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Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Daniela Romão-Dias
Brincando de ser na realidade virtual:
uma visão positiva da subjetividade
contemporânea
TESE DE DOUTORADO
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Rio de Janeiro, janeiro de 2007
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Daniela Romão-Dias
Brincando de Ser na Realidade Virtual:
uma visão positiva da subjetividade contemporânea
Tese de Doutorado
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção
do título de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação
em Psicologia da PUC-Rio.
Orientador: Ana Maria Nicolaci-da-Costa
Rio de Janeiro, janeiro de 2007
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Daniela Romão-Dias
Brincando de Ser na Realidade Virtual:
uma visão positiva da subjetividade contemporânea
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do
título de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.
Ana Maria Nicolaci-da-Costa
Orientador
PUC-Rio
Ana Maria Nicolaci-da-Costa
PUC-Rio
Benilton Bezerra Jr
UFRJ
Teresa Pinheiro
UFRJ
Denise Portinari
PUC-Rio
Flavia Sollero de Campos
PUC-Rio
Rosane Abreu
UFRJ
Andréa Seixas
PUC-Rio
Paulo Fernando C. de Andrade
Coordenador(a) Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas - PUC-
Rio
Rio de Janeiro, 26 de fevereiro de 2007
3
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem autorização da
universidade, da autora e do orientador.
Daniela Romão-Dias
Formada em Psicologia pela PUC-Rio; mestre em
Psicologia Clínica pela PUC-Rio. Área de estudo:
subjetividade contemporânea e novas tecnologias.
Ficha Catalográfica
Romão-Dias, Daniela.
Brincando de Ser na Realidade Virtual: uma visão
positiva da subjetividade contemporânea / Daniela Romão
Dias; orientadora: Ana Maria Nicolaci-da-Costa. –2007.
v.,112, fs, 30 cm
Tese (Doutorado em Psicologia) Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2006.
Inclui referências bibliográficas.
1. Psicologia – Teses. 2. Internet. 3. Subjetividade
contemporânea 4. Multiplicidade. 5. Positividade. 6.
Brincar. 7. Nicks. I. Nicolaci-da-Costa, Ana Maria. II.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Psicologia. III. Título
CDD: 150
4
Para Julio, meu amor, com quem compartilho minhas dores e delícias, com
quem estou para o que der e vier...
Para Gabriel, meu filhotinho, que me mostra diariamente como algo tão universal
como ser mãe pode ser tão único, intenso e revolucionário.
"Como é grande o meu amor por vocês"
5
Agradecimentos
À Ana, por ter sido a pessoa que mais acreditou em mim profissionalmente,
em mais de 10 anos de convívio. Pela orientação incisiva, segura e sempre
muito próxima. Pelas vezes em que eu, já sem fichas para apostar em mim
mesma, vi você pegar todas as suas e continuar o jogo. Pela amizade. Por ser
“co-avó” do Gabriel. Pela paciência e carinho especialmente neste fim de tese.
Finalmente, pelo melhor abstract que eu poderia ter.
Ao Benilton, por toda a disponibilidade e atenção com meu trabalho, antes
mesmo desta tese começar. Pela leitura e pelas contribuições na qualificação.
À equipe de pesquisa de Ana, pelas sugestões na tese, pelos ouvidos atentos
e, também, pelo colo quando foi necessário. Obrigada, meninas!
À Teresa e ao Julio, que, através de suas pesquisas, me fazem ver que o
estudo das novas subjetividades faz sentido.
Ao PEPAS, em especial a Benilton, Francisco e Jurandir, por terem me dado a
oportunidade de expandir meus horizontes de estudo e, especialmente, por
serem fontes de inspiração.
Ao Octavio, pelas observações na banca de mestrado que me fizeram
continuar fazendo perguntas e chegar até aqui. Pela amizade, sempre com
uma pitada de humor.
À Rosane e à Carla, pelas intervenções sempre pertinentes e, principalmente,
pela amizade sincera.
Aos colegas de turma, em especial à Perla, ao Carlos, à Bia e ao Luis Felipe,
que trouxeram risos e leveza ao longo do doutorado.
À Nanda, por ter sido minha confidente fiel, por termos dividido tantas
angústias do doutorado e da vida ao longo deste tempo. Por tudo sempre
acabar em cineminha e jantar.
À Bel e à Sú, amigas de sempre, que me ainda foram mais importantes neste
6
momento de maternidade, indicando-me o caminho das pedras e dividindo,
mesmo à distância, momentos tão preciosos.
À Letícia, por insistir que o fim de uma coisa é sempre o começo de outra.
Aos meus pais, por sempre acompanharem meu trabalho com entusiasmo, por
sempre torcerem por mim, por se orgulharem das minhas conquistas e me
consolarem nas minhas derrotas. Por estarem sempre por perto. Neste final de
tese, agradeço especialmente a minha mãe, que mesmo deixando de lado
"suas coisas", mesmo com olheiras de cansaço, cuidou de Gabriel meses a
fio, com alegria. Aos dois pelo amor por mim e por meu filhote.
À minha avó Delcy, que nunca deixa de acompanhar meus passos. Aos 88
anos, me ensina que na vida não se pode acomodar.
Ao Felipe e à Fabiana, pelos momentos de pausa e descontração em família.
À Thais e à Nanda, por me ensinarem o quanto pode ser bonito viver numa
família contemporânea.
Ao Gabriel, por desde pequenininho ter aceito as ausências da mamãe com
tranqüilidade. Sem isso, seria difícil chegar até aqui. Por me trazer tanta
felicidade e me fazer conhecer a imensidão do “amor de mãe”.
Ao Julio, por tudo. Por segurar todos os momentos de neurose, por ter sido
amoroso mesmo quando era incisivo. Por todas as lamúrias que escutou,
segurando os momentos mais pesados. Por ter estado sempre disposto a me
dar novas idéias. Por ter divido tantos momentos de alegria. Por ser o melhor
pai que meu filho poderia ter e o melhor marido para mim.
Ao Departamento de Psicologia, em especial, à Verinha, à Marcelina e à
Marise pelo sorriso e carinho de sempre.
À Nossa Senhora Desatadora dos Nós.
À CAPES e ao CNPq pelo incentivo financeiro.
Resumo
Romão-Dias, Daniela. Brincando de Ser na Realidade Virtual. Rio de
Janeiro, 2007. 112 p. Tese de Doutorado - Departamento de Psicologia,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Desde o fim do século XX, um grande mero de publicações vem
tratando das mudanças políticas, econômicas, tecnológicas e sociais que
estão ocorrendo no mundo. Todas essas macro-mudanças têm gerado
também transformações no plano micro (ou subjetivo), o que não passou
despercebido por vários autores. A maioria destes, todavia, lança sobre o
sujeito contemporâneo um olhar bastante crítico e negativo. Discordando
desta postura, neste trabalho procuro refletir sobre as transformações
subjetivas na atualidade a partir de um olhar positivo.
Para alcançar esse objetivo, parti de uma pesquisa qualitativa realizada
com 16 usuários de programas interativos da Internet. Nesta pesquisa,
procurei indícios de transformações subjetivas a partir do uso que eles faziam
desses programas. Os resultados revelaram que havia muitas semelhanças
entre as características subjetivas por mim detectadas em meus entrevistados
e aquelas do sujeito contemporâneo tal como descritas por Sherry Turkle,
principalmente no que diz respeito à experiência de multiplicidade que ela
interpretou como a co-existência de múltiplos eus”. Um problema, no entanto,
se configurava para mim. Turkle havia partido de um modelo patológico o
transtorno de múltipla personalidade para caracterizar esse sujeito. Por isso
mesmo, baseando-me no trabalho de Ian Hacking sobre múltipla
personalidade, procurei desconstruir a idéia de Turkle de que é possível
despatologizar um modelo patológico e dele fazer uso para descrever uma
organização subjetiva sadia. Feito isso, passei à apresentação de alguns
conceitos de Donald Winnicott, um autor que conseguiu olhar de modo positivo
para características subjetivas resultantes de um contexto indubitavelmente
negativo, o da Segunda Guerra Mundial. Inspirando-me em suas idéias,
procurei mostrar que a Internet pode servir para o sujeito atual como um
espaço potencial, um espaço para o brincar. Munida de todas essas reflexões,
retornei à pesquisa e pude mostrar que, dado que nos chats os usuários
podem ter muitos nicks e ser anônimos, neles eles têm a chance de brincar e
experimentar ser mais de um sem que isso implique a existência de “múltiplos
eus”. Finalmente, argumento que, dessa brincadeira, pode surgir algo bem
mais interessante: uma identidade virtual estável.
Palavras-chave
Internet; subjetividade contemporânea; multiplicidade; positividade;
brincar; nicks
Abstract
Romão-Dias, Daniela. Playing of being in virtual reality . Rio de Janeiro,
2007. 112 p. Tese de Doutorado - Departamento de Psicologia, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Since the end of the 20th century, a large number of publications has dealt
with the political, economical and technological changes that have been going on.
All of theses macro-changes have also generated transformations on the micro
(or subjective) level, a fact which has been registered by several authors. Most of
these, however, tend to view the contemporary subject from a negative and
critical perspective. Disagreeing with the latter position, in the present work I try
to analyze the contemporary subjective transformations from a positive viewpoint.
In order to reach this objective, I departed from a qualitative investigation
conducted with 16 users of interactive programs on the Internet, looking for
indications of subjective transformations in the use they made of such programs.
Results revealed many similarities between the subjective characteristics I was
able to detect in my interviewees and those of the contemporary subject as
described by Sherry Turkle. This was true mainly in what concerns the
experience of multiplicity, which she has interpreted as the co-existence of
“multiple selves”. Such an interpretation, however, seemed problematic to me. In
order to describe the contemporary subject, Turkle had based her reasoning on a
pathological model that of the multiple personality disorder. Resorting to Ian
Hacking’s work on multiple personalities, I tried to deconstruct Turkle´s idea that
it is possible to use a pathological model in a non-pathological way to describe a
healthy subjective organization. Then, I proceeded with the presentation of a few
concepts proposed by Donald Winnicott, an author who managed to see in a
positive light a number of subjective characteristics that resulted from an
undoubtedly negative context, that of World War II. Inspired by his ideas, I tried to
show that the Internet may be used by the contemporary subject as a potential
space, a space for play. Having in mind all these reflections and discussions, I re-
examined the results of the investigation which acted as a point of departure. It
was able to show that, because on chats users can have many nicknames and
be anonymous, on them they have the opportunity to play and experiment being
more than one. Nevertheless, this does not imply the existence of “multiple
selves”. Finally, I argue that, from this kind of play may emerge something much
more interesting: a stable virtual identity.
Key-words
Internet; contemporary subjectivity; positive view; multiplicity; play; nicks
Sumário
1. Introdução 15
2. Máscaras em movimento: indícios de transformações subjetivas 20
2.1. O sujeito atual segundo Fredric Jameson e Sherry Turkle: duas propostas
21
2.1.2. Disjunção esquizofrênica: a subjetividade pós-moderna de Jameson 21
2.1.2. Múltiplos eus: a subjetividade segundo Turkle 24
2.2. Investigando a subjetividade contemporânea: uma pesquisa brasileira 28
2.2.1. Coleta de dados 28
2.2.2. Procedimentos 29
2.2.3. Análise do material 30
2.2.4. Principais resultados 31
2.2.4.1. Apresentando o primeiro grupo 31
2.2.4.2. Apresentando o segundo grupo 32
2.3. Jameson, Turkle e os meus resultados: uma breve discussão 37
2.3.1. Primeiro grupo: uma organização subjetiva moderna 37
2.3.2. Segundo grupo: uma nova subjetividade fragmentada ou multiplicada? 38
2.4. Uma subjetividade à espera de novos estudos 42
3. A experiência de multiplicidade 43
3.1. Sinais da multiplicidade 45
3.2. Multiplicidade e múltiplas personalidades 52
3.2.1. Definindo transtorno de múltipla personalidade 52
3.2.2. “Made in USA” 56
3.2.3. O transtorno de múltipla personalidade e o abuso infantil: uma
causalidade? 59
3.2.4. Algumas palavras sobre gênero 60
3.2.5. Comparando o transtorno de múltipla personalidade e os múltiplos eus 61
3.3. Algumas conclusões sobre a multiplicidade e os múltiplos eus 65
4. “O brincar e a realidade” (virtual) 68
4.1. Montando o quebra-cabeça: uma possível definição de conceitos 72
4.1.1. O espaço potencial 73
4.1.2. Espaço potencial, objeto transicional e fenômenos transicionais 75
4.1.3. O brincar e a criatividade 78
4.2. Um olhar para a Internet inspirado em Winnicott 81
4.2.1. Vivendo na fronteira: a realidade virtual e o espaço potencial 82
4.2.2. O brincar e a realidade virtual 85
4.3. A fé no que virá 87
5. “Somos todos um nick 88
5.1. Tudo começa nos chats 92
5.1.1. “Somos todos um nick”: anonimato e identidade nos chats 94
6. Considerações finais 103
7. Referências bibliográficas 109
“Se quisesse escolher um mbolo votivo para saudar o novo milênio, escolheria
este: o salto ágil e imprevisto do poeta-filósofo que sobreleva o peso do mundo,
demonstrando que sua gravidade detém o segredo da leveza, enquanto aquela
que muitos julgam ser a vitalidade dos tempos, estrepitante e agressiva,
espezinhadora e estrondosa, pertence ao reino da morte, como um cemitério de
automóveis enferrujados.” (Ítalo Calvino)
“Prefiro as máquinas que servem para não funcionar:
quando cheias de areia de formiga e musgo – elas
podem um dia milagrar de flores.” (Manoel de Barros)
15
1.
Introdução
“Seria imprudente negar, ou mesmo subestimar, a profunda
mudança que o advento da ‘modernidade fluida’ produziu na
condição humana.” (Bauman, 2001, p. 15).
Desde o início de minha recente vida acadêmica, a possibilidade de o
contexto cultural construir e transformar nossos modos de existência me
inquieta. Nasci em 1975 e pertenço à geração coca-cola, ou seja, aquela dos
filhos dos militantes (e também dos militares) que se enfrentaram na época da
ditadura no Brasil por um mundo melhor. Ser da geração coca-cola significa,
portanto, pertencer àquele grupo apolítico, consumidor da cultura norte-
americana e sem vontade (ou razão) para lutar por um mundo diferente.
Apesar disso, essa mesma geração viu surgir um mundo muito diferente
do que havia antes. Nascemos em plena guerra fria e vimos, no final da década
de 1980, o muro de Berlim cair e levar com ele o ideal socialista. Depois disso,
vimos o mundo antes “polarizado” entre duas potências virar “globalizado”. As
fronteiras comerciais entre vários países foram caindo e hoje grande parte dos
países da Europa tornou-se uma única comunidade comercial, inclusive com a
mesma moeda, o euro.
Se essas mudanças no grande cenário global eram suficientes para
balançar as estruturas anteriores, outras mudanças se fizeram notar para minha
geração. Notadamente, tenho voltado minhas atenções para a Internet. Em
1995, após ter saído dos laboratórios das universidades, a Internet tornou-se
comercial no Brasil e houve seu boom. Veloz (mesmo em tempos pré-banda
larga), globalizada, sem fronteiras, a Internet parece ser o ícone dos tempos
atuais. Ela concretiza muitas das mudanças recentes no grande cenário global,
mas é mais radical: a Internet não está nos jornais ou nos produtos do
supermercado. A Internet está dentro da nossa casa, cidadãos de classe média
brasileiros. Assim, como uma lente de aumento, ela traz para bem perto as
mudanças que o mundo já vinha sofrendo nos últimos tempos.
Eu, juntamente com todos aqueles da geração coca-cola, vivi a maior parte
de minha vida sem a Internet. A entrada da Rede, todavia, se deu em um
16
período em que eu era suficientemente jovem para me deixar absorver por sua
lógica sem grandes receios. Essa entrada da Internet no cotidiano, aliado aos
primeiros contatos que começava a travar com pesquisa qualitativa, provocou-
me uma grande curiosidade.
Em 1995, conheci a professora Ana Maria Nicolaci-da-Costa, que
começava a investigar, antes mesmo da Internet comercial, a relação entre a
grande Rede e a subjetividade atual. O pressuposto de Nicolaci-da-Costa, do
qual compartilho, é que mudanças no contexto em que vivemos geram
transformações de ordem subjetiva. Não haveria, assim, como o sujeito sair
intocado pelas grandes modificações que o mundo vinha sofrendo e a Internet
poderia ser o símbolo e, de certo modo, o motor dessas modificações.
Após alguns anos de pesquisa, na graduação, sobre os impactos
subjetivos da Internet, ingressei no mestrado e segui por esse tema. Na ocasião
de minha defesa de dissertação, a partir das observações feitas pela banca,
novas questões surgiram. Ingressei, então, no doutorado, ainda perseguindo os
indícios de transformações subjetivas na atualidade.
O tema das transformações subjetivas contemporâneas é, contudo, muito
amplo. Não é à toa que vem sendo discutido em diversas áreas do saber das
ciências humanas. Na filosofia (ver Harvey, 1999 e Jameson, 1997, por
exemplo), na sociologia (ver Bauman, 2004, 2001; Sennett, 1999 e Mellucci,
1996, por exemplo), na psicologia (ver Turkle, 1997, Nicolaci-da-Costa, 2005,
1998, por exemplo) e até na psicanálise (ver Birman, 2000, Bezerra Júnior, 1999;
Armony, 2005; Pinheiro e Verztman, 2003; Costa, 2004), fala-se em novas
formas de subjetivação. Assim, não autores de diversas disciplinas vêm se
interessando em discutir a subjetividade atual, mas também olhares muito
diversos vêm sendo lançados sobre essa subjetividade.
Chama a atenção, contudo, que muitos desses olhares são críticos, até
mesmo catastróficos. São poucos os autores que não vêem com maus olhos as
transformações subjetivas na atualidade. Fala-se em corrosão do caráter
(Sennett, 1999), em dissolução dos laços afetivos (Bauman, 2004) e em
masoquismo e crueldade como formas de subjetivação (Birman, 2000). Quando
o estudo estreita-se um pouco e trata das relações entre as novas tecnologias –
notadamente a Internet e o sujeito atual, o olhar tende a ser mais sombrio
ainda. É verdade que os olhares demasiadamente ingênuos sobre os benefícios
que o uso da Rede traz para o sujeito (ver Levy, 1999 e Tapscott, 1997) acabam
servindo somente de munição para mais críticas. O mesmo acontece quando
aparecem pesquisadores que clamam que Internet é tão poderosa que um dia
17
livrará o sujeito de seu corpo, transformando o ser humano em puro software
(ver Featherstone e Burrows, 1995 e Bey, 1998). Dessa forma, parece ser difícil
um olhar para o sujeito atual que não seja demasiadamente crítico, tampouco
muito benevolente, chegando à ingenuidade.
Dado este contexto, meu objetivo neste trabalho é continuar procurando
pistas sobre a subjetividade atual a partir do contato com a Internet, mas agora
com um olhar explicitamente positivo. Ou seja, interessa-me olhar o sujeito atual,
notadamente no ambiente da Internet, ressaltando os aspectos positivos dessa
interação sujeito-Rede.
Para atingir esse objetivo, volto à minha pesquisa de mestrado. Naquela
ocasião, não houve tempo para aprofundar algumas questões que apareceram a
partir dos resultados apresentados. Além disso, algumas das colocações feitas
pelos examinadores na defesa da tese me inquietaram e me fizeram ver que
ainda havia muito que se pensar sobre o sujeito atual a partir daquele estudo.
Assim, inicio essa tese apresentando aquela pesquisa, no capítulo intitulado
“Máscaras em movimento: indícios de transformações subjetivas”. Nesta
pesquisa, através de entrevistas com 16 usuários da Internet, procurei investigar
indícios de transformações subjetivas a partir do contato deles com a Rede. Do
ponto de vista teórico, utilizei os trabalhos de Fredric Jameson (1997; 1993;
1991) e Sherry Turkle (1997) sobre o sujeito da atualidade. Os autores têm em
comum a visão de que a subjetividade atual não é igual à subjetividade moderna.
Eles acreditam no fim do sujeito centralizado e propõem novas organizações
subjetivas. No caso de Jameson, ele acredita que o sujeito atual é fragmentado
e, mesmo tentando ter uma visão não-patológica deste sujeito, utiliza a
esquizofrenia conforme Jacques Lacan a descreveu como base de seu
raciocínio. Já Sherry Turkle, que realizou uma extensa pesquisa com usuários de
jogos interativos, ao invés de imaginar um sujeito fragmentado, descreve um
sujeito de múltiplos eus. Assim como Jameson, contudo, ela baseia-se em um
modelo patológico o transtorno de múltipla personalidade para pensar neste
sujeito com múltiplos eus. Apesar de os resultados de minha pesquisa terem
semelhanças com os resultados apresentados por Turkle, discordo da idéia dela
e também de Jameson de que é possível partir de uma patologia para
caracterizar uma organização subjetiva que, segundo eles, não é patológica.
No capítulo seguinte, “A experiência da multiplicidade” aprofundo o
resultado de pesquisa que me pareceu um indício de transformação subjetiva: a
experiência de multiplicidade. Essa experiência tinha algumas semelhanças e
algumas diferenças com o que Turkle chamou de múltiplos eus. Havia, no
18
entanto, ao menos um ponto de discordância fundamental: a comparação que
Turkle e outros autores como Stone (1995) estabelecem entre os múltiplos eus e
o transtorno de múltipla personalidade. Apoiada no trabalho de Ian Hacking
(2000) sobre o transtorno de múltipla personalidade, sustento que tal
comparação é inadequada e errônea.
Seguindo o objetivo de encontrar descrições positivas do sujeito atual,
especialmente aquele que usa a Internet, no capítulo “’O brincar e a realidade’
(virtual)”, exponho algumas idéias de um autor vindo da psicanálise: Donald D.
Winnicott (1999; 1975). Apesar de ser psicanalista e, portanto, interessar-se pelo
tratamento das angústias e sofrimentos subjetivos, Winnicott procurou, em
alguns momentos de sua obra, ter um olhar positivo sobre o sujeito. Neste
capítulo, aproprio-me dos seus conceitos de espaço potencial e do brincar de
forma livre, utilizando-os como inspiração para reflexões. Assim, não utilizo
esses conceitos como psicanalista, mas sim como leiga e sem a preocupação de
contextualizá-los em sua obra. Dessa forma, proponho que a Internet possa
servir, para alguns sujeitos, de espaço potencial, isto é, um espaço neutro, livre
das tensões do mundo interno e das pressões da realidade externa. Neste
espaço, então, sugiro que alguns sujeitos possam ter a experiência do brincar
criativo.
No capítulo que se segue, “’Somos todos um nick’: anonimato e identidade
nos chats”, afirmo que é nos chats que os usuários da Internet podem ter a
experiência da multiplicidade e do brincar criativo. Essas experiências são
viabilizadas pelo anonimato inicial que os chats permitem. Em um chat, todos
são um nick, ou seja, um apelido inventado pelo usuário sobre o qual não a
menor referência (um número de identidade, um amigo em comum, ou mesmo
um rosto ou uma voz). Esse anonimato foi o que possibilitou muitos de meus
entrevistados, por exemplo, sentirem-se mais livres na Rede, pois não se
sentiam julgados pelos outros por seus modos de vestir, sua aparência física ou
seu status social. Após um período de anonimato, no entanto, meus
entrevistados criavam uma verdadeira identidade virtual, através de uma série de
referenciais estáveis. Esses referenciais consistiam desde entrar sempre com o
mesmo nick, em um mesmo chat, encontrar as mesmas pessoas, até manter um
discurso coerente sobre si mesmo e as características atribuídas ao seu nick nos
chats. O interessante, no entanto, é que essa identidade virtual não
necessariamente é equivalente a uma suposta identidade no mundo offline,
que na Rede meus entrevistados relataram sentir-se e expressar-se de forma
diferente de como fazem fora da Internet.
19
Termino a tese afirmando que é fundamental que tenhamos uma visão
positiva acerca das transformações subjetivas na atualidade. É esse tipo de
olhar que, aliado ao olhar crítico – mas não catastrófico – permite-nos apostar no
futuro e na vida. Ao final deste trabalho, também dou alguns exemplos de
indícios de transformações subjetivas fora da Internet, obviamente concluindo
que ainda há muitas perguntas a serem respondidas e muito trabalho pela frente.
20
2.
Máscaras em movimento: indícios de transformações
subjetivas
“É mais fácil mimeografar o passado do que imprimir o futuro.
Não quero ser triste como o poeta lendo Maiakovski na loja de
conveniência. Não quero ser alegre como o cão que sai a
passear com o seu dono sob o sol de domingo.” (Zeca Baleiro)
Desde as últimas décadas do século XX, o mundo vem passando por um
processo de mudança radical que tem gerado uma grande efervescência
intelectual (Leitão, 2003; Leitão & Nicolaci-da-Costa, 2004). Como em outros
momentos de transformação radical e acelerada (ver Nisbet, 1966), é grande o
número de intelectuais de diferentes origens disciplinares que investigam os
diversos aspectos desse processo de mudança a partir de pontos de vista
também diversos.
Vários desses analistas geralmente sociólogos e filósofos investigam
as transformações contemporâneas quase que exclusivamente do ponto de vista
das conseqüências sociais geradas pelo chamado processo de globalização e
pelo capitalismo flexível (Lyotard, 1998; Anderson, 1998; Harvey, 1999; Vattimo,
1996; Giddens, 2000, 1995). Outros, tal como Castells (1999) e Lévy (1998;
1996), analisam o mesmo conjunto de transformações atribuindo ao surgimento
e à difusão das novas tecnologias digitais um papel determinante em sua
gestação.
Por conta de seus objetivos de amplo escopo, independentemente da ótica
adotada, quase todos esses estudos deixam de fora as conseqüências de maior
interesse para a área da psicologia: aquelas que dizem respeito à subjetividade.
São relativamente poucos os autores que procuram nas transformações
sociais contemporâneas as raízes de transformações subjetivas. Dentre eles,
destacam-se Sennett (1999), Bauman (1998) e Jameson (1997, 1995, 1993).
algumas semelhanças nos trabalhos desses três autores. A primeira se
refere ao fato de que suas análises raramente atingem o nível de profundidade
desejável para uma compreensão psicológica da transformação em curso, o que
seria de se esperar dado que os dois primeiros autores são sociólogos e o
21
terceiro crítico de arte. (Mesmo assim seus trabalhos são muito instigantes e
vêm sendo usados por psicólogos como ponto de partida para suas
investigações das conseqüências psicológicas do atual processo de mudança.)
Já a segunda semelhança está diretamente relacionada ao fato de que, ao
contrário de Castells e Lévy, nenhum dos três atribui às tecnologias digitais um
papel central nas mudanças contemporâneas.
Há, no entanto, uma importante diferença entre os trabalhos realizados por
Sennett e Bauman e aquele desenvolvido por Jameson. Para começar, Jameson
tem uma visão mais positiva do que Sennett e Bauman no que diz respeito ao
que vem acontecendo com os homens e mulheres contemporâneos. Além disso,
enquanto Sennett e, principalmente, Bauman recorrem a metáforas cotidianas
como a de nômades, turistas, vagabundos, etc. para dar conta das
características subjetivas desses mesmos homens e mulheres, Jameson chega
a propor um modelo de estrutura subjetiva calcado nas idéias de Lacan.
A positividade da abordagem de Jameson não passou despercebida aos
olhares atentos de uma psicóloga norte-americana que fez um trabalho pioneiro
de investigação das características psicológicas que vêm sendo geradas pelas
transformações sociais em curso, usando para isso a via das novas tecnologias
digitais. Esta psicóloga é Sherry Turkle, professora do MIT, que em 1995
publicou o livro Life on the Screen, no qual relata os resultados de uma
pesquisa que tem como ponto de partida o modelo de subjetividade proposto por
Jameson (1997, 1995, 1993). Utilizando-se deste modelo e dos resultados de
uma das primeiras pesquisas sobre os impactos da Internet sobre seus usuários
norte-americanos, Turkle propõe um modelo alternativo ao de Jameson.
No que se segue, em um primeiro momento, serão apresentadas as
características da organização subjetiva atual de acordo com cada um desses
modelos. Posteriormente, será apresentada uma pesquisa realizada com
usuários brasileiros. Os resultados desta serão discutidos tomando os modelos
de Jameson e Turkle como referência.
2.1. O sujeito atual segundo Fredric Jameson e Sherry Turkle:
duas propostas
2.1.2. Disjunção esquizofrênica: a subjetividade pós-moderna de
Jameson
Ao longo de sua obra, Jameson (1997, 1995, 1993) descreve em detalhes
as características macro que atribui à era atual, tais como fragmentação,
22
superficialidade, heterogeneidade de discursos e espacialização do tempo
1
.
Diferentemente de muitos autores, no entanto, a partir destas características,
que dizem respeito à política, à economia, à cultura, às estruturas e dinâmica
sociais, Jameson procura pensar o micro no caso, o psicológico e chega a
propor um novo modelo de organização subjetiva. Para fazer isso, ele lança mão
de um procedimento singular: elege algumas características da pós-
modernidade, principalmente aquelas que dizem respeito à superficialidade e à
fragmentação que como centrais à contemporaneidade e as transpõe
para o campo da subjetividade. Tentemos acompanhar a linha mestra do seu
raciocínio.
De acordo com Jameson (1997), a era que ele chama de pós-moderna
2
é
marcada por uma superficialidade que se opõe à profundidade da era que a
antecedeu a modernidade. Um dos exemplos que se refere a uma obra de
arte. Enquanto, na modernidade, uma obra de arte freqüentemente trazia em si
significados ocultos e profundos, na pós-modernidade, uma obra de arte no mais
das vezes não tem significações ocultas. É simplesmente aquilo que de imediato
parece ser.
Na visão de Jameson, outra importante característica da pós-modernidade
é a fragmentação. Para ele, a era pós-moderna não pressupõe a universalidade
dos discursos característica da era moderna. Ao contrário, não parece haver, na
pós-modernidade, o pressuposto da existência de uma verdade absoluta, mas,
sim o pressuposto de que existem verdades relativas. Assim sendo, na medida
em que se pressupõe que não uma verdade que justifique a universalização
dos discursos, o que resta são discursos fragmentados e heterogêneos
coexistindo em uma mesma época.
Apoiado nessas noções de fragmentação e de superficialidade, Jameson
tenta fazer a ponte entre o plano macro (social) e micro (psicológico). Para isso,
recorre à categoria nosológica da esquizofrenia (mais especificamente, à
1
Não me deterei na explicação de cada uma destas características que Jameson atribui à pós-
modernidade. Para um estudo sobre as características da pós-modernidade de acordo com
Jameson ver, por exemplo, Kaplan (1993) e Harvey (1999), além do próprio Jameson (1997, 1995,
1993).
2
Dentre os autores que estudam as transformações da era atual, não há um consenso sobre como
denominar esta era. Assim, alguns a chamam de pós-modernidade (como Jameson, 1997;
Vattimo, 1996 ou Harvey, 1999), outros de modernidade líquida (como Bauman, 2001), ou
modernização reflexiva (como Giddens, 1995). Como não pretendo entrar nesta discussão, aqui
utilizo preferencialmente o termo contemporaneidade para me referir à época atual. Em alguns
momentos, todavia, considero importante manter o nome utilizado pelo autor, como é o caso de
Jameson, que o termo pós-modernidade.
23
esquizofrenia conforme proposta por Jacques Lacan
3
). Tal recurso, embora lhe
forneça um modelo de funcionamento psíquico, infelizmente lhe cria problemas.
