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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Mestrado
Área de Concentração: Psicologia Aplicada
ANDRÉA GONÇALVES DIAS
CAMPO-RELAÇÃO NA CLÍNICA DO CONJUGAL:
REFLEXÕES PSICANALÍTICAS
SOBRE A CULTURA HOJE
UBERLÂNDIA
2007
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ANDRÉA GONÇALVES DIAS
CAMPO-RELAÇÃO NA CLÍNICA DO CONJUGAL:
REFLEXÕES PSICANALÍTICAS
SOBRE A CULTURA HOJE
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Psicologia Mestrado, do Instituto de
Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia,
como requisito parcial à obtenção do Título de Mestre
em Psicologia Aplicada.
Área de concentração: Psicologia Aplicada
Orientadora: Prof. Dra. Maria Lúcia Castilho Romera
Uberlândia
2007
4
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
D541c
Dias, Andréa Gonçalves.
Campo-relação na clínica do conjugal : reflexões psicanalíticas
sobre a cultura hoje / Andréa Gonçalves Dias. - 2007.
158 f.
Orientadora: Maria Lúcia Castilho Romera.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Uberlândia,
Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
Inclui bibliografia.
1. Psicanálise
- Teses. 2. Relações homem-mulher - Teses. I.
Romera, Maria Lúcia Castilho. II. Universidade Federal de Uber
-
-
Graduação em Psicologia. III. Título.
CDU: 159.964.2
Elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UFU / Setor de Catalogação e Classificação
Mg /11/07
5
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Mestrado
Área de Concentração: Psicologia Aplicada
ANDRÉA GONÇALVES DIAS
CAMPO-RELAÇÃO NA CLÍNICA DO CONJUGAL:
REFLEXÕES PSICANALÍTICAS
SOBRE A CULTURA HOJE
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia – Mestrado, do
Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia, como requisito parcial à
obtenção do Título de Mestre em Psicologia Aplicada.
Área de concentração: Psicologia Aplicada
Banca Examinadora:
______________________________
Prof. Dr. João Luiz Leitão Paravidini
______________________________
Prof. Dra. Ana Maria Loffredo-USP
_______________________________
Prof. Dra. Maria Lúcia Castilho Romera
(orientadora)
6
7
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais José Paulo e Lia, todo amor e gratidão.
Ao Tony companheiro de viagem que me dá o tom desta melodia: o amor.
Aos filhos, Artur e Marina nossos amores.
Aos irmãos Sérgio e Maristela minha admiração e amizade.
Aos mestres com carinho:
João Luiz Leitão Paravidini por despertar-me o pensar clínico.
Gregório F. Baremblitt por mostrar-me outra Klínica.
Ari Reifeld por apresentar-me a Fenomenologia na clínica.
Fabio Herrmann por surpreender-me com a clínica psicanalítica.
Maria Lúcia Castilho Romera por compartilhar a clínica do conjugal comigo e propiciar a
realização de um sonho: o Mestrado.
8
9
RESUMO
Este estudo propõe-se a um trabalho reflexivo sobre a conjugalidade, através da investigação
das relações conjugais para além do modelo de aliança heterossexual reprodutiva que norteou
a vivência da sexualidade e da intimidade na Modernidade. Avalia a perspectiva de
durabilidade das uniões no projeto Romântico em contraponto com a fugacidade das uniões
atuais norteadas por uma lógica de concepção: produção-consumo. Coloca em questão qual a
condição de sustentabilidade de uma relação conjugal hoje e sua implicação quanto ao amor.
Objetiva investigar o campo da conjugalidade, refletindo sobre sua condição de
diferenciação, considerada a criação de novos sentidos no modo de conjugar e constituir a
realidade. Discute formas de alteridade e a articulação entre perspectivas teóricas na clínica
do casal, tendo como ponto central o método psicanalítico por ruptura de campo sustentado
por articulações teóricas da Teoria dos Campos com intuito de produção de conhecimento.
Desenvolve um pensamento da clínica da cultura a partir de três rupturas ocorridas no campo
sócio-histórico que influenciaram a concepção de conjugalidade hoje: o casamento, o
feminino e a lógica vincular determinada pela Globalização e a Hipermodernidade. Apresenta
como analisadores a noção de Campo e Paradoxo tendo como hipótese a capacidade
transformadora da conjugalidade no difícil jogo entre o uno e o múltiplo a que o projeto
social da atualidade nos institui. Através de um olhar clínico da psique conjugal
singularidades de cada relação foram reveladas e a partir de um recorte de sentidos comuns
apreendidos, uma análise da cultura na clínica foi sendo delimitada. Descobriu-se que o
projeto conjugal, ou representação do conjugal em condição de crise, erige uma
multiplicidade de sentidos que, paradoxalmente, padroniza as relações e também possibilita a
emergência de outra sensibilidade neste campo, ou seja, efetiva uma crítica paradoxal destas.
a conjugalidade enquanto projeto dos sujeitos na atualidade, porém enquanto indefinição
definida. Tais possibilidades estão em jogo, pois a alteridade na condição de fragilidade
presente, ainda persiste e insiste. Como se sabe: é no momento de crise que se está destinado
ao novo e ao inesperado.
Palavras chave: Conjugalidade, método psicanalítico, alteridade.
10
ABSTRACT
This study proposes a reflexive work on conjugality, through the investigation of
matrimonial relationships beyond the model of reproductive heterosexual alliance that has
been orientating the existence of sexuality and intimacy in modern times. It evaluates the
perspective of durability of the unions in the romantic project compared to the transiency of
the current unions, orientated by a conception logic: consume production. It puts in subject
which is the condition of sustainability of a matrimonial relationship nowadays, and its
implication to love. It aims to investigate the conjugality field, considering its differentiation
condition and the creation of new meanings in the way of conjugating and constituting
reality. It discusses forms of alterity and articulation among theoretical perspectives in the
couple's clinic, having as central point the psychoanalytic method of field rupture sustained
by theoretical articulations of Campos' Theory with intention of knowledge production. It
develops a thinking of the culture clinic, starting from three ruptures that happened in the
social-historical field that influenced the present conjugality conception: the marriage, the
feminine and the link logic determined by globalization and hypermodernity. It presents as
analyzers the notion of field and paradox, having as hypothesis the transforming capacity of
conjugality in the hard game between the one and the multiple that the social project of the
present times institutes us. Through a clinical eye of the matrimonial psyche, some
singularities of each relationship have been revealed and, using a set of learned common
senses, an analysis of the culture in the clinic have been delimited. It has been found that the
matrimonial project, or its representation in a crisis condition, erects a multiplicity of senses
that, paradoxically, standardizes the relationships and also makes possible the rising of
another sensibility in this field, in other words, it makes a paradoxical critic of these.
Nowadays, there is the conjugality as a project of the subjects, as an defined indefinition.
Such possibilities are already in place, because the alterity in the condition of present
fragility, still persists and insists. As it is known: it is in the moment of crisis that one is
destined to the new and the unexpected.
Keywords: conjugality, psychoanalytic method, alterity .
11
SUMÁRIO
1 - Apresentação
13
2 - Introdução: A propósito amar é ... a conjugalidade em questão
22
3 - Caminhando se faz ... caminho
36
4 - Conjugalidade (s)
46
4.1 - O Outro: Psicanálise-alteridade
46
4.2 - O nós: articulações teóricas possíveis
51
4.3 – Campo - relação conjugal
61
5 - O Tempo Longo das narrativas sócio-históricas: rupturas no Campo da Cultura.
67
5.1 - Da desnaturalização do casamento
67
5.2 - Do Feminino que conjuga a história de homens e mulheres
80
5.3 – Vínculos: da Globalização à Hipermodernidade
92
6 - O Tempo Médio e Curto das entre-vistas: Construções
108
6.1- O casamento ditado(r)
108
6.2 - Sobre casar: a conquista de um tempo que é a insônia da eternidade.
117
6.3 - O Casal no ideal de filho
125
6.4 - Um horizonte de (in)(di)visibilidade
130
6.5 - O lar: espaço “incomum” de encontro.
138
7 – Há (a) conjugalidade: conclusão
145
Referências
152
Anexos
Anexo A – Termo de Esclarecimento e Consentimento
157
Anexo B – Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa
158
12
13
1 – APRESENTAÇÃO
Se meus joelhos não doessem mais
Diante de um bom motivo
Que me traga fé, que me traga fé
Se por alguns segundos eu observar
E só observar
A isca e o anzol, a isca e o anzol
A isca e o anzol, a isca e o anzol
Ainda assim estarei pronto pra comemorar
Se eu me tornar menos faminto
Que curioso, que curioso
O mar escuro trará o medo lado a lado
Com os corais mais coloridos
Valeu a pena, eh eh
Valeu a pena, eh eh
Sou pescador de ilusões
Sou pescador de ilusões
Se eu ousar catar
Na superfície de qualquer manhã
As palavras de um livro sem final
Sem final, sem final, sem final, final...
O Rappa - Pescador de Ilusões.
14
Quando apresentada a Teoria dos Campos me apaixonei. Iniciei um namoro à
distância e fui me aproximando, por algum tempo duvidei da possibilidade de conjugar a
Fenomenologia com a Psicanálise que influenciava meu pensamento clínico.
Seria mais um engano, seria possível tal conjugalidade? Psicanálise, àquela que me foi
representada pelos lugares que transitava (escolas teóricas) na tentativa de apreendê-la, mas
que acabavam por me expulsar, devido às nossas paralisias. E Fenomenologia? Mas Fábio
Herrmann pegou-me pela mão e concedeu-me este recasamento, agora uma união consensual
sem alianças para não ficarmos presos ao dogmatismo que as escolas teóricas acabaram por
instituir na Psicanálise
1
.
Faço minhas as palavras de Fábio em entrevista à Leda Herrmann (2004):
L - Você começou cedo na Psicanálise. Como foi o encontro? Ele
afetou suas questões?
F - Algumas são anteriores de fato. Como qualquer adolescente da
cidade, despertei cedo para a desconfiança. A diferença talvez tenha
sido não acreditar nas alternativas nem a haver enterrado, com
alguma ingênua profissão de ceticismo (Herrmann, 2004, p.10).
Ao afastar-me da Psicanálise em expectativa de trânsito, circulando descobri a
Fenomenologia, uma experiência de encontro. Faço novamente minhas as palavras de Fábio
no mesmo contexto citado acima.
L - Há mesmo bastante filosofia e epistemologia em seus escritos. As
pessoas ficam curiosas. Quais os seus fundamentos?
F - Não chamaria de fundamento, mas de ginástica (...) A mistura de
filosofia com interpretação psicanalítica pode levar aonde se quiser
1
O autor utiliza Psicanálise com letra inicial maiúscula para referir-se ao método psicanalítico e
psicanálise com inicial minúscula para referir-se à psicoterapia (Herrmann, 1999, p.24).
15
(...) A descoberta da Fenomenologia foi uma experiência
refrescante. Brisa na praia. Permitiu-me compreender a falácia de
reduzir a consciência à razão, para depois denunciar o equívoco
e chamar-lhe inconsciente (Herrmann, 2004, p.11-12).
Quase todo mundo acha que ele esconde o jogo ao não abrir claramente seus
fundamentos, eu também desconfiei da minha percepção da Fenomenologia em seus escritos
porque ele não a apresentava formalmente. Mesmo assim tive que tirar minha dúvida
metódica com ele. Como numa relação amorosa onde se sente amado, mas, mesmo assim,
necessita-se fazer a pergunta e ouvir a resposta acalmando com isso, o coração e confirmando
a união.
Foi num momento de intimidade entre nós dois, a caminho de uma defesa de
mestrado, entre o bloco da Psicologia e o auditório da biblioteca do Umuarama, entre uma
conversa e outra, quando me arrisquei a descobrir o que temia confirmar, então lhe perguntei
se havia Fenomenologia em seus escritos. Ele indubitavelmente respondeu-me meio
indignado, claro que sim... nos meus e nos de Freud”. Sinto me aliviada e continuamos
nossa caminhada a caminho da defesa de uma colega que escreveu sobre campo-relação na
consulta ginecológica: Considerações psicanalíticas a partir da Teoria dos Campos.
Foi que percebi que nossa confluência com a Fenomenologia permitiu nossa
interseção na Psicanálise. A partir de então estou conjugando uma união com a Psicanálise
proposta pela Teoria dos Campos: a apreensão do método psicanalítico por ruptura de campo.
Neste as coisas se revelam na presença da ausência e na profundidade da superfície, por isso
que dizem por aí que ele esconde o jogo, mas hoje não vejo assim, o jogo está posto em jogo,
as regras do jogo se apresentam quando também entramos em jogo. Não é preciso nomear,
mas acompanhar o jogo e apreender cada nova jogada.
16
Vejam bem esta jogada, uma análise de superfície. Estava eu resolvida, depois de
muita dúvida, a ir ao V Encontro da Teoria dos Campos em São Paulo, setembro de 2005.
Havia um grupo de pessoas que iriam em um Ônibus da UFU, resisti muito a esta idéia. Para
não ir sozinha e enfrentar aquele novo tão duvidoso até então, resolvi enfrentar o velho, viajar
novamente no Beethoven
2
: pequeno, desconfortável, durante a madrugada sabia que não iria
dormir
3
, estava eu voltando para a condição (des)confortável de aprendiz, da percepção da
falta e do excesso de dificuldades. Teria eu uma garantia indo com eles? Mas não conhecia a
maioria das pessoas pessoalmente, metade eram estudantes de graduação, recém formados e
outros poucos faziam parte de um grupo de estudos em Teoria dos Campos. E eu?
Encontrava-me no meio do caminho? Era e o era estudante, fazia e não fazia parte do
grupo da Teoria dos Campos.
Como a realidade está afogada no real, literalmente, fiquei no meio do caminho.
O ônibus estava marcado para sair às 20:00hs do Campus Umuarama, como boa
mineira que sou, que não pode perder o Trem...
4
estava pontualmente na hora marcada,
2
Nome dado ao ônibus pelos estudantes muitos anos, antes mesmo da minha entrada na UFU em
1991. Neste fiz várias viagens para congressos.
3
Desde o início de 2004 não dormia durante a noite toda, foi quando iniciei o Mestrado como aluna
especial e me apaixonei pela descoberta da Teoria dos Campos, por me aproximar de um lugar dos possíveis,
isto me fazia sonhar acordada, uma mistura de fantasia e realidade. Depois de um dia tumultuado de aulas,
atendimentos, casa, marido, filho pequeno, quando tudo se acalmava, eu ia ver os vídeos de algumas
conferências com Fábio Herrmann e ler seus escritos. Sentia que tínhamos as mesmas idéias. Foi amor à
primeira vista, fruto de uma supervisão com um lacaniano que me indicou um texto dele.
4
Agora me veio uma saudade da época em que minha mãe, meu irmão e eu íamos de trem de
Uberlândia à Ribeirão Preto, chegávamos na estação às 6:30hs e em meio à neblina esperávamos até o horário
da saída às 7:15hs. Íamos para lá uma vez ao mês para ver meu pai que nesta época trabalhava lá, era
despachador na extinta FEPASA e controlava o tráfego de trens. Ele estava organizando as coisas para nos levar
17
mas os baianos estão em toda parte e tivemos que esperar. Enquanto isso reconheci e conheci
algumas pessoas e fiquei surpresa ao ver uma amiga lá, não por ser amiga mas por não
entender o que ela estava fazendo ali. Para mim ela era de um outro lugar não conjugava com
aquele momento, depois descobri que ela iria conosco, carona, para rever um amigo.
Acabara de se separar do marido e estava indo passear em São Paulo.
Ainda no tempo da espera do ônibus, fui ao banheiro (ultimamente estava indo ao
banheiro com freqüência). Este era distante, havia maior luminosidade onde o ônibus estava e
ao redor era tudo escuro. Fui sozinha e ainda avisei que estava indo para os conhecidos.
deparei-me com uma paciente que havia fugido da Psiquiatria. Ela estava perdida mas
também apresentava ares de quem está em casa, vestia o uniforme do HC, parecia mais um
pijama, percebi que os vigias do Campus já a conheciam. Ela ficou e eu fui, ou foi o
contrário? Melhor (não) dizendo fomos para o local do ônibus.
Ao me aproximar do ônibus este começou a se movimentar em partida e eu fiquei
parada, partida, fragmentada, era surreal, onde estava acontecendo aquilo, olhava para tudo e
não via nada, catatonicamente me pus a correr e a gritar, tentativa vã, quanto mais eu me
aproximava do ônibus mais ele se distanciava.
Quando já ia desistir e voltar para casa, durante toda a eterna corrida, pensava
ininterruptamente indignada como eles não perceberam que eu não estou no ônibus, que
também, foi um período de um ano e meio viajando ao seu encontro esperando o reencontro. Hoje sei que não
precisava chegar em Ribeirão para encontrá-lo, pois no meio do caminho já estávamos juntos. Chegávamos
por volta das 15:00hs, era uma viagem curta num longo período de espera, tinha muitos atrativos: passageiros,
“geléia de mocotó colombo cada pedaço é um tombo”, banheiro que balançava com a janela totalmente aberta
para a paisagem que espiava, o PF (paladar faminto) do restaurante com sukita e o gavião que sempre vinha, no
mesmo horário e local da trajetória, o qual simulava um ataque para sutilmente agarrar um pedaço de carne crua
que o moço do restaurante lhe oferecia e as longas paradas nas pequenas estações. Esta era a rotina de toda
viagem.
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absurdo...e a minha amiga caroneira/partida, que estava sentada do meu lado não sentiu
minha falta... e as pessoas que me conhecem e para quem avisei estar partindo para o
banheiro? Se não fosse trágico seria cômico! E assim o fui.
Quando eu comecei a parar - magicamente - o ônibus também o fez, surpresa de
alívio, o motorista me viu pelo retrovisor!”. Fiquei esperando o que ia acontecer, tudo ficou
quieto, “acho que ele parou por algum outro motivo!”, foi neste momento que vi um carro ao
lado do ônibus, que no princípio da epopéia acreditava que havia ido embora, mas não,
estava ao lado, “fazendo o que?”. É o marido da Márcia que veio acompanhá-la e que me
conheceu e reconheceu pelo retrovisor, na correria, na corredora, no corredor da dor entre eu
e o ônibus, e foi até lá e cá avisar-nos.
No entanto, não foi nada disso que aconteceu, o ônibus não partiu de em minha
partida, então eu me lancei em sua direção, em contra partida, caminhando lentamente, já não
queria brigar mais, questionar as razões do ocorrido, a falta e o excesso de tanto abandono. Se
quisessem me esperar bem, agora eu não me surpreendo mais com a condição de partir ou
ficar. Como encanta Milton Nascimento, são dois lados da mesma viagem, o trem que
chega é o mesmo trem da partida, a hora do encontro é também despedida, a plataforma
desta estação é a vida desse meu lugar”.
Naquele momento havia se dado uma concepção de algo ainda desconhecido, mas que
o Campus Umuarama, campo da viagem, havia dado a luz.
Aconteceu que foi um rapaz, passageiro do ônibus, que não me conhecia que me
reconheceu como alguém à espera de uma parada.
Ao entrar no ônibus para minha surpresa estavam todos surpresos com a presença da
minha falta, então cada um a seu modo se reconheceu neste engano, pessoal e coletivo diga-
se de passagem, dos passageiros daquela viagem que se iniciou.
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Veja ... a minha amiga de passagem achou que eu havia resolvido mudar de
companheiro de viagem e para aqueles a quem eu havia comunicado minha partida da viagem
acharam que eu estava com minha amiga de temporada e como ela não disse nada sobre
minha presença em um outro lugar, do lado de fora, eles não se preocuparam, cada um ficou
pensando que eu estava na companhia do outro, no imaginário coletivo do ônibus eu estava
com todos ao mesmo tempo, super acompanhada. Teve também o esquecimento do motorista
e do organizador da viagem de conferir os passageiros.
Nossa! Será que eu transito tanto assim? Percebi que estava sem um lugar.
não queria mais discutir aquela relação, pois para mim a questão estava posta,
queria viajar e ter notícias do mundo de lá... saber sobre a minha condição de permanência
naquela viagem, pois havia um prenúncio de vórtice frente à uma ruptura de campo no
campo da Teoria dos Campos, a possibilidade da finitude de quem a concebeu.
Em meio a tudo isso estava eu tentando engravidar novamente de uma velha boa nova
idéia: a idéia psicanalítica, qual seja, a idéia de sentido humano ou psique, afirmando a
clínica como um ponto de vista no/do mundo e para além disso... conceber também um
segundo terceiro campo, que muito também sonhava acordada. Estava num processo
duplo de concepção. Daria conta de dar a luz a tamanho desejo e a desejos tão singulares?
Porém os processos de transformação ainda estavam por vir. Ao chegar na Faculdade
de Medicina da USP, imersa no céu nublado entre ela e o cemitério cinza, separados por uma
avenida, eu me deparei com a morte. Durante o encontro me encontrei, reconheci e formulei
minhas idéias, sabia que o caminho de volta para a Psicanálise não seria mais tão angustiante.
Estava pronta para trair minha tradição.
Minha criança ficou chocada ao rever o pai enamorado que tanto aguardou para agora,
sozinha, brincar e transformar a realidade. Ele estava enfraquecido, desvitalizado, prenhe de
vida. Tamanho encantamento estaria por terminar? Chorei compulsivamente mesmo sem
20
saber a razão, razões que a própria razão desconhece. Agora sim a menina abandonada se
revelou nesta partida, ao chegar perto da dor da separação. Mas houve um olhar de um
acompanhante de viagem que me acolheu na minha partida ao desconhecido. Seu olhar
silencioso e presente acompanhou e velou as minhas dores. Assim entre o cemitério e a força
do pensamento crítico e desafiador da Teoria dos Campos encarnado e desencarnando da
pessoa de Fabio Herrmann eu pude fazer a minha reiniciação no campo do saber psicanalítico
Viajar novamente no Beethovem reacendeu meu coração de estudante, de
investigadora, o qual acredito estar minimamente expresso nas páginas seguintes desta
pesquisa.
O mais interessante desta viagem se deu nove meses depois, no dia 06 de Junho de
2006, quando parei com tudo para dar a luz a minha filha, Marina, (ela era passageira
daquela viagem) ao estilo baiano de Dorival Caymme. Diz a crença popular que baiano é a
mistura de mineiro com goiano ... que sabedoria profunda ... e no dia 11 de Julho de 2006 fui
parada pela presença da falta de Fábio Herrmann. Este deu a luz ao seu pensamento crítico-
heurístico perante o mundo em que vivemos, ajudando a pensá-lo, e como sou um ser no
mundo me sinto comprometida em transgredi-lo, a criar e recriar o fundamento de sua obra.
Quanto Absurdo tem a vida!! Então, começando enfim, consegui parar para gerir uma Dupla
face, método-absudo, conjugar vida e morte e recomeçar novamente a caminhar.
Nesta viagem com Herrmann houve outros passageiros de paisagens, dentre eles o
João Luiz que me endereçou a este encontro e a Maria Lúcia que marcou o desencontro
produtivo. Agora a idéia psicanalítica, nossa filha mais querida desta conjugalidade, começou
a dar sinais de parto ou seria de partida, expressa nesta dissertação: uma aventura
psicanalítica sobre estes outros que habitam dentro de nós e nos posicionam em condição de
vida e morte.
21
Herrmann como um apaixonado por viagens e amante das possibilidades de suas
narrativas, agora fez a mais radical delas - por sê-la inadiável e por não ter retorno - mas a sua
maior viagem ele realizou e continuará a realizar... iludir com suas ficções os viajantes
pelas terras que passar... Sabido!!! Assim ele estará eternamente em trânsito, numa zona
intermediária, entre um lugar e outro, privilegiado por ele, por ser imanente há possibilidades,
transformações infinitas.
O desejo, o abismo interior que desconhecemos, faz parte do real, é
como que uma parcela do real seqüestrada no íntimo do indivíduo. A
idéia pode parecer esquisita ou difícil de compreender, mas se você
considerar que cada um de nós foi criado, inventado, construído pelo
real, e que ainda chegará a ser reabsorvido por ele com a morte, o
estranho passa a ser evidente (Herrmann, 2001, p.16).
O rosto desta nossa filha começou a ser delineado, no entanto os traços as linhas de
contorno estarão permanentemente sendo reconhecidos e redefinidos por nós e pelo olhar dos
outros, vocês leitores que, ao embarcarem nesta viagem, também se tornarão genitores desta
idéia sobre a potência do homem psicanalítico, fruto proibido da identidade.
...
Se o azul é um sonho
Que será da inocência?
Que será do coração
Se o amor não tem flechas?
...
Frederico Garcia Lorca - Canção Outonal
22
2 - INTRODUÇÃO: A propósito de amar é... a conjugalidade em questão
Dizem-me: esse gênero de amor não é viável. Mas como avaliar a viabilidade?
Por que o que é viável é um Bem?
Por que durar é melhor que imflamar?
Roland Barthes
A concepção e os norteadores deste projeto se deram a partir de minha vivência
conjugal, da clínica de consultório e das intervenções clínicas em Saúde da Família. Uma
escuta itinerante pela vida: no consultório, nos lares, nas ruas e nos bares.
Nestes descaminhos verifiquei significativa presença de sofrimento, solidão e
angústia. Psicopatologias advindas tanto das relações amorosas como da ausência destas, me
levando a questionar sobre estes vínculos exercidos na atualidade.
Detectei dificuldades freqüentes e, em alguns, casos uma impossibilidade efetiva de
vivenciar relações interpessoais de cunho conjugal.
Percebo que há uma queixa freqüente quanto ao exercício da conjugalidade, um
movimento paradoxal de descolamento e aderência, sem reflexão/implicação a esta condição.
De onde se impõe uma exigência de conjugalidade que tanto insiste e tanto fracassa?
Calligaris (1994) acredita que seja na busca de um ideal que a produção cultural muito
vem veiculando.
Frente a isto resgato no imaginário popular alguns dizeres que permeiam as relações
cotidianas que acabam por conceber uma crença na proposta conjugal:
Com quem será? Com quem será? Com quem será que o (a) .... vai casar, vai
depender, vai depender se o (a) .... vai querer”, frequentemente cantado no dia do
nascimento, nos aniversários. Cria-se uma expectativa de um futuro certo que se
concretizará frente ao desejo do outro, proposta objetificante que posiciona o sujeito numa
condição passiva.
23
Um dia você encontrará sua alma gêmea, sua cara metade”. Pensamento mágico de
plenitude, mito da complementaridade, de um equilíbrio ilusório.
E foram felizes para sempre”. Assim terminam as histórias infantis, novelas e filmes,
onde o casamento é representado como objetivo final e que a partir dele estaremos no Jardim
do Éden. Recompensa frente ao sofrimento da espera, induzindo ao mito da estabilidade,
eternidade, à morte do sujeito desejante.
Até que a morte os separe”, outra premissa que nos lança em uma condição de
passividade frente ao destino, garanti-dor de uma questionável permanência para assegurar
uma promessa de durabilidade. Tentativa vã de inscrição de um impossível.
Frente a tal imaginário idealizado, poderíamos nos questionar se casar não se tornou
para nós algum tipo de dever, um fato natural? Com isso a conjugalidade tornou-se ao mesmo
tempo um valor crucial, ou seja, um componente indispensável de qualquer sonho de
felicidade e o lugar de um sofrimento, muitas vezes patológico (Calligaris, 1994).
Este lugar de sofrimento se a partir do momento no qual a conjugalidade deixa de
ser não uma decisão de conveniência segundo imperativos sociais e patrimoniais, mas
supõe a exigir que seu fundamento seja o amor, fenômeno, próprio à modernidade ocidental.
(Ariès, 1987).
No entanto, de que amor estamos falando? De um amor narcísico, que não abre mão
de si e quer que o outro seja seu espelho? De uma homogeneidade falsa que nega as
diferenças e que por isso vive em luta e de luto.
Seria isto um dos gera (dores) dos efeitos do individualismo contemporâneo, pois
acreditamos que a conjugalidade deve nos dar a felicidade amorosa e sexual e a vivenciamos
como suspensa ao nosso contentamento, uma vez que na vivência percebe-se que não ocorre
plenamente (falha).
24
Bruxas ao redor do berço de qualquer casal (familiar, conjugal, sexual) sempre houve,
porém estamos vivendo uma época em que estas bruxas se multiplicaram. Não estou, com
isso, idealizando uma norma feliz ou querendo reconhecer a conjugalidade como algo da
exigência do dever e do bem. Porém, quando utilizo os termos “berço e bruxas”, percebo que
faço referência a algo da ordem do infantil e avalio que talvez estejamos presos a esta
condição ainda quando se fala das relações conjugais. Laço primário, dual que exige uma
reciprocidade, uma troca perfeita onde um tem que saciar o outro, paranóia conjugal que
aprisiona e limita.
Sabe-se que a “Modernidade quida”
5
dissolveu algumas das premissas acima
citadas, mas a questão da idealização permanece, o mito do casal perfeito continua, vinculado
agora ao prazer, traduzido como felicidade plena e freqüente.
A varinha mágica é agora o cartão de crédito e o belo não está mais no enfrentamento
das dificuldades, do sofrimento a dois, representado no ideal do amor romântico, mas na
apresentação de uma imagem esteticamente perfeita que se não for reatualizada
continuamente não permite a vinculação e sua permanência, sustentado por um “amor
líquido
6
que evapora-se frente às distorções das imagens.
Assim ao me indagar sobre o caminho a percorrer nesta pesquisa: qual é o meu objeto
de estudo? Surpreendi-me: estou tentando pesquisar o amor, seria isto possível?
O que saber sobre o amor, buscaria pensar o que é, mas o que quero conhecer? A
reflexão me é permitida, mas a garantia de apreendê-lo não o seria.
5
Termo utilizado por Bauman, Z. (2001) para denominar o momento atual, tido como uma outra
perspectiva de Modernidade, repleta de sinais confusos, sentidos frágeis, propensos a mudar de forma rápida e
imprevisível.
6
Nome dado por Bauman, Z. (2004) para representar a incapacidade de se manter a afetividade e os
relacionamentos, caracterizados por uma facilidade em tecê-los e desmanchá-los, relações em “rede” muitas
vezes de contato apenas virtual. Diz da fragilidade dos laços humanos na Modernidade Líquida.
25
Fala-se muito sobre sexualidade e erotismo na literatura científica do mundo
contemporâneo e quase nada sobre o amor, talvez pelo fato de ele não se deixar decifrar,
repelindo toda tentativa de classificação ou definição.
Seria esse vazio conceitual um reflexo da dificuldade de expressão do amor na
atualidade? Tamanha visibilidade da sexualidade na modernidade talvez venha refletir a
impessoalidade fundamental dessas relações, na medida em que o contato físico tornou-se um
simulacro do encontro.
O que parece estar acontecendo é o que Freud (1910) havia mencionado em seu
artigo a tendência à depreciação no amor”. Uma cisão entre amor e desejo, o que poderia
acontecer em duas direções, quando há amor não desejo e quando desejo não amor,
isto traria o selo da impotência psíquica. O que existe é um isolamento secundário defensivo,
mais do que índole contraditória básica destas duas forças conflitantes. Mesmo assim, para
Freud, seria possível uma forma acabada de sexualidade e até uma atitude normal em amor,
unindo a corrente da sexualidade e da ternura.
Nesse processo de conciliação, poderíamos pensar que o amor seria um objeto do
desejo? que o desejo é a matriz simbólica das emoções, a sede de operações simbólicas
que determinam a rede de seus sentidos. Com isso este objeto, como qualquer outro poderia
ser querido como também temido, aquilo que se estranha ou evita, tanto quanto o que se
busca desesperadamente. (Herrmann, 2001).
O desejo é tipicamente humano, é o inconsciente em ação em combate com o mundo,
não como fugir dele mesmo, a fuga é desejo de fuga, o inconsciente, ou seja,
possibilidade de produção de conhecimento, provisório e relativo. Porém ele “é regrado; em
essência, é um conjunto de regras emocionais, uma lógica produtiva de concepção, que nunca
alcançamos representar explicitamente.” (Herrmann, 2001, p.139).
