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ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA
INSTITUTO ECUMÊNICO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA
JORGE LUIZ TEIXEIRA DA SILVA
CAPOEIRA E IDENTIDADE:
UM OLHAR ASCÓGENO DO RACISMO E DA IDENTIDADE NEGRA
ATRAVÉS DA CAPOEIRA
São Leopoldo
2007
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JORGE LUIZ TEIXEIRA DA SILVA
CAPOEIRA E IDENTIDADE:
UM OLHAR ASCÓGENO DO RACISMO E DA IDENTIDADE NEGRA
ATRAVÉS DA CAPOEIRA
Dissertação de Mestrado
Para obtenção do grau de Mestre em
Teologia
Escola Superior de Teologia
Instituto Ecumênico de Pós-Graduação
Religião e Educação
Orientador: Prof. Dr. Alceu R. Ferraro
São Leopoldo
2007
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JORGE LUIZ TEIXEIRA DA SILVA
CAPOEIRA E IDENTIDADE:
UM OLHAR ASCÓGENO DO RACISMO E DA IDENTIDADE NEGRA
ATRAVÉS DA CAPOEIRA
Dissertação de Mestrado para obtenção do
grau de Mestre em Teologia
Escola Superior de Teologia
Instituto Ecumênico de Pós-Graduação
Teologia Prática
Data: ______ de _____________ de 2007
______________________________
______________________________
______________________________
RESUMO
Esta pesquisa busca caracterizar a identidade do negro e do racismo
através da capoeira. Este foco estabelece conexões com a produção histórica
do racismo e da discriminação, que tem produzido formas esteriotipadas de
representação social da identidade e do lugar do negro na sociedade. Analisa
como os adolescentes negros, alunos do grupo de capoeira Zumbi, de uma
escola localizada em um bairro empobrecido, marcados pela discriminação,
re-elaboram essas imagens negativas na construção de sua identidade e nas
relações interpessoais. Faz aproximações teóricas ligadas à formulação e
busca de enfoques historiográficos, sociológicos e educacionais que ajudem
a explicitar a história de nossa formação social, o caráter da discriminação
étnica e social do negro. Através dos dados etnográficos e das falas dos
alunos e professores, busca perceber como as manifestações de racismo e
discriminação; e como essas categorias, quando percebidas, podem
contribuir, de forma dialética, para processos de inclusão e de
democratização das relações sociais.
Palavras-chave: Negro. Capoeira. Educação. Identidade e Racismo.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................5
1 A GÊNESE DO ESCRAVISMO NO BRASIL ............................................. 10
1.1 A ESCRAVIDÃO AFRICANA ................................................................. 11
1.2 A RESSOCIALIZAÇÃO DO AFRICANO: DE ESCRAVO A NEGRO......... 14
1.3 O ESVAZIAMENTO DA CULTURA: PROCESSOS E PRÁTICAS
ESCRAVISTAS .................................................................................... 15
1.4 SER CIDADÃO NEGRO........................................................................ 21
1.4.1 As relações de raça ......................................................................... 22
1.4.2 Quem são os negros marcados pela escravidão ............................ 29
1.4.3 Aproximações conceituais entre raça e etnia ................................. 33
1.4.3.1 Raça .............................................................................................. 33
1.4.3.2 Etnia .............................................................................................. 34
1.5 A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO NEGRO BRASILEIRO .............. 35
1.6 A RESISTÊNCIA A PARTIR DO LAZER ................................................ 38
1.7 REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO DO NEGRO BRASILEIRO ............... 44
1.8 A CAPOEIRA COMO ELEMENTO CULTURAL GERADOR DA
IDENTIDADE AFRO-BRASILEIRA ........................................................ 46
2 GÊNESE DA CAPOEIRA ........................................................................ 50
2.1 CAMINHOS E DESCAMINHOS ............................................................. 50
2.2 A GÊNESE: DO TERREIRO À ESCOLA ................................................ 52
2.3 EDUCAÇÃO E CAPOEIRA, CAPOEIRA E EDUCAÇÃO ......................... 60
3 INTERSECÇÃO COM A FALA DOS CAPOEIRAS ................................ 70
3.1 NA RODA AS VOZES DOS CAPOEIRAS .............................................. 70
3.2 IDENTIDADE, AUTO-ESTIMA E RELACIONAMENTO ........................... 81
3.3 RACISMO E DISCRIMINAÇÃO ............................................................. 87
CONCLUSÃO ............................................................................................ 91
REFERÊNCIAS.......................................................................................... 96
5
INTRODUÇÃO
O objetivo desta pesquisa é entender a capoeira como manifestação
cultural étnica genuinamente afro-brasileira, como movimento social ao
mesmo tempo religioso, político, educativo e de lazer, em contraposição à
concepção e práticas européias de divisão e especialização cada vez maior
do trabalho, das práticas educativas e dos campos do conhecimento e como
esse elemento da cultura brasileira possibilita um olhar sobre o racismo e a
identidade do negro gaúcho.
A pretensão de realizar uma pesquisa no âmbito desta manifestação
cultural surgiu a partir da vontade de encontrar-lhe uma outra face ao longo
do contato com ela. É importante afirmar que este processo não
desconsidera uma certa subjetividade do pesquisador, localizada, por
exemplo, na própria escolha do tema. Essas transformações me forçam ao
permanente processo de um refazer-pensante da minha prática pedagógica.
Entendo esta expressão como um exercício sócio-pedagógico cunhado no
diálogo com as influências recebidas cotidianamente pelo educador na
relação com as referências sociais e o seu fazer pedagógico. Sem intenções
valorativas, pode-se dizer que a tensão travada por este diálogo desemboca
em uma prática pedagógica em permanente transformação. Esta, por sua
vez, pôde também ser percebida na materialização deste texto.
O jogo de capoeira seja na forma de jogo, luta, dança ou mesmo
esporte-espetáculo é parte de um conjunto de elementos da cultura
corporal dos afro-brasileiros. Ele é o tema dessa dissertação em que se
apresentam resultados de uma pesquisa que procurou identificar, analisar e
interpretar as relações entre o referido jogo em suas múltiplas expressões e a
formação da identidade do negro.
6
Na intenção de entender a capoeira no seu significado total e não
apenas como uma atividade especializada, segmentada, de lazer, formulei o
seguinte problema: que relações podemos estabelecer entre a formação da
identidade do negro, o racismo e a capoeira na escola.
Ciente das dificuldades que o tema envolve este trabalho, a capoeira e
a identidade do negro é necessário frisar que a delimitação não restringe a
abordagem de outros aspectos nelas reiterados. Enquanto dissertação, este
trabalho se propõe a uma resposta para meus questionamentos e nessa
expectativa formulei a seguinte hipótese: a capoeira é uma manifestação
cultural étnica genuinamente afro-brasileira, um movimento social ao mesmo
tempo religioso, político, educativo e de lazer, que se contrapõe à concepção
e às práticas européias de divisão e especialização cada vez maior do
trabalho e dos campos do conhecimento.
Enquanto militante de uma entidade não-governamental, relacionada
ao Movimento negro, e de movimentos ecumênicos de base popular,
enquanto religioso, tenho me envolvido, junto com muitos companheiros e
companheiras, desde meados dos anos 90, nas mais diversas práticas
alternativas de resistência e reconstrução de uma cidadania cultural, de uma
consciência de negritude que considera importante, para uma sociedade
democrática, a pluralidade étnica, o respeito às diferenças, a igualdade e
direitos de cidadania, nas relações com o Estado e com outras etnias.
A pesquisa foi realizada junto a uma escola particular da rede
Adventista, onde funciona, há três anos, no turno da noite, o grupo de
capoeira Zumbi. Essa escola está situada numa confluência de várias vilas
populares do município de Porto Alegre, com um acelerado crescimento, e,
nos últimos anos, com uma melhor infra-estrutura, com pavimentação das
ruas e iluminação pública. O entorno da escola é, na sua maioria, constituído
de casas populares muito simples, de onde provêm os alunos e as alunas, de
famílias empobrecidas, e, com raras exceções, alguns alunos e alunas de
famílias de funcionários públicos e pequenos comerciantes.
A dissertação está estruturada em três partes. O primeiro capítulo traz
uma abordagem em diversas reflexões sobre o negro brasileiro oriundo da
diáspora africana. Busquei demonstrar, à luz dos pressupostos teóricos
apresentados, que o eurocentrismo e a escravidão plasmaram
7
representações sociais da identidade do negro, figurações e estereótipos,
através dos quais a discriminação, neles e contra eles, se materializa no
cotidiano.
O segundo capítulo busca, através da história, fazer a aproximação
entre as raízes originárias da capoeira e as relações entre a capoeira, a
educação, a corporeidade e a ancestralidade.
No terceiro capítulo estabeleço a análise e discussão dos resultados da
pesquisa a partir das referências teóricas apresentadas nos capítulos
anteriores e da intersecção das falas das capoeiras, na relação dialética
exclusão e inclusão e capoeiragem no espaço educacional e a contribuição a
esse campo do conhecimento, dessa forma subsidiar educadores populares e
pessoas comprometidas com a luta dos movimentos de consciência negra.
Considero importante ressaltar que os enfoques desenvolvidos em
cada capítulo não são colocados de modo estanque, mas estabelecem um ir-
e-vir constante, como numa relação dialogal, que entendo ser necessária à
consistência e unidade das argumentações.
O Método
Partimos do princípio de que as discussões e esforços em torno da
capoeira, seja ela qual for, devem ser realizados em conjunto com os
envolvidos diretamente na prática em questão.
Por isso optamos por tomar como referencial metodológico, para este
estudo, os fundamentos da Pesquisa Participante, que se caracteriza por:
Uma pesquisa de ação voltada para as necessidades básicas do
indivíduo, que responda especialmente às necessidades da
população que compreende as classes mais carentes nas estruturas
sociais contemporâneas, levando em conta suas aspirações e
potencialidades de conhecer e agir.
1
Assim sendo, tomando por princípio a realidade discriminatória da
criança negra, na escola, desenvolvemos este trabalho, buscando descobrir,
1
BORDA, Orlando Fals. Aspectos teóricos da pesquisa participante. In: BRANDÃO, Carlos
Rodrigues (org.). Pesquisa participante. 7. ed. São Paulo:Brasiliense, 1988. p. 43.
8
a partir das próprias crianças, os elementos que nos dessem subsídios para
analisar a questão proposta.
Pensamos numa metodologia onde:
Pesquisador e pesquisados sejam sujeitos de um trabalho comum e,
ainda que com situações e tarefas diferentes, ajudem a escrever sua história
e possam ser um instrumento a mais de reconquista popular.
2
Dentro dessa modalidade metodológica escolhemos trabalhar com a
categoria do Estudo de Caso, tendo em vista que nos limitamos a estudar um
grupo de alunos, de uma determinada escola, onde se realiza um trabalho
sobre a cultura negra.
Se quisermos, por conta de exigências metodológicas, tipificar este
Estudo de Caso, segundo Bogdan, ele se caracteriza por ser um Estudo de
Caso Observacional, tendo em vista que se ocupará da observação de um
trabalho específico, junto a um grupo também específico de alunos.
Por outro lado, segundo ainda outra caracterização do autor citado, ele
não deixa de conter elementos de um estudo Micro-etnográfico, já que nos
ocuparemos de:
Como as diferentes pessoas envolvidas entendeme experimentam os
objetivos. São realidades múltiplas e não uma realidade única que interessam
ao investigador qualitativo.
3
Os Instrumentos e Procedimentos
Tendo em vista que num Estudo de Caso qualitativo, as hipóteses e
os esquemas de inquisição não são aprioristicamente estabelecidos,
a implicação dos sujeitos no processo exige um maior cuidado
quando à objetivação.
4
Daí porque, embora a técnica de coleta de informações mais
importante neste tipo de estudo seja a observação participante, utilizamos
também a entrevista semi-estruturada.
2
BRANDÃO, 1988. p. 11.
3
BOGDAN, Robert; BIRTEN, Sari. Investigação Qualitativa em Educação uma introdução á
Teoria e aos Métodos. Porto Alegre: Porto, 1994. p. 62.
4
SILVA TRIVINOS, Augusto N. Introdução à Pesquisa em Ciências Sociais. p. 134.
9
A coleta dos depoimentos foi realizada através de entrevistas
gravadas, procurando-se com esta técnica preservar a maneira própria de
cada criança se expressar. Na transcrição do conteúdo das gravações
procuro permanecer fiéis à fala original dos atores, extraindo das mesmas os
elementos considerados fundamentais para a análise da questão central.
No que diz respeito à observação participante estive presente nos
momentos-aula (roda de capoeira), visando observar o processo pedagógico
desenvolvido. Além disso buscamos vivenciar situações diversas tais como:
apresentações do grupo fora da escola, recreio, horário da merenda, para
detectar possíveis indicadores de avanços qualitativos por parte dos
integrantes do grupo.
O trabalho direto com os alunos teve a duração de 2 meses, durante os
quais realizei visitas semanais à escola (2 por semana), para entrevistas e
observações do trabalho desenvolvido. Neste período entrevistamos todos os
alunos do grupo, o professor que coordena a atividade, bem como outros
alunos de escola que não fazem parte do grupo de capoeira. A entrevista
com estes últimos teve como finalidade observar possíveis diferenças de
percepção e reações frente à questão do racismo e da identidade negra.
Considero que através desses procedimentos consegui colocar-me no
mesmo lado do observado, incentivando-o a expressar suas opiniões e
sentimentos, procurando vivenciar o que eles vivenciam e trabalhando a
partir do sistema de referência deles, levando em conta suas aspirações e
potencialidades de conhecer e agir.
5
5
BRANDÃO, Carlos. Pesquisa Participante. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 43.
10
1 A GÊNESE DO ESCRAVISMO NO BRASIL
Nas primeiras décadas após o descobrimento do Brasil, os portugueses
não tiveram interesse imediato pela nova terra, pois não encontraram os
metais preciosos que cobiçavam. A Coroa portuguesa passou a se preocupar
com a nova colônia apenas quando percebeu que a abundância de pau-brasil
poderia tornar-se um negócio lucrativo. Assim, o litoral brasileiro passou a
sofrer freqüentes incursões de estrangeiros, todas em busca da nova riqueza
que a colônia oferecia.
Em seguida, a Coroa reservou para si o monopólio de sua exploração,
através do sistema de Feitoria, da utilização de mão-de-obra dos habitantes
nativos, bem como através do patrulhamento do litoral, por meio das
expedições de guarda-costas. No entanto, nada disso foi suficiente para
evitar a ameaça caracterizada pela presença de outros povos europeus no
litoral brasileiro. Então, os portugueses perceberam que o Brasil seria
daquele que primeiro estabelecesse núcleos estáveis de população.
Surge, assim, segundo Luz
6
, após 30 anos da descoberta do Brasil, a
necessidade de garantir para si o domínio efetivo do território. Desta forma,
começa a fase de colonização propriamente dita.
Inicialmente, as expedições colonizadoras trouxeram consigo
contigentes de colonos, isto é, homens livres que povoariam o litoral. Os
colonos que chegavam ao Brasil aspiravam transformarem-se rapidamente
em proprietários rurais, e, portanto, dificilmente se submeteriam a um regime
de trabalho assalariado. Isso fez com que a metrópole partisse para outro
esquema de povoamento. O litoral brasileiro foi dividido em várias regiões
administrativas vigiadas pela burocracia real, que se constituíram nas
Capitanias Hereditárias.
Luz
7
segue afirmando que as Capitanias Hereditárias não deram o
resultado esperado, pois não eram suficientes para colonizar; tratava-se
apenas de medidas político-administrativas. Era necessária uma base
6
LUZ, Marco Aurélio. Agadá: dinâmica de civilização africano-brasileira. 2. ed. Salvador: EDUFBA,
2000. p. 157.
7
LUZ., 2000. p. 159.
11
econômica estável e rentável que, além de atrair e fixar os povoadores,
deveria proporcionar lucros à Coroa. A extração do pau-brasil não tinha
essas características, já que era bastante irregular e economicamente
instável e estava fatalmente condenada à extinção devido ao perfil predatório
de sua exploração.
Foi na cana-de-açúcar que os portugueses encontraram a atividade
ideal para sustentar a colonização, devido ao alto valor comercial do açúcar
na Europa, à adequação dessa cultura ao clima e solo do Nordeste brasileiro
e à experiência de seu cultivo nas ilhas da Madeira e São Tomé.
O problema do cultivo da cana-de-açúcar era o da mão-de-obra.
A Coroa Portuguesa estava consciente de que os camponeses livres
dificilmente formariam uma classe trabalhadora que se sujeitasse
aos interesses da metrópole, pelo contrário, seriam sempre uma
classe de trabalhadores independentes, buscando enriquecer. Além
disso, em um sistema de produção baseado unicamente no trabalho
livre, os europeus teriam de adquirir as matérias da colônia a peso
de ouro e prata, e os próprios recursos daqui extraídos seriam
devolvidos sob forma de pagamento.
8
Esta condição descapilitarizaria a metrópole em benefício da colônia,
constituindo-se na própria negação da política mercantilista e do pacto
colonial.
A população nativa com freqüência articulava fugas ou atacava as
plantações coloniais. Assim, era difícil extrair o trabalho necessário à
exploração colonial.
Com a escravidão seria possível a exploração lucrativa da colônia,
sendo o único meio encontrado de criar riquezas para as metrópoles
européias. Dessa forma, tem-se caracterizada a estrutura econômica do
Brasil colônia: o latifúndio monocultor e o trabalho escravo.
8
PILETTI, Nelson. História Geral do Brasil. 11. ed. São Paulo: Ática, 2002. p. 286.
12
1.1 A ESCRAVIDÃO AFRICANA
Apesar do índio ter servido como mão-de-obra importante nos primeiros
tempos coloniais, o trabalho escravo africano foi o que estruturou,
predominantemente, a sociedade brasileira.
Analisando a substituição do indígena pelo africano, percebe-se que
este superou o índio nas áreas destinadas à produção para o mercado
externo. Nas áreas de economia de subsistência, este fato parece ser mais
raro. Este fato sugere que a causa dessa substituição está na razão direta da
articulação da economia local com o comércio internacional. No contexto
econômico do período, o africano era utilizado como moeda barata para
aquisição de matéria-prima. Entre os séculos XVII e XVIII, o comércio
triangular, que alcançava lucros que variam entre 100 e 300%, realizava-se
da seguinte maneira: na África, trocava-se manufaturas baratas por nativos;
nas colônias, estes nativos eram trocados por matéria-prima. Somando-se o
fato que os portugueses já haviam obtido resultados satisfatórios com a
exploração do trabalho negro nas Ilhas de São Tome e Cabo Verde, à
mencionada inviabilidade de sustentação do trabalho livre, pode-se deduzir o
interesse que possuía o comércio internacional na substituição do escravo
indígena colonial, pelo escravo negro africano. Além disso, de acordo com
Hoornaert, antes da travessia do Atlântico, os africanos foram transportados
pelo Mediterrâneo, durante séculos, para a Itália, Espanha e outras regiões
européias, a ponto de Santo Agostinho queixar-se junto às autoridades do
Império Romano pedindo providências contra esse comércio. Santo
Agostinho diz, conforme consta em Hoornaert:
9
De qualquer maneira é dever das autoridades tomar providências no
sentido de evitar que a África continue sendo roubada em termos de
habitantes. As autoridades têm que impedir que tantas pessoas,
homens e mulheres, percam sua liberdade em massa e num fluxo
interminável, de uma forma que é pior do que presos nas mãos dos
bárbaros.
9
HOORNAERT, Eduardo. A Leitura da Bíblia em relação à escravidão negra no Brasil colônia. In:
O Negro e a Bíblia: um clamor de justiça. Petrópolis: Vozes, 1988. (Estudos Bíblicos, 17). p. 16.
13
Hoonaert
10
segue afirmando que, antes da colonização da América
Latina, existia na Europa, principalmente na área em torno do mar
Mediterrâneo, umadoutrina comum entre os cristãos sobre o negro e a
escravidão, resultante de uma longa convivência com o africano desde os
tempos do Império Romano. Nesta perspectiva, durante a Idade Média, o
negro já fazia parte da vida cotidiana dos conventos, das casas ricas e
fazendas da Península Ibérica. Desta forma, a escravidão negra, na época
em que foi introduzida no Novo Mundo, era uma instituição comum na
Europa, onde se criara um senso comum que não mais estranhava a mão-de-
obra negra á serviço dos brancos.
Nessa época os portugueses já eram senhores do mercado africano de
escravos:
As operações para captura de pagãos negros iniciadas no tempo de
D. Henrique haviam evoluído num bem organizado e lucrativo
escambo que abastecia certas regiões da Europa de mão-de-obra
escrava. Ampliar o negócio, mais ainda, e organizar a transferência
para a nova colônia era só questão de boa vontade e mais recursos,
o que a metrópole lusa não hesitou em oferecer.
11
Não há como estabelecer com certeza a data em que os primeiros
escravos africanos entraram no Brasil. Possivelmente já tenham
acompanhado as esquadras de Cabral e Martin Afonso de Souza como
escravos domésticos. O que se pode afirmar é que, inicialmente, não houve
um tráfico organizado de africanos. Estes eram trazidos pelos colonizadores
ou concedidos pela Coroa, por meio de pedidos de concessões especiais. A
Coroa, ao conceder escravos para resolver problemas de mão-de-obra,
antecipava-se aos traficantes. Foi a partir dessa época que muitos armadores
se especializaram no negócio. As águas da Guiné e Angola se encheram de
barcos tumbeiros e o Brasil teve, por quase três séculos, tantos escravos
quantos quis.
Todavia, ao longo da narração histórica tida como oficial, escrita e
narrada pelo vencedor, tem-se procurado disfarçar o real motivo da
escravidão negra no Brasil. Além dos motivos econômicos, outros
10
HOORNAERT, 1988. p. 16.
11
MARANHÃO, Ricardo;MENDES JR, Antônio; RONCARI, Luiz. Brasil História texto e
consulta. 3. ed. v. 1., Colônia. São Paulo: Brasiliense, 1979. p. 98.
14
argumentos foram utilizados para acobertar os reais motivos dessa
escravidão.
Um desses argumentos é aquele que procura justificar a substituição
do índio pelo africano, porque o primeiro não se adaptava ao trabalho, e o
segundo era fisicamente superior. A atuação do índio na fase do extrativismo
do pau-brasil, na qual carregava toras de madeira até às Feitorias e navios,
prova que ele possuía capacidade física para o trabalho. Nas Missões
Jesuíticas também desempenhavam tarefas agrícolas, pastoris e
extrativistas. Na verdade, os nativos, conhecedores da região e identificados
culturalmente, freqüentemente fugiam e atacavam as plantações e povoados.
A escravidão pressupunha a necessidade de arrancar o indivíduo de seu
ambiente, de suas origens. Era preciso promover uma desestruturação total
para obter uma submissão completa. Por isso houve dificuldades para
escravizar o indígena, pois este não aceitava o trabalho escravo.
Outro argumento não convincente é o de que a escravidão negra se
deu devido à tendência do negro à submissão e à superioridade técnica do
trabalho dos africanos. Em relação à superioridade técnica, o que se observa
é que ela não foi aproveitada nas plantações e engenhos coloniais, pois se
tratava de um sistema de trabalho primitivo que não aproveitou muitas das
técnicas que os africanos dominavam. Quanto ao aspecto da submissão, a
consideração da história da resistência escrava, permitir que essa premissa
não é verdadeira. Os negros foram, na verdade, subjugados pelo poder
dominante da época, o que não tem nenhuma relação com uma inata ou
adquirida tendência à submissão. Portanto, a ideologia do poder se utilizava
desse argumento para continuar dominando.