Como mencionado, Jameson tem como objetivo descrever a estrutura e a
dinâmica internas que caracterizam positivamente a subjetividade
contemporânea e o termo esquizofrenia inevitavelmente remete à idéia de
patologia. Por esse motivo, Jameson tenta separar as características da
esquizofrenia de suas implicações patológicas. Sua proposta não é a de ver o
sujeito pós-moderno como um sujeito doente, mas, sim, como um sujeito
estruturalmente fragmentado, como se pode perceber pela citação abaixo:
1.1.1.1.1.1.1.1.1.“(...) Lacan descreve a esquizofrenia como sendo a ruptura na
cadeia dos significantes, isto é, as séries sintagmáticas encadeadas de
significantes que constituem um enunciado ou um significado (...) Quando essa
relação se rompe, (...) então temos a esquizofrenia sob a forma de um amontoado
de significantes distintos e não relacionados. A conexão entre esse tipo de
disfunção lingüística e a psique do esquizofrênico pode ser entendida por meio de
uma proposição de dois veis: primeiro, a identidade pessoal é, em si mesma,
efeito de uma certa unificação temporal entre o presente, o passado e o futuro da
pessoa; em segundo lugar, essa própria unificação temporal ativa é uma função
da linguagem (...) Se [na pós-modernidade] somos incapazes de unificar o
passado, o presente e o futuro da sentença, então somos também incapazes de
unificar o passado, o presente e o futuro de nossa própria experiência biográfica,
ou de nossa vida psíquica.” (Jameson, 1997, pp. 52-3)
Na visão de Jameson, portanto, a era pós-moderna ao sujeito a
sensação de estar vivendo em um eterno presente
4
. Essa percepção de eterno
presente que os sujeitos da era pós-moderna parecem experimentar é
fundamental para que Jameson pense na esquizofrenia como metáfora da
subjetividade atual. Isso porque, de acordo com alguns autores (ver Pankow,
1989), uma das características da esquizofrenia é a perda da capacidade de
conexão temporal e o conseqüente sentimento de viver em um eterno presente.
Outro aspecto importante da subjetividade descrita por Jameson diz
respeito ao que ele denominou de fim do modelo subjetivo da “mônada”. A
palavra “mônada” vem do latim monades, que quer dizer “único”, e foi inventada
no século XVI por Giordano Bruno (ver Lopes, 1998). A mônada pode ser
entendida como uma substância simples, que não pode ser dividida. À
característica de indivisibilidade da mônada, Jameson acrescenta outra a de
centralidade quando se refere à subjetividade predominante na era moderna.
Segundo Jameson, nesta era, o sujeito era percebido (por si mesmo e pelos
3
Para uma noção de como Lacan descreve a esquizofrenia, ver, por exemplo, Lacan (1998 e
1985) e Calligaris (1989).
4
Outros autores, como Bauman (1998) e Harvey (1999), chamam esse eterno presente a que
Jameson se refere de “presente espacializado”. Bauman, por exemplo, sugere que o presente foi
separado do restante da história, deixando o passado e o futuro suspensos. O tempo seria, assim,
transformado em um presente contínuo.
24
outros) tal qual uma mônada: indivisível e dotado de um cerne, de uma instância
central ou de uma “miragem” desta
5
que não parece existir na organização
subjetiva pós-moderna. Ainda de acordo com Jameson, o que parece existir nos
dias de hoje é exatamente o oposto disso: descentramento e fragmentação.
Falar sobre o fim da mônada” é, para Jameson, o mesmo que falar sobre
o “fim do ego”. Por princípio, o fim do ego acarretaria uma superficialidade que,
também na visão de Jameson, é típica da subjetividade pós-moderna. Para
subsidiar sua argumentação, Jameson alega que sentimentos profundos como
os de anomia, ansiedade e alienação são típicos da subjetividade moderna, mas
não da pós-moderna. O sujeito pós-moderno, sem “a presença de um ego para
encarregar-se de sentir” (Jameson, 1997, p. 43), tem seus sentimentos
substituídos por “intensidades uma espécie de versão superficializada dos
sentimentos.
Apesar de dedicar relativamente poucas páginas ao tema da subjetividade,
as reflexões feitas por Jameson a seu respeito são bastante provocativas. Tão
provocativas que, como já foi dito, serviram de ponto de partida para as
investigações levadas a cabo por Turkle (1997).
2.1.2. ltiplos eus: a subjetividade segundo Turkle
Como foi dito, em seu livro Life on the Screen, Turkle (1997) parte de
algumas reflexões de Jameson para lançar suas idéias sobre a subjetividade
atual
6
.
Ainda que Jameson pouco destaque ao papel das tecnologias digitais
no panorama atual, Turkle considera que essas tecnologias possuem
características muito semelhantes àquelas que ele atribui à pós-modernidade. A
esse respeito, Turkle diz:
1.1.1.1.1.1.1.1.2.“Uma década atrás, Fredric Jameson escreveu um clássico artigo
sobre o significado do pós-modernismo. Em sua caracterização do pós-
modernismo ele incluiu a prevalência da superfície sobre o profundo, da simulação
sobre o real, do jogo sobre a seriedade, muitas das mesmas qualidades que
caracterizam a nova estética do computador. Naquele tempo, Jameson notou que
o pós-modernismo era carente de objetos que pudessem representá-lo. A turbina,
a chaminé, os canos e a esteira de rolagem do final do século XIX e início do XX
foram poderosos objetos para pensar a natureza da modernidade industrial(...)
5
Jameson, possivelmente antevendo críticas à sua concepção da subjetividade moderna como
sendo centrada e indivisível, diz que, ainda que se considere um sujeito dividido, na modernidade
este sujeito possuía uma “miragem” de centralidade que não parece existir no sujeito pós-
moderno.
6
Tukle, antes de Life on the Screen, estudava as relações entre as novas tecnologias e a
subjetividade. Em The Second Self (1984), a autora explora esse tema a partir da observação do
uso que crianças fazem do computador.
25
Jameson sugeriu que era preciso uma nova estética do mapeamento cognitivo, um
novo modo de pensamento espacial, que nos permitiria ao menos registrar a
complexidade do nosso mundo. Uma década depois de Jameson ter escrito esse
ensaio, o pós-modernismo encontrou seus objetos básicos (...) os objetos do pós-
modernismo agora existem fora da ficção científica. Eles existem nas informações
e conexões da Internet, no World Wide Web [www] e nas janelas, ícones e
camadas do computador pessoal (...) Tudo isso é vida na tela. Com esses objetos,
as idéias abstratas nos escritos de Jameson sobre o pós-modernismo tornaram-se
recentemente acessíveis, até mesmo, consumíveis.” (Turkle, 1997, p. 44-5)
7
Além de fazer essa analogia entre as novas tecnologias e a descrição da
pós-modernidade feita por Jameson, Turkle deixa claro que está de acordo com
algumas outras considerações e posturas deste autor no que diz respeito ao
sujeito contemporâneo. Assim como Jameson, Turkle acredita no fim da unidade
e da centralidade que consideram típicos da organização subjetiva da
modernidade. E, também tal como Jameson, Turkle parte de um quadro clínico
clássico da psiquiatria para propor uma nova organização subjetiva. (Enquanto,
como visto, Jameson parte da esquizofrenia, Turkle, como será abordado
adiante, parte do transtorno de múltipla personalidade.)
Na citação abaixo, por exemplo, Turkle parece justificar por que concorda
com Jameson quando este declara o fim do modelo subjetivo da mônada. Em
suas próprias palavras:
1.1.1.1.1.1.1.1.3.“Fredric Jameson escreveu que num mundo pós-moderno, o
sujeito não é alienado, mas fragmentado. Ele explicou que a noção de alienação
supõe um eu unitário e centrado que poderia ser perdido. Mas se, como um pós-
moderno vê, o eu é descentrado e múltiplo, o conceito de alienação cai por terra
(...) Na simulação [que a realidade virtual permite], a identidade pode ser fluida e
múltipla, um significante não mais aponta claramente para algo que é significado,
e a interpretação é menos provável proceder pela análise do que pela navegação
no mundo virtual.” (Turkle, 1997, p. 49)
8
7 “A decade ago, Fredric Jameson wrote a classic article on the meaning of postmodernism. He
included in his characterization of postmodernism the precedence of the surface over depth, of
simulation over the real, of play over seriousness, many of the same qualities that characterize the
new computer aesthetic. At that time, Jameson noted that postmodern era lacked objects that could
represent it. The turbine, smokestack, pipes, and conveyor belts of the late nineteenth and early
twentieth centuries had been powerful objects-to-think-with for imaging the nature of industrial
modernity (…) Jameson suggested that what was needed was a new ‘aesthetic of cognitive
mapping’, a new way of spatial thinking, that would permit us at least to register the complexities of
our world. A decade after Jameson wrote his essay, postmodernism has found its basic objects (...)
postmodernism’s objects now exist outside science fiction. They exist in the information and
connections of the Internet and the World Wide Web, and in the windows, icons, and layers of
personal computing (...) All of these are life on the screen. And with these objects, the abstract
ideas in Jameson account of postmodernism became newly accessible, even consumable
(tradução minha)
8
Fredric Jameson wrote that in a postmodern world, the subject is not alienated but fragmented.
He explained that the notion of alienation presumes a centralized, unitary self who could become
lost to himself or herself. But if, as a postmodernist sees it, the self is decentered and multiple, the
concept of alienation breakes down (...) In simulation, identity can be fluid and multiple, a signifier
no longer clearly points to a thing that is signified, and understanding is less likely to proceed
through analysis that by navigation through virtual space.” (tradução minha)
26
Uma outra semelhança entre Jameson e Turkle é a de que, tal como
aquele, esta, além de argumentar que a organização subjetiva típica da
modernidade está sofrendo transformações, também propõe um novo modelo de
subjetividade.
Contudo, diferentemente de Jameson, que deriva seu modelo subjetivo de
análises teóricas, Turkle se baseia nos resultados de uma extensa pesquisa por
ela realizada com usuários da Internet – e, mais especificamente, de jogos
interativos denominados MUDs
9
na medida em que atribui um papel
determinante às novas tecnologias na construção de novas organizações
subjetivas.
Tendo por base os resultados dessa pesquisa, Turkle esboça um modelo
da subjetividade contemporânea alternativo ao de Jameson. Para isso,
entretanto, tal como este autor, ela também recorre à metáfora de uma categoria
nosológica psiquiátrica. A diferença é a de que, ao invés de recorrer à imagem
da esquizofrenia, Turkle prefere usar a de transtorno de personalidade múltipla.
Vejamos o que ela própria escreve:
1.1.1.1.1.1.1.1.4.“(...) o estudo do transtorno de personalidade múltipla pode
começar a fornecer formas de pensar sobre eus saudáveis como não-unitários,
mas com acesso fluido por seus aspectos. Portanto, em adição aos extremos de
um eu unitário e transtorno de personalidade múltipla, podemos imaginar um eu
flexível.” (Turkle, 1997, p. 261)
10
Ou seja, apesar das suas afinidades com as idéias de Jameson, ao
escolher a metáfora do transtorno de personalidade múltipla para o seu modelo
subjetivo, Turkle já dá evidências de discordar dele em pelo menos alguns
pontos (pontos importantes, como será argumentado abaixo). Isso porque,
embora tanto a esquizofrenia quanto o transtorno de personalidade múltipla
sejam classificações tradicionais da psiquiatria, suas características são muito
diferentes.
Dado que Jameson e Turkle concordam que o sujeito contemporâneo é
descentrado, a diferença que realmente importa, no que diz respeito ao
argumento que venho desenvolvendo, é aquela relativa à multiplicidade de
9
MUDs, abreviação de Multi-User Domain (domínio de multi-usuários), são espécies de mundos
virtuais em que os jogadores criam personagens para si e interagem com outros jogadores,
podendo criar também o ambiente em que o jogo se dá. Pode haver, por exemplo, um MUD que se
apresenta como um bar, outro como um castelo, um parque, uma sex shop ou qualquer outra coisa
que o usuário queira criar. Ressalta-se também que o MUD possui somente linguagem de texto, ou
seja, não há imagens.
10
“(…) the study of MPD may begin to furnish ways of thinking about healthy selves as nonunitary
but with fluid access among their many aspects. Thus, in addition to the extremes of unitary self
and MPD, we can imagine a flexible self.”(tradução minha)
27
personalidades característica do transtorno de personalidade múltipla em
oposição à fragmentação do eu típica da esquizofrenia.
Enquanto Jameson diz que, na organização subjetiva atual, o eu é
descentrado e fragmentado, Turkle afirma que “o eu é descentrado e múltiplo
(Turkle, 1997, p. 49).
Quando Jameson fala de um sujeito fragmentado, ele caracteriza esse
sujeito como um eu que esdividido em vários pedaços, várias partes, isto é,
vários fragmentos. É como se, em algum momento, esse sujeito tivesse tido um
eu único e centralizado, mas, agora, essa unidade e centralidade tivessem sido
substituídas por uma divisão, uma fragmentação. Já no caso de Turkle, é como
se esse eu único e centralizado, ao invés de se fragmentar, se multiplicasse.
Assim, o sujeito atual, para Turkle, ao invés de ser composto de várias partes,
vários pedaços de um todo, é constituído de vários todos, vários eus.
Além de Turkle caracterizar o sujeito atual como aquele que possui
múltiplos eus, ela ainda acrescenta uma outra característica a essa
multiplicidade: a simultaneidade. Para Turkle, portanto, o sujeito contemporâneo
possui múltiplos eus que agem simultaneamente. Para que melhor se
compreendam esses eus simultâneos, Turkle faz uma analogia com o sistema
operacional Windows, usado nos computadores pessoais. A autora lembra que,
muitas vezes, quando se utiliza o Windows, rias “janelas” são abertas para
diferentes finalidades. Pode-se estar em um programa de bate-papo
11
e ter
abertos na tela do computador outros programas, como editores de textos, jogos
e navegadores. Desta forma, é possível se passar da sala de bate-papo para o
navegador e para o jogo com tanta naturalidade e rapidez que se tem a
sensação de estar realizando várias atividades ao mesmo tempo. No caso dos
múltiplos eus, algo análogo a isso aconteceria. Para Turkle, é tão rápido e fácil
passar de um eu a outro, que é como se esses eus estivessem sempre à
disposição, como as janelas abertas do Windows.
Eus múltiplos que agem simultaneamente e sem uma instância central de
agenciamento. Essas parecem ter sido as principais conclusões a que Turkle
chegou sobre a organização subjetiva atual.
Para Turkle chegar a esse modelo de subjetividade, ela aliou seus estudos
sobre a pós-modernidade e sobre as idéias de Jameson a uma pesquisa de
11
As salas de bate-papo ou chats são ambientes na Rede em que os usuários conversam com
várias pessoas ao mesmo tempo, sobre temas específicos da sala (cinema, por exemplo) ou não.
Geralmente são puramente texto, onde se conversa em tempo real. As salas ou chats podem ser
acessados através de sites da Internet ou de programas específicos para este fim instalados no
computador do usuário. Neste trabalho, alternarei os nomes chats e salas de bate-papo.
28
campo bastante aprofundada com usuários da Internet. Aqui, apresentarei a
pesquisa que realizei em meu mestrado, em que tentei obter algumas pistas
sobre a subjetividade contemporânea.
2.2. Investigando a subjetividade contemporânea: uma pesquisa
brasileira
12
Com o objetivo de investigar as transformações subjetivas
contemporâneas a partir do contato com a Internet
13
, foi realizada uma pesquisa
qualitativa. Todos os procedimentos da pesquisa, apresentados passo-a-passo a
seguir, foram tomados com base no Método de Explicitação do Discurso
Subjacente (MEDS), criado por Nicolaci-da-Costa (2006). Na pesquisa foram
entrevistados 16 usuários (homens e mulheres) com idades entre 19 e 46 anos.
Todos eram brasileiros e faziam uso de algum tipo de programa interativo na
Internet (aqueles que permitem conversas em tempo real, como, por exemplo, os
programas de bate-papo, o ICQ
14
e semelhantes).
2.2.1. Coleta de dados
Para a coleta de dados, realizei entrevistas em profundidade
15
, tendo como
guia um roteiro composto de itens, a partir dos quais deveriam ser formuladas
perguntas abertas durante a entrevista (esse procedimento visava evitar que as
perguntas soassem muito formais ver Nicolaci-da-Costa, 1998; 2006). Estes
itens deveriam ser abordados em todas as entrevistas, mas não
necessariamente na mesma ordem. Isso porque era importante que fosse
preservada a naturalidade de uma conversa informal para que os entrevistados
pudessem se sentir descontraídos e pouco defensivos. Se necessário, todas as
perguntas poderiam ser complementadas com solicitações de esclarecimento ou
aprofundamento, tais como “por quê?”, “como?” ou “pode explicar melhor?”.
Seguem-se todos os itens:
12
Esta pesquisa foi primeiramente apresentada na minha dissertação de mestrado (Romão-Dias,
2001), intitulada Nossa Plural Realidade: um estudo sobre a subjetividade na era da Internet. Em
2005 ela foi publicada em forma de artigo (ver Romão-Dias e Nicolaci-da-Costa, 2005).
13
Na pesquisa apresentada abaixo, muitos dos entrevistados utilizam o termo “realidade virtual”
como sinônimo de Internet ou de realidade da Internet. Para outras definições de realidade
virtual”, ver, por exemplo, Castells (1999), Heim (1999, 1998), Lévy (1996) e Nicolaci-da-Costa
(1998).
14
ICQ é um acrônimo para I seek you(“eu procuro você”). Através deste programa foi possível
conversar com os entrevistados em tempo real e ao mesmo tempo, garantir que o material ficasse
registrado nos computadores.
15
Para outros métodos de se realizar entrevistas em profundidade, ver, por exemplo, Seidman
(1998) e Weiss (1995).
29
(1) Investigar como é o cotidiano do entrevistado (não necessariamente na
Rede). (2) Na Internet, verificar se o entrevistado já ficou muito tempo conectado
e, em caso positivo, fazendo o quê? (3) Investigar o que o entrevistado gosta de
fazer na Internet. (4) Investigar como são suas relações com as pessoas na
Internet. Investigar se o entrevistado faz alguma diferença entre essas relações
online e as que mantém fora da Internet. (5) Investigar como o entrevistado usa
seu(s) nick(s)
16
em diferentes programas. (6) Investigar como o entrevistado se
sente na rede por comparação a fora da rede. Caso haja diferenças nesses
sentimentos, investigar quais são. (7) Verificar se o entrevistado já encontrou
pessoalmente alguém que tenha conhecido pela Internet. Em caso positivo,
perguntar como foi a experiência. Em caso negativo, explorar por que isso nunca
aconteceu. (8) Pedir ao entrevistado que defina o que entende por realidade
virtual. (9) Pedir ao entrevistado que defina o que entende por realidade “real”.
(10) Perguntar ao entrevistado quais são as vantagens e desvantagens da
realidade virtual. (11) Perguntar o que ele procura na Internet.
2.2.2. Procedimentos
Em um primeiro momento, foram realizadas entrevistas-piloto, presenciais,
a fim de testar o roteiro. Nesta etapa piloto, os entrevistados abordados
revelaram que se sentiriam mais confortáveis se pudessem ser entrevistados
através da Internet. Testado o roteiro, segui a sugestão desses entrevistados, já
que era desejado que os entrevistados se sentissem tão à vontade quanto
possível.
Após a etapa-piloto, foi iniciado um recrutamento dos sujeitos por meio da
própria Internet. Assim, redigi uma mensagem, que foi enviada por email, na qual
havia um pequeno texto que convidava o destinatário a comentar um trecho
provocativo inspirado em um depoimento contido no livro de Turkle (1997). Logo
a seguir, perguntava ao destinatário se ele estaria disposto a conceder uma
entrevista em tempo real através de um programa interativo chamado ICQ.
16
Aqui é importante ressaltar que na grande maioria dos programas interativos (se não em todos),
o usuário é obrigado a escolher um nick para se identificar. O nick (abreviação de nickname,
apelido em português) é um apelido que o usuário escolhe no momento em que entra no
programa. Este usuário pode utilizar nicks da forma que quiser, ou seja, pode ter sempre o mesmo
nick, pode nunca ter o mesmo nick ou pode ter vários nicks. Nesta tese, sempre usarei nick para
me referir ao acesso que o usuário tem aos programas interativos.
30
(acrônimo para I seek you”, isto é, “eu procuro você”) Abaixo segue um trecho
do email enviado (observe o quanto é informal)
17
:
1.1.1.1.1.1.1.1.5.“Leia esse depoimento e o comente da forma mais livre que
puder. Vale qualquer coisa que sua imaginação mandar. Não há forma ou limite de
linhas!
1.1.1.1.1.1.1.1.6.‘Sinto que, quando estou no IRC
18
, posso ser qualquer coisa. E
no meio de todas aquelas janelas e canais, onde sou linda, loura, homem, mulher,
feia, criança ou velha, sinto que essas janelas são parte da minha vida. E a vida
real é mais uma, dentre muitas janelas possíveis.’”
Este email foi enviado a amigos e conhecidos, que o redirecionaram para
outros amigos, bem como para listas de discussão. Ao todo, 35 pessoas
responderam ao email. Destes, 16 concederam a entrevista via ICQ
19
.
Estas entrevistas foram salvas no próprio ICQ e em disquete a fim de
serem analisadas.
2.2.3. Análise do material
O material foi analisado a partir das técnicas do MEDS (Nicolaci-da-Costa,
2006). De acordo com este método, foram realizadas análises inter-sujeitos e
intra-sujeitos. Na etapa de análise inter-sujeitos, foi examinado o que os
entrevistados responderam a cada item/pergunta do roteiro. Foram, também,
agrupadas as respostas semelhantes. Posteriormente, foi realizada a análise
intra-sujeitos, na qual cada entrevista foi examinada separadamente, de modo a
permitir a verificação de possíveis inconsistências e contradições nos
depoimentos de cada um dos entrevistados. Quando estas inconsistências ou
contradições foram encontradas, todas as entrevistas foram novamente
comparadas entre si (análise inter-sujeitos) a fim de descobrir se tais
inconsistências ou contradições eram idiossincráticas ou se revelavam algum
conflito comum a muitos entrevistados (ou mesmo todos). Após estas etapas, foi
possível termos uma visão ampla e, ao mesmo tempo, aprofundada do discurso
dos entrevistados.
17
Na Internet, a linguagem usada é extremamente informal. Nicolaci-da-Costa (1998) destacou o
caráter híbrido desta linguagem, que mistura línguas diferentes (basicamente inglês e português
no nosso caso) e possui características tanto da linguagem escrita quanto da oral.
18
IRC (Internet Relay Chat) ou mIRC (Microsoft Internet Relay Chat) era um programa de bate-
papo semelhante às salas de bate-papo disponíveis para este fim nos sites. Tal como acontece
nessas salas, podia-se conversar com várias pessoas ao mesmo tempo, ou somente com uma, em
salas privadas.
19
Vale lembrar que o ICQ era basicamente um programa de texto e, portanto, a entrevista por ICQ
consistia em mensagens trocadas em tempo real.
31
2.2.4. Principais resultados
Sem exceção, todos os entrevistados relataram ter mais facilidade de se
expressar quando estão na Rede do que quando interagem presencialmente
com outra pessoa. Todos os entrevistados também disseram ter tido, em algum
momento, a experiência de conversar pela Internet com alguém que não
conheciam anteriormente. Essa experiência de relação interpessoal pela Internet
trouxe, entretanto, sentimentos diferentes para os entrevistados. Por conta
dessas diferenças, os entrevistados tiveram que ser divididos em dois grupos.
2.2.4.1. Apresentando o primeiro grupo
O primeiro grupo é pequeno. Dele fazem parte somente quatro dos
dezesseis entrevistados. Esses entrevistados, ao travarem contato com a
Internet, descobriram os canais de chat, por meio dos quais podiam conversar
com conhecidos e desconhecidos. Chegaram a pensar que era mais fácil iniciar
uma conversa pela Internet do que presencialmente. Perceberam, no entanto,
que essa facilidade não os levava a relações que considerassem sólidas e
verdadeiras. Como diz uma entrevistada
20
:
1.1.1.1.1.1.1.1.7.“na rede a coisa toda é muito superficial. nã minha opinião seria o
ideal só para o passo preliminar de uma futura amizade (...) a internet é como uma
máscara ou um murode proteção, como ir além da superficialidade escondido
atrás de tanta maquinaria e fios? o existe um contato real, palpável, olho no
olho” (Cris, 27 anos, jornalista e estudante de cinema)
21
Os membros deste primeiro grupo sentem falta do contato “olho-no-olho”.
Relatam, inclusive, ter medo de revelar dados pessoais pela Internet, pois, sem o
contato presencial, julgam ficar sem nenhuma referência a respeito do
interlocutor. Muitos se dizem incomodados com a possibilidade de seus
interlocutores mentirem. Justamente por conta disso, alguns integrantes deste
grupo revelam ter tentado se encontrar pessoalmente com algumas pessoas que
conheceram na Rede. No entanto, quando esses contatos aconteceram, isso
não os deixou mais aliviados. Pelo contrário, a decepção com estes encontros foi
tão grande que lhes serviu de confirmação de que não é possível confiar em
relações iniciadas na Rede.
20
Os depoimentos dos entrevistados não sofreram modificações, de forma que foram mantidos
todos os erros gramaticais, neologismos e abreviações.
21
Todos os nomes e apelidos que os entrevistados forneceram na pesquisa foram propositalmente
alterados para a garantia de seu anonimato.
32
Na realidade, a decepção com as relações iniciadas pela Internet é vista
por eles como inevitável por conta de dois fatores. Primeiramente porque, para
eles, não é possível manter um contato pessoal verdadeiro estritamente pela
Rede (eles acham que as pessoas podem mentir). Em segundo lugar, eles são
da opinião de que, se o contato deixa de ser somente virtual” e passa a ser
presencial, mesmo que o conhecido virtual não tenha mentido a seu respeito,
ainda assim a relação não vai adiante. Isso porque as expectativas que os
membros do primeiro grupo têm em relação ao conhecido virtual são tantas (em
relação ao tipo físico, por exemplo), que eles acabam se decepcionando, que
tais expectativas raramente correspondem à realidade. A respeito do “fracasso”
das relações interpessoais iniciadas na Rede, Bruno e Rita têm relatos
interessantes e que expressam bem o que os membros de seu grupo sentem:
1.1.1.1.1.1.1.1.8.“Acho que [as relações travadas pela Internet] não são muito
verdadeiras, muita coisa pode ser inventada e às vezes não pode ser detectada
pela rede.. (...) na rede não tem o olhar, pode se manter um certo anonimato, fora
da rede acho mais difícil [manter esse anonimato](...) (Bruno, 23 anos, estudante
de informática)
1.1.1.1.1.1.1.1.9.“a primeira vez que fiz isso [encontrar uma pessoa que havia
conhecido na Internet], descobri que muito da pessoa que vc [você] conhece na
rede é vc mesma que imagina. teve um cara, em Brasília ainda, com quem eu
conversava (...) e eu descobri que ele era irmão de um cara que eu conhecia, que
era super amigo de uma amiga minha. então resolvi conhecer ao vivo. apesar de
eu ter visto uma foto, achei o cara esquisitíssimo ao vivo.” (Rita, 25 anos,
jornalista)
De acordo com este primeiro grupo, seja por conta das mentiras que os
interlocutores podem contar, seja porque os próprios entrevistados idealizam
muito um encontro “olho-no-olho”, as relações interpessoais que se iniciam na
Rede não vingam. Grosso modo, a impressão que se tem é que, para os
representantes deste grupo, se as pessoas não são, fora da Rede, exatamente o
que elas dizem ser dentro dela, alguma falsidade em jogo. Esta falsidade é
insuportável para eles. O mesmo não acontece com os membros do segundo
grupo. Estes lidam com as diferenças entre o online e o offline de forma muito
diversa, como será exposto a seguir.
2.2.4.2. Apresentando o segundo grupo
O segundo grupo é composto pela grande maioria dos entrevistados,
totalizando doze integrantes. Como foi dito, uma das poucas semelhanças
entre os dois grupos diz respeito ao fato de seus integrantes gostarem de utilizar
salas de bate-papo e outros programas interativos. Para o segundo grupo, no
33
entanto, o contato interpessoal via Rede revela-se muito menos complicado do
que para o primeiro. As falas de Guiga e Quinhodantas mostram a facilidade que
esses entrevistados têm de fazer amigos pela Internet:
1.1.1.1.1.1.1.1.10.“minhas amizades são sempre feitas no mIRC
22
. são tres tipos:
os reais, os virtuais e os virtuais q [que] tornaram-se reais. Hj [hoje], quase todos
os amigos que tenho, conheci noa internet..desde namoro, ate amizades firmes.
Cinheci todos atraves da rede, conheci pessoalmente e nos tornamos grandes
amigos” (Guiga, 22 anos, empresário virtual)
1.1.1.1.1.1.1.1.11.“Hoje vou encontrar minha namorada [na Internet] Mas, se nào
estivesse namorando poderia vir procurar gente num espaço onde sei que vou
tentar falar com essa gente e não apenas olhar (...) Eu procuro viver a vida dentro
da realidade que existe, e a rede é real.” (Quinhodantas, 24 anos, psicólogo;)
Tal como os membros primeiro grupo, contudo, os integrantes do
segundo grupo sentem necessidade de encontros presenciais com seus amigos
virtuais. A diferença em relação ao primeiro grupo está em como os integrantes
do segundo vivenciam esses encontros. Segundo Margot e Gut:
1.1.1.1.1.1.1.1.12.“Foi sempre muito bom [encontrar os amigos virtuais]. Aquela
expectativa(...)mas sempre digo que nunca me decepcionei. Todas as pessoas
que conheci no real, embora possam ter me surpreendido prq [porque] fisicamente
eram diferentes do que imaginava, a postura tb [também](...)eram do bem. A
emoção de encontrar é muito boa. Tb não encontro c/ qualquer pessoa. Quando
resolvo encontrar é prq tenho um vínculo forte, um desejo de conhecer.
(Margot, 48 anos, psicóloga)
1.1.1.1.1.1.1.1.13.“Muito esquisito!!! [encontrar os amigos virtuais]. Eu imaginava
as pessoas totalmente diferentes (...) Mas foi ótimo (...) Por mais que alguem te
fale como eh [é] e q vc conheça a pessoa virtualmente, o rosto dela, os gestos(...)
eh tudo muito diferente na vida real. A gente nunca consegue imaginar alguma
coisa proxima da realidade. Porque a Internet naum [não] porporciona tudo, ne?
Vc tem um lampejo do que a pessoa eh, mas nunca o todo. Eh muito diferente.
Mas também tem suas vantagens.” (Gut, 22, mestranda em Comunicação)
Como é possível notar, os entrevistados do segundo grupo também têm
expectativas em relação a esses encontros presenciais. Eles também percebem
diferenças entre o que se passa on e offline. Eles, entretanto, não consideram
falso o que se passa na Rede. Ao contrário, parecem tomar como verdade tanto
o que ocorre online quanto o que ocorre offline. Parece que partem da premissa
de que tudo é real até que se prove o contrário.
Essa premissa de que “tudo é real até que se prove o contrário”
diferencia-os ainda mais do primeiro grupo. Isso porque os entrevistados do
segundo grupo relatam que podem agir, pensar e, até mesmo, sentir de forma
diferente quando estão online e quando estão offline. E mais, um representante
22
mIRC (Microsoft Internet Relay Chat) ou simplesmente IRC (Internet Relay Chat) era um
programa de bate-papo semelhante às salas disponíveis para este fim nas homepages.
34
do segundo grupo pode interagir com as pessoas de formas distintas quando
está online e quando está offline, sem que isso queira dizer que este sujeito falta
com a verdade quando está on ou offline.
Margot, assim como muitos dos outros entrevistados, utiliza um nome
fictício na Rede
23
e, apesar de não achar que esse nome é uma espécie de
máscara, observa diferenças entre seu comportamento dentro e fora da Internet.
Quinhodantas, nem nome fictício utiliza, mas acredita que, quando está na
Internet, pode ser diferente de quando está fora dela. Os depoimentos desses
dois entrevistados revelam de forma clara as distinções que os integrantes deste
grupo fazem entre o que sentem quando estão on e offline:
1.1.1.1.1.1.1.1.14.“Eu detesto o margot... risos... no início achava que tinha que
manter o anonimato, era paranóica que soubessem quem era. margot então não
tem nada a ver comigo. Disfarce mesmo (...) Mas como passei a ser conhecida
assim, não mudo (...) Sinto que [na Internet] exercito este lado criança, menos
compromissado, sem preocupações de ser polìticamente correta. Sou muito assim
no real tb. sempre alegre.Mas no chat
24
posso ser ainda mais criativa e
descompromissada (...) Uma amiga nossa do chat entrou para a Faculdade (...)
