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RICARDO FONTANA
KITGLC<"EQOWPJ’Q"QW"RQXQ"FG"FGWUA"
Estudo comparativo entre as eclesiologias de Antonio Acerbi e de
José Comblin na perspectiva da sacramentalidade da Igreja.
Dissertação apresentada à Faculdade de Teologia, da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul, como requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre em Teologia, Área de Concentração em
Teologia Sistemática.
Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz Borges Hackmann
Porto Alegre
2007
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3
AGRADECIMENTOS
A Deus e aos pais;
Ao professor orientador Dr. Pe. Geraldo L. B. Hackmann;
Ao professor Dr. Pe. Leomar Brustolin;
Ao Diretor, professores e colaboradores do
Programa de Pós-Graduação em Teologia da FATEO;
À CAPES;
À Diocese de Caxias do Sul;
À Paróquia Santa Teresa, Catedral de Caxias do Sul;
Aos Josefinos de Murialdo;
Às Irmãs Murialdinas;
E aos colegas.
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Digamo-lo uma vez mais:
A capacidade de sofrer por amor
da verdade é medida de humanidade.
(Bento XVI)
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TGUWOQ"
O presente trabalho disserta sobre duas visões eclesiológicas que se tornaram modelos
paradigmáticos para descrever a Igreja: Comunhão e Povo de Deus. No período Pós-Concílio
Vaticano II (1962-1965) eles se tornaram pano de fundo para os novos cenários da Igreja. A
recepção do Concílio teve variadas interpretações das abordagens sobre a Igreja. Estas, por
sua vez, tomadas individualmente se mostraram parciais e unilaterais, na medida em que se
valorizou um modelo em prejuízo de outro. Fazendo uso do método comparativo, esta
monografia retoma esses dois conceitos a partir de duas obras: Due ecclesiologie:
ecclesiologia giuridica ed ecclesiologia di comunione nella “Lumen Gentium”, de Antonio
Acerbi, editada dez anos depois do encerramento dos trabalhos conciliares (1975) e da obra O
Povo de Deus, de José Comblin, publicada em 2002 tendo em vista o novo pontificado.
Acerbi, teólogo e historiador, faz uma retomada da história da eclesiologia descrevendo a
passagem da eclesiologia jurídica para a de Comunhão na Constituição Dogmática sobre a
Igreja, Lumen Gentium. Comblin, partindo de sua vasta experiência teológico-pastoral latino-
americana, compreende o tempo presente da Igreja como que imerso numa “noite obscura” e
que esta encontrará sua esperança no resgate do espírito do Vaticano II, especificamente na
teologia do Povo de Deus. O estudo comparativo busca analisar essas eclesiologias
utilizando-se das principais fontes teológicas: Bíblia, Tradição e Magistério. Além disso, o
estudo procura verificar o desenvolvimento histórico e teológico dos conceitos e de como
estes vêem sendo abordados na produção teológica. A pesquisa mais do que confrontar
procura uma justa complementação de ambos os conceitos. Por fim, oferece uma perspectiva
sacramental da Igreja refletindo o que determinado modelo eclesiológico reflete em
determinada ação pastoral.
Rcncxtcu/ejcxg: Igreja. Concílio Vaticano II. Comunhão. Povo de Deus.
Complementaridade. Sacramentalidade.
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CDUVTCEV"
The present paper speaks on two ecclesiological views that have become paradigmatic models
to describe the Church: Communion and People of God. In the period following the Second
Vatican Council (1962-1965), these models became the backdrop for new scenarios of the
Church. The reception of the Council brought about different of the approaches on the
Church. These approaches, in turn, when individually considered, demonstrated to be partial
and unilateral to the extent one model was valued to the detriment of the other. Using the
comparative method, this monograph retakes these two concepts from two works of literature:
Due ecclesiologie: ecclesiologia giuridica ed ecclesiologia di comunione nella “Lumen
Gentium”, by Antonio Acerbi, published ten years after the conclusion of the Council’s works
(1975) and after the book O Povo de Deus (People of God), by José Comblin, published in
2002 at the dawn of a new pontificate. Acerbi, a theologian and historian, examines the
history of ecclesiology by describing the shift from juridical ecclesiology to the Communion-
Ecclesiology in the Dogmatic Constitution on the Church. Lumen Gentium. Comblin, from
his vast Latin-American theological-pastoral experience, sees the present time in the Church
as being immersed in a dark night, whose hope will be found in the return to the spirit of the
Second Vatican, specifically in the theology of the People of God. The comparative study
seeks to analyze these ecclesiologies by using the main theological sources: Bible, Tradition
and Magisterium. In addition, the study seeks to verify the historic and theological
development of concepts and how these concepts are being defined in the theological
production. This piece of research, rather than confront, intends to find a fair
complementation of both concepts. Finally, it offers a sacramental perspective of the Church
by reflecting how a certain ecclesiological model reflects in a certain pastoral action.
Mg{/yqtfu: Church. Second Vatican Council. Communion. People of God.
Complementarity. Sacramentality.
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7
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NKUVC"FG"CDTGXKCVWTCU"
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"
AA Decreto sobre o apostolado dos leigos, Apostolicam Actuositatem do Concílio
Ecumênico Vaticano II.
AADE ACERBI, Antonio. Due ecclesiologie: ecclesiologia giuridica ed ecclesiologia
di comunione nella “Lumen Gentium”. Bologna: Dehoniane, 1975.
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Cidade do Vaticano, 1970-1980.
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ChL Exortação Apostólica pós-sinodal Christifideles Laici.
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DA CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Documento de
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161 v. Paris: 1857-1866; 2 v. de índices. Paris: 1928-1936.
PL MIGNE, Jacques-Paul (accur.). Patrologiae cursus completus. Series Latina.
221 v. Paris: 1841-1864; 5 v. complementares. Paris: 1958-1970.
SC Constituição sobre a sagrada liturgia, Sacrosanctum Concilium do Concílio
Ecumênico Vaticano II.
UR Decreto sobre o ecumenismo, Unitatis Redintegratio do Concílio Ecumênico
Vaticano II.
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KPVTQFWÑ’Q ..............................................................................................................
10
3"C"GENGUKQNQIKC"FG"EQOWPJ’Q"GO"CPVQPKQ"CEGTDK ....................... 14
1.1 O CONCEITO DE COMUNHÃO ............................................................................ 16
30303"Vgtokpqnqikc .......................................................................................................... 16
30304"Fcfqu"dîdnkequ ........................................................................................................ 17
1.1.2.1 Antigo Testamento ............................................................................................... 17
1.1.2.2 Novo Testamento ................................................................................................. 18
30305"Fcfqu"Rcvtîuvkequ.................................................................................................... 19
1.2 A PASSAGEM DA ECLESIOLOGIA JURÍDICA À ECLESIOLOGIA DE CO-
MUNHÃO ............................................................................................................
22
30403"Rcpqtcoc"fcu"vgpfípekcu"gengukqnôikecu"cpvgu"fq"Xcvkecpq"K .......................... 22
1.2.1.1 A tendência jurídica ............................................................................................. 23
1.2.1.2 Escola de Tübingen .............................................................................................. 24
1.2.1.3 A tendência ultramontana .................................................................................... 25
30404"Cu"vgpfípekcu"gengukqnôikecu"pq"Xcvkecpq"K ......................................................... 26
30405"Cu"vgpfípekcu"gengukqnôikecu"fgrqku"fq"Xcvkecpq"K .............................................. 27
1.2.3.1 O desenvolvimento da eclesiologia pós-conciliar (1870-1920) …………........... 27
1.2.3.2 As tendências eclesiológicas no período entre guerras ........................................ 28
1.2.3.3 A Encíclica Mystici corporis ................................................................................ 30
30406"Rtqurgevq"fcu"vgpfípekcu"gengukqnôikecu"cpvgtkqt"cq"Xcvkecpq"KK"...................... 32
30407"Cu"vgpfípekcu"gengukqnôikecu"pq"Xcvkecpq"KK"........................................................ 35
1.2.5.1 A afirmação da tendência jurídica na fase preparatória do Vaticano II .............. 35
1.2.5.2 O florescimento da tendência comunial ............................................................... 36
1.2.5.3 A reelaboração do esquema De ecclesia .............................................................. 39
1.2.5.4 A prevalência da tendência comunial nos debates conciliares ............................. 44
1.2.5.5 A afirmação da eclesiologia de Comunhão no texto final De ecclesia ................ 52
1.3 A ECLESIOLOGIA DE COMUNHÃO NA LUMEN GENTIUM ........................... 54
30503"Q"okuvêtkq"fg"Eqowpjçq"fc"Kitglc ..................................................................... 55
30504"C"Eqowpjçq"fq"Rqxq"fg"Fgwu ............................................................................. 56
30505"C"Eqowpjçq"jkgtâtswkec ..................................................................................... 57
4"C"GENGUKQNQIKC"RQXQ"FG"FGWU"GO"LQUÖ"EQODNKP"………………….. 62
2.1 O CONCEITO DE POVO DE DEUS ……………………………………………… 64
40303"Vgtokpqnqikc"…………………………………………………………………….. 64
40304"Fcfqu"dîdnkequ"…………………………………………………………………… 66
2.1.2.1 Antigo Testamento ……………………………………………………………... 66
9
2.1.2.2 Novo Testamento ………………………………………………………………. 67
40305"Fcfqu"Rcvtîuvkequ"………………………………………………………………... 68
40306"Q"eqpegkvq"fg"Rqxq"fg"Fgwu"pq"Eqpeînkq"Xcvkecpq"KK"…………………………. 70
2.2 HISTÓRIA DO CONCEITO DE POVO DE DEUS ………………………………. 74
40403"C"tgegrèçq"ncvkpq/cogtkecpc"fq"eqpegkvq"fg"Rqxq"fg"Fgwu"pq"rôu/Eqpeînkq ... 81
40404"Q"Uîpqfq"gzvtcqtfkpâtkq"fg"3;:7 ……………………………………………… 84
2.3 O CONTEÚDO DO CONCEITO DE POVO DE DEUS ………………………….. 88
40503"Pqxc"cnkcpèc"g"pqxq"rqxq"………………………………………………………. 89
2.3.1.1 O Povo de Deus como realidade escatológica …………………………………. 90
2.3.1.2 O Povo de Deus como realidade histórica ……………………………………... 92
2.3.1.3 O Povo de Deus como a “Igreja dos pobres” …………………………………... 94
5"GUVWFQ"EQORCTCVKXQ"..................................................................................... 100
3.1 COMPLEMENTARIDADE DOS CONCEITOS DE COMUNHÃO E DE POVO
DE DEUS …………………………………………………………………………...
101
3.2 A SACRAMENTALIDADE COMO CATEGORIA TEOLÓGICO-HERMENÊU-
TICA ………………………………………………………………….....................
104
50403"C"eqortggpuçq"fc"ucetcogpvcnkfcfg"pq"Xcvkecpq"KK"………………………… 105
3.2.1.1 A Igreja como “sacramento de Cristo”…………………………………………. 106
3.2.1.2 A Igreja como “sacramento de unidade” ………………………………………. 106
3.2.1.3 A Igreja como “sacramento de salvação” ……………………………………… 107
50404"C"ucetcogpvcnkfcfg"eqoq"gzrtguuçq"tgncekqpcn"fcu"gengukqnqikcu"go"guvwfq".. 107
3.3 INCIDÊNCIAS PASTORAIS DAS DUAS ECLESIOLOGIAS ………………….. 108
50503"Fc"Kitglc"eqoq"Eqowpjçq"…...………………………………………………... 110
3.3.1.1 Na dimensão da pessoa ………………………………………………………… 110
3.3.1.2 Na dimensão da comunidade …………………………………………………... 111
3.3.1.3 Na dimensão da sociedade ……………………………………………………... 113
50504"Fc"Kitglc"eqoq"Rqxq"fg"Fgwu".............................................................................. 114
3.3.2.1 Na dimensão da pessoa ………………………………………………………… 115
3.3.2.2 Na dimensão da comunidade …………………………………………………... 117
3.3.2.3 Na dimensão da sociedade ……………………………………………………... 118
EQPENWU’Q"………………………………………………………………………… 124
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A realidade do momento presente é marcada por situações graves de desigualdades,
exclusões e violências. Somos todos partícipes de um universo marcado pelo individualismo e
ao mesmo tempo pelo fenômeno da globalização. “A globalização faz emergir, em nossos
povos, novos rostos pobres”.
1
No contexto das relações pessoais e interpessoais vive-se uma crise de sentido de vida.
As pessoas, em muito de suas decisões, não usam mais os parâmetros, referenciais e critérios
éticos que usavam para julgar suas práticas. Hoje o indivíduo compõe a sua unidade de valor,
de acordo com seus interesses, e não raras vezes vive num anonimato com pouca ou sem
esperança e, o que é pior, sente sua identidade fragmentada.
No âmbito religioso a partir de análises sociológicas percebe-se que a própria
instituição está em crise. A modernidade colocou em crise o cristianismo. No atual contexto
há a “irrupção do religioso”
2
, mas há, também, a “fragmentação da experiência religiosa no
seio das religiões institucionais”
3
ocasionando na pessoa uma crise ou até uma perda de
identidade.
Diante desse novo quadro sócio-econômico e cultural a Igreja também passa por
mudanças profundas em nível pessoal, comunitário e social; experimenta uma crise de
identidade e é desafiada a dar respostas aos novos desafios. Em síntese, a crise do atual
projeto de civilização obriga instituições e conseqüentemente a Igreja a se “re-situarem no
novo contexto”.
4
A partir desta complexa e plural realidade, pergunta-se: é possível resgatar a
identidade da religião como expressão cultural que leve a um compromisso comunitário e
envolvimento com a realidade, especialmente na solidariedade com os mais pobres?
1
DA 402.
2
BRIGHENTI, Agenor. A Igreja do futuro e o futuro da Igreja: perspectivas para evangelização na aurora do
terceiro milênio. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2004, p. 6.
3
ELETA, Paola. O.encanto do mágico: a magia como fator de reencantamento e fragmentação da religião na
América do Sul. In: CIPRIANI, Roberto; ELETA, Paola; NEDI, Arnaldo (Orgs.). Identidade e mudança na
religiosidade latino-americana. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000, p. 119.
4
BRIGHENTI, Agenor. A Igreja perplexa: a novas perguntas, novas respostas. São Paulo: Paulinas, 2004, p.
5.
11
Em busca de uma resposta a estes desafios a Igreja tem assumido, muitas vezes,
posturas que revelam certa unilateralidade eclesiológica: de um lado supervalorizando a
instituição com sua estrutura, esquemas pré-estabelecidos, notificações e ritualismos que
desemboca nela mesma, como se fosse uma autodefesa; de outro, há quem entendendo a
caridade eclesial como aspecto ideológico de assistência social, esqueceu da mística do
Evangelho e da sacramentalidade e, então, parte para o assistencialismo paliativo ou para uma
sistemática assistencial planejada, porém sem a mística da caridade.
Considerando que a religião, sedimentada sobre seus princípios originais e
verdadeiros, pode dar bases concretas a uma cultura da solidariedade e a uma espiritualidade
que integre o ser humano, julga-se que é de fundamental importância e de interesse comum
buscar a visão eclesiológica oferecida pelo evento pneumatológico que foi o Concílio
Ecumênico Vaticano II. Ou seja, a visão de uma eclesiologia que manifeste a Igreja como
“povo messiânico que tem por condição a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus [...]
Constituído por Cristo para a Comunhão de vida, [...] enviado ao mundo inteiro como sal da
terra e luz do mundo (cf. Mt 5,13-16)”.
5
Seus efeitos surtirão de forma incisiva na sociedade
fomentando, por exemplo, a “Comunhão econômica”
6
e conseqüentemente ela se tornará
mais justa e humana.
A Igreja, à primeira vista, é uma manifestação histórica. Apresenta-se diante do
mundo como uma realidade que vem atravessando os séculos. Todavia, é uma realidade
complexa, transcendental aos sentidos. Percebe-se que sua realidade manifesta-se em duas
perspectivas: uma histórica e outra supra-histórica ou escatológica; ao mesmo tempo em que
ela é uma comunidade organizada e visível ela é também portadora do mistério, logo, sinal de
esperança futura.
Numa retrospectiva histórica constata-se que em cada contexto histórico determinado,
modelos de Igreja foram utilizados para interpretar o mistério que ela encerra.
7
No ponto de partida estão as imagens bíblicas (povo, corpo, esposa, redil, templo,
construção, campo). Entre as Escrituras e o Concílio Ecumênico Vaticano II intermedeiam
séculos de reflexão e sucessivas re-elaborações devidas à reflexão patrística (mãe, casta
5
LG 9.
6
LUBICH, Chiara. Economia de comunhão. A “economia de comunhão” se baseia na “cultura do dar” e nasce
de uma espiritualidade de comunhão, aplicada na vida civil; conjuga eficiência e solidariedade; considera que
os pobres são um valor precioso e não um problema. Disponível em: <http://www.edc-
online.org/br/_idea.htm>. Acesso em: 21/06/2006.
7
Cf. DULLES, Avery. A Igreja e seus modelos. São Paulo: Paulinas, 1978 (orig. 1974). Esta obra apresenta
pistas descritivas sobre as diversas faces da Igreja. O teólogo americano oferece uma ampla compreensão
eclesiológica que ultrapassa as fronteiras da eclesiologia católica apresentando cinco modelos possíveis de
Igreja.
12
meretriz, arca, barca, coluna), a teologia medieval (reino, Igreja militante, triunfante, corpo
místico), ao tempo posterior da Reforma (sociedade perfeita, mestra, etc.). Toda essa bagagem
chegou até o Concílio (1962-1965), que sendo caixa de ressonância de muitas destas
representações, outorga uma relevância especial a estas noções: mistério-sacramento, Povo de
Deus, corpo de Cristo, Comunhão, sociedade e instituição.
8
Nos últimos quarenta anos, estes
modelos de Igreja estão sendo investigados pela reflexão teológica e servindo de base às
práticas pastorais.
Especificamente, “no período pós-conciliar, a eclesiologia Povo de Deus e a
eclesiologia de Comunhão estão funcionando como verdadeiros paradigmas”.
9
Duas obras
eclesiológicas, com grande repercussão, marcam esses dois modelos: a primeira, a obra de
Antonio Acerbi, editada dez anos após o encerramento do Concílio, intitulada Due
ecclesiologie: ecclesiologia giuridica ed ecclesiologia di comunione nella “Lumen Gentium”,
na qual a eclesiologia de Comunhão é priorizada como a visão-chave da Igreja; a segunda, a
obra de José Comblin, intitulada O Povo de Deus, escrita no limiar do novo milênio, prioriza
o conceito de Povo de Deus em chave de leitura latino-americana com o intuito de oferecer
mudanças concretas às estruturas eclesiais.
A presente dissertação tem como objeto de pesquisa o estudo comparativo destas duas
obras, acima citadas. Procura, além disto, analisar cada um dos modelos eclesiológicos por
elas propostos a partir das fontes da teologia: Sagrada Escritura, Tradição e Magistério e do
próprio desenvolvimento teológico. Tem como marco referencial o Vaticano II,
especificamente, a Constituição sobre a Igreja: Lumen Gentium, a qual se torna como que a
espinha dorsal, ou o eixo transversal deste ensaio, uma vez que, a eclesiologia tem como
ponto de partida o Vaticano II.
10
O trabalho está organizado em torno de três capítulos.
O primeiro - a eclesiologia de Comunhão em Antonio Acerbi - busca significar o
conceito de Comunhão nas fontes bíblicas e patrísticas; em seguida, procura esclarecer a
compreensão eclesiológica do autor mostrando a evolução histórica do conceito, por ele
mesmo elaborada, para chegar à compreensão de Comunhão na Lumen Gentium. A última
etapa busca verificar a eclesiologia de Comunhão a partir dos textos do Vaticano II e suas
posteriores interpretações.
8
MADRIGAL, Santiago. Vaticano II: remenbranza e actualización. Esquemas para una eclesiología.
Santander: Sal Terrae, 2002, p. 245.
9
Ibidem, p. 245.
10
PIÉ-NINOT, Salvador. Eclesiología. La sacramentalidad de la comunidad cristiana. Salamanca: Sígueme,
2007, p. 27.
13
O segundo capítulo – a eclesiologia Povo de Deus em José Comblin – inicia
fundamentando o conceito de Povo de Deus através dos dados bíblicos e patrísticos e dos
textos do Vaticano II. Em seguida, trata sobre a história e o conteúdo do conceito com o
intuito de demonstrar a eclesiologia descrita pelo autor, a qual é desenvolvida em diversos
enfoques.
A meta final, o terceiro capítulo, é realizada seguindo por três vias. Primeira,
abandona a via unilateral de qualquer um dos modelos em estudo e busca trilhar a
complementaridade; segunda, partindo de um estudo comparativo complementar, busca um
justo equilíbrio entre as eclesiologias e oferece a perspectiva sacramental da Igreja como
aquela capaz de continuar a objetivar sua missão no mundo dizendo e testemunhando que
“Cristo é a Luz dos Povos”
11
; a terceira via, oferece um demonstrativo de cada modelo em sua
aplicação pastoral, ou seja uma visão eclesiológica que favoreça um desempenho fiel e
articulado na missão da Igreja de ser anunciadora do Evangelho, mediadora do mistério e do
amor de Jesus Cristo.
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11
LG 1.
14
3"C"GENGUKQNQIKC"FG"EQOWPJ’Q"GO"CPVQPKQ"CEGTDK"
Acerbi, preparado nos estudos históricos não só teológicos, mas também jurídico-
institucionais, documenta vários textos com o intuito de responder como e até que ponto, na
constituição dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium, acontece a passagem de uma
impostação eclesiológica, societária e jurídica a uma impostação de comunhão de vida e
sacramentária na eclesiologia do Concílio Vaticano II.
Assim afirma Acerbi: “este livro se propõe ao objetivo de contribuir a encontrar nos
atos do Concílio Vaticano II a realidade da passagem de uma concepção eclesiológica a outra
[...] De uma visão jurídica a uma visão de Comunhão da Igreja”.
12
O objetivo da obra em discussão é, portanto, documentar os textos da Lumen Gentium
da passagem da eclesiologia jurídica para a eclesiologia de Comunhão.
O fruto da obra de Acerbi resulta numa relevância histórica e exegética para uma
correta leitura dos textos do Concílio. A finalidade última da tarefa é a Comunhão da vida
divina que, em Cristo e no Espírito Santo une os homens a Deus e os une entre si: “...uma
eclesiologia de Comunhão é dominada pelo conceito de Comunhão ‘da vida divina’
historicamente manifestada”.
13
Assim, através da comunhão de vida divina a instituição é
somente meio e instrumento e, como é reconhecida, a comunhão não é de exclusividade dos
católicos nem dos cristãos. A comunhão da vida divina reflete-se na solidariedade entre os
homens e mulheres de todas as classes e nações, de todos os povos, raças e línguas.
Dois pontos de inspiração da constituição sobre a Igreja, influenciaram profundamente
no trabalho das comissões que trabalharam na elaboração da mesma. Um ponto foi a pergunta
sobre a autoconsciência da Igreja: “Ecclesia, quid dicis de te ipsa?
14
E outro foi a
perspectiva da missão. As reflexões do papa Paulo VI no decorrer do Concílio, manifestam a
necessidade da Igreja tomar uma aprofundada consciência sobre si mesma, mas com o olhar
voltado para a humanidade: “pensamos que hoje é necessário à Igreja aprofundar a
consciência que ela deve ter de si mesma, do tesouro de verdades de que é herdeira e guarda,
e da missão que deve exercer no mundo”.
15
12
AADE, p. 9-10.
13
AADE, p. 10.
14
PHILIPS, Gérard. La Iglesia y su misterio en el Concilio Vaticano II: historia, texto y comentário de la
“Lumen Gentium. Vol. 1. Barcelona: Herder, 1968, p. 22.
15
PAULO VI. Ecclesiam suam, n.7. In: COSTA, Lourenço (Org.). Documentos de Paulo VI. São Paulo:
Paulus, 1997, p. 19.
15
O tema da colegialidade ocupa um grande espaço no tema da Comunhão, pois ocupou
longos debates nas sessões conciliares. Foi uma das conquistas do Vaticano II, uma vez que, a
sua tomada de consciência foi brusca e tardia, graças ao empreendimento da teologia do
Vaticano II que se propôs a beber de duas grandes fontes: a bíblica e a patrística:
Logo, além do tema propriamente dito (da colegialidade), surgiu uma redescoberta
com uma dimensão mais geral da eclesiologia: a Igreja para um cristão dos
primeiros séculos era, antes de tudo, uma Comunhão, e não um critério externo de
segurança doutrinal. Era membro ativo de um corpo vivo; na vida deste corpo
residia, para ele, o milagre da infalibilidade e da permanência. Na realidade
sacramental da Eucaristia, plenamente realizada em cada comunidade local, a
Comunhão com o corpo católico da Igreja tornava-se acessível pelo batismo, em
união com todos os santos do passado e em Comunhão com todos os que consagram
a mesma fidelidade a Cristo.
16
Quando o olhar volta para o início da história da Igreja, percebe nitidamente que a
preocupação da Igreja dos primeiros séculos, especialmente, nos escritos da patrística, é,
sobretudo, a Comunhão na verdade da fé.
“A experiência de Igreja dos primeiros cristãos é, antes de tudo, a da Comunhão na
acolhida da mesma mensagem: o mistério da chegada do Reino de Deus no acontecimento da
vida, da morte e da ressurreição de Jesus de Nazaré”.
17
Um aprofundamento do conceito de Comunhão em suas fontes teológicas,
especialmente bíblicas e patrísticas, leva à convicção de ser esta uma imagem fundamental
para a compreensão da natureza da Igreja.
16
MOELLER, Charles. O fermento das idéias na elaboração da constituição. In: BARAÚNA, Guilherme. A
Igreja do Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 1965, p.163-164.
17
TIHON, Paul. A Igreja. In: SESBOÜE, Bernard. História dos dogmas: os sinais da salvação (séculos XII-
XX). Vol. 3. São Paulo, Loyola, 2005, p. 298.
16
1.1 O CONCEITO DE COMUNHÃO
30303"Vgtokpqnqikc"
"
"
A partir do Vaticano II surgiu um grande interesse pelo que no Ocidente se chama de
“comunhão” e no Oriente a “koinonia”. Estes dois termos designam realidades estreitamente
ligadas umas às outras e pertencem ao núcleo de experiência do cristianismo. Todavia, os
termos “comunhão” e “koinonia”, mesmo com designações semelhantes, não são sinônimos.
Communio não vem como se crê e se escreve espontaneamente, de cum (com) e unio
(união). Vem de cum e munis, adjetivo derivado de munus (cargo, dever), significando ‘que
cumpre seu encargo’”.
18
É então o que partilha o encargo, e em sentido derivado, o que é
partilhado por todos, logo o que é comum.
Já o termo koinonia vem da raiz grega koinos (koinonein, koinonos, koinonikos). Essa
raiz tem também por campo semântico a participação comum, a associação, a partilha comum
de uma mesma realidade.
Contudo no latim bíblico, as palavras gregas formadas a partir de koinos são também
traduzidas por termos diferentes dos derivados de munis (ou munus). São sobretudo
participacio-particeps [...] Assim, koinonia é traduzido uma vez por communio, 8
vezes por societas, 6 vezes por communicatio, uma vez por collatio, uma vez por
participatio. Mas em 2Cor 6,14, participatio traduz também metokhé. É claro,
portanto, que koinonia insiste mais na participação a uma realidade comum,
comunicatio, no dinamismo do dom, comunhão na situação daí resultante.
19
O termo “comunhão” é, portanto, bíblico e possui a partir das Sagradas Escrituras um
singular valor teológico em senso trinitário. Para o eclesiólogo Severino Dianich o termo
significa cooparticipação da humanidade na vida divina:
O termo “comunhão”... indica o mistério da graça para cuja participação Deus nos
chama, que se realiza no coração dos fiéis pela ação do Espírito Santo, graças ao
18
TILLARD, Jean-Marie R. Comunhão. In: LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário crítico de teologia. São Paulo:
Paulinas; Loyola, 2004, p. 397.
19
Ibidem, p. 399.
17
qual nos tornamos participantes da morte-ressurreição de Cristo, por força do qual
somos destinados à ressurreição com ele e à plenitude da vida eterna.
20
30304"Fcfqu"dîdnkequ"
"
"
1.1.2.1 Antigo Testamento
No livro do Gênesis está revelado que a atração pelo fruto proibido leva à transgressão
(Gn 3,6) e se estabelece a ruptura da comunhão com Deus. O homem rompe consigo mesmo
quando rompe com a mulher (Gn 3,12). E a história continua na rivalidade de Caim e Abel, a
qual deveria se tornar comunhão: “Caim se lançou sobre seu irmão Abel e o matou. Iahweh
disse a Caim: ‘onde está teu irmão Abel?’ [...] ‘Que fizeste! Ouço o sangue de teu irmão, do
solo, clamar por mim!’” (Gn 4,8-10).
Para a Bíblia o homem é um ser em relação, ele se realiza e se percebe diante do
outro, porque ele é criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26-28).
A Aliança estabelecida entre Deus e o povo firma laços fraternos nas prescrições
concernentes à vida cotidiana do povo (cf. Lv 19,1-37): “amarás o teu próximo com a ti
mesmo” (Lv 19,18).
Na manifestação dos profetas, também percebemos o homem crente como ser de
relações fraternas, por ser fruto de um mesmo pai:
Deus quer reunir (raiz koinos) o povo dilacerado em dois reinos (Ez 37, 15-28; Mi
4,6; Is 43,5ss; 49,5; 56,8). A essa reunião são associadas as nações (Is 2,2; Sl 87).
Assim a promessa a Abraão – de que todas as nações seriam nele abençoadas (Gn
12,1-3; 17,4-8) - cumprir-se-á em uma comunhão com sua graça de pai da fé.
21
"
"
20
DIANICH, Severino; NOCETI, Serena. Tratado sobre a Igreja. Aparecida: Santuário, 2007, p. 188.
21
Ibidem, p. 401.
18
A comunhão, na visão do Antigo Testamento, significa a expressão de plenitude e de
felicidade completa que supõe relação com Deus e com os outros: “a paz bíblica shalom,
neste sentido é sinônimo desta felicidade completa”.
22
1.1.2.2 Novo Testamento
Na carta aos Hebreus o termo comunhão significa a participação de Jesus na condição
humana: “uma vez que os filhos têm em comum (kekoinoneken) carne e sangue, por isso
também ele participou (meteskhen) da mesma condição...” (Hb 2,14). A encarnação do Filho
expressa a comunhão de Deus na humanidade (Rm 1,3; Ga 4,4; Fl 2,7; 1 Jo 4,2).
Nos evangelhos sinóticos se subentende a provocação que Jesus faz ao desafiar as
relações fraternas para que sejam vividas na solidariedade para com o próximo:
Para João Batista, o ideal moral, é essencialmente marcado pela relação ao próximo
e à comunidade (Lc 3,10s) de uma maneira que radicaliza a Torá. Cristo aprofundou
essa mensagem não só no encontro com um rico (Lc 18,18-30; Mt 19,16-30; Mc
10,17-31), mas no conjunto de suas palavras e sinais. Quer transformar as relações
humanas dando-lhes um sentido comunitário de partilha e de atenção às
necessidades dos outros. O duplo mandamento de amor a Deus e do próximo revela
aí o seu sentido profundo (Mt 22,36-40; Mc 12,28-34; Lc 10,25-28). [...] Jamais
evocada explicitamente, a comunhão-koinonia desponta sob o ministério de Jesus.
23
"
Nos Atos dos Apóstolos, é apresentado o ideal da comunidade cristã primitiva, na qual
os seus membros “... mostravam-se assíduos ao ensinamento dos apóstolos, à comunhão
fraterna (koinonia), à fração do pão e às orações. [...] Todos os que tinham abraçado à fé
reuniam-se e punham tudo em comum (apanta koinia)” (At 2,42-47).
Este texto de Atos é de vital importância. Ele revela a fotografia e o projeto de
construção da Igreja em sua origem. Este é um modelo neotestamentário que sempre inspira a
ação de toda Igreja no decorrer dos séculos.
Nos escritos paulinos a comunhão de vida se torna expressão eucarística em estreitos
laços de compromisso fraterno, e isto é constitutivo da Igreja:
22
MONLOUBOU, Louis; DUBUIT, F. M. Comunhão. In: Dicionário bíblico universal. Petrópolis: Vozes;
Aparecida: Santuário, 1997, p. 142.
23
TILLARD, Jean-Marie R. Comunhão. In: LACOSTE, Jean-Yves. Op. cit., p. 401-402.
19
Para 1 Cor 10,16-22 o pão e o cálice da mesa do Senhor são koinonia no corpo e
sangue de Cristo. Participando desse único pão (metekhomen) todos se tornam um só
corpo do qual se dirá (1 Cor 12,12-31) que é a Igreja. Essa participação comum
(metekhein 10,21) torna os cristãos koinonoi (10,18.20) do Senhor que faz sua
unidade. Não se diz que só participação na ceia do Senhor faz a Igreja, porque (1
Cor 12,12s; Ef 4,5) Paulo atribuirá essa função também ao batismo, e o conjunto do
NT, à Palavra. [...] Paulo apóia-se na koinonia dos bens espirituais e materiais (Rm
15,26s) para promover a coleta em favor dos pobres de Jerusalém (2 Cor 8,4.9,13).
A comunhão eclesial concerne o ser humano na solidariedade que exige a natureza
mesma da pessoa salva em Cristo.
24
Nos escritos joaninos o termo koinonia é utilizado para definir a comunhão
estabelecida entre o Pai e o Filho, na qual os discípulos também podem participar.
Esta comunhão também é expressa pelo verbo morar, habitar. A mútua “habitação”,
a intimidade do Pai e do Filho: “o Pai permanece no Filho e o Filho no Pai...” (Jo
14,10) é proposta aos discípulos. Jesus “permanece” neles; eles “permanecem” nele
(Jo 15,4). O Espírito também “permanece” nos discípulos (Jo 14,23) e eles mesmos
“permanecem” nele (1 Jo 2,24; 4,16). Não é possível imaginar comunidade mais
sublime, unida por laços mais íntimos que esta anunciada pela palavra de Jesus.
25
30305"Fcfqu"Rcvtîuvkequ"
"
"
Nos primeiros séculos da Igreja não há uma consciência eclesiológica explícita, mas
há características que podem implicitamente revelar uma eclesiologia. A herança recebida das
comunidades apostólicas – maneiras de agir, uma consciência de pertença – constituía a
realidade viva da Igreja.
Pode-se constatar que, por meio da diversidade dos testemunhos conservados, se
exprime a consciência de Igreja relativamente unitária:
Entre as Igrejas locais se estabelecem, para além da ajuda mútua material, laços de
fraternidade provenientes do fato de “reconhecerem” uma na outra a mesma fé, a
mesma esperança, o mesmo batismo, e logo se acrescentará, o mesmo ministério e a
mesma eucaristia. São Igrejas irmãs (2Jo 13) comungando na mesma escolha divina
(2Jo 13; 1 Pd 5,13s). Tertuliano, que enumera os bens possuídos em comum,
24
TILLARD, Jean-Marie R. Comunhão. In: LACOSTE, Jean-Yves. Op. cit., p. 404-405.
25
MONLOUBOU, Louis; DUBUIT, F. M. Comunhão. Op. cit., p. 142.
20
conclui: “somos uma só Igreja, tudo o que pertence a quem é dos nossos, é nosso”
(De Virg. Vel. 2,2, PL 2, 891).
26
A Igreja nos primeiros séculos da patrística se identifica como o povo dos
batizados onde as diversas funções e responsabilidades dos diversos membros (epíscopos,
presbíteros e fiéis), são participadas, caracterizando assim uma Igreja em comunhão:
“Leigos” como Justino ou Orígenes (antes de aceitar ser ordenado sacerdote) põem
espontaneamente seus dons a serviço da fé. Em outras palavras, a Igreja antiga pode
ser caracterizada pela palavra comunhão. A Igreja local é uma comunhão da qual o
bispo é o centro, mas as diversas comunidades estão igualmente em comunhão entre
si, por meio de múltiplas trocas de informações e serviços. Essa comunhão se
exprime também por ocasião da escolha de um novo bispo, quando se conjugam a
participação da comunidade local e a decisão dos bispos vizinhos. Ela se exprime
também pelas reuniões dos bispos de uma região. Mas a percepção fundamental é
sempre a da pertença a uma comunhão católica, quer dizer, universal.
27
Clemente Romano oferece uma contribuição muito importante sobre o tema
comunhão, em sua importante “Carta aos Coríntios”.
28
Há na carta de Clemente várias
anotações, através das quais o autor revela sua preocupação de comunhão. Esta preocupação é
o motivo da carta:
Se “a Igreja de Deus que tem sua residência transitória em Roma” pode se dirigir “à
Igreja de Deus que tem sua residência transitória em Corinto” é porque ela tem
consciência de formarem, juntas, uma só e única Igreja. É disso que dá testemunho a
preocupação de comunhão que motiva toda carta. Os membros dessa Igreja são
designados como “os chamados”, ou a “fraternidade”.
