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FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS FGV
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL CPDOC
MESTRADO PROFISSIONALIZANTE EM BENS CULTURAIS E PROJETOS
SOCIAIS
Espectros e Silhuetas em uma Cidade: Imagens da Mulher no
Cinema Brasileiro de 1896 a 1928.
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil CPDOC para a obtenção de grau de Mestre em Bens Culturais e
Projetos
Marcelo pais Tabachi Furtado
Rio de Janeiro, agosto de 2006
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2
FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS FGV
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL CPDOC
MESTRADO PROFISSIONALIZANTE EM BENS CULTURAIS E PROJETOS
SOCIAIS
Espectros e Silhuetas em uma Cidade: Imagens da Mulher no
Cinema Brasileiro de 1896 a 1928.
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado por Marcelo pais Tabachi Furtado
_______________________________________
Prof. Dr. Américo Oscar Guichard Freire (ORIENTADOR)
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil
Fundação Getúlio Vargas
_______________________
Profª. Drª. Ana Maria Mauad
Universidade Federal Fluminense
_____________________________
Profª. Drª. Mônica Almeida Kornis
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil Fundação Getúlio Vargas
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3
O diretor do filme, como o estudante / pesquisador, deve saber que nada do que fez foi
sozinho. Seu produto é fruto de concessões de todos os que nos rodeiam, sejam estes filhos,
esposa e pai, mãe e irmãos, além dos amigos e pessoas que, de uma forma ou de outra,
influenciam o que realizamos. Então deixo majestática terceira pessoa, que nos incute o pensar
acadêmico, para me juntar a outro grupo: o de meus familiares ou daqueles que não o são, mas
que desejaríamos que o fossem.
Primeiro agradeço à minha amada esposa, que me suportou nesses duros momentos de
vácuo relacional e compreendeu todos os momentos de fúria irracional, que envolveram a
construção desse texto. Por ter segurado sozinha os piores momentos de nossa vida sem ao
menos me comunicar, para que eu produzisse o que apresento ao julgo de uma banca acadêmica.
Amiga e mulher, mãe de meu segundo filho, apoiou-me quando eu mesmo não sabia como. Esta
é a mulher com a qual tenho o prazer de desfrutar meus momentos de tranqüilidade e também os
de incerteza, certo de que tudo seria bem pior sem a sua companhia...
À minha mãe Mariná, a quem devo a vida e o gosto por ela. Seu humanismo me fez
caminhar para as ciências sociais. “Amo tanto e, de tanto amar...”, por vezes supervalorizo sua
força, companheira de vida e de sonhos na luta por uma sociedade mais justa... Rompeu os
paradigmas de mulher campesina em função de seu gosto profundo pela vida e pelo que a
compõe. É a própria síntese desse trabalho: uma mulher em cascatas.
Meu filho Pietro, de seis anos, que permitiu que lhe usurpassem dos momentos com o pai
e que, durante suas férias escolares, fincou-se ao meu lado, se retorcendo ao máximo para não
me interromper. Deu-me a certeza de minha impotência a cada tosse ou a cada febre. Filho
amado e adorado, por quem faria qualquer coisa.
Joãozinho, meu pequeno filho... Como seria duro chegar à casa e não ter o seu sorriso!
Sou pai piegas, pois este sorriso preenche toda a minha vida! E a sua vida acompanhou este
mestrado, já que, ao saber ter sido aceito pela instituição, descobrimos estar grávidos. Enjoei por
você e pelos problemas da gravidez e quase desisti de tudo. Mas seu nascimento me reconciliou
com a vida e com todo esse processo de trabalho.
Ao meu orientador Américo, mestre escola, tão compreensivo diante de minhas inúmeras
falhas durante essa produção. Ao me deixar tomar pelo desânimo, era ele quem me dava algum
motivo para o regozijo. Sua forma serena me fez repensar meu olhar a ponto de transformá-lo.
Obrigado!
Aos amigos e irmãos Alessandra, Karina e Ralf. Vocês fazem parte desse trabalho.
Deram conta de minhas impossibilidades durante todo o percurso. Sou-lhes grato por me
amarem e por serem meus...
4
À amiga Gabriela que, mesmo em momento difícil de vida, soube reservar um tempo a
mim, efetuando a correção de boa parte desse texto. Agradeço muitíssimo, amiga!
Luciano, amigo e intelectual que tanto me ensina e que, após a dureza e rispidez de uma
vida, “não perdeu a ternura”. Obrigado pelas conversas e por sua companhia!
Fabiana e Marcio Mazzeron, vizinhos e amigos carinhosos, responsáveis por certo
suporte técnico, imprescindível nos momentos finais desse texto.
A meu pai, se te deixo por último, não é por pouco amor ou desconsideração, pois te amo
de forma a desejar que meus filhos me amem da mesma maneira. És a personificação da
dialética, o eterno conflito. Sou-lhe imensamente grato por me mostrar que tudo o que somos
depende de nossas posições dentro da estrutura social.
E, por tudo isso, chego ao final, me apropriando das palavras de minha companheira e
mulher amada: “as pessoas precisam de finais felizes”...
5
Resumo
O presente trabalho analisa a mulher na produção cinematográfica brasileira de
1896/1928, período que cobre um momento importante do debate sobre as alterações dos papéis
sociais em meio às alterações trazidas com a modernidade.
O Cinema Brasileiro apresenta-se como um lócus privilegiado de discussão e projeções
sobre as inter relações entre as imagens da mulher projetadas na tela e a espectadora do evento
cinematográfico durante o período estudado. Foram utilizados como fonte os inúmeros trabalhos
sobre a história do cinema, filmes e principalmente as informações contidas no Banco de Dados
da Cinemateca Brasileira. A dissertação privilegia a compreensão do contexto social urbano das
grandes cidades brasileiras, nas quais nascem as preocupações e aspirações da sociedade sobre as
novas imagens de mulher que despontam dentro e fora do écran: as heterotopias femininas.
6
SUMÁRIO
LISTA DE IMAGENS 06
SOBRE O PRIMEIRO BEIJO 09
CAPÍTULO I: A VIRGEM DECAPITADA: MULHERES E HOMENS FRENTE AOS PROCESSOS
MODERNIZANTES
32
1.1. HETEROTOPIAS FEMININAS: A FORMAÇÃO DE UMA MORALIDADE BRASILIENSIS 35
1.2. A CIDADE PERDIDA: MODERNIDADE E DEPRAVAÇÃO NOS CINEMAS CARIOCAS 46
CAPÍTULO II: UMA CABEÇA TRANSLOUCADA: IMAGENS DE UMA MULHER SEM RUMO NO
IMAGINÁRIO MASCULINO
63
2.1. A DEPENDÊNCIA DE UM HOMEM: PAI, MARIDO, FILHO OU AMANTE 67
2.2. A MULHER PERDIDA 78
2.3. A MULHER MODERNA 99
CAPÍTULO III: CABEÇA E CORPO EM BUSCA DE ACEITAÇÃO: MULHERES DOS FILMES E
MULHERES QUE FAZEM FILMES NO PROCESSO DE LIBERTAÇÃO SOCIAL
121
3.1 MULHER COMO AGENTE: O ASSOMBROSO MUNDO DAS MULHERES INDEPENDENTES. 123
3.2 MORFINA: A MODERNIDADE COMO PROBLEMA 134
UM POUCO ANTES DO FIM OU O GRANDE COMEÇO 154
BIBLIOGRAFIA 156
7
LISTA DE IMAGENS
1. Imagem copiada a partir da página web: Internet Archice: Movie Archive
http://www.archive.org/movies/thumbnails.php?identifier=Irwin-RiceKiss
2. Imagem copiada a partir da página web: Illuweb: Um mondo di illusioni ottiche
http://www.illuweb.it/cinema/cinecine.htm
3. Imagem copiada a partir da página web: DVD toile
http://dvdtoile.com/Film.php?id=12168
4. Imagem copiada a partir da página web: English 1810: Introduction to Film
http://www.missouri.edu/~engwest/courses/film1/handouts/08.28-trafficinsouls.html
5. Imagem copiada digitalmente a partir do livro de Adhemar Gonzaga; P. E. Salles. 70
anos de cinema brasileiro. Rio de Janeiro. Expressão Cultural, 1966: 45.
6. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
7. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
8. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
9. Imagem copiada digitalmente a partir do livro de Jurandyr Noronha. No tempo da
Manivela. Rio de Janeiro. Embrafilme/Ebal/Kinarte, 1987: 269.
10. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
11. Imagem copiada a partir da página da web: Silents are Golden
http://www.silentsaregolden.com/featurefolder2/tolabledavidpage.html
12. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
13. Imagem copiada a partir da página da web:Humberto Mauro
http://www.asminasgerais.com.br/Zona%20da%20Mata/Cult%20uai%20s/Cinema/Humb
erto%20Mauro/Humb0001.html
14. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
15. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
16. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
17. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
18. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
19. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
20. Imagem copiada a partir da página da web:Humberto Mauro
http://www.asminasgerais.com.br/Zona%20da%20Mata/Cult%20uai%20s/Cinema/Humb
erto%20Mauro/Humb0001.html
21. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
22. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
8
23. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
24. Imagem copiada a partir da página web: Mucha Gallery
http://www.muchagallery.com/home.html
25. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
26. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
27. Imagem copiada digitalmente a partir do livro de Jurandyr Noronha. No tempo da
Manivela. Rio de Janeiro. Embrafilme/Ebal/Kinarte, 1987: 130.
28. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
29. Imagem copiada digitalmente a partir do livro de Jurandyr Noronha. No tempo da
Manivela. Rio de Janeiro. Embrafilme/Ebal/Kinarte, 1987: 100.
30. Imagem copiada digitalmente a partir do livro de Jurandyr Noronha. No tempo da
Manivela. Rio de Janeiro. Embrafilme/Ebal/Kinarte, 1987: 101.
31. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
32. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
33. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
34. Imagem copiada digitalmente a partir do livro de Adhemar Gonzaga; P. E. Salles. 70
anos de cinema brasileiro. Rio de Janeiro. Expressão Cultural, 1966: 77.
35. Imagem copiada digitalmente a partir do livro de Jurandyr Noronha. No tempo da
Manivela. Rio de Janeiro. Embrafilme/Ebal/Kinarte, 1987: 157.
36. Imagem copiada digitalmente a partir do livro de Jurandyr Noronha. No tempo da
Manivela. Rio de Janeiro. Embrafilme/Ebal/Kinarte, 1987: 155.
37. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
38. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
39. Imagem copiada digitalmente a partir do livro de Jurandyr Noronha. No tempo da
Manivela. Rio de Janeiro. Embrafilme/Ebal/Kinarte, 1987: 126.
40. Imagem copiada digitalmente a partir do livro de Jurandyr Noronha. No tempo da
Manivela. Rio de Janeiro. Embrafilme/Ebal/Kinarte, 1987: 126.
41. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
42. Imagem copiada digitalmente a partir do livro de Jurandyr Noronha. No tempo da
Manivela. Rio de Janeiro. Embrafilme/Ebal/Kinarte, 1987: 268.
43. Imagem copiada digitalmente a partir do catalogo da Filmografia Brasileira Quarto
fascículo:período de 1926 a 1930. São Paulo.Cinemateca Brasileira, 1991: 65.
44. Imagem copiada digitalmente a partir do livro de Adhemar Gonzaga; P. E. Salles. 70
anos de cinema brasileiro. Rio de Janeiro. Expressão Cultural, 1966: 74.
45. Imagem copiada digitalmente a partir do livro de Adhemar Gonzaga; P. E. Salles. 70
anos de cinema brasileiro. Rio de Janeiro. Expressão Cultural, 1966: 43.
46. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
47. Imagem copiada digitalmente a partir do livro de Jurandyr Noronha. No tempo da
Manivela. Rio de Janeiro. Embrafilme/Ebal/Kinarte, 1987: 155.
9
48. Imagem copiada digitalmente a partir do livro de Heloísa B. HOLLANDA (Org.). Quase
catálogo 3 - Estrelas do cinema mudo-Brasil, 1908-1930. Rio de Janeiro, CIEC/Escola
de Comunicação /UFRJ/MIS, 1991: 40.
49. Imagem copiada digitalmente a partir do livro de Heloísa B. HOLLANDA (Org.). Quase
catálogo 3 - Estrelas do cinema mudo-Brasil, 1908-1930. Rio de Janeiro, CIEC/Escola
de Comunicação /UFRJ/MIS, 1991: 5.
50. Imagem copiada digitalmente a partir do livro de Jurandyr Noronha. No tempo da
Manivela. Rio de Janeiro. Embrafilme/Ebal/Kinarte, 1987: 272.
51. Imagem copiada digitalmente a partir do livro de Heloísa B. HOLLANDA (Org.). Quase
catálogo 3 - Estrelas do cinema mudo-Brasil, 1908-1930. Rio de Janeiro, CIEC/Escola
de Comunicação /UFRJ/MIS, 1991: 16.
52. Imagem copiada a partir da página web: KJA
http://www.rainfall.com/posters/Movie/1830.htm
53. Imagem copiada a partir da página web: Silent Ladies & Gents
http://silentladies.com/pnazimova2.html
54. Imagem copiada digitalmente a partir do livro de Jurandyr Noronha. No tempo da
Manivela. Rio de Janeiro. Embrafilme/Ebal/Kinarte, 1987: 265.
55. Imagem copiada digitalmente a partir do livro de Jurandyr Noronha. No tempo da
Manivela. Rio de Janeiro. Embrafilme/Ebal/Kinarte, 1987: 263.
56. Imagem copiada digitalmente a partir do livro de Jurandyr Noronha. No tempo da
Manivela. Rio de Janeiro. Embrafilme/Ebal/Kinarte, 1987: 159.
57. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
58. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
59. Imagem copiada digitalmente a partir do livro de Jurandyr Noronha. No tempo da
Manivela. Rio de Janeiro. Embrafilme/Ebal/Kinarte, 1987: 136.
60. Imagem copiada digitalmente a partir do livro de Antonio Moreno. Cinema Brasileiro:
História e Relações com o Estado. Niterói. EDUFF; Goiânia. CEGRAF/UFG, 1994:66.
61. Imagem copiada digitalmente a partir do livro de Jurandyr Noronha. No tempo da
Manivela. Rio de Janeiro. Embrafilme/Ebal/Kinarte, 1987: 162.
62. Acima imagem copiada digitalmente a partir do livro de Heloísa B. HOLLANDA (Org.).
Quase catálogo 3 - Estrelas do cinema mudo-Brasil, 1908-1930. Rio de Janeiro,
CIEC/Escola de Comunicação /UFRJ/MIS, 1991: 26.
63. Imagem copiada digitalmente a partir do livro de Jurandyr Noronha. No tempo da
Manivela. Rio de Janeiro. Embrafilme/Ebal/Kinarte, 1987: 163.
64. Imagem copiada digitalmente a partir do catalogo da Filmografia Brasileira Quarto
fascículo:período de 1926 a 1930. São Paulo.Cinemateca Brasileira, 1991: 39.
65. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
66. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
67. Imagem copiada da página da web da Cinemateca Brasileira/Base de dados da
filmografia brasileira: http://www.cinemateca.com.br/
10
SOBRE O PRIMEIRO BEIJO
Imagem 1 - Filme de Edison "O beijo"
“(...) Em 1896, a propósito do beijo trocado entre John C.
Rice e May Erwin em A viúva Jones: ‘Em tamanho natural, é já
animalesco’, comenta um jornalista de Chicago
1
, ‘mas não é nada
comparado com o efeito produzido por este acto aumentado para
proporções gargantuescas e repetido três vezes seguidas. É
absolutamente nojento. Factos destes apelam à intervenção da
polícia.” (BOLOGNE, 1990: 285)
O beijo do Sr. John C. Rice, dado na Senhora May Erwin, chocou não tanto pela
publicização do que deveria estar recolhido ao espaço privado da casa ou de outro canto
qualquer, mas pelo despudor expresso na face da viúva, que demonstrava prazer neste ato
indigno.
A máquina tinha por mérito a captura do real, mas não uma representação do real e, sim,
a própria realidade. A mulher exposta era ela mesma, não uma personagem. Sua permissividade
e erotização eram resultado da verdadeira expressão da realidade ali exposta no écran, não um
duplo e nem elementos de ficção. Era como se nos esgueirássemos até bem próximo e
olhássemos por entre buracos de fechaduras ou por detrás de arbustos, num voyeurismo
assumido.
1
Herbert S. Stone, editor do jornal de Chicago.
11
O espectador encara uma cena onde a mulher se comporta de modo indevido e, mesmo
sabendo que aquele ato compromete sua reputação, por ser compartilhado pelo olhar de um
grande número de pessoas, ela não titubeia e se mantém impassível frente à exposição de tal
indignidade e, muito pelo contrário, “mantém” seu prazer a cada apresentação. A fêmea assume
aqui seu papel de “eterna Eva” (Perrot, 1988: 168). A mulher, sabidamente, tinha no recôndito
de seu sexo o poder sobre o “sexo forte”. Todavia, tal poder não poderia ser mostrado a qualquer
um, nem que a “fêmea” fizesse uso dele para dominar e conquistar seus desejos. A mulher digna
deveria usar tal força para conquistar seu papel dentro da sociedade esposa e nunca utili-lo
para conquistar outras benés que não a do casamento. É que ela aceita o domínio de seu
homem, comedindo dentro da instituição o uso deste poder para organizar, a seu contento, o seu
espaço.
Neste trabalho encontraremos diversas representações de mulher que povoam o universo
fílmico brasileiro e, por conseguinte, o imaginário de homens e mulheres sofisticados como os
dos artigos de Chrysanthème ou dos personagens comuns de Lima Barreto e João do Rio.
Mesmo que pareçam feéricos, são parte de um modelo comercial em construção. Não falamos
de Indústria Cultural, mas, sim, de seus primórdios e dos elementos que serviriam de base para a
construção da cinema comercial brasileiro. É dentro deste sistema que encontramos a mulher
que, entre musa e vampira, encarna personagens que deslumbram o público pelo vigor, crueldade
e ousadia, muitas vezes caricaturas de tipos encontráveis na literatura e em imagens parisienses.
Através do cinema vemos, em imagens gargantulescas, mulheres “desavergonhadas”
exibindo-se e chocando o público puritano dos EUA. Porém, tais imagens permitem visualizar
estas mulheres, mesmo que de forma tosca e caricata, numa imagem de liberdade libertinagem
- que não lhes pertencia, e que iam am dos limites da moralidade ou da imagem do que,
convenientemente, se declarava como norma para o comportamento feminino.
12
O impacto do beijo da Srª Erwin não foi o mesmo em terras tupiniquins, talvez devido à
nossa miscigenação de corpos e culturas, descrita por Gilberto Freire em seus trabalhos. Em
“Casa Grande e Senzala” ele analisa a participação desses afrodescendentes e africanos, que não
possuíam em sua formação ou, pelo menos, não do mesmo modo, a influência das tradições
judaico-cristãs. Já emOrdem e Progresso”, o autor descreve a pressão de D. Pedro II que
tentava conter os ânimos de sua jovem aristocracia embriagada com os ares vindos da França,
acompanhando de perto as andanças de uma elite que devia estar atenta à moda européia sem
deixar-se perder e fazendo valer um tropicalização da moral vitoriana. Por outro lado, segundo
Freire, a proximidade da senzala influenciava a mulher livre que encontra a libertação na
cultura africana para a qual a sexualização do corpo não era tabu e a celebração do sexo é a
celebração da vida (na cultura cristã, a vida deve ser acompanhada pela comunhão da dor e na
culpa pelo assassínio do messias. Contrariamente, na cultura desses ex-escravos, os deuses
estavam vivos e presentes em seu dia a dia).
A ilusão de movimento trazido pelas imagens em seqüência ocorre quando a imagem /
luz atinge a retina, não se dissipando instantaneamente, e perdura mesmo depois que o raio de
luz deixou de atingir o olho humano. Permanece aproximadamente por 0,06 segundo, enquanto a
imagem dos fotogramas na tela dura aproximadamente 0,04 segundo, o que permite ao
observador não perceber os espaços entre as imagens seqüenciais, produzindo a impressão de um
movimento contínuo, o que possibilitou, "(...)injetar na irrealidade da imagem a realidade do
movimento e, assim atualizar o imaginário a um grau nunca dantes alcançado"(Metz, 1977: 28).
O voyeurismo do espectador o faz flanar por entre situações das quais não faz parte, mas,
durante a exibição, fundir-se-ão espetáculo e espectador. Este acompanha a lógica imposta pela
narração filmica, observando com prazer as situações vividas pelos personagens, na qual a
representação da cidade é manipulada num festival de quadros ambiguamente enigmáticos,
lançando suas sombras e luzes no limiar do real, que pode ser visto e que ilude a visão.
13
A película 35 mm de nitrato de celulose foi primeiramente adotada nos filmes por
Thomas Edison, em 1892, que mandou perfurá-las para usar em seu cinetoscópio ou
Kinetoscópio, um aparelho primitivo de visão de imagens, no qual era possível um espectador
por vez assistir a um breve segmento do filme. O cinetoscópio teve tamanho sucesso comercial
que outros aparelhos, criados posteriormente, adotaram a largura de 35 mm como formato
padrão.
No pré-cinema, a mulher já despontava como objeto de desejo ou, simplesmente, era
vista pelo caráter exótico do que não pertence aos padrões de comportamento ditos “normais”.
Ela podia carregar um rifle winchester e atirar em alvos móveis com precisão
2
ou, simplesmente,
despir-se em apresentações individuais dos chamados “níquel
odeons”
3
(Machado, 1997).
No cinema brasileiro, podemos ver essa dupla moral na
repercussão do “Maxixe do outro Mundo (1900), que chocava
e divertia. Corpos se atritam numa tradição bastante distante da
ética imperial se é que podemos chamá-la assim. A expressão
dos corpos nas danças afro-brasileiras não cabia no modo de
pensar de uma parcela da população que não se identificava
com tais tratos, mas que, mesmo assim, se sentia atraída e
justificava tal atenção ao exotismo dos tipos em movimento de
pernas e quadris que expressavam a permissividade das classes
populares.
O obturador do projetor permite que a luz chegue ao quadro do filme somente quando
este se encontra em posição na janela, não deixando que a luz passe enquanto avança. Um
2
Thomas Edison - 1894 - Annie Oakley.
33
Colocando uma moeda de um níquel poderia ser visto durante um determinado tempo imagens através de uma
lente individual que ampliava imagens em movimento, era um Kinetoscopio de Thomas Edison.
Ilustração 1 - Kinetoscópio de
Edison onde homens poderiam
observar por apenas um níquel
de dólar, eventos esportivos,
cenas do cotidiano ou mesmo
imagens intimas em que o foco
era a mulher.
14
mecanismo de ganchos encaixa-se nas perfurações no filme para sincronizar o avanço com a
rotação do obturador.
As fotografias vivas como Cunha Sales costumava chamar o filme - evocam o erotismo
em cenas do cotidiano ou, mesmo, em vistas que buscam apresentá-las fora do contexto
“natural”, como atrações de um espetáculo excitante, pelo modo como apresentam a mulher ou
como a mulher se apresenta. De qualquer forma esta poderá ser vista nos filmes desde o seu
surgimento.
A imagem erótica da mulher
4
, em
tempos de modernidade, foi apresentada em
vistas, tanto no Cinematógrafo dos Lumière
como no Vitoscópio de Edison. São exemplos:
The Kiss (1896)
5
de William Heise, Le Coucher
de La Mariée
6
(1896) que apresenta
“striptease” de Louise Willy, o primeiro da
História do Cinema produzido por Eugène
Pirou
7
, Douche après le bain (1897), de Louis Lumière e em Après le Bal(1897)
8
, de George
Meliès, responsável pela projeção do primeiro nu de corpo inteiro. Estes podem ser considerados
os primeiros filmes eróticos da cinematografia.
Em dicionários de Moraes Silva (1813)
9
e Figueiredo (1899)
10
encontramos a mesma
4
Ver. Laurence O’Toole, Pornocopia. Porn, sex, technology and desire. Londres: Serpent’s Tail, 1998.
5
Filme de dois minutos, com apenas 15 metros de comprimento.
6
Foi dirigido por Léar (Albert Kirchner) que foi possivelmente responsável por uma companhia chamada Lear e Co.
no Cairo organizada em 1901 para exportar retratos pornográficos para Europa. Pirou já era conhecido como
negociador de cartões postais de “risque”. Mais tarde em associação com a Igreja Católica Francesa vai dirigir o
primeiro filme que representava a “Paixão de Cristo”.
7
Pirou foi o primeiro rival dos Lumière na França.
8
Ver http://www.victorian-cinema.net
9
Diccionário da Língua Portuguêsa e copilado dos vocabulários impressos até agora, e nessa segunda edição
novamente emendado, e muito accrescentado, por Antonio de Maraes Silva, natural do Rio de Janeiro, oferecido ao
muito alto e muito poderoso Príncipe Regente N. Senhor Lisboa na Typographia Lacerdina, anno de 1813 com
licença da Meza do Desembargo do Paço.
Ilustração 2 - de Louis Lumière "Douche après
le bain", onde se vê mulheres brincando com
água.
15
definição sobre o que é erótico: “Relativo a amor, amatório e sensual.”. Então, por erótico (ou
amatório), entendemos toda situação que pode levar ao amor sexual, seja a postura protetora do
homem para com a mulher, a exibição das formas femininas ou dos papéis de subserviência e
fragilidade
11
. Também consideraremos os múltiplos fetiches apresentados nos filmes e os
personagens que assumem papéis que em si já carregam uma carga erótica femininos ou
masculinos. Curiosidade, pornografia e comércio são aspectos desse cinema que surge.
Pornografia expressa tanto em um beijo público como no ato sexual em si.
Mas também podemos velas em cenas do cotidiano, como em A Saída dos Operários da
Fábrica Lumière
12
(1895), O Almoço do Bebê(1895)
13
, A Morning Bath(1896)
14
, Admiral
Cigarette(1895)
15
, Native daughters(1898)
16
. Filmes que mostram mulheres saindo da fábrica,
participando de paradas à cavalo, dando banho e alimentando bebês ou encenando uma peça
publicitária para o consumo de cigarro, vício ligado ao mundo masculino.
Em sua primeira exibição pública na rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, a mulher está no
centro em, pelo menos, duas das películas exibidas: A Dança Serpentina
17
, e A Dança do
Ventre
18
, imagens repletas de erotismo em um ambiente obscuro e masculino, que causaram
espanto à platéia presente e puseram em cena uma nova perspectiva na relação indivíduo /
sociedade, muitas vezes socializando a intimidade. Assim sendo:
o mecanismo pelo qual as novas tecnologias, conquanto envolvam
procedimentos e recursos que são postos e operados no espaço público, agenciam os
desejos e as disposições psíquicas mais íntimas de cada um, influenciando a esfera
mais estreita das suas deliberações em âmbito privado e interagindo decisivamente
com esta.” (Sevcenko, 1998: 520/521)
10
Novo Diccionário da Língua Portuguesa por Cândido Figueiredo, Lisboa, Livraria Editora Tavares Cardoso e
Irmãos 5. Largo do Camões, 6. 1899.
11
Como pode ser visto nos Dicionários
12
Direção de Louis Lumière.
13
-se nesta cena a Sra. Margaret Lumière alimenta seu filho. Direção Louis Lumière.
14
Uma mulher negra dando banho em um bebê em uma bacia. Direção de James H. White, para a empresa de
Edison.
15
Travestida de Napoleão personagem distribui cigarros a personagens da História dos EUA, em uma propaganda
de cigarro, feito pela empresa Edison.
16
Com mulheres cavalgando em uma parada, feito pela empresa Edison.
17
Possivelmente se trata do filme de Edison de 1895 “Annabelle Serpentine Dance”.
18
Não há maiores referências sobre este filme, somente a nota do Jornal do Commércio de 09 de julho de 1896.
16
Homens e mulheres iam às salas para assistir às apresentações do maravilhoso invento: o
cinematógrafo. Às mulheres era pedido que se mantivessem nas últimas fileiras para não
atrapalhar, com seus enormes chapéus, a visão dos outros espectadores. Ainda a estas “mulheres
de boa índole” era somente permitido assistir as soirées nos horários da tarde ou nas matinês.
Nos primeiros anos do cinema carioca, o principal personagem é Paschoal Segreto, o
Príncipe das Diversões”, produtor e exibidor que, junto com seus irmãos, dominou o mercado
produtor nos primeiros anos do cinema nacional. Mais tarde, em suas salas, podiam ser assistidas
vistas nacionais e importadas e, a partir de uma determinada hora, “fitas duvidosas” ou "filmes
livres", proibidos para mulheres e crianças, que eram aconselhadas a prestigiar o Novíssimo
Cinematógrapho Infantil. Mulheres eram postas no mesmo patamar das crianças e deveriam ser
protegidas, apesar de os homens conhecerem a imagem verídica das mesmas.
Seus filmes projetaram para o Brasil uma cidade / nação modelar, que deve ser o sinal
dos novos tempos republicanos, civilizados e progressistas. mostrando o que deve ser visto e
rompendo com o velho sistema em fitas elaboradas para divulgação.
A mulher sai da casa e ganha as ruas e, na concepção tradicional, deveria então ser
concebida como indigna. Mas os tempos mudam e a mulher passa a percorrer (quase) todos os
mesmos espaços que a sua antítese. A imagem deste novo modelo, vagando livremente pela
cidade, contacta lugares recônditos da mente de seus observadores masculinos. Vendo-as vagar
pelas ruas, o homem imagina, fantasia e desperta seus desejos escopofílicos (Love, 1997: 96/97).
“A abertura para a circulação da mulher pelas ruas e avenidas decorrente da
urbanidade renovada concentrou o olhar masculino na imagem feminina
engrandecida como fetiche sexual projetado na tela. Envolta pelo desejo onírico ou
escopofílico, ela era oferecida pelas salas praticantes do ‘gênero alegre’, isto é, os
exibidores de filmes eróticos ou abertamente pornográficos.”(Souza, 2004: 45)
Segundo escreve O'Toole
19
, um empreendedor grupo de brasileiros comprou uma das
primeiras câmaras produzidas por Edison. Esse grupo regressou ao Brasil e iniciou a feitura de
19
Laurence O’Toole, Pornocopia. Porn, sex, technology and desire, Londres, Serpent’s Tail, 1998.
17
“dirty movies”
20
.
Durante os dez primeiros anos o cinema brasileiro produzira muito pouco, não havia uma
legislação que os regulasse. A censura era feita pela polícia, que tirava as fitas de cartaz quando
estas iam de encontro à moral pública burguesa, como naquelas de temática social ou política
(Ferro, 1984).. Não haviam salas fixas devido à precariedade no fornecimento de energia
elétrica. “Ao analisarmos o período 1896 - 1906, observaremos a existência de poucas salas fixas
de exibição e um cinema ambulante de pouca significação no Rio de Janeiro e em São Paulo. A
agravante principal dessa situação era o fato de o Brasil ainda não dispor de eletricidade
suficiente para a manutenção do consumo exigido. Em março de 1907, no Rio, quando a energia
elétrica passa a ser gerada pela usina do Ribeirão de Lajes, proliferam as salas de exibição:
apenas entre agosto e setembro de 1907 são inauguradas dezoito novas salas” (Moreno, 94: 43),
dirigidas especificamente à projeção de filmes.
Filmes de “risqué” atraíam a atenção do público masculino e afastavam crianças e damas
das salas que as exibiam. Por isso, a necessidade de acoplar a imagem de certos cinemas à ética
vigente. O Sr. Staffa realizador e proprietário de cinema - buscava a censura do presidente
como um aval para a exibição à “boa família”, como podemos ver na matéria que se refere à ida
do Vice-Presidente Delfim Moreira ao Salão Pathé:
“No passado governo, o Sr. Staffa, que explorava o cinema Parisiense, tinha
o hábito de levar as fitas que importava ao Cattete, exhibindo-as antes de entregá-
las ao público em presença do Sr. Dr. Wencesláo Braz e sua casa Militar, o que lhe
permitia annunciá-las nos programas como “Approvadas pelos applausos da
Presidência. Mas nem o Sr. Wencesláo é mais presidente, nem o Sr. Staffa importa
mais fitas. Assim, não indo as fitas ao encontro dos presidentes é natural que os
presidentes venham à procura das fitas onde ellas se encontram.”
21
Outros realizadores exibiam em seus folhetos de divulgação da programação dizeres que
afirmavam ser aquele um cinema para a família. O fato de um realizador buscar o aval do
20
Outro nome dado às películas pornográficas. Dirty Movies = Filmes Sujos.
21
Revista Paratodos: Magazine Ilustrada. 18/01/1919. p.22
18
presidente ou afirmar que, naquela sala, a programação era adequada, era a indicação da
existência de filmes não propícios à vista de mulheres e crianças no circuito.
O cinema passa a ser uma janela para o mundo. O cidadão moderno conhece Veneza sem,
ao menos, ter saído da cidade, vive novas experiências dramáticas sem, contudo, ter-se arriscado.
A literatura poderia fazê-lo imaginar um mundo que desconhece, mas o cinema faz ver um
mundo que julga verdadeiro. Outras formas de expressão artísticas imagéticas também farão ver,
mas só o cinema tem a capacidade de seduzir com sua cadência ligada ao mundo
industrializado música e imagem, assim guiando o homem moderno a um outro estágio de
consciência. A linguagem do cinema, por suas características e pelo modo como articula espaço
e tempo, será a que mais se aproxima da vivência moderna do espaço urbano.
Nesse período a mulher também poderia ser vista no écran em sua condição ideal pela
ótica de homens que não suportavam as novas posturas tomadas por algumas personagens nesse
novo mundo que despontava. A mulher não podia assumir seu papel longe do olhar de um
homem, fosse ele o pai, o esposo, seu filho ou, até mesmo, o amante. Há uma série de filmes que
narram a trajetória dessas mulheres que, enquanto próximas de seus protetores, levam suas vidas
em total harmonia, enquanto as “desgarradas” sentem o peso de uma sociedade que pune os
infratores. Essas mulheres são a imagem do sexo e da depravação na perspectiva masculina, mas
devem ser afastadas de uma outra: a da casa.
“Muitas vezes foi repetida a idéia, de forma implícita ou explícita nos
discursos fundadores de autoridade da teologia, filosofia e outros, que o homem tem
um sexo, a mulher é um sexo. Nesta afirmação, o corpo é obscurecido pela
identidade de gênero, numa dupla acepção em que o masculino se desdobra em sexo,
e o feminino nele se cristaliza.” ( Swain)
Proliferavam na época os filmes sacros, "falantes" e "cantantes", utilizando novas
tecnologias de sincronização de som e imagem. Todavia, apesar dos esforços, os resultados não
eram satisfatórios para o público.
19
O nascimento do cinema como veículo de divulgação do moderno e que, em si, já se
apresenta como um mecanismo do mundo do lazer, vinculou-se ao “surgimento de uma cultura
urbana metropolitana que levou: a novas formas de entretenimento e atividades de lazer; à
centralidade correspondente do corpo como o local de visão, atenção e estimulação; ao
reconhecimento de um público, uma multidão ou audiência de massa que subordinou a resposta
individual à coletividade; ao impulso para definir, fixar e representar instantes isolados em face
das distrações e sensações da modernidade, um anseio que perpassou o impressionismo e a
fotografia e chegou até o cinema; à indistinção cada vez maior da linha entre a realidade e suas
representações; e ao salto havido na cultura comercial e nos desejos do consumidor que
estimulou e produziu novas formas de diversão.”
22
Depois do “escandaloso”
sucesso de Traffic in souls (1913) nos
EUA, levando multidões às bilheterias
dos cinemas, o filme faz também grande
sucesso no Brasil. Ele é vendido como
filme de advertência, explorando
imagens e metáforas conectadas com
escravidão branca que contribuíam
com os discursos de modernidade,
sexualidade, gênero e “pureza”. O
sucesso do filme foi tal que, apesar do custo alto para os padrões da época: U$$ 5.700,00, rendeu
U$$ 450.000,00
23
. Advertência bastante lucrativa! “Trafico de Almas” é produto dessa moderna
22
Introdução. In: CHARNEY, L.; SCHWARTZ, V. (Org.) O cinema e a invenção da vida moderna, cit., p.22.
23
Ver http://www.mnemocine.com.br/oficina/sensual.htm
Ilustração 3 - "Traffic in souls” foi um dos primeiros
thrillers urbanos norte-americanos e remete o
espectador a uma simples idéia: de que a aceitação dos
paradigmas da modernidade urbana levará a sociedade à
ruína.
20
indústria do entretenimento de massas, que oferece uma oportunidade para explorar a cultura
popular forjando conexões entre o público no Brasil e o fenômeno de modernidade Europa/EUA.
O filme se passa no meio urbano e trata de tema “de máxima atualidade. Pretende
revelar os perigos - especialmente sexuais - aos quais as mulheres estão expostas na vida
moderna da cidade. Lugar de jogos de sedução os quais acabam por fazer mulheres de bem
acabarem como coristas a se venderem a aristocratas ricos.
O comércio de escravas brancas e o pânico moral cotejavam as salas de cinema aos
produtos das modernas tecnologias e organização social. O aliciamento de mulheres era um
fenômeno urbano relacionado ao aparecimento crescente de mulheres em um ambiente hetero-
social.
No Brasil, são produzidos vários
filmes que buscam o público explorando
situações “escandalosas” da atualidade, dentre
estas a exibição de mulheres nuas e os perigos
da modernidade urbana. Filmes como Le Film
du Diable divulgavam as imagens de um
tempo, mas, também, de uma “cidade” que
quer ser vista como parte do mundo moderno.