Fomos comemorar e levei de presente um estojo destes de meninas, rosa, com
tudo bonitinho. Na amizade real, acho que não teria esta criatividade... risos”
(Margot, 48 anos, psicóloga)
1.1.1.1.1.1.1.1.15.“Eu não invento personagens na rede, me sinto muito à vontade
para ser eu, mais do que na vida aqui fora. Eu é que fico diferente diante desse
outro na rede. não sei se as pessoas me recebem diferentemente na NET, eu é
que me sinto menos tolhido ou cobrado diante do outro e consigo abordar”
(Quinhodantas, 24 anos, psicólogo)
Há, no entanto, alguns entrevistados deste grupo que, além de se
sentirem diferentes on e offline, também relatam usos muito curiosos de nicks.
Ao contrário de Margot e Quinhodantas, que usam apenas um nick na Rede,
esses outros usuários possuem vários nicks. Escolhem situações específicas
para utilizá-los e criam profissões, gênero e características próprias para cada
um deles. Seus depoimentos merecem ser examinados com cuidado, pois
oferecem pistas para a compreensão de algumas características centrais do
segundo grupo. Como não é possível reproduzir os depoimentos de todos esses
entrevistados, foram escolhidos trechos das entrevistas de dois deles: Morpheus
e Sr. Mistério
23
Este nome fictício na Internet geralmente é chamado de nick (ver nota 16). Algumas vezes,
autores como Turkle utilizam também a noção de persona online para falar de como as pessoas se
expõem na Rede. Em alguns programas, fala-se de login e de avatar, personagem. Nesta tese,
utilizarei esses termos como sinônimos, mas preferencialmente me referirei a todos como nick.
24
Quando alguém diz que “estava no chat”, refere-se a qualquer ambiente de bate-papo.
35
Morpheus usa nicks na Internet para “fingir” que é outra pessoa. Inventa
nomes, profissões, tipos físicos. Em seu depoimento, apresentado abaixo,
sugere está “se divertindo às custas dos outros”:
1.1.1.1.1.1.1.1.16.“A internet permite a vc [você] ser uma pessoal completamente
diferente do que vc eh [é] normalmente ja que vc pode falar com pessoas que nao
te conhecem pessoalmente ne. voce pode se fazer passar por outro tipo de
pessoa (uma outra personalidade) (...) se vc malipular essas informações pode
passar a impressao que vc quiser para a outra pessoa vc pode ser quem vc quiser
ser (...) ja ao vivo vc nao pode fazer esse tipo de coisa ate pq o seu proprio fisico
te trai. [você fez isso, quer dizer, brincar de ser outra pessoa na net?] Já.
Costumava fazer isso pra passar o tempo (...) e (...) o show comecava :) [e
como era esse show?] normalmente eu puxava papo com alguma minina do canal
(...) e comecava a me fazer passar por alguem que eles queriam que eu fosse
(tipo por um lutador de jiujitsu pras mininas que se amarram nisso) (...) o segredo
da parada eh vc dar a "vitima" o que ela quer em termos de personalidade e ter
atencao pra nao cair na sua propria mentira” (Morpheus, 23 anos, analista de
sistemas júnior)
Como pode ser observado, Morpheus afirma utilizar a Internet para
brincar com as outras pessoas. Em outro momento de sua entrevista, no
entanto, quando define o que é a “realidade virtual”, dá a entender que a Internet
parece ser mais importante, para ele, do que um mundo de brincadeiras. Em
suas próprias palavras:
1.1.1.1.1.1.1.1.17.“[realidade virtual é] um ‘mundo’ gerado por computador onde
voce pode escolher todas as variaveis do ambiente que vc vai estar seria algo
como poder estar num mundo onde quem manda eh vc. [realidade real é] um
mundo onde vc controla 10% das variaveis :) isso eh vc nao esta no comando vc
simplismente vive de acordo com as regras dele nao importa se vc gosta ou nao
delas apesar de na realidade real vc ter que viver pelas regras eu tento me
adaptar (ou melhor seria adaptar as regras :) ) para que eu me sinta o melhor
possível a realidade virtual pra mim eh so uma extensao da minha realidade "real"
desvantagens...da realidade virtual? nao vejo“.(Morpheus, 22 anos, analista de
sistemas júnior)
Passemos agora para o Sr. Mistério, que, fora da Rede, apresenta-se
como Henrique. Assim como Morpheus, ele faz uso de vários nicks. Ao contrário
de Morpheus, todavia, ele não utiliza seus nicks para “se divertir às custas dos
outros”. Antes, porém, de revelar para quais finalidades Sr. Mistério usa seus
nicks, é importante entender um pouco como ele os cria:
1.1.1.1.1.1.1.1.18.“Em matéria de Internet, eu gosto de experimentar todos os
recursos. Então, (...) soube dessa história de newsgroups (...) Foi no meio [dos
newsgroups] que eu desenvolvi um alter-ego chamado Grouxo, um personagem
totalmente arbitrário, que saía agredindo uns e se aliando a outros sem o menor
critério, além de ter uma opinião do contra. O interessante foi o seguinte: como o
Grouxo estava apenas em busca de polêmica, arrumou dúzias de inimigos figadais
e um bom punhado de admiradores(as). No fim, quando resolvi matar o Grouxo,
havia estabelecido contato com alguns do admiradores do Grouxo e explicado:
"Olha, não sou nada disso não, é um personagem, e tal". Acabei ficando amigo
dessas pessoas, trocando e-mails e contando a vida toda online. [Como foi isso de
brincar de ser outra coisa?] Bem, na verdade não foi como brincar de ser outra
coisa, foi como brincar de ser escritor. Porque todas as opiniões do Grouxo eram
36
possibilidades em minha mente, resultado de mil e dezesseis leituras sobre muita
coisa (não sei se estou muito claro). Quer dizer, as opiniões dele, bem poderiam
ser as minhas, mas não as defenderia com tanta ênfase assim.” (Sr. Mistério, 32
anos, professor universitário)
Além de Grouxo, Sr. Mistério ainda revela algumas características de
outros nicks seus, alguns já fora de uso:
1.1.1.1.1.1.1.1.19.“O primeiro [nick] foi White (...) White era sério e professoral. O
segundo, Grouxo. O oposto de White. Caótico. Polêmico e - incrível! - bem-
humorado, debochado, sacana. O atual, Sr. Mistério, surgiu de uma discussão que
resultou na morte do Grouxo (...) Tb tenho outros nicks, mas, como ainda estão
em uso, é melhor não divulgar.. (...) O White era meio chato, matei-o sem muita
dó. o Grouxo me causou alguma tristeza, mas eu mesmo não agüentava o
radicalismo anárquico do sujeito. O Sr. Mistério está funcionando bem para ICQ e
para minha lista de discussão, uso para mensagens neutras, ou quando não quero
me identificar em sites comerciais. Tenho mais um nick que uso para enviar cartas
de protesto barra pesada para empresas, jornais e políticos, por isso é que não
divulgo para você...” (Sr. Mistério, 32 anos, professor universitário)
Sr. Mistério, de fato, parece utilizar bastante o que testa na Rede. Ao invés
de ter como foco brincar com os outros, o foco de Sr. Mistério parece ser o de
testar a si mesmo. Chama, inclusive, seus nicks de “alteregos”, como em uma
das passagens acima. Esses nicks parecem servir para Sr. Mistério ser uma
espécie de cobaia de si mesmo. Ele cria os nicks, testa-os e incorpora, fora da
Rede, o que aprende por meio destes testes. Conforme ele explica:
1.1.1.1.1.1.1.1.20.“Eu diria que a Rede tem servido como um meio de reconhecer
alguns potenciais adormecidos. Eu reconheço alguns comportamentos na Net que
eu não teria pessoalmente, por timidez, ou por não me ocorrer! Como, na Net, a
ansiedade é mais reduzida, noto que encontro soluções comportamentais bem
melhores do que na vida real. Só que eu passo a incorporar essas soluções à vida
real, passo a experimentá-las na prática fora da rede. Então, meu ‘eu real’ tende a
se igualar ao ‘virtual’. Em suma, não me vejo como duas pessoas diferentes. Vejo
a Net como um laboratório de comportamentos.” (Sr. Mistério, 32 anos, professor
universitário)
Estes depoimentos tornam evidente que tanto Sr. Mistério quanto
Morpheus, bem como outros entrevistados, utilizam, de forma lúdica seus nicks
na Internet. Morpheus talvez seja um pouco ingênuo ao pensar que está
somente brincando na Rede. Sr. Mistério é suficientemente sagaz para
integrar à vida “real” o que aprende na Internet. O que ele, Morpheus e todos os
membros do segundo grupo m em comum, entretanto, é uma sensação de
que, na Rede, algo se passa que é diferente da realidade offline. A pergunta que
se coloca é: o que essa sensação tem a dizer sobre a subjetividade destas
pessoas?
37
2.3. Jameson, Turkle e os meus resultados: uma breve discussão
A maior diferença entre os dois grupos que emergiram desta pesquisa diz
respeito às características subjetivas que seus membros tornaram visíveis
principalmente em seus depoimentos a respeito de relações interpessoais on e
offline. Segue-se uma análise dessas características e de suas implicações para
a discussão dos modelos de subjetividade apresentados anteriormente.
2.3.1. Primeiro grupo: uma organização subjetiva moderna
Os integrantes do primeiro grupo foram aqueles cujas relações
interpessoais iniciadas na Rede terminaram em experiências frustrantes. Para
eles, a falta de referências concretas (nome “real”, tipo físico, voz, cheiro, cor dos
olhos e da pele, etc) característica da realidade virtual resultou somente em
relações “superficiais” ou “falsas”. A prova que tiveram disso foram os encontros
na realidade “real” com os conhecidos virtuais. Foi inevitável sua decepção
ao ver que, na realidade “real”, aquelas pessoas não eram o que eles
imaginavam através da Internet. A conclusão a que os membros deste grupo
chegaram foi a de que o que se passava na realidade virtual era quase sempre
mentira. Para haver a verdade, eles esperavam que não houvesse o hiato entre
o real e o virtual. Ou seja, esperavam que as pessoas que eles conheciam na
Internet fossem iguais dentro e fora da Rede. Isso, no entanto, não aconteceu.
Dito de outro modo, para os integrantes do primeiro grupo, alguém não
pode, sem mentir, parecer um na realidade virtual e outro na realidade real”.
Isso significa que os membros deste grupo esperavam que seus “amigos
virtuais” se apresentassem de forma semelhante na Rede e fora dela.
Possivelmente tinham esta expectativa porque eles próprios se mostram – ou se
sentem – da mesma forma fora e dentro da Rede.
Esses resultados indicam, portanto, que os membros do primeiro grupo
se vêem como sempre sendo os mesmos, isto é, suas “formas de ser” parecem
permanecer iguais na Rede, fora dela e, possivelmente, em outras esferas de
sua vida cotidiana. Tal visão, por sua vez, sugere que eles provavelmente m
uma sensação de unidade e de estabilidade em relação a si mesmos.
A sensação de estabilidade subjetiva que esses entrevistados parecem
experimentar assemelha-se ao que Jameson chamou de centralidade do eu ou
de “miragem” de centralidade do eu (Jameson, 1997, p. 42) e Turkle denominou
38
de eus únicos e centrados (características que ambos consideram picas do
sujeito da modernidade).
Há, assim, fortes indicações de afinidade entre as características da
subjetividade moderna, tal como descrita por Jameson e Turkle e as
características subjetivas que pudemos captar dos membros desse primeiro
grupo.
E o segundo grupo? O que nossos resultados revelam a seu respeito?
2.3.2. Segundo grupo: uma nova subjetividade fragmentada ou
multiplicada?
Os membros do segundo grupo, do mesmo modo que os integrantes do
primeiro, sentem-se mais desinibidos na Rede do que fora dela. Sabem que, na
Rede, as pessoas dizem o que querem a respeito de si próprias. Isso vale para
eles e, obviamente, para aqueles com quem entram em contato. Os membros do
segundo grupo, entretanto, não se incomodam com o fato de seus interlocutores
poderem criar personagens que pouco têm a ver com o que são na vida “real”.
Ao contrário, vêem nessa criação uma nova forma de conhecer pessoas sem os
preconceitos ou julgamentos apriorísticos que o encontro sico instiga. Não se
importam, também, com o hiato que existe entre conhecer uma pessoa na
realidade “real” e na realidade virtual. Não tomam esse hiato como prova de que
as pessoas mentem na Internet.
Na realidade, para os membros do segundo grupo, ao contrário do que
acontece no caso dos membros do primeiro, uma pessoa se apresentar de um
modo na Rede e de outro fora dela não significa que exista alguma farsa. Seus
depoimentos deixam claro que, para eles, é fácil lidar com o hiato entre a Rede e
a realidade “real”. Eles parecem tomar como verdade tudo o que se passa dentro
ou fora da Rede. Isso provavelmente acontece porque, como mencionado,
estes entrevistados também se sentem ou se apresentam de forma diferente
na Internet e fora dela.
Assim, ao contrário dos membros do primeiro grupo, os membros do
segundo grupo admitem a possibilidade de se verem como muitos e não como
um só. Eles podem brincar de ser, ao mesmo tempo, sujeitos arrogantes e
polêmicos quando usam um nick e comportados profissionais fora da Rede,
como é o caso de Sr. Mistério. Podem também ser pessoas contidas na
realidade “real” e na Rede experimentar ser divertidas e brincalhonas, como
acontece com Margot.
39
Dado que o principal objetivo deste trabalho é o de refletir sobre as
transformações na subjetividade contemporânea, este grupo tem certamente
mais a nos dizer do que o primeiro. Na realidade, tomando por base os modelos
propostos por Jameson e Turkle, as características subjetivas dos membros do
segundo grupo nos fazem perguntar qual o grau de afinidade que apresentam
em relação a cada um desses modelos. Passemos a essa discussão.
Não dúvidas de que os resultados de nossa pesquisa são muito mais
condizentes com o modelo de sujeito que transita entre múltiplos eus proposto
por Turkle do que com o do sujeito fragmentado de Jameson. Meus
entrevistados – mesmo aqueles que, como Morpheus e Sr. Mistério, demonstram
ter vários nicks, passam de um nick para outro com facilidade, mas mantêm a
unidade e coerência de cada um desses nicks.
Além disso, há várias semelhanças entre os depoimentos que colhi e
aqueles registrados por Turkle; semelhanças essas que são surpreendentes
dadas as grandes diferenças existentes entre os contextos culturais nos quais
foram realizadas as duas pesquisas. Seguem-se dois exemplos (pedimos ao
leitor que perdoe a repetição de alguns).
Um dos participantes da pesquisa de Turkle faz uma afirmação radical: “Eu
divido a minha mente (...) Eu posso me ver como sendo dois ou três ou mais. E
eu ligo uma parte da minha mente e depois outra quando eu vou de janela a
janela” (Turkle, 1997, p. 13)
25
. A despeito de sua radicalidade, esse depoimento
encontra eco em alguns trechos da entrevista de Sr. Mistério, nos quais este
relata seus passeios entre um e outro nick:
1.1.1.1.1.1.1.1.21.“O primeiro [nick] foi White (...) White era sério e professoral. O
segundo, Grouxo. O oposto de White. Caótico. Polêmico e - incrível! - bem-
humorado, debochado, sacana. O atual, Sr. Mistério, surgiu de uma discussão que
resultou na morte do Grouxo (...) Tb tenho outros nicks, mas, como ainda estão
em uso, é melhor não divulgar...” (Sr. Mistério, 32 anos, professor universitário)
Outra entrevistada de Turkle relata o quanto se sente mais desinibida
quando está online do que quando está offline: “Eu não menti para ele sobre
nada específico, mas eu me sinto muito diferente online. Eu sou muito mais
extrovertida, menos inibida. Eu diria que me sinto mais eu mesma.” (Turkle,
1997, p. 179)
26
.
Testemunho análogo é dado por um de nossos entrevistados:
25
“I split my mind (…) I can see myself as being two or three or more. And I just turn on one part of
my mind and then another when I go from window to window.” (tradução minha)
26
I did’t exactly lie to him about anything specific, but I feel very different online. I am a lot more
outgoing, less inhibited. I would say I feel more like myself.” (tradução minha)
40
1.1.1.1.1.1.1.1.22.“Eu não invento personagens na rede, me sinto muito à vontade
para ser eu, mais do que na vida aqui fora. Eu é que fico diferente diante desse
outro na rede. não sei se as pessoas me recebem diferentemente na NET, eu é
que me sinto menos tolhido ou cobrado diante do outro” (Quinhodantas, 24 anos,
psicólogo)
Não é à toa que Turkle, embora se inspirando em Jameson, recorre a
uma patologia diferente daquela usada por este. O fato é que, como já foi
discutido, Jameson chegou ao seu modelo através do procedimento de transpor
características macro (sociais) para o plano micro (psicológico). Este
procedimento pouco convencional, portanto, não tem como base observações
sistemáticas do funcionamento cotidiano de homens e mulheres de carne e osso
(pois este não era seu objetivo).
Turkle, em contrapartida, realizou um extenso e aprofundado trabalho de
pesquisa com sujeitos que fazem uso daqueles que, a seu ver, são ícones da
atualidade: os computadores e a Internet. Seus resultados, tal como os meus,
referem-se, portanto, àquilo que foi observado bem como àquilo que pode ser
inferido a partir dos depoimentos de homens e mulheres que vivem
intensamente o dia-a-dia contemporâneo. Talvez por isso mesmo, tanto os
resultados de Turkle quanto os meus resultados majoritários aqueles
referentes ao segundo grupo – sugerem que esses homens e mulheres têm uma
experiência de multiplicidade. Nem na pesquisa de Turkle nem na nossa
puderam ser detectados indícios da fragmentação que Jameson alega
caracterizar a subjetividade contemporânea.
Há, porém, um sério problema na definição dos múltiplos eus em Turkle
no que se refere ao livre trânsito entre eus unitários e simultâneos. Este
problema pode ser ilustrado com um recurso sugerido pela própria Turkle.
Como mencionado anteriormente, segundo ela, é possível fazer-se uma
analogia entre esses eus unitários e simultâneos e o sistema operacional
Windows, usado nos computadores pessoais. Turkle lembra que, quando
utilizamos o Windows, freqüentemente abrimos várias “janelas” simultâneas para
diferentes finalidades: digitar um texto, fazer uma planilha, receber emails,
navegar na Internet, etc. Podemos, por exemplo, estar em um programa de bate-
papo e ter abertos na tela do computador vários outros programas, que podemos
acionar com a rapidez de um clique do mouse. Desta forma, é possível se
passar da sala de bate-papo para a planilha ou para o programa de email tão
facilmente que pode parecer que se está fazendo tudo ao mesmo tempo. No
caso dos múltiplos eus, segundo Turkle, a naturalidade com que se pode passar
41
de um eu a outro é semelhante à naturalidade com que se passa de uma a outra
janela do Windows. Assim, parece que estes eus estão sempre disponíveis.
Se, todavia, examinarmos com maior cuidado essa analogia entre o
sistema do Windows e os múltiplos eus, logo constataremos que algo em comum
é pressuposto por ambos: alguém, ou alguma instância, que tome a decisão de
clicar o mouse para passar de uma janela para outra ou que, analogamente,
“decida” passar de um eu para outro. Na realidade, isso fica bastante claro em
vários dos depoimentos citados acima, em que os entrevistados – os de Turkle e
os meus usam o pronome eu repetidas vezes ao descrever como passam de
uma tela para outra ou de um personagem para outro. Talvez um dos melhores
exemplos seja a citada fala de um sujeito de Turkle: “Eu divido a minha mente
(...) Eu posso me ver como sendo dois ou três ou mais. E eu ligo uma parte
da minha mente e depois outra quando eu vou de janela a janela” (Turkle, 1997,
p. 13).
Esta observação indica que a subjetividade contemporânea parece ser
caracterizada por uma sensação de multiplicidade. Diferentemente do que alega
Turkle quando fala de descentramento, no entanto, se múltiplos eus, algum
desses eus deve ser predominante para ter o poder de decisão sobre o que vai
ser feito. A pergunta que imediatamente se coloca é: não seria esse eu
predominante o correspondente contemporâneo da instância centralizadora que
caracterizava a subjetividade moderna?
Uma segunda pergunta também se coloca. Tendo-se em vista o fato de
que Turkle é uma psicóloga, como isso lhe passou despercebido? E aqui entra
um segundo problema, ao qual tanto Turkle quanto Jameson deram pouca
atenção: o uso de modelos patológicos como ponto de partida para a descrição
de um novo tipo de organização subjetiva que não parte da patologia.
Examinemos este ponto em maior detalhe.
O uso de classificações psiquiátricas clássicas para descrever a
organização subjetiva atual talvez não gerasse nenhum tipo de problema se
Turkle e Jameson, como muitos outros autores contemporâneos (ver, por
exemplo, Baudrillard, 2000, 1997; Birman, 2003, 2000), estivessem interessados
em dizer que a subjetividade contemporânea é, de modo geral, patológica ou,
ainda, se estivessem interessados na patologia do sujeito contemporâneo. Esse
não é, contudo, o ponto de vista adotado por Jameson e Turkle. O objetivo de
ambos esses autores é, admitidamente, o de descrever positivamente um novo
tipo de subjetividade. Ambos, no entanto, paradoxalmente lançam mão de
modelos patológicos e depois tentam “despatologizá-los”, ou seja, tentam
42
descartar a patologia e ficar com as características destes quadros (os
chamados “sintomas”).
Essa tarefa, todavia, é bastante complicada. Minimamente porque
palavras como “esquizofrenia” ou transtorno de múltipla personalidade”
remetem imediatamente a um mesmo campo semântico – o da patologia – que é
incompatível com a busca de descrição de algo que pertence ao campo
semântico da saúde. Ainda que algumas características desses quadros possam
ser interessantes, usar modelos patológicos sem sua patologia intrínseca
pressupõe que tais características podem ser neutras, ou seja, que elas existem
à parte da patologia, quando, na verdade, elas fazem parte da patologia.
ainda um último ponto a ser explorado em relação à utilização da
esquizofrenia e do transtorno de personalidade múltipla como metáforas. Ainda
que não tivessem a conotação de patologia, essas metáforas, cujo significado
está cristalizado e enrijecido pelo hábito, transmitem idéias difíceis de
desconstruir. é quase impossível, diríamos, conseguir elaborar novas
reflexões sobre um novo sujeito usando metáforas antigas, quanto mais
metáforas antigas com conotações patológicas indeléveis.
2.4. Uma subjetividade à espera de novos estudos
Caracterizar a subjetividade contemporânea é, como acabamos de ver,
uma tarefa extremamente árdua e de difícil sucesso. Temos pouca distância das
transformações ainda em curso (nas quais nós próprios estamos imersos) para
que uma lógica diferente daquela à qual estávamos acostumados faça sentido a
ponto de encontrarmos nomenclaturas novas e adequadas ao invés de
metáforas antigas e aprisionantes.
Tanto Jameson quanto Turkle fizeram excelentes tentativas com as
melhores intenções. Esbarraram, no entanto, com os mais persistentes
obstáculos no caminho da apreensão daquilo que é novo: as velhas formas de
olhar o mundo e seus habitantes, formas essas sempre cristalizadas na
linguagem.
Os trabalhos de Jameson e Turkle, no entanto, motivaram-me a continuar
investigando as transformações subjetivas atuais. Para que essa investigação
seja possível, parto desta pesquisa que acabo de apresentar, em que vários
aspectos nos quais não pude me aprofundar na ocasião do mestrado. Dentre
esses, o primeiro a ser abordado é o da multiplicidade.
43
3.
A experiência de multiplicidade
“Seja como for, todas as “realidades” e as “fantasias” só podem
tomar forma através da escrita, na qual exterioridade e
interioridade, mundo e ego, experiência e fantasia aparecem
compostos pela mesma matéria verbal; as visões polimorfas
obtidas através dos olhos e da alma encontram-se contidas nas
linhas uniformes de caracteres minúsculos ou maiúsculos, de
pontos, vírgulas; de parênteses; páginas inteiras de sinais
alinhados, encostados uns aos outros como grãos de areia,
representando o espetáculo variegado do mundo numa
superfície sempre igual e sempre diversa, como as dunas
impelidas pelo vento do deserto.” (Ítalo Calvino)
A pesquisa apresentada no capítulo anterior trouxe muitos resultados que
não puderam ser devidamente interpretados ou explorados na ocasião em que
foi levada a cabo. Como ressaltei anteriormente, meu maior interesse então era
o de encontrar algumas pistas sobre a organização subjetiva na atualidade.
Quanto me refiro a essa organização subjetiva atual, creio ser importante
fazer algumas ressalvas. A primeira é a de que é impossível tratarmos da
subjetividade como algo único e não plural. Para começar, por mais globalizado
que o mundo tenha se tornado nas últimas décadas, existem inúmeras culturas,
línguas e costumes. Essa diversidade cultural, conseqüentemente, gera
diferentes tipos de organização subjetiva.
Ainda que nos limitemos ao Brasil, sabemos que podemos fazer poucas
comparações entre o que pensam, o que sentem e como vivem, por exemplo, as
mulheres balzaquianas” da Zona Sul do Rio de Janeiro e aquelas que, com
trinta anos, já são avós no sertão nordestino. Arrisco-me a dizer que,
provavelmente, aquelas da Zona Sul são muito mais parecidas com as mulheres
retratadas em Sex and the City, extinto seriado americano que ficou famoso ao
mostrar o cotidiano de quatro bem-sucedidas balzaquianas, do que com as
nordestinas citadas.
Em “Observando o familiar”, Velho (1981) relata que algumas vezes se
sentiu mais próximo de antropólogos estrangeiros em congressos internacionais
do que de muitas pessoas que lhe são extremamente familiares no seu dia-a-dia,
como o feirante ou o jornaleiro da esquina.
44
Dessa forma, parece-me inapropriado pensar na subjetividade
contemporânea como se ela fosse uma só. Como disse, mesmo dentro de nosso
país, estando unidos pela mesma língua, constatamos a existência de uma
pluralidade de modos de viver, de pensar, de falar, de estabelecer e manter
relacionamentos, etc. Todos esses diferentes modos resultam em diferentes
organizações subjetivas.
Se, então, não quero tratar da subjetividade humana enquanto única, a
qual subjetividade refiro-me quando digo que pretendo estudar “uma nova
organização subjetiva”? No Brasil, refiro-me à subjetividade de pessoas
geralmente jovens, de classes médias e altas, tenham elas um perfil tecnológico
parecido ou não com os sujeitos de minha pesquisa. Isso porque, ainda que
essas pessoas possam não ser usuários intensivos da Internet, elas estão
imersas na lógica do chamado “mundo globalizado”. Dou um exemplo: desde a
faculdade, esses jovens são preparados para enfrentar um mercado de trabalho
que não mais os absorverá com garantias de estabilidade. Eles estarão
preparados para assinar contratos de curto prazo (um ou dois anos), receber
salários relativamente altos e exercer funções de grande responsabilidade, antes
delegadas a funcionários mais experientes (i.e., mais velhos)
27
.
Esses sujeitos aos quais me refiro podem ter, sob certo ponto de vista,
mais semelhanças no modo de viver com jovens americanos de classe média do
que com o porteiro que trabalha em seu edifício.
É justamente por ter consciência dessa pluralidade subjetiva que levei a
cabo uma pesquisa de campo. As pesquisas de campo nos permitem sair de um
nível de abstração que pode ser muito perigoso quando o assunto é
subjetividade. Como diz Gonçalves (2004), com uma boa dose humor:
1.1.1.1.1.1.1.1.23.“... não podemos confundir dois elementos heterogêneos, ainda
que relacionados: os conceitos de sujeito propostos pela filosofia e pela cultura em
geral e a subjetividade concreta dos homens e mulheres concretos que viviam
uma vida cotidiana distante dos devaneios filosóficos. Uma coisa é o conceito de
sujeito tal como elaborado por Kant; outra diferente é a subjetividade concreta do,
por exemplo, vizinho do Sr. Kant.” (Gonçalves, 2004, p. 54)
Acredito que a pesquisa sirva, entre outras coisas, para podermos
estabelecer as relações entre esses abstratos conceitos propostos pela filosofia,
pela sociologia ou pela psicologia e o que Gonçalves chamou de “subjetividade
concreta” dos homens e mulheres dos dias de hoje.
Após essa introdução, creio ser possível passar ao tema da multiplicidade.
27
Para um estudo mais detalhado das conseqüências subjetivas das novas relações de trabalho,
ver Sennett (1999).
45
3.1. Sinais da multiplicidade
tive oportunidade de começar a abordar o tema da multiplicidade no
capítulo anterior, relativo à pesquisa que realizei. O que me interessa, no
momento, é aprofundar-me neste tema a partir da minha pesquisa de campo e
da literatura para, quem sabe, encontrar pistas sobre a subjetividade atual.
Sobre a multiplicidade, acredito que a primeira pergunta que deve ser feita
é se ela aparece e como aparece na minha pesquisa de campo. Em relação a
isso, o resultado da pesquisa que realizei que mais chama a atenção é o uso
que os sujeitos fazem dos seus nicks. Alguns sujeitos, como foi dito no capítulo
anterior, criam muitos nicks na Internet e, através de cada um deles,
apresentam-se com características (físicas e psicológicas) diferentes.
Sr. Mistério, por exemplo, diz que seus nicks são como personagens que
um escritor cria para escrever seu livro. Se Sr. Mistério está correto, então essa
profusão de nicks nada mais seria do que uma série de personagens de ficção.
E, como escritores de ficção existem muitos séculos, seria no mínimo
estranho apresentar a multiplicidade subjetiva como algo novo em relação à
subjetividade.
A diferença, entretanto, da qual Sr. Mistério parece não ter se dado conta é
a de que um escritor convencional, quando cria, não está interagindo com
ninguém. Após seu livro ser publicado, o leitor interagirá com o livro, mas,
novamente, não com o escritor. Se Sr. Mistério é um escritor, não é
convencional. Ele encarna seus personagens na Internet e, a partir das
interações de seus personagens com outros usuários, aprende novas formas de
agir que incorpora em sua vida fora da Internet.
Essa diferença entre o escritor convencional e o comportamento de Sr.
Mistério na Rede parece-me fundamental para começar a pensar na
multiplicidade nos dias de hoje. Isso porque ter muitos papéis na vida, ou seja,
ter que ser portar de forma diferente quando se está no trabalho, quando se
conversa com um filho, quando se sai com os amigos, etc, é algo que existe
muito tempo. Acredito, entretanto, que o que parece novo neste momento é uma
multiplicidade que extrapola esses papéis e passa a dar ao sujeito a sensação
de que ele pode ser muitos. Na pesquisa, essa sensação pode ser detectada
mesmo naqueles sujeitos que, ao contrário de Sr. Mistério e outros, não utilizam
nicks em profusão ou sequer criam personagens na Rede, como é o caso de
Margot e de Quinhodantas.
46
Quando nos lembramos dos depoimentos desses sujeitos, percebemos
que, apesar de eles não fazerem usos de vários nicks, ambos explicitamente
dizem que se sentem diferentes (subjetivamente diferentes?) quando estão na
Rede e quando estão fora dela. Isso pode sugerir uma multiplicidade nova,
que há uma aparente quebra de continuidade no sentimento de ser único dessas
pessoas. Não quero dizer, com essa afirmação, que esses sujeitos sintam-se
fragmentados ou algo do gênero. Tampouco afirmo, por isso, que tais sujeitos
possuem múltiplos eus, como afirma Turkle (1997) em sua pesquisa com
usuários de jogos interativos na Rede. Mais tarde no presente capítulo,
justificarei minha posição em relação a isso. O que considero importante, no
entanto, é atentar para o fato de que o sujeito pode ter uma experiência de
multiplicidade. Sr. Mistério, por exemplo, quando incorporava seus personagens
na Rede, provavelmente experimentava a sensação de que poderia agir e se
portar perante seus conhecidos virtuais de formas inteiramente novas para ele
mesmo. De certa forma, essa experiência que Sr. Mistério e outros usuários de
chat têm pode ser comparada a uma certa expansão subjetiva, ou seja, o sujeito
pode ter a sensação de que pode fazer mais coisas, agir de mais formas do que
age fora da Rede.
