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Fábio Figueiredo Camargo
A transfiguração narrativa em João Gilberto Noll:
A céu aberto, Berkeley em Bellagio e Lorde
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Fábio Figueiredo Camargo
A transfiguração narrativa em João Gilberto Noll:
A céu aberto, Berkeley em Bellagio e Lorde
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, como requisito parcial para obtenção do
título de Doutor em Literaturas de Língua
Portuguesa.
Orientadora: Profa. Dra. Melânia Silva de Aguiar.
Belo Horizonte
2007
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FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Camargo, Fábio Figueiredo.
C172t A transfiguração narrativa em João Gilberto Noll: A céu aberto, Berkeley em
Bellagio e Lorde / Fábio Figueiredo Camargo. Belo Horizonte, 2007.
149f.
Orientadora: Melânia Silva de Aguiar
Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Letras
Bibliografia.
1. Noll, João Gilberto. A céu aberto. 2. Noll, João Gilberto. Berkeley em
Bellagio. 3.Noll, João Gilberto. Lorde. 4. Autobiografia na literatura. 5.
Autoria. 6. Literatura homoerótica. I. Aguiar, Melânia Silva de. II. Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em
Letras. III. Título.
CDU: 331.874
Fábio Figueiredo Camargo
A transfiguração narrativa em João Gilberto Noll: A céu aberto, Berkeley
em Bellagio e Lorde
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em
Literaturas de Língua Portuguesa.
__________________________________________
Profa. Dra. Eneida Maria de Souza – UFMG
__________________________________________
Profa. Dra. Vera Lúcia de Carvalho Casa Nova – UFMG
___________________________________________
Profa. Dra. Ivete Lara Camargos Walty – PUC Minas
____________________________________________________________
Profa. Dra. Suely Maria de Paula e Silva Lobo – PUC Minas
____________________________________________________
Profa. Dra. Melânia Silva de Aguiar (Orientadora) – PUC Minas
Data: ______/__________________/__________
____________________________________________________
Professor Doutor Hugo Mari
Coordenador do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC Minas
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha orientadora, Professora Doutora Melânia Silva de Aguiar, pela
orientação segura, correta e firme que respeitou meu texto e contribuiu de forma
substantiva para a produção deste trabalho.
Às professoras Vera Lúcia de Carvalho Casa Nova e Ivete Lara Camargos Walty, pelas
contribuições durante o exame de qualificação, que muito colaboraram para o
aperfeiçoamento deste trabalho.
Às professoras Eneida Maria de Souza e Suely Maria de Paula e Silva Lobo, por
aceitarem participar da Banca Examinadora desta tese.
Aos professores do programa de Pós-graduação em Letras da PUC Minas, pelas
discussões em sala de aula.
Aos colegas do Curso que contribuíram para com este trabalho, indicando bibliografia e
discutindo comigo as minhas questões.
Aos amigos que me suportaram falando deste trabalho, nos vários encontros que
tivemos.
Aos meus irmãos, pelo apoio e pelo estímulo.
Às secretárias do programa de Pós-graduação em Letras da PUC Minas, Berenice Viana
de Faria e Vera Lúcia Mageste de Salles Alves, pela disponibilidade e pelo atendimento
sempre atento.
À CAPES, pela bolsa que possibilitou este trabalho.
Para meus pais, Wilson e Ana
Isaura, Zeneide Rodrigues, Lauro
Belchior Mendes e Sônia Lacerda
Macedo.
RESUMO
O presente trabalho analisa três romances de João Gilberto Noll — A céu aberto,
Berkeley em Bellagio e Lorde —, a partir de três eixos centrais em suas obras: a
autobiografia ficcional, a paternidade na e da escrita e o homoerotismo como prática
antropofágica. A autobiografia ficcional é para o autor uma forma de se inscrever em
seus próprios textos, assim como a busca paterna e as relações homoeróticas são
instrumentos para desvelar seu próprio processo de escrita. Através desses temas, João
Gilberto Noll discute sua própria criação como algo excêntrico e novo. Esses elementos
aparecem de forma reiterada na obra do autor e são vistos como marca de singularidade
dessa escrita diante da tradição com a qual dialoga. Dessa forma, minha proposta é de
que a obra de João Gilberto Noll cria sua própria linhagem ao trabalhar com textos,
gêneros, autores e códigos que antecederam sua escrita.