Em meio ao grande conflito, mas
bastante distantes dele, os cinejornais
aproximam a população do “Mundo” em
guerra. Fazem propaganda da bravura dos
soldados ingleses e franceses. Algumas fitas
são produzidas sobre esse tema para aproveitar a efervescência do conflito.
Ilustração 4 Provavelmente dirigido por Louis
Delac, letreiros de Bastos Tigre, onde a atriz
vista na imagem é Miss Ray que protagonizou
um "nu artístico".
21
Há indicativos de que foram produzidos stags
24
no Brasil, além das referências nítidas
de que eles habitam o imaginário carioca. Isto pode ser observado em Le Film du Diable
25
.
(1917) O título em francês já remete ao erotismo, pois, nessa época, o filme francês começa a se
tornar quase um sinônimo de filme pornográfico. Neste filme está contida a primeira cena de nu
do cinema brasileiro. Assim, o título pode ser visto como parte de uma estratégia de
“marketing”, porque, por estar em francês, é uma nítida referência aos stag franceses, o que
induzia à existência do conteúdo pornográfico.
A película mostra paisagens dos arredores da cidade do Rio de Janeiro e cenas de nu,
com Miss Ray nas grutas da Gávea. Apresentava, também, imagens da, agora, Avenida Rio
Branco, passando por Santos, São Paulo e imagens da Bélgica arrasada pela I Guerra Mundial.
No filme, o realizador propunha um passeio pela paz e harmonia representadas pelas terras
brasileiras. O nu simbolizaria a pureza encontrável no novo mundo, em contraponto à Bélgica
arruinada.
Para muitos, mulheres como Miss Ray eram vítimas dos sedutores ritmos sinfônicos dos
novos tempos. Para outros, eram parte de um processo de modernização inevitável. Decerto, suas
atitudes, seu pensar e suas relações criam no meio social certo incômodo, que está sempre
associado ao novo. Essa mulher moderna é uma afronta aos que desejam a manutenção de seu
status quo.
No início do século XX, vemos nas telas mulheres que se deixaram “estragar” ou que
foram seduzidas por se afastarem de seus machos protetores. Agora só lhes restaria aproveitar o
brilho das vitrines ou aceitar os benefícios dados por um “homem de posição”. Essas mulheres
24
Filmes de sexo explícito, produzidos na França, Cuba, Argentina, etc. Mas a maior quantidade deles foi
certamente francesa, tanto que a menção a um “film” Francês era quase que um sinônimo de filme pornográfico.
25
http://www.cinemateca.gov.br/pesquisa/index.asp?area=detalhe_filme&acao=fb&mfn=3161 - 35mm, 16q., Rio de
Janeiro/DF Produtora: Nacional Filmes; Diretor de Cena; Julio Davesa; Locação: Rio de Janeiro, São Paulo e
Bélgica (Provavelmente foi totalmente filmado no Brasil; Letreiros: (em versos) de Bastos Tigre; Elenco: Miss Ray,
Victor Ciacchi, Sérgio Giorgio. Lançamento em 16/04/1917.
22
“corrompem um homem de bem”, são vítimas e algozes dos encantos da nova cidade, dessa
modernidade que avança rápido, barulhenta e perigosa, pelos trilhos da nova metrópole.
A difusão do cinema ganha um novo impulso com o cinema norte-americano, que
domina o mercado produtor mundial. Nesse contexto, o cinema perde em definitivo o seu status
de brinquedo científico como designava Louis Lumière - e integra-se, definitivamente, ao
mundo do entretenimento (com o início de seu desvencilhamento das outras artes), passando a
fazer parte do cotidiano dos cidadãos urbanos e influenciando seus referenciais cotidianos.
Novos estilos de música e de dança que vêm de fora marcam, em definitivo, a ruptura
com a tradição oitocentista: Jazz, Foxtrot e Charleston revelam o ritmo desenfreado de uma nova
época de mudanças e a excentricidade dos comportamentos que caracterizam os loucos Anos 20.
O Foxtrot, pela cadência que revela, surge como a resposta de uma nova geração à
repressão da moral vitoriana, sublinhando a valorização da parte instintiva do comportamento
humano e das pulsões sexuais, de acordo com as teorias de Freud. A libertação do corpo e dos
preconceitos está intimamente relacionada ao espírito exuberante que transborda da década de
vinte.
No Rio de Janeiro, artistas nacionais ganham espaço entre a boa gente, como Pixinguinha
que, em 1914, grava os sucessos Rosa e Sofres Porque Queres. Em 1917, Donga grava Pelo
Telefone, considerado o primeiro samba gravado da história. Em 1919, integrou com Pixinguinha
e outros seis músicos o grupo Os Oito Batutas que, em 1922, excursionou pela Europa com o
propósito de divulgar a música brasileira, fazendo enorme sucesso. E o que é bom para a Europa,
é bom para o Brasil...
Nos anos 20 o cinema brasileiro vai perdendo seu caráter “amadorístico” e inicia seu
caminho para uma aventura mais complexa. Novos personagens entram em cena: Humberto
Mauro, Carmem Santos e Adhemar Gonzaga. Surgem as primeiras revistas especializadas em
crítica cinematográfica. As salas de cinema passam a fazer parte do circuito da vida social da
23
classe média urbana. As mulheres não são mais imagens sem voz
26
(apesar de estarmos tratando
do período mudo do cinema) e deixam de ser apenas coadjuvantes nos filmes, passando à frente
da cena como agentes da ação.
Talvez como Gabrielle "Coco" Chanel, abandonada pelo pai, cantora de cabaré, local em
que começou a conhecer homens que financiaram sua libertação econômica e permitiram-na
vislumbrar uma moda feminina que desse mais liberdade às mulheres, dos chapéus sem os
penachos e das calças compridas tradicionalmente símbolos de virilidade. A mulher moderna
era como Coco ou como a nossa Carmem Santos, que libertara seus sonhos a partir de um
casamento rico e propusera nas telas as imagens de mulheres com almas, com carne e com vida,
mulheres que buscam novos papéis na vida urbana.
Com o passar dos anos, o cinema vive sua metamorfose. Toda uma nova ordem de
transformações técnicas entra em vigor. A censura formaliza-se e as mulheres assumem seu
papel no “star-system”, além de espectadoras e consumidoras deste cinema, passam a ter função
na construção e reconstrução de uma nova idéia de família.
Como vivem e como agem as deusas desses novos tempos, seus mundos e suas imagens
projetadas nas telas de cinema? Personagens e atrizes desses tempos loucos dirigem carros,
fumam, saem às ruas desacompanhadas, produzem filmes e usam calças no assombroso mundo
das mulheres independentes.
A cidade e o cinema vivem a modernidade que agora é fonte de prazeres viciosos,
libidinosos e amorais dos “loucos anos vinte”. A imagem do moderno está ligada a práticas
moralmente perniciosas. Filmes como Mademoiselle Cinéma
27
refletem essa idéia. Baseado no
romance proibido de 1924, conta a História de uma mulher que permite” se perder pelos
26
Ver Michelle Perrot. Os silêncios do corpo da mulher In. Matos, Maria Izilda S. de, Soihet, Rachel (Org.) O
corpo feminino em debate. São Paulo: UNESP, 2003.
27
35mm, 16q. Rio de Janeiro/DF Produtora: Filmes Artísticos Brasileiros FAB; Produtor: Carmem Santos;
Diretor: Leo Marten; Baseado: Livro homônimo de Benjamin Constallat; Câmera: Laffayette Cunha; Elenco:
Carmem Santos, Alex Orloff, Edith Mars, Marion Day, Bella Muza (também chamada de Bela Lusa), Ivan Dolski
(pseudônimo de Leo Marten).
24
espaços duvidosos da Paris dos “loucos anos 20”, em seu caminho até o vício. O filme começa a
ser produzido um ano após o lançamento do livro. Uma iniciativa que tem por trás a atriz e
produtora Carmem Santos, mulher que melhor espelha essa imagem. Ela que, após apaixonar-se
pela arte cinematográfica, se casa com um rico empresário com o “interesse” de continuar sua
aventura com e pelo cinema, tornando-se uma das principais figuras dos filmes de sua época. Em
uma modernidade que também é um problema.
Todavia, o primeiro problema trazido com a modernidade é sua própria definição, que,
em seu sentido mais amplo, está relacionado ao que é novo, moderno, melhor. Hans JAUSS
escreve que, nas mais antigas referências ao termo:
a palavra tem apenas o sentido técnico do limite da atualidade, (...) deriva
de ‘modo’- que, então, não significava apenas precisamente, já, imediatamente,
logo, mas, provavelmente, significasse também ‘agora mesmo’. (...)‘Modernus não
significava apenas ‘novo’ mas ‘atual’. Entre os conceitos temporais
aproximadamente sinônimos, modernus é o único cuja função é designar
exclusivamente atualidade histórica presente.” (Jauss, 1996: 51)
As imagens de modernidade expostas pelo cinema, entram em cena, como que
sobrepusesse a anterior, somando, incluindo, em “cascatas de modernidade”, exatamente por
existir uma apropriação do termo, diferente em cada época, de um novo conceito de moderno
que vai se acrescentando a outros conceitos em momentos diferentes. Nas telas, vemos máquinas
modernas, roupas modernas, pessoas modernas em atitudes modernas. De tempos em tempos,
observamos atitudes em constante choque com o novo e com o novo novo. Aqui modernidade
pode ser, para seus contemporâneos, atraso, oposição ou adequação.
Quem opera com problemas e conceitos como os de modernidade e
modernização, períodos e transições de período, progresso e estagnação (...) não
pode deixar de confrontar-se com o fato de uma sobreposição ‘desordenada’ entre
uma série de conceitos diferentes e modernização. Como cascatas, esses conceitos
diferentes de modernidade parecem seguir um ao outro numa seqüência
extremamente veloz.(...).” (Gumbrecht, 1998: 15)
Como a maior parte dos filmes produzidos no Brasil do período estudado foram perdidos
em inúmeros incêndios ou por quaisquer outros motivos, contamos com dois grupos principais
25
de fontes para a construção do trabalho: faremos uso das informações disponíveis no “Banco de
dados da Cinemateca Brasileira”, que contém uma série de informações técnicas acerca da
produção dos filmes, assim como as sinopses dos mesmos, conseguidas a partir de relatos
jornalísticos e depoimento de seus realizadores. Analisaremos os filmes “Aitaré da Praia”, A
Filha do Advogado”, “Thesouro Perdido” e “Brasa Dormida”, além de informações contidas nos
Periódicos “Para Todos” e “O Fan”, sempre tomando como base as películas exibidas ou
produzidas que enfoquem a mulher.
A proposta deste trabalho é analisar as imagens da mulher através dos filmes produzidos
ou exibidos no Brasil, no período que vai de 1896 até 1928, nos quais ela é a personagem,
focalizando as alterações dos papéis sociais da mulher que, aos poucos, abandona a ética
Vitoriana
28
focada na imagem da “boa mulher” e passa a integrar o mundo do trabalho e do lazer
durante a Bela Época do cinema nacional.
A escolha do corte cronológico, que vai do nascimento do cinema até o final da década
de 20, deu-se por compreendermos este período como uma época de euforias furtivas no
desenvolvimento diegético
29
. A grande mudança vem com as transformações nas tecnologias de
captação de imagem até a chegada do cinema sonoro que modifica o ambiente, criando
dificuldades à sobrevivência de outro cinema que não o industrial. Muitos intelectuais do
cinema, como Plínio Süssekind Rocha
30
, acreditavam não haver nada mais pornográfico do que o
28
“(...)apregoava-se a noção de que a prática sexual em si é feia e animalesca, cabendo apenas às mulheres devassas
admirá-la, enquanto as mulheres “decentes” deveriam até mesmo evitar sentirem-se sexualmente excitadas. Também
era costume na época pensar que as mulheres apenas toleram as relações sexuais como um mal necessário e uma
obrigação para com seus maridos e, ainda, que o sexo é algo que de que não se deve falar nem a portas fechadas.” In
Robert M Goldenson e Kenneth N Anderson. Dicionário de Sexo. Ática, São Paulo, 1989. p.102.
29
“O termo diegese fora já utilizado por E. Souriau no âmbito de pesquisas sobre a narrativa cinematográfica:
neste contexto, opunha-se a universo diegético, local do significado, no universo de écran, local do significante
fílmico. É exactamente nesta acepção que Genette julga pertinente a transposição do termo diegese para o domínio
da narrativa verbal: diegese é então o universo do significado, o "mundo possível" que enquadra, valida e confere
inteligibilidade à história. Assinale-se que a partir de diegese sinônimo de história formam-se outros termos
(diegético, intradiegético, homodiegético, etc.) hoje largamente difundidos e consagrados pelo uso (...).” In.
Dicionário de Narratologia (em colab. com Ana Cristina M. Lopes), Coimbra, Liv. Almedina, 1987.
30
Jornal O Fan: Orgão Oficial do Chaplin-Club. Rio de Janeiro, Agosto de 1928.
26
cinema sonoro. Segue sua crítica ao filme Morphina (1928)
31
: “Só há uma coisa comparável a
“Morphina” é o film falado”.
Observaremos como o cinema carioca reflete-se no imaginário de uma época: a cidade
modernizada como um espaço de perdição. Mulheres perversas, homens corrompidos e mulheres
moralizadoras.
Analisaremos também aspectos de uma mulher fílmica em alguns de seus papéis sociais
ditos “não naturais” frente às alterações da sociedade do primeiro quartel do século XX, que
seria uma mulher sem rumo no imaginário masculino.
O fílmico, assim como a diegese, se apresenta dentro do universo do filme enquanto
narração e visualização desta. Emissão, Mediação e Recepção. Suas possibilidades só podem ser
compreendidas se analisadas dentro de um contexto. O filme dentro do filme, “pois o fílmico é
diferente do filme: o fílmico está para o filme como o romanesco está para o romance posso
escrever romanescamente, sem nunca escrever um romance” (Barthes, 1990:58)
O trabalho mostrará a participação do cinema na transformação da lógica social urbana,
atuando e influenciando ativamente na formação dos indivíduos que vivem em uma cidade
contida pelas “micro-estruturas do poder” (Foucault, 1979). Mostrará, também, a reação a este
poder contrariando a ordem no cotidiano de pessoas que querem sobreviver, a que chamamos de
liberdade gazeteira das práticas (Certeau, 1994: 19). É a formação de uma nação republicana
que necessita formalizar a idéia da ordem e, acima de tudo, as próprias estruturas do poder. Ao
mesmo tempo em que conquista seu espaço, o Estado cria as brechas para a transgressão.
A realidade fílmica faz-se no encontro pressuposto do discurso cinematográfico com o
espectador, entrando em contato com as imagens subconscientes e simbolicamente desejáveis
que habitam cada observador, seja projetando-se num personagem ou na simples postura de
“voyeur”. Pela própria conduta diegética dos films, que estava inserida em uma realidade
31
Produzida por Francisco Modrigano e Américo Matrangola São Paulo/SP, Lançamento: Sem definição de data,
nem local.
27
“distanciada”, o espectador só poderia se situar na postura de “voyeur”. Pela condução das
tomadas, fazia-se uso de “master-shot” (Abreu, 1996). - plano frontal de conjunto, que continha
quase toda a ação
32
e aumentava o afastamento do vivido pelos personagens.
Mônica Kornis acredita ser difícil não dar conta das transformações no imaginário social,
trazidas com a inserção deste mecanismo de ilusão óptica que é o cinema. A propagação deste
invento como instrumento de conexão informativa de massa perturba profundamente o modo de
ver o mundo e, conseqüentemente, o cinema é arte que interage elementos perceptivos de
imagem e, posteriormente, de som, alimentando e alterando a percepção de mundo ao seu redor.
A sua introdução no cotidiano da cidade fez com que homens e mulheres se integrassem a uma
lógica proposta pelos filmes.
O encadeamento mecânico das imagens em seqüência, da mudança de quadros e da
escolha do ritmo e dos personagens centrais da trama, faz lembrar o processo de valoração,
assimilação e armazenamento de memória. Assim como a memória, o cinema produz um duplo
do real que guarda reminiscências do vivido. A memória é fruto de uma série de valorações
conscientes e inconscientes da realidade. O filme, por sua vez, representa a consciência do
homem que deseja eternizar sua visão do real. Para que isso aconteça, seus realizadores contam,
muitas vezes, com aspectos subconscientes que os fazem compor um produto cada vez mais
próximo do que efetivamente existe. Assim, “os cineastas não copiam a realidade, mas ao
transpô-la para o filme revelam seus mecanismos” (Kornis: 241). A diferença de proposta de
projetos fílmicos permite ao historiador observar o real sob as múltiplas nuances do éthos social.
Toda memória é, a princípio, seletiva. As narrações no passado - no presente - são
reorganizadas de acordo com as experiências dos indivíduos dentro do contexto sócio-político.
Isso é percebido quando confrontamos as lembranças dos participantes na produção do filme
Morphina (1928), em que encontramos relatos diferenciados de um mesmo evento. Os
32
Neste momento, o cinema não sabia como se desvencilhar do teatro.
28
personagens estão próximos pelo tempo, mas suas referências ficam sensíveis as lacunas de
memória que emergem. O peso do presente nos indivíduos e as suas coletividades pesam na
representação do passado, pois: "a memória está, em grande medida, como uma reconstrução do
passado, com ajuda de dados emprestados do presente que substituem outros que foram
perdidos" (Halbwachs, 1968: 57). Isso nos lembra que a memória não se estagna, as lembranças
continuam dinâmicas nos indivíduos tanto nos caminhos para o seu reconhecimento quanto na
alteração do contexto dos fatos.
As narrativas fílmicas, nas lembranças de filmagens encontradas em artigos de jornais e
revistas, são documentos permeáveis, pertencentes a um grupo de memórias relativas a um filme,
construído na montagem dos projetos de cada um dos participantes do evento, mas que, ao final,
farão parte de um único corpo narrativo.
“É antes de tudo o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente,
da história, da época, da sociedade que o produziu, mas também das épocas
sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, pelas quais
continuou a ser manipulado, ainda que de forma silenciosa. O documento é algo que
fica, que dura, e o testemunho, o ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz
devem ser analisados, desmistificando-lhe o seu significado aparente. O documento é
monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro
voluntária ou involuntariamente determinada imagem de si próprias.”(Le Goff,
1984: 103)
Ou um diretor que faz a ação de todos os envolvidos no filme tornarem-se um único
produto.
O cinema é fruto dos ideais civilizatórios e, através destes, a lógica maquinal e a cadência
da passagem de frames levariam o homem ao progresso. Somente este poderia acabar com as
mazelas de nossa civilização. O cinema seria um dos veículos educadores desta transformação
“(...) se havia o bastante para todos, o futuro não podia deixar de sorrir, e todas as expectativas
estavam implícitas no presente. Para muita gente, as mudanças não constituíam uma ameaça, e sim
uma promessa”( Gay, 1989: 43).
29
Quando Schvarzman trata da produção filmica de Humberto Mauro, escreve que o filme
como representação da realidade “duplica a imagem de ‘realidade’, de tal forma que dá a ver a
imagem e, ao mesmo tempo, a construção da tessitura imaginária.” (Schvarzman, 2003: 17)
Mas podemos também apontar que, dentro dessas tessituras do real, que se apresentam não mais
como presente recomposto e, sim, como tessituras do passado, ele é composto por lembranças e
retalhos de um projeto que é coletivo.
Marc Ferro, ao tratar do “thriller” de suspense O terceiro Homem
33
(1949) observa o
conflito entre os seus realizadores que impõem suas leituras sobre a realização cinematográfica.
Como o centro das divergências entre direção, roteirista, composição musical e elenco Orson
Welles é quem mais interfere ativamente nos rumos da produção. O cinema diferentemente das
outras formas de expressão artísticas. É uma arte coletiva, fruto da ação de vários personagens
que agem a princípio com um mesmo propósito, mas que impõe suas próprias leituras durante a
realização do projeto fílmico. Além do que, foi a partir do cinema que a arte encontrou sua
vertente multi-sensorial. O filme como arte coletiva, que busca a comercialização, é produto e
espelho de uma sociedade. Seja como construção ficcional ou documental, o filme é um
“sedutor” objeto de análise do éthos social. “Na verdade, não acredito na existência de
fronteiras entre os diversos tipos de filmes, pelo menos do ponto de vista do olhar de um
historiador, para quem o imaginário é tanto história, quanto História.”
34
(Ferro, 1992: 27.)
Percebemos as personagens deste trabalho como filhas de tempos. E não apenas de um
único tempo, mas, de tempos, tempos deixados como herança. Heranças de hábitos, costumes e
lembranças de seus mais contemporâneos ancestrais. Contudo, ao mesmo tempo com as cabeças
buscando o futuro, tendo que administrar essa dicotomia na expressão do instante vivido do
presente. Pensamos então que essas pessoas as quais dedicamos nossa atenção, que se descrevem
33
“The Third Man” dirigido por Carol Reed, roteiro de Graham Greene, baseado em História de Graham Greene e
Alexander Korda, música de Anton Karas e elenco Joseph Cotten (Holly Martins), Alida Valli (Anna Schmidt),
Orson Welles (Harry Lime), Trevor Howard (Major Calloway), Bernard Lee (Sargento Paine), Ernst Deutsch (Barão
Kurtz), Siegfried Breuer (Popescu), Erich Ponto (Dr. Winkel) e Wilfrid Hyde-White (Crabbin).
34
BERNARDET, J.-C., Historiografia clássica do cinema brasileiro, cit., p.103, grifos nossos.
30
modernas ou conservadoras, vivem o mesmo conflito de tempos distintos na busca incessante de
simetria com o presente.
As mulheres que buscamos observar são fruto desse conflito, suas realidades encontram-
se na tentativa de realização desses dois projetos em uma vida. Os personagens estão
constantemente povoados por espectros do passado, vivendo em busca da silhueta que as
caracterize como presentes, ou quem sabe como do futuro.
Mademoiselle Chrysanthème, pseudônimo da escritora Cecília Bandeira de Melo Rebelo
de Vasconcelos, quando escrevia para “O Paiz” como cronista, trata dos embates psicológicos
nos quais estava metida.
“No langor dos tangos, ao calor do perfume destilado pela minha própria
transpiração ou pela do meu companheiro, ao som das harmonias sensuais e tendo
ainda na garganta o sabor ardente do champagne, eu me imaginava em países
irreais, apaixonada brutalmente por aquele homem que eu mal vira e que rodopiava
comigo, atento somente aos passos sábios da dança moderna. Cessava a música, o
aroma fugia à quebra dos movimentos, o vinho deixava a sua ação e eu,
envergonhada, tornava a adquirir a minha personalidade de moça da moda que
também é moça de família.” (Rezende, 2006: 58)
Entre a formação e o desejo a mulher se projeta para um espaço onde ainda não existe
referencial, na aventura do novo. Viver na insegurança de amoldar-se para um mundo o qual não
fora preparada.
Assim veremos, no desenvolver deste trabalho, o impacto do advento das novas
tecnologias que invadem o meio urbano, além da reformulação urbanística sofrida pela capital
federal na construção e reconstrução heterotópica dos modelos de mulher, nos múltiplos ideais
baseados em modelos conservadores e reformistas, na idealização do ideal, na busca da nova
mulher (que mesclava, vez por hora, idealização dos tipos do passado) e de modelos importados.
Mas os ares de liberdade, trazidos com a modernidade de fim de século, exasperam os
conflitos. Mulheres são expostas às suas antíteses e, portanto, donzelas, senhoras respeitosas e
prostitutas disputam a mesma calçada na busca por ver as mesmas vitrines, que traziam as
31
novidades da moda européia. Neste conflito, a mulher vislumbra o outro, do qual deveria ser
protegida. A literatura francesa descreve mulheres de bem exibindo hábitos de cortesãs. Cabia,
pois, ao homem protegê-la dos excessos dos novos tempos.
No outro capítulo, vemos três contextos: um primeiro, onde a mulher tem o suporte
masculino e, portanto, é naturalmente aceita para o convívio social; um segundo, quando a
mulher cede aos apelos de um homem por um motivo ou outro perdendo o status de honesta e,
por último, a mulher moderna, aquela que interfere no espaço de forma a alterar
significativamente as relações sociais no meio em que se apresenta, seja no arrojo com que vive
ou na maneira de se portar.
O último capítulo trata das mulheres que assumem, em boa parcela, a posição antes
cabida ao homem. São arrojadas, no que trata do uso dos mecanismos modernos e na forma do
trato do cotidiano das relações, bem como dos elementos corrompedores aliados à imagem da
mulher moderna, onde drogas e mulheres são vistas como problemas.
Entre o mundo onde nem tudo se encaixa perfeitamente e a realidade freudiana, o mundo
se debate entre crise, abrindo espaço para a proposição de novos tipos e de retorno a velhos
modelos, recheados de “idealidades práticas” e moldes que privilegiavam o homem.
O modelo afastava homens e mulheres de um projeto comum que abarcasse os anseios
dos dois sexos. Das mulheres era retirado o direito de pensar e expressarem-se livremente.
Deveriam portar-se como virgens decapitadas...
32
CAPÍTULO I: A VIRGEM DECAPITADA: MULHERES E HOMENS FRENTE AOS PROCESSOS
MODERNIZANTES
“IDEALIDADES PRÁTICAS”
A Mulher
Salve cariciosa creatura tantas vezes incensada e outras tantas sacrificada ao egoismo e
ao despeito dos que não tem comprehensão exacta dessa delicada planta, desse poema eterno de
lagrimas e sorrisos que se chama a mulher!
A mais arguciosa hermenêutica tem tentado desvendar esse evangelho de caricias.
Há na mulher, alem da correcção plástica que enfeitiça os sentidos pela gentileza dos
contornos e delicadeza de linhas convergentes para a ideal inspiração do Bello, um
encantamento mais precioso e de mais elevado quilate.
E’ a revelação esthetica, que em irradiações intelligentes e fulgidos tons, ilumina a
completa essa divina creatura, como o esmalte de Pallissy converte a tosca argila nas
portentosas porcelanas de Sévres!
Mãe, esposa e filha, quando vos admiro em cada um destes encantadores specimens de
um único gênero!
No Brasil, antes de tudo, é a mulher a filha de uma grande pátria. Porque então não e
ella encaminhada para uma missão tão elevada como os oceanos dos nossos rios?!
Aos quinze annos é a filha mais velha: aconselha, pensa, veste, ralha graciosamente e
acalenta com indizível encanto as irmãzinhas mais novas e os travessos nhônhôs que à conta do
papae e da mamãe chegaram da China muito mais tarde.
Assim particularmente, esta miniatura mimosa será mais tarde a mãe de família, a
providencia do lar, a esposa affectuosa, correcta e boa, que antecipadamente deve ser respeitada
para mais tarde não poder ser suspeitada.
Deos me defenda de não protestar desde já contra a orientação que lhe querem dar os
mal intencionados.
Ellesos innovadores sem coração que estremeça ao contacto da luz velada da virtude;
gastos no attrito social, saturados de materialismo, caturras no progresso moral, preconisam
excessos de luxo carnavalesco, desenterrando do pó histórico o esqueleto da cortezã romana,
arrebigado e anafado como emérito figurino as gerações modernas!
É tudo isso pura e simplesmente para a satisfação criminosa de uma senilidade
prematura.
Iconoclastas tentam quebrar contra o joelho rheumatico os moldes graciosos das
idealidades praticas.
Convertem o doce convívio social em tabuleiro de jogos chineses onde actores e
espectadores cabriolam de parceria em confusão funambulesca, amalgama cômica ridícula, se
não fosse terrivelmente fatal, pois é obvio que tanta decadência de costumes gera e propaga a
isidiosa nevrose que se converte em desanimo moral, vehiculo por onde suavemente escoa-se
essa grande covardia mental que se appellida-o suicídio!
(Continua)
Mix.”
35
35
O TYMBIRAÇA Periódico Literário e Recreativo. (Publicação Mensal) Escriptorio Rua de D. Polixena n. 2,
Botafogo, ANNO I Rio de Janeiro, 15 de Março de 1889 NUM. 3
33
Esta Mulher que, na figura de mãe cuidadosa, esposa ardorosa ou filha obediente, vemos
objetizada pelo autor que, nesta tríade, vê a união de um gênero que deve ser admirado, como a
“revelação estética”... Uma “planta delicada”, “divina creatura” de uma “correção plástica que
enfeitiça o espírito”, sendo este o caminho natural em uma “missão tão elevada como os oceanos
de nossos rios?!”
Mas que os homens, seus tutores, devem ficar atentos quanto àqueles mal intencionados
que querem um retorno ao tempo ancestral de sua ruína. Estes imbuídos de um “egoísmo... e ao
despeito dos que não tem comprehensão exacta dessa delicada planta”.
Estes símbolos de uma modernidade doente “tentam quebrar contra o joelho rheumatico
os moldes graciosos das idealidades praticas”
Mas para estes era bastante fácil, pois mal algum poderiam sofrer. Era a mulher que
deturparia seu espírito nobre e eles “Ellesos innovadores sem coração que estremeça ao
contacto da luz velada da virtude” da mulher honesta.
A condição ideal de uma mulher era emudecer, não deveria falar, nem que falassem dela,
sua virtude deveria ser orgulho para seu marido que, juntamente com seus gestos e modos de
vestir, deveria representar o homem que a sustenta, que a protege. No espaço público deveria
exprimir:
“por sua aparência (o modo de se vestir, de se enfeitar) a fortuna do marido, - do pai
ou mesmo do amante - de quem ela é uma espécie de cabide. A elegância da moda é
um dever seu. A própria beleza constitui um capital simbólico a ser barganhado no
casamento ou no galanteio.” (Perrot. 2003: 14).
Assim como na sociedade escravista, na qual os enfeites dos escravos simbolizavam o
poder de seu dono, a mulher objetizada no espaço público, serviria para a ostentação desse
mesmo senhor.
Na construção e reconstrução heterotópica das múltiplas possibilidades do real, a imagem
da mulher urbana na cidade do Rio de Janeiro se forma a partir de múltiplos projetos,
conservadores e reformistas. A partir da trilogia clássica de Gilberto Freire, observaremos alguns
34
elementos da construção pública das imagens da mulher que circulam na cidade do Rio de
Janeiro durante a República Velha.
Mas que mulher é esta? Quais os elementos formadores de sua lógica “moral”? Qual o
impacto das transformações tecnológicas e espaciais no modo de viver destas pessoas? Estas e
outras questões devem ser pensadas para que possamos compreender esta sociedade.
A partir do cinema, devemos procurar compreender as representações fílmicas da mulher
em uma cidade que se “perde” na busca da construção de uma imagem de cidade moderna. A
cidade modernizada torna-se um espaço profícuo para demonstrações não tradicionais dos novos
tipos que despontam nesses novos tempos, observando permanências e contradições dos projetos
de civilidade urbana que despontam na época.
35
1.1. HETEROTOPIAS FEMININAS: A FORMAÇÃO DE UMA MORALIDADE BRASILIENSIS
O espelho é, afinal de contas, uma utopia, uma vez que é um
lugar sem lugar algum. No espelho, vejo-me ali onde não estou, num
espaço irreal, virtual, que está aberto do lado de lá da superfície; estou
além, ali onde não estou, sou uma sombra que me dá visibilidade de mim
mesmo, que me permite ver-me ali onde sou ausente. Assim é a utopia do
espelho. Mas é também uma heterotopia, uma vez que o espelho existe na
realidade, e exerce um tipo de contra-ação à posição que eu ocupo. Do
lugar em que me encontro no espelho apercebo-me da ausência no lugar
onde estou, uma vez que eu posso ver-me ali. A partir deste olhar dirigido
a mim próprio, da base desse espaço virtual que se encontra do outro lado
do espelho, eu volto a mim mesmo: dirijo o olhar a mim mesmo e começo
a reconstituir-me a mim próprio ali onde estou. O espelho funciona como
uma heterotopia neste momentum: transforma este lugar, o que ocupo no
momento em que me vejo no espelho, num espaço a um só tempo
absolutamente real, associado a todo o espaço que o circunda, e
absolutamente irreal, uma vez que para nos apercebermos desse espaço
real, tem de se atravessar esse ponto virtual que está do lado de lá.
(Foucault, 1967)
Uma mulher qualquer, simples, casada com um homem também simples, sai numa tarde
fresca de primavera para aproveitar o brilho luminoso daquele dia e vai fazer o footing. Enquanto
passeia, aprecia as modas nas vitrines da nova cidade e se vê. Mas ela não está lá. O que vê junto
a todos aqueles modelos recém chegados de Paris é uma de suas heterotopias. Ela sai dali e vai
ao cinema, onde assiste a um filme estrelado por Carmem Santos, que dirige um automóvel e
fuma um “cigar”. O carro passa velozmente pelas avenidas e ela se vê no banco do carona. As
luzes se acendem e ela não está lá e, sim, numa poltrona do Cine Palais. Um homem afetado pela
beleza da jovem senhora, a acompanha durante o curto percurso. Já outra moça olha a vitrine e,
então, vê sua mãe trajando aqueles modelos; vai ao cinema e se assusta com a personagem de
Carmem Santos, imaginando o quanto de repulsa o personagem deve ter causado à jovem
senhora. São múltiplas as imagens de mulher dessa nova cidade, suas heterotopias e as reações
frente aos modelos espelhados.
Falar sobre a mulher que vive na cidade do Rio de Janeiro no final do séc. XIX e início
do séc. XX é falar sobre os elementos formadores do quadro mental que caracteriza esse gênero.
36
Traçar todos os vetores ou referências significativas para a construção do ideal/ideais de
feminino não é o que propomos neste sub capítulo. Buscaremos na obra de Gilberto Freire
algumas representações da mulher que trarão subsídios para a realização de nosso trabalho.
A escolha de Gilberto Freyre como autor referencial para as imagens formadoras da
mulher brasileira para esta que chamamos de heterotopias femininas, deve-se ao fato de que este,
nos clássicos Casa Grande e Senzala (1933), Sobrados e mucambos (1936) e Ordem e progresso
(1959), que formam a trilogia Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil, aborda
algumas influências na formação da imagem da mulher brasileira em construção no Brasil.
A partir daí, a mulher brasileira pode ser entendida não só como elemento positivo,
conservador, estável, de ordem mais realista e mais integralizadora, mas também como elemento
de contemplação do belo, mesmo que mórbida, radicalmente diferenciada de tipo e de trajo de
senhor patriarcal ao qual se associa a imagem da ação. Apesar de aspectos da exploração da
mulher pelo homem, característica notadamente do regime patriarcal agrário, há, também,
presença de mulheres fortes, independentes e realizadoras, substitutivas de ações tipicamente do
homem colonizador: a virago.
Quando tratamos da estrutura patriarcal, verificamos a herança colonial portuguesa. O
homem exercia a dominação dentro do organismo familiar, ficando a mulher sujeita às vontades
de seu senhor, sendo ela a esposa, filha ou escrava. Para Freire, o exercício do abandono moral
encontra-se fixado logo nos primeiros momentos da conquista do colonial. O português não era
tão radical como os espanhóis e nem tão avesso a diferenças étnicas como o anglo-saxão, dando
espaço para os contatos sexuais com outras etnias, nativas da América ou oriundas da África. As
facilidades trazidas pela distância da corte e a não existência de um preconceito de corpo ou do
sexo expunham as vísceras de uma sociedade reprimida por códigos morais incompatíveis.
“O europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres
da Companhia precisavam descer com cuidado, senão atolavam o pé em carne. (...)
As mulheres eram as primeiras a se entregarem aos brancos, as mais ardentes indo
37
esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses. Davam-se ao europeu por um
pente ou um caco de espelho”. (Freyre, 2000: 164).
Davam se pelo simples fato de buscarem no sexo as suas satisfações assim como os
homens o faziam, os espelhos, pentes ou qualquer outra quinquilharia eram somente algo mais.
O português na colônia abandona os pressupostos da moral judaico-cristã e se permite
viver em meio à luxúria do / no novo mundo. “De um colono rico dos primeiros tempos sabe-se
que ia ao extremo de fazer-se servir à mesa por índias nuas; e não parece que fosse caso isolado
o seu.” (Freyre, 2000: 181). Era uma realidade bastante distinta daquela da península, “Nossas
brasileiras não desmaiam se pronunciamos na sua presença as palavras perna, colo etc., como
as inglesas”(Freyre, 2000: 313).
A Igreja, que inicialmente não demonstrara sua contrariedade à extrema sexualização na
colônia, reage condenando as fornicações com as índias, a não ser após a catequese,
organizando-se uma sociedade baseada na miscigenação, com a mulher indígena, recém-batizada
e tomada por esposa e mãe de família; servindo-se em sua economia e vida domésticas no
conhecimento dos aspectos naturais relativos à terra. O que não resolvia o problema da
libertinagem na colônia, contudo dava um aspecto mais aceitável à lógica moral cristã.
Na escravidão, tanto indígena quanto africana, o poder e a preponderância do macho
europeu se faziam presentes. Sobre estas recaía o peso da devassidão. A mulher era a fonte do
pecado e a mulher não européia estava mais afastada de Deus. “A negra corrompeu a vida
sexual da sociedade brasileira, iniciando precocemente no amor físico os filhos-família.