Leitão (2003), em sua tese de doutorado, realizou uma extensa pesquisa
com profissionais de psicologia que atuavam na área clínica. Seu objetivo era
saber como a Internet estava entrando nos consultórios e quais as
conseqüências dessa entrada para a prática clínica. Em um dos muitos
depoimentos que a autora apresenta em sua tese, uma gestalt-terapeuta
suas impressões sobre o impacto da Internet sobre seus pacientes. Ela diz que:
1.1.1.1.1.1.1.1.24.“As pessoas parecem usar a Internet para se expandir. A
velocidade das conquistas é muito grande. Tem uma expansão do mundo e o
sujeito sente que também tem uma expansão imensa. Ele tem muito mais pernas,
mais braços, mais olhos em função dessas conquistas. Eu acho que isso modifica
a imagem que o homem tem de si.” (Leitão, 2003, p. 107)
Não tenho elementos suficientes para dizer o que a entrevistada de Leitão
quis dizer sobre expansão subjetiva. Acredito, porém, que essa expressão é
bastante feliz e que pode nos ajudar a pensar na multiplicidade de que estamos
tratando neste capítulo.
Para pensar melhor essa questão, trago agora uma história relatada por
Stone (1995). Stone é uma socióloga americana que trabalha na Universidade
do Texas, em Austin. Em seu livro The War of desire and Technology at the
Close of the Mechanical Age, Stone traz, em um texto pouco convencional do
47
ponto de vista acadêmico, uma coleção de histórias e reflexões representativas
do que ela chamou de “fim da era mecânica”.
Um dos casos que Stone conta e que é interessante de ser relatado aqui é
o do psiquiatra Stanford Lewin, no capítulo sugestivamente intitulado “In Novel
Conditions: the cross-dressing psychiatrist” (“Em Novas Situações: o psiquiatra
travestido”, minha tradução). A história vivida por Lewin, como discutirei abaixo,
possui muitas semelhanças com os relatos dos meus entrevistados em relação a
esse sentimento de ser diferente dentro e fora da Internet. O relato é extenso,
mas vale a pena.
Lewin era um jovem psiquiatra que se aventurava pela primeira vez no
mundo da Internet, quando esta apenas começava nos EUA. Ele resolveu entrar
pela primeira vez numa sala de bate-papo e adotou um nick que aludia à sua
profissão: “Doctor” (doutor). A respeito desse nick, lembro que, em inglês,
“doctor” é uma palavra neutra, podendo referir-se tanto a um doutor quanto a
uma doutora, fato para o qual, segundo Stone, Lewin não atentou. Após entrar
na sala de bate-papo e conversar um pouco com algumas pessoas, Lewin foi
chamado por uma mulher para conversar privadamente, ou seja, sem a
presença de outras pessoas. Lewin aceitou, pôs-se a escutar a mulher e, após
um tempo de conversa, deu-se conta de que ela havia presumido que ele
também era uma mulher. O que mais o espantou, entretanto, não foi a explicável
confusão que sua parceira de chat fez, mas, sim, o conteúdo do que ela lhe
dizia. Ao assumir que Lewin era uma psiquiatra mulher, ela lhe revelou uma série
de sentimentos que ele nunca tinha ouvido de uma mulher. Lewin chegou, então,
à conclusão de que uma mulher teria mais facilidade de falar de sua intimidade
com outra mulher do que com um homem.
Ao chegar a essa conclusão, movido de uma vontade de ajudar mais
mulheres na Rede, Lewin resolveu assumir que era uma doutora nas salas de
bate-papo. Criou um outro nick (Julie Graham) e, com ele, a história de uma
neuropsicóloga que havia sofrido um acidente de carro que a teria deixado
paraplégica, muda e desfigurada. Com esses atributos, Julie convenientemente
seria alguém com muita atividade online, mas que não estaria disposta a se
encontrar com pessoas offline.
Por meio de Julie, Lewin formou uma grande rede de amizades online.
Com o tempo, muitos a procuravam para relatar seus problemas e ela foi
ganhando a estima de cada vez mais pessoas na Rede. Essa resposta,
entretanto, era surpreendente para Lewin. Como diz Stone:
48
1.1.1.1.1.1.1.1.25.“Aparentemente, ele [Lewin] nunca esperou que a
personificação fosse tão bem-sucedida. Ele pensou que faria alguns contatos on-
line, e talvez oferecesse conselhos úteis para algumas mulheres. Ao invés disso, o
que aconteceu foi que ele se viu profundamente engajado em desenvolver toda
uma nova parte de si que ele nunca soube que existia. Suas respostas muito
tempo tinham deixado de ser mascaradas; com a ajuda do funcionamento on-line
e um certo de número de textos protéticos, ele estava no processo de se tornar
Julie. (...) Não que ele estivesse perdendo sua própria identidade, mas,
certamente, ele estava desenvolvendo uma paralela, uma identidade de poder
considerável.” (Stone, 1995, p. 75-6)
28
Esse processo que Stone chamou de “se tornar Julie”, começou a
incomodar Lewin. Além disso, por conta de pequenos deslizes na história que
ele foi criando, as pessoas não mais se satisfaziam com a recusa de Julie de
se encontrar presencialmente com algum amigo virtual. Lewin decidiu, então,
que era hora de “matar” Julie. Ele resolveu mandá-la para um hospital, em
gravíssimo estado de saúde. Quem passou a se comunicar com os amigos de
Julie era John, outro personagem que ele criou ao longo do tempo e que era
marido de Julie.
Novamente seus planos o surpreenderam. A quantidade de emails
emocionados com o estado de saúde de Julie, o sofrimento das pessoas na
expectativa de sua morte, aliado a grandes manifestações de carinho e
solidariedade para com John, fizeram Lewin desistir de sua empreitada.
Mantendo Julie viva, ele teve outra idéia. Resolveu que Julie apresentaria
a seus conhecidos virtuais um velho amigo: o psiquiatra Stanford Lewin. Assim,
tendo sido apresentado com todas as recomendações possíveis, Lewin começou
a tentar ser amigo dos amigos de Julie. Mais uma surpresa: ele não conseguia
ser como Julie. Enquanto Julie era expansiva, atéia, charmosa, Lewin era tímido,
judeu praticante e reservado. “O que você faz quando seu colega imaginário faz
amizades melhor do que você?” (Stone, 1995, p. 77)
29
, pergunta Stone.
Frente à impossibilidade de tomar o lugar de Julie, Lewin começou a dizer,
para os poucos amigos dela com quem conseguiu estabelecer relações mais
sólidas, que na verdade Julie era uma farsa. Passaram-se alguns meses até que
essa informação fosse de domínio público. Quando a verdade veio à tona, a
reação das pessoas foi um choque ainda maior do que a possível morte de Julie.
28
Apparently he’d never expected the impersonation to succeed so dramatically. He thought he’d
make a few contacts on-line, and maybe offer helpful advice to some women. What had happened
instead was that he’d found himself deeply engaged in developing a whole new part of himself that
he’d never known existed. His responses had long since ceased to be a masquerade; with the help
of the on-line mode and a certain amount of textual prosthetics, he was in the process of becoming
Julie (…) Not that he was losing his own identity but he was certainly developing a parallel one, one
of considerable puissance.” (tradução minha)
29
What do you do when your imaginary playmate makes friends better than you do?” (tradução
minha)
49
Muitos se sentiram traídos, incrédulos ou “órfãos” de Julie, já que Lewin
incrivelmente não se parecia com ela. Houve mulheres que disseram terem se
sentido “estupradas” por terem aberto sua intimidade para alguém que achavam
que existia. Houve, ainda, uns poucos amigos que perdoaram Lewin, embora
pagando o preço de tentar esquecer que Julie um dia existiu.
Reproduzi, com detalhes, a história de Lewin/Julie porque a considero um
tanto impressionante. O que aconteceu com Lewin, guardadas as devidas
proporções, assemelha-se à experiência dos meus sujeitos no que diz respeito a
esse “se sentir diferente” na Rede e fora dela.
Chama a atenção no caso de Lewin, a força que Julie assumiu em sua
vida. Aparentemente, há uma certa expansão subjetiva de Lewin, na medida em
que ele pôde agir de formas inteiramente novas quando usava o nick Julie. Além
disso, no caso de Lewin, também uma descontinuidade entre o criador e a
criação. Isso aparece quando Lewin se impossibilitado de agir como Julie
quando usa outro nick. Novamente, não creio que Lewin sentia-se fragmentado,
ou que não reconhecia Julie como sendo parte dele. O que me parece
importante é que, quando estava sob o nick de Julie, Lewin se sentia diferente
de quando entrava na Rede com seu próprio nome.
Arrisco-me a dizer que meus sujeitos também apresentam esses
sentimentos de expansão subjetiva que parecem ser característicos dessa
multiplicidade. Essa expansão parece estar presente quando os sujeitos que
entrevistei relatam poderem ser diferentes quando estão usando a Rede. Não
necessariamente isso leva ao que chamei de descontinuidade no caso de Lewin.
Estou chamando de sentimento de descontinuidade a incapacidade do sujeito
agir tal qual ele age quando está usando determinado nick. Isso não ocorria com
Sr. Mistério, que, como vimos acima, era capaz de se expandir na Rede, mas,
depois, incorporava o que aprendia quando usava um nick para sua vida fora da
Rede. Morpheus, outro entrevistado de minha pesquisa, parecia mais com
Lewin. Morpheus criava inúmeros nicks, com diferentes características físicas e
psicológicas. Através desses nicks, ele relatava que se sentia podendo ser como
ele quisesse e, por isso, acreditava que a Rede era um lugar onde ele podia
controlar cem por cento das variáveis. Ou seja, através de seus nicks, Morpheus
tinha a sensação de que poderia fazer quase qualquer coisa. Isso certamente é
uma sensação de expansão, mas também é de descontinuidade quando ele
afirma que, fora da Rede, se vê num mundo onde pode controlar “dez por
cento das variáveis”. Podemos inferir, portanto, que Morpheus não consegue
levar para fora da Rede as formas de agir que apresenta quando usa seus nicks.
50
Em resumo, creio que a característica importante e que diz respeito à
multiplicidade é essa expansão subjetiva que a Internet parece proporcionar. A
descontinuidade me parece uma conseqüência possível dessa expansão, mas
não necessariamente está presente em todos os casos ou todo o tempo.
Tanto alguns de meus entrevistados quanto a história de Lewin, contada
por Stone, mostram características dessa expansão e também de
descontinuidade. Os sujeitos entrevistados por Turkle também parecem
apresentar essas características que considero típicas da multiplicidade. Em
relação a Turkle, repito o emblemático depoimento de um de seus sujeitos, que
diz:
1.1.1.1.1.1.1.1.26.“Eu divido a minha mente (...) Eu posso me ver como sendo dois
ou três ou mais. E eu ligo uma parte da minha mente e depois outra quando eu
vou de janela a janela. (...) VR [vida real] é mais uma janela e, geralmente, não
é a minha melhor” (Turkle, 1997, p. 13 minha tradução)
30
.
Esse sujeito, assim como Morpheus, parece ter uma vida online onde ele
experimenta sensações de expansão através dessas “janelas” que ele abre na
Internet. Também como acontece com Morpheus, é possível que haja uma
descontinuidade entre as janelas da Internet e as janelas da vida fora da Rede.
Isso fica claro quando ele diz que a vida real não é sua melhor janela, ou seja,
que as janelas que abre na Rede são melhores.
Vimos, através dos exemplos que apresentei acima, que é possível fazer
comparações entre as experiências de meus entrevistados, os entrevistados de
Turkle e o caso relatado por Stone. Essas semelhanças dizem respeito,
principalmente, a uma experiência de multiplicidade que a Rede parece
proporcionar, quando permite que o sujeito aja na Internet de forma diferente,
nova, em relação a como ele age quando esfora da Rede. Essa experiência
de multiplicidade pode dar ao sujeito uma sensação de expansão subjetiva que
pode vir acompanhada ou não de uma descontinuidade entre o que o sujeito vive
na Rede e fora dela.
Apesar dessas semelhanças entre minha pesquisa e os achados de Turkle
e Stone, ambas não falam de expansão subjetiva, tampouco de descontinuidade.
É preciso, portanto, saber se o que considero uma experiência de multiplicidade
equivale ao que Turkle e Stone dizem sobre os casos que relatam.
Turkle, ao estudar seus entrevistados, chega à conclusão de que o sujeito
da atualidade possui múltiplos eus. Ou seja, para a autora, ao invés desse
30
“I split my mind (…) I can see myself as being two or three or more. And I just turn on one part of
my mind and then another when I go from window to window (…) RL [real life] is just one more
window, and it’s not usually my best one.” (tradução minha)
51
sujeito ter um eu único, ele tem vários eus que são semelhantes aos muitos
nicks que um sujeito adota na Internet. Além da comparação com os nicks,
Turkle também compara esses múltiplos eus ao transtorno de múltipla
personalidade.
Stone não cria uma nomenclatura diferente para falar da multiplicidade.
Ela, todavia, cita Turkle e aparentemente concorda com sua idéia dos múltiplos
eus. O fragmento que reproduzo a seguir uma pista de linha de raciocínio de
Stone:
1.1.1.1.1.1.1.1.27.“Julie, John (...) eles são exemplos maravilhosos da guerra entre
desejo e tecnologia. Suas complexas identidades virtuais são intervenções reais e
produtivas na nossa crença cultural de que a o identificada unidade social, além
de ser branco e masculino, é um único eu em um único corpo. O ‘transtorno’ de
múltipla personalidade é outra intervenção dessas.” (Stone, 1995, p. 75)
31
No trecho citado, Stone menciona o que ela chama de problema do “único
eu em um único corpo”. Esse problema, segundo ela, seria a assunção que a
maioria das pessoas têm de que, se cada pessoa possui um corpo, isso também
significa que ela possui um (e somente um) eu. Seria mais ou menos dizer que,
quando pensamos em UMA pessoa, pensamos sempre também que ela tem UM
corpo e UM eu. Segundo ela, isso é uma norma social não explicitada, que
assumimos como verdadeira, mas que não necessariamente é verdadeira.
Segundo Stone, a equivalência entre ser uma pessoa e ter um eu em um
corpo seria tão absurda quando supor que é preciso ser homem e branco para
ser considerado “pessoa”. Ou seja, de acordo com Stone, é possível que haja
pessoas que tenham mais de um eu em um só corpo. Casos como o de Stanford
Lewin, assim como o transtorno de múltipla personalidade, viriam mostrar essa
possibilidade. Assim, apesar de Stone não ter escrito um livro propriamente
acadêmico, ela comunga não com a idéia dos múltiplos eus proposta por
Turkle como também estabelece uma comparação entre esse eus com a múltipla
personalidade.
A comparação entre o uso de nicks online e as múltiplas personalidades
parece ser comum entre autores americanos. Aqui, apresentamos duas autoras
que trabalham com tecnologia e ciências humanas que estabelecem essa
comparação. Creio, portanto, ser importante investigar um pouco mais a relação
entre a multiplicidade e as múltiplas personalidades para avançar na discussão.
31
Julie, John (...) they are wonderful examples of the war of desire and technology. Their complex
virtual identities are real and productive interventions into our cultural belief that the unmarked
social unit, besides being white and male, is a single self in a single body. Multiple personality
“disorder” is another such intervention.” (tradução minha)
52
3.2. Multiplicidade e múltiplas personalidades
Comecemos esta seção, dedicada às relações entre as múltiplas
personalidades e a multiplicidade, com um outro trecho do livro de Stone. Nele, a
autora diz:
1.1.1.1.1.1.1.1.28.“As perguntas para as questões colocadas previamente por
que o TMP [transtorno de múltipla personalidade]
32
é tão importante para um
exame da tecnologia de comunicação e se existe algum espaço para uma
multiplicidade não-traumática nos contextos clínicos são bem cobertas com o
caráter protético da virtualidade. O espaço tecno-social dos sistemas virtuais, com
sua qualidade lúdica irruptiva e seu potencial para experimentação e emergência,
é um domínio da multiplicidade não-traumática.” (Stone, 1995, p. 60)
33
Neste trecho, parece-me que Stone, assim como Turkle, tenta vislumbrar
algo de não patológico nas múltiplas personalidades. Em alguns momentos de
seu livro, a autora suprime a palavra “transtorno” e utiliza somente múltiplas
personalidades, para reforçar sua posição de que se deve começar a pensar nas
múltiplas personalidades sem seu usual contorno patológico.
Ainda que se retire o prefixo transtorno” das múltiplas personalidades, o
fato é que uma comparação entre essa categoria psiquiátrica e uma
multiplicidade subjetiva. Para nos posicionarmos frente a essa comparação, é
importante primeiro compreendermos um pouco o que vem a ser o transtorno de
múltipla personalidade.
3.2.1. Definindo transtorno de múltipla personalidade
Começo com a definição clássica, retirada do DSM IV
34
, (Diagnostic and
Statistical Manual for Mental Disorders APA, 2005). O “IV” indica que é a
quarta revisão). Apesar de, no Brasil e no restante do mundo, utilizar-se mais o
CID 10 (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas
32
Em inglês, utilize-se o termo multiple personality disorderque, muitas vezes, é traduzido por
“distúrbio de múltipla personalidade” (o tradutor de Hacking; 2000, por exemplo, vai nesta linha).
Os índices classificatórios DSM IV e CID 10, entretanto, tiveram o termo traduzido por “transtorno
de múltipla personalidade” ao invés de “distúrbio”. Por esse motivo, ao longo do texto, refiro-me a
transtorno e não a distúrbio. Ainda assim, vale ressaltar que somente o CID 10 mantém esse
termo. O DSM IV a partir de 1994 substituiu “transtorno de múltipla personalidade” por “transtorno
dissociativo de identidade”.
33
The answers to the questions posed previouslywhy is MPD so important to an examination of
communication technology, and is there room for nontraumatic multiplicity in clinical accounts in
fine are bound up with the prosthetic character of virtuality. The technosocial space of virtual
systems, with its irruptive ludic quality and its potential for experimentation and emergence, is a
domain of nontramatic multiplicity.” (tradução minha)
34
Neste texto, utilizarei tanto DSM quanto DSM IV. Quanto utilizo somente DSM, refiro-me ao
Manual de modo geral. DSM IV refere-se especificamente à quarta revisão do manual, datada de
1994 (APA, 2005), em que algumas modificações foram feitas, inclusive em relação ao transtorno
de múltipla personalidade. As versões anteriores ao DSM IV são o DSM III (APA, 1980) e o DSM
III-R (APA, 1987).
53
Relacionados com a Saúde), que é editado pela Organização Mundial de Saúde,
o DSM é um manual americano, publicado pela Associação Americana de
Psiquiatria. Como veremos, o transtorno de múltipla personalidade é uma
patologia praticamente exclusiva dos EUA, de forma que, minimamente
podemos depreender que eles tenham condições de melhor defini-la. Já ressaltei
em nota acima que, desde 1994, por razões que detalharei mais adiante, o DSM
IV modificou o nome da patologia. O que era transtorno de múltipla
personalidade agora aparece como “transtorno dissociativo de identidade (antigo
transtorno de múltipla personalidade)”. Apesar disso, na literatura não-
psiquiátrica, é mais comum encontrarmos o termo transtorno de múltipla
personalidade
35
”.
De acordo com o DSM IV, portanto, quatro critérios característicos do
transtorno de múltipla personalidade:
1.1.1.1.1.1.1.1.29.“A característica essencial do Transtorno Dissociativo de
Identidade é a presença de duas ou mais identidades ou estados de
personalidade distintos (Critério A), que recorrentemente assumem o controle do
comportamento (Critério B). Existe uma incapacidade de recordar informações
pessoais importantes, cuja extensão é demasiadamente abrangente para ser
explicada pelo esquecimento normal (Critério C). A perturbação não se deve aos
efeitos fisiológicos diretos de uma substância ou de uma condição médica geral
(Critério D).” (APA, 2005)
Em resumo, para o DSM IV, uma pessoa pode ser diagnosticada como
portadora do “transtorno dissociativo de identidade” se, sem nenhum tipo de
droga ou condição clínica justificável, ela apresentar uma ou mais identidades
distintas. Tais identidades assumem o controle da vida da pessoa, que também
apresenta grandes lapsos de memória.
Além de atentar para os critérios de diagnóstico do transtorno de múltipla
personalidade, atentemos também para o uso de certas palavras em detrimento
de outras. Para esta análise, recorro a Hacking (2000). Hacking é professor
universitário de Filosofia no Canadá e escreveu o livro Múltipla Personalidade e
as Ciências da Memória, que ganhou um prêmio da Sociedade Internacional
para o Estudo das Dissociações e atualmente é uma das principais referências
sobre a múltipla personalidade.
Em seu minucioso trabalho sobre as múltiplas personalidades e a
memória, Hacking comparou a versão do DSM anterior (DSM III-R, de 1987)
com a atual (de 1994), ressaltando alguns aspectos importantes em relação a
novas terminologias adotadas. Uma das patologias que sofreram alterações no
35
Por se tratar da terminologia mais comum, optei por utilizar, ao longo do texto, “transtorno de
múltipla personalidade”.
54
DSM IV foi o transtorno de múltipla personalidade que, inclusive, passou a se
chamar transtorno dissociativo de identidade, como disse acima.
Em relação a essa troca de terminologias, uma das discussões travadas
pelo DSM IV dizia respeito a palavra “distúrbio” (na versão brasileira, “transtorno
ver nota 32) contida no antigo transtorno de múltipla personalidade. Apesar do
DSM IV ter optado por não suprimir “distúrbio” [transtorno] do termo, Hacking
apresenta algumas oposições à palavra:
1.1.1.1.1.1.1.1.30.“Minha própria neutralidade faz com que eu tenha cuidado até
com o nome do tópico que estamos discutindo. Os nomes organizam nossos
pensamentos. Entre 1980 e 1994 o diagnóstico oficial era ‘Distúrbio [transtorno] de
Múltipla Personalidade’. (...) Falarei sobre a múltipla personalidade, mas
raramente direi ‘distúrbio [transtorno] de múltipla personalidade’. Em parte porque
desconfio da palavra ‘distúrbio’ [transtorno]. (...) A verdade, a pessoa verdadeira,
fica distorcida com a desordem (ou o distúrbio). (...) aqueles que protestam
ativamente contra a palavra ‘desordem’ para a múltipla personalidade. Esses
radicais sugerem que talvez todos nós sejamos realmente ltiplos. Alguns
clínicos foram quase até aí, e ouve-se a mesma coisa em alguns grupos de apoio
ao paciente.” (Hacking, 2000, p. 26-7)
O uso da palavra “transtorno”, contudo, não foi o maior problema que o
DSM encontrou em sua revisão de 1994. Até porque, como observamos acima,
da antiga terminologia, “transtorno” foi a única palavra mantida. Uma das trocas
que o novo DSM fez foi substituir “personalidade” por “identidade”, dadas as
críticas que o termo “personalidade” recebeu. Conforme informa Hacking:
1.1.1.1.1.1.1.1.31.“Outra palavra que atraiu ainda mais crítica que ‘distúrbio’
[transtorno] foi a palavra ‘personalidade’. Na verdade, a expressão ‘distúrbio
[transtorno] de ltipla personalidade’ caiu em desuso. A expressão oficial do
DSM IV, de 1994, é ‘distúrbio de identidade dissociativa (anteriormente distúrbio
de múltipla personalidade)’. A personalidade foi colocada entre parêntesis.”
(Hacking, 2000, p. 27)
Um dos motivos que levou o DSM a suprimir “personalidade” do
“transtorno de múltipla personalidade” foi a idéia de que uma pessoa poderia ter
muitas personalidades parecia errôneo. Nesse sentido, o DSM vai contra a
noção de mais de um eu em um corpo. De acordo com David Spiegel,
apresentado por Hacking como “presidente do comitê de distúrbios dissociativos
para o DSM IV de 1994” (Hacking, 2000, p. 28),
1.1.1.1.1.1.1.1.32.“(...) um grande mal-entendido quanto à psicopatologia
essencial do distúrbio dissociativo, que é uma falta de integração de vários
aspectos da identidade, memória e consciência. O problema não é ter mais de
uma personalidade, mas ter menos de uma.” (Spiegel, citado por Hacking, 2000, p.
28)
A partir do trecho citado acima, pode-se concluir que, para o DSM IV,
talvez o termo “transtorno de múltipla personalidade” fosse enganoso. Isso
55
porque, como ressalta Spiegel, o DSM IV não acredita que de fato existam
múltiplas personalidades no transtorno de múltipla personalidade. Não acredita
sequer que haja uma personalidade completa. Ou seja, ao que parece, o DSM IV
considera que, no transtorno de múltipla personalidade, uma falta de
integração de diferentes aspectos do eu, segundo eles, aspectos que dizem
respeito à identidade do sujeito, à sua memória e à sua consciência. Nas
pessoas, de modo geral, haveria uma integração entre esses três aspectos do
eu que não existiria no transtorno de múltipla personalidade. Justamente para
marcar a idéia de que o que existe neste transtorno é um problema de
integração que o nome passou a ser “transtorno dissociativo de identidade”, ou
seja, ele sugere mais uma separação, uma desagregação e, portanto, uma falta
de integração, e não uma multiplicidade do que quer que seja.
Essa crença do DSM IV de que não se trata de várias personalidades em
um só corpo fica mais explícita quando Hacking lembra que, no DSM III-R
(1987), um dos critérios diagnósticos do transtorno de múltipla personalidade era
a “existência” de mais de um estado de personalidade. Como podemos verificar
na citação da DSM IV acima, agora se fala em “presença” de mais de um estado
de personalidade, ao invés de “existência”. Spiegel, citado por Hacking, explica a
diferença entre as duas palavras:
1.1.1.1.1.1.1.1.33.“O DSM IV exigia a existência de mais de uma personalidade ou
estado de personalidade. Em 1994 foi exigida apenas a presença. Qual a
diferença entre existência e presença? Spiegel explicou: ‘Sentimos que a
existência acarreta uma crença de que realmente doze pessoas, quando na
verdade o que queremos registrar é que elas próprias se sentem assim.’”
(Hacking, 2000, p.30)
Nessa sutil modificação, muito do sentido foi alterado. A ênfase não recai
sobre a crença de que há, de fato, muitas personalidades, ou muitos eus, em
jogo no transtorno de múltipla personalidade. A idéia é a de que quem sofre do
transtorno tem a experiência das múltiplas personalidades, ou seja, tem lapsos
de memória, age como se fosse mais de uma pessoa, etc. Isso não significaria,
todavia, que de fato há mais de uma personalidade dentro de si. Essa noção que
o DSM quer passar não necessariamente é consensual.
Turkle, por exemplo, quando se refere aos múltiplos eus e também Stone,
quando questiona a norma “um eu-um corpo”, parecem estar em desacordo com
a definição do DSM IV. Hacking, em citação acima, lembra que a retirada da
palavra “transtorno”, faz com que possamos pensar que, na verdade, todos
podemos ser múltiplos. Os membros das associações de pacientes que sofrem
de múltiplas personalidades, geralmente se auto-intitulam simplesmente de
56
“múltiplos”. Além disso, como também afirmou Hacking, a escolha das
terminologias é muito importante. Podemos pensar que não é por acaso que,
mais de dez anos depois do DSM IV ter trocado o nome do transtorno de
múltipla personalidade, esse termo continue sendo mais usado do que
“transtorno dissociativo de identidade”. Voltaremos a esse aspecto mais tarde.
Agora, passemos a mais uma característica do transtorno de múltipla
personalidade.
3.2.2. “Made in USA”
Saindo da questão das terminologias, passemos a um dado demográfico
do transtorno de múltipla personalidade. De acordo com o DSM IV, no que se
refere à incidência demográfica da doença, “foi sugerido que as taxas
relativamente altas do transtorno recentemente relatadas nos Estados Unidos
poderiam indicar que esta é uma síndrome específica à cultura.” (APA, 2005)
O DSM IV não revela se considera ou não que o transtorno de múltipla
personalidade é uma síndrome específica à cultura. O fato de a localização
restrita do transtorno de múltipla personalidade ser mencionada pelo DSM IV
mostra, todavia, que essa é uma questão importante.
Para dar um exemplo pouco acadêmico da localização do transtorno de
múltipla personalidade, em 1º de agosto de 2005, realizei algumas pesquisas no
site de buscas da Internet chamado Google. Ao digitar “multiple personality
disorder”, encontrei 152.000 resultados no Google. Para dissociative identity
disorder”, apareceram 91.900 entradas. quando passava para o francês, em
personnalité multiple”, o número caiu para 3.460 e em trouble dissociatif de
l’identité encontrei 3.440 entradas. Em português, esse número chegou a 49
entradas para “transtorno de múltipla personalidade” e 46 para “transtorno
dissociativo de identidade”.
As três línguas que utilizei na “pesquisa” ao Google não foram escolhidas
por acaso. O inglês foi incluído por ser a língua dos EUA, que são o lugar
privilegiado da patologia
36
. O português, também pelo óbvio motivo de ser a
língua materna de nosso país, onde realizei minha pesquisa de campo. O
francês, menos óbvio, foi incluído porque, como veremos, a França faz parte da
história do transtorno de múltipla personalidade. Para tentar entender a quase
36
É óbvio que, sendo o inglês a primeira língua mundial, era de se esperar que houvesse mais
referências aos termos nesta língua do que nas outras. O que chama a atenção, entretanto, e que
a meu ver não pode ser explicado somente pela dominação da língua inglesa, é o pequeno
número de referências aos termos em francês e em português.
57
exclusividade do transtorno nos EUA, vejamos a história da múltipla
personalidade. Conforme informa Hacking, essa história começa na França. Em
suas próprias palavras:
1.1.1.1.1.1.1.1.34.“Quando a múltipla personalidade entrou em cena? (...) no dia
27 de julho de 1885. Na tarde desse dia, Jules Voisin, (...) médico proeminente do
Bicêtre, o asilo parisiense para homens, descreveu um paciente que esteve sob
seus cuidados de agosto de 1883 a 2 de janeiro de 1885. Seu nome era Louis
Vivet. (...) No final de fevereiro de 1885 [Vivet] foi internado no hospital militar de
Rochefort e foi atendido por Bourru e Burot. Em julho de 1885 Bourru relatou um
fenômeno inteiramente novo nos anais da psiquiatria. Vivet tinha oito estados
distintos de personalidade. (...) Nossa expressão, ‘múltipla personalidade’,
apareceu impressa na Inglaterra um ano depois, explicitamente para descrever
Louis Vivet.” (Hacking, 2000, p. 188-9)
Como podemos observar no trecho acima, o termo múltiplas
personalidades apareceu pela primeira vez no século retrasado. De acordo com
Hacking, todavia, a grande onda de múltiplas personalidades na França ocorreu
ainda antes, a partir do final da década de 1870. Essa onda não durou muito
tempo. “Na verdade, a onda francesa de múltiplos parou quase completamente
em 1910” (Hacking, 2000, p. 149), diz Hacking. O autor explica que a razão pela
qual a múltipla personalidade teria desaparecido da França é a de que, neste
país, as pessoas que sofriam de múltipla personalidade eram consideradas
histéricas. Assim, houve uma espécie de “colagem” da histeria e do transtorno
de múltipla personalidade. Hacking afirma que, entre os anos 1895 e 1910,
houve um desinteresse por parte da psiquiatria francesa pela histeria e que isso,
conseqüentemente, estendeu-se ao transtorno de múltipla personalidade.
A histeria, entretanto, continua sendo uma patologia que recebe muita
atenção na França. Esse fato não fez, porém, com que houvesse um
reaparecimento das múltiplas personalidades. O desinteresse momentâneo pela
histeria explicaria somente em parte a saída das múltiplas personalidades da
cena clínica francesa.
Após seu desaparecimento da França nos anos de 1910, o transtorno de
múltipla personalidade parecia de fato não mais existir. Até que, por volta dos
anos de 1970, volta-se a falar dele, mas agora em outro continente: na América
do Norte, mais especificamente, nos Estados Unidos. Sobre esse
reaparecimento, Hacking afirma:
1.1.1.1.1.1.1.1.35.“Desde 1982 os psiquiatras falam sobre ‘a epidemia da múltipla
personalidade’. A múltipla personalidade (...) só se tornou um diagnóstico oficial da
Associação Americana de Psiquiatria em 1980. (...) Dez anos antes, em 1972, a
múltipla personalidade parecia ser uma mera curiosidade. ‘Menos de uma dúzia de
casos foi relatada nos últimos cinqüenta anos’. Dez anos depois, em 1992, havia
centenas de múltiplos em tratamento em qualquer cidade de tamanho dio da
América do Norte.” (Hacking, 2000, p. 17)
58
Algo inusitado aconteceu. De “mera curiosidade”, o transtorno de múltipla
personalidade, em 20 anos, passou a ser uma epidemia nos Estados Unidos.
Mais importante, passou a ser uma epidemia única e exclusivamente nesse país,
dado que no resto do mundo a múltipla personalidade continua sendo um
transtorno que praticamente só existe nos manuais de psiquiatria.
