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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
VESTÍGIOS DO ESTRANHO NO
FAMILIAR: AS CRÔNICAS DE
LOBO ANTUNES
Suzana Márcia Dumont Braga
Belo Horizonte
2007
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Suzana Márcia Dumont Braga
VESTÍGIOS DO ESTRANHO NO
FAMILIAR:AS CRÔNICAS DE
LOBO ANTUNES
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção
do título de Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa.
Orientadora: Profa. Dra. Lélia Maria Parreira Duarte
Belo Horizonte
2007
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FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da
Pontifícia universidade católica de minas Gerais.
B 813 v Braga, Suzana Márcia Dumont
Vestígios do estranho no familiar: as crônicas de Lobo Antunes. Belo Horizonte, 2007
206f.
Orientadora: Profa. Dra. Lélia Maria Parreira Duarte
Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em
Letras.
Bibliografia
1. Crônicas portuguesas. 2. Antunes, António Lobo, 1942-. 3. Psicanálise. 4. Memória. 5. Desamparo
(Psicologia). 6. Escritura. I. Duarte, Lélia Maria Parreira Duarte. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais. Programa de Pós-Graduaçao em Letras. III. Título.
CDU:869.0-94
Suzana Márcia Dumont Braga
Vestígios do estranho no familiar: as crônicas de Lobo Antunes,
Banca examinadora da tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais:
___________________________________________________
Dra. Ana Maria Portugal Maia Saliba – Escola Letra Freudiana- Rio de Janeiro
_____________________________________________
Dra. Cleonice Paes Barreto Mourão - UFMG
_____________________________________________
Dra. Ivete Lara Camargos Walty - PUC Minas
_____________________________________________
Dra. Suely Maria de Paula Silva Lobo - PUC Minas
_____________________________________________
Dra. Lélia Maria Parreira Duarte (Orientadora) - PUC Minas
_____________________________________________
Prof. Dr. Hugo Mari
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC Minas
À força de Terezinha, minha mãe,
e à leveza de José, meu pai.
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar quero agradecer à Lélia Maria Parreira Duarte que me acompanhou
durante este percurso e soube ser, ao mesmo tempo, rigorosa e terna, como convém a quem
aposta no crescimento do outro.
Também sou grata a Ana Maria Portugal, Cleonice Mourão e Ivete Walty pelas
indicações de caminhos teóricos quando me via perdida;
aos outros professores do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC Minas pelo
convívio acadêmico e, particularmente, a Maria Nazareth Fonseca que me acolheu em minha
chegada e a Suely Lobo pelas contribuições no exame de qualificação;
ao grupo “As Máscaras de Perséfone: figurações da morte na literatura portuguesa e
brasileira contemporâneas”, cujas contribuições teóricas e discussões foram preciosas,
particularmente ao Eugênio, Zahira e Glaura;
à Carol, pela revisão do texto;
à Rosária, por tantos favores prestados ao longo desse tempo de construção.
Outras pessoas foram imprescindíveis, entre elas:
Fernanda Martins, minha amiga d’além mar, encontrada no percurso desta tese;
Celeste, ao interessar-se por este escrito;
Malco, Isadora e Anna Carolina por terem crescido e, hoje, cada um a seu modo,
ajudar-me a crescer;
João e Matheus, cujos sorrisos têm gosto de amanhecer;
Isabel, Jacira, Nívea, Sandra, Bruno, Maria Síria, Pedro e Cláudio pela amizade de
ontem, hoje e sempre;
Márcia Rosa, que acolhe e dá contorno a minha palavraágua;
meus colegas do IEPSI, com quem partilho minhas produções;
Carlos pela torcida, compreensão e pelo carinho tão intenso.
Agradeço, por fim, ao Programa de Capacitação Docente da PUC Minas, cujo apoio
foi fundamental para que esta tese fosse escrita.
Assim
Ao poeta faz bem
Desexplicar –
Tanto quanto escurecer acende os
vagalumes.
Manoel de Barros
RESUMO
Esta tese apresenta como corpus de leitura os três volumes de crônicas do escritor português
António Lobo Antunes e tem como objetivo investigar os vestígios do estranho evidenciado
no que aparece como familiar nesses pequenos textos. Para isso inicia com uma reflexão sobre
o gênero crônica e faz um esclarecimento sobre o que seria o estranho – conceito freudiano
para se referir a um tipo particular de produção literária que excede os domínios do princípio
do prazer, espaço anteriormente atribuído por Freud à literatura. O estranho estaria associado
ao Registro do Real que, de acordo com Lacan, diz respeito ao que não cabe no campo do
simbólico, funcionando como causa da escrita e ao mesmo tempo se fazendo presente nela
pela via da enunciação. O conceito de estranho também aproxima-se das considerações de
Blanchot e Barthes sobre o que é literatura.
Pelo fato de ter nascido no jornal e ainda permanecer nele, a crônica costuma ser vista como
uma produção literária de menor importância, destinada apenas ao entretenimento. Entretanto,
o cronista pode utilizar-se de temas tidos como triviais e familiares para, a partir deles,
mostrar o estranho nas fissuras do real. Dessa maneira, a crônica pode revelar verdades mais
contundentes do que as que circulam normalmente nos jornais, tematizando questões
fundamentais do ser humano. Essa conclusão é válida, tanto para os cronistas de um modo
geral, quanto, particularmente para Lobo Antunes. Apesar de desvalorizadas pelo autor, suas
crônicas têm uma dimensão importante por si mesmas e no contexto de sua obra.
A forma com que o escritor lida com os temas do dia-a-dia se faz pela via dos vazios,
fragmentando as noções do tempo cronológico e mesclando memória e fantasia. Os relatos da
infância, apesar de marcados pela vida pessoal do autor, ultrapassam a noção de autobiografia
e mostram um passado perdido que não é recuperado pela memória nem dá coerência ao
presente. O passado é buscado porque se sabe inexoravelmente perdido. Também as relações
do narrador consigo mesmo e com o Outro são marcadas pela vivência de perda e ausência de
sentido, destituindo qualquer esperança de que o amor, seja em que nível for, constitua uma
garantia para o desamparo inerente à condição humana. Por sua vez, a morte é contraponto da
vida, sendo impossível conceber a existência sem ela. O estranho vai se fazer presente
também na própria escrita, tida como experiência de perda, ela parte de um não-saber e chega
a um não-lugar. Lobo Antunes, ao fazer uso do humor e da ironia, aponta uma insubordinação
em relação às normas do mundo contemporâneo, assim como em relação à própria linguagem,
que, ao ser machucada pela via do estranhamento, apresenta outras possibilidades. Essas
viagens ao que falta sentido, pela via da escrita, têm o poder de evidenciar o objeto poético,
em sua consistência absolutamente singular, revelando uma verdade que só a arte é capaz.
Palavras chave: literatura, psicanálise, estranho, real, memória, desamparo, escritura.
ABSTRACT
The reading corpus of this thesis comprises the three volumes of chronicles by Portuguese
writer António Lobo Antunes, published in 1998, 2002 and 2006, respectively. It aims at
investigating how the uncanny can arise between the lines of what appears to be familiar in
these short texts. It begins with a reflection on chronicles as a literary genre, and clarifies the
meaning of 'uncanny': a term coined by Freud to refer to a particular type of writing that goes
beyond the domains of the pleasure principle, later associated with the Registry of the Real,
which, according to Lacan, refers to that which does not fit in the field of representation. The
Uncanny and the Real are also related to Blanchot’s, Barthes’s and Deleuze’s ideas about
literature.
Lobo Antunes uses day-to-day issues to show the uncanny in the cracks of the real, dealing
with fundamental human questions through textual strategies such as the fragmentation of
chronological time, which mixes memory and fantasy and goes beyond the notion of
autobiography to show a lost past that is neither recovered by memory nor brings coherence to
the present. The narrator's relations with himself and with the Other are marked by the
abandonment inherent to the human condition, in which love is linked to loneliness and death
is the counterpoint of life. The writing itself, focused inwardly, seeks the (lack of) reasons for
writing.
The presence of fragmentation in the text, as well as of humor and irony, demonstrate an
insubordination to the rules of the contemporary world and to those of language itself,
showing that no pre-established truth is capable of explaining the precariousness of living.
One concludes that, by revealing this emptiness, writing becomes, in an inside-out manner, a
way to deal with abandonment – negativity comes to be viewed as a possibility of life, which
reaffirms the contact between psychoanalysis and literature.
Key words: literature, chronicle, psychoanalysis, the uncanny, the real, memory,
abandonment, writing.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................10
CAPITULO 1 – A CRÔNICA E O ESTRANHO REAL ........................................................16
1.1 – O lugar das crônicas na obra de Lobo Antunes...........................................................16
1.2 – Estratégias textuais ......................................................................................................25
1.2.1 – O tempo fora do tempo.........................................................................................26
1.2.2 – O eu fora de si.......................................................................................................28
1.2.3 – A escritura e o fora da linguagem.........................................................................30
1.3 – O realismo e a escritura do real ...................................................................................42
1.4 – Freud, o estranho e a literatura ...................................................................................45
1.5 – A literatura, o real e o imaginário................................................................................52
1.6 – Crônicas de Lobo Antunes: escrita de fragmentos......................................................61
CAPÍTULO 2 – ESCRITA DE (DES) MEMÓRIAS?.............................................................64
2.1 - Considerações sobre auto-bio-grafia............................................................................69
2.2 - Memórias, des-memórias e escritura............................................................................75
2.3 A repetição do mesmo e do novo .............................................................................94
CAPÍTULO 3 - O DESAMPARO .......................................................................................104
3.1 – “que estranho eu ser eu”............................................................................................106
3.2 – a loucura ....................................................................................................................111
3.3– “Que estupidez o amor”..............................................................................................115
3.5 – “Haverá vida antes da morte?”..................................................................................138
3.6 – Tenho medo de gente.................................................................................................145
3.7 – Voltando ao começo..................................................................................................151
CAPITULO 4 – A “DES-ESCRITA” ....................................................................................154
4.1 – O riso como pharmacon: remédio e veneno..............................................................167
4.2 – A verdade/mentira da ironia ......................................................................................172
4.3 – A circulação dos modos na escrita ............................................................................179
CONCLUSÃO........................................................................................................................189
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................194
APÊNDICE 1 .........................................................................................................................204
10
INTRODUÇÃO
O estranho entranhado no familiar das crônicas de Lobo Antunes constitui o tema
desta tese. Ela se constrói a partir de alguns pilares do campo da crítica literária e com o
auxílio da psicanálise, tendo como ponto de partida algumas indagações.
O gênero crônica é tido como um tipo de escrita que, usualmente, trata com leveza
dos fatos do dia-a-dia, ou seja, de temas que já são familiares aos leitores dos jornais, espaço
que constituiu seu berço e onde ainda permanece. Essa marca costuma levar a discussões
quanto à classificação desses textos como sendo literários ou não.
Uma das questões estaria justamente ligada ao “familiar”, uma vez que, como se sabe,
o termo comporta, de imediato, dois sentidos: um quer dizer conhecido ou, ainda, trivial;
outro diz respeito ao que é próprio da família, pessoas consangüíneas que partilham um
espaço afetivo comum. Se a crônica trata de fatos triviais, poderia ter qualidade literária?
Quanto ao segundo sentido do termo familiar, Lobo Antunes, provavelmente, é um dos
poucos escritores de peso que, em sua prosa, refere-se com tanta freqüência, de maneira tão
acintosa e repetida, a fatos de sua vida pessoal e a pessoas de sua família. Todos os estudiosos
de sua obra enfatizam que nela e, particularmente, nas crônicas, há uma constante presença de
suas vivências, o que sugere uma intrigante questão: de que maneira a vida pessoal pode se
misturar com a escrita e, ainda assim, ter força suficiente para ser transformada em literatura?
O projeto desta tese se constrói levando em conta que as crônicas de Lobo Antunes
são da ordem da extimidade – termo criado por Lacan (1967) para se referir ao que é, ao
mesmo tempo, íntimo e estranho, pois diz respeito ao que há de mais singular e, ao mesmo
tempo, pertence a todos, ou seja, o particular que toca o universal. Há um operador de leitura
que parece pertinente para se pensar a presença da extimidade nas crônicas de Lobo Antunes:
11
trata-se da banda de Moebius, uma fita atada de maneira torcida de modo que o lado direito
leva inevitavelmente ao avesso. A imagem da banda de Moebius, utilizada por Lacan (1967)
mostra a importância de se ver o mundo como coexistência de opostos que não se excluem,
nem fazem uma síntese, mas remetem necessariamente um ao outro. Isso vale para se pensar a
relação estranho e familiar, fato e ficção, particular e universal, morte e vida, saúde e loucura,
dentro e fora, eu e Outro .
Para sustentar esta tese, foram tomados como eixo os conceitos de estranho e de
Real, numa interlocução entre os campos da literatura e o da psicanálise, assim como o
conceito de fora, cunhado por Blanchot e adotado por diferentes autores, entre eles, Gilles
Deleuze. Esses autores, embora procedentes de campos diversos, estão voltados para um tipo
de escrita marcada por vazios, em que o estranho possa se escrever.
Como as crônicas, ao tratarem o familiar, poderiam dar lugar ao estranho? Tecidas
num misto de leveza e densidade, tanto no que diz respeito à natureza dos ditos quanto à do
dizer, encontramos nelas uma desestabilização do que é preconizado pela doxa, numa opção
pelo paradoxo. Elas apontam as contradições da existência humana ao apresentar um narrador
estranhado diante de si e do outro, na medida em que o eu se apresenta fraturado, assim como
fragmentadas e sem certezas se encontram as relações com o meio familiar e social.
A execução deste projeto será feita em quatro capítulos. No primeiro, questiona-se o
lugar supostamente menor que comumente a crônica costuma ter, ao ser comparada a outros
gêneros literários considerados de maior peso, tanto no que diz respeito à crônica, de modo
geral, quanto no contexto da obra de Lobo Antunes. Benjamin (1987b) enfatiza a importância
do cronista na função de buscar, pela via dos fragmentos, os vestígios da história que foram
desconsiderados, precisando, para isso, estar atento também aos “pequenos” acontecimentos.
Esses fatos miúdos, tidos como restos, podem ser a morada do estranho. Este é
transmitido a partir de algumas estratégias textuais que serão apresentadas: a forma de
12
tratamento do tempo e da memória; a questão do desamparo presente em diferentes níveis,
desde as relações do narrador consigo mesmo, quanto nas relações familiares e de casal; nas
relações sociais e, por último, na escrita sobre a própria escrita.
A segunda parte do primeiro capítulo será essencialmente teórica e constituir-se-á
como um desvio necessário para retomar o caminho a seguir, pois pretende-se elucidar os
conceitos psicanalíticos que serão utilizados na análise das crônicas a ser feita nos capítulos
seguintes. Como o objeto “texto literário” tem como característica a impossibilidade de ser
apreendido em sua totalidade, a crítica literária costuma lançar mão de saberes de áreas
diversas, com o objetivo de circunscrevê-lo. O que se escreve? Para que se escreve? Por que
se escreve? A psicanálise construiu algumas possibilidades de responder a essas questões.
Dois conceitos psicanalíticos, um de Freud e outro de Lacan, serão centrais na tese e
precisam ser esclarecidos, uma vez que a psicanálise entra como um saber estrangeiro que se
insere no campo da literatura com o objetivo de contribuir para o enriquecimento do mesmo.
Inicialmente será preciso especificar qual conceito de Real é objeto desta reflexão,
distinguindo o Registro do Real, a partir de Lacan, da noção literária de realismo. Busca-se
também pensar no registro Imaginário e sua relação com o Real no que diz respeito à
produção literária. O Real, considerado como um registro, tem um sentido diametralmente
diferente do que comumente é entendido como realidade e, a partir dele, pode-se compreender
melhor o que seria o “estranho”.
O esclarecimento desse conceito terá como referência básica o ensaio em que Freud
(1919)
1
reflete sobre o tema. Na literatura, o estranho ampliaria o conceito de estética para
além dos domínios do princípio do prazer - espaço que, inicialmente, Freud havia dado à
literatura - atribuindo, a partir de então, um estatuto diferente ao imaginário. O estranho pode
ser visto como uma forma de circunscrever o real, termo utilizado por Lacan para referir o que
1
Com o objetivo de facilitar para o leitor, no que diz respeito à obra de Freud ,optou-se por colocar no corpo do
texto o ano da primeira publicação, em alemão, embora o ano da publicação consultada, em português, seja
1976.
13
está fora da ordem simbólica, do registro da palavra, mas que pode ser mostrado pela
escritura. Importa acrescentar que o conceito freudiano de estranho foi tomado por Deleuze
para falar de um tipo especial de literatura: aquela marcada pela desterritorialização, que
evidencia os vazios, a incompletude.
Pretende-se demonstrar que, também no campo da crítica literária, alguns autores têm-
se ocupado em distinguir a noção de real da de realismo, debruçando-se sobre textos que
articulam de maneira particular a relação entre o imaginário e o real. Para isso, criaram novos
conceitos, entre eles pode-se citar: “fora-linguagem” de Blanchot, “efeito de real” de Barthes,
ou o “fictício” em contraposição ao “imaginário”, de Iser, ou um “novo real” de Bosi. O que
há em comum entre esses autores é a crença de que a literatura pode ultrapassar os limites da
representação, de modo que o real possa ser transmitido de maneira mais viva, mais pulsante.
No capítulo dois será feita uma reflexão sobre tempo e memória, com o objetivo de
mostrar de que maneira vida e escrita se entrelaçam nas crônicas, não para simplesmente dizer
de uma realidade de natureza biográfica, vivida, mas para passar por ela e apontar uma
ultrapassagem da noção de realidade.
Para alcançar esse objetivo faz-se necessário pensar no tempo, não associado à
linearidade de chrónos, mas numa dimensão em que passado, presente e futuro se misturam e
se entrelaçam. Na repetição do mesmo, há lugar para o novo. Memória e imaginação são
indissociáveis e, portanto, a escrita é sempre criação, porta em si o novo. Da mesma maneira,
no que diz respeito ao familiar, o recordado pode dar lugar, pela via do fragmento, ao
estranho, a um jamais capturado, real que, apesar de sempre presente, nos escapa.
A temática do capitulo três será o desamparo que, de acordo com Freud, é condição
especialmente fértil para o surgimento do estranho. O desamparo se faz presente nas crônicas
em diferentes contextos:
14
- nas relações do narrador consigo mesmo, mostrando um eu fraturado que não sabe
de si e/ou da loucura encontrada no hospital psiquiátrico, indicando os tênues limites entre a
suposta sanidade e a loucura;
- nas relações amorosas que nunca são complementares, destituindo qualquer
pretensão imaginária de que o amor possa ser um remédio para a existência. Os narradores
masculinos e femininos são marcados pela solidão e apresentam posições geralmente
antagônicas e igualmente falidas para lidar com os desencontros inerentes às relações a dois;
- nas relações com pessoas representantes da linhagem paterna de modo geral e, em
especial, com o pai e, mais especificamente ainda, com o silêncio do pai;
- o desamparo aparece também na dificuldade das personagens das crônicas em lidar
com a morte, tanto no que diz respeito à morte biológica, quanto às vivências de ruptura
presentes na vida. Pode-se perceber três maneiras diferentes de presença da morte nas
crônicas: quando se trata da morte presente na vida do narrador, quando diz respeito à morte
de pessoas queridas e quando a morte se apresenta de maneira mais impessoal nas vivências
relativas às experiências na guerra e na clínica médica;
- por fim, na banalidade encontrada nas relações sociais, no nonsense dos modelos
estereotipados de trocas sociais, nos processos de comunicação que são marcados pela
incomunicabilidade.
O capítulo quatro constará de uma reflexão sobre a escrita, uma vez que várias
crônicas de Lobo Antunes tratam dessa temática. Aqui, os conceitos de Barthes e Blanchot
sobre literatura como experiência de perda serão de grande valia, pois condizem com as
crônicas de Lobo Antunes, tanto no nível do enunciado quanto da enunciação. O conceito de
Fora, criado por Blanchot, permite articular algumas imagens poéticas criadas pelo
crítico/escritor: outra noite, outrem, ele; todas elas para se referir a uma vivência de
apagamento do eu, tão necessária à criação literária.
15
Também será considerada a possibilidade da ironia e do humor serem utilizados como
formas de apontar o estranho no campo do literário. Parte-se do pressuposto de que essa
relação tem sutilezas, uma vez que o riso, à primeira vista, exerce uma função de descarga
psíquica e, por isso, contrária a do estranhamento, que é de transmitir tensão. Será importante
mostrar que o humor e a ironia têm estatuto diferente do cômico, este sim, voltado apenas
para a descarga de tensão. O humor e a ironia são possibilidades de subversão da linguagem,
característica fundamental do texto literário. O humor tem, portanto, o poder de trazer leveza,
sem, contudo, desfazer a dimensão trágica. Através dele, de acordo com Calvino, pode-se dar
um salto e tocar o poético. Para o estudo dessa questão serão estudadas contribuições de
Freud (1927b) sobre o humor, assim como de teóricos da crítica literária sobre tipos e função
da ironia.
Ainda no capítulo quatro, buscar-se-á, a partir dos modos lógicos de Aristóteles, as
diferentes posições de Lobo Antunes no que diz respeito à escrita: modo possível -
impossível; modo contingente - necessário. Fazendo-se um contraponto das falas do escritor,
em entrevistas, com as crônicas que se referem à escrita, pode-se ver que, partindo do modo
possível, o escritor português faz um giro pelos quatro modos, e mostra que a escrita constitui
sua razão de viver.
Na conclusão será tomado como ponto central do trabalho a questão do vazio, que
funciona como um sorvedouro que traga todos os temas tratados nas crônicas: o tempo das
desmemórias, o desamparo, a escrita fora de si. Seria o vazio o que afinal se transmite no
processo de recepção da escrita, podendo tocar o leitor e levá-lo a produzir?
Nesse sentido, procurar-se-á demonstrar que é também pela via dos vazios que se faz o
encontro da literatura - em que o estranho se faz presente - e a psicanálise. Ambas têm como
questão central um modo de operar com a perda de certezas que não seja pela via do
tamponamento, mas incluindo-a no texto escrito que recria o texto da vida.
16
CAPITULO 1 – A CRÔNICA E O ESTRANHO REAL
O mundo é um mundo entre os mundos até que encontra o escritor, o homem
destinado a seus vazios. (Ana Portugal)
1.1 – O lugar das crônicas na obra de Lobo Antunes
Por ser comumente publicada no espaço volátil do jornal, corre-se o risco de se ver a
crônica como efêmera, destinada apenas ao entretenimento do leitor. No caso específico de
Lobo Antunes, essa observação pode ser encontrada em contextos diversos, entre eles,
ressaltamos declarações feitas pelo autor em entrevistas ou através do narrador das próprias
crônicas. Vejamos:
Em entrevista, afirmou a Blanco (2002) não crer na importância das crônicas
publicadas, seriam elas “coisinhas sem nenhuma pretensão”(BLANCO, 2002, p.113),
servindo apenas para divertir o leitor e, por isso, não as considerava literatura. Em outra
ocasião, o autor disse que vive apenas em função da escrita de romances, limitando-se as
crônicas a ajudar no seu sustento financeiro. A destituição do valor da crônica se faz presente,
inclusive, em algumas delas. Em “Ultima crônica”, o narrador afirma que:
necessitava de todo o tempo para os meus romances, que escrevo devagar e
com dificuldade, e tornava-se difícil abandoná-los de quinze em quinze dias para
redigir uma página de revista imaginando que os eventuais leitores de domingo
gostariam de um trecho leve, simples, agradável de escrever – o contrário do que
pretendo nos meus livros. (ANTUNES, 1998, p.341)
Entretanto, as crônicas continuaram a ser escritas e foram posteriormente agrupadas
num segundo e depois num terceiro livro.
17
Estudos sobre as crônicas mostram que, ao serem organizadas em livro, elas são
avaliadas como tendo méritos literários importantes, entre eles o de inaugurarem uma outra
forma de pensar sobre o gênero (REIS, 2004). O que haveria de diferente nessas crônicas para
que os críticos literários vissem nelas algo de inaugural? Para responder a essa pergunta, faz-
se necessário partir da delimitação da crônica.
Para Santana (2003):
A crónica é um gênero que a imprensa oitocentista criou e consagrou. A partir de
então a crónica evoluiu e adaptou-se aos tempos, mas constitui ainda hoje uma forma
de escrita característica do espaço público moderno: ligeira, criativa, vivendo do
brilho efêmero da atualidade, como as páginas do jornal onde nasceu; destinada a ser
volátil. (SANTANA, 2003, p.9)
A autora considera também que a crônica pode ter um conteúdo informativo ou ter
como assunto fatos noticiosos do momento, mesmo que tomados de maneira marginal.
Quando opta pela marginalidade, assumiria a função de entretenimento, ou seja, seria uma
conversa amena, que trataria daquilo que já nos é familiar, trazendo prazer pela via do
apaziguamento. Assim, o gênero ficaria reduzido a um espaço de menor importância, tanto
nas palavras de Santana, quanto nas do narrador da crônica de Lobo Antunes já citada.
Por fim, Santana questiona se o gênero crônica pode ser classificado como literário, já
que seu lugar usual é nos periódicos. Sua conclusão é de que a resposta não é simples, pois
depende de uma série de fatores que esbarram na eterna discussão do que é ou não literatura.
O que caracterizaria um texto como literário? Qual a diferença entre jornalismo e literatura?
Vários autores tratam dessa temática no livro Jornalismo e literatura: a sedução da
palavra, coletânea organizada por Castro e Galeno (2003). Diante da polêmica sobre as
convergências e divergências entre jornalismo e literatura, os autores apresentam como
convergência o trabalho com a linguagem, embora seu uso difira nos dois gêneros. Afinal o
texto-reportagem deve primar pela objetividade, pelo compromisso com a informação, o que
18
não acontece com o texto literário, que pretende pensar além dos fatos. A ambigüidade da
linguagem literária abre espaço para a (des)construção de sentidos, pois seria uma espécie de
peste que traz desconforto porque mina a crença na univocidade da linguagem (SATO, 2003).
A crônica ocuparia dentro do jornal um espaço intermediário, seria uma espécie de gênero
híbrido, podendo estar mais próxima do texto jornalístico ou do texto literário. Quando está
mais voltada para o literário, a inventividade do cronista permite “criar um novo real” (SATO,
2003).
Em outro texto da mesma coletânea, Meneses afirma que a crônica se apropriaria do
cotidiano para ir além dele, mostrando o que o senso comum não vê ou não quer ver. “O olhar
do cronista sobre o mundo é esse, de certo estranhamento, de tentar descobrir (e achar) as
fissuras do real, o que parece invisível para a maioria das pessoas” (2003, p.165).
O cronista se alimentaria dessas fissuras do real, o seu compromisso com a realidade é
de outra ordem, ele volta-se para detalhes que podem passar despercebidos a outras pessoas.
Ambos os autores afirmam acreditar no poder subversivo da crônica, em comparação com o
texto jornalístico. Essas contribuições mostram que a delimitação de gênero não é simples, há
sutilezas que não podem ser desconsideradas.
Essas reflexões podem ser cotejadas com as de Walter Benjamin (1985b) pois, no que
diz respeito à História, o filósofo dá um lugar diferenciado ao cronista, quando a finalidade é
contar a história dos vencidos
2
. Ele deve narrar os acontecimentos, sem distinguir os
importantes daqueles tidos como triviais, pois a história oficial é construída a partir de uma
concepção de continuidade que precisa ser explodida. O tempo é saturado de “agoras”, por
isso deve-se buscar uma outra história pela via dos vestígios: fissuras da história oficial, onde
2
Embora as considerações de Benjamin guardem originalmente um sentido de engajamento político em defesa
dos oprimidos, nesta tese o termo cronista será tomado pela via do que Benjamin (1985c) chama de narrador do
romance: aquele que leva o incomensurável a seus últimos limites e anuncia a profunda perplexidade de quem
o experimenta. Pode-se concluir que esse narrador não teria um saber a transmitir porque fala do que é crônico
na existência humana, independentemente da classe social. Assim, a condição de opressão pode ser estendida
para a de desamparo, conceito freudiano usado para referir à condição humana.
19
é preciso escavar ruínas e escombros em busca de episódios negligenciados, detalhes
acessórios, escovando a história num movimento a contrapelo (BENJAMIN, 1985b).
Essa concepção de Benjamin traz dois pontos importantes para a reflexão que ora se
inicia: salienta o trabalho do cronista, assim como enfatiza a importância dos vestígios.
Vestígios que devem ser procurados, pois não são evidentes à primeira vista. É a partir deles
que importantes descobertas podem ser feitas. O aparentemente corriqueiro costuma guardar
revelações importantes.
Retornando à questão da distinção entre o texto jornalístico e o literário, vale
apresentar o pensamento de Blanchot (1997) no que diz respeito ao texto literário. Para ele, a
diferença da linguagem literária para a do dia-a-dia é que as palavras no cotidiano exercem a
função de representar coisas que estão ausentes. É o que, em termos ideais, espera-se de um
texto jornalístico, que ele seja capaz de informar com precisão, com objetividade e fidelidade
aos fatos. Já o texto literário não desempenharia o mesmo papel, pois não manteria as mesmas
relações com os fatos. Nele a palavra sofre de uma falta primordial, na medida em que o
sentido não está garantido ou determinado. “A irrealidade da ficção deixa as palavras
afastadas das coisas e as coloca no limite de um mundo para sempre separado, por isso elas
não podem se contentar com seu puro valor de sinal” (BLANCHOT, 1997, p.79). O mundo da
ficção é um mundo de linguagem e por isso precisa ser visto e compreendido em sua própria
realidade verbal. Portanto, não é o gênero que vai decidir se um texto é ou não literário, mas
muito mais o trabalho com a linguagem, a possibilidade de deslizamento dos significantes, de
modo a produzir novos efeitos, outras significações.
Pensando nessas reflexões de Blanchot e a partir das demarcações sobre a crônica cabe
indagar que fatores destacados podem ser encontrados nas crônicas de Lobo Antunes. A
primeira característica apontada diz respeito à ligeireza. Sem dúvida, os textos são curtos e
leves. Entretanto, a temática não diz respeito a temas que são notícia de jornal, nem estão
20
comprometidos com a cronologia. A marginalidade observada nas crônicas apresenta
especificidades que devem ser destacadas e estudadas com mais vagar.
Quanto ao item entretenimento, ultrapassam as crônicas a classificação de conversa
amena. Em Lobo Antunes, a crônica “é o lugar de expressão mínima, mas tensamente
concentrada da narratividade” (REIS, 2004, p.20). Além disso, este cronista escreve sobre um
cotidiano marcado pela solidão e pelo desencontro presente nas relações humanas (RAMON,
2004). Não se trata de textos que apontem caminhos ou valorizem uma determinada posição
em contraposição a outra; é a própria condição de existir que é apontada como difícil para o
ser humano. Ao final da leitura dos três livros de crônicas, o leitor pode certamente afirmar:
está fora de causa que a vida possa ter um happy end. Essa constatação se faz presente tanto
nas crônicas mais intimistas, em que as relações afetivas familiares e amorosas são tratadas de
forma nostálgica ou desesperançada, assim como nas que mostram as relações sociais num
sentido mais amplo, tratando dos costumes da contemporaneidade, da guerra, da política,
enfim das vãs estratégias de luta pelo poder. As temáticas giram em torno da solidão, da
morte e do fascínio pelo abismo da vida e do tempo. Entretanto isso não quer dizer que elas
sejam amargas, pois, ao serem construídas com uma linguagem poética, torna-se impossível
assim classificá-las. Como afirma Paulino (2006), a boa literatura, especialmente na
modernidade, localiza-se entre a beleza e o horror.
Em estudo clássico sobre a crônica, Antonio Candido (1992) faz reflexões que podem
ser úteis neste momento. Inicialmente reproduz o pensamento vigente de que a crônica seria
um gênero menor, mas justamente com o objetivo de desmontar esse preconceito. Primeiro
afirma que tanto pela temática quanto pela composição aparentemente solta, a crônica se
ajusta à sensibilidade de todo dia. Em sua despretensão, pode “recuperar com a outra mão
uma certa profundidade de significado e um certo acabamento de forma que de repente podem
21
fazer dela uma inesperada, embora discreta, candidata à perfeição” (CANDIDO, 1992, p.13-
14).
Ainda no que diz respeito ao gênero, Antonio Candido lembra que “o fato de ficar tão
perto do dia-a-dia age como quebra do monumental e da ênfase (...) quando pega no miúdo
mostra uma grandeza, uma beleza e uma singularidade insuspeitadas” (CANDIDO, 1992,
p.14). Assim a crônica fica mais próxima da poesia, principalmente quando utiliza o humor.
Mostrar a grandeza a partir do miúdo é uma característica das crônicas de Lobo Antunes. O
olhar que o autor tem sobre o cotidiano é, a um só tempo, cortante e leve. O humor entra
como elemento fundamental que permite o questionamento dos costumes, das demandas vãs
de um mundo povoado por solitários que buscam inutilmente amor e reconhecimento.
Se é marcada pela efemeridade dos periódicos, por estar publicada num espaço visto
como transitório, a perspectiva da crônica seria a do rés do chão, diz Antonio Candido. E,
quando acontece de serem agrupadas em um livro, podem ter uma durabilidade muito maior
que a do seu destino habitual. Citando a Bíblia, o crítico afirma “o que quer salvar-se acaba
por perder-se; e o que não teme perder-se, acaba por se salvar” (CANDIDO, 1992, p.15). A
crônica nos levaria a conviver intimamente com a palavra, o que, em última instância, é a
razão de ser de qualquer texto literário. Ou seja, o pensamento de Antonio Candido é
condizente com o de Blanchot. Em sua despretensão, continua o crítico, a crônica acaba por
“penetrar poesia adentro” (CANDIDO, 1992, p.15). O fato miúdo, o toque humorístico e o
tom poético representariam o “encontro mais puro da crônica consigo mesma” (CANDIDO,
1992, p.15). Por serem leves, elas podem comunicar, mais que num estudo intencional, a
visão do homem em seu todo-dia.
Sobre a expressão “rés do chão” vale uma reflexão que permite o prosseguimento do
caminho que agora se inicia. Ela faz lembrar algo que se encontra no nível do solo, concreto,
aquém daquilo que a linguagem é capaz de capturar. Ora, se a linguagem vista como
22
representação é definida como “perda da coisa”, como essa coisa pode reaparecer no texto?
De que maneira a linguagem literária seria capaz de distanciar-se da coisa, do concreto, e, ao
mesmo tempo, restituí-lo? Como é possível fazer esse movimento aparentemente
contraditório? Como apontar o abismo entre a palavra (espaço da representação) e a coisa e,
apesar disso, dizer o indizível? Como é possível atravessar o espaço do familiar para tocar o
estranho? É em torno dessas questões que este trabalho circula.
Voltando ao texto de Candido, observamos que ele nos alerta para o equívoco de
acreditar na noção duvidosa reinante de que as coisas sérias são graves e pesadas, e,
conseqüentemente, que a leveza seria superficial. Para o autor, as crônicas podem dizer as
coisas mais sérias “por meio do zigue-zague de uma aparente conversa fiada” (CANDIDO,
1992, p.20). Por isso, pode haver nelas muita coisa a se explorar. Para conseguir esse efeito de
misturar densidade e leveza, o cronista pode usar diferentes estratégias textuais: diálogos,
narrativa próxima à dos romances, ou se aproximar de uma exposição poética, semelhante a
uma biografia lírica. Os dois últimos itens apresentados são uma constante nas crônicas de
Lobo Antunes: a narrativa romanesca é tão evidente que muitas passagens dos romances do
autor se encontram nas crônicas, algumas inaugurando relatos; outras, retomando-os. Já a
exposição poética semelhante a uma biografia lírica é tão reincidente que valerá um dos
capítulos desta tese.
Portanto, não é possível ver as crônicas de Lobo Antunes como desvios do trabalho do
romancista, caso se considere este último como sendo sua verdadeira vocação. Elas
constituem, de acordo com Seixo, um contraponto importante dos romances do escritor
(SEIXO, 2002).
Além disso, embora o autor as defina como “um trecho leve, simples, agradável e fácil
de escrever” (ANTUNES, 1998, p.341)., isto é, apesar da leveza, têm elas uma forte
densidade, característica nem sempre comum a esse gênero literário. Calvino (1990), ao
23
incluir a leveza entre as suas propostas para o próximo milênio, não a colocou como
indicativa de falta de densidade. Pelo contrário, considera que a leveza se cria no processo de
escrever como um salto ágil e imprevisto que traz consigo a possibilidade de sobrelevar o
peso do mundo. É a experiência do peso da existência que capacita o leitor a admirar a leveza
da linguagem. Portanto, as crônicas de Lobo Antunes revelam uma ética mais ampla,
ultrapassando em muito as informações passivas que habitam os jornais do mundo do
entretenimento.
Lobo Antunes, em outros momentos das entrevistas a Blanco (2002), faz declarações
sobre a literatura que devem ser retomadas: elogia os escritores poetas, porque são capazes de
ser concisos e afirma que ele preferiria escrever poesia, mas sente-se incapaz de fazê-lo. Mais
adiante, no mesmo livro, diz que sua “prosa mais próxima do verso são as crônicas”
(BLANCO, 2002, p.227). Assim, o poético é um alvo perseguido pelo autor que vê nas
crônicas que publica uma proximidade com aquilo que busca.
Essa conotação poética da crônica é inclusive tema de uma delas – “Crónica para
quem aprecia histórias de caçadas” –, quando o narrador compara o ato da escrita da crônica
a uma caçada, cujo objeto
3
poético é difícil de apreender/prender: “a crônica, olhando para
todos os lados, avança um tudo-nada a pata de uma frase, pronta a escapar-se à menor
desatenção, ao menor ruído.” (ANTUNES, 2006, p.181).
Nessa crônica, o narrador relata a luta com a palavra em busca de algo que se
encontraria a partir dela, mas a um passo além. A busca do objeto poético é tarefa do escritor
que se faz presente seja qual for o gênero de sua escrita. Escrever seria então equivalente tanto
à morte que se perfaz na caça, quanto a um parto, ao nascimento de um bebê que se deixa ver
o mundo pela primeira vez: “bem a percebo ao fundo, escondida, reparo num pedacinho do
pescoço, metade de um olho, um frémito de pele, mas não sei se é macho ou fêmea, grande ou
3
Mannoni (1991), no texto Psicanálise e literatura, afirma que o trabalho literário concretiza-se inevitavelmente
num objeto (de natureza, é verdade, muito particular) que se desprende do autor como uma espécie de excreção.
24
pequena, triste ou alegre” (ANTUNES, 2006, p.182). A caneta com que escreve seria, assim,
arma ou instrumento cirúrgico que se põe à espreita do objeto poético a surgir em seu
esplendor, objeto esse que toca e atravessa o eu e se depara com a estranheza: “sou ao mesmo
tempo o matador e a presa, é o meu coração e a minha cabeça que busco, ou qualquer coisa no
meu coração e na minha cabeça, a sua parte de trevas, de sombra” (ANTUNES, 2006, p. 182).
Assim o termo “caça” se desdobra em dois sentidos diferentes: perseguir como equivalente a
matar, assim como a procurar(-se).
Como “A última crônica” – já citada – foi publicada em livro em 1998 e “Crônica
para quem aprecia histórias de caçadas” em 2006, fica a pergunta: pode-se dizer que, com o
passar do tempo, a opinião de Lobo Antunes tem se modificado, de modo a retirar a crônica
desse lugar renegado onde as colocou num primeiro momento? O reconhecimento do valor
literário de algumas crônicas pode ser encontrado também na crônica “Da morte e outras
ninharias” em que se lê a seguinte classificação:
Em África um espírito qualquer segredou-me ao ouvido
- Experimenta a direita
Experimentei a direita, que desenhava letras com dificuldade numa caligrafia infantil
e, surpresa minha o que me saía da caneta era totalmente diferente. Para todos os
outros actos, cartas, formulários, receitas continuei a utilizar a esquerda, tão rápida,
tão fluida. Guardo preciosamente a direita para os livros no receio que seja o que for
que existe nela se gaste e acabe. Com essas crônicas varia: depende da disposição da
mão e as da esquerda são bastante piores. Não vou dizer qual delas estou a alinhar
esta, mas julgo ser fácil para um leitor atento adivinhar. (ANTUNES, 2006, p.146)
(grifo nosso)
Haveria então crônicas consideradas pelo narrador como estando à altura dos
romances; seriam aquelas “escritas com a mão direita”, associadas a letras desenhadas numa
caligrafia infantil – infância tão presente na obra do autor – e que produzem uma escritura
diferente das que se equiparam a outros atos corriqueiros de escrita, provavelmente sem vir
“da parte de trevas do coração”. Assim, o narrador não vê com o mesmo olhar todas as suas
crônicas. Algumas aproximam-se da poesia pela concisão, outras têm a mesma cepa dos
25
romances. E há as que são consideradas mais pobres, com uma escrita próxima do texto
utilizado para comunicados objetivos ou para contar histórias, talvez estas, sim, sem a
densidade buscada pelo romancista.
A crônica seria também, para Lobo Antunes, um meio de buscar o objeto poético
fugidio, embrenhado entre memórias e fantasias. De acordo com o narrador, o que as crônicas
desejam “é que tenham mãos nelas no momento exato, e o momento exato nem um
segundinho dura”. (ANTUNES, 2006, p.182). Para realizar esse desejo, o cronista recorre a
algumas estratégias textuais no nível dos enunciados e das enunciações, todas elas marcadas
por uma exterioridade, um fora
4
que traria consigo a possibilidade de mostrar o estranho.
1.2 – Estratégias textuais
Para que os vestígios do estranho se evidenciem, é necessário que o escritor maneje o
terreno fértil do imaginário. Em Lobo Antunes, esse manejo se faz a partir de algumas
estratégias textuais que serão apresentadas a seguir, mas que constituirão, cada uma delas, um
capítulo desta tese.
4
Fora é um conceito de Blanchot para se referir à linguagem no texto literário. É uma estratégia do pensamento
que marca a falência do logos clássico, colocando em cheque noções centrais para a filosofia e para a teoria
literária, tais como autor, linguagem, experiência, realidade e pensamento (LEVY, 2003). O conceito de Fora
permite articular as contribuições da crítica literária de Blanchot e Barthes com o conceito de estranho cunhado
por Freud (1919) para se referir a uma literatura que não se escreve a partir dos domínios do principio do prazer.
Ele será apresentado com mais vagar no capítulo que se refere mais especificamente à escritura.
26
1.2.1 – O tempo fora do tempo
Se, na própria etimologia do termo crônica, a dimensão do tempo ligado a chrónos
está indicada, o tratamento dado ao tempo nesses textos de Lobo Antunes marca uma
diferença. Encontramos recorrentes evocações e remissões a passados possíveis, a um tempo
fora do tempo, a uma memória que se debruça sobre si mesma, em que passado e presente se
entretecem, se entrelaçam, apontando para um tempo mítico que não pode mais ser medido
pela cronologia. Esses entrecruzamentos de tempos mostram que não se trata de escrita de
memórias da infância, mas sim de como essas ditas lembranças invadem o presente,
modificando-o, provando como é falacioso pensar-se em escrita como mera rememoração.
Pelo contrário, nessa volta ao passado, encontramos a repetição, não do mesmo, mas do novo.
Da mesma forma, narrativas escritas sobre um tempo presente são subitamente infiltradas por
memórias de um passado distante que interfere no presente e, às vezes, até na dimensão do
futuro. O próprio Lobo Antunes afirma a Blanco que “a memória não tem a ver com o
passado, também tem a ver com o presente e talvez com o futuro” (BLANCO, 2001, p.114).
Ou seja, é um modo de repetição que remete ao conceito deleuziano de devir, um tempo não
localizável na cronologia, que diz respeito a um vir a ser, pois “tem sempre um componente
de fuga que se furta à sua própria formalização” (DELEUZE, 1997, p.11). O devir diz respeito
ao inesperado, ao novo; por isso, o que importa no devir é o movimento, o tornar-se. Não
significa progredir ou regredir de acordo com uma série, mas movimentar-se por
comunicações transversais. Em contraposição à estrutura de árvore que se caracteriza pela
centralização, hierarquia e genealogia, o devir é marcado pela divergência, ramificação e
multidimensionalidade (DELEUZE e GUATTARI, 1997).
Pode-se constatar essa mistura de tempos, a título de exemplo, na crônica “O som dos
meus ossos”:
27
Às vezes, quando sozinho em casa, oiço cantar ao longe. Quer dizer: parece-me que
alguém canta ao longe para mim, uma voz de mulher que não conheço e se perdeu
algures no passado. Levanto-me do sofá, vou à janela e ninguém, da mesma forma
que ninguém no quarto, no corredor, na marquise. Ninguém e todavia a voz continua,
não pára lá da varanda, não na praça, dentro do apartamento mas onde, talvez na
minha cabeça mas porquê (...) que estranho eu ser eu, que esquisito morar aqui.
Depois penso que estranho é eu achar esquisito eu ser eu e estranho e esquisito é
achar ser esquisito morar aqui... a voz tornar-se-ia mais próxima e eu encontraria a
mulher que canta. A minha mãe? Não me recordo de minha mãe cantar, sempre séria
diante do fogão, entre suspiros.” (ANTUNES, 2002, p.263)
O tom nostálgico refere-se a uma saudade de um tempo que não se sabe se foi vivido,
mesmo ficcionalmente. O que seria memória? O que seria imaginação? Parece perguntar o
narrador. O passado invade o presente, paradoxalmente percebido como falso e verdadeiro,
trazendo ao narrador uma sensação de estranheza. O passado introduz elementos no presente
os quais fazem vacilar qualquer certeza do narrador, tanto no que diz respeito às lembranças
quanto ao momento presente. Há uma voz que chama, trazendo a nostalgia de um tempo não
vivido, que acenaria para uma mãe idealizada de cuja existência o narrador duvida. Vemos
assim que o passado se infiltra no presente, não para dar consistência a este, mas, ao contrário,
para diluí-lo, para marcá-lo também pela estranheza, pela sensação de desconhecimento. “Que
estranho eu ser eu”. Mas também é estranho o próprio questionamento: “estranho é eu achar
esquisito eu ser eu.” Faz-se assim um movimento mise en abime em que o narrador olha o
passado, o presente e não se reconhece, assim como não reconhece suas interrogações, num
estranhamento que leva a outro.
A crônica citada e grande maioria das outras são escritas em primeira pessoa ou
referem-se a um personagem chamado Lobo Antunes. Esta estratégia narrativa pode dar a
impressão de que os escritos seriam relatos memorialísticos, recuperação de lembranças
vividas na infância. Entretanto, acredita-se que a questão autobiográfica precisa ser
relativizada, uma vez que a memória atualizada na escrita refere-se muito mais a um eu
ficcionalizado. O conceito de biografema cunhado por Barthes (1977) cabe aqui, pois não se
28
trata de retratar uma vida, mas, muito mais, compor uma biografia descontínua que evidencia
minúcias, detalhes insignificantes que convidam o leitor a conversar com os próprios
fantasmas, algo muito diferente de uma biografia-destino onde tudo se liga (Perrone-
Moisés,1983). Essa temática importante na composição desta tese será retomada e
desenvolvida no segundo capítulo deste trabalho.
1.2.2 – O eu fora de si
Lobo Antunes afirma, em entrevista, que os temas que povoam sua escrita são: “a
vida, a morte, a ausência de amor, a incomunicabilidade” (Ler, n 37 p. 40, citado por Ramon,
2004, p.188) e aqui não há diferença entre os romances e as crônicas. Ramon (2004) acredita
que a ausência da capacidade de compreensão, entendida como capacidade cognitiva básica
do processo de inserção do indivíduo no meio e na coletividade humana a que pertence,
parece ser o grande motivo da escrita antuniana.
O nosso autor escreve porque não sabe, mostrando-se perplexo diante dos enigmas da
existência. Assim essa escrita não é derivada de um saber, mas do desamparo decorrente da
ausência de saber. Pode-se dizer que o narrador apresenta um eu que não sabe de si, não se
compreende, assim como não compreende o mundo e que esse não-saber é ponto de partida e
de chegada da escrita. Escreve porque não tem respostas e em seus textos não se encontram
respostas. Pode-se ler em uma de suas crônicas: “E, se me fosse possível falar de um livro,
não seria necessário escrevê-lo.” (ANTUNES, 2006, p.195). Nesse ponto, Lobo Antunes faz
lembrar Marguerite Duras (1994), que em seu livro Escrever, diz que escreve porque não
sabe e que, se soubesse, não escreveria porque não ia valer a pena.
29
O eu é cindido, assim como cindidas são as relações entre as pessoas, e com a escrita.
Portanto, a sensação de fragmentação e de desamparo é uma constante. Esta incompreensão
do sujeito da escrita desemboca numa inadequação diante das questões relativas à vida e à
morte. A noção de tempo lacunar se liga diretamente à concepção de sujeito dividido, o tempo
é lacunar porque o sujeito da escrita não sabe de si. Ou seja, as noções de tempo e espaço
afetivo não são utilizadas com o objetivo de dar uma referência. Pelo contrário, o que elas
produzem é uma perda de certezas, não se pode localizar o tempo, nem no espaço afetivo.