26
Nesta relação de fascínio entre desejo e amor, Bauman (2004) também nos coloca que
desejo e amor são irmãos gêmeos, porém nunca gêmeos idênticos, mas bivitelinos. Isso nos
diz de uma diferença a partir de uma mesma origem.
Para este autor o desejo quer consumir e o amor por outro lado quer possuir. Amar diz
respeito à auto-sobrevivência através da alteridade. Desejar é uma compulsão a preencher a
lacuna deixada pela alteridade. O desejo coincide com a aniquilação de seu objeto e o amor
cresce com a aquisição deste. Se o desejo se auto destrói, o amor se auto perpetua,
encontram-se em campos opostos, porém ambos se orientam pela alteridade, ponto comum
que os articula, seja pelo princípio da evasão, repulsão ou pelo da atração.
Uma outra dificuldade em lidar com o amor pode estar também na sua condição
paradoxal (Aranha & Martins, 1986). No desejo de união com o outro o amante deve cativar
para ser amado livremente. O fascínio é gerador de poder: o poder de atração de um sobre o
outro. Aprisionamento que nos torna livres para criar.
Outro paradoxo consiste em ser ele uma união, com a condição de cada um preservar
a própria identidade. Faz com que os dois seres estejam unidos e, contudo, permaneçam
separados.
O paradoxo da relação amorosa coloca-se então ao mesmo tempo como desejo de
união e preservação das diferenças, dimensiona a ambigüidade (amor e ódio) em que o
homem é lançado. Condição de integração (vida) que resulta no abandono de outras
possibilidades (mortes).
Amar nos coloca em risco. O risco do amor é a separação, estar numa relação amorosa
supõe a possibilidade da perda. A separação é a vivência da morte numa situação vital: é a
vivência da morte do outro em minha consciência e a vivência de minha morte na consciência
do outro (Caruso, 1984).
27
Caso contrário haverá o impedimento do encontro verdadeiro. A lenda de Narciso,
que, ao contemplar seu rosto refletido na água, apaixona-se por si próprio e causa sua morte,
pois esquece de se alimentar, tão envolvido se acha com a própria imagem inatingível.
Paradoxalmente ele morre por não querer sua morte. Morre na medida em que torna
impossível a ligação fecunda com o outro.
Esta lenda nos lança a pensarmos sobre a aliança entre Eros e Tanatos. “Se tomarmos
como verdade que não conhece exceção o fato de tudo o que vive, morrer por razões
internas... seremos compelidos a dizer que “o objetivo de toda vida é a morte...” (Freud,
1920, p.56). Se o objetivo da vida é a morte, Eros e Tanatos travam luta ferrenha e constante,
sendo que Eros é ação e tensão, enquanto que Tanatos é inércia, repouso. Mas o alívio das
tensões é sentido como prazer uma vez que o desejo tem como meta a satisfação, sendo esta a
tendência da força libidinal. Portanto, Freud (1920, p. 84) conclui: “O princípio do prazer
parece, na realidade, servir aos instintos de morte”.
Então, a presença estranha da morte ao atingirmos o prazer momentâneo pela fusão
plena de Eros e Tanatos, ao afastar provisoriamente as tensões, frente à acomodação do
desejo, eliminaria as antíteses entre morte e vida. Afinal Eros está a serviço de Tanatos. Ver a
morte como uma necessidade pode ser tão somente uma ilusão que criamos para suportar o
fardo da existência e assim manter a vida.
Neste jogo entre Eros e Tanatos, amar torna-se uma das artes da vida” (Freud, 1930)
importante na busca da felicidade e na evitação do sofrimento, mas como foi dito, o amor
paradoxalmente conjuga Eros e Tanatos, pois nunca estamos menos protegidos contra as
penas do que quando amamos; nunca mais infelizes e desvalidos que quando temos perdido o
objeto amado ou seu amor. Eros tinge de desejo o próprio destino, a morte.
Segundo Freud (1914), trataria-se de um amor objetal, embora parta do amor próprio
ou do narcisismo normal, é o oposto do narcisismo patológico exemplificado pela lenda de
28
Narciso, pois implica que a fórmula “Eu+Tu=Nós” não resulte da anulação, nem do “Eu”
nem do “Tu”.
Em outras palavras, se trata, segundo Buber (1979, p. XLI), de uma ontologia da
relação, qual seja:
A reflexão inicial de “EU” e “TU” apresenta a palavra como sendo
dialógica. A categoria primordial da dialogicidade da palavra é o
“entre”. Mais do que uma análise objetiva da estrutura lógica ou
semântica da linguagem, o que faria da palavra um simples dado,
Buber desenvolve uma verdadeira ontologia da palavra atribuindo a
ela, como palavra falante, o sentido de portadora de ser. É através
dela que o homem se introduz na existência. Não é o homem que
conduz a palavra, mas é ela que o mantém no ser. Para Buber a
palavra proferida é uma atitude efetiva, eficaz e atualizadora do ser
do homem. Ela é um ato do homem e se situa no mundo com os
outros.”
Desta maneira o homem é um ser de relação. Cada atitude é atualizada por uma das
palavras princípio, EU-TU ou EU-ISSO, sendo que cada uma fundamenta um modo de existir
e de se relacionar; não constituem dois Eus mas sim a existência de uma dupla possibilidade
de existir como homem. Chama-se relação para EU-TU e relacionamento para EU-ISSO.
Sou Eu, através da minha relação com o Tu; na medida em que me converto em Eu,
digo Tu. Considero relevante o hífen que une e ao mesmo tempo separa EU de TU. Somos
tanto separados de, quanto em relação com um outro. O dialógico é tanto Um quanto o
Outro, que não Um sem um Outro e vice-versa, espaço entre, onde ocorre o encontro,
dimensão do humano para Buber (1979).
29
Buber nos fala de modos relacionais fundantes: o EU da relação ontológica EU-TU
configura seu espaço relacional de modo aberto à presença da irredutível alteridade do outro.
O EU da relação EU-ISSO configura seu espaço relacional com vistas a conhecer o mundo,
transformá-lo em objeto de uso e experiência. Onde o estatuto ontológico do EU-TU antecede
o estatuto EU-ISSO.
Portanto, o EU é relacional, se define na relação com um TU e com um ISSO. Não
existe um EU como substância, da mesma forma o TU não é totalmente apreendido nem
experienciado; ele é horizonte sem limites, é totalidade. A essência do humano não se fecha
em si mesmo, mas está contida na unidade do homem com outro homem. Uma unidade que
se apóia sobre as diferenças entre o EU e o TU.
Partindo desta perspectiva, mesmo que o amor seja a arte do encontro, sabemos que
não está imune ao desencontro, sendo neste que está a possibilidade de devir, pois é preciso
sair da idealização para transar a parcialidade que nos fascina e constitui nossa subjetividade
(Souza, 1994). Tanto Freud quanto Buber propõe o descentramento do sujeito, do eu para o
outro, pondo em questão o narcisismo.
Seria neste descentramento ocasionado na relação do eu com o outro que poderemos
lidar com as questões narcísicas desta condição humana? Frente a isto proponho a
conjugalidade como um viés catalisador desta condição narcísica, pois remete a questão da
alteridade e do difícil jogo entre individualidade e conjugalidade, entre manter-se uno e duplo
(múltiplo). Tenho como hipótese sua capacidade transformadora de subjetividades e da
relação intersubjetiva.
Mesmo na ausência do amor teríamos uma chance, pois é na impossibilidade da
experiência amorosa que se abre a possibilidade de ruptura. Para que ocorra a paixão é
preciso que ocorra esse esvaziar em vida. A morte diária aparece como resposta libertadora
30
ao dia-a-dia atravessado de escuros, de opacidades. O contraponto, rasgo de vitalidade, uma
quase loucura, um ir às fronteiras, para além dos limites demarcados (Caruso, 1984).
Poucas coisas se parecem tanto com a morte quanto o amor realizado. Cada chegada
de um dos dois é sempre única, mas também definitiva: não suporta repetição, não permite
recurso nem promete prorrogação. Assim não se pode aprender a amar, tal como não se pode
aprender a morrer, como não se pode aprender a arte ilusória de evitar suas garras e ficar fora
de seu caminho. E o mais imprevisível é quando isso acontecerá (Bauman, 2004).
Então, esta certeza temos de que o amor e a morte ainda são imprescindíveis às
relações humanas estabelecendo um princípio de regularidade no mundo, frente à sua
condição de (im)previsibilidade. Por isso, evoco a possibilidade de aprendizado, sobretudo de
um lampejo de sabedoria que se possa apreender a este respeito.
Neste sentido o estudo da conjugalidade implica investigar e refletir sobre as regras
que estão estruturando o campo da relação conjugal, tido neste estudo como relações
amorosas, na atualidade. Este tema, o amor conjugal, admite mais que quaisquer outros esse
tipo de devaneio, querer saber sobre o amor, já que as coisas mais importantes sempre
continuam por dizer.
O interesse por esta temática se deu frente à banalização do amor na cultura
contemporânea os fast loves e também nos casamentos relâmpagos, expressos tanto na
dificuldade de estabelecer nculo amoroso como na permanência do mesmo. Culminando
numa desafetação, um anestesiamento de si e com o outro, nas relações. O amor seria mais
um produto a ser consumido em larga escala?
Verifica-se como vantagem e ao mesmo tempo como uma queixa das pessoas um
apaixonar-se e desapaixonar-se de modo muito fácil nos dias de hoje. Teríamos pessoas
particularmente propensas ao amor ou vulneráveis a ele?
31
Neste cenário presenciamos relações em série ou como nos diz Bauman (2004),
relações em “rede”, as quais podem ser tecidas ou desmanchadas com igual facilidade. Ainda
que haja intenção de fidelidade mútua, a lei que o sujeito cria, diante do amor idealizado,
amores fantásticos, tende a ser facilmente transgredida, devido a uma compulsão a
apaixonar-se e a impossibilidade de se manter este estado indefinidamente, tomando-se um
único objeto como alvo. “Os objetos amorosos podem substituir uns aos outros tão amiúde,
que se forma uma extensa série dos mesmos” (Freud, 1910, p.151).
Para Bauman (2004) o que houve foi uma súbita abundância e a evidente
disponibilidade das experiências amorosas alimentando a convicção de que amar é mais uma
habilidade que se pode adquirir, onde seu domínio e habilidade aumentam com a prática e
assiduidade do exercício.
uma crença de que tal habilidade será adquirida com o acúmulo de experiências.
Uma ilusão de um conhecimento que se amplia juntamente com a série de eventos amorosos.
Um amor tido como episódios intensos, curtos e impactantes, desencadeados pela consciência
a priori de sua própria fragilidade e curta duração. Sujeitos compulsivos, habilidosos em
terminar rapidamente e começar do início, tentativas sucessivas, desconectadas.
Nos compromissos duradouros, a líquida razão moderna enxerga a
opressão; no engajamento permanente percebe a dependência
incapacitante. Essa razão nega direitos aos vínculos e liames,
espaciais ou temporais. (...) tornam impuras as relações humanas
como o fariam com qualquer ato de consumo que presuma a
satisfação instantânea e, de modo semelhante, a instantânea
obsolescência do objeto consumido. (Bauman, 2004, p.65).
Associado a este processo verifica-se um outro de purificação do sexo, permitindo que
a prática sexual seja adaptada a estes mesmos padrões de consumo, tendo-se em vista uma
32
espécie de garantia de reembolso. Assim os parceiros do encontro puramente sexual podem
se sentir seguros, conscientes de que a inexistência de restrições compensa a perturbadora
fragilidade de seu engajamento.
Um homo sexualis desejoso de que o sexo seja seguro, não de infecções, mas
também de afetações, utilizando-o como um meio para um fim ou um ato independente.
Segundo Bauman (2004, p.20.) seria um impotente amoroso: “a compulsão a experimentar,
por adquirir tais habilidades acaba por frustrar seu propósito, tendendo a ser um
desaprendizado do amor uma ‘exercitada incapacidade para amar’”.
Assim, o desejo está cumprindo seu propósito, consumir, aniquilar com a alteridade,
que o irrita por sua obstinada e evasiva diferença caminhando constrangido e desconfortável
na direção do compromisso amoroso. Oferta-se a promessa de aprender a arte de amar a
semelhança de outras mercadorias, com sedução, prometem desejo sem ansiedade, esforço
sem suor, resultados sem esforço e consequentemente amor sem dor.
Um outro elemento, apontado por Bauman (2004), é o da instabilidade, não uma
sustentação da distinção entre o regular e o contingente. um conjunto de regras variáveis
que se modificam constantemente.
A idéia de um único amor, “cara metade”, “até que a morte nos
separe”, foi deixada para trás seu tempo de vida útil em função da
radical alteração das estruturas de parentesco às quais costumava
servir e de onde extraia seu vigor e valorização. Mas o
desaparecimento dessa noção significa, inevitavelmente, a facilitação
dos testes pelos quais uma experiência deve passar para ser chamada
de amor (Bauman , 2004, p.19).
33
Numa perspectiva diferente da descrita anteriormente Lipovetsky (2004) nos diz que
não é preciso ensombrecer o quadro, pois acredita que escapam ao mundo do consumo alguns
valores, dentre eles o relacional:
O amor - eis outro domínio que escapa à esfera do lucro, do ganho,
assim como, de modo mais geral, todos os valores relacionais que,
em grande parte, constituem a riqueza de nossa vida privada. (...). O
reino do dinheiro não é coveiro da afetividade; ao contrário, é ele que
a essa última toda a sua legitimidade, como se sentíssemos ser
necessário recuperar alguma inocência num mundo cada vez mais
regido pela eficiência e pela racionalidade (Lipovetsky, 2004, p.36).
Poderíamos então, dizer que as formas alternativas ao casamento tradicional, uma
diversidade de arranjos conjugais: uniões consensuais, casamentos sem filhos, relações
estáveis sem coabitação, uniões e casamentos homossexuais, recasamentos e uniões em série,
dentre outros, seriam o reflexo destas experimentações ou diferenciais desta lógica?
No entanto não podemos negar que a relação amorosa vem sendo desmobilizada ou
banalizada. O que podemos perceber no adiamento frente à recusa em vivenciar esta relação,
como também no seu término, uniões de curta duração, cada vez em períodos de tempo mais
curtos.
A potência do amor, sua viabilidade, não estaria vinculada à lógica do tempo lógico,
não ficarei presa a este tempo, mas também não o desconsiderarei. Haveria um meio tempo
entre a eternidade romântica e a ditadura do presente, o instante(â)neo da atualidade?
A questão não é propor um único e verdadeiro amor e tão pouco um modo que faça
com que as pessoas fiquem juntas como condição para a continuidade da relação, uma
apologia à durabilidade, mas se está sendo possível conjugar, dentro desta nova lógica
vincular, algo que propicie transformação na relação, produção de novos sentidos.
34
Assim,a questão neste estudo está na temporalidade do encontro e do desencontro no
exercício da conjugalidade, na possibilidade de constituição de algo distinto de sua origem, a
diferença, fruto da intersubjetividade.
Pode ser amor num lampejo, amor à primeira vista; mas o tempo,
longo ou curto, deve transcorrer entre a pergunta e a resposta, a
proposta e sua aceitação (...). Fazer a pergunta, esperar a resposta, ser
indagado, esforçar-se para responder - isso é que faz a diferença.
(Bauman, 2004, p.34).
Digo das possibilidades frente ao desconhecido, o amor. Uma possibilidade de
colocar a relação em questão, um descentramento do eu e do tu, do nós, do Campo. Um duplo
compromisso de estar em relação.
Assim o objetivo desta pesquisa é investigar o Campo da conjugalidade hoje,
refletindo sobre sua condição de diferenciação, criação de novos sentidos no modo de
conjugar e constituir a realidade nas relações conjugais, ou seja, da condição de repeti-la ou
re-inventá-la frente a todas estas características apontadas na atualidade. É refletir sobre a
relação conjugal a partir das regras que estão sendo construídas, operadas, neste campo, tendo
em vista a singularidade de cada campo e as interseções entre eles, o compartilhado neste
Campo Conjugal ou Psique Conjugal.
Portanto, este estudo visa a possibilidade de cada um criar sua própria estética da
existência, buscando ampliar a própria criatividade e o direito de experimentar novos estilos
de ser, implicando na sua diferenciação no/do social, na medida em que para a liberdade
experimentadora do sujeito existirá sempre o limite ético da dor e do sofrimento do outro, e
por isso aponta para uma alteridade manifesta.
O que sabemos, o que desejamos saber, o que lutamos para saber, o
que devemos tentar saber sobre amor ou rejeição, estar ou
35
acompanhado e morrer acompanhado ou só – será que tudo isso
poderia ser alinhado, ordenado, adequado aos padrões de coerência
talvez sim – quer dizer na infinitude do tempo. (Bauman, 2004,
p.16).
Talvez não seja possível saber sobre o amor, mas poderíamos exercitá-lo, não ao
modo do consumo, da testagem. O exercício do amor supõe a descoberta do outro, por isso
envolve respeito, não no sentido moralista que rotineiramente se a esse conceito, temor
resultante da autoridade imposta, mas como Respicere, em latim, significa “olhar para”, ou
seja, capacidade de ver uma pessoa como tal, reconhecendo sua individualidade singular.
(Bauman, 2004)
Amar é querer “gerar e procriar”, e assim o amante “busca e se ocupa
em encontrar a coisa bela na qual possa gerar”(...) não é ansiando por
coisas prontas, completas e concluídas que o amor encontra o seu
significado, mas no estímulo a participar da gênese dessas coisas. O
amor é afim à transcendência; não é senão outro nome para o
impulso criativo e como tal carregado de riscos, pois o fim de uma
criação nunca é certo. (Bauman, 2004, p.21).
Onde há dois não há certeza, um mais um é sempre mais que dois. Ser duplo significa
consentir em indeterminar o futuro na possibilidade de talvez constituir um saber de dois,
frente ao inesperado da espera e não por meio de uma procura. É neste impasse que falarei de
conjugações possíveis na conjugalidade. Para tanto lhes apresentarei no capítulo seguinte o
caminho das pedras percorrido nesta investigação. As teorias psicanalíticas, em especial a
Teoria dos Campos, instruíram meu caminho e o método interpretativo foi o que me levou e
também me deixou, me atordoou e confundiu, enfim apoderou-se de meu trajeto e inscreveu-
se na minha pesquisa, no meu texto e contexto.
36
3 - CAMINHANDO SE FAZ... CAMINHO.
Ando devagar porque já tive pressa
E levo esse sorriso porque já chorei demais
Hoje me sinto mais forte, mais, feliz quem sabe
Eu só levo a certeza de que muito pouco eu sei
Eu nada sei.
Almir Sater e Renato Teixeira
No contexto desta pesquisa utilizei do método psicanalítico por ruptura de campo
como instrumento de investigação da psique, tendo em vista a Psicanálise enquanto uma
ciência geral desta. Nesta, o método significa caminho para um fim, com interesse tanto para
o resultado, como para a forma de construção do conhecimento (Herrmann, 2001).
Neste campo de conhecimento, o homem psicanalítico não é apenas nosso objeto, mas
também o sujeito do conhecimento, assim como quem o opera , portanto estamos juntos nesta
empreitada de descobrir e produzir os sentidos humanos. “Podemos estar descobrindo certas
coisas no homem, que na verdade são propriedades do método e que aparecem no homem
(ou mundo humano) em condição de análise” (Herrmann, 2001, p.12).
Portanto, o conhecimento que advém deste método, acontece no próprio movimento
de constituição da trajetória, na forma de construção deste conhecimento. Então, “difícil dizer
o que será para aquilo que se faz indo.” (Romera, 2004, p.09). Tal processo diz de uma
construção impensável a priori, pois é precipitada no fluxo do desejo de prosseguir, uma
espécie de transgressão metodológica, uma vez que o caminho não foi predeterminado, mas
reconhecida pelo paradigma emergente das ciências pós-modernas (Santos, 1989).
Assim se deu a produção de conhecimento no campo do conjugal nesta pesquisa
empírica em psicanálise, onde o método ultrapassou a técnica e o conhecimento psicanalítico
pôde ser construído nos espaços cotidianos, no mundo. Para melhor apreendê-lo lhes convido
a percorrer alguns passos traçados nesta caminhada, configurados a posteriori quando me
propus a rever minha trajetória.
37
Ao retomar o projeto inicial da pesquisa reconheci um intento muito pretensioso, ou
seja, fazer uma vinculação entre o conjugal e o parental que, como se não bastasse, apontava
como perspectiva repensar a família no seu processo de reconstituição. Estava centralizando
na estrutura e processualidade conjugal os destinos do familiar.
Mantive esta proposta até a qualificação, que começou a oscilar quando precisei
definir com qual amostra iria coletar os dados. Inicialmente cogitei via consultório, as
crianças que atendia para assim chegar no casal conjugal via casal parental, mas esta idéia por
sua complexidade ou ingenuidade não se sustentou.
Logo em seguida pensei em percorrer os caminhos do instituído formalmente, através
da vara de família: divórcios consensuais como através dos grupos de diálogos conjugais
desenvolvidos pela Igreja Católica, mas para quê tanta formalidade! Então fui para o mais à
mão, e criei uma demanda de atendimento de psicoterapia do casal na clínica escola da
Universidade Federal de Uberlândia no qual desenvolvi o processo de investigação na clínica
padrão com 3 casais. Estava norteada por um pensamento bem metodológico padrão, estava
operando no campo do familiar, tentando conjugar com o familiar.
Neste momento da pesquisa as questões que lhe estruturava estavam direcionadas para
a hipótese de um inconsciente compartilhado, um em comum que daria sustentação ao campo
e por isso sua continuidade. O tempo de Cronos reinava nesta perspectiva e de certa forma
uma moralidade a respeito do bem e do mal, sobre a durabilidade, uma condição de poucos,
uma vez que ela está em questão nos dias de hoje. Considerei, por algum tempo, a questão: o
que faz um casal permanecer junto?
Quando propus a clínica do casal havia a idéia de campo-relação incluindo-me
neste. Estabeleci tempo para a psicoterapia e mero de sessões. Não visava intervenções
mas não deixava de ter implícita a perspectiva de cura enquanto, trânsito pela multiplicidade
38
de sentidos e a reconciliação com o desejo absurdo, ao estilo de pequenas rupturas de campo
como propõe Herrmann (2001).
Porém durante este tempo, 6 meses, fui me vendo transitando fora da clínica padrão,
um movimento que já vinha exercitando muito antes da pesquisa. Fui me estranhando e me vi
impactada com aquilo a que me propunha reconhecer: o método, a questão da repetição e da
transformação, mas não àquele estilo, frente ao que me propunha estudar naquele momento.
Na tentativa de perceber o que conjugavam, o em comum na relação, me percebi num lugar
comum, aprisionada pela demanda que havia ofertado, a repetição do modelo clínico padrão
como do discurso conjugal padrão organizado pela herança heterossexual reprodutiva.
Neste movimento os próprios casais imersos nas exigências da modernidade assim
como eu, não conseguíamos muitas vezes acertar o passo nesta caminhada, pois
demandávamos tempos diferentes para os encontros. Assim também a clínica escola não
dispunha de tempo necessário de funcionamento para os horários que os trios dispunham.
Então tive que literalmente conduzir a pesquisa para fora da Clínica escola, passei a atendê-
los no consultório, no tempo que dispúnhamos em comum. começava minha abertura
para outras visões no caminho.
Ao apresentar este traçado como pré-requisito de uma disciplina, acabo por deixar
escapar que o filho configura a conjugalidade. Cria-se um clima, e uma professora me
questiona sobre casais que não têm filhos e se dispõe a ser sujeito da minha pesquisa.
Surpresa naquele momento... senti-me autorizada a transgredir com o método e percebi que
estava amarrada por uma idéia metodológica e conceitual padrão. Nesta época descobri
também que conjugalidade não era uma questão de dois, mas de uma capacidade de criar elos
de ligação frente ao campo da afetividade e da sexualidade, dizia da intimidade e que
portanto não necessitaria de ouvir o casal conjugal juntos, mas que qualquer pessoa poderia
39
ser sujeito da pesquisa desde que fizesse inserção no campo do conjugal. Assim abri os
olhos para a diversidade conjugal.
A partir de então comecei a estabelecer também o que chamei de conversações
clínicas, rotineiramente chamadas de conversas informais” frente uma escuta diferenciada.
Estas poderiam se dar no consultório com pacientes em atendimento individual, na sala de
aula, na rua, numa festa e assim se deram, desde que implicadas no campo da pesquisa.
Fui para a qualificação com duas vertentes: a clínica do casal e as conversações
clínicas, narrativas totalmente opostas, uma compacta e estruturada representativa de uma
estrutura conjugal clássica e outras fragmentadas, de alguns sujeitos modernos a negar e
subverter a ordem conjugal instituída e assim reafirmando-a. Nesta ocasião apresentei um
atendimento clínico, voltado para a questão da ausência do desejo na relação, morte e vida
não estavam sendo conjugadas, com destaque num renascimento da relação que resgata a
possibilidade de potência deste casal. Apresentei também a lógica consumo sedução, descrita
por Lipovetsky (2004), na relação das baladeiras com os homens fumaça, digo de uma
alteridade não expressa e tão pouco expressiva na concepção do conjugal na atualidade.
A banca da qualificação me coloca em vórtice, rompe com a vinculação que queria
fazer entre casal e família, declara que são campos que se entrecruzam, mas são distintos e
que haveria de fazer uma escolha, separação para o momento da pesquisa. Outra questão
estaria centrada nesta suposta diversidade conjugal, este novo seria representante do diferente
ou uma diferença camuflada do idêntico, da repetição?
Inicia-se logo em seguida um outro movimento na pesquisa. Teria que decidir também
entre uma coisa ou outra não daria mais para “escolher tudo”, percebi-me imersa no
pensamento radical da inclusão, da diversidade e também da onipotência, ou seria da
impotência! Estava oscilando entre o padrão e a fragmentação, entre a clínica do casal e a não
expressão do pensamento, o ato puro, ambos representantes da psique do real no campo do
40
conjugal. Mas não era uma coisa nem outra que eu desejava pesquisar, então no meio do
caminho entre um caminho e outro vislumbrei um terceiro caminho que se revelou: iria
pesquisar o que é tido na Crença
7
representacional do cotidiano como diversidade conjugal
ou novas configurações conjugais
8
, para assim verificar a sua originalidade, no sentido de
haver novos sentidos sendo produzidos no processo de conjugar na atualidade e assim refletir
sobre este novo.
Este novo se daria na produção de um terceiro campo, distinto do entrelaçamento dos
campos que o precederam, configurando-se em algo diferente do que era: um filho; um
projeto; uma fantasia; um sentimento; uma idéia; uma dúvida, e até mesmo uma nova certeza.
Seria um novo caminho a caminhar.
havia concluído que há o inconsciente compartilhado ou recíproco em toda relação,
seja ele estruturado por regras transitivas ou intransitivas, assim como os verbos. O foco da
pesquisa é deslocado do em comum para a diferença enquanto condição de sustentabilidade
da relação, ou seja, a possibilidade de produção de sentidos no campo, deixando de ser o
tempo cronológico o ideal para representar a viabilidade de uma relação amorosa, mas sim
sua condição de transformação, o tempo de Kairos. Faço uma adesão ao ideal moderno “que
seja eterno enquanto dure” e tomara que dure para sempre... que houver desejos sendo
operados.
A questão passa a ser, para esta pesquisa: será que o que é tido como novo, novas
configurações conjugais, apresentam a possibilidade de um jogo disposicional diferenciado
no campo conjugal destes casais?
7
Função psíquica pré-consciente que mantém as representações vigentes para o sujeito, dando
credibilidade ao vasto panorama que fazemos do mundo e de nós mesmos (Herrmann, 1997)
8
Estarei chamando de novas, aquelas tidas pelo pensamento cotidiano como diferentes das organizadas
pela tradição da aliança heterossexual reprodutiva, norteada pela família nuclear.
41
Iniciei um novo processo de divulgação da pesquisa. O pesquisador tem que ir aonde
o conhecimento possa estar, no senso comum e no non sense da opinião. Acreditei num
primeiro momento que seria fácil encontrar os sujeitos das entre-vistas, ingenuidade a minha!
Divulguei pela internet, repliquei para todos os meus conhecidos a proposta da
pesquisa e dispus a quem se interessasse, aguardei e criei muitas expectativas, dentre elas que
teria demanda. Que nada! Duas pessoas me retornaram, uma aceitou participar e a outra disse
não conhecer ninguém dentro do recorte definido: casais em uniões consensuais, sem
coabitação, sem filhos, homossexuais, separados e recasados em união estável, podendo tais
condições estarem conjugadas.
Passei, então, para um processo de boca a boca, olho no olho, ao propor a pesquisa
nos lugares que circulava: entre amigos; entre profissionais da área de saúde pública e
privada e solicitava que divulgassem para mim a pesquisa a quem achassem de interesse,
solicitando que os sujeitos entrassem em contato.
Neste momento vivenciei, o deixar que surja e tomar em consideração. Nesta espera
foram surgindo lentamente os sujeitos, que apareciam como possibilidade e logo
desapareciam. Neste movimento de parada ou de caminhada a passos lentos pude ir
reorganizando meu pensamento e entre-vistando o que surgia.
Fui apreciando os pequenos resultados das conjugações no campo das entre-vistas,
pude descobrir e produzir novos olhares. Segundo Herrmann (1992) a cada encontro
significativo em que o homem seja escutado plenamente e em que o cruzamento dos olhares
permita um reconhecimento recíproco esta aí a expressão natural da função terapêutica.
Neste caminhar minha questão foi a de fazer escolhas. Imersa, também, na lógica do
consumo sedução na pesquisa acadêmica como na vida, fui construindo vários dados e não
conseguia conjugar ponto e vírgula, fala pensamento e escrita. Fui tomada por uma avalanche
de sentidos, me perdi no hipertexto e me vi sem contexto, os quais nesta trajetória fui
42
denominando de escuta itinerante; clínica do casal; conversações clínicas e por fim entre-
vistas.
Frente a tanto material entrei em expectativa de trânsito
9
, mas consegui com muito
trabalho de parto, parir uma parada, fiz a escolha pelas entre-vistas, por reconhecer nelas uma
condensação de todo o material construído, após ter percorrido todos os outros processos
anteriormente, sendo conduzida, por rupturas neste campo, a esta escolha final.
Entendo, agora, que o tempo de parada, está para o fluxo contínuo como ato que leva
à reformulação, à elaboração. É preciso essa atuação para que se desdobre num tempo que é
duração, do raciocínio necessário para compreender o momento de concluir (Marçola, 2006).
Este processo de ver, em entre-vistas
10
, ao olhar o material a posteriori foi realizado
entre-vistas minhas e de minha orientadora, um olhar multiplicado, na tentativa de desfocar a
visão da relação e entre-ver-se (n)o campo.
Assim, as entre-vistas denominas por mim, foram micro análises de superfície que
puderam abrir perspectivas, dentre elas, ir além do manuseio do enquadre padrão, da clínica
padrão e do saber sobre a conjugalidade a partir do não saber. Produção a partir da clínica
enquanto um ponto de vista, um lugar de onde se olha o mundo, o homem e sua psique. Uma
Clínica para além do rigor técnico e da concepção de tempo de análise, tido tradicionalmente
como o tempo longo.
Proponho um tempo médio e curto para análise, não no sentido do tempo cronológico,
mas no da vivência de um possível, caso ocorra, um relativo abalo identitário, promovido
9
Momento de irrepresentabilidade, trânsito por uma terra de ninguém, sensação desconfortável.
(Herrmann, 1992).
10
Elas serão apresentadas na ordem que foram feitas , segundo o critério de disponibilidade dos
entrevistados de estarem em entre-vista para a pesquisa, Serão elas: casamento e separação; casamento e
recasamento; casamento sem filhos; união consensual homossexual; casamento sem coabitação.
43
pelo campo transferencial, existente em toda relação. Isso não tem tempo pré-determinado
para acontecer, podendo dar-se a qualquer instante e em qualquer um dos sujeitos do campo.