Esse fato intriga não só estrangeiros, mas também americanos. Stone
(1995) conta que alguns psiquiatras americanos consideram o transtorno de
múltipla personalidade um “hoax”, ou seja, uma farsa, uma lenda. Segundo
Stone, outros ainda afirmam que o transtorno é o “OVNI” da psiquiatria
americana, ou seja, que haveria um reduzido número de pessoas que afirma
tratar de muitas pessoas com transtorno de múltipla personalidade, mas que, a
grande maioria, nunca recebeu um paciente sequer que pudesse receber tal
diagnóstico.
Hacking não chega a ser tão radical em relação às múltiplas
personalidades. Em seu livro, toma o cuidado de questionar alguns aspectos em
relação ao transtorno de múltipla personalidade sem, contudo, se posicionar
como crente ou descrente de sua existência. Aqui, destaco duas explicações que
ele para essa “epidemia” de múltiplas personalidades nos Estados Unidos. A
primeira é bastante simples e diz respeito à formação dos profissionais que
costumam diagnosticar pacientes como portadores de múltiplas personalidades.
Como afirma Hacking:
1.1.1.1.1.1.1.1.36.“Muitos clínicos não possuem o curso de mestrado ou doutorado
em psicologia, têm outra credencial: possuem mestrado em serviço social,
qualificação em enfermagem, ou são pessoas que fizeram cursos de regressão de
memória em fins de semana e que, a rigor, não são qualificadas.” (Hacking, 2000,
p. 19)
A julgar pela citação acima, poderia haver muitos casos erroneamente
classificados como transtorno de múltipla personalidade por conta de uma
formação precária de alguns clínicos americanos. Essa é, entretanto, apenas
uma das razões apresentadas por Hacking para a “epidemia” de múltipla
personalidade nos Estados Unidos. A questão fundamental que o autor
apresenta para essa epidemia” é, no entanto, de ordem mais complexa do que
a formação dos clínicos americanos. Ela tem a ver com a suposta causa da
múltipla personalidade. Passemos, então, a esse que é nosso próximo item de
discussão.
59
3.2.3. O transtorno de múltipla personalidade e o abuso infantil: uma
causalidade?
O transtorno de múltipla personalidade, diferentemente de outras
categorias clínicas, parece ter uma causa específica. No DSM IV, essa causa é
apresentada com cautela, como podemos ver no trecho abaixo:
1.1.1.1.1.1.1.1.37.“Os indivíduos com Transtorno Dissociativo de Identidade
freqüentemente relatam a experiência de severo abuso físico e sexual,
especialmente durante a infância. A acuidade desses relatos está envolta em
controvérsias, porque as recordações da infância podem estar sujeitas a
distorções e os indivíduos com este transtorno tendem a ser altamente
hipnotizáveis e especialmente sugestionáveis. Por outro lado, os responsáveis
pelos atos de abuso físico e sexual podem inclinar-se a negar ou distorcer seu
comportamento.” (APA, 2005)
Na citação acima, o DSM IV revela um impasse acerca da causalidade do
transtorno de múltipla personalidade. Parece, entretanto, que o DSM IV é menos
enfático na questão do abuso infantil do que podemos pensar a partir de Hacking
diz. Ele, em um capítulo intitulado “Abuso Infantil” mostra o crescimento da
obsessão americana por este tema e relaciona tal crescimento à chamada
“epidemia” do transtorno de múltipla personalidade.
Sobre o abuso infantil, parece que, ou a sociedade americana é composta
de muitos pais que abusam de seus filhos, ou um olhar tão voltado para o
tema que não permite diferenciar fantasias infantis de eventos realmente
ocorridos. Em muitos trechos do livro de Hacking, ele cita autores que recorrem
a Freud (1896/1969) e sua célebre “Teoria da Sedução” para tratar do abuso
infantil.
Para relembrar sucintamente a teoria da sedução, precisamos retroceder
no tempo e voltar a Freud e ao início de seus estudos sobre a histeria. Na época
começando suas investigações sobre a histeria, Freud buscava um trauma que
pudesse justificar os sintomas de suas pacientes. Ele incentivava suas pacientes
a lembrarem de acontecimentos da infância na busca desse evento traumático.
À medida que suas pacientes iam lembrando de momentos esquecidos na
infância, com freqüência relatavam terem sido seduzidas sexualmente por um
adulto próximo da família, um tio ou o próprio pai. Inicialmente, Freud acreditou
que a sedução de fato ocorria, ou seja, que suas pacientes haviam sofrido algum
tipo de abuso sexual cometida por pessoas próximas. Freud concluiu que essa
sedução ocorrida na infância das pacientes era o trauma que geraria seus
futuros sintomas histéricos.
60
Tempos depois, no entanto, após ouvir muitas histéricas relatarem terem
sido seduzidas na infância, Freud questionou sua própria tese. Ele começou a
estranhar a existência de tantos parentes que seduziam crianças, conforme
relatavam suas pacientes. A importante conclusão a que Freud chegou foi a de
que, na maioria dos casos, a sedução era uma interpretação ou uma fantasia da
paciente histérica. Para a paciente, essa sedução tinha a força e a vivacidade de
uma experiência de fato vivida, mas, na maior parte dos casos, tratava-se de
uma fantasia. Freud, após chegar a essa conclusão, abandonou a teoria da
sedução.
Essa teoria, no entanto, vem sendo de alguma forma retomada por autores
americanos. Hacking menciona vários deles que criticam Freud justamente por
não ter acreditado que suas pacientes eram de fato seduzidas e ter acabado
abandonando a teoria da sedução. Para tais autores, tanto na época de Freud
quando atualmente, um grande número de abusadores infantis nas famílias
ocidentais.
Como o abuso infantil é apontado como uma causa quase que
determinante do transtorno de múltipla personalidade, a conclusão de Hacking é
que “só uma sociedade preparada para reconhecer que a violência em família
existe por todo o lado poderia encontrar múltiplas personalidades por todo lado.”
(Hacking, 2000, p. 18)
O fato de o transtorno de múltipla personalidade ter uma causa tão
específica merece atenção. A maioria dos transtornos encontrados no DSM IV e
na CID 10 não possuem uma causalidade única e certa. Geralmente, são
apontadas diversas causas possíveis para determinado transtorno, ou seja, é
muito incomum acontecer, como nas múltiplas personalidades, de um transtorno
ter uma causa tão precisa, salvo estados ocasionados por intoxicações,
geralmente de drogas.
Além da causalidade e das características que apresentei acima, ainda
uma última característica que gostaria de ressaltar sobre o transtorno de múltipla
personalidade. Vamos a ela.
3.2.4. Algumas palavras sobre gênero
O último aspecto do transtorno de múltipla personalidade que gostaria de
ressaltar é a incidência da doença sobre o gênero feminino. Novamente, no DSM
IV, encontramos que “O Transtorno Dissociativo de Identidade é diagnosticado
três a nove vezes mais freqüentemente em mulheres adultas do que em homens
61
adultos” (APA, 2005). Hacking ainda é mais radical ao afirmar a incidência do
transtorno em mulheres. Segundo ele, “nove entre dez pacientes que tiveram
diagnóstico de distúrbio de múltipla personalidade eram mulheres. (...) Na
grande onda de múltiplos ocorrida na França, todos eles [múltiplos] eram, mais
que tudo, grandes histéricos.” (Hacking, 2000, p. 81)
Na frase de Hacking não só há a constatação de que a grande maioria das
pessoas que recebem o diagnóstico de múltipla personalidade são mulheres,
mas também uma comparação com a histeria. Podemos, então, destacar
basicamente três comparações entre as duas categorias clínicas: a primeira,
explicitada anteriormente, é a fusão na França no final do século XIX, entre a
histeria e o transtorno de múltipla personalidade. A segunda é a adoção literal da
teoria da sedução de Freud, teoria essa sabidamente construída a partir das
observações de suas pacientes histéricas. A terceira é o gênero, já que a histeria
também é uma patologia feminina por excelência. Essas semelhanças poderiam
nos levar a discutir se, de fato, o transtorno de múltipla personalidade existe ou
se é, na verdade, uma manifestação histérica, conforme diziam os franceses.
Essa discussão, no entanto, é muito ampla e foge ao objeto do meu estudo, de
forma que somente deixarei apontadas aqui essas semelhanças sem me
aprofundar na questão.
Encerro aqui a descrição do transtorno de múltipla personalidade. Escolhi
destacar suas características, sua localização, sua causa e seu gênero mais
típicos, pois esses são os principais aspectos que envolvem as múltiplas
personalidades. Percorrendo cada um desses elementos do transtorno de
múltipla personalidade, procurei também levantar as inúmeras questões que
envolvem esse diagnóstico. Isso foi feito para que possamos, agora, discutir a
aproximação entre os múltiplos eus descritos por Turkle e o transtorno de
personalidade múltipla.
3.2.5. Comparando o transtorno de múltipla personalidade e os
múltiplos eus
Para discutir as relações entre o transtorno de múltipla personalidade e os
múltiplos eus, novamente recorrerei a um caso relatado por Stone (1995).
No segundo capítulo de seu livro, Stone conta a história de Sarah, que no
conservador estado de Wisconsin, mais especificamente em Oshkosh, abriu um
processo criminal contra Peterson, acusando-o de estupro. A peculiaridade deste
caso reside no fato de que Sarah tinha o diagnóstico de transtorno de múltipla
62
personalidade. De acordo com Stone, o estupro que Sarah dizia ter sofrido teria
sido uma relação sexual consentida entre Peterson e Franny, uma personalidade
de Sarah.
Stone relata que Peterson, assim como quase toda sua vizinhança, tinha
conhecimento de que Sarah possuía transtorno de múltipla personalidade. Para
Sarah, Peterson teria se aproveitado do fato dela ter múltiplas personalidades,
pois sabia que não estava tendo relações sexuais com Sarah, mas com Franny,
uma de suas personalidades.
A discussão que caso provocou era a seguinte: Sarah teria sido realmente
estuprada? Ou, ao contrário, deveria assumir a responsabilidade do ato de sua
personalidade Franny, que consentiu a relação sexual e, portanto, o “se
considerava” estuprada? O desfecho desse caso, que causou grande comoção
nos Estados Unidos foi a condenação de Peterson.
Isso porque, de acordo com as leis de Wisconsin, qualquer relação sexual
mantida com alguém “portador de doença mental” pode ser considerada estupro.
Assim, podemos inferir que, mesmo que a própria Sarah tivesse mantido
relações sexuais consentidas com Peterson, ele poderia ser condenado, que
ela sofre de transtorno de múltipla personalidade. Se Sarah tivesse um retardo
mental, fosse esquizofrênica, ou possuísse qualquer outro diagnóstico que a
enquadrasse na categoria “portadora de doença mental”, o resultado seria,
provavelmente, o mesmo.
Neste caso, Stone descreve seu próprio incômodo com a condenação de
Peterson. Para Stone, ao levar a sério a palavra “transtorno no transtorno de
múltipla personalidade, o caso se resolveu da maneira mais simples. Nesse
ponto, Stone tem razão. Ao julgar Sarah como “portadora de doença mental”,
Wisconsin se eximiu de tratar de assuntos relativos à responsabilidade que
Sarah poderia ou não assumir pelo ato de uma de suas personalidades.
O ponto a que Stone chega, entretanto, é pensar em como se pode discutir
as múltiplas personalidades sem pensar no raciocínio de causalidade por trás
delas e, conseqüentemente, sem patologizá-las.
No capítulo anterior, critiquei a tentativa de Turkle de falar do transtorno de
múltipla personalidade descartando o conteúdo patológico que o termo
“transtorno” carrega. Como afirmei antes, não é possível utilizar uma patologia
como exemplo destacando apenas características “neutras” dela, jogando fora a
patologia em si.
Essa crítica que fiz, todavia, não se restringia ao transtorno de múltipla
personalidade, mas a qualquer tentativa de utilizar uma patologia para descrever
63
um modelo de subjetividade a princípio não-patológico. Tanto que a crítica não
recaiu somente sobre Turkle, mas também sobre Jameson (1997), que faz algo
semelhante com a esquizofrenia.
No caso específico do transtorno de múltipla personalidade, contudo, o
problema de ele servir de inspiração para a descrição dos múltiplos eus vai além
do fato do transtorno de múltipla personalidade ser uma patologia e os múltiplos
eus não. Na verdade, o maior problema é que, quanto mais nos aprofundamos
nas características do transtorno de múltipla personalidade, encontramos menos
semelhanças entre ele e os múltiplos eus. Para visualizarmos melhor as
diferenças entre o transtorno de múltipla personalidade e os múltiplos eus,
voltemos às características do transtorno.
Uma das características do transtorno de múltipla personalidade que
ressaltei foi sua incidência geográfica. Como vimos, o transtorno de múltipla
personalidade surgiu na França por volta de 1870 como um tipo de histeria. Em
1910 quase não se ouvia falar na doença. Um século depois de seu
aparecimento na França ele aparece nos EUA, como um diagnóstico próprio, ou
seja, sem a relação com a histeria. Na década de 1990, o transtorno parece
atingir níveis altíssimos, quase epidêmicos segundo Hacking. A curiosidade é
que isso ocorreu nos EUA. No restante do mundo, o transtorno de múltipla
personalidade continua sendo quase folclórico.
Sobre os múltiplos eus descritos de Turkle, na medida em que ela relata
história de americanos, não haveria muito problema na comparação com o
transtorno de múltipla personalidade. Isso se, de fato, a multiplicidade que os
usuários de chats parecem experimentar também fosse restrita aos EUA. Não
podemos esquecer, no entanto, que minha pesquisa e tantas outras foram
levadas a cabo em outras partes do mundo, onde o transtorno de múltipla
personalidade praticamente não existe. Os relatos dos sujeitos de Turkle e dos
meus são muito parecidos. Em um mundo cada vez mais globalizado, é difícil
aceitar a comparação de um fenômeno que extrapola as fronteiras de um país
a multiplicidade experimentada pelos usuários de chats, por exemplo – com algo
tão circunscrito como o transtorno de múltipla personalidade.
Outra característica que destaquei foi a causalidade. O transtorno de
múltipla personalidade é um dos poucos na psiquiatria que parece ter uma
causalidade específica. Acredita-se que a causa para o aparecimento do
transtorno de múltipla personalidade esteja intimamente relacionada ao abuso
sexual na infância.
64
Em relação a esse tópico, é óbvio que nem Turkle tampouco Stone
acreditam que os sujeitos com múltiplos eus tenham sido sexualmente
molestados na infância. Essa é parte patológica do transtorno, rótulo do qual as
autoras procuram escapar. De qualquer modo, é mais uma diferença importante
entre o transtorno de múltipla personalidade e os múltiplos eus.
também questão do gênero. O transtorno de múltipla personalidade
atinge muito mais mulheres do que homens, em cada dez portadores do
transtorno, nove são mulheres. Isso também não parece acontecer com os
sujeitos com múltiplos eus descritos por Turkle. Turkle e Stone, em momento
algum, mencionam qualquer diferença de gênero. Na pesquisa de Turkle foram
entrevistados tanto homens quanto mulheres. O mesmo acontece em minha
pesquisa. Na verdade, nela havia até mais entrevistados do sexo masculino (10,
contra 6 do sexo feminino).
As características mais importantes do transtorno de múltipla
personalidade, todavia, deixei para o final. Essas são aquelas que talvez
pudessem ter mais identificações com os múltiplos eus de Turke. Vamos a elas.
De acordo com o DSM IV, o transtorno de múltipla personalidade acontece
quando duas ou mais identidades que assumem o controle da vida do sujeito. No
momento em que essas identidades tomam o sujeito, ele não tem consciência do
que faz, ocorrendo assim lapsos de memória.
Sobre essas características, poderíamos pensar, em um primeiro
momento, que a semelhança entre o transtorno de múltipla personalidade e os
múltiplos eus está justamente na presença de duas ou mais identidades. É isso
que Turkle parece imaginar quando fala de múltiplos eus e que Stone
complementa quando se diz contrária à tese de que em cada corpo humano
somente uma personalidade.
Se assumirmos essa semelhança, ainda assim no caso dos múltiplos eus,
por mais que um nick criado em um chat possa vir a causar desconforto para o
sujeito que a criou, Turkle não relata nenhum caso em que qualquer uma desses
nicks assume o controle da vida do sujeito. Na literatura não encontrei qualquer
coisa a esse respeito. Tampouco um usuário de chat tem lapsos de memória
quando está incorporando determinado nick. Pelo contrário, ele tem a
consciência de que é ele quem cria aquele nick, por mais que muitas vezes
possa se surpreender com suas próprias atitudes no chat.
Como se não bastassem todas as diferenças entre o transtorno de múltipla
personalidade e os múltiplos eus, ainda um problema principal. A suposta
semelhança entre eles, ou seja, a existência de mais de uma identidade em cada
65
sujeito, é uma falsa semelhança. Isso porque se lembrarmos de Spiegel, do
comitê do DSM IV, veremos o quanto ele considerava errôneo considerar que
havia mais de uma personalidade em uma pessoa no transtorno de múltipla
personalidade. Para ele, por mais que a pessoa pudesse ter sintomas que
levassem alguém a pensar que ela tivesse muitas personalidades dentro de si,
isso não ocorria de fato. Na verdade, para Spiegel, o transtorno acarreta em uma
dissociação entre aspectos da personalidade. Assim, para ele a característica do
transtorno de múltipla personalidade não era ter muitas personalidades dentro de
si, mas ter uma personalidade tão rudimentar que talvez não pudesse sequer ser
UMA personalidade inteira.
A partir dessa nova explicação de Spiegel, concluímos que a única
semelhança que poderia ser destacada entre o transtorno de múltipla
personalidade e os múltiplos eus também cai por terra. Essa é a conclusão a que
cheguei após a investigação sobre as múltiplas personalidades e que apresento
abaixo. A partir daí, também posso chegar a algumas poucas conclusões sobre
o que os usuários de chat experimentam e que me recuso a chamar de múltiplos
eus.
3.3. Algumas conclusões sobre a multiplicidade e os múltiplos eus
O problema que se apresenta agora é se a multiplicidade a qual me refiro
em minha pesquisa equivale aos múltiplos eus de Turkle e Stone.
Ao que me parece, o caminho dos múltiplos eus pode vir a ser o
espinhoso quanto ao das múltiplas personalidades. A começar pelo fato de que
uma explícita comparação entre os dois termos. Como, todavia, tentei
explicar acima, há muito mais diferenças entre os termos do que a simples
presença ou ausência do prefixo “transtorno”. Tentar tirar o caráter patológico
intrínseco ao transtorno de múltipla personalidade não torna a comparação mais
fácil. Ao contrário, mesmo a multiplicidade envolvida no transtorno de múltipla
personalidade é muito diferente da multiplicidade dos múltiplos eus. Isso porque,
como vimos, o DSM IV, a partir de 1994, retira os termos “múltiplo” e
“personalidade”, justamente na tentativa de se afastar da idéia de muitas
personalidades em uma só pessoa. Os movimentos, portanto, parecem ser
contrários: ao passo que o DSM IV talvez aposte em uma personalidade mais
rudimentar e, nesse sentido, MENOS do que UMA personalidade, Turkle e Stone
apostam na multiplicação dos eus.
66
Se, portanto, os múltiplos eus, que são definidos a partir do transtorno de
múltipla personalidade, não são tão parecidos assim com a patologia, como se
pode defini-los? Acredito que a pista dada por Spiegel pode ser proveitosa,
embora não esteja preparada para responder com propriedade a essa questão.
O que considero uma “pista” dada por Spiegel é a diferença que a DSM IV
faz entre “existência” e “presença” de estados distintos de identidade no
transtorno de múltipla personalidade. Conforme ele explica, existência” implica
na crença de que “realmente” se acredita que mais de uma personalidade
naquele corpo. a “presença” é uma sensação de que a pessoa que sofre do
transtorno tem mais de uma pessoa realizando ações em sua vida.
Se eu pudesse comparar os múltiplos eus com o transtorno de múltipla
personalidade, essa sutileza entre presença e existência seria o que eu
provavelmente destacaria. Isso porque, assim como pode ocorrer no transtorno
de múltipla personalidade, uma diferença grande entre dizer que múltiplos
eus e dizer que o sujeito experimenta a sensação de possuir muitos eus.
Ao afirmar a existência de múltiplos eus, muitas perguntas não podem ser
respondidas a contento (pelo menos até agora). O primeiro problema que
podemos destacar (e que já mencionei no capítulo anterior) é o da gerência
desses eus. Na Internet, por exemplo, por mais que Stanford Lewin, o psiquiatra
travestido citado por Stone, pudesse se sentir diferente quando era Julie, ainda
assim, se o telefone tocasse ou se ele recebesse um chamado de emergência
no hospital, Julie jamais tomaria o lugar de Lewin. Que múltiplos eus são esses
se eles são controlados por um único eu? Há uma espécie de hierarquia entre os
eus? Há um “eu” principal?
Além disso, se pudessem existir vários eus sem alguma hierarquia, em
algum momento o sujeito fatalmente precisaria experimentar vivências de
fragmentação, que tanto os esquizofrênicos quanto aqueles que sofrem de
transtorno de múltipla personalidade apresentam. Até o momento, a não ser
nesses casos de patologia, não encontrei registros desses sentimentos em
usuários da Internet, por exemplo, por mais nicks que eles possam fazer uso.
Parece-me, entretanto, que dizer que os sujeitos podem ter uma
experiência de multiplicidade bastante interessante. Acredito que pode ser isso
que Stanford Lewin tenha vivido, assim como acredito que pode ser essa a
experiência dos sujeitos que entrevistei pela Internet.
Não penso, todavia, que se sentir, por algum período de tempo, múltiplo,
ou seja, ter a sensação de poder agir de diversas formas quando se está na
Rede é pouco. Certamente é menos do que ter múltiplos eus. Lembremos,
67
porém, que nossos sentimentos e a imagem que fazemos de nós mesmos fazem
parte de nossa constituição subjetiva. Apesar de ainda não ter elementos para
afirmar onde isso tudo vai parar, acredito que essa multiplicidade que meus
sujeitos vivem é uma forma nova de se ver no mundo e que isso ainda precisará
de muito caminho para se chegar a uma idéia conclusiva.
Neste capítulo, como era de se esperar, cheguei a poucas conclusões. A
primeira delas diz respeito à comparação entre múltiplos eus e transtorno de
múltipla personalidade. Acredito que tal comparação é motivada pela incidência
do transtorno nos EUA, país em que Stone e Turkle residem. Conforme tentei
explicitar acima, contudo, considero tal comparação equivocada, em primeiro
lugar devido as controvérsias ao redor do transtorno, o que torna a definição
dele por si difícil, quanto mais sua comparação com outra coisa. A esse fato
soma-se o de que, ainda que não houvesse problemas de definição no
transtorno de múltipla personalidade, ao olharmos mais de perto, muito mais
diferenças do que semelhanças entre ele e os múltiplos eus.
A outra conclusão a que chego ao final desse capítulo é que uma
diferença entre o que acredito ser a multiplicidade experimentada pelos sujeitos
de minha pesquisa e os múltiplos eus. Como ressaltei acima, o conceito dos
múltiplos eus me parece controverso e com pouca possibilidade de se sustentar
teoricamente. Apesar disso, para utilizar as palavras de Gonçalves, parece que a
“subjetividade concreta” dos sujeitos da minha pesquisa é semelhante à
“subjetividade concreta” dos sujeitos da pesquisa de Turkle.
No próximo capítulo, examinarei uma possibilidade que a Internet traz para
o sujeito: a do brincar. Não me refiro aqui, contudo, ao que usualmente
chamamos de brincar, mas sim ao conceito de brincar de D. W. Winnicott. Como
veremos, Winnicott, com seus conceitos de brincar e de espaço potencial,
servirá de inspiração para as reflexões que se seguem.
68
4.
“O brincar e a realidade” (virtual)
“Tudo que não invento é falso” (Manoel de Barros)
Algumas pessoas, quando visitam um lugar pela primeira vez, ao invés de
quererem conhecer a Torre Eiffel, caso estejam em Paris, ou o Cristo Redentor,
caso estejam no Rio, preferem fazer programas “não turísticos”. Visitar os locais
que o cidadão comum freqüenta, ir aos merc ados populares, comer a comida do
dia-a-dia. Ao invés da feijoada, o feijão-com-arroz trivial; troca-se o fino da
nouvelle cuisine pelas prosaicas baguettes.
Este tipo de viajante que dispensa os programas turísticos típicos de uma
cidade, provavelmente assim o faz porque sabe que a alma de um povo está em
seu dia-a-dia. O cotidiano do cidadão comum é algo que o define, que marca seu
modo de ser, de pensar, de sentir. Em termos acadêmicos, diríamos que o
cotidiano forja seu funcionamento subjetivo.
Se seguirmos esse raciocínio, podemos imaginar a mudança que
alterações no dia-a-dia trazem para a vida das pessoas. Como lembra Nicolaci-
da-Costa (2002a), grandes transformações de ordem subjetiva ocorreram a partir
das alterações no cotidiano que a Revolução Industrial provocou. Essa revolução
começou com o advento da máquina a vapor. A partir da invenção dessa
máquina, deflagrou-se um processo irreversível de transformações econômicas,
políticas, sociais e, finalmente, subjetiva.
Podemos dizer que algo análogo aconteceu com a Internet que, em 1995,
tornou-se comercial no país. pouco mais de dez anos ela adentrou o lugar
mais caro ao cotidiano das pessoas: seus lares. Como aconteceu com a
máquina a vapor, a partir da difusão da Internet ocorreram muitas
transformações nas esferas econômicas, políticas, sociais e subjetivas. Assim, a
entrada da Rede no dia-a-dia, não dos brasileiros, mas de muitos cidadãos
médios do mundo afora, vem trazendo mudanças nos seus modos de pensar, de
sentir, de agir, de se relacionar com outras pessoas.
Como toda mudança que atinge o cotidiano, ela vem sendo examinada
constantemente por especialistas. No jornal, é comum profissionais de áreas de
69
saúde e de ciências humanas serem chamados a falar sobre as conseqüências
do uso da Rede sobre crianças, jovens e adultos. Nos meios acadêmicos, muito
vem sendo dito a esse respeito. Notadamente, como sinaliza Nicolaci-da-Costa
(2002b; 2003), boa parte do que vem sendo publicado focaliza-se nos efeitos
nocivos do uso intensivo da Internet.
Embora a preocupação com os prejuízos que o uso da Internet pode trazer
para o sujeito seja bastante pertinente, meu foco neste capítulo é outro. Gostaria
de chamar a atenção para outras possibilidades do uso da Internet,
possibilidades positivas e enriquecedoras.
Essa vem sendo minha tentativa na presente tese. Meu objetivo, no
entanto, não se limita a ressaltar as possibilidades menos nefastas do uso da
Internet e das transformações subjetivas na atualidade. Minha intenção é fazer
isso sem ter que recorrer às metáforas patológicas que tanto critiquei no
segundo e terceiro capítulos. A idéia é falar de aspectos não-patológicos
recorrendo a metáforas também não-patológicas, ao invés de percorrer o difícil
caminho de despatologizar categorias patológicas.
Apesar de falar do sujeito atual sem recorrer à patologia parecer uma
tarefa fácil, ela não é. Nisbet (1966), em outra época, ressaltava que é muito
difícil olhar o novo sem nostalgias. Nicolaci-da-Costa (2003), muitos anos depois,
poderia concordar com ele, que vem ressaltando o quanto é mais fácil
encontrar visões catastróficas sobre o sujeito atual do que visões positivas. Não
deve ser por acaso que, mesmo autores como Jameson (1997), Stone (1995) ou
até Turkle (1997), que não se interessam pela patologia do sujeito atual, não
conseguiram fugir dela.
A fim de destacar os aspectos positivos da subjetividade atual utilizando
metáforas positivas, fui buscar inspiração em autores que, em outros tempos de
mudança, buscaram esse caminho. Nesta busca deparei-me com D. W.
Winnicott (1971; 1999), pediatra e psicanalista, que viveu entre 1896 e 1971
37
.
Em um primeiro momento, pode parecer estranho escolher um pediatra e
psicanalista tendo em mente um olhar positivo sobre a subjetividade. Tanto
médicos quanto psicanalistas costumam ter como foco a doença. Se a doença
fosse o único foco de Winnicott seria um contra-senso utilizá-lo aqui, a não ser
37
Gostaria de ressaltar que, neste capítulo, aproprio-me de alguns conceitos de Winnicott de forma
simplificada, tomando-os como fonte de inspiração para algumas reflexões. Com isso quero dizer
que não estou partindo do ponto de vista da psicanálise para utilizar esses conceitos, mas de um
ponto de vista quase leigo. Dessa forma, tenho ciência de que os conceitos que utilizo aqui o
mais complexos do que aparecem no texto e, certamente, estão interligados com outros da obra
de Winnicott que não serão contemplados.
70
como contraponto. O fato é que Winnicott, entretanto, fugiu à regra de muitos de
seus colegas e não se deteve somente na patologia.
Winnicott viveu na Inglaterra e lá presenciou as duas Grandes Guerras. Ele
pôde observar, portanto, momentos em que o cotidiano das pessoas sofreu
profundas alterações. Posso inferir que, provavelmente, foi testemunha de
muitas transformações subjetivas geradas por esses contextos bélicos.
Apesar dos contextos de guerra favorecerem, com razão, as visões
pessimistas ou mesmo catastróficas acerca da vida como um todo, Winnicott
pôde ter uma visão diferente em alguns momentos de seu trabalho. Em O
Brincar e a Realidade, livro lançado no ano de sua morte, ele diz que:
1.1.1.1.1.1.1.1.38.“Podemos examinar a sociedade em termos das doenças (...)
Não escolhi examinar a sociedade sob esse aspecto. Escolhi examiná-la em
termos de sua saúde, isto é, em seu crescimento ou rejuvenescimento perpétuos,
naturalmente a partir da saúde de seus membros, psiquiatricamente sadios.”
(Winnicott, 1975, p. 190)
Essa escolha de Winnicott pela saúde o coloca, de fato, em uma posição
muito diferente da maior parte de seus colegas psicanalistas. Ele, inclusive, diz
que a psicanálise não é um modo de vida. Sempre esperamos que nossos
pacientes terminem a análise e nos esqueçam: e descubram que o próprio viver
é a terapia que faz sentido” (Winnicott, 1975, p. 123).
Essa frase de Winnicott já nos dá pistas de um dos seus interesses: a vida.
Acima, vimos também que ele se interessa pela saúde dos pacientes. Mesmo
em seu trabalho com crianças refugiadas em Oxfordshire, podemos ver vestígios
desse interesse de Winnicott.
No período da Segunda Guerra Mundial, havia na Inglaterra lugares que
acolhiam crianças que, para sua própria segurança, eram separadas dos pais,
muitas vezes por iniciativa destes. Como relata Salem (2006), “foi neste contexto
que, em 1940, o psicanalista e pediatra Donald Winnicott foi indicado para ser o
consultor psiquiátrico do Esquema de Evacuação do Condado de Oxford”
(Salem, 2006, p. 87).
O trabalho com as crianças afastadas de sua família pela guerra foi
fundamental na carreira de Winnicott, como informam Salem e Rodman (2003).
Foi a partir dessa experiência, por exemplo, que Winnicott publicou uma série de
artigos sobre a delinqüência e o comportamento anti-social. Segundo Rodman,
biógrafo de Winnicott, as crianças que estavam nestes abrigos “não se ajustaram
bem às condições dos tempos de guerra” (Rodman, 2003, p. 90) e tinham muitos
problemas de comportamento.
71
Provavelmente o ambiente em que Winnicott se encontrava não era
propício a grande otimismo. Ainda assim Winnicott pôde olhar para essas
crianças com olhos, senão otimistas, no mínimo esperançosos. Segundo Salem,
a confiança é um conceito central na obra de Winnicott. É a partir da confiança
no ambiente que uma pessoa pode desenvolver-se de forma saudável. Em
Oxfordshire, trabalhou com crianças que, por estarem longe de sua família, em
lugares estranhos e muitas vezes pouco acolhedores, pareciam ter perdido a
crença no ambiente. Ainda assim, procurou observar aquelas crianças que
tentavam insistentemente recriar um ambiente em que pudessem confiar.
Se o olhar positivo de Winnicott ainda não fosse suficiente para tê-lo como
inspiração para as reflexões que farei adiante, também outra característica
que torna Winnicott muito interessante. Refiro-me ao seu pensamento livre.
