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A sociedade tem propagado a imagem do negro apenas como ex-
escravo, como o cidadão sem raízes culturais e sem historicidade.
como o indivíduo de índole compatível com a escravidão. como
símbolo da miséria da fome e da sujeira certamente, por causa disso
o negro tem sido visto como preguiçoso, indolente, pouco
trabalhador, indisciplinado, vagabundo, vadio, sem inteligência,
despossuído de valores, de civilidade, de humanidade com pouca
cultura criminoso, baderneiro. Os livros didáticos, um pouco mais
condescendentes. mostram-no pobre e infeliz. O irracional, o feio, o
ruim, o sujo. o sensitivo, o superpotente e o exótico, são as
principais figuras do mito negro.
Por outro lado, é preciso considerar que o elemento africano, feito
escravo, tinha um modo de vida próprio que, em certa medida, buscou
reconstruir na diáspora.
Pode-se permitir uma relação que considere a matriz de organização
social como matrilinear a forma de organização dos quilombos, que
representaram para os escravos fugitivos, em nosso país, uma reconstrução
de sua organização político-social coletiva, às vezes confundida, por alguns
historiadores, como uma mera forma de regressão tribal. Os quilombos
constituíram não apenas uma forma de resistência dos escravos à
escravidão; contrapunham-se também à forma de organização e à estrutura
da sociedade vigente. Diz Maestri
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que “a oposição fundamental entre
quilombo e o mundo oficial era, no entanto, política. A concentração de ex-
escravos era um pólo libertário subvertendo a organização escravista.”
Assim, uma das primeiras atitudes do dono de escravos era eliminar,
de forma direta ou indireta, a consciência familiar e religiosa do escravo,
separando-o do grupo de mesma origem, impondo-lhe outro nome, outros
valores religiosos, tratando-o como objeto de exploração:
O escravo, como “coisa” produtiva, tem que se ocupar das
atividades que lhe são votadas; entregar a totalidade (ao menos
formalmente) dos frutos do seu trabalho: viver com o que seu senhor
julgue bom lhe entregar. O ritmo e duração de sua jornada de
trabalho é, também, arbítrio do seu dono. O escravismo exigia
efetivamente, que o escravo se transformasse em uma máquina, que
alienasse ao máximo sua humanidade. O limite último desse
processo era a perda da única capacidade humana valorada pelo
senhor: a capacidade de trabalhar. A sociedade escravista criava as
melhores condições para que o homem escravizado se
transformasse, objetiva e subjetivamente, em escravo. Ele era
apartado de toda vida ideológica que lhe sugerisse ou compelisse a
70
MAESTRI FILHO, Mario José. O Escravo no Rio Grande do Sul a Charqueada e a Gênese do
Escravismo. Caxias do Sul: EDUSC, 1984. p. 125.