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Pensando nos saberes necessários à preparação dessa comida, novamente recordo de
muitos elementos vivenciados em campo. A necessidade de saber matar e limpar uma galinha,
carnear o porco e o boi. Preparar a terra, fazer os plantios, a colheita e a armazenamento dos
grãos no tempo certo, até a próxima safra. Separar e cuidar da semente. Colher os legumes da
horta na hora mais adequada às preferências da família, assim como acertar o ponto da salmoura
para fazer conservas que durem bastante. Saber cortar lenha, fazer fogo, construir fornos,
aprender o ponto certo de temperatura para o pão e cada doce assados no forno à lenha. E é
preciso ainda saber cuidar da saúde, nos resguardos de parto e nos diferentes males do corpo.
Assim, apesar das mudanças identificadas na alimentação e no mundo rural, a comida da
roça, caracterizada por tais saberes e práticas permanece viva. Ainda que permeada por
elementos de mudança, mais ou menos presentes nos diferentes contextos de vida das famílias
rurais, a comida da roça não é um modelo alimentar passado e extinto, uma imagem romântica
de um ideal alimentar acionado para lamentar e contrapor o avanço da “dieta ocidental afluente”
(DIEZ GARCIA, 2003). A comida da roça é ideal e real ao mesmo tempo, antiga e atual. Assim
como a agricultura familiar e uma tradição rural, apesar de todas as dificuldades vividas pelas
famílias de agricultores, de ordem econômica, política, social, simbólica e ambiental
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Entendida não somente a partir dos elementos materiais que a compõem, mas também a
partir dos valores e percepções que traduz, a comida da roça pode estar na cidade do mesmo
modo que a comida da cidade está na roça.
Nesse sentido, ocorre atualmente um movimento de valorização do rural por parte de
grupos urbanos, a partir do qual a comida da roça.é ressignificada e revitalizada. Seu consumo,
então, passa a ser percebido como um caminho de construção de modelos de desenvolvimento
rural que promovam conservação ambiental e valorização da cultura rural.
O Slow Food
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, criado na Itália em 1989, pode ser entendido como uma evidência desse
movimento. Nascido a partir da defesa de sabores tradicionais que começavam a ser ameaçados e
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Episódios recentes de enchentes no município enfatizaram a vulnerabilidade do agricultor às catástrofes ambientais.
A cheia dos rios, a força das águas e os estragos no caminho por onde ela correu alteraram a paisagem, a fertilidade
das terras na várzea e a vida de muitas famílias. O controle humano dos espaços em que há o predomínio da cultura e
da família desapareceu em questões de minuto. Quando a água baixou e os trabalhos de recuperação começaram, os
espaços em que os predomínios da natureza ou da cultura são demarcados estavam totalmente misturados, não por
uma escolha humana, mas por uma forte e inesperada imposição da natureza.
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O movimento do Slow Food define-se como “[…] a non-profit, eco-gastronomic member-supported organization
that was founded in 1989 to counteract fast food and fast life, the disappearance of local food traditions and people’s
dwindling interest in the food they eat, where it comes from, how it tastes and how our food choices affect the rest of
the world. Today, we have over 80,000 members all over the world.” (SLOW FOOD, 2007).