Palavras-chaves: Noll, João Gilberto. A céu aberto; Noll, João Gilberto. Berkeley em
Bellagio; Noll, João Gilberto. Lorde; Autobiografia na literatura; Autoria; Literatura
homoerótica
ABSTRACT
This text analyses João Gilberto Noll’s novels A céu aberto, Berkeley em Bellagio
and Lorde based on three central lines present in his work: fictional autobiography,
paternity issues and homoerotism as an anthropophagic practice. For the author,
fictional autobiography is a way to put himself in his own texts, just as the paternal
search and the homoerotic relationships are instruments to disclose his own writing
process. Such elements reiteratively appear in Noll’s works and are seen as a singular
style of his writing regarding the tradition to which it is related. In this sense, my
proposal is that João Gilberto Noll’s work creates its own lineage as he deals with texts,
genders, writers and codes that preceded his writing.
Key-Words: Noll, João Gilberto. A céu aberto; Noll, João Gilberto. Berkeley em
Bellagio; Noll, João Gilberto. Lorde; Autobiography in literature; Authorship; Gay
erotic literature
Tenho saudade de mim mesmo, sau-
dade sob aparência de remorso,
de tanto que não fui, a sós, a esmo,
e de minha alta ausência em meu
redor.
Carlos Drummond de Andrade
A fuga do real,
ainda mais longe a fuga do feérico,
mais longe de tudo, a fuga de si
mesmo,
a fuga da fuga, o exílio
sem água e palavra, a perda
voluntária de amor e memória (...)
Carlos Drummond de Andrade
SUMÁRIO
Introdução – Alguma coisa urgentemente 10
Capítulo I – Protagonizar histórias 26
Capítulo II – O hino do quartel do meu pai 52
Capítulo III – Um beijo que morde 85
Conclusão – A coisa em mim 127
Referências Bibliográficas 139
Introdução
“Alguma coisa urgentemente”
Fruto de minhas inquietações e de meu sentimento de excentricidade, este
trabalho pretende indagar sobre questões como identidade, tradição e modernidade ou
pós-modernidade, paternidade na escrita, homoerotismo, sem perder de vista seu objeto
principal: o texto literário. Dele emanam as questões que são colocadas constantemente
por este leitor que, mais do que atravessado pelo texto, deixa-se atravessar também por
essa escrita da diferença.
Tomo, para isso, três romances publicados por João Gilberto Noll A céu
aberto (1996), Berkeley em Bellagio (2002) e Lorde (2004) —, porque acredito que
neles uma transfiguração da narrativa, na qual o autor abandona estruturas
hipermiméticas e alcança uma depuração ainda maior em sua busca de quebrar as
fronteiras entre os gêneros, como a autobiografia e o romance, as fronteiras entre prosa
e poesia, entre os países e as línguas, entre as representações de masculino e feminino,
bem como as fronteiras do bom gosto ao descrever relações homoeróticas. Esses textos
que compõem o corpus deste trabalho serão analisados a partir de três eixos presentes
na obra nolliana, de forma obsessiva, entre outros. São eles: a autobiografia ficcional, a
busca da paternidade na e da escrita e o homoerotismo como prática antropofágica.
João Gilberto Noll começa a publicar sua obra em 1980 com O cego e a
dançarina, ganhando prêmios e consagrando-se como um dos grandes escritores de
sua geração. Sua obra conta com dez romances e três livros de contos publicados entre
1980 e 2006. É um escritor de grande vendagem, sem se render a fórmulas fáceis, pois
produz uma literatura extremamente singular no painel da literatura brasileira atual.
A obra de João Gilberto Noll retomou o referencial realista em um caminho
seguido por parte significativa da literatura brasileira advinda dos finais dos anos 70.
Esse realismo ou hiperrealismo presente na obra do escritor gaúcho, principalmente em
A fúria do corpo, é alterado, como ele mesmo afirma em entrevista à Folha de S. Paulo,
sofrendo uma guinada a partir de seu romance A céu aberto:
Acho que faz parte, não de uma evolução no sentido de aprimoramento, mas
de um trajeto. Deixei de lado um certo hiperrealismo, no sentido de citar
nomes de rua, das geografias. Me despojei disso. Queria um teatro dentro do
romance, em termos de instantaneidade, presentificação. Acho que estou
ganhando em capacidade alegórica e que houve até uma radicalização entre
Harmada e o novo livro [A céu aberto]. Isso reflete também uma
homogeneização pictórica do nosso tempo, no que pode ter de bom ou ruim.
