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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL CPDOC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA POLÍTICA E BENS
CULTURAIS - PPHPBC
MESTRADO PROFISSIONALIZANTE EM BENS CULTURAIS E PROJETOS
SOCIAIS
RITA DE FÁTIMA MANHÃES GOMES BARRETO
REVISTA COMTATO:
PERSPECTIVAS ATUAIS DA EDUCAÇÃO ESPECIAL
ORIENTADORA: PROFESSORA DOUTORA DULCE CHAVES PANDOLFI
PROJETO ACEITO EM 15/12/2005
PROFESSORA DOUTORA ORIENTADORA
COORDENADOR DO CURSO
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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL CPDOC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA POLÍTICA E BENS
CULTURAIS - PPHPBC
MESTRADO PROFISSIONALIZANTE EM BENS CULTURAIS E PROJETOS
SOCIAIS
REVISTA COMTATO:
PERSPECTIVAS ATUAIS DA EDUCAÇÃO ESPECIAL
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Programa de Pós
Graduação em História Política e Bens Culturais (PPHPBC) do Centro
de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil
CPDOC Para a obtenção do grau de Mestre em Bens Culturais e
Projetos Sociais.
RITA DE FÁTIMA MANHÃES GOMES BARRETO
Rio de Janeiro, 2005
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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL CPDOC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA POLÍTICA E BENS
CULTURAIS - PPHPBC
MESTRADO PROFISSIONALIZANTE EM BENS CULTURAIS E PROJETOS
SOCIAIS
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
APRESENTADO POR
RITA DE FÁTIMA MANHÃES GOMES BARRETO
REVISTA COMTATO:
PERSPECTIVAS ATUAIS DA EDUCAÇÃO ESPECIAL
PROFESSORA DOUTORA: DULCE CHAVES PANDOLFI
ORIENTADORA ACADÊMICO
Ficha catalográfica
BARRETO, Rita de Fátima Manhães Gomes.
Revista Comtato: Perspectivas Atuais da Educação Especial.
Monografia de conclusão de Mestrado. Rio de
Janeiro: FGV, 2005.
92 p.
Bibliografia: 62-64
Introdução. I. Os Desafios do Conhecimento. II. Conhecimento e
Construção Social da Anormalidade. III. Construção da Identidade
Social do Deficiente no Brasil. IV. Conceitos e Parâmetros sobre
Diferença/Deficiência. V. Perspectivas Atuais da Educação Especial.
VI. COMTATO Revista de Educação e Cultura. Conclusão.
Bibliografia. Anexos
Anexos: 65-92
FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL CPDOC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA POLÍTICA E BENS
CULTURAIS - PPHPBC
MESTRADO PROFISSIONALIZANTE EM BENS CULTURAIS E PROJETOS
SOCIAIS
REVISTA COMTATO:
PERSPECTIVAS ATUAIS DA EDUCAÇÃO ESPECIAL
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO APRESENTADA POR
RITA DE FÁTIMA MANHÃES GOMES BARRETO
E
APROVADO EM 2005
PELA BANCA EXAMINADORA
Drª. DULCE CHAVES PANDOLFI
DOUTORA EM HISTÓRIA - ORIENTADORA
Dr. JOÃO PACHECO DE OLIVEIRA
DOUTOR EM ANTROPOLOGIA
Dr. CARLOS EDUARDO BARBOSA SARMENTO
DOUTOR EM HISTÓRIA
Este trabalho é um tributo a meu filho Júlio, seus colegas do
Sentrinho e a todos cujas diferenças inspiram caminhos de sonhos e
cantos novos.
Agradecimentos
Agradeço a sensibilidade, respeito e sutileza do apoio sempre
do meu companheiro Paulo Nolasco, que junto com nossos filhos
Júlio, Fabíola, Franciane, Daniel e Marina entoam vibrante torcida;
A toda equipe do Sentrinho, pela ousadia e alegria de vencer e
construir desafios como uma forma de realizar sonhos de saberes
plurais, expressando e realizando a força da vida contra as opressões;
Manifesto aqui meu carinho e admiração pelos colegas do
mestrado do CPDOC, cujas trajetórias de tão diversas lutas,
reafirmaram meus sonhos por um mundo mais justo e solidário;
Registro também a feliz indicação da amiga Eliana Granado
para matricular-me na disciplina Antropologia Histórica no Museu
Nacional com o professor João Pacheco, que com sua percepção
sensível do outro e a exposição de trabalhos dos colegas sobre a
diversidade cultural de comunidades indígenas, muito influenciou
minha maneira de pensar e viver a diversidade;
Também sou muito grata aos professores Carlos Eduardo
Sarmento e Fernando Weltman do CPDOC, pela inquietação
intelectual e pelos momentos de saudáveis debates;
Finalmente, sou grata ao colega Alexandre Carvalho (CPDOC)
pela brilhante sugestão do título Comtato para a Revista, e em especial
a minha orientadora, professora Dulce Pandolfi, pelo estímulo
intelectual, pelo cuidado e acolhida do outro, pela amizade e exemplo
de ternura resistência, encorajando-me em momentos decisivos.
Resumo
Revista Comtato e Perspectivas Atuais da Educação Especial Enfatizando a
dimensão histórico-ideológica presente em nossa formação, e pensando os desafios da
construção do conhecimento e a reprodução de atitudes acerca da internalização da
diferença/deficiência, aponta a utilização da comunicação alternativa a Revista Comtato
como meio de expressar múltiplas ações e reflexões sobre a educação especial.
Palavras-chave:
Comunicação alternativa educação especial deficiência diversidade humana
Abstract
Comtato Magazine and Current Perspectives of the Special Education Emphasizing
the present description-ideological dimension in our formation, and thinking the challenges of
the construction of the knowledge and the reproduction of attitudes concerning the
internalization of the difference/deficiency, it points the use of the alternative communication
the Comtato Magazine as half to express multiple actions and reflections on the special
education.
Keywords:
Alternative communication special education deficiency human diversity
Índice
Introdução ................................................................................................................
11
1. Os Desafios do Conhecimento .............................................................................
19
2. Conhecimento e Construção Social da Anormalidade ........................................ 24
3. Construção da Identidade Social do Deficiente no Brasil ...................................
35
4. Conceitos e Parâmetros sobre Diferença/Deficiência ..........................................
40
5. Perspectivas Atuais da Educação Especial ..........................................................
48
6. COMTATO Revista de Educação e Cultura .................................................... 56
Conclusão ................................................................................................................ 60
Bibliografia ..............................................................................................................
62
Anexos .....................................................................................................................
65
11
Introdução
A dialógica sapiens/demens foi criadora e também destruidora: o pensamento,
a ciência, as artes foram irrigadas pelas forças profundas da afetividade, por
sonhos, angústias, desejos, medos, esperanças. Nas criações humanas há
sempre uma dupla pilotagem sapiens/demens. Demens inibiu, mas também
favoreceu Sapiens. Platão já havia observado que Diké, a lei sábia, é filha de
Ubris, o descomedimento. Tal furor cego destrói as colunas de um templo de
servidão, como a tomada da Bastilha e, ao contrário, tal culto da razão nutre a
guilhotina. (Morin, 2000:60)
O estudo de qualquer fenômeno implica a compreensão das contingências
históricas e sociais nas quais o mesmo ocorre. No caso específico da problemática
vivida pelos que são colocados na condição de anormalidade, pode-se afirmar que suas
limitações e possibilidades estiveram delineadas pelas concepções de homem, de mundo
e de sociedade assumidas pelas pessoas em determinados momentos e contextos.
O desafio mais importante que os agentes sociais têm de enfrentar em nossos
dias é considerar as diferentes necessidades das pessoas. Num momento em que a lógica
da heterogeneidade e da complexidade aos poucos vai se confrontando com a lógica da
homogeneidade e da simplificação, novas exigências se colocaram para aqueles que
direta ou indiretamente se relacionam com os processos educativos.
Apesar das tendências do fenômeno da globalização se estenderam a todas as
dimensões da vida humana: política, economia, sociedade, cultura, educação... nunca
como hoje as minorias, os grupos, as regiões, ou as pequenas comunidades tiveram tão
grande visibilidade, afirmação e busca de reconhecimento.
Paralelo a um movimento intenso de homogeneização e normalização, outro se
está processando, não menos dinâmico, de reconhecimento da diferenciação, da
heterogeneidade e da diversidade, não no sentido de justificar as desigualdades, mas de
enfrentá-las, considerando a complexidade dos processos históricos e do conhecimento.
12
No que tange à educação, a lógica da heterogeneidade se expressa pelo
reconhecimento e valorização das diferenças individuais entre os alunos. São diferentes
suas expectativas, motivações e interesses, assim como são diferentes os seus
conhecimentos, vivências e experiências anteriores. E se as diferenças resultantes de
características físicas, étnicas, culturais ou socioeconômicas são claramente visíveis e
evidentes, o mesmo não se poderá afirmar das características cognitivas, ou seja, o estilo,
o ritmo e os processos preferenciais de aprendizagem ou o tempo necessário para
aprender e os modos mais eficazes de fazê-lo.
Essa diversidade entre os alunos é amplamente reconhecida, mas práticas e
procedimentos que ignoram esse fato continuam existindo na maior parte dos sistemas
escolares. É a presença de alunos com diferenças significativas, por imposição legal,
que leva a essa discrepância entre o conhecimento e a prática educacional para o
primeiro plano. A fim de lidar com esse problema, foram criados procedimentos para
mudar ou homogeneizar o suficiente para que os alunos satisfaçam às exigências
escolares padronizadas.
Ao invés de tentar mudar os alunos para se enquadrarem no sistema, é preciso
desvendar as formas de pensamento investidas no sistema institucional escolar, para que,
deixando de ignorá-las, o mesmo se transforme para atender às necessidades dos alunos
em suas múltiplas dimensões.
Foucault ao observar que as instituições têm uma história, são produtos da
mesma, que não respondem a constantes antropológicas, que elas não são dados da
natureza, e que, por conseguinte, podem ser transformadas por uma ação histórica,
contribui para colocar sob o olhar histórico, e portanto, submeter ao trabalho teórico, a
maior parte daquilo que nos constitui.
13
Já que as formas de ação que se podem exercer para transformar as instituições,
os comportamentos, passam por um trabalho teórico, isso significa que a ação política,
tal como Foucault a concebe, pressupõe uma crítica radical das formas de pensamento
que fundamentam as instituições.
Pensar numa proposta de inclusão educacional de todos os alunos pressupõe:
desvendar o caráter excludente das formas de pensamento que permeiam as relações no
cotidiano escolar; compreender que a inclusão não é um método, abordagem, ou algo
diferente e sim um valor; ela é o que fazemos com todos os alunos, é o que desejamos
para nós mesmos, para nossa família e para todas as pessoas em nossa sociedade. A
inclusão envolve acolher a todos. Embora possamos criar idéias para promover o mútuo
respeito, a cooperação, intrínsecos ao valor da inclusão, descobrimos caminhos com
base no que desejamos para todos os alunos.
As profundas marcas inscritas pela história nos corpos, mentes e vidas das
pessoas com deficiência nos diferentes contextos leva-nos a uma profunda reflexão
crítica a respeito das possibilidades reais de inclusão social, tão presente nos discursos,
em documentos oficiais, em produções acadêmicas, mas, tão ausente ainda da realidade
dessas pessoas e do cotidiano das escolas.
No decorrer da minha experiência pessoal observo o descompasso entre os
desejos, projetos e possibilidades das pessoas com deficiências diversas, e os limites
psicossociais pautados ainda nos parâmetros normalidade-anormalidade. O
enfrentamento de tal situação envolve o problema da complexidade, da dificuldade de
permanecermos no interior de conceitos claros, distintos, para concebermos o
conhecimento, o mundo em que estamos, a nós na relação com este mundo, e a nossa
relação com nós mesmos.
14
Uma abordagem crítica aos modos de produção do conhecimento esposados
pelas ciências sociais, os sistemas de pensamento que suportam subterraneamente as
instituições e suas relações de poder, pressupõe que, quando se trata de analisar as
diferenças e as desigualdades, não podemos recorrer a um modo de pensar bipolar que
se constitui, por sua vez, em uma das características do pensamento moderno ocidental.