Enquanto micro perspectivas de superfície, pretendo através do consenso apreender o
non sense. Portanto serão considerados como analisadores a concepção de Campo da Teoria
dos Campos e consequentemente a de Paradoxo/absurdo para apreender os sentidos que
sustentam o campo-relação da conjugalidade hoje.
Para percorrer este caminho fui traçando alguns aspectos teóricos relevantes para
compreender e sustentar o momento de chegada, de concluir, para a apreensão e análise do
que foi entre-visto. Porém todo o caminhar teórico já conteve, paradas, análises da clínica na
cultura da conjugalidade.
No Capítulo 4 apresento-lhes conjugalidade(s) possíveis, tendo em vista a concepção
de desejo para Teoria dos Campos. Falo de uma concepção de alteridade, enquanto o estranho
que pode ser compartilhado num campo, que pode articular elementos até então tidos como
distintos e incompatíveis. Proponho uma conjugalidade entre concepções de
intersubjetividade. Em seguida uma conjugalidade entre complementaridade e
suplementaridade a partir do paradoxal contido em qualquer relação conjugal. E por último
uma conjugalidade proposta por Herrmann (2001) entre Campo-Relação, entre consciente
inconsciente, realidade e real, através de uma Dupla face, método e absurdo.
no Capítulo 5 faço uma descrição de três rupturas no Campo Sócio-histórico da
conjugalidade, tidos como o tempo longo das narrativas históricas. Transformações ocorridas
na conjugalidade, a partir da descentralização do casamento e da abertura a uma pluralidade
sexual na Modernidade, decorrente da crise do amor Romântico. Falo também da
feminilidade que influenciou os processos de subjetivação do feminino e do mascul
ino,
pondo em crise as relações de gênero. Em seguida discuto a questão da vincularidade hoje
frente às transformações ocorridas nos processos de subjetivação, advindos de uma lógica de
44
concepção norteada pelo Regime do atentado e da farsa representativa da Globalização e de
uma Hipermodernidade circunscrevendo uma nova cartografia da psique social e
consequentemente da psique conjugal.
Em seguida, no Capítulo 6, estarei apreendendo cinco entre-vistas descritas e
analisadas segundo o foco da Teoria dos Campos e do método psicanalítico por ruptura de
campo. Primeiramente neste Capítulo delimitei as interseções em cada relação conjugal, as
especificidades de cada uma delas a partir das regras de sustentação de cada formação
vincular que estruturam o campo daquela relação. Denominei do em comum no campo-
relação, uma especificidade de sentidos para cada união.
Tive como foco também as confluências, tidas como aberturas de um em relação ao
outro, ou somente aberturas no campo, apontamentos de possibilidades distintas do
estruturado e conjugado em comum. Os sentidos possíveis na relação; tido neste foco como o
diferente do jogo disposicional em comum, denominado como entre. O paradoxo/absurdo
enquanto uma fresta um non sense do desejo, suas possibilidades.
Estes dois recortes acima delimitados, dizem dos pressupostos de análise que elegi
neste estudo, a partir dos referenciais teóricos apresentados nos Capítulos anteriores, são
eles: um campo que estrutura o funcionamento da relação conjugal; existem regras de
sustentação de cada formação vincular; existe uma especificidade de sentidos para aquela
união e a relação conjugal sustenta e é sustentada por uma condição paradoxal.
Finalmente no Capítulo 7 tentei fazer um desdobramento de uma entre-vista sobre a
outra num movimento de convergir os sentidos compartilhados, em comum, as interseções
entre as cinco narrativas, faço uma análise da cultura na clínica , ou seja , os sentidos
compartilhados no Campo Conjugal hoje. Portanto pretendo apreender qual a relação
conjugal que este campo vem produzindo.
45
Para continuarmos nesta caminhada, irei a seguir apresentando-lhes as minhas
construções teóricas que deram sustentação ao método construído nos encontros e
desencontros com a conjugalidade.
46
4- CONJUGALIDADE (S)
Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu
descobrindo o muito que não teve e o que não terá .
Ítalo Calvino.
4.1 - O Outro: Psicanálise-alteridade
Fundamentando-se na lógica interna da teoria psicanalítica, podemos dizer que o
sentido da vida está submetido ao princípio do prazer, porém a perspectiva trágica que
permeia o pensamento freudiano coloca-se quanto à não possibilidade de efetivação do
mesmo. Podemos verificar com isto que a vivência do prazer é possível em contraposição
ao sofrimento.
Para nosso desencanto a felicidade é repentina e o sofrimento é mais comum. Para
Freud (1930) a maior fonte de sofrimento são nossos relacionamentos. O outro se apresenta
como o inferno corporificado, mas sem o encontro com ele não haveria mundo humano. A
constituição da esfera psíquica depende do encontro com a alteridade, encontro este sempre
traumático.
Apesar da obra de Freud ter sido norteada pelo pensamento de uma época, afirmação
da lógica identitária, da primazia do eu, do idêntico, percebe-se também implicitamente uma
dispersão, ruptura, quando propõe um sujeito dividido, descentrado, aquele que esta além de
toda fronteira: o inconsciente.
Neste sentido a temática da diferença, da alteridade está presente em seu estatuto
originário, o inconsciente, tomado como objeto, por excelência da Psicanálise. Este
fundamento encontra-se presente frente à ambigüidade da obra de Freud com a tradição
47
judaica (Moreira, 2003), condição até então implícita de estrangeiridade
11
, de sustentação
desta alteridade e diferença.
O deslocamento desta problemática desvela dimensões alteritárias subjacentes à
constituição das subjetividades, como também, no interior da reflexão sobre a cultura, pois
aponta o seu conflito entre duas fortes tradições, a greco-romana e a judaica.
Assim a alteridade estaria reconhecida como elemento constitutivo das subjetividades
singulares. Com isto instaura-se conjuntamente a questão da intersubjetividade: como
estabelecer pontes entre pólos eu-outro, como conceber a união destes pólos, no qual antes se
reconhecia a separação, através do cogito cartesiano?
Surge uma oposição à grande parte da tradição filosófica moderna, que concebe o
eu como uma unidade auto constituída, independente da existência de um outro e de outros
singulares e diferenciados.
Nesta perspectiva, Figueiredo e Júnior (2004), apresentam algumas dimensões da
intersubjetividade, dentre as quais focalizarei primeiramente a da intersubjetividade
traumática, orientada pelo pensamento de Lévinas
12
:
11
A ausência de uma pátria coloca o povo judeu na situação de made e, por conseqüência, de
permanente estrangeiridade. O princípio do judaísmo é o da estrangeiridade, do diferente, daquilo que escapa. A
tradição judaica evoca o tema da alteridade, revela que a identidade do Judeu consigo mesmo talvez não exista.
Em Moisés e o Monoteísmo esta temática fica evidente na concepção freudiana (Moreira, 2003).
12
A aproximação do pensamento filosófico de vinas se a partir de uma perspectiva de estranheza
e familiaridade com o pensamento freudiano, isto é, o horizonte da alteridade. Acredita-se que a mais relevante
discussão levinosiana sobre a problemática da alteridade esteja na reflexão de inspiração bíblica sobre Deus
enquanto figura negativa, de uma “Alteridade Radical”, absolutamente transcendental que por princípio não
poderíamos defini-la. Assim o pensamento levinosiano também recebeu forte influência judaica assim como o
de Freud (Moreira, 2003).
48
(...) Uma relação intersubjetiva para Lévinas (1974), implica,
necessariamente, em um certo deslocamento, em uma certa cisão ou
modificação na experiência subjetiva, seja em sua constituição
primeira, seja em subjetividades constituídas, mas em processo de
reconstituição [...] em cada processo de subjetivação a experiência
inalienável de uma passividade radical, que seria a condição
subjetivante básica (Levina, 1974 citado por Figueiredo & Júnior,
2004, p.20).
Figueiredo (2003), ao falar do projeto ordenador da Modernidade, a oposição entre
atividade (sujeito) e passividade (objeto) nos fala de uma brutal inversão ao reconhecer no
traumático a figura exemplar da paixão.
O sujeito é repentinamente apassivado pelo impacto de um objeto
cujo dinamismo excede em muito sua capacidade de enfrentamento e
domínio (prático ou simbólico); no trauma, a vontade do sujeito é
submetida à sua sensibilidade, aos seus afetos; se a linguagem dos
afetos padece sempre da equivocidade, para se falar do trauma não
há, rigorosamente, linguagem alguma disponível (Figueiredo, 2003,
p.15).
Forma de subjetivação que reconhece a alteridade, que foge da adequação, adaptação
entre eu e outro, algo do outro excede sempre a mim, tornando-se traumática. Trauma e
excesso que exigem trabalho/dor por parte do sujeito diante daquilo que a princípio tende-se a
excluir, mas que justamente é o que difere e transforma. Produz fraturas e exige trabalho
frente à inadequação entre eu e o outro. Concebe a experiência subjetiva como abertura
permanente e inevitável ao outro, em sua alteridade e que sempre ultrapassará a capacidade
49
de recepção, mas que por expressão do sofrimento exigirá sempre, alguma resposta.
(Figueiredo & Júnior, 2004).
Esta experiência traumática abre caminho para a compreensão da origem de angústias
de separação e individuação, expressas na convivência subjetiva com a alteridade na
experiência de perda, do abandono e da castração.
De certa forma, para Figueiredo e Júnior (2004), este tipo de experiência do outro é o
contraponto necessário à experiência trans-subjetiva para que de fato se constitua um campo
de intersubjetividade.
Essa primeira matriz intersubjetiva procura referir-se ao campo de
uma realidade primordial e “materna”, concebida como continente, e
em certa medida como um “continente engolfante” (anterior à
separação entre externo e interno) com relação à experiência
subjetiva. É a experiência de um solo de acolhimento e sustentação,
em que a alteridade emerge como constitutiva das experiências
subjetivas, mas não por oposição e confronto, e sim por seu caráter
de inclusão, primordial, uma modalidade pré-subjetiva de existência
(Figueiredo & Júnior, 2004, p.19).
Seria devido a isto que a Intersubjetividade Trans-subjetiva
13
se daria como
modalidade pré-subjetiva de existência, indiferenciação original, onde a intersubjetividade
passa a ser vista como um falso problema, pois nela não se coloca a questão se é possível
13
Seus expoentes filosóficos são Scheler, Heidegger e Merleau Ponty. Fizeram da filosofia
fenomenológica uma referência central para se estudar a intersubjetividade em suas diversas dimensões.
Levaram mais adiante algumas intuições husselianas.
50
conhecer um outro. Situa-se neste nível um campo primordial da experiência da
expressividade e da intuição.
Assim a idéia de alteridade, pode ser tomada como um modo fundamental de ser da
realidade como também uma dimensão necessária para que possamos compreendê-la.
Demarca, assim, um campo discursivo, de um saber que se diferencia e se relaciona.
Neste contexto surge dentro da Psicanálise uma perspectiva vincular, que trata da
inserção em diferentes mundos, nos quais simultaneamente vivemos: o mundo espaço
intrasubjetivo no qual nos relacionamos com nossos objetos internos; o mundo espaço
intersubjetivo no qual a presença do outro é inexorável e condiciona, inevitavelmente, a
percepção da própria existência que se constitui precisamente nesta relação, obtendo assim a
forma de ser sujeito; e finalmente o mundo espaço trans-subjetivo, o sócio-cultural que nos
marca, que nos atravessa.
Dentro destas três modalidades de intersubjetividade o vínculo conjugal passou a ser
pensado e investigado, os intercâmbios psíquicos, afetivo e sexuais passam a ser organizados
na sua expressão dos aspectos formais e não formais pelas estruturas do que se poderá
chamar de psiquismo conjugal.
O texto acima fala da multiplicidade dos objetos-causa do desejo inconsciente, que,
embora finitos, apontam, na sua diversidade, para múltiplas configurações da alteridade dos
sujeitos. Esta figura alteritária, o inconsciente, impõe a concepção de um Outro como um
complexo sêmico, com múltiplas derivações semânticas e por isso passa a ser uma questão
não só da Psicanálise, mas também da Fenomenologia.
Portanto, com estas perspectivas de intersubjetividades voltadas para a apreensão do
psiquismo conjugal, com foco na relação, a Psicanálise se expandiu, havendo uma ruptura no
seu campo de saber, tornando-se mais flexível ao aceitar o desafio das novas demandas
psíquicas e também das novas concepções de realidade. Houve assim um processo alteritário
51
dentro do seu próprio corpo de saber, uma vez que se abre para articulações possíveis, as
quais serão apresentadas no tópico seguinte.
4.2 - O nós: articulações teóricas possíveis.
O pensamento clínico hoje, da clínica do casal apresenta um leque de referenciais
teóricos que sustentam a compreensão de tal dinâmica e são vários os modelos construídos
para dar conta das diversas dimensões psíquicas inconscientes que nela se entrecruzam. De
modo que esses modelos podem ser criados em torno de diferentes eixos.
É justamente esta idéia de possibilidades que venho valorizar neste estudo, não tendo
como objetivo primeiro apropriar-me de uma em específico e apresentá-la.
Na concepção da análise da díade conjugal uma corrente teórica estaria centrada na
noção de relação de objeto, resultando numa concepção psicodinâmica de decantação de uma
rede de identificações projetivas cruzadas, determinada pelo mundo intrapsíquico individual e
infantil dos envolvidos, na qual o outro funcionaria como objeto intra-subjetivo, ou seja,
como representação do desejo e fantasias unilaterais do sujeito, enquanto regras fixas e
estabelecidas que vão se organizando e reorganizando (Maldavsky, 1993).
Nesta concepção o casal é uma estrutura aparentemente diádica, embora seja
construída por dois corpos, pesam em sua relação muitos outros elementos fantasiados ou
reais, tais como um dos pais de um ou outro parceiro, ou a própria relação de casal, ou ainda
a dinâmica parental de origem presente na nova relação (Andolfi, Ângelo & Saccu, 1987).
O outro é tido, neste cenário, como uma possibilidade de externalização dos conflitos
intrapsíquicos e a união como forma de livrar-se dos mesmos ou de conscientizar-se deles.
um reforço narcísico que cada um dos parceiros proporciona ao outro de natureza
transformadora na utilização recíproca da relação objetal, inclusive como modalidade
52
defensiva contra as pulsões pré-genitais insuficientemente controladas na distribuição dos
papéis e funções.
Fundamenta-se nas necessidades complementares entre características femininas e
masculinas: identidade de gênero, as diferentes passagens e resoluções edípicas,
bissexualidade identificatória e biológica, etc. Esta complementaridade leva a uma escolha
objetal e possibilita a união da satisfação afetiva e sexual.
Nesta compreensão o mecanismo de base do funcionamento do casal é a colusão. Na
colusão os cônjuges se unem por supostos comuns, quase sempre inconscientes, e com a
expectativa de que o parceiro o liberte de seu conflito. Ela seria uma matriz interacional, que
organiza a vida amorosa do casal num jogo colusivo havendo trocas de extratos, facetas de
uma mesma temática em comum, que se arranja de forma complementar (Willi, 1975).
Freud (1930) aponta para uma espécie de conveniência inconsciente, cuja essência é
caracterizada pela recíproca atribuição de sentimentos compartilhados em nível
inconscientes, nos quais cada um aceita desenvolver somente partes de si, conforme as
necessidades do outro, renunciando a desenvolver outras partes que projeta no companheiro.
Dicks (1967) afirma, ainda, que os mecanismos em que se fundamenta a colusão são,
justamente, aqueles assinalados por Klein (1946 citado por Dicks, 1967): a idealização, a
cisão e a identificação projetiva, que são mecanismos de funcionamento relacional úteis à
vida e à manutenção da colusão.
A identificação projetiva, recíproca e complementar, promove o intercâmbio de
sentimentos, emoções e partes pessoais com o outro, podendo vir a externalizar partes de si,
útil para reconhecer os objetos como para procurar outros podendo estabelecer vínculos
essenciais.
É múltipla a utilidade desse mecanismo na dinâmica de casal: em
primeiro lugar permite comunicar, mas também controlar e atacar, no
53
outro partes removidas ou cindidas de si, mas proporciona também,
num sentido positivo, seu desenvolvimento e sua atuação na
realidade, como, por exemplo, com a masculinidade e feminilidade
(Nicolló, 1995, p.78-79).
Segundo Dicks (1967), cria-se uma personalidade conjunta e integrada, que permite a
cada unidade que redescubra aspectos perdidos das relações objetais primárias, cindidas ou
removidas, que são experimentadas na relação com o cônjuge mediante a identificação
projetiva.
Outro componente essencial na formação do casal é a regressão, na qual, volta a se
colocar a reprodução de modalidades de funcionamento psíquico que haviam sido
abandonadas ou modificadas. Em sua intimidade corpórea e emotiva, o relacionamento do
casal, facilita, promove e mobiliza o desenvolvimento de tal mecanismo (Nicolló, 1995).
Realiza-se uma regressão a serviço do eu, instaurando, assim, o que Freud
(1929) chamava de estado de “um amor feliz real”, que corresponde à condição primária, na
qual não se podem distinguir a libido objetal e a libido do ego. Mecanismo presente e útil
desde que permita a capacidade oposta, se diferenciar do outro.
A influência e importância da idealização e suas vicissitudes também fazem parte na
constituição como na continuidade da vida do casal, fortalecendo o narcisismo normal e a
capacidade de amor objetal. E em situações normais sedem espaço a uma oportuna desilusão,
pois manterá o investimento recíproco, embora deixando um espaço oportuno para o exame
da realidade (Nicolló, 1995).
Seria a superação do narcisismo e a conseqüente substituição do Ego Ideal pelo Ideal
de Ego fundamental para que o outro seja visto como tendo características deste ideal de Ego.
O Ideal de Ego aparece como substituto da perfeição narcísica primária (Freud, 1914).
54
Frente a isso, o que se percebe é que o ego torna-se seu próprio ideal, frente ao
mecanismo de regressão utilizado no vínculo conjugal e com a identificação projetiva cria-se
um imaginário capaz de assegurar a plenitude. Neste sentido a complementaridade conduz à
ilusão de completude, de uma suposta conquista do Ego Ideal.
Nicolló (1995) nos fala de um “jogo” recíproco que se estabelece entre os membros
do casal, fazendo alusão aos fenômenos que Winnicott (1971) define como transicionais, que
nasce do encontro entre os mundos internos e externos dos parceiros. Trata-se de um espaço
misterioso, de oscilação contínua, em que cada cônjuge é uma “extensão do outro”, mas ao
mesmo tempo é “diferenciado do outro”.
Calligares (1994) fala de uma perspectiva de que o casal possa “formar um”, não
desde uma complementaridade, no sentido de duas metades que se juntam, esse “formar um”
coloca-se na direção da construção de Um-algo que pudesse anular a diferença, “um”
construir-se na presença constante que cada parceiro do casal evoca a partir de então,
evocação que organiza o laço, orienta os lugares e o sistema de trocas.
para Bion (1962) o que possibilita uma nova ordem de significados na constituição
de um casal, seria o que denominou de “capacidade negativa do pensamento”, ou seja,
tolerância ao desconhecido e que por sua vez define a tolerância à alteridade. Seria esta
tolerância que transforma a relação sujeito-objeto intrapsíquica em intersubjetiva.
Lamanno (1994), por sua vez, nos propõe que na relação conjugal sempre há encontro
das vivências virtuais (as representações internas, o mundo relacional) com as atuais de cada
um do casal. Ponto de interseção indivisível, que ela denomina de “núcleo de vivência
mútua”, sendo a dimensão desta fusão entre atual e virtual que determinará a qualidade desta
relação.
Neste contexto da relação conjugal, a mesma autora fala da conjugalidade enquanto
aquela parte da vida mental que diz da capacidade de criar elos de ligação entre os vários
55
elementos do psiquismo, entre psique e soma, entre fantasia e realidade, entre mundo externo
e mundo interno, entre eu e outro (s), entre passado, presente e futuro.
Conjugalidade denota a parte da mente que exerce funções de prover elos de ligação,
que carrega dentro de si um duplo sentido: potência, flexões, assim como o verbo, sendo
conjugado em tempos diferentes e em diversas pessoas. Mas também de aprisionamento, sob
o mesmo jugo, paralisia. Neste sentido a palavra conjugar nos remete a associações que
implicam na visão de um psiquismo expandido em suas funções discriminativas, de
articulação e de síntese, repetição e transformação, ora combatidas, ora buscadas na relação
conjugal (Lamanno, 1994).
Todos estes conceitos deveriam acionar um processo de transformação e
conhecimento, constituído por: conhecer o outro, conhecer a si próprio no outro, conhecer a
si mesmo, por meio da imagem refletida pelo outro. O aspecto revolucionário desses é,
justamente, o de personalidade conjunta e integrada; em conseqüência, as fronteiras da
personalidade individual, ou seja, os limites do ego se confundem nesta dimensão. Assim
não se pode falar de patologia ou criação individual, mas da relação.
num outro referencial teórico, busca-se estender esta linha de pensamento, focada
na complementaridade, na tentativa de diferenciar relação de objeto (tomada como aquela
entre um ego e suas representações do objeto) do que seria vínculo ou relação intersubjetiva,
sendo esta redefinida como relação entre dois egos.
Tal perspectiva propõe características de extraterritorialidade, na qual o outro, por ser
diferente e distinto, irredutível ao desejo e à fantasia do sujeito, desencadearia uma
circunstância nova, uma origem para cada um dos envolvidos (que vai além do desejo
singular e infantil) que iriam ser determinados por esta relação de presença como um novo
sujeito: o sujeito do vínculo.
56
Berenstein e Puget (1993) enfatizam a idéia do estrangeiro no outro, que não tem
inscrição inconsciente e, portanto não pode ser reprimido, é da ordem do irrepresentável e,
deverá fazer um lugar para isto, gerando transformações no sujeito. Entrariam aí mecanismos
de imposição no vínculo, e não de introjeção, pertinentes à relação de poder.
Berenstein (2001) nos coloca que o sujeito resultaria primeiro, mas não unicamente,
do investimento do Ego a partir dos outros, das zonas erógenas, do Ego corporal, apontando
para uma subjetividade não determinada somente pelo pulsional através da rede de
identificações e das relações de objetos decorrentes, mas também através de cada vínculo
significativo.
Um vínculo que pode ser chamado de “relação de sujeito”, distinto da relação de
objeto, o sujeito não somente preexiste, estando predeterminado, mas também se constitui
nesta relação. um sujeito novo, sujeito da mudança, um tornar-se como resultado do
acontecer e da recusa da repetição.
Assim, cada vínculo significativo investe no ego como sujeito indeterminado,
agregando-se à sua imagem imaginária e faz a sua multiplicidade, “sujeito múltiplo”. O
encontro é significativo se modifica quem o produz, eis porque o infantil, sendo uma origem,
não é a única.
Aponta ainda, Berenstein (2001), para o aspecto que tem a ver com o variável e
específico da pulsão frente à presença de um outro singular e não somente com o inespecífico
e invariável do outro como objeto da pulsão, o predeterminado no infantil resultante da
ausência do outro.
Com isso a metapsicologia é repensada. Tira-se o complexo de Édipo do centro e, por
conseqüência, a subjetividade que institui e passa a ser apenas uma de suas fontes. Também o
vínculo não será o centro. O que resulta é que não há um centro ou hegemonia para instituir a
subjetividade.
57
Isso nos leva a pensar que se para o sujeito é inevitável atribuir significados, também
o é recebê-los em um vínculo. O pertencer a um vínculo inclui a aceitação de que o
significado do que cada um é ou faz não depende somente do sentido que se atribui a si
mesmo, mas também do que o outro externo significou.
Segundo Moguillansky e Seiguer (1996) seria uma “capacidade vincular”, capacidade
de cada indivíduo pôr em jogo a própria identidade, mas aceitando as significações
provenientes do outro e do vínculo, dos estados vinculares. Fala de um estado mental em que
a capacidade vincular consegue se instaurar, dado que a experiência emocional da área de
encontro intersubjetiva é altamente flutuante e instável.
Assim, a conjugalidade teria condições de possibilitar reflexões a respeito do
individualismo, pois ao longo da existência do casal os parâmetros estruturantes do cotidiano
são selecionados, constrói-se um projeto vital compartilhado. Uma vez determinados
permanecem imanentes e carecem de negociações constantes, o que designa a forma adotada
pela díade de enquadrar a realidade, o sentido e os significados intercambiados pelo casal,
assim como entendem Berenstein e Puget (1993).
No primeiro modelo pensa-se a relação conjugal por antítese na formação de
totalidades, o sujeito na relação (intersubjetividade traumática) no segundo modelo dá-se a
oportunidade de se articular, a partir da apresentação de algo distinto, o sujeito da relação e
para além da relação (intersubjetividade trans-subjetiva). São modelos considerados por
perspectivas intersubjetivas diferenciadas, que segundo Figueiredo e Júnior (2004), não seria
uma questão de evolução na compreensão do pensamento metapsicológico sobre a alteridade,
mas posições diferenciadas que se suplementam.
As relações entre estas dimensões parecem seguir uma lógica da
suplementaridade (Derrida, 1967, citado por Figueiredo & Júnior,
2003, p. 24) (...), ou seja, cada dimensão é sempre um apelo de
58
suplemento endereçado ao outro, assim como cada dimensão procura
no outro a suplência de suas fraquezas ou o controle suplementar de
seus excessos (Figueiredo & Júnior, 2003, p. 24).
O espaço conjugal pode ser pensado em ambas as posições por estarem posicionados
no campo da alteridade, campo de concepção. A produção de novos sentidos nestas
concepções do conjugal se daria a partir da interseção como da confluência dos psiquismos.
Exemplificando dentre outras suplementaridades possíveis:
Da mesma forma, como foi sugerido, a intersubjetividade
traumática é indispensável para que possa emergir de fato uma
singularidade subjetiva desde o solo trans-subjetivo primordial.
Assim é que, tanto em Heidegger como em Merleau-Ponty uma
remissão ao absolutamente outro de mim, a um fora do mundo e fora
do ser sem o que não se experimentaria nada além do mesmo. Mas é
em Lévinas que este ‘outramente que ser’ se configura como
alteridade radical. Em contrapartida, a pura e simples exteriorização
do outro jamais resultaria em subjetivação se neste outro não se
encontrasse acolhimento e habitação e se, a cada momento algo desta
experiência prévia de inclusão não estivesse operando em todos os
encontros, sejam os marcados pelo traumatismo, sejam os marcados
pela complementaridade. (Figueiredo & Júnior, 2003, p. 25)
O espaço conjugal seria uma articulação entre estas duas dimensões da alteridade? O
espaço conjugal seria um espaço transicional entre a complementaridade, continuidade e
suplementaridade, torção?
Green (1990) ao descrever a introdução do pensamento paradoxal na criação da noção
de transicionalidade nos fala de um campo transicional, uma grande idéia que recusa o dilema
59
se este campo é interno ou externo, mas uma idéia que transforma a noção de limite, que o
interesse da noção de limite é separar dois campos. O limite não é uma linha é um território,
que nos coloca problemas lógicos, assim quando neste território, não como questionar se
há interioridade ou exterioridade do objeto.
Seria uma área transicional, paradoxal entre a realidade e a fantasia, uma
possibilidade do jogo e da cultura nas relações entre a mente humana e seu ambiente, uma
terceira área da experiência, postulada como intermediária. Assim introduz-se, no psiquismo
a categoria do paradoxal
14
e com isso um estilo interpretativo, a noção do talvez, ou seja,
uma ruptura com a lógica do que é interno ou externo, dos lugares delimitados da noção de
verdade.
Não seria a superação de algo que foi negado num movimento acumulativo, mas algo
que, pode ser isso, mas não isso e o contrário disso. Sustentar e diferenciar ao mesmo
tempo aquilo que o precedeu, levar ao extremo e estender, ser isso e aquilo.
Indo de encontro com esta posição Deleuze (1969) baseado em Lewis Carroll que
escreveu os paradoxos do sentido na literatura, apropria-se disso e também nos fala dos
paradoxos do sentido, de uma filosofia estreitamente ligada à constituição paradoxal da teoria
do sentido. Através do paradoxo se destituiu a profundidade e as coisas se mostram na
superfície.
Daí que as inversões/reversões de Alice (na ordem do tempo,
reversões de proposições, reversões de causa e efeito, etc.) surgem
como um paradoxo da identidade infinita e conduzem a contestação
14
O paradoxo não é um conceito psicanalítico, pertence ao domínio da lógica, via epistemologia.
Bertrand Russel quem introduz, através do paradoxo lógico-matemático, uma ruptura epistemológica neste
campo.
60
da identidade pessoal de Alice, tema que atravessa suas aventuras.
Segundo Deleuze, a descida de Alice nas profundidades do poço
lugar a movimentos laterais de expansão, a profundidade se faz
superfície, os animais dão lugar a figuras de carta, sem espessura.
Não há aventuras de Alice, diz Deleuze, mas uma aventura: sua
ascensão à superfície (...). A obra de Carroll joga permanentemente
com a dualidade dos sentidos, com a proliferação indefinida dos
mesmos, com a criação de jogos sem regras definidas e contraditórias
entre si, etc. O não sentido na filosofia do absurdo não se opõe à
ausência de sentido, produzindo um excesso de sentido. É o que
Deleuze entende por non-sense identificando-o, portanto, ao
paradoxo (...) (Leite, 1980, p 13).
Frente às flexões teóricas apresentadas, paradoxalmente conjuga-se uma inflexão
entre elas, a invariância do método psicanalítico. Nele ou a partir dele as teorias desdobram-
se justamente porque mantém a sua propriedade originária: são seres de e da interpretação.
No campo transferencial realidade e fantasia, o inconsciente. Herrmann (2001)
atribui espessura ontológica ao método interpretativo por ruptura de campo, por constituir
aquilo que vai analisar. O princípio do absurdo faz com que atinja o limite, o fenômeno
mostre o avesso ou o contrário do que vinha constituindo. Rompe e desvela a lógica de sua
produção. Portanto é a sua capacidade de variância, propriedade originária, que o torna
invariável, portanto paradoxal.
O que aproxima e separa as teorias é o estatuto originário da psicanálise, a sua
condição de descentramento. O método não poderá derivar do fato de que o mesmo
permaneça atrelado ao modelo histórico que o originou, mas sim, o contrário, que a
61
possibilidade de apropriação explicativa das diversas manifestações do inconsciente pelo
método é que o promove a mentor de uma psicanálise legítima (Herrmann, 2001).
As teorias são formas de dar sentidos desde que elas se modifiquem através do
interpretante. outra ruptura dentro da Psicanálise, o universal contém e está contido no
singular.
Devido a isto avalio ser a conjugalidade, dentre outros, um campo potencial capaz de
fazer um contraponto ao individualismo e à lógica identitária atual organizada a partir do
senso comum.
Na conjugalidade, acredito ser possível criar ou não um novo contexto, uma nova
ordem intersubjetiva, na qual se resignifiquem e se relativizem os sentidos nos quais cada
membro do casal nasceu e se criou (a subjetividade vinda do infantil) e os sentidos
emergentes enquanto sujeitos no mundo (a subjetividade vinda do histórico sócio cultural)
como no entrelaçamento destes dois campos, permitindo um novo vértice da racionalidade,
multisubjetividade, com um novo sentido para cada um e para a relação. Estabelecendo, se
possível, uma nova ordem de casal, criada e recriada neste novo campo, o conjugal.
Por isso ainda podemos dizer: porque a conjugalidade ainda sobrevive? Porque o
sujeito sobrevive nela(s) sustentado pelas regras de sua constituição. É sobre isso que se
desenvolverá o próximo tópico.
4-3 – Campo - relação conjugal
Tendo em vista a conjugalidade enquanto um campo da multisubjetividade
estruturado e que organiza as regras da relação conjugal, utilizarei da concepção teórica e
metodológica da Teoria dos Campos, formulada por Fabio Herrmann (1960/2006) por
avançar na proposição da Psicanálise enquanto ciência geral da psique, capaz de sustentar
62
uma gama mais ampla de práticas e um pensamento mais eficaz sobre o homem, uma forma
de pensá-lo a partir da produção de sentidos.