29
"
Inácio de Antioquia, o qual recebeu a coroa do martírio por volta do ano 107, deixou
um legado de sete cartas, consideradas um monumento da Igreja antiga. Inácio se caracteriza
pela unidade da Igreja universal, sendo o primeiro a designar os cristãos em seu todo com o
26
TILLARD, Jean-Marie R. Comunhão. In: LACOSTE, Jean-Yves. Op. cit., p. 405.
27
TIHON, Paul. A Igreja. In: SESBOÜE, Bernard. Op. cit., p. 304.
28
A Prima Clementis é um documento do final do século I, foi escrita por volta do ano de 96. Ela se apresenta
sob o patrocínio de Clemente de Roma, mais frequentemente identificado como o terceiro da lista de bispos
de Roma, mas é muita vezes também citada e apresentada como uma carta da Igreja de Roma do tempo de
Clemente (cf. TIHON, Paul. A Igreja. In: SESBOÜÉ, Bernard (Org.). Op. cit., p. 305-308).
29
TIHON, Paul. A Igreja. In: SESBOÜE, Bernard. Op. cit., p. 306.
21
título de Igreja católica: “apaixonado pela unidade que é o coração de sua teologia, ele não
cessa de pregar aos seus destinatários [...] Essa união dos corações, Inácio cultiva também
entre as Igrejas”.
30
Irineu de Lião contribui com alguns elementos de eclesiologia articulada. Preocupado
em guardar o depósito da fé, “Irineu concentra sua atenção na autenticidade da fé e na
fidelidade de sua transmissão desde as origens”.
31
Diante das heresias Irineu tem grande preocupação com a unidade da fé tendo como
base a doutrina dos apóstolos: “as funções eclesiais são vistas por Irineu principalmente pelo
ângulo do magistério doutrinal, e a unidade da fé dos cristãos do mundo inteiro manifesta sua
fidelidade à doutrina dos apóstolos”.
32
Assim como Irineu, Tertuliano também se preocupa e se empenha pela unidade da
Igreja: “o fundamento dessa unidade é, aos seus olhos, propriamente teológico. A Igreja
reflete a unidade de Deus Trindade [...] Essa unidade se manifesta na unidade da fé das
diversas comunidades, assim como na comunhão que elas mantêm entre si”.
33
Cipriano (200-258), bispo de Cartago, enfrentou perseguições externas e muitas
ambigüidades no interno da Igreja. Preocupado com a unidade da Igreja, não deixa de ser
controverso em relação às questões no que tange à unidade e ao primado romano.
34
Marcado
por um estilo pastoralista Cipriano marcou profundamente a doutrina concernente à Igreja,
especialmente em sua obra “Sobre a unidade da Igreja católica”.
35
Cipriano sublinha a necessidade da pertença à Igreja única, congregada na unidade de
uma mesma fé trinitária. “Desta maneira aparece a Igreja toda como ‘o povo reunido na
unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo’”.
36
Agostinho (354-430) exerceu no pensamento ocidental uma vasta e profunda
influência na eclesiologia de comunhão, inclusive nas correntes espirituais e, mais tarde, em
não poucos movimentos da Reforma com ênfase à teologia do “corpo místico”. Para o bispo
de Hipona, “a validade da função visível da Igreja depende da situação espiritual pessoal, daí
sua insistência na Igreja invisível”.
37
30
TIHON, Paul. A Igreja. In: SESBOÜE, Bernard. Op. cit., p. 308.
31
Ibidem, p. 311.
32
Ibidem, p. 312.
33
Ibidem, p. 317.
34
SANTOS, Manoel Augusto dos. O primado pontifício: estudo sobre a fundamentação e o significado do
primado pontifício em vista da proposta do Papa João Paulo II na encíclica “Ut unum sint”. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1997, p. 55.
35
De Catholicae ecclesiae unitate (251).
36
CIPRIANO. De Orat. Dom. 23: PL 4,553; Hartel, IIIA, p. 285: texto citado no Vaticano II (cf. LG 4).
37
PIÉ-NINOT, Salvador. Op. cit., p. 59.
22
Agostinho desenvolve de maneira significativa a imagem da Igreja Mãe: “o grande
sacramento da Igreja (magnum est Ecclesiae sacramentum) é ela ser chamada vida e mãe dos
viventes”.
38
Em meados do século IX com as Falsas Decretais, se torna decisiva a mudança da
expressão “Igreja Mãe”, mas é, sobretudo sob a visão de Gregório VII, que esta imagem passa
a ter um título de autoridade, qualificando a Igreja como Mater et Magistra et Domina. “Há
assim uma passagem de um projeto teológico radicado no homem cristão e em sua existência
cristã a um projeto jurídico de reivindicação da autoridade”.
39
Logo, o segundo milênio
possui uma estrutura de acentuada natureza jurídica tendo seu ponto alto no Vaticano I.
Consequentemente até o Vaticano II o conceito de Comunhão praticamente ficou sob cinzas.
Por isso, de um lado, cabe um estudo do conceito para sua compreensão original; de
outro lado, cabe analisar a sua retomada histórica desde as vésperas do Vaticano I para ele
poder ter ressurgido como uma verdadeira eclesiologia de comunhão na Lumen Gentium. Esta
é a principal meta perseguida por Acerbi na obra em análise.
1.2 A PASSAGEM DA ECLESIOLOGIA JURÍDICA À ECLESIOLOGIA DE
COMUNHÃO
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"
O Vaticano I foi o primeiro Concílio a tratar dos problemas eclesiológicos,
especificamente, no que se refere ao problema da natureza e da constituição da Igreja.
Três tendências eclesiológicas antes do Vaticano I influenciaram marcadamente a
eclesiologia do Vaticano I: a jurídica, a tradicionalista alemã e a corrente ultramontana.
40
38
PL 44, 443.
39
PIÉ-NINOT, Salvador. Op. cit., p. 61-62.
40
AADE, p. 15-16.
23
1.2.1.1 A tendência jurídica
A tendência jurídica vai se afirmar fortemente no contexto histórico do período da
modernidade, quando a Reforma Protestante e em seguida o período do iluminismo vão
questionar muitos aspectos da vida cristã, particularmente, a instituição eclesial e sua
centralização no papa.
Uma das reações da Igreja católica às críticas dos reformadores, foi a elaboração de
tratados propriamente teológicos sobre a Igreja. Roberto Bellarmino (1542-1621), cardeal
jesuíta, construiu sua eclesiologia com a preocupação predominante de reforçar os pontos dos
controvertidos, o que acarreta uma acentuação fortemente unilateral da visibilidade da Igreja e
do papa, em detrimento de seu aspecto interior e da comunhão na fé:
A Igreja única e verdadeira é a assembléia das pessoas humanas ligadas pela
profissão da mesma fé cristã pela comunhão dos mesmos sacramentos, sob governo
de pastores legítimos particularmente do substituto de Cristo na terra, o pontífice
romano.
41
A definição de Igreja como “sociedade perfeita”
42
é a síntese eclesiológica herdada de
Bellarmino, é como que um comentário da profissão de fé tridentina, exigida por Pio IV em
1564:
Reconheço a Igreja santa, católica e apostólica romana como mãe e mestra de todas
as Igrejas; prometo e juro verdadeira obediência ao Romano Pontífice, sucessor do
bem-aventurado Pedro, príncipe dos Apóstolos e vigário de Jesus Cristo.
43
Na época precedente ao Vaticano I, vislumbra-se um senso global de autonomia
humana diante das instâncias religiosas.
41
SCHMAUS, Michael. The Church: its origin and structure. London: Sheed and Ward, 1977, p. 8.
42
A célebre e clássica definição da Igreja como sociedade perfeita é de Bellarmino. Assim, a eclesiologia
assume uma orientação marcadamente social, jurídica, institucional e polêmica, isto é, ela possui em si
mesma todos os meios necessários para conduzir seus membros ao fim para o qual é destinada. Ela é,
também, o critério que permite definir qual conteúdo da fé e qual a justa interpretação da escritura (cf.
MONDIN, Battista. As novas eclesiologias. São Paulo: Paulinas, 1984, p. 15; cf. também TIHON, Paul. A
Igreja. In: SESBOÜÉ, Bernard. Op. cit., p. 394-398).
43
PIO IV, Bula Iniunctum nobis, 13 de nov. de 1564 (cf. DH 1868).
24
No século XVII, a filosofia vai radicalizar sua fé na razão. A idéia de Deus não é
rejeitada: ela se impõe à razão, mas não é mais Deus que intervém na história. Conforme
Immanuel Kant (1724-1804), que deu ao seu século o nome de “idade da crítica”, a existência
de Deus é um postulado da razão prática.
A franco-maçonaria, que se desenvolve no século XVIII, fornecerá a esse deísmo um
apoio decisivo. Neste século, com o desenvolvimento da crítica histórica e bíblica, assistem-se
ao fenômeno de descrença religiosa, indiferentismo e relativização dos anteriores marcos
referenciais de autoridade. Esse período também é marcado pela revolução industrial,
transformando profundamente as relações de trabalho. As novas tecnologias proporcionam
rapidez na produção e nos meios de locomoção. Um novo cenário social surge, as cidades vão
se transformar, e surge o fenômeno das “massas populares” formadas de multidões de
proletariados.
A Igreja nesse período para fazer frente ao racionalismo que reduz a religião ao
deísmo, e num contexto em que a teologia protestante se abre para as teses mais liberais, vai
utilizar no ensino teológico o estilo apologético. A eclesiologia defende o conceito de Igreja
como uma sociedade jurídica, desigual segundo os princípios do direito natural. Para Acerbi a
eclesiologia jurídica é uma visão burocrática da Igreja em que o sujeito não é nem “Cristo,
nem o Espírito Santo e nem a comunidade dos fiéis. O elemento de mediação é o humano, o
clero, ao qual é limitada a ação”.
44
1.2.1.2 Escola de Tübingen
Na Escola de Tübingen destaca-se, sobretudo, a eclesiologia de Johann Adam Möhler
(1796-1838).
45
A este teólogo deve-se o mérito por ter iniciado um modo original de tratar a
eclesiologia. Considerou o Espírito Santo, como verdadeiro princípio da unidade da Igreja e,
44
AADE, p. 16-17.
45
“A eclesiologia de J. A. Möhler (Die Einheit der Kirche, 1825), trata de distanciar-se, tanto de uma
contemplação puramente exterior da Igreja, como de uma concepção mística, exclusivamente espiritualista.
A unidade da Igreja, que é principalmente interior e está sustentada pelo Espírito, cria uma expressão
adequada de sua própria natureza na unidade do Corpo da Igreja, nos serviços e ministérios eclesiais, nas
formas e ritos das celebrações sacramentais, nos mais diversos carismas que são manifestações do próprio
Espírito presente e atuante na Igreja.” In: KUNRATH, Pedro. A estrutura visível para a comunhão da Igreja
em Tillard. Teocomunicação, nota n. 3, p. 625.
25
num segundo tempo, desenvolveu uma interpretação toda baseada sobre o modelo da
constituição humano-divina de Cristo.
46
A tendência da escola alemã trouxe bons avanços eclesiológicos para o contexto do
século XIX: “esta teologia revalidou a idéia da Igreja como ‘corpo de Cristo’, isto é, como um
organismo vital sobrenatural, cujo princípio é o Espírito e cuja estrutura visível é a comunhão
penetrada da vida do Espírito”.
47
A proposta da escola alemã oferece uma nova imagem de Igreja, não mais como
sociedade de direito natural, mas como comunhão em uma comunidade de vida a partir da fé e
do amor: “retornando às fontes da Bíblia e dos Padres, os teólogos de Tübingen voltam a
atenção para a Igreja vista em sua realidade total de organismo vivo. O objeto da eclesiologia
é precisamente essa vida”.
48
Ultrapassando o deísmo, ela enfoca a centralidade de Cristo na história da salvação. A
eclesiologia de Möhler teve grande influência também na Escola Romana: “o Colégio
Romano apresenta a Igreja numa prospectiva menos institucional que muitos
contemporâneos: Igreja é o ‘corpo místico de Cristo’...”
49
A partir de 1920 a corrente
eclesiológica do Corpo místico vai ter um grande desenvolvimento, tem seu auge na Encíclica
Mystici corporis (1943) promulgada pelo papa Pio XII. Mantem-se bastante influente até às
vésperas do Vaticano II.
1.2.1.3 A tendência ultramontana
50
Diante do naturalismo e do estado liberal do século XVIII a Igreja necessitava de uma
reconstrução, pois a imagem da hierarquia e os seus princípios estavam sendo banalizados.
46
DIANICH, Severino; NOCETI, Serena. Op. cit., p. 181.
47
AADE, p. 19.
48
TIHON, Paul. A Igreja. In: SESBOÜE, Bernard. Op.cit., p. 411.
49
AADE, p. 21.
50
O “Ultramontanismo” é um movimento do século XIX. Ele é expressão da posição centralizadora de Roma
versus as autonomias locais e regionais, denominadas “galicanismo” pela relativa autonomia da Igreja na
França (Gallia, em latim). A palavra refere-se ao lugar “além da montanha”, ou seja, do outro lado dos
Alpes, onde fica Roma. O avanço das teorias anti-romanas durante o século XVIII não foi inteiramente
suportado de maneira passiva, e os defensores da autoridade pontifícia brilharam em refutações de caráter
apologético que exercerão sua influência sobre o movimento do século XIX. Recusando os princípios da
Revolução Francesa, na qual viam o coroamento de um movimento negador lançado pela Reforma e
orquestrado pelas Luzes, os tradicionalistas põem em evidência a necessidade de autoridade irrecusável, que
eles acentuam no papado. Esse entusiasmo pela romanidade, habilmente orquestrado e favorecido pelas
instâncias pontifícias, suscitou assim o que se pode chamar de “neo-ultramontanismo”, para distingui-lo da
doutrina do Vaticano I. Na eclesiologia o acento é posto na unidade, mas segundo uma interpretação
jurídica: a Igreja é fundada no papa que é princípio de sua unidade (cf. GRES-GAYER, Jacques M.
Ultramontanismo. In: LACOSTE, Jean-Yves. Op. cit., p. 1795-1798).
26
A Igreja neste período começa a ser identificada por uma eclesiologia organizacional e
jurídica, pois o próprio papado fora humilhado e toda a ação da Igreja é controlada pelas leis
do Estado. O movimento ultramontano faz emergir a autoridade da Igreja independente do
estado e propõe a “idéia da Igreja como ‘instituição positiva’ de salvação e como ‘sociedade
perfeita’.”
51
O movimento ultramontano chega ao seu limite no ideal do “neo-ultramontanismo”, o
qual pretendia estabelecer na Igreja a ideologia de monarquia pontifical, ideologia que
permaneceu até o Concílio Vaticano I (1869-1870).
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O Concílio Vaticano I aconteceu num contexto difícil: é um contexto de confronto
entre a Igreja e o mundo moderno. Devido a invasão das tropas de Emmanuele I na cidade de
Roma, o Concílio teve de ser encerrado às pressas.
O Vaticano I assumiu a tarefa de unificar o mundo católico em torno dos princípios
fundamentais da fé cristã e em torno da autoridade eclesial, especificamente, do pontífice
romano. Assim, “com esse objetivo, busca antes de tudo afirmar a identidade da Igreja bem
como sua autonomia e seus direitos na qualidade de sociedade perfeita”.
52
A importância deste Concílio está nas suas definições dogmáticas. Foram votadas
duas constituições: Dei Filius, sobre a fé católica, e Pastor Aeternus, sobre a Igreja de Cristo,
a qual define o primado de jurisdição e a infalibilidade do bispo de Roma quando se
pronuncia ex cathedra em assuntos de fé e moral. Uma segunda constituição sobre a Igreja,
Tametsi Deus, não pode ser terminada por causa da interrupção do Concílio.
Para Acerbi, os debates conciliares refletem traços característicos da época, os quais
deixam transparecer a visão de Igreja que é assumida:
Algumas metas (antiprotestante, antiliberal, antigualitária), estavam na correção da
eclesiologia ultramontana e que confluíam todas na relevância do aspecto societário,
autoritário, hierárquico da Igreja, e nesta, a autoridade do papa.
53
51
AADE, p. 20.
52
TIHON, Paul. A Igreja. In: SESBOÜÉ, Bernard. Op. cit., p. 415.
53
AADE, p. 24.
27
No Vaticano I duas correntes eclesiológicas se manifestam: a que redescobre a veia
patrística e a que reafirma a autoridade pontifícia.
Nos primeiros debates acontecidos em janeiro de 1870, estava presente, no primeiro
esquema De Ecclesia: Supremo pastoris, a eclesiologia do “Corpo místico de Cristo”.
54
A
idéia foi rejeitada pela maioria dos padres, pois a maioria havia interpretado que essa
eclesiologia deixava transparecer elementos do protestantismo ou jansenistas, geralmente
compreendidos no sentido agostiniano da graça que flui de Cristo Cabeça para a multidão dos
indivíduos. O texto revisto manteve a idéia do Corpo místico dando maior ênfase a noção de
Igreja como verdadeira sociedade.
55
Muitos críticos temiam que ao se definir a jurisdição do papa como verdadeiramente
episcopal, imediata, ordinária, universal e plena, se negligenciasse o papel dos bispos e do
Concílio. A resposta foi dada pela inclusão no documento de algumas emendas precisas,
reconhecendo o “direito divino” do episcopado: ele não é somente uma instituição
eclesiástica, mas faz parte da estrutura essencial da Igreja.
56
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"
"
1.2.3.1 O desenvolvimento da eclesiologia pós-conciliar (1870-1920)
Para Acerbi este período tem uma produção teológica com caráter societário e
hierárquico da Igreja: “foi um período de desenvolvimento dos manuais que reproduzem a
eclesiologia jurídica anterior, dando destaque à dimensão societária da Igreja”.
57
Neste mesmo período surge com grande impulso a eclesiologia dos manuais: “a
eclesiologia dos manuais foi aquela que deu o florescimento à teologia do Corpo místico e
conservou-se com certa influência até às vésperas do Vaticano II...”
58
A linha pedagógica do ensino teológico para a formação do clero neste período
baseou-se no método da neoescolástica. Esse ensino clássico foi confirmado pelo papa Leão
54
ALBERIGO, Giuseppe. História dos concílios ecumênicos. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2005, p. 375.
55
TIHON, Paul. A Igreja. In: SESBOÜÉ, Bernard. Op. cit., p. 416.
56
DH 3061.
57
AADE, p. 30.
58
AADE, p. 33.
28
XIII na encíclica Aeterni Patris (1879). A orientação dada acentua a separação entre a
teologia dogmática corrente e o estudo das fontes que se achava então, em pleno progresso do
lado do protestantismo liberal.
Segundo P. Thion os decênios que se seguiram ao Concílio, o mundo católico foi
dominado, sobretudo, por uma interpretação ultramontana da Pastor Aeternus, interpretação –
historicamente falsa – que faz do papa “mais do que um papa”.
59
Progressivamente o ensino eclesiológico de Leão XIII (1878-1903) inspira-se na
“Escola Romana”, especialmente sobre a natureza teândrica da Igreja, Corpo Místico de
Cristo, que comporta elementos visíveis e invisíveis da Igreja.
Leão XIII também ressalta o papel do Espírito Santo na Igreja sublinhando sua ação
no dinamismo missionário. Não menos, interessa à eclesiologia a encíclica Rerum novarum
(1891). Tratando da questão social, com nítido interesse pela dignidade da pessoa humana, ela
contribui para mudar a posição da Igreja na sua relação com a sociedade, e pode-se dizer que
é o documento que dá origem à Doutrina Social da Igreja.
1.2.3.2 As tendências eclesiológicas no período entre guerras
O século XX apresenta-se extremamente complexo, porque os acontecimentos que o
caracterizaram foram tão intensos e profundos que induziram mudanças que alteraram de
maneira irreversível o homem, o seu ambiente e o seu modo de encarar a história.
Neste difícil período externo, a Igreja vai procurar fundamentar sua própria natureza
mística interior incentivando um retorno às fontes bíblicas e patrísticas e na escolástica.
Para trazer Deus de volta à sociedade era preciso, antes, purificar a Igreja internamente
e purifica-la de tudo o que não se adequava à missão que Cristo lhe havia confiado.
Restaurar tudo em Cristo significava tornar a Igreja mais espiritual, preserva-la dos
desvios doutrinários, favorecer sua unidade em torno do pontífice romano e dos bispos. Para
tornar isso possível Pio X promove a reforma em amplos aspectos da vida cristã: no culto, na
disciplina, na integridade doutrinária e uma reta orientação à sociedade e aos Estados.
Para Acerbi a renovação da consciência eclesial encontrou um lugar privilegiado no
movimento litúrgico: “a liturgia permite descobrir o mistério da Igreja para viver dele, e faz
59
TIHON, Paul. A Igreja. In: SESBOÜÉ, Bernard. Op. cit, p. 419.
29
experimentar que não é o clero a constituir a Igreja, mas que esta é a comunidade dos
reunidos em torno dos ministros e na comunhão com a Trindade”.
60
Uma das mais importantes iniciativas de Pio X é seu incentivo à “Ação Católica”: são
os leigos católicos que devem, em primeiro lugar, contribuir para “instaurar todas as coisas
em Cristo”, segundo o lema de seu pontificado, e, de modo particular, “resolver a questão
social”.
61
O pontificado de Pio XI (1922-1939) acontece no coração da “Guerra Civil Européia”
Para compreender adequadamente o sentido do pontificado de Pio XI não se pode
prescindir dos acontecimentos políticos durante os quais ele se desenrolou: a humanidade
oprimida pelos totalitarismos gerados pelas sociedades de massa; as profundas diferenças
ideológicas, que tornaram particularmente dura a “guerra civil”; os valores cristãos e a Igreja
hostilizada e perseguida, inclusive sob a hipótese de sua extinção.
Pio XI moveu-se dentro desse contexto específico, respondendo aos desafios com uma
clara resposta religiosa e com intervenções doutrinárias destinadas a abalar a legitimidade e a
dignidade das ideologias dominantes.
Pio XI, diante do triste contexto das sociedades civis, dedica-se com empenho à
promoção da atividade missionária; lutou contra os regimes totalitários dominantes; procurou
continuamente afirmar a autoridade moral e religiosa da Igreja, sobretudo através de grandes
encíclicas.
Em síntese, “nos anos que separam as duas guerras mundiais, o tema do Corpo místico
orienta toda a reflexão sobre a Igreja, alimenta a espiritualidade de numerosos cristãos e
interioriza o dinamismo de seu agir”.
62
A tendência eclesiológica da teologia do corpo místico tem predominância entre as
duas guerras e alcança seu cume na encíclica Mystici Corporis, cuja influência perdurará até o
Vaticano II: “a Mystici Corporis se propõe de salvar o equilíbrio entre a estrutura institucional
da Igreja e sua coerência interior”.
63
60
AADE, p. 35.
61
TIHON, Paul. A Igreja. In: SESBOÜÉ, Bernard. Op. cit., p. 425.
62
Ibidem, p. 427.
63
AADE, p. 44.
30
1.2.3.3 A Encíclica Mystici Corporis
64
Para A. Acerbi a eclesiologia do Corpo místico encontra seu ponto alto na Mystici
Corporis de Pio XII quando faz uma justaposição das linhas eclesiológicas predominantes até
então: “a Igreja é um ‘corpo’ porque é um organismo social [...] Mas não é um corpo social
qualquer, é o corpo ‘de Cristo’ porque ele é o fundador e o chefe seja jurídico como vital”.
65
Diante de dois pontos de vista: o da instituição e dos carismas dos fiéis, Pio XII
procura superar a visão unilateral da eclesiologia unindo pontos de vista que dissociam a
Igreja visível e a sua interioridade espiritual:
A Igreja deve chamar-se corpo, sobretudo porque resulta de uma boa e apropriada
proporção de conjunção de partes e é dotada de membros diversos e bem
concordantes entre si. De modo algum, porém, se julgue esta estrutura bem ordenada
e, como dizem, “orgânica” do corpo da Igreja se limite ou se reduza unicamente aos
graus da hierarquia; ou, ao contrário – como pretende outra opinião – conste
unicamente dos carismáticos, que nunca hão de faltar na Igreja.
66
Para o papa a compreensão da Igreja na expressão “Corpo místico de Cristo” é a sua
definição mais adequada da Igreja, pois nela se manifesta a plenitude de Cristo na ação do
Espírito Santo: “a Encíclica precisa que o princípio de identificação entre Cristo e a Igreja não
é outro que o Espírito Santo, que é o Espírito de Cristo e é com ele a fonte de cada graça e
atividade divina na Igreja”.
67
Para Pio XII o que São Paulo chama de Corpo de Cristo, não é o puro domínio
espiritual da graça e da salvação, é um corpo social visível e hierarquizado. É corpo de Cristo
não num sentido moral, mas em seu sentido bem real, sem que se possa falar de uma
continuidade física entre Cristo e os crentes: é precisamente isso que se procura precisar com
o termo “místico”:
Desejamos mostrar, sob a luz certa, por que o Corpo de Cristo que é a Igreja se deve
denominar místico. [...] Não é só uma razão para se adotar esta denominação: pois
64
Esta encíclica promulgada pelo papa Pio XII em 29 de junho de 1943 representa um marco na evolução da
eclesiologia moderna. Assumindo amplamente os enunciados bíblicos, contraria uma compreensão
puramente jurídica da Igreja (cf. DH, p. 824).
65
AADE, p. 45.
66
DH 3800-3801.
67
AADE, p. 45-46.
31
que por ele o corpo social da Igreja, cuja Cabeça e regedor é Cristo, pode distinguir-
se do corpo físico, que nasceu da Virgem Deípara e agora está sentado à destra do
Pai ou oculto sob os véus eucarísticos; pode também distinguir-se, e isto é
importante por causa dos erros atuais, de qualquer corpo natural, quer físico, quer –
como se diz- moral.
68
Outras proposições da encíclica Mystici corporis afirmam a identificação do “Corpo
místico” com a Igreja católica romana, os demais que não são membros de Cristo, mas vivem,
entretanto, da graça de Cristo, diz que “ordenam-se ao Corpo místico” ou vivem um “desejo
inconsciente” de pertencer a este:
[São convidados aqueles] que não pertencem ao conjunto visível da Igreja católica,
para que... procurem sair de um estado em que não podem estar seguros de sua
eterna salvação, pois embora por certo desejo e voto inconsciente estejam ordenados
ao Corpo místico do Redentor, carecem de tantas e tão grandes graças e auxílios
celestes dos quais só na Igreja católica podem fruir.
69
Como conseqüência só os católicos são efetivamente membros da Igreja, e, portanto,
do Corpo místico, os demais podem ser por desejo. Estas afirmações suscitam alguns
inconvenientes, principalmente na dimensão ecumênica.
Para Joseph Ratzinger a Mystici corporis ao querer resolver o problema de pertença à
Igreja, segundo a qual os católicos são “efetivamente” membros da Igreja e os demais podem
sê-lo por “desejo” apresenta três inconvenientes:
Primeiro. Contém uma psicologia fictícia, atribuindo aos cristãos não católicos um
desejo que eles negam consciente e expressamente. Segundo. Faz uma comparação
dos cristãos não católicos em matéria de incorporação à Igreja com os pagãos,
porque também a estes últimos pode-se atribuir a pertença a Igreja por desejo.
Terceiro. O ponto de partida dessa tentativa de solução cai por completo dentro do
subjetivo; a salvação dos não católicos se reduz na prática a um fator exclusivamente
subjetivo de um desejo, sendo que este, além do mais, nem se quer pode ser
comprovado por parte da consciência.
70
68
DH 3809.
69
DH 3821.
70
RATZINGER, Joseph. El nuevo pueblo de Dios. Barcelona: Herder, 1972, p. 115.
32
A Mystici corporis supera a visão unilateral societária e propõe a idéia de que o Corpo
místico de Cristo coincida com o domínio da graça. A partir desse conceito há unidade entre o
dado societário e aquele místico da Igreja, nenhum dos quais deveria excluir o outro como
não essencial.
Pio XII fundamenta sua visão unitária de Igreja a partir da analogia com o verbo
encarnado: “... o Filho de Deus assumiu uma natureza humana e o Salvador comunica à sua
Igreja os seus próprios bens de tal forma que ela, em toda a sua vida, tanto a visível como a
invisível, é uma perfeitíssima imagem de Cristo”.
71
Porém, a visão institucional-pneumática da Igreja, que a encíclica propõe termina
sempre por colocar em primeiro plano o aspecto institucional e hierárquico.
72
Às vésperas do Vaticano II, muitos bispos exprimiram o desejo de ver as questões de
pertença e da dimensão teândrica bem mais esclarecida.
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Para Acerbi a reflexão eclesiológica anterior ao Concílio resulta da confluência de três
vertentes teológicas: mistérica, Corpo de Cristo, e algumas reflexões sobre a relação entre os
elementos constitutivos da dimensão histórica e social da Igreja, ou seja, entre o dado
hierárquico, aquele sacramental e aquele comunitário da sociedade eclesial.
73
Uma primeira linha era encontrar uma descrição fazendo referência em primeiro lugar
ao ‘mistério’ presente na Igreja, mais que as características societárias de sua manifestação
histórica, surge assim, neste período, um importante desenvolvimento da visão
pneumatológica na eclesiologia: “a sensibilidade ao ‘mistério’ da Igreja permitia integrar
melhor na teologia da Igreja a dimensão do mistério cristão: a Igreja, de fato, como comunhão
de vida e santidade, é uma ‘comunhão no Espírito’”.
74
Esta compreensão da Igreja encontrava uma expressão do tema tradicional da Igreja da
Trindade: a Igreja é uma comunidade de pessoas em comunhão com as pessoas divinas pela
comunicação realizada por Cristo no Espírito da vida e da unidade trinitária.
71
DH 3806.
72
AADE, p. 486.
73
AADE, p. 49.
74
AADE, p. 51.
33
Outra corrente presente na reflexão eclesiológica antes do Vaticano II é o interesse
pela dimensão histórica da Igreja: “a consideração da Igreja composta em interesse para ela
não só como organismo sobrenatural, mas também na consideração de existência no tempo”.
75
A Mystici corporis tinha reafirmado a corporeidade social da Igreja como um
elemento essencial da sua constituição e a unidade do elemento espiritual e com aquele
institucional do Corpo de Cristo: “a Igreja é, portanto, ‘sacramento’ de Cristo para explicar a
unidade, a distinção e a complementaridade dos dois pólos da realidade eclesial”.
76
Portanto, conclui Acerbi: “a Igreja é em primeiro lugar o ‘fruto da redenção’ e em
segundo lugar o ‘meio da redenção’(sacramento) e nela os sacramentos, especialmente a
Eucaristia, fazem junção entre o plano societário e aquele místico”.
77
É na relação entre o dado humano e o divino, presentes na dimensão histórica da
Igreja, que alguns autores: Möhler e mais tarde teólogos da Escola Romana compreendem o
caráter teândrico da Igreja. A Igreja é teândrica porque é continuação do mistério da
encarnação, do Filho de Deus feito homem. Assim também na Igreja e em todos os seus
membros refletem-se dois traços que constituem a natureza de Cristo: o humano e o divino.
A idéia de ‘corpo místico’ com a redescoberta da sua noção bíblica e patrística,
integra-se com a noção de Povo de Deus: enquanto ‘Corpo de Cristo’ a Igreja é,
então, a comunidade daqueles que celebra a ceia do Senhor e, recebendo nela o seu
corpo, se tornam esses mesmos o corpo do Senhor. Nesta concepção, o termo não
indica mais nem o lado invisível da Igreja nem o seu aspecto corporativo (dualismo)
mas uma realidade sacramental que exprime de modo indivisível a sua visibilidade.
Vinha assim menos oposição entre a idéia ‘corpo místico’ e aquela ‘Povo de Deus’,
antes aparecia a profunda consonância: a Igreja é o Povo de Deus da aliança, que
existe como Corpo de Cristo.
78
O panorama nos vinte anos que seguiram a Segunda Guerra Mundial vislumbra no
horizonte dois modelos eclesiológicos: o da Igreja como Povo de Deus na história dos
homens, todo ele portador do querigma e vivendo da comunhão fraterna, e o da consideração
mística da Igreja, fruto do aprofundamento da teologia do corpo místico.
75
AADE, p. 55.
76
AADE, p. 52.
77
AADE, p. 59.
78
AADE, p. 61.
34
Nos transtornos da Segunda Guerra Mundial, os cristãos se viram desafiados pela
história concreta. As noções tradicionais de “sociedade perfeita” e de “Corpo
místico” não os ajudavam muito. Ao contrário, a de Povo de Deus se prestava
melhor a integrar a dimensão histórica da Igreja, a da Aliança, a continuidade e
descontinuidade com Israel, a igualdade fundamental dos membros do povo, a
relação dos indivíduos com a comunidade, a distinção entre Igreja e Reino de Deus,
o dinamismo escatológico. Um bom número de teólogos (F. Asensio, J. Ratzinger,
M. Schmaus) deram então lugar em sua eclesiologia, à noção de Povo de Deus.
79
Outra concepção eclesiológica presente neste mesmo período foi a da Igreja como
realidade sacramental que procurava unir os elementos visíveis e carismáticos da Igreja. “De
fato, a realidade eclesial vista como sacramento, os elementos externos não vêm se
acrescentar a seu mistério interior; ao contrário são a manifestação exterior desse próprio
mistério”.
80
Otto Semmelroth é pioneiro a desenvolver a idéia da “Igreja como sacramento”,
seguido por outros teólogos: Karl Rahner, Edward Schillebeeckx, Joseph Ratzinger, Hans-Urs
von Balthasar. Obra fundamental sobre este tema é Die Kirche als Sakrament im Horizont der
Welterfahrung, 1972, autoria de Leonardo Boff. Não se pode deixar de sublinhar a
importância de Yves Congar na renovação da Igreja, pois ele ajudou a reencontrar as raízes da
eclesiologia católica e, pelo menos em parte, seu equilíbrio.
81
O Concílio Vaticano II, a partir destas idéias representou um momento excepcional de
aprofundamento da consciência da Igreja acerca “de sua natureza e da sua missão”.
82
Os padres conciliares eram motivados no Concílio Vaticano II, sobretudo pelas
questões pastorais mais do que pelas sistemáticas teológicas: presença e diálogo com o mundo
contemporâneo, ecumenismo, renovação litúrgica, equilíbrio entre o exercício do primado e a
função do episcopado, a encarnação da Igreja nas civilizações não européias.
79
TIHON, Paul. A Igreja. In: SESBOÜÉ, Bernard, op. cit., p. 432.
80
Ibidem, p. 432.
81
Ibidem, p. 433.
82
MADRIGAL, Santiago. Remembranza y actualización: esquemas para una eclesiología, p. 299.
35
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1.2.5.1 A afirmação da tendência jurídica na fase preparatória do Concílio
Aos vinte e sete de outubro de 1960 a comissão teológica, sob a presidência do cardeal
Ottaviani e do secretário Tromp, aprovou um primeiro esquema compreensivo da constituição
sobre a Igreja. Esse esquema incluía treze números. Estes temas foram distribuídos aos
diversos membros da comissão e “entre dezembro de 1960 e junho de 1962 os textos
elaborados pelos diversos redatores foram examinados pela comissão teológica e pela
comissão central”.
83
O resultado foi o Esquema De ecclesia enviado aos padres conciliares em novembro
de 1962. Esse esquema compunha-se de onze capítulos:
1. A natureza da Igreja militante;
2. Os membros da Igreja militante e a sua necessidade para a salvação;
3. O episcopado como o supremo grau do sacramento da ordem;
4. Os bispos residenciais;
5. Os estados de perfeição evangélica;
6. Os leigos;
7. O magistério da Igreja;
8. Autoridade e obediência na Igreja;
9. As relações entre Igreja e Estado;
10. A necessidade da Igreja para anunciar o Evangelho a todos os povos e em cada
lugar;
11. O ecumenismo.
Encontra-se ainda um esquema sobre “A bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus
e Mãe dos homens”
84
o qual foi incluído como anexo ou capítulo desta lista.
O exame do esquema demonstra a preocupação de fundo dos redatores de confirmar o
significado salvífico e o valor sobrenatural da instituição. Este constitui o horizonte do
esquema: é no âmbito das exigências colocadas da sua sistematização e da sua justificação
que este se situa, escolhe os problemas e elabora as respostas.
83
AADE, p. 109.
84
PHILIPS, Gérard. Op. cit., p. 20.
36
Acerbi na releitura dos textos conciliares percebe a prevalência jurídica do primeiro
esquema e chega a seguinte conclusão:
O estilo do esquema preparatório é escolástico e jurídico, mais do que bíblico e
querigmático; é prevalente o recurso a uso de termos, tais como: ius, potestas,
auctoritas, societas, natura, e semelhantes e, no entanto, é marginal o uso da
terminologia bíblica e patrística.