As definições positivas sempre se apóiam na negação ou repressão de algo
que é representado como antiético a elas. E oposições de categorias reprimem
as ambigüidades internas de cada uma delas. (Scott, 1994: 20)
Oposições fixas escondem a heterogeneidade e abrigam, em geral, um sentido de
hierarquização entre os pólos, um sendo o dominante e visível e seu oposto sendo
subordinado e ausente.
Da mesma forma, quando Foucault se propõe a deslocar seus questionamentos
da origem das instituições para as formas de pensamento nelas investidas, deflagram-se
possibilidades para o estudo dos processos antes do que para as causas originais e únicas
dos fenômenos das diferenças.
Interessa, então, do ponto de vista científico e político, não universalizar e
simplificar sujeitos e ainda procurar dar conta das múltiplas formas pelas quais as
tramas sociais, culturais e econômicas se organizam para conferir e fixar sentidos.
Importa, pois, demarcar a instabilidade das categorias de análise, sua variabilidade e a
natureza política de sua construção.
Mais do que enfatizar a importância da diversidade e da exclusão, deveríamos
colocar maior ênfase na construção política e social do conhecimento e na disposição de
sua hegemonia. O discurso da diversidade e da inclusão é, muitas vezes, predicado com
afirmações dissimuladas de assimilação e consenso, que servem de apoio aos modelos
democráticos neoliberais de identidade.
15
Apoiado em justificativas racionais, a deficiência engendra-se num modo de
pensar que a hierarquiza em uma cadeia de sentidos legitimadores de sua dominação,
exploração e exclusão social. A produção científica inclui-se, portanto, como uma das
possíveis racionalidades que confere legitimação às práticas sociais de exclusão, por se
instaurar como poder simbólico.
Constituir mecanismos de intercâmbio de saberes mais articulados com a ação
política de transformação visa despertar nas pessoas o desejo de abandonar espaços
furtivos de afirmação privada, transformando-os em esferas públicas.
A elaboração de um veículo de comunicação alternativa como a Revista
Comtato pretende partir de um princípio de complexidade, de uma experiência local de
Educação Especial, reintegrá-la em seu contexto mais amplo, como estratégia para
avançar no incerto e no aleatório.
A estratégia é a arte de utilizar as informações que aparecem na ação, de
integrá-las, de formular esquemas de ação e de estar apto para reunir o
máximo de certezas para enfrentar as incertezas. (Morin, 2003:192)
A Revista se apresenta como estratégia, porque cultura e educação são duas artes
difíceis e desafiadoras que lidam com a diversidade humana e a própria complexidade
dessa diversidade, com o emaranhado conceitual e as marcas históricas que se
inscrevem nos dois campos, apresentando-nos questões como: a fragmentação, o
reducionismo, as generalizações que dificultam a nossa compreensão do que é ser
humano, cultura, existência humana, diferença, normalidade/anormalidade, enfim,
conhecimentos que recebemos como algo natural e espontâneo.
Para fundamentar a produção da Revista como estratégia política, busco
inspiração em Foucault, Edgar Morin, Adorno, Horkheimer que lançam profundos
questionamentos sobre a produção do conhecimento, e sua responsabilidade ética,
expondo toda uma experiência militante e o compromisso de quem também se preocupa
16
com a elaboração teórica, para provocar um importante debate sobre a diversidade e
heterogeneidade dos seres humanos, dos espaços educativos e culturais.
Se emerge da experiência local de uma escola com alunos com deficiências
diversas é preciso pensar, tendo como referência também outros autores, os processos
históricos que definiram parâmetros e conceitos que utilizamos para “decretar” que
alguém ou algum grupo é diferente. E quando consideramos “significativamente
diferentes”?
A partir da exploração e do questionamento do que seriam os parâmetros
utilizados para definir a “deficiência significativa”, o desvio, ou a anormalidade, pode-
se pensar a anormalidade de formar inovadora; não mais e somente como patologia
seja individual ou social mas como expressão da diversidade e complexidade humana.
Pode-se afirmar que em diversos momentos e contextos sócio-culturais a noção
de desvio construiu, em companhia do estigma, as pré-conceituações/definições de
diferenças significativas, dentre elas a deficiência (vista como um fenômeno global) e,
numa relação dialética as atitudes diante dela.
Nesse sentido, Ligia Amaral (1995), destaca os entraves conscientes ou
inconscientes que dificultam o real reconhecimento dos direitos de cidadania por parte
de muitos dos protagonistas individuais ou institucionais envolvidos nesse “drama”. Os
entraves são os próprios mitos que cercam a questão da deficiência (criados e
perpetuados socialmente) e as barreiras atitudinais (emanadas prioritariamente do
âmbito intrapsíquico) embora a separação entre ambos seja bastante sutil.
Estes autores nos colocam diante da possibilidade de pensar de modo diferente
não só educação, mas nossa própria concepção de homem, sociedade e conhecimento.
Suas idéias nos levam a desancorar do compartimentalizado, mecânico e linear,
jogando-nos numa dinâmica transitória de possibilidades diversas, em permanente
17
estado de aprendizagens, desaprendizagens e reaprendizagens. Apresentam-nos novas
linguagens, na busca por melhor entender e intervir na realidade.
Os temas abordados nesta revista percorrem desde as idéias e experiências
debatidas no meio escolar até a realidade objetiva das pessoas com deficiência, suas
famílias, percorrendo os olhares que se expressam de diferentes lugares e tempos
subjetivos.
Esta primeira edição da Revista Comtato carrega uma singularidade que
certamente será notada pelo leitor: a condição de sujeito assumida pelas pessoas com
deficiência.
18
1
Os Desafios do Conhecimento
Se a governamentalização é mesmo esse movimento pelo qual se tratava, na
própria realidade de uma prática social, de submeter os indivíduos por
mecanismos de poder supostamente baseados na verdade, direi que a crítica é
o movimento pelo qual o sujeito se dá o direito de interrogar a verdade sobre
seus efeitos de poder, sobre seus discursos sobre a verdade; a crítica será a
arte da não-servidão voluntária, da indocilidade refletida. (Foucault apud.
Eribom 1996:44)
Se, como diz Foucault, os regimes de governabilidade se constituem na
confluência de diversas racionalidades específicas; se a clássica racionalidade científica
tem constituído os saberes a partir de regimes de poder; se as ciências e os cientistas não
se encontram imunes às heranças sociais e humanas que procuram analisar; se os modos
de pensar são eles próprios efeitos de regime de temporalidade e de subjetivação, se a
crítica é a forma de lidarmos com as limitações constitutivas de nossas categorias de
análise, vimo-nos, pelo reconhecimento da natureza política de nossas construções,
constituir novos sentidos que não se deixem fixar e apreender pelo reducionismo de
nossa razão.
Essa idéia de uma não-servidão voluntária, isto é, de uma indocilidade que se
toma a si mesma como objeto de análise, nos faz compreender a ênfase de Foucault na
relação entre suas experiências pessoais e seu trabalho teórico.
A insubmissão ao mundo tal como ele é, a crítica diante dos poderes e das
normas são pontos de partida da análise histórica e intervenção política, refletindo a
recusa fundamental da “normalidade” e da “normalização”.
Cada vez que tentei fazer um trabalho teórico, foi a partir de elementos de
minha própria experiência: sempre em relação com processos que eu via se
desenrolarem em torno de mim. Foi porque acreditei reconhecer nas coisas
que via, nas instituições com que me ocupava, em minhas relações com os
outros, fissuras, abalos surdos, disfunções, que empreendi esse trabalho
algum fragmento de autobiografia. (Foucault, apud. Eribom, 1996:40)
19
Ao considerar elementos de sua própria experiência para desenvolver o seu
trabalho teórico, Foucault mantém uma relação direta com as instituições. Trata-se, a
partir de um afastamento em relação à instituição, de um mal-estar, de interrogar-se
sobre essa instituição e de mostrar como aquilo que pode nos parecer evidente no
mundo que nos cerca, nas normas, nas regras, que regem os nossos comportamentos,
nossos modos de pensamento, pode ser questionado. A experiência de não se sentir à
vontade é o que o faz questionar o caráter de evidência da instituição e buscar investigar
o que a fundamenta. E, conseqüentemente, a reconstituir a sua história.
Uma instituição é sempre pensamento sedimentado, e a transformação de uma
instituição implica mover o pensamento para fazer as coisas se moverem.
Interessa compreender o que faz o nosso presente, a nossa atualidade, e,
sobretudo, perceber o que é problema para o nosso presente e para a nossa atualidade.
Estamos diante de um método de investigação, mas não há padrões que se poderia
aplicar de modo universal. Não é uma “filosofia política”, nem um programa, mas, antes,
a definição de um tipo de trabalho teórico.
O trabalho crítico, tal como ele o define, deve se desviar de projetos que
pretendem ser globais, sugere o “intelectual específico”, que intervém teórica e
politicamente em casos pontuais, particulares, recolhendo informações, pesquisando no
nível das realidades, mais próximo possível da vida das pessoas.
O sujeito é constituído por tramas históricas de poder. Seguindo Nietzsche,
Foucault sustenta que não há essência, pura identidade, imóvel e anterior, original,
espírito que se mantém idêntico a si entre as mudanças históricas.
A história é marcada por rupturas, recomeços contínuos definidos por lutas e
relações de força. Na perspectiva de Foucault, as identidades se definem por trajetórias.
Ao invés de apagar a história, é preciso reconstituí-la, ao invés de anular as mudanças
20
remetendo-as à identidade do eu, é preciso explicá-las e compreender que a identidade
pessoal talvez só se defina como uma maneira singular de mudar em contato com o que
muda.
Uma teoria é sempre local, relativa a um determinado domínio e pode se
aplicar a um outro domínio, mais ou menos afastado. A relação de aplicação
nunca é de semelhança... A prática é um conjunto de revezamentos de uma
teoria a outra e a teoria um revezamento de uma prática a outra. Nenhuma
teoria pode se desenvolver sem encontrar uma espécie de muro e é preciso a
prática para atravessar o muro. (Deleuze apud. Foucault 1979:69, 70)
Para ambos, o intelectual teórico deixou de ser uma consciência representante ou
representativa, os que agem e lutam constituem uma multiplicidade, relações de
revezamento da ação de teoria, ação de prática.
É por isso que a teoria não expressará, não traduzirá, não aplicará uma prática,
ela é uma prática... mas local e regional... não totalizadora. Luta contra o
poder, luta para fazê-lo aparecer e feri-lo onde ele é mais invisível e mais
insidioso. (ibid, 1979:71)
Deleuze considera a teoria como uma caixa de “ferramentas”, que deve ter
utilidade, que dê resultados, e se pessoas não a utilizam, inclusive o próprio teórico, ela
perde o sentido ou aguarda o momento de ser utilizada com sentido.
Edgar Morin (2003), ao lançar a problemática da complexidade que considera
ainda pouco presente no pensamento científico, no pensamento epistemológico e no
pensamento filosófico, a concebe como uma motivação e desafio para pensar, um
substituto eficaz da simplificação, como um espaço para lidar com o incontornável
desafio que o real lança à nossa mente, e a incompletude do conhecimento.
De fato, a aspiração à complexidade tende para o conhecimento
multidimensional. Ela não quer dar todas as informações sobre um fenômeno
estudado, mas respeitar suas diversas dimensões... não devemos esquecer que
o homem é um ser biológico-sóciocultural, e que os fenômenos sociais são,
ao mesmo tempo, econômicos, culturais, psicológicos etc. Dito isto, ao
aspirar a multidimensionalidade, o pensamento complexo comporta em seu
interior um princípio de incompletude e de incerteza. (Morin, 2003:177)
A complexidade surge como dificuldade, como incerteza e não como clareza e
como resposta.
21
Durante muito tempo, muitos acreditaram; e talvez ainda acreditem que a
questão das ciências humanas e sociais era o de não poder se livrar da
complexidade aparente dos fenômenos humanos para se elevar à dignidade
das ciências naturais que faziam leis simples, princípios simples e
conseguiam que, nas suas concepções, reinasse a ordem do determinismo.
Atualmente, vemos que existe uma crise da explicação simples nas ciências
biológicas e físicas: desde então, o que parecia ser resíduo não científico das
ciências humanas, a incerteza, a desordem, a contradição, a pluralidade, a
complicação etc... faz parte de uma problemática geral do conhecimento
científico. (Morin, 2003:177)
Não podemos chegar à complexidade por uma predefinição linear, mas abrindo
caminhos diversos, dentre os quais Morin sugere: a irredutibilidade do acaso e da
desordem; a transgressão dos limites do que poderíamos chamar de abstração
universalista que elimina a singularidade, a localidade e temporalidade; a complicação,
quando percebemos que os fenômenos biológicos e sociais apresentam inúmeras
interações, inter-retroações; a relação complementar e antagônica entre as noções de
ordem, de desordem e de organização, se opondo ao princípio básico da ordem natural
obedecendo às leis naturais.
(...) a organização é aquilo que constitui um sistema a partir de elementos
diferentes; portanto, ela constitui, ao mesmo tempo uma unidade e uma
multiplicidade. A complexidade lógica de unitas multiplex nos pede para não
transformarmos o múltiplo em um, nem o um em múltiplo. (Morin, 2003:180)
Ao discutir os sistemas organizados, Morin demonstra que eles são mais e
menos do que a soma das partes. É alguma coisa de menos, porque a organização
provoca limitações que inibe as potencialidades existentes em cada parte. Isso acontece
em todas as organizações, inclusive nas sociais em que leis, regulamentos, sistemas de
pensamento inibem ou reprimem nossas potencialidades.
O todo organizado é alguma coisa mais do que a somas das partes, porque faz
surgir qualidades que não existiriam nessa organização; essas qualidades são
“emergentes” (ibid: 180)
As qualidades que emergem interferem nas partes e podem provocar o
desenvolvimento de suas potencialidades.
22
Um outro aspecto da complexidade de organizações biológicas e sociais é o fato
de que algumas podem funcionar de maneira anárquica por interações espontâneas,
outras podem ter muitos centros de controle, ainda existem aquelas que dispõem de um
centro de decisão.
Nossas sociedades históricas contemporâneas se auto-organizam não só a
partir de um centro de comando-decisão (Estado, governo), mas também de
diversos centros de organização (autoridades estaduais, municipais, empresas,
partidos políticos etc) e de interações espontâneas entre grupos de indivíduos.
(Morin, 2003:181)
No campo da complexidade, destacar o princípio que ele denomina
hologramático, em que não só a parte está no todo, mas que também o todo está na parte,
pressupõe que os diferentes aspectos do todo social estão presentes na parte no
indivíduo, nas instituições.
Se os sistemas sociais são complexos, não podemos considerá-los na perspectiva
do reducionismo (que quer compreender o todo a partir só das qualidades das partes) ou
de “holismo”, que também é simplificador, que desconsidera as partes para
compreender o todo.
Pascal já dizia: ‘só posso compreender um todo se conheço, especificamente,
as partes, mas só posso compreender as partes se conhecer o todo’. Isso
significa que abandonamos um tipo de explicação linear por um tipo de
explicação em movimento, circular, onde vamos das partes para o todo, do
todo para as partes, para tentar compreender um fenômeno. (ibid, 182)
A busca de compreensão do todo pode ter como ponto de partida, uma situação
especial, que num dado momento expresse o drama ou a tragédia do todo.
A maior explicitação de fenômenos globais ou gerais necessita da articulação
dialógica e investigativa entre as particularidades e o conjunto; daí a importância do
observador se inserir na sua observação e na sua concepção, o que em Foucault é partir
da “experiência pessoal”, que ao se integrar no fenômeno estudado, o fenômeno está
nele e ele está no fenômeno.
23
A transposição das barreiras entre os campos do conhecimento, a discussão de
novas perspectivas para educação das pessoas com deficiências, no contexto mais amplo
da educação, o enfrentamento da acomodação que nos é proposta nessa sociedade
excludente, e, partindo de experiências locais, revisitar a história, incorporar o
pensamento complexo sobre conhecimento e construção social da anormalidade é um
convite e um desafio.
24
2
Conhecimento e Construção Social da Anormalidade
A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o
caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma. (Adorno/Horkheimer,
1985:114)
Os dois autores propõem-se a repensar o conceito de esclarecimento no contexto
da Segunda Guerra Mundial, a fazer uma releitura crítica das ruínas da história do
Ocidente, devendo o pensamento emancipador não abrir mão de seu ímpeto, mesmo
diante daquela realidade, a enfrentar a tarefa de lançar luz sobre a complementaridade
que existe entre progresso e regressão, entre iluminismo e mito: “O mito já é
esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia”. (1985:71)
O capítulo introdutório do livro “A Dialética do Esclarecimento”, “O Conceito
de Esclarecimento” já indica o espírito da obra:
No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem
perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na
posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o
signo de uma calamidade triunfal. O programa do esclarecimento era o
desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a
imaginação pelo saber. [...] O entendimento que vence a superstição deve
imperar sobre a natureza desencantada. [...] A técnica é a essência desse saber.
[...] Não deve haver nenhum mistério. [...] O esclarecimento é totalitário.
(ibid: 72)
Portanto, o impulso totalitário do esclarecimento não é “racional” é dominado
pela “obsessão” da dominação total. A natureza é vista como simples objeto que pode
ser conquistada, explicada e dominada. Cabe ao sujeito o papel ativo de dominação.
Segundo os autores, o ímpeto dominador existente tanto no mito quanto no
esclarecimento é uma resposta à sensação de medo e temor que localizam na “origem”
da humanidade.
O grito de terror com que é vivido o insólito torna-se seu nome. Ele fixa a
transcendência do desconhecido em face do conhecido e, assim, o horror
como sacralidade. A duplicação da natureza como aparência e essência, ação
25
e força, que torna possível tanto o mito quanto a ciência, provém do medo do
homem, cuja expressão se converte na explicação. (ibid: 73)
Em Dialética Negativa, de 1966, Adorno volta-se para o “resto” que não penetra
no conceito. Não que desqualificasse o conceito, mas o que pretendia era distinguir a
realidade das aparências da realidade das essências. Para ele o mundo das aparências,
assim como para Platão antes dele, é um mundo de imagens e meras ilusões, um mundo
de relativismo e, mais do que tudo, de reificação.
Em suas reflexões, busca praticamente declarar, como Foucault e Morin, o lugar
da heterogeneidade da experiência humana, e a manifestação de solidariedade com o
não-idêntico, a totalidade não pode ser reduzida ao conceito, a sua singularidade deve
ser assegurada.
Na Dialética do Esclarecimento, encontro os elementos que justificam uma
retomada histórica da deficiência, que nada mais tem sido da “superstição à ciência”,
utilizando o título do livro de Pessoti (1984), uma resposta à sensação de medo que o
contato com o outro, com o estranhamento, produz. Exclui-se a alteridade para não
acolher a diferença em nós – que esse encontro produz.
História marcada pela segregação, com requintes de desumanização e
atrocidades. Penso que é de extrema importância, como sugere Adorno, a preservação
da memória da catástrofe que marcou os sujeitos com deficiências, como ponto
fundamental na desconstrução dos mitos erguidos, como elementos totalitários de
exclusão social.
O pensamento da Igreja Católica tem como meta, no período medieval, o
alcance de três virtudes teologais: fé, esperança e caridade que se inicia com o
“acolhimento” não só de pessoas com deficiências, mas dos “desvalidos” de modo geral.
Pessoti (1984) apresenta como exemplo das instituições de recolhimento a
fundação, em 1247, do hospital-asilo Bethlehem na Inglaterra. Merisse (1997), ao
26
abordar a origem das instituições de atendimento a crianças pobres ou abandonadas,
lembra que “poderíamos encontrar a origem remota de todas as atuais instituições
médico-assistenciais e educacionais nos abrigos ou asilos”. (Merisse, 1997:26)
Nestas primeiras instituições, eram recolhidos todos os tipos de desvalidos:
“doentes mentais”, “deficientes” ou “delinqüentes”. Esse fato pode indicar que a origem
do atendimento à pessoa com deficiência traz algumas características: a abordagem
assistencialista-caritativa e sua não-identidade específica, e sua inclusão no “mundo dos
desvalidos” também possuidores de “alma”.
A partir do século XII, vamos observar transformações significativas no
contexto da estrutura feudal: o desenvolvimento do comércio, o crescimento urbano, os
avanços técnicos, que provocam a fragilização das relações de produção baseadas na
estrutura fundiária e servil. O novo tipo de organização social, necessária ao
desenvolvimento comercial, proporciona à vida nas cidades, novas relações e nova
mentalidade.
Então, um novo modelo de pensar e de ser voltado para este mundo emergiu
da turbulência revolucionária do Renascimento.
A civilização moderna ocidental foi edificada sob o signo do paradigma
racionalista-mecanicista. Dele emanou um novo saber com dois grandes pilares
epistemológicos: a razão e a sensação. Não que a intuição mítica e o sentimento de fé
tenham desaparecido, porém o homem assumiu uma nova tarefa histórica: a de instalar
definitivamente o seu império neste mundo. Conforme exortou Bacon:
(...) se alguém se dispõe a instaurar e estender o poder e o domínio do gênero
humano sobre o universo, a sua ambição seria, sem dúvida, a mais sábia e a
mais nobre de todas. (1973:38)
27
O novo modo de pensar e de ser emergiu de uma profunda crise multifacetada.
Entretanto, foi no campo do saber que se estabeleceu o confronto mais profundo das
novas teorias com as verdades estabelecidas. Talvez com a mais importante: a
concepção geocêntrica de Ptolomeu aceita como dogma por mais de mil anos.
A teoria do espaço infinito de Giordano Bruno e, posteriormente, a revolução
científica heliocêntrica de Copérnico, comprovada por Galileu Galilei, abalaram os
alicerces das verdades do pensamento medieval, até então inquestionáveis. Na incerteza
do outro mundo, o homem voltou-se para este mundo e para si próprio, buscando a
partir da racionalidade do saber científico, construir um novo significado para a
realidade.
No campo econômico, outra face dessa crise se revelou no choque iniciado na
Idade Média, entre o feudalismo e o mercantilismo em expansão. A nova economia foi
sendo alimentada pela expansão manufatureira, prévia da indústria capitalista
subseqüente.
Nesse contexto, a classe social emergente a burguesia iniciou sua trajetória
de ascensão ao poder propondo uma estrutura social em que a autoridade emanasse de
um contrato entre os homens e não mais de Deus. Assim, o capitalismo comercial, o
liberalismo burguês, a ruptura da unidade religiosa e o saber científico foram as diversas
faces de uma mesma realidade nascente: a cultura moderna ocidental.
O mundo moderno significou o surgimento de um tempo, nascido de novas
bases paradigmáticas. O saber contemplativo-especulativo, que buscava o significado
último do universo deu lugar ao saber ativo cujo objetivo é descobrir o funcionamento
deste mundo para dominá-lo e transformá-lo. A nova postura epistemológica buscou
critérios de verdade na experimentação (sensação) e na lógica matemática (razão).
28
Duas grandes correntes filosóficas ofereceram fundamentos para a ciência
moderna: o racionalismo e o empirismo; revelando assim o culto do intelecto e o exílio
do coração. O universo, na óptica mecanicista, está organizado a partir da linearidade
determinista de causa e efeito. Sua epistemologia reducionista fragmentou tanto a nossa
realidade externa (interpessoal), quanto a realidade interna (psíquica).
No plano existencial, a ética individualista e os valores materiais cimentam a
civilização do ter. Em “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, ensaios
publicados entre 1904 e 1905, Max Weber estabelece uma vinculação profunda entre o
puritanismo e a gênese do capitalismo. Contra os argumentos baseados em uma
determinação econômica unidirecional para explicar a origem da sociedade burguesa,
reconhecerá a importância exercida pelo protestantismo na construção do ethos
mundano e materialista do próprio capitalismo.
Para Weber, o racionalismo econômico moderno que permite, orienta e justifica
a acumulação de lucros encontrará na ética racional do protestantismo ascético sua base
de sustentação normativa.
O Discurso do Método de Descartes (1596-1650) vai deixar uma contribuição
inegável ao apresentar os passos para o desenvolvimento da pesquisa na ciência
moderna com a valorização da razão, ligada a um corpo orgânico, uma máquina natural,
que pode ser fisicamente estudado, explicado.
O inatismo, ou a idéia da preexistência inata de “dons” e/ou conhecimentos, já
presente desde Platão, pode ser identificado também em Descartes ou em outros
pensadores como Leibniz (1646-1716).
Pessoti (1984), Fonseca (1987), entre outros, nos mostram que as idéias
elaboradas por Locke serão de grande valia para o desenvolvimento da
educação especial, na medida em que apontam a experiência humana como
decisiva para o desenvolvimento da própria inteligência. Devido à crença nos
fatores determinantes do meio, trabalhos como os dos médicos Itard (1775-
1838) e Seguin (1812-1880) são possíveis. (Kassar, 1999:06)
29
O desenvolvimento das ciências naturais propicia que a discussão acerca da
influência dos componentes internos (inatos) e externos ou sociais no desenvolvimento
humano adquira status de cientificidade.
O discurso científico, ao ir se delineando e se expandindo, apresenta aspectos
incorporados na sua constituição por discursos já presentes historicamente instituídos
assim como, prospectivamente, deixará suas contribuições. Podemos identificar esse
movimento ao enfocar a concepção de desenvolvimento humano: a predestinação divina
que marca o período medieval cede lugar, segundo Pessoti, à fatalidade hereditária
na modernidade.
Por influência do progresso no campo das ciências naturais, a valorização do
método científico e pela difusão do pensamento empirista, podemos dizer que, a partir
do século XVII, inicia-se um movimento de generalização do “olhar científico”.
Hobsbawm (1997:36) argumenta que, nesse período, as ciências dedicavam-se à solução
de problemas práticos, e a diferença entre os povos, entre as pessoas era um problema
presente nesse contexto.
Nesse momento, razão e experiência empírica vinculam-se como forças
organizadoras do desenvolvimento social. O próprio movimento iluminista deriva,
segundo Hobsbawn, (1997:37), “do evidente progresso da produção, do comércio e da
racionalidade econômica e científica”.
Esse “olhar científico” faz-se presente, também, na busca para o entendimento
sobre deficiência mental, podendo ser identificado desde os séculos XVI e XVII,
quando médicos começam a procurar causas orgânicas para a explicação da deficiência.
No contexto em que o desenvolvimento humano era, em grande parte, explicado por
teorias inatistas e de grandes progressos experimentais, encontramos esforços para
explicar a deficiência, a partir da existência de uma causa inata ou orgânica.
30
Goffman (2003) atribui a Felix Platter (1536-1614), os primeiros elementos das
teorias da hereditariedade da deficiência mental e da degenerescência humana. Pessoti
(1984) acredita que o preconceito presente até hoje em relação à crença na
hereditariedade indiscriminada da deficiência mental é produto da teoria da
degenerescência.
O processo de institucionalização não é característico apenas do atendimento a
pessoas com deficiências. Esse processo está relacionado à intensa industrialização e
concentração de pessoas nas cidades, quando a vida social passa a ser racionalmente
“marcada” pelo ritmo de produção: seja na divisão dos espaços, na divisão do tempo, ou
no controle do corpo.
A concentração das pessoas nas cidades, as freqüentes epidemias e o
“progressivo isolamento da família burguesa no lar”, acabam por propiciar a
preconização de medidas higiênicas, valorizadas com a difusão de um pensamento
calcado no conhecimento biológico.
Comte (1824, apud Canguilhem, 1982:28) comenta este aspecto, dizendo que
“jamais se concebeu de maneira tão direta e satisfatória a relação fundamental entre
patologia e a fisiologia”. Esses pensamentos possibilitam uma explicação “científica” à
idéia de irreversibilidade do quadro patológico.
O dinamismo social implica mudanças de hábitos e crenças entre as quais, as
relacionadas à deficiência. Assim, no século XIX, trabalhos como os de Froebel e
Seguin mostram a possibilidade de educação da pessoa com deficiência mental e
favorecem uma discussão a respeito.
A posição inatista, já abalada com os estudos de Locke no século XVII, que
vêem o homem como totalmente ligado ao meio, encontra-se novamente debilitada com
as teorias da “evolução das espécies” desenvolvidas por Lamarck e Darwin. Essas
31
teorias atingem crenças seculares e, aos poucos, vão sendo assimiladas por outras áreas
do conhecimento.
A contribuição significativa do pensamento evolucionista para as ciências
humanas é a organização dessas ciências como sujeitas a uma evolução natural
progressiva e, portanto, descritivas. O discurso da evolução natural faz-se presente nas
explicações sobre a vida em sociedade e no estabelecimento de condutas para a
organização da produção.
No entanto, críticas são feitas à crença ao movimento espontâneo da sociedade.
(...) o mundo sensível (que o rodeia) não é uma coisa dada diretamente da
eternidade, sempre igual a si mesma, mas antes produto da indústria e do
estado em que se encontra a sociedade, e precisamente no sentido de que ele
é um produto histórico, o resultado da atividade de toda uma série de
gerações, cada uma das quais aos ombros da anterior e desenvolvendo a sua
indústria e o seu intercâmbio e modificando a sua ordem social de acordo
com necessidades já diferentes. (Marx e Engels, 1984:27)
Se, de um lado, a ciência produzida na Modernidade retomou e fortaleceu a
construção do conhecimento a partir da experiência sensível, apontando para a
importância fundamental do meio para o desenvolvimento humano, o que possibilitou a
realização de trabalhos com a deficiência mental, por outro, a incorporação do sentido
de evolução natural, pelas explicações acerca do desenvolvimento das sociedades e do
ser humano, trouxe-nos a crença no (pré) determinismo dessa evolução.
[... chamaremos normais aos fatos que apresentam as formas mais gerais e
daremos aos outros a designação de mórbidos ou Patológicos]. (Durkheim,
1983:114)
As peculiaridades individuais que interferem em seu processo de
desenvolvimento, poderiam evidenciar a existência de características não universais e
sim, diante de um quadro patológico, cujo paradigma utilizado é o da doença.
A despeito das formas diversas pelas quais os mais diferentes meios sociais
encararam a doença, a procura de seu desvendamento implicou sempre intervenção
32
sobre ela. O desenvolvimento da ciência moderna, como vimos, retirou a doença do
campo da explicação sobrenatural, possibilitando a intervenção controlada, contribuindo
para o aumento das possibilidades de sobrevivência do homem.
A concepção hegemônica moderna da anormalidade social tem utilizado como
base o paradigma biológico, na medida em que essa ciência já teria chegado a alto nível
de certeza na distinção entre o estado normal e o patológico, ao considerar a doença
como um desvio do estado habitual. Essa concepção de doença tem se transformado,
praticamente, em senso comum, dada a sua penetração, não somente entre especialistas,
mas pelo fato de ter se disseminado de tal forma que acreditamos que sempre foi assim,
tal sua pretensa objetividade.
Foi a partir de Comte que o estado patológico deixou de ser relacionado com leis
completamente diferentes das que reagem o estado normal, pois, para ele:
O estado patológico em absoluto não difere radicalmente do estado
fisiológico, em relação ao qual ele só poderia constituir, sob um aspecto
qualquer, um simples prolongamento mais ou menos extenso do limite de
variações, quer superiores que inferiores, peculiares a cada fenômeno do
organismo normal, sem jamais poder produzir fenômenos realmente novos
que não tivessem de modo nenhum, até certo ponto, seus análogos puramente
biológicos. (Comte, apud Canguilhem, 1982: 31)
O positivismo encarou esta concepção, como a resposta definitiva da ciência
para a compreensão da relação saúde-doença.
Para Canguilhem, o fato de o ser vivo reagir por uma doença a uma lesão ou
infecção pode ser interpretado no sentido de que:
A vida não é indiferente às condições nas quais ela é possível, que a vida é
polaridade e, por isso mesmo, posição inconsciente de valor, em resumo, que
a vida é, de fato, uma atividade normativa. (Canguilhem, 1982: 96)
O conceito de normal ultrapassa, portanto a mera designação do fenômeno
freqüente, na medida em que:
Uma norma só é possibilidade de uma referência quando foi instituída como
expressão de uma preferência e como instrumento de uma vontade de
33
substituir um estado de coisas insatisfatório por um estado de coisas
satisfatório. (ibid: 212)
Mesmo do ponto de vista biológico, não há como se separar as manifestações
orgânicas das condições do meio, isto é, se essas condições se modificarem, respostas
“organicamente satisfatórias” podem passar a ser “organicamente insatisfatórias”.
Se, do ponto de vista biológico, a perspectiva positivista não se sustenta, a sua
utilização como paradigma para a conceituação da relação normalidade-anormalidade
social, merece ser observada de forma crítica, pois mesmo aquelas anormalidades de
origem orgânica, além de interferirem na capacidade de sobrevivência, geram
conseqüências sobre as possibilidades de participação social do indivíduo.
Assim é que o conceito de anormalidade social vai, historicamente, se refinando,
se modificando, na medida em que as condições sociais vão sendo transformadas
gerando novas necessidades na relação indivíduo-meio social.
Parece, entretanto, que determinados tipos de anormalidades evidenciadas por
aquelas de origem orgânica, poderiam ser caracterizadas como não universais ante a
espécie humana e que gerariam dificuldades sociais, independentemente de condições
históricas ou geográficas. Ao lado dessas, existiriam outros tipos de anormalidades, sem
qualquer evidência de alterações orgânicas, estas, sim, produzidas nas relações sociais.
Em outras palavras, se a delinqüência, ou mesmo a doença mental, não podem
ser apreendidas apenas na perspectiva das suas manifestações internas e pessoais, mas
somente da íntima relação indivíduo-meio social, outras anormalidades, como a surdez,
a cegueira e a deformidade física parecem carregar uma marca não universal ante a
espécie que, em última instância, tem em sua “vocação” aptidões para ouvir, enxergar e
se locomover.
Na realidade, tanto umas quanto outras, respondem a determinações
historicamente construídas. Se os cegos foram identificados desde os tempos mais
34
remotos, isto se deve ao fato de que a diferença orgânica gerou conseqüências na
relação desses indivíduos com o meio, impossibilitando-os de se constituírem como
seres normativos, isto é, essa diferença se constituiu, pela relação exigências do meio-
característica orgânica, em anormalidade.
Ao contrário, a deficiência mental, tal como a conhecemos, não apenas só
passou a ser identificada a partir do final do século XVII, como foi construída na
trajetória histórica de determinadas formações sociais que, gradativamente, foram
exigindo determinadas formas de produtividade intelectual, as quais acabam na
caracterização de um determinado tipo de indivíduos os deficientes mentais que não
conseguiam, em relação a essas exigências, se constituir como normativos.
Se, em outras formações sociais, seja em tempos ou espaços diferentes, os
requisitos e expectativas sociais não exigiram ou exigem um determinado tipo de
atuação que determine a existência desta ou daquela normalidade, esta não é
identificada, e isso não por ignorância, mas porque as relações sociais estabelecidas não
a requerem.
Recuperar a visão do processo histórico que nos constitui é questionar a
naturalização do infortúnio vivido pelos diferentes como produto de causas naturais.
Trata-se de uma construção histórica, ideológica, discursiva, moral. Uma construção
que tende a se superpor ao olhar cotidiano, tornando os acontecimentos passíveis de
uma visibilidade artificial.
De outra forma, é possível reconhecer que o que distingue o visível do
invisível é uma determinada hierarquia de valores, uma certa valorização de
sentidos. O olhar cotidiano opera movido pela seletividade da consciência
moral. Determinados acontecimentos se tornam chocantes ou agradáveis,
revoltantes ou prazerosos quando entram em conflito ou vão de encontro a
valores instituídos social e subjetivamente. (Gentili, 2002: 34)
35
3
A Construção da Identidade Social do Deficiente no Brasil
A “anormalidade” torna os acontecimentos visíveis, ao mesmo tempo em que
a “normalidade” costuma ter a capacidade de ocultá-las: O “normal” se torna
cotidiano. E a visibilidade do cotidiano se desvanece (insensível e indiferente)
como produto de sua tendencial naturalização. (Gentili, 2002:29)
A educação especial brasileira parece acompanhar os três momentos marcantes
da educação especial no período pós-revolução Industrial: o da criação de instituições
de internação; a convivência entre instituições de internação e a escola diária; e a
integração do deficiente na rede regular de ensino.
As primeiras instituições de educação especial surgem no Brasil, na segunda
metade do século XIX, destinadas aos deficientes visuais e auditivos por
iniciativa do governo imperial. São elas: O Imperial Instituto dos meninos-
cegos (atual Instituto Benjamin Constant), criado pelo Decreto imperial nº
1428, de 12/09/1854, e o Instituto de surdos-mudos (atual Instituto Nacional
de Educação de Surdos) que foi oficialmente implantado em 26 de setembro
de 1857, ambos na cidade do Rio de Janeiro. (Bueno, 1993: 85)
A noção da necessidade de segregação dos anormais como forma necessária para
sua “educação” parece bem expressiva no Brasil, já que não há informação de qualquer
outra iniciativa não segregacionista, até, pelo menos, o início da década de 1930,
quando foram criadas as primeiras classes especiais em escolas regulares.
Além dessas, foram criadas classes para o tratamento de deficientes mentais no
Hospital Psiquiátrico da Bahia, a partir de 1874, e da criação do Pavilhão Bourneville,
no Hospital D. Pedro II, no Rio de Janeiro, em 1903, que se configuram, também, como
internatos. Jannuzzi (1985: 62) aponta como uma das primeiras iniciativas com relação
à criação de classes para deficientes na escola regular, a criação de classe especial para
“débeis mentais” na escola primária José de Andrade, em 1933, no Rio de Janeiro.
36
O internato, como forma exclusiva no atendimento de crianças deficientes, cria
uma identidade social pautada segundo Bueno (1993) em três dimensões: a primeira, a
necessidade da sua separação do meio social geral para, por um lado, evitando que a
presença de anormais interfira na racionalização do espaço, e, por outro, para “proteger”
os sujeitos com incapacidades, os quais têm dificuldades, no auto cuidado e na auto
proteção.
Assim, foi se construindo uma representação social do internato, tanto pelas
pessoas “comuns”, mas,principalmente, pelos próprios deficientes, como um
local onde poderiam viver sem ser molestados, convivendo com seus “iguais”,
protegidos contra aqueles que não lhes compreendem, isto é “criando uma
cultura em que a instituição total, mais do que sua algoz é encarada como sua
aliada. (Bueno, 1993)
A segunda, referente à absoluta falta de ampliação de instituições de educação
especial até a década de 1920, fez com que, tanto o meio social como os próprios
deficientes encarassem a possibilidade de internação nesses institutos como um
privilégio a ser alcançado.
A terceira refere-se ao baixo rendimento alcançado nesses institutos, por
questões de ordem econômica, disciplinar e moral. Na medida em que esses institutos
não conseguiam se organizar para oferecer aos seus alunos formação suficiente para a
sua integração social, contribuía para que essas pessoas criassem uma auto-imagem de
incapacidade e de inferioridade, e que a sociedade em geral as encarasse dentro do
âmbito da filantropia.
O segundo momento da educação especial no Brasil, situado entre o início do
século e a década de 50, se caracteriza, por um lado, pela disseminação de instituições
de educação especial, e, por outro, pela preocupação da escola regular em detectar
“alunos-problema” para, através da homogeneização das classes, aumentar a
produtividade escolar.
37
Começa no início do século, a produção de um discurso que, através da
legitimação do atendimento do anormal em sistemas especiais de ensino, encobre o
fundamental: a exclusão do diferente. A omissão do poder público é evidente: em 1912
foi criado o Laboratório de Pedagogia Experimental, e a primeira classe especial para
“débeis mentais” só foi iniciada em 1933.
Portanto, a educação no Brasil não conseguia dar conta nem daqueles cuja
anormalidade só era detectada quando ingressava na escola, quanto mais daqueles
significativamente diferentes que não ingressavam no ensino regular.
O atendimento às pessoas com diferenças significativas se fez, basicamente, por
meio de instituições especiais, a maioria de caráter filantrópico, poucas para o
atendimento da demanda, o que contribuía para consolidar a visão de que a conquista de
uma vaga nas mesmas era um privilégio de uma minoria, já que a maioria permanecia
sem qualquer tipo de atenção.
Assim, a ampliação dos serviços de atendimento ao anormal, ocorrida na
primeira metade deste século em nosso país, calcados numa concepção de
irreversibilidade da anormalidade, contribuiu decisivamente para a
manutenção de uma visão assistencialista, que colocou-os no rol da
filantropia e da caridade pública, excluindo o atendimento do anormal da
discussão sobre os direitos de cidadania. (Bueno, 1993: 37).
Nem nos movimentos de resistência, comprometidos com a pedagogia do
oprimido e da liberdade, eram colocadas em discussão as questões da deficiência. Não
eram situados nem na categoria de excluídos.
O terceiro momento da educação especial, que se estende da década de 50 até os
nossos dias, é caracterizado pela expansão da ação do poder público, com a criação e
desenvolvimento dos serviços de educação especial no nível dos governos federal e
estaduais, bem como pela disseminação de uma rede privado-assistencial e que tem se
apresentado como um avanço em relação aos momentos anteriores.
38
A partir daí, há a difusão de uma determinada concepção de anormalidade, tais
como: a da inclusão de outras categorias no rol das anormalidades e da conseqüente
relação contraditória entre a exclusão do “aluno-problema” das classes regulares e da
luta pela integração dos deficientes no ensino regular; o da pequena abrangência, em
termos estatísticos, do atendimento à criança “anormal”; e a falta de qualidade dos
serviços especializados.
Durante a primeira metade do século, o atendimento à criança deficiente se
limitou aos deficientes mentais, auditivos e visuais (em menor parcela, ao deficiente
físico), nesse terceiro momento há a inclusão de outras anormalidades” no rol da
excepcionalidade.
Ao mesmo tempo que esta ampliação ofereceu, por um lado, o acesso a
educação de outras pessoas com deficiências, como as com
comprometimento neurológico, anteriormente não identificados, por outro,
“foi incorporando população com deficiências e distúrbios” cada vez mais
próximas da normalidade média determinada por uma “abordagem científica”
que se pretende “neutra e objetiva”, culminando com o envolvimento dos que
não têm quaisquer evidências dessa mesma “normalidade média. (Bueno,
1993).
A ampliação não só não significou a melhoria da qualidade para os já
incorporados pela educação especial, como passou a englobar sujeitos cujas
dificuldades são decorrentes da inadequação de processos sociais e educacionais.
Ao se organizarem as classes especiais para deficientes mentais “leves”, na
maioria constituídas por alunos multi-repetentes, a educação especial contribui de forma
decisiva para a disseminação da concepção de “dificuldades de aprendizagem” inerentes
aos indivíduos e, dessa forma, avalizando o caráter excludente e seletivo dos processos
regulares de ensino, cuja marca tem sido a produção massiva do fracasso escolar
atingindo, fundamentalmente, as crianças das camadas populares.
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Essa horizontalização da educação especial no contexto do populismo
educacional não possibilitou a universalização das oportunidades educacionais para os
significativamente diferentes. Somente uma pequena parcela tem, até hoje, acesso a
serviços educacionais especializados, estimada em cerca de, no máximo, 15% do total
da população com deficiência em idade escolar.
A exclusão da maioria das pessoas com deficiência da educação especial, ao não
se explicitarem as dificuldades de acesso por falta de oportunidades e,
conseqüentemente, impedindo a inclusão social, contribui para a concepção dominante
de que são incapazes de adquirir autonomia. E mesmo aquela pequena parcela que
ingressa nas instituições de educação especial, sejam públicas ou privado-assistenciais,
com a baixa qualificação profissional, a manutenção da concepção filantrópica e médica
da deficiência, não tem adquirido bom nível de formação educacional, ficando também
impossibilitados de acesso a espaços sociais mais amplos.
Por fim, a identidade do deficiente no Brasil se constituiu a partir de propostas e
ações educacionais que cristalizaram uma concepção de irreversibilidade e de
incapacidade para a aprendizagem como decorrência da deficiência, e não como
decorrência da má qualidade dos processos educacionais e da forte exclusão social, já
que a grande maioria das pessoas com a condição de deficiência são oriundas das
camadas sociais menos favorecidas.
40
4
Conceitos e Parâmetros Sobre a Diferença/Deficiência
O ser humano nos é revelado em sua complexidade: ser, ao mesmo tempo,
totalmente biológico e totalmente cultural. O cérebro, por meio do qual
pensamos, a boca pela qual falamos, a mão com a qual escrevemos, são
órgãos totalmente biológicos e, ao mesmo tempo, totalmente culturais. O que
há de mais biológico o sexo, o nascimento, a morte é também, o que há
de mais impregnado de cultura. Nossas atividades biológicas mais
elementares comer, beber, defecar, estão estreitamente ligadas a normas,
proibições, símbolos, mitos, ritos, ou seja, ao que há de mais especificamente
cultural; nossas atividades mais culturais falar, cantar, dançar, amar,
meditar põem em movimento nossos corpos, nossos órgãos, portanto, o
cérebro. (Morin, 2000:40)
Os conceitos de deficiência, fenômeno com uma multiplicidade de faces,
pressupõem a percepção das denotações e conotações que estão impregnados. Não
podemos esquecer que o conjunto formado por conceito/definição de deficiência aponta,
inevitavelmente, para os contextos em que emergem, são historicamente datados.
Amaral (1995), enfatiza que o conceito de deficiência e sua definição passam
por dimensões descritivas e por dimensões valorativas, tendo sempre um caráter
histórico concreto: um determinado momento, num contexto sócio econômico cultural
específico.
Chegamos ao século XXI, e continua em plena vigência a conceituação,
definição e conseqüente nomenclatura propostas, em 1976, pela Organização Mundial
de Saúde; avalizada pela Rehabilitation International em 1980; e oficialmente traduzida
para o português em 1989. Em relação a esse documento, questionamentos, atualizações
e revisões compõem o atual momento do processo.
Assim sendo, apresento de forma sintética, algumas das sugestões nele contidas
(OMS/SNR, 1989): Deficiência (impairment), refere-se a uma perda ou anormalidade
de estrutura ou função: Deficiências são relativas a toda alteração do corpo ou da
41
aparência física, de um órgão ou de uma função, qualquer que seja a sua causa; em
princípio deficiências significam perturbações no nível de órgão.
Incapacidade (disability) refere-se à restrição de atividades em decorrência de
uma deficiência: Incapacidades refletem as conseqüências das deficiências em termos
de desempenho e atividade funcional do indivíduo; as capacidades representam
perturbações ao nível da própria pessoa.
Desvantagem (handicap) refere-se à condição social de prejuízo resultante da
deficiência e/ou incapacidade: Desvantagens dizem respeito aos prejuízos que o
indivíduo experimenta devido à sua deficiência e incapacidade; as desvantagens
refletem, pois, a adaptação do indivíduo e a interação dele com seu meio.
Amaral vem refletindo a deficiência nos últimos anos em virtude dessa
proposta,como fenômeno global, distribuída em dois subfenômenos: deficiência
primária (deficiência e incapacidade) e deficiência secundária (desvantagem). Segundo
ela, (a deficiência primária) está remetida a aspectos descritivos, intrínsecos e a segunda,
basicamente, a aspectos relativos, valorativos, extrínsecos.
Vem argumentando com outros autores, que a deficiência primária pode impedir
ritmos e formas usuais de desenvolvimento, mas não a sua ocorrência que de fato vem a
suceder, muitas vezes, em decorrência das variáveis na problemática da “desvantagem”
(deficiência secundária). Ou seja, aponta para questões relativas inerentes à própria
idéia de desvantagem. Só se está em desvantagem em relação a algo ou alguém!
Considerando como maior contribuição da atual conceituação-definição nomenclatura
apesar de oriunda de um modelo médico, a possibilidade de problematização da
desvantagem, da deficiência secundária.
Em relação à “deficiência primária”, não vou me estender, até porque admito
que as deficiências existem (e não são apenas socialmente construídas), assim como
42
existem incapacidades delas decorrentes. É uma questão descritiva: é o ouvido lesado e
o não ouvir, é a medula lesionada e o não andar...
Mas a que nos remete a própria idéia de “desvantagem”, de prejuízo? A
peculiaridades intrapsíquicas sim, porém, com certeza, a contingências
preponderantemente sociais: as chamadas especificidades sócio-econômico-
culturais, tais como sistema econômico, organização política, crenças e
valores, leituras e interpretações sociais e, em conseqüência, um conjunto de
ações/reações ao fenômeno deficiência e às pessoas que o corporificam.
(Amaral, 1991:34)
De que em última instância, dependem essas leituras, interpretações, ações e
reações? Basicamente do parâmetro utilizado para designar a condição de desvio, de
anormalidade.
Assim sendo, Lígia defende a idéia de que são três os grandes parâmetros
utilizados para definir a diferença significativa, ou o desvio, ou a anormalidade. O
ser/estar diferente ou desviante, ou anômalo, ou anormal, pressupõe a eleição de
critérios, sejam eles estatísticos (moda ou média), de caráter estrutural/funcional
(integridade de forma/funcionamento), ou de cunho psicossocial, como o do “tipo ideal”.
O critério estrutural/funcional, “refere-se ao que venho chamando de ‘vocação’
dos componentes da natureza onde estamos incluídos como seres humanos e das
coisas/objetos por nós construídos”. (Amaral, 1995:35). Ou seja, tanto a integridade de
forma quanto a competência da funcionalidade são critérios que podem definir
modalidades de diferenças significativas.
Obviamente, não é possível haver naturalidade ou universalidade de todas as
características estruturais ou funcionais de pessoas ou objetos. Todavia, a espécie
humana tem na “vocação” de sua forma/função a existência de determinadas
características, como, por exemplo, “peculiaridades” de metabolismo que se
correlacionam a órgãos específicos (também em número predeterminado), uma estrutura
própria (cabeça, corpo e membros íntegros e localizados de uma única forma), olhos
43
que vêem, ouvidos que ouvem, membros que se movimentam e praticam ações... tudo
isso, em princípio, sem o auxílio de equipamentos ou recursos específicos e especiais.
Qualquer alteração maior nessa “vocação” caracteriza a pessoa que vive essa
condição como “significativamente diferente”, desviante, anormal e com deficiência.
Se, pelo primeiro: todo um leque de preconceitos, estereótipos e estigma marcam
as relações humanas e se, pelo segundo: a constatação de uma condição e o
enfrentamento realístico de um cotidiano que deve, necessariamente, incluir a
peculiaridade em parte. Isso nos levaria a uma leitura específica; a pessoa com
deficiência podendo ser vista como “nem menos que, nem pior que”. Mas como a
expressão da diversidade da natureza e da condição humana, não mais e somente como
patologia seja individual ou social, seja qual for o critério utilizado.
De qualquer forma, Amaral considera que essa modalidade de categorização ou
desvio é a menos impregnada de crenças, valores, opiniões... Mas, sublinha que o
mesmo pode ocorrer e ocorre mediante especificidades de caráter econômico,
religioso, científico, político...
O terceiro critério que muitas vezes se apropria perversamente dos dois
anteriores “corresponde à comparação entre uma determinada pessoa ou determinado
grupo e o “tipo ideal” construído pelos valores dominantes em cada contexto”. (Amaral,
1995:27)
Sabemos que em nosso contexto social esse tipo ideal que, na verdade, faz
o papel de um espelho virtual e generoso de nós mesmos corresponde, no
mínimo, a um ser: jovem, do gênero masculino, branco, cristão,
heterossexual, físico e mentalmente perfeito, belo e produtivo. A
aproximação ou semelhança com essa idealização em sua totalidade ou
particularidades é perseguida, consciente ou inconscientemente por todos nós,
uma vez que o afastamento dela caracteriza a diferença significativa, o desvio,
a anormalidade. E o fato é que muitos e muitos de nós não correspondendo a
esse protótipo ideologicamente construído, o utilizamos em nosso cotidiano
para a categorização/validação do outro. (Amaral, 1995:28)
44
Se “desconstruirmos” a conotação pejorativa das palavras: significativamente
diferente, divergente, desviante, anormal, deficiente, e pensarmos nos parâmetros que as
produzem, poderemos melhor contextualizar os critérios empregados para sua eleição
como designativas de algo ou alguém.
Devemos reconhecer que normalidade e anormalidade existem, mas o essencial
na experiência do cotidiano é problematizar os parâmetros que definem tanto uma como
outra. Creio que a partir do questionamento desses parâmetros pode-se pensar a
deficiência de forma dinâmica, singular, com menos estranheza, numa postura
humanista e ética de pertencimento à humanidade.
Gilberto Velho afirma que a patologização pode, mediante
circunstância/contingências peculiares, voltar-se ora para o social, ora para o individual.
Alerta-nos, então, para o fato de que a dificuldade está exatamente na patologização,
sendo essa a grande armadilha que aprisiona aqueles que se colocam (ou são colocados?)
no desvio, que por suas características, quer por seus comportamentos.
No seu livro “Desvio e Divergência” afirma:
O problema de desviantes é, no nível do senso comum, remetida a uma
perspectiva de patologia. Os órgãos de massa encarregam-se de divulgar e
enfatizar esta perspectiva quer em termos estritamente psicologizantes, quer
em termos de uma visão que pretende ser “culturalista”ou “sociológica”. A
formação deste tipo de orientação é feita a partir de trabalhos, muitas vezes
de orientação acadêmica, que não são capazes de superar a camisa-de-força
de preconceitos e intolerância. (Gilberto Velho, 2003: 11)
Goffman (1982), introduz conceitualmente a noção de estigma (marca, sinal),
que funciona como um rótulo àquelas pessoas que se afastam da idealização corrente
em determinado contexto. Para ele são três as “aberrações” desencadeantes de estigma:
de corpo, de opções comportamentais e de inserção “tribal”. Esses atributos e/ou
características definem, nas relações que o autor denomina de mistas, o tipo de interação
a ser vivenciada entre os estigmatizadores e os estigmatizados.
45
As noções de desvio e estigma centralizaram muitas vezes as pré-
conceituações/definições da deficiência determinando as atitudes diante dela, que
segundo alguns autores vão, de forma progressiva, do extermínio ou marginalização ao
assistencialismo de cunho paternalista, e deste, ao investimento nas potencialidades e ao
reconhecimento da cidadania.
Porém, a plena conquista da cidadania pelos deficientes encontra ainda muitos
entraves; segundo Amaral, os entraves seriam os próprios mitos (criados e perpetuados
socialmente) e, por outro, as barreiras atitudinais emanadas prioritariamente do âmbito
intrapsíquico.
Dentre os mitos, ela cita alguns como “generalização indevida”, “correlação
linear”, a ideologia da força de vontade”, “culpabilização da vítima”, “contágio
osmótico”. E as “barreiras atitudinais”, que:
Nada mais são do que anteparos interpostos nas relações entre duas pessoas,
onde uma tem predisposição desfavorável em relação à outra por ser esta
significativamente diferente, em especial quanto às condições preconizadas
como ideais. (Amaral, 1999: 22)
É o preconceito, um conceito que formamos aprioristicamente, anterior, portanto,
à nossa experiência. No caso dos relacionamentos humanos, a concretização do
preconceito dar-se-á pela relação vivida com um estereótipo e não com a pessoa.
Dois são seus componentes básicos: a atitude (predisposição no caso,
desfavorável em relação a alguém) e o desconhecimento concreto ou vivencial desse
algo ou alguém, assim como de nossas próprias reações diante deles. O estereótipo é,
nesse caso, a concretização/personificação do preconceito.
A atitude que subjaz ao preconceito baseia-se, por sua vez, em conteúdos
emocionais: atração, amor, admiração, medo, raiva, repulsa...
(...) os preconceitos, são como filtros de nossa percepção, colorindo o olhar,
modulando o ouvir, modelando o tocar... fazendo com que não percebamos
a totalidade do que se encontra à nossa frente. Configuram uma predisposição
perceptual. (Amaral, 1999: 23)
46
Cria-se um “tipo” fixo e imutável que caracteriza a pessoa. Esse estereótipo será
alvo das ações subseqüentes e, ao mesmo tempo, o biombo que será interposto entre o
agente da ação e a pessoa real à sua frente.
O nosso cotidiano está cheio de estereótipos: negros, homossexuais, prostitutas,
loucos, índios... no que se refere à deficiência, encontramos também estereótipos
particularizados em relação aos tipos de deficiência, como exemplifica Amaral: o
deficiente físico ser o “revoltado” ou o “gênio intelectual”; o cego ser “o cordato”ou “o
sensível” ou “o gênio musical”etc... Além desses, ela identifica três outros mais
generalistas, bastante empregados por diversos atores que são, herói, vítima e vilão.
(...) se sistematicamente vistos como vilões (de quem devemos ter medo), ou
como vítimas (de quem devemos ter pena), a “identificação” com eles e
portanto, com sua humanidade, fica praticamente impedida. O mesmo, por
razões um pouco diferentes, acontece se visto como heróis (a quem devemos
admirar). Digo um pouco diferente porque em nossa cultura heróis são, em
geral, aqueles seres míticos que quase negam sua humanidade pois
sistematicamente vencem torturas e sofrimentos, deles saindo ilesos e
íntegros. Assim, a pergunta seria: é fácil (ou mesmo possível) a identificação
de um “eu-humano” com um “ele-extrahumano? (Amaral, 1988)
Nas situações de pleno contato com a deficiência ou com o sentimento de
rejeição que ela pode gerar, que podem nos causar profundo mal-estar, tensão e
ansiedade, uma das possibilidades é o acionamento dos mecanismos de defesa que para
Bleger (1977), são técnicas ou estratégias com que a personalidade total opera para
manter o equilíbrio intrapsíquico, eliminando fontes de insegurança, perigo, tensão...
quando, não está sendo possível lidar com a realidade, que se manifestam sob a forma
de compensação, simulação, atenuação.
No cotidiano, usamos certas expressões que caíram no senso comum, que
ilustram essas formas de negação tais como: “é negro mas tem alma de branco”, “é
paralítico mas tão inteligente”... estamos compensando aquela característica ou
47
condição que consideramos ruim e, portanto, negando-a ao contrapô-la a um atributo
desejável, o “mas” denuncia esse movimento.
Dizemos também: “podia ser pior”, “não tem uma perna e podia não ter as
duas!” Nesse caso, estaríamos negando, pela atenuação, a especificidade.
A simulação ocorre quando negamos literalmente a deficiência: “é cego, mas é
como se não fosse”. Fazemos de conta que...
Enfim, foi em razão de toda uma reflexão sobre os aspectos históricos e
psicossociais (preconceitos, estereótipos, estigma e mecanismos de defesa) envolvidos
na questão da normalidade/anormalidade que fundamentei a idéia de buscar alternativas
para a educação de pessoas com deficiência considerando o atual contexto. Se não
removermos as formas de pensamento investidas no espaço escolar, perpetuaremos os
mecanismos de exclusão e todo discurso da Escola Inclusiva cai no vazio.
48
5
Perspectivas Atuais da Educação de Pessoas com Deficiência
(...) Não há como evitar a barbárie se não lutarmos para transformar, limitar
e destruir as condições sociais que as produzem. O silêncio, a atenuação, a
ocultação edulcorada da exclusão fazem com que esta se torne mais poderosa,
mais intensa, menos dramática e, portanto, mais efetiva. (Gentili, 2002: 42)
Estimativas da OMS (Organização Mundial da Saúde) calculam em cerca de 610
milhões o número de pessoas com deficiências no mundo. Avalia-se que 80% do total
vivam em países em desenvolvimento. No Brasil, segundo o censo realizado em 2000
pelo IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e divulgado em 2002,
existem 24,5 milhões de brasileiros portadores de algum tipo de deficiência. O critério,
utilizado pela primeira vez nesse levantamento, foi o da CIF Classificação
Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde, recomendado pela OMS.
Conforme esse conceito, 14,5% da população brasileira apresenta alguma deficiência
física, mental, ou dificuldade para enxergar, ouvir ou locomover-se.
Trata-se de um universo expressivo de pessoas. Vários fatores fazem com que
esse número seja elevado precárias condições de alimentação, de atendimento pré e
pós-natal, além de que estamos entre os países com maiores índices de acidentes de
trabalho e violência urbana, o que contribui para o aumento do número de jovens com
deficiência. Considerando pessoas com deficiência e a educação pública, segundo
informação do MEC (Ministério de Educação e Cultura), há 280 mil alunos com
deficiência matriculados em escolas especiais de 1
a
a 8
a
séries; há outros 300 mil em
classes regulares nessas mesmas séries; apenas 9 mil alunos conseguiram chegar ao
ensino médio.
A partir das décadas de 80 e 90, declarações e tratados mundiais passam a
defender e a sugerir a inclusão em larga escala. Em 1985, a Assembléia Geral das
49
Nações Unidas lança o Programa de Ação Mundial para as pessoas deficientes que
recomenda: “Quando for pedagogicamente factível, o ensino das pessoas deficientes
deve acontecer dentro do sistema escolar”.
No Brasil, o interesse pelo assunto é provocado pelos debates antes e depois da
Constituinte; a Constituição promulgada em 1988, garante atendimento educacional
especializado aos deficientes, principalmente na rede regular de ensino.
Em 1990, o Brasil participou da Conferência Mundial Sobre Educação para
Todos, realizada no mês de março, na cidade Jomtiem na Tailândia: quando foram
lançadas as bases da política de educação inclusiva, ao sugerir a inserção de todos
(mulheres, camponeses, refugiados, negros, índios, presos e deficientes) nos sistemas
nacionais de educação, objetivando a universalização do acesso e a democratização dos
espaços educativos.
O Brasil aprova, em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que reitera os
direitos garantidos na Constituição: atendimento educacional especializado para
portadores de deficiência, preferencialmente, na rede regular de ensino.
Em junho de 1994, dirigentes de mais de oitenta países se reúnem na Espanha e
assinam a Declaração de Salamanca, um dos mais importantes documentos de
compromisso de garantia de direitos educacionais. Ela proclama as escolas regulares
inclusivas como o meio mais eficaz de combate à discriminação. As escolas devem
acolher todas as crianças, independentemente de suas condições físicas, intelectuais,
sociais, emocionais ou lingüísticas.
A prática da inclusão social se baseia em princípios diferentes do convencional:
respeito das diferenças individuais, valorização de cada pessoa, convivência dentro da
diversidade humana, aprendizagem por meio de cooperação. A inclusão significa a
modificação das condições atitudinais da sociedade como pré-requisito para a pessoa
50
com necessidades especiais buscar seu desenvolvimento e exercer sua cidadania. Em
1996, a lei no 9394 Diretrizes e Bases da educação nacional, possui um capítulo
destinado à educação especial.
Art. 58. Entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a
modalidade de educação escolar, oferecida preferencialmente na rede regular
de ensino, para educandos portadores de necessidades especiais.
§1
o
Haverá, quando necessário, serviços de apoio especializado, na escola
regular, para atender as peculiaridades da clientela de educação especial.
§2
o
O atendimento educacional será feito em classes, escolas ou serviços
especializados, sempre que, em função das condições específicas dos alunos
não for possível a sua integração nas classes comuns de ensino regular.
§3
o
A oferta de educação especial, dever constitucional do Estado, tem início
na faixa etária de zero a seis anos, durante a educação infantil.
Art. 59. Os sistemas de ensino assegurarão aos educandos com necessidades
especiais:
I currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização
específicos para atender às suas necessidades.
Diante dessa realidade, as escolas vivem o dilema de receber uma diversidade de
alunos por determinação legal, sem profundas mudanças estruturais e de mentalidade
provocando ao contrário do desejado, o aprofundamento do caráter de exclusão, com
elevado índice de repetência, evasão, encaminhamento para serviços médicos e
atendimentos especiais de alunos considerados “inadaptados”, na sua maioria negros e
de setores mais pobres.
A série de reformas no campo educacional (leis e normas que regulam o
funcionamento dos sistemas escolares) provocou mudanças na própria organização da
escola, nos currículos, nos processos de avaliação, mas pouco alterou o quadro das
relações no cotidiano escolar, marcado por dogmas, estigmas e preconceitos.
Os alunos brasileiros deficientes não apenas não estão nas escolas comuns, como
também os alunos ditos normais são estigmatizados e excluídos das classes comuns.
51
O que tem caracterizado a escola brasileira, nas últimas décadas é o fato de ela
se nortear pelo princípio da exclusão, e não pelo da inclusão. Além disso, por influência
do chamado modelo clínico (médico e psicológico), tem havido também constante
patologização dos processos educativos, com a crescente culpabilização daqueles a
quem realmente a escola deveria atender: os próprios alunos diferentes ou deficientes.
Na escola, este processo de biologização geralmente se manifesta colocando
como causas do fracasso escolar quaisquer doenças das crianças. Desloca-se
o eixo de uma educação político-pedagógica para causas e soluções
pretensamente médica, portanto inacessíveis à Educação. A isso, temos
chamado medicalização do processo de ensino-aprendizagem. Recentemente,
por uma ampliação da variedade de profissionais da saúde envolvidos com o
processo (não apenas o médico, mas também o enfermeiro, o psicólogo, o
fonoaudiólogo, o psicopedagogo), temos usado a expressão patologização
do processo de ensino-aprendizagem (Collares e Moysés, 1992:16).
Na educação regular acabou emergindo um novo personagem o aluno-
problema , que vem atrapalhando a vida tanto do aluno com deficiência quanto do
chamado aluno normal. O “aluno-problema” é uma forma prévia do professor conceber
o aluno que tem algum tipo de dificuldade na sala de aula.
Em decorrência, na prática pedagógica do professor, surge nele a crença que
ou ele ensina o aluno em um processo contínuo, ou então, ele se encontra
frente a um aluno que apresenta algum tipo de distúrbio de aprendizagem ou
deficiência mental [...] Ao se privilegiar na Educação a existência de um
modelo prévio de ensino fundamentado na normalidade, acabou-se também
por criar o seu oposto: a patologização do processo de ensino-
aprendizagem... Ou seja, privilegiou-se um olhar médico a respeito dos
alunos, em vez de se enfatizar um olhar pedagógico. (Mrech, 1999:44 e 46).
Assim, não é de se estranhar, que se as próprias crianças “normais” são
concebidas a partir de um modelo patologizador do processo ensino-aprendizagem,
mais ainda este olhar estigmatizador se fortalece quando nós nos encontramos frente aos
alunos deficientes.
O discurso da inclusão educacional se generaliza, não só no posicionamento
teórico de alguns profissionais, mas também em propostas educacionais de instituições
de diversos tipos em nível nacional, estadual e municipal, na tentativa de se ajustar às
determinações de normas legais. “Os professores rejeitam a integração almejada por
52
lei, por não possuírem condições concretas e subjetivas de atuar com segurança na
realização de sua prática pedagógica”. (Glat, 1995:18)
(...) .temos em nosso país um sistema de ensino falido, com
professores despreparados, e mal remunerados, escolas funcionando
em condições precárias e dirigentes ineficazes. Sistema que não dá
conta sequer dos alunos considerados “normais”, haja vista enorme
contingente do chamado fracasso escolar..., pensar em colocar nessa
“selva” crianças com deficiência é um jogo de cartas marcadas para
perder. (Glat, 1995:14)
Embora esse quadro seja perturbador, ele não é irreversível. Existem propostas
pedagógicas de inclusão escolar que beneficiam a todos os alunos, pois apresentam
como ponto de partida a transformação das estruturas mentais de todos os envolvidos,
sobretudo dos educadores que devem incorporar no seu cotidiano, o respeito às
diferenças individuais, valorização da diversidade humana, solidariedade humanitária,
incentivo à cooperação. Tais propostas consideram o modelo social de deficiência, em
contrapartida ao modelo médico da deficiência, uma vez que concebe e qualifica os
problemas dos deficientes como construídos socialmente e não pelos próprios
deficientes.
É preciso ter em mente que a proposta de inclusão implica, antes de
mais nada, transformação de relações sociais estabelecidas e
sedimentadas entre grupos humanos por praticamente toda a história
da humanidade. A questão é complicada, porque embora seja possível
fazer cumprir uma lei que obrigue empresários a receberem pessoas
portadoras de deficiências em suas empresas, não se pode fazer uma
lei obrigando que as pessoas aceitem e sejam amigas dos deficientes.
(Glat, 1995:16)
É nesse contexto que a Escola Sentrinho Macaé, RJ, foi se constituindo como
alternativa aos processos de exclusão educacional de pessoas com deficiência, ao
desenvolver uma proposta pedagógica que considera as várias dimensões da totalidade
indivisível da pessoa humana (corpo, intelecto, sentimentos, espírito).
53
No seu cotidiano utiliza práticas pedagógicas que desenvolvam,
simultaneamente, razão, sensação, sentimento e intuição e que estimulem a integração
intercultural. Assim a educação além de transmitir e construir o saber sistematizado
assume um sentido terapêutico ao despertar no aluno uma nova consciência que
transcenda do eu individual para o eu transpessoal.
Os conteúdos são trabalhados buscando o desenvolvimento harmonioso do aluno
como um todo. Tão importante quanto a adoção de uma determinada metodologia é a
sensibilidade do educador para cada momento singular em que ocorre o fenômeno do
aprender. De acordo com a abordagem complexa da realidade e do conhecimento, as
atividades de ensino na escola se estruturam através da interação da teoria e da vivência.
Elaboram-se projetos comuns envolvendo várias disciplinas e vários professores,
buscando a superação do currículo escolar fragmentado em disciplinas estanques. No
decorrer do processo de aprendizagem são utilizadas estratégias vivenciais como:
exercícios de concentração, relaxamento; exercícios rítmicos, utilizando instrumentos
musicais, movimentos corporais; exercícios relacionados à criatividade; desenho,
pintura; exercícios integradores corpo-mente: expressão corporal, dramatização,
hidroterapia, caminhadas, brincadeiras infantis. Com as vivências, resgata-se o sentido
originário da palavra saber que significa saborear.
Nesse processo é fundamental o encontro entre o educador e o aluno, para que
isso se torne possível, a relação não pode se dar apenas no plano intelectual, mas
também no plano da sensibilidade, sentimento e emoção.
Com esta abordagem, cada aluno é uma totalidade única, com suas necessidades
e capacidades específicas para os quais o professor deve estar atento. O que se pretende
é o encontro do aluno consigo mesmo, no sentido de realizar-se humanamente,
desenvolvendo suas potencialidades pessoais e também suas totalidades maiores, daí
54
também a importância de promover o encontro com o outro. Cada turma heterogênea se
transforma numa pequena comunidade onde se exercita a amizade, a solidariedade e o
respeito às diferenças, num clima de liberdade com responsabilidade, segundo o nível
de desenvolvimento do aluno.
Nesse contexto, a autodisciplina tem como ponto de referência as normas
construídas coletivamente na dinâmica da própria comunidade. O comportamento que
deve ser modificado é aquele que compromete a convivência comunitária. Nem a
punição tradicional, nem a impunidade são educativas. O grupo pode cobrar do
indivíduo a responsabilidade sobre seus atos sempre no sentido de que quem destruir
deve reconstruir, quem sujar deve limpar, quem ofender deve desculpar-se.
Nada é insignificante no encontro educador-aluno, um sorriso, uma lágrima, um
olhar, um simples gesto, tudo é importante quando nos propomos a ser inclusivos. É
fundamental um ambiente de alegria, com humor, o educador experiencia o encontro
existencial com o aluno.
A avaliação é processual e com sentido apenas de verificar em que estágio se
encontra o aluno para poder avançar cada vez mais, segundo suas potencialidades.
Recuperar, sem reter. O aluno não estuda pressionado pelas notas. O estímulo vem da
própria curiosidade do conhecer.
Atualmente, a escola funciona numa casa alugada no centro de Macaé, com dez
salas, quatro banheiros, cozinha, área de serviço, secretaria, sala de vídeo, pátio
arborizado com parque, varanda, área com piscina, que foi adaptada dentro do possível
para facilitar o acesso e deslocamento de pessoas com deficiências físicas. Em 2005,
teve início a obra de construção da sede própria, pela Petrobras, em terreno de 2.600m
2
,
doado pela Prefeitura de Macaé.
55
Mantém cento e quarenta alunos residentes em Macaé e municípios vizinhos,
distribuídos em dois turnos, em turmas com média de sete alunos, de faixa etária e
deficiências diversas, dos quais noventa por cento são oriundos da periferia de Macaé.
No cotidiano, as atividades são desenvolvidas por equipe multidisciplinar
visando o desenvolvimento integrado das potencialidades de cada aluno e do grupo.
Paralelo ao trabalho pedagógico na escola, o intercâmbio com a comunidade se
dá por meio do Projeto Sentrinho de Cultura, voltado para a realização de eventos
culturais e a produção de bens culturais. Foram realizados, desde 1997, quarenta e oito
shows, com grandes nomes da música popular brasileira, com intensa participação de
público que vai à escola comprar ingressos, tomando contato com os alunos,
conhecendo a realidade, rompendo mitos e estereótipos. Além desses eventos, foram
produzidos seis CDs de músicos locais, constituindo um selo fonográfico, lançamento
de livros e promoção de seminários, palestras, cursos envolvendo temáticas
educacionais e culturais.
Foi dessa experiência que surgiu a idéia de COMTATO, uma revista de
educação e cultura como expressão desse movimento de inquietação educacional e
cultural.
56
6
COMTATO Revista de Educação e Cultura
A utilização da comunicação alternativa como expressão das pessoas com
deficiência é uma prática ainda recente no Brasil. Porém, pode se constituir numa
estratégia política importante para aqueles que lutam pelas diversas questões
relacionadas à pessoa deficiente.
A relevância dessa forma de comunicação está vinculada a alguns aspectos: deve
ser um canal de ressonância dos anseios, inquietações dos sujeitos interessados na
questão; sua missão é fazer circular as informações necessárias para amenizar e
esclarecer problemas que atingem esse segmento, levando novos conhecimentos,
descobertas científicas, benefícios, legislação existente, experiências educativas que
possam contribuir para impulsionar tentativas de transformação da realidade; podem e
devem propiciar o diálogo, a troca de idéias, experiências e conhecimentos entre os
envolvidos (pessoas com deficiências, famílias, técnicos, especialistas e outros).
Deve, ainda, fortalecer o contato com outros segmentos e/ou com a sociedade
em geral, possibilitando encontros, intercâmbio de opiniões, constituindo-se numa
verdadeira rede de comunicação aproximando, solidariamente, os grupos organizados
em defesa dos direitos das pessoas com deficiência.
Além da possibilidade do diálogo, estes meios de comunicação podem exercer
importante “função educativa”, consoante com a sua missão de bem informar por meio
de um conhecimento crítico da realidade contribuindo para a aquisição de posturas mais
conscientes em relação às pessoas com diferenças. Segundo Neumam (1990), “quanto
mais intensa for a comunicação, maior será a interação das pessoas envolvidas”.
57
Num contexto em que os meios de comunicação de massa e os processos
educativos institucionais acostumaram o povo brasileiro a não se aprofundar na
realidade, se restringindo às aparências, além do que, quase sempre nos oferecem
explicações impregnadas de estereótipos e preconceitos, os meios de comunicação
alternativos têm os seus compromissos de melhor informar redobrados.
Trechos do livro cartilha “Ética e Legislação: os direitos das pessoas portadoras
de deficiências no Brasil” (Bieler, 1990), chamam a nossa atenção para a
responsabilidade ética da informação sobre a deficiência.
(...) Falar em ética quando se trata de pessoas portadoras de deficiência física
(motora) e o meio ambiente que as cerca pode ser uma tarefa delicada. Até
muito pouco tempo, a sociedade não conseguia enxergar o indivíduo, além da
cadeira de rodas, da muleta, dos membros amputados ou deformados... com
idéia pré-concebida sobre o que estas pessoas precisam, o que sentem, como
pensam, a sociedade desenvolve um comportamento ético padrão calcado no
paternalismo, para tratar de “forma civilizada” da questão (que tanto
incomoda a todos quando se deparam com ela frente a frente. (Bieler apud
Figueira, 1990: 40)
Historicamente situados à margem do convívio social, as próprias pessoas com
deficiências se vêem como não capazes, acomodando e compactuando-se com posturas
éticas fundadas no paternalismo e na tutela, tão presentes ainda nas notícias veiculadas
pelos meios de comunicação.
(...) No lugar da Ética da piedade deve estar hoje a Ética do respeito e do
reconhecimento. Esta é a dívida que a Nação tem com seus portadores de
deficiência a maioria com causas sociais como a falta de prevenção, a
subnutrição, a violência urbana, os acidentes de trânsito e a desinformação.
(ibid)
Os meios de comunicação alternativos precisam ter a sensibilidade crítica de
informar e inspirar novas vidas e realidades; romper com a atmosfera composta da
incomunicação gerada por grandes jornais, rádios, emissoras de televisão; tocar em
pontos vitais para o grupo que representa; colocar as pessoas com deficiências no centro
da comunicação e não à margem da mesma.
58
Em outro aspecto, a comunicação alternativa existe para canalizar e divulgar
aquelas informações não consideradas pela “grande imprensa”. Mas, também podem
servir de incentivo para que assuntos que envolvam a questão das deficiências cheguem
aos meios de comunicação de massa. É o que propõe o “Programa de Ação Mundial
para as Pessoas com Deficiências” (Nações Unidas, 1982, § 149).
Devem-se desenvolver pautas, em consulta com as entidades de pessoas
deficientes, para estimular os meios de informação a veicularem uma imagem
abrangente e exata, assim como uma representação e imagem equânimes
sobre as deficiências e as pessoas portadoras, no rádio, no cinema, na
fotografia e na imprensa. Um elemento fundamental de tais pautas será que as
pessoas deficientes tivessem condições de apresentar elas próprias os seus
problemas ao público e de sugerir as formas de resolvê-los. É necessário
estimular a inclusão de informação sobre a realidade das deficiências nos
currículos para formação de jornalistas.
Nesse sentido, os grupos representativos das pessoas que procuram a
equiparação de oportunidades, devem transformar-se em forças capazes de
comunitariamente influir sobre os meios de comunicação.
Uma outra questão que chama a atenção é com relação a se colocar as
publicações alternativas ao alcance e interesse do público. Porém, é um tema que não
podemos pensar de forma isolada como todas as questões que envolvem pessoas com
deficiências.
No início de 2001, a Câmara Brasileira do Livro e outras entidades
realizaram uma pesquisa nacional reveladora dos 86 milhões de brasileiros
com mais de 14 anos e pelo menos 3 anos de instrução, apenas 15% liam um
livro no dia da entrevista (o mesmo percentual dos que tiveram a coragem de
declarar que nunca leram nada, inclusive jornais) (Alencar, 2002: 49).
Num contexto social como o nosso, onde grande parte da população trabalha
para se alimentar, com baixo poder aquisitivo, falta de moradia, baixa escolaridade,
entre outros problemas, não lhe sobra condições e tempo para a leitura, calcula-se que
apenas cinco por cento dos brasileiros leiam jornais; sem contar, é claro, com a
existência do analfabetismo crônico.
59
Para refletir sobre a democratização da leitura, é necessário inseri-la nas demais
lutas sociais e políticas, não basta a mera expansão da indústria editorial. Melo (1990)
aprofunda a questão, afirmando:
A própria imprensa tem características que impedem a sua popularização.
Além de usar uma linguagem inacessível à grande maioria da população (os
jornais escrevem como se fala nas universidades e nos círculos elevados da
esfera cultural), a imprensa brasileira diária só trata de assuntos que
interessam às classes dominantes. (Mello apud Figueira, 1990: 41)
Os desafios para a realização de uma publicação alternativa são muitos, dentre
eles: o desinteresse do leitor em leituras diferenciadas que o façam aprofundar na
realidade; outra questão é a financeira, nem sempre é fácil encontrar anunciantes ou
patrocinadores para se produzir uma publicação, seja ela voltada para as pessoas com
deficiência ou não. O interesse maior dos anunciantes é conseguir uma imagem forte
para aumentar suas vendas, tendo maior visibilidade ao optarem por veículos de maior
penetração, de grande mídia.
Ao elaborar o projeto da Revista Comtato, tínhamos consciência das
dificuldades, mas também a clareza da importância da mesma na construção de
mudanças essenciais na concepção e nas ações voltadas para a emancipação dessas
pessoas.
A revista, com periodicidade trimestral, será um meio de expressar as múltiplas
ações e reflexões desenvolvidas por agentes comprometidos com a questão da
diversidade, contribuindo para outras experiências educativas e culturais que tentam
romper com paradigmas dominantes em relação à deficiência.
60
Conclusão
O paradigma cartesiano nos levou a pensar no mundo como um cosmo mecânico,
com movimentos previsíveis, num tempo/espaço absoluto. O estudo apresentado é uma
tentativa de subversão da naturalização da forte tradição, no pensamento ocidental, de
tentar apreender o outro, tornando-o igual, ao impor nossa estrutura de pensamento a ele.
Nesse desejo de conhecer, reduzimos pluralidade à unidade e alteridade à mesmice. A
nossa motivação foi a compreensão que temos, no espaço denominado Escola Sentrinho,
Macaé, das questões vividas por todos aqueles que são estigmatizados enquanto pessoas
diferentes do modelo de normalidade/anormalidade constituído historicamente.
Nossa proposta é, junto com essa diversidade de alunos, divulgar um trabalho
específico, realizado numa escola que se quer prazerosa e dinâmica, e cuja atuação
priorize os aspectos psicopedagógicos, voltados para a organização psicomotora,
cognitiva, social, corporal de sujeitos que, por não se inserirem no sistema educacional
regular são, na maioria das vezes, ignorados e excluídos.
A Revista COMTATO, um projeto maior surgido a partir deste estudo,
constituir-se-á em mais um veículo alternativo utilizado pela escola para divulgar a
importância da inclusão num espaço voltado para o exercício da cidadania e a constante
articulação com outros agentes sociais, visando o reconhecimento e o respeito de todas
as pessoas em sua alteridade.
Ao registrar as marcas históricas presentes nos estereótipos, nos sistemas de
pensamento que permeiam os espaços institucionais, buscamos desmistificar o instituído,
para que seja possível emergir uma nova relação eficiência/deficiência, proporcionando
a todos oportunidades de aprender, desaprender e reaprender, enquanto sujeitos
históricos.
61
Se a diversidade como identidade de grupo é importante, também o é, acredito,
num nível mais individual de diversidade. Ao mesmo tempo em que se respeita a
identidade grupal, deve haver espaço para os indivíduos criarem sua própria identidade,
o que inclui interpretar o que significa para eles pertencer a diferentes grupos.
É uma questão importante para a educação que pretende priorizar uma
abordagem ética relacionada à alteridade: a ética do encontro, uma ética relacional,
construída no acolhimento e hospitalidade do outro uma abertura à diferença do outro,
à vida do outro. Isso envolve um relacionamento ético de abertura para o outro, tentando
ouvi-lo de sua própria posição e experiência, e não tratá-lo como igual.
Muito ainda resta no caminho da reflexão e ação para que a diversidade seja
considerada mais um aspecto de riqueza da condição humana e não um fator de
inferiorização e privação de condições mínimas de dignidade. Que seja o COMTATO
entre as pessoas a essência primeira das transformações que desejamos para esse século
XXI.
62
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65
ANEXO
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