Para falar de Campo e Relação, Herrmann propõe uma trilogia dos Andaimes do Real,
enquanto regras individuais e coletivas (Sócio/culturais) que estruturam os sentidos humanos.
Ele reapresentou uma idéia metodológica fundamental que necessita compreender melhor o
homem a quem pretende servir. O homem da Psicanálise, o Homem Psicanalítico, que é
essencialmente um ser psíquico. Para tanto propõe a investigação da zona intermediária entre
superfície de representações e inconsciente para alimentar constantemente a produção de
qualquer novo conhecimento sobre este (Herrmann, 2001).
Este autor apresenta um estilo de análise de superfície que originou idéias motrizes
desenvolvidas a seguir em seu corpo teórico. Discute a relação entre realidade e fantasia para
expor as representações psíquicas, onde as funções de superfície irão esclarecer a condição
paradoxal do objeto do desejo.
“Que nome dar ao caminho que vai da representação à profundidade inconsciente,
ocupado em grande medida pela análise da zona intermediária, zona que corresponde
digamos, à profundidade da superfície da consciência?” (Herrmann, 2001, p.10).
Herrmann (1991) propõe pensar num termo que dissesse de um sentido geral, pois
muitos destes inconscientes não são pessoais, mas sociais, está na sua origem a cultura. Para
não confundi-lo com o inconsciente freudiano enquanto uma espécie final de todos os
inconscientes ele o denominou de Campo, para denominar aquilo que revelam análises, lugar
das regras que determinam as relações que concretamente vivemos. Herrmann (2001) acha
razoável também a expressão de inconsciente relativo. Engloba algo do inconsciente
tradicional junto com a composição da zona intermediária que organiza nossas idéias.
Segundo Herrmann (2001) uma pessoa pode transitar entre vários campos e ao mudar
de campos torna-se diferente, mas não percebe, pois acredita ser sempre um e o mesmo.
63
Desta forma acredita que a noção de inconsciente se torna mais flexível e ao mesmo tempo
mais geral. “Como gosto de lembrar a meus alunos: no fundo, no fundo, todos os homens são
iguais, por isso o que interessa é a superfície (...)” (Herrmann, 2001, p.10).
Um ponto básico da Teoria dos Campos é a relação entre realidade e real. Realidade
para designar o conjunto de representações do mundo, não confundindo-a com a realidade de
fato, com as coisas como na realidade são e nem mesmo com a nossa conhecida realidade
psíquica, uma realidade interna à fantasia, não haveria contraposição entre fantasia e
realidade. Enquanto representações, tudo o que se exige delas é um disposição a mostrar-se
psiquicamente.
O real por sua vez, nesta perspectiva, apresenta-se como uma ruptura de campo dentro
da Psicanálise ao criar condições de método e teorias para que a Psicanálise também
investigue o âmbito produtor de sentidos humanos. Conceito central ausente desta ciência da
psique, complementar ao inconsciente tradicional do desejo, seu conceito central presente.
De um lado da superfície das representações, portanto, fica o
inconsciente tradicional, no sentido freudiano; do outro lado, outro
inconsciente, que é o mundo real, composto não de coisas
propriamente ditas, mas de linhas de força, ou sistemas produtores de
sentido humano.
Esses sistemas produtores podem ser, por exemplo, as regras de
parentesco e as estruturas míticas, como aquelas que estudou Lévi-
Strauss, os sistemas de produção descritos pela Economia Política de
Marx, os fundamentos da ideologia, analisados pelos pensadores da
Escola de Frankfurt, as redes fundamentais de Foucault (Herrmann,
2001, p. 15).
64
Portanto, de um lado das superfícies de representação, fica o inconsciente tradicional e
do outro o outro inconsciente que é o mundo real composto de linhas de fuga. Parece-me que
Herrmann também gostava de conjugar, ampliou o sentido de alteridade do inconsciente. Tal
intento também estava implícito em Freud, quando analisou a cultura humana.
É como se houvesse dois psiquismos profundos em diálogo, confluência, produzindo
uma superfície de representações que sustentaria o que denominou de campo, unidade dentro
e fora. Assim mundo-psique teria de ser visto como uma complexa construção mutável
(Herrmann, 1997, p.230).
Ao falar em lógica de concepção, nas superfícies de representações, nas pontes,
organizam-se princípios racionais, uma lógica razoável, onde o repertório de cada um de nós,
traz sua própria estampa, delimitada pela confluência do desejo e do real geradora de idéias e
emoções, porém de uma outra lógica, transformada em lógica de produção. A lógica do
campo, ou as lógicas dos campos expressas nas fantasias. (Herrmann, 2001).
Portanto os dois abismos inconscientes estão sustentados sobre as pontes das
representações, a realidade, expressa por emoções que assumem configurações diversas,
contraditórias e particulares, lógicas produtoras de um Princípio do Absurdo (Herrmann,
1999), que de se nomear desejo(s). essa lógica de produção das emoções que nos
constituem e destituem, há possíveis inconsciente(s).
No entanto, por mais variada que sejam as representações de uma superfície, o desejo,
opera na interioridade do sujeito fabricando representações da ordem do idêntico, marcas
identificáveis do sujeito, a identidade. A Rotina passa a ser nossa amiga e nos garante uma
ilusória estabilidade e continuidade, confere imanência à realidade.
Assim a identidade não é totalmente diversa de realidade, é posicionalmente
distinta, por estar do outro lado da superfície representacional. A diferença entre os dois lados
65
é que a realidade tenta precariamente representar o real enquanto a identidade tenta fazer o
mesmo com o desejo, mas não consegue.
Portanto um campo é determinado por um conjunto de regras inaparentes que dotam
de sentido qualquer relação humana. No campo considera-se tudo que perpassa a relação:
idéias, pensamentos, emoções, lembranças, sentimentos. Campo e relação estão
interconectados. A partir da relação, sabe-se o campo se nele houver ruptura.
Para expor a lógica de concepção de nossas idéias e sentimentos, propõe a ruptura de
campo a partir de uma ruptura da identidade, oportunizando descobertas e a concomitante
multiplicidade de sentidos. Comporta um desvelamento do absurdo do desejo humano, por si
mesmo incompreensível, estranho e ilimitado. Podendo ser efetivada sempre que a
possibilidade de mobilização representacional.
Assim Herrmann (2002) sugere a Função Terapêutica que advém da operação
metodológica de ruptura de campo. Esta última faz emergir sentidos que se encontravam
aprisionados em particulares campos, resultando em conhecimentos específicos, transitórios,
que, em outros momentos, poderão ser colocados em questão.
A Teoria dos Campos propõe ainda a generalização operacional do conceito de
inconsciente, não o concebe como unidade universal que nos determina, contrário a
consciência; ao invés disso ela introduz a idéia de campos ou inconscientes relativos
delimitados pelas suas respectivas relações.
Assim é como se houvessem inconscientes relativos frente ao que esta acontecendo no
“aqui-agora” e que comporta verdades singulares, parciais e relativas. A Psique seria a
totalidade dos campos e matriz produtora de sentidos.
Concluindo, Herrmann (2001) sustenta a idéia de ruptura de campo como sendo
fundamental para a recomposição dos sentidos suprimidos, a partir da crise das
66
representações na Crença da realidade e na Rotina identitária, duas funções de superfície e do
real que tentam encobrir o absurdo das regras produtoras de sentidos.
A interpretação por ruptura de campo, enquanto invariância do método psicanalítico
visa revelar o descentramento essencial do homem. A insaciabilidade do desejo, o absurdo
humano, é o que nos leva a interpretar.
Portanto, este campo transferencial, na medida em que cria o homem psicanalítico,
objeto de conhecimento, nos dará informações sobre quem é o sujeito a se investigar, ou seja,
a espessura ontológica do método ou Dupla face (Herrmann, L. 2004); a dimensão clínica
com a função terapêutica do método, o desvelamento das regras constitutivas de um campo a
partir da relação, e a dimensão epistemológica, produção de conhecimentos teóricos que o
método propicia.
Na perspectiva de Fabio Herrmann (2001), a especificidade humana decorre da dupla
relação que estabelece com a realidade, Dupla Face, onde o ser humano se apropria da
Cultura, através da Crença expressa na Rotina e concomitantemente nela se objetiva,
constituindo-se assim como sujeito. A dimensão singular é inexoravelmente constituída e
constituidora do social, o que pode ser tematizado como alteridade, como dimensão de um
outro(s), inconscientes ou das relações com os outros.
Portanto, no intuito de darmos continuidade a esta trajetória, proponho uma análise da
Crença, um passeio pela realidade da cultura moderna e sua crise identitária frente a três
grandes rupturas, delimitadas por mim. A meu ver o entrelaçamento destes três campos
influenciaram a lógica de concepção da conjugalidade, imprescindíveis no processo de
investigação da relação conjugal na atualidade
15
e ao propósito desta pesquisa, apresentados e
discutidos no capítulo seguinte.
15
Não é objetivo nesta pesquisa definir o momento em que vivemos enquanto modernidade, pós-
modernidade ou contemporaneidade, devido às várias questões que delimitam esta temática. Farei como Birman
67
5 - O TEMPO LONGO DAS NARRATIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS: RUPTURAS NO
CAMPO DA CULTURA.
5.1 - Da desnaturalização do Casamento
A investigação da conjugalidade nos conduz, inicialmente, ao dimensionamento do
contexto histórico e sócio-cultural a partir do qual esta surgiu, a Modernidade. Ao
desnaturalizar o casamento, ampliou-se as expectativas de compreensão desta temática, que
se formalizou frente às transformações ocorridas na sexualidade e na intimidade dos
indivíduos, tendo o casamento como referência.
Para adentrarmos na Modernidade faz-se necessário vislumbrar a concepção de
casamento até então concebida.
Nas sociedades arcaicas, a aliança era uma forma de intervenção do grupo sobre bens
considerados escassos e essenciais para a sobrevivência, baseada em um sistema de trocas,
cujas regras marcaram a origem do casamento. A proibição do incesto, era uma regra
fundamental de reciprocidade, que propiciou a formação destas alianças. Para firmar estes
laços recorre-se à regra da exogamia, que interdita o casamento com um membro da família e
o contrato é estabelecido entre os homens sendo a mulher objeto de troca feita pelos mesmos
(Levi-Straus, 1976 citado por Araújo, 2002).
Da Antigüidade à Idade Média, as sociedades tradicionais, ditas patriarcais, onde os
pais dividiam entre si o poder na comunidade cívica, o casamento, com efeito, era um
entendimento, promessa recíproca, entre dois pais, um dando a filha e outro a recebendo para
(2003), chamarei o momento em que estamos vivendo de atualidade e apresentarei o capítulo a seguir
articulando-o à Modernidade enquanto o período de descentralização da razão ocorrido frente às rupturas sócio-
históricas no campo da Cultura.
68
seu filho. Havia uma obrigação de fidelidade eterna aos valores da linhagem a ser perpetuada.
(Julien, 2000).
A união era um ato privado ocorrido entre os nobres, tendo como função a
transmissão da herança, de títulos e a formação de alianças políticas. A mulher era parte do
patrimônio familiar, sua entrega a um homem selava a união de duas famílias, a fecundidade
e a fidelidade desta era indispensável ao casamento, caso contrário levava ao abandono ou ao
repúdio (Vainfas, 1996).
Neste contexto, a expansão do cristianismo, a partir do século V, abre caminho para
que a Igreja passe a estender seu poder sobre o casamento, pois pregava a renúncia aos
prazeres da carne para ganhar o reino dos céus, porém, tais ideais de condenação absoluta do
desejo e do prazer não se sustentaram e o casamento passou a ser recomendado como uma
“concessão”, um freio, para evitar a libertinagem (Vainfas, 1996).
A sacralização do casamento pela Igreja só aconteceu por volta do século XII e foi só
no século XIII que a normatização da moral cristã se estabeleceu, instituindo o sacramento do
matrimônio, tornando-o monogâmico indissolúvel e legítimo para o uso dos prazeres, desde
que voltado para o seu fim natural: a procriação (Vainfas, 1996).
“O principal papel do casamento era servir de base a alianças cuja importância se
sobrepunha ao amor e à sexualidade. Escolha e paixão não pesavam nessas decisões, e a
sexualidade para a reprodução era parte da aliança firmada” (Araújo, 2002, p.71).
No entanto, as grandes mudanças no casamento, se iniciam na Modernidade, frente à
revolução burguesa, que i dessacralizar o poder da igreja, instaurando-se uma ética
protestante e o espírito do capitalismo.
“Tudo que era sólido e estável evapora-se, tudo que era sagrado é profanado, e os
homens são, finalmente, obrigados a encarar com serenidade suas condições de existência e
suas relações recíprocas” (Marx & Engels, 1990, p.79).
69
Com isso, inicia-se uma radical mudança dos valores até então vigentes, o mundo
público e privado entra num processo de constante transformação, havendo grandes
mudanças no casamento, iniciadas na Modernidade (Ariès, 1987).
Segundo Julien (2000), na Modernidade viu-se o declínio dessa imagem social do pai
que ao mesmo tempo permitiu a modificação das razões da escolha conjugal.
O que era bem definido na esfera privada e pública
16
, passou a não ser tão
circunscrito no mundo moderno. Passamos da comunidade à sociedade e a esfera pública
mudou. O público era tido como encarnado em tal ou tal grupo dado, agora se uma
abertura a qualquer um, ao anônimo.
Doravante, em razão da circulação das pessoas, da oportunidade
oferecida de múltiplos encontros e da mistura pré-conjugal desde a
escolaridade, um homem e uma mulher podem consentir no
casamento independente do pai ou da mãe! É a escolha deles, antes
de mais nada, que seja admitida pelo pai, se possível, mas este
acordo não é mais absolutamente necessário (Julien, 2000, p.11).
A sexualidade revela, frente a este múltiplo, publicamente que há um além das
identificações sociais, uma transgressão das fronteiras culturais, uma familiar estranheza,
uma mestiçagem étnica, uma subversão na linhagem; uma alteridade mais manifesta do que
nunca.
Neste sentido não mais privado fechado sobre si mesmo, ele passa a ser
influenciado pelo público e a representar o lugar privilegiado da conjugalidade. O social
passa a invadir o domínio do político e avança sobre o território familiar.
16
A primeira circunscrevia o que nos era próprio, o que nos pertencia, e a segunda o que nos era
comum, o que pertencia a todos e a cada um, que se compartilha, troca.
70
“A vida privada muda de sentido: perde o sentido negativo daquilo que é privado da
ordem pública e , ao contrário, toma o sentido positivo daquilo que o espaço público deve ser
privado” (Julien, 2000, p.12).
De uma arte de viver a dois na intimidade, entre um homem e uma mulher, fechando
um lugar do nascimento e do renascimento incessante de dois desejos, um pelo outro e outro
pelo um, uma propriedade privada da presença de si a si nasce pouco a pouco.
Esta mudança de sentido da vida privada aparece também gradativamente no discurso
da Igreja sobre o casamento: o casamento torna-se um sacramento; em seguida não necessita
ser conferido pelo sacerdote, mas pelos próprios futuros esposos, sendo o consentimento
mútuo que cria o vínculo conjugal e frente ao abuso de casamentos clandestinos, surge a
validez do consentimento mútuo que deve associar-se à licitude pela obrigação de ser
trocado, publicamente, diante do sacerdote como testemunha (Julien, 2000).
Por fim, os esposos fazem o ato de união por sua fala sacramental e o sacerdote, ou o
juiz, registra o ato fundador: “Declaro-os unidos no casamento”. Assim não há privado
fechado sobre si mesmo, mas um privado que se declara no público.
Para Ariès (1987) a partir do momento em que a conjugalidade deixa de ser não
uma decisão de conveniência segundo imperativos sociais e patrimoniais, mas supõe a exigir
que seu fundamento seja o amor, fenômeno, próprio à sociedade ocidental, ela começa a abrir
precedentes para modificar-se.
uma valorização do amor individual, estabelece-se o casamento por amor e esse
novo ideal de casamento impõe aos esposos que se amem ou que “pareçam se amar” e que
tenham expectativas a respeito do amor e da felicidade no matrimônio (Ariès, 1987).
O contorno deste cenário é dado pelo Romantismo que tenta instaurar uma
consciência romântica como um saber encarnado, diante do autocentramento existente até
então.
71
Diante do autocentramento do cogito cartesiano “penso logo existo”, a consciência
romântica torna-se alteritária e dialógica. O homem, para aceder à esta verdade, deve sair de
si mesmo pela mediação do outro. A abertura para cada novo encontro faz com que a
consciência escape ao domínio da solidão e de seu autocentramento (Néri, 2005).
Portanto, segundo Néri (2005), o saber romântico é um conhecimento de participação
e reciprocidade que se realiza na “fusão conjugal” entre a subjetividade e a objetividade.
Teríamos então caracterizado o advento do amor na modernidade como princípio da
união, regido pelo princípio da fidelidade a este sentimento, a partir de então, norteador das
relações conjugais.
Mas este mesmo Romantismo que fez inicialmente, um contra-ponto ideológico ao
racionalismo, acabou por contribuir com o individualismo, uma vez que idealizou o retorno a
uma unidade perfeita onde os desejos seriam realizados, tudo seria possível. “O homem
romântico crê-se único, suas experiências mais profundas parecem-lhe incomunicáveis e
radicalmente individuais” (Néri, 2005, p.86).
A desnaturalização do casamento passa pela crítica a este romantismo, uma vez que se
organizou sob os alicerces do mesmo acabando por manter a individualidade prescrita pelo
capitalismo para sustentar a noção do eu da Modernidade (Santi, 1998).
Uma das críticas ao nascimento da intimidade moderna funda-se na instabilidade
inevitável de todo amor humano entre um homem e uma mulher, qualificado de “romântico”,
suposto que o amor, como o imaginário, é apenas ilusório e irreal (Julien, 2000).
Com o ideal de casamento vinculado ao amor “romântico” como regra básica, obteve-
se “muitas conseqüências e contradições (...) acabou criando uma armadilha para os casais na
medida que se acentuaram as ‘idealizações’ e conseqüentemente os conflitos resultantes da
desilusão pelo não atendimento das expectativas” (Araújo, 2002, p.72).
72
o amor vinculado ao sexual no casamento foi liberado como estratégia de
disciplinarização e higienização das relações, enquanto estímulo na manutenção do
casamento, uma vez que o amor conjugal poderia levar a uma relação familiar saudável, a
escolha conjugal torna-se uma questão central para a higiene. Levantam-se critérios para a
seleção do cônjuge saudável e a hereditariedade, o corpo, a vida sexual e a moral se
sobressaem diante das questões sociais (Costa, 1979).
Duas estratégias são ressaltadas por Costa (1998) na utilização deste amor: separação
e singularização dos sexos, diferenciando características masculinas e femininas na situação
pré-conjugal e na busca da harmonização para um casamento produtivo, através da
complementaridade das funções parentais.
Esse movimento descrito pelos autores acima, levou a uma reestruturação da noção de
conjugalidade, pretensamente baseada na escolha individual do parceiro, privilegiando a
satisfação sexual, o prazer, e o amor. Assim a intimidade conjugal passa a apresentar-se como
uma fonte preciosa de satisfação individual.
O discurso disciplinador para suprimir outras formas de sexualidade organizava-se no
sexo lícito enquanto restrito às relações matrimoniais e carregado de prescrições, pois havia
uma exigência de uma duração fecunda referenciada pelos ideais de monogamia e
indissolubilidade. uma confluência de aliança e sexualidade, voltada para um modelo de
heterossexualidade reprodutiva, instituindo-se um dispositivo de saber e poder, campo de
poder nas relações entre homens e mulheres (Foucault, 1988).
Foucault (1988) fala do lar como refúgio diferenciado onde da família os indivíduos
podem esperar apoio emocional como meio de escapar à disciplina da fábrica, porém esta
família é disciplinarizada através da sexualidade, que surgem pressões para que ela limite
seu tamanho com métodos modernos de contracepção. Essa mudança marca uma profunda
73
transição na vida pessoal e no casamento, sobretudo, a sexualidade passa, gradativamente, a
diferenciar-se das exigências de reprodução e tornar-se “propriedade” do indivíduo.
Outro fator significativo neste processo de desnaturalização foi proposto por um
sistema de casamento que privilegia a ética acumulativa, o desejo de ascensão social e o
individualismo possessivo, valores fundamentais da ideologia burguesa, prevenindo o
desequilíbrio entre o desenvolvimento econômico e demográfico, propondo um controle da
natalidade e o adiamento do casamento (Mcfarlane, 1990).
Este casamento, no qual o modelo de união conjugal tem como premissas básicas o
afeto, a amizade e o companheirismo entre os cônjuges e a procriação não é o objetivo
principal do casamento, defende-se da irracionalidade do amor romântico e da paixão sexual,
domesticando-os dentro do casamento, não mais ameaçando a racionalidade do capitalismo.
Propunha uma relação mais igualitária entre marido e mulher, o casamento centrado
no vínculo conjugal, e não nos filhos ou na família, tornando-se um refúgio dentro do mundo
competitivo e individualista.
Dentro deste contexto, o casamento passa a representar uma relação central de forte
significação na vida dos sujeitos, considerando o alto grau de proximidade, de intimidade e o
intenso envolvimento afetivo, adquirindo o status privilegiado de relação íntima,
concentrando alto grau de expectativas de realização e de desenvolvimento dos sujeitos
(Ariès, 1987).
Este ideal atrelado ao erotismo (com a autorização do prazer sexual no casamento),
introduz um outro aspecto importante: coloca à prova a duração do casamento. Uma vez que
o amor–paixão em geral não dura, o amor conjugal ligado a ele também não dura. Então,
conseqüentemente, sua durabilidade passa a ser questionada passando também a uma relativa
tolerância com as relações pré-nupciais ou extra-matrimoniais (Ariès, 1987).
74
Com isto, surge então, a perspectiva do divórcio que se transforma enquanto
possibilidade, na principal característica do casamento moderno, diz Ariès (1987), como uma
sanção normal de um sentimento que não pode nem deve durar, e que deve dar lugar ao
seguinte.
Como nos diz o poeta Vinícius de Moraes, “quem sabe a morte, angústia de quem
vive, quem sabe a solidão fim de quem ama, eu possa me dizer do amor que tive, que não seja
imortal, posto que és chama, mas que seja infinito enquanto dure”, nada mais Moderno,
quando nos fala do amor paixão que tende a acabar com o passar do tempo, ao contrário do
amor conjugal, que pretendia aumentar com o passar do tempo.
Neste confronto entre o amor paixão e o amor conjugal romântico encontra-se o
grande desafio que os casais modernos enfrentam nos dias de hoje e que os levam a redefinir
expectativas e idealizações sobre o casamento (Araújo, 2002).
Assim esta nova intimidade conjugal engendra figuras de disjunção frente ao
casamento tradicional. Segundo Julien (2000), uma delas é a dos casais vivendo em união
livre, fora do casamento, relações frequentemente estáveis. Instituem por sua própria fala
uma vida comum privada e a fazem reconhecer pelos mais próximos.
Segundo o autor, vê-se outras figuras disjuntivas, como a do divórcio por
consentimento mútuo. Este é reconhecido legalmente pelo discurso judiciário deixando claro
que uma separação é de ordem privada, consentindo que a conjugalidade possa ser exercida
com vários parceiros.
Por última disjuntiva, o mesmo autor aponta para a lei que instaura o Pacto civil de
solidariedade (PACS)
17
que permite duas pessoas vivendo juntas serem reconhecidos
legalmente seus direitos sociais, independente da orientação sexual dos contratantes, saber de
ordem intima de cada casal.
17
Lei francesa que legaliza a união entre casais do mesmo sexo.
75
Todos estes precedentes nos leva a reconhecer que a sexualidade, longe de ser um
fenômeno natural, está suscetível às influências sociais e culturais, que ao se desviar do
paradigma cartesiano (categorização normal, anormal) reinventa o corpo como uma forma de
organismo social que abre caminho para a aceitação da diversidade como norma viável da
cultura. Dá-se, então, o pluralismo sexual do século XX, no qual cada indivíduo tem histórias
diferentes e, portanto, necessidades diferentes (Foulcault, 1988).
os ideais de amor romântico atrelados à sexualidade, nos discursos disciplinares,
começaram a se fragmentar com a emancipação sexual e a autonomia feminina. O declínio do
controle sexual dos homens sobre as mulheres colocou possibilidades reais de transformação
da intimidade (Giddens, 1993).
Verifica-se neste contexto uma ruptura na tradição da aliança heterossexual
reprodutiva atrelada ao casamento. A partir desta brecha aberta,
(...) vimos nascer um novo modo de existência, que é o de dar direito
a seus próprios pensamentos, sejam eles nobres ou baixos, nascidos
na paixão ou na serenidade, e acolher a contradição entre eles tornou-
se uma boa chance a ser agarrada (Julien, 2000, p.21).
Com isso uma aposta abriu-se graças a esta perda da mestria de si mesmo e de outrem
e com isso nossas capacidades criadoras fazem-se mais inquietas, nosso poder de invenção
pode se renovar sempre que possível. “Temos um jogo a ser vencido a partir da própria
modernidade e não contra ela, indo além desta alternativa entre tradição e modernidade”
(Julien, 2000, p.22).
Desse modo percebemos que o projeto científico romântico ao ser distorcido não foi
incorporado ao projeto moderno, sua tentativa de purificação deixou à margem formas
híbridas que tem efeitos significativos na subjetividade e na cultura moderna (Néri, 2005).
76
Pode-se concluir que o Romantismo, na tentativa de garantir a durabilidade do
casamento, acabou por direcioná-lo à perspectiva de sua dissolução, justamente pelo seu
idealismo, ao mesmo tempo em que a restrição da sexualidade à procriação no interior do
casamento, pela moral sexual civilizada, prometia a satisfação das necessidades sexuais
através deste. Devido a isto o casamento veio se modificando, mas ainda não deixou de ser
um valor nos dias de hoje.
Herrmann (2003) nos fala que o casamento tem por semelhança ao regime do
atentado
18
a relação geral de pertinência ao mesmo campo geral, isto é, ao da
dessubstancialização do sujeito. O casamento de hoje, tem a mesma característica de
interditar as representações que o explicitam, ou seja, o mesmo suporte que mantém um
casamento é o que o destrói. No casamento a realidade também é uma representação
propagandista do real, diz-se que hoje o casamento se modifica. Mas poderia ser esta
mudança uma propaganda enganosa dos novos tempos, em que tudo muda para que nada
mude? Um casamento feito às pressas e às pressas desfeito... manter-se estável passou a ser
uma tarefa difícil.
No entanto o casamento ainda está se transformando numa nova representação
consensual e propagandista de um casamento ao contrário; está perdendo, o que segundo
Herrmann (2003, p.156) “não poderíamos chorar com lágrimas sinceras – a dominação
18
Termo desenvolvido na Teoria dos Campos de predicação paradoxal que significa a transformação
do ato que rompe a cadeia histórica em matriz da história. Termo desenvolvido a partir da perspectiva da Guerra
Fria que segundo Herrmann (1997), produziu um forte trauma ético no pensamento humano, a destruição do
homem pelo homem, inviabilizando qualquer pensamento racional, fazendo com que a vida humana perca sua
substância afetiva e racional. Tal regime está presente no ataque ao World Trade Center, em todos os ataques
terroristas que presenciamos no cotidiano como nas relações diárias e também no casamento.
77
patriarcal do homem, a submissão da mulher, que acarretava, para os dois, uma espécie de
renúncia à vida pessoal, apostando na imortalidade psico-genética do seu legado póstumo”.
Hoje seu projeto social está mais evidente, uma transformação de matrimônio em
patrimônio, no entanto a idéia de resolver o problema da existência conjugando duas
existências permanece, sendo ainda hoje um inestimável bem necessário, “mesmo quando
alguém sempre se esteja queixando dele, como da chuva (...)” (Herrmann, 2003, p.157).
Frente ao contexto descrito, não podemos negar que as mudanças que vêm
acontecendo no amor, no casamento e na sexualidade ao longo da modernidade resultaram
em transformações radicais na intimidade e na vida pessoal dos indivíduos, permitindo outras
modalidades de relacionamentos conjugais.
Para essa realidade atual, Giddens (1993) nos fala da possibilidade de um amor
confluente que não se pauta pelas identificações projetivas e fantasias de completude,
presume igualdade nas trocas afetivas e no envolvimento emocional, sendo a realização do
prazer sexual recíproco um elemento chave na manutenção ou dissolução do casamento e não
sendo necessariamente nem monogâmico nem heterossexual. Uma sexualidade plástica
descentralizada das necessidades de reprodução sendo fundamental para a emancipação
implícita no relacionamento puro assim como para a reivindicação da mulher ao prazer
sexual.
Relacionamento puro centrado no compromisso, na confiança e na intimidade,
implica em desenvolver uma história compartilhada em que haja garantia de ambos, por
palavra ou atos, algum tipo de garantia, por um período indefinido. O compromisso traz a
probabilidade de duração, mas que não o impede de vir a dissolver-se. A continuidade
depende da satisfação que ambas as partes podem extrair da relação (Giddens, 1993).
78
Esta intimidade a que se refere Giddens “implica uma total democratização do
domínio interpessoal, de uma maneira plenamente compatível com a democracia na esfera
pública” (Giddens, 1993, p.11).
O casamento e as relações conjugais deslocam-se do mito da estabilidade do eterno
para sempre até que a morte os separe”, da fidelidade ao pai, seja ele falocêntrico ou
teocêntrico, para o princípio da instabilidade do eterno enquanto dure”, da fidelidade ao
sentimento amor e a liberdade de escolha do sujeito.
O mais relevante neste contexto é que dessa forma, o enquadre conjugal passa a
oferecer contorno, delimitando o externo e o interno, conferindo significado ao sujeito, sendo
referência e repercutindo sobre a constituição da subjetividade moderna.
Verifica-se a busca de um projeto auto-reflexivo do “eu” na modernidade, a
valorização da busca da auto-identidade associada à esfera das relações íntimas, na
conjugalidade, onde tende a atribuir ao parceiro a função de confirmação e manutenção da
identidade do outro (Ferrez-Carneiro & Magalhães, 2003). Transformando o “nós” em
instrumento de legitimação do “eu” (Magalhães, 2000).
Assim a conjugalidade, transformou-se numa possibilidade, uma condição de
transformação dos sujeitos na atualidade, através da abertura de um em relação ao outro, ou
seja, através do exercício da alteridade.
O que se percebe, de acordo com Costa (1998) é um deslocamento do amor para o
imaginário do ideal de felicidade pessoal com conseqüências para a transformação da
subjetividade, onde a insegurança constitutiva desta subjetividade moderna busca na relação
amorosa certa tranqüilidade e garantia de identidade.
Aponta também, que o amor ainda é considerado componente importante da noção de
conjugalidade, mesmo que em termos de ideal desta, mesmo que distante nos dias atuais. O
eu moderno, estruturado sobre a noção de indivíduo autônomo, utiliza o amor como forma de
79
compensação para dar sentido à sua própria existência, reforçando o sentimento de
pertencimento mútuo entre os parceiros.
Podemos concluir que tais transformações afetaram e afetam profundamente as
representações e vivências do casamento como permitiram outras formas de relacionamento
conjugal, tanto no contexto heterossexual com fins de constituição da família, quanto fora
dele: uniões consensuais, casamentos sem filhos ou sem co-habitação, re-casamentos, uniões
homossexuais e outras (Araújo, 2002).
A pluralidade conjugal apresenta-se como um efeito dispersivo e dissolvente da
sexualidade sobre a aliança e nesse processo de transformação da intimidade, dos valores e
das mentalidades, a tendência da sociedade é tornar-se cada vez mais flexível para acolher
essas novas configurações das relações amorosas (Araújo, 2002), mas com isso os níveis de
insegurança dos sujeitos se tornam maiores também, pondo em questão a manutenção destas
(Bauman, 2004). Assim a conjugalidade, embora ainda inclua uma perspectiva ou esperança
de reconstrução do “eu” a partir do “nós”, apresenta-se cada vez mais fluída.