Veja-se, por exemplo, em “Boa noite a todos” (ANTUNES, 2002, p.33-35):
Quando o comboio partir não digas adeus porque ficaste no cais. Foi
apenas o teu passado que se foi embora, na terceira ou na quarta carruagem de
segunda classe, precisamente a que acaba de desaparecer no túnel. Foi apenas o teu
passado que se foi embora. O teu presente ficou. O teu presente, isto é: ir ao bar da
estação sem ter tirado o lenço da algibeira, sem saudade, sem remorso, sem pena, e
olhar pelo vidro da porta o cais vazio, com o relógio a marcar uma hora que não é a
tua. Não penses na bagagem que ninguém recolherá na gare de uma cidade onde
não irás nunca: o que arrumaste lá dentro deixou de pertencer-te. Pertence-te esta
tarde de Lisboa, pode ser que algum pombo, alguma estátua, o rio. Mete a mão no
bolso e deita fora a chave de sua casa, o bilhete de identidade, a agenda dos
telefones, o retrato dos teus filhos, a factura da eletricidade em atraso que devias
pagar: o teu passado foi embora, a tua mulher foi-se embora, o teu emprego foi-se
embora, deixaste de existir na véspera, deixaste de pensar em amanhã. (ANTUNES,
2002, p.33)
Se, para dizer da noção de tempo, o conceito deleuziano de devir é muito pertinente,
também o conceito de desterritorialização
5
, cunhado pelo filósofo, é útil para pensar na
questão do desamparo.
O fragmento de crônica citado é marcado pela vivência de desterritorialização. O
narrador dá mostras de que perdeu o sentimento de pertinência em relação ao mundo que o
circunda, tanto na horizontalidade do seu agora, quanto na verticalidade das dimensões do
5
Para se ter uma idéia desta noção, faz-se necessário compreender que território seria uma espécie de
apropriação de si mesmo, a partir de um conjunto de projetos e representações que vão desembocar em
comportamentos e investimentos afetivos nos tempos e espaços sociais, culturais, estéticos e cognitivos. O
território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito
se sente “em casa”. Mas o território pode se abrir, romper-se, engajando-se em linhas de fuga, levando à perda de
certezas e dando lugar ao aparecimento de estranho. É isto que se chama desterritorialização. (Guattari, Rolnik,
1986).
30
tempo. Não sabe quem é, quem foi, nem para onde vai. As amarras identificatórias foram
embora num trem de segunda classe. O que ficou é desvanecente: uma tarde, um rio. Ou tem
consistência: um pombo ou uma estátua, mas não pertence a ninguém. Nem mesmo a língua é
capaz de dizer o personagem, que é então convidado a inventar outra:
inventa uma língua para dizer
- não sei
por exemplo
- Vlkab
ou
‘- tjmp
(ANTUNES, 2002, p.34)
Pode-se, para efeito didático, subdividir as formas de surgimento do desamparo: as
que tematizam a relação do narrador consigo, as que mostram como é difícil separar sanidade
e loucura; as que tratam das relações homem/mulher marcadas pelo desencontro, as que
tematizam as relações familiares – principalmente com as de linhagem paterna, as que tratam
da morte e, por fim, as que têm como tema a estereotipia das relações sociais. No capítulo três
será dada ênfase à temática do desamparo a partir destes tópicos.
1.2.3 – A escritura e o fora da linguagem
Inicialmente será feita uma reflexão sobre a ironia e o humor como estratégias
narrativas capazes de subverter a linguagem e fazer valer o literário. Em seguida, serão feitas
algumas considerações sobre a escritura e sua relação com o estranho.
31
1.2.3.1 – A ironia e o humor
O uso constante da ironia e do humor revelando a perda da estabilidade dos
referenciais sociais, dos ideais e das certezas sobre o próprio eu e sobre o mundo é visto aqui
como uma estratégia textual.
O humor é uma forma de apontar o trágico da existência. Temas como a morte, o
envelhecimento, a solidão, a impossibilidade de comunicação são apresentados e suavizados
pelo humor. É ele quem dá um toque de leveza ao que, usualmente, poderia produzir horror.
Como afirma Candido, o humor é um ingrediente importante para dar à crônica um caráter
literário, pois o humor subverte a língua, fazendo com que a palavra adquira novos sentidos.
Assim, o humor, descrito como uma experiência do não saber, é uma das vias pelas quais
Lobo Antunes apresenta o lado obscuro da existência. Se o riso decorrente do cômico permite
uma descarga, na medida em que o eu não padece as mazelas mencionadas como vividas pelo
outro, ficando assim fortalecido; na experiência de humor, o eu não se engrandece, o sujeito ri
de si mesmo e a vitória se faz no campo da subversão da linguagem.
Além do humor, a ironia retórica é outra estratégia utilizada por Lobo Antunes para
criticar valores inconsistentes, referindo-se, particularmente, aos costumes do povo português.
A ironia lida com a equivocidade, subvertendo a linguagem na medida que tem como
estratégia fazer uma oposição entre enunciado e enunciação. A mensagem se apresenta pelo
avesso.
Em um detalhado estudo sobre a ironia, Lélia Parreira Duarte (2006) mostra que o eu
ganhou um lugar na literatura a partir do romantismo e de seus pressupostos de liberdade e
igualdade. Mas essa valorização gerou um paradoxo, pois, ao ver-se como um ser de desejo
de absoluto, o homem se percebe frágil, dependente e transitório. Pode-se dizer que esse eu é
32
descoberto como soberano e, ao mesmo tempo, como um eu em fracasso. A era moderna é o
tempo da soberania e declínio do sujeito da razão; assim a ironia se presta a evidenciar, na
própria estrutura narrativa, esse paradoxo, afirmando e negando, simultaneamente, a
soberania do eu e do instituído.
O trabalho com o humor e a ironia pode ser visto, por exemplo, na crônica “O grande
homem”. Escrito em primeira pessoa, o narrador inicia o texto com a frase: “Soube que era
gênio quando encontrei o romance nas livrarias, quando o retrato principiou a aparecer nos
jornais, quando dei a primeira entrevista à televisão.” (ANTUNES, 1998, p.141). A auto-
exaltação presente na abertura da crônica já mostra que se trata, claramente, de ironia retórica,
quando o narrador desdenha pelo avesso, exagerando a importância daquilo que quer
depreciar. A primeira frase já propõe um pacto com o leitor, para que fique alerta e saiba que
a mensagem que se quer passar é contrária ao que está enunciado: venha comigo, vou
apresentar uma farsa – parece propor o autor. O humor sarcástico é dirigido, primeiramente,
ao narrador, esse eu inflado de prepotência que quer brindar com o outro “a dádiva da minha
presença” (ANTUNES, 1998, p.141), mas que se constata destituído de fama ou de
reconhecimento pelo livro que escreveu. Como uma celebridade mundialmente conhecida
afirma que “pareceu-me injusto não sair para a rua a pé, em carro descoberto, cercado por
guarda-costa, de óculos ray-ban, a mostrar-me e a abençoar.” (ANTUNES, 1998, p.141) É
fácil para o leitor perceber que, na verdade, o autor quer criticar a busca de prestígio que pode
estar presente nos pessoas famosas.
O eu tão prepotente na abertura da crônica vai-se tornando, pouco a pouco, “encolhido
e humilhado” (ANTUNES, 1998, p.142), mas, ainda tentando se manter numa posição de
magnânimo, o narrador afirma que “compreendi com raiva que os portugueses não me
mereciam” (ANTUNES, 1998, p.143).
33
Mas a crítica se estende também ao povo português, tal como o narrador, mergulhado
num mundo de valores ridículos, cada um atento apenas aos momentos em que viu a si
mesmo como herói: “muito ponta-pé lhe dei eu nesse cu” (ANTUNES, 1998, p.142). O autor
aponta também a falta de instrução do povo português: “Escreveu um livro? As anedotas do
Bocage, aposto” ( ANTUNES, 1998, p.143). Ou seja:
A comicidade, desencadeada em função dos pequenos e grandes ridículos do viver
quotidiano, está recorrentemente presente nas crónicas de Lobo Antunes; um
cotidiano em que, por força do procedimento de irrisão, se adivinham as rotinas de
uma civilização urbana e suburbana, selva de comportamentos agressivos em que
o narrador dá testemunho pessoal, sem prejuízo do cômico e dessa verdadeira
pulsão do real
6
que domina as crônicas. (REIS, 2004, p.29-30) (grifo nosso)
É interessante notar que esse desfazer de si, pelo avesso, acaba por ser uma espécie de
exaltação, pois o narrador coloca-se acima de quem está predominantemente interessado em
fazer sucesso. Sutilmente compara-se a colegas ilustres (Villon, Genet), escritores malditos,
mas mundialmente reconhecidos. Ou seja, no jogo da mentira, uma afirmação presente no
enunciado pode sutilmente ainda estar vigorando. Como diz Duarte (2006), a ironia tamm
pode guardar uma ambigüidade que deixa o leitor sem saber o que afirmar sobre as intenções
do autor.
1.2.3.2 – A escritura e o estranho
Finalmente, faz-se necessária uma reflexão sobre a escritura como possibilidade de
transmitir vestígios do estranho. Na obra de Lobo Antunes a narrativa emerge de outras
narrativas; crônicas e romances se embaralham em espirais, temas e personagens semelhantes
6
Essa expressão será objeto de reflexão no decorrer deste capítulo.
34
apresentam-se de maneira reiterativa nos dois gêneros. Também de ambos pode-se extrair um
tom poético de tal maneira que não é possível distinguir a fronteira entre prosa e poesia.
Aqui cabe retornar ao conceito de escritura cunhado por Barthes em O grau zero da
escritura (1971). Apesar de o conceito ter sofrido várias alterações ao longo de suas
teorizações, o que interessa para este estudo é que, no sentido barthesiano, a noção de
escritura é da ordem da enunciação. A realidade da escritura é ambígua: por um lado nasce da
confrontação do escritor com a sociedade e, por outro, remete-o às fontes instrumentais de sua
criação. Por isso ela está amarrada a dois objetivos aparentemente contraditórios: voltar-se
para o mundo e voltar-se para si mesma.
O termo escritura não constitui propriamente um conceito, mas um conjunto de traços
que permite distinguir, em determinados textos, um aspecto propriamente indefinível como
totalidade. Ela parte do mundo, mas constitui-se de um rearranjo, uma variação de textos
anteriores, produzindo algo novo (PERRONE-MOISÉS, 1978). Por isso, ela não é função da
linguagem, é justamente desfuncionalização da linguagem. “Ela força a língua a significar o
que está além de suas possibilidades, além de suas funções” (PERRONE-MOISES, 1993,
p.44).
Barthes mostra que há dois tipos diferentes de escrita: uma que privilegia a
semelhança e a presença de uma harmonia entre o escrever e o mundo, e outra que, no dizer
de Costa Lima (1980), pode ser pensada como uma poética do pesadelo, em que se faz mais
evidente uma ausência de correspondência entre a escrita e o mundo. Entretanto, Costa Lima
nos lembra que, mesmo os textos da primeira categoria são marcados por um ponto cego, que,
à semelhança do umbigo do sonho preconizado por Freud (1900), apontam para o insondável.
O que se pode concluir é que o campo da teoria literária, assim como o da teoria psicanalítica,
pode ser visto de duas maneiras: sob a ótica que privilegia o espaço da representação, que
35
acredita que a palavra possa representar uma realidade pré-existente, ou sob outra ótica – a
ótica do Real – que insiste em apontar para um mais além da representação.
Tomar as crônicas como escritura, a partir da conceituação de Barthes, é enfatizar que
nelas não encontramos uma representação da realidade, nem um endereçamento. O autor não
pretende fazer relatos, apontar soluções, nem ensinar nada a ninguém; está muito mais
ocupado com o paradoxo do que com a doxa, o estabelecido. Assim, para ler Lobo Antunes é
preciso tatear no escuro. Se essa obscuridade vai-se fazendo cada vez mais presente em seus
romances, também se torna progressivamente mais evidente em cada um dos três volumes de
crônicas.
Nessa encenação do real, o que se pode verificar é uma escritura que privilegia a
enunciação. O real apresenta-se na própria tessitura lacunar e fragmentária das crônicas.
Assim, a solidão na vida conjugal é mostrada na crônica “Uma sensação de para quê” em que
o narrador conversa com a imagem (fantasma? fotografia?) da mulher que deixou a casa:
Não preciso que me digas nada nem que faças nada, basta que estejas aí e é já tanto.
Não mudei a cor dos sofás, as cortinas continuam as mesmas, o quadro que trouxeste
de solteira e eu nunca gostei
(foi minha mãe quem mo deu, disseste tu, e eu calado sem acreditar)
permanece ali em frente por cima do carrinho das bebidas, o nosso retrato na Foz
ocupa o lugar de honra na estante, a revista de decoração que deixaste aberta antes de
ires-te embora
(Dez sugestões de dez decoradores portugueses para as zonas mortas de sua casa)
espera na poltrona onde te sentavas sempre, jurando que com meia dose de
imaginação e meia dose de bom gosto poderíamos transformar para melhor a nossa
vida. (ANTUNES, 2002, p.305)
Não há uma referência explícita à solidão, ela é apresentada nos detalhes da casa,
aparentemente sem importância, os quais mostram a presença da ausência da mulher, assim
como os desencontros do casal e as tentativas inúteis de melhorar a relação conjugal. Os
buracos não preenchidos pela relação a dois se apresentam pela revista deixada pela esposa:
sugestões dos decoradores para as zonas mortas da casa. Na casa, tudo se encontra no mesmo
lugar. A revista de decoração, metonimicamente, substitui a mulher em suas vãs tentativas de
36
dar um jeito de transformar/decorar a vida conjugal. Aqui os objetos – coisas sem vida –
falam pelas pessoas em sua falta de vitalidade e mostram, sem falar, a dor da separação e a
solidão do narrador na casa inalterada.
A apresentação da solidão se faz mais pela enunciação do que pelo enunciado.
Períodos longos, que mal dão tempo para o leitor respirar, exalam uma angústia que é
transmitida ao leitor. Além disso, parágrafos/frases entre parênteses são jogados, como que
por acaso, no texto, mudando a direção da leitura.
No caso dessa crônica, o primeiro parênteses refere-se ao silêncio e descrédito do
narrador no que diz respeito às afirmações da mulher, a linguagem não leva a um acordo,
permanecendo um desentendimento mudo entre eles. O segundo, ao apresentar o título da
revista de decoração, coloca a revista esquecida no lugar de resto de uma presença que insistia
em acreditar que a relação ainda seria possível – com meia dose de imaginação e meia dose de
bom gosto.
Várias crônicas têm como tema a própria escrita. E essa temática é, progressivamente,
mais presente nos três livros de crônicas. Questões como: o que é literatura? Por que
escrever? O que busco com meus livros? São reincidentes nas crônicas, várias delas
dedicadas, exclusivamente, a esse tema. Algumas delas têm um tom poético, em outras
predomina uma linguagem ensaística, mostrando, tanto pela via dos enunciados quanto das
enunciações – principalmente as mais poéticas – que o artista está em busca de algo que o
ultrapasse, ao mesmo tempo presente nos pequenos e aparentemente insignificantes detalhes
da existência, mas apontando para algo que se encontra mais além.
É isto que se pode encontrar, por exemplo, em “Receita para me lerem”. Essa crônica,
a começar pelo título, tem a marca da ironia, pois a receita é jogar fora a receita; é um
mandato impossível de ser cumprido. O narrador diz que é um erro alguém afirmar que teria
37
lido um livro seu, pois eles não são para ser lidos
7
. Aponta uma outra alternativa, diz preferir
contaminar o leitor, por isso seus romances deveriam ser apanhados, “como se apanha uma
doença” (ANTUNES, 2002, p.109), exigem mais que uma compreensão intelectual, precisam
ser vividos corporalmente.
Diz também ser impossível classificar seus textos. São chamados romances assim
como poderiam ser classificados de poemas, ou até mesmo de visões. Para ser contaminado
por eles é preciso renunciar a uma chave interpretativa e ver as palavras como coisas vivas,
“signos de sentimentos íntimos” (ANTUNES, 2002, p.109)
8
.
A história, os personagens, enfim os enunciados não importam, serviriam para
apontar algo que está além, para conduzir ao “fundo avesso da alma” (ANTUNES, 2002,
p.109), ao “negrume do inconsciente” (ANTUNES, 2002, p.109). Por isso, os dramas
pessoais, as críticas sociais seriam aspectos mais parcelares e menos importante dos livros. O
narrador afirma que não quer ensinar nada em termos políticos ou antropológicos, pois “o
mais que em geral recebemos da vida é um conhecimento que chega demasiado tarde”
(ANTUNES, 2002, p.110). A verdade buscada é de outra ordem, até porque “não existem nas
minhas obras sentidos exclusivos nem conclusões definidas.” (ANTUNES, 2002, p.110).
Seus textos seriam símbolos materiais de conclusões fantásticas (estariam, ao mesmo
tempo, no céu e no rés do chão da linguagem?) em oposição à nossa realidade truncada. O
narrador convida o leitor a se deixar levar por um aparente desleixo e enveredar pelo pântano
da estranheza, “ao assombrado vai-vem de ondas que, a pouco e pouco os levarão ao encontro
da treva fatal.” (ANTUNES, 2002, p.110). Faz-se necessária a perda das certezas, para que
algo de novo possa nascer. É preciso que as certezas do sujeito cartesiano caiam por terra, que
7
Coincidentemente é isto que diz também Lacan (1985), a respeito de seus escritos.
8
Retomando as considerações de Pierce sobre o signo lingüístico, parece que aqui o signo seria como um índice
(PIERCE, 1977), já traria em si algo do referente, é o sentimento, em contraposição à noção de significante em
que a representação substitui o referente.
38
o leitor perca o sentido que de fato não possui, para que outra ordem nasça desse choque. A
verdade que se encontra nos seus textos é como a de um sonho, com claridades e sombras.
O leitor deve ser pego pelo texto, como se pega uma doença, ser contaminado por ele.
“Exijo que o leitor tenha uma voz, entre as vozes do romance” (ANTUNES, 2002, p.111), de
onde deverá sair, não rico, nem pleno, mas, pelo contrário, “carregado de despojos”
(ANTUNES, 2002, p.110), de restos. Lembra que suas narrativas não levam a um lugar
seguro, porque não existe propriamente uma narrativa, “mas apenas largos círculos
concêntricos que se estreitam e aparentemente nos sufocam” (ANTUNES, 2002, p.111).
Fechado o livro, o leitor é convidado a convalescer, pois uma vez contaminado, ele tamm
se torna portador da peste – deve assentar-se no meio dos demônios e anjos da terra.
As figuras que povoam os romances carecem de relevo porque refletem narrador e
leitor, “até nenhum de nós saber qual dos dois somos.” (ANTUNES, 2002, p.111). Com os
romances, o leitor não terá acesso a uma imagem coerente de si mesmo ou a um saber
iniciático. A leitura traz consigo uma vivência de perda. Por isso os personagens não possuem
relevo, são ao mesmo tempo ninguém e todo o mundo. O livro ideal seria um espelho vazio,
que serviria, não para que o leitor se encontre, mas para que ninguém – narrador ou leitor –
possa saber quem é. Invertendo a proposta de Platão, propõe que se regresse desses espelhos
como quem regressa da caverna do que era e afirma que olhar-se no espelho é dar-se conta,
não da luz esclarecedora da verdade, mas da sombra, e compreender que ela é inerente à
existência. “É o que se pode, no melhor dos casos, dar nexo à vida.” (ANTUNES, 2002,
p.111).
Pode-se perceber aqui a busca do que Blanchot vai chamar de “a obra”, ou seja, esse
esforço reiterativo do escritor de dar conta de apreender uma verdade que sempre escapa,
tanto no que diz respeito à própria escrita quanto a si mesmo. A escritura de si e do texto, ou
de si no texto é, inevitavelmente, uma escrita de fragmentos. O escritor é convocado, diz
39
Blanchot “a desfazer o discurso no qual, por mais infelizes que nos acreditemos, mantemo-
nos, nós que deles dispomos, confortavelmente instalados.” (BLANCHOT, 2001, p.9). Assim,
a escrita literária estaria fora do discurso ou, em outros termos, fora da linguagem.
Essas peculiaridades levam a pensar na importância de se ampliar o lugar e a
importância da crônica propostos pelo próprio autor. Nessas crônicas, a narração atravessa a
realidade cotidiana de maneira marginal, com o objetivo de denunciar seus vazios. A
reconfiguração do tempo, da memória e dos valores levam a pensar que nelas se encontra não
apenas um reflexo de uma realidade que o autor pudesse ter o objetivo de retratar; como
afirma Reis (2004), trata-se de um passo além: nas crônicas o narrador dá testemunho da
pulsão do real. O que isso significa? Dar testemunho diz respeito a algo mais vivo, de acordo
com o Novo dicionário Aurélio (1986), está relacionado a confirmar, presenciar, revelar. O
que as crônicas testemunham é da ordem da pulsão do real.
Abrindo um parêntese, é necessário esclarecer alguns termos psicanalíticos que serão
fundamentais para o desenvolvimento desta tese. É do conhecimento de todos que o termo
pulsão é freudiano e que o conceito de real foi trabalhado reiteradamente por Lacan. Ou seja,
a teoria psicanalítica tem uma contribuição significativa para desenvolver a leitura que aqui é
feita das crônicas de Lobo Antunes.
Pulsão
9
é um conceito que faz parte das concepções metapsicológicas de Freud e
caracteriza-se por ser o que coloca em movimento constante o aparelho psíquico. Sua
estrutura é a da banda de Moebius
10
, uma vez que está, ao mesmo tempo, dentro e fora do
9
Pode-se dizer que a pulsão pertenceria ao registro da representação, mas não inteiramente, uma vez que a fonte,
um de seus componentes, se encontra no corpo – fora do aparelho psíquico – embora ela só adquira existência
depois de representada. Essa representação se faz a partir de uma marca psíquica que dá origem a imagens e a
palavras. A pulsão seria responsável por colocar o aparelho psíquico em constante movimento, uma vez que
qualquer destino para livrar-se da tensão produzida será, inevitavelmente, uma solução precária, pois entre o
corpo e o psíquico há um inassimilável que sempre deixa um resto de tensão. (FREUD, 1915)
10
No século XIX, Moebius criou um arranjo – uma fita em que as pontas são atadas de maneira retorcida –para
referir a superfícies tridimencionais, com um só lado e um só componente de contorno, não são inteiramente
interiores nem exteriores. De acordo com Lafont (1996), a imagem da banda de Moebius foi utilizada várias
vezes por Lacan para mostrar que, no que diz respeito ao psíquico, não podemos fazer distinções polares de
dentro ou fora, uma superfície leva necessariamente a outra.
40
aparelho psíquico, sendo, portanto, um conceito limite. Fazendo um paralelo, pode-se dizer
que pulsão e linguagem têm uma estrutura de funcionamento parecidas pois, estando ambas
atreladas à questão da representação e de sua insuficiência, palavra e pulsão deixam algo de
fora que insiste e alimenta outras tentativas de resgate do que foi perdido.
E o real? Lacan tem contribuições significativas para o estudo do real na literatura, à
medida que trabalha, exaustivamente, o entrelaçamento dos registros real, imaginário e
simbólico em diferentes contextos, entre eles, o texto literário. O simbólico é veiculado pela
palavra e determina os seus limites, fora dos quais há uma impossibilidade; ele se faz presente
pela via da função paterna. Já o imaginário diz respeito a uma forma de captar o mundo
através de imagens. Essa imagem, moldada a partir do espelho do olhar do Outro, produz uma
sensação de completude, que, apesar de fundamental para a estruturação do aparelho psíquico,
é da ordem da ilusão, pois entre essa imagem e a realidade há um hiato.
É a esse hiato que se refere o registro do real. Ele diz respeito ao que escapa ao
simbólico; resto que se torna causa, pois está sempre impulsionando o simbólico. O real tem
também o poder de fazer com que o discurso se distenda e se estenda além das possibilidades
de significação. Além de causa do simbólico e consequentemente da escrita, ele também pode
emergir num certo tipo de escritura.
É interessante precisar que, no percurso de Lacan, o real, apesar de estar presente em
seus textos desde 1953
11
, só adquire o status de registro, como os outros dois, no seminário de
1973. Na lição de 11 de dezembro Lacan diz:
Até o presente só lhes falei do imaginário e do simbólico, mas meu
discurso tende a lhes mostrar que essas duas dimensões se completem pela do Real.
Em outros termos é preciso que haja três delas. Só há uma coisa a dizer no
momento. Desse Real só posso dizer que é data de seu batismo. Eu te batizo Real, a
ti como terceira dimensão. Já fiz isso há muito tempo, foi por aí que comecei meu
ensino. E acrescentei no meu foro íntimo: Eu te batizo Real porque se tu não
existisses, seria preciso inventar-te. (LACAN, 1974)
11
No texto “O simbólico, o imaginário e o real” de 1953, o termo real se apresenta pela primeira vez, mas como
equivalente à noção de realidade.(LACAN, 2005)
41
Nessa perspectiva, portanto, o real estaria associado ao que não pode ser apreendido
pela representação pulsional, ponto de furo do aparelho psíquico, fundamental para seu
funcionamento. Ele não pode ser simbolizado pela palavra, nem integrado ao plano narcísico
através da imagem. Por ser inapreensível, ele produz um movimento incessante, por isso, se
não existisse, seria preciso inventá-lo.
A partir de 1920, ao inventar o conceito de pulsão de morte, Freud parece se referir a
uma noção próxima a do real lacaniano, embora não tenha usado essa expressão. O conceito
está explicitado em “Além do principio do prazer” (FREUD, 1920), escrito, ao que parece,
conjuntamente ao ensaio sobre o Estranho, uma vez que um texto remete inevitavelmente ao
outro. Este momento é considerado como sendo o de uma torção das concepções
psicanalíticas que, ao incluir a pulsão de morte, levam a outra concepção de clínica e também,
o que interessa no desenvolvimento desta tese, de literatura.
Fechando o parêntese e retornando às colocações de Reis, quando o crítico salienta
que nas crônicas de Lobo Antunes o narrador dá testemunho da pulsão do real, o que se pode
pensar? Estaria ele se referindo ao real como causa, motor da escritura, na medida em que a
pulsão pede trabalho psíquico incessantemente? Ou será que ele supõe que, na escritura das
crônicas, o real, apesar de indizível, pode se fazer presente? Reis estaria em defesa de que, nas
crônicas de Lobo Antunes, a palavra escrita pode expandir os limites de representação da
linguagem, trazendo um real vivo para o texto?
Ambas as possibilidades são pertinentes. E a última hipótese é condizente com a
leitura feita acima da crônica “Receita para me lerem”, pois o real se transmite na palavra tida
como “signo de sentimentos íntimos” (ANTUNES, 2002, p.109), “fundo do avesso da alma”
(ANTUNES, 2002, p.109); mostra-se pela via do despojo, da sombra – aquela que pode dar
nexo à vida. A verdade revelada pelo real não é da ordem do saber, mas mesmo assim é capaz
42
de contaminar o leitor como uma doença, tocá-lo naquilo que ele tem de mais íntimo e ao
mesmo tempo de mais estrangeiro. Como diz Lacan, tocá-lo na extimidade, pois o que temos
de mais íntimo, não nos pertence.
1.3 – O realismo e a escritura do real
Situando historicamente, pode-se dizer que o movimento realista surgiu no século XIX
e tinha como objetivo retratar a realidade factual da maneira mais fiel possível, em oposição à
noção de literatura veiculada pelo Romantismo. Quando as discussões filosóficas do século
XX tornaram relativa a representação como única forma de apreensão da realidade,
vislumbrou-se a possibilidade de haver algo capaz de atravessar o campo da linguagem, mas
que estaria além da palavra. Assim, diferente de uma literatura realista, a escritura do real
seria aquela capaz de transmitir/encenar, através das marcas deixadas no texto, em vez de
representar/retratar pela palavra. Barthes escreve sobre o efeito de real tido como
característica da literatura contemporânea que procede da intenção de “alterar a natureza
tripartida do signo para fazer da notação o simples encontro do objeto e de sua expressão”
(BARTHES, 1988a, p.165).
Esses textos literários padecem, por isso, de desestabilidade. Têm a fragmentação
como tema e são eles mesmos marcados por ela. Neles se encena o real, já que apontam
justamente para algo que não pode ser apreendido pela palavra, mas não prescindem dela para
se apresentar. O real se apresenta, ainda de acordo com Barthes, por detalhes aparentemente
insignificantes no tecido narrativo. Esses tecidos irredutíveis denotam o real concreto. Assim,
“a relação daquilo que é (ou foi) aparece como uma resistência ao sentido” (BARTHES,
43
1988a, p.162). O pormenor concreto é constituído “pela colusão direta de um referente e de
um significante: o significado fica expulso do signo e, com ele, evidentemente, a
possibilidade de desenvolver-se uma forma de significado, isto é, na realidade, a própria
estrutura da narrativa” (BARTHES, 1988a, p.164).
Essa característica, evidentemente, não se restringe à obra de Lobo Antunes. Parte
significativa da literatura contemporânea traz consigo a marca do estilhaçamento e insiste em
apresentar, através das lacunas da escrita, algo que vai além da função de representar uma
dada realidade. De acordo com recentes pesquisas sobre o tema da representação no campo da
literatura, feitas por Alfredo Bosi (2002), os textos literários publicados recentemente vêm
apontando para um “novo real”, na medida em que não se trata de um realismo que pretende
retratar uma realidade pré-existente, mas tornar esse real presente no texto literário, com toda
a força em termos de afetos (termo deleuziano cunhado para tratar de algo que é transmitido
pela via dos sentidos e não da representação), para que este real impossível possa se escrever.
Para isso, são criados efeitos de realidade com transgressão dos limites representativos
do realismo histórico, através do aspecto performático da linguagem literária, destacando-se o
efeito afetivo em lugar da questão representativa. Trata-se de textos que não se colam à
realidade como mero espelho, mas pretendem ser um profundo estudo das relações humanas,
cumprindo o papel de colocar em cena questões cruciais dos viventes, criando a possibilidade
de refletir sobre essas relações. A realidade assim “se faz presente a partir de uma tensão
interna que a faz resistente enquanto escrita.” (BOSI, 2000, p.129).
Oposta à dimensão do realismo que defende a escrita como reflexo da realidade, essa
forma de escritura não constitui uma variante literária de uma rotina social. “Seu papel
revolucionário seria cavar um vazio nessa espessa materialidade, vazio jamais preenchido
pelo discurso especular das convenções ditas realistas” (BOSI, 2000, p.134). A escritura
resgata não só o que foi dito, mas principalmente o que é silêncio. Em outras palavras, é uma
44
escrita que usa a palavra para forçá-la a dizer aquilo que está além dela. É uma escritura que
privilegia os restos, no sentido daquilo que não tem um lugar no simbólico, seja em que nível
for.
Nas crônicas de Lobo Antunes, o narrador de “A confissão do trapeiro” afirma que
não faz outra coisa na vida a não ser meter o nariz naquilo que os outros jogam no lixo,
no que abandonam, no que não lhes interessa, e regressar daí com toda espécie de
despojos, restos, fragmentos, emoções truncadas, sombras baças, inutilidades
minúsculas, eu às voltas com tudo isso, virando, revirando, guardando
(um caco de gargalo entre duas pedras do passeio, por exemplo).
(ANTUNES, 2006, p.133)
É como alguém que se ocupa dos restos que o narrador se define, seu trabalho é com
aquilo que o homem não quer saber, por trazer desprazer ou por ser da ordem do indizível.
Por isso a leitura desses textos desestabiliza: somos pegos numa teia de paradoxos e
deparamos, nós também, com as sobras/sombras da existência. Pode-se dizer que esse tipo de
narrativa revela uma outra vida que “abraça e transcende a vida real... é nesse horizonte que o
espaço da literatura, considerado em geral como o lugar da fantasia, pode ser o lugar da
verdade mais exigente” (BOSI, 2000, p.135). O espaço da crônica é particularmente propício
para este abraçar e para:
acharmo-nos ao mesmo tempo no interior e por fora da intensidade inicial, ou seja
do conflito entre o cotidiano e o esmagamento cósmico, atemorizados pelo horror e
a alegria primitivas, vagando sem cálculo nem sentido pelo ermo dos dias.
(ANTUNES, 2006, p.134)
Se nos restos encontra-se algo que produz horror, lá também a alegria primitiva tem
morada. Encontram-se no lixo belezas inesperadas, “brilhos, cintilações, serventias”
(ANTUNES, 2006, p.133). Verdades surpreendentes podem estar no meio do que parece não
ter valor. Mais uma vez aqui a estrutura moebiana apresenta-se nesse espaço a um só tempo
interior e exterior, situado entre o cotidiano e o cósmico, entre o horror e a alegria.
45
Scholhammer (2000), seguindo uma linha de raciocínio semelhante, vai afirmar que,
quando a literatura se depara com os limites da representação, “a batalha ocorre dentro da
linguagem” (SCHOLLHAMMER, 2000, p.245). Nesse embate surge uma redefinição do que
é real, na medida em que o texto cria efeitos de real. Nessa perspectiva, a literatura se torna
não só um meio de representar a realidade, mas de criar uma realidade perceptiva. Essa nova
literatura pode fazer surgir um efeito sensível que, não necessariamente, liga-se ao conteúdo
da mensagem, mas indica “um limite desse conteúdo enquanto sentido e aponta para um além
dele, para o seu não-sentido. Nesse limite a linguagem se confronta com o seu avesso, com o
inominável ou o indizível” (SCHOLLHAMMER, 2000, p.246-247).
Retornando à crônica de Lobo Antunes recém-mencionada, ao defender que a sua
escrita se faz a partir dos restos, lá onde a linguagem faz limite, o narrador termina assim o
texto:
Chegando à varanda é fácil dar por mim, parado quase à esquina, a remexer
sedimentos e sedimentos
(restos, emoções truncadas, sombras baças)
até vos tocar e me tocar no por dentro de nós, onde aflitamente moramos...
(ANTUNES, 2006, p. 135)
O que o escritor pretende é tocar o leitor lá onde mora o resto, onde as palavras não
traduzem as emoções truncadas, mostrando o estranho que habita a nossa morada e constitui
parte integrante do nosso viver.
1.4 – Freud, o estranho e a literatura
46
Freud, em diversos momentos em sua obra, retoma o tema da literatura, ora para
ilustrar a teoria psicanalítica, ora para se debruçar sobre o que seria o fazer literário. No texto
“Escritores criativos e devaneios” (1908), apresenta uma visão romântica do texto literário e
do escritor. Este é considerado alguém capaz de transformar a realidade, suavizando-a, de
modo a produzir uma sensação de apaziguamento. Já em 1919, no ensaio “O estranho”, após
teorizar sobre algo que se encontra além do princípio do prazer e carece de representação, o
objeto da discussão diz respeito a obras literárias que produzem uma sensação de estranheza
que não é regida pelo princípio do prazer, pois não produz descarga de tensão e, portanto, não
traz apaziguamento. A pergunta que instiga Freud é: qual a natureza do estranho? Como ele se
apresenta na literatura de ficção?
Afirma que o estranho está associado ao assustador e que a literatura tradicionalmente
costuma ocupar-se do que é belo, atraente, negligenciando o que causa repulsa. Inicia sua
pesquisa pelo dicionário, deslizando sobre os diferentes sentidos da palavra alemã Heimlich
familiar, e seu oposto, Unheimlich – estranho. Nos desdobramentos dos possíveis sentidos,
Freud demonstra que um dos sentidos da palavra Heimlich é idêntico ao seu oposto,
Unheimlich, pois Heimlich significa, ao mesmo tempo, o que é familiar e agradável, assim
como o que está oculto e se mantém fora da vista; enquanto Unheimlich é o que deveria ter
permanecido secreto, mas veio à luz. O sentido se desenvolve em direção à ambivalência, até
coincidir com seu oposto, para concluir que o estranho faz parte da categoria do assustador
que remete ao que é conhecido. Pergunta-se então: em que circunstâncias o familiar pode
tornar-se assustador? A conclusão é de que o estranho não pertence à casa e, no entanto, mora
aí, e pode ser secretamente familiar.
Freud esclarece em seguida que o estranho na literatura abrange algo mais, na medida
em que a fantasia tem por característica não se submeter ao teste de realidade. O escritor pode
escrever de forma a imitar a realidade, ou afastar-se dela o quanto quiser. Nos contos de fadas,
47
por exemplo, o escritor se afasta da realidade sem que isso cause estranheza. Portanto, não é o
simples afastamento da realidade que está associado ao estranho. A sensação de estranheza é
transmitida quando o escrito se move na realidade comum, criando condições para produzir
afetos que ocorrem na vida real, podendo até multiplicar os efeitos de estranheza.
Segundo Freud, o escritor nos ilude quando promete dar-nos a pura verdade e no final
excede essa verdade. O excesso vai abrir espaço para o surgimento do estranho. A fantasia – o
simulacro – revela uma verdade a partir do excesso, uma verdade que se encontra fora do
campo do saber. Assim, no fingimento, na mentira da literatura, uma outra verdade pode ter
voz.
Ana Maria Portugal (2006), em O vidro da palavra, fazendo um cuidadoso estudo
sobre esse ensaio de Freud, conclui que o estranho é um conceito limite, espécie de litoral que
tangencia tanto a literatura quanto a psicanálise. Mostra que essa tangência se faz pela via do
conjunto vazio, está ao mesmo tempo dentro e fora do campo da linguagem. Esta atopia se
inicia pelo estudo semântico feito por Freud sobre os termos Heimlich – Unheimlich,
mostrando que o estranho e o familiar em um momento coincidem em termos de sentido. A
sinonímia do estranho e seus derivados traz a idéia de um afastamento e, simultaneamente,
uma aproximação devido a afetos de censura, de desconfiança, de não conhecimento, de
admiração, de mistério, como se fosse suspeitamente familiar. O termo familiar sofre uma
torção para chegar ao que é assustador e angustiante. Aquilo que é familiar, de tão íntimo,
chega ao secreto, por isso o estranho desperta o sujeito do sonho alienado da casa, do familiar,
marcando algo fora, com o qual o sujeito tem que se haver.
Portugal (2006) demonstra que o estranho diz respeito à psicanálise, pois consiste em
reproduzir, “em redoar esta metade sem par da qual subsiste o sujeito, no ponto em que o
inconsciente não se estrutura como uma linguagem” (PORTUGAL, 2006, p.161). E afirma
que a escrita do Unheimlich pertence também a uma literatura que aponta para uma “certa
48
estética do deserto, do exílio, da solidão e do silêncio, (...) que toca a experiência do real, na
implicação de cada um em relação ao tempo sem memória da constituição do ser na
linguagem” (PORTUGAL, 2006, p.162). Ou seja, ao tratar do estranho, Freud está falando de
formas de apresentação do real, tanto na literatura quanto na clínica. Há um litoral entre a
psicanálise e a literatura onde o estranho/real insiste e, de certo modo, se escreve.
Os contos analisados por Freud em seu ensaio podem dar, enganosamente, a impressão
de que o estranho estaria necessariamente atrelado à questão do fantástico e do terror.
Entretanto, ao desenvolver seu raciocínio, o pai da psicanálise torna relativa essa ligação, pois
constata que nem sempre o fantástico está relacionado à estranheza e defende o estranho
como associado aos efeitos que são produzidos no leitor, principalmente quando algo
inesperado é introduzido no cotidiano, ou seja, quando o Unheimlich se imiscui no Heimlich.
Para que o estranho se evidencie, os escritores utilizam a via do duplo, da repetição, da força
do olhar, da loucura e do nonsense.
Na literatura, o estranho amplia o conceito de estética, que sai do campo do belo para
incluir também o assustador e o angustiante. “É o anúncio do real, fazendo com que a
psicanálise suponha para o desejo humano um princípio mais além do principio do prazer.”
(PORTUGAL, 2006, p.18). De acordo com a autora, quando o escritor produz a sensação de
estranheza, o leitor experimenta uma divisão externa/interna que pode ser deslocada para o
autor, ou produzir efeitos de inconsciente. Em outras palavras, o leitor se vê invadido por algo
que é estranho ao eu. O escritor da trama decide pela estranheza quando é tocado em pontos
nos quais “a própria estrutura linguageira mostra seus buracos.” (PORTUGAL, 2006, p.47). É
nesses pontos de falha que o imaginário do leitor é convocado a acompanhá-lo. Nessa
49
realidade fingida da ficção, o afeto que nos causaria divisão é elaborado com a participação da
fantasia
12
e pode interpelar o real de diferentes maneiras.
Ora, um espaço rico para fazer esse jogo é o da crônica, justamente por ter um estatuto
ambíguo: se usualmente é tida como o lugar do familiar, pode capturar o leitor para “um tipo
diferente de mergulho no real.” (SATO, 2002, p.34). Lobo Antunes é capaz de brincar com
essas noções, subvertendo o cotidiano e trazendo o surpreendente. Para isso, utiliza todos os
elementos apontados por Freud como indicadores da presença do estranho:
- a repetição de relatos, particularmente ligados à infância, que retornam de maneira
fantasmática, em que o tempo faz um movimento de ritornelo, indo e voltando, trazendo algo
de novo ao velho, ou modificando o novo a partir do velho;
- na incidência do duplo, mostrado de maneira reiterada por um narrador que se olha
no espelho e não se reconhece;
- na força do olhar que irá se mostrar também pela via do espelho que não apenas
reflete, mas também olha;
- na loucura e no nonsense que vão-se apresentar na sensação de divisão do eu e de
desconhecimento de si mesmo descritas do ponto de vista do próprio narrador; e também ao
referir-se a pacientes que habitariam o hospital psiquiátrico; assim como na estereotipia dos
costumes sociais.
12
De acordo com o Vocabulário de Psicanálise de Laplanche e Pontalis (1985) a palavra Phantasie em alemão
é ambígua, designando ao mesmo tempo a atividade criadora e suas produções. A extensão do termo deixa
imprecisa a sua situação tópica, o lugar psíquico da formação considerada. Isto teria levado, nas traduções, em
nome da precisão, ao desmembramento em mais de um termo, para distinguir diferentes tipos de produções
imaginárias. Por exemplo, em francês encontramos o termo phantasme para se referir à fantasia inconsciente, e
reve eveillé para se referir ao devaneio. Entretanto, Laplanche e Pontalis consideram que, apesar de realmente
Freud se referir a diferentes níveis de fantasia em sua obra, ele não parece interessado em distingui-los, antes,
está mais propenso a insistir nas ligações entre esses diversos aspectos. A fantasia seria um ponto privilegiado
onde se poderia apreender ao vivo o processo de passagem entre diversos lugares psíquicos, o que evidencia o
fato da fantasia não ter um lugar psíquico específico, transitando do inconsciente para o consciente. Com isso, o
papel da fantasia na criação literária ganha um novo estatuto, não podendo ser reduzido a uma simples fuga da
realidade. Esta consideração psicanalítica sobre a fantasia aproxima-se das teorizações de Iser, no que diz
respeito ao fictício, como se será vista mais adiante.
50
Para Freud, o estranho também está associado à incidência da castração
13
vista como
uma experiência de desamparo que marca um limite inerente à existência. De acordo com
Portugal (2006), quando, na literatura, o estranho se associa ao desamparo, encontramos
textos em que paira uma atmosfera de vazio e de deserto que remete à solidão, ao escuro, à
descontinuidade. Nesse ponto, afirma a autora, o Unheimlich toca o real não inscrito.
Nas crônicas de Lobo Antunes evidencia-se um cotidiano rotineiramente vazio e
solitário, em que os narradores se apresentam desencontrados nas relações que são tidas como
íntimas, mas que são vividas com estranheza, assim como nas relações sociais que ocorrem
em círculos mais amplos. Evidencia-se, por fim, na própria escritura que resulta em textos
fraturados que, ajudados pela ironia e o humor, desestabilizam as conquistas do saber,
destituem os valores instituídos e criam, pela via do texto, uma outra noção de real em
substituição à de realidade, assim como outra noção de verdade em disjunção com a de saber.
O conceito de estranho cunhado por Freud pode ser relacionado com as idéias de
Deleuze a respeito da literatura. Esse filósofo toma o estranho
14
, não como uma temática, mas
como uma especificidade do texto literário e da arte de um modo geral. Ele acredita que, na
arte, o estranho habita o familiar, constituindo uma passagem do território à
desterritorialização. “A arte conjuga de todas as maneiras esses dois elementos vivos: a casa e
o universo, o Heimilich e o Unheimilich, o território e a desterritorialização.” (DELEUZE,
GUATTARI, 1992, p.240). A contribuição de Deleuze é de fundamental importância na
13
Vivida inicialmente na infância, mas reativada na vida adulta, a experiência de castração mostra que há limites
para as possibilidades pulsionais, mais estreitos que as asas do desejo; este sim é ilimitado, uma vez que não
pode ser circunscrito por nenhuma representação. Freud (1927a) apresenta, mais tarde, uma outra dimensão da
castração, imaginariamente percebida com a ausência do falo materno, mas que indica algo muito mais amplo: a
castração do Outro, ou seja, a falha no simbólico que, por não ter as respostas que esperamos, atira-nos na
vivência de desamparo.
14
Vale esclarecer que o estranhamento - tomado como possibilidade da linguagem se desviar e apresentar novos
sentidos – foi considerado, a partir dos formalistas russos, um elemento básico para se pensar a produção
literária. Entretanto, os formalistas tomaram o estranhamento como um procedimento em relação à língua, por
isso generalizaram a presença do estranhamento como sendo inerente à definição de literatura, pois ela é que
permite esse deslizamento de significantes capaz de criar novos sentidos. O estranho para Deleuze, assim como
para Freud, mesmo quando diz respeito à literatura, não cabe em qualquer produção literária, refere-se a uma
escritura mais específica. (PORTUGAL, 2006)
51
medida em que o filósofo está radicalmente comprometido com a dimensão da invenção e, no
decorrer de sua vida, por vários momentos, debruçou-se sobre a especificidade da produção
artística, desenvolvendo vários conceitos para lidar com esse tema. Em O que é filosofia
(DELEUZE, GUATTARI, 1992), afirma que o artista, entre eles o escritor, excede os estados
perceptivos e as passagens afetivas do vivido, acessando a um jamais vivido. Trata-se de
liberar a vida lá onde ela é prisioneira. “O escritor serve-se das palavras, mas criando uma
sintaxe que faz gaguejar a língua corrente” (DELEUZE, GUATTARI, 1992, p.228). Ele
sempre se coloca como um estrangeiro diante da língua natal. Talvez seja possível concluir
que Deleuze só considere arte um certo tipo de produção, essa que faz vacilar o saber e, em
seus vazios, dê lugar ao inusitado.
Também quando Lacan (2003) cria o neologismo lituraterra para se referir à criação
literária, podemos concluir que não é a um texto literário qualquer que ele se refere. Diz, ao
contrário, que a literatura, a das belas letras, não lhe interessa, mas sim uma produção
particular, essa que faz sulcos na linguagem. O campo da letra
15
se marca por um litoral que
separa universos distintos – terra e mar; simbólico e real – que não são complementares, mas
se tangenciam. E o encontro entre esses universos se dá sob a força da resistência,
produzindo-se na heterogeneidade. A letra faz sulcos no simbólico, rasga-o e introduz outras
possibilidades para a escrita.
As ponderações da psicanálise e da filosofia sobre literatura são interessantes porque
ajudam a compreender que as crônicas – espaço atribuído usualmente ao familiar – podem
também dar lugar ao surgimento do estranho, visto que o familiar e o estranho não se
15
Embora o conceito de letra por si só tenha uma complexidade suficiente para ser tema de uma tese, é
importante que se possa contextualizar esta noção. No “O Seminário sobre a carta roubada”, publicado nos
Escritos (1998), Lacan usa o conceito de letra para afirmar a hegemonia do simbólico, a determinação do
sujeito pelo campo do Outro. Portanto, nessa primeira definição, é na dimensão simbólica que o conceito de letra
aparece enfatizado nesse momento. À medida que Lacan caminha em sua teorização, a concepção de letra vai ter
um vínculo cada vez maior com o real, distanciando-se da noção de significante, a ponto de criar o termo
lituraterra para referir-se a uma literatura em que a letra se faz presente a partir de buracos/falhas do
simbólico.(LACAN, 1971, inédito)
52
excluem, um não destitui o outro, pelo contrário, a escrita do cotidiano pode ganhar outras
dimensões, ultrapassar limites. Nessa ultrapassagem do vivido, das marcas do biográfico, é
que se chega a um jamais vivido.
1.5 – A literatura, o real e o imaginário
Retomando as considerações psicanalíticas sobre a função da imaginação vista como
uma forma de fazer frente ao real, Perrone-Moisés (1990) lembra que fazer frente não
significa, necessariamente, tampar esse real; às vezes ela tem o poder de evocá-lo. Assim, o
que se encontra em Lacan é que somente o recurso à escritura pode sustentar a incompletude;
este lugar da falta de um significante que não deve ser procurado em lugar nenhum, pois sua
ausência faz parte do jogo. A incompletude apóia-se, decisivamente, na escritura porque ela
permite expandir seus elementos e possibilitando o surgimento de algo que vai além do
sentido veiculado pela palavra. E na medida em que evoca o real, a literatura pode-se tornar
uma forma de verdade, uma verdade que não pode ser vista a olho nu e que é captada pela
rede da linguagem. É bom lembrar que rede é um tecido constituído de linhas e buracos, como
pode ser observado no texto de Clarice:
Escrever é um modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que
não é palavra. Uma vez que se pescou a entrelinha, podia-se com alívio jogar a
palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a.
(LISPECTOR, 1999, p.385)
A escritura afirma-se como indescritível para qualquer ciência particular, talvez por
isso ela se encontre presente nas considerações de autores de campos diversos: psicanálise,
filosofia, crítica literária, como vem sendo apresentado neste trabalho. A escritura funciona
53
como questionamento das ciências estabelecidas sobre as noções de sujeito e de discurso, na
medida em que arruína o sujeito idealista e o discurso logocêntrico. O texto é o lugar de uma
perda, de um fading do sujeito. Também, não pode prestar-se a uma descrição sistemática já
que é a subversão de toda sistemática. Outro aspecto de fundamental importância a ser
considerado é que a escritura não determina nem revela um ser próprio, mas produz um
sujeito em permanente crise e em permanente mutação. Como diz Castello Branco, “a escrita
poderia se equivaler a um desaparecimento do sujeito: aí onde não se está, eis a escritura. E,
no entanto talvez seja a escrita em sua qualidade material de traço a única evidência de que ali
houve um sujeito” (CASTELLO BRANCO,1997, p.12).