Todavia, essa corrupção não se realizou pela negra, mas pela escrava e não a escrava africana,
mas pela escrava índia.” (Freyre, 2000: 372);
Se, dentro da Casa Grande, o poder do homem era exercido de forma exclusiva, na
Senzala era clara a preponderância do mesmo homem. O senhor das terras tinha sob seu controle
o sexo dentro de sua propriedade, seja no leito matrimonial ou na alcova junto a uma de suas
escravas. “A história social da casa-grande é a história íntima de quase todo brasileiro: de sua
38
vida doméstica, conjugal, sob o patriarcalismo escravocrata e polígamo; da sua vida e
influenciado pelas crendices da senzala.” (Freyre, 1936: 25).
Essa lógica se apresentava numa sociedade que unia os valores ligados à mentalidade do
colono de “ganhar mais”, com a obtenção de prazer sexual e manutenção da família, na
preservação desta através da reprodução da branca portuguesa, quando relata o dito popular
“Branca para casar, mulata para f.... negra para trabalhar”(Freyre, 2000: 85), mas também na
transmissão dos valores morais e do capital para o filhos, sabendo-se “O que sempre se apreciou
foi o menino que cedo estivesse metido com raparigas. Raparigueiro, como ainda hoje se diz.
Femeeiro. Deflorador de mocinhas. E que não tardasse em emprenhar negras, aumentando o
rebanho e o capital paternos.” (Freyre, 2000: 432). Que mesmo,“Indiferentes aos refinamentos
do amor.” (Freyre, 2000: 372), auxiliavam com que o capital e a lógica social se propagassem.
Não havia limites para a ânsia destruidora do conquistador,“Negras tantas vezes
entregues virgens, ainda molecas de doze e treze anos a rapazes brancos já podres de sífilis das
cidades”.(Freyre, 2000: 373). Mulheres negras consumidas pelos desejos libidinosos de seus
senhores, mas que tinham seu caminho traçado pela “origem”. Mesmo que não ocorresse naquele
momento o seria cedo ou tarde, pois “O que a negra da senzala fez foi facilitar a depravação
com a sua docilidade de escrava; abrindo as pernas ao primeiro desejo do sinhô-moço. Desejo,
não: ordem.” (Freyre, 2000: 425). “Que se servem com as escravas, que se prostituem ao
primeiro que as procura.”( Freyre, 2000: 405); A mulher negra deixa a sua condição de vítima
para se tornar autora da ação. Ela carregava dentro de si algo que não conseguia segurar: o seu
desejo, que, na visão de seu dominador, era algo animalesco já que seu sexo não era protegido.
O regime patriarcal propiciou a separação entre o homem e a mulher na estrutura social
da colônia luso-brasileira, cabendo ao homem branco a imagem da atividade e à mulher, o
caráter estático, fragilizado e afastado das coisas mundanas. À mulher a beleza e a
espiritualidade. Ao homem, o nome, a História, a nobreza. Mas até essa beleza só existe em sua
39
muito tenra juventude “Quem tivesse sua filha, que a casasse meninota. Porque depois de certa
idade as mulheres pareciam não oferecer o mesmo sabor de virgens ou donzelas que aos doze
ou aos treze anos. (Freyre, 2000: 401). Um caráter mórbido recaía sobre a imagem da mulher,
pois em sua juventude, era magérrima, esquálida e, após os vinte anos, era como que se
decompusesse, ou mesmo morresse. - “Depois dos vinte, decadência. Ficavam gordas, moles.
Criavam papada. Tornavam-se pálidas. Ou então murchavam. (...) mas feias, de buço, um ar de
homem ou virago.”(Freyre, 2000: 402) -, perdendo a identidade feminina, que identificamos
como matriarcas.
“Muitas brasileiras, porém, tornaram-se baronesas e viscondessas do
império sem terem sido internas dos Recolhimentos: analfabetas, algumas; outras
fumando como umas caiporas; cuspindo no chão; e ainda outras mandando
arrancar dentes de escravas por qualquer desconfiança de xumbergação do marido
com as negras.(...) Ignorantes. Beatas. Nem ao menos sabiam vestir-se. (...)
trajavam-se que nem macacas; saia de chita, camisa de flores bordadas”. (Freyre,
2000: 399)
No entanto, estas não perdem os seus encantos. Seria a negra a encobridora ou mesmo
aliciadora dos engendros sexuais de sua senhora? Pois (...) quem aparece auxiliando as
senhoras brancas nas suas aventuras de amor são escravas negras. O mais provável é que
fossem as negras as principais alcoviteiras.” (Freyre, 2000: 478), levando e trazendo bilhetes,
ligando o mundo da rua ao da casa.
Se, por um lado, a mulher da casa era reprimida pelos limites sociais da sua condição, a
escrava não tinha os mesmos limites, ela serviria como elemento de transformação, de
mobilização do cenário e do papel dos gêneros na sociedade patriarcal. Ao homem varão desse
grupo (branco proprietário) é assumido o papel transformador, político, renovador. Já sua
senhora está compelida à manutenção do sistema, à ordem, ao conservadorismo.
A mulher da casa analisada por Freyre em “Casa Grande” não participa desse empenho
apenas no papel de figurante nos caminhos para a sua libertação, ela que quando jovem é
submissa à vontade de seu senhor seja ele pai ou esposo quando madura desprende-se dos
40
encantos da juventude para se posicionar como virago dentro da estrutura familiar patriarcal,
tornando-se a figura central de uma família, uma matriarca.
A mulher negra da senzala negocia com seu corpo um papel preponderante dentro do
sistema produtor. Deixa a “linha de produção” e se aproxima do espaço do poder, ligado a seu
mundo do prazer. Ela, que inicialmente não pertence àquela lógica moral, aproveita-se desta
disparidade para realizar a sua própria adequação ao sistema, numa reação micro estrutural.
Padrão duplo de moralidade - dá ao homem todas as oportunidades de ação social,
iniciativa de contactos diversos, como entra na Casa Grande, na Senzala, na corte, bordéis e
sobrados e vai do leito da esposa ao catre da mucama. O homem, senhor, tinha o direito de
desfrutar de todos os espaços sem, contudo, a eles pertencer, do pleno gozo da liberdade física do
amor, da mulher que deve ir para a cama com o esposo, toda noite que ele estiver disposto a
procriar. Gozo acompanhado de dever, para a mulher, de conceber, parir, ter filho, criar menino.
A mulher, nesse contexto, está “totalmente” proibida de “certos” desejos sexuais, uma vez que
pertencia a um único espaço: a casa. A ela deveria limitar-se, assim, em todas a oportunidades,
do serviço doméstico: aos contatos com os filhos e parentes, com as velhas, as amas e escravos e
ainda ao contato direto com o confessor - através do confessionário.
Para isso, o papel do confessor foi indispensável dentro do tipo de sociedade patriarcal do
século XIX, fazendo o saneamento mental que serviu de terapêutica contra os desvios de
comportamento e questionamentos que esta viesse a apresentar.
Como elemento conservador, à mulher foi reservado o papel de equalização dos valores.
A senhora, como ícone da moralidade, serviu como sustentáculo lógico do sistema de valores
sociais, que permitiu a construção de uma aristocracia campesina. Na postura de matrona, ou de
simples esposa, a mulher serve de base para a construção de uma sociedade, ou mesmo na
projeção de seus senhores, pois:
"quase ninguém sabe o nome da mulher de José Bonifácio ou da esposa de
Pedro de Araújo Lima. Da mulher-esposa, quando vivo ou ativo o marido, não se
41
queria ouvir a voz na sala, entre conversas de homem, a não ser pedindo vestido
novo, cantando modinha, rezando pelos homens". (Freyre, 1968: 95)
Na juventude, a mulher deveria ser protegida, afastada de qualquer possibilidade de se
defrontar com outra realidade que não a de esposa, mãe ou viúva. Ela deveria aprender a manter-
se em silêncio, a mulher silenciosa era virtuosa. Responder, demonstrar individualidade, ou
qualquer tipo de expressão que não coubesse nos rígidos padrões da época deveriam ser punidos
com rigor, a fim de que, quando a hora chegasse, deixasse o julgo do pai e passasse ao controle
do marido. Logo após as primeiras regras estavam prontas para o casamento e isso ocorria em
torno dos 13 anos. Seus cônjuges eram escolhidos por seus pais. A partir daí, vive à margem da
vida de seu senhor e procriar era o seu principal motivo de vida.
Dentro da casa, a senhora exercia um domínio tirânico sobre as mucamas, como uma
espécie de cascata de poder. Explicável, visto que o senhor escolhia as escravas que mais lhe
apeteciam para trabalhar na Casa Grande, para servir-lhe no trato da casa e no leito.Isso gerava
uma certa disputa entre as mulheres da casa onde, para Freire, não há grande diferença entre o
que ocorria no domicílio rural ou no urbano
"O patriarcalismo brasileiro, vindo dos engenhos para os sobrados, não se
entregou logo à rua. Por muito tempo foram quase inimigos, o sobrado e a rua. E a
maior luta foi travada em torno da mulher por quem ansiavam, mas a quem o pater
famílias, o do sobrado, procurou conservar o máximo possível trancada na
camarinha e entre as molecas, como nos engenhos; sem que ela saísse nem para
fazer compras. Só para a missa. Só nas quatro festas do ano e mesmo, então, dentro
dos palanquins, mas tarde de carro fechado". (Freyre, 1968: 34.)
De forma lenta e gradual, a ocorre a re-significação da senhora do ambiente rural para o
urbano. No campo, a sua aspereza e falta de instrução eram indiferentes, mas os mesmos não
cabiam no ambiente urbano porque este exigia mais polidez. Seu espaço não se restringia à casa,
à igreja e ao cemitério, pois ganhava espaço dentro da cidade.
"Foi na chácara, através do palanque, ou do caramanchão ou do recanto de
muro debruçado para a estrada, e foi no sobrado, através da varanda, do postigo,
da janela dando para a rua, que se realizou mais depressa a desorientação da vida
da mulher no Brasil. Sua europeização ou reeuropeização". (Freyre, 1968: 154)
42
A mulher citadina começa a participar do cenário político, a moda européia impõe uma
mudança no biótipo da mulher, que se apresenta de forma mais alongada, magra e delgada,
perdendo o acanhamento e passando a ter idéias próprias. Essas novas mulheres ganham espaço
pela imposição de seus lugares na sociedade. Seus pais não mais são a voz exclusiva na
determinação de seus futuros e elas lutam pelo direito de amar e escolher seus maridos.
Moças desaparecem das casas dos pais:
"Esses raptos marcam, de maneira dramática, o declínio da família
patriarcal no Brasil e o começo da instável e romântica. A ascensão do mulato a
bacharel acentuou-se através desses raptos; mas também a ascensão da mulher. Seu
direito de amar, independente de considerações de classe e de raça, de família e de
sangue. Sua coragem de desobedecer ao pai e à família para atender aos desejos do
sexo ou do coração". (Freyre, 1968: 154)
A mulher semipatriarcal do sobrado continuou, para Freyre - "abusada pelo pai e pelo
marido". A solteirona, aquela mulher com mais de 16 anos que dependia do auxílio de outros, foi
uma das maiores vítimas dos sobrados. "Abusada não só pelos homens, como pelas mulheres
casadas". (Freyre, 1968: 127).
A solteirona tornara-se um elemento sem vínculo formal a um homem, dependia dos
favores de um familiar, ou de alguém que, por “caridade”, lhe propusesse ajuda, para isso
deveria estar a disposição para qualquer tipo de trabalho que a casa, a igreja ou outro espaço lhe
propusesse oferecer. Ficava em casa o tempo todo meio governante, tomando conta dos meninos
e escravos, cosendo, enfim encarregada dos afazeres domésticos. Nos dias de festas, ocupava-se
inteiramente na preparação destas e quase não aparecia às visitas. Devido a sua situação de
dependência econômica, absoluta, ela foi, evidentemente, uma criatura obediente e submissa.
Quando a “boa sociedade” começa a se voltar para as cidades, as meninas têm seus
horizontes ampliados, ao passo que passam a conviver mais proximamente com elementos e
valores de um mundo que não está fixado nos limites da casa. Produto símbolo da mulher ideal,
as bonecas de porcelana francesa passam a ser ostentadas por estas pequenas mulheres que têm,
nesses brinquedos, o seu objeto do desejo. A propriedade de uma boneca nova de louça
43
identificava a condição social da menina. As meninas pobres, com suas bonecas de pano,
almejavam uma de louça, pois também via naquele brinquedo, o símbolo do que era bom, do que
devia ser copiado.
“O culto das bonecas louras e de olhos azuis entre as meninas da gente mais
senhoril ou rica do Império deve ter concorrido para contaminar algumas delas de
certo arianismo; para desenvolver no seu espírito a idealização das crianças que
nascessem louras e crescessem parecidas às bonecas francesas; e também para
tornar a francesa o tipo ideal de mulher bela e elegante aos olhos das moças em que
depressa se transformavam nos trópicos aquelas meninas.” (Freire, 1959: 90)
A boneca, como síntese da mulher do mundo real, coloca à frente da menina o fato de que
ela estava longe do ideal - pele, olhos e cabelos claros - portanto distante do modelo em que não
vêem semelhança, mas que serve para reforçar “o culto” que as meninas deveria proporcionar às
bonecas loiras “parisienses”.
Paris era símbolo do requinte de uma vida mundana, era lá que os “aristoi” buscavam os
valores de civilidade. Aprender com as francesinhas, copiando modelos, europeizando-se, tornar-
se mais polido, mais educado era uma necessidade para se manter adequado. As prostitutas
francesas incorporavam, assim, um caráter educativo, civilizatório.
No Brasil, o conservadorismo moral de Pedro II impede que a corte promova qualquer
tipo de extravagância. Esta, na época, vivia cerceada pelo que chamamos de “tropicalização da
moral vitoriana”.
“Talvez se deva reconhecer nesse fato uma superioridade moral da corte de
Pedro II sôbre as demais côrtes da época, que a recomende aos aplausos dos
Vitorianos porventura ainda existentes neste mundo. Tratava-se de homem de vida
austera, de hábitos simples; e muito recatado quanto ao sexo.” (Freire, 1959: 97)
As elites vêem nessa postura imperial um entrave à formação do novo, mesmo no que
dizia respeito à expressão artística. Assim, ir a Paris significava buscar uma vida que não existia
aqui.
“Sem mundanismo, sem arte, sem moda, sem equipagens, sem uniformes, sem
festas, sem flôres, sem bibelôs o Palácio de São Cristóvão era um desterro mortífero
para toda gente alegre, para todos os homens novos, para todas as mulheres
bonitas.”(Freire, 1959: 97)
44
Pedro II via como necessárias as idas e vindas da corte a Paris, pois apesar de sua
austeridade acreditava faltar entre a aristocracia o requinte que só poderiam encontrar em
Europa.
“A aristocracia brasileira mais requintada da época era em Paris que
aparecia e brilhava, e de algumas baronesas e viscondessas do tempo de Pedro II se
sabe que se tornaram célebres na Europa pela sua beleza, pela sua graça e pela sua
elegância e algumas pela sua coquetterie, qualidades para as quais faltava ambiente
no Rio de Janeiro do segundo imperador. O caso repita-se da Baronesa de
Estrela, quando ainda muito môça e já coquette.” (Freire, 1959: 96-97)
Mulheres, como a Baronesa, conhecidas por sua coquetterie e por seus amores, tinham
que se manter submissas ao controle do imperador, que via nelas, assim como nas francesinhas,
caráter educativo para a formação de uma elite polida aos moldes da Europa.
“Imaginar que tais figuras estranhamente sedutoras, de baronesas assim
prestigiosas nos meios mundanos da Europa, eram representantes da sociedade de
Pedro II. Engano: eram emigradas dessas sociedades na qual nem sequer havia
ambiente , favorecido pelo Imperador, que lhes permitisse, de torna-viagem, exercer
uma discreta ação educativa(...).” (Freire, 1959: 100).
A República de 1889 vai acentuar essa evolução contribuindo para o que Gilberto Freyre
chama de “reeuropeização” da mulher brasileira. As heterotopias do feminino não são
excludentes entre elas, convivem às vezes conflituosa, às vezes harmoniosamente, permanecendo
no éthos social urbano.
O projeto civilizatório nacional pode ser visto em fins do século XIX e início do XX, a
começar pelas principais capitais brasileiras, cabendo à cidade do Rio de Janeiro o papel de
ilustradora desta civilização. Este projeto reformador não ficava só a cargo das reformas urbanas,
a população também deveria civilizar-se, pela “passagem das relações sociais senhoriais às
relações sociais do tipo burguês. A cidade burguesa teria, sistematicamente, de lutar contra
comportamentos, atitudes e expressões tradicionais que eram considerados inadequados para a
nova situação”. (D’Incao, 1997: 237)
45
Em meio a tudo isso, entra em vigor o projeto republicano que visava destituir as antigas
ordens sociais e urbanas e que transformaria desde as ruas até as casas, seguindo um modelo que
vinha de fora. Aos poucos, as formas de organização ainda ligadas ao antigo sistema colonial são
substituídas por modelos de cidade e de sociedade mais adequados à ordem econômica mundial.
A metrópole ganha ares cosmopolitas. A nova ordem adquire novos problemas que são
rapidamente criticados, numa reação à transformação modernizadora que fora acusada de trazer a
desordem. A nova equação social incluía aspectos amorais, levando, até mesmo, ao fim da
família. “Homens e mulheres se acusavam reciprocamente como os principais causadores de
uma intolerável corrosão dos costumes”. (Maluf, 1998: 372).
Mulheres e homens se perdem entre os excessos da vida moderna. Uma série de
mundanismos adentra a “boa sociedade” e o casamento e o lar deixam de ser as únicas
preocupações das jovens que se entregam aos prazeres.
“Excessos nos amores, preferencialmente pecaminosos, excessos no
comportamento interessado em romper as barreiras dos bons-modos coloniais,
excessos no consumo de álcool, cigarros e drogas. Por mais que se fale na
liberalidade de uma ‘belle-époque tropical’, especialmente no Rio de Janeiro do
final do século XIX ao início do século XX, a atuação da ‘Liga da moralidade’, a
prática freqüente do empastelamento de jornais e a censura tinham como base o
conservadorismo, a religiosidade e a misoginia.” (Rezende, 2006: 17)
Neste contexto, enrijecem a oposição aos modernos padrões de comportamento, com o
medo do fim da lógica social da família. “Lugar de mulher é no lar, e sua função consiste em
casar, gerar filhos para a pátria e plasmar o caráter de cidadãos de amanhã.” (Maluf: 374)
A concorrência de projetos sociais deixa claro que, se por um lado, encontramos na
cidade uma identidade vinculada ao “gosto pelos excessos”, importado diretamente de Paris, há
por outro, um espírito que tende a controlar esses modernismos, vigiando, limitando e retendo os
ares reformadores desses novos tempos.
46
1.2. A CIDADE PERDIDA: MODERNIDADE E DEPRAVAÇÃO NOS CINEMAS CARIOCAS
“Os nossos avós nunca tinham pressa. Ao contrário. Adiar,
augmentar era para eles a suprema delícia.
(...)“Antigamente as horas eram entidades que os homens
conheciam imperfeitamente. Calcular a passagem das horas era tão
complicado como calcular a passagem dos dias.”
36
João do Rio
A chegada da modernidade maquinal transforma as pessoas que, como frente à esfinge,
têm o dilema de adaptarem-se a ela ou serem devorados por esses novos tempos. São inúmeros
os relatos que demonstram esse impasse e muitos são os autores que se vêem assustados com
essa nova rotina de vida cadenciada pelos mecanismos das máquinas modernas.
Não é difícil imaginar quantos pais, filhos de outros tempos, não tentaram conter a ânsia
de seus filhos, dizendo:
- Não tenha pressa de crescer, as coisas não vão sair de seus lugares.
Mas logo chegaram as máquinas, que fizeram o “pae”, por vezes seguidas, sentir-se um
tolo inútil e a “creança” teve a obrigação de crescer para um novo mundo, que não mais
pertencia a seu “pae”. Enquanto os “Bonds” o fascinavam, o pai se assustava com o ranger
metálico que marcava o compasso de sua passagem, num fustigante voltear de suas rodas,
renegando os sinais desses novos tempos que despontavam.
Em um dia comum, um “pae” leva seu filho para conhecer o seu mundo e almoçar no
Café Java, comprar algo na “Parc Royal”, do senhor Ramalho Urtigão e, quem sabe, levar o
rapazinho, que muito interesse demonstrara pelo que era novo, à sala da Rua do Ouvidor, 57, que
há pouco iniciara sua função, apresentando um “Omniographo” em vistas animadas de projeções
de luz elétrica. Por volta das 15 horas, entraram na sala escura com cadeiras enfileiradas, espaço
36
João do Rio. Cinema tógrapho (Chronicas Cariocas). Porto, Livraria Bardron de Lello e Irmão, 1909. p.383.
47
perfeito para os “amigos do alheio - no seu trabalho de colher o que não lhes pertence, e
sentaram-se a esperar o inicio do espetáculo.
Um rapazote se pôs frente à tela munido de um balde e, numa atitude inesperada,
começou a molhar o tecido branco. Então, o senhor ao lado esclarece que o ato se dava para
assim, aumentar o brilho das imagens moventes.
À frente, dois senhores cochicham que tal ação seria para evitar incêndios, informação
que preocupara por demais o jovem filho. Entretanto, ao iniciar-se a sessão, de pronto ele é
tomado por uma emoção sem par. Ao final, saem, “pae e filho”, sem nada dizer. O filho, por
puro êxtase, acreditava estar partilhando com o pai aquele momento de mágico descobrimento.
Porém, foi só tomar a rua que o pai inicia o falatório:
Esse invento era o “diabo vivo”!!!
E o jovem, sem dizer palavra, já estava completamente apaixonado! Sempre gostou da
literatura que falava de máquinas maravilhosas, que faziam o homem ir aonde não lhe era
possível. E, nem em seus pensamentos mais fantásticos, acreditava que ganhariam vida. O futuro
chegara, fosse pelo barulho estridente do metal ou das projeções dos sonhos humanos das lentes
dos cinematógrafos. Todavia, uma imagem não o deixaria jamais... Foi bastante curta, mas
eroticamente sedutora... Nunca havia visto uma mulher mexer as ancas como aquela dançarina
do film. Nem nas conversas mais picantes de meninos havia tido contato com algo tão
surpreendente...
Que mulher era essa? Como pode ser tão diferente da imagem de mãe? Como pode mexer
tanto com o público masculino? Somente haveria esse modelo de mulher? Talvez algumas dessas
questões habitassem a mente do garoto, talvez todas essas perguntas ou nenhuma delas. Mas,
certamente, são variadas as imagens de mulher representadas nesses primeiros anos do cinema.
Neste capítulo, analisaremos filmes que, de um lado, tratam da mulher como aliciadora,
corrompedora, mas também corrompida pelos viciosos atrativos dessa nova urbe, que subverte a
48
relação público / privado; de outro, invadem com suas lentes os lugares do religioso e do pagão,
fábricas, funerais, casas e bordéis, da sala de visitas até o leito, do sacro coito nupcial ao com
prostitutas, mostrando de perto linhas de montagem, beijos calorosos, cenas de um enriquecedor
balé ou de um popular maxixe.
O cinema invade a cena urbana e a rural, o público e o privado, na contraposição do
moderno e do “natural”. Não há mais espaço fora do controle social, estas máquinas de captação
e projeção de modernidade invadem espaços tornando público o privado, como se não houvesse
mais distância entre a linha de montagem e a alcova. Não há mais limites para o olhar público
métrico e ritmado desse momento da revolução industrial quando o filme equaliza o espaço faz
desaparecerem as diferenças. O olhar público invade o privado e o indivíduo se “voyeuriza” no
escuro seguro das salas de projeção.
Uma fita, outra fita, mais outra... Não nos agrada a primeira? Passemos à
segunda. Não nos serve a segunda? Para diante então! (...) Podes deixar em meio
uma delas sem receio e procurar a diversão mais além. (...) E como nem o Destino,
autor dos principais quadros da vida não tem pretensão, como o operador também
não se imagina um ser excepcional, e os que lá estão a assistir ao perpassar das fitas
não se julgam na obrigação de julgar ver coisas importantes para dar a sua opinião
definitiva - dessa despretensão geral nasce o grande panorama da vida, fixado pela
ilusão, que é a única verdade resistente no mundo subsolar.”(Rio, 1909: V-VII)
A única diferença entre o flâneur e o espectador cinematográfico é que o primeiro
escolhe o percurso pelo qual perambula. O prazer do flâneur, assim como do Homus
Cinematograficus”(Rio, 1909, 384) está no enriquecimento do seu mundo interno através da
variação na sua experiência, aproximando-se, assim, do ideal do indivíduo. Todavia, o primeiro é
aquele que age e realmente está. Já o segundo é, confortavelmente, acolhido pela segurança da
poltrona.
A vertiginosa vida urbana, em sua superficialidade frívola, faz com que questões do
cotidiano sejam abordadas rapidamente, criando uma nova imagem de vida, tal qual pede a
rapidez da modernidade. Nela, o Homem Cinematográfico substitui seu próprio crânio por um
“cinematographo”, que guia a sua imaginação. Basta ao espectador fechar os olhos, enquanto as
49
fitas correm por sua retina na velocidade maquinal desses novos tempos, na dialética de
transformar em coisa a própria vida humana.
“O Homem-cinematográfico acorda pela manhã desejando acabar com
várias coisas e deita-se à noite pretendendo acabar com outras tantas. É impossível
falar dez minutos com qualquer ser vivo sem ter a sensação esquisita de que ele vai
acabar alguma coisa. O escritor vai acabar o livro, o repórter vai acabar com o
segredo de uma notícia, o financeiro vai acabar com a operação, o valente vai
liquidar um sujeito, o político vai acabar sempre várias complicações, o amoroso
vai acabar com aquilo. Dahí um verdadeiro tormento de trabalho. (...) O homem-
cinematográfico, comparado ao homem do século passado, é um gigante de
atividade. (Rio: 1909, p. 386)
Homens e mulheres frente a máquinas que os entretém, que os trazem e os levam. O
tempo é outro, as pessoas são outras e possuem expectativas diversas das dos seus pais. Vemos
uma época na qual as pessoas, como o coelho de Alice, não têm tempo. O tempo do
cinematógrafo é regularizado pela marcação rítmica do projetor, mercadorizado pela lógica da
terceira fase da revolução industrial.
Mas afinal, o que de fato estamos buscando verificar nesse momento?
Assistir a uma exibição fílmica da mulher é participar de um evento erótico?
Podemos, sim, ter essa idéia pelos filmes da época, que exibem mulheres dispostas no
écran pelo apelo de Eros e que buscam, portanto, a sensibilização erótica do público, tanto das
mulheres perdidas, quanto daquelas que mantiveram suas purezas intactas claro que até o
casamento. Nessas películas vemos mulheres que, como bonecas de porcelana - brinquedo de um
velho senhor, participam como coadjuvantes de uma cena em que a ação só cabe ao homem.
Numa cidade que é fonte de perdição, a modernidade é feminina. Homens se encontram e se
perdem nos labirintos de cocottes, coristas e polacas
37
.
37
São mulheres que vieram principalmente da Polônia, de vilarejos miseráveis, fugindo da fome, enganadas por
agentes, quase sempre iludidas com promessas de casamento, vivendo sob extorsões e ameaças. Eram as "polacas",
de língua arrevezada, cuja designação passou a abranger todas as prostitutas estrangeiras e virou sinônimo de
prostituta pobre.
50
Perdidas em meio ao novo, as mulheres, que há algumas gerações estavam protegidas
dentro da casa, agora estão expostas, estão à mercê de homens mal intencionados que poderiam
seduzi-las.
Traído, traída ou traídos, somente lhes resta a vindita. No movimento dos corpos se
expressa o erotismo do maxixe. Em busca do público, viúvas alegres e espiroquetas pálidos
invadem o écran.
As primeiras produções a serem observadas neste trabalho são Infelicidade de um Velho
na Primeira Noite de Casamento
38
e Uma viagem de núpcias que acaba mal
39
, os dois filmes de
1899, exibem senhores, como personagens centrais da História. No primeiro está expresso que o
homem já avançara bem em sua idade e, como era costume, possivelmente estaria casando com
uma mulher bem mais nova. Talvez não tenham tido a sorte de conhecer os efeitos
rejuvenescedores e curativos do Biotônico Fontoura, que só iria ser produzido em 1910 e que,
alguns anos mais tarde, prometeria manter um homem, “mesmo depois do avançar da idade”,
com boa saúde a ponto de cumprir seu papel em sua noite de núpcias.
“Tudo indica, porém, que a noite de núpcias fosse uma prova. Era o rude
momento da iniciação feminina por um marido que só conhecia a sexualidade venal.
Donde a prática da viagem de lua-de-mel, para poupar a família de um momento tão
constrangedor.O quarto do casal, espaço onde se entrincheirava a sexualidade do
casal.”(Del Priore, 2006:177)
Como nos reclames da revista Paratodos, em que vemos um senhor a “paquerar” uma
jovem de seus 19 anos. Ela, espantada com a situação, diz: “O senhor, um velho a me fazer
galanteios” e ele responde “Depois que inventaram o Biotônico Fontoura só é velho quem quer.”
40
No segundo filme, vemos situação semelhante que envolve as núpcias de um homem.
Dessa vez não há referências à idade do homem, mas é certo que as perspectivas de fracasso só
38
Produção: Paschoal Segreto e Irmãos. Operador: Affonso Segreto.
39
Produção: Paschoal Segreto e Irmãos. Operador: Affonso Segreto.
40
Revista Paratodos. 12/04/1919. Contracapa
51
recaiam sobre o homem. A mulher simplesmente não influencia no produto final da ação. Sua
participação era irrelevante, só ao homem era dado o papel determinante. Independente das
qualidades físicas de sua companheira a ele cabia todo o sucesso ou culpa. Ele é agente e
paciente da ação. Quanto mais vazia de atitudes e personalidade, maiores seriam as qualidades
da mulher.
Para o poeta Marcel Schwob, "o ponto de partida moral do homem é o egoísmo"
questionando a própria existência da mulher na consciência masculina, “‘Infelizmente, só eu
existo.’ A mulher seria um fantasma misógino.” (Dottin-Orsini, 1996, 357). Ela é invisível, não
deve ser vista ou então confundida com o próprio sexo no desejo do homem que a cria e pune
com a inexistência.
O cinema carioca reflete o imaginário de uma época: a cidade modernizada é também um
espaço de perdição, duplo de libertação e aprisionamento, lugar de mulheres perversas /
moralizadoras e de homens subjugados pelos pecados destas Evas pecadoras do mundo moderno,
mas libertadas pela imagem da Mãe/Maria.
A Cidade, que era agora fonte de prazeres lícitos, também era espaço de perdição. Seus
visitantes tinham muitos motivos para perderem-se e o cinema mostra essa nova faceta da
Capital Federal, como é o caso de Nhô Anastácio chegou de viagem (1908)
41
que foi o primeiro
filme a falar da cidade como fonte de perdição. Conta a história de um homem do interior que
em visita a Capital Federal, fica tão fascinado que perde o rumo. Chegando à Estação da Estrada
de Ferro Central do Brasil, sai perambulando pelas ruas e monumentos da cidade, em visita à
Caixa de Conversão, ao Palácio Monroe, ao Passeio Público. Por fim enamora-se de uma
cantora, escrevendo-lhe uma carta de amor, até ser denunciado à família. A esposa vem buscar o
marido desgarrado, persegue-o pela cidade, até conseguir alcançá-lo. Depois os dois fazem as
pazes e voltam para a fazenda.
41
Produzida por Arnaldo Gomes de Souza e Marc Ferrez. Lançamento em 19/06/1908. no Salão Pathé.
52
Posteriormente, porém com o mesmo sentido, temos: A Capital Federal(1923)
42
baseado
na peça homônima de Artur Azevedo, em que o noivo da filha viaja para a cidade do Rio de
Janeiro, se envolve com uma bailarina em um Cabaré e não volta mais. O pai da noiva vai a
cidade encontrá-lo e também se perde, envolvendo-se em muitas aventuras, mas, ao final, o
fazendeiro e Gouveia (o noivo) se arrependem e voltam para a família. Por outro lado, em
Lotero e Siá Ofrásia com seus Produtos na Exposição (1908), como se o casal de “caipiras”
tivesse aprendido com a aventura de seu antecessor, chegam à capital juntos, protegidos,
livrando-se dos desígnios de uma cidade sedutora, apesar das muitas confusões em que se metem
em meio à Exposição Internacional de 1908, ligadas aos contrastes de suas vidas no campo com
o mundo moderno da Capital Federal.
O “Cinematógrapho”, este invento que todo o mundo “scientifico” confirmou e
“applaudiu”, caiu como luva no gosto de uma população de miseráveis que habitavam as grandes
metrópoles, aproximando os espaços que separavam as elites das massas de trabalhadores. Não
só os homens pobres sofriam pela falta de suas concubinas e esposas, mas os homens, em sua
maioria, revoltavam quando traídos por suas mulheres e / ou quando elas são assediadas por
malandros, homens ricos ou até mesmo pelos padres.
Como é o caso de O Nono Mandamento
43
(UM TRAIDOR DE SOTAINA) que conta uma
história ocorrida na Capital Federal em que um padre aproveitando-se de sua posição
privilegiada dentro de uma comunidade, seduz uma mulher casada e é flagrado pelo marido que
expulsa a mulher de casa, vai até o padre para agredi-lo, mas recua por se tratar de um ministro
de Cristo. Entra na justiça e na audiência o Juiz decide pela entrega da criança ao pai. Há já no
filme algo de bastante novo, pois a lógica ainda nessa época dizia que o homem traído só tem a
sua honra recuperada com o sangue de seus traidores. Talvez a grande inovação do cinema nesse
42
Produzida por Luiz(ou Lulu) de Barros. Lançamento em 10/11/1923 no Cinematógrafo Rioalto.
43
Labanca, Leal e Cia, de 1909.
53
enredo foi mostrar a resolução desse episódio por via legal. Mas possivelmente o contrário não
ocorreu devido ao fato de o traidor usar sotaina, caso contrário poderia ter outro desfecho.
Algo ocorreu no intercurso da vida daquela mulher. Que leviandades a teriam levado a
favorecer outro homem que não seu marido, quanto mais a um “Mensageiro do Senhor” ? Os
ares destes novos tempos traziam situações que expunham as mulheres, deixando-as vulneráveis
aos pecados da carne. O prazer físico não deveria pertencer à mulher e falar sobre sexo era algo
que colocaria em dúvida a sua pureza.
“A palavra sexo não era nunca pronunciada e saber alguma coisa ou ter
conhecimento sobre essa matéria, fazia que elas se sentissem culpadas. Tal
distanciamento da vida real criava um abismo entre fantasia e realidade. Obrigadas
a ostentar valores ligados à castidade e à pureza, identificadas pelo comportamento
recatado e passivo, quando confrontadas com o marido, na cama, o clima de contos
de fadas se desvanecia(...) ‘Éramos completamente ignorantes em matéria da vida,
para ser pura tinha-se que ser ignorante’(...)” (Del Priori:255/256)
O homem é o certo; a mulher é o monstro, contida pela igreja e pelo seu cavaleiro, que a
liberta pelo casamento, reafirmando a idéia de proteção claustro - em que ela necessariamente
deveria estar contida, na segurança de que poderia seguir os desígnios de Deus.
Mas sem motivo algum já que, em princípio, a mulher carrega dentro de si o mal - ou
por intermédio de um corruptor, que também poderia ter sido corrompido por ela, o monstro se
liberta, só restando ao cavaleiro tomar sua lança e pôr fim à vida da mulher e de seu corruptor,
como um São Jorge frente ao dragão. A traição coloca em jogo a imagem pública do homem,
fato impensável visto que ninguém poderia ter dado algo melhor que um lar àquela mulher, mas
quando violado em seu lar esse homem, muitas vezes, só possuía uma saída: reconquistar sua
dignidade pelo sangue dos amantes.
Os estranguladores do Rio
44
(1908), reconstituição de um crime famoso ocorrido na
Capital Federal, foi o primeiro grande sucesso de ficção, produzido pela profícua sociedade do
44
Em outubro de 1906, Paulino e Carlucho Fuoco, sobrinhos do joalheiro Faço Fuoco, foram estrangulados no Rio
de Janeiro. A polícia, depois de várias diligências chegou até a fotografar as retinas de um dos cadáveres para ver se
nelas encontrava o retrato do assassino. Conseguiu prender os culpados: Jerônimo Pegato, Roca, Carleto e José
54
cinegrafista português Antonio Leal aliado ao ex-comerciante José Labanca.. Com
aproximadamente 40 minutos de projeção, foi um sucesso estrondoso a ponto de ser exibido em
várias capitais por mais de 800 vezes.
Em três de seus filmes, Labanca segue o roteiro de seu grande sucesso e recorre a uma
mesma reconstituição fílmica de crimes famosos ocorridos no País. Através da fórmula amor,
desejo e traição, ele exibe classes distintas em situações opostas. Esse filão é exaustivamente
explorado pelo realizador nos filmes A mala sinistra
45
(1908), Um drama na Tijuca
46
(1909) e
Noivado de sangue
47
(1909), sem, contudo, alcançar o mesmo sucesso.
Todavia, também trabalha com ficção em filmes como, Amor e... Piche
48
(1908) e João
José
49
(1909), que colocam mulheres em lados opostos: de um lado, a mulher pura; do outro, a
traidora, numa clara amostra do conflito dialético vivido pelas mulheres.