85
Segundo a análise de G. Philips, o esquema proposto foi abertamente criticado pelos
padres conciliares devido a sua exposição demasiadamente abstrata e esquemática, dava a
impressão de uma justaposição de pontos doutrinais, enquanto o desejo era de uma exposição
com alcance de caráter pastoral:
O mais importante, segundo o cardeal Frings e Doepfner, não é o que está ao
alcance de nossos olhos, senão aquilo que constitui o objeto de nossa fé. Uma
terminologia exclusivamente jurídica e umas categorias abstratas são incapazes de
fazer compreender aos crentes a profundidade do mistério. Este mesmo tema foi
também tratado pelo cardeal Bea e pelo monsenhor Blanchet.
86
A reviravolta que os padres conciliares operam, consistirá, sobretudo, na introdução de
um novo horizonte: antes de mudar as respostas, mudarão as perguntas, primeiro de encontrar
as diversas soluções se descobrirão novos problemas.
1.2.5.2 O florescimento da tendência comunial
A. Acerbi interpretando os textos do magistério nas vésperas do Vaticano II, percebe a
profunda mudança que se daria na compreensão da Igreja, pois os textos deixam transparecer
não mais a fixação de normas doutrinais ou legislativas, mas sim a afirmação da finalidade
pastoral do Concílio: “a finalidade do Concílio não deveria exaurir na repetição de afirmações
85
AADE, p. 147.
86
PHILIPS, Gérard. Op. cit., p. 25.
37
teológicas tradicionais, mas numa nova formulação de doutrina, nas formas e proporções de
um magistério com caráter prevalentemente pastoral”.
87
Em algumas declarações de João XXIII, por exemplo, na radio mensagem do dia 11 de
setembro de 1962 e no Discurso de abertura da Sessão Conciliar em 11 de outubro de 1962, o
papa precisou a intenção que queria dar ao Concílio. Estes pronunciamentos do papa vão
alargar o horizonte do Concílio: deveria ser um Concílio com fim “pastoral”.
88
Assim para
Acerbi “os dois discursos propõem de um lado a visão interna da Igreja como mistério e de
outro sua atração externa como serviço ao mundo...”
89
O Concílio devia assumir a tarefa de apresentar a Igreja como “luz das nações”; a sua
razão de ser era a adesão ao mandato missionário de Jesus Cristo, de modo que a Igreja
pudesse aparecer e ser procurada, seja ad intra, seja ad extra, como verdadeiramente é, o
mistério da vida e da ação de Cristo no meio da humanidade.
Segundo Acerbi, duas intervenções no início do Concílio, foram de suma importância
para apresentá-lo conforme as locuções do papa João XXIII:
Do cardeal Suenens relembrando a radiomensagem do papa de 11 de setembro,
propõe que o Concílio, procurando as vias para a atualização da missão da Igreja no
mundo de hoje, assumisse o tema da Igreja lumen gentium como central e fosse a
orientação de todos os trabalhos. Se deveria, então, em primeiro procurar expor a
consciência que a Igreja tem do seu mistério, respondendo a pergunta do mundo: ‘ o
que dizes de ti mesma?’; em seguida abrir o diálogo com o mundo sobre os seus
problemas graves e urgentes [...] Em seguida o cardeal Montini fazia própria a
proposta do cardeal Suenens acerca da finalidade e da ordem dos trabalhos
conciliares. Segundo o Arcebispo de Milão todas as questões podiam focalizar-se
em torno de dois pontos: “que coisa é” e “que coisa faz” a Igreja: antecipando uma
prospectiva que ele desenvolveu em seguida na abertura da segunda sessão do
Concílio, ele acrescenta que na exposição do mistério da Igreja se deveria dar mais
destaque a Cristo: na realidade a Igreja nada pode por si mesma; ela não é somente
uma sociedade fundada por Cristo e o instrumento através do qual age e salva hoje o
mundo.
90
As intervenções durante o primeiro período conciliar: 11 de outubro a 8 de dezembro
de 1962, no Esquema De ecclesia, demonstram que vários padres conciliares reprovaram o
87
AADE, p. 151.
88
“Uma coisa é a substância do Depositum fidei, isto é as verdades contidas na nossa doutrina, e outra é a
formulação com que são enunciadas, conservando-lhes, contudo, o mesmo sentido e o mesmo alcance. Será
preciso atribuir muita importância a esta forma e, se necessário, insistir com paciência, na sua elaboração; e
dever-se-á usar a maneira de apresentar as coisas que mais corresponda ao magistério, cujo caráter é
prevalentemente pastoral” (JOÃO XXIII. Discurso solene na abertura do Concílio Vaticano II. In: COSTA,
Lourenço [Org.]. Documentos do Concílio Vaticano II: 1962-1965. São Paulo: Paulus, 2004, p. 28).
89
AADE, p. 152.
90
AADE, p. 153.
38
caráter unilateral, apologético, jurídico, escolástico, não ecumênico, enfim não pastoral da sua
exposição.
O bispo Emile De Smedt caracterizou o esquema preliminar em três termos que a
partir de então se tornaram famosos: clericalismo, juridicismo e triunfalismo.
91
Clericalista,
porque vê o clero, como fonte de todo poder e iniciativa; juridicista, porque entende a
autoridade na Igreja estritamente demais segundo os padrões de jurisdição no estado secular e
amplia grandemente o lugar da lei e das penalidades; triunfalista, porque, dramatiza a Igreja
como um exército em ordem de batalha contra satanás e as potências do mal.
92
A partir das discussões realizadas na sessão conciliar – fundamentadas na Acta
Synodalia
93
- Acerbi apresenta as principais críticas dos padres conciliares sobre o esquema.
Destes pronunciamentos começa emergir a tendência da eclesiologia de comunhão:
Deveria ser colocado à luz o lado místico da Igreja ao invés do lado institucional;
uma síntese, na qual a Igreja apareça como mistério e sacramento de Cristo
glorificado que rege, opera e vivifica a Igreja, seja mediante os carismas como
mediante os ministérios; deverá aparecer claramente que na Igreja o aparato
institucional é subordinado ao anúncio do evangelho e a comunhão de vida em
Cristo, para que ela apareça verdadeiramente como a do mistério de Cristo.
94
O anseio dos padres era de que o texto pudesse oferecer um tom menos jurídico no
esquema, além do mais, esperava-se o desenvolvimento de duas dimensões operantes na
comunidade cristã: a dimensão pneumatológica e a dimensão escatológica da Igreja.
A concepção da Igreja contida no esquema apresentava-a quase que unicamente como
resguardo da hierarquia. Além disto, havia a necessidade de colocar a idéia de “Povo de
Deus”.
No final da primeira sessão os padres conciliares propõem várias mudanças em
diversas áreas de relevância, tanto internas como externas da Igreja. Tinham como fundo a
idéia de “comunhão”.
91
Cf. Acta Syn. II, I, p. 142-144.
92
Cf. DULLES, Avery. A Igreja e seus modelos, p. 39.
93
As intervenções orais e escritas dos padres conciliares durante a primeira sessão conciliar encontram-se
publicados na Acta synodalia, I, IV, p. 126-601.
94
AADE, p. 155.
39
Assim é também a compreensão de G. Philips: “os padres conciliares indicam por sua
parte, em suas intervenções, outros elementos, os quais, sem dúvida, no fundo, são bem mais
variações do tema principal, aplicação da idéia de comunhão a diferentes campos”.
95
1.2.5.3 A reelaboração do esquema De ecclesia
96
Ao fim da primeira sessão do Concílio Vaticano II, havia o consenso de reelaboração
do esquema sobre a Igreja, segundo a finalidade indicada pelo papa e o endereço sugerido
pelos próprios padres conciliares:
O cardeal Suenens propunha, porém, a reordenação do esquema em quatro
capítulos: o primeiro sobre “o mistério da Igreja”, o segundo sobre “os bispos”, o
terceiro sobre “os leigos” e o quarto sobre a “Bem-aventurada Virgem Maria” [...] O
ponto mais discutido dessa nova relação foi, naturalmente, aquele da colegialidade
episcopal, sobre os quais se renovarão, ao interno da comissão, os esclarecimentos já
verificados na aula conciliar.
97
Para compreender a gênese do segundo esquema De ecclesia pelo menos seis projetos
elaborados antecedem a nova proposta:
1. O projeto de Philips. A idéia fundamental que vai reger o desenvolvimento do
esquema é a trinitária, ou seja, a do “mistério da Igreja”. A síntese deste projeto pode ser
interpretada da seguinte forma: “a Igreja de Cristo é uma só, aquela confiada a Pedro e aos
apóstolos e aos seus sucessores (não só a Pedro e aos papas; como o esquema preparatório) e
ela constitui vivo instrumento e sacramento de salvação...”
98
2. O projeto alemão elaborado por um grupo de teólogos alemães (K. Rahner,
Schmaus, Ratzinger, Schnackemburg, Semmelroth, Grillmeier, Hirschmann, Wolff) e
aprovado pelos bispos de língua germânica. Este projeto possui ao mesmo tempo uma
estrutura unitária e complexa. Ele serve de paradigma para compreender o novo esquema.
95
PHILIPS, Gérard. Op. cit., p. 27.
96
Boaventura Kloppenburg oferece uma síntese completa sobre os debates, na reelaboração do segundo
esquema De ecclesia, na segunda e terceira sessão conciliar (cf. KLOPPENBURG, Boaventura. As
vicissitudes da Lumen Gentium na aula conciliar. In: BARAÚNA, Guilherme. Op. cit., p. 200-217).
97
AADE, p. 169.
98
AADE, p. 172.
40
O projeto é composto por um proêmio e cinco capítulos: I. O mistério da Igreja; II. Os
membros da Igreja; III. Os ministérios da Igreja e os ministros, em especial os bispos; IV. Os
leigos; V. O estado do seguimento de Cristo segundo os conselhos evangélicos.
3. O projeto de Parente. Esse projeto ia ao encontro dos projetos de Philips e o
germânico, mas ainda dependia do primeiro esquema apresentado.
4. O projeto francês. “Este projeto, muito bem composto, influiu principalmente na
redação do primeiro capítulo do esquema renovado, porém quase nenhuma influência sobre os
textos relativos à colegialidade e a função episcopal”.
99
5. O projeto chileno. Deste projeto interessa sobretudo o primeiro capítulo, dedicado
ao mistério da Igreja, porque foi aquele que mais influiu na redação do segundo esquema,
servindo quase por inteiro o material ao número dedicado à obra do Espírito Santo na Igreja.
“Tal capítulo, de fato, possui uma estrutura trinitária: Ad Patrem, in Filio, per Spiritum
sanctum... É um esquema ascendente: a Igreja ascende ao Pai, em Cristo, por meio do Espírito
Santo”.
100
6. O projeto Elchinger. Este projeto assumia como fio condutor o tema do serviço, do
qual Cristo deu exemplo, em vista do qual ele quis a Igreja, no qual se compreende o senso de
autoridade na Igreja: “os temas prevalentes deste esquema: o mistério da Igreja, o episcopado,
os leigos, o serviço da Igreja no mundo”.
101
A proposta do segundo esquema é elaborada entre a primeira e a segunda fase do
Concílio. Na abertura da segunda sessão em 1963 o projeto é apresentado em quatro capítulos
divididos em duas partes.
Para facilitar uma visão global do segundo projeto, G. Philips apresenta-o de maneira
sintética em quatro palavras: “o Mistério, o Episcopado, o Laicato e a Santidade”.
102
O novo esquema se abre com uma declaração de intenção que faz da introdução a toda
constituição e que é retirada por inteiro do projeto germânico. Deste projeto, de fato, a
introdução deriva da intenção fundamental do novo texto, que é de ilustrar aos cristãos e ao
mundo a natureza e a missão da Igreja, apresentando-a como sacramentum unitatis.
No primeiro capítulo De ecclesiae mysterio encontra-se o consenso de todos os
esquemas e projetos e que para Acerbi se torna o centro de sua argumentação da “Igreja como
comunhão” e o mistério da Igreja:
99
AADE, p. 185.
100
AADE, p. 190.
101
AADE, p. 191.
102
PHILIPS, Gérard. Op. cit., p. 30.
41
[...] propõe a Igreja na luz da economia salvífica, que da Trindade procede e para
essa tende. A especificidade comunial da Igreja é colhida assim à fonte do seu ser:
se trata de uma comunhão de vida divina, que por meio de Cristo no Espírito une os
homens com o Pai e entre eles e os constituem em Povo de Deus reunidos em uma
unidade, que é participação da unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
103
O segundo capítulo De constitutione hierarchica ecclesiae et in specie: De episcopatu:
“dependia substancialmente do projeto de Philips, salvo algumas referências dos outros
projetos...”
104
O ponto de partida da doutrina proposta do capítulo é que os apóstolos foram
instituídos por Cristo como “colégio
105
e esses constituem o fundamento da Igreja.
A missão dos apóstolos de apascentar a Igreja continua com o mesmo poder no corpo
dos bispos, que os apóstolos constituíram a eles sucessores por vontade do Senhor.
O capítulo oferece algumas contribuições que merecem consideração por sua
qualidade definitiva para superar a impostação jurídica do primeiro esquema.
Primeiro por haver colocado o acento sobre o colégio dos apóstolos e sobre a
sucessão deles no corpo episcopal. Isto permite considerar o ministério episcopal
além da sua determinação canônica, ou seja, ele vai na sua raiz teológica, que é a
missão confiada por Cristo aos apóstolos e aos seus sucessores, a qual continua
aquela de Cristo e comporta um carisma conferido por Deus.
106
O capítulo permite afirmar também a índole colegial do episcopado como um dado
permanente e estrutural da Igreja e a sua sólida participação na missão universal de
evangelização e de governo da Igreja. O ministério episcopal é fundado antes de tudo na
missão (histórica e pneumática) dos apóstolos e em seguida na função específica de ensinar,
santificar e governar, ou seja, pregar o evangelho a todas as criaturas, como verdadeiro
serviço.
A segunda parte do novo esquema De ecclesia compreendia dois capítulos: um
terceiro sobre os leigos e o quarto sobre a santidade (e os religiosos).
103
AADE, p. 195.
104
AADE, p. 203.
105
"A palavra ‘colégio’ vem do latim col-ligare, ligar junto, amarrar, unir, juntar (ou segundo outros, de
colligere, recolher, juntar, reunir); não indica em primeiro os alunos de uma escola, mas um grupo de
pessoas solidárias no exercício de uma atividade, de um encargo, de um dever, de um poder, que justamente
assumem juntas!” (ALMEIDA, Antônio José de. “Lumen Gentium”: a transição necessária. São Paulo:
Paulus, 2005, p. 95).
106
AADE, p. 211.
42
O terceiro capítulo De populus Dei et speciam de laicis, “O Povo de Deus e
especialmente os leigos”, assinala a meta de considerar a missão de todo o Povo de Deus e
especialmente aquela dos leigos. Todo o povo, de fato, é constituído não só como comunidade
de amor e de verdade, mas também como instrumento da redenção.
A consideração sobre o Povo de Deus vai referir a Igreja em seu aspecto visível, como
se realiza inter tempora, entre a ascensão e a parusia. Ora, a Igreja enquanto é sinal e
instrumento da comunhão de vida divina, necessariamente participa do mistério, que é
presente nela, também nas suas estruturas visíveis. Logo, a primeira conseqüência é que a
hierarquia não consuma em si mesma a tarefa de edificar o corpo de Cristo: essa é, ao invés,
constituída para apascentar os fiéis de modo que todos a seu modo e em sua ordem cooperem
na obra comum.
A segunda sessão do capítulo, dedicada à consideração dos leigos, retomava
brevemente os textos e a inspiração do capítulo De laicis, e também algumas partes do
capítulo De auctoritate et obedientia do esquema preparatório: o leigo, que é uma realidade
essencialmente religiosa, não é confinado nos limites da atividade mundana; é por esta razão
ativo tanto ad intra como ad extra na Igreja, de uma atividade não ocasional e supletiva, mas
ordinária e regular, pelo título de seu batismo, que configura a sua atividade apostólica como
participação da missão salvífica da Igreja.
107
O quarto capítulo: De vocatione ad santictatem in ecclesiam, “Vocação à santidade na
Igreja”, foi amplamente discutido e reformulado dando entender que a santidade na Igreja
precisa ser buscada por todos os seus membros. Portanto, não somente em alguns estados de
vida, como por exemplo, a Vida Religiosa:
A decisão assinalou um passo decisivo na afirmação da visão comunial da Igreja. A
vida religiosa, de fato, é constituída de um ‘estado’ de vida, que realiza uma
expressão institucional de santidade cristã. [...] Os elementos comuns a todas as
formas de santidade cristã deveriam aparecer mais relevantes daquelas que se
distinguem, porque em cada caso não se trata senão de viver a vida do único Cristo
ressuscitado. Mais ainda, santidade e Igreja deveriam aparecer, como são na
realidade, essencialmente ligados: a santidade cristã é a expansão da graça batismal
e supõe, portanto, a pertença à Igreja, que não é só o meio da graça (medium gratiae)
mas também fruto da graça (fructus gratiae) e é o ambiente vivificante, no qual o
homem redimido pode alcançar a perfeição espiritual. Ao contrário, na visão jurídica
a santidade não é vista como elemento constitutivo da Igreja, se obtinha assim de
colocar em relevo a idéia própria da visão comunial cuja realidade mais profunda da
própria Igreja é respondida na santificante comunhão com o Deus santíssimo.
108
107
AADE, p. 220.
108
AADE, p. 222.
43
A primeira parte do capítulo foi, portanto, dedicada à vocação universal à santidade,
nas suas diversas formas e aos meios de santidade. A segunda sessão do capítulo desenvolve
especialmente a consideração do seguimento a Cristo segundo os conselhos evangélicos
sublinhando a índole escatológica deste estado de vida.
A novidade do capítulo é a concepção da Igreja como “Povo de Deus”
fundamentalmente uno e unificado da vida do único Senhor ressuscitado, representa
um passo adiante na superação do status ecclesiae, de uma herança, isto é, da visão
prevalentemente institucional da Igreja.
109
Muitos padres ainda viam o segundo esquema incompleto e propuseram que se
colocassem à luz alguns temas complementares: os temas bíblicos e de comunhão, pelo fato
de que esses propõem a Igreja mais como mistério e sacramento do que como instituição,
colocando à luz as suas realizações com a Trindade e as missões divinas e tirando da noção de
corpo místico aquilo que havia de demasiado corporativo, para insistir mais no aspecto de
identificação místico-sacramental dos fiéis com Cristo.
Na análise de Acerbi o ponto de maior crítica era a distinção na Igreja de dois aspectos
complementares: “a comunhão e a instituição; o Povo de Deus e o sacramento desta
realidade... de modo de fazer aparecer que a pertença na comunhão invisível implica sempre
uma relação com a sociedade visível”.
110
Formulando os novos textos, os padres conciliares se preocupavam de colocar em
evidência de que a necessidade da Igreja e do batismo não se configura como pura norma
jurídica ou como necessidade externa, mas que o batismo válido os constitui membros da
Igreja até que não é frustrado pelo pecado formal de cisma ou de heresia e que para a plena e
perfeita pertença à Igreja se requer também a união da graça em Cristo.
As observações dos padres ao terceiro e quarto capítulo foram bastante reduzidas
sobre o tema em questão. Essas continham, no entanto, uma proposta que era destinada a
provocar uma profunda reestruturação de todo esquema.
Na reunião de quatro de julho de 1963 da comissão de coordenação, o cardeal
Suenens
111
havia sugerido uma nova distribuição da matéria em cinco capítulos, de modo que,
109
AADE, p. 224.
110
AADE, p. 226.
111
PHILIPS, Gérard. Op. cit., p. 29-62.
44
entre o primeiro, dedicado ao mistério da Igreja, e o terceiro, dedicado a sua constituição
hierárquica, fosse inserido um dedicado ao Povo de Deus.
A decisão sobre a proposta foi remetida aos padres já no final da segunda sessão e
nas emendas da segunda parte do esquema, mandada imprimir e distribuída aos
padres no dia nove de outubro de 1963, foi inserido assim a nova ordem dos
capítulos, com indicação de recolocação da matéria. O capítulo sobre o Povo de
Deus havia, assim, assinalado a superação de uma visão buscada no status ecclesiae.
Porém, se de um lado a idéia encontrou consenso, por outro também encontrou
oposição.
112
1.2.5.4 A prevalência da tendência comunial nos debates conciliares
Paulo VI abriu a segunda sessão conciliar em vinte e nove de setembro de 1963. No
discurso de abertura o papa relembrou aos padres conciliares a intenção do seu predecessor
João XXIII, segundo a qual, a meta do Concílio deveria ser “prevalentemente pastoral” e
ainda acrescentou como próprio que os trabalhos do Concílio deveriam ter como norma: “...
ser Cristo o único ponto de partida, o caminho e ponto de chegada de toda a vida da Igreja e,
portanto, também da assembléia conciliar”.
113
A alocução papal na abertura do segundo período conciliar, revela de maneira quase
que direta que o Concílio seja cristocêntrico.
Para Acerbi esta nova meta propõe uma eclesiologia de superação da tendência
jurídica para uma visão da Igreja comunhão: “a visão cristocêntrica da Igreja, que o papa
propunha aos padres, constituía o eixo para uma doutrina e uma ação eclesial, que colocasse
em primeiro plano não os elementos jurídicos, mas aqueles místicos e comuniais da Igreja”.
114
A discussão sobre o primeiro capítulo “o mistério da Igreja”
115
foi relativamente
rápida: “o novo texto já era uma reação positiva contra um conceito excessivamente jurídico,
social, externo, institucional, clerical e triunfalista da Igreja”.
116
112
AADE, p. 237.
113
AADE, p. 239.
114
AADE, p. 240.
115
Cf. Acta Syn. III, I, p. 158 -374.
116
KLOPPENBURG, Boaventura. As vicissitudes da Lumen Gentium na aula conciliar. In: BARAÚNA,
Guilherme. Op. cit., p. 202.
45
Os padres favoráveis a uma visão comunial da Igreja “sublinharam que a comunhão
com Deus mediante a graça santificante e o dom do Espírito é a realidade mais profunda e
digna, que constitui o mistério da Igreja”.
117
Os padres favoráveis a uma visão mais jurídica da Igreja pediram que se voltasse
novamente às impostações dadas pelo esquema preparatório. A perspectiva destes era de se
enunciar a Igreja no modelo de sociedade perfeita: “a figura do ‘corpo místico’ seja
apresentada no seu senso corporativo e orgânico; a noção de ‘Reino de Deus’ deve servir para
sublinhar o aspecto social da Igreja, que é a sua realização atual e plena”.
118
O coração do capítulo é manifestamente a comunidade espiritual, a comunhão de
graça, com Deus e com os homens, recebida da redenção de Cristo. A nova redação mantém,
de fato, definitivamente como conotação fundamental, a dimensão trinitária do mistério.
O segundo capítulo “a constituição hierárquica da Igreja e, em especial, os bispos”
ocupou a maior parte das discussões conciliares sobre o tratado da Igreja.
Para Acerbi, o ponto central da discussão não foi a doutrina sobre a constituição
hierárquica da Igreja e nem a doutrina sobre o episcopado, mas foi um ponto específico, as
relações entre os bispos e o romano pontífice:
A orientação da discussão (e, portanto, a impostação do capítulo) fica dominado
pelo problema da colegialidade, ou seja, era preciso uma clara enunciação da
autoridade dos bispos colocada em relação com a autoridade do sumo pontífice.
Também o tema da sacramentalidade do episcopado foi contagiado, dando assim
motivos de temores que essa questão suscitava para o primado pontifício.
119
Para os padres de tendência jurídica ou contrários a colegialidade o poder de jurisdição
era colocado em primeiro plano no ofício episcopal e na estrutura da Igreja.
A tendência jurídica, fundamentava-se exclusivamente na definição do primado papal:
“a estrutura da Igreja é monárquica: esta é uma exigência da doutrina sancionada no Vaticano
I, pela qual o papa não tem só parte no governo da Igreja, mas possui o poder episcopal
ordinário sobre a Igreja universal”.
120
Para os padres de tendência comunial a estrutura social e a constituição hierárquica da
Igreja são de natureza sacramental. A realidade fundamental do episcopado não é de ordem
117
AADE, p. 261.
118
AADE, p. 265-266.
119
AADE, p. 271.
120
AADE, p. 273-274.
46
jurídica, mas de ordem mística; como a Igreja é constituída Povo de Deus, mediante o
Batismo, assim a hierarquia eclesiástica é constituída tal mediante o sacramento da ordem
episcopal.
A consagração é, de fato, antes de tudo, o sacramento da sucessão na missão e no
poder apostólico, mediante a sua cooptação (agregação) no ordo episcoporum, que
se verifica para cada bispo, também para aqueles que não possuem uma jurisdição
particular. Só por tal sucessão e, portanto, só pela consagração cada bispo se torna
membro do corpo episcopal (também o bispo de Roma se torna o sucessor de Pedro
enquanto e porque havia recebido a consagração episcopal).
121
É sobre o sacramento da ordem episcopal em que se fundamenta, portanto, a
colegialidade episcopal; sobre sua base o colégio dos bispos é constituído como uma realidade
ontologicamente unitária.
Os padres de tendência jurídica haviam desaprovado a afirmação que Cristo fundou a
Igreja sobre Pedro e os apóstolos, porque, segundo a visão juridicista, a estes não se pode
dizer fundamento ao mesmo modo de Pedro. E a justificativa era: “Pedro está fundamentado
sobre o plano da jurisdição; os apóstolos, ao invés, só sobre o plano da pregação do
evangelho, dado que se trata aqui da constituição hierárquica da Igreja, a qualidade de
fundamento vai reservada a Pedro”.
122
Os padres da maioria, ao invés, tinham pedido que o termo “visível” fosse referido,
além de “fundamento” também o “princípio”, os dois predicados a Pedro; além do mais
estariam excluídos os princípios invisíveis da unidade da Igreja.
Alguns haviam também pedido que fosse suprimido o título de “vigário de Cristo”
como título exclusivo do papa, e aquele de “chefe da Igreja”: em senso absoluto o chefe da
Igreja é somente Cristo e ninguém pode ocupar o seu lugar. O papa sucede Pedro, não a
Cristo, e como Pedro era o chefe do colégio apostólico, assim o papa propriamente é o chefe
do colégio episcopal.
123
121
AADE, p. 280.
122
AADE, p. 362 (cf. Acta Syn. L. Carli, II, I, p. 447 449; F. Franic, Acta Syn. II, II, p. 379 381; S. Garcia de
Siena G. Mendez, Acta Syn. II, II, p. 514 515; Th. Muldoon, Acta Syn. II, II, p. 820-821).
123
AADE, p. 362 (cf. A. Bea, Acta Syn. II, II, p. 664; R. Silva Heriquez (et al.), Acta Syn. II, II, p. 903; J. de
Barros Camara (et al.), Acta Syn. II, II, p. 391).
47
A idéia de colégio, enfim, se enriqueceu para a conexão instituída da nova relação
entre missão do Espírito em Pentecostes e a missão dos apóstolos, de modo que ambos
aparecem incumbidos do anúncio e da salvação.
124
As intervenções na aula conciliar sobre o terceiro capítulo “Do Povo de Deus e, em
especial, os leigos” duas questões gerais estiveram presentes na discussão: a definição de
leigo e a sua situação em relação à hierarquia e à Igreja.
Quem é o leigo? A comissão renunciou a dar uma definição “ontológica” do leigo,
para limitar-se a uma descrição “tipológica”: “uma parte dos padres reprovaram o esquema
por definir negativamente o leigo em oposição ao mesmo tempo ao clero e ao estado
religioso...”
125
e é este o conceito utilizado para a definição de leigo
126
no texto final da
constituição. A visão dessa nova proposta apresenta dois pontos de vista complementares,
mas não fundidos entre si:
A divisão entre clero e leigos liga-se às estruturas da Igreja; a divisão entre
religiosos e não-religiosos liga-se às estruturas dentro da Igreja; em outras palavras,
na eclesiologia não há lugar para uma visão tripartida (o clero, os religiosos e os
leigos), mas para duas visões bipartidas: pastores e leigos, religiosos e não-
religiosos.
127
Para propor uma definição do leigo, que fosse ao mesmo tempo teológica e
positiva, alguns padres limitavam a consideração da sua pertença ao Povo de Deus e sua
participação na missão deste; outros, ao invés, sublinhavam também a sua índole secular
com uma nota teológica própria, retirando dela o critério discriminante entre leigos e
religiosos: “o chamado à santidade diz respeito a todos os batizados e ao lado das
estruturas hierárquicas da Igreja, há lugar para as estruturas carismáticas na Igreja”.
128
Ao definir positivamente o leigo em relação aos ministros e aos religiosos, ou seja,
a sua índole secular, o texto propõe que o leigo é chamado por Deus (sendo que a sua
situação secular não é um puro dado sociológico) a viver no mundo e a de apresentá-lo
desde o seu interior.
124
Cf. Acta Syn. II, II, p. 909.
125
AADE, p. 298.
126
Cf. LG 31.
127
MOELLER, Charles. O fermento das idéias na elaboração da constituição. In: BARAÚNA, Guilherme. Op.
cit., p. 176.
128
MOELLER, Charles. O fermento das idéias na elaboração da constiutição. In: BARAÚNA, Guilherme. Op.
cit., p. 176.
48
A discussão sobre a natureza do leigo se ampliava naturalmente na questão das suas
relações com a hierarquia e com a totalidade do corpo eclesial. Alguns padres desenvolveram
o tema segundo duas diretivas de fundo:
Em primeiro lugar, reconstruir a unidade do Povo de Deus em todas as suas
componentes, quase contrapostas entre elas na tradicional doutrina status ecclesiae;
em segundo lugar, mostrar que na unidade do Povo de Deus, as relações entre os
fiéis e os ministros sagrados são regidos pelo seguinte princípio: a hierarquia não é a
fonte de cada gesto do corpo social, também se tem o direito de intervir em cada ato
da vida da Igreja em razão da suprema direção dela.
129
Aos leigos cabe a tarefa apostólica porque participam de toda a missão da Igreja; a
pregação e o ministério de Deus não é tarefa exclusiva da hierarquia: Cristo prega e
testemunha por meio de toda a Igreja.
Em vista disso, eram relevantes os motivos de levar a favorecer a elaboração de um
capítulo sobre o Povo de Deus, anterior daquele sobre a hierarquia: a unidade do Povo de
Deus na participação aos bens da salvação, a unicidade na missão participada por toda a Igreja
e a idéia do serviço aplicado à hierarquia.
Todo o povo é enviado por Cristo; tudo quanto continua a obra messiânica do
Senhor e tudo quanto participa, qualquer membro a seu modo, da função sacerdotal,
profética e real de Cristo; por isso também os leigos, a título de membros do Povo
de Deus, participam desta tríplice missão.
130
Na discussão sobre o futuro capítulo De populo Dei, alguns padres colocam à luz duas
importantes conotações do povo:
Em primeiro plano ele não é uma congregação de indivíduos, mas é uma koinonia
de pessoas e de comunidades eucarísticas; em segundo os confins do Povo de Deus,
ou seja, os confins da ação de Deus que reúne em Cristo os homens, não coincidem
com os confins da visibilidade da Igreja.
131
129
AADE, p. 301.
130
AADE, p. 303.
131
AADE, p. 306-307.
49
Os padres de tendência jurídica rebateram pontualmente todas as afirmações. É
melhor, segundo eles, conservar a ordem da matéria proposta no esquema, de modo que se
fale primeiro da hierarquia e depois do Povo de Deus.
Para sustentar essa idéia os padres de tendência jurídica tinham como base os
seguintes argumentos: primeiro, “... deve-se afirmar a distinção essencial que vigora na Igreja
entre hierarquia e o povo”
132
; em segundo,
Não se pode reconhecer aos leigos uma missão, como se o Povo de Deus fosse
mandado diretamente por Cristo ao mundo e não através da hierarquia. [...] Quanto
ao sacerdócio comum dos fiéis, melhor seria não dizer nem ao menos uma palavra.
Em cada caso se esclarece que se trata de um sacerdócio comum só em senso lato e
analógico a respeito do sacerdócio hierárquico, o qual somente merece este nome,
porque esse participa do dúplice poder sobre o corpo real e sobre aquele místico de
Cristo.
133
A revisão do capítulo sobre os leigos deveria levar em conta a novidade do capítulo
sobre o Povo de Deus. Mais que a distinção que de fato existe entre hierarquia e leigos, a
preocupação foi ver o trabalho apostólico de ambos em força do sacerdócio comum, seja na
ordem da santificação, como na ordem da doutrina, quanto na ordem da direção.
O novo esquema apresentava a fundamental igualdade entre todos os membros do
Povo de Deus, e já apresentava a Igreja como Koinonia e fraternitas. Na revisão
final, o número 32 da Lumen Gentium (De dignitate laicorum prout sunt membra
populi Dei), aprofunda a intenção da questão comunial, seja sublinhando a comum
participação na condição e na missão do Povo de Deus, seja propondo a diversidade
como elemento de unidade, uma vez que, essa provém da realização de um único
Espírito.
134
Nas intervenções sobre o quarto capítulo “a Santidade”, muitos padres o reprovaram
por apresentar a santidade em chave moral e individual, ao invés de apresentá-lo em chave
ontológica e eclesial. A santidade é em primeiro lugar um dom de Deus livremente infuso, é a
vital comunicação da Trindade operada do Pai por meio do Filho no Espírito.
132
AADE, p. 308.
133
AADE, p. 309.
134
AADE, p. 407.
50
A santidade não é só o fim dos membros da Igreja é também a realidade desta.
Portanto, a Igreja é fruto e não só instrumento de redenção.
“Assim, os padres descreveram o mistério da Igreja como a imagem da vida trinitária
na comunhão da caridade, porque o mistério da unidade do Povo de Deus consiste
essencialmente no amor”.
135
A discussão de maior interesse eclesiológico foi o aspecto sobre a natureza do estado
de perfeição:
A substância aceitada por todos os padres era que todos os cristãos são chamados a
perfeição da vida espiritual. [...] Os conselhos evangélicos pertencem
constitutivamente à Igreja, que deve ser toda virgem, pobre e obediente como Cristo.
A perfeição evangélica tem em todos os fiéis, e não só nos religiosos, uma igual
índole cristológica, soteriológica e eclesiológica, e o grau de aproximação e de união
a Cristo depende só da maior ou menor caridade.
136
Para a maioria dos padres a vida religiosa é a testificação do reino de Deus na
Caridade de Cristo: “tal testemunho é necessário à Igreja: de fato, como continuação da vida
do verbo encarnado, essa deve render visível e atestar ao mundo o seu espírito interior”.
137
Porém, “outros padres impugnaram esta visão e afirmaram que a especificidade do
estado religioso não consiste em ser um sinal de uma realidade comum a todos, mas na
participação a um grau diverso de santidade”.
138
O capítulo necessitava, portanto, corrigir aquilo que podia fazer entender que no duplo
estado dos fiéis existia uma idêntica santidade, definir que os conselhos evangélicos não são
simples meios de perfeição, mas a sua observância constitui por si um estado de imitação
mais perfeita de Cristo e de mais profunda conformação a ele.
A tarefa seria, então, conservar a distinção no Povo de Deus entre os três estados de
vocação: a hierarquia, os religiosos e os leigos.
A revisão final do quarto capítulo sobre a santidade da Igreja e a vocação universal à
santidade não deveria ser transferida no capítulo II, sobre o Povo de Deus, mas seguir o
capítulo IV sobre os leigos. E a partir desse deveria seguir o novo capítulo VI, sobre os
religiosos.
135
AADE, p. 311.
136
AADE, p. 313.
137
AADE, p. 313.
138
AADE, p. 313.
51
A decisão de inserir o quinto capítulo “a Bem-aventurada Virgem Maria mãe de Deus
no mistério de Cristo e da Igreja” no esquema De ecclesia deu-se na votação
139
de 29 de
outubro de 1963.
Segundo Acerbi os padres de tendência comunial tinham os seguintes motivos para
inserir o novo capítulo na constituição sobre a Igreja:
Os padres de tendência comunial tinham objetivado de mostrar a pertença de Maria
à Igreja, não só como uma antecipação na glória celeste, mas também sua condivisão
de comum vida cristã, na fé, na obediência e na busca da vontade de Deus; ao
mesmo tempo, estes queriam ter distinta a idéia da colaboração humana na obra de
Deus, na qual Maria teve o primeiro posto, da idéia de mediação, que é obra
exclusiva de Cristo, e a reconduzir, portanto, a ação de Maria ao interno da atividade
do corpo místico.
140
Ao findar a II Sessão Conciliar o esquema De ecclesia já estava praticamente pronto.
Atendendo as sugestões e resoluções aprovadas na aula conciliar, a Comissão Teológica que
trabalharia entre a II e a III Sessão modificou um pouco a ordem e a divisão geral do
documento, incluindo um capítulo especial sobre a dimensão escatológica da Igreja. Logo, o
esquema final acabou constando de oito capítulos.
