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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Letras
ÉDIPO
Edmundo de Novaes Gomes
Belo Horizonte
2006
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Edmundo de Novaes Gomes
ÉDIPO:
acasos de uma leitura heterodoxa
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais,
como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em Literaturas de Língua
Portuguesa.
Orientação: Audemaro Taranto Goulart.
Belo Horizonte
2006
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Para João, Lu, Manoel e Coeli.
Para Cristina Vilaça e Dulcejane Vaz.
AGRADECIMENTOS
A meu orientador, Doutor Audemaro Tarando Goulart.
Ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais, aqui representado pela secretária Berenice Viana de Faria e pela
Doutora Suely Maria de Paula e Silva Lobo.
A Bernadete Bittencourt, Carlos Alberto de Carvalho, Denise Gomes, Johnny
José Mafra, Márcia Marques de Morais e Vinícius Passos.
A UMA MULHER
Não tendo podido te criar
Nem tendo sido criado por ti
Eu me vingo do destino enxertando-me no teu ser.
Jamais conseguirás te libertar de mim
Porque eu te sitiei com a chama do amor,
Porque rondei durante dias e noites o Coração de Deus
A fim de extrair dele o segredo da ternura.
Todos os que te olham pensam logo em mim,
Todos os que me olham pensam súbito em ti.
Eu sou tua cicatriz que nunca se há de fechar.
Eu te perseguirei até depois da minha morte
E virei a ti no murmúrio dos ventos, no lamento das ondas,
Na angústia e na alegria dos poetas meus sucessores,
Nas almas grandes limitadas pelo físico.
Sentado nas nuvens esternas eu te esperarei
E me nutrirei através dos tempos da nostalgia de ti.
Murilo Mendes – A Poesia em pânico
RESUMO
Édipo Acasos de uma leitura heterodoxa é um trabalho dissertativo que tem como
objeto principal de estudo a tragédia Édipo Rei, de Sófocles. A análise realizada busca
marcar uma revisão bibliográfica em torno de hermenêuticas que possam ser
consideradas orto e heterodoxas sobre o assunto. Depois da leitura teórica do tema,
foram também produzidos dois estudos interpretativos. O primeiro, sobre o drama Um
Édipo, do português Armando Nascimento Rosa. O outro, sobre Jocasta Tirana,
situação dramática especialmente criada no sentido de procurar demonstrar, de modo
prático, as análises teóricas desta mesma dissertação.
Palavras-Chave: Jocasta, Édipo, Sófocles, tragédia.
R
ÉSUMÉ
Oedipe Une Lecture Hétérodoxe est une dissertation qui a comme objet principal
d'étude la tragédie Oedipe Roi, de Sophocles. L'analyse réalisée recherche marquer
une révision bibliographique autour des herméneutiques qui puissent être considérées
orto et hétérodoxes sur cette thématique. Après la lecture théorique, aussi ont été
produites deux études interprétatives. Premier, sur le drame Un Oedipe, du portugais
Armando Nascimento Rosa. L'autre, sur Jocaste Tyrannique, situation dramatique
spécialement créée dans le but de chercher à démontrer, de manière pratique, les
analyses théoriques de cette même dissertation.
Mots-Clé: Jocaste, Oedipe, Sophocles, tragédie.
SUMÁRIO
1.
INTRODUÇÃO............................................................................ 9
2.
A COSMOGONIA PARRICIDA...................................................
20
2.1. HOMENS, DEUSES E PODER.................................................................
24
2.2. ÉDIPO E AS MARCAS DO DESTINO......................................................
28
2.3. CÓDIGOS PARA UM MITO......................................................................
34
3. MEDIDA E DESMEDIDA............................................................ 42
3.1. TRAGÉDIA E AMBIGÜIDADE..................................................................
49
3.2. ERRO, HONRA E DESTINO.....................................................................
53
4. MARCAS DO GÊNERO..............................................................
66
4.1. MARCAS ESTRUTURAIS.........................................................................
76
4.2. MARCAS DO DESEJO.............................................................................
81
5. CAMINHOS PARA A HETERODOXIA.......................................
87
5.1. UM ÉDIPO SEM COMPLEXO...................................................................
88
5.2. ÉDIPO, JOCASTA E CULPA....................................................................
94
5.3. SABER E PODER.....................................................................................
99
5.4. APOLO E DIONÍSIO..................................................................................
109
6. DUAS LEITURAS HETERODOXAS...........................................
117
6.1. ESPELHO DE FANTASMAS....................................................................
120
6.2. MIRANDO JOCASTA................................................................................
129
7.
CONCLUSÃO............................................................................. 136
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................
140
BIBLIOGRAFIA...............................................................................
143
APÊNDICE A – JOCASTA TIRANA...............................................
145
ANEXO A – VASILHA COM FIGURAS VERMELHAS.................. 173
9
1. INTRODUÇÃO
Qualquer leitura que se faça do mito de Édipo não é capaz de trazer, a princípio,
novidades surpreendentes para o meio acadêmico. De Freud (1981) a Deleuze (1966),
de lio Pelegrino (1987) a Marilena Cha(1991), passando sempre por Sófocles,
estão aí os mais diversos enfoques que se centram num mito essencial do viver
humano para descobrir e desvelar possibilidades, sempre em busca de explicar o que é
de certo inexplicável: a própria existência.
Enquanto as primeiras leituras vão se preocupar com a análise e demonstração
deste mito, a de Sófocles irá, de maneira exemplar e através da tragédia, nomear a
cosmogonia parricida que atravessa a própria mitologia grega. Desde o Édipo Rei de
Sófocles, o mito do qual queremos tratar permeia a criação literária através das mais
diversas interpretações. A título de exemplo, poderíamos citar, em gêneros distintos, o
conto “A casa do girassol vermelho” (RUBIÃO, 1980), e o drama teatral António
Marinheiro (o Édipo de Alfama), de Bernardo Santareno (SANTARENO, 2004).
Na mesma medida em que cada um dos autores acima citados, além de outros,
trouxe luz inextinguível com sua leitura do mito, também arrastou, a reboque dessas
mesmas interpretações, dúvidas e questionamentos permanentes. Ou seja: o que se
pretende dizer é o óbvio de que as lacunas estão sempre abertas quando se trata de ler
um mito, uma vez que os espaços seguem sempre vazios, como se exigissem um
preenchimento eterno, possibilitado aqui pelo trabalho disjuntivo e analítico da razão.
10
No entanto, como esta mesma razão possui ordem inerentemente lingüística, também
ela não pode querer esgotar as possibilidades hermenêuticas.
E é exatamente tal capacidade inesgotável de proposição de renovadas
hipóteses interpretativas para o mito e o gênero que o veicula - Édipo que mata seu pai,
casa-se com sua mãe e com ela gera quatro filhos -, que me fez pensar numa leitura
que o enxergue desde uma perspectiva heterodoxa, centrando-se em questões como o
gênero literário e jogando o foco sobre partes menos ressaltadas nas interpretações
mais conhecidas e consagradas, tais como a de Sófocles, com sua tragédia
incomparável, e a de Freud, com sua abordagem psicanalítica.
Tanto na leitura de Sófocles como na freudiana, o mito de Édipo, é o que me
parece, é lido a partir de uma tradição hermenêutica ortodoxa. No dramaturgo grego, a
escritura segue os preceitos estabelecidos na Poética de Aristóteles(1993), não
exatamente porque por eles foi influenciada, mas porque, poder-se-ia dizer, ela mesma
os inspirou. Isto quer dizer que o Édipo Rei, que é uma das obras que inspira a leitura
teórica que Aristóteles faz do gênero dramático, é, nesse sentido, mais do que um
reflexo de tal gênero, mas aquilo mesmo que lhe deu a luz.
Além dos aspectos acima mencionados, Sófocles realiza em Édipo Rei, assim
creio, leitura e transfiguração de mitos de fundação anteriores, constituintes da tradição
mitológica grega. A exemplo, poderíamos lembrar a deposição de Urano, contada por
Hesíodo (2003) em sua Teogonia, em que se nota a tradição parricida que assombra
o imaginário grego. Outro estudioso, Mircea Eliade (1949), refere-se à figura similar de
Cronos, que padeceria do mesmo oráculo.
Se estes mitos anteriores tratam da genealogia olímpica, Sófocles terreniza-os,
por assim dizer, e os particulariza na composição da personagem de Édipo. No caso
11
freudiano, a tradução do mito edípico atravessa-se pelo estudo do gênero, em que ele
considera a figura do herói:
O herói é, a princípio, um rebelde contra Deus e o divino. É do sentimento de
miséria que a débil criatura sente-se enfrentada com o poderio divino; sendo
daí que o prazer pode considerar-se derivado, através da satisfação
masoquista e do gozo direto da personagem, cuja grandeza o drama tende,
contudo, a destacar. (FREUD; TOGNOLA, 1981, p.137)
Nota-se que a questão anterior a estas abordagens do mito parricida tem como
alvo barrar a potência paterna e/ou apropriar-se dela, como Freud indicou em outros
estudos, a exemplo do seminal Totem e Tabu (FREUD, 1987a) e em Dostoievski e o
parricídio (FREUD, 1996). Desse prisma, tanto no universo mitológico quanto no
freudiano, lutar contra o pai é lutar pelo poder e pela posse de suas prerrogativas. As
prerrogativas do pai são as do poder, desejado por todos. Édipo não seria o tirano de
Tebas se não tivesse vencido o pai, violentando, portanto, a ordem patriarcal sob a qual
a sociedade se estrutura.
Assim, a maneira de enxergar o mito está fundada na ortodoxia, e por ela é
explicada. Como quer Aristóteles, e Sófocles, é claro, a tragédia segue seu ritmo
tradicional: a ação acontece no transcorrer de um dia, reconhecimento e peripécia
estão em seus lugares exatos, a verossimilhança existe, o mito é preenchido e
transmitido pela ão. Além disso, o solo no qual o dramaturgo grego pisa é patriarcal,
referendado pelo protagonismo da figura masculina de Édipo.
A leitura freudiana do mito, ao que parece, também segue na tentativa de
justificar, como é sabido, não apenas a passagem da natureza à cultura, do mito à
razão, mas em busca de estabelecer um conceito capaz de influenciar ou provocar
12
quase tudo aquilo que se refere à psicanálise: o Complexo de Édipo. Tal conceito, por
também estar fincado no mesmo solo patriarcal da tragédia de Sófocles, poderia ser
enquadrado na mesma tradição hermenêutica de leitura do mito à qual estamos mais
amplamente acostumados. Isto é: uma interpretação centrada no masculino.
Esta tradição, vale observar, não se encontra apenas nas duas obras citadas
como exemplos de leitura de Édipo, a de Freud e Sófocles. Todos os estudos ou textos
literários mencionados anteriormente nesta dissertação também se inspiram em idéias
centradas no masculino. Cada um deles projeta seu foco principal numa maneira de ver
o mundo pautada pela tradição patriarcal, por uma razão que se delineia a partir de
uma luz diurna, como Aristóteles afirma dever ser. Uma razão em que a mulher e aquilo
que a noite esconde estão colocados como coadjuvantes.
A idéia de partir para uma leitura que busque a heterodoxia da noite e da mulher,
colocando-as como protagonistas de uma interpretação do mito, surgiu e foi tomando
corpo na tentativa de enxergar as relações existentes entre o próprio mito e o gênero
dramático que lhe é intrínseco. Nesse sentido, o que se procurou primeiro fazer foi
sistematizar alegoricamente textos que tratam do tema. E o trabalho de alegoria que
aqui aconteceu poder-se-ia dizer semelhante ao que pré-socráticos e estóicos fizeram
em seu tempo, procurando descobrir idéias embutidas figurativamente nas narrativas
mitológicas definidas nos textos homéricos.
E foi exatamente isso o que aconteceu: procurou-se ler as interpretações do
Édipo de maneira que, num momento posterior, se pudesse criar uma outra que, na
mesma medida em que tomasse para si os preceitos aristotélicos sobre o gênero,
procurasse também invertê-los. A idéia foi mais simples do que pode parecer: primeiro,
ler as análises consagradas que envolvessem de maneira particular o mito do tirano de
13
Tebas; depois, e a partir de tais leituras, propor uma interpretação distinta para o mito,
centrada na figura de Jocasta; por último, criar uma situação literária que, seguindo os
contornos essenciais definidos para o gênero por Aristóteles, propusesse uma projeção
que transformasse estes mesmos conceitos.
Foi então escrita uma peça teatral que ganhou o nome de Jocasta Tirana
(Apêndice A). A partir de então, o que se busca é registrar uma outra leitura, tentando
mostrar quais foram os parâmetros, modelos e fugas que conduziram a uma
interpretação heterodoxa do mito. Assim, o que aqui se chama de heterodoxia é o
tentar enxergar a noite que antecede o dia em que o mito, enquanto gênero, deve
durar. É tentar iluminar a figura de Jocasta, jogando nela uma luz que, em geral, está
centrada em seu filho e esposo. É tentar, sobretudo, ver este mito enquanto uma
linguagem consagrada pelo gênero literário e, desde este mesmo gênero, eternizada
em novas e distintas perspectivas.
Nesse sentido, o objetivo geral da dissertação é realizar uma leitura do mito de
Édipo que possa, além de ser enxergada a partir de um gênero literário, transformar os
preceitos desenvolvidos por Aristóteles para a composição da tragédia de maneira a
tentar ensejar uma interpretação que fuja da ortodoxia centrada na figura masculina a
partir da qual tal mito costuma ser analisado. O que se pretende é mesmo dissertar
comparativamente em torno do corpus artístico estabelecido sobre a heterodoxia a
partir do caminho inusitado, com relação à tradição acadêmica, de tentar captar que
método, quais caminhos e de que maneiras a leitura teórica de textos que tratam do
14
mito de Édipo, somada à análise de suas frestas e arestas, permitiram, por projeção, a
escritura da tragédia (anti-tragédia?) Jocasta Tirana
1
.
De maneira mais específica, buscar-se-á delinear a paráfrase e a própria
discussão do mito de Édipo, a partir de duas referências bastante concretas. A primeira
tem suas raízes na própria mitologia grega, através de uma análise que busca o ulterior
a Édipo, com referências a relatos como o de Urano, Cronos e Zeus. A compreensão de
conceitos que envolvem a Moira é essencial para ensejar aquilo que é também objetivo
desta dissertação: perceber que pressupostos (o destino, por exemplo) conferem
caráter ortodoxo à leitura do mito.
A outra referência é Totem e Tabu, de Freud (FREUD, 1987a). A partir dela, o
que será tentado é uma análise mais detalhada sobre a própria questão do gênero,
uma vez que tal texto freudiano coloca de maneira exemplar como a hermenêutica
clássica percebe a passagem que acontece entre o mito e o estado de conhecimento
(logos).
Outro objetivo específico deste trabalho é a percepção mais aprofundada da
questão do gênero. A abordagem conceitual da Moira será então novamente feita na
tentativa de defini-la como linguagem mesmo: o destino que está escrito: o Édipo que
não pode deixar de matar seu pai e casar-se com sua mãe. Em contrapartida, como
motivo de introduzir uma perspectiva heterodoxa, procurar-se-á contrapor ao ideário
da Moira a personificação da Hýbris, e discutir a questão do gênero também a partir da
desmedida que ela mesma pode oferecer. Neste ponto - como diz Johnny Mafra,
lembrando Antônio Freire (1969) -, “o trágico deve ser entendido como a luta do homem
1
Este texto - lançado em livro no dia 30 agosto de 2006, pela Unidade Editorial da Secretaria Municipal
de Cultura de Porto Alegre (RS) - irá figurar como apêndice da dissertação.
15
contra o Destino” (MAFRA; 1980, p.72). E o destino é a própria Moira, dona de fios que,
se por um lado não dependem da poesia humana para serem tecidos, por outro
existem aquém e além do próprio ser inacabado que esse próprio homem é.
A poesia não criou o Destino. Ele existe na mentalidade popular. Entra na
tragédia como elemento que se contrapõe à finitude humana. (MAFRA; 1980,
p.76)
Também presente na tragédia está o conceito de Hýbris. Segundo o Dicionário
de Mitologia Grega e Romana (KURY, 2001), o princípio é a personificação da
arrogância e insolência(KURY, 2001, p.197). Oposto da lei divina, inimiga da justiça, a
própria desmedida. Nada menos ortodoxo, nada mais humano. A Jocasta que dorme
com seu filho e com ele gera outros filhos, o Édipo parricida e provocador de sua
própria cegueira estão condenados a revelá-la para, a partir daí, serem perseguidos
furiosa e implacavelmente. Poesia trágica que busca hereticamente alguma
transformação, mesmo que esta seja a possível, precária. Destino x ruptura.
Ortodoxo x heterodoxo. Apolo x Dionísio. Moira x Hýbris. É esse também o embate que
esta dissertação irá arriscar expor.
Também procurarei dissertar brevemente sobre o Édipo Rei, de Sófocles. O que
será almejado é a percepção do porquê esta obra é considerada um exemplo legítimo
daquilo que se define, do ponto de vista mais ortodoxo, como tragédia. Em vários
momentos de sua Poética, Aristóteles (1993) cita Édipo Rei de maneira a considerá-lo
uma obra em que o gênero trágico se expressa em completude exemplar. Nesse
sentido, vale atentar para o que diz Mário da Gama Kury (2002) em sua introdução à
“Trilogia Tebana”:
16
O Édipo Rei de Sófocles é, portanto, a mais típica das tragédias gregas, e por
isso é uma das mais citadas por Aristóteles em apoio a suas definições e
concepções. (KURY, 2002, p.11)
Depois de passar por Sófocles, a análise do mito acontecerá com textos mais
provocativos no que se refere à sua abordagem. O entendimento de Audemaro Taranto
Goulart (1997) em “Leituras do mito de Édipo”, Marilena Chauí (1991) e Hélio Pellegrino
(1987) são fundamentais para tal. Vale lembrar que os três autores citados expõem
interpretações do mito que buscam a discussão da heterodoxia. Pellegrino (1987), em
análise à teoria freudiana e lacaniana, e propondo uma leitura diversa, afirma de
maneira bastante heterodoxa:
Édipo, herói da legenda tebana, ao assasinar o pai e ao casar-se com a mãe,
não se enquadra no esquema estrutural e conceitual do complexo de Édipo, tal
como o descreve Freud. Édipo, portanto, não padecia do complexo de Édipo
freudiano, tendo sucumbido a vicissitudes de natureza pré-edípicas.
(PELLEGRINO, 1987, p.309)
Goulart (1997), em texto analítico de leituras de Édipo, depois de discorrer sobre
o estruturalismo de Lévi-Strauss (1973) e também sobre Freud, entre outros, conclui:
O mito poderia ser visto, então, como um elemento que explicita dois sistemas
de relacionamento humano: o que obedece aos princípios da regência feminina
e o que se submete ao domínio masculino. Dentro dos mecanismos que
propiciam a articulação dialética, ambos estariam se insinuando mas,
claramente, o mito como que acena na direção de um deles. E faz isso através
da sutileza com que se percebe que o Édipo vitorioso é aquele que se liga aos
elementos femininos. Pelo menos essa é uma leitura possível, ainda que para
operacionalizá-la o leitor tenha que transitar da perplexidade à ousadia, pois,
parodiando o próprio Nietzsche, é preciso incidir na sublime e terrível coluna de
Memnon do mito para que ele, subitamente, ressoe e cante.
(
GOULART, 1997,
p.26)
17
Ressoar e cantar foi a proposta executada quando se leram as interpretações
do Édipo em busca de uma nova medida. Buscar a perplexidade de trepar a coluna de
Mêmnon é um dos objetivos específicos desta dissertação. Quem sabe, será possível
fazê-lo, escutando a música que saúda uma aurora que vem logo após o conhecimento
daquilo que a noite pode ter a dizer e daquilo que a mulher (Gaia?, a que nasceu logo
após o Caos e, sozinha, engendrou o próprio Urano) certamente tem a revelar.
Além disso, buscarei finalmente encontrar meios para que seja feita uma leitura
heterodoxa do mito. O que dizem dele autores como Nietzsche (1992) irá permear tal
análise. É aqui também que a situação literária criada será avaliada em uma
perspectiva comparativa com o que se definiu como ortodoxo e heterodoxo, procurando
apontar nela aspectos relevantes para uma interpretação que busca querer se fazer
enxergar a partir de uma hermenêutica não tradicional.
em seu “A origem da tragédia” (NIETZSCHE, 1992), o filósofo alemão parece
assinalar o caminho para uma leitura que aponte a desconstrução do tradicional. É pelo
que Nietzsche diz logo no primeiro parágrafo desse seu livro que pretendo me deixar
conduzir:
Teremos dado um grande passo, e promovido o progresso da ciência estética,
quando chegarmos não à indução lógica, mas também à certeza imediata,
deste pensamento: a evolução progressiva da arte resulta do duplo caráter do
espírito apolíneo e do espírito dionisíaco, tal como a dualidade dos sexos gera
a vida no meio de lutas que são perpétuas e de aproximações que são
periódicas. (NIETZSCHE, 1992, p.35)
Como se disse reiteradamente, equilibrar-se entre a profecia como verdade
do sonho” e a desmedida como verdade da embriaguez (DELEUZE, 2001, p.51),
18
como diz Deleuze (2001) em nota de seu livro sobre Nietzsche, é o objetivo central
deste trabalho.
A metodologia geral a ser empreendida neste estudo coloca leitura,
interpretação, seleção e citação de fontes primárias e secundárias em primeiro plano.
Contudo, além de recorrer à pesquisa bibliográfica dos textos teóricos que
possibilitaram, de um ou outro modo, a escritura da situação literária, também será
analisado detidamente o Édipo Rei, de Sófocles.
Nesse sentido, as fontes primárias serão a incomparável obra de Sófocles, a
situação literária criada e um outro drama intitulado Um Édipo (ROSA, 2003), escrito
pelo português Armando Nascimento Rosa, produzida a partir das leituras e
interpretações encontradas nos textos teóricos sobre o mito de Édipo. Assim, a análise
da obra de Sófocles, além de assegurar permanência e transmissão do próprio mito de
Édipo, figura como arquétipo capaz de definir toda uma ortodoxia clássica da própria
tragédia, como se pode observar a partir da leitura da Poética de Aristóteles. Jocasta
Tirana será, então, exemplo produzido especificamente com a finalidade de buscar uma
outra abordagem, figurando como texto a partir do qual tentar-se-á vislumbrar uma
leitura heterodoxa do mito.
Ressalte-se que, neste trabalho, se a proposta de análise de uma produção
ficcional de minha própria lavra, cotejando-a com o “texto sagrado” de Sófocles, puder
sugerir a desmedida, tão condenada pelos gregos, esta aparente pretensão foi
estimulada pela devoção confessa ao mito helênico e a quase tudo que a ele diga
respeito. Assim, Jocasta Tirana, também como releitura, servirá como espécie de
espelho fosco, pano de fundo, do qual se extrairão subsídios teóricos sobre os quais é
preciso centrar a atenção, verificando suas implicações e analisando-os, em processo
19
de alegoria, que constituem os nós que pretendemos desatar para erigirmos esta
outra perspectiva de leitura que se quer cerne desta proposta.
20
2. A COSMOGONIA PARRICIDA
Céu e terra. Urano e Gaia. Neste mito de fundação da tradição grega, este casal
de deuses é quem dará origem a toda uma teogonia. São eles os pais dos seis Titãs,
das seis Titânidas, dos três Ciclopes e dos três gigantes Hecatonquiros. Mas é o filho
mais jovem, Cronos, o único que aceita atender ao pedido da mãe. Cansada de
procriar, Gaia pede a todos eles que a protejam da voracidade sexual do pai, Urano. O
titã Cronos, pertencente à primeira geração divina, é, como se disse, o único que a
ajuda. É ele quem corta os testículos do pai e os atira ao mar, destronando-o em
seguida.
Não temos ainda aqui o parricídio, mas algo que dele se aproxima: a castração.
Aproxima-se porque a castração é o fato que, de uma ou outra maneira, conduzirá ao
próprio parricídio, como veremos adiante. Em conseqüência de rebelar-se e castrar o
próprio pai, Cronos detém para si o poder. Deus soberano e senhor do mundo, ele casa
com sua irmã, Rea. Insaciável também, gera vários filhos, mas, temendo que aquilo que
ocorreu a seu pai aconteça também com ele, devora cada um de seus filhos logo após
o nascimento.
O único com o qual isso não acontece é Zeus, uma vez que Rea engana o
marido e, depois de colocar uma pedra no manto que cobria seu último filho, entrega-a
ao esposo, que a engole sem se dar pelo embuste. Zeus, então, respira livre e, logo,
em sua idade adulta, é ele quem irá rebelar-se contra o pai. Primeiro, dando-lhe uma
bebida que facom que este vomite os filhos; depois, com a ajuda de seus irmãos e
21
dos gigantes Hecatonquiros por ele libertados, guerreando contra o pai, vencendo-o e
assumindo o poder.
Contra Zeus também, entretanto, paira também a sombra do parricídio. É o que
anunciou Gaia, ao profetizar que ele, que havia encarcerado os Titãs no inferno, seria
destronado por um seu descendente. É por isso que, seguindo o exemplo que vem
mais uma vez do pai, Zeus engole sua esposa Métis, que, na profecia de Gaia, seria
ela quem daria à luz uma deusa cujo filho o destronaria.
Segundo André Virel, assim como citado no Dicionário de mbolos
(CHEVALIER; GHEERBRANT,
1998, p. 922), podemos dividir a mitologia grega em três
distintas fases da evolução criadora. A primeira é a chamada cosmogênese, em que
está Urano, efervescência caótica e diferenciada; em seguida, a esquizogênese, na
qual temos a presença decisiva de Cronos; finalmente, vem a autogênese, com Zeus e
seu reino. A cosmogênese representa caos e inércia; a esquizogênese, corte e divisão,
com o fim das secreções indefinidas do pai; a terceira fase tem a marca de um novo
começo ordenado, organizado, controlado.
Urano é o símbolo do início de toda e qualquer ação, com seu revezamento de
exaltação e repressão, impulso e queda, vida e morte, expressão do ciclo dos
desenvolvimentos. É o próprio Céu e representa a sexualidade devastadora, sem limite,
que destrói. As genealogias se misturam: para a teogonia órfica, ele é irmão de Gaia;
para outras, Gaia, que simboliza a terra, é também sua mãe e esposa. Como se
disse, ela, cansada de tanto conceber, pede a seus filhos que a protejam de Urano e de
sua insaciabilidade sexual. Segundo conta a tradição mitológica mais antiga, depois
que Cronos castra o pai e joga seus testículos ao mar, da espuma sangrenta das águas
do oceano nasce Afrodite. Com a mutilação do membro gerador de Urano, desaparece
22
do mundo a fecundidade estéril e desordenada e surge, com a deusa que comumente é
identificada ao amor e à fertilidade, a ordem, a procriação comedida e a continuidade
das espécies.
Interessante, no caso de Cronos, é perceber que, com o nome alterado para
Khronos, esta divindade costuma também ser personificada como o tempo. E, nesse
sentido, uma e outra personificação também se aproximam enquanto símbolos de uma
fome devoradora, de desejo insaciável, que mata as fontes de vida. Se o primeiro é
incapaz de se adaptar à evolução da vida e da sociedade, o outro não permite que essa
evolução aconteça alheia à sua vontade. Ambos são senhores e donos de suas
criaturas e não lhes permitem que a vida aconteça independente de suas ordens e
determinações. Não concebem sucessão e sucessores. Cronos mata seus filhos para
não ter descendentes, o outro consome os humanos com sua foice.
Cronos corta os testículos do pai: derrota-o. Urano perde o poder de gerar e de
se perpetuar. Mas Cronos também teme que seus filhos façam com ele o mesmo que
fizera a seu pai e, por isso, engole-os um a um. Talvez receie que, assumindo a
paternidade de sua prole, perca a divindade, transformando-se em humano e, em
conseqüência, tornando-se presa de Khronos. Por isso, nega sua geração.
No que se refere a este episódio da castração, valeria também recordar que
Cibele, a deusa-mãe da Frígia, Ásia Menor, foi a primeira a quem foi dedicado tal ritual.
Confundida na Grécia com Rea, esposa de Cronos, Cibele, considerada mãe de todos
os deuses, não queria ceder aos desejos de seu filho e amante Átis, casando-se com
ele. Num acesso de loucura, Átis se castra antes de suicidar-se. Assim, o que se
poderia inferir é que a castração também deriva em morte. Morte de um tipo de poder
para a construção de outro.
23
Castrar Urano parece ser a única alternativa para destituir um deus, um imortal,
de seu poder, uma vez que cometer o parricídio é impossível. Nesse sentido, castração
e morte se equivalem quando o que buscamos é derrubar poderes para erigir outros.
Fosse humano, como Édipo, e tudo poderia ser distinto. Ou seja: o que aqui se
pretende afirmar é que o parricídio está para os humanos Édipo e Laio assim como a
castração está para os deuses Cronos e Urano. O que interessa, nos dois casos, é que
o poder seja transferido, que ele mude, mesmo que temporariamente, de mãos.
Zeus, no entanto, não castra, pelo menos no sentido concreto. Para ter o poder
para si, ele tem antes que buscar aliados. Outra vez, o alvo é o mesmo: o pai e tudo
aquilo que este simboliza. E é para derrotar tal pai que ele faz com que este vomite
seus filhos. A luta, então, pode começar. E será vencida pelo filho que irá, em seguida,
dividir com seus irmãos os poderes. O filho que, mesmo sendo um deus, busca nos
humanos uma de suas prerrogativas: a negociação.
O que aqui temos, como foi mencionado através de André Virel (CHEVALIER;
GHEERBRANT,
1998), é a autogênese caracterizada pela ordem. Os filhos vitoriosos
repartem entre si o universo. A Hades, cabe o inferno; a Poseidon, os mares; Zeus fica
com o u e a proeminência sobre os demais deuses e sobre o universo. Para Cronos,
o pai que não sabia dividir e que representava a ameaça da indefinição, a castração
está no rcere, que é guardado por seus próprios filhos, os gigantes Hecatonquiros.
Um deus aprisionado, sem poder. A castração, portanto, não se realiza no sentido
concreto, mas no simbólico.
24
2.1. HOMENS, DEUSES E PODER
Se para os deuses os fatos possuem tal dimensão, para os homens humanos as
definições não são tão diferentes. Buscando dar a seu Complexo de Édipo uma
significação universal, Freud publica, entre 1912 e 1913, seu livro Totem e Tabu
(FREUD, 1987a). Segundo o Dicionário de Psicanálise no prefácio de 1913, ele
apresenta Totem e Tabu como uma aplicação da psicanálise a ‘problemas o
esclarecidos da psicologia dos povos’”. (ROUDINESCO; PLON, 1998, p.757).
Vale crer que a história narrada pelo livro capaz de misturar componentes
literários e antropológicos em seu interior, na tentativa de explicar a um tempo temas
como a origem da humanidade, a questão do monoteísmo e a própria angústia gerada
pelo poder –, possui aspectos que a ligam de maneira interessante ao que se disse a
agora sobre as disputas entre os deuses gregos. Freud conta que, num tempo primitivo,
os homens viviam em pequenas hordas. Tais hordas estavam, cada qual à sua vez,
submetidas ao poder arbitrário de um macho. Os demais lhe deviam obediência; as
fêmeas, todas e cada uma delas, lhe pertenciam.
Um dia, os filhos da tribo se rebelaram contra esse pai déspota e tirano,
interrompendo o reino da horda selvagem. Em uma ação de violência coletiva, mataram
o pai e comeram seu cadáver. Depois do assassinato, no entanto, arrependidos,
repudiaram o parricídio para, em seguida, criar uma nova ordem social. Esta nova
norma instaurava, ao mesmo tempo, a exogamia e o totemismo. Com este, proibiam o
assassinato do substituto do pai, ou seja, do próprio totem; com aquela, renunciavam à
posse das mulheres do clã do totem.
25
No prefácio que faz a seu Dicionário da Mitologia grega, Ruth Guimarães (2004)
explica didaticamente o que ela mesma chama “idade do mito na civilização”. Em
alguns pontos se aproximando daquilo que diz Virel, a autora afirma que os mitos mais
antigos, cosmogônicos, tratam de fenômenos naturais, como a própria morte e a origem
do mundo. Não é sem mais que divindades como Urano e Gaia, que personificam
respectivamente céu e terra, fazem parte de tal grupo.
Numa segunda fase, Ruth Guimarães aponta para o mito que conta a história
dos deuses e que é fruto de uma religião organizada, longe de suas origens. É aqui
que encontramos Cronos e seus embates com outros deuses. O grupo final é o que se
refere aos heróis civilizadores. Os deuses seguem a seu lado, não importa se contra ou
a seu favor, mas o que é mais determinante é a ação humana na transformação do
mundo. A biografia de Édipo é, decididamente, um mito pertencente a esta fase.
Ao narrar uma história como a de Totem e Tabu, Freud compara seu selvagem à
criança. E o faz “para provar a adequação entre a neurose infantil e a condição humana
de uma maneira geral, assim erigindo o Complexo de Édipo num modelo universal
(ROUDINESCO;
PLON,
1998,
p.
759). A criança, portanto, poderia ser tomada como o
filho. O filho que mata o pai, que guerreia contra ele, que assume seu lugar. Deuses ou
humanos, estamos também falando de Urano, Cronos, Zeus, Laio, Édipo: castrados e
castradores, mortos e assassinos, poderosos e cativos.
que o que se quer neste momento é dar um caráter equivalente entre castrar
e matar, seria interessante ver o que Lacan elabora no que se refere à castração, em
releitura que faz das idéias de Freud sobre o tema. Para Lacan, a castração seria uma
representação simbólica da ameaça do desaparecimento. Ou seja: a castração não se
limita ao objeto real nis, mas se refere ao objeto imaginário falo. Se com Lacan
26
estamos falando do imaginário, poderíamos, por conseguinte, e tendo este mesmo falo
como representação simbólica, estar falando do poder que este mesmo falo significa. É
que, para Lacan, o simbólico se transforma em lei. Segundo ele, é no Nome do Pai que
acontece o reconhecimento para a função simbólica que identifica sua pessoa à figura
da lei.
Ainda acompanhando Lacan, podemos ver que, para ele, a interdição do pai
equivale à castração, numa mesma etapa do desenvolvimento infantil. Assim, o pai que
proíbe, que detém para si o poder, que castra, também deve ser morto, castrado. Nesse
sentido, castrar o falo quer dizer castrar o poder. O que querem Cronos, Zeus e os
selvagens da horda primitiva de Totem e Tabu é, em última instância, tomar para si o
poder do pai, a fim de constituir uma nova ordem. E, para isso, é necessário matar,
castrar, arrancar o comando de quem o tem. O princípio parece ser o mesmo: castrar
imaginando não ser castrado; encarcerar para não se tornar cativo; matar para não ser
morto.
No entanto, tais ações preventivas entre deuses e homens resultam inócuas: o
Urano que procria insaciavelmente em breve será castrado; o Cronos que devora os
filhos logo será por eles enclausurado; o Laio que manda matar o filho será por ele
assassinado na encruzilhada de três caminhos. Então, a pergunta que talvez caiba ser
feita é aquela que indaga que poderes podem existir que sejam maiores e mais
eficazes que o dos próprios deuses e o dos homens poderosos. Quem sabe os da
Moira, tecendo seus fios?
O mito de Édipo parece ser, portanto, o momento em que a tradição parricida e
castradora da mitologia grega chega ao humano. Antes, tal noção estava circunscrita
aos deuses, aos imortais. Eram estes que lutavam pelo poder. Com Édipo e tudo aquilo
27
que a ele está circunscrito, ainda que os deuses guardem no Olimpo seus lugares
apropriados, o trágico passa a comandar a vida dos homens. No entanto, tais sujeitos
são mortais, inexoravelmente mortais, como lembra Nicole Loraux quando afirma que,
como diz Aristóteles (1993) em sua Poética, o homem é, na tragédia grega, “criatura de
um dia” e, portanto, “efêmera”.
E esse ser, uma criatura de apenas um dia, deve ser encarado por aquilo que a
estrutura do gênero define para a tragédia, e não porque a vida desse mesmo sujeito
possa ser resumida a esse único dia. Segundo Loraux, na cena trágica, o homem se
enuncia a partir de três termos decisivos:
Brotós, ou o homem enquanto mortal (diz-se tamm, a partir de uma outra
raiz que significa morrer”, thnētós); ánthrōpos, o homem em sua humanidade
de ser social; anĕr, o homem viril. (LORAUX apud NOVAES, 2000, p.20)
O Édipo trágico reúne em seu mito esses três tipos de homem: mortal em suas
angústias; social naquilo que deve negociar para que sua cidade prospere; viril, quando
mata, quando decifra, quando, casando-se com a própria mãe, tem com ela quatro
filhos. Reunindo tais condições, temos um homem cuja dor o levará a cegar-se, um
contumaz herói grego, ainda que atípico, como pretendo explicar mais à frente. Mas um
herói, uma vez que mesmo sua cegueira é produto do conhecimento.
Entretanto, aparentemente de maneira contraditória, o Édipo homem é aquele
que reúne algumas das prerrogativas dos deuses: luta, decifra, mata, procria
incestuosamente. Ou seja: como Cronos e como Zeus, ele tomou o poder de seu pai;
como Átis e como o próprio Urano, dormiu com sua mãe; ainda como Átis ele,
atormentado, se mutilou; como os homens e como os deuses, não pode evitar o
28
destino. À imagem e semelhança. É com esta idéia que André Virel (CHEVALIER,
1998) faz coro, quando compara a história dos deuses à história dos homens: “A
história mitológica dos deuses esclarece (então) a história dos homens”. (VIREL apud
CHEVALIER, 1998, p.922)
Não é desta maneira que também reza a tradição judaico-cristã? Temos aqui,
portanto, um homem grego, um herói ocidental, também bastante semelhante aos
deuses que cultua. Criadores e criaturas que parecem se aproximar em suas angústias
terríveis, quase insuportáveis, alucinantes.
2.2. ÉDIPO E AS MARCAS DO DESTINO
O mito de Édipo é marcado por essa angústia delirante. Uma expiação que
começa ainda antes de seu nascimento, quando Laio, rei de Tebas, ouve de um oráculo
a maldição que lhe está destinada: a de que ele será assassinado por seu filho que, em
seguida, o sucederá no trono, depois de se casar com a própria mãe. Audemaro
Taranto Goulart (1997), em texto esclarecedor sobre o tema, conta a trama que se
segue:
Laio tentou, de todas as formas, fugir do destino que os deuses lhe
reservaram. Evitou, o quanto pôde, o contado sexual com Jocasta, sua mulher,
mas uma noite, embriagado, acaba gerando o filho indesejado. Assim, nasce
Édipo. Imediatamente após, o recém-nascido é entregue a um escravo, com a
recomendação de que fosse exposto no alto do monte Citerão, onde morreria e
seria consumido pelos abutres. Entretanto, uma caravana de Corinto passa
pelo lugar, toma a criança e a leva para aquela cidade, onde acaba indo parar
nas mãos de Pólibo e de Mérope (nome de Peribéia, na tragédia de Sófocles),
29
rei e rainha de Corinto. Criado como filho pelos governantes, Édipo, adulto,
certa vez, ouve num banquete, de um conviva embriagado, que ele era um
plastós, ou seja, um filho postiço. Intrigado, Édipo consulta a Pítia, sacerdotisa
de Apolo no templo de Delfos, dela recebendo a terrível informação de que ele
estava condenado a matar o pai e a casar-se com a mãe. (GOULART, 1997)
Nesse sentido, a profecia que Laio escuta é a mesma que Cronos e Zeus
escutaram: eles perderão o poder que m a partir de uma ofensiva de suas
descendências. A alternativa para que isso não aconteça é, para deuses e homens,
usar das prerrogativas que o próprio poder lhes confere. Cronos engole os filhos; Zeus
engole a mulher, Métis; Laio manda matar. Deuses e homens utilizando-se dos mesmos
artifícios na tentativa de enganar o destino e manter a posse daquilo que julgam lhes
pertencer.
Mas o que parece é mesmo que a Moira, personificação do destino, não pode
ser iludida. Édipo, a criança cujos tornozelos foram atravessados por uma argola de
ferro a mando do próprio pai, e por isso tem os pés inchados
2
, antes que fosse
abandonado, este mesmo Édipo sabe agora de seu próprio destino e, como Laio,
Cronos e Zeus, também tentará esquivar-se do que lhe foi reservado. É por isso que
ele, para não matar Pólibo e casar-se com Mérope, de quem julga ser filho, foge em
direção a Tebas.
No caminho, numa encruzilhada do estreito e efêmero caminho que sói ser
aquele de todos os brotós, Édipo encontra Laio, que vem acompanhado de cinco
homens. Por uma disputa acerca de quem teria a precedência em passar pela tal
estradinha, uns e outro acabam se altercando e o resultado da disputa é a morte de
Laio e de três de seus seguidores.
2
Oídipous: pés inchados.
30
Édipo, então, continua uma caminhada que vai dar à entrada de Tebas, onde
uma esfinge, monstro com corpo, garras e cauda de leão, cabeça de mulher, asas de
águia e unhas de harpia, propõe enigmas a quem encontra e, caso o passante não
decifre o mistério, o devora. Ao nosso angustiado, ela propõe a seguinte charada: “Que
animal, possuindo voz, pela manhã anda em quatro pés, ao meio-dia, com dois e, à
tarde, com três?” Talvez não seja por acaso que a pergunta feita leva ao encontro, mais
uma vez, do brotós, do ser que tragicamente é definido como efêmero, como afirma
Nicole Loraux. Édipo acerta a resposta: é o homem. Assim, tentando escapar, o fugitivo
se encontra novamente com seu destino à entrada da cidade de Tebas. Derrotada, a
esfinge se atira do alto de um rochedo e morre. Como recompensa por sua proeza,
Édipo é aclamado em Tebas como herói e recebe sua recompensa: o trono e a mão da
rainha viúva Jocasta. Com ela, nosso herói terá quatro filhos: Polinice, Etéocles,
Antígona e Ismene.
E é aqui que cabe fazer uma pausa para que se possa pensar a estrutura dessa
família que se constitui. Sim: um pai, uma mãe e quatro filhos. Ou uma mãe e seus
cinco filhos. Um pai, sua esposa e seus quatro filhos. Ou um pai, sua mãe e seus quatro
irmãos. Um esposo e sua esposa. Ou um filho e sua mãe. Juntas, todas essas
alternativas constituem, a uma só vez, tudo aquilo que a transgressão do incesto, assim
como colocado em Totem e Tabu, é capaz de nos expor. Uma verdadeira horda. E, a
partir de um raciocínio simples, levado mesmo pelo senso comum, o que se pode
perceber é que tal união durou o tempo suficiente para que quatro filhos fossem
gerados e se tornassem jovens adultos. E para que, depois que o mistério da origem de
Édipo fosse revelado, dois deles se matassem um ao outro e uma delas, Antígona,
servisse de guia para o próprio pai, cego, em sua caminhada andarilha. Assim, o que se
31
pode vislumbrar, apenas vislumbrar, é uma Jocasta que envelhece inexoravelmente ao
lado de seu filho e esposo, parindo como uma deusa e sofrendo como uma mulher.
Deuses e mortais sinalizando condições ambíguas, a partir de enredos femininos nos
quais a fertilidade e a capacidade de gerar são cruéis e servem a propósitos ocultos e
escusos. A geração de vida é poder.
Exatamente isto: Jocasta parteja como uma Gaia ou como uma Métis e sofre
como a mulher que entregou seu primeiro filho, aquele que agora é o pai de seus outros
rebentos, nas mãos de um escravo para que este o matasse e, de tal maneira, o
destino de Laio, seu primeiro esposo, e o seu próprio, pudessem ser ludibriados. Por
isso, ao mandar matar o filho, Jocasta também acaba ordenando o assassinato, sem
saber, do próprio pai, daquele que irá gerar seus outros quatro filhos. O que se quer
levantar aqui é apenas uma hipótese. Uma hipótese que construa a cena se
quisermos, podemos até mesmo imaginá-la! –, de um filho que, inocente, mas
sedutor, sorri para a mãe que logo o entregará ao carrasco. Como Rea, não poderia
embrulhar uma pedra em seu lugar e entregá-la ao algoz? Lacan, quando discute em
um de seus seminários o Complexo de Édipo freudiano, nos diz:
Deixamos a criança na posição de engodo em que ela se insinua junto à mãe.
Este não é, como eu lhes disse, um simples logro em que ela estaria
completamente implicada, no sentido etológico. No jogo da exibição sexual,
podemos nós que estamos de fora perceber elementos imaginários,
aparências que cativam o parceiro. Não sabemos até que ponto os sujeitos
utilizam isso como um engodo, ainda que saibamos que poderíamos fazê-lo
ocasionalmente, por exemplo, apresentando ao desejo do simples adversário
um simples brasão. O engodo de que se trata aqui é bastante manifesto nas
ações e mesmo nas atividades que observamos no menino, e, por exemplo,
em suas atividades sedutoras com relação à mãe, que existe como um
terceiro. (LACAN; MILLER, 1995, p.205)
32
O engodo aqui talvez esteja sendo arquitetado pela Moira. Édipo, como se
sabe, não será morto e, quando, com apenas o elucidar de uma adivinha, salvar a
cidade da peste que a consome, ele ganhará seu trono, uma esposa e terá de volta sua
mãe, para que, com tempo, possa seduzi-la nas artes amorosas e com ela engendrar
quatro outros filhos. Ele matou seu verdadeiro pai, mas ainda não colocou um totem
em seu lugar. O engodo, portanto, ainda não foi desfeito, e é preciso aperfeiçoá-lo com
toda uma vida de poderes e tiranias. Édipo, afinal, tornou-se o rei de Tebas. Agora, ele
é o Oidípus Týrannos, como anuncia Sófocles em sua tragédia.
No entanto, a peste irá visitar de novo a cidade. E será também um oráculo, o de
Delfos, consagrado a Apolo, deus da claridade e da perfeição, que anunciará que, para
que o flagelo desapareça, é preciso conhecer. Sim, é necessário conhecer,
descobrindo, finalmente, quem foi o assassino de Laio. Édipo manda chamar Tirésias,
um adivinho. Um áuspice cego! Tão cego quanto o próprio Édipo um dia será. Tirésias,
um mortal que pode ver além e aquém das aparências, sabe de tudo e tenta, ao invés
de demonstrar, ocultar a verdade, tergiversando. Édipo chega mesmo a desconfiar de
Creonte, irmão de Jocasta e aquele que ocupava o trono de Tebas antes de Édipo e
após a morte de Laio. Nesse sentido, é oportuno observar, mais uma vez, a paráfrase
que faz Audemaro Taranto Goulart (1997) a propósito do tema:
Édipo inicia, então, a busca do assassino de Laio e, nessa caçada de si
mesmo, quanto mais age mais se aproxima da evidência de que ele era o
responsável pela morte do rei, o que, aliás, já lhe havia sido dito por um
adivinho, o cego Tirésias. Édipo negava-se a aceitar a palavra do adivinho,
justificando-se com uma trama que ele e Creonte lhe armavam para tomar-lhe
o poder. (GOULART, 1997, p.13)
33
Às desconfianças de Édipo, soma-se a certeza de Jocasta de que é
aconselhável o dar ouvidos a mortais que julgam possuir dons divinatórios. É
precisamente nesse momento que se intensifica a peripécia no Édipo Rei, de Sófocles.
Para justificar esta sua crença, a rainha conta a seu rei a história que ocorrera com ela,
Laio e o filho que julga morto: a criança que assassinaria o pai teve os tornozelos
amarrados, foi entregue a estranhos e lançada em precipícios de montanha
inacessível” (SÓFOCLES, 2002, p.54). Um precipício, pode-se mesmo pensar, tão
inacessível como a verdade que se escondeu à espera da Moira que viesse lhe cortar o
fio. As palavras a seguir, que pretendem afirmar a certeza de que os oráculos também
se enganam, são ditas pela própria Jocasta, em tradução de Mário da Gama Kury da
incomparável obra de Sófocles.
Naquele tempo Apolo não realizou
as predições: o único filho de Laio
não se tornou o matador do próprio pai;
não se concretizaram as apreensões do rei
que tanto receava terminar seus dias
golpeado pelo ser que lhe devia a vida.
Falharam-lhe os oráculos; o próprio deus
Evidencia seus desígnios quando quer,
Sem recorrer a intérpretes, somente ele. (SÓFOCLES, 2002, p.54-55)
A partir deste momento, as luzes lançadas por Apolo vêm decisivamente para
esclarecer a trama. Tirésias, o cego, foi o único a enxergar a verdade e, agora, com
Édipo e Jocasta tomando a consciência inaudita, é preciso encarar o clarão de Apolo.
E ele vem através de dois escravos: o primeiro, aquele que recebeu de Jocasta a
criança a ser morta; o outro, o mesmo pastor que entregou a criança que não foi morta
a pais de Corinto, que a criaram como um príncipe.
34
Nem mesmo a notícia da morte de Pólibo, o homem que, de fato, criou a criança
que devia ser morta, é capaz de aplacar a verdade que Édipo deve agora enxergar. De
nada valeram as tentativas de uma e outra parte para que o destino prefigurado pelos
oráculos não se concretizasse. Ou seja: o filho que devia ser morto não morreu e,
assim, o totem foi destruído e o tabu estilhaçado à sombra de outros quatro filhos e
uma vida. Jocasta agora pende na forca que para ela estava reservada, suspensa
como, conta uma versão do mito, esteve seu primeiro filho, atado pelos pés ao galho de
uma árvore. Édipo será cegado pela verdade e errará pelo mundo grego, este nosso
mundo ocidental, de deuses cada vez mais humanos e de homens que cada vez se
julgam mais deuses. Um Édipo cego, mas que, depois de vislumbrar todas as trágicas
angústias de um ordinário brotós, será capaz de enxergar coisas e fazer com que
outros enxerguem através dele, ao longo do tempo. Assim, o mito: esvaziado para ser
preenchido. Preenchido, para que possamos outra vez despejá-lo. Linguagem.
2.3. CÓDIGOS PARA UM MITO
Quando dizemos que mito é linguagem, o que estamos fazendo é mesmo nos
reportar à definição de Claude Lévi-Strauss (1973). O antropólogo utiliza-se dos mitos
como base de seus estudos que conduzem ao estruturalismo.
Mito é linguagem; mas uma linguagem que tem lugar em um nível muito
elevado, e onde o sentido chega, se é lícito dizer, a decolar do fundamento
lingüístico sobre o qual começou rolando. (LEVI-STRAUSS, 1973, p.242)
35
Neste trabalho, quando concordamos com a definição de Lévi-Strauss, e
tomando como objeto de estudo central o mito de Édipo, o que queremos propor é uma
interpretação distinta para tal mito. Se mito é linguagem, a estrutura a partir da qual
estamos acostumados a ler a história de Édipo possui códigos bastante definidos. Um
desses códigos, talvez o mais importante deles, está em fazer-se a leitura de Édipo a
partir de uma centralização na figura masculina. O que se quer dizer é que fomos
acostumados a buscar neste mito específico uma prerrogativa que se insere na ordem
do masculino. Lemos sempre o mito de Édipo, e nunca o mito de Édipo e Jocasta, ou
apenas de Jocasta, muito embora o trágico esteja inserido na história desta mulher em
medidas semelhantes às em que está inserido na história daquele homem.
Quando Freud se propõe a criar a psicanálise, cometendo a reboque uma
espécie de parricídio ao desvinculá-la da psiquiatria, ele o faz também por meio de uma
leitura centrada nessa mesma ordem do masculino. O saber da psicanálise derivou de
algum lugar teórico/simbólico que se contestou depois. Aqui, a primeira criança a ser
estudada é o menino. Também em Totem e Tabu tal aspecto fica claro em muitos
sentidos. Primeiro, na identificação que Freud faz do totem com o pai. Depois, ao dizer
que a luta pelo poder só ocorre na esfera do masculino. Ou seja: são os filhos, homens,
aqueles que matam o pai para tomar-lhe o poder. As mulheres são apenas divididas
entre eles, da mesma maneira que Zeus dividiu o universo com seus irmãos. A partilha
se dá, portanto, entre aqueles que compartem o poder. Valeria até mesmo lembrar,
portanto, que a situação edípica da menina não possui a mesma força de
convencimento que a do menino.
36
Nesse tipo de leitura que, quer-se crer, está pautada por uma ortodoxia da
linguagem, o mito é sempre visto por um viés patriarcal. Cabe sempre ao homem o se
rebelar e, à mulher, de uma ou outra maneira, aceitar. O primeiro a ser enxergado é o
homem. Os complexos predominantes nascem dele e por meio dele. Os poderes
podem ser alcançados por ele. À mulher, diz também esta linguagem, cabe um papel
coadjuvante, de aceitação daquilo que lhe é imposto. Talvez por isso caiba sempre ao
homem, ao anĕr (um dos termos empregados na tragédia grega para significar o
humano e que nunca é empregado para identificar uma mulher
3
), a virilidade de se
rebelar contra o destino, contra a Moira. É o que fazem Cronos, Zeus, Laio e Édipo ao
não aceitarem aquilo que lhes foi reservado.
Assim, essa linguagem centrada no masculino nos insere sempre em sua própria
ordem, fazendo com que qualquer outro tipo de leitura possa parecer incongruente com
uma realidade que estamos acostumados a enxergar a partir da luz do dia e dos feitos
dos homens viris. Mais uma vez o poder se manifesta. Do mesmo modo que nos
acostumamos, por exemplo, a enxergar os acontecimentos a partir de uma
historiografia dos vencedores, e quase nunca dos vencidos, aqui também o real que
avistamos ganha sempre a luz e os códigos de quem detém o poder. E talvez seja
mesmo desnecessário explicar que, nesse nosso mundo ocidental, helênico e latino, a
tradição informa que a canoa da realidade é feita, também quase sempre, com os paus
dos homens, ainda que imaginários. Trata-se da casa dos homens.
Tal linguagem que procuramos demonstrar existir tem suas origens no sistema
político-jurídico do patriarcado que se instaurou sobretudo nas sociedades ocidentais.
3
A esse propósito ver texto de Nicole Loraux publicado em: NOVAES, Adauto (org.) Ética. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
37
Em sua definição mais pura, este sistema coloca os direitos sobre bens e pessoas
concentrados nas mãos do homem, que detém também a posição de pai fundador. A
respeito desse sistema, Freud faz uma reflexão estrutural que conduz ao complexo de
Édipo. Nesse sentido, se é o pai aquele que detém o poder, é também o pai que deve
ser enfrentado, a fim de que seu poder seja destituído e, conseqüentemente,
transferido. Parece que o complexo de Édipo freudiano está estabelecido sobre este
princípio. Assim, vejamos o que diz o próprio Freud quando, em seu Totem e Tabu
(FREUD, 1987a), lembra passagens significativas de seu Análise de uma Fobia num
Menino de Cinco Anos:
Mas qualquer leitor atento da história do pequeno Hans encontrará provas
abundantes de que ele também admirava o pai por possuir um pênis grande e
temia-o por ameaçar o seu. O mesmo papel é desempenhado pelo pai tanto no
complexo de Édipo quanto no complexo de castração, ou seja, o papel de um
inimigo terrível dos interesses sexuais da infância. O castigo com que ele
ameaça é a castração, ou o seu substituto, a cegueira. (FREUD, 1987a, p.157)
O castigo que é ameaça é também aquele que seimposto quando os irmãos
se rebelarem. Assim com Urano castrado, com Cronos aprisionado, com Laio morto e
com o próprio Édipo que se cega. O objetivo é sempre um poder que está em mãos
masculinas e deve ir para outras mãos masculinas. Mais uma vez em Totem e Tabu,
Freud evoca a refeição totêmica para explicar a organização social, das restrições
morais e da religião(FREUD, 1987a, p.170). Depois de se unirem e assassinarem o
pai, eles o devoram. Na verdade, este pai primevo que foi devorado foi também modelo
para cada um de seus filhos. E, segundo Freud, devorar tal pai é também se identificar
com ele, na medida em que cada um dos irmãos, depois de fazê-lo, adquire uma parte
38
da força do pai devorado. O motivo da refeição totêmica é, mais uma vez, a conquista
de poder:
Odiavam o pai, que representava um obstáculo o formidável a seu anseio de
poder e aos desejos sexuais; mas amavam-no e admiravam-no também. Após
terem se livrado dele, satisfeito o ódio e postos em prática os desejos de se
identificarem com ele, a refeição que todo esse tempo tinha sido recalcada
estava fadada a fazer-se sentir e assim o fez sob a forma do remorso. Um
sentimento de culpa surgiu, o qual, nesse caso, coincidia com o remorso
sentido por todo o grupo. O pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo
pois os acontecimentos tomaram o curso que com tanta freqüência os vemos
tomar nos assuntos humanos ainda hoje. O que até então fora interdito por sua
existência real foi doravante proibido pelos próprios filhos (...). Anularam o
próprio ato proibindo a morte do totem, o substituto do pai; e renunciaram a
seus frutos abrindo mão da reivindicação às mulheres que agora tinham sido
libertadas. (FREUD, 1987a, p.171-172)
No entanto, no caso de Édipo, o castigo é diferente ao que é imposto a Urano e
Cronos. A cegueira de Édipo é voluntária, fruto daquilo que o próprio Freud define como
“sentimento de culpa filial”. O mesmo sentimento de culpa que fez com que os irmãos
que se rebelaram ante a horda patriarcal erigissem para o pai um totem simbólico e
presumidamente indestrutível.
Este totem erigido é também a base do complexo de Édipo freudiano na medida
em que reúne em sua essência os dois tabus que lhe são referentes: não tirar a vida do
animal totêmico e manter a exogamia como referência natural e permanente. Também
é a edificação deste totem, quero acreditar, aquilo que solidifica a linguagem do
masculino. Ou seja: a refeição totêmica, que acontece para que a horda patriarcal seja
destruída, é também aquilo que garante sua permanência. E esta linguagem do
masculino se reinstaura sem nunca ter perdido seus poderes reais: quem continua
definindo normas e padrões, contando a história, castrando, matando e cegando são os
poderosos. E os poderosos o homens: o mesmo Urano que procria desvairadamente
39
e depois se mutilado, o mesmo Cronos que engole seus filhos e depois será
encarcerado, o mesmo Édipo que mataseu pai e logo ficará cego por suas próprias
mãos.
Mas, na mesma medida em que falar de uma linguagem do masculino aponta
para o poder dos homens, também aponta para a passividade masculina, o que talvez
nos mostre uma condição análoga à da mulher. Em outro de seus textos, Dostoiévski e
o parricídio, Freud (1996) nos incita a perceber como esta relação entre o poder e
aquilo que dele deriva possui, nos bastidores dessa trama, a interferência do
inesperado. E este inesperado, desvendado na tragédia através daquilo que Aristóteles
chama peripécia, vem para nos mostrar o ideário inexorável da Moira, do destino.
Freud, no texto anteriormente citado e a partir de sua teoria psicanalítica, mostra como
a culpa do parricídio e a idéia da castração se misturam de modo complexo e a partir de
relações que são inerentes ao próprio humano:
Uma grande necessidade de punição se desenvolve no ego, que em parte se
oferece como vítima ao destino e em parte encontra satisfação nos maus tratos
que lhe o dados pelo superego (isto é, no sentimento de culpa), pois toda
punição é, em última análise, uma castração e, como tal, realização da antiga
atitude passiva para com o pai. Mesmo o Destino, em última instância, não
passa de uma projeção tardia do pai. (FREUD, 1996, p.190)
Nesse sentido, é possível que exista, nas ações desses homens poderosos,
nesta linguagem que instaura o patriarcado, algo que esteja sempre em evidência e que
diga respeito a deuses e ánthrōpos: o rebelar-se contra aquilo que foi estabelecido. É
que, para conquistar o poder, é necessário insurgir-se contra o poder. Trata-se de mais
um código dessa linguagem patriarcal: o homem não deve aceitar aquilo que lhe é
imposto. Talvez por isso Cronos castra Urano, Zeus combate e aprisiona Cronos, e
40
Édipo, mesmo de modo involuntário, diferente da cegueira que provoca em si mesmo,
mata Laio na encruzilhada de três caminhos. Por trás de cada uma destas rebeldias,
está a tentativa de iludir o destino, de enganar a Moira. E desafiar aquilo que foi
prefigurado também pode ser considerado uma prerrogativa dos homens. Contudo, o
que distingue os atos divinos das ações humanas na busca do poder é aquela mesma
involuntariedade que surge nos resultados desta procura. É ela que torna o Édipo
trágico, distanciando sua história da de seus deuses. Afinal, embora sejam feitos à
imagem e semelhança um do outro, entre os dois uma diferença singular: os deuses
criaram seus homens mortais e efêmeros; os homens fizeram de seus deuses
permanentes e imortais.
Voltando à não aceitação do próprio destino, o que se pode perceber, no mito de
Édipo, assim como nos outros evocados nesta dissertação, é que este impulso
masculino em não aceitar e, assim, ludibriar o fadário, é sempre decisivo. Para tal,
basta recordar o que conta o mito: para não matar o pai e casar-se com a mãe, Édipo
foge de Corinto, não aceitando as prerrogativas do oráculo. Trata-se da linguagem do
masculino sendo constituída na mesma tradição que fez com que Cronos engolisse
seus filhos e que Zeus fizesse o mesmo com sua própria esposa.
No entanto, há, nessa ordem do masculino, um elemento que poderia ser dito
intangível: o próprio feminino. Ou a Gaia que, como Jocasta, é mãe de seu próprio
esposo, também não é a mulher, a terra que espera a chuva de seu filho Urano para
conceber toda a primeira geração de deuses? Como Gaia e Jocasta, também a Moira
e, junto com ela, seu equivalente Aîsa, na voz árcado-cipriota, um dos dialetos usados
por Homero – define-se a partir do gênero feminino (BRANDÃO, 2004a, p.140-141).
41
E a Moira, como se viu, não pode ser enganada. Na mesma medida em que
ela está escrita, também está inscrita na ordem do masculino. De que maneira e a partir
de quais pressupostos esta Moira se insere nesta ordem, assim como que papéis são
conferidos ao feminino dentro dessa perspectiva, é o que se pretende investigar no
próximo capítulo.
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3. MEDIDA E DESMEDIDA
Trata-se de uma ânfora de cerâmica, datada de 440 a.C. (ver Anexo A). Neste
vaso grego, que se encontra no Museu Municipal de San Gimignano (Siena, Itália),
sobre uma base negra, a pintura coruscante em vermelho mostra um homem apoiado
num bastão. À sua frente, a esfinge parece esperar uma resposta para a pergunta que
foi feita ao sujeito. Se este homem, que mais se assemelha a um velho se escorando
numa vareta em busca de equilíbrio, solucionar a adivinha que lhe foi proposta pelo
monstro que tem diante de si, as recompensas podem ser enormes.
Um desses prêmios se encontra aqui mesmo, neste vaso de 440 a.C. Trata-se
de uma mulher que vem logo atrás da esfinge, no mesmo matiz vermelho que se
destaca sobre a base negra. Se o homem acertar a resposta, esta mulher que vemos
no jarro será sua e, com ela, o poder que advém de ser o rei, o tirano de uma
importante pólis grega. Além disso, ele será querido pelo povo desta cidade, uma vez
que a solução do enigma significa também acabar com a peste que os deuses
mandaram sobre o lugar.
E tirano aqui, como lembra Michel Foucault (2002) em conferência pronunciada
na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e que foram transformadas no
livro A verdade e as formas jurídicas, não deve ser entendido no sentido mais estrito.
De acordo com Foucault, tirano era aquele que depois de ter conhecido várias
aventuras e chegado ao auge do poder estava sempre ameaçado de perdê-lo
(FOUCAULT, 2002, p.44). Assim, pode-se dizer, junto com o filósofo francês, que a
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irregularidade do destino seria, portanto, uma característica do personagem do tirano,
assim como ele é descrito nos textos gregos do fim do século VI e início do V.
Mas será mesmo que tudo depende apenas de uma resposta certa? Talvez seja
preciso mirar o vaso com maior atenção, tentando enxergar naquilo que se o que
não é para ser visto. Com efeito, se a ânfora for observada com melhor empenho, o que
se poderá notar é que a tinta negra não recebeu, de fato, nenhum outro tipo de
pigmento sobre ela. Na verdade, a cnica adotada neste artesanato fino consiste em
cobrir a superfície da ânfora com um verniz negro, deixando o espaço da figura com o
mesmo tom escarlate da argila.
Então, os arabescos que encimam o jarro, o homem que se sustenta na vareta, o
monstro poderoso que espera a resposta e a mulher que alguma coisa parece esperar
são, é o que agora se pode jurar, o o preenchimento, mas a própria falta do verniz
escuro. É a partir da ausência da tinta negra, pelas lacunas que ela deixou na argila
vermelha, que vislumbramos encontrar as figuras que simbolizam um dos mitos mais
caros da antigüidade grega. Uma lenda cujos espaços, vazios ou não, foram se
preenchendo ao longo de mais de três mil anos, chegando ao culo XXI de nossa
história tão consistente e viva como aparenta estar a ânfora que podemos observar
virtualmente, pela internet, e, de perto, num museu de uma cidade italiana. Assim,
poder-se-ia mesmo afirmar que é pela falta que talvez possamos vislumbrar o dito, o
próprio mito.
As figuras que, por meio da ausência de tinta, encontram-se presentes no jarro
são significantes básicos do mito de Édipo. E se a esfinge, Jocasta e o próprio Édipo
possuem atualmente um vigor semelhante, ou talvez maior, do que no dia mesmo em
44
que o vaso foi manufaturado, isto se deve certamente a uma obra literária: o Oidípous
Týrannos, de Sófocles.
...nas primeiras versões do mito não há, no conteúdo legendário, o menor traço
de autopunição, porque Édipo morre tranqüilamente instalado no trono de
Tebas, sem ao menos ter furado seus olhos. É precisamente Sófocles que,
conforme a necessidade do gênero, ao mito sua versão propriamente
trágica a única que Freud, que o é mitólogo, pôde conhecer, a única que,
conseqüentemente, nós discutiremos aqui. (VERNANT; VIDAL-NAQUET,
2005, p.56-57)
A citação anterior, além de chamar a atenção para o fato de que é a versão que
Sófocles constrói com seu discurso trágico aquela que serve de princípio para Freud
construir a base de sua teoria, nos coloca mais uma vez frente à ânfora do Museu de
San Gimignano. Ao propor para a lenda uma interpretação em que Édipo não chega ao
fim de sua vida como o ánthrōpos trágico de Sófocles, Vernant parece se referir à
passagem da Odisséia em que Homero nos dá seu conhecimento deste mito. Um
conhecimento que, levando-se em consideração a data provável da escritura homérica,
século VIII a.C., conta-nos uma variação da lenda produzida cerca de três séculos
antes que o dramaturgo de Colono escrevesse sua obra, assim como nos lembra Junito
Brandão.
Vi também a mãe de Édipo, a bela Epicasta.
Ela, sem o saber, cometeu um grande crime,
casando-se com o filho, que a desposou após matar e despojar o pai.
Os deuses rapidamente fizeram com que a notícia circulasse entre os homens.
Édipo, todavia, apesar de tantos sofrimentos por funestos desígnios dos
deuses,
continuou a reinar sobre os Cadmeus, na muito amada Tebas. (BRANDÃO,
2000, p.303)
45
Muito embora a versão de Homero, é o que se acredita, não traga nada que não
pudesse ter inspirado a teoria freudiana, ela sem dúvida é menos intensa que a de
Sófocles no sentido de criar um Édipo com a tragicidade que lhe reconhecemos hoje.
Isto vem corroborar o conceito de Lévi-Strauss, segundo o qual mito é linguagem e,
como tal, algo que é permanentemente esvaziado e preenchido.
É por isso que voltamos novamente à ânfora de San Gimignano, para nos
apropriarmos dela no momento em que foi produzida, segundo a técnica das figuras
vermelhas, difundida por Exéquias a partir do século VI a. C. Como se disse, tais
figuras, que em geral mostravam cenas cotidianas ao lado de representações heróicas,
eram então deixadas na cor natural da argila para contrastar com o fundo pintado de
negro.
Estamos, de acordo com as informações do Museu Municipal de San Gimignano,
em 440 a. C., e podemos adquirir uma vasilha cerâmica como essa, com seu par de
asas simétricas que facilita o transporte, para guardar vinho, azeite ou água, além de
conservar cereais. A data em que o vaso vem dar a nossas mãos é anterior em
aproximadamente dez anos àquela em que o Édipo Rei, de Sófocles, foi encenado pela
primeira vez (KURY, 2002, p.7).
Como se sabe, a tragédia grega, enquanto gênero literário, acontece em um
período decisivo da Grécia antiga: o século V a.C. Entre a data da primeira provável
encenação de Os Persas, de Ésquilo (472 a.C.), e a montagem de As Bacantes, de
Eurípides, possivelmente em 405 a.C., a tragédia grega vive seu auge e declínio. Trata-
se, como lembra Vernant, de um gênero reconhecido em um momento histórico
bastante circunscrito, e datado com precisão: Vêmo-la crescer em Atenas, florescer
e degenerar quase no espaço de um século.” (VERNANT, VIDAL-NAQUET, 2005, p.2)
46
Um paralelo imaginário que poderia ser traçado com esse nascimento, apogeu e
morte da tragédia grega seria imaginar-se o mesmo para a arte cinematográfica. Ou
seja, que, tendo sido apresentado ao público pela primeira vez em 1895, pelos irmãos
Lumiére, em Paris, o cinema vivesse nos dias de hoje sua decadência mais completa,
estando fadado ao desaparecimento.
Mas, agora, estamos no século de Péricles. A ânfora que hoje pode ser
apreciada no Museu de San Gimignano é encontrada, então, em mercados de cidades
bem organizadas, as chamadas pólis. Antes de Péricles, sob o comando de Clístenes,
Atenas conheceu o fim da tirania, a partir de uma série de reformas que possibilitaram
que, pouco mais tarde, contássemos com o advento da chamada “democracia
ateniense”. Mais uma vez, vale recorrer a Vernant para lembrar a importância dessa
“Cidade-Estado” e de suas formas jurídicas, filosóficas e organizacionais para que este
gênero literário se desenvolvesse em plenitude.
A matéria da tragédia não é mais então o sonho, posto como uma realidade
humana estranha à história, mas o pensamento social próprio da cidade no
século V, com as tensões, as contradições que surgem nela, quando a
chegada do direito e as instituições da vida política questionam, no plano
religioso e moral, os antigos valores tradicionais: estes mesmos que a lenda
heróica exaltava, donde a tragédia toma seus temas e suas personagens, não
mais para glorificá-los, como o fazia ainda a poesia lírica, mas para discuti-los
publicamente, em nome de um ideal cívico, diante dessa espécie de
assembléia ou de tribunal populares que é um teatro grego. (VERNANT,
VIDAL-NAQUET, 2005, p.55)
É entre 461 e 429 a.C., no período conhecido como a “Idade de Ouro de Atenas”,
que Péricles consolida a prosperidade grega em aspectos como a economia, através de
empreendimentos e do expansionismo proposto pela denominada Liga de Delos, e a
47
cultura. Neste último aspecto, Sófocles, ele próprio um estrategista militar de Péricles,
produz uma obra que irá marcar o período de maneira incontestável.
O monumento perene do espírito ático na época da sua maturidade é
constituído pela tragédia de Sófocles e pela escultura de Fídias. Ambos
representam a arte do tempo de Péricles.
(JAEGER, 2003, p.320)
Mas o que talvez seja mais notável na era de Péricles é o fato de que ela se
caracteriza por ser o tempo formador da base de um tópico que, certamente, é a maior
herança deixada pela antigüidade grega no que se refere ao conhecimento. Trata-se da
filosofia, uma matéria que, um século mais tarde, quando Platão anunciar que a medida
de todas as coisas é Deus, tentará não deixar mais lugar para que o homem seja esta
referência.
Antes, no entanto, é a fórmula do sofista Protágoras – segundo a qual, em
oposição direta à filosofia antitrágica platônica, o parâmetro das coisas é o homem a
maneira de enxergar o mundo que irá oferecer a possibilidade para que o próprio
Sófocles veja seu Édipo com um olhar trágico e, sobretudo, humano. É com o
dramaturgo de Colono que este humano encara o trágico de maneira decisiva. O objeto
da tragédia é o homem em si mesmo, que, como afirma Vernant (2005), é coagido a
fazer uma escolha definitiva, a orientar sua ação num universo de valores ambíguos
onde jamais algo é estável e unívoco” (VERNANT, VIDAL-NAQUET, 2005, p.3).
Dos três autores trágicos gregos cuja obra chegou a nosso conhecimento, talvez
seja Sófocles aquele em que a exposição da dor humana assume seu caráter mais
educativo, no sentido de que é o homem o agente a interessar de fato. O que o autor de
Édipo Rei faz é, seguindo uma tendência formadora de seu tempo, dirigir-se ao homem
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de maneira a expor-lhe a dor. Assim, Sófocles se envolveu decisivamente na vida de
sua época. À organização e às metas expansionistas da pólis, serviu como tesoureiro-
geral de Atenas em 443/2 a. C. Foi também eleito, no mínimo duas vezes, comandante
do exército em expedições militares. Mas foi como tragediógrafo, sabe-se, que alcançou
a fama. Escreveu cerca de 123 peças teatrais e obteve nada menos que 24 prêmios em
concursos trágicos que eram tradição em seu tempo (KURY, 2002, p.7).
Tais concursos, instituídos pela Cidade-Estado, fazem parte da realidade social
desta Grécia contemporânea não apenas de Sófocles e Péricles, mas de pensadores
como Protágoras, citado anteriormente, e o historiador Heródoto. Como afirma Werner
Jaeger (2003), a arte com que Sófocles cria os seus caracteres é constantemente
inspirada pelo ideal de conduta humana que foi a criação peculiar da cultura e da
sociedade do tempo de ricles(JAEGER, 2003, p.321). O que se tem, portanto, é o
fato de que, neste século V a. C. que marca o apogeu e o declínio da tragédia, tudo
parece caminhar em sintonia: a democracia que se institui; um processo de educação
humana que se instaura através de projeções artístico-culturais; a invenção de um
homem grego que, mais tarde, irá dar origem ao que se pode mesmo chamar “homem
ocidental”.
E é neste contexto que Sófocles insere seu texto trágico, de maneira que o viver
humano, ao não se submeter à vontade dos deuses, escancara a dor que é inerente a
este ser ao mesmo tempo social, heróico e efêmero. Nesse sentido, a sintonia que o
tempo de ricles parece anunciar não é garantida pela serenidade. Antes, traz a
incerteza de um momento em que valores se confrontam e normas são questionadas,
em que este brotós luta entre a culpa e a inocência, a lucidez e a cegueira, o poder e o
fracasso. Contudo, pouco haveria de novo em todas essas contradições se Sófocles
49
não soubesse mostrar, com a ação dramática trepidante que caracteriza suas obras,
que esta dor humana é um sentimento inexorável, do qual não se pode fugir. Como
afirma Jaeger, o que em Sófocles é trágico é a impossibilidade de evitar a dor. É esse
o rosto inevitável do destino, do ponto de vista humano” (JAEGER, 2003, p.329).
3.1. TRAGÉDIA E AMBIGÜIDADE
A inexorabilidade do sentimento da dor trágica que caracteriza a obra de
Sófocles será tratada um pouco mais à frente nesta dissertação, de maneira a tentar
perceber em que sentido esta dor é influenciada e influenciadora daquilo que
pretendemos expor aqui: a medida e a desmedida no mito de Édipo. Antes, contudo,
seria interessante tentar perceber qual é a lógica deste páthos trágico. Para isto,
voltamos à ânfora exposta no museu da cidadezinha italiana a fim de tentar entender
porque somos levados a imaginar, depois de correr os olhos pelo objeto que se mostra
na tela de um computador, que as figuras é que foram pintadas sobre o verniz, e o
algo diferente.
Se o devaneio na comparação não é demasiado, seria interessante lembrar os
princípios básicos do que chamamos linguagem cinematográfica, como foi feito há
pouco ao compararmos o nascimento, apogeu e decadência da tragédia grega a um
fato semelhante que pudesse acontecer com o próprio cinema. Esta arte fundada no
século XIX de nossa era tem no plano, ou no enquadramento, um de seus eixos
principais. Poder-se-ia dizer que a gramática do cinema se move em função do plano. É
50
o enquadramento que dá, para aquilo que é mostrado na tela, um sentido próprio e
preciso.
Utilizando um exemplo bastante simples, o beijo mostrado a partir de um plano
muito aberto, em que um casal aparece apenas como um pontinho numa praia deserta,
quer dizer algo muito diferente do que este mesmo beijo se mostrado bem de perto, em
close. Portanto, entender a linguagem proposta pelo plano cinematográfico quer dizer
usar o enquadramento acertado para aquilo que se quer dizer: se esperamos dar a
idéia de que quem beija é um casal arrebatado pela paixão, utilizaremos o close; mas,
para conotar alguma espécie de solidão vivida pelas mesmas duas pessoas, será
melhor usar o plano mais aberto.
A lógica desta linguagem está no fato de que o enquadramento só contém aquilo
que é para ser visto. Assim também uma pessoa frente a um quadro afixado num
museu. Se perguntamos a ela o que vê quando olha em direção à obra de arte,
certamente descreverá a própria obra que tem diante de si. É extremamente provável
que ela não diga nunca que também uma parede. Isto porque, dentro de tal lógica, a
parede não é para ser vista. (PEREIRA, 1984)
Na ânfora de San Gimignano, a lógica parece ser a mesma. Ao enxergar o vaso
pela primeira vez, somos levados a crer que os desenhos é que foram pintados sobre o
verniz negro. Para perceber que o processo é o inverso, que a não-pintura é que revela
os desenhos, deve-se estar mais atento. Pode-se dizer que há, aí, uma lógica a ser
desconstruída. E, para descobrir o processo, é necessário entender os caminhos de tal
processo.
Isto acontece porque esta lógica joga com o que se poderia chamar
ambigüidade: aquilo que parece que é e aquilo que é de fato. A linguagem trágica
51
também se comporta da mesma maneira. O Édipo que caça é, na verdade, o sujeito
que é caçado. A Jocasta que encontra seu esposo está realmente reencontrando seu
filho. Mas nós, para que a linguagem do gênero obtenha êxito, somos levados a
vislumbrar apenas os arabescos e as figuras de Édipo, da esfinge e de Jocasta na
ânfora que enchemos ou esvaziamos de vinho. Não enxergamos a parede porque a
parede não é para ser vista. Só podemos ver aquilo que o plano nos mostra na tela
cinematográfica.
...a lógica da tragédia consiste em ”jogar nos dois tabuleiros”, em deslizar de
um sentido para outro, tomando, é claro, consciência de sua oposição, mas
sem jamais renunciar a nenhum deles. Lógica ambígua, poder-se-ia dizer. Mas
não se trata mais, como no mito, de uma ambigüidade ingênua que ainda não
se questiona a si mesma. Ao contrário, a tragédia, no momento em que passa
de um plano a outro, demarca nitidamente as distâncias, sublinha as
contradições. (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2005, p.15)
Na tragédia grega, esse jogo segue até o final do drama. então é que se
permitido perceber o verdadeiro rosto dos agentes da trama, depois que os fatos
assumirem seu verdadeiro significado. Antes disso, mesmo que esteja inteira à nossa
frente, a parede não será vista. Assim também o jogo da criação literária: elaborado em
suas minúcias e trágico na invenção de suas possibilidades, uma vez que elas nunca
se esgotam, que não têm nunca fim, que nada é, realmente, impossível.
É por isso que, mesmo que o mito haja revelado que o Édipo esposo é, na
verdade, o Édipo filho, isto será reconhecido no final. A platéia que sabe finge que
de nada sabe, uma vez que ela também é parceira. Daí, então, a necessidade de estar
sempre a olhar com outros e melhores olhos para a ânfora e seu verniz e seus
desenhos. Para também participar do jogo. Para ver se alguma coisa escapou à nossa
52
atenção, mesmo que esta seja uma atenção possibilitada apenas pela época em que o
olhar é colocado.
E o fato de a platéia participar do jogo acontece, acredita-se, não pelo motivo
que quer Freud em uma de suas conferências sobre o conteúdo latente da tragédia
edipiana. Nesta dissertação, o que se quer pensar é que a ação do público vem, antes,
a partir das condições inerentes ao próprio gênero, dos valores estabelecidos pela
tragédia grega, do tecido ambíguo construído por Sófocles que, depois de brincar com
seus contemporâneos, seguiu fazendo o mesmo com os homens futuros Freud, um
deles.
Se os antigos as admiravam, se o público moderno é por algumas delas
perturbado, como pelo Édipo-Rei, é porque a tragédia não está ligada a um
tipo particular de sonho, porque o efeito trágico não reside em uma matéria,
mesmo onírica, mas na maneira de dar forma à matéria, para fazer sentir as
contradições que dilaceram o mundo divino, o universo social e político, o
domínio dos valores, e fazer assim aparecer o homem como um thaûma, um
deinón, uma espécie de monstro incompreensível e desconcertante, ao mesmo
tempo agente e paciente, culpado e inocente, dominando toda a natureza por
seu espírito industrioso e incapaz de governar-se, lúcido e cegado por um
delírio enviado pelos deuses. (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2005, p.57)
Se a questão do gênero é determinante para esconder e revelar aquilo que deve
ser revelado ou escondido, possibilitando leituras múltiplas de uma mesma obra, é
necessário também tentar enxergar aquilo que, por trás dela e dentro de uma
perspectiva ao mesmo tempo autoral e temporal, permitiu uma visão de mundo pautada
por essa ambigüidade construtora da tragédia grega.
Como pouco se disse, Sófocles insere seu texto trágico num contexto de
duplicidades pautado por um viver humano que, embora a considere inexorável, não se
submete à vontade dos deuses e é capaz de escancarar sua própria dor. Ainda se
53
afirmou que aquilo que torna ímpar o tecido de Sófocles, uma escrita fundadora de todo
um gênero literário, é o fato desta dor ser algo também inexorável, determinada mesmo
pelo que hoje poderíamos chamar destino. Assim, o que se quer acreditar é que a
ambigüidade que constrói o texto trágico grego é definida pela noção de medida e
desmedida que está presente de modo decisivo no Édipo Rei, em outras tragédias
gregas e, como não poderia deixar de ser, na maneira helênica de ver o mundo.
3.2. ERRO, HONRA E DESTINO
Para entender melhor tal questão, é preciso buscar sentidos em palavras como
Hamartía e Hýbris. Ao lado destes conceitos, também cumpre tentar compreender os
significados da Moira na Grécia antiga. Através da noção desses termos é que se pode
entrar numa questão que, como lembra Johnny José Mafra (1980), é essencial para
que o trágico seja avaliado enquanto gênero literário e como maneira de enxergar o
próprio mundo.
O elemento possibilitador do trágico, aquilo que torna o homem trágico, é a
separação ontológica, isto é, a oposição homem/finitute-contigência-
imperfeição. (MAFRA, 1980, p.66)
Quando nomeamos a relação homem/finitude, o que estamos fazendo é nomear
também aquilo que é inerente a esta mesma relação: a ambigüidade, a contradição.
Para Albin Lesky (1971), como citado por Mafra (1980), todo trágico se baseia em uma
54
contradição irreconciliável. Tão logo aparece ou se torna possível uma acomodação,
desaparece o trágico(LESKY, 1971, p.25). Nesse sentido, como lembra a seguir o
próprio Lesky ao perceber como estudiosos modernos se debruçaram sobre o tema,
para que a tragédia exista é necessário que não haja solução, mesmo que possamos
enxergar finais conciliadores em determinados textos trágicos do século V a. C.
A absoluta falta de solução para o conflito trágico foi convertida, precisamente
por algumas teorias modernas, em ponto central e em requisito primordial para
a realização da autêntica tragédia. (LESKY, 2001, p.35)
No sentido de perceber porque a contradição trágica é irreconciliável, é que se
torna necessário buscar o entendimento para os conceitos de Hamartía e Hýbris,
fazendo o mesmo a seguir com a Moira. Em seu Dicionário Mítico-Etimológico, Junito
Brandão (2000) aponta o seguinte significado para Hýbris: tudo quanto ultrapassa a
medida, o excesso, o descomedimento, a démesure” (BRANDÃO, 2000, p.558). Ainda
segundo Brandão, em termos religiosos, matéria em que esta palavra é mais
freqüentemente usada, a Hýbris é uma violência, uma insolência, uma ultrapassagem
do métron (na medida em que o homem quer competir com o divino)(BRANDÃO,
2000, p.558). Para Johnny Mafra, a tragédia existe no momento em que a Hýbris ou
desmedida entra em conflito com a justiça ou a medida” (MAFRA, 1980, p.71).
No que se refere à definição de Hamartía, o próprio Mafra lembra o capítulo XIII
da Poética, de Aristóteles. No entender do estagirita, a causa do trágico é a Hamartía,
isto é, a falha, o erro. E não se trata, na maior parte das vezes, do erro indiscriminado e
proposital. Na tragédia grega, o erro tem uma dimensão intelectual, não moral. A falha,
portanto, acontece em função de uma incompetência humana no sentido de distinguir o
55
que é certo daquilo que não é. Um dos exemplos que Aristóteles neste mesmo
capítulo é o do próprio Édipo.
Realmente, quando consideramos o Édipo Rei, somos levados pela trama trágica
de Sófocles a não reconhecer no tirano de Tebas uma culpa moral. Sua Hamartía
parece se dever a uma falha de julgamento, de discernimento a respeito das situações
que vive. Um erro que, se levarmos em consideração o pensamento trágico do século V
a. C., poderia até mesmo contar com um componente atávico, mas que não é devido ao
caráter do herói em si mesmo. Édipo mata Laio porque não sabe que ele é seu pai, e
desposa Jocasta porque não tem conhecimento de que ela é sua mãe. Assim, tudo
ocorre porque a falha está no juízo que o herói faz: julgando matar um qualquer,
assassina o pai que ordenou que matassem o próprio filho – ele mesmo, Édipo;
pensando estar se casando com a rainha de Tebas, desposa realmente a rainha de
Tebas e, junto com ela, a mulher que lhe deu à luz. Isto, pelo menos, é o que reza uma
leitura ortodoxa desse mito.
Contudo, se a culpa moral o está no herói, ela talvez esteja em sua
ascendência. No Laio e na Jocasta que, temendo que o poder escapasse de suas
mãos, ordenaram, deliberadamente, o filicídio. E, antes mesmo, seguindo a tradição
mitológica e caminhando além do que nos diz o texto trágico de Sófocles, a Hamartía
pode ser encontrada também no amor contra naturam de Laio por Crisipo, provocador
da culpa primordial” da casa dos labdácidas, à qual pertence Édipo (BRANDÃO,
2004c). Daí se afirmar que na Hamartía um elemento atávico, que a herança de
um é a bris pretérita de outros, e a culpa que será carregada a partir dela. Aqui,
então, a transgressão é capaz de imputar a uma determinada geração o castigo que
deveria pertencer à outra. Como lembra Hegel (1964), o indivíduo heróico não
56
estabelece qualquer separação entre si e o Todo moral de que faz parte, mas antes se
considera como formando uma unidade substancial com o Todo” (HEGEL, 1964, p.70).
Ainda no que se refere a Sófocles (2002), pode-se encontrar, em cada uma de
suas tragédias, um coro que, ele mesmo ou através do Corifeu, está sempre avisando
sobre o perigo e os danos provocados por Hýbris e Hamartía. No Édipo Rei, isto
acontece quando o rei de Tebas, que apenas começa a desconfiar de sua verdadeira
origem, põe em dúvida, estimulado por Jocasta, os vaticínios do oráculo de Delfos. O
que está sugerido, aqui, é que a desmedida e o erro não se encontram nos atos em si,
mas, e sobretudo, no orgulho humano que faz com que Édipo questione a predição dos
deuses.
Mas o homem que nos atos e palavras
se deixa dominar por vão orgulho
sem recear a obra da justiça
e não cultua propriamente os deuses
está fadado a doloroso fim,
vítima de arrogância criminosa,
que o induziu a desmedidos ganhos,
e sacrilégios, à loucura máxima
de profanar até as coisas santas. (SÓFOCLES, 2002, p.62)
Se Hýbris e Hamartía pendem para o lado da transgressão, do dionisíaco
(naquilo que este vocábulo nos traz de mais consensual), a parte apolínea, luminosa e
equilibrada, joga com outros dois: Areté e Timé. A primeira é definida como a
excelência. A outra, como a honra. De acordo com Junito Brandão (2004), a Areté é
atribuída pelo próprio Zeus. A Timé, conseqüência natural desta última, é a recompensa
que o herói recebe por aquilo de notável que contabiliza ao longo de suas guerras e
discursos. É o próprio Brandão (2004) quem mostra como o devaneio dionisíaco
convive, de maneira ortodoxa, com a harmonia apolínea:
57
A areté, no entanto, é uma outorga de Zeus: é diminuída, quando se cai na
escravatura, ou é severamente castigada, quando o herói comete uma hýbris,
uma violência, um excesso, ultrapassando sua medida, o métron, e desejando
igualar-se aos Deuses. (BRANDÃO, 2004a, p.143)
No entanto, se os conceitos de Hýbris e Hamartía são indispensáveis para o
entendimento de como o trágico se configura a partir do humano, não menos essencial
é compreender o significado de Moira para os gregos antigos. Para isso vale, de início e
mais uma vez, recorrer ao mesmo Junito Brandão (2000) e a seu Dicionário Mítico-
Etimológico:
Moira, em grego Μolρα (Moîra), que provém do verbo µεφεσίJαι (meíresthai),
obter ou ter em partilha, obter por sorte, repartir, donde Moira é a parte, o lote,
o quinhão, aquilo que a cada um coube por sorte, o destino. Associada à
Moira tem-se, como seu sinônimo, nos poemas homéricos, a voz árcado-
cipriota Aîsa, em grego ΑΙσα (Aîsa), da mesma família etimológica do verbo
αloyµνάν (aisymnân), reinar sobre, ter o comando de. O grego homérico tem a
forma οϊτος (oîtos), sorte, destino. Uma aproximação com o osco aeteis, parte,
não é de todo desprezível. De qualquer forma, não se possui ainda uma
etimologia segura para Aîsa
que significa, como Moîra, lote, quinhão, a parte
que toca a cada um. Nota-se, de saída, o gênero feminino de ambos os
vocábulos, o que remete a idéia de fiar, ocupação própria da mulher e das
Moiras ou Queres. De outro lado, Moira e Aîsa aparecem no singular e só uma
vez na Ilíada, XXIV, 49, a primeira surge no plural, o que mais tarde, diga-se
logo, se repetirá muitas vezes. O destino tardiamente foi personificado e,
em conseqüência, Moira e Aîsa não foram antropomorfizadas: pairam
soberanas acima dos deuses e dos homens, sem terem sido elevadas à
categoria de divindades distintas. A Moira, o destino cego, em tese, é fixo,
imutável, não podendo ser alterado nem pelos próprios deuses. Há, no
entanto, os que fazem sérias restrições a esta assertiva, sobretudo em relação
a Zeus. (BRANDÃO, 2000, p.140-141)
Em seu sentido mais direto, portanto, poder-se-ia dizer que a Moira,
conotativamente, significa o destino. Trata-se de uma entidade que, identificando-se
com o próprio Zeus, guarda em si a expressão da essência divina, na medida em que
também é reconhecida a partir da Ananké (necessidade) e de Nêmesis (justiça). Como
se pode ver pela análise mítica e etimológica anteriormente citada, Moira é o lote, a
parte que cabe a cada um. E, aqui, estamos falando de deuses e de homens.
58
Por outro lado, é certamente no fato da Moira igualar esses dois seres tão
distintos que se encontra, acredita-se, a ambigüidade mais decisiva do pensamento
trágico. Esta talvez seja a razão de tanta polêmica no que se refere à caracterização
dessa entidade. No entanto, as variações em torno deste último tema, que são parte
essencial daquilo que esta dissertação pretende discutir, serão explicitadas mais à
frente. Cumpre, antes, compreender com maior e melhor exatidão porque esta Moira é
encarada como a personificação do próprio destino. Para fazê-lo, é necessário discorrer
sobre pontos que parecem fundamentais.
Em outubro de 1967, o jesuíta português Antônio Freire (1969), helenista
conceituado, defendeu sua dissertação de doutoramento na Faculdade Pontifícia de
Filosofia de Braga. O estudo, que apenas dois anos depois da defesa estaria no
prelo, ganhou o nome de Conceito de Moira na Tragédia Grega (FREIRE, 1969). De
modo genérico, a obra pretende discutir a questão do fatalismo nos autores trágicos do
século V a. C. e, nesse sentido, no próprio prólogo, Freire já diz a que veio:
O objetivo primordial dessa Dissertação é formular uma resposta clara e
decisiva à pergunta com que poderíamos intitulá-la:
-Fatalista a tragédia grega?
A esta pergunta respondemos categórica e convictamente:
-Não. (FREIRE, 1969, p.5)
Em sua dissertação, o sacerdote helenista realiza um estudo de inegável
erudição ao procurar estabelecer o conceito do fatalismo sob as perspectivas da
mitologia, da filosofia e da teologia. Num apanhado rigoroso que vai do pensamento da
antigüidade a algumas idéias contemporâneas, Freire (1969) investiga também como
os três autores trágicos Ésquilo, Sófocles e Eurípides – tratam em sua obra o
59
significado de Moira. Tudo isto sem perder de vista a questão da inexorabilidade do
destino e concluindo da maneira que no início da dissertação era antecipada: -“A
tragédia grega não é fatalista”. (FREIRE, 1969, p.293)
O que se quer chamar fatalismo na tragédia grega é exatamente o fato de o
homem trágico, Édipo um deles, estar submetido ao destino. Em tese, a Moira é
imutável e não pode ser transformada nem mesmo pelos próprios deuses. É aqui,
portanto, que se instaura o debate proposto por Freire: o jesuíta, com base na crença
de que nada pode estar acima de Zeus, rechaça a idéia da inalterabilidade da Moira.
Para ele, tal crença é primitiva e, apoiando-se em citações que vão de Homero a
Hesíodo, Antônio Freire acredita que é mesmo Zeus quem fixa o destino de todos os
seres.
Sem perder de vista a erudição e o detalhamento do trabalho de Freire (1969),
capaz de iluminar inúmeros aspectos relativos ao caráter trágico inerente ao
pensamento helênico e à obra dos três dramaturgos gregos, em que se quer apostar
aqui é mesmo numa suposta inalterabilidade da Moira. Na verdade, o que parece é que
Freire, ao se colocar neste ponto contra o fatalismo na tragédia grega, assume uma
perspectiva decididamente fundamentada numa ortodoxia teológica, menos helenista
que sacerdotal, e, por isto mesmo, mais mítica que católica. Tal traço pode ser
percebido quando o jesuíta analisa aspectos em que, inevitavelmente, a vontade da
Moira está acima da de Zeus.
Quando o conceito de moira é expresso pelo vocábulo άνάγκη (necessidade),
ou equivalente (τό χρεών), traduz a lei moral que rege o próprio Zeus, com cuja
vontade se confunde, como em teologia se identifica a essência divina com
os seus atributos. (FREIRE, 1969, p.300-301)
60
Tal debate, ao introduzir em parte aquilo que é o objetivo básico desta
dissertação, qual seja, as perspectivas ortodoxas e heterodoxas no Édipo, o que faz é
chamar a atenção para um dado decisivo: o lugar de quem faz a leitura de uma
determinada obra. Não apenas de quem faz a leitura, como se viu, mas também de
quem a produz
4
. Mas isto, como foi dito, veremos mais adiante. Vale, antes de
qualquer coisa, observar o que diz Junito Brandão (2004a), a propósito dessa
discussão proposta por Antônio Freire.
Os exemplos poderiam multiplicar-se tanto em defesa da identidade de Zeus
com a Moîra quanto, e eles são em número muitíssimo mais elevado, da total
independência de Aîsa face a todos os imortais.
O que se pode concluir, salvo engano, é que, por vezes, Zeus se transforma
em executor das decisões da Moîra, parecendo confundir-se com a mesma.
(BRANDÃO, 2004a, p.142)
Nesse sentido, seria oportuno lembrar as palavras do próprio Prometeu quando,
acorrentado ao rochedo, depois de haver sido castigado por Zeus ao roubar o fogo de
Hefesto e entregá-lo aos homens, conta ao coro da tragédia escrita por Ésquilo sobre a
força que caracteriza a Moira: O poder da Moira é superior ao de Zeus; ele não
escapará ao seu Destino(MAFRA, 1980, p.74). Vale, assim, atentar para o diálogo
entre Prometeu e o Corifeu, nas palavras de Ésquilo:
CORIFEU
E por quem o destino é governado? Dize!
PROMETEU
Pelas três Parcas e também pelas três Fúrias,
cuja memória jamais esquece os erros.
4
A distinção que se quer aqui fazer é entre aqueles que produzem teoria (aqui, no caso, Freire) e
aqueles que produzem com objetivos literários ou dramatúrgicos (no caso, Sófocles).
61
CORIFEU
Os poderes de Zeus, então, cedem aos delas?
PROMETEU
Nem mesmo ele pode fugir ao Destino. (ÉSQUILO, FOCLES, EURÍPEDES,
1999, p.37)
Na mesma medida, a Moira mostra sua primazia, como lembra Junito Brandão
(2004a), quando, em trecho da Ilíada, de Homero (1970), Hera responde a um Zeus
que quer livrar seu filho Sarpédon do perigo da batalha:
Crônida terrível, que palavras disseste? Um homem mortal, muito tempo
marcado pela Aîsa e queres livrá-lo da morte nefasta? Podes fazê-lo, mas nós,
os outros deuses todos, não te aprovamos. (BRANDÃO, 2004a, p.141)
Respeitada pelos próprios deuses, a Moira parece mesmo ter a prerrogativa
sobre o destino dos homens. Dos homens e dos deuses. Nesse sentido, se não
compartilhamos da idéia do jesuíta Antônio Freire e concedemos à Moira o privilégio de
pairar sobre deuses e homens, estamos, neste ponto decisivo, igualando uns e outros,
colocando-os no mesmo terreno de um caminho que conduz ao trágico e às
impossibilidades que lhe são inerentes.
Mas, outra vez, vale indagar que instância é essa à qual o humano e o divino se
submetem? Como o destino foi apenas tardiamente personificado, a Moira, por sua vez,
também não foi antropomorfizada. Não se trata, conseqüentemente, de chamá-las
divindades. Contudo, é imutável, e feminina. Após as epopéias homéricas, a Moira se
projetou em três entidades, as quais, costumeiramente, podem ser chamadas Queres.
São elas Cloto, Láquesis e Átropos. Três mulheres, três fiandeiras, urdindo o tempo de
uma existência que foi antecipadamente estabelecido. Cloto é a que segura o fio da
vida e vai puxando o fuso. Láquesis, aquela que enrola o mesmo fio e sorteia quem irá
62
morrer. Átropos, a que não volta atrás, mostrando-se inflexível em sua função de cortar
o fio que é tecido.
Assim, o destino divino e humano está entregue à Moira. Para os homens, o
resultado inexorável, heróico ou não, é mesmo a morte. Para os deuses, a derrota, a
castração, o esquecimento. Igualados na submissão, os fios de homens e de deuses se
entrelaçam. E esse emaranhar-se está presente, talvez se possa dizer, em toda a
tragédia e mitologia grega. Nesse sentido, aqueles que, humanos, entregam-se à
Hýbris e devem então ser punidos porque se colocaram no lugar do divino. E também
os que, deuses, rendem-se a Ftonos ou seja, à invídia e ao ciúme e, mesmo
olhando de cima do Olimpo, invejam até a mortalidade dos que vivem embaixo.
Trata-se do destino. E, quando o fio se emaranha, trata-se mesmo de um destino
trágico. E é aqui, neste chão universal escrito por caminhos áticos, que homens que se
crêem deuses e deuses que se passam por homens pagamos por tudo. Ou quase tudo.
Em Sófocles, como lembra Werner Jaeger (2003), o trágico se encontra no fato
desse homem, mesmo após ver sua Areté atropelada pela adversidade, desafiando
esfinges e deuses, manter de maneira contumaz a altivez que lhe é inerente. É porque
enxergou e para continuar enxergando que Édipo se cega. E é também por isto que ele
peregrina pela Hélade: para, convertido em homem sofredor, sumir depois pela floresta
e só ser encontrado novamente no imaginário dos que virão.
O drama de Sófocles é o drama dos movimentos da alma cujo ritmo interior se
processa na ordenação harmônica da ação. A sua fonte está na figura
humana, à qual volta continuamente como ao seu último e mais alto fim. Para
Sófocles, toda a ação dramática é apenas o desenvolvimento essencial do
homem sofredor. É assim que ele cumpre o seu destino e realiza a si próprio.
(JAEGER, 2003, p.332)
63
Talvez agora se possa compreender um pouco melhor a figura do Édipo na
ânfora de San Gimignano. Diante da esfinge, o rei de Tebas não parece ter o vigor
heróico do momento em que, conta o mito, enfrentou o monstro e respondeu à pergunta
fatal. Sim! Aquele que de manhã anda de quatro, ao meio-dia se sustenta em dois pés
e, ao entardecer, apóia-se também em um bastão é o próprio homem, este ser cansado
que aqui está, no lugar exato em que o verniz negro não foi pintado. Um ser
reconhecido pela falta, que, nesta vasilha de cerâmica, sustenta-se talvez no mesmo
pau com que deu na cabeça do próprio pai até matá-lo e cometer sua Hýbris inicial, sua
primeira Hamartía.
Desmedida e erro, involuntários que sejam, que farão com que percebam o
personagem de Sófocles e o discípulo de Exéquias que mergulha o pincel no verniz e
começa a pintar a vasilha que o Édipo que se posta à frente do monstro fabuloso é,
ao mesmo tempo, o anĕr vigoroso que decifra o enigma e o brotós extenuado que some
no bosque. São vários e é, só, um: homem trágico, definido pela falta, irrevogável pela
Moira. Uma Moira que, no contexto da tragédia e do mito grego, define-se mesmo como
uma espécie de linguagem soberana. O destino que está escrito.
Mas, talvez, esse Édipo que acerta na resposta que dá à esfinge tenha
convencido o monstro mas não tenha se convencido. Então, ele deve buscar mais:
cometer mais Hamartías, cegar-se, afundar-se na floresta em busca de si mesmo e,
depois, desaparecer. E não será de todo improvável imaginar que ele sumiu porque,
nas brenhas, encontrou-se a si próprio. Efêmero como um homem e permanente como
um deus, este ser que se encontra consigo mesmo talvez tenha conseguido também se
esvaziar do mito. Assim, como afirma Jaeger (2003), nem o destino nem Édipo o
absolvidos ou condenados”. (JAEGER, 2003, p.333)
64
Mas, para que a pintura do vaso se complete e a Moira cumpra seu papel
inexorável, ainda falta que Édipo se case com Jocasta e que, com ela, tenha quatro
filhos. Assim, Édipo, mesmo não querendo se igualar aos deuses, tefeito isto. É isto
também o que diz, de uma ou de outra maneira e por outros e mais elaborados
caminhos, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1992), quando afirma que os deuses
legitimam a vida humana pelo fato de eles próprios a viverem a teodicéia que sozinha
se basta!(NIETZSCHE, 1992, p.37) Casando-se com sua mãe e com ela gerando, ele
será como Urano. A desmedida involuntária será cometida. está Jocasta, no canto
esquerdo do vaso, esperando o filho que perdeu e pelo esposo que perderá. Também
ela efêmera, definida pela falta do verniz na cerâmica. Nietzsche (1992), em seu O
Nascimento da Tragédia, nos oferece uma espécie de definição do herói, cujo ambiente
suscita decisivamente o preenchimento pela falta que buscamos na ânfora de San
Gimignano:
Se abstrairmos, todavia, do caráter do herói, tal como aparece à superfície e se
torna visível - o qual no fundo nada mais é senão uma imagem luminosa
lançada sobre uma parede escura, isto é, uma aparência de uma ponta a outra
-, se penetrarmos bem mais no mito que se projeta nesses espelhamentos
luminescentes, perceberemos então, de repente, um fenômeno que tem uma
relação inversa com um conhecido fenômeno óptico. Quando, numa tentativa
enérgica de fitar de frente o Sol, nos desviamos ofuscados, surgem diante dos
olhos, como uma espécie de remédio, manchas escuras: inversamente, as
luminosas aparições dos heróis de Sófocles, em suma, o apolíneo da máscara,
são produtos necessários de um olhar no que há de mais íntimo e horroroso na
natureza, como que manchas luminosas para curar a vista ferida pela noite
medonha. (NIETZSCHE, 1992, p.63)
No entanto, a tragédia de Jocasta é distinta, subalterna de uma linguagem que
tem sua ortodoxia marcada na figura do masculino. Homens que dominam, que
decidem, que dormem com suas mães, matam seus próprios filhos, que escrevem
obras para o teatro, guerreiam, tentam enganar os deuses, são por eles invejados. À
65
mulher cabe um papel, como se disse, subalterno. Sófocles, contudo, talvez pela
primeira vez na trajetória da cultura grega, também dá a ela, à mulher, como lembra
Werner Jaeger (2003), a representatividade do humano. Trata-se de Antígonas,
Electras, Dejaniras, Tecmesas, Jocastas. Cada uma tão efêmera como os homens que
caminham a seu lado. Humanas e divinas, lutando contra a brevidade e o esquecimento
que tornam trágico o destino de cada um. Este destino que é tirano e que também é
Moira. E, como Moira, feminino, linguagem. Jocasta.
66
4. MARCAS DO GÊNERO
Ao ler o mito de Édipo, Sófocles, como se tentou mostrar, sublinhou
características que eram, ao mesmo tempo, determinantes de sua época e do gênero
ao qual se consagrou. No que se refere à abordagem do homem grego do século V a.
C., o dramaturgo de Colono avança em alguns aspectos de seu tempo, como a maneira
a partir da qual a mulher é introduzida na tragédia, ainda que o faça de maneira
moderada para os padrões da contemporaneidade. Quando o assunto é a questão do
gênero, Sófocles vai muito além, criando o próprio modelo.
Em Édipo Rei, a visão de mundo retratada é aquela que pertence a seu tempo e
aquela que dará a medida do tempo que virá. Ou seja: da mesma maneira que a obra
de Sófocles fala da Grécia que lhe é contemporânea, diz também de um mundo que
será, no mínimo, o espelho fosco de boa parte das idéias que surgiram nesse mesmo
universo da antiguidade helênica. Idéias que ainda hoje encontram eco em nossa
empresa ocidental. Talvez seja isto o que confira a este modo de conceber o mundo um
caráter até certo ponto marcado pela ortodoxia. Nesse sentido, para demonstrar tal fato,
valeria citar partes da obra em que a maneira de enxergar o humano se pauta pelo
ortodoxo em pelo menos três aspectos decisivos, quais sejam: o lugar de deus, o lugar
do homem e o lugar do trágico. Lugares estes que estão circunscritos não apenas à
sociedade grega da antiguidade, mas também, porque não dizer, à nossa natureza
contemporânea.
No que se refere à posição divina, mesmo que a tragédia concordar, no
futuro, com um discurso platônico que, grosso modo, insere deus como a medida de
67
todas as coisas, as ambigüidades são decisivas. Primeiro porque, ao colocar deus no
centro, a tragédia de Sófocles e, em particular, o Édipo Rei, se opõem àquilo que dizem
Protágoras e os sofistas do século V a. C: que o homem é a medida de todas as coisas.
No entanto, ao pensar desta maneira e se aproximarem da fórmula platônica, os
trágicos estarão fazendo um discurso análogo àquele que já havia sido feito com
Homero, por exemplo, e que se tecido com Platão, aproximadamente um século
depois. E, aqui, vale recordar o caráter essencialmente antitrágico da filosofia platônica
(JAEGER, 2003). Para Albin Lesky (2001), a obra de Sófocles deve ser encarada
sempre como engenho humano e luta humana, ao lado do inapreensível, inatingível
governo dos deuses!(LESKY, 2001, p.148) Em Édipo Rei, são inúmeras as ocasiões
em que é a vontade dos deuses aquela decisiva, determinante, implacável. Zeus, em
cada momento, e na fala de todos, é sempre chamado “o todo poderoso”:
Deus todo-poderoso, se mereces
Teu santo nome, soberano Zeus,
Demonstra que em tua glória imortal
Não és indiferente a tudo isso! (SÓFOCLES, 2002, p.62)
Entretanto, se o lugar de deus é assegurado acima de todas as coisas, em
“glória imortal”, o lugar do trágico evidencia uma ambigüidade própria do humano. Este
duplo sentido está no destino que, se não deixa de ser construído por meio de ações
que confirmam o movimento da alma das personagens, também é inexorável. E a tal
destino, como se viu no capítulo anterior, até mesmo Zeus deve estar subordinado.
Trágica, então, é a impossibilidade do divino e do humano se desvencilharem do tecido
da Moîra. É por isso que, como diz Pierre Vidal-Naquet (2005), nos trágicos, a
68
divindade é também medida, mas é medida no termo da tragédia(VERNANT; VIDAL-
NAQUET, 2005, p.282).
A saga de Édipo seria então, nestes termos, algo que talvez nem mesmo os
deuses podem mudar. Se há quem possa transformar o mito, este alguém (deus?) é
Sófocles, criador que exerce suas prerrogativas de maneira implacável, vestindo suas
criaturas (suas, porque não pertencem mais ao mito, mas a ele próprio) com o tecido
trágico que julga apropriado. Isso significa que, nas especificidades do gênero, aquilo
que chamamos vontade dos deuses está ali para assegurar o cumprimento do destino
humano ou, como afirma Werner Jaeger (2003), o desenvolvimento essencial do
homem sofredor(JAEGER, 2003, p.332). É assim que quer o dramaturgo de Colono e
é também assim que nos diz seu próprio coro quando, ao final, depois de conhecer a
felicidade trepidante e chegar ao mais fatal infortúnio, Édipo se prepara para cegar-se.
Vossa existência, frágeis mortais,
é aos meus olhos menos que nada.
Felicidade só conheceis
Imaginada; vossa ilusão
Logo é seguida pela desdita.
Com teu destino por paradigma,
desventurado, mísero Édipo,
julgo impossível que nesta vida
qualquer dos homens seja feliz!
Ele atirava flechas mais longe
Que os outros homens e conquistou
(assim pensava, Zeus poderoso)
incomparável felicidade. (SÓFOCLES, 2002, p.62)
Mas o Zeus poderoso não é aquele que fala com o coro de anciãos tebanos.
Então, aos olhos de quem a existência humana é “menos que nada”? Certamente, do
próprio Sófocles. Mas, talvez, também desta Moîra implacável. Por isso, porque o
destino é inexorável, Édipo não pode ser feliz. Se nem mesmo os deuses podem alterar
69
o caminho das coisas, se a esses deuses o único papel possível é o de oráculos,
revelando apenas aquilo que irá acontecer, Édipo, e quem tenha um destino como o
seu, não poderá vislumbrar a felicidade. Mas, cego, ele tomará as rédeas de sua
fortuna e, para enxergar aquilo que lhe era impossível ver quando teve o poder em suas
mãos, provocará sua própria cegueira.
Esta maneira de apreender o significante, que coloca um deus como centro de
todas as coisas para, durante a caminhada, ir descobrindo que nem mesmo este deus
poderá modificar o curso dos acontecimentos é, acredita-se, um modo ortodoxo de
enxergar o mundo. O lugar de deus é o centro, desde que este centro garanta aquilo a
que estamos acostumados chamar “liberdade humana”. Quando faz uma analogia entre
as condições do homem e de deus, o jesuíta Antônio Freire (1969) parece mostrar
como tal prática de definir as coisas está pautada por um caráter ortodoxo, no sentido
de reiterar uma maneira canônica de interpretar os fatos:
...só quem conhece a Deus, conhece o homem –, não deixa de ser verdadeira,
na nossa condição humana, a inversa: só quem conhece o homem, conhece a
Deus. O nosso conhecimento de Deus é analógico; e é do mais conhecido que
partimos para o menos conhecido. (FREIRE, 1969, p.65)
O Édipo de Sófocles é o ser humano que, seguindo aquilo que os oráculos lhe
dizem, também desconfia deste discurso. Ele consegue decifrar enigmas; parece – para
alguns como Michel Foucault saber mais do que aparenta; julga conhecer os deuses;
mas não conhece sequer a si mesmo. Tal ambigüidade é mostrada em momentos
decisivos do texto. Quando o oráculo de Apolo, por exemplo, lhe diz que ele irá matar
seu pai e casar-se com sua mãe, Édipo considera suas palavras e abandona Corinto.
Foge para não cometer sua Hýbris. Mas, quando esta profecia afeta sua liberdade,
70
mostrando que a escolha que fez era um equívoco, ele desconfia, denegando o próprio
oráculo e as palavras de Tirésias. Assim, ao mesmo tempo em que Édipo é um homem
que respeita seus deuses, também é um homem que os desafia, que quer se igualar a
eles, que não deseja, sobretudo, perder o poder ao qual está acostumado.
Mesmo quando o desenrolar dos acontecimentos revela que os vaticínios do
oráculo foram acertados, o Édipo culpado aquele que se cega e que é arruinado pelo
destino e por seus próprios atos este Édipo é também aquele que, através do trágico,
eleva-se à sua condição mais sublime, quando assume conscientemente as rédeas de
sua sina e, de uma ou outra maneira, mostra que seu fadário comporta sobretudo o
peso da desdita que atinge todos os cidadãos de Tebas. Aqui se encontra a
ambigüidade decisiva. Uma ambigüidade que, reunindo Hýbris e Are sob a mesma
chancela, mostra que o mundo está sendo interpretado a partir desta ortodoxia trágica à
qual se acabou de aludir.
Compreende-se imediatamente o afundamento do herói na dor trágica; em vez
de colocá-lo judicialmente na injustiça, o que faz é revelar de modo patente,
em naturezas nobres, o caráter iniludível do destino que os deuses impõem
aos homens. (...) Não partilha as resignadas palavras de Simônides, segundo
as quais o Homem tem de perder necessariamente a arete, quando o infortúnio
inexorável o derruba. A elevação dos seus grandes sofredores à mais alta
nobreza é o Sim que Sófocles a esta realidade, a esfinge cujo enigma fatal
consegue resolver. É o homem trágico de Sófocles o primeiro a elevar-se a
uma autêntica grandeza humana, pela completa destruição da sua felicidade
terrena ou da sua existência física e social. (JAEGER, 2003, p.331)
A dor trágica é, ao que parece, não uma prerrogativa inerente aos deuses ou ao
próprio mito, mas algo que é construído pelo gênero. É a obra de Sófocles que
estabelece engenho e luta humana ao lado de um poder aparentemente decisivo dos
deuses. Isto, acredita-se, deve-se ao fato de que essa dor trágica advém de um destino
71
inexorável e não da vontade propriamente dita dos deuses ou de uma estrutura
definitiva do mito. Fosse assim, os deuses poderiam mudar o curso dos
acontecimentos, mas não mudam. Fosse também assim, e o mito teria uma versão,
não comportando, por exemplo, a de Homero, que nos é oferecida na Odisséia, como já
se mostrou no capítulo anterior desta dissertação. Quem comanda a luta e determina o
engenho é o dramaturgo de Colono, definindo a reboque o destino de suas
personagens.
A esse propósito, vale lembrar o que diz o helenista Jacyntho José Lins Brandão
em seu texto O como e o quê no Édipo Rei, de Sófocles (BRANDÃO, 1980). Neste
ensaio, cujo principal objetivo é o debate sobre a forma e o conteúdo da tragédia grega,
Brandão chama a atenção para a maneira como Sófocles tece o conteúdo mítico em
Édipo Rei. Para o helenista, é o engenho ímpar do dramaturgo de Colono o maior
responsável pela grandiosidade dramática do Édipo Rei. Isto porque a escritura de
Sófocles pode ser considerada o fator determinante na recriação, a partir de jogos
repletos de ambigüidade e ironia, de um enredo possivelmente conhecido do público
da época. Assim, segundo Brandão, a maior inventiva está no como Sófocles conta a
lenda de Jocasta e Édipo, e não no próprio entrecho em si. Como afirma o helenista, “a
arte do poeta consiste em lançar dúvidas, jogando com tensão e distensão, criando,
dessa forma, o ritmo dramático” (BRANDÃO, 1980, p. 55 e 56). É por isso que o
parecer de Jacyntho José Lins Brandão sobre quem seria o principal público buscado
por Sófocles se os que conheciam o mito ou aqueles que o ignoravam não
poderia ser mais inequívoco no que se refere à importância da forma na composição da
dramaturgia trágica:
72
Há, pois, como tudo na peça, várias maneiras de presenciá-la e
entendê-la. Agradaria tanto ao público ignorante do mito, quanto àqueles
que com ele tivessem familiaridade. Predomina todavia, em termos de
qualidade, a apreciação dos últimos. Talvez a eles se dirigisse o autor
preferencialmente, por sabê-los capazes de apreciar, de forma integral,
como
se dava o jogo de ambigüidades, o dialogismo irônico de cada
episódio, atitude ou fala: enquanto a superfície da linha revela o fio da
história contada, a profundidade das entrelinhas desvela a condição
amarga e impotente do homem, aqui encarnado na personagem. Édipo,
o que decifrou a esfinge, mas sucumbiu diante do próprio enigma.
Aquele que reuniu em si todos os contrários, como a provar que "o
contrário
é
convergente e dos divergentes nasce a mais bela harmonia,
e tudo segundo a discórdia", conforme Heráclito. A provar e a mostrar a
natureza trágica do homem: "nos mesmos rios entramos e não
entramos, somos e não somos"
5
.
(BRANDÃO, 1980, p. 58 e 59)
Nesse sentido, a história de Édipo, que servirá para que Freud defina toda sua
teoria, é uma construção de Sófocles e, como tal, do gênero dramático ao qual se
dedicou. Tal dedicação, como lembra Albin Lesky (2001), rendeu-nos 123 peças
classificadas sob o nome de Sófocles por eruditos alexandrinos. Ao lado de nomes
como Ésquilo e Eurípides, foi ele quem construiu a ortodoxia do gênero. Tal fato pode
ser comprovado na Poética de Aristóteles, obra em que o estagirita procura estabelecer
a própria teoria da tragédia.
Assim, a Poética de Aristóteles é capaz de justificar a afirmação pouco feita
de que Sófocles cria a tragédia grega. o várias as passagens em que o filósofo que
viveu entre 384 e 322 a. C. cita as obras de Sófocles como exemplo bem acabado do
gênero. Isto acontece em partes da Poética, nas quais Aristóteles procura delinear as
características da tragédia. No que se refere ao Édipo Rei, fonte primária desta
dissertação, a peça é citada em sete capítulos pelo estagirita, sempre de maneira a
mostrar o acerto de Sófocles no que se refere à adequação do texto aos parâmetros
estabelecidos para o gênero.
5
HERÁCLITO DE ÉFESO. Fragmentos. Trad. De José Cavalcante de Souza, p. 80 e 84.
73
A primeira citação aparece, no capítulo XI, quando Aristóteles (1993) se propõe a
elucidar reconhecimento e peripécia, elementos qualitativos do que ele próprio chama
“mito complexo” e partes essenciais da tragédia. A peripécia, que é marcada pelo
imprevisto, quando os acontecimentos resultam no inverso daquilo que deles se poderia
esperar, acontece, no Édipo Rei, inverossímil e necessariamente (ARISTÓTELES,
1993, p.118).
Assim, no Édipo, o mensageiro que viera no propósito de tranqüilizar o rei e de
libertá-lo do terror que sentia nas suas relações com a mãe, descobrindo quem
ele era, causou o efeito contrário (...). (ARISTÓTELES, 1993, p.118)
No que se refere ao reconhecimento, que se trata, como afirma Aristóteles, da
passagem do ignorar ao conhecer, o Édipo Rei é citado, ainda no capítulo XI e também
no XVI, como possuidor da “mais bela de todas as formas de reconhecimento”, uma vez
que ela acontece, nesta peça, juntamente com a peripécia.
A próxima citação do Édipo Rei tem lugar no capítulo XIII, quando Aristóteles
(1993) fala sobre o herói trágico. Aqui, mais uma vez, o herói que se transforma em
tirano de Tebas é o exemplo acreditado perfeito daquilo que se poderia chamar de
homem intermediário. Trata-se do herói que, oriundo de uma família ilustre, conhece
sua tragédia dolorosa a partir da Hamartía.
... o homem que não se distingue muito pela virtude e pela justiça; se cai no
infortúnio, tal acontece, o porque seja vil e malvado, mas por força de algum
erro; e esse homem de ser algum daqueles que gozam de grande
reputação e fortuna, como Édipo e Tiestes ou outros insignes representantes
de famílias ilustres. (ARISTÓTELES, 1993, p.120)
74
No capítulo XIV, em que o filósofo macedônico disserta sobre a catástrofe, o
Édipo Rei é mencionado pelo fato de que, a partir da tessitura de Sófocles, os
desastres são mostrados não “por efeito do espetáculo cênico”, mas porque derivam da
íntima conexão dos atos (ARISTÓTELES, 1993).
Porque o mito deve ser composto de tal maneira que, quem ouvir as coisas
que vão acontecendo, ainda que nada veja, pelos sucessos trema e se
apiede, como experimentará quem ouça contar a história de Édipo.
(ARISTÓTELES, 1993, p.121)
A verossimilhança é tratada no capítulo seguinte da Poética. A menção ao Édipo
Rei acontece quando, depois de tratar sobre a propriedade do surgimento do deus ex
machina, Aristóteles (1993) diz que o irracional também não deve entrar no
desenvolvimento dramático, mas, se entrar, que seja unicamente fora da ação...
(ARISTÓTELES, 1993, p.125). Mais à frente, no capítulo XXIV, esta questão é
novamente suscitada, quando o filósofo recomenda que o irracional aconteça fora da
representação e oferece, como exemplo deste tipo de acerto, o fato de Édipo ignorar as
circunstâncias da morte de Laio.
Afinal, a última citação do Édipo Rei na Poética ocorre no capítulo XXVI, o último,
quando, ao tratar da epopéia e da tragédia, afirmando que a segunda é superior à
primeira, Aristóteles também elogia a concisão dramática, pedindo ao leitor que imagine
o efeito que produziria o Édipo de Sófocles em igual número de versos que a Ilíada
(ARISTÓTELES, 1993, p.147). São estas, portanto, as citações textuais feitas pelo
filósofo macedônico acerca do Édipo Rei. Entretanto, envolvendo outras obras de
Sófocles, elas ocorrem em número bastante superior.
75
Vale ainda mencionar como o Édipo Rei também é referência para a ortodoxia
aristotélica a respeito da tragédia no que se refere a outros aspectos. Um deles é o da
unicidade da fábula: na história do tirano de Tebas, temos apenas o relato dos
episódios vividos por ele próprio. A trama dos acontecimentos também é de natureza
trágica, capaz de suscitar o terror e a piedade do espectador, como exige o estagirita
no capítulo VI (ARISTÓTELES, 1993, p.110). No tocante ao número de atores, vale
lembrar que foi o próprio Sófocles quem introduziu o terceiro ator, que vem se juntar ao
herói em seu confronto com o coro.
Ainda dentro desta perspectiva, cumpre dizer que, naquilo que se refere às três
unidades de composição, – ação, tempo e lugar o Édipo Rei mais uma vez alimenta a
Poética. Nele, a ação, que Aristóteles afirma ser a parte mais importante da tragédia,
transcorre de maneira exata, com a trama sendo plenamente representada, não
necessitando, em momento algum, de que partes dela sejam explicadas, a fim de que o
espectador possa compreendê-la. O tempo no Édipo Rei é delimitado como Aristóteles
quer: no sentido de caber dentro de um período do sol, ou pouco excedê-lo...
(ARISTÓTELES, 1993, p.109). No que diz respeito à última unidade, o lugar, a obra de
Sófocles certamente inspirou a ortodoxia estabelecida na Poética: o cenário é único,
indicando a apreensibilidade do conjunto, de princípio a fim da composição
(ARISTÓTELES, 1993, p.140).
Nesse sentido, o que aqui se procurou demonstrar, por motivos óbvios com
enorme facilidade, é que o Édipo Rei é uma das peças que inspira a ortodoxia definida
para o gênero na Poética escrita por Aristóteles no século IV a.C. É com base nos
parâmetros praticados por Sófocles em sua escritura que a tragédia clássica se enuncia
e se perpetua.
76
Assim, poder-se-ia dizer que a ortodoxia é característica da obra do dramaturgo
de Colono, e particularmente do Édipo Rei, em aspectos decisivos. Sobretudo, por
compreender uma visão de mundo que incorpora a maneira de pensar o lugar do
homem, de Deus e do trágico.
4.1. MARCAS ESTRUTURAIS
Cada qual a seu modo, sem perder de vista o fato de que tais lugares marcam-se
principalmente por se encontrarem, o humano e o divino em Sófocles trazem a dor
trágica como matéria-prima essencial capaz de refletir formas de pensar que irão
constituir não somente a tradição intelectual de sua própria época e do futuro da
empresa ocidental, mas também de todo um gênero dramático, criando-o e, neste
mesmo processo, recriando-o.
Ao lado da leitura de Sófocles sobre o mito de Édipo, e dentro de uma
concepção ortodoxa, no sentido de ser amplamente acreditada no mundo científico,
vale citar ainda duas outras abordagens: a antropológica estruturalista, de Claude Lévi-
Straus; e a psicanalítica, de Sigmund Freud.
No que se refere à análise que faz o antropólogo belga, a leitura que é realizada
quer mostrar, como acredita Audemaro Taranto Goulart (1997), que o mitoimpressiona
não apenas devido aos cuidados estéticos ou morais que o contornam mas também
devido à inspiração religiosa e ao uso ritualístico” (GOULART, 1997, p.11). Lévi-Strauss
77
apresenta uma descrição detalhada de fragmentos do mito, aos quais denomina
mitemas.
São tais mitemas que, em articulação com um modelo previamente elaborado
pelo antropólogo, darão origem a uma estrutura. Mas, na verdade, Lévi-Strauss não
toma somente a versão que nos é oferecida através do Édipo Rei, de Sófocles. Ele vai
aquém. Partindo da fundação de Tebas, ele busca a história de Cadmo, filho de
Agenor, rei na Fenícia, e de Telêfassa (ou Argiope). Com o rapto de Europa, sua irmã,
por um Zeus transformado em touro, Agenor ordena a Cadmo e a seus outros dois
irmãos, Cílix e Fênix, que partam em busca da irmã, não voltando sem ela.
Acompanhado da mãe, Cadmo segue para a Trácia, enquanto seus outros irmãos
percorrem a Cilícia e a Fenícia.
Com a morte de sua e, Cadmo consulta o oráculo de Delfos que lhe instrui
abandonar a procura de Europa e fundar uma cidade no exato lugar em que uma vaca,
à qual ele encontraria e deveria seguir, caísse de cansaço. Agindo conforme as
determinações do oráculo, Cadmo encontra o animal, segue-o e, no local em que este
se deita para descansar, funda Tebas. O herói, então, a fim de sacrificar a vaca para
Atena, manda que seus homens busquem água na fonte de Ares, situada ali perto.
Contudo, lá, um dragão devora todos eles para, em seguida, ser morto por Cadmo.
Surge, então, a deusa Atena, que diz ao filho de Agenor que arranque os dentes do
dragão e os semeie para, daí, surgirem do solo outros homens completamente
armados, os Spartoi, ou “homens semeados”.
Temendo os Spartoi, que possuíam maneiras ameaçadoras, Cadmo lhes atira
pedras e eles, sem saber de onde vem o ataque, lutam contra si mesmos. Ao final,
salvam-se apenas cinco homens semeados: Equíon, Ctônio, Hiperenor, Pêloro e Udaio.
78
São tais homens que, junto a Cadmo, dão início à aristocracia de Tebas. Mas é o
próprio Cadmo que, depois de se casar com Harmonia, filha do deus Ares, a quem
servira por haver matado o dragão pertencente a esta divindade, recebe de Atena o
trono de Tebas.
Duas gerações mais tarde, bdaco, filho de Polidoro e Nicteis, assume o trono
de Tebas, depois de completar sua maioridade. É deste Lábdaco que descende Laio, o
pai que mandou matar Édipo e, como se lembrou nesta dissertação, início aos
infortúnios que irão perseguir os labdácidas ao se apaixonar por Crisipo, inaugurando
aquilo que se poderia chamar “amor contra naturam”.
Ao buscar o mito em suas origens e levá-lo até a morte de Antígona, que ocorre
porque ela desrespeita a ordem de Creonte e faz enterrar seu irmão Polinice (tema da
peça Antígona, do próprio Sófocles (2002)), Lévi-Strauss monta uma estrutura que
mostra quatro colunas com mitemas específicos. Na primeira coluna, são mostradas
partes essenciais do mito, como a busca de Cadmo por Europa, o casamento entre
Édipo e Jocasta, e a violação da proibição de Creonte, cometida por Antígona ao
enterrar Polinice.
Na segunda coluna, Lévi-Strauss expõe mitemas ligados à morte: o extermínio
mútuo dos Spartoi, o assassinato de Laio e o confronto mortal entre Etéocles e Polinice.
Na terceira, temos desafios vencidos pelos heróis, como a morte do dragão, por
Cadmo; e a da Esfinge, por Édipo. Na última coluna, o antropólogo relaciona os defeitos
físicos dos labdácidas: Lábdaco, que é coxo; Laio, que é torto; e Édipo, que possui os
pés inchados.
Uma vez montada tal estrutura, Lévi-Strauss (1996) constrói um modelo em que
tais mitemas se articulam a partir de um arranjo teórico cuja construção, como lembra
79
Taranto Goulart (1997), depende das formulações que o analista pretende fazer nele,
com o objetivo de buscar uma significação para os elementos que o constituem
(GOULART, 1997, p.15). Mas é na maneira de executar a leitura que se encontra o
diferencial da análise estrutural de vi-Strauss. Ela pode ser feita tanto de forma linear
como de modo vertical. Nesse sentido, o antropólogo quer chamar a atenção para o
fato de que a leitura de um mito não é realizada por vínculos independentes, mas por
aquilo que ele mesmo chama de feixe de relações entre os mitemas.
Supomos, com efeito, que as verdadeiras unidades constitutivas do mito não
são as relações isoladas, mas feixes de relações, e que é somente sob a forma
de combinações de tais feixes que as unidades constitutivas adquirem uma
função significante. Relações que provêm do mesmo feixe podem aparecer em
intervalos afastados, quando nos situamos num ponto de vista diacrônico, mas
se chegamos a restabelecê-las em seu agrupamento ‘natural’, conseguimos ao
mesmo tempo organizar o mito em função de um sistema de referência
temporal de um novo tipo, e que satisfaz as exigências da hipótese inicial.
Realmente, este sistema é de duas dimensões: ao mesmo tempo diacrônico e
sincrônico, e reunindo assim as propriedades características da língua’ e da
‘palavra’. (LEVI-STRAUS, 1996, p.243-244)
Para ler o mito de Édipo a partir desta estrutura, segundo Taranto Goulart, é
necessário perceber quais são os pontos em comum dos mitemas relacionados em
cada coluna. Neste sentido, Lévi-Strauss revela que, na primeira coluna, o traço em
comum são as “relações de parentesco superestimadas”. Na segunda, essas mesmas
relações são “subestimadas”. Na coluna seguinte, os mitemas convergem para o que
Lévi-Strauss chama de “negação da autoctonia do homem”. E, na última, o oposto, com
a “afirmação da autoctonia do homem”.
A partir de tais caracterizações, o que se pode perceber é que contradições
internas tanto entre as duas primeiras quanto entre as duas últimas colunas. As
questões estão, portanto, nas definições das relações de parentesco e da autoctonia
80
humana. Ou seja: as relações de parentesco são decisivas para definir o homem Édipo
e seu mito, ou não? Do mesmo modo, a origem deste mesmo Édipo, de onde ele vem,
é suficiente e decisiva para decifrá-lo? Assim, como explica acertadamente Audemaro
Taranto Goulart (1997), através de tais oposições, o que a análise estrutural do
antropólogo belga parece indagar é o que se poderia chamar “pergunta definitiva do
próprio ser humano: quem sou eu?
Para responder a essa indagação, o homem dispõe de duas teorias: uma,
fundada na religião, que atribui a criação humana a um ser superior, um deus,
e outra, ancorada na ciência, que defende o princípio de que o homem é
produto de uma evolução natural. (GOULART, 1997, p.18)
Nesse sentido, a questão assinalada por Lévi-Strauss mostra que a contradição
estabelecida entre os mitemas que apontam ora para a negação, ora para a afirmação
da autoctonia do homem; e, ao mesmo tempo, ora superestimando, ora subestimando
as relações de parentesco. Ainda para Audemaro Taranto Goulart, tal contradição é
insuperável. A pergunta fica, portanto, sem resposta. Édipo não sabe quem é e, quando
isto parece acontecer, não lhe resta outra alternativa a não ser sair cego e andarilho,
em sua busca de Sísifo.
No entanto, o que para esta dissertação mais interessa na proposta de Lévi-
Strauss (1996) para enxergar o mito é o fato de que o antropólogo, desde o início de
sua análise, opta por não querer determinar uma versão “autêntica” para o mito de
Édipo. Esta linha, que exemplificaremos a seguir com um trecho de seu texto A
estrutura dos mitos, seretomada mais à frente, quando tentar-se-á fazer uma leitura
de viés heterodoxo. Por hora, vale ficar com as palavras que Lévi-Strauss emprega
81
para justificar seu método, ao mesmo tempo em que também reconhece a importância
das variadas leituras:
O método nos livra, pois, de uma dificuldade que se constituiu, até agora, num
dos principais obstáculos ao progresso dos estudos mitológicos, ou seja, a
pesquisa da versão autêntica ou primitiva. Nós propomos, ao contrário, definir
cada mito pelo conjunto de todas as suas versões. Dito de outro modo: o mito
permanece mito enquanto é percebido como tal. Este princípio é bem ilustrado
por nossa interpretação do mito de Édipo, que se pode apoiar sobre a
formulação freudiana, e lhe é certamente aplicável. O problema posto por
Freud em termos ‘edipianos’ não é mais, sem dúvida, o da alternativa entre
autoctonia e reprodução bissexual. Mas se trata sempre de compreender
como um pode nascer de dois: como se que não tenhamos um único
genitor, mas uma mãe, e um pai a mais? Não se hesitará pois em classificar
Freud, depois de Sófocles, na relação de nossas fontes do mito de Édipo.
Suas versões merecem o mesmo crédito que outras, mais antigas e,
aparentemente, mais ‘autênticas’. (LÉVI-STRAUSS, 1996, p.250)
4.2. MARCAS DO DESEJO
Efetivamente, como aponta Lévi-Strauss, a leitura que Sigmund Freud faz do
mito de Édipo não passa pela negação ou afirmação da autoctonia. Trata-se da própria
criação da psicanálise, um todo terapêutico que consiste fundamentalmente na
interpretação, por um psicanalista, dos conteúdos inconscientes de palavras, ações e
produções imaginárias de um indivíduo, com base em associações livres e na
transferência (ROUDINESCO; PLON, 1998). Tal método que surge no final do culo
XIX e, no século XX, vai formar toda uma escola de pensamento – deriva em mudanças
radicais na maneira como o ser humano é enxergado. E, apenas para que se tenha
idéia da importância do mito de Édipo, e da própria tragédia de Sófocles, na
composição desse ambiente ao qual não hesitaríamos em chamar revolucionário, vale
82
atentar para o que Freud, ele mesmo, escreve em seu último livro, redigido em 1938 e
publicado depois de sua morte. Em O Esboço de Psicanálise (FREUD, 1974), Freud
diz, de modo decisivo, assim como é lembrado no Dicionário de Pscicanálise de
Elisabeth Roudinesco e Michel Plon:
Permito-me pensar que, se a psicanálise não tivesse em seu ativo senão a
simples descoberta do complexo de Édipo recalcado, isso bastaria para situá-
la entre as preciosas novas aquisições do nero Humano. (ROUDINESCO;
PLON, 1998, p.167)
Certamente, talvez não haja teoria do pensamento humano mais reconhecida,
criticada e debatida do que o complexo de Édipo. Em linhas gerais, tal teoria trata da
representação inconsciente pela qual se exprime o desejo sexual ou amoroso da
criança pelo genitor do sexo oposto e sua hostilidade para com o genitor do mesmo
sexo (ROUDINESCO; PLON, 1998, p.166). No entanto, segundo o Dicionário de
Psicanálise, de Elisabeth Roudinesco e Michel Plon (1998), tal representação pode se
inverter e passar a expressar o amor pelo genitor do mesmo sexo e o ódio pelo do sexo
oposto. À primeira representação, chama-se “Édipo”; à segunda, “Édipo invertido”; à
mistura das duas, “Édipo completo”. Assim, o complexo de Édipo surge entre os três e
cinco anos de idade e, para a psicanálise, seu declínio assinala a entrada num período
chamado de latência, traduzido pela sublimação do interesse sexual. Sua resolução
ocorre após a puberdade e é concretizada a partir de um novo tipo de escolha de alvo
de pulsão, que pode ser uma pessoa, um objeto parcial, real ou fantasístico.
De maneira natural, em nossa sociedade contemporânea, o complexo definido
por Freud e a tragédia escrita por Sófocles chegam mesmo a se confundir no senso
comum. O que no dramaturgo grego é mais comumente interpretado como um
83
paradigma do destino humano, como nos referimos muitas vezes nesta dissertação,
no pensador judeu é a mescla deste mesmo destino com uma determinação psíquica,
vinda do inconsciente, capaz de definir as escolhas e os projetos humanos. Na
verdade, embora o Édipo Rei esteja presente em toda a obra freudiana, o criador da
psicanálise nunca escreveu um artigo exclusivo sobre esta sua leitura da peça de
Sófocles. A primeira referência direta acontece em carta datada de 15 de outubro de
1897, a Wilhelm Fliess. Em seguida, na Interpretação dos Sonhos (FREUD, 1987b),
obra publicada em 1900, Freud volta ao tema de maneira igualmente específica.
Em minha experiência, que é extensa, o papel principal na vida mental de
todas as crianças que depois se tornam psiconeuróticas é desempenhado por
seus pais. Apaixonar-se por um dos pais e odiar o outro figuram entre os
componentes essenciais do acervo de impulsos psíquicos que se formam
nessa época e que é tão importante na determinação dos sintomas da
neurose posterior. Não é minha crença, todavia, que os psiconeuróticos
difiram acentuadamente, nesse aspecto, dos outros seres humanos que
permanecem normais isto é, que eles sejam capazes de criar algo
absolutamente novo e peculiar a eles próprios. É muito mais provável e isto
é confirmado por observações ocasionais de crianças normais –, que eles se
diferenciem apenas por exibirem, numa escala ampliada sentimentos de amor
e ódio pelos pais que ocorrem de maneira óbvia e intensa nas mentes da
maioria das crianças.
Essa descoberta é confirmada por uma lenda da Antiguidade Clássica que
chegou ate nós: uma lenda cujo poder profundo e universal de comover só
pode ser compreendido se a hipótese que propus com respeito à psicologia
infantil tiver validade igualmente universal. O que tenho em mente é a lenda do
Rei Édipo e a tragédia de Sófocles que traz o seu nome. (FREUD, 1987b,
p.256)
Ao confessar que foi buscar a fonte de inspiração para sua teoria em uma peça
de teatro da antigüidade grega, podendo, por exemplo, dizer que foi encontrá-la num
mito, acredito que, mais do que realçar sua invenção da psicanálise, Freud valoriza a
obra de Sófocles. É por isto que, como já disse anteriormente, com o apoio de
mitólogos como Vernant (2005), não é possível crer que “o poder profundo e universal
de comover” do Édipo Rei só possa ser compreendido se amparado na hipótese
84
freudiana sobre a psicologia infantil. Não. Antes que se prossiga com a leitura
freudiana, é necessário deixar claro que a crença deste trabalho caminha para uma
abordagem que não perde de vista um outro poder, qual seja, o do gênero literário. De
maneira mais específica, o que se quer afirmar é que esse poder profundo de comoção
do mito de Édipo tem sua base também em uma invenção. Mas não a da psicanálise, e
sim a do gênero dramático que Sófocles ajudou a criar e, assim fazendo, agiu com
excelência. Em outras palavras, não é a obra de Sófocles que se serve do complexo
inventado por Freud para caminhar do século V a.C. até os nossos dias, mas
exatamente o contrário. Ou seja: é o pai da psicanálise quem se apropria da tragédia
do dramaturgo grego para fundar o principal de sua hermenêutica.
Contudo, embora acredite no sentido da proposta formulada por Deleuze e
Guattari (1966) de que o complexo de Édipo freudiano possui contornos que apostam,
talvez se possa mesmo dizer, na manipulação do desejo em nossa sociedade, é
impossível negar a influência da psicanálise desde sua criação. E, como se disse, tal
invenção parte de uma tragédia: de uma tragédia grega. É com as palavras de Sófocles
e, portanto, a partir de uma estrutura literária que Freud, acredita-se, comete seu
próprio parricídio ao desvincular a cura de neuroses e psicoses do processo
psiquiátrico. E é também através da literatura que o pensador judeu prosseguimento
a sua teoria, vinculando-a, primeiro, ao Hamlet, de Shakespeare, e, em seguida, à saga
parricida de Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski.
Na verdade, voltando ao Édipo Rei, o que Freud faz é usar a versão que
Sófocles compõe do mito na direção de suas formulações psicanalíticas(GOULART,
1997, p.10), como afirma Audemaro Taranto Goulart. O que interessa a Freud é dar
sustentação à sua idéia de que o desejo e o inconsciente estão intrinsecamente
85
inseridos dentro de uma ordem familiar. Édipo é uma personagem exemplar para este
tipo de leitura, uma vez que ele não apenas desposa sua mãe, como também mata seu
pai. A ordem familiar vai estar presente também quando Freud (1996) serve-se de
Hamlet e Dmitri Karamazov. Em seu ensaio denominado Dostoiévski e o parricídio
(FREUD, 1996), ele confirma este interesse familiar, voltado sempre para o confronto
com um genitor e a identificação com o outro. E, aqui, o que Freud enxerga, como não
poderia deixar de ser, é o que sua abordagem pede: o parricídio e o incesto.
Dificilmente pode dever-se ao acaso que três das obras primas da literatura de
todos os tempos Édipo Rei, de Sófocles; Hamlet, de Shakespeare; e Os
Irmãos Karamassovi, de Dostoievski – tratem todas do mesmo assunto, o
parricídio. Em todas três, ademais, o motivo para a ação, a rivalidade por uma
mulher, é posto a nu. (FREUD, 1996, p.193)
Quando escreve Totem e tabu obra na qual se pode encontrar uma mistura de
investigação antropológica, psicanálise e literatura o propósito de Freud é o mesmo:
inserir sua teoria, como já se disse nesta dissertação, dentro de um arquétipo universal,
no sentido de demonstrar que a neurose infantil é algo inerente à própria condição
humana de um modo geral. Trata-se, vale dizer, de um projeto vitorioso. Aclamado,
seguido, contestado, discutido, reelaborado, é inegável que, depois do pensamento
freudiano, o complexo de Édipo passou a ser algo que está indiscutivelmente inserido
na própria ordem do senso comum.
Se é desta maneira que a psicanálise criada por Sigmund Freud encontrou no
Édipo Rei, poder-se-ia dizer, o caminho perfeito para oferecer uma visão de mundo que
hoje, creio, é pautada por uma determinada ortodoxia no estatuto do pensamento
86
contemporâneo, também é de modo semelhante que outras leituras foram e vêm sendo
realizadas.
No próximo capítulo desta dissertação, na tentativa de prosseguir caminhando
para o entendimento daquilo que outras pessoas disseram sobre o mito de Édipo,
esteja ele ou não vinculado à obra incomparável de Sófocles, buscarei a leitura de
idéias que, pelo menos por hora, ainda não podemos dizer que possuem a projeção
ortodoxa conferida por autores como Lévi-Strauss e Freud. Assim mesmo, trata-se de
abordagens diferenciadas. Análises que, de uma ou de outra maneira, tornaram-se de
inestimável ajuda no momento de construir a minha própria. E esta minha leitura do
Édipo, como se avisou na introdução deste trabalho, não acontecerá através do
pensamento acadêmico propriamente dito, mas, mesmo que engendrada por ele, por
meio e em função de uma construção inerente à literatura e à dramaturgia. Aqui, o que
se quer priorizar desde o início é, como já se disse, a questão do gênero literário.
87
5. CAMINHOS PARA A HETERODOXIA
Se Lévi-Strauss está certo e a definição de um mito deve ser oferecida pelo
conjunto de todas suas versões, o caminho da mitologia edipiana é úbere e, pode-se
dizer, ilimitado. As versões apresentadas até o momento nesta dissertação,
classificadas como ortodoxas, uma vez que encontraram amparo certo e profícuo no
que se poderia chamar “história das idéias ocidentais”, são, no mínimo, três: o Édipo
Rei, de Sófocles; a abordagem estruturalista do próprio antropólogo belga; e a leitura
psicanalítica de Sigmund Freud, que, como já se viu ainda que brevemente, foi capaz
de inaugurar ampla vertente de pensamento neste nosso mundo contemporâneo.
Neste capítulo, tentarão ser explicadas outras determinadas análises que, se por
acaso não contam com a projeção hermenêutica das anteriores, também devem ser
levadas em consideração, seja porque partem delas ou porque com elas possuem
algum tipo de ligação, na medida em que as analisam e polemizam. Nesse sentido,
procurar-se-á explorar, a fim de não exagerar o debate sobre o mito de Édipo, as idéias
de outros quatro autores.
O primeiro deles, que lança tese que contra-argumenta a teoria freudiana, é
Hélio Pellegrino, para quem o próprio Édipo, enquanto personagem, não teria sofrido do
complexo definido pelo pai da psicanálise. Em seguida, passaremos às idéias sobre a
repressão sexual que guiam as considerações suscitadas pela professora Marilena
Chauí, que dedicou ao tema texto provocador. A terceira leitura é de Michel Foucault e
pode ser encontrada em uma das conferências que proferiu quando esteve no Rio de
88
Janeiro, em maio de 1973. Nelas, as idéias do pensador francês nos conduzem a um
Édipo que busca o poder.
E são exatamente tais abordagens que nos encaminharão a uma quarta: aquela
em que Friedrich Nietzsche aponta para quase que um duelo de forças que a arte e, a
reboque dela, como não poderia deixar de ser, a literatura e a dramaturgia travam de
modo intrínseco entre um espírito apolíneo e outro dionisíaco.