Falar desta temática é uma forma de desmistificar o casamento e a relação conjugal
sempre vinculada a ele, abandonar a idealização e retirá-lo do plano do privado na iniciativa
de trazê-lo a público, e por isso à diversidade (singularidades), na tentativa de ser re-visto nas
suas entre-vistas atuais.
A questão se dá ao indagarmos o lugar que a conjugalidade ocupa no projeto de vida
dos sujeitos na atualidade. Houve uma descentralização na condição conjugal proveniente da
transformação da intimidade que passa necessariamente por uma análise de gênero num
contexto de igualdade interpessoal que foi possível despontar devido à emergência do
feminino na Cultura, tema tratado no tópico seguinte.
80
5.2 - O Feminino conjuga a História de homens e mulheres.
Iniciarei retomando a trajetória da mulher na civilização ocidental passando pela
emergência do feminino, centrado inicialmente na figura da mulher, e no seu deslocamento
para a proposição da diferença sexual, enquanto elemento singular de construção da cultura.
A mulher, surpreendentemente, sempre esteve numa posição de destaque na história
da civilização ocidental: se não era a protagonista da cena, somente ela era capaz de torná-la
possível.
Na Grécia antiga não havia o estatuto da feminilidade e as mulheres eram concebidas
como seres inferiores ou imperfeitos, com órgãos sexuais masculinos internos, isso marcava,
pelo pensamento cristão, o apagamento das diferenças, que seria o ideal de perfeição. O
cristianismo no ocidente fez da renúncia à sexualidade o símbolo do restabelecimento da
liberdade humana perdida, já que esta era indicativo de servidão (Freire, 2002).
Na Antiguidade o modelo de referência era o do sexo único, o masculino, já o
feminino era considerado um masculino inferior. A mulher, por ser identificada à
sexualidade, ao passar para o gênero masculino atingiria a perfeição. Assim, surgiram as
mártires como produto de um modo de pensar que não abarcava as diferenças sexuais, pois a
martirização equivalia à masculinização da mulher (Freire, 2002).
Já no início do século XVII, os ideais de igualdade começaram a despontar na Europa,
colocando em questão a ordem platônica pelo empirismo racional, iniciando um novo
universo mental. Começaram os questionamentos sobre a imperfeição da mulher, já que todos
seriam iguais, e a diferença sexual foi tematizada e remetida ao plano anátomo-fisiológico
(Néri, 2005).
Anuncia-se a Modernidade, no âmbito da sexualidade, rege-se a tese de dois sexos
diferenciados, mas por uma essência natural biológica, modelo essencialista, que traz no seu
81
propósito uma restauração da hegemonia do sexo masculino. Nele a essência da mulher
estaria mais próxima da natureza e da paixão, destinada à maternidade e à casa, ao espaço
privado, enquanto o homem à natureza racional que o destinaria a ocupar o espaço público
(Néri, 2005).
A título de elucidação, esta proposição de dois sexos seria uma restauração do
modelo do sexo único. Em ambos um norteador, a hierarquia que induz a uma ordem
transcendente. A mudança de modelo se deu na necessidade de afirmação do sujeito da razão
do Iluminismo, que inaugura uma diferença sexual, agora biológica (Néri, 2005).
No entanto é com a Revolução Francesa, na rejeição do rei, que se rejeita toda
transcendência:
O advento da democracia é incompatível com a autoridade paterna
vigente. Liberdade, igualdade, fraternidade substituem a submissão,
hierarquia e paternidade. Direitos do homem ou da humanidade, eis a
questão, a queda do Deus monarca pai vai colocar em discussão a
idéia da superioridade de um sexo sobre outro (Néri, 2005, p.61).
Tal ruptura abalou as fronteiras entre o masculino e o feminino, conduzindo a uma
interrogação sobre a diferença dos sexos frente à premissa de igualdade de todos os seres.
Neste cenário surgem discursos culturais, políticos e científicos sobre a sexualidade,
mostrando que o elemento sexual apresenta grande instrumentalidade nas relações
estratégicas de poder, reprimindo a sexualidade pelo dispositivo da aliança, com objetivo de
produção de subjetividades que se coadunem com a consolidação do capitalismo e da família
burguesa (Foucault, 1988).
Projeto que delineia uma espécie de saber-fazer das mulheres, ligado à idéia de
natureza feminina, frente a uma possível feminilização do corpo social. Surgem com isso,
sentimentos de maternidade, de recolhimento da mulher à família, de cuidados com a saúde
82
corpórea, de princípios da boa educação, exercidos na vida privada e difundidos pelos
manuais médico-pedagógicos (Foucault, 1988).
Foucault (1988) vai mostrar que os dispositivos de saber e poder produzidos pelas
ciências sexuais incidem particularmente sobre o corpo feminino que será posto como
desviante, adoecido.
Néri, nos convida a interrogar “em que medida o discurso psicanalítico sobre a
sexualidade feminina rompe ou é herdeiro desse discurso das ciências sexuais de
adestramento dos corpos e da sexualidade ...?(Néri, 2005, p.66) , uma vez que o simbólico
na psicanálise é indubitavelmente conjugado no masculino e o feminino se apresenta como
anticultura.
Tal idéia se apresenta também na operação de histericização do corpo feminino,
apresentado como excessivo, desviante, nervoso e histérico com o intuito de configurá-lo
como sexualidade perigosa, visando excluir a mulher do espaço público (Focault, 1988).
Frente a isto, surge a investigação freudiana da etiologia da histeria que teve como
base a interrogação “o que uma mulher quer?”. Freud não se interessou apenas pelos
fenômenos histéricos; seu interesse pela mulher tornou-se uma reflexão sobre as
conseqüências da feminilidade na cultura (Assoun, 1993 citado por Freire, 2002).
Néri (2005), também nos aponta uma perspectiva de resposta, quando diz que o
discurso psicanalítico emergiu na crise de identidade do sujeito da razão, mas também em um
solo de questionamento da identidade sexual, sendo tributário do masculino, mas emergente
do feminino. Tal expressividade pode ser notada quando cita o processo delirante de
Schereber:
A ordem do mundo reclamava imperiosamente minha emasculação
(...) não podia fazer mais nada do que me reconciliar com a idéia de
minha metamorfose em mulher (...) uma fecundação para a criação
83
de uma nova humanidade (...) A partir daí inscrevi o culto da
feminilidade em minha bandeira. (Schereber, citado por Néri 2005,
p.138-139)
Nestes discursos, o sexo anatômico prevalece sobre o gênero, cria-se duas categorias
imutáveis, homens e mulheres, desprezando-se as outras diferenças. A partir da análise das
diferenças sexuais: a mulher é um complemento do homem, dividindo com ele um prazer
carnal e um papel social; ou ela é inferiorizada (prostituta); ou é idealizada (louca; virgem). A
partir dessas representações da feminilidade, foram deduzidas as posições de poder,
submissão, complementaridade ou exclusão da mulher da sociedade moderna. (Roudinesco,
2003).
Segundo Kehl (1998), Rousseau foi o maior expoente filosófico de divulgação deste
ser corporal, instintivo, sensível e débil organicamente, inadaptado pela lógica da razão,
chamado mulher, inspirando o ideal de feminilidade baseado na dedicação, na doçura, na
submissão, no recato e no pudor cuja finalidade na cultura é a procriação.
A literatura do século XIX mostra uma figura feminina idealizada e, por isso,
inatingível. A personagem é construída no registro do masculino e não coincide com a
mulher: em seu lugar fala uma heroína, sempre pronta a ser o desejo do desejo de seu herói.
Essa heroína é o modelo de perfeição na beleza corporal ou na virtude pretendida que a
coloca como amada, esposa e mãe. Já os contos de fada perpetuam, no imaginário do
feminino, o mito do amor romântico, que se opõe à autonomia pessoal da heroína
adormecida, salva por seu herói (Freire, 2002).
Com isso a família se torna uma das estruturas de base da sociedade, pautando-se em
três fundamentos, a autoridade do marido, a subordinação das mulheres e a dependência dos
filhos. Tem-se com isso um movimento de fratura no cerne das massas de mulheres, criando
84
uma oposição entre duas posições: as feministas querem a vida pública e as mães de família a
interiorização do privado (Kehl, 1998).
Marco significativo nas mudanças ocorridas no campo da sexualidade foi o
movimento feminista, precipitado na figura de Simone de Beauvoir (citada por Kehl, 1998)
ao propor que - “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” - provocando um deslocamento da
naturalização da condição feminina. Representou uma ruptura na história das mulheres,
sobretudo uma mudança em suas vidas, em suas escolhas profissionais, em seus desejos e em
suas relações amorosas que puderam seguir diferentes caminhos, podendo hoje abrir um
leque de possibilidades. Kehl amplia esta questão ao propor “o que o sujeito pode se tornar,
sendo(também) mulher” (Kehl, 1998, p.15).
Frente a esta crise e emergência do feminino, apresento como exemplo analisador o
texto literário “AS HORAS”, de Cunningham, que nos leva imediatamente a Mrs. Dalloway,
de Virgínia Woolf, comentado por Sérgio Telles (2005). Nesta obra o feminino é vinculado a
uma posição depressiva, em monólogos interiores que tentam dar conta das perplexidades e
da angústia de viver, dá-lhe um caráter trágico e uma captação exacerbada da passagem do
tempo numa riqueza extraordinária de detalhes através de uma narrativa onisciente direta e
linear, bem ao estilo literário freudiano.
Estruturada a obra anteriormente citada em três fios narrativos, em torno de três
mulheres, Mrs. Dalloway, Mrs. Brown e Mrs. Woolf, o que as une é uma ambígua
sexualidade e por expressarem a condição feminina, no fazer um bolo, planejar uma festa, na
administração das serviçais. Atividades onde tentam expressar suas capacidades e
criatividades, tentando se afirmar no mundo dos homens. Mulheres, personagens, que se
organizavam em torno do cotidiano doméstico, mas também que já questionavam este lugar e
se angustiavam por negá-lo e desejar algo diferente. Fala-se, então, da angústia deste
85
feminino referenciado pela lógica fálica, pondo em questão a tradição e a hierarquia nas
relações de gênero, na qual o masculino também se encontra enfraquecido.
Inicialmente, sua escrita literária, parece focar a fragmentação e a fragilidade nos
impasses da questão feminina em transformação e em épocas diferentes, mas revela “a
posteriori”, num movimento de resignificação da trama que estava contando de forma
indireta e disfarçada a história de Richard, que a sombra delas une os três fios narrativos.
Então nos fala, também, deste masculino fragilizado, que sai do centro da narrativa, mas
continua dando-lhe a condução, uma vez que se orienta e desorienta frente a este feminino em
transformação, sedutor, instável, voltado para figura materna que protege e aterroriza mas
que, ao questionar esta posição, desestabiliza a condição masculina, representada através da
homossexualidade de Richard ao propor uma identificação com este feminino.
O tema central então é a criação literária através, segundo Telles (2005), da
sublimação desta ambigüidade do feminino, que não sabe o que deseja e que por isso acaba
por destruir. Análise muita próxima do discurso disciplina-dor da sexualidade feminina para
não contrapor o poder fálico.
No entanto o suicídio como abertura da narrativa, com a cena de Virginia Woolf
entrando lentamente no rio, e seu término com o suicídio de Richard atirando-se
premeditadamente da janela, na presença de Clarissa, nos coloca, no seu extremo, esta
condição de amor à vida e intimidade com a morte, necessárias às transformações que se
faziam presentes na questão feminina em Virgínia Woolf.
AS HORAS é um retrato de uma crise cio-cultural mais ampla,
onde vacilam os papéis convencionais do homem e da mulher no
crepúsculo de uma injusta sociedade patriarcal (...), parece reinar
uma infeliz e triste confusão de papéis, o que proporciona saídas
insatisfatórias (...) (Telles, 2005).
86
Citar o texto de “AS HORAS” como exemplo deste feminino em crise, em
emergência, reflete um momento de positivação do mesmo e de contraponto com o
masculino, numa perspectiva de exaltação deste, fazendo-se defender da lógica onipotente,
mas ao mesmo tempo utilizando-a, uma vez que o masculino é referência oculta e acaba por
prescindir ao feminino. Declara um estranhamento e uma integração não mais possível frente
à concepção de sujeição do feminino na relação homem mulher.
Devido a esta transformação, a crítica ao modelo essencialista da diferença sexual
prosperou e deu frutos, diante disso:
(...) podemos observar uma passagem: se antes a questão paradigmática era formulada
a partir do que se constitui como um enigma (para os homens) “o que quer uma mulher?” -
hoje a questão que se apresenta no horizonte de nossa reflexão é “como pensar a diferença de
sexos?” (Arán, 2003, citando Fraisse, 1991, p.400).
Isto se deu, segundo Arán (2003), devido à crise da forma burguesa da família nuclear
(monogâmica e heterossexual); à entrada da mulher no mercado de trabalho; à separação da
sexualidade da reprodução, e à uma política de visibilidade da homossexualidade.
Neste contexto Arán (2001) foco ao movimento homossexual, por ter realizado
efeitos consideráveis na cultura atual. Estamos assistindo ao crescimento de uma política de
visibilidade da homossexualidade na esfera pública, devido às suas conquistas e
reconhecimento frente ao código penal. Coloca na ordem do dia uma rediscussão sobre
casamento, família e filiação, significando o reconhecimento de uma prática afetivo-sexual,
mas também a desconstrução, a um tempo, de um particularismo, instaurando a
necessidade de repensar a política e subverter a idéia de identidade.
Todos esses fenômenos indicam o surgimento de uma nova cartografia da relação
entre os sexos. Nesse sentido, não podem ser considerados um somatório sociológico distante
de cada um de nós, mas, pelo contrário, são fenômenos incorporados nas sexualidades
87
contemporâneas que redefinem a questão da diferença, configurando um novo topos para
pensar formas de subjetivação
19
(Arán, 2001).
No campo da história e da filosofia contemporânea, articula-se uma tese que enfatiza a
desconstrução da referência do sistema de oposições, organizadoras do pensamento
metafísico, e como conseqüência propõe a desconstrução da binaridade sexual. A condição
pós-moderna se caracterizaria pelo apagamento das fronteiras identificatórias, o que
permitiria uma circulação de desejos e posições sociais em que não haveria mais diferença
entre os sexos (Loyola, 1998).
Destacados filósofos, neste período, colocam o feminino como figura emblemática
promovendo projetos éticos e estéticos numa perspectiva não essencialista da diferença de
sexo, sensíveis à crise de identidade da modernidade.
Nietzsche se destacou, segundo Néri (2005), por associar a questão a uma luta de
poder e por ter falado da história das mulheres e não de sua essência, para avaliar o que
ganhariam e perderiam com a emancipação. Falou-nos de uma potência feminina, bem
diferente daquela infernal negativa e moralizante da mãe do bem e do mal que nega a vida.
Neste contexto Néri destaca ainda, que para Derridá (1978, citado por Néri, 2005) o
feminino se apresenta não como o outro em oposição ao masculino, mas como o outro que
desconstrói a lógica do “logofalocentrismo” e que Deleuze e Guattari (1976) formulam o
“devir mulher”, um devir múltiplo, que assinala uma linha de fuga em relação às máquinas
duais, propondo uma economia libidinal na forma de uma “máquina desejante” com
potencialidade de subverter qualquer ordem preestabelecida, seja política ou sexual.
19
Forma de singularização no universo da alteridade, universo de valores compartilhados pela práxis da experiência
cotidiana, pela forma de ser com o outro (Arán, 2001).
88
Todos estes filósofos, citados anteriormente, teorizam sobre o que se anuncia como
uma verdade não metafísica definida como sendo o feminino, permitem pensar tanto a idéia
de multiplicidade do sexual como também a idéia de desconstrução.
A importância de suas teorias está em demonstrar como a
potencialidade da sexualidade originária, para além da diferença
sexual, se constitui como um anonimato possível de uma
multiplicidade de afetos e de circulação de desejos que podem
sempre se presentificar, desconstruindo identidades formadas a partir
de um sistema de oposições (Arán, 2003, p. 416).
Portanto, na emancipação do feminino também uma desnaturalização da
sexualidade humana, o deslocamento do sujeito do cogito cartesiano para um sujeito
transitório radicalmente descentrado.
A modernidade opera um deslocamento das representações do feminino, tidas como
universais, para o campo da história. Assim o feminino ao surgir na cena social, torna-se
parte da história e a conjuga, “é apresentado como um ciclo de puro Devir, onde vida e morte,
alegria e dor, passado e futuro coexistem” (Néri, 2005, p.135).
Deslumbra-se, assim, feminilidade(s), enunciadas como uma realidade plural
marcadas por sua multiplicidade de perspectivas frente à diferença marcante. “(...) a
feminilidade é aquilo que constitui a singularidade propriamente dita...” (Birman, 2002, p.8).
Na perspectiva de desconstrução e multiplicidade frente à potência do feminino na
modernidade, apresento as histórias singulares, voltadas para este outro olhar sobre o
feminino, ao evidenciar, através da análise de Outeiral e Moura (2001), a criatividade de
Frida Khalo, Camille Claudel e Coco Chanel, três mulheres, artistas, criadoras de formas,
estilos e, portanto, modos de ser. Elas expressam a transformação cultural e social do culo
XX: uma outra descoberta da condição feminina das mulheres.
89
Com elas o gênero feminino libertou-se dos papéis únicos de reprodução, de
prostituição e cuidados domésticos, levando seus traços para a cultura através da estética,
uma ruptura no campo do feminino. A mulher deixou de ser apenas inspiração e objeto
artístico para se tornar sujeito. Cada uma, em sua área, deu uma importante contribuição para
isso.
A pintora Khalo, amante de Diego Rivera e de Trotsky, deu origem a uma arte latino
americana colorida, tropical e rústica, única no mundo pelo seu impacto de expressividade
das emoções. A escultora Claudel, lutava para libertar-se do estilo de Rodin, seu mestre e
amante, cujo talento inegável era comparado e ameaçado pelo dela. A estilista Chanel que
inventou um estilo, a combinação do verdadeiro com o falso, uma roupa singular, tailleurs
inconfundíveis, um penteado discretamente bissexual e um perfume, usados no mundo todo
(Outeiral & Moura, 2001).
Outeiral e Moura (2001), não reafirmam tais personagens como ícones do papel de
vítimas talentosas e realizadoras frente à dominação masculina, assim como o faz a mídia da
década de 1980 e 1990, ao contrário contribuem para a desmontagem dos mitos e revelam
pessoas reais, com suas ambigüidades, mentiras , limitações e dúvidas.
Nestas histórias verifica-se um colorido passional e sexual em suas vidas, marcados
por relacionamentos atormentados. Através da paixão, lutaram contra a alienação nestas
relações amorosas e no mundo, puderam criar, a partir do prazer e do sofrimento, à beira da
loucura.
Os autores também apresentam estilos femininos, que ao assumirem sua feminilidade,
através da paixão e da criatividade, estão vinculadas a um projeto ético estético de vida.
Falam de uma arte que é poiesis”, isto é, criação do novo, geração daquilo que nunca houve
antes, é transformação, mas não só: acrescenta o que não havia.
90
Um feminino que se revela na alteridade, em relação a um outro, gera-dor de
angústias, perdas, emoções, paixões e criatividade, expressas em formas estéticas
materializadas em obras de arte como nas relações cotidianas, no ato cria-dor de viver.
Portanto o feminino aqui apresentado coloca para o pensamento a tarefa de
problematizar a questão da alteridade e a questão da diferença de sexos, desvinculando-se de
um olhar totalitário para um descentrado propenso a erigir o novo.
Descentramento expresso no pensamento de Foucault (1988) quando formula que não
sujeito nem sexualidade universal, mas que os modos de subjetivação e sexuação são
determinados historicamente. As formas de subjetivação se dariam num jogo incessante entre
poderes, formações discursivas e agenciamentos libidinais.
Para Costa (1998), o sujeito não seria a expressão mental e moral de seu sexo, corpo e
gênero; pensar assim seria ao mesmo tempo um consolo e um compromisso. Consolo porque
abandonamos os riscos das escolhas éticas, ao deixar que a natureza sexual dite os rumos de
nossas felicidades; compromisso porque tornar a diferença de gênero uma norma de
construção de identidade significa abrigar os órfãos da tradição e reforçar a imagem do
sujeito como apêndice mental de vísceras, glândulas, metabolismos, circuitos neurais,
aparências corporais ou cálculos estatísticos de longevidade.
Tais idéias expressam o feminino como possibilidade/criatividade e não como
gênero/identidade. Com isso deslocamos o feminino de uma positivação vinculada à mulher,
necessária naquele momento, para um reconhecimento e descoberta de uma feminilidade,
humana, a partir da alteridade. Uma vez que o feminino não conclui, ele conduz o
pensamento para uma crítica do todo em benefício do descentrado, das singularidades, ele
passa a conjugar a história de homens e mulheres.
Alteridade que se daria no respeito e resgate da diferença, considerando o paradoxo
entre o universo fálico (identidade) e a questão da diferença (singularidade), para não cairmos
91
na indiferenciação sexual, pressupondo que historicamente existem duas formas de lidar com
essa questão, “pensar a historicidade da relação entre os sexos, assim como admitir o conflito
constitutivo dessa relação, seria a base para pressupor uma nova forma de pensar a
alteridade” (Arán, 2003, p.417).
Quando se propõe uma outra concepção de gênero/identidade e aponta-se para uma
diferença contida neles e entre eles aponta-se consequentemente para a questão da
conjugalidade, que não para ser pensada fora desta questão. Rompe-se com o campo da
conjugalidade assimétrica (complementaridade, enquanto posições definidas de gênero que se
completam por assimetria) reconhecendo sua possível simetria (Heilborn, 2004).
Portanto uma diferença enquanto condição em comum, expressa através do
feminino que conjuga a história de homens e mulheres, levando-nos a pensar a conjugalidade
não mais sob o julgo do homem ou da mulher, de uma relação de hierarquia, mas a partir de
uma igualdade, fundada numa dependência mútua.
Melhor dizendo de uma equidade
20
, uma conjugalidade que flexione sentidos desde a
diferença de cada um e da relação, arranjos conjugais que articulam e condensam a
multiplicidade de sentidos na atualidade. Porém, permanece o desafio de pensar formas de
subjetivação que podem se apresentar através do feminino, tanto para os homens como para
as mulheres.
O que significa então ser homem e ser mulher nesse novo contexto? Essa falta de
referências torna-se provocativa por deixar um vazio, uma indefinição quanto aos lugares que
homens e mulheres devem ocupar. Tal indefinição influencia o processo identificatório de um
e do outro, pois não existe mais uma referência precisa, não se sabe quem deve fazer o que e
quando, os afazeres que normalmente cabiam às mulheres hoje já são assumidos pelos
20
Reconhecimento imparcial do desejo/direito de cada um, respeito às singularidades.
92
homens, e vice versa. Então, como pensar essa complementaridade e como viver essa
aliança?
Estamos presenciando frente a isto a inclusão social de novas parcerias e diferentes
modalidades de criação e procriação, ao mesmo tempo em que os relacionamentos não
estão tão duradouros, em contrapartida encontramos hoje relacionamentos mais simétricos do
que antigamente, e com maior grau de liberdade para ambas as partes.
Tais possibilidades acabam por nos apresentar diversidades, configurações outras das
existentes. Mas seriam estas novas formas de conjugalidade reflexo ou resistência à gica
da produção-consumo. Tema abordado e refletido no tópico a seguir.
5.3 - Vínculos: da Globalização à Hipermodernidade
Considerando a influência do social e sua transformação na Modernidade, parto agora
para a compreensão das transformações subjetivas que estiveram associadas às macro
modificações sociais deste mesmo contexto.
Falarei de uma transformação ocorrida dentro da própria Modernidade, uma reflexão
sobre a composição do social hoje e suas implicações no modo de se viver a alteridade, que
nos posicionará quanto às possibilidades de reflexão sobre os campos intersubjetivos,
propósito deste estudo.
As transformações ocorridas durante a modernidade, bem como as conseqüências
advindas do cartesianismo referido como uma unidade que se apresenta indiscutível e
obrigatória a todos e a cada um. Este modelo atendeu a necessidade de ordenação no mundo
que surgia, estabelecendo a certeza subjetiva como critério de verdade e como garantia de
conhecimento (Figueiredo, 1996).
93
Este Paradigma promoveu processos de constituição subjetiva distintos entre aquele
momento e o atual. Então, estilhaçado o espelho dos valores universais da modernidade, é na
multiplicidade de seus fragmentos que buscaremos nos reconhecer.
Assim, para nos aproximarmos da atualidade, revisarei algumas contribuições
recentes na tentativa de apreender o espírito de nosso tempo, nosso “Zeitgeist”, com a
ressalva inicial de ser uma aproximação parcial.
Contrariando aquele conceito de verdade, a palavra de “des-ordem” do momento é
“complexidade”, a complexidade do real e sua heterogeneidade estão em questão. Freud nos
mostrou modos de apreensão do real, ao anunciar que o homem não é senhor em sua própria
casa, que por não estarem organizados pela lógica racional apontam para o campo
psicanalítico. O real, ao ter nele incorporada a dimensão da realidade psíquica, também deixa
de ser homogêneo e racional (Castoriadis, 1995).
Essa lógica própria pode surgir em suas muitas nuances, lógica esta que muitas
décadas após Freud, Herrmann (1997) chamaria de lógica de concepção. Então sobre qual
lógica de concepção estaríamos vivendo?
Para Herrmann (1997), o mundo em que vivemos participa de cada um de nossos
pensamentos de formas distintas, uma delas é determinando como o sujeito psíquico é
constituído. E o autor argumenta:
(...) que a psique que nos usa como lugar de sua ação, mas que nós
temos a ilusão de dominar como a um instrumento, não é de nossa
fabricação pessoal cria-se no real, desenvolve suas propriedades
historicamente e é infundida no indivíduo por seu tempo e sua
cultura moldando-o ao estilo presente de pensar (Herrmann 1997,
p.131).
94
Contemplando tais idéias, Lasch (1988), ao estudar a Modernidade nos “fala de uma
cultura do narcisismo” resultante do fracasso da família como sistema de orientação moral, da
evitação de conflitos por acordos e da acentuação da gratificação instintiva. Propõe a
dissolução do indivíduo sob a cultura de massa e considera que o capitalismo produziu uma
devastação cultural e psicológica, contribuiu para um mundo onde é difícil discriminar a
realidade da fantasia. Assim o processo individual pode porvir de imagens projetadas e
impressões errôneas.
Herrmann (2003), ao discutir este contexto, nos fala de um processo de controle
global, a que nosso mundo está submetido, que não se pode limitar ao controle punitivo de
ações concretas, mas que se infiltra na própria raiz do ato, para o anular no nascedouro.
Discute um novo estado, constituído por cadeias de efeitos sem identificação social
circunscrita empresas multinacionais, um sistema econômico despersonalizado e
dificilmente identificável, a automação substituindo o trabalho e a informação, o
conhecimento criando o Regime do Atentado, evidenciado no primeiro tópico deste
capítulo.
A ordem que despontava não se podia furtar a promover um
progressivo desmantelamento das antigas organizações sociais e
mesmo do ato individual. O indivíduo, que parecia ser exalçado
como paradigma do humano, estaria na verdade sendo reduzido a
uma impotência patológica paradoxal: para valer alguma coisa, para
ter algum prestígio ontológico, tinha de imitar o novo estado do
mundo, ou seja, produzir efeitos rápidos, marcantes e autônomos,
bem como produzir meios para produzir ainda mais efeitos, mais
rápidos, mais marcantes e mais autônomos. Todavia, qualquer que
fosse o curso de sua ação, o resultado seria necessariamente anulado,
95
reincorporando-se na cadeia ampla da automação que se
generalizava; não só a automação tecnológica, mas também a da
economia e, mais amplamente, a da cultura (Herrmann, 2003, p.2).
Ao reconhecer este recorte da psique do real sugere uma forma de ação política que
tende ao ato puro, vale dizer, ao ato que não se cumpre em vista de um objetivo racional,
meditado e debatido de antemão, que não se alia a outros atos socialmente deliberados, mas
cuja realização apenas cumpre o mandato de produzir efeitos e mais meios, para maiores
efeitos. A raiz do ato na reflexão entre interlocutores passou a ser uma região muito exposta à
interferência. Atos impensados, no sentido mais estrito do termo, de concentrada e imediata
eficácia, deslocados do lento processo de reflexão, atos não pensados, ato puro por
excelência. Assim o regime do atentado cumpre paradigmaticamente tais quesitos
(Herrmann, 2003).
De acordo com o mesmo autor, pode-se afirmar que esta condição de
dessubstanciação do pensamento contribuiu para a perda de substância social e,
conseqüentemente, para o prejuízo da noção intuitiva de substância da realidade,
indispensável para que o quotidiano nos pareça crível. No entanto, cria-se uma suspeita de
falsificação localizada e o sentimento de ser toda a experiência de vida uma invenção
descartável dos meios de comunicação. “(...) Como resultado, o indivíduo e a sociedade vêm
sofrendo de uma progressiva e acelerada crise de desrealização (...). O mundo quotidiano
parece incrível quer dizer difícil de acreditar, incompreensível, sem substância permanente
e, sobretudo, sem substância natural. A natureza humana converteu-se no mais ambicioso dos
sonhos de consumo” (Herrmann, 2003).
Desta forma delimitou-se uma diferença significativa entre dois momentos na
Modernidade quanto à subjetividade:
96
A subjetividade construída nos primórdios da modernidade tinha
seus eixos constitutivos nas noções de interioridade e reflexão sobre
si mesma. Em contrapartida, o que agora está em pauta é uma leitura
da subjetividade em que o autocentramento se conjuga de maneira
paradoxal com o valor da exterioridade. Com isso, a subjetividade
assume uma configuração decididamente estetizante, em que o olhar
do outro no campo social e mediático passa a ocupar uma posição
estratégica em sua economia psíquica. (Birman, 2003, p.23).
Birman (2003) nos fala de uma nova cartografia do social, em que a fragmentação da
subjetividade ocupa posição fundamental e os destinos do desejo assumem, pois, uma direção
marcadamente exibicionista e autocentrada, na qual o horizonte intersubjetivo se encontra
esvaziado e desinvestido das trocas inter-humanas.
Bem como nos diz Bastos (2003), “Deus está morto, deus está posto”, ao falar da
violência simbólica que vivemos hoje, contemporânea da globalização, que não se confunde
com a universalidade tal como o Iluminismo nos legou, que diz dos direitos dos homens, às
liberdades, à cultura, à democracia.
O universal parece estar em desaparecimento, ao menos em sua constituição de
sistemas de valores, ou melhor, na globalização o universal como idéia aparece, mas o que se
globaliza é o mercado, culturalmente dá-se a promiscuidade de todos os signos e valores,
assim não há mais diferença entre o universal e o global.
Fala-se muito que a globalização propiciou a legitimidade da diferença, mas o que se
percebe é esta confusão entre universal e global, o que está fazendo é “tabula rasa” de todas
as diferenças e de todos os valores inaugurando uma cultura (ou incultura) totalmente
diferente dos valores universais que conseguiam integrar as singularidades como diferenças
numa cultura universal da diferença (Bastos, 2003).
97
Ao banir o universal como idéia, a globalização torna-se a única
instância de referência. A humanidade imanente a si mesma ocupa o
lugar do Deus morto. O homem reina sozinho doravante, mas sem
uma razão final. Não tendo mais inimigos, fabrica-os do interior de si
expelindo metástases inumanas. Daí a violência do global: violência
que persegue toda e qualquer forma de negatividade, de
singularidade (...). Uma vida cativa, existência protegida, saturação
da existência em que tudo se pode, virtualmente, ter, exceto as
singularidades (Bastos, 2003, p.266).
Estamos vivendo em um mundo dominado por um senhor, é a ilegitimidade de um
poder que não reconhece a existência de outras singularidades, em nome de uma democracia
que a si mesma contempla, o arbítrio surge deste imaginário narcísico sustentado na
onipotência.