1.2 A RESSOCIALIZAÇÃO DO AFRICANO: DE ESCRAVO A NEGRO
A forma que assumiu a escravatura brasileira foi tão irracional que se
tornou necessário fazer uso dos mais variados mecanismos para legitimá-la.
Dentre esses mecanismos, estavam aqueles de ordem explicitamente
estrutural, expressos nas práticas sociais escravistas, bem como os de ordem
15
ideológica, embutidos nessas mesmas práticas. É na interação desses dois
aspectos práticas sociais/discurso ideológico que se pode perceber a
lenta, mas sólida, transformação do africano em escravo, e deste em negro.
Sobre isso, Ronaldo Vainfas
12
afirma que:
A construção da idéia de negro, identificada à situação de escravo,
articulava o processo de integração dos africanos para além de suas
origens culturais. Foi com base nessa representação etnográfica
que o escravismo compôs a idéia de negro e converteu o racismo na
viga mestra da sociedade escravista.
Reconhecida a complexidade desta questão, buscar-se-á evidenciar
alguns aspectos fundamentais para a compreensão da construção desse
racismo que perpassa a sociedade brasileira, que se reflete e se reproduz na
educação, consolidando o mito da democracia racial.
1.3 O ESVAZIAMENTO DA CULTURA: PROCESSOS E PRÁTICAS
ESCRAVISTAS
No Brasil, onde o escravo foi predominantemente o africano, o fato
fundamental necessário à legitimação da escravidão foi a ressocialização do
africano enquanto escravo, constituindo-se no mundo do trabalho o espaço
central para esta redução.
13
Como se viu anteriormente, os negros africanos foram trazidos ao
Brasil para trabalharem como escravos, primeiramente no cultivo da cana-de-
açúcar e, após, em todas as regiões onde se produzisse em grande escala
para o mercado exportador. Quem trabalhava no Brasil colonial e imperial era
o escravo. A escravidão brasileira, como um dos componentes do sistema
mercantilista, adquiriu uma feição característica: nela o escravo era um meio
de produção e uma mercadoria, o que demonstrava de forma inquestionável a
sua condição escrava.
12
VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e Escravidão os letrados e a sociedade escravista no Brasil
colonial. Petrópolis: Vozes, 1986. (História Brasileira, 8). p. 35.
13
VAINFAS, 1986. p. 37.
16
Para haver uma efetiva escravização era necessária uma completa
desestruturação da pessoa, arrancando-a de suas raízes, afastando-a de
suas referências culturais. Com relação aos africanos, esse processo de
coisificação, de destruição sócio-cultural, iniciou-se com seu apresamento na
África, para acentuar-se, cada vez mais, durante a adaptação ao trabalho.
Desde sua captura, o negro sofria violenta agressão a sua pessoa ao ser
retirado do convívio de sua família, tribo, terra, para ser levado para outras
regiões, de pessoas e costumes estranhos aos seus.
Na travessia do mar, ficavam meses nos porões de navios, presos,
famintos, ignorando tudo a respeito de sua vida futura. Chegando ao destino,
eram vendidos em leilões, nos mercados públicos, como se fossem objetos
ou animais.
Como era propriedade do senhor, estava igualado às coisas e podia ser
herdado, penhorado, arrendado, vendido, alugado, permutado.
14
O escravo, ao ser privado de sua capacidade civil de cidadão e pessoa,
não podia fugir do trabalho, divertir-se segundo suas tradições culturais nem
transitar pela comunidade sem o salvo-conduto de seu senhor. De acordo
com Ianni
15
dessa maneira o domínio do escravo era completo; [...] os
senhores conseguem o controle total dos cativos mantendo-os na condição
de semoventes. É essa sua condição que vai determinar sua posição no
sistema econômico e sócio-cultural. Conforme sua posição no mundo do
trabalho, o escravo exercia atividades diversificadas o que, por sua vez,
gerava relações escravistas variadas.
Além das diferenças tribais próprias, havia, também, diferenças
estabelecidas aqui. Fazia-se distinção entre os escravos nascidos no Brasil e
os vindos diretamente da África; entre os da lavoura e os domésticos. Os
escravos de eito tinham condições de vida mais dura e os de casa, em geral,
tinham uma melhor alimentação, além de adquirirem certos laços de
dependência e afetividade com o senhor e sua família. Existiam, também, os
escravos chamados ladinos, que sabiam algum ofício, e os escravos de
ganho, que eram alugados por seus donos para serviço de outros, ou
vendiam água, pão, frutas, doces e verduras nas ruas. Estes escravos
14
FREITAS, Décio. O Escravismo Brasileiro. Porto Alegre: Vozes, 1980. Coleção Caravela. p. 20.
15
IANNI, Octávio. As Metamorfoses do Escravo. 2. ed. São Paulo, Curitiba: Hucite, 1988. p. 141.
17
podiam ficar com parte do que recebiam e alguns conseguiam economizar
para comprar sua liberdade.
Nesta perspectiva, parece difícil tipificar um padrão homogêneo de
comportamento e convivência social, e os mecanismos utilizados na
ressocialização do africano como escravo foram os mais diversos. Dentre
esses mecanismos, pode-se observar alguns explicitamente coercitivos e
outros sutilmente persuasivos.
Dentre os explicitamente coercitivos, pode-se destacar a coerção física
exercida seja através de maus tratos infringidos aos escravos para extração
do sobre-trabalho; seja para transformá-lo em exemplo para todo o grupo,
coibindo insubordinações que afetassem os interesses dos senhores ou os da
ordem estabelecida.
16
Entre os sutilmente persuasivos, estava a instabilidade quanto à
proibição ou permissão de divertimentos, o cercamento de suas expressões
religiosas e a imposição da língua portuguesa como língua comum. Por
vezes, os senhores possibilitavam à escravaria a expressão de determinados
costumes grupais, como os batuques e fandangos. Essas concessões,
porém, somente eram permitidas se coincidissem com os interesses dos
senhores, como por exemplo, quando podiam operar como mecanismos de
relaxamento das tensões ou absorção do ócio da escravaria.
17
A
instabilidade em relação ao que era permitido e ao que era proibido
provocava profundas alterações na identidade cultural, lingüística e religiosa
dos africanos.
18
Assim, algumas situações de convivência com os senhores
possibilitava que os escravos ganhassem privilégios que os compensavam
não só psíquica mas, às vezes, socialmente, por meio de:
[...] laços de compadrio que, por vezes, ligavam senhores e
escravos; o lugar indefinido do escravo nascido na colônia ou do
mulato, às vezes perdido entre as duas comunidades e não raro
encaminhado para funções intermediárias de feitor ou para o
aprendizado de um ofício.
19
16
IANNI, 1988. p. 141.
17
IANNI, 1988. p. 141.
18
VAINFAS, 1986. p. 43
19
VAINFAS. 1986. p.43.
18
Estes fatos redundavam numa atitude de dependência, acatamento e
percepção diferenciada da escravidão. Conforme Vainfas:
20
(...) ao senhor interessava a obediência do escravo para que
pudesse extrair dele o máximo de trabalho. Ao africano reduzido à
escravidão interessava, quando não a fuga, buscar meios de se
integrar à nova ordem de modo menos penoso, com o objetivo
máximo de garantir sua sobrevivência pessoal.
O escravo que nascia e crescia dentro deste contexto, organizava seu
sistema de ações e expectativas conforme o do senhor. Por isso é possível
dizer que o padrão branco dominava tudo. A única chance do escravo
melhorar um pouco a sua condição de vida era procurar aproximar-se, o mais
possível, do patrão. Conforme Maranhão e outros,
21
as distâncias sociais eram tanto maiores à medida que se afastavam
dos valores europeus representados pelo senhor e sua mulher. Isso
fez com que a desafricanização fosse um dos únicos meios de subir
na escala social, de chegar aos postos cobiçados, àqueles que
davam maior liberdade, segurança e prestígio.
Nesta direção, em algumas parcelas da população escrava
desenvolveu-se a vontade de se afastar dos valores africanos e de uma
maior adesão aos valores dos senhores brancos. A pigmentação da pele
também constituía um padrão de aproximação. Para o senhor branco, por
exemplo, o mulato era melhor que o negro, o moreno, melhor que o mulato, e
assim por diante. Quanto mais clara era a pele, maior a possibilidade de
ascensão social e melhor era o tratamento. Neste sentido, desenvolveu-se
um desejo de branqueamento que garantia a dominação branca.
Cabe ressaltar que durante a época da mineração, quem ganhasse
dinheiro com a atividade extrativa ou comercial, adquiria a possibilidade de
ascender socialmente. Assim, os negros que conseguiam enriquecer ou
comprar sua carta de alforria conquistavam melhor aceitação. As próprias leis
que consideravam a origem negra como um obstáculo para a ocupação de
qualquer cargo civil ou oficial eram, muitas vezes, violadas. Bastava o
20
VAINFAS, 1986. p. 34-5.
21
MARANHÃO, 1979. p. 116.
19
candidato não ser escuro demais para que sua riqueza passasse a ser
critério de escolha.
Desta maneira, de acordo com Ianni,
22
à medida que os indivíduos se
afastavam econômica e socialmente do grupo cativo tendiam a reorganizar
sua conduta segundo os valores e padrões das camadas sociais nas quais
almejavam inscrever-se.
No entanto, cabe destacar que esses casos de ascensão social de
negros eram esporádicos. Ainda que a mobilidade social dentro da sociedade
mineira fosse maior, grande parte dos negros regrediu às atividades de
subsistência quando a mineração entrou em decadência. Muitos dos ex-
escravos tentavam sobreviver da melhor forma possível dentro de uma
sociedade que, embora já possuísse uma considerável parcela de libertos,
ainda era, basicamente, estratificada entre senhores e escravos. As
atividades braçais, consideradas brutais e degradantes, continuavam sendo
executadas pelos escravos e seus descendentes. Há, portanto, uma
especialização coletiva imposta pelo próprio sistema que mantém gerações
de negros e mulatos na mesma condição econômica (...),
23
isto é, como
escravos ou como trabalhadores braçais livres, ocupando o mesmo lugar
social do escravo.
Do mesmo modo, as fórmulas jurídicas que regulavam a descendência
continuaram sendo orientadas no sentido de perpetuar o grupo escravo e
manter seus descendentes nesta categoria. Assim o filho de escravo nascia
escravo, mesmo se descendente do senhor branco.
24
Portanto, como se pode perceber, desde a captura, venda, até à
escravidão efetiva, o africano passava por um violento processo de
desculturação e despersonalização que, como aponta Vainfas,
25
...lhe
impunha uma situação de anomia social, rompendo bruscamente seu
universo cultural de referência sem que se compusesse um novo quadro, pois
as regras vigentes passavam a ser as do traficante e do senhor.
22
IANNI, 1988. p. 34.
23
IANNI, 1988. p. 151.
24
IANNI, 1988. p. 151.
25
VAINFAS, 1986. p. 34.
20
O comportamento oficial no regime escravista apresentava alternativas
que iam desde o tratamento benigno, cordial e paternalista até os castigos
físicos
26
todo esse jogo continha uma grande dose de violência cultural e
psicológica que destruía o ethos africano para integrar o negro à nova ordem,
como escravo.
27
Por vezes, submeter-se às regras desse jogo senhorial era
uma maneira de resistir, tendo em vista a sobrevivência pessoal. Todavia,
essa mesma resistência redundava na legitimação das posições de senhor e
escravo, dentro do sistema. Pode-se perceber, portanto, o refinamento das
técnicas divisionistas, necessário para o êxito da dominação, bem como para
a consolidação da estrutura racista em formação.
Vainfas
28
afirma que esta socialização parcial e incompleta tinha uma
natureza dupla: a condição de escravo com todas as exigências que tal
condição acarretava, e a condição de negro comum aos escravos,
submetidos todos aos senhores brancos.
Dessa forma, os esteriótipos escravistas vão lentamente sendo
selecionados como caracteres raciais e grupais, definindo os negros como os
que são escravos ou de sua procedência. Então, a barbárie, a preguiça, a
vadiagem, atribuídas aos escravos para justificar a aplicação de castigos, são
transferidas para os negros. A cor se tornará a marca racial decisiva e
aparecerá como símbolo da escravidão, iniciando, assim, a metamorfose do
escravo em negro.
29
. Daí que o negro e o mulato livre vão ser vistos sempre
como de outro grupo, indivíduos ligados racial e socialmente aos escravos
dos quais procedem.
30
Assim sendo, após a abolição a sociedade branca buscará rearticular
os artifícios utilizados durante o período escravista para continuar
dominando. Então,
26
IANNI, 1988. p. 137.
27
VAINFAS, 1986. p. 43.
28
VAINFAS, 1986. p. 35.
29
IANNI, 1988. p. 153.
30
IANNI, 1988. p. 152.
21
[...] o vigor físico do negro continua sendo seguro indício para ligá-lo
aos trabalhos pesados; seu exotismo, causa de inadaptação à
sociedade; sua bondade, sinônimo de subserviência; seu esforço e
possível sucesso, desejo de ser branco; sua resistência aos
preconceitos e discriminações, como sintoma de rebeldia e racismo
contra o branco.
31
Ianni aponta que:
[...] o negro cidadão é apenas o negro que não é mais juridicamente
escravo. Foi posto na condição de trabalhador livre mas não é
aceito plenamente ao lado dos outros trabalhadores livres, brancos.
É o escravo que ganhou a liberdade de não ter segurança; nem
econômica, nem social, nem psíquica.
32
1.4 SER CIDADÃO NEGRO
A evolução humana se desenvolve dentro de uma trama histórica, nas
diversas relações de sobrevivência. Consequentemente, no decurso de sua
vivência histórica, o homem se diferencia do animal, firmando-se como
produtor de suas condições de existência e de si próprio. Nesse sentido, a
produção humana constitui a trama cotidiana dos sujeitos, em suas variadas
relações de existência.
Se a especificidade humana é conseqüência de uma constante
interação entre homem e sociedade, sua constituição não se formula no
plano individual, mas no coletivo. O ser humano constrói e participa de um
processo que pode submetê-lo, de forma drástica, às formas mais infames de
sobrevivência, ou que pode possibilitar-lhe ser o sujeito transformador da
própria vida social configurada em uma extensa rede de influências. Nisso se
constitui uma das configurações constitutivas da trama histórica.
O homem é sujeito do seu processo histórico, pois a trama histórica se
modifica por sua ação, e ele próprio carrega consigo as marcas e as
características de um período vivenciado. Os sujeitos históricos deste estudo
31
BOJUNGA, Clóvis. Encontros com a Civilização Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1980. p.
192.
32
IANNI, 1988. p. 229.
22
são os descendentes de africanos, cuja marca de existência é a escravidão,
que, em certa medida, determinou a sua vida.
Sabe-se que o homem é um ser político e, nesse sentido, pode-se
afirmar que a trama histórica é uma ação política estabelecida de acordo com
normas e configurações de um dado período vivenciado. Dessa forma, a
produção historiográfica que por muito tempo teve apenas a elite dominante
como interlocutora também é constituída por uma História que se processa
de diferentes formas (marxista, nova história, entre outras).
Neste estudo, no entanto, não se pretende construir uma história da
historiografia brasileira. O objetivo aqui é promover um repensar tanto sobre
os estudos em relação ao negro quanto sobre a trama que compõe o
processo histórico escravocrata brasileiro, bem como sobre os reflexos
dessas relações sobre a formação da identidade do negro brasileiro.
1.4.1 As relações de raça
Nos anos de 1950, os estudos brasileiros sobre o negro estavam ainda
permeados pela idéia advinda, principalmente, da obra Casa grande e
senzala, de Gilberto Freire de que a forma de escravidão implantada no
Brasil se diferenciava das demais por ter sido branda. Nessa direção,
pensava-se em produzir, no território brasileiro, um paraíso racial,
consolidado na democracia racial, assim como se acreditava que o
preconceito não faria parte da nossa sociedade e que araça mereceria
pouca atenção nas discussões acerca da sociedade brasileira.
Skidmore (1976) aponta que a contestação à tal concepção se deu
através de três grandes linhas de divergência, a saber: a da Escola de São
Paulo, liderada por Florestan Fernandes; a dos militantes dos movimentos
negros e a da nova geração de cientistas sociais.
Em relação à primeira linha, a Escola Paulista iniciou, a partir dos anos
de 1960, um projeto de pesquisa para a UNESCO, que acabou tornando-se a
primeira análise, em grande escala, sobre as relações raciais no Brasil
23
moderno. Apesar dos resultados variados, todos chegaram à conclusão de
que havia preconceito de cor no Brasil.
Florestan Fernandes tornou-se o maior referencial de crítica ao dogma
da democracia racial. Em A integração do negro na sociedade de classes
relata que a raça interfere na determinação das oportunidades de vida da
população brasileira, porém destaca que ela é uma variável dependente das
relações de classe.
Assim como Fernandes, grande parte da esquerda brasileira não
considerava a raça como variável independente; a classe era posta como
elemento fundamental, o que relegava a questão racial a uma posição
secundária, conforme afirma Skidmore:
33
É interessante que grande parte da esquerda brasileira em oposição
ferrenha ao regime militar, também encarava a raça como questão
estritamente secundária. Qualquer coisa que pudesse parecer
discriminação racial era, nessa visão, decorrente da estratificação
social.
Já os movimentos de militância negra, ainda que em número reduzido
e, por diversas vezes, reprimidos, afirmaram ser a discriminação racial
onipresente e rejeitaram definitivamente a idéia de superioridade da raça
branca, reivindicando a equivalência entre valores africanos e europeus.
Finalmente, a terceira linha de divergência composta por intelectuais,
cientistas sociais, demográfos, assistentes sociais e ativistas de sindicatos ou
de Igreja , denuncia a discriminação e a ideologia assimilacionista que, de
acordo com Skidmore (1976), bloqueia a discussão pública das relações
raciais no Brasil.
Em fins dos anos de 1970, no entanto, construiu-se uma história de
escravidão não mais através da perspectiva da casa grande, mas da senzala,
como afirma Reginaldo (1995), o que ocasionou uma maior visibilidade do
negro como agente atuante e transformador de seu processo histórico.
Essa visibilidade é expressa, também, através dos movimentos de
resistência negra, que, quando trabalhados nas escolas, podem propiciar
uma melhora na auto-estima do afrodescendente.
33
SKIDMORE, Thomas. Fato e Mito: descobrindo um problema racial no Brasil. 1976. p. 76.
24
Nessa direção, os estudos brasileiros acerca do negro apresentam
novas características, como o destaque à resistência negra; a compreensão
da abolição não como uma redenção, mas um golpe que desemprega a
população negra; o surgimento a revitalização da história de Zumbi, o líder
que representaria os negros em seu processo de luta por melhores condições
de vida e de oposição à discriminação. Ainda que recente, essas novas
características dos estudos já tem penetração junto à comunidade negra,
colocando em pauta o questionamento sobre a presença do afrodescendente
na trama histórica. Por outro lado, esses novos enfoques fortificaram a idéia
de uma diferenciação do negro em relação ao restante da população.
Essa nova perspectiva da história da escravidão pretende, também,
destacar a resistência desse cidadão enquanto vítima de uma trama histórica
que, ainda que imposta, foi vivenciada constantemente como luta pela
modificação do negro, objetivando resgatá-lo como diferente, mas não como
desigual.
Foi no contexto da escravidão moderna que se deu a presença do
negro na história brasileira. Essa escravidão foi caracterizada como
escravidão étnico-racial, circunscrita aos povos indígenas e africanos. O
lucro advindo do tráfico negreiro foi fator determinante para que, no Brasil, o
africano fosse escravizado e suas características étnicos-raciais fossem
utilizadas como justificativa para a manutenção dessa escravidão.
Segundo Chiavenato,
34
a escravidão representou uma imposição que
viabilizou não apenas a colonização, mas também a construção de um país
que, assentado na produção de agrícola, conseguiu um rendimento acima de
700 milhões de libras, apenas no período Imperial (1822/1888). Porém, a
imposição dessa mão-de-obra levou à exploração e ao massacre de quase 4
milhões de negros (de 1530 colonização a 1888 abolição), que foram
excluídos da participação de qualquer benefício do processo produtivo deste
país.
34
CHIAVENATO, Júlio José. O Negro no Brasil. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 42-3.
25
Quilombos e rebeliões organizadas, ainda que não fossem os únicos
elementos de reação negra à escravidão, não bastaram para minimizar os
abusos cometidos no processo escravocrata, uma vez que a escravidão só
poderia ser mantida através da coerção e da violência física.
O processo abolicionista contou, quase que exclusivamente, com a
participação da elite dominante e de alguns intelectuais. Foi uma imposição
externa que objetivava a transformação do caráter da mão-de-obra. A
incorporação do negro na economia não foi pensada e manteve-se a
estrutura de dominação e discriminação racial.
Dessa forma, a abolição não significou a conquista da liberdade da
população negra para vender a sua força de trabalho, pois o trabalho livre era
oferecido para os imigrantes que chegavam ao Brasil. Portanto, o ex-escravo
não foi integrado ao mercado de trabalho livre, o que ocasionou a
perpetuação da discriminação racial, social e cultural, estigmatizando o negro
como vagabundo, inferior, malandro.
No período da República Velha (1889-1930), a questão social era tida
como um caso de polícia. Porém, após a Revolução de 1930, houve uma
ampliação constitucional da cidadania, e a questão social passa a ser caso
de política. Começa, então, a surgir a vinculação entre a responsabilidade
política governamental e a formação de uma sociedade excludente e
discriminatória. Todavia, essa vinculação não teve amplitude suficiente para
alterar os conceitos pré-estabelecidos nas ações e nas representações
sociais. A situação de pobreza, quando relacionada com a negritude, não é
notada como resultado de uma política governamental excludente, mas é
vinculada a uma pré-disposição do cidadão.
No Brasil, a ordem racial pouco se altera antes da industrialização. Em
períodos anteriores à abolição, negros e mulatos já exerciam atividades
manuais e muitos tornaram-se artesãos, ocupando postos de trabalhos
especializados. No entanto, a imigração de europeus deslocou estes negros
e mulatos para outras áreas de trabalho.
35
35
TELLES, Edward E. Industrialização e Desigualdade Racial no Emprego. In: Revista de Estudos
Afro-Asiáticos, n. 26, 1994, São Paulo, p. 25.
26
Foi logo após a Segunda Guerra que ocorreu a possibilidade de
ascensão social para alguns extratos da população brasileira, com um projeto
que pretendia modernizar a economia e estimular o crescimento econômico
por meio da industrialização e da substituição de importações. O crescimento
e o desenvolvimento pretendidos aconteceram de forma paralela a uma
maciça imigração européia em território brasileiro, iniciada em 1850 e
prolongada até 1930. Este novo contingente populacional provocou uma
concorrência racial sem precedentes na disputa pelo emprego.
A integração do Brasil em um capitalismo dependente não modificou a
situação racial imposta aos descendentes de africanos, pois permaneceram à
margem do processo produtivo, ocupando os piores cargos e submetidos a
um processo de discriminação que não permitiu alterações significativas na
hierarquia social. Assim, a inserção social do negro no Brasil, atualmente,
deve ser vista como conseqüência de um processo escravocrata associado a
uma permanente situação de discriminação.
O apadrinhamento, muitas vezes, era a única forma do negro ocupar
postos especializados no mercado de trabalho.
36
A preferência dos empregadores por trabalhadores europeus era
bastante nítida, acirrando, assim, a desigualdade da concorrência no
mercado de trabalho para o negro, bem como acentuando o processo de
branqueamento do Estado de São Paulo.
Após a década de 1920, começa a declinar a imigração européia, mas
os imigrantes e seus filhos já dominavam grande parte dos cargos elevados
do mercado de trabalho paulista.
O Brasil, em períodos anteriores à década de 1950, era uma sociedade
rural com altos índices de analfabetismo, nos quais os negros representavam
a maioria. Isto colaborava para que o exercício da cidadania se constituísse
como uma doação estatal alcançada por uma minoria que era posta a serviço
da elite dominante.