Tais concepções mostram a influência da concepção lacaniana de sujeito, em que ele é
concebido como o intervalo que se interpõe entre um significante e outro significante. Ele é o
que se desvanece, uma vez que não é nenhum dos significantes que o circunscrevem,
tampouco os dois juntos. Trata-se de um efeito de sentido, mas o sentido em jogo não se fixa
em determinado significado, pois é um sentido que se desloca e se desfaz. Segundo Sergio
Laia :
o sujeito literalmente se inter-cala entre dois significantes, não só porque ele é o que
se interpõe entre um e outro, mas sobretudo porque o efeito de sentido que ele encarna
– ao estar sempre se escapando da fixação em um significado – introduz no
encadeamento ruidoso dos significantes uma zona de silêncio. Por isso a letra que
designa o sujeito é marcada com uma barra. (LAIA, 1997, p.139-140)
Assim como faz Clarice em sua escritura, Lobo Antunes também usa palavras
pescadoras. Na crônica “O gordo e o infinito” a relação da escrita com o vazio, mais que
tematizada, é mostrada. A crônica se inicia com a frase: “há mais de uma hora à procura de
uma idéia para esta crônica: não tenho nenhuma” (ANTUNES, 2002, p.93). A partir daí, a
crônica flui, como num processo de associação livre e o restante do parágrafo apresenta a
dispersão de idéias: passos no corredor, barulho de automóveis, vozes. O movimento de por e
54
tirar os óculos e o trabalho de preencher os vazios das letras – matéria prima da escrita – e dos
números.
Junto a esses vazios, há aquele deixado pelo dente que quebrou. O dente quebrado
remete ao dentista, aquele que aconselha a cuspir, quando se está de babete no pescoço. O
processo de associação continua a deslizar e o babador usado no dentista traz algo da infância.
Assim, compara o ato de cuspir, tão ridículo quando se está no dentista, com o ato de cuspir
na infância, quando cuspia lindamente. O cuspe era considerado poderoso e causava inveja na
turma (Várias crônicas referem-se ao cuspir, metáfora de não aceitação do que lhe é imposto).
O cuspe leva ao “gordo”, colega de turma que era primeiro aluno, mas não sabia
cuspir. O gordo exibia seus conhecimentos e afirmava que as paralelas nunca se encontravam.
O professor corrigia e dizia que elas se encontravam no infinito. Para o narrador elas não se
encontravam porque tinham mais o que fazer, referindo-se a sua falta de interesse pelo que era
ensinado na escola. O símbolo do infinito é mostrado como frágil, um oito que não tem força
nem para se manter de pé, apontando a fragilidade inerente à existência.
Em seguida a crônica ganha um tom sarcástico, desdobra-se no tempo, passado e
presente se fundem. O narrador fala de um encontro com o gordo – que pelo peso corpóreo
encarna o excesso do instituído – em um restaurante em companhia de outros gordos. De
gravata e telemóvel – símbolos do poder –, prontos a dar solução a qualquer problema de fuso
horário que o professor lhes perguntasse durante o almoço. O gordo, cheio de certezas,
“deixava cair frases definitivas para sua assembléia de gordos deferentes” (ANTUNES, 2002,
p.94). Enquanto o narrador com a língua e o mindinho escarafuncha a falha, a princípio do
dente, mas que ganha uma dimensão mais ampla, fazendo um contraponto à sabedoria e ao
poder do gordo.
A comicidade desliza do personagem gordo para o narrador, a ironia se transforma em
humor. Se quando criança o cuspe era símbolo do poder, na vida adulta o cuspe limita-se a ser
55
“um fiozinho obediente, sem penache nenhum” (ANTUNES, 2002, p.94). Perdem-se os dons
que se supunha ter na infância. Agora nem pode preencher os círculos da boca aberta do
gordo, que poderia destronar aquela vã suposição de saber.
A aparente cordialidade do encontro, manifestada pelo gordo, é marcada por
hostilidade por parte do narrador. Os gordos comem chocos com tinta e o narrador deseja que
espinhas os impedissem de engolir. Mas os gordos engolem triunfais “enquanto meu dedo,
coitado, vasculha ruínas” (ANTUNES, 2002, p.95) – do dente quebrado, do passado, das
falhas, do desencontro, da fragilidade do infinito – “antes de regressar, humilde ao bacalhau”
(ANTUNES, 2002, p.95). As ruínas o levam de volta ao tema da dificuldade da escrita,
presente na primeira frase da crônica: o que vou escrever hoje?
Pode-se ver aqui o deslizamento dos referentes e os contornos que o narrador faz em
torno do buraco do real. Equiparado ao buraco do dente, a escritura faz contornos nele, pois
não quer tampá-lo, mas evidenciá-lo.
Também Schollhammer (2002) procura definir o que pode ser entendido, no âmbito da
literatura contemporânea como um “novo real”, em comparação com o realismo. Mostra que,
a partir do modernismo, a noção de realidade funcionou como limite de representação que
servia como contraponto à experimentação artística, marcada pela desreferencialização da
escrita e da obra de arte, em oposição ao movimento realista do século XIX.
Mas o que se pode entender por “novo real”? O autor recorre às teorizações de Hal
Foster (1994), ao sugerir que ele não estaria mais ligado ao efeito de representação, mas que
deveria ser entendido como “evento de um trauma.” A obra se torna real quando é capaz de
produzir “efeitos sensuais e afetivos parecidos ou idênticos aos encontros extremos e
chocantes com a realidade em que o próprio sujeito em sua suposta inteireza é colocado em
questão” (SCHOLLHAMMER, 2002, p.82). Ou seja, vê-se como um sujeito dividido. A
56
tendência seria reproduzir esse efeito de trauma
16
. A experiência traumática “pode ser apenas
evocada, uma vez que articula um limite intransponível da representação, um lugar do
silêncio, do invisível, do inarticulável.” (FOSTER, 1994, p.147 citado por
SCHOLLHAMMER, 2002, p.82).
Diante do traumático ocorre o que, de acordo com Schollhammer (2002), Lacan
denomina de quiasma
17
– construção anômala originada do cruzamento de construções
normais – entre uma visão que emana do sujeito e um olhar que emana do objeto. Além de
olhar, o sujeito sente-se olhado pelo objeto, numa espécie de alucinação. Esse olhar de fora é
que produz efeitos de real. O quiasma não leva o sujeito a reconhecer sua continuidade em
relação ao mundo, mas, ao contrário, a uma experiência de alienação, de falta.
Essa interpretação feita a partir das teorias de Lacan permite pensar que a imagem
pode caracterizar-se por exercer uma outra função. Ou seja: não a de acolher o mandado
representativo de pacificar o olhar, unindo o simbólico e o imaginário contra o real, mas a de
expor o efeito mortificante sobre o sujeito, podendo ser “um lugar de embate com a
estabilidade representativa do visível” (SCHOLLHAMMER, 2002, p.85). É como se aí a obra
se tornasse algo abjeto – nem objeto e nem sujeito – para evidenciar o trauma e tocar o real.
Parece que quando Freud, como já mencionado, refere-se à força do olhar como uma forma de
apresentação do estranho, está apontando algo dessa ordem.
Nas crônicas, a presença do narrador estranhado diante da imagem que o olha do
espelho produz esse efeito. É uma imagem que não pacifica, pelo contrário, interroga, produz
furos na imagem. Quem é esse? Quem sou eu? Assim, na crônica “Antonio 56 ½” parece que
deparamos com a transformação do eu em um ele sem rosto. Refere-se à fragmentação –
16
Conceito freudiano para se referir ao que não pode ser representado mas que retorna sempre, pedindo
representação.
17
Essa construção se dá a partir de dois cones. No primeiro, há um sujeito focal e inteiro que olha e, a partir do
seu olhar, o sistema representativo é organizado. No segundo cone está o sujeito em posição de quadro, no qual
se reflete o olhar mortificante do objeto. Na sobreposição dos dois cones, o sujeito encontra-se dividido entre o
lugar de sujeito da representação e o da subjetividade neutra e exterior produzida a partir do olhar
alheio.(LACAN, 1988b)
57
pedaços de rosto refletidos numa experiência inquieta. A imagem refletida é um duplo que
não constrói o presente, nem o passado, mas produz estranheza. O estranho aqui é uma
espécie de revelação do real, muito diferente de realidade, pois é um reino equívoco onde já
não existe limite, nem intervalo e onde cada coisa absorvida em seu reflexo aproxima-se da
consciência que se deixou encher pelo anonimato. A imagem no espelho, em vez de levar ao
apaziguamento, produz o quiasma. É um olhar alheio:
acharmo-nos ao mesmo tempo no interior e por fora da intensidade inicial, ou seja
do conflito entre o cotidiano e o esmagamento cósmico, atemorizados pelo horror e
a alegria primitivas, vagando sem cálculo nem sentido pelo ermo dos dias.
(ANTUNES, 2006, p.134)
Lobo Antunes, embora em entrevistas afirme desgostar da psicanálise e não ter
conhecimento dos autores a que aqui recorremos para fazer uma leitura de suas crônicas,
coloca na boca do narrador da referida crônica:
Nunca decidira escrever livros: qualquer coisa ou alguém impunha-lhe que os
fizesse e dava graças a Deus que aqueles de quem gostava fossem criaturas livres e o
considerassem com uma espécie de indulgência que se sente em relação a quem
perdeu um braço ou uma perna a serviço de uma causa insensata. Os amigos tinham
a tendência a guiá-lo com a mão amável com que se conduz um cego, avisando-o
dos desníveis da rua, certos que uma inocência desamparada o habitava deixando-o,
indefeso, à mercê de quase tudo e principalmente de si próprio. Se pudessem
tiravam-lhe os atacadores e o cinto como se faz aos presos a fim de o impedir de
escapar-se sabe-se lá para onde ou de morrer por descuido, dado que não distinguia
o açúcar da areia nem os diamantes do vidro, ocupado como andava a gravar
palavras tão profundamente que se pudessem ler, como Braille, sem o auxílio dos
olhos. Que os dedos corressem pelas linhas e sentisse o fogo e o sangue. Para que
sentissem o fogo e o sangue tornava-se necessário que ele ardesse e sangrasse.
Saberiam os aspirantes a escritores o que se paga por uma única página?
(ANTUNES, 2002, p.18) (grifo nosso)
O que se pode perceber aqui é que, para Lobo Antunes, a escritura é aquela que
produz sulcos na linguagem, que fere o papel como o Braille e, por isso, faz sangrar. Para
transmitir o que está além da palavra é preciso que o escritor, habitado pela experiência de
desamparo, desocupe-se das preocupações do cotidiano e, não por um ato de escolha,
58
dedique-se a essa causa insensata de escrever o que é impossível de ser escrito. Ou seja,
inscrever a letra capaz de sulcar a pele/texto e tocar o real.
Prosseguindo com as ponderações sobre as relações entre o real e o imaginário no que
diz respeito ao texto literário, Blanchot (1987) tem contribuições valiosas, pois distingue duas
versões do registro imaginário. A primeira versão estaria ligada à forma de dispormos os
objetos. Na ausência do objeto, a imagem confunde-se com sua significação. Essa versão
estaria veiculada à arte clássica. O outro tipo de imaginário corresponderia a imagens que não
são suportadas por nada, constituem um acontecimento indecifrável. Na primeira versão, o
imaginário teria a função de mascarar o real e, na segunda, de operar a partir dele,
evidenciando-o.
18
De acordo com Lopes (2004), pode-se compreender a partir de Blanchot que, nessa
passagem de uma versão para outra, “passa-se do desinteresse implicado na contemplação da
imagem ideal para uma passividade em que se é tomado pelo exterior, mesmo quando é o
mais íntimo que se torna exterior.” (LOPES, 2004, p.76-77). Assim, continua a autora, “a
imagem deixa de supor uma relação ao visível e revela-se sobretudo como figuração do não-
visível” (LOPES, 2004, p.77). Desse modo ela nega o sublime que caracterizaria a primeira
versão do imaginário. Pelo contrário,
Ela afirma tanto a dor da perda como a alegria da criação; a dor de ser o passado e
não dominar o passado, a alegria de ser por esse não domínio que se abre o futuro
em sua imprevisibilidade (...) imagens que desfazem a alternativa entre o sistema de
signo e sua apropriação pelo sujeito, constituindo um espaço outro. (LOPES, 2004,
p.77)
Esse espaço só pode ser visto de maneira lateral, pois não se apresenta no seio do
discurso. Pode-se concluir que, para um certo tipo de literatura, o real se apresenta e não se
18
A primeira versão do imaginário condiz com a delimitação desse registro feita por Lacan na década de 50 e a
segunda com as contribuições do psicanalista na década de 70, quando privilegia o registro do real.
59
representa, pela via do imaginário. Mas, como o que é da ordem do indizível se apresentaria
no imaginário?
As ponderações de Iser (1983) sobre o fictício podem ser esclarecedoras desse tema,
uma vez que o autor faz um questionamento dos limites entre ficção e realidade, tanto no que
diz respeito à realidade que se apresenta na ficção, quanto na incidência na ficção daquilo que
é suposto ser realidade. De maneira tangencial aos conceitos psicanalíticos, irá defender o ato
de fingir como uma condição para que as produções imaginárias, vistas usualmente como
difusas, sejam transladadas a uma determinada configuração, que se diferencia dos devaneios,
sonhos e outras produções da fantasia. No fictício se produziria uma transgressão dos limites
do imaginário em sua fronteira com o real.
O artifício do trabalho de ficção estaria na forma de combinar o significado verbal, o
mundo introduzido no texto e o esquema de organização dos personagens e suas ações. Essa
relação ganha estabilidade pelo excluído e o que está ausente passa a ganhar presença,
...em um campo de co-presença, que faz com que as relações realizadas incidam
sobre sua zona de sombras e possibilitem a diversa estabilização desta. O
relacionamento, portanto faz com que as posições interligadas sejam transgressoras
de sua posicionalidade, mas também que as relações realizadas – de acordo com a
exigência intencional do texto – transgridam as possibilidades rechaçadas. (ISER,
1983, p. 966)
O imaginário poderia assim operar no espaço do real e permitir a experimentação de
um acontecimento que não é referenciável.
A conclusão de Iser faz lembrar a tese de Ana Portugal, pois a autora acredita que a
realidade poética consegue manejar maiores ou menores efeitos do estranho porque tem em
suas mãos o imaginário. Mas, tanto no excesso quanto na falta de imaginário, o estranho se
perde, prevalecendo o familiar. O estranho requer apenas um fio de imaginário para se
sustentar.
60
Pode-se perceber que todos esses autores citados, apesar de pertencerem a diferentes
campos, são unânimes em defender que a literatura pode exceder os limites da linguagem e
forçar a palavra a ir além do dito.
Antes de terminar esse item, é importante lembrar as contribuições de Deleuze e
Guattari (1977), autores já citados, contidas no livro: Kafka, por uma literatura menor.
Nessa obra eles vão, justamente, mostrar o vigor com que um texto, tido a priori como menor,
pode mostrar que “a língua é aí modificada por um forte coeficiente de desterritorialização.”
(DELEUZE e GUATTARI, 1977, p.25). Como já foi visto, se o território é marcado pela
certeza e pelo fechamento, na desterritorialização o acontecimento se abre para o insondável
das linhas de fuga.
O conceito de literatura menor foi pensado, inicialmente, para se referir aos textos
escritos em alemão pelos tchecos, ou seja, ao uso de uma língua por estrangeiros, no sentido
de que eles não a dominavam como dominariam a língua natal. Ora, se muito mais que falar,
somos falados pela língua, ela será sempre, inevitavelmente, estrangeira, particularmente no
texto literário. Ao classificar essa literatura como menor, os autores, de maneira invertida,
estão justamente fazendo uma exaltação a esse tipo de texto. A conclusão no final da vida de
Deleuze é mais ampla, torna-se, inclusive, epígrafe de um dos seus livros: “os belos livros são
escritos numa espécie de língua estrangeira” (DELEUZE, 1977). Deleuze, assim como Lacan,
não se interessa pela literatura clássica, a das “belas letras”.
Opondo-se a uma literatura maior, afirma: “a literatura menor começa por enunciar e
só vê e só concebe depois (a palavra, eu não a vejo, eu a invento). A expressão deve
despedaçar as formas, marcar as rupturas e as ramificações novas” (DELEUZE, GUATTARI,
1977, p.43). Pode-se ver como o conceito de literatura menor aproxima-se do que até agora
está sendo descrito como presença do estranho, característica fundamental para definir o
literário, de acordo com esses filósofos.
61
Em Kafka, por uma literatura menor (DELEUZE, GUATTARI, 1977), a obra de
Kafka é estudada, e os autores consideram de fundamental importância incluir nela as cartas
publicadas do escritor. Se Kafka não pensou em publicá-las, mas em destruí-las, Deleuze e
Guattari consideram que elas “constituem uma engrenagem indispensável, uma peça motriz
da máquina literária.” (DELEUZE, GUATTARI, 1977, p.44). Seria em função das
potencialidades e da insuficiência das cartas que outras peças da máquina literária teriam sido
montadas.
1.6 – Crônicas de Lobo Antunes: escrita de fragmentos
Este capítulo norteou-se pelo objetivo de demonstrar que o gênero crônica não pode
ser desmerecido, nem de um modo geral, nem no que diz respeito à obra de Lobo Antunes
especificamente. Apesar de aparentemente simples, as crônicas podem trazer revelações
inquietantes. Essas revelações dizem respeito, de acordo com a hipótese que norteia essa tese,
ao fato de haver vestígios do estranho entranhado no que trazem de familiar, permitindo uma
mostração do real, entendido como o que não é dito pela palavra, mas que se revela nas
entrelinhas do texto e é transmitido ao leitor. Elas não podem ser vistas como uma literatura
de segunda categoria, como seu autor as denomina.
Fazendo um paralelo entre as cartas no contexto da obra de Kafka com as crônicas no
conjunto da obra de Lobo Antunes, pergunto se não teriam pontos de contato importantes, se
as crônicas não exerceriam um papel semelhante ao das cartas. Onde elas se situariam no
contexto da obra? Reis (2004) afirma que é evidente que Lobo Antunes valoriza de maneira
desigual os romances e as crônicas, na medida em que se sabe do empenho e da exigência que
62
o escritor coloca na escrita de seus romances. Mas nas crônicas, continua Reis, encontram-se
funcionalidades que os romances podem amplificar ou minimizar. Nelas há
um espaço de fronteiras difusas e contornos imprecisos, tão difusas e tão imprecisos,
afinal como o próprio gênero discursivo que agora está em causa. Espaço
fragmentado, antes de mais nada, porque evocado pela parcelar e quase minimalista
capacidade de representação de textos cuja dimensão e fôlego são consabidamente
escassos; espaço que tende contudo à complexidade de um universo, se soubermos
encontrar os elos de conexão que ligam estes textos, próximos no tempo da sua
escrita e nas opções temáticas que revelam. (REIS, 2004, p.28-29)
É por se apresentar como uma escrita fragmentária, mas carregada de complexidades
que a crônica ocupa um lugar importante no conjunto da obra de Lobo Antunes. Reis afirma
também que Lobo Antunes opera uma remodelação do gênero, tanto no que diz respeito à
originalidade que se encontra nas crônicas, quanto ao gesto de visitar de novo pela escrita,
plasmar de novo, o que está nos romances, na medida em que há uma interação entre esses
escritos.
As crônicas seriam despojos, lixos dos romances? Pergunta Reis. Para responder a
essa questão, o crítico retoma O livro do desassossego de Bernardo Soares, de Fernando
Pessoa, que foi classificado por seu autor como lixo e, no entanto “consagra a fragmentação
como atitude estética e o fragmento como categoria literária.” (REIS, 2004, p.31). Se as
crônicas não têm a consistência de um romance, é “porque lhes sobra em fragmentação e em
intensidade subjetiva o que lhe falta em coerência orgânica” (REIS, 2004, p. 32).
Retomando as colocações de Deleuze e Guattari que veêm as cartas de Kafka como
uma peça motriz na obra do autor, parece ser possível transpor essa mesma relação para o
lugar das crônicas no conjunto da obra de Lobo Antunes. Também elas constituem uma peça
indispensável da máquina literária do escritor português. Como já foi referido, tanto Seixo
(2002), quanto Reis (2003) afirmam que se encontram nelas sementes de idéias que serão
elaboradas mais tarde nos romances, ou retorno à temas dos romances. É interessante observar
63
ainda que, em maior ou menor grau, os três escritores Fernando Pessoa, Kafka e Lobo
Antunes desmerecem alguns de seus escritos. Entretanto, tratam-se de textos ricos, inaugurais,
ou, no mínimo, fundamentais para a compreensão da obra desses autores. Parafraseando
Lacan (2003), de lixo (litter) à letra (letter) basta um passo.
E, se o real, visto como resto/lixo, da ordem do indizível, manifesta-se nessas crônicas
e em todas as obras que pertencem a um certo tipo de literatura, uma literatura menor que se
opõe à clássica, ele só poderá ser mostrado pelos vestígios que deixa no texto.
Freud, Lacan, Blanchot, Barthes, Deleuze e Iser, com terminologias e conceitos
diferentes, falam de uma escritura que revela algo que se encontra além do enunciado. Assim,
tomando as crônicas como uma escritura marcada pela fragmentação do tempo, pelo
desamparo, pela presença da ironia e de um humor voltado para o próprio narrador e para uma
reflexão sobre o fazer literário, é que se pode, a partir dos efeitos performáticos da linguagem,
detectar os vestígios do estranho no tecido familiar das crônicas.
É isso que se pretende mostrar nos próximos capítulos.
64
CAPÍTULO 2 – ESCRITA DE (DES) MEMÓRIAS?
- Deve ter sido assim, se calhar um bocadinho diferente, tanto faz.
Ou se calhar nada disso e tanto faz também. (Lobo Antunes)
Ao tentar circunscrever o que seria estranho, Freud recorre aos usos que a palavra
Heimlich teria a partir do dicionário (SANDERS, 1860, v.1, p.729 apud FREUD, 1919), onde
o psicanalista colhe a seguinte citação: o estranho seria “uma fonte enterrada ou um açude
seco. Não se pode passar por ali sem ter a sensação de que a água vai brotar de novo”
(FREUD, 1919, p.280). Nesse momento, o sentido da palavra pode ser invertido, sem que se
saiba mais o que distinguiria o familiar do estranho.
Esta citação de Freud é interessante porque permite refletir sobre a forma como Lobo
Antunes lida com o tempo. As lembranças se apresentam nas crônicas como uma espécie de
açude seco ou fonte enterrada: sempre podem brotar de novo. Ou ainda, o passado pode ser
também “o que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz”.
19
Essas considerações de Freud sobre o estranho ajudam a refletir sobre a questão das
memórias nos romances e crônicas de Lobo Antunes, pois em sua obra encontramos várias
referências a fatos da vida do autor. Além disso, esses relatos muitas vezes se repetem em
vários de seus textos, como se o autor estivesse sempre girando em torno de um mesmo eixo:
Há ocasiões em que me pergunto por que motivo, cada vez com mais freqüência,
regresso à Beira alta, e a única resposta é que me sinto um cão que deixou por aqui
um osso enterrado, que me lembro do osso sem ter a certeza de que osso é que era
nem em que lugar o escondi e, no entanto, necessito encontrá-lo como se o osso
fosse para mim uma questão vital. (ANTUNES, 2006, p.43)
Particularmente, no que diz respeito às crônicas, freqüentemente encontramos nelas
referências a tempos da infância, a nomes de familiares do autor e de outras pessoas
19
Definição de Heimlich proposta por Schelling e transcrita por Freud em seu ensaio.
65
conhecidas; a lugares de Lisboa onde, de fato, transitou; a cenários da guerra de Angola, em
que esteve em atividade nos campos de guerra; ou ainda a situações relacionadas à prática
psiquiátrica que consistiu de fato numa experiência do autor. Blanco (2002) enfatiza a
transparência dos traços autobiográficos presentes nas crônicas, assim como a reprodução de
sua forma de olhar a realidade. Ele se justifica: “porque não se inventa nada, a imaginação é a
maneira como se arruma a memória.” (BLANCO, 2002, p.114).
Outro dado que leva à impressão de “memórias” nas crônicas é o fato de a sua grande
maioria ser escrita em primeira pessoa. Há ainda outras que, apesar de escritas em terceira
pessoa, referem-se a um personagem chamado Lobo Antunes. Esse narrador/personagem
muitas vezes relaciona-se com situações vividas pelo autor, o que se confirma pelo confronto
com dados de entrevistas. Há também algumas crônicas nas quais é usado o pronome “eu”
para referir-se a acontecimentos completamente alheios aos dados biográficos.
A escrita em primeira pessoa tem a funcionalidade de dar um caráter íntimo e
confessional ao texto, fazendo uma bricolagem entre ficção e vida. Farra (1978) faz um
percurso teórico com o objetivo de legitimar o texto literário escrito em primeira pessoa.
Afirma que, no século XIX, os romances escritos em primeira pessoa eram considerados de
valor menor, porque a escrita autobiográfica não era vista como estilisticamente correta. O
que a crítica vai nos mostrar é que essa valoração negativa se deveu à ilusão de acreditar-se
que a voz do escritor seria sinônima da voz do autor. Farra considera que todo autor,
independentemente dessa dicotomia eu/ele, sempre cria uma nova realidade à medida que vai
narrando. O que ocorre de específico nas narrativas em primeira pessoa é que há uma relação
especial entre o autor e sua máscara narrativa. Por isso o leitor deve ser alertado para não
confundir escritor e narrador, risco que pode ser maior nos romances escritos em primeira
pessoa (e aqui será generalizado para as narrativas ficcionais). Nesses casos o narrador é, ao
66
mesmo tempo, sujeito do enunciado e sujeito da enunciação, encarnando o dizer enquanto
mostrar, dramatizando a própria mente enquanto narra a história.
A escrita em primeira pessoa, quando apresenta um eu fraturado, talvez seja uma das
formas mais incisivas de apresentação do estranho. Em várias crônicas publicadas nos três
livros de crônicas de Lobo Antunes, encontra-se um narrador que fala em primeira pessoa e,
em muitas, refere-se a um eu que não se reconhece.- Não sei quem sou, busco-me no meu
passado, mas também lá não me encontro -, repete o narrador de distintas maneiras, em
diversas crônicas escritas em forma de memórias de um passado que não se alcança e nem
pode iluminar o presente:
Ignoro, sinceramente o que me faz voltar. Saudades de quê? Nunca me senti
especialmente feliz aqui (...) A minha infância? O menino que deixei de ser tornou-
se um antepassado e em certa medida uma criatura enigmática, distante, da qual sou
filho ou neto, da qual conservo uns traços: o orgulho, a paciência, a solidão. O
sorriso, talvez. Já em criança se me afigurava esquisito haver nascido dos meus
pais: herdei pouca coisa deles, acho eu, qualidades, defeitos, parecenças físicas.
(ANTUNES, 2006, p. 107)
Matheus (2003), ao estudar a presença da infância nas crônicas de Lobo Antunes,
lembra que vários personagens e acontecimentos aí relatados se apresentam também nos
romances, havendo um espaço de sobreposição ou de contaminação entre os textos, tanto no
que diz respeito à temática quanto à forma. Uma das temáticas recidivas seria a da infância
vista, às vezes, como o único tempo em que a felicidade teria sido possível, em contraponto a
um presente desencontrado e, em outros momentos, como anúncio de um mundo já então tido
como decadente, marcado pela solidão e por valores vistos como duvidosos pelo narrador.
Também Reis ressalta, na obra de Lobo Antunes, um constante “chamamento da
criança ausente” (REIS, 2003, p.28), como um movimento proustiano de ressonância em que
uma memória nostálgica busca rever o outro que ele parece ter sido. “Tudo emerge numa
crônica que oscila entre o testemunho da recordação pessoal e o impulso para a
67
narrativização, quase de índole ficcional” (REIS, 2004, p. 28). O crítico afirma também que as
crônicas têm como um dos procedimentos recorrentes a inscrição da subjetividade do
narrador, “não raro com recurso à recordação autobiográfica.” (REIS, 2004, p.29) Afirma
ainda que Lobo Antunes remodela a concepção do gênero crônica, tecendo os seus textos
como conseqüência de
uma revisitação de um mundo que o escritor conhece por duas vias relacionadas
entre si: pela experiência de vida e pela ficção que tem escrito, sobretudo aquela em
que reconhecemos a marca forte da lembrança pessoal e do testemunho
autobiográfico. (REIS, 2004, p.30)
Mas o sujeito da escrita, que se apresenta em primeira pessoa, afirma não saber de si,
está particularmente perdido no túnel do tempo. Um fragmento da crônica “Província” é útil
para introduzir a reflexão sobre a dimensão do estranho/familiar a partir de uma noção não
linear do tempo, pois sem dúvida há uma correlação entre o eu fragmentado e o tempo visto
como lacunar:
Deve ter sido assim. Ou se calhar um bocadinho diferente, tanto faz. Ou se calhar
nada disto e tanto faz também. Quem vai se interessar, tirar a limpo, perguntar-me?
Seja como for é noite, era noite. Estava sentado na varanda diante da serra. Percebias
lá dentro, a conversa das pessoas crescidas, vozes, risos, discussões, risos de novo,
palavras que não entendias o que queriam dizer. (...) É obvio que foi assim.
(ANTUNES, 2002, p.65)
Ele exemplifica o modo como Lobo Antunes trabalha a dimensão do tempo e, como o
narrador brinca com a noção memória e imaginação, mostrando que pouco importa a
distinção entre fantasia e realidade, pois a primeira se embaralha com a segunda. O fragmento
também chama a atenção para o fato de o narrador homodiegético iniciar a crônica dirigindo-
se a uma terceira pessoa, um suposto leitor e, subitamente, mudar de direção e conversar com
um outro eu, um duplo de si mesmo, como se um adulto falasse com a lembrança da criança
que um dia teria sido (ou poderia ter sido).
68
Essa constatação do eu ser um outro é tratada particularmente pela psicanálise que
mostra como o sujeito humano é dividido por constituição. Há um Outro que fala em cada um
de nós. E o sujeito da escritura é justamente esse que, atravessado pela estranheza, não se
reconhece e, por isso mesmo, escreve. A propósito desse tema, o narrador da crônica “Herrn
Antunes” descreve a disjunção entre o narrador e a pessoa civil chamada Lobo Antunes,
tratada por Herrn, num hotel na Alemanha: “Dou com minha fotografia no jornal que o
hóspede da mesa ao lado folheia: não se assemelha a mim, conforme eu não me assemelho a
mim.” (ANTUNES, 1998, p.99).
Também em entrevista, Lobo Antunes afirma que “às vezes quando me leio, fico
surpreendido. E pergunto-me se sou realmente eu quem o escreveu (o romance) e volto a
sentir a sensação de que é o outro que escreve, o outro que recebe prêmios”. (BLANCO,
2002, p.164). A escrita então é tida como algo alheio, proveniente de outrem. Ao mesmo
tempo, em outros momentos das entrevistas, diz ter tratado em seus livros de situações que
teria vivido. Essas declarações que Lobo Antunes dá nas entrevistas a Blanco são sugestivas
para se pensar na relação vida e obra. Pois acredita-se que não se trata de ver a obra como um
espelho da vida, mas sim perceber como o autor ficcionaliza a vida, fazendo uma mistura
indissociável entre vida e obra, fantasia e realidade.
Parece que Lobo Antunes brinca com o leitor. Propõe um pacto autobiográfico e em
seguida o retira. Este dar e retirar a sugestão de veracidade factual do que escreve está
presente já no título de algumas crônicas: “António João Pedro Nuno Manuel”
20
(1998,
p.233), “Descrição da infância” (1998, p.343), “Subsídios para a biografia de Antonio Lobo
Antunes” (2002, p.49).
Nessa brincadeira o autor pode também fazer o inverso, ou seja, emprestar seu nome a
um personagem que parece não ter nada em comum com sua vida pessoal, tal como acontece
20
Nomes do autor e dos irmãos.
69
na crônica “A propósito de ti” (1998,p.153), em que o narrador/personagem se chama
“Antunes”. Assim, faz-se necessário aprofundar a relação entre escrita, memória e veracidade
factual do que se pode ler nos textos dessas crônicas, discutindo, inicialmente, o que seria um
texto autobiográfico.
2.1 - Considerações sobre auto-bio-grafia
Para fazer considerações a respeito da questão autobiográfica na obra de Lobo
Antunes e nas crônicas em particular, optou-se por uma partição dessa palavra em três termos:
auto é um prefixo que diz respeito a um si mesmo, bio significa vida e grafia diz respeito a
escrita. A primeira pergunta a que essa partição nos remete é: o que pode significar a
expressão: “si mesmo”? Se isso não é tão simples quanto pode parecer à primeira vista, mais
complexo se torna quando pensamos numa escrita de si mesmo.
Lejeune faz um estudo com o objetivo de definir o que seria uma autobiografia.
Afirma que um dos primeiros problemas encontrados ao tentar delimitar esse conceito diz
respeito às relações entre biografia e autobiografia, semelhantes às relações entre a novela
(ficção) e a autobiografia, devido à zona difusa que existe entre esses campos. Tomando como
ponto de partida o lugar de um leitor, Lejeune define a autobiografia como uma “narrativa
retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza
especialmente sua vida individual, sobretudo a história de sua personalidade” (Lejeune, 1980,
p. 14).
Essa definição coloca em jogo quatro categorias diferentes: 1 – forma da linguagem:
narração em prosa; 2 – tema: vida individual, história de uma personalidade; 3 – situação do
70
autor: identidade autor e narrador; 4 – posição do narrador: identidade narrador e personagem
principal, numa narração retrospectiva.
Para Lejeune, essas categorias estabelecem fronteiras com outros tipos de texto,
entretanto as condições três e quatro têm que ser necessariamente preenchidas. No caso da
autobiografia, há uma identidade entre autor e narrador ou não há, assim como deve haver
entre o narrador e o personagem principal, para que o prefixo auto possa fazer valer. Não
pode existir gradação possível e, se houver dúvida, ela implica em uma conclusão negativa.
Entretanto, essa identidade suscita problemas, tais como: Como se pode expressar a
identidade entre narrador e personagem do texto? Como se manifesta a identidade do autor e
do narrador nas narrativas em primeira pessoa? Até que ponto se confundem as noções de
identidade e semelhança (cópia certificada) nos textos que versam sobre o tema?
Lejeune, a partir das ponderações do lingüista Benveniste de que o eu seria apenas um
conceito gramatical, signo virtual que será preenchido apenas na instância discursiva, conclui
que é impossível capturar o eu, sendo igualmente impossível a escrita de si mesmo.
O que restaria ao leitor seria buscar dados objetivos para identificar um texto como
autobiográfico, tais como: identidade entre autor, narrador e personagem, remetendo ao nome
do autor escrito na capa do livro. De acordo com Lejeune:
Nesse nome se resumiria toda a existência do autor, único sinal no texto de uma
realidade extratextual inquestionável, que envia a uma pessoa real, que exige dessa
maneira que se lhe atribua, em última instância, a responsabilidade da enunciação de
todo o texto escrito. (LEJEUNE, 1980, p.51)
A conclusão de Lejeune é que a autobiografia se construiria a partir de um pacto, um
contrato entre autor e leitor, um modo de leitura e não necessariamente de uma tessitura de
eventos da vida do autor com outros elementos extratextuais, a não ser o nome próprio. Essa
definição, de acordo com o autor, põe em evidência o essencial: o contrato de identidade que
é selado pelo nome próprio, contrato que vale tanto para o leitor quanto para quem escreve o
71
texto. Na medida em que o conceito de identidade é relativizado – afinal é-se idêntico a quê?
– a pergunta sobre a legitimidade da autoria leva a uma outra interrogação.
Voltando às crônicas, em “Da morte e outras ninharias”, o narrador questiona até
mesmo o pacto proposto por Lejeune, ao indagar a questão da legitimidade do nome do autor
escrito na capa:
Cada vez menos os romances que publicam com o meu nome têm seja o que for de
deliberadamente meu. Na minha idéia, e digo-o com convicção absoluta, limito-me a
assistir. Chupam-me o sangue e o tempo e é apenas isso que me exigem. Deveriam
editar-se sem autor na capa, porque desconheço quem o autor é. (ANTUNES, 2006, p.
145)
Com relação à temática da inter-relação vida e obra, Miranda (1992) afirma que a
autobiografia literária situa-se “num centro de tensão entre a transparência referencial e a
pesquisa estética” (MIRANDA, 1992, p.30). Entretanto, o crítico expande suas considerações,
ao dizer que qualquer relato autobiográfico é uma auto-interpretação, uma maneira de se dar a
conhecer. Assim, o relato autobiográfico é, inevitavelmente, revestido / entretecido de
invenção.
O conceito de auto-retrato (BEAUJOUR, 1980) parece mais condizente que o de
Lejeune
21
para se pensar nas crônicas de Lobo Antunes uma vez que o auto-retrato é tido
como uma formação polimorfa muito mais heterogênea e complexa que uma narrativa
autobiográfica. Não seria uma autodescrição pois o autoretratista pretenderia fazer uma
homologia entre o eu e o mundo ( fazendo valer a banda de Moebius).
Miranda (1983) vai tomar o conceito de auto-retrato para analisar o livro Água viva de
Clarice Lispector e que pode também contribuir para elucidar a questão da vida e do texto em
Lobo Antunes. “O auto-retrato é um sistema de recorrências, retomadas, superposições e
correspondência entre elementos homólogos e substituíveis, de modo que sua principal
21
Mais tarde, o próprio Lejeune (1980) colocou em cheque o seu conceito de autobiografia.
72
aparência é a do descontínuo, da justaposição anacrônica e da montagem.” (MIRANDA,
1983, p.222). Assim o auto-retrato prescinde da unidade, é uma escrita de fragmentos, uma
vez que o narrador não conta o que fez, mas tenta dizer “quem é”, na tentativa de
compreender o mundo e a si mesmo. O trecho abaixo parece coerente com o conceito de auto-
retrato:
Nasci assim, casual combinação de moléculas a que chamam António, nasci assim
meio surpreendido , numa família que me toma por seu e engana-se,quantas vezes
penso que não sou daqui, oiço o que não há, vivo noutro sítio entre aparições, onde
as vozes deste lado me chegam confusas, remotas numa língua que não é bem a
minha e acompanhadas de sorrisos, palmadinhas, soslaios curiosos
- Nunca cá estás, pois não? (ANTUNES, 2006, p.141-142)
Na busca pela identidade o narrador gira diante de um espelho caleidoscópico que se
recusa a lhe dar a resposta, mas o obriga a continuar sua busca impossível que não se detém,
nem chega a nenhum porto seguro de certezas.
Numa direção semelhante, caminha Barthes. No livro que tem o título: Roland
Barthes por Roland Barthes, encontramos retratos de familiares, de lugares e pequenos
textos de impressões. Entretanto, na página de rosto, há uma epígrafe em forma de alerta:
“tudo isso deve ser considerado como dito por um personagem de romance”. O pacto aqui é
sutil: mesmo diante de fotos, retratos do passado, Barthes afirma que o livro não trata de fatos
de sua vida, é ficção. Se, nesse livro, podem-se, evidentemente, encontrar fatos biográficos, a
fragmentação que é a sua marca aponta para uma escritura doadora de sentidos: “escrever por
fragmentos: os fragmentos são então pedras sobre o contorno do círculo, espalho-me à roda;
todo meu pequeno universo em migalhas; no centro, o quê?” (BARTHES, 1977, p.101).
A conclusão é que o texto autobiográfico é, em maior ou menor grau, sempre
ficcional. No que diz respeito à obra de Lobo Antunes, especificamente, Seixo (2002)
considera que sem dúvida há coincidências entre a produção romanesca do escritor, as
crônicas e depoimentos dados em entrevistas ou outras declarações confessionais. Essas
73
coincidências se apresentariam a partir de quatro tipos de abordagem: 1 – a que organiza os
arredores do eu, ou seja, o sociotexto; 2 – as experiências específicas do eu (contingências do
percurso existencial e anímico); 3 – a designação do nome próprio, quer para o narrador, quer
para as personagens, indiferenciando a voz que vive da voz que escreve; 4 – a insistência na
configuração dêitica da linguagem, que mostra muito mais do que conceitua. Seixo considera
que:
em literatura, a subjetividade da escrita acarreta, de forma mais ou menos
evidenciada ou mais ou menos subtil, a projeção de uma circunstância efectiva
direta, transformada, reelaborada ou contrastiva, que de algum modo aponta para o
autor que a escreve. (2002, p.475)
A questão não seria, portanto, buscar dados da existência do escritor em sua obra, mas
“tentar entender um texto a partir de seu modo de evocar e de provocar o real”. (SEIXO,
2002, p. 475)
A questão autobiográfica, continua Seixo,
só tem sentido se o traço que remete para a figura do escritor, para sua circunstância
ou sua experiência, criar uma interpelação do texto em relação àquele que o lê, e
obrigar essa interpelação a seguir um caminho de conjectura quanto aos labirintos da
produção artística. (SEIXO, 2002, p. 476)
É na materialidade da escrita que se configura a relação dúbia sujeito versus
circunstâncias, permitindo uma intersubjetivação em processo, o que leva à comunicação,
através do texto, entre o narrador-escritor e o leitor. Seixo acredita que as crônicas estão mais
próximas dos fatos biográficos. Comparando Proust e Lobo Antunes, a crítica afirma que, se
no primeiro a existência seria transmutada em ficção, na obra de Lobo Antunes a ficção
apresenta faces e falhas em que um discurso do eu pode se apresentar.
Seixo acredita que essa utilização, às vezes acintosa, de dados autobiográficos na
ficção antuniana, vai colocar o outro no lugar do mesmo, levando a um questionamento
74
radical da identidade, ou seja, à premissa psicanalítica de que o eu é um outro que
desconheço. Essa conclusão é coerente com a nossa hipótese de que a obra de Lobo Antunes
atravessa a noção de realidade para falar de algo que é da ordem do estranho, do impossível.
Também Blanco acredita ser impossível distinguir as vivências pessoais de Lobo
Antunes de sua produção ficcional, devido ao modo que uma se mistura com a outra. Afirma
que “quando lhe fazemos uma pergunta sobre um livro, responde apelando à sua biografia, e
quando o interrogamos sobre a biografia, lamenta as enormes dificuldades que enfrenta ao
elaborar sua prosa.” (BLANCO, 2002, p.63).
Por fim, vale lembrar o livro A vida escrita de Ruth Silviano Brandão (2006), em que
a crítica refere-se à relação entre vida e obra. Relatando sua trajetória como crítica literária, a
autora afirma que, devido ao contato com textos que se referem à interlocução entre a
psicanálise e literatura, em épocas anteriores evitou falar da vida articulada à obra, receando
reduzir a escrita a patologias. Conclui, entretanto, que, se é necessário cuidado nessa
articulação, não quer dizer que ela não possa ser feita. Afinal, é com a matéria da vida que se
inscreve e se escreve o mundo. Escrever seria decorrente de uma necessidade de tornar a vida
possível, ou seja, é algo vital. Assim, explica a autora:
O que chamo de vida escrita é a unidade entre escrever e viver e vice versa,
pois a escrita se faz por traços de memória marcados, rasurados ou recriados no
tremor das mãos, no pulsar do coração que faz bater o sangue na ponta dos dedos, na
superfície das páginas , da tela, da pedra, e onde se possam fazer traços, naquilo que
não se lê, o que se torna letra, som ou sulco, marcas dessa escavação penosa que
fazemos no real. (BRANDÃO, 2006, p.28)
Essa afirmação aproxima-se das considerações de Lobo Antunes sobre as motivações
de sua escrita. Ao ser perguntado por que escreve, ele responde não saber, pois escreve por
necessidade e esse questionamento seria equivalente a perguntar a uma macieira porque dá
maçãs (BLANCO, 2002).
75
2.2 - Memórias, des-memórias e escritura
Se a questão da autobiografia precisa ser considerada a partir de algumas
peculiaridades, o mesmo acontece no que diz respeito à escrita de memórias. A primeira
reflexão que se faz necessária aqui é sobre o que seria um registro de memórias.
Freud, em suas primeiras publicações, faz equivaler o aparelho psíquico a um aparelho
de memórias. Ou seja, como algo que retém algumas impressões que podem ser mais ou
menos nítidas, associadas ou não a palavras. Essas impressões são constantemente atualizadas
e modificadas por outras e isto se deve ao modo de funcionamento do aparelho psíquico,
particularmente do inconsciente, que é o de se fazer apresentar a partir de deslocamentos e
condensações.
A carta 52
22
, escrita em 6 de dezembro de 1896, é o texto paradigmático para
pensarmos essa temática, inclusive porque o aparelho psíquico é aqui denominado aparelho de
memória. Freud afirma que os traços de memória estão sujeitos a rearranjos, sofrendo de
tempos em tempos uma retranscrição. “A memória não se faz presente uma só vez, mas se
desdobra em vários tempos, em que ela é registrada em diferentes espécies de indicações”
(FREUD, 1950/1892-1899, p. 254). O criador da psicanálise propõe então um novo esquema
do aparelho psíquico:
W_______ (I) Wz ________ (II) Ub_______(III) Vb _____Bews
Onde encontramos;
22
Freud correspondeu com Fliess, um médico que residia em Berlin, no período de 1887-1904. Essa
correspondência foi publicada em 1950, depois do seu falecimento e nela podem ser encontrados os conceitos
freudianos no momento de seu nascimento, assim como fragmentos da análise pessoal de Freud.
76
W Wahrnehmungen – referindo-se ao sistema perceptivo, afirma que a percepção e
memória são processos mutuamente exclusivos, pois a percepção não conserva nenhum traço
do que aconteceu.
Wz – Wahrnehmungszeichen (índice de percepção) – seria o primeiro registro de
percepção; esta primeira parte do sistema de memória é “totalmente incapaz de assomar à
consciência e se dispõe conforme as associações por simultaneidade” (FREUD, 1950/1892-
1899, p.255).
Ub – Unbewusstsein (inconsciência) – seria o segundo registro, que corresponderia a
lembranças conceituais; sem, porém, acesso à consciência.
Vb – Vorbewusstsein (pré-consciência) – terceira inscrição ligada às representações
verbais correspondendo ao nosso ego reconhecido como tal.
Bews – Bewusstsein (consciência)
Cada transcrição deveria inibir a anterior, só que, devido ao processo de recalcamento,
a excitação é manejada segundo leis psicológicas vigentes no registro anterior, persistindo,
então, um anacronismo. O recalcamento, processo estruturante do aparelho psíquico, seria
uma falha no processo de tradução de um registro para outro.
É fundamental dar-se conta também de que, entre a percepção e o sistema
inconsciente, Freud se refere a um outro registro de memória, denominado Wz- (índice de
percepção) que contém apenas marcas (traços, impressões) totalmente incapazes de acessarem
à consciência. Portugal (2006), a partir dessa carta, afirma que a cisão instaurada pelo
processo de recalcamento determina que “o eu só possa deparar com o que lhe está interditado
por meio do que retorna em forma de restos, fragmentos” (PORTUGAL, 2006, p. 75).
Em resumo, esse texto apresenta dois pontos que interessam particularmente a esta
tese. O primeiro é de que há um registro que se faz apenas por marcas, às quais nunca se
tem acesso. O segundo é que há uma falha que é constitutiva do aparelho psíquico. Essa
77
falha implica numa impossibilidade de tradução fiel, ou seja, como acontece nas traduções de
um idioma para outro, ela sempre vai implicar numa certa traição. Veja-se como Lobo
Antunes refere-se a isso:
O passado é um país estrangeiro. Fazem coisas diferentes lá. E desse país
estrangeiro que continua a existir paralelamente ao presente emerge de vez em
quando um braço, uma frase, uma palmada enternecida que me poisa no ombro uma
levezazinha esperançosa
- Lembras-te de mim? (ANTUNES, 2006, p.282)
Por isso a noção de recalcamento traz em si o paradoxo de ser, ao mesmo tempo,
presença e ausência: é algo que foi perdido, mas que insiste em ser buscado; que está sempre
presente, embora seja impossível alcançá-lo. Veja-se um fragmento de crônica “António João
Pedro Nuno Manuel”:
A infância atravessada é pior do que uma espinha: a gente engole bolas de pão e
não passa.Talvez seja por isso que vou a Benfica uma vez por mês se tanto e que
quando vou lá me sinto como um cão a procura de um osso que julga ter enterrado
e afinal de contas não existia osso nenhum. Um osso que mesmo assim procuro até
me arderem os olhos. Como me procuro nos álbuns de retratos. Como me procuro
debaixo da minha cama. (ANTUNES, 1998, p.234)
Tomando agora um texto tardio de Freud, podemos ver que essa idéia persiste. Em
“Construções em análise”, ao descrever qual seria a função do analista, Freud o compara ao
arqueólogo, ou seja, àquele que constrói a partir de restos, pois algo está irremediavelmente
perdido. Assim, o trabalho de ambos – analista e arqueólogo – consiste em “reconstruir por
meio da suplementação e da combinação dos restos que sobreviveram” (FREUD,1937, p.
293). Uma boa intervenção do analista seria aquela que surpreende o analisando, levando-o a
novas associações. Não é aquela que traz o já sabido, mas sim, aquela que o faz produzir algo
novo. Parece que o mesmo raciocínio pode ser aplicado também ao escritor. Como foi
estudado no capítulo um, o bom texto seria aquele capaz de tocar o leitor, levá-lo, de certo
modo, a produzir a partir da leitura.