(NOLL a AJZEMBERG, 1996).
Os três romances eleitos não compõem uma trilogia, mas pertencem ou podem
ser agrupados como aqueles nos quais o autor tenta ser menos naturalista” e
encaminha-se de modo mais claro para algo anunciado em seus outros textos: a
metaficção. Esse “teatro dentro do romance”, como ele diz na entrevista, aparece de
forma muito explícita nesses romances. Conforme o próprio autor indica, seu trajeto o
traz até esse momento em que o que lhe interessa é essa instantaneidade na ficção. A
instantaneidade está nas descrições hipermiméticas das quais as cenas de sexo e de
violência explícita fazem parte, devido à aparição de elementos como sangue, fezes,
urina e também das cenas performáticas nas quais o próprio ato da escrita é desvendado
para seu leitor. Conforme o próprio nome indica, esse “teatro da aparição” é algo de
fantasmático em João Gilberto Noll, algo que assombra sua narrativa, como se esta se
espantasse com as coisas que ela mesma re(a)presenta. O que aparece é logo deslocado
para outro ponto, causa uma sensação de horror no leitor e é imediatamente substituído
por outra cena que provoca ainda mais terror, em uma cadeia sucessiva, nômade,
vertiginosa, que demarca e ao mesmo tempo desconstrói a seqüência narrativa e a
própria representação do ato.
Nos textos de João Gilberto Noll é possível perceber a continuidade de
alterações modernistas utilizadas na prosa, como o coloquialismo, a mistura de gêneros,
o cotidiano trazido para a literatura, a metalinguagem explicitada através de narrativas
superpostas, além daquilo que se pode denominar de prosa poética. O autor comenta
sobre sua estética literária, que coaduna a música, o cinema e seu interesse pela poesia:
Teve um conto meu, “Alguma coisa urgentemente”, do meu primeiro livro,
[...] que é o O cego e a dançarina, que foi adaptado para um filme, chamado
Nunca fomos tão felizes. Mas isso que você chama de imagético eu chamo
também de pele da linguagem. Que tem uma musicalidade. Alguma coisa
ligada à fome de beleza, [...] acho que é uma certa compensação, pelo menos
na minha luta de chegar à poesia. Estou querendo cada vez mais esse
hibridismo prosa e poesia mas que não seja aquela prosa poética um
pouco engalanada, que não me interessa. Mas reconheço no meu texto uma
vertigem musical. Procuro perseguir a miséria humana sim, mas, entre o
autor e o leitor, existe a mediação dessa linguagem — que não precisa
concordar com a miséria em estado cru... Acho importante que exista
realmente uma questão explícita onde possa ser apresentado realmente um
estilo musical que tenha, digamos, um pouco de religiosidade, de
repetição, de ladainha. Isso está muito presente nesse último livro [Canoas e
marolas]. Claro que esta busca pela beleza não passa pelo ideal clássico,
cadavérico, pronto, amplamente posto nos altares; mas uma beleza que seja
furiosa, que seja até deselegante, horrorosa, feia. A literatura não é um
documento naturalista. A gente empapuçado de naturalismo. E a literatura
necessita de uma transfiguração estilística. [...] Minha utopia hoje é
dissolver as fronteiras entre prosa e poesia. (NOLL a BRESSANE, 2000)
(grifo meu).
Se em Canoas e marolas João Gilberto Noll consegue perceber a necessidade de
uma transfiguração estilística, é possível perceber essa alteração em A céu aberto,
livro imediatamente anterior. É contra o naturalismo que ele se coloca, contra uma
literatura que represente a sociedade como seu espelho. Não mais o brutalismo de A
fúria do corpo, mas o teatro da presentificação ou o teatro da aparição conforme deseja
uma personagem de A céu aberto. Através desse artifício, a literatura nolliana coloca-se
como uma das mais criativas na contemporaneidade brasileira, justamente por se
colocar através de uma representação que buscaria uma “beleza furiosa
que seja até
deselegante, horrorosa, feia”. O teatro da aparição, presente em A céu aberto, é o que
faz o texto de João Gilberto Noll ganhar sentido, pois o que ele faz é representar e exibir
a ação da representação. Não pode ser esquecido um fato autobiográfico: o escritor
educou-se para ser cantor lírico, abandonando os estudos e abraçando a causa da
literatura; daí o fato de afirmar que sua literatura possui uma vertigem musical e,
também, o que pode ser entrevisto em suas narrativas, de se poder dizer que, muitas
vezes, a mistura entre prosa e poesia assemelha-se a algo da ordem de uma
musicalidade do texto.