A esse respeito, Rodman narra um episódio em que Winnicott, em
novembro de 1945, apresenta um artigo à British Psycho-Analytical Society. Ele
inicia esse artigo dizendo que:
1.1.1.1.1.1.1.1.39.“Em primeiro, não devo fazer um apanhado histórico e mostrar o
desenvolvimento de minhas idéias a partir das teorias dos outros, porque minha
mente não funciona deste modo. O que acontece é que eu pego isso e aquilo,
aqui e ali, me remeto à experiência clínica, formo minhas próprias teorias e aí, em
último lugar, me interesso em ver de onde eu roubei o quê.” (Winnicott, citado por
Rodman, 2003, p. 3)
38
Winnicott, como está exemplificado no trecho acima, foi um autor que
tentou ter o espírito livre para olhar o mundo com os próprios olhos. Essa
característica é muito interessante, principalmente em tempos de grandes
mudanças. Como ressaltei acima citando Nisbet, épocas de grandes mudanças
costumam suscitar a nostalgia do tempo que passou. Esse não parece ter sido o
caso de Winnicott. Além disso, como vimos, em um tempo e lugar sob a ruína da
Guerra, ele apostou na reconstrução. Esse espírito de liberdade e de
reconstrução de Winnicott aparece bastante em O Brincar e a Realidade, que é
a base desse capítulo.
Um dos temas principais de O Brincar e a Realidade, como o próprio
título do livro indica, é algo que remete ao júbilo: o brincar. Tanto é que, para
Winnicott, brincar, essencialmente, satisfaz(Winnicott, 1975, 77). O brincar de
Winnicott, todavia, é algo bastante sério no que diz respeito à subjetividade.
Além disso, o brincar faz parte de um conceito maior de suma importância para o
38
I shall not give first na historical survey and show the development of my ideas from the theories
of others, because my mind does not work that way. What happens is that I gather this and that,
here and there, settle down to clinical experience, form my own theories and then, last of all,
interest myself in looking to see where I stole what.” (tradução minha)
72
desenvolvimento saudável do sujeito. Esse conceito maior que, obviamente,
também me interessa neste capítulo, é o espaço potencial. Como explicarei
abaixo, é o espaço potencial que possibilita o brincar, como Winnicott o define.
Escolhi descrever os conceitos de espaço potencial e do brincar de
Winnicott não apenas porque eles remetem a idéias positivas, relativas à saúde
e não à doença. Minha opção também se deu porque acredito haver uma
possível correlação entre esses conceitos e a forma como alguns de meus
entrevistados utilizam a Internet.
No que se segue, convido o leitor a viajar comigo pelo uso da Internet a
partir das inspirações advindas dos conceitos de espaço potencial e do brincar
winnicottianos. Para estabelecer a relação entre esses conceitos de Winnicott e
a pesquisa que realizei, será necessário, primeiramente, explicar tais conceitos.
Como costuma ocorrer com outros autores, para que a compreensão do espaço
potencial e do brincar seja satisfatória, precisarei introduzir outros conceitos
interligados, que veremos abaixo. Após a apresentação desses conceitos
relacionarei o espaço potencial e o brincar com a pesquisa que realizei.
4.1. Montando o quebra-cabeça: uma possível definição de
conceitos
Conforme afirmei acima, não é possível definir o espaço potencial e o
brincar para Winnicott sem lançar mão de outras idéias do autor. Isso
provavelmente acontece porque Winnicott não é um autor sistemático, isto é, ele
se preocupa pouco em definir exaustivamente seus conceitos. Assim, ele pode,
muitas vezes, apresentar a mesma idéia utilizando termos diferentes. Além
disso, nem sempre ele tem o rigor de relacionar ordenadamente os conceitos
entre si.
Apesar da falta de sistematicidade de Winnicott não diminuir seu
brilhantismo, ela requer, por parte do leitor, algum esforço de compreensão. De
certo modo, cabe ao leitor montar uma rede a partir dos conceitos winnicotianos.
É isso que acontece, por exemplo, em relação aos conceitos de espaço
potencial e do brincar. Além desses dois conceitos estarem interligados, para
falar do espaço potencial e do brincar, Winnicott ainda adiciona outros conceitos.
A relação entre tais conceitos e o espaço potencial e o brincar, no entanto, nem
sempre é clara. Por isso, o que será visto abaixo é uma tentativa de montar uma
espécie de quebra-cabeça. Cabe lembrar que, em alguns momentos, algumas
73
idéias poderão ser repetidas para que haja uma melhor compreensão dos
conceitos de Winnicott.
No que se segue, apresentarei primeiramente o espaço potencial, que é
um conceito mais abrangente, para depois chegar ao brincar. Na medida em que
for necessário para a compreensão do espaço potencial e do brincar, incluirei
também a definição de outros termos de Winnicott.
4.1.1. O espaço potencial
Além de ter exercido a profissão de pediatra por muitos anos, Winnicott
também era psicanalista infantil, o que lhe deu muita experiência com crianças.
As suas experiências com crianças e o fato de Winnicott ser psicanalista fizeram
com que seu olhar se voltasse para as fases iniciais da vida de um ser humano.
Para Winnicott, assim como para muitos psicanalistas, as experiências iniciais da
vida são de extrema relevância para a vida adulta. Para ele, a primeira
experiência de um ser humano no mundo tem uma ligação estreita com sua
futura organização subjetiva. Essa primeira experiência é a relação entre a mãe
e o bebê. É dessa relação que Winnicott parte para apresentar muitos de seus
conceitos e com o espaço potencial isso não é diferente. Por isso, para
chegarmos ao espaço potencial, é preciso abordar a relação mãe-bebê.
Segundo Winnicott (1975), quando o bebê nasce, ele se encontra em um
estado de indiferenciação em relação à mãe. A mãe, Winnicott esclarece, não é
necessariamente a mãe biológica do bebê, mas aquela pessoa que se dedica
aos cuidados dele. Neste sentido, Winnicott diz que se trata mais de alguém que
exerce uma função de mãe do que necessariamente aquela que é de fato a mãe.
No entanto, ele segue utilizando a palavra mãe, farei o mesmo aqui.
Seguindo o raciocínio de Winnicott, se o bebê, neste momento inicial,
ainda não tem capacidade de se distinguir da mãe, ele também não se diferencia
do mundo
39
. Com isso, não ainda a constituição do que costumamos chamar
de mundo interno e mundo externo. Tudo, neste momento, está mesclado,
havendo apenas uma espécie de fusão mãe-bebê, isto é, eu-mundo.
39
Sobre o suposto estado de indiferenciação inicial mãe-bebê, há atualmente uma polêmica.
Alguns autores defendem a idéia de que não há de fato uma simbiose mãe-bebê, mas uma relação
de continuidade subjetiva. Essa discussão, apesar de muito interessante, requer um grau de
conhecimento e aprofundamento na teoria de Winnicott que não será possível nesta tese. Assim,
apesar de ciente de tal debate, optei por utilizar o mesmo termo que Winnicott, tentado, assim,
afastar-me o quanto possível desta discussão. Para um esclarecimento sobre o tema, ver Salem,
2006.
74
Se o bebê, todavia, nos primeiros momentos de vida, encontra-se
indiferenciado em relação à mãe, sabemos que, em outro momento, haveum
sujeito constituído propriamente dito. Ou seja, em alguma época, haverá uma
diferenciação entre o bebê e a mãe, entre ele e o mundo. Assim, diz Winnicott,
chegará o tempo em que haverá um “mundo interno” e uma “realidade externa”.
Até esse ponto, muitos outros autores tinham chegado antes de
Winnicott. A diferença entre ele e os outros não está, portanto, na idéia de uma
indiferenciação inicial mãe-bebê. O aspecto distintivo do raciocínio de Winnicott
está no fato de que ele pensa em um terceiro espaço, em uma espécie de
interseção entre o mundo interno e realidade externa.
Esse terceiro espaço é o espaço potencial. Como já foi mencionado,
contudo, nem sempre ele utiliza a mesma palavra para se referir a um conceito.
No caso do espaço potencial, isso se complica mais um pouco, pois se trata de
um conceito amplo. Utilizando uma imagem bastante simplificadora, diria que, se
o espaço potencial pudesse ser um círculo, dentro dele estariam vários outros
conceitos. Desse modo, além de Winnicott muitas vezes utilizar espécies de
sinônimos para o espaço potencial, como “terceira parte da vida de um ser
humano” ou “área intermediária de experimentação”, ele ainda troca espaço
potencial por algum outro conceito que estaria dentro do espaço delimitado pelo
círculo imaginário. Como veremos abaixo, o espaço potencial pode aparecer
como “o brincar” ou como “experiência cultural”, muito embora esses conceitos
não sejam o espaço potencial”, eles simplesmente ocorrem no espaço
potencial”. Nas palavras de Winnicott: o lugar em que a experiência cultural se
localiza está no espaço potencial existente entre o indivíduo e o meio ambiente
(originalmente, o objeto). O mesmo se pode dizer do brincar.” (Winnicott, 1975,
p. 139, ênfase do autor). Voltaremos ao brincar e à experiência cultural mais
tarde.
Por enquanto, saindo um pouco das terminologias e voltando às
definições, a relação mãe-bebê suscita uma importante pergunta: como, da
relação de indiferenciação com a mãe, o bebê passa a possuir um mundo
interno e, conseqüentemente, perceber uma realidade externa? O espaço
potencial que, de acordo com Winnicott, é uma “área intermediária de
experiência, incontestada quanto a pertencer à realidade interna ou externa
(compartilhada)” e que “constitui a parte maior da experiência do bebê”
(Winnicott, 1975, p.30) vem ajudar a responder a pergunta.
É a partir dessa área, que inicialmente está entre o bebê e a mãe, que
poderá haver a constituição de um mundo interno e de uma realidade externa.
75
Isso não quer dizer, contudo, que, após haver a separação mãe-bebê, esse
espaço desaparecerá. Ao contrário, de acordo com Winnicott, ele permanece
como uma área importante para o sujeito por toda vida, como podemos perceber
a partir da citação abaixo:
1.1.1.1.1.1.1.1.40.“De todo indivíduo que chegou ao estádio de ser uma unidade,
com uma membrana limitadora e um exterior e um interior, pode-se dizer que
existe uma realidade interna para esse indivíduo, um mundo interno que pode ser
rico ou pobre, estar em paz ou em guerra.
Minha reivindicação é a de que, se existe necessidade desse enunciado duplo,
também a de um triplo: a terceira parte da vida de um ser humano, parte que não
podemos ignorar, constitui uma área intermediária de experimentação, para a qual
contribuem tanto a realidade interna quanto a vida externa. Trata-se de uma área
que não é disputada, porque nenhuma reivindicação é feita em seu nome, exceto
que ela exista como lugar de repouso para o indivíduo empenhado na perpétua
tarefa humana de manter as realidades interna e externa separadas, ainda que
inter-relacionadas.” (Winnicott, 1975, p. 15)
Através do trecho acima, percebemos que, ainda que o espaço potencial
se constitua nos primeiros estágios da vida de um ser humano, ele não perde
sua função ao longo da vida. Voltarei a essa questão da importância da
manutenção do espaço potencial mais tarde. A fim de mantermos um mínimo de
compreensão, tentarei seguir uma espécie de cronologia.
Agora, a pergunta que nos colocaremos é: como o espaço potencial se
constitui? Em outras palavras, como se cria esse espaço entre a mãe e o bebê
que ajudará o bebê a se constituir como ser separado da mãe, e,
conseqüentemente, o fará ter um mundo interno separado de uma realidade
externa? Para responder a essa pergunta, ou seja, para falar da constituição do
espaço potencial, é necessário introduzir os conceitos de objeto transicional e de
fenômenos transicionais.
4.1.2. Espaço potencial, objeto transicional e fenômenos
transicionais
vimos que, de acordo com Winnicott, em um estágio inicial, o bebê
encontra-se indiferenciado em relação à mãe. Muitas vezes, Winnicott também
se refere a esse estágio como de extrema dependência do bebê em relação à
mãe. É neste momento de dependência extrema do bebê que algo começa a se
modificar rumo à separação mãe-bebê. Para que essa separação seja possível,
segundo Winnicott, é preciso que um outro espaço, diferente do mundo interno e
da realidade externa, se constitua. A criação desse espaço, o espaço potencial,
começa com o objeto e os fenômenos transicionais. Desse modo, forçosamente
76
algumas características dos objetos e fenômenos transicionais coincidem com
características do espaço potencial.
De acordo com Winnicott, é facilmente observável que os bebês, em
determinada fase de seu desenvolvimento, têm o hábito de chupar o polegar ou
mesmo levar as mãos à boca. Esses hábitos são o início de uma seqüência de
eventos que terminam com uma relação especial do bebê com um determinado
objeto. Este objeto pode ser um boneco, um brinquedo macio ou um pedaço de
pano, por exemplo. Apesar de Winnicott ter o cuidado de afirmar que esse objeto
do qual ele fala não deve ser cristalizado em uma imagem, ele mesmo um
exemplo que se tornou emblemático. Refiro-me aqui ao cobertor de Linus,
personagem de quadrinhos da turma do Charlie Brown, criada por Schultz. Nos
quadrinhos, Linus invariavelmente aparece arrastando um cobertor, como muitas
crianças pequenas fazem com bichinhos de pelúcia, travesseiros ou chupetas.
Esse tipo de objeto, Winnicott chamou de objeto transicional.
Além ou ao invés dessa relação especial com um objeto, todavia, os bebês
podem também desenvolver essa relação com uma música, por exemplo. Pode
acontecer de um bebê acalmar-se sempre que escuta uma determinada melodia
ou som. Experiências como essas do bebê acalmar-se com uma música,
Winnicott chamou de fenômenos transicionais.
De forma simplificada, poucas diferenças entre o objeto transicional e
os fenômenos transicionais. A diferença principal é que o objeto é, de fato, algo
concreto, como uma chupeta, um brinquedo ou pedaço de pano, enquanto que
os fenômenos transicionais são abstratos, como uma música ou um som. No
mais, Winnicott utiliza ambos os termos para falar das primeiras relações dos
bebês com aquilo que é não-eu, ou seja, com aquilo que é parte da realidade
externa. Vejamos de que forma isso acontece.
Voltemos ao bebê que, inicialmente, tem o comportamento de chupar o
dedo ou a mão. Em determinado momento, podemos observar que, ao mesmo
tempo em que ele leva uma mão à boca, ele acaricia um pedacinho de pano com
a outra ou mesmo o leva à boca também. Se, para o observador, está claro que
o bebê leva um objeto externo à boca ou o acaricia, o mesmo não ocorre com o
bebê. Segundo Winnicott, para o bebê não há clareza se aquele objeto foi criado
por ele ou se já estava lá. Ou seja, não há clareza se o objeto – ou o fenômeno –
faz parte do bebê ou pertence à realidade externa.
É neste momento em que o bebê começa a estabelecer uma relação com
algo que não faz parte do corpo dele, ou seja, um não-eu, que se inaugura o
espaço potencial. De acordo com Winnicott, “o objeto transicional e os
77
fenômenos transicionais iniciam todos os seres humanos com o que sempre
será importante para eles, isto é, uma área neutra de experiência que não será
contestada.” (Winnicott, 1975, p. 28-9). Ainda segundo ele, o espaço potencial,
inaugurado pelos objetos e fenômenos transicionais, é uma área “neutra e,
também, “não contestada”. Isso significa que é uma experiência sobre a qual
nunca haverá uma pergunta do tipo: esse objeto foi criado por mim ou ele
fazia parte da realidade? Essa será uma experiência que sempre ficará entre o
que faz parte do sujeito, o seu mundo interno, o mundo das suas fantasias, e a
realidade externa. Ainda assim, o bebê pode ter a ilusão de que foi ele quem
criou esse objeto. Essa ilusão será importante para, mais tarde, ele desenvolver
sua criatividade.
A área inaugurada pelos objetos e fenômenos transicionais também é
neutra porque ela não está nem no controle absoluto do bebê e, posteriormente,
do sujeito e nem totalmente fora de seu controle. Ou seja, ela não é como um
sonho ou uma fantasia, mas também não é como a realidade externa. Assim, o
espaço potencial permite um certo alívio para o sujeito, que não precisa ver-se
entre as exigências da realidade e as exigências de seu mundo interno. Sobre
isso, Winnicott diz que:
1.1.1.1.1.1.1.1.41.“Presume-se aqui que a tarefa de aceitação da realidade nunca
é completada, que nenhum ser humano está livre da tensão de relacionar a
realidade interna e externa, e que o alívio dessa tensão é proporcionado por uma
área intermediária de experiência (...). que não é contestada (artes, religião, etc).
Essa área intermediária está em continuidade direta com a área do brincar da
criança pequena que se ‘perde’ no brincar.” (Winnicott, 1975, p. 29)
Aqui, Winnicott já adianta que há uma relação direta entre o espaço
inaugurado pelos objetos e fenômenos transicionais e o brincar. Antes de
chegarmos lá, contudo, gostaria de dizer mais algumas palavras sobre esse
espaço.
Como ressaltei anteriormente, Winnicott chama o espaço potencial de
“área intermediária” e, algumas vezes, de “terceira área do viver”. O nome
“terceira área” pode dar a impressão de que o espaço potencial vem depois que
o mundo interno e a realidade externa existam para o sujeito. Essa é uma falsa
impressão, pois, como vimos, são os objetos e fenômenos transicionais que
inauguram o espaço potencial, que, por sua vez, permitirá, mais tarde, a
diferenciação eu-mundo por parte do bebê. Desse modo, o início do espaço
potencial é uma transição entre um estágio de fusão com a mãe para um estágio
de separação que culminará com a diferença entre o mundo interno e a
realidade externa. Nas palavras de Winnicott: “Não é o objeto, naturalmente, que
78
é transicional. Ele representa a transição do bebê de um estado em que este
está fundido com a mãe para um estado em que está em relação com ela como
algo externo e separado.” (Winnicott, 1975, p. 30)
A palavra transicional aplica-se tão bem a esse momento inicial do espaço
potencial que muitos autores chamam-no de “espaço transicional”, embora esse
não seja um termo criado por Winnicott.
havia mencionado que, após a primeira função do espaço potencial
estar cumprida, ou seja, após a separação mãe-bebê, esse espaço continua
existindo como uma área que Winnicott chamou de “neutra”. Esse espaço
neutro, no entanto, não será mais o espaço dos objetos e fenômenos
transicionais. Do espaço potencial, segundo Winnicott, farão parte as artes, a
religião (que são exemplos do que ele chama de experiências culturais) e,
especialmente, o brincar. Para Winnicott, “há uma evolução direta dos
fenômenos transicionais para o brincar, do brincar para o brincar compartilhado,
e deste para as experiências culturais” (Winnicott, 1975, p. 76). Voltemos nossa
atenção, portanto, para o brincar.
4.1.3. O brincar e a criatividade
O primeiro aspecto que gostaria de ressaltar sobre o brincar, é que este
não é um conceito restrito ao mundo infantil. Ainda que seja uma palavra ligada
a esse mundo e ainda que Winnicott tenha voltado grande parte de seu trabalho
para as crianças, o brincar não é exclusivo delas. Para Winnicott, “o que quer
que se diga sobre o brincar de crianças aplica-se também aos adultos.”
(Winnicott, 1975, p. 61). Nos adultos, no entanto, o brincar manifestar-se-á de
outras formas como, por exemplo, no senso de humor, nas atividades de lazer,
no jogo, etc. Além disso, como já foi dito acima, assim como os objetos e
fenômenos transicionais evoluirão para o brincar, o brincar também evolui para
as experiências culturais, como as artes e a religião.
Sobre o brincar, Winnicott chama a atenção para a “importância, tanto na
teoria quanto na prática, de uma terceira área, a da brincadeira, que se expande
no viver criativo e em toda a vida cultural do homem.” (Winnicott, 1975, p. 142).
Neste trecho, Winnicott, além de estabelecer a ligação entre a brincadeira e a
experiência cultural, menciona a terceira área, essa que está “entre o subjetivo e
o que é objetivamente percebido” (Winnicott, 1975, p. 75). Assim, “essa área do
brincar não é a realidade psíquica interna. Está fora do indivíduo, mas não é o
79
mundo externo.” (Winnicott, 1975, 76-77). Em outras palavras, a área do brincar
é o espaço potencial. Novamente nas palavras de Winnicott:
1.1.1.1.1.1.1.1.42.“(...) enquanto a realidade psíquica interna possui uma espécie
de localização na mente, no ventre, na cabeça ou em qualquer outro lugar dentro
dos limites da personalidade do indivíduo, e enquanto a chamada realidade
externa está localizada fora desses limites, o brincar e a experiência cultural
podem receber uma localização caso utilizemos o conceito do espaço potencial
existente entre a mãe e o bebê.”(Winnicott, 1975, p. 79)
A princípio, pode parecer estranho pensar que o brincar não pertence nem
ao mundo interno, nem à realidade externa, mas ao espaço potencial. Winnicott,
todavia, fornece um exemplo relativo ao nosso brincar, o brincar dos adultos.
Vejamos:
“Por exemplo, o que estamos fazendo enquanto ouvimos uma sinfonia de
Beethoven, ao visitar uma galeria de pintura, (...) ou jogando tênis? Que está
fazendo uma criança quando fica sentada no chão sob a guarda de sua mãe?
1.1.1.1.1.1.1.1.43.Não é apenas: o que estamos fazendo? É necessário também
formular a pergunta: onde estamos (se é que estamos em algum lugar)? Já
utilizamos os conceitos de interno e externo e desejamos um terceiro conceito.
Onde estamos, quando fazemos o que, na verdade, fazemos grande parte do
nosso tempo, a saber, divertindo-nos? (...) Podemos auferir algum proveito do
exame desse tempo que se refere à possível existência de um lugar para o viver, e
que não pode ser apropriadamente descrito quer pelo termo ‘interno’, quer pelo
termo ‘externo’?” (Winnicott, 1975, p. 147)
Como podemos ver acima, para Winnicott, o brincar relaciona-se, muitas
vezes, com o júbilo. Não é à toa que os exemplos que ele cita são de atividades
de lazer, como ouvir música ou jogar. No início do capítulo eu havia
mencionado que, para o autor, o brincar satisfaz. O brincar, contudo, não remete
somente ao júbilo, mas, também, à saúde, ou seja, ao contrário do que é
patológico. Sobre isso, Winnicott diz que “(...) é a brincadeira que é universal e
que é própria da saúde: o brincar facilita o crescimento e, portanto, a saúde (...)”
(Winnicott, 1975, p. 63, ênfases do autor). Mais que isso, ele diz que “é com
base no brincar, que se constrói a totalidade da existência experiencial do
homem” (Winnicott, 1975, p. 93)
Ou seja, para Winnicott, o brincar não só faz parte da saúde, mas tamm
pode ser aquilo que ao sujeito um sentido de existência. Em outras palavras,
através do brincar o sujeito pode sentir que é um ser no mundo, que existe, que
está vivo. Esse sentimento de estar vivo faz parte de um aspecto do brincar ao
qual Winnicott dá muito destaque: a criatividade.
A criatividade é um conceito de Winnicott, que, assim como ocorre com o
espaço potencial, por vezes se encontra muito próximo a outro conceito. Neste
caso, a criatividade está muito próxima do brincar. Assim, algumas vezes o que
80
Winnicott fala sobre brincar ele também fala sobre a criatividade e vice-versa. É
preciso ficar claro, todavia, que a criatividade é um aspecto do brincar, uma
“importante característica do brincar” (Winnicott, 1975, p. 79). De acordo com o
próprio Winnicott, “é no brincar, e talvez apenas no brincar, que as crianças ou o
adulto fruem sua liberdade de criação” (Winnicott, 1975, p. 79). Mais adiante, ele
continua dizendo que “é no brincar e somente no brincar, que o indivíduo,
criança ou adulto, pode ser criativo” (Winnicott, 1975, p. 80). Assim, sem o
brincar não há criatividade. Mas, por que a criatividade nos interessa aqui?
A criatividade interessa porque é a partir dela que Winnicott desenvolve
dois aspectos fundamentais do brincar: a vontade de viver e a saúde, a que me
referi acima.
Em seu livro Tudo Começa em Casa, Winnicott (1999) define a
criatividade a partir da vontade de viver: “seja qual for a definição a que
cheguemos, ela [a criatividade] deve incluir a idéia de que a vida vale a pena (...)
ser vivida” (Winnicott, 1999, 23). Em O Brincar e a Realidade (1975), ele afirma
que a criatividade é uma espécie de “colorido de toda a atitude com relação à
realidade externa.” (Winnicott, 1975, p. 95). no que diz respeito à saúde,
Winnicott afirma que “viver criativamente constitui um estado saudável”
(Winnicott, 1975, p. 95).
Por dizer respeito à saúde e à vontade de viver, a criatividade (e,
conseqüentemente, o brincar) é fundamental, não nos estágios iniciais da
vida, mas, também na vida adulta. Isso significa dizer que, para haver saúde e
vontade de viver, segundo Winnicott, é preciso que haja a manutenção do
brincar e da criatividade durante toda a vida do sujeito. Para que possa haver o
que ele chama de “viver criativo”, é preciso, para Winnicott, que se preserve
“algo de pessoal, talvez algo secreto, que é inconfundivelmente você mesmo”
(Winnicott, 1999, p. 27).
Aparentemente, pode ser simples a manutenção do brincar ou, se
quisermos ampliar esse termo, do viver criativo, mas não é. Nem todos os seres
humanos vivem criativamente, diz Winnicott. De acordo com ele, seres
humanos que apenas reagem a estímulos, às exigências do mundo, mas não
agem. E a criatividade e o brincar exigem uma ação, não uma mera reação. Eles
exigem um impulso. Nas palavras de Winnicott:
1.1.1.1.1.1.1.1.44.“Por ‘viver criativamente’ não estou querendo dizer que alguém
tenha que ficar sendo aniquilado ou morto o tempo todo, seja por submissão, seja
por reagir àquilo que o mundo impinge. Estou me referindo ao fato de alguém ver
tudo como se fosse a primeira vez.” (Winnicott, 1999, p. 25)
81
Apesar do viver criativo requerer um olhar novo, como vimos no trecho
acima, ele não requer algo mirabolante, diz Winnicott. O viver criativo, ele faz a
ressalva, não pode ser confundido com arte criativa. A arte criativa, como
sabemos, é reservada para poucos. Não é qualquer pessoa que tem a
capacidade de compor como Beethoven ou de pintar como Monet. Quanto ao
viver criativo, muitos podem não fazê-lo, mas não porque seja necessário um
dom específico. Sobre isso, Winnicott argumenta que:
1.1.1.1.1.1.1.1.45.“(...) para uma existência criativa o precisamos ter nenhum
talento especial. Trata-se de uma necessidade universal, de uma experiência
universal, e mesmo os esquizofrênicos retraídos e aprisionados ao leito podem
estar vivendo criativamente uma atividade mental secreta e, portanto, em certo
sentido, feliz.” (Winnicott, 1999, p. 28)
Através dos fragmentos citados acima, podemos notar o quanto o viver
criativo é importante para a saúde e, por que não dizer, para a felicidade do
sujeito. Não há, todavia, possibilidade do viver criativo sem o brincar e sem o
espaço potencial. Isso porque a criatividade faz parte do brincar e o brincar, por
sua vez, ocorre no espaço potencial, essa área neutra intermediária da realidade
e do mundo interno. A partir daí concluímos que, quanto mais possibilidades o
sujeito puder abrir para que ocorra o brincar e, assim, o viver criativo, mais
próximo da saúde e da vida ele estará.
Conforme afirmei no início deste capítulo, descrições positivas sobre a
subjetividade me interessam. Acredito que, neste sentido, Winnicott é uma
grande inspiração e por isso o escolhi. Afinal, poucas coisas em que posso
pensar que sejam mais positivas do que a saúde e do que a vontade de viver.
No que se segue, tentarei relacionar os conceitos de Winnicott que apresentei
aqui e a pesquisa relatada no capítulo 2.
4.2. Um olhar para a Internet inspirado em Winnicott
No início deste capítulo, afirmei que uma tendência de se exaltar as
conseqüências negativas do uso da Internet para o sujeito atual. Baudrillard
(2000), por exemplo, crê que as novas tecnologias, especialmente a Internet,
criam uma realidade virtual que “assassinam” o real. Ou seja, para ele, a Rede
cria uma falsa realidade que serve para cegar e confundir os sujeitos, que ficam
imersos em um mundo caótico e sem sentido.
No Brasil, Birman (1997), em um texto escrito a partir do filme Denise Está
Chamando, de Hal Salwen, reforça a idéia do quão solitário e patológico pode
ser o uso da Internet para o contato interpessoal. Para o autor, esse tipo de
82
comunicação à distância pode substituir o contato físico entre as pessoas, o que
seria, obviamente, nefasto.
Alguns dos sujeitos que entrevistei em minha pesquisa provavelmente
concordariam com Birman e Baudrillard. Muito embora tenha entrevistado
sujeitos que utilizassem a Internet para interagir com outras pessoas, no capítulo
2, em que apresentei minha pesquisa, vimos que havia sujeitos que viam a
Internet com muita desconfiança. Esses sujeitos pertenciam ao grupo que,
recordemos, achavam que relações iniciadas na Rede só poderiam levar à
mentira e à superficialidade. Acreditavam que, como a Internet permitia o
completo anonimato das pessoas, era muito difícil que uma relação iniciada
nestes termos pudesse levar à intimidade ou confiança. Esses entrevistados,
acreditam que a Internet, portanto, o propicia um espaço acolhedor e
interessante, no que diz respeito às relações intersubjetivas. A Rede, para esses
sujeitos, é uma espécie de telefone, feita para fins de comunicação, mas sem
nenhuma outra função especial.
A partir das definições que apresentei de Winnicott, poderia dizer que
esses entrevistados dos quais falo não brincam na Internet. Eles não brincam
porque a Internet não traz nada de renovador para eles, não os abstrai da
realidade externa, não os deixa absortos, não é, portanto, um espaço “neutro”.
Este primeiro, todavia, não era formado pela maioria dos meus
entrevistados. O grupo do qual faziam parte muitos dos entrevistados e que é
aquele no qual venho me detendo neste trabalho é o segundo. A partir do que
me disseram os entrevistados deste grupo, creio que a Internet pode servir para
muito mais do que simples comunicação. A idéia aqui é tentar mostrar que, para
alguns sujeitos, a Rede pode servir como um espaço potencial. Desta forma, a
Rede seria um local intermediário, diferente da realidade externa e diferente do
mundo interno. A partir daí poderia dizer que, para esses sujeitos, a Internet
seria um espaço para o brincar criativo, tal qual Winnicott o concebeu.
Seguindo uma ordem análoga àquela que segui para apresentar os
conceitos de Winnicott, começarei pelo espaço potencial para, posteriormente,
chegar ao brincar criativo.
4.2.1. Vivendo na fronteira: a realidade virtual e o espaço potencial
A analogia entre o espaço potencial winnicottiano e a realidade virtual não
é original. Muylaert (1998), por exemplo, em sua dissertação de mestrado,
compara o “ciberespaço” ao “espaço transicional”. Ela afirma que o ciberespaço,
83
por ser “meio dentro, meio fora, (...) público e ao mesmo tempo privado”
(Muylaert, 1998, p. 78) assemelha-se ao “espaço transicional”. A idéia de que a
Internet está “entre” algo, que pode ser uma realidade, mas não tal qual a
realidade externa parece a primeira via de comparação com o espaço potencial.
De fato, podemos seguir por esse caminho, mas não sem uma explicação um
pouco mais consistente. Ou seja, se pretendemos afirmar que a Internet pode
servir de espaço potencial para alguns sujeitos, é necessário aprofundar as
semelhanças entre os dois espaços: o virtual e o potencial. Para isso, recorrerei
à pesquisa que realizei.
Relembrando a pesquisa apresentada no capítulo 2, nela havia alguns
sujeitos que tinham uma relação muito especial com a Internet. Quinhodantas,
por exemplo, dizia que na Rede não como obter referências palpáveis da
pessoa que está do outro lado da tela. Essa falta de referências, que causava
tanto temor aos sujeitos do primeiro grupo, parece interessante para alguns
entrevistados. Segundo Quinhodantas, na Rede “tudo pode acontecer”. Isso
porque a falta de referências ao sujeito uma certa liberdade de fantasia.
lacunas entre o que o outro diz na Internet e o que é possível averiguar. Essas
lacunas serão preenchidas justamente pela imaginação do interlocutor. Talvez
essa falta de referências gere uma liberdade de ação na Rede. O que essa
liberdade de ação pode ter a ver com o espaço potencial?
