de si mesmo e abrindo seu coração para o outro, empaticamente, o jagunço potencializa a
dimensão estética de sua vida. Este seria o “esvaziar” do jagunço. (c) A última dimensão a ser
apontada é justamente aquela mais imediatamente associada à experiência estética: a
constituição do artista e da obra de arte.
Buscarei, a seguir, abordar as duas primeiras dimensões que aponto; sendo que a
relação específica que Riobaldo estabelece com a arte será focalizada no próximo capítulo.
5.2 VIVÊNCIA ESTÉTICA E MUDANÇA DO SER
Creio que travessia do São Francisco tenha um papel importante na trajetória de
Riobaldo não apenas por introduzi-lo nos ritmos da natureza – tal como já busquei abordar
nesta tese –, mas também por aquilo a que o contato com o Menino-Reinaldo-Diadorim o
introduz: o contato com o belo e a experiência estética da realidade. Diadorim se coloca, a
partir dessa travessia e para todo o sempre, como uma espécie de “iniciador” de Riobaldo, ao
ensinar-lhe a perceber e a apreciar as “belezas sem dono” da natureza:
185
Lhe mostrar os altos claros das Almas: rio despenha de lá, num afã, espuma próspero,
gruge; cada cachoeira, só tombos. O cio da tigre preta na Serra do Tatú já ouviu o
senhor gargaragem de onça? A garôa rebrilhante da dos-Confins, madrugada quando o
céu embranquece – neblim que chamam de xererém. Quem me ensinou a apreciar essas as
belezas sem dono foi Diadorim... A da-Raizama, onde até os pássaros calculam o giro da
lua – se diz – e cangussú monstra pisa em volta. Lua de com ela se cunhar dinheiro.
Quando o senhor sonhar, sonhe com aquilo. Cheiro de campos com flores, forte, em abril:
a ciganinha, roxa, e a nhiíca e a escova, amarelinhas... Isto – no Saririnhém. Cigarras dão
bando. Debaixo de um tamarindo sombroso... Eh, frio! Lá gêia até em costas de boi, até
nos telhados das casas. Ou no Meãomeão – depois dali tem uma terra quase azul. Que
não que o céu: esse é céu-azul vivoso, igual um ovo de macuco. Ventos de não deixar se
formar orvalho... Um punhado quente de vento, passante entre duas palmas de
palmeira... Lembro, deslembro. Ou – o senhor vai – no soposo: de chuva-chuva. Vê um
córrego com má passagem, ou um rio em turvação. No Buriti-Mirim, Angical, Extrema-
de-Santa-Maria... Senhor caça? Tem lá mais perdiz do que no Chapadão das Vertentes...
Caçar anta no Cabeça-de-Negro ou no Buriti-Comprido – aquelas que comem um capim
diferente e roem cascas de muitas outras árvores: a carne, de gostosa, diversêia. [...]
(ROSA, 1978: 23)
Em GSV a natureza não é cenário ou espaço, ela se coloca como personagem. Sua
percepção como algo belo e vivo é uma das bases que conduzem Riobaldo em sua
trajetória
150
. O caráter estético da natureza – belo e mutante – é plenamente reconhecido.
Essa perspectiva se faz presente também a partir da importância dada à sua própria
nomeação – que se aplica aos espaços, lugares e formas da natureza – aí incluindo os animais
e os pássaros. Não se pode deixar de lado a forma como os nomes – poéticos – conferem
“alma” ao lugar, configurando um estado de espírito, uma predisposição. Nomeação que não
é simples, já que os lugares – assim como as pessoas – também estão expostos às mudanças:
[...] Eu dou proteção. Eu, isto é – Deus, por baixos permeios... Essa não faltou também à
minha mãe, quando eu era menino, no sertãozinho de minha terra – baixo da ponta da
Serra das Maravilhas, no entre essa e a Serra dos Alegres, tapera dum sítio dito do
Caramujo, atrás das fontes do Verde, o Verde, que verte no Paracatú. Perto de lá tem vila
grande – que se chamou Alegres – o senhor vá ver. Hoje, mudou de nome, mudaram.
Todos os nomes eles vão alterando. É em senhas. São Romão todo não se chamou de
primeiro Vila Risonha? O Cedro e o Bagre não perderam o ser? O Tabuleiro-Grande?
Como é que podem remover uns nomes assim? O senhor concorda? Nome de lugar onde
alguém já nasceu, devia de estar sagrado. [...] (ROSA, 1978: 35)
150
Adélia Bezerra de Menezes (2004) aborda a sobreposição dos planos geográfico e psicológico em GSV a partir
da construção de metáforas na natureza, o que se coaduna com tal perspectiva.
186
Vemos que os nomes dos lugares – e os das pessoas – vão se alterando. Em
senhas, que buscamos decifrar. Ao mesmo tempo, Riobaldo enfatiza a ligação da pessoa com
o lugar onde nasce, de forma a conferir uma espécie de sacralidade ao espaço. Vemos assim
que o contato estético – o “diverso sentir” – com a natureza também se coloca como ponte de
acesso a outras realidades, menos ordinárias. A própria vivência do tempo se transforma:
[…] Vá de retro! – nanje os dias e as noiteso recordo. Digo os seis, e acho que minto; se
der por os cinco ou quatro, não minto mais? Só foi um tempo. Só que alargou demora de
anos – às vezes achei; ou às vezes também, por diverso sentir, acho que se perpassou, no
zúo de um minuto mito: briga de beija-flor. Agora, que mais idoso me vejo, e quanto mais
remoto aquilo reside, a lembrança demuda de valor – se transforma, se compõe, em uma
espécie de decorrido formoso. Consegui o pensar direito: penso como um rio tanto anda:
que as árvores das beiradas mal nem vejo... Quem me entende? O que eu queira. [...]
(ROSA, 1978: 260)
Essa experiência que transcende os limites do tempo – tendo durado anos ou
minutos – se aproxima novamente de uma experiência estética, que une natural e
transcendente pela via da vivência do homem, que transforma o tempo ordinário em
“minuto mito”. Zúo de briga de beija-flor. Experiência que não se pode compreender, pelo
menos não racionalmente, e “o pensar direito” alcançado por Riobaldo no decorrer dos anos
o conduz e pensar como um rio que anda, mal vendo as árvores da beirada, uma consciência
extra-ordinária das coisas.
Em outro episódio, na batalha que se trava no cerco da Fazenda dos Tucanos, no
meio de um tiroteio, algo surge e chama a atenção:
187
[...] E então conto o do que ri, que se riu: uma borboleta vistosa veio voando, antes
entrada janelas a dentro, quando junto com as balas, que o couro de boi levantavam;
assim repicava o espairar, o vôo de reverências, não achasse o que achasse – e era uma
borboleta dessas de cor azul-esverdeada, afora as pintas, e de asas de andor. – “Ara
151
,
viva, maria boa-sorte!” – o Jiribibe gritou. Alto ela entendesse. Ela era quase a paz.
(ROSA, 1978: 256)
No meio do tiroteio – o mundo misturado e violento dos níveis mais densos da
realidade ordinária – surge de repente uma borboleta colorida, leve, do ar. Apresentação de
outras esferas do real? Como experiência estética por excelência, a aparição da borboleta
pára tudo por um instante, instaura o riso no meio da guerra, confere outras possibilidades
de sentido, marca a permeabilidade entre as dimensões. Experiência estética: efêmera, bela e
fugaz como o vôo de uma borboleta. Riobaldo até então é lagarta – Tatarana. Algo está para
mudar?
Para que a lagarta se converta em borboleta, deve encerrar-se numa crisálida. O que
ocorre no interior da lagarta é muito interessante; seu sistema imunológico começa a
destruir tudo o que corresponde à lagarta, incluindo o sistema digestivo, já que a
borboleta não comerá os mesmos alimentos que a lagarta. A única coisa que se mantém é
o sistema nervoso. Assim é que a lagarta se destrói como tal para poder construir-se como
borboleta. E quando esta consegue romper a crisálida, a vemos aparecer, quase imóvel,
com as asas grudadas, incapaz de desgrudá-las. E quando começamos a nos inquietar por
ela, a perguntar-nos se poderá abrir as asas, de repente a borboleta alça vôo. (MORIN,
1996: 289)
Edgar Morin utiliza as imagens da lagarta e da borboleta para descrever um
processo que poderíamos compreender como iniciático. Pois bem, voltando à narrativa,
vemos que, imediatamente à aparição da borboleta, Zé Bebelo se refere a Riobaldo Tatarana
de uma outra forma:
151
Ara... Aracy?
188
[...] – “Tu é tudo, Riobaldo Tatarana! Cobra voadeira...” Antes Zé Bebelo me ofereceu
mais restilo, o tanto também bebeu, às saúdes. [...] A gente sabe mais, de um homem, é o
que ele esconde. – “Ah: o Urutu Branco: assim é que você devia se chamar... [...] (ROSA,
1978: 256)
Sob o signo da aparição da borboleta no meio do tiroteio pela primeira vez se
cogita chamar Riobaldo de Urutu Branco
152
– o nome que adotará a partir de seu pacto. A
lagarta se converte em serpente? Um pacto se anuncia? Consideremos as lógicas da morte e
da possibilidade de renascimento. Tomando, então, as transformações vivenciadas por um
Riobaldo que vai aprendendo a se relacionar esteticamente com a vida, creio fazer sentido
considerarmos uma perspectiva iniciática presente em GSV. O que mais se esconde em sua
crisálida?
5.2.1 UMA PERSPECTIVA INICIÁTICA
Ao considerarmos o caráter estético imbricado na trajetória de Riobaldo –
enfatizando a possibilidade de mudança subjetiva, a ausência de intencionalidade e o
efêmero da experiência estética propriamente dita – creio podermos apontar pelo menos
três grandes transformações às quais Riobaldo é submetido. Acredito também que o caráter
de cada uma delas seja quase iniciático. Consideremos a perspectiva adotada por Antonio
Candido, quando este se refere ao pacto firmado por Riobaldo:
152
Utéza (1994: 126) lembra, em uma nota, que a urutu é negra, com uma cruz na cabeça. Qualificada de
“branco”, a serpente venenosa tornar-se-ia simbólica, uma vez que seria portadora das duas cores iniciais da
alquimia.
189
Cumprido o rito, o narrador aparece marcado pelo sinal básico da teoria iniciatória: a
mudança do ser. O iniciado, pela virtude das provas a que se submeteu, renasce
praticamente, havendo um grande número de sociedades que fazem a iniciação consistir
na simulação da morte seguida da ressureição. (CANDIDO, 1983: 304)
No que se refere aos processos iniciáticos, o simbolismo morte-ressureição
muitas vezes se apresenta pela via das chamadas “crises iniciáticas”, que podem vir através
de doenças ou da vivência de situações limite. A presença dessas crises é um indício de que
uma transformação profunda está por ocorrer no ser do iniciado.
Nas culturas xamânicas – como as dos povos nativos das américas ou mesmo a
cultura celta – as doenças estão intimamente associadas aos processos iniciáticos (TEPASKE,
1997). A doença é vista como um desequilíbrio que pode se manifestar física, mental ou
espiritualmente; entretanto esse desequilíbrio é compreendido como uma espécie de
“chamado” para o processo iniciatório. A cura da doença viria acompanhada não apenas da
supressão daquilo que se manifestava como desequilíbrio, mas de toda uma nova
organização daquele ser. Outro autor que aborda essas mesmas dimensões é Tom Cowan
(1993) que, ao listar os elementos arquetípicos da experiência xamânica, neles inclui algum
tipo de “crise” traumática iniciatória, freqüentemente envolvendo alguma debilitação ou
doença. Para Eliade (1960), há um esquema tradicional que sempre acompanha uma
cerimônia de iniciação: sofrimento, morte e ressurreição. A “enfermidade-vocação”
desempenha, portanto, o papel de uma iniciação na medida em que prenuncia os
sofrimentos que antecipam, para o enfermo, a morte de suas referências.
190
Essa mudança do ser
153
– morte seguida de ressurreição – parece se dar, como eu
estava a dizer inicialmente – em três momentos cruciais da narrativa. Além do pacto
apontado por Candido, eu acrescentaria outro momento assim já considerado pela crítica,
que vem a ser travessia do São Francisco
154
e, ainda, um terceiro momento que considero
fundamental: as mudanças operadas em Riobaldo pela morte de Diadorim. São, portanto,
três os grandes momentos de transformação de Riobaldo. Cabe salientar que meu foco atual
incide não sobre os efeitos e natureza dessas transformações, mas sobre o reconhecimento
dos indícios que as precedem.
O primeiro momento, seguindo o fluxo da narrativa, seria aquele que envolve a
travessia do São Francisco. Somos colocados diante do menino Riobaldo, pagando uma
promessa feita pela mãe em retribuição à cura de uma doença que o acometia. Logo após o
retorno dessa travessia, Riobaldo tem notícia da morte de sua mãe, quando então ele diz que
sua vida “mudou para uma segunda parte” (ROSA, 1978: 87), tendo “amanhecido mais”. Para
além do significado da travessia – o qual já busquei analisar ao tratar do ritmo –, chamo a
atenção para a presença dos elementos que caracterizam a experiência iniciática: doença e
morte que são seguidos da transformação profunda, espécie de renascimento.
O segundo grande momento de transformação seria aquele que envolve o
estabelecimento do pacto nas Veredas-Mortas. Recordemos o que o precede. Inicialmente,
voltando do Ribeirão-do-Galho-da-Vida, topando com inimigos, Riobaldo é baleado de
raspão no braço, perdendo muito sangue (ROSA, 1978: 244). Ele relata: “[...] Assim a
153
Em sua análise, Albergaria (1077: 25) refere-se à “iniciação esotérica” que tem lugar através de elementos
rituais e que visa acessar o conhecimento “daquilo que parece ser impossível ser conhecido”. Tal iniciação se
liga, pois, a uma “total tomada de consciência” – diferenciando-se, portanto, da perspectiva adotada neste
trabalho. Por outro lado, um ponto de sintonia pode ser apontado: Albergaria (1977: 36) também aponta as
mudanças de personalidade do iniciado como condição (ao lado da presença de um guia e do cumprimento de
ritos) para que se efetive a iniciação esotérica.
154
Para Arrigucci (1994: 26) a travessia do rio vem a ser um episódio decisivo a partir do qual a narração se
ordena, conferindo um caráter biográfico para o relato de Riobaldo, ligado ao processo de sua formação. Ao
lado disso, a travessia poderia ser vista não apenas como um rito de passagem para a vida adulta, como também
envolveria múltiplos aspectos, do mito à experiência real. Haveria, ainda, uma alusão ao encontro com a
“criança divina” – a sugerir uma abertura para as dimensões arquetípicas e metafísicas.
191
primeira vez que me sucedia um a-mal, isso me perturbasse. O que me sofria até nas
margens do peito, e nos dedos da mão, não me concedendo movimentos. Muito temi por
meu corpo.” (ROSA, 1978: 244). Um pouco adiante, dentro da casa na Fazenda dos
Tucanos
155
, aumenta cada vez mais o fedor dos corpos dos companheiros falecidos.
Aparecem urubus e as moscas se reproduzem com rapidez. O cheiro é de morte velha. Alguns
estavam doentes e todos sem seus cavalos, mortos. No meio de tanta morte e despropósito,
Riobaldo queria ter um recomeço. O bando atravessa campos e, novamente, é acometido por
mortes e doenças: morrem Pilotô e Freitas Macho; Alaripe tem uma “carregação-dos-olhos” e
Conceiço destronca o braço. No caminho para o pacto, a narrativa também nos apresenta a
doença que acomete os Sucruiús. O próprio Riobaldo fica doente: [...] Remédio que valesse,
de todo faltava. Aquilo afracava, no diário; os homens perdiam a natureza. E um andaço de
defluxo, que também me baqueou. Pior não estive; mas eu, de mim, sei. [...] (ROSA, 1978:
304). Mais uma vez, tem-se configurado o contexto para a experiência iniciática. Firma-se o
pacto nas Veredas-Mortas e vem à tona o chefe Urutu-Branco.
O terceiro e último momento seria aquele que envolve a batalha final e a morte
de Diadorim. Vemos que, ainda antes que os inimigos se encontrassem, encontra-se uma
caverna
156
espaçosa habitada por morcegos
157
. Riobaldo quis subir até o seu cume e poucos
155
É na Fazenda dos Tucanos, entre a trégua e a efetiva retirada, que chama a atenção de Riobaldo o fato de que
todos seguiam seus caminhos de costume – apesar de toda aquela experiência – no novo não conseguiam se
guiar. Riobaldo se sentia o “indez”: aquele que de alguma forma se antecipa e chama a mudança. A esse
respeito, também é interessante notar que Riobaldo muitas vezes se refere à casa na Fazenda dos Tucanos
como a “Casa dos Tucanos” – ninho? Ninho onde se coloca um ovo de indez? Tal fato me remete às associações
que teci no capítulo anterior, entre as imagens de Diadorim, do pássaro e do ovo. Note-se que é também nessa
ocasião, partindo para os Currais-do-Padre, que Riobaldo revela a Diadorim o presente que para ele havia
guardado: a pedra “safira” de Arassuaí. Diadorim não aceita a pedra nesse momento, prefere recebê-la quando
Joca Ramiro estiver vingado. Riobaldo recebe a pedra de volta e, mais uma vez, convida Diadorim para
largarem a jagunçagem. Não apenas Diadorim responde a esse convite pedindo a Tatarana para permanecer,
como com ele compartilha seu pressentimento: o de que Riobaldo “pode – mas encobre” (ROSA, 1978: 284);
que a guerra mudaria quando ele calcasse firme as estribeiras – apesar de, naquele momento Riobaldo ainda se
considerar o contrário de um mandador, retraído de nascença – a quem cabia apenas obedecer ao sertão.
156
Ryan (1999) chama a atenção para a utilização ancestral desses locais para os ritos xamânicos – a caverna
significando o portal de entrada em direção a outras realidades (internas e interdimensionais), a partir de
estados alterados de consciência – além do significado, possivelmente mais difundido, de útero materno.
192
foram os que o acompanharam às “alturas” (ROSA, 1978: 415). O morcego simbolizaria a
morte simbólica que nos conduz para outras esferas da realidade e do conhecimento – ligada
exatamente, mesmo nos costumes dos povos nativos, à destruição do conceito de “eu”. Essas
são as marcas da entrada no Tamanduá-tão. Mas os indícios são também menos sutis:
Riobaldo tem fortes dores de cabeça – que acredita ser da sede. A guerra continuava, com
suas balas “beija-florando”. Riobaldo fica ainda com “dormente dor, nos braços” (ROSA,
1978: 449) – e disse que lá dormiu “mortalmente” (ROSA, 1978: 437). Finalmente, após a
morte de Diadorim, Riobaldo também é acometido de uma grande enfermidade, com febres
e perda de consciência – da qual custa para se recuperar.
Se, neste momento, me restrinjo a apontar os elementos que precedem cada uma
dessas transformações é porque gostaria de colocar em evidência a estrutura da
transformação iniciática que a todas subjaz: doença/morte ' renascimento. Acredito que a
importância de tal reconhecimento “iniciático” em uma perspectiva estética seja o fato de ela
nos permitir entrar em contato com um contexto mais amplo de ação. A doença e a morte
não podem ser vistas com um fim em si mesmo, não estando mais desconectadas da vida e
do renascimento. Os processos não estão separados; fica difícil dizer onde algo começa e
onde termina. Fica mais fácil ter coragem.
Podemos, então, ir além – além da morte. O que significariam as possibilidades
de “renascimento” no âmbito de cada um desses três momentos que aponto? No contexto
157
Os morcegos são tomados pelos povos nativos norte-americanos (SAMS e CARSON, 2000: 227) como
símbolos do renascimento: dependurados de cabeça para baixo nesta mesma caverna, seriam a imagem do feto
que espera para nascer do útero. Seria o nascimento que surge após o escuro da noite, a morte – seria, portanto,
a imagem do renascimento.
193
desta pesquisa creio já termos sondados esses elementos no que se refere à travessia do São
Francisco, associada a uma nova forma de adesão aos ritmos e, consequentemente, à
construção de outros mecanismos – confiança e coragem – para se lidar com as dualidades
constitutivas dos níveis ordinários de realidade. Quanto à segunda transformação iniciática
apontada, ligada ao estabelecimento do pacto, creio dela só termos nos aproximado em
parte, focalizando a abertura de caminhos e a ativação de forças que implicam um contato
ampliado com outras dimensões do ser e do mundo, além, é claro, da mudança de ritmos aí
também implicada. Por outro lado, acredito que essa “segunda iniciação” também traga em si
em uma outra dimensão fundamental, que merecer ser mais explorada: o caráter de uma
vivência eminentemente estética – o que pretendo focalizar a seguir. Já no que se refere à
morte de Diadorim, se tomada numa perspectiva iniciática e estética, creio poder nos
conduzir a uma compreensão mais aprofundada das significativas transformações que,
subjetivamente, têm lugar em Riobaldo – o que buscarei explorar ao final deste capítulo.
5.2.2 O PACTO
Tomemos como ponto de partida a descrição da aproximação que Riobaldo faz
das Veredas-Mortas, lugar onde o pacto seria firmado:
Sombra de sombra, foi entardecendo; fuscava. Ao que eu estivesse destemido, soberbo?
Da mão peluda, eu firme estava. Fazia muito tempo que eu não descabia de tão em arrojo.
Dou: que nunca, feito naquela hora, e em aquele dia. Somente com a alegria é que a gente
realiza bem – mesmo até as tristes ações. Retrocedi de todos. [...]
Adjaz o campo, então eu subi de lá, noitinha – hora em que capivara acorda, sai de seu
escondido e vem pastar. Deus é muito contrariado. Deus deixou que eu fosse, em pé, por
meu querer, como fui.
194
Eu caminhei para as Veredas-Mortas. Varei a quissassa; depois, tinha um lance de
capoeira. Um caminho cavado. Depois, era o cerrado mato; fui surgindo. Ali esvoaçavam
as estopas eram uns caborés. E eu ia estudando tudo. Lugar meu tinha de ser a concruz
dos caminhos. A noite viesse rodeando. Aí, friazinha. E escolher onde ficar. O que tinha
de ser melhor debaixo dum pau-cardoso – que na campina é verde e preto fortemente, e
de ramos muito voantes, conforme o senhor sabe, como nenhuma outra árvore nomeada.
[...] (ROSA, 1978: 316-317)
Na concruz dos caminhos, entre o caminho cavado e o cerrado mato – portanto,
entre o aberto e o fechado –, debaixo de um pau-cardoso, numa alusão às árvores
158
que não
são nomeadas, oscilando entre o enraizado forte e os ramos “muito voantes”: este é o lugar do
pacto. Recordemos que a hora marcada era a meia-noite: cruzamento de dias no meio
escuridão.
[...] Cheguei lá, a escuridão deu. Talentos de lua escondida. Medo? Bananeira treme de
todo lado. Mas eu tirei de dentro de meu tremor as espantosas palavras. Eu fosse um
homem novo em folha. [...] Trato? Mas trato de iguais com iguais. Primeiro, eu era que
dava a ordem. E ele vinha para supilar o ázimo do espírito da gente? Como podia? Eu era
eu – mais mil vezes – que estava ali, querendo, próprio para afrontar relance tão
desmarcado. Destes meus olhos esbarrarem num ror de nada.
Esperar, era o poder meu; do que eu vinha em cata. E eu não percebia nada. Isto é, que
mesmo com o escuro e as coisas do escuro, tudo devia de parar por lá, com o estado e
aspecto. O chirilil dos bichos. Arre, quem copia o riso da coruja, o gritado. Arrepia os
cabelos das carnes.
E não conheci arriação, nem cansaço.
Ele tinha que vir, se existisse. Naquela hora, existia. Tinha de vir, demorão ou jàjão. Mas,
em que formas? [...] (ROSA, 1978: 317)
O medo vem à tona – e o pacto surge como “trato”: modo de lidar com as coisas.
“Esperar” era o poder que Riobaldo “vinha em cata”. Quando não se percebe nada, diante do
escuro, o poder consiste em parar e esperar, sem “arriação” nem cansaço. Sou remetido ao
exemplo que dá na ocasião em que discorre justamente sobre a superação do medo, ainda no
início de sua narrativa (ROSA, 1978: 119-120): o homem medroso que quer adquirir
158
O que remete a seu caráter de axis mundi – ao qual já me referi nesta tese e que, por ocasião do pacto,
também é abordado por Utéza (1994: 232), numa referência ao fato de, nessa ocasião, Riobaldo se encostar
contra uma árvore.
195
coragem a encontra ao comer coração cru de uma onça; mas, para isso, ele mesmo tem que
matá-la com sua faca. O mesmo ocorre aqui: ao esperar, diante do escuro-vazio, pelo pacto,
este se realiza. É justamente esse que parece ser o “trato”, pacto: postar-se na “concruz dos
caminhos”, sem medo, e abrir-se para o desconhecido e movimentado da vida. A meu ver,
essa postura parece muito sintonizada uma perspectiva estética de relacionamento com a
realidade, bem como remete às discussões que aqui já efetuadas acerca da coragem e da
confiança. Vamos além.
Ao que não vinha – a lufa de um vendaval grande, com Ele em trono, contravisto, sentado
de estadela bem no centro. O que eu agora queria! Ah, acho que o que era meu, mas que o
desconhecido era, duvidável. Eu queria ser mais do que eu. Ah, eu queria, eu podia.
Carecia. “Deus ou o demo?” – sofri um velho pensar. Mas, como era que eu queria, de que
jeito, que? Feito o arfo de meu ar, feito tudo: que eu então havia de achar melhor morrer
duma vez, caso que aquilo agora para mim não fosse constituído. E em troca eu cedia às
arras, tudo meu, tudo o mais – alma e palma, e desalma... Deus e o Demo! [...] (ROSA,
1978: 318)
O instante exato do pacto é marcado pelo seu caráter instantâneo e inefável.
Experiência estética por excelência? Ao velho pensar – “Deus ou o demo?” – soma-se a
vontade de ser mais do que “eu”. O pacto implica a desconstrução de um antigo “eu” em
troca de algo maior. Há uma outra forma de percepção de si mesmo, ampliada: Riobaldo
estava bêbado de si mesmo; parece haver um vislumbre de contato com a própria alma.
Agora pode ser “Deus e o demo!”. No mundo das aparentes dualidades tudo cabe e tudo fica
menor: até Hermógenes é comparado a uma formiguinha passeando “entre o pé e o pisado”.
[...] Somei sensatez. Cobra antes de picar tem ódio algum? Não sobra momento. Cobra
desfecha desferido, dá bote, se deu. A já que eu estava ali, eu queria, eu podia, eu ali
ficava. Feito Ele. Nós dois, e tornopío do pé-de-vento – o ró-ró girado mundo a fora, no
dobar, funil de final, desses redemoinhos: ... o Diabo, na rua, no meio do redemunho...
Ah, ri; ele não. Ah – eu, eu, eu! “Deus ou o Demo – para o jagunço Riobaldo!” A pé
firmado. Eu esperava, eh! De dentro do resumo, e do mundo em maior, aquela crista eu
repuxei, toda, aquela firmeza me revestiu: fôlego de fôlego de fôlego – da mais-força, de
196
maior-coragem. A que vem, tirada a mando, de setenta e setentas distâncias do profundo
mesmo da gente. Como era que isso se passou? Naquela estação, eu nem sabia maiores
havenças; eu, assim, eu espantava qualquer pássaro.
Sapateei, então me assustando de que nem gota de nada sucedia, e a hora em vão
passava. Então, ele não queria existir? [...]
[...] Não. Nada. O que a noite tem é o vozeio dum ser-só – que principia feito grilos e
estalinhos, e o sapo-cachorro, tão arranhão. E que termina num queixume borbulhado
tremido, de passarinho ninhante mal-acordado dum totalzinho sono.
– “Lúcifer! Satanaz!...”
Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.
– “Ei, Lúcifer! Satanaz, dos meus Infernos!”
Voz minha se estragasse, em mim tudo era cordas e cobras. E foi aí. Foi. Ele não existe, e
não apareceu nem respondeu – que é um falso imaginado. Mas eu supri que ele tinha me
ouvido. Me ouviu, a conforme a ciência da noite e o envir de espaços, que medeia. Como
que adquirisse minhas palavras todas; fechou o arrocho do assunto. Ao que eu recebi de
volta um adejo, um gozo de agarro, daí umas tranqüilidades – de pancada. Lembrei dum
rio que viesse adentro a casa de meu pai. Vi as asas. Arquei o puxo do poder meu, naquele
átimo. Aí podia ser mais? A peta, eu querer saldar: que isso não é falável. As coisas assim
a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado.
Absolutas estrelas!
[...] As quantas horas? E aquele frio, me reduzindo. Porque a noite tinha de fazer para
mim um corpo de mãe – que mais não fala, pronto de parir, ou, quando o que fala, a gente
não entende? Despresenciei. Aquilo foi um buracão de tempo. (ROSA, 1978: 318-320)
Nada se sucedia. Nonada – marca textual dos começos e dos finais – surge com
um outro formato: “Não. Nada.”. As imagens sobrepostas do redemoinho do demo e do
“fôlego de fôlego de fôlego” que tira de dentro de si mesmo, fundem-se em uma força:
coragem. Os tantos barulhos da noite são o vozeio de um ser só; que no fundo é silêncio: “a
gente mesmo, demais”. Parecem não mais existir rígidas fronteiras a separar o eu e o mundo.
Aquele que iria se transformar no Urutu-Branco, mostra sinais dessa transformação.
A experiência é narrada a partir de seu caráter inefável. O sentimento não é
exatamente o da ausência de palavras, mas do contato com as palavras todas, um excesso de
significação. As noções de tempo e também de espaço perdem seu sentido ordinário; a esfera
da natureza, tal como a conhecemos, é transcendida: “aragem do sagrado”; “absolutas
estrelas!”. Há também o sentimento de unidade com o mundo, com o devir, com todas as
coisas. Há uma sensação de leveza, de poder.
197
Riobaldo ressurge dessa experiência com sede, frio e fome. Parece haver um
espaço aberto dentro de si, pronto para ser preenchido. Seus movimentos seguintes vêm de
encontro a uma nutrição necessária, buscada na comunhão com o mundo ao seu redor:
[...] saí, fui vindo m’embora. Eu tinha tanto friúme, assim mesmo me requeimava forte
sede. Desci, de retorno, para a beira dos buritís, aonde o pano d’água. A claridadezinha
das estrelas indicava a raso a lisura daquilo. Ali era bebedouro de veados e onças. Curvei,
bebi, bebi. E a água até nem não estava de frio geral: não apalpei nela a mornidão que
devia-de, nos casos de frio real o tempo estar fazendo. Meu corpo era que sentia um frio,
de si, frior de dentro e de fora, no me rigir. Nunca em minha vida eu não tinha sentido a
solidão duma friagem assim. E se aquele gelado inteiriço não me largasse mais.
Foi orvalhando. O ermo do lugar ia virando visível, com o esboço no céu, no mermar da
d’alva. As barras quebrando. Eu encostei na boca o chão, tinha derreado as forças comuns
do meu corpo. Ao perto d’água, piorava aquele desleixo de frio. Abracei com uma árvore,
um pé de breu-branco. Anta por ali tinha rebentado galhos, e estrumado. – “Posso me
esconder de mim?...” Soporado, fiquei permanecendo. O não sei quanto tempo foi que
estive. Desentendi os cantos com que piam, os passarinhos na madrugança. Eu jazi mole
no chato, no folhiço, feito se um morcegão caiana me tivesse chupado. Só levantei de lá foi
com fome. Ao alembrável, ainda avistei uma meleira de abelha aratim, no baixo do pau-
de-vaca, o mel sumoso se escorria como uma mina d’água, pelo chão, no meio das folhas
secas e verdes. Aquilo se arruinava, desperdiçado. Senhor, senhor – o senhor não puxa o
céu antes da hora! Ao que digo, não digo? (ROSA, 1978: 320)
Riobaldo retorna de sua experiência pleno de espaços a serem preenchidos; seu
corpo agora era “de dentro e de fora”. Não eram mais as forças comuns do seu corpo. Na
consciência da solidão de sua friagem, busca contato com um quente que vem da vida. Mata
sua sede no bebedouro dos veados e onças – presas e predadores bebem das mesmas águas.
Águas iluminadas pelas estrelas; a revelar sua lisura. As águas curam. O novo dia quebra as
barras, Riobaldo já não se atém às forças comuns do seu corpo. O mundo passa a ter vida e
movimento, se aproximando do seu ser: na boca encosta o chão (onde o esperado seria
encostar a boca no chão); hierarquias se rompem. Para esquentar seu frio, se abraça com
uma árvore – axis mundi – um pé de breu-branco, a união dos opostos. Os cantos dos pássaros
podem ser desentendidos – sentidos podem ser descontruídos e outros sentidos podem ser
apreendidos no contato com o mundo. Seu corpo pode descansar relaxado acolhido pelo
198
chão mole – tão farto, que de suas entranhas brotava mel sumoso a escorrer pelo chão. Na
terra, Riobaldo se aproxima do céu. Riobaldo faz um “oco” em si. Um oco por onde transitam
as coisas do mundo, as coisas ordinárias e extra-ordinárias do mundo.
Antonio Candido (1983: 305) já chama a atenção para o caráter iniciático
relacionado a esse pacto que tem lugar nas Veredas-Mortas. Do seu ponto de vista, a
transformação que ali se opera tem como marca o estabelecimento de um pacto com o mal,
permeado por diversos elementos de caráter mágico. Para Candido, a vitória sobre o mal – na
figura de Hermógenes – só poderia ser obtida a partir do próprio mal.
Como espero ter deixado claro, minha visão acerca desse episódio é bem distinta:
não creio que o pacto tenha como seu eixo o mal. Talvez até possamos dizer que ele tenha,
sim, relações com o demo: contanto que esse último seja apreendido a partir de uma
perspectiva rítmica. Minha perspectiva, portanto, é a de que o grande objeto de
transformação não é a moralidade de Riobaldo, mas a constituição de uma relação estética –
que implica novas formas de apreensão e relacionamento – com o universo
multidimensional.
O pacto marca uma expansão não apenas do mundo e das esferas que o
constituem, como também uma expansão da própria consciência. Frente a essa mudança
fundamental, transformam-se não apenas as suas formas concretas de relação, mas também
a própria noção de “eu”, identidade. O bem e o mal, que antes eram localizados na figura de
entidades externas ao ser, podem agora ser trazidos para a própria constituição do homem e
dos movimentos que o permeiam. Todo esse processo é marcado por ganhos e crescimentos,
199
mas também pela constituição de novos desequilíbrios. Riobaldo sai transformado dessa
experiência, mas ainda não sai pronto. O pacto não marca um ponto de chegada, indica o
início de uma longa travessia.
5.3 DAS PLENIPOTÊNCIAS AO RECONHECIMENTO DA ALMA
Dentro de uma perspectiva estética, considero fundamental o modo como
Riobaldo, através das vivências às quais é submetido, aos poucos pode ir modificando o seu
posicionamento subjetivo diante do mundo, do outro e do seu próprio ser. Poder-se-ia dizer
que a trajetória de Riobaldo parece estar sintonizada com a construção de uma identidade
para si mesmo. Fundamentalmente, o jagunço busca saber quem é, busca a si mesmo. E o
caminho que busca para tanto é, inicialmente, o fortalecimento do próprio ego. Esse
processo, que parece ter início a partir da travessia do São Francisco, se desenvolve através
da posterior entrada na jagunçagem e ganha um novo – e forte – impulso a partir do
estabelecimento do pacto.
Essa última experiência – concomitantemente hierofânica e estética –, por sua
vez, parece abrir as portas para que, o então Urutu-Branco, se encha cada vez mais de si
mesmo. Mais que onipotente, “plenipotente”, torna-se centro de um mundo onde a figura do
outro constitui mero objeto. Aos poucos, entretanto – e, principalmente, devido ao papel
desempenhado por Diadorim – o jagunço vai reconhecendo a dimensão intersubjetiva na
qual está imerso. Pela via do contato empático com o outro – marcado pela consideração do
humano e também pelo reconhecimento dos próprios limites – e do impacto envolvido na
200
morte de Diadorim
159
, estabelece um novo posicionamento diante da vida. Nasce o artista;
mas a gestação é longa; o parto, doloroso.