A literatura brasileira da qual a obra de João Gilberto Noll emigrou advém dos
anos 70, uma corrente que teve que se haver com a ditadura militar, a censura e a perda
de status, pois a indústria cultural começava a se elevar no Brasil nos fins dos anos 60 e
a alcançar grande popularidade a partir do aumento do número de televisores no país
nos anos seguintes. Para alguns críticos, a literatura teve que aprender a ser outro
veículo e diferenciar-se dessa estrutura nova, não perdendo completamente suas
características originais de coisa escrita —, mas angariando para si determinadas
estruturas ligadas ao cinema e à televisão, como a fragmentação e a montagem. Para
Renato Franco, essas questões ocorreram e, na década de 70, ajudaram a abrir uma
diferença radical entre os diversos autores ou esquemas de produção literária no Brasil.
De acordo com Renato Franco,
[...] o romance, para sobreviver, foi obrigado a modificar os rumos de seu
destino: ainda sofrendo interdições da censura, despojado de sua tradicional
matéria histórica, expropriado na linguagem ou nos procedimentos técnicos
mais tradicionais, socialmente desprestigiadovisto que a televisão ajudou
a soterrar a aura da obra literária entre s e experimentando condições
materiais de produção francamente hostis, ele redefiniu tanto sua matéria
como sua linguagem. Forçado a se diferenciar nitidamente da linguagem da
televisão, foi objetivamente impelido à experimentação e à busca de novos
procedimentos narrativos. Neste trajeto, freqüentemente, a natureza rarefeita
das atuais relações sociais, bem como o aspecto fantasmagórico de que a
sociedade se revestiu, instigaram-no a utilizar modos originais e indiretos de
narrar e também por fidelidade ao realismo, que não exige sempre as
mesmas técnicas literárias — formas que parecem abstratas. (FRANCO,
1998, 123).
Renato Franco nota esse experimentalismo nas obras de Sérgio Sant’Anna,
Confissões de Ralfo (1975), de Ignácio de Loyola Brandão, Zero (1975), de Ivan
Ângelo, A festa (1976), de Renato Pompeu, Quatro olhos (1976), de Carlos e Carlos
Sussekind, Armadilha para Lamartine (1976) e de Paulo Francis, Cabeça de papel
(1976). O crítico está interessado em discutir as relações entre relatos políticos e
literatura, e esses textos estariam divergindo da maioria dos relatos que desejariam
apenas narrar experiências vividas durante a ditadura, opondo-se ao romance
reportagem ou ao mero relato memorialístico, por exemplo. Para Renato Franco, esses
textos experimentais interessam-se em ir mais além, criando produções tipicamente
literárias a partir de dados concretos da realidade, utilizando-se de estratégias que
beiram o cinematográfico, o televisivo, mas compondo-se de fragmentos e montagens, o
que faz com que sejam diferentes da produção da qual são contemporâneos. A literatura
era o que interessava no sentido da discussão do próprio fazer literário e das identidades
desses narradores que colocavam em xeque a produção literária em tempos bicudos
políticas do texto, como Renato Franco vai demonstrar, produzidas ao criticar a ditadura
militar de forma metafórica através do ataque aos grupos produtores e colaboradores da
mesma, conforme fica claro nesse trecho em que analisa o romance A festa, de Ivan
Ângelo:
Nessa passagem — fragmento de nervos tensos — o narrador torna explícito
seu próprio engajamento; ao mesmo tempo, empreende a crítica da literatura
da década, passando a limpo seus impasses e dilemas. Neste movimento,
configura sua própria postura de narrador: ele supera o conformismo estético
dominante mediante a experimentação livre. Com isso, sua artilharia o
considerável poder de fogo da narração provoca estragos naquele
território até então ocupado pelo inimigo. (FRANCO, 1998, 218).