Após a década de 1950, sendo o Brasil inserido em um projeto de
modernização baseado na internacionalização da economia, ocorreu certa
abertura do espaço público que possibilitou a luta pelo acesso à igualdade e,
36
FERNANDES, Florestan; BASTIDE, Roger. Brancos e Negros em São Paulo. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1971.
27
por conseqüência, à uma nova cidadania. Surgiu, em decorrência disso, a
ilusão da possibilidade de integração econômica e social.
No entanto, esse processo foi interrompido pela instauração do regime
militar, o que obstruiu o processo de construção de um espaço de igualdade
política. Todavia, se, por um lado, obstruiu-se o espaço de luta pela
igualdade política, por outro, promoveu-se um desenvolvimento econômico
muito intenso, ainda que regionalizado.
Esse crescimento, conhecido como milagre econômico, promoveu a
inclusão econômica e social de uma parcela da população, consolidando a
formação de uma classe média. Porém, as massas populacionais, nas quais
os negros estavam inseridos, pouco se beneficiaram desse processo de
crescimento e desenvolvimento.
Telles
37
aponta que a possibilidade de ascensão dos descendentes de
africanos passou a ser possível com a industrialização. Parcelas maiores da
população negra puderam entrar no mercado de trabalho, alternado sua
situação, embora a posição de desigualdade em relação ao branco
persistisse. Neste sentido, pode-se afirmar que, se o negro perdeu os cargos
manuais que ocupava para os imigrantes, com industrialização ele foi
absorvido nas mais baixas ocupações.
Entre 1968 e 1974 ocorreu o apogeu do crescimento econômico
brasileiro, alcançando índices muito elevados. Isto foi resultado de uma
industrialização concentrada na Região Sudeste, que gerou grandes
diferenças regionais. Entretanto, este crescimento econômico promoveu não
só um grande êxodo rural, mas também ocasionou a formação de áreas
altamente industrializadas com elevada concentração demográfica, como o
Estado de São Paulo, por exemplo.
Com a Nova República, houve a ampliação dos direitos constitucionais,
possibilitando a inclusão dos analfabetos nos processos eleitorais. Entre
outras coisas, retoma-se a idéia da formação de um espaço político
igualitário. Porém, a manutenção da crise econômica e os altos índices
inflacionários aumentaram as desigualdades sociais e, por conseqüência, as
raciais.
37
TELLES, 1994. p. 25.
28
Até 1980, apesar da manutenção das desigualdades, ocorreu uma
diminuição da pobreza. No entanto, a partir de 1990, houve um intenso
crescimento dessas desigualdades e, conseqüentemente, a ampliação do
número de indivíduos sem recursos, até mesmo para suprir necessidades
básicas.
38
Nascimento,
39
em artigo sobre a exclusão social no Brasil, coloca a
hipótese de que a problemática da exclusão social não deve ser relacionada
somente à linha de pobreza, pois não tem somente uma faceta econômica.
A exclusão social atinge múltiplas dimensões dentro de uma sociedade
consumista, que condena parcelas significativas da população à não
integração à esfera de consumo.
Nascimento
40
afirma ainda que a exclusão social no Brasil pode ser
justificada por um conjunto de clivagens de ordem econômica, social,
espacial, cultural, sexual e racial que se alimentam de estruturas históricas e
representações sociais persistentes, de caráter discriminatório.
As relações sociais são marcadas por uma forte situação de
desemprego e de miséria, resultantes do crescimento de favelas e de
violências cotidianas. Como, na sociedade brasileira, não há percepção da
diferença entre o público e o privado e os direitos viram favores, as
reivindicações são tomadas como tumulto, desconhecendo-se, no pobre e no
negro, o cidadão destituído de seus direitos.
Nesta perspectiva, tem-se uma sociedade marcada por profunda
segregação econômica, social, geográfica, racial, na qual ainda perdura o
modelo de exclusão e discriminação que impede uma distribuição igualitária.
Sobre isso, Nascimento
41
aponta que ... a inexistência de um espaço público
de iguais, inviabilizado por relações sociais excludentes, impede a montagem
de um modelo econômico distributivo, base para a predominância de uma
lógica social de integração. Assim, a exclusão é produzida e reproduzida no
seio da sociedade, pois as relações elaboradas em seu interior dificultam a
implantação de uma cidadania plena e a diminuição da pobreza.
38
NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do, 1998.
39
NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do, 1998. p. 57.
40
NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do, 1998. p. 63.
41
NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do, 1998. p. 64.
29
Neste processo, percebe-se que, atualmente, a questão étnico-racial
poderá ganhar uma conotação mais opressiva e particular. Possivelmente a
sociedade brasileira, em razão de um novo tipo de emprego, constituído a
partir do fechamento de postos de trabalhos, permita o crescimento de uma
economia informal e crie, assim, uma nova categoria de excluídos, isto é,
aqueles que não são mais necessários no mercado de trabalho.
Sendo assim, o pobre e, de forma mais específica, o negro, não são
mais percebidos como trabalhadores, para figurarem como marginais, o que
justificaria a sua eliminação. O negro, a princípio, é socialmente visto como
marginal, como alguém que não lutou para mudar a sua situação social, para
ser sujeito, e por isso não merece o estatuto de cidadão.
1.4.2 Quem são os negros marcados pela escravidão
Com alibertação (Lei Áurea de 1888) o negro passou deinferior
social a inferior biológico, o que permite à sociedade considerar natural o
tratamento marginal que lhe impõe.
42
.
Inúmeras têm sido as reações da
comunidade negra, desde as irmandades religiosas, católicas, os terreiros de
batuque e umbanda, passando pelos fundos de indenização e associações
abolicionistas, até os clubes recreativos mais ou menos conscientes, e os
movimentos negros, engajados na luta pela verdadeira libertação.
Durante trezentos anos, realizando os serviços mais duros, as tarefas
mais infamantes, os africanos escravizados construíram a sociedade
brasileira.
43
Pode-se dizer que:
Tudo o que significa luta do homem com a natureza, conquista do
solo para habitação e cultura, estradas e edifícios, canaviais e
cafezais, a casa do senhor e a senzala dos escravos, igrejas e
escolas, alfândegas e correios, telégrafos e caminhos de ferro,
academias e hospitais, tudo absolutamente tudo, que existe no país,
como resultado do trabalho manual, como emprego de capital, como
42
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: o negro e a
sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 278.
43
CARNEIRO, Edison. Antologia do Negro Brasileiro. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1967. p.
II.
30
acumulação de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça
que trabalha à que faz trabalhar.
44
Quando deixou de interessar aos capitalistas europeus o sistema
escravista na América, e passou a Inglaterra a aí fomentar o desenvolvimento
de um capitalismo dependente, preparou-se, pouco a pouco, através das leis
emancipacionistas, sempre atendendo ao interesse dos proprietários, a
liberação da mão-de-obra escrava. Os libertos eram pressionados a
permanecer nas fazendas como empregados, dependentes de um patrão, ou
compelidos a abandonar o país, retornando à África. Muitos continuaram nas
propriedades onde tinham sido escravos, outros enfrentaram as perseguições
políticas nas cidades, outros ainda voltaram à terra de origem, como o caso
dos brasileiros de Lagos.
45
Com os instrumentos jurídicos, incluindo entre eles a chamada Lei
Áurea, que aboliu a escravatura em 1888, criavam-se contingentes de
pessoas marginalizadas, não produtivas, necessárias para construir o
exército de reserva que convinha ao sistema econômico. O monopólio da
terra, artificialmente criado pela Lei das Terras de 1850, impedia o ex-
escravo de tomar posse de parcelas das terras não exploradas e obrigava-o a
se tornar mão-de-obra livre. Entretanto, sua capacidade de trabalhar é
preterida à do colono europeu recém-chegado, do qual, além de já treinado
para o trabalho livre, esperava-se ajudasse a embranquecer a população.
46
A abolição, que deveria elevar o Brasil à dignidade de país livre,
47
fez
do escravo, sem direito à terra, como homem livre, um pária na zona rural,
48
um marginalizado na cidade, desempregado, vivendo de trabalhos
esporádicos e mal pagos, morando em aglomerados junto às cidades, onde,
se dizia, havia bandidos escondidos. Coube à mulher negra, que encontrava
emprego, pois para o serviço doméstico faltava mão-de-obra branca, manter
a família e, assim, sustentar a sobrevivência do negro como negro.
49
Esse
44
NABUCO apud FREITAS, 1980. p. 10.
45
CUNHA JR., Henrique. Negro como Consumidor Diferenciado na Cidade de São Paulo. 1985.
p. 100.
46
MOURA, Clóvis. Rebeliões na Senzala. 4. ed. Porto Alegre:Marcado Aberto, 1988. p. 38.
47
NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo.o Paulo: Progresso, 1949. p. XII.
48
NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo. Petrópolis: Vozes, 1980. p. 44.
49
FERNANDES, Florestan. A Integração dos Negros na Sociedade de Classe. São Paulo: Ática,
1978. p. 210-11.
31
trabalho, na maior parte das vezes menosprezado pelos que o contratam, foi
e é fundamental para os negros e também para as mulheres brancas, já que
garante a sua emancipação.
50
O escravo, chegando ao Brasil, perdia seu nome africano, tinha sua
cultura negada, deixava de falar sua língua e se via na contingência de
assimilar nova imagem que o senhor lhe outorgava. Imagem essa que a sua
situação de objeto de uso, liberado do patrão, e atirado na periferia da vida,
vai ajudar o branco a burilar. Informados de que são pessoas sem raízes.
sem inteligência, ingênuas, dotadas para escravidão, fortes para trabalhos
braçais, vadias, preguiçosas, desorganizadas, sujas, miseráveis, baderneiras,
incapazes de assimilar a cultura, destituídas de valores e de humanidade,
os homens superpotentes, as mulheres extremamente sensuais, os negros
vêm, até nossos dias, fazendo sua história, ora se comportando de acordo
com as qualidades que lhe são atribuídas, ora se rebelando e buscando
provar o contrário.
51
O mito do brasileiro cordial sustentou e ainda sustenta a ideologia do
racismo no Brasil. Cordialidade que é tomada no sentido de igualdade entre
pessoas de uma mesma classe, especialmente a considerada superior.
52
O mito da cordialidade não é o único a apoiar as manifestações
racistas, conforme apresenta Moreira Leite.
53
Há o da indolência dos mestiços
e o da inferioridade dos negros que levaram Nina Rodrigues a prever
prejuízos para a civilização brasileira. Há o da superioridade dos
descendentes dos europeus, defendido por Alfredo Ellis Júnior. Há a tese do
pensamento primitivo, pré-lógico, do negro em oposição ao pensamento
lógico, maduro, do branco, explicitada por Arthur Ramos.
Para ser mais facilmente aceito na sociedade, o negro deve
embranquecer. A miscigenação, uma miragem psicológica,
54
conforme
manifestam negros, peões e congos em Goiás,
55
os tornamais como os
brancos, embora os diminua como raça, concede-lhes progressiva
50
LOPES, Helena Theodor. Axé e Vidu. Rio de Janeiro: 1986. p. 57-8.
51
FERNANDES, Florestan. A Integração dos Negros na Sociedade de Classe. São Paulo: Ática,
1978. p. 220-21.
52
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympo, 1948. p. 33.
53
MOREIRA LEITE, Dante. O Caráter Nacional Brasileiro: história de uma ideologia. São
Paulo:Pioneira, 1983. p. 45.
54
NIXON, Iolanda. Miscigenação ou Equalização: mito ou realidade. Salvador: 1986. p. 78.
55
BRANDÃO, 1977. p. 138.
32
melhora de posição social. E constata Brandão
56
que o negro é, ao mesmo
tempo, uma raça e uma cor. A raça o associa à sua origem e ao seu
passado, enquanto a cor o qualifica no presente.
57
Mas, ser mais claro não
é suficiente, ele precisa fazer, com mais rigor do que o branco, as coisas
boas da sociedade, para pelo menos igualar-se a ele.
58
Embranquecer torna-se para muitos uma meta, seja recorrendo ao
casamento com pessoas brancas ou de tez clara, seja assumindo
comportamento de brancos, a ponto de desprezar os próprios negros, seja
conseguindo, o que é mais raro, poder econômico.
59
É, pois, numa atmosfera de desprestígio e segregação, que o negro
brasileiro vem lutando para se impor enquanto negro.
De uma forma ou de outra, o discurso e a atuação dos movimentos
negros, bem como o resultado das investigações, comprovam que a religião
afro-brasileira, na expressão singular que tomou em cada região, é o
fundamento mais próximo da origem africana, do ser-no-mundo do negro
brasileiro.
As variáveis da religião negro-brasileira, com maior ou menor
reelaboração dos modelos africanos, converteram-se numa
superestrutura religiosa-cultural que serviu de resposta antitética ao
paternalismo das instituições do sistema etnocêntrico oficial.
60
Graças à religião e no interior da religião, o negro teve e tem mantido
a sua condição de ser humano e encontrado meios para, muitas vezes,
subverter a ordem da dominação, assumindo sua função política na
sociedade.
61
De um lado, os movimentos negros, mais ou menos institucionalizados,
voltados para a causa do negro oprimido, expressam de diferentes maneiras,
por escrito ou na sua ação nas comunidades, o objetivo de conscientização
de que a identidade dos negros revela-se, faz-se e refaz-se: no orgulho de
ser negro e em todas manifestações para transformar o destino traçado pelos
56
BRANDÃO, 1977. p. 137.
57
BRANDÃO, 1977. p. 139.
58
BRANDÃO, 1977. p. 148.
59
FERNANDES, Florestan. A Integração dos Negros na Sociedade de Classe. São Paulo: Ática,
1978. p. 210-11.
60
SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagôs e a Morte. Petrópolis: Vozes, 1976.
61
MOURA, 1988. p. 102-03.
33
brancos para os negros; na valorização e compreensão da herança africana,
na busca de conhecer a cultura e a
história
da África: no empenho de luta
junto ou em prol de negros oprimidos, estejam onde estiverem.
62
1.4.3 Aproximações conceituais entre raça e etnia
1.4.3.1 Raça
Reconhece-se que o termo raça tem sido usado, historicamente, para
descrever e distinguir a população humana com base em traços de
diferenciação bio-fenótica. O uso dessa expressão, confunde-se geralmente
com o uso do termo etnia, embora, tecnicamente, possam ser empregados de
forma diferenciada.
Genericamente, entende-se que todos os
seres
humanos pertencem a
uma única espécie animal: Homo sapiens, ou seja, haveria um ancestral
biológico comum a todas as pessoas. Contudo, é certo que o conceito raça
busca registrar as diferenças existentes entre os humanos, subdividindo-os
em distintos grupos biológicos.
Esta concepção tradicional vem sendo hoje rejeitada à medida em que
se considera impossível separar a humanidade de forma clara e definida em
raças. Por isso, este conceito biológico de raça está superado, sendo
considerado, mais recentemente, como as diferenças humanas no sentido de
uma poderosa força social e cultural, atuam de forma contínua no
desenvolvimento da humanidade, produzindo diferenças físicas e
comportamentais. Ianni,
63
define o termo raça, sob o ponto de vista
sociológico, como uma categoria social constituída por referências sociais,
culturais, históricas, que tomam evidências das diferenças físicas.
62
Estudos Afro-Asiáticos, 1983. p. 8-9.
63
IANNI, 1996. p. 43.
34
É
preciso considerar que as discussões mais atuais sobre o conceito
de raça, desmistificam os conceitos tradicionais sobre o tema
64
, e que
serviram de suporte teórico ao racismo e ao preconceito racial, e que
concorrem historicamente, para a legitimação da escravidão do negro.
Assim, considero que as concepções de raça são construtos sociais
determinados pelas relações político-econômicas estabelecidas na sociedade
e não com base na herança biológica dos seus componentes. Nesse sentido,
vai explicitar o fato de que sobre caracteres físicos e biológicos, recaem
valores sociais determinados pelas relações de poder, ou seja, de quem tem
o poder na sociedade.
A ascendência afro e a cor da pele -
como significante para
desqualificar a cultura, a história e os paradigmas filosóficos não-
ocidentais, vão localizar as pessoas em posições imaginárias ou
reais a estrutura social. As raças são construídas a partir de
categorias de diferença que existem somente na sociedade: elas
são produzidas por forças sociais conflitantes; elas justapõem e
informam outras categorias sociais; elas são mais fluídas do que
estáticas ou fixas; e elas têm sentido somente em relação com
outras categorias raciais.
65
Os estudos de genética, mais atuais, propõem uma discussão no
sentido de que a estrutura hereditária de qualquer organismo está formada
por unidades independentes contidas nos genes, e se perpetuam por
autoprodução.
1.4.3.2 Etnia
A expressão etnia está relacionada às referências culturais e aos
valores de determinado grupo, ainda que a presença de elementos de
natureza biológica, presentes nas classificações que se possam utilizar para
caracterizar os diferentes grupos humanos, precisam ser considerados.
64
Nesse contexto, entra Nina Rodrigues, nos finais do século XIX, envolvido pelos estudos
científicos racistas, originários, sobretudo de uma Sociedade de Antropologia, fundada em Paris
em 1859, onde os cientistas estudavam o tamanho e o volume do cérebro. Também a teoria
Darwwiniana da seleção natural serviu como base a argumentações racistas (Larousse Cultural).
65
LOPES apud CARVALHO, João. Carlos Monteiro de. Camponeses no Brasil. Petrópolis: Vozes,
1978. p. 82.
35
Desse modo, opto por utilizar, preferencialmente, nesse trabalho a expressão
etnia, por entendê-la mais apropriada ao estudo da questão negra.
Entendo que um grupo étnico deriva sua identidade dos seus distintos
costumes, linguagem, ancestralidade, lugar de origem, valores sociais, cujos
traços somáticos e referenciais culturais comuns dão identidade ao grupo
enquanto tal. Por isso, refiro Thompson,
66
por entender que o conceito de
etnia dá ênfase à identidade dos sujeitos na perspectiva cultural
,
a qual é
dialeticamente construída em contextos de interação do universo subjetivo de
determinado grupo. Assim, segundo Thompson,
67
o que define etnia é o
sentimento de pertencimento, de inclusão em um grupo no qual as pessoas
se reconhecem e se dão a conhecer: bem como têm ou criam sinalizações
que as distinguem de outros: a língua, a religião, a nacionalidade, a cultura.
1.5 A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO NEGRO BRASILEIRO
A identidade dos negros e das negras, no Brasil, está fortemente
relacionada às suas condições de escravos. Essa imagem é que tem sido
utilizada de forma mais freqüente, sendo a mais conhecida e divulgada.
Porém, a imagem do negro quilombola e insurreto, em suas lutas de
resistência contra essa condição de escravo, é mais raramente tratada.
Assim, é da condição de escravo que se tem perpetuado o lugar social
do negro na sociedade, que se tem construído estereótipos
68
sobre seu
comportamento, que se tem reafirmado sua exclusão dos bens de produção
gerados pelo seu trabalho, enfim, que se tem determinado sua
marginalização social em larga escala. É sobre essa imagem distorcida do
negro, construída ao longo da escravidão, que Petronília Silva
69
, faz uma
síntese:
66
THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 46.
67
THOMPSON, 1999. p. 51.
68
Entre algumas das visões estereotipadas do negro, feito escravo, podemos mencionar: a sua
incapacidade mental, sua irresponsabilidade latente e exacerbada sexualidade.
69
SILVA, Petronilha; GONÇALVES, Beatriz. Histórias de Operários Negros. Porto Alegre: Nova
Dimensão, 1987. p. 5.
36
A sociedade tem propagado a imagem do negro apenas como ex-
escravo, como o cidadão sem raízes culturais e sem historicidade.
como o indivíduo de índole compatível com a escravidão. como
símbolo da miséria da fome e da sujeira certamente, por causa disso
o negro tem sido visto como preguiçoso, indolente, pouco
trabalhador, indisciplinado, vagabundo, vadio, sem inteligência,
despossuído de valores, de civilidade, de humanidade com pouca
cultura criminoso, baderneiro. Os livros didáticos, um pouco mais
condescendentes. mostram-no pobre e infeliz. O irracional, o feio, o
ruim, o sujo. o sensitivo, o superpotente e o exótico, são as
principais figuras do mito negro.
Por outro lado, é preciso considerar que o elemento africano, feito
escravo, tinha um modo de vida próprio que, em certa medida, buscou
reconstruir na diáspora.
Pode-se permitir uma relação que considere a matriz de organização
social como matrilinear a forma de organização dos quilombos, que
representaram para os escravos fugitivos, em nosso país, uma reconstrução
de sua organização político-social coletiva, às vezes confundida, por alguns
historiadores, como uma mera forma de regressão tribal. Os quilombos
constituíram não apenas uma forma de resistência dos escravos à
escravidão; contrapunham-se também à forma de organização e à estrutura
da sociedade vigente. Diz Maestri
70
que a oposição fundamental entre
quilombo e o mundo oficial era, no entanto, política. A concentração de ex-
escravos era um pólo libertário subvertendo a organização escravista.
Assim, uma das primeiras atitudes do dono de escravos era eliminar,
de forma direta ou indireta, a consciência familiar e religiosa do escravo,
separando-o do grupo de mesma origem, impondo-lhe outro nome, outros
valores religiosos, tratando-o como objeto de exploração:
O escravo, como coisa produtiva, tem que se ocupar das
atividades que lhe são votadas; entregar a totalidade (ao menos
formalmente) dos frutos do seu trabalho: viver com o que seu senhor
julgue bom lhe entregar. O ritmo e duração de sua jornada de
trabalho é, também, arbítrio do seu dono. O escravismo exigia
efetivamente, que o escravo se transformasse em uma máquina, que
alienasse ao máximo sua humanidade. O limite último desse
processo era a perda da única capacidade humana valorada pelo
senhor: a capacidade de trabalhar. A sociedade escravista criava as
melhores condições para que o homem escravizado se
transformasse, objetiva e subjetivamente, em escravo. Ele era
apartado de toda vida ideológica que lhe sugerisse ou compelisse a
70
MAESTRI FILHO, Mario José. O Escravo no Rio Grande do Sul a Charqueada e a Gênese do
Escravismo. Caxias do Sul: EDUSC, 1984. p. 125.
37
um outro destino. A escravidão era apresentada como urna
realidade imutável, alicerçada nas leis do mundo real e espiritual Os
cultos de origem africana eram reprimidos; a religião católica oficial
pregava a legitimidade da escravidão, a obediência ao senhor, a
inferioridade do homem negro [...] O escravismo exigia do escravo
profunda submissão: exigia que ele se julgasse inferior, destinado,
por natureza, à escravidão; incapaz de uma vida distinta Para
alcançar isso, o senhor, podia premiar ou castigar... No entanto, o
escravo sempre resistiu.
71
Quanto à religiosidade africana, é importante salientar que esta propõe
uma visão mítico-agrária do mundo. Não há separação entre o mundo sacro e
mundo profano; entre mundo do bem e mundo do mal, pois, conforme
Altuna,
72
para os africanos, a energia divina está presente em todas as
partes da criação, de modo que os homens, as outras criaturas viventes, e,
até mesmo os fenômenos naturais estão dela penetrados e achando-se, por
isso, em comunhão.
Outro aspecto importante no contexto da religião africana é o fato de
que esta dá uma grande importância à ancestralidade, cuja prática perpassa
o dia-a-dia da vida familiar, através da veneração aos antepassados. A
verdadeira veneração dos idosos está diretamente relacionada à tradição
oral, base do culto aos ancestrais.
Sobre a tradição oral, diz Altuna:
73
Em África, quando morre um velho, desaparece uma biblioteca.