Finalmente, o que se espera da discussão das idéias desses autores, que aqui
consideramos heterodoxos pelo fato de não se prenderem, de uma ou de outra
maneira, à hermenêutica mais consolidada, é que elas também possam servir de apoio
para a abordagem que procurar-se-á fazer tendo como medida, ou desmedida, dois
textos dramatúrgicos que também tematizam o mito, partindo sempre da tragédia de
Sófocles, quais sejam: Um Édipo, do português Armando Nascimento Rosa (2003); e
Jocasta Tirana, produzido especialmente no sentido de interpretar as idéias alusivas a
este trabalho (ver Apêndice A).
5.1. UM ÉDIPO SEM COMPLEXO
Impossível evitar, a partir do título acima, a comparação com o artigo quase
homônimo em que Jean Pierre Vernant (2005), um dos mais influentes helenistas da
contemporaneidade, cotejou a leitura anti-histórica de Sigmund Freud e propôs uma
hermenêutica particular para a própria tragédia grega. Neste ensaio citado
anteriormente nesta dissertação e publicado pela primeira vez em 1967, o estudioso
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mostra como o pai da psicanálise, no sentido de buscar sustentação para seus
diagnósticos, chegou mesmo, com o objetivo de confirmar suas hipóteses, a ser
reducionista e excessivamente simplificador ao partir de algo estabelecido e
consagrado em um dos séculos mais rteis da antigüidade grega. De modo bastante
resumido, o que Jean Pierre Vernant parece querer nos dizer é que Freud se escora na
universalidade do drama de Édipo para dar sentido a suas observações clínicas. Tal
fato pode ser exemplificado na pergunta que o próprio Vernant faz no início deste seu
artigo e, é claro, nas contestações argumentativas que dela advêm:
Mas em que medida uma obra literária que pertence à cultura da Atenas do
século V a.C., e que transpõe de maneira muito livre uma lenda tebana - muito
mais antiga, anterior ao regime da cidade, pode confirmar as observações de
um médico do começo do século XX sobre a clientela de doentes que
freqüentavam seu consultório? Na perspectiva de Freud, a pergunta não exige
resposta, porque nem deveria ser feita. Com efeito, a interpretação do mito e
do drama gregos de maneira nenhuma constitui problema. Eles não precisam
ser decifrados por métodos de análise apropriados. Imediatamente legíveis,
inteiramente transparentes ao espírito do psiquiatra, eles revelam de uma
vez uma significação cuja evidência traz às teorias psicológicas do clínico uma
garantia de validade universal. (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2005, p.51)
Se até aqui falou um helenista, cujo entendimento está longe de alcançar um
saber psicanalítico, no início da década de 60, durante um congresso de psicanálise
realizado em Santiago do Chile, as palavras foram do mineiro Hélio Pellegrino,
psiquiatra e psicanalista que defendia, então, uma tese bastante original. Para ele, a
personagem Édipo, filho legítimo de Laio e Jocasta, criado por Pólibo e Mérope, o
sofria do complexo a que ele mesmo deu nome. Ou seja: o tirano de Tebas não
padeceu da representação inconsciente pela qual o desejo sexual ou amoroso da
criança pelo genitor do sexo oposto é manifesto, enquanto também se expressa a
hostilidade para com o genitor do mesmo sexo.
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Pellegrino (1987) é, naqueles mesmos anos 1960, um intelectual brasileiro que,
de acordo com as palavras do Dicionário de Psicanálise de Elisabeth Roudinesco e
Michel Plon (1998), pertence à quarta geração do freudismo mundial(ROUDINESCO;
PLON, 1998, p.579). E é esta sua ambiência com os temas psicanalíticos que lhe
autoriza a apresentar um trabalho que, segundo suas próprias palavras, suscitou
interesse (PELEGRINO, 1987, p.309) no meio, uma vez que se tratava, então, de
questão “ainda não explicitada no terreno da literatura psicanalítica” (PELEGRINO,
1987, p.309).
Em estudo publicado pela primeira vez em 1987, através do volume Os Sentidos
da Paixão, coordenado por rgio Cardoso (1987), o psicanalista brasileiro volta ao
tema. E começa por explicar os próprios conceitos mais fundamentais de Freud,
segundo os quais o menino, entre três e cinco anos de idade, em sua fase fálica do
desenvolvimento da libido, apaixona-se por sua mãe e, por causa de tal sentimento,
quer livrar-se do pai, adversário que lhe impede a realização de seu desejo.
O que Pellegrino (1987) irá demonstrar em seguida é que este Édipo, menino de
três a cinco anos que foi criado por seus pais de Corinto, deveria, para enquadrar-se
nos termos freudianos, apaixonar-se loucamente por Mérope e estaria condenado a
eliminar Pólibo(PELLEGRINO, 1987, p.309). desta maneira a personagem mítica
consagrada por Sófocles estaria destruindo seu totem, através do parricídio, no sentido
de abolir a interdição do incesto. Vale lembrar, uma vez mais, que estas são as
prerrogativas mais básicas do Complexo de Édipo estabelecido pelo psicanalista judeu.
Mas a criança que foi educada como príncipe de Corinto, por pais que não
podiam ter filhos naturais e, desse modo, a adotaram em segredo, esta criança o que
faz é matar e casar-se com desconhecidos. Para o Édipo aqui visto pelos olhos
91
modernos de Hélio Pellegrino, a culpa do parricídio e do incesto não pode existir, uma
vez que tanto Laio como Jocasta são, para ele, simples ignotos. Nesse sentido, Hélio
Pellegrino (1987) pretende, como escolástico freudiano, distinguir dois níveis de
estratificação na situação edípica.
O primeiro, mais superficial, implica a triangulação freudiana - pai, mãe,
filho - e transcorre na fase fálica do desenvolvimento da libido. O segundo,
mais primitivo e originário, corresponde
à
fase oral e diz respeito
à
relação
da criança com a e, nos seus primeiros tempos de vida. (PELLEGRINO,
1987, p.310)
O que Pellegrino quer salientar é o sucesso da relação amorosa ainda no
aleitamento materno. Segundo o psicanalista, a criança, nesta etapa, irá promover,
inconscientemente, é claro, a cisão da figura materna em duas imagos: a da mãe boa,
protetora, ou a da mãe má, persecutória(PELLEGRINO, 1987, p.310). Isso porque, ao
nascer, o menino necessita prender-se a ela. E tal fusão, para Pellegrino, podeser
mais ou menos convulsiva, dependendo do fato de o recém-nascido se sentir seguro ou
não do amor que lhe é confiado. Aqui, a comparação feita é com um náufrago que, no
oceano agitado, segura-se à sua tábua na mesma intensidade do tamanho das ondas
que lhe castigam. Por isso, o intelectual mineiro defende que a criança, jogada no
mundo, procederá dessa mesma forma” (PELLEGRINO, 1987, p.310). Dependente, seu
desespero será proporcional à sua insegurança.
Assim, se o que Pellegrino chama de “relação primitiva com a mãe” acontecer a
partir de significantes lesivos, a triangulação arcaica deverá permanecer. A imagem da
mãe persecutória, ou do seio mau, será transferida para a figura paterna que, desta
maneira, irá se tornar o perseguidor que deverá ser morto pela criança acuada em sua
92
busca de um refúgio que, para o psicanalista, é último e, também, incestuoso. A partir
desta análise de características ainda decisivamente freudianas, mas, sob certos
aspectos, transgressora, heterodoxa, Hélio Pellegrino (1987) faz, em linhas gerais, sua
releitura do Complexo de Édipo. E é através da idéia da importância do ato amoroso no
relacionamento entre mãe e filho que o psicanalista concretiza a ligação decisiva com o
mito e, como não poderia deixar de ser, com a própria tragédia de Sófocles:
Essa é, literalmente, a história de Édipo. O herói tebano ficou chumbado
à
figura de Jocasta, mãe que o condenara
à
morte. Tendo assassinado Laio
e destruído a Esfinge, imagos da mãe má, casou-se incestuosamente com
Jocasta e dela renasceu, através de filhos que eram, ao mesmo tempo,
seus irmãos
(PELLEGRINO, 1987, p.311).
Hélio Pellegrino, nesse seu texto Édipo e a paixão, ainda explica de maneira
bastante didática e precisa os meandros psicanalíticos de tal análise, não se atendo
apenas ao menino, mas esclarecendo como suas idéias podem ser aplicadas no que se
refere à menina. No entanto, de tal leitura, o que mais interessa a este trabalho é a
evocação que o psicanalista faz da importância do ato amoroso nos primeiros
momentos de vida da criança, colocando este processo como decisivo, mesmo para um
dos aspectos mais essenciais na tragédia grega enquanto gênero literário: o destino
inexorável.
É tal tratamento que parece conferir à figura feminina, à Jocasta que manda
assassinar seu próprio filho, importância inaudita e, por isso mesmo, heterodoxa. Ou
seja: enxergar a relação entre mãe e filho como aspecto original, a partir do qual os
fatos se desencadeiam é, por si , extraordinário para um conjunto de análises que
costumam destacar com quase total privilégio o anĕr vigoroso que acerta adivinhas e
93
destrói esfinges e pais desconhecidos ou, até mesmo, o brotos que, velho, cego e
cansado irá desaparecer misteriosamente em direção às profundezas da terra.
Portanto, na leitura de Hélio Pellegrino, é a relevância dada a Jocasta que mais
chama a atenção desta dissertação. É este fato que procurará ser aqui destacado, tanto
na abordagem prática deste trabalho através do drama Jocasta Tirana como na
conceitual. Contudo, também cumpre chamar a atenção para o caráter quase que
exclusivamente moderno da análise de Pellegrino. Um dos pontos que talvez mostrem
tal proposta hermenêutica com maior intensidade talvez seja haver o psicanalista
desconsiderado o que ensina Hegel (1964) em texto de sua Estética. Como foi dito
neste mesmo estudo, a culpa entre os gregos antigos não possui conotações
modernas. Nesse sentido, não se pode, com os olhos trágicos da antigüidade grega,
querer que o Édipo de Sófocles não herde os crimes de seus antepassados. Como
lembra o idealista alemão, o caráter heróico recusa-se a dividir as culpas, não quer
saber de uma oposição possível entre a intenção subjetiva e o ato objetivo(HEGEL,
1964, p.68).
Assim, a leitura do psicanalista brasileiro que, como se disse, oferece à figura
feminina um destaque incomum, parte, em contrapartida, de um Édipo que talvez o
possa ser o herói grego que mata o pai, casa-se com a mãe e, depois de ter descoberto
sua própria verdade sua e de seus ascendentes cega-se e se põe a errar pelo
mundo helênico. lio Pellegrino conta com um Édipo que foi amamentado pelo seio,
ainda que bom, estéril de Mérope, e que não herdou as predições dos oráculos e as
Hýbris de sua gente e de seus próprios deuses. Certamente, como Sigmund Freud,
Pellegrino registra um Édipo que traz consigo as características de uma modernidade
distante do modo de pensar da Hélade. Uma modernidade com complicações e
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ramificações infinitas em que, como lembra Hegel, cada qual procura inculpar também
os outros, subtrair-se quanto possível às responsabilidades de uma falta cometida
(HEGEL1964, p.68).
5.2. ÉDIPO, JOCASTA E CULPA
Em seu texto sobre Édipo, Marilena Chauí (1984) busca os contornos da
sexualidade na abordagem do mito. Para isto, no livro Repressão Sexual, a filósofa faz
um apanhado que vai da própria paráfrase da lenda tebana, sem deixar de mencionar a
importância da tragédia de Sófocles, a uma análise bastante didática das leituras de
Freud e Lévi-Strauss, passando pelo enfoque de Hélio Pellegrino e chegando a uma
breve interpretação particular, capaz de levar em consideração aquilo que poderíamos
chamar tradição judaico-cristã.
Nesse seu estudo, é com bastante propriedade que Marilena Cha (1984)
lembra o helenista Jean Pierre Vernant, ao mencionar a importância excepcional da
tragédia no mundo ático. Para Vernant, trata-se de um gênero literário que se torna
também uma instituição social e uma experiência política na sociedade ateniense entre
o final do século VI e o início do século IV a.C. Além disso, Chauí procura não
desconhecer a necessidade de antagonismo e diferença entre o mundo divino e a
ordem humana como atributos essenciais para o sucesso trágico, reiterando a
inseparabilidade desses dois lugares. Ao fazer isto, a autora recorda a contradição
inerente à vontade livre e responsável de um ser humano capaz de se reconhecer em
95
tais atributos e o dever que lhe é imposto de cumprir um destino inexorável. É então
que a filósofa chama a atenção para o sentimento trágico da culpa, sem o qual o Édipo
Rei não pode ser compreendido.
Essa contradição aparece, sobretudo, no sentimento trágico da culpa, pois é
tratada simultaneamente como uma falta religiosa e como um delito ou infração
da lei humana, devendo ser julgada por dois tribunais (um divino-religioso e um
humano-político), a tarefa do autor trágico sendo justamente a de fazer com
que os dois tribunais venham a coincidir. No caso de Édipo Rei, essa dupla
dimensão do julgamento aparece através de dois procedimentos: um religioso
(a purificação da cidade e da casa régia) e um político (o ostracismo ou
banimento do rei criminoso) (CHAUÍ, 1984, p.59).
Tal antinomia é estendida ao próprio nome da tragédia de Sófocles. Depois de
lembrar aquilo que nesta dissertação foi dito, que o tirano é aquele que conquista o
poder, em vez de herdá-lo, e que o conquista graças às suas altas e extremas virtudes
como guerreiro, protetor e sábio(CHAUÍ, 1984, p.61), Chauí chama a atenção para o
paradoxo existente na reunião dos significantes gregos Oidipous e Tyrannós. Segundo
ela, a personagem de Sófocles é a própria contradição viva. Ou seja, um sujeito que,
possuindo deformações físicas, que lhe são impostas pelos pés inchados, e morais,
advindas de sua conduta incestuosa e parricida, também não deixa de ser aquele que
possui qualidades políticas e militares.
O que parece que Marilena Chauí nos quer dizer é que este Édipo um sujeito
que sofre suas culpas em função de incongruências inerentes a seu próprio viver num
mundo marcado pelo trágico mais absoluto é a síntese do humano. Ao mesmo tempo
pharmakós e tyrannós, impuro e sábio, abaixo e acima dos demais, é por isto que, para
a filósofa, o nome da tragédia sofocliana prepara o banimento de seu protagonista,
seja por ser sábio e invejado, seja por ser vicioso e rejeitado.
96
Concentrando em sua pessoa os dois pólos extremos da possibilidade para um
humano degradação máxima e elevação máxima Édipo é um ser
internamente contraditório ou dividido. Contrário à Natureza parricida e
monstruoso – e contrário à cidade – tirano. É um monstro (CHAUÍ, 1984, p.59).
E é sobre tal monstro que se quer buscar um foco mais apropriado. Sim, pois
este ser que parece navegar no limbo da verdade e da inverdade, de um não-saber que
sabe e de uma cegueira que é o Édipo que se quer aqui, nesta dissertação, tentar
entender um pouco mais. Um sujeito que também é caracterizado por uma autoctonia
que, para Lévi-Strauss, lhe priva até de saber-se a si mesmo, não conhecendo sua
origem e entendendo de seu destino o fato de que este é implacável. Um ser que
Marilena Chauí chama monstro e que não vem nunca desacompanhado.
Como os deuses que nascem de suas mães, este homem também nasce da sua.
E a pergunta que agora se faz é se tal mulher, como seu filho e seu esposo, também
sabe de si o mesmo que seu esposo e filho não sabe dele próprio. A lógica mais exata
parece dizer-nos que deuses são gerados por deuses, homens por homens e monstros
por monstros. Se, portanto, o Édipo que na mesma medida é o sábio decifrador de
enigmas e o ignorante de sua história, se este Édipo é aquele que salva sua cidade
para assim condená-la, este sujeito foi também gerado por ser que lhe é igual. Tem-se,
então, uma cadeia significativa de correspondências entre as tragédias e as culpas
estabelecidas no mito e no texto de Sófocles. Ao parricídio, pode-se justapor o filicídio;
ao incesto, o próprio incesto; ao conhecimento, a ignorância.
Nesse sentido, uma e outra parte, homem e mulher, Édipo e Jocasta parecem se
igualar na tragédia. Mas apenas parecem, uma vez que o protagonismo, tanto na
tragédia de Sófocles como na maior parte dos estudos citados nesta dissertação, é
colocado sobre a figura masculina. A própria Marilena Chauí (1984) colabora com a
97
ortodoxia deste tipo de leitura ao concentrar todas as forças do trágico sobre um único
personagem, participando também de um tipo de abordagem do mito que é comum seja
para helenistas consagrados seja para outros tipos de estudiosos.
Essa tragédia é considerada exemplar porque nela as contradições entre
passado e presente, família e Cidade, culpa e castigo, responsabilidade e
pena, destino e liberdade, direito e força, justiça e violência não se distribuem,
como nas outras tragédias, entre as várias personagens, mas se concentram
todas em Édipo que diz sempre o contrário do que pensa estar dizendo e faz o
contrário do que imagina estar fazendo, supondo que controla as regras do
jogo do poder quando, na verdade, é um joguete delas (CHAUÍ, 1984, p.60).
Ao dizer que todas as contradições estão focadas sobre Édipo, Chauí, mais uma
vez, reitera um certo tipo de linguagem a partir do qual a hermenêutica mais ortodoxa
está acostumada a ler o mundo: a ótica do masculino. Para este tipo de leitura, a idéia
de equivalência entre parricídio e filicídio, incesto da mãe e incesto do filho, culpas
semelhantes entre homens e mulheres não pode ser considerada.
No entanto, a filósofa paulista, junto com Hélio Pellegrino, também nos lembra
que a paz deste homem capaz de concentrar culpas e protagonismos é também
precária. Logo, para compor o mosaico trágico, a peste será enviada pelas Fúrias,
entidades femininas que, segundo a tradição, são protetoras das mulheres. Assim, a
questão que aqui se lança, e que será objeto de análise no próximo capítulo desta
dissertação, busca certa provocação, qual seja a de invocar tais Fúrias para tentar pelo
menos imaginar que a Jocasta que manda matar o filho para, depois, com semelhante
culpa, dividir com ele o leito nupcial, dando-lhe o poder que lhe era de direito desde o
nascimento, e gerando outros filhos trágicos, esta Jocasta, ao contrário de seu rebento
e esposo, sabe. De que maneira ela, julgando não saber, sabe aquilo que Édipo,
julgando saber, não sabe é, talvez, a pergunta essencial deste estudo.
98
Por caminhos insinuantes, a própria Marilena Chauí, ao propor uma breve
interpretação para o mito que acompanha o método estruturalista de Lévi-Strauss,
parece nos conduzir para a igualdade ou, pelo menos, o alinhamento entre homens e
mulheres. Na leitura de Chauí, a Gênese bíblica é colocada em pauta. É a partir deste
livro que a filósofa paulista recorda que, ao contrário de todas as outras coisas, homem
e mulher não foram criados pela palavra. O primeiro surge do barro, a outra de uma
costela deste barro. Assim, o que se quer mostrar é que a origem autóctone de um é
acompanhada do surgimento a partir da mutilação, da própria deformação do outro.
A deformidade aparece, então, visto haver um elemento de autoctonia: a
perda de uma costela. E também aparece um monstro ctônico: a serpente
que rasteja.
A diferença sexual também
é
enfrentada: olhando os animais,
Deus decide dar ao homem uma companheira, porém como até esse momento
estamos no reino da Natureza, lemos: "Esta sim é osso de meus ossos e carne
da minha carne!", portanto o mesmo vem do mesmo. "Ela será chamada
mulher (em hebraico, mulher
=
ishsha) porque foi tirada do homem (em
hebraico, homem
=
ish)",
a diferença sexual sendo obtida por urna extração
do corpo feminino do interior do corpo masculino, sem procriação (CHAUÍ,
1984, p.75-76).
Então, o que temos é o homem que vem do homem, o que vem do pó, o
monstro que vem do monstro, o mesmo que vem do mesmo. E este homem que vem
de si próprio carrega, esta é a tese que se defende aqui, culpas trágicas e análogas.
Faltas que talvez sejam distintas naquilo que feminino e masculino deverão procurar
para preenchê-las, mas trepidantemente semelhantes quando se pode ver que o
parricídio de Édipo e o filicídio de Jocasta, que o incesto de um e de outro podem
possuir congruente extensão.
A seguir, dando continuidade àquilo que até o momento se propõe, tentar-se-á
perceber, a partir de leitura feita com o olhar pós-estruturalista de Michel Foucault, qual
99
o papel do poder e do saber no preenchimento das faltas que permeiam Édipo e
Jocasta na escritura exemplar de Sófocles.
5.3. SABER E PODER
Para Michel Foucault, a tragédia de Édipo é um dos primeiros testemunhos que
se tem das práticas judiciárias gregas. E foi a partir desta ótica que o filósofo francês
reconstruiu o personagem de Sófocles durante sua segunda conferência, de uma série
de cinco, em maio de 1973, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Em
seu discurso, a pretensão de Foucault (2002) é nos apresentar a tragédia de Édipo
como a história de uma pesquisa da verdade(FOUCAULT, 2002, p.31), numa trama
que é análoga às práticas judiciárias gregas do mesmo período em que a tragédia teve
seu nascimento, apogeu e ocaso, isto é, no século V a.C.
No entanto, antes de fazer sua análise, Foucault realiza uma breve introdução às
idéias de Gilles Deleuze e Felix Guattari (1966), cujo entendimento é essencial para a
compreensão de sua proposta. O pensador francês se refere ao livro O Anti-Édipo, no
qual Deleuze e Guattari querem mostrar que o triângulo edipiano composto, como se
sabe, por pai, mãe e filho é, para os psicanalistas, um modo de conter o desejo, por
meio de manipulações no interior da cura, garantindo que este mesmo desejo
permaneça na esfera familiar. Nesse sentido, ao se conservar no âmbito do triângulo
edipiano, o desejo não contaminaria, por assim dizer, a sociedade, limitando-se a uma
100
configuração de drama burguês. Nesse sentido, vale a pena atentar para o que diz o
Dicionário de Psicanálise (ROUDINESCO; PLON, 1998):
Os dois autores criticavam o edipianismo freudiano que, em sua opinião,
encerrava a libido plural da loucura em um quadro excessivamente estreito, de
tipo familiar. Para sair desse impasse ‘estrutural’, eles se propunham a traduzir
a polivalência do desejo humano em uma conceitualidade adequada. Daí a
idéia de opor à psicanálise freudiana e lacaniana, articulada em torno da
prioridade do Édipo e do significante, uma psiquiatria materialista fundada na
‘esquizo-análise’, isto é, na possível liberação dos fluxos desejantes. (...) O
anti-Édipo tomava assim como alvo maior o conformismo psicanalítico de todas
as tendências, anunciando com vigor o esgotamento trágico do lacanismo nos
últimos tempos (ROUDINESCO; PLON, 1998, p.320-321).
O que Deleuze e Guattari tentam mostrar é que o triângulo representado por pai,
mãe e filho não explica uma verdade atemporal, nem uma verdade trepidantemente
histórica daquilo que é tomado como desejo pela psicanálise. Édipo, portanto, não seria
a substância secreta do inconsciente humano, mas, como diz o próprio Foucault (2002),
a forma de coação que a psicanálise tenta impor na cura a nosso desejo e a nosso
inconsciente (FOUCAULT, 2002, p.30). Para o pós-estruturalista francês e,
certamente junto com ele, para Gilles Deleuze e Félix Guattari – a palavra que irá definir
as relações inerentes à história daquele que matou seu pai e, ao ser coroado rei de
Tebas, desposou sua mãe, é bastante significativa e algo distante dos meandros mais
tipicamente psicanalíticos: poder.
Édipo o seria pois uma verdade da natureza, mas um instrumento de
limitação e coação que os psicanalistas, a partir de Freud, utilizam para conter
o desejo e fazê-lo entrar em uma estrutura familiar definida por nossa
sociedade em determinado momento. (...) Édipo é um instrumento de poder, é
uma certa maneira do poder médico e psicanalítico se exercer sobre o desejo e
o inconsciente (FOUCAULT, 2002, p.29-30).
101
Se é por tal motivo que Foucault rejeita a análise freudiana, vale reiterar que a
leitura do próprio filósofo também não deixa de lado a definição de poder. No entanto,
este poder vem sempre acompanhado do saber. É o que Foucault (2002) conclui, após
realizar aquilo que no início da conferência ele próprio nega fazer: uma análise de
estruturas. Se no início do texto produzido a partir das palestras ministradas na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro ele rechaça o epíteto de
estruturalista que lhe é dado a ele próprio e a outros intelectuais como Deleuze,
Guattari e Jean-François Lyotard para afirmar que o que fazem, ele e estes outros
nomes, poderia ser chamado pesquisa de dinastia(FOUCAULT, 2002, p.30), o que
vem a seguir vai mostrar que a leitura de Foucault do Édipo Rei de Sófocles realmente
se baseia, sem qualquer demérito para ela, numa análise da ordem dos elementos
essenciais que compõem o corpo da tragédia em questão. Ou seja, da estrutura.
E o exame foucaultiano possui como característica principal, como foi dito, o
distanciamento das veredas psicanalistas de Sigmund Freud e de seus escolásticos.
Portanto, trata-se aqui, pode-se mesmo afirmar, de uma leitura heterodoxa de Édipo.
Um exame que começa por defender a idéia de que a tragédia de Sófocles está
organizada a partir daquilo que o próprio filósofo chama “lei das metades”. Segundo
Foucault, trata-se, no caso do Édipo Rei, de um mecanismo que tem por efeito exibir as
verdades pretensamente oferecidas em metades que se completam. Ou seja: em algum
momento do texto, uma determinada questão é estabelecida sem que seja totalmente
elucidada; em ocasião posterior, tal ponto volta à cena para ser, então, esclarecido. É
exatamente em função desta organização fornecida previamente para a análise da
tragédia que defendo haver um conceito, ou mesmo um método de investigação, que
não deixa de ser estrutural.
102
Nesse sentindo, segundo Michel Foucault (2002), tais metades se fragmentam e
acabam, no final das contas, por se ajustar, produzindo certos deslocamentos a partir
dos pontos que se adaptam. Em sua análise, o pensador francês enxerga três níveis
em que tais encaixes de verdades que se completam podem ser percebidos: o dos
deuses, o da realeza e, poder-se-ia dizer, o do povo.
O primeiro jogo de metades que se ajustam é o do rei ApoIo e do divino
adivinho Tirésias - o nível da profecia ou dos deuses. Em seguida, a segunda
série de metades que se ajustam é formada por Édipo e Jocasta. Seus dois
testemunhos se encontram no meio da peça. É o vel dos reis, dos
soberanos. Finalmente, a última dupla de testemunhos que intervém, a última
metade que vem completar a história não é constituída nem pelos deuses nem
pelos reis, mas pelos servidores e escravos. O mais humilde escravo de
Políbio e principalmente o mais escondido dos pastores da floresta do Citerão
vão enunciar a verdade última e trazer o último testemunho (FOUCAULT,
2002, p.38-39).
De acordo com Michel Foucault, as metades divinas o enunciadas pelas falas
de Apolo e Tirésias. O filho de Zeus e Leto, detentor do Oráculo de Delfos este Apolo
que, segundo o helenista Junito Brandão (2000), é entidade derivada de um vasto
sincretismo e de uma bem apurada depuração mítica(BRANDÃO, 2000, p.88)
até ser
reconhecida como deus da luz e como o próprio sol –, responde de maneira incompleta
à indagação sobre o motivo da peste estar assolando Tebas. No diálogo entre Creonte
e o próprio Édipo, Sófocles (2002) nos mostra as diretrizes de Apolo:
CREONTE
Revelarei então o que ouvi do deus.
Ordena-nos Apolo com total clareza
que libertemos Tebas de uma execração
oculta agora em seu benevolente seio,
antes que seja tarde para erradicá-Ia.
ÉDIPO
Como purificá-Ia? De que mal se trata?
103
CREONTE
Teremos de banir daqui um ser impuro
ou expiar morte com morte, pois há sangue
causando enormes males à nossa cidade.
ÉDIPO
Que morte exige expiação? Quem pereceu?
CREONTE
Laio, senhor, outrora rei deste país,
antes de seres aclamado soberano. (SÓFOCLES, 2002, p.23)
A outra parte desta metade vem de Tirésias agora cego e homem, dono de
poderes divinatórios; antes, mulher, por ter separado a cópula das serpentes. Chamado
para dar conta daquilo que o próprio deus da luz o determinou clarear, sua resposta
é clara e não comporta qualquer tipo de engodo. O máximo que Tirésias esta mesma
personagem que irá surgir novamente na obra de Armando Nascimento Rosa (2003), a
ser analisada no próximo capítulo desta dissertação –, faz é pedir ao rei de Tebas que
não o envolva em mistérios que não deveriam ser esclarecidos:
ÉDIPO
Que dizes? Sabes a verdade e não falas?
Queres trair-nos e extinguir nossa cidade?
TIRÉSIAS
Não quero males para mim nem para ti.
Por que insistes na pergunta? É tudo inútil.
De mim, por mais que faças nada saberás. (SÓFOCLES, 2002, p.33)
Depois de escutar de Édipo que, por o querer contar a verdade, ele próprio,
aquele que gozou como homem e como mulher, poderá ser incriminado pela morte
de Laio, Tirésias, o cego que consegue enxergar, elucida toda a trama, ao evocar a
própria determinação de Édipo de banir o culpado, e sem buscar quaisquer tipos de
subterfúgios:
104
TIRÉSIAS
Teu pensamento é este? Então escuta: mando
que obedecendo à ordem por ti mesmo dada
não mais dirijas a palavra a esta gente
nem a mim mesmo, pois és um maldito aqui. (SÓFOCLES, 2002, p.34)
Mas Édipo, ainda não satisfeito, deve ouvir a sentença final de Tirésias: “Pois
ouve bem: és o assassino que procuras!Assim, ao completar-se o primeiro jogo de
metades proposto por Michel Foucault, temos resolvida, no início da obra de
Sófocles, a pergunta que quer saber quem matou Laio. E resolvida através de uma
verdade prescritiva, profética, própria de uma Grécia, para Foucault, ainda mais antiga
do que aquela do século V a.C. No entanto, para o tragediógrafo de Colono, o
verdadeiro jogo, a maior das peripécias, ainda está por vir, oferecendo luz ainda mais
fulgurante a sua dramaturgia. Também para Foucault faltam os outros dois pares de
metades a partir dos quais estará claro o jogo de poder e saber que o pensador francês
quer ver no Édipo Rei.
Um deles está no diálogo entre Jocasta e Édipo em que aquela começa a tentar
convencer o esposo de sua inocência. Mais uma vez, o que vamos encontrar é uma
questão do gênero, traduzida de maneira espetacular na peripécia sofocliana. Jocasta o
que faz é contar a Édipo como se deu a morte de Laio. Assim, ele logo reconhece que
Tirésias pode estar certo, uma vez que os detalhes dados pela sempre rainha sobre a
morte de seu ex-marido coincidem com os sucessos que lhe avivam a memória no que
se refere ao episódio em que ele, vindo de Corinto, depara com uma comitiva numa
encruzilhada e, para não ceder passagem a ela e sentindo-se ofendido, alterca-se com
seus opositores e mata Laio.
105
Édipo, depois de saber que foi um escravo que contou a Jocasta a respeito da
morte de um sujeito que ele ainda não sabe que é seu próprio pai, manda chamar o
servo. É então que se estabelece o terceiro e último jogo de metades que se
completam, como quer a análise proposta por Michel Foucault. O escravo virá. E não
apenas o escravo chamado por Jocasta. Antes dele, virá um outro, de Corinto, para lhe
trazer a notícia de que aquele a quem Édipo toma como genitor, Pólibo, está morto.
São estes dois escravos, servos, mensageiros, criados, ceramistas, pastores, homens
do povo, aqueles que oferecem, na obra ímpar de Sófocles, a verdade final e a
peripécia mais trepidante.
Na leitura de Foucault, o ciclo de metades que se ajustam umas às outras está
fechado. Presumido a partir de verdades que passam dos deuses aos escravos e vão
sendo descobertas a partir de um jogo que, para o filósofo, vai cobrar sentido numa
técnica retórica, religiosa e política da antigüidade grega. Trata-se da técnica do
σύµβολον”: o símbolo grego. Tal prática, segundo Foucault (2002), é um instrumento
de exercício de poder que permite a alguém que detém um segredo ou um poder
quebrar em duas partes um objeto qualquer, de cerâmica etc., guardar uma das partes
e confiar a outra parte a alguém que pode levar a mensagem ou atestar sua
autenticidade (FOUCAULT, 2002, p.38). Nesse sentido, será pelo ajustamento das
duas metades que o poder continuará a existir. Para o filósofo francês, a tragédia de
Sófocles acompanha tal ritmo. Produzida a partir desta metodologia, ela cumpre o papel
de autenticar a detenção do poder e as ordens por ele transmitidas. Trata-se, então, de
uma prática jurídica, política e religiosa denominada σύµβολονpelos gregos. Ou seja:
o símbolo.
106
Mas a heterodoxia analítica de Foucault não pára por aí. O filósofo acredita que
este Édipo que nada sabe de seu destino, que cega-se a si mesmo no final de seu
drama, que, para Freud, é o homem do inconsciente, este Édipo não passa, poder-se-ia
dizer, de um engodo. Ao contrário, para Michel Foucault, o tirano de Tebas é aquele
que sabia demais e que, por isso, deveria ser expulso definitivamente do momento
histórico traduzido pelo séc. V a.C., ocasião em que a peça é escrita. Uma época, como
se disse nesta dissertação, pontuada por governantes como ricles, um dos
responsáveis pelo apogeu da chamada democracia ateniense.
Nesse sentido, na leitura feita por Foucault, o que está em jogo desde o início da
peça, quando Édipo afirma que seu interesse em exterminar a peste está diretamente
ligado à manutenção de sua soberania, é a questão do poder. Por tal viés, é
interessado em manter-se como rei que ele buscará solucionar o problema. É por isso
também que ele discute com Creonte e Tirésias ao se ver ameaçado. E é ainda por
esta lógica que ele não se assusta com a idéia de ter matado seu pai ou o antigo rei de
Tebas e ex-marido de sua atual mulher. O que Édipo teme, segundo Foucault, é perder
o próprio poder.
E tal condição advém do fato de ele ser um tirano, no sentido explicado
anteriormente nesta dissertação. E o tirano, não é demais recordar, é aquele cujo poder
lhe é atribuído a partir de seu saber destruidor de esfinges e salvador de cidades e de
sua força de anĕr. Um poder que tem suas características relatadas no pensamento, na
história e na filosofia grega da época. Segundo o pensador francês, estas
características podem ser encontradas de maneira exemplar na obra do estratego de
Atenas que se tornou um dos maiores dramaturgos de todos os tempos, obtendo, nas
festas de Dionísio, 24 prêmios nos concursos trágicos.
107
Um certo número de características deste poder aparece na tragédia de Édipo.
Édipo tem o poder. Mas o obteve através de uma série de histórias, de
aventuras, que fizeram dele inicialmente o homem mais miserável - criança
expulsa, perdida, viajante errante - e, em seguida, o homem mais poderoso.
Ele conheceu um destino desigual. Conheceu a miséria e a glória. Esteve no
ponto mais alto, quando se acreditava que fosse filho de Políbio e esteve no
ponto mais baixo, quando se tornou um personagem errante de cidade em
cidade. Mais tarde, de novo, ele atingiu o cume. ‘Os anos que cresceram
comigo, diz ele, ora me rebaixaram, ora me exaltaram’. (FOUCAULT, 2002,
p.44)
Tal alternância do destino é traço marcante de dois tipos de personagens da
cultura helênica: o herói e o tirano. Se o lado que se poderia chamar bom da tirania está
presente em Édipo, o negativo também está. Isto acontece quando temos um soberano
que pensa que a cidade é sua, ou que a tem sob a mais estrita dependência. Segundo
Foucault, “Édipo é aquele que não importância às leis e que as substitui por suas
vontades e ordens” (FOUCAULT, 2002, p.45). Em alguns momentos da obra de
Sófocles, como na discussão com Creonte, ele diz claramente que sua vontade é a lei
da cidade.
Se o poder de Édipo é bastante semelhante ao dos tiranos gregos que
governaram durante o século V a.C., o saber é solitário, baseado na experiência de
quem resolve por suas mesmas medidas as adversidades que encontra. É por isso que
o pensador francês afirma que ele cai em uma armadilha, na medida em que prolonga o
testemunho até dar-se conta de uma verdade que se achava escondida.
O saber de Édipo é esta espécie de saber de experiência. É ao mesmo tempo
este saber solitário, de conhecimento, do homem que, sozinho, sem se apoiar
no que se diz, sem ouvir ninguém, quer ver com seus próprios olhos. Saber
autocrático do tirano que, por si só, pode e é capaz de governar a cidade. A
metáfora do que governa, do que pilota, é frequentemente utilizada por Édipo
para designar o que ele faz. Édipo é o piloto, aquele que na proa do navio abre
os olhos para ver. E é precisamente, porque abre os olhos sobre o que está
acontecendo que encontra o acidente, o inesperado, o destino, a τύχη
.
Porque
foi este homem do olhar autocrático, aberto sobre as coisas, Édipo caiu na
armadilha. (FOUCAULT, 2002, p.47)
108
Fazendo a transição de um saber profético para um testemunhal, unindo “a
profecia de deus e a memória dos homens” (FOUCAULT, 2002, p.48), a obra de
Sófocles, na leitura de Michel Foucault, quer desvalorizar uma forma de saber político
que é, na mesma medida, privilegiado e exclusivo. Mas não se trata, para o pensador
francês, apenas disso. Ao construir uma ponte que chega aa República de Platão
(2004), Foucault também leva em conta em sua hermenêutica heterodoxa o fato de que
este tirano, homem do poder e do saber nos séculos VI e VII a.C., é combatido, junto
com a figura do sofista, tanto pelo dramaturgo do século V a.C. como pelo filósofo que
produzirá suas idéias cerca de cem anos depois.
Na realidade, ao querer enxergar que o Édipo Rei de Sófocles procura
desqualificar as figuras do tirano e do sofista, este último enquanto profissional do
poder político e do saber, a análise de Michel Foucault irá combater um outro mito: o de
que, seguindo as razões do platonismo, existe uma antinomia decisiva entre saber e
poder. Ou seja: a crença de que ciência e saber não podem conviver com o poder
político.
Esse grande mito precisa ser liquidado. Foi esse mito que Nietzsche começou
a demolir ao mostrar, em numerosos textos citados, que por trás de todo
saber, de todo conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder.
O
poder político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber.
(FOUCAULT, 2002, p.51)
A seguir, ainda que brevemente e sem pretensões maiores que a de suscitar
outras abstrações, tentar-se-á resumir o que Friedrich Nietzsche (1992) nos propõe
acerca do tema tratado, sobretudo naquilo que é objeto de seu primeiro livro: O
nascimento da tragédia.
109
5.4. APOLO E DIONÍSIO
As cenas são parecidas. Da primeira, que certamente não é cronologicamente
anterior à segunda, foi falado aqui. Trata-se de Édipo quando, frente a frente com o
divino adivinho Tirésias este que agora é cego e homem, e que gozou como
mulher, apartando o sexo das serpentes e resolvendo até mesmo disputas entre os
deuses trata-se de um Édipo que pergunta ao bruxo: Sabes a verdade e não falas?
(SÓFOCLES, 2002, p.33). Sim, a pergunta é daquele que quer saber. Não porque não
saiba, como se pôde vislumbrar a partir da análise de Michel Foucault, mas porque
necessita de confirmações para uma verdade que precisa ser dita, redita, confirmada e,
indo e vindo, inaugurada, reinstaurada.
À indagação do ainda rei de Tebas, Tirésias pretende não responder. Pede que
lhe mande embora, chama insensatos a Édipo e a todos, o quer falar de males. Mas
a devassa prossegue e, depois de ser acusado – ele mesmo, o áuspice cego de ser o
assassino de Laio, por não querer dizer o que sabe, Sófocles nos oferece a primeira
peripécia e, já no início do drama, elucida toda a trama. A visita de Tirésias, ao contrário
de trazer a resposta esperada, conduz àquilo que não se pretendia buscar: o
imprevisto: “Pois ouve bem: és o assassino que procuras!” (SÓFOCLES, 2002, p.35)
A partir da resposta do adivinho, mais à frente, no drama de Sófocles, Édipo irá
se convencer de que não é possível mais viver tendo apenas a beleza e o clarão de
Apolo a pretensamente lhe iluminar os caminhos. Ele precisará de mais: tudo isso e
muito mais. O da forca que lhe ata os pés vai se desprender da árvore parteira e,
para ele, será então preciso experimentar a noite de Dionísio; reconhecendo as
110
pessoas pelo tato; comendo comidas sem ter que apreciá-las antes; levando para a
alma, em cheiros, aquilo que os seres e as coisas exalam. Êxtase e embriaguez?
Então, por não se conhecer, Édipo poderá sair em busca de si próprio, tendo como
companheiro apenas o vigor das sensações.
A outra cena acontece de maneira inesperada, com crueldade semelhante, numa
mitologia que é a mesma e que também é mais antiga. Ela nos é narrada por Friedrich
Nietzsche (1992), em seu O Nascimento da Tragédia. Nela, o velho Sileno, nascido das
gotas do sangue de Urano, quando este foi castrado por Cronos, é perseguido pelo
famélico rei Midas, da Frígia. Capturado, o pai dos Sátiros, companheiro de Dionísio
que possui como características mais determinantes a sabedoria, a feiúra e, como o
poderia deixar de ser, a embriaguez, tem, como o sabedor Tirésias diante da
insensatez e presumida ignorância de Édipo, uma pergunta a responder. Midas quer
saber qual, dentre todas as coisas, é a melhor e a mais preferível para o homem. Como
escreve o criador de Zaratustra, a resposta do daimon vem acompanhada de um sorriso
amarelo:
-Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me
obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo
é para ti inteiramente inatingível: o ter nascido, o
ser, nada
ser. Depois
disso, porém, o melhor para ti é logo morrer. (NIETZSCHE, 1992, p.36)
O que o rei Midas ouve é aquilo que Édipo, quase ao final do texto de Sófocles,
dirá a si mesmo: “Ah! Luz do sol. Queiram os deuses que esta seja a derradeira vez que
te contemplo! Hoje tornou-se claro para mim que eu não deveria nascer de quem nasci,
nem viver com quem vivo e, mais ainda, assassinei quem não devia!(SÓFOCLES,
2002, p.82) Com tal fala, o que esse Édipo de estirpe miserável e efêmera faz é
111
concordar com as palavras de Sileno. O filho e esposo de Jocasta, depois de destruir
totens e quebrar tabus, sabe, junto com o pai dos tiros, que não devia ter nascido e
só o que deseja é morrer. Não quer mais ver a luz do sol, essa luz de Apolo que acabou
por lhe conduzir à cegueira, tornando-o o pior dos cegos. E o pior dos cegos, ao
contrário do que diz o refrão popular, talvez não seja aquele que não quer ver, mas
aquele, como este Édipo humano, que quer ver.
A visão de Friedrich Nietzsche a respeito de Édipo não diz respeito à
personagem ou ao texto específico de Sófocles. Ela fala de uma maneira filosófica de
enxergar o mundo. Para esclarecer brevemente aquilo que interessa mais de perto a
esta dissertação, tentar-se-á demonstrar, de modo resumido, o que o filósofo alemão
pensa sobre a tragédia entre os gregos, assim como está em seu primeiro livro,
citado anteriormente.
As idéias contidas em O Nascimento da tragédia, obra publicada pela primeira
vez em 1872 e reeditada quatorze anos depois, começam a ser urdidas em 1870, a
partir de três textos escritos neste período em que Nietzsche, ainda aos 25 anos, é
professor da Universidade de Basiléia, quais sejam: “A visão dionisíaca do mundo”, “O
drama musical grego” e “Sócrates e a tragédia grega”. Tais conceitos irão, de certa
maneira, configurar uma ordem heterodoxa na análise não apenas da antigüidade
grega, mas também na influência do socratismo e do platonismo sobre a cultura
ocidental.
Nessa sua obra inaugural, o filósofo alemão, influenciado por Arthur
Schopenhauer, irá interpretar a cultura clássica grega a partir do encontro de forças que
se poderiam dizer opostas. De um lado, tem-se o apolíneo, impulso representado,
desnecessário dizer, pelo deus grego Apolo, e ligado à perfeição, à medida de ações e
112
formas, à palavra e ao pensamento humanos. De outro, encontramos o dionisíaco,
inerente a Dionísio, deus do vinho, da sica e da dança, inicialmente cultuado entre
os povos da Ásia Menor e vinculado à exarcebação dos sentidos, à embriaguez mística
e à primazia amoral dos instintos.
É das celebrações a Dionísio que nascea própria tragédia grega. De acordo
com Junito Brandão (2004b), as chamadas “Dionísias Rurais” são sua fonte. A partir do
século V a.C., tais festas passam a ser enriquecidas com concursos dramáticos. E é
deste encontro entre um espírito apolíneo, sedimentado no sólo helênico, com um
outro dionisíaco, oriundo de povos que poderiam ser chamados “bárbaros”, que
acontece a tragédia grega. Segundo Nietzsche, tal forma artística será o exemplo a
partir do qual a vitalidade da cultura e do homem grego poderá ser percebida em sua
maior evidência. O que se tem aqui, valeria mesmo dizer, é o nascimento de um
homem trágico, que leva dentro de si a lucidez e a beleza de Apolo em embate
permanente com a embriaguez e o êxtase característicos de Dionísio.
Este ser apolíneo, para Nietzsche, é também o do indivíduo, o do Estado, da
consciência de si próprio. No entanto, tal individualidade, traduzida através do
principium individuationis, não passa de uma aparência que tem como finalidade
mascarar a essência humana. É neste sentido que o sujeito necessita da beleza de
Apolo: para se libertar da dor através da aparência. Logo no início de O Nascimento da
Tragédia, e depois de citar o princípio da individuação de Schopenhauer, é assim que
Nietzsche (1992) se refere ao deus sol:
Sim, poder-se-ia dizer de Apolo que nele obtiveram [os gregos] a mais sublime
expressão a inabalável confiança nesse
principium
e o tranqüilo ficar
sentado de quem nele está preso, e poder-se-ia inclusive caracterizar ApoIo
113
com a esplêndida imagem divina do
principium individuationis,
a partir de
cujos gestos e olhares nos falam todo o prazer e toda a sabedoria da
‘aparência’, juntamente com a sua beleza. (NIETZSCHE, 1992, p.36)
Dionísio surge, então, para dar o contraste, como se fosse a tinta negra que,
espalhada com determinação sobre o barro vermelho da ânfora de Exéquias, fizesse
surgir as figuras que nela podem ser vistas. E é a partir de tal contraste que o homem
grego deixa de ser criador da obra de arte para se tornar a própria obra, voltando-se
também para sua essência e deixando de dissimular a verdade. Como afirma Roberto
Machado (1999) em seu livro sobre Nietzsche, a oposição entre os dois instintos, estas
duas forças artísticas da natureza, era total.
A experiência dionisíaca, em vez de individuação, assinala justamente
uma ruptura com o principium individuationis e uma total reconciliação
do homem com a natureza e os outros homens, uma harmonia universal
e um sentimento místico de unidade; em vez de autoconsciência
significa uma desintegração do eu, que é superficial, e uma emoção que
abole a subjetividade até o total esquecimento de si; em vez de medida
é a eclosão da
hybris,
da desmesura da natureza considerada como
verdade e
exultando na alegria, no sofrimento e no conhecimento’; em
vez de delimitação, calma, tranqüilidade, serenidade,
é
um
comportamento marcado por um êxtase, por um enfeitiçamento, por uma
extravancia de frenesi sexual que destrói a família, por uma
bestialidade natural constituída de volúpia e crueldade, de força grotesca
e brutal; em vez de sonho, vio onírica,
é
embriaguez, experiência
orgiástica. (MACHADO, 1999, p.21-22)
No entanto, a marca da excelência da cultura clássica grega está, para o filósofo
alemão, na maneira como acontece o convívio entre o apolíneo e o dionisíaco. De
acordo com Nietzsche, a evolução da arte irá depender necessariamente do
antagonismo dessas duas forças. Em seus Fragmentos Póstumos, conforme Jean
Lefranc (2005), no livro Compreender Nietzsche, o pensador alemão reflete sobre tal
debate de maneira bastante esclarecedora:
114
Esta oposição do dionisíaco e do apolíneo no interior da alma grega
é
um dos grandes enigmas cuja sedução senti na presença do ser grego.
No fundo esforcei-me por nada mais do que adivinhar porque o
apolinismo grego devia surgir de um substrato dionisíaco, porque o grego
dioniaco teve que tornar-se necessariamente apolíneo; isto é, romper
sua vontade do monstruoso, do múltiplo, do incerto e do horrível por uma
vontade da medida, da unidade, da ordenação segundo a regra e o
conceito. Seu fundamento
é
a demência, a desordem, o asiatismo; a
coragem do grego consiste num combate contra seu próprio asiatismo; a
beleza o lhe
é
dada mais que a lógica, mais que a moral natural ela
é
conquistada, desejada, tomada de assalto à força ela
é
uma vitória
grega. (LEFRANC, 2005, p.71)
Mas a grande heterodoxia da leitura nietzschiana talvez se no fato de que,
depois de ver na tragédia que consagrou Sófocles o ápice dessa cultura clássica grega,
o filósofo nos mostra que o declínio de tal cultura parte do surgimento de um homem
racional, um sujeito escrito a partir do principium individuationis. É tal homem, cuja
marca principal é a figura de Sócrates, que acaba por colocar um fim à afirmação
daquele outro homem trágico. E é também tal sujeito construído pelo platonismo que,
grosso modo, irá pautar a ortodoxia hermenêutica da cultura ocidental durante os
séculos que seguirão também com o cristianismo a seu reboque.
De acordo com a condenação que Friedrich Nietzsche (2005) faz do pensar
filosófico que começará a ser operado a partir de Sócrates e que terá seu ápice nas
idéias de Platão, o socratismo despreza o instinto e, com isto, a arte(NIETZSCHE,
2005, p.83). Neste sentido, ao situar os três grandes dramaturgos gregos, Nietzsche faz
distinções que merecem ser levadas em consideração. Para ele, enquanto em Ésquilo
a repugnância dilui-se no sublime assombro diante da sabedoria da ordenação do
mundo, em Sófocles tal assombro é maior ainda, uma vez que esta sabedoria é
completamente insondável.
115
...a disposição de Ésquilo tem continuamente a tarefa de justificar a
justiça divina, e por isso se detém sempre diante de novos problemas.
Para Sófocles, o ‘limite do homem”, pelo qual Apolo ordena procurar, é
reconhecível. No entanto, ele é mais estreito e restrito do que Apolo
considerava ser na época pré-dionisíaca. A falta de conhecimento de si
no homem é o problema de Sófocles, a falta de conhecimento sobre os
deuses no homem o problema de Ésquilo. (NIETZSCHE, 2005, p.29)
Se a criação nesses dois primeiros autores traduz, para Nietzsche, um momento
em que a arte grega ainda não havia se impregnado de palavras como conceito e
consciência, com Eurípides as perspectivas serão alteradas. Segundo o filósofo
alemão, é este último dramaturgo que passa a seguir uma estética consciente, fazendo
eco, desta maneira, aos princípios socráticos que buscavam nada mais, nada menos
que a clareza de Apolo. Nas comparações feitas por Nietzsche entre os três nomes da
tragédia grega, Eurípides irá aparecer ao lado desta clareza que poderia ser traduzida
na própria busca da razão em Sócrates.
Ele [Eurípides] procura intencionalmente o que de mais
compreensível; seus heróis são realmente como eles falam. Mas tamm
eles se expressam inteiramente, enquanto os personagens de Ésquilo e
de Sófocles o muito mais profundos e plenos do que suas palavras:
propriamente, eles só balbuciam sobre si. Eurípides cria as figuras
enquanto, ao mesmo tempo, as disseca: diante de sua anatomia não
existe nada mais oculto nelas. (NIETZSCHE, 2005, p.80)
Assim, o que Friedrich Nietzsche parece querer dizer é que a construção desta
parte oculta é possível através do princípio dionisíaco, capaz do êxtase criativo. É tal
embriaguez que irá resultar, acredito, em personagens como Édipo e Jocasta, que se
caracterizam, na tragédia de Sófocles, pelo fato de deixar a essência do mito exposta, a
fim de que novas e múltiplas leituras possam ser feitas, de modo a buscar a existência
humana, como enseja o filósofo alemão, não nos fenômenos, mas naquilo que existe
por trás deles.
116
E é exatamente em função desta parte oculta que Sófocles nos deixa em Édipo e
Jocasta que, hoje, torna-se possível buscar interpretações que possam vislumbrar no
cegar-se do rei de Tebas o haver alcançado o êxtase dionisíaco. É esta embriaguez da
imaginação que também poderá oferecer a Jocasta uma interpretação menos
secundária que a de seu filho e esposo. Tais leituras feitas, é o que parece, a partir
dessa cegueira, desse êxtase e dessa embriaguez são o objeto do próximo e último
capítulo desta dissertação. Pelo menos em uma delas a do drama Jocasta Tirana,
produzido intencionalmente a partir das idéias aqui levantadas sobre o mito e sobre a
própria questão do gênero –, tentar-se-á levar a conseqüências apócrifas tudo o que foi
pensado neste trabalho até o momento.
117
6. DUAS LEITURAS HETERODOXAS
Como se viu até aqui, a leitura de um mito nunca pode ser esgotada. Passando
por análises consagradas e pautadas por uma determinada ortodoxia hermenêutica,
como a de Freud e Lévi-Strauss, até chegar a outras mais heterodoxas, como são a de
Michel Foucault e até mesmo a do psicanalista Hélio Pellegrino, o que neste breve
estudo se tentou foi, com as limitações inerentes a este trabalho e a seu trabalhador,
procurar enxergar no mito de Édipo sobretudo a partir de sua interpretação mais
célebre, a de Sófocles, inaugural do gênero dramático os mais variados e discutidos
aspectos que o rodeiam.
Sem perder de vista tudo isso, a proposta desta investigação é fazer um
apanhado teórico daquilo que foi pensado sobre a tragédia e sobre o próprio mito,
sempre vinculando o Édipo Rei do dramaturgo de Colono a aspectos da mitologia grega
e da filosofia. Tal busca conceitual, realizada a princípio sem o rigor metodológico
exigido pelo trabalho dissertativo e mais imbuída do espírito dionisíaco, foi aquilo que
possibilitou a escritura de um drama teatral que tentasse ser capaz de ilustrar alguns
dos pensamentos aqui relatados. Agora, neste capítulo, procurar-se-á oferecer este
mesmo drama como exemplo de análise heterodoxa no que se refere ao mito e à leitura
que dele fez Sófocles.
O resultado de tal trabalho foi a tragédia (anti-tragédia?) Jocasta Tirana, que aqui
será um dos dramas teatrais contemporâneos a serem analisados. Tal texto, inscrito no
“5° Concurso Nacional de Dramaturgia – Prêmio Carlo s Carvalho”, promovido pela
Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, obteve o segundo lugar. O
118
lançamento do livro com o texto da peça aconteceu na capital gaúcha, no último 30 de
agosto. A montagem de um espetáculo com o texto está prevista para o próximo ano,
uma vez que os membros do elenco e da equipe técnica já foram escolhidos, ensaios já
vêm sendo realizados e os produtores trataram de inscrever o projeto nas principais
leis brasileiras de incentivo à cultura.
A criação de Jocasta Tirana foi possível a partir da análise de cada uma das
idéias autorais alinhavadas nesta dissertação. Nesse sentido, além de refletir um
estudo eminentemente teórico, este drama também o faz, talvez dionisiacamente, como
propõe Friedrich Nietzsche, a partir das mesmas palavras que são colocadas na boca
dos dois principais personagens da história: a própria Jocasta e Édipo.
A proposta, portanto, foi sempre a de produzir uma peça teatral em cujo interior
fossem abordadas o que as análises de alguns dos autores aqui citados têm nos
revelado. No entanto, a situação dramática deveria também privilegiar uma leitura
heterodoxa do mito e de seus personagens. Em resumo, o que desde o início se
buscava era inverter a significação de maneira que a leitura teórica desse origem a uma
obra dramática e que este mesmo drama possibilitasse uma interpretação dissertativa
do tema.
Destarte, neste capítulo, o que se tentará desenvolver é a breve análise das
frestas e arestas que permitiram, por projeção, a escritura de Jocasta Tirana. E também
como esta obra dramática contemporânea pode oferecer uma leitura heterodoxa não
apenas da obra de Sófocles, mas também de seus personagens e da hermenêutica
ortodoxa que os cerca.
Antes, contudo, o capítulo também apresentaa abordagem de outro drama
contemporâneo escrito em língua portuguesa sobre o mesmo mito de Édipo e Jocasta.
119
Trata-se da peça teatral Um Édipo, de Armando Nascimento Rosa (2003). Dramaturgo
premiado em Portugal, Nascimento Rosa também é professor de Teoria e Estética,
Dramaturgia e Escrita Teatral na Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto
Politécnico de Lisboa.
Um Édipo, que foi editorialmente publicado em 2003, teve sua estréia cênica em
Lisboa, no Teatro da Comuna, em 4 de julho do mesmo ano. Os personagens da peça
são, em sua maioria, os mesmos do drama de Sófocles, o que caracteriza de maneira
exemplar uma leitura que se faz do mito e do próprio gênero, a partir de idéias
decisivamente contemporâneas, como procurarei, ainda que brevemente, demonstrar
aqui.
Assim, a análise dessas duas peças escritas como projeção da obra de Sófocles
tenta oferecer uma leitura distinta do mito e do gênero. O tempo em que se passa
Jocasta Tirana é a noite imediatamente anterior ao dia em que moços e anciãos
seguem até o palácio real de Tebas a fim de rogar uma solução para a peste que
ameaça a cidade. o texto Um Édipo irá mostrar um momento posterior aos sucessos
que a tragédia exemplar do dramaturgo de Colono relata. Em Armando Nascimento
Rosa, teremos uma espécie de acerto de contas entre os personagens do mito. Nele,
os fantasmas de Jocasta, Crisipo, Laio e Pélops irão dialogar com um Édipo cego e
com Tirésias e sua filha Manto.
Em cada um dos textos dramáticos, pode-se perceber a influência das idéias
formadoras desse nosso mundo contemporâneo, a partir de uma tragédia e de um
ideário mitológico que o se esgotam. Nunca se exaurem e, por isso mesmo, a partir
do que, de acordo com Jean Lefranc, Nietzsche chama “arco-íris dos conceitos”
(LEFRANC, 2005, p.43)
, estão sempre a cumprir o fado de trazer novas e diferentes
120
interpretações para uma história imensa de possibilidades analíticas. Sim, esta história
de um Édipo e de uma Jocasta ao mesmo tempo humanos e quiméricos, que,
independentemente do tipo de leitura que se faça, também não deixa de ser a história
de todos e de cada um de nós.
6.1. ESPELHO DE FANTASMAS
No centro do palco, Tirésias pergunta a Jocasta o que ela está fazendo naquele
lugar. Em torno do pescoço daquela que foi rainha de dois reis, um longo lenço
esconde o vergão negro de enforcada. Jocasta foi ao encontro de Tirésias na
esperança de que ele lhe ensinasse a viver a morte, uma vez que ela ainda se julga
presa à vida. Mas o daimon o sabe. Seus poderes não são suficientes para guiar os
mortos no caminho do Hades. Jocasta insiste, pensa que está viva. Tirésias ironiza,
lembrando que nada é mais patético que o teatro de um morto que julga ainda viver.
O início de Um Édipo, de Armando Nascimento Rosa, é esclarecedor no que
se refere àquilo que o público irá encontrar no espetáculo. Dos sete personagens
envolvidos na trama, quatro deles são fantasmas que parecem buscar no espelho do
que viveram algum reflexo que possa ter ficado para trás. Jocasta, por exemplo, ao ir à
procura do velho adivinho num mundo que o lhe pertence mais, parece estar à
procura de migalhas de sua própria vida, querendo compreender aquilo que talvez não
necessite mais ser entendido. Pálida, ela chegou a Tirésias depois da intermediação de
Manto, filha e herdeira do bruxo.
121
E é exatamente aqui, na ação e na personagem de Manto, que acontece a
primeira transgressão de Armando Nascimento Rosa (2003). A filha de Tirésias não
herdou apenas os poderes divinatórios do pai. Ainda no princípio da peça, o próprio
Tirésias afirma que ela deverá substituí-lo. Uma mulher que substitui um homem. Mas,
sobretudo, uma mulher que, ousada, não quer para si o destino do pai. Manto possui
outros planos, tem suas próprias Hýbris a cometer. Ela quer ser atriz, representando
nos palcos os mitos engendrados pelo viver humano.
No entanto, a transgressão de Manto é logo apontada por seu pai. Mais do que
qualquer um, Tirésias, que foi mulher, sabe como são tortuosos e mais difíceis os
caminhos femininos pela Hélade. É por isso que ele, até ser convencido do contrário ao
final do espetáculo, não quer que sua filha tenha sonhos impossíveis. Antes, será
melhor que ela, usando os dons que lhe foram legados, decifre os possíveis sonhos das
gentes. Nesse sentido, a resposta que Tirésias dá para os anseios de sua filha é
esclarecedora:
TIRÉSIAS
Minha filha, pareces ter esquecido que os teatros de Atenas não contratam
mulheres. De nada te serve tentares a sorte. Algum mestre de cena dirá se te
vir inspirada: - A menina nasceu com talento... Para depois acrescentar,
torcendo o nariz como um pedante: - Mas é uma pena que seja desprovida de
membro viril. Assim não poderá subir aos palcos da Grécia! (ROSA, 2003,
p.33)
A transgressão de Manto estaria, portanto, permeada por uma motivação quase
heróica, sobretudo quando encarada do ponto de vista da antigüidade grega, num
tempo em que, é sabido, as mulheres não possuíam direitos semelhantes aos dos
homens. O que a vontade de Manto faz é, simbolicamente, igualar seu desejo ao do
homem. no final do espetáculo, depois de ouvir as aflições dos mortos e dele próprio
122
se tornar um deles, Tirésias muda de idéia. Não apenas muda como aconselha que ela
não mais ouvidos a “mortos vagabundos”. Depois de indicar até mesmo o lugar do
Egeu para onde Manto deve ir Lesbos, ilha onde as mulheres sobem ao palco
Tirésias diz suas últimas palavras à filha: “- antes voz aos vivos nos ritos de Dioniso.
No palco encontrarás a harmonia.” (ROSA, 2003, p.51)
Dessa maneira, pode-se mesmo dizer que o destino de Manto está selado. Ela
seguirá o conselho do pai e irá para Lesbos, buscando no ofício das máscaras uma
pretensa igualdade com os heróis. Poder-se-ia mesmo dizer que este momento de
desejo da transgressão possui a marca da contemporaneidade, gravada com
determinação por Armando Nascimento em sua projeção da obra de Sófocles.
Mas a Hýbris de Manto não é a única marca de um olhar contemporâneo sobre
ações e personagens antigos e mitológicos que pode ser encontrada na obra do autor
português. As falas do próprio espectro de Jocasta estão repletas de sinais da
contemporaneidade, que podem ser feitos a partir de um olhar autoral que conviveu
com as interpretações do mito que fizeram Sófocles, Freud, Lévi-Strauss, Nietzsche e
outros mais.
morta e escondendo o vergão terrível do pescoço, Jocasta parece querer
saber aquilo que sabe. É como se conversasse com sua própria imagem no espelho.
Talvez seja por isso que ela, que caminhou até Tirésias para que ele lhe ensinasse a
viver a morte, diz que, se morreu, escapou ao próprio tempo, convivendo com todas
as épocas como se fossem uma única. Temos, então, um diálogo intertextual com o
Édipo Rei de Sófocles, quando Jocasta cita o dramaturgo de Colono como o
responsável, através de sua escrita, pelo fato dos nomes de ambos virem a habitar a
“eternidade dos mitos”.
123
Mas tal eternidade, como se pôde ver até o momento nesta dissertação, tem
sempre o olhar do tempo a partir do qual essendo encarada. Na obra de Armando
Nascimento Rosa (2003), isto o acontece de maneira diferente. O primeiro quarto de
Um Édipo acontece num diálogo entre Tirésias e o espectro de Jocasta, permeado por
uma estratégia própria de carpintaria cênica em que o adivinho um texto que é seu
mas que não faz parte do diálogo propriamente dito, e sim de uma fala dita em outro
tempo e para um outro interlocutor. É desta maneira que o mito de Tirésias é contado.
No entanto, temos na história perspectivas autorais, que se distanciam das versões
mais conhecidas do mito. O próprio Nascimento Rosa, em posfácio que faz da edição
de sua obra, comenta ao mesmo tempo aquilo que poderíamos chamar de “sua própria
revisão do mito” e o desejo de Manto pelas artes cênicas:
Para além de aprendiz do mester de adivinha (função concordante com a
tradição mitológica que Séneca seguiu), tornei-a desejosa de exercer uma
profissão interdita no seu tempo: a de actriz, com ressonâncias explícitas a
uma certa misoginia nada anacrónica em contextos teatrais hodiernos.
Outra das liberdades com que me surpreendi na escrita, foi a reinvenção
da história de Tirésias no seu tnsito entre sexos. Afinal, a história das
serpentes estava mesmo mal contada, e os dicionários de mitologia
andavam a pedir-me um acrescento nos seus verbetes... (ROSA, 2003,
p.66)
Trata-se, como o próprio autor afirma, de incursão deliberada pelo terreno
mitológico, com privilégios determinantes para a liberdade de criação. Tal fato, diga-se
de passagem, não é prerrogativa exclusiva do tecido dramático contemporâneo. Como
sugere Nietzsche em seu O Nascimento da Tragédia, a profundidade e a plenitude
dada por Sófocles a suas personagens só poderia ser creditada ao que poderíamos nos
arriscar a chamar “capacidade criativa” ou, para manter o léxico nietzschiano,
“embriaguez e êxtase dionisíaco”. Não houvesse tal liberdade de criação, o Édipo Rei
124
de Sófocles talvez nos contasse uma história na qual o filho e esposo de Jocasta não
se cegaria, continuando, depois de saber que é, na verdade, um parricida incestuoso,
como rei dos tebanos, assim como narra a versão que Homero nos oferece do mito em
sua Odisséia.
Se a invenção criativa de Nascimento Rosa não é algo exclusivo de seu tempo,
outras questões de Um Édipo parecem ser. Uma delas é a comparação que o autor faz
da vida com o fazer teatral. Trilhando um caminho singular que poderia considerar-se
construído a partir de conceitos nietzschianos como os de essência e aparência, coisa-
em-si e fenômeno, vontade e representação, a Jocasta criada pelo dramaturgo
português, ao relatar a lenda de Tirésias, encaminha-nos à reflexão com frases como:
“Tirésias mentia à vida porque para ele a vida era essencialmente uma mentira. Como o
teatro” (ROSA, 2003, p.18 e 19).
A perspectiva que se tem da relação incestuosa é mais um traço de leitura
contemporânea do mito que pode ser encontrado na obra de Armando Nascimento
Rosa. Ao refletir frente a seu espelho, Jocasta não a importância que outros
estudiosos e escritores deram a este tabu. A frase Só o conhecimento nos salva, meu
amigo(ROSA, 2003, p.15) mostra uma personagem mais preocupada consigo própria
do que com a discussão de questões atemporais, como certamente é a do incesto.
Talvez seja por isso que, para a Jocasta de Nascimento Rosa, o incesto é uma questão
até mesmo vulgar. Em uma fala que pode ser semelhante àquilo que encontramos no
próprio Sófocles (2002), quando sua rainha de Tebas diz a Édipo que muitos mortais
em sonhos subiram ao leito materno(SÓFOCLES, 2002, p.67), Nascimento Rosa
(2003) vai direto ao assunto e nos interpõe, através do texto de sua enforcada, uma
conclusão com definições decisivamente contemporâneas para o referido tabu:
125
Tudo me parece agora tão simples. Os homens amam as mulheres porque
desejam mergulhar de novo no mar das delícias que os trouxe para o
mundo. Mesmo que as sintam suas filhas, elas são extensões vivas de si
próprios e por isso mães na mesma, promessas de futuro. As mulheres
jogam o mesmo jogo e no corpo do amante juntam o pai ao filho
imaginado. O amor é um incesto universal. Não valia a pena ter-me
enforcado por uma causa tão vulgar como esta. (ROSA, 2003, p.24)
Depois do diálogo entre Tirésias e Jocasta, segue-se a introdução das demais
personagens, com participação mais intensa de Manto, um dos dois únicos papéis
dramáticos que permanecerão vivos até o final do espetáculo, sendo o outro o próprio
Édipo. Os primeiros a entrarem em cena são Crisipo e seu pai, Pélops, este último
incorporado em Tirésias. Eles conduzirão o debate a respeito de mais uma lenda da
mitologia grega: a da culpa primordial da casa dos labdácidas que origem ao próprio
mito de Édipo. Aqui, Laio é mostrado a partir de uma perspectiva determinantemente
sedutora, criando enganos e conduzindo farsas para conseguir o que quer do belo
Crisipo. O chamado amor contra naturam entre Laio e Crisipo é narrado, a princípio, de
maneira bastante semelhante às que o encontradas nos dicionários de mitologia
grega sem que, no entanto, tenha o arremate comum a qualquer versão mais
conhecida.
Depois de tal narrativa e do diálogo mencionado entre Tirésias e sua filha
sobre as impossibilidades femininas no que se refere ao exercício das atividades
cênicas, temos a entrada de Édipo. E é depois da entrada de um Édipo cego e, na
estratégia de Nascimento Rosa, ainda mais cheio de dúvidas, que temos o ponto fulcral
do espetáculo. Ou seja: o assunto que sentido a Um Édipo. Trata-se do
esclarecimento do caso entre Laio e Crisipo. A principio tratado com singular
perspectiva homofóbica, através de falas em que personagens como Crisipo, Pélops
(encarnado em Tirésias) e a própria Jocasta condenam com veemência o episódio,
126
Nascimento Rosa diz a que veio e explica sua obra, criando, por meio da narração do
próprio Crisipo, o ponto principal de sua criação.
Em tal cena, o jovem amante de Laio que, em Um Édipo, havia morrido ao fugir
da perseguição de Laio, conta que, depois de morto, como espectro visível pela
vontade dos deuses, era ele quem estava ao lado do rei de Tebas quando este foi
assassinado pelo viajante que vinha fugido de Corinto. Crisipo decide voltar atrás em
sua fuga das investidas de Laio. Nesse sentido, é como um fantasma que ele se põe
a falar consigo mesmo:
Nesse dia eu estava bem visível. o me perguntes porquê. Os deuses assim
o quiseram. Eu vogava à toa como um cardo no ciclone e dei por mim a pensar
em Laio, naquele homem a quem não perdoei a minha morte. Foi Afrodite que
me tentou nessa hora. Cismei tantas tolices indignas de mim ... Pus-me a falar
para a sombra que sou: - Parvo que tu foste, Crisipo. Em vez de fazeres o
papel da virgem assustada, porque não correspondeste com prazer às carícias
de Laio? Afinal de contas tu estavas vaidoso por seduzires um rei desterrado.
Podias ter tido uma noite de amor diferente daquelas que costumavas gozar
com as escravas. Quantos jovens na Grécia não invejariam a sorte de ser
raptados como tu, num cavalo negro? E hoje em vez de andares a assombrar
os caminhos, vestias a capa púrpura de favorito do rei na corte de Tebas.
Quem sabe até se ele não iria aborrecer os beijos de Jocasta, tendo-te por
perto? Ocuparias o leito real e Édipo nem teria oportunidade de nascer. (Ri-se)
Estátuas de ApoIo seriam esculpidas copiando-te a beleza. O amor de Laio
tornar-te-ia imortal na memória dos gregos. Ah Crisipo! Tão asno que tu foste.
O destino trouxe-te a taça da fama e tu atiraste-a ao rio com o vinho da vida
dentro. (ROSA, 2003, p. 42-43)
Em seguida, Laio entra em cena, incorporando-se a Tirésias, fato que, no final do
drama, causará a morte do adivinho. Também seu fantasma quer dar a própria
interpretação do que ocorreu. Na verdade, ao se deparar com o belo jovem sentado a
seu lado na carruagem, Laio imagina que a visão é a de seu próprio filho. Os crimes
então se fundem e se confundem. Para o rei de Tebas, que logo em seguida se
127
assassinado, a culpa pela morte de Crisipo equivale à culpa pelo filicídio que ele
pensava haver cometido.
Neste exato momento, entra também Édipo que, com sua versão da história,
escreve uma página de verdadeira homofobia, isto sim inusual para os parâmetros de
compreensão da contemporaneidade e até mesmo para a antigüidade grega, como o
próprio Édipo de Armando Nascimento Rosa (2003) chega a confessar com as
seguintes palavras:
Seria emboscada de salteadores ou avaria do engenho? Desci para averiguar.
E o que vejo ali, ó deuses! dois homens enroscados como serpentes na
encruzilhada. Um mais velho e outro mais novo, com idade para ser seu filho.
Aquilo repugnou-me. Eu sei que é costume grego, mas não acho que seja
salutar. Não posso desejar a morte a todos, pois nesse caso ficava a Grécia
despovoada e vulnerável à conquista dos bárbaros. Mas confesso que às
vezes me dá ganas de matar uns quantos, apanhados em flagrante, para
aliviar a minha ira. E estes não tinham achado melhor sítio para dar vazão ao
ardor dos sentidos, do que ali, estacionados na curva. O mais novo olhava-me
calado e com cara mortiça. Pareciam ambos meio palermas. Desafiei o mais
velho. (Para Laio/Tirésias.) Você tem idade para ter juízo! Que coisa é esta
de impedir o trânsito e fazer da estrada um sítio de deboche? (ROSA, 2003,
p.46)
Depois da explicação calorosa de Édipo, o texto de Nascimento Rosa tem seu
desfecho com a mencionada morte de Tirésias e um diálogo entre Jocasta e Manto,
com aquela reproduzindo os conselhos que Tirésias, a caminho de Hades, a sua
filha: de que ela siga seus desejos e para Lesbos, fazer teatro. O fantasma de
Jocasta beija Édipo e se retira, para que ele e Manto troquem breves palavras e cada
qual parta em busca de sua Moira. Manto, procurando seu ofício. Édipo, errando cego
pelos caminhos da Hélade e vindo dar até mesmo a Portugal e Brasil, onde, parece,
temos esperado por ele junto com nossas incertezas e com nossas próprias ações.
128
Como seu autor afirma, o eixo dramático de Um Édipo gira em torno das figuras
de Tirésias e Jocasta. Nascimento Rosa (2003) confessa, no posfácio da edição de sua
obra, que a apropriação da lenda tebana lhe surgiu pelo fascínio face à singularidade
mítica de Tirésias, e pela vontade de embrenhar no mistério humano de Jocasta
enforcada (ROSA, 2003. p.67). Daí sua opção de trabalhar com espectros
fantasmáticos que fazem, no espetáculo, uma espécie de balanço de suas vidas e
daquilo que elas possuem de insolúvel. Quanto à sua dramaturgia, o autor vai, como
se mostrou, aquém e além de uma temática especificamente edipiana.
Nesse sentido, poder-se-ia mesmo afirmar que a grande novidade na cena de
Armando Nascimento Rosa é a abordagem que o autor português faz heterodoxa,
diga-se de passagem da lenda de Laio e Crisipo como objetos inaugurais,
motivadores e explicativos da tragédia de Édipo e Jocasta. Ao fazer isso, Nascimento
Rosa (2003) lembra um aspecto interessante e raramente abordado: o de que, antes
do parricídio perpetrado por Édipo, existe um filicídio freqüentemente esquecido, ou
deliberadamente ignorado(ROSA, 2003, p.68). Em sua abordagem autoral, como ele
mesmo afirma no remate de seu livro, Nascimento Rosa lembra o filicídio como o
desejo de anular gerações subseqüentes:
O desejo de asfixiar os que nasceram depois parece-me tratar-se de uma
sociopatia persistente, pelo que as implicações empíricas do complexo de Laio
são das mais (im)pertinentes reflexões que este Édipo pretende propor aos
espectadores/leitores. (ROSA, 2003, p.69)
Além disso, cumpre finalizar esta breve análise de Um Édipo lembrando o
destaque que o autor dá às personagens femininas. Sua Manto transgressora das
tradições helênicas e sua Jocasta que ressurge dos mortos para centralizar a cena
129
trágica ao lado de Tirésias são abordagens pouco comuns para uma temática da
antigüidade grega como a edipiana. A seguir, a abordagem de outro drama este,
escrito de maneira deliberada para ilustrar as propostas heterodoxas de leitura desta
dissertação tentalevar a novos termos a participação de Jocasta neste universo
dramático/hermenêutico.
6.2. MIRANDO JOCASTA
A idéia é de que nós, seres humanos herdeiros de mitos como o de Édipo e
Prometeu, e de hermenêuticas como a de Sócrates, Platão, Aristóteles e Freud, para
citar apenas algumas, estamos habituados a enxergar o mundo a partir de uma
linguagem determinada. Como aqui mesmo nesta dissertação se disse, tal
linguagem possui princípios definidos, um código de significantes desde os quais nossa
leitura dos fatos e das sensações se processa.
Aristóteles, em sua Poética, ao analisar a composição da tragédia grega, é como
se estivesse mencionando tais significantes que mantêm presos nosso olhar ocidental.
Nesse sentido, o que se quer aqui defender é que o entendimento do que nos cerca
está condicionado a elementos como o que se refere à luz do dia, à pretensa
luminosidade apolínea e platônica, e às ações masculinas, tomadas sempre a partir das
obras dos anĕr vigorosos que permeiam nosso imaginário. Exemplo disso pode ser
encontrado de maneira prática na própria definição temporal da tragédia, que segundo
130
Aristóteles deve acontecer no transcorrer de um dia, e nos complexos e hermenêuticas
mais consagrados – o de Édipo, um deles.
Quando Friedrich Nietzsche, nos anos 1870, fez sua leitura da antigüidade grega
a partir de outros conceitos, o próprio filósofo alemão foi estigmatizado por muitos de
seus contemporâneos. Grosso modo, o que Nietzsche afirmava batia de frente com
toda uma tradição clássica, platônica, condicionante do pensamento ocidental e
componente essencial dessa linguagem que aqui se procura definir. Sua condenação
do socratismo foi, como se sabe, desde os primeiros ensaios, rechaçada como
verdadeira heresia pela intelligentsia do momento.
Levando-se em consideração, a partir das propostas de Friedrich Nietzsche, que
existe uma hermenêutica clássica, fundada nesse dia de Apolo, mas que também há,
por trás da aparência, uma maneira de criar o mundo que não pode ser medida por
esses mesmos parâmetros da tradição, é que se procurou produzir uma situação
dramática que invertesse a lógica do dia e dos feitos masculinos. A proposta, portanto,
era compor uma tragédia (anti-tragédia?) que tivesse suas ações definidas na
escuridão da noite e que jogasse o foco principal sobre a personagem que, na versão
mais clássica, era antes iluminada apenas como coadjuvante.
A história escolhida para tal investida foi a mais tradicional possível. Aquela a
partir da qual complexos psicológicos foram criados, outros dramas teatrais encenados,
inúmeras versões oferecidas. Tratava-se, portanto, da história de Édipo. E o mais
interessante é que, apenas com o mencionar o nome do mito, o fazíamos desde a
perspectiva tradicional que ainda pouco foi aludida. Se na lenda temos também um
protagonismo de ações que parte de uma mulher, por que a citamos sempre desde seu
protagonista homem? A resposta para esta pergunta pode ser encontrada naquilo que
131
aqui se quer defender: porque nosso olhar que busca entender o mundo percorre
sempre o layout do masculino, e aquilo que de pretensa verdade ele encerra, ao vir
amiúde iluminado e, deste modo, justificado por uma razão clássica e apolínea.
A partir de tais parâmetros, buscou-se criar uma situação dramática que fosse
também uma leitura do mito executada pelo olhar de Jocasta, e que tivesse sua ação
entre o ocaso e a alvorada isto é, iluminada pela luz da noite. Com base em tais
definições, o que se começou a perceber é que o protagonismo de Jocasta na lenda
consagrada em todo o ocidente é igual, senão maior, que o do próprio Édipo. Se é ele a
criança que deve morrer, ela é a esposa que permanecerá no poder. Se é ele o sujeito
que mata seu pai, ela é a mulher que manda matar seu filho. Se é ele o filho que dorme
com a mãe, ela é a mãe que dorme com o filho. Se é Édipo o herói que desfaz os
enigmas, é Jocasta o prêmio e fio condutor e original de tal sabedoria. Além disso, os
dias de Aristóteles foram sempre precedidos e seguidos de noites nas quais guerras
foram tramadas, poderes defendidos, planos arquitetados, filhos feitos, sonhos e
pesadelos realizados.
A tarefa de criar qualquer coisa sobre a lenda tebana para, em seguida, tomá-la
como objeto para um estudo dissertativo é algo que soa, desde o princípio, pretensioso
e, talvez, inútil. O muito que foi dito sobre o tema não chega a servir de grande
estímulo nem para o criador nem para o ensaísta. Contudo, sem deixar de lado aquilo
que Colette Astier nos recorda a propósito de Édipo enquanto mito da literatura, o
desejo de delirar junto com Dionísio foi maior do que as razões de Apolo.
Colette Astier, em ensaio que define o verbete Édipo no Dicionário de Mitos
Literários de Pierre Brunel (2000), nos mostra de maneira intransigente como as
tragédias escritas por Sófocles explicam de tal maneira o mito que, se não chegam a
132
esgotá-lo, confundem-se com ele próprio. Trata-se, como afirma a autora, de uma
herança pesada, deixada à posteridade para se tornar exemplar, convertendo-se em
um modelo que poderia ser dito canônico, tido sempre como referência obrigatória em
qualquer momento, seja ele de criação ou de reflexão teórica. Segundo Astier, os
cuidados devem ser muitos. É o que ela mostra ao lembrar autores consagrados que
também ousaram tal investida:
Tornou-se, então, necessário redescobrir sem repetir. Mas para tanto, teve-se
que retorcer o texto ou o contexto para não haver plágios. Para tanto, teve-se
que deslocar os enfoques com o único objetivo de produzir-se o novo. Quer se
trate de Platen, Gide, Cocteau, e até mesmo de T.S. Eliot, o empréstimo
tomado a Sófocles acompanha-se de uma recusa de Sófocles; o fascínio
acompanha-se de uma rejeição. Daí, os Édipos modernizados, livres, como
dirá Cocteau, da poeira da obra-mestra: La Machine lrifernale (A máquina
infernal, 1934) e o Édipo (1931) de Gide; The Elder Statesman (O estadista
mais antigo; em fr. Fin de Carriere, 1959) de T.S. Eliot. (BRUNEL, 2000,
p.309)
A identificação entre tragédia e mito e, mais tarde, do próprio mito com o
complexo criado por Sigmund Freud também são temas abordados pela ensaísta.
Sobre a invenção freudiana, a estudiosa francesa é eficaz em lembrar que tal criação
teve o poder de dar origem ao mito da psicanálise, que talvez deva ser interpretado
como um mito do mito (BRUNEL, 2000, p.311). No que se refere às tragédias de
Sófocles, um dos pontos mais provocadores discutidos por Colette Astier (BRUNEL,
2000) se refere ao fato de que, ao escrever sobre Édipo, o dramaturgo faz, na verdade,
também uma interpretação do mito, a partir do gênero dramático, como aqui se
tentou mostrar.
Para nós, que praticamente não dispomos de versões completas da história de
Édipo anteriores a Sófocles, torna-se bastante trabalhoso destacar aquilo que
é da natureza do mito e aquilo que é matéria da tragédia. Pode-se
133
simplesmente achar que as duas tragédias cobrem a totalidade da biografia
edipiana e que o dramaturgo, tendo de escolher entre as diferentes versões
que se lhe ofereciam, viu-se na contingência de evocar todos os seus
episódios. Mas ao fazer isso, cristalizou-lhe os dados. Deu-lhes uma estrutura
literária. Da biografia de Édipo, fez um destino. Em suma, ele interpretou.
Interpretou inclusive duplamente os dados anteriores, ou seja, emprestando-
lhes ao mesmo tempo forma e sentido, e, por conseguinte, uma intensidade
que talvez estará para sempre presente, como uma fascinante e avassaladora
herança às gerações de dramaturgos cativadas pelo assunto. (BRUNEL, 2000,
p.308)
Foi exatamente este fascínio que me levou à Hýbris da escritura de Jocasta
Tirana e à própria reflexão sobre o tema. As escolhas antecipadas ao ato de criação
propriamente dito foram feitas a partir de vários autores aqui mencionados. Mas, desde
o início, o se projetou compor uma Jocasta e um Édipo modernos, a não ser pela
inevitável concentração sobre temas atemporais e por aquilo que se poderia chamar
sintaxe autoral. Antes, a idéia era a de procurar personagens que se mantivessem no
limiar da versão do mito oferecida por Sófocles e pelos compêndios mais consagrados
de mitologia grega escritos ou traduzidos para a língua portuguesa. Em seguida,
manteve-se a proposta de projetar em Jocasta o foco principal, invertendo-se também,
como foi dito, a lógica aristotélica que define o tempo da ação dramática. Assim, sem
grandes pretensões, até mesmo em função de minha própria precariedade
hermenêutica, foi escrito um drama cujo story line poderia ser “um diálogo entre Édipo e
Jocasta na última noite que passaram juntos”.
Nada mais do que isso. Mas, a partir deste tema, a quantas reflexões uma mente
dionisíaca não estaria exposta? Reflexões e invenções, é claro. A primeira delas, que
remete claramente a um pensamento de Colette Astier, é a de tentar manter trágicos o
Édipo e a Jocasta mencionados. Não o trágico no sentido que o gênero lhe confere,
assim como está disposto em Aristóteles. Mas que não fossem perdidas, mesmo sem
134
poder evitar condicionantes inerentes à própria época da escritura de Jocasta Tirana,
as dimensões significantes destes dois personagens uma delas, como se pôde ver
neste estudo, a da importância que a própria trama de Sófocles ao papel do destino,
da Moira.
A partir daí, contudo, as perspectivas foram alteradas. Transformadas por uma
Jocasta que claramente se impõe a um Édipo indefeso pela iminência daquilo que
virá e pelas lembranças e reflexões sobre um passado que é de ambos e de cada um.
Na verdade, investiu-se em hipóteses que podem até mesmo parecerem absurdas para
leitores mais ortodoxos do mito e da tragédia de Sófocles.
A primeira delas está baseada nos momentos em que Jocasta, no texto do
dramaturgo de Colono, tenta convencer Édipo de que muitos mortais em sonhos
subiram ao leito materno(SÓFOCLES, 2002, p.67). Este é, por assim dizer, o indício
para que se possa acreditar que, em toda a trama, Jocasta é a que mais sabe, ou
melhor, que tudo sabe. É ela que, desde o início, não se importa em ser oferecida como
prêmio para que seu poder não desapareça junto com a cidade de Tebas e a peste que
a consome. E é ela também que, com a experiência que a idade talvez tenha podido lhe
oferecer, dormiu inúmeras noites com o homem que derrubou a divina cantora e, com
ele, teve nada menos que quatro filhos. Sobretudo é ela quem entrega, mãe, o filho ao
carrasco e que, por isto mesmo, poderia, quem sabe?, em noites de dionisíaca lucidez,
haver de, nem que fosse em sonhos, lamentar seu ato e seu próprio tempo.
A outra hipótese na qual se investiu se refere a Édipo e a sua Moira. Aqui, a
aposta é que, antes, o destino que está traçado para o rei de Tebas, especialmente em
Édipo Rei, não é senão o haver-se com Jocasta. È ela quem lhe à luz; é ela quem o
envia ao Hades; é para ela que, ao fugir do que acredita ser seu destino, ele volta; é ela
135
que será a mãe de seus quatro filhos; e é Jocasta, sobretudo também, que ele mata, ao
buscar uma verdade que, mesmo sendo um sagaz decifrador de enigmas, não
conseguiu enxergar. Neste sentido, o que se quer dizer aqui é que a Moira de Édipo é a
própria Jocasta.
E, se Jocasta é Moira, é ela também quem sabe, é para ela que o poder
mesmo que a partir dos escuros de todas as noites em que sonhou, amou e bateu-se
com seu filho e esposo deve estar voltado. É ela quem sabe. É dela, mulher, que
parte este saber escondido mas que, acredito, nos oferece a razão mais subjetiva das
coisas.
Esta cena heterodoxa poderá ser lida em apêndice desta dissertação. O drama
escrito, vale ainda repetir, por uma estratégia premiada pela fortuna, obteve o segundo
lugar no “5° Concurso Nacional de Dramaturgia – Prê mio Carlos Carvalho”. Minha idéia,
ao inscrever Jocasta Tirana, era a de, quem sabe?, tornar menos trágica a Hýbris da
escrita aqui cometida.
136
7.
CONCLUSÃO
Hoje, quando se olha para trás, e até mesmo para a frente, é quase impossível
não enxergar nossa herança e nosso futuro gregos. Assim como é difícil não
percebermos a condição trágica do humano. O que Édipo faz, e o vem fazendo desde
que foi inventado, é colocar esta tragicidade a dois palmos de nossa cara para, ainda
assim, não conseguirmos compreendê-la em toda sua essência. Também nós, por
julgarmos muito saber, mal sabemos.
Tratar essa herança, este espólio helênico, de modo crítico tem sido o desafio de
quem, com maior ou menor intensidade, pensa, com alguma esperança, este ser
humano marcado pela dor trágica. Nesse sentido, a idéia que aqui se tentou propor
ou seja: tentar ver em maiores detalhes como foi pintada a ânfora de San Gimignano
vem como reflexo mesmo dessa disposição de enxergar o mundo com um olhar mais
terno.
Com a mais absoluta sinceridade, a grande pergunta que me assaltou no
processo de escritura tanto desta dissertação como da situação dramática que lhe faz
apêndice, é desconcertante. Para quê? Qual o sentido prático mais razoável, num
mundo em que torres são derrubadas por aviões cheios de gente e crianças são
atingidas por mísseis a todo o tempo, qual o sentido em tentar afirmar que existe algo
por trás do vaso de cerâmica?
Ainda o sei. Sei apenas que este projeto também ainda não acabou. Ao me
dedicar a pensar o tema, pude perceber quantas coisas mais foram urdidas sobre o
assunto. Édipos reinventados por Corneille, Voltaire, Höderlin, Ducis, Platen, Jean
137
Cocteau, Stravinski, Gide, Bernardo Santareno, Robbe-Grillet, e nenhum deles
analisado mesmo que superficialmente por este trabalho. Aqui creio estar, sem vida,
matéria para várias vidas em busca do melhor entendimento sobre o barro e os
pigmentos que deram forma e aparência ao sujeito que se ampara no bastão, à esfinge
que está bem a sua frente, à mulher que o espera sem nunca ter deixado que ele se
fosse.
Assim, o que pude perceber é que mesmo que o estudo que fiz possa ser
considerado completamente inútil, e que a tentativa de escrever um drama sobre
assunto tão sério seja tida como uma pretensão imperdoável de minha parte mesmo
que tudo isso seja verdade, uma coisa é certa: Édipo e Jocasta somos cada um de nós.
Tal conclusão pode parecer óbvia e itinerante, mas não posso deixar de senti-la
como talvez a única verdade percebida neste meu esforço que tramou reunir criação
dramática e hermenêutica. Sim. A sensação é de que aquela criança que foi entregue
ao carrasco somos nós. E de que a mulher que a entrega para que morra no alto de um
morro também somos nós.
E é por isso que andamos todos e cada um de nós por a assassinar pais, a
desvendar charadas, a dormir com filhos, a derrubar edifícios, a sermos atingidos por
mísseis, a nos enforcarmos, a cultivar nossa própria cegueira. O fato é que, mesmo
sendo, não damos conta de saber o que significa sermos Jocastas e Édipos. E também
não sabemos a partir de quais significantes a ânfora de San Gimignano pode ser
melhor apreciada. realmente uma linguagem masculina e apolínea que nos faz
enxergar o mundo por determinado prisma? Em contraposição a esta ordem, existe
uma outra que lhe subverte e, intrometendo-se em seus códigos, é capaz de mudar-lhe
o sentido?
138
Não me recordo onde li que Ulisses, o herói grego, arava a areia de uma praia
deserta. No entanto, esta imagem ficou em minha cabeça desde então, como se fosse
o contraponto do Édipo que é entregue ao verdugo e da Jocasta que, depois de
entregá-lo, põe-se a esperar. Por isso, ainda me pego consultando verbetes de
dicionários e a fazer pesquisas na internet. Talvez, num arroubo dionisíaco que, por que
não?, só Freud pode explicar, tenha inventado para Ulisses esta cena.
Mas, ainda hoje, tal idéia a de um homem arando algo que não faz sentido arar
– não sai de meus pensamentos. O que me parece é que, de uma ou outra forma, o viril
e astuto herói de Ítaca se redime de todas as guerras e mortes que pesam em suas
costas ao cultivar a areia da praia. Posso até mesmo ver a figura consumida de um
anĕr velho e cansado das batalhas de Tróia, ou de suas odisséias pela Trácia,
enxugando o suor que lhe goteja do rosto, tendo o Egeu como fundo. O lugar poderia
ser a ilha de Éolo, e nosso herói parou apenas um instante, a fim de recuperar suas
forças para voltar a correr a charrua pela parte da praia que ainda falta ser sulcada.
O que imagino é que, com esse trabalho trepidantemente estéril, Ulisses também
tenha procurado se redimir dos longos anos em que deixou sua Penélope a tecer e
destecer a mortalha de Laerte. A vida entre as gentes, sobretudo hoje, em que os fios
da harmonia parecem completamente perdidos da meada, revela-nos sempre algo
desse Ulisses que lavra o infértil e dessa Penélope que espera fiando e desfiando.
Desse Édipo que mata o pai para depois tomar seu lugar e dessa Jocasta que manda
matar para, em seguida, desejar a volta.
Explico. Enxergar o outro, creio, é avistar-nos a s mesmos. Esperamos do
outro não aquilo que ele é, mas o que queremos que ele seja ou o que nós próprios
gostaríamos de ser. Por isso, as odisséias nos relacionamentos. Por isso, o tecido que
139
deve ser desfeito a cada noite. Por isso, talvez, tentar ver Édipos e Jocastas a partir de
outras miradas.
Acredito também que é para manter vivas suas esperanças de encontrar seu
Ulisses que Penélope desfaz a mortalha que fiou. É para redescobrir sua Penélope que
Ulisses lavra um solo que jamais poderá dar frutos. Então, e isso parece terrível, o que
avistamos no outro é nossa própria esterilidade e, com medo dela, enlouquecemos na
espera e no áspero.
No fundo, em cada circunstância de encontro nesse nosso mundo grego e
precário, também rogamos descobrir Penélopes e Ulisses, Jocastas e Édipos. Mulheres
capazes de arar o inútil e homens capazes de tecer o que no dia seguinte deverá ser
refeito. Naquilo que buscamos, acredito que o que sempre irá durar é mesmo a chama
essencial. Aquela chama que arde e que não vemos, como lembra Camões. Assim é o
Ulisses que também espera, talvez para se redimir de quem por ele arou o impróprio.
Assim, a Penélope que venceu guerras e moeu o áspero, talvez para se perdoar de
quem por ela passou as noites desfiando. Assim, a espera. Assim, a criação literária.
Assim, a recriação científica. Arar, fiar, desfiar e pensar podem ser mesmo aquilo para o
qual não encontraremos nunca explicação. E para o qual talvez não estejamos mesmo
preparados. Assim, Jocastas. Assim, Édipos.
Assim, nós.
140
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145
APÊNDICE A – JOCASTA TIRANA
P
ERSONAGENS
Édipo
Jocasta
Um foco de luz sobre Édipo. Ele entra com uma vareta na mão, cego.
V
OZES
No caminho desta vida,
muito espinho eu encontrei.
Mas nenhum calou mais fundo
do que isto que eu passei.
A curvinha do estradão do pensamento não sai.
Eu já fiz um juramento que não esqueço jamais.
Nem que meu gado estoure, que eu precise ir atrás.
Este pedaço de chão, errante, eu não toco mais.
Num outro canto do palco, surge Jocasta.
J
OCASTA
Édipo, vem. Tô te esperando, com saudade. Vem. A cama já tá pronta.
Luz sobre Édipo.
É
DIPO
Jocasta, nossa filha me disse que está muito preocupada. Ela falou que o oráculo...
J
OCASTA
Ai, Édipo, pára. Por favor. Tu e Antígona já me dissestes toda essa estória. São tramas,
meu querido. Não percebes? O oráculo, o oráculo. Ora!, o oráculo... Não percebes que
os oráculos dizem aquilo que queremos escutar? Que o dia andará afoito querendo
questionar os medos e que a noite rasteja destemida buscando respostas.
É
DIPO
Ouve o oráculo, Jocasta. Escuta o povo. Esse povo de Tebas, fora, agonizando na
peste, esperando que eu decifre outro enigma para espantar todos os males. o
povo, Jocasta. Ouve o oráculo.
J
OCASTA
Olha, amor. Sabe o que o oráculo me disse? Sabe o que ele teve o impudor de me
revelar agorinha, quando eu arranjava estes lençóis, quando preparava estas
almofadas, (retirando o seio e insinuando-o para Édipo) quando ainda cuidava da seiva
que aqui está e sentia dores, angústias insuportáveis?
146
É
DIPO
Jocasta, eu estou falando sério.
J
OCASTA
Eu também, meu amor. Fui à divindade esta tarde. E fui com uma indagação bastante
coerente. Ou tu não me crês cristalina?
É
DIPO
Claro. Não te falei nada disso.
J
OCASTA
Não me falou, mas também não quer que eu fale.
É
DIPO
Quero sim, minha fingidora. Diga logo o que o oráculo te disse.
J
OCASTA
Mostrando novamente o seio que havia guardado, agora, apertando-o como se
aleitasse.
Ele me disse que tu devias mamá-lo como se hoje fosse tua última oportunidade. Como
se a aurora fosse nascer cega. Como se, amanhã, teu pai aparecesse por aqui e tu o
matasses. Tu o torturasses nas torturas das mortes intermináveis que só os deserdeiros
pais, os pais desinteressados de seus rebentos, podem merecer.
É
DIPO
Aproximando-se.
E, depois, o que a divindade te disse?
J
OCASTA
Sabe o que ela me disse, meu bem? Ela me disse que, logo que teu pai deixasse de
sangrar, que o sangue dele se esvaísse inteiro e o Egeu se pitangasse por completo e
incauto, tua e chegaria com uns seiosinhos salmonados para entregar à tua boca e
te rogar: (já dando os peitos para Édipo) Mama, filhinho, mama.
É
DIPO
Jocasta. Jocasta. te falei de meus sustos em relação a isto. O oráculo. Sempre as
maldições nos enredando em enganos. O povo fora, consumindo-se em pestes. Nós,
aqui dentro, quase nos afundando neste chão que mal consegue nos segurar. Pragas
que nos levam a destruir cidades, a matar pessoas, a destruir amores. Como se o futuro
pudesse então ser pressentido. Responde, anda, por quanto tempo esta terra ainda irá
nos amparar? Por quanto tempo o oráculo dirá aquilo que podemos ouvir? Por uma
noite? Por mais umas horas apenas? A peste está lá fora e nós seguimos neste
cárcere. O oráculo...
J
OCASTA
Mas foste tu quem nele acreditaste. No oráculo...
147
É
DIPO
Acreditei, mas enfrentando-o. Deixei minha cidade, abandonei meus pais. E agora... e
agora...
J
OCASTA
E agora tu estás aí, de pé, seu tolo. Atormentado, quando devias estar aqui,
esquecendo teus medos sob estas sedas, inventando novas dores, decifrando novos
enigmas. Vem, meu Édipo, meu esposo, vem. Vem tomar meus seios, ler minhas
carnes, inundar, como só tu sabes fazer, estes meus vazios que querem ser irrigados.
É
DIPO
Não, Jocasta, não. Já te falei de nossa filha.
J
OCASTA
Mas o que é que tem Antígona?
É
DIPO
Ela não tem nada.
J
OCASTA
Mas então...
É
DIPO
Ela é justa.
J
OCASTA
Justa? O que é esta justiça? O que é esta verdade? As verdades são opostos que se
juntam para poderem se alternar. Hoje, meu tirano, tu és minha verdade. E é por isso
que eu quero... que quero minha verdade bem debaixo destes lençóis. Uma verdade
enorme e tesa, dura e molhada e viscosa, apaixonada. É isso, meu rei de Tebas.
Quero, esta noite, uma verdade apaixonada e ardente, capaz de me dominar. Tu estás
atado em nós, como se te apertassem o pescoço. E eu estou cega, o vês que estou
cega?
É
DIPO
Um rei enforcado e uma rainha cega. E encarcerados no próprio quarto, medrosos da
coisa que inunda a cidade. Era o que faltava a este povo crédulo! Antígona tem razão...
J
OCASTA
Pára com Antígona! Tua filhinha o que faz com sua justiça, com suas verdades, é
acompanhar seu tempo. Suas preocupações são cismas, seus zelos são desejos que
não é capaz de revelar nem a si própria.
148
É
DIPO
Não é ela. É o que ela pensa. Agora, ainda pouco, me disse que teme sem saber o
que teme.
J
OCASTA
Ah! E também ama sem confessar a quem ama.
É
DIPO
Como? O que dizes?
J
OCASTA
Digo o que vêem, o que notam, o que sinto.
É
DIPO
Como o que sentes? Não faz muito, tu me falavas contra os pressentimentos e, agora...
J
OCASTA
E agora o que te digo é que tuas ligações com Antígona são...
É
DIPO
São o quê, Jocasta?
J
OCASTA
Estranhas, Édipo. São estranhas. Todos notam a preferência que tens por ela. E não te
esqueças: são quatro os filhos que temos. Mas tu, o que parece, é que tens olhos
para Antígona.
É
DIPO
Agora começo a te entender. Só agora. Quando falas assim de Antígona.
J
OCASTA
Não falo assim apenas de Antígona. Falo de todos. Falo de ti. Como falei de Laio,
meu ex-marido. Mas Laio... Laio morreu.
É
DIPO
Sim. É exatamente isto: quando falas de Laio. instantes, quando dizias que tua
verdade hoje sou eu, pensei precisamente em Laio. Agora te compreendo. Esta tua
verdade já foi ele, já foi Laio...
J
OCASTA
Ciúmes, meu rei? E quem mais então esta minha verdade poderia ter sido? Naquele
tempo, minha verdade era ele, Laio. E a verdade de Laio era o rapazinho, o menino
raptado por meu ex-senhor para que o desnatural pudesse ser inventado. Qual é tua
verdade, Édipo? Antígona? Ela é tua verdade?
149
É
DIPO
Minha verdade é Tebas, Jocasta. Os homens que tenho que comandar, a justiça que
devo estabelecer, as guerras que me cumpre vencer, as perguntas que é necessário
responder, as pestes que preciso dominar. E estas verdades é que me enforcam.
J
OCASTA
É porque tua verdade é o poder. Aquilo que te faz temer é justamente o que faz o povo
se curvar. É o que faz o mundo inteiro se submeter. O poder, Édipo. O poder.
É
DIPO
Não o poder, mulher. Mas aquilo que ele me exige.
J
OCASTA
Aquilo que ele te exige ou o que tu próprio te exiges para que ele não se afaste de ti?
Para que ele não se afaste jamais de ti.
É
DIPO
É o que temos, Jocasta. Deste quarto, hoje, não é possível sair. As pestes estão lá fora.
É só o que temos que cumprir.
J
OCASTA
Não, meu amor e senhor. o é o que temos que cumprir. É antes o que dizem que
temos que cumprir. Decifra-me ou te devoro. É por isso que fogem, que planejam
raptos, que não dormem com seus amores, que matam, que querem prever o futuro
para não se desligar do passado, que mandam até mesmo assassinar crianças,
pendurando-as pelos pés.
É
DIPO
Mas a criança devia ser morta.
J
OCASTA
Não. A criançao devia ser morta. Assim como meu antigo senhor não deveria jamais
ter sido meu senhor. Pois, sendo meu possuidor, foi também meu algoz. Traiu-me,
mentiu-me, raptou-me, para em seguida livrar-me da cegueira. E eu queria ser cega,
meu Édipo, como hoje sou contigo. Ainda te comportas como uma criancinha! Não
entendes que o que desejo é amar como tenho te amado. Assim o enxergo, assim
não vejo, assim me escondo da morte. E o amor verdadeiro pode nos dar a certeza
da eternidade. Nem que seja por um momento breve. Ilusão verdadeira, verdade
ilusória; justiça cega, cegueira que vê.
É
DIPO
Mas a criança devia ser morta, Jocasta.
J
OCASTA
Não, Édipo. A criança não devia ser morta. Mas estão todos os oráculos, está o
medo permanente de que as maldições sejam cumpridas. Não. Talvez a culpa o seja
de Laio, não seja minha, não seja de nada. Quem tem a culpa de sermos humanos? E
150
se não o fôssemos? Se fôssemos deuses? Qual seria a culpa que carregaríamos? A
de, ainda assim, continuarmos imperfeitos? Talvez a única culpa seja da palavra. Uma
palavrinha apenas: poder.
É
DIPO
O poder pode servir para...
J
OCASTA
Sim, meu tirano. Ele pode servir para muitas coisas. Pode servir para que, com medo
de que ele se vá, abandonemos a quem realmente amamos. O poder são os sussurros
que permanecem em nossos ouvidos.
V
OZES
Laio, teu amor por esse jovem é contra a natureza.
J
OCASTA
E Laio, saciado de culpa, essa culpa que nos arrebenta a todos, me indagava em sua
embriaguez, enquanto me estuprava:
V
OZES
Tu me condenas, Jocasta? Tu me condenas?
É
DIPO
Jocasta, pára, moralista. As coisas não são sempre assim. Temos que enfrentá-las.
J
OCASTA
É verdade, esposo atormentado. As coisas não são sempre assim. E ainda temos que
enfrentá-las aqui, porque a própria peste do que somos nos prende neste quarto. É
verdade. Na maior parte das vezes, as coisas são piores. Eu, a moralista! Os fatos são
ainda mais terríveis. Mas isso eu não posso contar. E temos que enfrentar, não é
mesmo? Não podemos sair deste quarto, deste palácio que fede. No entanto, as vozes,
as vozezinhas não se afastam.
V
OZES
Laio, vou te impor uma maldição.
Édipo, tu matarás teu pai.
Logo, desposarás tua mãe.
J
OCASTA
E, então, Laio finge, finge que o jovenzinho morreu, que o jovenzinho se matou. E,
então, Laio se casa com Jocasta. Mas o rapaz bonito não morreu dentro de Laio. E Laio
também não deixará de querer matar.
É
DIPO
Mas a criança tinha que morrer. Eu mesmo a mataria... Para não morrer e...
151
J
OCASTA
Sim, talvez o menino tivesse mesmo que ser sacrificado. Talvez devesse ser sacrificado
para que, mais tarde, o fosse ele quem sacrificasse. Mas nada disso importa, sabe
por quê? Porque as vozes ainda estão lá. E, não faz assim tanto tempo, na cidade de
Corinto, elas disseram: Édipo, tu matarás teu pai e te casarás com tua mãe. E, então...
É
DIPO
...e, então, Édipo abandona seus pais, abandona sua Corinto. Deixa sua cidade, todos
a quem amou até aquele momento. Tudo porque Édipo deve enfrentar o destino. Ele
deve lutar, Jocasta. Minha fuga só o que mostra é que busco escapar de meu destino.
J
OCASTA
Mais calma, insinuando-se para Édipo.
Bobagens, meu filho, bobagens. Muitas vezes, quando pensamos que nos
esquivamos dele, do destino, o encontramos de frente. Assim, Édipo: bem de frente.
Ele está lá, aqui.
É
DIPO
E, então? Deveríamos aceitá-lo? Mesmo que os resultados fossem trepidantes?
J
OCASTA
Não sei, meu jovem amante.
É
DIPO
Do que tentas me convencer é acreditar que deveríamos viver cada dia como se fosse
o último...
J
OCASTA
...e cada noite como se fosse a primeira.
É
DIPO
Como se não nos possuíssem.
J
OCASTA
E como se não possuíssemos ninguém senão a nós mesmos.
É
DIPO
Temos que ficar aqui, esperando que venha o dia. Isso é impossível, Jocasta.
J
OCASTA
Acariciando o rosto de Édipo.
Talvez seja mesmo, meu menino.
É
DIPO
Mesmo desinteressado, Édipo se deixa enredar. Mas, logo, afasta-se.
O que é isso, Jocasta?
152
J
OCASTA
Como posso saber?
É
DIPO
Desenlaçando-se de Jocasta.
Espera. Ouve. É o povo! Não!
V
OZES
A arena já foi montada.
De um lado, o mito encenado.
De outro, a cena mitificada.
Misérias, arfares e tesouros.
Quanto mais vêem
Mais cegos estão.
Não importa a noite.
O homem já não pode deixar seu bastão de lado.
A mulher sabe sempre o que a luz do dia irá trazer.
Sempre sombras.
A peste vai tomar a cidade,
As crianças alimentarão os vermes.
Sempre sombras.
É
DIPO
O que querem dizer com isso, Jocasta?
J
OCASTA
Que a criança não devia morrer, que aquela minha criança não devia morrer.
É
DIPO
Como não devia morrer? A criança precisava morrer.
J
OCASTA
Para quê? Para que o destino não se cumprisse? Mas outro destino se cumpriu. Outro
destino matou Laio. Um assaltante que talvez tenha assaltado o próprio destino, criando
um outro em seu lugar. Não. O filho de Laio não matou Laio. Porque ele, Laio, o
assassinou antes. Assim também, é bem provável que tu não mates teu pai, que ele
morra depois que alguma esfinge nos mastigue. Decifra-me ou te devoro. Isso sim é o
que estamos destinados a escutar sempre.
É
DIPO
Então, se tu mesma acreditas que isso é o que iremos sempre ouvir, que essas são as
vozes que sempre irão nos durar na memória, como deixar este lugar? A peste,
fora...
153
V
OZES
Amando.
Deixando que os corpos se enfraqueçam ao toque de outros corpos,
Que bocas encontrem bocas,
Salivas se misturem,
Suores sejam lambidos por línguas amorosas.
Seduzido, Édipo se entrega.
J
OCASTA
Sim, meu Édipo.
É
DIPO
Não, minha Jocasta.
J
OCASTA
Só assim, meu amo e senhor.
É
DIPO
Nem assim, minha amada senhora.
V
OZES
Sedes que encontram sedes.
Fomes que buscam fomes.
Vales de carnes macias.
Alvuras imaculadas.
A luz vai caindo até o escuro se tornar completo.
J
OCASTA
Mais assim, meu breve atormentado.
É
DIPO
Menos, minha tormenta eterna.
J
OCASTA
Sempre assim, meu destino irremediável.
É
DIPO
Nunca assim, minha cegueira irreparável.
V
OZES
E, depois de corpos terem sido encontrados em outros,
Bocas em outras bocas,
Salivas misturadas,
Suores sugados,
Saber que o paraíso é desarmonia:
154
Vive da sede,
Vive da fome,
Vive à míngua.
Silêncio. Música por alguns instantes. Em seguida, a luz foca levemente a cama. Nota-
se que Jocasta e Édipo acabaram de fazer sexo. Estão alegres, felizes.
J
OCASTA
Ai, meu amor! Ai, meu amor! (no último, fazendo umas cócegas em Édipo) Ai, meu
amor!
É
DIPO
Sentindo as cócegas.
Ai, meu temor!
J
OCASTA
Suado assim, vermelho assim, com esse ar tão sacana, tu ficas tão lindo.
É
DIPO
E tu te pareces mais a uma esfinge.
J
OCASTA
O quê?
É
DIPO
Sim. Uma esfinge. Um monstro fabuloso, com esse corpo, garras e cauda de leão, essa
cabeça mitológica de mulher, umas asas de águia e unhas de harpia, propondo
enigmas aos que passam e devorando quem não os consegue decifrar. Uma cadela!
J
OCASTA
Ah!, é. Então, vamos lá, meu fugitivo complexado.
É
DIPO
Vamos lá, aonde, Jocasta?
J
OCASTA
Vamos lá! Vamos ver se tu decifras meus mistérios. Anda, decifra-me ou te devoro.
É
DIPO
Vai, então. Anda, dona Jocasta. Vai.
J
OCASTA
O que é o que é que cai em pé e escorre deitado?
155
É
DIPO
Ah, meu bem. Esta é fácil. Esqueces que decifrei enigmas mais tortuosos? É a
chuva, minha doce, que cai em e escorre deitada, assim como tu estás agora,
entendeste? Por favor, Jocasta. Aumenta um pouco o grau de dificuldade.
J
OCASTA
Então, vamos. Por que os homens não têm nenhuma crise na fase madura?
É
DIPO
Boa, minha égua de Tebas. Muito boa, essa. Trata-se de um enigma sibilino,
meandroso. Mas, ainda assim, fácil. Para decifrá-lo, basta pensar com a cabeça de
mulheres com mais de quarenta anos, não é mesmo, meu bem? E a resposta é óbvia.
Os homens não podem mesmo ter crise alguma na fase madura porque não chegam
jamais à maturidade, não é mesmo?
J
OCASTA
Adivinhão. Tu és mesmo bom nisso, hein, meu Edipinho. Mas, agora, vamos ver como
tu te safas desta: quem é que dá luz ao cego?
É
DIPO
Luz ao cego?
J
OCASTA
Isso mesmo.
É
DIPO
Como luz ao cego?
J
OCASTA
Isto: quem é que dá luz ao cego?
É
DIPO
Deixe-me pensar, Jocasta.
J
OCASTA
Anda logo: quem é que dá luz ao cego? Anda: quem é que dá luz ao cego?
É
DIPO
Calma, minha aurora.
J
OCASTA
Falando rápido.
Quem é que dá luz ao cego? Quem é que dá luz ao cego? Quem é que dá luz ao cego?
É
DIPO
Luz? Ao cego?
156
J
OCASTA
Tu não disseste que és o melhor vidente? Então, vamos lá. Rápido, meu feiticeiro.
(Falando rápido) Quem é que luz ao cego? Quem é que luz ao cego? Quem é
que dá luz ao cego?
É
DIPO
Não sei, Jocasta imprevisível. Nesta, tu me derrubaste. Vamos, diga logo: quem é que
dá luz ao cego?
J
OCASTA
Rindo e deitando-se, oferecida.
A mãe do cego.
É
DIPO
E tu, por acaso, és mãe de algum cego?
J
OCASTA
Nunca se sabe, meu amor. Nunca se sabe.
É
DIPO
Como nunca se sabe?
J
OCASTA
Nunca se sabe. Vem até aqui, vem. Olha a paisagem noturna. Muito pouco se pode ver.
Uma noite, faz tempo, eu estava aqui, neste mesmo lugar, mirando a paisagem
noturna. A cidade cheirava mal. Como cheira hoje. Era a peste. A esfinge no meio da
arena, na entrada da cidade, devorando os incautos. Ninguém se atrevia a enfrentá-la.
Tudo cheirava muito mal. Tebas estava perdida. Mas, na manhã seguinte, tu chegaste,
sem medos.
É
DIPO
Tu te contradizes.
J
OCASTA
Não, Édipo. Nunca se sabe. Nunca se pode saber. Sabe, naquela noite, eu olhava a
paisagem noturna e me lembrava de um Laio morto, ou de um Laio vivo e lascivo.
Como, então, naquela noite, eu poderia saber que, na manhã seguinte, minha vida
estaria mudada, a sorte de Tebas revertida. Eu, casada contigo. E, com o passar do
tempo, aprendendo a te amar.
É
DIPO
Não me amavas e me desposaste. É isto o que o se sabe? É isto o que querias me
dizer?
J
OCASTA
Claro que não te amava, meu bobinho. Claro que não te amava. Como poderia amar
um desconhecido? Alguém surgido da morte de uma esfinge.
157
É
DIPO
O dever te...
J
OCASTA
Repentinamente irada.
O dever não nos impõe nada. Absolutamente nada. Ou é possível obrigar um ser a
amar outro ser. O máximo que se poderia pedir seria tolerância. E eu não te amava.
Sabe o que eu era, depois da morte de Laio? Uma puta. Uma puta bem rampeirinha,
vulgar. Transando bem com todos e com todas, querendo vingar dentro de mim a
merda que é imaginar seu marido na cama com outro homem, fodendo lá com o
brinquedinho dele.
É
DIPO
Pára, Jocasta. Chega!
J
OCASTA
Beijando bem, sabia? Sabia que, aqui na minha cabecinha atônita, Laio e o jovenzinho
se beijavam bem? Com uma paixão enorme. Ai, que inveja! Mesmo sem ter visto, eu
podia sentir o fogo que consumia aqueles beijos. Ai! Eu também quis matá-lo. Queria
sufocá-lo na boca daquele rapaz morto. Fazer com que fosse perdendo o ar, perdendo
o ar, perdendo o ar. Então, quando soube que Laio tinha sido assassinado, quis eu
mesma ser aquele assaltante. Sim! Sou eu quem deveria ter-lhe enfiado o punhal.
É
DIPO
Nunca havias me falado assim, Jocasta. Eu...
J
OCASTA
Espera. Laio já está morto. E a criança também...
É
DIPO
Mas a criança devia morrer. Morrendo, cumpriu-se o destino.
J
OCASTA
Cumpriu-se? Não, meu menino, a criança não devia morrer. Para quê? Para quê se,
estando morta, vive mais que cada um de nós. Vive cada dia mais dentro de mim.
Entendes? Tu me entendes?
É
DIPO
Jocasta... Moralista...
J
OCASTA
Não. Tu não podes entender. Como talvez não possas compreender que eu mesma
deitei com Laio e o rapazinho diversas vezes.
É
DIPO
O que me dizes? Estás louca? Não poderias se...
158
J
OCASTA
Apontando para a própria cabeça.
Aqui, meu bonitinho: aqui. E muitas. Inúmeras, meu senhor rei de Tebas. E neste
mesmo quarto de onde tu dizes que não podemos sair. Eles fodiam bem. Eu ficava
vendo. Ah!, amor. Tu pareces aum personagem destas tragédias que levam agora
às arenas. Iludido. Bobinho. Tolo. Teatral. Não consegues imaginar? O pior cego, meu
amor...
É
DIPO
... é aquele que não quer ver.
J
OCASTA
Não, Édipo. O pior cego é aquele que quer ver. Mesmo não vendo, eu queria ver,
queria enxergar e não conseguia. Quanta angústia aqui. Nunca me acostumei com a
situação. Nunca. E é por isso que te digo: tu não podes me entender. Não poderás
jamais entender porque eu não te amava e depois te amei. Te amo. Mas, também não
sei porque, sabia que iria te amar, meu menino. Algo me dizia isso. Talvez quem possa
saber seja Antígona. Antígona com suas culpas que ainda a farão guiar os cegos. Estou
bastante certa mesmo.
Pegando um pedaço de pano e colocando no pescoço, como se se enforcasse.
Tu me trouxeste de volta aquilo que nem sei se tive. Poder ser mãe novamente. Até de
Antígona. Amar. Limpar meu corpo, mesmo que para isso ainda tenha que manchá-lo
ainda mais. É assim que eu creio: o amor é algo que só é verdadeiro quando construído
palavra por palavra. Lembra-te, Édipo: nada do que possamos trazer no peito poderá
nos revelar o que acontecerá amanhã, assim que o primeiro raio de Apolo iluminar esta
cidade.
A luz se apaga. Escuro total. Novamente, vozes.
V
OZES
Muitas vezes, muitas vezes, muitas vezes,
Para enxergar, para enxergar, para enxergar,
É preciso estar cego, estar cego, cego.
Luz sobre Jocasta que, sentada no chão, limpa os pés de Édipo e chora.
Para ver, não basta o dia.
Para cegar, não basta a noite.
Cordas e nós,
Varetas e mãos,
Pés e caminhos,
Corpos e precipícios.
Édipo se levanta, sentando-se na cama, enquanto Jocasta termina de acariciar seus
pés e se recompõe.
159
É
DIPO
Jocasta, lembra-te quando Antígona nasceu?
J
OCASTA
Sim. E o que tem isso?
É
DIPO
Nada. Ela era minha linda.
J
OCASTA
E então?
É
DIPO
Nada. São minhas lembranças. Posso até mesmo recordar o momento em que a
fizemos. Lembra-te? Tenho absoluta certeza de que foi naquele dia, o sol batia a pino.
Cheguei em casa e tu ainda dormias. Nua, completamente nua. A escrava andava na
ponta dos pés e deixamos que ela visse, que ela visse tudo. Com o olhar, permitimos.
Lembra-te como a menina suava enquanto olhávamos para ela e nos enlouquecíamos.
Ela ia sair e tu ordenaste...
J
OCASTA
Fica!
É
DIPO
E, então, ela veio, tremendo. Sentou-se na cama. Tu olhavas a pobrezinha nos olhos.
Ela suando e tremendo. Vermelha. O sol dardejando através das cortinas. Eu, tu,
nossos frêmitos. (mudando o tom) Tu eras como uma escrava, vendo, em tuas
fantasias, Laio e seu rapazinho?
J
OCASTA
O que queres? Desejas repetir. Mando chamar a melhor de tuas escravas agora. E tu,
então, farás como daquela vez. Cavalgando-me. Montando esta potra de nácar. Se
queres, mando acordar uma agora mesmo. Vamos! Vamos! Quem sabe não fazemos
até outra menininha para a tua horda, para o teu clã?
É
DIPO
De onde vens com isto? não temos... Ou melhor, minha vaca de Tebas, te esqueces
que tunão tens mais a pingadeira rubra a escorrer-te pelas tetas? Já não podes mais
amamentar, minha boa. não podes, como pouco me convidavas, dizer-me assim
(imitando Jocasta): Vem, filhinho, mama na mamã.
J
OCASTA
E tu bem que gostavas, hein! Como ainda gostas.
Retirando o seio e insinuando para Édipo, como se amamentasse.
Mama cá, benzinho. Mama na tua mulherzinha. Nessa mulherzinha que, sem ser
Penélope, aprendeu a te esperar. Desde antes, desde muito antes te aprendeu a
esperar. Desde além disso, quando os fios talvez nem mesmo existissem para que
160
pudéssemos tecê-los e destecê-los. Desde quando estes peitos ainda não haviam
sentido a dor do sangue que esperava ser chupado. Queres? O que queres, meu tirano
que, julgando tudo saber, de nada sabe? Meu tirano lindo que...
É
DIPO
Recuando.
Pára, Jocasta. Pára. Não podemos sair daqui. Temos que esperar o dia.
J
OCASTA
Não paro, Édipo, o paro. Reparas que não posso chamar-te lindo? Que não posso
chamar-te meu amor? As palavras amorosas são para ti um estorvo. Não posso jamais
dizer: amor, carinho, fofo, gostoso, lindo, terno, gentil, guapo, tesudo.
Raivosa.
Sim, meus peitos podem não ter mais o leite puro com o qual Antígona e toda tua horda
se empanturraram, quase me deixando seca, mirrada, murcha. Mas aqui dentro
(mostrando os seios) ainda há sangue e verdade. Não a tua verdade. Sabes por
quê?
É
DIPO
Tudo o que dizes não é verdade, Jocasta.
J
OCASTA
Não é verdade? Como não é verdade? Ou o que é a verdade? A tua verdade poderosa,
com a qual soubeste enganar a esfinge? (mirando o céu) Ah!, meu Apolo! Como
pudeste deixar que tua esfinge fosse enganada? Apolo meu. Meu deus Apolo e belo,
que amanhã virás com teus cegos para anunciar tuas mentiras. Tu sabes que não és
mais do que somos nós. Nem menos. (Dirigindo-se, agora, a Édipo) Mesmo tendo os
pés tortos, tu, Édipo, saído do ventre da terra, queres ser um Apolo. Não é mesmo,
Édipo, não é verdade?
É
DIPO
Blasfêmias, Jocasta.
J
OCASTA
Loucuras! Pragas? Vem, meu amo. Agora sou tua esfinge. Aquela a quem podes
enganar e, logo, enforcar. Embaçando tudo como a noite fora ilude a verdade trágica
que nos irá colocar a cada um de nós no lugar verdadeiro da ignorância. Talvez
saibamos mesmo de tudo. Talvez...
Mudando de idéia. Brusca.
Anda, Édipo: vai! Decifra-me ou te devoro! O que é o que é que pela manhã tem quatro
patas, quatro patas que rastejam como os homens e mulheres que fomos e que não
necessitavam esconder o sexo porque andavam de quatro? Anda, responde quem é
esta criatura, esta criança cega, dependurada nas mãos da árvore parteira, cega na
arrogância paterna, ainda mais ofuscada pelo desleixe materno. Anda, responde.
É
DIPO
Esse enigma já foi respondido. E é por isso que Tebas hoje está salva e...
161
J
OCASTA
O quê? Sepossível? É por isso também que estamos presos aqui, neste lugar? Será
mesmo possível que não sentes o cheiro repulsivo da Tebas que se dilacera lá fora? Da
cidade que o que quer é justiça. Não a justiça que foi feita, mas aquela que não te
fizeste a ti. Anda, meu amado. A ironia está quase perto de nós. posso mesmo vê-la
bater à porta. O dia vem com Apolo. Responde. Sou tua esfinge. E, pela tarde, quem
é mesmo que anda com duas patas, tendo aprendido a se levantar? A fazer as coisas,
a ser um homem e uma mulher sabedores, criando fatos, manufaturando eventos,
realizando artefatos, obrando coisinhas. Quem é, anda, responde quem é?
É
DIPO
Jocasta, estás alucinada. Pára com isso.
J
OCASTA
Não paro. Ao menos soubeste enganar. E conheces bem a resposta deste enigma:
quem, pela manhã, anda como cães?; pela tarde, como os cães também, embora
adestrados?; e, pela noite, quem é, quem é que anda com três patas? Filho, marido,
irmão, amor, dor, cegueira, pai, fruto. Ai, se pelo menos fôssemos es... Presos, aqui,
neste canil de mundo. Cego! Não enxergas?
É
DIPO
Pára, Jocasta. Pára com tuas estórias. Eu não estou cego. Posso muito bem ver tudo a
meu redor. O que tramam, o que escondem, o que conspiram. Amanhã vão querer o
poder que temos. Tudo o que temos.
J
OCASTA
Não paro, Édipo. o paro. Tu, antes, é que devias haver parado. Sofista. Tirano. Puto.
Quem é este homem? Enganaste a esfinge. Mas a mim não me enganas. Anda.
Responde quem é esse homem? Responde. Responde logo, porque o dia já vem.
A luz se apaga novamente. As vozes vêm.
V
OZES
Pensa bem, anda, pensa bem.
O que farias, se te dissessem agora,
Como disseram a ele,
Que irias matar teu pai?
Pensa bem, anda, pensa bem.
O que farias, se te dissessem agora,
Como não disseram a ela,
Que irias gozar com teu filho?
Cegarias teus desejos,
Enforcarias tuas palavras,
Matarias teu próprio filho?
Pensa bem, anda, pensa bem.
A luz se acende. Num canto do palco, Jocasta está pendurada, enforcada. Édipo
atravessa o palco guiado por uma vareta de cego. Novamente a luz se apaga.
162
V
OZES
Pensa bem, anda e pensa bem.
A um canto, agachado como se fosse uma coruja, está Édipo. Jocasta está do outro
lado do palco.
É
DIPO
Tu és louca. Louca, é isso o que és. O único que quero, o único que buscamos, mulher
covarde, é enganar a morte. que, para enganar essa velha que corta o fio da vida, é
necessário pagar um preço. No meu caso, o preço foi fugir. Fugir para longe, para que
o próprio destino não me abraçasse.
J
OCASTA
E tu achas mesmo que é possível enganá-lo?
É
DIPO
Não sei. Mas tu, o que crês? Como pensas ludibriá-lo?
J
OCASTA
Já passei por tudo. Não tenho cordas a cortar.
É
DIPO
Como o tens? Teria sido Laio, teu ex-senhor, por acaso?, quem tomou a criança em
suas próprias mãos e a deu ao criado dizendo: Leva para longe e mata. Assassina.
Deste-lhe o punhal? Pensaste se a arma estava bem afiada, se a lâmina penetrava com
facilidade e, assim, o infante sofreria menos? Ou querias que ele se purificasse com a
dor? Confiavas bem no pastor ao qual entregaste teu rebento? E ele, o que tal homem
te disse? Olhaste-o nos olhos? Olhaste-o segura nos olhos? E o menino? Chorava
quando foi entregue para morrer? Sentia fome? Será que não queria estes teus seios
moles para mamar? Quem sabe até não morria engasgado?
J
OCASTA
Babaca!
É
DIPO
Na época, creio eu, estes teus peitões deviam estar bem cheios. As mamas
abarrotadas de leite deviam te doer muito! Ou não era leite, mas sangue? O que fizeste
para aplacar tua dor? Deste as tetas enormes a Laio e ao rapazinho suicida, durante
orgias em que esse mesmo leite, ou sangue!, era misturado ao vinho? Embriagaram-se
até a última gota quando o criado voltou dizendo:
V
OZES
O serviço está completo, minha boa tirana!
J
OCASTA
Pára, Édipo. Não sejas cruel. Pára.
163
É
DIPO
Mas se a criança não devia ser morta... Não é isso o que achas?
J
OCASTA
A criança tinha que ser morta.
É
DIPO
Mas, agora, tu é que te contradizes. Anda, responde, oráculo maldito. Não é tempo
ainda de rolares pelo desfiladeiro. Responde:
V
OZES
A criança devia ou não ser morta?
J
OCASTA
Foi Laio quem ordenou.
É
DIPO
Mas foste tu, infanticida, puta, quem lavraste a sentença, entregando-a a um pastor
para que a assassinasse. Por que não a mataste tu mesma? Por que não a afogaste na
sala de banho? Por que não a deixaste nua ao lado da janela, tapando-lhe bem a boca
para que sufocasse de frio, fome e solidão? Se estivesse viva, não restaria à tal criança
senão vir ter com sua mãe e matá-la. Enforcando-a com as próprias mãos.
J
OCASTA
Chorando.
Pára, Laio. Pára.
É
DIPO
Agora, vejam só. Chama-me Laio! Escuta, este aqui que está a teu lado, que contigo
teve quatro filhos, que te fode nas noites em que queres ser fodida, que te leva aos
banquetes, que te satisfaz tuas orgias de velha que nunca aprendeu a amar, que te
deixa sentar no trono a seu lado, que aceita tuas doenças mentais sem reclamar, que te
enxuga as lágrimas, que há anos escuta teus delírios...
J
OCASTA
Pára, ofuscado. Pára.
É
DIPO
Sim, este aqui é Édipo. Sim. O Édipo fugitivo e ignorante. Aquele que abandonou
Corinto porque o oráculo lhe disse que ele iria matar seu pai e dormir com sua mãe.
Sou eu mesmo este Édipo. E realmente não sei aonde vou dar. Aonde tu vais dar.
Onde toda essa gente aí fora irá ter. Este cheiro terrível da peste. Não podemos, ou
não queremos sair deste quarto? A morte e tudo aquilo que nunca se saberá. Este aqui
é Édipo, e não raptou nenhum jovenzinho para ser amaldiçoado. Eu, Édipo, o único que
fiz para ser condenado foi ter nascido. Nada mais.
164
J
OCASTA
Acalma-te, meu lindo.
É
DIPO
Acalmar-me. Pois não és tu quem me quer fazer ver tuas verdades? Então, diz: por que
não deixar este lugar, este palácio? Por que não fugir? Para que a peste não venha nos
corromper? Mas se fomos corrompidos. E, agora, aqui, confinados, esperando o dia.
Para quê acalmar-me?
J
OCASTA
Sim, acalma-te. Quero apenas que tu...
É
DIPO
E, agora, por favor, não mintas. Eras tu quem, ainda pouco, me oferecias, em jogos
de sedução e sacanagem, teu peito murcho para que eu chupasse. Eras tu mesma
aquela quem brincava com meus temores. Rindo, burlando de minhas tragédias. Não
sabes que também eu quero ser o pior cego. Também eu quero ver. Quero enxergar e
não posso. Será tudo isso só pelo poder?
J
OCASTA
Não te digo isso, minha criança, minha criancinha. Só digo que te amo. Sempre te amei.
Até quando... E que estarei sempre a teu lado, não importa o que aconteça.
É
DIPO
Estarás comigo? Assim como estiveste com Laio, quando entregaste a criança ao
pastor?
J
OCASTA
Eu te amo.
É
DIPO
O amor, Jocasta. O amor é um mito. Um mito que não nos pode fazer melhores ou
piores. É apenas um mito, engendrado para que nos enganemos a cada curva do
caminho.
J
OCASTA
Então, meu querido, é nesse mito em que quero acreditar.
É
DIPO
Acreditar nele para descrer do mundo.
J
OCASTA
E para que tu também não sofras.
É
DIPO
Sofro por meus martírios. Sabes o que é sonhar todas as noites que se está dormindo
com a própria mãe, que se acabou de assassinar o pai?
165
J
OCASTA
Bobagens, meu filho, bobagens. Não vês que todos os homens, a maioria deles,
sonham, pelo menos uma vez na vida, que dormem com a mãe? Que fazem sexo com
a própria mãe! Pergunta a teus melhores amigos, àqueles que de nada sabem e que
são de tua inteira confiança.
É
DIPO
E tenho eu alguém que seja de minha inteira confiança? Estou só. Rei e só. Estamos
trancados, Jocasta. Presos!
J
OCASTA
Então, pergunta a qualquer um.
É
DIPO
A qualquer um. Ora, vejam. Se é nisso mesmo em que acreditas, Jocasta, vou te
revelar um outro pormenor. Uma coisinha à toa. Espero que não te assustes. Ah! Tu
não podes mais te assustar com nada. Já sabes de tudo, não é, sua cadela tebana? Já
viste as piores pestes. mandaste matar teu próprio filho. te entregaste a quem
não amavas. A ti posso revelar tudo, não posso?
J
OCASTA
Claro que podes, meu amor.
É
DIPO
E é mesmo para isso que esta noite nos servirá. Para que nossa intimidade me
conduza nos infernos que irão nos acolher. Que irão mesmo festejar a presença de
Édipo e Jocasta, tiranos de Tebas. Então, escuta e verás que ainda não sou tão cego
assim. No que se refere a minha mãe, meus temores são até brandos. Em meus
delírios, em minhas vigílias noturnas, quando te vejo dormindo emaranhada em sedas,
com alguma parte da tua alvura iluminando a escuridão do quarto, nessas minhas
noites passadas em claro, não penso que tu podias ser minha mãe e que eu te
despertasse afoita e a estuprasse violentamente. Não. Sabes o que imagino?
J
OCASTA
Diga-me, meu rei.
É
DIPO
Penso que o que queria mesmo era matar meu pai. Ele, aquele meu pai que me criou
com carinho e desvelo. Não sei porque, mas queria matá-lo, dando-lhe com o bastão
até rachar-lhe o crânio ao meio, como fiz com os assaltantes que barravam o caminho
na curvinha do estradão, na encruzilhada, antes mesmo de vir dar a Tebas.
J
OCASTA
Assustada.
O quê?
166
É
DIPO
Sim, Jocasta tirana. Não tens mais culpas que eu. É isto mesmo. Queria muito matar
meu pai. Estou seguro disto. Queria matar meu pai. Não posso entender o porquê disto
tudo. Mas queria matar meu pai. Quem é mais culpado? Tu, que entregaste teu primeiro
filho para a morte; ou eu, que sonho com a miséria parricida? Quem sou eu, Jocasta?
Quem sou eu?
J
OCASTA
Não, meu menino. Quem somos nós? É também o que me pergunto: quem somos nós?
É
DIPO
Existem respostas, tirana?
J
OCASTA
Claro que existem, meu rei, meu martírio, meu milagre, meus suplícios, minhas dúvidas,
meus caminhos, meu amor.
É
DIPO
Não. Não existem respostas.
Mais uma vez, Jocasta se insinua para Édipo.
J
OCASTA
Não. A única ignorância é o amor. É nele que nos cegamos. É por ele que estamos
aqui. É por ele que não queremos enxergar. Vem, meu amado, deita teu corpo junto ao
meu e esquece. Ama-me, Édipo. Quebra-me o corpo com o mesmo bastão com que
abriste a cabeça dos assaltantes do caminho, daqueles que não queriam te permitir
passar. Não foi para isto que vieste? Para me matar, para me moer de amor? Não
importam as culpas, não te deixes assustar pelos medos, não dês razões aos sábios. O
poder é teu. Não deixes que a luz entre jamais. Fecha bem as cortinas. Impede a
chegada de Apolo.
Jocasta vai despindo Édipo com furor. Ele cede.
E, agora, anda. Faz de mim o que quiseres. Vem, meu tirano e algoz. Meu puto, menino
que nasceu para ser meu homem. Vem, entra dentro de mim e me mata inteira. Vem,
enfia logo teu punhal.
É
DIPO
Não posso, Jocasta. Não posso mais com meu punhal.
J
OCASTA
Irônica.
Meu menino, estás cansado. Fatigado com toda essa gente fora, na tua cabeça. Isso
acontece. Não te importes.
É
DIPO
Meu Deus!
167
Mais uma vez, as luzes se apagam.
V
OZES
Pensa logo o que irás fazer
Quando tua espada não mais cortar,
Quando de tua boca não mais vierem alegrias,
Quando teus seios mirrarem.
Pensa logo, vem.
Pensa logo.
E bem.
Acende-se a luz.
J
OCASTA
Vem dançar, Édipo. Falta pouco para que Apolo comece a soprar a luz de todo
conhecimento. Vem, meu amado senhor de Tebas. Falta muito pouco para que a noite
adormeça. Esta noite, não vamos dormir.
É
DIPO
O que pretendes, Jocasta? Estou cansado.
J
OCASTA
Levantando-o da cama. A música começa a tocar.
Não, meu senhor. Hoje, devemos comemorar.
É
DIPO
Comemorar o quê? O odor pestilento que envolve a cidade? O que mais? As palavras
ternas que acabamos de nos dizer? A prole condenada que vaticinou o oráculo? Não
há o que festejar.
J
OCASTA
Sim que , meu amor. É preciso comemorar estarmos todos vivos, ainda com forças
para mentir.
Puxando Édipo com força.
Vem, vem dançar.
É
DIPO
Tu és mesmo a pior entre as piores. Queres me fazer de ridículo. É isto o que queres,
não é mesmo?
J
OCASTA
Ridículo. Por que ridículo?
É
DIPO
Como és cínica! Em tantos anos juntos, nunca dancei contigo. E tu sabes disso. E
conheces a causa.
168
J
OCASTA
Causa. Mas que causa?
É
DIPO
Cínica. Vil. Devias andar em matilhas. Ladrando, latindo, rosnando, uivando. Finges.
Finges inteiramente. Não vês o caráter que tens. Onde estão teus filhos, enquanto,
obstinada, zombas de teu rei e esposo. Não querem saber de ti. Jamais desejarão
saber de ti. Nem os vivos, nem o morto. És uma cadela vulgar. Nem a morte te salvará.
J
OCASTA
Não sei a que vens. Tu, fedelho mimado. Anda, põe-te de pé. Quero que bailes comigo.
É
DIPO
Irado e mostrando os próprios pés a Jocasta.
Não. Antes, olha para mim. Olha para estes pés. Estes pés tortos e inchados, furados
para que por eles possam passar as argolas dos forçados. Olha, anda, manda buscar o
aro grande. Não é isso o que desejas? Amarrar-me ao pé de ti?
J
OCASTA
Isso é o que tu pareces buscar. É o que tu pareces ter procurado a vida inteira. Alguém
que te acorrente. Uma mãe. E eu não estou aqui para isto. Para te subjugar.
É
DIPO
Mas não te furtas a me prender.
J
OCASTA
Como tu não te inibes em me manter cativa, aqui, neste palácio.
É
DIPO
O que queres é zombar de mim. Sabes bem que não posso dançar. Que rodar pelos
salões para mim seria tão desajeitado como tem sido rolar pela vida.
J
OCASTA
A vítima. Aqui temos a vítima.
Enchendo dois cálices de vinho e oferecendo um deles a Édipo.
Pelo menos isso merece uma comemoração, não é mesmo?
É
DIPO
Vadia. Decrépita. Sabes também que não bebo.
J
OCASTA
Sei. Claro que sei. Sei que não bebes porque o idiota que te falou que eras um
bastardo, que não foste jamais filho dos pais que te criaram, esse imbecil estava
bêbado, encharcado, avinhado como um poeta ou um general acostumado a olhar
sempre o próprio umbigo e a ganhar concursos patéticos. Tens que te tratar, Édipo.
Sabes por que, meu pobre? Um dia, tu serás esquecido. Ninguém se lembrade ti. O
mar naufragará esta nossa terra. Só os peixes voltarão a enxergar.
169
É
DIPO
O quê?
J
OCASTA
É preciso que, muito urgentemente mesmo, te internes em termas, num balneário turco
qualquer. Quem sabe não te curam com umas águas milagrosas? Banhos que te
expurguem a sujeira desse corpo imundo, dessas tuas mãos sangrentas e dessa tua
cabeça vazia. Anda, brinda comigo ao que irá amanhecer.
Jocasta toma a taça e, à força, faz com que Édipo a beba.
J
OCASTA
E agora? Estás melhor? O vinho serve para esconder as culpas. Bebe, bebe mais,
bebe.
Jocasta enche a taça e novamente faz com que Édipo a beba de um só trago.
Bebe e verás. Verás que, pelo menos até a aurora, estarás bem escondido atrás desta
verdade. Toma, toma mais. Embriaga-te.
Édipo enche sua taça e a bebe mais uma vez. E de novo.
J
OCASTA
Estás gostando. Agora vês o que perdeste todos estes anos. Como poderias teres te
aliviado da vontade de matar teu pai, do desejo de estuprar tua mãe.
É
DIPO
Queria mesmo era me matar puta velha! Velha! Piranha velha e acabada. Bagaço.
J
OCASTA
Ah! O efeito te sobe e suaviza a consciência. Te põe mais imoral. Mas isso será por
pouco tempo. Por muito pouco tempo. Logo, outra verdade será anunciada. E, em
seguida, mais outra e outra e ainda muitas mais. O tempo está perdido, até que
resolvamos dar fim a ele. E isso, nós mesmos podemos fazer. Podemos até nos matar,
sabias? Mas, agora, vem. Me estupra, como fez Laio. Faz comigo o que sempre
quiseste.
Édipo começa a rasgar as roupas de Jocasta. A transa é alucinada e violenta.
Isso. Não é assim que querias? Faz com ardor. Faz, indecente. Menino pornográfico.
Machuca, anda, machuca a tua velha. Mutila. Arranca os pedaços. Incendeia tua febre.
Bate. Anda: bate. Enforca!
Apagam-se as luzes.
V
OZES
Pensa e anda.
Pensa e faz.
Pensa bem.
Pensa aquém.
Pensa além.
Não penses mais.
170
Penumbra. Jocasta e Édipo extenuados.
É
DIPO
Jocasta. Não posso te entender. Num instante...
J
OCASTA
...num instante viva; no outro, morta.
Como se falasse para outra pessoa.
Toma, pastor, eis aqui meu filho. Eis aqui meu filho para que o sacrifiques.
É
DIPO
Mas a criança devia ser morta, Jocasta.
J
OCASTA
Não. Hoje a coisa não é assim mais. Não vês que por ti sou capaz de qualquer coisa.
Que por ti sou capaz até de me enforcar. Olha bem para mim. A mãe que querias é esta
que aqui vês. Esta tua fêmea que usou o amor para acabar com aquilo que leva aqui
dentro.
É
DIPO
Calma, minha rainha atormentada.
J
OCASTA
Como calma?, se Apolo anuncia suas primeiras luzes. Mas, talvez, as luzes de Apolo
venham para revelar a escuridão em que vivemos. Quem sabe aquilo que vivemos
agora, na penumbra deste quarto, entre lençóis suados, almofadas atiradas, vestidos
rasgados, quem sabe não seja tudo isto a verdadeira luz?
É
DIPO
Uma penumbra que descobre...
J
OCASTA
... e um clarão que ofusca.
Jocasta se dirige à janela.
J
OCASTA
vem um dia, Édipo. Mais um dia. E, com ele, chega também o imprevisível, com o
qual deveremos aprender a viver.
Ruídos vêm de fora. O dia começa a clarear.
É
DIPO
Jocasta, o que são esses rumores?
J
OCASTA
São teus filhos, meu amado.
171
É
DIPO
Como meus filhos?
J
OCASTA
Teus outros filhos, Édipo. Aqueles sobre os quais teu poder se exerce.
É
DIPO
Para que vêm, Jocasta?
J
OCASTA
Dissimulada.
Estarei a teu lado, te cuidando como sempre te cuidei.
É
DIPO
Mas que filhos são estes, minha senhora? São apenas crianças, Jocasta.
J
OCASTA
Teus filhos de Tebas, teus filhos do mundo.
É
DIPO
Mas se nem os identifico. São muitos, são infinitamente muitos.
J
OCASTA
Sim, são muitos. E são todos teus filhos. Homens e mulheres do teu clã. Contigo,
compartilham a mesma dúvida.
É
DIPO
Que dúvida, minha tirana?
J
OCASTA
Não sabem quem são.
É
DIPO
Nenhum deles?
J
OCASTA
Nenhum deles, meu pequeno.
É
DIPO
E por que vêm?, se Apolo mal atirou suas primeiras setas. Se também eu não sei quem
sou.
As luzes começam a ofuscar os olhares de Édipo e Jocasta, direcionados em direção a
estas mesmas luzes.
Por que vêm, Jocasta?
J
OCASTA
Vêm por causa da peste. E para que tu decifres o enigma tantas vezes repetido.
172
A luminosidade, agora, cega completamente.
É
DIPO
E eu decifrarei este enigma, Jocasta? Saberei quem sou?
J
OCASTA
Não.
É
DIPO
E eles, minha tirana? Eles saberão quem somos?
J
OCASTA
Também não, meu Édipo.
Apaga-se a luz repentinamente. Escuro total, depois de uma claridade que cegava.
V
OZES
Não é bastante falar.
Não é bastante viver.
Não é bastante pecar.
Não é bastante perder.
Não é bastante ganhar.
Não é bastante morrer.
Não é bastante andar.
Não é bastante entender.
Não é bastante parar.
Não é bastante sofrer.
Não é bastante não crer.
Não é bastante pensar.
173
ANEXO A – VASILHA COM FIGURAS VERMELHAS
Figura 1: Vasilha com figuras vermelhas – 440 a.C.