Santos (2000) nos aponta que ao mesmo tempo em que vivemos sob a divulgação da
inclusão do diferente existe uma ideologia implícita através da globalização que prega a
homogeinização do mundo. A “aldeia global” tanto quanto o espaço, tempo contraído,
permitiram imaginar a realização do sonho de um mundo só. Pelas mãos do mercado global,
coisas, relações, dinheiro, gostos, largamente se difundem por sobre continentes, raças,
línguas, religiões, “como se as particularidades tecidas ao longo de séculos houvessem sido
esgarçadas, tudo seria conduzido e, ao mesmo tempo, homogeneizado pelo mercado global
regulador” (Santos, 2000, p.41).
O atual período técnico-científico permitiu, na prática, que espaço e tempo se
fundissem, confundindo-se, em virtude da velocidade com que os acontecimento são
transmitidos atualmente e da maneira como as imagens são articuladas em sua apresentação
(Santos, 2000).
98
Até então a imagem poderia ser interpretada como representação do real, mas com a
tecnologia não é mais este que preexiste à imagem e sim o programa (o pensamento lógico
formal e cálculos matemáticos), a simulação. Essa é a realidade virtual que na lógica do
simulacro, homem, imagem, objeto se interpenetram, se misturam e se desalinham na
representação. A imagem torna-se imagem-objeto, imagem-linguagem e, também, imagem-
sujeito (Couchot, 1993).
Desta forma, toda natureza, incluindo o homem, pode ser “coisificado” pela
simulação. A lógica da simulação não pretende mais representar o real com uma imagem,
mas, sim, sintetizá-lo, em toda sua complexidade (Couchot, 1993).
No virtual o real é abstraído e a lógica da simulação torna-se o ideal, onde afetos
emoções e pensamentos são transformados por esta lógica e apresentados como ideais
ficcionais em imagens virtuais (Gevertz, 2002).
“A ficção como realidade é o campo do imaginário. A ficção como ficção é
simplismente o virtual” (Baudrillard, 1991, p.147). Ou ainda “(...) o que se opõe ao virtual
não é o real, mas o ideal de verdade que é mais pura ficção. A imagem de síntese por si
mesma não abole os ideais de verdade, pelo contrário, faz desses ideais uma ficção, uma
ficção universalizante” (Parente, 1993, p.22).
Daí a importância de distinguir mundo virtual do emocional, considerando lógicas
distintas, pois caso contrário estaremos coisificando o emocional e universalizando suas
especificidades. Santos (2000) confere que tal processo vem sendo feito pela globalização ao
confundir-se, ideologicamente, com o universal. Propondo um real que não é fruto da
experiência humana.
Tal indiferenciação, homogeinidade se pela distorção entre real, virtual e
imaginário e pela imanência entre sujeito, objeto e imagem. Pode-se dizer que, por
representarem o ideal do mundo, as imagens e o mundo virtuais preexistem ao real e geram
99
realidade, a realidade virtual; e por estar desligada do real o mundo virtual tudo pode, não
existem limites, finitude. Assim, o eu e o outro podem existir conforme é desejado, o mundo
experienciado como uma ficção, onde o outro não existe, a não ser como extensão de si
mesmo. Com a perda do sentido de separação eu-outro, as vivências de ausência e de falta
podem ser dribladas e evitadas (Gevertz, 1999, p.271).
uma tentativa de equalizar identidade com iqualdade e ao se tentar vivenciar este
mundo virtual como realidade real, o ser humano cai no vazio, na ilusão de encontrar a
felicidade buscada, encontrar situações de intenso prazer.
De acordo com isso, Lipovetsk (2004) nos fala da era do vazio, onde as disciplinas as
grandes estruturas deixam de ser o princípio de inteligibilidade do real, estaríamos numa
sociedade pós-disciplinar, a qual seria a hipermodernidade e que estaria sob o domínio do
efêmero. A era do hiper (hiperconsumo, hipernarcisismo).
Isso não significa que desapareceu todo o poder sobre os indivíduos, os mecanismos
de controle se adaptaram, abandonando a imposição a favor da comunicação muitas vezes
transmitida pela imagem. Houve também uma notável mudança de rumo na dinâmica do
individualismo nascido com a modernidade, no qual a essência agora é o paradoxo
(Lipovetsk, 2004).
Para o mesmo autor, a sedução seria a marca que afeta indistintamente os domínios
públicos e privados numa lógica emotiva e hedonista referenciada no consumo. Vê-se
singularidades pouco originais, pouco criativas, pouco ponderadas, mas mais numerosas e
mais flexíveis. E na onipotência da lógica consumista e no relativismo desmedido a
superficialidade dos vínculos parecem ter contaminado o conjunto do corpo social.
Lipovetsk (2004) nos fala de paradoxos essenciais e aponta a ação paralela e
complementar do positivo e do negativo:
100
(...) quanto mais avançam as condutas responsáveis, mais aumenta a
irresponsabilidade. Os indivíduos hipermodernos são mais
informados e mais desestruturados, mais adultos e mais instáveis,
menos ideológicos e mais tributários das modas, mais abertos e mais
influenciáveis, mais críticos e mais superficiais, mais céticos e menos
profundos (Lipovetsk, 2004, p.28).
Diz que a mudança se deu, principalmente, no ambiente social e na relação com o
presente, não havendo emancipação do indivíduo frente à desagregação do mundo da
tradição, ele vive sob o regime da tensão nervosa, do medo da ansiedade e da angústia, em
face de um futuro incerto; que fragiliza os indivíduos e conseqüentemente seus vínculos.
Tendo em vista esta concepção de mundo, Peres (2001) aponta para a fragilidade na
relação com o outro e na fissura da própria identidade que se traduz na pergunta constante de
quem sou, o que faço e o que desejo e que embora o indivíduo possa se dizer livre para
escolher, ele fica aprisionado à essa pseudo-liberdade, que nada mais é que a inexistência de
laços que o conduzam pela vida. Preconiza que a doença atual é uma doença de vínculos e há
uma liberdade do vazio que não encontra outra resposta a não ser a angústia.
É possível que nosso maior mal-estar repouse exatamente nessa
doença dos vínculos ou, se quisermos, do narcisismo. não cremos,
não obedecemos, não nos orientamos, não admiramos. E nesse
abandono ao outro vai encouraçando nossos invólucros narcisistas. O
descartável é o predominante em nossa época: valores, pessoas,
relações, instituições, objetos, teorias. Assim sendo,
necessariamente, para enfrentar o vazio da desesperança, o mundo
necessita ser fetichizado valores são incorporados ao sem valor
(Peres, 2001, p.12).
101
Assim, é a fetichização que a sustentação da mercadoria como objeto de consumo,
objeto consumível e nunca atingido, porém sempre pronto para ser o próximo de uma cadeia
simbólica infinita e sempre mais cara, onde o mito da tecnologia se reitera sem cessar, com a
promessa do novo e melhor (Homem, 2003).
(...) o ser humano destitui-se de sua dimensão histórica e inaugura
uma espécie de a-temporalidade, constituindo memória desvinculada,
carente de marcas vinculares. Sua marca é ser marca. Não se tem
marca, se é a marca. E qual marca? Aquela que pode ser a mais
deslizante para que o vazio existencial continue circunscrevendo a
regra do descartável. Tudo tem que ser deslizante sem barreira, sem
contato, sem atrito (Romera, no prelo).
Poderíamos nomear também este regime de pensamento do mundo, de acordo com
Herrmann (1997), de Regime da Farsa, onde tudo é aparência, havendo uma crise
representacional.
Tal farsa é vivida frente à oferta de consumo onde a mensagem veiculada é que se
pode tudo, numa falsa ética inclusiva que nos coloca numa posição de tudo poder, na ilusão
de não ter que escolher. um excesso de tudo, uma promessa de paraíso diante de um
imediatismo exagerado. Saímos de um tempo de escassez e entramos no campo do excesso.
Com isso, o real se apresenta e a vida se faz presente, pois na recusa da escolha, o
indivíduo se remete ao nada, nega-se a perda. A ordem é de subversão, como se fosse
possível percorrer todos os caminhos, mas não podemos escolher tudo e nem mesmo nos
mantermos permanentemente conectados. Esta ilusão se faz necessária, visto que a angústia
do real está sempre presente, como uma espécie de sombra ( Paravidini et al, no prelo).
Por sua vez, a relação de alteridade (simbólico e material) ganha um contorno bastante
singular. A atualidade revela um modo de relação masoquista intersubjetiva bastante
102
proeminente para fazer frente ao desamparo. Nesta perspectiva, o sujeito entrega-se ao desejo
do outro, servindo de objeto de expiação frente à carência erótica originada pelos tempos de
hiperconsumo, visto os estados fusionais e homogeneizantes (Birman, 2003).
Portanto, a questão, se revela neste princípio do self-service, da busca de emoções e
prazeres imediatos e do cálculo utilitarista que culminam na superficialidade dos vínculos que
parecem ter contaminado o conjunto do corpo social.
Desta forma este estudo contextualiza-se a partir da reflexão crítica deste conjunto
substancial de transformações nas relações sociais, determinado pela era da globalização e
pela hiper-conduta.
Então, frente a isto o que dizer dos vínculos no campo conjugal, que também sofre
destes efeitos, pois está imerso na mesma lógica de concepção deste real: diversidade,
liberdade, autonomia e a relação com o tempo virtual (imediatez)?
Não gostaria de ser maniqueísta e aí me tornar moderna, ao homogeneizar (globalizar)
os vínculos colocando-os de forma positivista ou negativista, mas gostaria de me referenciar
no paradoxal, tão pronunciado pelos teóricos da pós-modernidade ou hipermodernidade.
Neste terei o princípio da incerteza, da dúvida, como norte, que tanto pode levar ao vazio
quanto à criação.
Tal concepção, problemática, revela como o casal hoje é confrontado por duas forças
paradoxais, ou seja, pelas tensões entre individualidade e conjugalidade como descreve
Ferez-Carneiro (2000) como também pode ser neste paradoxo, vivido no modo de relação
conjugal, que a subjetividade de cada um do par pode se transmutar (Magalhães, 2000) como
também a relação.
Para Bastos (2001) o que se percebe é que o casal de hoje perdeu os referenciais do
passado, que também geravam conflitos e insatisfações, uma vez sustentados pela reprodução
social e biológica, mostrando-se plural em suas novas organizações. Nestas, as configurações
103
narcísicas dos sujeitos e suas falhas vêm mais facilmente à tona devido à importância
concedida ao amor, à individualidade, à independência emocional e econômica e ao prazer
sexual, na escolha conjugal.
Um fator de desintegração deve-se a veiculação de uma imagem do casal. Anuncia-se
que o amor está à venda e que a felicidade pode ser comprada apelando aos desejos narcísicos
de beleza, perfeição e eternidade presentes em todos nós (Bastos, 2001). O que se é uma
desterritorialização violenta, sendo que o capital inflacionou e esvaziou nosso jeito de amar.
A partir disso, vimos surgir, segundo Fuks (2003), um sujeito mais indiferente em
matéria de afetos, com uma modalidade menos densa, sem paixões intensas, falta-lhe uma
disposição de passagem para o estabelecimento de projetos pessoais ou coletivos, inclusive
em se tratando do conjugal. Aponta para um neonarcisismo próprio da nossa época, uma vez
que a possibilidade de dialogar cedeu espaço à imagem, e que a palavra perdeu relevância
como suporte de pensamento e da subjetividade, e também como suporte da
intersubjetividade e do vínculo.
Frente a isso, a mesma autora observa uma prevalência da aparência, culto de corpos
cuidados e uniformizados num mesmo padrão de beleza; sentimento de vazio e a
manifestação da retração narcísica nos quais se vive uma vida marcada pelo isolamento, pela
solidão, pelo desassossego crônico, pelo embotamento e pelo tédio.
também, segundo Fuks (2003), uma tensão existente entre o ideal de indivíduo
dotado de autonomia, valorizado atualmente, e as exigências que lhe impõem uma realidade
cada vez mais imprevisível, tornando-o vulnerável e capaz de desfalecimentos inesperados.
Assim, a relação com outras pessoas pode ser considerada como hostil para o equilíbrio
psíquico, gerando hostilidade e retraimento defensivo, o que reforça o voltar-se sobre o ego e
principalmente sobre o corpo como objeto narcísico primário.
104
Essa exigência de plasticidade a esse ego tensionado no limite da exasperação, impõe
uma tarefa difícil de recompor a esfera dos valores e de reelaborar um projeto identificatório
no campo da identidade sexual.
Estamos falando de um mal estar na atualidade no campo destas subjetividades
sofrimentos precipitados por uma intensidade e um excesso pulsional que lança a questão da
afetividade e do corpo como crucial na compreensão destes impasses. Os destinos do desejo
assumem, pois, uma direção marcadamente exibicionista e autocentrada, na qual o horizonte
intersubjetivo se encontra esvaziado e desinvestido das trocas inter-humanas (Birman, 2003).
Frente a isto Bastos (2001) nos fala que as identidades tendem a se fragmentar, a
perder seus contornos e que diante dessa ameaça os sujeitos passam a se defender
narcisicamente onde o corpo entra nessa guerra, o ataque vem da imposição violenta de um
eu ideal que é uma imagem outra vinda de fora e esta se torna a única saída para evitar a
dissolução.
O eu se cola nessa imagem de corpo configurando uma espécie de
ego-corporal nunca pensado por Freud. É um ego aderido, colado,
confundido com uma dada dimensão corporal: a de uma única
imagem. Nela o eu se gruda em busca de contorno e de definição.
Corpos sarados e definidos para subjetividades frágeis e
indefinidas. São, como as chama Marisa Maia (s/d) imagens de
superfície numa sociedade de espetáculo (Bastos, 2001, p.812).
Assim temos visto hoje o casal X definido imageticamente na figura da bioestética, da
transformação, centrado na figura da mulher, de um feminino pigmaleão, uma perversão do
mito de Pigmalião, que se orienta pela perspectiva de um ideal de completude e eternidade,
onde a imagem do masculino está implícita nesta imagem corporal, numa simbiose.
105
um certo tratamento serial e universalizante do desejo que
consiste precisamente em reduzir o sentimento amoroso a essa
espécie de apropriação do outro, apropriação da imagem do outro,
apropriação do corpo do outro, do devir do outro, do sentir do
outro. (Guattari & Rolnik, 1996, p 281).
Frente a tantas possibilidades e intensidades oferecidas hoje na vivência da
sexualidade e da afetividade, associada à materialidade da vida, através da imagem e da
promessa de prazer, veiculada por uma idéia de liberdade, o que se percebe hoje é a vivência
de extremos, ou nos anestesiamos, endurecemos a toda sensação de mundo, frente ao medo
da desterritorialização e nos enclausuramos em simbioses ou se mergulha no movimento de
desterritorialização, na pura emoção de mundo. A desterritorialização deixa de ser vivida
como uma dimensão, imprescindível, da criação de territórios, para tornar-se uma finalidade
em si mesma (Guattari & Rolnik, 1996).
A partir deste movimento instaura-se um processo de ruptura de significados e valores
que organizam e sustentam a identidade subjetiva de sexo e os comportamentos práticos o
que se apresenta nas mudanças atuais da relação homem-mulher alterando os valores de suas
identidades levando-os a sensações de fragilidade antes desconhecidas. Fala-nos também de
uma agressividade inerente a este neonarcisismo, marcada na relação dual, pelo
enfrentamento mortífero. Toma a forma de uma disjuntiva radical, “ou eu ou o outro”, não
havendo lugar para a diferença, a mediação, a possibilidade de lugares para cada um dos dois.
O perigo disso reside na convergência entre o narcisismo e a pulsão de morte, ou seja, a
pretensão narcísica da coincidência absoluta com o ideal, implicando na morte do sujeito
desejante (Fuks, 2003).
106
No entanto, há nisso uma miséria, pois tem se a impressão, que os fios não se
articulam, não organização de territórios, as intimidades recém conquistadas se dispersam,
se desperdiçam (Guattari & Rolnik, 1996).
Deleuze e Guattari (1976) nomearam tais processos de máquinas celibatárias, que na
fúria de tecer com tantos fios, tão rapidamente substituídos, não mais conseguimos nos deter.
O outro, descartável, é a mera paisagem que, quando muito, mimetizamos e almas penadas
viajamos por entre essas paisagens que se sucedem. Segundo eles uma Miséria celibatária.
Seria possível inventar uma outra espécie de amor, não tão demasiadamente humana,
montagens desintoxicadas do vício de redução do desejo de mundo a um objeto-pessoa ou
uma pessoa-objeto, nem tão demasiadamente desumana, montagens desintoxicadas do vício
de proliferação de mundos, objetos do desejo, tão desenfreada que não há nem mais mundo
nem desejo? (Guattari & Rolnik, 1996).
Guattari e Rolnik (1996), falam de uma “nova suavidade”, que é o da invenção de
uma outra relação, do território conjugal, distinta da vontade de poder sobre o corpo do outro,
da posse de um gênero sobre outro e da imposição de um tipo de sexualidade. E porque não
do uso do corpo pela mídia como normatizador do desejo sexual como dos corpos
esteriotipados do casal de hoje?
Nestes regimes do atentado e da farsa percebemos que o mundo em que vivemos
passa a ter algo de totalmente controlado frente a uma suposta liberdade de escolha e assim
também passa a ser a vida a dois, mas também pode constituir uma maneira de vivenciar o
mundo inteiramente original. Talvez o pulo do gato fosse compreender e suportar este
paradoxo.
O atual momento pode ser considerado, ao mesmo tempo, um período e uma crise?
Pode ser visto como período por suas características estarem instaladas em toda parte e
influenciar a tudo, direta ou indiretamente. E como as mesmas variáveis construtoras do
107
sistema estão continuamente chocando-se e constituindo novas definições e novos arranjos,
pode ser visto como um momento de crise. De acordo com Santos (2000) trata-se de uma
crise persistente dentro de um período com características duradouras, mesmo se novos
contornos aparecem.
Herrmann (2003) também nos coloca sobre a gravidade da dessubstanciação da
existência pessoal e social, mas é forçoso reconhecer que trazem, como contrapartida, certa
consciência potencial, como qualquer crise dentro de um processo crônico.
Portanto, esta desestabilização exacerbada pode gerar paradoxalmente um apelo pela
manutenção de referências identitárias. Desta forma podemos produzir um perfil maleável
que lhe permita transitar entre os diferentes apelos atuais, tentando manter-se intacto,
preservando sua configuração fixa a despeito das forças externas que a desestabilizam a todo
tempo, buscando novas formas e resoluções e assim também se reformulando.
Podemos averiguar, que a capacidade de criar elos de ligação e flexioná-los no
exercício da conjugalidade vem se tornando um desafio, uma condição cada vez mais fluída,
norteada por uma liquidez moderna e por um amor líquido que vêm se evaporando e
transformando-se em matéria dura, em arma-duras neonarcísicas que no exercício destas
“ditaduras” de consumo nos leva a questionar o surgimento de novas versões conjugais.
Devido a isto, me propus a conhecer a realidade conjugal atual a partir de um olhar
diferenciado daquele que cria expectativas para se ver de pronto , um olhar superficial que
somente simulacros virtuais. Aponto para um outro olhar de superfície, àquele em que
possamos ver a Realidade como expressão do Real. Será possível com ele outras visões,
entre-vistas? Foi isso que nos propusemos a investigar entre-vistando e que será apresentado
no capítulo seguinte.
108
6- O TEMPO MÉDIO E CURTO DAS ENTRE-VISTAS:
CONSTRUÇÕES
A partir do tempo médio das relações afetivas, do drama transferencial: dos
sentimentos delicados e das vivências dolorosas que se dão no processo, convoquei a história
de cada relação conjugal e o tempo curto, estará representado naquele do tempo condicional,
dos possíveis, do ato falho a dois que condensa a história em poucas palavras
(Herrmann,2006).
Quando me proponho a denominá-las de entre-vistas, falo de uma condição da
relação, estou dando indicativos da minha crença de que um entre e que ao mesmo
tempo também estou em relação, de que também um campo da relação da entre-vista.
Parto na busca de um vacilo, de que um terceiro olho pode captar, de um lugar de quem está
dentro, que não seria meu, nem da orientadora ou dos entrevistados, mas emergente do
campo, reconhecido a posteriori. Digo de um tempo de ver onde se apresenta não o que é
visto, mas o que se pode descobrir por aquilo que não se vê.
Estarei interessada em definir qual o campo “(...) conjunto de determinações
inaparentes que dotam de sentido qualquer relação humana, da qual a comunicação é tão só o
paradigma.” (Herrmann, 1991, p.28).
6.1 - O casamento ditado(r)
N tem 39 anos, está solteiro 7 anos , casou-se aos 23 anos, ficou casado por oito anos
e meio e teve dois filhos que hoje estão pré adolescentes . Ele teme o casamento, mas o
deseja, angustiando-se neste impasse. Diz de uma conjugalidade regida pelo ditado que dita a
própria dor.
109
“A fenda que nos separa do abismo que nos aproxima
Paulinho Mosca
Relata que no dia do seu casamento lhe deu uma crise de choro uma hora antes de ir
para a cerimônia, um misto de medo e arrependimento, e disse que no fundo sentia que não
estava fazendo a coisa certa, mas que como levara até ali, agora iria assumir.
Ele morava em uma cidade pequena desde os 17 anos para onde foi trabalhar.
estava cansado de morar em repúblicas, ficar sozinho e a cidade também não oferecia
recursos para estudar e se divertir, sentindo-se frustrado em morar ali. Sua família morava
numa cidade maior um pouco longe dali e quando ia até não tinha mais amizades e
vínculos sociais, sentindo-se perdido, sem um lugar. Vi ali um menino tendo que virar
homem à força, se virar “esperniar” sozinho.
“Hoje sei que fui pressionado pela falta de recursos do lugar, não tinha horizonte de
sair de lá, era um lugar de confinamento. O ambiente interferiu muito e a minha idade
também, era muito jovem...”.
Ele quis casar, pois acreditava estar apaixonado, com vontade de casar ter casa”,
conforto, constituir uma família e ter uma companheira legal. Namoraram um ano e cinco
meses, mas a maior parte foi à distância, pois ela morava em Uberlândia estudava e
trabalhava e sua família era da cidade que ele morava. Ambos estavam em situações
semelhantes e sentiam falta do colo familiar, da familiaridade de contar com o outro.
Organizavam-se na gica da aliança heterossexual reprodutiva. Durante o namoro ela se
mostrou uma pessoa compreensiva, que delimitava e respeitava o lugar de cada um.
Faltando cinco meses para o casamento ela veio para sua cidade morar com a família
e, desde então, outra pessoa entrou em cena. Neste momento ela larga seus projetos de
estudar e trabalhar, até então tidos como prioritários e adere rapidamente à condição de ser
uma mulher casada. Seu projeto seria administrar a vida do marido.
110
“(...) parecia que estava disfarçando, não tive olhos para ver, ou melhor, tive sinais,
mas não quis ver. Ela era dissimulada mesmo. (dá uma pausa) (...). Tem um ditado que diz
que a mulher casa achando que vai mudar o homem, mas ele não muda; e o homem casa
achando que a mulher não muda e ela muda.”
Ele ficou assustado, logo no início, pois no outro dia ele viu a incompatibilidade, ou
seja, houve uma mudança de personalidade por parte dela. A pessoa liberal que aceitava
opiniões mudou para uma controladora impositiva, ele não podia mais ir sozinho ao clube
da cidade, conversar com um amigo, jogar bola, pois ela ficou ciumenta ao extremo. Ela não
importava para dinheiro então começou a cobrar as coisas e a gastar com facilidade, sem
limites.
“Casei para diminuir a distância e ela aumentou, a coisa degringolou.”, afirma N.
Estavam separados mais do que nunca, agora pelo casamento, pois às vezes a proximidade
demais distancia, principalmente quando ela é feita ao estilo Zoom do computa-dor, imagens
de superfície que se distorcem quando de aproxima.
“Eu levei um choque! Como eu não aceitava, deu problema, na primeira semana ela
quis voltar para a casa da mãe e com um mês eu queria me separar. A minha mãe veio
fazer uma visita e ela aprontou, deu uma explosão de ciúmes, fez esquete de madrugada,
arrumou as malas e disse que iria para casa da mãe de manhã. Minha mãe ouviu tudo e
ficou desconcertada e foi embora no outro dia. Eu me perguntava o que fazer e não consegui
fazer nada...”.
Ele permaneceu tentando: tentava conversar, dialogar, rezar, se comportar como um
bom menino. Acreditaram que a vinda de um filho ajudaria e com um ano de casados
engravidaram. Ele pensou que as coisas iriam melhorar, mas nada aconteceu. Mais uma
ilusão, idealização de que este desencontro poderia levar para caminhos compartilhados.
111
“A mulher quando tem um filho ela muda, fica paranóica, tudo que ela gostava de
fazer começa a recriminar, tudo fica perigoso errado de se fazer. Como o P veio pré-maturo,
ela ficou transtornada.”
Ele ia me contando tudo rapidamente, muitas vezes quis pedir para ele ir devagar, mas
se eu o fizesse também estaria sendo, qualquer fala seria pré-matura, literalmente nesta
relação: “apressado come cru”, os fatos vão se dando de forma adiantada. Relações pré-
maturas.
O desgaste foi ficando grande para N, pois ela era intempestiva, apelava, gritava,
xingava e agredia fisicamente. Ficou marcada para ele uma cena em que ela o agrediu com
um cabo de vassoura pelas costas quando ele segurava o filho de seis meses no colo.
Mantinha o casamento pela idéia de família pelo filho e pela esperança, para garantir
sua identidade fixa, mas se sentia infeliz, angustiado. Outro problema também era o
descontrole financeiro dela, gastava muito, fazia muitas contas para ele pagar e também
desfazia-se com facilidade das coisas adquiridas.
“Com isso eu fui ficando agressivo, nervoso, me sentia um bicho enjaulado; minha
vontade era de desintegrar, sumir (...). Veio a vontade de ficar com outras pessoas de ser
feliz. (...) Procurei fazer a coisa certa por algum tempo, não fui leviano.”
Viviam brigando, estavam quase separando quando ela ficou grávida do segundo
filho. Devido a isto tentaram ficar juntos, houve uma transferência para outra cidade e a
possibilidade de uma renovação. Ela dizia ir trabalhar, mas lhe dava trabalho, despesas e
confusões e, como mãe, não correspondia ao papel esperado, o que toda mãe faz, é cuidar”
disse N. Assim, ele a traiu, ela soube e deu o troco.
“Hoje sei que ela teve algo com alguém, ela deu o troco, mas eu não tinha provas...”
Para quê provas se tudo já estava à prova de fogo cruzado? Pensei...
112
“Eu queria separar, mas pensava nos filhos. Como viver longe deles? Como deixá-los
aos cuidados daquela mãe avoada? Temia que eles não ficassem bem e que não me amassem
por isso. “Eram pequenos, estava esperando eles crescerem”. (...) O que segurava também
era o sexo, nos vamos muito bem na cama, era hilário, separávamos ele de tudo”. (...)
Acho que eu não amei, fui apaixonado, foi acabando e sobrou o sexo (...) a paixão vai
diminuindo e os defeitos aumentando!”
Fico com a sensação de abertura e fechamento, fico meio perdida neste movimento.
Quanto mais ele a estranhava, se perguntando quem é esta pessoa e o que estava
fazendo ali, mais ele se paralisava, estava de coração vazio mesmo, não havia mais
afinidade” dizia N.
“Tem um ditado: onde passa um boi passa uma boiada (...) não faça uma vez, depois
fica fácil, você se sente desejado, atraente, cobiçado capaz de conquistar e a fonte do
problema não acabou.”
Ele começou a fazer faculdade em Uberlândia e veio mais uma possibilidade de
mudança, mas conheceu uma garota e começou a ter um caso que durou certo tempo e depois
se envolveu com outras pessoas. Parecia haver um vazio cheio de regras ditadas, alicerces
instantâneos que se fragmentavam a cada atrito. Espaço paradoxalmente lotado de vazio,
ocupado por uma nova mente ilusória.
“Não conseguia me controlar, vi que estava vivo, vi possibilidades, horizontes. Como
diz o ditado: homem procura razões para trair, e a mulher procura para não trair.”
Fala isto com certa intensidade como se estivesse perdido o controle quando as
possibilidades se descortinaram à sua frente; ficou perdido, desnorteado e conduzido pelo
prazer em contraponto com a dor, prisão que se colocou. Tornou-se prisioneiro disto, desta
lógica do prazer permanente, da sedução, do descartável em si e com os outros. Ficou preso
nesta compulsividade. Quer sair, mas não consegue, por isso que quando quer casar não
113
consegue se entregar é como se ele fosse voltar a ser infeliz/doente. A dor de estar com o
outro, de fazer concessões, ele fez demais... “agora ”, quer somente alegria.Tenta
conjugar um prazer permanente com relações provisórias
“A vida a dois foi tornando-se um disfarce, quando saíamos parecíamos dois
namoradinhos, parecia que tudo estava bem, era muito falso. Quando você um casal onde
um está para cada lado, eles estão juntos. Tentávamos, mas caía na mesma mesmice.”
O que os unia era a possibilidade de estarem separados, de serem desejados e
desejantes. A partir de então vão viver outras coisas, mas permanecem casados, não
conseguem desfazer o vínculo doentio.
Eles estiveram para se separar várias vezes, já se separaram de casa por algumas
semanas, dias e horas, mas sempre a culpa fazia com que ele retornasse. Ele sabe que fez de
tudo para ela separar, era sem educação, desfazia dela, ignorava, era indiferente, não era
carinhoso, parou de investir na casa e na relação.
Ele assumiu sua raiva, descontentamento, mas não assumia sua vontade de separação.
Por alguns momentos fiquei com uma impressão de que eles, o casal, ia desaparecendo, mas
não sumia. Afinal ele se apresentou como separado! Fui ficando angustiada, então perguntei
apressada, me adiantei: Mas então o que fez vocês se separarem? O que seria capaz de dar um
fim a esta série de acontecimentos provisórios!
“O que fez eu sair foi aquilo!”
Aquilo o quê? Perguntei no fluxo da sua fala... Assim como minha fala foi expulsa de
dentro de mim ele foi expulso dessa relação tempo-espera no casamento e agora comigo.
Estávamos no campo da pressa, traindo a esperança.
“A traição dela... havia perdoado uma vez, em nome da família Mineira. Ela
armou a situação, foi premeditado, ela pediu para uma amiga ficar com os meninos para ela
sair num dia em que eu estava de plantão. A partir daí saí de casa. Seis meses depois ela
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estava com outra pessoa, não sei se era ele não quero saber. Tivemos vários flash back’s mas
não pensava em voltar, era pura luxúria.”
Ele está sempre começando, a cada relação de consumo consumada, ele parte para
outra, aperfeiçoando sua expectativa de um feminino mais completo, que não o irá fazer
sofrer, ditar a sua dor. Ele insiste em não querer saber da sua traição! Ser o seu ditador.
Oscilava entre o ditado e o dita-dor de si mesmo.
Foi a presença e suporte de outra mulher que garantiu a ele a possibilidade de
continuar sem desintegrar. Esta lhe ouviu, orientou, cuidou , suportou, transou, fez tudo que
ele sempre esperava encontrar em uma companheira, seu ideal feminino materno. Também
fez terapia onde encontrou outros sentidos para sua vida, outra visão de homem, marido e pai.
“A pessoa com quem eu já vinha saindo me deu o maior suporte neste período; ela foi
a muleta real que fez eu dar conta de separar. Quantas vezes ela me ouviu, foi carinhosa e
nunca se posicionou quanto ao que eu deveria fazer... tive para voltar rias vezes e ela me
ajudou. Iria voltar pela comodidade, a separação implica numa mudança terrível.”
Como você ficou?
“Aliviado, culpado, angustiado, por causa dos meninos, medo do que aconteceria
com eles, medo de ser rejeitado e de deixar de ser amado por eles. Nunca tinha me sentido
tão perdido. Vi na terapia que tinha o direito e a possibilidade de ser feliz e que o casamento
foi um projeto que não deu certo e que podem vir outros. Tirei a culpa das minhas costas”.