141
Uma rica síntese, para uma noção global do novo esquema da constituição sobre a
Igreja, é oferecida por iniciativa do secretário-adjunto do Concílio Ecumênico Vaticano II, G.
Philips.
O autor divide o esquema De ecclesia em quatro partes de dois capítulos:
Primeira parte: os capítulos I e II falam do “mistério” da Igreja, tanto em sua dimensão
transcendental, capítulo I, como em sua forma histórica, capítulo II.
Segunda parte: os capítulos III e IV descrevem a “estrutura orgânica” da Igreja: a
hierarquia e os leigos.
139
A votação sobre a inserção ou não do capítulo “A Bem Aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus no mistério
de Cristo e da Igreja” no esquema De ecclesia obteve os seguinte resultados: Votantes: 2.193; placet: 1.114;
non placet: 1.074; votos nulos: 5. A maioria necessária era de 1.097. Portanto, com 17 votos a mais que o
necessário, ficou decidido a inserção do capítulo no esquema De ecclesia (cf. KLOPPENBURG,
Boaventura. As vicissitudes da Lumen Gentium na aula conciliar. In: BARAÚNA, Guilherme. Op. cit., p.
214).
140
AADE, p. 434.
141
Cf. KLOPPENBURG, Boaventura. As vicissitudes da Lumen Gentium na aula conciliar. In: BARAÚNA,
Guilherme. Op. cit., p. 212-213.
52
Terceira parte: reflete a “missão essencial” da Igreja, que é a santificação de todos os
seus membros, assunto do capítulo V, sendo a vida religiosa ligada justamente a essa
finalidade, o tema é especificado no capítulo VI.
Quarta parte: refere-se à dimensão escatológica da Igreja peregrina em tensão com a
Igreja celeste, capítulo VII, concluindo com o modelo da cristã Maria, capítulo VIII, ou seja,
aquela que dá esperança aos que peregrinam entre a Ascensão até a Parusia do Senhor.
142
1.2.5.5 A afirmação da eclesiologia de comunhão no texto final De ecclesia
O terceiro período conciliar é aberto em sessão solene por Paulo VI, no dia 14 de
setembro de 1964.
No seu discurso, o papa reafirmou a tarefa de autodefinição da Igreja e a exigência de
não se perder nada da doutrina formulada no Vaticano I. Para A. Acerbi dois pólos permeiam
o discurso do papa: “a exaltação da hierarquia e a afirmação da comunhão hierárquica, em
cujo âmbito encontra lugar o primado e se justifica a centralização da vida eclesial”.
143
Paulo VI em sua linha discursiva procura evitar que a doutrina sobre o colegiado
episcopal viesse contradizer as definições da Pastor Aeternus, uma vez que, ao findar o
segundo período havia tensões sobre o capítulo terceiro “a constituição hierárquica da Igreja
e, em especial, o episcopado”. Isto arrefeceu os ares da minoria conciliar, “que dava mostras
de inflexibilidade hostil à eclesiologia de comunhão”.
144
As votações dos capítulos primeiro, segundo, quarto, quinto e sexto foram votados no
período de 16 a 30 de setembro de 1964 com uma maioria superior a dois terços dos votos. O
capítulo sétimo precisava de elaboração e foi votado finalmente em 20 de outubro com
maioria superior a dois terços. O capítulo oitavo foi votado com maioria exigida somente em
29 de outubro de 1964.
O ponto de maior discussão girava em torno do colegiado episcopal suscitado pela
minoria juridicista. O capítulo foi fragmentado em 39 segmentos, cada qual votado
separadamente. A votação global do capítulo terceiro foi aprovada pela maioria exigida, ou
seja, superior a dois terços, na 91ª Congregação Geral, dia 30 de setembro de 1964. “A
142
Cf. PHILIPS, Gérard. Op. cit, p. 73-74.
143
AADE, p. 437.
144
ALBERIGO, Giuseppe. Op. cit., p. 419.
53
maioria teve que lutar até o fim do terceiro período conciliar para afirmar a eclesiologia de
comunhão”.
145
É que nos dias anteriores os padres da minoria articularam intensamente a
assembléia votante para conseguir, mediante a modalidade do voto placet iuxta modum, a
votação superior a um terço e assim forçar a Comissão Teológica a rever o texto do terceiro
capítulo.
Para os padres da minoria não há poder episcopal se não for a eles atribuído pelo papa:
Na leitura juridicista o erro sobre a colegialidade está em que a jurisdição episcopal
é dada pela própria ordenação episcopal, todavia, os papas afirmam constantemente
que só eles receberam o poder imediatamente de Cristo e os bispos o receberam
imediatamente do papa e só mediatamente de Cristo.
146
Já a idéia aprovada pela maioria dos padres está em primeiro lugar a sacramentalidade
episcopal recebida como graça na ordenação episcopal:
A idéia chave dos padres de tendência comunial é a inserção do bispo no colégio
pela consagração episcopal, a qual confere ao mesmo a plenitude do múnus de
santificar, ensinar e governar.
147
No dia 21 de novembro de 1964, foi promulgada a Constituição sobre a Igreja, Lumen
Gentium. No discurso o papa se compraz da relevância dada na constituição ao ofício
primacial, singular e universal confiado por Cristo a Pedro e transmitido ao Romano
Pontífice, o que assegurava que a autoridade episcopal na Igreja não aparecesse em contraste,
mas em justa e constitucional concórdia com o vigário de Cristo e chefe do Colégio
Episcopal.
A relação dos bispos com o papa faz do episcopado uma classe unitária, que encontra
no bispo de Roma não um poder estranho e diverso, mas o ponto comum de unidade.
Por ocasião desta idéia o papa confirma a realidade da comunhão episcopal na fé, na
caridade, na co-responsabilidade e na colaboração.
145
ALBERIGO, Giuseppe. Op. cit., p. 419.
146
AADE, p. 446.
147
AADE, p. 447.
54
A aspiração que a Constituição Dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium responde é a
vontade da Igreja de poder voltar-se sobre si mesma. Nessa aspiração dá um passo à frente,
vai ao essencial:
O ponto central é, pois, a palavra de Deus, plenamente atualizada e testemunhada
pela palavra humana, inserida no mundo em todas as suas dimensões e
historicamente condicionada. Palavra que só a fé revela o que pretende
verdadeiramente dizer. Não se trata, portanto, simplesmente de duma palavra escrita
e, por conseqüência, pertença ao passado; mas duma palavra atual: palavra viva do
Evangelho, da mensagem da salvação, da ação de Deus começada no Antigo
Testamento e definitivamente realizada em Jesus Cristo, na sua morte e ressurreição,
como acontecimento escatológico da salvação.
148
1.3 A ECLESIOLOGIA DE COMUNHÃO NA LUMEN GENTIUM
A Lumen Gentium representa, em primeiro lugar, a reconquista da consciência da
Igreja de ser “mistério de comunhão”
149
, ou seja, a comunhão de vida com Deus, na
humanidade de Cristo, que aproxima os fiéis na unidade da Trindade pelo vínculo do Espírito.
Enquanto mistério de comunhão da união pessoal de cada homem com a Santíssima
Trindade e com os outros homens, iniciada na fé e orientada para a plenitude
escatológica, a comunhão é um conceito que está na autocompreensão da Igreja.
150
Em segundo lugar, pela manifestação histórica da Igreja no plano salvífico a Igreja é
entendida como “Povo de Deus”.
151
Pelo batismo todos se tornam membros da Igreja e
participantes da tríplice missão de Cristo: profeta, sacerdote e rei.
Por último, pela sua visibilidade enquanto comunidade de fé, a Igreja também precisa
de uma organização hierárquica e juridicamente constituída, ou seja, há necessidade de uma
estrutura organizada.
152
148
KÜNG, Hans. A Igreja. Vol. 1. Lisboa: Moraes, 1969, p. 40.
149
LG 1-8.
150
SANTOS, Manoel Augusto. Aspectos teológicos de Deus como comunhão para fundamentar uma
eclesiologia de comunhão. Teocomunicação, v. 24, n. 105, 1994, p. 487.
151
LG 9-17.
55
Segundo A. Acerbi a constituição Lumen Gentium perpassa por três vias principais
para atingir a eclesiologia de comunhão: “pelo mistério da Igreja; pela comunhão do Povo de
Deus; pela comunhão hierárquica”.
153
Ou seja, os seus três primeiros e importantes capítulos.
"
"
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"
"
Com o termo “mistério” os padres compreendiam a designação da Igreja como “uma
realidade divina, transcendente e salvífica, que é revelada e manifestada de um modo
visível”.
154
"
Perpassando a evolução dos debates conciliares, desde o esquema preparatório,
passando pelo segundo esquema até chegar a atual redação percebe-se a passagem da
identidade entre corpo místico e Igreja romana para uma impostação cristológica. Da
impostação cristológica para aquela Trinitária do mistério da Igreja.
A consideração trinitária não só privilegia a comunhão mística, mas também faz sair
dos esquemas societários a proposição do lado visível da Igreja e do seu nexo com aquele
invisível.
“A Igreja é situada como o fim do desenho criador e salvífico do Pai; da obra
redentora do Filho e da comunicação do Espírito Santo, que aproxima na unidade o povo dos
redimidos”.
155
A conseqüência imediata desta nova impostação é que o fim das operações divinas não
é a instituição eclesiástica, mas é a Igreja toda: “assim a Igreja toda aparece como um povo
unido pela unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo”.
156
Em Cristo fonte de toda graça,
se dá a comunhão dos homens com Deus e é dele que a Igreja depende por inteiro em cada
aspecto de sua vida: “todos os homens são chamados a esta união com Cristo, que é a luz do
mundo, do Qual procedemos, por Quem vivemos e para Quem tendemos.”
157
A constituição também faz uma correlação cristológica-pneumatológica oferecendo
uma correta compreensão do Espírito Santo como sendo presença santificante da Igreja: “ao
152
LG 18-29.
153
AADE, p. 485.
154
Acta Syn. III, I, p. 170.
155
AADE, p. 487.
156
LG 4.
157
LG 3.
56
comunicar o seu Espírito, fez de seus irmãos, chamados de todos os povos, misticamente os
componentes de seu próprio Corpo”.
158
30504"C"eqowpjçq"fq"Rqxq"fg"Fgwu"
A Lumen Gentium afirma que o mistério de comunhão se dá na totalidade do Povo de
Deus:
Assim, este povo messiânico, embora não abranja atualmente todos os homens e por
vezes apareça como pequeno rebanho é, contudo, para todo gênero humano germe
firmíssimo de unidade, esperança e salvação. Constituído por Cristo para a
comunhão de vida, caridade e verdade, é por Ele ainda assumido como instrumento
de redenção de todos, e é enviado ao mundo inteiro como luz do mundo e sal da
terra (cf. Mt 5,13-16).
159
A comunhão do Povo de Deus é expressão viva de verdadeira fraternidade. Segundo
Acerbi o número nove da Constituição sobre a Igreja individua três linhas de força de
comunhão:
Em primeiro plano não está a estrutura hierárquica, mas a “condição cristã”, que é a
liberdade e a dignidade dos filhos de Deus. O dado eclesiológico fundamental não é
a instituição, mas é o homo novus in Spiritu, que tem por lei a caridade, tem como
chefe Cristo e como fim o Reino. Em segundo plano, a Igreja é a congregatio
fidelium, ou seja, é a comunidade congregada por Deus, de todos aqueles que olham
com fé a Jesus Cristo como autor da salvação e princípio da unidade e da paz. E,
terceira e última linha, este povo em sua totalidade é constituído sacramento da
unidade salvífica. Aquele que Cristo colocou no mundo como sinal de sua oferta de
salvação e o enviou a todos os homens.
160
Desta maneira compreende-se a Igreja de maneira mais clara e abrangente como
“sacramento”, ou seja, a Igreja é em Cristo o sacramento de união dos homens com Deus e
entre eles mesmos.
158
LG 7.
159
LG 9.
160
AADE, p. 509-510.
57
A comunhão da humanidade em Deus é fruto da obra realizada por Cristo e da obra
realizada pela Igreja. Com essa imagem a salvação é aberta para todo gênero humano: “a
reflexão sobre este problema conduz a pensar a Igreja como sacramento da salvação que Deus
opera nos confrontos do mundo inteiro, ou seja, como sacramentum mundi”.
161
Segundo o Vaticano II, a Igreja recebeu de Cristo a missão de evangelizar e,
consequentemente, levar a salvação a toda humanidade. O caráter de universalidade que
condecora o Povo de Deus é manifestação histórica do desígnio de Deus, pela qual se revela
a graça divina que está operando no mundo de modo oculto.
Segundo Acerbi, a redação final da Lumen Gentium distribuiu em ordem concêntrica
as diversas categorias de homens, segundo a própria posição diante da “unidade católica, na
qual toda a criação e todas as gerações humanas são recapituladas sob uma só cabeça: Jesus
Cristo”.
162
Todos os homens, pois, são chamados a esta católica unidade do Povo de Deus, que
prefigura e promove a paz universal. A ele pertencem ou são ordenados de modos
diversos quer os fiéis católicos, quer os outros crentes em Cristo, quer enfim todos
os homens em geral, chamados à salvação pela graça de Deus.
163
Se o Povo de Deus resulta numa comunhão de carismas, ou seja, resulta numa
comunidade vivificada pelo Espírito, esta exige, por sua vez, uma estrutura orgânica com
clara definição dos serviços, onde cada um pode exercer as iniciativas com criatividade e
partilhar os próprios dons. Neste sentido há de se falar de “comunhão hierárquica”.
30505"C"eqowpjçq"jkgtâtswkec"
Para Pié-Ninot, o Vaticano II faz uma síntese da passagem da eclesiologia jurídica
para a eclesiologia sacramental de comunhão partindo da fórmula “comunhão hierárquica”
164
,
na qual o substantivo “comunhão” expressa o caráter fraternal básico da Igreja, e o adjetivo
“hierárquica” sublinha sua conexão decisiva com o ministério pastoral:
161
AADE, p. 497.
162
AADE, p. 502.
163
LG 13.
164
LG 21.22
58
Se trata, sem sombra de dúvida, da fórmula eclesiologicamente mais significativa de
todo Vaticano II, típica formulação de compromisso que foi valiosa para o Concílio,
fazendo-se possível que a minoria conciliar aprovasse a constituição Lumen
Gentium.
165
A Lumen Gentium seguindo os escritos paulinos propõe, em vários momentos, o
Espírito Santo e a caridade como os princípios de auto-regulação dos carismas, os quais são
conduzidos na unidade para a edificação de todo o corpo de Cristo.
166
Nesta linha de pensamento surge a questão: qual é a função da hierarquia?
Para Acerbi a resposta pode dar-se em duas perspectivas: a unidade na diversidade
exige organização; todo poder constituído na Igreja traduz-se em serviço.
A primeira perspectiva fundamenta-se na seguinte afirmação:
A unidade do Povo de Deus na missão exige uma pluralidade de funções, de dons e
ministérios. Não é uma unidade amorfa, mas orgânica, vivificada interiormente pela
riqueza de carismas distribuídos pelo Espírito, em cujo seio a hierarquia desempenha
um papel específico.
167
A segunda perspectiva revela que a função da hierarquia reveste-se de serviço:
Constituídos pro allis, os pastores são os primeiros chamados para o ministério na
Igreja, de modo que os outros fiéis não são nos seus confrontos nem súditos, nem
senhores. Não se trata aqui nem de “oligarquia”, nem de “democracia”, mas cada
membro é chamado, por sua vez, a reconhecer nos outros a obra do Espírito; fazendo
isto, não diminui, nem suprime a dignidade e o dom que lhe é confiado pelo Senhor,
porque outra coisa não faz senão honrar nos outros aquele Espírito que age nele e
que o constitui numa específica posição de serviço.
168
Ainda dentro desta perspectiva há de se colocar o tema da “colegialidade”. Durante as
discussões conciliares aparecem duas visões distintas sobre a colegialidade: uma minoria
contrária à utilização do termo e com interpretações bem diferentes no que se refere ao ponto
de vista de comunhão.
165
PIÉ-NINOT, Salvador. Eclesiología. La sacramentalidad de la comunidad cristiana, p. 13.
166
Cf. LG 7; LG 32.
167
AADE, p. 516.
168
AADE, p. 519.
59
O problema colocado logo após o Concílio, por exemplo, por K. A. Fink, é afirmação
de que a doutrina da colegialidade pode ser aceita só em senso abstrato, mas insignificante em
suas conseqüências práticas:
Na ordem puramente abstrata não refutaremos como falsa a teoria da colegialidade
jurídica de instituição divina, segundo a qual o corpo episcopal tem o poder pleno,
supremo, universal, de exercício colegial em união com o pontífice romano,
recebido imediatamente de Deus e não do mesmo romano pontífice; porque se se
conjugar todas as limitações diante de tal poder, sobretudo que ele é pleno, supremo
e universal só em modo relativo, pelo fato que também no colégio o romano
pontífice conserva seu primado, que o papa não é obrigado nunca a um ato colegial e
que pode chamar outros, além dos bispos, para a dignidade episcopal. Mas cada um
vê que, com estes limites, a teoria da colegialidade jurídica falta, por assim dizer, de
interesse: de fato, toda a razão está em que, aos bispos se reconhece o direito de
participar colegialmente ao governo da Igreja universal e que o sumo pontífice fosse
tido em consciência a recorrer ao governo colegial junto com os bispos. Por isso, se
se coloca o primado pontifício com todas as suas conseqüências, a teoria da
“colegialidade jurídica” de direito divino, a nosso juízo, se torna na ordem teológica
inócua, na ordem científica e lógica difícil, na ordem jurídica inútil.
169
Segundo Acerbi a doutrina do colegiado não se restringe a esses limites:
A Lumen Gentium assume como central a consideração sacramental. A colegialidade
episcopal encontra em primeiro lugar uma expressão mística e sacramental na união
do ordo episcoporum pela participação aos mesmos carismas e as mesmas funções
sagradas, conferidas a todos os seus membros na ordenação episcopal. A unidade
ontológico-sacramental do episcopado, no qual é compreendido também o papa
como seu membro, é o fundamento de cada sucessiva manifestação da autoridade
colegial.
170
É verdade que a constituição sobre a Igreja, no entanto, afirma que não se dá colégio
sem papa, e não vice-versa. Porém as duas afirmações descritas por Fink, não podem ser
colocadas sobre o mesmo plano.
A primeira significa que a ordem episcopal não pode existir na sua máxima expressão
jurídica e não pode agir em tal circunstância se não dependente e em união com o papa.
A segunda, ao invés, não significa que o papa é o chefe da Igreja enquanto é o chefe
do colégio, mas que ele é membro da ordem episcopal e é ontologicamente ligado a unidade
169
FINK, Karl August. Para a história da constituição da Igreja. Concilium, vol. 8, n. 58, 1970, p. 951-961.
170
AADE, p. 528.
60
sobrenatural. Sacramentalmente é ligado na ordem, em cujo seio ele exercita a função de
bispo de Roma.
Isto também significa que a sua missão de primado não é exercida em dependência
jurídica do episcopado, mas em comunhão com este, que é depositário junto com o papa da
missão universal e da responsabilidade por toda a Igreja.
Quando o papa não existe, o corpo episcopal permanece na inteireza de seus poderes
sacramentais e das suas funções pastorais, somente não pode exprimir-se ao máximo em seu
nível jurídico.
Para Acerbi a primeira conseqüência que a Lumen Gentium tira da colegialidade
episcopal “não é o exercício do poder, mas da comum responsabilidade na missão de
evangelizar e dirigir a Igreja”.
171
A colegialidade manifesta uma verdadeira comunhão hierárquica, conseqüentemente,
uma nova visão eclesiológica, pois os caminhos para se chegar ao texto final da Lumen
Gentium demonstram que a essência da Igreja não se exprime em atos jurídicos, mas na
comunhão eclesial.
À guisa de conclusão, o presente capítulo revela que, na escalada da Lumen Gentium
realizada por A. Acerbi, chega-se ao seu cume perseguindo a eclesiologia de comunhão.
Ao chegar ao cimo encontram-se, na verdade, dois horizontes a contemplar: de um
lado, vislumbra-se a consciência da Igreja de ser a mystica communio, ou seja, a comunhão de
vida com Deus, através da humanidade de Cristo, que por sua vez, aproxima os fiéis na
unidade da Trindade pelo vínculo do Espírito; por outro lado, vislumbra-se um novo patamar:
a história da salvação. Faz-se necessário continuar o caminho, pois o espírito da Lumen
Gentium revela que o mistério da Igreja tem sua expressão visível na vida real de um povo
estruturado e organizado.
Será preciso superar o caminho da eclesiologia jurídica. Necessita-se encontrar uma
nova trilha. Acerbi chega a uma perspectiva da comunhão sacramental da comunidade cristã,
mas faltando um aprofundamento maior de sua historicidade. A Constituição dogmática sobre
a Igreja, oferece um novo e importante capítulo: “Povo de Deus” que se tornou paradigma
para interpretar a Igreja caminhante rumo à plenitude da história.
171
AADE, p. 529 (cf. LG 23; LG 24; LG25; também a Nota Explicativa Previa, anexada na Constituição sobre
a Igreja, oferece uma interpretação objetiva sobre o tema do colegiado a partir de alguns modos do
concílio).
61
Em terras latino-americanas, este modelo encontrou uma recepção sem igual: sem
sombras de dúvida o novo Povo de Deus do continente da esperança encontrou identificação
com esta imagem trazida pelo ânimo dos padres conciliares.
Em algumas situações do pós-Concílio aconteceram interpretações unilaterais e
sociológicas, em outras, temores e até contraposição à eclesiologia de comunhão. O que
aconteceu na recepção da eclesiologia pós-conciliar? Que significado ou interpretação
recebeu a eclesiologia de Povo de Deus no contexto latino-americano? No próximo capítulo
procura-se responder a estas questões a partir da eclesiologia desenvolvida por José Comblin.
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62
4"C"GENGUKQNQIKC"RQXQ"FG"FGWU"GO"LQUÖ"EQODNKP"
José Comblin compreende o momento atual da Igreja, como um momento de crise,
descrevendo-o como a “noite escura”
172
, e a superação está na esperança de um “retorno aos
princípios do Vaticano II”.
173
Para concretizar tal ideal não se pode voltar simplesmente aos
textos conciliares, mas é necessário “voltar à inspiração básica que presidiu todo o
desenvolvimento dos trabalhos conciliares”.
174
De fato, foi num verdadeiro gesto profético, espontâneo e inspirador que João XXIII
anunciou, no dia 25 de janeiro de 1959, a convocação de um Concílio Ecumênico. Foi uma
atitude surpreendente e inesperada para aquele que devia ser apenas um Papa de transição. Em
seu discurso de abertura, o Papa, explicita a origem e a causa do Concílio Ecumênico
Vaticano II:
No que diz respeito à iniciativa do grande acontecimento que agora se realiza, baste,
a simples título de documentação histórica, reafirmar o nosso testemunho humilde e
pessoal do primeiro e imprevisto florescer no nosso coração e nos nossos lábios da
simples palavra “Concílio Ecumênico”. Palavra pronunciada diante do sacro Colégio
dos Cardeais naquele faustíssimo dia 25 de janeiro de 1959, festa da Conversão de
São Paulo, na sua Basílica. Foi algo de inesperado: Uma irradiação de luz
sobrenatural, uma grande suavidade nos olhos e no coração. E, ao mesmo tempo um
fervor, um grande fervor que se despertou, de repente, em todo o mundo, na
expectativa da celebração do Concílio.
175
O Concílio provoca a Igreja ao diálogo consigo mesma, com as outras Igrejas e
mesmo com as outras religiões e o mundo dos não-crentes, e, ao mesmo tempo, a dispõe a um
aggiornamento
176
às exigências do mundo de hoje.
Segundo Karl Rahner “o aggiornamento é, antes, uma primeira preparação, há muito
iniciada, no sentido de poder a Igreja enfrentar, resoluta, uma problemática de vida ou morte,
no mundo de amanhã”.
177
172
CJPD, p. 5.
173
CJPD, p. 5.
174
Comblin considera “a inspiração básica” a atitude de João XXIII quando, no dia 25 de janeiro de 1959,
anuncia imprevisivelmente um Concílio Ecumênico (cf. CJPD, p.6).
175
JOÃO XXIII. Discurso de abertura do Concílio Vaticano II. In: COSTA, Lourenço (Org.). Documentos do
Concílio Ecumênico Vaticano II: 1962-1965, p. 23.
176
Aggiornamento exprime o aspecto encarnacionista do mistério da Igreja, a sua historicidade, acentuando a
necessidade de atenção aos sinais dos tempos. Trata-se de uma abertura crítica ao mundo de hoje tendo
como critério o evangelho (cf. LORSCHEIDER, Aloísio. Linhas mestras do Concílio Vaticano II. In:
LORSCHEIDER, Aloísio [et al.]. Vaticano II: 40 anos depois. São Paulo: Paulus, 2005, p. 41).
63
Para Comblin a Igreja, sensível ao novo e a nova forma do homem pensar, viu-se na
necessidade de dar uma nova resposta à sua missão, tomando uma posição de abertura e de
empenho para apresentar o Evangelho a esse tempo e a esse homem.
Na abertura oficial do Concílio Ecumênico Vaticano II, o Papa rejeita a visão
pessimista sobre o mundo atual: “em primeiro lugar, é necessário discordar desses profetas da
desgraça”.
178
Em segundo lugar o papa proclama que agora a esposa de Cristo prefere fazer uso do
remédio da misericórdia mais do que da severidade. Por isso o Concílio não devia
pronunciar nenhuma condenação, nem se preocupar em definir ainda mais
explicitamente o depósito da fé.
179
Para Comblin a preocupação do Vaticano II era de interpretação correta no
desenvolvimento das definições do Concílio: “o problema agora era o revestimento necessário
para que a humanidade de hoje pudesse entender e receber a mensagem”.
180
Este revestimento sintetiza a eclesiologia do Vaticano II: “pois nele encontramos
apenas textos: é preciso, portanto, que a vida confirme a verdade!”
181
O resgate do tema Povo de Deus pelo Concílio resulta numa mudança significativa no
modo de conceber a natureza da Igreja. O conceito ocupa o importante lugar de ser o segundo
capítulo na Constituição Dogmática Lumen Gentium: “... voltar ao Vaticano II seria reabilitar
o conceito Povo de Deus e coloca-lo no centro da eclesiologia”.
182
Na compreensão de Comblin, este conceito está sendo deixado de lado do discurso
eclesiástico e sendo substituído pelo conceito de Comunhão, sobretudo, a partir do Sínodo
Extraordinário dos Bispos, acontecido no ano de 1985: “há os que acham que a finalidade
principal, praticamente única, do Sínodo Extraordinário de 1985 [...] foi o de suprimir o
conceito de Povo de Deus”.
183
177
RAHNER, Karl. Vaticano II: um começo de renovação. São Paulo: Herder, 1966, p. 39.
178
JOÃO XXIII. Gaudet Mater Ecclesia. In: KLOPPENBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II. Vol. IV.
Petrópolis: Vozes, 1965, p. 306-312.
179
CJPD, p. 7.
180
CJPD, p. 7
181
Para Yves Congar o Concílio Vaticano II representou uma verdadeira pneumatologia onde a verdade dos
textos é revelada através da vida (cf. CONGAR, Yves. El Espíritu Santo. Barcelona: Herder, 1991, p. 201).
182
CJPD, p. 9.
183
CJPD, p. 9.
64
“A concepção eclesiológica pré-conciliar dava ecos de a Igreja ser uma sociedade
desigual”.
184
Logo, a retomada do conceito Povo de Deus, significa para Comblin, a passagem
de uma concepção de Igreja como sociedade desigual a uma Igreja constituída de um único
povo com diferentes serviços: “se quiséssemos numa palavra exprimir o que trouxe o
Vaticano II à Igreja, precisaríamos dizer: lembrou à Igreja que ela é Povo de Deus”.
185
Observa-se na eclesiologia em análise que identificado ao conceito “Povo de Deus”
está a concepção da Igreja como “povo dos Pobres”: “os conceitos de ‘povo’ e de ‘pobres’ são
solidários e correlativos”
186
, este conceito, no seu conteúdo, é sinônimo de “Igreja dos
Pobres” é um tema transversal em toda a abordagem eclesiológica proposta por Comblin.
Portanto, antes de analisar a história do conceito de “Povo de Deus” – tarefa que ocupa
os quatro primeiros capítulos da obra de José Comblin
187
faz-se necessário clarificar o
conceito de Povo de Deus.
2.1 O CONCEITO DE POVO DE DEUS
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"
"
A expressão “Povo de Deus” é identificada como o povo que se reúne em torno do
reconhecimento do Deus único, “subentendendo como uma grande família da qual Deus é o
gô’el, ‘redentor’; (especialmente no Pentateuco e Deutero-Isaías)”.
188
No hebraico bíblico os
termos ‘am e gôy são traduzidos respectivamente por “povo” e “nação”. O termo ‘am remete
a uma comunidade humana precisa, fundada em relações de aliança familiares ou políticas. Já
o termo gôy menos freqüente, utilizado no plural, serve para designar “as nações” numerosas
espalhadas pela terra.
184
ALMEIDA, Antônio José. Op. cit.,, p. 80.
185
CJPD, p. 9.
186
CJPD, p. 11.
187
“Os quatro primeiros capítulos foram históricos. Refizemos de forma bastante resumida, a história do
conceito de Povo de Deus no Vaticano II – na preparação, na definição e na recepção” (CJPD, p. 133).
188
LORENZI, Loreno. Chiesa. In: ROSSANO, Pietro (et al.). Nuovo dizionario di teologia bíblica. 7. ed..
Milano: San Paolo, 2001, p. 250.
65
Israel, portanto, é normalmente designado como ‘am. Mas também pode ser
chamado de gôy quando seu comportamento o aproxima das outras ‘nações’... É
possível às vezes sustentar que Israel é uma ‘nação’ da qual Deus faz um ‘povo’ (Ex
33,13) e que sua descendência de Abraão será uma grande ‘nação’ (Gn 12,2). O
grego do LXX e o do NT respeitaram em geral a distinção do hebraico, utilizando
laos para verter ‘am, e ethnos para gôy. Mas sua tendência é reforçar a identificação
do laos com o Povo de Deus (Israel nos LXX; às vezes para Lucas os pagano-
cristãos [At 15,14] ou os judeu-cristãos [At 18,10]).
189
A palavra laós, torna-se assim, o termo técnico empregado para identificar Israel como
povo de Javé diferenciado das demais nações. Israel é o povo eleito, escolhido e pertencente a
Deus (Ex 19,5).
A noção de Povo de Deus exprime continuidade da Antiga Aliança com o povo da
Nova Aliança, ou seja, expressa a continuidade da Igreja com Israel.
Rudolf Bultmann compreende a comunidade dos discípulos de Jesus como
continuidade da comunidade de Deus do Antigo Testamento chamada qahal:
Esse título designa Israel, por um lado, como o Povo de Deus e, por outro, já se
torna um título escatológico [...] Quanto ao conteúdo, em todo caso, ekklesia
(comunidade de Deus), corresponde a qahal.
190
A ponte da Igreja com Israel é um valor que pertence ao conceito bíblico de Povo de
Deus e que determina o “estatuto religioso desse povo”
191
em quatro eixos: primeiro, a idéia
de eleição e chamamento (ecclesia é igual a convocatio). A eleição, na Escritura não é um
privilégio, vem sempre acompanhada por um serviço a prestar e uma missão a cumprir. É-se
escolhido para o cumprimento de um desígnio de Deus que transcende a pessoa eleita;
segundo, explicita a idéia, tão rica, da Aliança; terceiro, a idéia de consagração a Deus; quarto
a idéia das promessas: não apenas as promessas de assistência, mas ainda de cumprimento e
execução, donde resulta uma tensão para o futuro e finalmente, para a escatologia.
A fé do crente é manifestada em sua incorporação na comunidade (At 2,41). A
comunidade constituída pelos chamados se chama Igreja, ou seja, uma congregação dos fiéis
189
DURAND, Xavier. Povo. In: LACOSTE, Jean-Yves. Op. Cit.,, p. 1417.
190
BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Teológica, 2004, p. 80.
191
CONGAR, Yves. A Igreja como Povo de Deus. Concilium, n. 1, 1965, p.14.
66
enquanto criação da palavra: “isso é o que significa exatamente ekklesía e sua transcrição
latina ecclesia: Igreja é a comunidade daqueles chamados e reunidos continuamente”.
192
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"
"
2.1.2.1 Antigo Testamento
Israel é um povo. No entanto, ele se distingue totalmente dos traços dos outros povos,
pois tem consciência de ter herdado uma promessa e uma aliança desde o Pai Abraão.
Considera-se escolhido por Deus e relembra a cada ano, já na terra prometida, a sua libertação
e o cumprimento da promessa e da aliança do Sinai.
Israel é um povo convocado a se reunir em torno dos grandes eventos de sua história, e
os ritos comemorativos podem ser retrospectivamente introduzidos na narrativa do evento
mesmo (Páscoa, Sinai, travessia do Jordão).
A capacidade de reunião se exprime na noção de qahal, tal como aparece, por
exemplo, em Ex 12,6 (a Páscoa). Ela se inscreve em lugares e momentos (santuários e
festas), mas requer marcas que também diferenciam em relação aos outros povos. Qahal é,
pois, uma noção em parte ritual que exige condições precisas, como a circuncisão (Gn 17, 9-
14; Ex 12, 44.48), e impõe critérios de genealogia (Dt 23,3) ou de pureza (Nm 19,20). Como
necessidade da vida do povo a reunião é atualizada pela liturgia do Templo, pelas festas de
peregrinação, pela escuta e pelo ensino da Lei (Ne 8).
O povo de Israel é o povo escolhido por Deus, ele é o povo eleito: assim constituído
por iniciativa gratuita de Deus: “pois tu és um povo consagrado a Iahweh teu Deus; foi a ti
que Iahweh teu Deus escolheu para que pertenças a ele como seu povo próprio, dentre todos
os povos que existem sobre a face da terra” (Dt 7,6).
A qahal é, assim, a comunidade cultual e santa. Convocada por Deus para o culto ela
relembra, através de suas leis e preceitos, aquela comunidade estabelecida no Sinai.
2.1.2.2 Novo Testamento
192
FRIES, Heinrich. Teologia fundamental. Barcelona: Herder, 1987, p. 407.
67
A palavra “Igreja” tem sua origem no termo grego ekklesía, o qual traduz
“covocação”, do verbo chamar (ek-kaléo), significando a “assembléia dos chamados”. A
partir de Pentecostes os discípulos de Jesus formam o novo Povo de Deus que guarda as
características da reunião (ekklesia traduz qahal) e da eleição. O termo pelo qual os cristãos
são designados coincide com a reunião do povo, mas também significa “...o apelo de Deus
que convoca esta assembléia (cf. Ex 12,16; Lv 23,3; Nm 29,1). A Igreja, Povo de Deus (cf.
Ap 2,10), é o Israel de Deus (Gl 6,16), convocado por Deus, chamados por ele (cf. 1Cor 1,2;
Rm 1,7)”.
193
Igreja, portanto, equivale ao termo hebraico qahal (cf. Dt 4,10), pois Israel é a
convocação de Iahweh, comunidade de Deus, conhecido como povo eleito e que em Cristo se
torna o novo povo eleito da verdadeira e eterna aliança selada pelo Verbo Encarnado em sua
cruz e ressurreição:
O “Povo de Deus” torna-se assim uma imagem fundamental da realidade da Igreja,
abrindo-lhe uma perspectiva histórica e escatológica: este povo está em marcha na
história rumo a um mundo novo. É em primeiro lugar um povo de batizados,
incessantemente enviado e reunido para existir diante de Deus.
194
A Igreja vista nesta perspectiva é o novo povo da Aliança. É Cristo quem inicia a
pregação do Reino, reúne os discípulos, escolhe os doze, os instrui sobre o mistério do Reino
e as condições do seguimento.
A Igreja nasce no mistério da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo e é
manifestada pela doação do Espírito Santo. Pelo Espírito, a comunidade dos discípulos se faz
novo Povo de Deus. Inicialmente o grupo era pequeno: “naqueles dias Pedro levantou-se no
meio dos irmãos - o número das pessoas reunidas era de mais ou menos cento e vinte...” (At
1,15).
A partir de Pentecostes (cf. At 2) outros membros vão ingressar na comunidade dos
discípulos de Jesus tendo em vista o mesmo objetivo: a própria santificação. E, também, a
partir da pregação apostólica muitos israelitas se converteram: “ouvindo isto, eles sentiram o
193
MONLOUBOU, Louis, Igreja. In: MONLOUBOU, L.; DU BUIT, F. M. Dicionário Bíblico Universal, p.
369.
194
DURAND, Xavier. Povo. In: LACOSTE, Jean-Yves. Op. cit., p. 1419.