Fonte: Museu Municipal de San Gimignano
http://www.artehistoria.com/historia/obras/8035.htm
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Letras
ÉDIPO
Edmundo de Novaes Gomes
Belo Horizonte
2006
Edmundo de Novaes Gomes
ÉDIPO:
acasos de uma leitura heterodoxa
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais,
como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em Literaturas de Língua
Portuguesa.
Orientação: Audemaro Taranto Goulart.
Belo Horizonte
2006
Para João, Lu, Manoel e Coeli.
Para Cristina Vilaça e Dulcejane Vaz.
AGRADECIMENTOS
A meu orientador, Doutor Audemaro Tarando Goulart.
Ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais, aqui representado pela secretária Berenice Viana de Faria e pela
Doutora Suely Maria de Paula e Silva Lobo.
A Bernadete Bittencourt, Carlos Alberto de Carvalho, Denise Gomes, Johnny
José Mafra, Márcia Marques de Morais e Vinícius Passos.
A UMA MULHER
Não tendo podido te criar
Nem tendo sido criado por ti
Eu me vingo do destino enxertando-me no teu ser.
Jamais conseguirás te libertar de mim
Porque eu te sitiei com a chama do amor,
Porque rondei durante dias e noites o Coração de Deus
A fim de extrair dele o segredo da ternura.
Todos os que te olham pensam logo em mim,
Todos os que me olham pensam súbito em ti.
Eu sou tua cicatriz que nunca se há de fechar.
Eu te perseguirei até depois da minha morte
E virei a ti no murmúrio dos ventos, no lamento das ondas,
Na angústia e na alegria dos poetas meus sucessores,
Nas almas grandes limitadas pelo físico.
Sentado nas nuvens esternas eu te esperarei
E me nutrirei através dos tempos da nostalgia de ti.
Murilo Mendes – A Poesia em pânico
RESUMO
Édipo Acasos de uma leitura heterodoxa é um trabalho dissertativo que tem como
objeto principal de estudo a tragédia Édipo Rei, de Sófocles. A análise realizada busca
marcar uma revisão bibliográfica em torno de hermenêuticas que possam ser
consideradas orto e heterodoxas sobre o assunto. Depois da leitura teórica do tema,
foram também produzidos dois estudos interpretativos. O primeiro, sobre o drama Um
Édipo, do português Armando Nascimento Rosa. O outro, sobre Jocasta Tirana,
situação dramática especialmente criada no sentido de procurar demonstrar, de modo
prático, as análises teóricas desta mesma dissertação.
Palavras-Chave: Jocasta, Édipo, Sófocles, tragédia.
R
ÉSUMÉ
Oedipe Une Lecture Hétérodoxe est une dissertation qui a comme objet principal
d'étude la tragédie Oedipe Roi, de Sophocles. L'analyse réalisée recherche marquer
une révision bibliographique autour des herméneutiques qui puissent être considérées
orto et hétérodoxes sur cette thématique. Après la lecture théorique, aussi ont été
produites deux études interprétatives. Premier, sur le drame Un Oedipe, du portugais
Armando Nascimento Rosa. L'autre, sur Jocaste Tyrannique, situation dramatique
spécialement créée dans le but de chercher à démontrer, de manière pratique, les
analyses théoriques de cette même dissertation.
Mots-Clé: Jocaste, Oedipe, Sophocles, tragédie.
SUMÁRIO
1.
INTRODUÇÃO............................................................................ 9
2.
A COSMOGONIA PARRICIDA...................................................
20
2.1. HOMENS, DEUSES E PODER.................................................................
24
2.2. ÉDIPO E AS MARCAS DO DESTINO......................................................
28
2.3. CÓDIGOS PARA UM MITO......................................................................
34
3. MEDIDA E DESMEDIDA............................................................ 42
3.1. TRAGÉDIA E AMBIGÜIDADE..................................................................
49
3.2. ERRO, HONRA E DESTINO.....................................................................
53
4. MARCAS DO GÊNERO..............................................................
66
4.1. MARCAS ESTRUTURAIS.........................................................................
76
4.2. MARCAS DO DESEJO.............................................................................
81
5. CAMINHOS PARA A HETERODOXIA.......................................
87
5.1. UM ÉDIPO SEM COMPLEXO...................................................................
88
5.2. ÉDIPO, JOCASTA E CULPA....................................................................
94
5.3. SABER E PODER.....................................................................................
99
5.4. APOLO E DIONÍSIO..................................................................................
109
6. DUAS LEITURAS HETERODOXAS...........................................
117
6.1. ESPELHO DE FANTASMAS....................................................................
120
6.2. MIRANDO JOCASTA................................................................................
129
7.
CONCLUSÃO............................................................................. 136
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................
140
BIBLIOGRAFIA...............................................................................
143
APÊNDICE A – JOCASTA TIRANA...............................................
145
ANEXO A – VASILHA COM FIGURAS VERMELHAS.................. 173
9
1. INTRODUÇÃO
Qualquer leitura que se faça do mito de Édipo não é capaz de trazer, a princípio,
novidades surpreendentes para o meio acadêmico. De Freud (1981) a Deleuze (1966),
de lio Pelegrino (1987) a Marilena Cha(1991), passando sempre por Sófocles,
estão aí os mais diversos enfoques que se centram num mito essencial do viver
humano para descobrir e desvelar possibilidades, sempre em busca de explicar o que é
de certo inexplicável: a própria existência.
Enquanto as primeiras leituras vão se preocupar com a análise e demonstração
deste mito, a de Sófocles irá, de maneira exemplar e através da tragédia, nomear a
cosmogonia parricida que atravessa a própria mitologia grega. Desde o Édipo Rei de
Sófocles, o mito do qual queremos tratar permeia a criação literária através das mais
diversas interpretações. A título de exemplo, poderíamos citar, em gêneros distintos, o
conto “A casa do girassol vermelho” (RUBIÃO, 1980), e o drama teatral António
Marinheiro (o Édipo de Alfama), de Bernardo Santareno (SANTARENO, 2004).
Na mesma medida em que cada um dos autores acima citados, além de outros,
trouxe luz inextinguível com sua leitura do mito, também arrastou, a reboque dessas
mesmas interpretações, dúvidas e questionamentos permanentes. Ou seja: o que se
pretende dizer é o óbvio de que as lacunas estão sempre abertas quando se trata de ler
um mito, uma vez que os espaços seguem sempre vazios, como se exigissem um
preenchimento eterno, possibilitado aqui pelo trabalho disjuntivo e analítico da razão.
10
No entanto, como esta mesma razão possui ordem inerentemente lingüística, também
ela não pode querer esgotar as possibilidades hermenêuticas.
E é exatamente tal capacidade inesgotável de proposição de renovadas
hipóteses interpretativas para o mito e o gênero que o veicula - Édipo que mata seu pai,
casa-se com sua mãe e com ela gera quatro filhos -, que me fez pensar numa leitura
que o enxergue desde uma perspectiva heterodoxa, centrando-se em questões como o
gênero literário e jogando o foco sobre partes menos ressaltadas nas interpretações
mais conhecidas e consagradas, tais como a de Sófocles, com sua tragédia
incomparável, e a de Freud, com sua abordagem psicanalítica.
Tanto na leitura de Sófocles como na freudiana, o mito de Édipo, é o que me
parece, é lido a partir de uma tradição hermenêutica ortodoxa. No dramaturgo grego, a
escritura segue os preceitos estabelecidos na Poética de Aristóteles(1993), não
exatamente porque por eles foi influenciada, mas porque, poder-se-ia dizer, ela mesma
os inspirou. Isto quer dizer que o Édipo Rei, que é uma das obras que inspira a leitura
teórica que Aristóteles faz do gênero dramático, é, nesse sentido, mais do que um
reflexo de tal gênero, mas aquilo mesmo que lhe deu a luz.
Além dos aspectos acima mencionados, Sófocles realiza em Édipo Rei, assim
creio, leitura e transfiguração de mitos de fundação anteriores, constituintes da tradição
mitológica grega. A exemplo, poderíamos lembrar a deposição de Urano, contada por
Hesíodo (2003) em sua Teogonia, em que se nota a tradição parricida que assombra
o imaginário grego. Outro estudioso, Mircea Eliade (1949), refere-se à figura similar de
Cronos, que padeceria do mesmo oráculo.
Se estes mitos anteriores tratam da genealogia olímpica, Sófocles terreniza-os,
por assim dizer, e os particulariza na composição da personagem de Édipo. No caso
11
freudiano, a tradução do mito edípico atravessa-se pelo estudo do gênero, em que ele
considera a figura do herói:
O herói é, a princípio, um rebelde contra Deus e o divino. É do sentimento de
miséria que a débil criatura sente-se enfrentada com o poderio divino; sendo
daí que o prazer pode considerar-se derivado, através da satisfação
masoquista e do gozo direto da personagem, cuja grandeza o drama tende,
contudo, a destacar. (FREUD; TOGNOLA, 1981, p.137)
Nota-se que a questão anterior a estas abordagens do mito parricida tem como
alvo barrar a potência paterna e/ou apropriar-se dela, como Freud indicou em outros
estudos, a exemplo do seminal Totem e Tabu (FREUD, 1987a) e em Dostoievski e o
parricídio (FREUD, 1996). Desse prisma, tanto no universo mitológico quanto no
freudiano, lutar contra o pai é lutar pelo poder e pela posse de suas prerrogativas. As
prerrogativas do pai são as do poder, desejado por todos. Édipo não seria o tirano de
Tebas se não tivesse vencido o pai, violentando, portanto, a ordem patriarcal sob a qual
a sociedade se estrutura.
Assim, a maneira de enxergar o mito está fundada na ortodoxia, e por ela é
explicada. Como quer Aristóteles, e Sófocles, é claro, a tragédia segue seu ritmo
tradicional: a ação acontece no transcorrer de um dia, reconhecimento e peripécia
estão em seus lugares exatos, a verossimilhança existe, o mito é preenchido e
transmitido pela ão. Além disso, o solo no qual o dramaturgo grego pisa é patriarcal,
referendado pelo protagonismo da figura masculina de Édipo.
A leitura freudiana do mito, ao que parece, também segue na tentativa de
justificar, como é sabido, não apenas a passagem da natureza à cultura, do mito à
razão, mas em busca de estabelecer um conceito capaz de influenciar ou provocar
12
quase tudo aquilo que se refere à psicanálise: o Complexo de Édipo. Tal conceito, por
também estar fincado no mesmo solo patriarcal da tragédia de Sófocles, poderia ser
enquadrado na mesma tradição hermenêutica de leitura do mito à qual estamos mais
amplamente acostumados. Isto é: uma interpretação centrada no masculino.
Esta tradição, vale observar, não se encontra apenas nas duas obras citadas
como exemplos de leitura de Édipo, a de Freud e Sófocles. Todos os estudos ou textos
literários mencionados anteriormente nesta dissertação também se inspiram em idéias
centradas no masculino. Cada um deles projeta seu foco principal numa maneira de ver
o mundo pautada pela tradição patriarcal, por uma razão que se delineia a partir de
uma luz diurna, como Aristóteles afirma dever ser. Uma razão em que a mulher e aquilo
que a noite esconde estão colocados como coadjuvantes.
A idéia de partir para uma leitura que busque a heterodoxia da noite e da mulher,
colocando-as como protagonistas de uma interpretação do mito, surgiu e foi tomando
corpo na tentativa de enxergar as relações existentes entre o próprio mito e o gênero
dramático que lhe é intrínseco. Nesse sentido, o que se procurou primeiro fazer foi
sistematizar alegoricamente textos que tratam do tema. E o trabalho de alegoria que
aqui aconteceu poder-se-ia dizer semelhante ao que pré-socráticos e estóicos fizeram
em seu tempo, procurando descobrir idéias embutidas figurativamente nas narrativas
mitológicas definidas nos textos homéricos.
E foi exatamente isso o que aconteceu: procurou-se ler as interpretações do
Édipo de maneira que, num momento posterior, se pudesse criar uma outra que, na
mesma medida em que tomasse para si os preceitos aristotélicos sobre o gênero,
procurasse também invertê-los. A idéia foi mais simples do que pode parecer: primeiro,
ler as análises consagradas que envolvessem de maneira particular o mito do tirano de
13
Tebas; depois, e a partir de tais leituras, propor uma interpretação distinta para o mito,
centrada na figura de Jocasta; por último, criar uma situação literária que, seguindo os
contornos essenciais definidos para o gênero por Aristóteles, propusesse uma projeção
que transformasse estes mesmos conceitos.
Foi então escrita uma peça teatral que ganhou o nome de Jocasta Tirana
(Apêndice A). A partir de então, o que se busca é registrar uma outra leitura, tentando
mostrar quais foram os parâmetros, modelos e fugas que conduziram a uma
interpretação heterodoxa do mito. Assim, o que aqui se chama de heterodoxia é o
tentar enxergar a noite que antecede o dia em que o mito, enquanto gênero, deve
durar. É tentar iluminar a figura de Jocasta, jogando nela uma luz que, em geral, está
centrada em seu filho e esposo. É tentar, sobretudo, ver este mito enquanto uma
linguagem consagrada pelo gênero literário e, desde este mesmo gênero, eternizada
em novas e distintas perspectivas.
Nesse sentido, o objetivo geral da dissertação é realizar uma leitura do mito de
Édipo que possa, além de ser enxergada a partir de um gênero literário, transformar os
preceitos desenvolvidos por Aristóteles para a composição da tragédia de maneira a
tentar ensejar uma interpretação que fuja da ortodoxia centrada na figura masculina a
partir da qual tal mito costuma ser analisado. O que se pretende é mesmo dissertar
comparativamente em torno do corpus artístico estabelecido sobre a heterodoxia a
partir do caminho inusitado, com relação à tradição acadêmica, de tentar captar que
método, quais caminhos e de que maneiras a leitura teórica de textos que tratam do
14
mito de Édipo, somada à análise de suas frestas e arestas, permitiram, por projeção, a
escritura da tragédia (anti-tragédia?) Jocasta Tirana
1
.
De maneira mais específica, buscar-se-á delinear a paráfrase e a própria
discussão do mito de Édipo, a partir de duas referências bastante concretas. A primeira
tem suas raízes na própria mitologia grega, através de uma análise que busca o ulterior
a Édipo, com referências a relatos como o de Urano, Cronos e Zeus. A compreensão de
conceitos que envolvem a Moira é essencial para ensejar aquilo que é também objetivo
desta dissertação: perceber que pressupostos (o destino, por exemplo) conferem
caráter ortodoxo à leitura do mito.
A outra referência é Totem e Tabu, de Freud (FREUD, 1987a). A partir dela, o
que será tentado é uma análise mais detalhada sobre a própria questão do gênero,
uma vez que tal texto freudiano coloca de maneira exemplar como a hermenêutica
clássica percebe a passagem que acontece entre o mito e o estado de conhecimento
(logos).
Outro objetivo específico deste trabalho é a percepção mais aprofundada da
questão do gênero. A abordagem conceitual da Moira será então novamente feita na
tentativa de defini-la como linguagem mesmo: o destino que está escrito: o Édipo que
não pode deixar de matar seu pai e casar-se com sua mãe. Em contrapartida, como
motivo de introduzir uma perspectiva heterodoxa, procurar-se-á contrapor ao ideário
da Moira a personificação da Hýbris, e discutir a questão do gênero também a partir da
desmedida que ela mesma pode oferecer. Neste ponto - como diz Johnny Mafra,
lembrando Antônio Freire (1969) -, “o trágico deve ser entendido como a luta do homem
1
Este texto - lançado em livro no dia 30 agosto de 2006, pela Unidade Editorial da Secretaria Municipal
de Cultura de Porto Alegre (RS) - irá figurar como apêndice da dissertação.
15
contra o Destino” (MAFRA; 1980, p.72). E o destino é a própria Moira, dona de fios que,
se por um lado não dependem da poesia humana para serem tecidos, por outro
existem aquém e além do próprio ser inacabado que esse próprio homem é.
A poesia não criou o Destino. Ele existe na mentalidade popular. Entra na
tragédia como elemento que se contrapõe à finitude humana. (MAFRA; 1980,
p.76)
Também presente na tragédia está o conceito de Hýbris. Segundo o Dicionário
de Mitologia Grega e Romana (KURY, 2001), o princípio é a personificação da
arrogância e insolência(KURY, 2001, p.197). Oposto da lei divina, inimiga da justiça, a
própria desmedida. Nada menos ortodoxo, nada mais humano. A Jocasta que dorme
com seu filho e com ele gera outros filhos, o Édipo parricida e provocador de sua
própria cegueira estão condenados a revelá-la para, a partir daí, serem perseguidos
furiosa e implacavelmente. Poesia trágica que busca hereticamente alguma
transformação, mesmo que esta seja a possível, precária. Destino x ruptura.
Ortodoxo x heterodoxo. Apolo x Dionísio. Moira x Hýbris. É esse também o embate que
esta dissertação irá arriscar expor.
Também procurarei dissertar brevemente sobre o Édipo Rei, de Sófocles. O que
será almejado é a percepção do porquê esta obra é considerada um exemplo legítimo
daquilo que se define, do ponto de vista mais ortodoxo, como tragédia. Em vários
momentos de sua Poética, Aristóteles (1993) cita Édipo Rei de maneira a considerá-lo
uma obra em que o gênero trágico se expressa em completude exemplar. Nesse
sentido, vale atentar para o que diz Mário da Gama Kury (2002) em sua introdução à
“Trilogia Tebana”:
16
O Édipo Rei de Sófocles é, portanto, a mais típica das tragédias gregas, e por
isso é uma das mais citadas por Aristóteles em apoio a suas definições e
concepções. (KURY, 2002, p.11)
Depois de passar por Sófocles, a análise do mito acontecerá com textos mais
provocativos no que se refere à sua abordagem. O entendimento de Audemaro Taranto
Goulart (1997) em “Leituras do mito de Édipo”, Marilena Chauí (1991) e Hélio Pellegrino
(1987) são fundamentais para tal. Vale lembrar que os três autores citados expõem
interpretações do mito que buscam a discussão da heterodoxia. Pellegrino (1987), em
análise à teoria freudiana e lacaniana, e propondo uma leitura diversa, afirma de
maneira bastante heterodoxa:
Édipo, herói da legenda tebana, ao assasinar o pai e ao casar-se com a mãe,
não se enquadra no esquema estrutural e conceitual do complexo de Édipo, tal
como o descreve Freud. Édipo, portanto, não padecia do complexo de Édipo
freudiano, tendo sucumbido a vicissitudes de natureza pré-edípicas.
(PELLEGRINO, 1987, p.309)
Goulart (1997), em texto analítico de leituras de Édipo, depois de discorrer sobre
o estruturalismo de Lévi-Strauss (1973) e também sobre Freud, entre outros, conclui:
O mito poderia ser visto, então, como um elemento que explicita dois sistemas
de relacionamento humano: o que obedece aos princípios da regência feminina
e o que se submete ao domínio masculino. Dentro dos mecanismos que
propiciam a articulação dialética, ambos estariam se insinuando mas,
claramente, o mito como que acena na direção de um deles. E faz isso através
da sutileza com que se percebe que o Édipo vitorioso é aquele que se liga aos
elementos femininos. Pelo menos essa é uma leitura possível, ainda que para
operacionalizá-la o leitor tenha que transitar da perplexidade à ousadia, pois,
parodiando o próprio Nietzsche, é preciso incidir na sublime e terrível coluna de
Memnon do mito para que ele, subitamente, ressoe e cante.
(
GOULART, 1997,
p.26)
17
Ressoar e cantar foi a proposta executada quando se leram as interpretações
do Édipo em busca de uma nova medida. Buscar a perplexidade de trepar a coluna de
Mêmnon é um dos objetivos específicos desta dissertação. Quem sabe, será possível
fazê-lo, escutando a música que saúda uma aurora que vem logo após o conhecimento
daquilo que a noite pode ter a dizer e daquilo que a mulher (Gaia?, a que nasceu logo
após o Caos e, sozinha, engendrou o próprio Urano) certamente tem a revelar.
Além disso, buscarei finalmente encontrar meios para que seja feita uma leitura
heterodoxa do mito. O que dizem dele autores como Nietzsche (1992) irá permear tal
análise. É aqui também que a situação literária criada será avaliada em uma
perspectiva comparativa com o que se definiu como ortodoxo e heterodoxo, procurando
apontar nela aspectos relevantes para uma interpretação que busca querer se fazer
enxergar a partir de uma hermenêutica não tradicional.
em seu “A origem da tragédia” (NIETZSCHE, 1992), o filósofo alemão parece
assinalar o caminho para uma leitura que aponte a desconstrução do tradicional. É pelo
que Nietzsche diz logo no primeiro parágrafo desse seu livro que pretendo me deixar
conduzir:
Teremos dado um grande passo, e promovido o progresso da ciência estética,
quando chegarmos não à indução lógica, mas também à certeza imediata,
deste pensamento: a evolução progressiva da arte resulta do duplo caráter do
espírito apolíneo e do espírito dionisíaco, tal como a dualidade dos sexos gera
a vida no meio de lutas que são perpétuas e de aproximações que são
periódicas. (NIETZSCHE, 1992, p.35)
Como se disse reiteradamente, equilibrar-se entre a profecia como verdade
do sonho” e a desmedida como verdade da embriaguez (DELEUZE, 2001, p.51),
18
como diz Deleuze (2001) em nota de seu livro sobre Nietzsche, é o objetivo central
deste trabalho.
A metodologia geral a ser empreendida neste estudo coloca leitura,
interpretação, seleção e citação de fontes primárias e secundárias em primeiro plano.
Contudo, além de recorrer à pesquisa bibliográfica dos textos teóricos que
possibilitaram, de um ou outro modo, a escritura da situação literária, também será
analisado detidamente o Édipo Rei, de Sófocles.
Nesse sentido, as fontes primárias serão a incomparável obra de Sófocles, a
situação literária criada e um outro drama intitulado Um Édipo (ROSA, 2003), escrito
pelo português Armando Nascimento Rosa, produzida a partir das leituras e
interpretações encontradas nos textos teóricos sobre o mito de Édipo. Assim, a análise
da obra de Sófocles, além de assegurar permanência e transmissão do próprio mito de
Édipo, figura como arquétipo capaz de definir toda uma ortodoxia clássica da própria
tragédia, como se pode observar a partir da leitura da Poética de Aristóteles. Jocasta
Tirana será, então, exemplo produzido especificamente com a finalidade de buscar uma
outra abordagem, figurando como texto a partir do qual tentar-se-á vislumbrar uma
leitura heterodoxa do mito.
Ressalte-se que, neste trabalho, se a proposta de análise de uma produção
ficcional de minha própria lavra, cotejando-a com o “texto sagrado” de Sófocles, puder
sugerir a desmedida, tão condenada pelos gregos, esta aparente pretensão foi
estimulada pela devoção confessa ao mito helênico e a quase tudo que a ele diga
respeito. Assim, Jocasta Tirana, também como releitura, servirá como espécie de
espelho fosco, pano de fundo, do qual se extrairão subsídios teóricos sobre os quais é
preciso centrar a atenção, verificando suas implicações e analisando-os, em processo
19
de alegoria, que constituem os nós que pretendemos desatar para erigirmos esta
outra perspectiva de leitura que se quer cerne desta proposta.
20
2. A COSMOGONIA PARRICIDA
Céu e terra. Urano e Gaia. Neste mito de fundação da tradição grega, este casal
de deuses é quem dará origem a toda uma teogonia. São eles os pais dos seis Titãs,
das seis Titânidas, dos três Ciclopes e dos três gigantes Hecatonquiros. Mas é o filho
mais jovem, Cronos, o único que aceita atender ao pedido da mãe. Cansada de
procriar, Gaia pede a todos eles que a protejam da voracidade sexual do pai, Urano. O
titã Cronos, pertencente à primeira geração divina, é, como se disse, o único que a
ajuda. É ele quem corta os testículos do pai e os atira ao mar, destronando-o em
seguida.
Não temos ainda aqui o parricídio, mas algo que dele se aproxima: a castração.
Aproxima-se porque a castração é o fato que, de uma ou outra maneira, conduzirá ao
próprio parricídio, como veremos adiante. Em conseqüência de rebelar-se e castrar o
próprio pai, Cronos detém para si o poder. Deus soberano e senhor do mundo, ele casa
com sua irmã, Rea. Insaciável também, gera vários filhos, mas, temendo que aquilo que
ocorreu a seu pai aconteça também com ele, devora cada um de seus filhos logo após
o nascimento.
O único com o qual isso não acontece é Zeus, uma vez que Rea engana o
marido e, depois de colocar uma pedra no manto que cobria seu último filho, entrega-a
ao esposo, que a engole sem se dar pelo embuste. Zeus, então, respira livre e, logo,
em sua idade adulta, é ele quem irá rebelar-se contra o pai. Primeiro, dando-lhe uma
bebida que facom que este vomite os filhos; depois, com a ajuda de seus irmãos e
21
dos gigantes Hecatonquiros por ele libertados, guerreando contra o pai, vencendo-o e
assumindo o poder.
Contra Zeus também, entretanto, paira também a sombra do parricídio. É o que
anunciou Gaia, ao profetizar que ele, que havia encarcerado os Titãs no inferno, seria
destronado por um seu descendente. É por isso que, seguindo o exemplo que vem
mais uma vez do pai, Zeus engole sua esposa Métis, que, na profecia de Gaia, seria
ela quem daria à luz uma deusa cujo filho o destronaria.
Segundo André Virel, assim como citado no Dicionário de mbolos
(CHEVALIER; GHEERBRANT,
1998, p. 922), podemos dividir a mitologia grega em três
distintas fases da evolução criadora. A primeira é a chamada cosmogênese, em que
está Urano, efervescência caótica e diferenciada; em seguida, a esquizogênese, na
qual temos a presença decisiva de Cronos; finalmente, vem a autogênese, com Zeus e
seu reino. A cosmogênese representa caos e inércia; a esquizogênese, corte e divisão,
com o fim das secreções indefinidas do pai; a terceira fase tem a marca de um novo
começo ordenado, organizado, controlado.
Urano é o símbolo do início de toda e qualquer ação, com seu revezamento de
exaltação e repressão, impulso e queda, vida e morte, expressão do ciclo dos
desenvolvimentos. É o próprio Céu e representa a sexualidade devastadora, sem limite,
que destrói. As genealogias se misturam: para a teogonia órfica, ele é irmão de Gaia;
para outras, Gaia, que simboliza a terra, é também sua mãe e esposa. Como se
disse, ela, cansada de tanto conceber, pede a seus filhos que a protejam de Urano e de
sua insaciabilidade sexual. Segundo conta a tradição mitológica mais antiga, depois
que Cronos castra o pai e joga seus testículos ao mar, da espuma sangrenta das águas
do oceano nasce Afrodite. Com a mutilação do membro gerador de Urano, desaparece
22
do mundo a fecundidade estéril e desordenada e surge, com a deusa que comumente é
identificada ao amor e à fertilidade, a ordem, a procriação comedida e a continuidade
das espécies.
Interessante, no caso de Cronos, é perceber que, com o nome alterado para
Khronos, esta divindade costuma também ser personificada como o tempo. E, nesse
sentido, uma e outra personificação também se aproximam enquanto símbolos de uma
fome devoradora, de desejo insaciável, que mata as fontes de vida. Se o primeiro é
incapaz de se adaptar à evolução da vida e da sociedade, o outro não permite que essa
evolução aconteça alheia à sua vontade. Ambos são senhores e donos de suas
criaturas e não lhes permitem que a vida aconteça independente de suas ordens e
determinações. Não concebem sucessão e sucessores. Cronos mata seus filhos para
não ter descendentes, o outro consome os humanos com sua foice.
Cronos corta os testículos do pai: derrota-o. Urano perde o poder de gerar e de
se perpetuar. Mas Cronos também teme que seus filhos façam com ele o mesmo que
fizera a seu pai e, por isso, engole-os um a um. Talvez receie que, assumindo a
paternidade de sua prole, perca a divindade, transformando-se em humano e, em
conseqüência, tornando-se presa de Khronos. Por isso, nega sua geração.
No que se refere a este episódio da castração, valeria também recordar que
Cibele, a deusa-mãe da Frígia, Ásia Menor, foi a primeira a quem foi dedicado tal ritual.
Confundida na Grécia com Rea, esposa de Cronos, Cibele, considerada mãe de todos
os deuses, não queria ceder aos desejos de seu filho e amante Átis, casando-se com
ele. Num acesso de loucura, Átis se castra antes de suicidar-se. Assim, o que se
poderia inferir é que a castração também deriva em morte. Morte de um tipo de poder
para a construção de outro.
23
Castrar Urano parece ser a única alternativa para destituir um deus, um imortal,
de seu poder, uma vez que cometer o parricídio é impossível. Nesse sentido, castração
e morte se equivalem quando o que buscamos é derrubar poderes para erigir outros.
Fosse humano, como Édipo, e tudo poderia ser distinto. Ou seja: o que aqui se
pretende afirmar é que o parricídio está para os humanos Édipo e Laio assim como a
castração está para os deuses Cronos e Urano. O que interessa, nos dois casos, é que
o poder seja transferido, que ele mude, mesmo que temporariamente, de mãos.
Zeus, no entanto, não castra, pelo menos no sentido concreto. Para ter o poder
para si, ele tem antes que buscar aliados. Outra vez, o alvo é o mesmo: o pai e tudo
aquilo que este simboliza. E é para derrotar tal pai que ele faz com que este vomite
seus filhos. A luta, então, pode começar. E será vencida pelo filho que irá, em seguida,
dividir com seus irmãos os poderes. O filho que, mesmo sendo um deus, busca nos
humanos uma de suas prerrogativas: a negociação.
O que aqui temos, como foi mencionado através de André Virel (CHEVALIER;
GHEERBRANT,
1998), é a autogênese caracterizada pela ordem. Os filhos vitoriosos
repartem entre si o universo. A Hades, cabe o inferno; a Poseidon, os mares; Zeus fica
com o u e a proeminência sobre os demais deuses e sobre o universo. Para Cronos,
o pai que não sabia dividir e que representava a ameaça da indefinição, a castração
está no rcere, que é guardado por seus próprios filhos, os gigantes Hecatonquiros.
Um deus aprisionado, sem poder. A castração, portanto, não se realiza no sentido
concreto, mas no simbólico.
24
2.1. HOMENS, DEUSES E PODER
Se para os deuses os fatos possuem tal dimensão, para os homens humanos as
definições não são tão diferentes. Buscando dar a seu Complexo de Édipo uma
significação universal, Freud publica, entre 1912 e 1913, seu livro Totem e Tabu
(FREUD, 1987a). Segundo o Dicionário de Psicanálise no prefácio de 1913, ele
apresenta Totem e Tabu como uma aplicação da psicanálise a ‘problemas o
esclarecidos da psicologia dos povos’”. (ROUDINESCO; PLON, 1998, p.757).
Vale crer que a história narrada pelo livro capaz de misturar componentes
literários e antropológicos em seu interior, na tentativa de explicar a um tempo temas
como a origem da humanidade, a questão do monoteísmo e a própria angústia gerada
pelo poder –, possui aspectos que a ligam de maneira interessante ao que se disse a
agora sobre as disputas entre os deuses gregos. Freud conta que, num tempo primitivo,
os homens viviam em pequenas hordas. Tais hordas estavam, cada qual à sua vez,
submetidas ao poder arbitrário de um macho. Os demais lhe deviam obediência; as
fêmeas, todas e cada uma delas, lhe pertenciam.
Um dia, os filhos da tribo se rebelaram contra esse pai déspota e tirano,
interrompendo o reino da horda selvagem. Em uma ação de violência coletiva, mataram
o pai e comeram seu cadáver. Depois do assassinato, no entanto, arrependidos,
repudiaram o parricídio para, em seguida, criar uma nova ordem social. Esta nova
norma instaurava, ao mesmo tempo, a exogamia e o totemismo. Com este, proibiam o
assassinato do substituto do pai, ou seja, do próprio totem; com aquela, renunciavam à
posse das mulheres do clã do totem.
25
No prefácio que faz a seu Dicionário da Mitologia grega, Ruth Guimarães (2004)
explica didaticamente o que ela mesma chama “idade do mito na civilização”. Em
alguns pontos se aproximando daquilo que diz Virel, a autora afirma que os mitos mais
antigos, cosmogônicos, tratam de fenômenos naturais, como a própria morte e a origem
do mundo. Não é sem mais que divindades como Urano e Gaia, que personificam
respectivamente céu e terra, fazem parte de tal grupo.
Numa segunda fase, Ruth Guimarães aponta para o mito que conta a história
dos deuses e que é fruto de uma religião organizada, longe de suas origens. É aqui
que encontramos Cronos e seus embates com outros deuses. O grupo final é o que se
refere aos heróis civilizadores. Os deuses seguem a seu lado, não importa se contra ou
a seu favor, mas o que é mais determinante é a ação humana na transformação do
mundo. A biografia de Édipo é, decididamente, um mito pertencente a esta fase.
Ao narrar uma história como a de Totem e Tabu, Freud compara seu selvagem à
criança. E o faz “para provar a adequação entre a neurose infantil e a condição humana
de uma maneira geral, assim erigindo o Complexo de Édipo num modelo universal
(ROUDINESCO;
PLON,
1998,
p.
759). A criança, portanto, poderia ser tomada como o
filho. O filho que mata o pai, que guerreia contra ele, que assume seu lugar. Deuses ou
humanos, estamos também falando de Urano, Cronos, Zeus, Laio, Édipo: castrados e
castradores, mortos e assassinos, poderosos e cativos.
que o que se quer neste momento é dar um caráter equivalente entre castrar
e matar, seria interessante ver o que Lacan elabora no que se refere à castração, em
releitura que faz das idéias de Freud sobre o tema. Para Lacan, a castração seria uma
representação simbólica da ameaça do desaparecimento. Ou seja: a castração não se
limita ao objeto real nis, mas se refere ao objeto imaginário falo. Se com Lacan
26
estamos falando do imaginário, poderíamos, por conseguinte, e tendo este mesmo falo
como representação simbólica, estar falando do poder que este mesmo falo significa. É
que, para Lacan, o simbólico se transforma em lei. Segundo ele, é no Nome do Pai que
acontece o reconhecimento para a função simbólica que identifica sua pessoa à figura
da lei.
Ainda acompanhando Lacan, podemos ver que, para ele, a interdição do pai
equivale à castração, numa mesma etapa do desenvolvimento infantil. Assim, o pai que
proíbe, que detém para si o poder, que castra, também deve ser morto, castrado. Nesse
sentido, castrar o falo quer dizer castrar o poder. O que querem Cronos, Zeus e os
selvagens da horda primitiva de Totem e Tabu é, em última instância, tomar para si o
poder do pai, a fim de constituir uma nova ordem. E, para isso, é necessário matar,
castrar, arrancar o comando de quem o tem. O princípio parece ser o mesmo: castrar
imaginando não ser castrado; encarcerar para não se tornar cativo; matar para não ser
morto.
No entanto, tais ações preventivas entre deuses e homens resultam inócuas: o
Urano que procria insaciavelmente em breve será castrado; o Cronos que devora os
filhos logo será por eles enclausurado; o Laio que manda matar o filho será por ele
assassinado na encruzilhada de três caminhos. Então, a pergunta que talvez caiba ser
feita é aquela que indaga que poderes podem existir que sejam maiores e mais
eficazes que o dos próprios deuses e o dos homens poderosos. Quem sabe os da
Moira, tecendo seus fios?
O mito de Édipo parece ser, portanto, o momento em que a tradição parricida e
castradora da mitologia grega chega ao humano. Antes, tal noção estava circunscrita
aos deuses, aos imortais. Eram estes que lutavam pelo poder. Com Édipo e tudo aquilo
27
que a ele está circunscrito, ainda que os deuses guardem no Olimpo seus lugares
apropriados, o trágico passa a comandar a vida dos homens. No entanto, tais sujeitos
são mortais, inexoravelmente mortais, como lembra Nicole Loraux quando afirma que,
como diz Aristóteles (1993) em sua Poética, o homem é, na tragédia grega, “criatura de
um dia” e, portanto, “efêmera”.
E esse ser, uma criatura de apenas um dia, deve ser encarado por aquilo que a
estrutura do gênero define para a tragédia, e não porque a vida desse mesmo sujeito
possa ser resumida a esse único dia. Segundo Loraux, na cena trágica, o homem se
enuncia a partir de três termos decisivos:
Brotós, ou o homem enquanto mortal (diz-se tamm, a partir de uma outra
raiz que significa morrer”, thnētós); ánthrōpos, o homem em sua humanidade
de ser social; anĕr, o homem viril. (LORAUX apud NOVAES, 2000, p.20)
O Édipo trágico reúne em seu mito esses três tipos de homem: mortal em suas
angústias; social naquilo que deve negociar para que sua cidade prospere; viril, quando
mata, quando decifra, quando, casando-se com a própria mãe, tem com ela quatro
filhos. Reunindo tais condições, temos um homem cuja dor o levará a cegar-se, um
contumaz herói grego, ainda que atípico, como pretendo explicar mais à frente. Mas um
herói, uma vez que mesmo sua cegueira é produto do conhecimento.
Entretanto, aparentemente de maneira contraditória, o Édipo homem é aquele
que reúne algumas das prerrogativas dos deuses: luta, decifra, mata, procria
incestuosamente. Ou seja: como Cronos e como Zeus, ele tomou o poder de seu pai;
como Átis e como o próprio Urano, dormiu com sua mãe; ainda como Átis ele,
atormentado, se mutilou; como os homens e como os deuses, não pode evitar o
28
destino. À imagem e semelhança. É com esta idéia que André Virel (CHEVALIER,
1998) faz coro, quando compara a história dos deuses à história dos homens: “A
história mitológica dos deuses esclarece (então) a história dos homens”. (VIREL apud
CHEVALIER, 1998, p.922)
Não é desta maneira que também reza a tradição judaico-cristã? Temos aqui,
portanto, um homem grego, um herói ocidental, também bastante semelhante aos
deuses que cultua. Criadores e criaturas que parecem se aproximar em suas angústias
terríveis, quase insuportáveis, alucinantes.
2.2. ÉDIPO E AS MARCAS DO DESTINO
O mito de Édipo é marcado por essa angústia delirante. Uma expiação que
começa ainda antes de seu nascimento, quando Laio, rei de Tebas, ouve de um oráculo
a maldição que lhe está destinada: a de que ele será assassinado por seu filho que, em
seguida, o sucederá no trono, depois de se casar com a própria mãe. Audemaro
Taranto Goulart (1997), em texto esclarecedor sobre o tema, conta a trama que se
segue:
Laio tentou, de todas as formas, fugir do destino que os deuses lhe
reservaram. Evitou, o quanto pôde, o contado sexual com Jocasta, sua mulher,
mas uma noite, embriagado, acaba gerando o filho indesejado. Assim, nasce
Édipo. Imediatamente após, o recém-nascido é entregue a um escravo, com a
recomendação de que fosse exposto no alto do monte Citerão, onde morreria e
seria consumido pelos abutres. Entretanto, uma caravana de Corinto passa
pelo lugar, toma a criança e a leva para aquela cidade, onde acaba indo parar
nas mãos de Pólibo e de Mérope (nome de Peribéia, na tragédia de Sófocles),
29
rei e rainha de Corinto. Criado como filho pelos governantes, Édipo, adulto,
certa vez, ouve num banquete, de um conviva embriagado, que ele era um
plastós, ou seja, um filho postiço. Intrigado, Édipo consulta a Pítia, sacerdotisa
de Apolo no templo de Delfos, dela recebendo a terrível informação de que ele
estava condenado a matar o pai e a casar-se com a mãe. (GOULART, 1997)
Nesse sentido, a profecia que Laio escuta é a mesma que Cronos e Zeus
escutaram: eles perderão o poder que m a partir de uma ofensiva de suas
descendências. A alternativa para que isso não aconteça é, para deuses e homens,
usar das prerrogativas que o próprio poder lhes confere. Cronos engole os filhos; Zeus
engole a mulher, Métis; Laio manda matar. Deuses e homens utilizando-se dos mesmos
artifícios na tentativa de enganar o destino e manter a posse daquilo que julgam lhes
pertencer.
Mas o que parece é mesmo que a Moira, personificação do destino, não pode
ser iludida. Édipo, a criança cujos tornozelos foram atravessados por uma argola de
ferro a mando do próprio pai, e por isso tem os pés inchados
2
, antes que fosse
abandonado, este mesmo Édipo sabe agora de seu próprio destino e, como Laio,
Cronos e Zeus, também tentará esquivar-se do que lhe foi reservado. É por isso que
ele, para não matar Pólibo e casar-se com Mérope, de quem julga ser filho, foge em
direção a Tebas.
No caminho, numa encruzilhada do estreito e efêmero caminho que sói ser
aquele de todos os brotós, Édipo encontra Laio, que vem acompanhado de cinco
homens. Por uma disputa acerca de quem teria a precedência em passar pela tal
estradinha, uns e outro acabam se altercando e o resultado da disputa é a morte de
Laio e de três de seus seguidores.
2
Oídipous: pés inchados.
30
Édipo, então, continua uma caminhada que vai dar à entrada de Tebas, onde
uma esfinge, monstro com corpo, garras e cauda de leão, cabeça de mulher, asas de
águia e unhas de harpia, propõe enigmas a quem encontra e, caso o passante não
decifre o mistério, o devora. Ao nosso angustiado, ela propõe a seguinte charada: “Que
animal, possuindo voz, pela manhã anda em quatro pés, ao meio-dia, com dois e, à
tarde, com três?” Talvez não seja por acaso que a pergunta feita leva ao encontro, mais
uma vez, do brotós, do ser que tragicamente é definido como efêmero, como afirma
Nicole Loraux. Édipo acerta a resposta: é o homem. Assim, tentando escapar, o fugitivo
se encontra novamente com seu destino à entrada da cidade de Tebas. Derrotada, a
esfinge se atira do alto de um rochedo e morre. Como recompensa por sua proeza,
Édipo é aclamado em Tebas como herói e recebe sua recompensa: o trono e a mão da
rainha viúva Jocasta. Com ela, nosso herói terá quatro filhos: Polinice, Etéocles,
Antígona e Ismene.
E é aqui que cabe fazer uma pausa para que se possa pensar a estrutura dessa
família que se constitui. Sim: um pai, uma mãe e quatro filhos. Ou uma mãe e seus
cinco filhos. Um pai, sua esposa e seus quatro filhos. Ou um pai, sua mãe e seus quatro
irmãos. Um esposo e sua esposa. Ou um filho e sua mãe. Juntas, todas essas
alternativas constituem, a uma só vez, tudo aquilo que a transgressão do incesto, assim
como colocado em Totem e Tabu, é capaz de nos expor. Uma verdadeira horda. E, a
partir de um raciocínio simples, levado mesmo pelo senso comum, o que se pode
perceber é que tal união durou o tempo suficiente para que quatro filhos fossem
gerados e se tornassem jovens adultos. E para que, depois que o mistério da origem de
Édipo fosse revelado, dois deles se matassem um ao outro e uma delas, Antígona,
servisse de guia para o próprio pai, cego, em sua caminhada andarilha. Assim, o que se
31
pode vislumbrar, apenas vislumbrar, é uma Jocasta que envelhece inexoravelmente ao
lado de seu filho e esposo, parindo como uma deusa e sofrendo como uma mulher.
Deuses e mortais sinalizando condições ambíguas, a partir de enredos femininos nos
quais a fertilidade e a capacidade de gerar são cruéis e servem a propósitos ocultos e
escusos. A geração de vida é poder.
Exatamente isto: Jocasta parteja como uma Gaia ou como uma Métis e sofre
como a mulher que entregou seu primeiro filho, aquele que agora é o pai de seus outros
rebentos, nas mãos de um escravo para que este o matasse e, de tal maneira, o
destino de Laio, seu primeiro esposo, e o seu próprio, pudessem ser ludibriados. Por
isso, ao mandar matar o filho, Jocasta também acaba ordenando o assassinato, sem
saber, do próprio pai, daquele que irá gerar seus outros quatro filhos. O que se quer
levantar aqui é apenas uma hipótese. Uma hipótese que construa a cena se
quisermos, podemos até mesmo imaginá-la! –, de um filho que, inocente, mas
sedutor, sorri para a mãe que logo o entregará ao carrasco. Como Rea, não poderia
embrulhar uma pedra em seu lugar e entregá-la ao algoz? Lacan, quando discute em
um de seus seminários o Complexo de Édipo freudiano, nos diz:
Deixamos a criança na posição de engodo em que ela se insinua junto à mãe.
Este não é, como eu lhes disse, um simples logro em que ela estaria
completamente implicada, no sentido etológico. No jogo da exibição sexual,
podemos nós que estamos de fora perceber elementos imaginários,
aparências que cativam o parceiro. Não sabemos até que ponto os sujeitos
utilizam isso como um engodo, ainda que saibamos que poderíamos fazê-lo
ocasionalmente, por exemplo, apresentando ao desejo do simples adversário
um simples brasão. O engodo de que se trata aqui é bastante manifesto nas
ações e mesmo nas atividades que observamos no menino, e, por exemplo,
em suas atividades sedutoras com relação à mãe, que existe como um
terceiro. (LACAN; MILLER, 1995, p.205)
32
O engodo aqui talvez esteja sendo arquitetado pela Moira. Édipo, como se
sabe, não será morto e, quando, com apenas o elucidar de uma adivinha, salvar a
cidade da peste que a consome, ele ganhará seu trono, uma esposa e terá de volta sua
mãe, para que, com tempo, possa seduzi-la nas artes amorosas e com ela engendrar
quatro outros filhos. Ele matou seu verdadeiro pai, mas ainda não colocou um totem
em seu lugar. O engodo, portanto, ainda não foi desfeito, e é preciso aperfeiçoá-lo com
toda uma vida de poderes e tiranias. Édipo, afinal, tornou-se o rei de Tebas. Agora, ele
é o Oidípus Týrannos, como anuncia Sófocles em sua tragédia.
No entanto, a peste irá visitar de novo a cidade. E será também um oráculo, o de
Delfos, consagrado a Apolo, deus da claridade e da perfeição, que anunciará que, para
que o flagelo desapareça, é preciso conhecer. Sim, é necessário conhecer,
descobrindo, finalmente, quem foi o assassino de Laio. Édipo manda chamar Tirésias,
um adivinho. Um áuspice cego! Tão cego quanto o próprio Édipo um dia será. Tirésias,
um mortal que pode ver além e aquém das aparências, sabe de tudo e tenta, ao invés
de demonstrar, ocultar a verdade, tergiversando. Édipo chega mesmo a desconfiar de
Creonte, irmão de Jocasta e aquele que ocupava o trono de Tebas antes de Édipo e
após a morte de Laio. Nesse sentido, é oportuno observar, mais uma vez, a paráfrase
que faz Audemaro Taranto Goulart (1997) a propósito do tema:
Édipo inicia, então, a busca do assassino de Laio e, nessa caçada de si
mesmo, quanto mais age mais se aproxima da evidência de que ele era o
responsável pela morte do rei, o que, aliás, já lhe havia sido dito por um
adivinho, o cego Tirésias. Édipo negava-se a aceitar a palavra do adivinho,
justificando-se com uma trama que ele e Creonte lhe armavam para tomar-lhe
o poder. (GOULART, 1997, p.13)
33
Às desconfianças de Édipo, soma-se a certeza de Jocasta de que é
aconselhável o dar ouvidos a mortais que julgam possuir dons divinatórios. É
precisamente nesse momento que se intensifica a peripécia no Édipo Rei, de Sófocles.
Para justificar esta sua crença, a rainha conta a seu rei a história que ocorrera com ela,
Laio e o filho que julga morto: a criança que assassinaria o pai teve os tornozelos
amarrados, foi entregue a estranhos e lançada em precipícios de montanha
inacessível” (SÓFOCLES, 2002, p.54). Um precipício, pode-se mesmo pensar, tão
inacessível como a verdade que se escondeu à espera da Moira que viesse lhe cortar o
fio. As palavras a seguir, que pretendem afirmar a certeza de que os oráculos também
se enganam, são ditas pela própria Jocasta, em tradução de Mário da Gama Kury da
incomparável obra de Sófocles.
Naquele tempo Apolo não realizou
as predições: o único filho de Laio
não se tornou o matador do próprio pai;
não se concretizaram as apreensões do rei
que tanto receava terminar seus dias
golpeado pelo ser que lhe devia a vida.
Falharam-lhe os oráculos; o próprio deus
Evidencia seus desígnios quando quer,
Sem recorrer a intérpretes, somente ele. (SÓFOCLES, 2002, p.54-55)
A partir deste momento, as luzes lançadas por Apolo vêm decisivamente para
esclarecer a trama. Tirésias, o cego, foi o único a enxergar a verdade e, agora, com
Édipo e Jocasta tomando a consciência inaudita, é preciso encarar o clarão de Apolo.
E ele vem através de dois escravos: o primeiro, aquele que recebeu de Jocasta a
criança a ser morta; o outro, o mesmo pastor que entregou a criança que não foi morta
a pais de Corinto, que a criaram como um príncipe.
34
Nem mesmo a notícia da morte de Pólibo, o homem que, de fato, criou a criança
que devia ser morta, é capaz de aplacar a verdade que Édipo deve agora enxergar. De
nada valeram as tentativas de uma e outra parte para que o destino prefigurado pelos
oráculos não se concretizasse. Ou seja: o filho que devia ser morto não morreu e,
assim, o totem foi destruído e o tabu estilhaçado à sombra de outros quatro filhos e
uma vida. Jocasta agora pende na forca que para ela estava reservada, suspensa
como, conta uma versão do mito, esteve seu primeiro filho, atado pelos pés ao galho de
uma árvore. Édipo será cegado pela verdade e errará pelo mundo grego, este nosso
mundo ocidental, de deuses cada vez mais humanos e de homens que cada vez se
julgam mais deuses. Um Édipo cego, mas que, depois de vislumbrar todas as trágicas
angústias de um ordinário brotós, será capaz de enxergar coisas e fazer com que
outros enxerguem através dele, ao longo do tempo. Assim, o mito: esvaziado para ser
preenchido. Preenchido, para que possamos outra vez despejá-lo. Linguagem.
2.3. CÓDIGOS PARA UM MITO
Quando dizemos que mito é linguagem, o que estamos fazendo é mesmo nos
reportar à definição de Claude Lévi-Strauss (1973). O antropólogo utiliza-se dos mitos
como base de seus estudos que conduzem ao estruturalismo.
Mito é linguagem; mas uma linguagem que tem lugar em um nível muito
elevado, e onde o sentido chega, se é lícito dizer, a decolar do fundamento
lingüístico sobre o qual começou rolando. (LEVI-STRAUSS, 1973, p.242)
35
Neste trabalho, quando concordamos com a definição de Lévi-Strauss, e
tomando como objeto de estudo central o mito de Édipo, o que queremos propor é uma
interpretação distinta para tal mito. Se mito é linguagem, a estrutura a partir da qual
estamos acostumados a ler a história de Édipo possui códigos bastante definidos. Um
desses códigos, talvez o mais importante deles, está em fazer-se a leitura de Édipo a
partir de uma centralização na figura masculina. O que se quer dizer é que fomos
acostumados a buscar neste mito específico uma prerrogativa que se insere na ordem
do masculino. Lemos sempre o mito de Édipo, e nunca o mito de Édipo e Jocasta, ou
apenas de Jocasta, muito embora o trágico esteja inserido na história desta mulher em
medidas semelhantes às em que está inserido na história daquele homem.
Quando Freud se propõe a criar a psicanálise, cometendo a reboque uma
espécie de parricídio ao desvinculá-la da psiquiatria, ele o faz também por meio de uma
leitura centrada nessa mesma ordem do masculino. O saber da psicanálise derivou de
algum lugar teórico/simbólico que se contestou depois. Aqui, a primeira criança a ser
estudada é o menino. Também em Totem e Tabu tal aspecto fica claro em muitos
sentidos. Primeiro, na identificação que Freud faz do totem com o pai. Depois, ao dizer
que a luta pelo poder só ocorre na esfera do masculino. Ou seja: são os filhos, homens,
aqueles que matam o pai para tomar-lhe o poder. As mulheres são apenas divididas
entre eles, da mesma maneira que Zeus dividiu o universo com seus irmãos. A partilha
se dá, portanto, entre aqueles que compartem o poder. Valeria até mesmo lembrar,
portanto, que a situação edípica da menina não possui a mesma força de
convencimento que a do menino.
36
Nesse tipo de leitura que, quer-se crer, está pautada por uma ortodoxia da
linguagem, o mito é sempre visto por um viés patriarcal. Cabe sempre ao homem o se
rebelar e, à mulher, de uma ou outra maneira, aceitar. O primeiro a ser enxergado é o
homem. Os complexos predominantes nascem dele e por meio dele. Os poderes
podem ser alcançados por ele. À mulher, diz também esta linguagem, cabe um papel
coadjuvante, de aceitação daquilo que lhe é imposto. Talvez por isso caiba sempre ao
homem, ao anĕr (um dos termos empregados na tragédia grega para significar o
humano e que nunca é empregado para identificar uma mulher
3
), a virilidade de se
rebelar contra o destino, contra a Moira. É o que fazem Cronos, Zeus, Laio e Édipo ao
não aceitarem aquilo que lhes foi reservado.
Assim, essa linguagem centrada no masculino nos insere sempre em sua própria
ordem, fazendo com que qualquer outro tipo de leitura possa parecer incongruente com
uma realidade que estamos acostumados a enxergar a partir da luz do dia e dos feitos
dos homens viris. Mais uma vez o poder se manifesta. Do mesmo modo que nos
acostumamos, por exemplo, a enxergar os acontecimentos a partir de uma
historiografia dos vencedores, e quase nunca dos vencidos, aqui também o real que
avistamos ganha sempre a luz e os códigos de quem detém o poder. E talvez seja
mesmo desnecessário explicar que, nesse nosso mundo ocidental, helênico e latino, a
tradição informa que a canoa da realidade é feita, também quase sempre, com os paus
dos homens, ainda que imaginários. Trata-se da casa dos homens.
Tal linguagem que procuramos demonstrar existir tem suas origens no sistema
político-jurídico do patriarcado que se instaurou sobretudo nas sociedades ocidentais.
3
A esse propósito ver texto de Nicole Loraux publicado em: NOVAES, Adauto (org.) Ética. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
37
Em sua definição mais pura, este sistema coloca os direitos sobre bens e pessoas
concentrados nas mãos do homem, que detém também a posição de pai fundador. A
respeito desse sistema, Freud faz uma reflexão estrutural que conduz ao complexo de
Édipo. Nesse sentido, se é o pai aquele que detém o poder, é também o pai que deve
ser enfrentado, a fim de que seu poder seja destituído e, conseqüentemente,
transferido. Parece que o complexo de Édipo freudiano está estabelecido sobre este
princípio. Assim, vejamos o que diz o próprio Freud quando, em seu Totem e Tabu
(FREUD, 1987a), lembra passagens significativas de seu Análise de uma Fobia num
Menino de Cinco Anos:
Mas qualquer leitor atento da história do pequeno Hans encontrará provas
abundantes de que ele também admirava o pai por possuir um pênis grande e
temia-o por ameaçar o seu. O mesmo papel é desempenhado pelo pai tanto no
complexo de Édipo quanto no complexo de castração, ou seja, o papel de um
inimigo terrível dos interesses sexuais da infância. O castigo com que ele
ameaça é a castração, ou o seu substituto, a cegueira. (FREUD, 1987a, p.157)
O castigo que é ameaça é também aquele que seimposto quando os irmãos
se rebelarem. Assim com Urano castrado, com Cronos aprisionado, com Laio morto e
com o próprio Édipo que se cega. O objetivo é sempre um poder que está em mãos
masculinas e deve ir para outras mãos masculinas. Mais uma vez em Totem e Tabu,
Freud evoca a refeição totêmica para explicar a organização social, das restrições
morais e da religião(FREUD, 1987a, p.170). Depois de se unirem e assassinarem o
pai, eles o devoram. Na verdade, este pai primevo que foi devorado foi também modelo
para cada um de seus filhos. E, segundo Freud, devorar tal pai é também se identificar
com ele, na medida em que cada um dos irmãos, depois de fazê-lo, adquire uma parte
38
da força do pai devorado. O motivo da refeição totêmica é, mais uma vez, a conquista
de poder:
Odiavam o pai, que representava um obstáculo o formidável a seu anseio de
poder e aos desejos sexuais; mas amavam-no e admiravam-no também. Após
terem se livrado dele, satisfeito o ódio e postos em prática os desejos de se
identificarem com ele, a refeição que todo esse tempo tinha sido recalcada
estava fadada a fazer-se sentir e assim o fez sob a forma do remorso. Um
sentimento de culpa surgiu, o qual, nesse caso, coincidia com o remorso
sentido por todo o grupo. O pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo
pois os acontecimentos tomaram o curso que com tanta freqüência os vemos
tomar nos assuntos humanos ainda hoje. O que até então fora interdito por sua
existência real foi doravante proibido pelos próprios filhos (...). Anularam o
próprio ato proibindo a morte do totem, o substituto do pai; e renunciaram a
seus frutos abrindo mão da reivindicação às mulheres que agora tinham sido
libertadas. (FREUD, 1987a, p.171-172)
No entanto, no caso de Édipo, o castigo é diferente ao que é imposto a Urano e
Cronos. A cegueira de Édipo é voluntária, fruto daquilo que o próprio Freud define como
“sentimento de culpa filial”. O mesmo sentimento de culpa que fez com que os irmãos
que se rebelaram ante a horda patriarcal erigissem para o pai um totem simbólico e
presumidamente indestrutível.
Este totem erigido é também a base do complexo de Édipo freudiano na medida
em que reúne em sua essência os dois tabus que lhe são referentes: não tirar a vida do
animal totêmico e manter a exogamia como referência natural e permanente. Também
é a edificação deste totem, quero acreditar, aquilo que solidifica a linguagem do
masculino. Ou seja: a refeição totêmica, que acontece para que a horda patriarcal seja
destruída, é também aquilo que garante sua permanência. E esta linguagem do
masculino se reinstaura sem nunca ter perdido seus poderes reais: quem continua
definindo normas e padrões, contando a história, castrando, matando e cegando são os
poderosos. E os poderosos o homens: o mesmo Urano que procria desvairadamente
39
e depois se mutilado, o mesmo Cronos que engole seus filhos e depois será
encarcerado, o mesmo Édipo que mataseu pai e logo ficará cego por suas próprias
mãos.
Mas, na mesma medida em que falar de uma linguagem do masculino aponta
para o poder dos homens, também aponta para a passividade masculina, o que talvez
nos mostre uma condição análoga à da mulher. Em outro de seus textos, Dostoiévski e
o parricídio, Freud (1996) nos incita a perceber como esta relação entre o poder e
aquilo que dele deriva possui, nos bastidores dessa trama, a interferência do
inesperado. E este inesperado, desvendado na tragédia através daquilo que Aristóteles
chama peripécia, vem para nos mostrar o ideário inexorável da Moira, do destino.
Freud, no texto anteriormente citado e a partir de sua teoria psicanalítica, mostra como
a culpa do parricídio e a idéia da castração se misturam de modo complexo e a partir de
relações que são inerentes ao próprio humano:
Uma grande necessidade de punição se desenvolve no ego, que em parte se
oferece como vítima ao destino e em parte encontra satisfação nos maus tratos
que lhe o dados pelo superego (isto é, no sentimento de culpa), pois toda
punição é, em última análise, uma castração e, como tal, realização da antiga
atitude passiva para com o pai. Mesmo o Destino, em última instância, não
passa de uma projeção tardia do pai. (FREUD, 1996, p.190)
Nesse sentido, é possível que exista, nas ações desses homens poderosos,
nesta linguagem que instaura o patriarcado, algo que esteja sempre em evidência e que
diga respeito a deuses e ánthrōpos: o rebelar-se contra aquilo que foi estabelecido. É
que, para conquistar o poder, é necessário insurgir-se contra o poder. Trata-se de mais
um código dessa linguagem patriarcal: o homem não deve aceitar aquilo que lhe é
imposto. Talvez por isso Cronos castra Urano, Zeus combate e aprisiona Cronos, e
40
Édipo, mesmo de modo involuntário, diferente da cegueira que provoca em si mesmo,
mata Laio na encruzilhada de três caminhos. Por trás de cada uma destas rebeldias,
está a tentativa de iludir o destino, de enganar a Moira. E desafiar aquilo que foi
prefigurado também pode ser considerado uma prerrogativa dos homens. Contudo, o
que distingue os atos divinos das ações humanas na busca do poder é aquela mesma
involuntariedade que surge nos resultados desta procura. É ela que torna o Édipo
trágico, distanciando sua história da de seus deuses. Afinal, embora sejam feitos à
imagem e semelhança um do outro, entre os dois uma diferença singular: os deuses
criaram seus homens mortais e efêmeros; os homens fizeram de seus deuses
permanentes e imortais.
Voltando à não aceitação do próprio destino, o que se pode perceber, no mito de
Édipo, assim como nos outros evocados nesta dissertação, é que este impulso
masculino em não aceitar e, assim, ludibriar o fadário, é sempre decisivo. Para tal,
basta recordar o que conta o mito: para não matar o pai e casar-se com a mãe, Édipo
foge de Corinto, não aceitando as prerrogativas do oráculo. Trata-se da linguagem do
masculino sendo constituída na mesma tradição que fez com que Cronos engolisse
seus filhos e que Zeus fizesse o mesmo com sua própria esposa.
No entanto, há, nessa ordem do masculino, um elemento que poderia ser dito
intangível: o próprio feminino. Ou a Gaia que, como Jocasta, é mãe de seu próprio
esposo, também não é a mulher, a terra que espera a chuva de seu filho Urano para
conceber toda a primeira geração de deuses? Como Gaia e Jocasta, também a Moira
e, junto com ela, seu equivalente Aîsa, na voz árcado-cipriota, um dos dialetos usados
por Homero – define-se a partir do gênero feminino (BRANDÃO, 2004a, p.140-141).
41
E a Moira, como se viu, não pode ser enganada. Na mesma medida em que
ela está escrita, também está inscrita na ordem do masculino. De que maneira e a partir
de quais pressupostos esta Moira se insere nesta ordem, assim como que papéis são
conferidos ao feminino dentro dessa perspectiva, é o que se pretende investigar no
próximo capítulo.
42
3. MEDIDA E DESMEDIDA
Trata-se de uma ânfora de cerâmica, datada de 440 a.C. (ver Anexo A). Neste
vaso grego, que se encontra no Museu Municipal de San Gimignano (Siena, Itália),
sobre uma base negra, a pintura coruscante em vermelho mostra um homem apoiado
num bastão. À sua frente, a esfinge parece esperar uma resposta para a pergunta que
foi feita ao sujeito. Se este homem, que mais se assemelha a um velho se escorando
numa vareta em busca de equilíbrio, solucionar a adivinha que lhe foi proposta pelo
monstro que tem diante de si, as recompensas podem ser enormes.
Um desses prêmios se encontra aqui mesmo, neste vaso de 440 a.C. Trata-se
de uma mulher que vem logo atrás da esfinge, no mesmo matiz vermelho que se
destaca sobre a base negra. Se o homem acertar a resposta, esta mulher que vemos
no jarro será sua e, com ela, o poder que advém de ser o rei, o tirano de uma
importante pólis grega. Além disso, ele será querido pelo povo desta cidade, uma vez
que a solução do enigma significa também acabar com a peste que os deuses
mandaram sobre o lugar.
E tirano aqui, como lembra Michel Foucault (2002) em conferência pronunciada
na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e que foram transformadas no
livro A verdade e as formas jurídicas, não deve ser entendido no sentido mais estrito.
De acordo com Foucault, tirano era aquele que depois de ter conhecido várias
aventuras e chegado ao auge do poder estava sempre ameaçado de perdê-lo
(FOUCAULT, 2002, p.44). Assim, pode-se dizer, junto com o filósofo francês, que a
43
irregularidade do destino seria, portanto, uma característica do personagem do tirano,
assim como ele é descrito nos textos gregos do fim do século VI e início do V.
Mas será mesmo que tudo depende apenas de uma resposta certa? Talvez seja
preciso mirar o vaso com maior atenção, tentando enxergar naquilo que se o que
não é para ser visto. Com efeito, se a ânfora for observada com melhor empenho, o que
se poderá notar é que a tinta negra não recebeu, de fato, nenhum outro tipo de
pigmento sobre ela. Na verdade, a cnica adotada neste artesanato fino consiste em
cobrir a superfície da ânfora com um verniz negro, deixando o espaço da figura com o
mesmo tom escarlate da argila.
Então, os arabescos que encimam o jarro, o homem que se sustenta na vareta, o
monstro poderoso que espera a resposta e a mulher que alguma coisa parece esperar
são, é o que agora se pode jurar, o o preenchimento, mas a própria falta do verniz
escuro. É a partir da ausência da tinta negra, pelas lacunas que ela deixou na argila
vermelha, que vislumbramos encontrar as figuras que simbolizam um dos mitos mais
caros da antigüidade grega. Uma lenda cujos espaços, vazios ou não, foram se
preenchendo ao longo de mais de três mil anos, chegando ao culo XXI de nossa
história tão consistente e viva como aparenta estar a ânfora que podemos observar
virtualmente, pela internet, e, de perto, num museu de uma cidade italiana. Assim,
poder-se-ia mesmo afirmar que é pela falta que talvez possamos vislumbrar o dito, o
próprio mito.
As figuras que, por meio da ausência de tinta, encontram-se presentes no jarro
são significantes básicos do mito de Édipo. E se a esfinge, Jocasta e o próprio Édipo
possuem atualmente um vigor semelhante, ou talvez maior, do que no dia mesmo em
44
que o vaso foi manufaturado, isto se deve certamente a uma obra literária: o Oidípous
Týrannos, de Sófocles.
...nas primeiras versões do mito não há, no conteúdo legendário, o menor traço
de autopunição, porque Édipo morre tranqüilamente instalado no trono de
Tebas, sem ao menos ter furado seus olhos. É precisamente Sófocles que,
conforme a necessidade do gênero, ao mito sua versão propriamente
trágica a única que Freud, que o é mitólogo, pôde conhecer, a única que,
conseqüentemente, nós discutiremos aqui. (VERNANT; VIDAL-NAQUET,
2005, p.56-57)
A citação anterior, além de chamar a atenção para o fato de que é a versão que
Sófocles constrói com seu discurso trágico aquela que serve de princípio para Freud
construir a base de sua teoria, nos coloca mais uma vez frente à ânfora do Museu de
San Gimignano. Ao propor para a lenda uma interpretação em que Édipo não chega ao
fim de sua vida como o ánthrōpos trágico de Sófocles, Vernant parece se referir à
passagem da Odisséia em que Homero nos dá seu conhecimento deste mito. Um
conhecimento que, levando-se em consideração a data provável da escritura homérica,
século VIII a.C., conta-nos uma variação da lenda produzida cerca de três séculos
antes que o dramaturgo de Colono escrevesse sua obra, assim como nos lembra Junito
Brandão.
Vi também a mãe de Édipo, a bela Epicasta.
Ela, sem o saber, cometeu um grande crime,
casando-se com o filho, que a desposou após matar e despojar o pai.
Os deuses rapidamente fizeram com que a notícia circulasse entre os homens.
Édipo, todavia, apesar de tantos sofrimentos por funestos desígnios dos
deuses,
continuou a reinar sobre os Cadmeus, na muito amada Tebas. (BRANDÃO,
2000, p.303)
45
Muito embora a versão de Homero, é o que se acredita, não traga nada que não
pudesse ter inspirado a teoria freudiana, ela sem dúvida é menos intensa que a de
Sófocles no sentido de criar um Édipo com a tragicidade que lhe reconhecemos hoje.
Isto vem corroborar o conceito de Lévi-Strauss, segundo o qual mito é linguagem e,
como tal, algo que é permanentemente esvaziado e preenchido.
É por isso que voltamos novamente à ânfora de San Gimignano, para nos
apropriarmos dela no momento em que foi produzida, segundo a técnica das figuras
vermelhas, difundida por Exéquias a partir do século VI a. C. Como se disse, tais
figuras, que em geral mostravam cenas cotidianas ao lado de representações heróicas,
eram então deixadas na cor natural da argila para contrastar com o fundo pintado de
negro.
Estamos, de acordo com as informações do Museu Municipal de San Gimignano,
em 440 a. C., e podemos adquirir uma vasilha cerâmica como essa, com seu par de
asas simétricas que facilita o transporte, para guardar vinho, azeite ou água, além de
conservar cereais. A data em que o vaso vem dar a nossas mãos é anterior em
aproximadamente dez anos àquela em que o Édipo Rei, de Sófocles, foi encenado pela
primeira vez (KURY, 2002, p.7).
Como se sabe, a tragédia grega, enquanto gênero literário, acontece em um
período decisivo da Grécia antiga: o século V a.C. Entre a data da primeira provável
encenação de Os Persas, de Ésquilo (472 a.C.), e a montagem de As Bacantes, de
Eurípides, possivelmente em 405 a.C., a tragédia grega vive seu auge e declínio. Trata-
se, como lembra Vernant, de um gênero reconhecido em um momento histórico
bastante circunscrito, e datado com precisão: Vêmo-la crescer em Atenas, florescer
e degenerar quase no espaço de um século.” (VERNANT, VIDAL-NAQUET, 2005, p.2)
46
Um paralelo imaginário que poderia ser traçado com esse nascimento, apogeu e
morte da tragédia grega seria imaginar-se o mesmo para a arte cinematográfica. Ou
seja, que, tendo sido apresentado ao público pela primeira vez em 1895, pelos irmãos
Lumiére, em Paris, o cinema vivesse nos dias de hoje sua decadência mais completa,
estando fadado ao desaparecimento.
Mas, agora, estamos no século de Péricles. A ânfora que hoje pode ser
apreciada no Museu de San Gimignano é encontrada, então, em mercados de cidades
bem organizadas, as chamadas pólis. Antes de Péricles, sob o comando de Clístenes,
Atenas conheceu o fim da tirania, a partir de uma série de reformas que possibilitaram
que, pouco mais tarde, contássemos com o advento da chamada “democracia
ateniense”. Mais uma vez, vale recorrer a Vernant para lembrar a importância dessa
“Cidade-Estado” e de suas formas jurídicas, filosóficas e organizacionais para que este
gênero literário se desenvolvesse em plenitude.
A matéria da tragédia não é mais então o sonho, posto como uma realidade
humana estranha à história, mas o pensamento social próprio da cidade no
século V, com as tensões, as contradições que surgem nela, quando a
chegada do direito e as instituições da vida política questionam, no plano
religioso e moral, os antigos valores tradicionais: estes mesmos que a lenda
heróica exaltava, donde a tragédia toma seus temas e suas personagens, não
mais para glorificá-los, como o fazia ainda a poesia lírica, mas para discuti-los
publicamente, em nome de um ideal cívico, diante dessa espécie de
assembléia ou de tribunal populares que é um teatro grego. (VERNANT,
VIDAL-NAQUET, 2005, p.55)
É entre 461 e 429 a.C., no período conhecido como a “Idade de Ouro de Atenas”,
que Péricles consolida a prosperidade grega em aspectos como a economia, através de
empreendimentos e do expansionismo proposto pela denominada Liga de Delos, e a
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cultura. Neste último aspecto, Sófocles, ele próprio um estrategista militar de Péricles,
produz uma obra que irá marcar o período de maneira incontestável.
O monumento perene do espírito ático na época da sua maturidade é
constituído pela tragédia de Sófocles e pela escultura de Fídias. Ambos
representam a arte do tempo de Péricles.
(JAEGER, 2003, p.320)
Mas o que talvez seja mais notável na era de Péricles é o fato de que ela se
caracteriza por ser o tempo formador da base de um tópico que, certamente, é a maior
herança deixada pela antigüidade grega no que se refere ao conhecimento. Trata-se da
filosofia, uma matéria que, um século mais tarde, quando Platão anunciar que a medida
de todas as coisas é Deus, tentará não deixar mais lugar para que o homem seja esta
referência.
Antes, no entanto, é a fórmula do sofista Protágoras – segundo a qual, em
oposição direta à filosofia antitrágica platônica, o parâmetro das coisas é o homem a
maneira de enxergar o mundo que irá oferecer a possibilidade para que o próprio
Sófocles veja seu Édipo com um olhar trágico e, sobretudo, humano. É com o
dramaturgo de Colono que este humano encara o trágico de maneira decisiva. O objeto
da tragédia é o homem em si mesmo, que, como afirma Vernant (2005), é coagido a
fazer uma escolha definitiva, a orientar sua ação num universo de valores ambíguos
onde jamais algo é estável e unívoco” (VERNANT, VIDAL-NAQUET, 2005, p.3).
Dos três autores trágicos gregos cuja obra chegou a nosso conhecimento, talvez
seja Sófocles aquele em que a exposição da dor humana assume seu caráter mais
educativo, no sentido de que é o homem o agente a interessar de fato. O que o autor de
Édipo Rei faz é, seguindo uma tendência formadora de seu tempo, dirigir-se ao homem
48
de maneira a expor-lhe a dor. Assim, Sófocles se envolveu decisivamente na vida de
sua época. À organização e às metas expansionistas da pólis, serviu como tesoureiro-
geral de Atenas em 443/2 a. C. Foi também eleito, no mínimo duas vezes, comandante
do exército em expedições militares. Mas foi como tragediógrafo, sabe-se, que alcançou
a fama. Escreveu cerca de 123 peças teatrais e obteve nada menos que 24 prêmios em
concursos trágicos que eram tradição em seu tempo (KURY, 2002, p.7).
Tais concursos, instituídos pela Cidade-Estado, fazem parte da realidade social
desta Grécia contemporânea não apenas de Sófocles e Péricles, mas de pensadores
como Protágoras, citado anteriormente, e o historiador Heródoto. Como afirma Werner
Jaeger (2003), a arte com que Sófocles cria os seus caracteres é constantemente
inspirada pelo ideal de conduta humana que foi a criação peculiar da cultura e da
sociedade do tempo de ricles(JAEGER, 2003, p.321). O que se tem, portanto, é o
fato de que, neste século V a. C. que marca o apogeu e o declínio da tragédia, tudo
parece caminhar em sintonia: a democracia que se institui; um processo de educação
humana que se instaura através de projeções artístico-culturais; a invenção de um
homem grego que, mais tarde, irá dar origem ao que se pode mesmo chamar “homem
ocidental”.
E é neste contexto que Sófocles insere seu texto trágico, de maneira que o viver
humano, ao não se submeter à vontade dos deuses, escancara a dor que é inerente a
este ser ao mesmo tempo social, heróico e efêmero. Nesse sentido, a sintonia que o
tempo de ricles parece anunciar não é garantida pela serenidade. Antes, traz a
incerteza de um momento em que valores se confrontam e normas são questionadas,
em que este brotós luta entre a culpa e a inocência, a lucidez e a cegueira, o poder e o
fracasso. Contudo, pouco haveria de novo em todas essas contradições se Sófocles
49
não soubesse mostrar, com a ação dramática trepidante que caracteriza suas obras,
que esta dor humana é um sentimento inexorável, do qual não se pode fugir. Como
afirma Jaeger, o que em Sófocles é trágico é a impossibilidade de evitar a dor. É esse
o rosto inevitável do destino, do ponto de vista humano” (JAEGER, 2003, p.329).
3.1. TRAGÉDIA E AMBIGÜIDADE
A inexorabilidade do sentimento da dor trágica que caracteriza a obra de
Sófocles será tratada um pouco mais à frente nesta dissertação, de maneira a tentar
perceber em que sentido esta dor é influenciada e influenciadora daquilo que
pretendemos expor aqui: a medida e a desmedida no mito de Édipo. Antes, contudo,
seria interessante tentar perceber qual é a lógica deste páthos trágico. Para isto,
voltamos à ânfora exposta no museu da cidadezinha italiana a fim de tentar entender
porque somos levados a imaginar, depois de correr os olhos pelo objeto que se mostra
na tela de um computador, que as figuras é que foram pintadas sobre o verniz, e o
algo diferente.
Se o devaneio na comparação não é demasiado, seria interessante lembrar os
princípios básicos do que chamamos linguagem cinematográfica, como foi feito há
pouco ao compararmos o nascimento, apogeu e decadência da tragédia grega a um
fato semelhante que pudesse acontecer com o próprio cinema. Esta arte fundada no
século XIX de nossa era tem no plano, ou no enquadramento, um de seus eixos
principais. Poder-se-ia dizer que a gramática do cinema se move em função do plano. É
50
o enquadramento que dá, para aquilo que é mostrado na tela, um sentido próprio e
preciso.
Utilizando um exemplo bastante simples, o beijo mostrado a partir de um plano
muito aberto, em que um casal aparece apenas como um pontinho numa praia deserta,
quer dizer algo muito diferente do que este mesmo beijo se mostrado bem de perto, em
close. Portanto, entender a linguagem proposta pelo plano cinematográfico quer dizer
usar o enquadramento acertado para aquilo que se quer dizer: se esperamos dar a
idéia de que quem beija é um casal arrebatado pela paixão, utilizaremos o close; mas,
para conotar alguma espécie de solidão vivida pelas mesmas duas pessoas, será
melhor usar o plano mais aberto.
A lógica desta linguagem está no fato de que o enquadramento só contém aquilo
que é para ser visto. Assim também uma pessoa frente a um quadro afixado num
museu. Se perguntamos a ela o que vê quando olha em direção à obra de arte,
certamente descreverá a própria obra que tem diante de si. É extremamente provável
que ela não diga nunca que também uma parede. Isto porque, dentro de tal lógica, a
parede não é para ser vista. (PEREIRA, 1984)
Na ânfora de San Gimignano, a lógica parece ser a mesma. Ao enxergar o vaso
pela primeira vez, somos levados a crer que os desenhos é que foram pintados sobre o
verniz negro. Para perceber que o processo é o inverso, que a não-pintura é que revela
os desenhos, deve-se estar mais atento. Pode-se dizer que há, aí, uma lógica a ser
desconstruída. E, para descobrir o processo, é necessário entender os caminhos de tal
processo.
Isto acontece porque esta lógica joga com o que se poderia chamar
ambigüidade: aquilo que parece que é e aquilo que é de fato. A linguagem trágica
51
também se comporta da mesma maneira. O Édipo que caça é, na verdade, o sujeito
que é caçado. A Jocasta que encontra seu esposo está realmente reencontrando seu
filho. Mas nós, para que a linguagem do gênero obtenha êxito, somos levados a
vislumbrar apenas os arabescos e as figuras de Édipo, da esfinge e de Jocasta na
ânfora que enchemos ou esvaziamos de vinho. Não enxergamos a parede porque a
parede não é para ser vista. Só podemos ver aquilo que o plano nos mostra na tela
cinematográfica.
...a lógica da tragédia consiste em ”jogar nos dois tabuleiros”, em deslizar de
um sentido para outro, tomando, é claro, consciência de sua oposição, mas
sem jamais renunciar a nenhum deles. Lógica ambígua, poder-se-ia dizer. Mas
não se trata mais, como no mito, de uma ambigüidade ingênua que ainda não
se questiona a si mesma. Ao contrário, a tragédia, no momento em que passa
de um plano a outro, demarca nitidamente as distâncias, sublinha as
contradições. (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2005, p.15)
Na tragédia grega, esse jogo segue até o final do drama. então é que se
permitido perceber o verdadeiro rosto dos agentes da trama, depois que os fatos
assumirem seu verdadeiro significado. Antes disso, mesmo que esteja inteira à nossa
frente, a parede não será vista. Assim também o jogo da criação literária: elaborado em
suas minúcias e trágico na invenção de suas possibilidades, uma vez que elas nunca
se esgotam, que não têm nunca fim, que nada é, realmente, impossível.
É por isso que, mesmo que o mito haja revelado que o Édipo esposo é, na
verdade, o Édipo filho, isto será reconhecido no final. A platéia que sabe finge que
de nada sabe, uma vez que ela também é parceira. Daí, então, a necessidade de estar
sempre a olhar com outros e melhores olhos para a ânfora e seu verniz e seus
desenhos. Para também participar do jogo. Para ver se alguma coisa escapou à nossa
52
atenção, mesmo que esta seja uma atenção possibilitada apenas pela época em que o
olhar é colocado.
E o fato de a platéia participar do jogo acontece, acredita-se, não pelo motivo
que quer Freud em uma de suas conferências sobre o conteúdo latente da tragédia
edipiana. Nesta dissertação, o que se quer pensar é que a ação do público vem, antes,
a partir das condições inerentes ao próprio gênero, dos valores estabelecidos pela
tragédia grega, do tecido ambíguo construído por Sófocles que, depois de brincar com
seus contemporâneos, seguiu fazendo o mesmo com os homens futuros Freud, um
deles.
Se os antigos as admiravam, se o público moderno é por algumas delas
perturbado, como pelo Édipo-Rei, é porque a tragédia não está ligada a um
tipo particular de sonho, porque o efeito trágico não reside em uma matéria,
mesmo onírica, mas na maneira de dar forma à matéria, para fazer sentir as
contradições que dilaceram o mundo divino, o universo social e político, o
domínio dos valores, e fazer assim aparecer o homem como um thaûma, um
deinón, uma espécie de monstro incompreensível e desconcertante, ao mesmo
tempo agente e paciente, culpado e inocente, dominando toda a natureza por
seu espírito industrioso e incapaz de governar-se, lúcido e cegado por um
delírio enviado pelos deuses. (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2005, p.57)
Se a questão do gênero é determinante para esconder e revelar aquilo que deve
ser revelado ou escondido, possibilitando leituras múltiplas de uma mesma obra, é
necessário também tentar enxergar aquilo que, por trás dela e dentro de uma
perspectiva ao mesmo tempo autoral e temporal, permitiu uma visão de mundo pautada
por essa ambigüidade construtora da tragédia grega.
Como pouco se disse, Sófocles insere seu texto trágico num contexto de
duplicidades pautado por um viver humano que, embora a considere inexorável, não se
submete à vontade dos deuses e é capaz de escancarar sua própria dor. Ainda se
53
afirmou que aquilo que torna ímpar o tecido de Sófocles, uma escrita fundadora de todo
um gênero literário, é o fato desta dor ser algo também inexorável, determinada mesmo
pelo que hoje poderíamos chamar destino. Assim, o que se quer acreditar é que a
ambigüidade que constrói o texto trágico grego é definida pela noção de medida e
desmedida que está presente de modo decisivo no Édipo Rei, em outras tragédias
gregas e, como não poderia deixar de ser, na maneira helênica de ver o mundo.
3.2. ERRO, HONRA E DESTINO
Para entender melhor tal questão, é preciso buscar sentidos em palavras como
Hamartía e Hýbris. Ao lado destes conceitos, também cumpre tentar compreender os
significados da Moira na Grécia antiga. Através da noção desses termos é que se pode
entrar numa questão que, como lembra Johnny José Mafra (1980), é essencial para
que o trágico seja avaliado enquanto gênero literário e como maneira de enxergar o
próprio mundo.
O elemento possibilitador do trágico, aquilo que torna o homem trágico, é a
separação ontológica, isto é, a oposição homem/finitute-contigência-
imperfeição. (MAFRA, 1980, p.66)
Quando nomeamos a relação homem/finitude, o que estamos fazendo é nomear
também aquilo que é inerente a esta mesma relação: a ambigüidade, a contradição.
Para Albin Lesky (1971), como citado por Mafra (1980), todo trágico se baseia em uma
54
contradição irreconciliável. Tão logo aparece ou se torna possível uma acomodação,
desaparece o trágico(LESKY, 1971, p.25). Nesse sentido, como lembra a seguir o
próprio Lesky ao perceber como estudiosos modernos se debruçaram sobre o tema,
para que a tragédia exista é necessário que não haja solução, mesmo que possamos
enxergar finais conciliadores em determinados textos trágicos do século V a. C.
A absoluta falta de solução para o conflito trágico foi convertida, precisamente
por algumas teorias modernas, em ponto central e em requisito primordial para
a realização da autêntica tragédia. (LESKY, 2001, p.35)
No sentido de perceber porque a contradição trágica é irreconciliável, é que se
torna necessário buscar o entendimento para os conceitos de Hamartía e Hýbris,
fazendo o mesmo a seguir com a Moira. Em seu Dicionário Mítico-Etimológico, Junito
Brandão (2000) aponta o seguinte significado para Hýbris: tudo quanto ultrapassa a
medida, o excesso, o descomedimento, a démesure” (BRANDÃO, 2000, p.558). Ainda
segundo Brandão, em termos religiosos, matéria em que esta palavra é mais
freqüentemente usada, a Hýbris é uma violência, uma insolência, uma ultrapassagem
do métron (na medida em que o homem quer competir com o divino)(BRANDÃO,
2000, p.558). Para Johnny Mafra, a tragédia existe no momento em que a Hýbris ou
desmedida entra em conflito com a justiça ou a medida” (MAFRA, 1980, p.71).
No que se refere à definição de Hamartía, o próprio Mafra lembra o capítulo XIII
da Poética, de Aristóteles. No entender do estagirita, a causa do trágico é a Hamartía,
isto é, a falha, o erro. E não se trata, na maior parte das vezes, do erro indiscriminado e
proposital. Na tragédia grega, o erro tem uma dimensão intelectual, não moral. A falha,
portanto, acontece em função de uma incompetência humana no sentido de distinguir o
55
que é certo daquilo que não é. Um dos exemplos que Aristóteles neste mesmo
capítulo é o do próprio Édipo.
Realmente, quando consideramos o Édipo Rei, somos levados pela trama trágica
de Sófocles a não reconhecer no tirano de Tebas uma culpa moral. Sua Hamartía
parece se dever a uma falha de julgamento, de discernimento a respeito das situações
que vive. Um erro que, se levarmos em consideração o pensamento trágico do século V
a. C., poderia até mesmo contar com um componente atávico, mas que não é devido ao
caráter do herói em si mesmo. Édipo mata Laio porque não sabe que ele é seu pai, e
desposa Jocasta porque não tem conhecimento de que ela é sua mãe. Assim, tudo
ocorre porque a falha está no juízo que o herói faz: julgando matar um qualquer,
assassina o pai que ordenou que matassem o próprio filho – ele mesmo, Édipo;
pensando estar se casando com a rainha de Tebas, desposa realmente a rainha de
Tebas e, junto com ela, a mulher que lhe deu à luz. Isto, pelo menos, é o que reza uma
leitura ortodoxa desse mito.
Contudo, se a culpa moral o está no herói, ela talvez esteja em sua
ascendência. No Laio e na Jocasta que, temendo que o poder escapasse de suas
mãos, ordenaram, deliberadamente, o filicídio. E, antes mesmo, seguindo a tradição
mitológica e caminhando além do que nos diz o texto trágico de Sófocles, a Hamartía
pode ser encontrada também no amor contra naturam de Laio por Crisipo, provocador
da culpa primordial” da casa dos labdácidas, à qual pertence Édipo (BRANDÃO,
2004c). Daí se afirmar que na Hamartía um elemento atávico, que a herança de
um é a bris pretérita de outros, e a culpa que será carregada a partir dela. Aqui,
então, a transgressão é capaz de imputar a uma determinada geração o castigo que
deveria pertencer à outra. Como lembra Hegel (1964), o indivíduo heróico não
56
estabelece qualquer separação entre si e o Todo moral de que faz parte, mas antes se
considera como formando uma unidade substancial com o Todo” (HEGEL, 1964, p.70).
Ainda no que se refere a Sófocles (2002), pode-se encontrar, em cada uma de
suas tragédias, um coro que, ele mesmo ou através do Corifeu, está sempre avisando
sobre o perigo e os danos provocados por Hýbris e Hamartía. No Édipo Rei, isto
acontece quando o rei de Tebas, que apenas começa a desconfiar de sua verdadeira
origem, põe em dúvida, estimulado por Jocasta, os vaticínios do oráculo de Delfos. O
que está sugerido, aqui, é que a desmedida e o erro não se encontram nos atos em si,
mas, e sobretudo, no orgulho humano que faz com que Édipo questione a predição dos
deuses.
Mas o homem que nos atos e palavras
se deixa dominar por vão orgulho
sem recear a obra da justiça
e não cultua propriamente os deuses
está fadado a doloroso fim,
vítima de arrogância criminosa,
que o induziu a desmedidos ganhos,
e sacrilégios, à loucura máxima
de profanar até as coisas santas. (SÓFOCLES, 2002, p.62)
Se Hýbris e Hamartía pendem para o lado da transgressão, do dionisíaco
(naquilo que este vocábulo nos traz de mais consensual), a parte apolínea, luminosa e
equilibrada, joga com outros dois: Areté e Timé. A primeira é definida como a
excelência. A outra, como a honra. De acordo com Junito Brandão (2004), a Areté é
atribuída pelo próprio Zeus. A Timé, conseqüência natural desta última, é a recompensa
que o herói recebe por aquilo de notável que contabiliza ao longo de suas guerras e
discursos. É o próprio Brandão (2004) quem mostra como o devaneio dionisíaco
convive, de maneira ortodoxa, com a harmonia apolínea:
57
A areté, no entanto, é uma outorga de Zeus: é diminuída, quando se cai na
escravatura, ou é severamente castigada, quando o herói comete uma hýbris,
uma violência, um excesso, ultrapassando sua medida, o métron, e desejando
igualar-se aos Deuses. (BRANDÃO, 2004a, p.143)
No entanto, se os conceitos de Hýbris e Hamartía são indispensáveis para o
entendimento de como o trágico se configura a partir do humano, não menos essencial
é compreender o significado de Moira para os gregos antigos. Para isso vale, de início e
mais uma vez, recorrer ao mesmo Junito Brandão (2000) e a seu Dicionário Mítico-
Etimológico:
Moira, em grego Μolρα (Moîra), que provém do verbo µεφεσίJαι (meíresthai),
obter ou ter em partilha, obter por sorte, repartir, donde Moira é a parte, o lote,
o quinhão, aquilo que a cada um coube por sorte, o destino. Associada à
Moira tem-se, como seu sinônimo, nos poemas homéricos, a voz árcado-
cipriota Aîsa, em grego ΑΙσα (Aîsa), da mesma família etimológica do verbo
αloyµνάν (aisymnân), reinar sobre, ter o comando de. O grego homérico tem a
forma οϊτος (oîtos), sorte, destino. Uma aproximação com o osco aeteis, parte,
não é de todo desprezível. De qualquer forma, não se possui ainda uma
etimologia segura para Aîsa
que significa, como Moîra, lote, quinhão, a parte
que toca a cada um. Nota-se, de saída, o gênero feminino de ambos os
vocábulos, o que remete a idéia de fiar, ocupação própria da mulher e das
Moiras ou Queres. De outro lado, Moira e Aîsa aparecem no singular e só uma
vez na Ilíada, XXIV, 49, a primeira surge no plural, o que mais tarde, diga-se
logo, se repetirá muitas vezes. O destino tardiamente foi personificado e,
em conseqüência, Moira e Aîsa não foram antropomorfizadas: pairam
soberanas acima dos deuses e dos homens, sem terem sido elevadas à
categoria de divindades distintas. A Moira, o destino cego, em tese, é fixo,
imutável, não podendo ser alterado nem pelos próprios deuses. Há, no
entanto, os que fazem sérias restrições a esta assertiva, sobretudo em relação
a Zeus. (BRANDÃO, 2000, p.140-141)
Em seu sentido mais direto, portanto, poder-se-ia dizer que a Moira,
conotativamente, significa o destino. Trata-se de uma entidade que, identificando-se
com o próprio Zeus, guarda em si a expressão da essência divina, na medida em que
também é reconhecida a partir da Ananké (necessidade) e de Nêmesis (justiça). Como
se pode ver pela análise mítica e etimológica anteriormente citada, Moira é o lote, a
parte que cabe a cada um. E, aqui, estamos falando de deuses e de homens.
58
Por outro lado, é certamente no fato da Moira igualar esses dois seres tão
distintos que se encontra, acredita-se, a ambigüidade mais decisiva do pensamento
trágico. Esta talvez seja a razão de tanta polêmica no que se refere à caracterização
dessa entidade. No entanto, as variações em torno deste último tema, que são parte
essencial daquilo que esta dissertação pretende discutir, serão explicitadas mais à
frente. Cumpre, antes, compreender com maior e melhor exatidão porque esta Moira é
encarada como a personificação do próprio destino. Para fazê-lo, é necessário discorrer
sobre pontos que parecem fundamentais.
Em outubro de 1967, o jesuíta português Antônio Freire (1969), helenista
conceituado, defendeu sua dissertação de doutoramento na Faculdade Pontifícia de
Filosofia de Braga. O estudo, que apenas dois anos depois da defesa estaria no
prelo, ganhou o nome de Conceito de Moira na Tragédia Grega (FREIRE, 1969). De
modo genérico, a obra pretende discutir a questão do fatalismo nos autores trágicos do
século V a. C. e, nesse sentido, no próprio prólogo, Freire já diz a que veio:
O objetivo primordial dessa Dissertação é formular uma resposta clara e
decisiva à pergunta com que poderíamos intitulá-la:
-Fatalista a tragédia grega?
A esta pergunta respondemos categórica e convictamente:
-Não. (FREIRE, 1969, p.5)
Em sua dissertação, o sacerdote helenista realiza um estudo de inegável
erudição ao procurar estabelecer o conceito do fatalismo sob as perspectivas da
mitologia, da filosofia e da teologia. Num apanhado rigoroso que vai do pensamento da
antigüidade a algumas idéias contemporâneas, Freire (1969) investiga também como
os três autores trágicos Ésquilo, Sófocles e Eurípides – tratam em sua obra o
59
significado de Moira. Tudo isto sem perder de vista a questão da inexorabilidade do
destino e concluindo da maneira que no início da dissertação era antecipada: -“A
tragédia grega não é fatalista”. (FREIRE, 1969, p.293)
O que se quer chamar fatalismo na tragédia grega é exatamente o fato de o
homem trágico, Édipo um deles, estar submetido ao destino. Em tese, a Moira é
imutável e não pode ser transformada nem mesmo pelos próprios deuses. É aqui,
portanto, que se instaura o debate proposto por Freire: o jesuíta, com base na crença
de que nada pode estar acima de Zeus, rechaça a idéia da inalterabilidade da Moira.
Para ele, tal crença é primitiva e, apoiando-se em citações que vão de Homero a
Hesíodo, Antônio Freire acredita que é mesmo Zeus quem fixa o destino de todos os
seres.
Sem perder de vista a erudição e o detalhamento do trabalho de Freire (1969),
capaz de iluminar inúmeros aspectos relativos ao caráter trágico inerente ao
pensamento helênico e à obra dos três dramaturgos gregos, em que se quer apostar
aqui é mesmo numa suposta inalterabilidade da Moira. Na verdade, o que parece é que
Freire, ao se colocar neste ponto contra o fatalismo na tragédia grega, assume uma
perspectiva decididamente fundamentada numa ortodoxia teológica, menos helenista
que sacerdotal, e, por isto mesmo, mais mítica que católica. Tal traço pode ser
percebido quando o jesuíta analisa aspectos em que, inevitavelmente, a vontade da
Moira está acima da de Zeus.
Quando o conceito de moira é expresso pelo vocábulo άνάγκη (necessidade),
ou equivalente (τό χρεών), traduz a lei moral que rege o próprio Zeus, com cuja
vontade se confunde, como em teologia se identifica a essência divina com
os seus atributos. (FREIRE, 1969, p.300-301)
60
Tal debate, ao introduzir em parte aquilo que é o objetivo básico desta
dissertação, qual seja, as perspectivas ortodoxas e heterodoxas no Édipo, o que faz é
chamar a atenção para um dado decisivo: o lugar de quem faz a leitura de uma
determinada obra. Não apenas de quem faz a leitura, como se viu, mas também de
quem a produz
4
. Mas isto, como foi dito, veremos mais adiante. Vale, antes de
qualquer coisa, observar o que diz Junito Brandão (2004a), a propósito dessa
discussão proposta por Antônio Freire.
Os exemplos poderiam multiplicar-se tanto em defesa da identidade de Zeus
com a Moîra quanto, e eles são em número muitíssimo mais elevado, da total
independência de Aîsa face a todos os imortais.
O que se pode concluir, salvo engano, é que, por vezes, Zeus se transforma
em executor das decisões da Moîra, parecendo confundir-se com a mesma.
(BRANDÃO, 2004a, p.142)
Nesse sentido, seria oportuno lembrar as palavras do próprio Prometeu quando,
acorrentado ao rochedo, depois de haver sido castigado por Zeus ao roubar o fogo de
Hefesto e entregá-lo aos homens, conta ao coro da tragédia escrita por Ésquilo sobre a
força que caracteriza a Moira: O poder da Moira é superior ao de Zeus; ele não
escapará ao seu Destino(MAFRA, 1980, p.74). Vale, assim, atentar para o diálogo
entre Prometeu e o Corifeu, nas palavras de Ésquilo:
CORIFEU
E por quem o destino é governado? Dize!
PROMETEU
Pelas três Parcas e também pelas três Fúrias,
cuja memória jamais esquece os erros.
4
A distinção que se quer aqui fazer é entre aqueles que produzem teoria (aqui, no caso, Freire) e
aqueles que produzem com objetivos literários ou dramatúrgicos (no caso, Sófocles).
61
CORIFEU
Os poderes de Zeus, então, cedem aos delas?
PROMETEU
Nem mesmo ele pode fugir ao Destino. (ÉSQUILO, FOCLES, EURÍPEDES,
1999, p.37)
Na mesma medida, a Moira mostra sua primazia, como lembra Junito Brandão
(2004a), quando, em trecho da Ilíada, de Homero (1970), Hera responde a um Zeus
que quer livrar seu filho Sarpédon do perigo da batalha:
Crônida terrível, que palavras disseste? Um homem mortal, muito tempo
marcado pela Aîsa e queres livrá-lo da morte nefasta? Podes fazê-lo, mas nós,
os outros deuses todos, não te aprovamos. (BRANDÃO, 2004a, p.141)
Respeitada pelos próprios deuses, a Moira parece mesmo ter a prerrogativa
sobre o destino dos homens. Dos homens e dos deuses. Nesse sentido, se não
compartilhamos da idéia do jesuíta Antônio Freire e concedemos à Moira o privilégio de
pairar sobre deuses e homens, estamos, neste ponto decisivo, igualando uns e outros,
colocando-os no mesmo terreno de um caminho que conduz ao trágico e às
impossibilidades que lhe são inerentes.
Mas, outra vez, vale indagar que instância é essa à qual o humano e o divino se
submetem? Como o destino foi apenas tardiamente personificado, a Moira, por sua vez,
também não foi antropomorfizada. Não se trata, conseqüentemente, de chamá-las
divindades. Contudo, é imutável, e feminina. Após as epopéias homéricas, a Moira se
projetou em três entidades, as quais, costumeiramente, podem ser chamadas Queres.
São elas Cloto, Láquesis e Átropos. Três mulheres, três fiandeiras, urdindo o tempo de
uma existência que foi antecipadamente estabelecido. Cloto é a que segura o fio da
vida e vai puxando o fuso. Láquesis, aquela que enrola o mesmo fio e sorteia quem irá
62
morrer. Átropos, a que não volta atrás, mostrando-se inflexível em sua função de cortar
o fio que é tecido.
Assim, o destino divino e humano está entregue à Moira. Para os homens, o
resultado inexorável, heróico ou não, é mesmo a morte. Para os deuses, a derrota, a
castração, o esquecimento. Igualados na submissão, os fios de homens e de deuses se
entrelaçam. E esse emaranhar-se está presente, talvez se possa dizer, em toda a
tragédia e mitologia grega. Nesse sentido, aqueles que, humanos, entregam-se à
Hýbris e devem então ser punidos porque se colocaram no lugar do divino. E também
os que, deuses, rendem-se a Ftonos ou seja, à invídia e ao ciúme e, mesmo
olhando de cima do Olimpo, invejam até a mortalidade dos que vivem embaixo.
Trata-se do destino. E, quando o fio se emaranha, trata-se mesmo de um destino
trágico. E é aqui, neste chão universal escrito por caminhos áticos, que homens que se
crêem deuses e deuses que se passam por homens pagamos por tudo. Ou quase tudo.
Em Sófocles, como lembra Werner Jaeger (2003), o trágico se encontra no fato
desse homem, mesmo após ver sua Areté atropelada pela adversidade, desafiando
esfinges e deuses, manter de maneira contumaz a altivez que lhe é inerente. É porque
enxergou e para continuar enxergando que Édipo se cega. E é também por isto que ele
peregrina pela Hélade: para, convertido em homem sofredor, sumir depois pela floresta
e só ser encontrado novamente no imaginário dos que virão.
O drama de Sófocles é o drama dos movimentos da alma cujo ritmo interior se
processa na ordenação harmônica da ação. A sua fonte está na figura
humana, à qual volta continuamente como ao seu último e mais alto fim. Para
Sófocles, toda a ação dramática é apenas o desenvolvimento essencial do
homem sofredor. É assim que ele cumpre o seu destino e realiza a si próprio.
(JAEGER, 2003, p.332)
63
Talvez agora se possa compreender um pouco melhor a figura do Édipo na
ânfora de San Gimignano. Diante da esfinge, o rei de Tebas não parece ter o vigor
heróico do momento em que, conta o mito, enfrentou o monstro e respondeu à pergunta
fatal. Sim! Aquele que de manhã anda de quatro, ao meio-dia se sustenta em dois pés
e, ao entardecer, apóia-se também em um bastão é o próprio homem, este ser cansado
que aqui está, no lugar exato em que o verniz negro não foi pintado. Um ser
reconhecido pela falta, que, nesta vasilha de cerâmica, sustenta-se talvez no mesmo
pau com que deu na cabeça do próprio pai até matá-lo e cometer sua Hýbris inicial, sua
primeira Hamartía.
Desmedida e erro, involuntários que sejam, que farão com que percebam o
personagem de Sófocles e o discípulo de Exéquias que mergulha o pincel no verniz e
começa a pintar a vasilha que o Édipo que se posta à frente do monstro fabuloso é,
ao mesmo tempo, o anĕr vigoroso que decifra o enigma e o brotós extenuado que some
no bosque. São vários e é, só, um: homem trágico, definido pela falta, irrevogável pela
Moira. Uma Moira que, no contexto da tragédia e do mito grego, define-se mesmo como
uma espécie de linguagem soberana. O destino que está escrito.
Mas, talvez, esse Édipo que acerta na resposta que dá à esfinge tenha
convencido o monstro mas não tenha se convencido. Então, ele deve buscar mais:
cometer mais Hamartías, cegar-se, afundar-se na floresta em busca de si mesmo e,
depois, desaparecer. E não será de todo improvável imaginar que ele sumiu porque,
nas brenhas, encontrou-se a si próprio. Efêmero como um homem e permanente como
um deus, este ser que se encontra consigo mesmo talvez tenha conseguido também se
esvaziar do mito. Assim, como afirma Jaeger (2003), nem o destino nem Édipo o
absolvidos ou condenados”. (JAEGER, 2003, p.333)
64
Mas, para que a pintura do vaso se complete e a Moira cumpra seu papel
inexorável, ainda falta que Édipo se case com Jocasta e que, com ela, tenha quatro
filhos. Assim, Édipo, mesmo não querendo se igualar aos deuses, tefeito isto. É isto
também o que diz, de uma ou de outra maneira e por outros e mais elaborados
caminhos, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1992), quando afirma que os deuses
legitimam a vida humana pelo fato de eles próprios a viverem a teodicéia que sozinha
se basta!(NIETZSCHE, 1992, p.37) Casando-se com sua mãe e com ela gerando, ele
será como Urano. A desmedida involuntária será cometida. está Jocasta, no canto
esquerdo do vaso, esperando o filho que perdeu e pelo esposo que perderá. Também
ela efêmera, definida pela falta do verniz na cerâmica. Nietzsche (1992), em seu O
Nascimento da Tragédia, nos oferece uma espécie de definição do herói, cujo ambiente
suscita decisivamente o preenchimento pela falta que buscamos na ânfora de San
Gimignano:
Se abstrairmos, todavia, do caráter do herói, tal como aparece à superfície e se
torna visível - o qual no fundo nada mais é senão uma imagem luminosa
lançada sobre uma parede escura, isto é, uma aparência de uma ponta a outra
-, se penetrarmos bem mais no mito que se projeta nesses espelhamentos
luminescentes, perceberemos então, de repente, um fenômeno que tem uma
relação inversa com um conhecido fenômeno óptico. Quando, numa tentativa
enérgica de fitar de frente o Sol, nos desviamos ofuscados, surgem diante dos
olhos, como uma espécie de remédio, manchas escuras: inversamente, as
luminosas aparições dos heróis de Sófocles, em suma, o apolíneo da máscara,
são produtos necessários de um olhar no que há de mais íntimo e horroroso na
natureza, como que manchas luminosas para curar a vista ferida pela noite
medonha. (NIETZSCHE, 1992, p.63)
No entanto, a tragédia de Jocasta é distinta, subalterna de uma linguagem que
tem sua ortodoxia marcada na figura do masculino. Homens que dominam, que
decidem, que dormem com suas mães, matam seus próprios filhos, que escrevem
obras para o teatro, guerreiam, tentam enganar os deuses, são por eles invejados. À
65
mulher cabe um papel, como se disse, subalterno. Sófocles, contudo, talvez pela
primeira vez na trajetória da cultura grega, também dá a ela, à mulher, como lembra
Werner Jaeger (2003), a representatividade do humano. Trata-se de Antígonas,
Electras, Dejaniras, Tecmesas, Jocastas. Cada uma tão efêmera como os homens que
caminham a seu lado. Humanas e divinas, lutando contra a brevidade e o esquecimento
que tornam trágico o destino de cada um. Este destino que é tirano e que também é
Moira. E, como Moira, feminino, linguagem. Jocasta.
66
4. MARCAS DO GÊNERO
Ao ler o mito de Édipo, Sófocles, como se tentou mostrar, sublinhou
características que eram, ao mesmo tempo, determinantes de sua época e do gênero
ao qual se consagrou. No que se refere à abordagem do homem grego do século V a.
C., o dramaturgo de Colono avança em alguns aspectos de seu tempo, como a maneira
a partir da qual a mulher é introduzida na tragédia, ainda que o faça de maneira
moderada para os padrões da contemporaneidade. Quando o assunto é a questão do
gênero, Sófocles vai muito além, criando o próprio modelo.
Em Édipo Rei, a visão de mundo retratada é aquela que pertence a seu tempo e
aquela que dará a medida do tempo que virá. Ou seja: da mesma maneira que a obra
de Sófocles fala da Grécia que lhe é contemporânea, diz também de um mundo que
será, no mínimo, o espelho fosco de boa parte das idéias que surgiram nesse mesmo
universo da antiguidade helênica. Idéias que ainda hoje encontram eco em nossa
empresa ocidental. Talvez seja isto o que confira a este modo de conceber o mundo um
caráter até certo ponto marcado pela ortodoxia. Nesse sentido, para demonstrar tal fato,
valeria citar partes da obra em que a maneira de enxergar o humano se pauta pelo
ortodoxo em pelo menos três aspectos decisivos, quais sejam: o lugar de deus, o lugar
do homem e o lugar do trágico. Lugares estes que estão circunscritos não apenas à
sociedade grega da antiguidade, mas também, porque não dizer, à nossa natureza
contemporânea.
No que se refere à posição divina, mesmo que a tragédia concordar, no
futuro, com um discurso platônico que, grosso modo, insere deus como a medida de
67
todas as coisas, as ambigüidades são decisivas. Primeiro porque, ao colocar deus no
centro, a tragédia de Sófocles e, em particular, o Édipo Rei, se opõem àquilo que dizem
Protágoras e os sofistas do século V a. C: que o homem é a medida de todas as coisas.
No entanto, ao pensar desta maneira e se aproximarem da fórmula platônica, os
trágicos estarão fazendo um discurso análogo àquele que já havia sido feito com
Homero, por exemplo, e que se tecido com Platão, aproximadamente um século
depois. E, aqui, vale recordar o caráter essencialmente antitrágico da filosofia platônica
(JAEGER, 2003). Para Albin Lesky (2001), a obra de Sófocles deve ser encarada
sempre como engenho humano e luta humana, ao lado do inapreensível, inatingível
governo dos deuses!(LESKY, 2001, p.148) Em Édipo Rei, são inúmeras as ocasiões
em que é a vontade dos deuses aquela decisiva, determinante, implacável. Zeus, em
cada momento, e na fala de todos, é sempre chamado “o todo poderoso”:
Deus todo-poderoso, se mereces
Teu santo nome, soberano Zeus,
Demonstra que em tua glória imortal
Não és indiferente a tudo isso! (SÓFOCLES, 2002, p.62)
Entretanto, se o lugar de deus é assegurado acima de todas as coisas, em
“glória imortal”, o lugar do trágico evidencia uma ambigüidade própria do humano. Este
duplo sentido está no destino que, se não deixa de ser construído por meio de ações
que confirmam o movimento da alma das personagens, também é inexorável. E a tal
destino, como se viu no capítulo anterior, até mesmo Zeus deve estar subordinado.
Trágica, então, é a impossibilidade do divino e do humano se desvencilharem do tecido
da Moîra. É por isso que, como diz Pierre Vidal-Naquet (2005), nos trágicos, a
68
divindade é também medida, mas é medida no termo da tragédia(VERNANT; VIDAL-
NAQUET, 2005, p.282).
A saga de Édipo seria então, nestes termos, algo que talvez nem mesmo os
deuses podem mudar. Se há quem possa transformar o mito, este alguém (deus?) é
Sófocles, criador que exerce suas prerrogativas de maneira implacável, vestindo suas
criaturas (suas, porque não pertencem mais ao mito, mas a ele próprio) com o tecido
trágico que julga apropriado. Isso significa que, nas especificidades do gênero, aquilo
que chamamos vontade dos deuses está ali para assegurar o cumprimento do destino
humano ou, como afirma Werner Jaeger (2003), o desenvolvimento essencial do
homem sofredor(JAEGER, 2003, p.332). É assim que quer o dramaturgo de Colono e
é também assim que nos diz seu próprio coro quando, ao final, depois de conhecer a
felicidade trepidante e chegar ao mais fatal infortúnio, Édipo se prepara para cegar-se.
Vossa existência, frágeis mortais,
é aos meus olhos menos que nada.
Felicidade só conheceis
Imaginada; vossa ilusão
Logo é seguida pela desdita.
Com teu destino por paradigma,
desventurado, mísero Édipo,
julgo impossível que nesta vida
qualquer dos homens seja feliz!
Ele atirava flechas mais longe
Que os outros homens e conquistou
(assim pensava, Zeus poderoso)
incomparável felicidade. (SÓFOCLES, 2002, p.62)
Mas o Zeus poderoso não é aquele que fala com o coro de anciãos tebanos.
Então, aos olhos de quem a existência humana é “menos que nada”? Certamente, do
próprio Sófocles. Mas, talvez, também desta Moîra implacável. Por isso, porque o
destino é inexorável, Édipo não pode ser feliz. Se nem mesmo os deuses podem alterar
69
o caminho das coisas, se a esses deuses o único papel possível é o de oráculos,
revelando apenas aquilo que irá acontecer, Édipo, e quem tenha um destino como o
seu, não poderá vislumbrar a felicidade. Mas, cego, ele tomará as rédeas de sua
fortuna e, para enxergar aquilo que lhe era impossível ver quando teve o poder em suas
mãos, provocará sua própria cegueira.
Esta maneira de apreender o significante, que coloca um deus como centro de
todas as coisas para, durante a caminhada, ir descobrindo que nem mesmo este deus
poderá modificar o curso dos acontecimentos é, acredita-se, um modo ortodoxo de
enxergar o mundo. O lugar de deus é o centro, desde que este centro garanta aquilo a
que estamos acostumados chamar “liberdade humana”. Quando faz uma analogia entre
as condições do homem e de deus, o jesuíta Antônio Freire (1969) parece mostrar
como tal prática de definir as coisas está pautada por um caráter ortodoxo, no sentido
de reiterar uma maneira canônica de interpretar os fatos:
...só quem conhece a Deus, conhece o homem –, não deixa de ser verdadeira,
na nossa condição humana, a inversa: só quem conhece o homem, conhece a
Deus. O nosso conhecimento de Deus é analógico; e é do mais conhecido que
partimos para o menos conhecido. (FREIRE, 1969, p.65)
O Édipo de Sófocles é o ser humano que, seguindo aquilo que os oráculos lhe
dizem, também desconfia deste discurso. Ele consegue decifrar enigmas; parece – para
alguns como Michel Foucault saber mais do que aparenta; julga conhecer os deuses;
mas não conhece sequer a si mesmo. Tal ambigüidade é mostrada em momentos
decisivos do texto. Quando o oráculo de Apolo, por exemplo, lhe diz que ele irá matar
seu pai e casar-se com sua mãe, Édipo considera suas palavras e abandona Corinto.
Foge para não cometer sua Hýbris. Mas, quando esta profecia afeta sua liberdade,
70
mostrando que a escolha que fez era um equívoco, ele desconfia, denegando o próprio
oráculo e as palavras de Tirésias. Assim, ao mesmo tempo em que Édipo é um homem
que respeita seus deuses, também é um homem que os desafia, que quer se igualar a
eles, que não deseja, sobretudo, perder o poder ao qual está acostumado.
Mesmo quando o desenrolar dos acontecimentos revela que os vaticínios do
oráculo foram acertados, o Édipo culpado aquele que se cega e que é arruinado pelo
destino e por seus próprios atos este Édipo é também aquele que, através do trágico,
eleva-se à sua condição mais sublime, quando assume conscientemente as rédeas de
sua sina e, de uma ou outra maneira, mostra que seu fadário comporta sobretudo o
peso da desdita que atinge todos os cidadãos de Tebas. Aqui se encontra a
ambigüidade decisiva. Uma ambigüidade que, reunindo Hýbris e Are sob a mesma
chancela, mostra que o mundo está sendo interpretado a partir desta ortodoxia trágica à
qual se acabou de aludir.
Compreende-se imediatamente o afundamento do herói na dor trágica; em vez
de colocá-lo judicialmente na injustiça, o que faz é revelar de modo patente,
em naturezas nobres, o caráter iniludível do destino que os deuses impõem
aos homens. (...) Não partilha as resignadas palavras de Simônides, segundo
as quais o Homem tem de perder necessariamente a arete, quando o infortúnio
inexorável o derruba. A elevação dos seus grandes sofredores à mais alta
nobreza é o Sim que Sófocles a esta realidade, a esfinge cujo enigma fatal
consegue resolver. É o homem trágico de Sófocles o primeiro a elevar-se a
uma autêntica grandeza humana, pela completa destruição da sua felicidade
terrena ou da sua existência física e social. (JAEGER, 2003, p.331)
A dor trágica é, ao que parece, não uma prerrogativa inerente aos deuses ou ao
próprio mito, mas algo que é construído pelo gênero. É a obra de Sófocles que
estabelece engenho e luta humana ao lado de um poder aparentemente decisivo dos
deuses. Isto, acredita-se, deve-se ao fato de que essa dor trágica advém de um destino
71
inexorável e não da vontade propriamente dita dos deuses ou de uma estrutura
definitiva do mito. Fosse assim, os deuses poderiam mudar o curso dos
acontecimentos, mas não mudam. Fosse também assim, e o mito teria uma versão,
não comportando, por exemplo, a de Homero, que nos é oferecida na Odisséia, como já
se mostrou no capítulo anterior desta dissertação. Quem comanda a luta e determina o
engenho é o dramaturgo de Colono, definindo a reboque o destino de suas
personagens.
A esse propósito, vale lembrar o que diz o helenista Jacyntho José Lins Brandão
em seu texto O como e o quê no Édipo Rei, de Sófocles (BRANDÃO, 1980). Neste
ensaio, cujo principal objetivo é o debate sobre a forma e o conteúdo da tragédia grega,
Brandão chama a atenção para a maneira como Sófocles tece o conteúdo mítico em
Édipo Rei. Para o helenista, é o engenho ímpar do dramaturgo de Colono o maior
responsável pela grandiosidade dramática do Édipo Rei. Isto porque a escritura de
Sófocles pode ser considerada o fator determinante na recriação, a partir de jogos
repletos de ambigüidade e ironia, de um enredo possivelmente conhecido do público
da época. Assim, segundo Brandão, a maior inventiva está no como Sófocles conta a
lenda de Jocasta e Édipo, e não no próprio entrecho em si. Como afirma o helenista, “a
arte do poeta consiste em lançar dúvidas, jogando com tensão e distensão, criando,
dessa forma, o ritmo dramático” (BRANDÃO, 1980, p. 55 e 56). É por isso que o
parecer de Jacyntho José Lins Brandão sobre quem seria o principal público buscado
por Sófocles se os que conheciam o mito ou aqueles que o ignoravam não
poderia ser mais inequívoco no que se refere à importância da forma na composição da
dramaturgia trágica:
72
Há, pois, como tudo na peça, várias maneiras de presenciá-la e
entendê-la. Agradaria tanto ao público ignorante do mito, quanto àqueles
que com ele tivessem familiaridade. Predomina todavia, em termos de
qualidade, a apreciação dos últimos. Talvez a eles se dirigisse o autor
preferencialmente, por sabê-los capazes de apreciar, de forma integral,
como
se dava o jogo de ambigüidades, o dialogismo irônico de cada
episódio, atitude ou fala: enquanto a superfície da linha revela o fio da
história contada, a profundidade das entrelinhas desvela a condição
amarga e impotente do homem, aqui encarnado na personagem. Édipo,
o que decifrou a esfinge, mas sucumbiu diante do próprio enigma.
Aquele que reuniu em si todos os contrários, como a provar que "o
contrário
é
convergente e dos divergentes nasce a mais bela harmonia,
e tudo segundo a discórdia", conforme Heráclito. A provar e a mostrar a
natureza trágica do homem: "nos mesmos rios entramos e não
entramos, somos e não somos"
5
.
(BRANDÃO, 1980, p. 58 e 59)
Nesse sentido, a história de Édipo, que servirá para que Freud defina toda sua
teoria, é uma construção de Sófocles e, como tal, do gênero dramático ao qual se
dedicou. Tal dedicação, como lembra Albin Lesky (2001), rendeu-nos 123 peças
classificadas sob o nome de Sófocles por eruditos alexandrinos. Ao lado de nomes
como Ésquilo e Eurípides, foi ele quem construiu a ortodoxia do gênero. Tal fato pode
ser comprovado na Poética de Aristóteles, obra em que o estagirita procura estabelecer
a própria teoria da tragédia.
Assim, a Poética de Aristóteles é capaz de justificar a afirmação pouco feita
de que Sófocles cria a tragédia grega. o várias as passagens em que o filósofo que
viveu entre 384 e 322 a. C. cita as obras de Sófocles como exemplo bem acabado do
gênero. Isto acontece em partes da Poética, nas quais Aristóteles procura delinear as
características da tragédia. No que se refere ao Édipo Rei, fonte primária desta
dissertação, a peça é citada em sete capítulos pelo estagirita, sempre de maneira a
mostrar o acerto de Sófocles no que se refere à adequação do texto aos parâmetros
estabelecidos para o gênero.
5
HERÁCLITO DE ÉFESO. Fragmentos. Trad. De José Cavalcante de Souza, p. 80 e 84.
73
A primeira citação aparece, no capítulo XI, quando Aristóteles (1993) se propõe a
elucidar reconhecimento e peripécia, elementos qualitativos do que ele próprio chama
“mito complexo” e partes essenciais da tragédia. A peripécia, que é marcada pelo
imprevisto, quando os acontecimentos resultam no inverso daquilo que deles se poderia
esperar, acontece, no Édipo Rei, inverossímil e necessariamente (ARISTÓTELES,
1993, p.118).
Assim, no Édipo, o mensageiro que viera no propósito de tranqüilizar o rei e de
libertá-lo do terror que sentia nas suas relações com a mãe, descobrindo quem
ele era, causou o efeito contrário (...). (ARISTÓTELES, 1993, p.118)
No que se refere ao reconhecimento, que se trata, como afirma Aristóteles, da
passagem do ignorar ao conhecer, o Édipo Rei é citado, ainda no capítulo XI e também
no XVI, como possuidor da “mais bela de todas as formas de reconhecimento”, uma vez
que ela acontece, nesta peça, juntamente com a peripécia.
A próxima citação do Édipo Rei tem lugar no capítulo XIII, quando Aristóteles
(1993) fala sobre o herói trágico. Aqui, mais uma vez, o herói que se transforma em
tirano de Tebas é o exemplo acreditado perfeito daquilo que se poderia chamar de
homem intermediário. Trata-se do herói que, oriundo de uma família ilustre, conhece
sua tragédia dolorosa a partir da Hamartía.
... o homem que não se distingue muito pela virtude e pela justiça; se cai no
infortúnio, tal acontece, o porque seja vil e malvado, mas por força de algum
erro; e esse homem de ser algum daqueles que gozam de grande
reputação e fortuna, como Édipo e Tiestes ou outros insignes representantes
de famílias ilustres. (ARISTÓTELES, 1993, p.120)
74
No capítulo XIV, em que o filósofo macedônico disserta sobre a catástrofe, o
Édipo Rei é mencionado pelo fato de que, a partir da tessitura de Sófocles, os
desastres são mostrados não “por efeito do espetáculo cênico”, mas porque derivam da
íntima conexão dos atos (ARISTÓTELES, 1993).
Porque o mito deve ser composto de tal maneira que, quem ouvir as coisas
que vão acontecendo, ainda que nada veja, pelos sucessos trema e se
apiede, como experimentará quem ouça contar a história de Édipo.
(ARISTÓTELES, 1993, p.121)
A verossimilhança é tratada no capítulo seguinte da Poética. A menção ao Édipo
Rei acontece quando, depois de tratar sobre a propriedade do surgimento do deus ex
machina, Aristóteles (1993) diz que o irracional também não deve entrar no
desenvolvimento dramático, mas, se entrar, que seja unicamente fora da ação...
(ARISTÓTELES, 1993, p.125). Mais à frente, no capítulo XXIV, esta questão é
novamente suscitada, quando o filósofo recomenda que o irracional aconteça fora da
representação e oferece, como exemplo deste tipo de acerto, o fato de Édipo ignorar as
circunstâncias da morte de Laio.
Afinal, a última citação do Édipo Rei na Poética ocorre no capítulo XXVI, o último,
quando, ao tratar da epopéia e da tragédia, afirmando que a segunda é superior à
primeira, Aristóteles também elogia a concisão dramática, pedindo ao leitor que imagine
o efeito que produziria o Édipo de Sófocles em igual número de versos que a Ilíada
(ARISTÓTELES, 1993, p.147). São estas, portanto, as citações textuais feitas pelo
filósofo macedônico acerca do Édipo Rei. Entretanto, envolvendo outras obras de
Sófocles, elas ocorrem em número bastante superior.
75
Vale ainda mencionar como o Édipo Rei também é referência para a ortodoxia
aristotélica a respeito da tragédia no que se refere a outros aspectos. Um deles é o da
unicidade da fábula: na história do tirano de Tebas, temos apenas o relato dos
episódios vividos por ele próprio. A trama dos acontecimentos também é de natureza
trágica, capaz de suscitar o terror e a piedade do espectador, como exige o estagirita
no capítulo VI (ARISTÓTELES, 1993, p.110). No tocante ao número de atores, vale
lembrar que foi o próprio Sófocles quem introduziu o terceiro ator, que vem se juntar ao
herói em seu confronto com o coro.
Ainda dentro desta perspectiva, cumpre dizer que, naquilo que se refere às três
unidades de composição, – ação, tempo e lugar o Édipo Rei mais uma vez alimenta a
Poética. Nele, a ação, que Aristóteles afirma ser a parte mais importante da tragédia,
transcorre de maneira exata, com a trama sendo plenamente representada, não
necessitando, em momento algum, de que partes dela sejam explicadas, a fim de que o
espectador possa compreendê-la. O tempo no Édipo Rei é delimitado como Aristóteles
quer: no sentido de caber dentro de um período do sol, ou pouco excedê-lo...
(ARISTÓTELES, 1993, p.109). No que diz respeito à última unidade, o lugar, a obra de
Sófocles certamente inspirou a ortodoxia estabelecida na Poética: o cenário é único,
indicando a apreensibilidade do conjunto, de princípio a fim da composição
(ARISTÓTELES, 1993, p.140).
Nesse sentido, o que aqui se procurou demonstrar, por motivos óbvios com
enorme facilidade, é que o Édipo Rei é uma das peças que inspira a ortodoxia definida
para o gênero na Poética escrita por Aristóteles no século IV a.C. É com base nos
parâmetros praticados por Sófocles em sua escritura que a tragédia clássica se enuncia
e se perpetua.
76
Assim, poder-se-ia dizer que a ortodoxia é característica da obra do dramaturgo
de Colono, e particularmente do Édipo Rei, em aspectos decisivos. Sobretudo, por
compreender uma visão de mundo que incorpora a maneira de pensar o lugar do
homem, de Deus e do trágico.
4.1. MARCAS ESTRUTURAIS
Cada qual a seu modo, sem perder de vista o fato de que tais lugares marcam-se
principalmente por se encontrarem, o humano e o divino em Sófocles trazem a dor
trágica como matéria-prima essencial capaz de refletir formas de pensar que irão
constituir não somente a tradição intelectual de sua própria época e do futuro da
empresa ocidental, mas também de todo um gênero dramático, criando-o e, neste
mesmo processo, recriando-o.
Ao lado da leitura de Sófocles sobre o mito de Édipo, e dentro de uma
concepção ortodoxa, no sentido de ser amplamente acreditada no mundo científico,
vale citar ainda duas outras abordagens: a antropológica estruturalista, de Claude Lévi-
Straus; e a psicanalítica, de Sigmund Freud.
No que se refere à análise que faz o antropólogo belga, a leitura que é realizada
quer mostrar, como acredita Audemaro Taranto Goulart (1997), que o mitoimpressiona
não apenas devido aos cuidados estéticos ou morais que o contornam mas também
devido à inspiração religiosa e ao uso ritualístico” (GOULART, 1997, p.11). Lévi-Strauss
77
apresenta uma descrição detalhada de fragmentos do mito, aos quais denomina
mitemas.
São tais mitemas que, em articulação com um modelo previamente elaborado
pelo antropólogo, darão origem a uma estrutura. Mas, na verdade, Lévi-Strauss não
toma somente a versão que nos é oferecida através do Édipo Rei, de Sófocles. Ele vai
aquém. Partindo da fundação de Tebas, ele busca a história de Cadmo, filho de
Agenor, rei na Fenícia, e de Telêfassa (ou Argiope). Com o rapto de Europa, sua irmã,
por um Zeus transformado em touro, Agenor ordena a Cadmo e a seus outros dois
irmãos, Cílix e Fênix, que partam em busca da irmã, não voltando sem ela.
Acompanhado da mãe, Cadmo segue para a Trácia, enquanto seus outros irmãos
percorrem a Cilícia e a Fenícia.
Com a morte de sua e, Cadmo consulta o oráculo de Delfos que lhe instrui
abandonar a procura de Europa e fundar uma cidade no exato lugar em que uma vaca,
à qual ele encontraria e deveria seguir, caísse de cansaço. Agindo conforme as
determinações do oráculo, Cadmo encontra o animal, segue-o e, no local em que este
se deita para descansar, funda Tebas. O herói, então, a fim de sacrificar a vaca para
Atena, manda que seus homens busquem água na fonte de Ares, situada ali perto.
Contudo, lá, um dragão devora todos eles para, em seguida, ser morto por Cadmo.
Surge, então, a deusa Atena, que diz ao filho de Agenor que arranque os dentes do
dragão e os semeie para, daí, surgirem do solo outros homens completamente
armados, os Spartoi, ou “homens semeados”.
Temendo os Spartoi, que possuíam maneiras ameaçadoras, Cadmo lhes atira
pedras e eles, sem saber de onde vem o ataque, lutam contra si mesmos. Ao final,
salvam-se apenas cinco homens semeados: Equíon, Ctônio, Hiperenor, Pêloro e Udaio.
78
São tais homens que, junto a Cadmo, dão início à aristocracia de Tebas. Mas é o
próprio Cadmo que, depois de se casar com Harmonia, filha do deus Ares, a quem
servira por haver matado o dragão pertencente a esta divindade, recebe de Atena o
trono de Tebas.
Duas gerações mais tarde, bdaco, filho de Polidoro e Nicteis, assume o trono
de Tebas, depois de completar sua maioridade. É deste Lábdaco que descende Laio, o
pai que mandou matar Édipo e, como se lembrou nesta dissertação, início aos
infortúnios que irão perseguir os labdácidas ao se apaixonar por Crisipo, inaugurando
aquilo que se poderia chamar “amor contra naturam”.
Ao buscar o mito em suas origens e levá-lo até a morte de Antígona, que ocorre
porque ela desrespeita a ordem de Creonte e faz enterrar seu irmão Polinice (tema da
peça Antígona, do próprio Sófocles (2002)), Lévi-Strauss monta uma estrutura que
mostra quatro colunas com mitemas específicos. Na primeira coluna, são mostradas
partes essenciais do mito, como a busca de Cadmo por Europa, o casamento entre
Édipo e Jocasta, e a violação da proibição de Creonte, cometida por Antígona ao
enterrar Polinice.
Na segunda coluna, Lévi-Strauss expõe mitemas ligados à morte: o extermínio
mútuo dos Spartoi, o assassinato de Laio e o confronto mortal entre Etéocles e Polinice.
Na terceira, temos desafios vencidos pelos heróis, como a morte do dragão, por
Cadmo; e a da Esfinge, por Édipo. Na última coluna, o antropólogo relaciona os defeitos
físicos dos labdácidas: Lábdaco, que é coxo; Laio, que é torto; e Édipo, que possui os
pés inchados.
Uma vez montada tal estrutura, Lévi-Strauss (1996) constrói um modelo em que
tais mitemas se articulam a partir de um arranjo teórico cuja construção, como lembra
79
Taranto Goulart (1997), depende das formulações que o analista pretende fazer nele,
com o objetivo de buscar uma significação para os elementos que o constituem
(GOULART, 1997, p.15). Mas é na maneira de executar a leitura que se encontra o
diferencial da análise estrutural de vi-Strauss. Ela pode ser feita tanto de forma linear
como de modo vertical. Nesse sentido, o antropólogo quer chamar a atenção para o
fato de que a leitura de um mito não é realizada por vínculos independentes, mas por
aquilo que ele mesmo chama de feixe de relações entre os mitemas.
Supomos, com efeito, que as verdadeiras unidades constitutivas do mito não
são as relações isoladas, mas feixes de relações, e que é somente sob a forma
de combinações de tais feixes que as unidades constitutivas adquirem uma
função significante. Relações que provêm do mesmo feixe podem aparecer em
intervalos afastados, quando nos situamos num ponto de vista diacrônico, mas
se chegamos a restabelecê-las em seu agrupamento ‘natural’, conseguimos ao
mesmo tempo organizar o mito em função de um sistema de referência
temporal de um novo tipo, e que satisfaz as exigências da hipótese inicial.
Realmente, este sistema é de duas dimensões: ao mesmo tempo diacrônico e
sincrônico, e reunindo assim as propriedades características da língua’ e da
‘palavra’. (LEVI-STRAUS, 1996, p.243-244)
Para ler o mito de Édipo a partir desta estrutura, segundo Taranto Goulart, é
necessário perceber quais são os pontos em comum dos mitemas relacionados em
cada coluna. Neste sentido, Lévi-Strauss revela que, na primeira coluna, o traço em
comum são as “relações de parentesco superestimadas”. Na segunda, essas mesmas
relações são “subestimadas”. Na coluna seguinte, os mitemas convergem para o que
Lévi-Strauss chama de “negação da autoctonia do homem”. E, na última, o oposto, com
a “afirmação da autoctonia do homem”.
A partir de tais caracterizações, o que se pode perceber é que contradições
internas tanto entre as duas primeiras quanto entre as duas últimas colunas. As
questões estão, portanto, nas definições das relações de parentesco e da autoctonia
80
humana. Ou seja: as relações de parentesco são decisivas para definir o homem Édipo
e seu mito, ou não? Do mesmo modo, a origem deste mesmo Édipo, de onde ele vem,
é suficiente e decisiva para decifrá-lo? Assim, como explica acertadamente Audemaro
Taranto Goulart (1997), através de tais oposições, o que a análise estrutural do
antropólogo belga parece indagar é o que se poderia chamar “pergunta definitiva do
próprio ser humano: quem sou eu?
Para responder a essa indagação, o homem dispõe de duas teorias: uma,
fundada na religião, que atribui a criação humana a um ser superior, um deus,
e outra, ancorada na ciência, que defende o princípio de que o homem é
produto de uma evolução natural. (GOULART, 1997, p.18)
Nesse sentido, a questão assinalada por Lévi-Strauss mostra que a contradição
estabelecida entre os mitemas que apontam ora para a negação, ora para a afirmação
da autoctonia do homem; e, ao mesmo tempo, ora superestimando, ora subestimando
as relações de parentesco. Ainda para Audemaro Taranto Goulart, tal contradição é
insuperável. A pergunta fica, portanto, sem resposta. Édipo não sabe quem é e, quando
isto parece acontecer, não lhe resta outra alternativa a não ser sair cego e andarilho,
em sua busca de Sísifo.
No entanto, o que para esta dissertação mais interessa na proposta de Lévi-
Strauss (1996) para enxergar o mito é o fato de que o antropólogo, desde o início de
sua análise, opta por não querer determinar uma versão “autêntica” para o mito de
Édipo. Esta linha, que exemplificaremos a seguir com um trecho de seu texto A
estrutura dos mitos, seretomada mais à frente, quando tentar-se-á fazer uma leitura
de viés heterodoxo. Por hora, vale ficar com as palavras que Lévi-Strauss emprega
81
para justificar seu método, ao mesmo tempo em que também reconhece a importância
das variadas leituras:
O método nos livra, pois, de uma dificuldade que se constituiu, até agora, num
dos principais obstáculos ao progresso dos estudos mitológicos, ou seja, a
pesquisa da versão autêntica ou primitiva. Nós propomos, ao contrário, definir
cada mito pelo conjunto de todas as suas versões. Dito de outro modo: o mito
permanece mito enquanto é percebido como tal. Este princípio é bem ilustrado
por nossa interpretação do mito de Édipo, que se pode apoiar sobre a
formulação freudiana, e lhe é certamente aplicável. O problema posto por
Freud em termos ‘edipianos’ não é mais, sem dúvida, o da alternativa entre
autoctonia e reprodução bissexual. Mas se trata sempre de compreender
como um pode nascer de dois: como se que não tenhamos um único
genitor, mas uma mãe, e um pai a mais? Não se hesitará pois em classificar
Freud, depois de Sófocles, na relação de nossas fontes do mito de Édipo.
Suas versões merecem o mesmo crédito que outras, mais antigas e,
aparentemente, mais ‘autênticas’. (LÉVI-STRAUSS, 1996, p.250)
4.2. MARCAS DO DESEJO
Efetivamente, como aponta Lévi-Strauss, a leitura que Sigmund Freud faz do
mito de Édipo não passa pela negação ou afirmação da autoctonia. Trata-se da própria
criação da psicanálise, um todo terapêutico que consiste fundamentalmente na
interpretação, por um psicanalista, dos conteúdos inconscientes de palavras, ações e
produções imaginárias de um indivíduo, com base em associações livres e na
transferência (ROUDINESCO; PLON, 1998). Tal método que surge no final do culo
XIX e, no século XX, vai formar toda uma escola de pensamento – deriva em mudanças
radicais na maneira como o ser humano é enxergado. E, apenas para que se tenha
idéia da importância do mito de Édipo, e da própria tragédia de Sófocles, na
composição desse ambiente ao qual não hesitaríamos em chamar revolucionário, vale
82
atentar para o que Freud, ele mesmo, escreve em seu último livro, redigido em 1938 e
publicado depois de sua morte. Em O Esboço de Psicanálise (FREUD, 1974), Freud
diz, de modo decisivo, assim como é lembrado no Dicionário de Pscicanálise de
Elisabeth Roudinesco e Michel Plon:
Permito-me pensar que, se a psicanálise não tivesse em seu ativo senão a
simples descoberta do complexo de Édipo recalcado, isso bastaria para situá-
la entre as preciosas novas aquisições do nero Humano. (ROUDINESCO;
PLON, 1998, p.167)
Certamente, talvez não haja teoria do pensamento humano mais reconhecida,
criticada e debatida do que o complexo de Édipo. Em linhas gerais, tal teoria trata da
representação inconsciente pela qual se exprime o desejo sexual ou amoroso da
criança pelo genitor do sexo oposto e sua hostilidade para com o genitor do mesmo
sexo (ROUDINESCO; PLON, 1998, p.166). No entanto, segundo o Dicionário de
Psicanálise, de Elisabeth Roudinesco e Michel Plon (1998), tal representação pode se
inverter e passar a expressar o amor pelo genitor do mesmo sexo e o ódio pelo do sexo
oposto. À primeira representação, chama-se “Édipo”; à segunda, “Édipo invertido”; à
mistura das duas, “Édipo completo”. Assim, o complexo de Édipo surge entre os três e
cinco anos de idade e, para a psicanálise, seu declínio assinala a entrada num período
chamado de latência, traduzido pela sublimação do interesse sexual. Sua resolução
ocorre após a puberdade e é concretizada a partir de um novo tipo de escolha de alvo
de pulsão, que pode ser uma pessoa, um objeto parcial, real ou fantasístico.
De maneira natural, em nossa sociedade contemporânea, o complexo definido
por Freud e a tragédia escrita por Sófocles chegam mesmo a se confundir no senso
comum. O que no dramaturgo grego é mais comumente interpretado como um
83
paradigma do destino humano, como nos referimos muitas vezes nesta dissertação,
no pensador judeu é a mescla deste mesmo destino com uma determinação psíquica,
vinda do inconsciente, capaz de definir as escolhas e os projetos humanos. Na
verdade, embora o Édipo Rei esteja presente em toda a obra freudiana, o criador da
psicanálise nunca escreveu um artigo exclusivo sobre esta sua leitura da peça de
Sófocles. A primeira referência direta acontece em carta datada de 15 de outubro de
1897, a Wilhelm Fliess. Em seguida, na Interpretação dos Sonhos (FREUD, 1987b),
obra publicada em 1900, Freud volta ao tema de maneira igualmente específica.
Em minha experiência, que é extensa, o papel principal na vida mental de
todas as crianças que depois se tornam psiconeuróticas é desempenhado por
seus pais. Apaixonar-se por um dos pais e odiar o outro figuram entre os
componentes essenciais do acervo de impulsos psíquicos que se formam
nessa época e que é tão importante na determinação dos sintomas da
neurose posterior. Não é minha crença, todavia, que os psiconeuróticos
difiram acentuadamente, nesse aspecto, dos outros seres humanos que
permanecem normais isto é, que eles sejam capazes de criar algo
absolutamente novo e peculiar a eles próprios. É muito mais provável e isto
é confirmado por observações ocasionais de crianças normais –, que eles se
diferenciem apenas por exibirem, numa escala ampliada sentimentos de amor
e ódio pelos pais que ocorrem de maneira óbvia e intensa nas mentes da
maioria das crianças.
Essa descoberta é confirmada por uma lenda da Antiguidade Clássica que
chegou ate nós: uma lenda cujo poder profundo e universal de comover só
pode ser compreendido se a hipótese que propus com respeito à psicologia
infantil tiver validade igualmente universal. O que tenho em mente é a lenda do
Rei Édipo e a tragédia de Sófocles que traz o seu nome. (FREUD, 1987b,
p.256)
Ao confessar que foi buscar a fonte de inspiração para sua teoria em uma peça
de teatro da antigüidade grega, podendo, por exemplo, dizer que foi encontrá-la num
mito, acredito que, mais do que realçar sua invenção da psicanálise, Freud valoriza a
obra de Sófocles. É por isto que, como já disse anteriormente, com o apoio de
mitólogos como Vernant (2005), não é possível crer que “o poder profundo e universal
de comover” do Édipo Rei só possa ser compreendido se amparado na hipótese
84
freudiana sobre a psicologia infantil. Não. Antes que se prossiga com a leitura
freudiana, é necessário deixar claro que a crença deste trabalho caminha para uma
abordagem que não perde de vista um outro poder, qual seja, o do gênero literário. De
maneira mais específica, o que se quer afirmar é que esse poder profundo de comoção
do mito de Édipo tem sua base também em uma invenção. Mas não a da psicanálise, e
sim a do gênero dramático que Sófocles ajudou a criar e, assim fazendo, agiu com
excelência. Em outras palavras, não é a obra de Sófocles que se serve do complexo
inventado por Freud para caminhar do século V a.C. até os nossos dias, mas
exatamente o contrário. Ou seja: é o pai da psicanálise quem se apropria da tragédia
do dramaturgo grego para fundar o principal de sua hermenêutica.
Contudo, embora acredite no sentido da proposta formulada por Deleuze e
Guattari (1966) de que o complexo de Édipo freudiano possui contornos que apostam,
talvez se possa mesmo dizer, na manipulação do desejo em nossa sociedade, é
impossível negar a influência da psicanálise desde sua criação. E, como se disse, tal
invenção parte de uma tragédia: de uma tragédia grega. É com as palavras de Sófocles
e, portanto, a partir de uma estrutura literária que Freud, acredita-se, comete seu
próprio parricídio ao desvincular a cura de neuroses e psicoses do processo
psiquiátrico. E é também através da literatura que o pensador judeu prosseguimento
a sua teoria, vinculando-a, primeiro, ao Hamlet, de Shakespeare, e, em seguida, à saga
parricida de Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski.
Na verdade, voltando ao Édipo Rei, o que Freud faz é usar a versão que
Sófocles compõe do mito na direção de suas formulações psicanalíticas(GOULART,
1997, p.10), como afirma Audemaro Taranto Goulart. O que interessa a Freud é dar
sustentação à sua idéia de que o desejo e o inconsciente estão intrinsecamente
85
inseridos dentro de uma ordem familiar. Édipo é uma personagem exemplar para este
tipo de leitura, uma vez que ele não apenas desposa sua mãe, como também mata seu
pai. A ordem familiar vai estar presente também quando Freud (1996) serve-se de
Hamlet e Dmitri Karamazov. Em seu ensaio denominado Dostoiévski e o parricídio
(FREUD, 1996), ele confirma este interesse familiar, voltado sempre para o confronto
com um genitor e a identificação com o outro. E, aqui, o que Freud enxerga, como não
poderia deixar de ser, é o que sua abordagem pede: o parricídio e o incesto.
Dificilmente pode dever-se ao acaso que três das obras primas da literatura de
todos os tempos Édipo Rei, de Sófocles; Hamlet, de Shakespeare; e Os
Irmãos Karamassovi, de Dostoievski – tratem todas do mesmo assunto, o
parricídio. Em todas três, ademais, o motivo para a ação, a rivalidade por uma
mulher, é posto a nu. (FREUD, 1996, p.193)
Quando escreve Totem e tabu obra na qual se pode encontrar uma mistura de
investigação antropológica, psicanálise e literatura o propósito de Freud é o mesmo:
inserir sua teoria, como já se disse nesta dissertação, dentro de um arquétipo universal,
no sentido de demonstrar que a neurose infantil é algo inerente à própria condição
humana de um modo geral. Trata-se, vale dizer, de um projeto vitorioso. Aclamado,
seguido, contestado, discutido, reelaborado, é inegável que, depois do pensamento
freudiano, o complexo de Édipo passou a ser algo que está indiscutivelmente inserido
na própria ordem do senso comum.
Se é desta maneira que a psicanálise criada por Sigmund Freud encontrou no
Édipo Rei, poder-se-ia dizer, o caminho perfeito para oferecer uma visão de mundo que
hoje, creio, é pautada por uma determinada ortodoxia no estatuto do pensamento
86
contemporâneo, também é de modo semelhante que outras leituras foram e vêm sendo
realizadas.
No próximo capítulo desta dissertação, na tentativa de prosseguir caminhando
para o entendimento daquilo que outras pessoas disseram sobre o mito de Édipo,
esteja ele ou não vinculado à obra incomparável de Sófocles, buscarei a leitura de
idéias que, pelo menos por hora, ainda não podemos dizer que possuem a projeção
ortodoxa conferida por autores como Lévi-Strauss e Freud. Assim mesmo, trata-se de
abordagens diferenciadas. Análises que, de uma ou de outra maneira, tornaram-se de
inestimável ajuda no momento de construir a minha própria. E esta minha leitura do
Édipo, como se avisou na introdução deste trabalho, não acontecerá através do
pensamento acadêmico propriamente dito, mas, mesmo que engendrada por ele, por
meio e em função de uma construção inerente à literatura e à dramaturgia. Aqui, o que
se quer priorizar desde o início é, como já se disse, a questão do gênero literário.
87
5. CAMINHOS PARA A HETERODOXIA
Se Lévi-Strauss está certo e a definição de um mito deve ser oferecida pelo
conjunto de todas suas versões, o caminho da mitologia edipiana é úbere e, pode-se
dizer, ilimitado. As versões apresentadas até o momento nesta dissertação,
classificadas como ortodoxas, uma vez que encontraram amparo certo e profícuo no
que se poderia chamar “história das idéias ocidentais”, são, no mínimo, três: o Édipo
Rei, de Sófocles; a abordagem estruturalista do próprio antropólogo belga; e a leitura
psicanalítica de Sigmund Freud, que, como já se viu ainda que brevemente, foi capaz
de inaugurar ampla vertente de pensamento neste nosso mundo contemporâneo.
Neste capítulo, tentarão ser explicadas outras determinadas análises que, se por
acaso não contam com a projeção hermenêutica das anteriores, também devem ser
levadas em consideração, seja porque partem delas ou porque com elas possuem
algum tipo de ligação, na medida em que as analisam e polemizam. Nesse sentido,
procurar-se-á explorar, a fim de não exagerar o debate sobre o mito de Édipo, as idéias
de outros quatro autores.
O primeiro deles, que lança tese que contra-argumenta a teoria freudiana, é
Hélio Pellegrino, para quem o próprio Édipo, enquanto personagem, não teria sofrido do
complexo definido pelo pai da psicanálise. Em seguida, passaremos às idéias sobre a
repressão sexual que guiam as considerações suscitadas pela professora Marilena
Chauí, que dedicou ao tema texto provocador. A terceira leitura é de Michel Foucault e
pode ser encontrada em uma das conferências que proferiu quando esteve no Rio de
88
Janeiro, em maio de 1973. Nelas, as idéias do pensador francês nos conduzem a um
Édipo que busca o poder.
E são exatamente tais abordagens que nos encaminharão a uma quarta: aquela
em que Friedrich Nietzsche aponta para quase que um duelo de forças que a arte e, a
reboque dela, como não poderia deixar de ser, a literatura e a dramaturgia travam de
modo intrínseco entre um espírito apolíneo e outro dionisíaco.