Durante muito tempo se pensou que os povos, sem escrita, são
povos sem cultura. A África negra não possui escrita, mas isto não
impede que conserve um passado e que os seus conhecimentos e
cultura sejam transmitidos e conhecidos. O meu professor T. Bokar
dizia uma coisa é a escrita e outra o saber. A escrita é a fotografia
do saber, mas não é o saber. O saber é uma luz para o homem. É
a
herança de tudo aquilo que os antepassados conheceram e
transmitiram em gérmen, à maneira do baobá que em potência se
encontra já na semente.
Portanto, é preciso considerar que a existência e a preservação de um
modo de vida africano, formaram uma certa consciência de africanidade que
subsistiu à escravidão. Esta africanidade plasmou-se, historicamente, graças
à endoculturação negro-africana, que foi superior à de todos os continentes.
71
MAESTRI FILHO, 1984. p. 112-13.
72
ASÚA ALTUNA, P. Raul Ruiz de. Cultura Tradicional Banto Luanda. Secretariado Diocesano
de Pastoral:Luanda, 1985. p. 470.
73
ASÚA ALTUNA, 1985. p. 32.
38
Ou seja, os condicionamentos históricos, o isolamento durante séculos
moldaram o caráter específico de um ethos negro e africano. Dai provêm os
termos negritude e africanidade.
1.6 A RESISTÊNCIA A PARTIR DO LAZER
No início do século XX, o Brasil vivia um momento social agitado. As
camadas populares se confrontavam com a República oligárquica, com a
República das elites A capoeira era considerada crime e os capoeiras eram
perseguidos e presos. Temos como destaque na capoeira Mestre Pastinha,
Mestre Bimba, Manduca da Praia e Besourinho Cordão de Ouro entre
outros.
74
Nesse período, surgem movimentos populares de várias matizes: o
cangaço,
as
romarias de Padre
Cícero, a Guerra dos Canudos e o
Contestado, entre
outros.
75
Todos tiveram em comum a insatisfação popular
em relação à ordem vigente e a origem popular da maioria de seus
participantes O número de negros era expressivo nesses movimentos.
Os anos passavam e uma questão ainda estava sem solução: como ser
uma nação moderna com tantos negros e mestiços? Com o passar do tempo
a tentativa de embranquecimento da pele vai se mostrando ineficaz. É
possível que alguns negros e mestiços emergentes se passem por brancos,
mas a realidade é que o número de negros pobres é muito grande e, para
desespero das elites, não tem imigração de brancos, seguida de
miscigenação, que acabe com esse problema. A visão do negro inferior já
se encontrava introjetada na sociedade, pois foram três séculos de
escravidão, onde a principal justificativa para que um homem pudesse
escravizar outro homem era a superioridade de um em relação ao outro. Um
era humano e o outro, sub-humano.
74
SILVA, Petronilha; GONÇALVES, Beatriz. Histórias de Operários Negros. Porto Alegre: Nova
Dimensão, 1987. p. 66.
75
SILVA, 1987. p. 66.
39
Neste contexto surge, na década de 30, uma teoria capaz de resolver o
problema. É a democracia racial. Essa teoria teve como principal mentor
Gilberto Freyre, e como principal referência bibliográfica a sua obra Casa
Grande e Senzala. Freyre argumentava que a colonização portuguesa, em
relação a outras práticas de escravidão, foi uma colonização que, a grosso
modo, não maltratou tanto o negro. E quando isso acontecia, as punições
eram justas. Nasce assim a teoria da harmonia entre negros e brancos. O
que antes era defeito do Brasil
o grande número de negros e o alto grau de
miscigenação, passou a ser qualidade. O Brasil era um país formado a
partir da contribuição dos negros, dos brancos e dos índios, e essas três
raças viviam de forma harmônica. Não havia discriminação no país.
76
A idéia da democracia racial foi logo disseminada. Outras visões
surgiram reformulando ou contestando a democracia racial. Mas o fato é que
a visão de um país racialmente democrático é a que reina até hoje entre a
maioria da população brasileira.
Tudo estaria bem se realmente essa democracia existisse. Vários
indicadores podem contestar a democracia racial. Vejamos alguns.
A visão de uma escravidão mais humana e menos repressiva não
condiz com a realidade. Várias passagens da história do Brasil demonstram
como os portugueses aplicavam castigos desumanos aos escravos e
escravas, obrigando-os a trabalhar de sol a sol, além de viverem nas piores
condições de higiene e alimentação. Sem contar com a violência sexual em
relação às escravas. Mais ainda, a instituição escravidão em si já é em si
mesma uma violência, independentemente do grau como essa violência é
exercida.
77
Atribui-se à contribuição das três raças a formação da
nacionalidade, dando ao branco o papel central nessa formação Os valores
morais, religiosos, políticos e sociais vinham da Europa. Coube ao branco
contribuir com a razão. Ao negro e ao índio couberam pequenas
contribuições no campo da emoção, do folclore e do exótico. Pode-se dizer
que a democracia racial coloca o branco no centro e o índio e o negro na
periferia.
76
SILVA, Petronilha; GONÇALVES, Beatriz. Histórias de Operários Negros. Porto Alegre: Nova
Dimensão, 1987. p. 67.
77
SILVA, 1987. p. 67.
40
A partir da repartição de valores entre as três raças, as imagens
positivas cabiam ao branco: beleza, inteligência, cultura superior, etc. Ao
negro coube o lugar da feiúra, da burrice, do folclórico, do exótico, da
inferioridade. Isso, sem dúvida, até hoje dificulta a formação sócio-
psicológica dos negros, pois deixa de introjetar nas crianças negras a auto-
estima tão necessária à formação de qualquer pessoa.
Talvez não exista nada que conteste com maior eficiência a democracia
racial do que a própria situação do negro brasileiro, passados mais de cem
anos de abolição A maioria dos negros está nos extratos mais baixos da
sociedade. São meninos de rua. São os que abandonam com maior
freqüência as escolas. São os que não conseguem uma boa colocação
profissional, etc. Se a explicação não é biológica, só pode ser fruto de um
processo de preconceitos e discriminações raciais. São processos que, por si
sós, desmentem a democracia racial.
Algumas pessoas e movimentos, mesmo com o advento da teoria da
democracia racial, perceberam o processo de discriminação contra o negro
no Brasil e lutaram contra ele. As lutas dessas pessoas contribuíram e
contribuem para a percepção dos mecanismos de discriminação e para a
criação de práticas que combatam o racismo.
A opressão sofrida pelos negros vai ocupar um lugar de destaque na
obra do poeta Solano Trindade, o qual, em sua poesia, ia contra todos os
tipos de opressão. O autor via nas manifestações culturais negras, como o
samba, e nas manifestações religiosas afro-brasileiras, elementos
importantes para a formação da identidade étnica e para a luta contra o
racismo.
No esporte temos negros mundialmente conhecidos, como é o caso de
Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, considerado o Atleta do Século,
muito criticado pelos movimentos negros pelo fato de não se envolver, pelo
menos de forma contundente, em lutas anti-racistas. Inversamente, temos
Adhemar Ferreira da Silva, que igualou o recorde mundial do salto triplo uma
vez e superou três vezes na década de 50. Foi campeão pan-americano e
ganhou medalha de ouro nas Olimpíadas de Helsinque (1952) e Melbourne
(1956). Adhemar foi membro do Conselho da Comunidade Negra do Estado
de São Paulo.
41
A música é uma das manifestações mais importantes para o negro
manter suas tradições e sua cultura. Com a difusão do rádio, do disco e a
solidificação de uma indústria cultural, a música popular deixa de ser um
produto marginal e passa a ser um grande produto de consumo. O saber
popular musical passa a ser valorizado e o ritmo industrial exige músicas sem
ligação com causas sociais. É nesse ritmo acelerado da indústria cultural que
a memória musical vai se perdendo. É preciso resgatar e manter a memória.
É preciso registrar a participação do negro na música popular, valorizar os
artistas negros, a música afro-brasileira, no sentido de contribuir para a
identidade étnica.
Num país onde a estética branca é a que impera, os negros lutam
muito para conseguir seu espaço nas artes cênicas. No teatro e no cinema,
durante muito tempo, o pouco espaço que o negro tinha ficava quase que
exclusivamente ligado ao folclore, ao pitoresco ou ao cômico. Na TV, até
pouco tempo, só se encontravam negros em alguns papéis, como
empregadas domésticas e bandidos. No final da década de 60, por exemplo,
a TV Globo exibiu uma adaptação do romance de Harriet Beecher Stowe: A
Cabana do Pai Tomás, onde o personagem principal era interpretado pelo
ator Sérgio Cardoso pintado de preto.
Na década de 90, encontram-se na TV negros em papéis médios que
ganham até certo destaque, mas o número de negros nesses papéis é muito
pequeno. São exceções. Parece que as emissoras de TV os empregam para
demonstrar uma certa democracia racial televisiva. No teatro e no cinema os
negros também encontram sérias dificuldades.
É comum entre os folcloristas a afirmação de que a capoeira é a forma
nacional de luta mais comum do afro-descendente do Brasil.
78
Os anos 80 e
90 assistiram a um verdadeiro boom
desta forma de expressão cultural. A
antropóloga Travassos
79
afirma que:
Nesses últimos 60 anos, com a volta da capoeiragem à legalidade,
temos podido perceber cada vez mais e com maior nitidez os
diferentes matizes nos usos e significados atribuídos à capoeira por
78
CARNEIRO, 1967. p. 56.
79
TRAVASSOS, Sônia Duarte. Negros de Todas as Cores. In: Brasil um País de Negros?
Salvador: Pallus, 1998. p. 261.
42
segmentos sociológica e etnicamente bastante diferenciados da
população.
Observar o rico discurso dos mestres e capoeiristas em geral, assim
como considerar a enorme riqueza e eficácia simbólicas por eles
transmitidas, é uma via que, certamente, nos leva a um saber e uma prática
que nasceu em meio à população negra e escrava no Brasil, há, talvez, uns
três séculos.
O samba, a capoeira e o candomblé, símbolos étnicos originalmente
negros, são atualmente sinalizados dentro e fora do Brasil, ainda que em
graus diversos, como símbolos nacionais. Todavia a existência destas
manifestações até hoje é resultado de uma longa luta por reconhecimento
cultural travada pelos escravos ao longo dos quatro séculos de cativeiro.
Apesar de sua dramática situação de desterrados e escravizados, os
africanos não ficaram passivos diante de sua nova condição. Ao contrário,
através de sua produção cultural, souberam conquistar espaços de atuação,
no interior de um processo dinâmico de recriação de sua identidade étnica
em solo brasileiro.
Uma outra forma de legitimação da cultura afro-descendente, não só no
Brasil, mas num âmbito muito maior, tem sido a música. Como as primeiras
manifestações musicais não deixaram vestígios seguros, é impossível
precisar como e quando surgiu a música. A maior parte dos estudiosos
sequer se arrisca a fazer especulações, enquanto outros abordam hipóteses
com base no que se sabe sobre a vida humana pré-histórica e preenchem as
lacunas óbvias com forte dose de imaginação. Entretanto, nenhuma teoria
afirma com certeza o momento em que os primitivos começaram a fazer arte
por meio de sons.
Esta forma de afirmação cultural afro-descendente é repleta de sons. É
uma festa de ritmos e cantos bravios, onde a sensibilidade se manifesta
livremente. E acontecem a dança e o canto em meio à luta.
Na expressividade harmônica afro-descendente, a musicalidade é
fundamental. Raiz e corpo da arte, a melodia flui de toda parte. Berimbaus,
atabaques, ganzás, agogôs, pandeiros: tudo é som e movimento.
43
As cantigas estão presentes no simples ato de se expressar. E o canto
geralmente conduzido com energia e expressividade
pode ser de improviso
ou evocado desde os antigos ou de situações reais vividas.
A atenção do afro-descendente está, quase sempre, no conteúdo da
música. Pode estar sendo transmitida uma mensagem onde ele dá expressão
á sua vivência, às experiências adquiridas ao longo da vida. Pode ser ainda
que a ladainha rememore fatos passados, trazidos à lembrança como aviso
aos jovens, enquanto perpetua um pouco da história de seus antepassados.
Assim como a capoeira, a música é um elemento fundamental da
cultura afro-descendente, recorrentemente utilizado na imagem pública que
se produz sobre este povo. É interessante observar também a profusão de
músicos afro-descendentes que, há séculos, se tornaram objeto de consumo
em todo o território nacional e no mundo. Outra constatação interessante é o
fato de muitos músicos afro-descendentes, que se tornaram importantes no
cenário musical brasileiro, sempre recorrerem ao universo simbólico da
cultura afro-descendente ao criarem suas imagens musicais. Assim, tanto
expandiram signos estereotipados quanto reelaboraram e reafirmaram outros
da cultura de seu povo que alcançaram uma dimensão mundial.
Muitos músicos procuraram elaborar uma música cuja poesia nascesse
da prática cotidiana do povo negro da terra. Esta música não é propriamente
emotiva e muito menos imperativa. Antes que centrada na primeira pessoa,
expressando direta e invariavelmente a atitude e os sentimentos de quem
fala, está mais orientada para contextos e coisas (A musicalidade negra).
Nos últimos anos, os afro-descendentes geraram internamente um
produto musical cuja popularidade no mercado brasileiro tem permanecido.
Proporcionalmente, aumentou a atenção da mídia local, nacional e
internacional fora a música afro-descendente. Além do desenvolvimento da
indústria cultural e do interesse da mídia, o fator importante neste contexto é
o rápido recrudescimento da identidade negra. Esta identidade se relaciona
tanto com um aumento de curiosidade para com a diversidade cultural do
afro-descendente, para com seus ritmos e danças, quanto com o desejo de
cidadania e consumo de uma nova geração de jovens afro-descendentes (A
musicalidade negra).
44
Deste modo, a música produzida e consumida no meio afro-
descendente, ainda que, muitas vezes, considerada frívola, reflete um
interesse crescente para quanto de genuíno, de africano, está presente em
diferentes fenômenos musicais do povo afro-descendente. Esta música, estes
músicos e estas imagens não podem ser dissociados do carnaval. Logo, de
consumo fácil e imediato, mobilizador de emoções efêmeras. De qualquer
forma, como já se observou, o carnaval recebe o impacto da vida simbólica e
material do cotidiano afro-descendente.
O impacto da música na cidade, nas relações raciais, na vivência do
lazer e na indústria do lazer: o que determina uma ligação tão forte do negro
com a música; os conceitos-chave, como suingue, axé, ginga, negritude,
tempero e mistura; como e porquê uma cultura musical mobiliza a juventude
negro-mestiça no Brasil; que expectativas esta cultura cria entre os jovens
negro-mestiços.
1.7 REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO DO NEGRO BRASILEIRO
A escolaridade formal é tida como um auxiliar razoável do inevitável
processo de se educar, sempre que uma atividade para ser melhor
apreendida necessite de ser tratada isoladamente, requeira uma atenção
especial de quem aprende e uma pessoa especial para ensiná-la. Disso,
entretanto, não decorre absolutamente que o complicado aparato de um
sistema escolar tenha uma relação direta com a educação, e certamente não
tem com a boa educação.
80
A escola apresenta-se, para os negros, como instituição responsável
pela transmissão de conhecimentos construídos pela classe dominadora e
valorizados pela sociedade, que seriam inacessíveis, de outra forma, à maior
parte deles. E se fossem acessíveis, somente a passagem pela escola ou por
outros sistemas instituídos legalmente como ela, consagraria essa aquisição.
Para fins da vida em sociedade, é valorizado o conhecimento transmitido pela
80
GOODMANN, Paul. Os Limites da Educação Escolar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1981.
45
escola, devendo, entretanto, seu domínio ser comprovado cartorialmente
através de certificados e diplomas. Assim, os que por ela não passaram ou
que lá estiveram por pouco tempo, são tidos como incultos e são postos à
margem da sociedade, se nela não ocuparem lugar de destaque econômico.
O diploma, pois, é tanto mais indispensável quando se é originário de uma
família desprovida de capital econômico e social.
81
Na escola brasileira, a discriminação contra os negros se manifesta no
material didático-pedagógico utilizado, nas informações transmitidas, no
silêncio dos educadores diante de ações discriminatórias.
82
Na escola confunde-se educação com aprendizagem. A partir de
modelos para melhor aprender, estáticos porque forâneos, como se os seus
freqüentadores não tivessem o seu modo peculiar de fazê-lo, ensinam uma
cultura globalizante, que por ser globalizante, discrimina classes, raças,
grupos. A tão propalada integração dos conteúdos curriculares com a
realidade se dará quando a escola se perguntar de que forma negros, índios,
trabalhadores, também participam da construção da sociedade que os
desumaniza.
A escola reprodutora, concebida e implantada pelo dono do capital,
apresenta somente uma dimensão da escola. Ela é também lugar
conquistado pelas classes ditas inferiores. A sua instalação, nos meios
populares, está ligada a pressões e lutas para consegui-la.
83
. Assim, a tão
apregoada política da igualdade de oportunidades, da democratização do
ensino, que resultou, na prática, em programas de menos educação para
maior número de alunos,
e que pretendia tornar permeáveis as classes
sociais, de modo que quem não subisse, teria sido por incapacidade
pessoal
84
incorporou-se na ideologia capitalista, como forma de relaxar as
pressões, sem modificar o quadro da sociedade.
81
BORDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1982.
82
GONÇALVES, Luiz. O Silêncio, um ritual pedagógico a favor da discriminação racial. Belo
Horizonte: Vozes, 1985. p. 45.
83
SILVA, F. de A. História do Brasil: colônia, império e república. São Paulo: Moderna, 1992. p.
67.
84
ROSSI, Wagner G. Capitalismo e Educação. São Paulo: Moraes, 1980. p. 71.
46
Ainda que a escola reproduza a sociedade, preparando cada um para
tarefas pertinentes a sua classe, ao seu grupo social, mas deixando que
alguns atinjam postos mais altos, ela pode ser lugar de contra-hegemonia.
85
A prática econômica, política e cultural da sociedade perpassa a
escola, está dentro da sala de aula. Entretanto, o que ali se transmite, não é
simplesmente assimilado, é também reinventado ao ser ensinado, ou é
rejeitado.
86
Assim, se, por um lado, o trabalhador ali aprende a como se
comportar, por outro, aprende também a como se defender, não
necessariamente no sentido de fazer valer seus direitos, mas no de agir com
esperteza, malícia, por trás, para tirar benefícios, proveito. É bem verdade
que este comportamento de driblar, de aparente esperteza, não permite que
alguém se afirme como ser humano, e assim ajuda a legitimar a situação que
a sociedade lhe confere.
1.8 A CAPOEIRA COMO ELEMENTO CULTURAL GERADOR DA
IDENTIDADE AFRO-BRASILEIRA
Podemos dizer que a origem do capoeira no tempo e se acha ainda
oculta pela poeira dos séculos que a envolvem. São vários os historiadores
defensores das mais diferentes teses com relação à sua origem. Não
sabemos com precisão a veracidade de todos os fatos, porque o conselheiro
Rui Barbosa, quando Ministro da Fazenda do governo do General Deodoro da
Fonseca, considerando a exploração do homem pelo homem uma mancha de
sangue na história do nosso país a ser apagada, mandou queimar toda
documentação referente à escravidão negra no Brasil (Capoeira luna).
Acreditamos que essa atitude ingênua (?) nos trouxe apenas a distorção de
muitos fatos, porque os documentos que restaram forneceram os subsídios
necessários para a reconstituição da nossa história.
87
85
FREIRE, Paulo. Conscientização. São Paulo: Moraes, 1985. p. 45.
86
FREIRE, 1985. p. 85.
87
Segundo o pesquisador norte-americano Robert Farris Thompson, duas lutas negras
caribenhas que guardam alguma semelhança com a capoeira brasileira: mani ou bombosa, de
Cuba e Lagiu da ilha de Martinica.
47
A existência da capoeira parece remontar aos quilombos brasileiros da
época colonial, quando os escravos fugitivos, para se defenderem, faziam do
próprio corpo uma arma. Não há indicações seguras de que a capoeira, tal
qual a conhecemos no Brasil ainda hoje, tenha se desenvolvido em qualquer
outra parte do mundo.
88
Como não existem pesquisas históricas a respeito da capoeira para os
séculos XVI a XVIII, não é possível reconstruirmos o processo que levou ao
deslocamento da capoeira do campo à cidade, o que deve ter ocorrido por
volta do começo do século XIX, posto que datam desse período as primeiras
referências históricas (até agora conhecidas) referentes aos capoeiras
urbanos.
89
Durante a primeira metade do século XIX, a capoeira parece ter se
configurado como uma experiência essencialmente escrava. Entretanto, a
partir dos anos 1850, altera-se a composição étnica e social de seus
praticantes, com a incorporação de libertos e livres, muitos dos quais
brancos. Dentre esses últimos havia alguns membros da elite e também
inúmeros estrangeiros, predominantemente portugueses. Tal ampliação
introduz mudanças na prática da capoeira, como a disseminação do uso da
navalha, característico dos fadistas lusitanos.
90
Durante o segundo reinado, algumas maltas de capoeira tiveram
intensa atuação política, inclusive atuando junto aos partidos da época. Tal
aproximação com a política monárquica lhes acarretará uma implacável
perseguição por parte dos republicanos, sendo que estes, ao assumirem o
poder, incluirão a prática da capoeira como um crime previsto pelo Código
Penal de 1890.
No entanto, já em 1872 levantavam-se as primeiras vozes pedindo a
criminalização da capoeira. Reconhecendo os esforços da polícia para
reprimir a audácia dos capoeiras, terror da população pacífica, o chefe de
policia do Rio de Janeiro reclama, em seu relato anual, da dificuldade de se
88
REIS, L. V. S. A Luta pela Igualdade Racial no Brasil. Revista Vozes. Disponível em:
<http//culturavozes.com.br>. p. 54.
89
REIS. p. 54.
90
REIS. p. 54.
48
reprimir a capoeira, posto que esta não é um crime de acordo com o Código
Criminal.
91
Seis anos depois, novamente se fala sobre o assunto; porém observa-
se uma diferença qualitativa na razão da perseguição aos capoeiras. Se, até
aqui, os capoeiras são perseguidos, principalmente, porque oferecem algum
tipo de ameaça física aos pacíficos cidadãos, seja quando cometem
ferimentos ou provocam desordens, agora o argumento primordial é outro.
Referindo-se à capoeira como uma doença moral que prolifera na grande e
civilizada cidade, o chefe de polícia da corte ressalta a necessidade de se
formalizar a criminalização da capoeira, sugerindo a deportação dos
estrangeiros e o envio dos brasileiros para colônias penais. Deve-se notar
aqui que muda o motivo central da argumentação policial, a qual coaduna-se,
agora, com os pressupostos evolucionistas vigentes àquela época, os quais,
pautando-se numa abordagem biológica do social, pressupunham a
inferioridade racial do negro. É o temor do contágio moral da barbárie
negra que orienta a ação das autoridades.
92
Porém a capoeira, ao mesmo tempo em que sofre uma intensificação
da perseguição policial, começará também a ser descrita por alguns literatos
cariocas, não apenas pelo que tem de mau e bárbaro, mas também como
uma excelente gymnastica, a ser adotada inclusive nas escolas e quartéis,
surgindo aqui uma nova representação social para essa prática, vista agora
como herança da mestiçagem no conflito das raças e, portanto, nacional.
93
A capoeira tem sido o meio mais freqüente dos afro-descendentes
contarem aquilo que pensam ser a verdadeira história da trajetória do negro
no Brasil, bem como de firmarem-se etnicamente, não só no Brasil, mas ao
redor do mundo. Tal afirmação, mais que absoIuta expressão cultural afro-
descendente, é o atestado da vivência ativa deste povo e do movimento
crescente por um reconhecimento de sua importância e seu papel na
sociedade moderna.