68
coração traspassado e perguntaram a Pedro e aos demais apóstolos: ‘irmãos o que devemos
fazer?’ Respondeu-lhes Pedro: ‘arrependei-vos, e cada de vós seja batizado em nome de Jesus
cristo para remissão de vossos pecados. Então recebereis o dom do Espírito Santo” (At 2, 37-
38).
Para alcançar tal meta a fotografia da primeira comunidade revela-se “assídua ao
ensinamento dos apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações” (At 2, 42). A
multidão dos fiéis encontra sua unidade de fé e de partilha ao redor dos mesmos pastores (At
4, 32-35).
São Paulo em suas exortações apostólicas também apela à unidade: “há um só Senhor,
uma só fé, um só batismo” (Ef 4,5); “já que há um único pão, nós, embora muitos, somos um
só corpo, visto que participamos de um único pão” (1 Cor 10,17).
O conceito de Povo de Deus identifica a Igreja do tempo presente com a Igreja
nascente chamada o novo Povo de Deus. Esta autoconsciência é explicitada no Vaticano II
pela seguinte afirmação:
Foi Cristo quem instituiu esta nova aliança, isto é, o novo testamento em seu sangue
(1 Cor 11,25), chamando entre os judeus e gentios um povo, que junto crescesse
para a unidade, não segundo a carne, mas no Espírito, e fosse o novo Povo de
Deus.
195
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O termo “Povo de Deus” até o século IV é frequentemente empregado pela Patrística
para se referir a Igreja. O período não faz uma abordagem eclesiológica, pois para os Padres
da Igreja não há o desenvolvimento unitário entre o Antigo e Novo Testamento como nos é
possível obter hoje pela exegese bíblica.
Na perspectiva da Patrística a imagem Povo de Deus tem um papel importante para
significar a natureza da Igreja. Encontramos na Epístola de Barnabé a referência da Igreja
como o povo novo:
195
LG 9.
69
Os profetas que tinham a graça dele (Jesus Cristo), profetizaram a seu respeito. E ele
a fim de destruir a morte e mostrar a ressurreição dos mortos, teve que se encarnar e
sofrer, a fim de cumprir a promessa feita aos pais e preparar para si povo novo e
demonstrar, durante sua estada na terra, que para ele mesmo que julgaria, depois de
ter realizado a ressurreição
.
196
Ainda na Epístola de Barnabé encontramos a prefiguração do povo futuro e uma
reflexão aprofundada sobre a temática da Aliança:
Ele levou Efraim e Manasses, querendo que Manasses, o mais velho recebesse a
bênção. José conduziu para a mão direita de seu pai Jacó. No entanto, Jacó viu em
espírito a prefiguração do povo futuro. E o que disse ele? “E Jacó cruzou as mãos, e
colocou a direita sobre a cabeça de Efraim, o segundo e o mais novo, e o abençoou.
Então José disse a Jacó: “desvia tua mão direita e coloca-a sobre a cabeça de
Manasses, pois ele é o meu filho primogênito”. Então Jacó disse a José: ‘Eu sei meu
filho, eu sei. O mais velho servirá ao mais jovem, e é este que será abençoado’.”
Vede a quem ele se referia ao decidir que este povo seria o primeiro e o herdeiro da
Aliança.
197
A mesma também compreende os discípulos de Jesus como os destinatários da
Aliança:
Moisés, portanto, a recebeu, mas eles não foram dignos dela. Aprendei como nós a
recebemos. Moisés a recebeu como servo, mas o próprio Senhor, depois de sofrer
por nós, no-la entregou como povo da herança. [...] De fato, está escrito que o Pai
lhe ordenou libertar-nos das trevas, a fim de preparar para si um povo santo.
198
Inácio de Antioquia não usa a expressão “Povo de Deus”, mas fala da Igreja referindo-
se ao cristianismo como católica: “onde aparece o bispo, aí esteja a multidão, do mesmo modo
que onde está Jesus Cristo, aí está a Igreja católica”.
199
A partir de Santo Irineu, há uma mudança na teologia da Patrística do conceito de
Igreja no Plano da História da Salvação para um plano mais espiritual:
196
PADRES APOSTÓLICOS. Carta de Barnabé: 5,6-7. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1995, p. 292.
197
Ibidem: 13, 5-6, p. 307.
198
Ibidem: 14, 4.6, p. 308.
199
Idem. Inácio aos Esmerniotas: 8,2, p. 118.
70
Não há mais referência de Israel como povo eleito, mas como povo rejeitado. [...] O
desenvolvimento de uma ‘teologia da palavra revelada’ conduz à substituição, cada
vez maior, do conceito histórico de povo para uma concepção teológico-salvífica.
200
Em Santo Agostinho se dá a passagem da eclesiologia do plano histórico ao espiritual,
há uma clara substituição do conceito histórico-salvífico de Povo de Deus para o conceito
jurídico-romano de populus:
Assim, no século V, desaparece, quase por completo, o genuíno conceito histórico-
salvífico de Povo de Deus, não havendo mais a preocupação de relacionar a
comunidade cristã com o povo eleito do Antigo Testamento.
201
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"
"
A importância dada ao tema Povo de Deus no Concílio Vaticano II se revela também
pela sua posição na constituição Lumen Gentium: é o segundo capítulo. O tema Povo de
Deus, sobretudo colocado no lugar em que se acha na Lumen Gentium era o símbolo de toda a
mudança que o Concílio Vaticano II queria imprimir à Igreja: “o novo capítulo não é só
importante pelo conteúdo: é-o até pelo lugar que lhe é assinalado”.
202
A revista Concilium, por um lado, caracterizada pela finalidade de transmitir aos fiéis
as instruções do Vaticano II e, por outro, motivada a continuar a construir sobre ele, inicia a
sua reflexão com o artigo “a Igreja como Povo de Deus”, de Yves Congar, confirmando a
importância do lugar ocupado pelo conceito de Povo de Deus:
No esquema De Ecclesia, podia ter-se seguido esta disposição: Igreja Mistério,
Hierarquia e Povo de Deus em geral. Nesta hipótese, não se teria dado relevo à
terceira intenção acima mencionada, que era expor aquilo que implica a qualidade
comum de membro da Igreja, antes mesmo daquilo que diferencia, por motivo de
função ou de estado de vida. [...] Mas esta é a ordem que se seguiu: Mistério da Igreja,
Povo de Deus, Hierarquia. Pôs-se assim como valor primeiro a qualidade de discípulo,
a dignidade inerente à existência cristã como tal, ou a realidade de uma ontologia da
200
HACKMANN, Geraldo. A amada Igreja de Jesus Cristo: manual de eclesiologia como comunhão orgânica.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003, p. 160.
201
Ibidem, p. 161.
202
CONGAR, Yves. A Igreja como Povo de Deus. Concilium, p. 9.
71
graça, e em seguida, dentro desta realidade, uma estrutura hierárquica de organização
social.
203
A escolha do tema Povo de Deus expressa a genuína forma de conceber a Igreja em
suas origens, pois a eclesiologia anterior ao Concílio Vaticano II “... estava fundada no
conceito de societas perfecta [...] Os padres conciliares queriam apagar esta imagem e voltar
às fontes da Igreja, às fontes bíblicas e patrísticas”
204
dando ênfase a caminhada histórica da
Igreja enquanto caminha neste mundo.
Diante da análise da história, Comblin percebe uma compreensão da Igreja
demasiadamente verticalista e manifesta sua posição na interpretação da eclesiologia do
Vaticano II:
A eclesiologia do Vaticano II quer ser uma reação radical contra essas eclesiologias
que esquecem completamente a realidade humana e tratam os seres humanos como se
fossem objetos nas mãos de um poder hierárquico quase divinizado.
205
Todavia deve-se compreender que a expressão Povo de Deus não elimina a hierarquia,
antes para ser realmente Povo de Deus a supõe necessariamente. É um povo hierarquizado, e
o ministério ordenado tem aí um lugar específico e desenvolve uma tarefa original.
Todos os membros são ativos, chamados a edificar o Corpo Místico de Cristo e a
trabalhar pela salvação do mundo.
Na prática o conceito Povo de Deus, expressa a unidade da Igreja. A Lumen Gentium
faz entender que a Igreja toda é Povo de Deus:
Este povo messiânico tem por cabeça Cristo, [...] Tem por condição a dignidade e a
liberdade dos filhos de Deus, [...] Sua lei é o mandamento novo de amar como o
próprio Cristo nos amou (cf. Jo 13,34). Sua meta é o Reino de Deus, iniciado pelo
próprio Deus na terra, [...] Assim este povo messiânico, embora não abranja
atualmente todos os homens e por vezes apareça como pequeno rebanho é, contudo,
para todo gênero humano germe firmíssimo de unidade, esperança e salvação.
206
203
CONGAR, Yves. A Igreja como Povo de Deus. Concilium, p. 9.
204
CJPD, p. 20.
205
As eclesiologias referidas são aquelas que compreendem a Igreja como societas perfecta. Estão destacadas
as de Egidio de Roma (séc. XIII) ; a eclesiologia de Journet (cf. CJPD, p. 25 e 26).
206
LG 9.
72
Por que era necessário inserir um capítulo sobre o “Povo de Deus” no esquema De
ecclesia? De um lado, era imprescindível um capítulo da Lumen Gentium que tratasse da
Igreja como Mistério, da sua realidade espiritual – capítulo primeiro; por outro, era necessário
tratar da realidade itinerante da Igreja enquanto comunidade visível e humana, mas que
caminha para a Jerusalém celeste.
Para o teólogo Yves Congar o conceito de Povo de Deus traz consigo tal densidade,
uma tal seiva que dá três perspectivas da expressão “Povo de Deus” para significar a
realidade que é a Igreja:
Primeiro, demonstrar também a Igreja construindo-se na história humana; segundo,
entendendo-se, adentro da humanidade, a diversas categorias de homens
desigualmente situadas em relação à plenitude de vida que se encontra em Cristo e
do qual é sacramento a Igreja por ele instituída; por último, expor o que é comum a
todos os membros do Povo de Deus, antes que intervenha qualquer distinção entre
eles, em razão de ofício ou de estado, no plano da dignidade da existência cristã.
207
A Igreja não é uma realidade separada da humanidade: “na linguagem cristã, ‘povo’
manifesta o dinamismo de conjunto da Igreja...”
208
, do cristianismo, e, consequentemente a
Igreja está profundamente ligada à humanidade.
A manifestação reveladora do Verbo Encarnado “... é de fato a solidariedade humana
em Cristo o âmago do fenômeno Igreja: Santo Tomás de Aquino chama à graça santificante
uma gratia fraterna, uma graça que estabelece fraternidade”.
209
Se há fronteiras entre Igreja e humanidade estas podem ser aproximadas. A busca da
unidade entre todos os seres humanos é um desejo dado pela Revelação. Chegar a esta meta é
uma resposta ao amor gratuito de Deus que vem por primeiro ao encontro da pessoa.
Hoje, mais do que em outros tempos o homem descobriu que vive num habitat
comum, e sente a necessidade urgente de cuidar da casa comum como dom transcendental:
A koinonia querida por Deus ou a comunidade entre todos os homens é um dom de
Deus: através da absoluta comunicação que Deus faz de Si mesmo aos homens, e
nisso revela simultaneamente os homens a si mesmos, a saber, como “Povo de
Deus”. [...] A communio entre todos os homens é a ressonância, imanente à nova
história do mundo, da communio transcendente com Deus vivo: a unidade querida
207
CONGAR, Yves. A Igreja como Povo de Deus. Concilium, p. 8.
208
DURAND, Xavier. Povo. In: LACOSTE, Jean-Yves, Op. cit., p. 1419.
209
SCHILLEBEECKX, Edward. Igreja e humanidade. Concilium, n. 1, 1965, p. 51.
73
por Deus para a humanidade é nada menos que a communio sanctorum, a
comunidade dos homens santificados.
210
A Lumen Gentium apresenta a Igreja simultaneamente como realidade visível e
espiritual e há forte analogia na relação entre mistério e realidade visível e histórica da Igreja:
O único Mediador Cristo constitui e incessantemente sustenta aqui na terra Sua santa
Igreja, comunidade de fé, esperança e caridade, como organismo visível pelo qual
difunde a verdade e a graça a todos. Mas a sociedade provida de órgãos hierárquicos
e o corpo místico de Cristo, a assembléia visível e a comunidade espiritual, a Igreja
terrestre e a Igreja enriquecida de bens celestes, não devem ser consideradas duas
coisas, mas formam uma só realidade complexa em que se funde o elemento divino
e humano
.
211
Quando a reflexão teológica conseguiu ultrapassar o ponto de vista
predominantemente jurídico e passou a deter-se mais na busca, no conjunto das Escrituras, de
como se processava o desígnio de Deus situou-se a realidade da Igreja na perspectiva mais
ampla da história da Salvação e a concebê-la como o Povo de Deus, tal como existe nos
tempos messiânicos. Estava isto ligado à redescoberta da natureza ou da dimensão histórica
da Revelação e da instituição salvífica, redescoberta que culmina com a escatologia.
Nesta mesma perspectiva “... se compreendeu de uma maneira nova, que a Igreja não é
apenas instituição, um conjunto de meios objetivos de graça, mas que também é composta por
homens chamados por Deus e que respondem ao chamamento”.
212
Uma das grandes contribuições da teologia contemporânea está na sua dimensão
escatológica, que implica o sentido da história: “o já agora”; e do desígnio de Deus, que leva
tudo para a plenitude: “o ainda não”. Neste sentido a retomada do conceito de Povo de Deus
“retoma a consciência do seu caráter messiânico e de portador da esperança de realização total
do mundo em Jesus Cristo”.
213
Comblin compreende que a imagem de Povo de Deus introduz algo de dinâmico e de
novo na Igreja, revelando a única realidade que é a Igreja de Cristo, porém em sua
compreensão esta ainda não foi aplicada concretamente:
210
SCHILLEBEECKX, Edward. Igreja e humanidade. Concilium, p. 52.
211
LG 8.
212
CONGAR, Yves. O Povo de Deus. Concilium, p. 10.
213
Ibidem, p. 14.
74
A teologia do Povo de Deus foi a grande novidade do Concílio Vaticano II. Não foi
aplicada ainda - nem mesmo em todos os documentos do Concílio – de modo
conseqüente. Mas essa situação, longe de justificar um abandono da doutrina, exige
desenvolvimento ulterior. A teologia do Povo de Deus deve entrar em todos os
capítulos da eclesiologia porque é a chave que permite relacionar o divino e o
humano na Igreja.
214
2.2 HISTÓRIA DO CONCEITO DE POVO DE DEUS
A eclesiologia surge como disciplina autônoma no século XIV devido às disputas
entre poder papal e o império. Poder clerical versus poder laical se queriam supremos.
Os primeiros tratados de eclesiologia “... nascem - no contexto da luta entre poder
papal e poder régio ou imperial – sob o signo da visibilidade e do poder, com tendência
hierocrática e papalista”.
215
A eclesiologia nasceu inspirada nos textos canônicos do século XI, por isso nasceu
como eclesiologia jurídica. A Igreja é entendida neste contexto eclesiológico como societas
perfectas (sociedade perfeita). Nesta sociedade perfeita quem rege é a hierarquia.
Porém na origem do cristianismo não foi assim: “a mediação entre o cristão e Cristo
era o povo, a Igreja como povo”.
216
Do século XIII ao século XIX praticamente todas as
tratações sobre Igreja são de índole apologética (se bem que a pesquisa histórica esteja
descobrindo sempre novos documentos que dão atenção também ao aspecto mistérico da
Igreja).
Particularmente devem defender a autoridade, o papado, e discutir o problema das
relações entre papa e Concílio, entre poder eclesiástico e poder civil. E isto demonstra como a
eclesiologia se liga quase diretamente mais com o direito do que com a teologia, com os
decretistas medievais do que com os sumistas medievais.
Otto Semmelroth considera que a designação da Igreja como Povo de Deus prevaleceu
sobre as outras designações na Igreja primitiva até adentro do quarto século, a partir deste
período vai perder o primado na teologia da Igreja porque “a imagem Povo de Deus designa
214
CJPD, p. 51.
215
Autores e obras do período: Egídio Romano (1243-1316), De ecclesia sive summi pontificis potestate, 1280;
De ecclesiatica potestate, 1301; Giacomo Capocci da Viterbo (1255-1307/1308), De regimine christiano,
1301-1302; Henrique de Cremona, De potestate papae; João de Paris, De potestate regia et papali, 1302;
Agostinho Trionfo, Summa de potestate ecclesiastica; Dante, De potestate Summi Pontificis; Santo Tomás
(com o complemento de Ptolomeu de Lucca), De regimine Principium ou De regno, talvez no ano de 1267
(cf. ALMEIDA, Antônio José. “Lumen Gentium”: a transição necessária, p. 73).
216
CJPD, p. 53.
75
um sentido mais material, ao passo que as demais imagens bíblicas interpretativas da Igreja
acentuam mais o aspecto formal”.
217
Ainda para Semmelroth o aspecto formal parece mais claramente expresso nos termos
e figuras que aludem à conscientização dos cristãos como reunidos por Cristo e possuídos da
vida sobrenatural da graça do Espírito Santo:
O período da Escolástica Medieval não possuía uma visão adequada para
interpretação histórica. Não é, pois de admirar que na sistemática teológica da Idade
Média pouco avulte a designação da Igreja como Povo de Deus. Ora a conceituação
da Igreja como Povo de Deus implica uma interpretação histórica da obra da
Redenção. Na Idade Moderna a contra-reforma teve uma reação contra a
eclesiologia dos reformadores protestantes, que punham à mostra certa predileção
pela idéia da Igreja como Povo de Deus, porém num plano doutrinário anti-
hierárquico e democratizante. Nos meios católicos, a idéia da Igreja como sociedade
constituída tomava foros de reação contra as tendências espiritualizantes no conceito
eclesial dos reformadores. A partir da segunda década do século XX, quando se
descobriu o caráter de mistério inerente à Igreja foi como um impacto de grande
novidade que a redescoberta da Igreja como Corpo Místico de Cristo fez esmaecer,
além de outros aspectos típicos da realidade eclesial, também a designação da Igreja
como Povo de Deus.
218
O problema levantado por Comblin pode ser formulado pelo seguinte questionamento:
como foi que se constituiu uma construção tão forte da estrutura hierárquica como se fosse de
instituição divina? De onde veio a hierarcologia?
219
Para Comblin esta visão de Igreja vem da filosofia grega porque,
A filosofia platônica e neo-platônica penetrou na teologia por vários canais,
sobretudo pela obra do Pseudo-Dionísio, o Aeropagita. Na realidade, esse autor é
desconhecido e deve ter escrito entre o final do século IV e o começo do século V
no Oriente. Escreveu vários livros que formam o Corpus Dionisium, onde na Idade
Média se aceitava a tradição de que ele seria o discípulo convertido de São Paulo em
Atenas.
220
217
SEMMELROTH, Otto. A Igreja, o novo Povo de Deus. In: BARAÙNA, Guilherme. Op. cit., p. 473-474.
218
Ibidem, p. 474-475.
219
“Hierarcologia” era o nome que Congar dava a visão institucional, jurídica, clerical e verticalista da Igreja:
“A eclesiologia consistia assim, quase exclusivamente num tratado de direito público. Eu creio, para
caracterizá-la, a palavra ‘hierarcologia’ que com freqüência será utilizada posteriormente” (CONGAR, Yves
Marie-Joseph. Ministérios y comunion eclesial. Madrid: Fax, 1973, p. 12).
220
CJPD, p. 53.
76
John Fuellenbach chama essa visão de Igreja, também de “linear”, a qual concebe o
universo como uma ordem linear de entidades que emanam do Divino. Deste – do Divino -
toda e cada entidade contém totalmente todas as suas entidades e é totalmente contida por
suas entidades superiores: “o platônico cristão, Pseudo-Dionísio, aplicou essa concepção
linear à hierarquia celestial dos espíritos angélicos e à hierarquia eclesiástica dos múnus
eclesiásticos”.
221
Para Comblin esse esquema de unidade platônica foi transferido para o plano eclesial:
Do neoplatonismo vem a fascinação pela unidade, pelo um [...] A criação é queda,
decadência, porque ocorre afastamento da unidade primordial. Porém a finalidade da
vida é voltar à unidade. Separando-se da matéria o homem pode pela contemplação
das idéias espirituais, subir, aproximar-se de Deus, isto é, do um primordial [...] Esse
esquema inspira quase toda a filosofia e a teologia medieval, por exemplo, o
esquema da Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino [...] O que vem de Deus, da
perfeição é um. O Papa seria o princípio da unidade. Do Papa deriva tudo. Tudo o
que se multiplica entra no plano da imperfeição. Em todo caso, todo princípio de
bem e de salvação está na unidade, que é o Papa.
222
Para Comblin, sobretudo do século XI até a metade do século XX vai-se ter duas
eclesiologias paralelas: “a ‘vertical’: concepção jurídica da Igreja hierárquica e, por outro
lado, “a concepção ‘horizontal’, fundada no Povo de Deus, evangélica, pluralista,
participativa...”
223
Nesta concepção horizontal surgiram grupos antagônicos à hierarcologia
que foram reprimidos pela ortodoxia com o apoio de reis e príncipes. A culminância chega à
Revolução Francesa. Diminui no século XX não porque haja mais paz, mas porque a Igreja se
encontra enfraquecida e o povo se torna indiferente com ela.
A história do cristianismo no Ocidente é feita desse antagonismo que foi o mais
fundamental na sociedade e ainda hoje marca imaginação e, às vezes, o agir dos
nossos contemporâneos [...] Onde estava o Povo de Deus? De fato, as grandes
massas sobretudo rurais deram todo apoio à Igreja estabelecida. É preciso lembrar
que essas massas eram analfabetos, desconheciam totalmente a Bíblia e nada
entendiam do sistema eclesiástico que se expressava em latim. Estavam totalmente
passivas diante do clero [...] Essa massa sempre apoiou a Igreja oficial – e continua a
faze-lo até hoje, onde ainda existe. Foi a famosa aliança entre a Igreja e os
ignorantes. Mas essa massa era o Povo de Deus? Merecia o nome de povo?
224
221
FUELLENBACH, John. Igreja: comunidade para o Reino. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 187.
222
CJPD, p. 54.
223
CJPD, p. 58.
224
CJPD, p. 59.
77
O que se observa no decorrer da história, e que para Comblin é causa da crise atual da
Igreja, não é uma oposição à fé ou a Jesus Cristo, mas de uma oposição ao sistema hierárquico
confundido com o sistema monárquico. É um repulso ao poder abusivamente assumido pela
hierarquia e pelo clero em geral como classe privilegiada na sociedade.
Para Comblin foi o gesto profético do Papa João XXIII de convocar um Concílio
Ecumênico que retomou um processo de aproximação entre hierarquia e leigos: “tratava-se de
luta interna da Igreja entre dois partidos que afirmavam, por um lado, a hierarquia como poder
sobre a Igreja e, por outro, os direitos do Povo de Deus”.
225
Numa análise histórica não se pode, porém, descartar o desenvolvimento da
eclesiologia e da sua renovação: “antes do Vaticano I, na Escola de Tübingen e no Colégio
Romano foram concluídos notáveis esforços para ultrapassar a orientação jurídico-
institucional e desenvolver uma imagem mais teológica e mística da Igreja”.
226
Os tratados da Escola de Tübingen e do Colégio Romano encontram boa acolhida nos
participantes do Concílio Vaticano I e estavam presente no esquema De Ecclesia, tendo como
primeiro capítulo: “a Igreja é corpo místico de Cristo”. Devido às circunstâncias, o Concílio
teve de ser encerrado, limitando-se a definir, em relação à Igreja, o Primado e a Infabilidade
do Papa.
O Vaticano I se torna, assim, dentro de toda a história dos Concílios, como “... evento
de passagem entre o Tridentino (que tinha preparado o catolicismo moderno) e o Vaticano II
(que fez o mesmo em vista do terceiro milênio)”.
227
Depois do Vaticano I dá-se uma renovação importante da eclesiologia, especialmente
entre as duas grandes guerras, pois os pensadores da filosofia e da teologia se davam conta de
que uma nova época cultural estava por surgir. Com o desenvolvimento dos estudos bíblicos
(exegese) houve uma volta às origens do cristianismo. Neste período começou-se a considerar
a Igreja não mais do ponto de vista jurídico, e sim do ponto de vista cristocêntrico e
sacramental.
A partir de 1940, Mennes D. Koster, rejeitara decididamente “a definição da Igreja
como Corpo Místico de Cristo, procurando desenvolver em seu lugar, a idéia da Igreja como
Povo de Deus”.
228
225
CJPD, p. 62.
226
MONDIN, Battista. Op. cit., p. 16.
227
ALBERIGO, Giuseppe (org.). Op. cit., p. 388.
228
SEMMELROTH, Otto. A Igreja, o novo Povo de Deus. In: BARAÙNA, Guilherme. Op. cit., p. 475.
78
Na Encíclica Mystici Corporis (1943), Pio XII faz contraponto e parece contradizer
Koster, pois destaca como caráter essencial e divino da Igreja, o Corpo de Cristo.
229
Com o surgimento de métodos modernos e científicos da história a exegese teve
grande impulso. Aconteceu o estudo crítico da Bíblia e uma nova teologia surgiu nem sempre
batendo com a teologia oficial. “Foi entre 1937 e 1942 que os biblistas redescobriram o
conceito do Povo de Deus na Bíblia tanto os exegetas protestantes como os católicos”.
230
Depois da Segunda Guerra Mundial a eclesiologia vai dar relevância novamente à
idéia da Igreja como Povo de Deus, porém “não tão exclusivamente quanto fizera Koster, mas
como relevante complemento das demais designações”.
231
A eclesiologia evangélica neste período também tem um grande impulso renovador,
sobretudo com Dietrich Bonhoeffer
232
e Karl Barth.
Tendo como pressuposto teológico o querigma cristão, em sua primeira obra
eclesiológica Sanctorum Communio (1927), Bonhoeffer procura a possibilidade de
estabelecer uma síntese em um único conceito entre “... a igreja empírica e a essencial,
explicando o que significa no sentido sociológico e teológico, através da proposição de que ‘a
Igreja é fundamentada na revelação do coração de Deus’”.
233
O desenvolvimento do argumento não é uma dedução do dogma sociológico, mas o
que une a Igreja comunidade social à Igreja comunidade de salvação. O âmago de toda
exposição da sua eclesiologia “... é o da identidade da Igreja com Cristo. A Igreja, declara
Bonhoeffer, ‘é Cristo existente como comunidade’, ‘é o próprio Cristo presente’”.
234
Karl Barth, fiel à teologia protestante, entende que a igreja é o Povo de Deus, a
comunidade eleita e salva pela Palavra de Deus por meio das Escrituras. “É justamente esta
autoridade que segundo Barth, produzindo a fé, funda a communio sanctorum, excluindo não
somente toda autoridade humana na organização eclesiástica, mas também toda e qualquer
estrutura que pretenda ser estável e autêntica”.
235
A Igreja é corpo de Cristo, mas não corpo
místico de Cristo. A Igreja é essencialmente, segundo Barth, um evento de graça, evento de
229
MONDIN, Battista. Op. Cit., p. 18-20.
230
CJPD, p. 85.
231
SEMMELROTH, Otto. A Igreja, o novo Povo de Deus. In: BARAÙNA, Guilherme. Op. cit., p. 475. Neste
sentido também Jaques Dupont e Rudolf Schnackenburg fazem um estudo comparativo entre “Povo de
Deus” e “Corpo de Cristo” e chegam à conclusão que as duas designações são de complemento e não de
exclusão (cf. DUPONT, Jacques; SCHNACKENBURG, Rudolf. A Igreja como Povo de Deus. Concilium,
n. 1, 1965, p. 79-87).
232
APPEL, Kurt; CAPOZZA, Nicoletta. “Estar-aí-para-outros” como participação da realidade de Cristo: sobre
a eclesiologia de Dietrich Bonhoeffer. Teocomunicação, v. 36, n. 153, 2006, p. 583-597.
233
MONDIN, Battista. Op. cit., p. 21.
234
Ibidem, p. 21.
235
Ibidem, p. 57.
79
salvação, sempre uma nova encarnação de Cristo, portanto somente por Cristo e por meio de
Cristo e, neste sentido, a palavra de Deus é a única autoridade e palavra última.
Portanto, a partir do século XX começa a surgir uma formação eclesiológica levando
em conta a sua realidade histórica. O novo momento histórico desafia a Igreja a perceber a
realidade social que a cerca e que ela mesma está implicada nos problemas do mundo: “houve
a convergência de dois movimentos: um intelectual e outro social. Ambos reconheceram o
valor da verdade que havia tanto no liberalismo como no socialismo e se puseram em diálogo
com a sociedade ocidental e suas ideologias”.
236
O Vaticano II na visão de Comblin quer responder aos desafios de seu tempo e que no
decorrer da história, durante pelo menos mil anos, não foram respondidos e reparados os erros
cometidos na direção da Igreja.
Depois de 1918 – uma nova eclesiologia se concentrou em torno do conceito de
Povo de Deus. [...] O conceito Povo de Deus sintetizava e simbolizava, de alguma
maneira, as lutas da minoria profética que, na Igreja daquele tempo, queria superar a
concepção jurídica, verticalista e autoritária que se tornara quase doutrina comum
desde Bellarmino.
237
A renovação da eclesiologia aconteceu com o Vaticano II que surge com grande
impulso em direção à Igreja, portanto se torna um Concílio eclesiológico:
[...] tendo-se prefixado como único objetivo o de aprofundar o mistério da Igreja em
sua íntima natureza e nas relações da Igreja com o mundo: o movimento social
necessitava de uma teoria que fosse a eclesiologia do Povo de Deus e a teologia
precisava de um povo católico que se expressasse no catolicismo social.
238
De um lado, deve-se concordar com Comblin de que a demonstração da Igreja apenas
em termos organizativos se torna uma colocação unilateral da eclesiologia e deixa
transparecer uma imagem pobre e distorcida dela mesma; por outro lado, numa análise
histórica não se pode prescindir de que em um determinado período, devido ao contexto e
suas circunstâncias se acentue mais um aspecto do que outro.
236
CJPD, p. 81-82.
237
CJPD, p. 85.
238
CJPD, p. 85.
80
Otto Semmelroth traz à luz uma reflexão importante para situarmos a visão
eclesiológica de cada período em seus contextos vitais:
Ao avaliarmos o conteúdo das verdades reveladas propostas pela Igreja, convém
compensar o relevo que uma determinada época deu a certos aspectos do conteúdo
total da revelação divina, pela indagação dos motivos por que outras épocas deram
relevo a aspectos diferentes [...] Esta variação ocorrida no decurso da história da
Igreja refletiu-se também nos trabalhos do Concílio quando se tratava de fixar a
doutrina sobre o mistério da Igreja.
239
Com o Vaticano II dá-se a transição de uma Igreja vista como sociedade desigual,
baseada em uma eclesiologia jurídica, para uma Igreja Povo de Deus, baseada na dignidade e
na missão de todos os seus membros
240
e assim “consagrando o conceito de Povo de Deus, os
Padres conciliares queriam reconhecer, aprovar, legitimar e estimular os movimentos
intelectuais, bem como os movimentos de promoção dos leigos como povo cristão”.
241
O desejo inicial de João XXIII “...de que a Igreja fosse de todos, mas especialmente
dos pobres”
242
só foi compreendido, segundo Comblin, por uma minoria e foi colocada em
prática, com maior amplitude, na América Latina: “foi somente na América Latina que a
teologia do Povo de Deus chegou à sua expressão mais ampla”.
243
A partir da segunda metade do século XX com o surgimento dos movimentos sociais
que muitos sacerdotes, leigos e religiosos vêem de perto a realidade humana de miséria e de
pobreza e se dedicam a uma espiritualidade encarnada e libertadora. Essa consciência viva e
próxima da realidade teve lugar de expressão sobretudo em duas Conferências episcopais:
Medellín (1968) e Puebla (1979).
“Na América Latina depois do Vaticano II, o Povo de Deus e os pobres foram
associados”
244
e a partir dessa associação terminológica uma nova forma de fazer teologia
desabrocha nos ambientes, sobretudo eclesiais do novo mundo.
A Igreja se insere na sociedade como comunidade participativa de serviço aos mais
pobres.
"
239
SEMMELROTH, Otto. A Igreja, o novo Povo de Deus. In: BARAÙNA, Guilherme. Op. Cit., p. 473.
240
A Lumen Gentium, de maneira simples e com fundamentação bíblica, é expressão desta nova eclesiologia:
por instituição divina, a Igreja, é estruturada e regida com admirável variedade (cf. LG 32).
241
CJPD, p. 86.
242
ALMEIDA, Antônio José de. Op. cit.,, p. 199.
243
CJPD, p. 87.
244
CJPD, p. 90.
81
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"
"
À análise da eclesiologia de Comblin, é imprescindível uma correta compreensão da
recepção pós-conciliar que o conteúdo Povo de Deus teve no contexto eclesial latino-
americano.
Na América Latina com o surgimento das Conferências Episcopais Nacionais e do
CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano) há um intercâmbio de líderes religiosos
245
com tino profético.
No meio de um povo aberto aos valores do evangelho o Vaticano II encontrou
respaldo, nascendo assim, “uma pastoral comprometida com a libertação dos pobres e uma
nova teologia que pretendia fornecer a esse movimento de libertação uma base teórica [...] O
conceito de Povo de Deus fornecia a porta de entrada para uma Igreja dos pobres”.
246
Para Enrique Dussel a Igreja latino-americana passou por duas fases que são
emolduradas dentro de grandes reuniões, encontros, Conferências e seminários.
A primeira fase é de 1959 a 1968. Este é o período em que acontece o Concílio
Vaticano II e sua recepção dada pela II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano
em Medellín.
A segunda fase vai de 1968 a 1972. Começa o trabalho de renovação de toda a Igreja,
partindo do CELAM. Os institutos começam encontros de renovação. Nos Sínodos Romanos
de 1967, 1969 e 1971 os bispos latino-americanos tiveram peso significativo, sobretudo na
questão “justiça no mundo”.
247
A mudança eclesiológica para Comblin é de que esta precisa estar baseada numa
cristologia ascendente. Portanto, “a mudança consiste em passar de uma Igreja que se apóia
nos poderes políticos, econômicos, culturais deste mundo para uma Igreja seguidora de Jesus
que se apóia na fé do povo”.
248
Segundo Comblin, o conceito “Povo de Deus” correlativo a “Igreja dos pobres”
249
teve grande aceitação na América Latina porque houve uma mútua identificação. Isto se deu
245
Entre outros se destacam: Manuel Larraín Errázuriz (presidente do CELAM de 1963 a 1966); Helder
Câmara (primeiro secretário da Conferência Episcopal do Brasil, o qual também teve a tarefa de
organizar a primeira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, acontecida no Rio de Janeiro, em
1955); D. Aloísio Lorscheider (eleito secretário geral da CNBB em 1968).
246
CJPD, p. 93.
247
DUSSEL, Enrique. História da Igreja latino-americana: 1930-1985. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 40-41.
248
CJPD, p. 101.
249
“Igreja dos pobres” é uma expressão adotada pelo papa João XXIII e pelo próprio Concílio Vaticano II:
“Cristo foi enviado pelo Pai para ‘evangelizar os pobres, sanar os contritos de coração’ (Lc 4,18), ‘procurar
82
também devido a razão social dos pobres no decorrer dos quinhentos anos de colonização do
continente.
A expressão “Igreja dos Pobres” fora lançada por João XXIII, mas não prosperou
no contexto do Concílio. Acabou sendo retomada na América Latina, a qual se
situou no centro da eclesiologia. Neste sentido a Igreja na segunda e na terceira
Conferências Episcopal Latino Americana toma como base “a opção preferencial
pelos pobres”.
250
Neste contexto histórico e geográfico falar de Povo de Deus na América Latina era
falar do povo dos pobres em suas imensas massas de indígenas, negros descendentes dos
escravos ou trabalhadores do campo e da cidade, pobres da periferia (desempregados). Neste
período a maioria do povo estava ligada à religião tanto na vida individual como social das
pessoas.
Esse povo era profundamente religioso, ainda não havia conhecido a modernidade e
a sua visão de mundo era dada pela religião. Para eles a religião era cosmovisão,
filosofia, cultura, moral, sentido da vida, norma de conduta. A religião era tudo [...]
Essa situação mudou bastante desde então, especialmente devido à entrada da
televisão, que uniformizou as culturas e ocupou, em grande parte, o lugar da
religião
.
251
Em nota sobre a polêmica “evangelização versus sacramentalização” na América
Latina, Josep-Ignasi Saranyana faz uma síntese do pensamento eclesiológico de José
Comblin:
Comblin denuncia excessiva a clericalização da vida religiosa latino-americana,
diante de uma piedade popular, sentimental e faminta de doutrina, que seria a via
eleita pelo povo cristão para subtrair-se do domínio hierárquico. Entre estas duas
possibilidades históricas, endêmicas na América Latina (a via sacramental, que
implicava ativa participação do clero, e a pietista popular), Comblin propõe uma
‘terceira via’, entre o ‘implacável objetivismo do clero’ e o ‘subjetivismo radical’.