Finalmente, o que se espera da discussão das idéias desses autores, que aqui
consideramos heterodoxos pelo fato de não se prenderem, de uma ou de outra
maneira, à hermenêutica mais consolidada, é que elas também possam servir de apoio
para a abordagem que procurar-se-á fazer tendo como medida, ou desmedida, dois
textos dramatúrgicos que também tematizam o mito, partindo sempre da tragédia de
Sófocles, quais sejam: Um Édipo, do português Armando Nascimento Rosa (2003); e
Jocasta Tirana, produzido especialmente no sentido de interpretar as idéias alusivas a
este trabalho (ver Apêndice A).
5.1. UM ÉDIPO SEM COMPLEXO
Impossível evitar, a partir do título acima, a comparação com o artigo quase
homônimo em que Jean Pierre Vernant (2005), um dos mais influentes helenistas da
contemporaneidade, cotejou a leitura anti-histórica de Sigmund Freud e propôs uma
hermenêutica particular para a própria tragédia grega. Neste ensaio citado
anteriormente nesta dissertação e publicado pela primeira vez em 1967, o estudioso
89
mostra como o pai da psicanálise, no sentido de buscar sustentação para seus
diagnósticos, chegou mesmo, com o objetivo de confirmar suas hipóteses, a ser
reducionista e excessivamente simplificador ao partir de algo estabelecido e
consagrado em um dos séculos mais rteis da antigüidade grega. De modo bastante
resumido, o que Jean Pierre Vernant parece querer nos dizer é que Freud se escora na
universalidade do drama de Édipo para dar sentido a suas observações clínicas. Tal
fato pode ser exemplificado na pergunta que o próprio Vernant faz no início deste seu
artigo e, é claro, nas contestações argumentativas que dela advêm:
Mas em que medida uma obra literária que pertence à cultura da Atenas do
século V a.C., e que transpõe de maneira muito livre uma lenda tebana - muito
mais antiga, anterior ao regime da cidade, pode confirmar as observações de
um médico do começo do século XX sobre a clientela de doentes que
freqüentavam seu consultório? Na perspectiva de Freud, a pergunta não exige
resposta, porque nem deveria ser feita. Com efeito, a interpretação do mito e
do drama gregos de maneira nenhuma constitui problema. Eles não precisam
ser decifrados por métodos de análise apropriados. Imediatamente legíveis,
inteiramente transparentes ao espírito do psiquiatra, eles revelam de uma
vez uma significação cuja evidência traz às teorias psicológicas do clínico uma
garantia de validade universal. (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2005, p.51)
Se até aqui falou um helenista, cujo entendimento está longe de alcançar um
saber psicanalítico, no início da década de 60, durante um congresso de psicanálise
realizado em Santiago do Chile, as palavras foram do mineiro Hélio Pellegrino,
psiquiatra e psicanalista que defendia, então, uma tese bastante original. Para ele, a
personagem Édipo, filho legítimo de Laio e Jocasta, criado por Pólibo e Mérope, o
sofria do complexo a que ele mesmo deu nome. Ou seja: o tirano de Tebas não
padeceu da representação inconsciente pela qual o desejo sexual ou amoroso da
criança pelo genitor do sexo oposto é manifesto, enquanto também se expressa a
hostilidade para com o genitor do mesmo sexo.
90
Pellegrino (1987) é, naqueles mesmos anos 1960, um intelectual brasileiro que,
de acordo com as palavras do Dicionário de Psicanálise de Elisabeth Roudinesco e
Michel Plon (1998), pertence à quarta geração do freudismo mundial(ROUDINESCO;
PLON, 1998, p.579). E é esta sua ambiência com os temas psicanalíticos que lhe
autoriza a apresentar um trabalho que, segundo suas próprias palavras, suscitou
interesse (PELEGRINO, 1987, p.309) no meio, uma vez que se tratava, então, de
questão “ainda não explicitada no terreno da literatura psicanalítica” (PELEGRINO,
1987, p.309).
Em estudo publicado pela primeira vez em 1987, através do volume Os Sentidos
da Paixão, coordenado por rgio Cardoso (1987), o psicanalista brasileiro volta ao
tema. E começa por explicar os próprios conceitos mais fundamentais de Freud,
segundo os quais o menino, entre três e cinco anos de idade, em sua fase fálica do
desenvolvimento da libido, apaixona-se por sua mãe e, por causa de tal sentimento,
quer livrar-se do pai, adversário que lhe impede a realização de seu desejo.
O que Pellegrino (1987) irá demonstrar em seguida é que este Édipo, menino de
três a cinco anos que foi criado por seus pais de Corinto, deveria, para enquadrar-se
nos termos freudianos, apaixonar-se loucamente por Mérope e estaria condenado a
eliminar Pólibo(PELLEGRINO, 1987, p.309). desta maneira a personagem mítica
consagrada por Sófocles estaria destruindo seu totem, através do parricídio, no sentido
de abolir a interdição do incesto. Vale lembrar, uma vez mais, que estas são as
prerrogativas mais básicas do Complexo de Édipo estabelecido pelo psicanalista judeu.
Mas a criança que foi educada como príncipe de Corinto, por pais que não
podiam ter filhos naturais e, desse modo, a adotaram em segredo, esta criança o que
faz é matar e casar-se com desconhecidos. Para o Édipo aqui visto pelos olhos
91
modernos de Hélio Pellegrino, a culpa do parricídio e do incesto não pode existir, uma
vez que tanto Laio como Jocasta são, para ele, simples ignotos. Nesse sentido, Hélio
Pellegrino (1987) pretende, como escolástico freudiano, distinguir dois níveis de
estratificação na situação edípica.
O primeiro, mais superficial, implica a triangulação freudiana - pai, mãe,
filho - e transcorre na fase fálica do desenvolvimento da libido. O segundo,
mais primitivo e originário, corresponde
à
fase oral e diz respeito
à
relação
da criança com a e, nos seus primeiros tempos de vida. (PELLEGRINO,
1987, p.310)
O que Pellegrino quer salientar é o sucesso da relação amorosa ainda no
aleitamento materno. Segundo o psicanalista, a criança, nesta etapa, irá promover,
inconscientemente, é claro, a cisão da figura materna em duas imagos: a da mãe boa,
protetora, ou a da mãe má, persecutória(PELLEGRINO, 1987, p.310). Isso porque, ao
nascer, o menino necessita prender-se a ela. E tal fusão, para Pellegrino, podeser
mais ou menos convulsiva, dependendo do fato de o recém-nascido se sentir seguro ou
não do amor que lhe é confiado. Aqui, a comparação feita é com um náufrago que, no
oceano agitado, segura-se à sua tábua na mesma intensidade do tamanho das ondas
que lhe castigam. Por isso, o intelectual mineiro defende que a criança, jogada no
mundo, procederá dessa mesma forma” (PELLEGRINO, 1987, p.310). Dependente, seu
desespero será proporcional à sua insegurança.
Assim, se o que Pellegrino chama de “relação primitiva com a mãe” acontecer a
partir de significantes lesivos, a triangulação arcaica deverá permanecer. A imagem da
mãe persecutória, ou do seio mau, será transferida para a figura paterna que, desta
maneira, irá se tornar o perseguidor que deverá ser morto pela criança acuada em sua
92
busca de um refúgio que, para o psicanalista, é último e, também, incestuoso. A partir
desta análise de características ainda decisivamente freudianas, mas, sob certos
aspectos, transgressora, heterodoxa, Hélio Pellegrino (1987) faz, em linhas gerais, sua
releitura do Complexo de Édipo. E é através da idéia da importância do ato amoroso no
relacionamento entre mãe e filho que o psicanalista concretiza a ligação decisiva com o
mito e, como não poderia deixar de ser, com a própria tragédia de Sófocles:
Essa é, literalmente, a história de Édipo. O herói tebano ficou chumbado
à
figura de Jocasta, mãe que o condenara
à
morte. Tendo assassinado Laio
e destruído a Esfinge, imagos da mãe má, casou-se incestuosamente com
Jocasta e dela renasceu, através de filhos que eram, ao mesmo tempo,
seus irmãos
(PELLEGRINO, 1987, p.311).
Hélio Pellegrino, nesse seu texto Édipo e a paixão, ainda explica de maneira
bastante didática e precisa os meandros psicanalíticos de tal análise, não se atendo
apenas ao menino, mas esclarecendo como suas idéias podem ser aplicadas no que se
refere à menina. No entanto, de tal leitura, o que mais interessa a este trabalho é a
evocação que o psicanalista faz da importância do ato amoroso nos primeiros
momentos de vida da criança, colocando este processo como decisivo, mesmo para um
dos aspectos mais essenciais na tragédia grega enquanto gênero literário: o destino
inexorável.
É tal tratamento que parece conferir à figura feminina, à Jocasta que manda
assassinar seu próprio filho, importância inaudita e, por isso mesmo, heterodoxa. Ou
seja: enxergar a relação entre mãe e filho como aspecto original, a partir do qual os
fatos se desencadeiam é, por si , extraordinário para um conjunto de análises que
costumam destacar com quase total privilégio o anĕr vigoroso que acerta adivinhas e
93
destrói esfinges e pais desconhecidos ou, até mesmo, o brotos que, velho, cego e
cansado irá desaparecer misteriosamente em direção às profundezas da terra.
Portanto, na leitura de Hélio Pellegrino, é a relevância dada a Jocasta que mais
chama a atenção desta dissertação. É este fato que procurará ser aqui destacado, tanto
na abordagem prática deste trabalho através do drama Jocasta Tirana como na
conceitual. Contudo, também cumpre chamar a atenção para o caráter quase que
exclusivamente moderno da análise de Pellegrino. Um dos pontos que talvez mostrem
tal proposta hermenêutica com maior intensidade talvez seja haver o psicanalista
desconsiderado o que ensina Hegel (1964) em texto de sua Estética. Como foi dito
neste mesmo estudo, a culpa entre os gregos antigos não possui conotações
modernas. Nesse sentido, não se pode, com os olhos trágicos da antigüidade grega,
querer que o Édipo de Sófocles não herde os crimes de seus antepassados. Como
lembra o idealista alemão, o caráter heróico recusa-se a dividir as culpas, não quer
saber de uma oposição possível entre a intenção subjetiva e o ato objetivo(HEGEL,
1964, p.68).
Assim, a leitura do psicanalista brasileiro que, como se disse, oferece à figura
feminina um destaque incomum, parte, em contrapartida, de um Édipo que talvez o
possa ser o herói grego que mata o pai, casa-se com a mãe e, depois de ter descoberto
sua própria verdade sua e de seus ascendentes cega-se e se põe a errar pelo
mundo helênico. lio Pellegrino conta com um Édipo que foi amamentado pelo seio,
ainda que bom, estéril de Mérope, e que não herdou as predições dos oráculos e as
Hýbris de sua gente e de seus próprios deuses. Certamente, como Sigmund Freud,
Pellegrino registra um Édipo que traz consigo as características de uma modernidade
distante do modo de pensar da Hélade. Uma modernidade com complicações e
94
ramificações infinitas em que, como lembra Hegel, cada qual procura inculpar também
os outros, subtrair-se quanto possível às responsabilidades de uma falta cometida
(HEGEL1964, p.68).
5.2. ÉDIPO, JOCASTA E CULPA
Em seu texto sobre Édipo, Marilena Chauí (1984) busca os contornos da
sexualidade na abordagem do mito. Para isto, no livro Repressão Sexual, a filósofa faz
um apanhado que vai da própria paráfrase da lenda tebana, sem deixar de mencionar a
importância da tragédia de Sófocles, a uma análise bastante didática das leituras de
Freud e Lévi-Strauss, passando pelo enfoque de Hélio Pellegrino e chegando a uma
breve interpretação particular, capaz de levar em consideração aquilo que poderíamos
chamar tradição judaico-cristã.
Nesse seu estudo, é com bastante propriedade que Marilena Cha (1984)
lembra o helenista Jean Pierre Vernant, ao mencionar a importância excepcional da
tragédia no mundo ático. Para Vernant, trata-se de um gênero literário que se torna
também uma instituição social e uma experiência política na sociedade ateniense entre
o final do século VI e o início do século IV a.C. Além disso, Chauí procura não
desconhecer a necessidade de antagonismo e diferença entre o mundo divino e a
ordem humana como atributos essenciais para o sucesso trágico, reiterando a
inseparabilidade desses dois lugares. Ao fazer isto, a autora recorda a contradição
inerente à vontade livre e responsável de um ser humano capaz de se reconhecer em
95
tais atributos e o dever que lhe é imposto de cumprir um destino inexorável. É então
que a filósofa chama a atenção para o sentimento trágico da culpa, sem o qual o Édipo
Rei não pode ser compreendido.
Essa contradição aparece, sobretudo, no sentimento trágico da culpa, pois é
tratada simultaneamente como uma falta religiosa e como um delito ou infração
da lei humana, devendo ser julgada por dois tribunais (um divino-religioso e um
humano-político), a tarefa do autor trágico sendo justamente a de fazer com
que os dois tribunais venham a coincidir. No caso de Édipo Rei, essa dupla
dimensão do julgamento aparece através de dois procedimentos: um religioso
(a purificação da cidade e da casa régia) e um político (o ostracismo ou
banimento do rei criminoso) (CHAUÍ, 1984, p.59).
Tal antinomia é estendida ao próprio nome da tragédia de Sófocles. Depois de
lembrar aquilo que nesta dissertação foi dito, que o tirano é aquele que conquista o
poder, em vez de herdá-lo, e que o conquista graças às suas altas e extremas virtudes
como guerreiro, protetor e sábio(CHAUÍ, 1984, p.61), Chauí chama a atenção para o
paradoxo existente na reunião dos significantes gregos Oidipous e Tyrannós. Segundo
ela, a personagem de Sófocles é a própria contradição viva. Ou seja, um sujeito que,
possuindo deformações físicas, que lhe são impostas pelos pés inchados, e morais,
advindas de sua conduta incestuosa e parricida, também não deixa de ser aquele que
possui qualidades políticas e militares.
O que parece que Marilena Chauí nos quer dizer é que este Édipo um sujeito
que sofre suas culpas em função de incongruências inerentes a seu próprio viver num
mundo marcado pelo trágico mais absoluto é a síntese do humano. Ao mesmo tempo
pharmakós e tyrannós, impuro e sábio, abaixo e acima dos demais, é por isto que, para
a filósofa, o nome da tragédia sofocliana prepara o banimento de seu protagonista,
seja por ser sábio e invejado, seja por ser vicioso e rejeitado.
96
Concentrando em sua pessoa os dois pólos extremos da possibilidade para um
humano degradação máxima e elevação máxima Édipo é um ser
internamente contraditório ou dividido. Contrário à Natureza parricida e
monstruoso – e contrário à cidade – tirano. É um monstro (CHAUÍ, 1984, p.59).
E é sobre tal monstro que se quer buscar um foco mais apropriado. Sim, pois
este ser que parece navegar no limbo da verdade e da inverdade, de um não-saber que
sabe e de uma cegueira que é o Édipo que se quer aqui, nesta dissertação, tentar
entender um pouco mais. Um sujeito que também é caracterizado por uma autoctonia
que, para Lévi-Strauss, lhe priva até de saber-se a si mesmo, não conhecendo sua
origem e entendendo de seu destino o fato de que este é implacável. Um ser que
Marilena Chauí chama monstro e que não vem nunca desacompanhado.
Como os deuses que nascem de suas mães, este homem também nasce da sua.
E a pergunta que agora se faz é se tal mulher, como seu filho e seu esposo, também
sabe de si o mesmo que seu esposo e filho não sabe dele próprio. A lógica mais exata
parece dizer-nos que deuses são gerados por deuses, homens por homens e monstros
por monstros. Se, portanto, o Édipo que na mesma medida é o sábio decifrador de
enigmas e o ignorante de sua história, se este Édipo é aquele que salva sua cidade
para assim condená-la, este sujeito foi também gerado por ser que lhe é igual. Tem-se,
então, uma cadeia significativa de correspondências entre as tragédias e as culpas
estabelecidas no mito e no texto de Sófocles. Ao parricídio, pode-se justapor o filicídio;
ao incesto, o próprio incesto; ao conhecimento, a ignorância.
Nesse sentido, uma e outra parte, homem e mulher, Édipo e Jocasta parecem se
igualar na tragédia. Mas apenas parecem, uma vez que o protagonismo, tanto na
tragédia de Sófocles como na maior parte dos estudos citados nesta dissertação, é
colocado sobre a figura masculina. A própria Marilena Chauí (1984) colabora com a
97
ortodoxia deste tipo de leitura ao concentrar todas as forças do trágico sobre um único
personagem, participando também de um tipo de abordagem do mito que é comum seja
para helenistas consagrados seja para outros tipos de estudiosos.
Essa tragédia é considerada exemplar porque nela as contradições entre
passado e presente, família e Cidade, culpa e castigo, responsabilidade e
pena, destino e liberdade, direito e força, justiça e violência não se distribuem,
como nas outras tragédias, entre as várias personagens, mas se concentram
todas em Édipo que diz sempre o contrário do que pensa estar dizendo e faz o
contrário do que imagina estar fazendo, supondo que controla as regras do
jogo do poder quando, na verdade, é um joguete delas (CHAUÍ, 1984, p.60).
Ao dizer que todas as contradições estão focadas sobre Édipo, Chauí, mais uma
vez, reitera um certo tipo de linguagem a partir do qual a hermenêutica mais ortodoxa
está acostumada a ler o mundo: a ótica do masculino. Para este tipo de leitura, a idéia
de equivalência entre parricídio e filicídio, incesto da mãe e incesto do filho, culpas
semelhantes entre homens e mulheres não pode ser considerada.
No entanto, a filósofa paulista, junto com Hélio Pellegrino, também nos lembra
que a paz deste homem capaz de concentrar culpas e protagonismos é também
precária. Logo, para compor o mosaico trágico, a peste será enviada pelas Fúrias,
entidades femininas que, segundo a tradição, são protetoras das mulheres. Assim, a
questão que aqui se lança, e que será objeto de análise no próximo capítulo desta
dissertação, busca certa provocação, qual seja a de invocar tais Fúrias para tentar pelo
menos imaginar que a Jocasta que manda matar o filho para, depois, com semelhante
culpa, dividir com ele o leito nupcial, dando-lhe o poder que lhe era de direito desde o
nascimento, e gerando outros filhos trágicos, esta Jocasta, ao contrário de seu rebento
e esposo, sabe. De que maneira ela, julgando não saber, sabe aquilo que Édipo,
julgando saber, não sabe é, talvez, a pergunta essencial deste estudo.
98
Por caminhos insinuantes, a própria Marilena Chauí, ao propor uma breve
interpretação para o mito que acompanha o método estruturalista de Lévi-Strauss,
parece nos conduzir para a igualdade ou, pelo menos, o alinhamento entre homens e
mulheres. Na leitura de Chauí, a Gênese bíblica é colocada em pauta. É a partir deste
livro que a filósofa paulista recorda que, ao contrário de todas as outras coisas, homem
e mulher não foram criados pela palavra. O primeiro surge do barro, a outra de uma
costela deste barro. Assim, o que se quer mostrar é que a origem autóctone de um é
acompanhada do surgimento a partir da mutilação, da própria deformação do outro.
A deformidade aparece, então, visto haver um elemento de autoctonia: a
perda de uma costela. E também aparece um monstro ctônico: a serpente
que rasteja.
A diferença sexual também
é
enfrentada: olhando os animais,
Deus decide dar ao homem uma companheira, porém como até esse momento
estamos no reino da Natureza, lemos: "Esta sim é osso de meus ossos e carne
da minha carne!", portanto o mesmo vem do mesmo. "Ela será chamada
mulher (em hebraico, mulher
=
ishsha) porque foi tirada do homem (em
hebraico, homem
=
ish)",
a diferença sexual sendo obtida por urna extração
do corpo feminino do interior do corpo masculino, sem procriação (CHAUÍ,
1984, p.75-76).
Então, o que temos é o homem que vem do homem, o que vem do pó, o
monstro que vem do monstro, o mesmo que vem do mesmo. E este homem que vem
de si próprio carrega, esta é a tese que se defende aqui, culpas trágicas e análogas.
Faltas que talvez sejam distintas naquilo que feminino e masculino deverão procurar
para preenchê-las, mas trepidantemente semelhantes quando se pode ver que o
parricídio de Édipo e o filicídio de Jocasta, que o incesto de um e de outro podem
possuir congruente extensão.
A seguir, dando continuidade àquilo que até o momento se propõe, tentar-se-á
perceber, a partir de leitura feita com o olhar pós-estruturalista de Michel Foucault, qual
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o papel do poder e do saber no preenchimento das faltas que permeiam Édipo e
Jocasta na escritura exemplar de Sófocles.
5.3. SABER E PODER
Para Michel Foucault, a tragédia de Édipo é um dos primeiros testemunhos que
se tem das práticas judiciárias gregas. E foi a partir desta ótica que o filósofo francês
reconstruiu o personagem de Sófocles durante sua segunda conferência, de uma série
de cinco, em maio de 1973, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Em
seu discurso, a pretensão de Foucault (2002) é nos apresentar a tragédia de Édipo
como a história de uma pesquisa da verdade(FOUCAULT, 2002, p.31), numa trama
que é análoga às práticas judiciárias gregas do mesmo período em que a tragédia teve
seu nascimento, apogeu e ocaso, isto é, no século V a.C.
No entanto, antes de fazer sua análise, Foucault realiza uma breve introdução às
idéias de Gilles Deleuze e Felix Guattari (1966), cujo entendimento é essencial para a
compreensão de sua proposta. O pensador francês se refere ao livro O Anti-Édipo, no
qual Deleuze e Guattari querem mostrar que o triângulo edipiano composto, como se
sabe, por pai, mãe e filho é, para os psicanalistas, um modo de conter o desejo, por
meio de manipulações no interior da cura, garantindo que este mesmo desejo
permaneça na esfera familiar. Nesse sentido, ao se conservar no âmbito do triângulo
edipiano, o desejo não contaminaria, por assim dizer, a sociedade, limitando-se a uma
100
configuração de drama burguês. Nesse sentido, vale a pena atentar para o que diz o
Dicionário de Psicanálise (ROUDINESCO; PLON, 1998):
Os dois autores criticavam o edipianismo freudiano que, em sua opinião,
encerrava a libido plural da loucura em um quadro excessivamente estreito, de
tipo familiar. Para sair desse impasse ‘estrutural’, eles se propunham a traduzir
a polivalência do desejo humano em uma conceitualidade adequada. Daí a
idéia de opor à psicanálise freudiana e lacaniana, articulada em torno da
prioridade do Édipo e do significante, uma psiquiatria materialista fundada na
‘esquizo-análise’, isto é, na possível liberação dos fluxos desejantes. (...) O
anti-Édipo tomava assim como alvo maior o conformismo psicanalítico de todas
as tendências, anunciando com vigor o esgotamento trágico do lacanismo nos
últimos tempos (ROUDINESCO; PLON, 1998, p.320-321).
O que Deleuze e Guattari tentam mostrar é que o triângulo representado por pai,
mãe e filho não explica uma verdade atemporal, nem uma verdade trepidantemente
histórica daquilo que é tomado como desejo pela psicanálise. Édipo, portanto, não seria
a substância secreta do inconsciente humano, mas, como diz o próprio Foucault (2002),
a forma de coação que a psicanálise tenta impor na cura a nosso desejo e a nosso
inconsciente (FOUCAULT, 2002, p.30). Para o pós-estruturalista francês e,
certamente junto com ele, para Gilles Deleuze e Félix Guattari – a palavra que irá definir
as relações inerentes à história daquele que matou seu pai e, ao ser coroado rei de
Tebas, desposou sua mãe, é bastante significativa e algo distante dos meandros mais
tipicamente psicanalíticos: poder.
Édipo o seria pois uma verdade da natureza, mas um instrumento de
limitação e coação que os psicanalistas, a partir de Freud, utilizam para conter
o desejo e fazê-lo entrar em uma estrutura familiar definida por nossa
sociedade em determinado momento. (...) Édipo é um instrumento de poder, é
uma certa maneira do poder médico e psicanalítico se exercer sobre o desejo e
o inconsciente (FOUCAULT, 2002, p.29-30).
101
Se é por tal motivo que Foucault rejeita a análise freudiana, vale reiterar que a
leitura do próprio filósofo também não deixa de lado a definição de poder. No entanto,
este poder vem sempre acompanhado do saber. É o que Foucault (2002) conclui, após
realizar aquilo que no início da conferência ele próprio nega fazer: uma análise de
estruturas. Se no início do texto produzido a partir das palestras ministradas na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro ele rechaça o epíteto de
estruturalista que lhe é dado a ele próprio e a outros intelectuais como Deleuze,
Guattari e Jean-François Lyotard para afirmar que o que fazem, ele e estes outros
nomes, poderia ser chamado pesquisa de dinastia(FOUCAULT, 2002, p.30), o que
vem a seguir vai mostrar que a leitura de Foucault do Édipo Rei de Sófocles realmente
se baseia, sem qualquer demérito para ela, numa análise da ordem dos elementos
essenciais que compõem o corpo da tragédia em questão. Ou seja, da estrutura.
E o exame foucaultiano possui como característica principal, como foi dito, o
distanciamento das veredas psicanalistas de Sigmund Freud e de seus escolásticos.
Portanto, trata-se aqui, pode-se mesmo afirmar, de uma leitura heterodoxa de Édipo.
Um exame que começa por defender a idéia de que a tragédia de Sófocles está
organizada a partir daquilo que o próprio filósofo chama “lei das metades”. Segundo
Foucault, trata-se, no caso do Édipo Rei, de um mecanismo que tem por efeito exibir as
verdades pretensamente oferecidas em metades que se completam. Ou seja: em algum
momento do texto, uma determinada questão é estabelecida sem que seja totalmente
elucidada; em ocasião posterior, tal ponto volta à cena para ser, então, esclarecido. É
exatamente em função desta organização fornecida previamente para a análise da
tragédia que defendo haver um conceito, ou mesmo um método de investigação, que
não deixa de ser estrutural.
102
Nesse sentindo, segundo Michel Foucault (2002), tais metades se fragmentam e
acabam, no final das contas, por se ajustar, produzindo certos deslocamentos a partir
dos pontos que se adaptam. Em sua análise, o pensador francês enxerga três níveis
em que tais encaixes de verdades que se completam podem ser percebidos: o dos
deuses, o da realeza e, poder-se-ia dizer, o do povo.
O primeiro jogo de metades que se ajustam é o do rei ApoIo e do divino
adivinho Tirésias - o nível da profecia ou dos deuses. Em seguida, a segunda
série de metades que se ajustam é formada por Édipo e Jocasta. Seus dois
testemunhos se encontram no meio da peça. É o vel dos reis, dos
soberanos. Finalmente, a última dupla de testemunhos que intervém, a última
metade que vem completar a história não é constituída nem pelos deuses nem
pelos reis, mas pelos servidores e escravos. O mais humilde escravo de
Políbio e principalmente o mais escondido dos pastores da floresta do Citerão
vão enunciar a verdade última e trazer o último testemunho (FOUCAULT,
2002, p.38-39).
De acordo com Michel Foucault, as metades divinas o enunciadas pelas falas
de Apolo e Tirésias. O filho de Zeus e Leto, detentor do Oráculo de Delfos este Apolo
que, segundo o helenista Junito Brandão (2000), é entidade derivada de um vasto
sincretismo e de uma bem apurada depuração mítica(BRANDÃO, 2000, p.88)
até ser
reconhecida como deus da luz e como o próprio sol –, responde de maneira incompleta
à indagação sobre o motivo da peste estar assolando Tebas. No diálogo entre Creonte
e o próprio Édipo, Sófocles (2002) nos mostra as diretrizes de Apolo:
CREONTE
Revelarei então o que ouvi do deus.
Ordena-nos Apolo com total clareza
que libertemos Tebas de uma execração
oculta agora em seu benevolente seio,
antes que seja tarde para erradicá-Ia.
ÉDIPO
Como purificá-Ia? De que mal se trata?
103
CREONTE
Teremos de banir daqui um ser impuro
ou expiar morte com morte, pois há sangue
causando enormes males à nossa cidade.
ÉDIPO
Que morte exige expiação? Quem pereceu?
CREONTE
Laio, senhor, outrora rei deste país,
antes de seres aclamado soberano. (SÓFOCLES, 2002, p.23)
A outra parte desta metade vem de Tirésias agora cego e homem, dono de
poderes divinatórios; antes, mulher, por ter separado a cópula das serpentes. Chamado
para dar conta daquilo que o próprio deus da luz o determinou clarear, sua resposta
é clara e não comporta qualquer tipo de engodo. O máximo que Tirésias esta mesma
personagem que irá surgir novamente na obra de Armando Nascimento Rosa (2003), a
ser analisada no próximo capítulo desta dissertação –, faz é pedir ao rei de Tebas que
não o envolva em mistérios que não deveriam ser esclarecidos:
ÉDIPO
Que dizes? Sabes a verdade e não falas?
Queres trair-nos e extinguir nossa cidade?
TIRÉSIAS
Não quero males para mim nem para ti.
Por que insistes na pergunta? É tudo inútil.
De mim, por mais que faças nada saberás. (SÓFOCLES, 2002, p.33)
Depois de escutar de Édipo que, por o querer contar a verdade, ele próprio,
aquele que gozou como homem e como mulher, poderá ser incriminado pela morte
de Laio, Tirésias, o cego que consegue enxergar, elucida toda a trama, ao evocar a
própria determinação de Édipo de banir o culpado, e sem buscar quaisquer tipos de
subterfúgios:
104
TIRÉSIAS
Teu pensamento é este? Então escuta: mando
que obedecendo à ordem por ti mesmo dada
não mais dirijas a palavra a esta gente
nem a mim mesmo, pois és um maldito aqui. (SÓFOCLES, 2002, p.34)
Mas Édipo, ainda não satisfeito, deve ouvir a sentença final de Tirésias: “Pois
ouve bem: és o assassino que procuras!Assim, ao completar-se o primeiro jogo de
metades proposto por Michel Foucault, temos resolvida, no início da obra de
Sófocles, a pergunta que quer saber quem matou Laio. E resolvida através de uma
verdade prescritiva, profética, própria de uma Grécia, para Foucault, ainda mais antiga
do que aquela do século V a.C. No entanto, para o tragediógrafo de Colono, o
verdadeiro jogo, a maior das peripécias, ainda está por vir, oferecendo luz ainda mais
fulgurante a sua dramaturgia. Também para Foucault faltam os outros dois pares de
metades a partir dos quais estará claro o jogo de poder e saber que o pensador francês
quer ver no Édipo Rei.
Um deles está no diálogo entre Jocasta e Édipo em que aquela começa a tentar
convencer o esposo de sua inocência. Mais uma vez, o que vamos encontrar é uma
questão do gênero, traduzida de maneira espetacular na peripécia sofocliana. Jocasta o
que faz é contar a Édipo como se deu a morte de Laio. Assim, ele logo reconhece que
Tirésias pode estar certo, uma vez que os detalhes dados pela sempre rainha sobre a
morte de seu ex-marido coincidem com os sucessos que lhe avivam a memória no que
se refere ao episódio em que ele, vindo de Corinto, depara com uma comitiva numa
encruzilhada e, para não ceder passagem a ela e sentindo-se ofendido, alterca-se com
seus opositores e mata Laio.
105
Édipo, depois de saber que foi um escravo que contou a Jocasta a respeito da
morte de um sujeito que ele ainda não sabe que é seu próprio pai, manda chamar o
servo. É então que se estabelece o terceiro e último jogo de metades que se
completam, como quer a análise proposta por Michel Foucault. O escravo virá. E não
apenas o escravo chamado por Jocasta. Antes dele, virá um outro, de Corinto, para lhe
trazer a notícia de que aquele a quem Édipo toma como genitor, Pólibo, está morto.
São estes dois escravos, servos, mensageiros, criados, ceramistas, pastores, homens
do povo, aqueles que oferecem, na obra ímpar de Sófocles, a verdade final e a
peripécia mais trepidante.
Na leitura de Foucault, o ciclo de metades que se ajustam umas às outras está
fechado. Presumido a partir de verdades que passam dos deuses aos escravos e vão
sendo descobertas a partir de um jogo que, para o filósofo, vai cobrar sentido numa
técnica retórica, religiosa e política da antigüidade grega. Trata-se da técnica do
σύµβολον”: o símbolo grego. Tal prática, segundo Foucault (2002), é um instrumento
de exercício de poder que permite a alguém que detém um segredo ou um poder
quebrar em duas partes um objeto qualquer, de cerâmica etc., guardar uma das partes
e confiar a outra parte a alguém que pode levar a mensagem ou atestar sua
autenticidade (FOUCAULT, 2002, p.38). Nesse sentido, será pelo ajustamento das
duas metades que o poder continuará a existir. Para o filósofo francês, a tragédia de
Sófocles acompanha tal ritmo. Produzida a partir desta metodologia, ela cumpre o papel
de autenticar a detenção do poder e as ordens por ele transmitidas. Trata-se, então, de
uma prática jurídica, política e religiosa denominada σύµβολονpelos gregos. Ou seja:
o símbolo.
106
Mas a heterodoxia analítica de Foucault não pára por aí. O filósofo acredita que
este Édipo que nada sabe de seu destino, que cega-se a si mesmo no final de seu
drama, que, para Freud, é o homem do inconsciente, este Édipo não passa, poder-se-ia
dizer, de um engodo. Ao contrário, para Michel Foucault, o tirano de Tebas é aquele
que sabia demais e que, por isso, deveria ser expulso definitivamente do momento
histórico traduzido pelo séc. V a.C., ocasião em que a peça é escrita. Uma época, como
se disse nesta dissertação, pontuada por governantes como ricles, um dos
responsáveis pelo apogeu da chamada democracia ateniense.
Nesse sentido, na leitura feita por Foucault, o que está em jogo desde o início da
peça, quando Édipo afirma que seu interesse em exterminar a peste está diretamente
ligado à manutenção de sua soberania, é a questão do poder. Por tal viés, é
interessado em manter-se como rei que ele buscará solucionar o problema. É por isso
também que ele discute com Creonte e Tirésias ao se ver ameaçado. E é ainda por
esta lógica que ele não se assusta com a idéia de ter matado seu pai ou o antigo rei de
Tebas e ex-marido de sua atual mulher. O que Édipo teme, segundo Foucault, é perder
o próprio poder.
E tal condição advém do fato de ele ser um tirano, no sentido explicado
anteriormente nesta dissertação. E o tirano, não é demais recordar, é aquele cujo poder
lhe é atribuído a partir de seu saber destruidor de esfinges e salvador de cidades e de
sua força de anĕr. Um poder que tem suas características relatadas no pensamento, na
história e na filosofia grega da época. Segundo o pensador francês, estas
características podem ser encontradas de maneira exemplar na obra do estratego de
Atenas que se tornou um dos maiores dramaturgos de todos os tempos, obtendo, nas
festas de Dionísio, 24 prêmios nos concursos trágicos.
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Um certo número de características deste poder aparece na tragédia de Édipo.
Édipo tem o poder. Mas o obteve através de uma série de histórias, de
aventuras, que fizeram dele inicialmente o homem mais miserável - criança
expulsa, perdida, viajante errante - e, em seguida, o homem mais poderoso.
Ele conheceu um destino desigual. Conheceu a miséria e a glória. Esteve no
ponto mais alto, quando se acreditava que fosse filho de Políbio e esteve no
ponto mais baixo, quando se tornou um personagem errante de cidade em
cidade. Mais tarde, de novo, ele atingiu o cume. ‘Os anos que cresceram
comigo, diz ele, ora me rebaixaram, ora me exaltaram’. (FOUCAULT, 2002,
p.44)
Tal alternância do destino é traço marcante de dois tipos de personagens da
cultura helênica: o herói e o tirano. Se o lado que se poderia chamar bom da tirania está
presente em Édipo, o negativo também está. Isto acontece quando temos um soberano
que pensa que a cidade é sua, ou que a tem sob a mais estrita dependência. Segundo
Foucault, “Édipo é aquele que não importância às leis e que as substitui por suas
vontades e ordens” (FOUCAULT, 2002, p.45). Em alguns momentos da obra de
Sófocles, como na discussão com Creonte, ele diz claramente que sua vontade é a lei
da cidade.
Se o poder de Édipo é bastante semelhante ao dos tiranos gregos que
governaram durante o século V a.C., o saber é solitário, baseado na experiência de
quem resolve por suas mesmas medidas as adversidades que encontra. É por isso que
o pensador francês afirma que ele cai em uma armadilha, na medida em que prolonga o
testemunho até dar-se conta de uma verdade que se achava escondida.
O saber de Édipo é esta espécie de saber de experiência. É ao mesmo tempo
este saber solitário, de conhecimento, do homem que, sozinho, sem se apoiar
no que se diz, sem ouvir ninguém, quer ver com seus próprios olhos. Saber
autocrático do tirano que, por si só, pode e é capaz de governar a cidade. A
metáfora do que governa, do que pilota, é frequentemente utilizada por Édipo
para designar o que ele faz. Édipo é o piloto, aquele que na proa do navio abre
os olhos para ver. E é precisamente, porque abre os olhos sobre o que está
acontecendo que encontra o acidente, o inesperado, o destino, a τύχη
.
Porque
foi este homem do olhar autocrático, aberto sobre as coisas, Édipo caiu na
armadilha. (FOUCAULT, 2002, p.47)
108
Fazendo a transição de um saber profético para um testemunhal, unindo “a
profecia de deus e a memória dos homens” (FOUCAULT, 2002, p.48), a obra de
Sófocles, na leitura de Michel Foucault, quer desvalorizar uma forma de saber político
que é, na mesma medida, privilegiado e exclusivo. Mas não se trata, para o pensador
francês, apenas disso. Ao construir uma ponte que chega aa República de Platão
(2004), Foucault também leva em conta em sua hermenêutica heterodoxa o fato de que
este tirano, homem do poder e do saber nos séculos VI e VII a.C., é combatido, junto
com a figura do sofista, tanto pelo dramaturgo do século V a.C. como pelo filósofo que
produzirá suas idéias cerca de cem anos depois.
Na realidade, ao querer enxergar que o Édipo Rei de Sófocles procura
desqualificar as figuras do tirano e do sofista, este último enquanto profissional do
poder político e do saber, a análise de Michel Foucault irá combater um outro mito: o de
que, seguindo as razões do platonismo, existe uma antinomia decisiva entre saber e
poder. Ou seja: a crença de que ciência e saber não podem conviver com o poder
político.
Esse grande mito precisa ser liquidado. Foi esse mito que Nietzsche começou
a demolir ao mostrar, em numerosos textos citados, que por trás de todo
saber, de todo conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder.
O
poder político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber.
(FOUCAULT, 2002, p.51)
A seguir, ainda que brevemente e sem pretensões maiores que a de suscitar
outras abstrações, tentar-se-á resumir o que Friedrich Nietzsche (1992) nos propõe
acerca do tema tratado, sobretudo naquilo que é objeto de seu primeiro livro: O
nascimento da tragédia.
109
5.4. APOLO E DIONÍSIO
As cenas são parecidas. Da primeira, que certamente não é cronologicamente
anterior à segunda, foi falado aqui. Trata-se de Édipo quando, frente a frente com o
divino adivinho Tirésias este que agora é cego e homem, e que gozou como
mulher, apartando o sexo das serpentes e resolvendo até mesmo disputas entre os
deuses trata-se de um Édipo que pergunta ao bruxo: Sabes a verdade e não falas?
(SÓFOCLES, 2002, p.33). Sim, a pergunta é daquele que quer saber. Não porque não
saiba, como se pôde vislumbrar a partir da análise de Michel Foucault, mas porque
necessita de confirmações para uma verdade que precisa ser dita, redita, confirmada e,
indo e vindo, inaugurada, reinstaurada.
À indagação do ainda rei de Tebas, Tirésias pretende não responder. Pede que
lhe mande embora, chama insensatos a Édipo e a todos, o quer falar de males. Mas
a devassa prossegue e, depois de ser acusado – ele mesmo, o áuspice cego de ser o
assassino de Laio, por não querer dizer o que sabe, Sófocles nos oferece a primeira
peripécia e, já no início do drama, elucida toda a trama. A visita de Tirésias, ao contrário
de trazer a resposta esperada, conduz àquilo que não se pretendia buscar: o
imprevisto: “Pois ouve bem: és o assassino que procuras!” (SÓFOCLES, 2002, p.35)
A partir da resposta do adivinho, mais à frente, no drama de Sófocles, Édipo irá
se convencer de que não é possível mais viver tendo apenas a beleza e o clarão de
Apolo a pretensamente lhe iluminar os caminhos. Ele precisará de mais: tudo isso e
muito mais. O da forca que lhe ata os pés vai se desprender da árvore parteira e,
para ele, será então preciso experimentar a noite de Dionísio; reconhecendo as
110
pessoas pelo tato; comendo comidas sem ter que apreciá-las antes; levando para a
alma, em cheiros, aquilo que os seres e as coisas exalam. Êxtase e embriaguez?
Então, por não se conhecer, Édipo poderá sair em busca de si próprio, tendo como
companheiro apenas o vigor das sensações.
A outra cena acontece de maneira inesperada, com crueldade semelhante, numa
mitologia que é a mesma e que também é mais antiga. Ela nos é narrada por Friedrich
Nietzsche (1992), em seu O Nascimento da Tragédia. Nela, o velho Sileno, nascido das
gotas do sangue de Urano, quando este foi castrado por Cronos, é perseguido pelo
famélico rei Midas, da Frígia. Capturado, o pai dos Sátiros, companheiro de Dionísio
que possui como características mais determinantes a sabedoria, a feiúra e, como o
poderia deixar de ser, a embriaguez, tem, como o sabedor Tirésias diante da
insensatez e presumida ignorância de Édipo, uma pergunta a responder. Midas quer
saber qual, dentre todas as coisas, é a melhor e a mais preferível para o homem. Como
escreve o criador de Zaratustra, a resposta do daimon vem acompanhada de um sorriso
amarelo:
-Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me
obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo
é para ti inteiramente inatingível: o ter nascido, o
ser, nada
ser. Depois
disso, porém, o melhor para ti é logo morrer. (NIETZSCHE, 1992, p.36)
O que o rei Midas ouve é aquilo que Édipo, quase ao final do texto de Sófocles,
dirá a si mesmo: “Ah! Luz do sol. Queiram os deuses que esta seja a derradeira vez que
te contemplo! Hoje tornou-se claro para mim que eu não deveria nascer de quem nasci,
nem viver com quem vivo e, mais ainda, assassinei quem não devia!(SÓFOCLES,
2002, p.82) Com tal fala, o que esse Édipo de estirpe miserável e efêmera faz é
111
concordar com as palavras de Sileno. O filho e esposo de Jocasta, depois de destruir
totens e quebrar tabus, sabe, junto com o pai dos tiros, que não devia ter nascido e
só o que deseja é morrer. Não quer mais ver a luz do sol, essa luz de Apolo que acabou
por lhe conduzir à cegueira, tornando-o o pior dos cegos. E o pior dos cegos, ao
contrário do que diz o refrão popular, talvez não seja aquele que não quer ver, mas
aquele, como este Édipo humano, que quer ver.
A visão de Friedrich Nietzsche a respeito de Édipo não diz respeito à
personagem ou ao texto específico de Sófocles. Ela fala de uma maneira filosófica de
enxergar o mundo. Para esclarecer brevemente aquilo que interessa mais de perto a
esta dissertação, tentar-se-á demonstrar, de modo resumido, o que o filósofo alemão
pensa sobre a tragédia entre os gregos, assim como está em seu primeiro livro,
citado anteriormente.
As idéias contidas em O Nascimento da tragédia, obra publicada pela primeira
vez em 1872 e reeditada quatorze anos depois, começam a ser urdidas em 1870, a
partir de três textos escritos neste período em que Nietzsche, ainda aos 25 anos, é
professor da Universidade de Basiléia, quais sejam: “A visão dionisíaca do mundo”, “O
drama musical grego” e “Sócrates e a tragédia grega”. Tais conceitos irão, de certa
maneira, configurar uma ordem heterodoxa na análise não apenas da antigüidade
grega, mas também na influência do socratismo e do platonismo sobre a cultura
ocidental.
Nessa sua obra inaugural, o filósofo alemão, influenciado por Arthur
Schopenhauer, irá interpretar a cultura clássica grega a partir do encontro de forças que
se poderiam dizer opostas. De um lado, tem-se o apolíneo, impulso representado,
desnecessário dizer, pelo deus grego Apolo, e ligado à perfeição, à medida de ações e
112
formas, à palavra e ao pensamento humanos. De outro, encontramos o dionisíaco,
inerente a Dionísio, deus do vinho, da sica e da dança, inicialmente cultuado entre
os povos da Ásia Menor e vinculado à exarcebação dos sentidos, à embriaguez mística
e à primazia amoral dos instintos.
É das celebrações a Dionísio que nascea própria tragédia grega. De acordo
com Junito Brandão (2004b), as chamadas “Dionísias Rurais” são sua fonte. A partir do
século V a.C., tais festas passam a ser enriquecidas com concursos dramáticos. E é
deste encontro entre um espírito apolíneo, sedimentado no sólo helênico, com um
outro dionisíaco, oriundo de povos que poderiam ser chamados “bárbaros”, que
acontece a tragédia grega. Segundo Nietzsche, tal forma artística será o exemplo a
partir do qual a vitalidade da cultura e do homem grego poderá ser percebida em sua
maior evidência. O que se tem aqui, valeria mesmo dizer, é o nascimento de um
homem trágico, que leva dentro de si a lucidez e a beleza de Apolo em embate
permanente com a embriaguez e o êxtase característicos de Dionísio.
Este ser apolíneo, para Nietzsche, é também o do indivíduo, o do Estado, da
consciência de si próprio. No entanto, tal individualidade, traduzida através do
principium individuationis, não passa de uma aparência que tem como finalidade
mascarar a essência humana. É neste sentido que o sujeito necessita da beleza de
Apolo: para se libertar da dor através da aparência. Logo no início de O Nascimento da
Tragédia, e depois de citar o princípio da individuação de Schopenhauer, é assim que
Nietzsche (1992) se refere ao deus sol:
Sim, poder-se-ia dizer de Apolo que nele obtiveram [os gregos] a mais sublime
expressão a inabalável confiança nesse
principium
e o tranqüilo ficar
sentado de quem nele está preso, e poder-se-ia inclusive caracterizar ApoIo
113
com a esplêndida imagem divina do
principium individuationis,
a partir de
cujos gestos e olhares nos falam todo o prazer e toda a sabedoria da
‘aparência’, juntamente com a sua beleza. (NIETZSCHE, 1992, p.36)
Dionísio surge, então, para dar o contraste, como se fosse a tinta negra que,
espalhada com determinação sobre o barro vermelho da ânfora de Exéquias, fizesse
surgir as figuras que nela podem ser vistas. E é a partir de tal contraste que o homem
grego deixa de ser criador da obra de arte para se tornar a própria obra, voltando-se
também para sua essência e deixando de dissimular a verdade. Como afirma Roberto
Machado (1999) em seu livro sobre Nietzsche, a oposição entre os dois instintos, estas
duas forças artísticas da natureza, era total.
A experiência dionisíaca, em vez de individuação, assinala justamente
uma ruptura com o principium individuationis e uma total reconciliação
do homem com a natureza e os outros homens, uma harmonia universal
e um sentimento místico de unidade; em vez de autoconsciência
significa uma desintegração do eu, que é superficial, e uma emoção que
abole a subjetividade até o total esquecimento de si; em vez de medida
é a eclosão da
hybris,
da desmesura da natureza considerada como
verdade e
exultando na alegria, no sofrimento e no conhecimento’; em
vez de delimitação, calma, tranqüilidade, serenidade,
é
um
comportamento marcado por um êxtase, por um enfeitiçamento, por uma
extravancia de frenesi sexual que destrói a família, por uma
bestialidade natural constituída de volúpia e crueldade, de força grotesca
e brutal; em vez de sonho, vio onírica,
é
embriaguez, experiência
orgiástica. (MACHADO, 1999, p.21-22)
No entanto, a marca da excelência da cultura clássica grega está, para o filósofo
alemão, na maneira como acontece o convívio entre o apolíneo e o dionisíaco. De
acordo com Nietzsche, a evolução da arte irá depender necessariamente do
antagonismo dessas duas forças. Em seus Fragmentos Póstumos, conforme Jean
Lefranc (2005), no livro Compreender Nietzsche, o pensador alemão reflete sobre tal
debate de maneira bastante esclarecedora:
114
Esta oposição do dionisíaco e do apolíneo no interior da alma grega
é
um dos grandes enigmas cuja sedução senti na presença do ser grego.
No fundo esforcei-me por nada mais do que adivinhar porque o
apolinismo grego devia surgir de um substrato dionisíaco, porque o grego
dioniaco teve que tornar-se necessariamente apolíneo; isto é, romper
sua vontade do monstruoso, do múltiplo, do incerto e do horrível por uma
vontade da medida, da unidade, da ordenação segundo a regra e o
conceito. Seu fundamento
é
a demência, a desordem, o asiatismo; a
coragem do grego consiste num combate contra seu próprio asiatismo; a
beleza o lhe
é
dada mais que a lógica, mais que a moral natural ela
é
conquistada, desejada, tomada de assalto à força ela
é
uma vitória
grega. (LEFRANC, 2005, p.71)
Mas a grande heterodoxia da leitura nietzschiana talvez se no fato de que,
depois de ver na tragédia que consagrou Sófocles o ápice dessa cultura clássica grega,
o filósofo nos mostra que o declínio de tal cultura parte do surgimento de um homem
racional, um sujeito escrito a partir do principium individuationis. É tal homem, cuja
marca principal é a figura de Sócrates, que acaba por colocar um fim à afirmação
daquele outro homem trágico. E é também tal sujeito construído pelo platonismo que,
grosso modo, irá pautar a ortodoxia hermenêutica da cultura ocidental durante os
séculos que seguirão também com o cristianismo a seu reboque.
De acordo com a condenação que Friedrich Nietzsche (2005) faz do pensar
filosófico que começará a ser operado a partir de Sócrates e que terá seu ápice nas
idéias de Platão, o socratismo despreza o instinto e, com isto, a arte(NIETZSCHE,
2005, p.83). Neste sentido, ao situar os três grandes dramaturgos gregos, Nietzsche faz
distinções que merecem ser levadas em consideração. Para ele, enquanto em Ésquilo
a repugnância dilui-se no sublime assombro diante da sabedoria da ordenação do
mundo, em Sófocles tal assombro é maior ainda, uma vez que esta sabedoria é
completamente insondável.
115
...a disposição de Ésquilo tem continuamente a tarefa de justificar a
justiça divina, e por isso se detém sempre diante de novos problemas.
Para Sófocles, o ‘limite do homem”, pelo qual Apolo ordena procurar, é
reconhecível. No entanto, ele é mais estreito e restrito do que Apolo
considerava ser na época pré-dionisíaca. A falta de conhecimento de si
no homem é o problema de Sófocles, a falta de conhecimento sobre os
deuses no homem o problema de Ésquilo. (NIETZSCHE, 2005, p.29)
Se a criação nesses dois primeiros autores traduz, para Nietzsche, um momento
em que a arte grega ainda não havia se impregnado de palavras como conceito e
consciência, com Eurípides as perspectivas serão alteradas. Segundo o filósofo
alemão, é este último dramaturgo que passa a seguir uma estética consciente, fazendo
eco, desta maneira, aos princípios socráticos que buscavam nada mais, nada menos
que a clareza de Apolo. Nas comparações feitas por Nietzsche entre os três nomes da
tragédia grega, Eurípides irá aparecer ao lado desta clareza que poderia ser traduzida
na própria busca da razão em Sócrates.
Ele [Eurípides] procura intencionalmente o que de mais
compreensível; seus heróis são realmente como eles falam. Mas tamm
eles se expressam inteiramente, enquanto os personagens de Ésquilo e
de Sófocles o muito mais profundos e plenos do que suas palavras:
propriamente, eles só balbuciam sobre si. Eurípides cria as figuras
enquanto, ao mesmo tempo, as disseca: diante de sua anatomia não
existe nada mais oculto nelas. (NIETZSCHE, 2005, p.80)
Assim, o que Friedrich Nietzsche parece querer dizer é que a construção desta
parte oculta é possível através do princípio dionisíaco, capaz do êxtase criativo. É tal
embriaguez que irá resultar, acredito, em personagens como Édipo e Jocasta, que se
caracterizam, na tragédia de Sófocles, pelo fato de deixar a essência do mito exposta, a
fim de que novas e múltiplas leituras possam ser feitas, de modo a buscar a existência
humana, como enseja o filósofo alemão, não nos fenômenos, mas naquilo que existe
por trás deles.
116
E é exatamente em função desta parte oculta que Sófocles nos deixa em Édipo e
Jocasta que, hoje, torna-se possível buscar interpretações que possam vislumbrar no
cegar-se do rei de Tebas o haver alcançado o êxtase dionisíaco. É esta embriaguez da
imaginação que também poderá oferecer a Jocasta uma interpretação menos
secundária que a de seu filho e esposo. Tais leituras feitas, é o que parece, a partir
dessa cegueira, desse êxtase e dessa embriaguez são o objeto do próximo e último
capítulo desta dissertação. Pelo menos em uma delas a do drama Jocasta Tirana,
produzido intencionalmente a partir das idéias aqui levantadas sobre o mito e sobre a
própria questão do gênero –, tentar-se-á levar a conseqüências apócrifas tudo o que foi
pensado neste trabalho até o momento.
117
6. DUAS LEITURAS HETERODOXAS
Como se viu até aqui, a leitura de um mito nunca pode ser esgotada. Passando
por análises consagradas e pautadas por uma determinada ortodoxia hermenêutica,
como a de Freud e Lévi-Strauss, até chegar a outras mais heterodoxas, como são a de
Michel Foucault e até mesmo a do psicanalista Hélio Pellegrino, o que neste breve
estudo se tentou foi, com as limitações inerentes a este trabalho e a seu trabalhador,
procurar enxergar no mito de Édipo sobretudo a partir de sua interpretação mais
célebre, a de Sófocles, inaugural do gênero dramático os mais variados e discutidos
aspectos que o rodeiam.
Sem perder de vista tudo isso, a proposta desta investigação é fazer um
apanhado teórico daquilo que foi pensado sobre a tragédia e sobre o próprio mito,
sempre vinculando o Édipo Rei do dramaturgo de Colono a aspectos da mitologia grega
e da filosofia. Tal busca conceitual, realizada a princípio sem o rigor metodológico
exigido pelo trabalho dissertativo e mais imbuída do espírito dionisíaco, foi aquilo que
possibilitou a escritura de um drama teatral que tentasse ser capaz de ilustrar alguns
dos pensamentos aqui relatados. Agora, neste capítulo, procurar-se-á oferecer este
mesmo drama como exemplo de análise heterodoxa no que se refere ao mito e à leitura
que dele fez Sófocles.
O resultado de tal trabalho foi a tragédia (anti-tragédia?) Jocasta Tirana, que aqui
será um dos dramas teatrais contemporâneos a serem analisados. Tal texto, inscrito no
“5° Concurso Nacional de Dramaturgia – Prêmio Carlo s Carvalho”, promovido pela
Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, obteve o segundo lugar. O
118
lançamento do livro com o texto da peça aconteceu na capital gaúcha, no último 30 de
agosto. A montagem de um espetáculo com o texto está prevista para o próximo ano,
uma vez que os membros do elenco e da equipe técnica já foram escolhidos, ensaios já
vêm sendo realizados e os produtores trataram de inscrever o projeto nas principais
leis brasileiras de incentivo à cultura.
A criação de Jocasta Tirana foi possível a partir da análise de cada uma das
idéias autorais alinhavadas nesta dissertação. Nesse sentido, além de refletir um
estudo eminentemente teórico, este drama também o faz, talvez dionisiacamente, como
propõe Friedrich Nietzsche, a partir das mesmas palavras que são colocadas na boca
dos dois principais personagens da história: a própria Jocasta e Édipo.
A proposta, portanto, foi sempre a de produzir uma peça teatral em cujo interior
fossem abordadas o que as análises de alguns dos autores aqui citados têm nos
revelado. No entanto, a situação dramática deveria também privilegiar uma leitura
heterodoxa do mito e de seus personagens. Em resumo, o que desde o início se
buscava era inverter a significação de maneira que a leitura teórica desse origem a uma
obra dramática e que este mesmo drama possibilitasse uma interpretação dissertativa
do tema.
Destarte, neste capítulo, o que se tentará desenvolver é a breve análise das
frestas e arestas que permitiram, por projeção, a escritura de Jocasta Tirana. E também
como esta obra dramática contemporânea pode oferecer uma leitura heterodoxa não
apenas da obra de Sófocles, mas também de seus personagens e da hermenêutica
ortodoxa que os cerca.
Antes, contudo, o capítulo também apresentaa abordagem de outro drama
contemporâneo escrito em língua portuguesa sobre o mesmo mito de Édipo e Jocasta.
119
Trata-se da peça teatral Um Édipo, de Armando Nascimento Rosa (2003). Dramaturgo
premiado em Portugal, Nascimento Rosa também é professor de Teoria e Estética,
Dramaturgia e Escrita Teatral na Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto
Politécnico de Lisboa.
Um Édipo, que foi editorialmente publicado em 2003, teve sua estréia cênica em
Lisboa, no Teatro da Comuna, em 4 de julho do mesmo ano. Os personagens da peça
são, em sua maioria, os mesmos do drama de Sófocles, o que caracteriza de maneira
exemplar uma leitura que se faz do mito e do próprio gênero, a partir de idéias
decisivamente contemporâneas, como procurarei, ainda que brevemente, demonstrar
aqui.
Assim, a análise dessas duas peças escritas como projeção da obra de Sófocles
tenta oferecer uma leitura distinta do mito e do gênero. O tempo em que se passa
Jocasta Tirana é a noite imediatamente anterior ao dia em que moços e anciãos
seguem até o palácio real de Tebas a fim de rogar uma solução para a peste que
ameaça a cidade. o texto Um Édipo irá mostrar um momento posterior aos sucessos
que a tragédia exemplar do dramaturgo de Colono relata. Em Armando Nascimento
Rosa, teremos uma espécie de acerto de contas entre os personagens do mito. Nele,
os fantasmas de Jocasta, Crisipo, Laio e Pélops irão dialogar com um Édipo cego e
com Tirésias e sua filha Manto.
Em cada um dos textos dramáticos, pode-se perceber a influência das idéias
formadoras desse nosso mundo contemporâneo, a partir de uma tragédia e de um
ideário mitológico que o se esgotam. Nunca se exaurem e, por isso mesmo, a partir
do que, de acordo com Jean Lefranc, Nietzsche chama “arco-íris dos conceitos”
(LEFRANC, 2005, p.43)
, estão sempre a cumprir o fado de trazer novas e diferentes
120
interpretações para uma história imensa de possibilidades analíticas. Sim, esta história
de um Édipo e de uma Jocasta ao mesmo tempo humanos e quiméricos, que,
independentemente do tipo de leitura que se faça, também não deixa de ser a história
de todos e de cada um de nós.
6.1. ESPELHO DE FANTASMAS
No centro do palco, Tirésias pergunta a Jocasta o que ela está fazendo naquele
lugar. Em torno do pescoço daquela que foi rainha de dois reis, um longo lenço
esconde o vergão negro de enforcada. Jocasta foi ao encontro de Tirésias na
esperança de que ele lhe ensinasse a viver a morte, uma vez que ela ainda se julga
presa à vida. Mas o daimon o sabe. Seus poderes não são suficientes para guiar os
mortos no caminho do Hades. Jocasta insiste, pensa que está viva. Tirésias ironiza,
lembrando que nada é mais patético que o teatro de um morto que julga ainda viver.
O início de Um Édipo, de Armando Nascimento Rosa, é esclarecedor no que
se refere àquilo que o público irá encontrar no espetáculo. Dos sete personagens
envolvidos na trama, quatro deles são fantasmas que parecem buscar no espelho do
que viveram algum reflexo que possa ter ficado para trás. Jocasta, por exemplo, ao ir à
procura do velho adivinho num mundo que o lhe pertence mais, parece estar à
procura de migalhas de sua própria vida, querendo compreender aquilo que talvez não
necessite mais ser entendido. Pálida, ela chegou a Tirésias depois da intermediação de
Manto, filha e herdeira do bruxo.
121
E é exatamente aqui, na ação e na personagem de Manto, que acontece a
primeira transgressão de Armando Nascimento Rosa (2003). A filha de Tirésias não
herdou apenas os poderes divinatórios do pai. Ainda no princípio da peça, o próprio
Tirésias afirma que ela deverá substituí-lo. Uma mulher que substitui um homem. Mas,
sobretudo, uma mulher que, ousada, não quer para si o destino do pai. Manto possui
outros planos, tem suas próprias Hýbris a cometer. Ela quer ser atriz, representando
nos palcos os mitos engendrados pelo viver humano.
No entanto, a transgressão de Manto é logo apontada por seu pai. Mais do que
qualquer um, Tirésias, que foi mulher, sabe como são tortuosos e mais difíceis os
caminhos femininos pela Hélade. É por isso que ele, até ser convencido do contrário ao
final do espetáculo, não quer que sua filha tenha sonhos impossíveis. Antes, será
melhor que ela, usando os dons que lhe foram legados, decifre os possíveis sonhos das
gentes. Nesse sentido, a resposta que Tirésias dá para os anseios de sua filha é
esclarecedora:
TIRÉSIAS
Minha filha, pareces ter esquecido que os teatros de Atenas não contratam
mulheres. De nada te serve tentares a sorte. Algum mestre de cena dirá se te
vir inspirada: - A menina nasceu com talento... Para depois acrescentar,
torcendo o nariz como um pedante: - Mas é uma pena que seja desprovida de
membro viril. Assim não poderá subir aos palcos da Grécia! (ROSA, 2003,
p.33)
A transgressão de Manto estaria, portanto, permeada por uma motivação quase
heróica, sobretudo quando encarada do ponto de vista da antigüidade grega, num
tempo em que, é sabido, as mulheres não possuíam direitos semelhantes aos dos
homens. O que a vontade de Manto faz é, simbolicamente, igualar seu desejo ao do
homem. no final do espetáculo, depois de ouvir as aflições dos mortos e dele próprio
122
se tornar um deles, Tirésias muda de idéia. Não apenas muda como aconselha que ela
não mais ouvidos a “mortos vagabundos”. Depois de indicar até mesmo o lugar do
Egeu para onde Manto deve ir Lesbos, ilha onde as mulheres sobem ao palco
Tirésias diz suas últimas palavras à filha: “- antes voz aos vivos nos ritos de Dioniso.
No palco encontrarás a harmonia.” (ROSA, 2003, p.51)
Dessa maneira, pode-se mesmo dizer que o destino de Manto está selado. Ela
seguirá o conselho do pai e irá para Lesbos, buscando no ofício das máscaras uma
pretensa igualdade com os heróis. Poder-se-ia mesmo dizer que este momento de
desejo da transgressão possui a marca da contemporaneidade, gravada com
determinação por Armando Nascimento em sua projeção da obra de Sófocles.
Mas a Hýbris de Manto não é a única marca de um olhar contemporâneo sobre
ações e personagens antigos e mitológicos que pode ser encontrada na obra do autor
português. As falas do próprio espectro de Jocasta estão repletas de sinais da
contemporaneidade, que podem ser feitos a partir de um olhar autoral que conviveu
com as interpretações do mito que fizeram Sófocles, Freud, Lévi-Strauss, Nietzsche e
outros mais.
morta e escondendo o vergão terrível do pescoço, Jocasta parece querer
saber aquilo que sabe. É como se conversasse com sua própria imagem no espelho.
Talvez seja por isso que ela, que caminhou até Tirésias para que ele lhe ensinasse a
viver a morte, diz que, se morreu, escapou ao próprio tempo, convivendo com todas
as épocas como se fossem uma única. Temos, então, um diálogo intertextual com o
Édipo Rei de Sófocles, quando Jocasta cita o dramaturgo de Colono como o
responsável, através de sua escrita, pelo fato dos nomes de ambos virem a habitar a
“eternidade dos mitos”.
123
Mas tal eternidade, como se pôde ver até o momento nesta dissertação, tem
sempre o olhar do tempo a partir do qual essendo encarada. Na obra de Armando
Nascimento Rosa (2003), isto o acontece de maneira diferente. O primeiro quarto de
Um Édipo acontece num diálogo entre Tirésias e o espectro de Jocasta, permeado por
uma estratégia própria de carpintaria cênica em que o adivinho um texto que é seu
mas que não faz parte do diálogo propriamente dito, e sim de uma fala dita em outro
tempo e para um outro interlocutor. É desta maneira que o mito de Tirésias é contado.
No entanto, temos na história perspectivas autorais, que se distanciam das versões
mais conhecidas do mito. O próprio Nascimento Rosa, em posfácio que faz da edição
de sua obra, comenta ao mesmo tempo aquilo que poderíamos chamar de “sua própria
revisão do mito” e o desejo de Manto pelas artes cênicas:
Para além de aprendiz do mester de adivinha (função concordante com a
tradição mitológica que Séneca seguiu), tornei-a desejosa de exercer uma
profissão interdita no seu tempo: a de actriz, com ressonâncias explícitas a
uma certa misoginia nada anacrónica em contextos teatrais hodiernos.
Outra das liberdades com que me surpreendi na escrita, foi a reinvenção
da história de Tirésias no seu tnsito entre sexos. Afinal, a história das
serpentes estava mesmo mal contada, e os dicionários de mitologia
andavam a pedir-me um acrescento nos seus verbetes... (ROSA, 2003,
p.66)
Trata-se, como o próprio autor afirma, de incursão deliberada pelo terreno
mitológico, com privilégios determinantes para a liberdade de criação. Tal fato, diga-se
de passagem, não é prerrogativa exclusiva do tecido dramático contemporâneo. Como
sugere Nietzsche em seu O Nascimento da Tragédia, a profundidade e a plenitude
dada por Sófocles a suas personagens só poderia ser creditada ao que poderíamos nos
arriscar a chamar “capacidade criativa” ou, para manter o léxico nietzschiano,
“embriaguez e êxtase dionisíaco”. Não houvesse tal liberdade de criação, o Édipo Rei
124
de Sófocles talvez nos contasse uma história na qual o filho e esposo de Jocasta não
se cegaria, continuando, depois de saber que é, na verdade, um parricida incestuoso,
como rei dos tebanos, assim como narra a versão que Homero nos oferece do mito em
sua Odisséia.
Se a invenção criativa de Nascimento Rosa não é algo exclusivo de seu tempo,
outras questões de Um Édipo parecem ser. Uma delas é a comparação que o autor faz
da vida com o fazer teatral. Trilhando um caminho singular que poderia considerar-se
construído a partir de conceitos nietzschianos como os de essência e aparência, coisa-
em-si e fenômeno, vontade e representação, a Jocasta criada pelo dramaturgo
português, ao relatar a lenda de Tirésias, encaminha-nos à reflexão com frases como:
“Tirésias mentia à vida porque para ele a vida era essencialmente uma mentira. Como o
teatro” (ROSA, 2003, p.18 e 19).
A perspectiva que se tem da relação incestuosa é mais um traço de leitura
contemporânea do mito que pode ser encontrado na obra de Armando Nascimento
Rosa. Ao refletir frente a seu espelho, Jocasta não a importância que outros
estudiosos e escritores deram a este tabu. A frase Só o conhecimento nos salva, meu
amigo(ROSA, 2003, p.15) mostra uma personagem mais preocupada consigo própria
do que com a discussão de questões atemporais, como certamente é a do incesto.
Talvez seja por isso que, para a Jocasta de Nascimento Rosa, o incesto é uma questão
até mesmo vulgar. Em uma fala que pode ser semelhante àquilo que encontramos no
próprio Sófocles (2002), quando sua rainha de Tebas diz a Édipo que muitos mortais
em sonhos subiram ao leito materno(SÓFOCLES, 2002, p.67), Nascimento Rosa
(2003) vai direto ao assunto e nos interpõe, através do texto de sua enforcada, uma
conclusão com definições decisivamente contemporâneas para o referido tabu:
125
Tudo me parece agora tão simples. Os homens amam as mulheres porque
desejam mergulhar de novo no mar das delícias que os trouxe para o
mundo. Mesmo que as sintam suas filhas, elas são extensões vivas de si
próprios e por isso mães na mesma, promessas de futuro. As mulheres
jogam o mesmo jogo e no corpo do amante juntam o pai ao filho
imaginado. O amor é um incesto universal. Não valia a pena ter-me
enforcado por uma causa tão vulgar como esta. (ROSA, 2003, p.24)
Depois do diálogo entre Tirésias e Jocasta, segue-se a introdução das demais
personagens, com participação mais intensa de Manto, um dos dois únicos papéis
dramáticos que permanecerão vivos até o final do espetáculo, sendo o outro o próprio
Édipo. Os primeiros a entrarem em cena são Crisipo e seu pai, Pélops, este último
incorporado em Tirésias. Eles conduzirão o debate a respeito de mais uma lenda da
mitologia grega: a da culpa primordial da casa dos labdácidas que origem ao próprio
mito de Édipo. Aqui, Laio é mostrado a partir de uma perspectiva determinantemente
sedutora, criando enganos e conduzindo farsas para conseguir o que quer do belo
Crisipo. O chamado amor contra naturam entre Laio e Crisipo é narrado, a princípio, de
maneira bastante semelhante às que o encontradas nos dicionários de mitologia
grega sem que, no entanto, tenha o arremate comum a qualquer versão mais
conhecida.
Depois de tal narrativa e do diálogo mencionado entre Tirésias e sua filha
sobre as impossibilidades femininas no que se refere ao exercício das atividades
cênicas, temos a entrada de Édipo. E é depois da entrada de um Édipo cego e, na
estratégia de Nascimento Rosa, ainda mais cheio de dúvidas, que temos o ponto fulcral
do espetáculo. Ou seja: o assunto que sentido a Um Édipo. Trata-se do
esclarecimento do caso entre Laio e Crisipo. A principio tratado com singular
perspectiva homofóbica, através de falas em que personagens como Crisipo, Pélops
(encarnado em Tirésias) e a própria Jocasta condenam com veemência o episódio,
126
Nascimento Rosa diz a que veio e explica sua obra, criando, por meio da narração do
próprio Crisipo, o ponto principal de sua criação.
Em tal cena, o jovem amante de Laio que, em Um Édipo, havia morrido ao fugir
da perseguição de Laio, conta que, depois de morto, como espectro visível pela
vontade dos deuses, era ele quem estava ao lado do rei de Tebas quando este foi
assassinado pelo viajante que vinha fugido de Corinto. Crisipo decide voltar atrás em
sua fuga das investidas de Laio. Nesse sentido, é como um fantasma que ele se põe
a falar consigo mesmo:
Nesse dia eu estava bem visível. o me perguntes porquê. Os deuses assim
o quiseram. Eu vogava à toa como um cardo no ciclone e dei por mim a pensar
em Laio, naquele homem a quem não perdoei a minha morte. Foi Afrodite que
me tentou nessa hora. Cismei tantas tolices indignas de mim ... Pus-me a falar
para a sombra que sou: - Parvo que tu foste, Crisipo. Em vez de fazeres o
papel da virgem assustada, porque não correspondeste com prazer às carícias
de Laio? Afinal de contas tu estavas vaidoso por seduzires um rei desterrado.
Podias ter tido uma noite de amor diferente daquelas que costumavas gozar
com as escravas. Quantos jovens na Grécia não invejariam a sorte de ser
raptados como tu, num cavalo negro? E hoje em vez de andares a assombrar
os caminhos, vestias a capa púrpura de favorito do rei na corte de Tebas.
Quem sabe até se ele não iria aborrecer os beijos de Jocasta, tendo-te por
perto? Ocuparias o leito real e Édipo nem teria oportunidade de nascer. (Ri-se)
Estátuas de ApoIo seriam esculpidas copiando-te a beleza. O amor de Laio
tornar-te-ia imortal na memória dos gregos. Ah Crisipo! Tão asno que tu foste.
O destino trouxe-te a taça da fama e tu atiraste-a ao rio com o vinho da vida
dentro. (ROSA, 2003, p. 42-43)
Em seguida, Laio entra em cena, incorporando-se a Tirésias, fato que, no final do
drama, causará a morte do adivinho. Também seu fantasma quer dar a própria
interpretação do que ocorreu. Na verdade, ao se deparar com o belo jovem sentado a
seu lado na carruagem, Laio imagina que a visão é a de seu próprio filho. Os crimes
então se fundem e se confundem. Para o rei de Tebas, que logo em seguida se
127
assassinado, a culpa pela morte de Crisipo equivale à culpa pelo filicídio que ele
pensava haver cometido.
Neste exato momento, entra também Édipo que, com sua versão da história,
escreve uma página de verdadeira homofobia, isto sim inusual para os parâmetros de
compreensão da contemporaneidade e até mesmo para a antigüidade grega, como o
próprio Édipo de Armando Nascimento Rosa (2003) chega a confessar com as
seguintes palavras:
Seria emboscada de salteadores ou avaria do engenho? Desci para averiguar.
E o que vejo ali, ó deuses! dois homens enroscados como serpentes na
encruzilhada. Um mais velho e outro mais novo, com idade para ser seu filho.
Aquilo repugnou-me. Eu sei que é costume grego, mas não acho que seja
salutar. Não posso desejar a morte a todos, pois nesse caso ficava a Grécia
despovoada e vulnerável à conquista dos bárbaros. Mas confesso que às
vezes me dá ganas de matar uns quantos, apanhados em flagrante, para
aliviar a minha ira. E estes não tinham achado melhor sítio para dar vazão ao
ardor dos sentidos, do que ali, estacionados na curva. O mais novo olhava-me
calado e com cara mortiça. Pareciam ambos meio palermas. Desafiei o mais
velho. (Para Laio/Tirésias.) Você tem idade para ter juízo! Que coisa é esta
de impedir o trânsito e fazer da estrada um sítio de deboche? (ROSA, 2003,
p.46)
Depois da explicação calorosa de Édipo, o texto de Nascimento Rosa tem seu
desfecho com a mencionada morte de Tirésias e um diálogo entre Jocasta e Manto,
com aquela reproduzindo os conselhos que Tirésias, a caminho de Hades, a sua
filha: de que ela siga seus desejos e para Lesbos, fazer teatro. O fantasma de
Jocasta beija Édipo e se retira, para que ele e Manto troquem breves palavras e cada
qual parta em busca de sua Moira. Manto, procurando seu ofício. Édipo, errando cego
pelos caminhos da Hélade e vindo dar até mesmo a Portugal e Brasil, onde, parece,
temos esperado por ele junto com nossas incertezas e com nossas próprias ações.
128
Como seu autor afirma, o eixo dramático de Um Édipo gira em torno das figuras
de Tirésias e Jocasta. Nascimento Rosa (2003) confessa, no posfácio da edição de sua
obra, que a apropriação da lenda tebana lhe surgiu pelo fascínio face à singularidade
mítica de Tirésias, e pela vontade de embrenhar no mistério humano de Jocasta
enforcada (ROSA, 2003. p.67). Daí sua opção de trabalhar com espectros
fantasmáticos que fazem, no espetáculo, uma espécie de balanço de suas vidas e
daquilo que elas possuem de insolúvel. Quanto à sua dramaturgia, o autor vai, como
se mostrou, aquém e além de uma temática especificamente edipiana.
Nesse sentido, poder-se-ia mesmo afirmar que a grande novidade na cena de
Armando Nascimento Rosa é a abordagem que o autor português faz heterodoxa,
diga-se de passagem da lenda de Laio e Crisipo como objetos inaugurais,
motivadores e explicativos da tragédia de Édipo e Jocasta. Ao fazer isso, Nascimento
Rosa (2003) lembra um aspecto interessante e raramente abordado: o de que, antes
do parricídio perpetrado por Édipo, existe um filicídio freqüentemente esquecido, ou
deliberadamente ignorado(ROSA, 2003, p.68). Em sua abordagem autoral, como ele
mesmo afirma no remate de seu livro, Nascimento Rosa lembra o filicídio como o
desejo de anular gerações subseqüentes:
O desejo de asfixiar os que nasceram depois parece-me tratar-se de uma
sociopatia persistente, pelo que as implicações empíricas do complexo de Laio
são das mais (im)pertinentes reflexões que este Édipo pretende propor aos
espectadores/leitores. (ROSA, 2003, p.69)
Além disso, cumpre finalizar esta breve análise de Um Édipo lembrando o
destaque que o autor dá às personagens femininas. Sua Manto transgressora das
tradições helênicas e sua Jocasta que ressurge dos mortos para centralizar a cena
129
trágica ao lado de Tirésias são abordagens pouco comuns para uma temática da
antigüidade grega como a edipiana. A seguir, a abordagem de outro drama este,
escrito de maneira deliberada para ilustrar as propostas heterodoxas de leitura desta
dissertação tentalevar a novos termos a participação de Jocasta neste universo
dramático/hermenêutico.
6.2. MIRANDO JOCASTA
A idéia é de que nós, seres humanos herdeiros de mitos como o de Édipo e
Prometeu, e de hermenêuticas como a de Sócrates, Platão, Aristóteles e Freud, para
citar apenas algumas, estamos habituados a enxergar o mundo a partir de uma
linguagem determinada. Como aqui mesmo nesta dissertação se disse, tal
linguagem possui princípios definidos, um código de significantes desde os quais nossa
leitura dos fatos e das sensações se processa.
Aristóteles, em sua Poética, ao analisar a composição da tragédia grega, é como
se estivesse mencionando tais significantes que mantêm presos nosso olhar ocidental.
Nesse sentido, o que se quer aqui defender é que o entendimento do que nos cerca
está condicionado a elementos como o que se refere à luz do dia, à pretensa
luminosidade apolínea e platônica, e às ações masculinas, tomadas sempre a partir das
obras dos anĕr vigorosos que permeiam nosso imaginário. Exemplo disso pode ser
encontrado de maneira prática na própria definição temporal da tragédia, que segundo
130
Aristóteles deve acontecer no transcorrer de um dia, e nos complexos e hermenêuticas
mais consagrados – o de Édipo, um deles.
Quando Friedrich Nietzsche, nos anos 1870, fez sua leitura da antigüidade grega
a partir de outros conceitos, o próprio filósofo alemão foi estigmatizado por muitos de
seus contemporâneos. Grosso modo, o que Nietzsche afirmava batia de frente com
toda uma tradição clássica, platônica, condicionante do pensamento ocidental e
componente essencial dessa linguagem que aqui se procura definir. Sua condenação
do socratismo foi, como se sabe, desde os primeiros ensaios, rechaçada como
verdadeira heresia pela intelligentsia do momento.
Levando-se em consideração, a partir das propostas de Friedrich Nietzsche, que
existe uma hermenêutica clássica, fundada nesse dia de Apolo, mas que também há,
por trás da aparência, uma maneira de criar o mundo que não pode ser medida por
esses mesmos parâmetros da tradição, é que se procurou produzir uma situação
dramática que invertesse a lógica do dia e dos feitos masculinos. A proposta, portanto,
era compor uma tragédia (anti-tragédia?) que tivesse suas ações definidas na
escuridão da noite e que jogasse o foco principal sobre a personagem que, na versão
mais clássica, era antes iluminada apenas como coadjuvante.
A história escolhida para tal investida foi a mais tradicional possível. Aquela a
partir da qual complexos psicológicos foram criados, outros dramas teatrais encenados,
inúmeras versões oferecidas. Tratava-se, portanto, da história de Édipo. E o mais
interessante é que, apenas com o mencionar o nome do mito, o fazíamos desde a
perspectiva tradicional que ainda pouco foi aludida. Se na lenda temos também um
protagonismo de ações que parte de uma mulher, por que a citamos sempre desde seu
protagonista homem? A resposta para esta pergunta pode ser encontrada naquilo que
131
aqui se quer defender: porque nosso olhar que busca entender o mundo percorre
sempre o layout do masculino, e aquilo que de pretensa verdade ele encerra, ao vir
amiúde iluminado e, deste modo, justificado por uma razão clássica e apolínea.
A partir de tais parâmetros, buscou-se criar uma situação dramática que fosse
também uma leitura do mito executada pelo olhar de Jocasta, e que tivesse sua ação
entre o ocaso e a alvorada isto é, iluminada pela luz da noite. Com base em tais
definições, o que se começou a perceber é que o protagonismo de Jocasta na lenda
consagrada em todo o ocidente é igual, senão maior, que o do próprio Édipo. Se é ele a
criança que deve morrer, ela é a esposa que permanecerá no poder. Se é ele o sujeito
que mata seu pai, ela é a mulher que manda matar seu filho. Se é ele o filho que dorme
com a mãe, ela é a mãe que dorme com o filho. Se é Édipo o herói que desfaz os
enigmas, é Jocasta o prêmio e fio condutor e original de tal sabedoria. Além disso, os
dias de Aristóteles foram sempre precedidos e seguidos de noites nas quais guerras
foram tramadas, poderes defendidos, planos arquitetados, filhos feitos, sonhos e
pesadelos realizados.
A tarefa de criar qualquer coisa sobre a lenda tebana para, em seguida, tomá-la
como objeto para um estudo dissertativo é algo que soa, desde o princípio, pretensioso
e, talvez, inútil. O muito que foi dito sobre o tema não chega a servir de grande
estímulo nem para o criador nem para o ensaísta. Contudo, sem deixar de lado aquilo
que Colette Astier nos recorda a propósito de Édipo enquanto mito da literatura, o
desejo de delirar junto com Dionísio foi maior do que as razões de Apolo.
Colette Astier, em ensaio que define o verbete Édipo no Dicionário de Mitos
Literários de Pierre Brunel (2000), nos mostra de maneira intransigente como as
tragédias escritas por Sófocles explicam de tal maneira o mito que, se não chegam a
132
esgotá-lo, confundem-se com ele próprio. Trata-se, como afirma a autora, de uma
herança pesada, deixada à posteridade para se tornar exemplar, convertendo-se em
um modelo que poderia ser dito canônico, tido sempre como referência obrigatória em
qualquer momento, seja ele de criação ou de reflexão teórica. Segundo Astier, os
cuidados devem ser muitos. É o que ela mostra ao lembrar autores consagrados que
também ousaram tal investida:
Tornou-se, então, necessário redescobrir sem repetir. Mas para tanto, teve-se
que retorcer o texto ou o contexto para não haver plágios. Para tanto, teve-se
que deslocar os enfoques com o único objetivo de produzir-se o novo. Quer se
trate de Platen, Gide, Cocteau, e até mesmo de T.S. Eliot, o empréstimo
tomado a Sófocles acompanha-se de uma recusa de Sófocles; o fascínio
acompanha-se de uma rejeição. Daí, os Édipos modernizados, livres, como
dirá Cocteau, da poeira da obra-mestra: La Machine lrifernale (A máquina
infernal, 1934) e o Édipo (1931) de Gide; The Elder Statesman (O estadista
mais antigo; em fr. Fin de Carriere, 1959) de T.S. Eliot. (BRUNEL, 2000,
p.309)
A identificação entre tragédia e mito e, mais tarde, do próprio mito com o
complexo criado por Sigmund Freud também são temas abordados pela ensaísta.
Sobre a invenção freudiana, a estudiosa francesa é eficaz em lembrar que tal criação
teve o poder de dar origem ao mito da psicanálise, que talvez deva ser interpretado
como um mito do mito (BRUNEL, 2000, p.311). No que se refere às tragédias de
Sófocles, um dos pontos mais provocadores discutidos por Colette Astier (BRUNEL,
2000) se refere ao fato de que, ao escrever sobre Édipo, o dramaturgo faz, na verdade,
também uma interpretação do mito, a partir do gênero dramático, como aqui se
tentou mostrar.
Para nós, que praticamente não dispomos de versões completas da história de
Édipo anteriores a Sófocles, torna-se bastante trabalhoso destacar aquilo que
é da natureza do mito e aquilo que é matéria da tragédia. Pode-se
133
simplesmente achar que as duas tragédias cobrem a totalidade da biografia
edipiana e que o dramaturgo, tendo de escolher entre as diferentes versões
que se lhe ofereciam, viu-se na contingência de evocar todos os seus
episódios. Mas ao fazer isso, cristalizou-lhe os dados. Deu-lhes uma estrutura
literária. Da biografia de Édipo, fez um destino. Em suma, ele interpretou.
Interpretou inclusive duplamente os dados anteriores, ou seja, emprestando-
lhes ao mesmo tempo forma e sentido, e, por conseguinte, uma intensidade
que talvez estará para sempre presente, como uma fascinante e avassaladora
herança às gerações de dramaturgos cativadas pelo assunto. (BRUNEL, 2000,
p.308)
Foi exatamente este fascínio que me levou à Hýbris da escritura de Jocasta
Tirana e à própria reflexão sobre o tema. As escolhas antecipadas ao ato de criação
propriamente dito foram feitas a partir de vários autores aqui mencionados. Mas, desde
o início, o se projetou compor uma Jocasta e um Édipo modernos, a não ser pela
inevitável concentração sobre temas atemporais e por aquilo que se poderia chamar
sintaxe autoral. Antes, a idéia era a de procurar personagens que se mantivessem no
limiar da versão do mito oferecida por Sófocles e pelos compêndios mais consagrados
de mitologia grega escritos ou traduzidos para a língua portuguesa. Em seguida,
manteve-se a proposta de projetar em Jocasta o foco principal, invertendo-se também,
como foi dito, a lógica aristotélica que define o tempo da ação dramática. Assim, sem
grandes pretensões, até mesmo em função de minha própria precariedade
hermenêutica, foi escrito um drama cujo story line poderia ser “um diálogo entre Édipo e
Jocasta na última noite que passaram juntos”.
Nada mais do que isso. Mas, a partir deste tema, a quantas reflexões uma mente
dionisíaca não estaria exposta? Reflexões e invenções, é claro. A primeira delas, que
remete claramente a um pensamento de Colette Astier, é a de tentar manter trágicos o
Édipo e a Jocasta mencionados. Não o trágico no sentido que o gênero lhe confere,
assim como está disposto em Aristóteles. Mas que não fossem perdidas, mesmo sem
134
poder evitar condicionantes inerentes à própria época da escritura de Jocasta Tirana,
as dimensões significantes destes dois personagens uma delas, como se pôde ver
neste estudo, a da importância que a própria trama de Sófocles ao papel do destino,
da Moira.
A partir daí, contudo, as perspectivas foram alteradas. Transformadas por uma
Jocasta que claramente se impõe a um Édipo indefeso pela iminência daquilo que
virá e pelas lembranças e reflexões sobre um passado que é de ambos e de cada um.
Na verdade, investiu-se em hipóteses que podem até mesmo parecerem absurdas para
leitores mais ortodoxos do mito e da tragédia de Sófocles.
A primeira delas está baseada nos momentos em que Jocasta, no texto do
dramaturgo de Colono, tenta convencer Édipo de que muitos mortais em sonhos
subiram ao leito materno(SÓFOCLES, 2002, p.67). Este é, por assim dizer, o indício
para que se possa acreditar que, em toda a trama, Jocasta é a que mais sabe, ou
melhor, que tudo sabe. É ela que, desde o início, não se importa em ser oferecida como
prêmio para que seu poder não desapareça junto com a cidade de Tebas e a peste que
a consome. E é ela também que, com a experiência que a idade talvez tenha podido lhe
oferecer, dormiu inúmeras noites com o homem que derrubou a divina cantora e, com
ele, teve nada menos que quatro filhos. Sobretudo é ela quem entrega, mãe, o filho ao
carrasco e que, por isto mesmo, poderia, quem sabe?, em noites de dionisíaca lucidez,
haver de, nem que fosse em sonhos, lamentar seu ato e seu próprio tempo.
A outra hipótese na qual se investiu se refere a Édipo e a sua Moira. Aqui, a
aposta é que, antes, o destino que está traçado para o rei de Tebas, especialmente em
Édipo Rei, não é senão o haver-se com Jocasta. È ela quem lhe à luz; é ela quem o
envia ao Hades; é para ela que, ao fugir do que acredita ser seu destino, ele volta; é ela
135
que será a mãe de seus quatro filhos; e é Jocasta, sobretudo também, que ele mata, ao
buscar uma verdade que, mesmo sendo um sagaz decifrador de enigmas, não
conseguiu enxergar. Neste sentido, o que se quer dizer aqui é que a Moira de Édipo é a
própria Jocasta.
E, se Jocasta é Moira, é ela também quem sabe, é para ela que o poder
mesmo que a partir dos escuros de todas as noites em que sonhou, amou e bateu-se
com seu filho e esposo deve estar voltado. É ela quem sabe. É dela, mulher, que
parte este saber escondido mas que, acredito, nos oferece a razão mais subjetiva das
coisas.
Esta cena heterodoxa poderá ser lida em apêndice desta dissertação. O drama
escrito, vale ainda repetir, por uma estratégia premiada pela fortuna, obteve o segundo
lugar no “5° Concurso Nacional de Dramaturgia – Prê mio Carlos Carvalho”. Minha idéia,
ao inscrever Jocasta Tirana, era a de, quem sabe?, tornar menos trágica a Hýbris da
escrita aqui cometida.
136
7.
CONCLUSÃO
Hoje, quando se olha para trás, e até mesmo para a frente, é quase impossível
não enxergar nossa herança e nosso futuro gregos. Assim como é difícil não
percebermos a condição trágica do humano. O que Édipo faz, e o vem fazendo desde
que foi inventado, é colocar esta tragicidade a dois palmos de nossa cara para, ainda
assim, não conseguirmos compreendê-la em toda sua essência. Também nós, por
julgarmos muito saber, mal sabemos.
Tratar essa herança, este espólio helênico, de modo crítico tem sido o desafio de
quem, com maior ou menor intensidade, pensa, com alguma esperança, este ser
humano marcado pela dor trágica. Nesse sentido, a idéia que aqui se tentou propor
ou seja: tentar ver em maiores detalhes como foi pintada a ânfora de San Gimignano
vem como reflexo mesmo dessa disposição de enxergar o mundo com um olhar mais
terno.
Com a mais absoluta sinceridade, a grande pergunta que me assaltou no
processo de escritura tanto desta dissertação como da situação dramática que lhe faz
apêndice, é desconcertante. Para quê? Qual o sentido prático mais razoável, num
mundo em que torres são derrubadas por aviões cheios de gente e crianças são
atingidas por mísseis a todo o tempo, qual o sentido em tentar afirmar que existe algo
por trás do vaso de cerâmica?
Ainda o sei. Sei apenas que este projeto também ainda não acabou. Ao me
dedicar a pensar o tema, pude perceber quantas coisas mais foram urdidas sobre o
assunto. Édipos reinventados por Corneille, Voltaire, Höderlin, Ducis, Platen, Jean
137
Cocteau, Stravinski, Gide, Bernardo Santareno, Robbe-Grillet, e nenhum deles
analisado mesmo que superficialmente por este trabalho. Aqui creio estar, sem vida,
matéria para várias vidas em busca do melhor entendimento sobre o barro e os
pigmentos que deram forma e aparência ao sujeito que se ampara no bastão, à esfinge
que está bem a sua frente, à mulher que o espera sem nunca ter deixado que ele se
fosse.
Assim, o que pude perceber é que mesmo que o estudo que fiz possa ser
considerado completamente inútil, e que a tentativa de escrever um drama sobre
assunto tão sério seja tida como uma pretensão imperdoável de minha parte mesmo
que tudo isso seja verdade, uma coisa é certa: Édipo e Jocasta somos cada um de nós.
Tal conclusão pode parecer óbvia e itinerante, mas não posso deixar de senti-la
como talvez a única verdade percebida neste meu esforço que tramou reunir criação
dramática e hermenêutica. Sim. A sensação é de que aquela criança que foi entregue
ao carrasco somos nós. E de que a mulher que a entrega para que morra no alto de um
morro também somos nós.
E é por isso que andamos todos e cada um de nós por a assassinar pais, a
desvendar charadas, a dormir com filhos, a derrubar edifícios, a sermos atingidos por
mísseis, a nos enforcarmos, a cultivar nossa própria cegueira. O fato é que, mesmo
sendo, não damos conta de saber o que significa sermos Jocastas e Édipos. E também
não sabemos a partir de quais significantes a ânfora de San Gimignano pode ser
melhor apreciada. realmente uma linguagem masculina e apolínea que nos faz
enxergar o mundo por determinado prisma? Em contraposição a esta ordem, existe
uma outra que lhe subverte e, intrometendo-se em seus códigos, é capaz de mudar-lhe
o sentido?
138
Não me recordo onde li que Ulisses, o herói grego, arava a areia de uma praia
deserta. No entanto, esta imagem ficou em minha cabeça desde então, como se fosse
o contraponto do Édipo que é entregue ao verdugo e da Jocasta que, depois de
entregá-lo, põe-se a esperar. Por isso, ainda me pego consultando verbetes de
dicionários e a fazer pesquisas na internet. Talvez, num arroubo dionisíaco que, por que
não?, só Freud pode explicar, tenha inventado para Ulisses esta cena.
Mas, ainda hoje, tal idéia a de um homem arando algo que não faz sentido arar
– não sai de meus pensamentos. O que me parece é que, de uma ou outra forma, o viril
e astuto herói de Ítaca se redime de todas as guerras e mortes que pesam em suas
costas ao cultivar a areia da praia. Posso até mesmo ver a figura consumida de um
anĕr velho e cansado das batalhas de Tróia, ou de suas odisséias pela Trácia,
enxugando o suor que lhe goteja do rosto, tendo o Egeu como fundo. O lugar poderia
ser a ilha de Éolo, e nosso herói parou apenas um instante, a fim de recuperar suas
forças para voltar a correr a charrua pela parte da praia que ainda falta ser sulcada.
O que imagino é que, com esse trabalho trepidantemente estéril, Ulisses também
tenha procurado se redimir dos longos anos em que deixou sua Penélope a tecer e
destecer a mortalha de Laerte. A vida entre as gentes, sobretudo hoje, em que os fios
da harmonia parecem completamente perdidos da meada, revela-nos sempre algo
desse Ulisses que lavra o infértil e dessa Penélope que espera fiando e desfiando.
Desse Édipo que mata o pai para depois tomar seu lugar e dessa Jocasta que manda
matar para, em seguida, desejar a volta.
Explico. Enxergar o outro, creio, é avistar-nos a s mesmos. Esperamos do
outro não aquilo que ele é, mas o que queremos que ele seja ou o que nós próprios
gostaríamos de ser. Por isso, as odisséias nos relacionamentos. Por isso, o tecido que
139
deve ser desfeito a cada noite. Por isso, talvez, tentar ver Édipos e Jocastas a partir de
outras miradas.
Acredito também que é para manter vivas suas esperanças de encontrar seu
Ulisses que Penélope desfaz a mortalha que fiou. É para redescobrir sua Penélope que
Ulisses lavra um solo que jamais poderá dar frutos. Então, e isso parece terrível, o que
avistamos no outro é nossa própria esterilidade e, com medo dela, enlouquecemos na
espera e no áspero.
No fundo, em cada circunstância de encontro nesse nosso mundo grego e
precário, também rogamos descobrir Penélopes e Ulisses, Jocastas e Édipos. Mulheres
capazes de arar o inútil e homens capazes de tecer o que no dia seguinte deverá ser
refeito. Naquilo que buscamos, acredito que o que sempre irá durar é mesmo a chama
essencial. Aquela chama que arde e que não vemos, como lembra Camões. Assim é o
Ulisses que também espera, talvez para se redimir de quem por ele arou o impróprio.
Assim, a Penélope que venceu guerras e moeu o áspero, talvez para se perdoar de
quem por ela passou as noites desfiando. Assim, a espera. Assim, a criação literária.
Assim, a recriação científica. Arar, fiar, desfiar e pensar podem ser mesmo aquilo para o
qual não encontraremos nunca explicação. E para o qual talvez não estejamos mesmo
preparados. Assim, Jocastas. Assim, Édipos.
Assim, nós.
140
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145
APÊNDICE A – JOCASTA TIRANA
P
ERSONAGENS
Édipo
Jocasta
Um foco de luz sobre Édipo. Ele entra com uma vareta na mão, cego.
V
OZES
No caminho desta vida,
muito espinho eu encontrei.
Mas nenhum calou mais fundo
do que isto que eu passei.
A curvinha do estradão do pensamento não sai.
Eu já fiz um juramento que não esqueço jamais.
Nem que meu gado estoure, que eu precise ir atrás.
Este pedaço de chão, errante, eu não toco mais.
Num outro canto do palco, surge Jocasta.
J
OCASTA
Édipo, vem. Tô te esperando, com saudade. Vem. A cama já tá pronta.
Luz sobre Édipo.
É
DIPO
Jocasta, nossa filha me disse que está muito preocupada. Ela falou que o oráculo...
J
OCASTA
Ai, Édipo, pára. Por favor. Tu e Antígona já me dissestes toda essa estória. São tramas,
meu querido. Não percebes? O oráculo, o oráculo. Ora!, o oráculo... Não percebes que
os oráculos dizem aquilo que queremos escutar? Que o dia andará afoito querendo
questionar os medos e que a noite rasteja destemida buscando respostas.
É
DIPO
Ouve o oráculo, Jocasta. Escuta o povo. Esse povo de Tebas, fora, agonizando na
peste, esperando que eu decifre outro enigma para espantar todos os males. o
povo, Jocasta. Ouve o oráculo.
J
OCASTA
Olha, amor. Sabe o que o oráculo me disse? Sabe o que ele teve o impudor de me
revelar agorinha, quando eu arranjava estes lençóis, quando preparava estas
almofadas, (retirando o seio e insinuando-o para Édipo) quando ainda cuidava da seiva
que aqui está e sentia dores, angústias insuportáveis?
146
É
DIPO
Jocasta, eu estou falando sério.
J
OCASTA
Eu também, meu amor. Fui à divindade esta tarde. E fui com uma indagação bastante
coerente. Ou tu não me crês cristalina?
É
DIPO
Claro. Não te falei nada disso.
J
OCASTA
Não me falou, mas também não quer que eu fale.
É
DIPO
Quero sim, minha fingidora. Diga logo o que o oráculo te disse.
J
OCASTA
Mostrando novamente o seio que havia guardado, agora, apertando-o como se
aleitasse.
Ele me disse que tu devias mamá-lo como se hoje fosse tua última oportunidade. Como
se a aurora fosse nascer cega. Como se, amanhã, teu pai aparecesse por aqui e tu o
matasses. Tu o torturasses nas torturas das mortes intermináveis que só os deserdeiros
pais, os pais desinteressados de seus rebentos, podem merecer.
É
DIPO
Aproximando-se.
E, depois, o que a divindade te disse?
J
OCASTA
Sabe o que ela me disse, meu bem? Ela me disse que, logo que teu pai deixasse de
sangrar, que o sangue dele se esvaísse inteiro e o Egeu se pitangasse por completo e
incauto, tua e chegaria com uns seiosinhos salmonados para entregar à tua boca e
te rogar: (já dando os peitos para Édipo) Mama, filhinho, mama.
É
DIPO
Jocasta. Jocasta. te falei de meus sustos em relação a isto. O oráculo. Sempre as
maldições nos enredando em enganos. O povo fora, consumindo-se em pestes. Nós,
aqui dentro, quase nos afundando neste chão que mal consegue nos segurar. Pragas
que nos levam a destruir cidades, a matar pessoas, a destruir amores. Como se o futuro
pudesse então ser pressentido. Responde, anda, por quanto tempo esta terra ainda irá
nos amparar? Por quanto tempo o oráculo dirá aquilo que podemos ouvir? Por uma
noite? Por mais umas horas apenas? A peste está lá fora e nós seguimos neste
cárcere. O oráculo...
J
OCASTA
Mas foste tu quem nele acreditaste. No oráculo...
147
É
DIPO
Acreditei, mas enfrentando-o. Deixei minha cidade, abandonei meus pais. E agora... e
agora...
J
OCASTA
E agora tu estás aí, de pé, seu tolo. Atormentado, quando devias estar aqui,
esquecendo teus medos sob estas sedas, inventando novas dores, decifrando novos
enigmas. Vem, meu Édipo, meu esposo, vem. Vem tomar meus seios, ler minhas
carnes, inundar, como só tu sabes fazer, estes meus vazios que querem ser irrigados.
É
DIPO
Não, Jocasta, não. Já te falei de nossa filha.
J
OCASTA
Mas o que é que tem Antígona?
É
DIPO
Ela não tem nada.
J
OCASTA
Mas então...
É
DIPO
Ela é justa.
J
OCASTA
Justa? O que é esta justiça? O que é esta verdade? As verdades são opostos que se
juntam para poderem se alternar. Hoje, meu tirano, tu és minha verdade. E é por isso
que eu quero... que quero minha verdade bem debaixo destes lençóis. Uma verdade
enorme e tesa, dura e molhada e viscosa, apaixonada. É isso, meu rei de Tebas.
Quero, esta noite, uma verdade apaixonada e ardente, capaz de me dominar. Tu estás
atado em nós, como se te apertassem o pescoço. E eu estou cega, o vês que estou
cega?
É
DIPO
Um rei enforcado e uma rainha cega. E encarcerados no próprio quarto, medrosos da
coisa que inunda a cidade. Era o que faltava a este povo crédulo! Antígona tem razão...
J
OCASTA
Pára com Antígona! Tua filhinha o que faz com sua justiça, com suas verdades, é
acompanhar seu tempo. Suas preocupações são cismas, seus zelos são desejos que
não é capaz de revelar nem a si própria.
148
É
DIPO
Não é ela. É o que ela pensa. Agora, ainda pouco, me disse que teme sem saber o
que teme.
J
OCASTA
Ah! E também ama sem confessar a quem ama.
É
DIPO
Como? O que dizes?
J
OCASTA
Digo o que vêem, o que notam, o que sinto.
É
DIPO
Como o que sentes? Não faz muito, tu me falavas contra os pressentimentos e, agora...
J
OCASTA
E agora o que te digo é que tuas ligações com Antígona são...
É
DIPO
São o quê, Jocasta?
J
OCASTA
Estranhas, Édipo. São estranhas. Todos notam a preferência que tens por ela. E não te
esqueças: são quatro os filhos que temos. Mas tu, o que parece, é que tens olhos
para Antígona.
É
DIPO
Agora começo a te entender. Só agora. Quando falas assim de Antígona.
J
OCASTA
Não falo assim apenas de Antígona. Falo de todos. Falo de ti. Como falei de Laio,
meu ex-marido. Mas Laio... Laio morreu.
É
DIPO
Sim. É exatamente isto: quando falas de Laio. instantes, quando dizias que tua
verdade hoje sou eu, pensei precisamente em Laio. Agora te compreendo. Esta tua
verdade já foi ele, já foi Laio...
J
OCASTA
Ciúmes, meu rei? E quem mais então esta minha verdade poderia ter sido? Naquele
tempo, minha verdade era ele, Laio. E a verdade de Laio era o rapazinho, o menino
raptado por meu ex-senhor para que o desnatural pudesse ser inventado. Qual é tua
verdade, Édipo? Antígona? Ela é tua verdade?
149
É
DIPO
Minha verdade é Tebas, Jocasta. Os homens que tenho que comandar, a justiça que
devo estabelecer, as guerras que me cumpre vencer, as perguntas que é necessário
responder, as pestes que preciso dominar. E estas verdades é que me enforcam.
J
OCASTA
É porque tua verdade é o poder. Aquilo que te faz temer é justamente o que faz o povo
se curvar. É o que faz o mundo inteiro se submeter. O poder, Édipo. O poder.
É
DIPO
Não o poder, mulher. Mas aquilo que ele me exige.
J
OCASTA
Aquilo que ele te exige ou o que tu próprio te exiges para que ele não se afaste de ti?
Para que ele não se afaste jamais de ti.
É
DIPO
É o que temos, Jocasta. Deste quarto, hoje, não é possível sair. As pestes estão lá fora.
É só o que temos que cumprir.
J
OCASTA
Não, meu amor e senhor. o é o que temos que cumprir. É antes o que dizem que
temos que cumprir. Decifra-me ou te devoro. É por isso que fogem, que planejam
raptos, que não dormem com seus amores, que matam, que querem prever o futuro
para não se desligar do passado, que mandam até mesmo assassinar crianças,
pendurando-as pelos pés.
É
DIPO
Mas a criança devia ser morta.
J
OCASTA
Não. A criançao devia ser morta. Assim como meu antigo senhor não deveria jamais
ter sido meu senhor. Pois, sendo meu possuidor, foi também meu algoz. Traiu-me,
mentiu-me, raptou-me, para em seguida livrar-me da cegueira. E eu queria ser cega,
meu Édipo, como hoje sou contigo. Ainda te comportas como uma criancinha! Não
entendes que o que desejo é amar como tenho te amado. Assim o enxergo, assim
não vejo, assim me escondo da morte. E o amor verdadeiro pode nos dar a certeza
da eternidade. Nem que seja por um momento breve. Ilusão verdadeira, verdade
ilusória; justiça cega, cegueira que vê.
É
DIPO
Mas a criança devia ser morta, Jocasta.
J
OCASTA
Não, Édipo. A criança não devia ser morta. Mas estão todos os oráculos, está o
medo permanente de que as maldições sejam cumpridas. Não. Talvez a culpa o seja
de Laio, não seja minha, não seja de nada. Quem tem a culpa de sermos humanos? E
150
se não o fôssemos? Se fôssemos deuses? Qual seria a culpa que carregaríamos? A
de, ainda assim, continuarmos imperfeitos? Talvez a única culpa seja da palavra. Uma
palavrinha apenas: poder.
É
DIPO
O poder pode servir para...
J
OCASTA
Sim, meu tirano. Ele pode servir para muitas coisas. Pode servir para que, com medo
de que ele se vá, abandonemos a quem realmente amamos. O poder são os sussurros
que permanecem em nossos ouvidos.
V
OZES
Laio, teu amor por esse jovem é contra a natureza.
J
OCASTA
E Laio, saciado de culpa, essa culpa que nos arrebenta a todos, me indagava em sua
embriaguez, enquanto me estuprava:
V
OZES
Tu me condenas, Jocasta? Tu me condenas?
É
DIPO
Jocasta, pára, moralista. As coisas não são sempre assim. Temos que enfrentá-las.
J
OCASTA
É verdade, esposo atormentado. As coisas não são sempre assim. E ainda temos que
enfrentá-las aqui, porque a própria peste do que somos nos prende neste quarto. É
verdade. Na maior parte das vezes, as coisas são piores. Eu, a moralista! Os fatos são
ainda mais terríveis. Mas isso eu não posso contar. E temos que enfrentar, não é
mesmo? Não podemos sair deste quarto, deste palácio que fede. No entanto, as vozes,
as vozezinhas não se afastam.
V
OZES
Laio, vou te impor uma maldição.
Édipo, tu matarás teu pai.
Logo, desposarás tua mãe.
J
OCASTA
E, então, Laio finge, finge que o jovenzinho morreu, que o jovenzinho se matou. E,
então, Laio se casa com Jocasta. Mas o rapaz bonito não morreu dentro de Laio. E Laio
também não deixará de querer matar.
É
DIPO
Mas a criança tinha que morrer. Eu mesmo a mataria... Para não morrer e...
151
J
OCASTA
Sim, talvez o menino tivesse mesmo que ser sacrificado. Talvez devesse ser sacrificado
para que, mais tarde, o fosse ele quem sacrificasse. Mas nada disso importa, sabe
por quê? Porque as vozes ainda estão lá. E, não faz assim tanto tempo, na cidade de
Corinto, elas disseram: Édipo, tu matarás teu pai e te casarás com tua mãe. E, então...
É
DIPO
...e, então, Édipo abandona seus pais, abandona sua Corinto. Deixa sua cidade, todos
a quem amou até aquele momento. Tudo porque Édipo deve enfrentar o destino. Ele
deve lutar, Jocasta. Minha fuga só o que mostra é que busco escapar de meu destino.
J
OCASTA
Mais calma, insinuando-se para Édipo.
Bobagens, meu filho, bobagens. Muitas vezes, quando pensamos que nos
esquivamos dele, do destino, o encontramos de frente. Assim, Édipo: bem de frente.
Ele está lá, aqui.
É
DIPO
E, então? Deveríamos aceitá-lo? Mesmo que os resultados fossem trepidantes?
J
OCASTA
Não sei, meu jovem amante.
É
DIPO
Do que tentas me convencer é acreditar que deveríamos viver cada dia como se fosse
o último...
J
OCASTA
...e cada noite como se fosse a primeira.
É
DIPO
Como se não nos possuíssem.
J
OCASTA
E como se não possuíssemos ninguém senão a nós mesmos.
É
DIPO
Temos que ficar aqui, esperando que venha o dia. Isso é impossível, Jocasta.
J
OCASTA
Acariciando o rosto de Édipo.
Talvez seja mesmo, meu menino.
É
DIPO
Mesmo desinteressado, Édipo se deixa enredar. Mas, logo, afasta-se.
O que é isso, Jocasta?
152
J
OCASTA
Como posso saber?
É
DIPO
Desenlaçando-se de Jocasta.
Espera. Ouve. É o povo! Não!
V
OZES
A arena já foi montada.
De um lado, o mito encenado.
De outro, a cena mitificada.
Misérias, arfares e tesouros.
Quanto mais vêem
Mais cegos estão.
Não importa a noite.
O homem já não pode deixar seu bastão de lado.
A mulher sabe sempre o que a luz do dia irá trazer.
Sempre sombras.
A peste vai tomar a cidade,
As crianças alimentarão os vermes.
Sempre sombras.
É
DIPO
O que querem dizer com isso, Jocasta?
J
OCASTA
Que a criança não devia morrer, que aquela minha criança não devia morrer.
É
DIPO
Como não devia morrer? A criança precisava morrer.
J
OCASTA
Para quê? Para que o destino não se cumprisse? Mas outro destino se cumpriu. Outro
destino matou Laio. Um assaltante que talvez tenha assaltado o próprio destino, criando
um outro em seu lugar. Não. O filho de Laio não matou Laio. Porque ele, Laio, o
assassinou antes. Assim também, é bem provável que tu não mates teu pai, que ele
morra depois que alguma esfinge nos mastigue. Decifra-me ou te devoro. Isso sim é o
que estamos destinados a escutar sempre.
É
DIPO
Então, se tu mesma acreditas que isso é o que iremos sempre ouvir, que essas são as
vozes que sempre irão nos durar na memória, como deixar este lugar? A peste,
fora...
153
V
OZES
Amando.
Deixando que os corpos se enfraqueçam ao toque de outros corpos,
Que bocas encontrem bocas,
Salivas se misturem,
Suores sejam lambidos por línguas amorosas.
Seduzido, Édipo se entrega.
J
OCASTA
Sim, meu Édipo.
É
DIPO
Não, minha Jocasta.
J
OCASTA
Só assim, meu amo e senhor.
É
DIPO
Nem assim, minha amada senhora.
V
OZES
Sedes que encontram sedes.
Fomes que buscam fomes.
Vales de carnes macias.
Alvuras imaculadas.
A luz vai caindo até o escuro se tornar completo.
J
OCASTA
Mais assim, meu breve atormentado.
É
DIPO
Menos, minha tormenta eterna.
J
OCASTA
Sempre assim, meu destino irremediável.
É
DIPO
Nunca assim, minha cegueira irreparável.
V
OZES
E, depois de corpos terem sido encontrados em outros,
Bocas em outras bocas,
Salivas misturadas,
Suores sugados,
Saber que o paraíso é desarmonia:
154
Vive da sede,
Vive da fome,
Vive à míngua.
Silêncio. Música por alguns instantes. Em seguida, a luz foca levemente a cama. Nota-
se que Jocasta e Édipo acabaram de fazer sexo. Estão alegres, felizes.
J
OCASTA
Ai, meu amor! Ai, meu amor! (no último, fazendo umas cócegas em Édipo) Ai, meu
amor!
É
DIPO
Sentindo as cócegas.
Ai, meu temor!
J
OCASTA
Suado assim, vermelho assim, com esse ar tão sacana, tu ficas tão lindo.
É
DIPO
E tu te pareces mais a uma esfinge.
J
OCASTA
O quê?
É
DIPO
Sim. Uma esfinge. Um monstro fabuloso, com esse corpo, garras e cauda de leão, essa
cabeça mitológica de mulher, umas asas de águia e unhas de harpia, propondo
enigmas aos que passam e devorando quem não os consegue decifrar. Uma cadela!
J
OCASTA
Ah!, é. Então, vamos lá, meu fugitivo complexado.
É
DIPO
Vamos lá, aonde, Jocasta?
J
OCASTA
Vamos lá! Vamos ver se tu decifras meus mistérios. Anda, decifra-me ou te devoro.
É
DIPO
Vai, então. Anda, dona Jocasta. Vai.
J
OCASTA
O que é o que é que cai em pé e escorre deitado?
155
É
DIPO
Ah, meu bem. Esta é fácil. Esqueces que decifrei enigmas mais tortuosos? É a
chuva, minha doce, que cai em e escorre deitada, assim como tu estás agora,
entendeste? Por favor, Jocasta. Aumenta um pouco o grau de dificuldade.
J
OCASTA
Então, vamos. Por que os homens não têm nenhuma crise na fase madura?
É
DIPO
Boa, minha égua de Tebas. Muito boa, essa. Trata-se de um enigma sibilino,
meandroso. Mas, ainda assim, fácil. Para decifrá-lo, basta pensar com a cabeça de
mulheres com mais de quarenta anos, não é mesmo, meu bem? E a resposta é óbvia.
Os homens não podem mesmo ter crise alguma na fase madura porque não chegam
jamais à maturidade, não é mesmo?
J
OCASTA
Adivinhão. Tu és mesmo bom nisso, hein, meu Edipinho. Mas, agora, vamos ver como
tu te safas desta: quem é que dá luz ao cego?
É
DIPO
Luz ao cego?
J
OCASTA
Isso mesmo.
É
DIPO
Como luz ao cego?
J
OCASTA
Isto: quem é que dá luz ao cego?
É
DIPO
Deixe-me pensar, Jocasta.
J
OCASTA
Anda logo: quem é que dá luz ao cego? Anda: quem é que dá luz ao cego?
É
DIPO
Calma, minha aurora.
J
OCASTA
Falando rápido.
Quem é que dá luz ao cego? Quem é que dá luz ao cego? Quem é que dá luz ao cego?
É
DIPO
Luz? Ao cego?
156
J
OCASTA
Tu não disseste que és o melhor vidente? Então, vamos lá. Rápido, meu feiticeiro.
(Falando rápido) Quem é que luz ao cego? Quem é que luz ao cego? Quem é
que dá luz ao cego?
É
DIPO
Não sei, Jocasta imprevisível. Nesta, tu me derrubaste. Vamos, diga logo: quem é que
dá luz ao cego?
J
OCASTA
Rindo e deitando-se, oferecida.
A mãe do cego.
É
DIPO
E tu, por acaso, és mãe de algum cego?
J
OCASTA
Nunca se sabe, meu amor. Nunca se sabe.
É
DIPO
Como nunca se sabe?
J
OCASTA
Nunca se sabe. Vem até aqui, vem. Olha a paisagem noturna. Muito pouco se pode ver.
Uma noite, faz tempo, eu estava aqui, neste mesmo lugar, mirando a paisagem
noturna. A cidade cheirava mal. Como cheira hoje. Era a peste. A esfinge no meio da
arena, na entrada da cidade, devorando os incautos. Ninguém se atrevia a enfrentá-la.
Tudo cheirava muito mal. Tebas estava perdida. Mas, na manhã seguinte, tu chegaste,
sem medos.
É
DIPO
Tu te contradizes.
J
OCASTA
Não, Édipo. Nunca se sabe. Nunca se pode saber. Sabe, naquela noite, eu olhava a
paisagem noturna e me lembrava de um Laio morto, ou de um Laio vivo e lascivo.
Como, então, naquela noite, eu poderia saber que, na manhã seguinte, minha vida
estaria mudada, a sorte de Tebas revertida. Eu, casada contigo. E, com o passar do
tempo, aprendendo a te amar.
É
DIPO
Não me amavas e me desposaste. É isto o que o se sabe? É isto o que querias me
dizer?
J
OCASTA
Claro que não te amava, meu bobinho. Claro que não te amava. Como poderia amar
um desconhecido? Alguém surgido da morte de uma esfinge.
157
É
DIPO
O dever te...
J
OCASTA
Repentinamente irada.
O dever não nos impõe nada. Absolutamente nada. Ou é possível obrigar um ser a
amar outro ser. O máximo que se poderia pedir seria tolerância. E eu não te amava.
Sabe o que eu era, depois da morte de Laio? Uma puta. Uma puta bem rampeirinha,
vulgar. Transando bem com todos e com todas, querendo vingar dentro de mim a
merda que é imaginar seu marido na cama com outro homem, fodendo lá com o
brinquedinho dele.
É
DIPO
Pára, Jocasta. Chega!
J
OCASTA
Beijando bem, sabia? Sabia que, aqui na minha cabecinha atônita, Laio e o jovenzinho
se beijavam bem? Com uma paixão enorme. Ai, que inveja! Mesmo sem ter visto, eu
podia sentir o fogo que consumia aqueles beijos. Ai! Eu também quis matá-lo. Queria
sufocá-lo na boca daquele rapaz morto. Fazer com que fosse perdendo o ar, perdendo
o ar, perdendo o ar. Então, quando soube que Laio tinha sido assassinado, quis eu
mesma ser aquele assaltante. Sim! Sou eu quem deveria ter-lhe enfiado o punhal.
É
DIPO
Nunca havias me falado assim, Jocasta. Eu...
J
OCASTA
Espera. Laio já está morto. E a criança também...
É
DIPO
Mas a criança devia morrer. Morrendo, cumpriu-se o destino.
J
OCASTA
Cumpriu-se? Não, meu menino, a criança não devia morrer. Para quê? Para quê se,
estando morta, vive mais que cada um de nós. Vive cada dia mais dentro de mim.
Entendes? Tu me entendes?
É
DIPO
Jocasta... Moralista...
J
OCASTA
Não. Tu não podes entender. Como talvez não possas compreender que eu mesma
deitei com Laio e o rapazinho diversas vezes.
É
DIPO
O que me dizes? Estás louca? Não poderias se...
158
J
OCASTA
Apontando para a própria cabeça.
Aqui, meu bonitinho: aqui. E muitas. Inúmeras, meu senhor rei de Tebas. E neste
mesmo quarto de onde tu dizes que não podemos sair. Eles fodiam bem. Eu ficava
vendo. Ah!, amor. Tu pareces aum personagem destas tragédias que levam agora
às arenas. Iludido. Bobinho. Tolo. Teatral. Não consegues imaginar? O pior cego, meu
amor...
É
DIPO
... é aquele que não quer ver.
J
OCASTA
Não, Édipo. O pior cego é aquele que quer ver. Mesmo não vendo, eu queria ver,
queria enxergar e não conseguia. Quanta angústia aqui. Nunca me acostumei com a
situação. Nunca. E é por isso que te digo: tu não podes me entender. Não poderás
jamais entender porque eu não te amava e depois te amei. Te amo. Mas, também não
sei porque, sabia que iria te amar, meu menino. Algo me dizia isso. Talvez quem possa
saber seja Antígona. Antígona com suas culpas que ainda a farão guiar os cegos. Estou
bastante certa mesmo.
Pegando um pedaço de pano e colocando no pescoço, como se se enforcasse.
Tu me trouxeste de volta aquilo que nem sei se tive. Poder ser mãe novamente. Até de
Antígona. Amar. Limpar meu corpo, mesmo que para isso ainda tenha que manchá-lo
ainda mais. É assim que eu creio: o amor é algo que só é verdadeiro quando construído
palavra por palavra. Lembra-te, Édipo: nada do que possamos trazer no peito poderá
nos revelar o que acontecerá amanhã, assim que o primeiro raio de Apolo iluminar esta
cidade.
A luz se apaga. Escuro total. Novamente, vozes.
V
OZES
Muitas vezes, muitas vezes, muitas vezes,
Para enxergar, para enxergar, para enxergar,
É preciso estar cego, estar cego, cego.
Luz sobre Jocasta que, sentada no chão, limpa os pés de Édipo e chora.
Para ver, não basta o dia.
Para cegar, não basta a noite.
Cordas e nós,
Varetas e mãos,
Pés e caminhos,
Corpos e precipícios.
Édipo se levanta, sentando-se na cama, enquanto Jocasta termina de acariciar seus
pés e se recompõe.
159
É
DIPO
Jocasta, lembra-te quando Antígona nasceu?
J
OCASTA
Sim. E o que tem isso?
É
DIPO
Nada. Ela era minha linda.
J
OCASTA
E então?
É
DIPO
Nada. São minhas lembranças. Posso até mesmo recordar o momento em que a
fizemos. Lembra-te? Tenho absoluta certeza de que foi naquele dia, o sol batia a pino.
Cheguei em casa e tu ainda dormias. Nua, completamente nua. A escrava andava na
ponta dos pés e deixamos que ela visse, que ela visse tudo. Com o olhar, permitimos.
Lembra-te como a menina suava enquanto olhávamos para ela e nos enlouquecíamos.
Ela ia sair e tu ordenaste...
J
OCASTA
Fica!
É
DIPO
E, então, ela veio, tremendo. Sentou-se na cama. Tu olhavas a pobrezinha nos olhos.
Ela suando e tremendo. Vermelha. O sol dardejando através das cortinas. Eu, tu,
nossos frêmitos. (mudando o tom) Tu eras como uma escrava, vendo, em tuas
fantasias, Laio e seu rapazinho?
J
OCASTA
O que queres? Desejas repetir. Mando chamar a melhor de tuas escravas agora. E tu,
então, farás como daquela vez. Cavalgando-me. Montando esta potra de nácar. Se
queres, mando acordar uma agora mesmo. Vamos! Vamos! Quem sabe não fazemos
até outra menininha para a tua horda, para o teu clã?
É
DIPO
De onde vens com isto? não temos... Ou melhor, minha vaca de Tebas, te esqueces
que tunão tens mais a pingadeira rubra a escorrer-te pelas tetas? Já não podes mais
amamentar, minha boa. não podes, como pouco me convidavas, dizer-me assim
(imitando Jocasta): Vem, filhinho, mama na mamã.
J
OCASTA
E tu bem que gostavas, hein! Como ainda gostas.
Retirando o seio e insinuando para Édipo, como se amamentasse.
Mama cá, benzinho. Mama na tua mulherzinha. Nessa mulherzinha que, sem ser
Penélope, aprendeu a te esperar. Desde antes, desde muito antes te aprendeu a
esperar. Desde além disso, quando os fios talvez nem mesmo existissem para que
160
pudéssemos tecê-los e destecê-los. Desde quando estes peitos ainda não haviam
sentido a dor do sangue que esperava ser chupado. Queres? O que queres, meu tirano
que, julgando tudo saber, de nada sabe? Meu tirano lindo que...
É
DIPO
Recuando.
Pára, Jocasta. Pára. Não podemos sair daqui. Temos que esperar o dia.
J
OCASTA
Não paro, Édipo, o paro. Reparas que não posso chamar-te lindo? Que não posso
chamar-te meu amor? As palavras amorosas são para ti um estorvo. Não posso jamais
dizer: amor, carinho, fofo, gostoso, lindo, terno, gentil, guapo, tesudo.
Raivosa.
Sim, meus peitos podem não ter mais o leite puro com o qual Antígona e toda tua horda
se empanturraram, quase me deixando seca, mirrada, murcha. Mas aqui dentro
(mostrando os seios) ainda há sangue e verdade. Não a tua verdade. Sabes por
quê?
É
DIPO
Tudo o que dizes não é verdade, Jocasta.
J
OCASTA
Não é verdade? Como não é verdade? Ou o que é a verdade? A tua verdade poderosa,
com a qual soubeste enganar a esfinge? (mirando o céu) Ah!, meu Apolo! Como
pudeste deixar que tua esfinge fosse enganada? Apolo meu. Meu deus Apolo e belo,
que amanhã virás com teus cegos para anunciar tuas mentiras. Tu sabes que não és
mais do que somos nós. Nem menos. (Dirigindo-se, agora, a Édipo) Mesmo tendo os
pés tortos, tu, Édipo, saído do ventre da terra, queres ser um Apolo. Não é mesmo,
Édipo, não é verdade?
É
DIPO
Blasfêmias, Jocasta.
J
OCASTA
Loucuras! Pragas? Vem, meu amo. Agora sou tua esfinge. Aquela a quem podes
enganar e, logo, enforcar. Embaçando tudo como a noite fora ilude a verdade trágica
que nos irá colocar a cada um de nós no lugar verdadeiro da ignorância. Talvez
saibamos mesmo de tudo. Talvez...
Mudando de idéia. Brusca.
Anda, Édipo: vai! Decifra-me ou te devoro! O que é o que é que pela manhã tem quatro
patas, quatro patas que rastejam como os homens e mulheres que fomos e que não
necessitavam esconder o sexo porque andavam de quatro? Anda, responde quem é
esta criatura, esta criança cega, dependurada nas mãos da árvore parteira, cega na
arrogância paterna, ainda mais ofuscada pelo desleixe materno. Anda, responde.
É
DIPO
Esse enigma já foi respondido. E é por isso que Tebas hoje está salva e...
161
J
OCASTA
O quê? Sepossível? É por isso também que estamos presos aqui, neste lugar? Será
mesmo possível que não sentes o cheiro repulsivo da Tebas que se dilacera lá fora? Da
cidade que o que quer é justiça. Não a justiça que foi feita, mas aquela que não te
fizeste a ti. Anda, meu amado. A ironia está quase perto de nós. posso mesmo vê-la
bater à porta. O dia vem com Apolo. Responde. Sou tua esfinge. E, pela tarde, quem
é mesmo que anda com duas patas, tendo aprendido a se levantar? A fazer as coisas,
a ser um homem e uma mulher sabedores, criando fatos, manufaturando eventos,
realizando artefatos, obrando coisinhas. Quem é, anda, responde quem é?
É
DIPO
Jocasta, estás alucinada. Pára com isso.
J
OCASTA
Não paro. Ao menos soubeste enganar. E conheces bem a resposta deste enigma:
quem, pela manhã, anda como cães?; pela tarde, como os cães também, embora
adestrados?; e, pela noite, quem é, quem é que anda com três patas? Filho, marido,
irmão, amor, dor, cegueira, pai, fruto. Ai, se pelo menos fôssemos es... Presos, aqui,
neste canil de mundo. Cego! Não enxergas?
É
DIPO
Pára, Jocasta. Pára com tuas estórias. Eu não estou cego. Posso muito bem ver tudo a
meu redor. O que tramam, o que escondem, o que conspiram. Amanhã vão querer o
poder que temos. Tudo o que temos.
J
OCASTA
Não paro, Édipo. o paro. Tu, antes, é que devias haver parado. Sofista. Tirano. Puto.
Quem é este homem? Enganaste a esfinge. Mas a mim não me enganas. Anda.
Responde quem é esse homem? Responde. Responde logo, porque o dia já vem.
A luz se apaga novamente. As vozes vêm.
V
OZES
Pensa bem, anda, pensa bem.
O que farias, se te dissessem agora,
Como disseram a ele,
Que irias matar teu pai?
Pensa bem, anda, pensa bem.
O que farias, se te dissessem agora,
Como não disseram a ela,
Que irias gozar com teu filho?
Cegarias teus desejos,
Enforcarias tuas palavras,
Matarias teu próprio filho?
Pensa bem, anda, pensa bem.
A luz se acende. Num canto do palco, Jocasta está pendurada, enforcada. Édipo
atravessa o palco guiado por uma vareta de cego. Novamente a luz se apaga.
162
V
OZES
Pensa bem, anda e pensa bem.
A um canto, agachado como se fosse uma coruja, está Édipo. Jocasta está do outro
lado do palco.
É
DIPO
Tu és louca. Louca, é isso o que és. O único que quero, o único que buscamos, mulher
covarde, é enganar a morte. que, para enganar essa velha que corta o fio da vida, é
necessário pagar um preço. No meu caso, o preço foi fugir. Fugir para longe, para que
o próprio destino não me abraçasse.
J
OCASTA
E tu achas mesmo que é possível enganá-lo?
É
DIPO
Não sei. Mas tu, o que crês? Como pensas ludibriá-lo?
J
OCASTA
Já passei por tudo. Não tenho cordas a cortar.
É
DIPO
Como o tens? Teria sido Laio, teu ex-senhor, por acaso?, quem tomou a criança em
suas próprias mãos e a deu ao criado dizendo: Leva para longe e mata. Assassina.
Deste-lhe o punhal? Pensaste se a arma estava bem afiada, se a lâmina penetrava com
facilidade e, assim, o infante sofreria menos? Ou querias que ele se purificasse com a
dor? Confiavas bem no pastor ao qual entregaste teu rebento? E ele, o que tal homem
te disse? Olhaste-o nos olhos? Olhaste-o segura nos olhos? E o menino? Chorava
quando foi entregue para morrer? Sentia fome? Será que não queria estes teus seios
moles para mamar? Quem sabe até não morria engasgado?
J
OCASTA
Babaca!
É
DIPO
Na época, creio eu, estes teus peitões deviam estar bem cheios. As mamas
abarrotadas de leite deviam te doer muito! Ou não era leite, mas sangue? O que fizeste
para aplacar tua dor? Deste as tetas enormes a Laio e ao rapazinho suicida, durante
orgias em que esse mesmo leite, ou sangue!, era misturado ao vinho? Embriagaram-se
até a última gota quando o criado voltou dizendo:
V
OZES
O serviço está completo, minha boa tirana!
J
OCASTA
Pára, Édipo. Não sejas cruel. Pára.
163
É
DIPO
Mas se a criança não devia ser morta... Não é isso o que achas?
J
OCASTA
A criança tinha que ser morta.
É
DIPO
Mas, agora, tu é que te contradizes. Anda, responde, oráculo maldito. Não é tempo
ainda de rolares pelo desfiladeiro. Responde:
V
OZES
A criança devia ou não ser morta?
J
OCASTA
Foi Laio quem ordenou.
É
DIPO
Mas foste tu, infanticida, puta, quem lavraste a sentença, entregando-a a um pastor
para que a assassinasse. Por que não a mataste tu mesma? Por que não a afogaste na
sala de banho? Por que não a deixaste nua ao lado da janela, tapando-lhe bem a boca
para que sufocasse de frio, fome e solidão? Se estivesse viva, não restaria à tal criança
senão vir ter com sua mãe e matá-la. Enforcando-a com as próprias mãos.
J
OCASTA
Chorando.
Pára, Laio. Pára.
É
DIPO
Agora, vejam só. Chama-me Laio! Escuta, este aqui que está a teu lado, que contigo
teve quatro filhos, que te fode nas noites em que queres ser fodida, que te leva aos
banquetes, que te satisfaz tuas orgias de velha que nunca aprendeu a amar, que te
deixa sentar no trono a seu lado, que aceita tuas doenças mentais sem reclamar, que te
enxuga as lágrimas, que há anos escuta teus delírios...
J
OCASTA
Pára, ofuscado. Pára.
É
DIPO
Sim, este aqui é Édipo. Sim. O Édipo fugitivo e ignorante. Aquele que abandonou
Corinto porque o oráculo lhe disse que ele iria matar seu pai e dormir com sua mãe.
Sou eu mesmo este Édipo. E realmente não sei aonde vou dar. Aonde tu vais dar.
Onde toda essa gente aí fora irá ter. Este cheiro terrível da peste. Não podemos, ou
não queremos sair deste quarto? A morte e tudo aquilo que nunca se saberá. Este aqui
é Édipo, e não raptou nenhum jovenzinho para ser amaldiçoado. Eu, Édipo, o único que
fiz para ser condenado foi ter nascido. Nada mais.
164
J
OCASTA
Acalma-te, meu lindo.
É
DIPO
Acalmar-me. Pois não és tu quem me quer fazer ver tuas verdades? Então, diz: por que
não deixar este lugar, este palácio? Por que não fugir? Para que a peste não venha nos
corromper? Mas se fomos corrompidos. E, agora, aqui, confinados, esperando o dia.
Para quê acalmar-me?
J
OCASTA
Sim, acalma-te. Quero apenas que tu...
É
DIPO
E, agora, por favor, não mintas. Eras tu quem, ainda pouco, me oferecias, em jogos
de sedução e sacanagem, teu peito murcho para que eu chupasse. Eras tu mesma
aquela quem brincava com meus temores. Rindo, burlando de minhas tragédias. Não
sabes que também eu quero ser o pior cego. Também eu quero ver. Quero enxergar e
não posso. Será tudo isso só pelo poder?
J
OCASTA
Não te digo isso, minha criança, minha criancinha. Só digo que te amo. Sempre te amei.
Até quando... E que estarei sempre a teu lado, não importa o que aconteça.
É
DIPO
Estarás comigo? Assim como estiveste com Laio, quando entregaste a criança ao
pastor?
J
OCASTA
Eu te amo.
É
DIPO
O amor, Jocasta. O amor é um mito. Um mito que não nos pode fazer melhores ou
piores. É apenas um mito, engendrado para que nos enganemos a cada curva do
caminho.
J
OCASTA
Então, meu querido, é nesse mito em que quero acreditar.
É
DIPO
Acreditar nele para descrer do mundo.
J
OCASTA
E para que tu também não sofras.
É
DIPO
Sofro por meus martírios. Sabes o que é sonhar todas as noites que se está dormindo
com a própria mãe, que se acabou de assassinar o pai?
165
J
OCASTA
Bobagens, meu filho, bobagens. Não vês que todos os homens, a maioria deles,
sonham, pelo menos uma vez na vida, que dormem com a mãe? Que fazem sexo com
a própria mãe! Pergunta a teus melhores amigos, àqueles que de nada sabem e que
são de tua inteira confiança.
É
DIPO
E tenho eu alguém que seja de minha inteira confiança? Estou só. Rei e só. Estamos
trancados, Jocasta. Presos!
J
OCASTA
Então, pergunta a qualquer um.
É
DIPO
A qualquer um. Ora, vejam. Se é nisso mesmo em que acreditas, Jocasta, vou te
revelar um outro pormenor. Uma coisinha à toa. Espero que não te assustes. Ah! Tu
não podes mais te assustar com nada. Já sabes de tudo, não é, sua cadela tebana? Já
viste as piores pestes. mandaste matar teu próprio filho. te entregaste a quem
não amavas. A ti posso revelar tudo, não posso?
J
OCASTA
Claro que podes, meu amor.
É
DIPO
E é mesmo para isso que esta noite nos servirá. Para que nossa intimidade me
conduza nos infernos que irão nos acolher. Que irão mesmo festejar a presença de
Édipo e Jocasta, tiranos de Tebas. Então, escuta e verás que ainda não sou tão cego
assim. No que se refere a minha mãe, meus temores são até brandos. Em meus
delírios, em minhas vigílias noturnas, quando te vejo dormindo emaranhada em sedas,
com alguma parte da tua alvura iluminando a escuridão do quarto, nessas minhas
noites passadas em claro, não penso que tu podias ser minha mãe e que eu te
despertasse afoita e a estuprasse violentamente. Não. Sabes o que imagino?
J
OCASTA
Diga-me, meu rei.
É
DIPO
Penso que o que queria mesmo era matar meu pai. Ele, aquele meu pai que me criou
com carinho e desvelo. Não sei porque, mas queria matá-lo, dando-lhe com o bastão
até rachar-lhe o crânio ao meio, como fiz com os assaltantes que barravam o caminho
na curvinha do estradão, na encruzilhada, antes mesmo de vir dar a Tebas.
J
OCASTA
Assustada.
O quê?
166
É
DIPO
Sim, Jocasta tirana. Não tens mais culpas que eu. É isto mesmo. Queria muito matar
meu pai. Estou seguro disto. Queria matar meu pai. Não posso entender o porquê disto
tudo. Mas queria matar meu pai. Quem é mais culpado? Tu, que entregaste teu primeiro
filho para a morte; ou eu, que sonho com a miséria parricida? Quem sou eu, Jocasta?
Quem sou eu?
J
OCASTA
Não, meu menino. Quem somos nós? É também o que me pergunto: quem somos nós?
É
DIPO
Existem respostas, tirana?
J
OCASTA
Claro que existem, meu rei, meu martírio, meu milagre, meus suplícios, minhas dúvidas,
meus caminhos, meu amor.
É
DIPO
Não. Não existem respostas.
Mais uma vez, Jocasta se insinua para Édipo.
J
OCASTA
Não. A única ignorância é o amor. É nele que nos cegamos. É por ele que estamos
aqui. É por ele que não queremos enxergar. Vem, meu amado, deita teu corpo junto ao
meu e esquece. Ama-me, Édipo. Quebra-me o corpo com o mesmo bastão com que
abriste a cabeça dos assaltantes do caminho, daqueles que não queriam te permitir
passar. Não foi para isto que vieste? Para me matar, para me moer de amor? Não
importam as culpas, não te deixes assustar pelos medos, não dês razões aos sábios. O
poder é teu. Não deixes que a luz entre jamais. Fecha bem as cortinas. Impede a
chegada de Apolo.
Jocasta vai despindo Édipo com furor. Ele cede.
E, agora, anda. Faz de mim o que quiseres. Vem, meu tirano e algoz. Meu puto, menino
que nasceu para ser meu homem. Vem, entra dentro de mim e me mata inteira. Vem,
enfia logo teu punhal.
É
DIPO
Não posso, Jocasta. Não posso mais com meu punhal.
J
OCASTA
Irônica.
Meu menino, estás cansado. Fatigado com toda essa gente fora, na tua cabeça. Isso
acontece. Não te importes.
É
DIPO
Meu Deus!
167
Mais uma vez, as luzes se apagam.
V
OZES
Pensa logo o que irás fazer
Quando tua espada não mais cortar,
Quando de tua boca não mais vierem alegrias,
Quando teus seios mirrarem.
Pensa logo, vem.
Pensa logo.
E bem.
Acende-se a luz.
J
OCASTA
Vem dançar, Édipo. Falta pouco para que Apolo comece a soprar a luz de todo
conhecimento. Vem, meu amado senhor de Tebas. Falta muito pouco para que a noite
adormeça. Esta noite, não vamos dormir.
É
DIPO
O que pretendes, Jocasta? Estou cansado.
J
OCASTA
Levantando-o da cama. A música começa a tocar.
Não, meu senhor. Hoje, devemos comemorar.
É
DIPO
Comemorar o quê? O odor pestilento que envolve a cidade? O que mais? As palavras
ternas que acabamos de nos dizer? A prole condenada que vaticinou o oráculo? Não
há o que festejar.
J
OCASTA
Sim que , meu amor. É preciso comemorar estarmos todos vivos, ainda com forças
para mentir.
Puxando Édipo com força.
Vem, vem dançar.
É
DIPO
Tu és mesmo a pior entre as piores. Queres me fazer de ridículo. É isto o que queres,
não é mesmo?
J
OCASTA
Ridículo. Por que ridículo?
É
DIPO
Como és cínica! Em tantos anos juntos, nunca dancei contigo. E tu sabes disso. E
conheces a causa.
168
J
OCASTA
Causa. Mas que causa?
É
DIPO
Cínica. Vil. Devias andar em matilhas. Ladrando, latindo, rosnando, uivando. Finges.
Finges inteiramente. Não vês o caráter que tens. Onde estão teus filhos, enquanto,
obstinada, zombas de teu rei e esposo. Não querem saber de ti. Jamais desejarão
saber de ti. Nem os vivos, nem o morto. És uma cadela vulgar. Nem a morte te salvará.
J
OCASTA
Não sei a que vens. Tu, fedelho mimado. Anda, põe-te de pé. Quero que bailes comigo.
É
DIPO
Irado e mostrando os próprios pés a Jocasta.
Não. Antes, olha para mim. Olha para estes pés. Estes pés tortos e inchados, furados
para que por eles possam passar as argolas dos forçados. Olha, anda, manda buscar o
aro grande. Não é isso o que desejas? Amarrar-me ao pé de ti?
J
OCASTA
Isso é o que tu pareces buscar. É o que tu pareces ter procurado a vida inteira. Alguém
que te acorrente. Uma mãe. E eu não estou aqui para isto. Para te subjugar.
É
DIPO
Mas não te furtas a me prender.
J
OCASTA
Como tu não te inibes em me manter cativa, aqui, neste palácio.
É
DIPO
O que queres é zombar de mim. Sabes bem que não posso dançar. Que rodar pelos
salões para mim seria tão desajeitado como tem sido rolar pela vida.
J
OCASTA
A vítima. Aqui temos a vítima.
Enchendo dois cálices de vinho e oferecendo um deles a Édipo.
Pelo menos isso merece uma comemoração, não é mesmo?
É
DIPO
Vadia. Decrépita. Sabes também que não bebo.
J
OCASTA
Sei. Claro que sei. Sei que não bebes porque o idiota que te falou que eras um
bastardo, que não foste jamais filho dos pais que te criaram, esse imbecil estava
bêbado, encharcado, avinhado como um poeta ou um general acostumado a olhar
sempre o próprio umbigo e a ganhar concursos patéticos. Tens que te tratar, Édipo.
Sabes por que, meu pobre? Um dia, tu serás esquecido. Ninguém se lembrade ti. O
mar naufragará esta nossa terra. Só os peixes voltarão a enxergar.
169
É
DIPO
O quê?
J
OCASTA
É preciso que, muito urgentemente mesmo, te internes em termas, num balneário turco
qualquer. Quem sabe não te curam com umas águas milagrosas? Banhos que te
expurguem a sujeira desse corpo imundo, dessas tuas mãos sangrentas e dessa tua
cabeça vazia. Anda, brinda comigo ao que irá amanhecer.
Jocasta toma a taça e, à força, faz com que Édipo a beba.
J
OCASTA
E agora? Estás melhor? O vinho serve para esconder as culpas. Bebe, bebe mais,
bebe.
Jocasta enche a taça e novamente faz com que Édipo a beba de um só trago.
Bebe e verás. Verás que, pelo menos até a aurora, estarás bem escondido atrás desta
verdade. Toma, toma mais. Embriaga-te.
Édipo enche sua taça e a bebe mais uma vez. E de novo.
J
OCASTA
Estás gostando. Agora vês o que perdeste todos estes anos. Como poderias teres te
aliviado da vontade de matar teu pai, do desejo de estuprar tua mãe.
É
DIPO
Queria mesmo era me matar puta velha! Velha! Piranha velha e acabada. Bagaço.
J
OCASTA
Ah! O efeito te sobe e suaviza a consciência. Te põe mais imoral. Mas isso será por
pouco tempo. Por muito pouco tempo. Logo, outra verdade será anunciada. E, em
seguida, mais outra e outra e ainda muitas mais. O tempo está perdido, até que
resolvamos dar fim a ele. E isso, nós mesmos podemos fazer. Podemos até nos matar,
sabias? Mas, agora, vem. Me estupra, como fez Laio. Faz comigo o que sempre
quiseste.
Édipo começa a rasgar as roupas de Jocasta. A transa é alucinada e violenta.
Isso. Não é assim que querias? Faz com ardor. Faz, indecente. Menino pornográfico.
Machuca, anda, machuca a tua velha. Mutila. Arranca os pedaços. Incendeia tua febre.
Bate. Anda: bate. Enforca!
Apagam-se as luzes.
V
OZES
Pensa e anda.
Pensa e faz.
Pensa bem.
Pensa aquém.
Pensa além.
Não penses mais.
170
Penumbra. Jocasta e Édipo extenuados.
É
DIPO
Jocasta. Não posso te entender. Num instante...
J
OCASTA
...num instante viva; no outro, morta.
Como se falasse para outra pessoa.
Toma, pastor, eis aqui meu filho. Eis aqui meu filho para que o sacrifiques.
É
DIPO
Mas a criança devia ser morta, Jocasta.
J
OCASTA
Não. Hoje a coisa não é assim mais. Não vês que por ti sou capaz de qualquer coisa.
Que por ti sou capaz até de me enforcar. Olha bem para mim. A mãe que querias é esta
que aqui vês. Esta tua fêmea que usou o amor para acabar com aquilo que leva aqui
dentro.
É
DIPO
Calma, minha rainha atormentada.
J
OCASTA
Como calma?, se Apolo anuncia suas primeiras luzes. Mas, talvez, as luzes de Apolo
venham para revelar a escuridão em que vivemos. Quem sabe aquilo que vivemos
agora, na penumbra deste quarto, entre lençóis suados, almofadas atiradas, vestidos
rasgados, quem sabe não seja tudo isto a verdadeira luz?
É
DIPO
Uma penumbra que descobre...
J
OCASTA
... e um clarão que ofusca.
Jocasta se dirige à janela.
J
OCASTA
vem um dia, Édipo. Mais um dia. E, com ele, chega também o imprevisível, com o
qual deveremos aprender a viver.
Ruídos vêm de fora. O dia começa a clarear.
É
DIPO
Jocasta, o que são esses rumores?
J
OCASTA
São teus filhos, meu amado.
171
É
DIPO
Como meus filhos?
J
OCASTA
Teus outros filhos, Édipo. Aqueles sobre os quais teu poder se exerce.
É
DIPO
Para que vêm, Jocasta?
J
OCASTA
Dissimulada.
Estarei a teu lado, te cuidando como sempre te cuidei.
É
DIPO
Mas que filhos são estes, minha senhora? São apenas crianças, Jocasta.
J
OCASTA
Teus filhos de Tebas, teus filhos do mundo.
É
DIPO
Mas se nem os identifico. São muitos, são infinitamente muitos.
J
OCASTA
Sim, são muitos. E são todos teus filhos. Homens e mulheres do teu clã. Contigo,
compartilham a mesma dúvida.
É
DIPO
Que dúvida, minha tirana?
J
OCASTA
Não sabem quem são.
É
DIPO
Nenhum deles?
J
OCASTA
Nenhum deles, meu pequeno.
É
DIPO
E por que vêm?, se Apolo mal atirou suas primeiras setas. Se também eu não sei quem
sou.
As luzes começam a ofuscar os olhares de Édipo e Jocasta, direcionados em direção a
estas mesmas luzes.
Por que vêm, Jocasta?
J
OCASTA
Vêm por causa da peste. E para que tu decifres o enigma tantas vezes repetido.
172
A luminosidade, agora, cega completamente.
É
DIPO
E eu decifrarei este enigma, Jocasta? Saberei quem sou?
J
OCASTA
Não.
É
DIPO
E eles, minha tirana? Eles saberão quem somos?
J
OCASTA
Também não, meu Édipo.
Apaga-se a luz repentinamente. Escuro total, depois de uma claridade que cegava.
V
OZES
Não é bastante falar.
Não é bastante viver.
Não é bastante pecar.
Não é bastante perder.
Não é bastante ganhar.
Não é bastante morrer.
Não é bastante andar.
Não é bastante entender.
Não é bastante parar.
Não é bastante sofrer.
Não é bastante não crer.
Não é bastante pensar.
173
ANEXO A – VASILHA COM FIGURAS VERMELHAS
Figura 1: Vasilha com figuras vermelhas – 440 a.C.