A culpa acabou, mas o vazio continua. N acha que tem que ter alguém, dizendo:
“sinto-me um aleijado social”, diz que a sociedade discrimina a pessoa solteira e que procura
por alguém mas se sente às vezes incapaz de conjugar uma união fixa e duradoura . Mas o
medo de romper com a tradição, educação familiar, com o bom filho, o homem de bem, e
com o “consenso” dos ditados populares fez o garoto perfeito se transformar no ditador de si
mesmo, preso na idealização do casamento para sempre “na saúde e na doença” e na fixação
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da procura do feminino na mulher perfeita que ele nunca encontrará e por isso se inquieta
tanto.
Eu: Foi preciso muita dor para enfrentar seus medos! Um herói sem coragem?
“Apesar dos meios terem sido tão ruins, precisa coragem para assumir antes, todos
vão ao limite. É como um dependente, depois da droga cai no vazio, então queria instalar o
ciclo vicioso novamente, quando começava de novo eu caía fora. Queria me relacionar,
gostar de alguém, ser amado, mas saí louco à procura de diversão bebida e mulheres”.
“Fui ficando, fiquei com muitas, como diz a música tive mulheres de todas as
cores, todas as idades, mulheres cabeças, casadas, carentes e desequilibradas (Martinho da
Vila). Estava na tentativa, ver se eu acertava, procurava, mas em cada uma encontrava um
prazer, mas um defeito também, não sentia nada e caia fora rapidamente. Refleti alguma
coisa com isso... Amor é mais atitude comportamento, pequenos gestos, do que um
sentimento pronto. Amor é construído com respeito e afeto recíproco”.
Neste momento ele me surpreendeu, não havia vazio ali, em meio a tanta “coisa”
ainda possibilidades de implicação dele com alguém... fora do ditado. Ele deixa escapar
um leve traçado na sua trajetória, a possibilidade de uma outra sensibilidade no amor, para
além do ideal do ditado, da ordem do construído.
Ele quase voltou para a ex-mulher depois de tudo isso, mas não o fez, pois encontrou
outra pessoa que tinha tudo que ele desejava, mas com o tempo, quatro anos de
relacionamento voltou a sentir-se perdido novamente e a questionar quem é esta pessoa com
quem ele estava. Então separaram porque ela tinha outros, ele descobriu e terminou.
“Ela era tranqüila transmitia calma, me ouvia, me sentia muito bem ao seu lado. Mas
ela era muito passiva, não desejava outras coisas além de se casar comigo, ter um homem e
filhos, não tinha projetos de vida além do casamento. Isto me atormentava, tinha muita
116
cumplicidade, amei, mas isto me angustiava e me deixava inseguro, oscilava muito entre
assumir ou não o relacionamento desta forma.”
No momento está com outra pessoa, cicatrizando a ferida deixada, depois que soube
que a ex-namorada tinha se casado ele afirmou: “definitivamente ela morreu para mim”.
“Agora estou com a L, ela me parece companheira, parceira, trabalha, tem sua
autonomia, sabe o valor das coisas e está disposta a cooperar com as despesas de uma vida
a dois. pensamos em nos casar
,
mas ela não fica em torno de se casar e ter filhos, mas
quer crescer profissionalmente, ter vida própria.”
Mas com as outras duas, você também, inicialmente, acreditava ter encontrado a
mulher perfeita! Teria um tempo necessário de espera para se conhecer, o outro e a nós
mesmos na relação, antes de ir para o casamento?
“Eu tenho 39 anos vivi muitas coisas, não preciso esperar para saber o que
quero, estou com vontade de viver uma vida de casal, com parceria confiança e segurança,
preciso organizar minha vida. Tendo condições financeiras, ela tem senso de cooperação
não precisa esperar muito! Isso é para casais novos que não têm condição financeira, estão
estruturando a vida.”
Você conhece o ditado que amor rima com dor! Entro no ditado, pois me vejo sem
esperança de vê-lo esperar, me adianto. Talvez tivesse a ilusão de afetá-lo jogando com este
ditado... já que ele adere com facilidade ... então novamente conjugamos o mesmo campo.
“Ele ri e diz que este ele não conhecia.”
Mesmo no campo da pressa, ao não saber esperar vive na esperança de conjugar algo
diferente no casamento. É um herói machucado na guerra do casamento, mas ainda persiste
na batalha, não desertou.
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6.2 - Sobre casar: a conquista de um tempo que é a insônia da eternidade.
Casal recém casado. Ela vem de um longo tempo de solteira e ele de um casamento há
pouco tempo terminado. Conjugam um meio tempo para recomeçar uma vida casada.
“Minha procura por si só já era o que eu queria achar...
...E saiba que forte eu sei chegar...
Mesmo se eu perder o rumo!”
Ana Carolina
Primeiro Tempo: a solidão
F, Inicia sua fala dizendo que ficou muito tempo sozinha, era uma procura constante
por alguém. Norteava-se por alguns quesitos como beleza, dinheiro, inteligência e cultura.
“A solidão, acabei acostumando com ela, depois lhe dei outro sentido. Impulsionava-
me a ir em busca de mim mesma.”
Num primeiro momento começou a experimentar. Ficar com muitos, sem critérios,
acabou sendo uma condição de sustentabilidade para continuar sozinha.
“Procurava os príncipes e estes me desencantavam, fiquei com os sapos, aceitava
tudo, queria ser descolada, aquela que não buscava compromisso. Assim não demonstrava
minha insegurança.”
Uma princesa moderna, segura, confiante e independente. Questões como a
fragilidade, a espera e a entrega passaram a ser vergonhosos para se mostrar.
“Ouvi dizer que o Romantismo não acabou, o que acabou foi a formalidade. Tornei
me uma princesa às avessas.”
“Entrei no ritmo e acatei o que uma amiga dizia: enquanto o homem certo não
aparece vou me divertindo com os errados. Se é assim... saí a me divertir, não me
comprometi em nada. Mas nem sempre isso era divertido mesmo. Tornei-me lisa que nem
sabonete.”
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“Virei caçadora, Diana dos asfaltos, amazona veloz que não se detinha nunca em
lugar e em colo nenhum. Havia desistido da minha busca. As presas não eram desejadas,
eram apenas isto: presas abatidas para que eu pudesse me sentir livre, mesmo que isso me
doesse tanto, pois essa não era eu.”
Nesta última fala, F revela um lugar de angústia. Ela adere e descola repetidamente,
substituições de objetos, ausência de desejo. Anestesiamento da afetividade em si, no outro
e entre eles, na relação.
Por tanta idealização desapareceram os possíveis encontros, houve um momento de
desistência. Um vazio frente a tanto volume.
Então me entreguei à solidão, parei de procurar o outro ideal e fiquei comigo.
Estava mais madura, com 30 anos, me vi mudando o rumo da minha vida, novo emprego,
novos projetos de trabalho, estava realizando um sonho.”
Conseguiu sair de uma condição que a aprisionava, do trabalho que realizava com
sofrimento, o que lhe fortaleceu para ocupar outros, dentre eles a relação a dois.
Esta parada foi possível, pois conseguiu reconhecer um lugar para si, numa possível
relação. Ela apresenta a imagem de um feminino moderno, independente que sabe o que quer
e deseja o que não quer, ou seja, a relação com o outro.
“Quando parei de procurar, encontrei. Estava perto de mim, mas eu olhava para
longe.” Disse ela. Corria atrás do tempo para não se haver com seu tempo. Ela olhava
para si com medo de não ser vista e acabava não enxergando a sua vista.
Segundo tempo: reformulando quesitos
Uma terceira pessoa que conhecia ambos, por achá-los parecidos, provocou uma
aproximação, um encontro marcado que marcou o encontro.
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“No primeiro encontro já fiquei bastante interessada, vi um homem separado com um
filho. Encantei-me com ele como pai com seu filho, ali estava um homem diferente...”.
Nesta época, uma amiga lhe apresentou uma lista de quesitos para estar com um
homem: não poderia ter sido casado, ter filhos, fumar, beber, ser pobre. Ela ficou chocada,
pois estava tentando largar seus quesitos, então começou a revê-los.
Quais seriam seus requisitos naquele momento?
Quais??? Poder confiar e fidelidade.”
Os dois foram traídos por outra pessoa e se traíram ao ficar numa condição não
desejada em relações anteriores.
Ele permaneceu no casamento para sustentar a idéia da família ideal e para cuidar do
filho, pois a mãe não se comprometia nesta função.
Ela permaneceu experimentando para sustentar sua imagem ideal e não cair na
solidão. Aderiu a imagens de superfície estimuladas por uma lógica do descartável, do
consumo sedução.
“Combinamos sermos abertos um com o outro, não termos disfarces.”
“Ele diz que eu lhe chamei a atenção devido ao meu jeito descontraído, uma mulher
que sabe se divertir, descompromissada, com as regras de conduta impostas a uma mulher.”
Quando eles se conheceram ele tinha três meses de separação. Ela ficou muito
insegura, medo de ele voltar com a ex, ele queria se divertir, ela o queria muito e fez de tudo
para dar certo, abriu mão de muita coisa “tinha que dar certo”.
Ela estava perdida em quais seriam seus requisitos, foi fiel às vontades dele e à sua de
dar certo.
“Eu me joguei de cabeça nesse projeto, era agora ou nunca.”
Aponta um segundo quesito. Seria o de se sentir bem ao lado dele, não precisar fingir.
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“Lembro que já no início fui até a casa dele e tirei o carro da garagem, quase bati, o
carro morreu e eu nem liguei”.
Fala da sua pressa no manejo das coisas que conduz, em conduzi-las.
“Fumava, bebia perto dele, dei minhas ratas. Uma pessoa sem noção.”
Outro quesito lembrado por ela é ser uma pessoa crítica, não dar valor no ter por ter,
não pensar no material. Diz que tiveram uma identificação cultural, coisas que se mantém
até hoje.
Deu uma risada e disse:
“agora ele cismou que devo ler: Casais inteligentes enriquecem juntos.(...) Descobri
alguém que é do jeito que eu procurava, mas não sabia como era até encontrá-lo. Com
quem me senti livre pra ser eu mesma. Que me fez descobrir o amor.”
Terceiro Tempo: driblando o casamento
Assim que se conheceram começaram a namorar. O primeiro beijo foi iniciativa dela
depois de desistir de ficar esperando por ele.
“Eu tinha na cabeça desde adolescente que: conheceu um rapaz não beijou, não vai
beijar mais.
Ela tem a idéia de que tudo tem um tempo para acontecer e tem que ser agora.
Estavam namorando um mês e ele ainda não havia tentado nada. Este tempo para
ela era muito, me impus este tempo de espera”. Então novamente chegou nele, tiveram a
primeira relação sexual e não houve encontro.
“Já ouvi dizer que a primeira vez de duas pessoas é sempre uma primeira vez”.
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Apesar de ela já ter transado com outras pessoas, não considera que tinha experiência.
Conversaram bastante sobre este desencontro e se propuseram a experimentar. Inicia um
projeto em comum, conjugando a possibilidade de um (re) começo.
No primeiro ano de namoro fizeram tudo que tinham vontade, foi um tempo de
conhecer e aproximar. O filho vinha de 15 em 15 dias, mas a presença da ex-mulher, da
história deles era algo difícil de lidar. Queria construir sua história, mas tinha que conviver
com uma história pronta, vivida antes dela. O filho delimitava bem este campo e teve que
manejar muitas exigências, dela e deles.
Queria a certeza de que teria alguém para si, fidelidade, mas sente-se traída, pois
tem que dividir o companheiro com o pai de seu entiado , àquele com quem se encantou no
primeiro encontro à primeira vista, por ser um pai diferente, e com o ex-marido que traz
uma história conjugal pronta.
No segundo ano ela passou a morar com ele, suas coisas estavam todas mas, não
sentia pertencer àquele lugar.
“ficava com as malas nas costas, entre a casa dele e a dos meus pais.”(...) veio a
questão do tempo que eu me imponho, 31 anos, quero casar, ter filhos, a minha casa, um
lugar para mim.”
Estava estruturando um futuro com ele, dividia contas, saldava dívidas, ajudava nas
despesas e mesmo assim não respondia como dona da casa, não tinha um lugar definido.
Então informou a vontade de casar tinha que ser no civil com aliança e tudo”. Ele
concordou e veio adiando, disfarçando. Surpresa! Cadê aquela mulher descolada das regras
de conduta impostas a uma mulher.
“É difícil assumir, tenho medo de ficar solteirona, percebi que os rótulos são
importantes para mim, quero ser uma mulher casada que tem sua casa e é mãe também.”
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A partir de então passam a conjugar o trato de serem claros na relação. Ela
adianta, ele adia.
Marcaram a data, ele não se manifestava. Ela cansou de esperar, estava magoada.
“Ele iria ficar barrigando, ele veio barrigando no casamento dele, não me sentia a
vontade, era uma intrusa.”
Quando ele conseguiu falar que não queria, ela saiu da casa e dos projetos conjuntos.
Houve neste momento uma expectativa de trânsito, prenúncio de ruptura com a identidade
de mulher que sabe e consegue tudo o que quer e a dele que passou a definir o que quer.
Então você iria abandonar seu projeto?
“Eu iria continuar com ele só que investindo nas minhas coisas.”
Mas então, o que muda?
Ela diz: o que muda...? e uma pausa (Fico perdida e nem sei o motivo porque
havia perguntado, repito o que ela disse para não perder a conversa).
Eu: O que muda? Momento de confusão para mim e para ela. Agora abalou o campo
da nossa relação, deixamos o saber, passamos a não saber onde estar.
“Eu queria saber o que ele não queria. Qual a dúvida?” (...) Queria saber se não
queria eu ou o casamento.
Segundo ela, não era uma coisa nem outra, era uma dificuldade dele em tomar
decisões. Assim voltamos para o saber, a saber...
“Então ele me chamou para jantarmos e me pediu em casamento. Disse: vamos
firmar o ‘gorpe’ e eu aceitei.”
Nesse meio tempo do jogo, nesse meio termo, surge uma possibilidade de trânsito.
Estão no campo da incerteza, mas eles recuam e aderem à razão, que paradoxalmente a
própria razão desconhece.
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Começaram a correr atrás do casamento, data, festa, comprar casa, mobiliar. Casa
esta que entrou em reforma e até meses depois do casamento ainda não estava pronta. Esta
seria provisória, pois daí um ano irá construir outra. Ela já não a hora desta reforma
terminar, pois suas coisas continuam desorganizadas.
“Esse período foi tão tumultuado, corrido, por fim, do jeito que saísse tava bom.”
Neste caso os meios justificaram os fins, ao adiantar o casamento atrasa a
possibilidade de casar: dividir, esperar, suportar a diferença.
um abalo na lógica do possuir a relação, como um objeto de consumo, abre-se
uma questão: como estar na relação, afetando-se com a presença do outro. Este quesito foi
conjugado por um instante, ao serem críticos quanto ao ter.
Quarto Tempo: de indefinição...
“Quando me vi estava casada, até agora me surpreendo: cristaleira, mesa de
vidro,casa pronta, já tenho tudo para a casa, falta organizar.”
Depois que se casou sentiu mais segurança?
“Ainda é cedo, foi tão rápido o negócio, está confuso, a casa em reforma, emprego
novo, casa nova, situações novas. São tantas coisas a cuidar, tarefas de uma dona de casa,
rotina, despesas.”
Agora consegue ficar na casa dele até a outra, a deles, ficar pronta. para esperar
sabe que é provisório.
Você encontrou o lugar?
“Vi que casar não o lugar, agora que estou começando a delimitar, antes era um
não lugar, com um o tempo, minha vida ainda está espinicada, mas agora tem um prazo.
Eu não vislumbrava um pouso, agora eu tenho certeza de um tempo.”
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Tem?
Ela ri e responde:
É... a gente nunca tem...” (...) “É como fazer estágio numa empresa e não saber
quando será contratada e vem outra e te oferece um emprego, você não vai ficar esperando
lá, vou para o outro, é certeza que vai dar certo”.
É?
“É não é... (e riu) (...) E agora tem o filho dele que anda me deixando esgotada, não
sei o que fazer, como me posicionar, temo ser crítica. Agora ele vem morar com agente, a
mãe vai para fora do país. se pode, ela acha que vai ganhar dinheiro e volta bem para o
Brasil! Sabe já estou repensando a idéia de ter filho...é complicado.
Eu: Tem horas que a fantasia é a nossa certeza, para continuar tendo esperança. De
novo aponta para a sua lógica onde um é pouco, dois é bom e três é demais.
“Preciso cultivar a paciência do pescador, que espera às vezes uma vida inteira por
um peixe que valha a pena. E entre nós paciência não é muito o meu forte, mas eu quero
aprender. Tenho muita certeza disto, e sei que sou capaz. É que às vezes me pesa um pouco
ter que segurar sozinha estas minhas inquietações todas. O temor de que no final, a espera
não tenha adiantado, e eu me frustre. Mas assim é o mar. E o amor também.”
Agora você está em alto mar!
“Eu não imaginava que casar dava tanto trabalho!”
Sente se fragilizada frente à atemporalidade do amor, um desconhecido que angustia a
quem tudo sabe e não duvida das suas certezas. Sente-se angustiada pois mar (amor) para
todo lado, não quer afogar-se; sua saída é permanecer esperando, esperar para poder transitar.
naquele lugar havia uma pedra,
que parou para ver o mar,
125
o mar não parou para ser olhado,
era mar para tudo que é lado.
Paulo Lemisky:
A mulher dos quatro tempos queria jogo rápido em dois tempos” acabou indo para a
prorrogação e outros abalos neste campo de jogo virão. Quanto mais aumenta o tempo do
jogo mais diminui a distância da definição do resultado, podendo este ser modificado num
instante.
6.3 - O Casal no ideal de filho
Este casal se dispõe a falar, com prazer, do modo de conjugar sua união, contam sobre
a condição de não quererem filho de modo descontraído e ao mesmo tempo resistente.
Conjugam a idéia de filho.
É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã...
Porque se você parar para pensar,
Na verdade não há ...
Renato Russo
A formalidade: O casal sem filhos...
Desde que namoravam decidiram por não ter filhos, estão juntos alguns anos e
permanecem não querendo, dizem já acostumados à vida de casal. Isto significa para eles,
fazerem tudo junto, autonomia de fazerem o que desejam; investir na carreira, viajar,
adquirir bens, ter casa própria. Dizem se divertir muito por terem possibilidade de escolha
e liberdade de ação. Possuem a ilusão de ter controle sobre a manutenção da felicidade e que
filho seria um fator impeditivo que desarticularia essa potência produtiva do casal.
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Contam que são conhecidos pelo casal que não tem filho e que em quase todos os
lugares este assunto aparece por indicativo de terceiros que voltam ao assunto ou que fazem
questão de contar para outros da escolha feita.
Fala articulada entre os dois: “Então temos que começar tudo novamente, parece um
ritual, com as mesmas perguntas: Como pode? Vocês não têm vontade de serem pais? Todo
mundo quer ter um filho? Vocês não vão dar continuidade à família? Não temem a solidão
na velhice? Chega uma hora que todo casal quer. Já houve vontade um dia? Os dois
concordam em não ter filho? Você não tem vontade de ser mãe, porque de homem isto pode
até ser esperado? Um casamento sem filhos não é um casamento! um trabalho uma
canseira responder...”
Pensei..., mas responder o quê além do não? Os dois foram dizendo os dizeres, e
conseguiram que eu sentisse o esforço deles em manter uma não resposta, a angústia.
Sentem-se às vezes excluídos socialmente, “parece que as pessoas querem descobrir
algo de errado em nós”. A maioria das pessoas não concorda e afirmam que um dia
mudaremos de idéia e outras, poucas, dizem aceitar diante de uma razão importante para isso.
Já mudaram o repertório de justificativas várias vezes, na tentativa de serem compreendidos e
aceitos. Atualmente para encurtar a conversa, ela diz que estão pensando. Recurso utilizado
para diminuir a angústia deles e dos outros frente a este desconhecido mundo da desfiliação,
de não se sentirem filhos, e também da não ocupação dos papéis paternos. Convivem
diariamente com a questão deste para além do modelo da família tradicional, tendo que
reafirmá-la no discurso.
“Ela: Parece um trabalho de parto em que querem tirar um filho a força.”
“Ele: a Forceps.”
Eu: Essa decisão não parece tão des contraída assim ...
“Ela: Sabe! Às vezes é tão difícil, a pressão é grande para este filho sair!”
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A cultura naturalizou a reprodução no matrimônio, mas o sujeito contemporâneo
ampliou sua possibilidade de escolha e deslocou seu desejo para outros objetos?
Dizem ter um relacionamento muito bom, gostar desta rotina e de fazerem tudo
juntos.
“não tem o que é meu e o que é dele, tudo é nosso, construímos as coisas juntos.
Algumas pessoas nos elogiam pela nossa cumplicidade e outras nos condenam por isso, mas
estamos satisfeitos assim.”
A informalidade: filhos melhor não tê-los, ou melhor, o estranho familiar.
Eu: Cúmplices?
A partir de então só ela falou, ele retraiu-se e ficou mais ouvindo.
Eles garantem uma vida conjunta, dividem as contas os débitos e os lucros,
independente de quem contribuiu mais ou menos e com as tarefas de casa também. Planejam
o dia-a-dia juntos, “somos um para o outro, fazemos as coisas para agradar a ambos”.
Temem que com um filho isso se perca. Traz a questão da impossibilidade, de ser
completo (eternamente feliz) que a estranheza do convívio familiar apresenta, estão no
campo do prazer e da dor que a familiaridade conjuga, sendo conjugado na relação atual.
“Eu tinha muito contato com a minha família, mas aos poucos fui me afastando, fui
percebendo e ele foi me mostrando como eles eram... e realmente não para ter contato.
Hoje fico um tempão sem ver meus pais e irmãos, não dá para relacionar.”
“Com a família dele também não temos contato, não vamos à casa dos pais dele, ele
tem só uma irmã que é muito estranha. Há quatro anos que não passávamos o Natal juntos, e
ano passado resolvi fazer lá em casa, e chamei só os pais dele.”
128
As famílias cobravam um filho, agora não falam mais nada sobre isso. Para o casal
os amigos, bem escolhidos, é que podem se tornar sua família. Tentam fazer uma transição da
família intensa (privada) a uma família extensa (social) constituída pela afinidade, mas a
fragilidade do vínculo permanece.
“Ele é muito na dele, prefere conviver com os amigos e sente mais à vontade do que
com sua família. Não é qualquer um que levamos lá em casa, só as pessoas que nós
gostamos, damos mais valor aos amigos.”
Eu : Vocês só fazem o que gostam e gostam do que fazem, é assim?
“Ele: diríamos que planejamos uma zona de conforto.”
Fiquei tensa com este conforto, me senti desconfortável ali, aparentam uma
descontração que é tensão. Neste instante ela traduz ou eu traduzi, traduzimos o que se
passava na relação.
Ela vira-se para ele e diz:
“Mas às vezes ficar avaliando demais gera desconforto!”
Ele fica calado e não olha para ela.
Deixam de conjugar a mesma idéia, há silêncio, expressa diferença.
Ficamos em silêncio por um instante... Neste momento não houve explicações ou
respostas a serem dadas. Estranha contenção de algo entre eles que não pode ser revelado.
Conjugam o prazer de ter e não ter, de ser e não ser, filhos. Sustentam a tensão e o temor pelo
imprevisto, há um campo pré-visto.
Fantasiam a garantia de um campo de isolamento, como se fosse possível uma
desafetação do estranho que neles e nos outros, do desencontro que pode ser transforma-
dor.
129
Neste sentido um filho também os colocaria neste risco, frente às suas
impossibilidades, das quais planejam deixar de lado. Para eles a inclusão se frente
critérios bem estabelecidos, será então que há possibilidade de...
A questão: Filhos. É possível tê-los?
Ela retoma a fala, um feminino que não quer calar, insiste a questionar!?
Como vamos fazer para ter filho!? Nós dois trabalhamos o dia todo, saímos às
7:00hs da manhã e retornamos às 19:00hs , precisamos dormir a noite toda, almoçamos em
self-service todos os dias e aos finais de semana fazemos uma comida rápida, queremos ficar
quietos em casa, descansar ou passear. Nós estamos no momento de construir nossa carreira
profissional, queremos ganhar dinheiro.”
Quem irá sair desta zona de conforto para conceber o filho? Ela aponta para a
privacidade da relação e questiona-se sobre maternidade.
Dizem ter um grupo de amigos onde alguns já têm filhos, pessoas da mesma idade que
sempre estão se reunindo e que “às vezes isso mexe um pouco com nós”.
“Ele: Mas são visíveis as dificuldades que eles passam, ficamos observando nas
festas, eles não divertem, não conseguem relaxar nos lugares, sempre preocupados com a
saúde/educação/futuro dos filhos quando não estão corrigindo, fora a vida financeira que
vive desorganizada em decorrência dos imprevistos com as crianças. O casal não tem tempo
para eles e começam a brigar em decorrência das dificuldades e alguns se separaram ou
pensam nisso com freqüência. Eu observo tudo isso”
Quem entrará nesta zona de conflito para conceber um filho? Ele aponta para o
público e as demandas sociais contemporâneas e se questiona sobre paternidade.
Eu: Ter ou não ter..., eis a questão.
130
Ela: temos medo de perder a nossa união.
Eu: Há uma possibilidade?
Ela dá um sorriso sem graça.
Ele fica sério e formalmente me diz ter um compromisso e que precisa ir embora.
Eu: Há uma possibilidade...
Ele levanta-se e ela o acompanha, por enquanto, vejo que ainda é preciso que tudo
permaneça como está.
Agradeço a entrevista e me disponho a continuarmos a conversa, ela diz que gostaria e
que voltaria a me procurar, ele não diz nada e se despede formalmente. Fico com a sensação
de que há algo falso, um certo, que é duvidoso.
Frente a tantas incertezas ao conceber um filho, apresentam “o filho” que para eles
passou a ser a idéia de não ter filhos, é desta idéia que ambos cuidam. No campo da entre-
vista conjugamos a questão do filho-idéia ou idéia de filho.
6.4 - Um horizonte de (in)(di)visibilidade .
Casal de homossexuais que vivem juntos há nove anos, mantém uma união de comum
acordo em coabitação. Conjugam um não saber sobre a diferença existente na relação.
Dizem que sou louco, por eu ser assim...
Mas louco é quem me diz que não é feliz
Eu juro que é melhor não ser um normal
Se eu posso pensar que Deus sou eu.
Nei MatoGrosso
Convidei o casal para participar da entrevista sobre conjugalidade, pedi a D que
convidasse F, ele concordou e disse que falaria com F.
131
D chega sozinho, pergunto por F e ele me diz que não havia comentado com ele e se
eu o tinha feito. Fico por entender e lhe digo que não. Diz ser melhor estar sozinho, poderia
dizer algumas coisas que na presença dele não diria e que depois eu entrasse em contado com
F para ver se ele gostaria de participar.
Apresento sucintamente a pesquisa e ele inicia dizendo não ter problemas mais com a
homossexualidade e se questiona “se isso pode ser um problema!?”. Será que ele ainda se
afeta com este abalo identitário?
Há quanto tempo vocês estão juntos, qual a história de vocês?
D conta que quando conheceu F, não tinha mais dúvidas da sua homossexualidade
algum tempo, mas que para D isso ainda era muito desconhecido, tumultuado, pois ele
sentia atração, correspondia, mas não queria se reconhecer homo. Havia um clima”, que
excitava a relação (o proibido), eram amigos e foram se apaixonando. Havia a tentativa de
controlar o descontrole que a paixão e os impulsos sexuais lhes impunham, queriam estar
juntos.
Com o tempo, depois de muitas dificuldades F foi aceitando e passaram a ficar juntos,
mas ainda com muitos conflitos por parte dele. A relação afetiva e sexual era vivida na casa
de D e poucos sabiam deles.
Conta que um dia, estavam na sua casa e F o viu guardando algumas roupas, ele diz:
“o que tem a ver isso”, mas segundo o que lhe conta F, foi neste momento que ele sentiu
vontade de morar junto e o convidou. Ele diz que nunca havia pensado nisso, para ele a
relação existia, morar junto não tem a ver. Ainda não estava pronto, isso ainda ficou a
ser visto?
Então passaram a morar junto. Diz ser agitado, gosta de fazer muitas coisas,
badalação, passear, viajar, sair com amigos, ir a festas, conversar com as pessoas e que F é
132
mais parado, lento, faz tudo devagar, com muito cuidado, dedicação, gosta de ficar em casa,
lendo, escrevendo (estudando), vendo um filme, dormindo.
“Eu sou atirado, arrisco, vou atrás do que quero já o F tem medo de tudo, de investir
financeiramente profissionalmente, é muito cauteloso. Eu quem o incentiva e encoraja.”
Diz que gosta de oferecer o conforto, comprar coisas para casa, decorar, cuidar dos
pequenos detalhes, de pensar nos investimentos materiais, que ele é o suporte material e que
F o suporte intelectual, teórico e preocupa-se em lhe oferecer isto. Fala que faz tudo
sozinho, viagens, festas com amigos, compras para casa. Hoje um não exige do outro que o
acompanhe, D tentou conversar, entender, reclama sua presença, mas não deixa de fazer o
que gosta, F por sua vez não reclama, somente em alguns momentos sente ciúmes de um
parente (afilhada de D) ou de um amigo.
D às vezes gosta que ele sinta ciúmes e acredita que talvez pela ameaça ele possa
reagir, socialmente faz quase tudo sem o parceiro. “A quietude me incomoda, sinto solidão,
deixa lacuna!”
Há uma diferença clara entre eles, que os une, e que os ameaça de separação, este
é o ponto de fixação, sustentação da relação. O que deixa a desejar a relação.
Então... O que compartilham?
“O dia-a-dia, o suporte para os problemas diários com trabalho, família, convívio
social. Gostamos de namorar, das mesmas leituras, filmes, músicas, conversamos muito,
sobre tudo, vamos ao cinema e a alguns poucos encontros com amigos em comum. Temos o
companheirismo, a amizade, a cumplicidade, o cuidado um com o outro, que para mim é o
amor. Sei que posso contar com ele, hoje talvez temos menos paixão, temos amor”.
Aparece então um esboço de conjugalidade um em comum, um nós articulados no
mesmo campo e também uma delimitação de um e do outro.
Qual sua idéia de família?
133
D. Diz não gostar muito da idéia de família, não se sente à vontade com a sua, para
expressar seus sentimentos, buscar ajuda, não se pertencendo a ela, não se sente
afetivamente acolhido nela, não os tem como recurso que pode ajudá-lo quando precisa mas
diz ser o recurso da família quando precisam. Avalia que pela formação cristã, terem pouca
instrução, baixo nível sócio econômico não para compartilhar a intimidade, não
entenderiam. Nunca falou da sua homossexualidade para eles, diz não se sentir confortável,
mas que todos sabem, perguntam pelo F. quando ele não pode ir visitá-los e se referem a ele
como seu companheiro de forma implícita. Quando sua mãe fica doente é o F. quem cuida
dela.
Com a família do F. funciona assim também, mas eles têm pouco contato com ele e
quase nenhum comigo. “Amigo é mais presente que família.
Quando precisa de ajuda procura um amigo de confiança, deixa claro que amigos são
poucos e bem escolhidos, afirma que hoje considera sua família os amigos que escolheu para
compartilhar sua intimidade e com estes faz questão que saibam da sua homossexualidade,
todos sabem e tratam disso explicitamente. “Escolho e sou escolhido para fazer parte de
uma família, de amigos.”
Acredita que a conjugalidade mesmo se no casamento e que não considera os
rituais do casamento, acha um grande teatro uma encenação e não se percebe casado. Não
acha que seja casado, mas que possui uma parceria.