78
Na crônica “Subsídios para a biografia de Lobo Antunes”, o autor brinca
particularmente com a mistura das noções de fato e ficção a partir de um narrador, ao mesmo
tempo adulto e criança, que relata as recordações de um eu menino apaixonado pelas atrizes
de cinema, com a seriedade de uma criança incapaz de avaliar a impossibilidade de conquistar
atrizes tais como Lana Turner ou Anne Baxter.
Essa é uma das poucas crônicas em que o narrador refere-se com ternura à mãe, de
quem o menino se aproxima. De um modo geral, nas crônicas, a mãe costuma ser descrita
como inacessível. Apesar de mais atenta ao tricô, a mãe acolhe o chamado da criança e entra,
já pedindo para sair, no mundo de fantasias eróticas do menino: “-Se não paras com essa vida
de play boy engano-me no pulôver.”
Nesse momento, pode-se suspeitar que a mãe seria, no final das contas, a grande atriz
inalcançável, mulher inatingível, a quem o narrador menino gostaria finalmente de
impressionar e ser reconhecido por suas conquistas, para se sentir amado por ela. No término
da crônica, a fantasia do passado invade o presente e o narrador manda, através dos leitores,
um recado para a Lana Turner de sua infância:
Se a encontrarem diga que estou arrependidíssimo e que peço desculpa.
Digam também que telefone para a casa dos meus pais: deve estar por lá um miúdo
de anel de bolo rei no dedo que recebe a chamada. (ANTUNES, 2002, p.52)
A contribuição de Lopes (2003) ao defender o conceito de memória excessiva é muito
proveitosa, pois a crítica caminha em direção parecida e faz acréscimos às afirmações de
Freud. Seria através da memória excessiva que o real poderia renascer, como uma tensão
voltada para algo antes do sentido, para o acontecimento, ou, nos termos que tem se defendido
aqui, para o real. Ao analisar o poema “A poeira levada ao vento”, de Joaquim Manoel de
Magalhães, conclui que o que se narra do acontecimento não é algo encerrado no passado:
79
“aquilo que se actualiza nele e permanece inactual depende da faculdade de dar sentido às
sensações, isto é, de construir o recordável delas” (LOPES, 2003, p.61).
A recordação, continua a autora, seria, sobretudo, o vazio da recordação, e a
linguagem um abrigo para esse vazio. “O instante do acontecimento é por isso um instante
cindido – o irreparável da perda é o que se transfigura em beleza e assim sobreviverá na
condição de perdido e presente.” (LOPES, 2003, p.62). A recordação seria então vestígio do
acontecimento, mas não como a cinza seria vestígio do fogo, e sim como potência ritmizante,
aquela que coloca o sentido em suspensão.
Na crônica “O próximo livro”, o narrador descreve as mudanças que se passam em seu
eu, “zonas da minha cabeça deixam de me pertencer, vagueiam ocupadas não sei bem com
que, a mão de tempos a tempos mexe-se sozinha como se escrevesse.” (ANTUNES, 2006,
p.225). A escrita de um novo livro é antecedida por uma perda de si, a noção de eu se dilui, e
o corpo é descrito como se estivesse possuído por algo exterior. A relação com o mundo
exterior também, evidentemente, fica alterada:
uma indiferença em relação ao quotidiano, na cara da barba da manhã, não feições
inesperadas, as minhas, porém como que boiando na pele
(barbeio quem?)
A impressão
(difícil explicar isso)
De me recapitular, me passar em revista, colecionar inutilidades, frases truncadas,
ditongos, uma ondulação que vai se precisando, crescendo em cada ondulação letras
(não palavras, letras, por enquanto não palavras, letras). (ANTUNES, 2006, p.226)
Na medida em que se des-possui, algo novo, ainda desconhecido e disforme, passa a
ser gestado. Aqui a palavra letra lembra o sentido dado ao termo por Lacan, ao situá-la num
litoral entre o simbólico e o real. A experiência descrita na crônica também parece aproximar-
se do que Lopes denomina acontecimento, aquilo que teria “a força do milagre, que faz
sobreviver arrancando quem escreve, quem lê, de ‘milagres mortos’” (LOPES, 2003, p.63).
80
Em termos psicanalíticos pode-se dizer que trata-se da vivência de estranheza, daquilo que
produz efeitos de inconsciente.
Por isso, continua Lopes, o texto poético é uma memória que não se extingue, porque
ela é dinâmica e ativa; por ultrapassar o criador, ela contém um potencial infinito de memória,
e não apenas as recordações do autor. Memórias que abrem “corredores para as emoções”
(LOPES, 2003, p.63) e por isso o que vale nelas é a possibilidade de produzir efeitos no leitor.
Como se pode perceber, essas ponderações são condizentes com o que diz Seixo ao referir-se
à dimensão intersubjetiva do texto de Lobo Antunes. Só que, de acordo com a psicanálise,
esse sujeito não é o da consciência, mas esse que surge na despossessão de si mesmo, no
apagamento do eu.
Essa memória excessiva apresenta-se como uma falha do anterior à linguagem (algo
equivalente ao sistema WZ proposto por Freud), e isso faz com que a memória seja
inseparável da imaginação e que “para o poeta não exista um passado a conservar na
memória, mas um passado sempre a se reencontrar, a se reinventar” (LOPES, 2003, p.76). Na
mesma crônica citada acima encontramos:
- Deixa-te de fantasias líricas
Que me fez encontrar, ainda de calções, o resto de destino em falta. E comecei de
imediato a escrever, ou seja, a tocar piano nas nuvens, caminhando de livro em livro
como os elegantes de pedra em pedra para não sujarem as calças. (ANTUNES,
2002, p.123-125)
O título da crônica: “Assobiar no escuro”, já chama nossa atenção, pois já aí se
inscreve algo de fantasia e de imprecisão. A imaginação e a escrita constituem o instrumento
para buscar aquilo que falta, mas, se a escrita é da ordem do impossível, ela equivale a tocar
piano nas nuvens, caminho imponderável em relação a outros que, ironicamente, o narrador
denomina de elegantes, que buscam a segurança das pedras, do chão firme, para não se
sujarem.
81
O que retemos na memória nunca é constituído só de fatos; nossas lembranças
constituem um misto de fatos e fantasias que são continuamente alteradas pelo nosso presente.
Na verdade, o que faz a ligação dos fios do tempo, diz-nos Freud (1908), é o desejo. Assim, o
próprio processo psicanalítico não pode ser visto como um tempo de rememoração. A
lembrança que cada um tem de si mesmo é também uma ficção. Essa ficção, fundamental por
nos dar uma certa moldura identitária, nos fixa, a partir de uma experiência inassimilável pela
palavra, chamada por Freud de experiência traumática. O processo de memória se constitui a
partir de algo impossível de representar e que aponta para o insondável do recalque originário,
vazio inaugural do aparelho psíquico. Por isso, em última instância, o que seria o passado
senão esse vazio inaugural em que tudo se perde? É diante desse inassimilável que o aparelho
psíquico e a noção de eu se constituem. Assim o eu será sempre ilusório, vestimenta que
cobre o que não pode ser representado pela palavra. A linguagem se constrói em torno de um
vazio.
Na crônica “Minuete do senhor de meia idade” pode-se ler:
Os dias, as semanas, os meses deslizam uns a seguir aos outros, devagar primeiro,
depressa depois, tudo junto por fim, e eis a vida em cacos nos linóleo, um único
pires completo e o resto bocadinhos, o único pires completo é alguém que não
distingo a dizer-me adeus de uma varanda ou assim, um parapeito com sardinheiras,
julgo que o mar ao longe, o único pires completo sou eu a voltar para casa
Mas não me lembro da casa
Eu que não me reconheço naquela casa, naqueles olhos, naqueles gestos
desinteressados de mim
Mudei tanto
O único pires completo é ter cinqüenta anos e tanta coisa quebrada à volta, trazer a
pá e a vassoura, deitar a vida no balde, limpar com a esfregona... (ANTUNES,
2002, p.85-86)
As lembranças são equiparadas a cacos e paradoxalmente o que está completo é aquilo
que não se pode reter. O eu é apresentado ironicamente como completo, pois padece de
estranheza e não se reconhece. Quebrado está o eu, pois quebrado está o mundo a sua volta,
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na impressão de abandono. Não só o passado é constituído de fragmentos, mas também o
presente, quando se tem tanta coisa quebrada à volta.
Constitui também contribuição da psicanálise para este estudo a idéia de que a noção
de passado é, a partir do conceito de a posteriori, continuamente modificada pelo presente. E
a criação? Freud (1908) levanta a hipótese de que, na criação, haveria o mesmo
entrelaçamento de tempos como ocorre com o processo de memória. Ou seja, para o escritor,
uma experiência no presente desperta uma lembrança de uma experiência anterior, da qual se
origina um desejo que encontra realização na obra criativa. Esta revela elementos do presente
e da lembrança antiga.
Aqui vale citar a crônica “Elogio do subúrbio”, marcada por uma nostalgia da
infância:
Não há pavões nem cegonhas e contudo a acácia dos meus pais, teimosa resiste.
Talvez que só a acácia resista, que só ela sobeje desse tempo como o mastro,
furando as ondas de um navio submerso. A acácia basta-me. Arrasaram as lojas e os
pátios, não tocam o Papagaio Louro no sino, mas a acácia resiste. Resiste. E sei que
junto ao seu tronco, se fechar os olhos e encostar a orelha ao seu tronco, hei de ouvir
a voz da minha mãe chamar
_ Antóóóóóóóóónio
E um miúdo ruço atravessará o quintal, com um saco de berlindes na algibeira,
passará por mim sem me ver e sumir-se-a lá em cima no quarto. (ANTUNES, 1998,
p.15)
O narrador busca, como um náufrago, algo do passado no qual possa se agarrar, no
momento em que sente que quase tudo está perdido. A árvore da infância é o mastro que pode
trazer de volta vivências do passado, fazendo reviver a criança que teria sido.
A lembrança do passado tem força suficiente para trazê-lo vivo para o presente,
deixando assim de ser passado. Com isso, quer se lembrar que, segundo Freud, uma obra
literária não pode ser vista apenas como uma representação do passado, pois, a memória não é
um arquivo, mas um constante processo de reinvenção, o que nos remete novamente à crônica
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“Província”: “Deve ter sido assim. Ou se calhar um bocadinho diferente, tanto faz. Ou se
calhar nada disto e tanto faz também. Quem vai se interessar, tirar a limpo, perguntar-me?”
(ANTUNES, 2002, p.65). Considerada, a partir do pacto autobiográfico, a invenção com que
se constroem as lembranças na literatura não interessará ao narrador nem ao leitor conferir a
veracidade e nem mesmo a verossimilhança dos fatos relatados.
Na crônica “Não foi exatamente assim, mas faz de conta” a estratégia da narrativa é o
pacto da ficção. Na cena encontram-se de novo o narrador criança/adulto e seus avós. O avô é
descrito, a partir do imaginário infantil, como um ser “cuja presença era uma silenciosa
ausência que cheirava a brilhantina.” (ANTUNES, 2002, p.12-13). A figura do avô é mítica,
“mais dado a coisas sem peso e à falta de substância da matéria”: ele passava o tempo,
sentado na poltrona, em silêncio, fabricando “nuvens com a boca” (ANTUNES, 2002, p.14),
segundo o narrador, como uma forma de “tecer o outono.” (ANTUNES, 2002, p.14). A
velhice do avô traz subitamente a imagem da própria velhice do narrador. Como o avô, o
narrador/adulto afirma que usa aparelhos para surdez e, questionando a noção de progresso,
diz que os arqueólogos do futuro irão pensar que “andamos para trás em relação à época das
galeras” (ANTUNES, 2002, p.15).
Kehl (2001), ao prefaciar o livro de Ana Costa sobre memória e transmissão, lembra
que, para a psicanálise, a memória tem pelo menos duas funções: a primeira é a que dá
consistência ao sujeito, permitindo que ele se reconheça. Inscrita no corpo a partir da
intervenção do Outro, ela confere ao sujeito um lugar que lhe parece suportado por uma
verdade eterna que lhe traz uma certa garantia de identidade que só vacila quando algo desse
lugar lhe escapa, ou se desloca. Essa memória dispensa qualquer rememoração, ela já está
registrada nos nossos corpos e organiza a nossa relação com o mundo.
A outra é a memória da rememoração e da transmissão da experiência. Ela diz respeito
ao que é impossível de dizer e é justamente esse impossível que faz com que essa tarefa seja
84
interminável. O saber da experiência só se transmite onde há falha. Ele não garante que o
sujeito conheça o que representa, uma vez que “o inconsciente é um saber que não se sabe e
por isso se repete, se atualiza, na relação.” (KEHL, 2001, p.15) Memória e linguagem são
indissociáveis, assim é impossível estabelecer a precedência de uma sobre a outra, pois ambas
se originam da relação do sujeito com o campo do Outro: “é no ato de narrar que o vivido se
constitui como experiência” (KEHL, 2001, p.22). Essa narrativa de memórias não explica
nada, compõe-se de fragmentos e de brechas que produzem o mesmo efeito no ouvinte. É
pelas brechas que ela se transmite e se renova.
Pode-se constatar aqui uma coincidência com as ponderações de Seixo (2002) sobre a
inutilidade de se averiguar a veracidade dos relatos que parecem memorialísticos, ou seja, o
que interessa nas memórias são os efeitos que a enunciação pode produzir no leitor. A riqueza
da transmissão não está nos dados objetivos que apresenta, pelo contrário, as brechas e os
vazios do texto são mais ricos em termos de possibilidade de tocar o leitor.
Referindo-se ao texto clássico de Walter Benjamin (1987c) sobre o narrador, Kehl
afirma que o narrador clássico de Benjamin seria aquele capaz de transmitir a experiência, ao
recriá-la. A autora lembra o narrador do romance, apresentado por Benjamin como aquele que
não tem uma verdade a transmitir, pois perdeu a crença na tradição e sua experiência é
individual. O que transmite é sua perda de certezas, não tem um saber que possa balizar o
narrador nem o leitor. Trata-se exatamente do que faz Lobo Antunes em suas crônicas; elas
estão repletas de vazios que produzem o que Barthes chama de efeitos de real, desde a
apresentação de detalhes aparentemente sem importância introduzidos no meio de um relato,
até à fragmentação e a mistura dos tempos. As crônicas citadas mostram que a narrativa de
memórias nas crônicas de Lobo Antunes é constituída muito mais de “deslembranças”, ou
seja, de falta de certezas, lacunas e fragmentos contraditórios que, como num processo de
associação livre, vão se colando de maneira desordenada:
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Curioso lembrar-me melhor dos castanheiros que da minha família. Havia um
castanheiro
Dois castanheiros
Na parte da frente da casa, quatro castanheiros do lado direito, dois mais a frente. Se
algum ouriço caía sozinho ia abri-lo com uma pedra, magoava-me sempre nos picos,
pelava as castanhas
Nunca conseguia pelar completamente as castanhas
E comia a carne branca que nem sequer gostava enquanto a cozinheira anunciava,
alarmada, que eu ia sofrer dos intestinos.
O irmão dela tinha se suicidado num poço, o que a transformava para mim, numa
criatura que me assombrava, como se a morte do irmão distinguisse um pouco para
ela e metade da cozinheira, embora ralhando-me, se achasse tragicamente morta.
Quando ela casou com um bombeiro pensei logo que o bombeiro ia me meter num
saco para fugir com ele e vender-me aos ciganos. De tempos a tempos o bombeiro
passeava-me na carroça. Usava colete e chamava-se Carlos. Travava-se a carroça
com uma manivela empenada. A mula da carroça fervia de moscas. Na outra ponta
da mula, onde acabavam as moscas, nascia um par de orelhas que giravam.
Falava e elas
Trucla
Viradas para mim. Não deve ter sido assim: foi assim. (ANTUNES, 2002, p. 65)
Além da descontinuidade no enunciado e na enunciação, da impossibilidade de
distinção entre lembrança e fantasia, este trecho destitui o suposto paraíso do universo
infantil, que mostra-se povoado de tristeza, solidão: “curioso lembrar-me melhor dos
castanheiros que da minha família (...) magoava-me sempre nos picos” (ANTUNES, 2002,
p.65), assim como de fantasias de morte e de destruição.
Castello Branco, no livro A traição de Penélope (1994), trabalha a noção de memória
na literatura a partir da psicanálise, de Bachelard e de Deleuze. Em contraposição à memória
tida como resgate de um passado ilusoriamente pensado como intacto, a autora indaga: de que
modo o sujeito, ser de linguagem, se insere na percepção e construção da temporalidade?
Parte do pressuposto de que a tarefa da memória constitui um paradoxo: recuperar o desde
sempre perdido, pois só se encontra como perdido e só é perdido como reencontrado. Ali onde
o passado se quer presente e o presente é sempre passado é que o futuro se introduz como
uma determinante, como uma lei do que será lembrado (é só no revivido que o vivido se deixa
vislumbrar). O futuro está ali, nesse absurdo lugar de um tempo sempre presente que se esvai.
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Segundo a autora, os textos literários podem revelar dois tipos distintos de concepção
de escrita da memória: um que vê o tempo como contínuo e linear em que o sujeito encobre as
lacunas e a não coincidência entre o tempo vivido e o lembrado, buscando-se como um eu
inteiro, integrado, restaurando a rachadura que o tempo e os signos lhe impuseram. Essa
concepção do tempo como um contínuo é típica do raciocínio cartesiano e existem vários
textos memorialísticos em que se pode perceber essa tentativa do autor de suturar as rasuras
do vivido. Funda-se assim o gênero memorialista, cuja escrita faz uma trajetória de retorno ao
passado para capturar o vivido e trazê-lo relativamente intacto para o presente narrativo. Essa
ilusão de resgate, para subsistir, precisa desconsiderar a dimensão da linguagem, pois só
através dela as imagens podem oferecer-se ao pensamento que as recorda.
Numa outra concepção, pode-se compreender que o tempo constrói-se de
descontinuidades, saltos e rupturas e o processo de memória se dá nas malhas desse tecido.
Assim, o processo de memória não pode ser entendido apenas como recomposição de uma
imagem passada, mas também enquanto decomposição, rasura de imagem. O passado não se
conserva inteiro, constrói-se a partir de falhas e ausências. Na primeira versão, propõe
Castello Branco, o sujeito da escrita se apresenta como um ser inteiro e produz uma ilusão
referencial reveladora de uma verdade plena e apreensível. Já na segunda, o sujeito se mostra
estilhaçado, cindido. São escritas do eu, que estão sempre a questionar a sua consistência.
Como se saltasse da interrogação: “Quem sou eu?”, para chegar a outra, mais radical: “Sou?”
Um texto de memória, afirma Castello Branco, pode então ser visto como um texto de
perda que se escreve às escapadelas. Voltar-se para as memórias seria como abrir uma porta
para o nada. Por isso, debruçar sobre esses textos não será mergulhar em suas profundezas
buscando uma verdade última que seria nomeável, mas passear por suas superfícies. A autora
acredita que a escrita de memórias inventa, no lugar do morto, uma outra coisa, uma outra
87
estória . Essa seria uma escritura do estranho. Veja-se o impacto do narrador ao se deparar
com fotos antigas:
O pai da minha avó perdeu os sapatos, os tornozelos, acho que um terço das
calças. Três fantasmas remotos, feitos de esquecimento e silêncio. Sobretudo de
silêncio, a diluírem-se devagar, indiferentes, numa nuvem confusa, recuando para
além da memória, onde não os posso alcançar. (ANTUNES, 2006, p.17).
Se em outras crônicas o texto é tecido para trazer de volta vivo o passado, aqui o
passado registrado nas fotos traz algo de morte e de silêncio. O narrador vê seus entes
queridos diluindo, apagando-se e, por não poder alcançar o que busca, a vivência é de perda.
Consoante às ponderações freudianas, ao questionar a linearidade do tempo, Castello
Branco aborda a seguinte questão: como se haver com os domínios da escrita que se desvia do
domínio da re-presentação e faz tocar a parte intangível do real? Se a memória pode ser vista
como um movimento em direção ao “já não é”, ela caminha inevitavelmente para o “ainda
não”, instância futura, que só pode ser presentificada pela linguagem. Isso porque a memória
não é só uma construção do passado, mas também é movida pelo futuro.
Nessa proposta, e nela encontramos Lobo Antunes, o tecido do tempo é descontínuo e
o sujeito da escrita se mostra fraturado, sabendo-se efeito de superposições de signos e de
registros temporais distintos. Veja-se, por exemplo, este fragmento de crônica: “A verdade é
que parte do meu futuro ficou atrás de mim. Na quinta feira, que é quando meus irmãos se
reúnem na casa dos meus pais, vou até lá buscá-lo.” (ANTUNES, 1998, p.299) pode-se
constatar aqui que não se pode diferenciar passado de futuro, realidade de ficção.
Lobo Antunes diz, em entrevista, que: “a imaginação é a maneira como se arruma a
memória” (BLANCO, 2002, p.114). Certamente por isso, Reis aponta como uma
característica importante das crônicas “uma plurestratificação da incidência temporal
(passado-presente) (...) visando ilustrar um universo complexo e atravessado por tensões
irresolvidas” (REIS, 2003, p. 30).
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Essa mistura de tempos está na crônica “A velhice” que relata, no tempo presente, o
impacto da constatação da passagem do tempo nos sinais do espelho, em que a imagem
revelada é um duplo, ao mesmo tempo estranho e familiar. Evidenciam-se também as
alterações observadas nas pessoas em volta, as mudanças dos gostos e valores do narrador. Na
crônica, os três tempos se misturam: um presente em que o narrador se estranha, um futuro
que se apresenta como marcado por solidão e perda: “quando der por mim encontro meu
sorriso na mesinha de cabeceira a troçar-me num copo de água com trinta e dois dentes de
plástico.” (ANTUNES, 1998, p.39) e que o tempo passado não se foi:
Devo estar a ficar velho. E no entanto sem que me dê conta, ainda me acontece
apalpar a algibeira a procura da fisca (...) Ainda queria que meu pai me comprasse
na feira de Nelas um espelhinho redondo com a fotografia de Ivone Carlo do outro
lado. Ainda tenho vontade de escrever o meu nome depois de embaciar o vidro com
o hálito. (ANTUNES, 1998, p.40)
Há uma frase em que infância e velhice se tocam, e não sabemos a que tempo o
narrador se refere: “se calhar daqui a pouco uso um sapato num pé e uma pantufa xadrez em
outro.” (ANTUNES, 1998, p.39) É com umno futuro (ou no passado?) calçado com
pantufas xadrez e outro no presente (usando sapatos) que a narrativa se constrói. No daqui a
pouco do futuro, o que reina é o infantil, o futuro do presente é o passado. Como se o tempo
verbal fosse um “agora eu era”, ou “agora eu serei”, ou “ontem eu sou”. A frase cheia de
poesia que fecha a crônica é magistral para ilustrar essa sobreposição do tempo: “não sou um
senhor de idade que conservou um coração de menino. Sou um menino cujo envelope se
gastou.” (ANTUNES, 1998, p. 40).
Também na crônica “Província” podem-se observar descrições do universo infantil
como se fosse descrito por uma criança que se assombra com o tamanho e o poder que ela
atribui aos adultos: “a minha avó entendia o meu receio do escuro. Entendia tudo. Era tão alta
quanto os homens e toda a gente se calava ao ouvi-la.” (ANTUNES, 2002, p.65) A crônica é
tecida por fragmentos de lembranças infantis, num universo marcado pela fantasia e por
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misturas de lembranças com dados imaginários, numa superposição de tempos: “o meu pai
adoeceu em janeiro. Dava-se-lhe um copo de vinho e serenava. Açúcar e mel no vinho (...)
Chegando a minha altura de adoecer deitam-me açúcar e mel no vinho” (ANTUNES, 2002, p.
67). Do passado vai-se ao futuro, numa visão de sobreposição dos tempos.
Essa descontinuidade do tempo da memória é explicada por Bachelard (1988) que, em
Dialética da duração, desenvolve a idéia de que o tempo é lacunar e que sua continuidade
deve ser vista como uma construção do sujeito diante da angústia do ato de reviver o
desaparecido, de enfrentar a morte. Assim como o tempo se constitui de lacunas, a
causalidade se dá através de saltos, não sendo possível, para o sujeito, verificar o desenrolar
de uma causalidade. O tempo, para Bachelard, não é exterior ao sujeito, é resultado da
maneira como ele aí se inscreve. O filósofo afirma que:
Não há como fazer coincidir o chamado tempo do vivido com o tempo do revivido,
com o tempo construído pela memória e, portanto, pela linguagem: qualquer gesto
de rememoração se efetua sempre a partir de um fosso temporal intransponível. É
precisamente na linguagem que pretende descrever, criar a continuidade almejada,
que essa continuidade se rompe: o signo se erige sempre a partir do que já não é.
(BACHELARD, 1988, p. 29)
O passado é um lugar inatingível, constituído não pelo que existe, mas pelo que insiste
e ecoa no presente. O passado só existe ao ser recuperado e só se pode recuperar o que é tido
como perdido, que só se dará a conhecer como re-presentação, presença de um mesmo que é
também um outro. O processo de escrita da memória efetua-se assim a partir de um atrito de
tempos: ao presentificar o passado, não só se assinala a lacuna entre esses dois tempos, como
também se constrói uma terceira instância, futura, posterior, que nasce do processo mesmo da
linguagem. (BACHELARD, 1988, p. 31)
Na crônica “Eu, há séculos”, Lobo Antunes apresenta fragmentos de
lembranças de um narrador que descreve, em flashes, cenas infantis:
90
Sentava-me no chão ouvindo a terra, os grilos que costuravam o silêncio cerzindo
pedras e sombras, cerzindo as nuvens contra o telhado da casa e a voz da minha avó
num dos quartos de cima, de modo que mal os grilos se calaram tudo estava certo, as
coisas em harmonia umas com as outras, a minha respiração com elas e então fechei
os olhos e por um momento sem tempo fui feliz. (ANTUNES, 2002, p.45)
O passado é marcado pela imprecisão que a escritura busca cerzir de maneira
desordenada, mostrando, num movimento metonímico, os buracos do tecido, num silêncio
que costura pedras e cerze nuvens no telhado. A criança que surge na cena também não é
inteira, nem o mundo que ela tenta, em vão apreender: “um cheiro inacabado de menino,
gestos inacabados, mãos que tentavam apreender o contorno de uma laranja e os poros do
barro.” (ANTUNES, 2002, p.45). Esse passado inacabado se faz presente no agora:
Durante séculos não me tornei adulto. A seguir sucedeu não sei o que e fiquei deste
modo, como agora. Mas isso aconteceria daí a muitas semanas, tantas que não sei
dizer se aconteceu de facto. Acho que não: se fico quieto lá estão os grilos
costurando o silêncio, cerzindo as luzes contra o telhado da casa, por um momento
sem tempo, sou feliz. Aceno-me no espelho
- Adeus meu homem
e, fechando uma pedra de mica na mão, alegram-me os bois de regresso desde além
do pinhal. (ANTUNES, 2002, p.47)
O narrador destitui a linearidade do tempo, assim como a ilusão de que o ser humano
amadurece, ou de que adquire domínio sobre si ou sobre o mundo a sua volta. A passagem do
tempo não faz com que mundo mude, dentro de cada um, continua a habitar o infantil.
Deleuze (1987), ao refletir sobre a questão da memória em Proust, conclui que o
tempo perdido não é simplesmente o tempo passado, mas o tempo que se perde numa
narrativa que não vai a lugar algum, não remete a nenhum grande sentido oculto no
enunciado, mas aos sentidos minúsculos da escrita, disseminados na enunciação. O tempo da
memória em Proust localiza-se no tempo do presente narrativo. Essa conclusão de Deleuze
em relação a Proust em sua Busca do tempo perdido pode ser generalizada para outros
textos de memórias. O filósofo acredita que:
Se as reminiscências são metáforas da vida, as metáforas são reminiscências da arte.
Ambas, com efeito, têm algo em comum: determinam uma relação entre dois objetos
91
inteiramente diferentes, para subtrair às contingências do tempo. (DELEUZE, 1987,
p.55)
O que a obra revela não se localiza no tempo. Também não se trata de uma verdade
nomeável, representável. Ela não faz parte do mundo simbólico, não está previamente escrita.
Além disso, o mundo expresso na arte não se confunde com o sujeito e nem existe fora do
sujeito que o exprime. Ela não se reduz a uma subjetividade psicológica, é de uma outra
ordem: "qualidade desconhecida de um sujeito único" (DELEUZE, 1987, p.43).
Castello Branco (1994) pergunta-se então se, a partir de Deleuze, o texto não seria
sempre uma presentificação do presente, pois este é o único que efetivamente existe; e,
paradoxalmente, só tem no passado e no futuro suas dimensões, pois é também aquilo que
passa, aquilo que se esvai no tempo constituído. É que o tempo que vale para a literatura é o
da enunciação, o da escrita, em que se pode jogar com a temporalidade e o paradoxo.
Em “A literatura e a vida”, Deleuze afirma que “escrever não é certamente impor uma
forma de expressão a uma matéria vivida.” (DELEUZE, 1997, p.11) A literatura estaria
muito mais do lado do informe e do inacabamento. A escrita está sempre em via de fazer-se.
O filósofo considera que pensar na escrita como reprodução da memória é uma concepção
infantil de literatura, “pecar por excesso de realidade ou de imaginação é a mesma coisa”
(DELEUZE, 1997, p.12). Voltando às considerações de Deleuze, sua tese é de que, para se
instalar, a literatura precisa seguir outra via, descobrindo, sob as aparentes pessoas, a potência
de um impessoal, uma generalidade que é uma singularidade no mais alto grau. É preciso que
as próprias lembranças tomem uma dimensão maior, capazes de afetar também quem lê.
De maneira condizente a essas ponderações, Lobo Antunes, em entrevista, diz a
Blanco que:
A história é o menos importante, é um veículo de que me sirvo (...) a intriga não me
interessa, o que queria não é tanto que me lessem , mas que vivessem o livro. As
emoções são anteriores às palavras e o repto é traduzir essas emoções, tentar que as
92
palavras signifiquem essas emoções. É um desafio impossível e aquele que creio que
se deve tentar. (BLANCO, 2002, p.125)
Além da história, entre suas linhas, há uma outra verdade que se desenha, uma verdade
da ordem do pulsante, um testemunho da pulsão do real (REIS, 2004), que diz respeito ao
autor e ao leitor.
A literatura, acredita Deleuze, “é uma passagem de vida que atravessa qualquer
matéria vivível ou vivida” (DELEUZE, 1997, p.11). Por isso a escrita seria da ordem do
devir. O devir diz respeito ao inesperado, ao novo; por isso, o que importa no devir é o
movimento, o tornar-se. Não significa progredir ou regredir de acordo com uma série,
também não se trata de filiação em que é gerado um semelhante. O devir é uma espécie de
aliança que coloca em jogo planos diferentes; por exemplo, entre um homem e uma criança
encontramos um devir criança, entre um homem e uma mulher, um devir mulher.
Assim, o escritor é visto como um feiticeiro, porque escrever é ser atravessado por
estranhos devires. Por ser sempre um vir a ser, o devir não é atingir uma forma pela
identificação ou pela mimese. Sua zona é a da indiferenciação onde se atingem imprevistos.
Há uma crônica de Lobo Antunes em que se pode identificar essa indiferenciação. O
texto tem um tom poético e o nome parecido com um dos romances do escritor. Trata-se de
“Não entres por enquanto nessa noite escura”. Nela encontra-se uma referência a um
tempo/espaço em que a felicidade seria possível, em que o passado e o futuro se entrelaçariam
e em que o presente é visto como inabitável. Há uma oposição entre o mundo natural, em que
plantas, bichos, pedra, sol, lua viveriam em harmonia, e o mundo adulto, da palavra, da
cultura vistos como:
acontecimentos da outra margem da tristeza, palavras cujo sentido ignoravas dado
que o vento detinha o exacto tamanho do teu corpo e não consentia qualquer sombra
do sangue, qualquer inquietação que desviasse os dedos do caminho do sol.
(ANTUNES, 2002, p.38)
93
A indiferenciação remete para um tempo mítico em que a paz da natureza se opõe à
violência da civilização, numa fuga necessária para o reino da fantasia, para cobrir/evidenciar
o insuportável:
Pintavas as pálpebras da mesma forma que, em pequena acrescentavas pestanas ao
desenho do sol. E bochechas. E cabelo. E uma nuvem repleta de cerejas. Apenas
esquecemos, e de termos esquecido vem a raiz do espanto. Nuvens com cereja sim,
de qualquer nuvem
(toda criança o explica e é natural)
podemos retirar o necessário para habitar a terra pelo lado da pele. No outro lado
mora o feio baldio do que ignoramos: entulho como pátria, como ossos, como os
amargos cadáveres da inveja, tudo aquilo em que nunca tropeçaste, de que nunca
adivinhaste, por um momento, o rastro: eras tão nova ainda, serás sempre tão nova
agora que em redor do teu nome é tudo cinza e ninguém se demora junto a ti. Mas
agrada-me pensar que continuas a crescer nos limoeiros de outro verão e te debruças
em Angola para escutar a terra.” (ANTUNES,2002, p.38)
A frase que abre a crônica “Fosse qual fosse a idade que tinhas eras tão nova ainda”
(ANTUNES, 2002, p.37), sofre variações ao longo da narrativa, mas reitera a instabilidade e
a impossibilidade de fixação, por se referir a um tempo e a um personagem impossíveis de
situar. Por exemplo: “faltavam no relógio as horas de seres grande”; “serás sempre tão nova
agora que em redor do teu nome tudo é cinza” (ANTUNES, 2002, p.38). Por isso, o narratário
também é inatingível: “se eu pudesse falar-te, se as minhas mãos, se a minha voz pudessem
tocar-te: não me escutas, é demasiado cedo para que tu saibas que eu existo”(ANTUNES,
2002, p.38).
Através desse narratário, delineia-se um devir criança, marcado pelo modo infantil de
apreender o mundo, numa ânsia de captar a própria coisa, quando “nem todas as coisas
possuíam nome nesse tempo: faltavam páginas no dicionário do avô (...) moravam grandes
mistérios nas gavetas.” (ANTUNES, 2002, p.37). Enfim, trata-se de tempo não localizável
nem nomeável, quando a felicidade seria possível, em contraposição aos tempos de horror da
guerra.
Apesar de inatingível, o narrador continua em busca desse ser/tempo impossível: “A
única forma de te ser fiel é costurar a vida, lentamente, pelo avesso da dor, inventar um peito
94
onde possas deitar-te, cobrir com lenços grandes os espelhos a fim de que nada impeça o teu
regresso.” (ANTUNES, 2002, p.39). Essa poética construção evidencia que costurar a vida
pelo avesso da dor não é negá-la, mas inventar algo a partir dela, criando um peito/espaço de
aconchego em que se possa velar com lenços o que pode ser ameaçador. Entretanto, sabemos
que o véu tem a propriedade de esconder e mostrar ao mesmo tempo. Aqui podemos ver
evidenciada também a própria função da escritura.
Por tudo que foi apresentado neste item, pode-se concluir que a noção de que a
memória pode ser resgatada pela escrita constitui uma falácia. Na verdade há escritas de
memórias que tentam suturar a fragmentação e outras que, pelo contrário, fazem questão de
evidenciá-la. Essas posições antagônicas também supõem dois tipos de sujeito da escrita: um
que quer se mostrar inteiro e outro que se sabe dividido. Quando se admite que a memória é
estruturalmente falha, a imaginação entra como um ingrediente que irá fazer uma ponte entre
as diferentes dimensões do tempo: passado, presente e futuro. Para os teóricos a que aqui
recorremos, a admissão da falha, apresentada tanto nos enunciados quanto nas enunciações,
irá mostrar um tipo de literatura que é capaz de tocar o outro não pelo que preenche, mas pelo
que cava de vazios, que são admitidos pelo escritor, apresentam-se no texto e tocam o leitor.
2.3 A repetição do mesmo e do novo
Outra temática fundamental a ser verificada, quando se trata das circunvoluções do
tempo nas crônicas de Lobo Antunes, diz respeito à repetição. Isto porque a reiteração é uma
constante nesses textos em que cenas e personagens retornam constantemente. Também
várias frases se repetem, sendo a temática praticamente a mesma. Tem-se a impressão de que
Lobo Antunes está escrevendo sempre a mesma coisa. O narrador da já citada crônica
“Antonio 56 ½” confessa: “jogara tudo no acto de escrever, servindo-se de cada romance para
corrigir o anterior, em busca do livro que não corrigiria nunca.” (ANTUNES, 2002, p.17)
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Algo semelhante afirma em entrevista a Blanco: “um livro nunca está terminado, fica
definitivamente inacabado. Quando começamos um livro novo, pensamos em corrigir o
anterior porque estamos mais dependentes dos seus defeitos” (BLANCO, 2002, p.91)
Essas citações são preciosas para introduzir o tema da repetição, pois apontam tanto
para a dimensão de repetição do mesmo quanto de repetição do novo. O que é isso que
sempre “pede de novo”? A premissa que rege esta tese é de que o que retorna é mais uma
volta em torno de um real impossível de se dizer.
O tema da repetição é caro para Freud. Ele se apresenta de duas maneiras em sua obra.
A primeira indica que a repetição seria uma tentativa de elaboração. Se, como diz Freud
(1909), as histéricas sofrem de reminiscências, é porque repetem, pela via do sintoma, aquilo
que não pode ser assimilado. Assim a repetição desempenharia um papel importante tanto na
relação transferencial como nas atividades sublimatórias, entre elas a criação literária. A
repetição, nessa primeira versão, é tida como algo da ordem do simbólico, palavra que levaria
à elaboração.
Entretanto, na medida em que Freud caminha, passa a apontar para algo que se repete
porque não é possível ser escrito, e que resiste à significação. De acordo com essa ótica, a arte
literária seria uma constante e impossível “busca de um livro que não corrigiria nunca.”
(ANTUNES, 2002, p.17)
Essa segunda dimensão da repetição, no texto freudiano, pode ser encontrada de
maneira mais evidente em: “Além do princípio do prazer” (1920). Aí, Freud vai apontar uma
outra dimensão da repetição ao associá-la a uma compulsão. Lacan (1988b) destaca a
compulsão à repetição como sendo a maneira que Freud teria usado para daí extrair o caráter
de inadequação do desejo e da conduta humana em relação à ordem simbólica, apontando
para algo que não se encontraria mais relacionado ao domínio da representação, mas sim ao
96
registro do real. No livro 11, dos seus seminários, Lacan vai afirmar que a repetição é um dos
quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Em sua leitura da obra de Freud, Lacan (1988b) recorre à contribuição de Aristóteles
no que se refere às duas faces do acaso: automaton e tiquê. Automaton diz respeito à
insistência dos signos comandados pelo principio do prazer, enquanto a tiquê, localizada além
do principio do prazer, assinala o encontro com o real, encontro essencialmente faltoso. Mais
tarde, em Lituraterra, como já referido no capítulo um, Lacan (2003) irá desenvolver o
conceito de letra para se referir ao que excede à circunscrição da representação.
Nos três livros de crônicas podem ser verificadas essas duas formas de repetição: uma
que parece querer resgatar algo que foi perdido e outra que repete para evidenciar a
impossibilidade do resgate. No último caso, a narrativa estaria sempre voltando ao vazio de
onde veio. O que foi apresentado nos itens anteriores sobre autobiografia e memória ilustra
essa ambigüidade de se buscar resgatar algo e, ao mesmo tempo, mostrar a impossibilidade
disso pela própria construção narrativa. Essa busca insistente pode ser vista pela repetição de
cenas dos romances nas crônicas, ou de reincidência temática em diferentes crônicas.
Também se apresenta no que foi denominado de “chamamento da criança ausente”.
Para ilustrar a repetição, foi escolhida a temática do espelho: por ser reincidente nas
crônicas e por permitir ver evidenciado nelas a presença de automaton e de tiquê. Assim, em
cada parágrafo da crônica “O coração do coração”, o narrador repete que o romance que
gostaria de escrever seria aquele em que as páginas fossem espelhos. Dá diferentes
justificativas para isso: a primeira é que, como espelhos, elas permitiriam que o leitor se visse,
mas muito mais que ver-se de maneira harmoniosa, o narrador afirma que gostaria que esse
leitor pudesse ver algo além: “não apenas ele próprio e o presente em que mora, mas também
o futuro e o passado, sonhos, catástrofes, desejos, recordações” (ANTUNES, 1998, p.45). Ou
97
seja, como está defendido até aqui, a literatura precisa ser capaz de afetar quem lê, isso é o
que torna um texto digno de ser chamado de literatura.
A literatura seria também um espelho em que o narrador poderia, mais que narrar a
vida, encontrar a própria vida a acenar-lhe “sentada num parágrafo” (ANTUNES, 1998,
p.45). No parágrafo “tropeçaria, à esquina de um capítulo, com os anos de Nelas”
(ANTUNES, 1998, p.45) e outras memórias que deixariam de ser passado e ganhariam corpo
pela via da escrita. Também como espelhos, as páginas teriam o poder de trazer:
o meu rosto de agora e todos os rostos que tive até ao rosto de agora revisitados no
Álbum do Bebé que ainda conserva, mumificado como a trança de um santo, um
feixezinho de cabelos da criança, hoje morta, que fui, a olhar-me através dos séculos
numa desconfiança acusadora, cabelos que evito tocar no receio de que se desfaçam
em pó à maneira das flores de laranjeira das noivas antigas, e que ao desfazerem-se
desapareça o que fui e as pessoas que amei com uma paixão sem igual...
(ANTUNES, 1998, p.46)
É interessante notar aqui que a escrita traria consigo, não só o poder da vida, mas
também o da morte. Poderia fazer com que o passado revivesse, e poderia também, ao tocá-lo,
desfazê-lo. Mostra-se assim a fragilidade da noção de identidade, modificada e ao mesmo
tempo semelhante à da criança que se foi um dia.
As páginas espelhos poderiam trazer de volta os seres amados, as sensações e os
terrores infantis: “o pavor de um Deus terrificante que me espiava emboscado na esperança de
uma mentira, de um palavrão, de polegares disfarçados no bolso a tentarem pecaminosas
manobras...” (ANTUNES, 1998, p.46). Seriam também capazes de presentificar toda a vida, a
esperança e a incredulidade na própria vida e na escrita, apresentada como uma tarefa
incessante e da ordem do impossível. Por isso, também estariam espelhados nele:
o adolescente que deixei de ser, afogueado de timidez e borbulhas, um homem aflito
a penar o seu romance palavra a palavra até entregar ao editor que do outro lado da
secretária o recebe como um dignatário eclesiástico aceita com benevolência
pastoral a oferta de um crente (...) e ao alcançar a rua dou-me conta de que perdido o
romance perdi uma parte essencial da minha identidade de modo que em casa
principio a preparar os blocos para a história seguinte na pressa de refletir-me de
novo no papel onde surge devagarinho uma esperança teimando em garantir-me que
98
existem manhãs tão matinais que só por elas merece a pena de acreditar nem que
seja nos políticos, esses patéticos administradores do efémero, nem que seja nos
economistas, esses absurdos gestores do contingente, acreditar em todas as criaturas
que baseiam seu prestígio numa insegura veemência e permanecer vivo.
(ANTUNES, 1998, p.47)
Barradas, ao fazer um detalhado estudo sobre essa crônica, afirma que “a metáfora do
espelho, recorrente na escrita de Lobo Antunes, ilustra as ligações complexas que o indivíduo
estabelece com o mundo, problematizando a própria dificuldade de apreensão da realidade e
da sua codificação na escrita.” (BARRADAS, 2004, p. 135). Assim, a escrita/espelho é uma
forma impossível de re-petir, pedir de novo, a vida a partir da morte. Essa dificuldade se
mostra, inclusive pela forma de construção narrativa, que se faz aos jorros, com poucas
pontuações, não dando descanso ao leitor.
O espelho também se apresenta em outras crônicas como uma forma de referir-se ao
duplo e ao questionamento da identidade que o narrador se faz através dele. Freqüentemente,
a imagem devolvida pelo espelho é de destituição, marcada por uma dualidade ou por uma
partição de um eu que conversa consigo mesmo.
De acordo com Freud, a presença do duplo no texto literário é um dos índices da
presença do estranho. Isto porque “há uma duplicação, divisão ou intercâmbio do eu”
(FREUD, 1919, p.293); pois, diante do espelho, o sujeito fica em dúvida sobre quem é o seu
eu, ou substitui o próprio eu por um estranho.
Para Portugal (2006), as formas do duplo mencionadas remetem aos três registros
articulados por Lacan. O imaginário estaria associado às duplicações de imagens ideais,
sósias, rivais, semelhanças em atos e delitos. A divisão diz respeito ao registro simbólico,
apontando a estrutura de divisão do aparelho psíquico em inconsciente, pré-consciente e
consciente. Já o real se apresenta quando acontece o intercâmbio do eu, quando o eu não se
reconhece.
99
A autora lembra ainda que o espelho é o parâmetro da exterioridade, pois oferece ao
eu a chance de se ver inteiro ao preço de se reconhecer como um outro. A imagem que
aparece no espelho é invertida e esse elemento impõe a diferença no registro do idêntico. “Por
esse viés , aquilo que seria o mais conhecido e familiar, a própria imagem, vira estranho.”
(PORTUGAL, 2006, p.89)
Retomando as colocações de Schollhammer no capítulo anterior, surge a partir do
duplo um quiasma entre uma visão que parte do sujeito que se olha no espelho e do olhar que
emana do objeto, neste caso a imagem refletida. Várias são as crônicas de Lobo Antunes em
que encontramos esse artifício de linguagem. Por exemplo, na crônica “Olá” pode-se ler:
E de manhã lá estás tu no espelho da casa de banho à tua espera. Tu esse cabelo,
esse nariz, as marcas sob os olhos? Tu. Demoras tempo a reconhecer-te que nem te
imita os gestos, os faz ao mesmo tempo, não te troça. A maneira de ele lavar os
dentes, a maneira de ele fazer a barba”(ANTUNES, 2002, p.81)
O título, uma saudação, já aponta para o duplo, pois trata-se de um eu que
cumprimenta outro eu que é tratado na crônica por tu. Mais ou menos como Alice no país das
maravilhas, o espelho não oferece uma imagem apaziguadora, pelo contrário, sempre que se
refere a ele como desconhecido, o narrador das crônicas expressa uma sensação de estranheza,
de não reconhecimento de si mesmo.
De acordo com Freud, se, a princípio, o duplo pode parecer-nos assegurador da vida,
acaba por se tornar um anunciador da morte: é a própria imagem que se mostra
irreconhecível. Nessa crônica, a imagem duplicada no espelho não é reconhecida e apresenta-
se fragmentada – cabelo, nariz, marcas sob os olhos. O outro eu do espelho, de tão estranho,
deixa de ser um tu, pessoa com quem se fala e passa a ser nomeado como um ele, pessoa de
quem se fala.
Outro autor que trabalha o tema da repetição é Deleuze. No livro Diferença e
repetição mostra que o cerne da repetição diz respeito à diferença, àquilo que não tem
100
representação. Afirma que enquanto a generalidade se caracteriza pela semelhança e
igualdade, a repetição remete à diferença entendida como o que não pode ser substituído, pois
concerne a uma singularidade não trocável.Repetir é comportar-se em relação a algo que
não tem equivalente” (DELEUZE, 1988, p.21). Na linguagem poética, cada termo é
insubstituível, por isso, só pode ser repetido. O que insiste na repetição é a diferença. Para
defender seu ponto de vista, Deleuze recorre a vários autores, e, entre eles se encontra Freud,
com o conceito de pulsão de morte.
Para o filósofo, a grande virada do freudismo aparece em “Além do principio do
prazer” (FREUD, 1920) onde se encontra uma consideração direta dos fenômenos de
repetição. Curiosamente, a pulsão de morte vale como principio positivo originário da
repetição, aí estando seu domínio e seu sentido. Eis porque a pulsão de morte, onde impera o
além do princípio do prazer, é, antes de tudo, silenciosa – não é um dado da experiência – ao
passo que o principio de prazer é ruidoso. A pulsão de morte vai se apresentar no texto
literário a partir dos intervalos, dos não ditos, de algo que é dêitico e não apenas representado
pela palavra.
Deleuze se pergunta de que forma a repetição é afirmada e prescrita pela pulsão de
morte. “A repetição é verdadeiramente o que se disfarça ao se constituir, e que só se constitui
ao se disfarçar. Ela não está sob as máscaras, mas se forma de uma máscara a outra”
(DELEUZE, 1988, p. 49). Portanto, nada melhor do que a noção de espelho para mostrar essa
repetição, pois, como afirmou Freud, ao mesmo tempo que apresenta Eros, a vida, acaba por
apontar o irrepresentável, a morte. É a representação que mediatiza o vivido ao relacioná-lo
com a forma de um objeto idêntico ou semelhante. Eros deve ser repetido, só pode ser vivido
101
na repetição, mas o pano de fundo da repetição é a repetição do novo, do estranho, situado no
litoral, entre o simbólico e o real.
23
A suposição freudiana do recalque originário, como uma marca que nunca foi
representada pela palavra
24
, segundo Deleuze, aproxima-se de uma razão positiva interna da
repetição, que será determinável em 1920 com a conceituação de pulsão de morte.
A pulsão de morte deve ser compreendida em função de três exigências paradoxais
complementares: dar à repetição um principio original positivo, um poder autônomo
de disfarce e, finalmente, um sentido imanente em que o terror se mistura
intimamente com o movimento da seleção e da liberdade.” (DELEUZE, 1988, p.
191)
A vida se constitui a partir da morte, o simbólico é indissociável do Real, o familiar e
o estranho são inseparáveis. Mitos, como os de Perséfone, mostram que essa concepção já se
faz presente na mitologia grega: Filha de Demeter, deusa da fertilidade, Perséfone é oferecida
por Zeus a Hades, o guardião da morte. Sua mãe, inconformada, faz com que Zeus
reconsidere sua decisão e mande Hermes buscá-la nos infernos. Ao partir, Perséfone come
sementes de romã, caindo na armadilha de Hades para obrigá-la a permancer no inferno.