Fonte: Museu Municipal de San Gimignano
http://www.artehistoria.com/historia/obras/8035.htm
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Letras
ÉDIPO
Edmundo de Novaes Gomes
Belo Horizonte
2006
Edmundo de Novaes Gomes
ÉDIPO:
acasos de uma leitura heterodoxa
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais,
como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em Literaturas de Língua
Portuguesa.
Orientação: Audemaro Taranto Goulart.
Belo Horizonte
2006
Para João, Lu, Manoel e Coeli.
Para Cristina Vilaça e Dulcejane Vaz.
AGRADECIMENTOS
A meu orientador, Doutor Audemaro Tarando Goulart.
Ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais, aqui representado pela secretária Berenice Viana de Faria e pela
Doutora Suely Maria de Paula e Silva Lobo.
A Bernadete Bittencourt, Carlos Alberto de Carvalho, Denise Gomes, Johnny
José Mafra, Márcia Marques de Morais e Vinícius Passos.
A UMA MULHER
Não tendo podido te criar
Nem tendo sido criado por ti
Eu me vingo do destino enxertando-me no teu ser.
Jamais conseguirás te libertar de mim
Porque eu te sitiei com a chama do amor,
Porque rondei durante dias e noites o Coração de Deus
A fim de extrair dele o segredo da ternura.
Todos os que te olham pensam logo em mim,
Todos os que me olham pensam súbito em ti.
Eu sou tua cicatriz que nunca se há de fechar.
Eu te perseguirei até depois da minha morte
E virei a ti no murmúrio dos ventos, no lamento das ondas,
Na angústia e na alegria dos poetas meus sucessores,
Nas almas grandes limitadas pelo físico.
Sentado nas nuvens esternas eu te esperarei
E me nutrirei através dos tempos da nostalgia de ti.
Murilo Mendes – A Poesia em pânico
RESUMO
Édipo Acasos de uma leitura heterodoxa é um trabalho dissertativo que tem como
objeto principal de estudo a tragédia Édipo Rei, de Sófocles. A análise realizada busca
marcar uma revisão bibliográfica em torno de hermenêuticas que possam ser
consideradas orto e heterodoxas sobre o assunto. Depois da leitura teórica do tema,
foram também produzidos dois estudos interpretativos. O primeiro, sobre o drama Um
Édipo, do português Armando Nascimento Rosa. O outro, sobre Jocasta Tirana,
situação dramática especialmente criada no sentido de procurar demonstrar, de modo
prático, as análises teóricas desta mesma dissertação.
Palavras-Chave: Jocasta, Édipo, Sófocles, tragédia.
R
ÉSUMÉ
Oedipe Une Lecture Hétérodoxe est une dissertation qui a comme objet principal
d'étude la tragédie Oedipe Roi, de Sophocles. L'analyse réalisée recherche marquer
une révision bibliographique autour des herméneutiques qui puissent être considérées
orto et hétérodoxes sur cette thématique. Après la lecture théorique, aussi ont été
produites deux études interprétatives. Premier, sur le drame Un Oedipe, du portugais
Armando Nascimento Rosa. L'autre, sur Jocaste Tyrannique, situation dramatique
spécialement créée dans le but de chercher à démontrer, de manière pratique, les
analyses théoriques de cette même dissertation.
Mots-Clé: Jocaste, Oedipe, Sophocles, tragédie.
SUMÁRIO
1.
INTRODUÇÃO............................................................................ 9
2.
A COSMOGONIA PARRICIDA...................................................
20
2.1. HOMENS, DEUSES E PODER.................................................................
24
2.2. ÉDIPO E AS MARCAS DO DESTINO......................................................
28
2.3. CÓDIGOS PARA UM MITO......................................................................
34
3. MEDIDA E DESMEDIDA............................................................ 42
3.1. TRAGÉDIA E AMBIGÜIDADE..................................................................
49
3.2. ERRO, HONRA E DESTINO.....................................................................
53
4. MARCAS DO GÊNERO..............................................................
66
4.1. MARCAS ESTRUTURAIS.........................................................................
76
4.2. MARCAS DO DESEJO.............................................................................
81
5. CAMINHOS PARA A HETERODOXIA.......................................
87
5.1. UM ÉDIPO SEM COMPLEXO...................................................................
88
5.2. ÉDIPO, JOCASTA E CULPA....................................................................
94
5.3. SABER E PODER.....................................................................................
99
5.4. APOLO E DIONÍSIO..................................................................................
109
6. DUAS LEITURAS HETERODOXAS...........................................
117
6.1. ESPELHO DE FANTASMAS....................................................................
120
6.2. MIRANDO JOCASTA................................................................................
129
7.
CONCLUSÃO............................................................................. 136
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................
140
BIBLIOGRAFIA...............................................................................
143
APÊNDICE A – JOCASTA TIRANA...............................................
145
ANEXO A – VASILHA COM FIGURAS VERMELHAS.................. 173
9
1. INTRODUÇÃO
Qualquer leitura que se faça do mito de Édipo não é capaz de trazer, a princípio,
novidades surpreendentes para o meio acadêmico. De Freud (1981) a Deleuze (1966),
de lio Pelegrino (1987) a Marilena Cha(1991), passando sempre por Sófocles,
estão aí os mais diversos enfoques que se centram num mito essencial do viver
humano para descobrir e desvelar possibilidades, sempre em busca de explicar o que é
de certo inexplicável: a própria existência.
Enquanto as primeiras leituras vão se preocupar com a análise e demonstração
deste mito, a de Sófocles irá, de maneira exemplar e através da tragédia, nomear a
cosmogonia parricida que atravessa a própria mitologia grega. Desde o Édipo Rei de
Sófocles, o mito do qual queremos tratar permeia a criação literária através das mais
diversas interpretações. A título de exemplo, poderíamos citar, em gêneros distintos, o
conto “A casa do girassol vermelho” (RUBIÃO, 1980), e o drama teatral António
Marinheiro (o Édipo de Alfama), de Bernardo Santareno (SANTARENO, 2004).
Na mesma medida em que cada um dos autores acima citados, além de outros,
trouxe luz inextinguível com sua leitura do mito, também arrastou, a reboque dessas
mesmas interpretações, dúvidas e questionamentos permanentes. Ou seja: o que se
pretende dizer é o óbvio de que as lacunas estão sempre abertas quando se trata de ler
um mito, uma vez que os espaços seguem sempre vazios, como se exigissem um
preenchimento eterno, possibilitado aqui pelo trabalho disjuntivo e analítico da razão.
10
No entanto, como esta mesma razão possui ordem inerentemente lingüística, também
ela não pode querer esgotar as possibilidades hermenêuticas.
E é exatamente tal capacidade inesgotável de proposição de renovadas
hipóteses interpretativas para o mito e o gênero que o veicula - Édipo que mata seu pai,
casa-se com sua mãe e com ela gera quatro filhos -, que me fez pensar numa leitura
que o enxergue desde uma perspectiva heterodoxa, centrando-se em questões como o
gênero literário e jogando o foco sobre partes menos ressaltadas nas interpretações
mais conhecidas e consagradas, tais como a de Sófocles, com sua tragédia
incomparável, e a de Freud, com sua abordagem psicanalítica.
Tanto na leitura de Sófocles como na freudiana, o mito de Édipo, é o que me
parece, é lido a partir de uma tradição hermenêutica ortodoxa. No dramaturgo grego, a
escritura segue os preceitos estabelecidos na Poética de Aristóteles(1993), não
exatamente porque por eles foi influenciada, mas porque, poder-se-ia dizer, ela mesma
os inspirou. Isto quer dizer que o Édipo Rei, que é uma das obras que inspira a leitura
teórica que Aristóteles faz do gênero dramático, é, nesse sentido, mais do que um
reflexo de tal gênero, mas aquilo mesmo que lhe deu a luz.
Além dos aspectos acima mencionados, Sófocles realiza em Édipo Rei, assim
creio, leitura e transfiguração de mitos de fundação anteriores, constituintes da tradição
mitológica grega. A exemplo, poderíamos lembrar a deposição de Urano, contada por
Hesíodo (2003) em sua Teogonia, em que se nota a tradição parricida que assombra
o imaginário grego. Outro estudioso, Mircea Eliade (1949), refere-se à figura similar de
Cronos, que padeceria do mesmo oráculo.
Se estes mitos anteriores tratam da genealogia olímpica, Sófocles terreniza-os,
por assim dizer, e os particulariza na composição da personagem de Édipo. No caso
11
freudiano, a tradução do mito edípico atravessa-se pelo estudo do gênero, em que ele
considera a figura do herói:
O herói é, a princípio, um rebelde contra Deus e o divino. É do sentimento de
miséria que a débil criatura sente-se enfrentada com o poderio divino; sendo
daí que o prazer pode considerar-se derivado, através da satisfação
masoquista e do gozo direto da personagem, cuja grandeza o drama tende,
contudo, a destacar. (FREUD; TOGNOLA, 1981, p.137)
Nota-se que a questão anterior a estas abordagens do mito parricida tem como
alvo barrar a potência paterna e/ou apropriar-se dela, como Freud indicou em outros
estudos, a exemplo do seminal Totem e Tabu (FREUD, 1987a) e em Dostoievski e o
parricídio (FREUD, 1996). Desse prisma, tanto no universo mitológico quanto no
freudiano, lutar contra o pai é lutar pelo poder e pela posse de suas prerrogativas. As
prerrogativas do pai são as do poder, desejado por todos. Édipo não seria o tirano de
Tebas se não tivesse vencido o pai, violentando, portanto, a ordem patriarcal sob a qual
a sociedade se estrutura.
Assim, a maneira de enxergar o mito está fundada na ortodoxia, e por ela é
explicada. Como quer Aristóteles, e Sófocles, é claro, a tragédia segue seu ritmo
tradicional: a ação acontece no transcorrer de um dia, reconhecimento e peripécia
estão em seus lugares exatos, a verossimilhança existe, o mito é preenchido e
transmitido pela ão. Além disso, o solo no qual o dramaturgo grego pisa é patriarcal,
referendado pelo protagonismo da figura masculina de Édipo.
A leitura freudiana do mito, ao que parece, também segue na tentativa de
justificar, como é sabido, não apenas a passagem da natureza à cultura, do mito à
razão, mas em busca de estabelecer um conceito capaz de influenciar ou provocar
12
quase tudo aquilo que se refere à psicanálise: o Complexo de Édipo. Tal conceito, por
também estar fincado no mesmo solo patriarcal da tragédia de Sófocles, poderia ser
enquadrado na mesma tradição hermenêutica de leitura do mito à qual estamos mais
amplamente acostumados. Isto é: uma interpretação centrada no masculino.
Esta tradição, vale observar, não se encontra apenas nas duas obras citadas
como exemplos de leitura de Édipo, a de Freud e Sófocles. Todos os estudos ou textos
literários mencionados anteriormente nesta dissertação também se inspiram em idéias
centradas no masculino. Cada um deles projeta seu foco principal numa maneira de ver
o mundo pautada pela tradição patriarcal, por uma razão que se delineia a partir de
uma luz diurna, como Aristóteles afirma dever ser. Uma razão em que a mulher e aquilo
que a noite esconde estão colocados como coadjuvantes.
A idéia de partir para uma leitura que busque a heterodoxia da noite e da mulher,
colocando-as como protagonistas de uma interpretação do mito, surgiu e foi tomando
corpo na tentativa de enxergar as relações existentes entre o próprio mito e o gênero
dramático que lhe é intrínseco. Nesse sentido, o que se procurou primeiro fazer foi
sistematizar alegoricamente textos que tratam do tema. E o trabalho de alegoria que
aqui aconteceu poder-se-ia dizer semelhante ao que pré-socráticos e estóicos fizeram
em seu tempo, procurando descobrir idéias embutidas figurativamente nas narrativas
mitológicas definidas nos textos homéricos.
E foi exatamente isso o que aconteceu: procurou-se ler as interpretações do
Édipo de maneira que, num momento posterior, se pudesse criar uma outra que, na
mesma medida em que tomasse para si os preceitos aristotélicos sobre o gênero,
procurasse também invertê-los. A idéia foi mais simples do que pode parecer: primeiro,
ler as análises consagradas que envolvessem de maneira particular o mito do tirano de
13
Tebas; depois, e a partir de tais leituras, propor uma interpretação distinta para o mito,
centrada na figura de Jocasta; por último, criar uma situação literária que, seguindo os
contornos essenciais definidos para o gênero por Aristóteles, propusesse uma projeção
que transformasse estes mesmos conceitos.
Foi então escrita uma peça teatral que ganhou o nome de Jocasta Tirana
(Apêndice A). A partir de então, o que se busca é registrar uma outra leitura, tentando
mostrar quais foram os parâmetros, modelos e fugas que conduziram a uma
interpretação heterodoxa do mito. Assim, o que aqui se chama de heterodoxia é o
tentar enxergar a noite que antecede o dia em que o mito, enquanto gênero, deve
durar. É tentar iluminar a figura de Jocasta, jogando nela uma luz que, em geral, está
centrada em seu filho e esposo. É tentar, sobretudo, ver este mito enquanto uma
linguagem consagrada pelo gênero literário e, desde este mesmo gênero, eternizada
em novas e distintas perspectivas.
Nesse sentido, o objetivo geral da dissertação é realizar uma leitura do mito de
Édipo que possa, além de ser enxergada a partir de um gênero literário, transformar os
preceitos desenvolvidos por Aristóteles para a composição da tragédia de maneira a
tentar ensejar uma interpretação que fuja da ortodoxia centrada na figura masculina a
partir da qual tal mito costuma ser analisado. O que se pretende é mesmo dissertar
comparativamente em torno do corpus artístico estabelecido sobre a heterodoxia a
partir do caminho inusitado, com relação à tradição acadêmica, de tentar captar que
método, quais caminhos e de que maneiras a leitura teórica de textos que tratam do
14
mito de Édipo, somada à análise de suas frestas e arestas, permitiram, por projeção, a
escritura da tragédia (anti-tragédia?) Jocasta Tirana
1
.
De maneira mais específica, buscar-se-á delinear a paráfrase e a própria
discussão do mito de Édipo, a partir de duas referências bastante concretas. A primeira
tem suas raízes na própria mitologia grega, através de uma análise que busca o ulterior
a Édipo, com referências a relatos como o de Urano, Cronos e Zeus. A compreensão de
conceitos que envolvem a Moira é essencial para ensejar aquilo que é também objetivo
desta dissertação: perceber que pressupostos (o destino, por exemplo) conferem
caráter ortodoxo à leitura do mito.
A outra referência é Totem e Tabu, de Freud (FREUD, 1987a). A partir dela, o
que será tentado é uma análise mais detalhada sobre a própria questão do gênero,
uma vez que tal texto freudiano coloca de maneira exemplar como a hermenêutica
clássica percebe a passagem que acontece entre o mito e o estado de conhecimento
(logos).
Outro objetivo específico deste trabalho é a percepção mais aprofundada da
questão do gênero. A abordagem conceitual da Moira será então novamente feita na
tentativa de defini-la como linguagem mesmo: o destino que está escrito: o Édipo que
não pode deixar de matar seu pai e casar-se com sua mãe. Em contrapartida, como
motivo de introduzir uma perspectiva heterodoxa, procurar-se-á contrapor ao ideário
da Moira a personificação da Hýbris, e discutir a questão do gênero também a partir da
desmedida que ela mesma pode oferecer. Neste ponto - como diz Johnny Mafra,
lembrando Antônio Freire (1969) -, “o trágico deve ser entendido como a luta do homem
1
Este texto - lançado em livro no dia 30 agosto de 2006, pela Unidade Editorial da Secretaria Municipal
de Cultura de Porto Alegre (RS) - irá figurar como apêndice da dissertação.
15
contra o Destino” (MAFRA; 1980, p.72). E o destino é a própria Moira, dona de fios que,
se por um lado não dependem da poesia humana para serem tecidos, por outro
existem aquém e além do próprio ser inacabado que esse próprio homem é.
A poesia não criou o Destino. Ele existe na mentalidade popular. Entra na
tragédia como elemento que se contrapõe à finitude humana. (MAFRA; 1980,
p.76)
Também presente na tragédia está o conceito de Hýbris. Segundo o Dicionário
de Mitologia Grega e Romana (KURY, 2001), o princípio é a personificação da
arrogância e insolência(KURY, 2001, p.197). Oposto da lei divina, inimiga da justiça, a
própria desmedida. Nada menos ortodoxo, nada mais humano. A Jocasta que dorme
com seu filho e com ele gera outros filhos, o Édipo parricida e provocador de sua
própria cegueira estão condenados a revelá-la para, a partir daí, serem perseguidos
furiosa e implacavelmente. Poesia trágica que busca hereticamente alguma
transformação, mesmo que esta seja a possível, precária. Destino x ruptura.
Ortodoxo x heterodoxo. Apolo x Dionísio. Moira x Hýbris. É esse também o embate que
esta dissertação irá arriscar expor.
Também procurarei dissertar brevemente sobre o Édipo Rei, de Sófocles. O que
será almejado é a percepção do porquê esta obra é considerada um exemplo legítimo
daquilo que se define, do ponto de vista mais ortodoxo, como tragédia. Em vários
momentos de sua Poética, Aristóteles (1993) cita Édipo Rei de maneira a considerá-lo
uma obra em que o gênero trágico se expressa em completude exemplar. Nesse
sentido, vale atentar para o que diz Mário da Gama Kury (2002) em sua introdução à
“Trilogia Tebana”:
16
O Édipo Rei de Sófocles é, portanto, a mais típica das tragédias gregas, e por
isso é uma das mais citadas por Aristóteles em apoio a suas definições e
concepções. (KURY, 2002, p.11)
Depois de passar por Sófocles, a análise do mito acontecerá com textos mais
provocativos no que se refere à sua abordagem. O entendimento de Audemaro Taranto
Goulart (1997) em “Leituras do mito de Édipo”, Marilena Chauí (1991) e Hélio Pellegrino
(1987) são fundamentais para tal. Vale lembrar que os três autores citados expõem
interpretações do mito que buscam a discussão da heterodoxia. Pellegrino (1987), em
análise à teoria freudiana e lacaniana, e propondo uma leitura diversa, afirma de
maneira bastante heterodoxa:
Édipo, herói da legenda tebana, ao assasinar o pai e ao casar-se com a mãe,
não se enquadra no esquema estrutural e conceitual do complexo de Édipo, tal
como o descreve Freud. Édipo, portanto, não padecia do complexo de Édipo
freudiano, tendo sucumbido a vicissitudes de natureza pré-edípicas.
(PELLEGRINO, 1987, p.309)
Goulart (1997), em texto analítico de leituras de Édipo, depois de discorrer sobre
o estruturalismo de Lévi-Strauss (1973) e também sobre Freud, entre outros, conclui:
O mito poderia ser visto, então, como um elemento que explicita dois sistemas
de relacionamento humano: o que obedece aos princípios da regência feminina
e o que se submete ao domínio masculino. Dentro dos mecanismos que
propiciam a articulação dialética, ambos estariam se insinuando mas,
claramente, o mito como que acena na direção de um deles. E faz isso através
da sutileza com que se percebe que o Édipo vitorioso é aquele que se liga aos
elementos femininos. Pelo menos essa é uma leitura possível, ainda que para
operacionalizá-la o leitor tenha que transitar da perplexidade à ousadia, pois,
parodiando o próprio Nietzsche, é preciso incidir na sublime e terrível coluna de
Memnon do mito para que ele, subitamente, ressoe e cante.
(
GOULART, 1997,
p.26)
17
Ressoar e cantar foi a proposta executada quando se leram as interpretações
do Édipo em busca de uma nova medida. Buscar a perplexidade de trepar a coluna de
Mêmnon é um dos objetivos específicos desta dissertação. Quem sabe, será possível
fazê-lo, escutando a música que saúda uma aurora que vem logo após o conhecimento
daquilo que a noite pode ter a dizer e daquilo que a mulher (Gaia?, a que nasceu logo
após o Caos e, sozinha, engendrou o próprio Urano) certamente tem a revelar.
Além disso, buscarei finalmente encontrar meios para que seja feita uma leitura
heterodoxa do mito. O que dizem dele autores como Nietzsche (1992) irá permear tal
análise. É aqui também que a situação literária criada será avaliada em uma
perspectiva comparativa com o que se definiu como ortodoxo e heterodoxo, procurando
apontar nela aspectos relevantes para uma interpretação que busca querer se fazer
enxergar a partir de uma hermenêutica não tradicional.
em seu “A origem da tragédia” (NIETZSCHE, 1992), o filósofo alemão parece
assinalar o caminho para uma leitura que aponte a desconstrução do tradicional. É pelo
que Nietzsche diz logo no primeiro parágrafo desse seu livro que pretendo me deixar
conduzir:
Teremos dado um grande passo, e promovido o progresso da ciência estética,
quando chegarmos não à indução lógica, mas também à certeza imediata,
deste pensamento: a evolução progressiva da arte resulta do duplo caráter do
espírito apolíneo e do espírito dionisíaco, tal como a dualidade dos sexos gera
a vida no meio de lutas que são perpétuas e de aproximações que são
periódicas. (NIETZSCHE, 1992, p.35)
Como se disse reiteradamente, equilibrar-se entre a profecia como verdade
do sonho” e a desmedida como verdade da embriaguez (DELEUZE, 2001, p.51),
18
como diz Deleuze (2001) em nota de seu livro sobre Nietzsche, é o objetivo central
deste trabalho.
A metodologia geral a ser empreendida neste estudo coloca leitura,
interpretação, seleção e citação de fontes primárias e secundárias em primeiro plano.
Contudo, além de recorrer à pesquisa bibliográfica dos textos teóricos que
possibilitaram, de um ou outro modo, a escritura da situação literária, também será
analisado detidamente o Édipo Rei, de Sófocles.
Nesse sentido, as fontes primárias serão a incomparável obra de Sófocles, a
situação literária criada e um outro drama intitulado Um Édipo (ROSA, 2003), escrito
pelo português Armando Nascimento Rosa, produzida a partir das leituras e
interpretações encontradas nos textos teóricos sobre o mito de Édipo. Assim, a análise
da obra de Sófocles, além de assegurar permanência e transmissão do próprio mito de
Édipo, figura como arquétipo capaz de definir toda uma ortodoxia clássica da própria
tragédia, como se pode observar a partir da leitura da Poética de Aristóteles. Jocasta
Tirana será, então, exemplo produzido especificamente com a finalidade de buscar uma
outra abordagem, figurando como texto a partir do qual tentar-se-á vislumbrar uma
leitura heterodoxa do mito.
Ressalte-se que, neste trabalho, se a proposta de análise de uma produção
ficcional de minha própria lavra, cotejando-a com o “texto sagrado” de Sófocles, puder
sugerir a desmedida, tão condenada pelos gregos, esta aparente pretensão foi
estimulada pela devoção confessa ao mito helênico e a quase tudo que a ele diga
respeito. Assim, Jocasta Tirana, também como releitura, servirá como espécie de
espelho fosco, pano de fundo, do qual se extrairão subsídios teóricos sobre os quais é
preciso centrar a atenção, verificando suas implicações e analisando-os, em processo
19
de alegoria, que constituem os nós que pretendemos desatar para erigirmos esta
outra perspectiva de leitura que se quer cerne desta proposta.
20
2. A COSMOGONIA PARRICIDA
Céu e terra. Urano e Gaia. Neste mito de fundação da tradição grega, este casal
de deuses é quem dará origem a toda uma teogonia. São eles os pais dos seis Titãs,
das seis Titânidas, dos três Ciclopes e dos três gigantes Hecatonquiros. Mas é o filho
mais jovem, Cronos, o único que aceita atender ao pedido da mãe. Cansada de
procriar, Gaia pede a todos eles que a protejam da voracidade sexual do pai, Urano. O
titã Cronos, pertencente à primeira geração divina, é, como se disse, o único que a
ajuda. É ele quem corta os testículos do pai e os atira ao mar, destronando-o em
seguida.
Não temos ainda aqui o parricídio, mas algo que dele se aproxima: a castração.
Aproxima-se porque a castração é o fato que, de uma ou outra maneira, conduzirá ao
próprio parricídio, como veremos adiante. Em conseqüência de rebelar-se e castrar o
próprio pai, Cronos detém para si o poder. Deus soberano e senhor do mundo, ele casa
com sua irmã, Rea. Insaciável também, gera vários filhos, mas, temendo que aquilo que
ocorreu a seu pai aconteça também com ele, devora cada um de seus filhos logo após
o nascimento.
O único com o qual isso não acontece é Zeus, uma vez que Rea engana o
marido e, depois de colocar uma pedra no manto que cobria seu último filho, entrega-a
ao esposo, que a engole sem se dar pelo embuste. Zeus, então, respira livre e, logo,
em sua idade adulta, é ele quem irá rebelar-se contra o pai. Primeiro, dando-lhe uma
bebida que facom que este vomite os filhos; depois, com a ajuda de seus irmãos e
21
dos gigantes Hecatonquiros por ele libertados, guerreando contra o pai, vencendo-o e
assumindo o poder.
Contra Zeus também, entretanto, paira também a sombra do parricídio. É o que
anunciou Gaia, ao profetizar que ele, que havia encarcerado os Titãs no inferno, seria
destronado por um seu descendente. É por isso que, seguindo o exemplo que vem
mais uma vez do pai, Zeus engole sua esposa Métis, que, na profecia de Gaia, seria
ela quem daria à luz uma deusa cujo filho o destronaria.
Segundo André Virel, assim como citado no Dicionário de mbolos
(CHEVALIER; GHEERBRANT,
1998, p. 922), podemos dividir a mitologia grega em três
distintas fases da evolução criadora. A primeira é a chamada cosmogênese, em que
está Urano, efervescência caótica e diferenciada; em seguida, a esquizogênese, na
qual temos a presença decisiva de Cronos; finalmente, vem a autogênese, com Zeus e
seu reino. A cosmogênese representa caos e inércia; a esquizogênese, corte e divisão,
com o fim das secreções indefinidas do pai; a terceira fase tem a marca de um novo
começo ordenado, organizado, controlado.
Urano é o símbolo do início de toda e qualquer ação, com seu revezamento de
exaltação e repressão, impulso e queda, vida e morte, expressão do ciclo dos
desenvolvimentos. É o próprio Céu e representa a sexualidade devastadora, sem limite,
que destrói. As genealogias se misturam: para a teogonia órfica, ele é irmão de Gaia;
para outras, Gaia, que simboliza a terra, é também sua mãe e esposa. Como se
disse, ela, cansada de tanto conceber, pede a seus filhos que a protejam de Urano e de
sua insaciabilidade sexual. Segundo conta a tradição mitológica mais antiga, depois
que Cronos castra o pai e joga seus testículos ao mar, da espuma sangrenta das águas
do oceano nasce Afrodite. Com a mutilação do membro gerador de Urano, desaparece
22
do mundo a fecundidade estéril e desordenada e surge, com a deusa que comumente é
identificada ao amor e à fertilidade, a ordem, a procriação comedida e a continuidade
das espécies.
Interessante, no caso de Cronos, é perceber que, com o nome alterado para
Khronos, esta divindade costuma também ser personificada como o tempo. E, nesse
sentido, uma e outra personificação também se aproximam enquanto símbolos de uma
fome devoradora, de desejo insaciável, que mata as fontes de vida. Se o primeiro é
incapaz de se adaptar à evolução da vida e da sociedade, o outro não permite que essa
evolução aconteça alheia à sua vontade. Ambos são senhores e donos de suas
criaturas e não lhes permitem que a vida aconteça independente de suas ordens e
determinações. Não concebem sucessão e sucessores. Cronos mata seus filhos para
não ter descendentes, o outro consome os humanos com sua foice.
Cronos corta os testículos do pai: derrota-o. Urano perde o poder de gerar e de
se perpetuar. Mas Cronos também teme que seus filhos façam com ele o mesmo que
fizera a seu pai e, por isso, engole-os um a um. Talvez receie que, assumindo a
paternidade de sua prole, perca a divindade, transformando-se em humano e, em
conseqüência, tornando-se presa de Khronos. Por isso, nega sua geração.
No que se refere a este episódio da castração, valeria também recordar que
Cibele, a deusa-mãe da Frígia, Ásia Menor, foi a primeira a quem foi dedicado tal ritual.
Confundida na Grécia com Rea, esposa de Cronos, Cibele, considerada mãe de todos
os deuses, não queria ceder aos desejos de seu filho e amante Átis, casando-se com
ele. Num acesso de loucura, Átis se castra antes de suicidar-se. Assim, o que se
poderia inferir é que a castração também deriva em morte. Morte de um tipo de poder
para a construção de outro.
23
Castrar Urano parece ser a única alternativa para destituir um deus, um imortal,
de seu poder, uma vez que cometer o parricídio é impossível. Nesse sentido, castração
e morte se equivalem quando o que buscamos é derrubar poderes para erigir outros.
Fosse humano, como Édipo, e tudo poderia ser distinto. Ou seja: o que aqui se
pretende afirmar é que o parricídio está para os humanos Édipo e Laio assim como a
castração está para os deuses Cronos e Urano. O que interessa, nos dois casos, é que
o poder seja transferido, que ele mude, mesmo que temporariamente, de mãos.
Zeus, no entanto, não castra, pelo menos no sentido concreto. Para ter o poder
para si, ele tem antes que buscar aliados. Outra vez, o alvo é o mesmo: o pai e tudo
aquilo que este simboliza. E é para derrotar tal pai que ele faz com que este vomite
seus filhos. A luta, então, pode começar. E será vencida pelo filho que irá, em seguida,
dividir com seus irmãos os poderes. O filho que, mesmo sendo um deus, busca nos
humanos uma de suas prerrogativas: a negociação.
O que aqui temos, como foi mencionado através de André Virel (CHEVALIER;
GHEERBRANT,
1998), é a autogênese caracterizada pela ordem. Os filhos vitoriosos
repartem entre si o universo. A Hades, cabe o inferno; a Poseidon, os mares; Zeus fica
com o u e a proeminência sobre os demais deuses e sobre o universo. Para Cronos,
o pai que não sabia dividir e que representava a ameaça da indefinição, a castração
está no rcere, que é guardado por seus próprios filhos, os gigantes Hecatonquiros.
Um deus aprisionado, sem poder. A castração, portanto, não se realiza no sentido
concreto, mas no simbólico.
24
2.1. HOMENS, DEUSES E PODER
Se para os deuses os fatos possuem tal dimensão, para os homens humanos as
definições não são tão diferentes. Buscando dar a seu Complexo de Édipo uma
significação universal, Freud publica, entre 1912 e 1913, seu livro Totem e Tabu
(FREUD, 1987a). Segundo o Dicionário de Psicanálise no prefácio de 1913, ele
apresenta Totem e Tabu como uma aplicação da psicanálise a ‘problemas o
esclarecidos da psicologia dos povos’”. (ROUDINESCO; PLON, 1998, p.757).
Vale crer que a história narrada pelo livro capaz de misturar componentes
literários e antropológicos em seu interior, na tentativa de explicar a um tempo temas
como a origem da humanidade, a questão do monoteísmo e a própria angústia gerada
pelo poder –, possui aspectos que a ligam de maneira interessante ao que se disse a
agora sobre as disputas entre os deuses gregos. Freud conta que, num tempo primitivo,
os homens viviam em pequenas hordas. Tais hordas estavam, cada qual à sua vez,
submetidas ao poder arbitrário de um macho. Os demais lhe deviam obediência; as
fêmeas, todas e cada uma delas, lhe pertenciam.
Um dia, os filhos da tribo se rebelaram contra esse pai déspota e tirano,
interrompendo o reino da horda selvagem. Em uma ação de violência coletiva, mataram
o pai e comeram seu cadáver. Depois do assassinato, no entanto, arrependidos,
repudiaram o parricídio para, em seguida, criar uma nova ordem social. Esta nova
norma instaurava, ao mesmo tempo, a exogamia e o totemismo. Com este, proibiam o
assassinato do substituto do pai, ou seja, do próprio totem; com aquela, renunciavam à
posse das mulheres do clã do totem.
25
No prefácio que faz a seu Dicionário da Mitologia grega, Ruth Guimarães (2004)
explica didaticamente o que ela mesma chama “idade do mito na civilização”. Em
alguns pontos se aproximando daquilo que diz Virel, a autora afirma que os mitos mais
antigos, cosmogônicos, tratam de fenômenos naturais, como a própria morte e a origem
do mundo. Não é sem mais que divindades como Urano e Gaia, que personificam
respectivamente céu e terra, fazem parte de tal grupo.
Numa segunda fase, Ruth Guimarães aponta para o mito que conta a história
dos deuses e que é fruto de uma religião organizada, longe de suas origens. É aqui
que encontramos Cronos e seus embates com outros deuses. O grupo final é o que se
refere aos heróis civilizadores. Os deuses seguem a seu lado, não importa se contra ou
a seu favor, mas o que é mais determinante é a ação humana na transformação do
mundo. A biografia de Édipo é, decididamente, um mito pertencente a esta fase.
Ao narrar uma história como a de Totem e Tabu, Freud compara seu selvagem à
criança. E o faz “para provar a adequação entre a neurose infantil e a condição humana
de uma maneira geral, assim erigindo o Complexo de Édipo num modelo universal
(ROUDINESCO;
PLON,
1998,
p.
759). A criança, portanto, poderia ser tomada como o
filho. O filho que mata o pai, que guerreia contra ele, que assume seu lugar. Deuses ou
humanos, estamos também falando de Urano, Cronos, Zeus, Laio, Édipo: castrados e
castradores, mortos e assassinos, poderosos e cativos.
que o que se quer neste momento é dar um caráter equivalente entre castrar
e matar, seria interessante ver o que Lacan elabora no que se refere à castração, em
releitura que faz das idéias de Freud sobre o tema. Para Lacan, a castração seria uma
representação simbólica da ameaça do desaparecimento. Ou seja: a castração não se
limita ao objeto real nis, mas se refere ao objeto imaginário falo. Se com Lacan
26
estamos falando do imaginário, poderíamos, por conseguinte, e tendo este mesmo falo
como representação simbólica, estar falando do poder que este mesmo falo significa. É
que, para Lacan, o simbólico se transforma em lei. Segundo ele, é no Nome do Pai que
acontece o reconhecimento para a função simbólica que identifica sua pessoa à figura
da lei.
Ainda acompanhando Lacan, podemos ver que, para ele, a interdição do pai
equivale à castração, numa mesma etapa do desenvolvimento infantil. Assim, o pai que
proíbe, que detém para si o poder, que castra, também deve ser morto, castrado. Nesse
sentido, castrar o falo quer dizer castrar o poder. O que querem Cronos, Zeus e os
selvagens da horda primitiva de Totem e Tabu é, em última instância, tomar para si o
poder do pai, a fim de constituir uma nova ordem. E, para isso, é necessário matar,
castrar, arrancar o comando de quem o tem. O princípio parece ser o mesmo: castrar
imaginando não ser castrado; encarcerar para não se tornar cativo; matar para não ser
morto.
No entanto, tais ações preventivas entre deuses e homens resultam inócuas: o
Urano que procria insaciavelmente em breve será castrado; o Cronos que devora os
filhos logo será por eles enclausurado; o Laio que manda matar o filho será por ele
assassinado na encruzilhada de três caminhos. Então, a pergunta que talvez caiba ser
feita é aquela que indaga que poderes podem existir que sejam maiores e mais
eficazes que o dos próprios deuses e o dos homens poderosos. Quem sabe os da
Moira, tecendo seus fios?
O mito de Édipo parece ser, portanto, o momento em que a tradição parricida e
castradora da mitologia grega chega ao humano. Antes, tal noção estava circunscrita
aos deuses, aos imortais. Eram estes que lutavam pelo poder. Com Édipo e tudo aquilo
27
que a ele está circunscrito, ainda que os deuses guardem no Olimpo seus lugares
apropriados, o trágico passa a comandar a vida dos homens. No entanto, tais sujeitos
são mortais, inexoravelmente mortais, como lembra Nicole Loraux quando afirma que,
como diz Aristóteles (1993) em sua Poética, o homem é, na tragédia grega, “criatura de
um dia” e, portanto, “efêmera”.
E esse ser, uma criatura de apenas um dia, deve ser encarado por aquilo que a
estrutura do gênero define para a tragédia, e não porque a vida desse mesmo sujeito
possa ser resumida a esse único dia. Segundo Loraux, na cena trágica, o homem se
enuncia a partir de três termos decisivos:
Brotós, ou o homem enquanto mortal (diz-se tamm, a partir de uma outra
raiz que significa morrer”, thnētós); ánthrōpos, o homem em sua humanidade
de ser social; anĕr, o homem viril. (LORAUX apud NOVAES, 2000, p.20)
O Édipo trágico reúne em seu mito esses três tipos de homem: mortal em suas
angústias; social naquilo que deve negociar para que sua cidade prospere; viril, quando
mata, quando decifra, quando, casando-se com a própria mãe, tem com ela quatro
filhos. Reunindo tais condições, temos um homem cuja dor o levará a cegar-se, um
contumaz herói grego, ainda que atípico, como pretendo explicar mais à frente. Mas um
herói, uma vez que mesmo sua cegueira é produto do conhecimento.
Entretanto, aparentemente de maneira contraditória, o Édipo homem é aquele
que reúne algumas das prerrogativas dos deuses: luta, decifra, mata, procria
incestuosamente. Ou seja: como Cronos e como Zeus, ele tomou o poder de seu pai;
como Átis e como o próprio Urano, dormiu com sua mãe; ainda como Átis ele,
atormentado, se mutilou; como os homens e como os deuses, não pode evitar o
28
destino. À imagem e semelhança. É com esta idéia que André Virel (CHEVALIER,
1998) faz coro, quando compara a história dos deuses à história dos homens: “A
história mitológica dos deuses esclarece (então) a história dos homens”. (VIREL apud
CHEVALIER, 1998, p.922)
Não é desta maneira que também reza a tradição judaico-cristã? Temos aqui,
portanto, um homem grego, um herói ocidental, também bastante semelhante aos
deuses que cultua. Criadores e criaturas que parecem se aproximar em suas angústias
terríveis, quase insuportáveis, alucinantes.
2.2. ÉDIPO E AS MARCAS DO DESTINO
O mito de Édipo é marcado por essa angústia delirante. Uma expiação que
começa ainda antes de seu nascimento, quando Laio, rei de Tebas, ouve de um oráculo
a maldição que lhe está destinada: a de que ele será assassinado por seu filho que, em
seguida, o sucederá no trono, depois de se casar com a própria mãe. Audemaro
Taranto Goulart (1997), em texto esclarecedor sobre o tema, conta a trama que se
segue:
Laio tentou, de todas as formas, fugir do destino que os deuses lhe
reservaram. Evitou, o quanto pôde, o contado sexual com Jocasta, sua mulher,
mas uma noite, embriagado, acaba gerando o filho indesejado. Assim, nasce
Édipo. Imediatamente após, o recém-nascido é entregue a um escravo, com a
recomendação de que fosse exposto no alto do monte Citerão, onde morreria e
seria consumido pelos abutres. Entretanto, uma caravana de Corinto passa
pelo lugar, toma a criança e a leva para aquela cidade, onde acaba indo parar
nas mãos de Pólibo e de Mérope (nome de Peribéia, na tragédia de Sófocles),
29
rei e rainha de Corinto. Criado como filho pelos governantes, Édipo, adulto,
certa vez, ouve num banquete, de um conviva embriagado, que ele era um
plastós, ou seja, um filho postiço. Intrigado, Édipo consulta a Pítia, sacerdotisa
de Apolo no templo de Delfos, dela recebendo a terrível informação de que ele
estava condenado a matar o pai e a casar-se com a mãe. (GOULART, 1997)
Nesse sentido, a profecia que Laio escuta é a mesma que Cronos e Zeus
escutaram: eles perderão o poder que m a partir de uma ofensiva de suas
descendências. A alternativa para que isso não aconteça é, para deuses e homens,
usar das prerrogativas que o próprio poder lhes confere. Cronos engole os filhos; Zeus
engole a mulher, Métis; Laio manda matar. Deuses e homens utilizando-se dos mesmos
artifícios na tentativa de enganar o destino e manter a posse daquilo que julgam lhes
pertencer.
Mas o que parece é mesmo que a Moira, personificação do destino, não pode
ser iludida. Édipo, a criança cujos tornozelos foram atravessados por uma argola de
ferro a mando do próprio pai, e por isso tem os pés inchados
2
, antes que fosse
abandonado, este mesmo Édipo sabe agora de seu próprio destino e, como Laio,
Cronos e Zeus, também tentará esquivar-se do que lhe foi reservado. É por isso que
ele, para não matar Pólibo e casar-se com Mérope, de quem julga ser filho, foge em
direção a Tebas.
No caminho, numa encruzilhada do estreito e efêmero caminho que sói ser
aquele de todos os brotós, Édipo encontra Laio, que vem acompanhado de cinco
homens. Por uma disputa acerca de quem teria a precedência em passar pela tal
estradinha, uns e outro acabam se altercando e o resultado da disputa é a morte de
Laio e de três de seus seguidores.
2
Oídipous: pés inchados.
30
Édipo, então, continua uma caminhada que vai dar à entrada de Tebas, onde
uma esfinge, monstro com corpo, garras e cauda de leão, cabeça de mulher, asas de
águia e unhas de harpia, propõe enigmas a quem encontra e, caso o passante não
decifre o mistério, o devora. Ao nosso angustiado, ela propõe a seguinte charada: “Que
animal, possuindo voz, pela manhã anda em quatro pés, ao meio-dia, com dois e, à
tarde, com três?” Talvez não seja por acaso que a pergunta feita leva ao encontro, mais
uma vez, do brotós, do ser que tragicamente é definido como efêmero, como afirma
Nicole Loraux. Édipo acerta a resposta: é o homem. Assim, tentando escapar, o fugitivo
se encontra novamente com seu destino à entrada da cidade de Tebas. Derrotada, a
esfinge se atira do alto de um rochedo e morre. Como recompensa por sua proeza,
Édipo é aclamado em Tebas como herói e recebe sua recompensa: o trono e a mão da
rainha viúva Jocasta. Com ela, nosso herói terá quatro filhos: Polinice, Etéocles,
Antígona e Ismene.
E é aqui que cabe fazer uma pausa para que se possa pensar a estrutura dessa
família que se constitui. Sim: um pai, uma mãe e quatro filhos. Ou uma mãe e seus
cinco filhos. Um pai, sua esposa e seus quatro filhos. Ou um pai, sua mãe e seus quatro
irmãos. Um esposo e sua esposa. Ou um filho e sua mãe. Juntas, todas essas
alternativas constituem, a uma só vez, tudo aquilo que a transgressão do incesto, assim
como colocado em Totem e Tabu, é capaz de nos expor. Uma verdadeira horda. E, a
partir de um raciocínio simples, levado mesmo pelo senso comum, o que se pode
perceber é que tal união durou o tempo suficiente para que quatro filhos fossem
gerados e se tornassem jovens adultos. E para que, depois que o mistério da origem de
Édipo fosse revelado, dois deles se matassem um ao outro e uma delas, Antígona,
servisse de guia para o próprio pai, cego, em sua caminhada andarilha. Assim, o que se
31
pode vislumbrar, apenas vislumbrar, é uma Jocasta que envelhece inexoravelmente ao
lado de seu filho e esposo, parindo como uma deusa e sofrendo como uma mulher.
Deuses e mortais sinalizando condições ambíguas, a partir de enredos femininos nos
quais a fertilidade e a capacidade de gerar são cruéis e servem a propósitos ocultos e
escusos. A geração de vida é poder.
Exatamente isto: Jocasta parteja como uma Gaia ou como uma Métis e sofre
como a mulher que entregou seu primeiro filho, aquele que agora é o pai de seus outros
rebentos, nas mãos de um escravo para que este o matasse e, de tal maneira, o
destino de Laio, seu primeiro esposo, e o seu próprio, pudessem ser ludibriados. Por
isso, ao mandar matar o filho, Jocasta também acaba ordenando o assassinato, sem
saber, do próprio pai, daquele que irá gerar seus outros quatro filhos. O que se quer
levantar aqui é apenas uma hipótese. Uma hipótese que construa a cena se
quisermos, podemos até mesmo imaginá-la! –, de um filho que, inocente, mas
sedutor, sorri para a mãe que logo o entregará ao carrasco. Como Rea, não poderia
embrulhar uma pedra em seu lugar e entregá-la ao algoz? Lacan, quando discute em
um de seus seminários o Complexo de Édipo freudiano, nos diz:
Deixamos a criança na posição de engodo em que ela se insinua junto à mãe.
Este não é, como eu lhes disse, um simples logro em que ela estaria
completamente implicada, no sentido etológico. No jogo da exibição sexual,
podemos nós que estamos de fora perceber elementos imaginários,
aparências que cativam o parceiro. Não sabemos até que ponto os sujeitos
utilizam isso como um engodo, ainda que saibamos que poderíamos fazê-lo
ocasionalmente, por exemplo, apresentando ao desejo do simples adversário
um simples brasão. O engodo de que se trata aqui é bastante manifesto nas
ações e mesmo nas atividades que observamos no menino, e, por exemplo,
em suas atividades sedutoras com relação à mãe, que existe como um
terceiro. (LACAN; MILLER, 1995, p.205)
32
O engodo aqui talvez esteja sendo arquitetado pela Moira. Édipo, como se
sabe, não será morto e, quando, com apenas o elucidar de uma adivinha, salvar a
cidade da peste que a consome, ele ganhará seu trono, uma esposa e terá de volta sua
mãe, para que, com tempo, possa seduzi-la nas artes amorosas e com ela engendrar
quatro outros filhos. Ele matou seu verdadeiro pai, mas ainda não colocou um totem
em seu lugar. O engodo, portanto, ainda não foi desfeito, e é preciso aperfeiçoá-lo com
toda uma vida de poderes e tiranias. Édipo, afinal, tornou-se o rei de Tebas. Agora, ele
é o Oidípus Týrannos, como anuncia Sófocles em sua tragédia.
No entanto, a peste irá visitar de novo a cidade. E será também um oráculo, o de
Delfos, consagrado a Apolo, deus da claridade e da perfeição, que anunciará que, para
que o flagelo desapareça, é preciso conhecer. Sim, é necessário conhecer,
descobrindo, finalmente, quem foi o assassino de Laio. Édipo manda chamar Tirésias,
um adivinho. Um áuspice cego! Tão cego quanto o próprio Édipo um dia será. Tirésias,
um mortal que pode ver além e aquém das aparências, sabe de tudo e tenta, ao invés
de demonstrar, ocultar a verdade, tergiversando. Édipo chega mesmo a desconfiar de
Creonte, irmão de Jocasta e aquele que ocupava o trono de Tebas antes de Édipo e
após a morte de Laio. Nesse sentido, é oportuno observar, mais uma vez, a paráfrase
que faz Audemaro Taranto Goulart (1997) a propósito do tema:
Édipo inicia, então, a busca do assassino de Laio e, nessa caçada de si
mesmo, quanto mais age mais se aproxima da evidência de que ele era o
responsável pela morte do rei, o que, aliás, já lhe havia sido dito por um
adivinho, o cego Tirésias. Édipo negava-se a aceitar a palavra do adivinho,
justificando-se com uma trama que ele e Creonte lhe armavam para tomar-lhe
o poder. (GOULART, 1997, p.13)
33
Às desconfianças de Édipo, soma-se a certeza de Jocasta de que é
aconselhável o dar ouvidos a mortais que julgam possuir dons divinatórios. É
precisamente nesse momento que se intensifica a peripécia no Édipo Rei, de Sófocles.
Para justificar esta sua crença, a rainha conta a seu rei a história que ocorrera com ela,
Laio e o filho que julga morto: a criança que assassinaria o pai teve os tornozelos
amarrados, foi entregue a estranhos e lançada em precipícios de montanha
inacessível” (SÓFOCLES, 2002, p.54). Um precipício, pode-se mesmo pensar, tão
inacessível como a verdade que se escondeu à espera da Moira que viesse lhe cortar o
fio. As palavras a seguir, que pretendem afirmar a certeza de que os oráculos também
se enganam, são ditas pela própria Jocasta, em tradução de Mário da Gama Kury da
incomparável obra de Sófocles.
Naquele tempo Apolo não realizou
as predições: o único filho de Laio
não se tornou o matador do próprio pai;
não se concretizaram as apreensões do rei
que tanto receava terminar seus dias
golpeado pelo ser que lhe devia a vida.
Falharam-lhe os oráculos; o próprio deus
Evidencia seus desígnios quando quer,
Sem recorrer a intérpretes, somente ele. (SÓFOCLES, 2002, p.54-55)
A partir deste momento, as luzes lançadas por Apolo vêm decisivamente para
esclarecer a trama. Tirésias, o cego, foi o único a enxergar a verdade e, agora, com
Édipo e Jocasta tomando a consciência inaudita, é preciso encarar o clarão de Apolo.
E ele vem através de dois escravos: o primeiro, aquele que recebeu de Jocasta a
criança a ser morta; o outro, o mesmo pastor que entregou a criança que não foi morta
a pais de Corinto, que a criaram como um príncipe.
34
Nem mesmo a notícia da morte de Pólibo, o homem que, de fato, criou a criança
que devia ser morta, é capaz de aplacar a verdade que Édipo deve agora enxergar. De
nada valeram as tentativas de uma e outra parte para que o destino prefigurado pelos
oráculos não se concretizasse. Ou seja: o filho que devia ser morto não morreu e,
assim, o totem foi destruído e o tabu estilhaçado à sombra de outros quatro filhos e
uma vida. Jocasta agora pende na forca que para ela estava reservada, suspensa
como, conta uma versão do mito, esteve seu primeiro filho, atado pelos pés ao galho de
uma árvore. Édipo será cegado pela verdade e errará pelo mundo grego, este nosso
mundo ocidental, de deuses cada vez mais humanos e de homens que cada vez se
julgam mais deuses. Um Édipo cego, mas que, depois de vislumbrar todas as trágicas
angústias de um ordinário brotós, será capaz de enxergar coisas e fazer com que
outros enxerguem através dele, ao longo do tempo. Assim, o mito: esvaziado para ser
preenchido. Preenchido, para que possamos outra vez despejá-lo. Linguagem.
2.3. CÓDIGOS PARA UM MITO
Quando dizemos que mito é linguagem, o que estamos fazendo é mesmo nos
reportar à definição de Claude Lévi-Strauss (1973). O antropólogo utiliza-se dos mitos
como base de seus estudos que conduzem ao estruturalismo.
Mito é linguagem; mas uma linguagem que tem lugar em um nível muito
elevado, e onde o sentido chega, se é lícito dizer, a decolar do fundamento
lingüístico sobre o qual começou rolando. (LEVI-STRAUSS, 1973, p.242)
35
Neste trabalho, quando concordamos com a definição de Lévi-Strauss, e
tomando como objeto de estudo central o mito de Édipo, o que queremos propor é uma
interpretação distinta para tal mito. Se mito é linguagem, a estrutura a partir da qual
estamos acostumados a ler a história de Édipo possui códigos bastante definidos. Um
desses códigos, talvez o mais importante deles, está em fazer-se a leitura de Édipo a
partir de uma centralização na figura masculina. O que se quer dizer é que fomos
acostumados a buscar neste mito específico uma prerrogativa que se insere na ordem
do masculino. Lemos sempre o mito de Édipo, e nunca o mito de Édipo e Jocasta, ou
apenas de Jocasta, muito embora o trágico esteja inserido na história desta mulher em
medidas semelhantes às em que está inserido na história daquele homem.
Quando Freud se propõe a criar a psicanálise, cometendo a reboque uma
espécie de parricídio ao desvinculá-la da psiquiatria, ele o faz também por meio de uma
leitura centrada nessa mesma ordem do masculino. O saber da psicanálise derivou de
algum lugar teórico/simbólico que se contestou depois. Aqui, a primeira criança a ser
estudada é o menino. Também em Totem e Tabu tal aspecto fica claro em muitos
sentidos. Primeiro, na identificação que Freud faz do totem com o pai. Depois, ao dizer
que a luta pelo poder só ocorre na esfera do masculino. Ou seja: são os filhos, homens,
aqueles que matam o pai para tomar-lhe o poder. As mulheres são apenas divididas
entre eles, da mesma maneira que Zeus dividiu o universo com seus irmãos. A partilha
se dá, portanto, entre aqueles que compartem o poder. Valeria até mesmo lembrar,
portanto, que a situação edípica da menina não possui a mesma força de
convencimento que a do menino.
36
Nesse tipo de leitura que, quer-se crer, está pautada por uma ortodoxia da
linguagem, o mito é sempre visto por um viés patriarcal. Cabe sempre ao homem o se
rebelar e, à mulher, de uma ou outra maneira, aceitar. O primeiro a ser enxergado é o
homem. Os complexos predominantes nascem dele e por meio dele. Os poderes
podem ser alcançados por ele. À mulher, diz também esta linguagem, cabe um papel
coadjuvante, de aceitação daquilo que lhe é imposto. Talvez por isso caiba sempre ao
homem, ao anĕr (um dos termos empregados na tragédia grega para significar o
humano e que nunca é empregado para identificar uma mulher
3
), a virilidade de se
rebelar contra o destino, contra a Moira. É o que fazem Cronos, Zeus, Laio e Édipo ao
não aceitarem aquilo que lhes foi reservado.
Assim, essa linguagem centrada no masculino nos insere sempre em sua própria
ordem, fazendo com que qualquer outro tipo de leitura possa parecer incongruente com
uma realidade que estamos acostumados a enxergar a partir da luz do dia e dos feitos
dos homens viris. Mais uma vez o poder se manifesta. Do mesmo modo que nos
acostumamos, por exemplo, a enxergar os acontecimentos a partir de uma
historiografia dos vencedores, e quase nunca dos vencidos, aqui também o real que
avistamos ganha sempre a luz e os códigos de quem detém o poder. E talvez seja
mesmo desnecessário explicar que, nesse nosso mundo ocidental, helênico e latino, a
tradição informa que a canoa da realidade é feita, também quase sempre, com os paus
dos homens, ainda que imaginários. Trata-se da casa dos homens.
Tal linguagem que procuramos demonstrar existir tem suas origens no sistema
político-jurídico do patriarcado que se instaurou sobretudo nas sociedades ocidentais.
3
A esse propósito ver texto de Nicole Loraux publicado em: NOVAES, Adauto (org.) Ética. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
37
Em sua definição mais pura, este sistema coloca os direitos sobre bens e pessoas
concentrados nas mãos do homem, que detém também a posição de pai fundador. A
respeito desse sistema, Freud faz uma reflexão estrutural que conduz ao complexo de
Édipo. Nesse sentido, se é o pai aquele que detém o poder, é também o pai que deve
ser enfrentado, a fim de que seu poder seja destituído e, conseqüentemente,
transferido. Parece que o complexo de Édipo freudiano está estabelecido sobre este
princípio. Assim, vejamos o que diz o próprio Freud quando, em seu Totem e Tabu
(FREUD, 1987a), lembra passagens significativas de seu Análise de uma Fobia num
Menino de Cinco Anos:
Mas qualquer leitor atento da história do pequeno Hans encontrará provas
abundantes de que ele também admirava o pai por possuir um pênis grande e
temia-o por ameaçar o seu. O mesmo papel é desempenhado pelo pai tanto no
complexo de Édipo quanto no complexo de castração, ou seja, o papel de um
inimigo terrível dos interesses sexuais da infância. O castigo com que ele
ameaça é a castração, ou o seu substituto, a cegueira. (FREUD, 1987a, p.157)
O castigo que é ameaça é também aquele que seimposto quando os irmãos
se rebelarem. Assim com Urano castrado, com Cronos aprisionado, com Laio morto e
com o próprio Édipo que se cega. O objetivo é sempre um poder que está em mãos
masculinas e deve ir para outras mãos masculinas. Mais uma vez em Totem e Tabu,
Freud evoca a refeição totêmica para explicar a organização social, das restrições
morais e da religião(FREUD, 1987a, p.170). Depois de se unirem e assassinarem o
pai, eles o devoram. Na verdade, este pai primevo que foi devorado foi também modelo
para cada um de seus filhos. E, segundo Freud, devorar tal pai é também se identificar
com ele, na medida em que cada um dos irmãos, depois de fazê-lo, adquire uma parte
38
da força do pai devorado. O motivo da refeição totêmica é, mais uma vez, a conquista
de poder:
Odiavam o pai, que representava um obstáculo o formidável a seu anseio de
poder e aos desejos sexuais; mas amavam-no e admiravam-no também. Após
terem se livrado dele, satisfeito o ódio e postos em prática os desejos de se
identificarem com ele, a refeição que todo esse tempo tinha sido recalcada
estava fadada a fazer-se sentir e assim o fez sob a forma do remorso. Um
sentimento de culpa surgiu, o qual, nesse caso, coincidia com o remorso
sentido por todo o grupo. O pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo
pois os acontecimentos tomaram o curso que com tanta freqüência os vemos
tomar nos assuntos humanos ainda hoje. O que até então fora interdito por sua
existência real foi doravante proibido pelos próprios filhos (...). Anularam o
próprio ato proibindo a morte do totem, o substituto do pai; e renunciaram a
seus frutos abrindo mão da reivindicação às mulheres que agora tinham sido
libertadas. (FREUD, 1987a, p.171-172)
No entanto, no caso de Édipo, o castigo é diferente ao que é imposto a Urano e
Cronos. A cegueira de Édipo é voluntária, fruto daquilo que o próprio Freud define como
“sentimento de culpa filial”. O mesmo sentimento de culpa que fez com que os irmãos
que se rebelaram ante a horda patriarcal erigissem para o pai um totem simbólico e
presumidamente indestrutível.
Este totem erigido é também a base do complexo de Édipo freudiano na medida
em que reúne em sua essência os dois tabus que lhe são referentes: não tirar a vida do
animal totêmico e manter a exogamia como referência natural e permanente. Também
é a edificação deste totem, quero acreditar, aquilo que solidifica a linguagem do
masculino. Ou seja: a refeição totêmica, que acontece para que a horda patriarcal seja
destruída, é também aquilo que garante sua permanência. E esta linguagem do
masculino se reinstaura sem nunca ter perdido seus poderes reais: quem continua
definindo normas e padrões, contando a história, castrando, matando e cegando são os
poderosos. E os poderosos o homens: o mesmo Urano que procria desvairadamente
39
e depois se mutilado, o mesmo Cronos que engole seus filhos e depois será
encarcerado, o mesmo Édipo que mataseu pai e logo ficará cego por suas próprias
mãos.
Mas, na mesma medida em que falar de uma linguagem do masculino aponta
para o poder dos homens, também aponta para a passividade masculina, o que talvez
nos mostre uma condição análoga à da mulher. Em outro de seus textos, Dostoiévski e
o parricídio, Freud (1996) nos incita a perceber como esta relação entre o poder e
aquilo que dele deriva possui, nos bastidores dessa trama, a interferência do
inesperado. E este inesperado, desvendado na tragédia através daquilo que Aristóteles
chama peripécia, vem para nos mostrar o ideário inexorável da Moira, do destino.
Freud, no texto anteriormente citado e a partir de sua teoria psicanalítica, mostra como
a culpa do parricídio e a idéia da castração se misturam de modo complexo e a partir de
relações que são inerentes ao próprio humano:
Uma grande necessidade de punição se desenvolve no ego, que em parte se
oferece como vítima ao destino e em parte encontra satisfação nos maus tratos
que lhe o dados pelo superego (isto é, no sentimento de culpa), pois toda
punição é, em última análise, uma castração e, como tal, realização da antiga
atitude passiva para com o pai. Mesmo o Destino, em última instância, não
passa de uma projeção tardia do pai. (FREUD, 1996, p.190)
Nesse sentido, é possível que exista, nas ações desses homens poderosos,
nesta linguagem que instaura o patriarcado, algo que esteja sempre em evidência e que
diga respeito a deuses e ánthrōpos: o rebelar-se contra aquilo que foi estabelecido. É
que, para conquistar o poder, é necessário insurgir-se contra o poder. Trata-se de mais
um código dessa linguagem patriarcal: o homem não deve aceitar aquilo que lhe é
imposto. Talvez por isso Cronos castra Urano, Zeus combate e aprisiona Cronos, e
40
Édipo, mesmo de modo involuntário, diferente da cegueira que provoca em si mesmo,
mata Laio na encruzilhada de três caminhos. Por trás de cada uma destas rebeldias,
está a tentativa de iludir o destino, de enganar a Moira. E desafiar aquilo que foi
prefigurado também pode ser considerado uma prerrogativa dos homens. Contudo, o
que distingue os atos divinos das ações humanas na busca do poder é aquela mesma
involuntariedade que surge nos resultados desta procura. É ela que torna o Édipo
trágico, distanciando sua história da de seus deuses. Afinal, embora sejam feitos à
imagem e semelhança um do outro, entre os dois uma diferença singular: os deuses
criaram seus homens mortais e efêmeros; os homens fizeram de seus deuses
permanentes e imortais.
Voltando à não aceitação do próprio destino, o que se pode perceber, no mito de
Édipo, assim como nos outros evocados nesta dissertação, é que este impulso
masculino em não aceitar e, assim, ludibriar o fadário, é sempre decisivo. Para tal,
basta recordar o que conta o mito: para não matar o pai e casar-se com a mãe, Édipo
foge de Corinto, não aceitando as prerrogativas do oráculo. Trata-se da linguagem do
masculino sendo constituída na mesma tradição que fez com que Cronos engolisse
seus filhos e que Zeus fizesse o mesmo com sua própria esposa.
No entanto, há, nessa ordem do masculino, um elemento que poderia ser dito
intangível: o próprio feminino. Ou a Gaia que, como Jocasta, é mãe de seu próprio
esposo, também não é a mulher, a terra que espera a chuva de seu filho Urano para
conceber toda a primeira geração de deuses? Como Gaia e Jocasta, também a Moira
e, junto com ela, seu equivalente Aîsa, na voz árcado-cipriota, um dos dialetos usados
por Homero – define-se a partir do gênero feminino (BRANDÃO, 2004a, p.140-141).
41
E a Moira, como se viu, não pode ser enganada. Na mesma medida em que
ela está escrita, também está inscrita na ordem do masculino. De que maneira e a partir
de quais pressupostos esta Moira se insere nesta ordem, assim como que papéis são
conferidos ao feminino dentro dessa perspectiva, é o que se pretende investigar no
próximo capítulo.
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3. MEDIDA E DESMEDIDA
Trata-se de uma ânfora de cerâmica, datada de 440 a.C. (ver Anexo A). Neste
vaso grego, que se encontra no Museu Municipal de San Gimignano (Siena, Itália),
sobre uma base negra, a pintura coruscante em vermelho mostra um homem apoiado
num bastão. À sua frente, a esfinge parece esperar uma resposta para a pergunta que
foi feita ao sujeito. Se este homem, que mais se assemelha a um velho se escorando
numa vareta em busca de equilíbrio, solucionar a adivinha que lhe foi proposta pelo
monstro que tem diante de si, as recompensas podem ser enormes.
Um desses prêmios se encontra aqui mesmo, neste vaso de 440 a.C. Trata-se
de uma mulher que vem logo atrás da esfinge, no mesmo matiz vermelho que se
destaca sobre a base negra. Se o homem acertar a resposta, esta mulher que vemos
no jarro será sua e, com ela, o poder que advém de ser o rei, o tirano de uma
importante pólis grega. Além disso, ele será querido pelo povo desta cidade, uma vez
que a solução do enigma significa também acabar com a peste que os deuses
mandaram sobre o lugar.
E tirano aqui, como lembra Michel Foucault (2002) em conferência pronunciada
na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e que foram transformadas no
livro A verdade e as formas jurídicas, não deve ser entendido no sentido mais estrito.
De acordo com Foucault, tirano era aquele que depois de ter conhecido várias
aventuras e chegado ao auge do poder estava sempre ameaçado de perdê-lo
(FOUCAULT, 2002, p.44). Assim, pode-se dizer, junto com o filósofo francês, que a
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irregularidade do destino seria, portanto, uma característica do personagem do tirano,
assim como ele é descrito nos textos gregos do fim do século VI e início do V.
Mas será mesmo que tudo depende apenas de uma resposta certa? Talvez seja
preciso mirar o vaso com maior atenção, tentando enxergar naquilo que se o que
não é para ser visto. Com efeito, se a ânfora for observada com melhor empenho, o que
se poderá notar é que a tinta negra não recebeu, de fato, nenhum outro tipo de
pigmento sobre ela. Na verdade, a cnica adotada neste artesanato fino consiste em
cobrir a superfície da ânfora com um verniz negro, deixando o espaço da figura com o
mesmo tom escarlate da argila.
Então, os arabescos que encimam o jarro, o homem que se sustenta na vareta, o
monstro poderoso que espera a resposta e a mulher que alguma coisa parece esperar
são, é o que agora se pode jurar, o o preenchimento, mas a própria falta do verniz
escuro. É a partir da ausência da tinta negra, pelas lacunas que ela deixou na argila
vermelha, que vislumbramos encontrar as figuras que simbolizam um dos mitos mais
caros da antigüidade grega. Uma lenda cujos espaços, vazios ou não, foram se
preenchendo ao longo de mais de três mil anos, chegando ao culo XXI de nossa
história tão consistente e viva como aparenta estar a ânfora que podemos observar
virtualmente, pela internet, e, de perto, num museu de uma cidade italiana. Assim,
poder-se-ia mesmo afirmar que é pela falta que talvez possamos vislumbrar o dito, o
próprio mito.
As figuras que, por meio da ausência de tinta, encontram-se presentes no jarro
são significantes básicos do mito de Édipo. E se a esfinge, Jocasta e o próprio Édipo
possuem atualmente um vigor semelhante, ou talvez maior, do que no dia mesmo em
44
que o vaso foi manufaturado, isto se deve certamente a uma obra literária: o Oidípous
Týrannos, de Sófocles.
...nas primeiras versões do mito não há, no conteúdo legendário, o menor traço
de autopunição, porque Édipo morre tranqüilamente instalado no trono de
Tebas, sem ao menos ter furado seus olhos. É precisamente Sófocles que,
conforme a necessidade do gênero, ao mito sua versão propriamente
trágica a única que Freud, que o é mitólogo, pôde conhecer, a única que,
conseqüentemente, nós discutiremos aqui. (VERNANT; VIDAL-NAQUET,
2005, p.56-57)
A citação anterior, além de chamar a atenção para o fato de que é a versão que
Sófocles constrói com seu discurso trágico aquela que serve de princípio para Freud
construir a base de sua teoria, nos coloca mais uma vez frente à ânfora do Museu de
San Gimignano. Ao propor para a lenda uma interpretação em que Édipo não chega ao
fim de sua vida como o ánthrōpos trágico de Sófocles, Vernant parece se referir à
passagem da Odisséia em que Homero nos dá seu conhecimento deste mito. Um
conhecimento que, levando-se em consideração a data provável da escritura homérica,
século VIII a.C., conta-nos uma variação da lenda produzida cerca de três séculos
antes que o dramaturgo de Colono escrevesse sua obra, assim como nos lembra Junito
Brandão.
Vi também a mãe de Édipo, a bela Epicasta.
Ela, sem o saber, cometeu um grande crime,
casando-se com o filho, que a desposou após matar e despojar o pai.
Os deuses rapidamente fizeram com que a notícia circulasse entre os homens.
Édipo, todavia, apesar de tantos sofrimentos por funestos desígnios dos
deuses,
continuou a reinar sobre os Cadmeus, na muito amada Tebas. (BRANDÃO,
2000, p.303)
45
Muito embora a versão de Homero, é o que se acredita, não traga nada que não
pudesse ter inspirado a teoria freudiana, ela sem dúvida é menos intensa que a de
Sófocles no sentido de criar um Édipo com a tragicidade que lhe reconhecemos hoje.
Isto vem corroborar o conceito de Lévi-Strauss, segundo o qual mito é linguagem e,
como tal, algo que é permanentemente esvaziado e preenchido.
É por isso que voltamos novamente à ânfora de San Gimignano, para nos
apropriarmos dela no momento em que foi produzida, segundo a técnica das figuras
vermelhas, difundida por Exéquias a partir do século VI a. C. Como se disse, tais
figuras, que em geral mostravam cenas cotidianas ao lado de representações heróicas,
eram então deixadas na cor natural da argila para contrastar com o fundo pintado de
negro.
Estamos, de acordo com as informações do Museu Municipal de San Gimignano,
em 440 a. C., e podemos adquirir uma vasilha cerâmica como essa, com seu par de
asas simétricas que facilita o transporte, para guardar vinho, azeite ou água, além de
conservar cereais. A data em que o vaso vem dar a nossas mãos é anterior em
aproximadamente dez anos àquela em que o Édipo Rei, de Sófocles, foi encenado pela
primeira vez (KURY, 2002, p.7).
Como se sabe, a tragédia grega, enquanto gênero literário, acontece em um
período decisivo da Grécia antiga: o século V a.C. Entre a data da primeira provável
encenação de Os Persas, de Ésquilo (472 a.C.), e a montagem de As Bacantes, de
Eurípides, possivelmente em 405 a.C., a tragédia grega vive seu auge e declínio. Trata-
se, como lembra Vernant, de um gênero reconhecido em um momento histórico
bastante circunscrito, e datado com precisão: Vêmo-la crescer em Atenas, florescer
e degenerar quase no espaço de um século.” (VERNANT, VIDAL-NAQUET, 2005, p.2)
46
Um paralelo imaginário que poderia ser traçado com esse nascimento, apogeu e
morte da tragédia grega seria imaginar-se o mesmo para a arte cinematográfica. Ou
seja, que, tendo sido apresentado ao público pela primeira vez em 1895, pelos irmãos
Lumiére, em Paris, o cinema vivesse nos dias de hoje sua decadência mais completa,
estando fadado ao desaparecimento.
Mas, agora, estamos no século de Péricles. A ânfora que hoje pode ser
apreciada no Museu de San Gimignano é encontrada, então, em mercados de cidades
bem organizadas, as chamadas pólis. Antes de Péricles, sob o comando de Clístenes,
Atenas conheceu o fim da tirania, a partir de uma série de reformas que possibilitaram
que, pouco mais tarde, contássemos com o advento da chamada “democracia
ateniense”. Mais uma vez, vale recorrer a Vernant para lembrar a importância dessa
“Cidade-Estado” e de suas formas jurídicas, filosóficas e organizacionais para que este
gênero literário se desenvolvesse em plenitude.
A matéria da tragédia não é mais então o sonho, posto como uma realidade
humana estranha à história, mas o pensamento social próprio da cidade no
século V, com as tensões, as contradições que surgem nela, quando a
chegada do direito e as instituições da vida política questionam, no plano
religioso e moral, os antigos valores tradicionais: estes mesmos que a lenda
heróica exaltava, donde a tragédia toma seus temas e suas personagens, não
mais para glorificá-los, como o fazia ainda a poesia lírica, mas para discuti-los
publicamente, em nome de um ideal cívico, diante dessa espécie de
assembléia ou de tribunal populares que é um teatro grego. (VERNANT,
VIDAL-NAQUET, 2005, p.55)
É entre 461 e 429 a.C., no período conhecido como a “Idade de Ouro de Atenas”,
que Péricles consolida a prosperidade grega em aspectos como a economia, através de
empreendimentos e do expansionismo proposto pela denominada Liga de Delos, e a
47
cultura. Neste último aspecto, Sófocles, ele próprio um estrategista militar de Péricles,
produz uma obra que irá marcar o período de maneira incontestável.
O monumento perene do espírito ático na época da sua maturidade é
constituído pela tragédia de Sófocles e pela escultura de Fídias. Ambos
representam a arte do tempo de Péricles.
(JAEGER, 2003, p.320)
Mas o que talvez seja mais notável na era de Péricles é o fato de que ela se
caracteriza por ser o tempo formador da base de um tópico que, certamente, é a maior
herança deixada pela antigüidade grega no que se refere ao conhecimento. Trata-se da
filosofia, uma matéria que, um século mais tarde, quando Platão anunciar que a medida
de todas as coisas é Deus, tentará não deixar mais lugar para que o homem seja esta
referência.
Antes, no entanto, é a fórmula do sofista Protágoras – segundo a qual, em
oposição direta à filosofia antitrágica platônica, o parâmetro das coisas é o homem a
maneira de enxergar o mundo que irá oferecer a possibilidade para que o próprio
Sófocles veja seu Édipo com um olhar trágico e, sobretudo, humano. É com o
dramaturgo de Colono que este humano encara o trágico de maneira decisiva. O objeto
da tragédia é o homem em si mesmo, que, como afirma Vernant (2005), é coagido a
fazer uma escolha definitiva, a orientar sua ação num universo de valores ambíguos
onde jamais algo é estável e unívoco” (VERNANT, VIDAL-NAQUET, 2005, p.3).
Dos três autores trágicos gregos cuja obra chegou a nosso conhecimento, talvez
seja Sófocles aquele em que a exposição da dor humana assume seu caráter mais
educativo, no sentido de que é o homem o agente a interessar de fato. O que o autor de
Édipo Rei faz é, seguindo uma tendência formadora de seu tempo, dirigir-se ao homem
48
de maneira a expor-lhe a dor. Assim, Sófocles se envolveu decisivamente na vida de
sua época. À organização e às metas expansionistas da pólis, serviu como tesoureiro-
geral de Atenas em 443/2 a. C. Foi também eleito, no mínimo duas vezes, comandante
do exército em expedições militares. Mas foi como tragediógrafo, sabe-se, que alcançou
a fama. Escreveu cerca de 123 peças teatrais e obteve nada menos que 24 prêmios em
concursos trágicos que eram tradição em seu tempo (KURY, 2002, p.7).
Tais concursos, instituídos pela Cidade-Estado, fazem parte da realidade social
desta Grécia contemporânea não apenas de Sófocles e Péricles, mas de pensadores
como Protágoras, citado anteriormente, e o historiador Heródoto. Como afirma Werner
Jaeger (2003), a arte com que Sófocles cria os seus caracteres é constantemente
inspirada pelo ideal de conduta humana que foi a criação peculiar da cultura e da
sociedade do tempo de ricles(JAEGER, 2003, p.321). O que se tem, portanto, é o
fato de que, neste século V a. C. que marca o apogeu e o declínio da tragédia, tudo
parece caminhar em sintonia: a democracia que se institui; um processo de educação
humana que se instaura através de projeções artístico-culturais; a invenção de um
homem grego que, mais tarde, irá dar origem ao que se pode mesmo chamar “homem
ocidental”.
E é neste contexto que Sófocles insere seu texto trágico, de maneira que o viver
humano, ao não se submeter à vontade dos deuses, escancara a dor que é inerente a
este ser ao mesmo tempo social, heróico e efêmero. Nesse sentido, a sintonia que o
tempo de ricles parece anunciar não é garantida pela serenidade. Antes, traz a
incerteza de um momento em que valores se confrontam e normas são questionadas,
em que este brotós luta entre a culpa e a inocência, a lucidez e a cegueira, o poder e o
fracasso. Contudo, pouco haveria de novo em todas essas contradições se Sófocles
49
não soubesse mostrar, com a ação dramática trepidante que caracteriza suas obras,
que esta dor humana é um sentimento inexorável, do qual não se pode fugir. Como
afirma Jaeger, o que em Sófocles é trágico é a impossibilidade de evitar a dor. É esse
o rosto inevitável do destino, do ponto de vista humano” (JAEGER, 2003, p.329).
3.1. TRAGÉDIA E AMBIGÜIDADE
A inexorabilidade do sentimento da dor trágica que caracteriza a obra de
Sófocles será tratada um pouco mais à frente nesta dissertação, de maneira a tentar
perceber em que sentido esta dor é influenciada e influenciadora daquilo que
pretendemos expor aqui: a medida e a desmedida no mito de Édipo. Antes, contudo,
seria interessante tentar perceber qual é a lógica deste páthos trágico. Para isto,
voltamos à ânfora exposta no museu da cidadezinha italiana a fim de tentar entender
porque somos levados a imaginar, depois de correr os olhos pelo objeto que se mostra
na tela de um computador, que as figuras é que foram pintadas sobre o verniz, e o
algo diferente.
Se o devaneio na comparação não é demasiado, seria interessante lembrar os
princípios básicos do que chamamos linguagem cinematográfica, como foi feito há
pouco ao compararmos o nascimento, apogeu e decadência da tragédia grega a um
fato semelhante que pudesse acontecer com o próprio cinema. Esta arte fundada no
século XIX de nossa era tem no plano, ou no enquadramento, um de seus eixos
principais. Poder-se-ia dizer que a gramática do cinema se move em função do plano. É
50
o enquadramento que dá, para aquilo que é mostrado na tela, um sentido próprio e
preciso.
Utilizando um exemplo bastante simples, o beijo mostrado a partir de um plano
muito aberto, em que um casal aparece apenas como um pontinho numa praia deserta,
quer dizer algo muito diferente do que este mesmo beijo se mostrado bem de perto, em
close. Portanto, entender a linguagem proposta pelo plano cinematográfico quer dizer
usar o enquadramento acertado para aquilo que se quer dizer: se esperamos dar a
idéia de que quem beija é um casal arrebatado pela paixão, utilizaremos o close; mas,
para conotar alguma espécie de solidão vivida pelas mesmas duas pessoas, será
melhor usar o plano mais aberto.
A lógica desta linguagem está no fato de que o enquadramento só contém aquilo
que é para ser visto. Assim também uma pessoa frente a um quadro afixado num
museu. Se perguntamos a ela o que vê quando olha em direção à obra de arte,
certamente descreverá a própria obra que tem diante de si. É extremamente provável
que ela não diga nunca que também uma parede. Isto porque, dentro de tal lógica, a
parede não é para ser vista. (PEREIRA, 1984)
Na ânfora de San Gimignano, a lógica parece ser a mesma. Ao enxergar o vaso
pela primeira vez, somos levados a crer que os desenhos é que foram pintados sobre o
verniz negro. Para perceber que o processo é o inverso, que a não-pintura é que revela
os desenhos, deve-se estar mais atento. Pode-se dizer que há, aí, uma lógica a ser
desconstruída. E, para descobrir o processo, é necessário entender os caminhos de tal
processo.
Isto acontece porque esta lógica joga com o que se poderia chamar
ambigüidade: aquilo que parece que é e aquilo que é de fato. A linguagem trágica
51
também se comporta da mesma maneira. O Édipo que caça é, na verdade, o sujeito
que é caçado. A Jocasta que encontra seu esposo está realmente reencontrando seu
filho. Mas nós, para que a linguagem do gênero obtenha êxito, somos levados a
vislumbrar apenas os arabescos e as figuras de Édipo, da esfinge e de Jocasta na
ânfora que enchemos ou esvaziamos de vinho. Não enxergamos a parede porque a
parede não é para ser vista. Só podemos ver aquilo que o plano nos mostra na tela
cinematográfica.
...a lógica da tragédia consiste em ”jogar nos dois tabuleiros”, em deslizar de
um sentido para outro, tomando, é claro, consciência de sua oposição, mas
sem jamais renunciar a nenhum deles. Lógica ambígua, poder-se-ia dizer. Mas
não se trata mais, como no mito, de uma ambigüidade ingênua que ainda não
se questiona a si mesma. Ao contrário, a tragédia, no momento em que passa
de um plano a outro, demarca nitidamente as distâncias, sublinha as
contradições. (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2005, p.15)
Na tragédia grega, esse jogo segue até o final do drama. então é que se
permitido perceber o verdadeiro rosto dos agentes da trama, depois que os fatos
assumirem seu verdadeiro significado. Antes disso, mesmo que esteja inteira à nossa
frente, a parede não será vista. Assim também o jogo da criação literária: elaborado em
suas minúcias e trágico na invenção de suas possibilidades, uma vez que elas nunca
se esgotam, que não têm nunca fim, que nada é, realmente, impossível.
É por isso que, mesmo que o mito haja revelado que o Édipo esposo é, na
verdade, o Édipo filho, isto será reconhecido no final. A platéia que sabe finge que
de nada sabe, uma vez que ela também é parceira. Daí, então, a necessidade de estar
sempre a olhar com outros e melhores olhos para a ânfora e seu verniz e seus
desenhos. Para também participar do jogo. Para ver se alguma coisa escapou à nossa
52
atenção, mesmo que esta seja uma atenção possibilitada apenas pela época em que o
olhar é colocado.
E o fato de a platéia participar do jogo acontece, acredita-se, não pelo motivo
que quer Freud em uma de suas conferências sobre o conteúdo latente da tragédia
edipiana. Nesta dissertação, o que se quer pensar é que a ação do público vem, antes,
a partir das condições inerentes ao próprio gênero, dos valores estabelecidos pela
tragédia grega, do tecido ambíguo construído por Sófocles que, depois de brincar com
seus contemporâneos, seguiu fazendo o mesmo com os homens futuros Freud, um
deles.
Se os antigos as admiravam, se o público moderno é por algumas delas
perturbado, como pelo Édipo-Rei, é porque a tragédia não está ligada a um
tipo particular de sonho, porque o efeito trágico não reside em uma matéria,
mesmo onírica, mas na maneira de dar forma à matéria, para fazer sentir as
contradições que dilaceram o mundo divino, o universo social e político, o
domínio dos valores, e fazer assim aparecer o homem como um thaûma, um
deinón, uma espécie de monstro incompreensível e desconcertante, ao mesmo
tempo agente e paciente, culpado e inocente, dominando toda a natureza por
seu espírito industrioso e incapaz de governar-se, lúcido e cegado por um
delírio enviado pelos deuses. (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2005, p.57)
Se a questão do gênero é determinante para esconder e revelar aquilo que deve
ser revelado ou escondido, possibilitando leituras múltiplas de uma mesma obra, é
necessário também tentar enxergar aquilo que, por trás dela e dentro de uma
perspectiva ao mesmo tempo autoral e temporal, permitiu uma visão de mundo pautada
por essa ambigüidade construtora da tragédia grega.
Como pouco se disse, Sófocles insere seu texto trágico num contexto de
duplicidades pautado por um viver humano que, embora a considere inexorável, não se
submete à vontade dos deuses e é capaz de escancarar sua própria dor. Ainda se
53
afirmou que aquilo que torna ímpar o tecido de Sófocles, uma escrita fundadora de todo
um gênero literário, é o fato desta dor ser algo também inexorável, determinada mesmo
pelo que hoje poderíamos chamar destino. Assim, o que se quer acreditar é que a
ambigüidade que constrói o texto trágico grego é definida pela noção de medida e
desmedida que está presente de modo decisivo no Édipo Rei, em outras tragédias
gregas e, como não poderia deixar de ser, na maneira helênica de ver o mundo.
3.2. ERRO, HONRA E DESTINO
Para entender melhor tal questão, é preciso buscar sentidos em palavras como
Hamartía e Hýbris. Ao lado destes conceitos, também cumpre tentar compreender os
significados da Moira na Grécia antiga. Através da noção desses termos é que se pode
entrar numa questão que, como lembra Johnny José Mafra (1980), é essencial para
que o trágico seja avaliado enquanto gênero literário e como maneira de enxergar o
próprio mundo.
O elemento possibilitador do trágico, aquilo que torna o homem trágico, é a
separação ontológica, isto é, a oposição homem/finitute-contigência-
imperfeição. (MAFRA, 1980, p.66)
Quando nomeamos a relação homem/finitude, o que estamos fazendo é nomear
também aquilo que é inerente a esta mesma relação: a ambigüidade, a contradição.
Para Albin Lesky (1971), como citado por Mafra (1980), todo trágico se baseia em uma
54
contradição irreconciliável. Tão logo aparece ou se torna possível uma acomodação,
desaparece o trágico(LESKY, 1971, p.25). Nesse sentido, como lembra a seguir o
próprio Lesky ao perceber como estudiosos modernos se debruçaram sobre o tema,
para que a tragédia exista é necessário que não haja solução, mesmo que possamos
enxergar finais conciliadores em determinados textos trágicos do século V a. C.
A absoluta falta de solução para o conflito trágico foi convertida, precisamente
por algumas teorias modernas, em ponto central e em requisito primordial para
a realização da autêntica tragédia. (LESKY, 2001, p.35)
No sentido de perceber porque a contradição trágica é irreconciliável, é que se
torna necessário buscar o entendimento para os conceitos de Hamartía e Hýbris,
fazendo o mesmo a seguir com a Moira. Em seu Dicionário Mítico-Etimológico, Junito
Brandão (2000) aponta o seguinte significado para Hýbris: tudo quanto ultrapassa a
medida, o excesso, o descomedimento, a démesure” (BRANDÃO, 2000, p.558). Ainda
segundo Brandão, em termos religiosos, matéria em que esta palavra é mais
freqüentemente usada, a Hýbris é uma violência, uma insolência, uma ultrapassagem
do métron (na medida em que o homem quer competir com o divino)(BRANDÃO,
2000, p.558). Para Johnny Mafra, a tragédia existe no momento em que a Hýbris ou
desmedida entra em conflito com a justiça ou a medida” (MAFRA, 1980, p.71).
No que se refere à definição de Hamartía, o próprio Mafra lembra o capítulo XIII
da Poética, de Aristóteles. No entender do estagirita, a causa do trágico é a Hamartía,
isto é, a falha, o erro. E não se trata, na maior parte das vezes, do erro indiscriminado e
proposital. Na tragédia grega, o erro tem uma dimensão intelectual, não moral. A falha,
portanto, acontece em função de uma incompetência humana no sentido de distinguir o
55
que é certo daquilo que não é. Um dos exemplos que Aristóteles neste mesmo
capítulo é o do próprio Édipo.
Realmente, quando consideramos o Édipo Rei, somos levados pela trama trágica
de Sófocles a não reconhecer no tirano de Tebas uma culpa moral. Sua Hamartía
parece se dever a uma falha de julgamento, de discernimento a respeito das situações
que vive. Um erro que, se levarmos em consideração o pensamento trágico do século V
a. C., poderia até mesmo contar com um componente atávico, mas que não é devido ao
caráter do herói em si mesmo. Édipo mata Laio porque não sabe que ele é seu pai, e
desposa Jocasta porque não tem conhecimento de que ela é sua mãe. Assim, tudo
ocorre porque a falha está no juízo que o herói faz: julgando matar um qualquer,
assassina o pai que ordenou que matassem o próprio filho – ele mesmo, Édipo;
pensando estar se casando com a rainha de Tebas, desposa realmente a rainha de
Tebas e, junto com ela, a mulher que lhe deu à luz. Isto, pelo menos, é o que reza uma
leitura ortodoxa desse mito.
Contudo, se a culpa moral o está no herói, ela talvez esteja em sua
ascendência. No Laio e na Jocasta que, temendo que o poder escapasse de suas
mãos, ordenaram, deliberadamente, o filicídio. E, antes mesmo, seguindo a tradição
mitológica e caminhando além do que nos diz o texto trágico de Sófocles, a Hamartía
pode ser encontrada também no amor contra naturam de Laio por Crisipo, provocador
da culpa primordial” da casa dos labdácidas, à qual pertence Édipo (BRANDÃO,
2004c). Daí se afirmar que na Hamartía um elemento atávico, que a herança de
um é a bris pretérita de outros, e a culpa que será carregada a partir dela. Aqui,
então, a transgressão é capaz de imputar a uma determinada geração o castigo que
deveria pertencer à outra. Como lembra Hegel (1964), o indivíduo heróico não
56
estabelece qualquer separação entre si e o Todo moral de que faz parte, mas antes se
considera como formando uma unidade substancial com o Todo” (HEGEL, 1964, p.70).
Ainda no que se refere a Sófocles (2002), pode-se encontrar, em cada uma de
suas tragédias, um coro que, ele mesmo ou através do Corifeu, está sempre avisando
sobre o perigo e os danos provocados por Hýbris e Hamartía. No Édipo Rei, isto
acontece quando o rei de Tebas, que apenas começa a desconfiar de sua verdadeira
origem, põe em dúvida, estimulado por Jocasta, os vaticínios do oráculo de Delfos. O
que está sugerido, aqui, é que a desmedida e o erro não se encontram nos atos em si,
mas, e sobretudo, no orgulho humano que faz com que Édipo questione a predição dos
deuses.
Mas o homem que nos atos e palavras
se deixa dominar por vão orgulho
sem recear a obra da justiça
e não cultua propriamente os deuses
está fadado a doloroso fim,
vítima de arrogância criminosa,
que o induziu a desmedidos ganhos,
e sacrilégios, à loucura máxima
de profanar até as coisas santas. (SÓFOCLES, 2002, p.62)
Se Hýbris e Hamartía pendem para o lado da transgressão, do dionisíaco
(naquilo que este vocábulo nos traz de mais consensual), a parte apolínea, luminosa e
equilibrada, joga com outros dois: Areté e Timé. A primeira é definida como a
excelência. A outra, como a honra. De acordo com Junito Brandão (2004), a Areté é
atribuída pelo próprio Zeus. A Timé, conseqüência natural desta última, é a recompensa
que o herói recebe por aquilo de notável que contabiliza ao longo de suas guerras e
discursos. É o próprio Brandão (2004) quem mostra como o devaneio dionisíaco
convive, de maneira ortodoxa, com a harmonia apolínea:
57
A areté, no entanto, é uma outorga de Zeus: é diminuída, quando se cai na
escravatura, ou é severamente castigada, quando o herói comete uma hýbris,
uma violência, um excesso, ultrapassando sua medida, o métron, e desejando
igualar-se aos Deuses. (BRANDÃO, 2004a, p.143)
No entanto, se os conceitos de Hýbris e Hamartía são indispensáveis para o
entendimento de como o trágico se configura a partir do humano, não menos essencial
é compreender o significado de Moira para os gregos antigos. Para isso vale, de início e
mais uma vez, recorrer ao mesmo Junito Brandão (2000) e a seu Dicionário Mítico-
Etimológico:
Moira, em grego Μolρα (Moîra), que provém do verbo µεφεσίJαι (meíresthai),
obter ou ter em partilha, obter por sorte, repartir, donde Moira é a parte, o lote,
o quinhão, aquilo que a cada um coube por sorte, o destino. Associada à
Moira tem-se, como seu sinônimo, nos poemas homéricos, a voz árcado-
cipriota Aîsa, em grego ΑΙσα (Aîsa), da mesma família etimológica do verbo
αloyµνάν (aisymnân), reinar sobre, ter o comando de. O grego homérico tem a
forma οϊτος (oîtos), sorte, destino. Uma aproximação com o osco aeteis, parte,
não é de todo desprezível. De qualquer forma, não se possui ainda uma
etimologia segura para Aîsa
que significa, como Moîra, lote, quinhão, a parte
que toca a cada um. Nota-se, de saída, o gênero feminino de ambos os
vocábulos, o que remete a idéia de fiar, ocupação própria da mulher e das
Moiras ou Queres. De outro lado, Moira e Aîsa aparecem no singular e só uma
vez na Ilíada, XXIV, 49, a primeira surge no plural, o que mais tarde, diga-se
logo, se repetirá muitas vezes. O destino tardiamente foi personificado e,
em conseqüência, Moira e Aîsa não foram antropomorfizadas: pairam
soberanas acima dos deuses e dos homens, sem terem sido elevadas à
categoria de divindades distintas. A Moira, o destino cego, em tese, é fixo,
imutável, não podendo ser alterado nem pelos próprios deuses. Há, no
entanto, os que fazem sérias restrições a esta assertiva, sobretudo em relação
a Zeus. (BRANDÃO, 2000, p.140-141)
Em seu sentido mais direto, portanto, poder-se-ia dizer que a Moira,
conotativamente, significa o destino. Trata-se de uma entidade que, identificando-se
com o próprio Zeus, guarda em si a expressão da essência divina, na medida em que
também é reconhecida a partir da Ananké (necessidade) e de Nêmesis (justiça). Como
se pode ver pela análise mítica e etimológica anteriormente citada, Moira é o lote, a
parte que cabe a cada um. E, aqui, estamos falando de deuses e de homens.
58
Por outro lado, é certamente no fato da Moira igualar esses dois seres tão
distintos que se encontra, acredita-se, a ambigüidade mais decisiva do pensamento
trágico. Esta talvez seja a razão de tanta polêmica no que se refere à caracterização
dessa entidade. No entanto, as variações em torno deste último tema, que são parte
essencial daquilo que esta dissertação pretende discutir, serão explicitadas mais à
frente. Cumpre, antes, compreender com maior e melhor exatidão porque esta Moira é
encarada como a personificação do próprio destino. Para fazê-lo, é necessário discorrer
sobre pontos que parecem fundamentais.
Em outubro de 1967, o jesuíta português Antônio Freire (1969), helenista
conceituado, defendeu sua dissertação de doutoramento na Faculdade Pontifícia de
Filosofia de Braga. O estudo, que apenas dois anos depois da defesa estaria no
prelo, ganhou o nome de Conceito de Moira na Tragédia Grega (FREIRE, 1969). De
modo genérico, a obra pretende discutir a questão do fatalismo nos autores trágicos do
século V a. C. e, nesse sentido, no próprio prólogo, Freire já diz a que veio:
O objetivo primordial dessa Dissertação é formular uma resposta clara e
decisiva à pergunta com que poderíamos intitulá-la:
-Fatalista a tragédia grega?
A esta pergunta respondemos categórica e convictamente:
-Não. (FREIRE, 1969, p.5)
Em sua dissertação, o sacerdote helenista realiza um estudo de inegável
erudição ao procurar estabelecer o conceito do fatalismo sob as perspectivas da
mitologia, da filosofia e da teologia. Num apanhado rigoroso que vai do pensamento da
antigüidade a algumas idéias contemporâneas, Freire (1969) investiga também como
os três autores trágicos Ésquilo, Sófocles e Eurípides – tratam em sua obra o
59
significado de Moira. Tudo isto sem perder de vista a questão da inexorabilidade do
destino e concluindo da maneira que no início da dissertação era antecipada: -“A
tragédia grega não é fatalista”. (FREIRE, 1969, p.293)
O que se quer chamar fatalismo na tragédia grega é exatamente o fato de o
homem trágico, Édipo um deles, estar submetido ao destino. Em tese, a Moira é
imutável e não pode ser transformada nem mesmo pelos próprios deuses. É aqui,
portanto, que se instaura o debate proposto por Freire: o jesuíta, com base na crença
de que nada pode estar acima de Zeus, rechaça a idéia da inalterabilidade da Moira.
Para ele, tal crença é primitiva e, apoiando-se em citações que vão de Homero a
Hesíodo, Antônio Freire acredita que é mesmo Zeus quem fixa o destino de todos os
seres.
Sem perder de vista a erudição e o detalhamento do trabalho de Freire (1969),
capaz de iluminar inúmeros aspectos relativos ao caráter trágico inerente ao
pensamento helênico e à obra dos três dramaturgos gregos, em que se quer apostar
aqui é mesmo numa suposta inalterabilidade da Moira. Na verdade, o que parece é que
Freire, ao se colocar neste ponto contra o fatalismo na tragédia grega, assume uma
perspectiva decididamente fundamentada numa ortodoxia teológica, menos helenista
que sacerdotal, e, por isto mesmo, mais mítica que católica. Tal traço pode ser
percebido quando o jesuíta analisa aspectos em que, inevitavelmente, a vontade da
Moira está acima da de Zeus.
Quando o conceito de moira é expresso pelo vocábulo άνάγκη (necessidade),
ou equivalente (τό χρεών), traduz a lei moral que rege o próprio Zeus, com cuja
vontade se confunde, como em teologia se identifica a essência divina com
os seus atributos. (FREIRE, 1969, p.300-301)
60
Tal debate, ao introduzir em parte aquilo que é o objetivo básico desta
dissertação, qual seja, as perspectivas ortodoxas e heterodoxas no Édipo, o que faz é
chamar a atenção para um dado decisivo: o lugar de quem faz a leitura de uma
determinada obra. Não apenas de quem faz a leitura, como se viu, mas também de
quem a produz
4
. Mas isto, como foi dito, veremos mais adiante. Vale, antes de
qualquer coisa, observar o que diz Junito Brandão (2004a), a propósito dessa
discussão proposta por Antônio Freire.
Os exemplos poderiam multiplicar-se tanto em defesa da identidade de Zeus
com a Moîra quanto, e eles são em número muitíssimo mais elevado, da total
independência de Aîsa face a todos os imortais.
O que se pode concluir, salvo engano, é que, por vezes, Zeus se transforma
em executor das decisões da Moîra, parecendo confundir-se com a mesma.
(BRANDÃO, 2004a, p.142)
Nesse sentido, seria oportuno lembrar as palavras do próprio Prometeu quando,
acorrentado ao rochedo, depois de haver sido castigado por Zeus ao roubar o fogo de
Hefesto e entregá-lo aos homens, conta ao coro da tragédia escrita por Ésquilo sobre a
força que caracteriza a Moira: O poder da Moira é superior ao de Zeus; ele não
escapará ao seu Destino(MAFRA, 1980, p.74). Vale, assim, atentar para o diálogo
entre Prometeu e o Corifeu, nas palavras de Ésquilo:
CORIFEU
E por quem o destino é governado? Dize!
PROMETEU
Pelas três Parcas e também pelas três Fúrias,
cuja memória jamais esquece os erros.
4
A distinção que se quer aqui fazer é entre aqueles que produzem teoria (aqui, no caso, Freire) e
aqueles que produzem com objetivos literários ou dramatúrgicos (no caso, Sófocles).
61
CORIFEU
Os poderes de Zeus, então, cedem aos delas?
PROMETEU
Nem mesmo ele pode fugir ao Destino. (ÉSQUILO, FOCLES, EURÍPEDES,
1999, p.37)
Na mesma medida, a Moira mostra sua primazia, como lembra Junito Brandão
(2004a), quando, em trecho da Ilíada, de Homero (1970), Hera responde a um Zeus
que quer livrar seu filho Sarpédon do perigo da batalha:
Crônida terrível, que palavras disseste? Um homem mortal, muito tempo
marcado pela Aîsa e queres livrá-lo da morte nefasta? Podes fazê-lo, mas nós,
os outros deuses todos, não te aprovamos. (BRANDÃO, 2004a, p.141)
Respeitada pelos próprios deuses, a Moira parece mesmo ter a prerrogativa
sobre o destino dos homens. Dos homens e dos deuses. Nesse sentido, se não
compartilhamos da idéia do jesuíta Antônio Freire e concedemos à Moira o privilégio de
pairar sobre deuses e homens, estamos, neste ponto decisivo, igualando uns e outros,
colocando-os no mesmo terreno de um caminho que conduz ao trágico e às
impossibilidades que lhe são inerentes.
Mas, outra vez, vale indagar que instância é essa à qual o humano e o divino se
submetem? Como o destino foi apenas tardiamente personificado, a Moira, por sua vez,
também não foi antropomorfizada. Não se trata, conseqüentemente, de chamá-las
divindades. Contudo, é imutável, e feminina. Após as epopéias homéricas, a Moira se
projetou em três entidades, as quais, costumeiramente, podem ser chamadas Queres.
São elas Cloto, Láquesis e Átropos. Três mulheres, três fiandeiras, urdindo o tempo de
uma existência que foi antecipadamente estabelecido. Cloto é a que segura o fio da
vida e vai puxando o fuso. Láquesis, aquela que enrola o mesmo fio e sorteia quem irá
62
morrer. Átropos, a que não volta atrás, mostrando-se inflexível em sua função de cortar
o fio que é tecido.
Assim, o destino divino e humano está entregue à Moira. Para os homens, o
resultado inexorável, heróico ou não, é mesmo a morte. Para os deuses, a derrota, a
castração, o esquecimento. Igualados na submissão, os fios de homens e de deuses se
entrelaçam. E esse emaranhar-se está presente, talvez se possa dizer, em toda a
tragédia e mitologia grega. Nesse sentido, aqueles que, humanos, entregam-se à
Hýbris e devem então ser punidos porque se colocaram no lugar do divino. E também
os que, deuses, rendem-se a Ftonos ou seja, à invídia e ao ciúme e, mesmo
olhando de cima do Olimpo, invejam até a mortalidade dos que vivem embaixo.
Trata-se do destino. E, quando o fio se emaranha, trata-se mesmo de um destino
trágico. E é aqui, neste chão universal escrito por caminhos áticos, que homens que se
crêem deuses e deuses que se passam por homens pagamos por tudo. Ou quase tudo.
Em Sófocles, como lembra Werner Jaeger (2003), o trágico se encontra no fato
desse homem, mesmo após ver sua Areté atropelada pela adversidade, desafiando
esfinges e deuses, manter de maneira contumaz a altivez que lhe é inerente. É porque
enxergou e para continuar enxergando que Édipo se cega. E é também por isto que ele
peregrina pela Hélade: para, convertido em homem sofredor, sumir depois pela floresta
e só ser encontrado novamente no imaginário dos que virão.
O drama de Sófocles é o drama dos movimentos da alma cujo ritmo interior se
processa na ordenação harmônica da ação. A sua fonte está na figura
humana, à qual volta continuamente como ao seu último e mais alto fim. Para
Sófocles, toda a ação dramática é apenas o desenvolvimento essencial do
homem sofredor. É assim que ele cumpre o seu destino e realiza a si próprio.
(JAEGER, 2003, p.332)
63
Talvez agora se possa compreender um pouco melhor a figura do Édipo na
ânfora de San Gimignano. Diante da esfinge, o rei de Tebas não parece ter o vigor
heróico do momento em que, conta o mito, enfrentou o monstro e respondeu à pergunta
fatal. Sim! Aquele que de manhã anda de quatro, ao meio-dia se sustenta em dois pés
e, ao entardecer, apóia-se também em um bastão é o próprio homem, este ser cansado
que aqui está, no lugar exato em que o verniz negro não foi pintado. Um ser
reconhecido pela falta, que, nesta vasilha de cerâmica, sustenta-se talvez no mesmo
pau com que deu na cabeça do próprio pai até matá-lo e cometer sua Hýbris inicial, sua
primeira Hamartía.
Desmedida e erro, involuntários que sejam, que farão com que percebam o
personagem de Sófocles e o discípulo de Exéquias que mergulha o pincel no verniz e
começa a pintar a vasilha que o Édipo que se posta à frente do monstro fabuloso é,
ao mesmo tempo, o anĕr vigoroso que decifra o enigma e o brotós extenuado que some
no bosque. São vários e é, só, um: homem trágico, definido pela falta, irrevogável pela
Moira. Uma Moira que, no contexto da tragédia e do mito grego, define-se mesmo como
uma espécie de linguagem soberana. O destino que está escrito.
Mas, talvez, esse Édipo que acerta na resposta que dá à esfinge tenha
convencido o monstro mas não tenha se convencido. Então, ele deve buscar mais:
cometer mais Hamartías, cegar-se, afundar-se na floresta em busca de si mesmo e,
depois, desaparecer. E não será de todo improvável imaginar que ele sumiu porque,
nas brenhas, encontrou-se a si próprio. Efêmero como um homem e permanente como
um deus, este ser que se encontra consigo mesmo talvez tenha conseguido também se
esvaziar do mito. Assim, como afirma Jaeger (2003), nem o destino nem Édipo o
absolvidos ou condenados”. (JAEGER, 2003, p.333)
64
Mas, para que a pintura do vaso se complete e a Moira cumpra seu papel
inexorável, ainda falta que Édipo se case com Jocasta e que, com ela, tenha quatro
filhos. Assim, Édipo, mesmo não querendo se igualar aos deuses, tefeito isto. É isto
também o que diz, de uma ou de outra maneira e por outros e mais elaborados
caminhos, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1992), quando afirma que os deuses
legitimam a vida humana pelo fato de eles próprios a viverem a teodicéia que sozinha
se basta!(NIETZSCHE, 1992, p.37) Casando-se com sua mãe e com ela gerando, ele
será como Urano. A desmedida involuntária será cometida. está Jocasta, no canto
esquerdo do vaso, esperando o filho que perdeu e pelo esposo que perderá. Também
ela efêmera, definida pela falta do verniz na cerâmica. Nietzsche (1992), em seu O
Nascimento da Tragédia, nos oferece uma espécie de definição do herói, cujo ambiente
suscita decisivamente o preenchimento pela falta que buscamos na ânfora de San
Gimignano:
Se abstrairmos, todavia, do caráter do herói, tal como aparece à superfície e se
torna visível - o qual no fundo nada mais é senão uma imagem luminosa
lançada sobre uma parede escura, isto é, uma aparência de uma ponta a outra
-, se penetrarmos bem mais no mito que se projeta nesses espelhamentos
luminescentes, perceberemos então, de repente, um fenômeno que tem uma
relação inversa com um conhecido fenômeno óptico. Quando, numa tentativa
enérgica de fitar de frente o Sol, nos desviamos ofuscados, surgem diante dos
olhos, como uma espécie de remédio, manchas escuras: inversamente, as
luminosas aparições dos heróis de Sófocles, em suma, o apolíneo da máscara,
são produtos necessários de um olhar no que há de mais íntimo e horroroso na
natureza, como que manchas luminosas para curar a vista ferida pela noite
medonha. (NIETZSCHE, 1992, p.63)
No entanto, a tragédia de Jocasta é distinta, subalterna de uma linguagem que
tem sua ortodoxia marcada na figura do masculino. Homens que dominam, que
decidem, que dormem com suas mães, matam seus próprios filhos, que escrevem
obras para o teatro, guerreiam, tentam enganar os deuses, são por eles invejados. À
65
mulher cabe um papel, como se disse, subalterno. Sófocles, contudo, talvez pela
primeira vez na trajetória da cultura grega, também dá a ela, à mulher, como lembra
Werner Jaeger (2003), a representatividade do humano. Trata-se de Antígonas,
Electras, Dejaniras, Tecmesas, Jocastas. Cada uma tão efêmera como os homens que
caminham a seu lado. Humanas e divinas, lutando contra a brevidade e o esquecimento
que tornam trágico o destino de cada um. Este destino que é tirano e que também é
Moira. E, como Moira, feminino, linguagem. Jocasta.
66
4. MARCAS DO GÊNERO
Ao ler o mito de Édipo, Sófocles, como se tentou mostrar, sublinhou
características que eram, ao mesmo tempo, determinantes de sua época e do gênero
ao qual se consagrou. No que se refere à abordagem do homem grego do século V a.
C., o dramaturgo de Colono avança em alguns aspectos de seu tempo, como a maneira
a partir da qual a mulher é introduzida na tragédia, ainda que o faça de maneira
moderada para os padrões da contemporaneidade. Quando o assunto é a questão do
gênero, Sófocles vai muito além, criando o próprio modelo.
Em Édipo Rei, a visão de mundo retratada é aquela que pertence a seu tempo e
aquela que dará a medida do tempo que virá. Ou seja: da mesma maneira que a obra
de Sófocles fala da Grécia que lhe é contemporânea, diz também de um mundo que
será, no mínimo, o espelho fosco de boa parte das idéias que surgiram nesse mesmo
universo da antiguidade helênica. Idéias que ainda hoje encontram eco em nossa
empresa ocidental. Talvez seja isto o que confira a este modo de conceber o mundo um
caráter até certo ponto marcado pela ortodoxia. Nesse sentido, para demonstrar tal fato,
valeria citar partes da obra em que a maneira de enxergar o humano se pauta pelo
ortodoxo em pelo menos três aspectos decisivos, quais sejam: o lugar de deus, o lugar
do homem e o lugar do trágico. Lugares estes que estão circunscritos não apenas à
sociedade grega da antiguidade, mas também, porque não dizer, à nossa natureza
contemporânea.
No que se refere à posição divina, mesmo que a tragédia concordar, no
futuro, com um discurso platônico que, grosso modo, insere deus como a medida de
67
todas as coisas, as ambigüidades são decisivas. Primeiro porque, ao colocar deus no
centro, a tragédia de Sófocles e, em particular, o Édipo Rei, se opõem àquilo que dizem
Protágoras e os sofistas do século V a. C: que o homem é a medida de todas as coisas.
No entanto, ao pensar desta maneira e se aproximarem da fórmula platônica, os
trágicos estarão fazendo um discurso análogo àquele que já havia sido feito com
Homero, por exemplo, e que se tecido com Platão, aproximadamente um século
depois. E, aqui, vale recordar o caráter essencialmente antitrágico da filosofia platônica
(JAEGER, 2003). Para Albin Lesky (2001), a obra de Sófocles deve ser encarada
sempre como engenho humano e luta humana, ao lado do inapreensível, inatingível
governo dos deuses!(LESKY, 2001, p.148) Em Édipo Rei, são inúmeras as ocasiões
em que é a vontade dos deuses aquela decisiva, determinante, implacável. Zeus, em
cada momento, e na fala de todos, é sempre chamado “o todo poderoso”:
Deus todo-poderoso, se mereces
Teu santo nome, soberano Zeus,
Demonstra que em tua glória imortal
Não és indiferente a tudo isso! (SÓFOCLES, 2002, p.62)
Entretanto, se o lugar de deus é assegurado acima de todas as coisas, em
“glória imortal”, o lugar do trágico evidencia uma ambigüidade própria do humano. Este
duplo sentido está no destino que, se não deixa de ser construído por meio de ações
que confirmam o movimento da alma das personagens, também é inexorável. E a tal
destino, como se viu no capítulo anterior, até mesmo Zeus deve estar subordinado.
Trágica, então, é a impossibilidade do divino e do humano se desvencilharem do tecido
da Moîra. É por isso que, como diz Pierre Vidal-Naquet (2005), nos trágicos, a
68
divindade é também medida, mas é medida no termo da tragédia(VERNANT; VIDAL-
NAQUET, 2005, p.282).
A saga de Édipo seria então, nestes termos, algo que talvez nem mesmo os
deuses podem mudar. Se há quem possa transformar o mito, este alguém (deus?) é
Sófocles, criador que exerce suas prerrogativas de maneira implacável, vestindo suas
criaturas (suas, porque não pertencem mais ao mito, mas a ele próprio) com o tecido
trágico que julga apropriado. Isso significa que, nas especificidades do gênero, aquilo
que chamamos vontade dos deuses está ali para assegurar o cumprimento do destino
humano ou, como afirma Werner Jaeger (2003), o desenvolvimento essencial do
homem sofredor(JAEGER, 2003, p.332). É assim que quer o dramaturgo de Colono e
é também assim que nos diz seu próprio coro quando, ao final, depois de conhecer a
felicidade trepidante e chegar ao mais fatal infortúnio, Édipo se prepara para cegar-se.
Vossa existência, frágeis mortais,
é aos meus olhos menos que nada.
Felicidade só conheceis
Imaginada; vossa ilusão
Logo é seguida pela desdita.
Com teu destino por paradigma,
desventurado, mísero Édipo,
julgo impossível que nesta vida
qualquer dos homens seja feliz!
Ele atirava flechas mais longe
Que os outros homens e conquistou
(assim pensava, Zeus poderoso)
incomparável felicidade. (SÓFOCLES, 2002, p.62)
Mas o Zeus poderoso não é aquele que fala com o coro de anciãos tebanos.
Então, aos olhos de quem a existência humana é “menos que nada”? Certamente, do
próprio Sófocles. Mas, talvez, também desta Moîra implacável. Por isso, porque o
destino é inexorável, Édipo não pode ser feliz. Se nem mesmo os deuses podem alterar
69
o caminho das coisas, se a esses deuses o único papel possível é o de oráculos,
revelando apenas aquilo que irá acontecer, Édipo, e quem tenha um destino como o
seu, não poderá vislumbrar a felicidade. Mas, cego, ele tomará as rédeas de sua
fortuna e, para enxergar aquilo que lhe era impossível ver quando teve o poder em suas
mãos, provocará sua própria cegueira.
Esta maneira de apreender o significante, que coloca um deus como centro de
todas as coisas para, durante a caminhada, ir descobrindo que nem mesmo este deus
poderá modificar o curso dos acontecimentos é, acredita-se, um modo ortodoxo de
enxergar o mundo. O lugar de deus é o centro, desde que este centro garanta aquilo a
que estamos acostumados chamar “liberdade humana”. Quando faz uma analogia entre
as condições do homem e de deus, o jesuíta Antônio Freire (1969) parece mostrar
como tal prática de definir as coisas está pautada por um caráter ortodoxo, no sentido
de reiterar uma maneira canônica de interpretar os fatos:
...só quem conhece a Deus, conhece o homem –, não deixa de ser verdadeira,
na nossa condição humana, a inversa: só quem conhece o homem, conhece a
Deus. O nosso conhecimento de Deus é analógico; e é do mais conhecido que
partimos para o menos conhecido. (FREIRE, 1969, p.65)
O Édipo de Sófocles é o ser humano que, seguindo aquilo que os oráculos lhe
dizem, também desconfia deste discurso. Ele consegue decifrar enigmas; parece – para
alguns como Michel Foucault saber mais do que aparenta; julga conhecer os deuses;
mas não conhece sequer a si mesmo. Tal ambigüidade é mostrada em momentos
decisivos do texto. Quando o oráculo de Apolo, por exemplo, lhe diz que ele irá matar
seu pai e casar-se com sua mãe, Édipo considera suas palavras e abandona Corinto.
Foge para não cometer sua Hýbris. Mas, quando esta profecia afeta sua liberdade,
70
mostrando que a escolha que fez era um equívoco, ele desconfia, denegando o próprio
oráculo e as palavras de Tirésias. Assim, ao mesmo tempo em que Édipo é um homem
que respeita seus deuses, também é um homem que os desafia, que quer se igualar a
eles, que não deseja, sobretudo, perder o poder ao qual está acostumado.
Mesmo quando o desenrolar dos acontecimentos revela que os vaticínios do
oráculo foram acertados, o Édipo culpado aquele que se cega e que é arruinado pelo
destino e por seus próprios atos este Édipo é também aquele que, através do trágico,
eleva-se à sua condição mais sublime, quando assume conscientemente as rédeas de
sua sina e, de uma ou outra maneira, mostra que seu fadário comporta sobretudo o
peso da desdita que atinge todos os cidadãos de Tebas. Aqui se encontra a
ambigüidade decisiva. Uma ambigüidade que, reunindo Hýbris e Are sob a mesma
chancela, mostra que o mundo está sendo interpretado a partir desta ortodoxia trágica à
qual se acabou de aludir.
Compreende-se imediatamente o afundamento do herói na dor trágica; em vez
de colocá-lo judicialmente na injustiça, o que faz é revelar de modo patente,
em naturezas nobres, o caráter iniludível do destino que os deuses impõem
aos homens. (...) Não partilha as resignadas palavras de Simônides, segundo
as quais o Homem tem de perder necessariamente a arete, quando o infortúnio
inexorável o derruba. A elevação dos seus grandes sofredores à mais alta
nobreza é o Sim que Sófocles a esta realidade, a esfinge cujo enigma fatal
consegue resolver. É o homem trágico de Sófocles o primeiro a elevar-se a
uma autêntica grandeza humana, pela completa destruição da sua felicidade
terrena ou da sua existência física e social. (JAEGER, 2003, p.331)
A dor trágica é, ao que parece, não uma prerrogativa inerente aos deuses ou ao
próprio mito, mas algo que é construído pelo gênero. É a obra de Sófocles que
estabelece engenho e luta humana ao lado de um poder aparentemente decisivo dos
deuses. Isto, acredita-se, deve-se ao fato de que essa dor trágica advém de um destino
71
inexorável e não da vontade propriamente dita dos deuses ou de uma estrutura
definitiva do mito. Fosse assim, os deuses poderiam mudar o curso dos
acontecimentos, mas não mudam. Fosse também assim, e o mito teria uma versão,
não comportando, por exemplo, a de Homero, que nos é oferecida na Odisséia, como já
se mostrou no capítulo anterior desta dissertação. Quem comanda a luta e determina o
engenho é o dramaturgo de Colono, definindo a reboque o destino de suas
personagens.
A esse propósito, vale lembrar o que diz o helenista Jacyntho José Lins Brandão
em seu texto O como e o quê no Édipo Rei, de Sófocles (BRANDÃO, 1980). Neste
ensaio, cujo principal objetivo é o debate sobre a forma e o conteúdo da tragédia grega,
Brandão chama a atenção para a maneira como Sófocles tece o conteúdo mítico em
Édipo Rei. Para o helenista, é o engenho ímpar do dramaturgo de Colono o maior
responsável pela grandiosidade dramática do Édipo Rei. Isto porque a escritura de
Sófocles pode ser considerada o fator determinante na recriação, a partir de jogos
repletos de ambigüidade e ironia, de um enredo possivelmente conhecido do público
da época. Assim, segundo Brandão, a maior inventiva está no como Sófocles conta a
lenda de Jocasta e Édipo, e não no próprio entrecho em si. Como afirma o helenista, “a
arte do poeta consiste em lançar dúvidas, jogando com tensão e distensão, criando,
dessa forma, o ritmo dramático” (BRANDÃO, 1980, p. 55 e 56). É por isso que o
parecer de Jacyntho José Lins Brandão sobre quem seria o principal público buscado
por Sófocles se os que conheciam o mito ou aqueles que o ignoravam não
poderia ser mais inequívoco no que se refere à importância da forma na composição da
dramaturgia trágica:
72
Há, pois, como tudo na peça, várias maneiras de presenciá-la e
entendê-la. Agradaria tanto ao público ignorante do mito, quanto àqueles
que com ele tivessem familiaridade. Predomina todavia, em termos de
qualidade, a apreciação dos últimos. Talvez a eles se dirigisse o autor
preferencialmente, por sabê-los capazes de apreciar, de forma integral,
como
se dava o jogo de ambigüidades, o dialogismo irônico de cada
episódio, atitude ou fala: enquanto a superfície da linha revela o fio da
história contada, a profundidade das entrelinhas desvela a condição
amarga e impotente do homem, aqui encarnado na personagem. Édipo,
o que decifrou a esfinge, mas sucumbiu diante do próprio enigma.
Aquele que reuniu em si todos os contrários, como a provar que "o
contrário
é
convergente e dos divergentes nasce a mais bela harmonia,
e tudo segundo a discórdia", conforme Heráclito. A provar e a mostrar a
natureza trágica do homem: "nos mesmos rios entramos e não
entramos, somos e não somos"
5
.
(BRANDÃO, 1980, p. 58 e 59)
Nesse sentido, a história de Édipo, que servirá para que Freud defina toda sua
teoria, é uma construção de Sófocles e, como tal, do gênero dramático ao qual se
dedicou. Tal dedicação, como lembra Albin Lesky (2001), rendeu-nos 123 peças
classificadas sob o nome de Sófocles por eruditos alexandrinos. Ao lado de nomes
como Ésquilo e Eurípides, foi ele quem construiu a ortodoxia do gênero. Tal fato pode
ser comprovado na Poética de Aristóteles, obra em que o estagirita procura estabelecer
a própria teoria da tragédia.
Assim, a Poética de Aristóteles é capaz de justificar a afirmação pouco feita
de que Sófocles cria a tragédia grega. o várias as passagens em que o filósofo que
viveu entre 384 e 322 a. C. cita as obras de Sófocles como exemplo bem acabado do
gênero. Isto acontece em partes da Poética, nas quais Aristóteles procura delinear as
características da tragédia. No que se refere ao Édipo Rei, fonte primária desta
dissertação, a peça é citada em sete capítulos pelo estagirita, sempre de maneira a
mostrar o acerto de Sófocles no que se refere à adequação do texto aos parâmetros
estabelecidos para o gênero.
5
HERÁCLITO DE ÉFESO. Fragmentos. Trad. De José Cavalcante de Souza, p. 80 e 84.
73
A primeira citação aparece, no capítulo XI, quando Aristóteles (1993) se propõe a
elucidar reconhecimento e peripécia, elementos qualitativos do que ele próprio chama
“mito complexo” e partes essenciais da tragédia. A peripécia, que é marcada pelo
imprevisto, quando os acontecimentos resultam no inverso daquilo que deles se poderia
esperar, acontece, no Édipo Rei, inverossímil e necessariamente (ARISTÓTELES,
1993, p.118).
Assim, no Édipo, o mensageiro que viera no propósito de tranqüilizar o rei e de
libertá-lo do terror que sentia nas suas relações com a mãe, descobrindo quem
ele era, causou o efeito contrário (...). (ARISTÓTELES, 1993, p.118)
No que se refere ao reconhecimento, que se trata, como afirma Aristóteles, da
passagem do ignorar ao conhecer, o Édipo Rei é citado, ainda no capítulo XI e também
no XVI, como possuidor da “mais bela de todas as formas de reconhecimento”, uma vez
que ela acontece, nesta peça, juntamente com a peripécia.
A próxima citação do Édipo Rei tem lugar no capítulo XIII, quando Aristóteles
(1993) fala sobre o herói trágico. Aqui, mais uma vez, o herói que se transforma em
tirano de Tebas é o exemplo acreditado perfeito daquilo que se poderia chamar de
homem intermediário. Trata-se do herói que, oriundo de uma família ilustre, conhece
sua tragédia dolorosa a partir da Hamartía.
... o homem que não se distingue muito pela virtude e pela justiça; se cai no
infortúnio, tal acontece, o porque seja vil e malvado, mas por força de algum
erro; e esse homem de ser algum daqueles que gozam de grande
reputação e fortuna, como Édipo e Tiestes ou outros insignes representantes
de famílias ilustres. (ARISTÓTELES, 1993, p.120)
74
No capítulo XIV, em que o filósofo macedônico disserta sobre a catástrofe, o
Édipo Rei é mencionado pelo fato de que, a partir da tessitura de Sófocles, os
desastres são mostrados não “por efeito do espetáculo cênico”, mas porque derivam da
íntima conexão dos atos (ARISTÓTELES, 1993).
Porque o mito deve ser composto de tal maneira que, quem ouvir as coisas
que vão acontecendo, ainda que nada veja, pelos sucessos trema e se
apiede, como experimentará quem ouça contar a história de Édipo.
(ARISTÓTELES, 1993, p.121)
A verossimilhança é tratada no capítulo seguinte da Poética. A menção ao Édipo
Rei acontece quando, depois de tratar sobre a propriedade do surgimento do deus ex
machina, Aristóteles (1993) diz que o irracional também não deve entrar no
desenvolvimento dramático, mas, se entrar, que seja unicamente fora da ação...
(ARISTÓTELES, 1993, p.125). Mais à frente, no capítulo XXIV, esta questão é
novamente suscitada, quando o filósofo recomenda que o irracional aconteça fora da
representação e oferece, como exemplo deste tipo de acerto, o fato de Édipo ignorar as
circunstâncias da morte de Laio.
Afinal, a última citação do Édipo Rei na Poética ocorre no capítulo XXVI, o último,
quando, ao tratar da epopéia e da tragédia, afirmando que a segunda é superior à
primeira, Aristóteles também elogia a concisão dramática, pedindo ao leitor que imagine
o efeito que produziria o Édipo de Sófocles em igual número de versos que a Ilíada
(ARISTÓTELES, 1993, p.147). São estas, portanto, as citações textuais feitas pelo
filósofo macedônico acerca do Édipo Rei. Entretanto, envolvendo outras obras de
Sófocles, elas ocorrem em número bastante superior.
75
Vale ainda mencionar como o Édipo Rei também é referência para a ortodoxia
aristotélica a respeito da tragédia no que se refere a outros aspectos. Um deles é o da
unicidade da fábula: na história do tirano de Tebas, temos apenas o relato dos
episódios vividos por ele próprio. A trama dos acontecimentos também é de natureza
trágica, capaz de suscitar o terror e a piedade do espectador, como exige o estagirita
no capítulo VI (ARISTÓTELES, 1993, p.110). No tocante ao número de atores, vale
lembrar que foi o próprio Sófocles quem introduziu o terceiro ator, que vem se juntar ao
herói em seu confronto com o coro.
Ainda dentro desta perspectiva, cumpre dizer que, naquilo que se refere às três
unidades de composição, – ação, tempo e lugar o Édipo Rei mais uma vez alimenta a
Poética. Nele, a ação, que Aristóteles afirma ser a parte mais importante da tragédia,
transcorre de maneira exata, com a trama sendo plenamente representada, não
necessitando, em momento algum, de que partes dela sejam explicadas, a fim de que o
espectador possa compreendê-la. O tempo no Édipo Rei é delimitado como Aristóteles
quer: no sentido de caber dentro de um período do sol, ou pouco excedê-lo...
(ARISTÓTELES, 1993, p.109). No que diz respeito à última unidade, o lugar, a obra de
Sófocles certamente inspirou a ortodoxia estabelecida na Poética: o cenário é único,
indicando a apreensibilidade do conjunto, de princípio a fim da composição
(ARISTÓTELES, 1993, p.140).
Nesse sentido, o que aqui se procurou demonstrar, por motivos óbvios com
enorme facilidade, é que o Édipo Rei é uma das peças que inspira a ortodoxia definida
para o gênero na Poética escrita por Aristóteles no século IV a.C. É com base nos
parâmetros praticados por Sófocles em sua escritura que a tragédia clássica se enuncia
e se perpetua.
76
Assim, poder-se-ia dizer que a ortodoxia é característica da obra do dramaturgo
de Colono, e particularmente do Édipo Rei, em aspectos decisivos. Sobretudo, por
compreender uma visão de mundo que incorpora a maneira de pensar o lugar do
homem, de Deus e do trágico.
4.1. MARCAS ESTRUTURAIS
Cada qual a seu modo, sem perder de vista o fato de que tais lugares marcam-se
principalmente por se encontrarem, o humano e o divino em Sófocles trazem a dor
trágica como matéria-prima essencial capaz de refletir formas de pensar que irão
constituir não somente a tradição intelectual de sua própria época e do futuro da
empresa ocidental, mas também de todo um gênero dramático, criando-o e, neste
mesmo processo, recriando-o.
Ao lado da leitura de Sófocles sobre o mito de Édipo, e dentro de uma
concepção ortodoxa, no sentido de ser amplamente acreditada no mundo científico,
vale citar ainda duas outras abordagens: a antropológica estruturalista, de Claude Lévi-
Straus; e a psicanalítica, de Sigmund Freud.
No que se refere à análise que faz o antropólogo belga, a leitura que é realizada
quer mostrar, como acredita Audemaro Taranto Goulart (1997), que o mitoimpressiona
não apenas devido aos cuidados estéticos ou morais que o contornam mas também
devido à inspiração religiosa e ao uso ritualístico” (GOULART, 1997, p.11). Lévi-Strauss
77
apresenta uma descrição detalhada de fragmentos do mito, aos quais denomina
mitemas.
São tais mitemas que, em articulação com um modelo previamente elaborado
pelo antropólogo, darão origem a uma estrutura. Mas, na verdade, Lévi-Strauss não
toma somente a versão que nos é oferecida através do Édipo Rei, de Sófocles. Ele vai
aquém. Partindo da fundação de Tebas, ele busca a história de Cadmo, filho de
Agenor, rei na Fenícia, e de Telêfassa (ou Argiope). Com o rapto de Europa, sua irmã,
por um Zeus transformado em touro, Agenor ordena a Cadmo e a seus outros dois
irmãos, Cílix e Fênix, que partam em busca da irmã, não voltando sem ela.
Acompanhado da mãe, Cadmo segue para a Trácia, enquanto seus outros irmãos
percorrem a Cilícia e a Fenícia.
Com a morte de sua e, Cadmo consulta o oráculo de Delfos que lhe instrui
abandonar a procura de Europa e fundar uma cidade no exato lugar em que uma vaca,
à qual ele encontraria e deveria seguir, caísse de cansaço. Agindo conforme as
determinações do oráculo, Cadmo encontra o animal, segue-o e, no local em que este
se deita para descansar, funda Tebas. O herói, então, a fim de sacrificar a vaca para
Atena, manda que seus homens busquem água na fonte de Ares, situada ali perto.
Contudo, lá, um dragão devora todos eles para, em seguida, ser morto por Cadmo.
Surge, então, a deusa Atena, que diz ao filho de Agenor que arranque os dentes do
dragão e os semeie para, daí, surgirem do solo outros homens completamente
armados, os Spartoi, ou “homens semeados”.
Temendo os Spartoi, que possuíam maneiras ameaçadoras, Cadmo lhes atira
pedras e eles, sem saber de onde vem o ataque, lutam contra si mesmos. Ao final,
salvam-se apenas cinco homens semeados: Equíon, Ctônio, Hiperenor, Pêloro e Udaio.
78
São tais homens que, junto a Cadmo, dão início à aristocracia de Tebas. Mas é o
próprio Cadmo que, depois de se casar com Harmonia, filha do deus Ares, a quem
servira por haver matado o dragão pertencente a esta divindade, recebe de Atena o
trono de Tebas.
Duas gerações mais tarde, bdaco, filho de Polidoro e Nicteis, assume o trono
de Tebas, depois de completar sua maioridade. É deste Lábdaco que descende Laio, o
pai que mandou matar Édipo e, como se lembrou nesta dissertação, início aos
infortúnios que irão perseguir os labdácidas ao se apaixonar por Crisipo, inaugurando
aquilo que se poderia chamar “amor contra naturam”.
Ao buscar o mito em suas origens e levá-lo até a morte de Antígona, que ocorre
porque ela desrespeita a ordem de Creonte e faz enterrar seu irmão Polinice (tema da
peça Antígona, do próprio Sófocles (2002)), Lévi-Strauss monta uma estrutura que
mostra quatro colunas com mitemas específicos. Na primeira coluna, são mostradas
partes essenciais do mito, como a busca de Cadmo por Europa, o casamento entre
Édipo e Jocasta, e a violação da proibição de Creonte, cometida por Antígona ao
enterrar Polinice.
Na segunda coluna, Lévi-Strauss expõe mitemas ligados à morte: o extermínio
mútuo dos Spartoi, o assassinato de Laio e o confronto mortal entre Etéocles e Polinice.
Na terceira, temos desafios vencidos pelos heróis, como a morte do dragão, por
Cadmo; e a da Esfinge, por Édipo. Na última coluna, o antropólogo relaciona os defeitos
físicos dos labdácidas: Lábdaco, que é coxo; Laio, que é torto; e Édipo, que possui os
pés inchados.
Uma vez montada tal estrutura, Lévi-Strauss (1996) constrói um modelo em que
tais mitemas se articulam a partir de um arranjo teórico cuja construção, como lembra
79
Taranto Goulart (1997), depende das formulações que o analista pretende fazer nele,
com o objetivo de buscar uma significação para os elementos que o constituem
(GOULART, 1997, p.15). Mas é na maneira de executar a leitura que se encontra o
diferencial da análise estrutural de vi-Strauss. Ela pode ser feita tanto de forma linear
como de modo vertical. Nesse sentido, o antropólogo quer chamar a atenção para o
fato de que a leitura de um mito não é realizada por vínculos independentes, mas por
aquilo que ele mesmo chama de feixe de relações entre os mitemas.
Supomos, com efeito, que as verdadeiras unidades constitutivas do mito não
são as relações isoladas, mas feixes de relações, e que é somente sob a forma
de combinações de tais feixes que as unidades constitutivas adquirem uma
função significante. Relações que provêm do mesmo feixe podem aparecer em
intervalos afastados, quando nos situamos num ponto de vista diacrônico, mas
se chegamos a restabelecê-las em seu agrupamento ‘natural’, conseguimos ao
mesmo tempo organizar o mito em função de um sistema de referência
temporal de um novo tipo, e que satisfaz as exigências da hipótese inicial.
Realmente, este sistema é de duas dimensões: ao mesmo tempo diacrônico e
sincrônico, e reunindo assim as propriedades características da língua’ e da
‘palavra’. (LEVI-STRAUS, 1996, p.243-244)
Para ler o mito de Édipo a partir desta estrutura, segundo Taranto Goulart, é
necessário perceber quais são os pontos em comum dos mitemas relacionados em
cada coluna. Neste sentido, Lévi-Strauss revela que, na primeira coluna, o traço em
comum são as “relações de parentesco superestimadas”. Na segunda, essas mesmas
relações são “subestimadas”. Na coluna seguinte, os mitemas convergem para o que
Lévi-Strauss chama de “negação da autoctonia do homem”. E, na última, o oposto, com
a “afirmação da autoctonia do homem”.
A partir de tais caracterizações, o que se pode perceber é que contradições
internas tanto entre as duas primeiras quanto entre as duas últimas colunas. As
questões estão, portanto, nas definições das relações de parentesco e da autoctonia
80
humana. Ou seja: as relações de parentesco são decisivas para definir o homem Édipo
e seu mito, ou não? Do mesmo modo, a origem deste mesmo Édipo, de onde ele vem,
é suficiente e decisiva para decifrá-lo? Assim, como explica acertadamente Audemaro
Taranto Goulart (1997), através de tais oposições, o que a análise estrutural do
antropólogo belga parece indagar é o que se poderia chamar “pergunta definitiva do
próprio ser humano: quem sou eu?
Para responder a essa indagação, o homem dispõe de duas teorias: uma,
fundada na religião, que atribui a criação humana a um ser superior, um deus,
e outra, ancorada na ciência, que defende o princípio de que o homem é
produto de uma evolução natural. (GOULART, 1997, p.18)
Nesse sentido, a questão assinalada por Lévi-Strauss mostra que a contradição
estabelecida entre os mitemas que apontam ora para a negação, ora para a afirmação
da autoctonia do homem; e, ao mesmo tempo, ora superestimando, ora subestimando
as relações de parentesco. Ainda para Audemaro Taranto Goulart, tal contradição é
insuperável. A pergunta fica, portanto, sem resposta. Édipo não sabe quem é e, quando
isto parece acontecer, não lhe resta outra alternativa a não ser sair cego e andarilho,
em sua busca de Sísifo.
No entanto, o que para esta dissertação mais interessa na proposta de Lévi-
Strauss (1996) para enxergar o mito é o fato de que o antropólogo, desde o início de
sua análise, opta por não querer determinar uma versão “autêntica” para o mito de
Édipo. Esta linha, que exemplificaremos a seguir com um trecho de seu texto A
estrutura dos mitos, seretomada mais à frente, quando tentar-se-á fazer uma leitura
de viés heterodoxo. Por hora, vale ficar com as palavras que Lévi-Strauss emprega
81
para justificar seu método, ao mesmo tempo em que também reconhece a importância
das variadas leituras:
O método nos livra, pois, de uma dificuldade que se constituiu, até agora, num
dos principais obstáculos ao progresso dos estudos mitológicos, ou seja, a
pesquisa da versão autêntica ou primitiva. Nós propomos, ao contrário, definir
cada mito pelo conjunto de todas as suas versões. Dito de outro modo: o mito
permanece mito enquanto é percebido como tal. Este princípio é bem ilustrado
por nossa interpretação do mito de Édipo, que se pode apoiar sobre a
formulação freudiana, e lhe é certamente aplicável. O problema posto por
Freud em termos ‘edipianos’ não é mais, sem dúvida, o da alternativa entre
autoctonia e reprodução bissexual. Mas se trata sempre de compreender
como um pode nascer de dois: como se que não tenhamos um único
genitor, mas uma mãe, e um pai a mais? Não se hesitará pois em classificar
Freud, depois de Sófocles, na relação de nossas fontes do mito de Édipo.
Suas versões merecem o mesmo crédito que outras, mais antigas e,
aparentemente, mais ‘autênticas’. (LÉVI-STRAUSS, 1996, p.250)
4.2. MARCAS DO DESEJO
Efetivamente, como aponta Lévi-Strauss, a leitura que Sigmund Freud faz do
mito de Édipo não passa pela negação ou afirmação da autoctonia. Trata-se da própria
criação da psicanálise, um todo terapêutico que consiste fundamentalmente na
interpretação, por um psicanalista, dos conteúdos inconscientes de palavras, ações e
produções imaginárias de um indivíduo, com base em associações livres e na
transferência (ROUDINESCO; PLON, 1998). Tal método que surge no final do culo
XIX e, no século XX, vai formar toda uma escola de pensamento – deriva em mudanças
radicais na maneira como o ser humano é enxergado. E, apenas para que se tenha
idéia da importância do mito de Édipo, e da própria tragédia de Sófocles, na
composição desse ambiente ao qual não hesitaríamos em chamar revolucionário, vale
82
atentar para o que Freud, ele mesmo, escreve em seu último livro, redigido em 1938 e
publicado depois de sua morte. Em O Esboço de Psicanálise (FREUD, 1974), Freud
diz, de modo decisivo, assim como é lembrado no Dicionário de Pscicanálise de
Elisabeth Roudinesco e Michel Plon:
Permito-me pensar que, se a psicanálise não tivesse em seu ativo senão a
simples descoberta do complexo de Édipo recalcado, isso bastaria para situá-
la entre as preciosas novas aquisições do nero Humano. (ROUDINESCO;
PLON, 1998, p.167)
Certamente, talvez não haja teoria do pensamento humano mais reconhecida,
criticada e debatida do que o complexo de Édipo. Em linhas gerais, tal teoria trata da
representação inconsciente pela qual se exprime o desejo sexual ou amoroso da
criança pelo genitor do sexo oposto e sua hostilidade para com o genitor do mesmo
sexo (ROUDINESCO; PLON, 1998, p.166). No entanto, segundo o Dicionário de
Psicanálise, de Elisabeth Roudinesco e Michel Plon (1998), tal representação pode se
inverter e passar a expressar o amor pelo genitor do mesmo sexo e o ódio pelo do sexo
oposto. À primeira representação, chama-se “Édipo”; à segunda, “Édipo invertido”; à
mistura das duas, “Édipo completo”. Assim, o complexo de Édipo surge entre os três e
cinco anos de idade e, para a psicanálise, seu declínio assinala a entrada num período
chamado de latência, traduzido pela sublimação do interesse sexual. Sua resolução
ocorre após a puberdade e é concretizada a partir de um novo tipo de escolha de alvo
de pulsão, que pode ser uma pessoa, um objeto parcial, real ou fantasístico.
De maneira natural, em nossa sociedade contemporânea, o complexo definido
por Freud e a tragédia escrita por Sófocles chegam mesmo a se confundir no senso
comum. O que no dramaturgo grego é mais comumente interpretado como um
83
paradigma do destino humano, como nos referimos muitas vezes nesta dissertação,
no pensador judeu é a mescla deste mesmo destino com uma determinação psíquica,
vinda do inconsciente, capaz de definir as escolhas e os projetos humanos. Na
verdade, embora o Édipo Rei esteja presente em toda a obra freudiana, o criador da
psicanálise nunca escreveu um artigo exclusivo sobre esta sua leitura da peça de
Sófocles. A primeira referência direta acontece em carta datada de 15 de outubro de
1897, a Wilhelm Fliess. Em seguida, na Interpretação dos Sonhos (FREUD, 1987b),
obra publicada em 1900, Freud volta ao tema de maneira igualmente específica.
Em minha experiência, que é extensa, o papel principal na vida mental de
todas as crianças que depois se tornam psiconeuróticas é desempenhado por
seus pais. Apaixonar-se por um dos pais e odiar o outro figuram entre os
componentes essenciais do acervo de impulsos psíquicos que se formam
nessa época e que é tão importante na determinação dos sintomas da
neurose posterior. Não é minha crença, todavia, que os psiconeuróticos
difiram acentuadamente, nesse aspecto, dos outros seres humanos que
permanecem normais isto é, que eles sejam capazes de criar algo
absolutamente novo e peculiar a eles próprios. É muito mais provável e isto
é confirmado por observações ocasionais de crianças normais –, que eles se
diferenciem apenas por exibirem, numa escala ampliada sentimentos de amor
e ódio pelos pais que ocorrem de maneira óbvia e intensa nas mentes da
maioria das crianças.
Essa descoberta é confirmada por uma lenda da Antiguidade Clássica que
chegou ate nós: uma lenda cujo poder profundo e universal de comover só
pode ser compreendido se a hipótese que propus com respeito à psicologia
infantil tiver validade igualmente universal. O que tenho em mente é a lenda do
Rei Édipo e a tragédia de Sófocles que traz o seu nome. (FREUD, 1987b,
p.256)
Ao confessar que foi buscar a fonte de inspiração para sua teoria em uma peça
de teatro da antigüidade grega, podendo, por exemplo, dizer que foi encontrá-la num
mito, acredito que, mais do que realçar sua invenção da psicanálise, Freud valoriza a
obra de Sófocles. É por isto que, como já disse anteriormente, com o apoio de
mitólogos como Vernant (2005), não é possível crer que “o poder profundo e universal
de comover” do Édipo Rei só possa ser compreendido se amparado na hipótese
84
freudiana sobre a psicologia infantil. Não. Antes que se prossiga com a leitura
freudiana, é necessário deixar claro que a crença deste trabalho caminha para uma
abordagem que não perde de vista um outro poder, qual seja, o do gênero literário. De
maneira mais específica, o que se quer afirmar é que esse poder profundo de comoção
do mito de Édipo tem sua base também em uma invenção. Mas não a da psicanálise, e
sim a do gênero dramático que Sófocles ajudou a criar e, assim fazendo, agiu com
excelência. Em outras palavras, não é a obra de Sófocles que se serve do complexo
inventado por Freud para caminhar do século V a.C. até os nossos dias, mas
exatamente o contrário. Ou seja: é o pai da psicanálise quem se apropria da tragédia
do dramaturgo grego para fundar o principal de sua hermenêutica.
Contudo, embora acredite no sentido da proposta formulada por Deleuze e
Guattari (1966) de que o complexo de Édipo freudiano possui contornos que apostam,
talvez se possa mesmo dizer, na manipulação do desejo em nossa sociedade, é
impossível negar a influência da psicanálise desde sua criação. E, como se disse, tal
invenção parte de uma tragédia: de uma tragédia grega. É com as palavras de Sófocles
e, portanto, a partir de uma estrutura literária que Freud, acredita-se, comete seu
próprio parricídio ao desvincular a cura de neuroses e psicoses do processo
psiquiátrico. E é também através da literatura que o pensador judeu prosseguimento
a sua teoria, vinculando-a, primeiro, ao Hamlet, de Shakespeare, e, em seguida, à saga
parricida de Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski.
Na verdade, voltando ao Édipo Rei, o que Freud faz é usar a versão que
Sófocles compõe do mito na direção de suas formulações psicanalíticas(GOULART,
1997, p.10), como afirma Audemaro Taranto Goulart. O que interessa a Freud é dar
sustentação à sua idéia de que o desejo e o inconsciente estão intrinsecamente
85
inseridos dentro de uma ordem familiar. Édipo é uma personagem exemplar para este
tipo de leitura, uma vez que ele não apenas desposa sua mãe, como também mata seu
pai. A ordem familiar vai estar presente também quando Freud (1996) serve-se de
Hamlet e Dmitri Karamazov. Em seu ensaio denominado Dostoiévski e o parricídio
(FREUD, 1996), ele confirma este interesse familiar, voltado sempre para o confronto
com um genitor e a identificação com o outro. E, aqui, o que Freud enxerga, como não
poderia deixar de ser, é o que sua abordagem pede: o parricídio e o incesto.
Dificilmente pode dever-se ao acaso que três das obras primas da literatura de
todos os tempos Édipo Rei, de Sófocles; Hamlet, de Shakespeare; e Os
Irmãos Karamassovi, de Dostoievski – tratem todas do mesmo assunto, o
parricídio. Em todas três, ademais, o motivo para a ação, a rivalidade por uma
mulher, é posto a nu. (FREUD, 1996, p.193)
Quando escreve Totem e tabu obra na qual se pode encontrar uma mistura de
investigação antropológica, psicanálise e literatura o propósito de Freud é o mesmo:
inserir sua teoria, como já se disse nesta dissertação, dentro de um arquétipo universal,
no sentido de demonstrar que a neurose infantil é algo inerente à própria condição
humana de um modo geral. Trata-se, vale dizer, de um projeto vitorioso. Aclamado,
seguido, contestado, discutido, reelaborado, é inegável que, depois do pensamento
freudiano, o complexo de Édipo passou a ser algo que está indiscutivelmente inserido
na própria ordem do senso comum.
Se é desta maneira que a psicanálise criada por Sigmund Freud encontrou no
Édipo Rei, poder-se-ia dizer, o caminho perfeito para oferecer uma visão de mundo que
hoje, creio, é pautada por uma determinada ortodoxia no estatuto do pensamento
86
contemporâneo, também é de modo semelhante que outras leituras foram e vêm sendo
realizadas.
No próximo capítulo desta dissertação, na tentativa de prosseguir caminhando
para o entendimento daquilo que outras pessoas disseram sobre o mito de Édipo,
esteja ele ou não vinculado à obra incomparável de Sófocles, buscarei a leitura de
idéias que, pelo menos por hora, ainda não podemos dizer que possuem a projeção
ortodoxa conferida por autores como Lévi-Strauss e Freud. Assim mesmo, trata-se de
abordagens diferenciadas. Análises que, de uma ou de outra maneira, tornaram-se de
inestimável ajuda no momento de construir a minha própria. E esta minha leitura do
Édipo, como se avisou na introdução deste trabalho, não acontecerá através do
pensamento acadêmico propriamente dito, mas, mesmo que engendrada por ele, por
meio e em função de uma construção inerente à literatura e à dramaturgia. Aqui, o que
se quer priorizar desde o início é, como já se disse, a questão do gênero literário.
87
5. CAMINHOS PARA A HETERODOXIA
Se Lévi-Strauss está certo e a definição de um mito deve ser oferecida pelo
conjunto de todas suas versões, o caminho da mitologia edipiana é úbere e, pode-se
dizer, ilimitado. As versões apresentadas até o momento nesta dissertação,
classificadas como ortodoxas, uma vez que encontraram amparo certo e profícuo no
que se poderia chamar “história das idéias ocidentais”, são, no mínimo, três: o Édipo
Rei, de Sófocles; a abordagem estruturalista do próprio antropólogo belga; e a leitura
psicanalítica de Sigmund Freud, que, como já se viu ainda que brevemente, foi capaz
de inaugurar ampla vertente de pensamento neste nosso mundo contemporâneo.
Neste capítulo, tentarão ser explicadas outras determinadas análises que, se por
acaso não contam com a projeção hermenêutica das anteriores, também devem ser
levadas em consideração, seja porque partem delas ou porque com elas possuem
algum tipo de ligação, na medida em que as analisam e polemizam. Nesse sentido,
procurar-se-á explorar, a fim de não exagerar o debate sobre o mito de Édipo, as idéias
de outros quatro autores.
O primeiro deles, que lança tese que contra-argumenta a teoria freudiana, é
Hélio Pellegrino, para quem o próprio Édipo, enquanto personagem, não teria sofrido do
complexo definido pelo pai da psicanálise. Em seguida, passaremos às idéias sobre a
repressão sexual que guiam as considerações suscitadas pela professora Marilena
Chauí, que dedicou ao tema texto provocador. A terceira leitura é de Michel Foucault e
pode ser encontrada em uma das conferências que proferiu quando esteve no Rio de
88
Janeiro, em maio de 1973. Nelas, as idéias do pensador francês nos conduzem a um
Édipo que busca o poder.
E são exatamente tais abordagens que nos encaminharão a uma quarta: aquela
em que Friedrich Nietzsche aponta para quase que um duelo de forças que a arte e, a
reboque dela, como não poderia deixar de ser, a literatura e a dramaturgia travam de
modo intrínseco entre um espírito apolíneo e outro dionisíaco.