Em 25 minutos, na película Um Drama na Tijuca (1909), Labanca conta a História de
um crime passional ocorrido no Alto da Boa Vista, espaço tradicional de encontros amorosos,
mais libidinosos do que a moral vigente permitia. Lá, um casal poderia chegar com seu
automóvel e, discretamente, se permitir os contatos mais ousados. A chegada até o local teria,
necessariamente, de ser feita por automóvel e, portanto, era para poucos. O drama, pois, tomou
conta dos jornais em 1906, por se tratar de um crime ocorrido dentro da “High Society” carioca,
exibido em 16 quadros. O mesmo Labanca, no mesmo ano, filma Noivado de Sangue, que
também retratava uma História real de um crime
50
. A história se passa em plena terça-feira de
Carnaval, quando um casal entra no quarto do Hotel Bela Vista para a sua lua-de-mel. A mulher,
Epitácio. O fato repercutiu e virou peça de teatro "A quadrilha da morte". Os Segreto exibiram o filme "Roca,
Carleto e Pegato na Casa de Detenção".
45
Drama com produção de Labanca, Leal e Cia.
46
Drama com produção de Labanca, Leal e Cia.
47
Drama com produção de Labanca, Leal e Cia.
48
Drama com produção de Labanca, Leal e Cia.
49
Drama com produção de Labanca, Leal e Cia.
49
Ver: LOPES, Maria Angélica. O crime da Galeria Cristal, em 1909: a jornalista como árbitro. Travessia,
Florianópolis, p. 167-177, 1992. (Revista do Curso de pós-graduação em Letras da UFSC).
55
professora Albertina Barbosa, revelara ao marido já não ser mais virgem, pois fora seduzida, há
certo tempo, por um estudante de Direito morador de uma pensão, onde ela vivia com sua mãe.
Revelou ainda e nesta mesma noite, que o seu sedutor acabara de se formar.
Arquitetou-se a vingança: um fotógrafo da rua Direita expunha anualmente um quadro
com as fotos dos formandos da Faculdade de Direito. Nele, a mulher identificou ao marido seu
ex-amásio, o advogado paulista Artur Malheiros de Oliveira.
À época, os acadêmicos de Direito costumavam reunir-se em poucos pontos
determinados em São Paulo. Não foi assim difícil para o marido localizar o rapaz e, com algum
subterfúgio, atraí-lo para o quarto do hotel, onde os dois o mataram.
Era noite de 1909, quando um policial foi chamado para verificar um homicídio. Ao abrir
a porta, o seu espanto: tranqüila e friamente, Albertina olhava o corpo do Dr. Artur degolado. O
crime ganha repercussão pelo fato de a mulher estar à frente da situação, não sendo mais a vítima
e, sim, um dos autores. Do outro lado da sociedade, o cinema mostra a vida de João José (1909),
baseada na peça teatral “Juan José”, de Joaquim Dicenta. No écran estão os dramas de infância
do personagem central, quando foi seviciado: as orgias que participou, o roubo que cometera por
amor e a paga com a prisão e a traição da mulher amada. O encerramento se dá nos dois últimos
quadros, quando João José foge da prisão e, por fim, vai até seu algoz para praticar sua vingança.
A boa mulher tinha que contar a seu marido quando outro homem lhe fizesse investidas,
se fosse um homem formado poderia ser corrigido pela força dos punhos ou da pólvora, mas
quando fosse um jovem rapaz - no subúrbio carioca - a punição poderia ser despi-lo e tingirem-
no o corpo de piche, como em Amor e... Piche.
56
Em São Paulo são produzidos cinco filmes sobre o assassinato de Maria Fea em 1928,
que ficou conhecido como O Crime da Mala
51
(1928) quando o imigrante italiano José Pistone
mata sua mulher, então grávida de seis meses, e corta parcialmente os seus joelhos para o corpo
caber dentro de uma mala, enviada para a Itália. O crime teria sido cometido porque Pistone
desconfiou da infidelidade da mulher. O corpo de Maria só foi descoberto porque, ao içarem a
mala a bordo do vapor Massília, que seguiria para a Europa, perceberam que a bagagem deixava
escorrer um líquido escuro e dela exalava um cheiro insuportável. Resolveram então chamar a
polícia, que abriu a mala e, ao espanto de todos, encontraram o corpo de Maria Fea. Ao lado um
pequeno feto de um aborto post mortem.
51
Direção de Francisco Madrigano,
Ilustração 5 -Cena da filmagem do filme "O Crime da Mala". Na imagem vemos o operador de câmera
Francisco Campos, o diretor Francisco Madrigano e os atores Aldo e Wanda Lins que representavam
José Pistone e M
aria Fea.
57
Foi "Um verdadeiro furo de cinematografia nacional. O
sensacional crime da mala, que abalou profundamente a
população paulista, reconstruído em todos os seus detalhes".
"Esse filme desempenhado impecavelmente por artistas de nome
da cena muda
brasileira é a mais
fiel, completa e
sugestiva
documentação do Crime da Mala"... "A sensacional
tragédia silenciosa da Rua da Conceição."
(Bernardet
52
)
O homem traído vê como saída para a
reconciliação social o assassinato da esposa e do filho
ilegítimo que ela carregava em seu ventre. A criança
traria em si a objetivação da relação extra-conjugal.
Apagar a mácula era, em si, suprimir de sua imagem
a vinculação do insucesso masculino. A falha do homem quanto ao cárcere no qual a mulher
deveria estar contida. A mulher deveria ser silenciada na expressão de seu desvio. Deveria,
portanto, deixar de existir, ela e seu rebento, devolvidos para a sua terra natal. Imagens daquilo
que o Brasil não queria. Italianas, francesas ou polacas, mulheres que não cabiam em uma certa
proposta de país, em seus sonhos e em sua utopias.
Calores corpóreos, suores, contatos, tudo no maxixe levava ao sexo. Senhoras distintas
não iram a lugares destinados à pratica dessa dança, muito menos dançariam em público. Mas
52
A partir dos Banco de dados da Cinemateca Brasileira, disponível na web: http://www.cinemateca.com.br
Ilustração 6 - O momento do
assassinato.
Ilustração 7 - O transporte da Mala.
58
logo a dança seria moda em Paris e seu status mudaria. Homens e mulheres em contatos físicos
dançariam o maxixe frente às lentes dos cinematógrafos. Nas telas poderíamos ver apresentações
de Duque e Gaby que ficaram famosos por “haverem levado o samba e o maxixe à Europa, onde
dançaram nos mais famosos teatros e cassinos.”(Noronha, 1987, p.64)
Maxixe do Outro Mundo
53
(1900), Quadrilha no Moulin Rouge
54
(1901), O Professor de
Dança Nacional
55
(1909) e Os Efeitos do Maxixe
56
(1910) são filmes que representam outro
gênero produzido e exibido na cidade: o musical. Os espetáculos de dança, afastados do modelo
aristocrático de expressão corporal ligado às elites pré-século XX, mostram uma mulher agora
em um terreno não mais asséptico e no espaço do homem cortês, mas, sim, num lugar de
sexualização dos corpos, de sedução, do populacho. Um mundo que comporta gente de cores
variadas e nacionalidades, também, com francesinhas, polacas, mulatas e gente do povo. Gênero
musical que ganha espaço fora dos círculos populares no Brasil, quando se torna moda nas noites
Parisienses, num país que só valoriza o seu produto a partir do olhar Europeu. O que é bom para
a Europa (França/Inglaterra), é bom para o Brasil, como vemos no filme a Dança da
Moda
57
(1914), aqui exibido.
Fruto do processo de metropolização das grandes cidades e das transformações
modernizadoras, responsáveis pelas mudanças nos modos de viver e conviver, o ritmo frenético
das grandes cidades espalhava-se rapidamente por todos os cantos, principalmente no dia-a-dia
dos habitantes desses centros urbanos, e tornavam os elementos rurais da cidade cada vez mais
rarefeitos.
Até 1910, o cinema por sua própria construção, não impõe obstáculos aos seus
espectadores, que não necessitam ser letrados. Os filmes são verdadeiramente muito curtos e
situacionais. O “vedor” assiste ao filme buscando entretenimento, mas também familiarização
53
Produção Paschoal Segreto e Irmãos
54
Produção Paschoal Segreto e Irmãos
55
Produção Labanca, Leal e Cia.
56
Produtor William Auler
57
Feito por uma produtora de Milão/Itália e exibido no Brasil.
59
com o novo. Esse produto desse novo momento da revolução industrial faz com que as classes
populares sintam-se beneficiadas pelo progresso. Já o pensamento das elites é de uma certa
rejeição a esse engenho científico. Pela visão positiva, esse invento poderia ser uma forma de
comunicação para com as camadas ‘inferiores” do extrato social. O povo, “Aquella procissão de
desgraçados, que só o cinematographo podia nos deixar apreciar na sua vida actual; aquelle
bando de infelizes, que vivem soffrendo ou nascem morrendo
58
.
O filme, nesses primeiros anos, era uma curiosidade, mas não se afastava do esperado em
suas imagens, que retratavam o cotidiano em aspectos sociais. Não havia algum que,
publicamente, confrontasse as normas sociais estabelecidas. Mulheres esperando o momento do
sacrifício em suas núpcias, por exemplo, ou acompanhando homens em dança, mesmo que
quando em ritmos ou situações que provocassem uma erotização do olhar. De qualquer forma, a
mulher é, nessas imagens moventes desse cinema, a figuração de uma situação na qual só o
homem é agente.
A modernidade era captada pelas elites a partir do que era moda fora do Brasil. Foram
muitos os estilos musicais e as danças que atravessaram o Atlântico para aqui se estabelecerem
por um certo período. E o maxixe
59
teve que se tornar moda fora do país para ser reconsiderado
pelas elites e, a partir daí se tornar a Dança da Moda (1914) nas telas dos cinematógrafos.
As mulheres são maravilhosamente sedutoras, a ponto de fazerem um homem desviar-se
de seu caminho natural. Tocado por seus encantos, pois, ele ficaria a mercê de seus caprichos,
disposto a tudo para tê-las ao lado.
Mas o que levaria um homem a querer desposar uma mulher que não carregava mais a
sua pureza? Uma mulher viúva, por exemplo, era aquela cuja culpa dos desvios não cabia ao
58
ROCHA, Ismael da. A Doença de Carlos Chagas. Uma sessão memoravel na Academia Nacional de Medicina. O
Paiz, Rio de Janeiro, 31 out. 1910.
59
Para José Miguel Wisnik foi “surgida nos bailes populares do Rio de Janeiro por volta de 1875, estendendo-se
pelos clubes carnavalescos e teatros de revista. Resulta de uma apropriação da polca européia através da síncopa
afro-lusitana, com toques de habanera e de tango. Primeira dança popular urbana no Brasil, obtendo alguma
repercussão na Europa, na década de 10.”
http://www.mre.gov.br/CDBRASIL/ITAMARATY/WEB/port/artecult/musica/tnescrit/maxixe/
60
homem. Ela já cedera aos desejos de outro, por isso não tinha mais o que proteger. Aos olhos dos
homens, então, ela era perfeita para encontros em uma tarde qualquer, não para o casamento. Seu
dote, entretanto, seria um diferencial e o capital, mais uma vez, faria desta, que normalmente
seria enjeitada para um novo matrimônio, objeto de desejo de homens dispostos a ganhar mais.
Mesmo o trono do reino Português não fica imune à sedução de uma mulher como Dona
Inês de Castro
60
(1909), que fez com que o Infante D. Pedro fugisse a seu destino,
desvencilhando-se de seu casamento escolhido e enfrentando a vontade de seu pai para encontrar
o amor nos braços daquela mulher. Esta é decapitada frente a seus filhos, o que leva o príncipe,
quando chega ao trono, a enfrentar seu pai o rei, pois o sofrimento pela perda da mulher amada
nunca o havia deixado.
Há no cinematógrafo um certo experimentalismo que põe o filme a querer dialogar com o
público e tentar abrir espaço dentro de todos os tipos de entretenimento. Da reconstituição de
casos policiais, a representação operística, dos filmes científicos ao burlesco, em todos os
espaços o cinema tende a se embrenhar. 606 ou 606 Contra o Espiroqueta Pálido
61
(1911) é um
desses casos, em que a partir da descoberta da cura da sífilis, o filme apresenta de forma satírica
rias situações da vida cotidiana da cidade. Nele, a vacina denominada 606 satiricamente é
posta a duelar com o pênis empalidecido pela ação da sífilis. Modernidade que liberta os amigos
da esbórnia. Homens da casa e mulheres da rua poderiam livrar-se dos males do sexo. Eram
sinais de que não havia mais o que temer, nem o avançar sedento dos novos tempos. Deixem vir,
portanto, as modas parisienses, com toda a sua diversidade de tipos urbanos que habitavam as
modernas metrópoles européias.
Civilidade era o lema desses novos tempos e o cinema europeu também os aproxima da
vida elegante das elites e do cotidiano das pessoas comuns. A viúva alegre (1905), opereta de
Franz Lehár e sucesso na Europa e nos EUA, chega ao Brasil mostrado através de três situações
60
Produção brasileira dirigida por Giuseppe Labanca.
61
Produzida por Labanca, Leal & Cia. Lançamento em 24/01/1911 no Cinematógrafo Soberano.
61
básicas: o assédio de todos os homens à viúva, que é bela e rica; a paixão entre a viúva e o ex-
namorado, com quem não se casou porque, na época, ela era uma plebéia; e o triângulo amoroso
vivido por uma outra dama, seu marido Barão e um conquistador. Suntuosas damas, cavalheiros
elegantes, bailarinas de can-can e o sempre corrente champanhe, ambientavam a cena: torpor,
sedução e glamour foram responsáveis pelo sucesso da opereta de fundo nacionalista.
O gênero musical brasileiro, em 1909, traz cinco representações fílmicas nacionais da
Viúva Alegre
62
, exibidas nas salas de cinema Brasileiras em três versões “integrais” da história e
duas em que apresentam apenas áreas da opereta. A força da repercussão internacional do
musical faz com que o sucesso repercuta aqui. Mesmo que de forma ainda bastante amadora,
podemos notar claramente o empenho dos realizadores em captar o gosto do público. O cinema
passa a contar no processo de produção com uma série de novos parceiros. São romancistas,
dramaturgos e caricaturistas que passaram a escrever para o cinema, enquanto o cronista João do
Rio sublinhava que "os filmes de arte realizaram uma completa transformação dos costumes". Os
filmes, segundo o cronista, passam a interferir no cotidiano da cidade. A moda, os personagens e
os medos atravessam o écran e começam a habitar as mentes e as ruas da cidade. O êxito do
cinema brasileiro com as suas versões para as Óperas e Operetas cai no gosto popular
provocando o fechamento de muitos teatros por volta de 1910.
A mulher é frágil, física e moralmente, quando só ela era vítima fácil para os perigos do
mundo moderno. A classe social não distinguia as mulheres no que se refere às suas fraquezas.
Sejam Condessas ou ajudantes de costura, todas elas eram vitimadas e algozes de um mundo do
qual não deveriam ser agentes. Fora de suas casas tais mulheres são vítimas do infortúnio e
sucumbem em desgraça.
62
Uma de Labanca outra de Willian Auler e as outras três não se tem certeza.
62
Como é o caso de Moá, uma “midinét” ajudante de costura - numa das mais importantes
casas de modas da cidade. Ela espera
seu namorado Aris em frente à
Maison. Era carnaval de 1925 e ela
apreciava a passagem do corso e a festa
dos foliões. Com a chegada do
namorado, vão fazer um lanche em
frente à praia, o que era viável dentro
de sua precária condição Noutro
momento, Moa é encarregada de
entregar jóias e fantasias ao Conde e a Condessa de Rogers, hospedados no grande hotel
internacional.
Chegando lá, a moça fica extasiada com tamanho luxo. Entra no quarto e é recebida
pelo Conde que, de pronto, flerta com a rapariga. Nesse exato momento entra no quarto a
Condessa, que percebe a situação e, insultada, joga longe o colar presenteado por seu esposo,
saindo do quarto. O Conde a segue e Moa fica só, sentindo-se compelida a vestir a fantasia e
colocar o colar. Então um grupo de foliões entra no quarto acreditando se tratar da Condessa a
arrasta Moa a participar do corso, na Avenida.Rio Branco. Arís, que havia acompanhado a
midinét” até o hotel, depois de horas de espera, se cansa e sai pela cidade em busca de sua
amada. Entre um e outro copo de bebida, acaba por perder o controle de sua consciência. Moa
finda sua peregrinação carnavalesca em um galante clube, onde mais uma vez, encontra o conde,
que a corteja convidando-a para cear em um gabinete reservado. É quando irrompe o espaço a
condessa, encontrando novamente seu esposo em situação embaraçosa. Conseguindo desfazer-se
de sua esposa, o conde vai ao encontro da galante senhorita, pois já reconhecera o colar e
desejava recuperar a jóia. Quando ele alcança a jovem, chega Aris, que sai em defesa de sua
Ilustração 8 - Surry Like interpreta a condessa de Rogers,
esposa ciumenta.
63
namorada. Os dois brigam e, ao desferir o golpe fatal em Aris, o conde atravessa com sua espada
o frágil corpo da moça, que se havia posto à frente do amado, caindo morta ao solo. Era quarta-
feira de Cinzas
63
.
A mulher deve ser protegida da visão dela mesma, como Dorian Gray frente à imagem de
seu quadro que mostrava seu real horrendo. A mulher que, em verdade, era corrompedora e
lasciva, deveria ser protegida de seu eu verdadeiro. Os homens, apesar de nela verem algo de
necessário, deveriam obter seus favores comedidamente, entrando em seu mundo, sem viver
nele. Os homens deveriam vir à cidade desfrutar de seus prazeres e, depois de saciados, retornar
a sua origem campesina. A incapacidade de certos homens de controlarem seus impulsos fazia
deles presas fáceis para estas “malévolas criaturas”, que tão bem se adequaram à modernidade
urbana. Talvez só a família pudesse, na mentalidade vigente, servir de freio para os desejos
inconscientes masculinos, sem expor a mulher à sua realidade intrínseca.
63
Drama romântico de Joe Schoene.
64
CAPÍTULO II: UMA CABEÇA TRANSLOUCADA: IMAGENS DE UMA MULHER SEM RUMO NO
IMAGINÁRIO MASCULINO
Partindo para o Rio, ele (Otávio) não trepidou em hospedar a
ingênua camponesa em uma pensão equívoca. Já, então, na fazenda, os
velhos pais haviam recebido o golpe tremendo; e Maneco, como louco,
parte para o Rio. Enquanto isso se passa, Otávio rouba-lhe as jóias,
abandonando-a na mais extrema miséria. Rosinha vagueia pelas praias
do Rio, e o acaso leva-a ao encontro de seu infeliz ex-noivo. Encaminha-
se para Maneco e pede-lhe perdão.
“A Rosa que se desfolha”
64
Rosinha, personagem de A Rosa que se desfolha (1917), é como outras mulheres,
“fragilíssimas creaturas” que devem ser cuidadas, protegidas, acompanhadas de perto por
homens de bem. A estes cabe o papel de guiá-las pelos caminhos tortuosos da modernidade
citadina. Sua fragilidade e pureza a tornam profundamente sedutora, tanto para mulheres que se
sintam responsáveis por aquela figura tão frágil que, diferentemente delas, não possuam quem as
proteja, como também para homens que vêem na fragilidade o sinal para que eles próprios
ocupem o papel de corromper sem culpa, já que a mulher só é pública ou então o de ser seu
protetor amante ou marido.
A mulher toma a rua, emprega-se e divide o espaço da cidade com os homens, perdida
pela sua fragilidade, pelo seu desconhecimento do mal que carrega e que está fora da casa. Como
quem caminha por um “fio da navalha”, a mulher muitas vezes nos leva a conexões com o
universo ficcional mundial, como num romance de W. Somerset Maugham, submissa ou
vitimada pelos infortúnios da vida, ou algoz sem ao menos ter a total consciência de seu papel
nas tramas diabólicas em questão. Fútil e perniciosa como em João do Rio, uma melindrosa
imageticamente descrita por J. Carlos em seus modos, através de Chrysanthème. Mais uma vez
João do Rio, acompanhado do magistral Lima Barreto fará a composição das mulheres pouco
64
Fichas Filmográficas de Alex Viany a partir do banco de dados da Cinemateca Brasileira
65
importantes. Mas o cinema, vez por outra, parece encontrar nos estereótipos a imagem ideal para
a composição filmica de seus personagens.
A modernidade empurra as mulheres para a rua e as “desertoras da vida doméstica”
encontram nela os males para os quais não estão preparadas. Talvez nunca estejam. E muitos na
sociedade acreditam nesse fenômeno, que primeiro envolve mulheres pobres, negras, escravas ou
ex-escravas, ainda na segunda metade do século XIX. Nos primeiros anos, vemos uma alteração
das posturas das mulheres das camadas alta e média da sociedade. As mulheres buscam trabalho
e diversão nas ruas, saem sozinhas e prejudicam, assim, sua imagem. Ou, ainda, saem
acompanhadas de homens que não seus pais, irmãos ou maridos, coisa impensável há alguns
anos atrás. Em detrimento da casa, abandonam o espaço sagrado do lar e o profano da rua seduz
mulheres que buscam adequar-se a modelos que vêm de fora.
No cinema, vemos pobres mulheres vitimadas pelos encantos de um mundo que não lhes
pertence. As ruas são passagens para os descaminhos de mulheres como Rosinha, que se perdem
em meio ao turbilhão de sedutoras tentações das luminosas ruas da cidade, habitada por tipos que
não respeitam a pureza e ingenuidade desprotegida de uma dama e corrompem seus nobres
desejos em busca de prazeres baratos... Como Suzana, em Thesouro Perdido”, jovem do interior
que, se não estivesse acompanhada por seus protetores, seria mais uma vitima do “scroc” R.
Birhen. A mulher, quando bem acompanhada pelos “guardiões de sua pureza”, estava protegida.
A mulher moderna também é perdida aos olhos dos conservadores, só que esta escolhe
sua posição, não é “vitima” dos apelos sensitivos da lógica da vida urbana. Ela escolhe não se
encaixar nos papéis “adequados” a uma mulher de “boa família”, tornando-se assim um adereço
figurativo da modernidade.
No cinema, os habitantes da cidade moderna são carentes de novas experiências e buscam
a virtualidade de seu duplo, que pode ser encontrado em um dos personagens apresentados nas
telas com características adequadas ou inadequadas aos modelos vigentes, num tempo em que a
66
sua realidade, presente a cada dia, parece mais com o futuro. E "(...) os personagens desse mundo
em ebulição carecem, com urgência, de um eixo de solidez que lhes dê base, energias e um
repertório capaz de impor sentidos a um meio intoleravelmente inconsistente"(Sevcenko, 1992:
31).
O cinema, com seu encadeamento de quadros fruto da montagem, teve um papel
significativo na pavimentação de mentes, principalmente após os anos 10. É utilizado na
construção de um ideal social, no qual o homem moderno e civilizado ("homus
Cinematográficus") apreende mais e melhor as alterações no modo de agir e sentir do novíssimo
mundo. Consensualmente guiado pelo ritmo frenético das informações imagéticas lançadas sobre
o écran, num paralelo evidente com a velocidade maquinal da metrópole industrial, normatiza as
representações e expõe as diferenças, exaltando-as até se tornarem naturalizadas numa contínua e
nova significação da vida social. A multiplicidade de personagens e a disciplina da lógica,
aplicada à narração da História, conduzem o espectador a um ambiente onde só lhe resta se
adequar.
O cinema reproduz os poderes “legítimos” que representam a sociedade, sejam eles do
poder formal ou das micro-estruturas que o combatem em seu dia-a-dia. O cinema não só diz o
que o espectador quer ouvir como também naturaliza as relações com o novo. Mulheres
amparadas, perdidas e modernas transitam pelas ruas respaldadas por uma ideologia, pela
carência de propósitos morais ou de um homem. Todas seguem o caminho do novo, a busca dos
novos valores de civilidade que lhes permita sobreviver na cidade paradisíaca.
67
2.1 A Mulher Amparada: PAI, MARIDO, FILHO OU AMANTE
A boa mulher deve ter sempre um homem a seu lado a ampará-la na rua, caso não queira
ter sua imagem maculada por comentários perniciosos daqueles representantes da moral pública.
Em diversos momentos deste trabalho, encontramos filmes que representam esse ideal.
Tratando de mostrar ao público as pessoas que, como já dissemos, são mulheres frágeis e
homens fortes. Sem o braço protetor de seus homens, aquelas estão à mercê dos abusos de
personagens malévolos, sem escrúpulos, que querem roubar sua pureza.
Um boêmio vive a sua ruína e não possui dinheiro para pagar a pensão em que vive.
Então encontra na rua cinqüenta mil réis. Compra um bilhete de loteria de número Zero-treze
65
(1918) e tira a sorte grande. Talvez por ser a loteria uma prática do meio urbano, esse filme se
desvencilha da lógica de que o mal vem da cidade e mostra que o capital transforma não só a sua
vida como, também, o seu papel dentro da sociedade. Podemos aqui perceber uma certa crítica
social mesmo sabendo que se trata de um filme de propaganda da Loteria Federal, no qual o ex
“boêmio incorrigível”, fruto de um sistema que não permitia regeneração, encontra a sua saída
para um destino promissor. A partir da sorte para a conquista do prêmio da loteria, Álvaro
Ramos consegue o seu atalho para o caminho da correção. O capital é o libertador do
personagem, tanto de sua vida de pobreza na pensão em que vivia, quanto da sua vida
desregrada. Na produção vemos o homem ganhador da loteria viver os prazeres da vida urbana
até a exaustão. Quando cansado, sai de carro em direção à zona rural para lá resgatar um senhor
que se encontra afrontado por dois jovens. Podemos notar duas mensagens: primeiro que a
salvação vem da cidade e que, segundo, o homem sai da cidade um busca de uma mulher que
não existe mais na metrópole.
65
Drama da Guanabara Filme
68
As mulheres modernas são rejeitadas pelo personagem central, que vai ao interior
encontrar elementos de uma imagem de mulher que não mais existe no meio urbano, de uma
mulher ainda não maculada. Mas quando lá chega, encontra-a presa à vontade do pai socialmente
imbuído de resguardar a castidade da filha. Álvaro chega ao lugarejo e logo salva um fazendeiro
das agressões de dois colonos. O senhor era Tancredo, que lhe propõe abrigá-lo como convidado
em sua casa. Conhecendo a filha de seu anfitrião, Maria, logo se enamora por ela. Esta era
pretendida por João Maria, o braço direito do pai da moça, que fica enciumado com o assédio de
Álvaro, exigindo que seu patrão expulse o moço da cidade. A situação se complica ainda mais
quando João percebe o interesse de sua amada por Álvaro e disputa a socos o direito ao amor de
Maria. Álvaro então decide voltar para a Capital Federal, mas antes pede a mão da moça para
Tancredo. Entretanto, o pai da jovem não faz gosto pelo romance e diz que ela deve se casar com
um rapaz do interior. Ela foge para encontrar seu amado e com ele parte para o Rio de Janeiro, só
voltando um ano depois de casados e com um filho no colo. Diante do quadro, o fazendeiro
aceita o ocorrido e recebe o casal em festa.
A mulher imaculada é salvação para o boêmio, que encontra ao lado da jovem interiorana
o caminho para sua re-inserção. Claro que a fortuna da premiação também faz parte do processo.
O homem resgata a mulher de uma vida sem escolha, em que é moeda de troca ou premiação
pelos bons serviços prestados ou, ainda, parte de um pacto político local. Mas ela escolhe fugir
com o seu pretendente a permanecer sob o controle de seu pai, metaforicamente dizendo que o
sinal dos tempos chegava aos campos, ficando as mulheres disponíveis a escolher seu caminho,
ao invés de seguir os designados pela norma.
Quando os personagens não se imbuem das transgressões, só lhes resta esperar os sinais
do acaso, como quando a filha de um fazendeiro desperta a paixão do Coração de Gaúcho
66
(1920) que é um funcionário da fazenda de seu pai. Mas esta é cortejada por um caixeiro viajante
66
Drama de Luiz de Barros
69
que obtém o consentimento do pai para se casar com a jovem. Este envolve o pai da moça a
ponto de beneficiá-lo em seu testamento. O caixeiro então manda matar o fazendeiro. Durante a
briga, o pai da moça é morto e ele é ferido mortalmente. No momento derradeiro de sua vida,
conta à moça toda a verdade. Sabendo da trama, pode agora se casar com seu amor: o gaúcho, a
quem beija na última cena.
Outro braço direito de uma fazenda acredita ser o herdeiro do coração da filha do dono.
Até que ela é salva por um ex-funcionário da fazenda, juntamente com um velho corcunda que
guardava um segredo. O dono da fazenda readmite os dois e com o ato heróico ele acaba por
conquistar o coração da jovem e começam a namorar. O capataz enciumado parte para atacar o
jovem, o corcunda o defende e acaba por matar o
agressor. Então é revelado O Segredo do
Corcunda
67
(1924): o administrador fora o
responsável pela morte da mãe do rapaz. O final
esperado se realiza quando o jovem se casa com a
filha do fazendeiro e um ano depois apresentam o
herdeiro.
A moça resgatada pelo peão tem seu destino alterado pela dívida de vida para com seu
salvador. Ela é conquistada pelo ato de coragem do homem que arrisca sua própria vida para
proteger a jovem dama. A premiação pelo ato de coragem é desposá-la. O mais viril conquista a
admiração de sua pretendente e pode com ela “viver feliz para sempre”. Há nestas Histórias certa
composição de conto de fadas, nos quais a mulher adormecida espera aquele que irá lhe salvar ou
resgatá-la de uma vida de amarguras.
67
Drama romântico de Francisco Garcia e João Cipriano.
Ilustração 9 - Imagem do filme "O Segredo do
Corcunda", a mulher personifica o belo, a
pureza e o fragilidade
70
A amor deve ser retribuído ou devemos amar aqueles que nos fizeram um grande favor?
O dever de amar
68
(1925) conta a história de um homem que foi adotado pelo fazendeiro João
Lopes para viver com sua família do campo. Quando adulto, Paulo é enviado à Europa para
estudar. Na fazenda, ficam seus irmãos, filhos biológicos de seu pai, Carlos e Zélia. Enquanto
Paulo está na Europa, Carlos casa-se com Maria, que fora o amor de meninice de Paulo, e com
ela tem uma filha. Carlos se alista no exército. Sem saber do acontecido, Paulo manda um
telegrama para seu pai notificando a data de seu retorno. O pai se satisfaz, não sabendo do
porvir. Ao chegar, Paulo encontra sua amada e logo iniciam um “affaire”. Então seu pai os
surpreende em situação romântica e expulsa seu filho adotivo do lar ao qual não merecia mais
pertencer. Carlos manda uma mensagem para seu pai avisando sobre seu retorno. Sabendo da
notícia, Paulo planeja assassinar seu irmão, porém Zélia descobre as intenções de Paulo e
intervém, impedindo que o pior e confessando, em seguida, o seu enorme amor por ele. Tal
declaração é “bálsamo contra a infâmia que atuava sobre seus pensamentos”, e faz com que
Paulo se arrependa prontamente de tudo que fizera pelo amor da esposa de seu irmão.
Um pastor de Alma Gentil
69
(1924) chamado Eustachio pastoreava com um amigo nas
proximidades de uma cachoeira quando ouve ao longe um grito de socorro. O industrial Mathias
e sua sobrinha que foram passear de barco no rio, num descuido vivem uma situação de perigo
na cachoeira. Eustaquio, sem titubear, mergulha com seu amigo no rio para salvar a jovem e o
industrial. O pastor atravessa a queda d’água e escala as pedras até alcançar a canoa em que se
encontram os dois. Resgata a sobrinha de Mathias e a leva até a margem. Em seguida, volta e
salva o senhor. Ele guia os dois até uma tapera e depois pede a um molecote da região que
arrume uma charrete para levá-los de volta à sua casa.
Durante as despedidas, a moça já demonstra interesse pelo pastor. Mas o galã não
consegue se desfazer da imagem da jovem, vendo-a no fundo do rio enquanto pescava. Não
68
Drama romântico de Paulo Benedetti
69
Drama de Aladino Selmi e Eustachio Dimarzio.
71
agüentando mais, escolhe sues melhores trajes e parte para a cidade em busca de sua amada. Na
metade do caminho, depara-se com o tio da moça, o industrial Mathias, que lhe oferece carona
em seu automóvel. Durante o reencontro, ele e a moça se enamoram e iniciam o romance. Mas o
primo da rapariga não fica muito satisfeito com isso. Desfazendo do pastor, o primo faz
comparações quanto à discrepância sócio-cultural dos dois.
O tempo passa e o pastor deixa o campo para morar na cidade. Refina seus modos, mas
ainda sente-se distante da realidade da jovem, fato que o faz hesitar e não pedir a mão da jovem a
seu tio que, por sua vez, faz muito gosto em vê-los casados. Numa cena cômica, a donzela toma
a iniciativa e empurra Eustachio para dentro do gabinete do tio, que o recebe cordialmente. No
momento em que começa a fazer o pedido, o primo da moça adentra o gabinete enfurecido por se
sentir desprezado pela jovem que prefere o pobre pastorzinho ao sofisticado primo. O soberbo
rapaz começa a ofender o tio e o humilde noivo. Os dois irrompem numa briga e o vilão sai da
luta totalmente maltrapilho. Agora os dois poderiam se casar, com o beijo na cena final.
Nesses dramas rurais, vemos a insatisfação dos personagens para com a falta de estaco
que as mulheres tinham na escolha de seus esposos. A elas cabia apenas aceitar as escolhas de
seus pais. Contudo, sejam pelos ditames do destino ou pelas rupturas com o pacto social, as
mulheres rompem com a imagem tradicional e se filiam a um modelo do qual obtém maior
flexibilidade. Contudo, o papel do macho propiciador dessa alteração parece bastante
sedimentado nas produções.
No drama rural Thesouro Perdido
70
, vemos a fragilidade da mulher que espera, como
um tesouro, ser resgatada do esquecimento representado pela vida sem a segurança do
casamento, tornando-se solteirona. O tesouro do homem que a encontrar ou que pagar seu real
valor, será a entrega de suas“vergonhas”. Do filme foram perdidos os negativos - segundo
70
Direção de Humberto Mauro.
72
Humberto Mauro - e a sua redução deu-se a partir de uma única cópia
71
encontrada do original
em 35mm que já estava em avançado estado de deterioração.
O cineasta acata as sugestões de Adhemar Gonzaga e livra-se do antigo companheiro
Pedro Comello, assumindo as funções de fotógrafo e diretor e centralizando a produção, sem
arrepender-se. Premiado com o Medalhão de Bronze da Revista Cinearte, Thesouro Perdido”,
em sua opinião, foi o filme que mais lhe deu prazer. Razões não faltam: o irmão, Fernando
Mauro (que adota o pseudônimo Bruno Mauro), o sogro, os primos, ele mesmo (como o vilão
Manuel Faca), os filhos pequenos e a esposa Dona Bebê - Maria de Almeida Mauro todos
atuam. Maria substitui Eva Nil filha de Camello e escolhe o sugestivo nome de Lola Lys.
Sobre Tesouro Perdido Humberto relata sobre o tom caseiro em que a produção foi
realizada:
“À míngua de recursos e conforto, o meu entusiasmo havia adotado desde
logo o imperativo nacional:’ quem não tem cão caça com gato’. Sem atores,
montagens, maquilagem etc., toda a família representava, e se filmava o homem da
cidade e do campo nos seus misteres habituais. A natureza a ser surpreendida dava
tratos à bola para suprir com expedientes o meio mecânico: confeccionei
relâmpagos e tempestades usando a luz solar, um pano preto e um regador.”
(Mauro, 1978: 154)
Talvez por isso encontremos vários erros de continuísmos, como na cena do primeiro
encontro de Pedrinho e Suzana, em que Pedrinho aparece olhando para a direita, chamando a
atenção de Suzana, enquanto ela é mostrada caminhando da esquerda para a direita. Ao final o
encontro se dá da direita para a esquerda. Observa-se que a construção fílmica é absolutamente
artesanal, no tempo de duração das legendas e na escassez destas, o que torna difícil a
compreensão de certas cenas.
O modelo geral utilizado para Tesouro perdido é o do filme de aventura norte-americano
simples, com cavalos e uma mocinha raptada pelos bandidos, salva no último instante, como foi
em boa parte dos filmes de D. W. Griffith. O herói frágil, inspiração "griffithiana", é adequado
71
Que também foi perdida no processo de redução, processo que acaba por inutilizar a cópia, tornando-a
imprestável.
73
ao drama rural Tol'able David
72
(David, o caçula - 1921), de Henry King, no qual esse elemento
se tornaria figura destacada em vários filmes de Humberto Mauro.(Schvarzman, 2003: 39)
“David, o caçula”, assim como “Thesouro
Perdido” (1927), conta a História de um rapaz que tem
sua vida modificada com a chegada de um vilão à
cidade, onde a mocinha tem que ser resgatada do
contato com os personagens maus. Inversamente
contrário ao despertar da mulher, o personagem
central masculino deve ser despertado para o dever de
proteger a quem ama. É a devoção do homem ao
princípio da gratidão e do dever, protegendo, assim, a
inocência e a castidade femininas.
Quanto ao aspecto fotográfico, observa-se uma certa homogeneidade nos
enquadramentos e utilização quase que exclusiva de “master-shots”
73
, o que facilitaria a
construção da cena, denotando uma proximidade com a linguagem teatral.
O filme tem como elemento central um tesouro deixado por uma ancestral de um dos
personagens principais. No caso, Bráulio, que recebe parte de um mapa deixado pelo seu pai
falecido, após completar a maioridade. O tesouro tem sua origem no passado colonial brasileiro e
na imagem de riqueza desse tempo pela espoliação dos portugueses dessa terra. A outra parte do
mapa está nas mãos de um velho, conhecido como Tio Thomas. Fato esse sabido pelo famoso
“scroc” R. Birhen que, em “Arraial do Príncipe”, se faz passar pelo Dr. Raul Litz e trama roubar
as duas partes do mapa.
72
Que conta a história de um adolescente (Richard Barthelmess) forçado a substituir o irmão como carteiro da aldeia
onde vivem, Greenstream. Com a difícil adaptação a nova função é acrescidas pela chegada a região de um bando
de criminosos, o jovem vive o processo de amadurecimento na passagem para fase adulta.
73
Plano frontal de conjunto, que continha quase toda a ação.
Ilustração 10 (David, o caçula) Os
vilões, os Hatburns, são primos de Esther
a mocinha. Que chegam a Greenstream
depois de iludirem o destacamento do
sheriff. Tomada bastante parecida com a
de Mauro quando Suzana chama os
primos.
74
Logo, em suas primeiras imagens, vemos duas situações que devemos destacar na
primeira cena “cômica” quando, em meio a uma
brincadeira de criança, prendem à boca de um sapo
um cigarro e mostram, em paralelo, a imagem de um
garoto negro que participou da ação fumando. É
nítida a intenção cômica embutida nas cenas, que
visam a mostrar as semelhanças das imagens. Em
seguida, aparece Suzana, o elemento feminino
central, à procura de Pedrinho, que está a rir-se dos garotos. Ele a convida a observar e logo se
percebe o interesse deste para com aquela mulher. E é para ela que quase todos os personagens
centrais convergem sua atenção. Suzana é filha de Hilário, tutor de Bráulio e Pedrinho. Apesar
de ela e os rapazes viverem como irmãos, Pedrinho e Bráulio têm por Suzana um amor velado.
Disputam sua atenção, mas sem nenhum conflito. Bráulio já havia defendido com seus punhos a
honra da moça contra o vilão Dr. Raul Litz R. Birhen , que dissera gracejos a ela. Ele o faz
fugir, corre em direção a um automóvel e, como demonstração de sua virilidade, agarra-se a uma
árvore e ao carro, segurando-o com força, impedindo a fuga. Era algo irresistível à época a
exibição de força do protagonista / galã à sua amada / mocinha.
Em conversa com Pedrinho, Bráulio confessa interesse, caso encontre o mapa, em dar a
ela e àquele a quem chamam de “pae” um “palacete” para que tenham uma vida melhor.
A trama transcorre normalmente entre a ambição dos personagens negativos, Dr. Raul
Litz e Manoel Faca, e da pureza das intenções de Bráulio, Pedrinho e Suzana. O Dr. Raul Litz é
um sujeito que vive rodeado de mulheres em passeio de carro ou em sua vivenda e vê nos bens
materiais seu elemento de sedução. Já Manoel Faca é sexualmente inexpressivo, ao menos dentro
de um perfil patológico considerado normal. Talvez seu perfil esteja voltado a algum tipo de
sinergismo sexual.
Ilustração 11 - Nesta cena a conotação
comico-racista se iguala a concepção
preconceituosa exposta nos filmes de
Griffith.
75
Bráulio é mostrado quase sempre expondo sua força e valentia como elementos de
sedução. Já Pedrinho tende à conversa, sendo o companheiro de assuntos e passeios da
“pequena”. Suzana é a imagem da mulher frágil, que deve ser protegida e de uma ingenuidade
sedutora.
Enquanto espera o retorno de Faca, que trará parte do mapa que pertencia ao velho Tio
Thomaz, Birhen é visto pelos espectadores folheando uma revista de cunho pornográfico, com
mulheres em trajes íntimos, ou nuas. Vemos aí outro elemento de construção dialética dos
personagens, pornografia /ganância versus pureza /desapego material.
Na cena abaixo,
vemos o encontro de R.
Birhen com Manoel Faca
após o assassinato do Tio
Thomaz e do cachorro
Veludo. O “scroc” está a
traçar o próximo passo
para a conquista do
tesouro.
Na cena final, após
ter sido raptada, Suzana é resgatada por Pedrinho, que dá sua vida para salvá-la, não sem antes
matar os dois facínoras. Bráulio encontra o seu irmão ferido de morte, leva Suzana para casa e
destrói o mapa em meio a uma declaração de amor.
Tanto R. Birhen quanto Bráulio vêem na figura de Suzana a objetação de suas fantasias
sexuais. Enquanto o primeiro quer obtê-la por via da força /rapto, o segundo acredita que a terá
por direito. Há nos dois personagens uma clara devoção à lógica da dominação masculina, seja
Ilustração 12 - Dr. Raul Litz (Alzir Arruda) que representa o urbanos
pelos seus trajes e modos e Manoel Faca (Humberto Mauro) maltrapilho
e bruto caracterizando o elemento rural em cena de “Thesouro Perdido”.
76
na transplantação da lógica local ou na demonstração de vigor físico. A figura de Suzana segue
sem escolha rumo a um futuro que, necessariamente, pode não ser o seu.
O homem da cidade, culto e moderno (utiliza o automóvel enquanto os outros
personagens vão a cavalo). São muitas a mulheres que se deixam seduzir pelos artifícios da
modernidade encontráveis no vilão Dr. Raul Litz, deixando de lado a proteção dos dois “irmãos”
para viver com o “scroc”, o que seria um erro fatal.
Mas era necessário Soffrer para Gozar
74
(1923), como
foi o caso de Edith Barros, moradora de uma pequena vila.
Mulher casada que renunciara a tudo em favor de seu casamento,
tendo como marido Tim, homem rústico e bastante ignorante.
Ela aceitava tudo por
ser uma “boa” esposa. Jacques
Fernandes proprietário de uma
Casa Comercial onde, nos
fundos, funcionava o "Bar da
Onça", trama um plano para
obter aquela mulher que tanto desejava, matando Tim e
convidando a mulher a trabalhar em seu Bar. Sua beleza sem
igual atrai muita freguesia, mas o Bar era, em verdade, um
lugar de prostituição e jogos de azar. Jacques assedia Edith, mas é rejeitado. Até que um dia,
chega ao local o jovem Jayme Lourenço que havia vendido sua boiada.
No bar encontra Edith e logo se apaixona por ela. Começa a assediá-la também, porém
este tem melhor sorte. Jacques percebe que os dois já compartilham um grande amor e planeja
74
Drama romântico da Apa Film S.A.
Ilustração 14 - Edith Barros,
a mocinha sofredora
interpretada pela atriz
Cacilda Alencar.
Ilustração 13 - O vilão Jacques
Fernandes interpretado pelo
ator Waldemar Rodrigues
77
um novo golpe, dessa vez envolvendo Jayme. É quando chega ao bar um policial que pretendia
prender Edith pela morte de Tim, mas esta consegue provar sua inocência. Jacques escuta e parte
para cima do policial imaginando já a sua prisão matando-o. Corre para capturar Edith e
avança sobre ela para estuprá-la. Jayme vê a situação e salva sua amada. Com a prisão do vilão,
os dois poderão gozar das alegrias do amor e do casamento.
A mulher deve aceitar seu destino. Por mais
sofrimento que este possa depositar em seu caminho, ela
deve aceitá-lo. Por maiores que sejam as tentações, a
mulher deve se manter intacta, pois, ao final “virá a
paga”. Há sempre um benefício para aquelas mulheres
que se mantiverem íntegras.
Em casa ou na rua, a mulher é vitima frágil dos apelos de uma sociedade que não a vê
fora do espaço seguro da casa. Mas esta, quando dentro do núcleo familiar, é a fortaleza do lar,
responsável pela manutenção da ordem e dignidade de seus ocupantes. Ao homem deve respeito,
a ele cabe o gerenciamento das finanças. Todavia, é ela quem responde pela harmonia da casa.
A Perversidade
75
(1921) de pessoas avessas ao modelo de equilíbrio que a família
tradicional representa leva a ruína de um modesto casal, que vivia em perfeita harmonia dentro
de um lar feliz. O homem trabalhava em um escritório com o guarda-livros e a mulher cuidava
da casa. E tudo ia muito bem até que o patrão de seu esposo vem a conhecê-la e logo se enamora
por ela. E começa a assediá-la e a lhe dizer impropérios, fazendo-lhe convites torpes, que são
sempre recusados, como cabia a uma digna mulher. Mas este não recua e formula um engenhoso
plano para culpar o marido por um suposto assalto ao cofre do escritório, do qual só ele e o
patrão tinham a chave. Ele retira todo o dinheiro do cofre em uma hora em que acreditava não
75
Drama da Rossi Filme
Ilustração 15 - A heroina e seu
salvador.
78
haver nenhuma testemunha. No dia seguinte, encontra o cofre vazio, como esperado, e
imediatamente acusa o Guarda-livros. Este é humilhado, com sua fotografia saindo em jornais,
algemado e preso. Uma menina reconhece nos jornais a situação e vai à polícia para dizer que
não havia sido aquele homem o culpado pelo roubo. A menina conta sua história descrevendo os
motivos que a levaram a se esconder naquele escritório, pois ela mesma havia sofrido o assédio
de um bêbado e vira a hora em que um homem, não aquele que estampava os jornais, retirou
todo o dinheiro do cofre. Reconhece então o patrão como o verdadeiro agente da trama. Ele é
preso e o casal pode voltar a viver feliz.
A mulher honesta, bastião da moralidade e imaculada criatura, independe dos princípios
de seu esposo para caminhar digna. Ela está acima
das pequenas coisas mundanas e sua ação
moralizadora serve para fazer ver aos desviantes
dos caminhos da moral familiar, quão dolorosa são
as máculas de seus pecadilhos.
Ela é um Exemplo regenerador
76
(1919),
para o marido, um farrista que abandona a esposa no
dia de seu aniversário para ir à esbórnia. O empregado da casa, compadecido pelo sofrimento da
patroa, bola um plano para ajudá-la a reconquistar o seu esposo. Na trama o criado fingiria estar
vivendo um “affaire” com a dama. O envio de um bilhete anônimo contaria sobre o falso
adultério. O marido recebe o bilhete e volta para casa enfurecido, encontrando a esposa em
situação delicada com o empregado. Descontrolado de ciúmes ele parte para cima do criado com
o intuito de matá-lo, mas este lhe revela a verdade. Arrependido ele reencontra a mulher e com
ela volta a fazer carinhos.
76
Comédia de Gilberto Rossi
Ilustração 16 - A adorável esposa aguarda
o retorno de seu marido.
79
O filme é um chamado de atenção aos deveres do
marido que, no mundo moderno, não mais deveria ficar
tranqüilo quanto à segurança de seu lar. Ele tinha que
prezar por esta, ou seja, não mais cabia ao homem
simplesmente desposar a jovem e manter financeiramente
a casa. Este deveria estar presente aos atos da casa, ser
cúmplice da vida na casa e cuidar de sua esposa.
“Homens e mulheres se acusavam reciprocamente como os principais causadores de uma
intolerável corrosão dos costumes” (Maluf, 1998: 372)
A mulher deve ao homem obediência, contudo,
ele deve manter a dignidade do lar ou pelo menos a
aparência. Sendo a mulher culpada, caso o homem não se
sinta à vontade dentro da casa, os dissabores do homem
dentro do lar, onde é soberano devem-se à sua
administradora. Seja o lar mais soberbo ou humilde, cabe
à mulher a sua harmonia.
No antigo modelo familiar, o domínio sobre as relações recaía somente sobre o homem.
Eram tranqüilos os casamentos que, em sua maioria, não envolviam razões do coração, mas, sim,
questões estratégicas ligadas à política das relações humanas, seja nas micro-estruturas ou em
questões mais amplas envolvendo aspectos regionais ou nacionais.
Porém, as novas relações não são mais tão “simples”. Envolvem desejos diferentes nas
projeções de apaixonados sobre seus sonhos de amor e de futuro em comum. Sobre as mulheres
e homens recai o peso das escolhas e de seus desejos. Vale lembrar que não se tratava mais
somente de negociar com os pais a tramitação de suas autoridades, de homem para homem. E em
Ilustração 17 - O marido chega e é
tomado pela ira devido à suposta
traição.
Ilustração 18 - A reconciliação
80
meio a isso vemos Corações em suplício
77
(1925) de mulheres e homens que buscam a adaptação
ao novo modelo que, mesmo que de forma incipiente, passa também a vigorar no meio social.
Cabia também à mulher o papel na escolha, como na História de Linda, Martha, Álvaro e
Marcos, que representa propostas distintas, numa sociedade em mudança, sofrendo as aflições de
um tempo no qual esses projetos são conflitantes. Na trama, Linda trabalhava em escritório de
engenharia para Álvaro, homem sem escrúpulos, e com seu salário pagava o sustento e a
educação de sua irmã. Linda era responsável por cuidar de Martha, desde a morte de sua mãe.
Marcos, um engenheiro amigo da família, fez uma promessa derradeira à mãe das moças, de
cuidar de suas filhas após a sua morte.
O rapaz participava da construção de uma estrada na cidade, onde chefiava um grupo de
trabalhadores. Marcos via em Álvaro um aproveitador e reprovava a aproximação dele de sua
amada Linda. Marcos fala face a face tudo que acha dele em um momento em que estavam a sós
durante a ida de Álvaro à Garagem onde ele trabalhava, mas o engenheiro desdenha de suas
preocupações. Então resolve falar diretamente à Linda sobre o que lhe afligia, mas ela ignora os
seus avisos. Álvaro a presenteia com caros regalos e a leva a lugares de reputação duvidosa, um
lupanar coordenado por Branca. Jamais uma moça decente deveria transitar por um espaço como
aquele. Marcos chega e troca socos com Álvaro por ter levado Linda a tal lugar. Ele vence, mas
surpreendentemente ela protege Álvaro.
A situação vai se complicando ainda mais, pois os dois acertam um fim de semana na
casa de campo de Álvaro. Fato sabido por Marcos através de informações dadas pelos
funcionários da obra, que demonstram também estarem bastante descontentes com os salários
pagos. Marcos parte em perseguição ao casal clássica perseguição automobilística. Para
aumentar o suspense, o carro pilotado por Marcos quebra e este leva algum tempo para consertá-
lo. Quando, finalmente, fica pronto, ele pega um atalho. A moça, que àquela altura já percebera
77
Drama romântico de Carlos Masotti e Américo Masotti.
81
as intenções de Álvaro, desvencilha-se de seus ataques. Marcos chega a casa, bate à porta, mas
não é atendido. Vai aos fundos, encontra uma janela aberta e adentra a morada no momento
exato em que Linda não suporta mais os ataques do vilão. Os dois brigam novamente, mas agora
é Álvaro quem leva a melhor, pois bate violentamente na cabeça de Marcos, que cai
inconsciente. Aproveitando-se do momento, o vilão sai em fuga.
Ao despertar, Marcos havia perdido por completo a memória. Estava com amnésia.
Linda, profundamente arrependida por seus maus passos, abandona o emprego e dedica-se à
recuperação do rapaz. A melhora só ocorre quando entra em cena um novo personagem, Dr.
Ribeiro, que cria um estratagema para recuperar a memória do doente. Ele põe frente a frente
Marcos, Álvaro e Linda e a memória lhe volta como num estalo. Parte, então, furioso para cima
de seu inimigo, quase lhe roubando a vida, fato evitado devido à intervenção dos colegas.
Curado, casa-se com Linda.
Marcos funciona como um olhar superior que percebe o que Linda não consegue
perceber. Ela está desprotegida frente aos anseios de um homem que quer lhe roubar a pureza. A
mulher depende do homem, a mãe de linda já previra essa necessidade quando pedira a Marcos
que lhe dessa proteção.
Linda trabalhava para dar à Martha, sua irmã, aquilo que faltava a ela: instrução. Talvez a
educação fosse o caminho para a adequação da mulher a esses novos tempos e Linda sabia que
através da educação sua irmã poderia ter um destino melhor.
Educar
78
(1925) também era o caminho para Rômulo, cujo pai, Fernando de Castro,
mesmo contra a opinião de sua esposa Isabel, resolve colocá-lo em uma Instituição de Ensino
Interno. A mãe, desesperada com o afastamento de seu filho de seis anos, guarda com carinho as
cartas do filho. Durante as férias, Rômulo conta os resultados de seus esforços e seus folguedos.
Até que, passados alguns anos, a casa ao lado é ocupada por uma nova família e entre os novos
78
Drama romântico da Botelho Filme.
82
habitantes da casa está a jovem Flávia, filha de Hilário e Laura Souza, gente de posses. Moça
educada e versada em filosofia e música de concerto, que tocava piano e violino.
Uma fatalidade provoca o encontro dos jovens: o pai de Rômulo sofre um ataque
cardíaco e o filho é chamado de volta a sua casa. Logo no primeiro encontro, quando ele a avista
conversando com sua mãe, os dois são tocados por um forte sentimento. A melhora de seu pai é
o sinal para o retorno ao instituto, porém a família não podia mais custear os estudos do filho. A
mãe faz de tudo para manter o equilíbrio das finanças e passa a costurar para fora. O bom rapaz,
vendo que a situação familiar era bastante grave, vai à direção da escola e avisa seu desligamento
por impossibilidade de manter quitadas suas dívidas. O diretor comunica ao aluno que ele
poderia continuar seus estudos, comprometendo-se em pagar futuramente sua dívida com a
instituição. O aluno passa a ajudar a escola, substituindo professores faltosos. Ao formar-se, o
diretor lhe arruma um emprego na direção de uma fábrica. O novo emprego é um bálsamo para
aquela família que estava sobrevivendo à grande penúria. De volta a casa dos pais, Rômulo
reencontra Flávia e, durante a conversa ela conta que estudara no Instituto Feminino da mesma
escola que cursara o rapaz. Ela o apresenta a seus pais e os dois iniciam um namoro.
Os jovens vivem Na primavera da vida
79
(1926) as “Coisas da mocidade... Apparece
depois... o amor, que é a base em que repousa tudo e é a causa e a alma da existência..."- do texto
de propaganda do filme ao lado (Gomes, 1974: 96).
No interior do estado de Minas Gerais, encontramos uma pequena vila onde,
trabalhando em um posto fiscal, temos um vigia e sua filha.
Ele a protege dos dissabores da vida, tentando fazer com que ela não perceba a situação
lastimosa em que se encontra, agravada pela ação de uma quadrilha de contrabandistas no posto
de fiscalização. A quadrilha é chefiada por um rapaz de porte elegante que logo demonstra
interesse pela formosa filha do vigia.
79
Drama/Aventura de Homero Cortes Domingues e Agenor Cortes de Barros.
83
Mas também chega à vila de São João um
jovem engenheiro que se enamora da moça e é
retribuído, o que deixa o contrabandista bastante
insatisfeito. Mais uma vez, o vilão tenta pôr fim ao
amor dos apaixonados. Entretanto, como podemos
ler ao lado, o amor afinal sempre vence.
Era só deixar-se descuidar por um instante
que o destino pregava uma peça à mulher que, de
digna senhora, poderia ser corrompida e, uma vez
tocada, não mais se recuperava.
É nesse ambiente, referenciado pela lógica
dialética da mulher perdida e de seu oposto, que as
jovens filhas das camadas medianas do estrato
social encontram o modelo a espelhar-se na
construção de suas próprias identidades, sejam elas
modernas, conservadoras, urbanas ou rurais.
Algumas são amparadas pela presença
constante do pai, marido, filho ou mesmo o
amante, de comportamento sexualmente recessivo,
como boas esposas, filhas, esposas. Já aquelas oriundas de famílias operárias distinguem-se pelo
trabalho formal, assim como em suas funções no leito como esposas, mães ou filhas. No entanto,
todas disputam com as prostitutas a atenção de seus homens.
Ilustração 19 - Anúncio de Jornal.
84
2.2 A MULHER PERDIDA
“Rio de Janeiro, a grande metrópole brasileira,
maravilhosa colméia humana em que o ruído do trabalho se casa
ao borborinho dos prazeres.”
“Primeira legenda do filme “Brasa dormida”.
A fusão polifônica da cidade faz tudo parecer o mesmo. A maquinaria fabril aliada aos
motores que cruzam a cidade por mar, terra e até mesmo pelo ar, nos faz crer que seja mesmo
uma colméia humana e que tudo caminhe para um mesmo fim: o progresso. Contudo, em meio a
toda esta sonoridade harmônica dos mecanismos da modernidade, ouvimos, ao fundo, escondido
entre o som dos batentes, algo não tão novo, mas que se adequara à permissividade trazida com a
enxurrada do novo. Tudo parecia fazer sentido e dar prazer. E com estas novas modalidades de
prazer, os cidadãos deveriam tomar cuidado, principalmente as mulheres, mais suscetíveis às
digressões da metrópole.
A mulher perdida pode ser uma femme fatale, aquela que causa a ruína. Podia ser
vamp, melindrosa ou qualquer outra denominação que carregasse em si alguma sexualidade
latente não contida pelo casamento e, dentro deste, o marido, único sentido do sexo para a
mulher.
Todavia, os tipos não se esgotam nos modelos “comerciais”, com belas mulheres que se
entregam aos prazeres mundanos, viciadas em éter, morfina ou qualquer outro psicotrópico. Há
também a mulher comum, não tão bela, nem tão jovem, que, por motivos diversos, se desviava
da condição natural, evadindo-se desse modelo. Ela se encontra à margem dos modelos
socialmente aceitos ou dados como convencionais. Como é o caso do filme Vivo ou Morto
80
(1916) que conta a História de uma dama da sociedade que decide separar-se do marido. Ao
contrário do que muitos esperavam, a História naturalizava a separação e a nova relação daquela
80
Drama de Paulino Botelho
85
mulher, que continuava freqüentando o universo da boa sociedade, inclusive nos bailes mensais
do Clube dos Diários.
Para muitos, as mulheres decaídas deveriam ser afastadas dos espaços reservados à boa
família. A convivência delas com “senhoras decentes” causava medo àqueles que temiam que
atos decrépitos pudessem se espalhar pela boa sociedade
destruindo a família, que é o sustentáculo da nação.
A crítica ao filme é concisa e nos parece que O Sr.
Teixeira de Barros quis fazer um filme de arte, mas
mostrou, em verdade, uma situação por demais
escandalosa. Temos a impressão, também, de que a
direção de Luíz de Barros se propôs verdadeiramente a
fazer um filme escandaloso, pois utilizou o ardil de
esconder-se por detrás do pseudônimo Dr. Teixeira de
Barros, fato que denota a volatilidade do tema. Expor na tela uma senhora obesa, descasada e
enamorada de outro homem, beijando
calorosamente seu amante, era algo por
demais moderno. E ainda por cima ser
aceita com naturalidade pelos outros
personagens da trama era absurdamente
moderno para uma sociedade que tinha
seus pilares cravados no patriarcalismo.
Mas, como modelo social francês, o
espectador o digeria só como um filme. Os negativos foram comprados pela Pathé e
apresentados em outros países como uma fita francesa.
Ilustração 20 - A mulher corrompida
Ilustração 21 - Exibindo-se socialmente.
86
Aceitar o filme como produto de uma outra sociedade, gozar com as fantasias que dele
provinham, permitidas pelas imagens, e gozar novamente por estar distante de si é algo
totalmente aceitável. Porém, a verificação de que esses fatos se passam dentro do seio da
sociedade à qual o espectador pertence é de muito difícil deglutição. Ver essa mulher perdida
transitar naturalmente pelos espaços de segurança para os filhos da boa família era despertar para
um problema que julgavam dever ser extirpado, pelo medo da metástase social.
Nas telas e nas mentes, as francesinhas eram símbolos de perdição, de status e poder, pois
estavam simbolicamente vinculadas ao imaginário literário de uma Paris, que não tinha limites e
nem dava limites. As francesinhas eram por si só mulheres libertas, livres para o amor, mas
quando uma dessas jovens vinha para cá e perdia-se de sua tia, estava literalmente Perdida
(1916)
81
. Este outro filme de Barros mostra a francesinha Nanette Lubin que vem ao Rio de
Janeiro para procurar sua tia. Ao chegar, não a encontra e acaba por tornar-se manicura de uma
baronesa. Assim conhece o sobrinho da senhora, tornando-se amante dele. A tia de Nanette
continua a procurá-la até que a encontra e descobre em que ela se metera. Bastante
decepcionada, a tia retorna para seu sítio e abandona a sobrinha, que morre no fim da fita.
O filme foi produzido alguns meses antes de “Vivo ou Morto” e, ao contrário, nele o
personagem central não tem o mesmo fim. Em “Perdida”, o espectador mais convencional sai
tranqüilo com o desfecho, pois a protagonista desviante é punida pelos erros que cometera. A
mulher se entrega aos apelos do sexo e é punida com a exclusão e a morte. A imagem aguça a
imaginação do vedor, sendo perdida, francesa e jovem, mas, mantendo-o em segurança, pois a
mulher perdida, além de ser estrangeira, era punida exemplarmente.
Rosinha é A Rosa que se desfolha
82
(1917) que, como uma “típica” pelo menos do
ponto de vista cênico - moça do campo, ingênua, bela e cheia de sonhos, é noiva de Maneco.
Tudo corre tranqüilamente até a chegada à vila de uma grande companhia dramática da Capital
81
Drama da Guanabara Filme
82
Drama da Veritas Filmes
87
Federal. É quando Rosinha encontra o galã da “troupe”, Otávio. O ator faz Rosinha sonhar e, em
busca desses sonhos, ela abandona o noivo e parte para o Rio com ele. No Rio ele a instala numa
pensão equívoca e lá possivelmente ela se “desfolha”.
Otávio a rouba e a abandona, sem nenhum dinheiro ela
vaga pela cidade e quando caminha na praia encontra seu
ex-noivo e a este pede perdão.
As informações encontradas sobre o filme
determinam que seu término acontece com o reencontro
numa praia da cidade do Rio de Janeiro. Não há referência
de que haja um desfecho com cena de casório. O regozijo
do público encontra-se no fato de Rosinha pedir perdão a
seu ex-noivo, percebendo o quão ingênua fora ao
abandonar o noivo por um artista circense. E, fora do casamento, as promessas de homens como
aqueles fazem parte do jogo corruptor de um mundo que não lhes pertence.
A mulher livre arde em meio ao fogo das macegas, leva o homem à ruína. E mulher
perdida gera mulheres perdidas. A mulher faz o homem arder em fogo, o fogo incendeia o
espírito e faz mãe e filha queimarem em chamas numa família destruída. Ao homem, pobre
homem, só lhe resta a dor do mau passo, da má escolha da mulher que junto a ele deveria
construir o lar. Dê a ele uma corda, pois não lhe resta mais nada; somente a dor do laço em seu
pescoço.
A derrocada
83
(1918) de uma família do interior do estado do Rio de Janeiro encontra-se
na formação de suas mulheres. Muitas delas já trazem em sua educação familiar o motivo da
deformação de seus hábitos, modos e atitudes, como é o caso da filha de um peão que aceita a
83
Drama rural realizado por Alberto Botelho e Paulino Botelho
Ilustração 22 - Aurora Fúlgida
interpreta
Rosinha
.
88
corte de um fazendeiro. A mãe, uma espanhola com inclinação ao alcovite, é quem dentro do
seio de sua família instrui a filha. A bela rapariga é seduzida e raptada por seu pretendente.
Desesperado o pai sai a cavalo ao encalço dos enamorados. Aponta uma espingarda para
os fugitivos e perpetra vários disparos, até que um destes atinge a desviada, matando-a. O
fazendeiro deixa o corpo morto da vítima de sua sedução e continua em rota de fuga a toda brida.
O peão pára e salta de seu cavalo ao lado do corpo sem vida de sua filha, recolhendo-a do chão e
pondo-a sobre a sua cela. Lastimado pela dor da perda da filha, o peão vai à sua casa, deposita a
filha morta sobre o assoalho e parte para a vingança final, pondo fogo nas terras do fazendeiro.
Mas o fogo toma a direção de sua própria casa, matando sua esposa e incinerando o corpo da
filha. O roceiro em desespero corre para a mata e com uma corda tira sua própria vida.
Nem a Alma Sertaneja
84
(1918), distante dos maléficos efeitos dos inovadores
mecanismos da modernidade, deixa de sofrer com a nova moda do amor de mulher, que decide
por quem amar, deixando de lado a vontade sabedora de seu pai. Maria é a personagem central
de nossa trama. Por ela, Artur, filho do Coronel Anastácio com quem, segundo a lógica de seu
pai, teria um bom futuro, é apaixonado. Mas a nossa Maria está enamorada por um outro rapaz,
que também está apaixonado por outra que não é Maria. Tal situação leva a moça ao extremo
com seu amor. Aquele que está enamorado pela filha de um outro fazendeiro, foge com sua
amada para viverem seu amor. Maria os segue de barco. Contudo sofre um acidente, morrendo
afogada no rio.
A mulher que desdenha da sapiência dos pais e se deixa envolver pelos caprichos do
amor tem seu fim nesse filme, mostrando que a corrupção dos pensamentos modernos avança
pelo interior, deixando perdidas moças que, por sua ingenuidade, desprezam o correto pelos
sinais do amor. Mesmo em vilas onde não há salas de cinema fixas, o cinema ambulante chega
levando as imagens e os novos conceitos da vida urbana em situações que, mesmo ocorridas em
84
Drama rural de Alberto Botelho
89
outro país, são representadas como cosmopolitas. São figurações de um tempo do qual esses
homens e essas mulheres não podem fugir. As estrelas dos filmes projetam nos espectadores uma
vida que não lhes pertence, mas que poderia pertencer. Elas invadem as cabeças mais ansiosas
por mudanças, fazendo-as crer que daquilo não poderiam fugir. Era um futuro que, a cada dia, se
tornava mais presente. No campo e na cidade as mulheres poderiam encontrar os sinais dos
novos modos nas telas do cinema; mas essas novas condutas não eram facilmente aceitas. As
mulheres vitimadas nas telas de cinema também expressam as idéias de um tempo que não aceita
tais transformações e que mostra o preço pelos desvios de uma vida da qual elas não poderiam
fugir ou deixar a condição de pacientes.
Outro romance que é adaptado para as telas é Amor de Perdição (1917)
85
, de Camilo
Castelo Branco, em que a mulher, por amor, se opõe à vontade de seu pai. Esse amor proibido é
fonte de perdição para os amantes.
A História é a de Simão Botelho e Teresa de Albuquerque, vitimados por um amor
proibido, pois suas famílias são inimigas. Entre encontros furtivos em jardins e recados passados
por meio de serviçais, acontece a descoberta das famílias, que fazem de tudo para separá-los,
desde prometer Tereza a casar-se com um primo, até o recolhimento desta ao claustro de um
mosteiro. Da parte de Simão o mesmo: da proibição à disputa, até a morte de seus opositores,
levando-o a ser exilado nas índias. Por fim, na constatação da impossibilidade de viverem esse
amor, os dois definham.
Se levarmos em conta os vários fragmentos em que os personagens e também os
produtores exprimem suas idéias a respeito da condição feminina, diríamos que os confrontos de
todos esses juízos formam um verdadeiro campo de batalha. Em nome da proteção da tão falada
condição feminina, a mulher é praticamente escravizada nos modelos fetichistas em que se
encontra nas telas dos cinemas e que levam os homens a perder a cabeça e embrenharem-se no
85
Produzida por Mac’s Films. Lançamento em 11/06/1917 no Cinematógrafo Íris.
90
universo de suas próprias fantasias conservadoras: como pai, como protetor, como viajante e
admirador desses espécimes que são raras nas capitais ou como o jovem apaixonado das telas,
passando a fazer parte do espetáculo.
A mulher, sublime em sua inocência, é guardada numa redoma de vidro pelos seus
protetores, resgatada do ser desprezível e ameaçador, mas ainda inocente. A inocência frente ao
amor consagra a história de “Amor de perdição”, em que os personagens centrais enfrentam a
vontade de seus pais e são castigados com a separação e a morte.
A morte dos amantes acaba fazendo valer a superioridade da honra, dos valores, e a
inferioridade do amor e das paixões. O par amoroso é liquidado em seu triste fim e a honra das
famílias Botelho e Albuquerque é salva.
Porém, pensando na morte de Tereza, que tem sua saúde debilitada pela sua própria
recusa de comer, somos levados a pensar em termos simbólicos. Isto é, a morte de Tereza pode
ser pensada como eliminação da figura feminina rebelde, escrava do amor. Nesse contexto, sua
resistência ganha sentido, como vítima do amor moderno. Ela disse que não se casaria com seu
primo e, de fato, não se casou, o que não deixa de ser vitória de sua vontade.
A disputa que se trava em torno do destino dos jovens amantes tem seu foco voltado para
a questão do domínio sobre o corpo, corpo objeto; corpo que guarda em sí a honra. Com a
eliminação do corpo - a morte dos amantes, os pais deixam de possuir alguma culpa sobre o
ocorrido. Com a morte dos amantes, tanto as famílias envolvidas, como os próprios são libertos,
já que suas vontades foram efetivadas e o amor dos amantes não foi maculado. Ironia da
libertação pela morte e pela guerra.
Assim o próprio amor é fonte de perdição, o que nos faz retornar à máxima de que “a
vontade dos pais deve ser soberana”. Portanto, mais uma vez vence a tradição.
91
Em A Gigolette
86
(1924), Liz era uma boa moça, humilde e bonita, filha do primeiro
casamento de um pescador. Sua madrasta, uma lavadeira chamada Maria, lhe dera um irmão
apelidado de Chutinho. Viviam em uma modesta casa, como deveria ser a morada de um
pescador e de uma lavadeira. A filha do pescador ajuda sua segunda mãe, em sua labuta diária,
lavando, passando e entregando as roupas na vizinhança. A única preocupação que Liz dava a
seu pai era seu gosto pelo carnaval.
A mocinha era pretendida por dois
rapazes, um estróina e o outro, um médico.
Obviamente, como a trama exigia, ela vai
atender a corte do estróina Álvaro e, com
ele, vai a um baile de carnaval, fantasiada de
Gigolette.
No mesmo momento em que Liz
aproveita o amor de carnaval, seu pai é visitado por um
credor, que utiliza a violência física para recuperar seu
dinheiro. Após a briga, o pai da moça é levado pela polícia.
Enquanto isso, a jovem filha do pescador é
embebedada nos eflúvios dos lança-perfumes "Rodo"
87
dos
bailes nos quais passaram. Caminha pela praia embriagada
de champagne e de dança até o ponto de perder por
completo a consciência e desmaiar, entregando-se aos
86
Drama de Paulo Benedetti.
87
Encontrado na Av. Passos, 57 Jornal do Brasil de 11 de fevereiro de 1923.
Ilustração 24 - Lance Parfum
"Rodo" (1896)
Ilustração 23 - Lis em sua humilde casa e seu pai
pescador.
92
prazeres libidinosos de seu parceiro.
Desacordada é abandonada na areia e desperta descobrindo ter sido profanado o seu
templo e quebrado seu precioso cristal. Nela foi depositada a semente desse ato impuro. A moça
vaga até a casa de Álvaro, mas chegando lá descobre que este partira em viagem. Totalmente
desnorteada é encontrada por Maneco, empregado do Dr. Elzeman.
A escandalosa notícia chega aos ouvidos do
pai da moça que sai pelas ruas a fim de recuperar com
o sangue de Álvaro a honra de sua família. O médico,
sabendo do ocorrido, pede Lis em casamento com o
nobre intuito de livrá-la da humilhação de ser vista
como uma mãe solteira e de concretizar o seu amor.
O doutor aceita os desvios de sua amada, recebendo
como seu, o rebento. O estróina, sabendo do ocorrido,
lança mão de sua paternidade para reconquistar sua
amada, mas o mocinho o repele. Os dois disputam a
jovem com os punhos. Sendo vencido, Álvaro parte
com seu andar ladino, acende um cigarro e atira longe
o palito de fósforo.
No écran vemos o filme terminar com uma
cena cômica: enquanto o casal se beija, um outro
personagem se aproxima do bebê retirando-o de seu
carrinho e, tão extasiado ficara com a visão do beijo,
se confunde e ao invés de dar a criança sua chupeta, lhe põe a boca o seu cano de revólver.
Ilustração 25 - Sequencia final do filme.
93
Liz tenta determinar seu futuro e escolhe os caminhos do amor aos da razão, porém
acaba fracassando em seu intento, aceitando os desígnios do destino que, providencialmente, lhe
devolve o raciocínio, casando-a com o digno médico. Os desvios da razão de Lis trazem a
defloração e a conseqüente desonra familiar. A mulher vitimada pelo amor faz sofrer aqueles que
a amam. Sendo assim a conveniência do casamento estava ligada única e exclusivamente à
atração do homem pela mulher, só cabendo ao homem ser guiado pelas razões do coração.
O amor de mulher era perigoso para sua honra e a de sua família.A destruição daquelas
que se deixavam envolver pelos apelos do coração era evidente. Para a mulher, só caberia em sua
razão aquele que pudesse oferecer um futuro seguro e confortável, cabendo a seu pai dar o aceite
quanto ao homem que receberia seu presente mais precioso. Para Liz, este havia sido
desperdiçado com o homem errado. O certo era aquele a quem não amava, mas que a protegeria
e cuidaria, mantendo-a no caminho da retidão.
Apesar de não se tratar de uma mulher perdida, é uma mulher que, pelo amor ao pai
adotivo, desiste de atender ao chamado do coração para fazer um casamento de interesse que
solucionaria os problemas nos negócios de seu pai, pois tudo depende de Quando elas querem
88
(1925). A moça em questão é Clarinda, filha adotiva do industrial Alberto da Silva.