Assim, após uma negociação entre Hades e Demeter, Perséfone passa a viver seis meses no
escuro do inferno e seis meses à luz do sol, vivendo a dualidade escuro/luz, morte/vida.
Toda a obra de Lobo Antunes e as crônicas em particular testemunham essa
possibilidade. Na crônica “Receita para me lerem”, por exemplo, o narrador afirma que sua
narrativa é uma eterna repetição, pois constitui-se de “largos círculos concêntricos que se
estreitam e aparentemente nos sufocam. E sufocam-nos aparentemente para melhor
respirarmos” (ANTUNES, 2002, p.111). Retoma o dito de que gostaria que seus livros fossem
espelhos, para que cada um pudesse regressar deles “como quem regressa da caverna do que
era. É a única salvação que conheço e, ainda que conhecesse outras, a única que me
23
Pode-se ver aqui a semelhança entre as colocações de Deleuze e de Lacan ao se referir às duas formas de
repetição; tiquê e automaton.
24
Como já foi explicado, essa teorização já se encontra na carta 52, escrita em 1896.
102
interessa.” (ANTUNES, 2002, p.111) Se seus textos têm, à primeira vista, um tom
melancólico, na verdade são um convite para o novo, para a transformação. Não que sejam
tidos como exemplos, mas como um constante questionamento ao instituído, convidando o
leitor para o que é pulsante. Portanto, não é de se admirar o fato de o escritor afirmar em
entrevista, que se espanta ao constatar que as pessoas consideram seus textos atormentadores:
“para mim, os meus livros não são tristes.” (BLANCO, 2002, p.65)
Garcia-Roza (1990), num diálogo constante com a filosofia, faz uma leitura do texto
de Freud a partir do pólo da diferença, tomando a pulsão de morte como sendo o mal radical
da Psicanálise. Só que o vocábulo mal não é visto com uma conotação moral, mas como
aquilo que é rebelde às grades simbólicas e sempre se insinua nas entrelinhas, trazendo
consigo uma certa desestabilização. Segundo ele, “a pulsão de morte, entendida como
potência destrutiva, recusa a permanência. Enquanto a pulsão sexual é conservadora, pois
além de constituir uniões, tende a mantê-las; a pulsão de morte é renovadora. Ao colocar em
causa tudo o que existe, ela é potência criadora”.(GARCIA-ROZA, 1990, p.134)
Escrever tem algo de paradoxal. É ao mesmo tempo achar-se e perder-se. É
confrontar-se com a experiência original, inominável que, apesar de indizível, dá origem ao
movimento de resgate da memória. Podemos, como leitores nos reconhecer nesses textos
porque o que existe em comum entre os seres humanos, independente da nossa história
pessoal, é esse inominável. Assim, as memórias de cada um, remetem à memória de todos.
Para Freud (1917), o escritor deve ser capaz de esvaziar o eu, enxugando de seu texto os
excessos pessoais. Ora, em Lobo Antunes as referências ao eu são excessivas, mas é um eu
esvaziado, que diz não saber de si. Essa experiência de estranhamento tem o poder de tocar o
leitor naquilo que diz respeito à extimidade, no estranho familiar de cada um de nós.
103
Quando mostramos que o aparelho psíquico se estrutura a partir de algo que está fora
do espaço da representação, abre-se a possibilidade para o movimento, para o surgimento do
novo na repetição. Lobo Antunes refere-se a essa questão em entrevista, ao afirmar que:
Nunca conseguirei o romance que quero fazer porque, primeiro, se o fizer , para quê
continuar a escrever? Depois porque é uma luta constante com as palavras, com a
resistência das emoções, mas esse é precisamente o encanto do meu trabalho.
(BLANCO, 2002, p. 128)
O mesmo pode ser encontrado em várias crônicas. Por exemplo: “Saberiam os
aspirantes a escritores que não alcançar o que queremos é nosso maior triunfo?” (ANTUNES,
2002, p.19) Ou, num tom mais depressivo na crônica: “Há surpresas assim” :
Anda um homem às voltas com um livro, carregado de angústia e de dúvidas
(escrever é uma atividade que raramente associo ao prazer)
As mesmas de quando comecei, em outubro de 98, as mesmas que me
acompanharão quando daqui a alguns meses o entregar ao agente e o agente dos
editores, a suspeita de não ter sido capaz, de ter falhado, de dispersar em cinzas o
material incandescente que tinha na mão...(ANTUNES, 2002, p. 279-281)
É porque a escrita do pleno é impossível, que a luta com as palavras é uma constante e
sempre pede de novo, repete porque o real insiste. Lobo Antunes está consciente dessa luta.
Ela se faz presente em suas crônicas enquanto temática e enquanto narrativa.
No próximo capítulo, vai-se tratar desse impossível pela via do que Freud
denomina de experiência de desamparo devido à castração, ou seja, procurar-se-á mostrar
como Lobo Antunes fala dos desencontros existentes nas relações humanas, marcadas pela
busca inútil de si mesmo e do outro pela via do amor e deparando-se com a solidão e com a
morte em função da impossibilidade inerente à existência.
104
CAPÍTULO 3 - O DESAMPARO
“O estado de exceção em que vivemos é na verdade a regra geral”
(Walter Benjamin)
A condição de desamparo é a marca da humanidade. Esta é a má nova das crônicas de
Lobo Antunes e também da psicanálise. As soluções que a cultura oferece para fazer frente a
esse desamparo são precárias, respostas ingênuas para algo que é radical: a morte e a
impossibilidade da completude. Pode-se dizer que esta frase se faz cada vez mais presente na
obra de Lobo Antunes, inclusive nas crônicas. Os personagens são marcados por
inquietações, fragilidades, insuficiências e insignificâncias. O narrador das crônicas ora num
tom nostálgico, ora num tom irônico, insistentemente transmite ao leitor essa mensagem,
fazendo com que ele também se depare com suas próprias misérias. O pacto que se estabelece
entre leitor e escritor se faz pela via do desamparo, pelos efeitos de inconsciente que produz.
Eduardo Lourenço diz que Lobo Antunes faz, através de sua ficção, uma psicanálise
visceral daquilo que nós somos. Em seus relatos estaria presente, principalmente, algo que se
encontra imerso entre a razão e a loucura e que, de vez em quando, vem à tona. Lobo Antunes
seria capaz de mostrar um mundo “onde a razão e a irrazão estão profundamente relacionadas
uma com a outra, como a carne e o espírito misturados, como o sol e a treva realmente
misturados” (LOURENÇO, 2004, p.355) .
Se o ensaísta refere-se particularmente ao povo português que se vê desmascarado em
suas ilusões pela lâmina da palavra do escritor, essas considerações podem ser estendidas para
além das fronteiras de Portugal. Na verdade trata-se da vida do homem contemporâneo, que é
mostrado numa atmosfera de sonhos desfeitos, de afetos (in)contidos, de uma solidão visceral
e, ao mesmo tempo, na sua recusa de admitir esses afetos, essa solidão. O eu é um eu que não
se apreende, não sabe de si e por isso mostra-se fraturado. A vida amorosa, em todos os
níveis, apresenta-se particularmente em sua versão de fracasso. O desamparo que é
105
transmitido ao leitor é a tônica dessa estética do desprazer. As crônicas fascinam e
incomodam, ou fascinam porque incomodam e este provavelmente é o seu diferencial.
Ramon faz uma reflexão do que vai chamar de incomunicabilidade das crônicas, na
medida em que elas mostram o muro que existe entre os seres humanos, nas relações sociais
que se tecem em “espaços alienantes, disfóricos, desumanizantes” (RAMON, 2004, p.193),
em que o sujeito apresenta-se “em crise, fragmentado, descentrado, reduplicado, exposto ao
sofrimento manifesto na perplexidade com que encara a vida e que resulta na
incomunicabilidade a que se vê reduzido” (RAMON, 2004, p.193).
Como já mencionado no capítulo um desta tese, outro aspecto enfatizado por Ramon é
que a “ausência da faculdade de compreensão” (RAMON, 2004, p.190) pode ser o verdadeiro
motivo da escrita de Lobo Antunes.
Escrever o que não se compreende é particularmente interessante ao se considerar a
escrita do estranho, conjunto vazio que tangencia o campo da literatura e da psicanálise.
Afinal a psicanálise é um saber que vem afirmar que a vida se estende muito além do que
pode ser compreendido. O estranho é, justamente, o que é capaz de nos fisgar pela
impossibilidade de compreensão. Esse impossível, ainda de acordo com Ramon, diz respeito à
morte, aos costumes e à falta de amor.
Ramon enfatiza o caráter especular de algumas crônicas que refletem a vida pessoal
do autor e outras que se referem a “várias outras primeiras pessoas, masculinas ou femininas,
através das quais a visão do mundo do autor se expande”(RAMON, 2004, p.192). De acordo
com a autora, essas outras pessoas veiculam uma crítica aos valores que sustentam a vida
social de Portugal.
Esse artigo foi escrito tendo como base de reflexão o livro publicado em 1998.
Entretanto, parece que progressivamente as crônicas vão se tornando menos voltadas para o
social e ganhando cada vez mais um movimento de expansão para dentro, mesmo quando os
106
narradores são outras primeiras pessoas, com vidas diferentes daquela do escritor. Como
afirma o narrador da crônica “Receita para me lerem” (2002), reflexões sociais não
constituem o foco de seus interesses. Assim como acontece nos romances, as crônicas vão se
tornando mais íntimas e ao mesmo tempo mais marcadas pela desterritorialização.
3.1 – “que estranho eu ser eu”
A escrita das crônicas é, quase em sua totalidade, feita em primeira pessoa, o que dá
aos textos uma feição confessional; fazendo-os soar como verídicos. Mas, verdade, no caso,
não quer dizer necessariamente retrato fiel do escritor, embora muitas vezes o ponto de
partida sejam fatos da vida de Lobo Antunes. Os versos de Fernando Pessoa dizem que o
poeta é fingidor porque finge a dor que deveras sente. Onde estaria o limite entre a mentira e
a verdade? Esses termos parecem mudar de sentido quando se trata de literatura, como
também de psicanálise. Ou se dá um outro estatuto à mentira, elevando o simulacro à ordem
da criação, como fez Deleuze (1994) em A ordem do sentido ; e/ou se pensa na verdade
como não sendo da ordem do dito, tal como fez Lacan (1971) ao circunscrever o real.
Quem é esse sujeito que é narrador e narrado nas crônicas? Se aqui o objetivo é
detectar os vestígios do estranho, quando o tema é a pergunta quem sou eu, podemos perceber
que o narrador das crônicas de Lobo Antunes constantemente refere-se a um estranhamento
diante de si. “Que estranho é eu ser eu” diz o narrador freqüentemente, de diversas maneiras.
O duplo, como foi mostrado no capítulo anterior, já dá suficientes mostras disso.
Outra indicação deste “não saber” está em mostrar que, na vida, o acúmulo de
experiência e o conhecimento não facilitam o viver, não esclarecem o hoje ou o amanhã, são
“chaves desemparelhadas... Não se pode abrir nada com elas a não ser portas que deixaram de
existir.” (ANTUNES, 2002, p.16)
107
Nos três livros de crônicas, a tematização do não saber de si e a interrogação sobre a
falta de sentido da vida e da morte parecem ficar progressivamente mais incisivos. Veja-se,
por exemplo, a crônica “Manual de instruções”, publicada em 1998, que apresenta temática,
imagens e estratégias irônicas que se repetem em várias crônicas.
O titulo da crônica - “Manual de instruções”- já é marcado pela ironia retórica, uma
vez que a instrução é a ausência de instrução no que diz respeito ao viver. O narrador mostra
padecer da dor de existir, sem saber o que fazer da sua vida, manifestando um desejo de fugir.
Primeiro das praias, povoadas de pessoas velhas que lhe sugerem possíveis imagens do
envelhecimento que se torna próximo e que gostaria de evitar: “ os sexagenários vêm morrer
na areia numa desilusão de cachalotes sem esperança, guardados por esposas que os
alimentam de sanduíches de paio e jornais desportivos.” (ANTUNES, 1998, p.105). Mas o
mal-estar do narrador vai mais longe:
Atualmente as praias deixaram de me interessar porque me apetece, de facto,
ir embora, não daqui mas do que tenho sido, ou seja do medo de uma cadeira
vazia do outro lado da mesa do almoço, com uma jarra de flores de plástico a
substituir um sorriso que se inquieta com nossas alterações de humor e nos
recomenda uma visita ao dentista, tomando pelo mal estar de uma cárie o
desgosto de nós mesmos que nos faz arrastar de sofá em sofá essa espécie de
reumatismo da alma que as porteiras e os psiquiatras confundem com a
tristeza.(ANTUNES, 1998, p.105)
Esse parágrafo chama a atenção por diferentes razões. O fato de ser escrito em apenas
um período longo transmite ao leitor algo da ordem de um cansaço, que parece ser o que o
narrador sente relativamente ao seu viver. Há algo maior que o incomoda: o que tem sido. O
que o desgosta na vida é a solidão da cadeira vazia e da falta de vida apresentada na
artificialidade das flores de plástico. Tem reumatismo na alma. A vida parece habitada pela
morte.
Também a referência ao mal-estar de uma cárie repete-se em várias crônicas. A cárie
parece remeter a um buraco/falha na existência, como já mostrado na crônica “O gordo e o
infinito”, e que costuma ser reiteradamente confirmado pela passagem da língua. Em “Manual
108
de instruções”, a cárie está associada ao “desgosto de nós mesmos” (ANTUNES, 1998, p.
105). As idas ao dentista, também repetidas em outras crônicas, têm uma conotação
traumática. Quer se refira à falta de recursos dos dentistas nos idos tempos de guerra ou a uma
consulta corriqueira, a ida ao dentista é tida como um ato em que o eu se coloca como vítima
da violência do Outro, enfatizado algumas vezes pelo infantil uso do babador, outro indicador
de desamparo.
Se é angustiante ir à praia, também o é estar no supermercado, significante da vida
contemporânea, onde mais uma vez, diante da infinidade de itens expostos nos corredores, o
narrador se “empalidece de solidão” (ANTUNES, 1998, p.105) e busca, então, a infância
perdida nas merceariazinhas do bairro. Na luta contra o tempo, quer pegar um trem que possa
oferecer “a amplidão de um futuro que teimei em reduzir a proporções de um presente
esquelético que os romances iluminam numa claridade de azeite de ampolas de hospital, sol
de doentes que não aquece nem exalta.” (ANTUNES, 1998, p. 106)
Sem futuro e sem presente, o eu/narrador afirma que:
descobriu tarde demais que os verdadeiros fantasmas são os vivos, e em descobrir no
espelho da manhã, uma cara parecida com a dos meus retratos que me pedia o que
tinha medo de lhe dar. (ANTUNES, 2002, p. 106)
Esse rosto no espelho, outra imagem reincidente nas crônicas, sempre traz surpresa ao
narrador, por mostrar-lhe uma imagem que desconhece ou revelar estranhas verdades que
gostaria de ocultar.
Mas o término da crônica é uma proposta de reconciliação consigo mesmo, através de
uma solução mágica:
Se tiver um pouco de sorte, hei de encontrar a cara do espelho a minha espera. Senão,
não vou desesperar: recuperá-la-ei num reflexo de montra e viremos juntos para casa
jantar frente a frente, sem presságios nem remorsos, livres da dieta do bom senso que
nos tirou o gosto aos dias e sem necessidade de uma jarra de plástico para nos
defender da solidão. (ANTUNES, 1998, p.106)
109
Também esta é uma estratégia recorrente: a presença da leveza para lidar com o que
traz angústia, recorrendo novamente a Calvino (1990), a leveza é como um salto ágil e
imprevisto que traz consigo a possibilidade de sobrelevar o peso do mundo. É como se o
narrador pretendesse nomear suas dores no gesto de escrever e, em seguida, com outro
gesto, pudesse apagá-las.
A crônica escolhida para apresentar como o desamparo é tratado no Segundo Livro
de Crônicas (2002) tem a mesma temática: uma perplexidade diante da falta de sentido da
vida que leva o narrador a gritar algo parecido com a letra da música do compositor brasileiro
Raul Seixas: “pare o mundo que eu quero descer.” A frase de Lobo Antunes é outra, mas quer
dizer o mesmo: “hoje estava capaz de me ir embora.”
Como na crônica anterior, há um período longo que descreve com mais intensidade a
angústia do narrador:
Hoje estava capaz de me ir embora: pegar nas chaves do carro sem motivo nenhum
(as chaves estão sempre no prato de entrada)
Descer as escadas
(não descer pelo elevador, descer as escadas)
Até a garagem da cave, ver o fecho elétrico abrir-se com dois estalos e dois sinais de
luzes, ver a porta automática subir devagarinho e, logo na rua, acelerar o mais
depressa possível, queimando semáforos, na direção da auto-estrada sem ligar os
painéis que indicam as cidades e a distância em quilômetros, sem uma idéia na cabeça,
sem destino, sem mais nada para além dessa pressa de me ir embora, colocar entre
mim e mim o maior espaço possível, esquecer-me do meu nome, dos nomes dos meus
amigos, da minha família, do livro que não acabo de escrever e me angustia.
(ANTUNES, 2002, p.41)
A minuciosa descrição de detalhes aparentemente sem importância traz, de acordo
com Barthes, “efeitos de real”. Assim, pode-se visualizar, nos movimentos pesados do portão
da garagem, no carro acelerado, nos semáforos queimando, a angústia do narrador. Da mesma
forma, a repetição da preposição sem denota afetos angustiantes diante do viver. O narrador
gostaria de livrar-se de si mesmo, “colocar entre mim e mim o maior espaço possível”
(ANTUNES, 2002, p.41).
110
A frase “hoje estava capaz de me ir embora” aparece cinco vezes na crônica. No
segundo parágrafo a vontade de separar-se de si é justificada pela sensação de sufocamento: o
aperto das paredes da casa e a sensação de estranhamento. Em seguida o narrador refere-se à
batalha da escrita, ao cansaço da própria escrita, assim como das obrigações da vida de
escritor. Ir para um lugar qualquer, ter outra identidade, livrar-se dos editores, dos livros, dos
autores, do livro que não consegue terminar de escrever. Ir embora, sem regresso, sem
espalhafato, sem explicações.
No final da crônica, o desejo de ir embora parece ter se amainado, indicando que,
apesar de penosa, a escrita também pode ser possibilidade de operar com a angústia, pois o
narrador (também o escritor?) apresenta-se mais apaziguado:
As árvores do parque serenaram por fim. Ligo a televisão. Não entendo o que
se passa no écran mas continuo a ver. A criança sorri-me do aparelho.
Infelizmente o sorriso dura pouco tempo. Se calhar nem sequer um sorriso.
Há momentos na vida que necessitamos tanto de um sorriso. A falta de
melhor toco-me o dedo no caixilho. (ANTUNES, 2002, p. 43)
No terceiro livro, esse sujeito que não sabe de si apresenta-se, por exemplo, na crônica
“Uma jarra em contraluz, com um galhozito de acácia”. Nesse texto, tempo e espaço
aparecem como fantasmagóricos. Numa casa velha em que as torneiras pingam e o frio entra
pelas frinchas da janela, ou seja, em que o mundo não funciona de acordo com o que se
espera: as torneiras e as janelas são incapazes de vedar, de conter o que traz mal-estar. O frio
não se restringe ao que vem do mundo lá fora, rodeado de espectros, o narrador olha os
retratos dos seus antepassados e pergunta-se sobre que relação teria com eles:
Nasci assim, casual combinação de moléculas a que chamam António,
nasci assim, meio surpreendido, numa família que me toma por seu e engana-se,
quantas vezes penso que não sou daqui, oiço o que não há, vivo noutro sítio entre
aparições, onde as vozes deste lado me chegam confusas, remotas, numa língua que
não é bem a minha e acompanhadas de sorrisos, palmadinhas, soslaios curiosos
- Nunca cá estás, pois não?
eu
- o que quererá dizer nunca cá estás?
A entender, a resolver a questão com um gesto que, à força de não significar nada,
vai servindo para tudo, defendo-me como posso
111
- Às vezes distraio-me
E não é verdade, não me distraio, deixo o corpo com vocês e ando por aí, o meu
corpo finge que ouve, que se preocupa, que conversa, e eu livre, a olhar as pessoas,
a passear, a dar uma corridinha a fim de entrar no corpo no momento das
despedidas, chego a afirmar
-Foi um prazer
E prazer algum, nem prazer nem desprazer, não dei por nada, andei por aí ao acaso,
é a maneira de olhar de certas mulheres que ainda me prende aqui, certas
gargalhadas curtas, a textura de certas peles, o desejo que certas expressões
(nem sei bem explicar quais)
me provoca (ANTUNES, 2006, 141-142).
As noções de eu e de Outro são inter-relacionadas, o narrador estranha a si mesmo e
também desconhece o mundo a sua volta. A língua, os gestos, soam como estranhos.
Descompassado em relação ao mundo a sua volta, que não lhe traz prazer nem desprazer, o
narrador se aliena, anda por acaso, foge de seu corpo. Novamente a falta de sentido da vida e
o desconhecimento de si mesmo é o que mais incomoda. Quem vai socorrer o narrador é
novamente a fantasia: o desenho da rapariga projetado pela sombra da jarra no reposteiro da
varanda. A sombra o chama e esse chamado é acolhido pelo narrador:
há de chamar-me
- António
E a gente os dois a descer do terraço para o jardim da casa
(um terraço de azulejo com vasos de pedra)
E a corrermos lado a lado no jardim (...) ultrapassando o portão, outros portões, outros
muros, outros terraços ainda, a gente os dois, de mão dada, na direção do
mar.(ANTUNES, 2006, 144)
3.2 – A loucura
Esse sujeito que não sabe de si pode surgir também a partir de outros eus, que algumas
vezes apontam para a loucura. O nonsense, segundo Freud, é uma das formas do estranho se
manifestar. Só que Lobo Antunes não apresenta a loucura como algo distante: pelo contrário,
muitas vezes o narrador ora ocupa o lugar de quem cuida do louco e, subitamente, muda de
lado, sendo contaminado por ela. Em outras é o louco quem fala na primeira pessoa.
Por exemplo, na crônica “O acaso é o pseudônimo que Deus utiliza quando não quer
assinar”, o narrador faz uma ponte interessante entre a suposta sanidade e a suposta loucura,
112
mostrando que elas estão mais próximas do que se pode imaginar. O título da crônica sugere
que o Outro tem limites, nem tudo está contido nos ensinamentos de Deus. Existem linhas
tortas que Deus não reconhece como sendo de sua autoria e a loucura, ao esgarçar os limites
da razão, é uma demonstração disso.
Nessa crônica, encontram-se dois cenários. O primeiro é o hospital psiquiátrico, onde
uma árvore abriga simultaneamente luz e sombra: “mesmo nos dias de sol, a noite parece
continuar nela” (ANTUNES, 2002, p.149); também quando escurece, “o dia parecia continuar
nela” (ANTUNES, 2002, 149). O narrador refere-se a um doente que havia se enforcado e da
sua dificuldade de preencher o prontuário do paciente. Vê-se, diante do morto, usando a
mesma estratégia que usava no exercício da escrita de poemas: contava as sílabas dos versos e
contava também os dedos dos pés descalços do morto. A escrita está associada a uma
angústia diante do indizível da morte.
O segundo cenário consiste numa ida à casa dos pais num dia sujo, com nuvens
cheias de nódoas. Os significantes sujo e nódoas vão indicar a angústia do narrador, que,
também, numa espécie de loucura, vê seu eu dividido, duplicado:
Ao sair tive a impressão que saía muito mais do que sair para a rua.
Chamaram o meu nome. ( alucina o narrador) Ia jurar que chamaram meu
nome. António. Sem sobrancelhas franzidas (como parecia ser o chamado da
mãe, na infância) Só Antonio. Quem seria? A trepadeira? A varanda? As
plantas do canteiro? (delira o narrador) Voltei-me e dei comigo mesmo a
observar-me. Adeus António, soprou ele. Já não me via há séculos. Respondi:
-Adeus António
E desejei não tornar a encontrá-lo. Para quê? (ANTUNES, 2002, p. 151)
Nos dois cenários da crônica, não há separação nítida entre dia e noite, ambos
abrigados constantemente na árvore do pátio do hospital. Também não é nítida a separação
entre a vida do poema e a morte do doente, entre a suposta sanidade do médico e a loucura do
suicida. No segundo cenário o narrador mistura os tempos e se desconhece. A suposta loucura
agora é do narrador que, ao sair da casa dos pais é acompanhado fantasmagoricamente por sua
113
infância. Vozes do passado o chamam. Há um eu que chama e outro que estranha o chamado.
Não quer se encontrar, mas sim despedir-se de si mesmo.
Já a crônica “O amor dos animais” vai tratar da ausência de limites entre o médico e
louco pela via da comicidade. O paciente apresenta-se para consulta dizendo que havia sido
instruído pelos irmãos a procurar um psiquiatra porque gostava dos animais. “o doutor acha
normal que os meus irmãos se preocupem com isso?” (ANTUNES, 1998, p.173) Buscando a
cumplicidade do médico, o paciente diz que aposta que ao doutor também “agrada conversar
com os tigres.” (ANTUNES, 1998, p.174). Rompendo os limites do seu lugar e igualando-se
ao paciente, o médico diz que adora hipopótamos. A divergência quanto à preferência pelos
animais leva médico e paciente a gritarem em defesa de suas predileções: tigres ou
hipopótamos. Assim termina a crônica:
O dos tigres e eu estamos internados há dois meses e odiamo-nos. Não sei o
que vão fazer, mas a mim prometeram dar-me alta para a semana com a condição de
não exercer a medicina.
Quero lá saber da medicina: o que quero é ir direitinho ao jardim zoológico
com um molho de cenouras no braço, dirigir-me ao tanque e ficar lá, dias seguidos, a
falarmos da vida. (ANTUNES, 1998, p.175)
Parece que o mesmo personagem ressurge na crônica: “Escrito a canivete”. O senhor
Rui é um paciente que gosta de conversar com os tigres. A loucura aqui está associada à falta
de conforto e à falta de dinheiro; o delírio é visto como uma estratégia possível para se lidar
com as mazelas da existência, por isso o narrador/médico decide retirar-lhe a medicação:
“como invejo um homem capaz de conversar com as jaulas tirei-lhe as pastilhas contra os
tigres que eram também contra o senhor Rui que andava tolhido e sonolento”
(ANTUNES,1998, p.318). Até que ponto a medicação retira do paciente seu único recurso
para lidar com um mundo tão injusto? Aqui pode-se ver uma crítica à psiquiatria e, mais
particularmente, à medicação. Novamente o médico coloca-se no mesmo nível do louco, pois
afirma invejar a estratégia do seu paciente.
114
Em outra versão, a loucura é apresentada a partir da vivência edípica, na trágica
crônica “O grande e horrível crime”. A temática é a de uma relação supostamente feliz entre
um filho de quarenta e um anos e sua mãe viúva. Ambos ganham a vida num salão de beleza,
a cuidar das “mulheres divorciadas”. Vivem um para o outro, trabalham, passeiam e almoçam
juntos aos domingos. Nessa relação exclusivista há lugar para o erótico em prazeres orais
partilhados: “conversamos um com o outro, no verão, a lamber gelado de baunilha na
esplanada no meio da aflição dos pardais.” (ANTUNES, 1998, p.123)
Viviam assim até que Edílson , um rapaz de vinte anos que usava casaco encarnado,
“começou a visitar-nos” (ANTUNES, 1998, p.123).O namoro da mãe com o rapaz quebra o
idílio em que filho e mãe viviam até então. O narrador encontra “minha mãe de saia nova
numa voz de quem desmaia ou se espreguiça.”(...) “E a minha mãe como se eu não existisse.”
(ANTUNES, 1998, p.124) No lugar de excluído, o encanto do narrador se desfaz, o pronome
possessivo minha deixa de ser exclusivo. Se antes viviam de um lado ele e a mãe e de outro,
as mulheres divorciadas, de repente a mãe dá sinais de semelhança com aquelas que teriam
uma conduta pouco recomendável. Usava “soutien de barbas, brincos compridos, um sinal
fingido na bochecha.” (ANTUNES, 1998, p.124)
Quando o narrador pega uma faca para separar os cubos de gelo que não queriam
soltar-se, metonimicamente ataca a mãe que se grudara ao outro, deixando-o sozinho. A
crônica passa a ter um movimento cinematográfico, como num filme de Hichtcock:
Nunca namorei, a minha mãe
- larga a faca Aníbal, que brincadeira mais parva
nem faço tensões de namorar, a minha mãe, com as mãos à frente da
cara
- Edilson
A minha mãe, de organdi azul
- Edílson
via-se um barco e não via o barco e ao levarem-me para a esquadra
nem sequer protestei, não me diga que aquela era minha mãe, não era a
minha mãe, a minha mãe não tinha nada em comum com as divorciadas do
bairro e nunca por nunca usaria um sinal fingido na bochecha, a minha mãe
que era uma senhora, nunca por nunca vestiria um soutien de barbas. (LOBO
ANTUNES, 1998, p.125)
115
Ver a mãe como mulher, usando coisas atribuídas a prostitutas, grudada com outro que
não o filho, torna-a irreconhecível. Assim, não era a mãe que ele tinha esfaqueado. A mãe era
a que existia antes. Por não suportar a exclusão, opera-se uma cisão no narrador que ao
mesmo tempo “via o barco e não via o barco”. A cisão também se opera na mãe: santa e puta,
mãe e mulher divorciada. Assim ele mata a mãe/puta/mulher divorciada, para continuar com a
mãe/santa, só dele.
Nessa crônica a loucura apresenta-se na vestimenta do amor. Pode-se assim fazer uma
ponte para o ítem seguinte, em que se analisará a forma como o amor apresenta-se nas
crônicas.
3.3– “Que estupidez o amor”
Freud (1912), em “Contribuições para a psicologia do amor”, tira esse sentimento do
lugar sublime, onde, segundo ele, costuma ser colocado pelos poetas e, como se estivesse de
posse de um bisturi, disseca as relações amorosas, mostrando como elas são banhadas por
águas de conflitos e desejos infantis. O pai da psicanálise acaba por concluir que,
independentemente das questões específicas de cada momento da civilização, existe algo na
própria natureza do amor que nos nega satisfação completa.
Os textos de Lobo Antunes atestam e discordam dessa perspectiva de Freud, pois vai
fazer uso do literário justamente para destronar o amor; mostrando que nem para os poetas o
lugar do amor é necessariamente o do sublime. Nas crônicas, os raros momentos em que este
se apresenta como um encontro, trata-se ou de uma metáfora de outros encontros, como no
texto “Como nós” em que o narrador/ pai ansiosamente deseja o surgimento da filha,
comparando seu amor a um “ruidoso silêncio” (ANTUNES, 1998, p.92) de um amante à
espera da amada; ou o suposto encontro é impalpável, ecoando perdido em algum lugar do
116
passado marcado por fantasias infantis, como já mostrado na crônica “Subsídios para a
biografia de Antonio Lobo Antunes” . De todo o universo das crônicas; apenas nesses
momentos ele é tido como um encantamento.
No que diz respeito à esfera das relações conjugais, pode-se dizer que o amor só pode
ser apresentado pelo não, quer se trate de narradores masculinos ou femininos. Embora a
forma de dizer seja diferente quando se trata de homem ou mulher, a temática será sempre a
do desencontro amoroso. A psicanálise esclarece que o não é condição para o amor.
Esclarecendo melhor, o sim ao amor comporta também um não, ou seja, há necessariamente
um desencontro no encontro amoroso. Esse não irá se mostrar de maneira diferente nos dois
sexos: o caminho da mulher é marcado pelo insaciável desejo de ser amada e o parceiro
buscado seria aquele que poderia, mas não consegue, suprir sua falta, dando-lhe o que ela
sente que não tem (CAMARGOS, 2003). Em Lobo Antunes, o narrador feminino sofre pelo
desencontro amoroso, mas nunca perde a esperança de encontrar um parceiro idealizado.
Nessa versão feminina, a perspectiva é de que o amor ainda não aconteceu, mas vai acontecer
um dia.
Já o sujeito que se inscreve como masculino supõe-se detentor do falo, o que traria a
ilusão de completude. Quem pretende sustentar a completude não suporta a manifestação do
desejo, pois desejar é apontar a falta (CAMARGOS, 2003). Lacan, para enfatizar a dimensão
de falta, vai dizer que “amar é dar o que não se tem” (LACAN, s/d, citado por CASTEL,
1994). Por isso, a demanda de amor denuncia a incompletude de quem ama. Como estratégia
defensiva, o homem deprecia o feminino e o amor. Nas crônicas de Lobo Antunes,
condizente a essa posição, os narradores masculinos, quando diante do amor, irão se angustiar
temendo a demanda de amor da mulher, evitando-o pela via da negativa ( não reconheço que
amo) ou do adiamento (ainda não é hora para decidir sobre o amor).
117
Há um muro intransponível na relação entre os sexos e por isso, apesar de se buscar
constantemente no amor uma suposta completude, essa estratégia acaba por levar ao
desamparo, marca da presença do estranho. Na busca do como um, depara-se com o
incomum. (CAMARGOS, 2003)
Tomando como referência a estrutura da lógica modal de Aristóteles (MORA, 2001),
Lacan vai dizer que o amor atesta a precariedade dos modos, passando por todos eles:
Possível – o que cessa de se escrever.
Essa é a dimensão essencialmente imaginária do amor. Usualmente ela acontece no
momento de enamoramento, quando os protagonistas podem ilusoriamente acreditar que
encontraram a pessoa que irá completá-los. Se acontecesse a completude almejada, a demanda
de amor cessaria e a busca teria fim.
Impossível – o que não cessa de não se escrever
Este modo marca-se por um não ao amor. Isso não quer dizer que o amor não exista,
pelo contrário, os grandes amores da literatura são marcados pela impossibilidade (ex:
Riobaldo e Diadorim, Romeu e Julieta, Heloisa e Abelardo, etc). O próprio Lobo Antunes,
em entrevista, refere-se à relação amorosa que teria tido com sua ex-esposa, assim: “minha
história com a Zé é uma história de amor e da impossibilidade do amor” (BLANCO, 2002,
p.61)
Contingente – o que cessa de não se escrever.
O modo contingente é o que pode ser, assim como pode não ser ( MORA, 2001). Em
algumas circunstâncias, o amor pode parar de não se escrever: há um encontro possível, que
acontece num determinado momento, mesmo que seja fugaz.
Necessário – o que não cessa de se escrever.
118
Na lógica modal, o necessário se opõe ao contingente, diz respeito ao que tem que ser.
No modo necessário, o amor, justamente por não se ajustar inteiramente a nenhum dos modos
anteriores, torna-se uma busca constante, premente como uma necessidade.
Sabe-se que, por princípio, o amor como possibilidade de se encontrar a metade
perdida é da ordem da pura ilusão, Platão já refere-se a isso em seu Banquete. Ele não traz a
completude, quer seja na versão masculina ou feminina. O amor, brinca Lacan (1985), é um
amuro, os seres amados estão ligados e separados por uma falta, por um conjunto vazio.
Assim, quer seja na versão feminina ou masculina, passando pelos diferentes modos, falar de
amor é, ao mesmo tempo, falar de solidão. Essa premissa tamm se verifica nas crônicas de
Lobo Antunes.
Três crônicas, publicadas quase subseqüentemente no primeiro dos livros de crônicas
são interessantes para mostrar as posições masculinas e femininas diante do amor ou da
solidão. As três são narradas em primeira pessoa, o que lhes dá um tom de confidência
intima, de algo que o narrador não quer admitir nem para si mesmo, mas que aparece nas
entrelinhas do texto.
Na primeira - “O fim do mundo”- o narrador é um homem que perdeu a mulher
amada por não poder bancar o amor que sente por ela, nem a dor de havê-la perdido, apesar
desta dor estar expressa já no título da crônica:
Isto pode ter acabado mas não sou tão parvo que vá chorar à tua frente.Pelo contrário:
apareço-te com um sorriso como se não fosse nada...
digo
- Boa noite Manuela
E como a sopa até o fim, a falar disso e daquilo, sem dar a entender que estou triste,
que tenho um nó na garganta, que sinto a minha vida em cacos porque juro-te que não
sou tão parvo que vá chorar a tua frente. (ANTUNES,1998, p.115)
Em nome de uma estratégia obsessiva, incapaz de bancar o desejo, o narrador
masculino se vê diante do amor como “uma coisa esquisita”, estranheza que o impede de
assumi-lo e faz com que sempre adie a decisão de casar com a mulher que ama, até que ela o
119
acossa para uma decisão da qual o narrador mais uma vez recua e ela decide ficar com outro.
Assim, o personagem/narrador perde a amada por ser incapaz de escolher, ou seja, por ser
incapaz de perder, e, ao mesmo tempo, de admitir a dor da perda:
E sento-me no quintal das traseiras até ser noite e sem chorar, claro, não sou
tão parvo que comece a chorar, que mariquice chorar, eu não choro, não penses que
choro, não choro, sento-me no quintal das traseiras até ser noite a dar milho às
galinhas, a dar milho às galinhas, a dar milho às galinhas, à dar milho às galinhas
(ANTUNES, 1998, p.117).
A dor, por deixar o homem no lugar de quem é portador de uma falta, só se escreve
pela negativa, pois, como diz Freud (1925), o não é uma forma de suspender o recalque e
admitir o que não é aceito pelo eu.
A segunda crônica chama-se “Teoria e prática dos domingos”. Ela mostra que,
também na esfera do amor, o estranho habita o familiar: na suposta harmonia de um casal
vivendo o cotidiano, podem surgir afetos que surpreendem o eu e que na convivência cordial
pode co-habitar algo de “esquisito”. Já no título, a crônica sugere que, assim como há uma
certa disjunção entre teoria e prática, também um casamento, tido teoricamente como bem
sucedido, pode ser percebido como entediante: na crueldade do cotidiano, o amor às vezes
precisa ser suportado. O narrador é um homem angustiado diante do vazio que o casamento
foi incapaz de sanar; para ele a vida, embora sem problemas aparentes, apresenta-se sem
solução, como no verso de Drummond: “Mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima e não uma solução. Mundo, mundo, vasto mundo, mais vasto é meu coração”
(DRUMMOND, 1988, p.4)
A demanda da mulher por sua presença, o tratamento afetuoso que dispensa ao marido
reforçam a sensação de mal-estar, “é um martírio e não entendo porque dado que gosto de ti,
nem sequer sou infeliz” (ANTUNES, 1998, p.120). O arrastar do domingo ao lado dela é
insuportável: “porque razão me apetece tanto qualquer coisa que nem sei o que é em vez de
120
ficar contigo?” (ANTUNES, 1998, p.119) Busca em vão respostas para “a coisa estranha, um
aperto, uma aflição incomodada” (ANTUNES, 1998, p.120) diante do domingo interminável.
“Não percebo o que quero mas percebo que não é isto que quero, este túnel de horas, esta
poltrona óptima durante a semana e desconfortável ao domingo onde não consigo sentar-me,
onde não encontro posição”(ANTUNES,1998, p.120). O desconforto é deslocado para a
poltrona ou para a programação rotineira do casal nos finais de semana, na convivência com
os familiares.
A volta ao trabalho que, na terça-feira será sentida como deprimente, é vista no
domingo como uma libertação, “os ponteiros do relógio principiam a girar” ( ANTUNES,
1998, p.120). A sua conclusão é que felizmente “só há a miséria de um domingo de nada por
semana” (ANTUNES, 1998, p.121). Só uma vez na semana terá que se deparar com o
insuportável de sua existência: “um insignificante domingo por semana e seis enormes dias
inteirinhos para ser feliz” (ANTUNES,1998, p.121).
A terceira crônica se chama “A solidão das mulheres divorciadas”. Esta é uma das que
foram escritas em primeira pessoa e em que o narrador é do sexo feminino. Uma mulher
divorciada, deprimida diante da solidão, convive com a idéia de se matar e, ao mesmo tempo,
busca de maneira desesperada um novo homem para preencher sua vida.
De acordo com a mãe, ela deve encontrar um rapaz como deve ser. Mas, na sua
procura, costuma acordar nos domingos em apartamentos em que se vê “incapaz de tomar
banho num chuveiro em que faltam o sabonete e a água além de se achar ocupado por um
monte de jornais velhos” (ANTUNES, 1998, p.128). Como na crônica anteriormente
mencionada, os acontecimentos se desenrolam no fim de semana e têm como conseqüência
uma “topada” com o desamparo. Como Penélope à espera de Ulisses, a narradora desfaz “o
tricô do domingo anterior” (ANTUNES, 1998, p.127).
121
As personagens mulheres descritas nas crônicas de Lobo Antunes parecem estar
insistentemente, apesar das frustrações, em busca de um homem que possa salvá-las de se
haver com a solidão. Na presente crônica, a busca da narradora a leva apenas a encontros
casuais com homens que reafirmam sua solidão e reforçam seu desejo de se matar. Esse
homem que conviria também não se encontra em seu passado, pois, ao esbarrar com o ex-
marido e não ser percebida por ele, a personagem se pergunta se ele a teria visto algum dia.
Apesar dos desencontros, ela continua consultando sua vida amorosa nos horóscopos e lendo
no jornal um artigo do caderno feminino que “explica como um cinto de ligas e uns sapatos
vermelhos poderiam mudar a minha vida afectiva” (ANTUNES, 1998, p.128)
Também a crônica “As palavras cruzadas no jornal” tem como temática a solidão de
uma mulher imersa em um casamento em que o muro da incomunicabilidade separa o casal
que habitava sob o mesmo teto. Ela a querer agradar o marido e ele a desconsiderá-la, fazendo
palavras cruzadas no jornal. Cruzadas também são as palavras entre eles, elas caminham em
diferentes direções. Ele voltado para o jornal, para a TV, ela insistentemente querendo agradá-
lo, cuidando dele como se fosse um filho ou fazendo, em vão, esforço para se colocar como
uma mulher desejável. Suas palavras e gestos ecoam no nada, o marido não a percebe, nem a
escuta. No final da crônica, o leitor se inteira de que Renato, o marido, deixou-a há dois
meses; a mulher continua, entretanto, a esperá-lo:
Falta-me alguém de quem possa tomar conta, para quem cozinhar, para quem
pedir a mulher a dias para engomar as camisas para além de me custar admitir que ele
não volta ... porque quero pensar que logo a noite ele vai chegar, vai me dar um beijo,
perguntar
- Mudaste a botija de gás?
E se vai instalar na poltrona como se nada fosse a resolver as palavras
cruzadas no jornal. (ANTUNES, 1998, 209)
Não há nela um movimento no sentido de mudar a direção da própria vida ou de
mudar o casamento, prefere continuar a exercer o papel de mãe do marido, permanecendo na
solidão a que já se acostumou.
122
A falácia de que o amor pode trazer a completude é apontada por Lobo Antunes,
assim como o é pela psicanálise, como mais insistente no imaginário das mulheres. Também
no segundo livro, a crônica “Espero por ti no meio das gaivotas” , o narrador é outra vez uma
mulher que demanda o amor do marido. Apesar dos desencontros do casamento, da falta de
assunto, do sexo sem amor, continua nostalgicamente à espera que o tempo passado retorne,
tempo em que o amor se situava no modo possível, quando em sua memória “com as
gaivotas todas na praia, corríamos de mãos dadas a assustar os pássaros, achavas-me graça,
achavas-me bonita, dizias que eu ficava linda a correr” (ANTUNES, 2002, p.62). Assim
continua a narradora:
Ainda tenho a certeza
(cada qual tem as certezas que quer)
De sermos felizes para sempre, de podermos ser felizes se um dia me deixares
Deixas não deixas, aposto que deixas
(- Que teimosia, que insistência , já é cisma caramba)
Abraçar-te. (ANTUNES, 2002,p. 63)
A frase “cada um tem as certezas que quer” evidencia a dimensão imaginária do amor.
Pode-se perceber que o discurso dos personagens femininos se contrapõe ao dos personagens
masculinos das crônicas anteriores que se encontram sempre de pé atrás em relação ao amor.
Como se a voz feminina se manifestasse, insistentemente, em defesa da crença de que o amor
um dia será possível. Ora, se apesar dos desencontros, a crença se mantém, o amor torna-se da
ordem do necessário, não cessa de se escrever. Já na voz narrativa masculina, o amor é
escrito como impossível, muito mais marcado pelo não, como foi mostrado nas crônicas em
que o narrador é um homem.
Esse amor impossível torna-se, entretanto, subitamente contingente quando se refere a
um tempo passado ou mítico, não localizável na cronologia, num encontro que se faz fora do
tempo. Aí ele se reveste de cores poéticas e de nostalgia. A crônica “Não entres por enquanto
nessa noite escura” , já mencionada, é um exemplo disso. Aqui é evocada a lembrança de
uma mulher/criança mítica em um tempo mítico em que era possível ser feliz em
123
contraposição a um presente marcado pela guerra. Ou seja, o amor aqui é de outra ordem, é
encontro que se faz no e apesar do desencontro:
Não sei bem o que dizer do teu sorriso porém quando me olhavas, dava-me a
idéia de principiar na minha boca e estender-se depois pelas paredes da casa
até iluminar a tua como certos freixos, certas crianças, certas rosas. Ou
pássaros. As cotovias por exemplo, em Abrigada, atrás de quem corrias
sempre, segura de voar. (ANTUNES, 2002, p.37)
Aqui, o amor vem como uma possibilidade de refúgio da guerra. Diante do terror da
noite escura, o encontro se dá no sorriso da mulher que se inicia na boca do homem e se
estende e abre-se para um mundo de luz, movimentos e perfumes, contrapondo-se ao presente
vivido como aterrador. Narrador e narratário são marcados pela mesma dor, pela mesma
guerra, carregando os mesmos mortos. “E cá estão. Fazem parte de ti, de mim, do mundo. De
onde tornas a nascer. Imensamente” (ANTUNES, 2002, p.39).
Lacan, ao se referir ao modo contingente de amor, explica poeticamente:
Aí não há outra coisa senão encontro, o encontro, no parceiro, dos sintomas,
dos afetos, de tudo que em cada um marca o seu traço de exílio, não como sujeito, mas
como falante, do seu exílio da relação sexual. Não é o mesmo que dizer que é somente
pelo afeto que resulta dessa hiância que algo se encontra, que pode variar
infinitamente quanto ao nível de saber, mas que, por um instante, dá a ilusão de que a
relação sexual pára de não se escrever? Ilusão que algo não somente se articula, mas
se inscreve, se inscreve no destino de cada um, pelo que durante um tempo, um tempo
de suspensão, o que seria a relação sexual encontra, no ser que fala, seu traço e sua via
de miragem. (LACAN, 1985, p.198-199)
Desse modo, o amor é convocado a fazer suplência ao desamparo. Com ele, como se
vê em Lobo Antunes, torna-se possível “habitar a terra pelo lado da pele” (ANTUNES, 2002,
p.38).
Outra forma usada pelo nosso autor para referir-se ao amor é pela via do cômico. A
estratégia do riso permite rasgar e colocar a nu o desencontro dos casais. Uma delas, “O meu
primeiro encontro com minha esposa” é particularmente engraçada. Tem como personagens
um casal que se encontra pela primeira vez após o narrador/homem ter colocado no jornal um
anúncio de casamento. A crônica consiste na conversa que o narrador teria tido com a esposa
124
no dia em que a conheceu. Ao deparar-se com a mulher, relata as perguntas que se havia
feito, o que havia imaginado antes de vê-la; “imaginei coisas, percebe, a gente imagina
sempre coisas, a cara, o sorriso, a voz, será alta, será magra...” (ANTUNES, 1998, p.259) e o
impacto de conhecer a mulher que havia respondido ao anúncio. O narrador evita ser
indelicado, mas sua decepção é impossível de ser escondida e se apresenta pela via da
negativa:
Não esperava que você fosse exatamente assim. Não tem nada a ver com a
beleza ou a perfeição dos traços ou o modo de arranjar-se ou a gordura, essas coisas
são menos importantes para mim do que julga e depois uma senhora forte é agradável,
é sinal de saúde, se por acaso eu não for capaz de abrir a lata de conservas com o
martelo você vai lá com o dedinho e trucla, não é que faltarem dentes à frente me
preocupe, é da maneira que se gasta menos em bife e mais em purê de batata e
economizam-se uns tostões que o talho anda pela hora da morte, se me permite a
sinceridade o que me incomoda é seu olho esquerdo, quer dizer o direito vê-me noto
que me vê, mas o esquerdo parece amuado comigo. (ANTUNES, 1998, p.260)
O narrador também tem aspecto físico deplorável: sua faxineira havia dito que, se
tivesse colocado foto no anúncio, não teria recebido nem essa única resposta. Mas a futura
esposa reage de maneira violenta à sua decepção, agarra-o e levanta a carteira para agredi-lo.
Diante da ameaça, o narrador não tem outra alternativa:
largue-me, eu caso consigo, mas largue-me, se você me largar vou direitinho
ao supermercado compro duas dúzias de Cerelac por causa da sua falta de dentes e
começamos já hoje, já agora, já aqui a ser felizes, que bom o seu olho direito outra vez
apaixonado, que bom a sua carteira quietinha na mesa. (ANTUNES, 1998, p.260)
Assim, após o pedido de casamento, o narrador pode se apresentar:
chamo-me Abílio da Conceição Pedrosa, trabalho na companhia de gás,
muito prazer minha senhora, desculpe não aperte minha mão com tanta energia, não
me esmague os ossos, o que eu queria dizer era muito prazer querida, o que eu queria
dizer, não me desloque o ombro, era muito prazer amor.”(ANTUNES, 1998, p.260)
Nos exageros próprios ao cômico o estranho perde a força. O leitor é tomado pelo lado
hilariante da história relatada e a tensão se desfaz pelo riso. Entretanto, há algo que se repete
também nessa crônica: a mulher quer o homem a qualquer preço. O amor continua sendo da
125
ordem do necessário. A posição do homem é outra: vacila, não quer, acaba sendo coagido, sob
ameaça de agressão, a casar com a mulher que havia respondido ao anúncio.
Antes de terminar essa sessão, será interessante abordar uma outra crônica, publicada
no terceiro livro, que é antagônica a esta que se acabou de analisar. Se nesta encontra-se o
reinado do cômico, na seguinte o que predomina é o estranho. A narradora descreve a
experiência de estranhamento ocorrida no momento de queda do amor, quando o ser amado
cai como um objeto e deixa de ter este estatuto. Fazendo um contraponto às crônicas
anteriores, aqui o narrador feminino descreve a destituição do amado, que perde toda a
dimensão imaginária, tão necessária para que o amor aconteça. Trata-se da crônica: “Uma
laranja na mão”. Essa destituição inicia-se pela descrição mecânica dos gestos do amante,
quando tudo perde o sentido:
Assim. Quer dizer, uma das mãos aqui, a outra mais abaixo. As duas
mãos mais abaixo. A mão que estava mais abaixo aqui, a mão que estava aqui
mais abaixo. Depois pegas-me na cara, depois fechas os olhos, depois beijas-
me. Depois afastas-te de mim. Depois sorris. Depois esperas que eu sorria.
Depois, como não sorrio, deixas de sorrir. Depois uma espécie de alarme na
tua cara. Depois alarme mesmo. Depois
-passa-se alguma coisa contigo, Luisa? (ANTUNES, 2006, p.23)
A descrição da cena dá a impressão de tratar-se de um ensaio de uma peça de teatro de
marionetes, em que os personagens tornam-se bonecos e os gestos são percebidos por alguém
que de repente está ao mesmo tempo dentro e fora da cena. O amante, subitamente, é reduzido
a um “ponto preto na asa do nariz” (ANTUNES, 2006, p. 24), que a narradora diz nunca ter
reparado anteriormente, ou em “sobrancelhas com pelos fora do lugar”(ANTUNES, 2006,
p.24). Transformado em coisa excrementícia, desumanizado, o amante, assustado, vai
embora. A narradora, ainda na vivência de estranhamento, extrai de si o amado, equiparado a
um cravo que ela espreme e vê-se diante do silêncio do real:
126
Ao espremer o ponto preto é a ti que espremo, tu inteiro no meu indicador, eu
para ti a mostrar-te
- Enorme este, não é?
Quase do tamanho da lua, quase do tamanho da árvore
-o que é que interessa a lua?
Quase do tamanho das nuvens cor-de-rosa, cor de tijolo, vermelhas, que o
escuro vai engolindo, e não existe a sala, não existe a casa, não existem os nomes, não
existe a Luisa, existe eu estendida no sofá, eu calada, eu pequena no quintal, de
tranças, com uma laranja na mão. (ANTUNES, 2006, p.25)
A destituição do outro leva a uma vivencia de destituição do eu, que perde seus
referenciais identificatórios: a sala, a casa, o nome, até o nome próprio. Diante do desamparo,
a mulher, também sem palavras capazes de nomear a estranheza da vivência de perda de si,
vê-se “pequena, no quintal, de tranças, com uma laranja na mão” (ANTUNES, 2006, p.26).
A frase de Lobo Antunes que dá titulo a esta sessão “que estupidez o amor” (1998,
p.169) traduz o que se pretendeu mostrar, pois na vida humana o amor é mesmo estúpido,
anda-se sempre em torno dele, buscando algo que ele não pode nos dar, mas a vida sem ele é
também outra forma de sofrimento. O amor é, ao mesmo tempo, sempre e nunca. Lobo
Antunes diz que em sua obra trata da ausência de amor. Acredita-se que isso não quer dizer
que o amor está destituído de sua importância, mas sim que o autor mostra o amor a partir da
presença da ausência, dimensão paradoxal do não, fundamental para que ele continue a
insistir e não cesse de pedir para ser escrito.
3.4 - Do pai real ao real do pai
Uma das formas de o estranho se fazer presente diz respeito a questões relativas ao
pai, diz Freud (1919). E o que é um pai? Como conquistar sua herança? São perguntas que
atravessam a vida de cada um de nós e que se fazem presentes nas crônicas de Lobo Antunes,
particularmente no momento em que o escritor se depara com a eminência da perda do pai.
Também Freud sempre andou em torno da questão do pai: foi mobilizado pela morte do pai
que ele iniciou sua análise pessoal assim como traçou as primeiras teorizações sobre o
127
inconsciente
25
(tanto no contexto das produçoes teóricas quanto nos fragmentos da análise
pessoal, o pai se faz presente). As memórias relativas ao pai retornam no texto Um distúrbio
de memória na acrópole (FREUD, 1936), que tem forte tom autobiográfico.Pode-se dizer que
tanto para Freud quanto para Lobo Antunes, a morte do pai é mobilizadora e instigadora da
escrita.
Antes de prosseguir com a análise das crônicas, será interessante observar como a
psicanálise vê as diferentes dimensões da paternidade. Soler (1993) vai desvinculá-las da
figura concreta do pai e falar, não apenas da pessoa pai, mas da função paterna. A função
paterna faz um contraponto com a função materna, de natureza fusional. O pai, porta voz da
lei e da cultura, exerce a função de separar a criança da mãe. Para que essa função seja bem
sucedida é necessário que o pai seja capaz de dizer não, pois é ele quem interdita a criança e
a mãe. Mas, além do não, é preciso dizer outros sim, pois também cabe ao pai apresentar
outras possibilidades de investimento libidinal para a díade criança/mãe, possibilitando a
abertura de outros caminhos.
Pensando a função paterna a partir dos registros simbólico, imaginário e real, podemos
concluir que a dimensão simbólica se faz a partir do Nome do Pai, metáfora que introduz a
criança no mundo da linguagem e da cultura, por isso ela é da ordem da palavra. Como
consta na Biblia: no princípio era o Verbo. Deus seria a função paterna em sua excelência,
Pai com letra maiúscula. Entretanto, quem quer que exerça a função paterna para cada
vivente, não a encarna em sua plenitude. A função paterna é inevitavelmente falha.
Na impossibilidade do exercício pleno da função simbólica, encontramos a dimensão
imaginária do pai. Ela diz respeito ao pai construído a partir do romance familiar, dos mitos
que cada um constrói, num misto de fantasia e lembrança, a respeito da própria família. O pai
imaginário é o que mais se aproxima do pai visto como pessoa, aquele de quem muito se
25
Vide Correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess 1887-1904, (MASSON, 1986), já
mencionada.
128
espera (lugar de herói), mas cujo paradigma é a carência, um pai discordante em relação à
função paterna.
A função real do pai é mais enigmática. Se, como já foi dito no capitulo um deste
trabalho, o real se mostra a partir da incompletude do simbólico, essa é a dimensão real do
pai. Ela se mostra justamente onde o pai simbólico falha - e necessariamente vai falhar, pois é
impossível que ele seja capaz de decifrar todos os mistérios da vida. Portanto, se a dimensão
simbólica se faz pela palavra, a dimensão real se mostra pela via do silêncio.
De que maneira essas três versões do pai aparecem nas crônicas? Se não resta dúvida
de que dados da vida de Lobo Antunes estão presentes nelas de forma às vezes abusiva; as
relações do narrador com o “pai real” são interessantes para que, a partir delas, possamos
percorrer outras dimensões que permitam chegar ao real do pai, aquele que, de acordo com
Freud (1919), dá testemunho do estranhamento. É importante lembrar que referências ao pai
real não têm estatuto de verdade; elas também são marcadas pela fantasia. Como lembra
Seixo, entretanto, o que importa não são os dados biográficos, mas o potencial de
transmissibilidade do texto, sua possibilidade de apontar uma verdade que ultrapasse a vida
do autor, inevitável ponto de partida para a escrita.
Nas crônicas podem ser encontradas várias figuras da linhagem paterna. São
personagens que têm lugares aparentemente diferenciados na relação com o narrador: de
herói a anti-herói, da proteção ao abandono, da palavra ao silêncio.
O avô paterno ocupa, indubitavelmente, o lugar de herói. Sua presença pode ser
constatada já na primeira página do primeiro conjunto de crônicas, pois o livro é dedicado a
ele: “A memória do meu avô, António Lobo Antunes (1889 – 1960), de quem tenho tantas
saudades.” Dessa forma, o leitor toma conhecimento de que o escritor tem o mesmo nome do
avô. A “Crónica de natal” que parece ter como ponto de partida dados autobiográficos que
também se fazem presentes nas entrevistas dadas a Blanco, refere-se ao avô António Lobo
129
Antunes, cuja presença na vida do narrador é marca de felicidade e proteção: “lembro-me
muitas vezes do meu avô, mas lembro-me imenso no natal porque enquanto meu avô viveu
foi a época mais feliz da minha vida.” (ANTUNES, 1998, p.195) A crônica tem um tom de
leveza e descreve o orgulho e cuidado que o avô em relação ao menino. O avô é símbolo da
felicidade reconhecida depois de perdida: com a sua morte, acabam-se os natais e o que resta
“sou eu atrás das palavras de um romance.” (ANTUNES, 1998, p.197) Mas, como acontece
em várias crônicas, o tempo faz uma reviravolta e retorna vivo:
Mas pode ser que para o ano me ofereçam uma pistola de fulminantes e, ao disparar o
primeiro o meu avô reapareça, me volte a pousar a mão no ombro, me faça aquela
festa que me fazia com o polegar na nuca
( - o meu netinho)
E eu sinta de novo a sua força e sua ternura, sinta de novo, como sempre senti, que
estando junto dele nunca nenhuma coisa má, nenhuma coisa triste, nenhuma coisa de
reles poderia me acontecer porque o meu avô não ia deixar. (ANTUNES, 1998, p.197)
Se o avô paterno é a imagem idealizada da proteção, do antídoto contra o desamparo,
o avô materno é sinônimo de enigma e estranheza. As referências a ele estão invariavelmente
associadas à surdez e a um alheamento em relação ao mundo à sua volta. Esse avô deixa
esses dois atributos como herança para o escritor. Se o primeiro dos livros de crônicas é
dedicado ao avô paterno, tão protetor, o segundo livro abre com uma crônica que tem como
personagem o avô materno. Com o sugestivo título de “Não foi com certeza assim mas faz de
conta” , a crônica mistura memória e fantasia e o avô é apresentado como se fosse a imagem
de um objeto poético inatingível, também construído a partir de fragmentos de memória e
fantasia: “de pessoa tinha pouco: não me lembro de o ver rir, de o ver comer” (ANTUNES,
2002, p.13) . “Sua presença era uma silenciosa ausência que cheirava a brilhantina”
(ANTUNES, 2002, p.13). A ocupação desse avô, como a dos poetas, era com o inútil: “não
me recordo do meu avô fazer fosse o que fosse a não ser levitar. De tempos a tempos
introduzia o cigarro na boquilha e fabricava nuvens com a boca. Talvez a construção de
nuvens constituísse seu trabalho essencial” (ANTUNES, 2002, p.14).
130
Se o papel do avô paterno era o de dar contorno, o do avô materno era de desfazê-los,
diluí-los em fumaça. Se na crônica anterior o avô retorna para proteger, nesta, o avô é
incorporado pelo neto: “Tenho de voltar o mais depressa possível a Beira Alta e encontrar os
anjos, com o casaco de linho branco e uma boquilha tomar-me-ão pelo meu avô...”
(ANTUNES, 2002, p.15). Sua presença etérea é um convite para soltar-se em direção ao não
sabido:
Acendo o cigarro e tento uma nuvenzinha desastrada: aos cinqüenta e sete anos
chegou a altura de partir também, a caminho do outono, abandonando no armário de
inutilidades uma dúzia de livros , que são as chaves desemparelhadas que possuo. Não
se pode abrir nada com elas, a não ser portas que deixaram de existir. (ANTUNES,
2002, p.16)
Também é importante referir ao modo como Deus - o Pai eterno - é apresentado nas
crônicas, pois encontra-se evidenciada nelas é a dimensão de falha. O Deus que se faz
presente nas crônicas não é poderoso. Por exemplo, em “Sobre Deus”, o narrador apresenta as
fantasias que nutria em relação a Deus, durante a infância. A crônica apresenta as
considerações sobre a impotência de Deus a partir do imaginário infantil, quando a igreja
trazia-lhe muito mais medo que conforto e Deus parecia-lhe sempre inadequado: “Deus não
me parecia muito asseado ou então contratara uma mulher a dias incompetente” (ANTUNES,
2002, p.89). A representação de Deus Pai também aumentava-lhe o desagrado: “senhor
hirsuto, empoleirado numa nuvem e segurando relâmpagos na mão, como os eletricistas.”
(ANTUNES, 2002, p.90) Incomodava o desalinho das roupas, as companhias esquisitas.
Como um Deus assim poderia entrar em sua casa? Como sendo tão desprotegido poderia
proteger? Queria um Deus que em sua casa pudesse ser apresentado às visitas como um
homem digno “em lugar de o recambiar para a cozinha a comer com as criadas, depois de
pousar seu feixe de relâmpagos nos joelhos como um guarda chuvas a que faltassem varetas”.
(ANTUNES, 2002, p.91). Pode-se ver que, ao ser apresentado através de construções
imaginárias infantis, Deus é descido do lugar de absoluto, ficando abaixo das pessoas com as
131
quais o narrador convivia; seu feixe de relâmpagos - símbolo do poder - fica reduzido a um
guarda chuva estragado, onde faltam varetas. Deus não é reconhecido na função paterna
absoluta, ou seja, não há pai algum capaz de dar proteção absoluta ao desamparo.
Já a figura do pai encontra-se nos textos marcada por contradições. Na crônica “Hoje
apetece-me falar dos meus pais”, o narrador refere-se a uma sensação constante de carência
durante a infância, uma vez que, como filho mais velho, viu-se abandonado pela mãe “uma
rapariga linda” (ANTUNES, 2002, p.297), devido aos cuidados dedicados aos irmãos rivais
que lhe sobrevieram:
Um dia, no intervalo de uma mamada o meu pai perguntou-me
- Queres ver?
Apertou o peito da minha mãe, saiu um jorro de leite e fiquei de boca tão
aberta que não me recompus até hoje. (ANTUNES, 1998, p.298)
Particularmente no terceiro livro, as crônicas trazem uma reflexão sobre a temática do
pai. A presença do pai parece justificar-se por um fator biográfico: o pai de Lobo Antunes
encontrava-se então no final da vida e, de fato, a última crônica refere-se à sua morte. Com
essa temática da peternidade o autor parece fazer uma amarração dos temas: escrita, silêncio,
vida e morte no Terceiro Livro de Crónicas.
Pode-se dizer que a figura do pai se apresenta a partir de todos os três registros:
simbólico, imaginário e real, cada um enfatizado em diferentes momentos, sendo que na
crônica “Ajuste de contas” essas três dimensões são apontadas. Se o pai imaginário tem
como paradigma sua carência em relação a sua função, essa falha se apresenta numa freqüente
queixa de frieza, de excesso de austeridade e falta de explicitação de amor. Essa falta de amor
é mencionada em diferentes crônicas, desde as publicadas em 1998, e se apresenta de maneira
ambígua: “um mérito ele e minha mãe tiveram e estou-lhes grato por isso: não me encheram
de amor e atenção, o que teria matado em mim o artista.” (ANTUNES, 2006, p.290) . É como
132
se o narrador sempre se queixasse e suspendesse a queixa, registrando-a pela negativa: vocês
não me deram amor, ainda bem.
Enquanto representante da lei e da cultura, o pai é mostrado como rigoroso diante da
lei, culto, inculcando “um ódio impiedoso a três coisas: a desonestidade, a covardia e a falta
de rigor.” (ANTUNES, 2006, p.290). Aqui a dimensão simbólica se faz em detrimento da
imaginária: “Não existiram entre nós efusões, confidências, pieguices: não era meu amigo, era
apenas meu pai” (ANTUNES, 2006, p.290). Sua cultura e amor à arte e ao saber se fazem
presentes nas conversas relatadas que o narrador teria tido com o pai que permitiram abrir
portas para o mundo e são reconhecidos pelo narrador em seu acerto de contas com o pai
morto. Mas a dificuldade de externar os afetos permanece na hora final: “Claro que chorei:
por ele, por mim, pela incompreensível finitude da vida” (ANTUNES, 2006, p.291). Afirma
ser difícil vê-lo morto, a morte traz consigo o real do desamparo e, só então, chamando pelo
pai imaginário, aparecendo como um narratário, que o narrador termina a crônica: “foi graças
a si que não morri da meningite. Não pense que me esqueço. Não esqueço. Paizinho
(ANTUNES, 2006, p.292). A dimensão afetiva recusada porque tida como “piegas” e, diante
da qual o narrador resistia, aparece na última palavra do texto e, também, do livro. Parece que
nesses momentos ocorre o que defende Blanchot: O imaginário adquire o poder, não de
tamponar o real, mas de evidenciá-lo, pois a idéia da morte como perda é transmitida com
muito mais força para o leitor.
A dimensão real do pai está mais freqüentemente associada ao silêncio. Na relação
com o ele, ressoam ecos do passado, de uma solidão vivida em presença do pai. Se, no que diz
respeito ao avô materno, esse silêncio fascina, quando se trata do pai, causa desconforto,
sensação de exílio:
Os meus pais foram jantar comigo em Abrantes: não teriam sido precisos facas nem
garfos: comemos silêncio o tempo inteiro e conservo comigo esse sabor. É igual a
morte: dói, depois amansa. (ANTUNES, 2006, p.83,84)
133
O silêncio é via de mão dupla, o narrador/filho várias vezes diz ser difícil falar ao pai:
Com meu pai nunca falei de mim: apetecia-me tanto, às vezes. Se ao menos fosse
capaz de falar do mais secreto de mim mesmo. Faço-o nos romances: deve ser por isso
que não os releio, por estar ali despido. (ANTUNES, 2006,163).
Se para Lobo Antunes escrever, lembrando Fernando Pessoa, é uma necessidade
imposta pelo “emissário de um rei desconhecido que cumpre instruções do além”
(ANTUNES, 2006, p.194), parece que a determinação se faz no sentido de escrever aquilo
que não pode ser dito.
Evocações de memórias do pai nos dois primeiros livros são mais raras do que de
outras figuras relativas à linhagem paterna, tais como os avós; já no terceiro livro essas
memórias são reincidentes. Certamente não é por mera coincidencia que nele encontram-se
também com mais freqüencia referências à dualidade vida e morte, silêncio e escrita. Lobo
Antunes parece se mostrar mobilizado diante do pai velho, próximo à morte.
O meu pai, ao jantar, subitamente velho. Longe dele não é este o pai que lembro. Nem
esta a mãe. Velhos ou disfarçados de velhos a enganar-me? Disfarçados de velhos, é
claro. Não morram. Vejam-me lá isso, como dizem os mecânicos, não morram.
(ANTUNES, 2006, p. 60)
Percebe-se aqui um estranhamento diante da possibilidade da morte do pai, o que o
narrador tenta controlar pela via da ironia. Essa possibilidade da perda tamm gera impulsos
de aproximação, que o eu vacila em se permitir ou não:
De repente, sei lá porque, apeteceu-me dizer
- Paizinho
Eu que nunca disse
- Paizinho
E é evidente que
- Paizinho
Nenhum, Deus me livre de mariquices. Qual paizinho: roço-lhe a cara com um beijo e
é um pau. Mas, já que chegamos aqui, veja lá se não morre.(ANTUNES, 2006, p.150)
134
Aqui encontra-se algo que é frequente nos três livros, quando os narradores das
crônicas se referem a vínculos afetivos: o amor nunca pode ser admitido ou é falado e depois
negado ou afirma-se pela negação. Como já registrado, o significante paizinho, tão almejado e
temido, só pode ser proferido depois do pai morto. Já no primeiro livro de crônicas o narrador
refere-se ao “estratagema da família: mal a gente se comove começa a discutir Herculano,
Antero ou Eça de Queiroz” (ANTUNES, 1998, p.351), os mestres do realismo português.
Aqui o realismo parece ser uma forma de fugir de um outro real, que se encontra além do
realismo e pretende-se ocultar. Há uma aspiração de ser capaz de nomear os afetos pela via
da escrita, um receio de fazê-lo e, ao mesmo tempo, uma urgência diante do implacável da
morte:
quero ter tempo para ganhar coragem e dizer a meus pais que gosto muito deles
(não sei se consigo)
Dizer aos meus pais que gosto muito deles antes que anoiteça senhores, antes que
anoiteça para sempre. (ANTUNES, 1998, p.329)
Como já afirmado anteriormente, essa evocação do nome do pai é mais insistente no
terceiro livro. A crônica “Você” tem o pai como narratário e a ênfase recai sobre o silêncio
do pai:
Nunca falamos muito
(acho que nunca falamos nada)
E não sinto necessidade de começar agora. O que poderia lhe dizer?
Existem séculos e séculos de silêncio entre nós e, debaixo dos séculos de
silêncio, ocultas lá no fundo, se calhar esquecidas, se calhar presentes, se
calhar apagadas, se calhar vivas e a doerem-me, coisas que prefiro não
transformar em palavras, coisas anteriores às palavras...(ANTUNES, 2006,
p.125)
Essa crônica é entretecida de dualidades: silêncio e escrita, morte e vida. Num
primeiro tempo o narrador refere-se a perguntas que não foram feitas, curiosidades não
satisfeitas. A crônica desliza para uma oscilação entre as marcas da morte e a vida:
135
“dou por mim agora a olhar sua cara devastada, os olhos fechados”(ANTUNES, 2006,
p.125)
Seguidas pela ternura da vida:
“Você abre os olhos
(continua a surpreender-me que sejam azuis)” (ANTUNES, 2006, p.126)
Na medida que os afetos não podem ser explicitados, o vínculo se faz a partir da arte,
espaço simbólico onde uma fala se faz possível entre narrador e narratário. Pela via da
enunciação, para lembrar o silêncio recém-mencionado, aparece uma frase aparentemente
descontextualizada: “na janela a figueira”(ANTUNES, 2006, 126). A conversa com o pai gira
em torno de Schubert – música que impressiona pelos silêncios e Sá de Miranda, escritor de
quem o pai lembra o verso: “incertos muito mais que ao vento as naves” (ANTUNES, 2006,
p.126). A arte é vida que traz a incerteza.
Mas, de súbito, a percepção do corpo próximo da morte intromete-se na conversa e
grita, escancarando a estranheza:
A boca descai-lhe, os músculos desapareceram, faz-me lembrar uma raiz seca lavrada
de ossos. Por onde andará o sangue, que só lhe vejo dentes e ossos?
- Tenho uma data de anos.
E é isso que você tem de facto, anos, dentes e ossos. Imensos anos (ANTUNES, 2006,
p.126)
Escrita e morte fazem um jogo de frente e verso, um leva ao outro. “Então penso que
você pode ter todos os defeitos do mundo mas era de certeza o único pai que pregou no quarto
de um filho adolescente o retrato de Charlie Parker” (ANTUNES, 2006, p.127). Apesar das
fraquezas, surgem lembranças de momentos que recuperam o lugar do pai e socorrem o
narrador.
Charlie Parker é um personagem já evocado pelo autor para referir-se a influências
decisivas em sua vida de escritor, na crônica “De Deus como apreciador de jazz” (2002, p.
136
131). Aqui é o pai, a quem é subitamente atribuído o lugar de herói, quem dá a mão ao ídolo
saxofonista. “Escrever como Charlie Parker tocava, à custa do mesmo sofrimento, a fim de
trazer alegria aos que lêem” (ANTUNES, 2006, p.127).
Mas, de novo, a morte retorna. Em oposição ao movimento do músico, está o anúncio
da morte à janela e na perda de movimentos do pai. Jogados, como que ao acaso, no meio do
texto lê-se: “O que é que a puta dessa figueira espera para dar folhas e flores?” (ANTUNES,
2006, p.127) parecendo indicar a angústia do narrador diante da presença da morte vista no
pai e desviada para a figueira que pode ser vista da janela.
A crônica termina com uma reflexão sobre o silêncio. Se no início o silêncio se referia
a fatos ou afetos não revelados, no final aponta para o indizível:
E ao descer as escadas dou-me conta de que afinal não existe nada debaixo dos tais
anos de silêncio. Quero dizer, quase nada: existe um filho cheio de coisas que prefere
não transformar em palavras enquanto muito longe, um saxofone principia a tocar.
(ANTUNES, 2006, 127)
Pode-se comparar o lugar paterno no Terceiro Livro de Crónicas com o que é
atribuído ao pai no poema “Viagem na família”, de Carlos Drummond de Andrade (1988,
p.91). Nesse poema, o eu lírico convoca o pai morto e pede, em vão, a palavra do pai para
socorrê-lo. O pai toma o filho pela mão e levando-o de volta à infancia, juntos fazem uma
“viagem na família”, à cidade natal, aos mortos, aos familiares, à casa. O passado retorna e o
mundo é reconstruído pela memória. “Há um abrir de baús e de lembranças
violentas”(ANDRADE, 1988, p.91). Porém, apesar da insistência do filho, o pai se mantém
em silêncio.Se o pai simbólico dá a palavra que permite ao poeta escrever o poema e construir
sua história, o que significa o silêncio do pai ? Poderíamos dizer que a dimensão real do Pai é
que é enfatizada nesse momento. Há um furo no simbólico, em outras palavras, também o pai
é marcado pela impossibilidade de tudo dizer. Assim, o pai se desfaz em barro, em sombra e
em seu silêncio está o silêncio da linhagem do pai, como também a impossibilidade de
137
responder a tudo. É como se Drummond, com outras palavras, repetisse o apelo de Cristo na
cruz, que o poeta reproduziu no Poema de Sete faces: “Pai, porque me abandonaste?”
(ANDRADE, 1988, p.5) E só a partir do reconhecimento dessa impossibilidade de tudo dizer
que uma reconciliação com o pai se torna possível. O pai da novela familiar, que se fez
presente na mágoa, na incompreensão, “na velha revolta a dividir-nos no escuro”
(ANDRADE, 1988, p.91). O pai simbólico se apresenta naquilo que ele traz como portador da
interdição e, ao mesmo tempo, como submetido ao interdito. Apesar da “falta de beijos”,
carências relativas ao pai imaginário, pode então abraçar o pai-homem-castrado
reconhecendo-o como pai e obtendo o seu perdão. Perdão que leva, ao mesmo tempo, à sua
perda enquanto possibilidade de salvação da queimação do fogo da vida, e ao ganho da
possibilidade de apaziguar a relação com a imagem do pai, num movimento de recuperá-lo e
ao mesmo tempo, perdê-lo. Afinal, pai algum pode salvar do desamparo, condição essencial
da existência humana.
Pode-se pensar que, ao longo do Terceiro Livro de Crónicas, a presença do pai
também vai sendo tomada pela via de cada um dos registros e no acerto de contas, a sua
herança é questionada pelo narrador: “Em que medida foi importante para mim? Amava-o?
Faz-me falta? Como responder a essas tres questões?” (ANTUNES, 2006, p.290). Nos
momentos finais do pai – aqui a referência é biográfica – um acerto de contas com ele se
impõe. O autor decide fazer isso via escritura. Escreve o que não pôde dizer, escreve tamm
o que é impossível ser dito. Como Drummond, queixa-se da falta de beijos, dos silêncios do
pai em sua função paterna inevitavelmente falha. Também no que diz respeito à morte, o
tempo não traz necessariamente o remédio: “amansa, depois dói, depois amansa de novo.
Adiante.”(ANTUNES, 2006, p.84) O movimento é de ritornello. É preciso voltar ao pai,
quantas vezes forem necessárias para conquistar sua herança.
138
3.5 – “Haverá vida antes da morte?”
A morte, segundo o próprio Lobo Antunes, constitui uma temática reincidente em sua
obra. Como avesso e direito que se misturam numa estrutura moebiana, morte e vida são
temáticas indissociáveis. Lobo Antunes faz questão de nos mostrar isso em suas crônicas. A
sua frase que serve de título a este tópico: haverá vida antes da morte? é bem ilustrativa do
assunto que se pretende tratar aqui, uma vez que nela, a vida é colocada como inseparável da
morte. É importante lembrar que morte aqui não se limita a ser sinônimo de fim de vida, mas
muito mais: trata-se de uma experiência de ruptura, de descontinuidade.
Uma forma usual de se nomear o estranho – o que não é nomeável – é pela via da
morte
26
. Afinal ninguém sabe o que é a morte, pois é só na condição de vivo que se pode
falar dela. Em relação à morte só se podem fazer conjecturas. Mas Lobo Antunes mostra que
há experiências em que o anjo sem rosto da morte se apresenta, produzindo linhas de fuga que
quebram o texto e levam escritor e leitor por nevoeiros obscuros. Um exemplo disso está nas
crônicas que o autor escreve a partir da doença do pai, já mencionada no item anterior:
A boca descai-lhe, os músculos desapareceram, faz-me lembrar uma raiz seca
lavrada de ossos. Por onde andará o sangue, que só lhe vejo dentes e ossos?
- Tenho uma data de anos.
E é isso que você tem de facto, anos, dentes e ossos. Imensos anos (ANTUNES, 2006,
p.126)
Pode-se dizer que, nas crônicas de Lobo Antunes, a morte se apresenta em diferentes
contextos. Talvez o mais insistente deles seja da morte presente na vida do narrador. Ela se
mostra nas marcas do envelhecimento, na sensação de que o futuro se estreita, na infância
26
Convém esclarecer que pulsão de morte – conceito freudiano inventado para explicar o que no psíquico é da
ordem da ruptura - guarda semelhanças, embora não seja sinônimo, com a morte biológica. Se a pulsão de morte
é silenciosa, a morte também o é. Se a pulsão de morte não tem representação, a morte também não. Se é a morte
que move a vida, se o vivente só preza a vida porque se pergunta sobre a morte, também é a pulsão de morte que
faz pano de fundo para a pulsão de vida. Também já foi mencionado no capítulo um que Freud inventou o
conceito de pulsão de morte para se referir ao que se encontra além do principio do prazer, além do domínio da
representação. Freud afirma que a pulsão de morte, embora sempre presente, é muda, por isso precisa da pulsão
de vida para se apresentar. É silêncio que se faz presente no emaranhado das palavras. (FREUD, 1920)
139
nostalgicamente perdida e numa sensação de enfado em relação à vida, tudo paradoxalmente,
misturado com um inconformismo diante da morte. Essa morte na vida do narrador pode ser
encontrada nos três volumes de crônicas, ficando mais insistente no terceiro livro de crônicas.
Veja-se como esse tema é trabalhado na crônica “Chega uma altura”.
No início do texto, a morte é uma presença amiga:
E chega uma altura em que se começa a conviver com a morte como se fosse
uma amizade antiga, alguém que está para aí, numa cadeira qualquer, sem incomodar
a gente, amável, quase simpática, a olhar-nos por cima dos óculos com uma revista
nos joelhos. (ANTUNES, 2006, p.27)
A morte aí aparece como se estivesse domesticada, assimilada pelo cotidiano. Um
pouco mais adiante, essa primeira versão se esvai e a morte vai ficando cada vez mais
desvanecente, marcando a vivência de falta de pertencimento: “água num ralo, um estalo de
cômoda, um adeus atrás do vidro” (ANTUNES, 2006, p.27), sua presença vai-se tornando
mais impalpável no decorrer da crônica, impalpável que toca tamm o indizível:
Chega uma altura em que a morte nem
- olá
Sequer dado que se não diz
- olá
A nós mesmos, em vez de
- olá
anoitece, nós diante do espelho de barba e no espelho não mais que
os azulejos em frente...(ANTUNES, 2006, p.28-29)
O questionamento da morte leva inevitavelmente a um estranhamento diante vida, vida
que se mistura com a morte:
...chega uma altura em que não se grita, não se protesta, fica-se
mudo, submisso, à espera, suspensos dentro da gente como cegonhas
de pata levantada, chega uma altura em que nenhuma pergunta
fazemos, nenhuma voz responderia se a fizéssemos, chega uma
altura em que me chamo António Lobo Antunes e chamar-me
António Lobo Antunes não tem sentido... (ANTUNES, 2006, p.28)
O parentesco amigável com a morte vai-se desfazendo e “chega uma altura que somos
nós a tal parente na ponta da toalha” (ANTUNES, 2006, p.29). A morte atravessa o umbral do
140
espelho e torna-se um duplo do eu. Mas que também vai aos poucos trazendo um
apagamento: “chega uma altura em que se acabou a cara, acabou a sombra”... (2006, p.30).
No final da crônica, a morte é tida como pura alteridade: “uma coisa me substitui, uma coisa
com minha roupa que se aparafusa numa caixa”(ANTUNES, 2006, p.30)
A “Crónica de hospital”, atribuída a Lobo Antunes e publicada na Internet dia 28 de
abril de 2007, traz algo de interessante para esta reflexão. Teria sido escrita enquanto Lobo
Antunes se encontrava internado no hospital e, de acordo com o narrador, onze dias depois de
ter sido operado de um câncer. Ou seja, é um texto escrito “a quente”, a partir de uma
experiência imediata com a morte. Comparando com a crônica anterior em que o narrador faz
conjecturas em relação à morte e ao morrer, aqui a escrita se faz a partir de uma trombada
com a possibilidade real da morte. O narrador se mostra espantado com seu espanto: “por
mais que repetisse – um dia destes, não acreditava que o dia destes chegasse”. Dá-se conta de
que há “um bicho horrível em mim, ratando ratando.” Diante do excesso da intrusão, da
invasão bárbara do câncer, fica, de inicio, dividido entre dois sentimentos: lutar e não lutar. “E
o primeiro fala antes do outro.” É interessante porque em nenhum momento o autor se coloca
como hábil para lidar com o horror da ameaça da morte: é doloroso e “tão pouco digno como
a velhice e a decadência”.
O autor se desculpa pelo texto “um pouco desconexo, desculpem, ainda estou fraco, a
cabeça tem lacunas, falta-me vocabulário, há mais de nove dias não pegava numa caneta e é
difícil reaprender a andar”. A escrita continua sendo sua tentativa de expressar o que não tem
palavras, única forma buscada pelo autor para dar movimento à vida. Como afirma Brandão
(2006), alguns escritores escrevem para sobreviver.
Mais adiante, na crônica, encontra-se uma frase que não se sabe se é um lapso do
escritor ou do digitador: “Espero que na revista entendam a caligrafia temida da crônica.”
141
Temida ou tremida? O lapso, como sempre, é bem sucedido e acaba por revelar mais do que
se pretende conscientemente. A crônica como um todo e o lapso em particular mostram que,
de acordo com o próprio autor, “as chaves que possuímos são desemparelhadas. Não se pode
abrir nada com elas, a não ser portas que já deixaram de existir” (ANTUNES, 2002, p.16).
Nada que o escritor tivesse produzido em torno da temática da morte foi capaz de reduzir seu
horror diante da sua possibilidade eminente. Falar de morte não nos ensina a morrer. E não só
isso, apesar de tanto falar da morte, a vontade de viver é que prevalece, levando-o a afirmar
que a vida não será mais a mesma depois do ocorrido.
O que esperar do amanhã? A crônica retorna à questão da escrita, do romance
terminado e do que iniciou, e é o poético que circunscreve o sentimento de estranheza diante
da morte: “E eu, já agora, quero-me? Sim. Não. Sim. Não-sim. Por enquanto meço o meu
espanto, à medida que nas árvores da cerca uns pardais fazem ninho.” Sua alternância entre
querer e não querer inicia-se por um sim, e termina também com um sim e seu movimento é
de ver a vida a se renovar através dos pardais.
Outra forma de aparecimento da morte está relacionada à perda de pessoas queridas. A
perda de amigos e parentes – fatos da vida de Lobo Antunes – torna-se tema de várias
crônicas, em que o narrador se mostra inconformado diante da radicalidade da separação
operada pela morte. A crônica “No Porto com Egito Gonçalves” é um caso desses. Aqui a dor
da perda é macerada de tal modo que a morte é aparentemente negada. O amigo escritor é
descrito como um personagem/ herói da adolescência: o mosqueteiro Aramis. O contato
primeiro com Egito Gonçalves, através de antologia poética, teria sido uma revelação tal que
levou o narrador a rasgar o que havia escrito e voltar ao princípio. Através da escrita, o
narrador busca resgatar experiências literárias partilhadas.
142
Nessa crônica o que é enfatizado é a gratidão enorme pelo amigo, com quem pode
“aprender a cidade com os teus olhos, viajar com o teu rosto” (ANTUNES, 2002, p.157).
Também agradece pelo reconhecimento do amigo quanto à importância de seu trabalho.
“Recordo-me de cartas tuas da Hungria, da Finlândia, falei nos teus romances António,
querem conhecer-te António” (ANTUNES, 2002, p.158). Retorna à imagem do mosqueteiro
protetor. “Sempre achei que trotavas a meu lado num cavalo invisível, como compete a um
espadachim” (ANTUNES, 2002, p.158).
A dor da perda é, ao mesmo tempo, explicitada e negada de maneira jocosa: “O que
egoisticamente me preocupa é como estarei no Porto sem ti. É óbvio que fico (mas não digo
que fico) um pouco magoado contigo.”(ANTUNES, 2002, p.158) O narrador faz sua
homenagem “Perdôo-te porque não eras só Poeta. Eras Poesia e por isso te respeito e admiro”
(ANTUNES, 2002, p.158).
O narrador passa então a fazer troça com a inevitabilidade da morte e com a dor da
perda irreparável causada por ela, através de uma aparente negação do tempo e da morte. Na
verdade, parece querer mostrar justamente o avesso: a intensidade da sua dor:
“Mas caramba, custava-te assim tanto esperares um bocadinho que
eu chegasse? É a primeira vez que me pregas uma partida e a primeira vez
desculpa-se sempre. No entanto previno-te desde já: livra-te de tornares a
morrer. E agora que acabaram as ameaças da-me aí um abraço do costume e
vamos embora” (ANTUNES, 2002, p.158).
A mistura dos tempos funde passado, presente e futuro e, sem falar, permite visualizar
a dor da perda: “E quero ver o teu braço no ar, à despedida, esse braço que erguias sempre
acima da cabeça antes de partires, à desfilada, a caminho de novas aventuras.”(ANTUNES,
2002, p.159)
A prevalência excessiva do imaginário lembra o discurso de uma criança que
desconhece a radicalidade da morte. Esse movimento, que num primeiro momento parece ter
143
como intenção encobrir o real da morte, acaba por exercer a função de evidenciá-lo. A recusa
em aceitar a morte torna a dor da perda mais pungente. Pela via do texto, o narrador traz de
volta os seres amados irremediavelmente perdidos e transmite a intensidade de sua dor, o
leitor também fica contaminado com o sofrimento da perda. Na última frase da crônica, Egito
Gonçalves está presente, num futuro próximo, acenando com o braço, mas o movimento é de
partida para “novas aventuras.”
Uma terceira forma de tratar a morte nas crônicas diz respeito às vivências ligadas à
morte no hospital ou na guerra de Angola. No que diz respeito à guerra, em nenhuma das
crônicas, o narrador se coloca no lugar de herói, assim como não se mostra em momento
algum como estando a favor de Portugal ou de Angola, nem dos representantes dos
movimentos revolucionários de esquerda (MPLA) ou de direita (PIDE). Como acontece no
romance Os cus de Judas, a guerra é vivenciada pelo narrador como uma experiência
absurda, em que não existe lado certo ou errado. A morte de pessoas nesse caso não diz
respeito exatamente a perdas afetivas. O que dá origem à escrita e é transmitido ao leitor
refere-se principalmente a um contra-senso inerente ao viver. Nesse contexto, a vida se
apresenta nua e crua.
Parece que o mal-estar da guerra ressurge como algo que toma o autor e o obriga a
escrever. Na crônica “Emília e uma noites” o narrador justifica-se, afirmando que queria
escrever outra coisa, mas “Angola me veio com toda força ao corpo.”(ANTUNES, 1998,
p.183). A experiência é corporal, tem a força do vivido. O narrador faz uma separação entre o
que é tido como seu estilo de escrita e o que produz nesse momento: “Não vou ter humor
nem ser inteligente nem subtil nem terno nem irônico” (ANTUNES, 1998, p.183). E afirma:
“eu acuso a guerra de ter mudado a minha vida” (ANTUNES, 1998, p.183). A crônica é um
grito diante dos horrores e se, de acordo com o narrador, a escrita é feita com raiva e com
144
pressa, talvez sua finalidade seja de libertar o narrador das dores incontidas que o tomam:
“será que se consegue soltar um grito devagar?” (ANTUNES, 1998, p.185).
A crônica “078902630RH+” tem um tom semelhante. O narrador faz uma
contraposição entre uma literatura que teria como objetivo apresentar o belo de um lado e, de
outro, a necessidade de vomitar o horror causado pela experiência da guerra. O vômito diz
respeito ao que não pode ser digerido e por isso retorna, e retorna com um aspecto avesso ao
da beleza, causando nojo. Como afirma o narrador:
Isto regressa como um vómito e tenho que falar nisto. E vocês têm
de ouvir porque eu continuo a ouvir. Mesmo que eu escreva isto mal porque
estou a escrever com o sangue dos meus mortos. Não posso esquecer. Não
consigo esquecer. Porque no dia em que esquecer mereço que alguém pregue
a minha medalha no primeiro caixão. Escrevo mal porque estou a escrever
com o dedo na terra. Não é uma crônica, não é já um vómito, são lugares
comuns se calhar mas não importa. (ANTUNES, 2006, p.112)
O narrador escreve porque não esquece, escreve porque precisa esquecer e escreve
porque não se permite esquecer. “Fica aqui. (ANTUNES, 2006, p.111) afirma, como se a
escrita pudesse dar um ponto final ao sofrimento. A literatura é de outra ordem, pois é
escrita com sangue, com o dedo na terra, como se não fosse apenas mediada pelas palavras,
mas algo vivo (sangue, terra) pudesse escorrer no interstício delas. Escreve-se com o próprio
sofrimento, numa escrita em que o estranho se insinua. Seria literatura? Pergunta-se o
narrador. Seria letra - pergunta-se - entendida como aquela que sulca o texto para que o real
tenha voz?
Estar na guerra teria sido um ato de covardia? A experiência da guerra o teria matado
também? A violência, da qual foi não apenas vítima mas agente, é lembrada, e a crueza é
mostrada sem atenuantes, com palavras sem enfeites, no prisioneiro sem pernas, na mulher
que aplicava choques elétricos “nos tomates” dos prisioneiros, no alferes a “borrar-se” de
medo, na lembrança do primeiro morto e na escolha do próprio caixão. Com a subjetividade
perdida, cada um era reduzido à impessoalidade de um número acompanhado do grupo
145
sangüíneo. É na posição de quem foi irremediavelmente rasgado pela vivência da guerra,
pelas perdas, pelo aprisionamento que o narrador termina a crônica:
E tenho nojo de ser gente. No interior de mim não passo de um
prisioneiro sem pernas, amarrado no guarda lamas do rebenta-minas,
gritando. Se eu saltar com o rebenta-minas que fique, ao menos, o eco do
meu grito. Completem essa crônica vocês, os que cá ficam. 078902630RH+.
Filha. (ANTUNES, 2006 ,p.114)
O narrador quer correr diante do horror da própria escrita, deixando o lugar para outro,
para os que ficam. Ele se despede (da escrita? dos leitores? da vida?), mas parece pedir à
filha para que fique em seu lugar.
Essas experiências parecem ter contribuído para “obrigar” o autor a dedicar-se à
literatura, que afirma escrever por imposição e não por escolha. Diante de experiências de
ruptura ligadas à morte, o real, impossível de ser simbolizado, apresenta-se como causa da
escrita. Refere-se, por exemplo, ao pé de uma criança morta, embrulhada num lençol: “Às
vezes ocorre-me pensar que é para esse pé que escrevo. Há coisas que se pegam à gente, não
nos largam, insistem, sem que compreendamos o motivo” (ANTUNES, 2006, p. 67).
A morte fica como uma espécie de pivô, em torno do qual giram as experiências da
vida. O significante morte, aqui, pode estar relacionado tanto à temática da morte entendida
como fim da vida, quanto da morte presente na vida; tanto nas relações do narrador consigo
mesmo, quanto na pobreza dos afetos nas relações amorosas e na estereotipia presente nas
relações sociais em círculos mais amplos. É desse tema que vai-se tratar no próximo item.
3.6 – Tenho medo de gente
Essa frase proferida por uma criança foi escolhida para nomear esta subseção, porque,
acredita-se, ela reflete o modo como o narrador das crônicas se posiciona diante da vida
social.
146
Dos três livros de crônicas, é no primeiro que podem ser encontradas as que
mencionam com mais freqüência as relações sociais, criticando a inconsistência dos valores, a
estereotipia dos comportamentos. No livro que contém as publicações dos trabalhos
apresentados no congresso que teve como temática A escrita e o mundo em Lobo Antunes,
os trabalhos apresentados sobre as crônicas se restringem ao volume um, único que tinha sido
editado até a época do evento. Nesses textos, os autores enfatizam a importância da crítica
aos valores da sociedade portuguesa que podem ser encontrados nas crônicas e nos romances.
Por exemplo, Ramon aponta dois caminhos interpretativos: o primeiro consistiria em
deambular pelos “arrabaldes do percurso autobiográfico” (RAMON, 2004, p.188) e outro que
consistiria no “subúrbio de um realismo social urbano” (RAMON, 2004, p.188). Por esse
veio, a temática giraria em torno da “massificação dos comportamentos, a desumanização dos
espaços, a solidão, a mediocridade, o fracasso, o abandono”(RAMON, 2004, p.188). Nesse
caminho interpretativo a autora conclui que Lobo Antunes traça uma geografia de um
Portugal fraturado, habitado por criaturas destituídas do “estado de graça.” (RAMON, 2004,
p.188). Ampliando suas considerações para além das fronteiras de Portugal, Ramon acaba por
considerar que Lobo Antunes, em suas crônicas, faz uma “alegoria da dissonância do mundo
moderno”(RAMON, 2004, p.192).
Numa direção parecida, Lourenço afirma que Lobo Antunes refere-se a uma realidade
que não é só de Portugal, mas toca no que há de universal no ser humano. A imaginação de
Lobo Antunes emergiria como a de um náufrago na “luta com as ondas do mar para arrancar a
esse presente o seu mistério” (LOURENÇO, 2004, p.351), implicando o leitor nesse mistério.
A ficção de Lobo Antunes revelaria aquilo que “não queríamos ver” (LOURENÇO, 2004,
p.351).
Ora, tanto a expressão “geografia de fraturas”, quanto “a revelação daquilo que nós
mesmos não queríamos ver” (LOURENÇO, 2004, p.351) aproxima-se do que se quer mostrar
147
aqui a respeito do que é observado nas crônicas, uma vez que nesta tese, defende-se que a
noção de real ultrapassa a de realismo. As crônicas passam pela realidade, esgarçando-a, de
modo que o estranho tenha lugar. Como afirma o narrador da crônica “Receita para me
lerem”, questões de ordem política, social ou antropológica podem ser importantes, mas
“nada têm a ver com meu trabalho” (ANTUNES, 2002, p.110). Por isso, interessa apresentar
as relações sociais também a partir da estrutura moebiana. Ou seja, acredita-se que não se
pode fazer uma separação radical entre interior e exterior, pessoal e social. Esses registros se
implicam mutuamente. O eu e o social são fragmentários, são inconsistentes e por isso a
relação do eu com o Outro é como um espelho diante de outro espelho, interferindo-se e
produzindo múltiplas imagens. A condição humana de desamparo leva inevitavelmente à
busca de soluções no campo do Outro, mas nenhuma das estratégias vai trazer a garantia tão
almejada e a felicidade buscada escapa de nossas mãos. Se isso acontece no campo do amor,
como pretendeu-se demonstrar, também se repete na impessoalidade das trocas sociais.
Na crônica “Volto já” o narrador fala de sua dificuldade de se adaptar ao mundo, na
medida em que se vê como uma “criatura jurássica incapaz de ultrapassar os obstáculos da
existência” (ANTUNES, 1998, p.291). Por isso, clama por um pedido de altas. Gostaria de
dar uma escapada da vida, assim como fazem os funcionários dos centros comerciais ao
deixarem pendurado um cartaz anunciando: “volto já”. O narrador quer fugir do mundo
contemporâneo com suas quinquilharias consumistas, escapando “por entre esplanadas de
pizzas e sapatarias de botas militares” (ANTUNES, 1998, p.291) e adolescentes “gritando-se
palavras de passe na linguagem heavy-metal” (ANTUNES, 1998, p.291). A sensação de
inadequação o leva a querer voltar para um tempo “em que o futuro não estava ainda atrás
de mim” (ANTUNES, 1998, p.291), onde se sentiria protegido contra a angústia e a morte
pelas orações da avó. No tempo em que acreditava poder “recomeçar o mundo como quem
recomeça um capítulo e a ordenar as emoções de acordo com meus caprichos” (ANTUNES,
148
1998, p.291). Na infância, apenas se irritava com “a franja loira que me tapa as pestanas e
impede os gorilas de cabaré de me deixarem entrar em caves repletas de velhotes calvos e
mamalhudos, todos iguais ao general Franco” (ANTUNES, 1998, p.292). Esse era o tempo
em que sonhava com o mundo dos adultos povoado de fantasias sobre “decotes de andaluzas
generosas, hábeis de mãos, profusas de rubis” (ANTUNES, 1998, p.292). No presente, os
parentes e amigos preocupados o encontram ou “a olhar para o tecto, ou a escrever, formas
idênticas de ser inútil” (ANTUNES, 1998, p.292). A escrita, estratégia a que recorre no
momento, também não é solução.
27
Não está colocada hierarquicamente como superior às que
encontra no dia-a-dia. O narrador, ao buscar um passado nostálgico e não encontrá-lo,
confessa-se órfão e termina a crônica num tom melancólico:
De modo que fico por ali, de mãos nos bolsos, hesitante em partir, relutante
em ficar, com a suspeita de que não seria má idéia dar um nó na vida para não me
esquecer dela. (ANTUNES, 1998, p.292)
A referida estrutura moebiana está evidenciada nessa crônica, pois o mal-estar está ao
mesmo tempo fora e dentro, tanto nas banais soluções oferecidas pelo mundo contemporâneo,
quanto no mundo interior do narrador.
A crônica “Os meus domingos” (1998) trata com um tom humorístico o tema que é a
estereotipia dos costumes nos dias atuais, quando todas as pessoas se vestem da mesma
forma, freqüentam os mesmos lugares, compram os mesmos objetos, usam os mesmos
slogans. Pela via da ironia, observa-se um exagero de imagens que retratam um narrador que
se confunde e troca de mulher ou leva outro filho para casa e não dá pela diferença, uma vez
que todas as esposas e todos os filhos são iguais. Tudo parece pertencer a uma linha de
montagem de produção em série. Dessa maneira, o mundo do mesmo, do conhecido torna-se
27
Novamente aqui, Lobo Antunes lembra o poema de Drummond, diante da vastidão do coração, a escrita não se
apresenta como solução.
149
absurdo e por isso dá lugar ao nonsense, que, de acordo com Freud, é uma das moradas do
estranho.
Também marcada pelo humor e pela denúncia do nonsense da vida moderna é a
crônica “Os computadores e eu” (1998). Assim como na crônica anterior, os costumes da vida
contemporânea são considerados enlouquecedores. Nessa crônica o narrador se confessa
absolutamente avesso e incapaz de lidar com as tecnologias do mundo atual. Compara essa
dificuldade com a dos povos africanos perdidos entre a tirania da PIDE e as exigências da
MPLA (grupos de direita e de esquerda).
Identificado com o soba africano, repete o ensinamento deste ao dizer que as máquinas
que povoam nosso cotidiano teriam controle próprio e exerceriam um poder diabólico. Poder-
se-ia concluir que: “as máquinas e os aparelhos nos detestam e a condição da nossa
sobrevivência consiste em nos afastarmos deles, não os ligarmos à corrente, não lermos os
manuais de instrução”(ANTUNES, 1998, p.177).
O narrador confessa ter mais medo dos computadores do que da morte, do dentista, da
lepra ou dos políticos. “Tenho medo da sua falsa inocência, da sua submissão aparente, da sua
eficácia tenebrosa, do seu ódio silencioso e vesgo” (ANTUNES, 1998, p.178). Por isso
escreve à mão, “para que os erros sejam meus e as personagens iguais às da minha cabeça e
não resultado da imaginação delirante e asséptica de uma disquete esquizofrênica”
(ANTUNES, 1998, p.178). Assim, quando se encontra diante de um computador, o narrador
reage como um africano, cheio de pensamentos mágicos, para livrar-se daquilo que tamm
parece ser da ordem de uma bruxaria:
os pés descalçam-se-me de meias e sapatos, os ruídos de África inundam a
sala, ergo a bengala do meu poder às copas das mangueiras em que os
morcegos se penduram todo o dia de cabeça para baixo e largo a fugir,
aterrado, capim fora, na direcção do rio onde os olhos dos crocodilos dançam
à flor do lodo a espera da imprevidência de um cabrito. (ANTUNES, 1998,
178)
150
Mudando o tom, mas continuando a tratar das dificuldades nas relações sociais, a
“Crónica do pobre amante” refere-se à incomunicabilidade que prevalece na aparente
comunicação. Segundo o narrador, os que “falam ou me puxam ou me empurram.”
(ANTUNES, 1998, p.165). Os que puxam querem enfatizar a importância do que contam.
Quase engolido pelo interlocutor, o narrador desvia a atenção da fala do outro e faz
“descobertas não excessivamente agradáveis, pontos pretos, borbulhas, pêlos espetados no
nariz” (ANTUNES, 1998, p.165) de modo que a pessoa vai-se tornando “um insecto
monstruoso e carnívoro, prestes a mastigar-me com mandíbulas enormes”(ANTUNES, 1998,
p.165). Aqui a metamorfose não acontece com o narrador, como no caso de Kafka e sim com
o interlocutor. Mas, em ambos os casos, é a estranheza da relação sujeito-Outro que se
evidencia. Haveria também aqueles que, ao puxarem, fazem uma espécie de faxina no
narrador, que se vê invadido por gestos que catam “as impurezas como pássaros à higiene dos
rinocerontes”(ANTUNES, 1998, p.165).
Já os que empurram querem oferecer um peso às suas opiniões, “avançam em
pequenos socos de amigável ódio” (ANTUNES, 1998, p.166). O narrador se sente como se
estivesse em um ringue de luta de boxe, e incapaz de defender-se concorda com tudo,
ansiando pelo momento que o embate estará terminado, quando poderá ter os cuidado do
treinador após a luta: “a sarar-me com uma esponja”(ANTUNES, 1998, p.166).
Haveria também os “que me rodeiam o pescoço com o cotovelo apaixonado para me
soprarem na nuca desditas cochichadas, os que me afagam o joelho à mesa do restaurante
jogando-me para o bife cuspo e amarguras” (ANTUNES, 1998, p.167). Enfim, as diferentes
demandas de acolhimento ou de demonstração de poder que acompanham as falas seriam
sentidas como ameaçadoras, levando à conclusão de que “dado que os acontecimentos nos
ultrapassam finjamos ter sido nós os organizadores” (ANTUNES, 1998, p.167).
151
Mas a crônica muda de direção em seu final e, só então, o seu título ganha novo
sentido, pois ao referir-se ao encontro com a filha ocorre uma inversão de posição do
narrador, que se torna o pobre amante. Se em relação aos outros o movimento é de fuga, ao
receber o beijo da filha e escutá-la dizer: “-Gosto de si, pai” (ANTUNES, 1998, p.167), o
narrador reage como os que puxam, tentando segurá-la consigo, querendo prolongar o
momento:
“- Não te esqueces-te de nada?” (ANTUNES, 1998, p.167)
E vê a filha afastar-se.
Em ambas as situações permanece no ar algo de excesso ou de falta na linguagem,
apontando para interferências na comunicação que nos lembram que quem fala diz muito mais
do que pretende, paradoxalmente marcando a incomunicabilidade humana, pois há algo de
disputa e de carência que perpassa as relações humanas e é da ordem do insuportável.
3.7 – Voltando ao começo...
O que se pode concluir a partir dos itens descritos neste capítulo é que, na verdade, só
por um objetivo didático é que foi feita uma distinção do desamparo a partir de temáticas.
Condição inerente à existência, o desamparo transita em todos esses itens e muitas vezes não
se sabe como classificar uma crônica. Ela trata do desamor? Da morte? Do tédio inerente à
vida? Da loucura? Da falta de esperança? Como mostra Stuart Hall (2000), ao refletir sobre a
questão da identidade na pós-modernidade, o sujeito contemporâneo é fragmentário e perdeu
todas as garantias, todas as certezas. Não há família, nem governo, nem religião, nem
racionalidade para ampará-lo. A literatura contemporânea vem atestar essa fragmentação a
partir de alguns porta-vozes do desamparo da humanidade. Entre esses, certamente, encontra-
se António Lobo Antunes e sua obra que é a escrita da incompreensão.
152
Voltando às crônicas, em “Da morte e outras ninharias” o narrador questiona até
mesmo o pacto proposto por Lejeune, ao indagar a questão da legitimidade do nome do autor
escrito capa:
Cada vez menos os romances que publicam com o meu nome têm seja o que for de
deliberadamente meu. Na minha idéia, e digo-o com convicção absoluta, limito-me a
assistir. Chupam-me o sangue e o tempo e é apenas isso que me exigem. Deveriam
editar-se sem autor na capa, porque desconheço quem o autor é. (ANTUNES, 2006, p.
145)
Com relação à temática da inter-relação vida e obra, Miranda (1992) afirma que a
autobiografia literária situa-se “num centro de tensão entre a transparência referencial e a
pesquisa estética” (MIRANDA, 1992, p.30). Entretanto, o crítico expande suas considerações,
ao dizer que qualquer relato autobiográfico é uma auto-interpretação, uma maneira de se dar a
conhecer. Assim, o relato autobiográfico é, inevitavelmente, revestido / entretecido de
invenção.
O conceito de auto-retrato (BEAUJOUR, 1980) parece mais condizente que o de
Lejeune
28
para se pensar nas crônicas de Lobo Antunes uma vez que o auto-retrato é tido
como uma formação polimorfa muito mais heterogenea e complexa que uma narrativa
autobiográfica. Não seria uma autodescriçao pois o autoretratista pretenderia fazer uma
homologia entre o eu e o mundo ( fazendo valer a banda de Moebius).
Miranda (1983) vai tomar o conceito de auto-retrato para analisar o livro Água viva de
Clarice Lispector, e que pode também contribuir para elucidar a questão da vida e do texto em
Lobo Antunes. “O auto-retrato é um sistema de recorrências, retomadas, superposições e
correspondência entre elementos homólogos e substituíveis, de modo que sua principal
aparência é a do descontínuo, da justaposição anacrônica e da montagem.” (MIRANDA,
28
Mais tarde, o próprio Lejeune (1980) colocou em cheque o conceito de autobiografia.
153
1983, p.222). Assim o auto-retrato prescinde da unidade, é uma escrita de fragmentos, uma
vez que o narrador não conta o que fez, mas tenta dizer “quem é”, na tentativa de
compreender o mundo e a si mesmo. O trecho abaixo parece coerente com o conceito de auto-
retrato:
Nasci assim, casual combinação de moléculas a que chamam António, nasci assim
meio surpreendido , numa família que me toma por seu e engana-se,quantas vezes
penso que não sou daqui, oiço o que não há, vivo noutro sítio entre aparições, onde
as vozes deste lado me chegam confusas, remotas numa língua que não é bem a
minha e acompanhadas de sorrisos, palmadinhas, soslaios curiosos
- Nunca cá estás, pois não? (ANTUNES, 2006, p.141-142)
Na busca pela identidade o narrador gira diante de um espelho caleidoscópico que se
recusa a lhe dar a resposta, mas o obriga a continuar sua busca impossível que não se detém,
nem chega a nenhum porto seguro de certezas.
154
CAPITULO 4 – A “DES-ESCRITA”
A literatura se edifica sobre suas ruínas
(Blanchot)
Uma vez constatado que falta consistência à concepção de realidade e que não há
nenhum saber garantidor de nossas certezas, torna-se impossível extrair uma verdade
nomeável sobre o mundo e, especialmente, sobre os textos literários. A literatura, marcada por
artifícios de construção, pode ser vista não só como um modo de desmontar, pela via dos
enunciados, as certezas do sujeito cartesiano, mas também como possibilidade de apontar,
pela via da enunciação, algo que ultrapassa a noção de verdade. Isto é especialmente
importante se pensado em relação à obra de Lobo Antunes, que é prenhe de negatividades,
tanto no que diz respeito ao mundo quanto à escrita.
Essas negatividades podem ser vistas, mais uma vez, na crônica “O passado é um país
estrangeiro”, a qual se constitui de uma série de negações que levam a afirmações poéticas. A
começar pelo título, o passado surge desconectado do presente, “caras saltam do passado”
(ANTUNES, 2006, p. 281), gastas pelo tempo, pedindo para ser reconhecidas. Surgem
fragmentos de pessoas: olhos, sorrisos, vestígios, gestos. O tempo distante do passado retorna
com a força do presente, como se estivesse intacto: “fragmentos de pessoas que me falam de
uma altura que já foi como se continuasse a ser” (ANTUNES, 2006, p.281), é o estranho que
se faz familiar, água de poço seco que sempre pode brotar de novo.
A negatividade do passado também se faz em relação ao presente: “uma recusa interior
em aceitar os desmandos da sorte, a certeza mais ou menos trêmula de ser um homem para
mais tarde” (ANTUNES, 2006, p.282). O narrador afirma ser sempre outro, “um fulano que
provavelmente nunca existiu, inventado por fotografias e recordações imaginadas”
(ANTUNES, 2006, p.282). Em seguida refere-se à escrita também como uma vivência de
155
estranhamento. Passou a vida a colecionar impossíveis, e assim virou escritor, pois ao
procurar maçanetas em paredes sem portas entrou em quartos escuros e de lá saiu com
páginas já escritas, “descobertas pelo tacto numa prateleira invisível” (ANTUNES, 2006,
p.282). A escrita é tida como exercício dos sentidos: tatear, ouvir, farejar. Tem algo de
primitivo na tarefa do escritor. Escrever é “uma profissão de silêncio até que as vozes nos
toquem” (ANTUNES, 2006, p.283). Por isso, afirma ser impossível falar sobre os livros: são
aparelhos sem folheto de instrução. Nega até mesmo a função de autoria: “pra começar nem é
meu. Andava por ali, apanhei-o. Quer dizer fui apanhando à medida que escrevia”
(ANTUNES, 2006, p.283).
Pode-se ver a partir dessa crônica uma linha de continuidade nas descontinuidades
apontadas pelo nosso autor: o tempo, a memória, o noção de eu e, finalmente, a de escrita.
Se nas crônicas, como trabalhado nos capítulos anteriores, o autor trata da “des-
memória”, assim como do desamparo pela via do desamor, da “des-razão”, poder-se-ia
perguntar também se Lobo Antunes se coloca em defesa de uma espécie de “des-escrita”, que
daria lugar ao estranho. Para defender essa premissa é preciso refletir mais profundamente
sobre o que seria uma escrita marcada por um prefixo de negação.
Como foi afirmado no primeiro capítulo, vários críticos literários têm-se colocado em
defesa de um texto marcado pela negatividade, a começar por Barthes e Blanchot que, não por
acaso, são também escritores e falam sobre o que é a literatura e a experiência literária a partir
do lugar de quem também foi contaminado pela experiência de escrita. Esses temas também
são retomados reiteradamente por Lobo Antunes em suas crônicas.
Para pensar sobre o que seria uma des-escrita, portanto, faz-se necessário tecer
algumas considerações sobre o que é literatura. Essa pergunta acompanhou Blanchot por
muito tempo. Nos textos sobre crítica literária que escreveu, entre 1940 a 1980 deu respostas
bastante originais, que de algum modo condizem com o que se encontra nas crônicas de Lobo
156
Antunes, particularmente nas que versam sobre a escrita. Essa escrita que se debruça sobre si
mesma vai-se fazendo mais presente em cada um dos três livros de crônicas, tornando-se cada
vez mais uma evidência daquilo que o escritor português pensa sobre o que seria literatura.
Blanchot desenvolveu várias concepções para falar sobre a especificidade do texto
literário. Entre elas destacam-se: fora-linguagem, outra noite, desaparecimento, ele, neutro,
outrem, obra, etc. Essas imagens - de caráter literário - são entrelaçadas, de modo que para
tentar apreender uma é necessário recorrer à outra.
No livro: A parte do fogo, Blanchot (1997) afirma que a outra coisa fundada pela
literatura é sempre irreal em relação à realidade. Por isso, a negação e a morte fazem parte da
palavra literária, que só encontra seu ser quando reflete o não ser do mundo. Ela só se realiza
em sua própria falta e faz dessa falta sua possibilidade. O escritor pretende mais da
linguagem, porque ele busca o momento que a precede, ele quer o que “é o fundamento da
palavra e o que a palavra exclui para falar, o abismo, o Lázaro do túmulo... o Lázaro perdido e
não o Lazaro salvo e ressuscitado” (BLANCHOT, 1997, p. 315). O escritor seria aquele que
não se conforma que a palavra implique na morte da coisa. Ele quer restituir a coisa viva
através da palavra.
Nas crônicas de Lobo Antunes, essa temática pode ser encontrada em “O coração do
coração”, quando o narrador afirma que o romance que gostaria de escrever seria aquele em
que todas as suas recordações infantis estivessem “a acenar alegremente sentadas num
parágrafo” (ANTUNES, 1998, p.45). e pudessem trazer de volta as pessoas, os sons, os afetos
e o seu próprio rosto de hoje e de sempre.
Assim, a literatura fala de uma realidade que passa e ultrapassa o familiar para jogar o
leitor num mundo de estranhamento. A inter-relação estranho/familiar nos faz ver o mundo
com outro olhar, abre um horizonte mais vasto, na medida em que inclui e enfatiza nele a
dimensão da negação e da morte. Essa é a dimensão do fora-linguagem presente na linguagem
157
literária. Lobo Antunes, em entrevista, afirma que quando escreve as primeiras versões de
seus romances tem a impressão de estar de um lado da parede e o papel de outro. A sensação
de cisão, de perda de si mesmo chega a ser espacial. Seriam as palavras que inventariam o
texto: “o texto se constrói independentemente de mim.” (BLANCO, 2002, p.44). Ou, como
está numa crônica: teria sido “ditado por um anjo” (ANTUNES, 2006, p.71).
Em O Espaço literário, Blanchot (1987) faz uso de outra imagem, igualmente
poética, para referir-se à literatura: trata-se da “outra noite”. Ela não é a que se opõe ao dia,
fazendo com ele um movimento dialético. “A outra noite é sempre outra. E é somente no dia
que se crê captá-la, escutá-la.” (BLANCHOT, 1987, p.168). A outra noite não está associada
ao aterrador, mas à possibilidade de ouvir “o escoamento dos grãos de areia do silêncio”
(BLANCHOT, 1987, p.169). Mas, para se chegar à outra noite, é preciso atravessar a primeira
noite, morada da angústia e do medo. Tanto o significante “morte” quanto “outra noite”
trazem o ideal de uma alteridade buscado pelo escritor. É preciso que o eu do escritor morra
para que outra vida possa ter lugar. A escrita requer a morte do eu e é também a certeza de
que o sujeito – aquele que se inter-cala entre dois significantes
29
- se fez presente. São várias
as crônicas de Lobo Antunes que mencionam a dimensão de perda como essencial para que a
escrita possa ter lugar.
Para efeito didático, aqui será tomado o conceito de fora-linguagem para, a partir dele,
ser possível chegar a outras concepções de Blanchot. Levy (2003) fez um percurso na obra de
Blanchot com o objetivo de esclarecer a noção de “experiência do fora”
30
, mostrando que,
para o escritor francês, a literatura cria sua própria realidade. A linguagem da ficção – seu
elemento real – tem o poder de colocar o leitor em contato com a irrealidade da obra. A
linguagem literária, portanto, não seria da ordem da representação, mas da apresentação do
29
Como explicado no capítulo um, a partir das considerações de Laia (1997)
30
Este conceito foi tomado por pensadores importantes do século XX, tais como Foucault e Deleuze que viram o
fora como uma oposição à idéia de que a literatura seria um meio de chegar ao mundo externo e nele se engajar.
Eles acreditam que a palavra literária tem um outro estatuto na medida em que é fundadora de sua própria
realidade (LEVY, 2003).
158
que Blanchot chamou de “outro de todos os mundos”. Esse outro não se refere a um objeto
ausente, mas a um objeto particular – o objeto poético, que surge em seu esplendor, em sua
realidade plena.
Assim, a literatura seria um esforço, não para expressar o que sabemos, mas para
“sentir o que não sabemos” (BLANCHOT, 1987, p.81). O que aqui ocorre é a transposição da
irrealidade da coisa à realidade da linguagem. A realização da obra guardaria consigo sua
própria impossibilidade. Tudo se passa como se estivéssemos em presença de uma verdade
que não se apresenta pela via dos enunciados. Assim, é justamente porque se projeta para
fora-linguagem que a linguagem literária se torna real. Ela funciona como um aviso à
linguagem de sua insuficiência e é nesse movimento que ela termina por se fundar. Ela
constitui esse eterno esforço para o impossível
O Fora, de acordo com Levy (2003), é exatamente esse outro de todos os mundos que
pode ser revelado na literatura. Não se trata de um outro mundo, mas deste mundo desdobrado
em outra versão. É a partir dessa linguagem real que se pode ouvir “os grãos de areia do
silêncio” e experimentar a ficção de maneira mais real do que aquela que se vive em muitos
dos acontecimentos tidos como fazendo parte da realidade.
O mundo imaginário criado pela literatura não se constituiria como um não-mundo,
mas como o outro de todo o mundo, que Blanchot denomina de “outrem”. Pode-se depreender
que se o símbolo e a palavra são entendidos como a morte da coisa, a característica da
imagem
31
seria a de afirmar a coisa em sua desaparição, tornando presente a ausência que a
funda, como tão bem mostrado na imagem do Lázaro do túmulo. A partir de Blanchot poder-
se-ia concluir que o Fora seria o próprio espaço da arte. Nesse espaço, o artista seria aquele
que perdeu o mundo e que também se perdeu, uma vez que já não pode mais dizer eu. A
literatura diz respeito ao real, não por revelar uma realidade exterior, nem por ser a expressão
31
Aqui pode-se considerar que as afirmações de Blanchot, dando outro estatuto ao imaginário, foram utilizadas
nas ponderações de Lopes, assim como aproximam-se do conceito de fictício de Iser, conforme capítulo um,
desta tese.
159
do eu lírico, mas por ser esse Fora que faz da linguagem literária uma não-linguagem e do
sujeito um não sujeito (LEVY, 2003).
Na experiência de se desdobrar para fora do mundo, os valores e as certezas são
questionados. Assim, o narrador da crônica “Onde o artista se despede do respeitável público”
(ANTUNES, 1998, p.131) define-se como um ser em ruptura que exprime sua época, opondo-
se a ela. Nesse sentido, a experiência do fora é revolucionária, contestadora, pois destitui o
sujeito cartesiano de suas certezas, encontrando-se exterior ao logos. O Fora, como
experiência estética, funda-se no estremecimento do sujeito cartesiano. Quando se fala na
morte do autor, tal como o fez Barthes (1988b), fala-se da morte do sujeito dono da verdade,
assim como da morte da literatura como expressão de um eu interior. A separação entre
dentro e fora, interior e exterior tornam-se obsoletas.
Para Blanchot, a experiência do fora se caracteriza por esse trânsito do eu ao ele.
Saindo da intimidade do eu, o discurso alcança a abrangência do ele. É isso que Blanchot
denomina neutro, alteridade absoluta, vislumbrada no movimento de sairmos de nós mesmos
na tentativa de alcançar a experiência do que é inteiramente fora de nós. O conceito de
extimidade aqui, em sua estrutura moebiana, une o íntimo com o estranho, como se a questão
que leva o escritor a escrever o interpelasse sem lhe dizer respeito, como se “vindo apenas de
nós ela nos expusesse a algo totalmente diferente de nós” (LEVY, 2003, p.40).
Também o leitor busca no texto algo inusitado, uma palavra estrangeira que o capture
e o leve ao inesperado, produzindo efeitos de inconsciente, algo que permita “escutar a voz do
corpo” (ANTUNES, 2002, p.111). Atingir o ele significa a possibilidade de todos
experimentarem a literatura. Um discurso sem eu é um discurso de todos e de ninguém.
O outro é aquele que não se entrega ao mesmo: “o fora ou o desconhecido que está
sempre já fora da visão, o não visível que a palavra carrega” (LEVY, 2003, p.44). A relação
com o outro não tende para a unidade, ela faz balançar as certezas. O ele narrativo marca a
160
intrusão do outro na literatura, pois se destitui de toda subjetividade e de toda objetividade,
escapando da dualidade sujeito/objeto e inserindo-se no campo do desconhecido, onde de
nada adiantam nossos valores tidos como certos e universais.
Já o neutro, de acordo Blanchot, nunca será revelado. Ele é acessível à palavra apenas
se não for compreendido ou identificado. Não pertence nem à categoria de objeto nem à de
sujeito. O neutro seria o Outro visto como alteridade absoluta. Ele fala desse espaço onde
nada está sujeito ao conhecimento. Em outras palavras, parece que o neutro de Blanchot está
bastante próximo da noção de real apregoada por Lacan. A partir do momento em que
estamos fora de nós, “o real entra num reino equívoco onde já não existe limite, nem
intervalo, nem momentos, e onde cada coisa absorvida em seu reflexo aproxima-se da
consciência que se deixou encher por uma plenitude anônima.” (LEVY, 2003, p.48).
Essa forma de ver a literatura põe em questão a concepção lingüística que tem as duas
primeiras pessoas como condição da enunciação. O ele não é o que fala, nem a quem se fala.
É a neutralidade do impessoal, vazio que faz com que as palavras circulem livremente. Ser
impessoal é dar vez aos devires, aos encontros de forças, aos blocos de sensações. Mas não se
pode esquecer que é através da linguagem que se alcança este espaço da não-linguagem. “é
através das palavras, entre as palavras que se vê e se ouve” (DELEUZE 1997, p.13 citado por
LEVY, 2003, p.49). Assim, a questão não é mais decifrar o segredo escondido por detrás da
linguagem, o segredo é a própria linguagem e não o que ela esconde. Promover encontros ao
acaso, deixar as palavras fluírem livremente, eis o que acontece,quando a literatura alcança a
experiência do Fora.
Esse fora-linguagem parece ser o alvo pretendido por Lobo Antunes em sua produção
literária, seja ela de que natureza for. As crônicas não estão fora dele, pelo contrário, elas
constituem um espaço particularmente interessante para procurar os vestígios do fora-
161
linguagem, uma vez que em várias delas o nosso autor se debruça sobre o tema da escritura,
afirmando o que busca na literatura que escreve.
Como foi afirmado no capítulo 3, o Terceiro livro de crônicas parece ser
privilegiado nesse sentido, uma vez que o tema da morte (particularmente da morte do pai) se
faz mais presente e se articula com o da escrita. Assim, algumas crônicas do terceiro livro
serão aqui analisadas, cada uma delas enfatizando esses diferentes momentos da escrita: o que
a precede, o momento em que a escritura se dá e o momento da recepção.
Na crônica “O próximo livro” o tempo que precede a escrita é um apagamento do eu
para se chegar ao “ele sem rosto” de Blanchot. O próximo livro chega devagarzinho, é sombra
difusa, perda de contorno de si: “zonas da minha cabeça deixam de me pertencer”
(ANTUNES, 2006, p.225). Ocorrem mudanças no corpo, alteração dos batimentos cardíacos,
“o início do livro traduz-se em sinais físicos” (ANTUNES, 2006, p.226), é algo que brota das
vísceras. A despossessão não diz respeito só a um apagamento, mas algo diferente vai
ganhando vida, os olhos “subitamente preocupados com o que não me interessa, certos vincos
da memória de súbito vitais” (ANTUNES, 2006, p.225). O mundo à volta também se apaga,
há “uma indiferença em relação ao cotidiano” (ANTUNES, 2006, p.226), um estranhamento
diante de si mesmo “feições inesperadas boiando na pele” (ANTUNES, 2006, p.226). O
mundo da linguagem se fragmenta em frases truncadas, ditongos, letras, anotações, que o
narrador não compreende. O narrador vai em busca de outros autores, mas fica com a
sensação de perplexidade, de que não é isso o que procura. Repete a frase atribuída a Cheever:
“uma página de boa prosa é aquela onde se ouve chover” (ANTUNES, 2006, p.226), aquela
em que se pode escutar os sons. Passeia pelos escritores, verifica as suas estratégias textuais e
se convence de que, como num jogo de xadrez, é preciso “espalhar as peças a campo aberto,
escrever é tentar vencer Deus a toda a largura do tabuleiro” (ANTUNES, 2006, p.226).
Vencer Deus é abandonar o lugar protegido, perder certezas, ver-se “como um cego de mãos
162
vazias a tropeçar” (ANTUNES, 2006, p.227). É preciso, como afirma Blanchot, habitar
primeiro essa noite, para que a outra noite possa se anunciar. O narrador pergunta-se: “porque
carga de água um livro demora tanto a fermentar.” (ANTUNES, 2006, p.227). É preciso
aguardar que o romance se forme “como lhe aprouver”, ele tem vontade própria, tem “o seu
caráter, sua fisionomia” (ANTUNES, 2006, p.227). É só a partir da perda que o mundo da
ficção pode tocar o real:
Uma rapariga a pentear-se à janela numa atitude de cântaro e se for capaz,
no papel, da perfeição daqueles gestos talvez consiga, talvez possa, um homem toca
no ombro de uma rapariga, os braços baixam, o cântaro desaparece e não faz mal
porque já entrou no livro e me espera. (ANTUNES, 2006, p.227)
O texto literário seria capaz de circunscrever o real fugidio e mostrá-lo vivo no texto,
“sentado no parágrafo” (ANTUNES,1998, p.45).
Em “O mecânico” (ANTUNES, 2006, p.39) o narrador convida os leitores a
espreitarem a oficina da escrita. O escritor é equiparado a um mecânico que mexe com as
emoções por trás, num trabalho que requer “finuras de relojoeiro” (ANTUNES, 2006, p.40).
O mecânico precisa de uma atenção apurada, que exige diversas “chaves inglesas de canetas”
(ANTUNES, 2006, p.41). No árduo trabalho da escrita faz-se “esforço por uma vírgula, um
verbo. Tanto obscuro sistema elétrico que resiste. Tanta incerteza. Tanta alguma alegria”
(ANTUNES, 2006, p.41). A escrita não se dá por inspiração, mas por persistência; por isso,
não é romântica: exige ofício e método. Como acontece ao mecânico, ao escrever, suja-se até
os cotovelos, não se sai isento do ato de escrita.
Na “Crônica para quem aprecia histórias de caçadas” (ANTUNES, 2006, p.181), já
analisada no primeiro capítulo, o ato da escrita é equiparado ao de uma caçada, termo
entendido nos dois sentidos: de procurar e de apreender; ato de dar a vida e perpetrar a morte.
Busca que se faz na perda, o escritor é a um só tempo o matador e a presa, à procura de “sua
parte de trevas” (ANTUNES, 2006, p.182). O objeto poético, de natureza escorregadia,
163
mostra-se de maneira sorrateira, surge rodeando o papel e exige um golpe certeiro. Aqui o
foco é a alegria de capturar o objeto poético: “a crônica cai redonda no bloco” (ANTUNES,
2006, p.182). Para que não torne a desaparecer, é prudente chegar com cautela, pois aquelas
que estão “apenas feridas são capazes de nos aleijar com um coice, uma cornada. Aplica-se
por precaução a facada de um corte no adjetivo.” (ANTUNES, 2006, p.183). A escrita exige a
retirada de excessos para que o objeto poético possa surgir em seu fulgor.
Em “Júlio Pomar: pintor” é enfatizado o momento da recepção. Nesse texto, a pintura
é o foco de atenção do narrador, como poderia ser qualquer outra manifestação artística.
Compara o pintor/artista a um parteiro, capaz de mostrar uma: “cartografia completa não
apenas de nós mesmos mas daquilo a que pertencemos” (ANTUNES, 2006, p.104). Para isso
é preciso deixar os sentidos pensarem. Cabe ao artista iluminar “feito vela, quando a
eletricidade falta” (ANTUNES, 2006, p.104). O artista é capaz de mostrar os leões que
habitam os mundos secretos. Também pode ser visto como um carteiro: por seu intermédio
“recebemos as cartas que sabíamos que nos escreveram e não chegaram nunca e também as
que ignorávamos ter escrito, aquelas que nos fazem bater com a mão na testa pasmados - É
isto” (ANTUNES, 2006, p.105).
A arte é uma experiência vital, tanto para o autor quanto para o receptor. Para vivê-la
na intensidade que exige, “é preciso tomar lições de abismo” (ANTUNES, 2006, p.105). Por
isso quem tem medo não deve se aproximar. “Tudo é trabalhado nas vísceras, cheio de
alçapões: exactamente como a vida.” (ANTUNES, 2006, p.105). O que se tem a transmitir é a
parte de trevas, onde não há distinção entre o eu e o tu. Quando o ele é que escreve, a
experiência da arte será transmitida como uma doença, contaminando quem chega perto. Esse
é o motivo da advertência. No momento da recepção, os afetos que levaram à produção da
obra são reavivados e revividos, tal é o poder da arte.
164
Não se pode encerrar esta seção antes de lembrar mais algumas contribuições de
Barthes que, assim como Blanchot, passou a vida voltado para o que chamou de escritura.
Seus escritos, por si mesmos, são uma espécie de mostração do que pensa sobre a literatura.
Escreve, de maneira fragmentar, textos que, tal como os de Lobo Antunes, não cabem em
classificações de gênero.
Ao refletir sobre os destinos da literatura, a teorização de Barthes se faz em nome de
uma certa anti-literatura que ele busca meios de distinguir. O conceito de escritura, já exposto
no capítulo um, é um deles. Em: Escrever...Para que?...Para quem? (1974) defende a noção
de texto para referir-se a algo que não seria mais literatura, no sentido burguês da palavra. O
texto implicaria numa subversão dos gêneros, não podendo ser especificado como romance,
nem poesia ou ensaio. Afirma que o texto não seria um espaço aristocrático da escrita, caberia
até mesmo nos jornais, ou seja, crônicas também podem ser tidas como textos. Os limites
entre a escritura e a escrevência teriam a ver com o lugar do sujeito da enunciação. Ele é
assumido na escritura e, quando não o é, trata-se de escrevência. Essas colocações do crítico
francês corroboram nossa defesa de que, em Lobo Antunes, as crônicas, marcadas pela
enunciação, estão muito mais voltadas para a transmissão de sensações do que para o relatos
de histórias, elas trazem consigo todos os ingrediente para serem tidas como textos, no sentido
barthesiano.
Em O prazer do texto (1977), Barthes aproxima a escritura do que vai chamar de
texto de gozo
32
, em contraposição ao texto de prazer. A escritura, definida como uma prática
de fruição, seria aquela que permanece quando o sentido se retira. O crítico francês reconhece
a dificuldade de se distinguir o texto de gozo do texto de prazer, mas coloca do lado do texto
de prazer o conforto, a plenitude, a cultura e do lado do texto de gozo estaria a perda, o
32
Apesar da tradução para o português que consta no livro seja texto de fruição, Perrone-Moises (1978)
esclarece que o termo fruição é inadequado. O termo original em francês é juissanse e teria vindo da psicanálise
lacaniana. De acordo com estudiosa de Barthes: o gozo, nesse contexto, é o que o sujeito alcança no próprio
malogro da relação sexual, que nunca pode suprir o desejo, como nada pode; que nunca pode fazer, de dois, o
um. (PERRONE-MOISES, 1978)
165
desconforto, a vacilação dos valores culturais. O gozo, de acordo com Perrone-Moisés, seria a
realização paradoxal do desejo em sua dimensão de perda. Ora, não há dúvida de que as
crônicas se encontram do lado da perda. Em “A confissão do trapeiro” (ANTUNES, 2006,
p.133), o narrador se compara a um lixeiro em busca dos restos deixados pelos outros. Mas
isso não quer dizer que os textos tratem de coisas sem valor. Pelo contrário, ao revirá-los,
guardá-los, acaba descobrindo “brilhos, cintilações, serventias.” (ANTUNES, 2006, p.133).
Barthes afirma também apreciar as esfoladuras do texto, muito mais que seu conteúdo.
Esfoladuras dizem respeito às fissuras, espaço em que o texto deixa ver suas
descontinuidades, seus vazios, espaço a ser habitado pela letra, em que o estranho se insinua.
Esse livro é marcado pela psicanálise e está apresentada nele uma dimensão erótica do texto
literário que já se faz presente a partir do seu título. A escritura seria a prova de que o texto
deseja o leitor, provavelmente por seu poder de capturá-lo, mobilizá-lo e colocá-lo para
trabalhar. Portanto, o erotismo da escrita não diria respeito ao conteúdo, aos enunciados, mas
à possibilidade de seduzir o leitor, “até vos tocar e me tocar no por dentro de nós, onde
aflitamente moramos, no encantado lugar de horror e alegria que é a única parte da vida do
homem consciente.” (ANTUNES, 2006, p.135).
Um texto, esclarece Barthes, é escrito a partir de duas margens: uma, sensata, em
conformidade com a língua em seu estado canônico e outra margem móvel, vazia “que nunca
é mais do que o lugar de seu efeito: lá onde se entrevê a morte da linguagem.” (BARTHES,
1977, p.12). Uma espécie de formação de compromisso
33
entre essas duas margens se faz
necessária, o erotismo da linguagem estaria na fenda entre essas duas margens. As crônicas de
Lobo Antunes podem ser pensadas como textos, no sentido barthesiano, escritos a partir de
suas duas margens. A resultante seria uma espécie de terceira margem que, como no conto de
Guimarães Rosa se localizaria, ao mesmo tempo, em uma e em outra margem e nem em uma
33
O conceito de formação de compromisso usado por Barthes é freudiano. Originalmente, ele diz respeito às
formações do inconsciente que são decorrentes de um compromisso entre dois senhores antagônicos: o desejo e a
censura. A transmutação do conceito freudiano para a literatura é, como se vê, bastante pertinente.
166
nem em outra, pois Barthes se refere ao encontro das duas margens como fenda, buraco, e não
como superfície.
Também o tema da recepção é trabalhado por Barthes em diferentes momentos. No
livro S/Z (1992), o crítico/escritor define escrita e leitura como práticas de escritura. O texto
escrevível seria aquele que convida o leitor a reescrevê-lo, a produzir a partir dele e não
apenas a referendar o texto. Há algo a ser transmitido, que, como diz Lobo Antunes,
contamina o leitor, desacomoda-o e por isso leva ao movimento. Tanto Barthes, neste livro, e
Lobo Antunes em suas crônicas se colocam em defesa de que a escritura e a leitura sofram tal
transformação, que não se poderia distinguir uma da outra, o leitor precisa ser marcado pelo
texto.
O que se pode ver nas crônicas é que a relação autor-leitor que se dá pela via do texto
tem sempre essa dimensão intersubjetiva
34
. Por exemplo, em “Assobiar no escuro”
encontram-se leitores reivindicando dos escritores o privilégio de fazer “juntos uma estranha
viagem” (ANTUNES, 2002, p.125). Mais adiante, na mesma crônica, o narrador torna a
referir-se ao elo possível entre escritor e leitor: “apetece-me fazer de cada página um
barquinho de papel e deixá-lo navegar pelas sarjetas na esperança de que uma outra mão as
receba como uma espécie de Índia onde cheguei por acaso.” (ANTUNES, 2002, p.125). Aqui
a relação se faz de maneira não endereçada, o escritor lança seu barquinho de papel na sarjeta
e ele pode ou não ser apanhado por outro. Não há uma mensagem dirigida a um receptor
determinado, nem há uma garantia de recepção. O lugar a que se chega também é da ordem
do inesperado, não se sabe os efeitos que poderão ser produzidos.
Assim, pode-se concluir que a escritura tem o poder de juntar escritor e leitor ao
transmitir, não um saber, mas a vivência de desvanecimento que se dá pela perda de certezas,
contida tanto nos enunciados quanto nas enunciações liquefeitas. Pode-se dizer que o escritor,
34
Aqui deve ser considerado o sujeito da escritura (LAIA, 1997), diametralmente diferente do sujeito da
consciência.
167
pela via do texto, tanto experimenta quanto leva o leitor para a “outra noite”. A perda que se
faz necessária para que a escritura tenha lugar será captada pelo leitor, enlaçando-o,
arrancando afetos inusitados e produzindo movimentos. Esse parece ser o fascínio que
caracteriza esse tipo particular de escrita.
Se o desmanchamento de certezas é fundamental, uma reflexão sobre os temas do
humor e da ironia torna-se imprescindível uma vez que, como já mostrado várias vezes no
decorrer desta tese, eles têm presença constante nas crônicas e são artifícios de linguagem que
têm como objetivo fazer vacilar o instituído pela via da irreverência.
4.1 – O riso como pharmacon: remédio e veneno
A partir do momento em que a literatura não pretende mais ser uma mimese, mas uma
forma de produção, de formulação peculiar de um universo, considerando-se a própria
linguagem como um mundo, o humor e a ironia podem ser vistos como estratégias literárias
para evidenciar essa perda de certezas.
A presença constante da ironia e do humor nas crônicas de Lobo Antunes é enfatizada,
tanto pelo autor quanto pelos leitores em geral. Assim, neste tópico pretende-se refletir de que
maneira a ironia e humor, tomados como estratégias enunciativas, podem contribuir ou não
para o surgimento do estranho. A dúvida se faz na medida em que o estranhamento produz
algo que é da ordem de uma tensão que se transmite do autor para o leitor e o riso é uma
forma de descarga de tensão. Assim, num primeiro momento, o que se pode observar é uma
certa oposição entre o estranho, compreendido como o que produz tensão, e o riso, entendido
como o que descarrega a tensão, ou seja, desfaz o efeito de estranhamento.
De acordo com a psicanálise, o cômico pertenceria ao princípio do prazer e o
estranho ficaria no lado do além do princípio do prazer. Portugal enfatiza a força do
168
imaginário que se faz presente no cômico, fortalecendo a imagem do eu construída a partir do
outro. No cômico “o outro, nosso rival, é vencido e degradado” (PORTUGAL, 2006, p.46).
Desse modo, a tensão da relação do eu com o outro, que produziria divisão interna no
estranhamento, seria desfeita através do cômico.
Ora, esse antagonismo depõe contra a hipótese deste trabalho, pois defende-se aqui
que nas crônicas o estranho se faz presente. Se nelas a presença do humor é uma constante,
como se pensar na relação entre o riso e o humor, assim como entre o humor e o estranho?
Ou seja, onde situar o riso em relação ao estranho? Ele poderia ser tido como um remédio
para curar o estranho; ou poderia ser uma espécie de veneno que serviria para acentuá-lo? A
palavra grega pharmacon significa, ao mesmo tempo, remédio e veneno. Platão, no Fedro,
usou esse termo para referir-se à ambigüidade da relação entre escrita e memória, ou seja,
para a preservação da memória, a escrita é pharmacon: remédio e veneno. Será que a mesma
duplicidade pode ser transposta para a relação entre o riso e o estranho? Para continuar esse
raciocínio faz-se necessário refletir sobre a questão do riso.
O riso e o trágico poderiam eventualmente andar de mãos dadas? À primeira vista essa
questão pode parecer absurda, pois normalmente o riso está associado ao que traz
contentamento e o trágico ao que causa horror. Entretanto, olhando com mais vagar, pode-se
constatar que não é tão simples assim. A psicanálise tem contribuições quanto a este tema.
Freud nos mostra que o riso tem dimensões surpreendentes e diversas modalidades.
A primeira vez que o pai da psicanálise se debruça sobre o tema é no texto “Os chistes
e sua relação com o inconsciente” (1905). Nesse momento, Freud vai dar uma ênfase especial
à capacidade humana de subverter a linguagem para tratar de temas que angustiam o eu, de
modo a produzir o riso, como acontece nos chistes. O witz
35
é considerado por Freud uma
estratégia para lidar com o que causa desprazer através de um movimento de torção da
35
Termo alemão com riqueza semântica difícil de encontrar equivalência em português. Pode ser traduzido por
chiste ou dito espirituoso.
169
linguagem, abrindo espaço para novos sentidos. Esse movimento é capaz de driblar a censura
e surge de tal maneira que pode ser aproveitado, não só pelo sujeito que criou o witz, mas
também por aqueles que o escutam e se sentem tocados por ele. Assim, no chiste, há três
pessoas envolvidas: a que cria o chiste, a que é motivo dele e a que o escuta. Constitui-se a
partir de uma situação social, pois, para completar seu circuito, o chiste necessita de um
ouvinte que irá repassá-lo depois. Freud acredita que, para produzir o efeito desejado, o chiste
precisa exigir um pequeno dispêndio de energia psíquica para a compreensão da mensagem
cifrada que se apresenta condensada no dito espirituoso. O sentido do chiste não pode nem ser
entregue de graça, nem exigir muito esforço. Ao ser decifrado, ele produz o riso como
descarga do ouvinte e aí retorna para a primeira pessoa, que só então terá sua descarga de
tensão.
Já no cômico, a relação é dual, há apenas dois lugares envolvidos: quem é motivo do
riso e quem ri. Outra diferença: usualmente o riso derivado do cômico não exige esforço. O
cômico está associado a algo de excessivo e produz um fortalecimento do ego de quem ri,
pois este se vê mais inteiro, em detrimento de quem é motivo para o riso.
O humor faz parte de uma terceira categoria. Por ter como temática algo da ordem do
trágico, raramente produz uma manifestação explícita de descarga. Ele não precisa
necessariamente ser comunicado, já que é uma forma do sujeito rir de si mesmo. Se à primeira
vista não observamos no humor uma vitória do ego, é porque ela só se dá pela via da
linguagem, onde o sujeito pode driblar e contornar, sem precisar de negar, a dimensão trágica
da existência (FREUD, 1927b). Ou seja, se o cômico diz respeito ao drama
36
, a temática do
humor é da ordem do trágico. O que prevalece aqui parece ser o registro do real.
Consoante essas afirmações de Freud, Roustang (1988) acredita que o riso em sua
dimensão de trágico está ligado ao vazio, à incerteza. Ele é um movimento de ruptura em
36
Fazendo uma distinção entre o drama e a tragédia pode-se dizer que no drama o herói passa por percalços, mas
consegue controlar as adversidades, trazendo, ao final, apaziguamento para o leitor. Já na tragédia não há
vencedores. Os protagonistas e também os leitores deparam-se com o inevitável, não há heróis.
170
relação a algo que está muito próximo: o sofrimento humano. O humor seria uma forma de
afastar e evidenciar o sofrimento em relação ao qual é impossível abstrair-se. Ele está
intrinsecamente ligado ao fardo da liberdade, por isso, não seria uma forma de poder, mas de
potência.
O riso não resolve nada, simplesmente ele não esquece, ele mantém
presente o insuportável sob os traços do alívio, ele dá lugar à abertura no fatal. No
riso, justamente por causa dessa distância mínima, o sofrimento sabe a si mesmo e
reconhece a si mesmo de tal forma que ele não precisa mais infligir aos outros o eco
de seu barulho e de seu furor. (ROUSTANG, 1988, p.11)
Essas classificações, entretanto, não são tão precisas, e, na prática, as distinções entre
os diferentes tipos de riso não funcionam tão bem. Entretanto, é importante ressaltar que o
riso está ligado a uma subversão da linguagem que traz consigo a dimensão da surpresa e tem
como resultado a produção de um desconserto veiculado pelo nonsense, pela contradição,
pelo contraste de idéias. Se as distinções não são precisas, talvez possa se dizer que o estranho
pode ou não ser favorecido pelo riso. Assim, pode-se concluir que, em relação ao estranho, o
riso pode mesmo ser visto como pharmacon: dependendo do momento, será remédio ou
veneno.
As três modalidades de riso podem ser encontradas nas crônicas de Lobo Antunes, ora
permitindo, ora destituindo o estranhamento. De acordo com Portugal (2006), o escritor deve
ser capaz de sustentar o fio do imaginário num nível tal de tensão de modo que o estranho
prevaleça e a narrativa não caia no nível do cômico.
Acredita-se que, se o cômico está em oposição ao estranho, o humor pode favorecê-lo.
Nas crônicas, o humor aparece misturado com uma dose de ternura. Para Calvino, “o humor é
o cômico que perdeu peso corpóreo e põe em dúvida o eu e o mundo, com toda a rede de
relações que o constituem.” (CALVINO, 1990, p.32). E esta leveza aponta para a
possibilidade de acontecer uma espécie de travessia da angústia que levaria texto, autor e
171
leitor para um outro lugar, em que a angústia não seria tamponada, mas tornar-se-ia matéria
bruta que, ao ser macerada pela palavra, evidenciaria o poético.
Várias vezes, no decorrer deste trabalho, encontram-se referências à presença do
humor nas crônicas. “Da vida das marionetas” tematiza inicialmente a briga de um casal, em
que a mulher refaz a trajetória da relação que tem com o amante – homem casado com outra
mulher. Nesse desfilar de queixas, ela se diz vítima de alguém que a iludiu. Primeiro omitindo
ser casado e depois, quando é visto no cinema com a esposa, de que seu casamento era falido,
dando todas as desculpas chavões: que não sentia nada pela esposa, que era pelos filhos, que a
esposa era desequilibrada etc. Em síntese, o primeiro sentido do discurso é de uma mulher
rompendo uma relação amorosa porque constata que está sendo enganada pelo amante.
Entretanto, sub-repticiamente vai surgindo um outro discurso que se faz pela via do
corpo: “não me ponhas a mãozinha aí, tira a mãozinha daí” (ANTUNES, 2006, p.53). Até a
essa altura a mulher diz desprezar o amante que afirma ser destituído de qualidades psíquicas
e físicas. Mas a inconsistência até então apontada como sendo do homem, vai ganhando uma
outra conotação:
Achas que mereço isto, que mereço sofrer
(por amor de Deus afasta-te)
Achas que devo ser infeliz por tua causa, respondes se achas que devo ser infeliz por
tua causa, não sorrias, não penses que desculpo com essa facilidade toda, és velho,
cheiras a velho, repara a tua corcunda, és um velho, convence-te, um gaiteiro de um
velho e hás de morrer desajeitado Rui, não hás de compreender, por dúzias de anos
que dures, que o fecho do soutien é para o outro lado que abre (ANTUNES, 2006,
p.53)
O título – “Da vida das marionetas” – só fica claro no final, pois o sentido da crônica
desliza e mostra que há diferentes níveis de comunicação numa relação dita amorosa e que o
discurso feminino sobre o desejo é marcado de ambigüidades, pois aquilo que diz respeito ao
sexual fala mais forte, está além dos argumentos racionais. Quando o sexual grita, tanto
homens quanto mulheres são meras marionetes.
172
O humor contribui para mostrar a fragilidade da condição humana no que diz respeito
ao sexual. Nem narrador, nem leitor estão excluídos dessa condição que não é escamoteada,
mas escancarada. Entretanto, fica-se com a pergunta: o riso aqui funciona em que direção:
acentua ou dilui o estranhamento? Essa crônica mostra que, às vezes, não é simples distinguir
o cômico do humor e reafirma a dimensão de pharmacon: remédio e veneno.
4.2 – A verdade/mentira da ironia
Duarte (2006) afirma que a ironia é uma estrutura comunicativa, em que um pacto
particular, diferente do que é feito no uso comum da língua, é estabelecido entre o autor e o
leitor. Algo só pode ser irônico se for proposto – tarefa do autor – e visto como tal – tarefa do
leitor. Cabe a ambos perceber a ambigüidade da linguagem e fazer um pacto contrário do que
é feito nas formas usuais de comunicação. Ambos devem perceber e explorar as múltiplas
possibilidades de sentido. Pode-se dizer que o pacto irônico implica, para ambas as partes,
uma certa rebeldia tanto em relação às verdades instituídas – no que diz respeito aos
enunciados; quanto à enunciação – uma não submissão ao código da comunicação, permitindo
que a linguagem possa tomar feições inesperadas.
No que diz respeito à retórica, a ironia está a serviço de um partido, de uma verdade
que se revela pela via do inesperado e pelo confronto com o habitual. Sua eficácia é devida
também ao fato de trazer prazer ao ouvinte que se percebe sagaz e por isso torna-se cúmplice
do ironista, reconhecido como autoridade a ser respeitada. Duarte (2006) considera que “esse
tipo de ironia será assim basicamente um tropo, uma volta da seta semântica em que a palavra
173
passa a ter outro conteúdo/significado, diferente do conteúdo/ significado primitivo.”
(DUARTE, 2006, p.21).
Ornato do discurso, a ironia traz consigo uma possibilidade de deleite que, somado ao
prazer da compreensão, pode fazer chegar a um conhecimento com poderes capazes de
preencher lacunas da convicção intelectual. Parece que, quando se trata de ironia retórica, o
autor ainda se mantém no lugar poderoso de detentor do saber, uma vez que a distorção
produzida no discurso teria um sentido predeterminado pelo emissor, que usaria da fluidez da
linguagem para possibilitar uma produção de sentido já previamente planejada por ele. A
posição do narrador é a de quem sabe tanto o que diz, quanto onde quer levar o ouvinte. A
ironia retórica revela, portanto, muito mais que obscurece, qual é a posição do narrador. A
ironia retórica, de acordo com Duarte (2006), corresponde a um primeiro grau de evidência da
ironia, no nível em que ela pretende ser compreendida como tal. A mensagem irônica deve ser
compreendida no sentido antifrásico. Há uma verdade a ser afirmada e uma mensagem a ser
compreendida, o que pode significar uma ideologia a ser exaltada ou defendida.
Em Lobo Antunes, a presença da ironia retórica está evidenciada em todos os livros
de crônicas, especialmente no primeiro, publicado em 1998. Também é nesse volume que
encontra-se um número maior de crônicas que criticam os valores sociais, as crenças e os
costumes do povo português. Parece que neste primeiro volume, a ironia retórica seja o
recurso enunciativo mais recorrente. Se a ironia tem como característica apontar a
inconsistência dos valores, ela aponta nas entrelinhas uma outra verdade transmitida pelo
narrador e captada pelo leitor. Pode-se dizer, baseando nas colocações de Duarte já descritas,
que a ironia retórica reduz o estranhamento, pois o estranho não assegura, não há um pacto de
sentido entre narrador e leitor, mas muito mais uma sensação de exílio, de divisão.
Na crônica “A feira do livro” o narrador conta as atribulações de um escritor numa
feira em que vender livros é equiparado a vender um objeto de consumo qualquer, como
174
bijuterias marroquinas ou “fatos de treino fosforescentes” (ANTUNES, 1998, p.35). O
narrador descreve-se como um autor atribulado, em meio a dedicatórias que tem que fazer,
“numa aplicação escolar” (ANTUNES, 1998, p.35) – expressão que na crônica ganha o
sentido de rebeldia. Também afirma, talvez para ser entendido pelo avesso, que não se queixa.
É bom ser lido. As pessoas que me lêem “me ajudam a sentir que não lanço no mar garrafas
com mensagens corsárias que não se sabe onde vão ter” (ANTUNES, 1998, p.35). A frase se
destaca pois encontra-se o contrário em todas outras crônicas sobre a recepção do texto,
quando o escrito é visto como algo que é lançado ao mundo e não se sabe para onde vai.
A ironia em seguida recai sobre os compradores de livros: o velho que, desiludido,
procura inutilmente por fotografias em Os cus de judas ou o rapaz que quer saber qual livro
tem mais “cenas de cama”. Ou ainda a beata que pede indicação sobre o que comprar para a
sobrinha que fez primeira comunhão e, por fim, o homem autoritário que dita qual deve ser a
dedicatória do livro. Dessa maneira, o narrador mostra que o autor não está em defesa da
liberalidade nem do moralismo na literatura. O erotismo presente em seu texto não está nos
enunciados, ele é condizente com as considerações de Barthes (1977): está no poder do texto
de seduzir e capturar o leitor.
A crônica prossegue e o narrador conta que às sete da tarde encerra o expediente, “o
letreiro com meu nome desaparece” e vai celebrar o “fim dos saldos”. Aqui a ironia recai
sobre a fama. Divide com a filha almanaques do Tio Patinhas – presença da irreverência –,
comprados numa prateleira da feira dedicada a “livros difíceis”. Nela se encontram também,
diz ele: “outros títulos que me encantam: Psicanalise-se a si mesmo, Como enriquecer sem
sair de casa, A vida sexual de Adolfo Hitler, Dez cegos célebres, A cura do cancro do útero
pelo método espírita.” (ANTUNES, 1998, p.36). Ironicamente o autor se coloca contra as
facilitações do consumo e a mercantilização da arte, pois sabe-se que os seus livros são
considerados de leitura difícil e que o escritor é um tremendo crítico da literatura portuguesa
175
contemporânea. Assim, o pacto leitor-narrador traz uma folga para o leitor que pode rir da
ignorância dos outros, colocando-se, convencido pela retórica do narrador, no lugar dos
irreverentes, inteligentes e cultos, que acham ridículos os apelos comerciais da feira de livros.
Aqui a ironia se coloca do lado contrário ao efeito do estranhamento. Pois, se há uma
crítica e contestação dos valores de costumes sociais, há também, nas entrelinhas, pela via do
inconformismo, uma outra verdade a ser defendida pelo autor e partilhada pelo leitor.
Mas, o conceito de ironia é mais amplo. Uma vez que a palavra ironia vem do grego e
significa dissimulação, a mentira implícita na linguagem pode ter funções e graus de
evidência diversificados. Se o primeiro grau é aquele em que o dito irônico deve ser percebido
como tal e em que uma outra verdade, muitas vezes contrária a que se faz aparente, deve ser
captada pelo leitor; a ironia pode guardar maiores sutilezas (DUARTE, 2006).
A ironia humoresque surge diante da constatação de um absurdo irremediável e
fundamental e sua força se encontra no prazer de contrastar a aparência com a realidade, na
co-existência de dois sentidos dentro de uma estrutura dramática peculiar. De início um
significado apresenta-se como verdadeiro, entretanto, gradativamente, surge outro lado da
moeda: o primitivo significado soa como falso e limitado, sendo essencial a percepção da
duplicidade, bem como a indecidibilidade do sentido. A ironia humoresque não pretende
curar o mundo nem resolver seus mistérios, pois não trabalha no interesse da estabilidade.
Um exemplo interessante de ironia humoresque está em “Minuete do senhor de meia
idade” . A crônica desenvolve-se a partir de uma frase de abertura que é também seu tema: “A
vida é uma pilha de pratos a caírem no chão.” (ANTUNES, 2002, p.85). Trata-se
evidentemente da dimensão de perda e desconstrução inerente ao viver. Ao longo de dias,
semanas, meses, vai se tentando, apesar dos tremores, como um malabarista, manter o
equilíbrio de pratos e talheres “no meio dos restos de comida, dos restos de infância, de
espinhas de peixe de pequenas mentiras e de folhas de alface de domingos felizes”
176
(ANTUNES, 2002, p.85). Mas, “sabe-se lá porquê, os anos entortam, uma saudade escorrega”
e eis a vida em cacos. Diante de tantos cacos, o narrador não se reconhece, assim como não
reconhece o mundo a sua volta. O que resta é “trazer a pá e a vassoura, deitar a vida no balde”
(ANTUNES, 2002, p.86).
Mas catar os cacos é penoso. Às vezes tem-se que ficar “de gatas a sujar os joelhos das
calças em nódoas de molho, a palma que se magoa num ossinho de frango” (ANTUNES,
2002, p.86). Num aparente movimento de fuga, o narrador termina a crônica dizendo que vai
ser feliz em inglês ou em sueco numa esplanada de praia. Quem sabe, em outra língua, a vida
dos outros é que cairia no chão.
A minha dobro-a na mala como se dobra um pijama
Atenção aos vincos
E visto-a de novo, antes de dormir, na esperança de encontrá-la, ao acordar, lá
longe, no tapete, com um traço do seu baton
Miss
Ao comprido da gola.
(ANTUNES, 2002, p.87-88)
Existe a um narratário feminino – Miss –, que, ao longo da crônica, parece designar o
lugar da mulher na vida do narrador e que se apresenta numa postura inalcançável. Mas
também é interessante marcar que a palavra Miss, em inglês, significa senhorita, mas também
perder. Assim, o tom irônico reforça o humor em sua feição de trágico e o motivo do riso se
amplia, pois além de dirigido ao narrador, estende-se para condição da existência. Nesse
exemplo, a dimensão do estranhamento fica bem evidente e a ironia humoresque atua no
sentido de acentuá-lo.
O extraordinário da ironia é justamente o fato dela não ter um ponto de ancoragem
(BARTHES, 1974). Na ironia humoresque a ambigüidade não se desfaz, mostrando a
impossibilidade de se estabelecer um sentido claro e definitivo. Na ironia humoresque o
177
desmanchar dos saberes vigentes que se apresenta na ironia retórica dá uma volta a mais e
atinge também o narrador, que perde suas certezas. Em última instância, a ironia seria um
movimento da linguagem que nega o referente. O que a ironia faz é revelar o caráter de
suspensão, de limite, de ambigüidade interno à própria linguagem.
Talvez possa se dizer que a ironia humoresque identifica-se com a literatura, dadas
as possibilidades de trânsito que existem entre esses dois modos peculiares de comunicação.
O que elas teriam em comum? Mostrar a capacidade humana de infringir o código da
linguagem e da censura estabelecidos no espaço da alteridade – campo do Outro – para daí
criar algo. Entretanto, diferentemente de uma infração comum, que pode produzir danos, o
sujeito que cria, seja pela via do humor ou da literatura, recebe a aprovação do Outro. Em
ambos, a linguagem não tem como objetivo uma reprodução da realidade, mas uma criação de
novos sentidos. Em ambos, do desconserto faz-se uma espécie de concerto, mostrando que é
o sem sentido proveniente da disjunção entre a palavra e a coisa que constitui o motor da
criação, permitindo que surja algo surpreendente.
Importa lembrar também que, no humor e na literatura, o sujeito é sobrepassado por
sua criação. Milller (1987), ao estabelecer um elo entre a criação literária e o chiste, afirma
que as palavras constituem ao mesmo tempo um excesso e uma falta, pois também há um
intervalo entre o falar e o querer dizer. Há uma separação radical entre o sujeito que fala e o
Outro - Outro que se busca, mas que está fundamentalmente fora de alcance.
Assim, continua o autor, o que vai distinguir a linguagem humana da dos animais é
justamente esse mal-entendido da comunicação: essa linguagem tão prenhe de significações é,
ao mesmo tempo, incapaz de traduzir com clareza o sentido da vivência humana. Para a teoria
psicanalítica, o humor e a literatura têm pontos de encontro importantes, porque ambos
exemplificam essa relação subversiva do homem com a linguagem.
178
Renato Mezan (1990) aponta algo nessa direção ao afirmar que a teorização freudiana
sobre o chiste introduz o fio condutor das idéias de Freud sobre a estética. Ou seja, na teoria
psicanalítica só podemos compreender a teoria da criação a partir do chiste, que também
consiste num processo de criação. O autor afirma que: “todas as análises estéticas de Freud
começam por colocar a questão do efeito produzido pela obra sobre o seu destinatário e é
desse efeito que parte a reconstrução do processo criativo a partir da emoção sentida pelo
espectador” (MEZAN, 1990, p.229).
Pode-se observar que Mezan dá um estatuto diferente ao chiste e, conseqüentemente,
ao trabalho de criação, na medida em que os aproxima pela presença do receptor, que é tocado
e dá continuidade ao processo de criação. A criação ultrapassa o sujeito que a criou e, de
acordo com Freud, o valor de uma obra está ligado a essa possibilidade de tocar o outro. Mas
esse tocar, acrescentar-se-ia, pode ser uma espécie de carícia ou um arranhão. E a literatura do
estranho toca com um arranhão: machuca, desarruma, desestabiliza. Por isso, Freud afirma
que o estranho na literatura aponta para uma estética que se encontra além do princípio do
prazer.
Portanto, o riso, assim como a escrita, pode ou não ter caráter subversivo. Ambos
constituem estratégias ricas para se lidar com o desamparo, embora os resultados possam ser
divergentes. A escrita e o riso, sejam de que natureza forem, são derivados de uma falta; só
que há escritos que pretendem obstruir essa falta e outros, evidenciá-la (PERRONE-
MOISÉS, 1990). O mesmo pode ser dito quando se trata do riso. Pode-se rir para tamponar o
desamparo, ou, pelo contrário, para reafirmar sua existência. Tanto a arte de fazer rir quanto a
de escrever, em relação ao estranhamento, são pharmacon: podem acentuá-lo ou desvanecê-
lo. No exercício dessas diferentes funções, o sujeito da escrita pode circular por diversas
posições. É o que se pode ler no próximo item.
179
4.3 – A circulação dos modos na escrita
Ler as crônicas de Lobo Antunes ao lado do livro de Blanco (2002) - Conversas com
Lobo Antunes -, onde estão transcritas falas do escritor é uma experiência bastante
interessante, principalmente no que diz respeito à questão da experiência de escrita. Um texto
corrobora o outro, embora, nas crônicas ressalte-se a dimensão poética do trabalho com a
linguagem.
A posição do autor diante da escrita, em ambos os contextos, faz um giro de modo que
a escrita, vista pelo escritor como sendo a questão central de sua vida (BLANCO, 2002), em
diferentes momentos seja avaliada de modo diverso. Como foi feito em relação à temática do
amor, também para se pensar na escrita, a estrutura modal de Aristóteles parece ser de grande
valia. Assim, neste tópico, pretende-se pensar nos quatro modos lógicos de que fala o filósofo,
partindo do possível e indo para o impossível; e depois do contingente ao necessário.
O que seria uma escrita possível? Talvez aqui indica uma posição mais ingênua do
escritor diante da imensidão de sua tarefa. Uma posição de quem não se interroga, acreditando
que para escrever basta por uma palavra atrás de outra, ou ainda iludindo-se com a idéia de
que o ato da escrita pode ser capaz de dizer uma verdade nomeável, não se questionando
sobre o estatuto da verdade.
Lobo Antunes diz que algumas crônicas são escritas com a mão esquerda – seu lado
dominante – e outras com a mão direita, quando é a sua parte de trevas que se manifesta.
Acredita-se que a escrita possível seja a que ele escreve com a mão esquerda. Talvez nelas
caiba o rótulo de “coisinhas sem nenhuma pretensão” (BLANCO, 2002, p.113), dado pelo
autor às suas crônicas em uma das entrevistas.
180
Barthes (1971) afirma que a distinção entre escritura e escrevência estaria no fato de a
escrevência priorizar os enunciados e ter um destinatário. No ponto de partida há uma
suposição de saber do escritor, que parece acreditar ter um saber a ser transmitido, mesmo que
esse saber seja transgressor. Isso parece acontecer em algumas crônicas de Lobo Antunes,
pois embora as temáticas sejam marginais às questões do cotidiano, não há dúvida de que em
algumas delas o leitor se sinta acalentado, distraído de suas preocupações, ou seja, são
crônicas que cumprem o papel de entretenimento que costuma ser atribuído a esse gênero.
Como já foi afirmado em capítulos anteriores, essas crônicas estão mais presentes no
Livro de crônicas publicado em 1998. Pode-se ver que à medida que Lobo Antunes fica mais
exigente com sua prosa, essa exigência vai sendo transposta também para as crônicas. Assim,
no primeiro livro, serão encontradas várias crônicas que se referem às questões de natureza
social: costumes religiosos, ideologia política, costumes sociais. Se a presença da ironia é uma
tônica em toda a obra de Lobo Antunes, nesse volume será encontrada com mais freqüência a
ironia retórica, como já afirmado anteriormente. O escritor propõe um jogo que logo é
percebido e seguido pelo leitor. Há uma contestação do saber instituído, mas outro saber
alternativo é colocado em seu lugar.
Em “Os sonetos a Cristo” , por exemplo, a temática diz respeito às razões da escrita do
narrador. A resposta é marcada pela irreverência: teria começado a escrever aos 13 anos,
movido por necessidades materiais. Essa atividade seria equivalente a qualquer outra que
pudesse ser exercida por um menino com essa idade: “impingir pensos rápidos no café ou
exibir atestados de tuberculose nos semáforos” (ANTUNES, 1998, p.41), ironiza o narrador.
Teria optado pelo caminho mais fácil: comover a avó. Os sonetos endereçados à avó
exaltavam o sofrimento de Cristo:
Composta a tragédia passava-a à limpo em papel de carta cor de rosa com
pombinhos no canto, enfiava-a no bolso, tocava à campainha da minha avó com ar
181
pesaroso de catástrofe iminente e quando ela preocupada, me convocava no quarto
a fim de se inteirar da desgraça que me acontecera
(a desgraça era o meu forte e minha avó dedicava boa parte da vida a reparar-me as
asneiras)
Encostava-me ao oratório (...) extraía o soneto da algibeira e declamava-o o mais
cavamente que podia revirando pálpebras de mártir. (ANTUNES, 1998, p. 42)
O tom propositalmente irreverente da crônica contesta os valores religiosos, assim
como a relação entre o lugar sagrado da fé e o do dinheiro, pois “o cofre não sei porque
andava sempre junto dos santinhos” (ANTUNES, 1998, p.42). Com “a devoção premiada”, o
menino tinha acesso a uma entrada no estádio de futebol e a “um bagaço clandestino na
Adega dos Ossos, bebido virilmente entre engasgos e espirros” (ANTUNES, 1998, p.42),
lazer distante dos ideais religiosos da avó.
No primeiro momento, a inocência da infância é desmistificada, salientando o aspecto
diabólico da criança que manipula a avó, devido a suas ilusões tanto ao que diz respeito à
religião, quanto à sua avaliação das intenções do neto. Mas no final da crônica, a pureza do
passado é resgatada na memória e tanto a criança quanto a avó retornam recompostos no
imaginário do narrador. Afirma que sua escrita continua endereçada à avó, é nela que pensa
em cada livro que publica e ainda espera, além do dinheiro, sobretudo o “beijo que
acompanhava a nota e que desde que ela se foi embora nunca mais recebi” (ANTUNES, 1998,
p.43). Tudo fica então perdoado em nome do amor e de um passado perdido em que se vê
cercado de afetos e, portanto, protegido do desamparo.
E o que seria a escrita impossível? Lembrando que, de acordo com Lacan, a partir de
Aristóteles, impossível é o que não se cansa de não escrever, esse modo de escrita é marcado
por uma não-satisfação. Escreve-se sempre, e nunca se está plenamente satisfeito. A partir do
modo impossível, a escrita é vista como um movimento incessante em busca da realização da
obra – conceito criado por Blanchot para se referir à escrita como sendo da ordem do devir,
algo que o escritor busca, mas nunca alcança inteiramente. Marcada pela impossibilidade de
dar sentido ao real, a escritura pode mostrá-lo e não significá-lo. O real só pode se fazer
182
presente através dos vestígios que deixa no texto, pois apesar de ser inapreensível por si
mesmo, insiste nas entrelinhas. Por isso a obra nunca está totalmente realizada. “Não alcançar
o que queremos é, no melhor dos casos, nosso amargo triunfo” (ANTUNES, 2002, p.19), diz
o narrador em uma das crônicas dedicadas à escritura.
Existe um ideal constantemente perseguido pelo escritor que ora julga estar em vias
de encontrá-lo, ora acredita que a tarefa é impossível. Em entrevista, Lobo Antunes afirma
que, à medida que caminha, cresce o seu interesse pela depuração da forma. “Cada palavra
conseguida é como uma pedra que retiro de um poço” (BLANCO, 2002, p.64). Quanto mais
caminha, mais percebe o quanto falta para percorrer. O que ele afirma é a busca e a incerteza
do sucesso da empreitada.
As crônicas constituem um espaço em que essa reflexão se faz constantemente
presente. Elas constituem um momento de mergulho na literatura produzida e uma avaliação
dela, uma interrogação sobre a própria escrita. Como isso aparece nas crônicas? A temática
sobre a escrita impossível já se encontra no primeiro volume, particularmente em “O coração
do coração” em que o narrador sonha com um romance que gostaria de escrever, assim o
impossível aparece pelo avesso. O narrador afirma que após entregar ao editor “uma maço de
folhas no tampo da mesa” (ANTUNES, 1998, p.47) e, ao alcançar a rua, dá-se “conta que
perdido o romance perdi uma parte da minha identidade” (ANTUNES, 1998, p.47). A
literatura é, pela via do impossível, uma vivência de perda, marcada pela negatividade, pela
frustração de não ter conseguido exatamente o que se buscava.
A temática ressurge com mais freqüência no volume dois, principalmente na crônica
“Receita para me lerem” dedicada exclusivamente ao tema, que tem um tom de ensaio e foi
analisada no capítulo um. Também em “A compaixão do fogo” há uma oposição entre o ato
de escrever e o reconhecimento, apresentando a escrita como uma paixão desmedida: “é
impossível escrever sem contradição, tortura, veemência, remorso e essa espécie de fúria
183
indignada das sarças ardentes que lança as emoções uma de encontro às outras num
exaltamento perpétuo..” (ANTUNES, 2002, p.153). E conclui: “Onde estiverem certezas, a
arte é impossível.” E define qual seria o trabalho do escritor:
a minha tarefa consiste em desfazer livro a livro os tricots que construí, em
desmontar os estados de alma que criei, em jogar para o lixo as estátuas que
pretendi que admirassem, em ser suficientemente corajoso a fim de subverter as leis
que tomei como dogmas, em tomar balanço a pés juntos sobre os meus erros, para
chegar mais longe, o que me impede a satisfação da felicidade mas me reserva a
esperança do prazer dos leitores. (ANTUNES, 2002, p.154)
Assim, a escrita seria mais um desmanchar do que um edificar: desmancha afetos,
desmancha certezas, mostra o ser humano em seus vazios e em seu avesso e por isso,
paradoxalmente, em sua universalidade. É por isso que pode tocar os leitores.
No volume 3, essa temática da escrita é mais freqüente e as crônicas adquirem um
refinamento maior na linguagem. Muito mais que explicitarem, pela via dos enunciados, o
pensamento do autor a respeito de literatura, elas transmitem o que o autor pretende. Por
exemplo, em “Qualquer bocadinho acrescenta, disse o rato, e fez chichi no mar” (ANTUNES,
2006, p.55) o narrador refere-se ao romance que está a escrever como incompreensível, diz
que vai “avançando, às cegas, página fora, porque sei que o romance entende a si mesmo e
isso me basta” (ANTUNES, 2006, p.55). Essa é a escrita a partir do modo impossível: traz
necessariamente a vivência de estranhamento – não sei quem sou, nem o que escrevo – o
narrador está sempre a afirmar diferentes vertentes do não-saber. Por isso escrever é estar
diante do desamparo: “faço essa crônica sem saber onde as palavras me levam, tateando
paredes com a bengala da caneta; aqui ali um degrau, uma esquina, um desnível que me
estremece a frase” (ANTUNES, 2006, p.55).
Afirma que “há alturas que necessito tanto que Deus se preocupe comigo”
(ANTUNES, 2006, p.56). Esse pedido de acolhimento do Outro leva o narrador/escritor de
184
volta à avó, já mencionada como a responsável pela sua carreira de escritor. Lamenta,
nostalgicamente, sua ausência:
A (mão) da minha avó poisa-me na cabeça, demora-se a despentear-me,
pensativa. Para onde foi ao morrer, avó, que não me visita nunca? Deitaram abaixo
o seu prédio. Se não lhe fizer diferença volte a por a mão aqui em cima, trate-me
por filho. Tratava-me por filho, lembra-se. Assim como assim acho que preciso de
si. (ANTUNES, 2006, p.57)
Se na crônica “Sonetos a Cristo”, de 1998, a referência à avó é apaziguadora, aqui é
uma lembrança doída; transformada em interlocutora, o narrador clama inutilmente por sua
presença. Não tem sua visita e perdeu também sua morada. É no lugar de órfão, sem Deus e
sem a avó/mãe para acalentá-lo que se põe a escrever.
A outra oposição dos modos se faz entre o contingente e o necessário. A escrita
contingente é marcada por um quem sabe, por um pode ser, é aquela que pode cessar de não
escrever. A palavra contingente é marcada pelo efêmero. Pode-se entender que o objeto
poético, num momento fugaz, pode ser subitamente capturado, mesmo que seja perdido logo
em seguida.
Nas crônicas de Lobo Antunes, quando o modo contingente da escrita aparece, traz
uma alegria pulsante para o texto. Como se o escritor subitamente gritasse tomado de emoção:
veja, está aí, sinta o objeto poético em sua fugaz plenitude. Quando a contingência se dá,
como diz Adélia Prado ao referir-se à palavra poética em “Antes do nome”, tem a força de
um acontecimento: “em momentos de graça, infreqüentíssimos, se poderá apanhá-la: um
peixe vivo com a mão. Puro susto e terror” (PRADO, 1976, p.30).
A metáfora da pesca, encontro entre a isca e o peixe na imensidão das águas, é
utilizada por outros autores para se referirem a esse momento da escrita. Como já mostrado,
Clarice Lispector também vai dizer que na escrita a palavra pesca a não palavra. Nos dois
185
textos, o que se busca está além ou aquém da linguagem. Para Adélia Prado ele se encontra
antes do nome, precede o simbólico. O objeto poético é real em sua irrealidade, é o imaginário
que se torna real. Para isso precisa da palavra/vestimenta para se apresentar, mas a plenitude
do vazio a ser mostrado, encontra-se além dela. No texto de Clarice, a não-palavra suplanta a
palavra, mas não pode prescindir dela: uma está entrelaçada com a outra.
Voltando a Lobo Antunes, a crônica “Para quem aprecia histórias de caçadas” precisa
ser mais uma vez evocada, pois nela o narrador refere-se à emoção e a incerteza de capturar o
objeto poético, como se fosse uma caça. Tomado de susto e terror, o caçador aguarda:
sei que me espia e não se resolve a colocar a espinha ao meu alcance. Até
quando? A mão vibra porque me deu a idéia de que se deslocou e porém não
se deslocou nem isto, continua acolá, irritantemente vizinha, apesar de
distante e não posso me dar ao luxo de desperdiçar um tiro: não tenho mais e
crônicas não são coisas que se pegue de cernelha: com uma sacudidela
amandam-se logo ao chão ou vão se embora.” (ANTUNES, 2006, p.182)
A emoção da captura da crônica/paca é descrita pelo movimento, o objeto poético é
vibrante: “abeira-se do aguado do papel, ganha confiança e aí está ela inteira, a inclinar o
pescoço na direção da página, pronta a beber. É altura de apontar cuidadosamente a
esferográfica, procurando um ponto vital, a cabeça, o coração.” (ANTUNES, 2006, p.181) A
transmissão da crônica também se faz pela enunciação. Mais que apresentada é vivenciada.
Ela torna o leitor um caçador de objetos poéticos.
Também em “Explicação aos paisanos”, Lobo Antunes se propõe a dizer o que é a
criação e novamente a dimensão de contingência aparece, pois escrever:
é ser vedor de água. Caminhar com a varinha, à procura, até que a
vara se inclina e anuncia
- aqui
E então a gente pára e cava. E existe tudo, lá no fundo, à espera.
(ANTUNES, 2006, p. 171)
Compara então o que tem valor artístico e o que é óbvio. O óbvio tem sucesso
imediato e prazo de validade curto. É consumido e logo esquecido. O que o narrador pretende
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é que o leitor possa ir com ele, tornando-se também um vedor de água. Assim, pode-se “com
alguma sorte pacientemente conquistada, entrar, nem que seja por um bocadinho, no coração
da vida.” (ANTUNES, 2006, p.172) Nesse momento fugaz, por um bocadinho, o objeto
poético cessa de não se escrever. É em nome desses momentos que vivem os escritores como
Lobo Antunes.
De maneira semelhante, na crônica “ Deus como apreciador de jazz” afirma ele que
seus mestres são os saxofonistas de jazz, que mostram que uma obra de arte deve ser “uma
bela desordem precedida do furor poético.”(ANTUNES, 2002, p.131) Assim, ninguém
estaria tão perto de Deus quanto os saxofonistas. “Talvez haja pessoas que se sintam melhor
na companhia de criaturas que não edificaram nada a não ser vidas sem alegria rematadas por
agonias virtuosas em odores de açucena” (ANTUNES, 2002, p.132). Como Deus não é parvo,
não as escolheria. Certamente iria preferir a companhia intensa de “alcoólicos promíscuos e
pecadores sem remédio” (ANTUNES, 2002, p.132) . Essa posição é condizente a de Deleuze
que, a partir de Blanchot, compara a arte a uma linha de feitiçaria que arrasta a língua para
fora de seus sulcos, fugindo do sistema dominante.
Fazendo um contraponto com o contingente, o necessário, diz Lacan (1985), é o que
não cessa de se escrever. A partícula não muda de lugar e com isso, muda toda a história. Se
no modo contingente o poético subitamente se escreve, no modo necessário o escritor está
condenado a procurá-lo. A palavra condenação é forte mas parece ser isso o que diz, por
exemplo, em Antonio 56 e 1/2:
qualquer coisa ou alguém impunha-lhe que os fizesse e dava graças a Deus
que aqueles a quem gostava fossem criaturas livres e o considerassem com
uma espécie de indulgência que se sente em relação a quem perdeu um braço
ou uma perna a serviço de uma causa insensata. (ANTUNES, 2002, p.18)
Esse pequeno trecho contém alguns pontos significativos para esta reflexão. O
primeiro é que a escrita não se faz por um ato de escolha. Na verdade, no que diz respeito às
questões radicais da existência, o ser humano não escolhe conscientemente, é fisgado. A
187
exigência da escrita é vista como uma espécie de relação senhor/escravo, à qual o escritor está
submetido. A escrita, como o amor e o ódio, é vista como uma paixão, não se decide
racionalmente por ela. Isso não é uma regra geral, mas diz respeito a alguns escritores e entre
eles está Lobo Antunes.
Afirma também que escreve, não por ter algo a mais, mas sim porque o essencial lhe
falta, como um braço, uma perna. O motivo da criação não é um a mais e sim um a menos. O
escritor precisa saber quão pobre ele é e de “quanto precisa ser pobre para começar de novo
(BENJAMIN, 1987a, p.131). E a escrita seria uma causa insensata, talvez por ser
interminável, talvez por exigir tudo, talvez por ser uma espécie de morte. Lobo Antunes diz
que escreve compulsivamente de dez a doze horas todos os dias, independentemente de onde
esteja ou de quais sejam seus compromissos. Para se ter uma vaga idéia da intensidade e
obsessividade do trabalho do escritor é útil ver a ilustração (em anexo) que contém duas
páginas manuscritas de um romance seu. Dá para se ter uma noção de como volta e torna a
voltar ao texto, na tentativa de alcançar o que busca.
Lobo Antunes diz também a Blanco que a escrita é, de longe, o que existe de mais
importante em sua vida. Isso pode ser verificado também nas entrevistas: qualquer assunto
que lhe é perguntado, a resposta cai inevitavelmente neste tema, sua vida e sua obra são
inseparáveis.
Alguns escritores, diz Brandão (2006), escrevem para sobreviver, a escrita se faz
contra a morte. Lobo Antunes afirma que sempre o acompanhou uma “certa vontade de não
ser” (BLANCO, 2002, p.91) e por isso a escrita seria uma espécie de atitude face à morte.
Parece que o nosso autor escreve ao mesmo tempo a morte e contra a morte. Escreve a morte
para apagá-la, paradoxalmente, evidenciando-a. A relação entre vida/morte e escrita é que
torna esta última necessária. É preciso lembrar que na escrita há espécies diferentes de morte:
para escrever é preciso morrer , mas terminar um livro é também uma espécie de morte. Nessa
188
vertente, a escrita se faz no intervalo, entre duas mortes. E também escrever é uma forma de
matar a palavra, dando-lhe outra vida. E por fim, escreve-se também para trapacear a morte,
enquanto ela não vem.
A escrita é tão necessária para o autor, que diz ser impossível responder a razão pela
qual escreve. Seria como perguntar a uma macieira porque ela dá maçãs. Não é por escolha,
nem por prazer, mas por uma determinação que é exterior às decisões do âmbito da razão.
Ao referir-se um romance que está a gerar, o narrador da crônica “O mecânico” diz
que:
não há um momento que as palavras dele (o próximo romance) não me persigam,
ampliando-se diminuindo, alterando-se, rearranjando-se de diversas maneiras,
desafiando
- Não nos apanhas
Fugindo de mim e esperando mais adiante, trocistas
- Não nos apanhas, pois não? (ANTUNES, 2006, p. 40)
O escritor passa a vida a correr atrás do que não sabe o que é, daquilo que não é
evidente, afirma várias vezes que trabalha no escuro. A labuta da escrita só pode ser
comparada com algo que implica em perda de certezas: pescar, caçar, ser vedor de água ou,
quem sabe, procurar diamantes. Nesses trabalhos, os artífices são movidos por uma espécie
de fé: acreditam que se insistirem mais um pouquinho alcançam o que procuram, e isto torna
sua busca eterna, pois acabam por descobrir que suas vidas se fundam, não no encontro, mas
na procura.
Assim, Lobo Antunes passando pelo modo ilusório da escrita possível, caindo no
sofrimento da escrita impossível e vivendo, por momentos fugazes, a alegria da escrita
contingente, acaba por mostrar que escrever é da ordem do necessário, sua razão de viver.
189
CONCLUSÃO
Tem mais presença em mim o que me falta
(Manoel de Barros)
Após essa viagem através do universo das crônicas de Lobo Antunes, o que se traz nas
mãos? Ausência de certezas, buracos não preenchidos, inquietações, questionamentos sobre
essa obra e sobre o olhar que o autor dirige à vida. Se normalmente os fios de um texto
devessem conduzir a um ponto de convergência, neste caso só se tem fios de águas que levam
para um sorvedouro, redemoinho que engole qualquer pretensão de um modelo pré-
determinado de saída para o ser humano. Como diz nosso autor: onde estiverem certezas, não
há lugar para a arte. Essa constatação é o ponto vazio que se encontra no centro desta tese,
atraindo para si todas as outras reflexões.
De acordo com os autores estudados, o importante na noção de literatura é que ela
estaria associada ao vazio, à desconstrução. O vazio deve ser o fundamental em qualquer
manifestação artística. Deleuze e Guattari se valem da frase que teria sido dita pelo pintor
chinês François Cheng: “Algo só é uma obra de arte se guarda vazios suficientes para permitir
que neles saltem cavalos” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p.215). São os vazios que
permitem os movimentos. A des-escrita seria capaz de tocar o leitor em seus vazios, entrando
pelas portas do corpo.
O percurso deste trabalho se deu no sentido de mostrar as negatividades de uma
literatura que quer mostrar algo que ultrapassa o campo da representação, permitindo que o
real se faça presente através dos sentidos: do tato, do olfato, da audição de gritos que são
dados no escuro. Para isso faz-se necessário que o sujeito cartesiano perca suas certezas e o
escritor se lance num universo em que o eu se apresenta dissonante em relação a si mesmo e
ao mundo a sua volta.
190
Esta é a literatura em que os vestígios do estranho podem ter lugar, sem que haja uma
oposição ao familiar. Construídos como uma fita de Moebius, esses termos não se excluem,
um leva necessariamente ao outro. A “outra noite” pode ser vista no dia claro. Como diz
Freud, o estranho está, como água em açude seco, sempre arriscado a surgir de novo. Na
contramão da literatura clássica, esse constitui o ideal de uma certa literatura, que apresenta
um estranho real que se deixa ver nas fraturas da noção de realidade que repicam no texto,
que também se mostra fragmentado.
O gênero crônica, ao contrário do que se possa pensar num primeiro momento, pode
ser um espaço rico para mostrar os vestígios do estranho a partir das fissuras do texto. Em
algumas crônicas pode-se ver uma linha de continuidade nas descontinuidades apontadas
pelo nosso autor: do tempo fragmentado e da memória lacunar às diversas versões do
desamparo, alcançando a escrita do desenredo, pois inevitavelmente uma leva a outra.
O escritor é um exilado que precisa estar do lado de fora para tornar as suas palavras,
palavras de todos, pois o estranho e o íntimo se encontram no mesmo lugar. Assim, o fato de
a escrita das crônicas ter como ponto de partida fatos da vida do autor, não as tira do lugar de
extimidade, uma vez que elas referem-se particularmente os vazios que as relações não
preenchem, e o vazio é o ponto de encontro entre os viventes. Os relatos das crônicas que são
marcados pela biografia do autor não reduzem o estranhamento também porque mostram um
narrador que não sabe de si, em que a memória não resgata o passado nem organiza o
presente. A busca é do não-sabido, núcleo sem nome da memória. Da mesma maneira, o que
se repete é o que pede de novo, é aquilo a que falta sentido. O mesmo tem como núcleo a
diferença.
Ao lidar com as relações do eu com o Outro, em todos os níveis, pode-se ver um
narrador cujo olhar incide sobre o vazio que permeia todas as versões do amor e que se depara
sempre com sua impossibilidade, mas continua a insistir na procura. Também as relações
191
sociais são marcadas pela incomunicabilidade e pelo nonsense, desde os modismos da
contemporaneidade ao absurdo da experiência da guerra. Como mostra a banda de Moebius, o
amor e a solidão são inseparáveis, assim como sanidade e loucura e, finalmente, vida e morte.
Em suas crônicas, Lobo Antunes mostra que diante do desamparo inerente à existência, não
há pai, nem celeste nem terrestre, que possa servir como garantia.
No momento de concluir, importa voltar ao começo, refletindo sobre a primeira
palavra título desta tese: vestígios. Vestígios são marcas pouco nítidas deixadas pelo
caminho, sombras que denunciam uma presença mas requerem um trabalho de investigação.
Walter Benjamin (1987b), ao questionar a história oficial, escrita pelos vencedores, propõe
que se busque uma outra versão. Essa proposta pode ser transportada para a escrita das
crônicas, em que Lobo Antunes se coloca à procura de vestígios: desmontando a concepção
linear do mundo, convida a outras leituras, incitando a escovar a história a contrapelo, para
evidenciar o desamparo.
O cronista, assegura Benjamin, não deve distinguir os grandes acontecimentos dos
pequenos, sua tarefa deve ser escavar ruínas e escombros, não só do passado, mas do sempre,
“um tempo saturado de agoras” (BENJAMIN, 1987b, p.229). Essas escavações não são para
se reencontrar algo inteiro, mas para buscar fragmentos do que foi esquecido, abafado: os
vestígios que o tempo sufocou, personagens e episódios que ficaram asfixiados, memórias que
foram negligenciadas, detalhes acessórios, para assim mostrar que a história pode ter outras
versões.
Na história do familiar há vestígios do estranho e para encontrá-lo também é
necessário fazer um trabalho a contrapelo, precisa-se “cavar por baixo”, “ver que o mundo foi
feito por detrás”, “tatear no escuro”. A escrita constitui esse trabalho de escavação.
Coincidentemente, Freud (1938) usa a metáfora da escavação para referir-se ao trabalho
analítico. A análise é um trabalho que se faz pela via dos fragmentos, ela também pode ser
192
tida como um processo de escritura, em que se misturam, de forma criativa, memória e
fantasia, possibilitando outras versões.
Se um dos fundamentos desse tipo de escrita é o modo peculiar de recepção,
conforme asseverado por Lobo Antunes e pelos teóricos, tanto da psicanálise quanto da critica
literária, que serviram de baliza para este trabalho, é interessante interrogar sobre os efeitos
das crônicas para a construção desta tese.
Lobo Antunes compara o texto literário a um barquinho de papel, andando perdido nas
águas da chuva, não se sabe onde vai parar. Isto porque a leitura do seu texto é também uma
experiência de perda de certezas. Junto com o autor, também é preciso criar coragem para
atravessar a primeira noite e chegar à outra noite, onde se pode ouvir a chuva ou os grãos de
areia do silêncio. Maia afirma que “o saber que se alcança na voragem do texto que nos traga
não é o mesmo do pensamento... há uma luta com o pensamento para que ele entregue o que
ele não tem” (MAIA, 2004, p.51).
A negatividade pode parecer uma forma pessimista de se encarar a vida. No entanto,
Lobo Antunes não avalia a sua obra assim. Diz que se surpreende quando alguém diz que
seus textos são tristes. O negativo pode ser visto como possibilidade, convite para se
inventarem novos caminhos. Não acatar e ser um crítico das soluções coletivas, dos caminhos
pré-traçados pode implicar também em abertura para o novo, na busca de possibilidades no
um a um. O que se transmite em uma obra de arte não é a solução, mas a abertura para se
buscar, na singularidade de cada sujeito, contingências favoráveis, a partir de constatação de
impossíveis. Segundo Lobo Antunes: “quem acha que é outra coisa nada entende de literatura
e, pior, nada entende da vida.” (ANTUNES, 2006, p.73). Provavelmente este é um ponto de
encontro entre a literatura que privilegia o estranho e a prática psicanalítica. Ambos os
campos exigem uma perda de certezas ilusórias, ambos são um convite à invenção, ambos se
interessam pelo refugo acreditando que ele guarda revelações surpreendentes.
193
Tanto Lourenço (2004) quanto Ramon (2004) afirmam, em suas reflexões sobre Lobo
Antunes, que ele faz uma psicanálise
37
da contemporaneidade. Ramon acredita que,
justamente por não compreender o mundo, Lobo Antunes tem o poder de interrogar e
desnudar o ser humano em seu desamparo, em sua falta de garantias. Pode-se dizer que o
escritor faz o mesmo que a criança da história infantil: é capaz de apontar e nomear a nudez
do rei, a contragosto de alguns. Se isso pode parecer cruel, porque tira as falsas ilusões dos
“adultos”, constitui uma proposta de travessia. Na acuidade do olhar do escritor pode-se
perceber, pelo avesso, uma ternura pela humanidade, admitida por ele mesmo.
Blanchot (1997) afirma que o vazio é o próprio sentido das palavras. A equivocidade
é, ao mesmo tempo, a doença e a saúde da linguagem. Sem equívoco não haveria diálogo, o
mal-entendido é a possibilidade do entendimento. E quando o equívoco pode evocar o
estranho, pode-se chegar na outra noite, onde se pode ouvir “o eco eternamente repercutido de
sua própria caminhada, caminhada na direção do silêncio”. (BLANCHOT, 1997, p.169) Essa
frase de Blanchot condensa o que de melhor se pode esperar de uma psicanálise assim como
da literatura, e é certamente o que se encontra nas crônicas de Lobo Antunes.
37
Embora Lobo Antunes, em entrevistas a Blanco (2002), afirme que a Psicanálise não tem valor.
194
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SOLER, Colette. O pai real. Revista Opção lacaniana, ano 1, 1993.
204
APÊNDICE 1
Listagem das crônicas de Lobo Antunes trabalhadas na tese, por ordem de aparecimento
Capítulo 1
Última crónica –1998, p.341-342.
Crónica para quem aprecia histórias de caçadas – 2006, p.181-183.
Da morte e outras ninharias – 2006, p.145-148.
O som dos meus ossos – 2002, p. 263-265.
Epístola de Santo António Lobo Antunes aos leitoréus – 2006, p. 193-196.
Boa noite a todos - 2002, p. 33-34.
O grande homem - 1998, p. 141–143.
Uma sensação de para quê –2002, p. 305–307.
Receita para me lerem – 2002, p.109–111.
A confissão do trapeiro – 2006, p.133–135.
O gordo e o infinito – 2002, p. 93–95.
António 56 ½ - 2002, p.17–19.
Capítulo 2
O osso - 2006, p. 43–46.
! – 2006, p.107–110.
Província – 2002, p. 65–67.
Herr Antunes – 1998, p. 97–100.
A propósito de ti – 1998, p. 153–154.
Da morte e outras ninharias- 2006, p.145–148.
Uma jarra contraluz com um galhozito de acácia – 2006, p.141–144.
O passado é um pais estrangeiro – 2006, p. 281–283.
Antonio João Pedro Nuno Manuel – 1998, p. 233–237.
Subsídios para biografia de Lobo Antunes – 2002, p. 49–52.
O próximo livro – 2006, p. 225–227.
Assobiar no escuro – 2002, p. 123–125.
Minuete do senhor de meia idade – 2002, p. 85–88.
Elogio do subúrbio – 1998, p.13–15.
Província – 2002, p. 65–67.
Eles no jardim – 2006, p. 15–18.
Hoje apetece-me falar dos meus pais – 1998, p. 297–299.
A velhice – 1998, p. 39–40.
Província - 2002, 65- 67
Eu, há séculos – 2002, p. 45–47.
Não entres por enquanto nessa noite escura – 2002, p. 37–39.
António 56 ½ - 2002, p.17–19.
O coração do coração – 1998, p. 45–47.
Olá – 2002, p. 81–83.
António 56 e 1/2 – 2002, p. 17 – 19.
Há surpresas assim – 2002, p. 279–281.
205
Capitulo 3
António 56 e 1/2 – 2002, p. 17–19.
Manual de instruções- 1998, p. 105–110.
Em caso de acidente – 2002, p. 41–43.
Uma jarra contraluz e um galhozito de acácia – 2006, p.141–144.
O acaso é o pseudônimo que Deus utiliza quando não quer assinar – 2002, p.149–151.
O amor dos animais – 1998, p. 173–175.
Escrito a canivete – 1998, p. 317–319.
O grande e horrível crime – 1998, p. 123–125.
A crisálida e eu – 1998, p. 169–171.
Como nós – 1998, p. 91–93.
O fim do mundo - 1998, p. 115–117.
Teoria e pratica dos domingos – 1998, p. 119–121.
A solidão das mulheres divorciadas – 1998, p. 127–129.
As palavras cruzadas no jornal – 1998, p. 207–209.
Espero por ti no meio das gaivotas – 2002, p. 61–63.
Não entres por enquanto nessa noite escura – 2002, p. 37–39.
O meu primeiro encontro com minha esposa – 1998, p. 259–260.
Com a laranja na mão – 2006, p. 23–26.
Crónica de natal – 1998, p. 195–197.
Não foi com certeza assim mas faz de conta – 2002, p. 13–16.
Sobre Deus – 2002, p. 89 – 91.
Hoje apetece-me falar dos meus pais – 1998, p. 297–299.
Ajuste de contas,- 2006, p. 289 – 292.
Olhos transparentes da cor do musgo das árvores antigas – 2006, p. 83–85.
Crónica de natal – 2006, p. 161 – 164.
Epístola de Santo António Lobo Antunes aos leitoréus – 2006, p. 193-196.
D – 2006, p. 59–61.
Dois e dois – 2006, p. 149–151.
A vida mais ou menos – 1998, p. 351–353.
Antes que anoiteça – 1998, p. 327–329.
Você – 2006, p. 125 – 127.
De Deus como apreciador de jazz – 2002, p. 131–132.
Chega uma altura – 2006, p. 27–30.
Crónica de hospital – http: esvaziarnuvens.blogspot . com /2007-04-22-archive.html.
António 56 e 1/2 – 2002, p. 17–19.
No porto com Egito Gonçalves – 2002, p. 157–159.
Emília e uma noites – 1998, p.183–185.
078902630RH+ - 2006, p. 111–114.
Um pé a baloiçar, nu, fora do lençol – 2006, p. 67 – 70.
Volto já - 1998, p. 291 – 295.
Os meus domingos – 1998, p. 59 – 60.
Os computadores e eu – 1998, p.177–178.
Crónica do pobre amante – 1998, p.165 – 168.
206
Capítulo 4
O passado é um país estrangeiro.- 2006, p. 281–283.
O coração do coração - 1998 – p. 45–47.
Receita para me lerem - 2002 - p. 109–111.
O próximo livro - 2006, p. 225–227.
O mecânico - 2006, p.39–41.
Crónica para quem aprecia histórias de caçadas - 2006, p.181–183.
Júlio Pomar: pintor - 2006, p.103–106.
Assobiar no escuro - 2002, p.123–125.
A feira do livro - 1998, p. 35–37.
Minuete do senhor de meia idade - 2002 – p. 85–88.
Sonetos a Cristo - 1998 p. 41-43.
Da vida das marionetas - 2006, p. 51–53.
Receita para me lerem - 2002 – p. 109–111.
Deus como apreciador de jazz - 2002, 2002, p. 131–132.
A compaixão do fogo - 2002, p. 153–155.
Qualquer bocadinho acrescenta, disse o rato, e fez chichi no mar – 2006, p.55–57.
Crónica para quem aprecia historias de caçadas – 2006, p 181–183.
Explicação aos paisanos - 2006, p.169–172.
Assobiar no escuro - 2002, p.123–125.
De Deus como apreciador de jazz – 2002, p. 131–132.
António 56 ½ - 2002, p. 17–19.
O mecânico – 2006, p.39–41.
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