Finalmente, o que se espera da discussão das idéias desses autores, que aqui
consideramos heterodoxos pelo fato de não se prenderem, de uma ou de outra
maneira, à hermenêutica mais consolidada, é que elas também possam servir de apoio
para a abordagem que procurar-se-á fazer tendo como medida, ou desmedida, dois
textos dramatúrgicos que também tematizam o mito, partindo sempre da tragédia de
Sófocles, quais sejam: Um Édipo, do português Armando Nascimento Rosa (2003); e
Jocasta Tirana, produzido especialmente no sentido de interpretar as idéias alusivas a
este trabalho (ver Apêndice A).
5.1. UM ÉDIPO SEM COMPLEXO
Impossível evitar, a partir do título acima, a comparação com o artigo quase
homônimo em que Jean Pierre Vernant (2005), um dos mais influentes helenistas da
contemporaneidade, cotejou a leitura anti-histórica de Sigmund Freud e propôs uma
hermenêutica particular para a própria tragédia grega. Neste ensaio citado
anteriormente nesta dissertação e publicado pela primeira vez em 1967, o estudioso
89
mostra como o pai da psicanálise, no sentido de buscar sustentação para seus
diagnósticos, chegou mesmo, com o objetivo de confirmar suas hipóteses, a ser
reducionista e excessivamente simplificador ao partir de algo estabelecido e
consagrado em um dos séculos mais rteis da antigüidade grega. De modo bastante
resumido, o que Jean Pierre Vernant parece querer nos dizer é que Freud se escora na
universalidade do drama de Édipo para dar sentido a suas observações clínicas. Tal
fato pode ser exemplificado na pergunta que o próprio Vernant faz no início deste seu
artigo e, é claro, nas contestações argumentativas que dela advêm:
Mas em que medida uma obra literária que pertence à cultura da Atenas do
século V a.C., e que transpõe de maneira muito livre uma lenda tebana - muito
mais antiga, anterior ao regime da cidade, pode confirmar as observações de
um médico do começo do século XX sobre a clientela de doentes que
freqüentavam seu consultório? Na perspectiva de Freud, a pergunta não exige
resposta, porque nem deveria ser feita. Com efeito, a interpretação do mito e
do drama gregos de maneira nenhuma constitui problema. Eles não precisam
ser decifrados por métodos de análise apropriados. Imediatamente legíveis,
inteiramente transparentes ao espírito do psiquiatra, eles revelam de uma
vez uma significação cuja evidência traz às teorias psicológicas do clínico uma
garantia de validade universal. (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2005, p.51)
Se até aqui falou um helenista, cujo entendimento está longe de alcançar um
saber psicanalítico, no início da década de 60, durante um congresso de psicanálise
realizado em Santiago do Chile, as palavras foram do mineiro Hélio Pellegrino,
psiquiatra e psicanalista que defendia, então, uma tese bastante original. Para ele, a
personagem Édipo, filho legítimo de Laio e Jocasta, criado por Pólibo e Mérope, o
sofria do complexo a que ele mesmo deu nome. Ou seja: o tirano de Tebas não
padeceu da representação inconsciente pela qual o desejo sexual ou amoroso da
criança pelo genitor do sexo oposto é manifesto, enquanto também se expressa a
hostilidade para com o genitor do mesmo sexo.
90
Pellegrino (1987) é, naqueles mesmos anos 1960, um intelectual brasileiro que,
de acordo com as palavras do Dicionário de Psicanálise de Elisabeth Roudinesco e
Michel Plon (1998), pertence à quarta geração do freudismo mundial(ROUDINESCO;
PLON, 1998, p.579). E é esta sua ambiência com os temas psicanalíticos que lhe
autoriza a apresentar um trabalho que, segundo suas próprias palavras, suscitou
interesse (PELEGRINO, 1987, p.309) no meio, uma vez que se tratava, então, de
questão “ainda não explicitada no terreno da literatura psicanalítica” (PELEGRINO,
1987, p.309).
Em estudo publicado pela primeira vez em 1987, através do volume Os Sentidos
da Paixão, coordenado por rgio Cardoso (1987), o psicanalista brasileiro volta ao
tema. E começa por explicar os próprios conceitos mais fundamentais de Freud,
segundo os quais o menino, entre três e cinco anos de idade, em sua fase fálica do
desenvolvimento da libido, apaixona-se por sua mãe e, por causa de tal sentimento,
quer livrar-se do pai, adversário que lhe impede a realização de seu desejo.
O que Pellegrino (1987) irá demonstrar em seguida é que este Édipo, menino de
três a cinco anos que foi criado por seus pais de Corinto, deveria, para enquadrar-se
nos termos freudianos, apaixonar-se loucamente por Mérope e estaria condenado a
eliminar Pólibo(PELLEGRINO, 1987, p.309). desta maneira a personagem mítica
consagrada por Sófocles estaria destruindo seu totem, através do parricídio, no sentido
de abolir a interdição do incesto. Vale lembrar, uma vez mais, que estas são as
prerrogativas mais básicas do Complexo de Édipo estabelecido pelo psicanalista judeu.
Mas a criança que foi educada como príncipe de Corinto, por pais que não
podiam ter filhos naturais e, desse modo, a adotaram em segredo, esta criança o que
faz é matar e casar-se com desconhecidos. Para o Édipo aqui visto pelos olhos
91
modernos de Hélio Pellegrino, a culpa do parricídio e do incesto não pode existir, uma
vez que tanto Laio como Jocasta são, para ele, simples ignotos. Nesse sentido, Hélio
Pellegrino (1987) pretende, como escolástico freudiano, distinguir dois níveis de
estratificação na situação edípica.
O primeiro, mais superficial, implica a triangulação freudiana - pai, mãe,
filho - e transcorre na fase fálica do desenvolvimento da libido. O segundo,
mais primitivo e originário, corresponde
à
fase oral e diz respeito
à
relação
da criança com a e, nos seus primeiros tempos de vida. (PELLEGRINO,
1987, p.310)
O que Pellegrino quer salientar é o sucesso da relação amorosa ainda no
aleitamento materno. Segundo o psicanalista, a criança, nesta etapa, irá promover,
inconscientemente, é claro, a cisão da figura materna em duas imagos: a da mãe boa,
protetora, ou a da mãe má, persecutória(PELLEGRINO, 1987, p.310). Isso porque, ao
nascer, o menino necessita prender-se a ela. E tal fusão, para Pellegrino, podeser
mais ou menos convulsiva, dependendo do fato de o recém-nascido se sentir seguro ou
não do amor que lhe é confiado. Aqui, a comparação feita é com um náufrago que, no
oceano agitado, segura-se à sua tábua na mesma intensidade do tamanho das ondas
que lhe castigam. Por isso, o intelectual mineiro defende que a criança, jogada no
mundo, procederá dessa mesma forma” (PELLEGRINO, 1987, p.310). Dependente, seu
desespero será proporcional à sua insegurança.
Assim, se o que Pellegrino chama de “relação primitiva com a mãe” acontecer a
partir de significantes lesivos, a triangulação arcaica deverá permanecer. A imagem da
mãe persecutória, ou do seio mau, será transferida para a figura paterna que, desta
maneira, irá se tornar o perseguidor que deverá ser morto pela criança acuada em sua
92
busca de um refúgio que, para o psicanalista, é último e, também, incestuoso. A partir
desta análise de características ainda decisivamente freudianas, mas, sob certos
aspectos, transgressora, heterodoxa, Hélio Pellegrino (1987) faz, em linhas gerais, sua
releitura do Complexo de Édipo. E é através da idéia da importância do ato amoroso no
relacionamento entre mãe e filho que o psicanalista concretiza a ligação decisiva com o
mito e, como não poderia deixar de ser, com a própria tragédia de Sófocles:
Essa é, literalmente, a história de Édipo. O herói tebano ficou chumbado
à
figura de Jocasta, mãe que o condenara
à
morte. Tendo assassinado Laio
e destruído a Esfinge, imagos da mãe má, casou-se incestuosamente com
Jocasta e dela renasceu, através de filhos que eram, ao mesmo tempo,
seus irmãos
(PELLEGRINO, 1987, p.311).
Hélio Pellegrino, nesse seu texto Édipo e a paixão, ainda explica de maneira
bastante didática e precisa os meandros psicanalíticos de tal análise, não se atendo
apenas ao menino, mas esclarecendo como suas idéias podem ser aplicadas no que se
refere à menina. No entanto, de tal leitura, o que mais interessa a este trabalho é a
evocação que o psicanalista faz da importância do ato amoroso nos primeiros
momentos de vida da criança, colocando este processo como decisivo, mesmo para um
dos aspectos mais essenciais na tragédia grega enquanto gênero literário: o destino
inexorável.
É tal tratamento que parece conferir à figura feminina, à Jocasta que manda
assassinar seu próprio filho, importância inaudita e, por isso mesmo, heterodoxa. Ou
seja: enxergar a relação entre mãe e filho como aspecto original, a partir do qual os
fatos se desencadeiam é, por si , extraordinário para um conjunto de análises que
costumam destacar com quase total privilégio o anĕr vigoroso que acerta adivinhas e
93
destrói esfinges e pais desconhecidos ou, até mesmo, o brotos que, velho, cego e
cansado irá desaparecer misteriosamente em direção às profundezas da terra.
Portanto, na leitura de Hélio Pellegrino, é a relevância dada a Jocasta que mais
chama a atenção desta dissertação. É este fato que procurará ser aqui destacado, tanto
na abordagem prática deste trabalho através do drama Jocasta Tirana como na
conceitual. Contudo, também cumpre chamar a atenção para o caráter quase que
exclusivamente moderno da análise de Pellegrino. Um dos pontos que talvez mostrem
tal proposta hermenêutica com maior intensidade talvez seja haver o psicanalista
desconsiderado o que ensina Hegel (1964) em texto de sua Estética. Como foi dito
neste mesmo estudo, a culpa entre os gregos antigos não possui conotações
modernas. Nesse sentido, não se pode, com os olhos trágicos da antigüidade grega,
querer que o Édipo de Sófocles não herde os crimes de seus antepassados. Como
lembra o idealista alemão, o caráter heróico recusa-se a dividir as culpas, não quer
saber de uma oposição possível entre a intenção subjetiva e o ato objetivo(HEGEL,
1964, p.68).
Assim, a leitura do psicanalista brasileiro que, como se disse, oferece à figura
feminina um destaque incomum, parte, em contrapartida, de um Édipo que talvez o
possa ser o herói grego que mata o pai, casa-se com a mãe e, depois de ter descoberto
sua própria verdade sua e de seus ascendentes cega-se e se põe a errar pelo
mundo helênico. lio Pellegrino conta com um Édipo que foi amamentado pelo seio,
ainda que bom, estéril de Mérope, e que não herdou as predições dos oráculos e as
Hýbris de sua gente e de seus próprios deuses. Certamente, como Sigmund Freud,
Pellegrino registra um Édipo que traz consigo as características de uma modernidade
distante do modo de pensar da Hélade. Uma modernidade com complicações e
94
ramificações infinitas em que, como lembra Hegel, cada qual procura inculpar também
os outros, subtrair-se quanto possível às responsabilidades de uma falta cometida
(HEGEL1964, p.68).
5.2. ÉDIPO, JOCASTA E CULPA
Em seu texto sobre Édipo, Marilena Chauí (1984) busca os contornos da
sexualidade na abordagem do mito. Para isto, no livro Repressão Sexual, a filósofa faz
um apanhado que vai da própria paráfrase da lenda tebana, sem deixar de mencionar a
importância da tragédia de Sófocles, a uma análise bastante didática das leituras de
Freud e Lévi-Strauss, passando pelo enfoque de Hélio Pellegrino e chegando a uma
breve interpretação particular, capaz de levar em consideração aquilo que poderíamos
chamar tradição judaico-cristã.
Nesse seu estudo, é com bastante propriedade que Marilena Cha (1984)
lembra o helenista Jean Pierre Vernant, ao mencionar a importância excepcional da
tragédia no mundo ático. Para Vernant, trata-se de um gênero literário que se torna
também uma instituição social e uma experiência política na sociedade ateniense entre
o final do século VI e o início do século IV a.C. Além disso, Chauí procura não
desconhecer a necessidade de antagonismo e diferença entre o mundo divino e a
ordem humana como atributos essenciais para o sucesso trágico, reiterando a
inseparabilidade desses dois lugares. Ao fazer isto, a autora recorda a contradição
inerente à vontade livre e responsável de um ser humano capaz de se reconhecer em
95
tais atributos e o dever que lhe é imposto de cumprir um destino inexorável. É então
que a filósofa chama a atenção para o sentimento trágico da culpa, sem o qual o Édipo
Rei não pode ser compreendido.
Essa contradição aparece, sobretudo, no sentimento trágico da culpa, pois é
tratada simultaneamente como uma falta religiosa e como um delito ou infração
da lei humana, devendo ser julgada por dois tribunais (um divino-religioso e um
humano-político), a tarefa do autor trágico sendo justamente a de fazer com
que os dois tribunais venham a coincidir. No caso de Édipo Rei, essa dupla
dimensão do julgamento aparece através de dois procedimentos: um religioso
(a purificação da cidade e da casa régia) e um político (o ostracismo ou
banimento do rei criminoso) (CHAUÍ, 1984, p.59).
Tal antinomia é estendida ao próprio nome da tragédia de Sófocles. Depois de
lembrar aquilo que nesta dissertação foi dito, que o tirano é aquele que conquista o
poder, em vez de herdá-lo, e que o conquista graças às suas altas e extremas virtudes
como guerreiro, protetor e sábio(CHAUÍ, 1984, p.61), Chauí chama a atenção para o
paradoxo existente na reunião dos significantes gregos Oidipous e Tyrannós. Segundo
ela, a personagem de Sófocles é a própria contradição viva. Ou seja, um sujeito que,
possuindo deformações físicas, que lhe são impostas pelos pés inchados, e morais,
advindas de sua conduta incestuosa e parricida, também não deixa de ser aquele que
possui qualidades políticas e militares.
O que parece que Marilena Chauí nos quer dizer é que este Édipo um sujeito
que sofre suas culpas em função de incongruências inerentes a seu próprio viver num
mundo marcado pelo trágico mais absoluto é a síntese do humano. Ao mesmo tempo
pharmakós e tyrannós, impuro e sábio, abaixo e acima dos demais, é por isto que, para
a filósofa, o nome da tragédia sofocliana prepara o banimento de seu protagonista,
seja por ser sábio e invejado, seja por ser vicioso e rejeitado.
96
Concentrando em sua pessoa os dois pólos extremos da possibilidade para um
humano degradação máxima e elevação máxima Édipo é um ser
internamente contraditório ou dividido. Contrário à Natureza parricida e
monstruoso – e contrário à cidade – tirano. É um monstro (CHAUÍ, 1984, p.59).
E é sobre tal monstro que se quer buscar um foco mais apropriado. Sim, pois
este ser que parece navegar no limbo da verdade e da inverdade, de um não-saber que
sabe e de uma cegueira que é o Édipo que se quer aqui, nesta dissertação, tentar
entender um pouco mais. Um sujeito que também é caracterizado por uma autoctonia
que, para Lévi-Strauss, lhe priva até de saber-se a si mesmo, não conhecendo sua
origem e entendendo de seu destino o fato de que este é implacável. Um ser que
Marilena Chauí chama monstro e que não vem nunca desacompanhado.
Como os deuses que nascem de suas mães, este homem também nasce da sua.
E a pergunta que agora se faz é se tal mulher, como seu filho e seu esposo, também
sabe de si o mesmo que seu esposo e filho não sabe dele próprio. A lógica mais exata
parece dizer-nos que deuses são gerados por deuses, homens por homens e monstros
por monstros. Se, portanto, o Édipo que na mesma medida é o sábio decifrador de
enigmas e o ignorante de sua história, se este Édipo é aquele que salva sua cidade
para assim condená-la, este sujeito foi também gerado por ser que lhe é igual. Tem-se,
então, uma cadeia significativa de correspondências entre as tragédias e as culpas
estabelecidas no mito e no texto de Sófocles. Ao parricídio, pode-se justapor o filicídio;
ao incesto, o próprio incesto; ao conhecimento, a ignorância.
Nesse sentido, uma e outra parte, homem e mulher, Édipo e Jocasta parecem se
igualar na tragédia. Mas apenas parecem, uma vez que o protagonismo, tanto na
tragédia de Sófocles como na maior parte dos estudos citados nesta dissertação, é
colocado sobre a figura masculina. A própria Marilena Chauí (1984) colabora com a
97
ortodoxia deste tipo de leitura ao concentrar todas as forças do trágico sobre um único
personagem, participando também de um tipo de abordagem do mito que é comum seja
para helenistas consagrados seja para outros tipos de estudiosos.
Essa tragédia é considerada exemplar porque nela as contradições entre
passado e presente, família e Cidade, culpa e castigo, responsabilidade e
pena, destino e liberdade, direito e força, justiça e violência não se distribuem,
como nas outras tragédias, entre as várias personagens, mas se concentram
todas em Édipo que diz sempre o contrário do que pensa estar dizendo e faz o
contrário do que imagina estar fazendo, supondo que controla as regras do
jogo do poder quando, na verdade, é um joguete delas (CHAUÍ, 1984, p.60).
Ao dizer que todas as contradições estão focadas sobre Édipo, Chauí, mais uma
vez, reitera um certo tipo de linguagem a partir do qual a hermenêutica mais ortodoxa
está acostumada a ler o mundo: a ótica do masculino. Para este tipo de leitura, a idéia
de equivalência entre parricídio e filicídio, incesto da mãe e incesto do filho, culpas
semelhantes entre homens e mulheres não pode ser considerada.
No entanto, a filósofa paulista, junto com Hélio Pellegrino, também nos lembra
que a paz deste homem capaz de concentrar culpas e protagonismos é também
precária. Logo, para compor o mosaico trágico, a peste será enviada pelas Fúrias,
entidades femininas que, segundo a tradição, são protetoras das mulheres. Assim, a
questão que aqui se lança, e que será objeto de análise no próximo capítulo desta
dissertação, busca certa provocação, qual seja a de invocar tais Fúrias para tentar pelo
menos imaginar que a Jocasta que manda matar o filho para, depois, com semelhante
culpa, dividir com ele o leito nupcial, dando-lhe o poder que lhe era de direito desde o
nascimento, e gerando outros filhos trágicos, esta Jocasta, ao contrário de seu rebento
e esposo, sabe. De que maneira ela, julgando não saber, sabe aquilo que Édipo,
julgando saber, não sabe é, talvez, a pergunta essencial deste estudo.
98
Por caminhos insinuantes, a própria Marilena Chauí, ao propor uma breve
interpretação para o mito que acompanha o método estruturalista de Lévi-Strauss,
parece nos conduzir para a igualdade ou, pelo menos, o alinhamento entre homens e
mulheres. Na leitura de Chauí, a Gênese bíblica é colocada em pauta. É a partir deste
livro que a filósofa paulista recorda que, ao contrário de todas as outras coisas, homem
e mulher não foram criados pela palavra. O primeiro surge do barro, a outra de uma
costela deste barro. Assim, o que se quer mostrar é que a origem autóctone de um é
acompanhada do surgimento a partir da mutilação, da própria deformação do outro.
A deformidade aparece, então, visto haver um elemento de autoctonia: a
perda de uma costela. E também aparece um monstro ctônico: a serpente
que rasteja.
A diferença sexual também
é
enfrentada: olhando os animais,
Deus decide dar ao homem uma companheira, porém como até esse momento
estamos no reino da Natureza, lemos: "Esta sim é osso de meus ossos e carne
da minha carne!", portanto o mesmo vem do mesmo. "Ela será chamada
mulher (em hebraico, mulher
=
ishsha) porque foi tirada do homem (em
hebraico, homem
=
ish)",
a diferença sexual sendo obtida por urna extração
do corpo feminino do interior do corpo masculino, sem procriação (CHAUÍ,
1984, p.75-76).
Então, o que temos é o homem que vem do homem, o que vem do pó, o
monstro que vem do monstro, o mesmo que vem do mesmo. E este homem que vem
de si próprio carrega, esta é a tese que se defende aqui, culpas trágicas e análogas.
Faltas que talvez sejam distintas naquilo que feminino e masculino deverão procurar
para preenchê-las, mas trepidantemente semelhantes quando se pode ver que o
parricídio de Édipo e o filicídio de Jocasta, que o incesto de um e de outro podem
possuir congruente extensão.
A seguir, dando continuidade àquilo que até o momento se propõe, tentar-se-á
perceber, a partir de leitura feita com o olhar pós-estruturalista de Michel Foucault, qual
99
o papel do poder e do saber no preenchimento das faltas que permeiam Édipo e
Jocasta na escritura exemplar de Sófocles.
5.3. SABER E PODER
Para Michel Foucault, a tragédia de Édipo é um dos primeiros testemunhos que
se tem das práticas judiciárias gregas. E foi a partir desta ótica que o filósofo francês
reconstruiu o personagem de Sófocles durante sua segunda conferência, de uma série
de cinco, em maio de 1973, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Em
seu discurso, a pretensão de Foucault (2002) é nos apresentar a tragédia de Édipo
como a história de uma pesquisa da verdade(FOUCAULT, 2002, p.31), numa trama
que é análoga às práticas judiciárias gregas do mesmo período em que a tragédia teve
seu nascimento, apogeu e ocaso, isto é, no século V a.C.
No entanto, antes de fazer sua análise, Foucault realiza uma breve introdução às
idéias de Gilles Deleuze e Felix Guattari (1966), cujo entendimento é essencial para a
compreensão de sua proposta. O pensador francês se refere ao livro O Anti-Édipo, no
qual Deleuze e Guattari querem mostrar que o triângulo edipiano composto, como se
sabe, por pai, mãe e filho é, para os psicanalistas, um modo de conter o desejo, por
meio de manipulações no interior da cura, garantindo que este mesmo desejo
permaneça na esfera familiar. Nesse sentido, ao se conservar no âmbito do triângulo
edipiano, o desejo não contaminaria, por assim dizer, a sociedade, limitando-se a uma
100
configuração de drama burguês. Nesse sentido, vale a pena atentar para o que diz o
Dicionário de Psicanálise (ROUDINESCO; PLON, 1998):
Os dois autores criticavam o edipianismo freudiano que, em sua opinião,
encerrava a libido plural da loucura em um quadro excessivamente estreito, de
tipo familiar. Para sair desse impasse ‘estrutural’, eles se propunham a traduzir
a polivalência do desejo humano em uma conceitualidade adequada. Daí a
idéia de opor à psicanálise freudiana e lacaniana, articulada em torno da
prioridade do Édipo e do significante, uma psiquiatria materialista fundada na
‘esquizo-análise’, isto é, na possível liberação dos fluxos desejantes. (...) O
anti-Édipo tomava assim como alvo maior o conformismo psicanalítico de todas
as tendências, anunciando com vigor o esgotamento trágico do lacanismo nos
últimos tempos (ROUDINESCO; PLON, 1998, p.320-321).
O que Deleuze e Guattari tentam mostrar é que o triângulo representado por pai,
mãe e filho não explica uma verdade atemporal, nem uma verdade trepidantemente
histórica daquilo que é tomado como desejo pela psicanálise. Édipo, portanto, não seria
a substância secreta do inconsciente humano, mas, como diz o próprio Foucault (2002),
a forma de coação que a psicanálise tenta impor na cura a nosso desejo e a nosso
inconsciente (FOUCAULT, 2002, p.30). Para o pós-estruturalista francês e,
certamente junto com ele, para Gilles Deleuze e Félix Guattari – a palavra que irá definir
as relações inerentes à história daquele que matou seu pai e, ao ser coroado rei de
Tebas, desposou sua mãe, é bastante significativa e algo distante dos meandros mais
tipicamente psicanalíticos: poder.
Édipo o seria pois uma verdade da natureza, mas um instrumento de
limitação e coação que os psicanalistas, a partir de Freud, utilizam para conter
o desejo e fazê-lo entrar em uma estrutura familiar definida por nossa
sociedade em determinado momento. (...) Édipo é um instrumento de poder, é
uma certa maneira do poder médico e psicanalítico se exercer sobre o desejo e
o inconsciente (FOUCAULT, 2002, p.29-30).
101
Se é por tal motivo que Foucault rejeita a análise freudiana, vale reiterar que a
leitura do próprio filósofo também não deixa de lado a definição de poder. No entanto,
este poder vem sempre acompanhado do saber. É o que Foucault (2002) conclui, após
realizar aquilo que no início da conferência ele próprio nega fazer: uma análise de
estruturas. Se no início do texto produzido a partir das palestras ministradas na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro ele rechaça o epíteto de
estruturalista que lhe é dado a ele próprio e a outros intelectuais como Deleuze,
Guattari e Jean-François Lyotard para afirmar que o que fazem, ele e estes outros
nomes, poderia ser chamado pesquisa de dinastia(FOUCAULT, 2002, p.30), o que
vem a seguir vai mostrar que a leitura de Foucault do Édipo Rei de Sófocles realmente
se baseia, sem qualquer demérito para ela, numa análise da ordem dos elementos
essenciais que compõem o corpo da tragédia em questão. Ou seja, da estrutura.
E o exame foucaultiano possui como característica principal, como foi dito, o
distanciamento das veredas psicanalistas de Sigmund Freud e de seus escolásticos.
Portanto, trata-se aqui, pode-se mesmo afirmar, de uma leitura heterodoxa de Édipo.
Um exame que começa por defender a idéia de que a tragédia de Sófocles está
organizada a partir daquilo que o próprio filósofo chama “lei das metades”. Segundo
Foucault, trata-se, no caso do Édipo Rei, de um mecanismo que tem por efeito exibir as
verdades pretensamente oferecidas em metades que se completam. Ou seja: em algum
momento do texto, uma determinada questão é estabelecida sem que seja totalmente
elucidada; em ocasião posterior, tal ponto volta à cena para ser, então, esclarecido. É
exatamente em função desta organização fornecida previamente para a análise da
tragédia que defendo haver um conceito, ou mesmo um método de investigação, que
não deixa de ser estrutural.
102
Nesse sentindo, segundo Michel Foucault (2002), tais metades se fragmentam e
acabam, no final das contas, por se ajustar, produzindo certos deslocamentos a partir
dos pontos que se adaptam. Em sua análise, o pensador francês enxerga três níveis
em que tais encaixes de verdades que se completam podem ser percebidos: o dos
deuses, o da realeza e, poder-se-ia dizer, o do povo.
O primeiro jogo de metades que se ajustam é o do rei ApoIo e do divino
adivinho Tirésias - o nível da profecia ou dos deuses. Em seguida, a segunda
série de metades que se ajustam é formada por Édipo e Jocasta. Seus dois
testemunhos se encontram no meio da peça. É o vel dos reis, dos
soberanos. Finalmente, a última dupla de testemunhos que intervém, a última
metade que vem completar a história não é constituída nem pelos deuses nem
pelos reis, mas pelos servidores e escravos. O mais humilde escravo de
Políbio e principalmente o mais escondido dos pastores da floresta do Citerão
vão enunciar a verdade última e trazer o último testemunho (FOUCAULT,
2002, p.38-39).
De acordo com Michel Foucault, as metades divinas o enunciadas pelas falas
de Apolo e Tirésias. O filho de Zeus e Leto, detentor do Oráculo de Delfos este Apolo
que, segundo o helenista Junito Brandão (2000), é entidade derivada de um vasto
sincretismo e de uma bem apurada depuração mítica(BRANDÃO, 2000, p.88)
até ser
reconhecida como deus da luz e como o próprio sol –, responde de maneira incompleta
à indagação sobre o motivo da peste estar assolando Tebas. No diálogo entre Creonte
e o próprio Édipo, Sófocles (2002) nos mostra as diretrizes de Apolo:
CREONTE
Revelarei então o que ouvi do deus.
Ordena-nos Apolo com total clareza
que libertemos Tebas de uma execração
oculta agora em seu benevolente seio,
antes que seja tarde para erradicá-Ia.
ÉDIPO
Como purificá-Ia? De que mal se trata?
103
CREONTE
Teremos de banir daqui um ser impuro
ou expiar morte com morte, pois há sangue
causando enormes males à nossa cidade.
ÉDIPO
Que morte exige expiação? Quem pereceu?
CREONTE
Laio, senhor, outrora rei deste país,
antes de seres aclamado soberano. (SÓFOCLES, 2002, p.23)
A outra parte desta metade vem de Tirésias agora cego e homem, dono de
poderes divinatórios; antes, mulher, por ter separado a cópula das serpentes. Chamado
para dar conta daquilo que o próprio deus da luz o determinou clarear, sua resposta
é clara e não comporta qualquer tipo de engodo. O máximo que Tirésias esta mesma
personagem que irá surgir novamente na obra de Armando Nascimento Rosa (2003), a
ser analisada no próximo capítulo desta dissertação –, faz é pedir ao rei de Tebas que
não o envolva em mistérios que não deveriam ser esclarecidos:
ÉDIPO
Que dizes? Sabes a verdade e não falas?
Queres trair-nos e extinguir nossa cidade?
TIRÉSIAS
Não quero males para mim nem para ti.
Por que insistes na pergunta? É tudo inútil.
De mim, por mais que faças nada saberás. (SÓFOCLES, 2002, p.33)
Depois de escutar de Édipo que, por o querer contar a verdade, ele próprio,
aquele que gozou como homem e como mulher, poderá ser incriminado pela morte
de Laio, Tirésias, o cego que consegue enxergar, elucida toda a trama, ao evocar a
própria determinação de Édipo de banir o culpado, e sem buscar quaisquer tipos de
subterfúgios:
104
TIRÉSIAS
Teu pensamento é este? Então escuta: mando
que obedecendo à ordem por ti mesmo dada
não mais dirijas a palavra a esta gente
nem a mim mesmo, pois és um maldito aqui. (SÓFOCLES, 2002, p.34)
Mas Édipo, ainda não satisfeito, deve ouvir a sentença final de Tirésias: “Pois
ouve bem: és o assassino que procuras!Assim, ao completar-se o primeiro jogo de
metades proposto por Michel Foucault, temos resolvida, no início da obra de
Sófocles, a pergunta que quer saber quem matou Laio. E resolvida através de uma
verdade prescritiva, profética, própria de uma Grécia, para Foucault, ainda mais antiga
do que aquela do século V a.C. No entanto, para o tragediógrafo de Colono, o
verdadeiro jogo, a maior das peripécias, ainda está por vir, oferecendo luz ainda mais
fulgurante a sua dramaturgia. Também para Foucault faltam os outros dois pares de
metades a partir dos quais estará claro o jogo de poder e saber que o pensador francês
quer ver no Édipo Rei.
Um deles está no diálogo entre Jocasta e Édipo em que aquela começa a tentar
convencer o esposo de sua inocência. Mais uma vez, o que vamos encontrar é uma
questão do gênero, traduzida de maneira espetacular na peripécia sofocliana. Jocasta o
que faz é contar a Édipo como se deu a morte de Laio. Assim, ele logo reconhece que
Tirésias pode estar certo, uma vez que os detalhes dados pela sempre rainha sobre a
morte de seu ex-marido coincidem com os sucessos que lhe avivam a memória no que
se refere ao episódio em que ele, vindo de Corinto, depara com uma comitiva numa
encruzilhada e, para não ceder passagem a ela e sentindo-se ofendido, alterca-se com
seus opositores e mata Laio.
105
Édipo, depois de saber que foi um escravo que contou a Jocasta a respeito da
morte de um sujeito que ele ainda não sabe que é seu próprio pai, manda chamar o
servo. É então que se estabelece o terceiro e último jogo de metades que se
completam, como quer a análise proposta por Michel Foucault. O escravo virá. E não
apenas o escravo chamado por Jocasta. Antes dele, virá um outro, de Corinto, para lhe
trazer a notícia de que aquele a quem Édipo toma como genitor, Pólibo, está morto.
São estes dois escravos, servos, mensageiros, criados, ceramistas, pastores, homens
do povo, aqueles que oferecem, na obra ímpar de Sófocles, a verdade final e a
peripécia mais trepidante.
Na leitura de Foucault, o ciclo de metades que se ajustam umas às outras está
fechado. Presumido a partir de verdades que passam dos deuses aos escravos e vão
sendo descobertas a partir de um jogo que, para o filósofo, vai cobrar sentido numa
técnica retórica, religiosa e política da antigüidade grega. Trata-se da técnica do
σύµβολον”: o símbolo grego. Tal prática, segundo Foucault (2002), é um instrumento
de exercício de poder que permite a alguém que detém um segredo ou um poder
quebrar em duas partes um objeto qualquer, de cerâmica etc., guardar uma das partes
e confiar a outra parte a alguém que pode levar a mensagem ou atestar sua
autenticidade (FOUCAULT, 2002, p.38). Nesse sentido, será pelo ajustamento das
duas metades que o poder continuará a existir. Para o filósofo francês, a tragédia de
Sófocles acompanha tal ritmo. Produzida a partir desta metodologia, ela cumpre o papel
de autenticar a detenção do poder e as ordens por ele transmitidas. Trata-se, então, de
uma prática jurídica, política e religiosa denominada σύµβολονpelos gregos. Ou seja:
o símbolo.
106
Mas a heterodoxia analítica de Foucault não pára por aí. O filósofo acredita que
este Édipo que nada sabe de seu destino, que cega-se a si mesmo no final de seu
drama, que, para Freud, é o homem do inconsciente, este Édipo não passa, poder-se-ia
dizer, de um engodo. Ao contrário, para Michel Foucault, o tirano de Tebas é aquele
que sabia demais e que, por isso, deveria ser expulso definitivamente do momento
histórico traduzido pelo séc. V a.C., ocasião em que a peça é escrita. Uma época, como
se disse nesta dissertação, pontuada por governantes como ricles, um dos
responsáveis pelo apogeu da chamada democracia ateniense.
Nesse sentido, na leitura feita por Foucault, o que está em jogo desde o início da
peça, quando Édipo afirma que seu interesse em exterminar a peste está diretamente
ligado à manutenção de sua soberania, é a questão do poder. Por tal viés, é
interessado em manter-se como rei que ele buscará solucionar o problema. É por isso
também que ele discute com Creonte e Tirésias ao se ver ameaçado. E é ainda por
esta lógica que ele não se assusta com a idéia de ter matado seu pai ou o antigo rei de
Tebas e ex-marido de sua atual mulher. O que Édipo teme, segundo Foucault, é perder
o próprio poder.
E tal condição advém do fato de ele ser um tirano, no sentido explicado
anteriormente nesta dissertação. E o tirano, não é demais recordar, é aquele cujo poder
lhe é atribuído a partir de seu saber destruidor de esfinges e salvador de cidades e de
sua força de anĕr. Um poder que tem suas características relatadas no pensamento, na
história e na filosofia grega da época. Segundo o pensador francês, estas
características podem ser encontradas de maneira exemplar na obra do estratego de
Atenas que se tornou um dos maiores dramaturgos de todos os tempos, obtendo, nas
festas de Dionísio, 24 prêmios nos concursos trágicos.
107
Um certo número de características deste poder aparece na tragédia de Édipo.
Édipo tem o poder. Mas o obteve através de uma série de histórias, de
aventuras, que fizeram dele inicialmente o homem mais miserável - criança
expulsa, perdida, viajante errante - e, em seguida, o homem mais poderoso.
Ele conheceu um destino desigual. Conheceu a miséria e a glória. Esteve no
ponto mais alto, quando se acreditava que fosse filho de Políbio e esteve no
ponto mais baixo, quando se tornou um personagem errante de cidade em
cidade. Mais tarde, de novo, ele atingiu o cume. ‘Os anos que cresceram
comigo, diz ele, ora me rebaixaram, ora me exaltaram’. (FOUCAULT, 2002,
p.44)
Tal alternância do destino é traço marcante de dois tipos de personagens da
cultura helênica: o herói e o tirano. Se o lado que se poderia chamar bom da tirania está
presente em Édipo, o negativo também está. Isto acontece quando temos um soberano
que pensa que a cidade é sua, ou que a tem sob a mais estrita dependência. Segundo
Foucault, “Édipo é aquele que não importância às leis e que as substitui por suas
vontades e ordens” (FOUCAULT, 2002, p.45). Em alguns momentos da obra de
Sófocles, como na discussão com Creonte, ele diz claramente que sua vontade é a lei
da cidade.
Se o poder de Édipo é bastante semelhante ao dos tiranos gregos que
governaram durante o século V a.C., o saber é solitário, baseado na experiência de
quem resolve por suas mesmas medidas as adversidades que encontra. É por isso que
o pensador francês afirma que ele cai em uma armadilha, na medida em que prolonga o
testemunho até dar-se conta de uma verdade que se achava escondida.
O saber de Édipo é esta espécie de saber de experiência. É ao mesmo tempo
este saber solitário, de conhecimento, do homem que, sozinho, sem se apoiar
no que se diz, sem ouvir ninguém, quer ver com seus próprios olhos. Saber
autocrático do tirano que, por si só, pode e é capaz de governar a cidade. A
metáfora do que governa, do que pilota, é frequentemente utilizada por Édipo
para designar o que ele faz. Édipo é o piloto, aquele que na proa do navio abre
os olhos para ver. E é precisamente, porque abre os olhos sobre o que está
acontecendo que encontra o acidente, o inesperado, o destino, a τύχη
.
Porque
foi este homem do olhar autocrático, aberto sobre as coisas, Édipo caiu na
armadilha. (FOUCAULT, 2002, p.47)
108
Fazendo a transição de um saber profético para um testemunhal, unindo “a
profecia de deus e a memória dos homens” (FOUCAULT, 2002, p.48), a obra de
Sófocles, na leitura de Michel Foucault, quer desvalorizar uma forma de saber político
que é, na mesma medida, privilegiado e exclusivo. Mas não se trata, para o pensador
francês, apenas disso. Ao construir uma ponte que chega aa República de Platão
(2004), Foucault também leva em conta em sua hermenêutica heterodoxa o fato de que
este tirano, homem do poder e do saber nos séculos VI e VII a.C., é combatido, junto
com a figura do sofista, tanto pelo dramaturgo do século V a.C. como pelo filósofo que
produzirá suas idéias cerca de cem anos depois.
Na realidade, ao querer enxergar que o Édipo Rei de Sófocles procura
desqualificar as figuras do tirano e do sofista, este último enquanto profissional do
poder político e do saber, a análise de Michel Foucault irá combater um outro mito: o de
que, seguindo as razões do platonismo, existe uma antinomia decisiva entre saber e
poder. Ou seja: a crença de que ciência e saber não podem conviver com o poder
político.
Esse grande mito precisa ser liquidado. Foi esse mito que Nietzsche começou
a demolir ao mostrar, em numerosos textos citados, que por trás de todo
saber, de todo conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder.
O
poder político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber.
(FOUCAULT, 2002, p.51)
A seguir, ainda que brevemente e sem pretensões maiores que a de suscitar
outras abstrações, tentar-se-á resumir o que Friedrich Nietzsche (1992) nos propõe
acerca do tema tratado, sobretudo naquilo que é objeto de seu primeiro livro: O
nascimento da tragédia.
109
5.4. APOLO E DIONÍSIO
As cenas são parecidas. Da primeira, que certamente não é cronologicamente
anterior à segunda, foi falado aqui. Trata-se de Édipo quando, frente a frente com o
divino adivinho Tirésias este que agora é cego e homem, e que gozou como
mulher, apartando o sexo das serpentes e resolvendo até mesmo disputas entre os
deuses trata-se de um Édipo que pergunta ao bruxo: Sabes a verdade e não falas?
(SÓFOCLES, 2002, p.33). Sim, a pergunta é daquele que quer saber. Não porque não
saiba, como se pôde vislumbrar a partir da análise de Michel Foucault, mas porque
necessita de confirmações para uma verdade que precisa ser dita, redita, confirmada e,
indo e vindo, inaugurada, reinstaurada.
À indagação do ainda rei de Tebas, Tirésias pretende não responder. Pede que
lhe mande embora, chama insensatos a Édipo e a todos, o quer falar de males. Mas
a devassa prossegue e, depois de ser acusado – ele mesmo, o áuspice cego de ser o
assassino de Laio, por não querer dizer o que sabe, Sófocles nos oferece a primeira
peripécia e, já no início do drama, elucida toda a trama. A visita de Tirésias, ao contrário
de trazer a resposta esperada, conduz àquilo que não se pretendia buscar: o
imprevisto: “Pois ouve bem: és o assassino que procuras!” (SÓFOCLES, 2002, p.35)
A partir da resposta do adivinho, mais à frente, no drama de Sófocles, Édipo irá
se convencer de que não é possível mais viver tendo apenas a beleza e o clarão de
Apolo a pretensamente lhe iluminar os caminhos. Ele precisará de mais: tudo isso e
muito mais. O da forca que lhe ata os pés vai se desprender da árvore parteira e,
para ele, será então preciso experimentar a noite de Dionísio; reconhecendo as
110
pessoas pelo tato; comendo comidas sem ter que apreciá-las antes; levando para a
alma, em cheiros, aquilo que os seres e as coisas exalam. Êxtase e embriaguez?
Então, por não se conhecer, Édipo poderá sair em busca de si próprio, tendo como
companheiro apenas o vigor das sensações.
A outra cena acontece de maneira inesperada, com crueldade semelhante, numa
mitologia que é a mesma e que também é mais antiga. Ela nos é narrada por Friedrich
Nietzsche (1992), em seu O Nascimento da Tragédia. Nela, o velho Sileno, nascido das
gotas do sangue de Urano, quando este foi castrado por Cronos, é perseguido pelo
famélico rei Midas, da Frígia. Capturado, o pai dos Sátiros, companheiro de Dionísio
que possui como características mais determinantes a sabedoria, a feiúra e, como o
poderia deixar de ser, a embriaguez, tem, como o sabedor Tirésias diante da
insensatez e presumida ignorância de Édipo, uma pergunta a responder. Midas quer
saber qual, dentre todas as coisas, é a melhor e a mais preferível para o homem. Como
escreve o criador de Zaratustra, a resposta do daimon vem acompanhada de um sorriso
amarelo:
-Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me
obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo
é para ti inteiramente inatingível: o ter nascido, o
ser, nada
ser. Depois
disso, porém, o melhor para ti é logo morrer. (NIETZSCHE, 1992, p.36)
O que o rei Midas ouve é aquilo que Édipo, quase ao final do texto de Sófocles,
dirá a si mesmo: “Ah! Luz do sol. Queiram os deuses que esta seja a derradeira vez que
te contemplo! Hoje tornou-se claro para mim que eu não deveria nascer de quem nasci,
nem viver com quem vivo e, mais ainda, assassinei quem não devia!(SÓFOCLES,
2002, p.82) Com tal fala, o que esse Édipo de estirpe miserável e efêmera faz é
111
concordar com as palavras de Sileno. O filho e esposo de Jocasta, depois de destruir
totens e quebrar tabus, sabe, junto com o pai dos tiros, que não devia ter nascido e
só o que deseja é morrer. Não quer mais ver a luz do sol, essa luz de Apolo que acabou
por lhe conduzir à cegueira, tornando-o o pior dos cegos. E o pior dos cegos, ao
contrário do que diz o refrão popular, talvez não seja aquele que não quer ver, mas
aquele, como este Édipo humano, que quer ver.
A visão de Friedrich Nietzsche a respeito de Édipo não diz respeito à
personagem ou ao texto específico de Sófocles. Ela fala de uma maneira filosófica de
enxergar o mundo. Para esclarecer brevemente aquilo que interessa mais de perto a
esta dissertação, tentar-se-á demonstrar, de modo resumido, o que o filósofo alemão
pensa sobre a tragédia entre os gregos, assim como está em seu primeiro livro,
citado anteriormente.
As idéias contidas em O Nascimento da tragédia, obra publicada pela primeira
vez em 1872 e reeditada quatorze anos depois, começam a ser urdidas em 1870, a
partir de três textos escritos neste período em que Nietzsche, ainda aos 25 anos, é
professor da Universidade de Basiléia, quais sejam: “A visão dionisíaca do mundo”, “O
drama musical grego” e “Sócrates e a tragédia grega”. Tais conceitos irão, de certa
maneira, configurar uma ordem heterodoxa na análise não apenas da antigüidade
grega, mas também na influência do socratismo e do platonismo sobre a cultura
ocidental.
Nessa sua obra inaugural, o filósofo alemão, influenciado por Arthur
Schopenhauer, irá interpretar a cultura clássica grega a partir do encontro de forças que
se poderiam dizer opostas. De um lado, tem-se o apolíneo, impulso representado,
desnecessário dizer, pelo deus grego Apolo, e ligado à perfeição, à medida de ações e
112
formas, à palavra e ao pensamento humanos. De outro, encontramos o dionisíaco,
inerente a Dionísio, deus do vinho, da sica e da dança, inicialmente cultuado entre
os povos da Ásia Menor e vinculado à exarcebação dos sentidos, à embriaguez mística
e à primazia amoral dos instintos.
É das celebrações a Dionísio que nascea própria tragédia grega. De acordo
com Junito Brandão (2004b), as chamadas “Dionísias Rurais” são sua fonte. A partir do
século V a.C., tais festas passam a ser enriquecidas com concursos dramáticos. E é
deste encontro entre um espírito apolíneo, sedimentado no sólo helênico, com um
outro dionisíaco, oriundo de povos que poderiam ser chamados “bárbaros”, que
acontece a tragédia grega. Segundo Nietzsche, tal forma artística será o exemplo a
partir do qual a vitalidade da cultura e do homem grego poderá ser percebida em sua
maior evidência. O que se tem aqui, valeria mesmo dizer, é o nascimento de um
homem trágico, que leva dentro de si a lucidez e a beleza de Apolo em embate
permanente com a embriaguez e o êxtase característicos de Dionísio.
Este ser apolíneo, para Nietzsche, é também o do indivíduo, o do Estado, da
consciência de si próprio. No entanto, tal individualidade, traduzida através do
principium individuationis, não passa de uma aparência que tem como finalidade
mascarar a essência humana. É neste sentido que o sujeito necessita da beleza de
Apolo: para se libertar da dor através da aparência. Logo no início de O Nascimento da
Tragédia, e depois de citar o princípio da individuação de Schopenhauer, é assim que
Nietzsche (1992) se refere ao deus sol:
Sim, poder-se-ia dizer de Apolo que nele obtiveram [os gregos] a mais sublime
expressão a inabalável confiança nesse
principium
e o tranqüilo ficar
sentado de quem nele está preso, e poder-se-ia inclusive caracterizar ApoIo
113
com a esplêndida imagem divina do
principium individuationis,
a partir de
cujos gestos e olhares nos falam todo o prazer e toda a sabedoria da
‘aparência’, juntamente com a sua beleza. (NIETZSCHE, 1992, p.36)
Dionísio surge, então, para dar o contraste, como se fosse a tinta negra que,
espalhada com determinação sobre o barro vermelho da ânfora de Exéquias, fizesse
surgir as figuras que nela podem ser vistas. E é a partir de tal contraste que o homem
grego deixa de ser criador da obra de arte para se tornar a própria obra, voltando-se
também para sua essência e deixando de dissimular a verdade. Como afirma Roberto
Machado (1999) em seu livro sobre Nietzsche, a oposição entre os dois instintos, estas
duas forças artísticas da natureza, era total.
A experiência dionisíaca, em vez de individuação, assinala justamente
uma ruptura com o principium individuationis e uma total reconciliação
do homem com a natureza e os outros homens, uma harmonia universal
e um sentimento místico de unidade; em vez de autoconsciência
significa uma desintegração do eu, que é superficial, e uma emoção que
abole a subjetividade até o total esquecimento de si; em vez de medida
é a eclosão da
hybris,
da desmesura da natureza considerada como
verdade e
exultando na alegria, no sofrimento e no conhecimento’; em
vez de delimitação, calma, tranqüilidade, serenidade,
é
um
comportamento marcado por um êxtase, por um enfeitiçamento, por uma
extravancia de frenesi sexual que destrói a família, por uma
bestialidade natural constituída de volúpia e crueldade, de força grotesca
e brutal; em vez de sonho, vio onírica,
é
embriaguez, experiência
orgiástica. (MACHADO, 1999, p.21-22)
No entanto, a marca da excelência da cultura clássica grega está, para o filósofo
alemão, na maneira como acontece o convívio entre o apolíneo e o dionisíaco. De
acordo com Nietzsche, a evolução da arte irá depender necessariamente do
antagonismo dessas duas forças. Em seus Fragmentos Póstumos, conforme Jean
Lefranc (2005), no livro Compreender Nietzsche, o pensador alemão reflete sobre tal
debate de maneira bastante esclarecedora:
114
Esta oposição do dionisíaco e do apolíneo no interior da alma grega
é
um dos grandes enigmas cuja sedução senti na presença do ser grego.
No fundo esforcei-me por nada mais do que adivinhar porque o
apolinismo grego devia surgir de um substrato dionisíaco, porque o grego
dioniaco teve que tornar-se necessariamente apolíneo; isto é, romper
sua vontade do monstruoso, do múltiplo, do incerto e do horrível por uma
vontade da medida, da unidade, da ordenação segundo a regra e o
conceito. Seu fundamento
é
a demência, a desordem, o asiatismo; a
coragem do grego consiste num combate contra seu próprio asiatismo; a
beleza o lhe
é
dada mais que a lógica, mais que a moral natural ela
é
conquistada, desejada, tomada de assalto à força ela
é
uma vitória
grega. (LEFRANC, 2005, p.71)
Mas a grande heterodoxia da leitura nietzschiana talvez se no fato de que,
depois de ver na tragédia que consagrou Sófocles o ápice dessa cultura clássica grega,
o filósofo nos mostra que o declínio de tal cultura parte do surgimento de um homem
racional, um sujeito escrito a partir do principium individuationis. É tal homem, cuja
marca principal é a figura de Sócrates, que acaba por colocar um fim à afirmação
daquele outro homem trágico. E é também tal sujeito construído pelo platonismo que,
grosso modo, irá pautar a ortodoxia hermenêutica da cultura ocidental durante os
séculos que seguirão também com o cristianismo a seu reboque.
De acordo com a condenação que Friedrich Nietzsche (2005) faz do pensar
filosófico que começará a ser operado a partir de Sócrates e que terá seu ápice nas
idéias de Platão, o socratismo despreza o instinto e, com isto, a arte(NIETZSCHE,
2005, p.83). Neste sentido, ao situar os três grandes dramaturgos gregos, Nietzsche faz
distinções que merecem ser levadas em consideração. Para ele, enquanto em Ésquilo
a repugnância dilui-se no sublime assombro diante da sabedoria da ordenação do
mundo, em Sófocles tal assombro é maior ainda, uma vez que esta sabedoria é
completamente insondável.
115
...a disposição de Ésquilo tem continuamente a tarefa de justificar a
justiça divina, e por isso se detém sempre diante de novos problemas.
Para Sófocles, o ‘limite do homem”, pelo qual Apolo ordena procurar, é
reconhecível. No entanto, ele é mais estreito e restrito do que Apolo
considerava ser na época pré-dionisíaca. A falta de conhecimento de si
no homem é o problema de Sófocles, a falta de conhecimento sobre os
deuses no homem o problema de Ésquilo. (NIETZSCHE, 2005, p.29)
Se a criação nesses dois primeiros autores traduz, para Nietzsche, um momento
em que a arte grega ainda não havia se impregnado de palavras como conceito e
consciência, com Eurípides as perspectivas serão alteradas. Segundo o filósofo
alemão, é este último dramaturgo que passa a seguir uma estética consciente, fazendo
eco, desta maneira, aos princípios socráticos que buscavam nada mais, nada menos
que a clareza de Apolo. Nas comparações feitas por Nietzsche entre os três nomes da
tragédia grega, Eurípides irá aparecer ao lado desta clareza que poderia ser traduzida
na própria busca da razão em Sócrates.
Ele [Eurípides] procura intencionalmente o que de mais
compreensível; seus heróis são realmente como eles falam. Mas tamm
eles se expressam inteiramente, enquanto os personagens de Ésquilo e
de Sófocles o muito mais profundos e plenos do que suas palavras:
propriamente, eles só balbuciam sobre si. Eurípides cria as figuras
enquanto, ao mesmo tempo, as disseca: diante de sua anatomia não
existe nada mais oculto nelas. (NIETZSCHE, 2005, p.80)
Assim, o que Friedrich Nietzsche parece querer dizer é que a construção desta
parte oculta é possível através do princípio dionisíaco, capaz do êxtase criativo. É tal
embriaguez que irá resultar, acredito, em personagens como Édipo e Jocasta, que se
caracterizam, na tragédia de Sófocles, pelo fato de deixar a essência do mito exposta, a
fim de que novas e múltiplas leituras possam ser feitas, de modo a buscar a existência
humana, como enseja o filósofo alemão, não nos fenômenos, mas naquilo que existe
por trás deles.
116
E é exatamente em função desta parte oculta que Sófocles nos deixa em Édipo e
Jocasta que, hoje, torna-se possível buscar interpretações que possam vislumbrar no
cegar-se do rei de Tebas o haver alcançado o êxtase dionisíaco. É esta embriaguez da
imaginação que também poderá oferecer a Jocasta uma interpretação menos
secundária que a de seu filho e esposo. Tais leituras feitas, é o que parece, a partir
dessa cegueira, desse êxtase e dessa embriaguez são o objeto do próximo e último
capítulo desta dissertação. Pelo menos em uma delas a do drama Jocasta Tirana,
produzido intencionalmente a partir das idéias aqui levantadas sobre o mito e sobre a
própria questão do gênero –, tentar-se-á levar a conseqüências apócrifas tudo o que foi
pensado neste trabalho até o momento.
117
6. DUAS LEITURAS HETERODOXAS
Como se viu até aqui, a leitura de um mito nunca pode ser esgotada. Passando
por análises consagradas e pautadas por uma determinada ortodoxia hermenêutica,
como a de Freud e Lévi-Strauss, até chegar a outras mais heterodoxas, como são a de
Michel Foucault e até mesmo a do psicanalista Hélio Pellegrino, o que neste breve
estudo se tentou foi, com as limitações inerentes a este trabalho e a seu trabalhador,
procurar enxergar no mito de Édipo sobretudo a partir de sua interpretação mais
célebre, a de Sófocles, inaugural do gênero dramático os mais variados e discutidos
aspectos que o rodeiam.
Sem perder de vista tudo isso, a proposta desta investigação é fazer um
apanhado teórico daquilo que foi pensado sobre a tragédia e sobre o próprio mito,
sempre vinculando o Édipo Rei do dramaturgo de Colono a aspectos da mitologia grega
e da filosofia. Tal busca conceitual, realizada a princípio sem o rigor metodológico
exigido pelo trabalho dissertativo e mais imbuída do espírito dionisíaco, foi aquilo que
possibilitou a escritura de um drama teatral que tentasse ser capaz de ilustrar alguns
dos pensamentos aqui relatados. Agora, neste capítulo, procurar-se-á oferecer este
mesmo drama como exemplo de análise heterodoxa no que se refere ao mito e à leitura
que dele fez Sófocles.
O resultado de tal trabalho foi a tragédia (anti-tragédia?) Jocasta Tirana, que aqui
será um dos dramas teatrais contemporâneos a serem analisados. Tal texto, inscrito no
“5° Concurso Nacional de Dramaturgia – Prêmio Carlo s Carvalho”, promovido pela
Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, obteve o segundo lugar. O
118
lançamento do livro com o texto da peça aconteceu na capital gaúcha, no último 30 de
agosto. A montagem de um espetáculo com o texto está prevista para o próximo ano,
uma vez que os membros do elenco e da equipe técnica já foram escolhidos, ensaios já
vêm sendo realizados e os produtores trataram de inscrever o projeto nas principais
leis brasileiras de incentivo à cultura.
A criação de Jocasta Tirana foi possível a partir da análise de cada uma das
idéias autorais alinhavadas nesta dissertação. Nesse sentido, além de refletir um
estudo eminentemente teórico, este drama também o faz, talvez dionisiacamente, como
propõe Friedrich Nietzsche, a partir das mesmas palavras que são colocadas na boca
dos dois principais personagens da história: a própria Jocasta e Édipo.
A proposta, portanto, foi sempre a de produzir uma peça teatral em cujo interior
fossem abordadas o que as análises de alguns dos autores aqui citados têm nos
revelado. No entanto, a situação dramática deveria também privilegiar uma leitura
heterodoxa do mito e de seus personagens. Em resumo, o que desde o início se
buscava era inverter a significação de maneira que a leitura teórica desse origem a uma
obra dramática e que este mesmo drama possibilitasse uma interpretação dissertativa
do tema.
Destarte, neste capítulo, o que se tentará desenvolver é a breve análise das
frestas e arestas que permitiram, por projeção, a escritura de Jocasta Tirana. E também
como esta obra dramática contemporânea pode oferecer uma leitura heterodoxa não
apenas da obra de Sófocles, mas também de seus personagens e da hermenêutica
ortodoxa que os cerca.
Antes, contudo, o capítulo também apresentaa abordagem de outro drama
contemporâneo escrito em língua portuguesa sobre o mesmo mito de Édipo e Jocasta.
119
Trata-se da peça teatral Um Édipo, de Armando Nascimento Rosa (2003). Dramaturgo
premiado em Portugal, Nascimento Rosa também é professor de Teoria e Estética,
Dramaturgia e Escrita Teatral na Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto
Politécnico de Lisboa.
Um Édipo, que foi editorialmente publicado em 2003, teve sua estréia cênica em
Lisboa, no Teatro da Comuna, em 4 de julho do mesmo ano. Os personagens da peça
são, em sua maioria, os mesmos do drama de Sófocles, o que caracteriza de maneira
exemplar uma leitura que se faz do mito e do próprio gênero, a partir de idéias
decisivamente contemporâneas, como procurarei, ainda que brevemente, demonstrar
aqui.
Assim, a análise dessas duas peças escritas como projeção da obra de Sófocles
tenta oferecer uma leitura distinta do mito e do gênero. O tempo em que se passa
Jocasta Tirana é a noite imediatamente anterior ao dia em que moços e anciãos
seguem até o palácio real de Tebas a fim de rogar uma solução para a peste que
ameaça a cidade. o texto Um Édipo irá mostrar um momento posterior aos sucessos
que a tragédia exemplar do dramaturgo de Colono relata. Em Armando Nascimento
Rosa, teremos uma espécie de acerto de contas entre os personagens do mito. Nele,
os fantasmas de Jocasta, Crisipo, Laio e Pélops irão dialogar com um Édipo cego e
com Tirésias e sua filha Manto.
Em cada um dos textos dramáticos, pode-se perceber a influência das idéias
formadoras desse nosso mundo contemporâneo, a partir de uma tragédia e de um
ideário mitológico que o se esgotam. Nunca se exaurem e, por isso mesmo, a partir
do que, de acordo com Jean Lefranc, Nietzsche chama “arco-íris dos conceitos”
(LEFRANC, 2005, p.43)
, estão sempre a cumprir o fado de trazer novas e diferentes
120
interpretações para uma história imensa de possibilidades analíticas. Sim, esta história
de um Édipo e de uma Jocasta ao mesmo tempo humanos e quiméricos, que,
independentemente do tipo de leitura que se faça, também não deixa de ser a história
de todos e de cada um de nós.
6.1. ESPELHO DE FANTASMAS
No centro do palco, Tirésias pergunta a Jocasta o que ela está fazendo naquele
lugar. Em torno do pescoço daquela que foi rainha de dois reis, um longo lenço
esconde o vergão negro de enforcada. Jocasta foi ao encontro de Tirésias na
esperança de que ele lhe ensinasse a viver a morte, uma vez que ela ainda se julga
presa à vida. Mas o daimon o sabe. Seus poderes não são suficientes para guiar os
mortos no caminho do Hades. Jocasta insiste, pensa que está viva. Tirésias ironiza,
lembrando que nada é mais patético que o teatro de um morto que julga ainda viver.
O início de Um Édipo, de Armando Nascimento Rosa, é esclarecedor no que
se refere àquilo que o público irá encontrar no espetáculo. Dos sete personagens
envolvidos na trama, quatro deles são fantasmas que parecem buscar no espelho do
que viveram algum reflexo que possa ter ficado para trás. Jocasta, por exemplo, ao ir à
procura do velho adivinho num mundo que o lhe pertence mais, parece estar à
procura de migalhas de sua própria vida, querendo compreender aquilo que talvez não
necessite mais ser entendido. Pálida, ela chegou a Tirésias depois da intermediação de
Manto, filha e herdeira do bruxo.
121
E é exatamente aqui, na ação e na personagem de Manto, que acontece a
primeira transgressão de Armando Nascimento Rosa (2003). A filha de Tirésias não
herdou apenas os poderes divinatórios do pai. Ainda no princípio da peça, o próprio
Tirésias afirma que ela deverá substituí-lo. Uma mulher que substitui um homem. Mas,
sobretudo, uma mulher que, ousada, não quer para si o destino do pai. Manto possui
outros planos, tem suas próprias Hýbris a cometer. Ela quer ser atriz, representando
nos palcos os mitos engendrados pelo viver humano.
No entanto, a transgressão de Manto é logo apontada por seu pai. Mais do que
qualquer um, Tirésias, que foi mulher, sabe como são tortuosos e mais difíceis os
caminhos femininos pela Hélade. É por isso que ele, até ser convencido do contrário ao
final do espetáculo, não quer que sua filha tenha sonhos impossíveis. Antes, será
melhor que ela, usando os dons que lhe foram legados, decifre os possíveis sonhos das
gentes. Nesse sentido, a resposta que Tirésias dá para os anseios de sua filha é
esclarecedora:
TIRÉSIAS
Minha filha, pareces ter esquecido que os teatros de Atenas não contratam
mulheres. De nada te serve tentares a sorte. Algum mestre de cena dirá se te
vir inspirada: - A menina nasceu com talento... Para depois acrescentar,
torcendo o nariz como um pedante: - Mas é uma pena que seja desprovida de
membro viril. Assim não poderá subir aos palcos da Grécia! (ROSA, 2003,
p.33)
A transgressão de Manto estaria, portanto, permeada por uma motivação quase
heróica, sobretudo quando encarada do ponto de vista da antigüidade grega, num
tempo em que, é sabido, as mulheres não possuíam direitos semelhantes aos dos
homens. O que a vontade de Manto faz é, simbolicamente, igualar seu desejo ao do
homem. no final do espetáculo, depois de ouvir as aflições dos mortos e dele próprio
122
se tornar um deles, Tirésias muda de idéia. Não apenas muda como aconselha que ela
não mais ouvidos a “mortos vagabundos”. Depois de indicar até mesmo o lugar do
Egeu para onde Manto deve ir Lesbos, ilha onde as mulheres sobem ao palco
Tirésias diz suas últimas palavras à filha: “- antes voz aos vivos nos ritos de Dioniso.
No palco encontrarás a harmonia.” (ROSA, 2003, p.51)
Dessa maneira, pode-se mesmo dizer que o destino de Manto está selado. Ela
seguirá o conselho do pai e irá para Lesbos, buscando no ofício das máscaras uma
pretensa igualdade com os heróis. Poder-se-ia mesmo dizer que este momento de
desejo da transgressão possui a marca da contemporaneidade, gravada com
determinação por Armando Nascimento em sua projeção da obra de Sófocles.
Mas a Hýbris de Manto não é a única marca de um olhar contemporâneo sobre
ações e personagens antigos e mitológicos que pode ser encontrada na obra do autor
português. As falas do próprio espectro de Jocasta estão repletas de sinais da
contemporaneidade, que podem ser feitos a partir de um olhar autoral que conviveu
com as interpretações do mito que fizeram Sófocles, Freud, Lévi-Strauss, Nietzsche e
outros mais.
morta e escondendo o vergão terrível do pescoço, Jocasta parece querer
saber aquilo que sabe. É como se conversasse com sua própria imagem no espelho.
Talvez seja por isso que ela, que caminhou até Tirésias para que ele lhe ensinasse a
viver a morte, diz que, se morreu, escapou ao próprio tempo, convivendo com todas
as épocas como se fossem uma única. Temos, então, um diálogo intertextual com o
Édipo Rei de Sófocles, quando Jocasta cita o dramaturgo de Colono como o
responsável, através de sua escrita, pelo fato dos nomes de ambos virem a habitar a
“eternidade dos mitos”.
123
Mas tal eternidade, como se pôde ver até o momento nesta dissertação, tem
sempre o olhar do tempo a partir do qual essendo encarada. Na obra de Armando
Nascimento Rosa (2003), isto o acontece de maneira diferente. O primeiro quarto de
Um Édipo acontece num diálogo entre Tirésias e o espectro de Jocasta, permeado por
uma estratégia própria de carpintaria cênica em que o adivinho um texto que é seu
mas que não faz parte do diálogo propriamente dito, e sim de uma fala dita em outro
tempo e para um outro interlocutor. É desta maneira que o mito de Tirésias é contado.
No entanto, temos na história perspectivas autorais, que se distanciam das versões
mais conhecidas do mito. O próprio Nascimento Rosa, em posfácio que faz da edição
de sua obra, comenta ao mesmo tempo aquilo que poderíamos chamar de “sua própria
revisão do mito” e o desejo de Manto pelas artes cênicas:
Para além de aprendiz do mester de adivinha (função concordante com a
tradição mitológica que Séneca seguiu), tornei-a desejosa de exercer uma
profissão interdita no seu tempo: a de actriz, com ressonâncias explícitas a
uma certa misoginia nada anacrónica em contextos teatrais hodiernos.
Outra das liberdades com que me surpreendi na escrita, foi a reinvenção
da história de Tirésias no seu tnsito entre sexos. Afinal, a história das
serpentes estava mesmo mal contada, e os dicionários de mitologia
andavam a pedir-me um acrescento nos seus verbetes... (ROSA, 2003,
p.66)
Trata-se, como o próprio autor afirma, de incursão deliberada pelo terreno
mitológico, com privilégios determinantes para a liberdade de criação. Tal fato, diga-se
de passagem, não é prerrogativa exclusiva do tecido dramático contemporâneo. Como
sugere Nietzsche em seu O Nascimento da Tragédia, a profundidade e a plenitude
dada por Sófocles a suas personagens só poderia ser creditada ao que poderíamos nos
arriscar a chamar “capacidade criativa” ou, para manter o léxico nietzschiano,
“embriaguez e êxtase dionisíaco”. Não houvesse tal liberdade de criação, o Édipo Rei
124
de Sófocles talvez nos contasse uma história na qual o filho e esposo de Jocasta não
se cegaria, continuando, depois de saber que é, na verdade, um parricida incestuoso,
como rei dos tebanos, assim como narra a versão que Homero nos oferece do mito em
sua Odisséia.
Se a invenção criativa de Nascimento Rosa não é algo exclusivo de seu tempo,
outras questões de Um Édipo parecem ser. Uma delas é a comparação que o autor faz
da vida com o fazer teatral. Trilhando um caminho singular que poderia considerar-se
construído a partir de conceitos nietzschianos como os de essência e aparência, coisa-
em-si e fenômeno, vontade e representação, a Jocasta criada pelo dramaturgo
português, ao relatar a lenda de Tirésias, encaminha-nos à reflexão com frases como:
“Tirésias mentia à vida porque para ele a vida era essencialmente uma mentira. Como o
teatro” (ROSA, 2003, p.18 e 19).
A perspectiva que se tem da relação incestuosa é mais um traço de leitura
contemporânea do mito que pode ser encontrado na obra de Armando Nascimento
Rosa. Ao refletir frente a seu espelho, Jocasta não a importância que outros
estudiosos e escritores deram a este tabu. A frase Só o conhecimento nos salva, meu
amigo(ROSA, 2003, p.15) mostra uma personagem mais preocupada consigo própria
do que com a discussão de questões atemporais, como certamente é a do incesto.
Talvez seja por isso que, para a Jocasta de Nascimento Rosa, o incesto é uma questão
até mesmo vulgar. Em uma fala que pode ser semelhante àquilo que encontramos no
próprio Sófocles (2002), quando sua rainha de Tebas diz a Édipo que muitos mortais
em sonhos subiram ao leito materno(SÓFOCLES, 2002, p.67), Nascimento Rosa
(2003) vai direto ao assunto e nos interpõe, através do texto de sua enforcada, uma
conclusão com definições decisivamente contemporâneas para o referido tabu:
125
Tudo me parece agora tão simples. Os homens amam as mulheres porque
desejam mergulhar de novo no mar das delícias que os trouxe para o
mundo. Mesmo que as sintam suas filhas, elas são extensões vivas de si
próprios e por isso mães na mesma, promessas de futuro. As mulheres
jogam o mesmo jogo e no corpo do amante juntam o pai ao filho
imaginado. O amor é um incesto universal. Não valia a pena ter-me
enforcado por uma causa tão vulgar como esta. (ROSA, 2003, p.24)
Depois do diálogo entre Tirésias e Jocasta, segue-se a introdução das demais
personagens, com participação mais intensa de Manto, um dos dois únicos papéis
dramáticos que permanecerão vivos até o final do espetáculo, sendo o outro o próprio
Édipo. Os primeiros a entrarem em cena são Crisipo e seu pai, Pélops, este último
incorporado em Tirésias. Eles conduzirão o debate a respeito de mais uma lenda da
mitologia grega: a da culpa primordial da casa dos labdácidas que origem ao próprio
mito de Édipo. Aqui, Laio é mostrado a partir de uma perspectiva determinantemente
sedutora, criando enganos e conduzindo farsas para conseguir o que quer do belo
Crisipo. O chamado amor contra naturam entre Laio e Crisipo é narrado, a princípio, de
maneira bastante semelhante às que o encontradas nos dicionários de mitologia
grega sem que, no entanto, tenha o arremate comum a qualquer versão mais
conhecida.
Depois de tal narrativa e do diálogo mencionado entre Tirésias e sua filha
sobre as impossibilidades femininas no que se refere ao exercício das atividades
cênicas, temos a entrada de Édipo. E é depois da entrada de um Édipo cego e, na
estratégia de Nascimento Rosa, ainda mais cheio de dúvidas, que temos o ponto fulcral
do espetáculo. Ou seja: o assunto que sentido a Um Édipo. Trata-se do
esclarecimento do caso entre Laio e Crisipo. A principio tratado com singular
perspectiva homofóbica, através de falas em que personagens como Crisipo, Pélops
(encarnado em Tirésias) e a própria Jocasta condenam com veemência o episódio,
126
Nascimento Rosa diz a que veio e explica sua obra, criando, por meio da narração do
próprio Crisipo, o ponto principal de sua criação.
Em tal cena, o jovem amante de Laio que, em Um Édipo, havia morrido ao fugir
da perseguição de Laio, conta que, depois de morto, como espectro visível pela
vontade dos deuses, era ele quem estava ao lado do rei de Tebas quando este foi
assassinado pelo viajante que vinha fugido de Corinto. Crisipo decide voltar atrás em
sua fuga das investidas de Laio. Nesse sentido, é como um fantasma que ele se põe
a falar consigo mesmo:
Nesse dia eu estava bem visível. o me perguntes porquê. Os deuses assim
o quiseram. Eu vogava à toa como um cardo no ciclone e dei por mim a pensar
em Laio, naquele homem a quem não perdoei a minha morte. Foi Afrodite que
me tentou nessa hora. Cismei tantas tolices indignas de mim ... Pus-me a falar
para a sombra que sou: - Parvo que tu foste, Crisipo. Em vez de fazeres o
papel da virgem assustada, porque não correspondeste com prazer às carícias
de Laio? Afinal de contas tu estavas vaidoso por seduzires um rei desterrado.
Podias ter tido uma noite de amor diferente daquelas que costumavas gozar
com as escravas. Quantos jovens na Grécia não invejariam a sorte de ser
raptados como tu, num cavalo negro? E hoje em vez de andares a assombrar
os caminhos, vestias a capa púrpura de favorito do rei na corte de Tebas.
Quem sabe até se ele não iria aborrecer os beijos de Jocasta, tendo-te por
perto? Ocuparias o leito real e Édipo nem teria oportunidade de nascer. (Ri-se)
Estátuas de ApoIo seriam esculpidas copiando-te a beleza. O amor de Laio
tornar-te-ia imortal na memória dos gregos. Ah Crisipo! Tão asno que tu foste.
O destino trouxe-te a taça da fama e tu atiraste-a ao rio com o vinho da vida
dentro. (ROSA, 2003, p. 42-43)
Em seguida, Laio entra em cena, incorporando-se a Tirésias, fato que, no final do
drama, causará a morte do adivinho. Também seu fantasma quer dar a própria
interpretação do que ocorreu. Na verdade, ao se deparar com o belo jovem sentado a
seu lado na carruagem, Laio imagina que a visão é a de seu próprio filho. Os crimes
então se fundem e se confundem. Para o rei de Tebas, que logo em seguida se
127
assassinado, a culpa pela morte de Crisipo equivale à culpa pelo filicídio que ele
pensava haver cometido.
Neste exato momento, entra também Édipo que, com sua versão da história,
escreve uma página de verdadeira homofobia, isto sim inusual para os parâmetros de
compreensão da contemporaneidade e até mesmo para a antigüidade grega, como o
próprio Édipo de Armando Nascimento Rosa (2003) chega a confessar com as
seguintes palavras:
Seria emboscada de salteadores ou avaria do engenho? Desci para averiguar.
E o que vejo ali, ó deuses! dois homens enroscados como serpentes na
encruzilhada. Um mais velho e outro mais novo, com idade para ser seu filho.
Aquilo repugnou-me. Eu sei que é costume grego, mas não acho que seja
salutar. Não posso desejar a morte a todos, pois nesse caso ficava a Grécia
despovoada e vulnerável à conquista dos bárbaros. Mas confesso que às
vezes me dá ganas de matar uns quantos, apanhados em flagrante, para
aliviar a minha ira. E estes não tinham achado melhor sítio para dar vazão ao
ardor dos sentidos, do que ali, estacionados na curva. O mais novo olhava-me
calado e com cara mortiça. Pareciam ambos meio palermas. Desafiei o mais
velho. (Para Laio/Tirésias.) Você tem idade para ter juízo! Que coisa é esta
de impedir o trânsito e fazer da estrada um sítio de deboche? (ROSA, 2003,
p.46)
Depois da explicação calorosa de Édipo, o texto de Nascimento Rosa tem seu
desfecho com a mencionada morte de Tirésias e um diálogo entre Jocasta e Manto,
com aquela reproduzindo os conselhos que Tirésias, a caminho de Hades, a sua
filha: de que ela siga seus desejos e para Lesbos, fazer teatro. O fantasma de
Jocasta beija Édipo e se retira, para que ele e Manto troquem breves palavras e cada
qual parta em busca de sua Moira. Manto, procurando seu ofício. Édipo, errando cego
pelos caminhos da Hélade e vindo dar até mesmo a Portugal e Brasil, onde, parece,
temos esperado por ele junto com nossas incertezas e com nossas próprias ações.
128
Como seu autor afirma, o eixo dramático de Um Édipo gira em torno das figuras
de Tirésias e Jocasta. Nascimento Rosa (2003) confessa, no posfácio da edição de sua
obra, que a apropriação da lenda tebana lhe surgiu pelo fascínio face à singularidade
mítica de Tirésias, e pela vontade de embrenhar no mistério humano de Jocasta
enforcada (ROSA, 2003. p.67). Daí sua opção de trabalhar com espectros
fantasmáticos que fazem, no espetáculo, uma espécie de balanço de suas vidas e
daquilo que elas possuem de insolúvel. Quanto à sua dramaturgia, o autor vai, como
se mostrou, aquém e além de uma temática especificamente edipiana.
Nesse sentido, poder-se-ia mesmo afirmar que a grande novidade na cena de
Armando Nascimento Rosa é a abordagem que o autor português faz heterodoxa,
diga-se de passagem da lenda de Laio e Crisipo como objetos inaugurais,
motivadores e explicativos da tragédia de Édipo e Jocasta. Ao fazer isso, Nascimento
Rosa (2003) lembra um aspecto interessante e raramente abordado: o de que, antes
do parricídio perpetrado por Édipo, existe um filicídio freqüentemente esquecido, ou
deliberadamente ignorado(ROSA, 2003, p.68). Em sua abordagem autoral, como ele
mesmo afirma no remate de seu livro, Nascimento Rosa lembra o filicídio como o
desejo de anular gerações subseqüentes:
O desejo de asfixiar os que nasceram depois parece-me tratar-se de uma
sociopatia persistente, pelo que as implicações empíricas do complexo de Laio
são das mais (im)pertinentes reflexões que este Édipo pretende propor aos
espectadores/leitores. (ROSA, 2003, p.69)
Além disso, cumpre finalizar esta breve análise de Um Édipo lembrando o
destaque que o autor dá às personagens femininas. Sua Manto transgressora das
tradições helênicas e sua Jocasta que ressurge dos mortos para centralizar a cena
129
trágica ao lado de Tirésias são abordagens pouco comuns para uma temática da
antigüidade grega como a edipiana. A seguir, a abordagem de outro drama este,
escrito de maneira deliberada para ilustrar as propostas heterodoxas de leitura desta
dissertação tentalevar a novos termos a participação de Jocasta neste universo
dramático/hermenêutico.
6.2. MIRANDO JOCASTA
A idéia é de que nós, seres humanos herdeiros de mitos como o de Édipo e
Prometeu, e de hermenêuticas como a de Sócrates, Platão, Aristóteles e Freud, para
citar apenas algumas, estamos habituados a enxergar o mundo a partir de uma
linguagem determinada. Como aqui mesmo nesta dissertação se disse, tal
linguagem possui princípios definidos, um código de significantes desde os quais nossa
leitura dos fatos e das sensações se processa.
Aristóteles, em sua Poética, ao analisar a composição da tragédia grega, é como
se estivesse mencionando tais significantes que mantêm presos nosso olhar ocidental.
Nesse sentido, o que se quer aqui defender é que o entendimento do que nos cerca
está condicionado a elementos como o que se refere à luz do dia, à pretensa
luminosidade apolínea e platônica, e às ações masculinas, tomadas sempre a partir das
obras dos anĕr vigorosos que permeiam nosso imaginário. Exemplo disso pode ser
encontrado de maneira prática na própria definição temporal da tragédia, que segundo
130
Aristóteles deve acontecer no transcorrer de um dia, e nos complexos e hermenêuticas
mais consagrados – o de Édipo, um deles.
Quando Friedrich Nietzsche, nos anos 1870, fez sua leitura da antigüidade grega
a partir de outros conceitos, o próprio filósofo alemão foi estigmatizado por muitos de
seus contemporâneos. Grosso modo, o que Nietzsche afirmava batia de frente com
toda uma tradição clássica, platônica, condicionante do pensamento ocidental e
componente essencial dessa linguagem que aqui se procura definir. Sua condenação
do socratismo foi, como se sabe, desde os primeiros ensaios, rechaçada como
verdadeira heresia pela intelligentsia do momento.
Levando-se em consideração, a partir das propostas de Friedrich Nietzsche, que
existe uma hermenêutica clássica, fundada nesse dia de Apolo, mas que também há,
por trás da aparência, uma maneira de criar o mundo que não pode ser medida por
esses mesmos parâmetros da tradição, é que se procurou produzir uma situação
dramática que invertesse a lógica do dia e dos feitos masculinos. A proposta, portanto,
era compor uma tragédia (anti-tragédia?) que tivesse suas ações definidas na
escuridão da noite e que jogasse o foco principal sobre a personagem que, na versão
mais clássica, era antes iluminada apenas como coadjuvante.
A história escolhida para tal investida foi a mais tradicional possível. Aquela a
partir da qual complexos psicológicos foram criados, outros dramas teatrais encenados,
inúmeras versões oferecidas. Tratava-se, portanto, da história de Édipo. E o mais
interessante é que, apenas com o mencionar o nome do mito, o fazíamos desde a
perspectiva tradicional que ainda pouco foi aludida. Se na lenda temos também um
protagonismo de ações que parte de uma mulher, por que a citamos sempre desde seu
protagonista homem? A resposta para esta pergunta pode ser encontrada naquilo que
131
aqui se quer defender: porque nosso olhar que busca entender o mundo percorre
sempre o layout do masculino, e aquilo que de pretensa verdade ele encerra, ao vir
amiúde iluminado e, deste modo, justificado por uma razão clássica e apolínea.
A partir de tais parâmetros, buscou-se criar uma situação dramática que fosse
também uma leitura do mito executada pelo olhar de Jocasta, e que tivesse sua ação
entre o ocaso e a alvorada isto é, iluminada pela luz da noite. Com base em tais
definições, o que se começou a perceber é que o protagonismo de Jocasta na lenda
consagrada em todo o ocidente é igual, senão maior, que o do próprio Édipo. Se é ele a
criança que deve morrer, ela é a esposa que permanecerá no poder. Se é ele o sujeito
que mata seu pai, ela é a mulher que manda matar seu filho. Se é ele o filho que dorme
com a mãe, ela é a mãe que dorme com o filho. Se é Édipo o herói que desfaz os
enigmas, é Jocasta o prêmio e fio condutor e original de tal sabedoria. Além disso, os
dias de Aristóteles foram sempre precedidos e seguidos de noites nas quais guerras
foram tramadas, poderes defendidos, planos arquitetados, filhos feitos, sonhos e
pesadelos realizados.
A tarefa de criar qualquer coisa sobre a lenda tebana para, em seguida, tomá-la
como objeto para um estudo dissertativo é algo que soa, desde o princípio, pretensioso
e, talvez, inútil. O muito que foi dito sobre o tema não chega a servir de grande
estímulo nem para o criador nem para o ensaísta. Contudo, sem deixar de lado aquilo
que Colette Astier nos recorda a propósito de Édipo enquanto mito da literatura, o
desejo de delirar junto com Dionísio foi maior do que as razões de Apolo.
Colette Astier, em ensaio que define o verbete Édipo no Dicionário de Mitos
Literários de Pierre Brunel (2000), nos mostra de maneira intransigente como as
tragédias escritas por Sófocles explicam de tal maneira o mito que, se não chegam a
132
esgotá-lo, confundem-se com ele próprio. Trata-se, como afirma a autora, de uma
herança pesada, deixada à posteridade para se tornar exemplar, convertendo-se em
um modelo que poderia ser dito canônico, tido sempre como referência obrigatória em
qualquer momento, seja ele de criação ou de reflexão teórica. Segundo Astier, os
cuidados devem ser muitos. É o que ela mostra ao lembrar autores consagrados que
também ousaram tal investida:
Tornou-se, então, necessário redescobrir sem repetir. Mas para tanto, teve-se
que retorcer o texto ou o contexto para não haver plágios. Para tanto, teve-se
que deslocar os enfoques com o único objetivo de produzir-se o novo. Quer se
trate de Platen, Gide, Cocteau, e até mesmo de T.S. Eliot, o empréstimo
tomado a Sófocles acompanha-se de uma recusa de Sófocles; o fascínio
acompanha-se de uma rejeição. Daí, os Édipos modernizados, livres, como
dirá Cocteau, da poeira da obra-mestra: La Machine lrifernale (A máquina
infernal, 1934) e o Édipo (1931) de Gide; The Elder Statesman (O estadista
mais antigo; em fr. Fin de Carriere, 1959) de T.S. Eliot. (BRUNEL, 2000,
p.309)
A identificação entre tragédia e mito e, mais tarde, do próprio mito com o
complexo criado por Sigmund Freud também são temas abordados pela ensaísta.
Sobre a invenção freudiana, a estudiosa francesa é eficaz em lembrar que tal criação
teve o poder de dar origem ao mito da psicanálise, que talvez deva ser interpretado
como um mito do mito (BRUNEL, 2000, p.311). No que se refere às tragédias de
Sófocles, um dos pontos mais provocadores discutidos por Colette Astier (BRUNEL,
2000) se refere ao fato de que, ao escrever sobre Édipo, o dramaturgo faz, na verdade,
também uma interpretação do mito, a partir do gênero dramático, como aqui se
tentou mostrar.
Para nós, que praticamente não dispomos de versões completas da história de
Édipo anteriores a Sófocles, torna-se bastante trabalhoso destacar aquilo que
é da natureza do mito e aquilo que é matéria da tragédia. Pode-se
133
simplesmente achar que as duas tragédias cobrem a totalidade da biografia
edipiana e que o dramaturgo, tendo de escolher entre as diferentes versões
que se lhe ofereciam, viu-se na contingência de evocar todos os seus
episódios. Mas ao fazer isso, cristalizou-lhe os dados. Deu-lhes uma estrutura
literária. Da biografia de Édipo, fez um destino. Em suma, ele interpretou.
Interpretou inclusive duplamente os dados anteriores, ou seja, emprestando-
lhes ao mesmo tempo forma e sentido, e, por conseguinte, uma intensidade
que talvez estará para sempre presente, como uma fascinante e avassaladora
herança às gerações de dramaturgos cativadas pelo assunto. (BRUNEL, 2000,
p.308)
Foi exatamente este fascínio que me levou à Hýbris da escritura de Jocasta
Tirana e à própria reflexão sobre o tema. As escolhas antecipadas ao ato de criação
propriamente dito foram feitas a partir de vários autores aqui mencionados. Mas, desde
o início, o se projetou compor uma Jocasta e um Édipo modernos, a não ser pela
inevitável concentração sobre temas atemporais e por aquilo que se poderia chamar
sintaxe autoral. Antes, a idéia era a de procurar personagens que se mantivessem no
limiar da versão do mito oferecida por Sófocles e pelos compêndios mais consagrados
de mitologia grega escritos ou traduzidos para a língua portuguesa. Em seguida,
manteve-se a proposta de projetar em Jocasta o foco principal, invertendo-se também,
como foi dito, a lógica aristotélica que define o tempo da ação dramática. Assim, sem
grandes pretensões, até mesmo em função de minha própria precariedade
hermenêutica, foi escrito um drama cujo story line poderia ser “um diálogo entre Édipo e
Jocasta na última noite que passaram juntos”.
Nada mais do que isso. Mas, a partir deste tema, a quantas reflexões uma mente
dionisíaca não estaria exposta? Reflexões e invenções, é claro. A primeira delas, que
remete claramente a um pensamento de Colette Astier, é a de tentar manter trágicos o
Édipo e a Jocasta mencionados. Não o trágico no sentido que o gênero lhe confere,
assim como está disposto em Aristóteles. Mas que não fossem perdidas, mesmo sem
134
poder evitar condicionantes inerentes à própria época da escritura de Jocasta Tirana,
as dimensões significantes destes dois personagens uma delas, como se pôde ver
neste estudo, a da importância que a própria trama de Sófocles ao papel do destino,
da Moira.
A partir daí, contudo, as perspectivas foram alteradas. Transformadas por uma
Jocasta que claramente se impõe a um Édipo indefeso pela iminência daquilo que
virá e pelas lembranças e reflexões sobre um passado que é de ambos e de cada um.
Na verdade, investiu-se em hipóteses que podem até mesmo parecerem absurdas para
leitores mais ortodoxos do mito e da tragédia de Sófocles.
A primeira delas está baseada nos momentos em que Jocasta, no texto do
dramaturgo de Colono, tenta convencer Édipo de que muitos mortais em sonhos
subiram ao leito materno(SÓFOCLES, 2002, p.67). Este é, por assim dizer, o indício
para que se possa acreditar que, em toda a trama, Jocasta é a que mais sabe, ou
melhor, que tudo sabe. É ela que, desde o início, não se importa em ser oferecida como
prêmio para que seu poder não desapareça junto com a cidade de Tebas e a peste que
a consome. E é ela também que, com a experiência que a idade talvez tenha podido lhe
oferecer, dormiu inúmeras noites com o homem que derrubou a divina cantora e, com
ele, teve nada menos que quatro filhos. Sobretudo é ela quem entrega, mãe, o filho ao
carrasco e que, por isto mesmo, poderia, quem sabe?, em noites de dionisíaca lucidez,
haver de, nem que fosse em sonhos, lamentar seu ato e seu próprio tempo.
A outra hipótese na qual se investiu se refere a Édipo e a sua Moira. Aqui, a
aposta é que, antes, o destino que está traçado para o rei de Tebas, especialmente em
Édipo Rei, não é senão o haver-se com Jocasta. È ela quem lhe à luz; é ela quem o
envia ao Hades; é para ela que, ao fugir do que acredita ser seu destino, ele volta; é ela
135
que será a mãe de seus quatro filhos; e é Jocasta, sobretudo também, que ele mata, ao
buscar uma verdade que, mesmo sendo um sagaz decifrador de enigmas, não
conseguiu enxergar. Neste sentido, o que se quer dizer aqui é que a Moira de Édipo é a
própria Jocasta.
E, se Jocasta é Moira, é ela também quem sabe, é para ela que o poder
mesmo que a partir dos escuros de todas as noites em que sonhou, amou e bateu-se
com seu filho e esposo deve estar voltado. É ela quem sabe. É dela, mulher, que
parte este saber escondido mas que, acredito, nos oferece a razão mais subjetiva das
coisas.
Esta cena heterodoxa poderá ser lida em apêndice desta dissertação. O drama
escrito, vale ainda repetir, por uma estratégia premiada pela fortuna, obteve o segundo
lugar no “5° Concurso Nacional de Dramaturgia – Prê mio Carlos Carvalho”. Minha idéia,
ao inscrever Jocasta Tirana, era a de, quem sabe?, tornar menos trágica a Hýbris da
escrita aqui cometida.
136
7.
CONCLUSÃO
Hoje, quando se olha para trás, e até mesmo para a frente, é quase impossível
não enxergar nossa herança e nosso futuro gregos. Assim como é difícil não
percebermos a condição trágica do humano. O que Édipo faz, e o vem fazendo desde
que foi inventado, é colocar esta tragicidade a dois palmos de nossa cara para, ainda
assim, não conseguirmos compreendê-la em toda sua essência. Também nós, por
julgarmos muito saber, mal sabemos.
Tratar essa herança, este espólio helênico, de modo crítico tem sido o desafio de
quem, com maior ou menor intensidade, pensa, com alguma esperança, este ser
humano marcado pela dor trágica. Nesse sentido, a idéia que aqui se tentou propor
ou seja: tentar ver em maiores detalhes como foi pintada a ânfora de San Gimignano
vem como reflexo mesmo dessa disposição de enxergar o mundo com um olhar mais
terno.
Com a mais absoluta sinceridade, a grande pergunta que me assaltou no
processo de escritura tanto desta dissertação como da situação dramática que lhe faz
apêndice, é desconcertante. Para quê? Qual o sentido prático mais razoável, num
mundo em que torres são derrubadas por aviões cheios de gente e crianças são
atingidas por mísseis a todo o tempo, qual o sentido em tentar afirmar que existe algo
por trás do vaso de cerâmica?
Ainda o sei. Sei apenas que este projeto também ainda não acabou. Ao me
dedicar a pensar o tema, pude perceber quantas coisas mais foram urdidas sobre o
assunto. Édipos reinventados por Corneille, Voltaire, Höderlin, Ducis, Platen, Jean
137
Cocteau, Stravinski, Gide, Bernardo Santareno, Robbe-Grillet, e nenhum deles
analisado mesmo que superficialmente por este trabalho. Aqui creio estar, sem vida,
matéria para várias vidas em busca do melhor entendimento sobre o barro e os
pigmentos que deram forma e aparência ao sujeito que se ampara no bastão, à esfinge
que está bem a sua frente, à mulher que o espera sem nunca ter deixado que ele se
fosse.
Assim, o que pude perceber é que mesmo que o estudo que fiz possa ser
considerado completamente inútil, e que a tentativa de escrever um drama sobre
assunto tão sério seja tida como uma pretensão imperdoável de minha parte mesmo
que tudo isso seja verdade, uma coisa é certa: Édipo e Jocasta somos cada um de nós.
Tal conclusão pode parecer óbvia e itinerante, mas não posso deixar de senti-la
como talvez a única verdade percebida neste meu esforço que tramou reunir criação
dramática e hermenêutica. Sim. A sensação é de que aquela criança que foi entregue
ao carrasco somos nós. E de que a mulher que a entrega para que morra no alto de um
morro também somos nós.
E é por isso que andamos todos e cada um de nós por a assassinar pais, a
desvendar charadas, a dormir com filhos, a derrubar edifícios, a sermos atingidos por
mísseis, a nos enforcarmos, a cultivar nossa própria cegueira. O fato é que, mesmo
sendo, não damos conta de saber o que significa sermos Jocastas e Édipos. E também
não sabemos a partir de quais significantes a ânfora de San Gimignano pode ser
melhor apreciada. realmente uma linguagem masculina e apolínea que nos faz
enxergar o mundo por determinado prisma? Em contraposição a esta ordem, existe
uma outra que lhe subverte e, intrometendo-se em seus códigos, é capaz de mudar-lhe
o sentido?
138
Não me recordo onde li que Ulisses, o herói grego, arava a areia de uma praia
deserta. No entanto, esta imagem ficou em minha cabeça desde então, como se fosse
o contraponto do Édipo que é entregue ao verdugo e da Jocasta que, depois de
entregá-lo, põe-se a esperar. Por isso, ainda me pego consultando verbetes de
dicionários e a fazer pesquisas na internet. Talvez, num arroubo dionisíaco que, por que
não?, só Freud pode explicar, tenha inventado para Ulisses esta cena.
Mas, ainda hoje, tal idéia a de um homem arando algo que não faz sentido arar
– não sai de meus pensamentos. O que me parece é que, de uma ou outra forma, o viril
e astuto herói de Ítaca se redime de todas as guerras e mortes que pesam em suas
costas ao cultivar a areia da praia. Posso até mesmo ver a figura consumida de um
anĕr velho e cansado das batalhas de Tróia, ou de suas odisséias pela Trácia,
enxugando o suor que lhe goteja do rosto, tendo o Egeu como fundo. O lugar poderia
ser a ilha de Éolo, e nosso herói parou apenas um instante, a fim de recuperar suas
forças para voltar a correr a charrua pela parte da praia que ainda falta ser sulcada.
O que imagino é que, com esse trabalho trepidantemente estéril, Ulisses também
tenha procurado se redimir dos longos anos em que deixou sua Penélope a tecer e
destecer a mortalha de Laerte. A vida entre as gentes, sobretudo hoje, em que os fios
da harmonia parecem completamente perdidos da meada, revela-nos sempre algo
desse Ulisses que lavra o infértil e dessa Penélope que espera fiando e desfiando.
Desse Édipo que mata o pai para depois tomar seu lugar e dessa Jocasta que manda
matar para, em seguida, desejar a volta.
Explico. Enxergar o outro, creio, é avistar-nos a s mesmos. Esperamos do
outro não aquilo que ele é, mas o que queremos que ele seja ou o que nós próprios
gostaríamos de ser. Por isso, as odisséias nos relacionamentos. Por isso, o tecido que
139
deve ser desfeito a cada noite. Por isso, talvez, tentar ver Édipos e Jocastas a partir de
outras miradas.
Acredito também que é para manter vivas suas esperanças de encontrar seu
Ulisses que Penélope desfaz a mortalha que fiou. É para redescobrir sua Penélope que
Ulisses lavra um solo que jamais poderá dar frutos. Então, e isso parece terrível, o que
avistamos no outro é nossa própria esterilidade e, com medo dela, enlouquecemos na
espera e no áspero.
No fundo, em cada circunstância de encontro nesse nosso mundo grego e
precário, também rogamos descobrir Penélopes e Ulisses, Jocastas e Édipos. Mulheres
capazes de arar o inútil e homens capazes de tecer o que no dia seguinte deverá ser
refeito. Naquilo que buscamos, acredito que o que sempre irá durar é mesmo a chama
essencial. Aquela chama que arde e que não vemos, como lembra Camões. Assim é o
Ulisses que também espera, talvez para se redimir de quem por ele arou o impróprio.
Assim, a Penélope que venceu guerras e moeu o áspero, talvez para se perdoar de
quem por ela passou as noites desfiando. Assim, a espera. Assim, a criação literária.
Assim, a recriação científica. Arar, fiar, desfiar e pensar podem ser mesmo aquilo para o
qual não encontraremos nunca explicação. E para o qual talvez não estejamos mesmo
preparados. Assim, Jocastas. Assim, Édipos.
Assim, nós.
140
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145
APÊNDICE A – JOCASTA TIRANA
P
ERSONAGENS
Édipo
Jocasta
Um foco de luz sobre Édipo. Ele entra com uma vareta na mão, cego.
V
OZES
No caminho desta vida,
muito espinho eu encontrei.
Mas nenhum calou mais fundo
do que isto que eu passei.
A curvinha do estradão do pensamento não sai.
Eu já fiz um juramento que não esqueço jamais.
Nem que meu gado estoure, que eu precise ir atrás.
Este pedaço de chão, errante, eu não toco mais.
Num outro canto do palco, surge Jocasta.
J
OCASTA
Édipo, vem. Tô te esperando, com saudade. Vem. A cama já tá pronta.
Luz sobre Édipo.
É
DIPO
Jocasta, nossa filha me disse que está muito preocupada. Ela falou que o oráculo...
J
OCASTA
Ai, Édipo, pára. Por favor. Tu e Antígona já me dissestes toda essa estória. São tramas,
meu querido. Não percebes? O oráculo, o oráculo. Ora!, o oráculo... Não percebes que
os oráculos dizem aquilo que queremos escutar? Que o dia andará afoito querendo
questionar os medos e que a noite rasteja destemida buscando respostas.
É
DIPO
Ouve o oráculo, Jocasta. Escuta o povo. Esse povo de Tebas, fora, agonizando na
peste, esperando que eu decifre outro enigma para espantar todos os males. o
povo, Jocasta. Ouve o oráculo.
J
OCASTA
Olha, amor. Sabe o que o oráculo me disse? Sabe o que ele teve o impudor de me
revelar agorinha, quando eu arranjava estes lençóis, quando preparava estas
almofadas, (retirando o seio e insinuando-o para Édipo) quando ainda cuidava da seiva
que aqui está e sentia dores, angústias insuportáveis?
146
É
DIPO
Jocasta, eu estou falando sério.
J
OCASTA
Eu também, meu amor. Fui à divindade esta tarde. E fui com uma indagação bastante
coerente. Ou tu não me crês cristalina?
É
DIPO
Claro. Não te falei nada disso.
J
OCASTA
Não me falou, mas também não quer que eu fale.
É
DIPO
Quero sim, minha fingidora. Diga logo o que o oráculo te disse.
J
OCASTA
Mostrando novamente o seio que havia guardado, agora, apertando-o como se
aleitasse.
Ele me disse que tu devias mamá-lo como se hoje fosse tua última oportunidade. Como
se a aurora fosse nascer cega. Como se, amanhã, teu pai aparecesse por aqui e tu o
matasses. Tu o torturasses nas torturas das mortes intermináveis que só os deserdeiros
pais, os pais desinteressados de seus rebentos, podem merecer.
É
DIPO
Aproximando-se.
E, depois, o que a divindade te disse?
J
OCASTA
Sabe o que ela me disse, meu bem? Ela me disse que, logo que teu pai deixasse de
sangrar, que o sangue dele se esvaísse inteiro e o Egeu se pitangasse por completo e
incauto, tua e chegaria com uns seiosinhos salmonados para entregar à tua boca e
te rogar: (já dando os peitos para Édipo) Mama, filhinho, mama.
É
DIPO
Jocasta. Jocasta. te falei de meus sustos em relação a isto. O oráculo. Sempre as
maldições nos enredando em enganos. O povo fora, consumindo-se em pestes. Nós,
aqui dentro, quase nos afundando neste chão que mal consegue nos segurar. Pragas
que nos levam a destruir cidades, a matar pessoas, a destruir amores. Como se o futuro
pudesse então ser pressentido. Responde, anda, por quanto tempo esta terra ainda irá
nos amparar? Por quanto tempo o oráculo dirá aquilo que podemos ouvir? Por uma
noite? Por mais umas horas apenas? A peste está lá fora e nós seguimos neste
cárcere. O oráculo...
J
OCASTA
Mas foste tu quem nele acreditaste. No oráculo...
147
É
DIPO
Acreditei, mas enfrentando-o. Deixei minha cidade, abandonei meus pais. E agora... e
agora...
J
OCASTA
E agora tu estás aí, de pé, seu tolo. Atormentado, quando devias estar aqui,
esquecendo teus medos sob estas sedas, inventando novas dores, decifrando novos
enigmas. Vem, meu Édipo, meu esposo, vem. Vem tomar meus seios, ler minhas
carnes, inundar, como só tu sabes fazer, estes meus vazios que querem ser irrigados.
É
DIPO
Não, Jocasta, não. Já te falei de nossa filha.
J
OCASTA
Mas o que é que tem Antígona?
É
DIPO
Ela não tem nada.
J
OCASTA
Mas então...
É
DIPO
Ela é justa.
J
OCASTA
Justa? O que é esta justiça? O que é esta verdade? As verdades são opostos que se
juntam para poderem se alternar. Hoje, meu tirano, tu és minha verdade. E é por isso
que eu quero... que quero minha verdade bem debaixo destes lençóis. Uma verdade
enorme e tesa, dura e molhada e viscosa, apaixonada. É isso, meu rei de Tebas.
Quero, esta noite, uma verdade apaixonada e ardente, capaz de me dominar. Tu estás
atado em nós, como se te apertassem o pescoço. E eu estou cega, o vês que estou
cega?
É
DIPO
Um rei enforcado e uma rainha cega. E encarcerados no próprio quarto, medrosos da
coisa que inunda a cidade. Era o que faltava a este povo crédulo! Antígona tem razão...
J
OCASTA
Pára com Antígona! Tua filhinha o que faz com sua justiça, com suas verdades, é
acompanhar seu tempo. Suas preocupações são cismas, seus zelos são desejos que
não é capaz de revelar nem a si própria.
148
É
DIPO
Não é ela. É o que ela pensa. Agora, ainda pouco, me disse que teme sem saber o
que teme.
J
OCASTA
Ah! E também ama sem confessar a quem ama.
É
DIPO
Como? O que dizes?
J
OCASTA
Digo o que vêem, o que notam, o que sinto.
É
DIPO
Como o que sentes? Não faz muito, tu me falavas contra os pressentimentos e, agora...
J
OCASTA
E agora o que te digo é que tuas ligações com Antígona são...
É
DIPO
São o quê, Jocasta?
J
OCASTA
Estranhas, Édipo. São estranhas. Todos notam a preferência que tens por ela. E não te
esqueças: são quatro os filhos que temos. Mas tu, o que parece, é que tens olhos
para Antígona.
É
DIPO
Agora começo a te entender. Só agora. Quando falas assim de Antígona.
J
OCASTA
Não falo assim apenas de Antígona. Falo de todos. Falo de ti. Como falei de Laio,
meu ex-marido. Mas Laio... Laio morreu.
É
DIPO
Sim. É exatamente isto: quando falas de Laio. instantes, quando dizias que tua
verdade hoje sou eu, pensei precisamente em Laio. Agora te compreendo. Esta tua
verdade já foi ele, já foi Laio...
J
OCASTA
Ciúmes, meu rei? E quem mais então esta minha verdade poderia ter sido? Naquele
tempo, minha verdade era ele, Laio. E a verdade de Laio era o rapazinho, o menino
raptado por meu ex-senhor para que o desnatural pudesse ser inventado. Qual é tua
verdade, Édipo? Antígona? Ela é tua verdade?
149
É
DIPO
Minha verdade é Tebas, Jocasta. Os homens que tenho que comandar, a justiça que
devo estabelecer, as guerras que me cumpre vencer, as perguntas que é necessário
responder, as pestes que preciso dominar. E estas verdades é que me enforcam.
J
OCASTA
É porque tua verdade é o poder. Aquilo que te faz temer é justamente o que faz o povo
se curvar. É o que faz o mundo inteiro se submeter. O poder, Édipo. O poder.
É
DIPO
Não o poder, mulher. Mas aquilo que ele me exige.
J
OCASTA
Aquilo que ele te exige ou o que tu próprio te exiges para que ele não se afaste de ti?
Para que ele não se afaste jamais de ti.
É
DIPO
É o que temos, Jocasta. Deste quarto, hoje, não é possível sair. As pestes estão lá fora.
É só o que temos que cumprir.
J
OCASTA
Não, meu amor e senhor. o é o que temos que cumprir. É antes o que dizem que
temos que cumprir. Decifra-me ou te devoro. É por isso que fogem, que planejam
raptos, que não dormem com seus amores, que matam, que querem prever o futuro
para não se desligar do passado, que mandam até mesmo assassinar crianças,
pendurando-as pelos pés.
É
DIPO
Mas a criança devia ser morta.
J
OCASTA
Não. A criançao devia ser morta. Assim como meu antigo senhor não deveria jamais
ter sido meu senhor. Pois, sendo meu possuidor, foi também meu algoz. Traiu-me,
mentiu-me, raptou-me, para em seguida livrar-me da cegueira. E eu queria ser cega,
meu Édipo, como hoje sou contigo. Ainda te comportas como uma criancinha! Não
entendes que o que desejo é amar como tenho te amado. Assim o enxergo, assim
não vejo, assim me escondo da morte. E o amor verdadeiro pode nos dar a certeza
da eternidade. Nem que seja por um momento breve. Ilusão verdadeira, verdade
ilusória; justiça cega, cegueira que vê.
É
DIPO
Mas a criança devia ser morta, Jocasta.
J
OCASTA
Não, Édipo. A criança não devia ser morta. Mas estão todos os oráculos, está o
medo permanente de que as maldições sejam cumpridas. Não. Talvez a culpa o seja
de Laio, não seja minha, não seja de nada. Quem tem a culpa de sermos humanos? E
150
se não o fôssemos? Se fôssemos deuses? Qual seria a culpa que carregaríamos? A
de, ainda assim, continuarmos imperfeitos? Talvez a única culpa seja da palavra. Uma
palavrinha apenas: poder.
É
DIPO
O poder pode servir para...
J
OCASTA
Sim, meu tirano. Ele pode servir para muitas coisas. Pode servir para que, com medo
de que ele se vá, abandonemos a quem realmente amamos. O poder são os sussurros
que permanecem em nossos ouvidos.
V
OZES
Laio, teu amor por esse jovem é contra a natureza.
J
OCASTA
E Laio, saciado de culpa, essa culpa que nos arrebenta a todos, me indagava em sua
embriaguez, enquanto me estuprava:
V
OZES
Tu me condenas, Jocasta? Tu me condenas?
É
DIPO
Jocasta, pára, moralista. As coisas não são sempre assim. Temos que enfrentá-las.
J
OCASTA
É verdade, esposo atormentado. As coisas não são sempre assim. E ainda temos que
enfrentá-las aqui, porque a própria peste do que somos nos prende neste quarto. É
verdade. Na maior parte das vezes, as coisas são piores. Eu, a moralista! Os fatos são
ainda mais terríveis. Mas isso eu não posso contar. E temos que enfrentar, não é
mesmo? Não podemos sair deste quarto, deste palácio que fede. No entanto, as vozes,
as vozezinhas não se afastam.
V
OZES
Laio, vou te impor uma maldição.
Édipo, tu matarás teu pai.
Logo, desposarás tua mãe.
J
OCASTA
E, então, Laio finge, finge que o jovenzinho morreu, que o jovenzinho se matou. E,
então, Laio se casa com Jocasta. Mas o rapaz bonito não morreu dentro de Laio. E Laio
também não deixará de querer matar.
É
DIPO
Mas a criança tinha que morrer. Eu mesmo a mataria... Para não morrer e...
151
J
OCASTA
Sim, talvez o menino tivesse mesmo que ser sacrificado. Talvez devesse ser sacrificado
para que, mais tarde, o fosse ele quem sacrificasse. Mas nada disso importa, sabe
por quê? Porque as vozes ainda estão lá. E, não faz assim tanto tempo, na cidade de
Corinto, elas disseram: Édipo, tu matarás teu pai e te casarás com tua mãe. E, então...
É
DIPO
...e, então, Édipo abandona seus pais, abandona sua Corinto. Deixa sua cidade, todos
a quem amou até aquele momento. Tudo porque Édipo deve enfrentar o destino. Ele
deve lutar, Jocasta. Minha fuga só o que mostra é que busco escapar de meu destino.
J
OCASTA
Mais calma, insinuando-se para Édipo.
Bobagens, meu filho, bobagens. Muitas vezes, quando pensamos que nos
esquivamos dele, do destino, o encontramos de frente. Assim, Édipo: bem de frente.
Ele está lá, aqui.
É
DIPO
E, então? Deveríamos aceitá-lo? Mesmo que os resultados fossem trepidantes?
J
OCASTA
Não sei, meu jovem amante.
É
DIPO
Do que tentas me convencer é acreditar que deveríamos viver cada dia como se fosse
o último...
J
OCASTA
...e cada noite como se fosse a primeira.
É
DIPO
Como se não nos possuíssem.
J
OCASTA
E como se não possuíssemos ninguém senão a nós mesmos.
É
DIPO
Temos que ficar aqui, esperando que venha o dia. Isso é impossível, Jocasta.
J
OCASTA
Acariciando o rosto de Édipo.
Talvez seja mesmo, meu menino.
É
DIPO
Mesmo desinteressado, Édipo se deixa enredar. Mas, logo, afasta-se.
O que é isso, Jocasta?
152
J
OCASTA
Como posso saber?
É
DIPO
Desenlaçando-se de Jocasta.
Espera. Ouve. É o povo! Não!
V
OZES
A arena já foi montada.
De um lado, o mito encenado.
De outro, a cena mitificada.
Misérias, arfares e tesouros.
Quanto mais vêem
Mais cegos estão.
Não importa a noite.
O homem já não pode deixar seu bastão de lado.
A mulher sabe sempre o que a luz do dia irá trazer.
Sempre sombras.
A peste vai tomar a cidade,
As crianças alimentarão os vermes.
Sempre sombras.
É
DIPO
O que querem dizer com isso, Jocasta?
J
OCASTA
Que a criança não devia morrer, que aquela minha criança não devia morrer.
É
DIPO
Como não devia morrer? A criança precisava morrer.
J
OCASTA
Para quê? Para que o destino não se cumprisse? Mas outro destino se cumpriu. Outro
destino matou Laio. Um assaltante que talvez tenha assaltado o próprio destino, criando
um outro em seu lugar. Não. O filho de Laio não matou Laio. Porque ele, Laio, o
assassinou antes. Assim também, é bem provável que tu não mates teu pai, que ele
morra depois que alguma esfinge nos mastigue. Decifra-me ou te devoro. Isso sim é o
que estamos destinados a escutar sempre.
É
DIPO
Então, se tu mesma acreditas que isso é o que iremos sempre ouvir, que essas são as
vozes que sempre irão nos durar na memória, como deixar este lugar? A peste,
fora...
153
V
OZES
Amando.
Deixando que os corpos se enfraqueçam ao toque de outros corpos,
Que bocas encontrem bocas,
Salivas se misturem,
Suores sejam lambidos por línguas amorosas.
Seduzido, Édipo se entrega.
J
OCASTA
Sim, meu Édipo.
É
DIPO
Não, minha Jocasta.
J
OCASTA
Só assim, meu amo e senhor.
É
DIPO
Nem assim, minha amada senhora.
V
OZES
Sedes que encontram sedes.
Fomes que buscam fomes.
Vales de carnes macias.
Alvuras imaculadas.
A luz vai caindo até o escuro se tornar completo.
J
OCASTA
Mais assim, meu breve atormentado.
É
DIPO
Menos, minha tormenta eterna.
J
OCASTA
Sempre assim, meu destino irremediável.
É
DIPO
Nunca assim, minha cegueira irreparável.
V
OZES
E, depois de corpos terem sido encontrados em outros,
Bocas em outras bocas,
Salivas misturadas,
Suores sugados,
Saber que o paraíso é desarmonia:
154
Vive da sede,
Vive da fome,
Vive à míngua.
Silêncio. Música por alguns instantes. Em seguida, a luz foca levemente a cama. Nota-
se que Jocasta e Édipo acabaram de fazer sexo. Estão alegres, felizes.
J
OCASTA
Ai, meu amor! Ai, meu amor! (no último, fazendo umas cócegas em Édipo) Ai, meu
amor!
É
DIPO
Sentindo as cócegas.
Ai, meu temor!
J
OCASTA
Suado assim, vermelho assim, com esse ar tão sacana, tu ficas tão lindo.
É
DIPO
E tu te pareces mais a uma esfinge.
J
OCASTA
O quê?
É
DIPO
Sim. Uma esfinge. Um monstro fabuloso, com esse corpo, garras e cauda de leão, essa
cabeça mitológica de mulher, umas asas de águia e unhas de harpia, propondo
enigmas aos que passam e devorando quem não os consegue decifrar. Uma cadela!
J
OCASTA
Ah!, é. Então, vamos lá, meu fugitivo complexado.
É
DIPO
Vamos lá, aonde, Jocasta?
J
OCASTA
Vamos lá! Vamos ver se tu decifras meus mistérios. Anda, decifra-me ou te devoro.
É
DIPO
Vai, então. Anda, dona Jocasta. Vai.
J
OCASTA
O que é o que é que cai em pé e escorre deitado?
155
É
DIPO
Ah, meu bem. Esta é fácil. Esqueces que decifrei enigmas mais tortuosos? É a
chuva, minha doce, que cai em e escorre deitada, assim como tu estás agora,
entendeste? Por favor, Jocasta. Aumenta um pouco o grau de dificuldade.
J
OCASTA
Então, vamos. Por que os homens não têm nenhuma crise na fase madura?
É
DIPO
Boa, minha égua de Tebas. Muito boa, essa. Trata-se de um enigma sibilino,
meandroso. Mas, ainda assim, fácil. Para decifrá-lo, basta pensar com a cabeça de
mulheres com mais de quarenta anos, não é mesmo, meu bem? E a resposta é óbvia.
Os homens não podem mesmo ter crise alguma na fase madura porque não chegam
jamais à maturidade, não é mesmo?
J
OCASTA
Adivinhão. Tu és mesmo bom nisso, hein, meu Edipinho. Mas, agora, vamos ver como
tu te safas desta: quem é que dá luz ao cego?
É
DIPO
Luz ao cego?
J
OCASTA
Isso mesmo.
É
DIPO
Como luz ao cego?
J
OCASTA
Isto: quem é que dá luz ao cego?
É
DIPO
Deixe-me pensar, Jocasta.
J
OCASTA
Anda logo: quem é que dá luz ao cego? Anda: quem é que dá luz ao cego?
É
DIPO
Calma, minha aurora.
J
OCASTA
Falando rápido.
Quem é que dá luz ao cego? Quem é que dá luz ao cego? Quem é que dá luz ao cego?
É
DIPO
Luz? Ao cego?
156
J
OCASTA
Tu não disseste que és o melhor vidente? Então, vamos lá. Rápido, meu feiticeiro.
(Falando rápido) Quem é que luz ao cego? Quem é que luz ao cego? Quem é
que dá luz ao cego?
É
DIPO
Não sei, Jocasta imprevisível. Nesta, tu me derrubaste. Vamos, diga logo: quem é que
dá luz ao cego?
J
OCASTA
Rindo e deitando-se, oferecida.
A mãe do cego.
É
DIPO
E tu, por acaso, és mãe de algum cego?
J
OCASTA
Nunca se sabe, meu amor. Nunca se sabe.
É
DIPO
Como nunca se sabe?
J
OCASTA
Nunca se sabe. Vem até aqui, vem. Olha a paisagem noturna. Muito pouco se pode ver.
Uma noite, faz tempo, eu estava aqui, neste mesmo lugar, mirando a paisagem
noturna. A cidade cheirava mal. Como cheira hoje. Era a peste. A esfinge no meio da
arena, na entrada da cidade, devorando os incautos. Ninguém se atrevia a enfrentá-la.
Tudo cheirava muito mal. Tebas estava perdida. Mas, na manhã seguinte, tu chegaste,
sem medos.
É
DIPO
Tu te contradizes.
J
OCASTA
Não, Édipo. Nunca se sabe. Nunca se pode saber. Sabe, naquela noite, eu olhava a
paisagem noturna e me lembrava de um Laio morto, ou de um Laio vivo e lascivo.
Como, então, naquela noite, eu poderia saber que, na manhã seguinte, minha vida
estaria mudada, a sorte de Tebas revertida. Eu, casada contigo. E, com o passar do
tempo, aprendendo a te amar.
É
DIPO
Não me amavas e me desposaste. É isto o que o se sabe? É isto o que querias me
dizer?
J
OCASTA
Claro que não te amava, meu bobinho. Claro que não te amava. Como poderia amar
um desconhecido? Alguém surgido da morte de uma esfinge.
157
É
DIPO
O dever te...
J
OCASTA
Repentinamente irada.
O dever não nos impõe nada. Absolutamente nada. Ou é possível obrigar um ser a
amar outro ser. O máximo que se poderia pedir seria tolerância. E eu não te amava.
Sabe o que eu era, depois da morte de Laio? Uma puta. Uma puta bem rampeirinha,
vulgar. Transando bem com todos e com todas, querendo vingar dentro de mim a
merda que é imaginar seu marido na cama com outro homem, fodendo lá com o
brinquedinho dele.
É
DIPO
Pára, Jocasta. Chega!
J
OCASTA
Beijando bem, sabia? Sabia que, aqui na minha cabecinha atônita, Laio e o jovenzinho
se beijavam bem? Com uma paixão enorme. Ai, que inveja! Mesmo sem ter visto, eu
podia sentir o fogo que consumia aqueles beijos. Ai! Eu também quis matá-lo. Queria
sufocá-lo na boca daquele rapaz morto. Fazer com que fosse perdendo o ar, perdendo
o ar, perdendo o ar. Então, quando soube que Laio tinha sido assassinado, quis eu
mesma ser aquele assaltante. Sim! Sou eu quem deveria ter-lhe enfiado o punhal.
É
DIPO
Nunca havias me falado assim, Jocasta. Eu...
J
OCASTA
Espera. Laio já está morto. E a criança também...
É
DIPO
Mas a criança devia morrer. Morrendo, cumpriu-se o destino.
J
OCASTA
Cumpriu-se? Não, meu menino, a criança não devia morrer. Para quê? Para quê se,
estando morta, vive mais que cada um de nós. Vive cada dia mais dentro de mim.
Entendes? Tu me entendes?
É
DIPO
Jocasta... Moralista...
J
OCASTA
Não. Tu não podes entender. Como talvez não possas compreender que eu mesma
deitei com Laio e o rapazinho diversas vezes.
É
DIPO
O que me dizes? Estás louca? Não poderias se...
158
J
OCASTA
Apontando para a própria cabeça.
Aqui, meu bonitinho: aqui. E muitas. Inúmeras, meu senhor rei de Tebas. E neste
mesmo quarto de onde tu dizes que não podemos sair. Eles fodiam bem. Eu ficava
vendo. Ah!, amor. Tu pareces aum personagem destas tragédias que levam agora
às arenas. Iludido. Bobinho. Tolo. Teatral. Não consegues imaginar? O pior cego, meu
amor...
É
DIPO
... é aquele que não quer ver.
J
OCASTA
Não, Édipo. O pior cego é aquele que quer ver. Mesmo não vendo, eu queria ver,
queria enxergar e não conseguia. Quanta angústia aqui. Nunca me acostumei com a
situação. Nunca. E é por isso que te digo: tu não podes me entender. Não poderás
jamais entender porque eu não te amava e depois te amei. Te amo. Mas, também não
sei porque, sabia que iria te amar, meu menino. Algo me dizia isso. Talvez quem possa
saber seja Antígona. Antígona com suas culpas que ainda a farão guiar os cegos. Estou
bastante certa mesmo.
Pegando um pedaço de pano e colocando no pescoço, como se se enforcasse.
Tu me trouxeste de volta aquilo que nem sei se tive. Poder ser mãe novamente. Até de
Antígona. Amar. Limpar meu corpo, mesmo que para isso ainda tenha que manchá-lo
ainda mais. É assim que eu creio: o amor é algo que só é verdadeiro quando construído
palavra por palavra. Lembra-te, Édipo: nada do que possamos trazer no peito poderá
nos revelar o que acontecerá amanhã, assim que o primeiro raio de Apolo iluminar esta
cidade.
A luz se apaga. Escuro total. Novamente, vozes.
V
OZES
Muitas vezes, muitas vezes, muitas vezes,
Para enxergar, para enxergar, para enxergar,
É preciso estar cego, estar cego, cego.
Luz sobre Jocasta que, sentada no chão, limpa os pés de Édipo e chora.
Para ver, não basta o dia.
Para cegar, não basta a noite.
Cordas e nós,
Varetas e mãos,
Pés e caminhos,
Corpos e precipícios.
Édipo se levanta, sentando-se na cama, enquanto Jocasta termina de acariciar seus
pés e se recompõe.
159
É
DIPO
Jocasta, lembra-te quando Antígona nasceu?
J
OCASTA
Sim. E o que tem isso?
É
DIPO
Nada. Ela era minha linda.
J
OCASTA
E então?
É
DIPO
Nada. São minhas lembranças. Posso até mesmo recordar o momento em que a
fizemos. Lembra-te? Tenho absoluta certeza de que foi naquele dia, o sol batia a pino.
Cheguei em casa e tu ainda dormias. Nua, completamente nua. A escrava andava na
ponta dos pés e deixamos que ela visse, que ela visse tudo. Com o olhar, permitimos.
Lembra-te como a menina suava enquanto olhávamos para ela e nos enlouquecíamos.
Ela ia sair e tu ordenaste...
J
OCASTA
Fica!
É
DIPO
E, então, ela veio, tremendo. Sentou-se na cama. Tu olhavas a pobrezinha nos olhos.
Ela suando e tremendo. Vermelha. O sol dardejando através das cortinas. Eu, tu,
nossos frêmitos. (mudando o tom) Tu eras como uma escrava, vendo, em tuas
fantasias, Laio e seu rapazinho?
J
OCASTA
O que queres? Desejas repetir. Mando chamar a melhor de tuas escravas agora. E tu,
então, farás como daquela vez. Cavalgando-me. Montando esta potra de nácar. Se
queres, mando acordar uma agora mesmo. Vamos! Vamos! Quem sabe não fazemos
até outra menininha para a tua horda, para o teu clã?
É
DIPO
De onde vens com isto? não temos... Ou melhor, minha vaca de Tebas, te esqueces
que tunão tens mais a pingadeira rubra a escorrer-te pelas tetas? Já não podes mais
amamentar, minha boa. não podes, como pouco me convidavas, dizer-me assim
(imitando Jocasta): Vem, filhinho, mama na mamã.
J
OCASTA
E tu bem que gostavas, hein! Como ainda gostas.
Retirando o seio e insinuando para Édipo, como se amamentasse.
Mama cá, benzinho. Mama na tua mulherzinha. Nessa mulherzinha que, sem ser
Penélope, aprendeu a te esperar. Desde antes, desde muito antes te aprendeu a
esperar. Desde além disso, quando os fios talvez nem mesmo existissem para que
160
pudéssemos tecê-los e destecê-los. Desde quando estes peitos ainda não haviam
sentido a dor do sangue que esperava ser chupado. Queres? O que queres, meu tirano
que, julgando tudo saber, de nada sabe? Meu tirano lindo que...
É
DIPO
Recuando.
Pára, Jocasta. Pára. Não podemos sair daqui. Temos que esperar o dia.
J
OCASTA
Não paro, Édipo, o paro. Reparas que não posso chamar-te lindo? Que não posso
chamar-te meu amor? As palavras amorosas são para ti um estorvo. Não posso jamais
dizer: amor, carinho, fofo, gostoso, lindo, terno, gentil, guapo, tesudo.
Raivosa.
Sim, meus peitos podem não ter mais o leite puro com o qual Antígona e toda tua horda
se empanturraram, quase me deixando seca, mirrada, murcha. Mas aqui dentro
(mostrando os seios) ainda há sangue e verdade. Não a tua verdade. Sabes por
quê?
É
DIPO
Tudo o que dizes não é verdade, Jocasta.
J
OCASTA
Não é verdade? Como não é verdade? Ou o que é a verdade? A tua verdade poderosa,
com a qual soubeste enganar a esfinge? (mirando o céu) Ah!, meu Apolo! Como
pudeste deixar que tua esfinge fosse enganada? Apolo meu. Meu deus Apolo e belo,
que amanhã virás com teus cegos para anunciar tuas mentiras. Tu sabes que não és
mais do que somos nós. Nem menos. (Dirigindo-se, agora, a Édipo) Mesmo tendo os
pés tortos, tu, Édipo, saído do ventre da terra, queres ser um Apolo. Não é mesmo,
Édipo, não é verdade?
É
DIPO
Blasfêmias, Jocasta.
J
OCASTA
Loucuras! Pragas? Vem, meu amo. Agora sou tua esfinge. Aquela a quem podes
enganar e, logo, enforcar. Embaçando tudo como a noite fora ilude a verdade trágica
que nos irá colocar a cada um de nós no lugar verdadeiro da ignorância. Talvez
saibamos mesmo de tudo. Talvez...
Mudando de idéia. Brusca.
Anda, Édipo: vai! Decifra-me ou te devoro! O que é o que é que pela manhã tem quatro
patas, quatro patas que rastejam como os homens e mulheres que fomos e que não
necessitavam esconder o sexo porque andavam de quatro? Anda, responde quem é
esta criatura, esta criança cega, dependurada nas mãos da árvore parteira, cega na
arrogância paterna, ainda mais ofuscada pelo desleixe materno. Anda, responde.
É
DIPO
Esse enigma já foi respondido. E é por isso que Tebas hoje está salva e...
161
J
OCASTA
O quê? Sepossível? É por isso também que estamos presos aqui, neste lugar? Será
mesmo possível que não sentes o cheiro repulsivo da Tebas que se dilacera lá fora? Da
cidade que o que quer é justiça. Não a justiça que foi feita, mas aquela que não te
fizeste a ti. Anda, meu amado. A ironia está quase perto de nós. posso mesmo vê-la
bater à porta. O dia vem com Apolo. Responde. Sou tua esfinge. E, pela tarde, quem
é mesmo que anda com duas patas, tendo aprendido a se levantar? A fazer as coisas,
a ser um homem e uma mulher sabedores, criando fatos, manufaturando eventos,
realizando artefatos, obrando coisinhas. Quem é, anda, responde quem é?
É
DIPO
Jocasta, estás alucinada. Pára com isso.
J
OCASTA
Não paro. Ao menos soubeste enganar. E conheces bem a resposta deste enigma:
quem, pela manhã, anda como cães?; pela tarde, como os cães também, embora
adestrados?; e, pela noite, quem é, quem é que anda com três patas? Filho, marido,
irmão, amor, dor, cegueira, pai, fruto. Ai, se pelo menos fôssemos es... Presos, aqui,
neste canil de mundo. Cego! Não enxergas?
É
DIPO
Pára, Jocasta. Pára com tuas estórias. Eu não estou cego. Posso muito bem ver tudo a
meu redor. O que tramam, o que escondem, o que conspiram. Amanhã vão querer o
poder que temos. Tudo o que temos.
J
OCASTA
Não paro, Édipo. o paro. Tu, antes, é que devias haver parado. Sofista. Tirano. Puto.
Quem é este homem? Enganaste a esfinge. Mas a mim não me enganas. Anda.
Responde quem é esse homem? Responde. Responde logo, porque o dia já vem.
A luz se apaga novamente. As vozes vêm.
V
OZES
Pensa bem, anda, pensa bem.
O que farias, se te dissessem agora,
Como disseram a ele,
Que irias matar teu pai?
Pensa bem, anda, pensa bem.
O que farias, se te dissessem agora,
Como não disseram a ela,
Que irias gozar com teu filho?
Cegarias teus desejos,
Enforcarias tuas palavras,
Matarias teu próprio filho?
Pensa bem, anda, pensa bem.
A luz se acende. Num canto do palco, Jocasta está pendurada, enforcada. Édipo
atravessa o palco guiado por uma vareta de cego. Novamente a luz se apaga.
162
V
OZES
Pensa bem, anda e pensa bem.
A um canto, agachado como se fosse uma coruja, está Édipo. Jocasta está do outro
lado do palco.
É
DIPO
Tu és louca. Louca, é isso o que és. O único que quero, o único que buscamos, mulher
covarde, é enganar a morte. que, para enganar essa velha que corta o fio da vida, é
necessário pagar um preço. No meu caso, o preço foi fugir. Fugir para longe, para que
o próprio destino não me abraçasse.
J
OCASTA
E tu achas mesmo que é possível enganá-lo?
É
DIPO
Não sei. Mas tu, o que crês? Como pensas ludibriá-lo?
J
OCASTA
Já passei por tudo. Não tenho cordas a cortar.
É
DIPO
Como o tens? Teria sido Laio, teu ex-senhor, por acaso?, quem tomou a criança em
suas próprias mãos e a deu ao criado dizendo: Leva para longe e mata. Assassina.
Deste-lhe o punhal? Pensaste se a arma estava bem afiada, se a lâmina penetrava com
facilidade e, assim, o infante sofreria menos? Ou querias que ele se purificasse com a
dor? Confiavas bem no pastor ao qual entregaste teu rebento? E ele, o que tal homem
te disse? Olhaste-o nos olhos? Olhaste-o segura nos olhos? E o menino? Chorava
quando foi entregue para morrer? Sentia fome? Será que não queria estes teus seios
moles para mamar? Quem sabe até não morria engasgado?
J
OCASTA
Babaca!
É
DIPO
Na época, creio eu, estes teus peitões deviam estar bem cheios. As mamas
abarrotadas de leite deviam te doer muito! Ou não era leite, mas sangue? O que fizeste
para aplacar tua dor? Deste as tetas enormes a Laio e ao rapazinho suicida, durante
orgias em que esse mesmo leite, ou sangue!, era misturado ao vinho? Embriagaram-se
até a última gota quando o criado voltou dizendo:
V
OZES
O serviço está completo, minha boa tirana!
J
OCASTA
Pára, Édipo. Não sejas cruel. Pára.
163
É
DIPO
Mas se a criança não devia ser morta... Não é isso o que achas?
J
OCASTA
A criança tinha que ser morta.
É
DIPO
Mas, agora, tu é que te contradizes. Anda, responde, oráculo maldito. Não é tempo
ainda de rolares pelo desfiladeiro. Responde:
V
OZES
A criança devia ou não ser morta?
J
OCASTA
Foi Laio quem ordenou.
É
DIPO
Mas foste tu, infanticida, puta, quem lavraste a sentença, entregando-a a um pastor
para que a assassinasse. Por que não a mataste tu mesma? Por que não a afogaste na
sala de banho? Por que não a deixaste nua ao lado da janela, tapando-lhe bem a boca
para que sufocasse de frio, fome e solidão? Se estivesse viva, não restaria à tal criança
senão vir ter com sua mãe e matá-la. Enforcando-a com as próprias mãos.
J
OCASTA
Chorando.
Pára, Laio. Pára.
É
DIPO
Agora, vejam só. Chama-me Laio! Escuta, este aqui que está a teu lado, que contigo
teve quatro filhos, que te fode nas noites em que queres ser fodida, que te leva aos
banquetes, que te satisfaz tuas orgias de velha que nunca aprendeu a amar, que te
deixa sentar no trono a seu lado, que aceita tuas doenças mentais sem reclamar, que te
enxuga as lágrimas, que há anos escuta teus delírios...
J
OCASTA
Pára, ofuscado. Pára.
É
DIPO
Sim, este aqui é Édipo. Sim. O Édipo fugitivo e ignorante. Aquele que abandonou
Corinto porque o oráculo lhe disse que ele iria matar seu pai e dormir com sua mãe.
Sou eu mesmo este Édipo. E realmente não sei aonde vou dar. Aonde tu vais dar.
Onde toda essa gente aí fora irá ter. Este cheiro terrível da peste. Não podemos, ou
não queremos sair deste quarto? A morte e tudo aquilo que nunca se saberá. Este aqui
é Édipo, e não raptou nenhum jovenzinho para ser amaldiçoado. Eu, Édipo, o único que
fiz para ser condenado foi ter nascido. Nada mais.
164
J
OCASTA
Acalma-te, meu lindo.
É
DIPO
Acalmar-me. Pois não és tu quem me quer fazer ver tuas verdades? Então, diz: por que
não deixar este lugar, este palácio? Por que não fugir? Para que a peste não venha nos
corromper? Mas se fomos corrompidos. E, agora, aqui, confinados, esperando o dia.
Para quê acalmar-me?
J
OCASTA
Sim, acalma-te. Quero apenas que tu...
É
DIPO
E, agora, por favor, não mintas. Eras tu quem, ainda pouco, me oferecias, em jogos
de sedução e sacanagem, teu peito murcho para que eu chupasse. Eras tu mesma
aquela quem brincava com meus temores. Rindo, burlando de minhas tragédias. Não
sabes que também eu quero ser o pior cego. Também eu quero ver. Quero enxergar e
não posso. Será tudo isso só pelo poder?
J
OCASTA
Não te digo isso, minha criança, minha criancinha. Só digo que te amo. Sempre te amei.
Até quando... E que estarei sempre a teu lado, não importa o que aconteça.
É
DIPO
Estarás comigo? Assim como estiveste com Laio, quando entregaste a criança ao
pastor?
J
OCASTA
Eu te amo.
É
DIPO
O amor, Jocasta. O amor é um mito. Um mito que não nos pode fazer melhores ou
piores. É apenas um mito, engendrado para que nos enganemos a cada curva do
caminho.
J
OCASTA
Então, meu querido, é nesse mito em que quero acreditar.
É
DIPO
Acreditar nele para descrer do mundo.
J
OCASTA
E para que tu também não sofras.
É
DIPO
Sofro por meus martírios. Sabes o que é sonhar todas as noites que se está dormindo
com a própria mãe, que se acabou de assassinar o pai?
165
J
OCASTA
Bobagens, meu filho, bobagens. Não vês que todos os homens, a maioria deles,
sonham, pelo menos uma vez na vida, que dormem com a mãe? Que fazem sexo com
a própria mãe! Pergunta a teus melhores amigos, àqueles que de nada sabem e que
são de tua inteira confiança.
É
DIPO
E tenho eu alguém que seja de minha inteira confiança? Estou só. Rei e só. Estamos
trancados, Jocasta. Presos!
J
OCASTA
Então, pergunta a qualquer um.
É
DIPO
A qualquer um. Ora, vejam. Se é nisso mesmo em que acreditas, Jocasta, vou te
revelar um outro pormenor. Uma coisinha à toa. Espero que não te assustes. Ah! Tu
não podes mais te assustar com nada. Já sabes de tudo, não é, sua cadela tebana? Já
viste as piores pestes. mandaste matar teu próprio filho. te entregaste a quem
não amavas. A ti posso revelar tudo, não posso?
J
OCASTA
Claro que podes, meu amor.
É
DIPO
E é mesmo para isso que esta noite nos servirá. Para que nossa intimidade me
conduza nos infernos que irão nos acolher. Que irão mesmo festejar a presença de
Édipo e Jocasta, tiranos de Tebas. Então, escuta e verás que ainda não sou tão cego
assim. No que se refere a minha mãe, meus temores são até brandos. Em meus
delírios, em minhas vigílias noturnas, quando te vejo dormindo emaranhada em sedas,
com alguma parte da tua alvura iluminando a escuridão do quarto, nessas minhas
noites passadas em claro, não penso que tu podias ser minha mãe e que eu te
despertasse afoita e a estuprasse violentamente. Não. Sabes o que imagino?
J
OCASTA
Diga-me, meu rei.
É
DIPO
Penso que o que queria mesmo era matar meu pai. Ele, aquele meu pai que me criou
com carinho e desvelo. Não sei porque, mas queria matá-lo, dando-lhe com o bastão
até rachar-lhe o crânio ao meio, como fiz com os assaltantes que barravam o caminho
na curvinha do estradão, na encruzilhada, antes mesmo de vir dar a Tebas.
J
OCASTA
Assustada.
O quê?
166
É
DIPO
Sim, Jocasta tirana. Não tens mais culpas que eu. É isto mesmo. Queria muito matar
meu pai. Estou seguro disto. Queria matar meu pai. Não posso entender o porquê disto
tudo. Mas queria matar meu pai. Quem é mais culpado? Tu, que entregaste teu primeiro
filho para a morte; ou eu, que sonho com a miséria parricida? Quem sou eu, Jocasta?
Quem sou eu?
J
OCASTA
Não, meu menino. Quem somos nós? É também o que me pergunto: quem somos nós?
É
DIPO
Existem respostas, tirana?
J
OCASTA
Claro que existem, meu rei, meu martírio, meu milagre, meus suplícios, minhas dúvidas,
meus caminhos, meu amor.
É
DIPO
Não. Não existem respostas.
Mais uma vez, Jocasta se insinua para Édipo.
J
OCASTA
Não. A única ignorância é o amor. É nele que nos cegamos. É por ele que estamos
aqui. É por ele que não queremos enxergar. Vem, meu amado, deita teu corpo junto ao
meu e esquece. Ama-me, Édipo. Quebra-me o corpo com o mesmo bastão com que
abriste a cabeça dos assaltantes do caminho, daqueles que não queriam te permitir
passar. Não foi para isto que vieste? Para me matar, para me moer de amor? Não
importam as culpas, não te deixes assustar pelos medos, não dês razões aos sábios. O
poder é teu. Não deixes que a luz entre jamais. Fecha bem as cortinas. Impede a
chegada de Apolo.
Jocasta vai despindo Édipo com furor. Ele cede.
E, agora, anda. Faz de mim o que quiseres. Vem, meu tirano e algoz. Meu puto, menino
que nasceu para ser meu homem. Vem, entra dentro de mim e me mata inteira. Vem,
enfia logo teu punhal.
É
DIPO
Não posso, Jocasta. Não posso mais com meu punhal.
J
OCASTA
Irônica.
Meu menino, estás cansado. Fatigado com toda essa gente fora, na tua cabeça. Isso
acontece. Não te importes.
É
DIPO
Meu Deus!
167
Mais uma vez, as luzes se apagam.
V
OZES
Pensa logo o que irás fazer
Quando tua espada não mais cortar,
Quando de tua boca não mais vierem alegrias,
Quando teus seios mirrarem.
Pensa logo, vem.
Pensa logo.
E bem.
Acende-se a luz.
J
OCASTA
Vem dançar, Édipo. Falta pouco para que Apolo comece a soprar a luz de todo
conhecimento. Vem, meu amado senhor de Tebas. Falta muito pouco para que a noite
adormeça. Esta noite, não vamos dormir.
É
DIPO
O que pretendes, Jocasta? Estou cansado.
J
OCASTA
Levantando-o da cama. A música começa a tocar.
Não, meu senhor. Hoje, devemos comemorar.
É
DIPO
Comemorar o quê? O odor pestilento que envolve a cidade? O que mais? As palavras
ternas que acabamos de nos dizer? A prole condenada que vaticinou o oráculo? Não
há o que festejar.
J
OCASTA
Sim que , meu amor. É preciso comemorar estarmos todos vivos, ainda com forças
para mentir.
Puxando Édipo com força.
Vem, vem dançar.
É
DIPO
Tu és mesmo a pior entre as piores. Queres me fazer de ridículo. É isto o que queres,
não é mesmo?
J
OCASTA
Ridículo. Por que ridículo?
É
DIPO
Como és cínica! Em tantos anos juntos, nunca dancei contigo. E tu sabes disso. E
conheces a causa.
168
J
OCASTA
Causa. Mas que causa?
É
DIPO
Cínica. Vil. Devias andar em matilhas. Ladrando, latindo, rosnando, uivando. Finges.
Finges inteiramente. Não vês o caráter que tens. Onde estão teus filhos, enquanto,
obstinada, zombas de teu rei e esposo. Não querem saber de ti. Jamais desejarão
saber de ti. Nem os vivos, nem o morto. És uma cadela vulgar. Nem a morte te salvará.
J
OCASTA
Não sei a que vens. Tu, fedelho mimado. Anda, põe-te de pé. Quero que bailes comigo.
É
DIPO
Irado e mostrando os próprios pés a Jocasta.
Não. Antes, olha para mim. Olha para estes pés. Estes pés tortos e inchados, furados
para que por eles possam passar as argolas dos forçados. Olha, anda, manda buscar o
aro grande. Não é isso o que desejas? Amarrar-me ao pé de ti?
J
OCASTA
Isso é o que tu pareces buscar. É o que tu pareces ter procurado a vida inteira. Alguém
que te acorrente. Uma mãe. E eu não estou aqui para isto. Para te subjugar.
É
DIPO
Mas não te furtas a me prender.
J
OCASTA
Como tu não te inibes em me manter cativa, aqui, neste palácio.
É
DIPO
O que queres é zombar de mim. Sabes bem que não posso dançar. Que rodar pelos
salões para mim seria tão desajeitado como tem sido rolar pela vida.
J
OCASTA
A vítima. Aqui temos a vítima.
Enchendo dois cálices de vinho e oferecendo um deles a Édipo.
Pelo menos isso merece uma comemoração, não é mesmo?
É
DIPO
Vadia. Decrépita. Sabes também que não bebo.
J
OCASTA
Sei. Claro que sei. Sei que não bebes porque o idiota que te falou que eras um
bastardo, que não foste jamais filho dos pais que te criaram, esse imbecil estava
bêbado, encharcado, avinhado como um poeta ou um general acostumado a olhar
sempre o próprio umbigo e a ganhar concursos patéticos. Tens que te tratar, Édipo.
Sabes por que, meu pobre? Um dia, tu serás esquecido. Ninguém se lembrade ti. O
mar naufragará esta nossa terra. Só os peixes voltarão a enxergar.
169
É
DIPO
O quê?
J
OCASTA
É preciso que, muito urgentemente mesmo, te internes em termas, num balneário turco
qualquer. Quem sabe não te curam com umas águas milagrosas? Banhos que te
expurguem a sujeira desse corpo imundo, dessas tuas mãos sangrentas e dessa tua
cabeça vazia. Anda, brinda comigo ao que irá amanhecer.
Jocasta toma a taça e, à força, faz com que Édipo a beba.
J
OCASTA
E agora? Estás melhor? O vinho serve para esconder as culpas. Bebe, bebe mais,
bebe.
Jocasta enche a taça e novamente faz com que Édipo a beba de um só trago.
Bebe e verás. Verás que, pelo menos até a aurora, estarás bem escondido atrás desta
verdade. Toma, toma mais. Embriaga-te.
Édipo enche sua taça e a bebe mais uma vez. E de novo.
J
OCASTA
Estás gostando. Agora vês o que perdeste todos estes anos. Como poderias teres te
aliviado da vontade de matar teu pai, do desejo de estuprar tua mãe.
É
DIPO
Queria mesmo era me matar puta velha! Velha! Piranha velha e acabada. Bagaço.
J
OCASTA
Ah! O efeito te sobe e suaviza a consciência. Te põe mais imoral. Mas isso será por
pouco tempo. Por muito pouco tempo. Logo, outra verdade será anunciada. E, em
seguida, mais outra e outra e ainda muitas mais. O tempo está perdido, até que
resolvamos dar fim a ele. E isso, nós mesmos podemos fazer. Podemos até nos matar,
sabias? Mas, agora, vem. Me estupra, como fez Laio. Faz comigo o que sempre
quiseste.
Édipo começa a rasgar as roupas de Jocasta. A transa é alucinada e violenta.
Isso. Não é assim que querias? Faz com ardor. Faz, indecente. Menino pornográfico.
Machuca, anda, machuca a tua velha. Mutila. Arranca os pedaços. Incendeia tua febre.
Bate. Anda: bate. Enforca!
Apagam-se as luzes.
V
OZES
Pensa e anda.
Pensa e faz.
Pensa bem.
Pensa aquém.
Pensa além.
Não penses mais.
170
Penumbra. Jocasta e Édipo extenuados.
É
DIPO
Jocasta. Não posso te entender. Num instante...
J
OCASTA
...num instante viva; no outro, morta.
Como se falasse para outra pessoa.
Toma, pastor, eis aqui meu filho. Eis aqui meu filho para que o sacrifiques.
É
DIPO
Mas a criança devia ser morta, Jocasta.
J
OCASTA
Não. Hoje a coisa não é assim mais. Não vês que por ti sou capaz de qualquer coisa.
Que por ti sou capaz até de me enforcar. Olha bem para mim. A mãe que querias é esta
que aqui vês. Esta tua fêmea que usou o amor para acabar com aquilo que leva aqui
dentro.
É
DIPO
Calma, minha rainha atormentada.
J
OCASTA
Como calma?, se Apolo anuncia suas primeiras luzes. Mas, talvez, as luzes de Apolo
venham para revelar a escuridão em que vivemos. Quem sabe aquilo que vivemos
agora, na penumbra deste quarto, entre lençóis suados, almofadas atiradas, vestidos
rasgados, quem sabe não seja tudo isto a verdadeira luz?
É
DIPO
Uma penumbra que descobre...
J
OCASTA
... e um clarão que ofusca.
Jocasta se dirige à janela.
J
OCASTA
vem um dia, Édipo. Mais um dia. E, com ele, chega também o imprevisível, com o
qual deveremos aprender a viver.
Ruídos vêm de fora. O dia começa a clarear.
É
DIPO
Jocasta, o que são esses rumores?
J
OCASTA
São teus filhos, meu amado.
171
É
DIPO
Como meus filhos?
J
OCASTA
Teus outros filhos, Édipo. Aqueles sobre os quais teu poder se exerce.
É
DIPO
Para que vêm, Jocasta?
J
OCASTA
Dissimulada.
Estarei a teu lado, te cuidando como sempre te cuidei.
É
DIPO
Mas que filhos são estes, minha senhora? São apenas crianças, Jocasta.
J
OCASTA
Teus filhos de Tebas, teus filhos do mundo.
É
DIPO
Mas se nem os identifico. São muitos, são infinitamente muitos.
J
OCASTA
Sim, são muitos. E são todos teus filhos. Homens e mulheres do teu clã. Contigo,
compartilham a mesma dúvida.
É
DIPO
Que dúvida, minha tirana?
J
OCASTA
Não sabem quem são.
É
DIPO
Nenhum deles?
J
OCASTA
Nenhum deles, meu pequeno.
É
DIPO
E por que vêm?, se Apolo mal atirou suas primeiras setas. Se também eu não sei quem
sou.
As luzes começam a ofuscar os olhares de Édipo e Jocasta, direcionados em direção a
estas mesmas luzes.
Por que vêm, Jocasta?
J
OCASTA
Vêm por causa da peste. E para que tu decifres o enigma tantas vezes repetido.
172
A luminosidade, agora, cega completamente.
É
DIPO
E eu decifrarei este enigma, Jocasta? Saberei quem sou?
J
OCASTA
Não.
É
DIPO
E eles, minha tirana? Eles saberão quem somos?
J
OCASTA
Também não, meu Édipo.
Apaga-se a luz repentinamente. Escuro total, depois de uma claridade que cegava.
V
OZES
Não é bastante falar.
Não é bastante viver.
Não é bastante pecar.
Não é bastante perder.
Não é bastante ganhar.
Não é bastante morrer.
Não é bastante andar.
Não é bastante entender.
Não é bastante parar.
Não é bastante sofrer.
Não é bastante não crer.
Não é bastante pensar.
173
ANEXO A – VASILHA COM FIGURAS VERMELHAS
Figura 1: Vasilha com figuras vermelhas – 440 a.C.
Fonte: Museu Municipal de San Gimignano
http://www.artehistoria.com/historia/obras/8035.htm
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Letras
ÉDIPO
Edmundo de Novaes Gomes
Belo Horizonte
2006
Edmundo de Novaes Gomes
ÉDIPO:
acasos de uma leitura heterodoxa
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais,
como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em Literaturas de Língua
Portuguesa.
Orientação: Audemaro Taranto Goulart.
Belo Horizonte
2006
Para João, Lu, Manoel e Coeli.
Para Cristina Vilaça e Dulcejane Vaz.
AGRADECIMENTOS
A meu orientador, Doutor Audemaro Tarando Goulart.
Ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais, aqui representado pela secretária Berenice Viana de Faria e pela
Doutora Suely Maria de Paula e Silva Lobo.
A Bernadete Bittencourt, Carlos Alberto de Carvalho, Denise Gomes, Johnny
José Mafra, Márcia Marques de Morais e Vinícius Passos.
A UMA MULHER
Não tendo podido te criar
Nem tendo sido criado por ti
Eu me vingo do destino enxertando-me no teu ser.
Jamais conseguirás te libertar de mim
Porque eu te sitiei com a chama do amor,
Porque rondei durante dias e noites o Coração de Deus
A fim de extrair dele o segredo da ternura.
Todos os que te olham pensam logo em mim,
Todos os que me olham pensam súbito em ti.
Eu sou tua cicatriz que nunca se há de fechar.
Eu te perseguirei até depois da minha morte
E virei a ti no murmúrio dos ventos, no lamento das ondas,
Na angústia e na alegria dos poetas meus sucessores,
Nas almas grandes limitadas pelo físico.
Sentado nas nuvens esternas eu te esperarei
E me nutrirei através dos tempos da nostalgia de ti.
Murilo Mendes – A Poesia em pânico
RESUMO
Édipo Acasos de uma leitura heterodoxa é um trabalho dissertativo que tem como
objeto principal de estudo a tragédia Édipo Rei, de Sófocles. A análise realizada busca
marcar uma revisão bibliográfica em torno de hermenêuticas que possam ser
consideradas orto e heterodoxas sobre o assunto. Depois da leitura teórica do tema,
foram também produzidos dois estudos interpretativos. O primeiro, sobre o drama Um
Édipo, do português Armando Nascimento Rosa. O outro, sobre Jocasta Tirana,
situação dramática especialmente criada no sentido de procurar demonstrar, de modo
prático, as análises teóricas desta mesma dissertação.
Palavras-Chave: Jocasta, Édipo, Sófocles, tragédia.
R
ÉSUMÉ
Oedipe Une Lecture Hétérodoxe est une dissertation qui a comme objet principal
d'étude la tragédie Oedipe Roi, de Sophocles. L'analyse réalisée recherche marquer
une révision bibliographique autour des herméneutiques qui puissent être considérées
orto et hétérodoxes sur cette thématique. Après la lecture théorique, aussi ont été
produites deux études interprétatives. Premier, sur le drame Un Oedipe, du portugais
Armando Nascimento Rosa. L'autre, sur Jocaste Tyrannique, situation dramatique
spécialement créée dans le but de chercher à démontrer, de manière pratique, les
analyses théoriques de cette même dissertation.
Mots-Clé: Jocaste, Oedipe, Sophocles, tragédie.
SUMÁRIO
1.
INTRODUÇÃO............................................................................ 9
2.
A COSMOGONIA PARRICIDA...................................................
20
2.1. HOMENS, DEUSES E PODER.................................................................
24
2.2. ÉDIPO E AS MARCAS DO DESTINO......................................................
28
2.3. CÓDIGOS PARA UM MITO......................................................................
34
3. MEDIDA E DESMEDIDA............................................................ 42
3.1. TRAGÉDIA E AMBIGÜIDADE..................................................................
49
3.2. ERRO, HONRA E DESTINO.....................................................................
53
4. MARCAS DO GÊNERO..............................................................
66
4.1. MARCAS ESTRUTURAIS.........................................................................
76
4.2. MARCAS DO DESEJO.............................................................................
81
5. CAMINHOS PARA A HETERODOXIA.......................................
87
5.1. UM ÉDIPO SEM COMPLEXO...................................................................
88
5.2. ÉDIPO, JOCASTA E CULPA....................................................................
94
5.3. SABER E PODER.....................................................................................
99
5.4. APOLO E DIONÍSIO..................................................................................
109
6. DUAS LEITURAS HETERODOXAS...........................................
117
6.1. ESPELHO DE FANTASMAS....................................................................
120
6.2. MIRANDO JOCASTA................................................................................
129
7.
CONCLUSÃO............................................................................. 136
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................
140
BIBLIOGRAFIA...............................................................................
143
APÊNDICE A – JOCASTA TIRANA...............................................
145
ANEXO A – VASILHA COM FIGURAS VERMELHAS.................. 173
9
1. INTRODUÇÃO
Qualquer leitura que se faça do mito de Édipo não é capaz de trazer, a princípio,
novidades surpreendentes para o meio acadêmico. De Freud (1981) a Deleuze (1966),
de lio Pelegrino (1987) a Marilena Cha(1991), passando sempre por Sófocles,
estão aí os mais diversos enfoques que se centram num mito essencial do viver
humano para descobrir e desvelar possibilidades, sempre em busca de explicar o que é
de certo inexplicável: a própria existência.
Enquanto as primeiras leituras vão se preocupar com a análise e demonstração
deste mito, a de Sófocles irá, de maneira exemplar e através da tragédia, nomear a
cosmogonia parricida que atravessa a própria mitologia grega. Desde o Édipo Rei de
Sófocles, o mito do qual queremos tratar permeia a criação literária através das mais
diversas interpretações. A título de exemplo, poderíamos citar, em gêneros distintos, o
conto “A casa do girassol vermelho” (RUBIÃO, 1980), e o drama teatral António
Marinheiro (o Édipo de Alfama), de Bernardo Santareno (SANTARENO, 2004).
Na mesma medida em que cada um dos autores acima citados, além de outros,
trouxe luz inextinguível com sua leitura do mito, também arrastou, a reboque dessas
mesmas interpretações, dúvidas e questionamentos permanentes. Ou seja: o que se
pretende dizer é o óbvio de que as lacunas estão sempre abertas quando se trata de ler
um mito, uma vez que os espaços seguem sempre vazios, como se exigissem um
preenchimento eterno, possibilitado aqui pelo trabalho disjuntivo e analítico da razão.
10
No entanto, como esta mesma razão possui ordem inerentemente lingüística, também
ela não pode querer esgotar as possibilidades hermenêuticas.
E é exatamente tal capacidade inesgotável de proposição de renovadas
hipóteses interpretativas para o mito e o gênero que o veicula - Édipo que mata seu pai,
casa-se com sua mãe e com ela gera quatro filhos -, que me fez pensar numa leitura
que o enxergue desde uma perspectiva heterodoxa, centrando-se em questões como o
gênero literário e jogando o foco sobre partes menos ressaltadas nas interpretações
mais conhecidas e consagradas, tais como a de Sófocles, com sua tragédia
incomparável, e a de Freud, com sua abordagem psicanalítica.
Tanto na leitura de Sófocles como na freudiana, o mito de Édipo, é o que me
parece, é lido a partir de uma tradição hermenêutica ortodoxa. No dramaturgo grego, a
escritura segue os preceitos estabelecidos na Poética de Aristóteles(1993), não
exatamente porque por eles foi influenciada, mas porque, poder-se-ia dizer, ela mesma
os inspirou. Isto quer dizer que o Édipo Rei, que é uma das obras que inspira a leitura
teórica que Aristóteles faz do gênero dramático, é, nesse sentido, mais do que um
reflexo de tal gênero, mas aquilo mesmo que lhe deu a luz.
Além dos aspectos acima mencionados, Sófocles realiza em Édipo Rei, assim
creio, leitura e transfiguração de mitos de fundação anteriores, constituintes da tradição
mitológica grega. A exemplo, poderíamos lembrar a deposição de Urano, contada por
Hesíodo (2003) em sua Teogonia, em que se nota a tradição parricida que assombra
o imaginário grego. Outro estudioso, Mircea Eliade (1949), refere-se à figura similar de
Cronos, que padeceria do mesmo oráculo.
Se estes mitos anteriores tratam da genealogia olímpica, Sófocles terreniza-os,
por assim dizer, e os particulariza na composição da personagem de Édipo. No caso
11
freudiano, a tradução do mito edípico atravessa-se pelo estudo do gênero, em que ele
considera a figura do herói:
O herói é, a princípio, um rebelde contra Deus e o divino. É do sentimento de
miséria que a débil criatura sente-se enfrentada com o poderio divino; sendo
daí que o prazer pode considerar-se derivado, através da satisfação
masoquista e do gozo direto da personagem, cuja grandeza o drama tende,
contudo, a destacar. (FREUD; TOGNOLA, 1981, p.137)
Nota-se que a questão anterior a estas abordagens do mito parricida tem como
alvo barrar a potência paterna e/ou apropriar-se dela, como Freud indicou em outros
estudos, a exemplo do seminal Totem e Tabu (FREUD, 1987a) e em Dostoievski e o
parricídio (FREUD, 1996). Desse prisma, tanto no universo mitológico quanto no
freudiano, lutar contra o pai é lutar pelo poder e pela posse de suas prerrogativas. As
prerrogativas do pai são as do poder, desejado por todos. Édipo não seria o tirano de
Tebas se não tivesse vencido o pai, violentando, portanto, a ordem patriarcal sob a qual
a sociedade se estrutura.
Assim, a maneira de enxergar o mito está fundada na ortodoxia, e por ela é
explicada. Como quer Aristóteles, e Sófocles, é claro, a tragédia segue seu ritmo
tradicional: a ação acontece no transcorrer de um dia, reconhecimento e peripécia
estão em seus lugares exatos, a verossimilhança existe, o mito é preenchido e
transmitido pela ão. Além disso, o solo no qual o dramaturgo grego pisa é patriarcal,
referendado pelo protagonismo da figura masculina de Édipo.
A leitura freudiana do mito, ao que parece, também segue na tentativa de
justificar, como é sabido, não apenas a passagem da natureza à cultura, do mito à
razão, mas em busca de estabelecer um conceito capaz de influenciar ou provocar
12
quase tudo aquilo que se refere à psicanálise: o Complexo de Édipo. Tal conceito, por
também estar fincado no mesmo solo patriarcal da tragédia de Sófocles, poderia ser
enquadrado na mesma tradição hermenêutica de leitura do mito à qual estamos mais
amplamente acostumados. Isto é: uma interpretação centrada no masculino.
Esta tradição, vale observar, não se encontra apenas nas duas obras citadas
como exemplos de leitura de Édipo, a de Freud e Sófocles. Todos os estudos ou textos
literários mencionados anteriormente nesta dissertação também se inspiram em idéias
centradas no masculino. Cada um deles projeta seu foco principal numa maneira de ver
o mundo pautada pela tradição patriarcal, por uma razão que se delineia a partir de
uma luz diurna, como Aristóteles afirma dever ser. Uma razão em que a mulher e aquilo
que a noite esconde estão colocados como coadjuvantes.
A idéia de partir para uma leitura que busque a heterodoxia da noite e da mulher,
colocando-as como protagonistas de uma interpretação do mito, surgiu e foi tomando
corpo na tentativa de enxergar as relações existentes entre o próprio mito e o gênero
dramático que lhe é intrínseco. Nesse sentido, o que se procurou primeiro fazer foi
sistematizar alegoricamente textos que tratam do tema. E o trabalho de alegoria que
aqui aconteceu poder-se-ia dizer semelhante ao que pré-socráticos e estóicos fizeram
em seu tempo, procurando descobrir idéias embutidas figurativamente nas narrativas
mitológicas definidas nos textos homéricos.
E foi exatamente isso o que aconteceu: procurou-se ler as interpretações do
Édipo de maneira que, num momento posterior, se pudesse criar uma outra que, na
mesma medida em que tomasse para si os preceitos aristotélicos sobre o gênero,
procurasse também invertê-los. A idéia foi mais simples do que pode parecer: primeiro,
ler as análises consagradas que envolvessem de maneira particular o mito do tirano de
13
Tebas; depois, e a partir de tais leituras, propor uma interpretação distinta para o mito,
centrada na figura de Jocasta; por último, criar uma situação literária que, seguindo os
contornos essenciais definidos para o gênero por Aristóteles, propusesse uma projeção
que transformasse estes mesmos conceitos.
Foi então escrita uma peça teatral que ganhou o nome de Jocasta Tirana
(Apêndice A). A partir de então, o que se busca é registrar uma outra leitura, tentando
mostrar quais foram os parâmetros, modelos e fugas que conduziram a uma
interpretação heterodoxa do mito. Assim, o que aqui se chama de heterodoxia é o
tentar enxergar a noite que antecede o dia em que o mito, enquanto gênero, deve
durar. É tentar iluminar a figura de Jocasta, jogando nela uma luz que, em geral, está
centrada em seu filho e esposo. É tentar, sobretudo, ver este mito enquanto uma
linguagem consagrada pelo gênero literário e, desde este mesmo gênero, eternizada
em novas e distintas perspectivas.
Nesse sentido, o objetivo geral da dissertação é realizar uma leitura do mito de
Édipo que possa, além de ser enxergada a partir de um gênero literário, transformar os
preceitos desenvolvidos por Aristóteles para a composição da tragédia de maneira a
tentar ensejar uma interpretação que fuja da ortodoxia centrada na figura masculina a
partir da qual tal mito costuma ser analisado. O que se pretende é mesmo dissertar
comparativamente em torno do corpus artístico estabelecido sobre a heterodoxia a
partir do caminho inusitado, com relação à tradição acadêmica, de tentar captar que
método, quais caminhos e de que maneiras a leitura teórica de textos que tratam do
14
mito de Édipo, somada à análise de suas frestas e arestas, permitiram, por projeção, a
escritura da tragédia (anti-tragédia?) Jocasta Tirana
1
.
De maneira mais específica, buscar-se-á delinear a paráfrase e a própria
discussão do mito de Édipo, a partir de duas referências bastante concretas. A primeira
tem suas raízes na própria mitologia grega, através de uma análise que busca o ulterior
a Édipo, com referências a relatos como o de Urano, Cronos e Zeus. A compreensão de
conceitos que envolvem a Moira é essencial para ensejar aquilo que é também objetivo
desta dissertação: perceber que pressupostos (o destino, por exemplo) conferem
caráter ortodoxo à leitura do mito.
A outra referência é Totem e Tabu, de Freud (FREUD, 1987a). A partir dela, o
que será tentado é uma análise mais detalhada sobre a própria questão do gênero,
uma vez que tal texto freudiano coloca de maneira exemplar como a hermenêutica
clássica percebe a passagem que acontece entre o mito e o estado de conhecimento
(logos).
Outro objetivo específico deste trabalho é a percepção mais aprofundada da
questão do gênero. A abordagem conceitual da Moira será então novamente feita na
tentativa de defini-la como linguagem mesmo: o destino que está escrito: o Édipo que
não pode deixar de matar seu pai e casar-se com sua mãe. Em contrapartida, como
motivo de introduzir uma perspectiva heterodoxa, procurar-se-á contrapor ao ideário
da Moira a personificação da Hýbris, e discutir a questão do gênero também a partir da
desmedida que ela mesma pode oferecer. Neste ponto - como diz Johnny Mafra,
lembrando Antônio Freire (1969) -, “o trágico deve ser entendido como a luta do homem
1
Este texto - lançado em livro no dia 30 agosto de 2006, pela Unidade Editorial da Secretaria Municipal
de Cultura de Porto Alegre (RS) - irá figurar como apêndice da dissertação.
15
contra o Destino” (MAFRA; 1980, p.72). E o destino é a própria Moira, dona de fios que,
se por um lado não dependem da poesia humana para serem tecidos, por outro
existem aquém e além do próprio ser inacabado que esse próprio homem é.
A poesia não criou o Destino. Ele existe na mentalidade popular. Entra na
tragédia como elemento que se contrapõe à finitude humana. (MAFRA; 1980,
p.76)
Também presente na tragédia está o conceito de Hýbris. Segundo o Dicionário
de Mitologia Grega e Romana (KURY, 2001), o princípio é a personificação da
arrogância e insolência(KURY, 2001, p.197). Oposto da lei divina, inimiga da justiça, a
própria desmedida. Nada menos ortodoxo, nada mais humano. A Jocasta que dorme
com seu filho e com ele gera outros filhos, o Édipo parricida e provocador de sua
própria cegueira estão condenados a revelá-la para, a partir daí, serem perseguidos
furiosa e implacavelmente. Poesia trágica que busca hereticamente alguma
transformação, mesmo que esta seja a possível, precária. Destino x ruptura.
Ortodoxo x heterodoxo. Apolo x Dionísio. Moira x Hýbris. É esse também o embate que
esta dissertação irá arriscar expor.
Também procurarei dissertar brevemente sobre o Édipo Rei, de Sófocles. O que
será almejado é a percepção do porquê esta obra é considerada um exemplo legítimo
daquilo que se define, do ponto de vista mais ortodoxo, como tragédia. Em vários
momentos de sua Poética, Aristóteles (1993) cita Édipo Rei de maneira a considerá-lo
uma obra em que o gênero trágico se expressa em completude exemplar. Nesse
sentido, vale atentar para o que diz Mário da Gama Kury (2002) em sua introdução à
“Trilogia Tebana”:
16
O Édipo Rei de Sófocles é, portanto, a mais típica das tragédias gregas, e por
isso é uma das mais citadas por Aristóteles em apoio a suas definições e
concepções. (KURY, 2002, p.11)
Depois de passar por Sófocles, a análise do mito acontecerá com textos mais
provocativos no que se refere à sua abordagem. O entendimento de Audemaro Taranto
Goulart (1997) em “Leituras do mito de Édipo”, Marilena Chauí (1991) e Hélio Pellegrino
(1987) são fundamentais para tal. Vale lembrar que os três autores citados expõem
interpretações do mito que buscam a discussão da heterodoxia. Pellegrino (1987), em
análise à teoria freudiana e lacaniana, e propondo uma leitura diversa, afirma de
maneira bastante heterodoxa:
Édipo, herói da legenda tebana, ao assasinar o pai e ao casar-se com a mãe,
não se enquadra no esquema estrutural e conceitual do complexo de Édipo, tal
como o descreve Freud. Édipo, portanto, não padecia do complexo de Édipo
freudiano, tendo sucumbido a vicissitudes de natureza pré-edípicas.
(PELLEGRINO, 1987, p.309)
Goulart (1997), em texto analítico de leituras de Édipo, depois de discorrer sobre
o estruturalismo de Lévi-Strauss (1973) e também sobre Freud, entre outros, conclui:
O mito poderia ser visto, então, como um elemento que explicita dois sistemas
de relacionamento humano: o que obedece aos princípios da regência feminina
e o que se submete ao domínio masculino. Dentro dos mecanismos que
propiciam a articulação dialética, ambos estariam se insinuando mas,
claramente, o mito como que acena na direção de um deles. E faz isso através
da sutileza com que se percebe que o Édipo vitorioso é aquele que se liga aos
elementos femininos. Pelo menos essa é uma leitura possível, ainda que para
operacionalizá-la o leitor tenha que transitar da perplexidade à ousadia, pois,
parodiando o próprio Nietzsche, é preciso incidir na sublime e terrível coluna de
Memnon do mito para que ele, subitamente, ressoe e cante.
(
GOULART, 1997,
p.26)
17
Ressoar e cantar foi a proposta executada quando se leram as interpretações
do Édipo em busca de uma nova medida. Buscar a perplexidade de trepar a coluna de
Mêmnon é um dos objetivos específicos desta dissertação. Quem sabe, será possível
fazê-lo, escutando a música que saúda uma aurora que vem logo após o conhecimento
daquilo que a noite pode ter a dizer e daquilo que a mulher (Gaia?, a que nasceu logo
após o Caos e, sozinha, engendrou o próprio Urano) certamente tem a revelar.
Além disso, buscarei finalmente encontrar meios para que seja feita uma leitura
heterodoxa do mito. O que dizem dele autores como Nietzsche (1992) irá permear tal
análise. É aqui também que a situação literária criada será avaliada em uma
perspectiva comparativa com o que se definiu como ortodoxo e heterodoxo, procurando
apontar nela aspectos relevantes para uma interpretação que busca querer se fazer
enxergar a partir de uma hermenêutica não tradicional.
em seu “A origem da tragédia” (NIETZSCHE, 1992), o filósofo alemão parece
assinalar o caminho para uma leitura que aponte a desconstrução do tradicional. É pelo
que Nietzsche diz logo no primeiro parágrafo desse seu livro que pretendo me deixar
conduzir:
Teremos dado um grande passo, e promovido o progresso da ciência estética,
quando chegarmos não à indução lógica, mas também à certeza imediata,
deste pensamento: a evolução progressiva da arte resulta do duplo caráter do
espírito apolíneo e do espírito dionisíaco, tal como a dualidade dos sexos gera
a vida no meio de lutas que são perpétuas e de aproximações que são
periódicas. (NIETZSCHE, 1992, p.35)
Como se disse reiteradamente, equilibrar-se entre a profecia como verdade
do sonho” e a desmedida como verdade da embriaguez (DELEUZE, 2001, p.51),
18
como diz Deleuze (2001) em nota de seu livro sobre Nietzsche, é o objetivo central
deste trabalho.
A metodologia geral a ser empreendida neste estudo coloca leitura,
interpretação, seleção e citação de fontes primárias e secundárias em primeiro plano.
Contudo, além de recorrer à pesquisa bibliográfica dos textos teóricos que
possibilitaram, de um ou outro modo, a escritura da situação literária, também será
analisado detidamente o Édipo Rei, de Sófocles.
Nesse sentido, as fontes primárias serão a incomparável obra de Sófocles, a
situação literária criada e um outro drama intitulado Um Édipo (ROSA, 2003), escrito
pelo português Armando Nascimento Rosa, produzida a partir das leituras e
interpretações encontradas nos textos teóricos sobre o mito de Édipo. Assim, a análise
da obra de Sófocles, além de assegurar permanência e transmissão do próprio mito de
Édipo, figura como arquétipo capaz de definir toda uma ortodoxia clássica da própria
tragédia, como se pode observar a partir da leitura da Poética de Aristóteles. Jocasta
Tirana será, então, exemplo produzido especificamente com a finalidade de buscar uma
outra abordagem, figurando como texto a partir do qual tentar-se-á vislumbrar uma
leitura heterodoxa do mito.
Ressalte-se que, neste trabalho, se a proposta de análise de uma produção
ficcional de minha própria lavra, cotejando-a com o “texto sagrado” de Sófocles, puder
sugerir a desmedida, tão condenada pelos gregos, esta aparente pretensão foi
estimulada pela devoção confessa ao mito helênico e a quase tudo que a ele diga
respeito. Assim, Jocasta Tirana, também como releitura, servirá como espécie de
espelho fosco, pano de fundo, do qual se extrairão subsídios teóricos sobre os quais é
preciso centrar a atenção, verificando suas implicações e analisando-os, em processo
19
de alegoria, que constituem os nós que pretendemos desatar para erigirmos esta
outra perspectiva de leitura que se quer cerne desta proposta.
20
2. A COSMOGONIA PARRICIDA
Céu e terra. Urano e Gaia. Neste mito de fundação da tradição grega, este casal
de deuses é quem dará origem a toda uma teogonia. São eles os pais dos seis Titãs,
das seis Titânidas, dos três Ciclopes e dos três gigantes Hecatonquiros. Mas é o filho
mais jovem, Cronos, o único que aceita atender ao pedido da mãe. Cansada de
procriar, Gaia pede a todos eles que a protejam da voracidade sexual do pai, Urano. O
titã Cronos, pertencente à primeira geração divina, é, como se disse, o único que a
ajuda. É ele quem corta os testículos do pai e os atira ao mar, destronando-o em
seguida.
Não temos ainda aqui o parricídio, mas algo que dele se aproxima: a castração.
Aproxima-se porque a castração é o fato que, de uma ou outra maneira, conduzirá ao
próprio parricídio, como veremos adiante. Em conseqüência de rebelar-se e castrar o
próprio pai, Cronos detém para si o poder. Deus soberano e senhor do mundo, ele casa
com sua irmã, Rea. Insaciável também, gera vários filhos, mas, temendo que aquilo que
ocorreu a seu pai aconteça também com ele, devora cada um de seus filhos logo após
o nascimento.
O único com o qual isso não acontece é Zeus, uma vez que Rea engana o
marido e, depois de colocar uma pedra no manto que cobria seu último filho, entrega-a
ao esposo, que a engole sem se dar pelo embuste. Zeus, então, respira livre e, logo,
em sua idade adulta, é ele quem irá rebelar-se contra o pai. Primeiro, dando-lhe uma
bebida que facom que este vomite os filhos; depois, com a ajuda de seus irmãos e
21
dos gigantes Hecatonquiros por ele libertados, guerreando contra o pai, vencendo-o e
assumindo o poder.
Contra Zeus também, entretanto, paira também a sombra do parricídio. É o que
anunciou Gaia, ao profetizar que ele, que havia encarcerado os Titãs no inferno, seria
destronado por um seu descendente. É por isso que, seguindo o exemplo que vem
mais uma vez do pai, Zeus engole sua esposa Métis, que, na profecia de Gaia, seria
ela quem daria à luz uma deusa cujo filho o destronaria.
Segundo André Virel, assim como citado no Dicionário de mbolos
(CHEVALIER; GHEERBRANT,
1998, p. 922), podemos dividir a mitologia grega em três
distintas fases da evolução criadora. A primeira é a chamada cosmogênese, em que
está Urano, efervescência caótica e diferenciada; em seguida, a esquizogênese, na
qual temos a presença decisiva de Cronos; finalmente, vem a autogênese, com Zeus e
seu reino. A cosmogênese representa caos e inércia; a esquizogênese, corte e divisão,
com o fim das secreções indefinidas do pai; a terceira fase tem a marca de um novo
começo ordenado, organizado, controlado.
Urano é o símbolo do início de toda e qualquer ação, com seu revezamento de
exaltação e repressão, impulso e queda, vida e morte, expressão do ciclo dos
desenvolvimentos. É o próprio Céu e representa a sexualidade devastadora, sem limite,
que destrói. As genealogias se misturam: para a teogonia órfica, ele é irmão de Gaia;
para outras, Gaia, que simboliza a terra, é também sua mãe e esposa. Como se
disse, ela, cansada de tanto conceber, pede a seus filhos que a protejam de Urano e de
sua insaciabilidade sexual. Segundo conta a tradição mitológica mais antiga, depois
que Cronos castra o pai e joga seus testículos ao mar, da espuma sangrenta das águas
do oceano nasce Afrodite. Com a mutilação do membro gerador de Urano, desaparece
22
do mundo a fecundidade estéril e desordenada e surge, com a deusa que comumente é
identificada ao amor e à fertilidade, a ordem, a procriação comedida e a continuidade
das espécies.
Interessante, no caso de Cronos, é perceber que, com o nome alterado para
Khronos, esta divindade costuma também ser personificada como o tempo. E, nesse
sentido, uma e outra personificação também se aproximam enquanto símbolos de uma
fome devoradora, de desejo insaciável, que mata as fontes de vida. Se o primeiro é
incapaz de se adaptar à evolução da vida e da sociedade, o outro não permite que essa
evolução aconteça alheia à sua vontade. Ambos são senhores e donos de suas
criaturas e não lhes permitem que a vida aconteça independente de suas ordens e
determinações. Não concebem sucessão e sucessores. Cronos mata seus filhos para
não ter descendentes, o outro consome os humanos com sua foice.
Cronos corta os testículos do pai: derrota-o. Urano perde o poder de gerar e de
se perpetuar. Mas Cronos também teme que seus filhos façam com ele o mesmo que
fizera a seu pai e, por isso, engole-os um a um. Talvez receie que, assumindo a
paternidade de sua prole, perca a divindade, transformando-se em humano e, em
conseqüência, tornando-se presa de Khronos. Por isso, nega sua geração.
No que se refere a este episódio da castração, valeria também recordar que
Cibele, a deusa-mãe da Frígia, Ásia Menor, foi a primeira a quem foi dedicado tal ritual.
Confundida na Grécia com Rea, esposa de Cronos, Cibele, considerada mãe de todos
os deuses, não queria ceder aos desejos de seu filho e amante Átis, casando-se com
ele. Num acesso de loucura, Átis se castra antes de suicidar-se. Assim, o que se
poderia inferir é que a castração também deriva em morte. Morte de um tipo de poder
para a construção de outro.
23
Castrar Urano parece ser a única alternativa para destituir um deus, um imortal,
de seu poder, uma vez que cometer o parricídio é impossível. Nesse sentido, castração
e morte se equivalem quando o que buscamos é derrubar poderes para erigir outros.
Fosse humano, como Édipo, e tudo poderia ser distinto. Ou seja: o que aqui se
pretende afirmar é que o parricídio está para os humanos Édipo e Laio assim como a
castração está para os deuses Cronos e Urano. O que interessa, nos dois casos, é que
o poder seja transferido, que ele mude, mesmo que temporariamente, de mãos.
Zeus, no entanto, não castra, pelo menos no sentido concreto. Para ter o poder
para si, ele tem antes que buscar aliados. Outra vez, o alvo é o mesmo: o pai e tudo
aquilo que este simboliza. E é para derrotar tal pai que ele faz com que este vomite
seus filhos. A luta, então, pode começar. E será vencida pelo filho que irá, em seguida,
dividir com seus irmãos os poderes. O filho que, mesmo sendo um deus, busca nos
humanos uma de suas prerrogativas: a negociação.
O que aqui temos, como foi mencionado através de André Virel (CHEVALIER;
GHEERBRANT,
1998), é a autogênese caracterizada pela ordem. Os filhos vitoriosos
repartem entre si o universo. A Hades, cabe o inferno; a Poseidon, os mares; Zeus fica
com o u e a proeminência sobre os demais deuses e sobre o universo. Para Cronos,
o pai que não sabia dividir e que representava a ameaça da indefinição, a castração
está no rcere, que é guardado por seus próprios filhos, os gigantes Hecatonquiros.
Um deus aprisionado, sem poder. A castração, portanto, não se realiza no sentido
concreto, mas no simbólico.
24
2.1. HOMENS, DEUSES E PODER
Se para os deuses os fatos possuem tal dimensão, para os homens humanos as
definições não são tão diferentes. Buscando dar a seu Complexo de Édipo uma
significação universal, Freud publica, entre 1912 e 1913, seu livro Totem e Tabu
(FREUD, 1987a). Segundo o Dicionário de Psicanálise no prefácio de 1913, ele
apresenta Totem e Tabu como uma aplicação da psicanálise a ‘problemas o
esclarecidos da psicologia dos povos’”. (ROUDINESCO; PLON, 1998, p.757).
Vale crer que a história narrada pelo livro capaz de misturar componentes
literários e antropológicos em seu interior, na tentativa de explicar a um tempo temas
como a origem da humanidade, a questão do monoteísmo e a própria angústia gerada
pelo poder –, possui aspectos que a ligam de maneira interessante ao que se disse a
agora sobre as disputas entre os deuses gregos. Freud conta que, num tempo primitivo,
os homens viviam em pequenas hordas. Tais hordas estavam, cada qual à sua vez,
submetidas ao poder arbitrário de um macho. Os demais lhe deviam obediência; as
fêmeas, todas e cada uma delas, lhe pertenciam.
Um dia, os filhos da tribo se rebelaram contra esse pai déspota e tirano,
interrompendo o reino da horda selvagem. Em uma ação de violência coletiva, mataram
o pai e comeram seu cadáver. Depois do assassinato, no entanto, arrependidos,
repudiaram o parricídio para, em seguida, criar uma nova ordem social. Esta nova
norma instaurava, ao mesmo tempo, a exogamia e o totemismo. Com este, proibiam o
assassinato do substituto do pai, ou seja, do próprio totem; com aquela, renunciavam à
posse das mulheres do clã do totem.
25
No prefácio que faz a seu Dicionário da Mitologia grega, Ruth Guimarães (2004)
explica didaticamente o que ela mesma chama “idade do mito na civilização”. Em
alguns pontos se aproximando daquilo que diz Virel, a autora afirma que os mitos mais
antigos, cosmogônicos, tratam de fenômenos naturais, como a própria morte e a origem
do mundo. Não é sem mais que divindades como Urano e Gaia, que personificam
respectivamente céu e terra, fazem parte de tal grupo.
Numa segunda fase, Ruth Guimarães aponta para o mito que conta a história
dos deuses e que é fruto de uma religião organizada, longe de suas origens. É aqui
que encontramos Cronos e seus embates com outros deuses. O grupo final é o que se
refere aos heróis civilizadores. Os deuses seguem a seu lado, não importa se contra ou
a seu favor, mas o que é mais determinante é a ação humana na transformação do
mundo. A biografia de Édipo é, decididamente, um mito pertencente a esta fase.
Ao narrar uma história como a de Totem e Tabu, Freud compara seu selvagem à
criança. E o faz “para provar a adequação entre a neurose infantil e a condição humana
de uma maneira geral, assim erigindo o Complexo de Édipo num modelo universal
(ROUDINESCO;
PLON,
1998,
p.
759). A criança, portanto, poderia ser tomada como o
filho. O filho que mata o pai, que guerreia contra ele, que assume seu lugar. Deuses ou
humanos, estamos também falando de Urano, Cronos, Zeus, Laio, Édipo: castrados e
castradores, mortos e assassinos, poderosos e cativos.
que o que se quer neste momento é dar um caráter equivalente entre castrar
e matar, seria interessante ver o que Lacan elabora no que se refere à castração, em
releitura que faz das idéias de Freud sobre o tema. Para Lacan, a castração seria uma
representação simbólica da ameaça do desaparecimento. Ou seja: a castração não se
limita ao objeto real nis, mas se refere ao objeto imaginário falo. Se com Lacan
26
estamos falando do imaginário, poderíamos, por conseguinte, e tendo este mesmo falo
como representação simbólica, estar falando do poder que este mesmo falo significa. É
que, para Lacan, o simbólico se transforma em lei. Segundo ele, é no Nome do Pai que
acontece o reconhecimento para a função simbólica que identifica sua pessoa à figura
da lei.
Ainda acompanhando Lacan, podemos ver que, para ele, a interdição do pai
equivale à castração, numa mesma etapa do desenvolvimento infantil. Assim, o pai que
proíbe, que detém para si o poder, que castra, também deve ser morto, castrado. Nesse
sentido, castrar o falo quer dizer castrar o poder. O que querem Cronos, Zeus e os
selvagens da horda primitiva de Totem e Tabu é, em última instância, tomar para si o
poder do pai, a fim de constituir uma nova ordem. E, para isso, é necessário matar,
castrar, arrancar o comando de quem o tem. O princípio parece ser o mesmo: castrar
imaginando não ser castrado; encarcerar para não se tornar cativo; matar para não ser
morto.
No entanto, tais ações preventivas entre deuses e homens resultam inócuas: o
Urano que procria insaciavelmente em breve será castrado; o Cronos que devora os
filhos logo será por eles enclausurado; o Laio que manda matar o filho será por ele
assassinado na encruzilhada de três caminhos. Então, a pergunta que talvez caiba ser
feita é aquela que indaga que poderes podem existir que sejam maiores e mais
eficazes que o dos próprios deuses e o dos homens poderosos. Quem sabe os da
Moira, tecendo seus fios?
O mito de Édipo parece ser, portanto, o momento em que a tradição parricida e
castradora da mitologia grega chega ao humano. Antes, tal noção estava circunscrita
aos deuses, aos imortais. Eram estes que lutavam pelo poder. Com Édipo e tudo aquilo
27
que a ele está circunscrito, ainda que os deuses guardem no Olimpo seus lugares
apropriados, o trágico passa a comandar a vida dos homens. No entanto, tais sujeitos
são mortais, inexoravelmente mortais, como lembra Nicole Loraux quando afirma que,
como diz Aristóteles (1993) em sua Poética, o homem é, na tragédia grega, “criatura de
um dia” e, portanto, “efêmera”.
E esse ser, uma criatura de apenas um dia, deve ser encarado por aquilo que a
estrutura do gênero define para a tragédia, e não porque a vida desse mesmo sujeito
possa ser resumida a esse único dia. Segundo Loraux, na cena trágica, o homem se
enuncia a partir de três termos decisivos:
Brotós, ou o homem enquanto mortal (diz-se tamm, a partir de uma outra
raiz que significa morrer”, thnētós); ánthrōpos, o homem em sua humanidade
de ser social; anĕr, o homem viril. (LORAUX apud NOVAES, 2000, p.20)
O Édipo trágico reúne em seu mito esses três tipos de homem: mortal em suas
angústias; social naquilo que deve negociar para que sua cidade prospere; viril, quando
mata, quando decifra, quando, casando-se com a própria mãe, tem com ela quatro
filhos. Reunindo tais condições, temos um homem cuja dor o levará a cegar-se, um
contumaz herói grego, ainda que atípico, como pretendo explicar mais à frente. Mas um
herói, uma vez que mesmo sua cegueira é produto do conhecimento.
Entretanto, aparentemente de maneira contraditória, o Édipo homem é aquele
que reúne algumas das prerrogativas dos deuses: luta, decifra, mata, procria
incestuosamente. Ou seja: como Cronos e como Zeus, ele tomou o poder de seu pai;
como Átis e como o próprio Urano, dormiu com sua mãe; ainda como Átis ele,
atormentado, se mutilou; como os homens e como os deuses, não pode evitar o
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destino. À imagem e semelhança. É com esta idéia que André Virel (CHEVALIER,
1998) faz coro, quando compara a história dos deuses à história dos homens: “A
história mitológica dos deuses esclarece (então) a história dos homens”. (VIREL apud
CHEVALIER, 1998, p.922)
Não é desta maneira que também reza a tradição judaico-cristã? Temos aqui,
portanto, um homem grego, um herói ocidental, também bastante semelhante aos
deuses que cultua. Criadores e criaturas que parecem se aproximar em suas angústias
terríveis, quase insuportáveis, alucinantes.
2.2. ÉDIPO E AS MARCAS DO DESTINO
O mito de Édipo é marcado por essa angústia delirante. Uma expiação que
começa ainda antes de seu nascimento, quando Laio, rei de Tebas, ouve de um oráculo
a maldição que lhe está destinada: a de que ele será assassinado por seu filho que, em
seguida, o sucederá no trono, depois de se casar com a própria mãe. Audemaro
Taranto Goulart (1997), em texto esclarecedor sobre o tema, conta a trama que se
segue:
Laio tentou, de todas as formas, fugir do destino que os deuses lhe
reservaram. Evitou, o quanto pôde, o contado sexual com Jocasta, sua mulher,
mas uma noite, embriagado, acaba gerando o filho indesejado. Assim, nasce
Édipo. Imediatamente após, o recém-nascido é entregue a um escravo, com a
recomendação de que fosse exposto no alto do monte Citerão, onde morreria e
seria consumido pelos abutres. Entretanto, uma caravana de Corinto passa
pelo lugar, toma a criança e a leva para aquela cidade, onde acaba indo parar
nas mãos de Pólibo e de Mérope (nome de Peribéia, na tragédia de Sófocles),
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rei e rainha de Corinto. Criado como filho pelos governantes, Édipo, adulto,
certa vez, ouve num banquete, de um conviva embriagado, que ele era um
plastós, ou seja, um filho postiço. Intrigado, Édipo consulta a Pítia, sacerdotisa
de Apolo no templo de Delfos, dela recebendo a terrível informação de que ele
estava condenado a matar o pai e a casar-se com a mãe. (GOULART, 1997)
Nesse sentido, a profecia que Laio escuta é a mesma que Cronos e Zeus
escutaram: eles perderão o poder que m a partir de uma ofensiva de suas
descendências. A alternativa para que isso não aconteça é, para deuses e homens,
usar das prerrogativas que o próprio poder lhes confere. Cronos engole os filhos; Zeus
engole a mulher, Métis; Laio manda matar. Deuses e homens utilizando-se dos mesmos
artifícios na tentativa de enganar o destino e manter a posse daquilo que julgam lhes
pertencer.
Mas o que parece é mesmo que a Moira, personificação do destino, não pode
ser iludida. Édipo, a criança cujos tornozelos foram atravessados por uma argola de
ferro a mando do próprio pai, e por isso tem os pés inchados
2
, antes que fosse
abandonado, este mesmo Édipo sabe agora de seu próprio destino e, como Laio,
Cronos e Zeus, também tentará esquivar-se do que lhe foi reservado. É por isso que
ele, para não matar Pólibo e casar-se com Mérope, de quem julga ser filho, foge em
direção a Tebas.
No caminho, numa encruzilhada do estreito e efêmero caminho que sói ser
aquele de todos os brotós, Édipo encontra Laio, que vem acompanhado de cinco
homens. Por uma disputa acerca de quem teria a precedência em passar pela tal
estradinha, uns e outro acabam se altercando e o resultado da disputa é a morte de
Laio e de três de seus seguidores.
2
Oídipous: pés inchados.
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Édipo, então, continua uma caminhada que vai dar à entrada de Tebas, onde
uma esfinge, monstro com corpo, garras e cauda de leão, cabeça de mulher, asas de
águia e unhas de harpia, propõe enigmas a quem encontra e, caso o passante não
decifre o mistério, o devora. Ao nosso angustiado, ela propõe a seguinte charada: “Que
animal, possuindo voz, pela manhã anda em quatro pés, ao meio-dia, com dois e, à
tarde, com três?” Talvez não seja por acaso que a pergunta feita leva ao encontro, mais
uma vez, do brotós, do ser que tragicamente é definido como efêmero, como afirma
Nicole Loraux. Édipo acerta a resposta: é o homem. Assim, tentando escapar, o fugitivo
se encontra novamente com seu destino à entrada da cidade de Tebas. Derrotada, a
esfinge se atira do alto de um rochedo e morre. Como recompensa por sua proeza,
Édipo é aclamado em Tebas como herói e recebe sua recompensa: o trono e a mão da
rainha viúva Jocasta. Com ela, nosso herói terá quatro filhos: Polinice, Etéocles,
Antígona e Ismene.
E é aqui que cabe fazer uma pausa para que se possa pensar a estrutura dessa
família que se constitui. Sim: um pai, uma mãe e quatro filhos. Ou uma mãe e seus
cinco filhos. Um pai, sua esposa e seus quatro filhos. Ou um pai, sua mãe e seus quatro
irmãos. Um esposo e sua esposa. Ou um filho e sua mãe. Juntas, todas essas
alternativas constituem, a uma só vez, tudo aquilo que a transgressão do incesto, assim
como colocado em Totem e Tabu, é capaz de nos expor. Uma verdadeira horda. E, a
partir de um raciocínio simples, levado mesmo pelo senso comum, o que se pode
perceber é que tal união durou o tempo suficiente para que quatro filhos fossem
gerados e se tornassem jovens adultos. E para que, depois que o mistério da origem de
Édipo fosse revelado, dois deles se matassem um ao outro e uma delas, Antígona,
servisse de guia para o próprio pai, cego, em sua caminhada andarilha. Assim, o que se
31
pode vislumbrar, apenas vislumbrar, é uma Jocasta que envelhece inexoravelmente ao
lado de seu filho e esposo, parindo como uma deusa e sofrendo como uma mulher.
Deuses e mortais sinalizando condições ambíguas, a partir de enredos femininos nos
quais a fertilidade e a capacidade de gerar são cruéis e servem a propósitos ocultos e
escusos. A geração de vida é poder.
Exatamente isto: Jocasta parteja como uma Gaia ou como uma Métis e sofre
como a mulher que entregou seu primeiro filho, aquele que agora é o pai de seus outros
rebentos, nas mãos de um escravo para que este o matasse e, de tal maneira, o
destino de Laio, seu primeiro esposo, e o seu próprio, pudessem ser ludibriados. Por
isso, ao mandar matar o filho, Jocasta também acaba ordenando o assassinato, sem
saber, do próprio pai, daquele que irá gerar seus outros quatro filhos. O que se quer
levantar aqui é apenas uma hipótese. Uma hipótese que construa a cena se
quisermos, podemos até mesmo imaginá-la! –, de um filho que, inocente, mas
sedutor, sorri para a mãe que logo o entregará ao carrasco. Como Rea, não poderia
embrulhar uma pedra em seu lugar e entregá-la ao algoz? Lacan, quando discute em
um de seus seminários o Complexo de Édipo freudiano, nos diz:
Deixamos a criança na posição de engodo em que ela se insinua junto à mãe.
Este não é, como eu lhes disse, um simples logro em que ela estaria
completamente implicada, no sentido etológico. No jogo da exibição sexual,
podemos nós que estamos de fora perceber elementos imaginários,
aparências que cativam o parceiro. Não sabemos até que ponto os sujeitos
utilizam isso como um engodo, ainda que saibamos que poderíamos fazê-lo
ocasionalmente, por exemplo, apresentando ao desejo do simples adversário
um simples brasão. O engodo de que se trata aqui é bastante manifesto nas
ações e mesmo nas atividades que observamos no menino, e, por exemplo,
em suas atividades sedutoras com relação à mãe, que existe como um
terceiro. (LACAN; MILLER, 1995, p.205)
32
O engodo aqui talvez esteja sendo arquitetado pela Moira. Édipo, como se
sabe, não será morto e, quando, com apenas o elucidar de uma adivinha, salvar a
cidade da peste que a consome, ele ganhará seu trono, uma esposa e terá de volta sua
mãe, para que, com tempo, possa seduzi-la nas artes amorosas e com ela engendrar
quatro outros filhos. Ele matou seu verdadeiro pai, mas ainda não colocou um totem
em seu lugar. O engodo, portanto, ainda não foi desfeito, e é preciso aperfeiçoá-lo com
toda uma vida de poderes e tiranias. Édipo, afinal, tornou-se o rei de Tebas. Agora, ele
é o Oidípus Týrannos, como anuncia Sófocles em sua tragédia.
No entanto, a peste irá visitar de novo a cidade. E será também um oráculo, o de
Delfos, consagrado a Apolo, deus da claridade e da perfeição, que anunciará que, para
que o flagelo desapareça, é preciso conhecer. Sim, é necessário conhecer,
descobrindo, finalmente, quem foi o assassino de Laio. Édipo manda chamar Tirésias,
um adivinho. Um áuspice cego! Tão cego quanto o próprio Édipo um dia será. Tirésias,
um mortal que pode ver além e aquém das aparências, sabe de tudo e tenta, ao invés
de demonstrar, ocultar a verdade, tergiversando. Édipo chega mesmo a desconfiar de
Creonte, irmão de Jocasta e aquele que ocupava o trono de Tebas antes de Édipo e
após a morte de Laio. Nesse sentido, é oportuno observar, mais uma vez, a paráfrase
que faz Audemaro Taranto Goulart (1997) a propósito do tema:
Édipo inicia, então, a busca do assassino de Laio e, nessa caçada de si
mesmo, quanto mais age mais se aproxima da evidência de que ele era o
responsável pela morte do rei, o que, aliás, já lhe havia sido dito por um
adivinho, o cego Tirésias. Édipo negava-se a aceitar a palavra do adivinho,
justificando-se com uma trama que ele e Creonte lhe armavam para tomar-lhe
o poder. (GOULART, 1997, p.13)
33
Às desconfianças de Édipo, soma-se a certeza de Jocasta de que é
aconselhável o dar ouvidos a mortais que julgam possuir dons divinatórios. É
precisamente nesse momento que se intensifica a peripécia no Édipo Rei, de Sófocles.
Para justificar esta sua crença, a rainha conta a seu rei a história que ocorrera com ela,
Laio e o filho que julga morto: a criança que assassinaria o pai teve os tornozelos
amarrados, foi entregue a estranhos e lançada em precipícios de montanha
inacessível” (SÓFOCLES, 2002, p.54). Um precipício, pode-se mesmo pensar, tão
inacessível como a verdade que se escondeu à espera da Moira que viesse lhe cortar o
fio. As palavras a seguir, que pretendem afirmar a certeza de que os oráculos também
se enganam, são ditas pela própria Jocasta, em tradução de Mário da Gama Kury da
incomparável obra de Sófocles.
Naquele tempo Apolo não realizou
as predições: o único filho de Laio
não se tornou o matador do próprio pai;
não se concretizaram as apreensões do rei
que tanto receava terminar seus dias
golpeado pelo ser que lhe devia a vida.
Falharam-lhe os oráculos; o próprio deus
Evidencia seus desígnios quando quer,
Sem recorrer a intérpretes, somente ele. (SÓFOCLES, 2002, p.54-55)
A partir deste momento, as luzes lançadas por Apolo vêm decisivamente para
esclarecer a trama. Tirésias, o cego, foi o único a enxergar a verdade e, agora, com
Édipo e Jocasta tomando a consciência inaudita, é preciso encarar o clarão de Apolo.
E ele vem através de dois escravos: o primeiro, aquele que recebeu de Jocasta a
criança a ser morta; o outro, o mesmo pastor que entregou a criança que não foi morta
a pais de Corinto, que a criaram como um príncipe.
34
Nem mesmo a notícia da morte de Pólibo, o homem que, de fato, criou a criança
que devia ser morta, é capaz de aplacar a verdade que Édipo deve agora enxergar. De
nada valeram as tentativas de uma e outra parte para que o destino prefigurado pelos
oráculos não se concretizasse. Ou seja: o filho que devia ser morto não morreu e,
assim, o totem foi destruído e o tabu estilhaçado à sombra de outros quatro filhos e
uma vida. Jocasta agora pende na forca que para ela estava reservada, suspensa
como, conta uma versão do mito, esteve seu primeiro filho, atado pelos pés ao galho de
uma árvore. Édipo será cegado pela verdade e errará pelo mundo grego, este nosso
mundo ocidental, de deuses cada vez mais humanos e de homens que cada vez se
julgam mais deuses. Um Édipo cego, mas que, depois de vislumbrar todas as trágicas
angústias de um ordinário brotós, será capaz de enxergar coisas e fazer com que
outros enxerguem através dele, ao longo do tempo. Assim, o mito: esvaziado para ser
preenchido. Preenchido, para que possamos outra vez despejá-lo. Linguagem.
2.3. CÓDIGOS PARA UM MITO
Quando dizemos que mito é linguagem, o que estamos fazendo é mesmo nos
reportar à definição de Claude Lévi-Strauss (1973). O antropólogo utiliza-se dos mitos
como base de seus estudos que conduzem ao estruturalismo.
Mito é linguagem; mas uma linguagem que tem lugar em um nível muito
elevado, e onde o sentido chega, se é lícito dizer, a decolar do fundamento
lingüístico sobre o qual começou rolando. (LEVI-STRAUSS, 1973, p.242)
35
Neste trabalho, quando concordamos com a definição de Lévi-Strauss, e
tomando como objeto de estudo central o mito de Édipo, o que queremos propor é uma
interpretação distinta para tal mito. Se mito é linguagem, a estrutura a partir da qual
estamos acostumados a ler a história de Édipo possui códigos bastante definidos. Um
desses códigos, talvez o mais importante deles, está em fazer-se a leitura de Édipo a
partir de uma centralização na figura masculina. O que se quer dizer é que fomos
acostumados a buscar neste mito específico uma prerrogativa que se insere na ordem
do masculino. Lemos sempre o mito de Édipo, e nunca o mito de Édipo e Jocasta, ou
apenas de Jocasta, muito embora o trágico esteja inserido na história desta mulher em
medidas semelhantes às em que está inserido na história daquele homem.
Quando Freud se propõe a criar a psicanálise, cometendo a reboque uma
espécie de parricídio ao desvinculá-la da psiquiatria, ele o faz também por meio de uma
leitura centrada nessa mesma ordem do masculino. O saber da psicanálise derivou de
algum lugar teórico/simbólico que se contestou depois. Aqui, a primeira criança a ser
estudada é o menino. Também em Totem e Tabu tal aspecto fica claro em muitos
sentidos. Primeiro, na identificação que Freud faz do totem com o pai. Depois, ao dizer
que a luta pelo poder só ocorre na esfera do masculino. Ou seja: são os filhos, homens,
aqueles que matam o pai para tomar-lhe o poder. As mulheres são apenas divididas
entre eles, da mesma maneira que Zeus dividiu o universo com seus irmãos. A partilha
se dá, portanto, entre aqueles que compartem o poder. Valeria até mesmo lembrar,
portanto, que a situação edípica da menina não possui a mesma força de
convencimento que a do menino.
36
Nesse tipo de leitura que, quer-se crer, está pautada por uma ortodoxia da
linguagem, o mito é sempre visto por um viés patriarcal. Cabe sempre ao homem o se
rebelar e, à mulher, de uma ou outra maneira, aceitar. O primeiro a ser enxergado é o
homem. Os complexos predominantes nascem dele e por meio dele. Os poderes
podem ser alcançados por ele. À mulher, diz também esta linguagem, cabe um papel
coadjuvante, de aceitação daquilo que lhe é imposto. Talvez por isso caiba sempre ao
homem, ao anĕr (um dos termos empregados na tragédia grega para significar o
humano e que nunca é empregado para identificar uma mulher
3
), a virilidade de se
rebelar contra o destino, contra a Moira. É o que fazem Cronos, Zeus, Laio e Édipo ao
não aceitarem aquilo que lhes foi reservado.
Assim, essa linguagem centrada no masculino nos insere sempre em sua própria
ordem, fazendo com que qualquer outro tipo de leitura possa parecer incongruente com
uma realidade que estamos acostumados a enxergar a partir da luz do dia e dos feitos
dos homens viris. Mais uma vez o poder se manifesta. Do mesmo modo que nos
acostumamos, por exemplo, a enxergar os acontecimentos a partir de uma
historiografia dos vencedores, e quase nunca dos vencidos, aqui também o real que
avistamos ganha sempre a luz e os códigos de quem detém o poder. E talvez seja
mesmo desnecessário explicar que, nesse nosso mundo ocidental, helênico e latino, a
tradição informa que a canoa da realidade é feita, também quase sempre, com os paus
dos homens, ainda que imaginários. Trata-se da casa dos homens.
Tal linguagem que procuramos demonstrar existir tem suas origens no sistema
político-jurídico do patriarcado que se instaurou sobretudo nas sociedades ocidentais.
3
A esse propósito ver texto de Nicole Loraux publicado em: NOVAES, Adauto (org.) Ética. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
37
Em sua definição mais pura, este sistema coloca os direitos sobre bens e pessoas
concentrados nas mãos do homem, que detém também a posição de pai fundador. A
respeito desse sistema, Freud faz uma reflexão estrutural que conduz ao complexo de
Édipo. Nesse sentido, se é o pai aquele que detém o poder, é também o pai que deve
ser enfrentado, a fim de que seu poder seja destituído e, conseqüentemente,
transferido. Parece que o complexo de Édipo freudiano está estabelecido sobre este
princípio. Assim, vejamos o que diz o próprio Freud quando, em seu Totem e Tabu
(FREUD, 1987a), lembra passagens significativas de seu Análise de uma Fobia num
Menino de Cinco Anos:
Mas qualquer leitor atento da história do pequeno Hans encontrará provas
abundantes de que ele também admirava o pai por possuir um pênis grande e
temia-o por ameaçar o seu. O mesmo papel é desempenhado pelo pai tanto no
complexo de Édipo quanto no complexo de castração, ou seja, o papel de um
inimigo terrível dos interesses sexuais da infância. O castigo com que ele
ameaça é a castração, ou o seu substituto, a cegueira. (FREUD, 1987a, p.157)
O castigo que é ameaça é também aquele que seimposto quando os irmãos
se rebelarem. Assim com Urano castrado, com Cronos aprisionado, com Laio morto e
com o próprio Édipo que se cega. O objetivo é sempre um poder que está em mãos
masculinas e deve ir para outras mãos masculinas. Mais uma vez em Totem e Tabu,
Freud evoca a refeição totêmica para explicar a organização social, das restrições
morais e da religião(FREUD, 1987a, p.170). Depois de se unirem e assassinarem o
pai, eles o devoram. Na verdade, este pai primevo que foi devorado foi também modelo
para cada um de seus filhos. E, segundo Freud, devorar tal pai é também se identificar
com ele, na medida em que cada um dos irmãos, depois de fazê-lo, adquire uma parte
38
da força do pai devorado. O motivo da refeição totêmica é, mais uma vez, a conquista
de poder:
Odiavam o pai, que representava um obstáculo o formidável a seu anseio de
poder e aos desejos sexuais; mas amavam-no e admiravam-no também. Após
terem se livrado dele, satisfeito o ódio e postos em prática os desejos de se
identificarem com ele, a refeição que todo esse tempo tinha sido recalcada
estava fadada a fazer-se sentir e assim o fez sob a forma do remorso. Um
sentimento de culpa surgiu, o qual, nesse caso, coincidia com o remorso
sentido por todo o grupo. O pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo
pois os acontecimentos tomaram o curso que com tanta freqüência os vemos
tomar nos assuntos humanos ainda hoje. O que até então fora interdito por sua
existência real foi doravante proibido pelos próprios filhos (...). Anularam o
próprio ato proibindo a morte do totem, o substituto do pai; e renunciaram a
seus frutos abrindo mão da reivindicação às mulheres que agora tinham sido
libertadas. (FREUD, 1987a, p.171-172)
No entanto, no caso de Édipo, o castigo é diferente ao que é imposto a Urano e
Cronos. A cegueira de Édipo é voluntária, fruto daquilo que o próprio Freud define como
“sentimento de culpa filial”. O mesmo sentimento de culpa que fez com que os irmãos
que se rebelaram ante a horda patriarcal erigissem para o pai um totem simbólico e
presumidamente indestrutível.
Este totem erigido é também a base do complexo de Édipo freudiano na medida
em que reúne em sua essência os dois tabus que lhe são referentes: não tirar a vida do
animal totêmico e manter a exogamia como referência natural e permanente. Também
é a edificação deste totem, quero acreditar, aquilo que solidifica a linguagem do
masculino. Ou seja: a refeição totêmica, que acontece para que a horda patriarcal seja
destruída, é também aquilo que garante sua permanência. E esta linguagem do
masculino se reinstaura sem nunca ter perdido seus poderes reais: quem continua
definindo normas e padrões, contando a história, castrando, matando e cegando são os
poderosos. E os poderosos o homens: o mesmo Urano que procria desvairadamente
39
e depois se mutilado, o mesmo Cronos que engole seus filhos e depois será
encarcerado, o mesmo Édipo que mataseu pai e logo ficará cego por suas próprias
mãos.
Mas, na mesma medida em que falar de uma linguagem do masculino aponta
para o poder dos homens, também aponta para a passividade masculina, o que talvez
nos mostre uma condição análoga à da mulher. Em outro de seus textos, Dostoiévski e
o parricídio, Freud (1996) nos incita a perceber como esta relação entre o poder e
aquilo que dele deriva possui, nos bastidores dessa trama, a interferência do
inesperado. E este inesperado, desvendado na tragédia através daquilo que Aristóteles
chama peripécia, vem para nos mostrar o ideário inexorável da Moira, do destino.
Freud, no texto anteriormente citado e a partir de sua teoria psicanalítica, mostra como
a culpa do parricídio e a idéia da castração se misturam de modo complexo e a partir de
relações que são inerentes ao próprio humano:
Uma grande necessidade de punição se desenvolve no ego, que em parte se
oferece como vítima ao destino e em parte encontra satisfação nos maus tratos
que lhe o dados pelo superego (isto é, no sentimento de culpa), pois toda
punição é, em última análise, uma castração e, como tal, realização da antiga
atitude passiva para com o pai. Mesmo o Destino, em última instância, não
passa de uma projeção tardia do pai. (FREUD, 1996, p.190)
Nesse sentido, é possível que exista, nas ações desses homens poderosos,
nesta linguagem que instaura o patriarcado, algo que esteja sempre em evidência e que
diga respeito a deuses e ánthrōpos: o rebelar-se contra aquilo que foi estabelecido. É
que, para conquistar o poder, é necessário insurgir-se contra o poder. Trata-se de mais
um código dessa linguagem patriarcal: o homem não deve aceitar aquilo que lhe é
imposto. Talvez por isso Cronos castra Urano, Zeus combate e aprisiona Cronos, e
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Édipo, mesmo de modo involuntário, diferente da cegueira que provoca em si mesmo,
mata Laio na encruzilhada de três caminhos. Por trás de cada uma destas rebeldias,
está a tentativa de iludir o destino, de enganar a Moira. E desafiar aquilo que foi
prefigurado também pode ser considerado uma prerrogativa dos homens. Contudo, o
que distingue os atos divinos das ações humanas na busca do poder é aquela mesma
involuntariedade que surge nos resultados desta procura. É ela que torna o Édipo
trágico, distanciando sua história da de seus deuses. Afinal, embora sejam feitos à
imagem e semelhança um do outro, entre os dois uma diferença singular: os deuses
criaram seus homens mortais e efêmeros; os homens fizeram de seus deuses
permanentes e imortais.
Voltando à não aceitação do próprio destino, o que se pode perceber, no mito de
Édipo, assim como nos outros evocados nesta dissertação, é que este impulso
masculino em não aceitar e, assim, ludibriar o fadário, é sempre decisivo. Para tal,
basta recordar o que conta o mito: para não matar o pai e casar-se com a mãe, Édipo
foge de Corinto, não aceitando as prerrogativas do oráculo. Trata-se da linguagem do
masculino sendo constituída na mesma tradição que fez com que Cronos engolisse
seus filhos e que Zeus fizesse o mesmo com sua própria esposa.
No entanto, há, nessa ordem do masculino, um elemento que poderia ser dito
intangível: o próprio feminino. Ou a Gaia que, como Jocasta, é mãe de seu próprio
esposo, também não é a mulher, a terra que espera a chuva de seu filho Urano para
conceber toda a primeira geração de deuses? Como Gaia e Jocasta, também a Moira
e, junto com ela, seu equivalente Aîsa, na voz árcado-cipriota, um dos dialetos usados
por Homero – define-se a partir do gênero feminino (BRANDÃO, 2004a, p.140-141).
41
E a Moira, como se viu, não pode ser enganada. Na mesma medida em que
ela está escrita, também está inscrita na ordem do masculino. De que maneira e a partir
de quais pressupostos esta Moira se insere nesta ordem, assim como que papéis são
conferidos ao feminino dentro dessa perspectiva, é o que se pretende investigar no
próximo capítulo.
42
3. MEDIDA E DESMEDIDA
Trata-se de uma ânfora de cerâmica, datada de 440 a.C. (ver Anexo A). Neste
vaso grego, que se encontra no Museu Municipal de San Gimignano (Siena, Itália),
sobre uma base negra, a pintura coruscante em vermelho mostra um homem apoiado
num bastão. À sua frente, a esfinge parece esperar uma resposta para a pergunta que
foi feita ao sujeito. Se este homem, que mais se assemelha a um velho se escorando
numa vareta em busca de equilíbrio, solucionar a adivinha que lhe foi proposta pelo
monstro que tem diante de si, as recompensas podem ser enormes.
Um desses prêmios se encontra aqui mesmo, neste vaso de 440 a.C. Trata-se
de uma mulher que vem logo atrás da esfinge, no mesmo matiz vermelho que se
destaca sobre a base negra. Se o homem acertar a resposta, esta mulher que vemos
no jarro será sua e, com ela, o poder que advém de ser o rei, o tirano de uma
importante pólis grega. Além disso, ele será querido pelo povo desta cidade, uma vez
que a solução do enigma significa também acabar com a peste que os deuses
mandaram sobre o lugar.
E tirano aqui, como lembra Michel Foucault (2002) em conferência pronunciada
na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e que foram transformadas no
livro A verdade e as formas jurídicas, não deve ser entendido no sentido mais estrito.
De acordo com Foucault, tirano era aquele que depois de ter conhecido várias
aventuras e chegado ao auge do poder estava sempre ameaçado de perdê-lo
(FOUCAULT, 2002, p.44). Assim, pode-se dizer, junto com o filósofo francês, que a
43
irregularidade do destino seria, portanto, uma característica do personagem do tirano,
assim como ele é descrito nos textos gregos do fim do século VI e início do V.
Mas será mesmo que tudo depende apenas de uma resposta certa? Talvez seja
preciso mirar o vaso com maior atenção, tentando enxergar naquilo que se o que
não é para ser visto. Com efeito, se a ânfora for observada com melhor empenho, o que
se poderá notar é que a tinta negra não recebeu, de fato, nenhum outro tipo de
pigmento sobre ela. Na verdade, a cnica adotada neste artesanato fino consiste em
cobrir a superfície da ânfora com um verniz negro, deixando o espaço da figura com o
mesmo tom escarlate da argila.
Então, os arabescos que encimam o jarro, o homem que se sustenta na vareta, o
monstro poderoso que espera a resposta e a mulher que alguma coisa parece esperar
são, é o que agora se pode jurar, o o preenchimento, mas a própria falta do verniz
escuro. É a partir da ausência da tinta negra, pelas lacunas que ela deixou na argila
vermelha, que vislumbramos encontrar as figuras que simbolizam um dos mitos mais
caros da antigüidade grega. Uma lenda cujos espaços, vazios ou não, foram se
preenchendo ao longo de mais de três mil anos, chegando ao culo XXI de nossa
história tão consistente e viva como aparenta estar a ânfora que podemos observar
virtualmente, pela internet, e, de perto, num museu de uma cidade italiana. Assim,
poder-se-ia mesmo afirmar que é pela falta que talvez possamos vislumbrar o dito, o
próprio mito.
As figuras que, por meio da ausência de tinta, encontram-se presentes no jarro
são significantes básicos do mito de Édipo. E se a esfinge, Jocasta e o próprio Édipo
possuem atualmente um vigor semelhante, ou talvez maior, do que no dia mesmo em
44
que o vaso foi manufaturado, isto se deve certamente a uma obra literária: o Oidípous
Týrannos, de Sófocles.
...nas primeiras versões do mito não há, no conteúdo legendário, o menor traço
de autopunição, porque Édipo morre tranqüilamente instalado no trono de
Tebas, sem ao menos ter furado seus olhos. É precisamente Sófocles que,
conforme a necessidade do gênero, ao mito sua versão propriamente
trágica a única que Freud, que o é mitólogo, pôde conhecer, a única que,
conseqüentemente, nós discutiremos aqui. (VERNANT; VIDAL-NAQUET,
2005, p.56-57)
A citação anterior, além de chamar a atenção para o fato de que é a versão que
Sófocles constrói com seu discurso trágico aquela que serve de princípio para Freud
construir a base de sua teoria, nos coloca mais uma vez frente à ânfora do Museu de
San Gimignano. Ao propor para a lenda uma interpretação em que Édipo não chega ao
fim de sua vida como o ánthrōpos trágico de Sófocles, Vernant parece se referir à
passagem da Odisséia em que Homero nos dá seu conhecimento deste mito. Um
conhecimento que, levando-se em consideração a data provável da escritura homérica,
século VIII a.C., conta-nos uma variação da lenda produzida cerca de três séculos
antes que o dramaturgo de Colono escrevesse sua obra, assim como nos lembra Junito
Brandão.
Vi também a mãe de Édipo, a bela Epicasta.
Ela, sem o saber, cometeu um grande crime,
casando-se com o filho, que a desposou após matar e despojar o pai.
Os deuses rapidamente fizeram com que a notícia circulasse entre os homens.
Édipo, todavia, apesar de tantos sofrimentos por funestos desígnios dos
deuses,
continuou a reinar sobre os Cadmeus, na muito amada Tebas. (BRANDÃO,
2000, p.303)
45
Muito embora a versão de Homero, é o que se acredita, não traga nada que não
pudesse ter inspirado a teoria freudiana, ela sem dúvida é menos intensa que a de
Sófocles no sentido de criar um Édipo com a tragicidade que lhe reconhecemos hoje.
Isto vem corroborar o conceito de Lévi-Strauss, segundo o qual mito é linguagem e,
como tal, algo que é permanentemente esvaziado e preenchido.
É por isso que voltamos novamente à ânfora de San Gimignano, para nos
apropriarmos dela no momento em que foi produzida, segundo a técnica das figuras
vermelhas, difundida por Exéquias a partir do século VI a. C. Como se disse, tais
figuras, que em geral mostravam cenas cotidianas ao lado de representações heróicas,
eram então deixadas na cor natural da argila para contrastar com o fundo pintado de
negro.
Estamos, de acordo com as informações do Museu Municipal de San Gimignano,
em 440 a. C., e podemos adquirir uma vasilha cerâmica como essa, com seu par de
asas simétricas que facilita o transporte, para guardar vinho, azeite ou água, além de
conservar cereais. A data em que o vaso vem dar a nossas mãos é anterior em
aproximadamente dez anos àquela em que o Édipo Rei, de Sófocles, foi encenado pela
primeira vez (KURY, 2002, p.7).
Como se sabe, a tragédia grega, enquanto gênero literário, acontece em um
período decisivo da Grécia antiga: o século V a.C. Entre a data da primeira provável
encenação de Os Persas, de Ésquilo (472 a.C.), e a montagem de As Bacantes, de
Eurípides, possivelmente em 405 a.C., a tragédia grega vive seu auge e declínio. Trata-
se, como lembra Vernant, de um gênero reconhecido em um momento histórico
bastante circunscrito, e datado com precisão: Vêmo-la crescer em Atenas, florescer
e degenerar quase no espaço de um século.” (VERNANT, VIDAL-NAQUET, 2005, p.2)
46
Um paralelo imaginário que poderia ser traçado com esse nascimento, apogeu e
morte da tragédia grega seria imaginar-se o mesmo para a arte cinematográfica. Ou
seja, que, tendo sido apresentado ao público pela primeira vez em 1895, pelos irmãos
Lumiére, em Paris, o cinema vivesse nos dias de hoje sua decadência mais completa,
estando fadado ao desaparecimento.
Mas, agora, estamos no século de Péricles. A ânfora que hoje pode ser
apreciada no Museu de San Gimignano é encontrada, então, em mercados de cidades
bem organizadas, as chamadas pólis. Antes de Péricles, sob o comando de Clístenes,
Atenas conheceu o fim da tirania, a partir de uma série de reformas que possibilitaram
que, pouco mais tarde, contássemos com o advento da chamada “democracia
ateniense”. Mais uma vez, vale recorrer a Vernant para lembrar a importância dessa
“Cidade-Estado” e de suas formas jurídicas, filosóficas e organizacionais para que este
gênero literário se desenvolvesse em plenitude.
A matéria da tragédia não é mais então o sonho, posto como uma realidade
humana estranha à história, mas o pensamento social próprio da cidade no
século V, com as tensões, as contradições que surgem nela, quando a
chegada do direito e as instituições da vida política questionam, no plano
religioso e moral, os antigos valores tradicionais: estes mesmos que a lenda
heróica exaltava, donde a tragédia toma seus temas e suas personagens, não
mais para glorificá-los, como o fazia ainda a poesia lírica, mas para discuti-los
publicamente, em nome de um ideal cívico, diante dessa espécie de
assembléia ou de tribunal populares que é um teatro grego. (VERNANT,
VIDAL-NAQUET, 2005, p.55)
É entre 461 e 429 a.C., no período conhecido como a “Idade de Ouro de Atenas”,
que Péricles consolida a prosperidade grega em aspectos como a economia, através de
empreendimentos e do expansionismo proposto pela denominada Liga de Delos, e a
47
cultura. Neste último aspecto, Sófocles, ele próprio um estrategista militar de Péricles,
produz uma obra que irá marcar o período de maneira incontestável.
O monumento perene do espírito ático na época da sua maturidade é
constituído pela tragédia de Sófocles e pela escultura de Fídias. Ambos
representam a arte do tempo de Péricles.
(JAEGER, 2003, p.320)
Mas o que talvez seja mais notável na era de Péricles é o fato de que ela se
caracteriza por ser o tempo formador da base de um tópico que, certamente, é a maior
herança deixada pela antigüidade grega no que se refere ao conhecimento. Trata-se da
filosofia, uma matéria que, um século mais tarde, quando Platão anunciar que a medida
de todas as coisas é Deus, tentará não deixar mais lugar para que o homem seja esta
referência.
Antes, no entanto, é a fórmula do sofista Protágoras – segundo a qual, em
oposição direta à filosofia antitrágica platônica, o parâmetro das coisas é o homem a
maneira de enxergar o mundo que irá oferecer a possibilidade para que o próprio
Sófocles veja seu Édipo com um olhar trágico e, sobretudo, humano. É com o
dramaturgo de Colono que este humano encara o trágico de maneira decisiva. O objeto
da tragédia é o homem em si mesmo, que, como afirma Vernant (2005), é coagido a
fazer uma escolha definitiva, a orientar sua ação num universo de valores ambíguos
onde jamais algo é estável e unívoco” (VERNANT, VIDAL-NAQUET, 2005, p.3).
Dos três autores trágicos gregos cuja obra chegou a nosso conhecimento, talvez
seja Sófocles aquele em que a exposição da dor humana assume seu caráter mais
educativo, no sentido de que é o homem o agente a interessar de fato. O que o autor de
Édipo Rei faz é, seguindo uma tendência formadora de seu tempo, dirigir-se ao homem
48
de maneira a expor-lhe a dor. Assim, Sófocles se envolveu decisivamente na vida de
sua época. À organização e às metas expansionistas da pólis, serviu como tesoureiro-
geral de Atenas em 443/2 a. C. Foi também eleito, no mínimo duas vezes, comandante
do exército em expedições militares. Mas foi como tragediógrafo, sabe-se, que alcançou
a fama. Escreveu cerca de 123 peças teatrais e obteve nada menos que 24 prêmios em
concursos trágicos que eram tradição em seu tempo (KURY, 2002, p.7).
Tais concursos, instituídos pela Cidade-Estado, fazem parte da realidade social
desta Grécia contemporânea não apenas de Sófocles e Péricles, mas de pensadores
como Protágoras, citado anteriormente, e o historiador Heródoto. Como afirma Werner
Jaeger (2003), a arte com que Sófocles cria os seus caracteres é constantemente
inspirada pelo ideal de conduta humana que foi a criação peculiar da cultura e da
sociedade do tempo de ricles(JAEGER, 2003, p.321). O que se tem, portanto, é o
fato de que, neste século V a. C. que marca o apogeu e o declínio da tragédia, tudo
parece caminhar em sintonia: a democracia que se institui; um processo de educação
humana que se instaura através de projeções artístico-culturais; a invenção de um
homem grego que, mais tarde, irá dar origem ao que se pode mesmo chamar “homem
ocidental”.
E é neste contexto que Sófocles insere seu texto trágico, de maneira que o viver
humano, ao não se submeter à vontade dos deuses, escancara a dor que é inerente a
este ser ao mesmo tempo social, heróico e efêmero. Nesse sentido, a sintonia que o
tempo de ricles parece anunciar não é garantida pela serenidade. Antes, traz a
incerteza de um momento em que valores se confrontam e normas são questionadas,
em que este brotós luta entre a culpa e a inocência, a lucidez e a cegueira, o poder e o
fracasso. Contudo, pouco haveria de novo em todas essas contradições se Sófocles
49
não soubesse mostrar, com a ação dramática trepidante que caracteriza suas obras,
que esta dor humana é um sentimento inexorável, do qual não se pode fugir. Como
afirma Jaeger, o que em Sófocles é trágico é a impossibilidade de evitar a dor. É esse
o rosto inevitável do destino, do ponto de vista humano” (JAEGER, 2003, p.329).
3.1. TRAGÉDIA E AMBIGÜIDADE
A inexorabilidade do sentimento da dor trágica que caracteriza a obra de
Sófocles será tratada um pouco mais à frente nesta dissertação, de maneira a tentar
perceber em que sentido esta dor é influenciada e influenciadora daquilo que
pretendemos expor aqui: a medida e a desmedida no mito de Édipo. Antes, contudo,
seria interessante tentar perceber qual é a lógica deste páthos trágico. Para isto,
voltamos à ânfora exposta no museu da cidadezinha italiana a fim de tentar entender
porque somos levados a imaginar, depois de correr os olhos pelo objeto que se mostra
na tela de um computador, que as figuras é que foram pintadas sobre o verniz, e o
algo diferente.
Se o devaneio na comparação não é demasiado, seria interessante lembrar os
princípios básicos do que chamamos linguagem cinematográfica, como foi feito há
pouco ao compararmos o nascimento, apogeu e decadência da tragédia grega a um
fato semelhante que pudesse acontecer com o próprio cinema. Esta arte fundada no
século XIX de nossa era tem no plano, ou no enquadramento, um de seus eixos
principais. Poder-se-ia dizer que a gramática do cinema se move em função do plano. É
50
o enquadramento que dá, para aquilo que é mostrado na tela, um sentido próprio e
preciso.
Utilizando um exemplo bastante simples, o beijo mostrado a partir de um plano
muito aberto, em que um casal aparece apenas como um pontinho numa praia deserta,
quer dizer algo muito diferente do que este mesmo beijo se mostrado bem de perto, em
close. Portanto, entender a linguagem proposta pelo plano cinematográfico quer dizer
usar o enquadramento acertado para aquilo que se quer dizer: se esperamos dar a
idéia de que quem beija é um casal arrebatado pela paixão, utilizaremos o close; mas,
para conotar alguma espécie de solidão vivida pelas mesmas duas pessoas, será
melhor usar o plano mais aberto.
A lógica desta linguagem está no fato de que o enquadramento só contém aquilo
que é para ser visto. Assim também uma pessoa frente a um quadro afixado num
museu. Se perguntamos a ela o que vê quando olha em direção à obra de arte,
certamente descreverá a própria obra que tem diante de si. É extremamente provável
que ela não diga nunca que também uma parede. Isto porque, dentro de tal lógica, a
parede não é para ser vista. (PEREIRA, 1984)
Na ânfora de San Gimignano, a lógica parece ser a mesma. Ao enxergar o vaso
pela primeira vez, somos levados a crer que os desenhos é que foram pintados sobre o
verniz negro. Para perceber que o processo é o inverso, que a não-pintura é que revela
os desenhos, deve-se estar mais atento. Pode-se dizer que há, aí, uma lógica a ser
desconstruída. E, para descobrir o processo, é necessário entender os caminhos de tal
processo.
Isto acontece porque esta lógica joga com o que se poderia chamar
ambigüidade: aquilo que parece que é e aquilo que é de fato. A linguagem trágica
51
também se comporta da mesma maneira. O Édipo que caça é, na verdade, o sujeito
que é caçado. A Jocasta que encontra seu esposo está realmente reencontrando seu
filho. Mas nós, para que a linguagem do gênero obtenha êxito, somos levados a
vislumbrar apenas os arabescos e as figuras de Édipo, da esfinge e de Jocasta na
ânfora que enchemos ou esvaziamos de vinho. Não enxergamos a parede porque a
parede não é para ser vista. Só podemos ver aquilo que o plano nos mostra na tela
cinematográfica.
...a lógica da tragédia consiste em ”jogar nos dois tabuleiros”, em deslizar de
um sentido para outro, tomando, é claro, consciência de sua oposição, mas
sem jamais renunciar a nenhum deles. Lógica ambígua, poder-se-ia dizer. Mas
não se trata mais, como no mito, de uma ambigüidade ingênua que ainda não
se questiona a si mesma. Ao contrário, a tragédia, no momento em que passa
de um plano a outro, demarca nitidamente as distâncias, sublinha as
contradições. (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2005, p.15)
Na tragédia grega, esse jogo segue até o final do drama. então é que se
permitido perceber o verdadeiro rosto dos agentes da trama, depois que os fatos
assumirem seu verdadeiro significado. Antes disso, mesmo que esteja inteira à nossa
frente, a parede não será vista. Assim também o jogo da criação literária: elaborado em
suas minúcias e trágico na invenção de suas possibilidades, uma vez que elas nunca
se esgotam, que não têm nunca fim, que nada é, realmente, impossível.
É por isso que, mesmo que o mito haja revelado que o Édipo esposo é, na
verdade, o Édipo filho, isto será reconhecido no final. A platéia que sabe finge que
de nada sabe, uma vez que ela também é parceira. Daí, então, a necessidade de estar
sempre a olhar com outros e melhores olhos para a ânfora e seu verniz e seus
desenhos. Para também participar do jogo. Para ver se alguma coisa escapou à nossa
52
atenção, mesmo que esta seja uma atenção possibilitada apenas pela época em que o
olhar é colocado.
E o fato de a platéia participar do jogo acontece, acredita-se, não pelo motivo
que quer Freud em uma de suas conferências sobre o conteúdo latente da tragédia
edipiana. Nesta dissertação, o que se quer pensar é que a ação do público vem, antes,
a partir das condições inerentes ao próprio gênero, dos valores estabelecidos pela
tragédia grega, do tecido ambíguo construído por Sófocles que, depois de brincar com
seus contemporâneos, seguiu fazendo o mesmo com os homens futuros Freud, um
deles.
Se os antigos as admiravam, se o público moderno é por algumas delas
perturbado, como pelo Édipo-Rei, é porque a tragédia não está ligada a um
tipo particular de sonho, porque o efeito trágico não reside em uma matéria,
mesmo onírica, mas na maneira de dar forma à matéria, para fazer sentir as
contradições que dilaceram o mundo divino, o universo social e político, o
domínio dos valores, e fazer assim aparecer o homem como um thaûma, um
deinón, uma espécie de monstro incompreensível e desconcertante, ao mesmo
tempo agente e paciente, culpado e inocente, dominando toda a natureza por
seu espírito industrioso e incapaz de governar-se, lúcido e cegado por um
delírio enviado pelos deuses. (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2005, p.57)
Se a questão do gênero é determinante para esconder e revelar aquilo que deve
ser revelado ou escondido, possibilitando leituras múltiplas de uma mesma obra, é
necessário também tentar enxergar aquilo que, por trás dela e dentro de uma
perspectiva ao mesmo tempo autoral e temporal, permitiu uma visão de mundo pautada
por essa ambigüidade construtora da tragédia grega.
Como pouco se disse, Sófocles insere seu texto trágico num contexto de
duplicidades pautado por um viver humano que, embora a considere inexorável, não se
submete à vontade dos deuses e é capaz de escancarar sua própria dor. Ainda se
53
afirmou que aquilo que torna ímpar o tecido de Sófocles, uma escrita fundadora de todo
um gênero literário, é o fato desta dor ser algo também inexorável, determinada mesmo
pelo que hoje poderíamos chamar destino. Assim, o que se quer acreditar é que a
ambigüidade que constrói o texto trágico grego é definida pela noção de medida e
desmedida que está presente de modo decisivo no Édipo Rei, em outras tragédias
gregas e, como não poderia deixar de ser, na maneira helênica de ver o mundo.
3.2. ERRO, HONRA E DESTINO
Para entender melhor tal questão, é preciso buscar sentidos em palavras como
Hamartía e Hýbris. Ao lado destes conceitos, também cumpre tentar compreender os
significados da Moira na Grécia antiga. Através da noção desses termos é que se pode
entrar numa questão que, como lembra Johnny José Mafra (1980), é essencial para
que o trágico seja avaliado enquanto gênero literário e como maneira de enxergar o
próprio mundo.
O elemento possibilitador do trágico, aquilo que torna o homem trágico, é a
separação ontológica, isto é, a oposição homem/finitute-contigência-
imperfeição. (MAFRA, 1980, p.66)
Quando nomeamos a relação homem/finitude, o que estamos fazendo é nomear
também aquilo que é inerente a esta mesma relação: a ambigüidade, a contradição.
Para Albin Lesky (1971), como citado por Mafra (1980), todo trágico se baseia em uma
54
contradição irreconciliável. Tão logo aparece ou se torna possível uma acomodação,
desaparece o trágico(LESKY, 1971, p.25). Nesse sentido, como lembra a seguir o
próprio Lesky ao perceber como estudiosos modernos se debruçaram sobre o tema,
para que a tragédia exista é necessário que não haja solução, mesmo que possamos
enxergar finais conciliadores em determinados textos trágicos do século V a. C.
A absoluta falta de solução para o conflito trágico foi convertida, precisamente
por algumas teorias modernas, em ponto central e em requisito primordial para
a realização da autêntica tragédia. (LESKY, 2001, p.35)
No sentido de perceber porque a contradição trágica é irreconciliável, é que se
torna necessário buscar o entendimento para os conceitos de Hamartía e Hýbris,
fazendo o mesmo a seguir com a Moira. Em seu Dicionário Mítico-Etimológico, Junito
Brandão (2000) aponta o seguinte significado para Hýbris: tudo quanto ultrapassa a
medida, o excesso, o descomedimento, a démesure” (BRANDÃO, 2000, p.558). Ainda
segundo Brandão, em termos religiosos, matéria em que esta palavra é mais
freqüentemente usada, a Hýbris é uma violência, uma insolência, uma ultrapassagem
do métron (na medida em que o homem quer competir com o divino)(BRANDÃO,
2000, p.558). Para Johnny Mafra, a tragédia existe no momento em que a Hýbris ou
desmedida entra em conflito com a justiça ou a medida” (MAFRA, 1980, p.71).
No que se refere à definição de Hamartía, o próprio Mafra lembra o capítulo XIII
da Poética, de Aristóteles. No entender do estagirita, a causa do trágico é a Hamartía,
isto é, a falha, o erro. E não se trata, na maior parte das vezes, do erro indiscriminado e
proposital. Na tragédia grega, o erro tem uma dimensão intelectual, não moral. A falha,
portanto, acontece em função de uma incompetência humana no sentido de distinguir o
55
que é certo daquilo que não é. Um dos exemplos que Aristóteles neste mesmo
capítulo é o do próprio Édipo.
Realmente, quando consideramos o Édipo Rei, somos levados pela trama trágica
de Sófocles a não reconhecer no tirano de Tebas uma culpa moral. Sua Hamartía
parece se dever a uma falha de julgamento, de discernimento a respeito das situações
que vive. Um erro que, se levarmos em consideração o pensamento trágico do século V
a. C., poderia até mesmo contar com um componente atávico, mas que não é devido ao
caráter do herói em si mesmo. Édipo mata Laio porque não sabe que ele é seu pai, e
desposa Jocasta porque não tem conhecimento de que ela é sua mãe. Assim, tudo
ocorre porque a falha está no juízo que o herói faz: julgando matar um qualquer,
assassina o pai que ordenou que matassem o próprio filho – ele mesmo, Édipo;
pensando estar se casando com a rainha de Tebas, desposa realmente a rainha de
Tebas e, junto com ela, a mulher que lhe deu à luz. Isto, pelo menos, é o que reza uma
leitura ortodoxa desse mito.
Contudo, se a culpa moral o está no herói, ela talvez esteja em sua
ascendência. No Laio e na Jocasta que, temendo que o poder escapasse de suas
mãos, ordenaram, deliberadamente, o filicídio. E, antes mesmo, seguindo a tradição
mitológica e caminhando além do que nos diz o texto trágico de Sófocles, a Hamartía
pode ser encontrada também no amor contra naturam de Laio por Crisipo, provocador
da culpa primordial” da casa dos labdácidas, à qual pertence Édipo (BRANDÃO,
2004c). Daí se afirmar que na Hamartía um elemento atávico, que a herança de
um é a bris pretérita de outros, e a culpa que será carregada a partir dela. Aqui,
então, a transgressão é capaz de imputar a uma determinada geração o castigo que
deveria pertencer à outra. Como lembra Hegel (1964), o indivíduo heróico não
56
estabelece qualquer separação entre si e o Todo moral de que faz parte, mas antes se
considera como formando uma unidade substancial com o Todo” (HEGEL, 1964, p.70).
Ainda no que se refere a Sófocles (2002), pode-se encontrar, em cada uma de
suas tragédias, um coro que, ele mesmo ou através do Corifeu, está sempre avisando
sobre o perigo e os danos provocados por Hýbris e Hamartía. No Édipo Rei, isto
acontece quando o rei de Tebas, que apenas começa a desconfiar de sua verdadeira
origem, põe em dúvida, estimulado por Jocasta, os vaticínios do oráculo de Delfos. O
que está sugerido, aqui, é que a desmedida e o erro não se encontram nos atos em si,
mas, e sobretudo, no orgulho humano que faz com que Édipo questione a predição dos
deuses.
Mas o homem que nos atos e palavras
se deixa dominar por vão orgulho
sem recear a obra da justiça
e não cultua propriamente os deuses
está fadado a doloroso fim,
vítima de arrogância criminosa,
que o induziu a desmedidos ganhos,
e sacrilégios, à loucura máxima
de profanar até as coisas santas. (SÓFOCLES, 2002, p.62)
Se Hýbris e Hamartía pendem para o lado da transgressão, do dionisíaco
(naquilo que este vocábulo nos traz de mais consensual), a parte apolínea, luminosa e
equilibrada, joga com outros dois: Areté e Timé. A primeira é definida como a
excelência. A outra, como a honra. De acordo com Junito Brandão (2004), a Areté é
atribuída pelo próprio Zeus. A Timé, conseqüência natural desta última, é a recompensa
que o herói recebe por aquilo de notável que contabiliza ao longo de suas guerras e
discursos. É o próprio Brandão (2004) quem mostra como o devaneio dionisíaco
convive, de maneira ortodoxa, com a harmonia apolínea:
57
A areté, no entanto, é uma outorga de Zeus: é diminuída, quando se cai na
escravatura, ou é severamente castigada, quando o herói comete uma hýbris,
uma violência, um excesso, ultrapassando sua medida, o métron, e desejando
igualar-se aos Deuses. (BRANDÃO, 2004a, p.143)
No entanto, se os conceitos de Hýbris e Hamartía são indispensáveis para o
entendimento de como o trágico se configura a partir do humano, não menos essencial
é compreender o significado de Moira para os gregos antigos. Para isso vale, de início e
mais uma vez, recorrer ao mesmo Junito Brandão (2000) e a seu Dicionário Mítico-
Etimológico:
Moira, em grego Μolρα (Moîra), que provém do verbo µεφεσίJαι (meíresthai),
obter ou ter em partilha, obter por sorte, repartir, donde Moira é a parte, o lote,
o quinhão, aquilo que a cada um coube por sorte, o destino. Associada à
Moira tem-se, como seu sinônimo, nos poemas homéricos, a voz árcado-
cipriota Aîsa, em grego ΑΙσα (Aîsa), da mesma família etimológica do verbo
αloyµνάν (aisymnân), reinar sobre, ter o comando de. O grego homérico tem a
forma οϊτος (oîtos), sorte, destino. Uma aproximação com o osco aeteis, parte,
não é de todo desprezível. De qualquer forma, não se possui ainda uma
etimologia segura para Aîsa
que significa, como Moîra, lote, quinhão, a parte
que toca a cada um. Nota-se, de saída, o gênero feminino de ambos os
vocábulos, o que remete a idéia de fiar, ocupação própria da mulher e das
Moiras ou Queres. De outro lado, Moira e Aîsa aparecem no singular e só uma
vez na Ilíada, XXIV, 49, a primeira surge no plural, o que mais tarde, diga-se
logo, se repetirá muitas vezes. O destino tardiamente foi personificado e,
em conseqüência, Moira e Aîsa não foram antropomorfizadas: pairam
soberanas acima dos deuses e dos homens, sem terem sido elevadas à
categoria de divindades distintas. A Moira, o destino cego, em tese, é fixo,
imutável, não podendo ser alterado nem pelos próprios deuses. Há, no
entanto, os que fazem sérias restrições a esta assertiva, sobretudo em relação
a Zeus. (BRANDÃO, 2000, p.140-141)
Em seu sentido mais direto, portanto, poder-se-ia dizer que a Moira,
conotativamente, significa o destino. Trata-se de uma entidade que, identificando-se
com o próprio Zeus, guarda em si a expressão da essência divina, na medida em que
também é reconhecida a partir da Ananké (necessidade) e de Nêmesis (justiça). Como
se pode ver pela análise mítica e etimológica anteriormente citada, Moira é o lote, a
parte que cabe a cada um. E, aqui, estamos falando de deuses e de homens.
58
Por outro lado, é certamente no fato da Moira igualar esses dois seres tão
distintos que se encontra, acredita-se, a ambigüidade mais decisiva do pensamento
trágico. Esta talvez seja a razão de tanta polêmica no que se refere à caracterização
dessa entidade. No entanto, as variações em torno deste último tema, que são parte
essencial daquilo que esta dissertação pretende discutir, serão explicitadas mais à
frente. Cumpre, antes, compreender com maior e melhor exatidão porque esta Moira é
encarada como a personificação do próprio destino. Para fazê-lo, é necessário discorrer
sobre pontos que parecem fundamentais.
Em outubro de 1967, o jesuíta português Antônio Freire (1969), helenista
conceituado, defendeu sua dissertação de doutoramento na Faculdade Pontifícia de
Filosofia de Braga. O estudo, que apenas dois anos depois da defesa estaria no
prelo, ganhou o nome de Conceito de Moira na Tragédia Grega (FREIRE, 1969). De
modo genérico, a obra pretende discutir a questão do fatalismo nos autores trágicos do
século V a. C. e, nesse sentido, no próprio prólogo, Freire já diz a que veio:
O objetivo primordial dessa Dissertação é formular uma resposta clara e
decisiva à pergunta com que poderíamos intitulá-la:
-Fatalista a tragédia grega?
A esta pergunta respondemos categórica e convictamente:
-Não. (FREIRE, 1969, p.5)
Em sua dissertação, o sacerdote helenista realiza um estudo de inegável
erudição ao procurar estabelecer o conceito do fatalismo sob as perspectivas da
mitologia, da filosofia e da teologia. Num apanhado rigoroso que vai do pensamento da
antigüidade a algumas idéias contemporâneas, Freire (1969) investiga também como
os três autores trágicos Ésquilo, Sófocles e Eurípides – tratam em sua obra o
59
significado de Moira. Tudo isto sem perder de vista a questão da inexorabilidade do
destino e concluindo da maneira que no início da dissertação era antecipada: -“A
tragédia grega não é fatalista”. (FREIRE, 1969, p.293)
O que se quer chamar fatalismo na tragédia grega é exatamente o fato de o
homem trágico, Édipo um deles, estar submetido ao destino. Em tese, a Moira é
imutável e não pode ser transformada nem mesmo pelos próprios deuses. É aqui,
portanto, que se instaura o debate proposto por Freire: o jesuíta, com base na crença
de que nada pode estar acima de Zeus, rechaça a idéia da inalterabilidade da Moira.
Para ele, tal crença é primitiva e, apoiando-se em citações que vão de Homero a
Hesíodo, Antônio Freire acredita que é mesmo Zeus quem fixa o destino de todos os
seres.
Sem perder de vista a erudição e o detalhamento do trabalho de Freire (1969),
capaz de iluminar inúmeros aspectos relativos ao caráter trágico inerente ao
pensamento helênico e à obra dos três dramaturgos gregos, em que se quer apostar
aqui é mesmo numa suposta inalterabilidade da Moira. Na verdade, o que parece é que
Freire, ao se colocar neste ponto contra o fatalismo na tragédia grega, assume uma
perspectiva decididamente fundamentada numa ortodoxia teológica, menos helenista
que sacerdotal, e, por isto mesmo, mais mítica que católica. Tal traço pode ser
percebido quando o jesuíta analisa aspectos em que, inevitavelmente, a vontade da
Moira está acima da de Zeus.
Quando o conceito de moira é expresso pelo vocábulo άνάγκη (necessidade),
ou equivalente (τό χρεών), traduz a lei moral que rege o próprio Zeus, com cuja
vontade se confunde, como em teologia se identifica a essência divina com
os seus atributos. (FREIRE, 1969, p.300-301)
60
Tal debate, ao introduzir em parte aquilo que é o objetivo básico desta
dissertação, qual seja, as perspectivas ortodoxas e heterodoxas no Édipo, o que faz é
chamar a atenção para um dado decisivo: o lugar de quem faz a leitura de uma
determinada obra. Não apenas de quem faz a leitura, como se viu, mas também de
quem a produz
4
. Mas isto, como foi dito, veremos mais adiante. Vale, antes de
qualquer coisa, observar o que diz Junito Brandão (2004a), a propósito dessa
discussão proposta por Antônio Freire.
Os exemplos poderiam multiplicar-se tanto em defesa da identidade de Zeus
com a Moîra quanto, e eles são em número muitíssimo mais elevado, da total
independência de Aîsa face a todos os imortais.
O que se pode concluir, salvo engano, é que, por vezes, Zeus se transforma
em executor das decisões da Moîra, parecendo confundir-se com a mesma.
(BRANDÃO, 2004a, p.142)
Nesse sentido, seria oportuno lembrar as palavras do próprio Prometeu quando,
acorrentado ao rochedo, depois de haver sido castigado por Zeus ao roubar o fogo de
Hefesto e entregá-lo aos homens, conta ao coro da tragédia escrita por Ésquilo sobre a
força que caracteriza a Moira: O poder da Moira é superior ao de Zeus; ele não
escapará ao seu Destino(MAFRA, 1980, p.74). Vale, assim, atentar para o diálogo
entre Prometeu e o Corifeu, nas palavras de Ésquilo:
CORIFEU
E por quem o destino é governado? Dize!
PROMETEU
Pelas três Parcas e também pelas três Fúrias,
cuja memória jamais esquece os erros.
4
A distinção que se quer aqui fazer é entre aqueles que produzem teoria (aqui, no caso, Freire) e
aqueles que produzem com objetivos literários ou dramatúrgicos (no caso, Sófocles).
61
CORIFEU
Os poderes de Zeus, então, cedem aos delas?
PROMETEU
Nem mesmo ele pode fugir ao Destino. (ÉSQUILO, FOCLES, EURÍPEDES,
1999, p.37)
Na mesma medida, a Moira mostra sua primazia, como lembra Junito Brandão
(2004a), quando, em trecho da Ilíada, de Homero (1970), Hera responde a um Zeus
que quer livrar seu filho Sarpédon do perigo da batalha:
Crônida terrível, que palavras disseste? Um homem mortal, muito tempo
marcado pela Aîsa e queres livrá-lo da morte nefasta? Podes fazê-lo, mas nós,
os outros deuses todos, não te aprovamos. (BRANDÃO, 2004a, p.141)
Respeitada pelos próprios deuses, a Moira parece mesmo ter a prerrogativa
sobre o destino dos homens. Dos homens e dos deuses. Nesse sentido, se não
compartilhamos da idéia do jesuíta Antônio Freire e concedemos à Moira o privilégio de
pairar sobre deuses e homens, estamos, neste ponto decisivo, igualando uns e outros,
colocando-os no mesmo terreno de um caminho que conduz ao trágico e às
impossibilidades que lhe são inerentes.
Mas, outra vez, vale indagar que instância é essa à qual o humano e o divino se
submetem? Como o destino foi apenas tardiamente personificado, a Moira, por sua vez,
também não foi antropomorfizada. Não se trata, conseqüentemente, de chamá-las
divindades. Contudo, é imutável, e feminina. Após as epopéias homéricas, a Moira se
projetou em três entidades, as quais, costumeiramente, podem ser chamadas Queres.
São elas Cloto, Láquesis e Átropos. Três mulheres, três fiandeiras, urdindo o tempo de
uma existência que foi antecipadamente estabelecido. Cloto é a que segura o fio da
vida e vai puxando o fuso. Láquesis, aquela que enrola o mesmo fio e sorteia quem irá
62
morrer. Átropos, a que não volta atrás, mostrando-se inflexível em sua função de cortar
o fio que é tecido.
Assim, o destino divino e humano está entregue à Moira. Para os homens, o
resultado inexorável, heróico ou não, é mesmo a morte. Para os deuses, a derrota, a
castração, o esquecimento. Igualados na submissão, os fios de homens e de deuses se
entrelaçam. E esse emaranhar-se está presente, talvez se possa dizer, em toda a
tragédia e mitologia grega. Nesse sentido, aqueles que, humanos, entregam-se à
Hýbris e devem então ser punidos porque se colocaram no lugar do divino. E também
os que, deuses, rendem-se a Ftonos ou seja, à invídia e ao ciúme e, mesmo
olhando de cima do Olimpo, invejam até a mortalidade dos que vivem embaixo.
Trata-se do destino. E, quando o fio se emaranha, trata-se mesmo de um destino
trágico. E é aqui, neste chão universal escrito por caminhos áticos, que homens que se
crêem deuses e deuses que se passam por homens pagamos por tudo. Ou quase tudo.
Em Sófocles, como lembra Werner Jaeger (2003), o trágico se encontra no fato
desse homem, mesmo após ver sua Areté atropelada pela adversidade, desafiando
esfinges e deuses, manter de maneira contumaz a altivez que lhe é inerente. É porque
enxergou e para continuar enxergando que Édipo se cega. E é também por isto que ele
peregrina pela Hélade: para, convertido em homem sofredor, sumir depois pela floresta
e só ser encontrado novamente no imaginário dos que virão.
O drama de Sófocles é o drama dos movimentos da alma cujo ritmo interior se
processa na ordenação harmônica da ação. A sua fonte está na figura
humana, à qual volta continuamente como ao seu último e mais alto fim. Para
Sófocles, toda a ação dramática é apenas o desenvolvimento essencial do
homem sofredor. É assim que ele cumpre o seu destino e realiza a si próprio.
(JAEGER, 2003, p.332)
63
Talvez agora se possa compreender um pouco melhor a figura do Édipo na
ânfora de San Gimignano. Diante da esfinge, o rei de Tebas não parece ter o vigor
heróico do momento em que, conta o mito, enfrentou o monstro e respondeu à pergunta
fatal. Sim! Aquele que de manhã anda de quatro, ao meio-dia se sustenta em dois pés
e, ao entardecer, apóia-se também em um bastão é o próprio homem, este ser cansado
que aqui está, no lugar exato em que o verniz negro não foi pintado. Um ser
reconhecido pela falta, que, nesta vasilha de cerâmica, sustenta-se talvez no mesmo
pau com que deu na cabeça do próprio pai até matá-lo e cometer sua Hýbris inicial, sua
primeira Hamartía.
Desmedida e erro, involuntários que sejam, que farão com que percebam o
personagem de Sófocles e o discípulo de Exéquias que mergulha o pincel no verniz e
começa a pintar a vasilha que o Édipo que se posta à frente do monstro fabuloso é,
ao mesmo tempo, o anĕr vigoroso que decifra o enigma e o brotós extenuado que some
no bosque. São vários e é, só, um: homem trágico, definido pela falta, irrevogável pela
Moira. Uma Moira que, no contexto da tragédia e do mito grego, define-se mesmo como
uma espécie de linguagem soberana. O destino que está escrito.
Mas, talvez, esse Édipo que acerta na resposta que dá à esfinge tenha
convencido o monstro mas não tenha se convencido. Então, ele deve buscar mais:
cometer mais Hamartías, cegar-se, afundar-se na floresta em busca de si mesmo e,
depois, desaparecer. E não será de todo improvável imaginar que ele sumiu porque,
nas brenhas, encontrou-se a si próprio. Efêmero como um homem e permanente como
um deus, este ser que se encontra consigo mesmo talvez tenha conseguido também se
esvaziar do mito. Assim, como afirma Jaeger (2003), nem o destino nem Édipo o
absolvidos ou condenados”. (JAEGER, 2003, p.333)
64
Mas, para que a pintura do vaso se complete e a Moira cumpra seu papel
inexorável, ainda falta que Édipo se case com Jocasta e que, com ela, tenha quatro
filhos. Assim, Édipo, mesmo não querendo se igualar aos deuses, tefeito isto. É isto
também o que diz, de uma ou de outra maneira e por outros e mais elaborados
caminhos, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1992), quando afirma que os deuses
legitimam a vida humana pelo fato de eles próprios a viverem a teodicéia que sozinha
se basta!(NIETZSCHE, 1992, p.37) Casando-se com sua mãe e com ela gerando, ele
será como Urano. A desmedida involuntária será cometida. está Jocasta, no canto
esquerdo do vaso, esperando o filho que perdeu e pelo esposo que perderá. Também
ela efêmera, definida pela falta do verniz na cerâmica. Nietzsche (1992), em seu O
Nascimento da Tragédia, nos oferece uma espécie de definição do herói, cujo ambiente
suscita decisivamente o preenchimento pela falta que buscamos na ânfora de San
Gimignano:
Se abstrairmos, todavia, do caráter do herói, tal como aparece à superfície e se
torna visível - o qual no fundo nada mais é senão uma imagem luminosa
lançada sobre uma parede escura, isto é, uma aparência de uma ponta a outra
-, se penetrarmos bem mais no mito que se projeta nesses espelhamentos
luminescentes, perceberemos então, de repente, um fenômeno que tem uma
relação inversa com um conhecido fenômeno óptico. Quando, numa tentativa
enérgica de fitar de frente o Sol, nos desviamos ofuscados, surgem diante dos
olhos, como uma espécie de remédio, manchas escuras: inversamente, as
luminosas aparições dos heróis de Sófocles, em suma, o apolíneo da máscara,
são produtos necessários de um olhar no que há de mais íntimo e horroroso na
natureza, como que manchas luminosas para curar a vista ferida pela noite
medonha. (NIETZSCHE, 1992, p.63)
No entanto, a tragédia de Jocasta é distinta, subalterna de uma linguagem que
tem sua ortodoxia marcada na figura do masculino. Homens que dominam, que
decidem, que dormem com suas mães, matam seus próprios filhos, que escrevem
obras para o teatro, guerreiam, tentam enganar os deuses, são por eles invejados. À
65
mulher cabe um papel, como se disse, subalterno. Sófocles, contudo, talvez pela
primeira vez na trajetória da cultura grega, também dá a ela, à mulher, como lembra
Werner Jaeger (2003), a representatividade do humano. Trata-se de Antígonas,
Electras, Dejaniras, Tecmesas, Jocastas. Cada uma tão efêmera como os homens que
caminham a seu lado. Humanas e divinas, lutando contra a brevidade e o esquecimento
que tornam trágico o destino de cada um. Este destino que é tirano e que também é
Moira. E, como Moira, feminino, linguagem. Jocasta.
66
4. MARCAS DO GÊNERO
Ao ler o mito de Édipo, Sófocles, como se tentou mostrar, sublinhou
características que eram, ao mesmo tempo, determinantes de sua época e do gênero
ao qual se consagrou. No que se refere à abordagem do homem grego do século V a.
C., o dramaturgo de Colono avança em alguns aspectos de seu tempo, como a maneira
a partir da qual a mulher é introduzida na tragédia, ainda que o faça de maneira
moderada para os padrões da contemporaneidade. Quando o assunto é a questão do
gênero, Sófocles vai muito além, criando o próprio modelo.
Em Édipo Rei, a visão de mundo retratada é aquela que pertence a seu tempo e
aquela que dará a medida do tempo que virá. Ou seja: da mesma maneira que a obra
de Sófocles fala da Grécia que lhe é contemporânea, diz também de um mundo que
será, no mínimo, o espelho fosco de boa parte das idéias que surgiram nesse mesmo
universo da antiguidade helênica. Idéias que ainda hoje encontram eco em nossa
empresa ocidental. Talvez seja isto o que confira a este modo de conceber o mundo um
caráter até certo ponto marcado pela ortodoxia. Nesse sentido, para demonstrar tal fato,
valeria citar partes da obra em que a maneira de enxergar o humano se pauta pelo
ortodoxo em pelo menos três aspectos decisivos, quais sejam: o lugar de deus, o lugar
do homem e o lugar do trágico. Lugares estes que estão circunscritos não apenas à
sociedade grega da antiguidade, mas também, porque não dizer, à nossa natureza
contemporânea.
No que se refere à posição divina, mesmo que a tragédia concordar, no
futuro, com um discurso platônico que, grosso modo, insere deus como a medida de
67
todas as coisas, as ambigüidades são decisivas. Primeiro porque, ao colocar deus no
centro, a tragédia de Sófocles e, em particular, o Édipo Rei, se opõem àquilo que dizem
Protágoras e os sofistas do século V a. C: que o homem é a medida de todas as coisas.
No entanto, ao pensar desta maneira e se aproximarem da fórmula platônica, os
trágicos estarão fazendo um discurso análogo àquele que já havia sido feito com
Homero, por exemplo, e que se tecido com Platão, aproximadamente um século
depois. E, aqui, vale recordar o caráter essencialmente antitrágico da filosofia platônica
(JAEGER, 2003). Para Albin Lesky (2001), a obra de Sófocles deve ser encarada
sempre como engenho humano e luta humana, ao lado do inapreensível, inatingível
governo dos deuses!(LESKY, 2001, p.148) Em Édipo Rei, são inúmeras as ocasiões
em que é a vontade dos deuses aquela decisiva, determinante, implacável. Zeus, em
cada momento, e na fala de todos, é sempre chamado “o todo poderoso”:
Deus todo-poderoso, se mereces
Teu santo nome, soberano Zeus,
Demonstra que em tua glória imortal
Não és indiferente a tudo isso! (SÓFOCLES, 2002, p.62)
Entretanto, se o lugar de deus é assegurado acima de todas as coisas, em
“glória imortal”, o lugar do trágico evidencia uma ambigüidade própria do humano. Este
duplo sentido está no destino que, se não deixa de ser construído por meio de ações
que confirmam o movimento da alma das personagens, também é inexorável. E a tal
destino, como se viu no capítulo anterior, até mesmo Zeus deve estar subordinado.
Trágica, então, é a impossibilidade do divino e do humano se desvencilharem do tecido
da Moîra. É por isso que, como diz Pierre Vidal-Naquet (2005), nos trágicos, a
68
divindade é também medida, mas é medida no termo da tragédia(VERNANT; VIDAL-
NAQUET, 2005, p.282).
A saga de Édipo seria então, nestes termos, algo que talvez nem mesmo os
deuses podem mudar. Se há quem possa transformar o mito, este alguém (deus?) é
Sófocles, criador que exerce suas prerrogativas de maneira implacável, vestindo suas
criaturas (suas, porque não pertencem mais ao mito, mas a ele próprio) com o tecido
trágico que julga apropriado. Isso significa que, nas especificidades do gênero, aquilo
que chamamos vontade dos deuses está ali para assegurar o cumprimento do destino
humano ou, como afirma Werner Jaeger (2003), o desenvolvimento essencial do
homem sofredor(JAEGER, 2003, p.332). É assim que quer o dramaturgo de Colono e
é também assim que nos diz seu próprio coro quando, ao final, depois de conhecer a
felicidade trepidante e chegar ao mais fatal infortúnio, Édipo se prepara para cegar-se.
Vossa existência, frágeis mortais,
é aos meus olhos menos que nada.
Felicidade só conheceis
Imaginada; vossa ilusão
Logo é seguida pela desdita.
Com teu destino por paradigma,
desventurado, mísero Édipo,
julgo impossível que nesta vida
qualquer dos homens seja feliz!
Ele atirava flechas mais longe
Que os outros homens e conquistou
(assim pensava, Zeus poderoso)
incomparável felicidade. (SÓFOCLES, 2002, p.62)
Mas o Zeus poderoso não é aquele que fala com o coro de anciãos tebanos.
Então, aos olhos de quem a existência humana é “menos que nada”? Certamente, do
próprio Sófocles. Mas, talvez, também desta Moîra implacável. Por isso, porque o
destino é inexorável, Édipo não pode ser feliz. Se nem mesmo os deuses podem alterar
69
o caminho das coisas, se a esses deuses o único papel possível é o de oráculos,
revelando apenas aquilo que irá acontecer, Édipo, e quem tenha um destino como o
seu, não poderá vislumbrar a felicidade. Mas, cego, ele tomará as rédeas de sua
fortuna e, para enxergar aquilo que lhe era impossível ver quando teve o poder em suas
mãos, provocará sua própria cegueira.
Esta maneira de apreender o significante, que coloca um deus como centro de
todas as coisas para, durante a caminhada, ir descobrindo que nem mesmo este deus
poderá modificar o curso dos acontecimentos é, acredita-se, um modo ortodoxo de
enxergar o mundo. O lugar de deus é o centro, desde que este centro garanta aquilo a
que estamos acostumados chamar “liberdade humana”. Quando faz uma analogia entre
as condições do homem e de deus, o jesuíta Antônio Freire (1969) parece mostrar
como tal prática de definir as coisas está pautada por um caráter ortodoxo, no sentido
de reiterar uma maneira canônica de interpretar os fatos:
...só quem conhece a Deus, conhece o homem –, não deixa de ser verdadeira,
na nossa condição humana, a inversa: só quem conhece o homem, conhece a
Deus. O nosso conhecimento de Deus é analógico; e é do mais conhecido que
partimos para o menos conhecido. (FREIRE, 1969, p.65)
O Édipo de Sófocles é o ser humano que, seguindo aquilo que os oráculos lhe
dizem, também desconfia deste discurso. Ele consegue decifrar enigmas; parece – para
alguns como Michel Foucault saber mais do que aparenta; julga conhecer os deuses;
mas não conhece sequer a si mesmo. Tal ambigüidade é mostrada em momentos
decisivos do texto. Quando o oráculo de Apolo, por exemplo, lhe diz que ele irá matar
seu pai e casar-se com sua mãe, Édipo considera suas palavras e abandona Corinto.
Foge para não cometer sua Hýbris. Mas, quando esta profecia afeta sua liberdade,
70
mostrando que a escolha que fez era um equívoco, ele desconfia, denegando o próprio
oráculo e as palavras de Tirésias. Assim, ao mesmo tempo em que Édipo é um homem
que respeita seus deuses, também é um homem que os desafia, que quer se igualar a
eles, que não deseja, sobretudo, perder o poder ao qual está acostumado.
Mesmo quando o desenrolar dos acontecimentos revela que os vaticínios do
oráculo foram acertados, o Édipo culpado aquele que se cega e que é arruinado pelo
destino e por seus próprios atos este Édipo é também aquele que, através do trágico,
eleva-se à sua condição mais sublime, quando assume conscientemente as rédeas de
sua sina e, de uma ou outra maneira, mostra que seu fadário comporta sobretudo o
peso da desdita que atinge todos os cidadãos de Tebas. Aqui se encontra a
ambigüidade decisiva. Uma ambigüidade que, reunindo Hýbris e Are sob a mesma
chancela, mostra que o mundo está sendo interpretado a partir desta ortodoxia trágica à
qual se acabou de aludir.
Compreende-se imediatamente o afundamento do herói na dor trágica; em vez
de colocá-lo judicialmente na injustiça, o que faz é revelar de modo patente,
em naturezas nobres, o caráter iniludível do destino que os deuses impõem
aos homens. (...) Não partilha as resignadas palavras de Simônides, segundo
as quais o Homem tem de perder necessariamente a arete, quando o infortúnio
inexorável o derruba. A elevação dos seus grandes sofredores à mais alta
nobreza é o Sim que Sófocles a esta realidade, a esfinge cujo enigma fatal
consegue resolver. É o homem trágico de Sófocles o primeiro a elevar-se a
uma autêntica grandeza humana, pela completa destruição da sua felicidade
terrena ou da sua existência física e social. (JAEGER, 2003, p.331)
A dor trágica é, ao que parece, não uma prerrogativa inerente aos deuses ou ao
próprio mito, mas algo que é construído pelo gênero. É a obra de Sófocles que
estabelece engenho e luta humana ao lado de um poder aparentemente decisivo dos
deuses. Isto, acredita-se, deve-se ao fato de que essa dor trágica advém de um destino
71
inexorável e não da vontade propriamente dita dos deuses ou de uma estrutura
definitiva do mito. Fosse assim, os deuses poderiam mudar o curso dos
acontecimentos, mas não mudam. Fosse também assim, e o mito teria uma versão,
não comportando, por exemplo, a de Homero, que nos é oferecida na Odisséia, como já
se mostrou no capítulo anterior desta dissertação. Quem comanda a luta e determina o
engenho é o dramaturgo de Colono, definindo a reboque o destino de suas
personagens.
A esse propósito, vale lembrar o que diz o helenista Jacyntho José Lins Brandão
em seu texto O como e o quê no Édipo Rei, de Sófocles (BRANDÃO, 1980). Neste
ensaio, cujo principal objetivo é o debate sobre a forma e o conteúdo da tragédia grega,
Brandão chama a atenção para a maneira como Sófocles tece o conteúdo mítico em
Édipo Rei. Para o helenista, é o engenho ímpar do dramaturgo de Colono o maior
responsável pela grandiosidade dramática do Édipo Rei. Isto porque a escritura de
Sófocles pode ser considerada o fator determinante na recriação, a partir de jogos
repletos de ambigüidade e ironia, de um enredo possivelmente conhecido do público
da época. Assim, segundo Brandão, a maior inventiva está no como Sófocles conta a
lenda de Jocasta e Édipo, e não no próprio entrecho em si. Como afirma o helenista, “a
arte do poeta consiste em lançar dúvidas, jogando com tensão e distensão, criando,
dessa forma, o ritmo dramático” (BRANDÃO, 1980, p. 55 e 56). É por isso que o
parecer de Jacyntho José Lins Brandão sobre quem seria o principal público buscado
por Sófocles se os que conheciam o mito ou aqueles que o ignoravam não
poderia ser mais inequívoco no que se refere à importância da forma na composição da
dramaturgia trágica:
72
Há, pois, como tudo na peça, várias maneiras de presenciá-la e
entendê-la. Agradaria tanto ao público ignorante do mito, quanto àqueles
que com ele tivessem familiaridade. Predomina todavia, em termos de
qualidade, a apreciação dos últimos. Talvez a eles se dirigisse o autor
preferencialmente, por sabê-los capazes de apreciar, de forma integral,
como
se dava o jogo de ambigüidades, o dialogismo irônico de cada
episódio, atitude ou fala: enquanto a superfície da linha revela o fio da
história contada, a profundidade das entrelinhas desvela a condição
amarga e impotente do homem, aqui encarnado na personagem. Édipo,
o que decifrou a esfinge, mas sucumbiu diante do próprio enigma.
Aquele que reuniu em si todos os contrários, como a provar que "o
contrário
é
convergente e dos divergentes nasce a mais bela harmonia,
e tudo segundo a discórdia", conforme Heráclito. A provar e a mostrar a
natureza trágica do homem: "nos mesmos rios entramos e não
entramos, somos e não somos"
5
.
(BRANDÃO, 1980, p. 58 e 59)
Nesse sentido, a história de Édipo, que servirá para que Freud defina toda sua
teoria, é uma construção de Sófocles e, como tal, do gênero dramático ao qual se
dedicou. Tal dedicação, como lembra Albin Lesky (2001), rendeu-nos 123 peças
classificadas sob o nome de Sófocles por eruditos alexandrinos. Ao lado de nomes
como Ésquilo e Eurípides, foi ele quem construiu a ortodoxia do gênero. Tal fato pode
ser comprovado na Poética de Aristóteles, obra em que o estagirita procura estabelecer
a própria teoria da tragédia.
Assim, a Poética de Aristóteles é capaz de justificar a afirmação pouco feita
de que Sófocles cria a tragédia grega. o várias as passagens em que o filósofo que
viveu entre 384 e 322 a. C. cita as obras de Sófocles como exemplo bem acabado do
gênero. Isto acontece em partes da Poética, nas quais Aristóteles procura delinear as
características da tragédia. No que se refere ao Édipo Rei, fonte primária desta
dissertação, a peça é citada em sete capítulos pelo estagirita, sempre de maneira a
mostrar o acerto de Sófocles no que se refere à adequação do texto aos parâmetros
estabelecidos para o gênero.
5
HERÁCLITO DE ÉFESO. Fragmentos. Trad. De José Cavalcante de Souza, p. 80 e 84.
73
A primeira citação aparece, no capítulo XI, quando Aristóteles (1993) se propõe a
elucidar reconhecimento e peripécia, elementos qualitativos do que ele próprio chama
“mito complexo” e partes essenciais da tragédia. A peripécia, que é marcada pelo
imprevisto, quando os acontecimentos resultam no inverso daquilo que deles se poderia
esperar, acontece, no Édipo Rei, inverossímil e necessariamente (ARISTÓTELES,
1993, p.118).
Assim, no Édipo, o mensageiro que viera no propósito de tranqüilizar o rei e de
libertá-lo do terror que sentia nas suas relações com a mãe, descobrindo quem
ele era, causou o efeito contrário (...). (ARISTÓTELES, 1993, p.118)
No que se refere ao reconhecimento, que se trata, como afirma Aristóteles, da
passagem do ignorar ao conhecer, o Édipo Rei é citado, ainda no capítulo XI e também
no XVI, como possuidor da “mais bela de todas as formas de reconhecimento”, uma vez
que ela acontece, nesta peça, juntamente com a peripécia.
A próxima citação do Édipo Rei tem lugar no capítulo XIII, quando Aristóteles
(1993) fala sobre o herói trágico. Aqui, mais uma vez, o herói que se transforma em
tirano de Tebas é o exemplo acreditado perfeito daquilo que se poderia chamar de
homem intermediário. Trata-se do herói que, oriundo de uma família ilustre, conhece
sua tragédia dolorosa a partir da Hamartía.
... o homem que não se distingue muito pela virtude e pela justiça; se cai no
infortúnio, tal acontece, o porque seja vil e malvado, mas por força de algum
erro; e esse homem de ser algum daqueles que gozam de grande
reputação e fortuna, como Édipo e Tiestes ou outros insignes representantes
de famílias ilustres. (ARISTÓTELES, 1993, p.120)
74
No capítulo XIV, em que o filósofo macedônico disserta sobre a catástrofe, o
Édipo Rei é mencionado pelo fato de que, a partir da tessitura de Sófocles, os
desastres são mostrados não “por efeito do espetáculo cênico”, mas porque derivam da
íntima conexão dos atos (ARISTÓTELES, 1993).
Porque o mito deve ser composto de tal maneira que, quem ouvir as coisas
que vão acontecendo, ainda que nada veja, pelos sucessos trema e se
apiede, como experimentará quem ouça contar a história de Édipo.
(ARISTÓTELES, 1993, p.121)
A verossimilhança é tratada no capítulo seguinte da Poética. A menção ao Édipo
Rei acontece quando, depois de tratar sobre a propriedade do surgimento do deus ex
machina, Aristóteles (1993) diz que o irracional também não deve entrar no
desenvolvimento dramático, mas, se entrar, que seja unicamente fora da ação...
(ARISTÓTELES, 1993, p.125). Mais à frente, no capítulo XXIV, esta questão é
novamente suscitada, quando o filósofo recomenda que o irracional aconteça fora da
representação e oferece, como exemplo deste tipo de acerto, o fato de Édipo ignorar as
circunstâncias da morte de Laio.
Afinal, a última citação do Édipo Rei na Poética ocorre no capítulo XXVI, o último,
quando, ao tratar da epopéia e da tragédia, afirmando que a segunda é superior à
primeira, Aristóteles também elogia a concisão dramática, pedindo ao leitor que imagine
o efeito que produziria o Édipo de Sófocles em igual número de versos que a Ilíada
(ARISTÓTELES, 1993, p.147). São estas, portanto, as citações textuais feitas pelo
filósofo macedônico acerca do Édipo Rei. Entretanto, envolvendo outras obras de
Sófocles, elas ocorrem em número bastante superior.
75
Vale ainda mencionar como o Édipo Rei também é referência para a ortodoxia
aristotélica a respeito da tragédia no que se refere a outros aspectos. Um deles é o da
unicidade da fábula: na história do tirano de Tebas, temos apenas o relato dos
episódios vividos por ele próprio. A trama dos acontecimentos também é de natureza
trágica, capaz de suscitar o terror e a piedade do espectador, como exige o estagirita
no capítulo VI (ARISTÓTELES, 1993, p.110). No tocante ao número de atores, vale
lembrar que foi o próprio Sófocles quem introduziu o terceiro ator, que vem se juntar ao
herói em seu confronto com o coro.
Ainda dentro desta perspectiva, cumpre dizer que, naquilo que se refere às três
unidades de composição, – ação, tempo e lugar o Édipo Rei mais uma vez alimenta a
Poética. Nele, a ação, que Aristóteles afirma ser a parte mais importante da tragédia,
transcorre de maneira exata, com a trama sendo plenamente representada, não
necessitando, em momento algum, de que partes dela sejam explicadas, a fim de que o
espectador possa compreendê-la. O tempo no Édipo Rei é delimitado como Aristóteles
quer: no sentido de caber dentro de um período do sol, ou pouco excedê-lo...
(ARISTÓTELES, 1993, p.109). No que diz respeito à última unidade, o lugar, a obra de
Sófocles certamente inspirou a ortodoxia estabelecida na Poética: o cenário é único,
indicando a apreensibilidade do conjunto, de princípio a fim da composição
(ARISTÓTELES, 1993, p.140).
Nesse sentido, o que aqui se procurou demonstrar, por motivos óbvios com
enorme facilidade, é que o Édipo Rei é uma das peças que inspira a ortodoxia definida
para o gênero na Poética escrita por Aristóteles no século IV a.C. É com base nos
parâmetros praticados por Sófocles em sua escritura que a tragédia clássica se enuncia
e se perpetua.
76
Assim, poder-se-ia dizer que a ortodoxia é característica da obra do dramaturgo
de Colono, e particularmente do Édipo Rei, em aspectos decisivos. Sobretudo, por
compreender uma visão de mundo que incorpora a maneira de pensar o lugar do
homem, de Deus e do trágico.
4.1. MARCAS ESTRUTURAIS
Cada qual a seu modo, sem perder de vista o fato de que tais lugares marcam-se
principalmente por se encontrarem, o humano e o divino em Sófocles trazem a dor
trágica como matéria-prima essencial capaz de refletir formas de pensar que irão
constituir não somente a tradição intelectual de sua própria época e do futuro da
empresa ocidental, mas também de todo um gênero dramático, criando-o e, neste
mesmo processo, recriando-o.
Ao lado da leitura de Sófocles sobre o mito de Édipo, e dentro de uma
concepção ortodoxa, no sentido de ser amplamente acreditada no mundo científico,
vale citar ainda duas outras abordagens: a antropológica estruturalista, de Claude Lévi-
Straus; e a psicanalítica, de Sigmund Freud.
No que se refere à análise que faz o antropólogo belga, a leitura que é realizada
quer mostrar, como acredita Audemaro Taranto Goulart (1997), que o mitoimpressiona
não apenas devido aos cuidados estéticos ou morais que o contornam mas também
devido à inspiração religiosa e ao uso ritualístico” (GOULART, 1997, p.11). Lévi-Strauss
77
apresenta uma descrição detalhada de fragmentos do mito, aos quais denomina
mitemas.
São tais mitemas que, em articulação com um modelo previamente elaborado
pelo antropólogo, darão origem a uma estrutura. Mas, na verdade, Lévi-Strauss não
toma somente a versão que nos é oferecida através do Édipo Rei, de Sófocles. Ele vai
aquém. Partindo da fundação de Tebas, ele busca a história de Cadmo, filho de
Agenor, rei na Fenícia, e de Telêfassa (ou Argiope). Com o rapto de Europa, sua irmã,
por um Zeus transformado em touro, Agenor ordena a Cadmo e a seus outros dois
irmãos, Cílix e Fênix, que partam em busca da irmã, não voltando sem ela.
Acompanhado da mãe, Cadmo segue para a Trácia, enquanto seus outros irmãos
percorrem a Cilícia e a Fenícia.
Com a morte de sua e, Cadmo consulta o oráculo de Delfos que lhe instrui
abandonar a procura de Europa e fundar uma cidade no exato lugar em que uma vaca,
à qual ele encontraria e deveria seguir, caísse de cansaço. Agindo conforme as
determinações do oráculo, Cadmo encontra o animal, segue-o e, no local em que este
se deita para descansar, funda Tebas. O herói, então, a fim de sacrificar a vaca para
Atena, manda que seus homens busquem água na fonte de Ares, situada ali perto.
Contudo, lá, um dragão devora todos eles para, em seguida, ser morto por Cadmo.
Surge, então, a deusa Atena, que diz ao filho de Agenor que arranque os dentes do
dragão e os semeie para, daí, surgirem do solo outros homens completamente
armados, os Spartoi, ou “homens semeados”.
Temendo os Spartoi, que possuíam maneiras ameaçadoras, Cadmo lhes atira
pedras e eles, sem saber de onde vem o ataque, lutam contra si mesmos. Ao final,
salvam-se apenas cinco homens semeados: Equíon, Ctônio, Hiperenor, Pêloro e Udaio.
78
São tais homens que, junto a Cadmo, dão início à aristocracia de Tebas. Mas é o
próprio Cadmo que, depois de se casar com Harmonia, filha do deus Ares, a quem
servira por haver matado o dragão pertencente a esta divindade, recebe de Atena o
trono de Tebas.
Duas gerações mais tarde, bdaco, filho de Polidoro e Nicteis, assume o trono
de Tebas, depois de completar sua maioridade. É deste Lábdaco que descende Laio, o
pai que mandou matar Édipo e, como se lembrou nesta dissertação, início aos
infortúnios que irão perseguir os labdácidas ao se apaixonar por Crisipo, inaugurando
aquilo que se poderia chamar “amor contra naturam”.
Ao buscar o mito em suas origens e levá-lo até a morte de Antígona, que ocorre
porque ela desrespeita a ordem de Creonte e faz enterrar seu irmão Polinice (tema da
peça Antígona, do próprio Sófocles (2002)), Lévi-Strauss monta uma estrutura que
mostra quatro colunas com mitemas específicos. Na primeira coluna, são mostradas
partes essenciais do mito, como a busca de Cadmo por Europa, o casamento entre
Édipo e Jocasta, e a violação da proibição de Creonte, cometida por Antígona ao
enterrar Polinice.
Na segunda coluna, Lévi-Strauss expõe mitemas ligados à morte: o extermínio
mútuo dos Spartoi, o assassinato de Laio e o confronto mortal entre Etéocles e Polinice.
Na terceira, temos desafios vencidos pelos heróis, como a morte do dragão, por
Cadmo; e a da Esfinge, por Édipo. Na última coluna, o antropólogo relaciona os defeitos
físicos dos labdácidas: Lábdaco, que é coxo; Laio, que é torto; e Édipo, que possui os
pés inchados.
Uma vez montada tal estrutura, Lévi-Strauss (1996) constrói um modelo em que
tais mitemas se articulam a partir de um arranjo teórico cuja construção, como lembra
79
Taranto Goulart (1997), depende das formulações que o analista pretende fazer nele,
com o objetivo de buscar uma significação para os elementos que o constituem
(GOULART, 1997, p.15). Mas é na maneira de executar a leitura que se encontra o
diferencial da análise estrutural de vi-Strauss. Ela pode ser feita tanto de forma linear
como de modo vertical. Nesse sentido, o antropólogo quer chamar a atenção para o
fato de que a leitura de um mito não é realizada por vínculos independentes, mas por
aquilo que ele mesmo chama de feixe de relações entre os mitemas.
Supomos, com efeito, que as verdadeiras unidades constitutivas do mito não
são as relações isoladas, mas feixes de relações, e que é somente sob a forma
de combinações de tais feixes que as unidades constitutivas adquirem uma
função significante. Relações que provêm do mesmo feixe podem aparecer em
intervalos afastados, quando nos situamos num ponto de vista diacrônico, mas
se chegamos a restabelecê-las em seu agrupamento ‘natural’, conseguimos ao
mesmo tempo organizar o mito em função de um sistema de referência
temporal de um novo tipo, e que satisfaz as exigências da hipótese inicial.
Realmente, este sistema é de duas dimensões: ao mesmo tempo diacrônico e
sincrônico, e reunindo assim as propriedades características da língua’ e da
‘palavra’. (LEVI-STRAUS, 1996, p.243-244)
Para ler o mito de Édipo a partir desta estrutura, segundo Taranto Goulart, é
necessário perceber quais são os pontos em comum dos mitemas relacionados em
cada coluna. Neste sentido, Lévi-Strauss revela que, na primeira coluna, o traço em
comum são as “relações de parentesco superestimadas”. Na segunda, essas mesmas
relações são “subestimadas”. Na coluna seguinte, os mitemas convergem para o que
Lévi-Strauss chama de “negação da autoctonia do homem”. E, na última, o oposto, com
a “afirmação da autoctonia do homem”.
A partir de tais caracterizações, o que se pode perceber é que contradições
internas tanto entre as duas primeiras quanto entre as duas últimas colunas. As
questões estão, portanto, nas definições das relações de parentesco e da autoctonia
80
humana. Ou seja: as relações de parentesco são decisivas para definir o homem Édipo
e seu mito, ou não? Do mesmo modo, a origem deste mesmo Édipo, de onde ele vem,
é suficiente e decisiva para decifrá-lo? Assim, como explica acertadamente Audemaro
Taranto Goulart (1997), através de tais oposições, o que a análise estrutural do
antropólogo belga parece indagar é o que se poderia chamar “pergunta definitiva do
próprio ser humano: quem sou eu?
Para responder a essa indagação, o homem dispõe de duas teorias: uma,
fundada na religião, que atribui a criação humana a um ser superior, um deus,
e outra, ancorada na ciência, que defende o princípio de que o homem é
produto de uma evolução natural. (GOULART, 1997, p.18)
Nesse sentido, a questão assinalada por Lévi-Strauss mostra que a contradição
estabelecida entre os mitemas que apontam ora para a negação, ora para a afirmação
da autoctonia do homem; e, ao mesmo tempo, ora superestimando, ora subestimando
as relações de parentesco. Ainda para Audemaro Taranto Goulart, tal contradição é
insuperável. A pergunta fica, portanto, sem resposta. Édipo não sabe quem é e, quando
isto parece acontecer, não lhe resta outra alternativa a não ser sair cego e andarilho,
em sua busca de Sísifo.
No entanto, o que para esta dissertação mais interessa na proposta de Lévi-
Strauss (1996) para enxergar o mito é o fato de que o antropólogo, desde o início de
sua análise, opta por não querer determinar uma versão “autêntica” para o mito de
Édipo. Esta linha, que exemplificaremos a seguir com um trecho de seu texto A
estrutura dos mitos, seretomada mais à frente, quando tentar-se-á fazer uma leitura
de viés heterodoxo. Por hora, vale ficar com as palavras que Lévi-Strauss emprega
81
para justificar seu método, ao mesmo tempo em que também reconhece a importância
das variadas leituras:
O método nos livra, pois, de uma dificuldade que se constituiu, até agora, num
dos principais obstáculos ao progresso dos estudos mitológicos, ou seja, a
pesquisa da versão autêntica ou primitiva. Nós propomos, ao contrário, definir
cada mito pelo conjunto de todas as suas versões. Dito de outro modo: o mito
permanece mito enquanto é percebido como tal. Este princípio é bem ilustrado
por nossa interpretação do mito de Édipo, que se pode apoiar sobre a
formulação freudiana, e lhe é certamente aplicável. O problema posto por
Freud em termos ‘edipianos’ não é mais, sem dúvida, o da alternativa entre
autoctonia e reprodução bissexual. Mas se trata sempre de compreender
como um pode nascer de dois: como se que não tenhamos um único
genitor, mas uma mãe, e um pai a mais? Não se hesitará pois em classificar
Freud, depois de Sófocles, na relação de nossas fontes do mito de Édipo.
Suas versões merecem o mesmo crédito que outras, mais antigas e,
aparentemente, mais ‘autênticas’. (LÉVI-STRAUSS, 1996, p.250)
4.2. MARCAS DO DESEJO
Efetivamente, como aponta Lévi-Strauss, a leitura que Sigmund Freud faz do
mito de Édipo não passa pela negação ou afirmação da autoctonia. Trata-se da própria
criação da psicanálise, um todo terapêutico que consiste fundamentalmente na
interpretação, por um psicanalista, dos conteúdos inconscientes de palavras, ações e
produções imaginárias de um indivíduo, com base em associações livres e na
transferência (ROUDINESCO; PLON, 1998). Tal método que surge no final do culo
XIX e, no século XX, vai formar toda uma escola de pensamento – deriva em mudanças
radicais na maneira como o ser humano é enxergado. E, apenas para que se tenha
idéia da importância do mito de Édipo, e da própria tragédia de Sófocles, na
composição desse ambiente ao qual não hesitaríamos em chamar revolucionário, vale
82
atentar para o que Freud, ele mesmo, escreve em seu último livro, redigido em 1938 e
publicado depois de sua morte. Em O Esboço de Psicanálise (FREUD, 1974), Freud
diz, de modo decisivo, assim como é lembrado no Dicionário de Pscicanálise de
Elisabeth Roudinesco e Michel Plon:
Permito-me pensar que, se a psicanálise não tivesse em seu ativo senão a
simples descoberta do complexo de Édipo recalcado, isso bastaria para situá-
la entre as preciosas novas aquisições do nero Humano. (ROUDINESCO;
PLON, 1998, p.167)
Certamente, talvez não haja teoria do pensamento humano mais reconhecida,
criticada e debatida do que o complexo de Édipo. Em linhas gerais, tal teoria trata da
representação inconsciente pela qual se exprime o desejo sexual ou amoroso da
criança pelo genitor do sexo oposto e sua hostilidade para com o genitor do mesmo
sexo (ROUDINESCO; PLON, 1998, p.166). No entanto, segundo o Dicionário de
Psicanálise, de Elisabeth Roudinesco e Michel Plon (1998), tal representação pode se
inverter e passar a expressar o amor pelo genitor do mesmo sexo e o ódio pelo do sexo
oposto. À primeira representação, chama-se “Édipo”; à segunda, “Édipo invertido”; à
mistura das duas, “Édipo completo”. Assim, o complexo de Édipo surge entre os três e
cinco anos de idade e, para a psicanálise, seu declínio assinala a entrada num período
chamado de latência, traduzido pela sublimação do interesse sexual. Sua resolução
ocorre após a puberdade e é concretizada a partir de um novo tipo de escolha de alvo
de pulsão, que pode ser uma pessoa, um objeto parcial, real ou fantasístico.
De maneira natural, em nossa sociedade contemporânea, o complexo definido
por Freud e a tragédia escrita por Sófocles chegam mesmo a se confundir no senso
comum. O que no dramaturgo grego é mais comumente interpretado como um
83
paradigma do destino humano, como nos referimos muitas vezes nesta dissertação,
no pensador judeu é a mescla deste mesmo destino com uma determinação psíquica,
vinda do inconsciente, capaz de definir as escolhas e os projetos humanos. Na
verdade, embora o Édipo Rei esteja presente em toda a obra freudiana, o criador da
psicanálise nunca escreveu um artigo exclusivo sobre esta sua leitura da peça de
Sófocles. A primeira referência direta acontece em carta datada de 15 de outubro de
1897, a Wilhelm Fliess. Em seguida, na Interpretação dos Sonhos (FREUD, 1987b),
obra publicada em 1900, Freud volta ao tema de maneira igualmente específica.
Em minha experiência, que é extensa, o papel principal na vida mental de
todas as crianças que depois se tornam psiconeuróticas é desempenhado por
seus pais. Apaixonar-se por um dos pais e odiar o outro figuram entre os
componentes essenciais do acervo de impulsos psíquicos que se formam
nessa época e que é tão importante na determinação dos sintomas da
neurose posterior. Não é minha crença, todavia, que os psiconeuróticos
difiram acentuadamente, nesse aspecto, dos outros seres humanos que
permanecem normais isto é, que eles sejam capazes de criar algo
absolutamente novo e peculiar a eles próprios. É muito mais provável e isto
é confirmado por observações ocasionais de crianças normais –, que eles se
diferenciem apenas por exibirem, numa escala ampliada sentimentos de amor
e ódio pelos pais que ocorrem de maneira óbvia e intensa nas mentes da
maioria das crianças.
Essa descoberta é confirmada por uma lenda da Antiguidade Clássica que
chegou ate nós: uma lenda cujo poder profundo e universal de comover só
pode ser compreendido se a hipótese que propus com respeito à psicologia
infantil tiver validade igualmente universal. O que tenho em mente é a lenda do
Rei Édipo e a tragédia de Sófocles que traz o seu nome. (FREUD, 1987b,
p.256)
Ao confessar que foi buscar a fonte de inspiração para sua teoria em uma peça
de teatro da antigüidade grega, podendo, por exemplo, dizer que foi encontrá-la num
mito, acredito que, mais do que realçar sua invenção da psicanálise, Freud valoriza a
obra de Sófocles. É por isto que, como já disse anteriormente, com o apoio de
mitólogos como Vernant (2005), não é possível crer que “o poder profundo e universal
de comover” do Édipo Rei só possa ser compreendido se amparado na hipótese
84
freudiana sobre a psicologia infantil. Não. Antes que se prossiga com a leitura
freudiana, é necessário deixar claro que a crença deste trabalho caminha para uma
abordagem que não perde de vista um outro poder, qual seja, o do gênero literário. De
maneira mais específica, o que se quer afirmar é que esse poder profundo de comoção
do mito de Édipo tem sua base também em uma invenção. Mas não a da psicanálise, e
sim a do gênero dramático que Sófocles ajudou a criar e, assim fazendo, agiu com
excelência. Em outras palavras, não é a obra de Sófocles que se serve do complexo
inventado por Freud para caminhar do século V a.C. até os nossos dias, mas
exatamente o contrário. Ou seja: é o pai da psicanálise quem se apropria da tragédia
do dramaturgo grego para fundar o principal de sua hermenêutica.
Contudo, embora acredite no sentido da proposta formulada por Deleuze e
Guattari (1966) de que o complexo de Édipo freudiano possui contornos que apostam,
talvez se possa mesmo dizer, na manipulação do desejo em nossa sociedade, é
impossível negar a influência da psicanálise desde sua criação. E, como se disse, tal
invenção parte de uma tragédia: de uma tragédia grega. É com as palavras de Sófocles
e, portanto, a partir de uma estrutura literária que Freud, acredita-se, comete seu
próprio parricídio ao desvincular a cura de neuroses e psicoses do processo
psiquiátrico. E é também através da literatura que o pensador judeu prosseguimento
a sua teoria, vinculando-a, primeiro, ao Hamlet, de Shakespeare, e, em seguida, à saga
parricida de Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski.
Na verdade, voltando ao Édipo Rei, o que Freud faz é usar a versão que
Sófocles compõe do mito na direção de suas formulações psicanalíticas(GOULART,
1997, p.10), como afirma Audemaro Taranto Goulart. O que interessa a Freud é dar
sustentação à sua idéia de que o desejo e o inconsciente estão intrinsecamente
85
inseridos dentro de uma ordem familiar. Édipo é uma personagem exemplar para este
tipo de leitura, uma vez que ele não apenas desposa sua mãe, como também mata seu
pai. A ordem familiar vai estar presente também quando Freud (1996) serve-se de
Hamlet e Dmitri Karamazov. Em seu ensaio denominado Dostoiévski e o parricídio
(FREUD, 1996), ele confirma este interesse familiar, voltado sempre para o confronto
com um genitor e a identificação com o outro. E, aqui, o que Freud enxerga, como não
poderia deixar de ser, é o que sua abordagem pede: o parricídio e o incesto.
Dificilmente pode dever-se ao acaso que três das obras primas da literatura de
todos os tempos Édipo Rei, de Sófocles; Hamlet, de Shakespeare; e Os
Irmãos Karamassovi, de Dostoievski – tratem todas do mesmo assunto, o
parricídio. Em todas três, ademais, o motivo para a ação, a rivalidade por uma
mulher, é posto a nu. (FREUD, 1996, p.193)
Quando escreve Totem e tabu obra na qual se pode encontrar uma mistura de
investigação antropológica, psicanálise e literatura o propósito de Freud é o mesmo:
inserir sua teoria, como já se disse nesta dissertação, dentro de um arquétipo universal,
no sentido de demonstrar que a neurose infantil é algo inerente à própria condição
humana de um modo geral. Trata-se, vale dizer, de um projeto vitorioso. Aclamado,
seguido, contestado, discutido, reelaborado, é inegável que, depois do pensamento
freudiano, o complexo de Édipo passou a ser algo que está indiscutivelmente inserido
na própria ordem do senso comum.
Se é desta maneira que a psicanálise criada por Sigmund Freud encontrou no
Édipo Rei, poder-se-ia dizer, o caminho perfeito para oferecer uma visão de mundo que
hoje, creio, é pautada por uma determinada ortodoxia no estatuto do pensamento
86
contemporâneo, também é de modo semelhante que outras leituras foram e vêm sendo
realizadas.
No próximo capítulo desta dissertação, na tentativa de prosseguir caminhando
para o entendimento daquilo que outras pessoas disseram sobre o mito de Édipo,
esteja ele ou não vinculado à obra incomparável de Sófocles, buscarei a leitura de
idéias que, pelo menos por hora, ainda não podemos dizer que possuem a projeção
ortodoxa conferida por autores como Lévi-Strauss e Freud. Assim mesmo, trata-se de
abordagens diferenciadas. Análises que, de uma ou de outra maneira, tornaram-se de
inestimável ajuda no momento de construir a minha própria. E esta minha leitura do
Édipo, como se avisou na introdução deste trabalho, não acontecerá através do
pensamento acadêmico propriamente dito, mas, mesmo que engendrada por ele, por
meio e em função de uma construção inerente à literatura e à dramaturgia. Aqui, o que
se quer priorizar desde o início é, como já se disse, a questão do gênero literário.
87
5. CAMINHOS PARA A HETERODOXIA
Se Lévi-Strauss está certo e a definição de um mito deve ser oferecida pelo
conjunto de todas suas versões, o caminho da mitologia edipiana é úbere e, pode-se
dizer, ilimitado. As versões apresentadas até o momento nesta dissertação,
classificadas como ortodoxas, uma vez que encontraram amparo certo e profícuo no
que se poderia chamar “história das idéias ocidentais”, são, no mínimo, três: o Édipo
Rei, de Sófocles; a abordagem estruturalista do próprio antropólogo belga; e a leitura
psicanalítica de Sigmund Freud, que, como já se viu ainda que brevemente, foi capaz
de inaugurar ampla vertente de pensamento neste nosso mundo contemporâneo.
Neste capítulo, tentarão ser explicadas outras determinadas análises que, se por
acaso não contam com a projeção hermenêutica das anteriores, também devem ser
levadas em consideração, seja porque partem delas ou porque com elas possuem
algum tipo de ligação, na medida em que as analisam e polemizam. Nesse sentido,
procurar-se-á explorar, a fim de não exagerar o debate sobre o mito de Édipo, as idéias
de outros quatro autores.
O primeiro deles, que lança tese que contra-argumenta a teoria freudiana, é
Hélio Pellegrino, para quem o próprio Édipo, enquanto personagem, não teria sofrido do
complexo definido pelo pai da psicanálise. Em seguida, passaremos às idéias sobre a
repressão sexual que guiam as considerações suscitadas pela professora Marilena
Chauí, que dedicou ao tema texto provocador. A terceira leitura é de Michel Foucault e
pode ser encontrada em uma das conferências que proferiu quando esteve no Rio de
88
Janeiro, em maio de 1973. Nelas, as idéias do pensador francês nos conduzem a um
Édipo que busca o poder.
E são exatamente tais abordagens que nos encaminharão a uma quarta: aquela
em que Friedrich Nietzsche aponta para quase que um duelo de forças que a arte e, a
reboque dela, como não poderia deixar de ser, a literatura e a dramaturgia travam de
modo intrínseco entre um espírito apolíneo e outro dionisíaco.