Envolvido na construção de sua identidade étnica, o afro-descendente
busca meios e expressa seu desejo e necessidade em alcançar seu ideal,
91
REIS. p. 4.
92
REIS. p. 4.
93
REIS. p. 4.
49
formulando seus discursos ideáticos enfatizadores de sua etnicidade
transmitindo, principalmente por meio da capoeira [e da musicalidade] sua
forma de ser no mundo.
A fala de um dos mestres da capoeira expressa o forte conteúdo
ideático afro-descendente, repleto de concepções biologizantes e místicas,
típicas do referido povo.
Você não pode ensinar capoeira dessa maneira que estão fazendo
hoje, uma capoeira cartesiana 1-2-1-2-1-2. Não existe movimento
certo ou errado. Você tem que deixar vir de dentro do aluno o
movimento que ele sabe, que está dentro dele, que veio
geneticamente até ele. Você deixa ele livre e aquilo vem.
94
94
TRAVASSOS, 1998. p. 262.
50
2 GÊNESE DA CAPOEIRA
2.1 CAMINHOS E DESCAMINHOS
Enfocando o contexto cultural brasileiro, indubitavelmente pode-se
constatar às influências culturais de origem africana na constituição do corpo
do Brasil.Dentre as muitas expressões culturais desse país, é na
manifestação capoeira, prática corporal multifacetada, que se evidencia a
preservação de muitos dos traços culturais dos diversos grupos étnicos que
foram traficados da África para o Brasil durante o período colonial português.
Apesar dos processos aculturativos ocorridos nas suas matrizes
originais, não mais poderiam configurar-se muitas das expressões nacionais,
sem, contudo, perder as características essenciais de africanidade tão
presentes nos elementos ritualísticos, musicais, rítmicos e outros,
direcionando a dimensão social transformadora da capoeira em expressão de
natureza lúdica.
Dentre os fatores que condicionaram a transformação da dimensão da
capoeira de movimento social que expressa a busca da libertação,
direcionando-a para o contexto de lúdico, jogo ou luta brasileira, destaca-se a
repressão jurídico-policial contra a capoeira e os capoeiras.
A tradição oral buscou sempre enquadrar a capoeira como uma
manifestação de aspecto guerreiro, logo, como uma prática corporal
compreendida em princípio, para opor-se aos seus subjulgadores nos
combates corporais corpo a corpo pela tática de guerrilha, e, ao longo dos
tempos, em fase das mudanças sociais ocorridas no Brasil colonial e
imperial, adaptando-se a novos contextos e as novas formas de
expressividade.
51
Para tanto, se faz necessário considerá-la como conhecimento
historicamente produzido, como fenômeno que estabelece relações com o
movimento de complexidade e como manifestação da cultura corporal,
reconstruída e re-significada a partir da oralidade cultural.
Portanto, considera-se a capoeira como uma expressão popular
presente no contexto cultural da sociedade brasileira, que tem inúmeras
nuanças e possibilidades, e que materializa-se a partir do jogo na roda de
capoeira. É muito difícil encontrarmos alguém nesse país, que se mostre
indiferente ao ouvir acordes de um berimbau ou a ressonância percussiva de
um atabaque, pandeiro ou agogô. De uma forma até pouco racional, reagimos
quase que instintivamente a esses estímulos manifestando através do nosso
corpo, a identificação com esses símbolos que nos remetem ás mais remotas
origens da nossa civilização e, particularmente, ao berço de formação da
nossa pluricultural nação brasileira.
É indiscutível a contribuição da cultural africana na constituição do
ethos que caracteriza o nosso povo, o que pode ser constatado nas mais
diversas formas de expressão que vão desde as artes, passando pela
culinária até a religiosidade, sem falar na peculiar idiossincrasia do brasileiro,
que tem na alegria, e na forma festiva de lidar com seu cotidiano (que nem
sempre é tão alegre e festivo), uma semelhança evidente com nossos irmãos
que habitam o outro lado do oceano.
Sabemos que ao longo da história do triste período que foi a
escravidão no Brasil, os brancos dominadores se valeram de inúmeras
estratégias objetivando a divisão e o enfraquecimento por parte daqueles que
chegavam da África, procurando evitar que esses negros, pertencentes a
uma mesma cultura ou que falassem a mesma língua, se aglutinassem num
mesmo local. Sobre isso comenta Ribeiro: ... a política de evitar a
concentração de escravos oriundos de uma mesma etnia, nas mesmas
propriedades, e até nos mesmos navios negreiros, impediu a formação de
núcleos solidários que retivessem o patrimônio cultural africano.
95
Isso fez
com que famílias e grupos sociais inteiros fossem esfacelados, fazendo com
que esses sujeitos perdessem, momentaneamente, seus referenciais,
95
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995. p. 115.
52
impossibilitando com isso que os mesmos se organizassem, tramando
possíveis revoltas ou insurreições que pudessem desestabilizar o regime
escravocrata.
Porém, o negro, segundo Freitas
96
na condição de escravo, nunca se
submeteu totalmente à violência do branco, seja física ou simbólica, criando
suas próprias estratégias de resistência, sejam elas no âmbito de sua cultura
original, onde conseguiram preservar aspectos da religiosidade, da música,
da medicina, da culinária, da língua etc., seja no âmbito da própria luta pela
libertação, onde a capoeira exerceu papel fundamental.
Tendo a sua gênese num contexto extremamente violento, onde a luta
pela liberdade e pela vida se fazia necessária, a capoeira traz na sua
essência esse caráter de revolta contra todo um sistema desumano e
opressor. É a autêntica manifestação de um grito por libertação que vem da
alma de um povo subjugado, que se apega às suas raízes para encontrar
forças e continuar resistindo contra uma situação tão adversa.
2.2 A GÊNESE: DO TERREIRO À ESCOLA
É de aceitação geral a utilização do corpo com agilidade o instrumento
utilizado pelos escravos fugitivos na defesa contra seus perseguidores,
representados pela figura do capitão do mato. E era no mato que se tratava a
luta definitiva.
Pois foi nesse tipo de mato a capoeira onde os negros buscavam
refúgio e ofereciam resistência contra seus perseguidores, que surgiu
também a polêmica que por longo tempo consumiu em debates intermináveis
inúmeros intelectuais.
Dessa forma a capoeira, enquanto manifestação popular que
analisaremos neste capítulo, busca em suas práticas as raízes de uma
ancestralidade africana e memória da luta pela liberdade dos negros
brasileiros desde os tempos da escravidão no Brasil, através da preservação
96
FREITAS, 1980. p. 16.
53
da ritualidade e de uma estética referenciada em padrões considerados
tradicionais e aqui concorda-se com Eric Hobsbawn, quando aborda a
questão das tradições inventadas
97
como forma de buscar uma continuidade
em relação ao passado de um determinado grupo.
Resultado das práticas dos africanos em diálogo com a realidade do
novo mundo na qual foram colocados, como as manifestações culturais não
são desprendidas do processo histórico, é possível compreender a capoeira
como resultado da aglutinação de elementos africanos com outras formas de
expressão aqui existentes.
Segundo Rego, a capoeira é uma manifestação dos negros africanos
inventada aqui no Brasil.
98
Com ela concorda Soares, quando afirma que o
jogo é uma manifestação afro-brasileira.
99
Manifestação essa, que nos
direciona aos quilombos brasileiros da época colonial, quando escravos
fugitivos para se defenderem faziam do próprio corpo uma arma.
No período colonial a capoeira foi sempre perseguida, mas é apenas
em 1890 que a prática da capoeira se constitui crime, permanecendo como
tal até a década de 1930, quando é liberada pelo Estado Novo.
Em 11 de outubro de 1890, o código penal da República dos Estados
Unidos do Brasil instituído pelo decreto número 847, reprimiu mais ainda os
capoeiristas dando-lhes um tratamento específico no capítulo XIII intitulado
dos vadios e capoeiras.
Art. 402 Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade
e destreza corporal conhecida pela denominação capoeiragem.
Andar em carreiras, com armas e instrumentos capazes de produzir
lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando
pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal. Pena de
prisão celular por 2 a 6 meses [...]
A capoeira era um dos principais motivos de detenção dos negros no
princípio do século XX.
97
HOBSBAWN, Eric. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1997.
98
REGO, Valdelori. Capoeira Angola: ensaio sócio-etnográfico. Salvador: Itapuã, 1968.
99
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de
Janeiro (1980-1850). Campinas: Unicamp/Centro de Pesquisa em História Social da Cultura,
2001.
54
A tradição oral e a repressão contribuem para uma das principais
características da capoeira que é a mutabilidade. O seu desenvolvimento
está fortemente atrelado ás práticas de seus atores dentro de um dado
contexto social. Eles propiciam constantemente diversas (re)leituras e
interpretações desse movimento.
Não é possível, ao longo dos tempos, localizar e/ou identificar uma
capoeira que não tenha sido modificada a partir dos processos sociais,
históricos e principalmente políticos experienciados pelos seus atores, mas o
que é possível observar são as diversas dimensões que o movimento
capoeira abriga no seu contexto étnico-ético.
As dimensões sociais da capoeira em seu prisma de definições
conceituais e etimológicas advindas principalmente da academia; a capoeira
apresenta na roda de atuação diversas dimensões onde as classes
populares criam um espaço de mudança nas relações sociais.
Ribeiro concebe a capoeira em várias dimensões:
(a) A capoeira luta. Os negros usavam a capoeira para defender sua
liberdade; essa dimensão representa a sua origem e a sobrevivência através
dos tempos, na sua forma mais natural, como instrumento de defesa pessoal,
genuinamente brasileiro é ministrada com o objetivo de combate e defesa.
(b) A capoeira dança e arte. A arte se faz presente através da música,
ritmo, canto, instrumento, expressão corporal e criatividade de movimentos. E
também um riquíssimo tema para as artes plásticas, literárias e cênicas. Na
dança, as aulas deverão ser dirigidas no sentido de aproveitar os movimentos
da capoeira, desenvolvendo flexibilidade, agilidade, destreza, equilíbrio e
coordenação motora, indo em busca da coreografia e da satisfação pessoal.
(c) capoeira folclore: é uma expressão popular que faz parte da cultura
brasileira, e que deve ser preservada, promovendo a participação dos alunos,
tanto na parte prática, como na teórica.
(d) capoeira esporte: como modalidade desportiva, institucionalizada
em 1972, pelo Conselho Nacional de Desportos, ela mesma deverá ter um
enfoque especial para competição, estabelecendo-se treinamentos físicos,
técnicos e táticos.
55
(e) capoeira lazer: funciona como prática não formal, através das
rodas espontâneas, realizadas nas praças, colégios, universidades, festas
de largo, etc, onde há uma troca cultural entre os participantes.
(f) capoeira educação: apresenta-se como um elemento
importantíssimo para a formação integral do aluno, desenvolvendo o físico, o
caráter, a personalidade e influenciando nas mudanças de comportamento.
Proporciona ainda um autoconhecimento e uma análise crítica das suas
potencialidades e limites.
(g) capoeira filosofia: entre muitos fundamentos, traz uma filosofia de
vida que prega o respeito ao próximo e aos mais velhos, estes que por sua
vez possuem um grau maior de sabedoria. Muitoso os adeptos que se
engajam de corpo e alma criando dessa forma uma filosofia de vida, tendo a
capoeira como símbolo e até mesmo usando-a para a sua sobrevivência.
(h) capoeira terapia: o esporte exerce um papel fundamental no
desenvolvimento somático e funcional de todo indivíduo. Para o portador de
deficiência, respeitando-se as suas limitações e capacidades, o esporte tem
importância inquestionável. A capoeira vem tendo destaque muito grande,
não só como esporte, mas, no caso dos portadores de deficiência, ela atua,
verdadeiramente, como terapia. Considerando sempre a etapa mental,
cronológica e motora do indivíduo, propicia um desenvolvimento orgânico
mais satisfatório, melhora o tônus muscular, permite maior agilidade,
flexibilidade e ampliação dos movimentos. Auxilia o ajuste postural, bem
como o esquema corporal, a coordenação dinâmica e, ainda, desenvolve a
agilidade e força. Vale ressaltar que a capoeira proporciona a liberação de
sentimentos como a agressividade e o medo, levando o ser humano a
adquirir uma condição física mais satisfatória e um comportamento mais
socializado.
(i) Por último, mas não menos importante, a dimensão religiosa da
capoeira. Como pagamento do seu trabalho os escravos recebiam castigos,
pano e pão, e reagiam. Em troca dos tormentos assassinavam feitores,
evitavam a reprodução, suicidavam-se e eliminavam capitães do mato e
56
mesmo seus proprietários. A resistência negra manifestava-se nos seus
cultos onde a dominação trazia a simbologia da ancestralidade.
100
O candomblé foi e ainda é um ritual de liberdade, protesto, reação
à crueldade e opressão do Deus dos brancos. Dançar, batucar, rezar e cantar
eram modos encontrados para o alívio da asfixia da escravidão. O ambiente
das senzalas era o que restava aos negros para tentar a preservação das
suas dimensões humanas, até que surgissem a oportunidade propícia à fuga.
Sob disfarce de cantigas e danças, sobreviviam suas crenças e ritos como a
mais inocente forma de diversão.
Ao som dos atabaques, como afirma Sodré, estabeleceu-se um fio
condutor em que estava ligada a religião numa espécie de arquétipo
existente no inconsciente coletivo que veio aflorar e materializar-se aqui no
Brasil.
101
A observação do transe na Roda de capoeira proporciona uma
aproximação do que acontece quando tal fenômeno ocorre no interior de uma
cultura que busca afirmar-se, libertando-se das amarras de um passado que
é visto como inferior.
De fato, é isso o que sucede em finais do século XIX no Brasil, sendo
expresso pelos autores da época na crença de que duas sociedades
desigualmente desenvolvidas e racialmente hierarquizadas coabitavam o
mesmo território, e no receio de que a camada tida como inferior (negra e
primitiva) terminasse por abortar a superior (branca e civilizada).
O transe, é claro, compunha esse quadro primitivo e aterrorizante da
cultura negra e era encarado como um dos seus traços mais aberrantes.
Royer Bastide, em sua obra Estudos Afro-Brasileiros, p. 34, coloca que a
ênfase obstinada, desde a possessão pelos primeiros estudiosos dos cultos
afro-brasileiros se deve ao fato de que, em sua maioria, trava-se de médicos
por formação. Ao contrário, parece óbvio que foram exatamente esses
estudos mórbidos do transe que fizeram com que médicos, legistas e
psiquiatras tivessem se dedicado ao estudo de um objeto teórica e
praticamente tão distante de suas preocupações cotidianas.
100
RIBEIRO, 1995.
101
SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil. Rio de Janeiro:
Codecri, 1983. p. 39.
57
Assim o destino do transe, tanto nos cultos afro-brasileiros, quanto nas
rodas de capoeira, era o gabinete médico, e o diagnóstico que o esperava só
podia ser o de enfermidade mental. Essa é a posição dos primeiros
estudiosos do tema.
Assim, para Nina Rodrigues, que explica o transe no livro o Animismo
Fetichista Negro, este não oferece qualquer dificuldade especial, trata-se de
fato, de uma perda de personalidade terrestre do filtro-de-santo que
assumiria então a personalidade de seu orixá (p. 73) e segue sustentando
que a possessão é um estudo de sonambulismo provocado num
desdobramento e substituição da personalidade (p. 81).
Trinta anos após Nina Rodrigues, Artur Ramos, também médico legista,
retornaria à questão do transe. Ramos propõe que, em vez de associar a
possessão com a histeria pura e sonambulismo, se deveria optar por um
modelo pretensamente mais complexo, onde o transe poderia ser ligado a
múltiplos tipos de perturbação mental: ele derivaria de uma regressão que
atingiram estudos efetivos, profundos, arcaicos restos hereditários de um
primitivo estágio de vida (p. 283).
A partir da década de 40, contudo, esse espaço teórico-explicativo,
começa a sofrer uma interessante torção. Herskovits (1941) e Bastide (1945;
1961) serão os principais responsáveis por uma reviravolta na direção dos
estudos afro-brasileiros, reviravolta que iria frutificar, embora tomando forma
nova e mesmo aparentemente oposta à posição desses predecessores
teóricos, nas décadas de 60 e 70. A principal idéia trazida como novidade por
esses autores é a firme convicção de que o transe é, acima de tudo, um fato
social na acepção durkheimiana do termo, e que portanto ele pode e deve ser
explicado apenas em relação ao contexto social e não através do recurso a
categorias extraídas da psicopatologia individual. Em outros termos, longe de
ser patológica e individual, a possessão seria um fenômeno normal e social.
Tanto Bastide quanto Herskovits insistirão basicamente no caráter
socialmente adaptativo do transe. Indivíduos socialmente marginalizados e
discriminados (por motivos raciais, de classe ou mesmo sexuais)
encontrariam nos cultos afro-brasileiros e especificamente no transe místico
um modo de inverter sua baixa posição social: tomados pelas divindades
africanas transformar-se-iam em deuses e reis,compensando assim seu
58
status social inferior. A possessão contribuiria assim para a adaptação
desses indivíduos à sociedade mais ampla, altamente estratificada e
dificilmente permeável por canais normais, características que tenderiam a
colocar esses indivíduos estruturalmente inferiores como que fora do jogo
social se os cultos não lhes oferecessem a ilusão compensatória de uma
participação.
O transe capoeirano mostra-nos que há recursos no corpo que são
inapreensíveis para alguns modos de racionalizar. Talvez o transe
capoeirano se estabeleça como um momento à parte, um momento restrito
em que há relação corpo e sociedade, em que corpo e cultura dêem lugar a
outras possibilidades de compreensão do corpo. Há coisas que não podem
ser definidas e nem comprovadas e, nesse caso, do que já sentimos
jogando capoeira, pode-se dizer que há momentos em que os
sentidos/significados do corpo não se estabelecem da maneira como nos
acostumamos a significar.
102
Nas religiões de matriz africana, o corpo é elemento fundamental de
ligação com o sagrado. A capoeira não é uma religião. No entanto, possui
determinados atributos que a caracterizam como uma prática que abrange
elementos de caráter eminentemente sagrado. O corpo e a música são
atributos que lhe conferem uma especificidade e aproximam dos rituais
religiosos de matriz africana em que a música e a dança exercem importante
papel na ligação do humano com o sagrado.
O transe capoeirano acontece a partir do código ritualístico instituído
o qual, através da música, transporta a uma estabilização mais profunda das
pessoas, no sentido da complementação dos jogadores em interação, sob
influência do ritmo. É um estado de integração máxima entre os participantes,
não é mais o eu nem o outro, e sim o nós. É no jogo que se manifesta
uma energia imaterial, que emana da ancestralidade africana, com ligações
profundas com o praticante; é uma força vital denominada axé.
103
102
SODRÉ, 1983. p. 39.
103
CASTRO JR, Luís Vítor; SOBRINHO, José Sant’Anna. O ensino da capoeira: por uma
pedagogia Nagô. 2001. p. 153.
59
O segredo da capoeira é a manha e a observçaão. É o estado de zen.
Existe um transe de capoeira como existe o transe de candomblé. O
capoeirista não sabe o que ele está fazendo. Os dois sabem. Os dois são um
só (Depoimento de Mestre Decânio).
104
Impossível desconsiderar a magia que envolve a todos numa roda de
capoeira. A música é como um fio condutor que faz a ligação entre todos os
participantes da roda. O próprio formato circular em que os sujeitos se
dispõem contribui para a integração dos sujeitos que compõem a roda com a
energia musical. O círculo representa a unidade, não tem começo e nem fim.
Seja através dos instrumentos que compõem a orquestra musical, seja
através do canto ou do coro formado pelos participantes, a música envolve e
cria a atmosfera mágica da prática. Para os mais sensíveis, a musicalidade
provoca uma reação no corpo, de tal forma, que excita o desejo de
movimentá-lo. Mesmo para quem desconhece a prática corporal da capoeira,
o corpo reage ao estímulo musical. Como expressão do sagrado, o corpo se
manifesta embalado pela música.
Quem já participou de uma roda de capoeira cujos rituais foram
observados e as músicas e instrumentos foram cuidadosamente utilizados,
sabe e sentiu no corpo algo inexplicável, uma relação sacra que imprime ao
corpo o desejo de expressar isso (Mestre Decânio, o Pastinha).
105
A sua capoeira é você. Não existe nada fora de você na capoeira.
Durante o jogo, você exterioriza todos os seus reflexos, os seus
apetites, a sua personalidade integral, desprovida da maioria dos
preconceitos. Essa individualização da capoeira permite a quebra de
todos os bloqueios. Por que deixa de existir toda a superestrutura
social, cultural, educacional que nos impede de manifestar todos os
complexos. E a pessoa fica livre, livre como um anjo, livre como o
vento. E como o vento ela é a expressão da verdade (Depoimento
do Mestre Decânio em: capoeiragem na Bahia).
106
Nossa sociedade dessacraliza o corpo em prol de uma racionalidade
pautada na saúde, os padrões de beleza, na mídia etc. Os sinais do sagrado
no corpo foram superados por um discurso de hipervalorização do racional. O
corpo nos materializa: O corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do
104
PASTINHA, Vicente Ferreira. Pastinha: uma vida pela capoeira. Entrevista concedida à
Rautavara, Helina. Bahia: 1967. p. 12.
105
PASTINHA, 1967.
106
PASTINHA, 1967. p. 12.
60
homem. O mais exatamente, sem falar de instrumento, o primeiro e mais
natural objeto técnico, e ao mesmo tempo meio técnico do homem é seu
corpo.
107
No entanto, essa relação entre religiosidade e capoeira não é fácil de
ser assumida. Os Mestres de capoeira sabem que é preciso tomar cuidado ao
abordar o assunto. Alguns até preferem fugir dele, pois as religiões africanas
ainda são por demais vítimas de preconceito em nossa sociedade. Mesmo
assim, essas manifestações estão intimamente ligadas, pois são originárias
de uma mesma cultura, de um mesmo povo.
Para além disso, a ciência que normalmente se faz não aceita aquilo
que não consegue dominar e comprovar através de leis, avaliações, dados,
provas concretas etc.
Na pedagogia peculiar da capoeira, os ensinamentos são passados
através da proximidade entre Mestre e aluno. Nesse sentido, o toque, o odor,
o olhar, a atenção etc., é toda voltada para esta relação.
2.3 CAPOEIRA E EDUCAÇÃO POPULAR
A evolução do homem é compreendida como sendo uma reiterada e
constante resposta aos desafios da vida.
O homem pode refletir sobre si mesmo e colocar-se num
determinado momento, numa certa realidade: é um ser na busca
constante de ser mais e, como pode fazer esta auto-reflexão, pode
descobrir-se como um ser inacabado, que está em constante busca.
Eis aqui a raiz a da educação.
108
A preocupação primeira foi o resguardo permanente de sua
sobrevivência, ou melhor, a preservação de sua espécie. Este desafio
consistiu em vencer os obstáculos que a vida foi colocando, procurando obter
sua melhor qualidade. Nessa procura, o homem, desde as cavernas,
passando pelas sociedades tribais, até chegar ao capitalismo e socialismo,
107
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: EPU, 1974. p. 217.
108
FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. São Paulo: Paz e Terra, 1988. p. 27.
61
foi acumulando conhecimentos em sua trajetória histórica. Mas existem
povos, em várias etapas de organização social, com suas relações, com suas
práticas, com suas culturas, correspondentes ao seu grau de evolução. Cada
qual com seus ensinamentos e soluções adequadas ao estágio em que se
encontram. Ou seja, cada um tem sua vivência, sua sabedoria, vinda de sua
prática, transmitida a seus pares, garantindo sua sobrevivência e o
aprimoramento de suas soluções. Porque puderam fazer sua auto-reflexão,
puderam também descobrir suas possibilidades ainda não concretizadas e,
portanto, se proporem como sujeitos de sua história.