Na História, a empresa do pai da jovem não vai bem, os estoques estão cheios e não há
quem compre. A solução encontra-se em Benedito Silveira, representante de uma empresa
européia que demonstra interesse nos produtos da fábrica e em Clarinda. A moça, entretanto,
ignora seus cortejos. A modernidade das atitudes femininas é mostrada quando esta, em
companhia de sua amiga aviadora, passeia sobrevoando a cidade. Outro rapaz também
demonstra interesse pela jovem. É Antonio Martins, um acionista da fábrica conhecido por
freqüentar clubes e cabarés. Mesmo sendo diferente de Benedito, que tinha idade mais avançada,
Antonio também é renegado em suas intenções amorosas, preferindo a solidão.
88
Drama romântico de Adalberto de Almada Fagundes.
94
Contudo, os problemas financeiros de seu amado pai persistem, só restando à sua filha
aceitar o pedido de Benedito para que a empresa de seu pai conseguisse negociar os estoques e
assim assegurar o funcionamento da empresa. Clarinda, então, parte ao encontro de Benedito,
mas este já estava se dirigindo para o porto de Santos onde embarcaria para a Europa. Com a
ajuda de Laura e seu aeroplano, ela consegue chegar antes da partida, encontrando-o quando
estava a subir as escadas, salvando, assim, a empresa de seu único amado: o pai.
O filme trata Clarinda como parte de um acordo comercial, fazendo-nos ver virgindade
como selo a ser quebrado para o firmamento do acordo. Benedito tinha intenção de negociar com
o pai da moça, mas faltava a contrapartida de Alberto que deveria dar um voto de confiança para
que o pacto entre os dois se firmasse. O pacto era a entrega de sua filha. Esta, independente,
demonstrava não necessitar de nenhum homem para cumprir seu destino, era feliz junto a Laura
que, no filme, era o elemento pervertedor. Através dela, Clarinda encontrava a liberdade. A
figura de seu pai era, junto a Laura, o que permitia os movimentos livres da jovem em meio à
sociedade, era o homem que garantia sua retidão. Mas algo não ia bem. Clarinda não aceitava os
galanteios de nenhum de seus pretendentes e não incomodava a ela o fato de o tempo estar
passando e ainda não estar casada. Só foi tirada do solteirice para salvar o patrimônio de seu pai
ou, quem sabe, devolver a boa ação por tê-la adotado.
A perversão está na negação do casamento. Clarinda desvia-se do sonho tradicional da
união marital para ser livre, quando o tradicional seria que o casamento liberta, que através do
marido a mulher encontra sua libertação. Nesse filme, a união com Benedito leva-a ao claustro,
sendo adquirida pelo homem que barganha com seu pai a sua transferência de mãos, sua
alteração de condição.
De qualquer forma, a vontade do pai deve ser soberana, quando a mulher vaga
livremente aos sabores de seus desejos ela é alvo fácil para a corrupção de seus caminhos. Gigi
89
89
Drama romântico da ABAM - Associação Brasileira de Arte Muda.
95
(1925) é uma filha de um colono que se apaixona desde meninice pelo filho do dono da fazenda.
Das brincadeiras pueris às juras de amor da juventude, tudo caminhava para a concretização dos
enlaces matrimoniais. Mas o destino lhes prega uma peça e os dois são separados pela decisão do
pai do moço de que ele deveria partir para a capital para completar seus estudos. A moça,
angustiada com a separação de seu amado, ficou na fazenda ansiando o seu retorno.
É chegado o dia do regresso. Mas uma surpresa fatal a aguarda: o rapaz vem
acompanhado de uma mulher que, para surpresa de todos, apresenta como sua esposa. A
camponesa não estava presente, então ele pede para chamar Gigi a fim de, pessoalmente, dar-lhe
a notícia. Quando ela chega, o rapaz conta do casório e apresenta Gigi dizendo: “Querida, está
aqui uma boa criadinha para nós” (Galvão, 1975: 226). A moça, totalmente transtornada com o
ocorrido e tomada por dor profunda, sai com o coração dilacerado por tamanha traição. Vendo
não haver mais sentido para sua vida, envenena-se e morre.
Mais uma vez a mulher é punida
por amar. Gigi ama e é amada até o destino
proporcionar ao seu amado o encontro com
seu verdadeiro amor, o que o faz ver que
Gigi nada representava para ele. Na cidade,
encontra alguém que representa os seus
sonhos. O enamorado de Gigi faz o caminho
inverso em seu critério de escolha da mulher
à qual se uniria em matrimonio, ele renega o amor de Gigi e parte para a capital em busca de
alguém que lhe conviesse. Gigi é desprezada como se nunca houvesse tido algum valor na vida
de seu amado, portanto só lhe restava a morte. É possível que o sentido explícito fosse de que
Gigi deveria encontrar alguém do grupo social ao qual pertencia, ou que a mulher do campo
frente à mulher urbana era desprezível. Todavia, essa mulher enganada pelo destino deveria
Ilustração 26 - Rosa de Maio é Gigi a mulher que é
punida pelo destino.
96
aceitar a sua condição de distração para um rapaz que deveria encontrar seu destino além dos
limites da fazenda.
Gigi desvia-se de sua condição de camponesa para acreditar que poderia ser esposa do
filho do dono da fazenda. O amor cria na mente da jovem a ilusão de que poderia pertencer a um
mundo do qual verdadeiramente não fazia parte. As juras de amor proferidas pelo filho do patrão
não eram mais que argumentos de negociação para conseguir algum favor por parte da moça.
Restava a ela repelir tais abusos ao invés de acreditar neles como sendo verdadeiros.
A fatalidade da fita está na crença da jovem no amor de seu enamorado, por que a moça
envolve-se com o rapaz e investe nisso o seu futuro, ao contrário do jovem, que só põe à
disposição da moça o seu presente, pois seu futuro deve ser encaminhado pela razão e não pelo
coração.
O destino, na fatalidade das promessas não cumpridas, ou mesmo em dramas que
lembram uma tragédia grega, é personagem dos filmes. O Tango Fatal
90
(1926) nem chegou a
ser filmado, mas sua temática de punição para as desgarradas é fascinante, lembrando Édipo Rei.
Mostra uma mulher que abandona o casamento quando o filho ainda é bem pequeno, tornando-se
uma decaída e indo trabalhar em um bordel. Os anos passam e um dia chega ao lugar de má fama
um rapaz que logo mostra interesse pela senhora. Eles se apaixonam até que descobrem ser mãe
e filho.
A juventude busca sua razão onde não há, busca família onde só se encontra perdição,
busca encontrar uma modernidade ainda não definida e, na busca por algo que ainda não sabe ao
certo, encontra a dor para ela e para seus pares. O jovem - como predestinação - encontra a dor
onde deveria encontrar o prazer, encontra amor de mulher na mulher que deveria ter afeto filial.
90
Drama da companhia produtora Íris Filmes, diretor Antonio Tibiriçá, operador Antonio Medeiros, elenco João
Cypriano e Anita Sabatini.
97
Em um lugar diferente, na mesma São
Paulo, um outro rapaz busca esse ente imaterial, o
espírito desse tempo, e acaba por separar-se de seu
pai, decepcionando-o a ponto de ser expulso de
casa. O jovem é Newton Rios, um boêmio que está
em meio a sua Mocidade Louca
91
(1927). Após
dilapidar parte da fortuna de seu pai é obrigado a
buscar seu próprio sustento, saindo pelo interior com seu fiel serviçal Ângelo Thomaz, que o
conhece desde o seu nascimento. Vai para Campinas, onde no caminho vê uma senhorita viver
uma situação de perigo. Era Yvonne Teixeira, uma
“coquette” que tem fraco por passeios pelos campos
dirigindo a sua arrojada baratinha. Mas seu veículo
falha numa ponte e ela é encurralada por um touro
bravio e por um trem que se aproximava. Resta a ela se
dependurar nos dormentes até o ponto de não se
agüentar mais e atirar-se nas águas caudalosas do rio Atibaia. O estróina sem pestanejar se atira
ao rio para resgatar a pobre moça, conseguindo ainda chegar a tempo de salvá-la. Descobre,
posteriormente, tratar-se da filha única do diretor da Companhia de Seda Nacional. O salvamento
lhe vale a afeição do pai da moça e um emprego na empresa, na qual arruma uma bela colocação.
Mas já estava tocado de amor pela jovem, vendo-a em todo lugar por onde passa. Convida então
a moça para um piquenique em meio ao bosque de Jequitibás. A paixão o faz esquecer de suas
obrigações e deixar um molho de chaves em seu trabalho.
91
Drama/Aventura produzido por Cassio Fonseca Marks, Guilherme de Souza, Angelo Thomaz Russo, José Martins
Teixeira, Eustachio Dimarzio e dirigido por Felipe Ricci.
Ilustração 27 Yvonne Teixeira interpretada
por
Isa
Lins
Ilustração 28 - Em luta pelo amor de sua
amada.
98
A empresa concorrente, em desespero por não conseguir competir com a magnitude da
Companhia de Seda Nacional, planeja sabotá-la inutilizando os fardos de seda do estoque. Mas a
trama é impedida pela ação de Newton que, ao lembrar-se de seu esquecimento, volta ao
escritório da empresa e encontra os sabotadores antes que iniciassem a destruição dos fardos.
Rapidamente consegue imobilizar um dos criminosos partindo em seguida para cima do outro,
que foge utilizando um caminhão. Inicia-se uma escapada por cima de muros tendo o galã no
encalço do bandido, que cai e se fere mortalmente. Está salvo o patrimônio do patrão.
O rapaz volta ao encontro de Yvonne, contando à mocinha o ocorrido. Em momento de
pleno amor, trocam juras enquanto são observados por seus pais. O Pai do rapaz envaidecido
pela atitude de seu filho e percebendo que este havia se regenerado acolhe-o novamente no seio
de sua família. Terminando a fita com o momento do beijo, observado pelo seu fiel ajudante,
Angelo Thomaz.
Yvone é moderna e desfruta as maravilhas da velocidade e da sensação de liberdade
trazida pela sua baratinha. O arrojo de pilotar um carro sem acompanhante é motivo de
desconfiança. O espectador espera o motivo de tal imagem para a sua conclusão. No filme, a
cena nos leva a crer na necessidade da companhia do homem. Sem ele, a mulher teria perdido a
vida. A falsa sensação de liberdade era desfeita pelo primeiro problema técnico que expunha sua
fragilidade frente aos furtivos acontecimentos da vida moderna.
Perdição e modernidade são elementos que se confundem num mesmo sistema de forças
e que deixam à mercê as mulheres que tentam, em vão, se adequar aos novos projetos para a vida
moderna.
99
2.3 A MULHER MODERNA
Perversidade
Na Avenida que transborda
de gens, mal a tarde acorda,
todo mundo passa, como
figurinha de algum chromo
original e bizarro.
Este traz o seu cigarro
Blond preso aos labios finos...
Aquelles não são meninos
mas fingem que o são, porque
as meninas... já se vê
Esta linda melindrosa,
vermelha como uma rosa,
de cintura lá nas pernas,
tem as expressões mais ternas
quando fala de um poeta
que a beija muito secreta
mente, lá não sei onde...
Aquelle vive com um conde...
E esta outra conta com o olhar
O que faz dentro do mar.
Mademoiselle X. M
Perdeu-se, uma vez , no leme
Não sei porque... Coitadinha!
Hoje ella, quando caminha,
Inda mostra estar cansada
Dessa longa caminhada
A fulana e a beltrana
odeiam a raça humana
E por isso andam, a sós,
Homens! Fugindo de nós!
Assim, na Avenida passa
A theoria da graça
E o pecado... Que pena
Que aquella linda pequena
que ali vae, quasi vestida
de D. Juan d’Avenida
não tivesse ainda ganho
elogios do tamanho
dos que elle tem feito já
a muita pequena má.
E’ pena! Porque, em verdade
Não há ninguem na cidade
com tal sensibilidade.
Pois ella, que é tão imbelle,
Dos homens só ama aquelle
que lhe dá sussas na pelle!
100
ON.
92
A imagem moderna da mulher é importada da Europa ou dos EUA. Filmes e revistas
divulgam tal modelo, prostitutas francesas para os mais abastados, polacas para os mais pobres e
somente em último caso, uma mulata ou negra, símbolos da prostituição nacional. As diferenças
não são discutidas, são aceitas como parte do “esprit du temps”. Estas estrangeiras são
valorizadas pelo olhar dos “bárbaros” de quem assim se vêem, mas que, através destas mulheres
iconicamente construídas pela submissão ao colonizador, buscam suplantar tal inferioridade.
Exibindo os cabelos curtos e as roupas masculinizadas, em modos pouco adequados,
trabalhando, dirigindo os automóveis, pilotando os aeroplanos, fazendo uso de drogas como o
éter, a morfina e a cocaína e freqüentando lugares suspeitos nas noites de boemia, essas mulheres
ocupam suas posições dentro de um modelo em construção, mesmo sendo representações
nacionais de um modelo importado da Europa. Desviantes dos modelos vinculados à imagem da
gente de bem, as moças daqui adaptam suas realidades ao formato moderno de vida, entre
máquinas, atitudes e psicotrópicos, numa cidade que pretende ser modelar para o restante do
país.
Talvez masculinizada, de feições mais severas, mas mesmo assim ícone, A Estrangeira
93
(1914) do filme seduz o homem a ponto de levá-lo para o altar, a ilusão trazida pelo fascínio do
mundo exterior faz com que o conde de opereta, apaixonado pelo seu sonho, desdenhe dos sinais
masculinos de sua amada e não perceba se tratar em verdade de um travesti, fato que só se dará
nas suas núpcias, quando estão”enfim sós!!!”
A sedução dos novos tempos causa certo temor. Os papéis de homens e mulheres
confundem-se nas metrópoles e a androginia das mulheres, que passam a usar calças, fumar e
usar cabelos curtos, podem confundir o homem a ponto de, muitas vezes, não saber quem
realmente eram.
92
Revista Paratodos. 11/11/1922. p.11
93
Comédia da produtora Zenith Filme
101
Encontramos também um chamado de atenção expresso no filme Augusto Aníbal quer
casar
94
(1923) em que vemos o personagem central buscar uma esposa casadoira em vão. Por
mais que perseguisse uma e outra moça para com ela pronunciar as juras matrimoniais, as
moçoilas não aceitavam as propostas, tentando até fazê-lo se desfazer desse sonho. É claro que,
quando passando por uma rua, ele vê Yara Jordão passeando e passa a segui-la com seu Ford,
mas esta não dá bola para os galanteios do moço.
Ela entra em um carro repleto de jovens senhoritas e parte em direção à praia da Gávea.
Durante a perseguição em uma das curvas,
Augusto Aníbal, não conseguindo segurar-se,
é atirado para fora do automóvel. Cai ferido,
perdendo momentaneamente os sentidos, as
moças vendo o acontecido param o carro e
vão ao encontro dele para socorrê-lo. Quando
desperta, ainda tonto pela queda, alucina
vendo as moças transmutarem-se entre banhistas e ninfas num bailado à sua volta.
Augusto verdadeiramente queria casar-
se e as moças traçaram um plano para livrá-lo
de tal obsessão. A trama envolvia o famoso
transformista Darwin que faria o papel da noiva.
Os dois se casam e vão para o quarto
concretizar suas núpcias, quando a moça se
despe, ele percebe ter se casado com um
94
Comédia de Lulu de Barros, com a Cia Bataclan (André Fix; Viola Diva; Regina Dalty; Lalant; Poupin; Darwin;
Suzy; Hackeron; Barcklay).
Ilustração 29 Algusto aníbal em meio as jovens da
Cia de Revista Rataplan.
Ilustração 30 - Moças do Rataplan em trajes de
banho, só isso já era um grande incentivo para o
publico masculino.
102
homem. Daí Augusto sai desesperado ainda de ceroulas em direção ao mar, onde pega um
hidroavião e parte para o céu ao encontro de sua noiva.
Na impossibilidade de encontrar em terra firme uma mulher que queira casar, ele parte
para a transcedentalidade como último recurso. É clara a crítica aos padrões modernos de
comportamento que dava à mulher a liberdade de escolher pelo casamento ou não. Augusto quer
se casar, mas não encontra moças que o queiram, muito pelo contrário, elas pregam uma peça
para que ele desista do casamento. A nova mulher trafega andrógena em meio à sociedade,
desestabilizando a harmonia das diferenças, fazendo com que homens como Augusto percam o
rumo das coisas, aventurando-se em relações nas quais não há credibilidade, ou mesmo não mais
encontrem a mulher.
As atitudes modernas são muitas vezes vistas como desviantes dos padrões habituais de
convivência, mulheres modernas são vistas com receio por aquelas que pertencem aos
seguimentos convencionais do extrato social. As mulheres com atitudes modernas são vistas em
filmes castigadas pela ação de um destino que pune tal extravagância com a morte, a humilhação
ou fazendo-as corrigir seus erros.
Apesar de o filme 606 contra o espiroqueta pálido
95
(1910) não apresentar referências à
participação direta da mulher, esta é uma das principais vítimas da propagação desta doença. “A
prostituta era o agente da corrupção e da contaminação, cujo corpo pútrido gerava mau cheiro e
doenças.”(Showalter, 1993: 252) Podemos também supor quantas mulheres “honestas” foram
vitimadas pelas escapadinhas de seus maridos, que contraíam esse mal e, por conseguinte,
contaminavam suas esposas, que carregavam consigo o preconceito pela enfermidade.
95
Revista humorística cantante de produção da Pathé Frères e câmera de Paulino Botelho.
103
O filme tratava da invenção de uma vacina pelo laboratório alemão Ehrlich o
Salvarsan
96
606” ou o 606º experimento
97
. que curaria os portadores da Sífilis (historicamente
chamada de Lues).
Na Europa, o anti-semitismo era crescente e o fato do inventor do 606 ser judeu
exasperou os espíritos da cristandade local, acirrando um movimento contrário ao sorologista e
seu invento. Fanáticos religiosos acusavam Paul Ehrlich de estar indo contra a vontade de Deus,
pois “viam a sífilis como a resposta divina à luxúria masculina. ‘O instinto sexual é imperioso’,
observou um médico,“ é só dar ouvidos ao medo’” (Showalter, 1993: 251), sendo assim, não
deveria ter cura. O medicamento serviria como libertador da libertinagem, como agente de
propagação do mundanismo moderno.
O remédio chega ao Brasil tendo todo esse histórico conturbado, informações que se
refletem profundamente no imaginário de uma população repleta de fantasias que envolvem a
inventividade científica dos tempos modernos.
A Sífilis é causada por um espiroqueta chamado Treponema pallidum, daí o nome do
filme. Mas também é clara a galhofa na relação com o órgão sexual masculino e com a
palescência das vitimas, sobretudo do órgão. A revista cantante trata de forma humorada do
advento desse “miraculoso” invento e da reação dos populares frente a esse mal que se tornara
praticamente epidêmico. O imaginário da população não via de forma natural os avanços no
campo da medicina, fossem pelas operações cinematografadas ou das vacinas. Tudo era
envolvido por um certo exotismo mágico que tomava o espectador dos novos inventos. O cinema
capta esse movimento e projeta nas telas.
As práticas modernas encontram-se e transpassam o imaginário popular, no qual o caráter
mágico das fórmulas químicas invade o espaço urbano e promete curar homens e mulheres
marcados pelas doenças da promiscuidade, como a sífilis. No filme publicitário Convém
96
O nome, Salvarsan, vem das palavras latinas salve, que significa saudável, e arsen, o arsênico.
97
Ver. http://www.dw-world.de/dw/article/0,,1496670,00.html?maca=bra-folha-calendario-300-rdf
104
Martelar
98
(1920), uma melindrosa é pressionada por seu pai a casar-se com um pandego.
Porém, esta é apaixonada por outro homem, que está tomado pela sífilis, a ponto de ser corroído
também pela possibilidade de contrair tuberculose. É quando a jovem tem a idéia de tratar seu
enamorado sifilítico com o Elixir de Inhame Goulart e este logo recupera sua vistosidade,
podendo assim ser apresentado como pretendente para a família da moça. Em meio a várias
peripécias, o ex-sifilítico casa-se com a melindrosa pondo o pandego a fugir a pontapés da casa
da jovem senhora.
O caráter regenerador do produto vai além do caráter físico, pois os mocinhos do filme
eram personagens desgarrados dos padrões normais de conduta. O Boêmio e a Melindrosa
poderiam através dos efeitos fortificantes do elixir, contar com um futuro convencional, apesar
de todos os desvios de uma vida de boemia. Os modernos personagens então contam com
produtos igualmente modernos que revigorariam o espírito para retomarem o caminho da
convenção. Modernidade para combater os malefícios das modernidades e assim adequarem-se
ao meio social.
O cinema aproxima o espectador dos dramas e alegrias de um mundo que começa a se
ver de forma global, num processo de pasteurização das situações. Novamente a sífilis e outras
doenças venéreas
99
são o centro desse que foi denominado O Flagelo da Humanidade
100
(1925).
A grande proporção do número de infectados e a curiosidade quanto aos “mistérios” ligados aos
tratamentos faziam deste um curioso atrativo para cavalheiros. Além disso, como se tratava de
mais uma produção do “pai do cinema erótico nacional”, Luis de Barros, mostrava imagens
ginecológicas do corpo feminino infectados. Prática bastante grosseira, mas comum de se
apresentar em filmes ditos “científicos”: o erotismo nas imagens de corpos nus. A dotação
especial desse gênero filmico é tanta que era exibido em horário especial, a preços especiais
98
Publicitário Cômico de Antonio Silva.
99
Referente a Vênus, também a aproximação sexual, sensual e erótico.
100
Documentário de Luiz de Barros.
105
acima do habitual, recomendando-se que só poderiam ter acesso os menores e as crianças quando
acompanhados de seus “responsáveis” homens adultos.
As imagens mostravam os pacientes do Departamento Nacional de Saúde Pública do
Rio de Janeiro e do posto de socorro da benemérita Fundação Gaffré-Guinle, do Rio de Janeiro.
Era para temer e admirar os avanços do mundo moderno, numa cidade igualmente moderna, dos
antros de perdição ao tratamento dos corpos corrompidos pelos vícios da grande metrópole. Ver,
nos leitos médicos, a dor daquelas que se deixavam corromper nos leitos prazerosos de um
apartamento de solteiro, ou qualquer outro antro de prazeres pouco ortodoxos.
Alguns homens deixam a Capital Federal em busca da pureza virginal das raparigas que
cresceram distantes dos modernismos desses novos modernos. Outros recepcionam moças vindas
de outros estados e por elas se apaixonam. A
mulher sai de casa e vai a outros estados em
busca dos atrativos da cidade do Rio. Tocados
pelas flechas do cupido, eles vão Do Rio a São
Paulo para casar
101
(1922), depois de conhecer
uma
senhorita Paulistana que estava em viajem de férias
no Rio de Janeiro, o carioca encontra-se
perdidamente apaixonado. As férias acabam e a moça
é obrigada a retornar a São Paulo, os dois trocam
cartas e telefonemas e depois de algum tempo
resolvem firmar noivado. Então o moço vai a São Paulo para tratar com os pais da moça o
101
Drama da Rossi Filme
Ilustração 31 a Bela senhorita conversando com
o rapaz.
Ilustração 32 - A confusão sendo feita ao
telefone
Problemas dos novos inventos.
106
compromisso. Quando chega à casa da futura noiva, percebe que havia confundido os nomes,
tendo se correspondido, em verdade, com a prima de sua pretendida. Em total desespero, atônito
com tamanha confusão, já que ao contrário da sua pretendida, a prima era imensamente feia, fica
sem saber como desfazer tamanha confusão. Depois de “mil qüiproquós”, ele finalmente
consegue explicar todo o mal entendido e obter a mão de sua amada, casando-se com ela no
final.
A igualdade, no tocante à cultura citadina, é clara nesse filme. A mulher de São Paulo e
o homem do Rio podem casar-se, pois
pertencem ao mundo da modernidade
urbana. Mas o mesmo não acontece
quando um homem do interior resolve
se enamorar por uma senhorita da
cidade. O rapaz, mesmo ajudando-a a
realizar o seu grande sonho - que era
cantar profissionalmente -, pagando ao dono de um Cabaré para deixá-la cantar, percebe que a
jovem, depois de obter o seu sucesso, não lhe dá o seu amor. Continuariam apenas como amigos.
A atração que esta mulher causa no caipira é uma Vocação Irresistível
102
(1924), sugerida na
representação do impacto causado do novo em contraposição ao espírito da tradição. É a
ingenuidade do Caipira que acredita que, dando algo à jovem, receberia ainda mais em troca. Ao
contrário do caipira, a jovem e bela cantora, apesar de mostrar identidade com ele, pertencia ao
mundo sombrio das pessoas perdidas do mundo luxurioso dos cabarés.
102
Drama da Guanabara Filme.
Ilustração 33 Imagem do encontro em São Paulo.
107
Era a modernidade de mulheres descompromissadas com a ordem social urbana, que
não mais se importavam com o casamento e que aceitavam ser A Esposa do solteiro
103
(1925),
ou ser confundidas como tal.
O filme trata da História de uma moça que é interpelada por um policial em uma casa de
um bairro elegante da cidade de Buenos Ayres. O policial Mena fora até lá por ter ouvido
alguém pedido por socorro, ele bate insistentemente à porta até que o mordomo atende e o deixa
entrar. Ela, impassível, continua a tocar o piano. Ele pede a ela para que se identifique e ela, sem
dar valor ao visitante, diz ser a Sra. Jorge Peirada. O policial a multa por estar tocando piano em
horário impróprio e vai embora.
No dia seguinte, o Sr. Jorge Peirada comparece à delegacia para prestar queixa de uma
tentativa de assalto. Lá toma conhecimento de que, na noite anterior, sua esposa havia sido
multada por fazer barulho em horário proibido. Ele, então, conta que não é casado, mas que
desposaria com prazer a jovem assaltante. Conta, então, em qual trama foi envolvido para que
fosse submetido ao assalto. Ele estava dirigindo o seu automóvel quando vê uma bela jovem
acidentada na estrada. Pára o carro para prestar-lhe socorro quando é prontamente dominado
pelo rapaz que a acompanhara.
A moça era Naya, que acompanhava seu irmão Max Dartel tentando fazê-lo desistir
desta prática criminosa em vão. Todavia, percebendo não haver jeito de persuadi-lo, ela parte e
deixa o irmão na casa da vítima.
No dia posterior, Naya vai à casa de uma velha senhora que buscava uma governanta e
aceita o emprego. Mas o destino lhe prega uma nova peça e ela revê o jovem Dr. Peirada. Com
medo de que fossem revelados os seus desvios do passado, ela foge dali, aceitando a proposta de
um velho milionário que conhecia a sua vocação artística e lhe prometera uma vaga numa
produção do Teatro Municipal no Rio de Janeiro.
103
Drama romântico da Benedetti Filme.
108
Já no Rio, ela e o milionário hospedam-se no Copacabana Palace. Em meio a tudo, o
advogado, tentando esquecer de Naya, parte em viagem, mas o destino novamente lhes prega
uma peça e os dois voltam a se encontrar, pois em sua escala o navio aporta no Rio e ele
encontra sua amada. Quando ela o vê tem a impressão de que seu destino lhe batia à porta.
Então, como último recurso
para desencorajar o amor do
jovem Doutor, se faz passar
por uma jovem impudica.
Mas o rapaz não
acredita e apesar de manter
distância continua a sua
volta. A moça, que viera com
a intenção de se dedicar às
artes, nota pouco empenho
do milionário em sua promessa de trabalho no teatro.
Então o velho trama uma encenação com um suposto empresário interessado nos dotes
artísticos de Naya. Mas Peirada descobre a trama e
conta tudo à sua amada, que se volta para o doutor e
entrega-se por inteiro a seu amor.
Entretanto, os fantasmas do passado voltam a
atormentá-la e, num momento de profundo desespero,
ela tenta o suicídio em pleno bondinho do Pão de
Açúcar. Mas o jovem doutor não deixaria sua amada
escapar novamente, salvando-a ao se pendurar nos
cabos do bondinho. Mais uma vez os dois vilões tentam estragar o amor dos mocinhos e o
Ilustração 35 - Em desespero a mocinha
tenta o suicídio.
Ilustração 34 - Para salvar a mocinha o mocinho se arrisca se
pendurando nos cabos do Pão de Açúcar.
109
destino, dessa vez, lhes é favorável e tudo acaba bem, pois os amantes se casam e voltam a morar
em Buenos Ayres.
Uma mulher urbana poderia se casar com um homem também urbano de status social
mais elevado, caso ele fosse do Rio de
Janeiro, de São Paulo ou de Buenos Ayres, e
desde que estivesse mantida a supremacia
do homem. Os desvios da mulher seriam
perdoados contanto que não fossem ligados
às moralidades sexuais. Ser ladra é menos
importante do que ser leviana, impudica ou
de baixa moral, no tocante às escolhas para o matrimônio.
Imagens como esta atravessam estados e invadem a imaginação das pessoas, fertilizando
a imaginação de moças recatadas e de jovens dispostos a se aventurarem na arte cinematográfica.
A passagem pelo Rio de Janeiro dos futuros realizadores de filmes, tanto do Ciclo de Recife
quanto de Cataguases, proporciona aos mesmos uma apreensão de representações simbólicas
femininas e de modernidade urbana, que eram descritas nas telas dos cinemas da cidade e que
serão, pois, reflexos utilizados em suas produções futuras. Alguns vieram com o sonho de
aprender, outros construíram seu sonho na Capital
Federal.
Outro personagem é Aitaré da Praia
104
(1925), um simples pescador que, heroicamente,
enfrenta o mar para dele retirar seu sustento. Por
mais bravio que este se mostre, ele não se afugenta e retira do mar aquilo que der. É namorado
104
Drama romântico de Joaquim Tavares
Ilustração 36 - E tudo acaba bem e eles podem
passear pela Baia de Guanabara.
Ilustração 37 - Cora conta seu desespero
para a sua mãe D. Guilhermina por não
saber o destino de Aitaré.
110
de Cora, que é filha de Dona Guilhermina e moça simples como ele. Na festa da casa do Capitão
Afonso, dança com sua amada, até a interrupção do antagonista da História, Zeno, que disputa
com o pescador o domínio da situação. Os dois partem para a briga e Aitaré sai vencedor.
Cora conta para sua mãe sobre o seu amor pelo pescador, mas ela proíbe o amor dos
dois. Ela, enfrentando a vontade da mãe, encontra-se com seu amado.
Noutro momento, indo contra os conselhos de seu amigo José Amaro, o rapaz decide ir
ao mar para resgatar suas armadilhas. Não tendo como colocar sozinho a jangada no mar,
questiona Zeno que passava pela praia, se este gostaria de vê-lo morto. Este confessa que sim,
então Aitaré diz que poderá morrer já que está chegando uma tempestade. De pronto Zeno o
ajuda a empurrar a jangada até a água. Então nosso herói parte para o mar para disputar com a
tempestade e dele salva uma jovem e seu rico pai. Aquele salvamento irá alterar o destino dos
personagens. A mulher urbana é o elemento que interfere na lógica dos acontecimentos da
aldeia, principalmente na vida de Aitaré que, apesar das possibilidades apresentadas pela vida,
sabe o seu lugar.
Durante a tempestade, Dona Coralina convida Zeno a proteger-se em sua casa, este
conta a Cora que seu amado havia saído em meio à
tempestade e ela quase desmaia. Quando a chuva
cessa, Cora e o amigo do pescador esperam o
retorno do mocinho.
Eles avistam a jangada e vêem que Aitaré
traz dois passageiros que haviam naufragado na
tempestade. O primeiro era o rico Coronel Felipe
Rosa, acompanhado de sua filha Glória. Cora corre e presta cuidados aos náufragos. Estes ficam
hospedados na casa de Aitaré até a chegada de um barco que possa levá-los para casa e, como
Ilustração 38 - A Cora procura Aitaré.
111
esperado, Glória acaba por nutrir amor por seu salvador. Mas, de longe, ela assiste ao namoro do
pescador e de sua amada.
O barco que levaria o Coronel e sua
filha chega e os dois partem para o Recife,
não sem antes deixar um bilhete com José
Amaro, saudando Cora pelo que ela tinha
feito. Todavia, Zeno trama novamente e diz a
Cora que Aitaré havia partido em companhia
de Glória e seu pai. Conturbada com o
suposto abandono de seu amado ela aceita a proposta de mudança feita por sua mãe com o
intuito de afastá-la de Aitaré. José tenta
intervir contando o que realmente
ocorrera, mas ela, tomada pela dor da
traição, se recusa a ouvi-lo. Aitaré havia
partido para Goiana a fim de buscar um
barco que levasse os náufragos de volta
para Recife, mas outro barco já havia
resgatado os dois na Aldeia. Quando ele
finalmente retorna, não encontra mais nem seus hóspedes, nem sua amada. Sem mais o que
fazer, Aitaré parte para o Recife e vai ao encontro do Coronel Felipe. Antes da partida é
novamente abordado por Zeno e os dois brigam. Aitaré vence a luta deixando seu oponente caído
na água. Já em Recife, cinco anos mais tarde, quando passeava com Glória pelas ruas da cidade,
entra numa loja e lá encontra Cora e seu irmão Mário. Sem saberem ao certo como agir, hesitam,
Ilustração 39 - Aitaré briga com Zeno, antes de partir
para Recife.
Ilustração 40 - Cora encontra Aitaré após resgatar
do mar Glória e seu pai, o Coronel Felipe Rosa.
112
mas por fim acabam por se falarem. O amor aflora novamente e, mesmo amando Aitaré, Glória
aceita casar-se com seu primo Arthur.
O filme de Recife”
105
, mostra o drama de um rapaz e de uma virginal senhorita do meio
rural, postos frente a conflitos de valores do campo e da cidade a partir da chegada dos
personagens do meio urbano. O Coronel e a filha interferem na austeridade da vida do casal de
enamorados. A moça da cidade produz mais desejos e mistérios. Cora não pestaneja em acreditar
no suposto abandono, mesmo sendo comunicado pelo vilão da história e conhecidamente
inimigo de Aitaré, pois ela, ao primeiro sinal, desfaz-se de seus sentimentos e foge da aldeia.
A contraposição entre os homens do campo e da cidade pode ser vista, também, no
quarto longa metragem de Humberto Mauro, Brasa Dormida (1928). A fotografia, a cargo de
Edgar Brasil (cuja habilidade deve ser destacada), traz à tela imagens recheadas de beleza, num
requinte de contraste poucas vezes visto no cinema nacional.
A produção custou 50 contos de réis e, em quatro meses, as quatro cópias em circulação
arrecadaram 70 contos. Os atores principais e o fotógrafo de Brasa Dormida são recrutados no
Rio de Janeiro, onde parte da história é ambientada. Soroa, o galã, havia sido contratado para ser
figurante. Um dia, no entanto, atolou maquiagem na cara, assumiu um visual “Valentino” e
ganhou o papel. A realização de Brasa Dormida foi muito mais cara que os filmes anteriores da
Phebo.
Com a Phebo transformada em sociedade anônima para a produção de Brasa Dormida,
a situação foi outra. Ao final do período, Mauro dominava amplamente os recursos de linguagem
então disponíveis. Se, sob influência de Gonzaga, o luxo invade a obra maureana, seu modo de
expressar-se também se moderniza.
Humberto Mauro introduziu doses maiores de sensualidade e melancolia nas cenas de
amor, partindo para uma complexa arquitetura dramática. “O desencanto e o pessimismo em
105
Ver. Luciana Corrêa de Araújo - . http://www.mnemocine.com.br/cinema/anpuh2005/anpuh2005a.htm
113
relação ao humano constituem o ponto de vista que define seu trabalho nessa primeira fase, que
talvez possa ser sintetizada pela bela cena da serpente de Brasa Dormida: a marca do humano é o
pecado original”.(Schvarzman, s/data)
Os cronistas de Cinearte conseguiram despertar o interesse da Universal pela distribuição
do filme, que foi lançado com boa publicidade e exibido em praticamente todo o Brasil. O filme
foi melhor na bilheteria do que na imprensa. Como é sabido, reagimos à imagem bidimensional
do écran como se ela tivesse três dimensões e fosse análoga ao espaço físico em que existimos.
Octávio de Faria comparou o filme de Mauro a outro de John Blystone:
“Se a história, a fotografia e as interpretações de Sally de meus sonhos são superiores às
de Brasa Dormida, em compensação, a direção e mesmo o cenário, as principais coisas de um
filme, são muito inferiores. Sally de meus sonhos não tem o que Brasa Dormida tem: um diretor
de personalidade, um pensamento dentro do filme, capaz de construir qualquer coisa mais do que
uma simples narração de história. Brasa Dormida não terá o polido, o verniz de produção de luxo
que tem o filme americano em questão. Mas não tem também o seu vazio, a sua banalidade
irritante. Pode não ser um grande passo no grande caminho único... Mas, por menor que seja, é
um passo no grande caminho. Nunca um passo fora do caminho, em caminho errado, portanto,
como Sally de meus sonhos é. Daí eu preferir a coisa que tem grandes defeitos, mas que também
tem grandes qualidades, pela outra que não tem grandes defeitos, mas nenhuma qualidade séria
que compense.” (Noronha,1978: 199)
Mauro já concebe os planos e maneja a câmera de modo a ressaltar o erotismo das cenas.
Em várias seqüências, Anita e Luís trocam olhares e carícias desnudados com sutileza pelo
diretor. Cenas marcantes, há várias, mas se tiver que escolher no disco, fique com duas: Anita
ajeitando a meia (close na perna e, vejam bem, isso é no final da década de 20!) e a câmera a
acompanhando e Luís a elevando para colher uma flor. Simbolicamente, uma cobra aparece na
hora.
114
A fotografia é bem mais elaborada, isso devido à chegada ao grupo de um dos
personagens mais brilhantes desse período, Edgar Brazil, fotógrafo que trabalharia em varias
produções de Mauro e Adhemar Gonzaga e também seria imprescindível na construção do
mítico Limite, de Mário Peixoto
106
.
Luis Soares é o estróina carioca que, após gastar todo o seu dinheiro na Boemia larga, se
encontra sem nenhum tostão em um banco de praça ao lado de um outro miserável. Duas
senhoritas passam ao longe e os dois seguem o olhar até a situação clímax em que a senhorita, ao
ajeitar a meia, levanta sutilmente o vestido, o que leva o senhor ao lado do nosso estróina ao
delírio. Ele termina a sua refeição, posta sobre páginas de jornal, e vai embora. Luiz olha para o
jornal e vê um anúncio de emprego. Vai à entrevista e é contratado por um usineiro mineiro para
substituir o vilão Pedro Bento na gerência da usina. Apaixona-se por Anita, filha do usineiro.
Em um determinado momento do filme, o casal está no campo e ela começa a dançar,
enquanto ele a observa quase que deitado na grama. De repente, vemos a expressão do olhar dele
mudar, o sorriso deixa o seu rosto e ele se levanta em direção à moça, que parte em fuga até ficar
atrás de uma árvore. Quando ele a agarra, ela tenta fugir e, então, vemos as mãos dele agarradas
aos braços dela, o corpo escondido atrás da árvore, puxando-a para trás do tronco até que ela,
sem poder resistir, não aparece mais e a cena é cortada. É nítida a relação erótica encontrada na
cena: ela não é mais vista porque, naquele momento, o que estava por acontecer não era para ser
visto publicamente. Na cena abaixo, vemos que o herói e a mocinha apanham frutas em uma
árvore, sem perceber a ameaça de uma cobra enrolada num galho. A conotação bíblica é
evidente: Adão e Eva no paraíso, o fruto proibido e a serpente à espreita do pecado iminente.
Mas a cobra também é um claro símbolo fálico integrado ao exacerbado erotismo do momento.
107
106
Onde teremos o primeiro movimento vertical de câmera da História do Cinema.
107
O uso de uma simbologia subjacente à ação física dos personagens receberam fortes criticas críticas na época.
115
Leví-Strauss refletia sobre o poder da câmera, como analisa Merquior: “O pintor observa
em seu trabalho uma distância natural entre a realidade dada a ele próprio, ao passo que o
cinegrafista penetra profundamente as vísceras dessa realidade... A imagem do pintor é total, a
do operador é composta de inúmeros fragmentos.”(Merquior, 1975: 26) E é essa fragmentação
que nos permitirá fazer uma análise das lacunas deixadas por esta fantástica máquina. Lacunas
da linguagem que permitem ao outro espectador - se ver e aos realizadores serem vistos.
7
Cartas anônimas de Pedro
levam o namoro, mantido em
segredo, ao conhecimento do pai
da moça, que não aceita o
casamento por não conhecer a
família de Luis e afasta sua filha da
usina.
Prossegue o namoro em
segredo. Pedro vai visitá-la, faz
uma serenata, ela vai à janela e ele
sobe por uma escada até ela - o quarto de uma senhorita é espaço que deve ser inviolável -, ele a
beija e seu corpo inclina-se atravessando a janela. Ele recua e vai embora, o que mantém a
dignidade de Anita.
Pedro, por vingança, dinamita a chaminé da usina. Ele e Luis enfrentam-se numa luta que
leva à morte do vilão. O usineiro, que ficou sabendo da família de Luis, autoriza o casamento.
Ilustração 41 - Luís (Luís Soroa) e Anita (Nita Ney) em Brasa
Dormida
-
1928
116
Como na história de Branca de neve, Luis desperta Anita para o sexual primeiro pela
troca de olhares, depois pelo beijo. Ela, “brasa dormida”, não resiste aos encantos sedutores de
nosso estróina, que também a desperta não só pelo amor, mas pela necessidade. Ele, falido,
poderia ver na “pequena” e em sua fortuna uma forma de adquirir uma nova vida. Então
podemos ver, mais uma vez, o homem manipulando a mulher em prol dos seus desejos menos
dignos - sexo e fortuna. A que a sofisticação de Luis poderia até incluir uma vida no campo, mas
não poderia dispensar o luxo encontrável no urbano.
Por outro lado, o filme negocia com a
sociedade provinciana em contraposição aos
personagens do mundo urbano civilizado, que força a
fabricação do ethos burguês, na construção da
imagem de uma sociedade branca, civilizada e
superior, capaz de transformar o espaço que o
circunda. A divulgação desse tipo de modelo de
sociedade pelo cinema agrada a uma parcela da
sociedade que acredita ser a síntese da brasilianidade
e que se sente insultada
Após deixar a Phebo Sul América Film,
Pedro Comello produz, pela Atlas Film, Senhorita agora mesmo
108
(1927), mais uma vez
protagonizado por sua filha Eva Nil. “Diferentemente dos demais filmes cataguasenses, Lili é a
personagem central da trama, uma mulher de pulso, corajosa e ativa. É ela quem administra a
fazenda da família, onde vive com a mãe e um irmão, roubando ao herói parte de sua esfera de
ação.”(Ramos, 1990: 89)
108
Drama rural de Pedro Comello.
Ilustração 42 - Com apenas um braço
Luiz segura sua amada Anita, que tomba
frente ao olhar de imperioso do galã.
117
O filme conta a História de Lili, uma jovem senhorita que, após a morte de seu pai,
toma a frente dos negócios na fazenda das Esmeraldas. Nossa protagonista vive com sua mãe e
seu irmão caçula Carlinhos. A personagem representada pela por Eva Nil é uma típica mulher
moderna, só que paramentada para a vida no campo. Não depende de homem para fazer valer a
sua vontade. Com energia defende o patrimônio de sua família, não deixando para amanhã o que
poderia fazer hoje. A sua criação livre lhe permitira tal arrojo, de pensar e agir segundo seus
próprios pés.
Vestida como as “cowgirls” dos filmes de “farwest”, com um lenço de seda no pescoço,
camisa de botões, calças e botas, ela caracterizava-se para viver as muitas aventuras do filme. O
lenço poderia ser posto de lado, o que certamente dava maior arrojo a sua feminilidade, ou posto
de frente imitando uma gravata, que fazia a jovem carregar com pureza o écran.
Com seus cabelos crespos refletindo
o brilho do sol, era a imagem nítida do ser
angelical, ou escurecidos nos ambientes de
pouca luz que dava a ela mais atitude, com
quando portando uma pistola, o personagem é
composto de forma a se adequar a situação
vivida. No trabalho, junto aos empregados da
fazenda ou na luta pela defesa de suas
posições, Lili é a mulher que sempre está pronta para o que der e vier.
A moça não se encaixa na figura submissa sugerida através da imagem tradicional da
moça do interior. Mario Santos é filho de um fazendeiro das redondezas, que tenta, a todo custo,
adequar a nossa jovem aos cuidados que pensa que ela necessita - “uma moça como aquela só
Ilustração 43 - Nita Nei com seus cabelos refletindo
pela ação do sol, dando um ar de angelicalidade a
cena.
118
poderia corresponder ao amor de um homem de valor reconhecido cujo natural fosse vivo e
decidido como o seu”
109
.
Lili consegue manter-se independente até
a chegada à fazenda de dois forasteiros. A jovem,
mostrando total controle, domina a cena, até
perceber a real intenção dos dois facínoras. Eles
roubam as jóias da família e partem em disparada.
A mocinha vai atrás deles e consegue dominá-los
com sua pistola. Mas num descuido, eles retomam
a arma e tentam violentá-la. Conseguiriam, não
fosse a intervenção de Mario, que chega no último instante para salvar a nossa heroína. Ela
percebe a grandeza do ato do filho do fazendeiro e entrega-se ao seu amor em cena em frente ao
mar.
Na utopia masculina, apesar de toda a
desenvoltura da mulher em viver só, ela é ou será,
em algum momento, dependente de sua proteção.
Lili assume o papel de seu pai e vai muito bem
até a chegada dos forasteiros que a fazem ver o
quanto é frágil frente aos perigos da vida e se render a sua dominação
A mulher não é mais passiva às vontades masculinas; ela é agente do processo de
escolha. Pode ser urbana, moderna e rica, como em Thesouro perdido, ou ser rural, moderna e
rica, como em “Senhorita agora mesmo”. A mulher poderia não mais se interessar por um
homem porque este é forte. Luis, por exemplo, é homem sofisticado, cavalheiresco e sedutor.
109
Retirado da Sinopse do filme disponível no banco de dados da Cinemateca Brasileira.
Ilustração 44 - Agora Lili (Eva Nil) aparece
com uma pistola o que caracteriza sua
disposição para a luta.
Ilustração 45 Lili captura os gatunos.
119
Mario também tem esses atributos, mas ao contrário da outra, Lili percebe a necessidade do
homem.
O artifício da força física será o atributo
fundamental para se apropriar dos benefícios do
“belo sexo”. A mulher do campo, com sua
fragilidade, tem necessidade de proteção. A
mulher da cidade tem permissão de transitar pelos
espaços urbano e rural, mas ainda deve ser
protegida pela sua ingenuidade, para a
manutenção de sua honra.
Brasa Dormida mostra um pai que passa a
confiar mais em sua filha, importando-se mais
com o que possam dizer dela do que com o que
ela está a fazer. Ou que não se importa tanto com o que ela pode estar fazendo, mas vê, nas
críticas de uma sociedade ainda conservadora, um problema para sua filha ou para a imagem de
seu nome.
Nos dois filmes de Humberto Mauro, Thesouro perdido e Brasa dormida, notamos algo
bastante interessante na disputa entre campo e cidade encontrada nos dois filmes. Pedrinho,
Bráulio, Suzana, Augusto Barros, Manuel Faca e Pedro Bento representam o campo e R. Birhen,
Anita Silva, Luis Soares e Carlos Silva representam a cidade. Há uma troca quando os
personagens centrais são campesinos: o “mal” vem do meio urbano. Quando são da urbe, a
oposição vem da zona rural, quase como um chamado de atenção aos perigos do elemento
externo. Esse elemento traz a mudança, como vimos também em Aitaré da praia, sem o caráter
maléfico dos personagens. A alteração do ritmo a partir da chegada do intruso, num certo
misoneísmo.
Ilustração 46 - Mas ao final após ter sido quase
morto pel
os biltres ladrões.
120
Mesmo o cinema dando mais espaço à mulher, a mulher fílmica ainda é reagente das
ações de homens que, de alguma forma, a fazem sempre depender dele. Entretanto (e isso já
denota certa diferença em relação a produções anteriores), nas produções maureanas ou nos
filmes de Lulu de Barros, as personagens, atrizes e espectadoras passam a produzir seus próprios
sonhos, a guiar suas próprias vidas, dependendo cada vez menos do braço forte, dos punhos ou
mesmo do dinheiro de seus salvadores mecenas. Isso levará a uma construção mais complexa do
papel da mulher na vida social. Eva Nil e Carmen Santos, por exemplo, misturam fantasia e
realidade em suas imagens projetadas nas telas. Suas vidas fora dos cenários seguem caminhos
parecidos aos do écran, numa metamorfose que leva a e é parte de um processo. Há uma
transformação da mulher na fantasia que se dá a partir da tela para o real e do real para a tela,
numa interferência contínua das personagens femininas em circularidade.
121
CAPÍTULO III: CABEÇA E CORPO EM BUSCA DE ACEITAÇÃO: MULHERES DOS FILMES E
MULHERES QUE FAZEM FILMES NO PROCESSO DE LIBERTAÇÃO SOCIAL
“No cinema, os filmes que retratam mulheres terríveis,
mulheres que se orgulham e servem diabolicamente do resplendor da
sua beleza, chamam-se filmes do vampirismo, das mulheres-
vampiros, das que passam pela vida como um formidável incitamento
a vivermos a emoção dos magníficos e horríveis sete pecados mortais,
e há quem ache algo de inquietadora moralidade neles, sem se
lembrar de que o próprio espetáculo do vício serve muitas vezes para
se conhecer as vantagens da virtude...”
Palcos e Telas, ano VII, n° 90, 11/12/19
110
.
As telas exibem personagens perigosos, mortais aos preceitos de uma sociedade que não
quer se adaptar, que quer as fantasias, mas não seus efeitos; quer a liberdade das práticas e não a
libertação da mulher.
A mulher dos filmes se transforma na tela e outros elementos de modernidade são
inseridos. Entretanto, a mulher “filmografada” também muda com a passagem das personagens,
com a passagem dos espectros que recaem sobre a sua imagem, assim como muda com a
recepção do público frente a estas alterações imagéticas. Os personagens deixam seu caráter
ficcional para adentrar o universo das atrizes que são vistas sob suas máscaras. Seus papeis se
mantém na memória dos espectadores, causando confusão quando estes reencontram a atriz em
outro papel. O espectador então faz concessões para que ela esteja adequada.
A ascensão da classe média às salas de cinema, nos anos 20, faz com que este invento
científico ganhe sofisticação e multiplique suas formas de expressão, ganhando um caráter
artístico. Em contrapartida, ele passa a ser mais severo no que deve ser mostrado. As imagens
deveriam conter as representações do Brasil ideal. Entretanto, não era pela razão que as coisas
eram feitas. O filme era um objeto de fins comerciais, então as produções se voltavam ao gosto
do público. A predileção do público masculino se dava por temas ligados à corrupção moral, o
110
Apud. Pessoa, Ana. Carmen Santos: O cinema dos anos 20. Rio de Janeiro. Aeroplano, 2002: 63.
122
que supostamente havia de mais degradante na sociedade. Prostituição, morfina, éter, boemia
eram temas comuns dos filmes, ou pelo menos daqueles que obtinham algum sucesso.
A mulher Morfina, que faz o homem um escravo dos vícios mundanos, é um dos
personagens centrais destes filmes. Ela vampirizava o homem a ponto de levá-lo à ruína. Tanto
as mulheres que apareciam nas telas como as mesmas fora delas, assombravam uma sociedade
que não estava preparada para tanto despudor.
123
3.1 MULHER COMO AGENTE: O ASSOMBROSO MUNDO DAS MULHERES INDEPENDENTES
“Não temo as mulheres, mas não me fale delas”
Helen Hayes para Gary Cooper em “Adeus as Armas”
Independência é um estado ou condição de quem é independente, de quem tem liberdade
ou autonomia. Alguns acham que a mulher sempre foi livre frente ao homem e era a sua
condição de mulher - que a restringia. A mulher que tivesse um homem, fosse ele pai ou
marido, poderia ser livre para fazer tudo que não desagradasse seu “partner”. Uma liberdade
cerceada pelos limites do olhar de seu homem.
Mas havia, também, aquelas que buscavam homem para, junto a eles, conquistar o aval
social e, assim, aumentar os limites de seus vôos e até subverter a ordem para, por exemplo,
viajar sozinha e não mais acompanhada pelo homem que a devia “proteger”.
As femmes soles amedrontam uma sociedade que acha conveniente limitar o número de
papeis dignos da mulher dentro da sociedade. A mulher trabalhadora, como a Dr. Antonieta de A
filha do Advogado, amedrontava por não depender do homem e obter seu próprio sustento. Do
homem pouco precisavam, talvez somente de seus nomes e de suas condições sociais, ou ainda,
o título de “Senhora”, o que eliminava uma série de inconvenientes aos quais a mulher estaria
exposta.
Talvez como em Paris la Nuit
111
, a mulher moderna fosse aquela que ainda dependesse
da imagem de um homem por trás, mas que figurasse em alguns lugares sozinha. Esta mulher
poderia transitar por qualquer espaço, de maneira diferente daquela que deveria ser protegida, e
encontrar o seu duplo a mulher degenerada e, assim, colocar-se à frente de sua verdadeira
identidade.
111
124
Poderia ser que esta mulher de ar aristocrático estivesse acima das outras, assim sabida de
que a sua virtude era, em verdade, um presente do homem ao qual ela acompanhava. Ela
conseguia se livrar de sua imagem e se espelhar pela crença absoluta na imagem de seu
marido/pai. Assim trafegava, sem medo de fraquejar frente à tentação exercida por seu duplo
O filme, que é uma produção paulista realizada em Paris, tenta mostrar que, apesar da
personagem viver em meio a toda uma série de elementos perniciosos da modernidade urbana,
ela, atravessa estes espaços como se não pertencesse a eles, sem se contaminar.
A película narra os abusos do Dr. Zik, que se utiliza de sua prática hipnótica para obter
favores de seus pacientes em Paris. Seu consultório torna-se cenário para a apresentação de uma
série de distúrbios de conduta. Depois que os pacientes passam pela sessão de hipnose, começam
a seguir indubitavelmente seus mandos. Pela notoriedade que disso deriva, o Dr. é convidado a
dirigir uma casa de saúde repleta de viciados em cocaína, amantes das orgias e outros
transloucados e lá, por uma soma de dinheiro, é “onde são encerrados os restos de uma
sociedade rica, alucinada pelo álcool, pela cocaína e pelo ópio
112
. Vai à clinica visitar a filha
de um Barão conhecido como “Rei do aço”, que é hipnotizada e seqüestrada, pois o Dr. Zik, ele
próprio viciado em jogo, por essa maneira havia feito muitas dívidas e, com o dinheiro do
resgate, pretendia saldá-las.
Talvez o homem estivesse tomando consciência de que, ao passo que adentrava o
submundo e levava consigo a mulher, abria o lacre que mantinha a mulher contida em seu
“papel” social ideal. E que, apesar da mulher transitar por espaços mundanos, a integridade da
sua imagem era algo inerente ao sonho. A mulher do mundo da boemia não se encaixava nos
sonhos conservadores do homem comum, que transitava pelo erotismo lúgubre do "bas-fond"
carioca ou de qualquer outra grande metrópole brasileira.
112
Cinemateca Brasileira, banco de dados da filmografia Brasileira.
125
Em São Paulo, um jovem, após uma noite na esbórnia muito alcoolizado, encontra
conforto em um banco de praça, adormecendo. Na tela são projetados seus sonhos, sonhos de
algo diferente do que vivera. São sonhos serenos e repletos de romantismo, nos quais passeia
calmamente por uma praça de mãos dadas a uma bela jovem. Era como se, naqueles sonhos,
encontrasse algo que procurasse em sua busca desenfreada pela vida, pelos signos daqueles
loucos anos.
A ilusão se funde com a realidade quando o sujeito desperta e vê, à sua frente, o objeto de
seus devaneios. A mulher de seu sonho existia e vagava à sua frente. Ele vai até ela e iniciam
uma conversa. Após certo tempo, os dois começam a namorar.
Os sonhos do rapaz projetados nas telas são os
sonhos de uma sociedade que sente estar sendo punida por
seus pecadilhos. A mulher da tela não era outra que não a
mulher dos sonhos do homem, aquela que não existe e que
só existiu enquanto prisioneira dos desejos masculinos.
Todavia, a mulher moderna entra na tela como personagem
e sai como atriz. As mulheres filmicas confundem-se com
as imagens das atrizes. Suas personagens traziam muito
delas próprias e muito destas personagens passava a fazer
parte do imaginário de seus espectadores.
Eva Nil (Eva Comello) era exemplo disso. Esta jovem de corpo delicado, de pele alva e
dona de um rosto marcante, unia a aparência frágil a atitudes que denotavam muita força. Foi
uma das principais personagens do ciclo de Cataguases e a estrela de seus dois primeiros filmes.
Nascida na cidade do Cairo e filha do italiano Pedro Comello é dirigida pelo pai no filme
“Senhorita agora mesmo”.
Ilustração 47 Eva Nil
126
Nele, a personagem se mostra frágil e indefesa em determinados momentos, enquanto em
outros, com uma arma nas mãos, defende com vigor as posses de sua família. A personagem é
tão semelhante a ela e parecia que “O papel fora talhado à imagem e semelhança de sua
intérprete.”(Ramos, 1990: 89). Isso seria bem possível, já que a direção do projeto era de seu pai,
mas a moça ajudou “nas filmagens, na revelação e na montagem da película”. Suas posições
firmes e a obstinação acabam por afastar seu “pai da Phebo e fazem com que ele funde a Atlas
Films”. Assim, a participação da moça ultrapassou em muito a postura submissa das atrizes na
elaboração do projeto cinematográfico.
“A virgem inocente e silenciosa, de grandes olhos crédulos, de lábios
entreabertos ou gentilmente desdenhosos, a vamp, trazida das mitologias nórdicas e
a grande prostituta, trazida das mitologias mediterrâneas, simultaneamente
distinguem-se e confundem-se no seio do grande arquétipo da mulher fatal. Entre a
virgem e a mulher fatal desabrocha a divina, tão profundamente pura e destinada ao
sofrimento quanto a jovem virgem.”( Hollanda, 1991: 8/9)
A primeira atriz do cinema Nacional a se aproximar deste arquétipo foi Carmen Santos,
ou melhor, Maria do Carmo Santos Gonçalves, nascida em Vila da Flor, Portugal, em 08 de
Junho de 1904 e que chegou ao Brasil em 1912. Trabalhou como vendeuse na Parc Royal e de lá
saiu aos 15 anos para trabalhar em seu primeiro filme. Construiu sobre si um dos ícones
Ilustração 48 - Carmen Santos no drama indígena Uratau, onde é claro o elemento de sublimação da
mulher.
127
máximos do cinema brasileiro nos anos 1920 e 1930. Em 1925, já era uma celebridade sem que o
público jamais tivesse visto sua imagem
projetada no écran.
Os três primeiros filmes que
estrelara foram para seu séqüito de fãs
uma incógnita completa: Urutau”
dirigido por um norte-americano chamado
W. H. Jansen, era baseado em uma lenda
indígena e continha em seu enredo índios,
missionários e tentação sexual. Foi exibido somente em uma sessão para a imprensa e, logo após,
o diretor desapareceu levando consigo o filme. “A Carne” e “Mademoiselle Cinema” - como já
foi dito - ficaram inacabados e os negativos arderam num incêndio.
Mas, a despeito de todas essas impossibilidades, uma
enxurrada de fotos publicitárias circulava em jornais e revistas,
que mostravam cenas dos filmes e fotos posadas repletas de
sensualidade. Era assim que ela aparecia em Selecta, Scena
Muda, Para Todos e Cinearte...” (Noronha, 1987: 138). Fãs que
nunca a viram atuar se desdobravam em cartas enviadas para sua
produtora e ela retribuía com fotos autografadas. Após um rico
casamento, Carmen passou a ter dinheiro e importar um senso de
publicidade pessoal comparável ao das estrelas hollywoodanas,
construindo, desse modo, a sua fama. Para Jurandyr Noronha,
“(...)sua evolução pode ser percebida e é de histórias fúteis e
mundanas (...)” (Noronha, 1987: 104), até chegar à sua
Ilustração 49 - Carmen com o Diretor (de chapéu coco)
de A Carne e Mademoiselle Cinema
Ilustração 50 - Carmen em
publicidade.
128
“Inconfidência Mineira”(1948). E ela não se afasta da imagem desprendida de seus personagens,
atrevendo-se a escandalizar a acanhada sociedade carioca. Era o protótipo da representação do
ideal de mulher que não cabia na sociedade de então. Era vista fumando em público, com um
gestual que esbanjava sensualidade mesmo antes de casar-se com um industrial de muitas posses
chamado Antonico Seabra.
Lelita Rosa, moça advinda de uma família
de parcos recursos, aos 17 anos, disposta a ser atriz,
participa de sua primeira produção que, segundo
Neto em seu “Dicionário de Atrizes e Atores” foi
“A Flor do Sertão” (1925).
Seu segundo trabalho nas telas foi em uma
opereta cômica chamada “Um caso singular”
113
(1926). Mas foi a partir do polêmico filme de
Antônio Tibiriçá “Vício e Beleza” (1926) que ela
ganhou notoriedade. Tibiriçá procurava uma atriz
desinibida para cenas de nu e Lelita mostrou-se
disposta. A crítica da Cinearte achou o filme
escandaloso pelas conseqüências do uso de drogas
e pela forte sensualidade na composição da atriz e
da própria realização que, ao final, destacou a boa
participação de Lelita.
Com uma fotogenia privilegiada e um tipo
113
Baseado na opereta de Carlos de Campos da Produtora Íris Filmes.
Ilustração 52 - Nita Ney encarnava a próprio
arrojo da modernidade.
Ilustração 51 - Como uma Eva pecadora.
129
que tendia ao exotismo, “olhos meio rasgados davam-lhe uma feição oriental e os cabelos pretos
muito lisos e compridos, com a ajuda de uma apropriada maquiagem, um ar de mulher fatal
verdadeiramente convincente. Em mocinha, seu corpo tinha formas bem delineadas (...)
(Hollanda, 1991: 81). Fazendo pose em trajes de banho denotando ingenuidade ou como uma
Eva mordendo uma maçã, Lelita explorava a sensualidade nas diversas fantasias que habitavam
o universo masculino. A sua trajetória no Cinema é marcada por polêmicas, dentro ou fora das
telas. Lelita Rosa foi uma dessas nossas estrelas de talento e personalidade forte, “uma perfeita
‘sportswoman’. Praticava tênis e natação e era uma exímia ‘chauffeuse’ (dirigiu um Packard em
Vício e Beleza). (Hollanda: 81)
A atriz Nita Ney vem para o Brasil aos cinco anos e vai morar no Catete. Nita tem sua
inserção no mundo das artes pela dança, primeiramente tomando aulas particulares com a
professora Maria Ollenewa, e, posteriormente, dançando em várias produções do Teatro
Municipal.
Sua primeira aparição cinematográfica foi em 1924, fazendo figuração no filme O dever
de amar
114
(1925) produzido por Paulo Benedetti.
Mauro estava se preparando para filmar Brasa
Dormida e foi procurar à casa de Nita sua irmã Yvone, na
época uma fora aclamada Rainha dos Esportes. Não a
encontrando, convidou Nita a trabalhar na produção. Ela
aceitou e, com sua mãe, foram para Cataguases. Mas as falta
de uma melhor preparação dos atores a deixou um pouco
decepcionada.
A identificação com o personagem é parte do projeto
114
Dirigida por Vittorio Verga.
Ilustração 53 - Antônia Denegri
130
de muitas mulheres na tela e com a parisiense filha de pai argentino e mãe francesa, Nita Ney,
não foi diferente.
Algum tempo depois, ela afirmou não ficar satisfeita com a submissão da personagem,
identificando-se mais com a imagem da “mulher do século XX”, a mulher-travessa, a
sportswoman”.
A afirmação da nova mulher buscava identidade em outras paragens, principalmente no
maior centro produtor de filmes, os EUA. Nossas atrizes são sistematicamente comparadas aos
modelos estéticos e de vida oriundos do cinema norte-americano.
Antônia Denegri nasceu na Califórnia. Filha de uma espanhola e de um alemão, veio
morar no Brasil com quatro anos e foi aluna da Escola de Dança do Teatro Municipal. Fez,
ainda, parte da Companhia de Teatro de Lucinda. Sua estréia nas telas foi atuando em reclames,
o convite havia sido feito por Alberto Botelho. Mais tarde, fez Amor e
Boemia, Alma Sertaneja e por fim dois de Lulu de Barros,
Ubirajara” e “Cavaleiro Negro”.
Foi descrita como “uma pilha de nervos enfeixados num corpo
esbelto, dificilmente se conseguia ouvi-la de uma só vez.
Respondendo a uma pergunta, esquivando-se de outra, mexendo nisso
ou naquilo, fazendo gaiatices, dando atenção a tudo e a todos a um
tempo, tal é o estado normal da Nazimova da nossa cinematografia.”
Allá Nazimova foi a atriz russa que causou espanto com sua dança dos véus em Salomé
115
(1922), personagem andrógina e pouco convencional, “foi uma das primeiras deusas das telas a
acelerar a pulsação dos homens (...)” (Cawthorne, 1997: 32), mesmo sendo em verdade lésbica.
Já a nossa Nazimova (Denegri) dizia ser dividida entre o “sangue ardente” de sua mãe,
com gosto pelos esportes e pela aventura, e do espírito progressista, herdado de seu pai.
115
Direção de Charles Bryant.
Ilustração 54 - Alla
Nazimova com homens
a seus pés
131
Reafirmava sua nacionalidade norte-americana dizendo que, em sua terra, os direitos iguais para
homens e mulheres já era lei. Era, portanto, uma partidária da igualdade de direitos para homens
e mulheres.
Quando fora convidada para
fazer filmes, todavia, dissera ter que
pedir autorização para “son amant”,
uma figura que não podia ser citada
visto a sua condição social. Ela vivia
sob os auspícios de um homem que
não era seu marido, mas que detinha
sobre ela a determinação do
domínio.
A romena Aurora Fúlgida, ainda
bem jovem, aos 16 anos, vê despertado o
seu sonho quando uma Companhia de
bailarinos que passava pela localidade
oferece vagas. Ela tenta convencer o seu
pai a dar-lhe autorização para inscrever-se.
Mas apesar de todos os esforços, a
resposta continua sendo a mesma. Não
vendo outra alternativa, ela foge de casa
para acompanhar o grupo. Mas, passado
algum tempo, a companhia não lhe dava
oportunidade de fazer parte do grupo
Ilustração 55 - Filme de conotação homossexual onde ela
vive um personagem masculino.
Ilustração 56 - Aurora Fúlgida
132
principal. Ela resolve, mais uma vez abandonar a troupe e sair em busca do seu sonho para
ingressar verdadeiramente na vida artística. Percorre a Europa, torna-se dançarina em cabarés em
Milão e passa pela América do Sul. Ao visitar o Brasil pela segunda vez, recebe convite para
protagonizar o filme Lucíola
116
(1916),. A atuação da atriz e a temática forte da história alcançam
grande sucesso na época.
Aurora se estabelece no
Brasil e acentua sua participação
no Cinema Nacional na década
de 20, atuando em filmes como
Rosa que se desfolha
117
(1917), A
Gigolette
118
(1924), Cinzas
119
(1925) e O Dever de
Amar
120
(1925).
A aventura talvez seja o
grande jargão que relaciona estas
atrizes, nacionais ou estrangeiras.
O cinema nacional envolve estas personagens amalgamando suas representações no espaço
nacional, unindo personagens e atrizes perdidas e reverenciáveis num mesmo espaço, o écran.
Mais ainda, no imaginário de uma população que tendia à curiosidade frente ao novo, frente ao
diferente e que, também, assimilava com rapidez as novidades do campo cinematográfico.
Mulheres arrojadas, fruto de um tempo que exigia que estas mulheres se escondessem em
scaras, fossem ativas, esbeltas e inteligentes. As que não o foram serviram como modelos
116
Adaptação da obra de José de Alencar, realizada em por Franco Magliani.
117
Provável direção de Antonio Leal.
118
Direção de Vittorio Verga.
119
Direção de Joe Schoene.
120
Direção de Vittorio Verga.
Ilustração 57 - Aurora Fúlgida a vamp
133
estéticos, suas belezas foram realçadas, mas nada se falava de suas atuações. Compunham a cena
interagindo com o filme com sua presença em trajes de banho ou em cenas intimas.
Os tipos cinematográficos sofrem influência das profundas transformações
que ocorrem na mulher nos anos 20, e a moda é o espelho dessas mudanças. Os
cabelos encurtados, assim como sobem as bainhas que chegam aos joelhos em
meados da década - , e meias de seda e sapatos de salto alto destacam as pernas. O
corpete cede lugar à sutiã e calcinhas, os decotes se aprofundam e a s mangas
rareiam; as roupas de banho permitem a revelação pública de ombros e parte das
coxas. Os gestos também são alterados: fumar passa a ser hábito de mulher
moderna, que cruza as pernas. A moda feminina substitui a imagem recatada e
submissa do século anterior pela elegância insinuante e ostensiva.” (Pessoa, 2002:
63)
As atrizes são, na maioria das vezes, elementos de erotização de imagem. Sendo
submissas ou arrojadas, essas mulheres encontram nas telas um duplo que não lhes pertence mais
e que preencherá a mente dos espectadores, multiplicando suas imagens.
134
3.2 MORFINA: A MODERNIDADE COMO PROBLEMA
“Com as suas ruas movimentadas e o “footing” ao
entardecer...
Tem também, as suas tragédias, contos de fadas e
romances passionais, como o que ides ver no desenrolar deste
film.”
121
Primeira legenda do filme “A Filha do Advogado
Nas movimentadas avenidas das grandes metrópoles, mulheres e homens correm em
busca do brilho dos novos tempos. Fascinados pelo novo, tanto maquinal quanto de costumes,
deixam-se envolver pela sedução do prazer. Saem em busca de uma volta rápida, mas logo
estarão ligados pelo vício. Difícil era ser comedido quando se acreditava na inevitabilidade dos
tempos. Da Synphonia da Metrópole
122
surge a polifonia, que encontra seu parceiro ou parceira
em um de seus instrumentos, sejam eles homens ou mulheres, automóveis, aeroplanos, ópio ou
cocaína. Essa modernidade traz tanta incerteza quanto ao futuro que antes era continuísmo -,
como também traz fascinação. Um novo tempo que nos faz crer nas fantasias de estarmos
dormindo à sua espera, sendo o novo o motivo da vida. Evolução do tempo que pretere o novo
ao velho, onde o velho existe para ser suplantado pelo novo. Como o teatro ao cinema, corrida de
cavalos à de carros, a cidade velha pela nova, o teatro pelo cinematógrafo. Válido também para
as pessoas, é sob a mulher que recai o maior peso.
A mulher é vítima de um sistema que tende à misoginia, muitas vezes compondo o
cenário de decadência. A mulher é o motivo dos descaminhos do homem, é a fonte de sua ruína.
Quando esta se apresenta desprovida de suas máscaras, está nua, para a arte e para a perdição.
Nos opiários, encontramos mulheres. Nas altas rodas, ao lado da cocaína, encontramos mulheres.
A boemia canta mulheres que enfeitiçam e levam o homem aos descaminhos de uma vida de
prazeres. Ébrios por mulheres, ébrios para as mulheres. Filhos de advogados ou de fazendeiros,
121
Primeira legenda do filme “A filha do advogado”, 1926, p&b, 35mm, 92 min, silencioso.
122
“São Paulo a Symphonia da Metrapole” (1929) da Rex Filme, produzido e cinematografado por Kemeny,
Adalberto; Lustig, Rodolpho Rex.
135
suas desgraças serão sempre geradas por mulheres, que podem estar contidas na figura da
“femme fatale” ou de laboriosas trabalhadoras urbanas, de mulheres intelectualizadas ou de
jovens interioranas. Toda mulher é fonte de perigo, “divina creatura”, tão “linda melindrosa”, até
que alguém diz “ali vae, quasi vestida de D. Juan d’Avenida”, aquela que destruiu lares, invocou
o álcool, o ópio e a cocaína para que, juntos na modernidade alucinada da capital, fizessem do
rapaz um “servidor devotado, verdadeiro escravo, graças às faculdades hipnóticas” dessas
mulheres dos novos tempos.
“(...) O cinema e seus subprodutos na forma de revistas, clubes de fãs e
coleção de fotos, ajudavam a reforçar uma idéia de que existiam dois tipos de
mulher: a boa e a má. A primeira, identificada com o casamento e com a felicidade.
A outra era par “usar e jogar fora”.(Del Priori, 2006: 277)
Nos anos 20 a cidade do Rio de Janeiro acomoda um novo cenário para os filmes e seu
público, num projeto grandioso de Francisco Serrador um espanhol de Valência que chegou à
Curitiba e trabalhou como vendedor de peixes que compra a área que anteriormente pertencera
ao Convento da Ajuda, na chamada Praça Floriano. E em 1925 inaugura o seu magnífico
empreendimento, com seus cinemas instalados. Quatro “arranhas-céus” de oito andares: o
Capitólio (23 de abril de 1925), o Glória (3 de outubro de 1925), o Império (12 novembro de
1925) e o Odeon (3 de abril de 1926). O espaço passa a balizar o imaginário carioca com a
sedução do universo filmico e transforma o local no quarteirão predileto para o “footing” mais
sofisticado da cidade na segunda metade dos anos 20. Espaço preferido das melindrosas de J.
Carlos...
No écran vemos despontar uma cidade que quer ser outra, que se projeta como em
“Metrópolis” de Fritz Lang. Uma cidade que desencaminha o homem pela sua magnitude e
maquinalidade. Do outro lado encontra-se Madame X
123
fruto de uma Paris que sevicia o
123
Madame X, 1920, 7 rolos, Goldwyn Pictures Corp., EUA, peça "La Femme X..." (1908) de Alexandre Bisson,
cenário J. E. Nash e Frank Lloyd, fotografia J. D. Jennings, diretor Frank Lloyd, com Pauline Frederick (Jacqueline
Floriot), Casson Ferguson, William Coutleigh, Maud (Louis) Lewis, Hardee Kerkland, Albert Roscoe, John
Hohenvest, Correan Kirkhan, Sidney Ainsworth, Lionel Belmore, Willard (Louis) Lewis, Cesare Gravina, Maud
George. In. http://brazilian.imdb.com/title/tt0011426/
136
espírito, corrompendo a sociedade. Entre esses dois estereótipos encontramos a construção
imagética da cidade e da mulher nos filmes estudados neste capítulo.
Mulheres “X”, mulheres exóticas, misteriosas. Das remanescentes vielas da cidade
colonial, do Bairro Chinês ou do Bairro da Cocaína, da Mademoiselle X ou da Mademoiselle
Cinema. Tanto faz...A morfina e a mulher se encontram simbióticamente na imagem da
modernidade urbana. Essa ambiência dava o clima à situação, pois “(...)em determinados
círculos, pecado e vícios tornaram-se medida de civilização e refinamento(...)”.(Resende, 2006:
18)
A modernidade ágil das labirínticas ruas da cidade encontra na mulher o seu par. A
mulher “desviada” é o paralelo da cidade moderna e é nesta que estão as mulheres que, como
conduzidas pelo demônio, encaminham homens à ruína. Em 1917, num outro “film”
124
vemos
Miss Ray ser guiada pelo demônio para dentro de uma gruta. A mulher nua da cena representava
a verdade. Mas será que o autor do filme indicava que só nua vemos na mulher quem ela
verdadeiramente é? Somente diante d A Carne” encontramos sua verdadeira imagem? Em
“Morfina” vemos de novo o Diabo a acompanhar a mulher, mas esta está agora deitada em um
divã e o Diabo está a espreitá-la, ele talvez satisfeito com o seu rumo final, em que ela já havia
retornado para sua alcova, já havia retornado para a sua verdade.
Nos cinemas, encontramos exemplos desses tipos urbanos que desviam o homem de bem
e, por vezes, também o reconduzem. A mulher filmica vive esse conflito dialético, lutando contra
os descaminhos da vida urbana e contra aquelas mulheres já perdidas. Em A filha do Advogado
125
, temos Heloisa e Antonieta disputando a centralidade do papel feminino. De um lado Heloísa,
moça humilde do interior; do outro, Antonieta, mulher forte e urbana.
124
Lê fim du diable, produzido pela Nacional Filmes, com Miss Ray, Victor Ciacchi e Sérgio Giorgio.
125
1926, 6 atos, Aurora Film, de Recife, Brasil; novela de Costa Monteiro, cenário Ari Severo e Jota Soares,
fotografia Edson Chagas, com Guiomar Teixeira, Euclides Jardim, Jota Soares, Norberto Teixeira, Olívia Salgado,
Ferreira Castro, Severino Steves, Jasmelina de Oliveira, Normar, Valderez de Sousa, Luis Marques, Sales, Pedro
Salgado, Olegário Azevedo, Pedro Neves, Carmen Nolasco, Diamantina Menezes, Adamastor Guerra, Creusa
Albuquerque, Pedro Jr., Pepino, Durval Nunes, Moacir Campos, Adelita Monteiro, Antonio Carvalho, Mário Lima,
137
Este filme, dirigido por Jota Soares, que também atua no papel de Helvécio, representou
o momento auge do “ciclo de Recife”. Soares impõe ao filme uma narrativa mais ágil,
conseguindo prender o espectador com as reviravoltas do drama.
O “ciclo de Recife” tem seu início marcado pelo retorno de Edson Chagas, que passara
uma temporada no Rio de Janeiro trabalhando em fábricas de fitas e que chegara disposto a
produzir filmes. Já em Pernambuco, Edson vem a encontrar Gentil Roiz que fazia letreiros para
os filmes exibidos em Recife, mas que escrevia “roteiros” os quais esperava realizar. Então, em
1923, os dois fundam a Aurora-Film e começam a produzir filmes. O primeiro deles foi
Álvaro Gomes, Zacarias de Sousa, Pedro Carvalho, Sizenando Pavão e a Jazz-banda do Jóquei Clube de
Pernambuco.
Ilustração 58 - Cartaz do Filme.
138
Retribuição” que alcançou a marca fantástica de oito dias em cartaz, fato que deu notoriedade à
dupla dentro do meio artístico intelectual recifense, fazendo com que o grupo crescesse muito -
ao contrário de outros ciclos que foram marcados por iniciativas individuais ou de grupos
pequenos. Seis meses depois do lançamento do primeiro filme o grupo entra numa segunda fase.
O homem de negócios Joaquim Tavares entra na firma, juntamente com outros integrantes
fundamentais: Antonio Campos, Jota Soares, Jone Aldo, Pedro Salgado Filho, Rilda Fernandes.
O “movimento cinematográfico que sacode Recife nessa mesma época foi obra de uma atividade
que envolveu cerca de 30 jovens, dentre eles jornalistas, pequenos funcionários, comerciários,
operários, artesãos, atletas, músicos populares, ex-atores do teatro. Eram, em sua maioria,
diletantes, que se dividiam entre seus ofícios e a nova paixão que os tomava.”(Ramos, 1987, 78-
79)
O filme “Retribuição” mostra Recife nos moldes de qualquer outra cidade que busca o
status de “moderna”. Ruas largas, prédios, construções, automóveis, pessoas passeando em
elementos que exaltam à cidade e agregam uma ambiência de “civilidade” à capital
pernambucana. Nessa cidade vive Helvécio, filho de um famoso advogado, Dr. Paulo Aragão. Ele
leva uma vida boêmia bebedeira, jogatina e mulheres. Dr. Paulo tem uma outra família e, após
o nascimento da filha ilegítima, leva a amante, Dona Lucinda e a filha para uma chácara nos
arredores de Recife. Lá elas permanecem até a mocidade de Heloisa. Dr. Paulo faz visitas
periódicas à sua segunda família, seus dois filhos têm praticamente a mesma idade, mas não se
conhecem.
No momento em que se prepara
para sair em viajem pela Europa,
confessa a seu primo Lúcio, um
brilhante jornalista da capital, sobre a
sua outra vida e lhe pede ajuda quanto à
Ilustração 59 - O mocinho olha para a foto de sua amada.
139
transposição desta família para a capital. Desejava integrar sua filha na alta roda para, no
momento certo, ser desposada de forma conveniente. O outro pedido era que ele tomasse conta
de seu filho legítimo, o estróina Helvécio, que era famoso pelas confusões em que se metia,
dando-lhe a ele somas de dinheiro periódicas para que se mantivesse.
Durante a última visita à chácara, ele conta à dona Lucinda e à Heloisa sobre a sua
viagem e sobre os preparativos para a mudança das duas para a capital.
Depois da partida do doutor Paulo para a Europa, Lúcio vai ao interior, como prometido,
buscar a filha e a amante de seu tio. Chegando à propriedade, vemos, pela primeira vez, o
personagem Gerônimo - o faz tudo da casa, trabalhando no quintal da residência. Quando Lucio
vê Heloisa, desenvolve-se uma situação de flerte e os dois começam a se apaixonar.
Após a mudança para Recife a paixão entre os dois vai tomando forma. As cenas que se
seguem no jardim são de puro idílio, com Lucio e Helena em meio às flores. De longe Gerôncio
observa enquanto trabalha, deixando transparecer um certo ar de inveja.
Lucio começa a inseri-la no círculo social, com o seu primeiro baile. Helvécio, sem saber
que se tratava de sua irmã, passa a assediar Heloísa. No baile também está a noiva de Helvécio,
Antonieta Berbamini, que demonstra pouco interesse pelo noivo, mas muito por sua condição
social.
Para aproximar-se de Heloisa, Helvécio a segue e suborna Gerôncio, dando-lhe uma
quantia em dinheiro a fim de que este leve um recado à Heloísa. Esta o rejeita. Mas Helvécio
continua a perseguição à jovem e se aproveita da ganância de Gerôncio, que lhe abre a casa num
momento em que Heloisa estava só. Entra em seu quarto, tranca a porta por dentro e “tenta à
força tirar-lhe sua pureza”. Mas Heloísa, desesperada, pega a arma que seu pai havia lhe dado -
para se proteger caso algum homem lhe faltasse com o respeito - e malfere o seu irmão.
O “faz tudo” que estava à espreita, após o tiro vai à procura da polícia, que prende
Heloisa. Ele desmente a jovem, dizendo que ela havia convidado Helvécio para o quarto. E a
140
porta do cômodo fechada por dentro denotava que nada houvera de ilícito na atitude de Helvécio.
Enquanto isso, o jovem estróina é socorrido e levado para um hospital. Não resiste ao ferimento
e morre em seu momento derradeiro, em uma alucinação vê seu pai fazer-lhe considerações de
fundo moral, o que o faz repensar seus atos de vida e se arrepender.
Marca-se o julgamento, Lucio manda uma mensagem para Dr. Paulo avisando do
ocorrido. Este responde dizendo não poder voltar. Então o jornalista sai em busca de provas que
inocentem a jovem. Quando chega à porta do quarto da donzela nota que a maçaneta está
manchada com tinta escura. Então se lembra que Gerôncio fazia uso da mesma tinta ao pintar o
exterior da casa.
Entra em cena então, um novo personagem: um advogado do Rio de Janeiro, Dr. Henry
Valentim, que se dispõe a ser o advogado da senhorita. Gerôncio depõe afirmando serem
verdadeiras as acusações. A promotora era Dra. Antonieta noiva de Helvécio - e reafirma que
ele fora a vítima das seduções da moça.
Então o advogado da jovem faz uma
defesa empolgada, afirmado ser ela a
verdadeira vítima dessa pendenga.
Gerôncio é assombrado pelo
fantasma de Helvécio que faz o dinheiro
ganho enegrecer frente a seus olhos,
forçando-o a mudar seu depoimento e
confessar a sua culpa. Ele vai de novo ao júri e desfaz o seu depoimento desvendando o caso. Dr.
Henry Valentim discursa de forma ainda mais passional , retira os óculos e a barba postiça e
afirma que tudo que fez não foi como advogado e sim como pai, revelando publicamente a
paternidade de Helena e a irmandade da vítima e do acusado.
Ilustração 60 - Quando a moça é presa.
141
Na cena final estão Lucio e Heloisa casados e já com um filho no colo, ao lado do Dr.
Paulo, que corrigira os erros do passado e agora poderia viver feliz.
A filha do Advogado consagrou definitivamente o grupo, tornando-se sucesso de público
e crítica. Agradava às elites ver na tela uma História em que os elementos de “cor” negros e
índios - não eram figuras centrais, mostrando uma imagem de Brasil “Branco”, na qual a lógica
moral burguesa é respeitada. Como podemos ver na carta de um leitor impressa na íntegra na
revista Cinearte: “Quando deixaremos desta mania de mostrar índios, caboclos, negros, bichos e
outras ‘avis-rara’ desta infeliz terra, aos olhos do espectador cinematographico? Vamos que
por um acaso um destes films vá parar no extrangeiro? Alem de não ter arte, não haver technica
nelle, deixará o extrangeiro mais convencido do que elle pensa que nós somos: uma terra igual
ou peor a Angola, ou Congo ou cousa que o valha. Ora vejam se até não tem graça deixarem de
filmar as ruas asphaltadas, os jardins, as praças, as obras de arte, etc, para nos apresentarem
aos olhos, aqui, um bando de cangaceiros, ali, um mestiço vendendo garapa em um purango,
acolá, um bando de negrotes se banhando num rio, e cousas deste jaez.” (Gomes, 1974, 310)
O filme estabelece contatos com os principais elementos do melodrama, desenvolvendo a
sua narrativa recheada de acontecimentos fortuitos, que encaminham os personagens como se
estes fossem guiados pela situação.
É clara a referência aos descaminhos da modernidade urbana em contradição à pureza dos
personagens do campo. Do campo vem Heloisa, “mulher do lar”, sedutora em sua pureza e
simplicidade. Da cidade vem Antonieta, noiva de Helvécio, mulher moderna que trabalha “fora”
como promotora de justiça e aparece em cena visivelmente masculinizada, com seus cabelos
bastante curtos, tratando formalmente seu noivo. A família dela demonstra muito interesse no
casório dos dois, suportando e encobrindo os despautérios do noivo.
A relação dialética dos personagens femininos é bastante clara: de um lado encontramos
Antonieta, urbana, independente financeiramente, masculinizada, intelectualizada, articulada. Do
142
outro Heloisa: campesina, dependente, feminina e de expressão mínima. Há no filme uma
referência clara aos descaminhos da vida moderna, em que a personagem urbana perde a sua
identidade feminina para se fazer pertencer ao hodiermo. Heloisa ao contrário, era a mulher que
o espectador esperava ver dentro do lar, a mulher “ideal” para o casamento.
O filme vincula-se à lógica da moral cristã para sacramentar a família nos moldes
patriarcais como modelo ideal para a sociedade, rejeitando outras possibilidades de identidade da
mulher para o cenário urbano da capital pernambucana. No cristianismo, a carne está
simbolicamente associada ao sexo do ponto de vista do pecado, como em pecado carnal ou
fraqueza da carne. O romance naturalista, que era proibido para moças, segue o mesmo sentido.
Nele, encontramos explicitas manifestações de desejo sexual, sadismo, ninfomania, perversões,
nudez e sexo.
A mulher livre é perigosa e a liberdade conquistada é fruto da carência de limites. A
personagem central de A Carne (1888) vive este dilema: a falta do pai, marido ou mesmo um
filho, a deixam ao sabor do destino. Na falta do homem seja o pai ou esposo Antonieta
escolheu a modernidade ou ela a encontrou em meio à falta de valores morais de sua família.
Mas a liberdade pode ser, também, uma maldição que devora os pais, deixando a mulher à mercê
dos desejos intrínsecos de sua natureza pecaminosa.
Nos anos de 1924 e 1925 são realizados dois filmes sobre o mesmo romance de Júlio
Ribeiro A Carne: o primeiro do Rio de Janeiro
126
e o outro de Campinas
127
.
O primeiro filme foi produzido e estrelado por Carmem Santos, mas nem chegou a entrar
em cartaz, pois o produto final ficou bem aquém das pretensões estéticas de Carmem Santos, que
126
Dirigido por Leo Marten, e estrelada e produzida por Carmen Santos.
127
Produzida por APA Films Campinas/SP. Lançamento em 20/08/1925 em exibição exclusiva para a imprensa.
143
arquivou o filme, que se perdeu em meio a um incêndio
128
na Botelho Film (Rio), dos irmãos
Alberto e Paulino Botelho.
O segundo faz parte do ciclo regional de Campinas e conta a História de Lenita (Isa Lins)
que, após a morte de seu pai, se muda para a fazenda do coronel Barbosa, tutor de seu pai, então
como um avô para a senhorinha. Na fazenda, ela se apaixona pelo filho do coronel Barbosa
(Ricardo Zarattini), Manuel (Angelo Fortes). Não demora muito e os dois iniciam um tórrido
romance. Em meio às muitas viagens de
Manuel, Lenita, que o espera insatisfeita,
descobre que está esperando um filho de
Manduca Manuel. Ela entra no quarto
de seu amado e encontra cartas
comprometedoras. Em seguida, sai do
quarto indignada e muda-se da casa do
Coronel para São Paulo. Lá encontra um
antigo pretendente que a aceita e com ela
se casa. Manduca volta e, sabendo do
abandono de Lenita, entra em profundo
desespero e injeta em seu braço curare,
morrendo logo depois. O Coronel
Barbosa perdeu seu filho, vitimado pela
traição de quem ele acolheu.
129
“A Carne” mostra como a mulher sem família é uma mulher perigosa. Lenita é essa
mulher que, sem pai e sem marido, é convidada a entrar no núcleo da família. O pai de Lenita
128
Que há quem diga que foi provocado pelo esposo de Carmen por julgar certas cenas bastante ousadas para a
“sua” esposa.
129
Síntese feita a partir dos dados da ficha técnica do banco de dados da Cinemateca Brasileira e do romance de
Julio Ribeiro.
Ilustração 61 - Cena de A Carne com Carmen Santos.
144
também havia passado pelo seio familiar, por também ter ficado órfão e, quase como um retorno,
Lenita volta para a casa que acolheu seu pai e agora a recebia como “filha”. Essa caridade é paga
com a destruição da família, com a morte de Manuel Barbosa. A mulher desvinculada da
imagem do homem marginal - leva o Coronel e seu filho à ruína.
A mulher a quem ele abrigou como neta, levou seu filho ao suicídio. Como morfina que,
inicialmente, pertence a quem a adquire, mas logo toma o controle da situação e leva seus
usuários à ruína.
Na versão de Carmen Santos, obviamente a personagem de Lenita é mais trabalhada em
seus “estados da alma”, suas angústias e desejos. O filme deixa o ambiente escravista do texto
original para atualizar a História, que é contemporânea aos atores. O fato de Lenita ser uma rica
herdeira da fortuna deixada por seu pai permite a construção de um ambiente requintado,
libertando o figurino para a ostentação do luxo nos moldes dos grandes mercados produtores de
filmes. Ela então poderia ser representada filmicamente como uma diva, muitos vestidos de
calda, colares
130
e suntuosidade. Nesse ambiente, Lenita não é mais joguete dos acasos do
destino, ela é mulher livre que despende seu tempo e afeto a quem lhe convém.
Se, na produção campineira, Lenita deve ser acompanhada de perto por se tratar de uma
mulher “sem propriedade” e vitimada pelos revezes de sua vida, num destino em que não teve a
possibilidade da escolha, na produção de Santos a morte do pai serve como libertação. Ela passa
a viver segundo sua própria vontade mesmo que entregue a um outro homem: o Coronel
Barbosa. Este não tem o controle do destino da jovem, livre para ir e vir e escolher, dentre os
seus pretendentes, o que mais lhe conviesse.
No segundo filme (1925) da FAB Film Artístico Brasileiro Carmem Santos escolhe o
livro de Benjamim Costallat, Mademoiselle Cinema (1924), que foi um escândalo, seguido de
sucesso de vendas. Primeiro o livro foi proibido após a campanha da Liga Pró-Moralidade, o que
130
Havendo até durante as filmagens o furto de uma jóia.
145
ironicamente projeta ainda mais o livro, que vendeu 60.000 cópias. A jovem heroína é construída
a partir da imagem da vamp” cinematográfica, uma moderníssima personagem que se
caracterizava pelo “esprit du temps”. Uma "garçonne" dos trópicos, pequena e leviana do século
do "shimmy", “fox-trot” e do “Maxixe” que já deixava de ser da moda, a essa altura, educada
ao som do "jazz".
O filme também tem à frente da cena uma mulher que confronta seu destino. A
protagonista é Rosalinda, uma melindrosa de reputação suspeita, que freqüenta dancings, deixa-
se levar a garçonnières, nos faz conhecer os bas-fonds cariocas, tudo com a complacência de
seus pais. Acompanhada por eles numa estada em Paris, se afasta ainda mais dos moldes
tradicionais. A mudança significativa em sua aparência lhe dá o apelido de Melle. Cinema. Entre
o uso de cocaína e uma vida bastante “suspeita”, ela se entrega a um carrossel de vícios na
modernidade parisiense.
O pai da moça acaba por falecer em um bordel, o que obriga mãe e filha a retornarem ao
Brasil. Fugindo do escândalo, mudam-se da Capital Federal para a Ilha de Paquetá. Lá Rosalina
conhece Mario, jovem pintor e grande oportunidade para esquecer seu passado que tanto
escândalo causara. Com ele muda seus modos e vive uma relação casta, como se fosse uma pura
jovem, renegando todo o seu passado de libertinagem.
Mas ela era Melle. Cinema e, disso, não poderia se dispor. Era a mesma pequenina
impudica e pecadora, profissional do "flirt", da dança e do sorriso, o que a impossibilitava de
abraçar a vida doméstica. Então manda uma carta para o jovem médico contando-lhe tudo e
resignando-se ao seu triste fim.
Era evidente que a mulher livre não poderia ser feliz. Ela teria que se conformar com seu
destino ou aceitar a manutenção do “ethos”. Era evidente que homens comuns se agradavam pelo
enredo, pelo fato de encontrarem nele suas fantasias sexuais. Mas a mulher que possibilitava tais
fugas da moral vigente não conseguia a inserção mo meio social. Por outro lado, para as jovens
146
do país, essa mulher permitia vislumbrar algo diferente do contexto em que estavam inseridas.
Mesmo o elemento conservador presente no desfecho da trama serve à espectadora como
acalentador de ânimos, pois este era convencido de que não havia possibilidade segura fora do
convencional.
No texto original de Melle Cinema, a melindrosa se deixa levar pelos entorpecentes da
moda, do éter ao ópio, da morfina à cocaína. Estes personagens, “essas volúpias do luxo estavam
a gosto pelo uso de drogas capazes de exaltar os sentidos, abrir caminhos para nossos prazeres,
tornar seus adeptos mais inteligentes, mais sensíveis e, sobretudo, mais modernos.” (Rezende,
2006: 18)
Mas há também os filmes que tratam de temas diretamente ligados aos problemas desses
vícios elegantes, que no Brasil vão ser tratados juridicamente só a partir do Decreto-lei Federal
nº 4.292, de 6 de julho de 1921
131
. A mulher nestes filmes encontra seu “partner” nas drogas, ela
passa a dividir a atenção dos espectadores com os
horrores causados por uma “vida de prazeres”.
Usando do artifício de se tratar de um filme
que pretende passar um recado moral, “Vício e
Beleza” (1926)
132
abusa da exibição de corpos nus em
contexto sexual. O filme tem “propósito de censurar”
o modo de vida permissivamente funesto de uma
131
Ver Revista Brasileira de Psiquiatria - http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-
44462001000200008
132
Produzida por Antonio Tibiriçá São Paulo/SP. Lançamento em 27/10/1927 no Cinematógrafo Parisiense.
Ilustração 62 Cena com fim didático em
que vemos este professor da Faculdade de
Medicina mostrar os males causados por
estes divertimentos mundanos.
Ilustração 63- Parte do elenco do filme
requisitado na conhecida rua Xavier de
Toledo (famosa por suas casas de tolerância).
147
juventude vitimada pelo sexo e pelo uso de entorpecentes e “(...) a um só tempo, apresentar
momentos de sexo e ser um filme científico.” (Noronha, 1987: 162). Foi um sucesso estrondoso
para um filme nacional daquela época, sendo exibido em muitos estados e até atravessando os
limites nacionais.
A película
133
traça um paralelo entre a vida de dois jovens: primeiro Luís, um jovem
estudante de medicina afeito às praticas
esportivas. Sua antítese é Antônio,
personagem noctívago, dos vícios e de
mulheres.
O mesmo padrão caracteriza as
personagens femininas: Anita é uma mulher
“direita”, apaixonada por Antonio. Ela quer
reconduzir o seu amado. Já
Laura é a amante de
Antonio, parceira dos
vícios e do sexo. Com ela,
Luís se mete em diversas
situações de perigo.
Em um elegante
cabaré os dois casais
133
Sobre o filme ver. Maria Rita Eliezer Galvão. Crônica do Cinema Paulista. São Paulo: Ática, 1975. p. 330, 331
e 332.
Ilustração 64 Yolanda Flora e Antônio Sorrentino
Ilustração 65 Yolanda Flora e Luiz de Araripe Sucupira
148
encontram-se, numa confusão causada pelos ciúmes de Anita, quando esta vê Antonio dançando
com Laura. Luís intervêm e acaba com a balbúrdia. Em outra cena, vemos Luís na Santa Casa de
Misericórdia onde assiste a aulas sobre os danos causados pela sífilis e outros males sexuais.
Laura conduz Antonio para ao seu quarto, um ambiente ricamente decorado. Ela deita
sobre um divã usando uma combinação e ele, de pijama, avança alucinado para Laura abaixando
sua combinação e deixando à mostra seu seio. Ele beija seu corpo com imensa volúpia até que
sua cabeça tombe, pelo efeito de seus vícios, sobre os seios de Laura.
Enquanto isso, vemos Luis em sua vida saudável a praticar esportes, seja remo ou
hipismo. Ele é a
imagem da
sanidade enquanto
seu oposto,
Antonio, parece
caminhar para a
ruína físico-mental.
Um conserva e o
outro é vitimado
pelos sinais dos
novos tempos. Na
disputa entre os poderes da modernização e da conservação o espírito conservador leva
vantagem.
Ao final Luís se forma enquanto Antonio é internado por Anita em um sanatório. Ele
acaba reconhecendo o ato como um sinal de amor, casando-se com ela.
Ilustração 66 A melindrosa da cena é Lelita Rosa, com seu ar exótico aceitou o
papel proposto por Tibiriçá, que precisava de uma atriz com poucos pudores.
149
Lulu de Barros segue o mesmo filão e lança “Depravação”
134
(1926), mas nenhum filme
choca tanto a opinião pública como “Morphina”
135
(1928), um grande escândalo! O nome que
aparece na ficha do filme como "produtor"era o do Sr. Orlando Bocchialino, famoso por explorar
a prostituição na Rua Xavier de Toledo - conhecida por abrigar inúmeras casas de tolerância. Lá
o “digno” senhor explorava prostituição, recrutando parte de seu elenco feminino entre as
pensionistas das casas dessa rua.
Sobre a figura da prostituta recai o que Benjamim denominou uma "imagem dialética" da
cidade moderna, não só porque, como ele indica, ela é vendedora e artigo, mas porque ela
encarna e problematiza as oposições de revolta e escravização, espetáculo e observação, ócio e
trabalho, desejo e degradação.
O filme conta a história de uma moça que é
arrastada para o vício da morfina e daí ao sexo. Na
história, segundo os relatos de Américo
Matrangola
136
, Francisco Madrigano faz o papel do
pai da moça, que parece se tratar da atriz Milda
Rutzen. Ele segue a filha até o seu antro de vícios e
presencia o momento em que esta injeta em seu braço
morfina. Fora, portanto, seduzida pelas más
companhias. Mas ela não estava sozinha na sua
escalada rumo ao drama angustioso do vício e da
134
Produzida e dirigida, roteiro, cenografia, argumento e montagem de Lulu de Barros
135
Produzida por Francisco Modrigano e Américo Matrangola São Paulo/SP. Lançamento: Sem definição de data,
nem local.
136
Ver. Idem , 1975. p. 171/172.
Ilustração 67 - A donzela decaida do filme
Morphina
150
dissolução”
137
. Com ela havia um rapaz que também se entregara aos prazeres mundanos da
modernidade.
O sentimento de desconforto que o filme causou foi expressado pelas elites culturais do
país. No primeiro número de “O FAN”
138
, em agosto de 1928, falando em defesa da moralidade,
o autor escreve: “O que queremos fazer é criticar “Morphina” sob o ponto de vista da moral e da
decência pública.
Nós vimos “Falso Pudor” em que o assumpto era também escabroso. muito mais até -, e
nem uma só vez pudemos observar -: essa scena, aquella, aquella outra são para chamar gente,
explorar a obscenidade de uma situação. Nem uma só vez... O mesmo se póde dizer quanto a
‘Em defeza da Maternidade’. Films scientíficos, films Moraes até. “Morphina”, como as
photographias dos annuncios já indicavam bastante, é apezar de todas as pretenções que possa
ter de outro gênero. Faz bem o par com o film que se exhibia defronte do Central, no
Parisiense: “Beijo Que Mata”.
E a
censura mete os
pés em films
célebres que vêm
da América,
destruindo-lhes a
continuidade
porque os julga
indecentes...
137
In. Banco de Dados da Cinemateca Brasileira - http://www.cinemateca.com.br/
138
Jornal ligado ao Chaplin-Club, que tinha à frente, como editores chefes, Octavio de Faria e Plínio Süssekind
Rocha,
Ilustração 68 “O ambiente abafava, entre almofadões e perfumes exóticos, e se
bem que Milda Rutzem estivesse sentada bem perto de mim, eu desejava colher os
informes depressa para sair logo. Não sei explicar que estranho sentimento eu
sentia...gostaria de poder retê-a ali conforme estávamos, mas ao mesmo tempo não
sei porque desejava estar longe dali, longe dela e daqueles almofadões, daqueles
perfum
es...”(Hollanda, 1991: 12)
151
Poderá ella nos explicar que necessidade havia de, para mostrar os effeitos da morphina, se ir
buscar incesto, ninphomania, saphismo e outras belezas, tudo com um único fim que não é
possível explicar...? Já “Vício e Beleza” fora uma amostra. Agora “Morphina”. Amanhã o que
será?””
139
Tal reação deveria restringir o acesso ao filme, mas o público, muito ao contrário, sentiu-
se impelido a vê-lo. Corpos nus e drogas elegantes
eram atrativo genial para aquelas camadas que se
viam distantes desse mundo. O “diabólico” sempre
esteve mais próximo das fantasias masculinas que a
imagem de Deus. O próprio homem pode ser
representado pela figura do diabo que envolve a
mulher com facilidade, desviando-a de seu caminho
natural. A mulher mais facilmente é tocada pelas
vontades do diabo e, junto a ele, guia homens para o
mesmo desterro social.
O erotismo explícito nas imagens do filme
utiliza-se da desculpa de alertar a juventude contra os
males das drogas e do afastamento da família e mostra o “mau exemplo” das moças
“indisciplinadas”, que viviam em pecado acompanhadas pelo parceiro dos espaços obscuros, o
“espírito das trevas”.
Os depoimentos de Achille Tartari sobre Vício e Beleza e de Francisco Madrigano sobre
“Morphina” narram o sucesso de publico dessas produções, decretando a comercialidade desse
“novo” gênero fílmico. Para muitos, tais produções beiravam a pornografia, mas, sendo ou não
um tipo de “escrita sobre prostitutas”, agradavam ao público que buscava a exibição do novo, em
139
Jornal O Fan: Órgão Oficial do Chaplin-Club. Rio de Janeiro, Agosto de 1928.
Ilustração 69 - O diago do filme Morphina
152
uma exibição da modernidade à qual não pertenciam. Os filmes sobre mulheres lascivas, em
ambientes perniciosos de morfina, cocaína, éter ou ópio, são exclamações da moralidade que
vigorava nestes tempos conturbados. A ambiência de drogas e permissividade sexual era o que
todos queriam ver, por exibir o lado obscuro da modernidade, por mostrar corpos nus em
situações pouco convencionais.
Tartari conta que “(...) uma vez foi preciso até chamar a cavalaria para conter o povo que
queria assistir a Vício e Beleza, já se viu uma coisa destas?” (Galvão, 1975: 84) e Madrigano diz
que Morphina foi um “Sucesso estrondoso! Precisaram chamar a polícia para conter o público
que queria entrar no cinema, brigando para arranjar um bilhete que custava dois mil-réis, naquele
tempo!...” (Galvão, 1975: 122) Esse novo gênero balizará o caminho fácil do cinema nacional
que, pelo erotismo, formará um público ávido pelos sonhos eróticos de mulheres públicas com
seus enormes corpos exibidos em detalhes nas telas de nosso cinema.
Como já havia sido dito, o primeiro filme a explorar o filão erótico foi Vício e Beleza,
escrito pelo poeta Menotti Del Picchia. A produção foi um grande sucesso de bilheteria,
transpondo as fronteiras do país e alcançando notoriedade na Argentina e Uruguai. Depois veio
“Morphina”. “O Fan” exclama: “Amanhã o que será?” O grande sucesso das duas películas
atraiu também a atenção de outros produtores como Luiz (Lulu) de Barros, com seu Depravação
(1926), que só chegou às telas em 1932 e Veneno Branco (1929), que mantém a ambiência
erótica da dicotomia mulheres nuas e drogas. Ou ainda “Mocidade Inconsciente” em que os
personagens são apresentados em meio a abuso do álcool absinto. E até mesmo uma incursão
pela perversão da antiguidade com Messalina, escrita também por Menotti Del Pichhia e
dirigida por Barros que já se tornara uma referência do erotismo fílmico, alcançando grande
repercussão junto ao público.
Ao homem a sociedade dá o direito de se redimir frente a seus erros, como no caso de
Paulo de “A filha do advogado”. Este, apesar da perda de seu primogênito, ganha um neto e um
153
genro no qual confia e pode seguir vivendo. Também é o caso de Antonio, de “Vício e Beleza”,
que, apesar de se seus vícios e da vida lasciva, pode reencontrar seu destino ao lado de Anita.
Todavia, para a mulher desviante, o destino não reserva a mesma sorte e a ela só resta a
punição final. Como Antonieta, de “A Filha do Advogado”, que tem seu noivo morto pela irmã,
como Lenita, de “A carne”, que, apesar de se casar, mata seu amor de desgosto e amarga a dor da
culpa, como Rosalinda, de “Mademoiselle X”, que dá conta de sua verdadeira imagem e se
afasta de seu amado, como Laura, de “Vício e Beleza” que não consegue se recuperar do vício
como o faz seu amante ou, ainda, como a personagem central de Morphina, que tem seu futuro
desgraçado pela culpa de seu desvio. Todas elas são mulheres que não conseguem a remissão de
seus pecados, que são perdidas ou estragadas e, como tais, não possuem mais chance de retorno.
A estas só resta a culpa e a conformação por seus destinos. Ao final do filme, cessam, pois, suas
possibilidades de remissão.
Na Europa, a Primeira Guerra Mundial abre precedentes às mulheres, quando exige delas
o trabalho e a produção. Elas ocupam os lugares dos homens e passam a dominar estes espaços.
Nesse contexto, o movimento feminista cresce e atinge, diretamente, o modo de ver e viver da
mulher dos anos 20.
Entretanto, a misoginia continua se expressando nesses novos tempos e as mulheres,
assim como as drogas, são vistas como fruto de perversão, mesmo nas telas do cinema. As
estrelas do cinema nacional, assim como as de Hollywood, por exemplo, confundem
personagens e realidade no imaginário social. As mulheres seguem os passos das atrizes que
iluminam o imaginário masculino e que se tornam símbolos de sua libertação. O sexo e as drogas
divulgam imagens de um mundo do qual, verdadeiramente, os homens não gostariam de fazer
parte, mas que, pelos elementos de sedução contidos nas cenas, atraem à participação de uma
festa que, para a sociedade, não é satisfatória. O medo da mulher livre é corrompido pelo desejo
do novo, do outro, do sexo, o que reforça o pensamento e a visão misóginos.
154
UM POUCO ANTES DO FIM OU UM GRANDE COMEÇO
As novas tecnologias de sonorização de filmes decretam o fim da cena muda. Tal
modernização técnica encarece essa “expressão artística” que é o cinema. A partir daí os grandes
estúdios dominariam o mercado. No Rio de Janeiro, o grupo da revista Cine Arte monta a
Cinédia. Mais tarde surgiria a Atlântida, de Luiz Severiano Ribeiro e a Vera Cruz, dirigida por
Alberto Cavalcanti. As produções nacionais ganham público e força.
O Filme é um instrumento perigoso para a sociedade (Geada, 1976). Ele toca o indivíduo
em seus sonhos de libertação das dependências da necessidade do grupo. Cumpre um papel
alienante ou, simplesmente, dopante de um Estado que não quer ser visto. Liberar o erotismo em
um mundo onde ele deve ser proibido é libertar os sonhos para prender os indivíduos em suas
vidas pouco atrativas.
Os indivíduos percorrem com o olhar o écran em busca de signos que lhe dêem alento
para seus sonhos. As fantasias de dominação ou de submissão estão para o espectador como
fantasias que, muitas vezes, suprimem a necessidade da ação. O ser histórico vive, frente à tela,
uma vida que não é sua, mas da qual ele faz parte, mesmo que por algum tempo.
Dos espectros que vagam pela tela, uma silhueta se destaca: é a mulher, um ente erótico
que centraliza os argumentos. E é para ele que os homens caminham. Todos os olhares deveriam
ficar retidos nas personagens femininas, no fêmeocentrismo fílmico do cinema.
Durante as três décadas iniciais do cinema, o gosto do público foi testado e foram muitas
as passagens em que a mulher se fez” na tela. Entretanto, quanto mais erótica e mundana era
sua aparição, mais ela agradava ao público.
O “bota a baixo”, movimento de remodelagem do centro da cidade do Rio de Janeiro,
indicava a ânsia das elites por uma cidade mais moderna. Na posterior reconstrução da cidade,
um grupo de filmes reforça e reafirma a imagem da cidade modernizada como fonte de perdição
moral e lugar de prazeres mundanos. Nesta, a cidade modernizada é apresentada como espaço de
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devassidão e lugar de perdição, no qual os homens decentes se perdem em meio a uma metrópole
que devora suas “purezas”.
Também podemos notar que a modernidade não se caracteriza, somente, pelo espaço
físico, mas, também nas atitudes de homens e mulheres afinados com uma modernidade que
vinha de fora França e EUA. A partir daí, o cinema nacional nos anos 20 é influenciado e
influencia na construção da imagem da mulher metropolitana que, por tratar-se de centro
divulgador de imagem, é associada à mulher carioca.
Enquanto em um grupo de filmes a mulher exerce um papel à margem das decisões,
cabendo a ela o papel de vítima ou paciente da ação, em um segundo grupo ela pode ser vista
como personagem central do filme, não mais sendo guiada por seu partner. A mulher, agora, é
agente da ação, assumindo as conseqüências de seus atos e negociando com seu tempo.
Como em um filme, fui tomado pelo enredo, que existia por partes em minha cabeça.
Mas o encadeamento de fontes e o teor emocional de suas narrativas me levaram a encontrar um
conjunto diferente do que o esperado. Confesso que aguardava uma película um pouco mais
“hard”, porém não sou eu que defino o fim desta produção. Ela tem ritmo próprio! É evidente
que tive de adiantá-la um pouco em determinados momentos, mas em outros foi a conjuntura que
determinou a minha pausa.
O filme amadureceu, ganhou porte profissional e deixou as salas de cinema mais
autônomas. Os cantores e pianeiros deixaram as salas, dando lugar à musica e às vozes
advindas das próprias películas, límpidas e analogicamente compassadas, e o som envolveu mais
o espectador. Entretanto, algo ainda teima em não se modificar: a mulher permanece o centro das
telas e sua representação erótica é o punctus (Barthes, 1980) da cena. Forte e viva, ainda hoje, na
cena contemporânea, ela continua a lotar as salas de cinema.
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