5.3.1 IDENTIDADE, INTERSUBJETIVIDADE E DIFERENCIAÇÃO
Uma dimensão fundamental que se apresenta, desde o início da narrativa de
Riobaldo, é aquela ligada às possibilidades de representação das personagens por si mesmas
– o que relaciono aos processos de construção de identidade – e a forma como essas
possibilidades de representação e outros processos fundamentais se dão em um contexto
relacional, comunicacional, intersubjetivo
160
.
No que se refere aos processos de construção de identidade, chama a atenção a
forma como os nomes das personagens
161
(e dos lugares, como já foi assinalado), sempre em
transformação, talvez estejam a refletir justamente esses processos de representação do
sujeito. Riobaldo é também Naldo, professor Riobaldo, Cerzidor, Tatarana, Urutu-Branco.
Aquele que se apresenta na narrativa inicialmente como o Menino, vem a ser Reinaldo,
Diadorim e, finalmente, Maria Deodorina.
159
Apesar de a crítica rosiana normalmente se referir (quando o faz) a apenas duas iniciações presentes em GSV
– aquela relacionada à travessia do São Francisco e aquela relacionada ao pacto nas Veredas-Mortas – acredito
termos elementos suficientes para considerar uma terceira iniciação. Esta teria seu ápice com a morte de
Diadorim e a constituição do Riobaldo narrador. Essa perspectiva parece sintonizar-se com o posicionamento
de Utéza (1994: 390), que se refere a três mortes iniciáticas: a de Riobaldo, a de Tatarana e a de Urutu-Branco –
já que o estudioso associa cada uma dessas mortes com o clímax dos três ciclos associados às sucessivas
denominações de Riobaldo.
160
Morais (1998: 198) ressalta o episódio na fazenda dos Tucanos como sendo repleta de sinais do jogo entre
uma identidade e uma alteridade – esta última particularmente representada por Zé Bebelo.
161
Albergaria (1977: 92) aponta que, ao contrário do que ocorre com Riobaldo e Diadorim – a construção de
uma múltipla e consecutiva denominação – com o nome Siruiz temos um só nome para designar três objetos
diferentes: homem, canção, cavalo. A pesquisadora também chama a atenção para o fato de que tal nome
constituiria o anagrama de Osiris, da mitologia egípcia, cuja trajetória envolve vida, morte e ressurreição.
201
Ana Maria Machado (2003) publicou um rico estudo, cujo objeto vem a ser uma
leitura de Rosa à luz do nome de suas personagens. Assumindo importância dos nomes das
personagens no contexto da própria estrutura narrativa, considera-se também esses nomes
relacionam-se, como causa e resultado, com as transformações das personagens no decorrer
da narrativa. Concentrando-se nesses aspectos, Machado deixa em segundo plano enfoques
puramente morfológicos ou etimológicos e se concentra na forma como, em um nível textual
e lingüístico, esses nomes vão relacionando-se com a trama da narrativa.
O próprio Riobaldo, em vários momentos, chama a atenção para essa volatilidade
e importância dos nomes. Cada forma de viver, cada tipo de fazer, cada identidade – também
se faz acompanhar pela outorga de um novo nome. Cada nome, por sua vez, parece referir-se
a um “eu” distinto, sendo que algumas vezes um mesmo sujeito – ou personagem – não é
capaz de se reconhecer em um nome que não mais lhe cabe.
É assim que Riobaldo se refere ao chefe Urutu-Branco, no começo de sua
narrativa: “E o ‘Urutú-Branco’? Ah, não me fale. Ah, esse... tristonho levado, que foi – que era um
pobre menino do destino...” (ROSA, 1978: 16). Riobaldo se refere a ele como sendo um “outro”.
O mesmo tipo de processo acompanharia todas as situações em que seus ofícios e nomes vão
se transformando?
O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não
estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra,
montão. [...] (ROSA, 1978: 20-21)
Ao lado dos nomes, um outro tipo de processo – também extremamente volátil,
pelo menos no que tange a Riobaldo – parece, da mesma forma, configurar um importante
índice de constituição de identidade: a ocupação diante de um ofício, o fazer. A obra já parece
assinalar que nomes e ofícios são provisórios, assim como as identidades.
202
Riobaldo inicia sua longa explanação dizendo que podia ser padre sacerdote ou
chefe jagunço:
[...] De sorte que carece de se escolher: ou a gente se tece de viver no safado comum, ou
cuida só de religião só. Eu podia ser: padre sacerdote, se não chefe de jagunços; para
outras coisas não fui parido. [...] (ROSA, 1978: 15)
“Carece de se escolher”: escolher a si mesmo? A sua própria identidade? Diante
dessa escolha, Riobaldo aponta para si duas alternativas possíveis e aparentemente opostas:
(1) viver no “safado comum”, sendo chefe jagunço; (2) cuidar “só de religião só”, sendo padre
sacerdote. Diante de posições que surgem como extremos, é de se notar que Riobaldo,
naquele momento, não parece assumir nem uma nem outra dessas identidades. O fazer que
assume e que, portanto, confere, desde o início, a sua identidade frente a seu interlocutor, é
aquele ligado à arte narrativa. Entre o viver safado comum e o cuidar só de religião, a
possibilidade de narrar.
Ao lado da questão da identidade, vemos como, em GSV, a afirmação da
dimensão intersubjetiva ocupa um lugar de destaque. No próprio contexto do bando, os
jagunços também têm seu coletivo alterado dependendo de quem está no comando: joca-
ramiros, medeiro-vazes, zé-bebelos, riobaldos. Percebe-se que própria representação de si,
depende, em muitos momentos, das relações que se estabelecem com o outro. Como
exemplo, tomo o momento em que Riobaldo aponta a forma como se concebe – em conjunto
com Diadorim – de forma distinta dos demais:
203
Diadorim e eu, nós dois. A gente dava passeios. Com assim, a gente se diferenciava dos
outros – porque jagunço não é muito de conversa continuada nem de amizades estreitas:
a bem eles se misturam e desmisturam, de acaso, mas cada um é feito um por si. [...]
Diadorim me pôs o rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza. Sei
como sei. Som como os sapos sorumbavam. Diadorim, duro sério, tão bonito, no relume
das brasas. Quase que a gente não abria boca; mas era um delém que me tirava para ele –
o irremediável extenso da vida. [...] (ROSA, 1978: 25)
Esse “delém”
162
ao qual Riobaldo se refere remete à contração “de+ele+em”,
indicando não apenas o ponto de partida ou de referência constituído por Diadorim, mas
dando também a impressão de um ritmo que ali se constitui. Riobaldo parte “de” Diadorim e
“nele” avança rumo ao irremediável extenso da vida: o outro como caminho.
Chamam-me também a atenção as pistas que apontam para um lastro
genealógico. Riobaldo fala de sua mãe
163
e Diadorim de seu pai. Considerando uma dimensão
intersubjetiva, de constituição mútua de identidades, creio que paralelos
164
importantes
podem começar a ser traçados.
– “Riobaldo, escuta, pois então: Joca Ramiro era o meu pai...” – ele disse – não sei se
estava pálido muito, e depois foi que se avermelhou. Devido o que, abaixou o rosto, para
mais perto de mim.
Acalmou meu fôlego. Me cerrou aquela surpresa. Sentei em cima de nada. E eu cri tão
certo, depressa, que foi como sempre eu tivesse sabido aquilo. Menos disse. Espiei
Diadorim, a dura cabeça levantada, tão bonito tão sério. E corri lembrança em Joca
Ramiro: porte luzido, passo ligeiro, as botas russianas, a risada, os bigodes, o olhar bom e
mandante, a testa muita, o topete de cabelos anelados, pretos, brilhando. Como que
brilhava ele todo. Porque Joca Ramiro era mesmo assim sobre os homens, ele tinha uma
luz, rei da natureza. Que Diadorim fosse o filho, agora de vez me alegrava, me assustava.
[...] (ROSA, 1978: 32)
162
Utéza (1994: 354) também busca analisar essa passagem e o significado de “delém”, em que, do seu ponto de
vista, pode-se encontrar o eco de “delícia” – da raiz latina de delenio (encantar, amenizar, apaziguar).
163
Utéza (1994: 285) lembra a forma como o nome da mãe de Riobaldo – Bigri – remete a um dos nomes da
“Grande Mãe”, Brighid. Ao seu comentário eu acrescentaria o fato de que a figura de Brighid tem sua origem na
cultura celta. Segundo Matthews (1999: 26), essa figura é relacionada à deusa Brigantia, a senhora da verdade,
aquela que guarda a terra através da verdade, saúde e criatividade, sendo conhecida por vários nomes: como
Bride na Escócia, como Ffraid em Gales, como Brigantia na Inglaterra e como Brighid na Irlanda.
164
Márcia Morais (2001: 164) chama a atenção para o deslizamento significante presente nessa passagem.
Tendo como ponto de partida o ciúme de Diadorim devido a Nhorinhá, desencadeia-se um fluxo que percorre:
Ana Duzuza (mãe de Nhorinhá) Joca Ramiro (pai de Diadorim) Bigri (mãe de Riobaldo) Gramacedo
(considerado por Morais como par fantasmático de Bigri) e a evocação da família sagrada (São José e Nossa
Senhora), donde se encontra a mãe Virgem.
204
[...] Toda mãe vive de boa, mas cada uma cumpre sua paga prenda singular, que é a dela e
dela, diversa bondade. E eu nunca tinha pensado nessa ordem. Para mim, minha mãe era
a minha mãe, essas coisas. Agora, eu achava. A bondade especial de minha mãe tinha sido
a de amor constando com a justiça, que eu menino precisava. E a de, mesmo no punir
meus demaseios, querer-bem às minhas alegrias. A lembrança dela me fantasiou, fraseou
– só face dum momento – feito grandeza cantável, feito entre madrugar e manhecer.
– “... Pois a minha eu não conheci...” – Diadorim prosseguiu no dizer. E disse com curteza
simples, igual quisesse falar: barra – beiras – cabeceiras... Fosse cego, de nascença.
Por mim, o que pensei, foi: que eu não tive pai; quer dizer isso, pois nem eu nunca soube
autorizado o nome dele. Não me envergonho, por ser de escuro nascimento. Órfão de
conhecença e de papéis legais, é o que a gente vê mais, nestes sertões. [...] (ROSA, 1978:
34-35)
Riobaldo traz consigo a presença de uma mãe e a ausência de um pai. Com
Diadorim acontece o oposto: a forte presença de um pai que contrasta com o fato de não ter
conhecido a mãe. Enquanto um se diz “de escuro nascimento”, o outro se declara “cego, de
nascença”: a complementaridade daquele que não pode ser visto em relação com aquele a
quem não é facultado ver – a escuridão e a cegueira. Filho da mãe e filha do pai, que trazem
heranças. Riobaldo herda de sua mãe a bondade, o amor que condiz com a justiça e a noção
de limite que não exclui as alegrias; Diadorim é filha do “rei da Natureza” –
príncipe/princesa, herdeira de sua luz.
Outra característica que por vezes se oculta sob as vestes da dimensão
intersubjetiva em GSV é uma espécie de fusão que se dá entre o eu e o outro. A relação que
Riobaldo estabelece com seu bando imediatamente após o pacto parece ilustrar bem essa
perspectiva.
Naquele momento, cada pessoa próxima de Riobaldo parece compartilhar com
ele os dons ou poderes que em si guarda. Assim, os companheiros dos quais o jagunço se
cerca poderiam ser compreendidos como as forças que passa a agregar em si – ao mesmo
205
tempo em que dão a idéia de como se torna mais permeável a sua relação com a dimensão
intersubjetiva, tornando-se mais porosos os limites que separam o “eu” e o outro. É assim
que Riobaldo recebe poderes de cura, de proteção.
[...] Foi que, eu puxando, eu desejando saber, se falou muito nessas orações de curar a
gente contra bala de morte, e em breves que fecham o corpo. [...] (ROSA, 1978: 327)
Vejamos o bando que Urutu-Branco reúne junto de si logo após tornar-se chefe.
Os catrumanos poderiam ser tomados como o poder das forças arcaicas da terra, da
natureza. Os sucruiús poderiam ser compreendidos como o poder de se livrar da escravidão e
das doenças. Assim também poderia ser compreendido o pretinho Guirigó – que passa a ficar
à esquerda de Urutu-Branco, a seu pedido. O cego Borromeu simbolizaria o poder da visão;
sendo aquele que fica “à mão direita” de Urutu-Branco, dando a ele o poder de adivinhar e
proteger de pragas rogadas pelos outros.
[...] Pois, então, que viesse também o Borromeu, viesse. Mandei que montassem o dito
num cavalo manso, que da banda da minha mão direita devia sempre de se emparelhar.
Alguns riram. E, pelo que riram, de certo não sabiam – que um desses, viajando parceiro
com a gente, adivinha a vinda das pragas que outros rogam, e vão defastando o mau
poder delas; conforme aprendi dos antigos. E, por nada, mais me lembrei, de
repentinamente, do menino pretozinho, que na casa do Valado a gente tinha
surpreendido, que furtando num saco o que achava fácil de carregar. E tiveram de
campear esse menino. Ele estava amoitado, o tempo todo, com a boca no chão, no meio do
mandiocal. Quando foi pego, xingava, mordia e perneava. Ele se chamava Guirigó; com
olhares demais, muito espertos. – “Guirigó, tu vem vestido, ou nú?” Como que não vinha?
Aprontaram um cavalo para ele só, que devia de se emparelhar com o meu, da banda de
minha mão esquerda. [...] (ROSA, 1978: 337-338)
[...] E o Guirigó e o Borromeu, eu meando os dois, ao alcance de qualquer minha mão. [...]
(ROSA, 1978: 341)
206
Uma vez líder, Urutu-Branco se torna o centro do grupo, mediador da
comunidade, conhecedor de seus homens. Se antes Riobaldo se apoiava nas bordas, agora –
como Urutu-Branco – ele ocupa o lugar de centro. Riobaldo entre o velho e o novo.
Mas um perigo pode se ocultar nesse tipo de posicionamento. A fusão com o
outro parece, ao mesmo tempo, desfazer tanto a perspectiva da própria subjetividade,
quanto a possibilidade de reconhecimento da alteridade. Assim, se há o reconhecimento de
uma dimensão intersubjetiva e seus riscos, em muitos momentos há também em GSV o
reconhecimento da necessidade de uma diferenciação entre o “eu” e o outro.
Certa vez, enquanto estava acampado com Hermógenes, era estranha a sensação
de Riobaldo no meio daqueles jagunços que desbastavam os dentes à faca. Ao mesmo tempo
em que se sentia aceito pelo bando, o achavam “deles diverso” (ROSA, 1978: 128). Parece vir
à tona uma certa dialética relacionada à intersubjetividade: Riobaldo estranha o modo como
todo aquele povo estava sempre misturado, tudo era falado a todos; ao que contrapõe à
impressão que teve do pessoal dos gerais, “[...] gente mais calada em si e sozinha, moradores
das grandes distâncias.” (ROSA, 1978: 130). Minha impressão é de uma certa tensão entre
um embrenhado intersubjetivo que se contrapõe à vivência da intersubjetividade que não
descarta um certo diferenciamento pessoal. À inconsciência ou instintos primitivos do
“bando”, se oporia a possibilidade de consciência individual.
Desperto para essa outra possibilidade, Riobaldo pôde até reconhecer, naquele
grupo de jagunços, alguns com quem poderia estabelecer relações marcadas pelo afeto. Em
determinado momento de sua narrativa (ROSA, 1978: 134-135), há a nomeação exaustiva de
207
praticamente todos os jagunços de quem se tornou companheiro – todos eles marcados, de
alguma maneira, por atos de bondade ou algum tipo de devoção. Comparados a anjos-da-
guarda, é deles que Riobaldo se cerca no meio do “inferno”.
Em outro momento, quando começa a desconfiar de Hermógenes, entre o aviso
que recebia e a recusa de Diadorim em partir, Riobaldo se vê em uma encruzilhada. O maior
perigo, entretanto, parecia estar em si mesmo:
[...] Quanto pior mais baixo se caíu, maismente um carece próprio de se respeitar. De
mim, toda mentira aceito. O senhor não é igual? Nós todos. Mas eu fui sempre um
fugidor. Ao que fugi até da precisão de fuga.
As razões de não ser. O que foi que eu pensei? Nas terríveis dificuldades; certamente,
meiamente. Como ia poder me distanciar dali, daquele ermo jaibão, em enormes voltas e
caminhadas, aventurando, aventurando? Acho que eu não tinha conciso medo dos
perigos: o que eu descosturava era medo de errar – de ir cair na boca dos perigos por
minha culpa. Hoje, sei: medo meditado – foi isto. Medo de errar. Sempre tive. Medo de
errar é que é a minha paciência. Mal. O senhor fia? Pudesse tirar de si esse medo-de-
errar, a gente estava salva. O senhor tece? Entenda meu figurado. Conforme lhe conto:
será que eu mesmo já estava pegado do costume conjunto de ajagunçado? Será, sei.
Gostar ou não gostar, isso é coisa diferente. O sinal é outro. Um ainda não é um: quando
ainda faz parte com todos. Eu nem sabia. [...] (ROSA, 1978: 142)
Em sentido contrário ao que o impele sua dimensão de cerzidor, Riobaldo
descosturava era medo de errar, de cair na boca dos perigos por sua própria culpa. O tema do
medo ainda estava muito presente, Riobaldo ainda não o havia integrado completamente –
ao “medo imediato” (ROSA, 1978: 83) que antes havia, surge o “medo meditado” (ROSA,
1978: 142). Há uma mudança de perspectiva: o medo não é mais do mundo, é de si mesmo,
de suas próprias escolhas. Medo de culpa e arrependimento.
Mas o que é fundamental para mim nessa mesma passagem vem um pouco
depois: quando Riobaldo aparentemente muda o rumo de sua prosa, ele talvez nos dê uma
pista para melhor compreender o medo de errar. Ele se pergunta se ele mesmo “já estava
pegado do costume conjunto de ajagunçado”, para depois afirmar que a questão é outra: “Um
ainda não é um: quando ainda faz parte com todos.”. Em minha percepção, à reflexão acerca
208
do medo de errar, vem juntar-se a reflexão acerca do embate intersubjetivo entre misturar-se
e diferenciar-se. Riobaldo se pergunta e responde: “Homem foi feito para o sozinho? Foi.”
(ROSA, 1978: 143). Poderia o homem diferenciar-se do bando e, ao mesmo tempo, constituir
uma identidade mais ampla, que inclua algo mais além de si mesmo?
5.3.2 O RECONHECIMENTO DO HUMANO: A ABERTURA DO CORAÇÃO
Focalizo agora o momento em que Riobaldo, recém-nomeado chefe Urutu-
Branco, parte com seu bando em direção ao Chapadão-do-Urucuia. Acredito que a marca
dessa trajetória, até o momento do combate final no Paredão, seja a construção da
diferenciação à qual há pouco me referia. O reconhecimento do humano – dos limites e da
fragilidade da condição humana, no outro e em si mesmo – é o que conduz Riobaldo a um
outro tipo de posicionamento. Mas este é um longo processo, marcado por muitos
encontros
165
– processo aprendido com o outro.
Outro este que, inicialmente, não é reconhecido. No começo dessa trajetória, ao
mesmo tempo em que passa a se sentir mais forte, tendo mais confiança em si mesmo,
Riobaldo começa a sentir-se muito maior do que qualquer um. Torna-se arrogante, cheio de
si, capaz de atos que ferem não apenas os corpos – mas os corações. É dessa forma que ele
reivindica a liderança de Zé Bebelo. É dessa forma que ele fere Diadorim ao pedir a seo
Habão que entregue a pedra (naquele momento, de topázio) para Otacília – ignorando o fato
de que ela já havia sido dada a Diadorim.
165
Utéza (1994: 174) enfatiza a importância de tais encontros, considerando-os muito instrutivos para quem se
demorar nessas personagens que o narrador insiste em indicar.
209
[...] porque eu naquela hora achava Zé Bebelo inferior; e porque, que alguém falasse
contra, por cima das minhas palavras, me dava raiva. (ROSA, 1978: 322)
[...] O medo nenhum: eu estava forro, glorial, assegurado; quem ia conseguir audácias
para atirar em mim?[...] Olhei para cima: pegaram nas nuvens do céu com mãos de azul.
Aquela firme possança; assim permaneci, outro tempo, acendido. Eu leve, leve, feito de
poder correr o mundo ao redor. [...] (ROSA, 1978: 327)
[...] Mas vi um adejo sombrio no meu amigo, condenado que era de tristeza que não quer
ceder suas lágrimas. O quanto, por causa da pedra de topázio? – eu reconheci. Eu não
tinha tido dó de Diadorim. [...] (ROSA, 1978: 334)
Junto a esse mesmo movimento, ocorre o desprezo, por parte de Riobaldo, de
todos os mecanismos de mediação que antes utilizava para acessar o transcendente e o
sagrado. O único poder que parece valer naquele momento é o seu próprio. Ele parece ser o
único centro possível. A referência era buscada na sua relação pessoal com o poder do mundo
– agora ele era o mediador. Rompe os cordões das verônicas e bentinhos; despreza as rezas
como rituais inúteis (ROSA, 1978: 333). Significativo é o fato de manter apenas o
escapulário, aquele que integra em si as pétalas de flor e a toalha de altar consagrada a Nossa
Senhora da Abadia
166
recosturada. Permanece então esse escapulário que une distintas
esferas do real – natural e sagrado – unidos pela cerzidura, e “recerzidura”, de fios.
Se esse é o ponto de partida do Urutu-Branco, aos poucos a vida corta as suas
asas recém-adquiridas, devolvendo-o novamente a uma condição “terrena” mas que, como
166
A figura de Nossa Senhora da Abadia e de Diadorim se entrelaçam – recosturam – na narrativa. Este seria
um indício de que, de alguma forma, a relação com Diadorim mantinha-se preservada?
210
veremos, não é a mesma daquela que dispunha antes do estabelecimento do seu pacto.
Vamos aos indícios.
[...] Aquela hora, eu, pelo que disse, assumi incertezas. Espécie de medo? Como que o
medo, então, era um sentido sorrateiro fino, que outros e outros caminhos logo tomava.
Aos poucos, essas coisas tiravam minha vontade de comer farto. (ROSA, 1978: 343)
[...] À puridade, eu sentia assim: feito se estivesse pego numa ignorância – mas que não
era de falta de estudo ou inteligência, mais uma minha falta de certos estados. [...]
(ROSA, 1978: 344)
Ao que – isso era um fato possível? Ele não sabia. De Zé Bebelo, nem do Ricardão, nem do
Hermógenes, ele não sabia nem a preposição. Mas, então, tudo naquela parte dos Gerais
era ilusão de haver e não se saber. O mundo ali tinha de ser de se recomeçar... [...]
(ROSA, 1978: 346)
Assumindo incertezas, pego numa ignorância, frente à ilusão de haver e não se
saber, o Urutu-Branco começa a questionar a própria plenipotência. Essas passagens e
reflexões parecem ser catalizadas através da história a ele contada por seo Ornelas e
protagonizada pelo delegado, Dr. Hilário. Este, diante da chegada de um estranho que
perguntava pelo delegado, apontou para outro como sendo a si mesmo, o qual acabou
levando uma paulada na cabeça desferida pelo desconhecido. O fundamental na história,
segundo seo Ornelas, é a conclusão à qual conduz:
[...] Ante o que, o dr. Hilário, apreciador dos exemplos, só me disse: – Pouco se vive, e
muito se vê... Reperguntei qual era o mote. – Um outro pode ser a gente; mas a gente
não pode ser um outro, nem convém... – o dr. Hilário completou. Acho que esta foi
uma das passagens mais instrutivas e divertidas que em até hoje eu presenciei...” (ROSA,
1978: 347-348)
Para além da ironia envolvida nessa história – contada a propósito, pelo Dr.
Hilário – podemos nos colocar a pensar nessa proposição em que um outro pode ser a gente,
211
mas a gente não pode ser um outro
167
. Riobaldo, nesse momento, estava se sentindo um
outro: Urutu-Branco. Não se reconhecia em si. Ao lado desse estranhamento, a sua falta de
reconhecimento também do outro – outro mesmo, pessoa humana. E quando um outro pode
ser a gente – temos empatia – há amor. Somos remetidos à máxima cristã: “ama o outro
como a ti mesmo”
168
.
Outro elemento que considero importante nessa passagem é – mais uma vez – a
forma como o aprendizado e a própria vivência podem se dar indiretamente, mediados pela
narrativa do outro. O que Riobaldo vivencia é o aprendizado de Dr. Hilário, contado por seo
Ornelas. Mais uma forma de aproximação entre o “eu” e o outro. Mais adiante, o próprio
Riobaldo nos confirma que, em conversas posteriores com seu compadre Quelemém,
deduziu-se “[...] que os fatos daquela éra faziam significado de muita importância em minha
vida verdadeira [de Riobaldo]” (ROSA, 1978: 348).
Ao iniciar um movimento que implica sair de si mesmo – abandonar o olhar que
pode ver o transcendente, mas que mira e vê apenas o próprio umbigo –, aquilo com que
Riobaldo se depara é justamente a figura do outro: “[…] porque a vida é mutirão de todos,
por todos remexida e temperada. [...]” (ROSA, 1978: 348).
Mas esse movimento não chegara ainda a bom termo. O que há, até então, é um
embate feroz entre perspectivas distintas. Até aquele momento o chefe seguia uma direção
oposta:
167
Utéza (1994: 154) interpreta essa passagem constatando que o “bom” pode não ser inteiramente “bom” e o
“mau”, da mesma forma, não pode ser inteiramente “mau” – relembrando a máxima de Riobaldo que diz que
“Tudo é e não é.”.
168
Diante dessa máxima, acredito que na maioria significativa das vezes colocamos como o grande desafio o
amor ao próximo, mas acho que essa é uma inversão. A proposição coloca o amor a si mesmo como base para o
amor ao outro. Podemos então nos perguntar até que ponto realmente as pessoas efetivamente dão conta de se
amar. Não creio que a ênfase contemporânea na individualidade possa ser confundida com amor próprio, pelo
contrário – remete à ausência do mesmo. Não seria esse o grande desafio?
212
[...] A opinião das outras pessoas vai se escorrendo delas, sorrateira, e se mescla aos
tantos, mesmo sem a gente saber, com a maneira da idéia da gente! Se sério, então, um
tinha de apertar os dentes, drede em amouco, opor seus olhos. A cuspir para diante.
Alguma instância, das outras pessoas, pegava na gente, assim feito doença, com retardo.
Apartado de todos – era a norma que me servia – no sutil e no trivial. A culpa minha,
maior, era meu costume de curiosidades de coração. Isso de estimar os outros, muito
ligeiro, defeito esse que me entorpecia. [...] (ROSA, 1978: 349)
O outro é visto como uma espécie de “perda de si”, e isso é visto como uma
grande perda. Há o reconhecimento de “alguma instância” das pessoas, ao qual nos
misturamos, mas isso é visto como se fosse uma doença. A tentativa ainda é a de apartar-se
de todos, a estima ainda é tomada como defeito.
A chegada do bando ao Chapadão-do-Urucuia é marcada pelos encontros que ali
têm lugar – algo que considero fundamental dentro da perspectiva intersubjetiva aqui
focalizada.
Um dos primeiros encontros vem a ser com um um vaqueiro com quem se
esbarra pelo caminho. Riobaldo dá a entender que teve o ímpeto de açoitá-lo, mas há um fato
novo: Diadorim o impede de continuar. Se antes sua lição era de coragem, agora é de amor. É
ainda a mesma?
[...] Ali eu diante de portas abertas, por livre ir, às larguras de claridade... Acho que foi
assim.
Assim. Mas alguém me impediu. Ou era que mesmo desse jeito tinha de ser? Urubús
perpassaram, extremamente, e para o poente vinham. Diadorim me chamou, pegando em
meu braço. Diadorim vigiou aquelas diferenças: ele temeu; temeu por minha salvação, a
minha perdição. [...] (ROSA, 1978: 351)
213
Sinais iniciáticos: os urubus que anunciam uma morte; o poente para onde
rumam, anunciando o fim de um tempo. E Diadorim a conduzir tudo isso, diante de um
Riobaldo que ainda apreciava ver o medo que, dele, os outros deviam ter.
Mas toda iniciação pressupõe uma morte e um renascimento. Somos então
imediatamente remetidos a outros sinais, a outro encontro. Riobaldo é chamado para acudir
uma mulher que estava com dificuldades no parto.
[...] E ali era um povoado só de papudos e pernósticos. A mulher me viu, da esteira em que
estava se jazendo, no pouco chão, olhos dela alumiaram de pavores. Eu tirei da algibeira
uma cédula de dinheiro, e falei: - “Toma, filha de Cristo, senhora dona: compra um
agasalho para esse que vai nascer defendido e são, e que deve de se chamar Riobaldo...”
Digo ao senhor: e foi menino nascendo. Com as lágrimas nos olhos, aquela mulher
rebeijou minha mão... Alto eu disse, no me despedir: - “Minha Senhora Dona: um menino
nasceu – o mundo tornou a começar!...” – e saí para as luas. (ROSA, 1978: 353)
Do meio dos papudos e pernósticos pode (re)nascer um novo – um outro –
Riobaldo. Estão abertas as portas para que os processos que vão culminar em uma nova
iniciação tenham lugar. E o mundo pode tornar a começar.
Diadorim pôde, então, verbalizar a Riobaldo a percepção que tinha a seu respeito:
– “Repuno: que você está diferente de toda pessoa, Riobaldo... Você quer dansação e
desordem...”
Mexi meu cuspe dentro da boca.
– “ ... A bem é que falo, Riobaldo, não se agaste mais... E o que está demudando, em você,
é o cômpito da alma – não é razão de autoridade de chefias...”
Diadorim disse, e a voz dele, ecosa, me rodeou; as certas sinceridades. Amizade de amor
surpreende uns sinais da alma da gente, a qual é arraial escondido por detrás de sete
serras? [...] (ROSA, 1978: 353-354)
Diadorim aponta em Riobaldo não apenas a diferença em relação a todas as
pessoas, mas à “toda pessoa”, a pessoa inteira. Partindo desse estranhamento, Diadorim fala
de alma, de algo que demudou em Riobaldo, a buscar “dansação” e desordem. Alma é coisa
214
que só amizade de amor pode ver e que parece dar sinais mesmo quando isso parece muito
pouco provável.
Ocorre que, aos poucos, o Riobaldo-Urutu parece ir se dando conta que não é
possível ser apenas “ele mesmo”: “Acho que eu não era capaz de ser uma coisa só o tempo
todo.” (ROSA, 1978: 355). Essa sensibilidade se constrói, paulatinamente, através dos
encontros concretos que se dão com o outro. É nessas ocasiões que Riobaldo tem a
oportunidade de sair de dentro de si e reconstruir sua humanidade.
Mais um desses encontros é com nhô Constâncio Alves, conterrâneo de
Riobaldo, da Serra dos Alegres. Pessoa que, supostamente, poderia tê-lo conhecido ainda
menino. Considero esse encontro significativo porque, nesse momento, a dimensão
intersubjetiva traz à tona a possibilidade de retorno: ao ponto de partida, ao coração da
criança.
Desconfiado, Riobaldo-Urutu busca testar o conterrâneo, para verificar se esse
cai em armadilha e revela a intenção de enganá-lo. Cabe salientar que a forma natural com
que Urutu-Branco trava um primeiro contato com qualquer pessoa é justamente essa: pela
via da desconfiança, pela crença na possibilidade de traição e pelo cálculo do mal que podem
vir a fazer. A esse primeiro momento, costuma-se também juntar o desejo de morte dirigido
a esse outro – num misto de raiva, medo e necessidade de defesa. Nessas horas, entretanto,
outras forças de Riobaldo parecem também se pronunciar:
Ah, mas, então, do sobredentro de minhas idéias – do que nem certo sei se seja meu uma
minha-voz, vozinha forte demais, de tão fraca, suministrou um cochicho. Foi. Em tão
curta ocasião que teve, essa vozinha me deu aviso. Ah, um recanto tem, miúdos remansos,
aonde o demônio não consegue espaço de entrar, então, em meus grandes palácios. No
coração da gente, é o que estou figurando. Meu sertão, meu regozijo! Que isto era o que a
vozinha dizia: - “Tento, cautela, toma tento, Riobaldo: que o diabo fincou pé de governar
tua decisão!...” A anteguarda que ouvi, e ouvi seteado; e estribei minhas forças energias.
Que como? Tem então freio possível? Teve, que teve. Aí resisti o primeiramente. Só
orçava. O instante que é, é – o senhor nele se segure. Só eu sei.
Mas, aquilo de ruim-querer carecia de dividimento – e não tinha; o demo então era eu
mesmo? Desordenei quase, de minhas idéias. Eu matava um tiquinho, só? Em nome de
215
mim, eu não matava? Só forcejei por sobrenadar alto em mente o mando daquela
vozinha. [...] (ROSA, 1978: 355-356)
Riobaldo começa a ver que o coração parece ter vida própria, voz que aconselha,
canal por onde passam as muitas energias, “sobredentro” de suas idéias. O “ruim-querer”
também era reconhecido no espaço de dentro de si; não mais debitado na conta do demo.
Frente às forças contraditórias exite a possibilidade de escolha, existem freios possíveis.
“Espiritado”, após testar nhô Constâncio, ele nos conta:
[...] Ah, mas – ah, não! –; eu tinha decidido. Tinha ou não tinha. Eu? Assim, noutro
repingo: arejei que toda criatura merecia tarefa de viver, que aquele homem merecia viver
– por causa de uma grande beleza no mundo, à repentina. Um anjo voou dali? Eu tinha
resistido a terceira vez. [...] (ROSA, 1978: 357)
Arejado, a decisão de Riobaldo relaciona-se à percepção de outras forças, além do
fogo do demo de dentro de si: a beleza, “à repentina”, do mundo; os anjos? Tendo resistido já
à tentação diante de seo Ornelas e do vaqueiro, Urutu-Branco consegue resistir uma terceira
vez. Seria suficiente?
Há, em seguida, outro encontro, talvez dos mais fundamentais da narrativa. Três
léguas adiante, Riobaldo-Urutu se depara com um viajante, montado numa égua e
acompanhado por uma cachorrinha. Comprometido com sua fala imprudente e precipitada
frente àquele encontro – na qual aludia à possibilidade de matar o viajante – Riobaldo se vê
na obrigação de não voltar atrás de sua palavra diante do bando. Ao mesmo tempo, a figura
do homem humilde, da égua e da cachorrinha são capazes de despertar enorme compaixão
em seu coração. Transpondo essa passagem para a minha própria vivência como leitor, eu
ousaria dizer que esta é das passagens mais tocantes de toda a obra.
216
Ah, não. Agora, a vontade de matar tinha se acabado! Sei e soube: por certo que o demo,
agora, escondia sua intenção, por desconfiar de que eu não fosse querer cumprir. Com ele,
meu senhor, assim é: sempre escolhe seus estilos. Ao mais, dessa vez, ele sabia que não
carecesse de me azuretar. Sabia que eu estava até com enjôo da situação daquele homem
da égua, meu gosto era permitir que ele fosse s’embora, forro de qualquer castigo. Mas
sabia igual que eu estava na estrita obrigação de matar – porque eu não podia voltar
atrás na promessa da minha palavra declarada, que os meus cabras tinham escutado e
glosado. Ah, o demo bem me conhecia! [...] (ROSA, 1978: 358)
Apavorado de tanto medo, o homem chega a sujar a sela na qual estava montado.
Extremamente tocado, Riobaldo (cada vez menos Urutu) tem a idéia de transferir a jura de
morte para a cachorrinha – a qual também acaba sendo objeto de compaixão. A saída passa a
ser sacrificar a égua, de modo que Riobaldo manda o homem ir-se embora.
[...] Com jeito, com asco, uns dos meus cumpriram meu mandado, desamontaram o
homem, e o homem quase nem se impunha de ficar em pé. – “Tu foge fora daqui, tu te vai
embora!” – eu disse, tive de gritar. Aí ele entendeu, e saíu. Por um momento, pensei que
fosse correr. Mas esbarrou, sem espiar para trás. Agora era que achava pranto, com bem
de choro: estava chorando soluços fortes, igual se fosse criança pequena. Aquilo não tinha
nenhuma sensatez e me dava gastura, astúcia que remexia com minhas resistências.