Conta que já teve um outro relacionamento neste período de união, durante um ano,
“com uma pessoa casada também”. Repito para ele o também, ele fica surpreso, ri sem
graça, diz..., é..., e continua. Nunca pensou em separação, mantive para preencher a falta da
presença de F.”, fazia de tudo para não dar certo mas chegou a pensar junto com esta pessoa
na hipótese de montar um terceiro espaço para eles. Mas com o tempo percebeu que não
queria aquilo e se sentia mal frente ao “não saber” de F quando olhava-o dormindo, talvez
134
tenha percebido alguma coisa, mas não disse nada”. Diz ter se proposto a isso sem culpa,
caso contrário não valeria a pena.
Para ele o futuro..., dá uma pausa, é mesmo continuar o que é..., continuar juntos. Diz-
se romântico, quer que demore, tenha continuidade.
Eles tem em comum uma vida construída e reconhecida pelos dois, eles tem a
vivência de casal na intimidade da casa, mas um não saber declarado, ou um não querer
saber da diferença vivida por eles na relação que se manifesta explicitamente na sua vivência
às vezes de fachada às vezes fechada (entre quatro paredes ou entre amigos). O espaço
constituído da relação entre os dois se coloca como projeção contornada mas não efetivada:
ficam juntos mas na ambivalência de conjugar.
Vocês são uma família?
“Somos e não somos..., família é parceria responsabilidade. Então somos.”
Ele vinha num movimento de incertezas mas agora coloca-se com firmeza e me passa
uma certeza.
Fala de uma preocupação quando da sua falta, teme pelo F., em relação à partilha de
seus bens, o que lhe é de direito, mas não está oficializado pela lei. Teme que F. fique sem
nada, pois frente à lei ele não tem direitos garantidos, pois a união deles não é reconhecida.
Neste momento cria-se um ponto de tensão em mim, fico incomodada “como ele não
sabe” ele ainda esta questão desta forma e acabo por informar de seus direitos e de como
está a lei nesta questão, tento doutriná-lo no discurso jurídico... Logo em seguida percebo que
não passa por aí...
Arranjos no campo, eu peço e ele me explicações, que tem conhecimento das
conquistas legais neste campo dos direitos da família (ele quer dizer do casal). A questão é
que teme a não reivindicação deste direito pelo F.
135
“Ele não considera que tenha algo meu (...) e minha família pode não reconhecer
ele também.”.
Mas para a lei qual a diferença entre vocês e um casal heterossexual na mesma
condição (sem registro jurídico ou religioso)?
O casal heterossexual não precisa reivindicar, as evidências são explícitas e
reconhecidas pelos outros, e tem os filhos que comprovam a relação.
A ocupação de um lugar não está no registro de sua oficialidade, mas no desejo
de ocupá-lo. A questão da tradição não permite uma visibilidade explícita, um temor por
parte de ambos, ainda vivem a homossexualidade como proibição. Transitam entre tradição e
transgressão. Ainda estão namorando, não oficializaram a união, isto é o que há a ver.
Campo da (in) visibilidade.
Vocês pensam em filho?
“Eu não quero ser pai biológico e nem por adoção, não tenho vontade, mas já
perguntei se F gostaria e ele diz também não querer.”.
Houve então um momento de interesse nisso?
“Eu procuro o diálogo, conversamos sobre todas as possibilidades.”.
E sobre esta questão da partilha de bens? Volto ao começo do fim... fico intrometida!
Ele se surpreende e diz que diretamente sobre isso não!
Diz baixinho para si,
“É..., não sei por que até hoje não fiz isso, posso deixar declarado”.
E complementa que poderia passar para o nome dele desde agora e mesmo numa
separação ele quer dar o apartamento para F. Indaga o que está esperando.
Está às voltas com a separação, separar desta condição em que se encontram, do
não reconhecimento da relação.
136
Como não reconhecimento entre o meu e o seu que na conjugação advirá o nosso,
percebe-se ainda neste campo uma oscilação na (in) divisibilidade. Fala-nos de algo que é
de cada um e da relação que não é conjugado e por isso conjugam o não saber e o não dizer.
É no paradoxo da falta da presença que se mantém a relação.
Eu: Como é a vida social do casal?
“Como te disse eu estou sempre sozinho, vou para festas, viajo, saiu com amigos,
sou criterioso ao me relacionar, não gosto de ficar na casa dos conhecidos quando viajo,
prefiro hotel, mas me sinto bem com alguns grupos. Tenho amigos que me ajudam
afetivamente quando preciso. O F sai às vezes entre amigos em comum, com eles fica claro
que temos um relacionamento, eles se referem a nós como casal, mas não demonstração
de afetividade entre nós na presença deles, há diálogos que deixam isso explícito.”
Diz que quando duas pessoas estão juntas no desejo, ou na vontade de estarem juntas,
mesmo separadas corporalmente, no local, todos que estão às voltas percebem, mesmo que
tentem esconder, disfarçar.
Você presencia outros casais homossexuais em público demonstrando a afetividade
entre eles de forma explícita?
“Sim, eles demonstram. Acho legal demonstrar, mas não tenho vontade, tenho
dificuldade.”
Como você se sente?
“Acho estranho, olho e não me reconheço nesta condição, parece que não pertenço a
este metiê. Questiono se há uma identidade homossexual, mas também acho que não tem isso
de um papel masculino e um feminino definido na nossa relação. me relacionei com
mulher, me vejo como homem. Nunca tive vontade de ser uma mulher de me travestir, me
sinto com corpo de homem, faço tudo que um homem faz.”
O que é ser um Homem?
137
Não sei.”
E uma mulher?
Responde rindo...
“Não sei.
“Para mim o que importa é a minha postura, o respeito comigo e com os outros, não
preciso sair por dizendo que sou homossexual e não me sinto diferente de ninguém por
ser. Acho que isto é da minha experiência e revelo a quem me sentir bem, como o faço para
alguns amigos.”
Acha que o movimento gay já trouxe muitas transformações, mas não participa
diretamente desta causa. Acredita que socialmente hoje isto é mais aceito. Mas que o
preconceito é amenizado quando há dinheiro, status social, pela posição de poder ou
conhecimento que a pessoa tenha. Isto lhe um reconhecimento sem implicações negativas,
se aceita sem deixar explícito.
Acho que não homem ou mulher como algo definido, isto é do campo da
imposição, vejo como uma igualdade no que se pode fazer; ter os mesmos direitos. Hoje até
a questão de se gostar de dois ao mesmo tempo acho possível, isto de um único amor é do
campo da imposição também.”
Neste campo da (in)(di)visibilidade o social estaria representado pelo olhar
expressivo do outro, pelo saber do outro que poderá denunciar a diferença implícita desta
relação e da condição diferenciada de cada um quanto à identidade sexual e isto se torna
ameaçador.
A questão paradoxal contemporânea fica evidente na dependência autonomia na
relação deste casal, entre eles e deles com o social/público tão valorizado e temido na
contemporaneidade, reforçando assim o privado.
138
Que tipo de aliança eles têm? A aliança não é de ouro nem de prata, é
proclamada no retrato do quarto, no criado mudo. Tem visibilidade mas não tem
expressividade.
6.5 - O lar: espaço “incomum” de encontro.
Casal com filhos de uniões anteriores que mantém uma relação estável, mas
sem coabitação. Z tem 56anos, foi casada por 23 anos, teve dois filhos adotivos neste
primeiro casamento, hoje estão com 15 e 20 anos e moram com ela, após a separação ficou
sozinha por oito anos, teve alguns relacionamentos neste período, nada fixo. Ele já foi casado
também e possui dois filhos que moram com a mãe em outra cidade, estava sozinho três
anos. Conjugam um espaço de fixação: o lar.
E por falar em paixão, da razão de viver, você bem que podia me aparecer!
Nestes mesmos lugares, nas noites, nos bares, onde anda você.
Vinícius de Moraes
Chego a sua casa, espaço definido por ela para a entre-vistas, nos cumprimentamos,
me apresento e logo em seguida ela comenta com pesar que viu, numa reportagem na
televisão, que não tem remédio que elimina a depressão, o que tem-se a fazer é lidar com a
tristeza. “Que coisa não?!”. Fico em silêncio e aguardo.
Inicio comentando sobre sua condição de morar separada do parceiro.
Situa sua geração como diferente. Faziam a coisa certa, dentro do esperado para o
casamento dar certo, mas a separação foi inevitável.
Sentiu-se sozinha e teve que reorganizar sua vida e com isto conquistou uma liberdade
de escolha. Diz que nos últimos tempos está dando conta de falar o que sente e o que quer.
139
Diz que saiu da dependência do pai para a dependência do marido e que pela primeira vez
estava numa outra condição.
Obs> neste momento o telefone fixo toca, ela não atende, minutos depois sua filha lhe
diz que o companheiro havia ligado, disse que você sumiu”. A partir de então seu celular
começa a chamar.
“Agora não quero morar junto, com marido as coisas tem que andar bem em casa,
tudo pronto, comida, organização da casa, tem cobrança para isto. Ter que agradar o
parceiro. O cotidiano acaba com o relacionamento.”
Diz que não morar junto é um avanço.
“A gente... não, eu prefiro assim. Por ele moraríamos juntos mas já deixei bem claro
que se for desta forma prefiro me separar.”
Outro fator que também contribuiu para isso são os filhos. Exigem uma atenção dela,
uma dedicação. Segundo ela os filhos já exigem, ela é exigente consigo, gosta de tudo
organizado e com ele, que é uma pessoa exigente também, teria uma sobrecarga. Nossa
quanta gente que exige... gente!
Conta sobre a passagem onde desmontou sua casa, que era grande, vendeu tudo e foi
morar com ele em outra cidade (onde ele reside e trabalha atualmente). Ficou por quatro
meses e retornou.
“Não gostei de morar com ele, obsessivo, absorve tudo, o jeito dele é difícil.”
Diz ter feito isto num momento difícil de sua vida, estava desempregada, sem lugar.
Hoje avalia que foi um ato impulsivo.
Mas o que aconteceu lá?
“Ficava em casa o dia todo, não tinha o que fazer, não conhecia ninguém e o
apartamento dele é de solteiro, tudo improvisado. Acho que se eu tivesse trabalhando seria
diferente.”
140
Ficou literalmente dependendo dele, perdeu o controle.
“Lembro que ao sair ele me perguntou: você está saindo da minha vida ou da minha
casa? Eu sentia que não queria mais a relação, mas lhe disse que estava saindo da casa.”
Para ela, segundo casamento é mais inseguro, solicita maior trânsito, por isso ela
transita fora dele. Separa-se do encontro e do desencontro do casar, do espaço em comum,
apresenta o como incomum.
“Nesta época não éramos casados ainda!”
Nesta fala dela, fiquei confusa, com a sensação que tinha perdido algum pedaço da
história e surpresa repeti. Ainda! Vocês são casados?
“Sim, nos casamos com um ano e meio de relacionamento. A minha filha me
questionava quanto à nossa relação. Somos casados por uma questão educativa, isto traz
uma responsabilidade maior para a relação.Resguarda a boa educação, garante a moral e
os bons costumes.
E o que seus filhos, os conhecidos dizem de morarem separados?
“As pessoas ficam surpresas, mas percebo uma vontade de fazerem igual. Desejam
isso também, porque será que não conseguem, preferem ficar sofrendo? (...) Morar separado
é um avanço.”
Ele mora em outra cidade, mas eles se vêem todos os finais de semana, revezam as
idas e vindas. Viajam muito e vão para a fazenda da família dele. Quando estão juntos saem
para almoçar fora, passear, “temos um cotidiano interessante”. Ele fica na casa dela quando
vem à cidade e ela direciona o que fazer. Ele não participa da criação dos filhos, não interfere
no modo como ela os educa.
Obs. O celular continua tocando e ela não atende. Ela me sinaliza que é ele. Pergunto
lhe se ele sabia da entrevista, ela diz que não falou, mas que iria falar.
Como fazem com as despesas ?
141
“Financeiramente cada um banca com o seu, ele ajuda quando necessário, um extra,
mas não tem responsabilidade fixa. Nosso contrato é com separação de bens”.
Não tem nada fixo, está móvel, mas o casamento tem que ser fixado para garantir o
compromisso de não ter responsabilidade extra prazer. O ponto de fixação está móvel.
O que vocês dividem então?
“Dividimos os problemas, os planos, damos suporte um ao outro. Agora ele vai
aposentar e virá para cá, pensamos em trabalhar juntos, montar um negócio (pode não ser
uma boa! Também não sei se quero).”
Ela ressalta que havia um conhecimento anterior, eles tinham namorado quando
adolescentes (coisa passageira) e encontraram-se por acaso 38 anos depois. Ele é uma pessoa
conhecida, que pode confiar, se entregar, não teve medo de se envolver. Possuem as mesmas
raízes, são da mesma região e as famílias de origem se conhecem muito tempo e se
consideram. Possuem um espaço em comum, um ponto de fixação, dividem uma mesma
geração, cultura, família. Isto garantias nimas de poderem estar juntos em algumas
situações.
Ele também acha importante sermos do mesmo lugar.”
Obs. O celular continua chamando. Diz para mim:
“eu não atendo, depois quando me der vontade eu retorno, isso me irrita é assim todo
dia, ele é chato.”
Ela não atende mas mantém a expectativa.
Neste momento reafirma que isto de não querer morar junto é definitivo, fala meio
nervosa/tensa. (fico tensa e sinto novamente uma falta de seqüência na conversa).
“As coisas caminham como eu quero, não quero sofrer mais, prefiro sair”.
O dentro e o fora da casa, o eu e o outro, morar, estar juntos pode diluir e ampliar as
dimensões deste campo, um lugar em comum, “do mesmo lugar”.
142
Eles são tão próximos que ela tenta colocar a distância, um ocupa o lugar do outro,
não quer se juntar, pois são o mesmo às avessas, conjugam a fixação de um espaço
intransitivo. Ela quer ficar no ideal do amor, a paixão, força ele a ser o seu eu ideal, mas está
descobrindo que não o é.
“No primeiro casamento há mais segurança, suporta-se mais, tolera-se mais o
sofrimento, é o pai dos seus filhos. Já o segundo é mais ... inseguro”.
Fica perdida para definir.
Neste não tem sofrimento?
“Tem atritos (...) sempre com um dentro e outro fora (...) Eu sou controladora,
gosto de tudo organizado. Acho que moramos separados por mim!”
É pelo jeito dele ou pelo seu?
“Ela ri. É pelo meu”. Dá uma pausa “(...) é pelo nosso.”.
Obs. O celular continua tocando.
vendo como ele é insistente, qualquer pessoa liga, que não atende e pára, ele
não.”
Pensei, já que ela não vai atender agora porque não desliga. Ele não foi chamado para
o nosso encontro mas estava presente, ele fica longe, não divide a casa mas está o dia todo
atrapalhando a privacidade dela, abalando as fixações dele e as dela.
Conjugam os pontos de fixação. Ele também insiste no “estar separado” ao se
fazer presente através do incômodo. Ele acompanha sua solidão e a faz sentir sempre
acompanhada, pois mesmo ausente está presente.
Amor passa por admiração, desse jeito ele incomoda, sufoca. Perco o tesão.”.
Diz que ele é uma pessoa difícil, obsessivo, tenso. Sua família faz uma “propaganda”
muito ruim dele, tem um estigma terrível, agressivo, descontrolado, chato. Ele não é aceito
por eles, ela lhe dá suporte e o acompanha com eles.
143
Ele bebe e ela não, ele come muito e ela não, ele fala muito e ela não, ele gosta de
brigar, falar alto e ela o. Com ela, ele diminuiu a bebida e ensinou ela a beber vinho, ela
está tentando fazer com que ele emagreça e ele despertou o apetite dela para comida. Ela até
engordou um pouco, saiu das dietas rigorosas que fazia. Ela acha que eles são diferentes ele
acha que eles são iguais. Paradoxalmente ela está tentando domesticá-lo em sua casa e ele
desdomesticá-la.
Um ocupa o lugar do outro, não se juntam, pois são o mesmo às avessas. Conjugam a
fixação de um lugar em comum.
Então onde está a admiração?
“Ele é inteligente, sabe de tudo um pouco, é sofisticado com comidas e cuida muito
bem de mim, agrada o tempo todo.”
Ela gosta do prazer que ele proporciona, do lar doce lar do ideal romântico.
“Ele tem que ficar me conquistando o tempo todo, todo dia.”
Ilusoriamente para não repetir tudo que viveu no primeiro casamento ela força uma
diferença, eternamente namorando, mas sabe que um dia terá que se haver com ele na sua
casa. Por enquanto faz de conta que ele não está, mas ele está não estando. Por enquanto
distrai-se no seu faz de conta, casada solteira e solteira casada.
“Uma conhecida diz que só temos mais um terço de vida útil, temos que aproveitar.”
Ele fez tratamento, toma remédio, vejo que ele faz um esforço para se segurar.
Teme que morando juntos ele estoure com o relacionamento, fico na corda bamba”. Já
pensou em separação por três vezes e ele sabe disso. Ela não sabe até quando ele vai
agüentar. Casou para dar conta de segurar ele. Tem compaixão por ele, quer ajudá-lo.
“Parece que homem quer casa, colo e comida, rotina, algo fixo. a mulher quer
paixão, insegurança, emoção, ser cativada e não cativa do casamento. Ela está mais para os
144
filhos”. Os pequenos detalhes a irrita, o ronco a divisão do banheiro, o sujo o feio, o gordo, o
desarrumado. “Isso acaba com o casamento.”
Diz que algo depois que se casa muda, aumenta a tolerância tem que fazer mais
restrições.
“Separar é algo muito difícil. No primeiro casamento quase voltamos, mas apareceu
outra pessoa na vida dele e então demos conta de separar, mas se tivéssemos voltado não
daria certo. Ainda me sinto fracassada pelo término da família.”
No primeiro casamento você não pensou em morarem separados como uma outra
forma de relação?
“Não, isto é algo desta relação, do segundo casamento.”
“Descobri que não vou me apaixonar mais, acabou! É isso não vai ser diferente.
Minha mãe diz que sou apaixonada pelo amor”.
Neste momento criou-se um clima de intimidade e senti uma tristeza, uma depressão
pelo luto da paixão, seus olhos brilhavam de dor. Neste momento ela conjuga uma
possibilidade de trânsito, aponta para uma mudança de padrão de vínculo. Ela não se no
olhar do outro então fixa-se no seu, tenta manter o olhar em sua imagem refletida num
espelho estilhaçado.
O que quer não é o que sente; paixão, e o que sente não é o que quer, vazio por não se
apaixonar. Revela o desejo de ocupação de dois lugares: o de estar apaixonada e o de não
estar. Ela mantém a distância para poder ficar junto, este é o paradoxo, campo da
distância próxima, do virtual. Ela ficou muito distante no primeiro casamento e teve que se
aproximar para separar, ainda mantém o mesmo princípio nortea-dor, luto da paixão.
Ela ainda não consegue expor diretamente sua dor sobre a distância imposta,
então impõe diretamente uma proximidade especular, idealizada.
145
7- HÁ (A) CONJUGALIDADE: CONCLUSÃO
Eu vejo o futuro repetir o passado,
Eu vejo um museu de grandes novidades,
o tempo não pára
Cazuza
Ao longo desta trajetória percebi-me num esforço de guerra, no campo da batalha fui
tentando conjugar Psicanálise-Fenomenologia; amor-morte; intersubjetividade traumática-
transubjetiva, Campo-relação; cultura-clínica e clínica-cultura em entre-vistas. Vejo-me agora
como uma grande casamenteira, no sentido de casar possibilidades norteadas pelo princípio
da alteridade e no resgate da afetividade na vivência da conjugalidade hoje. Dizem que no
amor e na guerra vale tudo... num esforço de paz.
Em entre-vistas investiguei tais conjugações e conjuguei novos olhares: com o
ditado(r) conjuguei o campo da dor em contraponto com a lógica do prazer sem limite, do
pensamento em ato puro; com a insônia da eternidade conjuguei o campo da esperança
frente à gica da pressa; com o ideal de filho conjuguei o campo do imprevisto frente ao
ideal de controle no processo de criação; com a (in)(di)visibilidade conjuguei o campo do
não saber à partir da lógica heterossexista reprodutiva/reprodutora de um saber sobre a
sexualidade e finalmente com o espaço incomum conjuguei o campo do vazio frente ao
querer todas as possibilidades.
Nestas relações, singularidades, produções de sentidos específicos de cada relação,
os quais já foram apontados no capítulo anterior. Dimensões singulares que são constituídas e
constituidoras do social e que podem ser tematizadas como alteridades, mas entre elas
também sentidos compartilhados que as sustentam no campo do conjugal na psique do real,
ou psique social, verificados tanto no campo das entre-vistas quanto no campo da pesquisa.
146
A valorização do casamento enquanto reconhecimento social da conjugalidade.
Casamento é campo, tido como uma estrutura determinante das relações, não uma relação
entre outras. Houve um descentramento do casamento e do conjugal quanto à aliança
heterossexual reprodutiva, abrindo questionamento a outras configurações, mesmo que tal
estrutura ainda prevaleça.
As relações estão instáveis e terminando com rapidez, não porque desqualificam o
casamento mais porque o valorizam muito. A idealização permanece e talvez de forma bem
mais intensa, não há suporte para a não correspondência das expectativas. Continua orientada
pelo ideal Romântico, de completude e felicidade eterna, o que mudou foi a formalidade e a
relação com o tempo, não precisa ser mais até que a morte os separe, mas que seja eterno
enquanto dure. Reafirma-se ainda o projeto moderno de durabilidade, agora com um sujeito
mais autônomo e menos tolerante a frustrações. O paradoxo dependência independência do
sujeito também é positivado neste campo.
A presença da família de origem permanece como referência, seja para mantê-la ou
transgredi-la configurando um para além desta. Foi na sua manutenção que houve a
possibilidade de transição da família intensa à família extensa, transitam entre as duas
polaridades e vê-se surgir um conceito de afinidade como uma nova categoria vincular para
instituir o familiar. Neste cenário ainda a valorização e articulação do filho ao projeto
conjugal.
Vê-se um abalo identitário do masculino e do feminino quando em relação, um
questionamento quanto às fixações destes lugares, abrindo possibilidade ao trânsito destes.
Implicitamente todos dizem, cada um a sua maneira, de um estar junto a partir de uma
separação necessária, como condição desejante da relação. A conjugalidade ainda é um
projeto de afirmação da identidade, necessitando de uma permanência para que haja a
articulação de sentidos a compartilhar, podendo dar sentido também ao nós.
147
Vê-se também um cálculo utilitarista na superfície dos vínculos conjugais, onde a
vivência temporal entra na mesma lógica da imediatez por sentir que não tempo a perder.
Pelo imediatismo que se impõe compromete-se o pensar e o sentir e as tensões passam a
exigir alívio imediato, buscando mbolos e materiais externos, fazendo com que a relação
fique fragilizada.Entram na mesma lógica produção-consumo das relações com o capital.
Foi neste compartilhar de sentidos, que pude visualizar um sentido maior que norteava
talvez, todos os outros, estruturados na lógica do ter: uma parceria; uma garantia; um ideal
para a relação conjugal; razão frente ao desconhecido e de se ter todas as possibilidades não
tendo que escolher. Isto no seu contraponto configurou o Campo Conjugal hoje como Campo
da restrição, por não ter parceria fixa e estável; por não ter fidelidade no sentido de
exclusividade; por não ter reconhecida a diferença e por não ter paixão no sentido de
passividade à relação o que demandaria trabalho para sua constituição e manutenção.
Tendo em entre-vistas todos estes aspectos, passo a passo na minha caminhada
metodológica fui rompendo alguns campos e descartando verdades perseguidas na tentativa
de chegar a um fim. Num primeiro momento tinha claro que seria a lógica do compartilhado,
o em comum; interseções que garantiriam a sustentação da relação conjugal, sentidos
compartilhados. Mas isto passou, entre um passo e outro, a ser óbvio..., tanto na repetição
como quando há transformação - a conjugalidade existe- em qualquer relação conjugal.
Num segundo momento, fui para a lógica da diferença, seria nas aberturas, no
desencontro que estaria a condição de suporte e permanência de uma relação conjugal, a
partir da produção de novos sentidos. Fui para outra verdade, fiquei no campo do pensamento
moderno, que se orienta por exclusão e por uma única verdade, isso ou aquilo, então percebi
que o diferente é uma das condições possíveis na relação e que ela não sustentaria a
relação, mesmo porque somos seres carentes de repetição, necessitamos de identidade.
148
Assim encontrei-me também no campo da restrição ao pensar a conjugalidade,
restringindo a isso ou aquilo e de ter que apresentar uma verdade. Neste momento consegui
apreender o paradoxal da conjugalidade e me vi atualizando, seria então isso e aquilo e o
contrário disso. O que sustentação, condição de permanência da relação seria a
possibilidade de jogo entre o compartilhado e a diferença na relação, uma articulação
possível. É preciso que tudo permaneça como está para que mude. Portanto aproprio-me do
campo paradoxal
Concluo então que paradoxalmente será no campo da restrição que haverá a
possibilidade da produção de algo distinto da sua lógica de concepção. Tal vestígio de
transformação se apresenta na conjugalidade hoje, em traçados inexpressivos quando na
emergência fugaz de uma outra sensibilidade para o amor. Tido como algo da ordem do
construído, escapando à lógica do pronto a consumir como no esforço de uma simetria nas
relações de gênero.
Foi possível entre-ver por alguns instantes não nas entre-vistas, mas também no
campo geral da pesquisa, lampejos de uma nova sabedoria. O amor seria um desconhecido
há saber...? Um amor atrelado ao conjugal, à alteridade no conjugal.
Como nos diz a canção, “o amor está no ar”, para quem puder senti-lo. Aponto para
um amor com aspas - “amor”- um outro amor daquele do Romantismo, idealizado, o ideal é
necessário desde que se reformule. Faz-se necessário um desaprendizado deste amor padrão
romântico, pedagogicamente falando através do erro necessário e da angústia frente ao não
saber, para reiniciarmos uma nova alfabetização amorosa, desconstruindo o ideal de amor
moderno. Porém o Romantismo enquanto epistemologia, dialógico, faz-se viável ainda.
Neste sentido uma conjugalidade saber, uma possibilidade de um novo
conhecimento frente à crise instaurada neste campo, ao abalo identitário do amor na nossa
cultura atual. Como nos diz Herrmann (1991) certas idéias têm que perambular longo tempo
149
para que encontre um corpo que a receba. Já iniciamos este momento de fluxo ao estarmos
vivendo uma crise permanente no campo conjugal, campo hibrido de sentidos múltiplos e
instáveis.
Frente a tantas lógicas provisórias, o novo está na possibilidade de se por em questão
a vivência no/do conjugal. Na singularidade, tido como privado/íntimo e no público, tido
como social/cultural compartilhado, ambos já apresentados acima. Como não é possível fazer
esta separação para além do conceitual, uma vez que tudo é da ordem do real, da psique do
real. Vê-se então lógica e dúvida conjugando a possibilidade de nascimento de um outro
campo. Para Herrmann (1991) a interrogação quanto à forma do que se apropria e ao
resultado de cada apropriação instituinte, dota o quê, o inconsciente de seu caráter de questão.
Daí propor o método interpretativo que em essência é conhecimento, verdade provisória, há o
inconsciente designa a dimensão de conhecimento.
Surpresa então! Ao utilizar o método interpretativo, campo do não saber na pesquisa,
descubro que a conjugalidade está em questão. Visualizo a espessura ontológica do método
ao conhecer a conjugalidade, então método conjuga conhecimento.
Diz-se por aí que o amor é vontade de gerar de criar, indo de encontro à descoberta de
que ele pode ser também construído e não consumido. Mas também diz-se por que onde
houver criação se dará o método. Vejo algo conjugando por aí... ambos dizem de uma
espessura ontológica do humano, criação, possibilidade de conhecimento. Então método,
humano e amor se alinham e por isso conjugam um há saber que nunca se saberá por
completo.
Outra descoberta se deu no entre-ver a clínica, uma vez que esta se configura na
operação do método, podendo acontecer em qualquer tempo/espaço desde que haja criação.
Na pesquisa alinhei clínica e cultura conjugando sentidos e descobri que a clínica está na
cultura e a cultura na clínica do conjugal na atualidade.
150
Nesta o novo, enquanto produção de sentidos no conjugal foi visto em instantes de
conjugalidade, de saber, onde se abriu possibilidades saber difereciadas das concebidas.
Já sabemos que o encontro é a matriz do desejo demarcando os limites da experiência
psíquica e enquanto inconsciente é o limite dos possíveis. Neste sentido micro rupturas
estão sendo processadas, talvez não haja olhos para enxergá-las, devido à nossa crença nas
aparências, mesmo porque muitas maneiras de algo ser verdadeiro e falso ao mesmo
tempo, muitos sentidos de verdade e muitas verdades diferentes e provisórias. O
paradoxal está na essência das relações conjugais hoje.
Era uma vez uma coincidência que saiu a passeio em companhia de um pequeno
acidente. Enquanto passeavam encontraram uma explicação, uma velha explicação, tão velha
que já estava toda encurvada e encarquilhada, que mais parecia uma charada ( Deleuze,1969).
Assim o novo e o velho, a repetição e a transformação conjugam na mesma superfície de
sentidos a cada manhã e a diferença está nos olhos de quem vê.
Por mais que tudo mude, a necessidade de amar permanece intrínseca à condição
humana. Por sorte ainda precisamos do outro! Assim a conjugalidade se repete inovando e
inova-se repetindo no fluxo eterno do tempo, demarcando uma alteridade fragilizada mas
persistente.
Desejo(s) que nela haja e amor pra recomeçar...
151
Eu te desejo não parar tão cedo
pois toda idade tem prazer e medo
e com os que erram feio e bastante
que você consiga ser tolerante
Quando você ficar triste
que seja por um dia e não o ano inteiro
e que você descubra que rir é bom
mas que rir de tudo é desespero
Desejo que você tenha a quem amar
e quando estiver bem cansado
ainda exista amor pra recomeçar,
pra recomeçar
Eu te desejo muitos amigos
mas que em um você possa confiar
e que tenha até inimigos
pra você não deixar de duvidar
Quando você ficar triste
que seja por um dia e não o ano inteiro
e que você descubra que rir é bom
mas que rir de tudo é desespero
Desejo que você tenha a quem amar...
Desejo que você ganhe dinheiro
pois é preciso viver também
e que você diga a ele pelo menos uma vez
quem é mesmo o dono de quem
Desejo que você tenha a quem amar...
Barão Vermelho - Amor pra recomeçar
152
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157
ANEXO A
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE ESCLARECIDO
Autorizo a utilização dos dados colhidos nas entrevistas concedidas à psicóloga e
pesquisadora Andréa Gonçalves Dias, RG. 5796377 SSP/MG, CRP 04/14054, fone (0xx-34)
3219-2906 , para pesquisa e eventuais publicações científicas, desde que resguardados os
cuidados éticos e preservado o sigilo sobre qualquer informação identificatória, podendo ser
os dados finais da pesquisa, colocados à minha disposição.
Estou ciente de que a psicóloga está envolvida no projeto de Mestrado
“Conjugalidade: reflexões sobre o campo da intersubjetividade” e que este estudo tem como
objetivo a investigação dos campos que sustentam e estruturam as relações conjugais na
atualidade, considerando a conjugalidade uma condição que influencia a formação e
transformação das subjetividades e das relações intersubjetivas, buscando apreender quais as
regras que sustentam estes campos e quais os sentidos apreendidos na atualidade.
Sendo realizado sob a orientação da Profa. Dra. Maria cia Castilho Romera pela
Faculdade de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia e submetido aos critérios do
Comitê de Ética em Pesquisa desta Universidade, fone: (0xx-34) 3239-4131.
Também estou ciente de que tenho a liberdade de retirar meu consentimento em
qualquer fase da pesquisa, sem penalização alguma como também que minha participação
não envolverá nenhum tipo de despesas.
Local e data : -----------------------------------------------------------------------------------------------
Nome do Participante: -----------------------------------------------------------------------------------
Endereço/fone: --------------------------------------------------------------------------------------------
Ass.:---------------------------------------------------------------------------------------------------------
158
ANEXO B
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
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Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
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Baixar livros de Educação - Trânsito
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Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
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Baixar livros de Literatura Infantil
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Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
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Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
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Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo