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CLÁUDIA DE ALMEIDA PONTES
Causos que a vida conta
Estratégias narrativas no causo popular oral: um gênero
mantenedor da cultura, das crenças e dos costumes
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
parte dos requisitos para obtenção do grau de
Mestre em Língua Portuguesa, elaborada sob
a orientação do Prof. Dr. Marco Antônio de
Oliveira.
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Belo Horizonte
2006
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2
Dissertação defendida publicamente no Programa de Pós-graduação em Letras da PUC
MINAS e aprovada pela seguinte Comissão Examinadora:
_______________________________________________________________
Profª. Drª. Carla Viana Coscarelli
(UFMG)
_______________________________________________________________
Profª. Drª. Jane Quintiliano Guimarães Silva
(PUC MINAS)
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Marco Antônio de Oliveira – Orientador
(PUC MINAS)
Belo Horizonte, 19 de Maio de 2006.
Prof. Dr. Hugo Mari
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Letras
da PUC MINAS
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3
À minha mãe, que, mesmo em um outro
plano, foi responsável por este sonho que
se tornou realidade.
Mãe, esta conquista eu devo à Senhora.
Muito obrigada!
4
A
GRADECIMENTOS
A Deus, Senhor de infinita bondade, que acalentou minha alma e acalmou meu
coração nos momentos de fraqueza, dando-me esperança e fé na vitória;
A Patrícia (ETA), por ser o espírito de luz que é, e em sua sabedoria, me acolher, me
confortar, me encorajar e, acima de tudo, me entender nos momentos mais difíceis
desse processo; às minhas irmãs, Gleicimar e Líliam, tão queridas, por acreditarem
que sou capaz; à D. Lúcia, pelos cuidados e carinhos de mãe; à tia Sônia, por ser,
incondicionalmente, feliz com a minha felicidade e, mais ainda, com as minhas
conquistas. Vocês são a força e a luz da minha vida.
Ao Prof. Dr. Marco Antônio de Oliveira, por me ajudar a fazer da fantasia a realidade,
a tornar o abstrato concreto, e que, com sua sabedoria e domínio, me conduziu para
o teor lingüístico deste trabalho;
Ao Prof. Dr. Milton do Nascimento, com quem aprendi a ver a linguagem com outros
olhos e, nesse novo olhar, me deixar seduzir e embrenhar nos estudos lingüísticos;
À Prof. Drª. Maria de Lourdes Meirelles Matencio, por me fazer entender que o
processo é doloroso, mas que é no incessante (re)textualizar que avançamos em
nossos propósitos;
À Profª. Dra. Jane Quintiliano G. Silva, pelo carinho com que me acolheu e pelas
colaborações preciosas, responsáveis pela origem deste trabalho;
5
Aos demais professores da PUC-MG, em especial a Hugo Mari, Paulo Mendes,
Johny Mafra e Vanda Bittencourt, que tanto me acrescentaram, em tantas áreas do
estudo lingüístico;
Aos funcionários da Secretaria do Mestrado, em especial a Berenice, Vera, Rosária
e Paulo, pela presteza e gentileza com que sempre me atenderam;
À amiga/mestra Ana Carolina Aderaldo, que tanto me incentivou a fazer o mestrado,
que me ajudou a dar os primeiros passos, e em quem me espelhei para a
construção deste trabalho; À amiga “Rô”, pelas valiosas palavras de conforto e
incentivo. Jamais esquecerei o apoio que vocês me deram;
À Fernanda Coelho e Miriam Lemos, por partilharmos cada momento de angústia e
de alegria na elaboração de nossos trabalhos, e nesta troca deixarmos nascer um
belo e, com certeza, eterno laço de amizade;
Aos colegas do Mestrado, principalmente Anita, Daniele e Elaine, pelas discussões
preciosas nos momentos de estudo;
E, é claro, aos vários contadores, que me receberam com tanto carinho e com tanta
presteza para a constituição do corpus, principalmente a Tia Selma, colaboradora
maior nos Causos narrados.
6
L
ISTA DE
Q
UADROS
QUADRO 1
Gêneros Textuais do “domínio discursivo” ficcional .........................
61
QUADRO 2
Plano geral do Causo nº 3, suas fases e seqüências ......................
143
QUADRO 3
Plano geral do Causo nº 6, suas fases e seqüências ......................
161
QUADRO 4
A interdependência dos níveis de organização do Causo ...............
186
QUADRO 5
Dados recorrentes na constituição textual dos Causos ...................
187
7
S
UMÁRIO
RESUMO ...........................................................................................................................
10
ABSTRACT .......................................................................................................................
11
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................
12
CAPÍTULO 1: “O meu pai dizia...” O Causo na organização da sociedade: história,
tradição, crenças e costumes ........................................................................................
23
1.1 O Causo e a Sociedade .............................................................................................. 23
1.1.1 Memória Coletiva: lugar de conservação da tradição .............................................. 27
1.2 O Causo como um “costume/ “comportamento cultural” humano ...............................
31
1.3 A contribuição dos Causos para uma conduta socialmente organizada .....................
36
1.4 O Causo na relação entre linguagem e sociedade ..................................................... 39
1.5 Considerações parciais ...............................................................................................
40
CAPÍTULO 2: “Minha mãe contava um Causo...” A respeito das teorias textuais e
discursivas da narrativa .................................................................................................
42
2.1 Concepção de Linguagem e Língua: uma abordagem sócio-interacionista ................
42
2.2 A relação texto/ produção de sentido ..........................................................................
46
2.3 O conceito de Discurso ............................................................................................... 48
2.3.1 Discurso polifônico e interdiscurso: a heterogeneidade mostrada e constitutiva .....
50
2.4 Breve conceito de Gênero e Tipo Textual ...................................................................
55
2.5 A interação social nos Causos: um olhar pragmático ................................................. 62
2.6 Linguagem, História e Discurso na obra literária .........................................................
66
2.7 O Causo ...................................................................................................................... 70
2.7.1 A narrativa ................................................................................................................
72
2.7.1.1 Da configuração estrutural da narrativa ................................................................ 76
2.7.1.2 As categorias de pessoa, espaço e tempo na análise das narrativas ...................
77
2.7.1.3 Discurso da narrativa .............................................................................................
81
2.7.1.3.1 O tempo na narrativa: ordem, duração e freqüência ..........................................
83
2.7.1.3.2 O aspecto na narrativa .......................................................................................
87
2.7.1.3.3 O modo na narrativa ...........................................................................................
88
2.7.1.3.4 A voz na narrativa ...............................................................................................
91
2.8 Considerações parciais ...............................................................................................
95
CAPÍTULO 3: “Lá bem longe...” A estrutura narrativa e textual no Causo Popular
Oral ...................................................................................................................................
97
3.1 As noções de superestrutura, macroestrutura e microestrutura ................................. 97
8
3.2 A superestrutura no Causo ..........................................................................................
101
3.3 Marcas de superfície ...................................................................................................
114
3.3.1 Os mecanismos de textualização no Causo ............................................................ 116
3.3.1.1 A macroestrutura social: os Atos de Fala no processo de interação .................... 121
3.3.2 Os mecanismos enunciativos no Causo ................................................................. 127
3.3.2.1 Posicionamento enunciativo e vozes .................................................................... 128
3.3.2.2 Prosódia: uma marca de modalização ..................................................................
133
3.4 Considerações parciais ...............................................................................................
138
CAPÍTULO 4: “Oh! A gente num deve duvidá...” Estratégias narrativas no Causo
Popular oral: uma proposta de análise .........................................................................
139
4.1 Os Causos e seus contadores: breve contexto ...........................................................
139
4.2 A estrutura geral da narrativa dos Causos ..................................................................
141
4.2.1 Transcrição do Causo nº 3: A fé e a vara de goiabeira ............................................
142
4.2.1.1 Superestrutura: o plano geral da narrativa, suas fases e seqüências ...................
143
4.2.1.2 Mecanismos de textualização: a coesão verbal na narração ................................
148
4.2.1.3 Mecanismos enunciativos: as vozes e a prosódia ................................................ 152
4.2.2 Transcrição do Causo nº 6: A felicidade está dentro de nós ....................................
160
4.2.2.1 Superestrutura: o plano geral da narrativa, suas fases e seqüências ...................
160
4.2.2.2 Mecanismos de textualização: a coesão verbal na narração ................................
163
4.2.2.3 Mecanismos enunciativos: as vozes e a prosódia ................................................ 165
4.3 Contador “nato” versus Contador “profissional”: interfaces .........................................
173
4.4 Considerações parciais ...............................................................................................
180
CONSIDERAÇÕES FINAIS: “Bom, vô contá pro’ceis...” Os resultados da pesquisa ...
185
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................
188
ANEXOS ...........................................................................................................................
194
9
... falar é uma forma de fazer, a língua é uma
força ativa na sociedade, um meio pelo qual
indivíduos e grupos controlam outros grupos ou
resistem a esse controle, um meio para mudar a
sociedade ou para impedir a mudança, para
afirmar ou suprimir as identidades culturais.
Peter Burke
10
RESUMO
Considerando que contar (e ouvir) histórias – uma das mais antigas
formas de comunicação ainda se faz importante na formação dos indivíduos
de determinadas comunidades, e que é através dessa tradição linguageira oral
que contadores mantêm, ao longo do tempo, crenças e costumes, o presente
trabalho apresenta um estudo do causo popular oral, concebido como um
gênero no qual se pode perceber uma co-relação entre forma e função; entre a
língua e os efeitos de sentido que se pretende evocar e, assim, evidenciar a
questão da preservação dos valores de uma cultura.
Tal estudo preocupa-se fundamentalmente com a observação de
algumas características regulares do gênero em foco, quais sejam: os aspectos
superestruturais de configuração textual, no que se refere a estrutura narrativa
do gênero analisado; e das estratégias narrativas através dos aspectos
macroestruturais da composição textual do causo (relativos à coesão verbal)
bem como dos microestruturais do processamento textual (entendidos através
dos recursos de modalização (prosódia) e das vozes). Para isso, o quadro
teórico adotado arrola princípios básicos da Teoria da Narrativa de Labov e
Waletzky (1967) e do Interacionismo Sócio-discurso de Bronckart (2003).
Linha de Pesquisa: LP6 enunciação e processos discursivos.
PALAVRAS-CHAVE: Causos Populares Orais
Estrutura da Narrativa
Estratégias Narrativas
11
ABSTRACT
Considering that telling and listening to stories (some of the oldest forms
of human being communication) are still important in the individual formation
from certain communities, and also regarding that through this oral verbal
tradition, story tellers maintain beliefs and habits throughout the time, this work
presents a study of the oral verbal popular story (“causo”), conceived as a
gender in which it can be perceived a co-relationship between form and function;
between the language and the intended meaning effects and, thus, showing the
cultural values preservation.
The fundamental intention of this study is to observe some regular
characteristics of the gender in focus, which are: the super-structural aspects of
textual configuration, as for structure narrative of the analyzed gender; the
narrative’s strategies, through the macro-structural aspects of the textual
composition of the “causo” (related to the verbal cohesion), as well as the micro-
structural aspects of the textual processing (understood through the modeling
resources (prosody) and voices. For this purpose, the theoretical basis of this
research considered the Labov’s and Waletzky’s Narrative Theories basic
principles (1967), such as Bronckart’s Social-discursive Interacionism
fundaments (2003).
Research Area: Discourse articulation and its processes.
KEY WORDS: Oral Verbal Popular Story (“Causo”)
Narrative’s Structure
Narratives Strategies
12
INTRODUÇÃO: “CAUSO” DE UM OBJETO
A cabeça da gente é uma só e as coisas que há
e que estão para haver são demais de muitas,
muito maiores, diferentes e a gente tem de
necessitar de aumentar a cabeça para o total
(João Guimarães Rosa)
Assumindo com Bentes da Silva (2000:1) que responder à pergunta “por que estudar
histórias? não se revela uma tarefa fácil, se se considera “o volume de estudos sobre
narrativa acumulado até os dias de hoje”, ainda mais difícil é responder Por que estudar
causos?”. Com certeza, nada fácil, também. Começo, pois, a difícil tarefa de responder a
essa questão, assim como o fez Bentes da Silva (2000), apresentando uma história que,
acredito, contribui para o entendimento da minha escolha, em eleger o causo popular oral
como “corpus” de análise.
As maneiras de dizer as coisas
Certa feita, um sultão sonhou que havia perdido todos os dentes. Logo que
despertou, mandou chamar um adivinho para que interpretasse seu sonho.
- Que desgraça, senhor! Exclamou o adivinho. Cada dente caído representa a perda
de um parente de vossa majestade.
- Mas que insolente! - gritou o sultão, enfurecido. Como te atreves a dizer-me
semelhante coisa? Fora daqui!
Chamou os guardas e ordenou que lhe dessem cem açoites. Mandou que
trouxessem outro adivinho e lhe contou sobre o sonho.
Este, após ouvir o sultão com atenção, disse-lhe.
- Excelso senhor! Grande felicidade vos está reservada. O sonho significa que
haveis de sobreviver a todos os vossos parentes.
A fisionomia do sultão iluminou-se num sorriso, e ele mandou dar cem moedas de
ouro ao segundo adivinho. E quando este saía do palácio, um dos cortesãos lhe
disse admirado:
- Não é possível! A interpretação que você fez foi a mesma que o seu colega havia
feito. Não entendo porque ao primeiro ele pagou com cem açoites e a você com cem
moedas de ouro.
- Lembra-te meu amigo - respondeu o adivinho - que tudo depende da maneira de
dizer...
Um dos grandes desafios da humanidade é aprender a arte de comunicar-se. Da
comunicação depende, muitas vezes, a felicidade ou a desgraça, a paz ou a guerra.
(Autor desconhecido) (VIDAL, 2000).
Contar e ouvir histórias são ações linguageiras que não permitem acessos a
outras realidades, a outras épocas o que acaba por provocar um revigoramento no modo
como as pessoas (os ouvintes dos causos) concebem a atualidade na qual se vêem imersas
–, como, também, são fundamentais na formação dos indivíduos de determinadas
comunidades/sociedades. Esse antigo costume da humanidade é uma das mais antigas
13
formas de comunicação. Deve-se também considerar que as interações mediadas por ações
de contação de histórias, quase sempre, projetam posições de aconselhamentos e/ou
ensinamentos. Sabendo usar as palavras, valendo-se das “maneiras de dizer as coisas”,
tradições, crenças e costumes vão sendo mantidos, perpetuados ao longo do tempo.
A escolha do corpus desta dissertação, os causos populares orais, teve sua origem
em minha própria vivência, cuja infância, adolescência e fase adulta se deram, em parte, no
interior (na roça, como se costuma dizer) e, portanto, embrenhada em culturas bem
diferentes daquelas vividas na Capital.
Passar férias e feriados no campo era a certeza do encontro com aquelas figuras
(re)conhecidas como contadores de causos; aqueles que gostavam de uma ‘boa prosa’.
Momentos mágicos desses períodos de descanso, ouvir causos era não rir, assustar-se,
surpreender-se, mas, também, aprender. Aprender várias lições de vida, de conduta, de
comportamento. naquela época chamavam minha atenção os olhares atentos dos
ouvintes, a interação indiscutível entre o contador e sua ‘platéia’.
Hoje a expressão “contador de história” tem sido usada para designar todos os
contadores. Neste trabalho, porém, optei por usar a expressão “contador de causospara
aqueles que considero “contadores natos”, deixando “contador de história” para designar
aqueles que fazem um curso para se especializarem como tal.
A palavra ‘causo’
1
, acredito eu, coloca o contador mais próximo do público-ouvinte, já
que retrata a expressão viva da variação lingüística de vários interioranos e é nesse espaço
que se encontra, na maioria das vezes, a figura tão conhecida do contador (se não por
muitos, no mínimo pelos familiares e amigos). Essa colocação se faz relevante na medida
em que a localidade ou residência, de acordo com Keesing (s.d, p.372), “constitui um dos
princípios básicos da organização em todas as sociedades”, e é nesse espaço – interior dos
estados que esse sujeito, ainda, permanece. Ressalto, ainda, que a expressão causo”,
usada na unidade espacial-social mencionada, me parece, traz consigo a idéia de uma
história mais verdadeira, legitimada por quem a conta.
No passado, os contos populares referiam-se (ou pelo menos buscaram se pautar)
em fatos realmente ocorridos, mesmo que apresentados, por exemplo, sob as formas de
uma anedota ou proeza de pessoas particulares, visto que o importante era divulgar aquilo
1
A origem dos causos (casos) será tratada na seção 2.8 do Capítulo 2.
14
que “a história não registra e que o narrador quer dar a conhecer, a fim de conservá-los na
memória
2
dos homens” (MAGALHÃES JR., 1972:9). É assim que percebo o papel daquele
que ao longo do trabalho nomeio “contador de causos”.
Magalhães Jr. (1972) introduz uma discussão que me parece fundamental acerca da
oralidade e da escrita quando pondera que “às vezes, certas obras literárias, que causam
funda impressão, passam a ser narradas, oralmente, por leitores e, de tanto repetidas, por
terceiros, acabam sendo apresentadas como coisas acontecidas, isto é, desfiguradamente,
sem alusão às fontes” (op cit., 1972:108), o que impede, na minha visão, assegurar um
causo popular oral como uma narrativa de fatos acontecidos.
Ainda acerca da oralidade e da escrita, Ong (1998:19) propõe que se pensem dois
tipos de oralidade: a oralidade primária e a oralidade secundária. A primeira diz respeito à
“oralidade de uma cultura totalmente desprovida de qualquer conhecimento da escrita ou da
impressão”, e a segunda, “característica da atual cultura de alta tecnologia, na qual uma
nova oralidade é alimentada pelo telefone, pelo rádio e pela televisão ou outros dispositivos
eletrônicos, cuja existência e funcionamento dependem da escrita e da impressão”.
Zumthor (1993:18) propõe uma distinção entre três tipos de oralidade: i) a
primária, que não comporta nenhum contato com a escritura; ii) a mista, “quando a influência
do escrito permanece parcial e atrasada”; e, por fim, iii) a segunda, “quando se recompõe
com base na escritura num meio onde esta tende a esgotar os valores da voz no uso e no
imaginário”.
Tais constatações levaram-me a perceber que é muito difícil pensar em termos de
uma tradição puramente oral ou de uma oralidade primária de forma exata e significativa”,
como alerta Ong (1998), pois estamos impregnados pela escrita.
O causo popular oral será trabalhado, aqui, como um meio do qual, de geração a
geração, contadores se valem para manter sua cultura, seus costumes e seus valores. É
devido a essa posição que o objeto de estudo deste trabalho será constituído das
estratégias narrativas ali presentes.
Ao refletir sobre o ato de contar/narrar histórias, penso ser o ouvinte/interlocutor
quem determina a possibilidade de perpetuar essa tradição por estar inserido no meio
2
A noção de memória enquanto fonte de conhecimento e um importante elemento facilitador para a transmissão
de normas e condutas de geração a geração está sendo, aqui, pensada como Memória Coletiva, tal como será
demonstrado no capítulo 1.
15
cultural em que esse domínio discursivo se institui (em meio aos contadores). Assim, é no
texto e na forma de narrá-lo que o contador faz com que a comunidade ouça e assimile os
valores e os modos de conduta, o que me leva a supor que estratégias narrativas
peculiares aos causos”. Portanto, que estratégias narrativas são usadas por esses
contadores para alcançar os propósitos comunicativos que, certamente, eles pretendem
evocar?
Indo mais além, é possível pensar no fato de que narrar/contar histórias é uma
tradição linguageira oral que, até então, sempre aconteceu sem cursos, sem técnicas. Hoje,
no entanto, há cursos para profissionalizar “contadores de histórias”, o que me faz interrogar
se alguma diferença entre estes contadores e aqueles que sempre o foram sem, no
entanto, fazerem cursos. Tratar-se-iam de diferentes estratégias?
Para avançar nessa exposição, vale observar que, se assumo que falar é agir
socialmente, os propósitos comunicativos do contador certamente irão se manifestar nos
textos produzidos por ele, já que, de acordo com Bronckart (2003:39),
...é o agir comunicativo que, ao mesmo tempo que é constitutivo dos mundos
representados, é também o instrumento pelo qual as ações são delimitadas.(...) do
mesmo modo que a atividade social em geral pode ser tomada sob o ângulo
psicológico da ação, a atividade de linguagem também pode ser tomada, sob o
mesmo ângulo, como ação de linguagem, imputável a um agente, e que se
materializa na entidade empírica que é o texto singular. (grifos do autor).
Assim, nesse quadro de reflexão, parece-me razoável supor que a maneira como um
contador de causos mobiliza determinados recursos expressivos ou estratégias lingüísticas
para narrar estórias, os efeitos de sentido que tais recursos passam a exercer na interação,
revelariam a forma como o contador deseja que se estabeleça a interação.
Em outras palavras, acredito ser possível pensar na existência de uma correlação
entre as estruturas
3
lingüísticas que o contador utiliza e os efeitos de sentido que essas
estruturas podem evocar, o que permite supor que (em uma comparação feita entre um
causo narrado por um contador nato e um contador de história, a depender da estrutura
escolhida pelos contadores) não se pode afirmar que os causos sejam iguais; que foram
3
Segundo Barthes (1977:36), sem que se queira declará-las antagônicas, “a análise estrutural propriamente dita
aplica-se sobretudo à narrativa oral (ao mito); a análise textual, [...], aplica-se exclusivamente à narrativa escrita”.
Entendo que uma narrativa oral é também um texto, o que me leva a discordar de Barthes ao considerar que
existe análise textual para os textos escritos. Por isso, este trabalho será focado nos mecanismos enunciativos e
de textualização, de forma a focar as estruturas e os efeitos de sentido.
16
apenas (re)contados de forma diferente. Ainda nessa linha de raciocínio, julgo pertinente
supor que, por se tratar de causos populares orais, a correlação estrutura/efeitos de sentido
pode explicitar recorrências de estratégias narrativas que revelem a tentativa do contador
em seduzir/persuadir
4
o ouvinte e, conseqüentemente, estar mais propenso a atingir seu
objetivo.
Dessa perspectiva, considerando o contexto cultural e situacional de produção,
recepção e circulação do causo popular oral, bem como o agenciamento de estratégias
textuais e discursivas pelo contador, a problematização formulada a seguir pode indicar ao
leitor parte das reflexões feitas a partir do modo como o problema da investigação se
apresentou no projeto desta pesquisa: O que confere ao contador o domínio da arte de
contar, provocando no ouvinte a sedução do ouvir? Dito de outra forma, que estratégias
textuais-discursivas o contador utiliza para prender a atenção do ouvinte? Existem
diferenças nas estratégias utilizadas por um contador tido como nato” e um tido como
“profissional”? No causo, enquanto mantenedor da cultura e dos valores, os efeitos
pretendidos pelo contador são assegurados na elocução? Ou, melhor dizendo, as
estratégias utilizadas prevêem o objetivo maior do contador, que é o de tentar garantir que
os efeitos de sentido (aconselhamento, assunção de uma dada conduta, por exemplo)
previstos pela prática discursiva “causo’’ sejam efetivados ou contemplados?
Salientei anteriormente que o gênero causo oral se caracteriza exatamente por ser
uma narrativa que apresenta como propósito central a transmissão de saberes ou
experiências culturalmente validadas, e isso, ao que parece, é, apoiando-me em Benjamim
(2001), garantido na interação através do encantamento provocado no público-ouvinte que é
cativado e, sobretudo, convidado a compartilhar dessas experiências.
Portanto, investigar as estratégias narrativas, através das quais pressupõe-se que o
narrador prende a atenção do ouvinte, abre possibilidades para que se compreenda
sistematicamente o funcionamento e o processamento textual desse gênero. Essas
4
De acordo com Bastos (1912:1086), a palavra sedução vem do latim seductio e quer dizer atração, encanto,
fascínio. Seduzir, então, é atrair, fascinar, encantar o outro de tal sorte que o faça entrar no mundo da fantasia,
quase que sem perceber, pois à “realidade” contada não se pede provas nem justificativas. Em se tratando do
causo oral, comungo com Freitas (2002:149), ao dizer que sedução “é uma daquelas palavras indefinidas, mas
que despertam em cada indivíduo uma idéia, um sentimento, uma lembrança, um sorriso maroto, um desafio, um
preconceito, uma censura, um aplauso, uma curiosidade, uma fantasia ou um sonho”. Penso ser à partir dessa
“palavra indefinida” que se pode chegar à persuasão (concretude do que se quis seduzir), ou seja, que, ao
contrário do que pensam alguns autores, a sedução tem a finalidade de levar o ouvinte a se deixar persuadir, e é
dessa forma que torna-se possível manter as tradições e as culturas familiares.
17
estratégias serão entendidas, neste trabalho, sob duas perspectivas: como 1) construtos
estruturais, próprios do gênero e como 2) responsáveis por certos efeitos de sentido. Dessa
forma, entende-se que é a caracterização/dimensão estrutural das estratégias (1ª
perspectiva) que propiciará subsídios para uma efetiva análise da dimensão funcional (2ª
perspectiva). Com efeito, parece que contar causos não seria apenas narrar histórias, mas,
sobretudo, se valer da organização estrutural dos causos orais para contar histórias de
forma a suscitar no público-ouvinte um interesse tal que o envolva e o mantenha seduzido
pela própria atividade de linguagem em curso.
Assim, deixo claro que o objetivo central deste trabalho é identificar estratégias
narrativas, utilizadas por contadores, no causo popular oral, sob os aspectos de seus
construtos estruturais e funcionais. Penso que a partir da identificação dos três níveis de
estruturação propostos por Bronckart (2003:119-135) nível superestrutural de composição
textual, nível macroestrutural e nível microestrutural será possível entrever, nos textos em
análise, suas características mais recorrentes, podendo ser utilizada na compreensão tanto
do próprio evento de interação do qual tais textos emergem, quanto das funções
sociocomunicativas que esses assumem.
Em função do exposto, acredito que essas estratégias possam ser: i) textuais e
discursivas (evidenciam um saber de natureza lingüística e sócio-interacional dos sujeitos
que enunciam as narrativas), ii) sintáticas e iii) prosódicas.
A partir da definição do objetivo central, serão tomadas como dimensões de análise as
marcas de superfície (mecanismos de textualização e enunciativos) recorrentes no texto do
gênero causo oral; o funcionamento discursivo das marcas identificadas nos causos, em
termos da intenção do contador de prender a atenção do público-ouvinte; as diferentes
funções sociocomunicativas e os efeitos de sentidos provenientes das marcas de
interatividade; as estratégias que os contadores utilizam na narrativa para que possam
atualizar o causo de maneira a seduzir/persuadir os ouvintes e, dessa forma, tentar garantir
seus propósitos comunicativos; as estratégias narrativas utilizadas pelos “contadores de
história” em relação àquelas dos “contadores de causos”. É a partir dessas dimensões, ou
seja, da observância de traços lingüísticos, textuais e discursivos regulares na estrutura
textual do corpus, que proponho confirmar minha hipótese de que, tanto pelo viés literário
quanto lingüístico, o gênero causo popular oral tem uma função social.
18
Por fim, como assevera Orlandi (1989:9):
Dentre os aspectos situacionais e retóricos que constituem o funcionamento da
linguagem, estão os histórico-sociais, culturais e ideológicos. O que se observa é um
constante desenvolvimento de novas teorias e métodos de análise lingüística que se
propõem a levar em conta esses aspectos.
Considerando-se a natureza do objeto que é alvo dessa investigação (o causo) e do
objetivo da pesquisa (verificar as estratégias narrativas de que se valem os contadores), faz-
se necessário uma abordagem interdisciplinar, pois somente uma atividade conjunta poderá
possibilitar a realização deste trabalho. Além disso, como disse Possenti (1996:73),
“qualquer teoria do discurso deve tentar explicitar o papel dos fatores propriamente
lingüísticos, dos fatores pragmáticos e dos fatores históricos, que todos são relevantes
para a análise dos textos ou discursos...”.
Por essas razões, adoto como perspectiva teórica os estudos sócio-filosóficos,
antropológicos e etnometodológicos (parte não-lingüística), uma vez que tendem a
esclarecer a importância do causo como um reflexo da organização da Sociedade; e a
Lingüística Textual, a pragmática e o Interacionismo Sócio-Discursivo (parte lingüística),
teorias que considero como a “mola propulsora” deste trabalho. É nesta segunda parte, que
acredito poder encontrar subsídios teóricos e metodológicos que permitam identificar e
investigar alguns traços lingüísticos, textuais e discursivos regulares que me possibilitem
vislumbrar o gênero causo popular oral, em função da interdependência de seus níveis
estruturais, como um gênero que, seja pelo viés literário ou lingüístico, tem uma função
social.
De acordo com Aderaldo (2004:11),
... a questão dos gêneros textuais vem ocupando um importante lugar no campo da
Lingüística, que procura exatamente compreender a(s) maneira(s) como a atividade
linguageira se estrutura, que se tem como pressuposto que, ao produzir um texto,
o locutor necessariamente utiliza um (ou mais) gênero(s) textual(ais). Assim, em um
evento de interação, ao realizar atividades de linguagem ao utilizar a língua de
forma particular – , o locutor evoca práticas discursivas (mais ou menos ritualizadas,
cristalizadas no/por seu uso social e histórico) que se apresentam na constituição de
textos empíricos. Tais textos, por sua vez, assumem formatos e funções que lhe são
característicos, e que são determinados exatamente pelo evento, pelas atividades
lingüísticas e pelas práticas discursivas implicadas em sua produção.
Assim, o estudo aqui pretendido, mostra-se relevante na medida em que o causo
oral, principalmente por ser difundido, também, por contadores que vêm se
profissionalizando na arte e na agora profissão de contar causos, tem sido
19
constantemente (re)produzido a cada dia, e a investigação de estratégias narrativas na
atualização desse gênero pode vir a contribuir para o entendimento das práticas discursivas
das quais ele emerge.
A investigação proposta efetivou-se em um corpus originado de causos proferidos
por contadores considerados, neste trabalho, como “natos” – moradores das cidades de São
Bartolomeo, Itabirito e Moeda, cidades do interior de Minas Gerais –, coletados no período
de julho/2004 até abril/2005, e (re)contados por um contador de história profissional de Belo
Horizonte – MG.
Como disse Oliveira (1983:23):
Os fatos sociais não são coisas, mas, sim, o produto de ações humanas. Os homens
e as mulheres fazem a sociedade da mesma maneira que são feitos por ela. Somos
atores e protagonistas de nossa história da mesma maneira que somos definidos e
condicionados por ela. Dentro desta relação de interação, não mais lugar para
um pesquisador separado de seu objeto de pesquisa.
Embora este trabalho não possa ser considerado como legítimo representante de
uma análise qualitativa, essa abordagem contribuiu sobremaneira para a etapa da coleta
dos dados.
Minha opção por uma abordagem metodológica parcialmente qualitativa, que
privilegia a observação direta no espaço onde se desenvolveram as ações dos atores
sociais nesta dissertação, nas cidades do interior de Minas Gerais –, procura atender à
temática de estudo, ou seja, conhecer o lugar de onde o contador fala para que eu possa
entender a importância do gênero causo popular oral e, dessa forma, possa analisar as
estratégias utilizadas pelo sujeito contador, que fazem, desse gênero, um meio pelo qual
valores, crenças, costumes e tradições de uma comunidade sejam mantidos.
Na pesquisa qualitativa, segundo Bogdan e Biklen (1994:47), “o ambiente natural é
a fonte direta de dados e o pesquisador é o seu principal instrumento”, ou seja, o
pesquisador tem contato direto com o ambiente e a situação que está sendo investigada.
Essa atitude se justifica pelo fato de o contexto influenciar os fenômenos naturais. Como diz
em Lücke e André (1986:12), ...as circunstâncias particulares em que um determinado
objeto se insere são essenciais para que se possa entendê-lo. Da mesma maneira as
pessoas, os gestos, as palavras estudadas devem ser sempre referenciadas ao contexto
onde aparecem”.
20
Um ponto que me parece importante é a eleição da entrevista como principal
instrumento para a coleta de dados. Antes de começar, efetivamente, com a gravação dos
causos”, houve uma etapa de realização de entrevista semi-estruturada. Acerca desse tipo
de entrevista, Lücke e André (1986:34) nos dizem que ela se desenrola a partir de um
esquema básico, porém não aplicado rigidamente, permitindo que o entrevistador faça as
necessárias adaptações”. Além disso, sem a imposição de uma ordem rígida de questões, o
contador discorre mais livremente sobre as informações que ele detém e que são a
verdadeira razão dessa estratégia.
Se se consideram os causos como mantenedores da cultura e dos costumes de uma
comunidade e o contador um facilitador dessa manutenção, saber como ele começou a
contar causos, qual a influência de seus antepassados nessa questão, etc., são dados
relevantes para se entender o gênero textual e sua importância dentro da organização da
família ou da comunidade. Acredito que o entendimento do local/espaço de onde esse
contador fala, das crenças e das tradições que povoam seu imaginário, auxilia na análise
das estratégias utilizadas ao contar os causos, pois não considerar esses dados poderia
provocar uma espécie de (des)contextualização, já que os seres humanos vivem em um
meio natural e seu comportamento é influenciado por esse meio.
Tanto nas entrevistas como, também, durante a narrativa dos causos foi preciso
estar atenta não ao roteiro preestabelecido, mas, também, às respostas e ao ato de
contar. Durante a narrativa “há toda uma gama de gestos, expressões, entonações, sinais
não-verbais, hesitações, alterações de ritmo, enfim, toda uma comunicação não-verbal cuja
captação é muito importante para a compreensão e a validação do que foi efetivamente dito”
(LÜCKE e ANDRÉ, 1986:36).
Por precisar registrar todas essas expressões orais e corporais e, ainda, estar livre
para prestar toda atenção ao contador, optei por gravar e filmar as entrevistas. Sendo
conhecedora das desvantagens dessa forma de coleta de dados, ou seja, por saber que
nem todos se mantêm inteiramente à vontade frente a gravadores ou câmeras, sentindo-se
constrangidos, tentei conciliar a entrevista com a gravação/filmagem dos causos. Nas
gravações havia sempre a presença de várias pessoas, para que, ao começar a narrar, o
contador se sentisse num ambiente real de interação. Ele não estaria contando apenas para
21
um pesquisador, mas para um público de verdade, sendo esse um elemento facilitador,
também, nas entrevistas.
Enfim, foi pensando nessas questões que para proceder à análise dos textos, a
princípio, os causos (produzidos em situação real de interlocução por moradores das
cidades do interior, (re)conhecidos como contadores de causos) foram gravados, filmados e
transcritos. Acredito que em causos extraídos de livros não seria possível acessar gestos,
expressões faciais, tonalidade de voz, recepção dos ouvintes, enfim, tratando-se de
estratégias narrativas, todos os movimentos que permeiam o contar são de suma
importância. Portanto, fazer a coleta no ambiente natural mostrava-se mais produtivo e
coerente às minhas hipóteses de trabalho.
Depois de tudo transcrito, entrevistas e causos, solicitei a um contador de histórias
(“profissional”), que lesse alguns dos causos transcritos e os (re)contasse para outras
pessoas, a fim de gerar um novo corpus para posterior análise comparativa. Escolhi, devido
o propósito a que se presta esse “profissional” (geralmente entreter o público), gravá-lo no
ambiente da sala de aula, mais precisamente nas turmas de e anos do ensino médio
de uma escola da Rede Pública de Ensino onde leciono. O resultado foi muito positivo, no
que concerne ao processo de geração de dados.
A partir das filmagens e gravações, analisei de que forma(s) cada um dos contadores
(“nato” e “profissional”) mobilizou estratégias próprias na narração dos causos, concernentes
aos aspectos microestruturais, macroestruturais e de operações textuais e discursivas de
configuração interna dos textos.
Por fim, a partir da análise anterior, são observados os elementos recorrentes na
estrutura textual do corpus.
O modo como abordo esse gênero textual se no nível lingüístico-estrutural, ou
seja, interessa-me uma análise do corpus orientada pela identificação e classificação dos
aspectos superestruturais (as fases reconhecidas nas seqüências narrativas, assim como
nas seqüências descritivas e dialogais que as entremeiam) constitutivos de tais textos, para
que, em seguida, sejam igualmente identificados e classificados os seus aspectos
macroestruturais (as regras de organização geral do causo, a partir da coesão verbal
tempo, aspecto e modo) e microestruturais (o posicionamento enunciativo analisado a
partir do gerenciamento das vozes; e a modalização analisada a partir da prosódia).
22
Demonstrarei, também, que, a partir da observação dos elementos recorrentes nesses
níveis de estruturação textual, tais categorias se apresentaram como essenciais para a
investigação de traços de regularidade no corpus analisado.
No intuito de melhor expor o processo da pesquisa, este estudo está organizado em
seis capítulos. A introdução é dedicada, como se pôde perceber, a uma primeira
apresentação do objeto de estudo e da proposta desta pesquisa. No primeiro capítulo, o
causo é situado a partir de algumas contribuições teóricas advindas de outras áreas de
conhecimento (Antropologia, sócio-filosofia e etnometodologia) que apresentam estudos de
ordem social e histórica, importantes à compreensão da influência do causo na organização
da sociedade. O segundo capítulo trata, em um primeiro momento, das teorias textuais e
discursivas da narrativa, no escopo da sociolingüística, e, em um segundo momento, visto
que os causos são narrativas, expõe o quadro teórico utilizado na compreensão da teoria
narrativa. O terceiro capítulo ocupa-se dos aspectos superestruturais de configuração
textual, no que se refere a estrutura narrativa do gênero analisado, e das estratégias
narrativas através dos aspectos macroestruturais da composição textual do causo
(relativos à coesão verbal) bem como dos microestruturais do processamento textual
(entendidos através das vozes e dos recursos de modalização (prosódia)). O quarto capítulo
é composto da análise dos causos a partir dos três níveis estruturais abordados no capítulo
anterior. Nas considerações finais são retomadas algumas reflexões para se discutir os
resultados e as possíveis contribuições desta pesquisa.
23
CAPÍTULO
1:
O MEU PAI DIZIA
...
O
CAUSO
NA
ORGANIZAÇÃO
DA
SOCIEDADE:
HISTÓRIA,
TRADIÇÃO,
CRENÇAS
E
COSTUMES
Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que já se passaram,
mas pela astúcia das coisas passadas de fazer balancê, de se
remexerem dos seus lugares. A lembrança da vida da gente se
guarda em trechos diversos; uns com os outros acho que nem
não se misturam. Contar seguido, alinhavado.
(Riobaldo – Guimarães Rosa)
Neste capítulo, serão apresentadas as questões relativas às teorias Sócio-filosóficas
(MALINOWSKI, 1976; HALBWACHS, 1990; HAVELOCK, 1996), Antropológicas (KEESING,
s.d.) e Etnometodológicas (GARFINKEL, 1984; COULON, 1995), que são caras ao
entendimento do causo e de sua função na sociedade. Através dessas teorias que, também,
trabalham com o ser humano enquanto histórico e social
5
, acredito poder mostrar quão
importantes são esses campos da ciência, pois apresentam pressupostos que se mostram
importantes para se pensar a prática discursiva que milênios acompanha a humanidade:
o causo popular oral. Ética, moral, leis, crenças e costumes são conceitos que possibilitarão
explicitar as razões epistemológicas que contribuíram para a escolha desse gênero, qual
seja: a manutenção da tradição e dos costumes, não só familiares como, também, da
comunidade em que esse gênero se institui. Penso não ser possível trabalhar com vozes
que se atrelam a certos discursos sem entender o sujeito que os proferiu, que as atualizou,
e a influência desses discursos e vozes na organização da sociedade. Portanto, pretendo,
aqui, estudar a função deste gênero na sociedade a fim de poder entender o papel social
e/ou comunicativo do contador de causos.
1.1 O Causo e a Sociedade
Contar histórias faz parte de um dos mais antigos costumes da humanidade e das
mais diversas culturas, sendo para algumas comunidades principalmente as de tradição
5
Não desconsidero o fato de correntes lingüísticas, como a AD, também trabalharem com o ser humano
enquanto histórico e social. Entretanto, optei por separar as teorias não lingüísticas das teorias lingüísticas, que
serão abordadas no capítulo 2.
24
oral – de extrema importância na formação dos indivíduos, no sentido de que elas se
configuram como uma forma de manter os valores da comunidade, contribuindo, portanto,
dentre outras, com a formação ética, moral e cultural dos indivíduos.
Para o contador de histórias Freitas
6
, as histórias não existem por acaso (asserção
com a qual concordo), o que endossa a premissa de que toda prática linguageira tem uma
razão de ser, cumpre determinadas funções e propósitos na sociedade. Segundo Freitas, os
contos populares orais se mantêm vivos porque eles atingem o íntimo, as sensações, as
percepções e, principalmente, a sensibilidade humana. O autor diz, ainda, que:
É por isso que contar contos nunca caiu de moda, principalmente nas sociedades
que mantêm essa tradição, como forma de nutrir e promover o intercâmbio dos
valores da comunidade.
Nesses tempos difíceis, que caracterizam os fins de séculos e milênios, quando
esses valores precisam ser revistos e confirmados, encontramos nessa tradição
milenar uma fonte inesgotável de procedimentos éticos. Eles se manifestam nas
formas de relacionamento que sempre estiveram presentes na vida dos povos do
planeta, mesmo antes de existir qualquer tipo de comunicação entre eles.
Nessa mesma linha de raciocínio, Azevedo
7
assinala que,
O estudo dos contos tradicionais, essas narrativas dirigidas a todas as pessoas,
independentemente de faixas etárias, pelo menos se levarmos em consideração as
pesquisas de estudiosos díspares como André Jolles e Paul Zumthor ou Mikhail
Bakhtin, Peter Burke e Johan Huizinga, demonstra que os mesmos representam
verdadeiro depósito do imaginário, das tradições e da visão de mundo oriundos de
um certo “espírito popular”, estando enraizados em antiquíssimas narrativas míticas.
Além disso, sobreviveram ao longo dos séculos através da transmissão oral feita por
contadores de histórias, jograis e menestréis, num tempo, nunca é demais frisar, em
que a vida comunitária e coletiva era intensa (em oposição à vida privada e dos
interesses individuais).
A tradição dos contos populares orais é mais freqüente no interior dos estados e são
contados, geralmente, por pessoas mais velhas e que, na maioria das vezes, tornam-se
conhecidas por suas narrativas. Como bem disse Rolando Boldrin (2001) grande contador
de causos contar causos é uma forma a mais de criticar o que está errado e valorizar a
riqueza de nossa cultura. A cultura, segundo Malinowski (1976:37) consiste no conjunto
6
www.robertodefreitas.com.br/palestras.htm
7
www.ricardoazevedo.com.br/artigo07.htm
25
integral dos instrumentos e bens de consumo, nos códigos constitucionais dos vários grupos
da sociedade, nas idéias e artes, nas crenças e costumes humanos”.
De acordo com reportagem publicada pelo Jornal Marco, em abril/2004, o ato de
contar histórias era, antigamente, um hábito voltado para o público infantil, embora isso
dependa da cultura. Entre os árabes, por exemplo, isso se faz para os adultos. Hoje, porém,
na nossa cultura brasileira, a procura pelos contadores é dos adultos, que vêem nas
histórias uma maneira de resgatar os prazeres da infância e, também, de buscar a tão
necessária integração social.
Para Keesing (s.d – p.371) “as pessoas agem de modo padronizado, as
relações interpessoais são mais ou menos formalizadas numa estrutura social” e contar
histórias era, de certa forma, parte fundamental para essa padronização. Porém, o tempo foi
passando, a escrita surgiu, a tecnologia avançou, a internet chegou trazendo a velocidade
para as informações e, com tudo isso, vieram, também, as pressões do cotidiano, não
deixando tempo, ou quase nenhum tempo, para as relações interpessoais
8
. Em entrevista
cedida ao Jornal Marco, Roberto de Freitas diz: “o vizinho está cada vez mais distante. [...]
Tudo é individual e corrido” (MACHADO e FONSECA, 2004:13).
Para Maria Lúcia dos Santos Miranda, contadora de história, também entrevistada
pelo Jornal Marco em 2004, “através das histórias, as crianças aprendem a lidar melhor com
seus problemas, além de assimilar valores e modos de conduta aceitáveis na sociedade”.
Os textos que atualizam o gênero
9
causo oral são manifestações populares, que
continuam fazendo parte da vida daqueles que se reúnem para, através dos chamados
causos, trocar experiências. Em outros termos, pode-se dizer que os causos têm a função
de resgatar narrativas cotidianas passadas e transportá-las para um universo atual, pois,
assim, mantêm viva a cultura de suas comunidades. A tradição cultural, para Malinowski
(1976:38),
...tem que ser transmitida de geração em geração e por isso, em cada cultura,
deverão existir métodos e mecanismos de carácter educativo. A lei e a ordem têm
de ser mantidas, visto a cooperação ser a essência de todos os feitos culturais. Em
todas as comunidades devem existir mecanismos que sancionem os costumes, a
ética e a lei.
8
O conceito de relações interpessoais é usado entre os antropólogos para “designar a totalidade dos laços
sociais entre os indivíduos que compõem determinado grupo”. (KEESING, s.d.:69 – v.1).
9
A questão do gênero causo popular oral será tratada na seção 2.4 do Capítulo 2.
26
Penso que o causo popular oral é um dos mecanismos mais antigos para se
sancionar os costumes, a ética e a lei. Quem nunca ficou num banco de praça, à sombra de
uma árvore, ou até mesmo às voltas de um fogão-a-lenha ouvindo causos? Quem nunca
ficou ouvindo as experiências que passam de pessoa a pessoa ou geração a geração e que,
segundo Benjamim (2001:98), são a fonte a que recorrem todos os narradores
10
”? Isto
porque a narrativa, como por exemplo, a dos causos,
tem em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode
consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num
provérbio ou numa norma de vida de qualquer maneira, o narrador é um homem
que sabe dar conselhos. (...) O conselho tecido na substância viva da existência tem
um nome: sabedoria. (BENJAMIM, 2001:200).
Os contadores de causos, tidos como os homens sábios, trazem na memória as
histórias de várias gerações, e as contam como forma de manter a tradição e os valores
culturais. Isso mostra que uma tradição linguageira na cultura popular que se através
da troca de experiências. Tais experiências, além de repassadas de geração a geração,
através de causos, são também reelaboradas tanto por aqueles que as contam quanto por
quem as escuta, mantendo assim, as tradições.
Havelock (1996:58) nos dá a seguinte definição de tradição:
A 'tradição', para empregar um termo adequado, pelo menos numa cultura que
merece o nome de civilizada, sempre requer a concretização em algum arquétipo
verbal. Ela exige algum tipo de enunciado lingüístico, uma expressão efetiva de
alcance ostensivamente geral, que tanto descreve quanto reforça o padrão de
conduta geral, política e privada do grupo. Esse padrão fornece o vínculo do grupo.
Precisa tornar-se regular a fim de permitir que o grupo funcione como tal e desfrute
do que poderíamos chamar de uma consciência comum e um conjunto de valores
comuns. Para tornar-se e permanecer regular, deve obter uma conservação ao
abrigo dos caprichos habituais dos homens. Além disso, a conservação tomará uma
forma lingüística; incluirá exemplos repetidos de procedimento correto e também
definições aproximadas de práticas técnicas padronizadas que são seguidas pelo
público em questão, por exemplo, o método de construir uma casa ou navegar ou
cozinhar. Além disso, a nosso ver, esse enunciado ou paradigma lingüístico,
dizendo-nos o que somos e como devemos nos comportar; não se desenvolve por
um feliz acaso, mas como uma declaração que é formulada para ser posta em
prática por sucessivas gerações à medida que elas crescem no interior da
organização da família ou do clã. Ele fornece o conteúdo da organização do grupo.
Isso é verdade tanto hoje, com relação a sociedades alfabetizadas nas quais o
condicionamento necessário é adquirido por meio de livros ou controlado por
documentos escritos, quanto o era na sociedade pré-alfabetizada, que não possuía
documentos.
Falar de tradição é, para Bentes da Silva (2000:39), de certo modo, “‘ter olhos para
ver e ouvidos para escutar’ todo um corpo social que fala, que nos indica uma vontade de
10
O narrador é entendido aqui como o contador já que se trata de um estudo sobre causos orais.
27
reavivar e manter aquecidos alguns de seus valores e crenças, que estes são
constantemente reiterados e construídos como perenes, não transitórios, necessários”.
Esse reavivar e manter aquecidos os valores e crenças são possíveis, por exemplo,
através da memória, ou seja, na leitura que Bentes da Silva
11
(2000:27-28) faz de
Havelock (1996), embora discorra sobre poesia oral, fica claro que é a comunidade
quem deve “participar de um esforço conjunto inconsciente para conservar viva a
tradição, para reforçá-la na memória coletiva”.
1.1.1 Memória coletiva: lugar de conservação da tradição
A sociologia é a teoria que pode, inicialmente, contribuir para o entendimento da
Memória Coletiva, pois, no entender de Halbwachs (1990), a consciência “se descobre na e
pela sociedade”, e é a descrição desta sociedade concreta, ou seja, da linguagem, ordem,
instituições, presenças e tradições humanas, que possibilitam a consciência de cada um.
Para o autor (1990: 21),
Não podemos pensar nada, não podemos pensar em nós mesmos, senão pelos
outros e para os outros, e sob a condição desse acordo substancial que, através do
coletivo, persegue o universal e distingue (...) o sonho da realidade, a loucura
individual da razão comum.
Segundo J Michel Alexandre, autor da introdução biográfica da obra póstuma de
Halbwachs, intitulada “A memória coletiva”, Halbwachs escreveu sobre a nobreza, a
propriedade, sobre a relação das gerações, a função dos velhos guardiões do passado, o
papel dos prenomes dentro da linguagem e as relações humanas. J Michel Alexandre
assevera que:
“ninguém melhor compreendeu e fez compreender a continuidade social (a idéia
diretora, segundo Comte), isto é, aquele encadeamento temporal, próprio da
consciência comum que, sob a forma de tradição, de culto ao passado, de
previsões e projetos, condiciona e suscita, em cada sociedade, a ordem e o
progresso humanos. Apesar de algum equívoco de expressão, ele nos faz
compreender profundamente que não é o indivíduo em si nem nenhuma entidade
social que se recorda; mas que ninguém pode lembrar-se efetivamente, senão da
sociedade, pela presença ou a evocação e, portanto, pela assistência dos outros ou
de suas obras; nossas primeiras lembranças e, por conseguinte, a trama de todas
11
Bentes da Silva traz a voz de Havelock (1996) para dizer que um ponto importante para o autor é “o fato de
que a poesia oral era compreendida como ‘um tratado sobre ética, política, arte bélica’”, e, acredito que, não
muito diferente, pode ser entendido, também, o causo.
28
as outras, não são trazidas e conservadas pela família? “Um homem que se lembra
sozinho daquilo que os outros não se lembram assemelha-se a alguém que o
que os outros não vêem”
12
(apud HALBWACHS,1990: 23).
“Se o que vemos hoje tivesse que tomar lugar dentro do quadro de nossas
lembranças antigas, inversamente essas lembranças se adaptariam ao conjunto de nossas
percepções atuais”. (HALBWACHS,1990: 25). O que justifica dizer que os causos atualizam
narrativas cotidianas passadas, transportando-as para um universo atual, o que mantem
viva a cultura de suas comunidades.
Nossas lembranças, apoderando-me das palavras de Halbwachs (1990:26),
“permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de
acontecimentos nos quais nós estivemos envolvidos, e com objetos que nós vimos”.
Essa asserção me faz lembrar das palavras de Dona Maria Paula
13
, ao comentar sobre os
causos que seus pais contavam. Ela disse que quando está em casa, tranqüila, com a filha,
e esta fala ou faz determinada coisa, ela (Dona Maria Paula), na mesma hora, lembra de
algo que o pai ou a mãe contava àquele respeito e, imediatamente, os reconta para a filha
(ou qualquer pessoa que a faça lembrar determinado ensinamento). Assim, a cada vez que
tal causo é (re)contado, o contador (por exemplo, Dona Maria Paula) estará se valendo de
uma lembrança coletiva, pois, na verdade, nunca estamos sós. Todos nós carregamos
sempre o que foi dito por alguém, o que lemos em algum lugar, fato que concorre para a
possibilidade de supor que nossas lembranças estão repletas de outras pessoas. Penso que
esse é um dos fatores, se não um dos mais importantes, que podem favorecer a
manutenção das tradições, passadas oralmente de geração a geração.
Dona Maria Paula disse, também, que cada dia mais os causos vão desaparecendo,
pois as pessoas, principalmente por migrarem para os grandes centros, já não acreditam
mais nas crenças antigas, já não obedecem mais às regras e costumes de suas
comunidades. Talvez a explicação esteja no fato de o tempo ter apagado o que havia de
comum entre aqueles que outrora viveram naquele lugar.
O homem é um ser social, isto é, mesmo estando fisicamente só, seus pensamentos
e seus atos se explicam pela sua natureza de ser social. O homem, assim, jamais deixará
de estar confinado dentro de alguma sociedade. É certo que não deixa de existir uma
memória individual, porém, segundo Halbwachs (1990:51), “diríamos voluntariamente que
12
Texto tirado dos papéis deixados por Halbwachs.
13
Dona Maria Paula é uma das contadoras que contribuíram com o corpus desta pesquisa.
29
cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de
vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as
relações que mantenho com outros meios”. O autor diz, ainda, que:
A sucessão de lembranças, mesmo daquelas que são mais pessoais, explica-se
sempre pelas mudanças que se produzem em nossas relações com os diversos
meios coletivos, isto é, em definitivo, pelas transformações desses meios, cada um
tomado à parte, e em seu conjunto. (HALBWACHS, 1990:51).
Ao evocar seu próprio passado o indivíduo tem a necessidade de evocar as
lembranças dos outros. O funcionamento da memória individual “não é possível sem esses
instrumentos que são as palavras e as idéias, que o indivíduo não inventou e que emprestou
de seu meio”. (HALBWACHS, 1990:54).
Na verdade o indivíduo se lembra do que viu, fez, sentiu e pensou num
determinado tempo e lugar, sem que sua memória se confunda com a dos outros. A
memória coletiva, também é limitada no espaço e no tempo, porém, esses limites são mais
restritos e remotos. Vejamos os contadores de causos: eles se lembram de diversas
situações/acontecimentos que seus antepassados contavam, mas não os vivenciaram. Eles
ocupavam um lugar na memória de várias gerações, mas o contador, em si, não fez parte
deles. Quando o contador os evoca é obrigado a confiar inteiramente na memória dos
outros, pois é a única fonte do que ele quer repetir. (cf. HALBWACHS, 1990:54).
Marc Bloch
14
(apud HALBWACHS, 1990:65) assevera que:
Nas sociedades rurais acontece com muita freqüência que, durante o dia, enquanto
pai e mãe estão ocupados nos campos ou com inúmeros trabalhos de casa, os
pequenos são confiados à guarda dos “velhos”, e é destes, e mais do que de seus
familiares mais próximos, que as crianças recebem o legado dos costumes e das
tradições de toda a espécie.
São fixados, na memória das crianças, não os fatos como, também, as maneiras
de ser e de pensar do tempo dos avós. De acordo com Halbwachs (1990:66):
é na medida em que a presença de um parente idoso está de algum modo
impressa em tudo aquilo que nos revelou de um período e de uma sociedade
antiga, que ela se destaca em nossa memória não como uma aparência física um
pouco apagada, mas com o relevo e a cor de um personagem que está no centro
de todo um quadro que o resume e o condensa.
14
Bloch, Marc. Mémoire Collective, traditions et Coutumes, Revue de synthèse historique, 1925, n.118-120,
p.79.
30
Assim são os contadores: pessoas, geralmente, mais velhas, integrantes, ou não, de
nossas famílias, que vão deixando suas marcas – costumes, crenças e tradições – à medida
que contam seus causos. Na linha do tempo, penso que no passado, quando ainda éramos
crianças, os contadores nos orientavam para o nosso futuro, e no futuro, quando já somos
adultos, nos encontramos exercendo esse mesmo papel, ou seja, nos vemos, também,
como contadores. São as marcas sendo deixadas de geração a geração.
Uma cena de nosso passado, vivida com a presença de mais alguém ou assistida
por outra pessoa, ao ser relatada revela, por vezes, problemas na ordem dos detalhes, na
importância relativa as partes e no sentido geral do evento, pois “é impossível que duas
pessoas que viram o mesmo fato, quando o narram algum tempo depois, o reproduzam com
traços idênticos” (HALBWACHS, 1990:75). Se isso acontece com aqueles que fizeram parte
do acontecimento, o que poderíamos esperar daqueles que ‘contam causos’? Sendo
passados de geração a geração, eles nos dão a conhecer apenas aquilo que nos confiam,
além do que, como diz Boldrin (2001:17), “causos correm mundo e cada um conta os
mesmos como achar mais conveniente”.
É no interior das sociedades que se desenvolvem as memórias coletivas, pois estas
são resultado da participação do indivíduo em vários grupos, os quais se dividem e se
restringem no tempo e no espaço. No entender de Halbwachs (1990:80),
Embora seja cil ser esquecido e passar despercebido dentro de uma grande
cidade, os habitantes de um pequeno vilarejo não param de se observar
mutuamente, e a memória de seu grupo registra fielmente tudo aquilo que pode
dizer respeito aos acontecimentos e gestos de cada um deles, porque
repercutem
sobre essa pequena sociedade e contribuem para modificá-la. Dentro de tais meios,
todos os indivíduos pensam e se recordam em comum.
O contador de história, em geral, não vivenciou as histórias que conta; são textos
lidos ou ouvidos e reelaborados
15
para serem contados à sua maneira. Pensando-se na
memória coletiva (aquela que “recompõe magicamente o passado”) e na memória histórica
(aquela que “supõe a reconstrução dos dados fornecidos pelo presente da vida social e
projetada no passado reinventado”), diz Halbwachs (1990:80-81), que:
...a história começa somente no ponto onde acaba a tradição, momento em que se
apaga ou se decompõe a memória social. Enquanto uma lembrança subsiste, é
inútil fixá-la por escrito, nem mesmo fixá-la, pura e simplesmente. Assim, a
15
Se levarmos em consideração que um contador de história trabalha, também, com a parte cênica, os textos
são ainda decorados e interpretados mediante um treinamento, ou seja, não é espontâneo. Tudo é programado:
gestos corporais e faciais, timbre de voz, etc.
31
necessidade de escrever a história de um período, de uma sociedade, e mesmo de
uma pessoa desperta somente quando eles estão muito distantes no passado,
para que se tivesse a oportunidade de encontrar por muito tempo ainda em torno de
si muitas testemunhas que dela conservem alguma lembrança. Quando a memória
de uma seqüência de acontecimentos não tem mais por suporte um grupo, aquele
mesmo em que esteve engajada ou que dela suportou as conseqüências, que lhe
assistiu ou dela recebeu um relato vivo dos primeiros atores e espectadores,
quando ela se dispersa por entre alguns espíritos individuais, perdidos em novas
sociedades para as quais esses fatos não interessam mais porque lhes são
decididamente exteriores, então o único meio de salvar tais lembranças, é fixá-las
por escrito em uma narrativa seguida uma vez que as palavras e os pensamentos
morrem, mas os escritos permanecem.
Talvez esse seja um dos motivos que fazem emergir, nos tempos atuais, com certa
intensidade, os contadores de histórias “profissionais’, os quais vêm, dentre outros, para
resgatar os causos que outrora eram passados de geração a geração e que hoje estão
ficando no esquecimento, uma vez que os grupos estão se dissolvendo. Nas palavras de
Dona Maria Paula, “os filhos crescem ou casam e vão para as grandes cidades e se
esquecem das raízes ou ficam desacreditados de tudo aquilo que aprenderam”.
“A memória de uma sociedade estende-se até onde pode, quer dizer, até onde atinge
a memória dos grupos dos quais ela é composta” (HALBWACHS, 1990:84), e isso acontece
não porque a sociedade se esquece de grande parte dos acontecimentos e de antigas
figuras, mas pelo desaparecimento dos grupos que dela guardavam a lembrança. Em outras
palavras, é um grupo limitado no espaço e no tempo que sustenta a memória coletiva.
1.2 O Causo como um “costume” / “comportamento cultural” humano
Acredito poder dizer que a memória é um dos agentes facilitadores da manutenção
das crenças, valores e costumes de uma comunidade. Porém, penso ser através da
narrativa de um causo, um “comportamento cultural” humano, que essa memória pode se
fazer conhecer e, conseqüentemente, manter as tradições.
Segundo Keesing (s.d.:25), a antropologia cultural é o ramo da Antropologia que
descreve e interpreta os “costumes” humanos, ou o “comportamento cultural” humano”. O
antropólogo cultural seria, então, aquele que:
faz o estudo comparado do comportamento humano. Examina os vários sistemas
de costumes em todo o mundo; procura explicar sua origem e evolução; considera
as suas semelhanças e os seus contrastes. Investiga os valores, premissas e
objetivos, que fazem de uma dada “cultura” um sistema íntegro de vida, e também a
relação entre a cultura do grupo e a personalidade do indivíduo. Analisa os
32
processos pelos quais os costumes persistem ou se transformam. (F.M.K
16
. apud
KEESING, s.d.:19).
Inúmeras são as contribuições da antropologia para os estudos da história do
homem, não no âmbito de sua arte, da sua religião, da sua filosofia e sua ética como,
também, da sua linguagem e outros aspectos de seus costumes. A antropologia cultural, em
específico, estuda a cultura no sentido de comportamento adquirido por aprendizado” e é
este o foco que adoto neste trabalho.
Esse ramo da antropologia se subdivide em vários campos históricos, a saber: i) Pré-
história, ou Arqueologia Pré-Histórica, ii) Lingüística, ou Antropologia Lingüística e iii)
Etnologia. O primeiro diz respeito ao “estudo do muito antigo”, o segundo à “análise
científica da linguagem” e o terceiro ao estudo dos sistemas modernos de costume, ou
comportamento. Este último, a etnologia, se subdivide em Etnologia (análise das
semelhanças e diferenças entre as culturas), Etnografia (descrição dos costumes, ou de
uma cultura específica) e Antropologia Social (estuda as generalidades do comportamento
humano).
É muito comum confundirem ou igualarem a Antropologia Cultural com a Sociologia.
Porém, apesar de estudarem muitos problemas comuns, elas não são a mesma coisa.
Ambas se preocupam com a generalização científica sobre o comportamento de
determinado grupo, mas cada qual com seus problemas e, conseqüentemente, empregando
métodos de pesquisa diferentes, o que colabora para um importante intercâmbio entre o
estudo do comportamento social humano em suas perspectivas mais amplas dos costumes
mundiais e o estudo das características de grupos sociais.
Keesing (s.d.:47) chama a atenção para alguns conceitos de termos básicos
adotados na antropologia e que serão caros, também, no decorrer deste trabalho, quais
sejam:
Habitat”: o meio externo dentro do qual o homem vive.
Cultura: a totalidade do comportamento ou “costume” adquirido e socialmente
transmitido. Mais especificamente, uma cultura, no sentido de um sistema de
comportamento localizado e mais ou menos diferente e ímpar cultura esquimó,
cultura dos índios Cherokee, por exemplo.
Sociedade: o agregado de indivíduos nas populações ou grupos organizados.
As sociedades humanas são organizadas sobretudo pela comunidade de
comportamento cultural.
Personalidade: características do indivíduo, especialmente em conseqüência
de aprendizagem e prática em um meio sócio-cultural determinado. A
16
KEESING, F. M., SIEGEL, B.J., HAMMOND, B. Antropology and industry. Some exploratory work papers.
Stanford: Calif, 1957.
33
personalidade implica a integridade característica de um ser humano, quando nos
referimos a ele como “pessoa”.
Caráter: as uniformidades diferenciais ou os aspectos característicos da
cultura e personalidade de um determinado grupo. (grifos do autor).
O habitat será um fator relevante nos estudos que este trabalho pretende
empreender, pois os seres humanos vivem em um meio natural e seu comportamento é
influenciado por esse meio. Logo, penso perceber nos contadores, indivíduos influenciados
pelo meio em que vivem, o que sustenta determinada cultura.
É através da cultura que os antropólogos estudam o comportamento e o costume.
Mas em que esse termo será importante no estudo dos causos? Cultura é um termo usado,
também, para se referir às pessoas hábeis nas artes ou nas finuras sociais, mas, levando-se
em conta que cultura é uma palavra derivada do verbo latino colere, que significa cultivar ou
instruir, e do substantivo cultus, cujo significado é cultivo ou instrução, este será o
entendimento adotado, neste trabalho, ou seja, a cultura será percebida em seu sentido
científico. Assim, a importância desse termo estará no comportamento cultivado, na
experiência adquirida e acumulada pelos contadores de causos e transmitidas socialmente,
ou ainda, no comportamento que se adquire pelo aprendizado social.
Nesse sentido, terão igual importância o que chamarei, assim como alguns
antropólogos, de traços de cultura, ou seja, “os elementos ou componentes significativos
mínimos do costume, que podem ser isolados no comportamento cultural”. (KEESING,
s.d.:59). Esses elementos, dentro de um contexto geral de cultura, têm uma função, um
determinado sentido para o grupo em questão. Por isso a importância de se explorar tanto a
forma quanto a função de um elemento, ou seja, de um traço de cultura.
A cultura envolve ações, idéias e artefatos
17
; pode ser estudada como fenômeno
histórico ou regional, e tende a seguir uma configuração ordenada, o que, segundo Keesing
(s.d.:60), “envolve a repetição de comportamentos similares aprovados”. E o autor continua:
“na medida em que os indivíduos, com o tempo, adaptam o seu comportamento ao molde
aprovado, a cultura permanece estável”. Essa configuração geral ou universal, existente na
base de todas as culturas, é expressa em categorias como atividade econômica, religião,
arte, linguagem. (cf. KEESING, s.d.:60).
Algo muito comum é o que se costuma chamar de aculturação, ou seja, quando dois
17
Nesse sentido, tem-se a cultura como um complexo simbólico, ou seja, “é uma série de artefatos, ou objetos
feitos pelo homem, e de motivações e ações pessoais portadoras de sentido. Por definição, um “simbolo” é
alguma forma ou sinal sensorial fixo ao qual foi atribuído arbitrariamente um sentido”. (KEESING, s.d.:64).
34
grupos de culturas diferentes entram em contado e ambos tomam, ou recebem, elementos
culturais um do outro. O causo é uma das formas de aculturação. Contados em um lugar e
outro, as crenças, os valores e os costumes vão sendo difundidos e dessa forma, muitas
vezes, aculturando quem os ouve.
Uma vez inventados, os elementos culturais passam por aprendizagem de indivíduo
a indivíduo. Têm que ser transmitidos de uma geração a outra e deles devem
participar os membros vivos do grupo em causa. Qualquer interrupção na cadeia de
aprendizagem acarretaria o desaparecimento deles. Num sentido amplo, toda a
cultura humana desde o seu início tem continuidade no intelecto humano educado.
(KEESING, s.d.: 63-64).
Pontuadas a importância do habitat e da cultura para o estudo em questão,
passemos a seguir para a sociedade, a personalidade e o caráter.
A Sociedade, termo instituído pelos sociólogos, pode ser definida como a agregação
de indivíduos em populações ou grupos organizados. Numa relação entre cultura e
sociedade, é possível dizer que “a ‘cultura’ focaliza os costumes de um povo; a ‘sociedade’
focaliza o povo que pratica os costumes”. (KEESING, s.d.:66).
A Personalidade e o Caráter são conceitos voltados para a relação do indivíduo com
sua cultura e sua sociedade, ou seja, do comportamento. Como foi dito, cada indivíduo
tem suas experiências culturais e sociais, o que favorece sua individualidade, apesar da
influência que recebe em decorrência de sua participação em certas tradições sociais e
culturais. É comum tomar-se as características de personalidade do ambiente familiar e
educacional, seja por influência dos pais ou de pessoas mais íntimas, seja de acordo com
suas etapas de desenvolvimento, filiação a uma classe, religião ou outros agrupamentos
sócio-culturais. Nesse sentido, o caráter se refere “às coerências ou traços característicos
da cultura e personalidade em um grupo dado”, ou “à soma das modalidades comuns de
sua cultura, mais ou menos distintas das de outras culturas”. (cf. KEESING, s.d.:72-73). É
na sociedade, meio no qual a personalidade e o caráter são formados, que surgem os
contadores de causos e, conseqüentemente, as influências e traços característicos da
cultura de seus grupos.
O contador de causos faz parte de um habitat, de uma cultura e de uma sociedade,
fato que concorre para o entendimento do papel desse sujeito, e (mesmo que, talvez, numa
dimensão menor) ele carrega uma personalidade e um caráter formados, muitas vezes,
dentro desses aspectos. Penso que essas questões, dentre outras, sendo do conhecimento
35
do contador, influenciam nas estratégias narrativas utilizadas por ele, na tentativa de manter
as tradições, valores e costumes de seu povo. Se conhece sua cultura, sua sociedade, ele
utilizará, no mínimo, sua capacidade de se comunicar, que, nesse caso, a mais importante
será a linguagem.
Essa função do causo, especificamente, relaciona-se ao aspecto normativo da
cultura, ou seja, às normas de comportamento que representam expectativas, valores,
objetivos, ideais ou normas de vida. No entender de Keesing (s.d.:82),
Os seres humanos são inveterados caçadores de normas. A sociedade apresenta
ao indivíduo o que ele deve fazer, as condutas que são consideradas normais,
corretas, desejáveis, em sua tradição cultural particular. Por sua vez, o
comportamento real do individuo tende a se aproximar dessas normas,
especialmente no grau em que elas são “apreciadas”, ou afetivamente
(emocionalmente) apontadas como “boas”, destacadas como objetivos conativos
(ação) e ideais cognitivos (pensamento) por serem “corretas”, sustentadas por
compulsão ou “sanção” como sendo “esperadas”, “lícitas”. (grifos do autor).
O homem é um ser que fala. “Sob certos aspectos importantes, o homem é um
animal sui generis. Isso transparece acima de tudo em sua precisa capacidade de
comunicação simbólica, especialmente pela linguagem, e assim em sua capacidade de
aprender e acumular experiência (cultura)” (KEESING, s.d.:93).
É através da linguagem que ele se capaz de interagir com o outro e, contar
causos é uma forma de interação, de estabelecer normas, valores, objetivos e ideais. De
acordo com Adriano Duarte Rodrigues
18
, professor na Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade de Lisboa, “do ponto de vista antropológico, a narrativa é uma
dimensão fundamental da linguagem do homem” (PROPP, 2003: 21). O autor ainda
acrescenta: “...os contos populares jogam com uma espécie de cumplicidade cultural
secundária e encantam na medida em que neles identificamos e sobre eles projectamos
arquétipos profundos que a narrativa conta sob o pretexto duma intriga factual, variável”
(PROPP, 2003: 24)
Para Keesing (s.d.:85), “as premissas, os valores e outras tendências de motivação e
integração do comportamento, comuns a um povo, são geralmente (e talvez mesmo
sempre) passíveis de expressão em palavras e frases de sua língua”. Segundo o autor,
existe uma grande quantidade de provérbios, histórias, máximas religiosas e outros
18
Adriano Duarte Rodrigues é o autor do Prefácio à Edição Portuguesa da obra de Propp (1928), intitulada
Morfologia do Conto.
36
elementos lingüísticos com os quais, em determinadas situações, são aplicadas as normas
de motivação e avaliação de uma cultura às crianças e aos adultos, o que confirma a função
dos causos apontada acima.
A antropologia, tomada em seu sentido literal como “conhecimento do homem”, será
cara ao tratarmos o lugar da sociedade no homem e não do lugar do homem na sociedade.
Afinal, o homem é um ser social; ele (“eu”) não existe sem o outro (“tu”); ele se a
conhecer a partir da vida em comum.
1.3 A contribuição dos causos para uma conduta socialmente organizada
A palavra "etnometodologia" origina-se de uma concepção teórica dos fenômenos
sociais, ao contrário do que muitos pensam, ao entendê-la como uma metodologia
específica da etnologia ou uma nova abordagem metodológica da sociologia. A
etnometodologia deve ser entendida como uma corrente teórica das ciências sociais, cujo
trabalho é elaborado a partir da análise microssocial.
A etnometodologia busca estudar e compreender as atividades cotidianas; por se
apresentar como uma prática social reflexiva, procura explicar os métodos de todas as
práticas sociais, analisar as crenças e os comportamentos do senso comum como os
constituintes necessários de “toda conduta socialmente organizada”. Em outras palavras,
através da etnometodologia é possível analisar os procedimentos (métodos) através dos
quais os indivíduos realizam diferentes operações em sua vida cotidiana. (COULON,
1995:33).
Se o comportamento se adquire pelo aprendizado social, de forma que os
acontecimentos repercutam sobre a sociedade, fazendo com que os indivíduos pensem e se
recordem em comum, e se, como disse anteriormente, em uma comunidade os causos
podem ser considerados como um veículo para se manter a cultura, crenças e costumes,
valendo-se da memória coletiva, podemos dizer, então, que o causo contribui para uma
conduta socialmente organizada.
Segundo Coulon (1995), “a etnometodologia é definida como a ‘ciência’ dos
‘etnométodos’, isto é, procedimentos que constituem ‘o raciocínio sociológico prático’ -
37
expressão forjada por Harold Garfinkel, fundador da corrente e ‘inventor’ da palavra”. (Op cit,
1995:15).
Garfinkel tinha um particular interesse no estudo das atividades práticas,
principalmente, do raciocínio prático e, para Albert Ogien
19
(p.70, apud COULON, 1995:17),
o modo de conhecimento prático ‘é essa faculdade de interpretação que todo
indivíduo, erudito ou não, possui e põe em ação na rotina de suas atividades
práticas cotidianas. (...) Procedimento regido pelo senso comum, a interpretação é
considerada como indissociável da ação e igualmente como partilhada pelo
conjunto dos atores sociais. (...) O modo de conhecimento erudito não se distingue
em nada do modo de conhecimento prático quando se leva em consideração que
estão confrontando a um problema de elucidação similar: nenhum deles tem
possibilidade de se desenrolar fora do domínio de uma ‘linguagem natural’ e sem
colocar em jogo uma série de propriedades indiciais que lhes são aferentes.
Os etnometodólogos consideram o mundo como um objeto de percepções e ações
do senso comum, ”e têm como objetivo a busca empírica dos métodos que os indivíduos
utilizam para dar sentido e, ao mesmo tempo, construir suas ações cotidianas: comunicar,
tomar decisões, raciocinar” (COULON, 1995:17), o que de forma alguma possa conotar um
abandono da atitude científica, pois esta, foi reivindicada por Garfinkel desde 1952.
“Segundo H. Garfinkel, os fatos sociais não se impõem a nós, contrariamente ao
que afirma Durkheim, como uma realidade objetiva: os fatos sociais não devem ser
considerados como coisas, mas como construções práticas. Entre uma regra,
instrução ou norma social, e sua aplicação pelos indivíduos abre-se um imenso
campo de contingências: aquele engendrado pela prática que nunca é pura
aplicação ou simples imitação de modelos preestabelecidos. O fato social não é um
objeto estável, mas o produto da atividade continua dos homens que colocam em
ação savoir-faire, procedimentos, regras de conduta, em suma, uma metodologia
empírica que sentido a essas atividades e cuja análise constitui, segundo H.
Garfinkel, a verdadeira tarefa do sociólogo” (COULON, 1995:17).
Em sua obra “Studies in Ethnomethodology”, (1967:vii), Garfinkel define os estudos
etnometodológicos como aqueles que analisam “every-day activities as member’s methods
for making those same activities visibly-rational-and-reportable-for-all-practical-purposes, i.e.,
“accountable”, as organizations of commonplace everyday activities”.
Coulon (1995:.25), na leitura que fez de H. Garfinkel, assevera que este, ao tratar da
estrutura social e da personalidade dos atores em relação as suas práticas, entende que:
O ator não é somente esse ser incapaz de julgamento que se limitaria a
reproduzir sem ter consciência disso as normas culturais e sociais que,
previamente, teria interiorizado. A análise das “condutas cientificamente racionais”
dos atores impede-nos de ver seus caracteres “razoáveis”.
19
OGIEN, Albert. Positivité de la pratique. L’intervention en psychiatrie comme argumentation. Tese de
doutorado de 3º ciclo. Université de Paris VIII, 1984.
38
Por outro lado, ainda segundo este autor, as normas não estariam de modo
algum em condições de determinar a ação. O conhecimento intersubjetivo não se
apóia em tais regras, da mesma forma que a comunicação não se apóia em um
acordo prévio sobre o sentido das palavras.
Enfim, em vez de considerar a reflexibilidade como um obstáculo para a
manutenção e compreensão da ordem social, H. Garfinkel transforma-a em primeira
condição.
Nesse sentido, seria possível revelar as regras e procedimentos seguidos pelos
atores, ao se analisar suas atividades práticas, o que torna de suma importância “observar
como os atores do senso comum produzem e tratam a informação nas trocas e como
utilizam a linguagem enquanto recurso; em suma, como fabricam um mundo "razoável" a fim
de poderem viver nele.” (COULON, 1995:.26).
A etnometodologia, como pontuado anteriormente, considera as crenças e os
comportamentos dos indivíduos, como “os constituintes necessários de ‘toda conduta
socialmente organizada’”. Segundo Coulon (1995:.37), nas “abordagens microssociais, a
ordem social não é considerada como uma estrutura monolítica que determina nossas
ações; pelo contrário, trata-se de uma comunicação interativa”. Porém, mesmo que pareça
paradoxal, é através do exame da ordem microssocial que temos oportunidade de
apreender os fenômenos macrossociais”.
A análise da conversação, corrente etnometodológica
20
de abordagem microssocial,
mostra como colocamos em ação, em nossa cotidianidade mais banal, nossa
competência e conhecimento aprofundado e detalhado da estrutura social. Ao
descrever e analisar os procedimentos que utilizamos para exibir, no âmbito social,
nossa competência de membro-comum-da-sociedade que nos permite a
comunicação com nossos semelhantes, a análise de conversação indica o elo que é
possível construir entre as abordagens micro e macrossociais. (COULON, 1995: 41).
É nesse sentido que os procedimentos de constituição do corpus (gravação e
transcrição das interações naturais), como do causo, por exemplo, é de suma importância,
pois, sendo indutiva, a análise conversacional parte dos dados e recusa as categorizações
prévias que o analista poderia efetuar: ao contrário, ela pretende pôr em relevo as
categorizações efetivamente realizadas pelos participantes das interações”. (Charaudeau &
20
Em estudos derivados da análise do discurso, dentre outros, “a análise conversacional é utilizada para
designar modos de análise das trocas verbais autênticas” e tem sua origem na lingüística, diferentemente da
corrente etnometodológica, cuja origem esna sociologia. Além disso, elas se distinguem em seus métodos.
Segundo Charaudeau & Maingueneau (2004:40), a primeira, tem uma “abordagem dedutiva, fundada na
delimitação de unidades e de categorias para as quais se procura formular as regras de encaixamento e de
composição para a análise do discurso” e a segunda, uma abordagem indutiva, fundada na localização de
regularidades e de recorrências na construção colaborativa e ordenada das trocas produzidas em situação para
a análise conversacional”.
39
Maingueneau, 2004:41). Segundo Schegloff
21
(1992 apud COULON, 1995:41), “a interação
verbal é uma forma de organização social”. Para o autor, ela “organiza as interações entre
os indivíduos, coordena seus comportamentos e está na base de instituições sociais mais
elevadas”.
Essa proposição deixa clara a importância de se verificar a relação entre linguagem e
sociedade, o que contribui, assim como os estudos apontados nas seções anteriores deste
capítulo, para o entendimento das estratégias narrativas analisadas no capítulo 4 deste
trabalho.
1.4 O Causo na relação entre linguagem e sociedade
Ao tratar das propriedades características dos procedimentos interpretativos do
indivíduo, Cicourel
22
(1972 apud COULON, 1995:21), cita como uma das propriedades o fato
de a própria linguagem ser reflexiva. Em outras palavras, a linguagem é vista como um
elemento constitutivo de todos os quadros sociais. Nas palavras de H. Garfinkel, por um
lado, os membros consideram-na como um indício de que “tudo vai bem”; por outro, é para
eles um utensílio indispensável para descrever e tornar compreensíveis suas atividades e os
cenários em que se desenrolam”.
A socialização do homem, segundo Cicourel, “passa necessariamente pela aquisição
desses ‘procedimentos interpretativos’”, os quais, aliados a seus traços reflexivos,
“fornecem, em permanência, instruções aos participantes de tal modo que se possa dizer
que os membros programam suas ações recíprocas à medida em que a ação se desenrola”
(CICOUREL, 1972 apud COULON, 1995:23).
Assim, o caráter interpretativo da interação social será caro à observação da
produção e do trato da informação nas trocas dos atores do senso comum e de como
utilizam a linguagem enquanto recurso. A concepção de interação social, neste caso, não
poderá conceber o ator como um agente determinado por um sistema de normas, mas, sim,
21
SCHEGLOFF, Emanuel. Repair after Next Tum: The last structurally provided defense of intersubjectivity in
conversation. In American Journal of sociology, 97, nº 5, março de 1992, p.1295-1345.
22
CICOUREL, Aaron. Cognitive Sociology: Language and Meaning in social interaction, Nova York, Free Pres,
1972. 192p.
40
como aquele que age pelas relações que estabelece com o outro e que contribui na
identificação de seu papel social, o que penso valer para o contador de causos.
A interação, de acordo com Coulon (1995:28), “é concebida como um processo de
interpretação”. Segundo o autor, é pela interação que os atores se comunicam e
prosseguem suas trocas, interpretando a respectiva linguagem e atos. Nesse sentido, o
contexto deixa de ser um simples quadro passivo da ação para vir a ser interpretado”
(COULON, 1995:28).
Para Schütz
23
, fundador da fenomenologia social, "a linguagem cotidiana esconde
todo um tesouro de tipos e características pré-constituídos, de essência social, que abrigam
conteúdos inexplorados" (In. COULON, 1995: 11). O mundo social é o da vida cotidiana
24
e
esta é a vida de todo homem“, portanto, dos contadores de causos e de seus ouvintes.
1.5 Considerações parciais
Como pudemos ver, contar histórias é um antigo costume da humanidade, das mais
diversas culturas, e de grande importância na formação ética, moral e cultural dos
indivíduos, principalmente para os que pertencem a comunidades de linguagem oral. Os
causos proporcionam uma ação padronizada das pessoas, embora na correria da vida atual
isso tenha se perdido um pouco. Sua função, como dito, é resgatar narrativas cotidianas
passadas e transportá-las para um universo atual, pois, assim, de geração em geração,
mantêm viva a cultura de suas comunidades.
São os contadores de causos, figuras tidas como sábias, que fazem dessa tradição
linguageira na cultura popular uma forma de trocar experiências, de manter a tradição e os
valores culturais; que se valem da memória coletiva ao retomarem algo vivido, dito por
23
SCHÜTZ, Alfred. Lê chercheur et lê quotidien, Paris, Méridiens – Klincksieck, 1987. 286p.
24
No entender de Heller (2000:19), “o ’amadurecimento’ para a cotidianidade, começa sempre ‘por grupos’ (em
nossos dias, de modo geral, na família, na escola, em pequenas comunidades). E esses grupos face-to-face
estabelecem uma mediação entre o individuo e os costumes, as normas e a ética de outras integrações maiores.
O homem aprende no grupo os elementos da cotidianidade (por exemplo, que deve levantar e agir por sua conta;
ou o modo de cumprimentar, ou ainda como comportar-se em determinadas situações, etc.)...”
41
alguém ou lido em algum lugar; afinal, o homem é um ser social e suas lembranças estarão
sempre repletas de outras pessoas.
O mais importante é deixar claro que a cultura será entendida neste trabalho como
um comportamento adquirido através do aprendizado social, da experiência adquirida e
acumulada pelos contadores de causos e transmitidas socialmente, dentre outras, por
intermédio da linguagem. É pertinente reafirmar que é a linguagem que faz com que o
homem se veja capaz de interagir com o outro, e contar causos é uma forma de interação,
de estabelecer normas, valores, objetivos e ideais. Além disso é o caráter interpretativo da
interação social que nos permite observar como o homem utiliza a linguagem enquanto
recurso; como é possível agir através das relações que ele estabelece com o outro e que
contribui na identificação de seu papel social.
Enfim, através do estudo das teorias não-lingüísticas acredito poder afirmar que os
causos contribuem na organização da sociedade, e que esta se dá, dentre outras, através
da linguagem. Portanto, torna-se de suma importância o estudo das teorias lingüísticas,
visto que para interagir com o outro, principalmente com a intenção de manter a tradição,
crenças e costumes, provavelmente o contador utilizará estratégias para que seu projeto de
dizer (encantar, ensinar, amedrontar etc.) se efetive. Esse será o foco do próximo capítulo.
42
CAPÍTULO 2: MINHA MÃE CONTAVA UM CAUSO... A RESPEITO DAS
TEORIAS TEXTUAIS E DISCURSIVAS DA NARRATIVA
Entre todos os materiais, porém, é somente a
linguagem que pode produzir a ilusão da vida,
isto é, criar personagens vivos, sensíveis,
pensativos, que falam e também se calam.
(Käte Hamburger, 1975:42)
No capítulo 1, procurei discutir o causo na organização da sociedade, ou seja, sua relação
com a história, as crenças, as tradições e os costumes – o que significa começar a entender
a função comunicativa desse gênero. Esclarecidas as contribuições advindas da Sócio-
filosofia, Antropologia e Etnometodologia, neste capítulo, são as teorias textuais e
discursivas que estarão em foco. Porém, não se pode falar de texto ou prática discursiva
sem se falar de língua e linguagem e, nem mesmo, deixar de se falar sobre o gênero que tal
texto ou prática discursiva institui. Para se investigar qualquer objeto lingüístico, os aspectos
relativos à própria natureza constitutiva da linguagem deverão ser considerados, ou seja,
tomando como pressuposto que a linguagem é uma atividade humana, é necessário
considerar seu estatuto interativo, sócio-histórico e cognitivo. Desse modo, através dos
estudos de Labov e Waletzky (1967), Propp (2003), Reuter (2002) e Todorov (1971), sobre a
narrativa e sua configuração estrutural, de Genette (1995), sobre o discurso da narrativa; e a
partir das abordagens sócio-interacionistas de Bronckart (2003) e outros, farei a seguir um
estudo das concepções lingüísticas; dos princípios epistemológicos fundamentais para o
entendimento e análise do corpus.
2.1 Concepção de Linguagem e Língua: uma abordagem sócio-interacionista
Como vimos no cap.1, os contos (assim como os causos) estão enraizados em
antigas narrativas míticas e sua permanência se deve à transmissão oral feita pelos
contadores, sejam eles “natos” ou “profissionais”, um hábito que em nossa cultura era
voltado tão somente para o público infantil e que, agora, também se direciona aos adultos,
43
contribuindo para, dentre outros, resgatar valores e modos de conduta aceitáveis em nossa
sociedade.
É através da troca de experiências que as narrativas são resgatadas e transportadas
para o universo atual, pois têm, também, uma dimensão utilitária. Essa tradição, que
acontece através da troca de experiências, como vimos em Havelock (1996), necessita de
um arquétipo verbal, de algum tipo de enunciado lingüístico que descreva, reforce e
conserve o padrão de conduta geral. Ao tomar uma forma lingüística, a partir de repetidos
exemplos, o ouvinte vai percebendo quem é e como deve se comportar. E assim, vai-se
reavivando e mantendo aquecidos os valores e crenças, pois é através da memória da
comunidade que as tradições são mantidas. Este é o papel do causo, assumido neste
trabalho: um meio através do qual a memória pode se fazer conhecer e manter as tradições.
A linguagem existente na base de todas as culturas e se configura como uma das
formas de se descrever a sociedade. O indivíduo que conhece sua cultura e sua sociedade
se valerá da linguagem para se comunicar e, também, transmitir valores e costumes. A
linguagem torna o homem capaz de interagir com o outro e o causo é uma forma de
interação, visto que é a partir da e na linguagem que se dão as interações. É nesse sentido
que a narrativa pode ser considerada uma dimensão fundamental da linguagem do homem.
O homem é um ser social que não existe sem o outro, por isso a interação verbal é uma
forma de organizar a sociedade.
Bronckart (2003:13), ao expor o quadro teórico do interacionismo sócio-discursivo,
retoma Vygotsky (1934/1985), Habermas (1987) e Ricoeur (1986), visando mostrar que é
possível analisar as condutas humanas como “ações significantes” ou como “ações
situadas”, resultantes da socialização entre sujeitos. De acordo com o autor, a linguagem é
percebida em funcionamento nas “formações [relações] sociais” e é no processo de
interação que a “as condutas verbais” são consideradas como formas de ação; dito de outra
forma, como ações de linguagem.
Uma ação linguageira define-se por uma série de comportamentos orientados por
uma intenção, realiza-se em um espaço comunicativo, com características físicas
(locutor/interlocutor, espaço/tempo) e sociais (papéis dos interlocutores, lugares
sociais), implicando escolhas no sistema lingüístico-discursivo consideradas por
seus produtores como pertinentes, no que diz respeito à representação da situação
comunicativa, e eficazes, em relação a seu objetivo. Essas escolhas se
materializam, ainda segundo o autor [Bronckart], em unidades vinculadas a formas
discursivas histórica e socialmente definidas, que produzem um efeito de tipicidade.
(MATENCIO, 2001: 61).
44
É, ainda, numa visão interacionista-social que Bronckart (2003:14) considera o
estudo da linguagem em suas dimensões discursivas e textuais, pois “são as únicas
manifestações empiricamente observáveis das ações de linguagem humanas”, além de
manifestarem, de forma mais nítida, as relações de interdependência entre as produções
de linguagem e seu contexto acional e social”.
Assim, trazendo à baila as palavras de Aderaldo (2004:39-40),
toda e qualquer produção lingüística ou ação linguageira (...) (activité langagière, nos
termos de BRONCKART, 1991) deve ser encarada como uma atividade de
linguagem que se está considerando aqui o trabalho lingüístico empreendido
pelos falantes – e, ainda, como uma atividade situada, pois ocorre sempre em
contextos sociais e históricos que lhe determinam.
Confirmando o exposto no capítulo 1, de acordo com Bronckart (2003:22-23), foi
graças às contribuições da antropologia (Leroi-Gourhan, 1964; 1965), da socioantropologia
(Morin, 1977) e, sobretudo, pelas abordagens sociofilosóficas (Habermas, 1987; Ricouer,
1986) que a posição interacionista pôde ser revigorada. É o interacionismo levando a sério a
historicidade do ser humano; desenvolvendo uma análise profunda das características
estruturais e funcionais das organizações sociais, bem como das formas de interação
semiótica
25
.
É pela diversidade e pela complexidade das formas de organização e das formas de
atividade que a espécie humana é caracterizada, fazendo emergir um modo de
comunicação particular: a linguagem. É pela dimensão particular que a linguagem confere
às organizações e atividades humanas, que estas são chamadas de sociais. A linguagem é,
então, primariamente, uma característica da atividade social humana, cuja função maior é
de ordem comunicativa ou pragmática”. (BRONCKART, 2003:34).
Por ser um resultado da interação social, os signos e os textos nos quais se
organizam dependem do uso e, por conseguinte, seus significados não são estáveis,
mesmo porque a atividade verbal se realiza no quadro de uma língua natural particular.
Toda língua tem sua semântica própria, e é através desta que se constroem os mundos
25
Segundo Bronckart (2003:23), é na teoria original dos fatos sociais elaborados por Durkheim e nos trabalhos
sociológicos e psicossociológicos de Bourdieu (1980) e Moscovici (1961) que o interacionismo se nutre para a
realização da análise das estruturas e dos modos de funcionamento sociais; e é nas descrições das estruturas e
das unidades das línguas naturais, fornecidas pela lingüística estrutural, que o interacionismo dos sistemas
semióticos buscam subsídios para uma primeira análise (já que nessa corrente os fatos de linguagem o são
considerados como traços de condutas humanas socialmente contextualizadas), preferindo, portanto, as
abordagens que integram as dimensões psicossociais.
45
representados, sendo que parte das variações entre as culturas humanas se dão mediante a
diversidade das semantizações desses mundos.
As comunidades verbais, porém, não são sociologicamente homogêneas; “são
atravessadas por organizações diversas, complexas e hierarquizadas, no quadro das quais,
permanentemente se desenvolvem relações de força e conflitos entre grupos sociais com
interesses divergentes” (BRONCKART, 2003:36), o que caracteriza múltiplas formações
sociais. Isso significa que o funcionamento da língua está diretamente relacionado com os
objetivos e interesses particulares dentro de cada uma das formações sociais, o que gera
modalidades particulares de funcionamento. Essas modalidades foram chamadas por
Foucault (1969) de Formações Discursivas
26
, e de acordo com Bronckart (2003:37):
Focault mostrou que essas formações discursivas (...) são mecanismos que, no
próprio movimento que gera modalidades particulares de organização dos signos e
que chega a formas variadas de ‘discurso’ (...), moldam os conhecimentos (objetos,
conceitos, estratégias, etc.) dos membros de uma mesma formação social de uma
forma particular.
Podemos dizer, então, que além do atravessamento dos níveis de organização
social, a linguagem é atravessada, também, pelo caráter histórico. E é a natureza sócio-
histórica da atividade linguageira que a faz ser co-construída pelos diversos sujeitos que a
produzem, visto que é na e pela linguagem que se o espaço de interação entre eles.
Nessa perspectiva, podemos ver na linguagem um lugar de interação humana, do agir de
acordo com o social.
Assim, a linguagem, neste trabalho, é concebida como processo de interação entre
interlocutores, sendo o contexto ideológico, histórico e social de suma importância na
situação comunicacional em que essa linguagem se efetiva. Como disse, é pela
linguagem que nos constituímos enquanto sujeitos e estabelecemos relações, causamos
efeitos pretendidos e provocamos comportamentos que queremos desencadear, e essa, me
parece, é uma intenção, também, do contador ao narrar causos.
Isso me leva a pensar no dialogismo bakhtiniano, ou seja, na “interação verbal que
se estabelece entre o enunciado e o enunciatário no espaço do texto”. A interação é
mediada pela língua, e esta é um fenômeno gerado pela linguagem. Este fenômeno,
26
Esse tema será tratado na seção 2.3.1 deste capítulo, sob a perspectiva do interdiscurso e utilizado como base
para a análise do corpus na seção 3.3.2.1 do cap. 3 , momento em que tratarei das vozes.
46
segundo Bakhtin (2000), é realizado através “da enunciação
27
das enunciações”, pois, para
o autor:
a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de
formas lingüísticas, nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato
psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social de interação verbal,
realizado através da enunciação das enunciações. A interação verbal constitui,
assim a realidade fundamental da língua. (BAKHTIN, 2000:123).
Se, como entende o autor, a língua se caracteriza como a materialização da
linguagem, ela é também dialógica, é um sistema em uso, ou seja, a nossa maneira de falar
está diretamente ligada ao nosso interlocutor.
Ao abordar linguagem e língua vimos que elas estão intrinsecamente relacionadas e
é nessa relação que surge a necessidade de discorrer, ainda numa perspectiva sócio-
interacionista, sobre texto e discurso, o que farei nas seções 2.2 e 2.3, respectivamente.
2.2 A relação texto/ produção de sentido
De acordo com Koch (2002:25), desde o seu início até os dias atuais, o texto foi
concebido, em um primeiro momento, como sendo uma unidade lingüística superior à frase,
sucessão ou combinação de frases, cadeia de pronominalizações ininterruptas, cadeia de
isotopias e complexo de proposições semânticas.
Ainda segundo a autora (2002:25-26), na pragmática, o texto passou a ser encarado
de três maneiras: i) como uma seqüência de atos de fala (teorias acionais), ii) como
fenômeno primariamente psíquico (vertentes cognitivistas), e iii) como parte de atividades
mais globais de comunicação, que vão muito além do texto em si, já que este constitui
apenas uma fase desse processo global (orientações advindas da teoria da atividade
verbal).
Para a Lingüística Textual, cuja “definição provisória” proposta por Marcuschi
(1983:12-13), é “...o estudo das operações lingüísticas e cognitivas reguladoras e
controladoras da produção, construção, funcionamento e recepção de textos escritos ou
27
Ducrot (1976:18) afirma que a enunciação será para nós a atividade linguageira exercida por aquele que fala
no momento em que fala, sendo, portanto, por essência histórica, da ordem do acontecimento e, como tal, não
se reproduz nunca duas vezes idêntica a si mesma”. Essa é a noção a qual me alinharei, pois o indivíduo que
produz o enunciado não é necessariamente à instância que assume a responsabilidade por ele, isto é, a
enunciação é considerada, por Ducrot, independentemente de qualquer autor.
47
orais”, o texto é tratado como sendo:
... um ato de comunicação unificado num complexo universo de ações humanas. Por
um lado deve preservar a organização linear que é o tratamento estritamente
lingüístico abordado no aspecto da coesão e, por outro, deve considerar a
organização reticulada ou tentacular, não linear portanto, dos níveis de sentido e
intenções que realizam a coerência no aspecto semântico e funções pragmáticas.
(KOCH, 2002:27). (grifos da autora).
Assim, é possível dizer que um texto se constitui, funciona plenamente, como
tal no momento de interação, ou seja, quando “os parceiros de uma atividade comunicativa
global, diante de uma manifestação lingüística, pela atuação conjunta de uma complexa
rede de fatores de ordem situacional, cognitiva, sociocultural e interacional, são capazes de
construir, para ela, determinado sentido” (KOCH, 2002:30). Tal concepção reafirma o fato de
o sentido não estar no texto, mas se construir a partir dele, no momento da interação.
Considerando-se o texto como resultante de um evento de interação é ele que
concretiza o discurso
28
. Esses eventos de interação, segundo Matencio (2001:59-60):
... materializam-se por meio de práticas discursivas, ou seja, através de modos de
emergência e de difusão do dizer de uma dada formação social (institucional), e
atividades discursivas, isto é, formas de atualização dos recursos lingüísticos, por
meio das estratégias discursivas mobilizadas pelos sujeitos falantes para a (e na)
produção textual. Por isso mesmo, os textos são também a cristalização de um ou
mais gêneros, já que atualizam as práticas discursivas que configuram um discurso.
Nesse sentido, é possível pensar que os eventos de interação são a atualização de
práticas que mobilizam certas atividades de linguagem, selecionadas pelos interlocutores de
acordo com seus propósitos. Para Matencio (2001: 62), “os textos materializam atividades
lingüístico-discursivas, são o objeto material resultante de um evento de interação, são um
momento de condensação e de manifestação de um conjunto de conhecimentos prototípicos
(individuais e sociais) sobre como interagir nos eventos”.
O texto seria, então, uma co-produção de locutores e/ou interlocutores. São os
interlocutores que, com base nos conhecimentos compartilhados a respeito do mundo, de si
mesmos e da própria linguagem, negociam a natureza e o significado do texto. Em outras
palavras, em uma atividade de produção textual, os interlocutores mobilizam vários sistemas
de conhecimentos que têm representados na memória, os quais ocorrem a partir de um
28
É importante lembrar que todo fenômeno no nível da interação vem de dois níveis: do computacional e do
contexto, portanto, considero, aqui, que para tal asserção já esteja pressuposto que existe um nível
computacional que precede o do contexto.
48
conjunto de estratégias de processamento de caráter sociocognitivo e textual, quais sejam:
o lingüístico, o enciclopédico e o interacional (cf. KOCH, 2002).
Na acepção de Koch (2002:32), o conhecimento lingüístico “compreende o
conhecimento gramatical e o lexical, sendo o responsável pela articulação som-sentido”. O
conhecimento enciclopédico (ou de mundo) “é aquele que se encontra armazenado na
memória de cada indivíduo...”. O conhecimento sócio-interacional “é o conhecimento sobre
as ações verbais, isto é, sobre as formas de inter-ação através da linguagem” (grifo da
autora).
As estratégias de processamento textual se subdividem em: cognitivas consistem
em estratégias de uso do conhecimento, como, por exemplo, as inferências, que permitem,
em determinados contextos, gerar uma informação nova a partir de uma anteriormente
dada; sócio-interacionais – socioculturalmente determinadas, visam a estabelecer, manter e
levar a termo uma interação verbal, como, por exemplo, as relativas à realização dos
diversos tipos de atos de fala; e textuais são as escolhas textuais que os interlocutores
realizam, desempenhando várias funções e tendo em vista a produção de determinados
sentidos (cf. KOCH, 2002).
A construção de um texto é, portanto, um processo muito complexo e requer uma
gama de atividades, realizadas com vistas à produção de sentidos. E se é o texto que
materializa o discurso, penso ser possível comungar com Aderaldo (2004:42), ao dizer que
“a legitimação de um discurso ocorre, invariavelmente, através de processos de divulgação
e consumo de sentidos e, sobretudo, a partir de situações concretas de interação, em
eventos de interação”. Vejamos mais de perto o que o que nos dizem alguns autores acerca
desse conceito.
2.3 O conceito de discurso
Apesar da complexidade da definição e das várias concepções que envolvem o
discurso, embasada na teoria sócio-interacionista, acredito que o discurso é uma forma de
ação e manifesta-se, como já dito, através do texto, materialidade lingüística. É, portanto,
pertinente ressaltar as palavras de Koch (2000: 21-22) ao se referir ao discurso como sendo:
49
atividade comunicativa de um locutor, numa situação de comunicação determinada,
englobando não só o conjunto de enunciados por ele produzidos em tal situação - ou
os seus e os de seu interlocutores, o caso do diálogo - como também o evento de
sua enunciação. O discurso manifesta-se lingüisticamente por meio de textos (...).
Embora o conceito de texto e discurso sejam distintos, estão relacionados
intimamente, pois, sendo prática social, segundo Koch (2000), o discurso envolve uma
situação de comunicação e como tal prevê a ação de um locutor e de um interlocutor.
Assim, na interação que se estabelece para a construção de sentido, o texto é a ligação
existente entre o locutor (autor) e o interlocutor (ouvinte/leitor).
O discurso é entendido por Fairclough (2001:91), como um modo de ação do
indivíduo sobre o mundo e sobre os outros, e sua contribuição está na “constituição de todas
as dimensões da estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem”.
Com efeito, entendo que o discurso seria, então, uma prática, não apenas de representação
do mundo, mas de (re)significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em
significado.
Nesse sentido, é possível dizer que o discurso traz em si toda uma formação
ideológica, reproduz e transforma a sociedade, pois, com base em Fairclough (2001), o
discurso contribui para a representação e transformação da estrutura social. Para tal, em se
tratando de causos populares orais, julgo pertinente retomar a definição de discurso,
segundo a terceira fase da chamada Análise do Discurso Francesa, em que este é tido
como uma “rede textual polifônica”, a qual marca um sujeito que não se estabelece a partir
de um “Eu” centralizador, mas, sim, como parte “de um corpo histórico-social no qual
interage com outros discursos de que se apossa ou diante dos quais se posiciona (ou é
posicionado) para construir sua fala” (BRANDÃO, 1998:54).
Assim, a noção adotada neste trabalho é a de que o discurso se relaciona com a
heterogeneidade, comungando com Bakhtin (1990) ao asseverar que nenhum discurso se
identifica com uma voz. Ele é determinado por várias vozes que se cruzam
simultaneamente no espaço dialógico de forma a contribuir para a representação e
transformação da estrutura social.
Para que melhor se entenda essa noção, tratarei, na seção seguinte, das questões
relacionadas ao discurso polifônico (Bakhtin) e ao interdiscurso (Foucault, Pêcheux).
50
2.3.1 Discurso polifônico e interdiscurso: a heterogeneidade mostrada e a
constitutiva.
Foi Bakhtin quem tratou pela primeira vez do problema dos fenômenos que
chamaram atenção para o caráter essencialmente interativo da linguagem que estabelece
as diferentes instâncias enunciativas instauradas no texto, ou seja, do dialogismo e da
polifonia.
Segundo Barros (1994), “Bakhtin concebe o dialogismo como o princípio constitutivo
da linguagem e a condição do sentido do discurso”. A linguagem, de acordo com a visão
bakhtiniana, é vista como uma possível mediação entre sujeitos, de forma a construírem,
social e historicamente, sua experiência sobre o mundo, no mundo. Sem a linguagem e sem
a interação que se pode estabelecer a partir dela não seria possível, ao sujeito, se
reconhecer na relação com o outro.
Na versão de Bakhtin, a interação verbal é dialógica, ou seja, a dialogia dada da
linguagem é, a um tempo, constituída e constitutiva da interação. Ela acontece num
contexto e numa situação, que se estabelece entre o enunciador e o enunciatário; o eu e o
tu, no texto. O sujeito é constituído por vozes sociais, o que o torna um sujeito histórico e
ideológico. Histórico, por ser marcado espacial e temporalmente; e ideológico, porque sua
fala, ao ser produzida a partir de um determinado tempo e espaço, torna-se um recorte das
representações de um tempo histórico e de um espaço social. Assim, como ser projetado
num espaço e num tempo e orientado socialmente, o sujeito situa o seu discurso em relação
aos discursos do outro” (BRANDÃO, 1998:49)
29
.
Authier-Revuz
30
(1982), segundo Brandão (1998:50), indica algumas formas de
heterogeneidade (heterogeneidade “mostrada”, para Charaudeau & Maingueneau (2004)),
indicadoras da presença do outro, quais sejam:
29
Dessa forma, é possível afirmar que todo texto possui um caráter histórico, no sentido de revelar os ideais e as
concepções de um grupo social, numa determinada época e num dado espaço, e que, se o sujeito é ideológico,
a linguagem, jamais é ideologicamente neutra, mas um tecido de muitas vozes. Em suma, dentro de cada
enunciado ou discurso a voz do eu não é única, também a presença da voz do outro, seja ela explícita ou
implícita. No entanto, é preciso deixar claro que o se pode negar que existe um aparelho formal da
enunciação. Daí o fato de Benveniste (1995:286) utilizar o termo subjetividade, baseando-se no status lingüístico
da “pessoa”, em que diz ser “na e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito, uma vez que, na
verdade, só a linguagem funda, na sua realidade, que é a do ser, o conceito de ‘ego’”.
30
AUTHIER-REVUZ, j. Hétérogénéité(s) montrée et térogénéité constitutive: éléments pour une approche de
l’autre dans lê discours. DRLAV, 26, Paris, 1982, p. 91-151.
51
a) o discurso relatado: no discurso indireto, o locutor, colocando-se enquanto tradutor, usa de suas
próprias palavras para remeter a uma outra fonte do “sentido”, no discurso direto, o locutor,
colocando-se como “porta-voz”, recorta as palavras do outro e cita-as;
b) as formas marcadas de conotação autonímica: o locutor inscreve no seu discurso, sem que haja
interrupção do fio discursivo, as palavras do outro, mostrando-as, assinalando-as quer através de
um comentário, uma glosa, um ajustamento, ou de uma remissão a um outro discurso, funcionando
como “marcas de uma atividade de controle-regulagem do processo de comunicação”;
c)
formas mais complexas em que a presença do outro não é explicitada por marcas unívocas na
frase. É o caso do discurso indireto livre, da ironia, da antífrase, da alusão, da imitação, da
reminiscência em que se joga com o outro discurso (às vezes, tornando-o mais vivo) não mais no
nível da transparência, do explicitamente mostrado ou dito, mas no espaço do implícito, do
semidesvelado, do sugerido. Aqui não uma fronteira lingüística tida entre a fala do locutor e a
do outro, as vozes se imiscuem nos limites de uma única construção lingüística.
Na heterogeneidade constitutiva, por sua vez, tem-se o domínio do discurso pelo
interdiscurso (Authier-Revuz:1982). Nesse sentido, Charaudeau & Maingueneau (2004:262)
recuperam Maingueneau
31
(1984:30-31) para dizer que:
A definição da rede semântica que circunscreve a especificidade de um discurso
coincide com a definição das relações desse discurso com seu Outro [...]. Disso
decorre o caráter forçosamente dialógico de qualquer enunciado do discurso, a
impossibilidade de dissociar a interação dos discursos e o funcionamento
intradiscursivo.
Portanto um discurso, de certa forma, não é homogêneo, visto que, ainda de acordo
com os autores (2004:261), ele mistura diversos tipos de seqüências textuais, faz variar a
modalização, os registros de língua, os gêneros de discurso etc.”
A heterogeneidade leva-nos ao termo polifonia”, que deriva do grupo polyphonia
reunião de vozes ou instrumentos. O termo “polifonia”, é encontrado em diferentes
contextos: na Lingüística, na Análise do Discurso e na Literatura. A primeira “se situa ao
nível da língua, tornando-se, então, uma noção puramente abstrata”; a segunda é um
fenômeno de fala e, nesse sentido, concreto”; e a terceira, enfim, que permanece na
tradição bakhtiniana, “diz respeito às múltiplas relações que mantêm autor, personagens,
vozes anônimas (o “diz-se”), diferentes veis estilísticos etc”. (CHARAUDEAU &
MAINGUENEAU, 2004:388).
Neste trabalho, a polifonia será considerada desde que no texto, ou seja, nos
causos, se estabeleça um jogo entre várias vozes, e essa decisão foi tomada por comungar
com o posicionamento de Charaudeau & Maingueneau (2004:388), qual seja, de que “nada
parece impedir a colaboração de diferentes abordagens. Poderíamos imaginar um modelo
modular em que a análise lingüística forneceria materiais à análise de discurso que, por sua
vez, serviria às análises literárias”.
31
MAINGUENEAU, Dominique. Genèses du discours. Liège, Mardaga. 1984.
52
Ducrot introduziu a noção de polifonia nos estudos lingüísticos inspirado pelos
trabalhos de Genette, e no qual uma distinção entre aquele que e aquele que fala. Da
mesma forma, Ducrot distinguiu o locutor dos enunciadores. “O locutor é aquele que,
segundo o enunciado, é responsável pela enunciação. Ele deixa marcas em seu enunciado
(...) O locutor é capaz de pôr em cena enunciadores que apresentam diferentes pontos de
vista (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2004:385). Noção compartilhada por Koch
(2001:58), ao afirmar que o termo polifonia “designa o fenômeno pelo qual, num mesmo
texto, se fazem ouvir ‘vozes’ que falam de perspectivas ou pontos de vista diferentes com as
quais o locutor se identifica ou não”.
A presença de outra(s) voz(es) no texto pode ser reconhecida através de
determinadas formas lingüísticas que funcionam como índices de polifonia, tais como:
determinados operadores argumentativos, marcadores de pressuposição, uso do futuro do
pretérito como metáfora temporal, uso de aspas, intertextualidade, ironia e discurso indireto
livre (KOCH, 2001:58-60). A polifonia se constitui, também, através da dêixis, classificada
segundo três domínios constitutivos da situação de enunciação: de pessoa (o falante, o
destinatário e a audiência), de lugar (os advérbios “aqui” e “aí” e os demonstrattivos “este” e
“aquele”), de tempo (os mais usuais são os advérbios agora” e “hoje”). Além da dêixis de
pessoa, de lugar e de tempo, Maingueneau (1989) fala de dêixis discursiva, ou seja, é
preciso considerar a situação que é pertinente para o gênero de discurso referenciado; a
situação que constrói o próprio discurso e a partir da qual ele pretende enunciar, ou seja,
sua cena de enunciação. Por estar me alinhando a uma noção de linguagem como
atividade, é bom lembrar que tais processamentos não podem e não serão estudados
isoladamente do contexto da situação, pois dele depende a construção dos sentidos.
Para Franchi (1992:11), “a linguagem se situa em relação ao seu uso social, aberta
aos fatores que a condicionam e determinam na interação dos interlocutores, em suas
relações com o mundo e a cultura”. Tais considerações podem ser utilizadas no
entendimento de que causos orais são manifestações populares que fazem parte da vida
daqueles que se reúnem para, através do causo, trocar experiências.
A narrativa dos causos, por exemplo, como dito no capítulo 1, tem por vezes uma
dimensão utilitária, seja através de um ensinamento moral, de uma sugestão prática ou de
uma norma de vida. Nesse sentido, os contadores são tidos como os homens sábios que
53
trazem na memória as histórias de várias gerações, e que, por sua vez, são contadas de
geração em geração como forma de manter a tradição e os princípios familiares. Isso me
leva a inferir que, se são várias gerações, implicam em vários contextos sociais e,
conseqüentemente, valores históricos e ideológicos, os quais provavelmente marcaram as
épocas em que os discursos foram produzidos. Quando são atualizados para os dias atuais,
aquele que o faz, o contador, assegura a tradição, sua história e seus propósitos
enunciativos.
Assim, os causos populares orais misturam informações lidas, vistas ou ouvidas e
vivências acumuladas por várias gerações às experiências atuais. Heterogeneidade que
acaba por revelar, na voz do contador, sua própria visão do processo histórico do qual
figura. Na verdade, esses causos são, portanto, um conjunto de vozes advindas do
contador, do ouvinte, da cultura popular, da experiência e da tradição, do mítico e do real.
Vozes internas e externas ao texto; implícitas e explícitas.
Não fossem as relações entre discursos, não seria possível uma co-construção de
sentido, por parte dos interlocutores do causo. Penso que, dentre outras, é no diálogo com o
mundo e com os outros discursos que o causo popular oral mantém a troca de experiência,
a cultura e os princípios morais. Isto porque, segundo Bakhtin (1990),
a interação, como um espaço fundamentalmente social e dialógico, afigura-se tanto
constitutiva como mediadora dos processos de socialização e dos processos de
identificação dos sujeitos, onde se instauram as relações de intersubjetividade.
Nesse espaço, (sócio) cognitivamente, os sujeitos, na atividade de produção e
recepção de textos, na construção de sentido(s), colocam em interface, subjetiva e
socialmente, saberes construídos em suas experiências anteriores e projetam suas
expectativas em relação a si próprios e aos seus parceiros e ao evento comunicativo
em curso. (apud SILVA, 2002).
Por outro lado, isso nos remete ao funcionamento dos discursos estabelecidos pelos
modos de enunciação, o qual aponta para distinções que se ligam a diferentes processos de
significação, ou seja, de que o sentido é determinado pelo uso. Essa diferença entre um uso
e outro, acarretando em diferentes sentidos, é da ordem do que, em análise de discurso,
chamamos de Formação Discursiva (FD). (cf. ORLANDI, 1989:129).
O que se quer dizer é que determinada palavra ou expressão pode ter um significado
em um discurso e outro significado, completamente diferente, em outro. Fato que incide
sobre a semântica, pois, de acordo com Pêcheux (1990), as palavras ‘mudam de sentido’,
quando passam de uma formação discursiva a outra”. Nesse sentido, é importante ressaltar
54
que as FD’s definem “o que pode e o que deve ser dito em uma situação dada a partir de
uma conjuntura dada” e que estão, no discurso, diretamente ligadas às formações
ideológicas.
Em determinada situação de fala, o sujeito se posiciona diferentemente em função
da relação que mantém com as formações ideológicas e em função de seu “lugar”, o que
significa que constituindo-se em uma FD diferente, suas palavras, também, terão
significados diferentes. Segundo Charaudeau & Maingueneau (2004:24), “é nas formações
discursivas que se opera o ‘assujeitamento’, a ‘interpelação’ do sujeito como sujeito
ideológico”.
Para Pêcheux (1988), o sujeito se manifesta no discurso de forma assujeitada, isto é,
ele subordina-se ao Outro; em outras palavras, ele se apropria do discurso alheio, que, por
sua vez, se reveste de determinada ideologia, transvestido de determinadas formações
discursivas (escolhas). Embora encontremos na literatura de Pêcheux a divisão didática
interdiscurso (como sendo o discurso Outro ou pré-construido – já dito) e o discurso
transverso (como sendo o discurso de outro), estou considerando, aqui, uma visão mais
ampla; um embricamento dessas duas categorias, posição que tomo considerando a
seguinte fala:
O interdiscurso enquanto discurso-transverso atravessa e põe em conexão entre si
os elementos discursivos constituídos pelo interdiscurso enquanto pré-construido,
que fornece, por assim dizer, a matéria-prima na qual o sujeito se constitui como
“sujeito falante”, com a formação discursiva que o assujeita (PÊCHEUX, 1988:167).
O sujeito se insere em estruturas lingüísticas e históricas invariáveis a fim de quebrar
a homogeneidade ali existente. Disso, a importância de se verificar a construção desse
sujeito, no discurso, pois,
o sentido é assim uma relação determinada do sujeito – afetado pela língua com a
história. É o gesto de interpretação que realiza essa relação do sujeito com a língua,
com a história, com os sentidos. Esta é a marca da subjetivação e, ao mesmo
tempo, o traço da relação da língua com a exterioridade: não há discurso sem
sujeito. E não há sujeito sem ideologia. Ideologia e inconsciente estão materialmente
ligados. Pela língua, pelo processo que acabamos de descrever. (ORLANDI,
2003:47).
Em se tratando de causos populares orais, como vimos no cap.1, o sujeito contador
de causos tem a função de manter as tradições. Portanto, a forma como ele se insere em
55
estruturas lingüísticas e históricas é tão importante quanto a forma como os
locutores/enunciadores instituídos por ele se inserem, visto que o que se busca é a
produção de sentidos. Analisar as vozes e o interdiscurso é, então, tentar entender melhor
o funcionamento desse gênero; entender como ele tenta garantir a realização da função a
que se presta, o que será feito na seção a seguir.
Antes de passar para a próxima seção reafirmo que adoto como perspectiva teórica
central neste trabalho o interacionismo sócio-discursivo, por oferecer subsídios à pesquisa
que pretendo empreender. Ao tomar a noção de Linguagem e língua nessa abordagem
estarei comungando com a idéia de que a interação, a cultura, a experiência e os aspectos
situacionais interferem na organização da sociedade, pois o homem é um ser social e não
existe sem o outro; e é a linguagem que o torna capaz de interagir. Nesse sentido, o causo é
uma forma de interação, de uma ação de acordo com o social. E sendo a linguagem um
produto da interação social, os textos, ou eventos (como postula essa teoria e reafirma a
Lingüística Textual) nos quais ela se organiza dependem do uso, pois o sentido não está
nele, mas se constrói nele, no momento da interação. Enfim, embasada na teoria sócio-
interacionista aceito o discurso como forma de ação, manifestada através do texto, e
relacionado com a heterogeneidade, pois se identifica com várias vozes, fato que, como se
verá, é recorrente no corpus em análise.
2.4 Breve conceito de gênero e tipo textual
A questão dos gêneros e tipos textuais
32
(ou discursivos) tem sido uma constante
preocupação e, por conseguinte, a cada dia vem sendo mais discutida, tanto com relação às
noções, quanto aos critérios de classificação e ordenação das configurações e
funcionamento dos diferentes gêneros textuais. No entender de Silva (1999:92), a noção de
“gênero textual” (discursivo) “reporta ao funcionamento da língua em práticas comunicativas
reais e concretas, construídas por sujeitos que interagem nas esferas das relações humanas
32
Silva (1999) em Gênero discursivo e tipo textual, utiliza a expressão “gênero discursivo” para não romper o
tratamento terminológico de seu texto, no entanto, deixa claro que, a seu ver, a diferenciação entre “gênero
discursivo e gênero textual é somente de ordem terminológica, e o conceitual. Por assumir esse
posicionamento é que utilizarei, neste trabalho, a expressão “gênero textual”.
56
e da comunicação”. A noção de “tipo textual”, por sua vez, “remete ao funcionamento da
constituição estrutural do texto, isto é, um texto, pertencente a um dado gênero discursivo,
pode trazer na sua configuração vários tipos textuais” (SILVA, 1999:101).
Para que se obtenha maiores esclarecimentos acerca do gênero do corpus desta
pesquisa (os causos populares orais) e do(s) tipo(s) textual(is) que o constitui(em), abordarei
a seguir tais questões e apontarei a posição que assumo a esse respeito.
A questão do gênero é uma temática que interessou aos antigos filósofos e que, ao
longo dos tempos, tem ressaltado as preocupações dos diversos estudiosos da linguagem.
À medida que os estudos lingüísticos vão avançando, a noção de gênero se modifica.
Atualmente, para o entendimento de tal conceito é preciso adotar as teorias advindas da
Análise do Discurso, da Lingüística Textual e do interacionismo sócio-discursivo, porém, é
na literatura clássica que encontramos a origem do que se considera, hoje, como gênero
33
.
À época clássica havia uma preocupação em reunir textos de acordo com uma
tipologia geral, a partir das especificidades e diferenças que apresentavam entre si.
O conceito tradicional de gênero, assim, refere-se à noção de “gêneros literários” [o
lírico, o épico e o dramático], classificação rígida e estável que, por apresentar tal
natureza, não conta dos diversos gêneros produzidos não atualmente, como à
época. (ADERALDO, 2004:45).
Entretanto, o processo de produção textual não se de maneira pré-determinada,
pois os gêneros são criados por diferentes sujeitos, com variados propósitos e possuem as
mais variadas formas. Todorov
34
(1980: 46, apud PINHEIRO, 2002:264) afirma que um
‘texto’ de hoje (também isso é um gênero num de seus sentidos) deve tanto à ‘poesia’
quanto ao romance do século 19, do mesmo modo que a ‘comédia lacrimejante’ combinava
elementos da comédia e da tragédia do século precedente”. Isso nos revela o fato de um
gênero poder originar-se de outros gêneros; de não desaparecerem, e, sim, serem
reformulados ou substituídos por novas formas genéricas. No entanto, nem a concepção
33
“Os estudos de Genette (1998, apud PINHEIRO, 2002: 262) traçam uma linha histórica da concepção de
gênero partindo de Aristóteles e Platão, os quais apontavam três formas genéricas fundamentais de texto: o
lírico, o épico e o dramático. Tal divisão se fez fundamentada no modo de representação da realidade que se
projetava nos textos literários da época. Aristóteles, entretanto, propunha subdivisões para a classificação
anterior, em função dos propósitos da enunciação e das especificidades de conteúdo dos textos. (...) Todorov
(1980, apud PINHEIRO, 2002: 262) aponta Blanchot como um dos que se opôs à visão tradicional de gêneros,
defendendo a tese de que não se devia fixar aos textos lugares e formas determinadas, que um livro não
pertence a um nero, mas à literatura”. Apesar de tal avanço, o autor acaba operando com a noção tradicional
de gênero, pois considerava a literatura como tal, gênero único por excelência”. (ADERALDO, 2004:45).
34
TODOROV, Os gêneros do discurso. São Paulo: Martins Fontes, 1980.
57
clássica nem a contemporânea sustentam as diversas possibilidades de produção de um
texto.
Como disse, há uma diversidade de estudos, resultando numa variedade de
abordagens sobre a questão dos gêneros; uma busca incessante por uma
classificação dos discursos, que vivemos cercados por uma heterogeneidade de
textos.
Segundo Matencio (2004:3-4),
...há os defensores de que os gêneros são formas regulares de atualização das
práticas discursivas, ou seja, são “contratos” sociais de interação; os que
acreditam que os gêneros seriam espécies de “modelos mentais” de produção e
recepção de textos; há, ainda, os que defendem a concepção de que os gêneros
seriam estruturas textuais (materiais, portanto), com maior ou menor flexibilidade.
Dessa forma, os estudiosos da linguagem, em particular os lingüistas, na busca da
cientificidade, tentam objetivar, categorizar e classificar seu material de análise. Nessa
tentativa, Marcuschi (2002:19) observa que, por serem resultantes de práticas discursivas,
os gêneros são profundamente vinculados à vida cultural e social de seus usuários; que
“mesmo apresentando alto poder preditivo e interpretativo das ações humanas em qualquer
contexto discursivo, os gêneros não são instrumentos estanques e enrijecedores da ação
criativa”.
As ações de linguagem se concretizam discursivamente dentro de um gênero textual
como um processo de decisão. Nas mesmas condições contextuais
35
, para um mesmo
referente, os discursos produzidos podem apresentar características diferentes, portanto um
gênero não pode ser visto, comungando com Marcuschi (2002), como uma forma fixa,
acabada, pois que implica uma dimensão heterogênea, ou seja, “uma dimensão dialogal que
um gênero estabelece com outro no espaço do texto” (BRANDÃO, 2002:38).
O que pretendo evidenciar, enfim, é que os gêneros são inúmeros, uma
pluralidade de discursos circulando em nosso cotidiano ou que fazem parte de nossa
cultura; que por estarmos inseridos em um contexto histórico-social e nos valermos de uma
35
Refiro-me aqui, e no decorrer destre trabalho, como define Van Dijk (2000), “ao conjunto de todas as
propriedades da situação social que são sistematicamente relevantes para a produção, compreensão ou
funcionamento do discurso e de suas estruturas”. Um contexto sociognitivo, em que duas ou mais pessoas, para
se compreenderem, necessitam que seus conhecimentos lingüístico, enciclopédico, estilístico,
sociointeracional, procedural etc. – sejam, no mínimo compartilhados.
58
prática de linguagem, estaremos a todo o momento fazendo surgir mais e mais novos
gêneros. Como observou Bakhtin (1990:279),
A riqueza e a variedade dos neros do discurso são infinitas, pois a variedade
virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta
um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à
medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa”.
“Fruto de trabalho coletivo, os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar as
atividades comunicativas do dia-a-dia” (Marcuschi, 2002:19). Dessa maneira, “quando
dominamos um gênero textual não dominamos uma forma lingüística e sim uma forma de
realizar lingüisticamente objetivos específicos em contextos particulares”. (MARCUSCHI,
2000:4).
Marcuschi (2002:23), de forma sintética, elenca os seguintes pontos sobre os
gêneros textuais:
1) são realizações lingüísticas concretas definidas por propriedades sócio-
comunicativas;
2) constituem textos empiricamente realizados cumprindo funções em situações
comunicativas;
3) sua nomeação abrange um conjunto aberto e praticamente ilimitado de
designações concretas determinadas pelo canal, estilo, conteúdo, composição e
função;
4) exemplos de neros: telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal,
romance, bilhete (...).
Por comungar com as idéias de cunho sócio-interacionista, esclareço que a noção de
gênero adotada neste trabalho é aquela assumida por Marcuschi (2002:19), qual seja, como
entidades sócio-discursivas e formas de ação social, que, embora ordenem e estabilizem as
atividades comunicativas diárias o que explica a sua regularidade, são caracterizados
como eventos textuais altamente maleáveis dinâmicos e plásticos.
Porém, é preciso levar em conta que os gêneros, uma vez socializados, não podem
ser considerados somente em sua forma, mesmo porque, segundo Marcuschi (2005), “forma
textual não é um gênero. Só sei que uma carta é carta se ela atender aos propósitos de uma
carta”
36
. É, então, fundamental que se perceba os fins a que tal texto se destina, pois como
posso falar em gênero se parece-me que os propósitos a que um texto se presta, sua
função, tem um valor maior que a forma?
36
Fala do Prof. Dr. Luiz Antônio Marcuschi, na abertura do 1º Encontro Mineiro de Análise do Discurso, realizado
no período de 22 a 24 de junho de 2005, na Faculdade de Letras da UFMG.
59
Como disse na introdução deste trabalho, acredito que as estratégias narrativas no
causo estão nos mecanismos textuais e enunciativos, de maneira que o mais importante é a
relação existente entre a forma e a função. Não a forma como um todo, esta estrutura
aparente que se estuda na carta, propaganda, telefonema, etc., pois podemos ter gêneros
diversos aproximados não pela forma, mas pelos efeitos de sentido
37
que esses gêneros
pretendem evocar. E isso pode ser percebido através das vozes, das modalizações
(aspectos tratados no cap. 3), enfim, de uma gama de mecanismos que prevêem, acima de
tudo, a função a que se presta tal gênero, naquele momento da enunciação.
Na verdade não temos limite para as funções, ou seja, uma vez que consideremos
os gêneros definidos por funções não teremos limites para ele, pois as funções são
ilimitadas. Teóricos e estudiosos do assunto têm tratado esse tema como uma classe
aberta, mas será aberta demais se nos atermos apenas em diferenciar um formato de outro,
pois não terão um fim. Nesse sentido, proponho trabalhar com o gênero entendendo-o,
também, como função, ou seja, penso poder considerar que (tomando a fala de Marcuschi
apontada anteriormente) os gêneros são determinados pelas funções a que se prestam. Se
assim o entendermos, uma combinação de funções permitiria um número grande de
construções, as quais, hoje, são chamadas de gênero X ou Y.
Em se tratando do “gênero” causo, fica mais fácil entender porque trabalhar as
estratégias narrativas em relação à função a que esta prática se presta, neste trabalho,
manter as crenças, valores e costumes de uma comunidade. Quando se pensa em contar
um causo, acredito que o contador não o faz pensando que se trata de uma prática
socialmente aceita e institucionalizada, mas que tem uma função. Esta função pode não ser
para manter uma tradição, mas para provocar o riso, amedrontar, etc., porém não deixará de
ser um causo.
Eu conto um causo, fábula, lenda ou parábola, por exemplo, em função do meu
interlocutor: se for criança conto, normalmente, uma fábula ou uma lenda, mas não,
necessariamente, uma parábola, pois ela é um pouco mais complicada de ser interpretada.
Do mesmo modo, posso contar uma fábula em função do conteúdo temático, do tipo de
assunto que está sendo discutido. Se for um tópico de cunho moral, ético ou estético, por
37
A expressão “efeitos de sentido”, no universo das discussões deste trabalho, remete à idéia básica de que o
“sentido do discurso é o seu efeito de sentido”, isto é, o que se produz na ordem da significação, pelo fato de ter
acontecido um determinado enunciado em determinadas condições de enunciação”. (Cf. POSSENTI, 2001) .
60
exemplo, dificilmente contaríamos uma parábola, mas um causo ou fábula, pois, certamente,
atenderia a esse propósito.
A questão do tipo textual, por sua vez, tem trazido uma certa confusão terminológica
e conceitual, provocando uma divergência entre os autores, sem contar que são, por vezes,
confundidos com gêneros. Este é, também, um ponto relevante para a caracterização do
corpus aqui em análise, portanto, faz-se pertinente expor as idéias dos autores e a posição
por mim assumida sobre o tipo textual.
A preocupação dos teóricos está em “precisar a que realidades do domínio da
linguagem a noção de gênero discursivo se refere, e, ao fazê-lo, acabam, por extensão,
fornecendo elementos que possam delimitar a noção de tipo textual (SILVA, 1999:92).
Noção essa que assume vários e diferentes valores, “conforme o corpus utilizado na análise
e os princípios tipológicos propostos pelas tipologias, bem como as teorias da linguagem
das quais essas derivam” (SILVA, 1999:88).
tipologias, como as elaboradas por Fávero & Koch (1987) e Van Dijk (1983), as
quais, guardadas as diferenças e propósitos, apontam cinco tipos textuais nomeados
tradicionalmente por narração, dissertação (expositivo), argumentação, descrição e
injunção; por Marcuschi (2002), a narração, argumentação, exposição, descrição e injunção;
por Bronckart (2003), a narração, descrição, argumentação, exposição e diálogo; e por Silva
(1999), a narração, descrição, dissertação/argumentação (em um mesmo bloco) e injunção.
Essas tipologias compõem a organização do texto, ou, nas palavras de Bakhtin (apud
SILVA, 1999:101), constituem a estrutura composicional do texto segundo os padrões do
gênero”.
No causo, por exemplo, podem aparecer em sua estrutura composicional vários
tipos textuais, tais como: a narração, para relatar os acontecimentos, os fatos e a
progressão das ações dos personagens; a descrição, para caracterizar ou dizer
como são os personagens, as ações praticadas por elas e o cenário em que as
ações estão se realizando (essas tipologias serão vistas no cap.3).
Para avançar um pouco mais nessa discussão, em concordância com Silva
(1999:101), acredito ser pertinente tratar os tipos textuais como modo enunciativo de
organização do discurso no texto; modo este que assume “uma função específica e
variável na constituição do texto, em razão da finalidade comunicativa que este
engloba”. Nesse sentido, nas seqüências narrativas do causo, por exemplo, a
ordenação cronológica dos episódios tende a ser mais dominante que em textos
jornalísticos; na descrição o fluxo da narrativa é suspenso para focalizar, em
detalhes, os personagens, suas ações, o cenário, etc., diferentemente de uma bula,
em que a descrição é modalizada, dentre outras, para enumerar de modo objetivo os
elementos ou aspectos que compõem o objeto descrito (Cf. SILVA, 1999:102).
61
Para Bakhtin, alguns textos produzidos na e pela sociedade, pertencentes aos
gêneros discursivos, possuem esquemas globais relativamente convencionais que
organizam a macroestrutura (plano semântico/tema) do texto. E são esses
esquemas, ou superestruturas, como pondera Van dijk, que contribuem para
caracterizar o tipo textual atualizado no texto. (SILVA, 1999:103).
Faz-se pertinente ressaltar que os modos discursivos, ou tipos textuais, assumem
formas e funções variáveis e específicas, de acordo com a natureza do gênero a que
pertence o texto, o que assegura nos causos (como se verá no cap. 3) estruturar-se, com
maior ou menor destaque, a partir de seqüências narrativas, descritivas e dialogais.
Um outro ponto a ser abordado, nesta seção, refere-se aos “domínios discursivos’’,
os quais, assevera Marcuschi (2000:107), são “caracterizados como instâncias sócio-
pragmaticamente definidas e institucionalmente vinculadas a situações da realidade das
práticas diárias”. Segundo o autor, é de acordo com o domínio discursivo que integram e a
modalidade lingüística (oral ou escrita) em que se instanciam que os gêneros podem se
agrupar, conforme quadro a seguir:
QUADRO 1
Gêneros textuais do “domínio discursivo” ficcional
D
OMÍNIO
D
ISCURSIVO
G
ÊNEROS
M
ODALIDADE DA
L
ÍNGUA
Ficcional
E
SCRITA
O
RAL
Poemas
Diários
Contos
(causos)
Mito
Peça de
teatro
Lenda
Parlendas
Fábulas
Romances
Dramas
Crônicas
Fadas,
caipira,
natal etc...
Fábulas
Contos
(causos)
Fadas, caipira,
natal, etc...
FONTE (recortada e adaptada): Marcuschi, 2000:107.
Levando em consideração a distinção entre gênero e tipo textuais, a noção de
domínio discursivo e a modalidade lingüística em que se instanciam, penso que os causos
62
populares configuram-se como um gênero do domínio ficcional, que se centram no tipo
textual narrativo e que se originam e se transmitem, principalmente, por intermédio da língua
falada.
Enfim, um texto singular ou empírico, ou seja, uma unidade concreta de produção de
linguagem, “pertence necessariamente a um gênero, composto por vários tipos de
discurso
38
(BRONCKART, 2003:77), e apresenta os traços das decisões tomadas pelo
produtor individual em função da sua situação de comunicação particular. Os textos seriam,
então, a atualização de gêneros, e essa atualização, como já se disse, se dá num evento de
interação.
É por tudo isso que, embora eu acredite que no causo haja traços lingüísticos,
textuais e discursivos regulares, que possibilitam uma caracterização do causo popular oral
como um gênero textual, neste trabalho, é preciso entender o gênero, também, como
função.
Nesse sentido, isto é, pensando na função dos causos, a Teoria dos Atos de fala,
também, se mostra uma entrada pertinente na tentativa de encarar o causo popular oral
como mantenedor da cultura e dos costumes familiares, o que veremos a seguir.
2.5 A interação social nos causos: um olhar pragmático
Além de interagirmos, também agimos por meio da linguagem, portanto: “’dizer’ é,
sem dúvida, transmitir ao outro certas informações sobre o objeto de que se fala, mas é
também ‘fazer’, isto é, tentar agir sobre o interlocutor e mesmo sobre o mundo circundante”
(CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2004:72).
Justifica-se, então, a pertinência em se analisar os atos de fala, pois, como
mantenedor da cultura e dos costumes, o causo popular oral pretende agir sobre o outro.
Numa perspectiva interacionista, considerando os enunciados como atos, o contador ao
instaurar um locutor que realiza os atos, não apenas age sobre o outro, mas tenta também
levá-lo a reagir, ou seja, “o dizer não é somente fazer, mas também fazer fazer”.
38
O que Bronckart (2003: 77) diz ser “tipo de discurso” deve ser entendido, aqui, como “tipo textual”, aspecto
que será discutido no capítulo 3.
63
Alinhando-me à noção de que os contratos regulam as atividades do dia-a-dia, são
eles que possibilitam a vida em comunidade, além de disciplinar nossa relação com o outro
(MARI, 2002).
Contar causos nunca caiu de moda, principalmente para os que vêem nessa tradição
linguageira a possibilidade de promover o intercâmbio dos valores da comunidade. Como
vimos no cap. 1, em tempos difíceis, como os em que vivemos, as pessoas começam a
sentir a necessidade de rever e confirmar esses valores e os causos são uma fonte
inesgotável de procedimentos éticos e morais. Porém, a cultura e os costumes estão
mudando.
Só para ilustrar, Dona Florentina
39
, por exemplo, ao contextualizar um de seus
causos, deixa claro que no tempo de sua avó a semana santa era uma semana santa
MESmo... uma semana de MUIta reflexão... uma semana de muita pieDAde... as pessoas
ficavam mesmo com MUIta vontade de encontrar com Deus, né?... [...] ninguém fazia
nada...” As próprias palavras de Dona Florentina reafirmam as mudanças e, portanto, a
necessidade de resgatar os costumes. Nessa passagem, pressupomos
40
que a semana
santa hoje é outra, que não se respeita mais essa semana como naquele tempo
(antigamente). Ao afirmar que era uma semana de MUITA reflexão, MUITA piedade, MUITA
vontade de encontrar com Deus, sentir MUITO forte a presença de Deus, hoje nada é tão
“muito” assim. Além disso a urbanização, a revolução tecnológica, o corre-corre do dia-a-dia
impedem que não se faça nada porque é um dia santo. Como deixar, por exemplo, de lavar
roupa ou fazer quaisquer outras atividades domésticas?
É nesse momento que os causos acontecem, porém, é preciso que o contador e o
ouvinte instituam um contrato, um acordo ficcional. Dessa forma, o ouvinte sabe que o que
estará sendo narrado é uma estória imaginária/fantástica (ou não), mas, nem por isso,
mentirosa. Isso é o que torna o contrato a base da produção narrativa dos causos.
Assim, entendo a necessidade de explicitar, primeiramente, algumas questões
acerca do contrato, sem ter, entretanto, a pretensão de longas incursões acerca de tais
39
Dona Florentina é (re)conhecida como uma contadora de causos da cidade de Itabirito-MG.
40
De acordo com Charaudeau e Maingueneau (2004:404) Em lógica, os pressupostos de um enunciado são
geralmente identificados às condições que permitem a esse enunciado receber um valor de verdade. Segundo
Martin (1976:38-40), a pressuposição... [se dá] da seguinte forma: a proposição p pressupõe a proposição q, se
q, que é necessariamente verdadeira se p é verdadeira, mantém-se necessariamente verdadeira mesmo quando
p é negada (exemplo: ‘Pedro impediu Maria de partir’, que pressupõe /Maria tentava partir/)” (grifos do autor).
64
questões, visto que serão caras ao entendimento do processo de construção do sentido.
Da leitura que Mari (1995) faz de Charaudeau (1994), tem-se que todo contrato deve
estar circunscrito a três tipos de dados. Os dados a que Charaudeau se refere são: a)
finalidade do ato empreendido pelo sujeito falante; b) a identidade dos parceiros; e c) o meio
utilizado para exprimir a informação.
Seguindo essa linha de raciocínio poder-se-ia dizer que os parâmetros apontados
por Charaudeau (1994, citado por MARI, 1995) fazem parte do gênero abordado, ou seja,
tendo a finalidade de manter a cultura e os costumes de um povo, os contadores se valem
dos causos como o meio utilizado para exprimir a informação/ensinamento à seus parceiros,
quais sejam: as pessoas da comunidade ou, no mínimo, os familiares.
Para este último parâmetro, Mari (1995) aponta o seguinte desdobramento: a
identidade dos parceiros, vista do ponto de vista da instância de produção e de recepção. O
contador, em relação à produção, se submete a três fatores de dificuldades: a) de ordem
quantitativa (em razão do tempo e espaço); b) de ordem qualitativa (em razão da
confiabilidade das fontes); e c) ainda de ordem qualitativa (em razão de um espaço de
atuação, tendo em vista um público próprio). Essas restrições são admitidas por Mari
(1995:43) como condições inerentes ao cumprimento de contratos, para o que ele explica:
“qualquer atividade de produção se mostrará comprometida com a extensão daquilo que se
produz, com a natureza da produção e com o alcance que se pretende obter, em relação à
concorrência”.
Segundo Mari (1995), o problema maior está na extensão desses mesmos critérios,
dessas mesmas categorias para validar a recepção.
Ainda que a necessidade de interpretar tenha se tornado algo corrente e natural nas
atividades de um cidadão nas circunstâncias em que nos conduzimos dia-a-dia
seria impossível sobreviver sem interpretar –, parece ser essa extensão natural o
fator de maior desconcerto para aqueles que buscam justificar o que um cidadão
comum faz, quando interpreta, em qualquer nível. (MARI, 1995:44).
Essa é uma das questões relativas ao causo popular oral enquanto mantenedor da
cultura e dos costumes familiares. Ao se contar um causo, o contador pretende provocar
uma ação no ouvinte, ou seja, uma atitude/atividade perlocucional, portanto, é de
fundamental importância a interpretação/significação que o ouvinte atribui ao que foi ouvido.
A idéia de que a linguagem seria uma forma de ação e não de representação da
realidade, foi colocada por Austin e tida como uma de suas principais contribuições referente
65
aos Atos de fala. Na verdade “o sentido de um enunciado não pode ser estabelecido apenas
através da análise de seus elementos constituintes. Ao contrário, são as condições de uso
do enunciado que determinam o seu significado” (SILVA, 2004).
Os três tipos distintos de ação lingüística propostos por Austin são: a) Ato
locucionário (enunciado com determinado sentido ou referência; b) ato ilocucionário (o
falante atribui a esse conteúdo proposicional uma determinada força: a realização de uma
afirmação, oferecimento, promessa, ordem, num determinado contexto); e c) ato
perlocucionário (o falante exerce certos efeitos sobre o ouvinte por meio do enunciado.
Searle – discípulo de Austin – propôs a seguinte tipologia dos atos de fala:
i) assertivo: compromete o falante com a verdade expressa na proposição (dizer,
asseverar);
ii) diretivo: compromete o interlocutor ao tentar levá-lo a fazer algo (pedir, mandar,
ordenar);
iii) comissivo: compromete o falante com uma ação futura (prometer, ameaçar);
iv) expressivo: expressa um estado psicológico (agradecer, congratular);
v) declarativo: muda o estado institucional, tende a se apoiar em instituições
extralingüísticas (excomungar, declarar guerra, condenar, demitir)
Searle recebeu muitas críticas
41
em relação a essa tipologia, dentre elas, a
simultaneidade dos atos locucionários, ilocucionários e perlocucionários que, entretanto,
é um fato a ser relevado em relação aos causos, visto que o enunciado produz no
interlocutor certos efeitos, ainda que não aqueles que o locutor tinha em mente, pois a
interpretação depende de crenças mútuas contextuais.
É nesse ponto que retomaremos o contrato, pois para que a interação se estabeleça
é necessário que o alocutário saiba as condições pré-estabelecidas, isso porque, como
disse, há uma tradição linguageira na cultura popular que se dá através da troca de
experiências. Tais experiências, além de repassadas de geração a geração, através de
causos, são também reelaboradas tanto por aqueles que as contam quanto por quem as
escuta, mantendo
assim, as tradições.
Segundo Burke (1995:41), a ngua “é uma força
41
Algumas das críticas referem-se ao fato de que: a) falta na tipologia proposta uma gama de atos de fala
usados no dia a dia, b) Searle separa expressões linguisticas (sentenças) do seu uso no contexto (enunciado), c)
o autor não levou em conta que todo ato de fala é simultaneamente locucionário, ilocucionário e perlocucionário,
o que faz com que um enunciado seja dotado de determinada força.
66
ativa na sociedade, um meio pelo qual indivíduos e grupos controlam outros grupos ou
resistem a esse controle, um meio para mudar a sociedade ou para impedir a mudança,
para afirmar ou suprimir as identidades culturais”.
Nesse jogo, como afirma Searle (1981:26), “falar uma língua é executar atos de fala”.
Portanto, é na relação entre o locutor e o dizer que os atos locucionários, ilocucionários e
perlocucionários contribuem para que através da língua se mantenha a cultura e os
costumes familiares.
O contrato, no entanto, não tem exclusividade sobre o locutor, antes, ele é, na
recepção, um espaço de restrições e de estratégias. Em outras palavras, “o leitor não é livre
ao construir uma interpretação (restrições), mas dispõe de algum espaço de manobra para
um reajuste singular de sua leitura (estratégias)”. (MARI, 1995:47).
Na estrutura narrativa do texto, em seu processo de enunciação, aspectos como a
identidade dos locutores, as condições de produção, as finalidades, etc. é que contribuem
para a totalidade do sentido que o ouvinte/leitor atribui ao texto.
É certo que em qualquer texto existem limites para que o sentido seja construído e
que é a língua que fornece as restrições que impõe a interpretação, mas não temos domínio
sobre a mente do outro. Assim, embora qualquer predição sobre a interpretação seja
arriscada, os atos de fala têm muito a contribuir para o entendimento do processo de
significação entre locutores e alocutários (como se verá na seção 3.3.1.1 do capítulo 3, ao
abordar a macroestrutura social).
Se, como disse anteriormente, os causos orais são manifestações populares que
fazem parte da vida daqueles que se reúnem para, através do causo, trocar experiências, os
atos de fala são estruturas sociais responsáveis pela hierarquização estrutural dos contextos
em que essas experiências são socializadas.
2.6 Linguagem, História e Discurso na Obra Literária
Destacadas as noções de linguagem, língua, texto e discurso, necessário se faz
relacionar a linguagem e literatura, visto que o causo é tido como um gênero textual
pertencente ao domínio literário.
Vimos, no capítulo 1, a relação entre linguagem e sociedade. Foi possível perceber
67
que a linguagem é um elemento constitutivo de todos os quadros sociais, o que possibilita a
interação entre os sujeitos. Aqui, trataremos da relação entre literatura e linguagem.
Questões oriundas da Antiguidade contribuirão para um melhor entendimento e realização
das análises lingüísticas propostas neste trabalho.
Comecemos, então, pela definição de literatura e linguagem literária, proposta por
Coelho (1976:XIX): Literatura “é uma experiência ou vivência humana transformada em arte
pela Palavra, e como tal, é uma forma peculiar de conhecimento”. A linguagem literária e a
científica são vistas por alguns autores, dentre eles Coelho (1976:14), como as
diferenciações básicas da linguagem tida como culta. Segundo a autora, a linguagem
literária é “aquela que busca expressar estilisticamente a beleza, a emoção ou a verdade
essencial de uma realidade ou experiência” e a linguagem científica é a mensagem verbal
(...) que busca transmitir informações, idéias ou mais especificamente um conteúdo, seja de
que natureza for...”. Como não há nenhuma função lingüística em estado puro, o que
classifica uma linguagem como literária ou não é a intencionalidade do texto.
Ao tratar das funções da literatura, Coelho (1976:31) assevera que as múltiplas
funções da literatura podem ser agrupadas em duas correntes: as que exercem uma função
estética ou não utilitária, seriam aqueles que visam atingir a emoção ou apenas divertir o
leitor (poesia, teatro, romances...); e as que exercem uma função ética ou utilitária, seriam
aquelas que buscam ensinar, aliciar ou convencer (oratória, ensaística, crítica literária,
literatura moralizante...). Assim como a classificação da linguagem, não é o gênero literário
que decide a função da obra, mas a intencionalidade essencial que a orienta.
Tomo as palavras de Horácio, in Coelho (1976:31), para falar das duas funções
básicas da literatura, tal como a conhecemos desde a Antiguidade Clássica até os dias
atuais: ensinar e divertir:
Os poetas querem ser úteis ou deleitar,
Ou – ao mesmo tempo – dizer da vida que é agradável e útil.
(...)
Ficção cujo fim é alegrar deve se aproximar da verdade.
(...)
Tem todos os votos quem mistura o útil ao agradável,
E – ao mesmo tempo – deleita e instrui o leitor.
Para que se entenda melhor a origem dessas funções (segundo as lições de
Horácio), vale lembrar que na Antiguidade greco-latina a literatura se confundia com a
gramatiké dos gregos, cuja significação era ‘a arte pragmática da leitura e da escrita’. E foi
68
do pragmatismo da leitura e da consciência de que a arte imitava a vida real que surgiu a
função imediatista e utilitária da arte. Hoje, são múltiplas as interpretações sofridas pelo
fenômeno literário e, conseqüentemente, as funções também.
Dentre elas temos: a função lúdica, a cognitiva, a libertadora do ‘eu’ e a pragmática.
Esta última nos interessa sobremaneira, pois, além de ser a mais importante, atribui à
literatura uma finalidade prática ou utilitária. Suas intenções pragmáticas podem ser: “a)
convencer um auditório de alguma coisa (oratória sacra e profana), b) ensinar ou esclarecer
um problema (conferências, ensaios, etc.), c) atrair adeptos para uma ideologia (literatura
engajada a serviço da política ou da religião), d) difundir um elenco de valores morais ou
sociais, aceitos por determinada sociedade” (COELHO, 1976:32). Essa última nada mais é
que a função primeira do causo, assumida e já mencionada no capítulo I deste trabalho.
Se as funções da literatura são passíveis de uma definição, aparentemente,
tranqüila, o mesmo não acontece em relação ao conceito de gênero literário, pois que “tem
sofrido múltiplas variações históricas desde a Antiguidade Helênica até os nossos dias, e
permanece como um dos mais árduos problemas da estética literária” (COELHO, 1976:39).
Apesar das tantas transformações, uma série de elementos estruturais que concorrem
para a determinação do gênero em uma obra. A manutenção da tripartição (obras líricas,
épicas e dramáticas) estabelecida pelos gregos, permanece até hoje, não mais por sua
linguagem metrificada ou por seus princípios estéticos, mas, sim, por sua obediência à
presença de dois fatores essenciais: “a maneira usada para a imitação (ou representação)
da realidade, o objeto dessa imitação ou a faceta daquela realidade, escolhida para a
transfiguração artística” (COELHO, 1976:40) (grifo do autor).
Os grandes gestos em direção ao Ideal, a contemplação interior, o relacionamento
cotidiano com o próximo e a consciência crítica são as atitudes assumidas pelo homem na
luta por sua auto-afirmação. É segundo essas atitudes que nascem os diferentes gêneros,
dentre eles o causo (em se comparando ao conto). Nele, valendo-me das palavras de
Coelho (1976:45):
o contador
42
se volta para o mundo exterior, focalizado como o espaço das relações
humanas, do homem situado no dia-a-dia em face da comunidade, reagindo a todos
os problemas suscitados por esse relacionamento com o ‘Outro’, com o ‘Tu’ que,
somado ao ‘Eu’, resulta no ‘Nós’, que constitui o mundo social.
42
No texto original consta “escritor”
69
A determinação de cada forma literária depende de uma inter-relação de três fatores:
a natureza da linguagem em que está vazada; a estrutura do seu contexto verbal; e a faceta
da realidade escolhida pelo escritor/contador. Da caracterização geral dos gêneros e suas
formas correspondentes poesia, teatro e ficção interessa-nos a ficção, cuja definição é:
“narrativa escrita em prosa literária (...), estruturada em longos ou breves capítulos (ou
partes) e que, segundo Littré, procura excitar o interesse pela pintura das paixões, dos
costumes ou pela singularidade das aventuras” (COELHO, 1976:49). Porém, a autora ainda
acrescenta que o sujeito não e interpreta o mundo das relações sociais calcado na
realidade, ele, também, a constrói com elementos da imaginação e da fantasia.
A obra literária, sob uma perspectiva mais geral, é ao mesmo tempo uma história e
um discurso. “Ela é história, no sentido em que evoca uma certa realidade, acontecimentos
que teriam ocorrido, personagens que, deste ponto de vista, se confundem com os da vida
real” (TODOROV, 1971:213). Sendo história, poderia ter sido narrada oralmente por uma
testemunha ou relatada por um filme, por exemplo. Porém, da perspectiva do discurso, a
história é relatada por um narrador a um leitor/ouvinte. Nesse sentido, segundo Todorov
(1971:214), “não são os acontecimentos relatados que contam mas a maneira pela qual o
narrador nos fez conhecê-los”.
A história, no entender de Todorov (1971:215), é “uma convenção, ela não existe ao
nível dos próprios acontecimentos. (...) A história é uma abstração pois ela é sempre
percebida e narrada por alguém, não existe ‘em si’”. A história não pertence à “vida”, mas a
um universo imaginário que só conhecemos, por exemplo, através de um livro.
Pensando-se na narrativa como discurso, Todorov (1971:234) propõe separar os
procedimentos do discurso em três grupos: “o tempo da narrativa, onde se exprime a
relação entre o tempo da história e o do discurso; os aspectos da narrativa, ou a maneira
pela qual a história é percebida pelo narrador; e os modos da narrativa, que dependem do
tipo de discurso utilizado pelo narrador para nos fazer conhecer a história”.
Tais procedimentos serão abordados na seção 2.7.1.3 ao tratar do discurso da
narrativa no causo, antes, proponho, através da história, esclarecer o que chamo de causo
popular oral”.
70
2.7 O causo
Para tentar entender a origem dos causos e, por conseguinte, dos contadores,
busquei na literatura grega as manifestações poéticas que durante séculos de transmissão
foram de caráter oral. Dentre elas, a mais estudada e discutida refere-se à poesia épica de
Homero
43
, reconhecido por alguns estudiosos como sendo um aedo e poeta oral
44
. Além
dele, Heríodo também foi um aedo conhecido.
Trago à baila a questão dos aedos (ou dos rapsodos), pois vejo uma relação
interessante entre eles e os contadores. O aedo, cantador (na épica cantada), era um
educador dos gregos, e era visto como vinculado a uma corporação ou à corte de um
príncipe, adquirindo um prestígio considerável. Para Hartog (2005), “o aedo é o distribuidor
da glória e o ordenador da memória do grupo”. O rapsodo, recitatador (na épica recitada),
não cantava, mas, com um bastão
45
na mão, recitava levantando a voz. Eles tinham uma
memória
46
extraordinária e se encontravam relacionados a um texto falado, que, supõe-se,
em épocas antigas constituía um valioso patrimônio de algumas famílias e grêmios, embora
tal dependência dos textos não seja absoluta.
Assim são os contadores, natos ou profissionais: não cantam como o aedo, mas,
como os rapsodos, deixam suas marcas na prosódia. Em outras palavras, eles interpretam,
ou, como dizem os franceses, discuse (falam dramaticamente). A memória
47
dos
contadores, também, é invejável e seu prestígio se encontra exatamente no seio da
sociedade, lugar de onde os causos são tomados.
43
"A importância de Homero na literatura grega é enorme. Ele é considerado o primeiro poeta, o primeiro aedo.
Platão, séculos depois de Homero, ainda dizia que Homero educou a Grécia. Quer dizer, a influência da tradição
oral Homérica foi muito forte em toda a cultura grega”, analisa a professora de Letras Clássicas e Vernáculas da
FFLCH-USP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo),
Filomena
Hirata, citada por Brasil (2005).
44
Não entrarei, aqui, nas questões relacionadas à existência ou não de Homero, para o que muitos críticos
afirmam ser apenas um “nome”. Cito-o, apenas, no intuito de buscar a origem dos causos e, conseqüentemente,
de seus contadores.
45
De acordo com Souza (2005), o bastão ou “cetro feito com ramo de loureiro representa o símbolo do poder
entre os aedos e rapsodos. O portador do cetro de loureiro, o aedo, ‘é o senhor da Palavra eficaz e atuante’
(Torrano, 1995, p.27) transmitida pelas Musas tornando-se apto a cantar, como elas, o mundo dos deuses e dos
homens, assim como o presente, o passado e o futuro”.
46
Na literatura grega, a Memória (Mnemosýne) é capaz de resgatar os acontecimentos esquecidos e revelá-
los às suas filhas, as Musas. Estas, por sua vez irão transmiti-los a seus legítimos representantes no mundo dos
homens, os aedos. (cf. SOUZA, 2005).
47
Refiro-me, aqui, à “memória” biológica, física, neural.
71
Homero, tinha em suas poesias um parâmetro ético-político que se sustentava entre
o heroísmo guerreiro e a confrontação com a verdade dos deuses; o tom da poesia
hesiódica, por exemplo, era moralizante, religioso e didático. As poesias tinham a pretensão
de narrar trechos verdadeiros, e eram cantadas, em geral, nos círculos da classe alta de
cavaleiros sendo, mais tarde, convertidas em patrimônio da comunidade. Assim, também, o
é o causo: possui um tom moralizante, religioso e didático, visto que contado com a função
de manter as tradições, mas, diferentemente das poesias gregas, os causos não estão
vinculados a uma classe social específica. Quanto à questão da verdade ou mentira, como
já discutido na introdução deste trabalho, não entrarei nesse mérito.
Os discursos dos aedos desempenham um papel importante no relato. Todavia, o
traço principal constitui o papel dominante de elementos típicos. Dentre estes se encontra o
adjetivo tópico, que se repete mais de uma vez, e as cenas características, tais como os
preparativos, a partida, os casamentos e os funerais. Trata-se de uma arte artesanal, em
que, como assevera Siles (2005), o mestre transmite ao discípulo ou, como ocorre com
freqüência, o pai ao filho, o que se assemelha ao causo (ponto já abordado no capítulo 1).
Homero resgatava e recriava para sua época as leis, os costumes e as tradições do
tempo passado. Hesíodo, por seu lado, além do passado, falava dos acontecimentos
vivenciados por ele mesmo, em seu próprio tempo, e ainda do futuro. Assim como os aedos,
o contador tem o dom de “cantar” o passado, o presente e o futuro. Os causos são
resgatados do passado, atualizados para o presente, muitas vezes tratam de situações ditas
acontecidas pelos próprios contadores, o que confere uma maior veracidade ao que está
contando, e também “canta” o futuro, visto que a moral contida nos causos, na verdade,
configura-se sempre em ensinamentos em relação ao futuro (não faça/aja/fale X, senão
acontecerá Y)
48
.
Além das questões abordadas acima, outra se faz importante em minha
investigação: a palavra grega mythos. O primeiro sentido do termo em grego é de discurso,
narrativa. Inclusive o verbo que vem daí é o verbo normal antigo, em Homero, que significa
falar, narrar. Então, numa primeira aproximação, mito é uma narrativa qualquer, como afirma
Brandão
49
, citado por Brasil (2005).
48
Essa questão será melhor abordada durante a análise feita no capítulo 4.
49
Jacyntho Lins Brandão é professor de Língua e Literatura da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
72
Penso, então, ser possível dizer que, trazendo traços da literatura grega, os causos
são discursos, narrativas que, assim como os poemas de Homero, “têm a função social de
reunir o saber, os padrões de comportamento, as informações que interessam à vida em
todos os sentidos” (BRASIL, 2005).
O que me proponho a fazer nas seções seguintes é tentar esclarecer o que vem a
ser narrativa, como se sua configuração estrutural, e dentro desta estrutura, verificar o
funcionamento do tempo, aspecto, modo e voz no discurso da narrativa, pontos de suma
importância na análise que será feita no capítulo 4, sobre as estratégias narrativas no causo
popular oral.
2.7.1 A narrativa
As narrativas, sejam elas dos mitos e lendas ou de todas as narrativas cotidianas da
vida familiar, dos romances literários, etc., sempre tiveram seus espaços reservados não
em nossa cultura brasileira como em várias outras. Ao fazer um estudo dessas narrativas
para poder compreendê-las e interpretá-las – foi possível encontrar uma variedade de
teorias e, também, grandes diferenças entre elas. “Algumas dessas teorias devolvem-nas à
história, outras tratam de abordá-las de um ponto de vista sociológico ou psicanalítico,
outras ainda estudam as formas e as funções da gênese das narrativas pela criança etc.”
(REUTER, 2002:9). Isso sem falar nos que estudam as condições de recepção das
narrativas, ou, até mesmo, as narrativas em si mesmas.
Neste trabalho, como dito anteriormente, valho-me não das teorias sócio-
filosóficas, antropológicas e etnometodológicas, como, também, das teorias lingüísticas, a
fim de analisar as estratégias narrativas utilizadas pelos contadores de causos. Nesse
sentido, o trabalho abordará as narrativas como objetos lingüísticos, que apresentam formas
e princípios de composição comuns, mas que, vistos em sua produção e sua recepção,
podem provocar efeitos de sentidos diferentes, e através desses efeitos, auxiliar o contador
a manter as crenças e os costumes de sua comunidade.
Do ponto de vista da abordagem narratológica, podemos analisar os causos pelo
viés de sua construção formal, dos conteúdos apresentados; pelo ponto de vista de suas
73
relações com a enunciação, poderíamos pensar no que eles revelam sobre sua época,
como são percebidos, quais efeitos de sentido podem provocar, com qual intenção etc.
Necessário se faz, porém, observar que é importante para a análise proposta levar em conta
a organização do texto; estar ciente de que muitas vezes o sentido de um enunciado
dificilmente poderá ser reconstruído fora de sua relação com a enunciação; e que a
enunciação deixa sempre traços
50
no centro do enunciado.
Antes de prosseguirmos, é importante esclarecer que no estudo das narrativas, não
se pode confundir ficção e referente, autor e narrador e, também, leitor e narratário.
Segundo Reuter (2002:17), a ficção pode ser definida como “a história e o mundo
construídos pelo texto e existentes apenas por suas palavras, suas frases, sua organização
etc.” e o referente seria o não-texto, ou seja, “o mundo real (ou imaginário) e nossas
categorias de apreensão do mundo que existem fora da narrativa singular, mas às quais
esta se remete”. No entanto, o autor explica que não é fácil manter essa divisão, pois toda
palavra ou toda história, por referir ao nosso universo, só pode ser compreendida em
relação a ele e às nossas categorias de apreensão do mundo.
Outro ponto são as narrativas comuns, como por exemplo a dos causos, que
desejam ser realistas ou, no mínimo, baseadas no real, no que realmente teria acontecido.
Retomo aqui a questão da realidade: Koch (2003:77) pondera que para Blikstein o que
“julgamos ser a realidade [legítimo/verdadeiro] não passa de um produto de nossa
percepção cultural”, ou nas palavras de Reuter (2002:18) “trata-se de efeitos do real,
produzidos por meio do texto, mediante diversos procedimentos”. O autor ainda coloca que
a noção de ficção não mantém “nenhuma relação com categorias, tais como
verdadeiro/falso, real/imaginário etc. Da ficção de uma narrativa se dirá, portanto, que a
história é verdadeira ou falsa, real ou imaginária etc”.
Quanto ao autor, Reuter (2002:19) afirma ser “um ser humano que existiu ou existe,
em carne e osso, no nosso universo” e que o narrador “aparente ou não – só existe no texto
e mediante o texto, por intermédio de suas palavras”. Embora Reuter esclareça que o
narrador é um enunciador interno, ou seja, aquele que conta a história (no texto), falarei
mais detalhadamente sobre esse assunto na seção 2.8.1.3.4 deste capítulo, ao tratar das
50
Tem-se como traços da enunciação o jogo dos pronomes, o sistema dos tempos, a escolha dos indicadores de
tempo e lugar, as marcas de subjetividade ou dos valores, etc. e serão abordados no cap.3 deste trabalho, ao se
analisar as estratégias narrativas.
74
vozes.
Sobre o leitor, Reuter (2002:20) diz que, assim como o autor, “é um ser humano que
existiu, existe ou existirá, em carne e osso, no nosso universo” e o narratário, “aparente ou
não existe no texto e mediante o texto, por meio de suas palavras ou daquelas que o
designam”.
Esclarecidas as diferenças entre ficção e referente, autor e narrador e, também, leitor
e narratário, podemos voltar a questão da organização da narrativa. Os níveis de análises
apontados ficção, narração e produção do texto (assim como as categorias diferenciadas
acima) serão retomados ao tratarmos do discurso da narrativa, na seção 2.8.1.3, mas antes,
vejamos o que mais fala Reuter (2002) sobre esses níveis.
Para o autor (2002:21-22), a ficção, que como veremos é também conhecida como
diegese, “remete aos conteúdos reconstituíveis, que são postos em cena: o universo
espaço-temporal, a história, as personagens...”; a narração “remete às escolhas técnicas – e
de criação que organizam a produção da ficção, seu modo de apresentação: o tipo de
narrador, o tipo de narratário, a perspectiva escolhida, a ordem adotada, o ritmo etc”; e a
produção do texto “remete às escolhas lexicais, sintáticas, retóricas, estilísticas, por meio
das quais a ficção e a narração se realizam”.
Esses níveis, embora possuam certa autonomia, estão em constante interação, e
suas distinções podem permitir especificar os fenômenos textuais ou apontar características
dominantes. Para que se possa entender melhor o que se propõe nesta seção, com relação
as noções propostas, escolhi um causo contado pelo Sr. Jovelino, da cidade de São
Bartolomeu/MG em 23/jul/2004 para uma breve exemplificação:
05
10
15
Tinha um home que ele tinha três fio: uma chamava Perna, ôta Barriga, ôto
chamava Braço. Aí, todos três crecero, casaro, mudaro e chegava assim
numa estrada, dividia a estrada no arto, em cima, as três incruziada: ia pra
casa duma fia, ia pra casa do fio, ia pra casa da ôta fia. Quando fêis uns dois
mês, a muié falô:
– Ô marido, os fio num parecero. Vão passiá na casa deles?
Falô: – Vão
Aí, chegô num arto, em cima, falô:
– Aqui nóis tem que vê. Pra onde nóis vão?
Falô:
– Vão lá na casa do Braço? – Vão.
Chego lá, quando o Braço viu que dispontô, longe...
Ô muié, tira esse feijão do fogo que cuzinhano, põe fava que os véi
evém lá.
Tratô deis de fava os três dia. Falô:
– Muié, aqui tá bom não. Vão imbora.
( ) Chegô no arto ôta veiz, falô:
75
20
25
30
Agora vão na casa da... na casa da... Barriga (dêxa eu se é isso mesmo.
Não) na casa da Perna.
Chegô lá, quando a Perna viu, falô:
Ô marido, papai e mamãe vem lá. Tira essa carne que cozinhano ( ) vai
lá na horta, panha... põe na... vão fazê um mingau de côve pra eis.
Ficô lá uns dois dia só, falô:
– Muié, o negócio tá bão não. ( ) Agora vamo na casa da Barriga. ( )
Quando a Barriga viu que eis dispontô no arto:
Ô marido, tira esse feijão que cozinhano, põe carne pra cuzinhá. Papai e
mamãe vem lá. Coitado, ó! Tem treis mêis ques num vem cá.
Tirô, pôs cuzinhá, recebeu e ficarne treis mêis. ( ) Ih! Ficaro muito
sastifeito. No dia qu’eles fôro imbora, chegaro nas três incruziada, no arto, ele,
uuu..., u home, a muié falô:
A praga que eu rogo, a Perna e o Braço trabaia toda a vida pra Barriga
cumê.
Intão a praga pego nóis tudo. A perna e o braço trabaia pra barriga cumê.
A ficção neste causo é muito simples. Três filhos se casam e seus pais vão visitá-los.
Durante a visita, a mãe percebe quem são seus filhos e na volta para casa resolve rogar
uma praga nos que a trataram mal. Nesse causo, assim como nas fábulas, a dimensão da
parábola está acima do realismo, ou seja: poucas indicações de tempo e lugar talvez
por seu caráter abstrato –, e seres inanimados são símbolos de condutas e tipos humanos
(braço, perna e barriga como nome dos filhos).
A narração, a partir de um conjunto de escolhas de exposição, vai revelando suas
características: a ordem cronológica é respeitada; um resumo de ações (por exemplo na
linha 02: Aí, todos três crecero, casaro, mudaro...”); elipse do que aconteceu durante os
dias de estadia em cada casa, poucas palavras; escolhas lexicais (predominância do
discurso direto (linha 6: “Ô marido, os fio num parecero
.
Vão passiá na casa deles?”),
mediadas pelo relato do narrador (linha 28: Tirô, pôs cuzinhá, recebeu e ficô carne treis
mêis
”).
No corpo do causo, o narrador é pouco aparente, embora seja possível reconstruí-lo
como onisciente (ele sabe tudo o que aconteceu; conhece os sentimentos dos pais linhas
28 e 29: Ih! Ficaro muito sastifeito...”); o narratário, também, não é explícito. Em
compensação, na “moral da história” linha 33 o narrador aparece explicitamente
(discurso em “nós”), dirigindo-se ao(s) narratário(s) designado(s) por “você(s)” (já que “nós”
caracteriza, no mínimo, “eu” e “você”), porém, na linha 18 uma revelação do narrador
(discurso em “eu”); e uma moral a ser extraída. No entanto, assim como na ficção, o
narrador e o narratário são constituídos somente pelos signos textuais, pois, nem o Sr.
Jovelino nem as pessoas em geral estão sob os nossos olhos.
A criação/produção do texto revela, dentre outras, características próprias da fábula,
tanto como gênero (história e moral) quanto pelo léxico, tempos verbais e outros. São esses
76
níveis que, de acordo com Reuter (2002:26), “permitem categorizar os fenômenos textuais”.
Essas questões poderão ser melhor observadas na análise feita no capítulo 4.
2.7.1.1 Da configuração estrutural da narrativa
Segundo Jolles (s.d.:13), a missão da ciência da Literatura é estética, histórica e
morfológica, ou seja, “a ciência literária procura interpretar os fenômenos literários segundo
a sua beleza, o seu sentido e a sua forma”, fazendo-os serem compreendidos em sua
totalidade.
No Séc. XVIII a investigação era estética acarretando na teoria dos gêneros
literários. Os representantes dessas escolas realizavam pesquisas sobre as leis e os efeitos
estéticos de certas categorias, consideradas gêneros principais e, dentro desses, buscavam
delimitar e determinar alguns subgêneros, embora não faltassem censuras a tal método.
Nessa época, os teóricos de estética tentavam se adaptar ao espírito moderno da
teoria da Arte herdada da antiguidade, e, “ao fazê-lo, empenharam-se em definir certas
noções de gêneros e estabelecer o significado estético desses gêneros e da própria
Literatura”. (JOLLES, s.d.:14).
Como homem, o poeta era um produto da raça, do meio, do tempo, da
hereditariedade, das circunstâncias econômicas ou de outras circunstâncias...” (...)
Expliquemos o homem dizia-se –, consideremo-lo filho de seus pais, neto de seus
avós, criatura de sua época, engendrado por um meio e exposto à influência das
circunstâncias; decomponhamo-lo ainda em sua psicologia e vejamos como esse
todo condicionado rege os acontecimentos exteriores teremos então esclarecido a
gênese de suas obras. Assim, pensou-se durante algum tempo que essas obras não
tinham outro sentido senão ser a expressão, lograda por um talento incomum, de
todas as condições histórico-culturais que haviam convergido numa individualidade.
(JOLLES, s.d.:16).
Para o autor (s.d.:20) Caso e Conto fazem parte do que ele considera “formas que
não são apreendidas nem pela estilística, nem pela retórica, nem pela poética, nem mesmo
pela ‘escrita’, talvez; que não se tornam verdadeiramente obras de arte, embora façam parte
da arte...”. Não se pode deixar de esclarecer, no entanto, que esta visão foi abordada por
André Jolles, em seu trabalho monográfico “Formas Simples” um ano depois da
publicação da obra de Propp, intitulada “Morfologia do Conto”, cuja abordagem
desconsiderava o conto como uma substância simples indecomponível.
77
Embora o interesse dedicado aos problemas das formas artísticas, folclóricas e
outras fosse enorme, Propp, nos anos vinte, “foi o único a aprofundar o estudo da forma do
conto e a evidenciar-lhe a estrutura” (MÉLÉTINSKI, 2003:233). Sua obra é modelo de
análise estrutural - primeiramente dos textos folclóricos e mais tarde de outros textos
narrativos -, além de uma influência considerável nos trabalhos de semântica estrutural.
Depois de Propp, vários foram os estudiosos desse tema. Dentre eles podemos citar,
Labov e Waletzky (1967), Van Dijk (1984, 2000), e Bronckart (2003). Através desses
autores, foi possível caracterizar a estrutura textual em três partes (separadas por questões
metodológicas): a superestrutura, a macroestrutura e a microestrutura. O estudo detalhado
de cada uma dessas partes será abordado nos capítulo 3 deste trabalho.
2.7.1.2 As categorias de pessoa, espaço e tempo na análise das narrativas
As línguas e a linguagem inscrevem-se num espaço real, num tempo histórico e são
faladas por seres situados nesse espaço e nesse tempo.
Como dito na seção 2.3.1, o discurso é ‘um todo de significação’, portanto,
constituído pela enunciação. Para enunciar o sujeito precisa ter certas competências, assim
como, ao enunciar, estabelecer contratos com o enunciatário.
Trago a baila Fiorin (1996:32), para elencar as competências necessárias para o
sujeito enunciar:
i) lingüística (“competência básica para produzir um enunciado: o falante deve
conhecer a gramática (...) e o léxico de uma língua...”);
ii) discursiva (“engloba uma competência narrativa...”);
iii) textual (“que concerne ao saber utilizar a semiótica-objeto em que o discurso
será veiculado...”);
iv) interdiscursiva (“diz respeito à heterogeneidade constitutiva do discurso”);
v) intertextual (“se refere às relações contratuais ou polêmicas que um texto
mantém com outros ou mesmo com uma maneira de textualizar...”);
vi) pragmática (“concerne aos valores ilocutórios dos enunciados”); e
vii) situacional (“diz respeito ao conhecimento referente à situação em que se
78
a comunicação e ao parceiro do ato comunicativo”).
Quando se produz um enunciado, o estatuto de verdade do texto é determinado pela
"convenção fiduciária" (Fiorin, 1996:35) estabelecida entre enunciador e enunciatário. Essa
convenção/acordo apresenta dois aspectos: o primeiro diz respeito a como o texto deve ser
considerado do ponto de vista da verdade ou mentira e da realidade ou ficção, ou seja,
quais procedimentos determinam esses estatutos, visto que podem variar de cultura para
cultura ou de grupo social para grupo social
51
; O segundo aspecto aponta para como devem
ser entendidos os enunciados, ou seja, através das marcas discursivas é possível perceber
se o enunciado X deve ser interpretado como X ou como não-X. Na verdade, podemos fazer
com o texto um contrato enunciativo de identidade e um de contraditoriedade, pois são eles
que determinam se entenderemos o enunciado como foi dito ou ao contrário. (Fiorin,
1996:35).
Manar Hamad
52
, citado por Fiorin (1996), propõe considerar o conjunto enunciativo
que envolve todas as marcas de enunciação constantes no texto como uma totalidade
estrutural. Nesse sentido, Fiorin (1996:36) conclui que teríamos dois conjuntos no texto-
objeto: “A enunciação enunciada, que é o conjunto de marcas, identificáveis no texto, que
remetem à instância de enuncição” (pronomes pessoais, demonstrativos, possessivos,
adjetivos e advérbios apreciativos, dêiticos espaciais e temporais); e “o enunciado
enunciado, que é a seqüência enunciada desprovida de marcas de enunciação”.
“O enunciador pode, em função de suas estratégias para fazer crer, construir
discurso em que haja um desacordo entre essas duas instâncias” (FIORIN, 1996:39)
[enunciado e enunciação] e esse conflito se dá entre a enunciação enunciada e o enunciado
enunciado.
Por fim, Fiorin (1966:40) recupera Courtès
53
(1989:49) para dizer que enunciados
que são um simulacro da enunciação, ou seja, a enunciação reportada “corresponde a um
simulacro (...) da relação entre enunciador e enunciatário”, criando diferentes efeitos de
sentido, diferentemente da enunciação enunciada, que “é a maneira pela qual o enunciador
51
Esse aspecto é ilustrado por Fiorin (1996:35) com base em nossa cultura. Segundo o autor, histórias que
contenham o frame ‘história de pescador’ são mentira; com o protocolo ‘Era uma vez...’ são irreais; de santos e
de cristo a verdade ou ficção depende se o sujeito é crédulo e, também, da religião que segue, etc.
52
HAMAD, Manar. L’ énonciation: procès et systèmes. Langages. Paris, 70:35-46. 1983.
53
COURTÈS, Joseph. Sémantique de l’énoncé: applications pratiques. Paris: Hachette, 1989.
79
impõe ao enunciatário um ponto de visa sobre os acontecimentos narrados” (FIORIN,
1996:40). Vejamos:
...Quando féis uns dois mês, a muié falô:
– Ô marido, os fio num parecero. Vão passiá na casa deles?
Falô: – Vão
Aí, chegô num arto, em cima, falô:
– Aqui nóis tem que vê. Pra onde nóis vão?...
Nesse exemplo de enunciação reportada, os elementos correspondentes da
enunciação são simulados pelos actantes que falam, pelo espaço e pelo tempo. “Com efeito,
o narrador a palavra a outrem, que passa a dizer eu; o fato passa-se num momento
anterior ao momento da enunciação, mas no texto um conjunto de reflexões que
parecem feitas no instante do ato enunciativo” (FIORIN, 1996:41).
Nesse contexto, vejamos como as categorias de pessoa, de espaço e de tempo
(instâncias de instauração do sujeito, para Fiorin, 1996; dêixis para Koch, 2002), serão
importantes para a análise do causo popular oral.
Dentre as categorias citadas, a de pessoa é fundamental para que a linguagem se
torne discurso. Nesse sentido o “eu” se refere a algo que é somente lingüístico e não a um
indivíduo ou conceito. Nas palavras de Benveniste (1995), o “eu” se refere ao “ato de
discurso individual em que eu é pronunciado e designa seu locutor”. Como a pessoa
enuncia num determinado lugar/espaço e num determinado tempo, isso quer dizer que o
“sujeito” é tomado como ponto de referência para a organização dessas categorias. Com
efeito, tanto espaço quanto tempo, então, dependem do “eu” que neles se enuncia. (cf.
FIORIN, 1996:41-42).
A debreagem e a embreagem são os mecanismos de instauração de pessoas,
espaços e tempos no enunciado. Quanto a debreagem, Fiorin (1996:43-) assevera que pode
ser actancial, espacial e temporal, e cada uma ainda pode ser enunciativa ou enunciva
54
. A
enunciva é “aquela em que se instauram no enunciado os actantes do enunciado (ele), o
espaço do enunciado (algures) e o tempo do enunciado (então)” (FIORIN, 1996:44), porém,
é no primeiro tipo de debreagem, enunciativa, que acredito seja mais recorrente nos causos,
vez que “é aquela em que se instauram no enunciado os actantes da enunciação (eu/tu), o
54
Essa distinção entre enunciativo e enuncivo é calcada sobre a distinção entre discurso e história operada por
Benveniste (1995) .
80
espaço da enunciação (aqui) e o tempo da enunciação (agora)” (FIORIN, 1996:43-44).
Por entender que o causo é um discurso do domínio literário, torna-se importante que
eu fale da debreagem interna, freqüente nesse discurso e na conversação ordinária
(GREIMAS E COURTÊS
55
, 1979:80, citado por FIORIN, 1996:45). É quando um actante,
debreado, seja ele da enunciação ou do enunciado, torna-se instância enunciativa, e opera,
portanto, uma segunda debreagem.
Essas instâncias subordinam-se umas às outras: o eu que fala em discurso direto é
dominado por um eu narrador que, por sua vez, depende de um eu pressuposto pelo
enunciado. Em virtude dessa cadeia de subordinação diz-se que o discurso direto é
uma debreagem de segundo grau. Seria de terceiro se o sujeito debreado em
segundo grau fizesse outra debreagem. Embora esse processo possa ser
teoricamente infinito, é quase impossível, por razões práticas, como a limitação da
memória, que ele ultrapasse o terceiro grau e é muito difícil que vá além do segundo.
(FIORIN, 1996:45-46) (grifos do autor).
A debreagem interna é somente em diálogos e serve, dentre outras, para criar um
efeito de sentido de realidade; temos a impressão de que é a própria personagem quem
está falando, por conseguinte, estaríamos ouvindo exatamente o que ela disse.
Quanto à embreagem, sendo contrária a debreagem, ela expulsa a pessoa, o espaço
e o tempo do enunciado da instância de enunciação. Em outras palavras, a embreagem
neutraliza as categorias de pessoa, espaço e tempo.
Em suma, a debreagem, embreagem, enunciação enunciada, enunciação reportada,
enunciado enunciado, enunciativo e enuncivo constituem-se em um conjunto de universais
da linguagem. São as maneiras de expressar esses universais que favorecem o caráter
particular de cada língua ou linguagem.
Todos esses mecanismos produzem efeitos de sentido no discurso. Não é
indiferente o narrador projetar-se no enunciado ou alhear-se dele; simular uma
concomitância dos fatos narrados com o momento da enunciação ou apresentá-los
como anteriores ou posteriores a ele; presentificar o pretérito; enunciar um eu sob a
forma de ele, etc.
A interpretação dos termos pertencentes à categoria de pessoa, de espaço e de
tempo é mais complexa que a dos demais elementos da língua. (...) cada verbo de
ação, por exemplo, pertence à língua e pode passar a discurso se é atribuído a
uma pessoa, num dado tempo e num determinado lugar. Dessa forma, pessoa,
espaço e tempo transformam a ngua em discurso. (FIORIN, 1996:54) (grifos do
autor).
Essa abordagem de Fiorin, segundo ele (1996:303), foi calcada na tradição: “o que é
autorizado pelo sistema existe” . No entanto, o autor faz questão de lembrar “que o discurso,
55
GREIMAS, Algirdas Julien & COURTÈS, Joseph. Sémiotique: dictionnaire raisonné de la théorie du langage.
Paris: Hachette, 1979 v.1.
81
sendo da ordem da História, pode mudar o sistema”, questão a ser abordada na próxima
seção.
2.7.1.3 Considerações sobre o Discurso da narrativa
56
Maria Alzira Seixo, orientadora da obra de Genette (1995:9), intitulada “Discurso da
narrativa”, pontua que através dessa obra pretendeu-se iniciar o estudo da análise estrutural
e semiológica da narrativa literária. Segundo Seixo, considera-se um problema desse tipo de
análise a relação que mantém com o romance categoria específica da morfologia dos
gêneros literários e com o conceito de texto o qual nos últimos anos desenvolveu-se na
teoria literária, tornando-se central em toda a sua reflexão (GENETTE, 1995:10).
No trabalho de Genette uma delimitação de conceitos que definem a perspectiva
adotada, começando por dizer que História, narrativa e narração são níveis de consideração
de um mesmo objeto a que ele chama de “realidade narrativa”.
Segundo Seixo, in Genette (1995:12),
...Se é o discurso dessa realidade narrativa que está em jogo, o plano da história,
isto é, a organização funcional e seqüencial do texto, será posto de parte assim
como, portanto, qualquer observação quanto ao sentido diegético dos elementos
que compõem essa organização; é a narrativa enquanto discurso e não a narrativa
enquanto história que está aqui em causa [refere-se a obra de Genette]. (grifo do
autor).
O termo “narrativa” [récit] possui, de acordo com Genette (1995:23-24), três noções
distintas, o que pode causar confusão, trazendo dificuldades e ambigüidade no processo de
análise, a saber:
Num primeiro sentido, narrativa designa o enunciado narrativo, o discurso oral ou
escrito que assume a relação de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos”,
sendo este, hoje, o uso mais comum (GENETTE, 1995:23); num segundo sentido, “narrativa
designa a sucessão de acontecimentos, reais ou fictícios, que constituem o objeto desse
discurso”, conceito menos difundido (GENETTE, 1995:23-24); e num terceiro sentido,
narrativa designa, ainda um acontecimento: não, todavia, aquele que se conta, mas
56
Título da obra de Gérard Genette (1995), configura-se um trabalho que “foi apresentado em parte no seminário
da École Pratique des Hautes Études em 1970-71 e decorre basicamente da consideração do segmento
narrativo (seus processos e efeitos) de À la Recherche du temps perdu”. (SEIXO in GENETTE, 1995:11).
82
aquele que consiste em que alguém conte alguma coisa: o acto de narrar tomado em si
mesmo”, conceito, aparentemente, o mais antigo (GENETTE, 1995:24).
Em geral, a teoria da narrativa tem se preocupado pouco com os problemas da
enunciação narrativa, priorizando, quase que integralmente, o enunciado e seu conteúdo.
Isso justifica a escolha de Genette, ou seja, estudar a narrativa como discurso narrativo
(perspectiva adotada por Todorov, como visto na seção 2.6), tido em literatura como texto
narrativo (GENETTE, 1995:24-25).
Retomando a questão da realidade narrativa, Genette (1995:25) denominou história
como sendo o significado ou conteúdo narrativo”; narrativa como sendo “propriamente dita
o significante, enunciado, discurso ou texto narrativo em si”; e narração como sendo “o acto
narrativo produtor e, por extensão, o conjunto da situação real ou fictícia na qual toma
lugar”.
Visto que este trabalho se propõe a analisar as estratégias narrativas no causo
popular oral, dentre os níveis propostos acima, o discurso narrativo é o que mais se
aproxima do que se pretende, pois é o único que nos proporciona fazer uma análise textual,
“que é por sua vez o único instrumento de estudo de que dispomos no campo da narrativa
literária, e, especialmente, da narrativa de ficção” (GENETTE, 1995:25).
Citando as palavras de Genette (1995:26-27),
É a narrativa, e apenas ela, que aqui os informa, por um lado, sobre os
acontecimentos que relata, e, por outro lado, sobre a actividade que supostamente a
traz a lume: dito de outro modo, o nosso conhecimento desta e daqueles não pode
senão ser indireto, inevitavelmente mediatizado pelo discurso da narrativa, dado que
aqueles são o próprio objecto desse discurso e esta deixa traços, marcas ou
indícios assinaláveis e interpretáveis, tais como a presença de um pronome pessoal
na primeira pessoa que denota a identidade da personagem e do narrador, ou a de
um verbo no passado que denota anterioridade da acção contada em relação à
acção narrativa, sem prejuízo de indicações mais directas e mais explícitas.
A narrativa, o discurso narrativo, só existe enquanto se conta uma história (e esta por
sua vez, assim como a narração, existe por meio da narrativa) e porque é proferido por
alguém, do contrário não seria um discurso. “Enquanto narrativo, vive da sua relação com a
história que conta; enquanto discurso, vive da sua relação com a narração que o profere”
(GENETTE, 1995:27). Segundo Genette (1995:28), “toda narrativa é uma produção
lingüística que assume a relação de um ou vários acontecimento(s)”, nesse sentido, os
campos de estudo da narrativa devem perpassar pelo tempo e modo, os quais funcionam ao
nível das relações entre história e narrativa, e pela voz, a qual designa ao mesmo tempo as
83
relações entre narração e narrativa e entre narração e história. Todorov (1971) acrescenta,
ainda, o aspecto, o qual funciona no nível da percepção do narrador em relação a história.
2.7.1.3.1 O tempo da narrativa: ordem, duração e freqüência
Uma das funções da narrativa é “cambiar” um tempo num outro tempo, ou seja, o
tempo da história e o tempo da narrativa, traço característico da narrativa oral, e esta,
segundo Genette (1995:32-33), não pode ser atualizada, “senão num tempo que
evidentemente é o da leitura [escuta] (...) O texto narrativo, como qualquer outro texto, não
tem outra temporalidade senão aquela que toma metonimicamente de empréstimo à sua
própria leitura [escuta]”.
Estudar a ordem temporal de uma narrativa é confrontar a ordem de disposição dos
acontecimentos ou segmentos temporais no discurso narrativo com a ordem de
sucessão desses mesmos acontecimentos ou segmentos temporais na história, na
medida em que é indicada explicitamente pela própria narrativa ou pode ser inferida
deste ou aquele indício indirecto (GENETTE, 1995:33).
(...)
Quando um segmento narrativo começa por uma indicação como: “Três meses
antes, etc.”, tem que se ter em conta ao mesmo tempo aquilo depois de que essa
cena vem na narrativa, e aquilo antes de que se supõe que veio na diegese: um e o
outro, ou, melhor dizendo, a relação (de contraste ou de discordância) entre um e o
outro é essencial ao texto narrativo, e suprimir essa relação por eliminação de um
dos termos, não é ater-se ao texto, mas matá-lo de boamente (GENETTE, 1995:34).
Antes de falar sobre as relações temporais possíveis, é pertinente fazer uma
distinção, proposta por Todorov (1971), entre a temporalidade da história e do discurso
57
:
na primeira, o tempo é pluridimensional, e é possível haver o desenrolar de muitos
acontecimentos ao mesmo tempo. na segunda, o tempo é, de certa forma, linear, e os
acontecimentos aparecem seqüencialmente. Porém, não se pode deixar de lembrar que
muitos autores se valem da deformação temporal para criar uma estética desejável. Lev
Vygotski, citado por Todorov (1971:235), nos oferece uma boa reflexão sobre esse aspecto:
Imaginemos uma ameaça e em seguida sua realização: um assassinato; obter-se-á
uma certa impressão se o leitor é posto primeiramente ao corrente da ameaça,
depois conservado na ignorância quanto à sua realização, e enfim se o assassínio
57
O temo discurso, quando referido a Todorov, deve ser entendido como narrativa, conforme exposto na seção
2.6 acima.
84
não é relatado a não ser após este suspense. A impressão será entretanto
completamente outra se o autor começa pela narrativa da descoberta do cadáver, e
então somente, em uma ordem cronológica inversa, narra o assassínio e a ameaça..
Nesse sentido, diz Todorov (1971:235) que nesta passagem (uma das principais
características da teoria formalista) “a natureza dos acontecimentos conta pouco, só importa
a relação que mantêm (no caso presente é uma sucessão temporal)”. Seria como nos
romances policiais: um começa pelo final da história contada até chegar ao seu início; o
outro, relata primeiro as ameaças, para, somente nos últimos capítulos, chegar aos
cadáveres.
Porém, essas colocações referem-se à disposição temporal no interior de uma
história, mas as narrativas literárias mais complexas contêm diversas histórias, revelando-
nos um aspecto diferente do tempo da narrativa.
A ligação das histórias pode se dar de muitas maneiras e, segundo Todorov
(1971:236), o conto popular e coletâneas de novelas conhecem duas delas: o
encadeamento e o encaixamento. O primeiro apenas justapõe as diferentes histórias, ou
seja, uma começa quando a outra termina e é a semelhança na construção de cada uma
que assegura a unidade. O segundo é quando se inclui uma história no interior da outra.
Ainda com relação ao tempo, temos o tempo da enunciação e o tempo da
percepção, temporalidades diferentes das abordadas acima, pois estas pertencem ao plano
da história e aquelas, dos personagens.
Voltemos às diversas relações temporais para entendermos melhor as colocações
feitas por Todorov (1971). Dentre as possíveis estão as antecipações subjetivas e objetivas
(prolepse), e as retrospecções subjetivas e objetivas (analepse). A primeira refere-se a toda
“manobra narrativa consistindo em contar ou evocar de antemão um acontecimento ulterior”
e a segunda, “toda a ulterior evocação de um acontecimento anterior ao ponto da história
em que se está” (GENETTE, 1995:38). A anacronia seria quaisquer formas de discordância
entre a prolepse e a analepse.
Essas relações temporais se encontram no nível micro-narrativo, ou seja, são
percebidas através das relações sintáticas (contém as posições). no nível da macro-
estrutura, são percebidas através das relações entre o tempo da história e o da narrativa e
85
dos encaixes narrativos (X conta que Y conta que...), o qual, segundo Genette (1995:45),
“dá ao narrador tempo de colocar a voz
58
”.
As noções de retrospecção ou de antecipação, “que fundam em “psicologia” as
categorias narrativas da analepse e da prolepse, supõem uma consciência temporal
perfeitamente clara, e relações sem ambigüidade entre o presente, o passado e o futuro”
(GENETTE, 1995:77). Porém, nem sempre é isso que acontece. Na verdade, “a própria
freqüência das interpolações e o seu cruzamento recíproco confundem freqüentemente as
coisas de uma maneira que chega a ser sem saída para o ‘simples’ leitor, e mesmo para o
mais resoluto dos analistas” (GENETTE, 1995:77).
Mas, a anacronia demonstra apenas um dos traços constitutivos da temporalidade
narrativa, pois, segundo Genette (1995:83), “as distorções da duração contribuem tanto
quanto as distorções da ordem cronológica para a emancipação dessa temporalidade”. São
os fatos de ordem, ou de freqüência, que se transpõem do plano temporal da história para o
plano espacial do texto sem nenhum problema, ao que não se pode dizer da duração, onde
se encontram as maiores dificuldades de análise.
Dizer que um episódio A vem ‘depois’ de um episódio B na disposição sintagmática
de um texto narrativo, ou que um acontecimento C é ai contado ‘duas vezes’ são
proposições cujo sentido é obvio, e que se podem claramente confrontar com outras
asserções tais como ‘o acontecimento’ A é anterior ao acontecimento B no tempo da
história’, ou ‘o acontecimento C não se senão uma vez’. A comparação entre os
dois planos é aqui, pois, legítima e pertinente. Em contrapartida, confrontar a
‘duração’ de uma narrativa à da história que conta é uma operação mais escabrosa,
pela simples razão de que por nada se pode medir a duração de uma narrativa
(GENETTE, 1995:85-86).
A isocronia (ponto de referência, ou grau zero), em matéria de ordem, é a
coincidência entre sucessão diegética e sucessão narrativa, porém, o máximo que se pode
afirmar de um segmento narrativo, em relação a uma igualdade ao segmento fictício, ou
seja, de haver uma isocronia rigorosa entre narrativa e história, “é que reporta tudo o que foi
dito, real ou ficticiamente, sem lhe acrescentar nada; mas não restitui a velocidade a que
essas palavras foram pronunciadas, nem os eventuais tempos mortos da conversação”
(GENETTE, 1995:86). No entender do autor (1995:86), “não existe, pois, na cena dialogada
mais que uma espécie de igualdade convencional entre o tempo da narrativa e o tempo da
história”.
Nesse sentido, aceitarmos uma coincidência entre narrativa e história seria
58
A questão da Voz será tratada com mais detalhes na seção 2.7.1.3.4 deste capítulo.
86
admitirmos que a narrativa isócrona teria uma velocidade igual, de forma que a relação
duração de história e de extensão de narrativa permanecesse constante. No entanto, como
assevera Genette (1995:87), “uma narrativa pode passar sem anacronias, mas não pode
proceder sem anisocronias, ou, se preferir (como é provável), sem efeitos de ritmo”. E é na
freqüência narrativa (ou simplesmente repetição) que pode-se perceber, nas palavras de
Genette (1995:112), “um ritmo propriamente inaudito”, o qual à temporalidade narrativa
uma nova cadência, um aspecto da temporalidade narrativa conhecido pelos gramáticos sob
a categoria de aspecto.
O que se quis ressaltar com a freqüência é o fato de que um acontecimento não
apenas se produz. Ele, também, se reproduz ou se repete. A “repetição” seria, na verdade,
em cada ocorrência, uma construção isenta de especificidades, de modo a conservar o que
é comum a mesma classe, ou, como diz Genette (1995:114), uma “abstração: ‘o sol’,’a
manhã’, ‘nascer’”. É o que se pode chamar de acontecimentos idênticos” ou simplesmente
“recorrentes”, considerados apenas em suas semelhanças.
É preciso lembrar que um enunciado além de produzido pode ser reproduzido ou
repetido várias vezes no mesmo texto, mas a identidade e a repetição serão apenas
abstrações, visto que nem materialmente (fônica ou graficamente) nem idealmente
(lingüisticamente) as ocorrências serão idênticas, pois existe uma co-presença e uma
sucessão que diversifica os enunciados. (GENETTE, 1995:114).
Genette (1995:114) assevera que:
entre as capacidades de “repetição” dos acontecimentos narrados (da história) e dos
enunciados narrativos (da narrativa) estabelece-se um sistema de relações que se
podem a priori reduzir a quatro tipos virtuais, por simples produto das duas
possibilidades oferecidas de parte a parte: acontecimento repetido ou não,
enunciado repetido ou não.
O que o autor aborda é a possibilidade de se dizer, esquematicamente, que uma
narrativa, qualquer que seja, pode contar uma vez aquilo que se passou uma vez: “ontem
deitei-me cedo”; contar n vezes aquilo que se passou n vezes: “segunda-feira deitei-me
cedo, terça-feira deitei-me cedo, quarta-feira deitei-me cedo etc.”; contar n vezes aquilo que
se passou uma vez: ontem deitei-me cedo, ontem deitei-me cedo etc.”
59
; por fim, contar
59
A questão das variantes estilísticas, possíveis nestes casos (cedo, cedinho...), ou de pontos de vista, serão
tratadas no item 2.7.1.3.3 desta seção.
87
uma única vez aquilo que se passou n vezes: “todos os dias” ou “toda a semana” ou, ainda,
“todos os dias da semana deitei-me cedo”.
A respeito dessa ultima narrativa, Genette ressalta que foi nomeada pelos
gramáticos como iterativa e que se trata “de um processo lingüístico inteiramente corrente, e
provavelmente universal, ou quase universal, na variedade das suas formas” (GENETTE,
1995:116). Ele ainda acrescenta que a função clássica da narrativa iterativa está bastante
próxima da descrição. Há, porém, que deixar claro que o fato de haver recorrência não
define por si um caso de iteração sob a sua forma mais rigorosa, pois a repetição tem
que ser regular e obedecer a uma lei de freqüência.
Até agora, por uma questão didática, vimos os fenômenos da ordem, duração e
freqüência separadamente. Portanto, é necessário se fazer uma exposição geral desses
fenômenos, e, para isso, valho-me das palavras de Genette (1995: 153-154):
na narrativa tradicional, a analepse (caso de ordem) toma na maior parte das vezes
a forma da narrativa sumária (caso de duração, ou de velocidade), o sumário recorre
não raro aos serviços do iterativo (caso de freqüência); (...) a silepse iterativa o é
somente um facto de freqüência: toca também na ordem (pois que sintetizando
acontecimentos ‘semelhantes’ abole a sua sucessão) e na duração (porque elimina,
ao mesmo tempo, os seus intervalos); e poder-se-ia ainda prolongar esta lista. Não é
possível, portanto, caracterizar o teor temporal de uma narrativa senão considerando
no seu conjunto todas as relações que vai estabelecer entre a sua própria
temporalidade e a da história que conta. (grifos do autor) .
2.7.1.3.2 O aspecto na narrativa
No que se refere aos aspectos da narrativa, Todorov (1971:238) os entende como os
“diferentes tipos de percepção, reconhecíveis na narrativa. (...) Mais precisamente, o
aspecto reflete a relação entre um ele (na história) e um eu (no discurso), entre o
personagem e o narrador”.
Os aspectos (palavra tomada por Todorov em uma acepção próxima de seu sentido
etimológico, ou seja, “olhar”), podem ser de três tipos: i) narrador > personagem (a visão
“por trás”), é a fórmula mais utilizada pela narrativa clássica. É quando o narrador sabe mais
que seu personagem; ii) narrador = personagem (a visão “com”), forma mais difundida na
época moderna, é quando o narrador sabe tanto quanto os personagens; e iii) narrador <
personagem (a visão “de fora”), narrativas raras, é quando o narrador sabe menos que os
88
personagens.
2.7.1.3.3 O modo na narrativa
Se os aspectos da narrativa dizem respeito à maneira pela qual a historia é
percebida pelo narrador, os modos da narrativa concernem à maneira pela qual esse
narrador a expõe e a apresenta. Os dois modos principais são a “representação” e a
“narração”, que, de acordo com Todorov (1971:242), “correspondem, em um nível mais
concreto, às duas noções que já encontramos: o discurso e a história”. Assim, aspectos e
modos reportam à imagem do narrador, imagem fugitiva que “não se deixa aproximar e se
reveste constantemente de máscaras contraditórias, indo desde a de um autor em carne e
osso, à de um personagem qualquer” (TODOROV, 1971:247).
Curiosas as palavras de Genette (1995:159) ao considerar a categoria gramatical do
“modo”, a princípio, não muito pertinente no teor do discurso narrativo. Para o autor :
...uma vez que a função da narrativa não é dar uma ordem, formular um desejo,
enunciar uma condição, etc., mas , simplesmente, contar uma história, logo ‘relatar’
factos (reais ou fictícios), o seu modo único, ou pelo menos característico, pode
ser, em rigor, o indicativo, e desde logo está tudo dito sobre o assunto, a menos que
se estique um pouco mais do que convém a metáfora lingüística.
Porém, as diferenças não se encontram apenas entre as afirmações, ordens, ou
desejos, mas, também, no grau de afirmação, as quais se exprimem através das variações
modais. Littré, citado por Genette (1995:160), definiu o sentido gramatical de Modo como
sendo o “nome dado às diferentes formas do verbo empregadas para afirmar mais ou
menos a coisa de que se trata, e para exprimir [...] os diferentes pontos de vista dos quais se
considera a existência ou a acção”. Segundo Genette (1995), além de ser possível contar
mais ou menos aquilo que se conta, pode-se contá-lo de vários pontos de vista. A categoria
do Modo narrativo seria, então, a representação. Nas palavras de Genette (1995:160),
a ‘representação’, ou, mais exactamente, a informação narrativa tem os seus graus;
a narrativa pode fornecer ao leitor mais ou menos pormenores, e de forma mais ou
menos directa, e assim parecer (...) manter-se a maior ou menor distância daquilo
que conta; pode, também, escolher o regulamento da informação que dá, não por
essa espécie de filtragem uniforme, mas segundo as capacidades de conhecimento
desta ou aquela das partes interessadas na história (personagem ou grupo de
personagens), da qual adoptará ou fingirá adoptar aquilo a que correntemente se
89
chama a ‘visão’ ou o ‘ponto de vista’, parecendo então tomar em relação à história
(...) esta ou aquela perspectiva.
A distância e a perspectiva são as modalidades essenciais que regulam a informação
narrativa, ou seja, o modo.
A distância, questão abordada por Platão em seu III livro da República, teve início na
oposição de dois modos narrativos propostos por este filósofo: a narrativa pura e a mimese
(imitação). A primeira seria no sentido de que o poeta, ao falar, não se preocupa em fazer-
nos crer que não é ele quem fala, mas, sim, um outro. A segunda seria quando o poeta faz o
possível para que o interlocutor se iluda, ao pensar que não é ele quem fala, mas uma
personagem (em se tratando de falas pronunciadas).
Esses termos ressurgiram na teoria do romance, em fins do século XIX / princípio do
século XX, porém sob os nomes de showing (mostrar) e telling (contar). Tais termos foram
tratados por Bronckart (2003), ao se referir às operações constitutivas dos mundos
discursivos, como sendo “expor” e “narrar”, respectivamente. Atendo-me ao primeiro termo,
no entender do autor (2003:153), “as representações mobilizadas, desde que não se
ancoram em nenhuma origem específica, organizam-se inevitavelmente em referência mais
ou menos direta às coordenadas gerais do mundo da ação de linguagem em curso”. Nesse
sentido, os fatos não são narrados, mas mostrados, ou, como nomeia Bronckart, são
“expostos”. Dito de outra forma, “os fatos então são apresentados como sendo acessíveis
no mundo ordinário dos protagonistas da interação de linguagem” (BRONCKART,
2003:153).
No entanto, segundo Genette (1995), do ponto de vista puramente analítico, a noção
de showing, assim como a de imitação ou representação narrativa é ilusória. A menos que o
objeto significado, ou seja, narrado, seja ele próprio linguagem. Para o autor (1995:162),
...contrariamente à representação dramática nenhuma narrativa pode “mostrar” ou
“imitar” a história que conta. Mais não pode que contá-la de modo pormenorizado,
preciso, “vivo”, e dar assim mais ou menos a ilusão de mimese que é a única
mimesis narrativa possível, pela razão única e suficiente de que a narração, oral ou
escrita, é um facto de linguagem, e que a linguagem significa sem imitar.
Para que não se recaia em questões, tais como: como fazer com que um objeto
narrativo se conte sem que ninguém fale por ele?, Genette (1995) propõe uma distinção
entre narrativa de acontecimentos e narrativa de falas.
A narrativa de acontecimentos, “qualquer que seja o seu modo, é sempre narrativa,
90
isto é, transcrição do (suposto) não-verbal em verbal” (GENETTE, 1995:163-164), ou seja,
uma imitação utópica ou ilusória. Nela, a quantidade de informação narrativa e a ausência
do narrador são fatores relevantes, pois mostrar deve ser apenas uma forma de contar, e
essa forma consiste ao mesmo tempo em dizer o mais que puder sobre o fato narrado, mas
dizê-lo o menos possível, ou seja, fazer esquecer que é o narrador quem conta. Nesse
sentido, é possível pensar numa determinação temporal, visto que a quantidade de
informação é inversa à velocidade narrativa; e, por outro lado, num fato de voz, ou seja, num
grau de presença da instância narrativa. A narrativa quanto mais rica em informação, mais
mimética será, e mais constante será a presença do narrador.
Diferentemente da narrativa de acontecimentos, a narrativa de falas seria uma
imitação absoluta. Genette (1995:167), porém, ao citar uma passagem constante da última
página de Sodoma e Gomorra, assevera que o narrador não conta a frase da personagem,
e nem a imita. Ele, na verdade, a recopia, portanto, não se pode falar em narrativa.
Retomando a questão da distância narrativa, mediante o exposto, necessário se faz
distinguir os três estados do discurso de personagem, a saber: i) o discurso narrativizado ou
contado: é o mais distante e, geralmente, o mais redutor; ii) o discurso transposto: em estilo
indireto, é um pouco mais mimético que o contado. A presença do narrador é sensível, e se
na própria sintaxe da frase. Em estilo indireto livre, uma economia da subordinação,
acarretando em uma maior extensão do discurso. Porém, visto que a diferença essencial é o
verbo declarativo, pode haver confusões entre o discurso pronunciado e o interior, ou entre
o discurso da personagem e do narrador; e iii) o discurso relatado ou reportado: é a forma
mais mimética, em que o narrador finge ceder literalmente a palavra à sua personagem.
(GENETTE, 1995:169-170). É bom lembrar que essas formas não acontecem tão
nitidamente isoladas no texto, pois como explica Genette (1995:173), é possível notar em
texto proposto por Platão (ou pelo menos na sua tradução), “um escorregamento quase
imperceptível do discurso contado para o discurso transposto, e do estilo indirecto para o
estilo indireto livre”.
Quanto ao segundo modo de regulação da informação, ou seja, a perspectiva
narrativa, deve-se tomar cuidado para que não haja confusão entre ponto de vista (interior
ou exterior) e voz (identidade do narrador). Assim, a proposta de Genette (1995:187) para
uma tipologia dos três termos referentes ao ponto de vista é:
91
...o primeiro corresponde ao que a crítica anglo-saxônica chama a narrativa de
narrador omnisciente e Pouillon ‘visão por trás’, e que Todorov simboliza pela
fórmula Narrador>Personagem (em que o narrador sabe mais que a personagem,
ou, mais precisamente, diz mais do que aquilo que qualquer personagem sabe); no
segundo, Narrador=Personagem (o narrador apenas diz aquilo que certa
personagem sabe): é a narrativa de ‘ponto de vista’ segundo Lubbock, ou de ‘campo
restrito’ segundo Blin, a visão com’ segundo Pouillon; no terceiro,
Narrador<Personagem (o narrador diz menos do que sabe a personagem): é a
narrativa ‘objectiva’ ou ‘behaviourista’, a que Pouillon chama ‘visão de fora’.
Enfim, o modo devido a paradoxal coexistência de uma intensidade mimética e da
presença do narrador; da dominância do discurso direto; e da concorrência de focalizações
por várias vezes foi ligado à presença do próprio narrador, à intervenção da fonte
narrativa, ou seja, da voz. É dessa instância que se ocupará o item a seguir.
2.7.1.3.4 A voz na narrativa
Como visto anteriormente, para que todo e qualquer enunciado produza sentido é
preciso que se considere o sujeito que o enuncia, assim como a situação em que o enuncia.
O eu se revela em relação a um tu (ele) e o passado da ação contada existe em
relação ao momento em que o sujeito a conta. O sujeito ao qual a voz está relacionada não
é somente aquele que realiza ou sofre a ação, antes é, também, aquele que o relata e
aqueles que participam da ação narrativa, mesmo que de forma passiva. Com efeito, ao
retomar os termos de Benveniste, temos que a história não se dá sem uma parte de
discurso, já que “mesmo a narrativa histórica, do tipo ‘Napoleão morreu em Santa Helena’,
implica no seu pretérito uma anterioridade da história em relação à narração”. (GENETTE,
1995:211)
A narração é o termo denominado por Genette (1995:212) para se referir à instância
produtiva do discurso narrativo, em se fazendo uma analogia com a enunciação vista
como a relação entre os enunciados e a sua instância produtiva. A abordagem dessa
instância, a narração, encontra dificuldades ao reduzirem-na às questões do ‘ponto de vista’
ou por identificarem o narrador com o autor e o destinatário da narrativa com o leitor da
obra.
Uma situação narrativa, como qualquer outra, é um conjunto complexo no qual a
análise, ou simplesmente a descrição, pode distinguir retalhando-o num tecido de
relações estreitas entre o acto narrativo, os seus protagonistas, as suas
determinações espácio-temporais, a sua relação com as outras situações narrativas
implicadas na mesma narrativa, etc.
92
Assim, segundo Genette (1995:214), o funcionamento da voz será possível se
ligado às categorias do tempo da narração, do nível narrativo e da pessoa. Em outras
palavras, é preciso considerar as relações entre o narrador e a história que ele conta.
Em se tratando do tempo de narração, é possível contar uma história sem
necessariamente relatar o lugar ou sua posição em relação ao lugar onde a conto, mas o
mesmo não acontece em relação ao tempo. Ao contar precisamos situar o tempo em
relação ao ato narrativo, visto que preciso contá-la num tempo presente, passado ou futuro.
Com efeito, a narração pode, então, ser de quatro tipos: ulterior (posição clássica de
narrativa no passado. Está na maioria das narrativas, bastando para tal empregar o tempo
do pretérito), anterior (narrativa predictiva, geralmente no futuro, mas que nada proíbe que
seja conduzida no presente), simultânea (narrativa no presente, contemporânea da ação. É
o mais simples, devido à coincidência da história e da narração, fato que elimina a
interferência e o jogo temporal) e intercalada (entre os momentos da ação. É o mais
complexo por se tratar de uma narração de várias instâncias). (GENETTE, 1995:216).
Com relação aos desníveis encontrados na narrativa, Genette (1995:227) os define
dizendo que todo o acontecimento contado por uma narrativa está num nível diegético
imediatamente superior àquele em que se situa o acto narrativo produto dessa narrativa”. E
vai além: segundo o autor (1995:237-238), “as narrativas feitas por X a Y a propósito de Z
vêm a ser o próprio entrelaçado da nossa ‘experiência’, grande parte da qual é de ordem
narrativa”.
Pessoa: “A escolha do romancista não é feita entre as duas formas gramaticais,
mas entre duas atitudes narrativas (de que as formas gramaticais são apenas uma
conseqüência mecânica): fazer contar a história por uma das suas ‘personagens’, ou
por um narrador estranho a essa história. A presença de verbos na primeira pessoa
num texto narrativo pode, pois, reenviar para duas situações muito diferentes, que a
gramática confunde mas a analise narrativa deve distinguir: a designação do
narrador enquanto tal por si mesmo, e a identidade de pessoa entre o narrador e
uma das personagens da historia (...). O termo ‘narrativa em primeira pessoa’ não se
refere, muito evidentemente, senão à segunda dessas situações, dissimetria que
confirma a sua impropriedade. Na medida em que o narrador pode a todo o instante
intervir como tal na narrativa, toda a narração é, por definição, virtualmente feita na
primeira pessoa...”. (GENETTE, 1995:243).
Assim, dois tipos de narrativa são distinguidas em relação ao narrador: uma em que
o narrador não faz parte da história que conta (heterodiegético) e uma em que o narrador é
também um personagem da história que conta (homodiegético). Genette (1995:244), porém,
chama a atenção para o segundo narrador, pois a ausência é total mas a presença não.
Segundo o autor, o narrador homodiegético pode ser o herói da narrativa ou ter uma
93
participação apenas secundária. Para a primeira variedade ele propõe chamar o narrador de
autodiegético.
Embora a função primeira do narrador seja de narrar, de contar a história, o discurso
do narrador pode assumir outras funções. Em analogia com as funções de linguagem de
Jakobson, as funções do discurso narrativo teriam cinco aspectos, a saber: o primeiro é a
história, cuja função é narrativa, e da qual nenhum narrador pode desviar-se; o segundo é o
texto narrativo, cuja função é de regência. O narrador pode referir-se ao discurso
metalinguisticamente para marcar a organização interna do texto; o terceiro é a situação
narrativa, cuja função, em relação ao narratário – presente, ausente ou virtual – é de
comunicação, ou, nos termos de Jakobson, ao mesmo tempo fática (verifica o contato) e
conativa (age sobre o destinatário). Esses narradores voltados para o seu público, e
interessados na relação que estabelecem com ele (mais do que com a narrativa), são
chamados, por Rodgers
60
apud Genette (1995), de “contadores”. O quarto refere-se a
orientação do narrador para ele próprio, e sua função seria testemunhal ou de atestação.
Homóloga a função emotiva, de Jakobson, “dá conta da parte que o narrador, enquanto tal,
toma na história que conta, na relação que mantém com ela”. O quinto, e último, refere-se
as intervenções, diretas ou indiretas, do narrador a respeito da historia, que podem se
traduzir em um comentário autorizado da ação. É o que se poderia chamar de função
ideológica do narrador (GENETTE, 1995:254-255). Vejamos este comentário sobre a obra
“Recherche du temps perdu”:
...se a Recherche du temps perdu é por todos sentida como não sendo ‘já
inteiramente um romance’, como a obra que, ao seu nível, fecha a história do gênero
(dos gêneros) e inaugura, com alguns outros, o espaço sem limites e como que
indeterminado da literatura moderna, ela o deve, evidentemente e ainda desta vez
a despeito das ‘intenções do autor’, e pelo efeito de um movimento tanto mais
irresistível quanto foi involuntário a essa invasão da história pelo comentário, do
romance pelo ensaio, da narrativa pelo seu próprio discurso. (GENETTE, 1995:257-
258).
Para concluir, Genette (1995) coloca em foco a questão do papel do destinatário, a
quem ele chama de narratário e afirma ser uma personagem ativa e com função variável. O
narratário extradiegético, uma das dimensões da instância narrativa, se confunde com o
leitor virtual e indefinido, assim como pode, também, fingir não se dirigir a ninguém, no
entanto, “não pode, evidentemente, nada contra o facto de uma narrativa, como todo o
60
RODGERS, B. G. Proust’s narrative techniques. Genebra:Droz, 1965.
94
discurso, se dirigir necessariamente a alguém, e conter sempre em foco o apelo ao
destinatário” (GENETTE, 1995:259). Segundo Genette (1995:260), para Proust “o
verdadeiro autor da narrativa não é quem conta, mas também, e por vezes muito mais,
quem a escuta. E que não é necessariamente aquele a quem é dirigida: há sempre gente ao
lado”. (grifo do autor).
Devo ressaltar que o tempo, o aspecto e o modo abordados acima, no que se refere
aos procedimentos do discurso, estão relacionados à estrutura literária, ou, no dizer de
Todorov (1971), à “ordem”. Em determinados momentos
a ‘vida’ torna-se parte integrante da obra: sua existência é um elemento essencial
que devemos conhecer para compreender a estrutura da narrativa. É somente neste
momento de nossa análise que a intervenção do aspecto social se justifica:
acrescentemos que ela é também de fato necessária. O livro pode parar porque
estabelece a ordem que existe na realidade” (TODOROV, 1971:253).
Assim, muitas vezes a narrativa não é apenas a exposição de uma ação, mas a
história do conflito entre duas ordens: a do livro e a do seu contexto social.
Uma questão importante de ser abordada refere-se às evidências. A indicação das
evidências por meio das quais o narrador fez seus julgamentos é uma das formas que ele
tem de indicar o seu comprometimento ou descomprometimento com a verdade (PALMER,
1986 apud BASTOS et al, 2001:115). No causo, a evidencialidade pode ser revelada
lingüisticamente através das falas (utilizando-se o discurso direto, por exemplo), em outras
palavras, da polifonia (“heterogeneidade discursiva”, segundo Bakhtin (2000 [1977])), cuja
noção refere-se às várias vozes introduzidas pelo locutor do discurso. Assim, faz-se
necessário esclarecer a questão do “locutor do discurso”, para que não se recaia sob mal
entendidos durante a análise:
Ducrot (1984), ao discutir a polifonia, propõe uma distinção entre as figuras do
sujeito falante ser empírico que enuncia fisicamente o enunciado –, do locutor
ser do discurso, instância a qual é imputada a responsabilidade pelo enunciado e
do enunciador construído no e pelo discurso, podendo representar outras vozes
que se fazem presentes nos textos além das do locutor. (ADERALDO, 2004:140).
Neste trabalho, assumo a distinção proposta por Ducrot, fazendo, porém, apenas
uma alteração lexical: em lugar de “locutor”, tomo como ser do discurso o “narrador” e não a
denominação “contadores”, no entender de Rogers (1965), de forma a evitar uma confusão
com o ser empírico.
95
Nos causos, considero como sujeitos empíricos Dona Florentina, Dona Maria Paula e
Senhor Jovelino, que são o resultado da experiência com outros discursos, com as
interações verbais heterogêneos. Estes, por sua vez, instauram o Narrador/Locutor e os
personagens/enunciadores (vozes discursivas) que se desdobram, revelando outras vozes:
mítica, da experiência, dos costumes morais, do discurso religioso, da tradição. O Narrador
manifesta-se no texto com a voz responsável pelo discurso. Segundo Ducrot (1987:182),
Locutor “é um ser que é, no próprio sentido do enunciado, apresentado como seu
responsável, ou seja, como alguém a quem se deve imputar a responsabilidade desse
enunciado. É a ele que refere o pronome ‘eu’ e as outras marcas da primeira pessoa”. Neste
trabalho, como mencionado, o chamarei de Narrador pela função discursiva a qual se
presta esta instância responsável pelo texto, no caso do gênero textual em pauta (o causo).
É ele, o Narrador, quem cria os enunciadores/personagens que, no texto, manifestam suas
perspectivas.
ESQUEMA 1
O processo de instauração das vozes
2.8 Considerações parciais
A partir da revisão teórica acima, acredito ter ficado claro que para se fazer um
estudo acurado das estratégias narrativas foi preciso lançar mão da construção de um
quadro teórico multifacetado, se se considera que foram trazidos conceitos de diferentes
correntes lingüísticas e campos disciplinares para tal composição. Tal escolha, embora
possa ser vista com ressalvas aos olhos de muitos estudiosos, me parece coerente à
Sujeito empírico (Contador)
Locutor (Narrador)
Enunciadores
(Personagens)
96
medida que assumo, com Possenti (1996:73), que qualquer teoria do discurso deve tentar
explicitar o papel dos fatores propriamente lingüísticos, dos fatores pragmáticos e dos
fatores históricos, já que todos são relevantes para a análise dos textos ou discursos...”.
Com efeito, ao assumir o interacionismo sócio-discursivo como perspectiva teórica
central, aliado às teorias da narrativa, acredito poder dizer que o causo pode ser
contemplado sob a ótica da narrativa por ser um objeto lingüístico que apresenta forma e
princípio de composição comum, mas que tem, do ponto de vista de sua produção e
recepção, a função social de manter e/ou resgatar crenças, valores e costumes da
comunidade. Estudaremos a narrativa pelo viés de sua construção formal, de suas relações
com a enunciação e de sua organização textual. Nesse sentido, as categorias analíticas que
julgo pertinentes para a abordagem do causo, em se pensando nas estratégias narrativas
que os contadores utilizam no intuito de fazer valer sua função social são: ordem, pessoa,
espaço, tempo e aspecto, vozes e prosódia. Julgo pertinente esclarecer que não são apenas
essas categorias intrínsecas da narrativa que são importantes; categorias como valores e
costumes, por exemplo, que são dadas pela narração, também o são. Mesmo porque,
sendo da ordem do social, os causos podem não fazer sentido algum em determinadas
culturas.
Assim, o próximo capítulo compreenderá o estudo do causo no nível da
superestrutura, da macroestrutura e da microestrutura. Esse capítulo visa esclarecer como
os causos são organizados textualmente, ou seja, como se configura o “arranjo global”; os
mecanismos de textualização, através do estudo da coesão verbal; e os mecanismos
enunciativos, através das vozes e dos aspectos prosódicos.
97
CAPÍTULO 3: LÁ BEM LONGE... A ESTRUTURA
NARRATIVA E TEXTUAL NO CAUSO POPULAR ORAL
As variações nas formas rituais de contar são muitas.
O objetivo de sua insistente repetição significa o
desejo de provocar a memória e seduzir cúmplices
para a arte de contar.
(Vera Felício, 1996:26)
Neste capítulo abordo a estrutura geral do causo popular oral, por considerar que todo texto
é organizado em três níveis superpostos (BRONCKART, 2003) e, em parte, interativos,
quais sejam: a infra-estrutura geral do texto (ou superestrutura), os mecanismos de
textualização (ou macroestrutura) e os mecanismos enunciativos (ou microestrutura). Se se
considerar que o discurso literário se vale de uma recepção “hiperprotegida” por seu público,
é possível dizer que os contadores têm a faculdade de recorrer a estratégias de organização
textual específicas (superestrutura). Portanto, neste ponto, focarei a organização de
conjunto do conteúdo temático. Mas acredito que é através do texto e da forma de narrá-lo
que é possível fazer com que uma comunidade ouça e assimile os valores e os modos de
conduta. Portanto, a maneira como um contador de causos mobiliza determinados recursos
expressivos ou estratégias lingüísticas para narrar histórias, os efeitos de sentido que tais
recursos passam a exercer na interação, revelariam a forma como o contador deseja que se
estabeleça a interação. Os efeitos de sentido resultariam do uso de estratégias textuais e
interacionais, ou seja, dos mecanismos de textualização (macroestrutura textual) e dos
mecanismos enunciativos (microestrutura textual). Nesse ponto, verificarei a existência de
uma correlação entre as estruturas lingüísticas que o contador utiliza e os efeitos de sentido
que essas estruturas podem evocar.
3.1 As noções de superestrutura, macroestrutura e microestrutura
A superestrutura descreve as formas globais de um discurso que, no entender de
Van Dijk (2000:122-123), percebidas como esquemas, possuem “uma natureza fixa,
convencional (e, deste modo, culturalmente variável)” para cada tipo textual
61
. Em outras
61
Van Dijk (2000) usa em lugar de “tipo textual” a expressão “tipo de texto”, modificada, aqui, pelo fato de o
autor usar a expressão “tipo de texto”, também, para se referir à noção de gênero textual (seria uma espécie de
tipos de textos identificáveis por características recorrentes).
98
palavras, a superestrutura refere-se à forma global de organização das macroestruturas
(semânticas). O discurso narrativo também tem um esquema convencional, um “esquema
de narrativa”, no qual os tópicos gerais ou o conteúdo global devem ser inseridos.
Considerando-se que as informações estocadas na memória, pelo contador, são
organizadas de acordo com a estrutura da narrativa, penso poder afirmar que os textos
narrativos têm uma superestrutura constituída por uma macroestrutura semântica,
denominação dada por Van Dijk (1984, 2000) às macroproposições responsáveis pela
unidade de sentido global do texto.
Um discurso narrativo não é apenas um conjunto de sentenças, mas de seqüências
ordenadas, “desde que seja significante e represente certas estruturas de fato, por exemplo,
episódios” (VAN DIJK, 2000:42), porém, não é somente a ordem das proposições, num
discurso, que é condicionada por regras de significação: o conteúdo delas também o é.
Nesse sentido, Van DIJK (op cit.:42) se refere à macroestrutura textual, ou nos termos de
Bronckart (2003), aos mecanismos de textualização, como sendo uma representação
abstrata da estrutura global do significado de um texto, que permite, aos ouvintes, a
depreensão dos assuntos nele tratados. Assim, o significado não se limita apenas à relação
semântica entre as frases, “mas decorre da conexão do conjunto de frases como um todo,
que é o próprio texto” (GUIMARÃES, 2003:44).
Segundo Van Dijk (2000:123), “as superestruturas esquemáticas organizam
macroestruturas temáticas, de modo bastante semelhante àquele como a sintaxe organiza o
sentido de uma sentença”, o que nos permite dizer que a superestrutura impõe algumas
limitações ao conteúdo do texto, determinando-lhe a ordem, mesmo que independente da
macroestrutura. Assim, visto que não se pode inserir qualquer macroproposição em
qualquer categoria esquemática, o falante se vê obrigado, durante o processo de construção
textual, a selecionar, organizar e articular os tópicos, no intuito de garantir uma unidade de
sentido que permita, ao ouvinte, estabelecer uma relação entre os mesmos tópicos (esse
assunto será aprofundado e exemplificado na seção 3.2 deste capítulo).
Embora, nem sempre as relações semânticas entre os tópicos sejam marcadas
lingüisticamente, durante o processo de produção do texto, “o sujeito vai marcando a
chamada ‘superfície’ com indicações lingüísticas que, sinalizando a arquitetura semântica do
discurso, facultam ao interlocutor o acesso à significação pretendida” (COSTA VAL,
99
1991:131). Essas indicações lingüísticas se dão no nível microestrutural, e são responsáveis
pelas relações proposicionais estabelecidas ao longo da produção textual.
A microestrutura é compreendida por Van Dijk (2000) como o resultado das relações
estabelecidas entre as proposições textuais. Nas palavras de Aderaldo (2004:113), “pode-se
entender o nível microestrutural como sendo aquele que revela as estratégias de coesão
textual, a partir de articulações significativas entre as sucessivas proposições que integram
os enunciados do discurso”; e formulado a partir de relações entre as proposições textuais.
Porém, é pertinente observar que, em termos cognitivos, tais termos se referem a operações
mentais realizadas na produção e recepção de textos, e não a
aspectos estritamente
textuais.
Antes de entrarmos efetivamente nas questões relativas à estrutura geral dos
causos, penso ser pertinente abrir um parênteses para falar das estratégias textuais
relevantes encontradas nesse gênero.
A concepção de linguagem como atividade, adotada neste trabalho, me leva a
procurar, na efetivação desta atividade, regularidades que deixem entrever a existência de
um sistema de desempenho lingüístico. O texto é, então, um lugar privilegiado para a
identificação das regularidades, pois possui em sua materialidade as marcas do processo
“formulativo-interativo”. No causo, as regularidades se manifestam “como tendências de
estruturação, definidas pelo caráter sistemático de determinados processos de construção
textual” (KOCH, 2002:83), seja através da recorrência, das marcas formais ou do
preenchimento de funções interacionais.
As atividades de construção do texto falado, que apontam as funções interativas
exercidas por tais atividades, serão tratadas neste trabalho como estratégias de
processamento textual da narrativa. Entre as principais estratégias de processamento do
texto falado, portanto, também, dos causos populares orais, temos a inserção e a
reformulação.
No causo 5: O sapatinho de ouro” (Anexo 1), a inserção parece ter uma macro-
função cognitiva de facilitar a compreensão do ouvinte. Na passagem
(01) uma coisa que a mamãe contava que eu achava muito interessante... [ (01a) que a
minha mãe era assim... muito ciumenta, né?... ela tinha verdadeira PAIxão pelo meu
pai... (01b) tinha loucura por ele, né?... tinha loucura por ele... e achava assim... ela
tava sempre achando que ele tava traindo ela... (01c) pelo fato dela gostá muito ela
sempre arranjava uma pessoa pra ele gostá... ele tava sempre (...) (01d) era Maria
Maça... não sei mais o quê... a(...) tinha uma mulher que ela tinha implicância...
100
tinha impliCÂNcia mas impliCÂNcia... sabe?... (...) (01e) eu acho que ela também
assim... ela também contava uns caso pra ele ouví... pra meu pai ouví (...) (01f)assim
pra nele uma certa apreensão... ou sei lá... ] ela contava um caso
interessanTÍssimo...
a contadora suspende temporariamente o tópico em andamento e insere vários tipos de
material lingüístico (recortado pelos “colchetes”), com o intuito de introduzir uma explicação
ou justificativa, fazer alusão a um conhecimento prévio que, freqüentemente, constitui um
pré-requisito para o pleno entendimento do assunto, apresentar ilustrações ou
exemplificações ou introduzir comentários metaformulativos. Na passagem, podemos
observar que todos esses tipos de inserção acontecem no simples espaço do resumo. Em
(01a), a contadora se viu na necessidade de explicar como era a mãe dela, ou seja, que ela
era muito ciumenta, que tinha verdadeira paixão pelo marido, o que justifica em (01f), dizer
que alguns causos que sua mãe contava, como, por exemplo, o causo em análise, era para
colocar “uma certa apreensão” no marido. Interessante perceber que (01f) justifica (01a),
mas se configura, também, uma explicação de (01e), ou seja, causar apreensão no pai
explica o porquê de contar causos para ele ouvir. em (01b) a contadora faz um
comentário metaformulativo. Para ela, verdadeira paixão é sinônimo de “loucura” (em
sentido conotativo), o que revela a dimensão do sentimento de sua mãe. Em (01c), a
contadora faz alusão a um conhecimento do senso comum, e que se configura, no causo,
um pré-requisito para o pleno entendimento do assunto, que é o fato de quando alguém tem
uma paixão doentia por outra pessoa, sempre arruma alguém para dizer que é amante.
Enfim, em (01d), a contadora exemplifica/ilustra, através de um nome próprio (Maria Maçã)
e de uma expressão nominal definida (uma mulher que ela tinha implicância), as pessoas
que sua mãe elegia como amantes de seu pai. Todas essas inserções, no processamento
do texto, têm o objetivo de fazer o leitor perceber a relação do causo que a mãe contava
com o ciúme que ela tinha do marido, e, conseqüentemente, a moral do causo.
A inserção ainda tem a função interacional de despertar ou manter o interesse do
ouvinte e/ou criar uma atmosfera de intimidade ou cumplicidade, e uma dessas funções
encontradas no causo em análise é servir de suporte para a argumentação em curso.
Vejamos:
NAda que o deMÔnio fez deu resultado... o demônio vol... tava cabisBAixo mesmo...
chateAdo mesmo... porque Não conseguiu, né?... fazê nada com o casal... ia
MUIto cabisbaxo embora quando (...) o demônio prende sua alma, né? (...) não
queria perder mais uma... aí ele já ia muito cabisbaxo encontrô com uma velha...
101
A contadora mantém a interação e o interesse do ouvinte ao dizer que o demônio
prende almas e não queria perder mais uma” colaborando para a argumentação a respeito
do estado em que o demônio se encontrava, ou seja, “muito cabisbaixo”, “chateado”, por
não conseguir desmanchar o casamento do casal. Já na passagem a seguir:
que a mulher era muito boNIta... de seios FARtos... a mulher (...) seios FARtos...
aqueles seios FARtos... muito bonita... GORda... muito roSAda... muito boNIta... e
eu acho que era a imagem que ela queria pra ela, né?... com certeza... era a
imagem que ela queria pra ela, né?... muito boNIta... e que MUIto boa esPOsa... e
que MUIto cariNHOsa com o marido, né?...
a contadora expressa sua atitude perante o dito, ao fazer uma avaliação. Através dessa
estratégia ela consegue criar uma atmosfera de intimidade com o ouvinte, ao fazer uma
avaliação sobre sua própria mãe em relação à personagem do causo.
A reformulação retórica, outra estratégia de construção do texto, realiza-se em geral
por meio de repetições e paráfrases, e tem a função cognitiva de reforçar a argumentação,
além de facilitar a compreensão através da desaceleração do ritmo da fala, dando ao
ouvinte um tempo maior para o processamento do que vai ser dito. É o que podemos
perceber na seguinte passagem: “...muito boNIta... e que MUIto boa esPOsa... e que MUIto
cariNHOsa com o marido, né?... uma mulher excelente...
Como se pôde perceber, existe uma enorme complexidade no processo de
construção do causo (texto falado) e uma gama de atividades que o contador realiza
visando à produção de sentidos
62
; afinal, disso depende alcançar seus objetivos, qual seja,
através dos causos manter as crenças, valores e costumes de sua comunidade.
3.2 A superestrutura no causo
Para tratar da superestrutura dos causos, tomo, inicialmente, como base teórica os
estudos de Van Dijk (1984, 2000). Segundo o autor, as noções de parágrafo ou episódio são
discutidas em vários ramos da análise do discurso e são caracterizados, em seu entender
“como seqüências coerentes de sentenças de um discurso, lingüisticamente marcados
62
A produção de sentidos é uma “atividade interativa” extremamente complexa. O produtor e o interpretador são,
apropriando-se das palavras de Koch (2003:19), “‘estrategistas’, na medida em que, ao jogarem o ‘jogo da
linguagem’, mobilizam uma série de estratégias de ordem sociocognitiva, interacional e textual com vistas à
produção do sentido”. E é a capacidade de estabelecer mentalmente uma continuidade de sentidos, dentre
outras, que faz com que o ouvinte construa a coerência dos causos.
102
quanto ao começo e/ou fim, e definidas, além disso, em termos de algum tipo de ‘unidade
temática’” (VAN DIJK, 2000:99).
Atendo-me, apenas, ao episódio, considerado, aqui, como uma unidade semântica,
tem-se que esta noção aparece não apenas em uma teoria do discurso, mas também no
discurso cotidiano
63
. Nesse sentido, o episódio pode ser concebido de duas formas: “em
primeiro lugar, como uma parte de um todo, que tem começo e fim definidos, portanto, em
termos temporais. Em segundo lugar, tanto a parte como o todo envolvem geralmente
seqüências de eventos ou ações” (VAN DIJK, 2000:102), como, por exemplo, o tipo
narrativo.
Considerado como unidade semântica do discurso, o episódio pode ser
caracterizado como uma “seqüência de proposições” específicas e globalmente coerente, ou
seja, deve “estar subsumida sob uma macroproposição mais global” (VAN DIJK, 2000:103).
Nesse sentido, se o falante, para executar a tarefa de manter o discurso como uma unidade
global de sentido, precisa, antes de mais nada, ter em mente o esquema referente à sua
organização semântica (VAN DIJK, 1984), é a partir desse esquema cognitivo prévio que,
segundo Van Dijk (2000:103), o falante articula suas macroproposições, ou seja, a unidade
global de uma seqüência discursiva.
O autor (2000:30), ao tratar das estratégias esquemáticas, como dito anteriormente,
assevera que “muitos tipos de discurso parecem exibir uma estrutura esquemática
convencional, e, conseqüentemente, variável de acordo com a cultura, uma forma global
que organiza a macroproposição (o conteúdo global do texto)”.
Assim, é possível dizer que, no entender do autor, os textos apresentam usualmente
uma superestrutura, ou seja, um esquema convencional, específico a cada tipo de discurso,
que, além disso, permite que o falante organize as suas macroproposições de uma forma
hierarquicamente organizada. Nas histórias, por exemplo, tem-se a narrativa, e sua estrutura
básica compreenderia categorias, tais como: situação, complicação e resolução.
Van Dijk (1984:233) assevera que, quanto mais convencional e mais comum a
estrutura narrativa para o falante, mais fácil é a compreensão e a organização das
63
De acordo com Van Dijk (2000:102), “essa noção intuitiva de episódio corresponde à noção de episódio em
uma narrativa ou relato de tais ações ou eventos: fala-se de um episódio de uma novela ou de um livro didático
sobre história, e o sentido de tal noção é semelhante ao episódio correlato no mundo: uma sequência de
sentenças (ou proposições expressas por tais sentenças) que denota esse episódio, portanto com um início e um
fim marcados e certa unidade conceitual”. Assim como na análise do discurso, é essa noção intuitiva que será
assumida neste trabalho.
103
informações arquivadas na memória. E este é um ponto importante no que diz respeito aos
causos, que devem ser passados de geração em geração para se garantir a manutenção
da cultura, crenças e costumes. Os contadores, para reconstituir os fatos que ouviram,
recontam os causos fazendo uso da memória (como abordado no capítulo 1), e para isso,
apóiam-se em esquemas previamente determinados (nesse caso na superestrutura), a partir
dos quais ele irá atualizar as informações estocadas em sua memória.
Os esquemas, segundo Van Dijk (2000:146), consistem de categorias típicas (se não
no todo, ao menos em parte), sendo cada uma delas correspondente a uma seqüência
específica de proposições ou sentenças do texto.
Bronckart (2003), em seus estudos acerca da infra-estrutura geral (super), indo além
das considerações feitas por Van Dijk (1984, 2000), analisa-a sob três pontos: i) o plano
geral do texto, ii) os tipos de discurso e os segmentos que ele comporta e iii) as articulações
entre os tipos de discurso e as seqüências que nele aparecem
64
. Segundo o autor, o plano
geral do texto deve ser entendido como a organização do conteúdo temático (ou
organização da diegese), o que confirma a posição de Van Dijk exposta na seção 3.1 e
melhor detalhada no início desta seção.
Os tipos de discurso são entendidos como “formas de organização lingüística”.
Nesse caso, o autor está falando, por exemplo, de narração (tipo principal do romance,
novela, conto, etc.), discurso esse que é composto por segmentos e dentro deles encaixes.
No causo teríamos o tipo narração e como encaixe o discurso interativo – tipo secundário no
conto e expresso, por exemplo, pelos discursos diretos ou indiretos livres.
No que se refere às articulações entre tipos de discurso, tem-se, por exemplo, o
encaixamento de segmentos de discurso direto num segmento de narração, mostrando a
relação de dependência existente entre os segmentos. Um dos procedimentos que
explicitam essa relação é o travessão, muito conhecido nos textos da modalidade escrita.
Porém, como trabalho com o texto oral, esse procedimento não pode ser considerado.
Valho-me, assim, dos chamados verbos de dizer”, procedimento mais comum na
modalidade oral.
64
Essa divisão não implica em ocorrências em separado. Tais pontos acontecem concomitantemente no texto. A
divisão, tal como proposta por Bronckart, ocorre apenas por questões didáticas.
104
Por fim, Bronckart (2003) trata as seqüências que eventualmente aparecem no plano
geral do texto (seqüências narrativas, explicativas, argumentativas, etc.) como a dimensão
característica da infraestrutura textual que organiza seqüencial e linearmente o conteúdo
temático. No entender desse autor (2003:217), o que reafirma o que disse Van Dijk (2000),
“o agente produtor do texto dispõe de representações ou de conhecimentos relativos a um
dado tema, que estão estocados na memória em formas lógicas e/ou hierárquicas”,
entendidas como macroestruturas. Tais conhecimentos, quando semiotizados em um texto,
são reorganizados, inserindo-se em estruturas sintáticas básicas através de relações
predicativas e/ou sintagmáticas que, por sua vez, são também organizadas na linearidade
do texto, ou, como o autor prefere dizer, no “eixo do sucessivo”. Assim, “os conhecimentos
macroestruturais disponíveis na memória são, no texto, transformados em diversas formas
de organizações seqüenciais, que correspondem à superestrutura textual” (ADERALDO,
2004:64).
Adam
65
, citado por Bronckart (2003:219), ao renunciar seqüências como a injuntiva e
a poética, por exemplo, restringe-se a cinco tipos básicos: seqüência narrativa, descritiva,
argumentativa, explicativa e dialogal, que combinadas em um texto, em várias modalidades,
revelam ser da diversidade das seqüências e das modalidades de articulação “que decorre a
heterogeneidade composicional da maioria dos textos” (op cit.:219).
Marcuschi (2002:27), ao analisar uma carta pessoal, mostra a variedade de
seqüências tipológicas desse gênero, em que predominam descrições e exposições, e
afirma que, de uma maneira geral, “há uma grande heterogeneidade tipológica nos gêneros
textuais”. É importante ressaltar que, entendendo os tipos como seqüências rígidas
presentes no texto, e não a textos propriamente ditos, os gêneros são “armaduras
comunicativas gerais preenchidas por seqüências tipológicas de base” (MARCUSCHI,
2002:27). Portanto, “quando se nomeia um certo texto como ‘narrativo’, ‘descritivo’ ou
‘argumentativo’, não se está nomeando o gênero e sim o predomínio de um tipo de
seqüência de base” (MARCUSCHI, 2002:27). Assim, os tipos textuais podem ser definidos
por seus traços lingüísticos predominantes, os quais formam uma seqüência e não um texto.
São essas seqüências amarradas como uma malha infraestrutural do texto que garantem a
coesão textual. Com efeito, podemos dizer que o plano mais geral de organização textual se
65
ADAM, J. M. Les texts: types et prototypes. Paris: Nathan, 1992.
105
na superestrutura textual, através das seqüências lingüísticas
66
que podem aparecer nos
textos (seqüências narrativas, explicativas, argumentativas, dentre outras).
Expostas as teorias advindas de Van Dijk (1984, 2000) e Bronckart (2003),
passemos à questão que, nesta seção, interessa-me, sobremaneira: as seqüências
narrativas.
Segundo Bronckart (2003:219-220), a seqüência narrativa teve sua conceitualização
iniciada na Poética de Aristóteles, passando pelos formalistas russos (Tomachevsky, 1925,
1965; Propp, 1928, 1965); em seguida pela escola francesa de narratologia (Brémond, 1973;
Genette, 1969; Greimas, 1966), até chegar na sociolingüística americana (Labov e
Waletzky, 1967). Para o autor “só se pode falar de seqüência narrativa quando essa
organização é sustentada por um processo de intriga
67
”, o qual consiste na seleção e
organização de acontecimentos de modo a formar um todo acional dinâmico”, que ao
mesmo tempo encerra em si a idéia de “causalidade”:
à ordem cronológica dos acontecimentos se sobrepõe uma ordem interpretativa, que
fornece causas e/ou razões aos diversos encadeamentos constitutivos da história. É
essa dimensão interpretativa que confere à seqüência narrativa essa função de
reconfiguração das ações humanas (...) (BRONCKART, 2003: 220).
Labov e Waletzky (1967:12-44), ao analisarem narrativas orais de experiência
pessoal, em uma determinada comunidade americana, definiram o seguinte esquema
padrão do tipo textual narrativo: i) resumo, estratégia utilizada pelo narrador, no intuito de
despertar o interesse do seu interlocutor. Situa-se no início do texto, e é constituído,
geralmente, de uma ou duas cláusulas que sintetizam toda a história; ii) orientação, introduz
os personagens, assim como o espaço físico-temporal da ação; iii) complicação da ação, é o
núcleo propriamente dito da narrativa, já que ela corresponde à intriga, elemento importante
para que se possa falar em narrativa; iv) resolução da ação, indica o desenlace dos
acontecimentos; v) avaliação, se caracteriza por suspender a ação da narrativa e traduzir a
atitude do narrador em relação ao que se conta. As expressões de emoção do narrador e os
comentários que faz, relativos ao acontecimento em si ou aos personagens, acontecem
através da avaliação; e vi) coda, que, geralmente, aparece no final da narrativa, e atua como
66
Matencio (2001: 111) chama a atenção para a questão da definição das seqüências, ao dizer que a definição
deve levar em conta o fato de que as seqüências são, antes de tudo, unidades temáticas e funcionais, que “a
centralidade temática e a função da seqüência (...) viabilizam sua identificação e segmentação”.
67
Para Bronckart a expressão intriga equivale a “trama”.
106
um mecanismo funcional que provoca a volta ao momento da enunciação, ou seja, ao fazer
observações gerais ou mostrar a reação do narrador diante do fato narrado.
Porém, de acordo com os autores, alguns fatos devem ser observados:
a) a complicação e a resolução são componentes indispensáveis à narrativa e se
constituem de orações narrativas, cuja ordem não pode ser alterada, uma vez que
expressa uma cronologia que reflete a seqüência original dos acontecimentos, b) o
resumo, a orientação, a avaliação e a coda não precisam, necessariamente, estar
presentes na narrativa; c) não uma ordem fixa para a avaliação, que, por vezes,
serve para separar a complicação e a resolução ou, então, vem fundida à resolução;
d) a avaliação, na verdade, costuma permear toda a narrativa, não se limitando a
uma instancia fixa entre a complicação e a resolução; e) a orientação também pode
apresentar-se deslocada, permeando toda a narrativa, conforme os propósitos
interlocutivos do falante. (GUIMARÃES, 2003:47).
Bronckart (2003:220), por sua vez, refere-se ao modelo de seqüência narrativa
proposta por Labov e Waletzky (1967) como constituído de cinco fases de sucessão
obrigatória, a saber: i) situação inicial, fase na qual um estado-de-coisas é apresentado; ii)
complicação, fase em que se introduz uma perturbação e a criação de um estado de tensão
narrativa; iii) ações, fase que reúne os acontecimentos desencadeados pela complicação; iv)
resolução, fase na qual os acontecimentos que levam a uma redução efetiva do estado de
tensão criado anteriormente são introduzidos; v) situação final, fase em que o equilíbrio
obtido pela resolução é explicitado. O autor ainda acrescenta a essas cinco fases, tidas
como principais, outras duas, cuja posição depende “diretamente do posicionamento do
narrador em relação à história narrada” (BRONCKART, 2003: 221): vi) avaliação, fase na
qual é proposto um comentário relativo ao desenrolar da história e cuja posição na
seqüência parece ser livre; vii) moral, fase na qual se explicita a significação global atribuída
à história, sendo apresentada, geralmente, no início ou no fim da seqüência.
Embora Bronckart (2003:222) fale de sete fases propostas por Labov e Waletzky, faz
questão de tecer uma consideração com relação a este número. Para o autor, no gênero
romance, e, aqui, incluo o gênero causo, as seqüências narrativas podem comportar um
número ilimitado de fases, como, por exemplo, “a fase de ações recaindo em nova
complicação, que desencadeia novas ações, chegando a uma situação final temporária (ou
aparente) que se perturbada por nova complicação, que desencadeia outra série de
ações, etc.”
Se no que diz respeito à sua natureza temática (tratar de assuntos ligados a ética,
moral e bons costumes), o causo for caracterizado por tal definição, é possível notar que
107
nesse gênero a constituição da narrativa, também, se faz de forma peculiar. No causo
sempre um resumo ou apresentação de uma situação inicial, desenvolvida por
complicações, encerrada por uma resolução final e, na maioria das vezes com uma moral.
Porém, uma característica recorrente das seqüências narrativas no causo é o fato de que
elas, regularmente, são entremeadas por avaliações, ou seja, pelos comentários do locutor.
O fato de ser um relato é que contribui para a necessidade de ser crível aos ouvidos do
ouvinte; o causo precisa ser atestado, até mesmo, por apresentar diversas avaliações
segundo a ótica do locutor. Essas avaliações são de suma importância, pois, na maioria das
vezes, são o índice central das atitudes e comportamentos que se deseja abordar. Penso
que essa é a razão primeira para que na constituição superestrutural do causo encontremos
diversas seqüências descritivas e dialogais articuladas às seqüências narrativas.
A funcionalidade das seqüências descritivas é definida por Bronckart (2003:235) da
seguinte forma:
Como demonstra Adam, a seqüência descritiva também procede de decisões do
agente-produtor orientadas pelo efeito que deseja produzir em seus destinatários:
fazer ver em detalhe os elementos do objeto de discurso que não aparecem
absolutamente necessários à progressão do tema e guiar o olhar do destinatário, de
acordo com procedimentos espaciais, temporais e hierárquicos. Conseqüentemente,
a organização das seqüências descritivas é menos condicionada pelas propriedades
intrínsecas do objeto de discurso (tais como são hierarquizadas na memória do
agente) do que pelo modo de apresentação convencional adotado por esse agente
em função de seu objetivo e de sua representação dos destinatários (grifos do
autor).
Tal definição é útil ao entendimento do uso e, sobretudo, da funcionalidade das
seqüências narrativas no gênero causo. Como disse Aderaldo (2004:66), “o que é relatado e
comentado deve ser comprovado, e esse ‘fazer ver em detalhe’ e, principalmente, fazer ver
de forma ‘orientada’ possibilita ao locutor do texto que seu relato comentado seja atestado”.
O objetivo do desencadeamento de uma seqüência descritiva no co-texto de uma seqüência
narrativa “é situar ou fazer compreender melhor os elementos que estão em jogo nessa
mesma narração (...). O objetivo de uma descrição inserida em uma seqüência narrativa é,
portanto, relativo ao objetivo narrativo” (BRONCKART, 2003:235). Nesse sentido, é baseada
nas decisões interativas, ou seja, uma decisão orientada por representações sobre os
destinatários e sobre o fim que se persegue, que as seqüências têm o estatuto
fundamentalmente dialógico.
Uma particularidade da seqüência descritiva é não ser, em relação à seqüência
108
narrativa, composta de fases que se organizam em uma ordem linear obrigatória. Porém,
mesmo não sendo organizadas, elas se combinam e se encaixam em uma ordem
hierárquica ou vertical. As seqüências descritivas, em sua forma prototípica, segundo
Bronckart (2003:222-223), comportam três fases principais: i) fase de ancoragem, em que o
tema da descrição é, mais freqüentemente, assinalado por uma forma nominal ou “tema-
título”; ii) fase de aspectualização, em que os diversos aspectos do “tema-título” são
enumerados; iii) fase de relacionamento, em que os elementos descritos podem ser
assimilados a outros, por meio de operações de caráter comparativo ou metafórico.
Entretanto, o protótipo da realização de seqüências descritivas, assim como acontece nas
seqüências narrativas, seria também um modelo abstrato, que sua realização efetiva em
textos empíricos pode se dar de forma variada.
Quanto a seqüência dialogal, é importante ressaltar que sua concretização se dá,
apenas, nos segmentos de discursos interativos dialogados, revelando-se uma seqüência
de característica particular. Estruturados em turnos de fala, esses segmentos são, em se
tratando dos discursos interativos primários
68
, “diretamente assumidos pelos agentes-
produtores envolvidos em uma interação verbal” e, no caso dos discursos interativos
secundários, são “atribuídos a personagens postos em cena no interior de um discurso
principal ou englobante” (BRONCKART, 2003:231).
A seqüência dialogal possui três níveis encaixados, propostos por Adam (1992) apud
Bronckart (2003): i) fase de abertura, na qual os interactantes entram em contato; ii) fase
transacional, em que o conteúdo temático da interação verbal é co-construido; e iii) fase de
encerramento, que encerra a interação e que, assim como a abertura, tem um caráter fático.
A diversidade de tipos textuais imbricados ou co-ocorridos em um mesmo texto
empírico é responsável pela ocorrência do fenômeno da heterogeneidade tipológica. Essa
imbricação ou co-ocorrência pode se dar de duas maneiras: a partir do encaixamento de
tipos distintos (ou seja, através de um conjunto de procedimentos (ou presença de marcas
diversas lexicais, morfossintáticas ou tipográficas) que explicitam a relação de
dependência de um segmento em relação a outro) ou da fusão (conjunção de dois tipos em
um mesmo segmento textual). No causo é mais recorrente a articulação desses tipos de
68
Bronckart (2003:189) ao distinguir discurso interativo primário do secundário diz que o primeiro é assim
chamado por se referir diretamente ao mundo ordinário dos interactantes, e o segundo, por remeter à
personagem e/ou acontecimentos textualizados, nos segmentos de narração, de relato interativo e de indicações
de encenação (teatro).
109
seqüências textuais através do encaixamento, pois a narração é entremeada por segmentos
de discurso interativo (no discurso indireto, por exemplo, a integração do discurso interativo
no discurso narrativo pode ser marcada, como disse, por exemplo, pela presença dos
verbos de dizer no discurso narrativo) que, na verdade, funciona como pano de fundo para
que se possa, exatamente, aproximar o ouvinte do que se fala, proporcionando-lhe uma
sensação de realidade dos fatos. Isso porque, quanto mais real pareça ser o causo, maior
serão as chances de ele ser mantido na memória e, conseqüentemente, assumido e
repassado os ensinamentos que dele fazem parte. Tal fenômeno é, inclusive, referendado
pela própria funcionalidade desses tipos de seqüência, que em conjunto se prestam aos
propósitos comunicativos do gênero causo.
Nos exemplos a seguir, a partir do modelo proposto por Labov e Waletzky (1967) e
retomado por Bronckart (2003), tem-se uma amostra das fases da seqüência narrativa e de
outras seqüências que a permeiam na superestrutura textual do gênero causo. A escolha
por tal modelo se justifica uma vez que o corpus, aqui em exame, o causo popular oral,
apresenta um padrão estrutural bem próximo ao das narrativas colhidas e estudadas por
esses lingüistas. Vale ressaltar que nem todo texto narrativo é composto por todas as partes
propostas por Labov e Waletzky, sendo, portanto, natural que algum causo não as
contemple na íntegra.
No exemplo a seguir, extraído do causo de 3 (analisado, integralmente, no
capítulo 4), podemos perceber as fases do protótipo da seqüência narrativa. Antes, porém,
faz-se necessário dizer que, de acordo com Bronckart (2003), uma síntese configura-se no
plano geral do causo. Como já dito, segundo o autor, o plano geral do texto deve ser
entendido como a organização do conteúdo temático (ou organização da diegese) e, nesse
sentido, o causo em análise pode ser apresentado a partir do seguinte plano geral:
a) contextualização do causo;
b) o rapaz manda o empregado preparar o cavalo;
c) o cavalo some;
d) o rapaz começa a xingar, a falar no capeta e o cavalo reaparece;
e) o rapaz bate no cavalo com a vara de goiabeira;
f) o rapaz amarra o cavalo na cruz da igreja e o cavalo desaparece;
g) comentários sobre a moral do causo.
110
Ainda de acordo com Bronckart (2003), é no interior do plano geral do texto que se
desenvolvem as seqüências, deixando claro que elas podem se organizar de modo mais
complexo, de forma que as fases não precisam ter um número limitado. Além disso, uma
mesma fase da narrativa pode ser entremeada por outras seqüências, tais como a descritiva
ou a dialogal. Vejamos como isso ocorre no nosso exemplo.
a) Resumo - Seqüência narrativa
tem alguns casos que papai contava... [...] e que foram os antepassados dele
que contavam pra ele... um caso que me chamava muita atenção... e que até hoje
me chama muita atenção... ele me contava que tinha um::...
b) Orientação (Fase decomposta em uma fase de avaliação) - Seqüências narrativas e
descritivas
tinha um rapaz que era... filho único... que ele só morava com a mãe... [...] era
dono de terras né?... mas era um homem muito nervoso... [...] ele era uma pessoa
irritaDÍssima mesmo... mas ele tinha dentro dele FÉ... [...] aos domingos ele gostava
de ir a missa... [...] um certo dia ele tinha mandado que os empregado dele é::
preparasse o cavalo dele pra missa... [...] que ele morava fora da cidade... [...] na
fazenda... e a missa era:: no lugarejo lá...
c) Complicação - Seqüências narrativas e dialogais
o cavalo de madrugada... sumiu... fugiu... o cavalo desapareceu... quando
a mãe levantou... preparou o café e chamou... chamou o rapaz pra ir pra missa... ele
falô... cadê meu cavalo?... o cavalo tá pronto... tá pronto aí... não... que não tá aqui...
num tá... num tá... a mãe dele falô assim... o cavalo está sim... o fulano de tal
preparou o cavalo pra você ir a missa... não que não está...
d) Ação - (Fase decomposta em duas fases sub-ordenadas: orientação e avaliação) -
Seqüências descritivas e narrativas
e ele começou a gritá... e xingá... e ficá muito bravo mesmo... [...] e a
mãe dele ficava muito ansiosa com aquilo... mas tulerava... [...] porque era
considerado como o gênio dele... a mãe falô com ele assim... ô meu filho procura
direito... num aqui não mãe... se o caPEta aparecer eu vou nele... [...] ... voltô...
quando ele voltô na porta o cavalo tava prontinho... [...] o cavalo tava prontinho pra
ele ir a missa... a mãe dele falô com ele assim... o cavalo chegou né?... ele falô
assim... CHEgô...
e) Nova complicação (Fase decomposta em duas fases sub-ordenadas: ação e
orientação) - Seqüências dialogais, descritivas e narrativas
falô com ela assim... a senhora que como é que eu pra missa?... foi na
111
horta.. apanhou uma vara de goiabeira... limpô a vara de goiabeira... esticô a vara de
goiabeira e montô no cavalo... a mãe dele pensô... nunca mais eu vejo esse filho
né?... [...] que ele chamô com muita vontade... intão veio... montô no cavalo... e
começô a bater... com a vara de goiabeira... [...] ispanCAno o cavalo... [...] aí quando
ele chegou numa curva... a:: uma voz gritô... traz pra cá... o cavalo respondeu
ele... de que jeito... esse bate aTÉ discasCÁ... e ele... que ele bateu no cavalo
mesmo...
f) Resolução - (Fase decomposta em uma fase de avaliação) - Seqüência narrativa
chegô na igreja... amarrô o cavalo no da cruz... que toda igreja do interior
tem uma cruz na entrada... ele amarrô o cavalo no da cruz... o cavalo istorô... e
desapareceu...
g) Moral - (Fase decomposta em duas fases sub-ordenadas: avaliação e orientação) -
Seqüência narrativa
isso é verdade ou lenda, né?... foram os meus avós que contavam prus
filhos... que contavam pra né?... e foi passando de geração em geração... [...] agente
guarda que não deve chamá:: não deve falá nenhum nome feio... [...] não falá de que
agente não dá conta né?... ele deu conta porque segundo a lenda... a vara de
goiabeira tem poder né?... ela é abençoada... [...] mas agente pensa também que a
fé dele também era muito GRAnde... então tudo é assim:: eu acho que é insinamento
que eles contava pra gente num falá... não chamá pelo bicho, não é?
Vejamos no causo de 4: A Sexta-feira da Paixãocomo as seqüências e suas
respectivas fases contribuem para a organização geral dos causos populares orais.
05
10
15
Minha mãe contava que:: que a dela, né?... que ela chamava a Lanora... minha vovó
Lanora contava que:: no tempo de:: dela... a semana santa era uma semana santa MESmo...
uma semana de MUIta reflexão... uma semana de muita pieDAde... as pessoas ficavam
mesmo com MUIta vontade de encontrar com Deus, né?... sentiam muito... muito forte a
presença de Deus... então a sexta-feira pra eles... era:: era:: era o dia do senhor morto, né?...
era um dia abençoAdo... ninguém cozinhava... ninguém varria... ninguém lavava... ninguém
penteava cabelo, né?... ninguém fazia nada... nesses dias era fundamental para que a pessoa
ficasse em jejum e oração... né?... então a vovó Lanora da:: da minha mãe contava que:: que
tinha uma vizinha... que ela estava de oração... teve uma vizinha que tava esfregando pa
numa bacia... antigamente lavava a rôpa numa bacia, né?... que a vizinha tava esfregano rôpa
na bacia... e que a:: a:: a da vovó Lanora... os pais da voLanora contando que... ela
falô assim... ô::: ô fulana... você lavano pa hoje... esfregano rôpa hoje... cê esqueceu
que hoje é sexta-feira da paxão?... ela falô assim... a sexta-feira da paxão na iGREja... e
eu estou aQUI lavano a minha rôpa... e diz que a bacia encheu de sangue... na mesma hora a
bacia encheu de sangue... foi preciso que o padre viesse pra interrá o sangue... então na
mesma hor... então assim... o insinamento que a gente disso é que a gente não deve
abusá, né?... a gente o deve abusá... a gente pode até o acreditá... mas a gente não
deve abusá do sagrado... o saGRAdo e o:: o sagrado é sagrado... o mistério é mistério, né?...
já fala que é mistério é porque é mistério mesmo, né?
112
Temos no plano geral deste causo a história de uma mulher que, ao desafiar as leis
da igreja, recebe um castigo. De acordo com as crenças da Igreja Católica, os fiéis têm que
“guardar” a Semana Santa, e, principalmente, a Sexta-feira da Paixão. Neste dia não se
deve fazer nada, sob pena de ser castigado. Ao insistir em lavar a roupa, neste dia, a bacia
da mulher se enche de sangue.
Abrindo a seqüência narrativa, o texto apresenta uma orientação (linhas 01 a 09), ou
seja, a origem do causo é um prenuncio do que pode acontecer (“Minha mãe contava que::
que a vô dela, né?... que ela chamava a Lanora...”). Nela se situa o momento em que se
inscreve o fato contado, representando a fase de “situação inicial” (BRONCKART, 2003).
A ela se funde um discurso indireto livre (“minha vovó Lanora contava que”), por
integrar um discurso interativo em um principal, precedido de uma avaliação acerca do
nome da bisavó da narradora (“Lanora”). A narradora retoma a voz da mãe, tal qual ela fazia
no tempo em que lhe contou o causo, ao mesmo tempo em que revela a tradição deste
causo: está sendo contado por ela o que foi contado à sua mãe por sua bisavó. Em seguida
temos o encaixamento de uma seqüência descritiva (“a semana santa era uma semana
santa MESmo... uma semana de MUIta reflexão... uma semana de muita pieDAde... as
pessoas ficavam mesmo com MUIta vontade de encontrar com Deus, né?... sentiam muito...
muito forte a presença de Deus...”), em que o tema-título “semana santa” é introduzido, e
descrito por uma simples enumeração, não hierarquizada (“santa mesmo”, “de muita
reflexão”, “de muita piedade’).
A narração do fato continua, explicitada pelo marcador conversacional então”, e
mais uma vez, é permeada por uma seqüência descritiva. Desta vez do tema-título “sexta-
feira”, entendida, pelo contexto, como sendo a “sexta-feira da paixão” (“então a sexta-feira
pra eles... era:: era:: era o dia do senhor morto, né?... era um dia abençoAdo...”). Essa é
uma fase de ancoragem que desenvolve numa fase de aspectualização (“ninguém
cozinhava... ninguém varria... ninguém lavava... ninguém penteava cabelo, né?... ninguém
fazia nada... nesses dias era fundamental para que a pessoa ficasse em jejum e oração...”),
pois, além do tema ser descrito em função do dia (“do senhor morto”, “abençoado”), a
narradora sente a necessidade de orientar o ouvinte sobre o comportamento das pessoas
neste dia (“não cozinhar”, “não varrer”, “não lavar”), e encerra essa seqüência narrativa com
uma avaliação, fundamental, que ao texto exatamente o tom de ensinamento, ou seja,
113
que o comportamento era necessário para que, neste dia, as pessoas ficassem em jejum e
oração.
Dando prosseguimento, a narração é explicitada, novamente, pelo marcador
conversacional “então”. A narradora, antes de contar a história, propriamente dita, ressalta,
mais uma vez que é sua bisavó quem contava (“então a vovó Lanora da:: da minha mãe
contava que:: que tinha uma vizinha...”), uma orientação, que ao mesmo tempo em que
informa os personagens (bisavó e vizinha), orienta o ouvinte, por meio de uma reformulação
(“que ela [vovó Lanora] estava de oração...”), quanto ao fato de a bisavó ser uma das
personagens, o que confere maior credibilidade ao fato ocorrido.
A seqüência narrativa incial é retomada com uma complicação (linhas 09 a 11) (“teve
uma vizinha que tava esfregando rôpa....”), entremeada por uma orientação sobre o lugar
onde ela lavava a roupa (“numa bacia...”) e por uma avaliação (antigamente lavava a rôpa
numa bacia, né?....”), o que revela o tempo da historia em relação ao tempo da enunciação.
Na ação (linhas 11 a 23) que se desenvolve, em função do ato da vizinha (assinalada
pelo marcador conversacional “aí”), a narradora introduz, por encaixamento, um discurso
interativo do tipo direto (seqüência dialogal), marcado, duas vezes, pelo verbo de dizer
“falô”: (“ela falô assim... ô::: ô fulana... você tá lavano rôpa hoje... esfregano rôpa hoje...
esqueceu que hoje é sexta-feira da paxão?...”), em que a vizinha relembra que dia era e
acaba por se tornar uma complicação, gerando uma nova ação, na qual é respondida mal
(“ela falô assim... a sexta-feira da paxão na iGREja... e eu estou aQUI lavano a minha
rôpa...”).
Esse discurso, encaixado na narração, além de aproximar o ouvinte dos fatos
narrados, como se estivesse presente naquele momento da enunciação, revela uma nova
complicação, ao introduzir uma perturbação e criar uma tensão, neste caso, o que
aconteceu depois que a vizinha desafiou as normas religiosas.
É, então, que a seqüência narrativa alcança sua fase de resolução (linhas 13 a 16).
A resolução, que acontece com uma avaliação (“e diz que”), cujo entendimento, de acordo
com o senso comum, revela o não comprometimento da locutora com o dito (já que não foi
ela quem disse, e sim sua bisavó), explicita o castigo dado à vizinha (“na mesma hora a
bacia encheu de sangue...”) por causa do não cumprimento das normas e crenças de sua
comunidade. Castigo esse que, através de uma nova avaliação (“foi preciso”), teve como
114
conseqüência necessitar de um padre para enterrar o sangue (“foi preciso que o padre
viesse pra interrá o sangue...”).
No ultimo segmento da narrativa temos a moral. Ela acontece com uma volta ao
momento presente da enunciação (“o insinamento que a gente vê disso”). Pode-se dizer que
o encaixamento de uma explicação na narração, a fim de se explicitar a significação
global atribuída à história (“é que a gente não deve abusá, né?... a gente não deve
abusá...”), articulada a uma avaliação (“a gente pode até não acreditá...“), para ressaltar a
lição: não abusar do sagrado. Esse tema-título “sagrado”, por fusão, é explicado em relação
a outro tema: “mistério” (o saGRAdo e o:: o sagrado é sagrado... o mistério é mistério,
né?... já fala que é mistério é porque é mistério mesmo, né?”), finalizando o causo.
3.3 Marcas de superfície: por uma análise das estratégias narrativas
Acredito que os causos sejam bons exemplos para explicitar princípios de análise
lingüística, sendo vários os mecanismos lingüísticos responsáveis pela produção dos efeitos
de sentido em causos, como, por exemplo, o fonológico, lexical, morfológico, sintático etc. É
através desses mecanismos lingüísticos que os causos se efetivam; permitindo perceber
que o texto está sempre inserido em seu contexto de produção, e que do contexto são os
elementos que geram significados. Dessa forma, o sentido não está no texto; ele é, antes, a
condição básica para que o leitor/ouvinte construa todo o significado.
Muitos causos funcionam na base de temas socialmente diversos, tais como:
religião, política, racismo, instituições etc., o que permite perceber as manifestações
culturais e ideológicas. São os valores e problemas da sociedade revelados através do
funcionamento da ngua, visto que essa, funciona sempre em relação a um contexto
culturalmente proeminente e sempre relacionado a outros textos.
O causo faz parte da prática oral e, no ato de sua enunciação, o contador adequa-se
a um interlocutor real, variando conforme o grupo em que se encontra, a hierarquia dos
ouvintes ou na dependência dos laços sociais ou familiares. Isso porque “a enunciação
humana mais primitiva, ainda que realizada por um organismo individual, é, do ponto de
vista de seu conteúdo, de sua classificação, organizada fora do indivíduo pelas condições
115
extra-orgânicas do meio social” (BAKHTIN, 1990). Nesse sentido, o valor maior está na
função a que ele se presta no momento da enunciação.
Segundo Koch (2002:7), “as teorias sócio-interacionais reconhecem a existência de
um sujeito planejador/organizador que, em sua inter-relação com outros sujeitos, vai
construir um texto, sob a influência de uma complexa rede de fatores”. Dentre eles,
podemos citar a especificidade da situação, o jogo de imagens recíprocas, as crenças,
convicções, atitudes dos interactantes, os conhecimentos (supostamente) partilhados, as
expectativas mútuas, as normas e convenções sócio-culturais. Ou seja, a construção do
texto exige a realização de uma série de atividades cognitivo-discursivas, e são certos
elementos, propriedades ou marcas instituídas por essas atividades que, inter-relacionadas,
serão responsáveis pela produção de sentido.
Foi visto no início deste capítulo que o causo popular, do ponto de vista da infra-
estrutura geral, se encaixa perfeitamente dentro de uma teoria sobre a estrutura narrativa.
Qualquer narrativa teria que ter aquela estrutura. Porém, é preciso verificar, ainda, os
mecanismos de textualização e os mecanismos enunciativos, pois acredito que as
estratégias narrativas cabem dentro desses mecanismos. Estas estratégias são
fundamentais para que o contador consiga atingir seu objetivo; para que o causo se mostre,
verdadeiramente, como tendo, naquele momento, a função de manter a cultura, as crenças
e os costumes da comunidade e alcançar o efeito de sentido desejado.
Qualquer que seja a diversidade e a heterogeneidade dos componentes da infra-
estrutura de um texto empírico, ele constitui um todo coerente, uma unidade
comunicativa articulada a uma situação de ação e destinada a ser compreendida e
interpretada como tal por seus destinatários. Essa coerência geral procede, de um
lado, do funcionamento dos mecanismos de textualização e, de outro dos
mecanismos enunciativos. (BRONCKART, 2003:259). (grifos do autor).
A análise dos mecanismos de textualização será pautada na formatação do
enunciado, e dos mecanismos de enunciação na correlação entre o que é enunciativo
(função) e o que é estrutural (forma), como reflexo da disposição dos locutores diante do
fato. Dessa forma a análise lingüística, no geral, será pautada em “como” o contador fala
para fazer valer a função a que o causo se presta e, por conseguinte, suas intenções.
Assim, compreenderá a coesão verbal, o gerenciamento das vozes enunciativas e a
prosódia, o que acredito deixar entrever porque o contador falou de uma forma ou de outra
mediante suas intenções.
116
3.3.1 Os mecanismos de textualização
Os mecanismos de textualização são articulados à progressão do conteúdo temático,
organizando os elementos constitutivos desse conteúdo em diversos percursos
entrecruzados, o que contribui para o estabelecimento da coerência temática do texto.
Esses mecanismos são definidos no nível da unidade global que é o texto, sendo
que as marcas lingüísticas que os realizam podem variar em função dos tipos de discursos
específicos que esses mecanismos atravessam. (cf. BRONCKART, 2003:260).
As regras de organização geral do texto (ou mecanismos de textualização) são
compostas por unidades que exercem uma função de conexão, sendo que algumas delas
são regidas, também, pelas regras da micro- ou macrossintaxe, e outras, por não
desempenharem função sintática definida, funcionam apenas como marcas de
textualização.
Os mecanismos de textualização podem ser reagrupados, segundo Bronckart
(2003:263), em três grandes conjuntos: a conexão (contribui para marcar as grandes
articulações da progressão temática e é realizada pelos organizadores textuais), a coesão
nominal (realizada pelas anáforas, introduz os argumentos e organiza sua retomada na
seqüência do texto) e a coesão verbal (estabelece retomadas entre séries de predicados ou
entre séries de sintagmas verbais).
No que se refere à conexão, nos diz Bronckart (2003:266) que:
As marcas de conexão pertencem às categorias gramaticais (partes do discurso)
diferentes (advérbio, preposição, substantivo, conjunções coordenativas,
subordinativas, etc.), elas se organizam eventualmente em sintagmas, também
diferentes (sintagma nominal, sintagma preposicional); e assumem, eventualmente,
funções específicas no quadro da micro- ou da macrossintaxe.
As ocorrências dos organizadores textuais dependem do tipo de discurso em que se
inserem. Segundo Bronckart (2003:267), “alguns organizadores têm um valor mais temporal
(depois, súbito, antes que); outros, um valor mais ‘lógico’ (de um lado, ao contrário, porque);
outros ainda, um valor mais espacial (no alto, desse lado, mais longe)”. Se os organizadores
estão diretamente relacionados aos discursos, temos, geralmente, nos discursos da ordem
do Narrar, privilegiadamente, os com valor temporal; nos da ordem do Expor, os mais
freqüentes são os lógicos, e em qualquer que seja o discurso, encontramos os espaciais (o
117
que não impede que alguns organizadores possam estar nos dois tipos de discurso, ou, até
mesmo, não possuir valor semântico).
Sobre a coesão nominal, primeiramente temos que distinguir suas duas funções: a
primeira, de introdução, marca a inserção de uma unidade de significação nova, em um
texto, e é, geralmente, realizada por um sintagma nominal indefinido; a segunda; de
retomada, reformula o antecedente no decorrer do texto, e é realizada, geralmente, pelas
diversas anáforas pronominais ou por sintagmas nominais cujos determinantes são
definidos.
Assim como na coesão, as escolha das unidades anafóricas podem depender do tipo
de discurso em que elas aparecem. A anáforas pronominais de terceira pessoa, por
exemplo, são mais freqüentes em discursos da ordem do Narrar, por colocarem em cena
séries de personagens; ainda nesse tipo, nas seqüências descritivas, encontramos mais
facilmente as anáforas nominais com determinante possessivo. nos discursos da ordem
do Expor, são os pronomes de primeira, segunda e terceira pessoa que caracterizam os
discursos interativos, sendo que esses pronomes possuem um valor dêitico e um valor
anafórico. Vejamos, por exemplo, uma passagem do causo 3: A fé e a vara de goiabeirae
uma do causo 5: “O sapatinho de ouro”, respectivamente:
( ) ... tinha um rapaz que era... filho único... que ele só morava com a mãe... [...] Ø era dono
de terras né?... mas Ø era um homem muito nervoso... Ø era um rapaz muito nervoso...
( ) ... uma coisa que a mamãe contava que eu achava muito interessante... que a minha
mãe era assim... muito ciumenta, né?... ela tinha verdadeira PAIxão pelo meu pai...
No primeiro, que envolve o personagem principal do causo, a unidade-fonte
(informação nova) é marcada por um sintagma nominal indefinido (um rapaz) e as formas
pronominais que constituem a série (um rapaz, ele, Ø, Ø, Ø) assumem uma função de
retomada desse antecedente, incluindo a marca Ø. No segundo, podemos observar a
introdução de uma unidade-fonte, que é marcada por uma forma nominal definida, sendo
que a retomada do antecedente é feita por formas nominais e pronominais (mamãe, minha
mãe, ela).
Vale ressaltar que, embora, geralmente, a função da introdução seja realizada por
um sintagma nominal indefinido e a função da retomada seja realizada por anáforas
pronominais diversas, essa correspondência é apenas parcial, como nos mostram os
118
exemplos acima.
Por fim, a coesão verbal, ultima forma de coerência temática, e a mais relevante para
este trabalho, “é marcada pela escolha dos constituintes obrigatórios desses mesmos
sintagmas [verbais]: escolha dos lexemas verbais e, sobretudo, escolha de seus
determinantes (...), que chamaremos, seguindo o uso dominante, de tempos verbais”
(BRONCKART, 2003:273).
Visto que os tempos verbais
69
são de extrema importância na narrativa dos causos,
tentarei apreender o valor que os verbos
70
e seus determinantes assumem no quadro da
organização do causo.
Bronckart (2003:274) assevera que de acordo com as concepções gramaticais-
padrão, os constituintes do sintagma verbal contribuem para a expressão de relações
temporais, de matizes aspectuais, assim como de algumas modalizações”. Nesta seção
tentarei mostrar a marcação da temporalidade e da aspectualidade no causo, que ela se
organiza, normalmente, em séries isotópicas de unidades que contribuem para a
manutenção da coerência temática de um texto. Como a marcação das modalizações ocorre
em unidades mais locais, que contribuem para a manutenção de uma coerência pragmática
ou interativa, tratarei dos valores de modalização na seção 3.3.2 deste capítulo, ao abordar
os mecanismos enunciativos.
Para exemplificar a temporalidade e a aspectualidade tomarei como pressuposto
teórico o estudo do lingüista alemão Weinrich
71
(1968 apud KOCH, 2001). O autor, em seu
trabalho acerca da distribuição dos tempos verbais no francês, constata que eles servem
para situar o leitor/ouvinte em relação à atitude de locução e que, em relação ao
comprometimento, ou não, do narrador/locutor dois grandes sistemas (tipos de mundo
discursivo) em que se distribuem os tempos do verbo nas narrativas: os do mundo narrado
69
O “tempo” possui dois planos de descrição: i) o da linguagem onde se trata de morfemas, palavras e
construções gramaticais; e ii) o do mundo – onde se registram fatos com determinadas relações cronológicas (cf.
Ilari, 1997:11). Quando me referir aos recursos estruturais envolvidos na expressão lingüística do tempo, falarei
em “tempo verbal”, do contrário a palavra “tempo” estará sendo aplicada ao mundo.
70
O estudo do verbo é fundamental em uma análise do tempo nas narrativas. Ele nos indica o momento da fala,
o momento da realização da ação e o momento da referência (suprido pelo contexto). Ilari (1997:15) assevera
que “é necessário recorrer à noção de momento de referência para compreender certas determinações
temporais que a sentença sofre no co-texto, em particular no co-texto narrativo”. Para o autor, o co-texto anterior
fixa em geral o momento de referência da oração seguinte, devido a falta de indicações mais específicas, como,
por exemplo, os adjuntos de tempo.
71
WEINRINCH, Harald. Estructura y función de los tiempos en el lenguaje. Madrid: Gredos, 1968.
119
(relato) e os do mundo comentado (comentário)
72
.
No mundo narrado, de acordo com Weinrich (1968 apud KOCH, 2001:51), os tempos
verbais representantes desse mundo seriam os seguintes: pretéritos imperfeito, mais-que-
perfeito, passé simple”, futuro do pretérito e locuções desses tempos
73
. Nesse mundo, o
narrador/locutor narra os fatos de uma forma menos comprometida, que ele se distancia
do que diz, não se posicionando diretamente sobre os fatos relatados. no universo do
mundo comentado, representado pelos tempos verbais: presente, futuro do presente,
pretérito perfeito composto e locuções formadas por esses tempos (segundo Weinrich apud
KOCH, 2001: 51), o narrador/locutor, ao contrário, compromete-se com aquilo que enuncia,
aproximando-se, pois, de seu objeto de dizer. É essa adesão do narrador/locutor ao seu
enunciado que cria uma “tensão” entre os interlocutores envolvidos no discurso.
Retomando o causo 4, podemos perceber que nesse causo temos uma narração
ulterior (“Minha mãe contava que:: que a dela, né?... que ela chamava a Lanora...
minha vovó Lanora contava que:: no tempo de:: dela... a semana santa era uma semana
santa MESmo... [...] que tinha uma vizinha...”), em que, na fase da orientação, a narradora
conta o que passou anteriormente. Ela revela que além de ser um fato ocorrido no passado
foi contado por sua mãe, e, que, por ter sido contado a esta pela avó (bisavó da narradora),
revela ser um passado ainda mais distante. E tudo isso na intenção de dar mais
credibilidade à história. Para isso, a narradora se vale dos verbos no pretérito imperfeito, os
quais não fazem a história avançar (destacam-se, apenas, no plano secundário).
Ainda nessa seqüência, o imperfeito faz ver sucessivamente as diversas ações
proibidas na sexta-feira da paixão: “... ninguém cozinhava... ninguém varria... ninguém
72
Vale lembrar que as funções de contraste (primeiro e segundo planos) estão ligadas diretamente ao mundo
narrado e ao mundo comentado, segundo Weinrich, e que estes são denominados, respectivamente, por
Bronckart (2003) de mundo do NARRAR e mundo do EXPOR. “Bronckart (1999: 153) sugere uma reformulação
da distinção entre mundo narrado e mundo comentado de Weinrinch, propondo que se considerem os mundos
discursivos da ordem do narrar e da ordem do expor. Assim, o mundo do narrar diz respeito a um mundo
discursivo situado em um ‘outro lugar’, mas esse outro lugar, entretanto, deve permanecer, (...), como um
mundo parecido, isto é, um mundo que deve poder ser avaliado ou interpretado pelos seres humanos que lerão o
texto”. Ao mesmo tempo em que está situado à distância, o mundo narrado pode apresentar “graus de desvio”
em relação ao que vigora no mundo ordinário. Já na chamada ordem do expor, o conteúdo dos mundos
discursivos se apresentariam conjugados e avaliados à luz dos critérios do mundo ordinário” (ADERALDO, 2004:
76-77).
73
Deve-se observar, contudo, que a classificação de Weinrich, segundo Koch (2001), não atende completamente
aos fenômenos do português, como no caso do pretérito perfeito simples, que costuma ocorrer em ambos os
mundos, embora com valores diferentes: no mundo narrado ele é o tempo zero, sem perspectiva; no mundo
comentado, o tempo zero é o presente, e o pretérito perfeito tem valor retrospectivo em relação ao tempo zero.
Além disso, é importante lembrar que o discurso indireto livre estaria entre os dois mundos.
120
lavava... ninguém penteava cabelo, né?... ninguém fazia nada... “. A não realização dessas
ações, ainda, é justificada com a narradora usando o verbo “ficasse”, que estando no
pretérito imperfeito do subjuntivo, exprime um fim que se pretende alcançar, ou seja, que
isso é necessário para que as pessoas ficassem em jejum e oração. A freqüência no causo
coincide com o modo singulativo (contar uma vez aquilo que se passou uma vez), porém, as
ações acima nos permitem, também, entrever a presença de modo iterativo (o narrador
conta apenas uma vez aquilo que aconteceu n vezes na história). Os verbos no pretérito
imperfeito equivalem a um aspecto freqüentativo, pois exprimem a idéia de freqüência; são
marcas explícitas das vezes em que essas situações aconteceram, constituindo o pano de
fundo da narrativa.
Na complicação se destaca a locução verbal “tava esfregando”, na passagem teve
uma vizinha que tava esfregando rôpa numa bacia... antigamente lavava a rôpa numa bacia,
né?... que a vizinha tava esfregano rôpa na bacia...”, para indicar uma ação durativa ou
continuada. Aliás, essa asserção pode ser percebida com mais clareza na passagem
seguinte, pois durante o discurso direto, talvez pelo próprio efeito de realidade que ele
provoca, cria-se uma sensação de se estar enxergando a cena em que a vizinha responde a
indagação da outra sem parar de lavar a roupa. A narradora ainda faz uma observação
dentro dessa seqüência ao usar o verbo “lavava” (pretérito imperfeito) para indicar uma ação
passada “habitual” lavar roupa em bacias, pois nos dias de hoje (Séc.XXI) o habitual é
usar as máquinas de lavar.
Na fase de resolução, o verbo no pretérito perfeito cria uma tensão no ouvinte ao
explicitar o castigo dado à vizinha (“na mesma hora a bacia encheu de sangue...”) por causa
do não cumprimento das normas e crenças de sua comunidade, indicando ser o primeiro
plano, pois o castigo é a base da moral que vem a seguir.
Na fase de moral, a narradora assevera, no momento presente da enunciação, que
a gente não deve abusá, né?... [...] a gente pode até não acreditá... mas a gente não
deve abusá do sagrado... [...] o sagrado é sagrado... o mistério é mistério, né?... “. Nessa
passagem fica clara a função do causo como um ensinamento. Ao falar que não se deve
abusar do sagrado, a narradora utiliza o verbo factivo epistêmico “é” para dizer que sua
asserção é verdadeira, por isso ninguém deve abusar do sagrado.
Por fim, através do tempo verbal é possível perceber a ordem da narração, que,
121
nesse causo, corresponde à ordem cronológica da história (comum nos causos), ou seja, ele
é contado na ordem em que os fatos ocorreram.
Acredito ter conseguido confirmar, mesmo que sucintamente, o que disse Weinrich
(1968 apud KOCH, 2001), no que se refere ao uso dos tempos verbais no mundo narrado e
no mundo comentado. Foi possível perceber que, no tocante à perspectiva de locução, as
fases de orientação e de avaliação integram o segundo plano do mundo narrado, pois,
através do uso do pretérito imperfeito, o narrador/locutor narra os fatos de uma forma menos
comprometida, não se posicionando diretamente sobre os fatos relatados. Em contrapartida,
na fase de resolução o narrador/locutor se compromete e cria uma tensão, valendo-se do
pretérito perfeito e, na fase de moral ele se vale do presente. Esses tempos verbais, ao
aproximarem o narrador do que diz, colaboram para que o ouvinte assimile, creia e
mantenha as crenças de sua comunidade.
3.3.1.1 A macroestrutura social: os atos de fala no processo de interação
Segundo Van Dijk (2000:29-30), a macroestrutura “se constitui na explicação teórica
do que geralmente chamamos de enredo, trama ou tópico de um texto”. Para o autor, o
tópico pode ser percebido por informações textuais, advindas das proposições, tais como
títulos, palavras temáticas, sentenças temáticas iniciais, conhecimento sobre possíveis
ações ou acontecimentos globais resultantes, assim como informação provinda do
contexto”.
Com relação ao contexto, é dever dos usuários da língua analisá-lo em relação ao
contexto no qual um determinado ato de fala é realizado, antes mesmo de relacionarem as
informações recebidas com o conhecimento lingüístico mais geral e outros conhecimentos
arquivados na memória” (VAN DIJK, 2000:80). “O contexto de um elemento X qualquer é,
em princípio, tudo o que cerca esse elemento. Quando X é uma unidade lingüística (...), o
entorno de X é ao mesmo tempo de natureza lingüística (ambiente verbal) e não-lingüística
(contexto situacional, social, cultural)” (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2004:127).
Assim como nas macroestruturas semânticas do discurso, os contextos são
hierarquicamente estruturados e essa hierarquização é definida em termos de estruturas
122
sociais como, por exemplo, os atos de fala que são parte integrante da interação social.
Ao comungar com a perspectiva intencionalista
74
na abordagem do significado de
atos de fala, adotada por Searle, penso ser possível asseverar que o falante (orador) quer
levar o ouvinte (auditório) a entender algo ou a fazer algo; nesse caso, que os ouvinte
respeitem os costumes e a cultura de seu povo; que ao significar o dito, ajam de acordo com
ele.
No uso ficcional das palavras haveria um fingimento, nesse sentido, “fingir fazer ou
ser alguma coisa é envolver-se numa encenação, é agir como se estivesse fazendo ou
fosse essa coisa, sem nenhuma intenção de enganar” (SEARLE, 1995a:105). Se aceitamos
essa posição, no causo 4, Dona Florentina, a contadora, estaria fingindo relatar-nos uma
série de eventos, ou atos ilocucionários, os quais, de acordo com o autor, são normalmente
do tipo assertivo.
No que se refere aos causos populares orais, acredito que eles, por funcionarem
como mantenedores da cultura, transmitem mensagens pelo texto, mesmo que não estejam
no texto. Apesar de haver uma moral da história, esta não faz parte diretamente do texto,
mas dos comentários posteriores feitos pela contadora e que deveriam ser significados pelo
ouvinte ao final do causo
75
, pois, como mostrado na seção 3.2, é na moral (uma das fases
de sucessão obrigatória da seqüência narrativa) que se explicita a significação global
atribuída à história, qual seja: ...o ensinamento que a gente disso é que a gente não
deve abusá, né?... a gente não deve abusá... a gente pode até não acreditá... mas a gente
não deve abusá do sagrado...”.
Se, como disse acima, as marcas lingüísticas que realizam os mecanismos de
textualização podem variar em função dos tipos de discursos específicos que esses
mecanismos atravessam, talvez se possa pensar que o gênero causo assume certos
formatos em função do tema e que, de acordo com o contexto, são esses mecanismos que
tornam o texto coerente e passível de uma significação, pelo ouvinte, pretendida pelo
74
“A intencionalidade, em sentido estrito e imediato, diz respeito ao propósito dos produtores de textos de fazer
com que o conjunto de ocorrências verbais possa construir um instrumento textual coesivo e coerente, capaz de
um plano; em sentido amplo, abrange todas as maneiras como os sujeitos usam textos para perseguir e realizar
seus objetivos” (BEAUGRANDE & DRESSLER, 1981 apud KOCH, 2002:20).
75
Vimos na seção 3.2, deste capítulo, que a moral é uma das fases da narrativa e que faz parte do plano geral
do texto. Como visto, trata-se do encaixamento de uma explicação na narração, articulada a uma avaliação, para
ressaltar a lição, o que garante a análise, aqui, proposta.
123
contador. Assim, vejamos no causo 4,A Sexta-feira da Paixão”, o papel dos atos de fala na
construção do sentido, de forma a tornar-se uma ferramenta na manutenção dos costumes e
dos valores culturais. Esse causo, no que se refere ao tema, poderia ser pensado em
termos de profecia, ou seja, ao violar uma das leis de Deus, a personagem recebe um
castigo, portanto o ouvinte não deve violar as leis, pois isso pode acarretar em um castigo.
Ao tratar do Estatuto lógico do discurso ficcional, Searle (1995b:95) revela acreditar
que “falar ou escrever numa língua consiste em realizar atos de fala de uma espécie bem
particular, chamados ‘atos ilocucionários’”, nos quais são incluídos os atos de fazer
enunciados, fazer perguntas, dar ordens, fazer promessas, desculpar-se, agradecer e assim
por diante. O autor ainda acrescenta que “há um conjunto sistemático de relações entre os
significados das palavras e sentenças que emitimos e os atos ilocucionários que realizamos
na emissão dessas palavras e sentenças”.
Resta-nos recuperar aquilo que se incorpora nesse ato em termos das intenções do
locutor. Certamente, alocutários possuem estratégias de recuperação das intenções
engendradas num ato de fala indireto, caso contrário a nenhum ato nesse formato poderiam
ser asseguradas condições de satisfação. Assim, ainda que numa perspectiva de dissenso,
um ato indireto é satisfatório.
Vejamos um discurso interativo direto, inserido pelo contador em sua narrativa:
“(2)ô::: ô fulana... você lavano rôpa... (3) esfregando rôpa hoje?... (4) esqueceu
que hoje é sexta-feira da paxão?... “. Se levarmos em conta a proposta de Searle
(1995a), ou seja, que casos de atos de fala indiretos são “casos em que um ato
ilocucionário é realizado indiretamente através da realização de um outro”, veremos que
as sentenças (3) e (4) se encaixam nessa proposta.
Ao emitir a sentença tá esfregando rôpa hoje?” o locutor adverte o alocutário quanto
a ação que ele estava exercendo ponto diretivo ou simplesmente lembra-o de que
aquele dia é santo e, portanto, não deveria lavar roupa. Na verdade, o falante não pretende
que seja simplesmente uma pergunta – e, muito menos que ela seja respondida –, mas uma
advertência, ou lembrança de que é sexta-feira da paixão e, nesse dia, não se pode lavar,
passar, cozinhar, etc. Na sentença, o dêitico temporal “hoje” deixa clara a relevância do dia
em que foi proferida a sentença. Não era qualquer dia, era aquele dia específico, no caso,
sexta-feira da paixão e, portanto, ela deveria parar de lavar a roupa; é a cultura sendo
124
retomada.
Na sentença seguinte, (4), o falante ao proferir a pergunta esqueceu que hoje é
sexta-feira da paxão?” é possível perceber o ato de fala indireto que ela pretende realizar. A
intenção é de levar a ouvinte a significar “hoje não se pode lavar roupa”, diferentemente da
sentença “você esqueceu a bolsa no carro”, que não tem a intenção de realizar um ato
através de outro, mas, sim, fazer uma constatação; é apenas uma asserção.
Penso que a intenção era fazer uma advertência, ou talvez um pedido (se tomarmos
o fato de que, na crença popular, ações como lavar, cozinhar, passar... na sexta-feira da
paixão são um sacrilégio e corre-se o risco de ser castigado). O falante teve a intenção de
fazer com que o ouvinte percebesse que um pedido/advertência estaria sendo feito e,
também, que reconhecesse sua intenção de produzi-lo. Nesse caso tem-se duas forças
ilocucionárias, o que confirma a proposta de Searle (1995a) no que se refere aos atos de
fala indiretos.
É importante fazer uma observação quanto aos atos de fala, em função da sentença
(4). O falante proferiu a sentença com a intenção de alertar a amiga-ouvinte quanto ao
sacrilégio que estava cometendo e, com essa fala, esperava que a amiga parasse de lavar a
roupa. No entanto, nem sempre os atos de fala indiretos são percebidos tais como o falante
intenciona, ocasionando o mal entendido ou outro efeito qualquer, que não o esperado.
Na seqüência do causo, a vizinha a seguinte resposta para a amiga: “...ela falô
assim... (5) a sexta-feira da paxão na iGREja... (6) eu estou aQUI lavano a minha
rôpa..”. Percebe-se que a amiga não entendeu como um alerta ou pedido, e sim como algo
parecido com você está tomando conta da minha vida”. Diríamos que essa não foi uma
condição de realização feliz dos atos de fala que a sentença (4) costuma realizar
indiretamente.
As condições de realização feliz dos atos de fala indiretos estão diretamente ligados
às condições preparatórias, condições de conteúdo proposicional e condições de
sinceridade. Nesse contexto, a hipótese defendida por Searle (1995a:50) é de que em atos
de fala indiretos, “o falante comunica ao ouvinte mais do que realmente diz, contando com a
informação de base, lingüística e não lingüística, que compartilhariam, e também com as
capacidades gerais de racionalidade e inferência que teria o ouvinte”.
A asserção (5) revela que o ato de se guardar esse dia faz parte de uma instituição,
125
no caso, da igreja. Mais que isso, revela que o alocutário não crê nesse ritual, nos dogmas
da instituição. O ponto é assertivo; o modo é de negação; e a condição de sinceridade é
estar negando o seu estado mental de crença no dia lembrado, além de provocar um efeito
de ironia.
Na seqüência (6), o dêitico temporal locativo “aqui”, em contraponto ao lá”, confirma
a asserção anterior. Para o locutor, por fazer parte de uma instituição religiosa, a semana
santa é para os que fazem parte da igreja; ele, no entanto, não faz parte dela, está em casa,
em sua vida “real”, cumprindo seus afazeres domésticos. Mais uma vez, mostra que a
cultura e os costumes estão mudando, principalmente quando se leva em consideração a
vida corrida que o sujeito é obrigado a enfrentar para sobreviver no mundo de hoje. Como
deixar de fazer as obrigações domésticas em detrimento de um dia dito “santo”? No entanto
é essa mudança que reafirma a necessidade de se contar causos na tentativa de resgatar
os costumes e os valores das comunidades.
Na asserção (7) fica claro o contrato que o gênero textual causo popular oral prevê e,
por conseguinte, onde o contador queria chegar: “(7) e diz que a bacia encheu de sangue...
na mesma hora a bacia encheu de sangue...”. Como foi dito anteriormente, o contador não
tem a intenção de enganar o ouvinte. Tais asserções não se constituem “mentiras”. Ducrot
aponta a mentira como inerente à fala, ou seja, todo ato pode ser uma tremenda mentira.
Porém, como o ato não tem como funcionar sem a intencionalidade, ao proferir essa
asserção, não importa se é verdade ou mentira; importa o que está por trás do proferimento
desse ato: no causo, ensinar que abusar do sagrado traz conseqüências, ou seja, recebe-se
um “castigo” (“diz que a bacia encheu de sangue”).
Para encerrar, o contador chama a atenção do ouvinte para a moral do causo que
acabou de contar; reafirma, como dito anteriormente, que apesar de não explícita, a moral
faz parte da significação que o locutor pretende que seu alocutário processe; “...(8) a gente
pode até não acredita, né... (9) mas a gente não deve abusar do sagrado... (10) o saGRAdo
e o:: o sagrado é sagrado... o mistério é mistério, ?...”. Tem-se na sentença (9) um ponto
comissivo no modo ameaça. Essa proposição é prejudicial ao alocutário; nas condições de
conteúdo proposicional, a ação é lesiva ao alocutário. O que o locutor pretende é
amedrontar o alocutário no sentido de que se ele abusar do sagrado algo de ruim pode
acontecer. Podemos dizer que é a constatação da profecia (“sagrado é sagrado...”).
126
Retomando a questão, na sentença (10) tem-se um ponto assertivo no modo
afirmação. Nas condições de conteúdo proposicional diz respeito ao enunciado o tempo
do verbo é o presente, é uma verdade suposta pelo Locutor. Existe um posicionamento do
Locutor em relação ao dito, principalmente se retornarmos à sentença (8). Apesar de haver,
de certa forma, uma dúvida quanto ao ocorrido (a bacia encher de sangue), fica para o
ouvinte que, mesmo que ele não acredite, ou seja, na dúvida se verdade ou mentira é
melhor não abusar.
Isso me faz retomar a questão da intencionalidade e do funcionamento dos
contratos
76
. Durante a gravação, havia um grupo de 05 pessoas ouvindo os causos de Dona
Florentina. Quando foi dito que a bacia encheu de sangue, uma das ouvintes reagiu ao dito
exclamando: nossa senhora!”. Ela deixou claro que estava fazendo parte do jogo. Naquele
momento não se pediu comprovação. A crença foi estabelecida através do espanto, mesmo
porque a expressão proferida é tida como uma solicitação de proteção à Santa. “Nossa
Senhora”, no senso comum quer dizer: “me proteja contra isso”, “não deixe isso acontecer
comigo”. Um ato diretivo implícito, que através do espanto, compromete o alocutário (Nossa
Senhora) ao lhe ser pedido que não deixe que esse fato aconteça.
Vemos que neste causo uma aproximação grande com “Cartas aos apóstolos”
(texto em que se reproduz uma profecia no seio da comunidade), o que podemos verificar,
por exemplo, através do performativo no tempo dela...”, ou mesmo do formato das
parábolas bíblicas: “minha mãe contava...”; “a semana santa...”; “muita vontade de encontrar
com Deus...”. Nesse sentido, os mecanismos de textualização que atravessam esse
discurso religioso (constante em formatos tais como a parábola) são marcados
lingüisticamente em função do tema.
Apesar da complexidade com que um causo se manifesta em função da manutenção
da cultura e dos costumes familiares pois não temos como afirmar que o que se pretende
que o ouvinte faça de fato será feito –, é possível perceber que os atos de fala são
importantes na construção de sentido desse gênero textual, em se tratando do fim a que ele
se destina.
76
Pensar em contrato significa pensar na aceitabilidade. Esta “refere-se à atitude cooperativa (cf.Grice) dos
interlocutores, ao concordarem em ‘jogar o jogo’, de acordo com as regras e encaram, em princípio, a
contribuição do parceiro como coerente e adequada à realização dos objetivos visados” (BEAUGRANDE &
DRESSLER, 1981 apud KOCH, 2002:20)
127
Vimos que Dona Florentina, para manter a cultura religiosa (nesse caso, que não se
deve abusar do sagrado, portanto, as crenças religiosas devem ser respeitadas), instaurou
um narrador/locutor que, através de suas personagens, se vale de X atos de fala para
construir X efeitos de sentido e, assim, atingir seu objetivo.
Todo o causo, seja durante a contextualização, no fato em si ou na moral, deixa
entrever que os costumes e a cultura têm sofrido alterações ao longo dos tempos,
principalmente nos grandes centros, onde o que fala mais alto é a voz do senso comum que
diz “tempo é dinheiro”. No corre-corre de casa para o trabalho, do trabalho para a escola e
assim por diante, não se pode parar com os afazeres do dia-a-dia. O inverso acontece no
interior, lugar que tende a ser mais pacato, a ter pessoas, como Dona Florentina, menos
assoberbadas; lugar, como Itabirito, em que se busca preservar as tradições, os costumes e
a cultura da comunidade.
É na busca dessa preservação que os atos de fala se tornam pertinentes no estudo
do gênero causo popular oral, pois nessa atividade linguageira o narrador não ao dizer
faz algo pela comunidade como, também, a faz fazer e as estratégias utilizadas nesse dizer
fazem toda a diferença.
3.3.2 Os mecanismos enunciativos no causo
A microestrutura é compreendida por Van Dijk (2000) como sendo o resultado das
relações estabelecidas entre as proposições textuais. Dito de outra forma, é possível
entender o nível microestrutural como sendo “aquele que revela as estratégias de coesão
textual, a partir de articulações significativas entre as sucessivas proposições que integram
os enunciados do discurso” (ADERALDO, 2004:105).
Em termos cognitivos, no entanto, deve-se observar que tais termos se referem a
operações mentais realizadas na produção e recepção de textos, e não a aspectos
estritamente textuais. Visto dessa maneira, tanto a coesão quanto a coerência são
resultantes de operações realizadas pelo interlocutor (ouvinte do causo), portanto não são
propriedades do texto. As propriedades são realizadas pelo interlocutor (ouvinte) que as
constrói para o modelo textual de que dispõe, aqui, o causo.
128
Nesse sentido, cabe ao locutor (contador) indicar em seu texto as operações de
coesão e coerência que, de acordo com sua perspectiva, devem ser realizadas pelo ouvinte
no momento de contar do causo, visto que o contador não pode garantir que tais operações
sejam realmente processadas. É por não se tratarem de propriedades textuais que a coesão
e a coerência, no entender de Costa Val (1991;1999), configuram-se aspectos da
textualidade resultantes do movimento do leitor (ouvinte) que os constrói segundo suas
habilidades de leitura.
Penso que o causo popular oral se mostra como tal nos mecanismos enunciativos,
ou seja, na modalização, nas vozes e nos aspectos prosódicos, aspectos microestruturais
considerados nas análises desta seção. Acredito que tais dimensões de análise permitirão
entrever o tratamento lingüístico das proposições por parte dos locutores (contadores), a
partir de seus propósitos comunicativos.
O que é lingüístico deve ser semelhante ao que é estrutural, semelhante a qualquer
outra narrativa, porque é isso que vai definir o tipo narrativo. Porém, o que não é apenas
lingüístico pertence aos mecanismos enunciativos. Pensando nisso, como a voz é marcada
nos causos? Como é marcada a modalização? E a prosódia? Como é percebida?
Tentarei mostrar que as estratégias narrativas não são apenas textuais; na medida
em que podem criar efeitos de sentido são, também, interacionais.
3.3.2.1 Posicionamento enunciativo e vozes
Vimos no cap. 2 que todo discurso é um “interdiscurso”, determinado por várias
vozes que se cruzam simultaneamente no espaço dialógico. Portanto, “como ser projetado
num espaço e num tempo e orientado socialmente, o sujeito situa o seu discurso em relação
aos discursos do outro” (BRANDÃO, 1998:49). Vimos, também, que se os textos se
constituem a partir de outros textos, do discurso do outro, então a linguagem é
constitutivamente heterogênea (ou polifônica
77
, segundo Koch, 2002).
Pensando no interdiscurso, como exemplo, analisei, a partir das formações
discursivas, como as vozes se cruzam no espaço dialógico (Pêcheux, 1988) e, como outra
77
Segundo Koch (2002), a polifonia se configura como um fator importante na construção dos sentidos no texto.
129
forma de análise, adotei os pressupostos advindos de Genette (1995) e Todorov (1971),
para os quais a voz está diretamente relacionada à pessoa, ao espaço e ao tempo. É o que
veremos a seguir.
De acordo com Charaudeau & Maingueneau (2004:24), tende-se, hoje, a empregar
a noção de formação discursiva, “sobretudo, para os posicionamentos de ordem ideológica”.
Também se fala mais facilmente de ‘formação discursiva’ para discursos políticos ou
religiosos do que para o discurso administrativo ou o discurso publicitário”.
Partindo dessa proposição, é possível pensar que outros discursos que não os
citados podem trazer em si posicionamentos dessa ordem, tal qual um discurso religioso,
por exemplo. É o que veremos no causo 5: O sapatinho de ouro (Anexo 1).
Dona Florentina conta um causo que foi contado por sua mãe e que, segundo ela,
tinha a ver com o medo que seus pais tinham de os filhos serem tentados pelo demônio e
assim se desviarem do caminho certo. O causo é sobre um senhor que olhava um casal
vizinho com muita inveja, devido à paixão que os dois sentiam um pelo outro, e certo dia
esse senhor diz que se conhecesse o demônio ele o pagaria para desmanchar aquele
casamento. Eis que o demônio aparece e oferece o serviço em troca da alma desse senhor.
Aceito o trato o demônio faz de tudo para separar o casal, mas não consegue. Indo embora,
ele encontra com uma senhora que diz saber como separá-los e faz um trato: ela ganharia
um sapatinho de ouro e separando-os, ele ganharia a alma do tal senhor. No final, a mulher,
através da intriga, consegue o feito, revelando-se, assim, pior do que o demônio.
Na primeira passagem, (11) ...meu pai sempre teve muito medo que a gente
desviasse do caminho certo... que a gente encontrasse mesmo a tentação do demônio...”, o
sujeito, Sra. Florentina, manifesta-se através da atualização da crença/ideologia na
necessidade de se andar no caminho “certo”, da moral, da ética, da religião, preocupação de
todo pai, chefe de família, ideologia essa que revela o caminho do certo e do errado na vida,
já que, na voz do senso comum, tem-se os dois caminhos a seguir: o de Deus (certo/bom) e
o do demônio (errado/ruim).
Podemos pensar, então, em Pêcheux (1988:160), quando diz que “as palavras,
expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por
aqueles que as empregam. Em se pensando que os causos têm, dentre outras, a função de
compartilhar saberes, de manter os valores e os costumes de um povo, comunidade..., a
130
expressão “caminho certo”, não seria entendida como “desvio de direção”, mas, sim, como
“desvio de conduta”. Daí Pêcheux dizer que “as palavras, expressões, proposições,
recebem
78
seu sentido da formação discursiva na qual são produzidas”.
Vejamos estas três passagens: (12) “...o meu pai era um homem muito piedoso...”,
(13) “...ela fala que tudo é tentação...” e (14) “...eu acho que ela também contava uns causo
pra meu pai ouvi... assim pra nele uma certa apreensão...”. O causo inicia-se com essa
contextualização espaço-temporal (importante para a formação discursiva condição de
possibilidade) a partir do momento em que a contadora remete-se aos valores da época,
projetados pelo social condições históricas através da figura do pai (12) e, em seguida,
através da postura da mãe, primeiro como educadora (13), responsável pelos valores
deixados pelo ‘pai do céu’, no que se refere ao trato com os filhos e, ao mesmo tempo,
como aquela que intimida o marido através dos causos (14), no que se refere ao pai da
contadora.
Nesse sentido, a intimidação era uma tentativa de manter o marido no caminho certo
do casamento, pois, na visão da contadora, a mãe era “muito ciumenta”, “tinha loucura” pelo
pai, e de acordo com o senso comum, o ‘ciúme cega’ e faz com que se ‘veja coisas onde
não tem’: traição, outra mulher, etc.
Essas passagens nos fazem pensar em Bakhtin, ao dizer que a palavra é
determinada pelo fato de ela proceder de alguém e de se dirigir a alguém. Ela é a ligação
entre o “eu” e o “tu” e vai depender do “aqui” e “agora”.
A contadora instaura a enunciadora mãe, que conta causos para ela (filha), mas que,
ao mesmo tempo, conta o causo com a intenção de que o pai escute, ou seja, conta para
ele também (ou seria melhor dizer que ela conta para ele, mas se dirigindo à filha?), por fim,
instaura os enunciadores personagens (vizinho, demônio, marido, mulher e velha).
Nesse sentido, podemos retomar as três condições do direito à palavra, descritas por
Charaudeau (2001), ao falar da estruturação do contrato de comunicação: i)
(reconhecimento do) saber, ii) (reconhecimento do) poder e iii) competência discursiva. As
duas primeiras, o saber e o poder, estão ligadas à legitimidade e a terceira, a competência
discursiva, à credibilidade (ethos). Afinal, não é a contadora quem fala: é o pai, o caminho
78
Acredito que o verbo “selecionar” expressa melhor a realidade do funcionamento da língua, pois a palavra não
recebe outro sentido, nós é que o escolhemos de acordo com as formações discursivas.
131
certo é o dele. Ela diz: “meu pai sempre teve muito medo...”; a experiência é da mãe, e não
dela. Ela diz: “minha mãe contava...” e “pai” e mãe”, como sabemos, possuem uma grande
carga de credibilidade e de legitimidade.
Nesse momento, a contadora se assujeita na voz da mãe ao dizer: (15) “...uma coisa
que minha mãe contava (...) ela contava um caso...”. Interessante é observar que a mãe
tinha consciência de que o causo tinha o poder de intimidação, assim como a contadora tem
a consciência de que o causo é uma fonte de transmissão de valores/crenças/ideologia.
É nesse assujeitamento da contadora que emergem os pré-construídos, como em:
(16) “...eles mostrava que tudo tem uma tentação no meio... que ninguém faz as coisa sem
uma tentação movê a gente...”, ou seja, as coisas ruins, mal feitas, são
explicadas/justificadas pela existência da tentação, o que nos remete a estrutura social
abordada por Pêcheux.
Através das próximas passagens foi possível perceber que o causo analisado é
permeado praticamente pelo discurso religioso, tendo como recorrência os pecados capitais:
a mulher era muito boNIta... de seios FARtos (...) GORda, muito roSAda...” =
ligado a luxúria;
o home tinha uma inVEja TREmenda daquele casal, ?” = inveja da
convivência, da felicidade do casal;
ah:: eu nun sei não (...) se eu conhecesse o demônio (...) eu pagava ele... pra
ele desmanchá esse casamento...” = dialética entre Deus (pai bondoso que prima
pela manutenção do casamento) e o demônio (que seria pago para desmanchar
o casamento, a quem é dado, pelo senso comum, o poder de destruir o que Deus
construiu;
me sete dias... não... sete horas...” = Deus levou seis dias para construir o
mundo e um para descansar e o demônio (na forma da “boa” senhora) não gasta
nem sete horas para destruir duas vidas;
em sete dias?...num precisa de sete hora não...” = na fala da senhora, é a
vaidade. É mais inteligente que o Demônio;
eu to DOIda com um sapatinho de ouro... tenho louCUra pra um sapatinho de
ôro...” = poder, ganância (gula);
e tudo dava CERto no que ela falava... ia dano... ajeitano... que parecia que era
verdade... ela falô DExa está quando ele cheGA... eu aprontá uma boa
com ele... = Ira provocada pela fala da senhora, não na esposa como no
marido;
retomada de alguns dos dez mandamentos: não cobiçar as coisas alheias
(felicidade do casal), não matar (levou o casal à morte).
Esse discurso religioso, como vimos acima, acontece através da estrutura lingüística
abordada por Pêcheux, o que podemos perceber também nas seguinte passagens: que
tudo era tentação
”, um senhor... e que ficava olhando aquele casal tinha MUIta inveja...”,
132
se eu conhecesse o demônio... eu pagava pra ele desmancha esse casamento...” (o que
Deus uniu o homem não separa, mas o Demônio, sim).
Além dessas expressões, que clarificam o discurso transverso religioso, existem, em
especial, duas outras expressões que gostaríamos de destacar: velha/veia: (17) “...ele
ia muito cabisbaxo encontrô com uma velha... ela falô assim uai... triste hoje...”; (18) “...
a véia saiu dali foi no serviço do marido...” e teceno: (19) “...aí foi falano com a mulhe...
foi teceno com a mulhe... foi teceno... teceno...”. A palavra “velha” aponta para uma
formação discursiva diferente da palavra “véia”, ou seja, pessoa sábia, experiente, está no
padrão escrito da norma, ao passo que “véia” aponta para uma formação discursiva que
remete à perspicácia, maldade, astúcia, características depreciativas, ao contrário de
“velha”. a palavra “teceno” é a idéia da manipulação, da trama diabólica permeada pelos
pecados capitais, tomados como exemplos do discurso religioso acima.
O que se observa, então, como características marcantes no causo, são: o discurso
transverso religioso, através do qual o sujeito se constrói; a ideologia, manifesta na forma-
sujeito; a memória discursiva, resgatada através do senso comum/pré-construídos/história;
na língua, a exploração da oposição Deus e Demônio, velha e véia, o bem e o mal.
A forma-sujeito, abordada por Pêcheux, apresenta-se, neste trabalho, através da
subordinação ao outro: a contadora assujeita-se frente às crenças/ideologias de uma
determinada sociedade ou comunidade, na medida em que ela as assume como suas,
assim como fizeram seus pais, ao apropriar-se de interdiscursos e das condições históricas,
observando as condições de produção e verificando o funcionamento da memória, fatores
essenciais à manifestação do sujeito na formação discursiva.
É possível perceber uma relação estreita entre a maneira de contar o causo e a
parábola bíblica, em que se ensina através de exemplos. Nesse sentido, o sujeito se
constrói dentro da estrutura lingüística e social para fazer compreender o sentido emergente
no causo: aprenda com a experiência do outro
79
: o ciúme, a inveja e a intriga são piores que
o demônio, o que podemos perceber na última passagem do causo: (20) “...TOma... TOma...
seu sapatinho tá aqui... num quero que ocê chega perto de mim de JEIto nenhum... cê é piÓ
de que o demônio... cê é pior de que eu SEte dias...”.
79
Isso é acontecimento, algo “concreto”, “acontecido”, o que ratifica a idéia de Pêcheux de que discurso é
acontecimento.
133
Retomando a questão inicial em que pontuamos terem os causos, dentre outras, a
função de compartilhar saberes, de manter os valores, as crenças e os costumes de um
povo, de uma comunidade... o que nos remete à discussão de Searle sobre a
intencionalidade da ação não poderíamos deixar de reafirmar que se toda “formação
social”, for de fato caracterizável por uma certa relação entre as classes sociais e, portanto,
implicaria a existência de posições políticas e ideológicas que se organizam em formações
discursivas interligadas temos no causo um exemplo explícito de uma formação
discursiva que opera com o “assujeitamento”, a “interpelação do sujeito como sujeito
ideológico, e que, inseparável do interdiscurso,
não é um espaço estrutural fechado, que ela [a formação discursiva] é
constitutivamente ‘invadida’ por elementos provenientes de outros lugares (i.e., de
outras formações discursivas) que nela se repetem, fornecendo-lhe suas evidências
discursivas fundamentais (por exemplo sob forma de ‘pre-construídos’ e de
‘discursos transversos’) (PÊCHEUX, 1983:297 apud CHARAUDEAU &
MAINGUENEAU, 2004:241).
Como pudemos ver é a ideologia através do “hábito” e do “uso” que fornece
evidências que fazem com que uma palavra ou um enunciado “queiram dizer o que
realmente dizem” (cf. PÊCHEUX, 1988). Portanto, em uma comunidade, as formações
ideológicas em jogo, aliadas aos elementos histórico e social, é que vão determinar
Formações Discursivas. Assim, podemos dizer que as pessoas assumem papéis de sujeitos
do discurso com base nas Formações Discursivas determinadas pelas Formações
Ideológicas correspondentes, e é assim que, no meu entender, se constrói o sujeito
contador de causos.
3.3.2.2 Prosódia: uma marca de modalização
Inscrita na problemática da enunciação, a modalização designa, segundo
Charaudeau & Maingueneau (2004:336), “a atitude do sujeito falante em relação a seu
próprio enunciado, atitude que deixa marcas de diversos tipos (morfemas, prosódias,
mímicas...)”. Vejamos, primeiramente, a prosódia, um dos tipos de marca deixada pelo
sujeito falante.
134
A opção pelo estudo da linguagem oral requer comungar com Cagliari (2002:38)
quando diz que “os aspectos prosódicos da fala não servem para enfeitar a fala, fazem parte
da própria essência da linguagem oral”. Segundo o autor (2002), a entoação e a pausa, por
exemplo, podem ser consideradas fatores de apoio às análises lingüísticas ao marcarem
morfologicamente, na ordem sintática e nas atribuições semânticas de significados a
palavras e enunciados, os elementos que justificam descrever os fenômenos lingüísticos.
Porém, a natureza, a função e os usos da prosódia na linguagem oral começaram a ser
entendidos após a incorporação do discurso como objeto de estudo pela lingüística mais
recente (cf. CAGLIARI, 2002:46), estabelecendo uma relação direta entre a prosódia e a
estrutura do discurso.
Mas, afinal, quais as características da prosódia? Qual sua função? Para que
servem? Cagliari (2002: 42-46) se posiciona frente as essas questões da seguinte forma:
uma característica da prosódia, pois, é permitir a equivalência funcional de
muitos de seus elementos. Uma outra característica importante é a co-
ocorrência de elementos prosódicos para realizar uma mesma função
80
;
a função básica dos elementos prosódicos na linguagem oral é a de realçar ou
reduzir certas partes do discurso, para que daí resulte um mapeamento do
discurso que mostra ao interlocutor como dar valor e importância a certos
elementos e como tratar com menos importância outros elementos;
os elementos prosódicos servem para ponderar os valores semânticos dos
enunciados, sendo uma das formas de que dispõe o falante para dizer a seu
interlocutor como ele deve proceder diante do que ouve.
A finalidade da realização da função dos elementos prosódicos, no entender de
Cagliari (2002:45), é “relacionar elementos distantes no texto, concatená-los a longa
distância, enfim, fazer com que o interlocutor não perca o fio do discurso, a linha
argumentativa que se pretende dar ao texto, a sincronização de eventos em narrativas, etc.”
A prosódia atua com vários fenômenos lingüísticos na estrutura da linguagem oral, e
esta pode se revelar confusa, cheia de ambigüidades e descrições figurativas se não houver
uma descrição apropriada da prosódia, como apresentada na escrita. Através da prosódia
podemos entender, dentre outras, porque o falante diz de uma forma e não de outra, e isso
muito me interessa, visto que, assim, penso ser possível começar a entender as intenções
80
Cagliari (2002:46) cita como exemplo dessa co-ocorrência “quando uma função vem preenchida por uma
variação entoacional ou pela variação de tessitura, mas, para reforçar o efeito de destaque ou de parentetização
de algo que se diz naquele lugar do texto, usa-se ainda uma pausa de reforço”.
135
comunicativas do contador de causos. Suas escolhas são muito importantes em função de
sua intenção. Vejamos alguns exemplos:
No causo 6, A felicidade está dentro de nós”, temos um enunciado do tipo: (21)
Papai contava assim que... feliciDAde a gente não enCONtra em luGAR NEnhum do
mundo...”. Esse exemplo nos mostra que a interpretação de tópico-comentário é diferente da
estrutura de sujeito-predicado, pois sem uma interpretação prosódica teríamos apenas
elementos deslocados. Isso forçaria “a análise a recuar, refazendo sempre a estrutura
superficial em outra predeterminada na estrutura profunda” (CAGLIARI, 2002:48), ou seja, “a
gente não encontra felicidade em lugar nenhum do mundo”. Sobre essa questão, diz Cagliari
(2002:48):
A distinção entre estruturas do tipo sujeito-predicado e tópico-comentário depende
crucialmente da presença de elementos prosódicos, o que se confirma claramente
pela maneira como a escrita trata o assunto. Assim, para marcar uma estrutura
tópico-comentário, o escritor coloca uma virgula separando as partes. Porque existe
uma condenação nesse procedimento, vemos que, ao se transcrever enunciados
falados com essa estrutura, perde-se o que de fato fez o falante, e na escrita revela-
se apenas a estrutura sujeito-predicado.
No enunciado do tipo (21), o falante quis ressaltar exatamente a “felicidade”. A
questão não está em nós (“a gente”), os sujeitos apontados, mas nesse sentimento que
buscamos incessantemente durante toda a vida. O tópico da fala do contador é a felicidade
(aliás, um tópico discursivo, que retoma todo o sentido do texto), não a encontrarmos em
lugar nenhum do mundo é apenas um comentário.
Outro ponto a ser comentado, e que se relaciona com os padrões prosódicos da
linguagem oral, é o uso dos pronomes oblíquos átonos em ênclises, próclises e mesóclises.
Segundo Cagliari (2002:49-50), “a posição de próclise permite que o pronome receba um
acento tônico (...), que pode ser até a tônica saliente do grupo tonal. Porém o mesmo
pronome em posição de ênclise jamais poderá ter esse destaque”. Comparemos os
enunciados (22) “...muito feliz... num me falta nada...” e (23) “...muito feliz... num falta-
me nada...”. O que ocorre de fato é que os brasileiros tendem sempre a enfatizar os
personagens do discurso às ações e coisas, e isso é marcado pelo uso generalizado da
próclise no português do Brasil. Portanto, em (22) a preferência por esta forma e não pela
outra (3) está em o contador querer ressaltar o homem pobre, que “ele” não passa a falta de
nada, independente da vida que levava. O ponto fundamental era a maneira de viver do
homem, ele era o foco, e não as coisas que lhe faltavam.
136
no causo 5, O sapatinho de ouro”, é possível perceber um outro fator que leva a
uma escolha de preferência a outra, como, por exemplo, em (24) “...cê me dá sua alma?... te
minha alma se você fi esse casal brigá...”. Se retomarmos o causo, veremos, através
do contexto, que a resposta do homem invejoso se configura como uma promessa (embora
o verbo “prometer” não esteja explicito). Se, diferentemente, fosse dito um enunciado como
“...dou-te minha alma se você fizé esse casal brigá...” acarretaria em duas situações:
primeiro, o falante teria de estar preocupado com as regras gramaticais, e isso não faria
sentido, pois a variação lingüística regional do falante é marcada em todo o causo; segundo,
porque o falante, espontaneamente, diria dessa forma. De acordo com Cagliari (2002:50),
“...o verbo prometer reforça a presença dos interlocutores no discurso e o “te” enclítico
jamais poderia ser enfatizado, pois seu uso, por outras vias, poderia até levar o interlocutor
a duvidar da promessa feita”.
Uma observação sobre a linguagem oral, sobretudo na mais espontânea (seja ela
das crianças ou adultos), é a ênfase dada a certas palavras quando falam. Nesses casos, os
elementos prosódicos são usados para modalizar um substantivo ou um verbo, um adjetivo
ou mesmo um advérbio. Basta que façamos uma análise mais detalhada, sobretudo da
duração longa, do tom mais agudo ou de um volume de voz mais forte para que se perceba
a ação desses elementos. Essa é uma constante nos causos coletados, pois os contadores
se valem sobremaneira desses elementos.
O que quero dizer, apoderando-me das palavras de Cagliari (2002:51), é que “pode-
se usar um adjetivo ou um advérbio na fala, através de itens lexicais especificados no léxico
ou por meio de elementos prosódicos sobre as palavras que quer adjetivar ou adverbializar”.
Dona Florentina, por exemplo, se mostrou uma usuária constante desse recurso. Vejamos
alguns exemplos: (25) “... tinha uma mulher que ela tinha implicância... tinha impliCÂN::cia
mas impliCÂN::cia... sabe?...”; (26) “...esse home é apaixoNA::do por essa mulher...”; (27)
“...o home tinha uma inVEja TREmenda...” e (28) “...baTI::a... baTI::a... o cavalo pulava... e
ele baTI::a... ispanCA::no o cavalo...”.
Em (25), (26) e (28), a contadora se valeu de uma duração longa e de um volume de
voz mais forte para modalizar os substantivos e os verbos. Sua intenção era ressaltar, em
(25), o tempo ou intensidade com que a personagem principal implicava com a mulher
(implicância “constante”, “enorme”); em (26), a intensidade da paixão do homem pela
137
esposa (“muitíssimo” apaixonado), e, em (28), não só a intensidade com que o homem batia
no cavalo (batia “muito”), como o modo com que o espancava (espancado “vilolentamente”).
Em (27), a contadora se valeu apenas de um volume de voz mais forte para modalizar o
substantivo e o adjetivo. Apesar do adjetivo “tremenda” revelar como era a inveja do
homem, o tom da voz ressalta a intensidade da inveja (“muita” inveja) e, ainda, intensifica o
adjetivo “tremenda”.
O uso desse tipo de realização dos elementos prosódicos que se encontra na
linguagem oral espontânea é muito grande. Uma explicação para isso é que, na fala, eles
têm a função de “contribuir para a configuração prosódica do discurso, salientando ou
diminuindo certos elementos para relacioná-los e ponderá-los no discurso como um todo”
(CAGLIARI, 2002:51).
Quanto a tessitura, somos capazes de reconhecer pelo tom de voz do falante se ele
está bravo, galanteando, fazendo charme, enfim, essas questões podem ser deduzidas pelo
tom de voz (tessitura aguda, volume alto, fala mais silábica etc.). Com efeito, Cagliari (2002)
assevera que existem outros usos dos tons de voz e, em particular, da tessitura que são
mais interessantes de se verificar e que se referem à estrutura do discurso e da enunciação.
Segundo o autor (2002:53), todo discurso usa a tessitura e sua variação tem várias
funções. Uma delas é o estabelecimento de valores relativos atribuídos a partes ou
unidades de informação”. Vejamos, através da passagem a seguir, o que o autor quer dizer:
ô::: ô fulana... você lavano rôpa hoje... esfregano rôpa hoje... esqueceu que hoje é
sexta-feira da paxão?... ela falô assim... a sexta-feira da paxão tá na iGREja... e eu estou
aQUI lavano a minha rôpa... (e diz que a bacia encheu de sangue...)”. Durante essa
passagem, Dona Florentina, de repente, começou a falar o enunciado parentetizado acima
em um tom baixo. Esse artifício é usado, normalmente, para fazer com que o interlocutor
veja que aquilo que o falante está dizendo com tessitura baixa deve ser entendido com valor
diferente do resto que se está enunciando. O diálogo direto foi proferido em uma tonalidade
de voz mais alta, mas quando a contadora enunciou que a bacia encheu de sangue seu tom
de voz baixou, dando mais força a esse enunciado. Quando isso ocorre, o interlocutor,
geralmente, entra em paralelo na fala do outro e sinaliza, com tessitura baixa, sua
concordância ou discordância (cf. CAGLIARI, 2002:55). Tanto é verdade que os ouvintes, no
momento de gravação, se deixaram envolver pelo enunciado, a ponto de externarem
138
sentimentos de espanto (“nossa senhora”). A tessitura, neste causo, serviu para sinalizar
que sua fala já iria terminar, e também para fazer com que o ouvinte entendesse, ainda mais
rápido, a moral do causo.
Assim, penso poder afirmar que, do ponto de vista da prosódia, essa forma de dizer
em função do sentido que se pretende evocar no ouvinte é uma das estratégias narrativas
do causo popular oral
81
. As fases em que a recorrência dessas alterações prosódicas
serão investigadas no capítulo 4.
3.4 Considerações parciais
Tentei mostrar, neste capítulo, a importância de se trabalhar com a super-, macro- e
microestruturas, no intuito de verificar as estratégias narrativas no causo popular oral.
Percebemos que as estratégias são muitas. Porém, meu foco será, como se verá no
capítulo a seguir, a coesão verbal, as vozes e a prosódia. Mecanismos que para serem
entendidos da melhor forma possível, me levou a buscar, na literatura relevante,
informações relativas a outras áreas do conhecimento (Antropologia, Sócio-filosofia,
Etnometodologia), assim como alguns dados que, de certa forma, configuram-se como base
para a análise desses elementos no gênero proposto, como por exemplo, os Atos de Fala e
as Formações Discursivas, vistos neste capítulo.
Assim, calcada em toda a revisão de literatura, exposta não neste capítulo, como
nos capítulos anteriores (mesmo que não explicitamente), passo para aquela que chamo,
apenas, uma “proposta de análise”.
81
As estratégias retóricas são usadas “para aumentar a eficácia do discurso e interação comunicativa” (VAN
DIJK, 2000:33), ou seja, auxiliam no processo de representação semântica, ao dar a perceber os objetivos da
interação verbal. Porém, gostaria de sinalizar que o falante/ouvinte não processa estrategicamente apenas as
informações verbais, eles precisam processar, também, as informações não-verbais, tais como gestos,
expressões faciais, posições corporais e outros. Na interação, essas informações facilitam as estratégias de
compreensão e produção do discurso. “Os gestos e as expressões faciais sugerirão qual ato de fala é pertinente,
quais as implicações semânticas subseqüentes deverão ser selecionadas a partir das proposições locais, quais
são os referentes das expressões dêiticas...” (VAN DIJK, 2000:33). Neste trabalho, no entanto, optei por ater-me
somente à prosódia.
139
CAPÍTULO 4: “OH! A GENTE NUN DEVE DUVIDÁ...” AS ESTRATÉGIAS NARRATIVAS
NO CAUSO POPULAR ORAL: UMA PROPOSTA DE ANÁLISE
Todo fenômeno lingüístico é passível de ser
explorado por uma obra literária.
(Maingueneau, 1996:2)
No desenvolver deste trabalho, muitos foram os exemplos dados como sustentação da
teoria abordada. Esses exemplos, porém, se encontram fragmentados ao longo da
pesquisa, não oferecendo uma visão completa das estratégias narrativas percebidas nos
causos. Neste capítulo, apresentarei as análises referentes a dois causos contados por um
contador “nato” e um causo contado por um contador “profissional”, escolhidos entre os seis
pertencentes ao corpus. A escolha privilegiou os causos que expressassem, mais
claramente, narrativas que funcionam como ensinamentos, como forma de manutenção de
costumes, crenças e valores de uma comunidade. Quanto ao esquema organizacional, este
capítulo apresentará, para cada causo, num primeiro momento, a transcrição do texto oral,
efetuada de acordo com os critérios do Projeto NURC, seguida da apresentação e descrição
de sua estrutura narrativa, da coesão verbal da narrativa (tempo, modo e aspecto), das
vozes e da prosódia.
4.1 Os causos e seus contadores: breve contexto
Os causos de nº 3: “A fé e a vara de goiabeira”, nº 4: “A Sexta-feira da Paixão” e nº 5:
O sapatinho de ouro foram contados por Dona Florentina Selma de Assis Silva, 64 anos,
casada, moradora da cidade de Itabirito Minas Gerais, em 17 de outubro de 2004. Os
causos retratam lições dadas por seus pais, no que diz respeito às condutas que deveriam
ser assumidas pelos filhos, às crenças a serem seguidas e aos valores a serem respeitados
de acordo com sua família. A religião tem papel fundamental em todos os causos, o que nos
revela o pilar da família de Dona Florentina.
140
O causo de 6: A felicidade está dentro de nós” foi contado por Dona Maria Paula
Carmo Braga, 69 anos, viúva, moradora da cidade de Moeda Velha Minas Gerais, em 24
de abril de 2005. Dona Maria Paula estudou até a quarta série, se formou no curso de
admissão, lecionou para a série do ensino fundamental em escola da Rede Estadual e se
aposentou como coordenadora da escola em que lecionava. Começou a conviver com
contadores de causos muito cedo, como disse ela “naquele tempo era muito bom (...) a
gente tava com 15/16 anos, até menos (...) e tinha aquelas pessoas mais velha que ia, né, a
noite pra conversar (...) e a gente ficava por perto participando das conversa. Aonde a gente
guarda e lembra”. Dona Maria Paula só lamenta não lembrar de tudo o que ouviu: “papai era
contador de causo... minha filha... cê precisa de vê... quem dera que a gente tivesse
guardado tudo o que ele contava... e era coisa que pai tinha passado pra ele... e ele
contava prus filho...”.
Os causos de 1: “Praga de mãe” e 2: “A aposta” foram contados por Jovelino
Gomes da Silva, 74 anos, viúvo, morador da cidade de São Bartolomeu Minas Gerais, em
23 de julho de 2004. Nessa cidade, que mais parece um lugarejo, o Sr. Jovelino é a figura
mais solicitada nos eventos, ou, até mesmo, para os bate-papos de fim de tarde. Seus
causos são famosos entre os moradores e sempre lembrados pelos visitantes, pois seus
causos são a garantia de boas risadas, dadas por quem os ouvem. Embora constem nos
anexos, nenhum desses dois causos foram analisados neste capítulo.
Escolhi para análise, como disse anteriormente, os causos que mais
manifestassem a função de mantenedores da cultura, das crenças e dos costumes de uma
comunidade. É certo que os causos 1 e 2 trazem ensinamentos, porém, optei por não
analisá-los, mantendo, assim, uma certa semelhança entre aqueles que foram selecionados.
Quanto aos causos 4 e 5, optei por não analisá-los, neste capítulo, em função do pouco
tempo disponível.
82
Os títulos escolhidos configuram-se apenas por questões didáticas, pois não
títulos previamente estabelecidos, pelos contadores, para os textos. Os causos são
narrativas que fluem, geralmente, a partir de conversas informais, de bate-papos que fazem
82
Optei por me dedicar, neste capítulo, à análise integral dos causos, no que se refere aos três níveis estruturais
propostos por Bronckart (2003), escolhendo, pelos motivos explicitados, os de 3 e de 6. No entanto, os
causos de nº1, 4 e 5 não foram desprezados. Eles foram analisados, em parte, nos capítulos anteriores e
de acordo com o tema proposto nas seções em que se encontram.
141
o contador se lembrar de algum episódio visto ou ouvido (abordado no capítulo 1, seção
1.1.1), e que teria grande contribuição naquele momento. Daí não possuir título,
característica comum e necessária ao texto escrito.
4.2 A estrutura geral da narrativa dos causos
Alguns causos foram utilizados como exemplo no decorrer do trabalho. Neste
capítulo, porém, pretendo oferecer uma visão geral das estratégias, como disse,
utilizadas de forma a fazer valer a função do causo adotada nesta pesquisa: manter as
crenças e costumes da comunidade.
A partir da transcrição dos causos, analisarei, no interior do plano geral, as fases
reconhecidas nas seqüências narrativas, assim como nas seqüências descritivas e dialogais
que as entremeiam, calcada no modelo proposto por Labov e Waletzky (1967) e retomado
por Bronckart (2003). Vale ressaltar que, como dito na seção 3.2 do capítulo 3, nem todo
texto narrativo é composto por todas as partes propostas por esses autores, o que poderá
ser visto na análise.
Assumo, no capítulo 3, que não é na superestrutura que se encontram, mais
efetivamente, as estratégias narrativas dos causos, porém, é nela que se encontra o plano
geral; a composição organizacional desses textos. É a partir desse plano que se torna
possível analisar as seqüências e as fases da narrativa.
Em um texto, porém, não basta ter uma organização, é preciso que ele seja um todo
coerente, “uma unidade comunicativa articulada a uma situação de ação e destinada a ser
compreendida e interpretada como tal por seus destinatários” (BRONCKART, 2003:259)
(grifos do autor). É nesse momento que torna-se indispensável a análise dos mecanismos
de textualização e dos mecanismos enunciativos, que acredito ser neles que as
estratégias narrativas serão explicitadas.
Através dos mecanismos de textualização, serão trabalhadas as regras de
organização geral do causo, a partir da coesão verbal (ao mostrar a importância do tempo,
do aspecto e do modo na narrativa dos causos) e, através dos mecanismos enunciativos,
será trabalhado o posicionamento enunciativo (analisado a partir do gerenciamento das
142
vozes) e a modalização (analisada a partir da prosódia), visando, sempre, a produção e/ou
os efeitos de sentido que essas estratégias pretendem evocar.
4.2.1 Transcrição do causo nº 3: A Fé e a vara de goiabeira
05
10
15
20
25
30
35
40
45
Tem alguns casos que papai contava... alguns casos que são reais... que são assim::: são
né?... são casos mesmo... eu acho que são casos mesmo... ( )... é assim... o meu pai me
contou e que foram os antepassados dele que contavam pra ele... um caso que me chamava
muita atenção... e que até hoje me chama muita atenção... deixô que eu ficasse assim bem...
bem impressionada com as coisa certa, né?... e reais né?... que eu acho uma coisa real... ele
me contava que tinha um:: tinha um rapaz que era... filho único... que ele morava com a
mãe... que mora com a mãe e tinha... era dono de terras né?... mas era um homem muito
nervoso... era um rapaz muito nervoso... tava sempre MUIto irritado... ele era uma pessoa
irritaDÍssima mesmo... mas ele tinha dentro dele ... ele gosTAva de aos domingos... aos
domingos ele gostava de ir a missa... ele gostava de prepaRÁ... que tinha aquele rituAL... ele
preparava pra ir a missa... era coisa que ele gostava de participar de missa... um certo dia ele
tinha mandado que os empregado dele é:: preparasse o cavalo dele pra missa... preparava de
véspera... que ele preparava de véspera... que ele morava fora da cidade... ele morava num...
na fazenda... e a:: a missa era:: era:: era no lugarejo lá... ele pediu o rapaz... o::: o capataz...
o:: o empregado que preparasse o cavalo... pra ele ir a missa... o cavalo de madrugada...
sumiu... fugiu... o cavalo desapareceu... quando a mãe levantou... preparou o café e
chamou... chamou o rapaz pra ir pra missa... ele falô... cadê meu cavalo?... o cavalo tá
pronto... pronto ... não... que não aqui... num tá... num tá... a mãe dele falô assim... o
cavalo está aí sim... o fulano de tal preparou o cavalo pra você ir a missa... não que não está...
e ele começou a gritá... e xingá... e ficá muito bravo mesmo... e ele é:: estava rogando
praga mesmo... e a mãe dele ficava muito ansiosa com aquilo... mas tulerava... porque ?...
era gênio... porque era considerado como o gênio dele... a mãe falô com ele assim... ô meu
filho procura direito... num aqui não mãe... se o caPEta aparecer eu vou nele... não tem
problema... se o caPEta aparecer aQUI eu vou nele... mas que eu na missa eu vô... a mãe
falô assim... mas num fala essa bobagem não meu filho... aí... voltô... quando ele voltô na
porta o cavalo tava prontinho... o cavalo prontinho lá... chegô o cavalo tava prontinho... o
cavalo tava prontinho pra ele ir a missa... a mãe dele falô com ele assim... o cavalo chegou
né?... ele falô assim... CHEgô... falô com ela assim... a senhora qué como é que eu pra
missa?... foi na horta.. apanhou uma vara de goiabeira... lima vara de goiabeira... esticô a
vara de goiabeira e montô no cavalo... a mãe dele pensô... nunca mais eu vejo esse filho né?...
ela logo viu o que tinha acontecido... que ele chamô com muita vontade... intão veio... aí montô
no cavalo... e começô a bater... com a vara de goiabeira... e baTIA... mas baTIA pra sanGRA...
baTIA... baTIA... o cavalo pulava... e ele baTIA... ispanCAno o cavalo... mas ispanCAno...
ispanCAno o cavalo... e baTIA... quando ele chegou numa curva... a:: uma voz gritô... traz
pra cá... o cavalo respondeu ele... de que jeito... esse bate aTÉ discasCÁ... e ele... que
ele bateu no cavalo mesmo... chegô na igreja... amarrô o cavalo no pé da cruz... que toda
igreja do interior tem uma cruz na entrada... ele amarrô o cavalo no da cruz o cavalo
istorô... e desapareceu... isso é verdade ou lenda, né?... foram os meus avós que contavam
prós filhos... que contavam prá né?... e foi passando de geração em geração... se é verdade
ou não... a gente guarda que não deve chamá:: não deve falá nenhum nome feio... nenhum
palavrão... não falá de que a gente não dá conta né?... ele deu conta porque segundo a
lenda... a vara de goiabeira tem poder né?... ela é abençoada... a goiabeira é abençoada... por
isso ele deu conta... mas a gente pensa também que a dele também era muito GRAnde...
então tudo é assim:: eu acho que é insinamento que eles contava pra gente num falá... não
chamá pelo bicho, né?
143
4.2.1.1 Superestrutura: o plano geral da narrativa, suas fases e seqüências
O causo relata a história de um rapaz que manda o empregado preparar seu cavalo
e, na madruga, o cavalo some. O rapaz começa a xingar, a falar no capeta e o cavalo
reaparece. Ele, então, vai à missa batendo no cavalo com uma vara de goiabeira até chegar
na igreja. Lá, o rapaz amarra o cavalo na cruz de frente a igreja e o cavalo desaparece,
mostrando que sua fé era maior que o “capeta”. Vimos que, de acordo com Bronckart
(2003), esta síntese configura-se no plano geral do causo, o qual deve ser entendido como a
organização do conteúdo temático, e se apresenta, seguido de suas respectivas fases e
seqüências, da seguinte forma:
QUADRO 2:
Plano geral do causo 3, suas fases e seqüências
Plano geral Fases da narrativa
Seqüências
a) contextualização do causo (01 a 06);
Resumo
Narrativa
Orientação
b) o rapaz manda o empregado preparar o
cavalo (06 a 15);
Avaliação
Descritiva
Narrativa
c) o cavalo some (15 a 19);
Complicação
Narrativa
dialogal
Ação
Orientação
Avaliação
d) o rapaz começa a xingar, a falar no
capeta e o cavalo reaparece (19 a 28);
Resolução
parcial
Descritiva
Narrativa
Dialogal
Nova
Complicação
Ação
e) o rapaz bate no cavalo com a vara de
goiabeira (28 a 36);
Orientação
Dialogal
Descritiva
Narrativa
Resolução
f) o rapaz amarra o cavalo na cruz da
igreja e o cavalo desaparece (36 a 38);
Avaliação
Narrativa
Moral
Avaliação
g) comentários sobre a moral do causo
(38 a 45).
Orientação
Narrativa
NOTA: Dados verificados pela pesquisa.
* Algumas fases foram decompostas em até três fases sub-ordenadas
144
Na seqüência narrativa que inicia a história, o narrador apresenta, primeiramente, um
resumo (linhas 01 a 06). É possível observar que, nas passagens Tem alguns casos que
papai contava...”; o meu pai me contou; ele me contava que tinha um::”, o narrador
informa a seus ouvintes a origem do causo que irá contar. Esse tipo de resumo, no entender
de Bastos (2001:83), na maioria das vezes, tem como objetivo, muito mais, iniciar uma
interlocução e despertar o interesse do ouvinte para a narrativa do que propriamente
sintetizar a história. No texto em questão, acredito tratar-se das duas primeiras funções,
principalmente na passagem: um caso que me chamava muita atenção... e que até HOje
me chama muita atenção... deixô que eu ficasse assim bem... bem impressionada com as
coisa certa, né?... e reAIS né?... que eu acho uma coisa real...”, pois ativa a curiosidade do
ouvinte. Porém, algo mais se revela: na passagem alguns casos que são reais... que são
assim::: são né?... são casos mesmo... eu acho que são casos mesmo... ( )... é assim...” e
e que foram os antepaSSAdos dele que contavam pra ele...”, percebe-se que o narrador faz
questão que o ouvinte creia na realidade dos fatos e tome conhecimento da tradição do
causo. Em outros termos, o narrador tenta garantir a veracidade dos fatos narrados,
calcados nas figuras do pai e de seus antepassados.
Numa seqüência narrativa prototípica, o comum é que, de acordo com a proposta de
Labov e Waletzky (1967), após o resumo, venha a orientação, o que ocorre no texto em
análise (linhas 06 a 15). Na passagem tinha um rapaz que era...; “que ele morava com
a mãe...” e “que ele morava fora da cidade... ele morava num... na fazenda... e a:: a missa
era:: era:: era no lugarejo lá...”, somos orientados para a introdução dos personagens e do
espaço físico. O ouvinte passa a reconhecer um rapaz e, também, sua mãe como
personagens, e a fazenda onde moram e onde fica a igreja, como espaço físico.
Dentro deste mesmo segmento, confirmando o fato de que as seqüências podem
organizar-se de modo mais complexo, verificamos que uma avaliação. O narrador inicia
uma longa proposição, em que tece comentários acerca das referências, do caráter e do
comportamento do protagonista da história. Essa avaliação é feita através de uma
seqüência descritiva, assinalada pelo tema-título rapaz” (fase de ancoragem). Ao longo da
descrição o tema-título é objeto de várias reformulações, tais como filho único...; homem”;
pessoa”, desenvolvendo-se em uma longa fase de aspectualização: 1º) rapaz”; “filho
único”; “dono de terras; 2º) “homem nervoso”; “muito irritado”; e 3º) “tinha dentro dele ;
145
“gostava de ir à missa”.
Essa avaliação negativa, seguida de uma positiva, mesmo que vinda do pai –
narrador primário –, é um elemento importante para o desencadeamento da história e um
índice para que o ouvinte infira acerca da macroestrutura tópica, ou seja, sobre o assunto do
texto (o rapaz que xingava e chamava o “capeta” e só se livrou dele porque tinha fé). É certo
que, aqui, trata-se apenas de um prenuncio, mas no desenrolar da história, a partir de outras
avaliações, o quadro vai se tornando mais claro.
Retomando a questão da macroestrutura tópica, é pertinente lembrar que, até hoje,
por várias vezes, as histórias costumam ser contadas com interesse educativo, ou seja, com
a finalidade de transmitir uma mensagem ética e moralizante, além de se manter as crenças
e costumes da comunidade. Penso ser isso que acontece neste causo.
Por fim, na passagem um certo dia ele tinha mandado que os empregado dele é::
preparasse o cavalo dele pra missa...” e ele pediu o rapaz... o::: o capataz... o:: o
empregado que preparasse o cavalo... pra ele ir a missa...“, a narrativa prossegue com a
orientação encaminhando para a complicação da ação, cujo início se dá a partir do
momento em que o protagonista, no intuito de ir à missa, pede ao empregado que prepare o
cavalo.
Nos segmentos seguintes (linhas 15 a 19), a narrativa prossegue com o sumisso do
cavalo. Nesse segmento temos, na passagem quando a mãe levantou... preparou o café
e chamou... chamou o rapaz pra ir pra missa...”, a complicação, indicada, especificamente,
pelo marcador conversacional “aí”
83
. O narrador, nesse momento, introduz uma perturbação
na narrativa e cria uma tensão que vai sendo desencadeada por várias ações. Os fatos se
complicam a partir do momento em que o rapaz levanta e não encontra o seu cavalo,
provocando um momento de tensão, através de uma seqüência dialogal, uma discussão
entre ele e a mãe: “cadê meu cavalo?... o cavalo pronto... pronto aí... não... que não tá
aqui... num tá... num tá... a mãe dele falô assim... o cavalo está sim... o fulano de tal
preparou o cavalo pra você ir a missa... não que não está...”. É importante perceber que, na
passagem o cavalo de madrugada... sumiu... fugiu... o cavalo desapareceu...”, é a
informação dada sobre o acontecimento, ou seja, o sumisso do cavalo na madrugada, que a
83
Cabe lembrar que o corpus, aqui, estudado, faz parte da narrativa oral, portanto, os marcadores
conversacionais, tais como ai, então, daí, olha, etc., recursos lingüísticos muito comuns na língua falada, são de
suma importância, pois apresentam uma função muito mais discursiva do que propriamente gramatical.
146
tensão se torna possível. Nesse segmento, o ouvinte tem a oportunidade de se lembrar das
orientações expostas sobre o rapaz e seu ritual. A “nervosia” do rapaz se configura um fato
gerador da complicação.
Como disse, a tensão na narrativa vai sendo desencadeada por várias ações
(linhas 19 a 28). Depois de apresentada a complicação anterior, o narrador inicia uma nova
orientação, através do conectivo “e”, e marca, também, através do marcador conversacional
“aí”, o início de uma nova complicação, que ao gerar uma tensão, desenrola-se, novamente,
em várias ações: e ele começou a gritá... e xingá... e ficá muito bravo mesmo... e ele
é:: estava rogando praga mesmo... e a mãe dele ficava muito ansiosa com aquilo...”. Vale
destacar que, na complicação, o narrador se vale, mais uma vez, de uma seqüência
descritiva, ao descrever a reação do rapaz (gritou, xingou, ficou bravo). Nessa complicação
o rapaz começa a xingar, a falar no capeta até que o cavalo reaparece. Continuando a
narrativa temos, na passagem mas ‘tulerava’... porque né?... era gênio... porque era
considerado como o gênio dele...”, uma avaliação da personagem mãe, ou seja, porque
tolerava o nervosismo do filho. Nesse momento, o narrador introduz uma seqüência dialogal,
que ao explicitar o comportamento exaltado do rapaz, torna a tensão ainda maior.
Finalmente, na passagem ... voltô... quando ele voltô na porta o cavalo tava prontinho... o
cavalo prontinho lá... chegô o cavalo tava prontinho... o cavalo tava prontinho pra ele ir a
missa...”, temos uma nova orientação assinalada pelo marcador conversacional “aí”, seguida
de uma resolução parcial (através de uma seqüência dialogal): o reaparecimento do cavalo
depois de o rapaz ter chamado o nome do “capeta”: a mãe dele falô com ele assim... o
cavalo chegou né?... ele falô assim... CHE...”.
Ainda a partir de uma seqüência dialogal (“falô com ela assim... a senhora qué
como é que eu pra missa?...“) seguida de uma descritiva (“foi na horta, apanhou uma
vara de goiabeira... limpô a vara de goiabeira... esticô a vara de goiabeira e montô no
cavalo...”), uma nova complicação acontece, acarretando em novas ações (linhas 28 a 36).
Acredito ser possível dizer que, na descrição, os verbos enumerados criam uma série de
ações que vai criando na mente do interlocutor/ouvinte um certo suspense, uma tensão,
uma vontade de saber o que vai acontecer. O narrador vai seduzindo o ouvinte a uma certa
vivência da cena, prendendo-lhe, ainda mais, a atenção.
Resultado do sumisso e reaparecimento do cavalo, o rapaz resolve ir para a missa
147
dando-lhe chibatadas com uma vara de goiabeira. Vale lembrar que o estatuto dialógico da
seqüência narrativa é evidente, pois caracteriza-se sempre pela intriga dos acontecimentos
e/ou das ações, criando uma tensão, para em seguida resolvê-la, o que contribui com o
suspense estabelecido para a manutenção da atenção do destinatário. O cavalo era a figura
do capeta, subentendido através de uma orientação o pensamento da mãe (“a mãe dele
pensô... nunca mais eu vejo esse filho né?... ela logo viu o que tinha acontecido... que ele
chamô com muita vontade... intão veio...”), e o rapaz o desafiou, dando-lhe uma surra,
principalmente na complicação apontada na passagem “quando ele chegou numa curva...
a:: uma voz gritô... traz pra cá... o cavalo respondeu ele... de que jeito... esse bate aTÉ
discasCÁ... e ele... que ele bateu no cavalo mesmo...”, quando o rapaz escuta o cavalo e
o surra mais ainda. São esses momentos de tensão que fazem com que o ouvinte fique
atento ao desenrolar das ações, na expectativa de como a situação vai se resolver.
É chegada a resolução final da ação na narrativa (linhas 36 a 38). A resolução, como
dito acima, acontece subseqüente ao momento de tensão, esclarecendo para o ouvinte o
desfecho da história. Na passagem chegô na igreja... amarrô o cavalo no da cruz... que
toda igreja do interior tem uma cruz na entrada... ele amarrô o cavalo no da cruz...”,
somos orientados para uma redução da tensão que, na passagem o cavalo istorô... e
desapareceu...”, se concretiza, voltando-se a um estado de equilíbrio, ou seja, o rapaz
amarra o cavalo na cruz da igreja e o cavalo desaparece. Ainda dentro deste segmento, é
possível perceber uma avaliação feita pelo narrador sobre o fato de todo interior ter uma
cruz na frente da igreja.
Após a resolução, ainda numa seqüência narrativa, dependente diretamente do
posicionamento do narrador em relação à história narrada, encontramos os comentários
sobre a moral do causo (linhas 38 a 45).
Interessante observar que, na passagem isso é verdade ou lenda, ?...”, uma
avaliação do locutor que introduz a fase da moral. Ele começa questionando a veracidade
dos fatos narrados, porém, através de uma orientação (“foram os meus avós que contavam
prós filhos... que contavam prá né?... e foi passando de geração em geração... se é verdade
ou não...”), ele parece responder a própria pergunta, ou seja, retoma a fase do resumo, em
que relata quem lhe contou a história, o que significa reforçar a credibilidade, por parte dos
ouvintes, em relação ao causo. A moral, realmente, se efetiva na passagem “a gente guarda
148
que não deve chamá:: não deve falá nenhum nome feio... nenhum palavrão... não falá de
que a gente não conta né?...”, cujo ensinamento está em não se dizer nomes feios/
palavrões. Essa moral é a explicitação clara da significação global atribuída à história.
Uma questão importante para o ouvinte está na vara de goiabeira, elemento
mencionado na avaliação/orientação: ele deu conta porque segundo a lenda... a vara de
goiabeira tem poder né?... ela é abençoada... a goiabeira é abençoada... por isso ele deu
conta...”, pois essa questão pode não deixá-lo entender o desfecho da história. O ouvinte
que não possui o conhecimento prévio de que as varas de goiabeira o abençoadas não
entenderá que foi ela que o ajudou a chegar à igreja. Prosseguindo a narrativa, na
passagem mas a gente pensa também que a dele também era muito GRAnde...”, uma
nova avaliação levanta a possibilidade de uma razão paralela a anterior para o desfecho
relatado: a que o rapaz tinha, e que, mais uma vez, leva o ouvinte a rememorar as
orientações expostas no início do causo. A narrativa tem seu encerramento na passagem
então tudo é assim:: eu acho que é insinamento que eles contava pra gente num falá... não
chama pelo bicho, né?”, com uma última avaliação. Agora mais forte, se pensarmos na
volta à enunciação. O locutor não se refere mais ao causo em si, mas ao propósito a que ele
se refere. Ele revela ao ouvinte que os causos serviam de ensinamento e que, neste causo,
era para que não se dissesse “nome feio”, principalmente capeta”. Apesar de a coda ou
moral, de acordo com Labov e Waletzky (1967), não precisarem estar presentes na
narrativa, essa foi uma característica recorrente nos causos contados por D. Florentina.
4.2.1.2 Mecanismos de textualização: a coesão verbal na narração
Depois de reconhecer o plano geral desse causo, a partir de suas seqüências e
fases, é necessário verificar qual o material lingüístico responsável pela delimitação de suas
partes constitutivas e, nesse sentido, como apontado na seção 2.8.1.3 do capítulo 2,
pensando na narrativa como discurso, tempo, modo e aspecto são campos de estudo da
narrativa fundamentais para que ela seja uma produção lingüística que assume a relação de
um ou vários acontecimentos.
No que se refere ao tempo, e em primeiro lugar quanto ao momento da narração
149
(relação entre o momento em que a história é contada e o momento em que supostamente
ela se desenrola), temos no causo em análise uma narração ulterior (“tem alguns casos que
papai contava... [...] ele me contava que tinha um::”), em que, na fase do resumo, a
narradora conta o que passou anteriormente, em um passado bem distante, como se
percebe na passagem e que foram os antepassados dele que contavam pra ele...”, assim
como na fase da moral (“foram os meus avós que contavam prós filhos... que contavam prá
né?...”), pois, além de ser um fato ocorrido no passado e contado por seu pai, na verdade
foram os antepassados dele que lhe contaram.
Vale ressaltar que as fases de resumo, orientação e avaliação (constantes, também,
em seqüências descritivas) são marcadas por verbos no pretérito imperfeito, não fazendo a
história avançar destacam-se no plano secundário. Essa é uma característica já
observada por Bastos (2001:34), ou seja, que muitas vezes, essas fases, têm características
comuns entre si. Dentre elas, o próprio tempo verbal, que, como disse, em geral, é o
pretérito imperfeito. Além dos verbos grifados acima, podemos verificar essa asserção na
orientação (“tinha um rapaz que era... filho único... que ele morava com a mãe...”) e na
avaliação (“mas tulerava... porque né?... era gênio...”).
No entanto, retomando o momento da narração, a fase de moral desse causo, se
configura uma narração anterior, na qual, embora “rara fora de passagens textuais”
(REUTER, 2002:89), a narradora conta o que vai se passar em um futuro mais ou menos
distante (“a gente guarda que não deve chamá:: não deve falá nenhum nome feio... nenhum
palavrão... [...] então tudo é assim:: eu acho que é insinamento que eles contava pra gente
num falá... não chama pelo bicho, não é?”), pois, como analisamos na seção anterior, a
moral é que não se deve falar nomes feios/palavrões, pois coisas ruins podem acontecer.
Nesse sentido, essa narração anterior, marcada por um verbo modalizador que indica
necessidade deôntica, ou seja, tem um tom de obrigatoriedade (negritado acima),
antecedido por um advérbio de negação, sob a forma de profecia, tem um valor de
presságio que, embora não antecipe uma seqüência de acontecimentos dentro da narrativa,
é o que faz com que esse causo funcione como mantenedor das crenças, ao alertar o
ouvinte sobre o futuro. Daí o fato de, mesmo que o advérbio obrigatoriamente” esteja
implícito, o enunciado ser apresentado pela narradora como algo que deve ocorrer.
Quanto a velocidade da narração (relação existente entre a duração da história e a
150
da narração) percebemos, na fase de complicação, que a história tem uma duração de dois
dias enquanto a narração leva apenas alguns minutos (“um certo dia ele tinha mandado que
os empregado dele é:: preparasse o cavalo dele pra missa... preparava de véspera... [...] o
cavalo de madrugada... sumiu... fugiu... o cavalo desapareceu... quando a mãe
levantou....”). Na verdade, o que mais importa é a aceleração ou redução do tempo
destinado a contar a história, em função da economia ou efeitos a serem criados pelo
narrador. Um tipo de regularidade freqüente, não só nessa seqüência, mas em toda a
narrativa, é a alternância entre o pretérito perfeito e o pretérito imperfeito (grifados). Porém,
nessa fase de complicação (e em outras também), o que mais chama a atenção é que a
cadeia de acontecimentos/ações, importantes para a história, é marcada por verbos no
pretérito perfeito (em negrito), fazendo a ação progredir, e que, segundo Weinrich (1973
84
apud REUTER, 2002:99), constituem de certo modo o primeiro plano.
Seguindo essa linha de raciocínio, este causo revela uma tendência à aceleração por
sumário, por condensar em poucas palavras um tempo ficcional às vezes longo (“montô
no cavalo... [...] quando ele chegou numa curva... [...] chegô na igreja...”). De acordo com
o narrador o rapaz ia à igreja à cavalo porque ele morava na fazenda e a igreja era no
lugarejo, portanto, a entender ao ouvinte que é longe. No entanto, a narração é rápida
(marcada pelos verbos no pretérito perfeito), sem muitos detalhes dentro dessa seqüência,
porém, como vimos, fazendo a ação progredir.
Por outro lado, a cena que alterna com o sumário (que, através de um verbo
aspectual inceptivo, marca o início do evento), principalmente pela fala dos personagens e
excesso de detalhes:
“e começô a bater... com a vara de goiabeira... e baTIA... mas baTIA pra sanGRA...
baTIA... baTIA... o cavalo pulava... e ele baTIA... ispanCAno o cavalo... mas
ispanCAno... ispanCAno o cavalo... e baTIA... [...] a:: uma voz gritô... traz pra ... aí
o cavalo respondeu ele... de que jeito... esse bate aTÉ discasCÁ... e ele...”
a impressão de haver uma igualdade temporal entre o tempo da história e o tempo de
narração, estratégia que visa produzir efeitos de realidade (que como veremos na próxima
seção, foram realçados pela prosódia). Essa cena poderia ser entendida como um momento
de desaceleração criado pelas descrições que foram desenvolvidas sendo que poderiam ser
percebidas rapidamente, mas essa estratégia, nesta fase de complicação, entremeada por
84
WEINRICH, Harald. Le Temps. Paris: Le Seuil, 1973.
151
uma ação, não só ajuda a criar no ouvinte um suspense, uma tensão, como, também, reitera
o nervosismo do rapaz.
Por fim, quanto a ordem, é possível verificar que a ordem da narração corresponde à
ordem cronológica da história (comum nos causos), ou seja, todo o causo é contado na
ordem em que os fatos ocorreram.
O modo e o aspecto reportam à imagem do narrador e, neste causo, temos um
narrador maior que os personagens. Ele é heterodiegético, numa perspectiva que passa por
ele mesmo. Em outras palavras, temos um narrador onisciente (por sua visão e percepção
não serem limitadas pela perspectiva de alguma personagem) que assume, em seu modo
de contar, uma função explicativa. Por várias vezes o narrador interrompe o curso da
história para dar, ao ouvinte, informações consideradas necessárias para compreender o
que vai se passar. Essa questão ocorre em grande parte nas fases de avaliação. O narrador
domina todo o saber: conhece os comportamentos das personagens (“tinha um rapaz que
era... filho único... que ele morava com a mãe... [...] mas era um homem muito nervoso...
[...] ele era uma pessoa irritaDÍssima mesmo... mas ele tinha dentro dele ...”), o que
pensam (“a mãe dele pensô... nunca mais eu vejo esse filho ?...”) e o que sentem (“e a
mãe dele ficava muito ansiosa com aquilo... mas tulerava... porque né?... era gênio... porque
era considerado como o gênio dele...”).
Nas fases de orientação é muito comum a presença de verbos de aspecto, como, por
exemplo, na passagem começou a gritá... e xingá... e ficá muito bravo mesmo... e ele é::
estava rogando praga mesmo...”. “Começou a gritar” tem um aspecto inceptivo, pois indica o
início do evento e “estava rogando” tem um aspecto cursivo, pois indica o desenvolvimento
do evento. Embora a freqüência do causo coincida com o modo singulativo, a presença
de modo iterativo (a partir de uma inferioridade narrativa), i.e., o narrador conta apenas uma
vez aquilo que aconteceu n vezes na história, na seguinte fase de orientação: era um
rapaz muito nervoso... tava sempre MUIto irritado... [...] ele gosTAva de aos domingos... aos
domingos ele gostava de ir a missa... ele gostava de prepaRÁ... que tinha aquele rituAL...”.
Os verbos de aspecto (grifados), equivalem a um aspecto freqüentativo, pois exprimem a
idéia de freqüência, realçada pelo advérbio e pelo adjunto adverbial de tempo “sempre” e
“aos domingos”, marcas explícitas das vezes em que essas situações acontecem,
constituindo o pano de fundo da narrativa.
152
4.2.1.3 Mecanismos enunciativos: as vozes e a prosódia
Ainda que o autor do texto – “como agente da ação de linguagem
85
que se concretiza
num texto empírico” (BRONCKART, 2003:320) – seja, aparentemente, quem decide sobre o
conteúdo temático a ser semiotizado, quem escolhe o gênero utilizado na comunicação e
quem gerencia os diversos mecanismos de textualização, ele não é o único responsável
pelo enunciado. A responsabilidade enunciativa desse causo é da instância do narrador (re-
definido por Bronckart (2003:323) “como a instância de gestão ou de gerenciamento dos
mundos discursivos da ordem do NARRAR”). E temos nas Vozes
86
, as entidades que
assumem a responsabilidade do que é enunciado” (BRONCKART, 2003:326).
Assim, temos neste causo um sujeito empírico “Dona Florentina”, que instaura um
“narrador/locutor” como ser do discurso (podendo ou não coincidir com “Dona Florentina”),
que, por sua vez, instaura os enunciadores personagens “rapaz”, “mãe” e “capeta” como
seres do enunciado.
O causo possui uma verosimilhança com a vida, pois, apesar de ser um causo
fantasioso (a depender da crença de cada ouvinte), a mensagem faz parte da realidade, se
não pela religiosidade, ao menos pelo que manda a boa educação. O causo leva-nos a uma
leitura comparativa indicadora da relação dialógica existente entre o real e o imaginário;
entre a vida e o causo. O real e o imaginário são calcados na trama social/religiosa. Famílias
religiosas, que por serem tementes a Deus, acreditam que falar “palavrões”, e
principalmente “capeta”, faz com que algo de ruim aconteça. É nesse contexto que se torna
possível perceber que a voz mítica é utilizada polifonicamente, fazendo do fantástico uma
estratégia do discurso realizado.
Vimos na seção 2.8.1.3.4 do capítulo 2 que para se verificar o funcionamento da Voz
é preciso considerar as relações entre o narrador e a história que ele conta. Além disso,
vimos, também, que não obstante a função do narrador seja de contar a história, o discurso
do narrador pode assumir outras funções. Nesse causo, dois aspectos da função do
discurso narrativo se destacam: a situação narrativa em relação ao narratário e as
85
Agente de linguagem visto que o autor do causo explora os recursos da língua usada pelo grupo em que se
inscreve.
86
Esclareço que o termo “voz” referente às vozes do discurso segrafado com “V” maiúsculo para que não se
confunda com o termo “voz” referente ao som produzido pelo órgão da fala.
153
intervenções, diretas ou indiretas, do narrador a respeito da historia.
No que se refere à situação narrativa, o discurso tem uma função não de
comunicação, como, também, uma função fática e conativa (nos termos de Jakobson). O
narrador está o tempo todo verificando o contato com seu público/ouvinte, através do “né”
(“isso é verdade ou lenda, ?... [...] eu acho que é insinamento que eles contava pra gente
num falá... não chama pelo bicho, ?”) e, também age sobre o ouvinte, vez que o que
conta é no intuito de manter as crenças, valores e costumes de sua comunidade. Nesse
sentido a moral é peça fundamental, é a fase em que o contador explicita a maneira como o
ouvinte deve se portar. E mesmo que a ação, por parte do ouvinte, não seja garantida, essa
é a intenção do narrador.
Já em relação às intervenções, diretas ou indiretas, do narrador a respeito da
historia, traduzidas em comentários, o discurso tem uma função ideológica do contador. No
entender de Genette (1995: 258), uma “invasão da história pelo comentário”. São vários
os comentários feitos pelo contador, como vimos na seção 4.2.1.1 deste capítulo: sobre o
personagem principal do causo sua personalidade, postura religiosa (“era um homem
muito nerVOso... [...] ele era uma pessoa irritaDÍssima mesmo... mas ele tinha dentro dele
FÉ... [...] aos domingos ele gostava de ir a missa...”), sobre a postura da mãe em relação ao
gênio do filho (“e a mãe dele ficava muito ansiosa com aquilo... mas tulerava... porque né?...
era gênio... porque era considerado como o gênio dele...”), sobre a cruz que tem na frente
das igrejas do interior (“que toda igreja do interior tem uma cruz na entrada...”), dentre
outras.
No início da narrativa, o narrador toma a Voz da tradição através do resumo que faz
sobre a origem do causo e suas impressões sobre ele. O percurso se com o narrador se
valendo da figura do “pai” e de seus “antepassados”, o que caracteriza um tempo passado
e, até, distante, chegando à atualidade, marcada pelo dêitico temporal “hoje” (“Tem alguns
casos que papai contava... [...] é assim... o meu pai me contou e que foram os
antepaSSAdos dele que contavam pra ele... um caso que me chamava muita atenção... e
que até HOje me chama muita atenção... [...[ e reAIS né?”). Vale lembrar que “HOje” será
entendido em relação ao tempo presente da enunciação do discurso, e não em relação ao
tempo da história.
Nesse resumo e nas avaliações apontadas acima, é possível perceber a importância
154
da prosódia no processo de produção de sentido desse causo. No resumo, quando a
narradora diz “eu acho que são casos mesmo...” sua tessitura é mais baixa que sua
tonalidade normal. Isso ocorre porque, antes, ela diz que o pai contava alguns casos que
são reais”, porém sua voz baixa é quase que para o ouvinte não perceber sua dúvida
(advérbio de vida “acho”). No entanto, ao falar que foram os “antepaSSAdos” de seu pai
que contaram para ele, a narradora aumenta a tonalidade de sua voz, o que contribui para a
credibilidade do que será dito, fazendo, mais uma vez, uma relação entre antepassados” e
as pessoas mais velhas. E realça a impressão que o causo lhe acarretava aumentando o
tom de voz ao dizer que até HOje” ele a impressiona, o que, de certa forma, é mais uma
maneira de atiçar a curiosidade do ouvinte e prender-lhe a atenção. Na seqüência, ela,
através de um tom mais alto, desfaz a dúvida quanto ao fato de o caso ser real ou não (“e
reAIS né?”). Acredito poder dizer que o adjetivo reais” está funcionando, mais ou menos,
como um advérbio de afirmação, ou seja, a narradora, nesse momento quer dizer “são
verdadeiros sim”. Se antes (na dúvida) sua voz foi baixa, nesse momento ela foi, como se
diz, alta e em bom tom, mais uma vez, tentando dar um tom de verossimilhança ao que vai
contar.
nas avaliações, o volume de voz mais forte serve para adverbalizar os
substantivos, os adjetivos e os verbos. Todas marcam a intenção do narrador de ressaltar a
intensidade do nervosismo do rapaz. A prosódia o ouvinte a perceber o sentido de
“muito” nerVOso, gosTAva “muito” de ir à missa e tinha “muita” FÉ. Embora, o advérbio de
intensidade “muito” caracterize o rapaz em “MUIto irritado”, é o tom alto que o intensifica
ainda mais, dando-lhe um grau superlativo, confirmado pela própria narradora no enunciado
seguinte: ele era uma pessoa irritaDÍssima mesmo...”, sendo que nesse último, o tom de
voz intensifica ainda mais o grau superlativo. Toda essa estratégia de adverbalização
mediante a prosódia é para que ouvinte fixe em sua mente as características do rapaz, pois
são elas que irão justificar suas atitudes no desenrolar da história.
Em seguida o narrador toma a Voz da origem ideológica da classificação social, ao
demarcar a cultura e a civilização através dos espaços iniciais do causo: “Fazenda” e
“Lugarejo” (“que ele morava fora da cidade... ele morava num... na fazenda... e a:: a missa
era:: era:: era no lugarejo
lá...”). O rapaz e sua mãe moram em uma fazenda, o que
caracteriza, geralmente, “lugar afastado” e a igreja é no lugarejo, expressão usada para
155
definir “pequeno povoado” existente no interior das cidades. De acordo com o senso
comum, as pessoas que residem nestes lugares pertencem, em geral, a um grupo social
muito religioso, as pessoas são muito envolvidas com a Igreja. É de costume participarem,
todos os domingos, da missa, pois a é a maior virtude dessas pessoas. Nesse sentido, é
possível perceber a Voz do discurso transverso religioso.
O narrador utiliza-se não desses referentes (fazenda e lugarejo) como também da
figura do “pai” e “antepassados” (aqueles que, em nossa sociedade, principalmente por
serem mais velhos, são tidos como pessoas sábias), do “rapaz” (personalidade e posição
social: dono de terras” mas “muito nervoso”, embora tivesse fé já que tem dinheiro e fé,
deveria ter um comportamento diferente), da “mãe” (aquela que está sempre tentando
educar, acalmar e proteger os filhos) e do “capeta” (aquele que tem o poder de fazer o mal).
Todos os elementos estão presentes na memória das pessoas e evidenciam a capacidade
do narrador de tornar seus conhecimentos atuais. E são eles os responsáveis, na fase de
orientação e na fase de ação, pela criação de todo o contexto
87
do causo.
Na complicação que se segue, a narradora se vale da prosódia para provocar, ainda
mais, a tensão do ouvinte e, conseqüentemente, criar uma expectativa sobre a ação que se
realizaria. Ao relatar o sumisso do cavalo (o cavalo de madrugada sumiu... fugiu... o cavalo
desapareceu...”), a tessitura de sua voz é baixa e pausada, em relação ao seu tom e ritmo
normais.
Tendo o causo popular oral uma função social, em “A fé e a vara de goiabeira”, as
Vozes dos personagens que compõem o núcleo da família parece-me que representam
segmentos da sociedade, que vivem na incessante busca pela palavra de Deus, pela
manutenção da fé e da crença religiosa. Na continuidade da complicação, o rapaz, que é um
homem de fé, na verdade desrespeita, com seu nervosismo, um ensinamento, o fato de não
poder falar nome feio. À mãe, só resta tentar acalmá-lo:
“ele falô... cadê meu cavalo?... o cavalo pronto... [...] NÃO... que o aqui... [...]
a mãe dele faassim... o cavalo está sim... [...] NÃO que não esTÁ... e ele
começou a griTÁ... e xinGÁ... e ficá MUIto bravo mesmo... [...] a mãe falô com ele
assim... o meu filho procura direito... num aqui não mãe... se o caPEta aparecer
eu vou nele... [...] a mãe falô assim... mas num fala essa bobagem não meu filho...”
87
Segundo Charaudeau & Maingueneau (2004), “a maior parte dos lingüistas admite a importância do contexto e
reconhece que a atividade linguageira é um fenômeno social em dois sentidos: ela é determinada pelo contexto
social e é em si uma prática social”.
156
O tom de voz que já havia voltado ao normal, rapidamente se eleva para dar um tom
de irritabilidade ao rapaz (“cadê meu cavalo?”). É como se o rapaz dissesse: eu não disse
para arrumar meu cavalo? Ele não está aqui!; irritabilidade reafirmada pelos “NÃO” em tom
alterado, proferidos pelo rapaz. Situação que avança pela ação ao ser explicitada a atitude
tomada pelo rapaz. Novamente o narrador adverbaliza os verbos de ação (“griTÁ” e
“xinGÁ”), para dizer que ele gritava e xingava “muito”, além de intensificar o superlativo (“ficá
MUIto bravo”), fazendo com que o ouvinte, para entender essa atitude, busque na memória
as características do rapaz, apontadas na fase de orientação. E é na resolução parcial,
constante nessa fase de ação, que o narrador utiliza, através da tessitura de sua voz, um
tom mais alto e desafiador, ao falar se o caPEta aparecer eu nele...”, reforçando a idéia
de que este é um nome que não se deve falar, principalmente ao usar o “se” condicional,
pois o ouvinte que tem em seu conhecimento prévio, ou pertencente a uma comunidade
religiosa, sabe que o “capeta” é tido como o “coisa ruim”, portanto esse é o tom desejado
pelo narrador: fazer com que o ouvinte entenda que, mediante tanta irritabilidade, um
homem de fé, diz que até montado no “capeta” ele vai à missa. É através dessa
instabilidade na tessitura da voz (dos tons altos e baixos, rápidos e lentos) que o narrador
provoca o clima de tensão e, ao mesmo tempo, tenta mostrar ao ouvinte, ou às novas
gerações, que não devemos ter esse comportamento agressivo (xingar, gritar) e, muito
menos, mesmo que na hora da raiva, chamar pelo “capeta”. Se a pessoa tem em Deus
não pode chamar por aquele que só faz o mal.
Um dos mecanismos lingüísticos que servem para mostrar diferentes Vozes no
interior do texto, demarcando os diferentes pontos de vista, é a “negação”. Através desse
mecanismo outra Voz se faz presente a que faz menção a um discurso religioso: mas
num fala essa bobagem não meu filho...”. No causo o “não” (num) gera um questionamento.
Se não é para falar daquele jeito é porque alguma coisa de ruim pode acontecer. O
mecanismo de negação nesse caso provoca no leitor a sensação de curiosidade, dizendo
implicitamente que ali, naquele nome proibido (“capeta”), estaria a presença do mal.
Quando, na fase da moral, o narrador diz: isso é verdade ou lenda, né?... foram os
meus avós que contavam prós filhos... que contavam prá né?... e foi passando de geração
em geração...”, ele, mais uma vez, reafirma a credibilidade nos mais velhos. É a Voz da
sabedoria, aquela que, externa ao texto, faz cumprir a função social do causo popular oral:
157
através dos enredos, oferecer conselhos e auxiliar a comunidade em seu dia-a-dia.
A passagem que marca a Voz do narrador, passando, explicitamente, a lição
pretendida, é quando, ainda na fase da moral, ele diz: se é verdade ou não... a gente
guarda que não deve chamá:: não deve falá nenhum nome feio... nenhum palavrão...”. São
os valores comportamentais e religiosos que a Voz do contador, instituída no narrador,
pretende alardear.
Como vimos no capítulo 2, dentro de cada enunciado ou discurso a Voz do eu não é
única (há também a presença da Voz do outro, o que torna a linguagem constitutivamente
heterogênea), e uma das formas de heterogeneidade, indicadoras da presença do outro é o
discurso relatado. Nesse caso, a intencionalidade do narrador é a de multiplicar as Vozes
(dos enunciadores/personagens) que são teatralizadas
88
. As Vozes dos personagens (rapaz
e mãe), conforme Genette (1972)
89
, citado por Bronckart (2003:329), podem ser expressas
de modo direto ou indireto.
No que se refere ao discurso direto, uma das marcas dessas Vozes (polifonia)
encontrada neste causo é o uso dos verbos discendi falar (“ele falô... cadê meu cavalo?”)
e gritar (“uma voz gritô... traz pra cá...”), cujo significado traz, somado ao dizer básico,
informações sobre o modo de realização do enunciado.Vejamos a seguinte passagem:
a mãe falô com ele assim... ô meu filho procura direito... num aqui não mãe...
se o caPEta aparecer eu vou nele... não tem problema... se o caPEta aparecer
aQUI eu vou nele... mas que eu na missa eu vô... a mãe falô assim... mas num
fala essa bobagem não meu filho...
No texto, a fala dos envolvidos é utilizada como uma estratégia recorrente, no intuito
de sustentar as afirmações que são feitas sobre os estados-de-coisas narradas e
comentadas, ou seja, que comprovem o que foi dito pelo narrador.
Além do apontado, na passagem acima o discurso direto permite que a Voz do
narrador coloque o ouvinte diante dos fatos, como participante direto e interessado, e seu
uso é uma estratégia teatral utilizada para chamar a atenção de seu público, como forma de
atrair e prender a atenção do ouvinte. Em todo o causo, no discurso direto, o narrador se
coloca como “porta-voz” ao citar as palavras do outro, ou seja, das personagens. Pode-se
88
Essa perspectiva de uma representação teatral, cujas personagens têm o estatuto de figuras do discurso, foi
adotada por Ducrot ao partir do pressuposto de que não se pode atribuir somente ao sujeito falante todas as
responsabilidades relativas à produção de um enunciado, o que o levou a operar com o conceito de polifonia.
89
GENETTE, G. Figures III. Paris, Seuil.
158
inferir que, quando o narrador abre espaço para os diálogos diretos, é como se quisesse dar
vida aos seus personagens, trazendo-os do mundo fictício para o real.
Outro exemplo do uso do discurso direto manifestando a polifonia discursiva é o
diálogo entre o cavalo e alguém (ou algo) que não se vê, pois o narrador nos a
conhecer a Voz: “o cavalo pulava... e ele baTIA... ispanCAno o cavalo... mas ispanCAno...
ispanCAno o cavalo... e baTIA... aí quando ele chegou numa curva... a:: uma voz gritô... traz
pra cá... aí o cavalo respondeu ele... de que jeito... esse bate aTÉ discasCÁ...”.
Parece-me que o discurso direto dá a viva sensação da voz das personagens.
Acredito que o narrador, ao dar a Voz ao enunciador/cavalo e ao enunciador/desconhecido,
consegue fixar, na mente do ouvinte, o perigo que o rapaz corre em conseqüência do nome
que ele falou (“capeta”). Como disse, essas Vozes podem indicar o(s) enunciador(es)
instituído(s) pelo narrador, através dos verbos discendi, como na passagem a mãe dele
pensô... nunca mais eu vejo esse filho né?... “. Nessa passagem, especificamente, fica claro
o desdobramento da Voz do narrador: ele é o responsável por todo o enunciado (“a mãe
dele pensô... nunca mais eu vejo esse filho né?... “), e o enunciador/mãe como responsável
por, apenas, parte desse mesmo enunciado (“nunca mais eu vejo esse filho né?... “).
Nessa passagem é importante verificar a questão da prosódia, ou seja, a ênfase
dada a certas palavras. Vejamos: “...baTI::a... baTI::a... o cavalo pulava... e ele baTI::a...
ispanCA::no o cavalo...”. A narradora se valeu de uma duração longa e de um volume de
voz mais forte para modalizar os verbos. Sua intenção era ressaltar a intensidade com que o
homem batia no cavalo (batia “muito”), além disso, a narradora intensifica o modo com que o
homem espancava o cavalo (espancava “vilolentamente”).
Neste causo, a dêixis espacial também faz parte do processo de constituição da
polifonia, se partirmos do princípio de que ela promove a interação entre as diversas
enunciações constituintes do texto
90
. Em duas passagens do causo, o advérbio de lugar “lá”
marca instâncias como “lugarejo” e “terreiro”, relacionando-se diretamente ao enunciador da
respectiva enunciação, a partir de seu ponto de vista, e pode ser interpretado nesse
espaço enunciativo, como na seguinte passagem: aí... voltô... quando ele voltô na porta o
90
Segundo Lopes (1998:120) “ela [a dêixis] não só direciona a espacialidade das entidades em função de
dimensões (horizontais e verticais), mas orienta para a construção da referência de cada instância de
enunciação”. Então, se o tripé “eu-aqui-agora” é o eixo organizador da linguagem, é a partir dele que o falante
constitui-se, na relação discursiva, como enunciador e instaura o outro como seu alocutário.
159
cavalo tava prontinho... o cavalo prontinho lá... chego o cavalo tava prontinho... o cavalo
tava prontinho pra ele ir a missa....
Na verdade, o espaço referenciado (lá), por oposição, situa o lugar de onde o
enunciador enuncia seu discurso (aqui). “Lá” é o lugar do evento instituído na “fala” da
enunciação, criador das condições para o desenvolvimento da orientação do lugar no qual o
cavalo estava. O advérbio lá” é que orienta o enunciatário, constituído pelo ouvinte, para o
sentido a ser produzido. E neste momento poderá ser interpretado como sendo perto da
porta, ou seja, mesmo que subentendido, no terreiro, pois no interior é comum os cavalos
ficarem próximos às portas das casas. Antes mesmo de chegar nessa passagem, a dêixis
espacial, marcada pelos advérbios “aqui” e “aí” (“cadê meu cavalo?... o cavalo tá pronto... tá
pronto ... não... que não aqui... num tá...”), orientava o ouvinte, porém, só na
passagem em que o cavalo volta é que o lugar onde ele deveria estar se torna realmente
claro para o ouvinte. Na fala da mãe e do filho, o “aí” e o “aqui”, respectivamente, indicam a
posição de onde cada um enuncia.
No inicio do causo, na passagem o meu pai me contou e que foram os
antepassados dele que contavam pra ele... um caso que me chamava muita atenção... e
que até hoje me chama muita atenção...“, primeiro o locutor (narrador) leva o enunciatário
(ouvinte), através das expressões meu pai me contoue foram os antepassados dele que
contavam”, a construir, no pretérito, a referenciação em um plano anterior à instância da
enunciação referente ao momento da fala, em seguida, a dêixis temporal é ativada pelo
advérbio “hoje”, trazendo o enunciatário (ouvinte) para o tempo presente da enunciação, o
“agora” do locutor (narrador), porém, liga-o ao “eu” da enunciação ao usar a primeira
pessoa, através do pronome obliquo “me”, na expressão “me chama muita atenção”.
Por fim, vejo no último enunciado (“então tudo é assim:: eu acho que é insinamento
que eles contava pra gente num falá... não chama pelo bicho, não é?”) o ponto mais alto do
processo de troca de experiências através desse causo popular oral. O narrador, que vai se
representando no próprio dizer; assumindo a responsabilidade pelo que diz, tem em seu
ultimo enunciado um “eu” explícito na enunciação, o qual torna-se uma marca “sintomática”,
reveladora, com a função de garantir o ensinamento que deveria ser apreendido mediante
tudo aquilo que contou e, mesmo que modalizado pelo advérbio acho”, que indica dúvida,
na verdade ele está afirmando que é ensinamento e que o ouvinte deve acatá-lo. A fala do
160
narrador não só age socialmente como pretende levar o ouvinte a agir, ao tomar as palavras
como verdade – quer seja mudando suas atitudes, quer seja transmitindo-as a outros.
Acredito ser possível pensar que é neste ponto que o narrador retoma todas as Vozes
anunciadas dizendo: podem acreditar, sou eu quem está falando. Tomem essas palavras
para vocês e para transmiti-las aos outros.
4.2.2 Transcrição do causo nº 6: A felicidade está dentro de nós
05
10
15
20
25
Papai contava assim que... feliciDAde a gente não enCONtra em luGAR NENhum do mundo...
a pessoa ACHA que pra ser feliz tem que sprocuRANdo a felicidade... que vai encontrar ela
em algum lugar não encontra... a pessoa que:: se julga feliz ela é feliz em SI... não precisa
rique::za... não precisa de:: de:: vamo supor... de:: ter MUIta coisa pra ser feliz...a pessoa pode
morar numa casinha po::bre... num precisa de vivê no LU::xo... mais a pessoa fala... EU SOU
feliz... é a pessoa que é feliz com Deus... que agradece tudo que Deus dá:: éé... pra aquela
pessoa é uma felicidade... que tinha... DOis homens... que ele contava... dois homens que
morava perto um do outro... um era MUIto rico e o outro MUIto pobre... morava numa
cabanazinha ruim... lugarzinho pobre... tinha os filhos... o RIco vivia preocupa::do com a vida
de::le... com muita ganân::cia... serviço e mais servi::ço... quanto mais tinha mais queria tê::...
e o pobre trabalhava durante o dia::... e a tarde ele tocava violão muito bem... a tarde ele
sentava na escada... reunia os filhos perto e tocava violão... aquelas musica boni::ta... feLIZ
tocando... e o rico ta pra lá na vida dele... e NEM NUNca prestava atenção no pobre... UM DIA
ele tava assim TÃO infeliz... TÃO triste... que ele olhô o pobre... sentado tocando o
violão... e pensô assim... num É pucive... num tem NAda... aquela poBREza... qque aquilo
ali tem? NAda... parece que ele vive até MUIto feliz... eu conversá com ele... chegô na
casinha... cumprimentô::... alegre tocando seu violão... É feliz?... ele falô...
deMAIS... MUIto feliz... num me falta nada... meus filho tão aqui... aqui tocando a minha
MÚsica... tocando meu instrumento... sou muito feliz... Ele falô... mas eu admiRAdo fala
isso porque eu NEM SEI o que É SER feliz... eu nem sei o que é felicidade... quem sabe::... eu
pensando... quem sabe ocê me emprestasse uma camisa sua pra mim vesTI... que essa
felicidade podia até passar pra MIM... ele falô assim... ah! mas eu com ESSA camisa aqui e
a camisa era toda rasgada... um TRApo... acontece é que eu não tenho outra camisa... eu só
TENho essa que eu vestido com ela... que o rico baixô a cabeça e vortô pra traz tão
preocupado... e eu tenho que como ele... eu tô muito preocupado na minha vida... intão
num é assim... que eu tô com MUIta inveja dele... e ele num teve nem camisa pra mim
imprestá...
4.2.2.1 Superestrutura: o plano geral da narrativa, suas fases e seqüências
O causo é sobre um homem rico que tinha como vizinho um homem pobre. O
homem rico não aceita que o homem pobre, mesmo com tanta pobreza, aparente ser tão
feliz e ele, tão rico, ser infeliz. O homem rico resolve ir conversar com o vizinho pobre e
161
percebe qual a diferença entre eles, ou seja, ele entende que a felicidade está dentro de
cada um e não nos bens materiais que possam ter.
QUADRO 3
Plano geral do causo 6, suas fases e seqüências
Plano geral Fases da
narrativa
Sequências
a) quem contava o causo (01);
Orientação
Narrativa
Moral
b) a felicidade está dentro de cada pessoa
(01 a 07);
avaliação
Narrativa
Orientação
c) como viviam dois vizinhos: um rico e o
outro pobre (07 a 13);
Avaliação
Narrativa/
Descritiva
c) o vizinho rico não aceita a felicidade do
vizinho pobre (13 a 16);
Complicação
Narrativa
Ação
c) o vizinho rico resolve conversar com o
vizinho pobre (16 a 24);
Avaliação
Narrativa
Dialogal
d) o vizinho rico entende de onde vem a
felicidade do vizinho pobre (24 a 27);
Resolução
Narrativa
NOTA: Dados verificados pela pesquisa.
* Algumas fases foram decompostas em mais de uma fase
A seqüência narrativa começa com a narradora orientando (linha 01) o ouvinte sobre
quem contava o causo (“Papai contava assim que... “) , introduzindo o primeiro personagem
(“papai”), figura que, como vimos, dará credibilidade ao que será contado.
Diferentemente dos demais causos analisados, a moral não se encontra no final da
história; antes, ela é o princípio (linhas 01 a 07). A narradora fala sobre a felicidade a partir
de uma longa fase de avaliação:
“feliciDAde a gente não enCONtra em luGAR NENhum do mundo... a pessoa ACHA
que pra ser feliz tem que saí procuRANdo a felicidade... que vai encontrar ela em
algum lugar não encontra... a pessoa que:: se julga feliz ela é feliz em SI... o
precisa rique::za... não precisa de:: de:: vamo supor... de:: ter MUIta coisa pra ser
feliz...a pessoa pode morar numa casinha po::bre... num precisa de vivê no LU::xo...
mais a pessoa fala... EU SOU feliz... é a pessoa que é feliz com Deus... que
agradece tudo que Deus dá:: éé... pra aquela pessoa é uma felicidade...
É através de uma seqüência descritiva, entremeada na narrativa, que a narradora explica o
que é e o que se precisa para “ser feliz” (tema-título). Essa seqüência sustenta o causo que
162
será contado, mostrando que a fase de moral, na qual é explicitada a significação global
atribuída à história, pode aparecer, também, no início da narrativa.
A orientação continua (linhas 07 a 13), em uma seqüência descritiva, ao introduzir,
não os dois vizinhos (que tinha... DOis homens... que ele contava...”), como, também, o
espaço físico da ação (“dois homens que morava perto um do outro... um era MUIto rico e o
outro MUIto pobre...”). Através de uma fase de aspectualização (seqüência descritiva), a
narradora enumera os diversos aspectos dos temas-título “homem rico” (“o RIco vivia
preocupa::do com a vida de::le... com muita ganân::cia... serviço e mais servi::ço... quanto
mais tinha mais queria tê::... [...] e o rico ta pra na vida dele... e NEM NUNca prestava
atenção no pobre...”) e “homem pobre” (“morava numa cabanazinha ruim... lugarzinho
pobre... tinha os filhos... [...] e o pobre trabalhava durante o dia::... e a tarde ele tocava violão
muito bem... a tarde ele sentava na escada... reunia os filhos perto e tocava violão... aquelas
musica boni::ta... feLIZ tocando...”).
Ouvinte orientado, surge a complicação (linhas 13 a 16), explicitada através do
pensamento do homem: o vizinho rico não aceita a felicidade do vizinho pobre (“UM DIA ele
tava assim TÃO infeliz... TÃO triste... que ele olhô lá o pobre... sentado lá tocando o violão...
e pensô assim... num É pucive... num tem NAda... aquela poBREza... quê que aquilo ali
tem? NAda... parece que ele vive até MUIto feliz... eu vô lá conversá com ele...”).
A ação (linhas 16 a 24) ocorre em seguida: o vizinho rico resolve ir falar com o
vizinho pobre (“chegô lá na casinha... cumprimentô::...”). Nesse momento a narrativa é
entremeada por uma longa seqüência dialogal, que, além de dar mais veracidade à cena,
vai revelando o porquê de o pai contar este causo; o que ele queria dizer ao contar tudo
isso:
“cê alegre tocando seu violão... É feliz?... ele falô... deMAIS... MUIto
feliz... num me falta nada... meus filho tão aqui... aqui tocando a minha MUsica...
tocando meu instrumento... sou muito feliz... Ele falô... mas eu admiRAdo falá
isso porque eu NEM SEI o que É SER feliz... eu nem sei o que é felicidade... quem
sabe::... eu tô pensando... quem sabe ocê me emprestasse uma camisa sua pra mim
vesTI... que essa felicidade podia até passar pra MIM... ele falô assim... ah! mas eu
com ESSA camisa aqui e a camisa era toda rasgada... um TRApo... acontece é
que eu não tenho outra camisa... eu só TENho essa que eu tô vestido com ela...
Para que o ouvinte entenda a que ponto o homem-rico chegou para tentar ser feliz, a
narradora faz uma avaliação sobre a camisa que ele estava vestindo (“eu com ESSA
camisa aqui e a camisa era toda rasgada... um TRApo
...”). Além disso, o dêitico “aqui” é
possível de ser entendido se ouvido no momento da enunciação do tempo da história e não
163
do tempo da narrativa, então, sem essa avaliação o ouvinte não conseguiria entender o
tamanho do desespero do homem-rico.
É chegado o momento da resolução (linhas 24 a 27). Fase da narrativa em que o
homem rico se conscientiza do que é ser feliz (“que o rico baixô a cabeça e vortô pra traz
tão preocupado... e eu tenho que como ele... eu muito preocupado na minha vida...
intão num é assim... que eu tô com MUIta inveja dele... e ele nun teve nem camisa pra mim
imprestá...”).
4.2.2.2 Mecanismos de textualização: a coesão verbal na narração
Assim como na análise anterior, o tempo, o modo e o aspecto serão os campos de
estudo dessa seção.
No que se refere ao tempo, e em primeiro lugar quanto ao momento da narração,
temos no causo em análise uma narração ulterior (papai contava assim que... [...] que
tinha... DOis homens...”), em que, na fase da orientação, a narradora conta o que passou
anteriormente. A narradora revela que além de ser um fato ocorrido no passado foi contado
por seu pai, na intenção de dar mais credibilidade à história. Como visto na análise anterior,
os verbos no pretérito imperfeito, não fazem a história avançar destacam-se no plano
secundário. Além dos verbos grifados acima, podemos verificar essa asserção na
avaliação (“um era MUIto rico e o outro MUIto pobre... morava numa cabanazinha ruim...
lugarzinho pobre...”).
No entanto, continuando a narração, a fase de moral desse causo, se configura uma
narração no tempo presente. A narradora assevera, no momento presente da enunciação,
que a feliciDAde a gente não enCONtra em luGAR NENhum do mundo...”. E ao expor
sobre o que se precisa para “ser feliz” (“não precisa [...] de:: ter MUIta coisa”, pode morar
numa casinha po::bre... num precisa de vivê no LU::xo...”, é a pessoa que é feliz com
Deus... que agradece tudo que Deus dá::), mais uma vez, podemos dizer que o causo
funciona como um ensinamento, ao mostrar ao ouvinte que para ele ser feliz basta querer, e
como não poderia deixar de ser, acreditar em Deus. É através do verbo factivo epistêmico
“é” que a narradora deixa entrever que o que diz é verdade (“a pessoa que:: se julga feliz ela
164
é feliz em SI...”)
Quanto a velocidade da narração percebo, na fase de complicação, que a história
tem uma duração de um dia enquanto a narração leva apenas alguns minutos (“UM DIA ele
tava assim TÃO infeliz... TÃO triste... que ele olhô o pobre... sentado lá tocando o
violão...”), revelando a aceleração do tempo destinado a contar a história. Um tipo de
regularidade freqüente, não nessa seqüência, mas em toda a narrativa, é a alternância
entre o pretérito perfeito e o pretérito imperfeito (grifados acima). Porém, o que mais nos
chama a atenção é que a cadeia de acontecimentos/ações, importantes para a história, é
marcada por verbos no pretérito perfeito. Além do negritado acima, essa fase de orientação
ainda tem como exemplo: chegô na casinha... cumprimentô::...” e na fase de
resolução: que o rico baixô a cabeça e vortô pra traz tão preocupado...”, fazendo a ação
progredir (constituem de certo modo o primeiro plano).
Por outro lado, a fase de orientação (em que o narrador explicita o modo de viver dos
vizinhos), principalmente pelo excesso de detalhes:
“um era MUIto rico e o outro MUIto pobre... morava numa cabanazinha ruim...
lugarzinho pobre... tinha os filhos... o RIco vivia preocupa::do com a vida de::le...
com muita ganân::cia... serviço e mais servi::ço... quanto mais tinha mais queria
tê::... e o pobre trabalhava durante o dia::... e a tarde ele tocava violão muito bem... a
tarde ele sentava na escada... reunia os filhos perto e tocava violão... aquelas
musica boni::ta... feLIZ tocando... e o rico pra na vida dele... e NEM NUNca
prestava atenção no pobre...
a impressão de haver uma igualdade temporal entre o tempo da história e o tempo de
narração, estratégia que visa produzir efeitos de realidade (que como veremos na próxima
seção, foram realçados pela prosódia). Nessa cena as descrições que foram desenvolvidas
detalhadamente (desaceleração) poderiam ser percebidas rapidamente, mas essa
estratégia não ajuda a criar no ouvinte um suspense, uma tensão, como, também, reitera
a felicidade do vizinho, mesmo com toda pobreza.
Por fim, é possível verificar que a ordem da narração corresponde à ordem
cronológica da história (comum nos causos), ou seja, todo o causo é contado na ordem em
que os fatos ocorreram.
No que se refere à imagem do narrador (modo e aspecto), neste causo, temos um
narrador maior que os personagens. Ele é heterodiegético, numa perspectiva que passa por
ele mesmo. Em outras palavras, temos um narrador onisciente (por sua visão e percepção
não serem limitadas pela perspectiva de alguma personagem) que assume, em seu modo
165
de contar, uma função explicativa. O narrador domina todo o saber: conhece a situação
econômica de cada um (“um era MUIto rico e o outro MUIto pobre...”), o comportamento
das personagens (“o RIco vivia preocupa::do com a vida de::le... com muita ganân::cia... [...]
quanto mais tinha mais queria tê::... e o pobre trabalhava durante o dia::... e a tarde ele
tocava violão muito bem... a tarde ele sentava na escada... reunia os filhos perto e tocava
violão... “), o que pensam (“UM DIA ele [...] pensô assim... num É pucive... num tem NAda...
aquela poBREza... quê que aquilo ali tem? NAda... parece que ele vive até MUIto feliz...”) e
o que sentem (“que o rico baixô a cabeça e vortô pra traz tão preocupado...”).
Embora a freqüência do causo coincida com o modo singulativo (contar uma vez
aquilo que se passou uma vez) a presença de modo iterativo, i.e., o narrador conta
apenas uma vez aquilo que já aconteceu n vezes na história, na seguinte fase de
orientação: o RIco vivia preocupa::do com a vida de::le... com muita ganân::cia... [...] e o
pobre trabalhava durante o dia::... [...] a tarde ele sentava na escada... reunia os filhos perto
e tocava violão... [...] e o rico tá pra na vida dele... e NEM NUNca prestava atenção no
pobre...”. Os verbos no pretérito imperfeito equivalem a um aspecto freqüentativo, pois
exprimem a idéia de freqüência (grifados), assim como o adjunto adverbial de tempo (em
negrito), marcas explícitas das vezes em que essas situações aconteceram, constituindo o
pano de fundo da narrativa.
4.2.2.3 Mecanismos enunciativos: as vozes e a prosódia
Temos neste causo um sujeito empírico Dona Maria Paula”, que instaura um
“narrador/locutor” como ser do discurso (podendo ou não coincidir com “Dona Maria Paula”),
que, por sua vez, instaura os enunciadores/personagens “vizinho rico” e vizinho pobre”,
seres do enunciado.
O causo possui uma verosimilhança com a vida, pois a mensagem faz parte da
realidade, de um sentimento tão difícil de alcançar nos dias atuais. O causo leva-nos a uma
leitura comparativa indicadora da relação dialógica existente entre a vida e o causo. O real é
calcado na trama social. Pessoas que buscam a felicidade nas coisas materiais, se
166
esquecendo de Deus e da felicidade que existe “dentro” de cada um. É nesse contexto que
se torna possível perceber que a Voz do senso comum é utilizada polifonicamente.
No que se refere à situação narrativa, o discurso tem uma função não de
comunicação, como, também, uma função “conativa” (nos termos de Jakobson). O narrador
age sobre o ouvinte, uma vez que o que conta é no intuito de manter as crenças e os
valores de sua comunidade. Nesse sentido, a moral é peça fundamental; é a fase em que o
contador explicita a maneira como o ouvinte deve se portar, e mesmo que a ação, por parte
do ouvinte, não seja garantida, essa é a intenção do narrador.
As intervenções, diretas ou indiretas, do narrador a respeito da historia (traduzidas
em comentários avaliativos ou orientadores), revelam que o discurso tem uma função
ideológica.
No início da narrativa, a narradora toma a Voz da origem ideológica da classificação
social, ao demarcar as diferenças de posição econômica e social, não só através da
situação financeira de cada um como, também, do espaço inicial do causo: dois homens
que morava perto um do outro... um era MUIto rico e o outro MUIto pobre... morava numa
cabanazinha ruim... lugarzinho pobre...”. Embora os enunciadores/personagens vivessem
perto um do outro, o pobre vivia numa “cabanazinha ruim”, em um “lugarzinho pobre”, classe
social baixa, em contraposição com o rico que, mesmo subentendido, parece morar em uma
casa boa, e nesse caso, pertencente a uma classe social alta.
Nessa fase de orientação, é possível perceber a importância da prosódia no
processo de produção de sentido desse causo. A narradora, ao aumentar o volume de sua
voz, intensifica ainda mais a condição social dos personagens: se “muito” é um advérbio
de intensidade, com a tessitura da voz mais alta, a narradora ainda o eleva para um grau
superlativo absoluto. Seria o mesmo que dizer “muitíssimo”. O mesmo ocorre quando ela
descreve a casa em que o pobre morava. A narradora modaliza o substantivo “casa” e
“lugar” ao usar o diminutivo, provocando um sentido de desconforto e miséria ainda maior.
A narradora utiliza-se não desses referentes (“cabanazinha ruim” e “lugarzinho
pobre”) como também da figura do rico (aquele a quem, em nossa sociedade, é delegado o
papel de pessoa bem sucedida, de poder e, portanto, feliz) e do pobre (que leva uma vida
miserável, precisa trabalhar muito, mas ganha pouco, além de, na maioria das vezes, ter
uma grande família para sustentar, sendo, portanto, infeliz). O narrador os caracteriza da
167
seguinte forma: o RIco vivia preocupa::do com a vida de::le... com muita ganân::cia...
serviço e mais servi::ço... quanto mais tinha mais queria tê::... e o pobre trabalhava durante
o dia::...”. Através de um tom mais alto e irônico na pronuncia da palavra “RIco”, a narradora
chama a atenção do ouvinte para o fato de que enquanto o rico vive preocupado apenas
com sua vida e com ganância, nunca estando satisfeito com o que tem, o pobre trabalha
durante o dia e ainda se preocupava com os filhos. Nessa fase de orientação, todos os
elementos estão presentes na memória das pessoas e evidenciam a capacidade da
narradora de tornar seus conhecimentos atuais. E são eles os responsáveis, no início da
história, pela criação de todo o contexto do causo.
Considerando o causo popular oral como tendo uma função social, também nesse
causo, as Vozes dos personagens parece-me que representam segmentos da sociedade,
que vivem na incessante busca da felicidade e que vêem no dinheiro uma condição para
isso. Porém, nesse causo, o pobre, que não possui recursos financeiros, é feliz com ele e
com seus filhos (a tarde ele sentava na escada... reunia os filhos perto e tocava violão...
aquelas musica boni::ta... feLIZ tocando...”), enquanto que o rico, tendo serviço e mais
servi::ço...” é totalmente infeliz (“e o rico ta pra na vida dele... e NEM NUNca prestava
atenção no pobre...).
O tom de voz que havia voltado ao normal, aliás muito tranqüilo, nessa fase, sofre
uma alteração. A narradora modaliza o adjetivo “feLIZ”, revelando e, novamente,
ressaltando, que ele era “muito” feliz. Mas quando ela termina de explicar, calmamente, o
modo de vida do pobre, o ritmo de sua voz acelera para dizer e o rico ta pra na vida
dele...”, e em um tom de indignação, expressa o egoísmo e o individualismo do rico. Isso
sem contar a ênfase dada à indiferença do vizinho rico para com o vizinho pobre na
passagem “NEM NUNca prestava atenção no pobre...”, dito em um tom mais forte e
conotando indignação. A conjunção “NEM” por si é negativa, mas é dita seguida do
advérbio de negação NUNca”, o qual mescla idéia aspectual e temporal ao valor negativo.
Somando a prosódia utilizada pelo narrador à função sintática dos termos, percebemos uma
intensificação, ainda maior, do que é dito; percebemos que é realçado o fato de que “em
tempo algum” o rico se importou com o pobre. O prolongamento das vogais, também, revela
muito das intenções da narradora. Na passagem aquelas musica boni::ta...”, o
prolongamento da vogal i”, em um tom suave de voz, modaliza o adjetivo, revelando uma
168
admiração, um prazer em ouvir tais músicas, é quase um momento nostálgico; o
prolongamento da vogal “i”, na passagem “serviço e mais servi::ço...”, no mesmo tom de voz
anterior, revela o volume de serviço que o rico tinha. Penso ser viável dizer que isso tudo faz
parte da estratégia utilizada pela narradora para prender a atenção do ouvinte, além de
conduzi-lo, aos poucos, ao ponto onde quer chegar, ou seja, à moral.
Na complicação que se segue, o homem rico não se conforma, não acredita que o
pobre pudesse ser feliz vivendo aquela vida miserável e resolve falar com ele: UM DIA ele
tava assim TÃO infeliz... TÃO triste... que ele olhô lá o pobre... sentado lá tocando o violão...
e pensô assim... num É pucive... num tem NAda... aquela poBREza... quê que aquilo ali
tem? NAda... parece que ele vive até MUIto feliz... eu conversá com ele...”. É a Voz do
senso comum que, nessa passagem, explicita o conceito de felicidade da maioria das
pessoas e, também, a descrença na possibilidade de ser feliz mesmo com pouco dinheiro.
Nas duas negações da seqüência acima se faz ouvir o discurso da sociedade
elitizada. Através desse mecanismo, no mínimo duas Vozes se fazem presentes uma que
declara algo sobre a narrativa e outra que faz menção a um discurso social. O primeiro “não”
nega um dado da história (“num É pucive...”), já que é possível ser feliz independente de
situação econômica; o segundo “não” (“num tem NAda...”) gera um questionamento. Se não
tem nenhum bem material ou financeiro é porque a felicidade não está nesta questão. O
mecanismo de negação nesse caso provoca no leitor a sensação de curiosidade, dizendo
implicitamente que ali, com aquele homem, ele encontraria o caminho para a felicidade.
No entanto, não é o mecanismo de negação que provoca essa sensação no
ouvinte; a narradora se vale, também, da prosódia para provocar, ainda mais, a tensão do
ouvinte e, conseqüentemente, criar uma expectativa sobre a ação que se realizaria. Quando
ela diz “UM DIA”, em um tom mais forte, esse adjunto adverbial de tempo, embora não
revele o dia exato, caracteriza uma mudança de comportamento, mediante uma profunda
infelicidade/tristeza, expressa pela intensificação efetivada através da tessitura de voz alta e
forte dada ao advérbio “TÃO” – que modaliza os adjetivos “infeliz” e “triste”. Em seguida, ao
usar um tom mais forte em É”, “NAda” e “poBREza”, o narrador proporciona ao ouvinte
“sentir” o tom indignado do enunciador/personagem; sua voz demonstra todo o desprezo
que ele sente por aquela situação. O rico não estava conseguindo aceitar aquela situação,
169
pois, na verdade ele não conseguia enxergar que o pobre “tem tudo”, que ele é “rico” de
felicidade”, portanto “é possível” viver daquele jeito.
A dêixis espacial, que também revela outras Vozes (polifonia) no discurso, é
percebida nessa fase através do advérbio de lugar “lá, que marca instâncias como “escada
da casa” e “casa do pobre. A dêixis se relaciona diretamente ao enunciador da respectiva
enunciação, a partir de seu ponto de vista, e só pode ser interpretada nesse espaço
enunciativo, como na seguinte seqüência da fase de complicação: UM DIA ele tava assim
TÃO infeliz... TÃO triste... que ele olhô o pobre... sentado tocando o violão... e pensô
assim... [...] eu vô lá conversá com ele...”.
Na verdade, o primeiro espaço referenciado (lá), por oposição, situa o lugar de onde
o enunciador enuncia seu discurso (aqui). “Lá” é o lugar do evento instituído na “fala” da
enunciação, criador das condições para o desenvolvimento das descrições do lugar no qual
o pobre ficava tocando violão. O advérbio “lá” é que orienta o enunciatário, constituído pelo
ouvinte, para o sentido a ser produzido. E neste momento poderá ser interpretado como
sendo a escada da “cabanazinha” em que ele mora. o segundo “lá” refere-se à casa
como o espaço onde o pobre vivia. É importante observar que, na passagem “e o rico pra
na vida dele... e NEM NUNca prestava atenção no pobre...”, o “lá” não desempenha uma
função gramatical, nesse caso como uma dêixis temporal; ele desempenha, apenas, uma
função discursiva.
A presença da Voz do outro, o que torna a linguagem constitutivamente heterogênea,
é marcada, também, pelo discurso relatado. A intenção da narradora é multiplicar as Vozes
(dos enunciadores/personagens) que são teatralizadas:
chegô na casinha... cumprimentô::... alegre tocando seu violão... É
feliz?... ele falô... deMAIS... MUIto feliz... num me
falta nada... meus filho tão
aqui... aqui tocando a minha sica... tocando meu instrumento... sou muito
feliz... Ele falô... mas eu admiRAdo falá isso porque eu NEM SEI o que É SER
feliz... eu nem sei o que é felicidade... quem sabe::... eu pensando... quem sabe
ocê me emprestasse uma camisa sua pra mim vesTI... que essa felicidade podia a
passar pra MIM... ele falô assim... ah! mas eu com ESSA camisa aqui e a camisa
era toda rasgada... um TRApo... acontece é que eu não tenho outra camisa... eu
TENho essa que eu tô vestido com ela...
Como vimos, no capítulo 2, essa perspectiva de uma representação teatral, cujas
personagens têm o estatuto de figuras do discurso, parte do pressuposto de que não se
170
pode atribuir somente ao sujeito falante todas as responsabilidades relativas à produção de
um enunciado.
Nessa fase de ação, o discurso direto permite que a Voz da narradora coloque o
ouvinte diante dos fatos, como participante direto e interessado, e seu uso é uma estratégia
teatral utilizada para chamar a atenção de seu público, como forma de atrair e prender a
atenção do ouvinte. Uma forma de marcar esse discurso é através do uso dos verbos
discendi (falar e pensar grifados) que, embora colaborem para que o narrador tenha uma
responsabilidade muito menor sobre o que foi dito, esse discurso favorece o efeito de
veracidade dos fatos. Acredito que a narradora, ao dar a Voz aos enunciadores homem-rico
e homem-pobre, consegue fazer com que o ouvinte reflita sobre o que é a felicidade, sobre
o que é preciso para ser feliz.
Muitas são as marcas deixadas pelo narrador na tentativa de garantir que o sentido
desejado seja produzido pelo ouvinte: i) ele intensifica (modaliza), ainda mais os advérbios
deMAIS” e “MUIto”, ao pronunciá-los com uma tessitura de voz forte e mais alta, de modo
que o ouvinte compreenda bem a imensa felicidade do pobre; ii) ele usa um verbo factivo de
atitude sentimental (“admiRAdo”), para expressar seu espanto perante aquela situação, e,
ainda, o modaliza, se valendo de um tom de voz mais alto e carregado de espanto, para
destacar a intensidade desse seu sentimento (“muito” admirado); iii) ele também modaliza,
usando uma tessitura de voz mais forte, o desconhecimento do rico sobre o que seja ser
feliz (“NEM SEI o que É SER feliz”) , mostrando que seu desconhecimento é total, e, ao
mesmo tempo, revela a causa de tanto espanto, pois ele, rico, não sabe o que é ser feliz, no
entanto, o pobre sabe; iv) ele, através do verbo discendi pensando”, a voz ao
enunciador/personagem para mostrar a necessidade que ele (o rico) tinha de querer sentir o
que é a felicidade. O rico chega a pensar até na possibilidade de sentir a felicidade usando a
camisa do pobre. Para isso, o narrador utiliza uma locução adverbial que exprime
possibilidade (“quem sabe”) seguida de uma oração condicional marcada pelo verbo
(“emprestasse”), um novo verbo modalizador que indica necessidade epistêmica (“podia”),
dando um tom bem forte ao beneficiado (MIM); vi) ele, por fim, na fase de avaliação que
segmenta essa fase de ação, adverbaliza o adjetivo TRApopara fazer o ouvinte enxergar
o quanto a única camisa que o pobre tinha era velha. São todas essas estratégias que me
possibilitam confirmar minha hipótese de que se falar é agir socialmente, os propósitos
171
comunicativos do contador certamente irão se manifestar nos textos produzidos por ele.
Vimos que ao instaurar um narrador e, este, os enunciadores personagens, o contador de
causos se vale o tempo todo de estratégias que, mesmo sem garantia, levam o ouvinte a
agir, garantindo, assim, a cultura, as crenças e os costumes.
Não posso deixar de falar que ainda nessa fase, a narradora, por mais uma vez,
utiliza a dêixis espacial como índice de polifonia, que esta é muito importante para o
processo de produção de sentido. O espaço referenciado (lá), por oposição, situa o lugar de
onde o enunciador enuncia seu discurso (aqui). “Lá” é o lugar do evento instituído na “fala”
da enunciação, criador das condições para o desenvolvimento da orientação do lugar no
qual o pobre estava, confirmado pelo adjunto adverbial na casinha”. Em seguida, a dêixis
espacial, marcada pelos advérbios “aí” e “aqui” (“alegre tocando seu violão... É
feliz?... ele falô... deMAIS... sô MUIto feliz... num me falta nada... meus filho tão aqui...
aqui tocando a minha MUsica...”), assim como no enunciado anterior, em que a dêixis
marca o sujeito do discurso e o lugar do evento, neste, os elementos dêiticos marcam os
sujeitos dos enunciados (personagens rico e pobre) e, também, orientam para o lugar no
qual o pobre estava: sentado na escada.
Toda essa fase de ação leva a uma fase de resolução marcada através do
pensamento do vizinho rico, depois que vai à casa do vizinho pobre e não consegue,
sequer, uma camisa emprestada: que o rico baixô a cabeça e vortô pra traz tão
preocupado... e eu tenho que como ele... eu muito preocupado na minha vida... intão
num é assim... que eu tô com MUIta inveja dele... e ele num teve nem camisa pra mim
imprestá...”. A narradora inicia essa fase dizendo um que”, que deve ser entendido como
“diz que”, e isso, além de revelar uma outra Voz no discurso, descompromete a narradora
sobre o que diz. Ao contrário da fase de moral, aqui não é ela quem fala, ela não viu,
soube por alguém. Essa fala seria a explicitação da conseqüência originada pela enorme
ganância e egoísmo do rico.
O homem-rico percebe que a felicidade vai além da matéria e que teria que mudar
suas atitudes, o que pode ser confirmado quando ele diz “tenho que”, um verbo modalizador
que indica necessidade deôntica (obrigatoriedade). O narrador dá o ouvinte a conhecer todo
o sentimento e conclusão a que o homem-rico chega; de toda a lição por ele recebida: i) ao
modalizar o advérbio de modo muito preocupado”, intensificando a preocupação do rico; e
172
ii) ao se valer da negação do advérbio de modo assim”, que, por incidir sobre um
substantivo, a entender que “não é com preocupação excessiva com a própria vida” e
muito menos com “inveja” (advérbio de modo modalizado pelo advérbio de intensidade e
realçado por uma tessitura de voz mais forte) que ele será feliz. E isso pode ser confirmado
no último enunciado proferido pelo rico: e ele num teve nem camisa pra mim imprestá...”. O
“nem”, por ser uma conjunção que tem um significado denso, e, nesse enunciado, marcado
por uma noção de privação, de exclusão, torna a lição ainda mais realçada. E um fato
interessante, ainda, acontece. Não bastassem todos esses elementos, a narradora faz da
prosódia um elemento fundamental para fixar essa lição na mente do ouvinte. Ela profere
toda a narração em uma tessitura de voz bem baixa e bem pausada, o que obriga o ouvinte
a ficar muito atento, do contrário sequer vai ouvir o que está sendo dito. É a tentativa da
narradora de chamar a atenção do ouvinte, ou das novas gerações, para o fato de que é
possível ser feliz, independente de classe social, poder econômico ou aparências. Que,
independente de ser rico ou pobre, a felicidade está dentro de cada um de nós.
Terminada a fase da resolução, o ouvinte retoma, automaticamente, a fase da moral,
já revelada no início da narrativa:
´”feliciDAde a gente não enCONtra em luGAR NENhum do mundo... a pessoa ACHA
que pra ser feliz tem que saí procuRANdo a felicidade... que vai encontrar ela em
algum lugar não encontra... a pessoa que:: se julga feliz ela é feliz em SI... o
precisa rique::za... não precisa de:: de:: vamo supor... de:: ter MUIta coisa pra ser
feliz... a pessoa pode morar numa casinha po::bre... num precisa de vivê no LU::xo...
mais a pessoa fala... EU SOU feliz... é a pessoa que é feliz com Deus... que
agradece tudo que Deus dá:: éé... pra aquela pessoa é uma felicidade...
Essa fala da narradora não age socialmente, como pretende levar o ouvinte a
agir. Essa passagem é toda composta pela Voz do senso comum, que acredita no tema-
título “felicidade” como algo que se alguém procurar, vai encontrar; que basta ter dinheiro,
uma casa maravilhosa e cheia de luxo que já será feliz. Através da prosódia (um tom de voz
forte e de aviso), para que o ouvinte perceba o erro que a maioria das pessoas cometem, a
narradora deixa claro que a pessoa “ACHA” que é assim, para só depois chegar onde quer.
Para que esse sentido seja produzido pelo ouvinte, a narradora utiliza, mais uma vez,
o mecanismo de negação. Ao dizer que não encontrae não precisa”, faz ouvir uma outra
Voz que acredita encontrar a felicidade em algum lugar e que precisa ter riqueza para ser
feliz. Da mesma forma, através do “pode”, um verbo modalizador que indica possibilidade
epistêmica, o narrador mostra ao ouvinte que morar em uma casa pobre e ser feliz é
173
possível, ao contrário da Voz que se instaura dizendo que “Não” é. Interessante observar
que o verbo escolhido pela narradora (“precisa”) é um modalizador que indica necessidade
deôntica; portanto, ao ser negado, produz todo o sentido desejado por ela. Alguns dos
enunciados são marcados, também, pela prosódia: em MUIta coisaela, além de modalizar
o substantivo “coisa”, o intensifica através de um tom de voz mais forte; marca com uma voz
forte e de certeza sobre o que diz onde está a felicidade das pessoas em SI”; intensifica o
LU::xo”, através de um tom forte, mas extendido; e destaca o modo como uma pessoa, que
mesmo morando em uma casa pobre e sem luxo diz EU SOU feliz, através de uma
tessitura de voz forte e segura.
Enfim, a prosódia marca, mais explicitamente, o porquê de a contadora dizer o que
diz de uma forma e não de outra, ou seja, suas intenções comunicativas. Essa escolha da
narradora foi muito importante em função de sua intenção. Quando ela diz, no início da
moral, feliciDAde a gente não enCONtra em luGAR NENhum do mundo...”, fica claro que a
interpretação de tópico-comentário é diferente da estrutura de sujeito-predicado, pois sem
uma interpretação prosódica teríamos apenas elementos deslocados. A narradora poderia
ter dito “a gente não encontra felicidade em lugar nenhum do mundo”, porém, ela quis
ressaltar exatamente a “felicidade”. A questão não está em nós (“a gente”), os sujeitos
apontados, mas nesse sentimento que buscamos incessantemente durante toda a vida. O
tópico da fala do narrador é a “felicidade” (aliás, um tópico discursivo, que retoma todo o
sentido do texto), “não a encontrarmos em lugar nenhum do mundo” é apenas um
comentário.
E o mais importante: todo o discurso é garantido por uma figura tida como sábia, e
que é revelada na primeira fala da narradora: Papai contava assim que...”. Mais uma vez, a
narradora reafirma a credibilidade nos mais velhos. Como já disse, é a Voz da sabedoria,
aquela que, externa ao texto, faz cumprir a função social do causo popular oral: através dos
enredos, oferecer conselhos e auxiliar a comunidade em seu dia-a-dia.
4.3 Contador “nato” versus Contador “profissional”: interfaces
Como disse na introdução deste trabalho, narrar/contar histórias é uma tradição
linguageira oral que, até então, sempre aconteceu sem cursos. Porém, se hoje cursos
174
para profissionalizar “contadores de histórias”, seria interessante investigar se alguma
diferença entre estes contadores e aqueles que sempre o foram sem, no entanto, fazerem
cursos. Ou seja, se há diferenças nas estratégias utilizadas pelos contadores “profissionais”.
No intuito de responder a essa questão, passarei à análise do causo 3: A e a
vara de goiabeira”, analisado na seção 4.2.1 deste capítulo. Porém, agora, na versão
recontada pelo Contador de histórias Jorge, um professor de Literatura que viu no ato de
contar histórias, além de uma maneira a mais de ensinar Literatura, uma outra profissão. A
análise será feita de forma sucinta, visto que este não é o objeto principal desta pesquisa, e
terá como estrutura a interface entre os dois contadores. Para que a análise não se torne
repetitiva, ressaltarei apenas os pontos comuns, ou não, que mais se destacarem na
interface.
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20
25
30
Bom, contá pro’cês um causo que meu pai contava... que ele diz que era VERdade...
VERdade verdadeira MESmo... tinha um rapaz... que era filho único... que ele morava com
a mãe... era dono de terras... MAS ele era um rapaz MUI::to nervoso... mas muito nerVO::so
MESmo... por qualquer coisinha de nada ele is-torava... mas... ele tinha também muita
dentro dele... gostava de TOdo domingo ir a missa... e antes disso... antes de ir a missa...
havia um ritual... uma preparação... todo dia um dia antes... ele prepara o cavalo... pra podê ir
a missa... era sempre o empregado que fazia isso... um certo dia... ele mandô o rapaz... u::
capataz... o empregado prepará o cavalo... e foi durmi sussegado... mas de madrugada o
cavalo su::miu... fu-giu ó!... fu:::: ((soprando))... di-sa-pareceu... no outro dia de manhã
cedinho, quando a mãe acordô... chamô ele pra podê ir pra missa... era domingo... quando
ele foi vê... ca-dê o cavalo?... ô mãe, cadê meu cavalo?... uai... seu cavalouai... o Chico
preparô pro’cê... o não não mãe... aí sim meu filho... olha direito... ah!:: (aí foi e
pronto... pra isso)... disgramô a xingá nome feio... chamô o coisa ruim... falô assim... EU vô pra
missa de qualquer jeito... ó... se o caPEta aparecer aqui eu com ele... mas que eu na
missa EU vô... meu fio num faz isso... num adiantô... falô... falado... humm... passô um
bucadinho... o cavalo tava pron-tinho... arru-madinho... ah mãe agora eu vou pra missa... cê
vai mesmo meu fio?... a mãe disconfiava... chamô... o coisa ruim... ele veio... senhora qué
como é que eu pra missa?... foi na horta.. pegô uma VAra de goiabeira... DIScascô...
ESticô a danadinha... e montô no cavalo... e ((dando um tapa na mão))... foi imbora... ah::
mas no meio do caminho deu tanta varada nesse cavalo... mas baTIA... batia... baTIA aTÉ
sanGRÁ... ispanCAno o coitado... numa curva assim ((fazendo um gesto representando a
curva))... ouviu uma voz assim... traz ele pra cá... rêrê ((em tom de risada)) o cavalo
respondeu de que jeito?... esse home bate que nem um doido... num tem jeito não... o rapaz
ouviu aquilo... é que ele bateu mesmo... mas SANgrô o coitado... chegô na porta da
igreja... amaRRÔ o cavalo numa cruz... cê sabe que... igrejinha do interior... toda igrejinha tem
uma cruz bem na frente... a-marrô o cavalo... na hora que amarrô fu::: ((soprando))... istorô...
o cavalo su::miu... su::miu... diz... meu pai diz que essa história é verDAde VER-da-DE-ra...
sabe por que ele conseguiu se salvá?... que dizia que... a vara de goiabeira... ela é aben-
çoada... por isso que ele se salvô... e também... por causa da fé que ele tinha que era MUI::to
grande... se é verdade ou não eu deixo pro’ceis... mas ó... a gente num deve duvidá... a gente
guarda o insinamento... num deve chamá o que a gente não conta... num deve chamá o
nome do coisa ruim... que se não... se oCÊ chaMÁ ((pausa))... ele ve::m ((chia de arrepio e faz
o “em nome do pai”)).
175
No que se refere à estrutura narrativa, a síntese que se configura no plano geral do
causo manteve a mesma organização do conteúdo temático da primeira versão.
Assim como na primeira versão, na seqüência narrativa que inicia a história, o
narrador apresenta, primeiramente, um resumo. É interessante observar que, embora o
narrador, também, informe a seus ouvintes a origem do causo que irá contar (“Bom,
contá pro’cês um causo que meu pai contava... que ele diz que era VERdade... VERdade
verdadeira MESmo...”), e, com isso, busque despertar o interesse do ouvinte para a
narrativa, seu resumo foi bem mais sucinto que o da primeira versão. Acredito que o
segundo narrador também tenta garantir a veracidade dos fatos narrados, calcados na figura
do pai, mas não me parece que esse seja um ponto forte para esse narrador.
Mantendo, ainda, a mesma ordem do primeiro narrador, após o resumo, vem a
orientação. Mais uma vez, diferenciando-se do primeiro narrador, o segundo narrador
introduz apenas os personagens “rapaz” e “mãe”, deixando o espaço físico implícito ao dizer
que o rapaz “...era dono de terras”.
A avaliação, feita através de uma seqüência descritiva, assinalada pelo tema-título
“rapaz”, também, permanece; mesmo que exposta de forma sintaticamente diferente em
alguns pontos (falarei sobre isso mais adiante). Sempre de forma mais sucinta e, às vezes
com um léxico diferente, o segundo narrador introduz as demais fases do causo na mesma
ordem do primeiro, com exceção de uma avaliação que a personagem mãe fez sobre o
“filho”, ou seja, que tolerava o nervosismo dele e do pensamento da mãe com relação a
nunca mais ver o filho, dados que o segundo narrador dispensou.
Ao analisar os mecanismos de textualização, foi possível perceber que a narração: i)
continuou sendo ulterior (“um causo que meu pai contava...); ii) marcada pela alternância
entre o pretérito perfeito e o pretérito imperfeito; e iii) configurando-se, na fase da moral,
como uma narração anterior, pois o segundo narrador, também, conta o que vai se passar
em um futuro mais ou menos distante, usando os mesmos verbos modalizadores que o
primeiro narrador usou.
Quanto a velocidade da narração, assim como na primeira versão, o que mais
importa é a aceleração ou redução do tempo destinado a contar a história, em função da
economia ou efeitos a serem criados pelo narrador. Nesse sentido, a cadeia de
acontecimentos/ações, importante para a história, continuou marcada por verbos no
176
pretérito perfeito, fazendo a ação progredir. Aliás, os verbos no pretérito perfeito se
mostraram bem mais recorrentes que aqueles no pretérito imperfeito, o que me leva a crer,
que o segundo narrador, se importa bem mais com as ações; com a progressão rápida do
causo.
Ainda assim, o segundo narrador, através da fala dos personagens, continua dando
a impressão de haver uma igualdade temporal entre o tempo da história e o tempo de
narração, estratégia que visa produzir efeitos de realidade (também realçados pela
prosódia); criar no ouvinte um suspense, uma tensão.
Outros pontos levantados na análise da primeira versão e que se mantêm, são:
a ordem da narração corresponde à ordem cronológica da história;
o narrador é onisciente, assumindo, em seu modo de contar, uma função
explicativa;
embora a freqüência do causo coincida com o modo singulativo, a presença
de modo iterativo, i.e., o narrador conta apenas uma vez aquilo que já aconteceu
n vezes na história: MAS ele era um rapaz MUI::to nervoso... mas muito
nerVO::so MESmo... por qualquer coisinha de nada ele is-torava... mas...
ele tinha também muita dentro dele... gostava de TOdo domingo ir a
missa.......”. O verbo de aspecto (grifado), equivale a um aspecto freqüentativo,
pois exprime a idéia de freqüência, realçada pelo adjunto adverbial de tempo
“TOdo domingo”, marca explícita das vezes em que essa situação acontece
(escolha lexical diferente do primeiro contador, que preferiu “aos domingos”).
Entendo que, no geral, o segundo narrador mantêm a narrativa, no que se refere à
super- e macroestrutura, no mesmo nível que o primeiro, levando-me a pensar que é na
microestrutura que suas estratégias irão se diferenciar.
No que se refere à situação narrativa, o segundo narrador, diferentemente do
primeiro, não verifica o contato com seu público/ouvinte, através do marcador discursivo
“né”, mas continua agindo sobre o ouvinte, uma vez que explicita a maneira como o ouvinte
deve se portar. O segundo narrador mantém intervenções, diretas ou indiretas, a respeito da
historia, traduzidas em comentários, porém em um grau bem menor, o que não impede que
seu discurso, também, tenha uma função ideológica. A Voz da tradição é mantida, através
177
do resumo que faz sobre a origem do causo; e a escolha dos enunciados confirma a noção
de Formação Discursiva, uma vez que refere-se “ao que pode e deve ser dito” e “ao que não
pode e não deve ser dito”.
Ao ocuparmos a posição de sujeito no momento de um discurso, carregamos
características do lugar histórico e do lugar social que ocupamos. Diante disso, podemos
dizer que falamos e fazemos aquilo que é determinado por Formações Discursivas que,
por sua vez, são determinadas pelas práticas sociais, isto é, a posição que ocupamos num
dado momento. E essa é uma variante que penso ser importante ao contrapor o primeiro e o
segundo narrador. Este faz escolhas diferenciadas daquele. Vejamos algumas:
Tem alguns casos que papai contava... alguns casos que são reais... que são
assim::: são né?... são casos mesmo... eu acho que são casos mesmo... (CC)
91
Bom, contá pro’cês um causo que meu pai contava... que ele diz que era
VERdade... VERdade verdadeira MESmo... (CH)
Nessa passagem o segundo narrador faz questão de deixar bem claro que o causo é
verdadeiro e que foi seu pai quem disse. Para isso ele preferiu usar a oração subordinada
adjetiva “que era VERdade...” e ainda a ressalta, através da expressão “VERdade
verdadeira MESmo...” , muito usada para se tirar qualquer dúvida do ouvinte com relação à
veracidade dos fatos relatados. Não posso deixar de mencionar, também, a prosódia, pois o
segundo narrador marca as questões apontadas ao usar um tom de voz alto e forte.
...tava sempre MUIto irritado... ele era uma pessoa irritaDÍssima mesmo... (CC)
...mas muito nerVO::so MESmo... por qualquer coisinha de nada ele is-
torava... (CH)
Enquanto o primeiro narrador opta pelo grau superlativo do adjetivo “irritado”, o
segundo narrador preferiu, por mais uma vez, usar uma expressão comumente falada, e
usada, de acordo com o senso comum, para demonstrar o nervosismo ou irritação de
alguém (“por qualquer coisinha de nada ele is-torava...”). Ele modaliza o adjetivo
“nervoso” através do prolongamento da vogal, dita em tom de voz alta e forte. Além disso, a
modalização em “MESmo” faz com essa palavra funcione como um advérbio que expressa a
91
Sinalizarei os enunciados produzidos pelo narrador instaurado pelo contador de causos usando a sigla “CC” e
pelo narrador instaurado pelo contador de histórias (CH).
178
intensidade da nervosia do rapaz. Embora as escolhas tenham sido diferentes, acredito que,
no final, a produção de sentido permaneça a mesma.
ele gosTAva de aos domingos... aos domingos ele gostava de ir a missa... (CC)
gostava de TOdo domingo ir a missa... (CH)
É interessante observar que as escolhas acontecem nos mínimos detalhes, como
nessa passagem. Dizer que gostava de todo” domingo ir a missa é muito mais forte que
dizer “aos” domingos. O segundo narrador fixa na mente do ouvinte, de forma muito mais
enfática, a religiosidade do rapaz e a freqüência com que ele ia à igreja. Além disso, a
prosódia do segundo narrador em “TOdo”, dito com voz mais alta e segura, revela que o
rapaz não faltava nenhum dia à missa, o que não se pode afirmar em aos”. A diferença de
escolhas do que se quer referendar pode ser percebida através da prosódia: enquanto o
primeiro narrador escolheu enfatizar o gosto do rapaz de ir à missa aos domingos, o
segundo preferiu ressaltar a assiduidade com que ele ia à missa, e mais que isso, revelar o
compromisso do rapaz com a igreja.
que ele preparava de véspera... (CC)
todo dia um dia antes... ele prepara o cavalo... (CH)
Acredito que nessa passagem o segundo narrador possa ter feito sua escolha em
função do público ouvinte. Dizer “um dia antes” é muito mais simples e fácil de entender do
que dizer “de véspera”.
o fulano de tal preparou o cavalo pra você ir a missa... (CC)
o Chico preparô pro’cê... (CH)
Uma escolha que me chamou especial atenção foi a troca do substantivo “fulano de
tal” pelo nome próprio “Chico”. De acordo com o senso comum, aquela expressão é
utilizada quando nos esquecemos do nome de alguém, porém, ao escolher um nome
179
próprio, o segundo narrador muito mais credibilidade ao que está contando.
Principalmente ao usar o referente “Chico”; nome comum no interior das cidades.
apanhou uma vara de goiabeira... limpô a vara de goiabeira... esticô a vara de
goiabeira e montô no cavalo... (CC)
pegô uma VAra de goiabeira... DIScascô... ESticô a danadinha... e montô no
cavalo... (CH)
Um último exemplo de escolhas, pode ser constatado nessas passagens. O
segundo narrador além de fazer mudanças lexicais, modaliza o substantivo “VAra” e os
verbos DIScascô” (no lugar de limpô)” e “ESticô”. Se no primeiro exemplo, o narrador
conseguiu dar uma idéia de suspense, de criar uma tensão no ouvinte, simplesmente,
através da enumeração dos verbos, o segundo conseguiu ainda mais, pois enfatizou o uso
da vara e o que fez com ela. A própria voz do segundo narrador provoca essa tensão.
Nos exemplos apontados acima, é possível perceber o quanto as Formações
Discursivas, assim como a prosódia, são importantes no processo de produção de sentido
dos causos.
O primeiro narrador se vale da prosódia para provocar, ainda mais, a tensão do
ouvinte e, conseqüentemente, criar uma expectativa sobre a ação que se realizaria, ao
relatar o sumisso do cavalo (“o cavalo de madrugada sumiu... fugiu... o cavalo
desapareceu...”) com uma tessitura de sua voz baixa e pausada, em relação ao seu tom e
ritmo normais. O segundo, no entanto, se vale do prolongamento das vogais e da voz baixa
na passagem “...su::miu... fu-giu ó!... fu:::: ((soprando))...” e da silabação, também, em voz
baixa e pausada em di-sa-pareceu...”, para dar um tom de suspense e prender a atenção
do ouvinte.
Através dessa instabilidade na tessitura da voz (dos tons altos e baixos, rápidos e
lentos), tanto o primeiro quanto o segundo narrador provoca o clima de tensão e, ao mesmo
tempo, tentam mostrar ao ouvinte, ou às novas gerações, que não devemos ter um
180
comportamento agressivo e, muito menos, mesmo que na hora da raiva, chamar pelo
“capeta”, principalmente se se tem fé.
Na verdade, em termos lingüísticos, pouco se difere a narração feita por um contador
de causos da narração feita por um contador de histórias. Penso que as escolhas
enunciativas feitas pelos contadores apenas reafirmam o fato de que “o sentido de uma
palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não existe em “si mesmo” (...) mas, ao
contrário, é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-
histórico no qual as palavras, expressões e pressuposições são produzidas” (PÊCHEUX,
1990:160), e tudo isso para alcançar o efeito de sentido que se deseja.
A única diferença mais relevante, entre os contadores, se encontra nos elementos
paralingüísticos: os olhares, as expressões faciais e corporais; na caracterização: o uso de
um chapéu; e na sonoplastia: música instrumental, característica das cidades do interior,
como pano de fundo para a narração. Sinto-me, assim, em condições de dizer que não são
as questões lingüísticas que favorecem uma narração diferenciada entre os contadores,
mas, sim, aquilo que conhecemos por “artes cênicas”. É o tom teatral do contador de
histórias que revela a diferença em relação ao contador de causos, pois este se vale apenas
de sua forma lingüística ou linguageira de contar.
4.4 Considerações parciais
Mediante a análise dos causos de números 3 e 6, a partir dos três níveis de
estruturação textual, foi possível verificar determinados traços regulares no gênero causo
popular oral. No nível superestrutural, a análise mostrou que os causos não veiculam
somente um relato (através de seqüências narrativas), mas, também, um comentário (a
partir de avaliações que podem constituir seqüências narrativas) detalhado (seqüências
descritivas) sobre esse relato, assumindo, portanto, este estatuto avaliativo e descritivo que
se conjuga à narração. O narrador/locutor tenta fazer das avaliações e descrições uma
estratégia de alerta e convencimento. Ao narrar um fato ele não relata um fato, mas
também o detalha para que permaneça forte, na memória do ouvinte, as conseqüências de
uma norma não cumprida.
181
Outro aspecto observado, ainda no nível superestrutural, é que causos contados com
vários momentos de tensão possibilitam manter presa a atenção do ouvinte, garantindo-se,
assim, a transmissão da mensagem intencionada. Vale ressaltar que, segundo Bronckart
(2003:253), “podem ser considerados como homogêneos os exemplares de texto que são
compostos por um único e mesmo tipo de discurso”, citando como exemplo, o gênero causo,
romance, novela, etc., e para os quais diz serem compostos exclusivamente pelo tipo
narração. No entanto, não é isso que a análise parece nos mostrar, que, mesmo que por
fusão ou encaixamento, encontrei segmentos de discurso interativo e de descrição.
Foi observado, também, que a noção de superestrutura, entendida sob o viés dessa
pesquisa, aplica-se à organização seqüencial dos textos ou gêneros narrativos, isto é, a
modos de organização mais gerais dos textos. Foi possível confirmar minha hipótese de que
é no texto e na forma de narrá-lo que o contador faz com que a comunidade ouça e assimile
os valores e os modos de conduta. Porém, a análise não nos apresenta os elementos que
compõem a superestrutura esquemática (embora importantes), como estratégias narrativas
peculiares aos causos”, que vários outros gêneros comportam tal superestrutura. Assim,
mais uma vez minhas hipóteses se confirmam, ou seja, as estratégias narrativas usadas
pelos contadores para alcançar os propósitos comunicativos que, certamente, eles
pretendem evocar, foram evidenciadas na macro- e microestruturas.
No nível macroestrutual, pude perceber que as indicações de tempo contribuem
tanto para fixar ou não a realidade da história, ou seja, para a construção do efeito do real, o
qual se configura tanto como “um produto da organização textual” (REUTER, 2002:57),
quanto para “determinar a orientação temática e genérica das narrativas” (REUTER,
2002:57) (grifos do autor). Um tipo de regularidade freqüente nas narrativas é a alternância
entre o pretérito perfeito e o pretérito imperfeito. Os causos analisados revelam uma
narração ulterior, em que as narradoras contam algo que aconteceu no passado, ao usarem
verbos no pretérito imperfeito (os quais não fazem a história avançar destacam-se no
plano secundário). O uso desses verbos foi verificado, principalmente, nas fases de resumo,
de orientação e de avaliação, confirmando, conforme dito por Bastos (2001:34), que, muitas
vezes, essas fases têm características comuns entre si. Diferentemente do pretérito
imperfeito, nas fases de complicação e de resolução (principalmente), a cadeia de
acontecimentos/ações, importantes para a história, é marcada por verbos no pretérito
182
perfeito, fazendo a ação progredir – constituem, de certo modo, o primeiro plano.
No entanto, a fase de moral, no causo 3, se configura uma narração anterior, na qual
a narradora conta o que vai se passar em um futuro mais ou menos distante. Nesse sentido,
essa narração anterior, sob a forma de profecia, tem um valor de presságio, fazendo com
que esse causo funcione como mantenedor das crenças, ao alertar o ouvinte sobre o futuro.
E, no causo 3, embora a moral se no tempo presente enunciação (indicada pelos
verbos no presente), ela se configura, também, uma narração anterior, pois tem um valor de
presságio. Ambos remetem a um comportamento que, se realizado, no futuro, trará
conseqüências.
Quanto a velocidade da narração foi possível perceber que a aceleração ou redução
do tempo destinado a contar a história, existe em função da economia e/ou dos efeitos a
serem criados pelo narrador/locutor.
Outro ponto observado foi a igualdade temporal que parece haver entre o tempo da
história e o tempo de narração, estratégia que visa produzir efeitos de realidade. A
desaceleração criada pelas descrições que foram desenvolvidas, sendo que poderiam ser
percebidas rapidamente, foi uma estratégia utilizada em algumas fases de complicação,
ação ou orientação para ajudar a criar no ouvinte um suspense, uma tensão.
Além dessas questões relativas ao tempo, uma característica comum aos causos
analisados foi a ordem da narração, que corresponde à ordem cronológica da história, ou
seja, todos os causos foram contados na ordem em que os fatos ocorreram.
No que se refere ao modo e ao aspecto, outra característica comum aos causos é
terem um narrador maior que os personagens; um narrador onisciente que assume, em seu
modo de contar, uma função explicativa. Por várias vezes o narrador interrompe o curso da
história para dar, ao ouvinte, informações consideradas necessárias para compreender o
que vai se passar. Essa questão ocorre em grande parte nas fases de avaliação. O narrador
domina todo o saber, pois conhece os comportamentos das personagens, o que pensam, o
que sentem, a situação econômica e o comportamento de cada personagem.
Outra recorrência é a freqüência dos causos, que coincidem com o modo singulativo.
Porém, há, também, em algumas fases de orientação, a presença de modo. Os verbos no
pretérito imperfeito equivalem a um aspecto freqüentativo, pois indicam a idéia de
freqüência, em geral, realçadas por advérbio e por adjunto adverbial de tempo, marcas
183
explícitas das vezes em que essas situações acontecem, constituindo o pano de fundo da
narrativa.
No nível microestrutural, a análise mostra que a polifonia está presente em todos os
causos, o que demonstra que esse é um fenômeno constitutivo da linguagem. Seja explícita
ou implicitamente, há sempre mais de uma Voz no discurso: Vozes sociais, do senso
comum, religiosas, da sabedoria.
Os textos (no geral) se constroem em função do cruzamento/atravessamento de
vozes, sendo que o prisma da experiência é muito importante, experiência que se revela
constante nos causos como uma estratégia que mantém a polifonia implícita, porém, de
extrema importância para o sentido de realidade que o narrador/locutor deseja dar aos fatos.
um constante jogo entre o que o narrador/locutor diz de fato e o que ele pretende dizer.
Mas é somente nas entrelinhas” e, de acordo com a interpretação do ouvinte, que o texto
funciona como um mediador para a manutenção da cultura e dos costumes daqueles que o
ouvirem.
A análise confirmou que os elementos prosódicos têm a função de “contribuir para a
configuração prosódica do discurso, salientando ou diminuindo certos elementos para
relacioná-los e ponderá-los no discurso como um todo” (CAGLIARI, 2002:51). Nos causos,
os elementos prosódicos são usados para “adjetivar” um substantivo ou “adverbializar” um
verbo, um adjetivo ou mesmo um advérbio. Na análise, sobretudo da tessitura, foi possível
reconhecer pelo tom de voz do falante se ele está nervoso, indignado, assustado, seguro,
enfim, essas questões puderam ser deduzidas pelo tom de voz (tessitura aguda, volume
alto, fala mais silábica etc.).
No geral, foi possível perceber que existe uma enorme complexidade no processo de
construção do causo popular oral e uma gama de estratégias que o contador utiliza visando
à produção de sentidos; afinal, disso depende alcançar seus objetivos, qual seja, através
dos causos manter as crenças, valores e costumes de sua comunidade.
Como os causos são narrativas, é evidente que ele apresentará aspectos comuns a
outros gêneros narrativos (novela, conto, por exemplo). Contudo, ele se vale, com maior
recorrência, de outras estratégias, mais ligadas à oralidade (principalmente os aspectos
prosódicos), assim como de uma orientação relativamente mais longa. Além disso, há,
também, uma certa semelhança relevante entre o causo e a fábula, no que se refere à
184
verossimilhança. Portanto, não posso afirmar que estratégias narrativas peculiares” aos
causos, mas que os elementos utilizados como estratégias são mais recorrentes nesse
gênero em função da oralidade. Por fim, refutando minha hipótese, foi possível perceber que
o que diferencia um contador de causos de um contador de historias não são as questões
lingüísticas, mas o uso dos elementos cênicos de que esse contador se vale para narrar.
185
CONSIDERAÇÕES FINAIS: “Bom, vô contá pro’ceis”... OS RESULTADOS
DA PESQUISA
As coisas têm muitos jeitos de ser,
depende do jeito da gente ver...
Ver de um jeito agora e de outro jeito depois
Ou melhor ainda ver na mesma hora os dois.
(Jandira Masur)
“A cada discurso, o locutor constrói seus instrumentos como únicos adequados para
seus interesses. Essa atividade de constituição transforma o locutor em sujeito”
(POSSENTI, 2001:55). Essa asserção de Possenti aponta para duas grandes questões, a
meu ver, que envolvem todo e qualquer estudioso da língua, quais sejam, a definição de
língua e discurso, o que de forma ampla, acarreta na adoção do quadro de referência
adotado e, de forma restrita, implica na ação do locutor sobre a própria língua e com a
língua, no que tange a criação e adaptação de enunciados aos contextos, sejam eles quais
forem.
Em se pensando nesta forma “restrita”, é possível afirmar, junto a Possenti
(2001:59), que “os discursos são constituídos”, daí a noção de indeterminação da sintaxe e
da semântica. Em outras palavras, o locutor escolhe certa variedade da língua para
constituir seu enunciado e assim obter o efeito que deseja. A constituição do enunciado
associa-se, portanto, às escolhas do locutor, o que realça o sentido do que está expresso no
texto. Logo, forma e conteúdo se complementam.
Tudo isso, constitui-se pano de fundo para o trabalho que aqui propus, “estratégias
narrativas no causo popular oral”, entendendo o causocomo uma atividade discursiva,
cuja finalidade/função é manutenção da cultura, crenças, valores e costumes de uma
comunidade, sendo que esta manutenção implica, de certa forma, a reprodução de
ideologias.
Sendo o causo uma atividade discursiva, é possível defini-la em termo de gênero,
pois é funcional e varia conforme a finalidade, como constatado durante a pesquisa e
ratificado nas linhas acima.
Por conseguinte, a figura do narrador ganha papel de grande relevância, uma vez
que é ele quem organiza, estruturalmente, esse gênero de forma a garantir a sua
186
compreensão e, assim, atingir seus objetivos. Dessa maneira, a forma de narrar constitui-se
estratégia imprescindível para os efeitos pretendidos, assegurados na elocução.
As estratégias narrativas conferem ao contador o ‘domínio’ da arte de contar,
provocando no ouvinte o efeito perlocucional da sedução de ouvir (ou desejo de ouvir).
Ouvinte este que não é um mero receptor, mas agente, assim como locutor, da atividade
discursiva, uma vez que é ele o responsável por determinar a possibilidade de perpetuação
da tradição que lhe foi transmitida, através da organização das formas lingüísticas,
fundamentais ao discurso que precisa levá-las em conta, pois elas produzem sentido.
A respeito dessas formas lingüísticas que, aliás, é com o que o ouvinte trabalha, foi
possível verificar a recorrências de vários elementos estratégicos, e, através deles, a
interdependência dos níveis de organização textual que os causos apresentam. As fases da
narrativa dos causos se organizam de forma similar, contendo, praticamente, todas as fases
propostas por Labov & Waletzky (1967). Pude constatar que em cada fase os elementos
microestruturais (vozes e prosódia) incidem sobre os macroestruturais (tempo, modo e
aspecto), que, por sua vez, revelam, na superestrutura, as intenções comunicativas do
narrador, como nos mostra o quadro abaixo:
QUADRO 4
A INTERDEPENDÊNCIA DOS NÍVEIS DE ORGANIZAÇÃO DO CAUSO
MICROESTRUTURA A análise revelou a Voz da tradição, da origem ideológica da classificação
social, do discurso religioso e da sabedoria; além da instabilidade na tessitura
da voz do narrador (tons altos e baixos, rápidos e lentos), ou seja, dos
elementos supra-segmentais, importantes para a produção de sentido, pois se
tratam de causos orais.
MACROESTRUTURA
O que mais se evidenciou foi: a alternância entre os verbos no pretérito
perfeito e no pretérito imperfeito; a modalização dos substantivos, adjetivos,
advérbios e verbos; e apenas o causo 3 revelou um uso constante de
marcadores discursivos conversacionais, tais como “né” e “aí”.
SUPERESTRUTURA Todas as estratégias dos níveis anteriores evidenciam o que se pretende em
cada fase da narrativa, ou ainda, os efeitos de sentido que o narrador
pretende evocar. O causo, exatamente por ter como uma de suas funções
manter as tradições, crenças e costumes, apresenta em sua constituição
textual, seqüências lingüísticas narrativas, entremeadas por seqüências
descritivas e dialogais.
FONTE: Dados retirados da pesquisa
187
Em relação à superestrutura, destaco, no quadro abaixo, os dados que se mostraram
recorrentes na constituição textual dos causos.
QUADRO 5
DADOS RECORRENTES NA CONSTITUIÇÃO TEXTUAL DOS CAUSOS
SEQÜÊNCIAS NARRATIVAS Principalmente nas fases do resumo, orientação e avaliação, o
narrador informa a origem do causo; desperta interesse e ativa a
curiosidade do ouvinte; tenta garantir a veracidade dos fatos
narrados, calcados em pessoas mais velhas; revela uma narração
ulterior, no modo singulativo; introduz personagens e espaço
físico; e auxilia na progressão da ação. Ainda nas seqüências
narrativas, desta vez nas fases de resolução e de moral, o
narrador reduz a tensão; volta ao estado de equilíbrio, ao chegar
ao desfecho da história; reforça a credibilidade por parte do
ouvinte; fornece a significação global da história; e alerta o ouvinte
para o futuro, através de uma narração anterior, com valor de
presságio.
SEQÜÊNCIAS DESCRITIVAS O narrador utiliza os elementos macro- e microestruturais para
desencadear a história e, também, criar uma tensão.
SEQÜÊNCIAS DIALOGAIS Principalmente nas fases de complicação e ação, o narrador
proporciona ao ouvinte um efeito de realidade; provoca uma
economia de tempo; introduz uma perturbação; uma cadeia de
acontecimentos importantes que fazem a história progredir; cria e
aumenta uma tensão; e faz do suspense uma das estratégias para
prender a atenção do ouvinte.
FONTE: Dados retirados da pesquisa
Assim, acredito poder dizer que são as estratégias narrativas constituídas pelos
elementos lingüísticos apontados nessa pesquisa, e os quais só são passíveis de um
sentido completo através da interdependência dos níveis de organização textual nos quais
estão inseridos, que permitem ao contador reavivar e manter aquecidos alguns dos valores
e crenças de sua comunidade.
Dessa maneira, ratifico a relevância em teorizarmos sobre essa prática discursiva,
principalmente nas cidades interioranas. Como disse na Introdução deste trabalho, o
estudo dos causos reflete representações de naturezas diversas; eles reproduzem
ideologias; perpetuam tradições e seu estudo pode vir a contribuir para o entendimento das
práticas discursivas das quais emerge esse gênero que, em diferentes culturas, séculos,
de geração em geração, domina, fascina e seduz.
188
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194
ANEXO 1:
Causo nº 2 (A aposta)
tinha um rapaz... que casô na casa do home... e o home era rico, sabe?... intão o home
vendeu a fazenda e mudô de lá... e dexô eles lá... num comoduzinho pequeno, sabe?... num
deu eis recurso nenhum... o único recurso que o sogro deu ele é assim... falô pra dona
dele... essa vaca pra tirá leite pra... pru minino não passá fome... ele tinha uma
vaca que todo dia tirava leite pra eles alimentá... ele foi trabaiá prum home que era
cumpadre dele... vizinho na frente... ele falô... ô muié... e eu vô pegá fazê negócio que é mió
pra gente... mas de quê home?... disse cumpadre alí ôto dia ( ) vô saí pra pegá essa vaca...
a muié falô bom... intão vai... ele incontrô o cumpadre... falô... ih::: sogro vai... quando
subé... mandá até prendê ocê... ah não... ele nun vai falá nada cumpradre... e é amanhã que
eu vô... e foi né?... e... levô a vaca... tocano a vaca... quando ele chegô num lugá... o sol
tava muito quente... a vaca tampô a intrá pu mato né?... ele foi e incontrô um home que
vinha com uma... uma... um porco... falô assim... ô moço... vão trocá essa vaca nesse
porco?... a vaca num qué andá sô... intrô pu mato... vão... negócio que faz?... uma coisa
pur’otra... troco uma coisa pur’otra... ele foi imbora pra frente... chegô na frente... tinha
um barro lá... o porco tampô a rolá no barro e num quis saí mais...falô... tá danado... aí evem
um home cuma cabra e ele falô... ô moço... vão trocá esse porco na cabra?... vão... trocô
uma coisa pu’otra... aí... chegô mais na frente... tinha um rio... passá den’do do rio a
cabra num passava de jeito ninhum... e::: e vem um home cum pato... ô moço... vão trocá
essa cabra pur’esse pato?... vão... negócio sinhô fais?... ah:: troco uma coisa pur’otra... jugô
o pato atravessô o rio... e aí... chegô na frente... pá... pegô sujera... que é um bicho porco...
carregando ele na mão... falô... êh::: tá danado esse pato... ((riso))... vô chegá em casa todo
sujo... evinha um home cum galo... intão ele trocô com o home do galo... trocô uma coisa
pur’otra... foi imbora... quando chegô de tarde... quando chegô de tarde... ele falô... êh:::
danado... agora pedí uma posada nessa casa... chegô pediu uma posada... a dona
falô... óh... o sinhô pode posá... mas que num tem nada pra fazê cumida pru sinhô ( )
tem um galo aqui... a senhora mata o galo e armuçamo... amanhã imbora... e o home
tinha apostado que se a muié dele chingasse ele... ele ia sê iscravo dele o resto da vida... se
num chingasse... o home ia perdê um ôto sitio que tava alí perto... né?... dava ele ôto sitio...
dava pra ele... se a muié chingasse... quando foi no ôto dia cedo... quando o fazendero
olhô... o home envinha... ele foi lá pá casa dele... chegô lá... ôh cumpadre... cumé... fez bom
negócio?... ah::: assim mesmo fiz ué... ((riso))... vem a muié alegre... ah::: e marido...
fez bom negócio?... é... fiz bom negócio... que negócio ce féis?... ah muié... chegô o sol
tava muito quente... a vaca tampô a intrá no mato... e o home tava assistino ele... eu troquei
a vaca num porco gordo... pesa umas cinco arroba mais ou menos... ah:: que bom marido...
ao meno tem gordura pra fazê almoço pro cê... péra lá... chegô mais na frente... o porco
195
tampô a rolá no barro... num queria andá... eu troquei numa cabra... que bom marido...
omeno leite prus minino... ah:: muié... quando chegô diante... tinha um rio... tava
passano raiva... intão num deu passá... a cabra num quis passá de jeito nenhum... vinha
um home cum pato... eu troquei com ele... que bom marido... temo uma pata aí... muito
tempo que ela num choca... ((riso))... ô muié... espera lá... ((riso))... na frente incontrei um
home cum galo... intão troquei uma coisa pur’otra... o pato tava me sujano muito... que bom
marido... ao meno canta pro levantá cedo... ah:: muié... ispera muié... intão chegô na
frente...no [deceu]... pedi pra posá numa casa... a dona me deu posada... num tinha
nada pra fazê janta pra mim... ela foi e feiz janta cum galo pra mim... jantei e almocei hoje...
que bom marido que ocê num chegô cum fome... êh::: cumpadre... ((esticando o braço para
apertar a mão))... ganhei um sítio do sinhô... ganhô o sitio do home... ( l) que a muié não
falô nada... tudo que ele falô a muié conformô... ficô milionário... tem pôcos dia que eu
passei na casa dele... tava tranqüilo lá... folgado... com os bicho... muita vaca... leite... tudo
( )... todo negócio que ele feiz ficô bão... num é atôa que ele ganhô o sitio do home.
Sr. Jovelino – São Bartolomeu/MG
23/jul/2004
196
ANEXO 2:
Causo nº 5 (O sapatinho de ouro)
O meu pai era um homem muito piedoso ele sempre teve muito medo... assim... que a gente
desviAsse do caminho de... do... do certo... e que a gente... no caminho da gente agente
encontrasse mesmo a tentação do demônio... ele tinha muito medo que a gente... a gente...
sabe?... deparasse... deparasse né? Com o demônio... em vários aspectos... então ele tinha
assim... um modo muito sério de previní a gente, né?... uma coisa que a mamãe contava
que eu achava muito interessante... que a minha mãe era assim... muito ciumenta, né?... ela
tinha verdadeira PAIxão pelo meu pai... tinha loucura por ele, né?... tinha loucura por ele... e
achava assim... ela tava sempre achando que ele tava traindo ela... pelo fato dela gostá
muito ela sempre arranjava uma pessoa pra ele gostá... ele tava sempre (...) era Maria
Maça... não sei mais o quê... até (...) tinha uma mulher que ela tinha implicância... tinha
impliCÂNcia mas impliCÂNcia... sabe?... (...) eu acho que ela também assim... ela também
contava uns caso pra ele ouví... pra meu pai ouví (...) assim pra pô nele uma certa
apreensão... ou sei lá... ela contava um caso interessanTÍssimo... ela fala que::: que tinha...
tudo era tentação... eles mostrava que tudo tem uma tentação no meio... que ninguém faz
as coisa sem uma tentão movê a gente... ela falô... ela falava que tinha um:: um casal que
vivia MUIto bem... que a mulher era muito boNIta... de seios FARtos... a mulher ( ) seios
FARtos... aqueles seios FARtos... muito bonita... GORda... muito roSAda... muito boNIta... e
eu acho que era a imagem que ela queria pra ela, né?... com certeza... era a imagem que
ela queria pra ela, né?... muito boNIta... e que MUIto boa esPOsa... e que MUIto cariNHOsa
com o marido, né?... uma mulher excelente... e que o marido também era MUIto bom
maRIdo... faltava adivinhá o que ela queria... era um ótimo marido também... MUIto bom
maRIdo... e sabe?... uma maravilha... então... em frente essa casa morava... um... um...
um... morava uma pessoa... um senhor... e que ficava olhando aquele casal tinha MUIta
inveja... mas tinha MUIta inveja mesmo... ficava meu Deus, mas isso... isso é diMAIS... esse
home é apaixoNAdo por essa mulher... essa mulher é apaixoNAda por esse homem... como
vive bem... isso aí é um abSURdo... é impossível de vivê bem assim... eu não aceito isso... o
home tinha uma inVEja TREmenda daquele casal, né?... e num dia ele falô assim... ah:: eu
nun sei não eu... eu... eu... se eu conhecesse o demônio... eu:: eu:: eu pagava ele... pra
ele... pra ele desmanchá esse casamento... paGAva ele pra dismanchá esse casamento... aí
passou uns dias... passou um tempo... um senhor chegô e falô com ele assim olha... eu
o demônio... eu o demônio... eu:: eu... ocê falô que me pagava... eu vim aqui pra o
quê... o quê que vai me dá?... eu te muito dinheiro... qué me sua alma?... te
dô... minha alma se você fizé aquele casal alí brigá... o demônio falô assim uai... então é
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comigo mesmo... eu fazê aquele casal briGÁ... me sua alma?... te minha alma
se VOcê fizê esse casal brigá... o demônio começô... me sete dias... não... o
home falô assim me sete dias... não... me sete horas... que eu fazê...
passô sete horas o demônio não conseguiu... passô sete... mais sete horas num
conseguiu... passô uma semana o demônio não conseguiu... NAda que o deMÔnio fez deu
resultado... o demônio vol... tava cabisBAixo mesmo... chateAdo mesmo... porque NÃo
conseguiu, né?... fazê nada com o casal... ia MUIto cabisbaxo embora quando (...) o
demônio prende sua alma, né? (...) não queria perder mais uma... aí ele já ia muito
cabisbaxo encontrô com uma velha... ela falô assim uai... triste hoje... o demônio falô
com ela assim... mas tem que tá... mas por quê tão triste?... mas eu ia ganhá uma
alma... eu tinha sete hora... eu pedi sete horas pra ganhá uma alma... depois passei pra sete
dias e eu não conseguí... que alma que ia ganhá?... aquele senhor alí... que mora em
frente aquele casal... aquele casamento... porque ele achava um absurdo duas pessoas vivê
bem assim... ele tem MUIta inveja... e queria que eu desmanchasse aquele casamento a
TOdo... a todo custo... e eu não consegui... TUdo que eu fiz foi impossível... ela falô assim::
mas eu num acredito... éh... mas eu não conseguí... ah::: mas ocê muito mole... quê que
me dá?... e o demônio falô assim... mas o qque ocê qué?... (...) ela falô assim.. eu tô
DOIda com um sapatinho de ouro... tenho louCUra pra um sapatinho de ôro... eu
QUEro um sapatinho de ouro... se ocê me um SApatinho de ôro eu desmancho esse
casamento... ele disse assim... em sete dias... não... num precisa de sete hora não... o
QUÊ?... te dô... te o sapatinho de ouro... vai desmanchá esse casamento?... vô...
desmanchá... e dalí ela já voltô pra traz... bateu na porta da dona... chamou a dona... a dona
veio... toda feliz.. coisa... ela começô... chorando... chorando... chorando... chorando,
né?... o qque tá chorano?... num sei o quê... perguntando pra ela... o quê que foi?...
minha senhora... que a senhora chorando desse jeito?... fala vovó o quê que tem... eu
com docê fia... com de mim vovó?... mas eu tô tão feliz... ah::: pois é... enquanto
assim seu marido tá lá... num sei o quê... foi falano com a mulhé... foi tecendo
com a mulhé... foi teceno... teceno... e tudo dava CERto no que ela falava... ia dano...
ajeitano... que o marido parecia que era verdade... aí ela falô DExa está quando ele
cheGA... DExa esTÁ... eu VÔ aprontá uma boa com ele... aí a véia saiu dalí foi lá no serviço
do marido... chegô começô a chorá.. o home veio... mexia com madeira... qque foi
vovó?... é lenha?... disse não... num é lenha não?... não... quê que é? (...) vovó para de
chorá... quê que foi?... ah::: morrendo de docê... qque foi?.. de mim?... por quê
vovó?.. é que enquanto pelejano desse jeito sua muié com home... já ent
home na sua casa hoje... entrô o quê?... e já num sei o quê... e FOI... tecendo com o
homem também... o home falô assim DExa está... mas teceu tanto... coisa que o demônio
não conseguiu... o home saiu... mas saiu MESmo... infeZAdo de lá... infeZAdo do serviço...
198
chegô em CAsa a mulher tava com aquela água QUENte que ela ia sapeCA o marido
mesmo, né?... eu vô sapeCÁ ele com água quente que ele vai vê?... a hora que ela foi... que
ele foi chegano ele deu nela aQUEle abraço... êh::: mulhé... ôh::: mulhé que eu gosto...
abraçô e bejô... e suspendeu ela e infela dentro da água... a bunda dela dentro da água
quente... cuzinhô ela na água ferveno e depois suicidô... o demônio pegô e... a mulhé
saiu... ficô toda... foi procurá o demônio e falô viu?... acabô tudo... tudo pronto... eu
matei os dois... os dois tão mortos... o demônio pegô um pau e falô com ela assim... seu
sapatinho aqui ó... mas num chega perto de mim não... TOma... TOma... seu sapatinho
aqui... num quero que ocê chega perto de mim de JEIto nenhum... é piÓ de que o
demônio... cê é pior... cê é pior de que eu SEte dias...
Dona Florentina – Itabirito/MG
17/out/2004
199
ANEXO 3: CRITÉRIOS PROJETO NURC (Adaptado)
... Pausa Qualquer pausa
( ) Dúvidas e suposições a) indica com a expressão (incompreensível) ou
b) (o que supõe ter ouvido)
MAIUS
Ênfase ou acento forte MAIÚSCULA
:: Alongamento de vogal Quantos necessários a depender da duração
(inclusive no meio da palavra: e:::u co::mo)
(( )) Comentários do analista ((ri)) ((baixa o tom de voz)) ((fala nervoso))
- - - - Silabação Usam-se hífens (s-i-l-a-b-a-ç-ã-o)
e e e Repetição e e e ele; ca ca cada um
Pausa preenchida,
hesitação ou sinais de
atençao
eh, ah, oh, ih::, mhm, ahã,
...
[...]
Transcrição parcial ou de
eliminação
Corte no início ou fim
Corte no meio
? Interrogação né?
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