O que se percebe é que muitos desses romances encaminharam-se para a
descrição de cenas de forma bastante realista ou naturalista, conforme Alfredo Bosi
apontou, em 1975, ao nomear “brutalista” a literatura presente nos contos de Rubem
Fonseca, João Antônio, Sérgio Sant’Anna, Luiz Vilela, Wander Piroli, Moacyr Scliar:
[...] é a narrativa brutalista de Rubem Fonseca que arranca a sua fala direta e
indiretamente das experiências da burguesia carioca, da Zona Sul, onde,
perdida de vez a inocência, os “inocentes do Leblon” continuam atulhando
praias, apartamentos e boates e misturando no mesmo coquetel instinto e
asfalto, objetos plásticos e expressões de uma libido sem saídas para um
convívio de afeto e projeto. A dicção que se faz no interior desse mundo é
rápida, às vezes compulsiva; impura, se não obscena; direta, tocando o
gestual; dissonante, quase ruído. (BOSI, 1975, 18).
A necessidade de se aproximar do público, de entrar em comunicação com esse
mesmo público, que não tinha muita experiência com leitura, e não tinha tempo para tal,
faz com que esses autores, principalmente os da virada de 70 para 80, abordem assuntos
atuais, como o aumento da violência nos grandes centros, como é o caso de Rubem
Fonseca e seus seguidores, a vida das favelas, dos prostíbulos, dos bas fonds, etc. Do
naturalismo televisivo e cinematográfico como a forma mais fácil de haver ou criar
comunicação com esse público. Mesmo que o assunto não fosse palatável, havia a
necessidade de se tratar dele com uma linguagem mais próxima da objetividade do que
da subjetividade utilizada por outros escritores, como Clarice Lispector, ou do
regionalismo erudito de Guimarães Rosa.
Em texto publicado em 2000, Karl Erich Schollhammer analisa a narrativa
brasileira na década de 70 e 80. Segundo o autor, “a ficcionalização literária da época
pode ser compreendida como uma ressimbolização da emergente violenta realidade dos
confrontos sociais no submundo das grandes cidades” (SCHOLLHAMMER, 2000,
244). Para o estudioso, quando
[...] a literatura se depara com os limites da representação, chega a expressar,
na derrota da transgressão, a própria proibição na sua forma mais concreta.
Desta forma, a batalha ocorre dentro da linguagem, num embate entre a
literatura subversiva e o discurso afirmativo, definindo o que merece ser
considerado “real” ou não. No centro da criação literária, o esforço poético
visa a criar, ficcionalmente, efeitos de “realidade”, através das emoções mais
violentas, e não prazeres ilusórios. (SCHOLLHAMMER, 2000, 245-246).
A partir desse momento, Karl Erich Schollhammer passa a trabalhar sua tese de
que o autor urbano produziria um transrealismo, aquilo que em suas palavras significa
“expressão do real além da realidade”, que suporta essa nova experiência social e
urbana através de uma revitalização da linguagem poética, que passa a transgredir as
barreiras proibitivas do significado. Daí uma linguagem “pornográfica”, que
[...] desestabiliza o aspecto proibitivo do discurso, aproximando-se do objeto
“maldito” e não-comunicável e permitindo, assim, reconhecerem-se na
escrita as fronteiras de sua expressividade, uma condição para a
ressimbolização. (SCHOLLHAMMER, 2000, 249).
A literatura feita nesse momento e nesse espaço urbano, para Karl Erich
Schollhammer, é aquela que movimentaria e faria a comunicação poética entre o real e
o ficcional, o verdadeiro e o falso, em busca de uma supra-realidade (o transrealismo).
Segundo o autor, “o problema na representação contemporânea não está na escolha do
objeto fascinante da violência, mas na falta de capacidade de expressá-lo de modo
suficientemente “real”, quer dizer, simbolicamente redentor” (SCHOLLHAMMER,
2000, 250).
A cidade seria esse lugar no qual a violência fundadora mostrar-se-ia de forma
anárquica e horizontal e, por isso mesmo, mais contagiosa. O autor analisa, a partir
desse ponto, A fúria do corpo, de João Gilberto Noll, e o conto “O cobrador”, de Rubem
Fonseca, nos quais os indivíduos misturam-se à cidade e os cenários urbanos violentos
acabam por se confundir com os próprios corpos dos sujeitos. É nesses autores que
Schollhammer encontra a relação estabelecida entre cidade, violência e sujeito. Nessa
relação, o sujeito acaba por sucumbir a toda e qualquer manifestação violenta da cidade,
da qual ele é também um agente.