Lembremos que a importância de o espaço potencial estar entre a
realidade externa e o mundo interno é sua capacidade de ser neutro. Ou seja, é
a sua capacidade de,o sendo nem uma coisa sem outra, estar livre de
tensões. Em outras palavras, o espaço potencial está livre das exigências da
realidade sem, ao mesmo tempo, estar sob o total controle do mundo interno.
Fiquemos por enquanto com a primeira parte, a que diz respeito às exigências
da realidade. A Internet, ao que parece, permite facilmente que as exigências da
realidade fiquem muito diminuídas. Voltando aos meus entrevistados, essa
diminuição das exigências da realidade ficam claras quando Morpheus define
realidade virtual. Para ele, lembremos, a realidade virtual é um mundo em que
ele controla todas as variáveis. Em determinado momento, ele diz que se quem
está do outro lado da tela é um amigo “real”, a Internet é como um telefone, ou
seja, serve para a comunicação “normal”, segundo ele. se do outro lado es
um amigo virtual, ele diz que “vira um mundo de fantasia”.
Escolhi Morpheus para começar ilustrando a falta de exigência da
realidade que a Internet pode propiciar porque seus depoimentos são muito
impactantes. Para ele, na Internet é possível “controlar todas as variáveis”.
84
Pode-se argumentar, todavia, que, na fala de Morpheus, a Internet parece tão
alheia à realidade que se assemelharia mais ao mundo interno, ao “mundo de
fantasia” do que ao espaço potencial.
Acredito, no entanto, que Morpheus apenas tem a ilusão, tal qual o bebê
em relação ao objeto transicional, de que tudo que se passa com ele na Rede é
sua criação. Vejamos como chego a essa conclusão.
A grande maioria dos sujeitos que entrevistei diz que o que mais gosta de
fazer na Internet é conversar com outras pessoas, isto é, interagir, relacionar-se.
Vimos que, se essa relação começa na Internet, uma liberdade de criação e
de fantasia muito grande. Todavia, muito grande não significa total. O controle de
todas as variáveis sonhado por Morpheus não pode ser possível simplesmente
por um fator: nos chats, uma pessoa do outro lado da tela. Dessa forma, por
mais que Morpheus fantasie acerca de quem está do outro lado, ainda assim seu
devaneio encontra alguma resistência. O outro diz coisas, desperta emoções no
seu interlocutor, age como quer, isto é, não es à mercê das fantasias de
ninguém.
Desta forma se, por um lado, o anonimato da Internet possibilita um laço
mais frouxo com a realidade externa, por outro, a fantasia tem um freio a partir
do contato com o outro. Por isso defendo que, para alguns sujeitos, a Internet
pode propiciar este estado intermediário que é o espaço potencial. O sujeito nem
está na realidade externa, nem em seu devaneio. Talvez, então, o sujeito possa
sentir-se no espaço neutro do qual fala Winnicott.
Conforme expliquei acima, o espaço potencial é neutro porque é um
espaço que não é nem controlado pelo mundo interno do sujeito nem está sob
as pressões da realidade externa. Assim, ele é um espaço em que as tensões
encontram-se reduzidas.
Se observarmos o uso que Sr. Mistério faz da Rede, podemos pensar que
a Internet talvez sirva para ele como espaço potencial. Sr. Mistério, como alguns
outros entrevistados, afirma que na Internet sua ansiedade é reduzida. É
justamente a partir dessa redução de ansiedade que ele consegue, na Rede,
“encontrar soluções comportamentais bem melhores do que na vida real.”
Quinhodantas, utilizando outras palavras, também parece ver a Rede como um
local mais livre de tensões. Ele diz que quando está em um chat na Internet,
sente-se menos tolhido para abordar as pessoas.
Sr. Mistério fala em “ansiedade reduzida” e Quinhodantas diz que se sente
“menos tolhido” na Internet. A meu ver, o que esses entrevistados dizem
contribui para a idéia de que a Rede pode servir como espaço potencial, esse
85
espaço neutro que permite uma experimentação livre das tensões entre o mundo
interno e a realidade externa.
Se é factível o que estou tentando sustentar, ou seja, se a Internet pode,
para alguns sujeitos, exercer a função de espaço potencial, isso significa que ela
pode ser um lugar para o brincar. Isso porque, como vimos, Winnicott, “a fim de
dar um lugar ao brincar”, postulou “a existência de um espaço potencial entre a
mãe e o bebê” (Winnicott, 1971, p. 63). Vejamos, então, se e como é possível
brincar na Internet.
4.2.2. O brincar e a realidade virtual
Na pesquisa que realizei, um dos critérios de recrutamento de meus
sujeitos era que eles utilizassem a Internet para o lazer. Eles poderiam,
obviamente, utilizar a Rede para o trabalho, mas era imprescindível que
gastassem parte de seu tempo nela se divertindo. A fim de assegurar esse
critério, ainda entrevistei pessoas que faziam uso de programas destinados ao
popular bate-papo.
Lazer, segundo Houaiss (2006), ela vem do arcaico “lezer”, que significa
“ócio, passatempo”. Já “passatempo” tem como significados, entre outros, “lazer,
recreação, distração, jogo, brincadeira”. A partir desses significados, poderíamos
equivaler o lazer à brincadeira. Exercer uma atividade de lazer pode ser
equivalente, portanto, a brincar.
De fato, alguns de meus entrevistados, brincam na Internet. Margot é uma
entrevistada que parece claramente estar brincando na Rede. Ela chega a dizer
que no chat exercita seu lado criança, em que pode ser mais criativa. Além de
Margot, podemos lembrar de Sr. Mistério e os personagens que criava e
“matava”. Ele dizia que seu personagem White “era meio chato, matei-o sem
muita dó”. Depois dizia que matar Grouxo causou-lhe “alguma tristeza”, mas ele
mesmo “já não agüentava mais o radicalismo anárquico do sujeito”. Apesar de
Sr. Mistério não ser explícito como Margot nesta fala, ler um relato seu é quase
equivalente a ver uma criança brincando, ou, como diz Winnicott, uma criança
“que se perde no brincar” (Winnicott, 1975, p. 29).
Se parece claro que os sujeitos de minha pesquisa brincam na Internet é
preciso lembrar, no entanto, que o brincar de Winnicott vai além da diversão e do
enlevamento que uma atividade jubilosa proporciona. Como vimos acima, o
brincar tem relação com a criatividade.
86
Creio que, a partir fala de alguns de meus entrevistados, podemos inferir
que eles experimentam a criatividade. Margot, por exemplo, parece sentir-se
criando algo de novo em sua vida a partir do contato com a Rede. Algumas
vezes, inclusive, surpreende-se com suas próprias atitudes. Sobre um presente
que ela deu a uma amiga da Internet, ela contou que: “na amizade real, acho
que não teria esta criatividade...risos” Isso é importante, pois, segundo Winnicott,
“quando surpreendemos a nós mesmos, estamos sendo criativos e, descobrimos
que podemos confiar em nossa inesperada originalidade” (Winnicott, 1999, p.
36).
É sendo criativo, ou melhor, é através do brincar criativo que é possível um
olhar novo sobre o mundo, que é possível a ilusão de que se tem “a capacidade
de criar o mundo” (Winnicott, 1999, p. 24). Novamente lembro de Margot, para
exemplificar a possibilidade de criação que a Internet pode proporcionar. Nas
palavras dela: “Acho que resgatei na internet um lado adolescente de querer
conhecer, quebrar a rotina do dia a dia. Estar fazendo coisas novas (...) Uma vez
falei (...) que a internet é fálica...risos...eu pelo menos me sinto
assim...poderosa...risos
Talvez o poder que Margot sinta quando usa a Internet seja justamente
essa sensação de que é capaz de criar o mundo, a ilusão, lembrando
Quinhodantas, de que “tudo pode acontecer”. O poder que ela sente, essa
potência, pode até mesmo ser experimentada como onipotência, como parece
acontecer com Morpheus, que acha que controla todas das variáveis. Essa
ilusão de onipotência, todavia, é uma característica fundamental da criatividade,
como vimos acima.
Há ainda outra característica da criatividade e, conseqüentemente, do
brincar, que destaquei na seção dedicada aos conceitos de Winnicott. É
exercendo a criatividade vinda do brincar que o sujeito encontra uma via de
saúde para a vida. Lembremos que, para Winnicott, o brincar ao sujeito a
sensação de que ele existe, que está vivo.
Acredito que seja mais ou menos isso que acontece, por exemplo, com
Quinhodantas quando ele está na Internet. Afinal, ele diz que na Rede sente-se
mais à vontade para ser ele mesmo. Margot e Sr. Mistério, apesar de não serem
explícitos quanto isso, também parecem experimentar formas de ser na Rede
muito interessantes. Seus relatos são indubitavelmente muito cheios de vida e
de vibração. Assim, posso inferir que a Internet proporciona, ao menos para
alguns sujeitos, algo bastante fundamental, segundo Winnicott: um lugar para o
viver criativo, um lugar para se sentir vivo e, quem sabe, até mesmo, feliz.
87
4.3. A fé no que virá
Neste capítulo, ao invés de me contrapor a alguns autores, como fiz nos
anteriores, utilizei um autor como inspiração para minhas reflexões. Essa
diferença se deu porque encontrei em Winnicott um autor muito especial. Ele não
escreveu sobre o brincar e sobre a criatividade, mas, também, seus textos
possuem a vivacidade própria de seus conceitos. Seu método, como disse no
início do capítulo, não é sistemático. Isso, por um lado, exige mais do leitor, mas,
por outro, permite a esse leitor uma liberdade de montar seu próprio quebra-
cabeça. Talvez essa fosse a intenção de Winnicott: fazer seus leitores
pensarem, que como relata o biógrafo Rodman (2003), Winnicott tentou ser
um livre pensador.
Assim, a partir de O Brincar e a Realidade, pude mais uma vez, tentar
olhar para as conseqüências subjetivas do uso da Internet de uma forma
positiva. Tentei mostrar, a partir dos conceitos de espaço potencial e do brincar
de Winnicott, que o uso da Internet pode ser diferente do que se circula muitas
vezes na mídia e no meio acadêmico. Se na Internet pode haver cio,
patologias, usos perversos, é importante apostar que pode haver também
espaço para saúde e para a vida. E, repito, Winnicott é um excelente autor para
se pensar na saúde e na vida.
Os olhares patológicos e negativos acerca da realidade virtual e, também,
da realidade externa, são extremamente relevantes para a construção de olhares
críticos e não ingênuos da realidade. Para que as críticas se transformem em
positividade, é preciso, no entanto, que se aposte na renovação. No caso da
realidade virtual, creio que pensar que ela pode servir de espaço potencial e que,
assim, seja um lugar do brincar e da criatividade é apostar nessa renovação.
O capítulo que se segue mantém o espírito que acaba aqui. No capítulo 3,
tratei da experiência da multiplicidade e, no presente capítulo, da Internet como
espaço potencial e, portanto, um espaço para o brincar. No que se segue
tentarei responder o quê, na Internet, possibilita a expressão da multiplicidade e
do brincar criativo.
88
5.
“Somos todos um nick
1.1.1.1.1.1.1.1.46.“Antes de começar, devo informar que tenho somente três dias
de contato com o programa IRC (Internet Relay Chat), aquele que a meu ver é o
condutor de todos os relacionamentos na rede, sejam esses amorosos ou não.
Somente três dias me deram base que julgo ser suficiente para uma avaliação
boa. Rápido, como tudo na rede. (...) no primeiro dia de IRC, fiquei quatro horas
‘grudada’ na tela. No segundo, somente três porque tinha médico. Hoje, sete
horas não me pareceram suficientes. (...) E eu sequer tinha almoçado. Fome? (...)
Essa longa introdução foi somente para dar a seguinte magnitude: o virtual é sem
dúvida real. (...)
1.1.1.1.1.1.1.1.47.Gostaria agora de destacar (...) [alguns] tipos de contato que
travei a fim de exemplificar o que me pareceu acontecer na Rede.
1.1.1.1.1.1.1.1.48.Pit era um canadense que em cinco minutos disse que me
amava. Estava apaixonado. Mas deixou bem claro que era amor virtual (seja o
que isso for). O curioso é que depois de muitas palavras, ele não quis de modo
algum me dar seu e-mail. Acho que ele não sabia mandar pmgs
40
e não queria
lançar seu endereço para todos.
1.1.1.1.1.1.1.1.49.Lithium foi interessante. Ele estuda informática na PUC e no
meu segundo e terceiro dias de IRC sentou do meu lado [no terminal]. Mas
percebeu quando estava em outro lugar. Ele sabe quem sou, mas eu não me
lembro do seu rosto.
1.1.1.1.1.1.1.1.50.Ciclon me mandou uma pmsg logo de supetão. Eu não entendi.
Depois percebemos que havia uma outra Jo que era a namorada virtual dele e que
foi confundida comigo.
1.1.1.1.1.1.1.1.51.Bird é um caso à parte. Bird é francês, estuda em Paris e tem
vinte e três anos. No primeiro dia que o encontrei, disse-me que estudava
Literatura (conversamos em inglês). Queria muito saber como eu era fisicamente e
lançou cantadas um pouco mais ousadas. Mandou-me um e-mail também. Parecia
um adolescente, bem diferente da minha imagem de um francês que estuda
Literatura. Hoje descobri que na verdade ele estuda Engenharia... (...)
1.1.1.1.1.1.1.1.52.Com esses relatos, procurei mostrar como no IRC existe
qualquer tipo de coincidência, e uma grande diversidade de intenções de
aproximações. Não posso deixar de dizer que é muito curioso encontrar pessoas
de dias anteriores ou que saíram e depois voltaram ao canal. As saudações (e as
saudades) dão a impressão de que conheço aquelas pessoas há muito mais
tempo! É interessante também notar que não sei se eu gostaria de conhecer essas
pessoas fora da virtualidade. A rede dá um poder de contato e um poder de
palavras que o ‘olho no olho’ não dá. Vopode tudo! (...) Hoje me assustei com
as minhas sete horas e com a minha ânsia de voltar amanhã (e com a
preocupação de ficar um mês de férias fora da rede). E eu não sou tímida e
estou a três dias no IRC.” (Nicolaci-da-Costa, 1996, anexo 1)
Começo este capítulo, último de minha tese, de forma pouco ortodoxa. A
citação acima é o depoimento escrito por uma aluna de Nicolaci-da-Costa e
citado no projeto da autora enviado ao CNPq em fevereiro de 1996. A aluna era
40
pmsg” é uma abreviação para private message (mensagem privada). Este era um recurso do
IRC em que as pessoas podiam mandar mensagem umas para as outras de forma privada, sem
que os outros freqüentadores do canal (sala de bate-papo) pudessem ler ou interferir.
89
eu e o projeto era o primeiro de Nicolaci-da-Costa sobre os impactos subjetivos
da Internet, que tinha acabado de se tornar comercial no Brasil. Em outras
palavras, ali estava o começo de tudo. Se retorno a este início agora é porque,
certamente, ali estava também o começo desta tese.
Ao encontrar o projeto, largado em uma gaveta do velho arquivo, recuperei
uma série de impressões esquecidas. Meu depoimento hoje é tão antigo e tão
distante que até mesmo a sensação de que poderia ter sido escrito por outra
pessoa.
O ano era 1996 e aquele era meu primeiro contato com um programa que
permitia interação em tempo real, o IRC. Naquela época, para se utilizar esse
tipo de programa ou qualquer outro na Internet era preciso aprender uma série
de comandos que eram digitados em um terminal UNIX (ou seja, em uma tela
preta). Em 2000, quando realizei minha pesquisa, o mesmo programa ainda
existia, mas com recursos gráficos muito mais avançados e sem haver a
necessidade de decorar comandos específicos. Como se diz na terminologia da
informática, o programa passara a ter uma “interface amigável”.
Embora tenha me deparado com esse depoimento após um longo período
de tempo, creio que ele não é datado. A partir da minha primeira e impactante
experiência com o IRC, vejo que muitas das minhas impressões são
semelhantes a impressões de alguns sujeitos de minha pesquisa. Também neste
depoimento descrevo sensações análogas a de outras pessoas que começavam
a usar a Rede.
Uma delas é aquela que depois foi chamada, a princípio de brincadeira, de
“netvício”, como revela Nicolaci-da-Costa (1998). O “netvício” posteriormente foi
levado a sério, sobretudo por psiquiatras e psicólogos americanos, que inclusive
tentaram incluí-lo, ainda sem sucesso, no DSM (a esse respeito, ver Young,
1998 e Greenfield, 1999). No meu caso e, provavelmente, no caso da maioria
dos usuários que se referiam a esse “vício”, usávamos a comparação para tentar
mostrar o quanto a Internet era estimulante, prazerosa e, especialmente, o
quanto era possível ficar horas diante da tela do computador sem ver o tempo
passar. O “netvício” fez parte do impacto que foi a entrada Internet na vida de
muitas pessoas.
Além das minhas próprias impressões, não poderia deixar de citar as de
Nicolaci-da-Costa (1998), descritas em Na Malha da Rede:
1.1.1.1.1.1.1.1.53.“Quanto mais velhos ficamos, mais difícil se torna ter uma
primeira vez impactante. Já fizemos nossa primeira viagem, já demos nosso
primeiro beijo, experimentamos os altos e os baixos da nossa primeira paixão,
(...) festejamos as nossas primeiras vitórias e choramos os nossos primeiros
90
fracassos, ganhamos e perdemos... A isso comumente damos o nome de
experiência de vida.
1.1.1.1.1.1.1.1.54.Por esse critério posso afirmar que sou uma pessoa experiente.
Por isso mesmo, há algum tempo achava que seria improvável ter alguma primeira
vez impactante e, muito menos ainda, desconcertante, fascinante, intrigante e,
acima de tudo, transformadora de uma forma de ver e sentir o mundo e de me
ver e de me sentir dentro dele – altamente consolidada pelos anos de vida. (...) era
assim que me sentia até que uma jovem guia me mostrou como cruzar o umbral
de um novo mundo a partir da tela de computador.
1.1.1.1.1.1.1.1.55.A tela era negra – a de um terminal de Rede operando no
sistema UNIX e contrastava com a bela tarde ensolarada que havia deixado do
lado de fora. A princípio, somente minha curiosidade e o rosto iluminado da minha
jovem instrutora me forneciam a energia necessária para estar ali, numa sala
repleta de telas como aquela à minha frente e igualmente repleta de jovens
excitados e iluminados que delas faziam uso que eu desconhecia.” (Nicolaci-da-
Costa, 1998, pp. 1-2)
O relato de Nicolaci-da-Costa, apesar de ser diferente do meu, é
igualmente intenso. Além de revelar que a Rede foi capaz de modificar sua
forma de ver e de sentir o mundo, Nicolaci-da-Costa também observa os jovens.
Fala da energia daqueles que, como eu, passaram alguma época de suas vidas
em salas repletas de computadores, ávidos por absorver aquelas novas
experiências.
Agora, passados alguns anos da entrada da Internet no Brasil, ela talvez
não seja tão impactante e não traga experiências tão novas. Ela continua, no
entanto, sendo um espaço diferente do mundo offline e, assim, traz para seus
usuários experiências que eles não teriam fora da Internet.
Essas experiências podem ser muito variadas, pois mudam não de
pessoa para pessoa, mais também dos programas utilizados, da finalidade do
uso, etc. Aqui, quero destacar dois tipos de experiência que a Internet,
notadamente os programas interativos permitem: a experiência da multiplicidade
e o brincar criativo.
Sobre o brincar criativo, vimos que, no capítulo 4 (“’O brincar e a realidade’
(virtual)”), busquei inspiração nos conceitos de brincar e de espaço potencial de
Winnicott. A partir desses conceitos, tentei mostrar que o ambiente da Internet,
notadamente os ambientes interativos da Internet, podem servir de espaço
potencial para alguns sujeitos que, assim, têm a experiência do brincar criativo
na Rede.
Já sobre a experiência da multiplicidade, como vimos no capítulo 3, parece
que o uso dos de programas interativos na Rede pode dar aos sujeitos uma
sensação de multiplicidade. Ainda que os sujeitos não necessariamente criem
personagens na Internet, o fato de estarem no ambiente virtual já possibilita que
eles se sintam de forma diferente online e offline.
91
A multiplicidade talvez seja uma experiência difícil de ser obtida fora da
Rede. Isso não significa que alguma multiplicidade não apareça fora do ambiente
da Internet. Com isso quero dizer que é possível que algumas pessoas tenham
experiências de multiplicidade no mundo offline, mas a Rede torna esse tipo de
experiência mais explícita. Ou seja, talvez fora da Internet experiência de
multiplicidade que é manifestada com intensidade online.
Essa parece ser também a impressão de Vianna (2003), antropólogo
brasileiro. Nos primórdios da Internet no Brasil, Vianna realizou entrevistas com
um casal que se conheceu através da Rede. O resultado dessas entrevistas foi
publicado em um artigo, relançado em 2003.
O casal entrevistado foi Flávia e Wanderley (ou Black Storm, como ele é
referido ao longo do texto). Black Storm, que, assim como muitos de meus
entrevistados, utiliza vários nicks na Internet, diz que tem uma personalidade
mutante”. De certa forma, essa “personalidade mutante” de Black Storm é
parecida com o que estou chamando de experiência de multiplicidade. Isso
porque, para Vianna, o “mutante” significa a grande circulação de Black Storm
em contextos muito diferentes, não só na Internet, mas também no mundo
offline. Black Storm faz parte de grupos extremamente heterogêneos: pratica
skinboard, freqüenta tanto boates bem-comportadas da Zona Sul do Rio de
Janeiro quanto bailes funks em favelas, namora moças de faixas etárias diversas
da sua. Essa prática, que Vianna diz ser comum entre adolescentes da idade de
Storm, é, segundo ele, “um exercício de aspectos mutantes de personalidades
contemporâneas” (Vianna, 2003, p. 255). Ainda segundo o autor, o mundo virtual
é o “local mais propício” para o exercício desses aspectos. Sobre isso ele diz
que:
1.1.1.1.1.1.1.1.56.“O ciberespaço apenas deixa mais claras algumas tendências,
bastante estudadas, que caracterizam o ‘espaço’ (não ciber) social de nossas
sociedades de extrema complexidade. Talvez o que o ciberespaço acrescente,
além de mais ‘mundos’, ao mundo da RL [real life, i.e., vida real], seja um
‘território’ de testes, um ‘laboratório social’, onde essas tendências podem atingir
seus extremos.” (Vianna, 2003, p. 269).
Ou seja: apesar de não utilizar as mesmas palavras, acredito que Vianna e
eu observamos aspectos semelhantes do sujeito contemporâneo. Enquanto falo
de experiência de multiplicidade, Vianna fala da “coexistência”, no sujeito atual,
de “segmentos de personalidades divergentes ou discrepantes” (Vianna, 2003, p.
270). Tanto Vianna quanto eu acreditamos que a experiência da multiplicidade
ou as “mutações” da personalidade” aparecem no mundo offline. Mas,
certamente, de forma mais discreta do que na Internet. Mesmo Vianna
92
acrescentando o “apenas” na frase em que diz que a Rede deixa mais claras
algumas tendências, ao final do trecho citado admite que essas tendências
podem atingir seus extremos na Internet.
Nesse sentido, a Internet pode ser comparada a uma espécie de
playground em que os sujeitos podem experimentar uma multiplicidade. Talvez
essa multiplicidade possa ser expressa na Rede na medida em que esta serve
como o espaço neutro para o sujeito, ou seja, na medida em que a Internet
funciona como um espaço potencial, um espaço para o brincar. Voltarei ao tema
adiante.
Tanto experiência do brincar criativo como a experiência da multiplicidade
são, a meu ver, razões mais do que suficientes para os usuários passarem horas
a fio na Rede. O brincar, como dizia Winnicott, “essencialmente satisfaz”. A
experiência do brincar criativo traz para o sujeito a sensação de que algo
extremamente novo é criado por ele, semelhante a uma sensação de
onipotência. Se alguns ambientes da Rede podem servir de espaço potencial,
não me admira que os sujeitos que têm essa experiência fiquem ávidos por
repeti-la.
Como afirmei acima, no entanto, a Internet permite diversos tipos de
experiência, a depender do uso que se faz dela. A experiência da multiplicidade
e do brincar seriam difíceis de acontecer na Rede se ela se resumisse a sites de
compra, por exemplo. Ou seja, a experiência da multiplicidade e o brincar
acontecem em ambientes específicos da Internet: os programas e sites
interativos. No caso de minha pesquisa, esses programas foram os chats, o
começo de tudo. Vejamos então o que ocorre nos chats.
5.1. Tudo começa nos chats
A expressão “realidade virtual” foi inventada, na década de 1980, por Jaron
Lanier para designar os ambientes de simulação construídos a partir de
tecnologias digitais. Para ser mais clara, o termo realidade virtual foi pensado
para aqueles ambientes em que, através de aparatos como luva e capacete, o
indivíduo sente-se dentro de um ambiente digital. Um exemplo deste tipo de
ambiente são simuladores de vôo em que a pessoa sente-se, de fato, em uma
aeronave.
Tempos depois da expressão realidade virtual ter sido inventada para
denominar ambientes como simuladores de vôo, ela passou a designar também
a Internet.
93
Acredito que essa derivação de significado não ocorreu por acaso. Nossa
realidade, que após o advento da Internet ganhou o pleonástico adjetivo “real”, é
extremamente complexa e heterogênea. É razoável pensar que a realidade
gerada pela Internet passou a ser chamada de “realidade virtual” de forma a
constrastá-la com a “realidade real”. Assim, em outra comparação, podemos
dizer que a Internet também é complexa e heterogênea. Através da Internet é
possível estudar, pesquisar, comprar, jogar, informar-se, ouvir música, divulgar
fotos e vídeos, etc. Pode-se também entrar em contato com outras pessoas, em
tempo real (como é o caso das salas de bate-papo, do antigo IRC e do atual
MSN) ou não (como é o caso dos emails, listas de discussão e blogs
41
).
Neste trabalho, o tempo todo em que me referi à Internet, explicitamente
ou não, estava falando dos sites ou programas que permitem interação em
tempo real. Lembremos que um dos critérios de recrutamento de meus sujeitos
era que eles utilizassem algum programa ou freqüentassem algum site que
permitisse esse tipo de interação. Isso não foi por acaso. Meus entrevistados
dedicavam a maior parte do tempo que passavam na Internet ao uso de
programas interativos. Certamente eu jamais teria achado que sete horas
sentada ao computador eram insuficientes se não estivesse interagindo com
outras pessoas. Para os autores que se preocupam com o “vício” na Internet
(como Young, 1998 e Greenfield, 1999), os relacionamentos virtuais encabeçam
a lista de comportamentos “aditivos” na Rede. Ou seja, é nos programas
interativos que as pessoas se fascinam (ou se “viciam”) pela Internet. Chegada a
essa conclusão, é preciso agora saber o que acontece nesses programas / sites.
Começarei a tentar responder essa pergunta através da possibilidade da
construção de personagens que os programas e sites interativos inauguram.
Para que fique evidenciada a novidade que a Internet traz nesse sentido (já que
a criação / incorporação de personagens não é algo novo), remeter-me-ei a um
conto de Oscar Wilde. Minha idéia é a de comparar o contexto de Wilde, a saber,
o final do século XIX, e o contexto da Internet no que diz respeito às
possibilidades de incorporação de personagens.
41
Blog é uma página na Internet em que um espaço para o dono desta página escrever e um
espaço para os visitantes comentarem. O que o dono do blog escreve é variado. blogs que
assemelham os diários pessoais, blogs sobre assuntos do cotidiano, como política, cinema,
viagens, também blogs literários, etc. Prange (2003) e Luccio (2005) têm interessantes
pesquisas sobre o vasto universo dos blogs.
94
5.1.1. “Somos todos um nick”: anonimato e identidade nos chats
Até o fim do século XIX, um indivíduo que quisesse se passar por outra
pessoa não teria muitas dificuldades. Era um mundo ainda sem meros de
identidade, fotos, impressão digital ou qualquer forma oficial de identificação. Os
poucos registros oficiais que existiam consistiam de nome, data e local de
nascimento, dados que não eram difíceis de serem obtidos. Como diz Corbin
(1991):
“Ainda por volta de 1880, o indivíduo astucioso pode mudar de pele ao seu
bel-prazer; para providenciar um novo estado civil, basta-lhe conhecer a
data e o local do nascimento do camarada cuja identidade ele decidiu
usurpar; o confronto, bastante improvável, com uma testemunha, na pior
das hipóteses levará apenas a abortar o subterfúgio; mesmo o
reconhecimento, baseado apenas na memória visual, poderá ser
facilmente contestado. (Corbin, 1991, p. 430)
Essa facilidade de alguém se passar por outra pessoa foi bastante
abordada na literatura da época. Corbin cita os exemplos de Edmond Dantes,
personagem de O Conde de Montecristo, de Alexandre Dumas e Jean Valjean,
personagem de Os Miseráveis, de Victor Hugo. Nas duas obras de ficção, os
seus protagonistas, após passarem tempos na prisão, saem de e assumem
identidades diferentes que lhes permitem mudar seus destinos.
Oscar Wilde (1990) faz algo análogo. Na peça The Importance of Being
Earnest, de 1895, com o humor que lhe é característico, Wilde conta a história
de Jack e seu duplo Earnest. Vale a pena descrever rapidamente a peça.
Jack é um indivíduo que passa parte de sua vida em sua casa no campo e
parte em sua casa da cidade. Ele tem o cuidado de não divulgar seu endereço
ou levar seus amigos da cidade para sua casa no campo e vice-versa. Essa
preocupação faz sentido, que, na cidade, Jack se apresenta como Earnest e,
no campo, ele se apresenta como Jack. No campo, Jack é tutor de Cecily, a
jovem neta de seu pai adotivo, já falecido. Segundo seu raciocínio, um tutor deve
adotar um severo tom moral, o que Jack considera raramente bom para a saúde
ou para a felicidade de alguém. Assim, para poder se despir da severidade de
ser tutor de Cecily, ele inventa um irmão, Earnest, que mora na cidade e que
desfruta os prazeres da vida. Sempre que quer ir à cidade, Jack inventa que
precisa visitar seu suposto irmão mais novo, que sempre estaria metido em
confusões.
Jack vive muito bem sua vida dupla até que, por um descuido, vê-se
forçado a contar a seu amigo Algernon a verdade. Jack é apaixonado por
95
Gwendolen, prima de Algernon e revela a este seu segredo para provar que
seus sentimentos pela jovem são verdadeiros. Após ouvir a confissão de Jack,
Algernon fica curioso a respeito da vida que o amigo leva no campo e decide
segui-lo até lá. Quando chega à casa de campo, Algernon se apresenta para
Cecily como Earnest. O problema é que Cecily, de tanto ouvir Jack contar as
supostas histórias de Earnest, apaixona-se por ele à distância. Como,
obviamente, nunca o tinha visto, ao ver Algernon, de fato acredita que ele é seu
amado Earnest. Assim, Wilde envolve-nos mais uma vez em uma de suas
comédias de erros, que, neste caso, duas jovens Gwendolen e Cecily
apaixonadas por dois Earnests – Jack e Algernon – que, na verdade, não
existem. No final, como também é típico nessas peças de Wilde, tudo se acerta e
os casais apaixonados ficam juntos.
Passemos agora ao que nos interessa. Na peça descrita acima, Wilde
retrata uma situação que talvez fosse rara, mas, certamente era passível de
ocorrer na sociedade em que vivia. Isso porque, em primeiro lugar, como
ressalta Corbin, os recursos oficiais de identificação das pessoas eram
precários. Soma-se a isso o fato de que o acesso da cidade para o campo não
era tão rápido, que os automóveis ainda eram escassos e pouco velozes e o
trem chegava até a cidade mais próxima, o que não necessariamente significava
estar perto da residência de campo. Assim, como Jack fez ficticiamente, outros
poderiam manter duas vidas distintas e indevassáveis, sem que uma penetrasse
na outra.