Seria a ‘via do humanismo cristão’, defendida – segundo nos assegura – por Paulo
e salvar o que tinha perecido’ (Lc 19,10): semelhantemente a Igreja cerca de amor todos os afligidos pela
fraqueza humana, reconhece mesmo nos pobres e sofredores a imagem de seu Fundador pobre e sofredor.
Faz o possível para mitigar-lhes a pobreza e neles procura servir Cristo” (LG 8).
250
CJPD, p. 98.
251
CJPD, p. 92.
83
VI em seu discurso de encerramento do Vaticano II. Afirma além do mais que sua
terceira via retrotrai, embora com matizes, às propostas de Erasmo de Rotterdam,
que havia buscado uma solução de compromisso entre a posição romana e a rebelião
luterana. A terceira via de Comblin seria como revival da Philosophia Christi
erasmiana.
252
A Conferência de Medellín atenta ao processo de transformação cultural e religiosa
das massas populares procura resgatar o papel de evangelização num decorrente processo de
sacramentalização ocorrido no decorrer dos séculos sucessivos da conquista do novo mundo.
Para Comblin a III Conferência Episcopal de Puebla destaca alguns aspectos
253
importantes do conceito de Povo de Deus: o aspecto comunitário da Igreja em contrapartida
ao aspecto individualista de viver a fé; o conceito Povo de Deus relaciona a Igreja e os povos
da terra; o Povo de Deus é realidade histórica, mergulhada na história dos pobres; em quarto
lugar, Puebla salienta o aspecto social do Povo de Deus. Por ser povo histórico a Igreja deve
estar estruturada e institucionalizada.
O documento de Puebla enuncia também os atributos bíblicos do Povo de Deus: “povo
sacerdotal, investido de sacerdócio universal” (Puebla 269). “A Igreja é povo de servidores”
(Puebla 270). “O Povo de Deus é enviado como povo profético” (Puebla 267). “O Povo de
Deus, em que habita o Espírito, é também um povo santo... povo messiânico” (Puebla 250).
Quanto à opção pelos pobres, o capítulo primeiro da quarta parte das Conclusões de
Puebla – “opção preferencial pelos pobres” – constitui o documento fundador da teologia
latino-americana, o que constitui para Comblin um novo jeito de ser Igreja.
Na realidade, entre todas as tendências da teologia da libertação há unidade profunda.
O postulado fundamental e comum a todas é que, na América Latina, o “povo” é, ao mesmo
tempo, “Povo de Deus” e “povo dos pobres”.
A correlação da Igreja como “Igreja dos pobres” Comblin fundamenta-a a partir do
pensamento de Jon Sobrino: “quando falamos hoje da Igreja dos pobres como verdadeira
Igreja, não estamos falando, portanto, de “outra” Igreja que não seja a católica ou as diversas
igrejas protestantes. Estamos falando de uma nova forma de ser Igreja”.
254
"
252
SARANYANA, Josep-Ignosi. Cem anos de teologia na América Latina: 1899-2001. São Paulo: Paulus,
2005, p. 107.
253
CJPD, p. 102-105.
254
SOBRINO, Jon. Ressurreição da verdadeira Igreja: os pobres, lugar teológico da eclesiologia. São Paulo:
Loyola, 1982, p. 93-134. Esta obra publicada em castelhano pela primeira vez em 1981, já havia sido
preparada em 1978 no contexto da III Conferência Episcopal Latino-Americana de Puebla, onde se abordou
o tema das Comunidades Eclesiais de Base. Jon Sobrino apresenta a “Igreja dos Pobres” como nova forma
de ser Igreja a partir das quatro notas da Igreja: una, santa, católica e apostólica.
84
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"
"
Para finalizar o estudo da história do conceito de Povo de Deus, Comblin faz uma
análise do Sínodo Extraordinário dos Bispos, acontecido em Roma.
O capítulo quarto da obra: “A virada do Sínodo de 1985”
255
, está subdividido em três
pontos: primeiro, “a Teologia do cardeal Ratzinger”; segundo, “a Teologia do Sínodo”;
terceiro, “as ambigüidades do conceito de ‘comunhão’”.
Segundo Comblin o Sínodo faz uma substituição da eclesiologia de povo Deus para a
eclesiologia de comunhão. A entrevista do cardeal Ratzinger
256
assinalou o contexto em que
se realizou o Sínodo extraordinário de 1985 – Sínodo destinado a “retificar” o Concílio
Vaticano II. Há nesta entrevista, realizada um pouco antes do Sínodo, algumas afirmações do
Cardeal Ratzinger, as quais causaram um certo impacto. De modo especial uma expressão
deixou margens para várias interpretações aos que tinham receio de modificações nas linhas
do Concílio Vaticano II: “esta palavra era ‘restaurar’. Ele chegou a explicar, posteriormente,
com toda a clareza, o que ele quisera exprimir: restauração é o mesmo que reforma”.
257
Comblin acusa o Sínodo de ter suas conclusões já preparadas de antemão pelo cardeal
Joseph Ratzinger. “O cardeal consegue desacreditar e descartar definitivamente o conceito de
Povo de Deus. [...] O cardeal não descarta o tema, mas desacredita-o acusando-o de ser
reducionista”.
258
O Cardeal teria enunciado dois perigos do conceito de Povo de Deus: primeiro este
conceito significaria uma volta ao Antigo Testamento e, portanto, ele seria menos
representativo do que o conceito Corpo de Cristo, uma vez que este seria mais representativo
do Novo Testamento; o segundo, é que o conceito pode ser interpretado de maneira ambígua,
ou seja, não só de uso cristão, mas com interpretação sociológico-marxista.
Comblin discorda do Cardeal quando este afirma “... que se entra na Igreja não por
pertença sociológica, mas por meio do batismo e da eucaristia que integram o Corpo de Cristo
e não precisa da noção Povo de Deus”.
259
255
CJPD, p. 115-132.
256
A entrevista é do jornalista Vittorio Messori que depois acabou saindo em forma de livro com uma nova
edição publicada em 2005 (cf. BENETTO XVI [RATZINGER, Joseph]; MESSORI, Vittorio. Rapporto
sulla fede: Vittorio Messori a colloquio con Joseph Ratzinger. Cisinello Balsamo [MI]: San Paolo, 2005).
257
GRINGS, Dadeus. O sínodo extraordinário. Teocomunicação, n. 1, 1986, p. 55.
258
CJPD, p. 115-116.
259
CJPD, p. 116.
85
Ora, que a incorporação no Corpo de Cristo seja significada pela eucaristia, está
claro. Mas não está claro que a entrada no Corpo de Cristo seja significada pelo
batismo. Nada no batismo representa ou significa a entrada no Corpo de Cristo. Pelo
contrário, desde o início ele significa a incorporação no novo Povo de Deus reunido
por Cristo. E o batismo é a porta da entrada, que vem antes da eucaristia.
260
O que preocupa Comblin em relação à preparação do Sínodo são essencialmente dois
problemas de cunho eclesiológico.
Primeiro, a colocação do conceito de Corpo de Cristo como centro da eclesiologia que
teria sido de propósito que o Vaticano II o colocou depois do conceito de Povo de Deus para
não deixar como centro eclesiológico a visão de Pio XII, explicitada na Encíclica Mystici
Corporis.
O batismo é o sacramento de iniciação cristã e a inserção no Povo de Deus, enquanto
que o sacramento da eucaristia é a inserção no Corpo de Cristo como participação plena no
Corpo de Cristo.
Segundo, é de que Ratzinger julga o conceito de Povo de Deus como um conceito de
cunho sociológico e conseqüentemente marxista: “por razão de prudência doravante seria
melhor evitar o tema Povo de Deus, para não se expor a distorções marxistas. Esse é o
raciocínio, ainda que não tão explícito, ele é sugerido com suficiente clareza”.
261
Para o autor em estudo o Sínodo de 1985 é recebido no meio eclesial da América
Latina sob suspeita, pois em 1984 algumas formas de Teologia da Libertação haviam sido
condenada pela Cúria Romana.
262
O propósito pois desta Instrução é mais preciso e definido: chamar a atenção dos
pastores, dos teólogos e de todos os fiéis, para erros e perigos de erro [in errorres
periculaque errorum], prejudiciais à Fé e à vida cristã, inerentes a certas formas de
teologia da libertação que recorrem, de modo insuficientemente crítico, a conceitos
tomados de vários princípios da doutrina marxista.
263
Para Comblin está claro que a intenção do Sínodo era de cunho eclesiológico onde “o
sinal mais claro da virada foi a substituição do tema Povo de Deus pelo da comunhão como
centro da eclesiologia”.
264
260
CJPD, p. 116-117.
261
CJPD, p. 118.
262
Comblin se refere aqui da Instrução Libertatis nuntius (06.08.1984): “Sobre alguns aspectos da Teologia da
Libertação”; da Congregação da Doutrina da Fé, da qual era Prefeito o então Cardeal Joseph Ratzinger.
263
FC 7.330.
264
CJPD, p. 118.
86
A idéia central do Concílio era o conceito Povo de Deus e que, no entanto vinte anos
mais tarde se deturpa a eclesiologia por um desejo do Sínodo: “na prática, o Sínodo volta à
teologia pré-conciliar: a única realidade visível da Igreja que merece destaque é a
hierarquia”.
265
No entender de Comblin “jamais o Vaticano II entendeu Povo de Deus como conceito
sociológico. Povo de Deus é conceito essencialmente bíblico e teológico e designa uma
realidade revelada por Deus e fundada por Jesus”.
266
Há de concordar-se com Comblin do sentido bíblico e teológico do conceito de Povo
de Deus, já demonstrado anteriormente e também que o Sínodo é de cunho eclesiológico:
Ou seja, o Sínodo deveria reviver a atmosfera de comunhão eclesial que
caracterizara o Concílio; trocar e aprofundar experiências e informações acertadas
da aplicação, em todo o mundo, do Concílio nestes 20 anos; e proporcionar um
ulterior aprofundamento e uma constante inserção do Vaticano II na vida da Igreja,
tendo presente as exigências do momento atual e futuro.
267
Por outro lado, na leitura da Relatio Finalis não se percebe uma mudança eclesiológica
do conceito de “Povo de Deus” para uma eclesiologia de “comunhão”.
Na leitura atenta o Sínodo adverte contra o perigo de interpretações unilaterais na
interpretação do Concílio Vaticano: tanto a visão puramente de perspectiva hierárquica quanto
da perspectiva sociológica. O que o Sínodo visa fundamentalmente é resgatar a dimensão
mistérica da Igreja:
A eclesiologia da comunhão é a idéia central e fundamental nos documentos do
Concílio [...] O que significa a complexa palavra ‘comunhão’? Trata-se
fundamentalmente de comunhão com Deus por Jesus Cristo e no Espírito Santo.
Tem-se esta comunhão na Palavra de Deus e nos sacramentos. O Batismo é a porta e
o fundamento da comunhão na Igreja. A Eucaristia é a fonte e o ápice de toda vida
cristã (cf. LG 11).
268
O significado mais coerente da eclesiologia de comunhão não é o de descartar uma ou
outra forma ou imagem de conceber a Igreja, e nem de reduzir a “meras questões de
265
CJPD, p. 120.
266
CJPD, p. 121.
267
GRINGS, Dadeus. O Sínodo Extraordinário. Teocomunicação, p. 55.
268
SÍNODO EXTRAORDINÁRIO. Relatio Finalis, cap. II, letra C, n. 1.
87
organização ou a questões que se referem a meros poderes”
269
mas tem como princípio o
mistério da Trindade.
Na leitura de Dadeus Grings o clima que se respirou no Sínodo Extraordinário fora a
de “... reviver a atmosfera do Concílio Vaticano II”.
270
Os protagonistas do Sínodo eram de uma verdadeira pluralidade eclesial:
Para poder melhor constatar o andamento das Igrejas nas diversas nações, o Papa
decidiu que fossem os próprios Presidentes das Conferências episcopais e os
Prefeitos dos dicastérios romanos os protagonistas deste Sínodo. Além de outros
convidados especiais, foram chamados também especialistas católicos, que
representavam as várias categorias e forças ativas da Igreja na qualidade de
“auditores” e ainda, devido ao caráter sui generis deste Sínodo, foram convidadas
dez Igrejas cristãs, com as quais a Santa Sé mantém diálogo ecumênico. Tanto os
“auditores” como os delegados de outras Igrejas tiveram voz dentro da assembléia
dos Bispos, sendo inclusive os únicos a serem aplaudidos.
271
A Relação Final do Sínodo Extraordinário dos Bispos explicita de maneira clara e
inequívoca a meta de sua convocação: “o objetivo, para o qual foi convocado este Sínodo, foi
a celebração, a verificação e a promoção do Concílio Vaticano II”.
272
Para Comblin o uso do termo “comunhão” é ambíguo: primeiro, porque, quando se
fala em comunhão expressa-se bem a comunhão de vida trinitária, ressaltando o aspecto
divino da Igreja, contemplado no primeiro capítulo da Lumen Gentium, “mas o tema da
comunhão não expressa a natureza humana da Igreja”
273
correndo-se o risco de cair num
monofisismo eclesiológico; em segundo “se se quer usar a palavra comunhão para expressar a
relação horizontal entre os membros da Igreja – e não somente o seu mistério divino - convém
lembrar que existe outro sentido da comunhão: o sentido horizontal.
274
A idéia básica do Sínodo com o tema comunhão não é ambígua e também não descarta
o tema Povo Deus, uma vez que ela é a identidade da própria unidade da Igreja em seus
diversos serviços e estados de vida: “através desta unidade de fé, dos sacramentos e da
hierarquia, com o centro da unidade que é o Papa, a Igreja é o povo messiânico”.
275
269
SÍNODO EXTRAORDINÁRIO. Relatio Finalis, cap. I, letra C, n. 1.
270
GRINGS, Dadeus. O Sínodo Extraordinário. Teocomunicação, p. 59.
271
Ibidem, p. 55.
272
SÍNODO EXTRAORDINÁRIO. Relatio Finalis, cap. I, n.2.
273
CJPD, p. 126.
274
CJPD, p. 129-131.
275
GRINGS, Dadeus. O Sínodo Extraordinário. Teocomunicação, p. 63.
88
O Sínodo na sua relação final pede uma eclesiologia complementar e parece não
deixar margens à ambigüidade:
Devemos entender como integral a missão salvífica da Igreja em relação ao mundo.
A missão da Igreja, embora seja espiritual, implica a promoção também no campo
material. Por isso, a missão da Igreja não se reduz a um monismo, de qualquer modo
que ele possa ser entendido. Certamente, nesta missão há uma clara distinção, mas
não separação, entre aspectos naturais e os sobrenaturais. Esta dualidade não é um
dualismo. É preciso, portanto, pôr de parte e superar falsas e inúteis oposições, por
exemplo, entre a missão espiritual e a diaconia em favor do mundo.
276
"
"
"
2.3 O CONTEÚDO DO CONCEITO DE POVO DE DEUS
277
No Concílio Vaticano II o conceito “Povo de Deus” tornou-se uma imagem
fundamental para expressar a natureza da Igreja. No entanto, é um tema que precisa estar em
“estreita conexão com o capítulo primeiro da Lumen Gentium: ‘O mistério da Igreja’, o qual
forma uma unidade indissolúvel”.
278
Charles Moeller vê uma íntima relação entre os dois primeiros capítulos da
Constituição sobre a Igreja, os quais formam uma unidade indissolúvel.
279
O conceito “Povo
de Deus” aplicado à Igreja tem sua fundamentação bíblica, desenvolvido na Patrística e
retomado no Vaticano II como “a continuidade com Israel, povo da promessa e a nova
experiência do cristianismo”.
280
O capítulo segundo da Constituição Dogmática Lumen Gentium “o Povo de Deus” é
formado por nove números (nove a dezessete). Para seguir uma linearidade de estudo, os
subitens abaixo seguem a seqüência das principais contribuições da Lumen Gentium para este
276
SÍNODO EXTRAORDINÁRIO. Relatio Finalis, parte II, letra D, n.6.
277
O conteúdo do conceito de “Povo de Deus” é a meta do quinto ao décimo capítulo da obra de José Comblin:
“os quatro primeiros capítulos foram históricos [...] Procuraremos entender o conteúdo que o tema Povo de
Deus traz à Igreja” (COMBLIN, José. O Povo de Deus, p. 133). Para um estudo comparativo deste tema
utiliza-se principalmente a obra de PHILIPS, Gérard. La Iglesia y su mistério en el Vaticano II: historia,
texto y comentário de la constitucón “Lumen Gentium”, vol. 1, p. 166-225. Cf. também FUELLENBACH,
John. A Igreja comunidade para o Reino. São Paulo: Paulinas, 2006; CALIMAN, Cleto. A eclesiologia do
Vaticano II e a Igreja no Brasil. In: BOMBONATTO, Vera; GONÇALVES, Paulo Sérgio Lopes (Orgs.).
Concílio Vaticano II: análise e prospectivas. São Paulo: Paulinas, 2004 (Col. Alternativas).
278
HACKMANN, Geraldo Luiz Borges. A Igreja, Povo de Deus. In: Teocomunicação, p. 695.
279
Cf. MOELLER, C. O fermento das idéias na elaboração da Constituição. In: BARAÚNA, G. Op. cit., p. 190.
280
PHILIPS, Gérard. Op. cit., p. 169.
89
modelo eclesiológico, caracterizados conforme o Compêndio
281
do Concílio Vaticano II.
Procura-se analisá-los em comparação à proposta do autor em debate.
"
"
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"
"
Para Comblin o conceito de Povo de Deus nasceu na Bíblia, “no entanto recebeu no
decorrer da história cristã, muitos enriquecimentos”
282
, na sua compreensão o tema da Aliança
é fundamental para a compreensão do conteúdo de povo. Todavia, no decorrer da história
sobretudo na visão da Igreja como “sociedade perfeita” teve muitas deturpações:
O povo é feito da aliança entre comunidades. A Igreja tem por vocação ser Povo de
Deus [...] Muitos sentem que a idéia de serviço, salientada pelo Concílio, precisa ser
interpretada no sentido de aliança entre iguais, e não o sentido imperial que é o de
dominar para servir.
283
Para Comblin a concepção “Povo de Deus” só triunfou no Vaticano II, onde se tratou
propriamente do elemento humano da Igreja sem minimizar a importância do elemento
divino, do mistério: “o capítulo primeiro da Lumen Gentium trata da Igreja como mistério,
isto é, do aspecto divino da Igreja. Os capítulos seguintes tratam do aspecto humano da
Igreja...”
284
A afirmação de G. Philips não deixa margem de dúvidas sobre a historicidade do Povo
de Deus, o qual caminha através dos tempos para chegar à glória definitiva: “... o Povo de
Deus é na realidade a manifestação terrena do mistério da Igreja”.
285
O ponto de partida desenvolvido na Lumen Gentium é a eleição do povo de Israel e a
sua aliança estabelecida. Segue com o eixo principal da nova aliança selada pelo Senhor para
sempre com seu novo povo em vista a sua plena libertação na pátria celeste:
281
VIER, Frederico; KLOPPENBURG, Boaventura. Compêndio Vaticano II: constituições, decretos e
declarações. 22. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.
282
CJPD, p. 133.
283
CJPD, p. 236-237.
284
CJPD, p. 137.
285
PHILIPS, Gérard. Op. cit., p. 162.
90
Em qualquer época e em qualquer povo é aceito por Deus todo aquele que O teme e
pratica a justiça (cf. At 10,35). Aprouve contudo a Deus santificar e salvar os
homens não singularmente, sem nenhuma conexão uns com os outros, mas constituí-
los num povo, que o conhecesse na verdade e santamente o servisse. Escolheu por
isso a Israel como o Seu povo. Estabeleceu com ele uma aliança [...] Tudo isso
porém, aconteceu em preparação e figura para aquela nova e perfeita aliança que se
estabeleceria em Cristo, e para transmitir uma revelação mais completa através do
próprio Verbo feito carne. [...] Foi Cristo quem instituiu esta nova aliança, isto é, o
novo testamento em seu sangue (cf. 1Cor 11,25), chamando de entre judeus e
gentios um povo, que junto crescesse para a unidade, não segundo a carne, mas no
Espírito, e fosse o novo Povo de Deus. Na verdade os que crêem em Cristo, os que
renasceram não de semente corruptível mas incorruptível pela palavra do Deus vivo
(cf. 1 Pd 1,23), não da carne, mas da água e do Espírito Santo (cf. Jo 3,5-6), são
finalmente constituídos “em linhagem escolhida, sacerdócio régio, nação santa, povo
adquirido... que outrora não eram, mas agora são Povo de Deus” (1 Pd 2,9-10).
286
A salvação é estendida a todo gênero humano, porém Deus quis estabelecer um povo
consagrado na santidade e na verdade para preparar a nova aliança, plenitude de sua
revelação. Assim o Novo Testamento, selado pela nova e eterna aliança no sangue de Cristo
faz desaparecer toda diferença entre judeu e não judeu, possibilitando a regeneração de todo
ser humano pela graça adquirida através do ingresso no novo Povo de Deus.
Comblin compreende que há uma unidade entre o mistério da Igreja e Povo de Deus
peregrino: “se a Igreja é Povo de Deus, isso quer dizer que o seu mistério de comunhão com o
Pai, o Filho e o Espírito Santo se vive e se realiza numa condição de povo. Povo inclui toda a
realidade humana na sua diversidade concreta”.
287
Daí pode-se, concluir, a Igreja,
consequentemente o Cristão, é reflexo do amor entre o Pai e o Filho enquanto caminha neste
mundo sob a luz e a ação do Espírito Santo.
2.3.1.1 O povo Deus como realidade escatológica
A índole escatológica da Igreja é tema do sétimo capítulo da Lumen Gentium, mas o
Povo de Deus enquanto povo que caminha é povo messiânico que tem como meta alcançar
Cristo cabeça de sua Igreja que já está na glória celeste; ele é o Senhor da vida e da história.
Por isso, oferece à nova comunidade dos filhos de Deus a condição, a dignidade e a liberdade
vivida no novo mandamento: “... que vos ameis uns aos outros. Como eu vos amei, amai-vos
286
LG 9.
287
CJPD, p. 134.
91
também uns aos outros. Nisso todos reconhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor
uns pelos outros” (Jo 13, 34-35).
“A Igreja é realidade escatológica. Isso quer dizer que receberá sua expressão perfeita
e completa somente no novo mundo, depois da ressurreição na nova Jerusalém [...] Embora
sendo povo escatológico ou messiânico, a Igreja é verdadeiro povo”.
288
Este povo messiânico tem por cabeça Cristo, “o Qual foi entregue por nossos
pecados e ressuscitou para a nossa justificação” (Rm 4,25), e agora, tendo
conseguido um nome que está acima de todo nome, reina gloriosamente nos céus.
Tem por condição a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus, em cujos corações
habita o Espírito Santo como num templo. Sua lei é o mandamento novo de amar
como o próprio Cristo no amou (cf. Jo 13,34). Sua meta é o Reino de Deus, iniciado
pelo próprio Deus na terra, a ser estendido mais e mais até que no fim dos tempos
seja consumado por Ele próprio, quando aparecer Cristo, nossa vida (cf. Col 3,4) e
“a própria criatura será libertada do cativeiro da corrupção para a gloriosa liberdade
dos filhos de Deus” (Rm 8,21). Assim, este povo messiânico, embora não abranja
atualmente todos os homens e por vezes apareça como pequeno rebanho, é contudo
para todo gênero humano germe firmíssimo de unidade, esperança e salvação.
Constituído por Cristo para a comunhão de vida, caridade e verdade, é por Ele ainda
assumido como instrumento de redenção de todos, e é enviado ao mundo inteiro
como luz e sal da terra (cf. Mt 5,13-16).
289
Para Comblin o problema de hoje que corrompe a Igreja é a forma neo-pentecostal de
ser Igreja, por ser uma proposta de elevação e de bem estar do indivíduo que se fecha em si e
não se abre à necessidade do outro: “a Igreja é Povo de Deus, não povo particular, mas povo
escatológico que está presente em todos os povos como fermento, força que transforma todos
os povos até que um dia possam todos realizar o projeto de povo”.
290
O estilo de movimento
religioso neo-pentecostal não assume compromisso comunitário de transformação da
realidade e esquece de ser um povo em caminho de contínua comunhão: “contra a invasão do
individualismo religioso, é preciso afirmar, com muita força, que a Igreja, não é agência de
distribuição de serviços religiosos [...] A Igreja é vida comunitária, é povo”.
291
Contra toda falta de esperança o Povo de Deus a caminho desempenha seu papel de
ser sinalizador de um novo amanhã, de que só Deus basta: “o maior desafio contemporâneo é
o de compreender que as forças dominantes tendam a destruir o povo. Não precisam de povos,
mas precisam apenas de consumidores do imenso mercado”.
292
Isto trava o processo
288
CJPD, p. 136-137.
289
LG 9.
290
CJPD, p. 156.
291
CJPD, p. 140.
292
CJPD, p. 218.
92
escatológico do povo. Por que? Por causa do individualismo: “o individualismo é tão forte
que a consciência escatológica de estar numa caminhada em que o Povo de Deus se busca em
todos os povos da terra, tende a desaparecer”.
293
O papel do Povo de Deus compreendido como povo escatológico, que apresenta a
plenitude da realização celeste, é fundamental para dar sentido à existência enquanto
caminhada histórica: “não se pode compreender o progresso histórico do Povo de Deus, se
falta a idéia da plenitude celeste dessa história e vice-versa, pois não é possível entender a
preocupação escatológica, sem levar em conta a história da salvação”.
294
2.3.1.2 O Povo de Deus como realidade histórica
O povo Deus é um povo peregrino, pois ele faz caminho histórico entre a promessa e o
cumprimento. “O que constitui um povo é, em primeiro lugar, a vida comum, a vida sofrida e
assumida em comum”.
295
A Lumen Gentium especifica de maneira clara que o sofrimento do povo Deus no
caminho do deserto é também o caminho do novo Israel, é a “Igreja de Deus”, que é a “Igreja
de Cristo” edificada sobre a rocha de Pedro (Mt 16,18), ela é do tempo presente a caminho da
cidade eterna:
Como o Israel segundo a carne, que peregrinava no deserto, já é chamado Igreja de
Deus (2 Esd 13,1; cf. Nm 20,4; Dt 23,1ss), assim o novo Israel que, caminhando no
presente tempo, busca a futura cidade perene (cf. Hb 13,14), também é chamado
Igreja de Cristo (cf. Mt 16, 18). Pois o próprio Cristo adquiriu-a com o seu sangue
(cf. At 20,28), encheu-a de seu Espírito e dotou-a de meios aptos de união visível e
social. Deus convocou e constituiu a Igreja – comunidade congregada daqueles que,
crendo, voltam seu olhar a Jesus, autor da salvação e princípio da unidade e da paz -
a fim de que ela seja para todos e para cada um “o sacramento visível desta unidade
salvadora” (S. Cipriano, Pist. 69,6; PL 3, 1142B; Hartel 3B, p. 754: inseparabilis
unitatis sacramentum). Devendo estender-se a todas as regiões da terra, ela entra na
história dos homens, enquanto simultaneamente transcende os tempos e os limites
dos povos. Andando, porém através de tentações e tribulações, a Igreja é confortada
pela força da graça de Deus prometida pelo Senhor, para que na fraqueza da carne
não decaia da perfeita fidelidade, mas permaneça digna esposa de seu Senhor e, sob
a ação do Espírito Santo, não deixe de renovar-se a si mesma, até que pela cruz
chegue à luz que não conhece ocaso.
296
293
CJPD, p. 218.
294
HACKMANN, Geraldo. A Igreja, Povo de Deus. Teocomunicação, p. 703.
295
CJPD, p. 147.
296
LG 9.
93
A Igreja enquanto Povo de Deus se dirige a todos os povos sem negar sua unidade,
formando uma unidade na pluralidade cultural dos povos. Estando acima de toda evolução
histórica ela não deixa de ser atingida pelos contextos históricos e pelos acontecimentos
terrenos: “é de extrema importância para a reta compreensão da doutrina sobre a Igreja levar
em consideração que Cristo, ao fundar sua Igreja como algo de perene e inconfundível,
todavia a inseriu na História em busca de sua meta final, a futura cidade perene”.
297
Comblin oferece alguns traços característicos que constitui o povo como comunidade
Igreja: agir juntos; sentir juntos; a presença física (conhecer-se); experiência de convivência
(solidariedade); comidas e bebidas comuns; festas comuns; calendário comum; emoção
(sentimento).
298
Com relação a prática da unidade “o que faz a unidade da Igreja: são os trabalhos
assumidos em comum, as lutas comunitárias, os confrontos assumidos em comum, as tarefas
comunitárias, os movimentos que procuram transformar o mundo num trabalho comum”.
299
Comblin compreende que a transformação real da sociedade atual, imersa no
individualismo e no consumismo, se dá através da prática da solidariedade:
O povo nasce e cresce num país quando os seus habitantes começam a sentir-se
solidários, praticando a solidariedade nos desafios, na aceitação da condição
comum. Se não há solidariedade pode-se afirmar que o povo ainda não existe. De
certo modo podemos constatar que solidariedade completa dificilmente se
encontra.
300
Comblin compreende que a partir da eclesiologia Povo de Deus a Igreja se forma
como povo pela Igreja dos pobres e por conseqüente libertação. Fundamenta sua afirmação a
partir do conceito de D. Oscar Romero:
D. Oscar Romero tem a seguinte concepção para que uma população se caracterize
como povo: primeiro as maiorias populares formadas pelo povo que vive em
condições desumanas de pobreza, em razão não da sua preguiça, da sua fraqueza ou
da sua incapacidade, mas pelo fato que maiorias são exploradas e oprimidas por
estruturas e instituições injustas, por países opressores ou por classes exploradoras,
que constituem como conjunto orgânico, a violência estrutural e institucionalizada;
segundo as organizações populares na sua luta para dar ao povo um projeto popular
297
SEMMELROTH, Otto. A Igreja o novo Povo de Deus. In: BARAÚNA, Guilherme. Op. cit., p. 481.
298
CJPD, p. 147-151.
299
CJPD, p. 148.
300
CJPD, p. 157.
94
e um poder popular que lhe permita ser autor e ator do seu próprio destino; terceiro
todos aqueles organizados ou não, que se identificam com as justas causas populares
e que lutam em seu favor. Dois elementos formam o povo: a pobreza e a luta para
sair da pobreza.
301
A análise do tema a Igreja e a pobreza é um tema do qual encontram-se apenas
algumas alusões na Lumen Gentium, mas não é por isso que ele deixa de ter sua importância
como conteúdo eclesiológico, uma vez que a importância de um ensinamento da Igreja não se
mede pelo número de vezes que é citado.
"
"
2.3.1.3 O Povo de Deus como a “Igreja dos pobres”
O conceito de Povo de Deus, segundo Comblin, é correlativo ao conceito de “pobre”:
“... o Povo de Deus se caracteriza pelo pobre e que a Igreja verdadeira é a Igreja dos
pobres”.
302
Retomar, portanto, a expressão “Igreja dos pobres” de João XXIII é de capital
importância para a atual eclesiologia, ela é a verdade plena sobre a Igreja: a Igreja dos pobres
é uma inspiração de João XXIII consolidada pelo Vaticano II e que parece não ter vingado
mas que está dormente e a qualquer momento poderá haver uma quebra de dormência. Essa é
a verdadeira essência da Igreja.
303
Para Comblin o conceito de Povo de Deus deve ter uma identificação com a Igreja dos
pobres e a Igreja não pode ser “para” os pobres, mas sim “dos” pobres. Mesmo havendo sinais
de uma minoria, a maioria fica apenas na ajuda aos pobres, “... enquanto a Igreja ficar apenas
na ajuda aos pobres, não se identificará com eles”.
304
Com toda certeza a Igreja sempre se
empenhou na tarefa primordial dos pobres. Tudo o que a Igreja tem, em última instância,
pertence aos pobres. Mas é preciso ter a devida clareza também neste tema para não se
continuar tendo posições unilaterais. É oportuno analisar em profundidade o texto da Lumen
Gentium e ver de perto o que se entende por pobreza no Vaticano II e qual a atitude proposta à
Igreja diante dos pobres.
301
CJPD, p. 160.
302
CJPD, p. 238.
303
Cf. CJPD, p. 280.
304
CJPD, p. 247.
95
O tema da pobreza ocupa poucos números na Lumen Gentium
305
e durante o Concílio
ele teve várias etapas e apresentações, nem sempre fáceis de se chegar ao consenso. Porém,
estas poucas linhas são expressões de significativo conteúdo à mensagem cristã:
No primeiro esquema De Ecclesia, preparado pela comissão pré-conciliar e
discutido de 1º a 7 de dezembro de 1962, os Padres censuraram o silêncio sobre a
pobreza. A intervenção do cardeal Lercaro insistia principalmente na necessidade de
valorizar a doutrina evangélica da pobreza de Cristo na Igreja, de apresentá-la com o
sinal e o modo da presença e da virtude salvífica do Verbo Encarnado entre os
homens; preconizava também fosse reconhecido à evangelização dos pobres o lugar
preponderante que lhe cabe.
306
Um novo projeto foi apresentado no final da primeira sessão quase correspondente ao
que tem no texto definitivo (cf. LG 8). Voltou a ser discutido também na segunda e terceira
sessões tendo sua elaboração completa como a encontramos na sessão de fevereiro-março de
1964, como sua aprovação final em 21 de novembro de 1964:
Mas assim como Cristo consumou a obra da redenção na pobreza e na perseguição,
assim a Igreja é chamada a seguir o mesmo caminho a fim de comunicar aos homens
os frutos da salvação. Cristo Jesus, “como subsistisse na condição de Deus,
despojou-se a si mesmo, tomando a condição de servo” (Fl 2,6) e por nossa causa
“fez-se pobre embora fosse rico” (2 Cor 8,9): da mesma maneira a Igreja, embora
necessite dos bens humanos para executar sua missão, não foi instituída para buscar
a glória terrestre, mas para proclamar, também pelo seu próprio exemplo, a
humildade e a abnegação. Cristo foi enviado pelo Pai para “evangelizar os pobres,
sanar os contritos de coração” (Lc 4,18), “procurar e salvar o que tinha perecido
(Lc 19,10): semelhantemente a Igreja cerca de amor todos os afligidos pela fraqueza
humana, reconhece mesmo nos pobres e sofredores a imagem de seu Fundador
pobre e sofredor. Faz o possível para mitigar-lhes a pobreza e neles procura servir
Cristo.
307
A Constituição Dogmática Lumen Gentium faz três comparações de como se dá o
seguimento de Cristo pela Igreja em relação à pobreza: Cristo, a Igreja e a pobreza; Cristo e a
Igreja se fazem pobres; Cristo e a Igreja anunciam a Boa Nova aos pobres. A questão da
pobreza “é abordada numa ótica essencialmente cristológica”.
308
Neste sentido, “a opção
305
Textos da Constituição sobre a Igreja que tratam diretamente da pobreza: LG 8; 23; 42.
306
DUPONT, Jacques. A Igreja e a pobreza. In: BARAÚNA, Guilherme (Org.). Op. cit., p. 420.
307
LG 8.
308
DUPONT, Jacques. A Igreja e a pobreza. In: BARAÙNA, Guilherme (Org.). Op. cit., p. 422.
96
preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por
nós para nos enriquecer com a sua pobreza (cf. 2Cor 8,9)”.
309
O texto fala de Jesus Cristo proclamando e testemunhando a Boa Notícia do reinado
de Deus na total pobreza e perseguição, assim também, a Igreja para continuar a missão de
Cristo é chamada a assumir a mesma postura, convocada a seguir o mesmo caminho, ou seja,
da cruz: “nenhum interlocutor de boa fé sustenta que a era das perseguições já tenha se
encerrado para a Igreja em todas as partes: seu caminho próprio será sempre o da cruz”.
310
Outro caminho assumido por Jesus é do despojamento descrito pelo Apóstolo Paulo:
Cristo sendo de condição divina assumiu a forma de escravo (Fl 2,6); sendo rico se fez pobre
pelo gênero humano (2 Cor 8,9): “a pobreza de Cristo não é um mito, senão uma áspera
realidade, tão real como sua dignidade divina”.
311
A Igreja, quando se demonstra portadora do mistério, sóbria em sua liturgia é
constituída para dar exemplo de humildade e renúncia, para fazer-se servidora e obediente ao
evangelho até a morte. Reconhece sua tarefa no mundo e tem plena consciência de que
necessita para tal fim dos recursos materiais:
Unicamente os sonhadores colocam isto em dúvida, exigindo quem sabe que esteja
em socorro de toda a miséria humana. O Evangelho não se mexe em uma atmosfera
irreal, e tratar de confiná-lo a ela pode ser um pretexto para esconder-se de suas
austeras exigências.
312
A missão de Cristo descrita na Escritura para com os pobres e pecadores deverá ser a
atitude da Igreja: “anunciar a Boa Nova aos pobres” (Lc 4, 18-19) e Ele também “veio
procurar o que estava perdido” (Lc 19, 10). Assim a Igreja encontra nos pequenos a imagem
do próprio Cristo, com a qual deverá deparar-se no juízo final: “cada vez que o fizestes a um
desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25, 40).
O primeiro texto bíblico é uma citação de Isaías, a qual Jesus ao lê-la diz que ela se
cumpre em sua pessoa:
309
BENTO XVI. Discurso na sessão de abertura da V Conferência Episcopal da América Latina e Caribe, p.3.
In: <http://br.celam.info> Produzido em: 14 maio, 2007, 22:32. Acesso em: 15/05/2007.
310
PHILIPS, Gérard. Op. cit., p. 152.
311
Ibidem, p. 152.
312
Ibidem, p. 153.
97
O Espírito do Senhor Iahweh está sobre mim, porque Iahweh me ungiu; enviou-me
para anunciar a boa nova aos pobres, a curar os quebrantados de coração e proclamar
a liberdade aos cativos, a libertação aos que estão presos, a proclamar um ano
aceitável a Iahweh e um dia de vingança do nosso Deus a fim de consolar todos
enlutados.
313
Ser “pobre de Iahweh”, frequentemente corresponde, no Antigo Testamento a anawim,
ou seja, são quase sempre pessoas comuns, sem influência, sem proteção, cujo coração está
cheio de confiança e esperança no Senhor.
Para Jesus os pobres são os primeiros destinatários do Reino de Deus. Pois a visão de
reino de Jesus está fundamentada nos escritos da Bíblia Hebraica, cuja função primordial do
rei é assegurar a defesa e a justiça aos seus súditos. Jesus dá preferência pelos pobres, não
porque eles sejam melhores do que outros, ou estão mais bem preparados para receber o
Reino: “Deus quer reinar como Rei justo, assegurando os devidos direitos a todos os
indefesos; quer mostrar-se compassivo e misericordioso, dispensando seus favores aos mais
desfavorecidos”.
314
Não se pode espiritualizar nem os discursos e nem as obras de Jesus em relação aos
pobres:
Jesus dirige aos pobres a boa nova do Reino de Deus, porque os benefícios desse
Reino recaem, por privilégio, sobre os deserdados do mundo presente: é em proveito
deles que Deus quer manifestar a justiça e a misericórdia que caracterizam o
exercício de sua realeza. Mas anunciando esta mensagem aos pobres, Jesus não faz
somente compreender que o ‘Reino está próximo’, mas também manifesta-se a si
mesmo como enviado por Deus, cuja vinda estava prometida no Livro de Isaías e
cuja missão devia coincidir com a instauração do Reino escatológico. A
evangelização dos pobres toma, assim, um valor de sinal; permite reconhecer a
estreita ligação que existe entre a missão de Jesus e a instauração do Reino.
315
Por sua vez, a Igreja também tem a tarefa da evangelização continuada de Jesus. O
mesmo sinal manifestado por Jesus, de ser portador da boa nova aos pobres, deve manifestar-
se agora nela, fazendo com que todos os homens tomem consciência de que o Reino virá.
A memória dos mártires latino-americanos e a consciência de libertação dos pobres
não se dão numa conversão individual. Ela se dá numa comunidade de membros convertidos,
313
Is 61,1-2.
314
DUPONT, Jacques. A Igreja e a pobreza. In: BARAÚNA, Guilherme (Org.). Op. cit., p. 442.
315
Ibidem, p. 443.
98
mas não totalmente, porque ainda não estão na plenitude da vida futura: da justiça, da paz e do
amor prometido aos infelizes deste mundo.
Comblin faz sérios questionamentos sobre a ausência da Igreja dos pobres e pergunta:
“Quem assume a defesa dos pobres?”
316
e afirma:
A II Conferência Episcopal Latino Americana, acontecida em Medellin assumiu o
compromisso de defender os pobres pois, Deus, o Deus da Bíblia é o Deus dos
pobres, se Deus é o defensor dos pobres, a sua defesa será assumida pelos seus
profetas.
317
Não só na Conferência de Medellín se estabelece esta prioridade na evangelização
como também na III Conferência Geral do Episcopado Latino Americano, acontecida em
Puebla. Ela vai se caracterizar pela “opção preferencial pelos pobres.”
318
Recentemente a
Igreja tem se preocupado e não deixa ser questão menos importante no papel evangelizador da
Igreja. Na abertura dos trabalhos da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e
Caribenho o Papa Bento XVI reafirma o caminho do evangelho junto aos pobres deste
continente:
Os povos latino-americanos e caribenhos têm direito a uma vida plena, própria dos
filhos de Deus, com umas condições mais humanas: livres das ameaças de fome e de
toda forma de violência. Para estes povos, seus Pastores hão de fomentar uma
cultura da vida que permita, como dizia meu predecessor Paulo VI, passar da
miséria da posse do necessário, à aquisição da cultura (...) à cooperação no bem
comum (...) até o reconhecimento, por parte do homem, dos valores supremos e de
Deus, que é a fonte e o fim deles (Populorum progressio, 21). Neste contexto me é
grato recordar a Encíclica Populorum progressio, cujo quadragésimo aniversário
recordamos neste ano. Este documento pontifício põe em evidência que o
desenvolvimento autêntico há de ser integral, ou seja, orientado à promoção de todo
o homem e de todos os homens (cf. n. 14), e convida a todos as suprimir as graves
desigualdades sociais e as enormes diferenças no acesso aos bens. Estes povos
desejam, sobretudo, a plenitude de vida que Cristo nos trouxe: “Eu vim para que
tenham vida e a tenham em abundância” (Jô 10,10). Com esta vida divina se
desenvolve também em plenitude a existência humana, em sua dimensão pessoal,
familiar, social e cultural.
319
316
CJPD, p. 256.
317
CJPD, p. 256.
318
“Afirmamos a necessidade de conversão de toda a Igreja para uma opção preferencial pelos pobres, no intuito
de sua integral libertação” (Puebla 1134).
319
BENTO XVI. Discurso na sessão de abertura da V Conferência Episcopal da América Latina e do Caribe, p.
3. In: <http://br.celam.info> Produzido em: 14/05/2007. Acesso em: 15/05/2007.
99
Diante de tanta desigualdade social, injustiça e miséria o cristão fica desconcertado e
desanimado, porém diante da dura realidade dos pobres é preciso defender os pobres.
Chegando ao final deste segundo capítulo, a obra “O Povo de Deus” de José Comblin
deixa transparecer duas grandes linhas de estudo para recuperar o conceito de Povo de Deus:
uma histórica e outra do seu próprio conteúdo.
Na primeira linha, a histórica, a Igreja passa por quatro etapas. A primeira tem como
eixo a história da salvação do povo de Israel em continuidade com o povo da nova Aliança, é
a Igreja primitiva ou da era apostólica identificado como o novo Povo de Deus. A segunda
etapa, parte do “Edito de Milão” (313 d.C.), quando a noção Povo de Deus vai perdendo força
e a Igreja vai tomando posturas associadas ao poder temporal do império, a partir deste
período muda-se todo o quadro institucional e organizativo da Igreja. Num terceiro momento,
a partir do século XI, a Igreja precisa de um entendimento entre o poder espiritual e o
temporal, assume a eclesiologia de sociedade perfeita e desigual. Finalmente, esse quadro só
muda no Vaticano II, quando se restabelece a noção de Povo de Deus caracterizando novas
relações dentro da Igreja através da igualdade fundamental de todos os membros da Igreja.
Quanto ao conteúdo, conclui Comblin, há duas vertentes eclesiológicas que perpassam
a vida da Igreja desde o seu início até os tempos atuais: uma seguidora de Jesus Cristo e outra
mundana. A primeira vertente é aquela que tem como fonte a imagem Povo de Deus co-
relacionada como o conceito de Igreja dos pobres. “De fato, somente a Igreja dos pobres pode
ter consciência de ser Povo de Deus”.
320
A segunda tem como fonte a aliança com os
poderosos e o silêncio: “quem está com os poderosos nunca reconhece que está com os
poderosos: fica calado, porque não pode ou não quer dizer que está com os pobres”.
321
Diante dessa visão é necessário perguntar: teológica e pastoralmente a idéia de “Povo
de Deus” co-relacionada à idéia da “Igreja dos pobres” é suficiente para expressar a realidade
que é a Igreja? Ou será que o Povo de Deus não deverá ser sinal do mundo e para o mundo e
como que o sacramento de salvação oferecida a todos os homens e mulheres?
O intento final do próximo capítulo é, portanto, fazer um estudo comparativo das
eclesiologias de comunhão e de Povo de Deus. De um lado, evitar um caminho unilateral
fazendo cooptação dos dois modelos em estudo em vista de uma eclesiologia menos parcial e
teologicamente fundamentada; de outro lado, oferecer uma perspectiva relacional
(sacramental) das eclesiologias em estudo para que ambas possam incidir pastoralmente.
320
CJPD, p. 410.
321
CJPD, p. 410.
100
5"GUVWFQ"EQORCTCVKXQ"
Nos dois capítulos anteriores, de um lado, nota-se certa tensão entre as visões
eclesiológicas de comunhão e Povo de Deus, mas, por outro lado, têm um aspecto em comum:
são noções fundamentais de compreensão de Igreja e ambas superam a visão juridicista ou
“hierarcológica” da Igreja.
Um estudo comparativo sistematizado normalmente reflete semelhanças e diferenças
dos objetos comparados. O risco nesse caso poderá ser o de fechar o debate dentro de certa
polaridade: por exemplo, Comunhão versus Povo de Deus.
A metodologia comparativa desta pesquisa procura, mais do que semelhanças e
diferenças, demonstrar a importância de cada modelo, sua complementaridade e sua
relevância nos diversos âmbitos da ação pastoral.
Conforme a percepção de Avery Dulles quando consideramos e avaliamos os modelos
de Igreja em si mesmo evitando as polaridades “... chega-se à conclusão de que uma teologia
equilibrada da Igreja deve achar o meio de incorporar as afirmações mais relevantes de cada
tipo eclesiológico fundamental”.
322
Este é o primeiro passo do presente capítulo: buscar o
justo ponto de equilíbrio entre as afirmações das duas eclesiologias em debate.
Uma vez demonstrada a ensambladura dos tipos eclesiológicos surge a tarefa de
apontar o elemento chave ou unificador desses dois modelos de Igreja. Nesta busca considera-
se a sacramentalidade como elemento unitivo dessas duas categorias, tendo em vista uma
mais ampla compreensão da realidade da Igreja em sua forma histórica – a eclesiologia de
Povo de Deus – e na interpretação do seu mistério – a eclesiologia de comunhão.
Perseguindo a visão de Santiago Madrigal, a perspectiva sacramental se torna
fundamental à integração das eclesiologias pós-conciliares comunhão e Povo de Deus: “o
substrato de ambas as visões eclesiais seguirá sendo a perspectiva sacramental, que enuncia
que a Igreja é a manifestação visível da graça de Cristo na comunidade humana”.
323
Logo,
recupera-se nesse senso um dado essencial da Igreja: sua dimensão teândrica, na qual se funde
o elemento divino e humano. Aqui é necessário sublinhar a diferença entre Cristo e a Igreja: a
Lumen Gentium faz uma analogia com Jesus Cristo, mas não faz uma união hipostática dos
elementos da Igreja “é por isso, mediante uma não medíocre analogia, comparada ao Verbo
322
DULLES, Avery. A Igreja e seus modelos, p. 5.
323
MADRIGAL, Santiago. Vaticano II: remembranza e actualización, p. 269.
101
encarnado”.
324
Assim, por exemplo, a Igreja enquanto comunidade visível é santa e pecadora,
enquanto Jesus Cristo não possui pecado.
A aplicação da perspectiva sacramental abre um caminho relacional entre as categorias
eclesiológicas comunhão e Povo de Deus, pois permite, além da aplicação pastoral delas,
também “discernir a relação entre o visível o invisível na Igreja, superando o puro
espiritualismo e o puro sociologismo com uma articulação entre a sua realidade sacramental e
da sua realidade significada”.
325
3.1 COMPLEMENTARIDADE DOS CONCEITOS DE POVO DE DEUS E DE
COMUNHÃO
Todo conceito ou qualquer que seja o estudo sobre o mistério vai estar limitado em sua
descrição lingüística ou em sua representação icônica, porque estas derivam sempre da
experiência finita. Por isso, para interpretar o mistério que a Igreja encerra não se pode
absolutizar um em prejuízo de outro, mas perceber o complemento de ambos.
Para Avery Dulles “em vez de procurar a imagem absolutamente ideal, melhor fora
reconhecer que as múltiplas imagens que a Escritura e a Tradição nos fornecem são
mutuamente complementares”.
326
A realidade histórica do Povo de Deus e o seu estilo de vida em comunhão são
realidades fundidas.
Os dados da Sagrada Escritura, da Tradição e do Magistério dão suporte à
compreensão harmonizada dos conceitos:
O conceito Povo de Deus contém a idéia de comunhão de vida e de destino de um
mesmo povo, pois o termo am inclui a noção de parentesco, de ligação tribal, por
parte de pai; daí que o compatriota (co-nacional, nativo) é irmão, enquanto membro
de uma grande família, formada pelo mesmo povo, pois todos são irmãos e filhos de
um mesmo pai. De uma simples nação, deve ser feita uma comunhão, um verdadeiro
am, na qual cada um participa, na justiça e no amor, da vida do outro.
327
324
LG 8.
325
PIÉ-NINOT, Salvador. Op. cit., p. 209.
326
DULLES, Avery. Op. cit., p. 31.
327
HACKMANN, Geraldo Luiz Borges. A amada Igreja de Jesus Cristo, p. 156.
102
O conceito da Igreja como comunhão se harmoniza com diversas imagens bíblicas,
especialmente com a imagem de Povo de Deus. “O Povo de Deus é um conceito teológico e
bíblico profundamente enraizado no Antigo Testamento, onde se alude, constantemente a
Israel como a nação da especial predileção de Deus”
328
constituída pela Aliança.
A Aliança, por sua vez, “completa e explicita a relação de fidelidade e amor em que
Deus entrou com a humanidade graças ao seu amado Filho, Jesus Cristo”.
329
Portanto, os
cristãos formam o novo povo convocado por Deus a viver segundo o paradigma da comunhão
eclesial neo-testamentário (At 2,42-47).
Na mesma linha segue o Vaticano II. O principal paradigma da Igreja é o do Povo de
Deus: “o Concílio Vaticano II acena para uma Igreja Povo de Deus, conformada por todos os
batizados, em relação de comunhão e vivendo em comunidade, a exemplo do modelo
apresentado pelos Atos dos Apóstolos (At 2,42ss)”.
330
A imagem Povo de Deus é muito mais uma categoria teológica do que propriamente
uma realidade histórica, pois é um ideal mais do que propriamente um fato histórico.
No entanto, de uma simples nação, de uma unidade histórico-biológica, deve
acontecer uma verdadeira comunhão, isto é, um real am, cujos membros não estão
unidos entre si, unicamente, em virtude da descendência e da sorte, mas também
pela participação na justiça e no amor, da vida do outro, fruto do mesmo centro
divino de unidade. Por isso, am elohim, “Povo de Deus”, expressa que todos os
membros estão unidos entre si por um mesmo centro divino de comunhão.
331
Em diversos textos (Rm 9,23-26; Hb 8,10; Tg 1,1; 1Pd 2,9) alude-se à Ekklesía cristã
como novo povo de Israel ou como Povo de Deus da Nova Aliança.
A via eficaz para traçar uma eclesiologia mais harmônica nas estruturas hierárquicas
e laicais depende da consideração de todos os crentes à luz do mistério de
comunhão, que na fé e nos dons da redenção une todos os crentes. Frente ao
juridicismo, o capítulo primeiro da Lumen Gentium oferece uma consideração da
Igreja-mistério; frente a societas inaequalis, o capítulo II da Lumen Gentium
estabelece a igualdade fundamental entre todos os cristãos em virtude do batismo.
Assim há de se concretizar o passo de uma eclesiologia jurídica a uma eclesiologia
de comunhão através do Povo de Deus: “tudo o que foi dito para o Povo de Deus
vale igualmente para os leigos, religiosos e clérigos” (LG 30).
332
328
DULLES, Avery. Op. cit., p. 55-56.
329
Ibidem, p. 57.
330
BRIGHENTI, Agenor. A pastoral dá o que pensar: a inteligência da prática transformadora da fé. São Paulo:
Paulinas; Valência: Siquem, 2006, p. 38-39.
331
HACKMANN, Geraldo Luiz Borges. Op. cit., p. 157.
332
MADRIGAL, Santiago. Op. cit., p. 301.
103
As palavras de Cristo “sede perfeitos como vosso pai do céu é perfeito” (Mt 5,48),
valem para todo o cristão. A consideração da Igreja como Povo de Deus convocado por Ele
(LG II), revisa uma concepção piramidal, introduzindo uma lógica de comunhão, donde a
autoridade há de ser serviço (LG III). Esta lógica deve presidir a relação entre as duas
instâncias complementares e constitutivas da vida eclesial: o sacerdócio comum dos fiéis e a
estrutura carismática da Igreja, por um lado, e a valorização da sacramentalidade do novo
Povo de Deus, por outro.
A análise de relação nos mostra que a integração se dá em alguns pontos de
intersecção que, segundo Madrigal, serve de base ao sistema eclesiológico: “o batismo é o
fundamento sobre o qual se constroem a comunhão cristã (ecumenismo); [...] a unidade
católica do Povo de Deus acolhe em seu seio as Igrejas particulares e locais”.
333
João Paulo II, na carta de apresentação do Código de Direito Canônico em 25 de
janeiro de 1983, oferece uma interpretação clara de complementaridade das categorias de
Povo de Deus e de comunhão com a seguinte afirmação:
Entre os elementos que exprimem a verdadeira e autêntica imagem da Igreja,
cumpre mencionar os seguintes: a doutrina que propõe a Igreja como Povo de Deus
(LG II), e a autoridade hierárquica como serviço (LG III); a doutrina que, além
disso, apresenta a Igreja como comunhão e, por conseguinte, estabelece relações que
deve haver entre Igreja particular e Igreja universal, e entre a colegialidade e o
primado; a doutrina, segundo a qual todos os membros do Povo de Deus participam,
a seu modo, do tríplice múnus de Cristo: sacerdotal, profético e régio. A esta
doutrina está também unida a que se refere aos direitos e deveres dos fiéis e
expressamente dos leigos; enfim, o esforço que a Igreja deve consagrar ao
ecumenismo.
334
Santiago Madrigal em sua análise sobre o texto papal afirma: “deve-se, pois, eliminar
uma disjuntiva excludente, pois cada modelo tem valores irrenunciáveis; pela mesma razão,
deve-se descartar uma harmonização ou um irenismo facilitador”.
335
Portanto, a integração da comunhão eclesial caracteriza-se pela presença simultânea da
diversidade e da complementaridade das vocações e condições de vida, quer dos carismas,
quer das responsabilidades. Graças a essa diversidade e complementaridade, cada fiel
333
MADRIGAL, Santiago. Op. cit., p. 269-270.
334
JOÂO PAULO II. Constituição Apostólica “Sacrae disciplinae leges”. In: CÓDIGO de Direito Canônico,
1983, p. 15 ss.
335
MADRIGAL, Santiago. Op. cit., p. 269.
104
encontra-se em relação com todo corpo, ao qual então apresenta a força de sua própria
contribuição seja para o próximo, como à comunidade ou também para a sociedade em geral.
3.2 A SACRAMENTALIDADE COMO CATEGORIA TEOLÓGICO-HERMENÊUTICA
A Igreja, enquanto comunidade visível transcende àquilo que simplesmente sua
realidade aparente demonstra. Por trás dela manifesta-se algo mais do que simples e
superficialmente se visualiza à primeira vista. Por trás do sinal aparente esconde-se um
significado mais profundo.
A perspectiva sacramental vai além de um conceito ao lado dos outros, pois afirma o
próprio ser da Igreja. Assim a compreensão da Igreja como sacramento no Vaticano II está,
Em chave relacional sobre sua própria ‘ontologia’ [...] Desta afirmação explica-se a
relação constitutiva que existe entre vários aspectos parciais da Igreja, sobretudo
entre uma realidade espiritual, mistérica e sua realidade histórica, humana e
sociológica.
336
A palavra “sacramentalidade” expressa que na realidade interior e mais profunda o
Deus transcendente se serve da realidade exterior como mediação para manifestar-se à pessoa
humana. “A sacramentalidade é, pois, a forma que Deus assume para aproximar-se da pessoa
como graça, e é a forma pela qual ele pode ser encontrado [...] É o lugar onde se afronta o
problema da relação entre Igreja visível e a salvação invisível”.
337
Este conceito compreende a
Igreja como instrumento e sinal, ou seja, como mediação entre sua manifestação histórica e
seu mistério.
A sacramentalidade da Igreja significa que ela “... é em Cristo como que o sacramento
ou o sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo gênero humano...”
338
evitando um espiritualismo fundamentalista como um materialismo juridicista. Percebe-se,
assim, que a Igreja compreendida como “sacramento” foi recuperado no Vaticano II. Portanto,
336
MADRIGAL, Santiago. Op. cit., p. 191.
337
HACKMANN, Geraldo L. B. Igreja que dizes de ti mesma? E as eclesiologias. In: SANTOS, Manoel.
Concílio Vaticano II: quarenta anos da “Lumen Gentium”. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005, p. 99.
338
LG 1.
105
é de capital importância verificar a compreensão teológica da Igreja como sacramento e as
suas formulações deixadas pelo Concílio.
50403"C"eqortggpuçq"fc"ucetcogpvcnkfcfg"pq"Xcvkecpq"KK""
Para Justo Collantes “uma das idéias mais felizes do Vaticano II é a conceituação de
Igreja como sacramento: o que não é certamente uma novidade, mas, sim, a primeira vez em
que aparece definitivamente consagrada num texto conciliar”.
339
Na tradição da teologia a expressão “sacramento” se apresenta, a partir do Concílio de
Trento para os sacramentos litúrgicos, como “a forma visível da graça invisível”
340
; a partir do
Concílio Vaticano II o uso da expressão “sacramento” é utilizado, não para descrever uma
celebração litúrgica, mas sim para autocompreensão da Igreja com “o termo explícito
sacramentum e com a densa fórmula gestis verbisque”.
341
Esta perspectiva tem qualificado a
estrutura própria da revelação cristã transmitida pela Igreja em chave precisamente
sacramental.
A teologia recente aplicou a Jesus Cristo a expressão “sacramento originário”
342
do
qual deriva a sacramentalidade da Igreja e de seus sacramentos concretos:
Desta forma, a sacramentalidade, se manifesta como a categoria teológica-
hermenêutica por excelência para expressar a economia reveladora centrada em
Jesus Cristo (sacramento originário), por meio da Igreja (sacramento fundamental), e
de cada um dos sacramentos concretos (realizações que atualizam o sacramento
fundamental).
343
339
FC, p. 917.
340
DH 1639.
341
LG 1.9.48.59; SC 5.26; GS 42.45; AG 1.5; DV 2.4.14.17.19 (cf. PIÉ-NINOT, Salvador. Op. cit., p.175).
342
“Não quer isto dizer que, além dos sete sacramentos, haja um oitavo, que seria a própria Igreja. Não! O que
se quer dizer com a definição de sacramento, no sentido católico, é que Cristo é o sacramento original,
porque Nele se faz visível o Deus invisível e a natureza humana de Cristo cumpre perfeitamente o que diz o
Concílio de Trento sobre a natureza dos sacramentos, porque contém a graça santificante. Analogamente a
Igreja é sacramento original, porque Corpo de Cristo, templo do Espírito Santo, caminho para a salvação, de
que Jesus se serve para fazer chegar aos homens os frutos da Redenção” (FC, p. 918).
343
PIÉ-NINOT, Salvador. Op. cit., 190.
106
A Igreja é referida no Vaticano II através de três formulações: “sacramento de Cristo”,
“sacramento de unidade” e “sacramento universal de salvação da humanidade e do mundo”,
as quais manifestam a realidade sacramental da Igreja.
3.2.1.1 A Igreja como “sacramento de Cristo”
É na Constituição Sacrosanctum Concilium, que pela primeira vez aparece esta
formulação: “pois do lado de Cristo dormindo na cruz nasceu o admirável sacramento de toda
a Igreja”.
344
A Igreja, portanto, é portadora do mistério de Cristo e dela Ele se serve como sinal e
instrumento visível, para ser “sacramento de salvação”
345
e “sacramento de unidade do mundo
e da humanidade”
346
.
3.2.1.2 A Igreja como “sacramento de unidade”
Segundo a constituição Lumen Gentium a Igreja é princípio de unidade: “Deus
convocou e constituiu a Igreja [...] a fim de que ela seja para todos e para cada um o
sacramento visível de unidade”.
347
A referência a São Cipriano põe em relevo que a Igreja é comunhão, cuja realidade
significada consiste na unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Com efeito, é através dos
sacramentos que a Igreja se atualiza; neste sentido a eucaristia “fonte e ápice da comunidade
cristã”
348
mostra de maneira concreta a comunhão do Povo de Deus, povo que comporta uma
catolicidade universal e ecumênica.
349
344
SC 5 (com citação de S. Agostinho, Enarr. In Ps. 138, 2: Corpus Christianorum, XL, Turnholt 1956, p. 1991
e a oração depois da 2ª leitura do sábado Santo, no Missal Romano, antes da reforma da semana Santa).
345
SMULDERS, Pieter. A Igreja como sacramento de salvação. In: BARAÙNA, Guilherme. Op. cit., p. 396-
419.
346
WITTE, Jan L. A Igreja sacramentum unitatis do cosmo e do gênero humano. In: BARAÙNA, Guilherme.
Op. cit., p. 526-556.
347
LG 9 (cf. S. Cipriano, Epist. 69,6: PL 3, 1142 B; Hartel 3B, p. 754: “inseparabile unitatis sacramentum”).
348
LG 11.
349
Cf. LG 13; UR 3;4.
107
3.2.1.3 A Igreja como “sacramento de salvação”
O adjetivo “de salvação” aparece cinco vezes nos documentos do Vaticano II.
350
A compreensão do Concílio tem como ponto de partida a dimensão cristológica: Jesus
Cristo é o sacramento de Deus voltado para a salvação da humanidade. Cristo como
sacramento de Deus, contém a graça que significa ao mesmo tempo em que a confere. Nele a
graça de Deus assume forma visível. Mas o sacramento da redenção não é completo em Jesus
como um só indivíduo. Para se tornar aquele sinal que deve ser, deve aparecer como sinal do
amor redentor de Deus, extensivo a toda humanidade e da resposta de todo gênero humano a
esse amor de redenção. Neste sentido a Igreja é em primeira instância um sinal.
Ela deve significar, de uma forma historicamente tangível, a graça redentora de Cristo
e, conseqüentemente, portadora de salvação ao mundo e a todo o gênero humano: “a tríplice
repetição do adjetivo ‘universal’ põe em relevo o caráter único desta sacramentalidade que se
oferece não só aos crentes, como também a toda a humanidade”.
351
Ora, a compreensão da
Igreja como “sacramento universal”, significa também que ela está a serviço da solidariedade
humana. Logo, esta tarefa pressupõe que a sacramentalidade seja uma expressão relacional
entre a comunidade (Povo de Deus) e o seu mistério de comunhão.
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A perspectiva da Igreja sacramento comporta a possibilidade de uma eclesiologia
relacional das eclesiologias comunhão e Povo de Deus, a qual quer evitar uma visão unilateral
da Igreja, pois o simbolismo e o realismo precisam constituir uma realidade única
conservando suas particularidades para uma aplicação pastoral.
Conforme Pié-Ninot, a eclesiologia relacional “se trata de um conceito que se une à
compreensão conciliar da eclesiologia de comunhão concebida em forma de círculos
concêntricos e processuais tal como aparece em LG 13-16 e UR 3-4...”.
352
350
LG 48; 59; AG 1; AG 5; GS 45.
351
PIÉ-NINOT, Salvador. Op. cit., p. 183.
352
Ibidem, p. 184.
108
A passagem de uma eclesiologia jurídica e de sociedade perfeita prevalente antes do
Vaticano II – a uma eclesiologia de comunhão e de Povo de Deus comporta a dimensão
relacional de sua realidade de povo peregrino rumo a sua plena realização na história. Assim o
Vaticano II aponta para a compreensão do mistério que de alguma forma se revela e se
manifesta visivelmente. “De fato, o Vaticano II com a visão sacramental da Igreja não
pretende uma sublimação ideológica da Igreja, senão ao contrário superar as estreitezas e
unilateralidades do conceito de sociedade perfeita”.
353
Então o conceito da Igreja sacramento
remete a uma nova relação entre a Igreja e o mundo salvaguardando a autonomia de ambos.
A Lumen Gentium vem afirmar que “a Igreja, ou seja, o Reino de Cristo já presente em
mistério, pelo poder de Deus cresce visivelmente no mundo”.
354
Este Reino é co-extensivo à
humanidade e “por isso a Igreja [...] recebeu a missão de anunciar o reino de Cristo e de Deus,
de estabelecê-lo em todos os povos e deste Reino constitui na terra o germe e o início”.
355
Finalmente, um desenvolvimento sistemático da sacramentalidade como expressão
relacional das eclesiologias em estudo pode oferecer elementos para uma teologia pastoral. A
perspectiva final tem como intento oferecer incidências pastorais da Igreja como comunhão,
que necessita de uma linguagem simbólica. Esta, por sua vez, se dá numa comunidade
contextualizada, a qual transmite o mistério num determinado espaço geográfico e num
determinado tempo histórico, ou seja, na Igreja como Povo de Deus.
3.3 INCIDÊNCIAS PASTORAIS DAS DUAS ECLESIOLOGIAS
Uma vez descrito o modelo eclesiológico faz-se necessário explicitar as principais
repercussões do conteúdo na ação pastoral.
Não se faz aqui um estudo de relação entre os princípios doutrinários e sua aplicação
pastoral, pois estes já estão consagrados na Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo de
hoje, Gaudium et spes. Por exemplo, no proêmio, a Gaudium et spes de forma global oferece
um modelo relacional: “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de
353
PIÉ-NINOT, Salvador. Op. cit., p. 208.
354
LG 3.
355
LG 5.
109
hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as tristezas e as
angústias dos discípulos de Cristo”.
356
Assim, dentro da perspectiva sacramental, esta reflexão limita-se apenas a descrever as
incidências nos âmbitos da ação eclesial, porque “pessoa-comunidade-sociedade são três
âmbitos de uma mesma e inesgotável grandeza da identidade e da vocação humana e
cristã”.
357
A meta é apontar, ainda que brevemente, o que cada um dos modelos estudados
pode oferecer como pano de fundo à ação pastoral.
Segundo Agenor Brighenti, uma completa teologia pastoral aplicada engloba pelo
menos três aspectos: os âmbitos da ação eclesial na trilogia pessoa-comunidade-sociedade e
suas exigências pedagógicas e espiritual.
358
Portanto, oferece-se alguns aspectos relevantes das importantes categorias – comunhão
e Povo de Deus - sobre a fé cristã em seu universo, em sua realidade vivenciada.
Os três âmbitos da ação pastoral são assim integrados segundo a síntese de Agenor
Brighenti:
É quando o ser humano, como pessoa, em meio a uma comunidade, se engaja na
edificação de uma sociedade justa e solidária que ele próprio se constrói e se realiza,
se torna continuador da obra redentora de Jesus Cristo e arauto do Reino de Deus no
mundo.
359
O Concílio Vaticano II optou partir do homem de hoje apoiado numa antropologia
unitária, numa concepção de salvação em comunidade e no reconhecimento da autonomia do
temporal, “... acenando para três âmbitos de uma autêntica ação pastoral: o âmbito da pessoa,
o âmbito da comunidade e o âmbito da sociedade”.
360
356
GS 1.
357
BRIGHENTI, Agenor. Op. cit., p. 153, grifo do autor.
358
Ibidem, p. 153.
359
Ibidem, p. 153.
360
Ibidem, p. 155.
110
50503"Fc"Kitglc"eqoq"eqowpjçq"
"
"
3.3.1.1 Na dimensão da pessoa
O Concílio Vaticano II, como projeto global, pode ser entendido como um projeto de
Igreja ad intra e ad extra. A Igreja não só soube olhar para si mesma como também soube ir
ao encontro da pessoa.
A reflexão dos padres conciliares coloca a pessoa como sujeito, princípio e fim de
todas as instituições, “... dotada de dignidade (GS 26; DH 1), em razão de sua sublime
vocação para a comunhão com Deus (GS 19), merece reverência e respeito (GS 27), pois
Deus a respeita (DH 11), mesmo quando ela erra (GS 28)”.
361
Na base de toda eclesiologia de comunhão encontra-se o próprio mistério de Deus em
comunhão das pessoas trinitárias, e esta, por sua vez se estende sobre cada pessoa criada a sua
imagem e semelhança (cf. Gn 1,27). Uma das mais completas expressões da mística da
comunhão encontra-se nos escritos joaninos: “o que vimos e ouvimos vo-lo anunciamos para
que estejais também em comunhão conosco. E a nossa ‘comunhão’
362
é com o Pai e com o
seu Filho Jesus Cristo” (1 Jo 1,3).
A experiência pessoal do amor de Deus é talvez a maior descoberta que o ser humano
pode realizar. Esta, por sua vez, realiza-se na íntima comunhão com Ele, e assim, capacita a
pessoa a superar o amor próprio para amar o próximo: “isso só é possível realizar-se a partir
do encontro íntimo com Deus, um encontro que se torna comunhão de vontade, chegando
mesmo a tocar o sentimento”.
363
A partir da comunhão realizada nas profundas raízes da comunhão trinitária dá-se o
germinar da Igreja quando as pessoas se aproximam uma das outras para comunicar a mesma
mensagem de fé, esperança e caridade.
361
BRIGHENTI, Agenor. Op. cit., p. 159.
362
“Este termo (cf. 1 Cor 1,9; 2 Pd 1,4) exprime um dos principais temas da mística joanina (Jo 14,20;15,1-6;
17,11.20-26): a unidade da comunidade cristã fundada sobre a unidade de cada fiel com Deus, em Cristo.
Esta unidade é expressa por diferentes formas: o cristão ‘permanece em Deus e Deus permanece nele’ (1 Jo
2,5-6.24.27; 3,6.24; 4,12-13.15-16; cf. Jo 6,56), ele é nascido de Deus (2,29; 3,9; 4,7; 5,1.18), é de Deus
(2,16; 3,10; 4,4.6; 5,19), conhece a Deus ... Esta união com Deus se manifesta pela fé e pelo amor fraterno
(cf. 1 Jo 1,7; Jo 13,34; At 1,8.21-22).” (BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém , 1 Jo 1, nota “b”).
363
BENTO XVI. Deus caritas est, n. 18, p. 33.
111
A manifestação desta alegria experimentada de forma pessoal alarga-se numa
comunidade reunida em torno da Trindade. Aquilo que o Vaticano II expressou nas palavras
de Cipriano e Agostinho: “um povo reunido na unidade do Pai e do Filho e do Espírito
Santo”.
364
3.3.1.2 Na dimensão da comunidade
Na dimensão comunitária a experiência pessoal de amor dá lugar à fraternidade. Neste
movimento acontece a mútua relação dos diversos indivíduos onde o conceito de comunidade
pressupõe uma pluralidade de indivíduos que se unem e se inter-relacionam com vínculos
pessoais.
Segundo a compreensão de Agenor Brighenti,
A pessoa só consegue personalizar-se e tomar consciência do mundo e dos outros
através do encontro pessoal e de amor no cerne de uma comunidade concreta. Da
mesma forma que é no encontro do ‘eu’ com o ‘tu’ que desperta a consciência
pessoal, a harmonia fundamental da pessoa depende da aprendizagem do
gerenciamento de seus conflitos na comunidade, transformando-os em relações
amorosas. A Igreja quer ser um espaço de realização da vocação cristã, enquanto
comunidade, ícone da Trindade.
365
A diversidade de dons e carismas é expressão criativa da única missão de Cristo em
prol da humanidade: “o Povo de Deus aparece como uma comunhão de irmãos, estruturada
segundo uma diversidade de vocações, na qual as diferentes funções e a diversidade de
carismas não anulam a radical igualdade das pessoas”.
366
A diversidade de ministérios na Igreja convida à superação da dicotomia “hierarquia-
leigos” entendido como princípio estrutural para dar lugar à “comunidade-ministérios” onde
os membros agem na co-responsabilidade.
O princípio estrutural é, então, aquele da unidade do Povo de Deus na multiplicidade e
na interdependência das vocações e dos ministérios, onde todos juntos concorrem a dar forma
364
LG 4 (cf. S. Cipriano, De orat. Dom. 23: PL 4,553; Hartel, IIIA, p. 285. S. Agostinho, Serm. 71, 20.33: PL
83, 463 ss. S. João Damasceno, Adv. Iconocl., 12: PG 96, 1358D).
365
BRIGHENTI, Agenor. Op. cit., p. 161.
366
AADE, p. 510.
112
à comunidade. Por sua vez, “a comunidade eclesial sempre apresenta uma dimensão de amor
e de fé, que liga e enriquece seus membros”.
367
Esta concepção comunitária é bíblica e sua interpretação atual pode muito bem ser
aplicada na práxis cristã.
Afirma o recente magistério da Igreja:
O amor do próximo, radicado no amor de Deus, é um dever antes de mais para cada
um dos fiéis, mas é-o também para a comunidade eclesial inteira, e isto a todos os
seus níveis: desde a comunidade local passando pela Igreja particular até à Igreja
universal na sua globalidade. A Igreja também enquanto comunidade deve praticar o
amor. Conseqüência disto é que o amor tem necessidade também de organização
enquanto pressuposto para um serviço comunitário ordenado. A consciência de tal
dever teve relevância constitutiva na Igreja desde os seus inícios: “todos os crentes
viviam unidos e possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e
distribuíam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um” (At
2,44-45). Lucas conta-nos isto no quadro duma espécie de definição da Igreja, entre
cujos elementos constitutivos enumera a adesão ao “ensino dos Apóstolos”, à
“comunhão” (koinonia), à “fração do pão” e às “orações” (cf. At 2,42). O elemento
da “comunhão” (koinonia), que aqui ao início não é especificado, aparece depois
concretizado nos versículos anteriormente citados: consiste precisamente no fato de
os crentes terem tudo em comum, pelo que, no seu meio, já não subsiste a diferença
entre ricos e pobres (cf. também At 4,32-37). Com o crescimento da Igreja, esta
forma radical de comunhão material — verdade se diga — não pôde ser mantida.
Mas o núcleo essencial ficou: no seio da comunidade dos crentes não deve haver
uma forma de pobreza tal que sejam negados a alguém os bens necessários para uma
vida condigna.
368
O ícone da comunidade primitiva, acima descrito, mostra que a comunhão é um
princípio dinâmico do qual derivam elementos fundamentais que compõem a natureza da
Igreja nascente. Estes aspectos continuam subjacentes na vivência eclesial tanto em seu plano
organizativo, como nas suas expressões mistagógicas.
Se, de um lado, o termo “comunhão” não signifique a Igreja como um sujeito coletivo,
operante na história, por outro lado, ele expressa uma qualidade que caracteriza o
relacionamento que une entre si os membros que a compõe.
369
A Igreja, na medida em que seus membros vivem a exigência da caridade, ela se
apresenta como presença visível e significativa à vida humana, é a “família de Deus no
367
BRIGHENTI, Agenor. Op. cit.,, p. 161.
368
BENTO XVI. Deus caritas est, n. 20, p. 36-37.
369
Cf. DIANICH, Severino; NOCETI, Serena. Op. cit., p. 189.
113
mundo”
370
e então se compreende que ela é “o germe e o início”
371
do Reino de Deus no
mundo.
3.3.1.3 Na dimensão da sociedade
A atual antropologia cristã tem como chave de leitura a dignidade da pessoa humana.
Mas tal visão não tem porque levar ao individualismo. Só uma visão dualista que separa o
imanente do transcendente empobrece e fragmenta a vida pessoal a ponto de levá-la ao
anonimato e ao isolamento egoísta.
Uma sadia releitura vetero-testamentária e neo-testamentária vê o cristão sempre na
comunidade eclesial: “viver a vida pessoal comporta o desenvolvimento da verdadeira
experiência comunitária, que não somente não obstaculiza o amadurecimento da identidade
pessoal, mas antes o estimula e o promove”.
372
Segundo Dom Elias Zoghby
373
a unidade não é exclusiva, mas exige a diversidade,
pois é da diversidade de dons e ministérios, de diferentes povos e culturas e da pluralidade de
modelos religiosos e eclesiais que resulta o mosaico da comunhão de todos:
Foi-se o tempo em que a sociedade civil religiosa julgava a diversidade incompatível
com a unidade. Os homens de todas as raças, de todas as cores e de todas as
religiões começam a acreditar na fraternidade universal, e a renunciar ao espírito
separatista, fanático e sectário da Idade Média. [...] As duas grandes guerras que
serviram de teste e não trouxeram solução para os problemas que dividiram a
humanidade, demonstraram que os conflitos internacionais não podem ser
solucionados pela força. Uma nova era de diálogo começou entre os povos. E visto
que a união entre os homens, como a união com Deus pelo amor, não pode
geralmente durar a não ser que seja acompanhada de um certo temor salutar, Deus
permitiu que a ameaça das armas atômicas viesse a deter a humanidade à beira do
abismo, onde a guerra quase a precipitou, toda vez que o diálogo lhes parecia
ineficaz.
374
370
BENTO XVI. Deus caritas est, n. 25, p. 42.
371
LG 5.
372
RUBIO, Alfonso García. Unidade na pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristãs. 3. ed. São
Paulo: Paulus, 2001, p. 14.
373
No período do Concílio Vaticano II era Arcebispo da Núbia; Vigário Patriarcal Greco-Melquita Católico para
o Egito e Sudão (cf. Baraúna, Guilherme. Op. cit., p. 14).
374
ZOGHBY, Elias. Unidade na diversidade. In: BARAÚNA, Guilherme. Op. cit., p. 573.
114
Hoje a teologia, o magistério eclesial e a própria consciência cristã clamam pela
comunhão solidária na dimensão social e política tendo em vista a superação da exclusão e da
violência na sociedade consumista.
A doutrina social da Igreja propõe para além das fronteiras eclesiais indicações
importantes, que são princípios para guiar a sociedade.
No princípio da solidariedade “... a pessoa existe para a comunidade e para a
sociedade, as quais existem para a pessoa”.
375
A solidariedade supera as fronteiras da
comunidade nacional se estendendo para o mundo. O Concílio Vaticano II indica a
solidariedade como elemento importante presente na sensibilidade dos povos: “entre os sinais
do nosso tempo, é digno de especial menção o crescente e inelutável sentido de solidariedade
entre todos os povos”.
376
O princípio da subsidiariedade consiste, de um lado, em respeitar o que cada instância
organizada da sociedade consegue realizar; e, por outro lado, na soma de forças dos diversos
organismos que formam a sociedade para prover o bem comum de todos os membros da
sociedade.
Portanto, o princípio de subsidiariedade “... deve ajudar a complementar a ação das
pessoas ou comunidades naquilo em que elas não são capazes”.
377
50504"Fc"Kitglc"eqoq"Rqxq"fg"Fgwu"
"
A Igreja é constituída por homens que se convertem ao evangelho. E este aspecto era o
que os Padres mais almejavam. O estudo destes convence de que um dos traços decisivos do
pensamento eclesiológico neles é este: que a eclesiologia engloba uma antropologia.
Como para a quase globalidade das “novidades” do Vaticano II, o trinômio pessoa-
comunidade-sociedade se insere no amplo movimento de “volta às fontes” bíblicas e
patrísticas. Os três âmbitos já faziam parte da cosmovisão da corrente patrística
alinhada com a teologia de Irineu de Lyon, que se reivindica da tradição bíblico-
semita. O que é novo é o esforço dos padres conciliares, em diálogo com os novos
375
BRIGHENTI, Agenor. Op. cit.,, p. 169.
376
AA 14.
377
BRIGHENTI, Agenor. Op. cit., p. 169.
115
paradigmas da racionalidade moderna, de reler, com base no novo contexto, o
dogma cristão como um todo e tirar as conseqüências para a ação evangelizadora.
378
Segundo Yves Congar, para além de sua concepção antropológica a noção de Povo de
Deus presta-se a qualquer meio ou população:
Sob o ponto de vista da pastoral, a noção de Povo de Deus presta-se a uma catequese
extremamente real e à comunicação de um sentido concreto e dinâmico da Igreja.
Pode mostrar-se como, dentre todos os povos da terra, Deus juntou um povo
especialmente seu: Povo de Deus. Não apenas dentre os povos, na acepção
antropológica e quase política do termo, mas dentre qualquer meio ou população: da
aldeia, da cidade, do edifício em que habito, do comboio em que viajo, do hospital
em que me encontro...
379
3.3.2.1 Na dimensão da pessoa
Uma das principais incidências do conceito de Povo de Deus é sobre o próprio
homem, portanto ele tem um valor antropológico: “o Povo de Deus vive no meio dos outros
povos. É semelhante aos outros povos em muitos sentidos”.
380
Segundo Comblin, um dos problemas hoje na formação de um povo está na falta de
referência, de liderança. Mais especificamente de “heróis”: “um povo sem heróis não é capaz
de sacrifícios. Se os chefes do povo não podem apelar para heróis, não conseguem nada”.
381
Esta afirmação se confirma, por exemplo, quando se acompanha o itinerário das viagens do
papa, e se algum repórter indagar a alguém, não necessariamente católico, o que o leva a fazer
tanto sacrifício (longas viagens, noites mal dormidas, enormes filas entre as multidões) para
ver e escutar o papa? A resposta é de que hoje as pessoas carecem de referenciais, e o papa é
um referencial.
378
BRIGHENTI, Agenor. Op. cit., p. 155.
379
CONGAR, Yves. A Igreja como Povo de Deus. Concilium, n. 1, 1965, p. 19.
380
CJPD, p. 282.
381
CJPD, p. 163.
116
Assim, toda a história bíblica é testemunha pela presença de heróis: Abraão, Isaac,
Jacó, Moisés, os profetas. “Os heróis da Bíblia foram os que encarnaram na sua vida os
valores do povo”.
382
O problema de hoje é que o herói é um indivíduo que alcança status: se destaca no
esporte, no cinema, na televisão, na passarela: “a norma da sociedade é a competitividade [...]
O importante é vencer. Um jogador ou uma modelo vale milhões de dólares”.
383
Criou-se um modelo cultural americanizado e
Dentro deste novo sistema, o sentido de povo limita-se a orgulho epidérmico,
orgulho de que o hino nacional ressoe num estádio, porque o nosso campeão ganhou
uma competição, conseguiu atingir uma meta antes dos outros. Por isso, os cidadãos
vibram de orgulho. Desse orgulho não nascerá grande solidariedade. Podemos
pensar que esse desvio dos heróis leva inevitavelmente à exaltação do
individualismo e à perda de valor do povo.
384
Um dos desafios urgentes da ação pastoral, no âmbito da pessoa, consiste na
“reconstrução da identidade pessoal e na conquista de uma liberdade autêntica na sociedade
consumista”.
385
Hoje a pessoa está fragmentada e induzida por falsas seguranças do consumo
que nunca se satisfaz. A pessoa, especialmente jovem, na atual sociedade consumista e
hedonista, em nome de sua auto-imagem, acaba morrendo em sua própria “Anorexia
Nervosa”
386
: “sem dúvida, é sobre os jovens que recaem as mais graves conseqüências da
sociedade consumista e hedonista atual”.
387
É o tempo de apresentar novamente a pessoa de Jesus como “caminho, verdade e
vida” (Jo 14,6): “o herói cristão, que faz a união do povo cristão e gera o povo, é Jesus”.
388
Esta afirmação de Comblin se faz verdadeira na medida em que “a centralidade da pessoa no
382
CJPD, p. 164.
383
CJPD, p. 166.
384
CJPD, p. 167.
385
BRIGHENTI, Agenor. Op. cit., p. 159.
386
“A anorexia nervosa é um distúrbio visto habitualmente em adolescentes do sexo feminino, que parece estar
se tornando cada vez mais comum. A ocorrência da síndrome é reforçada numa cultura em que a esbelteza é
muito valorizada” Disponível em: <http://www.dietanet.hpg.ig.com.br/aneroxia_nervosa.htm>. Acesso em:
22/112007.
387
BRIGHENTI, Agenor. Op. cit., p. 161.
388
CJPD, p. 171.
117
ministério de Jesus, bem como na obra da criação, faz do ser humano o ponto de partida e o
ponto de chegada da ação pastoral”.
389
A cristologia latino-americana foi aquela que mais insistiu na plena restauração da
humanidade de Jesus.
Jesus morreu porque enfrentou os poderosos do seu povo, quis reformar todas as
estruturas desse povo e, por isso, foi rejeitado pelas autoridades e os pobres não
tinham força para impedir para que se realizasse o decreto das autoridades. [...]
Dessa maneira a morte de Jesus tem sentido humano e faz dele herói.
390
Ao cristianismo, a Igreja tem um testemunho muito grande através do testemunho dos
mártires que sucederam a Jesus. E esse fato sempre a acompanhou em todos os períodos de
sua história. Os mártires souberam viver a plena liberdade de vida, assumindo com
responsabilidade o ideal do evangelho, e por causa dele chegar às últimas conseqüências: “os
mártires morreram por defender o verdadeiro sentido do cristianismo e da Igreja. Por isso a
sua memória faz o Povo de Deus, e separa o Povo de Deus das suas caricaturas”.
391
3.3.2.2 Na dimensão da comunidade
A pessoa em boa parte é o que é também por influência do meio em que vive. O
processo de identificação dos indivíduos é fundamental para a construção da comunidade. Na
comunidade eclesial a identidade na fé, na esperança e na caridade, constitui-se o selo de
identificação dos membros. “A comunidade se diferencia da sociedade pelo fato de que não se
forma pelas relações jurídicas ou pelos simples objetivos comuns, mas, fundamentalmente por
relações interpessoais entre seus membros”.
392
O modelo eclesiológico Povo de Deus tem incidência pastoral no âmbito de uma
comunidade também devido a um elemento antropológico de fundamental importância
presente em qualquer povo que é a cultura.
389
BRIGHENTI, Agenor. Op. cit., p. 156.
390
CJPD, p. 172.
391
CJPD, p. 175.
392
BRIGHENTI, Agenor. Op. cit., p. 161.
118
Todo povo se identifica culturalmente. Ele tem um modo de ser, de viver, de sentir, de
estar no mundo que é próprio. A pessoa terá sua identidade reconstruída possivelmente na
cultura de sua comunidade. É, pois, na comunidade que a pessoa aprenderá a descobrir seus
dons e talentos e ali mesmo partilhá-los e sentir-se valorizada.
Este modelo eclesiológico tem repercussão na pastoral litúrgica. Designada muitas
vezes pela expressão “populus tuus
393
a comunidade orante resgata a experiência de fé no
modelo das “igrejas domésticas”. Neste modelo, o de comunidade eclesial de base, a Igreja é
a comunidade dos fiéis que trilham os caminhos da salvação a partir da Eucaristia celebrada
como ceia, e não um evento massivo com impacto emotivo de “cristãos sem Igreja”.
394
Nesta
experiência a pessoa não se perde no anonimato e, além do mais, é provocada a contribuir na
mútua ajuda para a construção de uma sociedade mais justa e solidária.
Só verdadeiras comunidades podem contribuir na construção de uma sociedade
solidária. Para isso, urge a oferta de oportunidades de encontro, de práticas
solidárias e de experiências de amizade, bem como de espaços de educação ao
relacionamento solidário e fraterno. Desafia-se a renovação da paróquia em
comunidades menores, para dar acolhida a outras formas comunitárias de viver a fé.
Desafio ainda maior é colocar os “movimentos eclesiais dentro da comunidade e da
Igreja local.
395
3.3.2.3 Na dimensão da sociedade
A partir da metade do século XX a reflexão teológica tem uma compreensão de mundo
como “realidade dotada de uma autonomia não contrária à fé cristã”.
396
Na ótica cristã “a
sociedade não constitui uma limitação das pessoas e das comunidades, mas sua autêntica
complementação”.
397
393
A palavra populus se encontra 90 vezes, no Missal Romano anterior ao Vaticano II; na edição pós-conciliar
de 2000, se repete populus 267 vezes (cf. o estudo clássico de A. Schaut, Die Kirche als Volk Gottes.
Selbtsausagen der Kirche im römischen Messbuch: Benediktinische Monatsscrift 25 (1949) 187-196.
Tomando como ponto de partida o testemunho da liturgia, cf. Schmaus, Teologia dogmática IV. La Iglesia
(1955), Madrid 1962, § 168; sobre o Sacramentário Veronense (Leoniano), cf. P. Tena, A palavra “ekklesía”,
295-312; da etapa pós conciliar, R. Quilotti, L’ ecclesiologia del Messale Romano III: Sacra doutrina 33
(1988) 62-91, e M. Sodi-A. Toniolo, Concordantia et índices Missalis Romani. Editio typica tertia, Città del
Vaticano 2002, 1272-1278) apud PIÉ-NINOT, Salvador. Op. cit., nota 36, p. 152.
394
BRIGHENTI, Agenor. Op. cit., p. 164.
395
Ibidem, p. 164.
396
BEDOUELLE, Thierry. Mundo. In: LACOSTE, Jean-Yves. Op. cit., p. 1214.
397
BRIGHENTI, Agenor. Op. cit., p. 168.
119
Segundo Comblin “povo é quem faz a história”.
398
O povo é aquele que se constitui a
partir de sua história, de sua cultura, da construção de valores próprios onde todos se unem e
se organizam em torno de um mesmo ideal.
Na linha do Vaticano II a imagem de Povo de Deus é um caminho para promoção da
unidade: “todos os homens são chamados a pertencer ao novo Povo de Deus.”
399
Deus
convocou e instituiu a Igreja a fim de que ela seja para todos e para cada um sacramento
visível desta unidade salvadora.
400
Remete também ao caráter da catolicidade, quando se manifesta aberto a todas as
pessoas: “este caráter de universalidade que condecora o Povo de Deus é um dom próprio do
Senhor, pelo qual a Igreja católica, eficaz e perpetuamente, tende a recapitular toda a
humanidade com todos os seus bens sob Cristo Cabeça, na unidade de Seu Espírito”.
401
A dimensão ecumênica encontra na noção Povo de Deus abertura ao diálogo,
especialmente com os protestantes, quando se trata a noção no aspecto de povo eleito e de
assembléia convocada por Deus. Assim afirma Yves Congar:
O interesse ecumênico da noção Povo de Deus é evidente, sobretudo no diálogo com
os Protestantes. Diálogo, dizemos: a tal ponto as coisas, entre nós, são a um tempo
lugar de acordo e lugar de confronto... O que mais agrada aos Protestantes na
categoria “Povo de Deus”, é antes de mais, a idéia de eleição e de chamamento:
depende tudo da iniciativa divina.
402
O conceito de Povo de Deus encontra sentido profundo numa Igreja dinâmica, que
caminha como escolhida por Deus, propriedade sua (Povo de Deus), mas aberta além dos não
católicos aos não cristãos:
Pode-se dizer que o Povo de Deus subsiste na Igreja, mas não é idêntico à Igreja, se
tomamos Igreja no sentido da Instituição visível da qual somos membros. E a partir
dessa definição podemos ver que o Povo de Deus encontra membros também fora
dos limites da Igreja católica e das Igrejas cristãs em geral.
403
398
CJPD, p. 199.
399
LG 13.
400
CJPD, p. 285.
401
LG 13.
402
CONGAR, Yves. A Igreja como Povo de Deus. Concilium, p. 21.
403
CJPD, p. 283.
120
Com o Vaticano II “pela primeira vez na história a Igreja vai ter de inventar o modo de
relacionamento entre o Povo de Deus e os povos da terra”.
404
Conforme a Constituição Pastoral Gaudium et Spes, a Igreja deve contemplar o que
recebeu dos povos e das suas culturas. No texto conciliar fala-se daquilo que a Igreja
recebeu como se tudo fosse positivo e definitivo. Não se estende sobre a questão da
relatividade daquilo que recebeu.
405
A visão pastoral do Vaticano II traz à luz o mútuo relacionamento da Igreja em relação
aos povos:
A experiência dos séculos passados, o progresso das ciências, os tesouros
escondidos nas várias formas da cultura humana, pelos quais a natureza do próprio
homem se manifesta mais plenamente e se abrem novos caminhos para a verdade,
são úteis também à Igreja. Ela própria, com efeito, desde o início de sua história,
aprendeu a exprimir a mensagem através de conceitos e linguagens dos diversos
povos e, além disso, tentou ilustrá-la com a sabedoria dos filósofos, com fim de
adaptar o Evangelho, enquanto possível, à capacidade de todos e às exigências dos
sábios. Esta maneira apropriada de proclamar a palavra revelada deve permanecer
como lei de toda evangelização. Deste modo estimula-se em todas as nações a
possibilidade de exprimirem a seu modo a mensagem de Cristo e promove-se ao
mesmo tempo um intercâmbio vivo entre a Igreja e as diversas culturas dos povos.
Para aumentar esse intercâmbio, sobretudo em nossos tempos, nos quais as coisas se
mudam tão rapidamente e variam muito os modos de pensar, a Igreja precisa do
auxílio, de modo peculiar, daqueles que, crentes ou não-crentes, vivendo no mundo,
conhecem bem os vários sistemas e disciplinas e entendem sua mentalidade
profunda. Compete a todo Povo de Deus, principalmente aos pastores e teólogos,
com o auxílio do Espírito Santo, auscultar, discernir e interpretar as várias
linguagens do nosso tempo, e julgá-las à luz da palavra divina, para que a Verdade
revelada possa ser sempre mais profundamente, melhor entendida e proposta de
modo mais adequado.
406
Para Comblin a Igreja precisa tomar consciência de tudo o que recebeu das culturas
dos povos em que viveu. Muitas coisas podem ter sido boas no início e se transformaram em
obstáculo mais tarde.
404
CJPD, p. 289.
405
CJPD, p. 289.
406
LG 44.
121
A helenização do cristianismo, num olhar crítico, pode se tornar um obstáculo de
linguagem. Da Grécia o cristianismo recebeu a sua concepção de verdade, através da
filosofia, sobretudo, de Platão e Aristóteles. A verdade está nos conceitos e na
articulação de conceitos de forma dedutiva. Esse conceito da verdade foi aplicado ao
cristianismo. O cristianismo foi apresentado como uma “verdade”, isto é, como
doutrina enunciada em proposições certas e claras, por meio de palavras de contorno
claro, bem definidas.
407
Esta perspectiva pode ter uma repercussão pastoral relevante, uma vez que, a
linguagem provoca séria dificuldade de aproximação à verdade. Pois, a essência do
cristianismo não são as definições elaboradas em formas de verdade, mas é o seguimento de
Jesus Cristo: “... se poderá deduzir porque na época pós-moderna será precisamente o amor do
crucificado aquilo que melhor perfila como centro e coração da Boa-Nova”.
408
Na pretensão de reduzir a essência do cristianismo a uma categoria geral; por
reduzirem seu ‘objeto’ a um conceito geral, essas tentativas perdem justamente de
vista aquilo que caracteriza a fé cristã na sua absoluta originalidade, aquilo que nela
é irredutível a outra coisa e para o qual não se pode achar nenhuma analogia. Em
uma palavra, não é possível deduzir o “específico cristão” de outra coisa senão da
singularíssima, irrepetível revelação cristã [...] E é assim que se vai configurar a
idéia-chave da proposta de Guardini
409:
“a Verdade professada pelo cristianismo
cuja essência consiste precisamente em reconhecer a verdade não em algo, mas em
Alguém, à pessoa de Cristo”, não é um objeto deste mundo, mas a pessoa viva de
Jesus Cristo, que chama ao seu seguimento e põe cada pessoa diante da opção
decisiva, não transferível a outros.
410
Uma outra contribuição à ação pastoral deste modelo de Igreja é a abertura missionária
da Igreja no anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo para fomentar a solidariedade e a paz em
relação a todos os povos e culturas. Este modelo coloca a Igreja em movimento missionário.
A Igreja que se sabe mistério é uma Igreja que se volta para o anúncio:
Ou trabalha para si ou se trabalha para outros [...] Trata-se de uma opção. É preciso
fazer a opção. Claro que os dois regimes o são totalmente fechados [...] Até o
momento presente o regime adotado de fato, apesar de algumas declarações em
407
CJPD, p. 292.
408
FORTE, Bruno. A essência do cristianismo. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 180.
409
GUARDINI, Romano. Das Wesen dês Christentums. Würzburg: Werkbund Verlag, 1938 (Katholische
Akademie in Bayerns München, 1984) apud FORTE, Bruno. Op. cit., p. 179.
410
FORTE, Bruno. Op. cit., p. 200.
122
sentido contrário, o regime de administração é o que vigora [...] O Vaticano II
definiu a natureza essencialmente missionária da Igreja (LG 17; AG 2).
411
A Gaudium et Spes oferece uma síntese daquilo que a Igreja dá aos povos, ou seja,
sentido à vida e às inquietações humanas e às suas perguntas fundamentais. Prevê os direitos
humanos.
412
A constituição pastoral relata também o auxílio que a Igreja se esforça por prestar à
sociedade humana: no serviço aos últimos a Igreja estimula todo o dinamismo social que
tende reforçar a unidade para a sã socialização e a solidariedade no plano civil e econômico.
As virtudes da fé e da caridade levam a essa prática e propõe a superação dos conflitos.
Para Comblin a missão da Igreja está expressa e claramente revelada na Gaudium et
Spes: “a energia que a Igreja pode insuflar à sociedade humana atual consiste naquela fé e
caridade, levadas à prática na vida, e não no exercício de algum domínio externo, através dos
meios puramente humanos”.
413
Qual é o papel do Povo de Deus? O que nos interessa é o papel do Povo de Deus e
não das ações individuais [...] O que será próprio de um cristão nessa ação coletiva?
O que será específico da ação do Povo de Deus? Podemos presumir que o mais
especificamente cristão é a autenticidade: agir por amor ao povo sem buscar o
interesse próprio [...] Um cristão busca a libertação dos pobres em si mesma e por si
mesma, não pelas vantagens que podem decorrer disso para ele mesmo ou para a sua
Igreja. O cristão não se deixará corromper pelo dinheiro.
414
A meta do Povo de Deus é responder atenta e coerentemente aos “sinais dos tempos”.
“A atenção aos ‘sinais dos tempos’ significa atenção ao ‘presente’, ao ‘mundo de hoje’, aos
‘pobres’; finalmente a ‘unidade’ dos cristãos e da humanidade”
415
referência muito presente
no Vaticano II.
Os sinais dos tempos estão presentes na leitura atenta das recentes estatísticas. Um
dos últimos relatórios da Organização das Nações Unidas, divulgado em rede de notícias no
dia 16 de junho de 2006, afirma que “1,4 bilhão de pessoas estarão vivendo em favelas em
411
CJPD, p. 327.
412
Cf. GS 41.
413
GS 42.
414
CJPD, p. 350.
415
ALMEIDA, Antônio José de. “Lumen Gentium”: a transição necessária, p. 33.
123
todo o mundo até 2020. No Brasil, serão 55 milhões, o equivalente a 25% da população”.
416
Sabemos que atualmente, 52,3 milhões de brasileiros já vivem em favelas, ou seja, 28% da
população do país.
O relatório afirma também que “no Brasil a desigualdade social é ainda muito
acentuada e que a pobreza é crônica. Os contrastes entre as áreas urbanizadas e as favelas no
Brasil são comparáveis apenas aos da Costa do Marfim”.
417
Na sociedade civil há diversas formas de comunidades científicas, empresariais,
artísticas. O que importa não é comerem juntos ou dormir debaixo do mesmo teto, mas
trabalhar juntos.
Se isso é possível na sociedade civil, por que não o seria na Igreja? O que une as
comunidades de um modo geral são seus projetos e metas. Ora, o desafio do Povo de Deus vai
além da questão do isolamento, da solidão. O problema é a construção do povo, tarefa que
exige a colaboração das diversas comunidades expressas pela única missão da construção do
Reino.
Respeitando-se a diversidade, pode-se dar um desfeche final: aproveita-se da
peculiaridade de cada eclesiologia à ação pastoral e ao mesmo tempo percebe-se que ambas
tem um fundo em comum: o mistério. Por isso são indissociáveis.
No intuito de compor os aspectos que complementam a ambas as eclesiologias
anteriormente estudadas recorre-se à Igreja como sacramento. Logo, chega-se a uma nova
síntese: a noção da sacramentalidade combina harmoniosamente a ambos os aspectos. O
modelo sacramental, sem menosprezar a importância da historicidade da Igreja humana, dá
amplo espaço para a graça, que é participação da comunhão com Deus e conseqüentemente
comunhão fraterna.
Como conquista final, a sacramentalidade da comunidade cristã oferece o espaço para
a revelação de Deus na história e através dela. Em contrapartida a pessoa encontra neste
mesmo espaço a graça de sua dignidade e, que por isso, socialmente pode realizar-se em uma
comunidade de vida.
"
"
"
416
Disponível em: <http://gazeta.web.globo.com/gazeta/materia.php?c=91083&e=1365>. Acesso em:
21/06/2006.
417
Disponível em: <http://gazeta.web.globo.com/gazeta/materia.php?c=91083&e=1365>. Acesso em:
21/06/2006.
124
EQPENWU’Q"
No transcorrer deste estudo percebemos que a eclesiologia, como disciplina
sistemática, surge num contexto jurídico, passa por diferentes etapas com tentativas de
reformulação, com as quais procurou recuperar a dimensão mistérica da comunidade cristã
sem, contudo, perder sua dimensão histórica.
A partir do estudo de Acerbi demonstra-se que a Lumen Gentium tem sua origem em
duas forças eclesiológicas muito diferentes: uma jurídica e outra de comunhão. A
colegialidade, por exemplo, manifesta uma verdadeira comunhão hierárquica,
conseqüentemente, uma nova visão eclesiológica, pois os caminhos para se chegar ao texto
final da Lumen Gentium demonstram que a essência da Igreja não se exprime em atos
jurídicos, mas em comunhão solidária.
O empreendimento de Acerbi é sério e profundo, pois analisa estas duas forças
eclesiológicas a partir dos textos e discursos dos padres conciliares documentados nas Atas do
Concílio.
O estudo comparativo mostra que o limite da obra de Acerbi está em analisar a Lumen
Gentium em dois sentidos lineares: os padres de tendência jurídica (minoria) e os padres de
tendência comunial (maioria). Nesta análise constata-se que ficam sem a devida relevância
outras categorias eclesiológicas, por exemplo, o paradigma “Povo de Deus”.
Da análise da obra de Comblin, conclui-se que a categoria Povo de Deus relembra à
Igreja sua dimensão histórica e o seu compromisso missionário. Co-relacionando o conceito
Povo de Deus com Igreja dos pobres dá a entender que os pobres são o “lugar estrutural”
418
para que a Igreja seja verdadeiramente portadora do mistério da salvação.
O equívoco de José Comblin no livro Povo de Deus, que no final de contas é fecundo,
não está em ter ressaltado a categoria “Povo de Deus”, mas sim, em construí-la em oposição à
de “comunhão”. O autor não dá o pleno valor eclesiológico à noção de “comunhão”, ou pelo
menos, deixa margem de contradição, uma vez que, em afirmações atuais o autor faz uma
justaposição das palavras quando diz: “ao lado da expressão Povo de Deus podemos colocar
as palavras vizinhas comunidade e comunhão”.
419
418
SOBRINO, Jon. Op. cit., p. 104.
419
COMBLIN, José. As sete palavras-chave do Concílio Vaticano II. In: LORSCHEIDER, Aloísio (et al.). Op.
cit., p. 58.
125
A partir do mistério de Jesus Cristo e de Pentecostes a Igreja compreende-se como o
novo Povo de Deus em comunhão. Só assim haverá uma adequada compreensão histórica,
cristológica, pneumatológica e soteriológica da Igreja sacramento.
A co-responsabilidade na Igreja é conseqüência de uma Igreja comunhão que na
prática se concretiza na forma de sinodalidade (cf. At 15). Porém, a condição para uma Igreja
sinodal “depende da aceitação, ao mesmo tempo e sem reservas, das essências de uma visão
da Igreja-Povo de Deus, partícipe na missão evangelizadora por causa da unção batismal no
sacerdócio e profecia de Cristo”.
420
O Concílio Vaticano II buscou conciliar estas expressões fazendo uma justaposição de
teses entre o dado visível e espiritual, propondo conjugar a justaposição de teses com novas
perspectivas. Porém, contra o espírito do Vaticano II, aconteceram no período pós-conciliar
leituras unilaterais que trouxeram dificuldades tanto para uma autocompreensão de Igreja,
quanto para uma conseqüente aplicação pastoral.
O contributo da Lumen Gentium não se limita só na compreensão da unidade entre o
dado invisível e aquele visível, mas implica na idéia que a estrutura visível da Igreja pouco a
pouco se manifestou como uma comunidade de referência para a sociedade:
O enfoque institucional, insistindo fortemente no elemento de continuidade com as
origens cristãs, apresenta importantes elos entre um presente incerto e um passado
religioso estimado. Numa época em que muitos sofrem trauma do futuro, é não
pequena recomendação para a Igreja o ser capaz de proporcionar uma zona de
estabilidade em um mundo que rodopia loucamente de ponta a ponta.
421
Utilizando a metodologia comparativa de complementaridade, percebe-se que é
possível fomentar uma nova síntese eclesiológica não fechada, mas em perspectiva aberta. A
Igreja é peregrina, mas aponta para um ideal de esperança, por isso, está em contínua
necessidade de mudança. Os sinais presentes na comunidade cristã são de fundamental
importância para que os seus membros possam manter sua identidade espiritual integrada e
fomentar no mundo a paz, a justiça e o amor.
Espera-se que a eclesiologia de comunhão fundamentada na noção de koinonia da
Igreja nascente, especialmente, nos Atos dos Apóstolos, nas descrições paulinas e nas
420
MADRIGAL, Santiago. Op. cit., p. 337.
421
DULLES, Avery. Op. cit., p. 43.
126
joaninas e tendo sido tema central nos primeiros séculos do cristianismo possa servir de base
para o diálogo ecumênico e inter-religioso. Portanto, para a unidade.
O conceito de Povo de Deus como categoria teológica e de ideal de povo, constitui-se
sacramento da salvação para o mundo e, portanto, favorece para que as fronteiras da Igreja se
alarguem para abraçar o mundo inteiro. A Igreja integrada à história humana, aparece menos
como um recinto, no qual os homens entram por uma carteira de identidade jurídica, e mais,
pelo seu empenho missionário e ecumênico, como um princípio universal de crescimento,
colocado no coração do mundo.
A reflexão na perspectiva sacramentária, a partir do Vaticano II, abre espaço para dois
pontos de compreensão da natureza da Igreja: um ad intra e outro ad extra.
Ad intra, percebe-se uma renovação no seio da Igreja, fruto da longa reflexão bíblica e
patrística acontecida a partir do século XIX e com uma retomada da história litúrgica e
eclesiológica, sobretudo no século XX. Esta renovação se dá em quatro dimensões: a primeira
é o resgate da ação litúrgica como espaço celebrativo, a qual se torna o “lugar teológico” da
reflexão sacramentária; a segunda dimensão centraliza o conjunto da liturgia no mistério
pascal de Cristo (morte, ressurreição e parusia), do qual os sacramentos são o “memorial”; a
terceira, proporciona um equilíbrio entre a cristologia e a pneumatologia, ou seja, as
invocações do Espírito Santo a matéria e os eleitos são significativas para imprimir o caráter
indelével; abre por fim, a compreensão dos sacramentos no seio da sacramentalidade global
da Igreja.
Ad extra, a perspectiva sacramental oferece aberturas dadas pelas ciências humanas e
pela filosofia da linguagem. A ritualidade constitui um modo de expressão específico,
exercendo efeitos simbólicos vitais no plano da identidade pessoal, resgata a mediação
positiva do institucional e, ainda, no plano social, a sociologia mostra a importância da
legitimidade dos papéis, funções, procedimentos e a das mediações institucionais nos
processos de identificação e na atribuição dos diferentes papéis a serem exercidos pelos
diversos sujeitos pertencentes.
A partir das incidências pastorais demonstra-se que as pessoas podem encontrar
sentido para suas vidas em comunidades que, a despeito de todos os conflitos introduzidos na
sociedade moderna e pós-moderna, possa instaurar uma comunicação de amor. As categorias
apresentadas desempenham esta função no seio da Igreja, especialmente à pessoa de hoje, e
isto, se levado a sério terá acolhida entusiástica também pela atual sociedade.
127
A complementaridade acentua as relações entre os fiéis, pois realçando o valor da
Igreja como sinal e instrumento de salvação, favorece um empenho de relações informais,
espontâneas e interpessoais no seio da Igreja.
Espera-se que, no término deste estudo comparativo, se possa oferecer com verdade e
com justiça o valor de cada uma das eclesiologias tratadas, pois compartilhamos com o
redator da Lumen Gentium, Gérard Philips, ao analisar o número seis da mesma: “as diversas
comparações acabam assim por completar-se e esclarecer-se mutuamente, por endereçar
também, se necessário for, qualquer desvio unilateral, que conduzirá fatalmente à deformação
e ao erro”.
422
"
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"
"
"
"
"
422
PHILIPS, Gérard. Op. cit., p.132.
128
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