A evolução, contudo, não se resumiu a uma auto-descoberta, mas a
uma eterna conquista de uma comunidade sobre outra, até mesmo facilitada
pelos diferentes estágios de cada uma. Um maior domínio sobre as forças da
natureza e sobre determinadas técnicas particularmente as bélicas ou as
usadas para a guerra permitiu subjugar povos e submetê-los aos interesses
dos dominadores.
Quando a produção já não se faz em função dos consumos locais,
alcançando volumes excedentes que permitam a troca, ou seja, a
disponibilidade de outros bens produzidos alhures, abrem-se possibilidades
consideráveis para o enriquecimento e para uma organização cada vez mais
aprimorada com vistas ao seu alcance. O processo produtivo se faz cada vez
mais eficiente, incorporando matérias-primas diversificadas e de localizações
distantes; lançando produtos (mercadorias) diversos, novos e satisfazendo
necessidades que a própria produção ia despertando; exigindo fatores
produtivos homens, terras e riquezas de toda ordem para dar conta às
exigências crescentes dos mercados em expansão. Para obtermais
mercadorias e mais poder de troca, o homem se lançou nesta corrida, mesmo
tendo que dominar outros homens; fator importante e inevitável foi tirá-los da
trajetória de seu estágio de vida, rompendo o ritmo e a forma espontânea de
desenvolvimento de suas comunidades, apropriando-se de sua força de
trabalho, de sua produção, em benefício dos dominantes.
Um povo sob o domínio de outro simplesmente deixa de ser sujeito de
sua vida, passando a objeto de outros interesses. O povo dominado se
desestrutura, já não opina, não entendendo o processo a que foi submetido.
Do homem dominado é pervertido o curso de sua história, fazendo-o não
62
compreender o novo mundo a que foi submetido. Não consegue transpor os
limites desse novo mundo, pois a sua experiência social não mais responde
aos desafios da nova relação de poder. Sua mutação de sujeito em objeto
impede-o de atuar, dando lugar a um ser frustrado, perdendo seu
engajamento na construção de sua liberdade. Como este homem passa a ser
objeto, deixa de criar e recriar, ou seja, pára de fazer cultura. Não consegue
fazer cultura no seu espaço histórico e geográfico. Assume a cultura do
dominante e a ideologia a dominação.
109
Perde sua identidade cultural e sua
individualidade. Subtrai-se enquanto singularidade histórica.
Na história do Brasil, o indígena o primeiro habitante vivia em
regime de comunidade primitiva, em organização tribal. Veio o português, em
regime feuldal-mercantil, para dominar e conquistar novas terras. O
português trouxe o africano, que se encontrava em regime primitivo ou em
regime escravista, para ser sua força de trabalho. O indígena e o africano
foram dominados pelo português, que lhes impôs sua cultura.
Consequentemente, o ensino originou-se desse quadro inicial: um ensino
voltado para perpetuar a dominação. Começou num sistema colonialista,
onde havia senhores e escravos. mais tarde, criou-se uma camada
intermediária, formada por escravos libertos e indivíduos isolados que se
realizaram economicamente no ciclo da mineração, onde, pela primeira vez, a
população livre foi mais numerosa do que a população escrava, a qual
também foi atraída pela ideologia colonialista.
110
Esta dominação fica clara na
interpretação de Paulo Freire:
A sociedade fechada latino-americana foi uma sociedade colonial.
Em algumas formas básicas de seu comportamento observamos
que, geralmente, o ponto de decisão econômica desta sociedade
está fora dela. Isto significa que este ponto está dentro de outra
sociedade. Esta outra é a sociedade matriz: Espanha ou Portugal
em nossa realidade latino-americana. Esta sociedade matriz é a que
tem opções; em troca, as demais sociedades somente recebem
ordens. Assim é possível falar de sociedade-sujeito e de
109
“Para Marx, claramente, ideologia é um conceito pejorativo, um conceito crítico que implica ilusão,
ou se refere à consciência deformada da realidade que se dá através da ideologia dominante: as
idéias das classes dominantes são as ideologias dominantes na sociedade” (LÖWY, Michael.
Ideologia e Ciência Social. São Paulo: Cortez, 1988. p. 12).
110
Identifica-se como ideologia do colonialismo o conjunto de preconceitos que, justificatórios da
dominação e da exploração colonialista, pretendem constituir os suportes científicos dessa
dominação e exploração” (ex.: superioridade racial) (SODRÉ, Nelson Werneck. Síntese de
história da cultura brasileira. São Paulo: Difel, 1982. p. 49).
63
sociedade-objeto. Esta última opera necessariamente como um
satélite comandado pelo seu ponto de decisão: é uma sociedade
periférica e não reflexiva.
O ponto de decisão ou sociedade matriz fortifica-se e procura na
outra sociedade a matéria-prima e a transforma em produtos
manufaturados, que vende às mesmas sociedades-objetos. O custo,
a importação, a exploração, o preço, etc., são determinados pela
sociedade-sujeito. Não cabe à sociedade dominada decidir. Por isso
não há nela mercado interno; sua economia cresce para fora, o que
significa não crescer.
O mercado é externo à sociedade-objeto e tem características
cíclicas: madeira, açúcar, café, ferro, sucessivamente. Essa
sociedade é predatória, não tem povo: tem massa. Não é uma
entidade participante.
Nestas sociedades se instala uma elite que governa conforme as
ordens da sociedade matriz. Esta elite impõe-se às massas
populares. Essa imposição faz com que ela esteja sobre o povo e
não com o povo.
(...)
A sociedade fechada se caracteriza pela conservação do status ou
privilégio e por desenvolver todo um sistema educacional para
manter este status.
111
Hoje mudaram os dominantes e o sistema de exploração. A educação,
assim, continua como um instrumento para manter a dominação em sua
feição contemporânea e, portanto, a cultura da elite parte
estrangeira/transplantada segue sua função alienante.
O traço original da cultura brasileira está, sem dúvida, nas culturas
populares de resistência à dominação, de onde saíram poetas recrutados na
camada intermediária e os extraordinários artistas que surgem de origens
escravas. Aí são encontrados os humildes artesãos que trabalhavam para os
padres, os músicos, os escritores, etc. É a cultura que ate hoje não é
valorizada. Quando a disputa pelo poder exige o apoio das massas, sua
cultura é usada para atrair a população em benefício das elites.
Esta cultura, a cultura do povo, ou seja, a cultura dos oprimidos, não é
transmitida no ensino. A verdadeira história que o povo escreve em seu
cotidiano é contada, sob o ponto de vista dos dominadores, de acordo com
suas conveniências. O próprio professor, que é formado em nossas
universidades, é preparado para reproduzir a sociedade dominante, porque
111
FREIRE, Paulo. p. 33-4.
64
sua formação não contempla a verdadeira história. Suas categorias
ideológicas são as da cultura dominante, incluindo as da cultura
transplantada de outras sociedades. Em boa parte isso explica o fato de o
professor não estar engajado na luta daqueles que fizeram este País. Ele
desconhece a luta dos oprimidos e, por conseqüência, seus ensinamentos
abstraem a verdadeira realidade; não se compromete em revelar a história,
preferindo a comodidade de ver um mundo de conveniências; estas
conveniências lhe cortam qualquer engajamento fecundo em direção às
mudanças da existência humana.
A universidade está comprometida com uma cultura universal, que é
importante, sem dúvida, mas desvinculada da realidade onde o profissional
irá atuar, sem possibilidades de poder solucionar os problemas inerentes aos
oprimidos.
Moacir Gadotti define muito bem o ensino superior:
A escola reproduz o silêncio desejado pelas elites. Sérgio Guimarães,
em sua análise, coloca o problema da alfabetização:
A universidade tem uma vocação que eu chamaria regional. É
lógico que existe um saber universalmente válido, devendo ser
válido em todos os lugares, a universidade só pode se concretizar
na sua vocação regional. Não entendo uma universidade que se
desligue totalmente dos problemas da região, por exemplo, uma
universidade do Amazonas que estuda as mesmas questões que são
estudadas na universidade de São Paulo. Certamente há problemas
idênticos, mas cada universidade deve ter os traços de sua região.
Nesses vinte anos, uma das características da chamada
universidade autoritária é essa tentativa ditatorial de uniformizar
todas instituições de ensino superior para poder exercer maior
controle.
112
A elite controla seus professores para que estes não percebam a
realidade. Vive-se numa sociedade onde a verdade não é dita e, sempre que
o povo quer se manifestar, o governo em seu nome o oprime, impondo
um permanente silêncio. Há muito espera-se a solução dos problemas, sem
que se possa participar na construção deste País. Percebe-se este silêncio,
por exemplo, ao se constatar que, numa alfabetização, os professores
ensinam os alunos a ler e escrever de maneira repetitiva, decorando
112
GADOTTI, Moacir; FREIRE, Paulo; GUIMARÃES, Sérgio. Pedagogia: diálogo e conflito. São
Paulo: Cortez, 1986. p. 53.
65
palavras, frases e textos, sem que desenvolvam o interesse pelo conteúdo e
a discussão sobre o mesmo, anulando cada vez mais seu espírito crítico. O
conteúdo escolhido, na maioria das vezes, não é pertinente à realidade do
aluno, cujo desinteresse retrata o não-relacionamento do mesmo com o seu
acontecer diário.
A escola reproduz o silêncio desejado pelas elites. Sérgio Guimarães,
em sua análise, coloca o problema da alfabetização:
É comum nas escolas, aliás, precipitar-se a alfabetização, entendida
como aprendizado da leitura e da escrita, sem levar em conta o
desenvolvimento da oralidade. Ora, a meu ver, o ler e o escrever
palavras pressupõem o exercício do ouvir e do falar enquanto
formas primeiras de expressão. Quando tentamos desenvolver o
domínio da leitura e da escrita sem que as pessoas tenham tido
suficientes oportunidades de exercitar-se na compreensão do que
ouvem e do que falam, caímos na alfabetização como processo
mecânico. Pois bem: se uma criança não é capaz de racionar e
articular palavras e idéias oralmente, como poderá formulá0las em
sua expressão escrita?
(...)
Agora, se considerarmos, nesta ordem, os dois níveis de expressão
verbal, o oral e o escrito cada um com seus dois pólos: ouvir/falar,
ler/escrever o que geralmente ocorre na prática de sala de aula é
um desequilíbrio nítido a favor dos pólos predominantemente
receptivos (ouvir e ler), em prejuízo do falar e do escrever, pólos
eminentemente produtivos.
113
Querendo-se desenvolvera primeira forma de expressão, o ouvir e o
falar, deve-se começar pela reconstrução participativa da nossa história. Não
será calado que se vai participar. Partindo da realidade objetiva, deve-se
fazer uma reflexão de onde se veio, ou seja, juntando o passado com o
presente. Assim, nosso ouvir e falar encontrará relação com nossa
existência, condição indispensável para passar-se a sujeito do mundo
circundante. Conseguir-se-á refletir melhor sobre nossos problemas e, por
conseqüência, descobrir as soluções mais adequadas. A iniciação do falar e
do ouvir, fruto da discussão sobre a realidade, criará a necessidade de
aprender a ler, em busca de mais informações sobre a própria existência. A
mudança do mundo começa em reescrevê-lo sob a ótica do dominado,
começando a transformação para uma sociedade mais justa. O falar e o ouvir
113
Ibidem, p. 118-9.
66
têm início entre amigos, entre vizinhos, em associações de bairro e vilas, em
conselhos comunitários, nos sindicatos, nos partidos políticos. Neste
exercício de ouvir-falar e falar-ouvir começa a participação efetiva na
sociedade. Reside aí a importância da educação, da educação formal, da
educação informal, mas, sobretudo, da educação popular. O sociólogo José
Ivo Follmann, define a educação popular da seguinte forma:
A educação popular torna vivo o sonho (aspirações) de ser cidadão
naqueles para os quais a cidadania foi reprimida e negada. Este
sonho (aspirações) é trabalho mediante a compreensão das causas
estruturais desta repressão e negação, e das estratégias existentes
para sua reprodução e estratégias existentes e possíveis para sua
reversão (transformação). (...) Neste processo, sonho e realidade
vão se encontrando na medida em que emerge de dentro do não-
cidadão um cidadão (...).
114
É imprescindível que tanto o professor de sala de aula quanto o
trabalhador social façam uma opção chave. Uma alternativa é que sua ação
seja para manter a sociedade atual, ou melhor, adestrar o homem para um
desempenho de conformismo; outra, é buscar a transformação da sociedade
através do homem inconformado. Não existe a neutralidade. Aquele que se
diz neutro se resigna a objeto da história. Decorrência da primeira alternativa
é sua ação entendiadora na sala de aula e assistencialista no trato com as
comunidades.
Aqueles que optarem pela segunda certamente terão um desafio maior,
pois sua ação irá contra o sistema dominante. É preciso desvendar e
entender a realidade para percebera necessidade de mudá0la. Isto será
fortemente favorecido por uma prática junto ao povo, a partir de sua
experiência cotidiana. Tanto os educadores como o povo, juntos, irão
desenvolver a consciência de mudança, num aprender mútuo na troca de
seus saberes (o universal e o popular), formando, assim, a cultura popular.
Carlos Rodrigues Brandão cita a proposta da cultura popular:
Gerar e difundir instrumentos culturais e culturalmente políticos de
serviço à causa popular, sob a forma de movimentos criados por
grupos de intelectuais comprometidos. Estes movimentos nada geral
114
FOLLMANN, José Ivo. Educação popular, cidadania e universidade. Cadernos CEDOPE n. 1
Centro de Documentação e Pesquisa da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo,
1989. p. 7-8.
67
sozinhos, mas eles participam de um esforço comum (com outros
grupos comprometidos e com grupos populares) dos processos de
conscientização e mobilização dos subalternos. Isto quer dizer que é
tarefa desse tipo de trabalho cultural gerar transformações da
consciência, da expressão simbólica e ideológica, da qualidade de
mobilização e de organicidade da prática política entre sujeitos,
pequenos grupos, comunidade e outros setores e espaços
populares.
(...)
Gerar uma nova era de diálogos entre intelectuais comprometidos e
as classes populares: criar uma nova geração delimitantes críticos e
renovadoramente criativos entre artista se educadores eruditos e
populares.
115
O diálogo é fundamental para a transformação. Ele é um dos objetivos
dos educadores comprometidos com as mudanças. Este diálogo terá que
partir da vivência do povo. Terá que ser, na linguagem popular, o início de
esclarecimento da realidade. Só assim é que se poderá romper o círculo de
reprodução deste mundo para instaurar o processo de gestação de outro
mundo. O diálogo é importantíssimo na educação reflexiva. É preciso falar-
ouvir e ouvir-falar para problematizar a realidade, despindo-a. A educação
oficial é reflexa, pois seus professores impõem-se aos alunos, fazendo-os
apenas receptores de conteúdos. É reflexa, pois adestra o homem á
sociedade, reproduzindo as mesmas relações de poder. Segundo Paulo
Freire:
Não cria aquele que impõe, nem aqueles que recebem; ambos se
atrofiam e a educação já não é educação.
116
Não é o caso de impor o mundo aos homens, pois educação é a
inserção do homem no mundo. A instrumentalização é um meio e não um fim.
O trabalhador social tem mais condições de atuar nas causas
populares do que o professor de sala de aula. Este está preso às normas da
escola e sua ação é dentro dela. Já o trabalhador social atua fora de sua
instituição. Sua ação é nos movimentos das comunidades, atuando
diretamente sobre seus problemas. É mister que este trabalhador social
esteja comprometido com as causas populares e tenha feito sua opção, ou
115
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A Educação como Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 43,
45.
116
FREIRE, Paulo. p. 69.
68
seja, tenha entendido o mundo e sua função junto aos oprimidos. Terá que
partir da realidade, da prática popular, da linguagem popular, da história dos
oprimidos.
Neste particular a capoeira pode vir a ter importância fundamental na
revelação desta história, sendo um instrumento de resgate da mesma. De
onde a capoeira surgiu e como veio sendo desenvolvida até hoje -, é possível
relacionar as épocas, desde o colonialismo ao capitalismo, fazendo com que
o praticante de capoeira se situe em seu espaço temporal, descobrindo s
verdadeiras raízes do povo brasileiro, daqueles que construíram as bases
econômicas deste País.
Ao relacionar as épocas percorridas pela capoeira, é possível entender
a contribuição do negro na formação de nosso povo e, também, sua luta pela
liberdade. No regime escravocrata, o negro teve que se unir e criar uma
cultura de resistência à dominação, sendo a capoeira uma de suas
expressões. A dominação muda de forma, mas a luta continua junto com os
demais pobres e oprimidos, identificados pela venda, sem futuro, de sua
força de trabalho.
Todos têm compromisso com o quadro atual, ou seja, compor com a
perspectiva do tempo. De onde vieram os preconceitos, a discriminação? É
preciso ter a percepção das relações sociais nas diversas etapas da história,
conforme salienta Paulo Freire:
Na medida em que o homem cria, recria e decide, vão se formando
as épocas históricas. E é também criando, recriando e decidindo
como deve participar nessas épocas. É por isso que obtém melhor
resultado toda vez que integrando-se no espírito delas, se apropria
de seus temas e reconhece suas tarefas concretas. (...) A tarefa de
uma época para outra caracteriza-se por fortes contradições que se
aprofundam, dia-a-dia, entre valores emergentes em busca de
afirmações, de realizações e valores do ontem em busca de
preservação.
117
A capoeira, por representar uma cultura de resistência, com sua
história, com sua linguagem própria, é sem dúvida um instrumento precioso
para a conscientização de mudanças sociais.
117
FREIRE, Paulo. p. 64-5.
69
Outro aspecto importante do emprego da capoeira como instrumento de
educação se refere à sua prática e ao seu contexto. Sua prática faz lembrar
situações a que o negro foi submetido e, seu contexto, um código que
determina uma prática social, uma reação comportamental frente à realidade.
Seus movimentos são inspirados nas lutas do negro contra a escravidão. Em
seu meio social não interessam os valores da sociedade, pois no jogo da
capoeira as relações das pessoas se sobrepõem às relações socais, ou seja,
não interessa ao rico ou pobre, se homem ou mulher, se branco ou preto. A
hierarquia se faz pela competência no jogo, tornando-se, por isso,
indispensável a humildade no aprendizado. Humildade reveladora de que
ninguém é mais do que ninguém.
Isto permite ao seu praticante um questionamento sobre os valores
sociais de um modo geral. Por que a mesma competência não é elemento
ordenador e único fundamento para as hierarquias existentes? O contraste
entre o ordenamento estabelecido em sua prática e o ordenamento fora dela,
por si só, é elemento educativo, uma vez que leva a indagações cujas
respostas, se autênticas, permitirão o avanço de sua consciência crítica.
É preciso que todos os professores, os trabalhadores, os pobres em
geral, captem a composição de classes da nossa sociedade: classe
dominante e classe dominada. É preciso entender a história de sua classe
para compreender melhor as relações sociais. Só então poderão ser sujeitos
conscientes de mudança.
Sem dúvida, a capoeira tem muito a oferecer neste processo de
transformação.
70
3 INTERSECÇÃO COM A FALA DOS CAPOEIRAS
3.1 NA RODA AS VOZES DOS CAPOEIRAS
Ao desenvolver a análise qualitativa das entrevistas semi-estruturadas,
a opção metodológica utilizada tem como referência a definição de
procedimentos referida por Abarello
118
que afirma: a operação intelectual
básica de uma análise de material de entrevistas consiste, essencialmente,
em descobrir categorias, quer dizer, classes pertinentes de objetos, de
ações, de pessoas ou acontecimentos.
A partir da escolha das categorias, definidas pelo referencial teórico
escolhido, define-se, também, o alcance de seus significados e estabelece-se
um conjunto de relações entre essas categorias. Isso implica na adoção da
análise crítica, pois trabalhar com categorias histórico-sociológicas é buscar
demonstrar mais os procedimentos de construção ou designação do valor
dessas categorias do que propriamente o seu conteúdo. Trata-se de uma
análise dialética.
Portanto, ao analisar a fala dos capoeiras, considera-se mais
importante verificar o significado que eles atribuem às categorias sociais
sugeridas na pesquisa do que propriamente o significado teórico, a priori,
atribuído a essas categorias.
Desse modo, é mais importante o capoeira expressar como ele percebe
as manifestações da categoria racismo em seu meio, por exemplo, do que ele
ter se apropriado de noções teóricas dessa categoria. Valorizar sua fala,
como fora de sua mediação social, é assumir uma atitude de quem escuta e
respeita a sua verdade, tomando-o como um agente social perpassado por
118
ABARELLO, Luc. Práticas e Métodos de Investigação em Ciências Sociais. Lisboa: Gradiva,
1997. p. 118.
71
essas categorias. Esse é o posicionamento tomado, a partir da categoria de
análise assumida.
Em primeiro lugar, a convicção de que o discurso do capoeira pode
revelar tanto a prática do racismo e da exclusão, como manifestar caminhos
de inclusão. Paulo Freire (1997) vai nos dizer que o educador precisa
aprender a ouvir de forma paciente e crítica, isto é, dialogar.
Por sua vez, Fernández
119
, referindo-se ao campo da psicopedagogia,
nos diz que o terapeuta precisa colocar-se em um lugar analítico, permitindo
que o paciente [por analogia, o capoeira] possa organizar e dar sentido a sua
fala, a partir de um outro [terapeuta] que escuta e não desqualifica, nem
desqualifica o seu discurso. Não se trata de assumir uma posição de
neutralidade, pelo silêncio que ouve, nem pela desafetividade, pelo
distanciamento necessário, em relação às significações presentes no seu
discurso.
Assim, entendo que uma das finalidades importantes de qualquer
pesquisa, que envolva a escuta dos alunos, é estabelecer relações de suas
falas com as categorias conceituais designadas antes e durante os momentos
da entrevista.
Ao escutar a voz dos capoeiras, criando conceitos sobre categorias
estruturadas, eles elaboraram um novo discurso construído sobre esses
mesmos conceitos dados, atribuindo novos significados para a análise das
verdades que circulam entre eles e o meio.
Maclaren,
120
ao desenvolver conceitos sobre o primado da voz, diz
concordar com Henry Giroux, para quem a voz é um conceito pedagógico
importante, porque alerta aos professores para o fato de que todo o discurso
é situado historicamente e mediado culturalmente, e parte do seu significado
deriva da interação com os outros.
Apesar do termo voz referir-se a um discurso interiorizado, privado, tal
discurso não pode ser entendido sem que se situe num universo de
significados partilhados, isto é, nos símbolos, narrativas, e práticas sociais da
comunidade na qual o diálogo acontece. O termo voz refere-se à gramática
119
FERNANDEZ. 1991. p. 126.
120
MACLAREN, 1997. p. 252.
72
cultural e à bagagem de conhecimento que os indivíduos usam para
interpretar e articular a experiência.
Ao considerar a relação corpo-fala-cultura, como dados presentes na
representação da realidade vivenciada e expressa em conceitos, da parte do
capoeira é exatamente sobre essas categorias sociais que toda a carga
histórica de racismo e discriminação irá incidir.
Nas primeiras observações e conversas, os entrevistados foram os
professores universitários das disciplinas de capoeira em uma Universidade
da Grande Porto Alegre e outra da Capital.
Uma terceira universidade faria parte da pesquisa, mas a disciplina
capoeira é oferecida de forma optativa e, esse ano, não houve matriculas
suficientes para realizar a disciplina. Na primeira Universidade, após as
observações das aulas, passei a entrevistar o professor que é mestre em
capoeira e, quando questionado a respeito de como estava a situação da
capoeira na atualidade e a sua relação com a questão do negro, pude
constatar um certo distanciamento entre ambas.