Na visão de Schollhammer pode-se perceber a mesma reação de Renato Franco,
que confirmava a literatura escolhida por ele em seu corpus como aquela que perceberia
a realidade e a criticaria a partir de suas estruturas. João Gilberto Noll irá caminhar
dessa literatura transrealista de A fúria do corpo para uma literatura menos naturalista e
mais abstrata em seus romances posteriores, principalmente nos romances tomados
como corpus do presente trabalho. Ao optar por um teatro da aparição, o autor gaúcho
produziria uma literatura que finge que não é literatura, sendo.
Para Wolfgang Iser, o texto ficcional finge ao organizar um mundo em sua
produção. Nessa dissimulação, o texto representaria uma realidade que “não deve ser
tomada como tal, ela é a referência de algo que, de fato, não é, mesmo se este algo se
torna representável por ela” (ISER, 1996, 24-25). Para Wolfgang Iser, o como se
significa que o mundo representado não é propriamente mundo, mas que, por efeito de
um determinado fim, deve ser representado como se o fosse” (ISER, 1996, 25, grifos do
autor). A aplicação do como se” nas obras do autor de Lorde foi estudada por outro
autor, que demonstra como a utilização da expressão minaria a idéia de algo concreto
(PERKOSKI, 1991, 115-116). É pelo viés do transitório, do qual a ficção é capaz,
que João Gilberto Noll traz as imagens para dentro de seu texto. Não um desejo de
que o leitor enxergue em suas histórias a realidade, a vida como ela é, mas apenas um
indício do que seja a realidade do relato naquele momento, que, portanto, é efêmero e,
nesse sentido, distinto de uma literatura que se quer realista. Ao destruir a
representação, representando, o escritor gaúcho imprimiria sua diferença ao leitor,
apontando-lhe os caminhos de sua representação estranha, sua presentificação
excessiva, seu teatro dentro do romance.
Em artigo recente, Silviano Santiago afirma:
Fazer Literatura (sem definição de gênero) talvez seja, em tempos pós-modernos e
pós-coloniais, o modo mais acidentado, belo e racional de se cometer suicídio
artístico na praça do livro. Sabor de veneno na boca, sensação de envenenamento nas
mãos, visão de crepúsculo nos olhos. O futuro da Literatura não depende hoje de
prêmios e, sim, de coveiros. Coveiros de altíssimo nível, capazes de transformar o
campo santo dos suicidas em lugar de visitação pública, onde se cultiva o prazer da
leitura e se pratica o culto ao livro. [...] O velho e arcaico romance ocidental está
sendo substituído pelos diários de bordo escritos pelos audazes navegantes da pós-
modernidade. (SANTIAGO, 2004, 88-89).
João Gilberto Noll seria um desses “coveiros” que leva seu leitor a cultuar o
livro, mesmo que em seus “diários”, caso dos três romances aqui estudados, caminhe
para o dissenso e não para um consenso do que seja literatura, identidade, enfim, um
sentido para a vida, conforme se espera da literatura exemplar, sendo, por isso mesmo,
um paradigma do pós-modernismo entre nós. Para Silviano Santiago, a literatura feita
hoje traz um sabor amargo por insistir em escrever sobre a exaustão da representação,
pois o que faz senão o audaz navegante a não ser navegar por mares tão incertos como
os da cultura ocidental contemporânea? Brejeirinha, a personagem de Guimarães Rosa,
inventava a partir das fezes que apareciam no pasto. O audaz navegante da pós-
modernidade reinventa-se a partir do caos das grandes cidades, do mundo globalizado,
do fim de todas as utopias ou pelo menos das desilusões e desencantos advindos do que
restou delas.
Em artigo publicado em 1985 e transposto para livro em 1995, Nicolau
Sevcenko, analisando o texto “Teses sobre a filosofia da História”, de Walter Benjamin,
nos diz que
[...] o “Ângelus Novus” representa a própria condição do artista e do
intelectual depois que o sonho modernista perdeu a sua inocência. A
expressão “novo” justifica-se assim pela mudança de perspectiva desses
criadores aturdidos. Eles já não voam na mesma direção e na mesma
velocidade do vento do progresso. não gozam do privilégio de se
fundirem com a fonte única de todo poder, de toda vontade e de toda justiça.