Aborrecidos, os do meu pessoal gritaram com ele, que tornou a pegar a correr, ao tom dos
brados. Ainda esbarrou, outra vez, devia de estar chorando, conforme os ombros dele se
sacudiam. Arrochei. Assim foi em arrebrusco: sobreveio em mim a estúrdia
arfagem de chorar também – eu nas margens do mar. Não quis e nem pude. Ânsia
que meus olhos, para dentro, davam em escuro. As graças darte sabe o senhor: na
escuridão, não se chora, por não se ver, como não se pita cigarro... Com isso, desgostei
de mim. Ah, no final da vez, o que ria o riso principal era ele, o demo. O Tisnado! Assim,
por causa da judiação que eu, mesmo por querer salvar a vida dele, eu tinha
procedido de demorar assim, com aquele homem. Antes tivesse logo matado.
Como é que se podia desrespeitar tudo desse jeito, numa desgraçada pessoa,
roupeada? Como é? E o homem não tinha vislumbrado de espiar para trás, para saber
de sua cachorrinha. E a cachorrinha estava ali, bem amarrada na dignidade. Tanto ela
não latia mais, que todos tinham se esquecido dela. Agora eu colhi em mim um estado
de desânimo. A ser, que, por conta daquele homem, por meus desmandos, quem sabe eu
ia ter, mais para adiante, de pagar, com graves castigos? (ROSA, 1978: 361 – grifos
meus)
Creio ser este o momento exato em que Riobaldo, após transformar-se em
Urutu-Branco, começa a, novamente, “demudar”. A reação violenta ao outro é substituída
pelo contato empático. O mal e a dor que se causam ao outro ressoam dentro do próprio
217
coração. Riobaldo vai descendo dos seus “altos”. Ao acolher em si “um estado de desânimo” –
há o reconhecimento da ausência da alma?
No final das contas, até a égua é salva, já que Riobaldo acolhe a sugestão de
Fafafa, de pagar por ela. A intenção de Riobaldo passa a ser encontrar de novo aquele
viajante e devolver o que era dele, com acréscimo de dinheiro, comida e café. Mas ele não foi
encontrado; a égua ficou solta pastando; a cachorrinha também foi liberta, por iniciativa de
Diadorim, para que achasse o dono e com ele ficasse. A cena final é belíssima:
[...] Valia o senhor ver o raio de amor que tangeu a cachorrinhazinha: que latiu suas
alegrias e airada correu, sem nenhuma demora, feito fosse para um pronto destino, há-de
asas! Foi ela em longe desaparecer, e nós tocamos, no caminho contrário. A égua ficou lá,
pastando; e o arreio do homem, como um espantalho, pendurado no ramo de árvore, até
as moscas do campo já se ajuntassem nele.
Do que acontecido, me senti muito livre. [...] (ROSA, 1978: 363-364)
O “espantalho” que lá permanece surge para mim como uma imagem do
“desumano” que há dentro de nós: de forma paradoxal, justamente o que nos torna
humanos. Reconhecer e aceitar isso, com toda a dor decorrente desse processo, nos liga ao
outro de uma forma diversa; abre o nosso coração. A meu ver foi isso o que libertou
Riobaldo. A imagem do espantalho é uma espécie de cadáver, ossada a nos lembrar do que
somos capazes de fazer, pedindo-nos que não o façamos: e por isso tudo ele representa a
vida. Por outro lado, se os centauros são tão belos, é porque agregam a força natural à
consciência que se eleva; quando o humano – consciência e coração – é excluído dessa
relação, temos apenas um simulacro, espantalho, desumano.
A partir desse acontecimento Diadorim revela a Riobaldo um recado que havia
pedido a um arrieiro para dar a uma mulher – só agora isso pode ser explicitado. O recado
havia sido para Otacília, um pedido de Diadorim para que ela rezasse pelo amigo. Este último
se vê diante de uma qualidade de afeto até então desconhecida: “O amor dele por mim
218
[referindo-se a Diadorim] era de todo quilate: ele não tartameava mais de ciúme nem de
medo.” (ROSA, 1978: 364).
Mais além, Riobaldo passa pela Serra do Tatu e pela Serra dos Confins. Lá se
encontra com o Quipes (ROSA, 1978: 367), sumido desde o cerco na fazenda dos Tucanos.
Este, além de ter construído outros caminhos, deixado de ser jagunço, se dirige a Riobaldo (o
chefe Urutu-Branco) como Tatarana. A meu ver, mais uma alusão à transformação que se
operava naquele momento. Tal episódio revela, ainda, uma mudança no posicionamento de
Riobaldo:
Tanto ouvi, muito macambúzio. Onde que então, eu varava mundo, em comando, e ainda
não prezava o meu nome. Eu – o Urutu-Branco! Ser Chefe de jagunço era isso. Ser o que
não dava realce – qualquer um podia, fazendeiro com posses, mão em políticas. O sertão
tudo não aceita? A minha pessoa era nada, glória de Zé Bebelo era nada. O que dá fama,
dá desdém. [...] (ROSA, 1978: 368)
Tal como preconizado pela experiência estética, parece haver uma quebra de
significações. As glórias de chefe não são mais tão gloriosas assim; a rigor, todos podem. A
“fama” – o reconhecimento e o lugar especial atribuído ao “eu” – parece ser menos
importante.
Mais um encontro importante é aquele que se dá com “o lázaro” que estava em
cima de uma árvore; no que se refere a Riobaldo, seu ímpeto inicial foi “esmagalhar aquela
coisa desumana” (ROSA, 1978: 372). É, novamente, a presença de Diadorim o que pode
refrear os ímpetos do Urutu-Branco. No meu entender, seu aprendizado, ali expresso, parece
relacionar-se com a visão do humano no aparentemente desumano. O nojo que tinha não era
das chagas, mas do humano em si. O contraste se dá pela figura de Diadorim – ao lado do
humano que é “desconforme”, há também o humano que propaga luz:
219
[...] Vi Diadorim. Mas o leprento tinha ganhado para se ir, graças que não assisti à
arriação dele: decerto descendo às pressas, se escapando de gatas nas moitas de feijão-
bravo. Desse, tive um cansaço enorme; pode que seja por não saber se matava ou não
matava, caso ele ainda estivesse lá. Do leproso.
Mas Diadorim, conforme diante de mim estava parado, reluzia no rosto, com uma beleza
ainda maior, fora de todo comum. Os olhos – vislumbre meu – que cresciam sem beira,
dum verde dos outros verdes, como o de nenhum pasto. E tudo meio se sombreava, mas só
de boa doçura. Sobre o que juro ao senhor: Diadorim, nas asas do instante, na pessoa dele
vi foi a imagem tão formosa da minha Nossa Senhora da Abadia! A santa... Reforço o
dizer: que era belezas e amor, com inteiro respeito, e mais o realce de alguma coisa que o
entender da gente por si não alcança. (ROSA, 1978: 374)
Acredito que essa seja uma imagem condensada da dualidade constitutiva de
nossa humanidade; e que não pode ser cindida. Ao lado da materialidade bruta e da carne
que se desfaz, há a presença do belo e do numinoso. Tudo o que faz parte do humano – as
chagas e o que é capaz de luzir – localiza-se na árvore, axis mundi. Eixo pelo qual temos que
transitar
169
? Chama também a atenção de que é justamente a presença luzente e bela de
Diadorim que permite que o leproso vá-se embora – numa representação não de sua
aniquilação, mas da possibilidade de sua integração, aceitação plena. Os claros e escuros da
gente. No que se refere a Riobaldo, o reconhecimento desse poder e dessa visão parece ter se
dado em quando, após esse episódio, tira de si – cortando, já que não pôde arrebentar – o
escapulário da Virgem e o dá para Diadorim.
Outro momento que considero relevante vem pouco antes da batalha final,
quando parece haver – novamente, mas de uma outra forma – a valorização do
intersubjetivo. Quando os homens do bando que estavam adiantados retornam com a
notícia de que se avistava os Hermógenes, Riobaldo nomeia e adjetiva – de forma extensa –
169
Utéza (1994: 360) de certa forma segue esse caminho ao considerar a árvore como axis mundi, cuja dimensão
vertical seria marcada pelo leproso e por Diadorim como pólos extremos.
220
diversos dos companheiros de bando. Há uma afirmação e valorização da dimensão coletiva.
O Urutu-Branco, antes centrado em si, parece estar “demudado”.
Todos. E, todos, tinha vez eu achava que queria-bem o meu pessoal, feito fossem irmãos
meus, da semente dum pai e na madre de uma mãe gerados num tempo. Meus filhos. [...]
(ROSA, 1978: 411)
A possibilidade de sair de si mesmo se traduz também na possibilidade de tornar-
se empático com o outro. Riobaldo torna-se humano até com os inimigos:
[...] Ele veio cair, perto exato de mim, ferido muito grave, conforme gemia. – “Desarma,
mas não acaba de matar, mano-velho...” – a João Vaqueiro eu disse. [...] De tudo se
espiolhava, suave praguejante, aí com três costelas derrotadas. Mas, água, ele pedia,
cristão. Sede é a situação que é uma só, mesmo, humana de todos. Rebaixei o corpo e dei
nas mãos dele a minha cabaça, quase cheia, e que era boa como um cantil. Rústico, fechei
os olhos, para não me abrandar com pena das desgraças. Nem não escutei; que ouvido
também se fecha. No cavalo, eu estava levantado. Campo que me competia comandar,
dito. Tudo em mim, minha coragem: minha pessoa, a sombra de meu corpo no chão, meu
vulto. O que eu pensei forte, as mil vezes: que eu queria que se vencesse; e queria quieto:
feito uma árvore de toda altura! (ROSA, 1978: 420)
Riobaldo se compraz sede, condição humana que é de todos nós; inclusive dele
mesmo. Levantado no seu cavalo, vê também a sombra de seu corpo no chão – vulto do que
somos: a imagem de um centauro. O querer é quieto: como árvore que permanece, tendo
coragem. A árvore constitui eixo que faz as seivas transitarem, matando a sede, unindo as
esferas mais densas às mais sutis. Riobaldo se torna portador da água – sedentos que
estamos, todos nós – que também é cura.
221
Independente da trajetória à qual acabei de me referir – do Chapadão ao Paredão
– a narrativa de Riobaldo traz alguns outros indícios importantes de que a humanidade pode
ser reconhecida.
O suposto arquétipo da maldade, Hermógenes, tem também seu outro lado
reconhecido. Podem, assim, ser enfatizados aspectos que trazem à tona uma visão mais
humanizada do antagonista – visto sem a sua soberba, de pés no chão. Riobaldo pergunta-se
acerca do ser daquele homem. Como poderia conviver tamanho mal com um homem que
possivelmente fosse casado, pai de família, talvez até empenhado em ensinar e dar conselho
às suas crianças? Uma expressão muito bonita é utilizada nesse momento: refere-se à
“inocência daquela maldade” (ROSA, 1978:179). Como entender a natureza dele? Esse
homem capaz do amor à família, capaz da humanidade, também era aquele que dali saía –
“feito lobisomem?” – e era capaz de todas as ruindades. Um mundo capaz de abrigar
tamanha mudança, violência e ambigüidade só poderia ser, para Riobaldo, um mundo capaz
de, nele, conter o inferno – “[...] E o demônio seria: o inteiro, louco, o dôido completo – assim
irremediável.” (ROSA, 1978: 179). E do demônio não se pode ter pena, porque ele é doido
sem cura, todo perigo – é o que Riobaldo nos conta naquele momento.
Chamo a atenção para a relação que mais uma vez se estabelece entre a figura de
Hermógenes, o diabo e aspectos mais sombrios dos níveis ordinários de realidade. Mas
acredito que essa relação se apresente agora com novos elementos. Tudo isso surge como
parte da nossa própria humanidade, marcada pelas possibilidades limitadas da nossa
consciência, a nossa “loucura”. Ao reconhecer essa humanidade em Hermógenes, Riobaldo
humaniza a si mesmo, aproxima-se da realidade do outro de uma forma diferente: “[...] O
Hermógenes – ele dava a pena, dava medo. [...]” (ROSA, 1978: 179).
Loucura não é maldade, é limitação da consciência. O diabo e os aspectos mais
“densos” e sombrios próprios da natureza fazem parte de Hermógenes assim como fazem
222
parte de cada um de nós. A loucura talvez sobressaia quando estes sejam os únicos aspectos
que permitimos ter vida em nós. Riobaldo vê: nem mesmo Hermógenes é apenas isso. Sua
loucura talvez seja apoiar-se apenas nessas dimensões. Por outro lado, tampouco adiantaria
tentar rechaçar esses aspectos: o diabo não é uma das formas de expressão das forças e
desígnios de Deus? A natureza não tem seus claros e escuros? Nós também. Transcender a
natureza da realidade ordinária talvez signifique aceitá-la por completo.
[...] Tem coisas que não são de ruindade em si, mas danam, porque é ao caso de virarem,
feito o que não é feito. Feito a garapa que se azéda. Viver é muito perigoso, já disse ao
senhor. [...] (ROSA, 1978: 180)
O doce e o azedo convivem na mesma substância, conforme o uso que se dá. A
própria figura do demo é colocada em questão em determinado momento, trazendo à tona a
sua relação com o que há de mais humano. Ainda antes do estabelecimento do pacto, diante
de uma conversa com os companheiros, que julgavam precisar era de um bom tiroteio para
melhorarem, vem essa constatação, que chega como um lampejo, “azagaiada”:
[...] Ao assaz confirmamos, todos estávamos de acordo com o sistema. Aprovei, também.
Mas, mal acabei de pronunciar, eu despertei em mim um estar de susto, entendi uma
dúvida, de arpejo; e o que me picou foi uma cobra bibra. Aqueles, ali, eram com efeito os
amigos bondosos, se ajudando uns aos outros com sinceridade nos obséquios e arriscadas
garantias, mesmo não refugando a sacrifícios para socorros. Mas, no fato, por alguma
ordem política, de se dar fogo contra o desamparo de um arraial, de outra gente, gente
como nós, com madrinhas e mães – eles achavam questão natural, que podiam ir
salientemente cumprir, por obediência saudável e regra de se espreguiçar bem. O horror
que me deu – o senhor me entende? Eu tinha medo de homem humano.
A verdade dessa menção, num instante eu achei e completei: e quantas outras doideiras
assim haviam de estar regendo o costume da vida da gente, e eu não era capaz de acertar
com elas todas, de uma vez! Aí, para mim que não tenho rebuço em declarar isto ao
senhor – parecia que era só eu quem tinha responsabilidade séria neste mundo; confiança
eu mais não depositava, em ninguém. [...] (ROSA, 1978: 307-308 – grifos meus)
223
O horror de Riobaldo é perceber que esse homem humano é capaz das altas
bondades e, ao mesmo tempo, de proceder às maiores brutalidades sem nenhum esforço. A
constatação que o picou como uma cobra parece, aos meus olhos, uma antecipação da
conclusão fundamental a que nos conduz em sua narrativa: a de que o diabo não há, o que há
mesmo é homem humano. O pacto com o diabo, tomado sob essa perspectiva, há de revelar
um pacto do homem consigo mesmo, a integração da própria sombra, a aceitação da
inteireza da sua humanidade. Normalmente é mais fácil nomear o diabo apartado de nós
mesmos; separar o bem e o mal. Mas, se diabo não há, o que há – para esse homem humano
– é travessia. “Bem” ou “mal” são passos do caminho da gente? Passos mais altos e passos
mais baixos, para frente e para trás? Espécie de dança.
Riobaldo questiona até o próprio medo que se tinha do pactário Hermógenes –
que agora surge com seu nome completo (ROSA, 1978: 308), a revelar toda a sua
humanidade.
Às parlendas, bobéia. O medo, que todos acabavam tendo do Hermógenes, era que gerava
essas estórias, o quanto famanava. O fato fazia fato. Mas, no existir dessa gente do
sertão então não houvesse, por bem dizer, um homem mais homem? Os outros, o resto,
essas criaturas. Só o Hermógenes, arrenegado, senhoraço, destemido. Rúim, mas
inteirado, legítimo, para toda certeza, a maldade pura. [...] (ROSA, 1978: 309)
Um “pactário”: não existia homem mais humano – ruim, mas inteirado, legítimo.
Até a maldade tem seu lado puro. Essa perspectiva pode até nos levar a considerar o caráter
ambíguo do demo, ao mesmo tempo potencial de criação – tal como abordado no capítulo
anterior – e potencial de destruição, representado a “ruindade nativa do homem” (ROSA,
1978: 33). O reconhecimento do humano, implicaria, então, a integração – reconhecimento,
224
aceitação e superação – do diabo que todo homem traz dentro de si mesmo. Seria esse um
dos mistérios do pacto que o homem firma consigo mesmo?
5.3.3 A VISÃO DE DIADORIM COMO EXPERIÊNCIA ESTÉTICA
Tendo como base todo esse reconhecimento da humanidade – capaz de abrigar
em si o bom e o ruim – gostaria de colocar em evidência a experiência que talvez marque o
ápice desses processos: a morte e a visão de Diadorim.
O que precede o confronto final é uma percepção modificada que toma conta de
Riobaldo. Ele se pergunta se a gente vive não é caminhando de costas. Cisma que o cego
Borromeu na verdade só indagava acerca do que já sabia; o menino Guirigó aparecia
envelhecendo (ROSA, 1978: 424). O último diálogo que se trava entre Riobaldo e Diadorim é
revelador:
[...] Vaga-lumes, mais de milhar. Mas o céu estava encoberto, ensombrado. Sofismei.
Meio arrependido do dito, puxei outra conversa com Diadorim; e ele me contrariou com
derresposta, com o pique de muita solércia. Me lembro de tudo. O que me deu raiva. Mas,
aos poucos, essa raiva minou num gosto concedido. Deixei em mim. Digo ao senhor: se
deixei, sem pejo nenhum, era por causa da hora – a menos sobra de tempo, sem
possibilidades, a espera de guerra. Ao que, alforriado me achei. Deixei meu corpo
querer Diadorim; minha alma? Eu tinha recordação do cheiro dele. Mesmo no escuro,
assim, eu tinha aquele fino das feições, que eu não podia divulgar, mas lembrava,
referido, na fantasia da idéia. Diadorim – mesmo o bravo guerreiro – ele era para tanto
carinho: minha repentina vontade era beijar aquele perfume no pescoço: a lá, aonde se
acabava e remansava a dureza do queixo, do rosto... Beleza – o que é? E o senhor me
jure! Beleza, o formato do rosto de um: e que para outro pode ser decreto, é, para destino
destinar... E eu tinha de gostar tramadamente assim, de Diadorim, e calar qualquer
palavra. Ele fosse uma mulher, e à-alta e desprezadora que sendo, eu me encorajava: no
dizer paixão e no fazer – pegava, diminuía: ela no meio de meus braços! Mas, dois
guerreiros, como é, como iam poder se gostar, mesmo em singela conversação por detrás
de tantos brios e armas? Mais em antes se matar, em luta, um o outro. E tudo impossível.
Três-tantos impossível, que eu descuidei, e falei. –... Meu bem, estivesse dia claro, e
eu pudesse espiar a cor de seus olhos... –; o disse, vagável num esquecimento,
225
assim como estivesse pensando somente, modo se diz um verso. Diadorim se pôs
pra trás, só assustado. – O senhor não fala sério! – ele rompeu e disse, se desprazendo.
“O senhor” – que ele disse. Riu mamente. Arrepio como recaí em mim, furioso com meu
patetear. – Não te ofendo, Mano. Sei que tu é corajoso... eu disfarcei, afetando
que tinha sido brinca de zombarias, recompondo o significado. Aí, e levantei, convidei
para se andar. Eu queria airar um tanto. Diadorim me acompanhou. (ROSA, 1978: 436-
437 – grifos meus)
Indo além das ambigüidades
170
que constituem a figura de Diadorim, acredito
que nesse diálogo haja, por parte de Riobaldo, o seu reconhecimento como alma
171
. Alma que
é depositária de um amor
172
que agora pode ser reconhecido como legítimo.
Diadorim não apenas pode ser vista como a própria alma de Riobaldo, como
também tem sua dimensão feminina trazida à tona – chamada de “ela” numa percepção
antecipatória, própria da experiência estética – que rompe com os limites ordinários da
170
Morais (1998: 230) coloca em evidência o caráter duplo de Diadorim: (a) jagunço do bando e filho do chefe;
(b) Reinaldo e Deodorina; (c) masculino e feminino; (d) anjo e diabo (o “diá” com que se inicia Diadorim se opõe
ao “deo” com que se inicia Deodorina, de modo a formar o par antitético diabo x Deus); (e) a conotação de
duplicidade e divisão presente no próprio “di” do nome Diadorim. Essa perspectiva parece sintonizar-se com a
posição de Schwarz (1983: 386-387), que ressalta a imagem ambígüa de Diadorim – ao mesmo tempo pássaro,
flor e limpeza e, por outro lado, máscara do engano, rosto do Diabo. Para Coutinho (1994: 22), em sua
androginia Diadorim encarnaria o princípio de contradição que rege o universo rosiano. Utéza (1994) a todo o
momento ressalta o caráter andrógino relacionado à sua constituição.
171
Utéza (1994: 364-365) parece relacionar Diadorim mais a uma figuração do espírito do que da alma: a cruz
das cartucheiras que usa no peito, em forma de X, estaria relacionada ao hieróglifo do conceito egípcio do KHA
– o “duplo etérico”; sua forma feminina seria apenas aparência em que se fixa sua realidade terrestre no
momento de abandonar o mundo dos vivos. De forma distinta, o pesquisador também a associa à imagem da
anima de Riobaldo (UTÉZA, 1994: 366-367) – o que também faz em relação a Otacília (UTÉZA, 1994: 389).
Para esse estudioso, o sentido maior relacionado à morte de Diadorim relaciona-se a uma espécie de retorno ao
yin, ao feminino, após Riobaldo enveredar-se em sua grande jornada pelo universo yang, masculino. No caso de
outros críticos, vemos posições diversas no que diz respeito à associação entre Diadorim e a alma. Sperber
(1982: 130) a relaciona ao símbolo do buriti que, a seu ver, evocaria a transcendência. Marinho (2001: 121)
sustenta a hipótese em que Diadorim se relaciona à alma – e a sustenta com uma variedade de elementos
textuais – fornecendo elementos que nos levam a compreendê-la como a própria alma de Riobaldo. Numa outra
linha de interpretação, se considerarmos a associação entre Diadorim e a alma, somando ainda sua associação
com os pássaros, encontramos um interessante elemento de sintonia vindo da cultura celta. Segundo
Matthews (1999: 27), naquela cultura os pássaros podem ser as formas tomadas por semi-mortais ou por
divindades femininas. Já no contexto das culturas xamânicas como um todo, tem-se um importante
procedimento de cura, relacionado justamente ao “resgate da alma”. Para Olea (2006: 66), essa leitura – aquela
que considera khóris, a separação que o corpo (Riobaldo) sofre da alma (Diadorim) – seria uma das mais
abrangentes dentre as leituras possíveis de GSV.
172
Parece ser importante compreender melhor esse amor. Um pouco depois na narrativa, logo após o
sepultamento de Diadorim no Paredão, temos indícios de que o amor do qual se fala não é um elemento de
relação entre dois entes, mas uma entidade em si. Diadorim parece, dessa forma, representar não apenas a
alma, mas o próprio amor – ágape, tipo de amor que incorpora a renúncia – que há em Riobaldo: “Ela tinha
amor em mim.” (ROSA, 1978: 454 – grifos meus).
226
realidade
173
. Recompõe-se o significado, e isso se faz “modo se diz um verso” – “vagável”. Não
apenas os significados vagam, movimentando-se tal como os versos, mas também trazem luz
à outros sentidos – o que remete aos mais de mil vaga-lumes que iluminavam a conversa.
Mas voltemos ao reconhecimento de Diadorim como alma. Em outra passagem,
temos também uma importante alusão que remete a essa perspectiva:
O senhor lê. De Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins – que nasceu para o dever de
guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor... Reze o senhor
por essa minha alma. O senhor acha que a vida é tristonha? (ROSA, 1978: 458 –
grifos meus)
Ao reconhecimento de Diadorim como alma, soma-se o reconhecimento de sua
coragem e, ainda, a sua associação ao coração
174
– o que remete às relações entre esses dois
étimos. Considerando que a palavra coração vem da raiz latina cor ou cordis, acrescentemos a
isso o fato de que o coração era entendido não apenas como a sede dos sentimentos, mas
também da inteligência e do saber, donde advém o “saber de cor”. A “coragem”, por sua vez,
relaciona-se à vontade e ao ânimo (anima alima alma). Poderíamos, assim, a partir de
uma cadeia associativa, compreender o corajoso como aquele cuja alma está presente no
coração
175
. Carece mesmo ter coragem.
Igualmente interessante é notar que o reconhecimento da dimensão anímica se
faz por uma via estética: é na indagação acerca da beleza que se chega à alma; e o
173
Para Arrigucci (1994: 23), Diadorim, ao mesmo tempo em que se coloca como eixo articulador – fio da
meada – da trajetória de Riobaldo, também parece revelar um “toque possível de transcendência”. Para Nunes
(1983b: 145), Diadorim pode ser vista como ser andrógino, divino e demoníaco, representando para o narrador
a sedução diabólica. Em sua visão, a antecipação com o pacto com o demo já se daria na amizade de Riobaldo
com o Diadorim-Menino.
174
Note-se que no último diálogo entre Riobaldo e Diadorim ele a localiza em um lugar que é o do próprio
coração: “ela no meio de meus braços!” (ROSA, 1978: 436).
175
O que remete à vivência de Riobaldo em seu pacto: “[...] Feito o arfo de meu ar, feito tudo: que eu então
havia de achar melhor morrer duma vez, caso que aquilo agora para mim não fosse constituído. E em troca eu
cedia às arras, tudo meu, tudo o mais – alma e palma, e desalma... Deus e o Demo! [...]” (ROSA, 1978: 318).
Seria este, no fundo, um pacto com sua própria alma?
227
reconhecimento do belo só é possível através do coração. É por essa via que se sabe – o que
implica não um conhecimento ou um saber racional da realidade, mas um saber estético
acerca da mesma.
E esse tipo de reconhecimento transforma. Naquela mesma noite Riobaldo
relata: “[...] Dormi mortalmente. Essa, foi a noite que eu dormi: sendo o chefe Urutú-Branco,
mesmo dizer – o jagunço Riobaldo...” (ROSA, 1978: 437-438). Morte da primazia do ego,
abrindo espaço para a vida da alma, estética? Note-se que já há um retorno do chefe Urutu-
Branco ao jagunço Riobaldo: essas identidades passam a coincidir. Mas, se coincidem,
também já são superadas: dormem mortalmente. Quem desperta no dia seguinte?
Riobaldo acorda em meio a gritos e tiros: eram os inimigos em quantidade.
Sentia a guerra descambando “fora de seu poder” – ao mesmo tempo em que sentia seu
corpo “muito grande”. E se xingava por isso.
[...] Eu comandava? Um comanda é com o hoje, não é com o ontem. Aí eu era Urutú-
Branco: mas tinha de ser o cerzidor, Tatarana, o que em ponto melhor alvejava. [...]
(ROSA, 1978: 440 – grifos meus)
Parece haver uma espécie de retorno: “Cerzidor” era o apelido de Riobaldo antes
mesmo de ser conhecido como Tatarana. Mas agora ele queria ser o “cerzidor” – a designar
uma função daquele que realiza um movimento e não um nome próprio –, aquele que
costura histórias e, assim, cirze dimensões do real e de si mesmo
176
? Notemos que o “ponto”
176
Essa nova identidade como ocerzidor remete ao comentário que Morais (1998: 46) faz acerca da
“arquitetada sutura” do romance rosiano e seu fio de Ariadne, relacionado ao discurso crítico bem construído.
Referindo-se às idéias do psicanalista J. Allain Miller, a estudiosa aponta a forma como o conceito de “sutura”
228
a que se refere mescla as funções de objetivo (alvo) e cerzidura. Tiro e costura – ambos
intrinsecamente ligados ao movimento – se mesclam. Assim, o ponto se torna “alvejado”:
mais claro. O significante “melhor”, colocando-se entre “ponto” e “alvejava” parece conferir
uma sobreposição de sentidos à frase: não apenas o ponto é melhor, como se alveja melhor.
As funções do tiro e da cerzidura talvez não sejam, portanto, tão distintas assim – ao buscar
o alvo, buscam uma claridade possível.
O bando de Riobaldo se arrancha num sobrado – de onde Diadorim parte num
ato de coragem para enganar os inimigos. Riobaldo nota que ele mesmo arfava e estava com
“uma sede” – aquela: “Sede é a situação que é uma só, mesmo, humana de todos.” (ROSA,
1978: 420). Os tiros cessavam, as vozes surgiam. Algo estava acontecendo: Diadorim e
Hermógenes estavam frente a frente.
[...] O que vendo, vi Diadorim – movimentos dele. Querer mil gritar, e não pude, desmim
de mim-mesmo, me tonteava, numas ânsias. E tinha o inferno daquela rua, para
encurralar comprido... Tiraram minha voz.
Como vinham de lá e de lá, em contra-ranchos, a tomar armas, as cartucheiras de tiracol.
Atirar eu pude? A breca torceu e lesou meus braços, estorvados. Pela espinha abaixo, eu
suei em fio vertiginoso. Quem era que me desbraçava e me peava, supilando
minhas forças? – “Tua honra... Minha honra de homem valente!...” eu me,
em mim, gemi: alma que perdeu o corpo. O fuzil caiu de minhas mãos, que nem pude
segurar com o queixo e com os peitos. Eu vi minhas agarras não valerem! Até que
trespassei de horror, precipício branco.
[...] Eles todos, na fúria, tão animosamente. Menos eu! Arrepele que não prestava para
tramandar uma ordem, gritar um conselho. Nem cochichar comigo pude. Boca se
encheu de cuspes. Babei... (ROSA, 1978: 450 – grifos meus)
Riobaldo literalmente se vê desprovido de si mesmo, de todas as forças que
acumulara como Urutu-Branco ou Tatarana. Corpo que se vê perdido, sem sua alma.
vem designar as relações do simbólico com o real. Arrigucci (1994), por sua vez, refere-se aos “pontos de
sutura” do romance, a partir dos quais Riobaldo faz seu relato. Outra associação interessante vem a partir do
contato com as idéias de Deepak Chopra (2005: 126), quando discorre sobre mantras e sutras. Para o autor, um
sutra vem a ser um mantra que encerra um significado específico. Convém então lembrar que a palavra sutra
deriva do vocábulo latino sutura – que remete a suturar, juntar com costura. Percebe-se, assim, como a alcunha
“cerzidor” também traz, em si, uma referência aos mantras.
229
Desprovido de sua “honra de homem valente” (orgulho?), é remetido à mais humana das
condições. Precipício branco – a queda do Urutu? O que marca essa perda de alma é também
a ausência da voz; na marca da impossibilidade da elocução poética, Diadorim e Hermógenes
se esfaqueiam.
[...] Conforme conto. Como retornei, tarde depois, mal sabendo de mim, e querendo
emendar nó no tempo, tateando com meus olhos, que ainda restavam fechados. Ouvi os
rogos do menino Guirigó e do cego Borromeu, esfregando meu peito e meus braços,
reconstituindo, no dizer, que eu tinha estado sem acordo, dado ataque, mas que não
tivesse espumado nem babado. Sobrenadei. E, daí, não sei bem, eu estava recebendo
socorro de outros – o Jacaré, Pacamã-de-Presas, João Curiol e o Acauã : que molhavam
minhas faces e minha boca, lambi a água. Eu despertei de todo – como no instante
em que o trovão não acabou de rolar até o fundo, e se sabe que caíu o raio...
(ROSA, 1978: 451 – grifos meus)
Diadorim morre e Riobaldo desperta. A vivência relatada é a do instantâneo,
estético, que transforma os sentidos e muda os rumos. Riobaldo desperta no espaço estreito,
e imenso, que se forma entre o som do trovão e a consciência do raio. A sede agora é sua.
A mulher de Hermógenes se ocupa de lavar e vestir o corpo de Diadorim.
Riobaldo pela primeira vez pode vê-lo:
Diadorim – nú de tudo. E ela disse:
– “A Deus dada. Pobrezinha...”
E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu não contei ao senhor – e mercê peço:
– mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo
somente no átimo em que eu também só soube... Que Diadorim era o corpo de uma
mulher, moça perfeita... Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. A côice d’arma,
de coronha...
Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão para me
benzer – mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei.
Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água
do rio Urucúia, como eu solucei meu desespero.
O senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem termo real.
230
Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as mãos para trás,
incendiável: abaixei meus olhos. E a Mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas
aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os cabelos. Cabelos que cortou com
tesoura de prata... Cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura... E eu não
sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:
– “Meu amor!...”
Foi assim. Eu tinha me debruçado na janela, para poder não presenciar o mundo.
A Mulher lavou o corpo, que revestiu com a melhor peça de roupa que ela tirou da trouxa
dela mesma. No peito, entre as mãos postas, ainda depositou o cordão com o escapulário
que tinha sido meu, e um rosário, de coquinhos de ouricuri e contas de lágrimas-de-nossa-
senhora. Só faltou – ah! – a pedra-de-ametista, tanto trazida... [...] (ROSA, 1978: 453-
454)
Essa talvez seja uma das vivências estéticas mais intensas presentes na narrativa.
Um suposto saber é bruscamente substituído por uma visão completamente transformada
do real. Homem vira mulher. Morte que desvela. O mundo torna-se desencantado, ou
repentinamente mostra todo o seu encanto
177
? A morte do corpo de Diadorim revela,
definitivamente, a existência e vida da alma. Temos também, novamente, a associação entre
Diadorim e a constituição da visão
178
. Só que agora é ela que constitui o objeto dos olhos
transmutados de Riobaldo.
Algo há de se fazer a partir do retorno de tal tipo de vivência. Ao lado de objetos
cujo valor intrínseco foi sendo construído ao longo da narrativa, há também o espaço para
pedra mutante
179
, “de valor”; todos a marcar o lugar do coração. Amor
180
, “de todo quilate”,
177
Para Benedito Nunes (1983b: 145), a morte e conseqüente revelação da condição de Diadorim, marcariam o
fim do encantamento que Riobaldo nutria por sua figura.
178
Olea (2006: 126) nos lembra que, numa perspectiva platônica, a graça que movimenta as almas não é
encontrada nos chamados “sentidos materiais” (olfato, tato e paladar), mas naqueles tidos como “sentidos
espirituais”: audição e visão. É oportuno então lembrar a relevância que esses sentidos têm adquirido na análise
de GSV que aqui tem lugar, onde há o reconhecimento da sonoridade que dá origem a um ritmo e da
constituição de uma visão como elementos fundamentais na trajetória de Riobaldo.
179
Considerando a dinâmica energética relacionada aos chakras (FIG. 4), gostaria de levantar uma “hipótese” –
ainda que muito pouco ortodoxa – acerca do sentido dessa pedra mutante que Riobaldo traz de Arassuaí. O fato
é que essa pedra vai sendo nomeada de formas diversas no decorrer da narrativa, surgindo inicialmente uma
turmalina ou topázio, para depois se “transformar” em safira, pedra de valor e, ainda, ametista. Para aqueles
que trabalham com a ativação dos chakras, à energia vibratória (ligada à cor) de cada um desses centros,
também corresponderiam determinadas pedras. Temos, assim, uma associação estreita entre a ativação de um
chakra, uma cor e um mineral. A nossa pedra mutante inicialmente é um topázio, normalmente de cor amarela
– listado entre as pedras associadas à ativação do terceiro chakra (que, disfuncional, traduz-se pela vivência do
medo e do abuso de poder; quando corretamente ativado, relaciona-se à autoconfiança, poder pessoal e
liberdade). Um pouco adiante a pedra se transforma em safira, de cor que pode variar do azul celeste ao azul
mais escuro – listada entre os minerais associados à ativação do sexto chakra (considerado espiritual, ligado à
231
que se mostra como um espaço vazio, a ser constantemente preenchido – o que remete
àquela sede, humana de todos, da qual antes se falava. Seria esse o espaço criado para a arte –
oco no centro vazio do homem, elemento de ligação entre os seres, veículo de
transformação
181
?
Diadorim é enterrada no cemitério do Paredão. De lá Riobaldo sai a galope –
antes repartindo o dinheiro que tinha, retirando suas cartucheiras e “ultimando” o jagunço
Riobaldo.
Desapoderei.