... a capoeira, mesmo tendo origem lá no tempo da escravidão com
os negros, hoje ela está mais comercializada, industrializada, ela
está dentro das academias, que têm horário para começar aula e
terminar, fica aquela coisa, 1, 2, 3, ... pezinho prá frente, pezinho
prá trás. Não tem mais aquela curtição, aquela vadiagem típica da
roda, sem tempo para começar, sem tempo para terminar.
P1
A partir dessa resposta, procurei entrevistar outro professor, em outra
universidade, onde a capoeira é ministrada em uma disciplina onde as lutas
são abordadas de uma maneira superficial, sem um aprofundamento. Em
resposta à pergunta anterior, o professor coloca:
... a capoeira sofreu e sofre muitas modificações no seu percurso
histórico, de elemento da cultura negra, marginalizada, ela é, hoje,
também esporte, um esporte genuinamente nacional, até pela sua
facilidade de ser praticada, ela vem sendo realizada em algumas
escolas como projetos de inclusão, pois não precisa de materiais
como bola, rede, apito, quadra coberta, etc, que muitas escolas não
possuem, mas a questão racial propriamente dita, não. Mesmo na
universidade, ela tem uma abordagem mais superficial dos
movimentos, ritmos e aproximações com ginástica de academia.
P2
P1
Professor 1.
P2
Professor 2.
73
Entretanto, nessa mesma entrevista, ao questionar quais escolas
trabalham a capoeira como projeto social, tomei conhecimento da escola já
mencionada anteriormente, que está situada na zona sul de Porto Alegre, na
confluência de várias vilas populares, com um crescimento populacional
acelerado. O entorno da escola é, na sua maioria, constituído de casas
populares muito simples, de onde provêm os alunos e alunas, de famílias
empobrecidas, e com raras exceções, alguns alunos de famílias de
funcionários públicos e pequenos comerciantes.
Um aspecto singular dessa comunidade escolar é a presença
majoritária de alunos negros, contrastando com uma presença crescente, nos
últimos anos, de alunos brancos oriundos de vários municípios do interior do
Estado.
O grupo de capoeira funciona na Escola no final do turno da tarde e
início do turno da noite e é composto por um número variável de 15 a 20
meninos e meninas.
A capoeira é oferecida pela escola de forma gratuita, e no mesmo
horário de outras escolinhas esportivas tais como futebol, vôlei, basquete,
futebol de salão e dança de rua.
Optei por desenvolver a pesquisa somente junto aos alunos do grupo
de capoeira Zumbi pelas seguintes razões:
Por pretender escutar a fala dos capoeiras negros/negras, oriundos de
famílias pobres e da periferia.
Por considerar que há uma certa especificidade no todo dos capoeiras
os negros conviverem com não-negros, o que de certa forma amplia o leque
de relações e representações dos alunos.
Por considerar que, não sendo professor da escola, poderia ter uma
aproximação com os/as colegas professores desse estabelecimento, evitando
um constrangimento próprio de quem expõe suas opiniões sobre um tema
sempre difícil de ser tratado na escola, especialmente pelo convívio diário
com os colegas do ensino regular.
Conforme já salientamos o grupo de capoeira se constitui no objeto de
nosso Estudo de Caso. O que relatamos e analisamos nessa parte são as
falas dos capoeiras, centrando a atenção naquilo que eles manifestam em
termos de identidade negra e racismo.
74
Após as observações realizadas nas aulas de capoeira no Grupo
Zumbi, perguntei inicialmente se os alunos gostariam de participar do
trabalho e apresentei as atividades referentes à pesquisa que seriam
realizadas durante as aulas de capoeira.
Ressaltei o quanto a colaboração e participação deles eram importante
nas atividades que seriam desenvolvidas.
Os alunos aceitaram a proposta e ficaram empolgados por contribuírem
para a realização deste trabalho.
Com a intenção de sensibilizá-los para a aproximação da atividade
física que eles já praticam que é a capoeira e para a questão do negro, iniciei
o trabalho pedagógico com a exibição do Filme Capoeirando, Ilhéus 2004,
Mestre Suassuna. Decidi por um filme para desencadear o trabalho de
pesquisa, não com o intuito de ser uma atividade de motivação, mas sim
porque mostra a capoeira praticada na Bahia durante o Festival de Capoeira
de Ilhéus e que contém depoimentos de grandes mestres da capoeira.
Desse modo, considerei o filme como importante artefato a ser trazido
para o grupo, pois os Estudos Culturais têm mostrado como somos
interpelados (diariamente pela mídia, pela Internet, pelos diferentes artefatos
culturais que produzem significados e são significados culturalmente por nós
(FABIS, 2002, p. 121). Nesse sentido o filme propiciou que os estudantes
falassem sobre as questões em que eu estava interessado em pesquisa.
Mesmo que, inicialmente, não tivesse clareza do quanto estava
dirigindo a produção das narrativas desse grupo para a questão do negro, da
discriminação, da formação da identidade étnica, e das possíveis relações
com a capoeira foi a partir da qualificação do projeto de dissertação que fui
me dando conta da necessidade de separar o discurso de militante e ativista
negro da pesquisa acadêmica.
Cabe relatar que desde o início da pesquisa com os alunos do grupo de
capoeira como em tantos outros momentos da pesquisa não consegui
desgrudar o professor ativista negro que sou do pesquisador que realizava
uma dissertação.
75
Enquanto observava o grupo de alunos assistindo ao filme, fui
anotando seus comentários e registrando suas reações.
Alguns alunos comentaram que não sabiam que a história da capoeira
estava ligada com a história do negro; ... se a capoeira foi inventada pelos
escravos, porque não é matéria de história?
Eu, sentado em uma das extremidades da sala, observando as reações
que ocorriam com cada um e cada uma, pude ver que alguns reagiam
movimentando-se mimicamente como os capoeiristas do filme, outros
trocavam informações e inquietações. Houve comentários de que capoeira e
batuque são coisas de negros pobres e que isso traz mais discriminação
contra os negros.
A partir desse comentário pude verificar que não existe fronteira entre o
que é coisa de negro e discriminação racial. Os comentários abaixo
evidenciam essa questão.
Pesquisador: Bem pessoal vamos conversar sobre o filme que
assistimos no nosso último encontro.
Gostaria que falassem o que o filme fez vocês pensarem?
1 Que a história da capoeira e do negro são quase a mesma coisa.
2 Que capoeira é mais legal na Bahia, pois lá tem mais negro.
3 Acho que tudo começou, assim do jeito que é mostrado no filme,
com os escravos dançando e brincando.
4 Não dá para pensar que a capoeira é só do negro pois tem muitos
que não são negros, assim como aqui, que gostam de fazer capoeira.
5 Que a sociedade tem muita coisa errada, a escravidão parece que
tem até hoje, e a capoeira que era coisa de escravo, hoje é coisa de pobre,
que não pode pagar outras coisas pra fazer.
6 Quando a gente vem fazer aula de capoeira, a gente ta fazendo o
que os nossos avós faziam para se divertir e hoje a gente aprende para
passar o tempo.
Fui notando e sentindo que as crianças negras e brancas, após as
experiências provocadas pela exibição do filme e a apresentação do trabalho
de pesquisa que seria realizado com eles, tornaram-se mais observadoras
das situações de preconceitos e discriminação.
76
É importante ressaltar que quando falamos em identidade e racismo, o
sentido em que usamos os termos bastante amplo. Eles englobam não só
ações individuais de rejeição e discriminação, mas também e principalmente
as formas grupais alternativas, organizadas para preservar e valorizar a
cultura negra. É com este último sentido que consideramos e percebemos o
grupo de capoeira da escola, como uma tentativa organizada de resistência.
As denúncias sobre o racismo na escola foram manifestadas, pelos
entrevistados, não só através de casos de discriminação aberta, como
também pela percepção de um conjunto de práticas discriminatórias
sistemáticas, que ocorrem por meio de mecanismos variados.
O fato mais evidenciado e talvez, o mais comum já salientado por
outras pesquisas, foi a freqüente ocorrência de agressões verbais entre as
crianças, seja em situações de conflito explícito ou não. Vejamos os
depoimentos que comprovam isso.
Dentre as expressões mais utilizadas aparecem: negro sujo, vai tomar
banho pra ficar mais claro, sai do sol se não fica noite, isso só podia ser
coisa de negro, que negrisse tu fizeste (citações de vários alunos).
Eu já escutei na escola esse tipo de comentário: não dá bola pra esse
negro sujo! Pára, pra que vais ficar conversando com essa negra se ela não
é da tua raça?.
MA1
Também é freqüente a discriminação nos brinquedos, conforme nos
relata (MA2).
Eu fico assim... observando, né? Tem gurias na aula que são
amigas, conversam e tudo, mas na hora de brincar elas não tão nem
a... nem tão pra aquela ali que é morena. Eu sinto... eu fico de
longe, mas a gente tá percebendo.
Com relação aos professores e funcionários foram citados casos como
os seguintes:
não respondem direito ou xingam muito. Por exemplo, a gente
pergunta alguma coisa e é mal interpretada. Respondem sem
vontade ou mal respondido, como se a gente fosse uma pessoa
burra ou idiota... que aquilo nem era para ter sido perguntado.
MO1
.
MA1
Menina Negra.
MO1
Menino Negro
77
Uma situação à qual as crianças negras aludem, reiteradas vezes,
como discriminação é o fato de os professores chamarem com mais
freqüência os alunos brancos para irem ao quadro, permitir que eles
caminhem pela sala ou cheguem às janelas; coisas que aos negros são
dificultadas. Acham que através dessas atitudes os professores valorizam
mais os brancos.
Na aula mesmo, assim, tem professor que valoriza mais o branco
que o negro. Vai só eles no quadro... eles no quadro... a gente
sempre fica por baixo, prá trás, assim... Por isso a gente já senta lá
no fundo, fica bem lá naquele canto. O que adianta sentar na frente?
Eles não vêm a gente, mesmo!
E também tem os colegas. Se a gente senta na frente e precisa
levantar, logo eles dizem: senta negro! Teu pretume não te deixa
enxergar!. Por isso a gente fica lá, quieta.Assim... só olhando...
(MO2).
Quanto à relação professor-aluno também foi explicitado um caso de
rejeição física, embora não acontecido na escola em questão. A aluna veio
de outra escola e relembrou o fato:
Sabe? A gente sente que tem professores que não gostam de tocar
na gente porque a gente é ... assim ... diferente da cor deles. Aqui
na escola não tem isso, mas na outra, de onde eu vim, tinha muito
disso (MA3).
O professor que coordena o grupo de Capoeira, na sua entrevista,
também relatou alguns fatos relacionados com manifestações racistas na
escola. Ao lembrar sua trajetória como aluno ele contou um episódio:
Eu fazia parte de um grupo de ginástica olímpica e senti que a
professora não estava me querendo no grupo porque destoava das
outras meninas, todas elas brancas, de cabelo liso. Eu era a única
que... que não me enquadrava naquilo. Um dia tive que faltar um
ensaio, por motivo de saúde, e ela aproveitou para dizer que eu não
podia mais me apresentar. Foi preciso uma pressão muito forte por
parte das outras colegas para eu não ficar de fora (PO3).
Mesmo sem serem questionados sobre as manifestações de racismo na
sociedade mais ampla, muitos alunos ampliaram suas respostas
relacionando-as com situações mais gerais. Eis alguns depoimentos que
comprovam esse fato.
78
No trabalho, o branco sempre consegue trabalho com mais
facilidade que o negro e são sempre premais bem tratados. Se for
uma empregada negra não aceitam ou tem que xingar, tem que
mandar mais que uma branca. Essas coisas assim... que acontece
(MO4).
Tem negros que estão formados e chegam num trabalho, prá
conseguir serviço e não conseguem. Só por causa, assim... tem
aquele negócio... como é que eu posso falar? Sabe, a cor né? Às
vezes não conseguem serviço por causa da cor. Pode ter altos
cursos, mas sempre por causa da cor.... É difícil ver negro em bom
emprego, sempre mais é o branco MA3).
No trabalho tem diferença, também. Outro dia tava no jornal
pedindo secretária de cor branca, negro não podia (MO3).
O racismo aparece quando se vai procurar emprego. Uma menina
negra, assim... eles já colocam de lado, né? (MA4).
Se é um baile, uma danceteria, tem que sê uns bailes só de negro,
outros só de branco (MA2).
O racismo aparece aí fora, é só a gente sair. Até entrar num baile,
eles já olham assim, Hum!... Negra!... (MA4).
A TV também influi. Na televisão falam assim... os negros são
pobres, vivem em favelas são assim. Eles quase nunca botam uma
pessoa de cor branca nesses lugares porque são sempre os negros
que moram em lugares assim, que não seja bem pra pessoa.
Sempre lugares de ambiente diferente, poluído; sempre mais pra
baixo que pra cima. Até mesmo quando é uma contribuição pra
essas pessoas que precisam sempre aparece muito negro pedindo e
o branco é que pode dar, o que tem mais (MA3).
Ainda comentando sobre a imagem negada ou distorcida pela TV temos
outro depoimento.
A gente vê, na televisão, sempre a colônia alemã, italiana. Eu vejo
os programas do Jornal do Almoço, que eles fazem no interior e
nunca vejo a questão do negro. O negro, onde está? Ele nunca fez
nada nestas cidades, também? Tudo bem, em algumas a
característica maior é do alemão, do italiano, mas e as outras?
Onde está nossa contribuição? Então, aquele nosso aluno, que está
lá em casa, o que vê? Ele sempre vê a imagem do outro, nunca a
dele. Ah! Isso dói. Pra não dizer que nunca aparece, outro dia, em
Júlio de Castilhos apareceu uma moça e um grupo de meninas que
dançava. Parece que tem Movimento Negro, lá. É pouco, mas já é
alguma coisa (PO3).
Com relação à problemática mais global é interessante observar a
percepção, por parte dos alunos, da discriminação de classe e a necessidade
de uma luta conjunta contra ela.
79
Os negros são discriminados, mas os brancos, também. Tem uns
brancos, nessas zonas pobres aí, igual aos negros. Contra isso todo
mundo tem que lutá junto, tudo unido (MO2).
Não é só negro que é discriminado. Tem muitos brancos que
também são. Marginalizado não é só o branco... não só o
negro...Acho que uns 80% são marginalizados, 40% de cada. Só
que prá mudar isso a luta tem que sê junta e separada. Junta
porque todo mundo precisa de trabalho, de vida melhor e separada
porque com o negro isso é pior (MA1).
Acho que quando a gente começa a se dar conta da realidade, da
questão daqueles que são mais oprimidos com preconceitos aparece
o negro, o índio, o pobre, enfim... Essa luta é difícil. O mesmo
tempo que nós temos um país que passa por uma crise muito
grande, um povo bem oprimido,marginalizado, tem todo esse outro
lado, que é o lado negro; que além de oprimido, marginalizado tem
que lutar prá recuperar sua identidade. Nós somos um povo, dentro
desse Brasil, a maioria descendente de negros e não tem essa
identidade. É como um povo vai viver sem encontrar suas raízes?
Por isso vão reproduzindo algo que já vem a tanto tempo PO3).
Ta muito mal! Prá todos, em geral. Branco, negro, mulato, seja lá o
que for. Ta ruim em geral. Mas pros negros ta pior no serviço, no
emprego, porque... assim ... uma pessoa prá se empregar tem que
ser branca, por causa da aparência. Quando diz boa aparência já
sabe, não pode ser negra. A gente trabalha por sua miséria, como
escravo. Somos xingados e temos que agüentar xingações. Tem que
se humilhar porque se fala uma coisinha, vai ser despedido do
emprego e aí... como vai alimentar seus filhos? Acho que isso
acontece com as duas raças, no Brasil, mas com o negro é pior.
Ainda pensam que o negro é escravo, só porque um dia os nossos
parentes foram isso! (MA2).
Embora a clareza e lucidez evidenciados em determinados aspectos
pudemos, em alguns momentos, identificar indícios da ideologia do
branqueamento. Em muitos dos depoimentos ouvimos expressões como
negro do cabelo bom, ele não é negro, é marronzinho, etc.
Meu pai é negro, minha mãe é branca. Quer dizer... meu pai é
negro do cabelo bom; ele é meio marronzinho. Então, ele é negro e
em vez de ter cabelo carapinha ele tem cabelo mais liso, sabe...
como vou dizer?: Ela não tem cabelo duro. É um cabelo liso, saiu de
cabelo bom (MA4).
Outras vezes o que se observa na fala dos entrevistados são muitas
reticências e silêncios antes de pronunciar a palavra negro; alguns nem a
pronunciam preferindo usar expressões como: sou morena, marronzinha ou o
silêncio total.
80
A omissão de palavras, determinados gestos e mudanças na entonação
de voz são tão significativas, nos depoimentos, quanto sua expressão
explícita. Nesses casos o importante é procurar perceber a razão do
ocultamento. Com este objetivo, após a realização de todas as entrevistas
individuais, reunimos o grande grupo e retomamos numa entrevista coletiva,
todos aqueles pontos que não tínhamos percebido com muita clareza. Entre
outros aspectos, voltamos a questionar o porque da dificuldade em
pronunciar a palavra negro. As respostas comprovaram nossa suposição:
tinham vergonha. Isso atesta a introjeção do sentimento de inferioridade.
Assim sendo, o que pudemos perceber através da comunicação verbal
e não verbal, dos atores envolvidos neste estudo, são variados sentimentos
frente às discriminações que sofrem. Tais sentimentos, em geral, se revelam
como:
- angústia, mágoa, tristeza.
Eles xingam muito a gente. Eu fico magoado com isso, fico muito
triste (MO 3).
O nosso aluno, que está lá em casa, que está vendo T.V.; ele sempre
vê a imagem do outro e nunca a dele. Ah! Isso dói, sabe? (PO3).
- sentimento de inferioridade:
Nada é dito de bom sobre o negro (MA3).
Negro é sempre empregado de branco (MA2).
Trabalho de negro é sempre pior (MA2).
Negro ta sempre por baixo, pra trás (MO4).
Fica sempre marginalizado, na aula, lá fora... (MO3).
Falar sobre a discriminação como realidade concreta na relação entre
os alunos e professores, da identidade do negro como um componente
estrutural da escola, são discussões que não fazem parte da agenda da
escola, de um modo geral.
Essas situações revelam, como já havia identificado Silva (1985), que a
ação pedagógica da escola, em relação à discriminação racial, é o silêncio
sobre o assunto.
81
Nesta perspectiva, diz Stainback
121
:
Aprender sobre as diferenças raciais não pode ser uma atividade
separada do currículo: uma feira multicultural de um dia pode ser
uma experiência de aprendizagem interessante para as crianças,
mas pouco contribui para comunicar a mensagem de que os negros
fazem parte de toda a história da humanidade e que as
contribuições dos homens e das mulheres negras são uma coisa à
parte do currículo padrão. O respeito e o reconhecimento positivos
das diferenças raciais podem permear tudo o que acontece na sala
de aula, incluindo não somente as aulas de estudos sociais, mas
também os quadros avisos, os livros da biblioteca da turma e as
canções aprendidas na aula de música. O reconhecimento de que a
história do indivíduo é elemento importante no seu desenvolvimento
cognitivo, reafirma a importância de que o corpo, tomado como
organismo perpassado pelo desejo, e pela inteligência conforme
uma corporeidade que aprende, sente prazer, pensa, sofre ou age.
Assim podemos deduzir que as formas de corrupção da identidade
negra e do racismo presentes na sociedade refletem também no contexto
escolar.
3.2 IDENTIDADE, AUTO-ESTIMA E RELACIONAMENTO
Existem fenômenos psicossociais, geralmente decorrentes da própria
adolescência, pela puberdade. De um modo geral, esses fenômenos estão
ligados às mudanças somáticas evidentes, pela produção hormonal e
desenvolvimento psicológico, nos adolescentes.
Durante esse processo, o corpo, os seus traços físicos estabelecem
uma importante relação com a auto-imagem. Essa imagem é construída
psicologicamente. Segundo Erikson
122
:
A formação da identidade emprega um processo de reflexão e
observação simultâneas, um processo que ocorre em todos os
níveis do funcionamento mental, pelo qual indivíduo se julga a si
próprio á luz aquilo que percebe ser a maneira como os outros o
julgam, em comparação com eles próprios e com uma tipologia que
121
STAINBACK, Susan. Inclusão: um guia para educadores. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. p.
290.
122
ERIKSON, E.H. Identidade: juventude e crise. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. p. 73.
82
é significativa para eles; enquanto que ele julga amaneira como eles
julga, à luz do modo como se percebe a si mesmo em comparação
com os demais e com tipos que se tornam importantes para ele.
Esse processo é, felizmente, e necessariamente, em sua maior
parte, inconsciente exceto quando se combinam as condições
internas e as circunstâncias externas para agravar uma dolorosa ou
eufórica identidade.
Já a identidade, tomada do ponto de vista cultural, se constrói no cotejo
com os valores presentes na sociedade. Diz Petronilha
123
:
Construindo o mundo, as pessoas nos grupos e com eles, bem como
com outros com quem se relacionam, constróem sua identidade.
Identidade não como qualidade de ser perfeitamente igual, nem
tampouco completamente diferente. Identidade, como consciência
que uma pessoa tem de si própria, ao ter da sua comunidade, da
sua classe, do seu grupo social, consciência que se elabora na
experiência do dia-a-dia com aqueles com quem se convive. A
identidade, pois, se explicita nas relações que se dão na família, na
comunidade, na escola, no mundo do trabalho.
Desse modo, percebe-se que o adolescente negro manifesta a sua
oscilante identidade permeada pela hostilidade do ambiente, na expectativa
de ter, no seu coro, as expressões que visam lhe impingir uma identidade de
discriminado. Por isso a dificuldade de alguns em aceitarem sua condição de
negros, como disse o capoeira:
Muitos alunos negros não falam [assumem] sua negritude. Tem muitos
colegas que não se sentem bem com sua cor (MO1).
Os adolescentes negros encontram muita dificuldade (dor emocional)
em relatar situações nas quais se sentiam vítimas de preconceito.
Pude perceber que os alunos trabalham melhor a sua identidade negra
quando a relação com o professor é uma relação mais próxima, mais afetiva.
A representação que eles têm do professor é a daquele indivíduo que tem
poder porque domina o saber de que eles necessitam; porque o professor
pode aprovar e/ou reprovar seus desempenhos, quer na sua própria
disciplina, quer nos conselhos de classes.
Assim que, ao instá-los a referirem qual a disciplina que mais
apreciavam, a escolha recaiu sobre duas professoras que têm assumido uma
posição de diálogo, de aproximação; sendo que uma é negra e a outra é
123
SILVA, Petronilha; GONÇALVES, Beatriz. Histórias de Operários Negros. Porto Alegre: Nova
Dimensão, 1987. p. 73.
83
branca. Nesse caso, o fortalecimento da auto-estima e do prazer de aprender
não está ligado à cor do professor como fator determinante, mas sim ao nível
de interesse que os professores demonstram. E para o adolescente, ter
interesse significa demonstrá-lo pela atenção às suas necessidades na
aprendizagem, estar próximo, dialogar, apertar a mão, abraçar o aluno.
Essas vozes ouvidas nos trazem o aprendizado de que a vida, no dia a
dia da escola, é uma luta contra o desgaste da alegria do aprender. Mas é
preciso sobreviver e não sucumbir. A luta é feroz para manter a vida que
pulsa na interioridade de cada um e manter a essência de continuar sendo
ávido e ambicioso na procura de meta que dê resposta às nossas
inquietações.
Os processos sociais que acontecem no interior da escola
generalizados como educação devem tornar as mentes livres para perceber
a diferença entre existir e sobreviver. Eu gostaria de ficar como o
Ronaldinho
124
que não tem problema (MO1), a escola não pode abrigar no
seu interior atitudes que sufoquem o existir, mas criação e renovação de
valores que desmistifiquem as falsas representações; a educação é
descoberta e construção de sistemas que libertem o homem da angústia da
opressão e lhe possibilite espaço e tempo para ser livre, para ser pessoa.
Educação é a criação de condições interiores que permitam a compreensão
do significado da vida e tornem as suas ações a base da desigualdade muitas
vezes atende interesses nem sempre desvelados de grupos e classes que
procuram manter seus privilégios.
Portanto a escola, como demonstram os relatos, foi e continua sendo
uma falácia, pois, do horizonte de possíveis que deveria ser, momento de
inovação, espaço alegre de trama existencial, de pluridade de sentidos com
os outros e o mundo, ela tem sido o espaço onde se produz o cenário do
congelamento do sonho de crianças e jovens. E mais, não pode continuar
sendo indutora e nem permitir que no seu interior aconteça o tráfico de
almas, quando silencia sobre as algemas e o atrofiamento cerebral provando
nas crianças negras que vivem no seu interior.
124
Ronaldinho é o jogador de futebol da Seleção Brasileira e do Barcelona, time espanhol, eleito
duas vezes o Melhor Jogador de Futebol do Mundo, também é negro e foi morador da mesma
região dos entrevistados.
84
As imagens de consciência que se depreende dos depoimentos não
são mero ato de protesto com relação à situação vivida; mais que isto, são
um traço do germe da libertação do homem moderno. É mais um aspecto da
luta para se colocar fim à servidão dos corpos e das mentes. Por isto, ao dar
voz às suas ansiedades, mirando corpos, rostos, máscaras, paisagens,
mentes e vidas negras, o negro não é apenas sua etnia, mas um homem em
busca de sua plenitude. E como todos que amam a vida, apesar dos
percalços, recorreu à memória, chorou, revoltou-se, mas também
deslumbrou-se diante das cenas que desfilaram à sua frente, aprisionou
cenas de sua história, fez história, manifestou seus anseios, sonhos,
fantasias e abriu a perspectiva de sua humanidade.
Buscarmos compreender seus relatos a partir das emoções que foram
liberadas, decorrentes de contatos, sínteses de novas emoções e da memória
que foi acionada, que ousou existir e dar consistência ao olhar e sentir negro.
Não apenas do aluno negro, mas de uma gente produtora de memória.
A descrição da experiência vivida pelos alunos negros fez ver que a
experiência de vida é condição necessária para se estabelecer novos
horizontes para uma educação que respeite outras formas de caminhar e
perceber o mundo.
E nesse ato constante, permanente, do contato com o outro, vai se
processando o educar-se, onde adultos, crianças, negros, brancos,
professores, administradores vão descobrindo, como pessoas, que compõem
e dão vida à instituição escola.
É dentro desse universo de coisas e pessoas, que a vida vai se pondo
em todas as suas dimensões, aproximações e distanciamentos, similaridades
e diferenças, subordinação e poder, enfim, um campo de ação e contra-ação
que expressa o conjunto de relações sociais da sociedade em geral.
Essas experiências vividas por essas pessoas fornecem as condições
naturais e férteis para uma educação que seja calcada nas histórias de vidas,
vidas passadas de cada pessoa, como também das condições presentes,
numa troca constante em que cada um deixa fluir valores e sonhos no ato de
se dar a conhecer.
85
E esse ato de se conhecer pode e deve ser aproveitado como mais um
momento de educação, onde as diferenças podem ser compreendidas e as
contradições discutidas e superadas. É dessa troca que nasce a tentativa de
cada um encontrar as razões de sua condição de existência, do conflito entre
o que é e o que julga ter direito de ser, que será o ponto de partida para a
criação de alternativas futuras para onde se transferem os desejos de uma
realização supostamente melhor.
Acontece assim para muitos que trocam e vivenciam experiências na
escola, pois, ao traçarem significações que foram construídas ao longo de
suas existências, criam novas, que animarão as relações do cotidiano, plenas
de incertezas e buscas como sugerem alguns relatos.
Desconhecer é uma constante entre os alunos entrevistados. Quando
se referem aos seus pais biológicos, alguns não sabem quem são, nem de
onde vieram, situação semelhante à da diáspora negra no período do tráfico
negreiro, quando famílias inteiras eram separadas e vendidas, buscando
tornar seus membros indivíduos sem grupo, o que facilitaria sua incorporação
ao sistema escravista. Esta falta de conhecimento é hoje meio caminho para
o subemprego e para o abastecimento do mercado dos empregos
domésticos.
Embora com dificuldades para organizar os dados biográficos, por
serem trajetórias de vida muito acidentadas e mal sucedidas, possuem a
noção de família que pode até não ser a convencionalmente estabelecida,
mas própria do grupo, de família extensa (tios, avós, vizinhos, etc).
A descrição faz sentir que esses alunos negros continuam com a
mesma marca histórica do seu grupo, que antes na escravidão empenhou-se
na reestruturação de sua vida, quando paciente e isoladamente foi se
juntando e formando famílias; agora, individualmente ou em grupos, vai
dando forma e vida aos seus anseios e desejos, buscando espaços e fazendo
ouvir sua voz que desmascara e denuncia as formas de opressão.
Querer ser branco/não querer ser negro é o lado doloroso, asfixiante
de alguns depoimentos que expõem a chaga de viver a experiência de ser
negro, violentado em todo seu percurso histórico de forma brutal e
desumana, e pela circunstância dilacerante de encarnar um corpo negro e
desejar o ego do sujeito branco, negando e recusando sua cor.
86
Estou no meu corpo, sou meu corpo negro que os brancos, os que
não se dizem negros, não sustentam, negam. Ser negro significa
assumir a não história, o ter sido tido como objeto de uso, ser
considerado participante de um grupo de gente pouco inteligente,
mal cheirosa, feita para o trabalho servil...
125
(SILVA, 1987, p. 232).
O texto acima corporifica a situação de como o negro vai sendo
coagido a desejar ser branco, pois, de modo geral, os alunos são
representados como sendo de classe média, brancos, portadores de uma
cultura de origem européia. E aí perguntamos: que criança negra vai querer
se identificar com o negro da gravura do livro de história, que se aprece
apanhando, ou com uma corda no pescoço? O professor não precisa explicar
como aquela corda foi parar ali. Afinal, antes de terem sido raptados e
trazidos à força para este continente, os negros tinham sociedades
organizadas, mas a escravidão as destruiu, forjando-lhes uma outra imagem.
Tudo isso faz com que meninos e meninas negros sintam vergonha de
sua cor, de seu cabelo (quando acordo de manhã fico com a maior bronca
por causa do meu cabelo), de sua pobreza e de si mesmos (MON3).
Está aí mais um dos motivos que solicita da escola e do sistema de
ensino uma renovação nos currículos, abrindo a discussão sobre o pluralismo
cultural e étnico em toda sua dimensão. Assumindo o compromisso de
entender e trabalhar respeitosamente com a diferença, seja ela física ou
cultural, ninguém mais vai se caiar exteriormente com a pomada que promete
brancura ou pela introjeção de um ego branco que o desfigura como pessoa e
o deixa passivo ao código de comportamento tido como de branco.
Esses alunos dizem ainda que querem viver/aprender. Indissociáveis
porque um é conteúdo do outro, é um processo contínuo, cheio de alegrias e
percalços de acordo com a trajetória de vida que as circunstâncias históricas
lhe reservaram, onde surgem as necessidades individuais e coletivas. Pois
quando o aluno diz: viver para mim é muito importante, é fazer um pouco de
cada coisa... e eu quero ir aprendendo sempre, expressa com muita clareza
uma determinação histórica e social não menos profunda que uma
contestação explícita da ordem estabelecida.
125
SILVA, Petronilha; GONÇALVES, Beatriz. Histórias de Operários Negros. Porto Alegre: Nova
Dimensão, 1987. p. 232.
87
Não só porque foge da concepção tradicional de que é aprender,
ensinada nas escolas em que a relação pedagógica está centrada na mera
transmissão de conhecimento, onde o aluno é um receptor passivo, mas
também porque é uma ação compartilhada, com trocas, renovação de
valores, ou seja, um novo caminhar que supõe estar com, como também
supõe a socialização da alegria da descoberta que dá força e energia para
prosseguir na caminhada.
3.3 RACISMO E DISCRIMINAÇÃO
Alguns dados significativos da fala de (MO3) traduzem a presença do
racismo, percebida por ele ainda que de uma forma ainda não muito bem
resolvida para um adolescente de 13 anos. Primeiro, refere-se à presença do
racismo na sociedade; em segundo, na escola, e, em terceiro, no seu próprio
corpo. Entendo que essa é a lógica da presença do racismo captada na fala
dos adolescentes: sociedade-escola-eu; ou seja, quanto mais perto a
referência, mais difícil, quanto mais distante, mas fácil à identificação do
fenômeno. Isso, na prática, significa que é menos doloroso para o aluno
negro admitir a existência da discriminação racial na sociedade e na escola
do que admitir a presença desse fenômeno na sua própria história de vida.
Assim, a negação de sua experiência pessoal com alguma atitude
preconceituosa constitui-se numa forma de auto-proteção ao sofrimento
emocional que essas experiências acarretam. A cultura da negação da
discriminação, construída ao longo do período republicano, fecha o seu ciclo:
o oprimido desconhece a opressão e o opressor.
A incapacidade da escola em incluir a discussão dessa realidade se
revela tanto nas relações interpessoais quanto na forma e no conteúdo dos
conhecimentos intermediados pelos professores e pelo currículo. O professor
não sabe o que dizer nem como agir diante de situações de discriminação; os
alunos não sabem como enfrentá-las de forma positiva.
88
Historicamente, quando a sociedade atribui à escola a
responsabilidade da educação como ato de mobilidade social das camadas
empobrecidas, ocorre o inverso, isto é, a educação promovida pela escola irá
reproduzir as relações sócio-econômicas já estabelecidas pelas classes
econômicas, politicamente hegemônicas. Isso não significa analisar a escola
sob a ótica reprodutiva, mas no sentido de provocar esse diálogo étnico-
cultural acobertado pelo silêncio e pela naturalização dos rituais de exclusão.
Desse modo, em suas falas, os adolescentes negros conseguem
perceber sua condição de negro e pobre, ainda que isso lhes pareça difícil de
verbalizar.
Mas, quando se referem ao pai desempregado ao professor que não
lhes fala, ao professor que não lhes dá atenção, o colega branco que tem um
tratamento diferenciado, ao conselho de classe que toma atitudes
autoritárias, às roupas que estão rasgadas etc. expressam ainda que se
possa julgar como dados subjetivos, inegavelmente elementos explícitos da
análise que elaboram da realidade social e escolar. Nesse sentido,
professores e professores deveriam aproximar, com maior equidade às suas
falas quanto essa análise da realidade que fazem, e tão necessária á
produção de um conhecimento libertador.
Desse modo, a fala dos alunos recoloca a discussão do racismo e da
discriminação, mais amplamente tratada nos anos 80, no contexto da
educação. A fala dos adolescentes negros reafirma que vivemos numa
sociedade racista e discriminatória, cujas estruturas pouco mudaram. E essa
discriminação está presente na escola, nas relações entre os alunos e entre
alunos e professores.
Outro dado interessante para análise encontra-se em duas frases
referidas respectivamente por dois capoeiras, eu acho que a pobreza é
motivo de discriminação também; e (MO4), o branco pobre é igual a nós.
Entendo que essa percepção de ambos demonstra que a condição de
pobreza, comum a brancos e negros, numa vila de periferia, estabelece uma
certa consciência de pertencimento a determinada classe social. É evidente
que essa consciência de classe é sentida pelo efeito social da pobreza sobre
a vila do que uma consciência política da sua condição social de classe.
89
Também, sobre a questão racial, o professor declarou:
Aqui nesta escola eu vejo, eu noto que os alunos não têm esta questão
racial muito acentuada. Eles não têm este tipo de preconceito um com o
outro. Eu vejo que eles se agrupam mais pela cor e também pela questão
social e financeira, e pelo mesmo tipo de gosto e divertimento.(PO3)
As falas dos adolescentes e do professor traduzem as aproximações
com um conceito de identidade cultural que circula empiricamente na sala de
aula e na escola. Para eles, há um ambiente cultural comum, marcado pelas
condições sócio-econômicas. Mesmo assim, conforme o adolescente E, o
dado da cor negra surge, de forma depreciativa, quando os espaços de
discussão e de competição surgem. O fato é que a discriminação e o
preconceito afloram, em muitas circunstâncias, na escola, especialmente em
situações de confronto, como um elemento enraizado em nossa matriz
cultural e que perpassa todas as camadas sociais.
O não saber lidar, dialogar, com essa temática e trabalhar com as
diferenças é uma realidade constatada e vivenciada por alunos e
professores.
Falar sobre a discriminação e o racismo como realidade concreta na
relação entre os alunos e professores são discussões que não fazem parte
da agenda da escola, de um modo geral.
Essas situações revelam, como já havia identificado Silva (1985), que a
ação pedagógica da escola, em relação à discriminação racial, é o silêncio
sobre o assunto.
Nesta perspectiva, diz Stainback:
126
Aprender sobre as diferenças raciais não pode ser uma atividade
separada do currículo: uma feira multicultural de um dia pode ser
uma experiência de aprendizagem interessante para as crianças,
mas pouco contribui para comunicar a mensagem de que os negros
fazem parte de toda a história da humanidade e que as
contribuições dos homens e das mulheres negras são uma coisa à
parte do currículo padrão. O respeito e o reconhecimento positivos
das diferenças raciais podem permear tudo o que acontece na sala
de aula, incluindo não somente as aulas de estudos sociais, mas
também os quadros avisos, os livros da biblioteca da turma e as
canções aprendidas na aula de música. O reconhecimento de que a
história do indivíduo é elemento importante no seu desenvolvimento
cognitivo, reafirma a importância de que o corpo, tomado como
126
STAINBACK, 1999. p. 290.
90
organismo perpassado pelo desejo, e pela inteligência conforma
uma corporeidade que aprende, sente prazer, pensa, sofre ou age.
Assim como professor e integrante de organização do movimento negro
desejo oferecer à escola e à comunidade negra em geral um trabalho que,
somando-se a outros, quebre o ritual pedagógico do silêncio no trato da
formação da identidade negra, que veja a capoeira como um espaço de
construção de um conhecimento que promova a autonomia dos sujeitos,
respeito a diversidade e a diferença.
91
CONCLUSÃO
Ao final, esse estudo nos revelou que todo o processo brasileiro de
formação econômica, política, social e cultural sofreu influência dos valores
que presidiram a formação social da Europa, tendo predominado, neste
processo de formação, a visão de homem e mundo oriunda dos povos indo-
europeus.
No regime escravocrata, o negro teve que se unir e criar uma cultura
de resistência à dominação, sendo a capoeira uma de suas expressões. A
dominação muda de forma, mas a luta continua junto com os demais pobres e
oprimidos, identificados pela venda, sem futuro, de sua força de trabalho.
Neste momento já não há negros e brancos com destinos diversos, pois
ambos estão amalgamados pelo infortúnio da proletarização. Quando todos
os oprimidos enxergarem a luta do negro o maior exemplo de resistência à
dominação certamente estar-se-á mais perto de uma sociedade mais justa,
vencendo discriminações e preconceitos.
A capoeira, por representar uma cultura de resistência, com sua
história, com sua linguagem própria, é sem dúvida um instrumento precioso
para a conscientização de mudanças sociais.
Por se tratar, também, de arte como as outras artes, sofreu
adulterações na sua prática, na sua forma, na sua mensagem, ocultando
cada vez mais a luta pela liberdade. Os interesses da classe dominante,
quando não podem soterrar uma cultura de resistência, transformam-na em
produto de consumo, despojando-a de sua mensagem original, falsificando-a
em seus conteúdos históricos.
É triste constatar que a capoeira autêntica está se perdendo. Restam
apenas poucos mestres, que procuram preservar a verdadeira capoeira. E
são eles os que não têm acesso às instituições culturais e educacionais, por
lhes faltar qualificação superior. Terminam ficando de fora das decisões
sobre o resgate e a preservação da autêntica cultura. E assim a capoeira fica
jogada nas mãos dos que não a entendem e criam regras para manipulá-la.
92
Nesse processo de esvaziamento de conteúdos históricos da capoeira,
realizei a pesquisa em um grupo de capoeira, que contrasta com as
atualidades da capoeira contemporânea, realizando um trabalho
conscientizador e esclarecedor da capoeira enquanto elemento da cultura
negra.
Pela fala dos alunos, conclui que o contexto escolar, no geral, contribui
para perpetuar essa situação de inferioridade. Cabe aqui colocar que eles
identificam isso pelas práticas discriminatórias de que são alvo.
Por outro lado, os dados coletados nas entrevistas e as observações
realizadas nos oportunizaram constatar a presença da resistência a estas
situações. Essa resistência se expressa, no nível individual, por ações de
contestação e revide às manifestações discriminatórias que sofrem e, em
nível mais organizado, através do grupo de capoeira.
A partir da identidade resgatada, a criança se valoriza como pessoa,
como sujeito, e passa a perceber sua situação de opressão. Daí, evolui para
o despertar de uma consciência da necessidade de lutar contra essa
situação, não só como indivíduo, mas também como grupo, junto a outros
sujeitos que se encontram na mesma condição. Desse modo, a percepção e
compreensão da situação como pessoa parece constituir-se num importante
elemento para a percepção e compreensão da situação de classe.
A experiência vivenciada nos revelou, também, que a escola e o
educador, ao exercerem seu papel político, através do pedagógico, podem
propiciar condições para a socialização da criança negra, abrindo espaço
para sua vivência cultural. Assim procedendo, contribuem para o resgate da
identidade dessa criança, através do fortalecimento de uma auto-imagem
positiva e valorizada, ressocializando o negro em NEGRO e POVO.
Enfrentar a discriminação exige conhecer as causas de sua produção e
as formas de sua continuidade. Contribuir para o processo de ensino-
aprendizagem do negro implica, de parte da escola e dos professores e
professoras, no reconhecimento de sua identidade étnico-cultural, cujo
processo de socialização é em grande parte mediado pela escola, num
contexto de negação e de inferiorização de sua etnia.
93
Nesse aspecto, a aproximação com os movimentos de consciência
negra torna-se fundamental, à medida que a reconstrução de uma identidade
negra torna-se instrumento de afirmação e valorização da pessoa negra.
Nesse sentido, tanto as lutas por libertação nacional dos países africanos do
colonialismo europeu, ao longo do Séc. XX, quanto as lutas de resistência
negra ao longo da diáspora africana nas Américas, buscando a
independência política e cultural, reconstruindo o seu ethos cultural em novos
mundos, quanto ainda os movimentos mais contemporâneos por igualdade de
direitos civis, por democratização das relações inter-étnicas, por respeito às
diferenças, tornam-se referenciais indispensáveis à composição de uma
identidade negra, ao adolescente negro, ou, na re-construção de sua
negritude. Como afirma Fanon.
127
O domínio colonial, porque total e simplificador, logo fez com que se
desarticulasse de modo espetacular a existência cultural do povo
subjugado. A negação da realidade nacional, as novas relações
jurídicas introduzidas póla potência do ocupante, o lançamento à
periferia, pela sociedade colonial, dos indígenas e seus costumes, a
usurpação, a escravização sistematizada dos homens e das
mulheres tornam possível essa obliteração cultural.
Portanto, os educadores que trabalham em áreas empobrecidas,
fatalmente terão grandes percentuais de adolescentes negros. Portanto, é
necessário considerar que somos uma sociedade pluri-cultural, cuja
identidade individual se constrói considerando esses valores latentes nos
indivíduos, situando-os e relacionando-os à suas raízes. Como diz Howard
Ratner (1995, p. 15), culturas diversas optam por práticas diversas e estas
se tornam as necessidades socialmente constituídas do indivíduo. Também,
há necessidade de ouvir as demandas que emergem do movimento negro
organizado, como uma contribuição fundamental à produção democrática do
conhecimento e de políticas públicas que, de alguma forma, beneficiem as
vítimas históricas do racismo. Essa é uma discussão em curso, cuja
ressonância ainda não se fez ouvir. Como nos lembra Munanga
128
ao referir-
se ao movimento negro:
127
FANON, 1968. p. 197.
128
MUNANGA, 1996. p. 81.
94
Essa militância desenvolveu algumas estratégias anti-racistas, mas
não conseguiu arrancar da sociedade brasileira como um todo a
confissão de que ela é racista e, em conseqüência, não pode
convencer e induzir os governos para incrementarem políticas
públicas em benefício das vítimas do racismo. Como podiam eles,
os governos, incrementar políticas públicas contra uma realidade
que não existia, pois, de acordo com o mito da democracia racial,
pressupõe-se que no Brasil as relações entre indivíduos e
segmentos étnico-raciais diferentes estejam harmoniosas, graças ao
natural português, predisposto a freqüentar as mulheres negras, à
doçura da escravidão praticada no Brasil e, sobretudo, à
mestiçagem que desempenhou papel de tampão.
A escola, ao se constituir num espaço de socialização para o negro,
está a construir sua identidade sócio-cultural negra, ou a destruí-la pelo
mascaramento da realidade da discriminação ou pelo discurso da democracia
racial brasileira.
Embora a lei de nº 1.390, de julho de 1951, chamada Lei Afonso
Arinos, considerasse as práticas de discriminação como contravenção penal,
ela servia à dissimulação do racismo, pois a inexistência de racismo não
exige lei para puni-lo. A presença da discriminação, então, está ligada às
diferenças sócio-econômicas. Somente com as pressões do movimento negro
e de setores progressistas da sociedade é que, em 1988, vai ser promulgada
a chamada Lei CAÓ, de Carlos Alberto de Oliveira, que considera qualquer
prática discriminatória como crime inafiançável e sujeito à reclusão. Isso
coloca que uma das demandas da comunidade negra se constitui na
explicitação da discriminação e do racismo. Isso tem permitido que, em
alguns governos, Secretarias Especiais, ou Conselhos de Participação, em
relação ao negro, tem sido organizadas. Por ocasião do Centenário da
Abolição, em 1998, e do tricentenário da morte de Zumbi, dos Palmares,
cresce a discussão sobre a necessidade de se implementarem políticas
públicas de resgate das condições sócio-econômicas precárias a que foram
submetidos os negros, no longo período de escravidão, e pouco alteradas no
pós-abolição.
Assim, quando um aluno se manifesta no sentido de ter uma escola
capaz de promover o convívio saudável das diferenças, está a exigir
mudanças estruturais e conceituais que precisam ser enfrentadas por esta e
pela sociedade. Ao permitir suas falas quebra-se um ritual estabelecido pelo
95
silêncio ou pela indiferença, que atribui uma pseudo-neutralidade ao ato
pedagógico, o que ainda subsiste, lamentavelmente, em nossas escolas.
Penso que é fundamental a professores, alunos e movimentos sociais
reconhecerem que a escola é um espaço possível de desconstrução das
representações étnicas estigmatizadas e das relações de poder. É um espaço
de construção de um saber emancipatório, como diz Saramago, ou de
autonomia, como diz Freire. Assim, é preciso alimentar-se o olhar educativo
às lutas históricas dos negros, quer na África ou na Diáspora, por políticas
públicas, com ênfases e formas diferentes de acordo com as orientações
ideológicas do poder instituído e da força de pressão dos movimentos
reivindicatórios, exigindo medidas que possibilitem uma dinâmica
democrática e igualitária de mobilidade social, de direitos, de benefícios
sócio-educacionais e de participação na sociedade. Essas políticas, que
podem sem ser chamadas de ações afirmativas, ações positivas,
discriminação positiva ou políticas compensatórias, expressam a necessidade
e a inconformidade de transformação da natureza da exclusão.
96
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