Se o contexto de Wilde, Hugo e Dumas permitiu-lhes imaginar situações
de troca de identidade factíveis no cotidiano em que viviam, hoje não
imaginaríamos alguém agindo como Jack. Isso porque, apesar de o final do
século XIX também ter sido de grandes transformações, o mundo naquela época
era bem diferente.
Se formos analisar a vida dupla de Jack, notamos que ela era condizente
com a época moderna que surgia naquele momento. Para Jack ser um na
cidade e outro no campo, era necessária uma série de coisas estáveis em sua
vida. Uma delas eram dois contextos, um no campo e outro na cidade. Esses
contextos possuíam características que permitiam a Jack ter algumas certezas e,
portanto, alguma previsibilidade. O mundo em que Jack vivia permitia-lhe, por
exemplo, saber que o cotidiano no campo era tão separado do cotidiano na
cidade que dificilmente um contexto penetraria no outro. Se as pessoas
transitassem facilmente e constantemente de um lugar para outro, como é
comum nos dias de hoje, seria impossível manter a farsa.
96
Além dos contextos, Jack provavelmente tinha um planejamento e um
controle de sua vida muito maiores do que é possível se ter nos dias de hoje.
Jack poderia planejar suas temporadas no campo e na cidade provavelmente
sem muita dificuldade. Apesar de não sabermos no quê Jack trabalhava, era
certo que ele não seria mandado para a cidade vizinha sem aviso prévio, o que
acontece muitas vezes com trabalhadores de nosso tempo.
Além disso, Jack também teve que construir todo um referencial para
Earnest. Como vimos acima, pela precariedade dos meios de identificação da
época, era possível um indivíduo passar-se por outro ou forjar uma identidade
com relativa facilidade. Uma vez passando-se por outro, todavia, também era
requerido que a farsa fosse mantida o tempo todo naquele contexto. Earnest
precisava ter uma casa, amigos, lugares em que ia com freqüência, enfim,
precisava criar raízes naquele lugar. Para que Earnest pudesse ter alguma
credibilidade, era necessário criar um aparato de referenciais estáveis. Dessa
forma, Jack poderia até ser Earnest na cidade e Jack no campo, mas jamais
poderia ser Jack e Earnest ao mesmo tempo e no mesmo contexto. Uma vez
criado o personagem, portanto, Jack precisa de fato encarná-lo, que não é
o personagem que se cria, mas toda a vida em torno dele. Apesar, portanto, de
Earnest ser um personagem, para que ele servisse aos propósitos de Jack, era
preciso conferir a ele uma identidade, o que significa que ele não poderia ser
anônimo. Essa é uma grande diferença, que explorarei mais tarde, entre as
possibilidades de criação de um personagem para si na época de Wilde e nos
dias de hoje. Saindo do século XIX, voltemos agora para o século XXI.
Como vimos nos capítulos anteriores, principalmente através de minha
pesquisa, a Internet inaugurou uma nova forma de estabelecer contatos
interpessoais. Através de sites ou programas de bate-papo, os entrevistados
interagem com outras pessoas, fazendo amigos e, até mesmo, estabelecendo
relações amorosas, que podem ou não permanecer virtuais. Esses contatos
iniciados pela Internet têm uma peculiaridade: eles começam sem que a pessoa
que está do outro lado da tela tenha referência alguma do seu interlocutor. O
amigo virtual é identificado apenas por seu nick, que nada mais é do que um
apelido inventado.
Vianna (2003), que, como relatei acima, analisa os depoimentos a ele
fornecidos por um casal que se conheceu na Rede, uma boa descrição dos
nicks. Ele diz que:
1.1.1.1.1.1.1.1.57.“Antes de entrar em qualquer chat, cada usuário precisa
escolher um apelido [nick] pelo qual vai ser conhecido naquele ‘mundo’. Nada
impede que o apelido seja igual ao nome real. Mas a maioria prefere codinomes
97
retirados de universos culturais das mais diversas procedências.” (Vianna, 2003, p.
251)
Se lembrarmos um pouco da pesquisa apresentada no capítulo 2, veremos
claramente o que Vianna diz sobre os nicks, isto é, que estes podem ser
qualquer coisa, inclusive o próprio nome offline do sujeito. O nick Quinhodantas,
por exemplo, era uma junção do apelido e do sobrenome reais de meu
entrevistado, que se chamava Marcos Dantas lembro novamente que alterei
todos os nomes e nicks para que meus entrevistados não pudessem ser
identificados online ou offline. Bruno, Marcosandré, H.matos e Guiga também
utilizavam, online, seus nomes ou apelidos reais. Havia também nicks que
remetiam a nomes reais, mas que não eram os nomes dos entrevistados, como
aconteceu com Margot (que se chama Dulce). Havia também nicks que não
permitiam sequer sabermos se se tratava supostamente de um homem ou de
uma mulher, como é o caso de Gut e Dé. Havia ainda os claramente inspirados
em personagens, como era o caso de Morpheus e Sr. Mistério.
O interessante é que, para se criar um nick, nenhum dado adicional é
requerido do sujeito. Ainda que haja atualmente programas que requerem um
nome completo, por exemplo, a não ser que se trate de um programa ou site
pago, a veracidade desses dados não importa, que não nenhum tipo de
checagem a esse respeito. Os usuários, portanto, quando entram, sabem o
que esperar: um nome fantasia. A própria denominação de nick, ou apelido,
sugere ao usuário que ele es entrando em um mundo diferente do mundo
offline, no qual são requeridos nomes completos, CPFs, endereços, enfim, uma
série de comprovações e formalidades. O nick, ao dispensar qualquer tipo de
formalidade, dá a justa medida do lúdico. Como uma espécie de ponto de
passagem, a partir do momento em que se escolhe um nick, adentra-se um
universo em que a brincadeira está implícita.
Essa noção do nick como uma passagem para um mundo lúdico pareceu
estar bem clara para muitos de meus entrevistados. Muitos deles, se não
utilizavam vários nicks, o tinham feito em algum momento na Rede. A grande
maioria, no entanto, usava pelo menos dois nicks. O interessante é que um
desses nicks geralmente remetia a algum apelido de infância. Quando entrevistei
H.matos, por exemplo, ele me disse que utilizava este nick para fins de trabalho,
mas que, desde que tinha entrado na Rede, seu outro nick era Bogus, seu
apelido de infância.
Se os nicks parecem ser a porta de entrada para um mundo lúdico, não
podemos perder de vista que essa brincadeira pode ser séria, no sentido de que
98
ela pode promover mudanças subjetivas. Apesar de não conhecer a fundo a
história, acho curiosos casos como o de Black Storm, entrevistado de Vianna.
Vianna conta que “o apelido [nick] Black Storm se tornou tão forte que passou a
contaminar o mundo offline (...). Tanto que hoje até sua mãe, como pude
observar, prefere chamá-lo de Storm.” (Vianna, 2003, p 252).
Além do instigante fato de sua própria mãe chamá-lo por seu nick (o que
nos dá a dimensão do quanto sua vida online estava presente na sua vida como
um todo), a namorada de Storm, que o conheceu pela Internet, acreditava que
ele era “muito mais ele” quando estava online do que quando estava offline.
Esse caso relatado por Vianna me parece interessante porque mostra
como a possibilidade de construir personagens na Internet pode permitir ao
sujeito se manifestar de forma diferente do que na vida online e, a partir daí,
talvez transformar aspectos de sua vida.
Voltando a Storm, Vianna diz que este é “seu principal nome online”. Com
isso dá a entender que Storm utiliza outros nicks, cria outros personagens, como
muitos fazem na Rede. Como ressaltei acima, o mesmo acontece com a maioria
dos meus entrevistados, que me contaram ter muitos nicks online. No caso de
Sr. Mistério, por exemplo, ele inclusive diz que a Rede é “como um laboratório de
comportamentos”, termo muito parecido com o “laboratório social do qual
Vianna falava no trecho que destaquei mais acima. Como vimos, Sr. Mistério
incorpora vários personagens na Internet e, através desse jogo, diz que aprende
com os personagens. Ele se comporta de forma diferente online e acaba
incorporando esses comportamentos no mundo offline. Ele diz que seu “eu
virtual” tende a se igualar ao seu “eu real”. A brincadeira de Sr. Mistério,
portanto, a ele a noção que nem sempre é assim tão clara de que esse
brincar na Internet altera algo íntimo seu.
A possibilidade de construir vários personagens, como vimos no capítulo 3,
pode ter relação com a experiência de multiplicidade que alguns sujeitos têm na
Rede. A incorporação de vários personagens na Internet parece, dessa forma,
possibilitar uma experiência de multiplicidade que pode ser mais difícil de ocorrer
offline. Ter vários nicks na Rede não é, entretanto, necessariamente a única
experiência que um chat permite. Como vimos, alguns de meus entrevistados
tinham somente um nick e utilizavam-no de forma bastante estável na Rede:
toda vez que entravam em uma sala de bate-papo, entravam com este nick,
através do qual eram reconhecidos pelos amigos. Se destacamos então a
multiplicidade de personagens que os nicks permitem que o sujeito encarne, é
99
hora de ressaltarmos outros dois aspectos: o do anonimato inicial e o da
construção de uma identidade virtual. Comecemos pelo anonimato inicial.
Quando um usuário escolhe um nick e entra em um ambiente como um
chat, geralmente o único recurso disponível é o teclado, ou seja, tudo é texto.
Em minha pesquisa, embora em alguns chats fosse permitido o uso de imagens,
os entrevistados preferiam não utilizar esse recurso, mantendo a conversação
exclusivamente via texto.
A preferência dos meus entrevistados (e de inúmeros outros usuários) pelo
texto e não por imagens acontece por um motivo simples. Conhecendo pessoas
pela Internet, meus entrevistados não mostravam corpos, rostos ou vozes. Como
alguns disseram nas entrevistas, o anonimato fazia com que pudessem ser mais
soltos, sem se sentirem julgados o tempo todo. Dessa forma, o anonimato
permitia que esses sujeitos tivessem atitudes que na vida fora da Internet não se
sentiam à vontade para ter. A esse respeito, Gut, uma entrevistada, me escreveu
a seguinte frase: “Quando voc6e [você] alguém, imediatamente vc julga sua
aparência, seu modo de vestir, de falar... e imediatamente vc coloca essa
pessoa de lado ou não. Na internet, todos somos um nick.A frase de Gut a
exata noção dessa falta de referências que o nick traz. Não são rostos, não são
corpos, não são vozes, são simplesmente nicks.
Em nosso mundo em transformação, o anonimato na Internet dá aos
sujeitos uma liberdade enorme e, além disso, lhes oferece a segurança de que
dificilmente serão “desmascarados”, a não ser que assim o desejem (e
geralmente acabam desejando). É claro que essa possibilidade do anonimato
também gera insegurança. Dentre meus entrevistados, alguns a minoria de
fato disseram não acreditar nas relações travadas pela Internet justamente pela
facilidade de se inventar o que quiser, ou seja, porque todos são anônimos. A
maioria de meus entrevistados, todavia, encarava com tranqüilidade o
anonimato, que, como vimos, este possibilitava-lhes sentirem-se livres dos
julgamentos alheios. De posse dessa liberdade, e com a garantia de que não
teriam suas vidas devassadas, alguns deles puderam utilizar nicks de uma forma
mais estável, construindo assim uma identidade virtual. Vejamos.
Voltando à comparação com a peça de Wilde, diferentemente de Earnest,
os personagens criados na Rede e representados pelo nick são, inicialmente,
completamente anônimos, que não como obter nenhuma informação além
daquela que o usuário fornece. Um nick e a palavra do usuário são tudo o que se
tem em um chat. Isso significa que, tecnologicamente, é possível que os
usuários de chat utilizem vários nicks ao mesmo tempo algo impensável no
100
contexto de Jack. Como já mencionei, a maioria de meus entrevistados de fato
utilizavam ou tinham utilizado vários nicks ao longo do tempo nos sites e
programas interativos. Apesar disso, eles surpreendentemente tinham uma coisa
em comum com Jack: eles também de certa forma criavam seu Earnest.
O que quero dizer com isso é que, apesar de ser tecnologicamente
possível ter uma profusão de nicks na Internet, o fato é que meus entrevistados
sempre escolhiam um nick para ser o principal, construindo assim uma
identidade virtual. Isso porque, muitas vezes, esse nick era visto pelo sujeito
como sendo uma extensão de si, como ele mesmo”. H.matos, por exemplo, me
contou que, na verdade, ele deveria estar usando o nick Bogus, que remete ao
seu apelido de infância, pois era com Bogus que eu supostamente estava
falando. Ele dizia que sua “identidade verdadeira” era Bogus e que H.matos (que
remetia ao seu nome, Heitor Matos) era uma ‘máscara’ usada para entrevistar
pessoas importantes (principalmente) pessoalmente”.
O nick Bogus, assim como outros nicks principais de meus entrevistados,
possuía uma estabilidade parecida com a que Jack conferia a Earnest. Nestes
casos, assim como acontecia com Earnest, através dos nicks meus
entrevistados construíram uma série de referenciais (alguns virtuais, mas ainda
assim referenciais). Esses referenciais virtuais consistiam em entrar sempre nos
mesmos chats, mais ou menos nos mesmos horários e encontrar as mesmas
pessoas. Além disso, eles mantinham uma estabilidade no que diz respeito aos
dados pessoais que revelavam, ao discurso, às características que mostravam
através do nick e ao também modo de se portarem e se relacionarem quando
utilizavam aquele nick. Não é por acaso que, como disse no depoimento que
abre esse capítulo, as pessoas quando voltam aos chats com o mesmo nick
após ter passado muito tempo por lá, são recebidas como velhos amigos.
Nota-se, todavia que, na medida em que esses referenciais passavam a
existir, a possibilidade de manter-se anônimo ia acabando. E era exatamente
isso que meus entrevistados queriam. Como me disse Gut, “se eu fosse anonima
sempre, ninguem ia me reconhecer quando conversava!”. Do anonimato inicial,
portanto, os entrevistados passavam a construir uma identidade virtual. Essa
passagem do nick anônimo para um nick com identidade aparece claramente
nos relatos de alguns de meus entrevistados.
Margot, por exemplo, dizia que a Rede dava a ela a chance de ser mais
divertida e criativa. Fora da Rede, sua profissão exigia-lhe uma postura de
seriedade. na Internet, por ninguém saber seu nome ou conhecer seu rosto –
a não ser que ela própria revelasse –, podia ser mais solta e descompromissada.
101
Foi sendo mais solta e descompromissada que ela de fato incorporou Margot,
que tinha tantos amigos virtuais que causava ciúmes nas amigas (do mundo
offline) que não freqüentavam os chats.
Quinhodantas dizia que o anonimato da Rede fazia com que ele não se
sentisse olhado e o olhar das pessoas tolhia-lhe bastante. Sobre a proteção da
tela, ele se permitia “ser mais ele mesmo”. Assim, ele se tornou Quinhodantas,
uma identidade virtual que o deixava tão à vontade que ele chegou a fazer o
caminho geralmente inverso da maior parte dos usuários de chat: ele convidou,
na vida real, uma moça para conversarem pela Internet. O final da história
resultou em namoro, on e offline.
Guiga também está entre aqueles cujo nick deixou de ser anônimo na
Rede e passou a ter uma identidade virtual. Como ele era filho de militar e
mudava de um local para outro com freqüência, passou a fazer amigos pela
Internet. O mundo virtual dos chats passou a ser, para ele, um importante
referencial, que, por se mudar muito de cidade, era o único “ponto de
encontro” possível com seus amigos.
A identidade virtual que muitos de meus entrevistados passaram a ter na
Internet, como vimos ao longo deste trabalho, tem diferenças em relação a algo
que poderíamos chamar de sua identidade offline. Isso porque, como vimos, na
Rede muitos se sentiam e agiam de forma um pouco ou muito diferente do
que costumavam fazer quando estavam offline. Essa identidade virtual, no
entanto, parece ter possibilitado para alguns entrevistados experiências muito
enriquecedoras do ponto de vista subjetivo.
Alguns de meus entrevistados, através da utilização de vários nicks,
puderam ter uma experiência de multiplicidade que dificilmente teriam em outro
contexto. Da mesma forma, os nicks, ao permitirem um acesso inicialmente
anônimo ao mundo virtual, fez com eles se sentissem mais livres das pressões
sociais e, assim, pudessem descobrir características suas que não apareciam no
mundo offline.
Após um período de anonimato, os entrevistados tendiam a escolher um
nick que usavam de forma mais estável, independente de manterem outros
nicks. A partir daí foi possível para alguns a constituição de uma identidade
virtual, contando com referenciais importantes como amigos, mesmo que esses
amigos só fossem encontrados online. Assim, através de algo que poderia ser
jocosamente chamado de “brincadeira de criança”, eles de fato podem ter tido a
experiência de um brincar criativo. Ou seja, a partir dos nicks, alguns sujeitos
puderam encontrar na Internet um ambiente neutro, em que tiveram experiências
102
transformadoras do ponto de vista subjetivo. Isso porque, como vimos também
ao longo deste trabalho, as experiências que meus entrevistados tinham na
Rede eram únicas. Neste sentido, a identidade virtual que eles criavam não era
equivalente ao modo como eles viviam e se apresentavam fora da Rede. Assim
como Jack de Wilde, meus entrevistados construíram seus Earnests e, talvez,
experimentaram uma forma mais leve de viver. Enfim, eles puderam brincar de
ser.
103
6.
Considerações finais
Esta tese teve como ponto de partida uma pesquisa levada a cabo em
2000, na qual foram realizadas entrevistas com 16 usuários de programas
interativos da Internet. Meu objetivo principal naquele estudo era o de investigar
indícios de transformações subjetivas geradas a partir do contato com a Rede.
Do ponto de vista teórico, apoiei-me principalmente nos trabalhos de Jameson
(1997, 1995, 1993) e Turkle (1997) sobre o sujeito contemporâneo. Ambos
postulavam o fim do sujeito moderno, que, para eles, era o sujeito egóico, o
sujeito com um eu centralizador. Jameson sugeria que, no lugar desse sujeito,
estava surgindo um sujeito fragmentado, estabelecendo uma comparação –
segundo ele não patológica entre essa nova estrutura subjetiva e a
esquizofrenia conforme a descrição de Lacan. Turkle, que realizou uma vasta
pesquisa com usuários de jogos interativos na Internet, não acreditava na
fragmentação subjetiva, mas na multiplicidade do eu. Assim como Jameson,
Turkle usou como fundamentação um modelo patológico para descrever o que
considerou serem múltiplos eus no seu caso, o transtorno de múltipla
personalidade. Apesar dos meus resultados serem muito semelhantes aos de
Turkle e, assim como ela e Jameson, eu ter apostado que a subjetividade
contemporânea estava sofrendo muitas transformações, havia um ponto
fundamental de discordância entre o meu trabalho e o desses autores. Nunca
achei que deveria partir de uma estrutura intrinsecamente patológica para tratar
de algo que, segundo eles, não era patológico.
Dessa forma, no capítulo 3, “A experiência da multiplicidade”, destaquei a
sensação de multiplicidade que meus entrevistados pareciam experimentar na
Rede como sendo um indício de transformação subjetiva. A partir daí, dediquei-
me a rever criticamente a posição de Turkle e de outros autores, como, por
exemplo, Stone (1995), de que essa multiplicidade tinha relação com o
transtorno de múltipla personalidade. Para tanto, sustentei minha posição a partir
de Hacking (2000) e seu estudo sobre as múltiplas personalidades.
Tentando seguir um caminho que apontava para uma descrição mais
positiva da subjetividade contemporânea, no capítulo 4 (“’O brincar e a realidade’
(virtual)), inspirei-me em alguns conceitos de Winnicott (1975, 1999). Tendo
104
esses conceitos como base, tentei mostrar como a Internet, que assim como o
sujeito atual é alvo de vários discursos negativos, poderia ser vista como um
espaço potencial. Com isso, quis mostrar que, pelo menos para alguns usuários,
a Internet poderia constituir um espaço neutro, no qual eles não estariam nem
sob o jugo de seu mundo interno, nem sob as pressões da realidade externa.
Dessa forma, a Internet poderia ser por eles utilizada como um lugar para o
brincar criativo, tão fundamental para a vida e a saúde.
No capítulo que se seguiu (“Somos todos um nick: anonimato e identidade
nos chats”), tentei mostrar o quê, nos programas interativos da Internet, fazia
com que os usuários ficassem conectados horas a fio. Responder a essa
pergunta me pareceu importante porque era justamente através desses
programas que se tornava possível para inúmeros usuários e certamente para
alguns dos meus sujeitos ter a experiência de multiplicidade e do brincar
criativo. A resposta que encontrei foi a de que, nos chats, através dos nicks, os
usuários podiam ser anônimos e isso significava que eles podiam se sentir mais
soltos porque estavam livres do julgamento alheio. Com a segurança vinda do
anonimato, meus entrevistados, por exemplo, podiam ter uma experiência de
multiplicidade. Podiam também brincar e ter comportamentos diferentes do que
teriam offline. Quase sempre, todavia, após iniciar contatos pela Rede sob a
proteção do anonimato, meus sujeitos, ao menos na Internet, deixavam de ser
anônimos, pois criavam toda uma rede de referenciais (freqüentavam os
mesmos chats, encontravam as mesmas pessoas, mantinham um discurso
sobre si coerente, etc). De anônimos, então, passavam a ter uma identidade
virtual relativamente estável, que era particularmente interessante no sentido de
que sempre guardava diferenças em relação à identidade offline.
Como vimos, todas as reflexões deste trabalho partiram da pesquisa
realizada na época de meu mestrado. É tempo de pensar, contudo, que muito
mudou na Internet de 2000 para cá. Atualmente, o IRC, principal programa
interativo que meus entrevistados utilizavam, não passa de uma antiga página
na história da Rede. O mesmo acontece com o ICQ, programa que utilizei para
realizar as entrevistas. Dos recursos utilizados para interação em tempo real, de
2000 para 2006, talvez o único sobrevivente sejam os chats. Estes, todavia,
parecem hoje ser mais utilizados para suporte técnico online do que para fazer
amigos.
Todos conhecemos a rápida obsolescência dos programas e ambientes da
Rede. Todos, contudo, também sabemos que muitos dos programas e
ambientes que se tornaram obsoletos deram lugar a outros que desempenham
105
funções semelhantes. O MSN, por exemplo, funciona de modo análogo ao antigo
ICQ, ou seja, é um programa para se conversar, em tempo real, com conhecidos
(virtuais ou do mundo offline). Também continuam existindo lugares em que os
usuários criam personagens para si, mas estes são muito mais sofisticados, não
são somente texto como os chats. Geralmente são verdadeiros mundos virtuais,
onde casas, clubes, ruas, supermercados, bares, revistas, enfim,
praticamente tudo que existe no mundo offline. Um desses sites é o Second Life
(www.secondlife.com), que contava com mais de 2 milhões de usuários em
dezembro de 2006. No Second Life, os personagens são chamados de avatares
e o usuário não somente escolhe um nome, mas também as características
físicas do avatar, como sexo, cor de pele, roupas, etc. Essas características
podem ser alteradas pelo usuário quando ele quiser. Assim como acontece com
os nicks nas salas de chat, o usuário pode criar vários avatares e não é
requisitado mais do que um endereço de email. Apesar de ser um site gratuito,
nele são realizadas muitas transações comerciais, que para entrar em uma
boate, comprar uma casa, etc, é preciso pagar. Recentemente foi constatado
que o Second Life é o primeiro site deste tipo a render dinheiro real para seus
usuários. Explica-se: uma mulher fundou uma empresa, real, em que inclusive
emprega algumas pessoas e se sustenta construindo casas virtuais para os
habitantes do Second Life. É o mundo virtual mesclando-se com o real...
Além dessa atualização dos programas e sites que os usuários da Internet
hoje têm acesso, outra atualização também se faz necessária: a da pesquisa
que serviu de base para as reflexões apresentadas. É tempo de pensar a
relação que ela tem com o que acontece no mundo offline. Isso porque,
evidentemente, meu objetivo com essas reflexões é que elas possam, de alguma
forma, servir para o mundo offline e não que fiquem restritas à virtualidade.
No que diz respeito à subjetividade contemporânea, além das publicações
do núcleo de pesquisa de Nicolaci-da-Costa, há varios outros artigos sendo
publicados no Brasil que tratam da relação entre o sujeito atual e a Internet (ver,
por exemplo, Civiletti e Pereira, 2002; Lanzari, 2000; Pitliuk, 2001, Almeida e
Eugênio, 2006; Hamann e Souza, 2006, etc.). Muitos desses artigos baseiam-se
no uso que os sujeitos fazem de algum programa específico ou site da Internet.
Esses autores, assim como eu, não devem acreditar que a obsolescência dos
programas e sites utilizados pelos sujeitos interfira em suas pesquisas e
reflexões. Isso porque, em primeiro lugar, como vimos acima, os novos
programas e sites sempre guardam semelhanças com os antigos. Além disso, no
que diz respeito às reflexões acerca da subjetividade a partir do uso de
106
determinados sites ou programas, acredito ser irrelevante se esses programas
ou sites ainda estão em uso ou não. Isso porque, como afirmei ao longo deste
trabalho, a Internet pode ser vista como um símbolo de nosso mundo e ela
intensifica alguns comportamentos que existem offline. No que diz respeito às
transformações subjetivas, se elas não aparecem com tanta força offline, é certo
que já deixam seus sinais.
Podemos ver estes sinais em vários aspectos da vida dos sujeitos atuais.
O mercado de trabalho, por exemplo, parece-me um campo em que podemos
encontrar alguns sinais das mudanças subjetivas que vêm acontecendo.
algum tempo ouço de amigos e conhecidos muitos relatos sobre as exigências
do campo de trabalho atual, especialmente nas áreas empresariais. Certa vez
me contaram, em tom anedótico, que os contratos de trabalho de uma
determinada empresa eram tão curtos (duravam cerca de seis meses) que, toda
vez que alguém tinha seu contrato renovado comemorava poder comprar uma
televisão à prazo. Outra vez soube que uma conhecida ia mudar de setor na
empresa. Ela trabalhava na parte administrativa e havia sido transferida para a
chefia do setor de Relações Humanas. O detalhe é que ela nunca havia
trabalhado com Relações Humanas na vida! Finalmente, houve o caso de um
rapaz que se demitiu da empresa onde trabalhava porque a esposa tinha sido
transferida de cidade. Ele conseguiu se empregar na cidade em questão, mas,
logo no primeiro dia de trabalho, recebeu passagens aéreas e instruções para
passar um ano fora do país. Tudo, naturalmente, sem ter sido consultado de
antemão.
Quando, por exemplo, um administrador que nunca trabalhou com
Relações Humanas é promovido a chefe de uma seção dessas, ou quando um
geólogo é chamado a continuar na empresa, desde que exerça funções
administrativas, o que essendo exigido dessas pessoas? Minimamente pode-
se imaginar que boa parte da formação profissional que tiveram é posta em jogo.
que se ter uma flexibilidade muito grande em relação a tudo que foi
aprendido, assim como desprendimento suficiente para deixar a antiga função e
abraçar outra nova, desconhecida. Não é à toa que quem se graduou na
faculdade no final dos anos 1990 e início dos 2000 não tem grandes dificuldades
em adaptar-se ao novo modo de trabalho empresarial. O mesmo não acontece
com aqueles que passaram da faixa dos 40 anos, que, como mostrou Sennett
(1999), sentem-se muitas vezes à deriva no instável mercado de trabalho de
nossos dias.
107
No cinema, que é um grande espelho social, também vemos registrados
esses sinais de transformações subjetivas. O filme Closer, de Mike Nichols
(2004), é um bom exemplo. Este filme começa mostrando uma multidão que
caminha rapidamente em uma cidade grande. Nessa multidão, a câmera destaca
Alice (Natalie Portman) e Dan (Jude Law), que trocam olhares. Após esse início,
comum a tantos outros filmes, o inusitado acontece: Alice, que estava entretida
no olhar de Dan, é atropelada. Os dois iniciam um romance.
Não é na multidão e por seu inusitado atropelamento, contudo, que
Alice chama a atenção. Alice se destaca no pequeno quadrilátero de
protagonistas do filme, completado por Anna (Julia Roberts) e Larry (Clive
Owen). Enquanto Dan, Anna e Larry têm uma história bem definida, Alice parece
um mistério. Não tem profissão fixa, não se sabe quase nada sobre seu
passado, veste-se com roupas incomuns e, a cada passagem de tempo do filme,
aparece com um corte e com uma cor de cabelos diferentes.
No filme, os quatro protagonistas envolvem-se amorosamente, entre as
idas e vindas dos casais originais (Alice e Dan; Larry e Anna). No final, Anna e
Larry permanecem juntos e Alice, sem maiores explicações, diz a Dan que não o
ama mais e, novamente, parte rumo ao desconhecido. Dan, então, retorna a um
memorial ao qual havia ido com Alice no dia em que se conheceram e descobre
o nome dela gravado em uma das placas de homenagem aos mortos. A
conclusão a que chega o espectador é que Alice não era seu nome verdadeiro.
A última cena do filme mostra Alice novamente se destacando na multidão,
novamente com outro corte e cor de cabelos e outro tipo de vestuário.
Alice, a meu ver, é uma grande representante do sujeito atual. Ela tem um
ar de camaleão, parece mudar sempre que o momento requer e parece não se
fixar em papel algum. A mudança parece ser uma das poucas coisas constantes
em sua vida, que nem mesmo seu nome permanece o mesmo nas suas
aventuras e desventuras. Alice parece flexível o suficiente para se adaptar a
novos ambientes, mas inconstante demais para se fixar nesses ambientes por
muito tempo. Assim, ela muda tudo: o nome, o lugar em que mora, o cabelo, as
roupas.
Na literatura especializada, também encontramos sinais de mudança no
campo da subjetividade. Notadamente desde meados da década de 1990, as
publicações sobre as novas subjetividades ou novas formas de subjetivação
ganharam força.
Na sociologia, temos autores como Bauman (2004, 2001, 1998,), Sennett
(1999), Mellucci (1996), Wertheim (2001), Almeida e Tracy (2003) e muitos
108
outros que vêm se dedicando a definir o sujeito atual. Termos como fluidez,
nomadismo, instabilidade, falta de fixidez e flexibilidade são comumente
utilizados para falar a respeito desse sujeito. Na área “psi”, Nicolaci-da-Costa
(2005), Melman (2003), Armony (2005), etc., também utilizam palavras análogas
para tratar do mesmo sujeito.
Esses termos, que emergem com freqüência no contexto do mercado de
trabalho, no cinema e na literatura e em muitos outros contextos do mundo
offline, estão em perfeita sintonia com a Internet, com o que se passa nela e com
aquilo que sabemos que ela vem gerando. A Internet é o grande símbolo do
mundo atual e não como negar que o que se passa lá, ainda que de modo
mais intenso ou mais explícito, está pelo menos em vias de acontecer fora dela.
O virtual é real e, como tal, é um excelente campo para experiências subjetivas.
Na presente tese, fiz uma pequena pesquisa, em alguns ambientes da
Internet e, a partir de seus resultados, tentei mostrar que o sujeito atual é um
sujeito em transformação. Tentei, também, ressaltar pelo menos alguns aspectos
positivos dessa transformação, lançando um olhar para a Internet que registra o
fato de que o virtual é um ambiente que pode propiciar e acolher tais mudanças.
Além disso, tive como objetivo principal neste estudo ter uma visão otimista e
positiva acerca da subjetividade atual. Minha intenção com isso não foi cair na
ingenuidade de pensar que no campo das transformações subjetivas tudo é
positivo e bom. Penso, todavia, que, face ao grande número de visões críticas e
até mesmo catastróficas sobre o sujeito atual e sobre sua relação com a Internet,
é preciso mostrar um lado diferente destas questões. É verdade que as críticas
têm funções fundamentais. Elas servem para enxergarmos o mundo com menos
ingenuidade e, mais importante, instigam-nos a tentar mudar o mundo para
melhor. Se elas caem no ceticismo, no entanto, não chance de um futuro
melhor. O olhar positivo, portanto, vem contrabalancear as visões negativas para
que possamos continuar apostando no futuro e na vida.
No que diz respeito ao novo sujeito que aparece neste milênio, muitas
perguntas ainda terão que ser feitas. Se ele é fluido, nômade, flexível, instável,
múltiplo, ou tantas outras coisas que se diz sobre ele, o futuro dirá. Até lá,
precisamos trabalhar muito, levantar muitas questões e, espero, sem perder de
vista a positividade.
109
7.
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