Aonde ia, eu retinha bem, mesmo na doidagem. A um lugar só: às Veredas-Mortas... De
volta, de volta. Como se, tudo revendo, refazendo, eu pudesse receber outra vez o que não
abertura da “visão” e da intuição). Estaria a “troca” de uma pedra pela outra relacionada ao próprio processo de
desenvolvimento energético de Riobaldo, à abertura de seus chakras? À aquisição da coragem, para que se possa
ativar a visão? Desta forma, pensando então nas cores da pedra mutante de Arassuaí – temos, inicialmente, um
amarelo que se transforma em azul. Invoco os versos de Paulo Leminski: “Amar é um elo / entre o azul / e o
amarelo”. Entre o azul e o amarelo, temos o verde – cor do chakra cardíaco, mediador, centro, ponte entre a
tríade inferior e a superior dos chakras. A verdadeira ligação entre o corpo e o espírito, entre ordinário e o extra-
ordinário, entre o “eu” e o outro – se dá pelo coração. A expressão daquilo que vem do alto (forças
transpessoais) e sua integração com a própria sensação de integridade pessoal (forças pessoais) se dá pela
mediação do coração. E é justamente nesse lugar – no coração – que Riobaldo, ao final de sua narrativa,
deparando-se com o corpo de Diadorim, deseja depositar a pedra (então relembrada como ametista, cuja cor
violeta, por sua vez, remete à abertura do sétimo e último chakra) que já não mais está em seu poder. Fica,
entretanto, a marca de um lugar a ser preenchido.
180
Sônia Viegas (ANDRADE, 1975: 74-76) refere-se ao amor em GSV como a força capaz de estabelecer uma
ligação entre a experiência subjetiva e a realidade. O amor, considerado pela estudiosa como o sentimento
fundamental do romance de Rosa, seria o dom que tornaria a consciência disponível para a aceitação do
mistério da vida. Seria a partir da experiência amorosa que Riobaldo se reconhece no mundo e, paralelamente,
reconhece o mundo dentro de si.
181
Para Arrigucci (1994: 25), a morte de Diadorim teria como marca fundamental em Riobaldo a sua completa
transformação em “ser completamente desgarrado da transcendência, num mundo de repente já
desencantado”. A ausência de Diadorim se faria acompanhar pela ausência da poesia do sertão o que reflete
em um Riobaldo agora lançado apenas ao prosaísmo do mundo, “destituído de toda a intensidade anterior”.
Para justificar esse posicionamento, Arrigucci cita algumas passagens de GSV que, a seu ver, corroborariam tal
interpretação. Conforme já assinalei no primeiro capítulo desta tese, eu acrescentaria um outro tom a este
posicionamento: como tenho buscado mostrar, a morte física de Diadorim traz à tona não a sua ausência, mas a
sua presença ainda mais plena, em um outro nível. Diadorim revelaria a vida da alma e a presença constante do
transcendente. Tal hipótese parece se confirmar a partir das observações de Cecília de Lara (1998) que, a partir
da crítica genética, analisa algumas passagens cruciais em GSV. Uma dessas passagens é justamente a morte de
Diadorim e de Hermógenes, quando a estudiosa traça um paralelo da forma como a “morte” dessas duas
personagens é construída textualmente. No caso de Hermógenes, a morte significaria realmente a extinção:
“Morto... Remorto... O do demo. Havia nenhum Hermógenes mais”. No caso de Diadorim, há a presença de
palavras que caracterizam um plano superior, relacionado a valores que perdurariam para além da morte: “E a
beleza dele permanecia, só permanecia impossivelmente”; “os olhos ficados, cabelos com marcas duráveis”. Lara
também chama a atenção para o fato de que, em um dos rascunhos de GSV, em tal passagemaparecem
palavras manuscritas de modo inusitado por sobre o texto datilografado, revelando o envolvimento emocional
de quem escreve” (LARA, 1998: 47).
232
tinha tido, repor Diadorim em vida? O que eu pensei, o pobre de mim. Eu queria me
abraçar com uma serrania? Mas, nessa parte, de muito mal me lembro, pelo revés em
minha saúde. Ao que eu ia, de repente, me vinha um assombramento de espírito, muita
vez tonteei, de ter de me segurar, de cair; e, depois, durante muitos espaços, eu restava
esquecido de tudo, de quem eu era, de meu nome. Mas o Alaripe, Pacamã-de-Presas, o
Quipes, o Triol, Jesualdo, o Acauã, João Concliz, e o Paspe, me cuidavam; esses tinham,
por toda a lei, forçado de me acompanharem, vinham comigo; e o Fafafa, mais João
Nonato e Compadre Ciril, que vieram depois. Amigos meus. Aí eu vinha. (ROSA, 1978:
455)
Desapoderado, Riobaldo se depara com a morte do que tinha sido. Nem seu
nome vale mais. Fragilizado, conta com o amparo de seus companheiros, agora imerso numa
dimensão não mais individualista, mas eminentemente coletiva – intersubjetiva. Ao mesmo
tempo, começa a esboçar um movimento interessante: o de rever e refazer o seu caminho.
Isso se daria voltando às Veredas-Mortas?
Não. Pois nem mesmo há Veredas-Mortas. O que Riobaldo logo a seguir nos
relata (conforme soube mais tarde por seu compadre Quelemém) é que o verdadeiro nome
daquele lugar era Veredas-Altas. Creio podermos construir muitos sentidos a partir dessa
descoberta. Antes de mais nada, a troca da “morte” pelo “alto” já denota a possibilidade de
um renascimento. Creio estarmos ainda no contexto da experiência iniciática, do processo de
transformação. Mas essa mudança de nome também nos dá a dica da “volta” possível: o rever
e o refazer não se dão pelo retorno físico efetivo. A história não pode ser reconstruída nesses
termos. Entretanto, Riobaldo pode efetuar essas mesmas ações pela via da narrativa. Teria a
arte o poder de mudar o passado e refazer ações – perfazendo novos sentidos?
233
Creio podermos traçar um paralelo entre os movimentos que Riobaldo efetua
após a morte e revelação de Diadorim, a identidade que a partir daí se constitui e a função de
narrador que passa a exercer.
Charles Taylor (1997), que efetua suas construções a partir da história das idéias
e da filosofia moral, se dedica à compreensão do que seria a complexidade da identidade
moderna. Este termo se referiria, pois, ao:
[...] conjunto de definições (sobremodo desarticuladas) do que é ser um agente humano:
os sentidos de interioridade, liberdade, individualidade e de estar mergulhado na
natureza tão familiares ao Ocidente moderno. (TAYLOR, 1997: 09)
Taylor elege a ética como fio condutor da gênese da identidade moderna, a partir
de intuições morais “incomumente profundas, potentes e universais”. Sua profundidade
seria tanta, que nelas estaríamos voltados a pensar como parte de nossos instintos, em
contraste com outras que, mais facilmente, identificaríamos como parte de nossa educação
ou cultura. Mas, se, por um lado, nossas reações morais aparecem quase como instintos, por
outro lado, envolvem afirmações – implícitas ou explícitas – sobre o que seria a natureza e a
condição dos seres humanos.
O autor defende a idéia de que, para se ter um conhecimento mínimo acerca da
própria vida, para se ter uma identidade, é necessário uma orientação para o bem, ou seja,
algum sentido de discriminação qualitativa acerca do “incomparavelmente superior”. Além
disso, esse sentido do bem tem que ser incorporado à história pessoal do sujeito como uma
história em andamento. “Para ter um sentido de quem somos, temos de dispor de uma noção
de como viemos a ser e de para onde estamos indo.” (TAYLOR, 1997: 70). Ou seja: uma
condição básica implicada em nosso processo de busca de sentido situa-se na possibilidade
de compreensão da nossa vida em uma narrativa.
234
Entretanto, os bens aos quais Taylor tem se referido só existem para nós a partir
do momento em que são submetidos a algum tipo de articulação. Desse modo, a diversidade
de compreensões do bem que podemos encontrar em culturas distintas se devem às
diferentes linguagens que se desenvolveram nestas culturas. Qualquer que seja a articulação,
entretanto, ela se faz necessária, pois, de outro modo, esses bens não seriam passíveis de
adesão, tampouco se colocariam como opções.
Tecidas essas considerações, creio que a constituição de Riobaldo como narrador
– o que tem lugar após a visão de Diadorim como alma feminina – vem constituir-se não
apenas como mecanismo que possibilite a construção de uma nova identidade, mas como a
nova identidade em si. Identidade de quem, apropriando-se da própria história, transforma-
se no artista, a converter a experiência individual em coletiva. Riobaldo não é mais o menino
Naldo, nem o jagunço Tatarana, tampouco o chefe Urutu-Branco. Ribaldo é o cerzidor: aquele
que costura e entrelaça os fios da história – da sua própria e as dos outros – e assim faz a sua
travessia.
235
6
A POROSIDADE POÉTICA
Acredito que todos os processos analisados nos três capítulos precedentes
possam (e devam) ser considerados como uma trama de ocorrências simultâneas que se vão
desenvolvendo no decorrer da narrativa e que, paulatinamente, constituem os pontos de
apoio para a expressão de uma arte que toma vida através de Riobaldo.
Dessa forma, partindo do pressuposto de que ritmo, transcendência e experiência
estética constituam os suportes a partir dos quais essa arte se apresenta em GSV, a proposta
deste capítulo é compreender o entrelaçamento desses elementos como a constituição de
uma poética – que busco nomear como “porosidade poética”.
Recapitulemos os principais processos abordados até então (QUADRO 5):
236
QUADRO 5
A relação entre a porosidade poética e seus três suportes
POROSIDADE
POÉTICA
Ritmo
(a) Possibilidade de adesão a um ritmo (expresso na obra através
da estruturação da narrativa, de uma sonoridade e de
conteúdos simbólicos);
(b) Superação da dualidade medo x coragem (harmonização com
os ritmos das esferas ordinárias e extra-ordinárias do real);
(c) A aceitação do movimento e da mudança (abertura e
flexibilidade);
(d) A adesão aos ritmos da realidade ordinária como possibilidade
de acesso a outros níveis de realidade;
(
Transcendência
(e) A integração de distintos aspectos do self como possibilidade
de acesso a outros níveis da realidade e da criação;
(f) O contato com a potência das forças criativas (nomeadas das
mais diversas maneiras, dependendo do contexto cultural:
demo, daimon, Kundalini) e seu caráter ambígüo, que encanta
e assusta ao mesmo tempo;
(g) O acesso a estados alterados de consciência, a experiências
visionárias e a outros níveis de realidade como possibilidade
de criação;
(h) A constituição de uma visão mais ampliada do “eu” e do
mundo (ambos considerados e vivenciados em seu caráter
multidimensional);
(
Experiência
estética
(i) Uma forma diferenciada de apreensão da realidade, não
dirigida racionalmente;
(j) A vivência do belo como experiência significativa;
(k) A relativização das próprias referências, fronteiras e
paradigmas;
(l) A permeabilidade do próprio ser e a dimensão iniciático-
transformadora a que é submetido em seu processo;
(m) O reconhecimento do potencial ilimitado de si mesmo: do
mais belo ao “não-belo”;
(n) O pleno reconhecimento da dimensão intersubjetiva onde se
está inserido;
(o) O reconhecimento do humano e da alma, em si e no outro;
(p) A grande troca: do hiperinvestimento no ego ao
reconhecimento, vida e integração da alma.
A partir da adesão aos
ritmos do mundo, o
“artista poroso” se coloca
como um “canal” de
expressão de um
movimento que não
emana de si, mas flui
através dos níveis
ordinários e extra-
ordinários do real, na
tentativa de re-significar
e representar a realidade
multidimensional e
complexa presente no
“eu”, no outro e no
próprio universo que nos
permeia.
No que se refere ao quadro acima, é importante notar que os processos
associados a um determinado suporte sempre se relacionam, em alguma medida, a processos
vividos nos outros dois: sua separação é apenas um artifício didático. Atuando
conjuntamente, esses suportes convergem para aquilo que aqui é sucintamente descrito
como a constituição de um “canal de expressão”. Mas qual é o tipo de arte que se expressa
237
dessa maneira? Quais os seus meandros? Como se constitui o artista nessa perspectiva
porosa? Esses são alguns dos contornos que, a partir de agora, pretendo traçar para que,
ainda em diálogo com GSV, melhor possamos compreender a “porosidade poética” e seus
meandros.
Inicialmente, pretendo percorrer novamente a trajetória de Riobaldo, visando a
colocar em evidência os passos que marcam seu relacionamento específico com a arte, no
aprendizado dessa forma poética que acabo de nomear.
Num segundo momento, partindo dos elementos anteriormente destacados na
narrativa, opto por efetuar uma discussão de cunho mais teórico, com vistas a uma
compreensão mais aprofundada e sistematizada do conceito que aqui se vem construindo.
6.1 O DESENVOLVIMENTO DA ARTE DO CERZIDOR
As referências à arte em GSV são muitas e múltiplas. Inicialmente, eu diria que
dois tipos de apresentação são fundamentais na narrativa de Riobaldo: (a) a apresentação da
arte como marca de passagens cruciais de sua trajetória
182
; (b) a apresentação de sua relação
com arte, ao que se articula o seu próprio aprendizado como artista
183
, através de várias
etapas. Pretendo abordar principalmente esse último aspecto.
182
Exemplos importantes seriam: (a) os versos proferidos pelo barqueiro, a marcar a travessia do São Francisco;
(b) os versos que marcam a saída do Curralinho, quando Mestre Lucas o convida para trabalhar como professor
de Zé Bebelo; (c) os versos que marcam a saída do bando do chefe Urutu-Branco rumo ao Chapadão-do-
Urucuia; (d) os versos de Riobaldo que surgem a partir do encontro com o Lázaro; (e) a canção de Siruiz que,
dentre outros momentos, surge para marcar o início do confronto com os Hermógenes, no Paredão; (f) o modo
como Riobaldo se dirige a Diadorim em seu último diálogo, “modo se diz um verso” (ROSA, 1978: 437); (g) os
versos do cego Borromeu, a preceder o confronto final entre Diadorim e Hermógenes.
183
Marinho (2001; 2002) compara Riobaldo à figura do bardo, oriunda da cultura celta – poeta e, ao mesmo
tempo, heróico e lírico. Cowan (1993) acrescenta a esses significados a possibilidade do bardo se constituir a
partir dos elementos arquetípicos que caracterizam a experiência xamânica, atuando como mediador entre
238
O aprendizado de Riobaldo tem início quando, após a travessia do São Francisco
e a morte da mãe Bigri, é levado ao encontro do padrinho Selorico Mendes, na fazenda São
Gregório
184
. Este amava conversar, contar casos, sendo que as preferidas eram as altas artes
dos jagunços que transmite a Riobaldo por meio de suas histórias, o que talvez signifique o
início do aprendizado de uma arte narrativa. Riobaldo é também iniciado nas letras e passa
rapidamente da condição de aprendiz à de professor auxiliar. Tem então a oportunidade de
conhecer pessoalmente os jagunços. Impressionando-se com a unidade formada por homem
e cavalo, é inspirado a compôr versos. Resumidamente, pode-se dizer que o tempo na São
Gregório marca o primeiro contato com a poesia. Com a chegada dos cavaleiros na
madrugada, Riobaldo presencia a seguinte cena:
[...] Um falou mais alto, aquilo era bonito e sem tino: – “Siruiz, cadê a moça virgem?”
Largamos a estrada, no capim molhado meus pés se lavavam. Algum, aquele Siruiz,
cantou, palavras diversas, para mim a toada toda estranha:
Urubú é vila alta,
mais idosa do sertão:
padroeira, minha vida –
vim de lá, volto mais não...
Vim de lá, volto mais não?...
dimensões e realidades – além de se constituir como uma espécie de guardião do conhecimento sagrado de seu
povo.
184
Historicamente, as referências a São Gregório – nome da fazenda onde Riobaldo se encontra com o
padrinho/pai – são inúmeras, mas três se destacam como as mais importantes:
(A) A reforma gregoriana (WIKIPÉDIA, 2005), associada ao papa Gregório VII (1073-1085) e ao papa São
Gregório Magno constituiu-se em um amplo conjunto de reformas destinado a fazer regressar a Igreja aos
tempos primitivos, de Cristo, dos apóstolos e dos seus sucessores imediatos, por um lado, e por outro,
propensa à afirmação do poder papal face ao poder feudal (sendo, dessa forma, considerada o início da
teocracia papal). Do ponto de vista da reforma moral, a reforma gregoriana passava pela condenação veemente
das práticas heréticas, bem como da “simonia” (compra de cargos eclesiásticos) e do “nicolaísmo” (o
concubinato dos padres católicos).
(B) O calendário gregoriano (VIEIRA, 2005) é aquele que substituiu o calendário juliano, tendo sido implantado a
partir de 1582 pelo papa Gregório XIII (1512-1586). Motivada por um atraso de 10 dias da data do equinócio
(estava ocorrendo em 11 de março, ao invés de 21 de março), a reforma consistiu em três partes fundamentais:
(b1) a supressão de dez dias do calendário, (b2) a ausência de anos bissextos durante três anos em cada período
de 400 anos e (b3) a contagem dos dias através da designação dos números cardinais pela ordem e
seguidamente (e não mais por calendas, nonas e idos).
(C) O canto gregoriano – que, conforme nos lembra Wisnik (2002), é um dos poucos representantes ocidentais
da música modal (rítmica).
Voltando à fazenda São Gregório, poderíamos então nos colocar a pensar na pluralidade de significações
acopladas a esse “lugar do pai”. Teríamos assim a afirmação do poder do pai, a proibição do relacionamento
amoroso, a mudança na forma de se contar o tempo, a possibilidade do canto e da adesão ao ritmo.
239
Corro os dias nesses verdes,
meu boi mocho baetão:
burití –água azulada,
carnaúba – sal do chão...
Remanso de rio largo,
viola da solidão:
quando vou p’ra dar batalha,
convido meu coração...
Vinham quebrando as barras. Dia de maio, com orvalho, eu disse. Lembrança da gente é
assim.
Me emprestaram um cavalo, e eu fui, com o Alaripe, esperar a chegada da tropa de
burros, adiante, na boca da ponte. [...] O dia já estava clareando completo. Meu coração
restava cheio de coisas movimentadas. (ROSA, 1978: 93-94)
Esta talvez seja a única vez em que o jagunço Siruiz, vivo, aparece na narrativa,
ao contrário de sua canção
185
, adotada por Riobaldo a partir de então. Mas essa não parece
ser uma arte qualquer: em resposta ao um que fala bonito e sem tino, Siruiz canta uma toada
estranha. Essa arte parece lidar com outras lógicas... altas artes dos jagunços?
Nos dias em os jagunços passaram na fazenda São Gregório, em seus
preparativos, o que agradava Riobaldo era recordar aquela cantiga “estúrdia”:
[...] O que me agradava era recordar aquela cantiga, estúrdia, que reinou para mim no
meio da madrugada, ah, sim. Simples digo ao senhor: aquilo molhou minha idéia. Aire,
me adoçou tanto, que dei para inventar, de espírito, versos naquela qualidade. Fiz
muitos, montão. Eu mesmo por mim não cantava, porque nunca tive entôo de voz, e meus
beiços não dão para saber assoviar. Mas reproduzia para as pessoas, e todo o mundo
admirava, muito recitados repetidos. Agora, tiro sua atenção para um ponto: e ouvindo o
senhor concordará com o que, por mesmo eu não saber, não digo. Pois foi – que eu escrevi
os outros versos, que eu achava, dos verdadeiros assuntos, meus e meus, todos sentidos
por mim, de minha saudade e tristezas. Então? Mas esses, que na ocasião prezei, estão
goros, remidos, em mim bem morreram, não deram cinza. Não me lembro de nenhum
deles, nenhum. O que eu guardo no giro da memória é aquela madrugada dobrada inteira:
os cavaleiros no sombrio amontoados, feito bichos e árvores, o refinfim do orvalho, a
185
Arrigucci (1994) aponta a canção de Siruiz como algo fundamental na trajetória de Riobaldo. Ao trazer em
sua forma híbrida a narração épica e o instantâneo lírico, ela conteria, de forma cifrada, o destino de Riobaldo.
Para Sperber (1982), as canções em GSV seriam repetidas e funcionariam como pré-avisos, donde ressalta o
caráter metalingüístico da canção de Siruiz e a foma como se articula com a temática do meio. No tocante ainda
à importância das canções na narrativa, Gabriela Reinaldo (2000) aborda GSV de forma a relacioná-las a uma
expressão do pensamento mitopoético. No caso da canção de Siruiz, a autora chama a atenção inclusive para
seu caráter oracular – uma vez que, surgindo a partir do chamado pela “moça virgem”, a canção já remeteria à
verdadeira condição de Reinaldo/Diadorim.
240
estrela-d’alva, os grilinhos do campo, o pisar dos cavalos e a canção de Siruiz. Algum
significado isso tem? (ROSA, 1978: 95)
O contato com a jagunçagem, antes de mais nada, traz a Riobaldo a possibilidade
de enveredar pela arte
186
. Não posso deixar passar despercebido o contraste entre os dois
movimentos poéticos que relata. O primeiro grupo de versos é inventado de espírito, versos
naquela qualidade dos de Siruiz (toada estranha). Esses versos, apesar de não serem
cantados por Riobaldo, eram admirados e recitados repetidamente pelas demais pessoas. Já
o segundo grupo de versos de Riobaldo é composto a partir dos assuntos seus (e seus),
sentidos por si
187
. Além de não terem sido valorizados por si mesmo, não foram repassados
aos outros e, deles, lembrança não há – morreram, goraram
188
.
Esses distintos movimentos poéticos parecem colocar em questão, a meu ver,
três aspectos fundamentais: (a) a questão da autoria, (b) a dimensão intersubjetiva da arte e (c)
a arte como invenção ou imitação da realidade (ao que se junta a discussão acerca das relações entre
real e ficcional) – aspectos intrinsecamente relacionados.
Em minha percepção, Riobaldo coloca em questão o lugar do autor como origem
da obra de arte. Em nossa cultura individualista contemporânea, muitas vezes associamos
essa origem ao próprio artista. Entretanto, quando Riobaldo explicitamente associa o
conteúdo da obra à sua dimensão estritamente pessoal – assuntos seus, sentidos por si – a arte
não se sustenta. Quando, ao contrário, a vincula a algo que não pertence apenas a si mesmo,
inclusive de modo a associar os versos produzidos dessa forma àqueles produzidos por
intermédio de Siruiz – uma invenção do espírito –, há uma profusão de versos que são
186
Arrigucci (1994) relaciona essa chegada dos cavaleiros com o contato com o universo romanesco dos
jagunços, o que estaria diretamente relacionado a um movimento poético de Riobaldo e às “altas artes dos
jagunços”.
187
Consuelo Albergaria (1977: 98) refere-se aos dois grupos de versos construídos por Riobaldo a partir do seu
contato com a canção de Siruiz. A pesquisadora enfatiza o caráter de auto-determinação em relação a seu autor,
presente no segundo grupo de versos; tido como algo a ser superado.
188
Poderíamos fazer um paralelo entre esse segundo grupo de versos e a relação que o próprio Rosa
estabelecera com Magma (ROSA, 1997)?
241
reconhecidos, admirados e circulantes numa esfera intersubjetiva. Poderíamos também nos
perguntar: o que seria mais real, aquilo “inventado de espírito” ou a facticidade dos assuntos
próprios?
Em um momento posterior na narrativa, Riobaldo divide com seu interlocutor a
lembrança de quando se deitou no pelego que pertencia a Diadorim:
De repente, uma coisa eu necessitei de fazer. Fiz: fui e me deitei no mesmo dito pelego, na
cama que ele Diadorim marcava no capim, minha cara posta no próprio lugar. Nem me
fiz caso do Garanço, só com o violeiro somei. A zangarra daquela viola. Por não querer
meu pensamento somente em Diadorim, forcejei. Eu já não presenciava nada, nem
escutava possuído fiquei sonhejando: o ir do ar, meus confins. Aí pensei no São
Gregório? A bem, no São Gregório, não; mas peguei saudade dos passarinhos de lá, do
poço no córrego, do batido do monjolo dia e noite, da cozinha grande com fornalha acesa,
dos cômodos sombrios da casa, dos currais adiante, da varanda de ver nuvens. O senhor
sabe?: não acerto no contar, porque estou remexendo o vivido longe alto, com pouco
caroço, querendo esquentar, demear, de feito, meu coração, naquelas lembranças. Ou
quero enfiar a idéia, achar o rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que
não houve. Às vezes não é fácil. Fé que não é.
Mire veja: naqueles dias, na ocasião, devem de ter acontecido coisas meio importantes,
que eu não notava, não surpreendi em mim. Mesmo hoje não atino com o que foram. Mas,
no justo momento, me lembrei em madrugada daquele nome: de Siruiz. Refiro que
perguntei ao Garanço, por aquele rapaz Siruiz, que cantava cousas que a sombra delas em
meu coração decerto já estava. O que eu queria saber não era próprio do Siruiz, mas da
moça virgem, moça branca, perguntada, e dos pés-de-verso como eu nunca tive poder de
formar um igual. [...] Mas eu guardava triste de cor a canção recantada. E Siruiz tinha
morrido. Então me instruíram na outra, que era cantiga de se viajar e cantar, guerrear e
cantar, nosso bando, toda a vida:
“Olerereêe, bai-
ana...
Eu ia e
não vou mais:
Eu fa-
ço que vou lá dentro, oh baiana,
e volto
do meio
p’ra trás...”
(ROSA, 1978: 135-136)
242
Riobaldo nos descreve o modo como, a partir do contato com o rastro de
Diadorim e os pequenos ritmos presentes na natureza, alcança um estado alterado de
consciência, entrando em contato com outras esferas de realidade. O ritmo, que é da
linguagem, do mantra e do trem-de-ferro, capaz de conduzir a estados alterados de
consciência, aqui é substituído pela zanzarra da viola: Riobaldo já não presenciava nada, nem
escutava possuído – ficava “sonhejando”, em direção ao “ir do ar” e aos seus confins.
Remetido à fazenda São Gregório, dentre os elementos aos quais se via ligado, destaco os
pássaros, o poço, o batido do monjolo e a varanda de ver nuvens – todos instrumentos
visionários. A visão alta dos pássaros; o poço que em muitas tradições é divinatório; o batido
rítmico do monjolo que se associa ao do tambor e ao do trem-de-ferro; a varanda de ver as
nuvens do céu.
Ao mesmo tempo, Riobaldo diz remexer o vivido “longe alto”, o que não é fácil.
Diz: “Fé que não é”. Leio essa frase de várias maneiras: (a) atesta-se que não é fácil mesmo
remexer esse vivido longe alto; (b) assim como não é fácil esse remexer, também não o é a fé;
(c) remexer o longe alto não é uma questão de fé (acreditar ou não), é fato. Ou pode não
significar nada disso...
Indo além: ao deitar-se no chão e alcançar o longe alto, Riobaldo se lembra de
Siruiz e das coisas que cantava, sendo que a sombra delas em seu coração já estava. Em
contato com os ritmos dos níveis ordinários de realidade, abre-se espaço para o longe alto –
contato este que, por sua vez, conduz à manifestação da arte. Riobaldo descobre que Siruiz
está morto, mas em si preserva a canção “recantada” – cantada muitas vezes e encantada.
Com a “passagem” de Siruiz, também a canção é transmutada. Através dela, Riobaldo é
instruído – cantiga de viajar e cantar, guerrear e cantar. A viagem seria o movimento por
entre esferas da realidade, de modo que a cantiga se transformaria em veículo, tal como o
trem-de-ferro: cantiga de viajar e cantar. Mas ela também era a cantiga de guerrear e cantar.
243
A diferença é que, nesse último caso, a “guerra” referir-se-ia aos embates inerentes aos níveis
mais densos da própria realidade ordinária.
Finalmente, pode-se observar também que a canção, agora transmutada, adquire
um outro sentido – ainda mais móvel, já que não se fixa mais em lugar algum – “Olerereêe,
baiana... Eu ia e não vou mais: Eu faço que vou lá dentro, oh baiana, e volto do meio p’ra
trás...”. Não se está mais nem num lugar, nem noutro. Essa, de viajar e cantar, é a canção
daquele que transita por entre os espaços sem neles se fixar. E a arte parece se apresentar
justamente como esse instrumento de trânsito poroso. Muitos são os veículos e os
caminhos, mas uma canção – aquilo que transita pela via da linguagem e do ritmo – é bem
mais leve do que um trem-de-ferro. Os recursos de Riobaldo tornam-se cada vez mais sutis.
Em sintonia com essa idéia, Riobaldo também tece uma reflexão, um pouco mais
adiante, acerca da palavra, e do modo como esta pode nos chegar de maneiras pouco usuais:
[...] Ações? O que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra
pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo. […] E grande
aviso, naquele dia, eu tinha recebido; mas menos do que ouvi, real, do que do que eu tinha
de certo modo adivinhado. De que valeu? Aviso. Eu acho que, quase toda a vez que ele
vem, não é para se evitar o castigo, mas só para se ter consolo legal, depois que o castigo
passou e veio. Aviso? Rompe, ferro! (ROSA, 1978: 137-138)
Riobaldo considera que a palavra precede a ação – palavra pensada, sequer
proferida. A materialização de uma ação parece então ser precedida por sua formação em um
outro nível de realidade. Essa palavra – dada (por outro que não si mesmo?) ou guardada (já
em si) – vai rompendo rumo. Creio podermos levantar a hipótese de que Riobaldo está a
relatar o papel de mediação atribuído à palavra: mediação entre o “eu” e o “não-eu”, entre a
coisa e a não-coisa, mediação entre ordinário e extra-ordinário. Ao relatar o aviso que
recebeu – não o ouvido “real”, mas o “adivinhado” – Riobaldo parece estar narrando
244
experiências em que a esfera da realidade ordinária atua como locus para apresentação de
conteúdos oriundos de outras esferas.
Outro exemplo desse tipo de mecanismo se dá por ocasião da prisão de Zé Bebelo
e a fala “inspirada” pela qual Riobaldo é acometido naquele momento:
[...] A que nem não sei como tive o repente de isso dizer – falso, verdadeiro, inventado...
[...] Eu sei, eu sei? O senhor agora não vai me entender. O como são as coisas. Todos me
aprovaram – e, aí, extraordinariamente, eu dei um salto de espírito. O que? Mas, então,
eu não tinha pensado tudo, o real?! [...] (ROSA, 1978: 192-193)
Riobaldo torna-se uma espécie de veículo para uma mensagem que, vindo através
de si, não lhe traz certeza acerca de sua autoria. O “como são as coisas” talvez não esteja
dentro do nosso entender ordinário; e o que Riobaldo diz é justamente da forma como –
“extraordinariamente” – deu um salto de espírito. Se não foi ele quem pensou, que mensagem
é essa: falsa, verdadeira, inventada? Seria esse um bom convite para que, novamente,
pudéssemos questionar as relações que se dão entre realidade e ficcionalidade –
acrescentando a esses termos a idéia do trânsito entre esferas da realidade.
O mesmo tipo de vivência é descrito por Riobaldo um pouco adiante, agora já no
julgamento de Zé Bebelo. Tatarana já parece mais atento aos próprios processos de
enunciação do que ao conteúdo de seus enunciados:
[...] Só, que eu tinha pronunciado bem, Diadorim mais me disse: e que tinha sido menos
por minhas tantas palavras, do que pelo rompante brabo com que falei, acendido,
exportando uma espécie de autoridade que em mim veio. [...] (ROSA, 1978: 211)
O que apreendo desse tipo de passagem é que, nesses momentos, a palavra de
Riobaldo, já demonstra não estar apenas na esfera da realidade ordinária – pelo menos não
tal como, ordinariamente, a compreendemos. Nesse caminho, a suspensão dos limites que
245
conectam distintas esferas do real parece tornar também mais tênues os limites que ligam as
pessoas e as coisas umas às outras. A fala de Riobaldo não é apenas dele; há uma articulação
que não vem de si, mas por si – algo que inclusive transcende as suas tantas palavras.
Imerso na densidade da vida dos jagunços, a canção de Siruiz talvez signifique a
possibilidade de se ligar a outras esferas, transcender. Riobaldo parece querer ir além das
dimensões ordinárias. Como alternativa, logo após apontar o que seria o início de uma
segunda parte de sua narrativa
189
, busca compôr seus próprios versos – seria já a arte?
[...] E vim vindo, para a beira da vereda. Consegui com o frio, esperei a escuridão se
afastar. Mas, quando o dia clareou de todo, eu estava diante do buritizal. Um buriti –
tetéia enorme. Aí sendo que eu completei outros versos, para ajuntar com os antigos,
porque num homem que eu nem conheci – aquele Siruiz eu estava pensando. Versos
ditos que foram estes, conforme na memória ainda guardo, descontente de que sejam sem
razoável valor:
Trouxe tanto este dinheiro
o quanto, no meu surrão,
p’ra comprar o fim do mundo
no meio do Chapadão.
Urucúia – rio bravo
cantando à minha feição:
é o dizer das claras águas
que turvam na perdição.
Vida é sorte perigosa
passada na obrigação:
toda noite é rio-abaixo,
todo dia é escuridão...
Mas estes versos não cantei para ninguém ouvir, não valesse a pena. Nem eles me deram
refrigério. Acho que porque eu mesmo tinha inventado o inteiro deles. A virtude que
tivessem de ter, deu de se recolher de novo em mim, a modo que o truso dum gado mal
saído, que em sustos se revolta para o curral, e na estreitez da porteira embola e rela. [...]
(ROSA, 1978: 240-241)
189
Ao que, como já foi abordado nesta tese, corresponde o episódio da Guararavacã do Guaicuí.
246
Riobaldo não canta seus versos para os outros por julgar que não valia à pena;
nem para si mesmo esses deram “refrigério”. Apesar da frustração, consegue ainda refletir
acerca do acontecido: possivelmente o motivo tenha sido o fato de ele mesmo tê-los
inventado. Isso remete à reflexão já iniciada, sobre os dois tipos de versos compostos por
Riobaldo: aqueles “inventados de espírito” – que pode ser compartilhado – e aqueles
“sentidos por si” – que morrem e goram. O que aqui temos então é a confirmação de seu
posicionamento anterior, a nos dar novos indícios acerca do papel do artista: a ser tomado
como origem ou mediador da obra de arte? Sem dúvida, a vivência de Riobaldo nos conduz a
uma aproximação da segunda perspectiva: o valor da arte associado à possibilidade de
manifestação de algo que não emana apenas de si
190
.
Outro elemento importante é encontrado nos Currais-do-Padre, para onde o
bando vai pegar cavalos herdados de Medeiro Vaz, após o cerco na fazenda dos Tucanos. O
dono do sítio, iletrado, assim mesmo possuía um livro – “Senclér das Ilhas”
191
,– que Riobaldo
pede para “deletrear” nos seus descansos.
190
A partir desse momento – talvez sensibilizado pela importância da dimensão intersubjetiva – Tatarana se
dedica a nomear e caracterizar, de forma exaustiva, os diversos companheiros de bando. A afirmação desse
âmbito coletivo se completa com a sua constatação de que o fato de estarem juntos tranqüilizava os ares; a
liberdade estaria na movimentação.
191
O romance Saint-Clair das Ilhas, de Elizabeth Helme, editado originalmente em 1803 em Londres, foi um
grande sucesso no Brasil, tendo servido de referência não apenas para essa passagem de Guimarães Rosa, como
também para passagens em Machado de Assis e José de Alencar. Marlyse Meyer (1996: 25) ao indagar Rosa
acerca do impacto desta leitura, teve do escritor a resposta de que “não se lembrava” – fazendo menção apenas
ao fato de que na sua infância, nas fazendas por onde andava no centro e no centro-norte de Minas Gerais,
havia um livro encadernado em couro, muito respeitado e manuseado pelas pessoas; ao que acrescenta o
comentário que muita gente se chamava Sinclair. Para além dos motivos – revelados ou velados – de Rosa, é
curioso, entretanto, constatar como elementos relacionados a essa obra mostram certas coincidências em
relação a algumas perspectivas que vêm sendo desenvolvidas no âmbito desta pesquisa:
247
[...] Mas o dono do sítio, que não sabia ler nem escrever, assim mesmo possuía um livro,
capeado em couro, que se chamava o “Senclér das Ilhas”, e que pedi para deletrear nos
meus descansos. Foi o primeiro desses que encontrei, de romance, porque antes eu só
tinha conhecido livros de estudo. Nele achei outras verdades, muito extraordinárias.
(ROSA, 1978: 287)
É assim, montando o cavalo e o romance, que Riobaldo se dirige para seu pacto.
Esses elementos, portanto, dão o tom do rito iniciático que se aproxima. Se o cavalo é veículo
de acesso a outras paragens, no livro que não é de estudo – onde vemos a afirmação do
romance como gênero literário – Riobaldo encontra também o veículo para acessar outras
verdades, muito “extraordinárias”. Numa perspectiva metalingüística, tem-se aqui um belo
exemplo das relações nada simplistas entre ficção e realidade – uma realidade complexa e
multidimensional, diga-se de passagem. É a partir desse encontro – homem, cavalo e livro –
que Riobaldo parte em direção ao seu pacto.
(A) A primeira grande questão refere-se à noção de autoria, obscura e enigmática na obra em questão (MEYER,
1996: 35). A busca efetuada por Meyer apontava, inicialmente, para autores anônimos; ou, quando era indicada
a autoria, havia uma série de divergências entre as fontes. Resumindo o que foi uma grande busca e trabalho de
pesquisa, viu-se que a atribuição de autoria oscilava entre uma francesa – mme. Montolieu – e uma inglesa –
Elizabeth Helme. Por fim, descobriu-se que a primeira era uma tradutora para o francês do original em inglês;
mas não uma tradutora qualquer: “o destaque dado ao nome e às ‘adaptações originais’ da tradutora explica por
que, desde a origem, esta fez sombra à autora efetiva” (MEYER, 1996: 36). Mme. Montolieu explica numa
autobiografia que nunca mais escreveu obras de ficção por não ter imaginação para inventar enredos”
(MEYER, 1996: 36), ficando por conta de “adaptar livremente” novelas de outros. Creio que este fato coloque
em questão a própria noção de autoria, tal como vem sendo discutida no presente estudo, mostrando como é
problemático o lugar do autor – a oscilar entre origem da obra e “tradutor” desta obra (ou narrador do que vem
de outrem). No contexto dos estudos rosianos, Morais (2006) aborda a questão da tradução e da traição
tomando como eixo o relacionamento entre Riobaldo e Zé Bebelo, cujo ápice tem lugar na Casa dos Tucanos.
(B) Outra coincidência, no que se refere a GSV, relaciona-se ao próprio personagem do “Senclér”. Guerreiro e
herói, vê-se diante de diversas provações até ter a recompensa “na pessoa de bela e fidalga donzela que chega
um dia à ilha de Barra, vestida de rapaz, atraída pela fama do valente e misógino herói” (MEYER, 1996: 47). É
inevitável – mesmo considerando as diferenças – o remetimento à figura de Diadorim, donzela travestida de
homem.
(C) Já Rômulo Gomes (2005) aponta um outro aspecto relacionado ao Saint-Clair das Ilhas que considero digno
de nota: o fato de que este romance é considerado um precursor do gênero que hoje pode ser chamado de
“jornalismo literário”. Gênero este cuja principal característica seria a possibilidade de registrar fatos “reais” ao
mesmo tempo em que sua manifestação se dá pela “arte da palavra” (literatura). A meu ver, a sua presença na
narrativa de Riobaldo apenas reforça a idéia de como realidade e ficção não se excluem; pelo contrário. O que
vejo é a afirmação da função poética, da força da literatura como veículo capaz de conduzir o homem a outras
verdades, extra-ordinárias.
248
A importante mudança que acomete Riobaldo – a partir do estabelecimento do
pacto nas Veredas-Mortas e sua nomeação como chefe Urutu-Branco – também deixa
importantes marcas em todo esse aprendizado poético. Inicialmente, o que se vê, é um certo
retrocesso.
Logo de início, o que marca a saída do bando recém reunido em direção ao
Chapadão-do-Urucuia é o fato de todos cantarem a canção de Siruiz – ao que Urutu-Branco
ouve, “soturno sorridente” (ROSA, 1978: 397). Uma mudança importante: se antes era
apenas Riobaldo quem cantava esses versos, agora os mesmos já circulam.
Riobaldo deixa de se sentir o insignificante e provisório Tatarana para se tornar o
definitivo Urutu-Branco. O ordinário se amplia, de forma a abarcar aquilo que antes era
considerado extra-ordinário – mas seu ego faz o mesmo movimento. Nesse momento,
Riobaldo não parece atuar como um canal da expressão poética: agora é seu bando que recita
os versos; ele apenas os ouve.
Na continuação de sua trajetória como chefe Urutu-Branco, o outro é visto como
uma espécie de “perda de si”. Às suas reflexões, a experiência poética também vem se juntar.
Ao seguir pelos brejos da beira do Paracatu, o Riobaldo-Urutu forma versos:
[...] Somente quis, nem podia dizer aos outros o que queria, somente então uns versos dei,
que se puxaram, os meus, seguintes:
Hei-de às armas, fechei trato
nas Veredas com o Cão.
Hei-de amor em seus destinos
conforme o sim pelo não.
Em tempo de vaquejada
todo gado é barbatão:
deu doideira na boiada
soltaram o Rei do Sertão...
Travessia dos Gerais
tudo com armas na mão...
O Sertão é a sombra minha
e o rei dele é Capitão!...
249
Arte que cantei, e todas as cachaças. Depois os outros à fanfa entoaram – mesmo sem me
entender, só por bazófias – mas rogando no estatuto daquela letra e retornando meu
rompante; cantavam melhor cantando. De todos, menos vi Diadorim: ele era o em
silêncios. [...] (ROSA, 1978: 350)
Não é demais dizer que, novamente, à expressão poética se junta a dimensão da
experiência coletiva. O que parece diferir nas expressões poéticas de Riobaldo –
considerando toda a sua narrativa – parece estar relacionado a dois grandes aspectos
interdependentes: (a) a origem ou fonte da expressão poética e (b) a possibilidade de trânsito
ou ressonância dessa expressão num âmbito intersubjetivo.
Quando a origem é o próprio Riobaldo (e não outras coisas mais “altas”), parece
corresponder um esvaziamento da possibilidade de ressonância junto ao outro. A passagem
atual é mais um exemplo dessa perspectiva poética: os versos que se puxaram, de Riobaldo,
foram entoados apenas por bazófia, sem que fossem entendidos, de forma automática,
talvez até por medo. Mas há outras expressões poéticas possíveis, não esqueçamos; o próprio
Riobaldo já nos deu outros exemplos.
Aos poucos – como já tivemos oportunidade de acompanhar no capítulo anterior
– começa a surgir para Riobaldo a perspectiva de que, pessoalmente, não se sabe e não se
comanda. Riobaldo começa a perceber que é diverso em si mesmo. Uma indicação
interessante: a partir de todas essas novas possibilidades de relativização, brota em Riobaldo
a vontade de escrever. Trata-se de uma carta
192
dirigida a Otacília, marcada pelo tom da
sinceridade e a vontade de versos.
[...] O que eu cogitei de escrever era muito singelo: as notícias de minha saúde, pergunta
de como era que ela e os parentes iam passando, saudações de lembranças. Admiro que
achei natural de não falar coisa de minha glória de chefia, por oras. Por que? Pois. E tive
vontade de traçar uns versos também: mas que a aragem não ajudava a deduzir. Era uma
sinceridade muito dificultosa. Escrevi metade.
192
Em determinado momento (ROSA, 1978: 78) Riobaldo também relata ter recebido uma carta de Nhorinhá,
carta esta que demorara oito anos para chegar às suas mãos, recebendo-a quando já estava casado.
250
Isto é: como é que podia saber que era metade, se eu não tinha ainda ela toda pronta,
para medir? Ah, viu?! Pois isto eu digo por riso, por graça; mas também para lhe indicar
importante fato: que a carta, aquela, eu somente terminei de escrever, e remeti, quase em
data dum ano muito depois... Digo o porquê? Próprio porque não pude. Guarde o senhor:
não pude completo. Mas, guarde, por outra: o dia vindo depois da noite – esse é o motivo
dos passarinhos... (ROSA, 1978: 370)
Mais uma vez destaco a forma como os grandes passos subjetivos da trajetória de
Riobaldo são marcados por movimentos de expressão poética – ou seria o contrário? O fato é
que considero importante atentar para os elementos que acompanham seu ímpeto de
expressão: marcada pela sinceridade, sem espaço para as “glórias de chefe”. O versos
revelam-se conectados à “aragem” (do sagrado?), inspiração. Naquele momento, essa última
ainda não estava plena em seu movimento, o que o impede de terminar a carta naquela
ocasião. Riobaldo teve consciência de que naquela época escrevera apenas metade, talvez
porque suspeitasse que não escrevia sozinho; os versos não vinham apenas de si. A condição
para a vida de seus versos parece ser, além da verdadeira presença de si, a aragem. Dessa
união parece brotar sua poesia. Assim ele pode “completo”.
Mais adiante, vemos que a grande mudança subjetiva de Riobaldo – a preceder o
confronto final com os Hermógenes – é também acompanhada por mais uma expressão da
canção de Siruiz:
[...] Eu era assim. Sou? Não creia o senhor. Fui o chefe Urutú-Branco – depois de ser
Tatarana e de ter sido o jagunço Riobaldo. Essas coisas larguei, largaram de mim, na
remotidão. Hoje eu quero é a fé, mais a bondade. Só que não entendo quem se praz com
nada ou pouco; eu, não me serve cheirar a poeira do cogulo – mais quero mexer com
minhas mãos e ir ver recrescer a massa... Outra sazão, outros tempos. Eu ia para sofrer,
sem saber. E, veja, se vinha, eu comandei: – “É guerra, mudar guerra, até quando onça e
couro... É guerra!...” Todos me aprovavam. Ainda mesmo que com o cantar:
251
“Olererê
Baiana...
Eu ia
e não vou mais...
Eu faço
que vou
lá dentro, ó Baiana:
e volto
do meio
p’ra trás!”
Assim, aquela outra – que o senhor disse: canção de Siruiz só eu mesmo, meu silêncio,
cantava.
Sofreado de minha soberba, e o amor afirmante, eu senti o que queria, conforme
declarado: que, no fim, eu casava desposado com Otacília – sol dos rios... [...] (ROSA,
1978: 412)
A expressão poética que Riobaldo sente como verdadeira se faz chegar quando
está “sofreado de sua soberba e amor afirmante”. Não apenas as substâncias e as palavras
movimentam-se sem cessar, mas também as pessoas – nosso ser e nossa identidade. Aquele
que já foi o Urutu-Branco, depois de ter sido o Tatarana, depois de ter sido o jagunço
Riobaldo: esse é aquele que nos pede o tempo todo para que coloquemos ponto em suas
palavras – construamos novos sentidos. E não é justamente isso o que ele faz com a canção
do bando, aquela de guerrear e cantar? As palavras permanecem as mesmas – a discorrer
justamente sobre a mobilidade – mas estão “pontuadas” de uma maneira diferente; os versos
se repartem de uma outra forma
193
. Um novo ritmo que se apresenta?
A arte, que se apresenta pela via da mediação do homem, faz sua apresentação
também nos momentos que antecedem os combates decisivos no paredão. De noite, um
urutau faz um barulho triste e alto, que sai debaixo dos silêncios. Apenas Riobaldo acorda,
193
Cleusa Rios Pinheiro Passos aborda essa questão em trabalho apresentado no “Seminário Internacional João
Guimarães Rosa”, promovido pelo IEB/USP em comemoração aos 50 anos de publicação de Grande sertão:
veredas e Corpo de baile, em maio de 2006.
252
com arrochos no coração – tirando, “do tôo da noite” um canto de cantiga (ROSA, 1978: 424)
– nos versos que não vêm de si, mas por si.
Pouco antes da última conversa que tem com Diadorim, Riobaldo –
acompanhado de Alaripe e Quipes – passa a noite na beira duma “vereda pagã”.
Conversando, imaginam qual seria o nome daquela vereda – que havia de ter, apenas não
sabiam qual era. Nome não se recebe gratuitamente: um sentido e uma qualidade há de
revelar. No dia seguinte, Riobaldo acorda sentindo cólicas. Logo após, conversando sobre a
possibilidade ou não de se entender a razão da vida, Riobaldo se revela:
[...] Eu ia formar, em roda, ali mesmo, com o Alaripe e o Quipes, relatar a eles dois todo
tintim de minha vida, cada desarte de pensamento e sentimento meu, cada caso mais
ignorável: ventos e tardes. Eu narrava tudo, eles tinham de prestar atenção em me ouvir.
Daí, ah, de rifle na mão, eu mandava, eu impunha: eles tinham de baixar meu
julgamento... Fosse bom, fosse ruim, meu julgamento era. Assim. Desde depois, eu me
estava: rogava para a minha vida um remir – da outra banda de um outro sossego...
Pensei; quase disse. Aquilo durou o de um pingo no ar. Eu havia de? Ah, não, meu senhor.
Deu um momento, me tirou disso; e tanto bastou. Doidice, tontura de espírito... – eu
repensei, reposto em pé. Xô! O ypsilone dum jegue eu era – zote, do que arrenego, cabeça
orelhalmente? [...] (ROSA, 1978: 432)
Essa é a primeira vez em sua trajetória que Riobaldo se coloca na posição de um
potencial narrador da própria história – de cada caso mais ignorável, de ventos e tardes. Essa
possibilidade a princípio lhe parece doidice – “tontura de espírito”? Ou talvez, signifique que,
ainda que a história seja sua, talvez ela não seja apenas sua… Julgando-se, talvez, pouco
qualificado para tal, parece ainda haver a necessidade de superar a concepção de que a
narração brota apenas da capacidade intelectual daquele que narra. De qualquer maneira,
esse é um indício importante do que virá.
Riobaldo pede para que os dois companheiros continuem a busca, resolvendo
voltar para o Paredão. Riobaldo corre para estar com Diadorim – que o esperava e o recebe
com alegria. Tendo a oportunidade de repensar a sua trajetória, todos os caminhos que o
253
levaram até aquele ponto, Riobaldo torcia para que tudo terminasse logo – largaria então a
jagunçagem. Suas reflexões parecem envolver o trânsito entre as esferas da realidade, uma
permeabilidade constitutiva faz agora parte do seu ser:
[...] Artezinha. Sei o grande sertão? Sertão: quem sabe dele é urubú, gavião, gaivota,
esses pássaros: eles estão sempre no alto, apalpando ares com pendurado pé, com o
olhar remedindo a alegria e as misérias todas...
Nessas e noutras muito extremadas coisas eu tornava a pensar, o espírito em meia-
mão, por diante permeio os outros meus entretimentos de-verdade. [...] (ROSA,
1978: 435 – grifos meus)
Sua visão é aquela – dos pássaros. O grande sertão: “artezinha”? Riobaldo está
nos interstícios, no meio dos caminhos, no trânsito entre as esferas. Poroso. Com o espírito
em meia-mão, pode permear “entretimentos de-verdade”. É nesse momento que estabelece o
último diálogo que tem com Diadorim – ao qual me referi no capítulo anterior – “modo se
diz um verso” (ROSA, 1978: 437).
A morte e a visão de Diadorim, além das transformações profundas que são
capazes de operar em Riobaldo, têm também o poder de conferir uma outra direção para as
suas expressões artísticas. Sua poética, até então a operar pela via dos versos e das canções,
passa agora a se dirigir para a arte narrativa – tal como havia ensaiado na “vereda pagã”.
Ofício de cerzidor.
254
Dentro das enfermidades e acessos que o acometem após a morte de Diadorim,
relembro o episódio
194
(ROSA, 1978: 455-456) em que, tomado por uma grande febre,
Riobaldo se põe a exercer a função de narrador – contando histórias que não eram as suas.
Logo após se refazer, Riobaldo é conduzido por Zé Bebelo à amizade que ele
precisava naquele momento: alguém diverso de todo mundo – compadre Quelemém, na
Vereda do Buriti Pardo. Para lá se foi, com o novo amigo se hospedou e para ele contou sua
história inteira. Ao buscar essa companhia e com ela estabelecer uma relação de
interlocução, Riobaldo realiza um triplo movimento. O primeiro estaria ligado a mais uma
afirmação da dimensão intersubjetiva, na qual agora, definitivamente, se insere. O segundo
movimento – também ligado a essa dimensão – relaciona-se à busca por interlocução a partir
de certas afinidades e da afirmação de uma visão de mundo: compadre Quelemém é aquele
com quem Riobaldo pode estabelecer trocas que consideram a realidade espiritual e
transcendente do mundo. O terceiro movimento se relaciona ao próprio ofício narrativo:
compadre Quelemém é o primeiro interlocutor com quem Riobaldo exercita a arte de narrar
a própria história em sua inteireza.
Um questionamento poderia ser levantando: mas se seu aprendizado poético o
conduz, a todo o tempo, a valorizar não aquilo que vem de si, mas o que “apanha de espírito”,
não seria uma contradição o fato de Riobaldo terminar como narrador da própria história? A
meu ver, entretanto, essa seria apenas uma aparente contradição, uma vez que, ao final da
narrativa, a história individual surge como parte de uma história mais ampla – território do
espírito. Sujeito e mundo não são mais cindidos, atravessam-se mutuamente. Assim, abre-se
espaço para narrar a própria história, justamente porque ela não é apenas sua. Nós é que
somos dela.
194
Esse mesmo episódio foi analisado no capítulo que aborda a transcendência, em diálogo com as forças da
Kundalini e do daimon – sentidos que não estão sendo repetidos neste momento, mas que permanecem
presentes.
255
Mas todo esse exercício não parece parar por aí. O “nonada” ao final da narrativa,
bem como o símbolo do infinito, lemniscata, que vem logo abaixo, remetem à circularidade
da própria narrativa – que termina onde começa; mas num lugar diferente. A cobra morde o
próprio rabo. Verso e prosa se constituem mutuamente, assim como o fazem narrativa oral e
escrita. O movimento é em espiral: a cada vez que Grande Sertão: Veredas é lido, uma outra
história surge nesse processo; novos sentidos emergem – o que remete à idéia de “obra
aberta”, presente na perspectiva semiótica de Umberto Eco (2001; 2003). Assim, a cada
leitura, podemos acrescentar novos sentidos à compreensão de como uma história se
constitui, de como um jagunço se torna narrador, de como um homem passa a operar como
artista.
[...] Viver – não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver
é que é o viver, mesmo. O sertão me produz, depois me enguliu, depois me cuspiu do
quente da boca... O senhor crê minha narração? (ROSA, 1978: 443)
6.2 OS FLUXOS DESVIANTES DE UMA “POROSIDADE POÉTICA”
Considerando a validade da hipótese de que Grande Sertão: Veredas – e,
conseqüentemente, a trajetória de Riobaldo – se dedique a narrar como se dá a constituição
do artista e de sua arte, pretendo, a partir de agora, desenvolver aquelas que seriam as linhas
centrais dessa poética que Riobaldo nos apresenta. O grande objetivo, neste momento,
vincula-se a uma aproximação entre as idéias até então desenvolvidas a partir da leitura de
GSV e a literatura tomada de forma mais ampla e conceitual.
256
Tomo como ponto de apoio inicial algumas perspectivas mais clássicas ligadas à
própria compreensão da noção de poética, de forma a suscitar diálogos e estabelecer
contrastes.
Luiz Costa Lima (1973), ao abordar as relações entre a problemática estética e a
literatura, refere-se às idéias de Hegel e suas construções ligadas à história da arte. Hegel
parte do princípio fundamental de que as diversas formas de arte estariam escalonadas de
acordo com o ajuste entre uma forma, que capta o sensível, e a Idéia, tomada como
transcendente – deste modo, a arte representaria uma espécie de adequação da realidade ao
conceito. Partindo dessa premissa, haveria, para Hegel, três modalidades de arte que então
se sucederiam, hierarquicamente: a arte simbólica, a clássica e a romântica.
A primeira, arte simbólica (representada pela arquitetura), teria como
característica básica o desajuste interno, gerado pelo esforço de exprimir o infinito. Haveria
um movimento no qual o homem procura, na natureza, o receptáculo para a figuração de
idéias que, por serem próprias do espírito, exigiriam a capacidade de transgressão do natural,
a partir de veículos de figuração mais arbitrários. Para Costa Lima, nessa etapa há um
movimento onde a arte e o homem ainda procuram a si mesmos.
Com o advento da arte clássica (representada pela escultura e pela pintura), há a
adequação da forma com o conceito. O sensível figurado deixa de ser natural, já que seu
elemento concreto reside na forma humana, considerada como aquela capaz de revestir o
espiritual em sua apresentação temporal. Não há diferença, desajuste entre forma e
conceito; o homem se converte em medida de todas as coisas; o fundamento do saber é
buscado na estabilidade das essências.
257
Esse acordo supostamente harmonioso, por sua vez, é quebrado com a arte
romântica (representada pela música e pela literatura), com a diferença de que há uma
inversão em relação ao que antes se dava na arte simbólica. Se, naquela, a “Idéia” não
conseguia se integrar com o sensível, já que era confusa a representação efetuada pelo
homem, na arte romântica, tendo os homens se conscientizado da “Idéia”, não mais
conseguem ver seu equivalente no sensível.
A essa crise da arte equivaleria a própria evolução da consciência humana, o que
também teria seu equivalente na hierarquização que preside as artes particulares. Hegel,
desde o começo de sua obra (HEGEL, 1996: 27), estabelece uma forte hierarquia entre aquilo
que pertence à ordem da natureza e o que pertence à ordem do espírito – ocasião em que
explicita o modo como valoriza o belo artístico, associado ao espírito, em oposião ao belo
natural. Essa seria a marca fundamental de sua estética. Assim, por exemplo, a arquitetura
(espécie simbólica por excelência) se contrapõe à poesia, que ocuparia uma posição mais
elevada, já que nela o espírito estaria livre em si, separado dos materiais sensíveis.
A elevação do discurso poético associa-se, então, à sua relativa independência no
que se refere a uma “fisicalidade” que já não tenha sido “domada e transformada” pelo
espírito. Sua superioridade é, assim, determinada por uma pressuposição logocêntrica (e
também antropocêntica – já que o homem se coloca como esse mediador que opera pela via
da arte), onde a “arbitrariedade do signo declara a liberdade do espírito instituidor” (LIMA,
1973: 46). Com base nessas concepções é que Hegel não restringe o poético à poesia, já que
isso significaria diminuir o centrismo humano em outras artes. O poético passa então a
representar o princípio mesmo das artes, não vinculado a uma forma específica de arte, mas
a uma arte geral.
Retomando a idéia de Hegel acerca de uma história “evolucionista” da arte, é
importante salientar – como nos alerta Costa Lima – que esta não assume a forma de uma
258
linearidade, pelo menos não na relação entre as artes particulares, constituindo-se, de forma
inversa, a partir de tensões
195
.
Outro aspecto importante é aquele relacionado à própria figura do artista.
Partindo da perspectiva da arte romântica, pode-se compreender o fim da arte como um
movimento que visa a tonar pouco perceptível o usual. Hegel assim compreende a arte como
desvio e a sua linguagem como um discurso que nos afasta das dimensões cotidianas.
Procedendo dessa forma, o artista – na condição de ser desviante – se destaca. Para Hegel, a
arte e o artista seriam desvios da média geral. Costa Lima chama a atenção para o modo
como, nessa perspectiva, se reencontra a idéia romântica do artista e a ênfase concedida ao
indivíduo no pensamento burguês – o que reforça a idéia do “gênio”
196
e o culto ao indivíduo.
De forma complementar, a dependência da natureza em relação ao homem
significaria sua subordinação ao propósito racional e, ainda, como diz Costa Lima, “ao cálculo
consciente ou pretensamente consciente” – em oposição a diversos outros processos tais
como associações involuntárias, processos ligados à cadeia significante e estruturas de
narrativas não lineares, repudiados como irracionais.
Visando à elaboração em torno da idéia de uma porosidade poética, gostaria de
ressaltar três aspectos de toda a perspectiva hegeliana aqui apresentada. Um primeiro
aspecto, sintônico, estaria relacionado à compreensão da arte como elemento de ligação
entre as realidades extra-ordinárias e ordinárias ou, em termos hegelianos, entre as “Idéias”
e o mundo sensível – ainda que não haja uma correspondência direta entre esses termos.
195
Kathrin Rosenfield (1989: 18) também discute a perspectiva estética de Hegel. Para a autora, a correlação
entre as três formas artísticas e as artes particulares não pode ser vista como uma classificação, já que esta
apenas circunscreveria – “desenvolve num desdobramento dinâmico” – a forma particular tomada pelo
“Espírito” em uma determinada época a partir das relações entre forma e conteúdo, matéria e espírito, material
e sentido. A grande questão não é, portanto, classificar, mas “desenvolver dinamicamente as determinações
particulares de uma relação”.
196
Para Costa Lima, se a estética hegeliana é submetida a uma leitura literal, a questão do gênio é ignorada.
Entretanto, ao efetuar-se uma leitura menos ortodoxa, o gênio é revelado.
259
Os outros pontos para os quais chamo a atenção, implicam posicionamentos bem
distintos de minha parte, marcando uma discordância em relação à perspectiva hegeliana. O
segundo aspecto que então ressalto é a centralidade atribuída ao indivíduo, presente na
perspectiva de Hegel. Retomarei esse ponto adiante, mas já adianto que aquilo a que me
refiro como porosidade poética não se pauta por uma perspectiva onde a arte é controlada
racional e teleologicamente, onde a esfera da natureza se subordina à vontade humana.
O terceiro aspecto, decorrência natural do exposto anteriormente, relaciona-se a
uma escala de valores presente na perspectiva hegeliana e que coloca o plano das Idéias como
superior aos planos sensíveis. Essa visão implica a concepção dessas duas esferas como
radicalmente distintas (e uma valoração hierarquicamente bastante desigual em relação às
mesmas). Sob a perspectiva de uma porosidade poética, pelo contrário, estas seriam apenas
manifestações distintas de uma mesma realidade, já que os limites entre o sensível e aquilo
que não pode ser apreendido a partir dos sentidos (ordinários) revela-se móvel. Os juízos de
valor então refeririam-se às nossas possibilidades de apreensão da realidade, e não à
realidade em si.
Acredito que um outro ponto de partida importante para que possamos
desenvolver construtos em torno da idéia de uma porosidade poética pode se dar pela via da
Poética de Aristóteles (1966). Como texto clássico, este pode nos ser útil na constituição de
um diálogo, onde, acredito, certos pontos serão focos de sintonia
197
, enquanto outros
constituirão focos de tensionamento entre duas perspectivas bem distintas.
197
Arrigucci (1994: 14) faz uma breve alusão ao segundo capítulo da Poética em seu ensaio, quando esta,
referindo-se aos níveis da representação poética, a relaciona aos tipos de homens – que podem ser
260
Em sua visão de mundo ordenada e com seu pensamento organizado, Aristóteles
vai nos apresentando em sua Poética aqueles elementos que considerara básicos em termos
da criação artística, da produção do texto literário e da experiência estética. Tomo então a
liberdade de colocar em evidência os pontos que considero os mais relevantes neste diálogo
com a perspectiva aqui desenvolvida (QUADRO 6) – sem que isso signifique esgotar todos os
elementos presentes na produção aristotélica
198
:
representados melhores, iguais ou piores que nós. Para o autor, a caracterização das personagens principais de
GSV percorreria toda essa gama. Morais (1998: 47) aponta esta associação aludida pelo outro estudioso e busca
explorar essas idéias, numa outra direção interpretativa.
198
Costa Lima (1973: 50) tece considerações em relação a esse texto e ao modo como, a partir de sua
redescoberta no século XVI, o mesmo tem adquirido uma imagem distinta para cada época em que é lido. Das
várias interpretações, o autor compreende que a Póetica tem sido abordada basicamente a partir de dois
prismas: (a) como um tratado descritivo, normativo e moralizante, ligado à estrutura da tragédia; (b) como
interpretação do discurso poético, relacionado a uma teoria da mimese. Minha leitura incide sobre esse
segundo foco.
261
QUADRO 6
Um paralelo entre a Poética de Aristóteles e a porosidade poética
DIMENSÕES
POÉTICA
DE ARISTÓTELES
POROSIDADE
POÉTICA
Concepção de arte
Arte compreendida como
imitação/representação da realidade
Arte compreendida como
imitação/representação das dimensões
ordinárias e extra-ordinárias da realidade
Finalidade
Produção de um prazer estético Mediação entre dimensões da realidade
Objeto da imitação
O mundo e os homens (a partir de critérios de
valoração)
Elementos (do eu e do mundo) ligados aos
níveis extra-ordinários da realidade, de modo a
destacar a natureza multidimensional de sua
constituição
Tipo de realidade
representada
Representa os fatos como são, como deveriam
ser, como os contam os homens ou como já
foram
Aquela que não se apresenta imediatamente à
percepção
Meios
O ritmo, a linguagem e a harmonia (atuando
separadamente ou em conjunto)
O ritmo (no qual se inclui a linguagem), a
transcendência e a experiência estética
Modos de narração
1ª pessoa, 3ª pessoa ou dramatização 1ª pessoa
Reconhecimento
Por sinais, aquele forjado pelo artista, o
efetuado pela memória ou ainda através de
silogismo ou parologismo
Ligada a uma ampliação da noção de “eu” e ao
contato com dimensões arquetípicas e coletivas
Universal x
Particular
Pretende expressar o universal
Pretende ter acesso ao universal a partir da
experiência individual
Ficcionalidade
Não é função do poeta contar o que aconteceu,
mas o que poderia acontecer, e para isso se vale
das leis da verossimilhança e da necessidade
Adquire caráter eminentemente ficcional se
considerada apenas a partir dos critérios da
realidade ordinária / Suscita a problematização
acerca das relações entre real e ficcional
Peripécia
Ligada à inversão de situações, pode relacionar-
se a um reconhecimento / Os acontecimentos
têm maior efeito quando nos alcançam
inesperadamente
Também faz uso da peripécia, relacionada à
experiência estética por excelência
Enigma
Possibilidade de expressar fatos reais através da
combinação absurda de termos e do uso de
metáforas
Meio privilegiado de expressão, no sentido de
produzir a dúvida, o questionamento, a quebra
de certezas
Irracional
Deve ser evitado
Deve ser estimulado, uma vez que promove o
questionamento acerca dos sistemas de
referência vigentes nos nívies ordinários de
realidade
Impossível
O poeta deve preferir as coisas impossíveis, mas
críveis, às possíveis, mas incríveis
Busca ampliar os limites de
compreensão/aceitação daquilo que é
normalmente considerado impossível ou
incrível
Linguagem
Combinação entre elevação e clareza /
Dificuldades resolvidas pelo exame da
linguagem
Veículo privilegiado de expressão, à qual cabe o
desafio de traduzir em palavras as experiências
relacionadas a outros níveis de realidade /
Clareza não é uma de suas características,
voltando-se mais para o enigma
Posição do autor
O artista procederia por meio de uma arte
conscientemente produzida, ou por mero hábito
/ O poeta deveria falar o menos possível em seu
próprio nome / Imitador
A arte não se refere a uma produção
teleologicamente produzida / Deslocamento do
lugar de autor para o de narrador, de modo a
constituir um híbrido entre as duas instâncias /
O processo criativo torna-se possível a partir do
contato com outras forças
Acredito que os contrastes produzidos a partir do desenho deste pequeno quadro
suscitem alguns pontos importantes que merecem ser melhor analisados para que possamos
262
avançar. Ressalto, então, dois aspectos centrais: (a) o lugar do autor e (b) o caráter de
representação da obra arte.
6.2.1 ENTRE O AUTOR E O NARRADOR
Aristóteles nomeia como poeta aquele capaz de fazer arte; esta, por sua vez, é
compreendida como imitação do real. Minha compreensão do texto aristotélico é que ele
compreende o dom artístico como algo natural, acessível a todos – potencialmente seríamos
todos poetas. Por outro lado, refere-se também à “marca do gênio”, numa alusão à
possibilidade de construção de metáforas, relacionadas à percepção de semelhanças. Numa
referência a Homero, a Poética explicita o papel que caberia aos autores na composição de
suas obras: fazer-se presentes o mínimo possível, pois do contrário imitariam pouco; o
poeta deveria falar o menos possível em seu próprio nome. Partindo desses
posicionamentos, o que agora proponho é retomar a “velha” discussão acerca da questão da
autoria.
Foucault (1995) promove uma discussão importante acerca do lugar do autor,
promovendo um distanciamento entre a figura pessoal de um escritor e a “função autor”,
tomada como discurso e inscrita historicamente. Helena Carvalhão Buescu (1998: 11)
também concorda que “[...] a completa identificação e coincidência entre o conceito de autor
(por definição realizado em função de uma atividade textual) e a pessoa/escritor (sujeito
empírico) não é nem completa nem necessária [...]”.
Entretanto, desde que Barthes (1990) foi lido como o que proclamou a morte do
autor, muito se tem debatido a esse respeito. Buscando tomar, de suas proposições, o
263
aspecto que considero central, poderíamos dizer que o teórico refere-se a um processo de
apagamento da figura do autor como instância central diante do texto, colocando-o como
um mediador da linguagem
199
e fortalecendo o lugar do leitor, concebendo-o como instância
articuladora de múltiplos significados que podem ser apreendidos na fruição do texto.
Barthes critica “a noção de autor como uma anterioridade genética ou origem absoluta da
obra” – como observa Manuel Gusmão (2003: 03). Pessoalmente, não creio que esse texto
deva ser lido de forma a radicalizar sua proposição, mas de forma a ressaltar os seus méritos
– que, a meu ver, seriam: o descolamento de uma perspectiva unicamente biográfica ao se
abordar a obra literária, a compreensão do texto como algo que transcende a intenção de um
autor e, por fim, o potencial polissêmico gerado pelo encontro do leitor com os significantes
presentes no texto.
Do ponto de vista da porosidade poética, não faz sentido algum compreender o
lugar de autor como sendo o lugar de origem de uma obra. O artista – dentro dessa
perspectiva poética – seria aquele que busca representar e traduzir elementos presentes no
seu contato com outras esferas de realidade, a partir dos instrumentos da realidade
ordinária. Visto dessa forma, assume muito mais o lugar de mediador
200
– e é aí que podem
residir o seu mérito e a sua genialidade – do que exatamente o lugar de “criador” ou origem.
Riobaldo nos dá diversos exemplos desse mecanismo em sua narrativa. Lembremo-nos que,
em suas elocuções poéticas, ele mesmo fazia uma distinção qualitativa entre os versos que
vinham “de si” e aqueles que “apanhava de espírito”. Visto ainda por outro ângulo, isso
também remete à importância da dimensão intersubjetiva (tão enfatizada no contexto de
GSV): a arte adquire sentido apenas, e tão somente, se puder ser compartilhada numa esfera
199
Comparando este processo, inclusive, ao trabalho de mediação efetuado pelo xamã.
200
O que é bem distinto do lugar de “transmissor”.
264
mais ampla que a da experiência individual. Valéry (1999b: 208) refere-se àquela que
considera a implacável lei da literatura: “o que vale apenas para um nada vale”.
Dessa forma, o conceito porosidade poética enfatiza também o deslocamento do
foco da figura de um suposto “autor” para a figura do narrador, de modo a constituir um
“híbrido” que transita por entre essas duas categorias. O artista – que também é um
visionário – não cria a partir do nada; como “imitador” de uma realidade mais que ordinária,
ou extra-ordinária, vê-se diante do desafio de representar, de colocar na forma de linguagem,
os elementos com os quais teve contato em sua travessia, jornada ou visão.
Benjamin (1994) cria uma imagem para o narrador que, para mim, se aproxima
muito dos movimentos efetuados pelo artista-visionário:
Comum a todos os grandes narradores é a facilidade com que se movem para cima e para
baixo nos degraus de sua experiência, como numa escada. Uma escada que chega até o
centro da terra e que se perde nas nuvens – é a imagem de uma experiência coletiva, para
a qual mesmo o mais profundo choque da experiência individual, a morte, não representa
nem um escândalo nem um impedimento. (BENJAMIN, 1994: 215)
201
Tomando ainda as suas contribuições, pode-se ver que Benjamin aponta dois
tipos de narradores, ligados a tipos arcaicos: o marinheiro comerciante (que narra as suas
viagens, ligado a uma perspectiva do espaço, da distância) e o camponês sedentário (que
narra sua experiência através do tempo). O “híbrido” ao qual me refiro diante de uma
perspectiva “porosa” talvez se aproxime mais desse marinheiro – narrador das viagens e da
alteridade presente em outros mundos.
Benjamin também se refere a uma outra característica dos narradores que
considero fundamental na perspectiva que aqui vem sendo desenvolvida: estaria ligada à
201
Tal descrição também se aproxima dos movimentos do trem-de-ferro, já abordados nesta pesquisa: “[...]
Melhor, para a idéia se bem abrir, é viajando em trem-de-ferro. Pudesse, vivia para cima e para baixo, dentro
dele. [...]” (ROSA, 1978: 19).
265
faculdade de intercambiar experiências. Isso pressupõe a presença de um outro. Assim, se a
experiência visionária, em si, prescinde da presença deste outro, a concretização de uma
porosidade poética pressupõe a experiência intersubjetiva – já que o relato da visão (ou de
qualquer outra forma de manifestação que adquira) está dirigida à possibilidade de
apreensão compartilhada. É nesse momento que a experiência visionária, transcendente, se
transforma em arte. Esta última, além de interdimensional, seria, portanto, essencialmente
intersubjetiva.
Voltando a Benjamin, vemos que este também busca traçar uma distinção entre
a narrativa épica e o romance. Sem entrar no mérito de tal distinção, gostaria de assinalar a
forma como associa a arte de narrar a uma certa sabedoria, à possibilidade do “bom
conselho”. Seria esta a marca da narrativa, tomada pela via da poética que aqui é tratada?
Não creio que assim seja, mas isso poderia ser compreendido de pelo menos duas formas.
Uma primeira possibilidade seria compreender a narrativa que se vincula ao
contato com o transcendente como um saber “instrutivo” acerca do funcionamento de
outros níveis de realidade. Este saber, entretando, seria muito pouco pragmático – para que
serviria um saber acerca de níveis “distantes” de realidade, quando vivemos em outro
“completamente” diferente?
Creio que a narrativa constituída a partir da experiência de trânsito entre esferas
do real esteja a serviço não exatamente da construção de um saber acerca de outras
realidades, mas, principalmente, da colocação entre parênteses – ou da desconstrução – do
saber que já possuímos acerca da realidade que julgamos conhecer. Assim, o relato sobre uma
realidade “espiritual” na prática nos ensina muito pouco acerca dessa dimensão, ao passo que
a sua simples consideração coloca “em xeque” muitas das concepções com as quais operamos
normalmente em nossa realidade cotidiana e ordinária. Talvez esse seja o seu valor: o da
constatação de um não-saber. Este, por si só, abre espaço para outras e novas construções.
266
Coadunando com essa perspectiva, vem também a concepção de Benjamin de que
a “arte da narrativa está em evitar explicações” (1994: 203) – de forma que as dimensões da
ambigüidade e da perplexidade ganham espaço. A voz de Piglia (2004), ao tratar da narrativa
nos contos, também relaciona a arte de narrar à produção de uma leitura equivocada de
sinais por parte do receptor: “Tal como as artes divinatórias, a narração desvela um mundo
esquecido em pegadas que encerram o segredo do futuro” (PIGLIA, 2004: 103). Já Adorno e
Horkheimer (1980) se referem à posição do narrador no romance contemporâneo: sua
perspectiva parece reforçar a idéia de que é necessário abdicar de um compromisso com um
“realismo”, já que esse reproduziria apenas uma fachada e, portanto, abriria as portas para a
produção de um engodo.
Tzvetan Todorov (1970) também aborda a figura do narrador e faz uso de uma
imagem que considero muito oportuna dentro da discussão aqui efetuada: toma o narrador
como uma perspectiva, ou um ponto de vista, dentro da narrativa. Assim, ao falarmos de um
narrador, estamos falando de uma forma de visão, uma forma de percepção. Uma questão
interessante que pode ser colocada a esse respeito relaciona-se ao fato de o narrador
representar ou não a si mesmo nessa narrativa. Tomado do ponto de vista da visão: o
narrador inclui a si mesmo em seu campo visual? Tomado ainda de outra forma, no contexto
da porosidade poética, podemos nos perguntar até que ponto o observador e a coisa vista se
confundem e quais seriam as marcas deste tipo de processo em uma narrativa. Estaríamos
falando daquela visão dos pássaros?
Essa sobreposição de lugares remete também à discussão que Wisnik (1998) faz
acerca da noção de recado, à qual já fiz alusão no início deste trabalho:
[...] um recado não é somente uma mensagem que se envia a outra pessoa: a palavra
indica um circuito em que uma mensagem passa de alguém a outro através de outrem.
Enquanto a mensagem vai de um destinador a um destinatário, o recado está viajando
267
entre um primeiro destinador (nem sempre visível), e um terceiro destinatário, mais
além. Entre um e outro, o lugar do recado é o do destinador-destinatário de algo que
passa. A mensagem supõe um movimento de ida e volta, emissivo e bipolar, reversível
mas não ambígüo (como o verso-reverso de endereço e remetente numa carta comum). Já
o recado é ao mesmo tempo emissivo e receptivo: destinando-se a ser mandado, define-se
antes de mais nada e ao mesmo tempo por ter sido recebido. Sua vocação é fazer parte de
uma cadeia cujo princípio e fim não estão determinados. (WISNIK, 1998: 162)
O “híbrido” autor-narrador, na perspectiva que aqui tem sido construída, seria
esse agente intermediário que dá vida ao recado? Wisnik (1998: 163) chega a conceber GSV
como um grande recado, onde “algo passa de alguém através de outro, cujo silêncio constitui
a fala ocupando o lugar ambígüo do leitor e do autor, destinatário bifronte entre a oralidade
e a escritura” – numa alusão ao suposto interlocutor a quem Riobaldo se dirige como
narrador.
Tais idéias podem nos levar ainda mais adiante, quando então podemos tecer
reflexões acerca do próprio objeto da literatura.
6.2.2 REALIDADE E FICÇÃO
Para Habermas (2002), não pode haver nenhuma ruptura inovadora com as
formas comprovadas de saber e com os “costumes científicos”, sem que haja, ao mesmo
tempo, uma inovação lingüística. O filósofo discute como se daria a demarcação entre ciência
e literatura, entre pensadores e poetas:
Não será uma ilusão acreditar que os textos de Freud e os de Joyce podem ser sorteados
de acordo com certas características, as quais, como que a partir de si mesmas, os
caracterizam respectivamente como ficção ou como teoria? (HABERMAS, 2002: 236)
268
Referindo-se às idéias pós-estruturalistas e a forma como lançam fora uma
“autocompreensão cientificista”, Habermas discute uma perspectiva que se ancora na
linguagem em detrimento de sistemas heterogêneos que se ocultam na máscara do “eu”:
Após a decomposição da subjetividade transcendental, a análise dirige-se a um evento
anônimo, que lança de si mundos e os engole a seguir, que está pré-ordenado a toda
história ôntica e a toda a prática intramundana, e que perpassa tudo: através das
fronteiras porosas do Eu, do autor e de sua obra. [...] Ora, sem esse sistema de
referências [a noção de subjetividade transcendental] torna-se impossível e, inclusive,
sem sentido a distinção entre níveis diferentes da realidade, entre ficção e realidade,
entre prática cotidiana e experiência extraordinária, entre os correspondentes tipos de
textos e gêneros. A própria morada do ser é arrastada para o torvelinho de uma tormenta
de linguagem desordenada.
Esse contextualismo radical conta com uma linguagem diluída que se mantém somente no
modo de sua fluência, de tal modo que todos os movimentos intramundanos jorram dessa
torrente. Essa concepção não encontra bases sólidas na discussão filosófica. Ela se apóia
principalmente em experiências estéticas, ou seja, mais precisamente: em evidências
extraídas do âmbito da literatura e da teoria da literatura. (HABERMAS, 2002: 239-240
– grifos meus)
Ao promover uma discussão que culmina com a constatação da impossibilidade
de se proceder a uma separação radical entre o real e a ficção – e entre texto teórico e texto
ficcional – Habermas constrói uma imagem que se aproxima daquilo que, sem o mérito da
síntese, tenho buscado apresentar. Ainda que nossas proposições não se refiram às mesmas
coisas, é de se notar uma coincidência fundamental com a porosidade poética: a de que, a
partir de uma supressão da primazia do “eu”
202
, pela via da experiência estética, rompem-se
as fronteiras cristalizadas entre entre sujeito e mundo, entre prática cotidiana e experiência
extra-ordinária,– assim como entre os gêneros textuais.
Assim, para além da mistura que enlaça o texto não-ficcional e o ficcional, temos
também as misturas que enlaçam os próprios gêneros literários em um Grande Sertão:
Veredas que transita entre o épico, o romanesco e o lírico. Ainda no contexto da obra, somos
202
Essa supressão da primazia do “eu”, tal como abordada nesta pesquisa, a rigor relaciona-se a uma ampliação
desse mesmo “eu”, de forma a abarcar um todo maior que não separa sujeito e mundo. Homem e sertão
compartilham uma mesma natureza.
269
remetidos a essa discussão quando Riobaldo busca “deletrar” o seu “Senclér das Ilhas” (ROSA,
1978: 333), já nos dando a oportunidade de verificar a importância que atribui às relações
que se estabelecem entre os gêneros textuais, entre literatura e realidade. Parafraseando-o,
constatamos que é através do texto ficcional que se pode acessar “outras verdades”, muito
“extraordinárias”.
Retomemos Aristóteles, que concebe a arte como uma forma de imitação da
realidade – o que nos permite pensar em seu caráter de representação. O movimento
efetuado pela arte toma a realidade e a transfere para outro plano, através da utilização de
um determinado código. Aristóteles refere-se a uma arte que imita apenas por meio da
linguagem, que, naquele contexto, não tinha ainda sido nomeada, mas que podemos
identificar com o que hoje chamamos de literatura.
Em termos da porosidade poética, a arte também pode ser concebida como uma
forma de imitação da realidade – como a tentativa de representá-la, de trazer os seus
elementos à tona, como objetos da percepção. Entra aí a discussão acerca de dois pontos
fundamentais, sendo que o primeiro também se aplica à poética clássica, enquanto o
segundo se refere mais diretamente apenas à porosidade aqui discutida: (a) a diferença que
se opera, necessariamente, entre a realidade e a realidade representada; (b) a diferença entre
a representação de níveis de realidade acessíveis “ordinariamente” e a representação
daqueles acessíveis de forma “extra-ordinária”. Cabe ressaltar que essas duas discussões
também vêm a se entrelaçar, como ficará mais claro adiante.
Tomando a primeira das discussões, fica patente – e isso tem sido abordado,
exaustivamente, por diversos autores, sob diferentes olhares e perspectivas – a forma como
270
a arte se coloca como signo e como, ao mesmo tempo em que esse signo remete a algo da
ordem do real, dele também se diferencia. Assim, apesar de a arte poder ser considerada uma
imitação ou representação da realidade, nunca será a realidade em si. Podemos constatar
então, a marca de uma diferença e de uma transgressão. O artista, na sua tentativa de
representar a realidade, é, fundamentalmente, um transgressor. Tal perspectiva remete à
visão que Rosenfield constrói acerca da literatura:
Nota-se então que a arte não apenas “encena” uma realidade espiritual que existiria
igualmente em outras formas e que se oferece assim exteriormente à leitura. As figuras
literárias não são uma realidade que se deixaria retraduzir imediatamente na linguagem
dos conceitos – por exemplo, do dogma teológico ou de alguma outra doutrina jurídica
realmente existente na época da criação artística. Parece, ao contrário, que o jogo poético
com as palavras [...] cria apoios, mediações efetivas e reais, sem as quais nem se chegaria
a pensar conceitos e conteúdos ainda inéditos. (ROSENFIELD, 1989: 28)
No que se refere ao texto rosiano, Sperber (1976: 155) defende que Guimarães
Rosa teria partido de uma imitação do real para transcendê-lo: “O real existiu na ação, pelas
palavras e foi transcendido na ação, pelas palavras.”. Tendo se dedicado ao estudo das
leituras espirituais de Rosa, a pesquisadora chega à conclusão de que os temas das narrativas
rosianas não constituem transcrições dessas leituras, mas representam um movimento em
que o autor delas parte para ultrapassá-las pela forma. Dessa maneira, segundo seu ponto de
vista, não haveria imitação nem da natureza, nem de textos, nem de situações; haveria
apenas a “perene transformação, pela palavra”.
Partindo desta discussão e sem nos distanciarmos desse movimento de imitação
da realidade por meio de uma representação (e transgressão), podemos também nos colocar
a pensar acerca das relações que se estabelecem entre o real e o fictício.
Wolfgang Iser (2002) efetua uma interessante reflexão acerca dessas relações,
tomando como objeto o texto ficcional. Para o autor, partimos normalmente de um saber
271
tácito, que opõe os pólos do real e da ficção, como se um se opusesse diametralmente ao
outro. Entretando, Iser nos mostra como é frágil tal separação, propondo abordar esses dois
termos não a partir de uma oposição, mas de um relacionamento – no qual busca incluir um
terceiro elemento, o imaginário.
No texto ficcional haveria muita realidade, não apenas aquela identificável com a
realidade social, mas também de ordem sentimental e emocional. Para Iser, alguns aspectos
da realidade não poderiam sequer ser experimentados não fosse pela mediação
proporcionada pelo texto ficcional, o que, por sua vez, se dá a partir da constituição de um
território imaginário. Iser também se refere ao aspecto de transgressão ao qual me referia
anteriormente, já que o texto, ao se transformar em signo, o faz a partir de uma transgressão
em relação à sua determinação correspondente. Partindo desses argumentos, creio ser
plausível adotarmos um posicionamento que não tome realidade e ficção como oposições,
mas como elementos em relacionamento.
Tomando agora o segundo ponto da discussão que estou buscando apresentar,
focalizo a diferença entre a representação de níveis de realidade acessíveis “ordinariamente”
e aqueles acessíveis “extraordinariamente”. Como ficariam nossos critérios para avaliar a
representação de uma realidade que, usualmente, não conhecemos?
Este talvez seja o objeto principal da experiência poética porosa: a tentativa de
representar aquilo a que, normalmente, não temos acesso. Voltemos a Aristóteles: este alude
ao “irracional”, defendendo o posicionamento de que o poeta deve preferir as coisas
impossíveis, mas críveis, às possíveis, mas incríveis. Mas o universo ao qual o artista que
transita pelas esferas de realidade busca acessar e o qual procura representar não é
exatamente um universo – normalmente – incrível?
Vejamos que, por outro lado, ainda para Aristóteles, não é função do poeta ser
fiel ao que aconteceu (daí decorre a diferenciação entre o poeta e o historiador), mas ao que
272
“poderia ter acontecido”. Se o artista visionário busca o contrário em sua representação – ser
fiel ao que aconteceu – isso já nos coloca uma questão em termos de qual dos dois tipos de
discurso seria o mais ficcional (ou mais prenhe de elementos imaginários).
Outro aspecto fundamental é o do reconhecimento, também valorizado por
Aristóteles. Ao tomarmos essa dimensão na perspectiva de uma porosidade poética e sua
recepção – como ficaria o aspecto de reconhecimento diante de algo que não conhecemos? A
essa pergunta, ensaio, em um nível hipotético, duas respostas: (a) não ocorre nenhum
reconhecimento, haja vista não termos referências prévias que o permitam, ou (b) há, sim,
um tipo de reconhecimento – o que nos leva a questionar também acerca de um
“esquecimento” que a representação produzida pela via da porosidade poética é capaz de
apagar.
Essa última hipótese nos coloca a pensar na constituição da porosidade artística
como trabalho ligado ao resgate da memória e, ao mesmo tempo, como trabalho que visa ao
acesso ao novo. Isso se coadunaria com a perspectiva arquetípica
203
, já que esse
reconhecimento – ainda que seja de algo que aparente ser extremamente desconhecido ou
novo – implicaria a atualização de dimensões arquetípicas, de conteúdos de um inconsciente
coletivo e primordial. Neste sentido, apesar de a porosidade poética valorizar a experiência
pessoal (já que nela se fundamenta), relaciona-se também a uma dimensão universal, tão
valorizada por Aristóteles. Podemos pensar, a partir daí, na quebra de mais uma dicotomia,
203
Jung (1991), ao definir o arquétipo, parte do conceito de imagem, tida como o caráter psicológico de uma
representação da fantasia. A imagem poderia também ser compreendida como uma expressão condensada da
situação psíquica como um todo; ou ainda como a expressão da situação momentânea, tanto consciente quanto
inconsciente, só podendo ser interpretada justamente pela relação recíproca entre essas duas instâncias.
Avançando neste conceito, Jung comenta que uma imagem é qualificada como “primordial” quando possui um
caráter arcaico, ou seja, quando: “[...] apresenta uma concordância explícita com motivos mitológicos
conhecidos. Nesse caso, expressa, por um lado, sobretudo materiais derivados do inconsciente coletivo e, por
outro, mostra que a situação momentânea da consciência é mais influenciada coletiva do que pessoalmente.”
(JUNG, 1991: 418-419) Essa imagem primordial, seria justamente o arquétipo. Este, seria sempre coletivo,
comum a todos os povos e tempos. O arquétipo é também tido como expressão condensada do processo vivo,
dando origem a um sentido ordenado das percepções sensoriais e interiores, sendo também compreendido
como símbolo e mediador.
273
aquela que separa as dimensões individual e coletiva. Seria esta mais uma alusão à dimensão
intersubjetiva, a todo momento reafirmada por Riobaldo em sua narrativa?
Vemos então que aquilo a que Aristóteles se refere como “representação do
impossível” – aceitável dentro de alguns parâmetros estritos em sua Poética – parece
configurar-se como a dimensão central se considerarmos a porosidade poética.
Complementando os argumentos que utiliza às objeções em relação à arte como
representação da realidade
204
, poderíamos imaginar uma quarta situação: a objeção a uma
representação de realidade que não cabe em nossos conceitos de realidade. A essa objeção,
poderíamos responder que representaria a possibilidade de acesso a novos critérios de
realidade.
Normalmente fazemos o oposto: se algo não cabe em nossos critérios de
realidade (quaisquer que sejam eles), negamos a essa coisa o próprio caráter de realidade. A
possibilidade da porosidade poética nos coloca diante de um desafio inverso: se algo não se
encaixa em nossos critérios de realidade, devemos (ou pelo menos podemos) rever esses
critérios e os limites que estabelecemos para considerarmos algo real.
O desafio talvez seja o da construção de um “olhar caleidoscópico”, instrumento
necessário ao se lidar com fragmentos de realidades tão distintas. Faço uso, agora, do
conceito de “subuniversos”, postulado por William James e apropriado por Alfred Schutz
(2002) para ser aplicado no terreno literário, na análise que faz do texto de Cervantes, Dom
Quixote. Esse conceito fala basicamente (e de forma complexa) da multiplicidade de sentidos
que podem ser atribuídos aos mesmos elementos (dependendo do subuniverso no qual o
observador se situa), chegando ao que Schutz se refere como sendo a percepção da dialética
intersubjetiva da realidade:
204
Lembremos que, para Aristóteles, além de supostamente representar a verdade dos fatos, a realidade
representada pela arte poderia (1) se apresentar tal como os homens a contam, (2) tal como a realidade deveria
ser ou (3) tal como acontecera outrora.
274
Uma experiência, uma comunicação intersubjetiva, o compartilhar de algo em comum
pressupõem, portanto, em última análise, fé na veracidade do Outro, a fé animal no
sentido de Santayna; pressupõem que eu assuma como verdadeira a possibilidade de o
Outro conferir valor de realidade a um dos inúmeros subuniversos e, por outro lado, que
ele, o Outro, assuma como verdadeiro que eu também tenha amplas possibilidades de
definir o que é meu sonho, minha fantasia, minha vida real. (SCHUTZ, 2002: 769)
O olhar caleidoscópico seria aquele capaz de conviver com a pluralidade de
perspectivas, sempre móveis e “interdimensionais”. Essa pluralidade de perspectivas pode
ser percebida na variedade de peças ou cacos que são colocados dentro do caleidoscópio; sua
mobilidade se traduz na forma como essas peças podem estabelecer relações complexas e
infinitas entre si, configurando novas imagens e representações. A perspectiva
“interdimensional” pode, por sua vez, ser vista sob dois ângulos distintos – na perspectiva
das dimensões que se configuram dentro e fora do caleidoscópio (subuniversos), e também
na perspectiva do olhar que vê através do caleidoscópio e para o caleidoscópio
205
.
Este último, a rigor, seria o olhar caleidoscópico ao qual me refiro. O olhar que é
capaz de ver a si mesmo, reconhecer a sua própria montagem, a forma como seleciona e
combina os elementos do real, num desnudamento de ficcionalidade
206
que o permite
relacionar-se com sua própria visão de realidade tendo como base o “como se”. Ao olhar para
o próprio subuniverso não como se mirasse o real em si, mas um “como se” possível, torna-se
também possível acolher a alteridade do olhar do outro, ainda que este seja radicalmente
distinto do próprio olhar, respeitando-o como um outro legítimo “como se”. O olhar
caleidoscópico seria, portanto, aquele capaz de conviver com a pluralidade de perspectivas e,
além de aceitá-las, de poder operar com as mesmas, produzindo assim, novas imagens e
representações da realidade – nunca acabadas ou estáticas, mas sempre em movimento.
205
Novamente somos remetidos àquela visão dos pássaros.
206
A seleção, combinação e desnudamento são conceitos estratégicos dentro das proposições de Iser (2002).
275
Nesse tipo de posicionamento, faz sentido a valorização dada por Aristóteles à
peripécia, como estratégia que nos permite – inspirados por uma reviravolta completa –
rever nossos conceitos e posicionamentos. Essa estratégia remete inclusive à figura do
trickster, muito comum nas culturas xamânicas dos povos nativos das Américas, ao
promover um aprendizado pela via do absurdo, dos opostos, dos paradoxos.
Outro aspecto importante dentro desse aprendizado de “novos critérios”, com
vistas ao acesso a novas possibilidades do real, dá-se pela via da própria linguagem.
Aristóteles já aponta isso quando fala da necessidade de articulação entre clareza e elevação.
O desafio da experiência poética porosa ou visionária: como colocar em palavras conhecidas
não apenas a experiência do inefável, mas a realidade (não-ordinária, extra-ordinária) à qual
normalmente não se tem acesso direto? A poética clássica fala da importância do enigma,
valorizando-o: a possibilidade de expressar fatos reais através da combinação absurda de
termos e do uso de metáforas. Acredito ser essa a linguagem possível ao se buscar
representar o “impossível”, o “extra-ordinário”, o inefável. Esse exercício da linguagem
enigmática como caminho – luz que vela e desvela ao mesmo tempo – é a marca de GSV,
linguagem de Rosa e de Riobaldo.
Diante do enigma, somos remetidos a algumas lacunas que ainda se apresentam
nessa tentativa de compreensão de uma perspectiva porosa. Busquemos avançar.
6.2.3 A ARTE COMO REDEMOINHO: MOVIMENTO, PERMUTAÇÃO E POROSIDADE
O caleidoscópio gira. A porosidade poética de Riobaldo, fruto de um longo
aprendizado, não pode ser pensada sem que todos os seus suportes sejam considerados
276
concomitantemente. Esta pesquisa, ao abordar separadamente o ritmo, a transcendência e a
experiência estética – as bases a partir das quais a poética de Riobaldo vai se desenvolvendo
–, efetua um movimento artificial e deliberado, fragmentando algo que não o pode ser,
visando a uma exposição mais “didática”. A arte porosa, elemento de ligação entre esferas da
realidade, é também um fluxo complexo que em si não discrimina as bases sobre as quais
discorri, podendo ser compreendida pela via dos movimentos e da dinâmica
interdimensional que imprime.
Uma primeira grande observação que pode ser formulada ao se considerar tais
aspectos é a forma como cada esfera de realidade conduz à seguinte – de modo que as
dimensões ordinárias e extra-ordinárias do real passam a ser conectadas por via desse tipo
de expressão artística (FIG. 10):
FIGURA 10 – Esferas e direções da porosidade poética
A figura descreve uma sucessão complexa de movimentos. (a) O estabelecimento
de relações ligadas aos níveis ordinários de realidade – como ponto de partida. (b) O acesso a
níveis extra-ordinários de realidade, relacionadas à possibilidade de transcendência – pela
via da “constituição do centauro”, experiências hierofânicas, estados alterados de
consciência, experiência visionária, entre outros. (c) O retorno aos níveis ordinários de
realidade de posse do contato com uma experiência transcendente – com o desafio de
277
transmitir esse conteúdo e adequar a sua expressão aos moldes da realidade ordinária, para
que possa ser intersubjetivamente compartilhado: a obra de arte toma uma forma
“concreta”. (d) A fruição dos frutos da própria arte (já nos níveis ordinários de realidade), por
sua vez, poderia atuar como elemento catalisador de novas vivências, visões e representações
– que tendem a permitir, novamente, o acesso a realidades “extra-ordinárias”, dando origem
a um novo ciclo. Toda essa dinâmica – descrição de uma poética – remete ao próprio símbolo
do infinito, a lemniscata – que marca o final (e o começo?) da narrativa que compõe GSV.
Diante de tudo isso – e considerando a trajetória narrada de Riobaldo –, é de se
notar a presença básica de duas diferentes velocidades implicadas nesse movimento
complexo. À apresentação do elemento metafísico, ao contato com o extra-ordinário – o que
remete à experiência do pacto, ao “minuto mito” e outras apresentações – temos o instante
fugaz, o efêmero, aquilo que não pode ser contato a partir do tempo ordinário. Entretanto, a
esse tipo de vivência efêmera, segue-se o “retorno” em direção aos níveis ordinariamente
(re)conhecidos de realidade – o que implica bastante tempo e trabalho para integrar e dar
forma às vivências anteriores. Toda a extensa narrativa que compõe GSV, a rigor, pode ser
apreendida como esse segundo momento, no qual Riobaldo exercita a arte narrativa visando
à elaboração e ao compartilhamento – e a seu próprio aperfeiçoamento como narrador.
Percebe-se então, nessa fusão de ritmos que não podem ser dissociados, como se configura
um mesmo movimento, a mesclar a “inspiração metafísica” e o “trabalho metódico”.
Normalmente tendemos a pensar essa relação de forma dicotômica, como se
essas duas dimensões se anulassem. O trabalho de criação é atribuído a uma inspiração ou a
278
um trabalho intelectual – mas raramente a uma conjunção dessas forças. Não precisa ser
assim.
Valéry (1999b) toma esse paradoxo de frente, discutindo o modo como a idéia de
poesia normalmente é contrastada à de pensamento (principalmente abstrato). Tidos como
opostos, o trabalho intelectual é considerado incompatível com a inspiração. O ponto de
partida para que ele avance nesse paradoxo, além do exame da própria natureza da
linguagem, é a sua própria vivência pessoal.
A sua reflexão nos conduz ao reconhecimento da natureza paradoxal do
posicionamento que opõe o fazer poético ao pensamento abstrato. Se um lógico fosse apenas
lógico (sem contato com a inspiração), não o poderia ser. Por outra via, se o poeta nada mais
fosse que um poeta (sem capacidade de razão abstrata), ele nunca poderia deixar “traços
poéticos” atrás de si. O “estado de poesia” é completamente irregular, inconstante,
involuntário e frágil – encontrado e perdido por acidente. Mas esse estado, por si só, não é
suficiente para fazer um poeta. Valéry então se refere ao que chama de “função poética” –
que não é a vivência privada, o estado poético. O que caracterizaria essa função seria
justamente a possibilidade de criar em outros estados. Não basta, portanto, a inspiração; é
necessária a síntese desse estado em um trabalho – que pode ser compartilhado. Unem-se
sensação e ação – e é nesse momento que entra em ação o pensamento abstrato
207
.
No que se refere a uma porosidade poética, é de se ressaltar que o pensamento
abstrato – o trabalho metódico – não implica uma sujeição a um princípio utilitarista ou
mesmo uma orientação teleológica. Pelo contrário, tem-se o trabalho como fruto de uma
inspiração e um fim em si mesmo – tal como a essência da dança e da poesia residem em seus
207
Em suma, para Valéry, o mesmo “eu” pode tomar diferentes formas, tornando-se um pensador abstrato ou
um poeta. Essas formas, por sua vez, poderiam ser vistas como sucessivas “especializações” dentro de um
continuum, cada uma das quais implicando um desvio em relação às outras.
279
próprios movimentos. Dentro dessa perspectiva que é essencialmente estética, o importante
não é o resultado do trabalho criativo, mas o processo de criação em si mesmo, a sua vida.
Remetendo também à própria dinâmica descrita na canção de guerrear e viajar –
“Eu faço/ que vou/ lá dentro, ó Baiana:/ e volto/ do meio/ p’ra trás!” (ROSA, 1978: 412) –,
esse mesmo movimento complexo do qual nos ocupamos pode igualmente ser observado a
partir dos três eixos que busquei analisar na leitura de GSV.
Tomando primeiramente o ritmo, vemos como este constitui a base fundamental
que permeia todos os outros processos. Através do movimento (que transita na obra sob a
base do som, melodia que constitui a própria linguagem) estabelece-se, inicialmente, uma
relação mais próxima com os níveis ordinários de realidade. Uma vez que, nesse nível, a
realidade é marcada por certas dualidades constitutivas (Deus x demo, medo x coragem), a
adesão ao ritmo surge como possibilidade de conviver com um mundo que surge como
desordem sem sucumbir ao caos – e não é o ritmo o que garante a unidade da poesia? O ritmo
constitui, ao mesmo tempo, a possibilidade de sintonia com um universo que pode se
mostrar ainda mais amplo e estranho. Dessa maneira, do ponto de vista de uma poética
ainda incipiente, a perspectiva rítmica abre as portas para que se entre em contato com
outros níveis de realidade.
E, conforme busquei assinalar há pouco, esse ritmo vai transformando-se:
mostra-se acelerado quando o movimento se dirige para o contato com o extra-ordinário e
280
adquire um caráter de lentidão quando novamente se volta para as realidades ordinárias –
quando então adquire a forma de trabalho. Eventualmente, há novas acelerações…
208
De forma concomitante a essa adesão ao ritmo, há, portanto, a possibilidade de
transcender os limites da realidade conhecida e ordinária. A transcendência, assim, surge
como a possibilidade de contato com outras dimensões do universo e de si mesmo, a partir
de mecanismos não convencionais, acessando conteúdos e experiências de cunho extra-
ordinário e possibilitando um posicionamento (ou “retorno”) diferenciado no contexto da
realidade ordinariamente compartilhada. Possibilidades transcendentes: o cavaleiro que se
torna centauro e integra dimensões aparentemente incompatíveis de sua consciência; a
experiência visionária que constitui novas formas de olhar e novos “objetos” a serem
mirados; a jornada ou travessia através das muitas dimensões do real; as fontes de
inspiração que jazem no profundo de nós mesmos ou nos confins do universo. Em contexto
poético, há também de se ressaltar o que pode ser gerado a partir de tais experiências – e daí
derivam as discussões acerca das possibilidades de representação do real, da virtualidade do
ficcional e da própria necessidade de fazer arte correlata à experiência transcendente.
Seria ingênuo pensar que esse sujeito – artista – que adere aos ritmos da vida e
que transcende os limites dos níveis ordinários de realidade permaneça o mesmo no decorrer
de tais processos. De um ponto de vista subjetivo, portanto, poderíamos pensar na
experiência estética, tranformadora e fugidia, presente em todos esses processos. Se ao ritmo
corresponde (mais diretamente) a adesão aos níveis ordinários de realidade ordinária e à
transcendência se vincula a possibilidade de acesso aos níveis extra-ordinários, poderíamos
dizer que à experiência estética corresponde a própria mudança de um nível de realidade
208
Uma possibilidade interessante de trabalho seria sondar até que ponto esse ritmo complexo se reproduziria
na própria “versificação” que compõe o texto de GSV. Se considerarmos a obra como um todo encontraríamos
essa alternância de velocidades?
281
para outro, nos seus sentidos “ascendente” e “descendente”
209
. A mudança subjetiva percorre
então vários caminhos: através de vivências intensas que permitem colocar em perspectiva
os saberes acerca do mundo e de si mesmo, há o deslocamento do próprio ego em direção a
uma abertura empática e significativa dirigida ao outro e ao mundo, bem como uma
mudança de identidade (ao que equivaleria a impossibilidade de cristalização do “eu”) que
acompanha tais processos.
Mas o que significa tal abertura? Considero então oportuno chamar a atenção
para o símbolo formado pelos vetores da arte, que tem lugar no centro da lemniscata (FIG.
10) – o símbolo dentro do símbolo. Somos remetidos à cruz, elemento apontado por
Riobaldo em momentos fundamentais de sua narrativa – momentos relacionados
justamente ao movimento e à transformação. É assim que sua primeira travessia se dá na
cruz dos rios, entre o de-Janeiro e o São Francisco. É também assim que, em pleno
estabelecimento do pacto nas Veredas-Mortas (ou Tortas, ou Altas), o jagunço afirma: “Lugar
meu tinha de ser a concruz dos caminhos.” (ROSA, 1978: 317).
Mas é ainda mais interessante notar que a cruz se apresenta também no próprio
peito de Diadorim, no desenho em forma de “X”
210
formado por suas cartucheiras – em
209
Cabe aqui um questionamento e uma explicação. O “extra-ordinário” representaria um plano superior e o
“ordinário” representaria um plano “inferior”? No desenho da FIG. 10, optei por representar o “extra-
ordinário” em um plano verticalmente superior em relação àquele relacionado ao “ordinário”; isso não quer
dizer, entretanto, que haja uma relação hierárquica entre os mesmos. A representação poderia ter sido inversa,
ocasião em que esse mesmo tipo de questionamento poderia ser formulado: aos níveis “extra-ordinários”
caberia uma profundidade maior do que aos níveis “ordinários”? Trata-se, portanto, apenas de uma convenção
já que, a rigor os dois planos sequer estão separados.
210
O que já foi abordado no capítulo anterior desta tese, em diálogo com as contribuições de Utéza (1994), que
relaciona esse “X” formado pelas cartucheiras ao hieróglifo do conceito egípcio do KHA, ao que, por sua vez,
associa uma figuração do espírito.
282
imagem que surge apenas no final da narrativa, já no Paredão – no corpo vivo e na alma
revelada:
A bem, como é que vou dar, letral, os lados do lugar, definir para o senhor? Só se a uso de
papel, com grande debuxo. O senhor forme uma cruz, traceje. Que tenha os quatro
braços, e a ponta de cada braço: cada uma é uma... [...] (ROSA, 1978: 414 – grifos meus)
[…] Diadorim – com chapéu xíspeto, alteado. Nele o nenhum negar: no firme do nuto, nas
curvas da boca, em o rir dos olhos, na fina cintura; e em peito a torta-cruz das
cartucheiras. […] (ROSA, 1978: 433 – grifos meus)
[…] A Mulher lavou o corpo, que revestiu com a melhor peça de roupa que ela tirou da
trouxa dela mesma. No peito, entre as mãos postas, ainda depositou o cordão com o
escapulário que tinha sido meu, e um rosário, de coquinhos de ouricuri e contas de
lágrimas-de-nossa-senhora. Só faltou – ah! – a pedra-de-ametista, tanto trazida... [...]
(ROSA, 1978: 454 – grifos meus)
Entramos em contato, assim, com o sinal em forma de cruz que marca o peito de
Diadorim, apontando para seu coração, para o lugar daquilo cujo valor permanece. Tendo em
vista, assim, não apenas o lugar atribuído a essa “torta-cruz” na dinâmica de uma porosidade
poética, mas também os significados construídos em torno da imagem de Diadorim em GSV,
podemos fazer associações interessantes. Considerando a associação entre Diadorim e o
contato com a alma e, ainda, a abertura do coração para que essa dimensão anímica seja
revelada, poderíamos pensar em um deslocamento metonímico em que esse lugar marcado
no centro do peito estaria sugerindo uma sobreposição entre o coração, a alma e o fluxo da
arte? Seria(m) esse(s) o(s) “centro(s)” tão valorizado no contexto rosiano? Seria esta a
concruz dos caminhos, o lugar ocupado pelo artista Riobaldo?
A cruz que marca o centro intrinsecamente também indica um lugar que é o de
mediação, lugar do artista. No terreno da ambigüidade e das opostos binários, o “X” surge
justamente para assinalar relações que, a princípio, surgem como oposições: temos então
Deus x demo, medo x coragem, ordinário x extra-ordinário, entre outros. Mas a arte transforma
283
pólos que aparentemente são opostos; e aquela que era a marca de uma mútua
incompatibilidade converte-se em marca de um relacionamento dinâmico onde reina a
complementaridade – versus converte-se em versos, viagem de ida e volta. Gostaria então de
relembrar, conforme já assinalei no decorrer desta tese, que este lugar – o meio do coração –
é o um lugar de mediação especialmente assinalado já em outras passagens de GSV:
[...] Com o que peguei, aos poucos, o costume de pular, num átimo, da rede, feito fosse
para evitar aquela inteligencinha benfazeja, que parecia se me dizer era mesmo do meio
do meu coração. Num arranco, desfazia aquilo – faísca de folga, presea de beija-flor,
que vai começa e já se apaga – e daí já estava inteirado no comum, nas meias-alegrias:
a meia-bondade misturada com maldade a meio. [...] (ROSA, 1978: 371 – grifos
meus)
Enfim, penso que revelador seria também pensar em GSV como um grande mapa
– tal como sugerem as ilustrações de Poty, realizadas sob orientação de Rosa –, no qual o “X”
estaria a marcar o lugar de um grande tesouro oculto ou mesmo o elemento desconhecido
em uma equação. Arte a ser desvendada.
Através da vivência dinâmica que se dá a partir dos três eixos sobre os quais me
debrucei – vivência esta que nada tem de linear – constituem-se artista e obra de arte,
porosos entre si e na relação com um universo que é multidimensional. Com base nesse
raciocínio e na leitura de GSV, eu ousaria dizer que o aprendizado acerca dessa dinâmica de
permutações e trânsitos é a própria dinâmica da obra. O que mais me chama a atenção nesse
jogo de relações é a forma como o movimento não pode ser contido, sob risco de grande
estagnação. Retomando o movimento efetuado pela arte, este se converte em impulso para
que as relações estabelecidas nos níveis ordinários de realidade sejam incrementadas, dando
284
origem a novos ciclos. Percebe-se, portanto, como é didática qualquer divisão entre esses
movimentos, pois tratam de um mesmo ciclo “recursivo”.
Esse último conceito é utilizado por Maria José Esteves de Vasconcellos (1995:
88), dentro de um referencial “sistêmico-si-cibernético”. Referindo-se a um sistema de
relações, a pesquisadora descreve um tipo de movimento circular – ao qual se aplica a noção
de recursividade –, mas que guarda uma grande peculiaridade. Se, normalmente, nos
movimentos circulares, o ponto de partida confunde-se com o ponto de chegada, no caso do
movimento recursivo, o ponto de chegada passa pelo primeiro, mas em um nível superior de
organização e desenvolvimento. A imagem então não seria a do círculo, mas a da espiral,
onde cada volta teria lugar em um plano superior ao da revolução anterior
211
. Assim, ao invés
de simplesmente se fechar em relações circulares, os próprios efeitos gerados pela relação
seriam capazes de agir recursivamente sobre a mesma, modificando-a e aos seus membros
constituintes, sempre estabelecendo novas bases em níveis superiores (FIG. 11).
211
Essa mesma lógica – um fim que remete ao começo, mas de uma perspectiva diferenciada – pode ser
apreendida em outros momentos da obra rosiana:
(A) Em Tutaméia (ROSA, 2001c), por exemplo, o primeiro e o último contos mostram uma relação de
contigüidade.
(a1) EmAntiperipléia, o primeiro conto, o narrador se apresenta como guia de cegos, ao mesmo tempo em
que anuncia que “tudo, para mim, é viagem de volta” (p. 41) e que “as coisas começam é por detrás do que há
[...]” (p. 41-42).
(a2) Já em “Zingarêsca”, além dos indícios que também remetem ao caminho de volta – ciganão Vai-e-Volta;
“pessoas de contrários lados” –, temos novamente a presença do guia de cegos, ainda menino. O conto termina
com uma personagem, Serafim (será fim?), apontando para um recomeço: “Serafim sopra no chifre – os sons
berrantes encheram o adiante.” (p. 265). Outro elemento que chama a atenção neste conto é o fato de a cruz
carregada pelo cego estar recheada do dinheiro de suas esmolas. Temos, assim, não apenas a alusão à
indissociabilidade entre fins e começos, como também a ênfase no “meio”, centro da cruz, marcado como lugar
significante.
(B) Algo semelhante poderia ser dito em relação a Primeiras estórias (ROSA, 2001d), em que, novamente, o
primeiro e o último conto guardam uma relação de contigüidade.
(b1) Em “As margens da alegria”, temos “um menino” (que depois passa a ser nomeado como “o Menino”) que
se dirige ao aeroporto para empreender feliz viagem em companhia do tio e da tia.
(b2) “Os cimos”, último conto, começa com sua primeira parte nomeada como “O inverso afastamento” e
também apresenta como personagem “o Menino”, igualmente acompanhado pelos tios, mas em circunstância
de viagem completamente diferente. “Outra era a vez” – assinala o conto. Temos, assim (e mais uma vez), uma
sobreposição de imagens que se encontram e se diferenciam, evidenciando o engodo das marcas que pretendem
delimitar os começos e os finais. O que há é movimento: passa-se diversas vezes sobre o mesmo ponto, mas
cada passagem apresenta uma nova perspectiva. O livro não termina.
285
FIGURA 11 – O movimento recursivo e a relativização de fronteiras
Observando a FIG. 11, creio podermos ainda levantar mais uma hipótese acerca
do movimento recursivo relacionado à porosidade poética, em sua jornada entre as
realidades ordinária e extra-ordinária. Se a cada ciclo completo (a culminar com o processo
criativo, pela via da arte) pode-se iniciar uma nova jornada ou ciclo a partir de um nível
“superior”, a hipótese seria a de que, para o “artista” – ou para aquele que realiza o
movimento poético poroso – a fronteira que se coloca entre a “separar” níveis de realidade
seria sucessivamente deslocada (bem como tornada menos rígida), tal como ocorre com a
linha do horizonte quando caminhamos em sua direção. Dessa forma, paulatinamente, os
níveis “ordinários” de realidade incorporariam mais elementos daqueles considerados “extra-
ordinários”
212
. O mundo se amplia – ou, pelo menos, se amplia aquilo que dele podemos
vivenciar.
212
Cleusa Rios Pinheiro Passos (2005) aborda a complexidade dos processos mnêmicos que se relacionam com
a criação e recepção rosianas. De seu trabalho, ressalto o caráter “misturado” apontado pela pesquisadora e que
tange a tais relações: a ambigüidade que se configura entre o “observado” e o “fantasiado”, bem como o desejo
que é despertado no leitor de refazer os caminhos trilhados pelo autor “na tentativa de revisitar o universo
gerador das histórias lidas.” (PASSOS, 2005: 101). Passos reconhece também a dificuldade em “desmisturar” o
visto, o testemunho transcrito e a ficção (p. 103), o que, no contexto de uma cadeia de lembranças que estaria
na raiz de um trabalho criativo, tem o poder de fazer que o leitor subverta “ordens de representação”, o que,
por sua vez, remeteria ao reconhecimento da virtualidade constitutiva da esfera que chama de “real”. A meu
ver, o reconhecimento de tais mecanismos no âmbito da obra rosiana se aproxima, em certa medida, da
mobilidade que vai se estabelecendo entre as esferas ordinárias e extra-ordinárias do real, no contexto da
porosidade poética.
286
Tal perspectiva remete ao posicionamento de Sônia Viegas, quando, em seu
estudo acerca de GSV, esta aborda a relação entre a criação poética e o acesso a outras
dimensões da realidade:
No interior da criação poética, as significações se desdobram, tornam-se interrogativas e
expõem suas contradições. Ele [Guimarães Rosa] recupera as palavras em seu poder de
expressão do real e também em seu poder de negação e instauração de outras dimensões
de realidade. Sua narrativa está sempre a esbarrar no limite, e é desse limite que o
sentido poético se abisma no indizível, como se toda a narração tivesse por finalidade
principal apontar para algo que a ultrapassa. [...] (ANDRADE, 1975: 19)
Acredito também que toda essa dinâmica remeta a mais uma imagem presente
na própria obra: o diabo no meio do “redemoinho”. Recordemos que essa também é a forma
que os chakras (FIG. 4) – centros de energia que promovem a comunicação entre distintos
níveis de realidade – adquirem no corpo humano. A imagem do redemoinho, partindo de
todos esses pressupostos, seria então muito elucidativa, a revelar o próprio movimento
recursivo efetuado pela arte – no meio da rua, entre as margens das realidades ordinárias e
“mais que ordinárias”.
Tomemos então uma outra cadeia de associações, ainda mais ampliada:
lemniscata (símbolo do infinito) ' redomoinho ' demônio ' fogo ' Kundalini ' serpente '
Urutu-Branco ' Uróboro ' lemniscata.
Uróboro é a serpente mítica, cujo simbolismo está ligado ao infinito, à eternidade
e à “alma do mundo” (ABOUT, 2005). Sua representação, normalmente, se dá pela cobra que
forma um círculo e engole a própria cauda. Diante dessas representações, somos remetidos a
uma outra imagem interessante, a do “duplo Uróboro” (FIG. 12):
287
FIGURA 12 – O duplo Uróboro
Fonte: ABOUT, 2005.
Do ponto de vista alquímico, o significado do duplo Uróboro estaria ligado à
volatilidade. Espiritualmente, representaria o equilíbrio entre as naturezas inferior e
superior (o que, por sua vez, remete também ao simbolismo do centauro). Considero essa
imagem expressiva pois ela articula de uma forma extraordinária as hipóteses que levantei
acerca da dinâmica da porosidade poética e dos simbolismos presentes em GSV. O próprio
Riobaldo – que se transforma em Urutu-Branco – poderia ser relacionado aos movimentos
dessa dupla serpente.
Retomando um diálogo cultivado ao longo desta pesquisa, chamo a atenção para
o fato de que, nas culturas xamânicas, a arte é vista como “a expressão do infinito através do
finito” (RYAN, 2002: 136). Nessas culturas, a arte atua como uma efetiva “ponte de conexão”
entre a mente consciente e inconsciente, assim como entre o imaginário e o real. O trabalho
do xamã, através do seu treinamento extático, vem a ser precisamente o despertar da mente
para as forças criativas que sustentam e dão forma ao universo e, assim, o inspiram. Dessa
288
maneira, segundo Ryan, mais do que um curandeiro
213
ou sacerdote, o xamã é, acima de
tudo, um homem produtivo do ponto de vista artístico – no sentido mais amplo da palavra
“criativo”.
De posse de todas essas considerações, creio ser oportuno retomar a discussão
acerca do “X”, o centro da lemniscata. Paradoxalmente, podemos agora notar que essa forte
presença do “centro” na verdade marca é uma remissão aos lindes, aos limites: bordas que se
tocam e que podem ser articuladas. Assim, no contexto de uma porosidade poética, a
interseção marcada pelo “X” vem assinalar não a centralidade de um determinado nível de
realidade (ou discurso), mas as fronteiras – porosas, provisórias e extremamente móveis –
que construímos entre os diversos níveis de realidade (ou discursos). Somos, assim,
remetidos ao conceito de “ex-cêntrico”, proposto por Linda Hutcheon (1999) ao discutir a
pluralidade dos discursos pós-modernos:
[...] Eles têm estado liberando efeitos de movimento da linguagem da alienação
(diversidade) ao de descentramento (diferença), porque o centro usado para funcionar
como um pivô entre opostos binários sempre privilegiou uma de suas metades:
branco/negro, masculino/feminino, eu/outro, mente/corpo, oeste/leste,
objetividade/subjetividade – a lista é bem conhecida. Mas se o centro é visto como um
construto, uma ficção, não como uma realidade fixa e imutável, o antigo “este/ou aquele”
começa a cair, [...] e o novo “e/também” da multiplicidade abre novas possibilidades.
(HUTCHEON, 1999: 62 – tradução minha)
214
Podemos, então, pensar no “centro” – tão importante no contexto rosiano – não
como a indicação da centralidade de uma idéia, referência ou discurso, mas como seu oposto:
marcado por um caráter eminentemente ficcional, ao qual subjazem possibilidades de
213
A função curativa da arte é exemplificada por Ryan (2002: 137), no contexto da cultura dos índios Navaho.
Para eles, a cura não é dirigida a sintomas específicos ou órgãos do corpo, mas voltada ao resgate da psique para
dentro de uma totalidade de forças naturais e sobrenaturais que estão ao seu redor.
214
“[…] And there have been liberating effects of moving from the language of alienation (otherness) to that of
decentering (difference), because the center used to function as the pivot between binary opposites which always
privileged one half: white/black, male/female, self/other, intellect/body, west/east, objectivity/subjectivity – the list is
now well know. But if the center is seen as a construct, a fiction, not a fixed and unchangeable reality, the ‘old either-or
begins to break down’ [...] and the new and-also of multiplicity and difference opens up new possibilities.”
(HUTCHEON, 1999: 62)
289
articulação entre pólos aparentemente opostos. Vemos, assim, que o centro – tal como o
leito do rio que Riobaldo atravessa – é móvel e aponta para uma articulação não apenas
possível, mas fundamentalmente necessária, entre as margens. O fazer artístico, concebido
desta maneira, poderia então ser visto como algo que tende ao “marginal”.
Finalmente – mas ainda dentro desse mesmo tipo de raciocínio – temos as
contribuições da antropóloga Maria da Conceição Almeida (2002) que, após apresentar
diversas concepções acerca da estética, chega à conclusão de que:
É da expressão da sensibilidade entre o homem e seu mundo que trata a estética. Daquilo
que estando fora de nós recruta sentidos nascentes, sentimentos adormecidos na alma,
mas prontos para emergir. Entendida como o domínio do sensível, a estética (sic) o
homem para o mundo do qual depende: torna o humano um corpo poroso, transpassado
por luzes, cores, sombras, formas e movimentos. (ALMEIDA, 2002: 06)
Coloco em evidência sua fala para tomar emprestada a expressão “corpo poroso”,
a qual considero muito feliz. Creio que essa expressão possa ajudar a sintetizar muitos dos
elementos que têm emergido na discussão sugerida acerca da poética de Riobaldo. Melo e
Castro (1998) refere-se ao comentário efetuado por Rosa em 1946
215
e que diz respeito à
possibilidade e ao desejo de se trabalhar a “língua em estado gasoso”. Segundo o pesquisador,
esta se caracterizaria por uma elevada energia transformativa e pela possibilidade de mover-
se em sentidos diversos. Quando então discorremos sobre o corpo poroso do artista, creio
215
Em carta a João Condé sobre a gênese de Sagarana, publicada originalmente no Jornal Letras e Artes em 21
de julho de 1946 (MELO E CASTRO, 1998: 100) e publicada novamente em recente edição de Sagarana (ROSA,
2001b).
290
podermos associá-lo a essa língua em estado gasoso – numa interpenetração dinâmica e
mútua.
O que uma porosidade poética faz é tornar o corpo do homem poroso: a
porosidade que possibilita as permutações entre ordinário e extra-ordinário, entre real e
imaginário, entre exterior e interior, entre corpo e alma, entre homem e mundo, entre o
homem e os outros homens, entre prosa e verso, entre oralidade e escrita, entre literatura e
vida – diluindo as fronteiras e os rígidos limites que estabelecemos para demarcar as
(des)ordens do fazer e do existir. Riobaldo se torna um corpo poroso, permeável às forças da
vida. Poroso, o homem se torna um artista.
6.2.4 ECOLOGIA, IDENTIDADE E LITERATURA: TRANSVERSALIDADES
Mas quem é o artista? Em nossa sociedade ocidental contemporânea, a figura
daqueles que se nomeiam artistas muitas vezes se confunde com um hiperinvestimento na
própria imagem e no próprio ego. Ser artista passa a ser uma forma de afirmação do próprio
“eu” – que se torna cada vez “maior” e dependente do olhar, da aprovação e do desejo do
outro. Na pós-modernidade, na predominância do individualismo e do narcisismo, o
“artista” chega a vender a si mesmo como produto de consumo. Nesse contexto, a idéia do
artista como mediador perde sentido; o próprio artista se confunde com um suposto objeto
de arte. A arte (tomada não apenas como obra, mas como processo) perde lugar para o
“artista”. O canal de expressão é rompido. Um ego cada vez mais inflado e narcísico é
fortalecido em relações de venda, consumo e sedução. O artista não pode ser humano: tem
que ser idealizado e idolatrado.
291
Mas – acredito – o caminho de Riobaldo é completamente diferente. Seu
aprendizado como artista passa justamente pela desmontagem desse hiperinvestimento no
próprio “eu”. Seus momentos como Urutu-Branco, no alto de sua soberba, podem ser
identificados com essa figura distorcida de artista que procurei delinear; quando está nesse
estágio, Riobaldo deixa de ser capaz de expressar a arte através de si. É apenas a partir do
desmanche desse ego inflado – quando deixa de ser Urutu-Branco – que Riobaldo pode
efetivamente integrar todos os seus processos e atuar como canal de uma expressão poética
e narrativa. Já que os nomes que nos acompanham relacionam-se à forma de representar o
“eu”, é interessante notar o que ocorre com as formas de nomear Riobaldo. Aquele que já foi
chamado de Baldo se transforma em Riobaldo, que se transforma em professor Riobaldo,
que, por sua vez, vira o jagunço Riobaldo – para depois se tornar Cerzidor, Tatarana e,
finalmente, o chefe Urutu-Branco. Mais interessante que todas essas transformações – de
nomes, de representações do “eu” – é reparar que, após a “morte” de Urutu-Branco, há
apenas a indicação de que Riobaldo passa a ser o cerzidor, com minúsculas – ao que se segue a
retomada da alcunha que portava antes do surgimento do Urutu-Branco. A meu ver, sua
condição de cerzidor parece defini-lo mais do que o antigo nome. Retomemos a passagem na
batalha do Paredão, quando essa nova forma de nomeação vem à tona:
[...] Eu comandava? Um comanda é com o hoje, não é com o ontem. Aí eu era Urutú-
Branco: mas tinha de ser o cerzidor, Tatarana, o que em ponto melhor alvejava. [...]
(ROSA, 1978: 440)
Para além desse retorno – de forma transformada, como já tive oportunidade de
comentar no capítulo anterior – à alcunha “cerzidor”, vemos que o “ponto” ao qual Riobaldo
faz alusão tanto pode se referir ao tiro, à costura ou à escrita. Arrematando seus pontos,
292
pontuando suas palavras no trançado do texto, o cerzidor constrói a si mesmo através de sua
arte
216
.
Nessa condição – que é a condição que dá vida a sua narrativa – sempre que se
refere a si mesmo é a partir de uma identidade que carregava no passado, e que não mais
existe. Riobaldo termina sua narrativa – ou começa a sua expressão como narrador – a partir
do apagamento da primazia do próprio “eu”, pela via da adesão a uma identidade móvel, que
não mais busca se fixar ou cristalizar. Com Diadorim ocorrera algo semelhante: tendo sido o
Menino, já foi Reinaldo, transforma-se em Diadorim e, apenas postumamente, se revela
Deodorina. A inconstância do nome próprio denotaria a própria volatilidade da noção de
“eu”.
Ao lado da supressão da primazia dessa última instância, temos, a todo o tempo,
em GSV, um fortalecimento da dimensão intersubjetiva. A arte pressupõe um apagamento
do ego, para que “aquilo” que está além deste possa emergir – e de forma a tocar “aquilo” que
também está além do ego do outro. Nesse momento, a arte funda as bases de uma
intersubjetividade mais ampla, onde somos mais que egos, num lugar arejado onde reside o
“nós”.
Estando de posse dessas reflexões, dos elementos fundamentais relacionados à
experiência estética e também da imagem do corpo poroso, creio ser interessante estabelecer
um diálogo com algumas das contribuições de Guattari (1992). Poder-se-ia, então, no
216
Marcelo Marinho (2002) faz referência ao trabalho de “tecelão” realizado por Riobaldo, comparando-o ao
Crátilo, de Platão. Ressaltando a dimensão metalingüística aí presente, Marinho focaliza os processos
relacionados à formação de palavras e ao “nascimento” da linguagem humana. Tanto em GSV quanto em
Crátilo poder-se-ia ver o texto como resultado de uma tecedura de fios que, por sua vez, representariam o
próprio discurso. Curiosamente, o pesquisador não faz nenhuma menção à alcunha ou à função de cerzidor.
293
contexto de uma porosidade poética, apontar uma relação entre experiência estética,
ecologia e identidade?
Em Caosmose, Guattari refere-se, basicamente, a um paradigma ético-estético.
Para situá-lo, faz menção a dimensões da conduta humana como a ciência, a técnica, a
filosofia e a arte, apontando a forma como a maioria dessas dimensões se apresenta
circunscrita pelas relações entre os modos finitos desses materiais e os atributos de infinitos
dos “Universos de possível” que eles implicam. Para ele, essas relações seriam bem diferentes
em cada uma das atividades citadas.
A arte, ao contrário de outras atividades, é tida como o espaço onde a finitude do
material sensível torna-se suporte da produção de afetos e perceptos, que tenderá sempre a
se distanciar de moldes pré-estabelecidos. Guattari se refere é a um paradigma proto-
estético, não à arte institucionalizada, tal como as obras manifestadas no campo social:
Estratos espaciais polifônicos, freqüentemente concêntricos, parecem atrair, colonizar,
todos os níveis de alteridade que, por outro lado, eles próprios engendram. Os objetos
instauram-se em relação a tais espaços em posição transversal, vibratória, conferindo-
lhes alma, um devir ancestral, animal, vegetal, cósmico. (GUATTARI, 2002: 131)
O concêntrico remete à lógica espiralada e porosa à qual tenho me referido, capaz
de unir, em um mesmo movimento, diversos níveis de realidade, numa polifonia de
dimensões e sentidos, rumo à construção do novo. Chamo a atenção para a lógica da
transversalidade, presente nessas construções, e que se coaduna com a perspectiva de uma
porosidade poética. Mas Guattari prossegue:
Essas objetividades-subjetividades são levadas a trabalhar por conta própria, a se
encarnar em foco animista: imbrincam-se umas com as outras, invadem-se, para
constituir entidades coletivas – meio-coisa, meio-alma, meio-homem, meio-animal,
máquina e fluxo, matéria e signo... (GUATTARI, 2002: 131)
294
Temos aí a imagem do corpo poroso, impressionável e expressivo, que renuncia à
idéia de unidade – ou da constituição de uma identidade estável; ou mesmo à idéia de autoria
pessoal – em prol de um fazer-se, sempre parcial, em relação com a diversidade das coisas e
esferas. Máquina
217
e fluxo ao mesmo tempo, o corpo poroso do artista deixa impregnar-se
por influências plurais para, em outro movimento, deixar transbordar de si a matéria
transformada – que não é apenas sua. A “matéria vertente” de Riobaldo?
Emergência arrimada nos Territórios coletivos, Universais transcendentes, Imanência
processual: três modalidades de práxis e de subjetivação que especificam três tipos de
Agenciamento de enunciação que dizem respeito igualmente à psique, às sociedades
humanas, ao mundo dos seres vivos, às espécies maquínicas e, em última análise, ao
próprio cosmos. Uma tal ampliação “transversalista” da enunciação deveria levar à
derrubada da “cortina de ferro ontológica”, segundo expressão de Pierre Lévy, que a
tradição filosófica estabeleceu entre o espírito e a matéria. O estabelecimento de tal
ponto transversalista leva a postular a existência de um certo tipo de entidade habitando
ao mesmo tempo os dois domínios, de tal modo que os incorporais de valor e de
virtualidade adquiram uma espessura ontológica nivelada com a dos objetos engastados
nas coordenadas energético-espácio-temporais.
Trata-se, aliás, menos de uma identidade de ser, que atravessaria regiões, em
suma de textura heterogênea, do que de uma mesma persistência processual.
(GUATTARI, 2002: 138 – grifos meus)
Em contato com essas idéias, torna-se mais difícil falar em “identidade” do
artista. Torna-se mais fácil pensar em um fluxo ecológico, uma transversalidade que atinge
diversas esferas da experiência e que tem como eixo a figura do artista/mediador/narrador,
aquele que é máquina e fluxo ao mesmo tempo.
Isso me remete à imagem de Siruiz em GSV, em seu sentido polifônico. Siruiz é,
ao mesmo tempo, uma referência a um rapaz já falecido, autor
218
de uma canção-poema, a
própria canção e o cavalo brioso do chefe Urutu-Branco. Ítalo Calvino (1998) compara a
217
Ao final da narrativa, já na batalha do Pareo, surge uma alusão interessante a essa “máquina”, que parece
operar entre a escrita e o tiro, como instrumento: “[...] E de detrás das casas. E guardávamos o emboque da rua.
Diz que lê?; diz-que escreve! Tiro ali era máquina. Aos tantos, juntos, relando – cinco deles, cinco dedos, cinco
mãos. [...]” (ROSA, 1978: 440).
218
Apenas a título de curiosidade: poderia ser feita uma relação com a “morte do autor”, no sentido das
proposições de Barthes?
295
narrativa a um cavalo, como se esse fosse “[...] um meio de transporte cujo tipo de andadura,
trote ou galope, depende do percurso a ser executado [...]” (CALVINO, 1998: 52), assim
como também pode ser tomado como um emblema da velocidade mental que marca toda a
história da literatura. Novamente, uma questão de ritmo.
No caso de Siruiz, vejo-o como espírito, poesia e veículo. Riobaldo, ao mesmo
tempo em que monta Siruiz, é montado por ele. É impraticável a imagem de um homem
montado no cavalo. A imagem é a de um cavalo-homem, centauro. Assim como passa a ser
um espírito-homem; a poesia-homem. Os dois formam uma transversalidade, um fluxo
poético, poroso – mas que também é ecológico, na medida em que promove a relação
dinâmica, não dicotômica, entre diversas esferas e dimensões da realidade e da experiência.
Guattari (1991), em As três ecologias, propõe uma articulação ético-política – a
que chama “ecosofia” – de modo a articular a “ecologia social”, a “ecologia mental” e a
“ecologia ambiental”. Sob uma perspectiva porosa – que é natural e transcendente –
poderíamos pensar em uma poética ainda mais “ecológica”: além de articular ordens sociais,
mentais e ambientais (todas ligadas à nossa noção de realidade “ordinária”), poderíamos
também buscar uma articulação, por via da transversalidade, com dimensões ligadas aos
níveis extra-ordinários de realidade?
Essa perspectiva está ligada ao que Edgar Morin (1996) chama de
“complexidade”. Tomando os avanços da física, química e biologia, a idéia de que o mundo se
dá a partir de um emaranhado de ações, relações e interações, entrecortadas por fenômenos
aleatórios geradores de incerteza e imprevisibilidade, tem servido para questionar antigas
formas de conceber e pensar a realidade do mundo. A primeira complexidade do universo
seria a de que nada estaria realmente isolado no mesmo, tudo estaria em relação. Essa
complexidade pode ser encontrada tanto no mundo da física quanto na política – o que
296
acontece em um ponto do planeta repercute em outros pontos. A noção de que “tudo está em
tudo e reciprocamente” começa a ser construída:
Como é isso? Vejamos alguns exemplos: cada célula do nosso corpo é uma parte que está
no todo de nosso organismo, mas cada célula contém a totalidade do patrimônio genético
do conjunto do corpo, o que significa que o todo está presente também na parte. Cada
indivíduo numa sociedade é uma parte de um todo, que é a sociedade, mas esta intervém,
desde o nascimento do indivíduo, com sua linguagem, suas normas, suas proibições, sua
cultura, seu saber; outra vez, o todo está na parte. Com efeito, ‘tudo está em tudo e
reciprocamente’. Nós mesmos, do ponto de vista cósmico, somos uma parte no todo
cósmico: as partículas que nasceram nos primeiros instantes do Universo se encontram
em nossos átomos. O átomo de carbono necessário para a nossa vida formou-se num sol
anterior ao nosso. Ou seja, a totalidade da história do cosmos está em nós, que somos,
não obstante, uma parte pequena, ínfima, perdida no cosmos. E sem dúvida somos
singulares, posto que o princípio “O todo está na parte” não significa que a parte seja um
reflexo puro e simples do todo. Cada parte conserva sua singularidade e sua
individualidade, mas, de algum modo, contém o todo. (MORIN, 1996: 275)
Considerando tal tipo de articulação complexa em um âmbito subjetivo, Charles
Taylor (1997) discute a constituição da identidade moderna na cultura ocidental a partir da
articulação entre três distintas fontes morais, relacionadas a fundamentos ligados ao
sagrado, à razão e à natureza. O autor – a cujas idéias já me referi anteriormente – descreve a
complexidade e o desafio inerente à tomada de consciência acerca de como essas fontes, na
maior parte das vezes contraditórias entre si, nos influenciam, enfatizando a necessidade da
construção de uma identidade que as articule.
Tomando essas idéias como referência básica em minha pesquisa de mestrado
(MARÇOLLA, 2000), também eu apostava não apenas na importância da articulação entre
essas fontes, mas, igualmente, no lugar central ocupado pela possibilidade de se constituir
uma identidade mais sólida. A esse respeito, empreendi outros esforços, buscando efetuar
construções acerca das relações entre natureza e subjetividade (MARÇOLLA, 2002) e das
relações entre o natural e o sobrenatural (MARÇOLLA; MAHFOUD, 2002) – sempre
enfatizando a primazia da constituição da identidade.
297
Entretanto, para minha própria surpresa, as discussões acerca da porosidade
poética, da mudança de perspectiva do autor que se aproxima do narrador, do artista como
um corpo poroso que opera transversalmente – me levam a pensar de forma distinta neste
momento. Em termos ecológicos, estéticos e poéticos, o grande desafio talvez seja o de
abdicar da constituição de uma identidade cristalizada, sob o risco de paralisia. O que a
porosidade poética parece exigir é um certo desprendimento da perspectiva de uma
identidade pessoal, visando a um deslocamento para a identificação com um fluir estético. Se o
processo de Riobaldo conduz à apropriação de sua própria história, vemos que tal
apropriação se dá pela via da adesão ao ritmo e ao movimento.
Buscando trazer essa discussão para a literatura, gostaria de retomar algumas
idéias. Bachelard (1990), em O ar e os sonhos, traz à tona um elemento já apresentado nas
discussões efetuadas durante esta pesquisa: trata-se da importância do imaginário e da
imaginação. Considero oportuno retomar esse ponto a partir das contribuições desse autor
por causa das relações que estabelece entre essa dimensão e a questão do movimento.
Para o autor, o vocábulo fundamental que corresponderia à imaginação não seria
imagem, mas imaginário. O valor de uma imagem seria tomado pela extensão de sua aura
imaginária. Graças a esse imaginário, a imaginação seria essencialmente aberta, evasiva –
como experiência de abertura, ela seria a experiência da novidade por si mesma. De forma
contrária, a imagem que abdica de seu princípio imaginário e se fixa numa forma definitiva,
assume, aos poucos, as características da percepção presente, tornando-se uma imagem
estável, “cortando as asas” da imaginação.
O poema, de modo diverso, seria essencialmente visto como “uma aspiração a
imagens novas”. Bachelar opõe uma ênfase (possivelmente mais corrente) voltada para a
constituição das imagens a uma perspectiva voltada para a mobilidade das imagens – por ele
valorizada. A descrição das formas é mais fácil do que a descrição dos movimentos. Mas a
298
expressão poética, acessando o território da imaginação, ultrapassa o pensamento e se junta
a uma transcendência.
A porosidade poética se dedica, fundamentalmente, a esse segundo aspecto,
móvel. Não importa tanto a descrição das formas, a constituição de uma identidade – mas a
permutação, a porosidade, a transversalidade; o movimento. A imaginação – não apenas para
Bachelard, mas também para uma perspectiva porosa – é uma viagem, jornada. Assim
também o fazer literário. Pássaro que voa; presença de beija-flor? Homem humano;
travessia?
6.3 DESDOBRAMENTOS: REFLEXÕES METAPOÉTICAS
Tendo desenvolvido as linhas centrais do conceito de porosidade poética,
imagino ser frutífero verificar que outras reflexões poderiam ser tecidas a partir deste
referencial. Qual seria, por exemplo, a relação entre a poética de Riobaldo e a poética
rosiana? Haveria uam articulação entre essas duas dimensões no âmbito da obra? E,
pensando no próprio alcance do conceito de porosidade poética: estaria restrito a uma
análise de GSV ou guardaria relações com um contexto mais amplo?
Como ponto de partida para tantos questionamentos, acredito podermos nos
colocar a refletir acerca de elementos presentes na própria poética rosiana.
299
6.3.1 PARADOXOS DA POÉTICA ROSIANA
Inicialmente, na tentativa de apreender um pouco mais dos processos de criação
próprios de Rosa, opto por tomar como referência os seus próprios relatos a esse respeito.
Creio que esse tipo de apreensão poderia se dar por três vias bem distintas entre si, a saber:
(a) pela via da crítica genética
219
– a partir do contato com as anotações, registros, biblioteca
e outros documentos manuscritos produzidos pelo autor e que concernem à sua produção;
(b) por uma via metalingüística – pela referência que a própria obra rosiana traz acerca do
próprio processo de construção da linguagem e do texto; (c) pelo relato explícito do próprio
autor – na forma de correspondências e entrevistas. Acredito, também, que cada uma dessas
perspectivas possa apresentar a voz autoral de Rosa sob um viés diferente das demais.
Ciente de que isso significa uma certa escolha (e, portanto, também a tomada de uma
perspectiva parcial frente à realidade), optei por lidar com a poética rosiana a partir das duas
últimas fontes às quais me referi
220
. Desta forma, o “objeto” a priori passa ser o contato com
o posicionamento “explícito” – leia-se: publicado – do autor acerca desses processos. O que
Rosa tem a dizer acerca de sua poética
221
? Para tanto, busco o relato que Rosa faz acerca de
219
Alguns exemplos de tal perspectiva poderiam ser encontrados no trabalho de Cecília de Lara (1998), que
relata um estudo efetuado a partir dos rascunhos de Rosa, buscando, através das alterações nos textos, fazer
uma leitura dos procedimentos básicos adotados pelo autor – tais como acréscimos e supressões no texto.
Outro exemplo seria o de Edna Maria Fernandes do Nascimento (1998), que aborda o texto literário como
fruto de um árduo trabalho, descrevendo as diversas “técnicas” de armazenamento de material utilizadas por
Rosa na composição de seu texto – tais como viagens a Minas Gerais, consultas a dicionários, auxílio de livros
especializados, informantes, conhecimento de idiomas, contato com animais, entre outros. Temos também o
trabalho de Sônia Maria van Dijck Lima (2000), que efetua a crítica genética de Sagarana a partir dos
manuscritos originais, disponíveis no Instituto de Estudos Brasileiros, da USP.
220
O motivo para tal escolha se deve à farta alusão encontrada nesses materiais, a versar acerca das relações
entre as dimensões metafísicas e a poética de Rosa – o que forneceria mais elementos para um diálogo com a
perspectiva de uma porosidade poética, já que esta última pressupõe o transcendente.
221
É importante que algo fique muito claro: meu objetivo, ao recorrer a essas fontes, não é discorrer acerca da
realidade da poética rosiana – dizendo que esta se dê por uma ou outra forma –, mas discorrer acerca dos
posicionamentos que Rosa assume frente à mesma.
300
sua produção em um dos prefácios de Tutaméia (ROSA, 2001c), na correspondência com seus
principais tradutores e, ainda, na entrevista concedida a Günter Lorenz.
Em um dos prefácios de Tutaméia, “A escova e a dúvida”, um enunciador – que
aproximo da figura do autor Rosa, pelas referências que faz – se dedica a narrar os seus
próprios processos criativos, associados à gênese de muitas de suas obras, a partir da relação
com acontecimentos “paranormais”, dimensões metafísicas e experimentações
metapsíquicas:
Tenho que segredar que – embora por formação ou índole oponha escrúpulo crítico a
fenômenos paranormais e em princípio rechace a experimentação metapsíquica – minha
vida sempre e cedo se teceu de sutil gênero de fatos. Sonhos premonitórios, telepatia,
intuições, séries encadeadas fortuitas, toda a sorte de avisos e pressentimentos. Dadas
vezes, a chance de topar, sem busca, pessoas, coisas e informações urgentemente
necessárias.
No plano da arte e da criação – já de si em boa parte subliminar ou supraconsciente,
entremeando-se aos bojos do mistério e equivalente às vezes quase à reza – decerto se
propõem mais essas manifestações. Talvez seja correto eu confessar como tem sido que as
estórias que apanho diferem entre si no modo de surgir. À Buriti (N
OITES DO SERTÃO), por
exemplo, quase inteira “assisti”, em 1948, num sonho duas noites repetido. Conversa de
Bois (S
AGARANA), recebi-a, em amanhecer de sábado, substituindo-se a penosa versão
diversa, apenas também sobre a viagem de carro-de-bois e que eu considerava definitiva
ao ir dormir na sexta. A Terceira Margem do Rio (P
RIMEIRAS ESTÓRIAS) veio-me, na rua,
em inspiração pronta e brusca, tão “de fora”, que instintivamente levantei as mãos para
“pegá-la”, como se fosse uma bola vindo ao gol e eu o goleiro. Campo Geral (M
ANUELZÃO E
MIGUILIM) foi caindo já feita no papel, quando eu brincava com a máquina, por preguiça e
receio de começar de fato um conto, para o qual só soubesse um menino morador à borda
da mata e duas ou três caçadas de tamanduás e tatus; entretanto, logo me moveu e
apertou, e, chegada ao fim, espantou-me a simetria e ligação de suas partes. O tema de O
Recado do Morro (N
O URUBUQUAQUÁ, NO PINHÉM) se formou aos poucos, em 1950, no
estrangeiro, avançando somente quando a saudade me obrigava, e talvez também sob
razoável ação do vinho ou do conhaque. Quanto ao G
RANDE SERTÃO: VEREDAS, forte
coisa e comprida demais seria tentar fazer crer como foi ditado, sustentado e
protegido – por forças ou correntes muito estranhas. [...] (ROSA, 2001c: 221-223
– grifos meus)
Apesar das polêmicas geradas por esse prefácio, vemos aqui a referência a uma
poética rosiana que se conduz pela via da inspiração transcendente e dos processos ligados
ao contato com uma realidade extra-ordinária – corporificados pela via da produção artística.
Não creio que a questão seja afirmar ou negar a realidade de tais experiências – acredito que
301
estejamos diante de elementos textuais que nos pedem um posicionamento distinto: que é o
de não “fechar questão”, que é o de alimentar a dúvida. Esse é o aspecto central – no que se
refere aos prefácios – abordado por Lívia Ferreira Santos (1983) em seu trabalho sobre os
processos de desconstrução em Tutaméia: a dúvida como atitude básica.
Rosa constrói seu texto pela via da ambigüidade; ele diz e desdiz, afirma algo e a
seguir propõe o seu contrário. Não se pode ler Tutaméia literalmente
222
. Os demais prefácios
presentes em Tutaméia remetem, por exemplo, a outras dimensões da poética rosiana –
dentre os quais, destaco o trabalho meticuloso que tem como seu objeto a própria
linguagem. Mas ambigüidade não necessariamente significa oposição
223
. Não haveria uma
relação possível entre a inspiração metafísica e o trabalho árduo e meticuloso?
Outra impressão que tenho, no que diz respeito a Tutaméia, é que, em alguns
momentos, Rosa parece “fingir que finge” – o que também subverte o estabelecimento de um
pacto de leitura fundado na consciência da ficcionalidade. Isso me remete ao que uma
personagem de Ricardo Piglia (2002), em Prisão perpétua, diz: “Narrar, dizia meu pai, é como
jogar pôquer, todo segredo consiste em parecer mentiroso quando se está dizendo a
verdade.” (PIGLIA, 2002: 20).
222
Luiz Cláudio Vieira de Oliveira (2000), em um trabalho que aborda a recepção crítica e a semiose a partir da
obra rosiana, chega a abordar aspectos semelhantes a esses que aqui vêm sendo desenvolvidos. Segundo ele,
haveria uma expectativa por parte de leitores e críticos de encontrar uma correspondência entre o texto
ficcional rosiano e os elementos do real – fato impossível, haja vista a mediação efetuada pela linguagem,
marcando ao mesmo tempo uma equivalência e uma diferença em relação a esse real. Fica, assim, mais fácil
compreender como uma estratégia textual que envolva a construção de uma certa “neblina”, talvez se mostre
mais “honesta” do que aquela que, supostamente, apregoa dizer da realidade sem máscaras. E parece que Rosa,
mesmo quando aparenta dizer sem pudores acerca de seus próprios processos, ainda assim, não abre mão de
suas neblinas paradoxais. “A escova e a dúvida”, e mesmo os outros prefácios de Tutaméia, se lidos sob esse
ponto de vista – sob o viés da ambigüidade e da perplexidade –, podem conduzir o leitor a novos e impensados
caminhos, que, do meu ponto de vista, estariam longe de buscar circunscrever uma verdade ou sentido
absolutos.
223
Para Lopes (1997), essa oposição seria apenas aparente, já que: “[...] vem apenas a confirmar que a
inspiração inicial exige o trabalho posterior, e mais, exige mesmo o trabalho anterior. Se “Conversa de Bois”
nasceu pronta numa manhã de sábado, até sexta à noite o autor entregou-se a ela, com sua habitual dedicação,
andando, sentado, olhando distraidamente por uma janela, com toda certeza trabalhou muito na sua criação.
Einstein costumava dizer que noventa e nove vezes tentava resolver um problema através do raciocínio e que,
na centésima, ao parar de buscar a solução e ficar em silêncio, ela lhe era dada de graça.” (LOPES, 1997: 37-38).
302
Essas mesmas questões e ambigüidades parecem impor-se também quando
tomamos contato com a correspondência que Rosa estabelece com seus tradutores
224
. Do
meu ponto de vista, aquele tradutor com quem Rosa pôde corresponder-se de forma mais
aberta e solta foi, sem dúvida, Edoardo Bizzarri (ROSA, 2003a). Ao adentrar os meandros
dos seus processos de criação, Rosa fala abertamente de duas marcas desses processos – a
conexão com realidades “metafísicas” e o trabalho árduo e metódico com a língua e o texto;
assim como, analogamente, aponta duas “origens” para GSV:
[...] e Você já tem trabalho demais com o diabo do livro
225
, que, como Você vê, também
foi um pouco febrilmente tentado arrancar de dois caos: um externo, o sertão primitivo e
mágico; o outro, eu, o seu Guimarães Rosa, mesmo, que abraça Você, grata e
afetuosamente [...] (ROSA, 2003a: 87 – grifos meus)
226
224
No caso, foram consultadas as obras que publicaram o conjunto das correspondências entre Rosa e seu
tradutor italiano Edoardo Bizzarri (ROSA, 2003a), bem como com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason
(BUSSOLOTTI, 2003). Busquei elementos também em sua correspondência com William Agel de Mello (ROSA,
2003b), que abordava a tradução de sua obra para o espanhol. Cabe salientar que, diante de tantos aspectos
passíveis de serem apreendidos a partir do contato com tal correspondência, focalizei as referências que Rosa
fazia acerca de seus processos de criação.
225
Quando Rosa fala sobre a origem de GSV e citao diabo do livro” me remete aos depoimentos presentes no
making off de Outras Histórias, dirigido por Pedro Bial. O poeta Haroldo de Campos, referindo-se às relações
entre o demo e o processo de criação de Rosa, afirma: “[...] ele [Rosa] estava falando do processo de composição
dos textos dele, em particular do Grande Sero. Ele diz assim: ‘Quando ele vem, o texto, eu fico louco, rolo no
chão, luto com o demo de madrugada no meu escritório e depois, naquele contexto, naquele impacto, eu
escrevo. Naquele impulso eu escrevo.’ [...] Quando ele falava do demo não era uma metáfora, era uma coisa que
ele trazia realmente presencialmente, quase encarnava, ressuscitava um demo.” (transcrição minha). Benedito
Nunes, ao discorrer acerca das relações de Rosa com o demo, e referindo-se ao seu processo de criação, diz que:
“[...] o Sertão o levava até mesmo, enquanto estava escrevendo, a gritar, a dançar em movimento contínuo pela
sala. Não parava. [o entrevistador pergunta: Sozinho?] Sozinho.” (transcrição minha). Já o escritor Paulo
Dantas relata o episódio em que procura por Rosa no Itamaraty e ele não estava no gabinete. Estava andando,
quando viu que “[...] ele trazia um crucifixo com um rosário no pescoço e rezava igual a um beato, já de si
tomado por um transe” (transcrição minha). Paulo Dantas já havia feito alusão a esse mesmo tipo de
acontecimento em Sagarana emotiva (1975), livro em que publica as memórias construídas no contato com
Rosa, bem como parte de sua correspondência com o autor de GSV. Rosa haveria lhe confidenciado que GSV
teria sido escrito em apenas sete meses e a partir de um meio pouco ortodoxo: Os caboclosbaixaram em
mim... Só escrevo altamente inspirado, como que ‘tomado’, em transe. Aquele livro me cansou fisicamente.
Acabei extenuado. Deu-me, porém, um enorme prazer. Sensação igual só senti ao escrever Miguilim. Foi outro
‘clarão’ que recebi na vida.” (ROSA apud DANTAS, 1975: 28). Referindo-se ainda ao “tom mediúnico” da
inspiração de Rosa, Paulo Dantas diz que Rosa não tinha preconceitos com essa “modalidade artística de
inspiração”, considerando que “sonhava” antes com suas histórias. Diante do pedido de Dantas, para que tais
fenômenos fossem melhor explicados, Rosa promete dizer tudo um dia, em um prefácio ainda por ser escrito –
ao que Dantas comenta que, em Tutaméia, o autor “não disse tudo, mas ensejou muita coisa” (DANTAS, 1975:
43).
226
Em correspondência endereçada a Bizzarri, datada de 21 de novembro de 1963.
303
Essa dupla “origem” dá o tom também a uma díade poética, que é mais explorada
em outros momentos da correspondência com os tradutores. Por um lado, há a afirmação de
um trabalho metódico, incansável e duradouro, com o texto e a língua. Rosa apresenta uma
perspectiva onde enfatiza, com veemência, a importância de um trabalho exaustivo,
deliberado e cuidadoso com a escrita – o que pode ser confirmado pelos registros e
cadernetas nos quais se vê o esboço de grande parte dessa perspectiva de trabalho
227
.
Por outro lado – e podemos até nos perguntar, se de forma contraditória ao
afirmado anteriormente –, há também a afirmação enfática de um trabalho quase
“mediúmnico”, não planejado de um ponto de vista racional ou deliberado, como se o próprio
livro se escrevesse
228
:
Primeiro, precisarei de tagarelar também um pouco sobre o livro, as outras novelas.
Quero afirmar a Você que, quando escrevi, não foi partindo de pressupostos
intelectualizantes, nem cumprindo nenhum planejamento cerebrino ‘cerebral deliberado.
Ao contrário, tudo, ou quase tudo, foi efervescência de caos, trabalho quase “mediúmnico”
e elaboração inconsciente. Depois, então, do livro pronto e publicado, vim achando nele
muita coisa; às vezes, coisas que se haviam urdido por si mesmas, muito milagrosamente.
Muita coisa dele, livro, e muita coisa de mim mesmo. [...] (ROSA, 2003a: 89)
229
Ainda nessa direção, parece também haver uma sintonia entre os processos
envolvidos na criação dos livros e o próprio tema sobre o qual esses versam.
227
Cabe registrar que, em outras passagens da correspondência com seu tradutor alemão, Rosa reafirma a
importância de tal perspectiva.
228
Esse posicionamento – a primazia dos processos metafísicos na própria poética rosiana – é confirmado ainda
em outras passagens, dentre as quais destaco, por sua eloqüência, a seguinte: “Porém, para melhor tranqüilizá-
lo, digo a verdade a Você. Eu, quando escrevo um livro, vou fazendo como se estivesse “traduzindo”, de algum
alto original, existente alhures, no mundo astral ou no “plano das idéias”, dos arquétipos, por exemplo. Nunca
sei se estou acertando ou falhando, nessa “tradução”. Assim, quando me “re”-traduzem para outro idioma,
nunca sei, também, em casos de divergência, se não foi o Tradutor quem, de fato, acertou, restabelecendo a
verdade do “original ideal”, que eu desvirtuara...” (ROSA, 2003a: 99). Ainda no tocante ao caráter metafísico de
sua produção, Rosa parece também tecer uma espécie de restrição ao olhar de alguns críticos que, ao entrarem
em contato com sua obra, desconsideram a possibilidade de tal realidade metafísica, buscando compreendê-la,
somente, a partir de seus próprios pressupostos, normalmente pautados por uma lógica racional e cartesiana.
Assim, ao comentar aquilo que Paulo Rónai escreve acerca de Recado do Morro, Rosa comenta: “NOTA: Ao dizer
‘de sentidos apurados’, Paulo Rónai, agnóstico, deixa de fora, naturalmente, qualquer possibilidade do
elemento sobrenatural.” (ROSA, 2003a: 92).
229
Em correspondência endereçada a Bizzarri, datada de 25 de novembro de 1963.
304
Ora, Você já notou, decerto, que, como eu, os meus livros, em essência, são anti-
“intelectuais” – defendem o altíssimo primado da intuição, da revelação, da inspiração
sobre o bruxolear presunçoso da inteligência reflexiva, da razão, da megera cartesiana.
Quero ficar com o Tao, com os Vedas e Upanixades, com os Evangelistas e São Paulo, com
Platão, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff – com Cristo, principalmente. Por isto
mesmo, como apreço de essência e acentuação, assim gostaria de considerá-los: a) cenário
e realidade sertaneja: 1 ponto ; b) enredo: 2 pontos; c) poesia: 3 pontos; d) valor
metafísico-religioso: 4 pontos. Naturalmente, isto é subjetivo, traduz só a apreciação do
autor, e do que o autor gostaria, hoje, que o livro fosse. Mas, em arte, não vale a intenção.
[...] (ROSA, 2003a: 90-91)
230
Tais passagens justificariam uma certa abordagem “metapoética” da obra
rosiana, no sentido de que o próprio autor relata a forma como as obras deixam transparecer
os processos e os valores que o marcam em termos de sua própria poética. Assim, justifica-
se, por exemplo, uma leitura dos processos que envolvem as personagens e a narrativa de
GSV em paralelo com os processos que envolvem o próprio Rosa como artista e escritor.
Em suma, colocando ambas as perspectivas lado a lado – o trabalho metódico e
os processos metafísicos –, vemos-nos diante de um aparente paradoxo
231
. Essas duas
dimensões parecem, pelo menos à primeira vista, contradizer-se mutuamente; mas, ao
mesmo tempo, ambas são enfatizadas e “re-enfatizadas” pelo próprio Rosa. A esse respeito, o
autor parece também nos oferecer algumas “pistas”, ambas encontradas na correspondência
com Curt Meyer-Clason.
Uma primeira “pista”, seria a valorização, por parte de Rosa, da manutenção de
uma certa “penumbra”, do gosto pelo próprio paradoxo. Nada deve ser revelado totalmente
às claras, sob o risco de engodo:
230
Em correspondência endereçada a Bizzarri, datada de 25 de novembro de 1963.
231
Na entrevista concedida a Günter Lorenz (1983) em Gênova, Rosa é questionado e concorda em falar acerca
de muitos aspectos envolvidos no processo de criação de sua obra. Em um momento ainda inicial, enfatiza a
importância do paradoxo, relacionando-o à linguagem: “Os paradoxos existem para que ainda possa se exprimir
algo para o qual não existem palavras.” (ROSA apud LORENZ, 1983: 68). Rosa “atualiza”, nessa entrevista, a
dimensão paradoxal que abordei anteriormente, marcada pela dupla perspectiva da criação de sua obra – a
produção como fruto de uma “inspiração” metafísica e a produção como fruto de um trabalho árduo e
metódico.
305
[...] A excessiva iluminação, geral, só no nível do raso, da vulgaridade. Todos os meus
livros são simples tentativas de rodear e devassar um pouquinho o mistério cósmico, esta
coisa movente, impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, que é chamada
“realidade”, que é a gente mesmo, o mundo, a vida. Antes o obscuro do que o óbvio, que o
frouxo. Toda lógica contém inevitável dose de mistificação. Toda mistificação contém boa
dose de inevitável verdade. Precisamos também do obscuro.
Em geral, quase toda frase minha tem que ser meditada. Quase todas, mesmo as
aparentemente curtas, simplórias, comezinhas, trazem em si algo de meditação ou de
aventura. Às vezes, juntas, as duas coisas: aventura e meditação. Uma pequena
dialética religiosa, uma utilização, às vezes, do paradoxo; mas sempre na mesma linha
constante, que, felizmente, o Amigo já conhece, pois; mais felizmente ainda, somos um
pouco parentes, nos planos, que sempre se interseccionam, da poesia e da
metafísica
232
. (ROSA apud BUSSOLOTTI, 2003: 238-239 – grifos meus)
233
Como conseqüência natural desse gosto pelo paradoxo, ou até mesmo como um
veículo para o mesmo, vem a segunda “pista” que creio podermos vislumbrar. Esta seria
justamente a relação especial que Rosa estabelece com a linguagem, como veículo dos
paradoxos, “aventura e meditação”, intercâmbio de planos:
[...] Observo, também, que quase sempre as dúvidas decorrem do “vício” sintático, da
servidão à sintaxe vulgar e rígida, doença de que todos sofremos. Duas coisas convém ter
sempre presente: tudo vai para a poesia, o lugar-comum deve ter proibida a entrada,
estamos é descobrindo novos territórios do sentir, do pensar, e da expressividade; as
palavras valem “sozinhas”. Cada uma por si, com sua carga própria, independentes, e às
combinações delas permitem-se todas as variantes e variedades. (ROSA apud
BUSSOLOTTI, 2003: 314)
234
[...] A língua para mim é um instrumento: fino, hábil, agudo, abarcável, penetrável,
sempre perfectível, etc. Mas sempre a serviço do homem e de Deus, do homem de Deus,
da Transcendência. [...] (ROSA apud BUSSOLOTTI, 2003: 412)
235
A linguagem vem, portanto, não como instrumento explicativo a serviço de um
“desnudamento da ficcionalidade”, mas funciona numa direção oposta – aquela que incide
sob a desnaturalização do nosso próprio olhar, para que possamos estar diante do mistério
232
Tal reconhecimento remete ao posicionamento de Benedito Nunes (1998), já discutido no segundo capítulo
desta tese.
233
Em correspondência endereçada a Meyer-Clason, datada de 09 de fevereiro de 1965.
234
Em correspondência endereçada a Meyer-Clason, datada de 24 de março de 1966.
235
Em correspondência endereçada a Meyer-Clason, datada de 27 de agosto de 1967.
306
das coisas sem reduzi-las àquilo que já supomos saber (do livro, da vida, do real, de nós
mesmos...).
Diante de pistas
236
que talvez não pareçam suficientes num primeiro momento,
Lorenz, talvez antecipando a angústia que surge como correlata à constatação do paradoxo,
pergunta a Guimarães Rosa: “Você está contra a lógica e defende o irracional. Entretanto,
seu próprio processo de trabalho é uma coisa totalmente intelectual e lógica. Como você
explica essa contradição, e como a explica para mim?” (ROSA apud LORENZ, 1983: 93). Ao
que Rosa responde:
Não há nenhuma contradição. Um gênio é um homem que não sabe pensar com lógica,
mas apenas com a prudência. A lógica é a prudência convertida em ciência; por isso não
serve para nada. Deixa de lado componentes importantes, pois, quer se queira quer não, o
homem não é composto apenas de cérebro. Eu diria mesmo que, para a maioria das
pessoas, e não me excetuo, o cérebro tem pouca importância no decorrer da vida. O
contrário seria terrível: a vida ficaria limitada a uma única operação matemática, que
não necessitaria da aventura do desconhecido e inconsciente, nem do irracional. Mas
cada conta, segundo as regras da matemática, tem seu resultado. Estas regras não valem
para o homem, a não ser que não se creia na ressurreição e no infinito. Eu creio
firmemente. Por isso também espero uma literatura tão ilógica como a minha, que
transforme o cosmo num sertão no qual a única realidade seja o inacreditável. A lógica,
prezado amigo, é a força com a qual o homem algum dia haverá de se matar. Apenas
superando a lógica é que se pode pensar com justiça. Pense nisto: o amor é sempre ilógico,
mas cada crime é cometido segundo as leis da lógica. (ROSA apud LORENZ, 1983: 93)
Enfim, por detrás das neblinas ou paradoxos, entre a inspiração metafísica e o
trabalho incansável com o texto e a linguagem, creio podermos considerar com certeza – se é
que isso é mesmo possível em se tratando de Guimarães Rosa – a importância por ele
atribuída ao papel da arte. Na carta a João Condé, ao comentar seus processos diante da
escritura de Sagarana, ele escreve:
236
Voltando à entrevista concedida a Lorenz, vemos que Rosa, ao mesmo tempo em que novamente nos coloca
diante do paradoxo, é também capaz de assinalar as mesmas pistas que foram apontadas há pouco. Assim,
temos: (a) a valorização do próprio paradoxo e (b) uma reafirmação do papel da linguagem como elemento
metafísico diante dessa aproximação paradoxal da vida.
307
Agora, pois, em 1937 – um dia, outro dia, outro dia... – quando chegou a hora de o
Sagarana ter de ser escrito, pensei muito. Num barquinho, que viria descendo o rio e
passaria ao alcance das minhas mãos, eu ia poder colocar o que quisesse, nele poderia
embarcar, inteira, no momento, minha concepção-do-mundo.
Tinha de pensar, igualmente, na palavra “arte”, em tudo o que ela para mim
representava, como corpo e como alma; como um daqueles variados caminhos que levam
do temporal ao eterno, principalmente. (ROSA, 2001b: 23-24)
Assim como o movimento efetuado pelo beija-flor, o barco desce o rio e se coloca
ao alcance das mãos. A concepção do mundo poderia ser entendida não apenas como
representação, mas como a criação de um mundo. Movimento fértil, essa é a esfera da arte,
levando do temporal ao eterno em seus variados caminhos
237
.
6.3.2 ENTRE ROSA E RIOBALDO, E ALÉM
A partir dessa exposição de elementos da poética rosiana, tomo a liberdade então
de retomar uma referência citada já no começo desta tese, quando discorri acerca de alguns
estudos críticos rosianos. Faço alusão ao trabalho de Marcelo Marinho (2001), que
compreende GSV como uma série de representações enigmáticas e metafóricas construídas
por Rosa, acerca do próprio ato de escrita e de sua decifração. O pesquisador toma o sertão e
a literatura como metáforas metapoéticas, elencando indícios que visam não apenas a
compreeender GSV como esse território metafórico, mas, principalmente, como uma
expressão de sua própria escritura – numa imagem que remete ao myse en abyme. Nessa
237
Nessa mesma carta, um pouco adiante, Rosa relata que, durante a composição de Sagarana, teria passado
dias “fechado no quarto, cantando cantigas sertanejas, dialogando com vaqueiros de velha lembrança, ‘revendo
paisagens de minha [de Rosa] terra, e aboiando para um gado imenso” (ROSA, 2001b: 25). E completa:
“Quando a máquina estava pronta, parti.”. Chama a atenção, além do estado que remete ao transe, a forma
como parece denominar a si mesmo, após toda essa preparação, como “máquina” (que aparece em itálico no
texto original) – o que remete ao papel de instrumento relacionado ao artista.
308
empreitada, Marinho utiliza como ferramenta principal a análise de elementos lingüísticos
presentes na obra, assim como a alusão a relatos de Rosa acerca de sua própria poética.
Desta forma, ao compreender GSV como uma metanarrativa, o estudioso a relaciona
fundamentalmente à realidade da poética rosiana; sua perspectiva é de um caráter
autobiográfico de GSV, a narrar os processos criativos de Rosa. No longo caminho que
percorre para fundamentar e explicitar essa associação, o autor também constrói
interpretações que buscam articular sua perspectiva a dimensões centrais da narrativa e das
personagens.
Para além das questões hermenêuticas, creio ser importante apontar um marco
central que delimita a fronteira entre esse estudo e a perspectiva aqui defendida.
Pessoalmente, creio que faça sentido considerar, como hipótese, que GSV esteja a narrar
processos vivenciados pelo próprio Rosa – sendo esta a grande perspectiva defendida por
Marinho. Mas talvez este não seja o ponto fundamental.
Seja ou não GSV uma narrativa metapoética fundada na experiência pessoal do
autor Rosa, creio dela podermos extrair uma compreensão que é mais ampla e, portanto,
mais fundamental. Esta, seria a compreensão não (necessariamente) da poética rosiana, mas
de um tipo de fazer poético que, em si, articula diversas dimensões e que opera de um modo
específico, perfazendo um lugar “poroso” para o artista. Esta seria a porosidade poética da
qual tanto falo – fundada na descrição e aprofundamento dos suportes que apontei em
diálogo com a obra e que, muito resumidamente, também poderia ser compreendida na
tensão (não dicotômica) entre “inspiração metafísica” e “trabalho metódico”. Apesar de
Marinho reconhecer a dimensão poética presente em GSV, sua grande preocupação é
309
associá-la a Rosa, em detrimento de uma maior exploração de seus meandros. Focaliza-se o
autor (Rosa) e a obra (GSV), mas de modo que a poética, em si, fica em segundo plano
238
.
Todo o processo que busquei caracterizar e nomear como porosidade poética tem,
em seu cerne, o apagamento da idéia de “gênio” individual para que se possa construir a idéia
de um artista como mediador de uma expressão que vai além de si mesmo – sem
desconsiderar todo o trabalho envolvido nesse processo
239
. Nessa perspectiva, não faria
sentido ficarmos apenas circulando a figura pessoal de um autor em detrimento da própria
expressão poética que por ele – e por outros – se expressa. A perspectiva aqui apresentada,
portanto, deixa de um pouco de lado a figura pessoal de Rosa para centrar-se na poética de
Riobaldo – ao mesmo tempo artista e expressão da arte. Seria esta a realidade possível de
todos nós?
Para avançar nesse último questionamento, acredito ser importante considerar
um pouco mais as implicações às quais o reconhecimento da dimensão metapoética de GSV
pode conduzir. Considerando a trajetória de Riobaldo como um todo – seu aprendizado
poético e o ponto no qual a narrativa culmina, com a sua própria constituição –, somos
remetidos à estruturação de GSV como obra dentro da obra. Isto já implica a integração de
vários níveis poéticos de GSV em um mesmo movimento metapoético.
Temos assim: (1) o aprendizado poético de Riobaldo (apresentado em forma de
narrativa), que (2) culmina com sua constituição como narrador que se apropria da própria
238
Tal constatação não invalida de modo algum o estudo ao qual me refiro; apenas aponta um limite ou
possibilidade de desdobramento – o qual tentei na presente pesquisa buscar preencher.
239
O próprio Marinho (2001: 159), ao tecer sua interpretação acerca do papel do cego Borromeu, compreende
que este estaria a dizer de um apagamento do “eu” e do ego como condição para a expressão artística.
310
história e (3) se põe a narrá-la e a construir sentidos a partir da mesma. Se tal movimento
fosse lido em uma lógica de circularidade, tudo seria mais simples – mas o que essa dinâmica
parece sugerir é o movimento recursivo que caracteriza a porosidade poética (vide FIG. 11).
Assim, quando o momento “3” remete ao momento “1”, estamos diante não de uma
circularidade, mas de um movimento em espiral, a ocorrer em um outro nível de realidade. O
movimento “31” remete à própria constituição da obra, do livro Grande Sertão: Veredas. O
livro produz a si mesmo.
A tal dinâmica, poderíamos somar a hipótese básica de Marinho, de forma a
estabelecer um paralelo entre os processos que ocorrem textualmente em GSV e os processos
empíricos envolvidos na poética rosiana.
Mais interessante ainda seria considerarmos o viés multidimensional presente
nessa perspectiva: o livro, a todo instante, nos leva para dentro e fora dele, apresentando-
nos inúmeras dimensões intercaladas e intercambiáveis. Vejamos, por exemplo, em quantos
níveis poderíamos perceber a narrativa de Riobaldo: (a) como a narrativa de um ex-jagunço
acerca de seus processos de vida; (b) como a narrativa de processos de vida – ordinários e
extra-ordinários – que conduzem a um aprendizado poético; (c) como a narrativa de um
aprendizado poético que justifica a própria existência da narrativa (Riobaldo narra o modo
como se tornou narrador); (d) como a narrativa codificada em livro, cujo sentido último é o
do aprendizado da codificação da narrativa; (e) como narração de uma poética recursiva, de
modo que o final do livro nos conduz ao seu início – e de maneira que somos remetidos a
uma releitura que, quando terminada, nos remete novamente ao início da narrativa, em um
processo que não tem fim; (f) como a narração não apenas do jagunço Riobaldo, mas –
hipoteticamente – dos próprios processos com os quais Rosa teria deparado no seu
aprendizado poético durante a escritura de GSV (e talvez até em outros momentos); (g)
como narração do tipo de poética envolvido na própria gênese de GSV; (h) como a narração
311
das relações entre trabalho árduo e inspiração metafísica, na sua articulação em uma poética
aplicável (mas não necessariamente relacionada) a outras expressões artísticas, literárias ou
não.
A essa pluralidade de níveis, poderíamos acrescentar um outro, hipotético e
ousado: estaria GSV, pela via de um outro grande fluxo metapoético (FIG. 13), a narrar
processos existenciais e sugerir um tipo de relação possível, e mais ampla, entre arte e vida?
FIGURA 13 – Os fluxos metapoéticos de GSV
Tal pergunta remete ao questionamento formulado por Sônia Viegas
(ANDRADE, 1983) e dirigido a Benedito Nunes, por ocasião do debate em torno de seu
trabalho A matéria vertente (NUNES, 1983a). Partindo do reconhecimento de que Nunes
compreendera o movimento temporal, que determina a reflexividade em GSV, na
perspectiva da “relação Eu-Outro”, Sônia Viegas questiona se não haveria uma ampliação
progressiva do universo de significações na medida em que se partisse da “relação Eu-
Mundo” (Riobaldo-Sertão). A pesquisadora já havia desenvolvido essas idéias em seu
trabalho A vereda trágica do “Grande sertão: veredas” (ANDRADE, 1975), ocasião em que se
debruça no desafio de pensar a poesia como mediadora (a) entre a existência e o
pensamento, (b) entre a realidade e o conceito, (c) entre o universal e o particular. No que
312
tange a esta última mediação, Sônia Viegas a identifica em GSV, na medida em que a
experiência singular e contingente de Riobaldo encarna a universalidade da condição
humana – o que valeria dizer que Guimarães Rosa, dessa forma, realizaria, em nível poético,
“o reconhecimento de uma realidade em seus vários níveis de abrangência” (ANDRADE,
1975: 21). O sertão, assim, vem a ser uma realidade cósmica, geográfica, metafísica,
histórica, social, política, psicológica – cujos níveis não se explicitam separadamente, mas se
interpenetram e se alimentam reciprocamente.
Voltando aos três grandes níveis poéticos por mim apontados – o textual
(relacionado ao nível de realidade de Riobaldo), o “autoral” (relacionado ao nível de realidade
de Rosa) e o existencial (relacionado à vida) –, e em sintonia com a perspectiva de Sônia
Viegas, penso que seria importante abordá-los de uma forma um pouco distinta daquela
mais usual: a lógica da sucessão deve ceder seu lugar a uma outra, a da simultaneidade. No
caso de GSV, teríamos, assim, uma relação simultânea e permeável entre diversos níveis
poéticos que circulam pela obra, de modo a configurar um grande fluxo metapoético,
multidimensional. A idéia se aproxima daquilo a que Adauto Novaes chama de
“constelações”, inspirado pelas idéias de Adorno. Tal idéia implica:
[...] que se deve recompor o todo a partir de uma seqüência de complexos parciais, todos
tendo, por assim dizer, o mesmo peso ordenador proporcionalmente, de uma maneira
concêntrica. A idéia vem de uma constelação, não de uma sucessão. (ADORNO apud
NOVAES, 1994: 10)
De posse de uma lógica da simultaneidade, que implica a presença de
constelações, poderíamos, então, pensar nos vários sentidos metapoéticos que podem
conviver em GSV – sem que se excluam mutuamente e sem cada um deles tenha que ser
313
confirmado para justificar os demais. “Tudo é e não é.”
240
– diria Riobaldo. A metapoética
descrita em GSV não apenas articula distintos níveis narrativos, como as diferentes esferas
da realidade – de modo que “autor”, obra, narrador, personagem e leitor permeiem-se,
constituindo-se mutuamente. Podemos nos perguntar se somos nós que escrevemos – ou
lemos – o livro, ou se é ele que nos escreve – ou nos lê. A cobra morde (e não morde) a
própria cauda?
240
No que tange a essa sobreposição de níveis ou à simultaneidade de possibilidades, gostaria de citar um
experimento mental que, no contexto da física quântica, remeteria a essa mesma lógica: Uma famosa
experiência com o pensamento realizada pelo físico Erwin Schödinger chama a atenção para os tipos de
ocorrências fora do comum que se tornam possíveis pela física quântica. Imagine que você tem uma caixa
fechada que contém uma onda-partícula, um gato, uma alavanca e uma tigela com comida para gatos com a
tampa solta. Se a onda-partícula se tornar uma partícula, ela esbarrará na alavanca, que arrancará a tampa da
tigela e o gato comerá a comida. Se a onda-partícula se tornar uma onda, a tampa permanecerá sobre a comida.
Se abrirmos a caixa (realizando desse modo uma observação), veremos uma tigela vazia (e um gato feliz) ou
uma tigela cheia de comida (e um gato faminto). Tudo depende do tipo de observação que fazemos. Eis agora a
parte que confunde a mente. Antes de olharmos dentro da caixa e realizarmos uma observação, a tigela está ao
mesmo tempo vazia e cheia, o gato está simultaneamente alimentado e faminto. Nesse momento, as duas
possibilidades coexistem. É apenas a observação que transforma a possibilidade em realidade. […]” (CHOPRA,
2005: 36-37).
314
7
DO INFINITO, MOVIMENTO
(uma brevíssima conclusão)
Comecei esta tese recuperando a imagem do beija-flor, trazida à tona por Rosa
através de Histórias de Fadas. Gostaria então de lembrar que, no decorrer das reflexões aqui
“cerzidas” através da trajetória de Riobaldo, tivemos a oportunidade de ver como a imagem
do pássaro se aproxima do artista poroso. O homem não apenas pode ver como os pássaros,
mas neles se transforma. O próprio ser se modifica. Pássaros que se alimentam através do
canal constituído pelo artista: o espaço entre o enraizado e o que voa, o passivo e o ativo, o
ordinário e o extra-ordinário. Homem, flor e pássaro ao mesmo tempo.
Um beija-flor não controla o mundo, sequer comanda o fazer artístico. Pequeno,
a parte que lhe cabe consiste em administrar a própria leveza e manter elevado o seu nível de
energia – o modo como vibra depende disso; seu mundo e sua arte ressoam nessa vibração.
Um zumbido emana de seu vôo; ouçamos. E não apenas isso: a associação entre seu ritmo
acelerado e o movimento desenhado pelo seu bater de asas lhe confere a possibilidade única
315
de pairar no ar; vejamos. Potencial infinito que se apresenta na brevidade do instante (FIG.
14).
FIGURA 14 – O vôo do beija-flor
241
O movimento, por sua vez, não apenas faz parte da dinâmica inerente ao
funcionamento do próprio beija-flor, como também se faz presente no trânsito que o conduz
de uma esfera de realidade à outra: lembremo-nos que, em História de Fadas, esse pequeno
pássaro, imagem da inspiração, é transportado para o outro lado do mundo. Ao
deslubramento estético gerado pelo encontro com a ave, faz-se seguir o trabalho árduo
implicado em seu delicado deslocamento para uma outra região do globo, com o objetivo de
compartilhamento em um contexto intersubjetivo. A rigor, tem-se um movimento dentro do
outro – o que, novamente, aponta para o caráter multidimensional e complexo presente em
uma porosidade poética.
241
Figura inspirada em modelo deOrnithology Lecture Notes (2006).
316
Iridescência fugaz; “faísca de folga”. O brilho do infinito se expressa através do
movimento. A presença do beija-flor, tão efêmera (como esta “conclusão”), talvez nos lembre
que ser artista não é uma condição constante do ser, mas uma possibilidade a ser nutrida.
Podemos, assim, sustentar o estado de artista por breves momentos. Porosos, cerzimos os
fios do devir: florida mensagem do sertão.
317
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