Finalmente, o que se espera da discussão das idéias desses autores, que aqui
consideramos heterodoxos pelo fato de não se prenderem, de uma ou de outra
maneira, à hermenêutica mais consolidada, é que elas também possam servir de apoio
para a abordagem que procurar-se-á fazer tendo como medida, ou desmedida, dois
textos dramatúrgicos que também tematizam o mito, partindo sempre da tragédia de
Sófocles, quais sejam: Um Édipo, do português Armando Nascimento Rosa (2003); e
Jocasta Tirana, produzido especialmente no sentido de interpretar as idéias alusivas a
este trabalho (ver Apêndice A).
5.1. UM ÉDIPO SEM COMPLEXO
Impossível evitar, a partir do título acima, a comparação com o artigo quase
homônimo em que Jean Pierre Vernant (2005), um dos mais influentes helenistas da
contemporaneidade, cotejou a leitura anti-histórica de Sigmund Freud e propôs uma
hermenêutica particular para a própria tragédia grega. Neste ensaio citado
anteriormente nesta dissertação e publicado pela primeira vez em 1967, o estudioso
89
mostra como o pai da psicanálise, no sentido de buscar sustentação para seus
diagnósticos, chegou mesmo, com o objetivo de confirmar suas hipóteses, a ser
reducionista e excessivamente simplificador ao partir de algo estabelecido e
consagrado em um dos séculos mais rteis da antigüidade grega. De modo bastante
resumido, o que Jean Pierre Vernant parece querer nos dizer é que Freud se escora na
universalidade do drama de Édipo para dar sentido a suas observações clínicas. Tal
fato pode ser exemplificado na pergunta que o próprio Vernant faz no início deste seu
artigo e, é claro, nas contestações argumentativas que dela advêm:
Mas em que medida uma obra literária que pertence à cultura da Atenas do
século V a.C., e que transpõe de maneira muito livre uma lenda tebana - muito
mais antiga, anterior ao regime da cidade, pode confirmar as observações de
um médico do começo do século XX sobre a clientela de doentes que
freqüentavam seu consultório? Na perspectiva de Freud, a pergunta não exige
resposta, porque nem deveria ser feita. Com efeito, a interpretação do mito e
do drama gregos de maneira nenhuma constitui problema. Eles não precisam
ser decifrados por métodos de análise apropriados. Imediatamente legíveis,
inteiramente transparentes ao espírito do psiquiatra, eles revelam de uma
vez uma significação cuja evidência traz às teorias psicológicas do clínico uma
garantia de validade universal. (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2005, p.51)
Se até aqui falou um helenista, cujo entendimento está longe de alcançar um
saber psicanalítico, no início da década de 60, durante um congresso de psicanálise
realizado em Santiago do Chile, as palavras foram do mineiro Hélio Pellegrino,
psiquiatra e psicanalista que defendia, então, uma tese bastante original. Para ele, a
personagem Édipo, filho legítimo de Laio e Jocasta, criado por Pólibo e Mérope, o
sofria do complexo a que ele mesmo deu nome. Ou seja: o tirano de Tebas não
padeceu da representação inconsciente pela qual o desejo sexual ou amoroso da
criança pelo genitor do sexo oposto é manifesto, enquanto também se expressa a
hostilidade para com o genitor do mesmo sexo.
90
Pellegrino (1987) é, naqueles mesmos anos 1960, um intelectual brasileiro que,
de acordo com as palavras do Dicionário de Psicanálise de Elisabeth Roudinesco e
Michel Plon (1998), pertence à quarta geração do freudismo mundial(ROUDINESCO;
PLON, 1998, p.579). E é esta sua ambiência com os temas psicanalíticos que lhe
autoriza a apresentar um trabalho que, segundo suas próprias palavras, suscitou
interesse (PELEGRINO, 1987, p.309) no meio, uma vez que se tratava, então, de
questão “ainda não explicitada no terreno da literatura psicanalítica” (PELEGRINO,
1987, p.309).
Em estudo publicado pela primeira vez em 1987, através do volume Os Sentidos
da Paixão, coordenado por rgio Cardoso (1987), o psicanalista brasileiro volta ao
tema. E começa por explicar os próprios conceitos mais fundamentais de Freud,
segundo os quais o menino, entre três e cinco anos de idade, em sua fase fálica do
desenvolvimento da libido, apaixona-se por sua mãe e, por causa de tal sentimento,
quer livrar-se do pai, adversário que lhe impede a realização de seu desejo.
O que Pellegrino (1987) irá demonstrar em seguida é que este Édipo, menino de
três a cinco anos que foi criado por seus pais de Corinto, deveria, para enquadrar-se
nos termos freudianos, apaixonar-se loucamente por Mérope e estaria condenado a
eliminar Pólibo(PELLEGRINO, 1987, p.309). desta maneira a personagem mítica
consagrada por Sófocles estaria destruindo seu totem, através do parricídio, no sentido
de abolir a interdição do incesto. Vale lembrar, uma vez mais, que estas são as
prerrogativas mais básicas do Complexo de Édipo estabelecido pelo psicanalista judeu.
Mas a criança que foi educada como príncipe de Corinto, por pais que não
podiam ter filhos naturais e, desse modo, a adotaram em segredo, esta criança o que
faz é matar e casar-se com desconhecidos. Para o Édipo aqui visto pelos olhos
91
modernos de Hélio Pellegrino, a culpa do parricídio e do incesto não pode existir, uma
vez que tanto Laio como Jocasta são, para ele, simples ignotos. Nesse sentido, Hélio
Pellegrino (1987) pretende, como escolástico freudiano, distinguir dois níveis de
estratificação na situação edípica.
O primeiro, mais superficial, implica a triangulação freudiana - pai, mãe,
filho - e transcorre na fase fálica do desenvolvimento da libido. O segundo,
mais primitivo e originário, corresponde
à
fase oral e diz respeito
à
relação
da criança com a e, nos seus primeiros tempos de vida. (PELLEGRINO,
1987, p.310)
O que Pellegrino quer salientar é o sucesso da relação amorosa ainda no
aleitamento materno. Segundo o psicanalista, a criança, nesta etapa, irá promover,
inconscientemente, é claro, a cisão da figura materna em duas imagos: a da mãe boa,
protetora, ou a da mãe má, persecutória(PELLEGRINO, 1987, p.310). Isso porque, ao
nascer, o menino necessita prender-se a ela. E tal fusão, para Pellegrino, podeser
mais ou menos convulsiva, dependendo do fato de o recém-nascido se sentir seguro ou
não do amor que lhe é confiado. Aqui, a comparação feita é com um náufrago que, no
oceano agitado, segura-se à sua tábua na mesma intensidade do tamanho das ondas
que lhe castigam. Por isso, o intelectual mineiro defende que a criança, jogada no
mundo, procederá dessa mesma forma” (PELLEGRINO, 1987, p.310). Dependente, seu
desespero será proporcional à sua insegurança.
Assim, se o que Pellegrino chama de “relação primitiva com a mãe” acontecer a
partir de significantes lesivos, a triangulação arcaica deverá permanecer. A imagem da
mãe persecutória, ou do seio mau, será transferida para a figura paterna que, desta
maneira, irá se tornar o perseguidor que deverá ser morto pela criança acuada em sua
92
busca de um refúgio que, para o psicanalista, é último e, também, incestuoso. A partir
desta análise de características ainda decisivamente freudianas, mas, sob certos
aspectos, transgressora, heterodoxa, Hélio Pellegrino (1987) faz, em linhas gerais, sua
releitura do Complexo de Édipo. E é através da idéia da importância do ato amoroso no
relacionamento entre mãe e filho que o psicanalista concretiza a ligação decisiva com o
mito e, como não poderia deixar de ser, com a própria tragédia de Sófocles:
Essa é, literalmente, a história de Édipo. O herói tebano ficou chumbado
à
figura de Jocasta, mãe que o condenara
à
morte. Tendo assassinado Laio
e destruído a Esfinge, imagos da mãe má, casou-se incestuosamente com
Jocasta e dela renasceu, através de filhos que eram, ao mesmo tempo,
seus irmãos
(PELLEGRINO, 1987, p.311).
Hélio Pellegrino, nesse seu texto Édipo e a paixão, ainda explica de maneira
bastante didática e precisa os meandros psicanalíticos de tal análise, não se atendo
apenas ao menino, mas esclarecendo como suas idéias podem ser aplicadas no que se
refere à menina. No entanto, de tal leitura, o que mais interessa a este trabalho é a
evocação que o psicanalista faz da importância do ato amoroso nos primeiros
momentos de vida da criança, colocando este processo como decisivo, mesmo para um
dos aspectos mais essenciais na tragédia grega enquanto gênero literário: o destino
inexorável.
É tal tratamento que parece conferir à figura feminina, à Jocasta que manda
assassinar seu próprio filho, importância inaudita e, por isso mesmo, heterodoxa. Ou
seja: enxergar a relação entre mãe e filho como aspecto original, a partir do qual os
fatos se desencadeiam é, por si , extraordinário para um conjunto de análises que
costumam destacar com quase total privilégio o anĕr vigoroso que acerta adivinhas e
93
destrói esfinges e pais desconhecidos ou, até mesmo, o brotos que, velho, cego e
cansado irá desaparecer misteriosamente em direção às profundezas da terra.
Portanto, na leitura de Hélio Pellegrino, é a relevância dada a Jocasta que mais
chama a atenção desta dissertação. É este fato que procurará ser aqui destacado, tanto
na abordagem prática deste trabalho através do drama Jocasta Tirana como na
conceitual. Contudo, também cumpre chamar a atenção para o caráter quase que
exclusivamente moderno da análise de Pellegrino. Um dos pontos que talvez mostrem
tal proposta hermenêutica com maior intensidade talvez seja haver o psicanalista
desconsiderado o que ensina Hegel (1964) em texto de sua Estética. Como foi dito
neste mesmo estudo, a culpa entre os gregos antigos não possui conotações
modernas. Nesse sentido, não se pode, com os olhos trágicos da antigüidade grega,
querer que o Édipo de Sófocles não herde os crimes de seus antepassados. Como
lembra o idealista alemão, o caráter heróico recusa-se a dividir as culpas, não quer
saber de uma oposição possível entre a intenção subjetiva e o ato objetivo(HEGEL,
1964, p.68).
Assim, a leitura do psicanalista brasileiro que, como se disse, oferece à figura
feminina um destaque incomum, parte, em contrapartida, de um Édipo que talvez o
possa ser o herói grego que mata o pai, casa-se com a mãe e, depois de ter descoberto
sua própria verdade sua e de seus ascendentes cega-se e se põe a errar pelo
mundo helênico. lio Pellegrino conta com um Édipo que foi amamentado pelo seio,
ainda que bom, estéril de Mérope, e que não herdou as predições dos oráculos e as
Hýbris de sua gente e de seus próprios deuses. Certamente, como Sigmund Freud,
Pellegrino registra um Édipo que traz consigo as características de uma modernidade
distante do modo de pensar da Hélade. Uma modernidade com complicações e
94
ramificações infinitas em que, como lembra Hegel, cada qual procura inculpar também
os outros, subtrair-se quanto possível às responsabilidades de uma falta cometida
(HEGEL1964, p.68).
5.2. ÉDIPO, JOCASTA E CULPA
Em seu texto sobre Édipo, Marilena Chauí (1984) busca os contornos da
sexualidade na abordagem do mito. Para isto, no livro Repressão Sexual, a filósofa faz
um apanhado que vai da própria paráfrase da lenda tebana, sem deixar de mencionar a
importância da tragédia de Sófocles, a uma análise bastante didática das leituras de
Freud e Lévi-Strauss, passando pelo enfoque de Hélio Pellegrino e chegando a uma
breve interpretação particular, capaz de levar em consideração aquilo que poderíamos
chamar tradição judaico-cristã.
Nesse seu estudo, é com bastante propriedade que Marilena Cha (1984)
lembra o helenista Jean Pierre Vernant, ao mencionar a importância excepcional da
tragédia no mundo ático. Para Vernant, trata-se de um gênero literário que se torna
também uma instituição social e uma experiência política na sociedade ateniense entre
o final do século VI e o início do século IV a.C. Além disso, Chauí procura não
desconhecer a necessidade de antagonismo e diferença entre o mundo divino e a
ordem humana como atributos essenciais para o sucesso trágico, reiterando a
inseparabilidade desses dois lugares. Ao fazer isto, a autora recorda a contradição
inerente à vontade livre e responsável de um ser humano capaz de se reconhecer em
95
tais atributos e o dever que lhe é imposto de cumprir um destino inexorável. É então
que a filósofa chama a atenção para o sentimento trágico da culpa, sem o qual o Édipo
Rei não pode ser compreendido.
Essa contradição aparece, sobretudo, no sentimento trágico da culpa, pois é
tratada simultaneamente como uma falta religiosa e como um delito ou infração
da lei humana, devendo ser julgada por dois tribunais (um divino-religioso e um
humano-político), a tarefa do autor trágico sendo justamente a de fazer com
que os dois tribunais venham a coincidir. No caso de Édipo Rei, essa dupla
dimensão do julgamento aparece através de dois procedimentos: um religioso
(a purificação da cidade e da casa régia) e um político (o ostracismo ou
banimento do rei criminoso) (CHAUÍ, 1984, p.59).
Tal antinomia é estendida ao próprio nome da tragédia de Sófocles. Depois de
lembrar aquilo que nesta dissertação foi dito, que o tirano é aquele que conquista o
poder, em vez de herdá-lo, e que o conquista graças às suas altas e extremas virtudes
como guerreiro, protetor e sábio(CHAUÍ, 1984, p.61), Chauí chama a atenção para o
paradoxo existente na reunião dos significantes gregos Oidipous e Tyrannós. Segundo
ela, a personagem de Sófocles é a própria contradição viva. Ou seja, um sujeito que,
possuindo deformações físicas, que lhe são impostas pelos pés inchados, e morais,
advindas de sua conduta incestuosa e parricida, também não deixa de ser aquele que
possui qualidades políticas e militares.
O que parece que Marilena Chauí nos quer dizer é que este Édipo um sujeito
que sofre suas culpas em função de incongruências inerentes a seu próprio viver num
mundo marcado pelo trágico mais absoluto é a síntese do humano. Ao mesmo tempo
pharmakós e tyrannós, impuro e sábio, abaixo e acima dos demais, é por isto que, para
a filósofa, o nome da tragédia sofocliana prepara o banimento de seu protagonista,
seja por ser sábio e invejado, seja por ser vicioso e rejeitado.
96
Concentrando em sua pessoa os dois pólos extremos da possibilidade para um
humano degradação máxima e elevação máxima Édipo é um ser
internamente contraditório ou dividido. Contrário à Natureza parricida e
monstruoso – e contrário à cidade – tirano. É um monstro (CHAUÍ, 1984, p.59).
E é sobre tal monstro que se quer buscar um foco mais apropriado. Sim, pois
este ser que parece navegar no limbo da verdade e da inverdade, de um não-saber que
sabe e de uma cegueira que é o Édipo que se quer aqui, nesta dissertação, tentar
entender um pouco mais. Um sujeito que também é caracterizado por uma autoctonia
que, para Lévi-Strauss, lhe priva até de saber-se a si mesmo, não conhecendo sua
origem e entendendo de seu destino o fato de que este é implacável. Um ser que
Marilena Chauí chama monstro e que não vem nunca desacompanhado.
Como os deuses que nascem de suas mães, este homem também nasce da sua.
E a pergunta que agora se faz é se tal mulher, como seu filho e seu esposo, também
sabe de si o mesmo que seu esposo e filho não sabe dele próprio. A lógica mais exata
parece dizer-nos que deuses são gerados por deuses, homens por homens e monstros
por monstros. Se, portanto, o Édipo que na mesma medida é o sábio decifrador de
enigmas e o ignorante de sua história, se este Édipo é aquele que salva sua cidade
para assim condená-la, este sujeito foi também gerado por ser que lhe é igual. Tem-se,
então, uma cadeia significativa de correspondências entre as tragédias e as culpas
estabelecidas no mito e no texto de Sófocles. Ao parricídio, pode-se justapor o filicídio;
ao incesto, o próprio incesto; ao conhecimento, a ignorância.
Nesse sentido, uma e outra parte, homem e mulher, Édipo e Jocasta parecem se
igualar na tragédia. Mas apenas parecem, uma vez que o protagonismo, tanto na
tragédia de Sófocles como na maior parte dos estudos citados nesta dissertação, é
colocado sobre a figura masculina. A própria Marilena Chauí (1984) colabora com a
97
ortodoxia deste tipo de leitura ao concentrar todas as forças do trágico sobre um único
personagem, participando também de um tipo de abordagem do mito que é comum seja
para helenistas consagrados seja para outros tipos de estudiosos.
Essa tragédia é considerada exemplar porque nela as contradições entre
passado e presente, família e Cidade, culpa e castigo, responsabilidade e
pena, destino e liberdade, direito e força, justiça e violência não se distribuem,
como nas outras tragédias, entre as várias personagens, mas se concentram
todas em Édipo que diz sempre o contrário do que pensa estar dizendo e faz o
contrário do que imagina estar fazendo, supondo que controla as regras do
jogo do poder quando, na verdade, é um joguete delas (CHAUÍ, 1984, p.60).
Ao dizer que todas as contradições estão focadas sobre Édipo, Chauí, mais uma
vez, reitera um certo tipo de linguagem a partir do qual a hermenêutica mais ortodoxa
está acostumada a ler o mundo: a ótica do masculino. Para este tipo de leitura, a idéia
de equivalência entre parricídio e filicídio, incesto da mãe e incesto do filho, culpas
semelhantes entre homens e mulheres não pode ser considerada.
No entanto, a filósofa paulista, junto com Hélio Pellegrino, também nos lembra
que a paz deste homem capaz de concentrar culpas e protagonismos é também
precária. Logo, para compor o mosaico trágico, a peste será enviada pelas Fúrias,
entidades femininas que, segundo a tradição, são protetoras das mulheres. Assim, a
questão que aqui se lança, e que será objeto de análise no próximo capítulo desta
dissertação, busca certa provocação, qual seja a de invocar tais Fúrias para tentar pelo
menos imaginar que a Jocasta que manda matar o filho para, depois, com semelhante
culpa, dividir com ele o leito nupcial, dando-lhe o poder que lhe era de direito desde o
nascimento, e gerando outros filhos trágicos, esta Jocasta, ao contrário de seu rebento
e esposo, sabe. De que maneira ela, julgando não saber, sabe aquilo que Édipo,
julgando saber, não sabe é, talvez, a pergunta essencial deste estudo.
98
Por caminhos insinuantes, a própria Marilena Chauí, ao propor uma breve
interpretação para o mito que acompanha o método estruturalista de Lévi-Strauss,
parece nos conduzir para a igualdade ou, pelo menos, o alinhamento entre homens e
mulheres. Na leitura de Chauí, a Gênese bíblica é colocada em pauta. É a partir deste
livro que a filósofa paulista recorda que, ao contrário de todas as outras coisas, homem
e mulher não foram criados pela palavra. O primeiro surge do barro, a outra de uma
costela deste barro. Assim, o que se quer mostrar é que a origem autóctone de um é
acompanhada do surgimento a partir da mutilação, da própria deformação do outro.
A deformidade aparece, então, visto haver um elemento de autoctonia: a
perda de uma costela. E também aparece um monstro ctônico: a serpente
que rasteja.
A diferença sexual também
é
enfrentada: olhando os animais,
Deus decide dar ao homem uma companheira, porém como até esse momento
estamos no reino da Natureza, lemos: "Esta sim é osso de meus ossos e carne
da minha carne!", portanto o mesmo vem do mesmo. "Ela será chamada
mulher (em hebraico, mulher
=
ishsha) porque foi tirada do homem (em
hebraico, homem
=
ish)",
a diferença sexual sendo obtida por urna extração
do corpo feminino do interior do corpo masculino, sem procriação (CHAUÍ,
1984, p.75-76).
Então, o que temos é o homem que vem do homem, o que vem do pó, o
monstro que vem do monstro, o mesmo que vem do mesmo. E este homem que vem
de si próprio carrega, esta é a tese que se defende aqui, culpas trágicas e análogas.
Faltas que talvez sejam distintas naquilo que feminino e masculino deverão procurar
para preenchê-las, mas trepidantemente semelhantes quando se pode ver que o
parricídio de Édipo e o filicídio de Jocasta, que o incesto de um e de outro podem
possuir congruente extensão.
A seguir, dando continuidade àquilo que até o momento se propõe, tentar-se-á
perceber, a partir de leitura feita com o olhar pós-estruturalista de Michel Foucault, qual
99
o papel do poder e do saber no preenchimento das faltas que permeiam Édipo e
Jocasta na escritura exemplar de Sófocles.
5.3. SABER E PODER
Para Michel Foucault, a tragédia de Édipo é um dos primeiros testemunhos que
se tem das práticas judiciárias gregas. E foi a partir desta ótica que o filósofo francês
reconstruiu o personagem de Sófocles durante sua segunda conferência, de uma série
de cinco, em maio de 1973, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Em
seu discurso, a pretensão de Foucault (2002) é nos apresentar a tragédia de Édipo
como a história de uma pesquisa da verdade(FOUCAULT, 2002, p.31), numa trama
que é análoga às práticas judiciárias gregas do mesmo período em que a tragédia teve
seu nascimento, apogeu e ocaso, isto é, no século V a.C.
No entanto, antes de fazer sua análise, Foucault realiza uma breve introdução às
idéias de Gilles Deleuze e Felix Guattari (1966), cujo entendimento é essencial para a
compreensão de sua proposta. O pensador francês se refere ao livro O Anti-Édipo, no
qual Deleuze e Guattari querem mostrar que o triângulo edipiano composto, como se
sabe, por pai, mãe e filho é, para os psicanalistas, um modo de conter o desejo, por
meio de manipulações no interior da cura, garantindo que este mesmo desejo
permaneça na esfera familiar. Nesse sentido, ao se conservar no âmbito do triângulo
edipiano, o desejo não contaminaria, por assim dizer, a sociedade, limitando-se a uma
100
configuração de drama burguês. Nesse sentido, vale a pena atentar para o que diz o
Dicionário de Psicanálise (ROUDINESCO; PLON, 1998):
Os dois autores criticavam o edipianismo freudiano que, em sua opinião,
encerrava a libido plural da loucura em um quadro excessivamente estreito, de
tipo familiar. Para sair desse impasse ‘estrutural’, eles se propunham a traduzir
a polivalência do desejo humano em uma conceitualidade adequada. Daí a
idéia de opor à psicanálise freudiana e lacaniana, articulada em torno da
prioridade do Édipo e do significante, uma psiquiatria materialista fundada na
‘esquizo-análise’, isto é, na possível liberação dos fluxos desejantes. (...) O
anti-Édipo tomava assim como alvo maior o conformismo psicanalítico de todas
as tendências, anunciando com vigor o esgotamento trágico do lacanismo nos
últimos tempos (ROUDINESCO; PLON, 1998, p.320-321).
O que Deleuze e Guattari tentam mostrar é que o triângulo representado por pai,
mãe e filho não explica uma verdade atemporal, nem uma verdade trepidantemente
histórica daquilo que é tomado como desejo pela psicanálise. Édipo, portanto, não seria
a substância secreta do inconsciente humano, mas, como diz o próprio Foucault (2002),
a forma de coação que a psicanálise tenta impor na cura a nosso desejo e a nosso
inconsciente (FOUCAULT, 2002, p.30). Para o pós-estruturalista francês e,
certamente junto com ele, para Gilles Deleuze e Félix Guattari – a palavra que irá definir
as relações inerentes à história daquele que matou seu pai e, ao ser coroado rei de
Tebas, desposou sua mãe, é bastante significativa e algo distante dos meandros mais
tipicamente psicanalíticos: poder.
Édipo o seria pois uma verdade da natureza, mas um instrumento de
limitação e coação que os psicanalistas, a partir de Freud, utilizam para conter
o desejo e fazê-lo entrar em uma estrutura familiar definida por nossa
sociedade em determinado momento. (...) Édipo é um instrumento de poder, é
uma certa maneira do poder médico e psicanalítico se exercer sobre o desejo e
o inconsciente (FOUCAULT, 2002, p.29-30).
101
Se é por tal motivo que Foucault rejeita a análise freudiana, vale reiterar que a
leitura do próprio filósofo também não deixa de lado a definição de poder. No entanto,
este poder vem sempre acompanhado do saber. É o que Foucault (2002) conclui, após
realizar aquilo que no início da conferência ele próprio nega fazer: uma análise de
estruturas. Se no início do texto produzido a partir das palestras ministradas na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro ele rechaça o epíteto de
estruturalista que lhe é dado a ele próprio e a outros intelectuais como Deleuze,
Guattari e Jean-François Lyotard para afirmar que o que fazem, ele e estes outros
nomes, poderia ser chamado pesquisa de dinastia(FOUCAULT, 2002, p.30), o que
vem a seguir vai mostrar que a leitura de Foucault do Édipo Rei de Sófocles realmente
se baseia, sem qualquer demérito para ela, numa análise da ordem dos elementos
essenciais que compõem o corpo da tragédia em questão. Ou seja, da estrutura.
E o exame foucaultiano possui como característica principal, como foi dito, o
distanciamento das veredas psicanalistas de Sigmund Freud e de seus escolásticos.
Portanto, trata-se aqui, pode-se mesmo afirmar, de uma leitura heterodoxa de Édipo.
Um exame que começa por defender a idéia de que a tragédia de Sófocles está
organizada a partir daquilo que o próprio filósofo chama “lei das metades”. Segundo
Foucault, trata-se, no caso do Édipo Rei, de um mecanismo que tem por efeito exibir as
verdades pretensamente oferecidas em metades que se completam. Ou seja: em algum
momento do texto, uma determinada questão é estabelecida sem que seja totalmente
elucidada; em ocasião posterior, tal ponto volta à cena para ser, então, esclarecido. É
exatamente em função desta organização fornecida previamente para a análise da
tragédia que defendo haver um conceito, ou mesmo um método de investigação, que
não deixa de ser estrutural.
102
Nesse sentindo, segundo Michel Foucault (2002), tais metades se fragmentam e
acabam, no final das contas, por se ajustar, produzindo certos deslocamentos a partir
dos pontos que se adaptam. Em sua análise, o pensador francês enxerga três níveis
em que tais encaixes de verdades que se completam podem ser percebidos: o dos
deuses, o da realeza e, poder-se-ia dizer, o do povo.
O primeiro jogo de metades que se ajustam é o do rei ApoIo e do divino
adivinho Tirésias - o nível da profecia ou dos deuses. Em seguida, a segunda
série de metades que se ajustam é formada por Édipo e Jocasta. Seus dois
testemunhos se encontram no meio da peça. É o vel dos reis, dos
soberanos. Finalmente, a última dupla de testemunhos que intervém, a última
metade que vem completar a história não é constituída nem pelos deuses nem
pelos reis, mas pelos servidores e escravos. O mais humilde escravo de
Políbio e principalmente o mais escondido dos pastores da floresta do Citerão
vão enunciar a verdade última e trazer o último testemunho (FOUCAULT,
2002, p.38-39).
De acordo com Michel Foucault, as metades divinas o enunciadas pelas falas
de Apolo e Tirésias. O filho de Zeus e Leto, detentor do Oráculo de Delfos este Apolo
que, segundo o helenista Junito Brandão (2000), é entidade derivada de um vasto
sincretismo e de uma bem apurada depuração mítica(BRANDÃO, 2000, p.88)
até ser
reconhecida como deus da luz e como o próprio sol –, responde de maneira incompleta
à indagação sobre o motivo da peste estar assolando Tebas. No diálogo entre Creonte
e o próprio Édipo, Sófocles (2002) nos mostra as diretrizes de Apolo:
CREONTE
Revelarei então o que ouvi do deus.
Ordena-nos Apolo com total clareza
que libertemos Tebas de uma execração
oculta agora em seu benevolente seio,
antes que seja tarde para erradicá-Ia.
ÉDIPO
Como purificá-Ia? De que mal se trata?
103
CREONTE
Teremos de banir daqui um ser impuro
ou expiar morte com morte, pois há sangue
causando enormes males à nossa cidade.
ÉDIPO
Que morte exige expiação? Quem pereceu?
CREONTE
Laio, senhor, outrora rei deste país,
antes de seres aclamado soberano. (SÓFOCLES, 2002, p.23)
A outra parte desta metade vem de Tirésias agora cego e homem, dono de
poderes divinatórios; antes, mulher, por ter separado a cópula das serpentes. Chamado
para dar conta daquilo que o próprio deus da luz o determinou clarear, sua resposta
é clara e não comporta qualquer tipo de engodo. O máximo que Tirésias esta mesma
personagem que irá surgir novamente na obra de Armando Nascimento Rosa (2003), a
ser analisada no próximo capítulo desta dissertação –, faz é pedir ao rei de Tebas que
não o envolva em mistérios que não deveriam ser esclarecidos:
ÉDIPO
Que dizes? Sabes a verdade e não falas?
Queres trair-nos e extinguir nossa cidade?
TIRÉSIAS
Não quero males para mim nem para ti.
Por que insistes na pergunta? É tudo inútil.
De mim, por mais que faças nada saberás. (SÓFOCLES, 2002, p.33)
Depois de escutar de Édipo que, por o querer contar a verdade, ele próprio,
aquele que gozou como homem e como mulher, poderá ser incriminado pela morte
de Laio, Tirésias, o cego que consegue enxergar, elucida toda a trama, ao evocar a
própria determinação de Édipo de banir o culpado, e sem buscar quaisquer tipos de
subterfúgios:
104
TIRÉSIAS
Teu pensamento é este? Então escuta: mando
que obedecendo à ordem por ti mesmo dada
não mais dirijas a palavra a esta gente
nem a mim mesmo, pois és um maldito aqui. (SÓFOCLES, 2002, p.34)
Mas Édipo, ainda não satisfeito, deve ouvir a sentença final de Tirésias: “Pois
ouve bem: és o assassino que procuras!Assim, ao completar-se o primeiro jogo de
metades proposto por Michel Foucault, temos resolvida, no início da obra de
Sófocles, a pergunta que quer saber quem matou Laio. E resolvida através de uma
verdade prescritiva, profética, própria de uma Grécia, para Foucault, ainda mais antiga
do que aquela do século V a.C. No entanto, para o tragediógrafo de Colono, o
verdadeiro jogo, a maior das peripécias, ainda está por vir, oferecendo luz ainda mais
fulgurante a sua dramaturgia. Também para Foucault faltam os outros dois pares de
metades a partir dos quais estará claro o jogo de poder e saber que o pensador francês
quer ver no Édipo Rei.
Um deles está no diálogo entre Jocasta e Édipo em que aquela começa a tentar
convencer o esposo de sua inocência. Mais uma vez, o que vamos encontrar é uma
questão do gênero, traduzida de maneira espetacular na peripécia sofocliana. Jocasta o
que faz é contar a Édipo como se deu a morte de Laio. Assim, ele logo reconhece que
Tirésias pode estar certo, uma vez que os detalhes dados pela sempre rainha sobre a
morte de seu ex-marido coincidem com os sucessos que lhe avivam a memória no que
se refere ao episódio em que ele, vindo de Corinto, depara com uma comitiva numa
encruzilhada e, para não ceder passagem a ela e sentindo-se ofendido, alterca-se com
seus opositores e mata Laio.
105
Édipo, depois de saber que foi um escravo que contou a Jocasta a respeito da
morte de um sujeito que ele ainda não sabe que é seu próprio pai, manda chamar o
servo. É então que se estabelece o terceiro e último jogo de metades que se
completam, como quer a análise proposta por Michel Foucault. O escravo virá. E não
apenas o escravo chamado por Jocasta. Antes dele, virá um outro, de Corinto, para lhe
trazer a notícia de que aquele a quem Édipo toma como genitor, Pólibo, está morto.
São estes dois escravos, servos, mensageiros, criados, ceramistas, pastores, homens
do povo, aqueles que oferecem, na obra ímpar de Sófocles, a verdade final e a
peripécia mais trepidante.
Na leitura de Foucault, o ciclo de metades que se ajustam umas às outras está
fechado. Presumido a partir de verdades que passam dos deuses aos escravos e vão
sendo descobertas a partir de um jogo que, para o filósofo, vai cobrar sentido numa
técnica retórica, religiosa e política da antigüidade grega. Trata-se da técnica do
σύµβολον”: o símbolo grego. Tal prática, segundo Foucault (2002), é um instrumento
de exercício de poder que permite a alguém que detém um segredo ou um poder
quebrar em duas partes um objeto qualquer, de cerâmica etc., guardar uma das partes
e confiar a outra parte a alguém que pode levar a mensagem ou atestar sua
autenticidade (FOUCAULT, 2002, p.38). Nesse sentido, será pelo ajustamento das
duas metades que o poder continuará a existir. Para o filósofo francês, a tragédia de
Sófocles acompanha tal ritmo. Produzida a partir desta metodologia, ela cumpre o papel
de autenticar a detenção do poder e as ordens por ele transmitidas. Trata-se, então, de
uma prática jurídica, política e religiosa denominada σύµβολονpelos gregos. Ou seja:
o símbolo.
106
Mas a heterodoxia analítica de Foucault não pára por aí. O filósofo acredita que
este Édipo que nada sabe de seu destino, que cega-se a si mesmo no final de seu
drama, que, para Freud, é o homem do inconsciente, este Édipo não passa, poder-se-ia
dizer, de um engodo. Ao contrário, para Michel Foucault, o tirano de Tebas é aquele
que sabia demais e que, por isso, deveria ser expulso definitivamente do momento
histórico traduzido pelo séc. V a.C., ocasião em que a peça é escrita. Uma época, como
se disse nesta dissertação, pontuada por governantes como ricles, um dos
responsáveis pelo apogeu da chamada democracia ateniense.
Nesse sentido, na leitura feita por Foucault, o que está em jogo desde o início da
peça, quando Édipo afirma que seu interesse em exterminar a peste está diretamente
ligado à manutenção de sua soberania, é a questão do poder. Por tal viés, é
interessado em manter-se como rei que ele buscará solucionar o problema. É por isso
também que ele discute com Creonte e Tirésias ao se ver ameaçado. E é ainda por
esta lógica que ele não se assusta com a idéia de ter matado seu pai ou o antigo rei de
Tebas e ex-marido de sua atual mulher. O que Édipo teme, segundo Foucault, é perder
o próprio poder.
E tal condição advém do fato de ele ser um tirano, no sentido explicado
anteriormente nesta dissertação. E o tirano, não é demais recordar, é aquele cujo poder
lhe é atribuído a partir de seu saber destruidor de esfinges e salvador de cidades e de
sua força de anĕr. Um poder que tem suas características relatadas no pensamento, na
história e na filosofia grega da época. Segundo o pensador francês, estas
características podem ser encontradas de maneira exemplar na obra do estratego de
Atenas que se tornou um dos maiores dramaturgos de todos os tempos, obtendo, nas
festas de Dionísio, 24 prêmios nos concursos trágicos.
107
Um certo número de características deste poder aparece na tragédia de Édipo.
Édipo tem o poder. Mas o obteve através de uma série de histórias, de
aventuras, que fizeram dele inicialmente o homem mais miserável - criança
expulsa, perdida, viajante errante - e, em seguida, o homem mais poderoso.
Ele conheceu um destino desigual. Conheceu a miséria e a glória. Esteve no
ponto mais alto, quando se acreditava que fosse filho de Políbio e esteve no
ponto mais baixo, quando se tornou um personagem errante de cidade em
cidade. Mais tarde, de novo, ele atingiu o cume. ‘Os anos que cresceram
comigo, diz ele, ora me rebaixaram, ora me exaltaram’. (FOUCAULT, 2002,
p.44)
Tal alternância do destino é traço marcante de dois tipos de personagens da
cultura helênica: o herói e o tirano. Se o lado que se poderia chamar bom da tirania está
presente em Édipo, o negativo também está. Isto acontece quando temos um soberano
que pensa que a cidade é sua, ou que a tem sob a mais estrita dependência. Segundo
Foucault, “Édipo é aquele que não importância às leis e que as substitui por suas
vontades e ordens” (FOUCAULT, 2002, p.45). Em alguns momentos da obra de
Sófocles, como na discussão com Creonte, ele diz claramente que sua vontade é a lei
da cidade.
Se o poder de Édipo é bastante semelhante ao dos tiranos gregos que
governaram durante o século V a.C., o saber é solitário, baseado na experiência de
quem resolve por suas mesmas medidas as adversidades que encontra. É por isso que
o pensador francês afirma que ele cai em uma armadilha, na medida em que prolonga o
testemunho até dar-se conta de uma verdade que se achava escondida.
O saber de Édipo é esta espécie de saber de experiência. É ao mesmo tempo
este saber solitário, de conhecimento, do homem que, sozinho, sem se apoiar
no que se diz, sem ouvir ninguém, quer ver com seus próprios olhos. Saber
autocrático do tirano que, por si só, pode e é capaz de governar a cidade. A
metáfora do que governa, do que pilota, é frequentemente utilizada por Édipo
para designar o que ele faz. Édipo é o piloto, aquele que na proa do navio abre
os olhos para ver. E é precisamente, porque abre os olhos sobre o que está
acontecendo que encontra o acidente, o inesperado, o destino, a τύχη
.
Porque
foi este homem do olhar autocrático, aberto sobre as coisas, Édipo caiu na
armadilha. (FOUCAULT, 2002, p.47)
108
Fazendo a transição de um saber profético para um testemunhal, unindo “a
profecia de deus e a memória dos homens” (FOUCAULT, 2002, p.48), a obra de
Sófocles, na leitura de Michel Foucault, quer desvalorizar uma forma de saber político
que é, na mesma medida, privilegiado e exclusivo. Mas não se trata, para o pensador
francês, apenas disso. Ao construir uma ponte que chega aa República de Platão
(2004), Foucault também leva em conta em sua hermenêutica heterodoxa o fato de que
este tirano, homem do poder e do saber nos séculos VI e VII a.C., é combatido, junto
com a figura do sofista, tanto pelo dramaturgo do século V a.C. como pelo filósofo que
produzirá suas idéias cerca de cem anos depois.
Na realidade, ao querer enxergar que o Édipo Rei de Sófocles procura
desqualificar as figuras do tirano e do sofista, este último enquanto profissional do
poder político e do saber, a análise de Michel Foucault irá combater um outro mito: o de
que, seguindo as razões do platonismo, existe uma antinomia decisiva entre saber e
poder. Ou seja: a crença de que ciência e saber não podem conviver com o poder
político.
Esse grande mito precisa ser liquidado. Foi esse mito que Nietzsche começou
a demolir ao mostrar, em numerosos textos citados, que por trás de todo
saber, de todo conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder.
O
poder político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber.
(FOUCAULT, 2002, p.51)
A seguir, ainda que brevemente e sem pretensões maiores que a de suscitar
outras abstrações, tentar-se-á resumir o que Friedrich Nietzsche (1992) nos propõe
acerca do tema tratado, sobretudo naquilo que é objeto de seu primeiro livro: O
nascimento da tragédia.
109
5.4. APOLO E DIONÍSIO
As cenas são parecidas. Da primeira, que certamente não é cronologicamente
anterior à segunda, foi falado aqui. Trata-se de Édipo quando, frente a frente com o
divino adivinho Tirésias este que agora é cego e homem, e que gozou como
mulher, apartando o sexo das serpentes e resolvendo até mesmo disputas entre os
deuses trata-se de um Édipo que pergunta ao bruxo: Sabes a verdade e não falas?
(SÓFOCLES, 2002, p.33). Sim, a pergunta é daquele que quer saber. Não porque não
saiba, como se pôde vislumbrar a partir da análise de Michel Foucault, mas porque
necessita de confirmações para uma verdade que precisa ser dita, redita, confirmada e,
indo e vindo, inaugurada, reinstaurada.
À indagação do ainda rei de Tebas, Tirésias pretende não responder. Pede que
lhe mande embora, chama insensatos a Édipo e a todos, o quer falar de males. Mas
a devassa prossegue e, depois de ser acusado – ele mesmo, o áuspice cego de ser o
assassino de Laio, por não querer dizer o que sabe, Sófocles nos oferece a primeira
peripécia e, já no início do drama, elucida toda a trama. A visita de Tirésias, ao contrário
de trazer a resposta esperada, conduz àquilo que não se pretendia buscar: o
imprevisto: “Pois ouve bem: és o assassino que procuras!” (SÓFOCLES, 2002, p.35)
A partir da resposta do adivinho, mais à frente, no drama de Sófocles, Édipo irá
se convencer de que não é possível mais viver tendo apenas a beleza e o clarão de
Apolo a pretensamente lhe iluminar os caminhos. Ele precisará de mais: tudo isso e
muito mais. O da forca que lhe ata os pés vai se desprender da árvore parteira e,
para ele, será então preciso experimentar a noite de Dionísio; reconhecendo as
110
pessoas pelo tato; comendo comidas sem ter que apreciá-las antes; levando para a
alma, em cheiros, aquilo que os seres e as coisas exalam. Êxtase e embriaguez?
Então, por não se conhecer, Édipo poderá sair em busca de si próprio, tendo como
companheiro apenas o vigor das sensações.
A outra cena acontece de maneira inesperada, com crueldade semelhante, numa
mitologia que é a mesma e que também é mais antiga. Ela nos é narrada por Friedrich
Nietzsche (1992), em seu O Nascimento da Tragédia. Nela, o velho Sileno, nascido das
gotas do sangue de Urano, quando este foi castrado por Cronos, é perseguido pelo
famélico rei Midas, da Frígia. Capturado, o pai dos Sátiros, companheiro de Dionísio
que possui como características mais determinantes a sabedoria, a feiúra e, como o
poderia deixar de ser, a embriaguez, tem, como o sabedor Tirésias diante da
insensatez e presumida ignorância de Édipo, uma pergunta a responder. Midas quer
saber qual, dentre todas as coisas, é a melhor e a mais preferível para o homem. Como
escreve o criador de Zaratustra, a resposta do daimon vem acompanhada de um sorriso
amarelo:
-Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me
obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo
é para ti inteiramente inatingível: o ter nascido, o
ser, nada
ser. Depois
disso, porém, o melhor para ti é logo morrer. (NIETZSCHE, 1992, p.36)
O que o rei Midas ouve é aquilo que Édipo, quase ao final do texto de Sófocles,
dirá a si mesmo: “Ah! Luz do sol. Queiram os deuses que esta seja a derradeira vez que
te contemplo! Hoje tornou-se claro para mim que eu não deveria nascer de quem nasci,
nem viver com quem vivo e, mais ainda, assassinei quem não devia!(SÓFOCLES,
2002, p.82) Com tal fala, o que esse Édipo de estirpe miserável e efêmera faz é
111
concordar com as palavras de Sileno. O filho e esposo de Jocasta, depois de destruir
totens e quebrar tabus, sabe, junto com o pai dos tiros, que não devia ter nascido e
só o que deseja é morrer. Não quer mais ver a luz do sol, essa luz de Apolo que acabou
por lhe conduzir à cegueira, tornando-o o pior dos cegos. E o pior dos cegos, ao
contrário do que diz o refrão popular, talvez não seja aquele que não quer ver, mas
aquele, como este Édipo humano, que quer ver.
A visão de Friedrich Nietzsche a respeito de Édipo não diz respeito à
personagem ou ao texto específico de Sófocles. Ela fala de uma maneira filosófica de
enxergar o mundo. Para esclarecer brevemente aquilo que interessa mais de perto a
esta dissertação, tentar-se-á demonstrar, de modo resumido, o que o filósofo alemão
pensa sobre a tragédia entre os gregos, assim como está em seu primeiro livro,
citado anteriormente.
As idéias contidas em O Nascimento da tragédia, obra publicada pela primeira
vez em 1872 e reeditada quatorze anos depois, começam a ser urdidas em 1870, a
partir de três textos escritos neste período em que Nietzsche, ainda aos 25 anos, é
professor da Universidade de Basiléia, quais sejam: “A visão dionisíaca do mundo”, “O
drama musical grego” e “Sócrates e a tragédia grega”. Tais conceitos irão, de certa
maneira, configurar uma ordem heterodoxa na análise não apenas da antigüidade
grega, mas também na influência do socratismo e do platonismo sobre a cultura
ocidental.
Nessa sua obra inaugural, o filósofo alemão, influenciado por Arthur
Schopenhauer, irá interpretar a cultura clássica grega a partir do encontro de forças que
se poderiam dizer opostas. De um lado, tem-se o apolíneo, impulso representado,
desnecessário dizer, pelo deus grego Apolo, e ligado à perfeição, à medida de ações e
112
formas, à palavra e ao pensamento humanos. De outro, encontramos o dionisíaco,
inerente a Dionísio, deus do vinho, da sica e da dança, inicialmente cultuado entre
os povos da Ásia Menor e vinculado à exarcebação dos sentidos, à embriaguez mística
e à primazia amoral dos instintos.
É das celebrações a Dionísio que nascea própria tragédia grega. De acordo
com Junito Brandão (2004b), as chamadas “Dionísias Rurais” são sua fonte. A partir do
século V a.C., tais festas passam a ser enriquecidas com concursos dramáticos. E é
deste encontro entre um espírito apolíneo, sedimentado no sólo helênico, com um
outro dionisíaco, oriundo de povos que poderiam ser chamados “bárbaros”, que
acontece a tragédia grega. Segundo Nietzsche, tal forma artística será o exemplo a
partir do qual a vitalidade da cultura e do homem grego poderá ser percebida em sua
maior evidência. O que se tem aqui, valeria mesmo dizer, é o nascimento de um
homem trágico, que leva dentro de si a lucidez e a beleza de Apolo em embate
permanente com a embriaguez e o êxtase característicos de Dionísio.
Este ser apolíneo, para Nietzsche, é também o do indivíduo, o do Estado, da
consciência de si próprio. No entanto, tal individualidade, traduzida através do
principium individuationis, não passa de uma aparência que tem como finalidade
mascarar a essência humana. É neste sentido que o sujeito necessita da beleza de
Apolo: para se libertar da dor através da aparência. Logo no início de O Nascimento da
Tragédia, e depois de citar o princípio da individuação de Schopenhauer, é assim que
Nietzsche (1992) se refere ao deus sol:
Sim, poder-se-ia dizer de Apolo que nele obtiveram [os gregos] a mais sublime
expressão a inabalável confiança nesse
principium
e o tranqüilo ficar
sentado de quem nele está preso, e poder-se-ia inclusive caracterizar ApoIo
113
com a esplêndida imagem divina do
principium individuationis,
a partir de
cujos gestos e olhares nos falam todo o prazer e toda a sabedoria da
‘aparência’, juntamente com a sua beleza. (NIETZSCHE, 1992, p.36)
Dionísio surge, então, para dar o contraste, como se fosse a tinta negra que,
espalhada com determinação sobre o barro vermelho da ânfora de Exéquias, fizesse
surgir as figuras que nela podem ser vistas. E é a partir de tal contraste que o homem
grego deixa de ser criador da obra de arte para se tornar a própria obra, voltando-se
também para sua essência e deixando de dissimular a verdade. Como afirma Roberto
Machado (1999) em seu livro sobre Nietzsche, a oposição entre os dois instintos, estas
duas forças artísticas da natureza, era total.
A experiência dionisíaca, em vez de individuação, assinala justamente
uma ruptura com o principium individuationis e uma total reconciliação
do homem com a natureza e os outros homens, uma harmonia universal
e um sentimento místico de unidade; em vez de autoconsciência
significa uma desintegração do eu, que é superficial, e uma emoção que
abole a subjetividade até o total esquecimento de si; em vez de medida
é a eclosão da
hybris,
da desmesura da natureza considerada como
verdade e
exultando na alegria, no sofrimento e no conhecimento’; em
vez de delimitação, calma, tranqüilidade, serenidade,
é
um
comportamento marcado por um êxtase, por um enfeitiçamento, por uma
extravancia de frenesi sexual que destrói a família, por uma
bestialidade natural constituída de volúpia e crueldade, de força grotesca
e brutal; em vez de sonho, vio onírica,
é
embriaguez, experiência
orgiástica. (MACHADO, 1999, p.21-22)
No entanto, a marca da excelência da cultura clássica grega está, para o filósofo
alemão, na maneira como acontece o convívio entre o apolíneo e o dionisíaco. De
acordo com Nietzsche, a evolução da arte irá depender necessariamente do
antagonismo dessas duas forças. Em seus Fragmentos Póstumos, conforme Jean
Lefranc (2005), no livro Compreender Nietzsche, o pensador alemão reflete sobre tal
debate de maneira bastante esclarecedora:
114
Esta oposição do dionisíaco e do apolíneo no interior da alma grega
é
um dos grandes enigmas cuja sedução senti na presença do ser grego.
No fundo esforcei-me por nada mais do que adivinhar porque o
apolinismo grego devia surgir de um substrato dionisíaco, porque o grego
dioniaco teve que tornar-se necessariamente apolíneo; isto é, romper
sua vontade do monstruoso, do múltiplo, do incerto e do horrível por uma
vontade da medida, da unidade, da ordenação segundo a regra e o
conceito. Seu fundamento
é
a demência, a desordem, o asiatismo; a
coragem do grego consiste num combate contra seu próprio asiatismo; a
beleza o lhe
é
dada mais que a lógica, mais que a moral natural ela
é
conquistada, desejada, tomada de assalto à força ela
é
uma vitória
grega. (LEFRANC, 2005, p.71)
Mas a grande heterodoxia da leitura nietzschiana talvez se no fato de que,
depois de ver na tragédia que consagrou Sófocles o ápice dessa cultura clássica grega,
o filósofo nos mostra que o declínio de tal cultura parte do surgimento de um homem
racional, um sujeito escrito a partir do principium individuationis. É tal homem, cuja
marca principal é a figura de Sócrates, que acaba por colocar um fim à afirmação
daquele outro homem trágico. E é também tal sujeito construído pelo platonismo que,
grosso modo, irá pautar a ortodoxia hermenêutica da cultura ocidental durante os
séculos que seguirão também com o cristianismo a seu reboque.
De acordo com a condenação que Friedrich Nietzsche (2005) faz do pensar
filosófico que começará a ser operado a partir de Sócrates e que terá seu ápice nas
idéias de Platão, o socratismo despreza o instinto e, com isto, a arte(NIETZSCHE,
2005, p.83). Neste sentido, ao situar os três grandes dramaturgos gregos, Nietzsche faz
distinções que merecem ser levadas em consideração. Para ele, enquanto em Ésquilo
a repugnância dilui-se no sublime assombro diante da sabedoria da ordenação do
mundo, em Sófocles tal assombro é maior ainda, uma vez que esta sabedoria é
completamente insondável.
115
...a disposição de Ésquilo tem continuamente a tarefa de justificar a
justiça divina, e por isso se detém sempre diante de novos problemas.
Para Sófocles, o ‘limite do homem”, pelo qual Apolo ordena procurar, é
reconhecível. No entanto, ele é mais estreito e restrito do que Apolo
considerava ser na época pré-dionisíaca. A falta de conhecimento de si
no homem é o problema de Sófocles, a falta de conhecimento sobre os
deuses no homem o problema de Ésquilo. (NIETZSCHE, 2005, p.29)
Se a criação nesses dois primeiros autores traduz, para Nietzsche, um momento
em que a arte grega ainda não havia se impregnado de palavras como conceito e
consciência, com Eurípides as perspectivas serão alteradas. Segundo o filósofo
alemão, é este último dramaturgo que passa a seguir uma estética consciente, fazendo
eco, desta maneira, aos princípios socráticos que buscavam nada mais, nada menos
que a clareza de Apolo. Nas comparações feitas por Nietzsche entre os três nomes da
tragédia grega, Eurípides irá aparecer ao lado desta clareza que poderia ser traduzida
na própria busca da razão em Sócrates.
Ele [Eurípides] procura intencionalmente o que de mais
compreensível; seus heróis são realmente como eles falam. Mas tamm
eles se expressam inteiramente, enquanto os personagens de Ésquilo e
de Sófocles o muito mais profundos e plenos do que suas palavras:
propriamente, eles só balbuciam sobre si. Eurípides cria as figuras
enquanto, ao mesmo tempo, as disseca: diante de sua anatomia não
existe nada mais oculto nelas. (NIETZSCHE, 2005, p.80)
Assim, o que Friedrich Nietzsche parece querer dizer é que a construção desta
parte oculta é possível através do princípio dionisíaco, capaz do êxtase criativo. É tal
embriaguez que irá resultar, acredito, em personagens como Édipo e Jocasta, que se
caracterizam, na tragédia de Sófocles, pelo fato de deixar a essência do mito exposta, a
fim de que novas e múltiplas leituras possam ser feitas, de modo a buscar a existência
humana, como enseja o filósofo alemão, não nos fenômenos, mas naquilo que existe
por trás deles.
116
E é exatamente em função desta parte oculta que Sófocles nos deixa em Édipo e
Jocasta que, hoje, torna-se possível buscar interpretações que possam vislumbrar no
cegar-se do rei de Tebas o haver alcançado o êxtase dionisíaco. É esta embriaguez da
imaginação que também poderá oferecer a Jocasta uma interpretação menos
secundária que a de seu filho e esposo. Tais leituras feitas, é o que parece, a partir
dessa cegueira, desse êxtase e dessa embriaguez são o objeto do próximo e último
capítulo desta dissertação. Pelo menos em uma delas a do drama Jocasta Tirana,
produzido intencionalmente a partir das idéias aqui levantadas sobre o mito e sobre a
própria questão do gênero –, tentar-se-á levar a conseqüências apócrifas tudo o que foi
pensado neste trabalho até o momento.
117
6. DUAS LEITURAS HETERODOXAS
Como se viu até aqui, a leitura de um mito nunca pode ser esgotada. Passando
por análises consagradas e pautadas por uma determinada ortodoxia hermenêutica,
como a de Freud e Lévi-Strauss, até chegar a outras mais heterodoxas, como são a de
Michel Foucault e até mesmo a do psicanalista Hélio Pellegrino, o que neste breve
estudo se tentou foi, com as limitações inerentes a este trabalho e a seu trabalhador,
procurar enxergar no mito de Édipo sobretudo a partir de sua interpretação mais
célebre, a de Sófocles, inaugural do gênero dramático os mais variados e discutidos
aspectos que o rodeiam.
Sem perder de vista tudo isso, a proposta desta investigação é fazer um
apanhado teórico daquilo que foi pensado sobre a tragédia e sobre o próprio mito,
sempre vinculando o Édipo Rei do dramaturgo de Colono a aspectos da mitologia grega
e da filosofia. Tal busca conceitual, realizada a princípio sem o rigor metodológico
exigido pelo trabalho dissertativo e mais imbuída do espírito dionisíaco, foi aquilo que
possibilitou a escritura de um drama teatral que tentasse ser capaz de ilustrar alguns
dos pensamentos aqui relatados. Agora, neste capítulo, procurar-se-á oferecer este
mesmo drama como exemplo de análise heterodoxa no que se refere ao mito e à leitura
que dele fez Sófocles.
O resultado de tal trabalho foi a tragédia (anti-tragédia?) Jocasta Tirana, que aqui
será um dos dramas teatrais contemporâneos a serem analisados. Tal texto, inscrito no
“5° Concurso Nacional de Dramaturgia – Prêmio Carlo s Carvalho”, promovido pela
Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, obteve o segundo lugar. O
118
lançamento do livro com o texto da peça aconteceu na capital gaúcha, no último 30 de
agosto. A montagem de um espetáculo com o texto está prevista para o próximo ano,
uma vez que os membros do elenco e da equipe técnica já foram escolhidos, ensaios já
vêm sendo realizados e os produtores trataram de inscrever o projeto nas principais
leis brasileiras de incentivo à cultura.
A criação de Jocasta Tirana foi possível a partir da análise de cada uma das
idéias autorais alinhavadas nesta dissertação. Nesse sentido, além de refletir um
estudo eminentemente teórico, este drama também o faz, talvez dionisiacamente, como
propõe Friedrich Nietzsche, a partir das mesmas palavras que são colocadas na boca
dos dois principais personagens da história: a própria Jocasta e Édipo.
A proposta, portanto, foi sempre a de produzir uma peça teatral em cujo interior
fossem abordadas o que as análises de alguns dos autores aqui citados têm nos
revelado. No entanto, a situação dramática deveria também privilegiar uma leitura
heterodoxa do mito e de seus personagens. Em resumo, o que desde o início se
buscava era inverter a significação de maneira que a leitura teórica desse origem a uma
obra dramática e que este mesmo drama possibilitasse uma interpretação dissertativa
do tema.
Destarte, neste capítulo, o que se tentará desenvolver é a breve análise das
frestas e arestas que permitiram, por projeção, a escritura de Jocasta Tirana. E também
como esta obra dramática contemporânea pode oferecer uma leitura heterodoxa não
apenas da obra de Sófocles, mas também de seus personagens e da hermenêutica
ortodoxa que os cerca.
Antes, contudo, o capítulo também apresentaa abordagem de outro drama
contemporâneo escrito em língua portuguesa sobre o mesmo mito de Édipo e Jocasta.
119
Trata-se da peça teatral Um Édipo, de Armando Nascimento Rosa (2003). Dramaturgo
premiado em Portugal, Nascimento Rosa também é professor de Teoria e Estética,
Dramaturgia e Escrita Teatral na Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto
Politécnico de Lisboa.
Um Édipo, que foi editorialmente publicado em 2003, teve sua estréia cênica em
Lisboa, no Teatro da Comuna, em 4 de julho do mesmo ano. Os personagens da peça
são, em sua maioria, os mesmos do drama de Sófocles, o que caracteriza de maneira
exemplar uma leitura que se faz do mito e do próprio gênero, a partir de idéias
decisivamente contemporâneas, como procurarei, ainda que brevemente, demonstrar
aqui.
Assim, a análise dessas duas peças escritas como projeção da obra de Sófocles
tenta oferecer uma leitura distinta do mito e do gênero. O tempo em que se passa
Jocasta Tirana é a noite imediatamente anterior ao dia em que moços e anciãos
seguem até o palácio real de Tebas a fim de rogar uma solução para a peste que
ameaça a cidade. o texto Um Édipo irá mostrar um momento posterior aos sucessos
que a tragédia exemplar do dramaturgo de Colono relata. Em Armando Nascimento
Rosa, teremos uma espécie de acerto de contas entre os personagens do mito. Nele,
os fantasmas de Jocasta, Crisipo, Laio e Pélops irão dialogar com um Édipo cego e
com Tirésias e sua filha Manto.
Em cada um dos textos dramáticos, pode-se perceber a influência das idéias
formadoras desse nosso mundo contemporâneo, a partir de uma tragédia e de um
ideário mitológico que o se esgotam. Nunca se exaurem e, por isso mesmo, a partir
do que, de acordo com Jean Lefranc, Nietzsche chama “arco-íris dos conceitos”
(LEFRANC, 2005, p.43)
, estão sempre a cumprir o fado de trazer novas e diferentes
120
interpretações para uma história imensa de possibilidades analíticas. Sim, esta história
de um Édipo e de uma Jocasta ao mesmo tempo humanos e quiméricos, que,
independentemente do tipo de leitura que se faça, também não deixa de ser a história
de todos e de cada um de nós.
6.1. ESPELHO DE FANTASMAS
No centro do palco, Tirésias pergunta a Jocasta o que ela está fazendo naquele
lugar. Em torno do pescoço daquela que foi rainha de dois reis, um longo lenço
esconde o vergão negro de enforcada. Jocasta foi ao encontro de Tirésias na
esperança de que ele lhe ensinasse a viver a morte, uma vez que ela ainda se julga
presa à vida. Mas o daimon o sabe. Seus poderes não são suficientes para guiar os
mortos no caminho do Hades. Jocasta insiste, pensa que está viva. Tirésias ironiza,
lembrando que nada é mais patético que o teatro de um morto que julga ainda viver.
O início de Um Édipo, de Armando Nascimento Rosa, é esclarecedor no que
se refere àquilo que o público irá encontrar no espetáculo. Dos sete personagens
envolvidos na trama, quatro deles são fantasmas que parecem buscar no espelho do
que viveram algum reflexo que possa ter ficado para trás. Jocasta, por exemplo, ao ir à
procura do velho adivinho num mundo que o lhe pertence mais, parece estar à
procura de migalhas de sua própria vida, querendo compreender aquilo que talvez não
necessite mais ser entendido. Pálida, ela chegou a Tirésias depois da intermediação de
Manto, filha e herdeira do bruxo.
121
E é exatamente aqui, na ação e na personagem de Manto, que acontece a
primeira transgressão de Armando Nascimento Rosa (2003). A filha de Tirésias não
herdou apenas os poderes divinatórios do pai. Ainda no princípio da peça, o próprio
Tirésias afirma que ela deverá substituí-lo. Uma mulher que substitui um homem. Mas,
sobretudo, uma mulher que, ousada, não quer para si o destino do pai. Manto possui
outros planos, tem suas próprias Hýbris a cometer. Ela quer ser atriz, representando
nos palcos os mitos engendrados pelo viver humano.
No entanto, a transgressão de Manto é logo apontada por seu pai. Mais do que
qualquer um, Tirésias, que foi mulher, sabe como são tortuosos e mais difíceis os
caminhos femininos pela Hélade. É por isso que ele, até ser convencido do contrário ao
final do espetáculo, não quer que sua filha tenha sonhos impossíveis. Antes, será
melhor que ela, usando os dons que lhe foram legados, decifre os possíveis sonhos das
gentes. Nesse sentido, a resposta que Tirésias dá para os anseios de sua filha é
esclarecedora:
TIRÉSIAS
Minha filha, pareces ter esquecido que os teatros de Atenas não contratam
mulheres. De nada te serve tentares a sorte. Algum mestre de cena dirá se te
vir inspirada: - A menina nasceu com talento... Para depois acrescentar,
torcendo o nariz como um pedante: - Mas é uma pena que seja desprovida de
membro viril. Assim não poderá subir aos palcos da Grécia! (ROSA, 2003,
p.33)
A transgressão de Manto estaria, portanto, permeada por uma motivação quase
heróica, sobretudo quando encarada do ponto de vista da antigüidade grega, num
tempo em que, é sabido, as mulheres não possuíam direitos semelhantes aos dos
homens. O que a vontade de Manto faz é, simbolicamente, igualar seu desejo ao do
homem. no final do espetáculo, depois de ouvir as aflições dos mortos e dele próprio
122
se tornar um deles, Tirésias muda de idéia. Não apenas muda como aconselha que ela
não mais ouvidos a “mortos vagabundos”. Depois de indicar até mesmo o lugar do
Egeu para onde Manto deve ir Lesbos, ilha onde as mulheres sobem ao palco
Tirésias diz suas últimas palavras à filha: “- antes voz aos vivos nos ritos de Dioniso.
No palco encontrarás a harmonia.” (ROSA, 2003, p.51)
Dessa maneira, pode-se mesmo dizer que o destino de Manto está selado. Ela
seguirá o conselho do pai e irá para Lesbos, buscando no ofício das máscaras uma
pretensa igualdade com os heróis. Poder-se-ia mesmo dizer que este momento de
desejo da transgressão possui a marca da contemporaneidade, gravada com
determinação por Armando Nascimento em sua projeção da obra de Sófocles.
Mas a Hýbris de Manto não é a única marca de um olhar contemporâneo sobre
ações e personagens antigos e mitológicos que pode ser encontrada na obra do autor
português. As falas do próprio espectro de Jocasta estão repletas de sinais da
contemporaneidade, que podem ser feitos a partir de um olhar autoral que conviveu
com as interpretações do mito que fizeram Sófocles, Freud, Lévi-Strauss, Nietzsche e
outros mais.
morta e escondendo o vergão terrível do pescoço, Jocasta parece querer
saber aquilo que sabe. É como se conversasse com sua própria imagem no espelho.
Talvez seja por isso que ela, que caminhou até Tirésias para que ele lhe ensinasse a
viver a morte, diz que, se morreu, escapou ao próprio tempo, convivendo com todas
as épocas como se fossem uma única. Temos, então, um diálogo intertextual com o
Édipo Rei de Sófocles, quando Jocasta cita o dramaturgo de Colono como o
responsável, através de sua escrita, pelo fato dos nomes de ambos virem a habitar a
“eternidade dos mitos”.
123
Mas tal eternidade, como se pôde ver até o momento nesta dissertação, tem
sempre o olhar do tempo a partir do qual essendo encarada. Na obra de Armando
Nascimento Rosa (2003), isto o acontece de maneira diferente. O primeiro quarto de
Um Édipo acontece num diálogo entre Tirésias e o espectro de Jocasta, permeado por
uma estratégia própria de carpintaria cênica em que o adivinho um texto que é seu
mas que não faz parte do diálogo propriamente dito, e sim de uma fala dita em outro
tempo e para um outro interlocutor. É desta maneira que o mito de Tirésias é contado.
No entanto, temos na história perspectivas autorais, que se distanciam das versões
mais conhecidas do mito. O próprio Nascimento Rosa, em posfácio que faz da edição
de sua obra, comenta ao mesmo tempo aquilo que poderíamos chamar de “sua própria
revisão do mito” e o desejo de Manto pelas artes cênicas:
Para além de aprendiz do mester de adivinha (função concordante com a
tradição mitológica que Séneca seguiu), tornei-a desejosa de exercer uma
profissão interdita no seu tempo: a de actriz, com ressonâncias explícitas a
uma certa misoginia nada anacrónica em contextos teatrais hodiernos.
Outra das liberdades com que me surpreendi na escrita, foi a reinvenção
da história de Tirésias no seu tnsito entre sexos. Afinal, a história das
serpentes estava mesmo mal contada, e os dicionários de mitologia
andavam a pedir-me um acrescento nos seus verbetes... (ROSA, 2003,
p.66)
Trata-se, como o próprio autor afirma, de incursão deliberada pelo terreno
mitológico, com privilégios determinantes para a liberdade de criação. Tal fato, diga-se
de passagem, não é prerrogativa exclusiva do tecido dramático contemporâneo. Como
sugere Nietzsche em seu O Nascimento da Tragédia, a profundidade e a plenitude
dada por Sófocles a suas personagens só poderia ser creditada ao que poderíamos nos
arriscar a chamar “capacidade criativa” ou, para manter o léxico nietzschiano,
“embriaguez e êxtase dionisíaco”. Não houvesse tal liberdade de criação, o Édipo Rei
124
de Sófocles talvez nos contasse uma história na qual o filho e esposo de Jocasta não
se cegaria, continuando, depois de saber que é, na verdade, um parricida incestuoso,
como rei dos tebanos, assim como narra a versão que Homero nos oferece do mito em
sua Odisséia.
Se a invenção criativa de Nascimento Rosa não é algo exclusivo de seu tempo,
outras questões de Um Édipo parecem ser. Uma delas é a comparação que o autor faz
da vida com o fazer teatral. Trilhando um caminho singular que poderia considerar-se
construído a partir de conceitos nietzschianos como os de essência e aparência, coisa-
em-si e fenômeno, vontade e representação, a Jocasta criada pelo dramaturgo
português, ao relatar a lenda de Tirésias, encaminha-nos à reflexão com frases como:
“Tirésias mentia à vida porque para ele a vida era essencialmente uma mentira. Como o
teatro” (ROSA, 2003, p.18 e 19).
A perspectiva que se tem da relação incestuosa é mais um traço de leitura
contemporânea do mito que pode ser encontrado na obra de Armando Nascimento
Rosa. Ao refletir frente a seu espelho, Jocasta não a importância que outros
estudiosos e escritores deram a este tabu. A frase Só o conhecimento nos salva, meu
amigo(ROSA, 2003, p.15) mostra uma personagem mais preocupada consigo própria
do que com a discussão de questões atemporais, como certamente é a do incesto.
Talvez seja por isso que, para a Jocasta de Nascimento Rosa, o incesto é uma questão
até mesmo vulgar. Em uma fala que pode ser semelhante àquilo que encontramos no
próprio Sófocles (2002), quando sua rainha de Tebas diz a Édipo que muitos mortais
em sonhos subiram ao leito materno(SÓFOCLES, 2002, p.67), Nascimento Rosa
(2003) vai direto ao assunto e nos interpõe, através do texto de sua enforcada, uma
conclusão com definições decisivamente contemporâneas para o referido tabu:
125
Tudo me parece agora tão simples. Os homens amam as mulheres porque
desejam mergulhar de novo no mar das delícias que os trouxe para o
mundo. Mesmo que as sintam suas filhas, elas são extensões vivas de si
próprios e por isso mães na mesma, promessas de futuro. As mulheres
jogam o mesmo jogo e no corpo do amante juntam o pai ao filho
imaginado. O amor é um incesto universal. Não valia a pena ter-me
enforcado por uma causa tão vulgar como esta. (ROSA, 2003, p.24)
Depois do diálogo entre Tirésias e Jocasta, segue-se a introdução das demais
personagens, com participação mais intensa de Manto, um dos dois únicos papéis
dramáticos que permanecerão vivos até o final do espetáculo, sendo o outro o próprio
Édipo. Os primeiros a entrarem em cena são Crisipo e seu pai, Pélops, este último
incorporado em Tirésias. Eles conduzirão o debate a respeito de mais uma lenda da
mitologia grega: a da culpa primordial da casa dos labdácidas que origem ao próprio
mito de Édipo. Aqui, Laio é mostrado a partir de uma perspectiva determinantemente
sedutora, criando enganos e conduzindo farsas para conseguir o que quer do belo
Crisipo. O chamado amor contra naturam entre Laio e Crisipo é narrado, a princípio, de
maneira bastante semelhante às que o encontradas nos dicionários de mitologia
grega sem que, no entanto, tenha o arremate comum a qualquer versão mais
conhecida.
Depois de tal narrativa e do diálogo mencionado entre Tirésias e sua filha
sobre as impossibilidades femininas no que se refere ao exercício das atividades
cênicas, temos a entrada de Édipo. E é depois da entrada de um Édipo cego e, na
estratégia de Nascimento Rosa, ainda mais cheio de dúvidas, que temos o ponto fulcral
do espetáculo. Ou seja: o assunto que sentido a Um Édipo. Trata-se do
esclarecimento do caso entre Laio e Crisipo. A principio tratado com singular
perspectiva homofóbica, através de falas em que personagens como Crisipo, Pélops
(encarnado em Tirésias) e a própria Jocasta condenam com veemência o episódio,
126
Nascimento Rosa diz a que veio e explica sua obra, criando, por meio da narração do
próprio Crisipo, o ponto principal de sua criação.
Em tal cena, o jovem amante de Laio que, em Um Édipo, havia morrido ao fugir
da perseguição de Laio, conta que, depois de morto, como espectro visível pela
vontade dos deuses, era ele quem estava ao lado do rei de Tebas quando este foi
assassinado pelo viajante que vinha fugido de Corinto. Crisipo decide voltar atrás em
sua fuga das investidas de Laio. Nesse sentido, é como um fantasma que ele se põe
a falar consigo mesmo:
Nesse dia eu estava bem visível. o me perguntes porquê. Os deuses assim
o quiseram. Eu vogava à toa como um cardo no ciclone e dei por mim a pensar
em Laio, naquele homem a quem não perdoei a minha morte. Foi Afrodite que
me tentou nessa hora. Cismei tantas tolices indignas de mim ... Pus-me a falar
para a sombra que sou: - Parvo que tu foste, Crisipo. Em vez de fazeres o
papel da virgem assustada, porque não correspondeste com prazer às carícias
de Laio? Afinal de contas tu estavas vaidoso por seduzires um rei desterrado.
Podias ter tido uma noite de amor diferente daquelas que costumavas gozar
com as escravas. Quantos jovens na Grécia não invejariam a sorte de ser
raptados como tu, num cavalo negro? E hoje em vez de andares a assombrar
os caminhos, vestias a capa púrpura de favorito do rei na corte de Tebas.
Quem sabe até se ele não iria aborrecer os beijos de Jocasta, tendo-te por
perto? Ocuparias o leito real e Édipo nem teria oportunidade de nascer. (Ri-se)
Estátuas de ApoIo seriam esculpidas copiando-te a beleza. O amor de Laio
tornar-te-ia imortal na memória dos gregos. Ah Crisipo! Tão asno que tu foste.
O destino trouxe-te a taça da fama e tu atiraste-a ao rio com o vinho da vida
dentro. (ROSA, 2003, p. 42-43)
Em seguida, Laio entra em cena, incorporando-se a Tirésias, fato que, no final do
drama, causará a morte do adivinho. Também seu fantasma quer dar a própria
interpretação do que ocorreu. Na verdade, ao se deparar com o belo jovem sentado a
seu lado na carruagem, Laio imagina que a visão é a de seu próprio filho. Os crimes
então se fundem e se confundem. Para o rei de Tebas, que logo em seguida se
127
assassinado, a culpa pela morte de Crisipo equivale à culpa pelo filicídio que ele
pensava haver cometido.
Neste exato momento, entra também Édipo que, com sua versão da história,
escreve uma página de verdadeira homofobia, isto sim inusual para os parâmetros de
compreensão da contemporaneidade e até mesmo para a antigüidade grega, como o
próprio Édipo de Armando Nascimento Rosa (2003) chega a confessar com as
seguintes palavras:
Seria emboscada de salteadores ou avaria do engenho? Desci para averiguar.
E o que vejo ali, ó deuses! dois homens enroscados como serpentes na
encruzilhada. Um mais velho e outro mais novo, com idade para ser seu filho.
Aquilo repugnou-me. Eu sei que é costume grego, mas não acho que seja
salutar. Não posso desejar a morte a todos, pois nesse caso ficava a Grécia
despovoada e vulnerável à conquista dos bárbaros. Mas confesso que às
vezes me dá ganas de matar uns quantos, apanhados em flagrante, para
aliviar a minha ira. E estes não tinham achado melhor sítio para dar vazão ao
ardor dos sentidos, do que ali, estacionados na curva. O mais novo olhava-me
calado e com cara mortiça. Pareciam ambos meio palermas. Desafiei o mais
velho. (Para Laio/Tirésias.) Você tem idade para ter juízo! Que coisa é esta
de impedir o trânsito e fazer da estrada um sítio de deboche? (ROSA, 2003,
p.46)
Depois da explicação calorosa de Édipo, o texto de Nascimento Rosa tem seu
desfecho com a mencionada morte de Tirésias e um diálogo entre Jocasta e Manto,
com aquela reproduzindo os conselhos que Tirésias, a caminho de Hades, a sua
filha: de que ela siga seus desejos e para Lesbos, fazer teatro. O fantasma de
Jocasta beija Édipo e se retira, para que ele e Manto troquem breves palavras e cada
qual parta em busca de sua Moira. Manto, procurando seu ofício. Édipo, errando cego
pelos caminhos da Hélade e vindo dar até mesmo a Portugal e Brasil, onde, parece,
temos esperado por ele junto com nossas incertezas e com nossas próprias ações.
128
Como seu autor afirma, o eixo dramático de Um Édipo gira em torno das figuras
de Tirésias e Jocasta. Nascimento Rosa (2003) confessa, no posfácio da edição de sua
obra, que a apropriação da lenda tebana lhe surgiu pelo fascínio face à singularidade
mítica de Tirésias, e pela vontade de embrenhar no mistério humano de Jocasta
enforcada (ROSA, 2003. p.67). Daí sua opção de trabalhar com espectros
fantasmáticos que fazem, no espetáculo, uma espécie de balanço de suas vidas e
daquilo que elas possuem de insolúvel. Quanto à sua dramaturgia, o autor vai, como
se mostrou, aquém e além de uma temática especificamente edipiana.
Nesse sentido, poder-se-ia mesmo afirmar que a grande novidade na cena de
Armando Nascimento Rosa é a abordagem que o autor português faz heterodoxa,
diga-se de passagem da lenda de Laio e Crisipo como objetos inaugurais,
motivadores e explicativos da tragédia de Édipo e Jocasta. Ao fazer isso, Nascimento
Rosa (2003) lembra um aspecto interessante e raramente abordado: o de que, antes
do parricídio perpetrado por Édipo, existe um filicídio freqüentemente esquecido, ou
deliberadamente ignorado(ROSA, 2003, p.68). Em sua abordagem autoral, como ele
mesmo afirma no remate de seu livro, Nascimento Rosa lembra o filicídio como o
desejo de anular gerações subseqüentes:
O desejo de asfixiar os que nasceram depois parece-me tratar-se de uma
sociopatia persistente, pelo que as implicações empíricas do complexo de Laio
são das mais (im)pertinentes reflexões que este Édipo pretende propor aos
espectadores/leitores. (ROSA, 2003, p.69)
Além disso, cumpre finalizar esta breve análise de Um Édipo lembrando o
destaque que o autor dá às personagens femininas. Sua Manto transgressora das
tradições helênicas e sua Jocasta que ressurge dos mortos para centralizar a cena
129
trágica ao lado de Tirésias são abordagens pouco comuns para uma temática da
antigüidade grega como a edipiana. A seguir, a abordagem de outro drama este,
escrito de maneira deliberada para ilustrar as propostas heterodoxas de leitura desta
dissertação tentalevar a novos termos a participação de Jocasta neste universo
dramático/hermenêutico.
6.2. MIRANDO JOCASTA
A idéia é de que nós, seres humanos herdeiros de mitos como o de Édipo e
Prometeu, e de hermenêuticas como a de Sócrates, Platão, Aristóteles e Freud, para
citar apenas algumas, estamos habituados a enxergar o mundo a partir de uma
linguagem determinada. Como aqui mesmo nesta dissertação se disse, tal
linguagem possui princípios definidos, um código de significantes desde os quais nossa
leitura dos fatos e das sensações se processa.
Aristóteles, em sua Poética, ao analisar a composição da tragédia grega, é como
se estivesse mencionando tais significantes que mantêm presos nosso olhar ocidental.
Nesse sentido, o que se quer aqui defender é que o entendimento do que nos cerca
está condicionado a elementos como o que se refere à luz do dia, à pretensa
luminosidade apolínea e platônica, e às ações masculinas, tomadas sempre a partir das
obras dos anĕr vigorosos que permeiam nosso imaginário. Exemplo disso pode ser
encontrado de maneira prática na própria definição temporal da tragédia, que segundo
130
Aristóteles deve acontecer no transcorrer de um dia, e nos complexos e hermenêuticas
mais consagrados – o de Édipo, um deles.
Quando Friedrich Nietzsche, nos anos 1870, fez sua leitura da antigüidade grega
a partir de outros conceitos, o próprio filósofo alemão foi estigmatizado por muitos de
seus contemporâneos. Grosso modo, o que Nietzsche afirmava batia de frente com
toda uma tradição clássica, platônica, condicionante do pensamento ocidental e
componente essencial dessa linguagem que aqui se procura definir. Sua condenação
do socratismo foi, como se sabe, desde os primeiros ensaios, rechaçada como
verdadeira heresia pela intelligentsia do momento.
Levando-se em consideração, a partir das propostas de Friedrich Nietzsche, que
existe uma hermenêutica clássica, fundada nesse dia de Apolo, mas que também há,
por trás da aparência, uma maneira de criar o mundo que não pode ser medida por
esses mesmos parâmetros da tradição, é que se procurou produzir uma situação
dramática que invertesse a lógica do dia e dos feitos masculinos. A proposta, portanto,
era compor uma tragédia (anti-tragédia?) que tivesse suas ações definidas na
escuridão da noite e que jogasse o foco principal sobre a personagem que, na versão
mais clássica, era antes iluminada apenas como coadjuvante.
A história escolhida para tal investida foi a mais tradicional possível. Aquela a
partir da qual complexos psicológicos foram criados, outros dramas teatrais encenados,
inúmeras versões oferecidas. Tratava-se, portanto, da história de Édipo. E o mais
interessante é que, apenas com o mencionar o nome do mito, o fazíamos desde a
perspectiva tradicional que ainda pouco foi aludida. Se na lenda temos também um
protagonismo de ações que parte de uma mulher, por que a citamos sempre desde seu
protagonista homem? A resposta para esta pergunta pode ser encontrada naquilo que
131
aqui se quer defender: porque nosso olhar que busca entender o mundo percorre
sempre o layout do masculino, e aquilo que de pretensa verdade ele encerra, ao vir
amiúde iluminado e, deste modo, justificado por uma razão clássica e apolínea.
A partir de tais parâmetros, buscou-se criar uma situação dramática que fosse
também uma leitura do mito executada pelo olhar de Jocasta, e que tivesse sua ação
entre o ocaso e a alvorada isto é, iluminada pela luz da noite. Com base em tais
definições, o que se começou a perceber é que o protagonismo de Jocasta na lenda
consagrada em todo o ocidente é igual, senão maior, que o do próprio Édipo. Se é ele a
criança que deve morrer, ela é a esposa que permanecerá no poder. Se é ele o sujeito
que mata seu pai, ela é a mulher que manda matar seu filho. Se é ele o filho que dorme
com a mãe, ela é a mãe que dorme com o filho. Se é Édipo o herói que desfaz os
enigmas, é Jocasta o prêmio e fio condutor e original de tal sabedoria. Além disso, os
dias de Aristóteles foram sempre precedidos e seguidos de noites nas quais guerras
foram tramadas, poderes defendidos, planos arquitetados, filhos feitos, sonhos e
pesadelos realizados.
A tarefa de criar qualquer coisa sobre a lenda tebana para, em seguida, tomá-la
como objeto para um estudo dissertativo é algo que soa, desde o princípio, pretensioso
e, talvez, inútil. O muito que foi dito sobre o tema não chega a servir de grande
estímulo nem para o criador nem para o ensaísta. Contudo, sem deixar de lado aquilo
que Colette Astier nos recorda a propósito de Édipo enquanto mito da literatura, o
desejo de delirar junto com Dionísio foi maior do que as razões de Apolo.
Colette Astier, em ensaio que define o verbete Édipo no Dicionário de Mitos
Literários de Pierre Brunel (2000), nos mostra de maneira intransigente como as
tragédias escritas por Sófocles explicam de tal maneira o mito que, se não chegam a
132
esgotá-lo, confundem-se com ele próprio. Trata-se, como afirma a autora, de uma
herança pesada, deixada à posteridade para se tornar exemplar, convertendo-se em
um modelo que poderia ser dito canônico, tido sempre como referência obrigatória em
qualquer momento, seja ele de criação ou de reflexão teórica. Segundo Astier, os
cuidados devem ser muitos. É o que ela mostra ao lembrar autores consagrados que
também ousaram tal investida:
Tornou-se, então, necessário redescobrir sem repetir. Mas para tanto, teve-se
que retorcer o texto ou o contexto para não haver plágios. Para tanto, teve-se
que deslocar os enfoques com o único objetivo de produzir-se o novo. Quer se
trate de Platen, Gide, Cocteau, e até mesmo de T.S. Eliot, o empréstimo
tomado a Sófocles acompanha-se de uma recusa de Sófocles; o fascínio
acompanha-se de uma rejeição. Daí, os Édipos modernizados, livres, como
dirá Cocteau, da poeira da obra-mestra: La Machine lrifernale (A máquina
infernal, 1934) e o Édipo (1931) de Gide; The Elder Statesman (O estadista
mais antigo; em fr. Fin de Carriere, 1959) de T.S. Eliot. (BRUNEL, 2000,
p.309)
A identificação entre tragédia e mito e, mais tarde, do próprio mito com o
complexo criado por Sigmund Freud também são temas abordados pela ensaísta.
Sobre a invenção freudiana, a estudiosa francesa é eficaz em lembrar que tal criação
teve o poder de dar origem ao mito da psicanálise, que talvez deva ser interpretado
como um mito do mito (BRUNEL, 2000, p.311). No que se refere às tragédias de
Sófocles, um dos pontos mais provocadores discutidos por Colette Astier (BRUNEL,
2000) se refere ao fato de que, ao escrever sobre Édipo, o dramaturgo faz, na verdade,
também uma interpretação do mito, a partir do gênero dramático, como aqui se
tentou mostrar.
Para nós, que praticamente não dispomos de versões completas da história de
Édipo anteriores a Sófocles, torna-se bastante trabalhoso destacar aquilo que
é da natureza do mito e aquilo que é matéria da tragédia. Pode-se
133
simplesmente achar que as duas tragédias cobrem a totalidade da biografia
edipiana e que o dramaturgo, tendo de escolher entre as diferentes versões
que se lhe ofereciam, viu-se na contingência de evocar todos os seus
episódios. Mas ao fazer isso, cristalizou-lhe os dados. Deu-lhes uma estrutura
literária. Da biografia de Édipo, fez um destino. Em suma, ele interpretou.
Interpretou inclusive duplamente os dados anteriores, ou seja, emprestando-
lhes ao mesmo tempo forma e sentido, e, por conseguinte, uma intensidade
que talvez estará para sempre presente, como uma fascinante e avassaladora
herança às gerações de dramaturgos cativadas pelo assunto. (BRUNEL, 2000,
p.308)
Foi exatamente este fascínio que me levou à Hýbris da escritura de Jocasta
Tirana e à própria reflexão sobre o tema. As escolhas antecipadas ao ato de criação
propriamente dito foram feitas a partir de vários autores aqui mencionados. Mas, desde
o início, o se projetou compor uma Jocasta e um Édipo modernos, a não ser pela
inevitável concentração sobre temas atemporais e por aquilo que se poderia chamar
sintaxe autoral. Antes, a idéia era a de procurar personagens que se mantivessem no
limiar da versão do mito oferecida por Sófocles e pelos compêndios mais consagrados
de mitologia grega escritos ou traduzidos para a língua portuguesa. Em seguida,
manteve-se a proposta de projetar em Jocasta o foco principal, invertendo-se também,
como foi dito, a lógica aristotélica que define o tempo da ação dramática. Assim, sem
grandes pretensões, até mesmo em função de minha própria precariedade
hermenêutica, foi escrito um drama cujo story line poderia ser “um diálogo entre Édipo e
Jocasta na última noite que passaram juntos”.
Nada mais do que isso. Mas, a partir deste tema, a quantas reflexões uma mente
dionisíaca não estaria exposta? Reflexões e invenções, é claro. A primeira delas, que
remete claramente a um pensamento de Colette Astier, é a de tentar manter trágicos o
Édipo e a Jocasta mencionados. Não o trágico no sentido que o gênero lhe confere,
assim como está disposto em Aristóteles. Mas que não fossem perdidas, mesmo sem
134
poder evitar condicionantes inerentes à própria época da escritura de Jocasta Tirana,
as dimensões significantes destes dois personagens uma delas, como se pôde ver
neste estudo, a da importância que a própria trama de Sófocles ao papel do destino,
da Moira.
A partir daí, contudo, as perspectivas foram alteradas. Transformadas por uma
Jocasta que claramente se impõe a um Édipo indefeso pela iminência daquilo que
virá e pelas lembranças e reflexões sobre um passado que é de ambos e de cada um.
Na verdade, investiu-se em hipóteses que podem até mesmo parecerem absurdas para
leitores mais ortodoxos do mito e da tragédia de Sófocles.
A primeira delas está baseada nos momentos em que Jocasta, no texto do
dramaturgo de Colono, tenta convencer Édipo de que muitos mortais em sonhos
subiram ao leito materno(SÓFOCLES, 2002, p.67). Este é, por assim dizer, o indício
para que se possa acreditar que, em toda a trama, Jocasta é a que mais sabe, ou
melhor, que tudo sabe. É ela que, desde o início, não se importa em ser oferecida como
prêmio para que seu poder não desapareça junto com a cidade de Tebas e a peste que
a consome. E é ela também que, com a experiência que a idade talvez tenha podido lhe
oferecer, dormiu inúmeras noites com o homem que derrubou a divina cantora e, com
ele, teve nada menos que quatro filhos. Sobretudo é ela quem entrega, mãe, o filho ao
carrasco e que, por isto mesmo, poderia, quem sabe?, em noites de dionisíaca lucidez,
haver de, nem que fosse em sonhos, lamentar seu ato e seu próprio tempo.
A outra hipótese na qual se investiu se refere a Édipo e a sua Moira. Aqui, a
aposta é que, antes, o destino que está traçado para o rei de Tebas, especialmente em
Édipo Rei, não é senão o haver-se com Jocasta. È ela quem lhe à luz; é ela quem o
envia ao Hades; é para ela que, ao fugir do que acredita ser seu destino, ele volta; é ela
135
que será a mãe de seus quatro filhos; e é Jocasta, sobretudo também, que ele mata, ao
buscar uma verdade que, mesmo sendo um sagaz decifrador de enigmas, não
conseguiu enxergar. Neste sentido, o que se quer dizer aqui é que a Moira de Édipo é a
própria Jocasta.
E, se Jocasta é Moira, é ela também quem sabe, é para ela que o poder
mesmo que a partir dos escuros de todas as noites em que sonhou, amou e bateu-se
com seu filho e esposo deve estar voltado. É ela quem sabe. É dela, mulher, que
parte este saber escondido mas que, acredito, nos oferece a razão mais subjetiva das
coisas.
Esta cena heterodoxa poderá ser lida em apêndice desta dissertação. O drama
escrito, vale ainda repetir, por uma estratégia premiada pela fortuna, obteve o segundo
lugar no “5° Concurso Nacional de Dramaturgia – Prê mio Carlos Carvalho”. Minha idéia,
ao inscrever Jocasta Tirana, era a de, quem sabe?, tornar menos trágica a Hýbris da
escrita aqui cometida.
136
7.
CONCLUSÃO
Hoje, quando se olha para trás, e até mesmo para a frente, é quase impossível
não enxergar nossa herança e nosso futuro gregos. Assim como é difícil não
percebermos a condição trágica do humano. O que Édipo faz, e o vem fazendo desde
que foi inventado, é colocar esta tragicidade a dois palmos de nossa cara para, ainda
assim, não conseguirmos compreendê-la em toda sua essência. Também nós, por
julgarmos muito saber, mal sabemos.
Tratar essa herança, este espólio helênico, de modo crítico tem sido o desafio de
quem, com maior ou menor intensidade, pensa, com alguma esperança, este ser
humano marcado pela dor trágica. Nesse sentido, a idéia que aqui se tentou propor
ou seja: tentar ver em maiores detalhes como foi pintada a ânfora de San Gimignano
vem como reflexo mesmo dessa disposição de enxergar o mundo com um olhar mais
terno.
Com a mais absoluta sinceridade, a grande pergunta que me assaltou no
processo de escritura tanto desta dissertação como da situação dramática que lhe faz
apêndice, é desconcertante. Para quê? Qual o sentido prático mais razoável, num
mundo em que torres são derrubadas por aviões cheios de gente e crianças são
atingidas por mísseis a todo o tempo, qual o sentido em tentar afirmar que existe algo
por trás do vaso de cerâmica?
Ainda o sei. Sei apenas que este projeto também ainda não acabou. Ao me
dedicar a pensar o tema, pude perceber quantas coisas mais foram urdidas sobre o
assunto. Édipos reinventados por Corneille, Voltaire, Höderlin, Ducis, Platen, Jean
137
Cocteau, Stravinski, Gide, Bernardo Santareno, Robbe-Grillet, e nenhum deles
analisado mesmo que superficialmente por este trabalho. Aqui creio estar, sem vida,
matéria para várias vidas em busca do melhor entendimento sobre o barro e os
pigmentos que deram forma e aparência ao sujeito que se ampara no bastão, à esfinge
que está bem a sua frente, à mulher que o espera sem nunca ter deixado que ele se
fosse.
Assim, o que pude perceber é que mesmo que o estudo que fiz possa ser
considerado completamente inútil, e que a tentativa de escrever um drama sobre
assunto tão sério seja tida como uma pretensão imperdoável de minha parte mesmo
que tudo isso seja verdade, uma coisa é certa: Édipo e Jocasta somos cada um de nós.
Tal conclusão pode parecer óbvia e itinerante, mas não posso deixar de senti-la
como talvez a única verdade percebida neste meu esforço que tramou reunir criação
dramática e hermenêutica. Sim. A sensação é de que aquela criança que foi entregue
ao carrasco somos nós. E de que a mulher que a entrega para que morra no alto de um
morro também somos nós.
E é por isso que andamos todos e cada um de nós por a assassinar pais, a
desvendar charadas, a dormir com filhos, a derrubar edifícios, a sermos atingidos por
mísseis, a nos enforcarmos, a cultivar nossa própria cegueira. O fato é que, mesmo
sendo, não damos conta de saber o que significa sermos Jocastas e Édipos. E também
não sabemos a partir de quais significantes a ânfora de San Gimignano pode ser
melhor apreciada. realmente uma linguagem masculina e apolínea que nos faz
enxergar o mundo por determinado prisma? Em contraposição a esta ordem, existe
uma outra que lhe subverte e, intrometendo-se em seus códigos, é capaz de mudar-lhe
o sentido?
138
Não me recordo onde li que Ulisses, o herói grego, arava a areia de uma praia
deserta. No entanto, esta imagem ficou em minha cabeça desde então, como se fosse
o contraponto do Édipo que é entregue ao verdugo e da Jocasta que, depois de
entregá-lo, põe-se a esperar. Por isso, ainda me pego consultando verbetes de
dicionários e a fazer pesquisas na internet. Talvez, num arroubo dionisíaco que, por que
não?, só Freud pode explicar, tenha inventado para Ulisses esta cena.
Mas, ainda hoje, tal idéia a de um homem arando algo que não faz sentido arar
– não sai de meus pensamentos. O que me parece é que, de uma ou outra forma, o viril
e astuto herói de Ítaca se redime de todas as guerras e mortes que pesam em suas
costas ao cultivar a areia da praia. Posso até mesmo ver a figura consumida de um
anĕr velho e cansado das batalhas de Tróia, ou de suas odisséias pela Trácia,
enxugando o suor que lhe goteja do rosto, tendo o Egeu como fundo. O lugar poderia
ser a ilha de Éolo, e nosso herói parou apenas um instante, a fim de recuperar suas
forças para voltar a correr a charrua pela parte da praia que ainda falta ser sulcada.
O que imagino é que, com esse trabalho trepidantemente estéril, Ulisses também
tenha procurado se redimir dos longos anos em que deixou sua Penélope a tecer e
destecer a mortalha de Laerte. A vida entre as gentes, sobretudo hoje, em que os fios
da harmonia parecem completamente perdidos da meada, revela-nos sempre algo
desse Ulisses que lavra o infértil e dessa Penélope que espera fiando e desfiando.
Desse Édipo que mata o pai para depois tomar seu lugar e dessa Jocasta que manda
matar para, em seguida, desejar a volta.
Explico. Enxergar o outro, creio, é avistar-nos a s mesmos. Esperamos do
outro não aquilo que ele é, mas o que queremos que ele seja ou o que nós próprios
gostaríamos de ser. Por isso, as odisséias nos relacionamentos. Por isso, o tecido que
139
deve ser desfeito a cada noite. Por isso, talvez, tentar ver Édipos e Jocastas a partir de
outras miradas.
Acredito também que é para manter vivas suas esperanças de encontrar seu
Ulisses que Penélope desfaz a mortalha que fiou. É para redescobrir sua Penélope que
Ulisses lavra um solo que jamais poderá dar frutos. Então, e isso parece terrível, o que
avistamos no outro é nossa própria esterilidade e, com medo dela, enlouquecemos na
espera e no áspero.
No fundo, em cada circunstância de encontro nesse nosso mundo grego e
precário, também rogamos descobrir Penélopes e Ulisses, Jocastas e Édipos. Mulheres
capazes de arar o inútil e homens capazes de tecer o que no dia seguinte deverá ser
refeito. Naquilo que buscamos, acredito que o que sempre irá durar é mesmo a chama
essencial. Aquela chama que arde e que não vemos, como lembra Camões. Assim é o
Ulisses que também espera, talvez para se redimir de quem por ele arou o impróprio.
Assim, a Penélope que venceu guerras e moeu o áspero, talvez para se perdoar de
quem por ela passou as noites desfiando. Assim, a espera. Assim, a criação literária.
Assim, a recriação científica. Arar, fiar, desfiar e pensar podem ser mesmo aquilo para o
qual não encontraremos nunca explicação. E para o qual talvez não estejamos mesmo
preparados. Assim, Jocastas. Assim, Édipos.
Assim, nós.
140
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145
APÊNDICE A – JOCASTA TIRANA
P
ERSONAGENS
Édipo
Jocasta
Um foco de luz sobre Édipo. Ele entra com uma vareta na mão, cego.
V
OZES
No caminho desta vida,
muito espinho eu encontrei.
Mas nenhum calou mais fundo
do que isto que eu passei.
A curvinha do estradão do pensamento não sai.
Eu já fiz um juramento que não esqueço jamais.
Nem que meu gado estoure, que eu precise ir atrás.
Este pedaço de chão, errante, eu não toco mais.
Num outro canto do palco, surge Jocasta.
J
OCASTA
Édipo, vem. Tô te esperando, com saudade. Vem. A cama já tá pronta.
Luz sobre Édipo.
É
DIPO
Jocasta, nossa filha me disse que está muito preocupada. Ela falou que o oráculo...
J
OCASTA
Ai, Édipo, pára. Por favor. Tu e Antígona já me dissestes toda essa estória. São tramas,
meu querido. Não percebes? O oráculo, o oráculo. Ora!, o oráculo... Não percebes que
os oráculos dizem aquilo que queremos escutar? Que o dia andará afoito querendo
questionar os medos e que a noite rasteja destemida buscando respostas.
É
DIPO
Ouve o oráculo, Jocasta. Escuta o povo. Esse povo de Tebas, fora, agonizando na
peste, esperando que eu decifre outro enigma para espantar todos os males. o
povo, Jocasta. Ouve o oráculo.
J
OCASTA
Olha, amor. Sabe o que o oráculo me disse? Sabe o que ele teve o impudor de me
revelar agorinha, quando eu arranjava estes lençóis, quando preparava estas
almofadas, (retirando o seio e insinuando-o para Édipo) quando ainda cuidava da seiva
que aqui está e sentia dores, angústias insuportáveis?
146
É
DIPO
Jocasta, eu estou falando sério.
J
OCASTA
Eu também, meu amor. Fui à divindade esta tarde. E fui com uma indagação bastante
coerente. Ou tu não me crês cristalina?
É
DIPO
Claro. Não te falei nada disso.
J
OCASTA
Não me falou, mas também não quer que eu fale.
É
DIPO
Quero sim, minha fingidora. Diga logo o que o oráculo te disse.
J
OCASTA
Mostrando novamente o seio que havia guardado, agora, apertando-o como se
aleitasse.
Ele me disse que tu devias mamá-lo como se hoje fosse tua última oportunidade. Como
se a aurora fosse nascer cega. Como se, amanhã, teu pai aparecesse por aqui e tu o
matasses. Tu o torturasses nas torturas das mortes intermináveis que só os deserdeiros
pais, os pais desinteressados de seus rebentos, podem merecer.
É
DIPO
Aproximando-se.
E, depois, o que a divindade te disse?
J
OCASTA
Sabe o que ela me disse, meu bem? Ela me disse que, logo que teu pai deixasse de
sangrar, que o sangue dele se esvaísse inteiro e o Egeu se pitangasse por completo e
incauto, tua e chegaria com uns seiosinhos salmonados para entregar à tua boca e
te rogar: (já dando os peitos para Édipo) Mama, filhinho, mama.
É
DIPO
Jocasta. Jocasta. te falei de meus sustos em relação a isto. O oráculo. Sempre as
maldições nos enredando em enganos. O povo fora, consumindo-se em pestes. Nós,
aqui dentro, quase nos afundando neste chão que mal consegue nos segurar. Pragas
que nos levam a destruir cidades, a matar pessoas, a destruir amores. Como se o futuro
pudesse então ser pressentido. Responde, anda, por quanto tempo esta terra ainda irá
nos amparar? Por quanto tempo o oráculo dirá aquilo que podemos ouvir? Por uma
noite? Por mais umas horas apenas? A peste está lá fora e nós seguimos neste
cárcere. O oráculo...
J
OCASTA
Mas foste tu quem nele acreditaste. No oráculo...
147
É
DIPO
Acreditei, mas enfrentando-o. Deixei minha cidade, abandonei meus pais. E agora... e
agora...
J
OCASTA
E agora tu estás aí, de pé, seu tolo. Atormentado, quando devias estar aqui,
esquecendo teus medos sob estas sedas, inventando novas dores, decifrando novos
enigmas. Vem, meu Édipo, meu esposo, vem. Vem tomar meus seios, ler minhas
carnes, inundar, como só tu sabes fazer, estes meus vazios que querem ser irrigados.
É
DIPO
Não, Jocasta, não. Já te falei de nossa filha.
J
OCASTA
Mas o que é que tem Antígona?
É
DIPO
Ela não tem nada.
J
OCASTA
Mas então...
É
DIPO
Ela é justa.
J
OCASTA
Justa? O que é esta justiça? O que é esta verdade? As verdades são opostos que se
juntam para poderem se alternar. Hoje, meu tirano, tu és minha verdade. E é por isso
que eu quero... que quero minha verdade bem debaixo destes lençóis. Uma verdade
enorme e tesa, dura e molhada e viscosa, apaixonada. É isso, meu rei de Tebas.
Quero, esta noite, uma verdade apaixonada e ardente, capaz de me dominar. Tu estás
atado em nós, como se te apertassem o pescoço. E eu estou cega, o vês que estou
cega?
É
DIPO
Um rei enforcado e uma rainha cega. E encarcerados no próprio quarto, medrosos da
coisa que inunda a cidade. Era o que faltava a este povo crédulo! Antígona tem razão...
J
OCASTA
Pára com Antígona! Tua filhinha o que faz com sua justiça, com suas verdades, é
acompanhar seu tempo. Suas preocupações são cismas, seus zelos são desejos que
não é capaz de revelar nem a si própria.
148
É
DIPO
Não é ela. É o que ela pensa. Agora, ainda pouco, me disse que teme sem saber o
que teme.
J
OCASTA
Ah! E também ama sem confessar a quem ama.
É
DIPO
Como? O que dizes?
J
OCASTA
Digo o que vêem, o que notam, o que sinto.
É
DIPO
Como o que sentes? Não faz muito, tu me falavas contra os pressentimentos e, agora...
J
OCASTA
E agora o que te digo é que tuas ligações com Antígona são...
É
DIPO
São o quê, Jocasta?
J
OCASTA
Estranhas, Édipo. São estranhas. Todos notam a preferência que tens por ela. E não te
esqueças: são quatro os filhos que temos. Mas tu, o que parece, é que tens olhos
para Antígona.
É
DIPO
Agora começo a te entender. Só agora. Quando falas assim de Antígona.
J
OCASTA
Não falo assim apenas de Antígona. Falo de todos. Falo de ti. Como falei de Laio,
meu ex-marido. Mas Laio... Laio morreu.
É
DIPO
Sim. É exatamente isto: quando falas de Laio. instantes, quando dizias que tua
verdade hoje sou eu, pensei precisamente em Laio. Agora te compreendo. Esta tua
verdade já foi ele, já foi Laio...
J
OCASTA
Ciúmes, meu rei? E quem mais então esta minha verdade poderia ter sido? Naquele
tempo, minha verdade era ele, Laio. E a verdade de Laio era o rapazinho, o menino
raptado por meu ex-senhor para que o desnatural pudesse ser inventado. Qual é tua
verdade, Édipo? Antígona? Ela é tua verdade?
149
É
DIPO
Minha verdade é Tebas, Jocasta. Os homens que tenho que comandar, a justiça que
devo estabelecer, as guerras que me cumpre vencer, as perguntas que é necessário
responder, as pestes que preciso dominar. E estas verdades é que me enforcam.
J
OCASTA
É porque tua verdade é o poder. Aquilo que te faz temer é justamente o que faz o povo
se curvar. É o que faz o mundo inteiro se submeter. O poder, Édipo. O poder.
É
DIPO
Não o poder, mulher. Mas aquilo que ele me exige.
J
OCASTA
Aquilo que ele te exige ou o que tu próprio te exiges para que ele não se afaste de ti?
Para que ele não se afaste jamais de ti.
É
DIPO
É o que temos, Jocasta. Deste quarto, hoje, não é possível sair. As pestes estão lá fora.
É só o que temos que cumprir.
J
OCASTA
Não, meu amor e senhor. o é o que temos que cumprir. É antes o que dizem que
temos que cumprir. Decifra-me ou te devoro. É por isso que fogem, que planejam
raptos, que não dormem com seus amores, que matam, que querem prever o futuro
para não se desligar do passado, que mandam até mesmo assassinar crianças,
pendurando-as pelos pés.
É
DIPO
Mas a criança devia ser morta.
J
OCASTA
Não. A criançao devia ser morta. Assim como meu antigo senhor não deveria jamais
ter sido meu senhor. Pois, sendo meu possuidor, foi também meu algoz. Traiu-me,
mentiu-me, raptou-me, para em seguida livrar-me da cegueira. E eu queria ser cega,
meu Édipo, como hoje sou contigo. Ainda te comportas como uma criancinha! Não
entendes que o que desejo é amar como tenho te amado. Assim o enxergo, assim
não vejo, assim me escondo da morte. E o amor verdadeiro pode nos dar a certeza
da eternidade. Nem que seja por um momento breve. Ilusão verdadeira, verdade
ilusória; justiça cega, cegueira que vê.
É
DIPO
Mas a criança devia ser morta, Jocasta.
J
OCASTA
Não, Édipo. A criança não devia ser morta. Mas estão todos os oráculos, está o
medo permanente de que as maldições sejam cumpridas. Não. Talvez a culpa o seja
de Laio, não seja minha, não seja de nada. Quem tem a culpa de sermos humanos? E
150
se não o fôssemos? Se fôssemos deuses? Qual seria a culpa que carregaríamos? A
de, ainda assim, continuarmos imperfeitos? Talvez a única culpa seja da palavra. Uma
palavrinha apenas: poder.
É
DIPO
O poder pode servir para...
J
OCASTA
Sim, meu tirano. Ele pode servir para muitas coisas. Pode servir para que, com medo
de que ele se vá, abandonemos a quem realmente amamos. O poder são os sussurros
que permanecem em nossos ouvidos.
V
OZES
Laio, teu amor por esse jovem é contra a natureza.
J
OCASTA
E Laio, saciado de culpa, essa culpa que nos arrebenta a todos, me indagava em sua
embriaguez, enquanto me estuprava:
V
OZES
Tu me condenas, Jocasta? Tu me condenas?
É
DIPO
Jocasta, pára, moralista. As coisas não são sempre assim. Temos que enfrentá-las.
J
OCASTA
É verdade, esposo atormentado. As coisas não são sempre assim. E ainda temos que
enfrentá-las aqui, porque a própria peste do que somos nos prende neste quarto. É
verdade. Na maior parte das vezes, as coisas são piores. Eu, a moralista! Os fatos são
ainda mais terríveis. Mas isso eu não posso contar. E temos que enfrentar, não é
mesmo? Não podemos sair deste quarto, deste palácio que fede. No entanto, as vozes,
as vozezinhas não se afastam.
V
OZES
Laio, vou te impor uma maldição.
Édipo, tu matarás teu pai.
Logo, desposarás tua mãe.
J
OCASTA
E, então, Laio finge, finge que o jovenzinho morreu, que o jovenzinho se matou. E,
então, Laio se casa com Jocasta. Mas o rapaz bonito não morreu dentro de Laio. E Laio
também não deixará de querer matar.
É
DIPO
Mas a criança tinha que morrer. Eu mesmo a mataria... Para não morrer e...
151
J
OCASTA
Sim, talvez o menino tivesse mesmo que ser sacrificado. Talvez devesse ser sacrificado
para que, mais tarde, o fosse ele quem sacrificasse. Mas nada disso importa, sabe
por quê? Porque as vozes ainda estão lá. E, não faz assim tanto tempo, na cidade de
Corinto, elas disseram: Édipo, tu matarás teu pai e te casarás com tua mãe. E, então...
É
DIPO
...e, então, Édipo abandona seus pais, abandona sua Corinto. Deixa sua cidade, todos
a quem amou até aquele momento. Tudo porque Édipo deve enfrentar o destino. Ele
deve lutar, Jocasta. Minha fuga só o que mostra é que busco escapar de meu destino.
J
OCASTA
Mais calma, insinuando-se para Édipo.
Bobagens, meu filho, bobagens. Muitas vezes, quando pensamos que nos
esquivamos dele, do destino, o encontramos de frente. Assim, Édipo: bem de frente.
Ele está lá, aqui.
É
DIPO
E, então? Deveríamos aceitá-lo? Mesmo que os resultados fossem trepidantes?
J
OCASTA
Não sei, meu jovem amante.
É
DIPO
Do que tentas me convencer é acreditar que deveríamos viver cada dia como se fosse
o último...
J
OCASTA
...e cada noite como se fosse a primeira.
É
DIPO
Como se não nos possuíssem.
J
OCASTA
E como se não possuíssemos ninguém senão a nós mesmos.
É
DIPO
Temos que ficar aqui, esperando que venha o dia. Isso é impossível, Jocasta.
J
OCASTA
Acariciando o rosto de Édipo.
Talvez seja mesmo, meu menino.
É
DIPO
Mesmo desinteressado, Édipo se deixa enredar. Mas, logo, afasta-se.
O que é isso, Jocasta?
152
J
OCASTA
Como posso saber?
É
DIPO
Desenlaçando-se de Jocasta.
Espera. Ouve. É o povo! Não!
V
OZES
A arena já foi montada.
De um lado, o mito encenado.
De outro, a cena mitificada.
Misérias, arfares e tesouros.
Quanto mais vêem
Mais cegos estão.
Não importa a noite.
O homem já não pode deixar seu bastão de lado.
A mulher sabe sempre o que a luz do dia irá trazer.
Sempre sombras.
A peste vai tomar a cidade,
As crianças alimentarão os vermes.
Sempre sombras.
É
DIPO
O que querem dizer com isso, Jocasta?
J
OCASTA
Que a criança não devia morrer, que aquela minha criança não devia morrer.
É
DIPO
Como não devia morrer? A criança precisava morrer.
J
OCASTA
Para quê? Para que o destino não se cumprisse? Mas outro destino se cumpriu. Outro
destino matou Laio. Um assaltante que talvez tenha assaltado o próprio destino, criando
um outro em seu lugar. Não. O filho de Laio não matou Laio. Porque ele, Laio, o
assassinou antes. Assim também, é bem provável que tu não mates teu pai, que ele
morra depois que alguma esfinge nos mastigue. Decifra-me ou te devoro. Isso sim é o
que estamos destinados a escutar sempre.
É
DIPO
Então, se tu mesma acreditas que isso é o que iremos sempre ouvir, que essas são as
vozes que sempre irão nos durar na memória, como deixar este lugar? A peste,
fora...
153
V
OZES
Amando.
Deixando que os corpos se enfraqueçam ao toque de outros corpos,
Que bocas encontrem bocas,
Salivas se misturem,
Suores sejam lambidos por línguas amorosas.
Seduzido, Édipo se entrega.
J
OCASTA
Sim, meu Édipo.
É
DIPO
Não, minha Jocasta.
J
OCASTA
Só assim, meu amo e senhor.
É
DIPO
Nem assim, minha amada senhora.
V
OZES
Sedes que encontram sedes.
Fomes que buscam fomes.
Vales de carnes macias.
Alvuras imaculadas.
A luz vai caindo até o escuro se tornar completo.
J
OCASTA
Mais assim, meu breve atormentado.
É
DIPO
Menos, minha tormenta eterna.
J
OCASTA
Sempre assim, meu destino irremediável.
É
DIPO
Nunca assim, minha cegueira irreparável.
V
OZES
E, depois de corpos terem sido encontrados em outros,
Bocas em outras bocas,
Salivas misturadas,
Suores sugados,
Saber que o paraíso é desarmonia:
154
Vive da sede,
Vive da fome,
Vive à míngua.
Silêncio. Música por alguns instantes. Em seguida, a luz foca levemente a cama. Nota-
se que Jocasta e Édipo acabaram de fazer sexo. Estão alegres, felizes.
J
OCASTA
Ai, meu amor! Ai, meu amor! (no último, fazendo umas cócegas em Édipo) Ai, meu
amor!
É
DIPO
Sentindo as cócegas.
Ai, meu temor!
J
OCASTA
Suado assim, vermelho assim, com esse ar tão sacana, tu ficas tão lindo.
É
DIPO
E tu te pareces mais a uma esfinge.
J
OCASTA
O quê?
É
DIPO
Sim. Uma esfinge. Um monstro fabuloso, com esse corpo, garras e cauda de leão, essa
cabeça mitológica de mulher, umas asas de águia e unhas de harpia, propondo
enigmas aos que passam e devorando quem não os consegue decifrar. Uma cadela!
J
OCASTA
Ah!, é. Então, vamos lá, meu fugitivo complexado.
É
DIPO
Vamos lá, aonde, Jocasta?
J
OCASTA
Vamos lá! Vamos ver se tu decifras meus mistérios. Anda, decifra-me ou te devoro.
É
DIPO
Vai, então. Anda, dona Jocasta. Vai.
J
OCASTA
O que é o que é que cai em pé e escorre deitado?
155
É
DIPO
Ah, meu bem. Esta é fácil. Esqueces que decifrei enigmas mais tortuosos? É a
chuva, minha doce, que cai em e escorre deitada, assim como tu estás agora,
entendeste? Por favor, Jocasta. Aumenta um pouco o grau de dificuldade.
J
OCASTA
Então, vamos. Por que os homens não têm nenhuma crise na fase madura?
É
DIPO
Boa, minha égua de Tebas. Muito boa, essa. Trata-se de um enigma sibilino,
meandroso. Mas, ainda assim, fácil. Para decifrá-lo, basta pensar com a cabeça de
mulheres com mais de quarenta anos, não é mesmo, meu bem? E a resposta é óbvia.
Os homens não podem mesmo ter crise alguma na fase madura porque não chegam
jamais à maturidade, não é mesmo?
J
OCASTA
Adivinhão. Tu és mesmo bom nisso, hein, meu Edipinho. Mas, agora, vamos ver como
tu te safas desta: quem é que dá luz ao cego?
É
DIPO
Luz ao cego?
J
OCASTA
Isso mesmo.
É
DIPO
Como luz ao cego?
J
OCASTA
Isto: quem é que dá luz ao cego?
É
DIPO
Deixe-me pensar, Jocasta.
J
OCASTA
Anda logo: quem é que dá luz ao cego? Anda: quem é que dá luz ao cego?
É
DIPO
Calma, minha aurora.
J
OCASTA
Falando rápido.
Quem é que dá luz ao cego? Quem é que dá luz ao cego? Quem é que dá luz ao cego?
É
DIPO
Luz? Ao cego?
156
J
OCASTA
Tu não disseste que és o melhor vidente? Então, vamos lá. Rápido, meu feiticeiro.
(Falando rápido) Quem é que luz ao cego? Quem é que luz ao cego? Quem é
que dá luz ao cego?
É
DIPO
Não sei, Jocasta imprevisível. Nesta, tu me derrubaste. Vamos, diga logo: quem é que
dá luz ao cego?
J
OCASTA
Rindo e deitando-se, oferecida.
A mãe do cego.
É
DIPO
E tu, por acaso, és mãe de algum cego?
J
OCASTA
Nunca se sabe, meu amor. Nunca se sabe.
É
DIPO
Como nunca se sabe?
J
OCASTA
Nunca se sabe. Vem até aqui, vem. Olha a paisagem noturna. Muito pouco se pode ver.
Uma noite, faz tempo, eu estava aqui, neste mesmo lugar, mirando a paisagem
noturna. A cidade cheirava mal. Como cheira hoje. Era a peste. A esfinge no meio da
arena, na entrada da cidade, devorando os incautos. Ninguém se atrevia a enfrentá-la.
Tudo cheirava muito mal. Tebas estava perdida. Mas, na manhã seguinte, tu chegaste,
sem medos.
É
DIPO
Tu te contradizes.
J
OCASTA
Não, Édipo. Nunca se sabe. Nunca se pode saber. Sabe, naquela noite, eu olhava a
paisagem noturna e me lembrava de um Laio morto, ou de um Laio vivo e lascivo.
Como, então, naquela noite, eu poderia saber que, na manhã seguinte, minha vida
estaria mudada, a sorte de Tebas revertida. Eu, casada contigo. E, com o passar do
tempo, aprendendo a te amar.
É
DIPO
Não me amavas e me desposaste. É isto o que o se sabe? É isto o que querias me
dizer?
J
OCASTA
Claro que não te amava, meu bobinho. Claro que não te amava. Como poderia amar
um desconhecido? Alguém surgido da morte de uma esfinge.
157
É
DIPO
O dever te...
J
OCASTA
Repentinamente irada.
O dever não nos impõe nada. Absolutamente nada. Ou é possível obrigar um ser a
amar outro ser. O máximo que se poderia pedir seria tolerância. E eu não te amava.
Sabe o que eu era, depois da morte de Laio? Uma puta. Uma puta bem rampeirinha,
vulgar. Transando bem com todos e com todas, querendo vingar dentro de mim a
merda que é imaginar seu marido na cama com outro homem, fodendo lá com o
brinquedinho dele.
É
DIPO
Pára, Jocasta. Chega!
J
OCASTA
Beijando bem, sabia? Sabia que, aqui na minha cabecinha atônita, Laio e o jovenzinho
se beijavam bem? Com uma paixão enorme. Ai, que inveja! Mesmo sem ter visto, eu
podia sentir o fogo que consumia aqueles beijos. Ai! Eu também quis matá-lo. Queria
sufocá-lo na boca daquele rapaz morto. Fazer com que fosse perdendo o ar, perdendo
o ar, perdendo o ar. Então, quando soube que Laio tinha sido assassinado, quis eu
mesma ser aquele assaltante. Sim! Sou eu quem deveria ter-lhe enfiado o punhal.
É
DIPO
Nunca havias me falado assim, Jocasta. Eu...
J
OCASTA
Espera. Laio já está morto. E a criança também...
É
DIPO
Mas a criança devia morrer. Morrendo, cumpriu-se o destino.
J
OCASTA
Cumpriu-se? Não, meu menino, a criança não devia morrer. Para quê? Para quê se,
estando morta, vive mais que cada um de nós. Vive cada dia mais dentro de mim.
Entendes? Tu me entendes?
É
DIPO
Jocasta... Moralista...
J
OCASTA
Não. Tu não podes entender. Como talvez não possas compreender que eu mesma
deitei com Laio e o rapazinho diversas vezes.
É
DIPO
O que me dizes? Estás louca? Não poderias se...
158
J
OCASTA
Apontando para a própria cabeça.
Aqui, meu bonitinho: aqui. E muitas. Inúmeras, meu senhor rei de Tebas. E neste
mesmo quarto de onde tu dizes que não podemos sair. Eles fodiam bem. Eu ficava
vendo. Ah!, amor. Tu pareces aum personagem destas tragédias que levam agora
às arenas. Iludido. Bobinho. Tolo. Teatral. Não consegues imaginar? O pior cego, meu
amor...
É
DIPO
... é aquele que não quer ver.
J
OCASTA
Não, Édipo. O pior cego é aquele que quer ver. Mesmo não vendo, eu queria ver,
queria enxergar e não conseguia. Quanta angústia aqui. Nunca me acostumei com a
situação. Nunca. E é por isso que te digo: tu não podes me entender. Não poderás
jamais entender porque eu não te amava e depois te amei. Te amo. Mas, também não
sei porque, sabia que iria te amar, meu menino. Algo me dizia isso. Talvez quem possa
saber seja Antígona. Antígona com suas culpas que ainda a farão guiar os cegos. Estou
bastante certa mesmo.
Pegando um pedaço de pano e colocando no pescoço, como se se enforcasse.
Tu me trouxeste de volta aquilo que nem sei se tive. Poder ser mãe novamente. Até de
Antígona. Amar. Limpar meu corpo, mesmo que para isso ainda tenha que manchá-lo
ainda mais. É assim que eu creio: o amor é algo que só é verdadeiro quando construído
palavra por palavra. Lembra-te, Édipo: nada do que possamos trazer no peito poderá
nos revelar o que acontecerá amanhã, assim que o primeiro raio de Apolo iluminar esta
cidade.
A luz se apaga. Escuro total. Novamente, vozes.
V
OZES
Muitas vezes, muitas vezes, muitas vezes,
Para enxergar, para enxergar, para enxergar,
É preciso estar cego, estar cego, cego.
Luz sobre Jocasta que, sentada no chão, limpa os pés de Édipo e chora.
Para ver, não basta o dia.
Para cegar, não basta a noite.
Cordas e nós,
Varetas e mãos,
Pés e caminhos,
Corpos e precipícios.
Édipo se levanta, sentando-se na cama, enquanto Jocasta termina de acariciar seus
pés e se recompõe.
159
É
DIPO
Jocasta, lembra-te quando Antígona nasceu?
J
OCASTA
Sim. E o que tem isso?
É
DIPO
Nada. Ela era minha linda.
J
OCASTA
E então?
É
DIPO
Nada. São minhas lembranças. Posso até mesmo recordar o momento em que a
fizemos. Lembra-te? Tenho absoluta certeza de que foi naquele dia, o sol batia a pino.
Cheguei em casa e tu ainda dormias. Nua, completamente nua. A escrava andava na
ponta dos pés e deixamos que ela visse, que ela visse tudo. Com o olhar, permitimos.
Lembra-te como a menina suava enquanto olhávamos para ela e nos enlouquecíamos.
Ela ia sair e tu ordenaste...
J
OCASTA
Fica!
É
DIPO
E, então, ela veio, tremendo. Sentou-se na cama. Tu olhavas a pobrezinha nos olhos.
Ela suando e tremendo. Vermelha. O sol dardejando através das cortinas. Eu, tu,
nossos frêmitos. (mudando o tom) Tu eras como uma escrava, vendo, em tuas
fantasias, Laio e seu rapazinho?
J
OCASTA
O que queres? Desejas repetir. Mando chamar a melhor de tuas escravas agora. E tu,
então, farás como daquela vez. Cavalgando-me. Montando esta potra de nácar. Se
queres, mando acordar uma agora mesmo. Vamos! Vamos! Quem sabe não fazemos
até outra menininha para a tua horda, para o teu clã?
É
DIPO
De onde vens com isto? não temos... Ou melhor, minha vaca de Tebas, te esqueces
que tunão tens mais a pingadeira rubra a escorrer-te pelas tetas? Já não podes mais
amamentar, minha boa. não podes, como pouco me convidavas, dizer-me assim
(imitando Jocasta): Vem, filhinho, mama na mamã.
J
OCASTA
E tu bem que gostavas, hein! Como ainda gostas.
Retirando o seio e insinuando para Édipo, como se amamentasse.
Mama cá, benzinho. Mama na tua mulherzinha. Nessa mulherzinha que, sem ser
Penélope, aprendeu a te esperar. Desde antes, desde muito antes te aprendeu a
esperar. Desde além disso, quando os fios talvez nem mesmo existissem para que
160
pudéssemos tecê-los e destecê-los. Desde quando estes peitos ainda não haviam
sentido a dor do sangue que esperava ser chupado. Queres? O que queres, meu tirano
que, julgando tudo saber, de nada sabe? Meu tirano lindo que...
É
DIPO
Recuando.
Pára, Jocasta. Pára. Não podemos sair daqui. Temos que esperar o dia.
J
OCASTA
Não paro, Édipo, o paro. Reparas que não posso chamar-te lindo? Que não posso
chamar-te meu amor? As palavras amorosas são para ti um estorvo. Não posso jamais
dizer: amor, carinho, fofo, gostoso, lindo, terno, gentil, guapo, tesudo.
Raivosa.
Sim, meus peitos podem não ter mais o leite puro com o qual Antígona e toda tua horda
se empanturraram, quase me deixando seca, mirrada, murcha. Mas aqui dentro
(mostrando os seios) ainda há sangue e verdade. Não a tua verdade. Sabes por
quê?
É
DIPO
Tudo o que dizes não é verdade, Jocasta.
J
OCASTA
Não é verdade? Como não é verdade? Ou o que é a verdade? A tua verdade poderosa,
com a qual soubeste enganar a esfinge? (mirando o céu) Ah!, meu Apolo! Como
pudeste deixar que tua esfinge fosse enganada? Apolo meu. Meu deus Apolo e belo,
que amanhã virás com teus cegos para anunciar tuas mentiras. Tu sabes que não és
mais do que somos nós. Nem menos. (Dirigindo-se, agora, a Édipo) Mesmo tendo os
pés tortos, tu, Édipo, saído do ventre da terra, queres ser um Apolo. Não é mesmo,
Édipo, não é verdade?
É
DIPO
Blasfêmias, Jocasta.
J
OCASTA
Loucuras! Pragas? Vem, meu amo. Agora sou tua esfinge. Aquela a quem podes
enganar e, logo, enforcar. Embaçando tudo como a noite fora ilude a verdade trágica
que nos irá colocar a cada um de nós no lugar verdadeiro da ignorância. Talvez
saibamos mesmo de tudo. Talvez...
Mudando de idéia. Brusca.
Anda, Édipo: vai! Decifra-me ou te devoro! O que é o que é que pela manhã tem quatro
patas, quatro patas que rastejam como os homens e mulheres que fomos e que não
necessitavam esconder o sexo porque andavam de quatro? Anda, responde quem é
esta criatura, esta criança cega, dependurada nas mãos da árvore parteira, cega na
arrogância paterna, ainda mais ofuscada pelo desleixe materno. Anda, responde.
É
DIPO
Esse enigma já foi respondido. E é por isso que Tebas hoje está salva e...
161
J
OCASTA
O quê? Sepossível? É por isso também que estamos presos aqui, neste lugar? Será
mesmo possível que não sentes o cheiro repulsivo da Tebas que se dilacera lá fora? Da
cidade que o que quer é justiça. Não a justiça que foi feita, mas aquela que não te
fizeste a ti. Anda, meu amado. A ironia está quase perto de nós. posso mesmo vê-la
bater à porta. O dia vem com Apolo. Responde. Sou tua esfinge. E, pela tarde, quem
é mesmo que anda com duas patas, tendo aprendido a se levantar? A fazer as coisas,
a ser um homem e uma mulher sabedores, criando fatos, manufaturando eventos,
realizando artefatos, obrando coisinhas. Quem é, anda, responde quem é?
É
DIPO
Jocasta, estás alucinada. Pára com isso.
J
OCASTA
Não paro. Ao menos soubeste enganar. E conheces bem a resposta deste enigma:
quem, pela manhã, anda como cães?; pela tarde, como os cães também, embora
adestrados?; e, pela noite, quem é, quem é que anda com três patas? Filho, marido,
irmão, amor, dor, cegueira, pai, fruto. Ai, se pelo menos fôssemos es... Presos, aqui,
neste canil de mundo. Cego! Não enxergas?
É
DIPO
Pára, Jocasta. Pára com tuas estórias. Eu não estou cego. Posso muito bem ver tudo a
meu redor. O que tramam, o que escondem, o que conspiram. Amanhã vão querer o
poder que temos. Tudo o que temos.
J
OCASTA
Não paro, Édipo. o paro. Tu, antes, é que devias haver parado. Sofista. Tirano. Puto.
Quem é este homem? Enganaste a esfinge. Mas a mim não me enganas. Anda.
Responde quem é esse homem? Responde. Responde logo, porque o dia já vem.
A luz se apaga novamente. As vozes vêm.
V
OZES
Pensa bem, anda, pensa bem.
O que farias, se te dissessem agora,
Como disseram a ele,
Que irias matar teu pai?
Pensa bem, anda, pensa bem.
O que farias, se te dissessem agora,
Como não disseram a ela,
Que irias gozar com teu filho?
Cegarias teus desejos,
Enforcarias tuas palavras,
Matarias teu próprio filho?
Pensa bem, anda, pensa bem.
A luz se acende. Num canto do palco, Jocasta está pendurada, enforcada. Édipo
atravessa o palco guiado por uma vareta de cego. Novamente a luz se apaga.
162
V
OZES
Pensa bem, anda e pensa bem.
A um canto, agachado como se fosse uma coruja, está Édipo. Jocasta está do outro
lado do palco.
É
DIPO
Tu és louca. Louca, é isso o que és. O único que quero, o único que buscamos, mulher
covarde, é enganar a morte. que, para enganar essa velha que corta o fio da vida, é
necessário pagar um preço. No meu caso, o preço foi fugir. Fugir para longe, para que
o próprio destino não me abraçasse.
J
OCASTA
E tu achas mesmo que é possível enganá-lo?
É
DIPO
Não sei. Mas tu, o que crês? Como pensas ludibriá-lo?
J
OCASTA
Já passei por tudo. Não tenho cordas a cortar.
É
DIPO
Como o tens? Teria sido Laio, teu ex-senhor, por acaso?, quem tomou a criança em
suas próprias mãos e a deu ao criado dizendo: Leva para longe e mata. Assassina.
Deste-lhe o punhal? Pensaste se a arma estava bem afiada, se a lâmina penetrava com
facilidade e, assim, o infante sofreria menos? Ou querias que ele se purificasse com a
dor? Confiavas bem no pastor ao qual entregaste teu rebento? E ele, o que tal homem
te disse? Olhaste-o nos olhos? Olhaste-o segura nos olhos? E o menino? Chorava
quando foi entregue para morrer? Sentia fome? Será que não queria estes teus seios
moles para mamar? Quem sabe até não morria engasgado?
J
OCASTA
Babaca!
É
DIPO
Na época, creio eu, estes teus peitões deviam estar bem cheios. As mamas
abarrotadas de leite deviam te doer muito! Ou não era leite, mas sangue? O que fizeste
para aplacar tua dor? Deste as tetas enormes a Laio e ao rapazinho suicida, durante
orgias em que esse mesmo leite, ou sangue!, era misturado ao vinho? Embriagaram-se
até a última gota quando o criado voltou dizendo:
V
OZES
O serviço está completo, minha boa tirana!
J
OCASTA
Pára, Édipo. Não sejas cruel. Pára.
163
É
DIPO
Mas se a criança não devia ser morta... Não é isso o que achas?
J
OCASTA
A criança tinha que ser morta.
É
DIPO
Mas, agora, tu é que te contradizes. Anda, responde, oráculo maldito. Não é tempo
ainda de rolares pelo desfiladeiro. Responde:
V
OZES
A criança devia ou não ser morta?
J
OCASTA
Foi Laio quem ordenou.
É
DIPO
Mas foste tu, infanticida, puta, quem lavraste a sentença, entregando-a a um pastor
para que a assassinasse. Por que não a mataste tu mesma? Por que não a afogaste na
sala de banho? Por que não a deixaste nua ao lado da janela, tapando-lhe bem a boca
para que sufocasse de frio, fome e solidão? Se estivesse viva, não restaria à tal criança
senão vir ter com sua mãe e matá-la. Enforcando-a com as próprias mãos.
J
OCASTA
Chorando.
Pára, Laio. Pára.
É
DIPO
Agora, vejam só. Chama-me Laio! Escuta, este aqui que está a teu lado, que contigo
teve quatro filhos, que te fode nas noites em que queres ser fodida, que te leva aos
banquetes, que te satisfaz tuas orgias de velha que nunca aprendeu a amar, que te
deixa sentar no trono a seu lado, que aceita tuas doenças mentais sem reclamar, que te
enxuga as lágrimas, que há anos escuta teus delírios...
J
OCASTA
Pára, ofuscado. Pára.
É
DIPO
Sim, este aqui é Édipo. Sim. O Édipo fugitivo e ignorante. Aquele que abandonou
Corinto porque o oráculo lhe disse que ele iria matar seu pai e dormir com sua mãe.
Sou eu mesmo este Édipo. E realmente não sei aonde vou dar. Aonde tu vais dar.
Onde toda essa gente aí fora irá ter. Este cheiro terrível da peste. Não podemos, ou
não queremos sair deste quarto? A morte e tudo aquilo que nunca se saberá. Este aqui
é Édipo, e não raptou nenhum jovenzinho para ser amaldiçoado. Eu, Édipo, o único que
fiz para ser condenado foi ter nascido. Nada mais.
164
J
OCASTA
Acalma-te, meu lindo.
É
DIPO
Acalmar-me. Pois não és tu quem me quer fazer ver tuas verdades? Então, diz: por que
não deixar este lugar, este palácio? Por que não fugir? Para que a peste não venha nos
corromper? Mas se fomos corrompidos. E, agora, aqui, confinados, esperando o dia.
Para quê acalmar-me?
J
OCASTA
Sim, acalma-te. Quero apenas que tu...
É
DIPO
E, agora, por favor, não mintas. Eras tu quem, ainda pouco, me oferecias, em jogos
de sedução e sacanagem, teu peito murcho para que eu chupasse. Eras tu mesma
aquela quem brincava com meus temores. Rindo, burlando de minhas tragédias. Não
sabes que também eu quero ser o pior cego. Também eu quero ver. Quero enxergar e
não posso. Será tudo isso só pelo poder?
J
OCASTA
Não te digo isso, minha criança, minha criancinha. Só digo que te amo. Sempre te amei.
Até quando... E que estarei sempre a teu lado, não importa o que aconteça.
É
DIPO
Estarás comigo? Assim como estiveste com Laio, quando entregaste a criança ao
pastor?
J
OCASTA
Eu te amo.
É
DIPO
O amor, Jocasta. O amor é um mito. Um mito que não nos pode fazer melhores ou
piores. É apenas um mito, engendrado para que nos enganemos a cada curva do
caminho.
J
OCASTA
Então, meu querido, é nesse mito em que quero acreditar.
É
DIPO
Acreditar nele para descrer do mundo.
J
OCASTA
E para que tu também não sofras.
É
DIPO
Sofro por meus martírios. Sabes o que é sonhar todas as noites que se está dormindo
com a própria mãe, que se acabou de assassinar o pai?
165
J
OCASTA
Bobagens, meu filho, bobagens. Não vês que todos os homens, a maioria deles,
sonham, pelo menos uma vez na vida, que dormem com a mãe? Que fazem sexo com
a própria mãe! Pergunta a teus melhores amigos, àqueles que de nada sabem e que
são de tua inteira confiança.
É
DIPO
E tenho eu alguém que seja de minha inteira confiança? Estou só. Rei e só. Estamos
trancados, Jocasta. Presos!
J
OCASTA
Então, pergunta a qualquer um.
É
DIPO
A qualquer um. Ora, vejam. Se é nisso mesmo em que acreditas, Jocasta, vou te
revelar um outro pormenor. Uma coisinha à toa. Espero que não te assustes. Ah! Tu
não podes mais te assustar com nada. Já sabes de tudo, não é, sua cadela tebana? Já
viste as piores pestes. mandaste matar teu próprio filho. te entregaste a quem
não amavas. A ti posso revelar tudo, não posso?
J
OCASTA
Claro que podes, meu amor.
É
DIPO
E é mesmo para isso que esta noite nos servirá. Para que nossa intimidade me
conduza nos infernos que irão nos acolher. Que irão mesmo festejar a presença de
Édipo e Jocasta, tiranos de Tebas. Então, escuta e verás que ainda não sou tão cego
assim. No que se refere a minha mãe, meus temores são até brandos. Em meus
delírios, em minhas vigílias noturnas, quando te vejo dormindo emaranhada em sedas,
com alguma parte da tua alvura iluminando a escuridão do quarto, nessas minhas
noites passadas em claro, não penso que tu podias ser minha mãe e que eu te
despertasse afoita e a estuprasse violentamente. Não. Sabes o que imagino?
J
OCASTA
Diga-me, meu rei.
É
DIPO
Penso que o que queria mesmo era matar meu pai. Ele, aquele meu pai que me criou
com carinho e desvelo. Não sei porque, mas queria matá-lo, dando-lhe com o bastão
até rachar-lhe o crânio ao meio, como fiz com os assaltantes que barravam o caminho
na curvinha do estradão, na encruzilhada, antes mesmo de vir dar a Tebas.
J
OCASTA
Assustada.
O quê?
166
É
DIPO
Sim, Jocasta tirana. Não tens mais culpas que eu. É isto mesmo. Queria muito matar
meu pai. Estou seguro disto. Queria matar meu pai. Não posso entender o porquê disto
tudo. Mas queria matar meu pai. Quem é mais culpado? Tu, que entregaste teu primeiro
filho para a morte; ou eu, que sonho com a miséria parricida? Quem sou eu, Jocasta?
Quem sou eu?
J
OCASTA
Não, meu menino. Quem somos nós? É também o que me pergunto: quem somos nós?
É
DIPO
Existem respostas, tirana?
J
OCASTA
Claro que existem, meu rei, meu martírio, meu milagre, meus suplícios, minhas dúvidas,
meus caminhos, meu amor.
É
DIPO
Não. Não existem respostas.
Mais uma vez, Jocasta se insinua para Édipo.
J
OCASTA
Não. A única ignorância é o amor. É nele que nos cegamos. É por ele que estamos
aqui. É por ele que não queremos enxergar. Vem, meu amado, deita teu corpo junto ao
meu e esquece. Ama-me, Édipo. Quebra-me o corpo com o mesmo bastão com que
abriste a cabeça dos assaltantes do caminho, daqueles que não queriam te permitir
passar. Não foi para isto que vieste? Para me matar, para me moer de amor? Não
importam as culpas, não te deixes assustar pelos medos, não dês razões aos sábios. O
poder é teu. Não deixes que a luz entre jamais. Fecha bem as cortinas. Impede a
chegada de Apolo.
Jocasta vai despindo Édipo com furor. Ele cede.
E, agora, anda. Faz de mim o que quiseres. Vem, meu tirano e algoz. Meu puto, menino
que nasceu para ser meu homem. Vem, entra dentro de mim e me mata inteira. Vem,
enfia logo teu punhal.
É
DIPO
Não posso, Jocasta. Não posso mais com meu punhal.
J
OCASTA
Irônica.
Meu menino, estás cansado. Fatigado com toda essa gente fora, na tua cabeça. Isso
acontece. Não te importes.
É
DIPO
Meu Deus!
167
Mais uma vez, as luzes se apagam.
V
OZES
Pensa logo o que irás fazer
Quando tua espada não mais cortar,
Quando de tua boca não mais vierem alegrias,
Quando teus seios mirrarem.
Pensa logo, vem.
Pensa logo.
E bem.
Acende-se a luz.
J
OCASTA
Vem dançar, Édipo. Falta pouco para que Apolo comece a soprar a luz de todo
conhecimento. Vem, meu amado senhor de Tebas. Falta muito pouco para que a noite
adormeça. Esta noite, não vamos dormir.
É
DIPO
O que pretendes, Jocasta? Estou cansado.
J
OCASTA
Levantando-o da cama. A música começa a tocar.
Não, meu senhor. Hoje, devemos comemorar.
É
DIPO
Comemorar o quê? O odor pestilento que envolve a cidade? O que mais? As palavras
ternas que acabamos de nos dizer? A prole condenada que vaticinou o oráculo? Não
há o que festejar.
J
OCASTA
Sim que , meu amor. É preciso comemorar estarmos todos vivos, ainda com forças
para mentir.
Puxando Édipo com força.
Vem, vem dançar.
É
DIPO
Tu és mesmo a pior entre as piores. Queres me fazer de ridículo. É isto o que queres,
não é mesmo?
J
OCASTA
Ridículo. Por que ridículo?
É
DIPO
Como és cínica! Em tantos anos juntos, nunca dancei contigo. E tu sabes disso. E
conheces a causa.
168
J
OCASTA
Causa. Mas que causa?
É
DIPO
Cínica. Vil. Devias andar em matilhas. Ladrando, latindo, rosnando, uivando. Finges.
Finges inteiramente. Não vês o caráter que tens. Onde estão teus filhos, enquanto,
obstinada, zombas de teu rei e esposo. Não querem saber de ti. Jamais desejarão
saber de ti. Nem os vivos, nem o morto. És uma cadela vulgar. Nem a morte te salvará.
J
OCASTA
Não sei a que vens. Tu, fedelho mimado. Anda, põe-te de pé. Quero que bailes comigo.
É
DIPO
Irado e mostrando os próprios pés a Jocasta.
Não. Antes, olha para mim. Olha para estes pés. Estes pés tortos e inchados, furados
para que por eles possam passar as argolas dos forçados. Olha, anda, manda buscar o
aro grande. Não é isso o que desejas? Amarrar-me ao pé de ti?
J
OCASTA
Isso é o que tu pareces buscar. É o que tu pareces ter procurado a vida inteira. Alguém
que te acorrente. Uma mãe. E eu não estou aqui para isto. Para te subjugar.
É
DIPO
Mas não te furtas a me prender.
J
OCASTA
Como tu não te inibes em me manter cativa, aqui, neste palácio.
É
DIPO
O que queres é zombar de mim. Sabes bem que não posso dançar. Que rodar pelos
salões para mim seria tão desajeitado como tem sido rolar pela vida.
J
OCASTA
A vítima. Aqui temos a vítima.
Enchendo dois cálices de vinho e oferecendo um deles a Édipo.
Pelo menos isso merece uma comemoração, não é mesmo?
É
DIPO
Vadia. Decrépita. Sabes também que não bebo.
J
OCASTA
Sei. Claro que sei. Sei que não bebes porque o idiota que te falou que eras um
bastardo, que não foste jamais filho dos pais que te criaram, esse imbecil estava
bêbado, encharcado, avinhado como um poeta ou um general acostumado a olhar
sempre o próprio umbigo e a ganhar concursos patéticos. Tens que te tratar, Édipo.
Sabes por que, meu pobre? Um dia, tu serás esquecido. Ninguém se lembrade ti. O
mar naufragará esta nossa terra. Só os peixes voltarão a enxergar.
169
É
DIPO
O quê?
J
OCASTA
É preciso que, muito urgentemente mesmo, te internes em termas, num balneário turco
qualquer. Quem sabe não te curam com umas águas milagrosas? Banhos que te
expurguem a sujeira desse corpo imundo, dessas tuas mãos sangrentas e dessa tua
cabeça vazia. Anda, brinda comigo ao que irá amanhecer.
Jocasta toma a taça e, à força, faz com que Édipo a beba.
J
OCASTA
E agora? Estás melhor? O vinho serve para esconder as culpas. Bebe, bebe mais,
bebe.
Jocasta enche a taça e novamente faz com que Édipo a beba de um só trago.
Bebe e verás. Verás que, pelo menos até a aurora, estarás bem escondido atrás desta
verdade. Toma, toma mais. Embriaga-te.
Édipo enche sua taça e a bebe mais uma vez. E de novo.
J
OCASTA
Estás gostando. Agora vês o que perdeste todos estes anos. Como poderias teres te
aliviado da vontade de matar teu pai, do desejo de estuprar tua mãe.
É
DIPO
Queria mesmo era me matar puta velha! Velha! Piranha velha e acabada. Bagaço.
J
OCASTA
Ah! O efeito te sobe e suaviza a consciência. Te põe mais imoral. Mas isso será por
pouco tempo. Por muito pouco tempo. Logo, outra verdade será anunciada. E, em
seguida, mais outra e outra e ainda muitas mais. O tempo está perdido, até que
resolvamos dar fim a ele. E isso, nós mesmos podemos fazer. Podemos até nos matar,
sabias? Mas, agora, vem. Me estupra, como fez Laio. Faz comigo o que sempre
quiseste.
Édipo começa a rasgar as roupas de Jocasta. A transa é alucinada e violenta.
Isso. Não é assim que querias? Faz com ardor. Faz, indecente. Menino pornográfico.
Machuca, anda, machuca a tua velha. Mutila. Arranca os pedaços. Incendeia tua febre.
Bate. Anda: bate. Enforca!
Apagam-se as luzes.
V
OZES
Pensa e anda.
Pensa e faz.
Pensa bem.
Pensa aquém.
Pensa além.
Não penses mais.
170
Penumbra. Jocasta e Édipo extenuados.
É
DIPO
Jocasta. Não posso te entender. Num instante...
J
OCASTA
...num instante viva; no outro, morta.
Como se falasse para outra pessoa.
Toma, pastor, eis aqui meu filho. Eis aqui meu filho para que o sacrifiques.
É
DIPO
Mas a criança devia ser morta, Jocasta.
J
OCASTA
Não. Hoje a coisa não é assim mais. Não vês que por ti sou capaz de qualquer coisa.
Que por ti sou capaz até de me enforcar. Olha bem para mim. A mãe que querias é esta
que aqui vês. Esta tua fêmea que usou o amor para acabar com aquilo que leva aqui
dentro.
É
DIPO
Calma, minha rainha atormentada.
J
OCASTA
Como calma?, se Apolo anuncia suas primeiras luzes. Mas, talvez, as luzes de Apolo
venham para revelar a escuridão em que vivemos. Quem sabe aquilo que vivemos
agora, na penumbra deste quarto, entre lençóis suados, almofadas atiradas, vestidos
rasgados, quem sabe não seja tudo isto a verdadeira luz?
É
DIPO
Uma penumbra que descobre...
J
OCASTA
... e um clarão que ofusca.
Jocasta se dirige à janela.
J
OCASTA
vem um dia, Édipo. Mais um dia. E, com ele, chega também o imprevisível, com o
qual deveremos aprender a viver.
Ruídos vêm de fora. O dia começa a clarear.
É
DIPO
Jocasta, o que são esses rumores?
J
OCASTA
São teus filhos, meu amado.
171
É
DIPO
Como meus filhos?
J
OCASTA
Teus outros filhos, Édipo. Aqueles sobre os quais teu poder se exerce.
É
DIPO
Para que vêm, Jocasta?
J
OCASTA
Dissimulada.
Estarei a teu lado, te cuidando como sempre te cuidei.
É
DIPO
Mas que filhos são estes, minha senhora? São apenas crianças, Jocasta.
J
OCASTA
Teus filhos de Tebas, teus filhos do mundo.
É
DIPO
Mas se nem os identifico. São muitos, são infinitamente muitos.
J
OCASTA
Sim, são muitos. E são todos teus filhos. Homens e mulheres do teu clã. Contigo,
compartilham a mesma dúvida.
É
DIPO
Que dúvida, minha tirana?
J
OCASTA
Não sabem quem são.
É
DIPO
Nenhum deles?
J
OCASTA
Nenhum deles, meu pequeno.
É
DIPO
E por que vêm?, se Apolo mal atirou suas primeiras setas. Se também eu não sei quem
sou.
As luzes começam a ofuscar os olhares de Édipo e Jocasta, direcionados em direção a
estas mesmas luzes.
Por que vêm, Jocasta?
J
OCASTA
Vêm por causa da peste. E para que tu decifres o enigma tantas vezes repetido.
172
A luminosidade, agora, cega completamente.
É
DIPO
E eu decifrarei este enigma, Jocasta? Saberei quem sou?
J
OCASTA
Não.
É
DIPO
E eles, minha tirana? Eles saberão quem somos?
J
OCASTA
Também não, meu Édipo.
Apaga-se a luz repentinamente. Escuro total, depois de uma claridade que cegava.
V
OZES
Não é bastante falar.
Não é bastante viver.
Não é bastante pecar.
Não é bastante perder.
Não é bastante ganhar.
Não é bastante morrer.
Não é bastante andar.
Não é bastante entender.
Não é bastante parar.
Não é bastante sofrer.
Não é bastante não crer.
Não é bastante pensar.
173
ANEXO A – VASILHA COM FIGURAS VERMELHAS
Figura 1: Vasilha com figuras vermelhas – 440 a.C.
Fonte: Museu Municipal de San Gimignano
http://www.artehistoria.com/historia/obras/8035.htm
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