Não estão mais voltados para o infinito radiante do futuro e sim para a
tragédia impronunciável do passado. Não acreditam mais no absoluto, nem
se deixam levar por suas falsas promessas. Estão sós, reduzidos aos limites
estreitos de sua fraqueza, seu horror e sua fúria. Essa é a condição do novo
que se manifesta após a modernidade. (SEVCENKO, 1995, 50).
Esse seria o artista contemporâneo e é-me permitido entrever em escritores como
João Gilberto Noll essa questão. Em seus textos, a desesperança do homem
contemporâneo, que nada mais tem a narrar, embora continue a narrar, que não possui
sonhos a serem concretizados, ajuda a compreender que não mais o que fazer a não
ser continuar infinitamente uma ladainha eterna, sem se preocupar com mais nada a não
ser o presente. João Gilberto Noll utiliza-se do pastiche, mas ainda assim um estilo
nolliano do qual não se pode fugir nem negar: a superficialidade em suas histórias de
narradores errantes que não se envolvem emocionalmente nem param para pensar sobre
questões importantes para a humanidade é mera aparência, pois há uma preocupação em
se refletir sobre a situação do homem contemporâneo em meio a uma sociedade de
superfícies como a tela da TV, do cinema, do computador, uma sociedade de consumo
na qual não se tem espaço para ligações mais profundas. Não ocorre na obra nolliana o
fim da historicidade; embora a História esteja presente de forma a demonstrar o fim dos
valores e a decadência da humanidade diante da sociedade de consumo, ele não cria
imagens estereotipadas da História. João Gilberto Noll parece concordar com Octavio
Paz, para quem a
[...] história tem a realidade atroz de um pesadelo; a grandeza do homem
consiste em fazer obras belas e duráveis com a substância real deste
pesadelo [...] transfigurar o pesadelo em visão, liberar-nos, mesmo que por
um só instante da realidade disforme, por meio da criação. (PAZ, 1976, 96).
Dessa realidade atroz, João Gilberto Noll colhe essa experiência esquizóide,
facilmente percebida nessa literatura na qual muitas vezes a realidade é percebida pelo
seu avesso, bem como através da imagem dos escritores atropelados por suas próprias
obras — o que exemplifica as relações entre o mercado e a alta literatura produzida pela
obra nolliana —, da criação de diversos eus, de duplos, de sujeitos que não conseguem
comunicar-se nem com eles mesmos.
Para Linda Hutcheon, as produções da pós-modernidade
[...] são todas visivelmente históricas e inevitavelmente políticas,
exatamente por serem paródicas em sua forma. [...] o pós-moderrnismo é um
empreendimento fundamentalmente contraditório: ao mesmo tempo, suas
formas de arte (e sua teoria) usam e abusam, estabelecem e depois
desestabilizam a convenção de maneira paródica, apontando
autoconscientemente para os próprios paradoxos e o caráter provisório que a
elas são inerentes, e, é claro, para sua reinterpretação crítica ou irônica em
relação à arte do passado. Ao contestar implicitamente, dessa maneira,
conceitos como a originalidade estética e o fechamento do texto, a arte pós-
modernista apresenta um novo modelo para demarcação da fronteira entre a
arte e o mundo, um modelo que atua a partir de uma posição que está dentro
de ambos e, apesar disso, não está inteiramente dentro de nenhum dos dois,
um modelo que está profundamente comprometido com aquilo que tenta
descrever, e apesar disso ainda é capaz de criticá-lo. (HUTCHEON, 1991,
43).
A partir desse trecho, é possível perceber a pós-modernidade da escrita de João
Gilberto Noll, que, se não vai ao passado como o romance pós-moderno estudado por
Linda Hutcheon, consegue perceber a catástrofe deste e exemplificar através de seus
narradores nômades a dispersão do sujeito e a falta de laços ou de projetos existentes
nesse momento crucial da cultura ocidental. Ao mesmo tempo, a literatura nolliana é
capaz de parodiar a tradição e se autoparodiar, fazendo, assim, a crítica ao passado, mas
também conseguindo olhar-se de forma crítica.
É importante salientar esse fato da contemporaneidade nolliana. De acordo com
Silviano Santiago, a literatura pós-moderna existe para
[...] falar da pobreza da experiência, [...] mas também da pobreza da palavra escrita
enquanto processo de comunicação. Trata, portanto, de um diálogo de
surdos e mudos, já que o que realmente vale na relação a dois estabelecida
pelo olhar é uma corrente de energia vital (grifemos: vital), silenciosa,
prazerosa, secreta. (SANTIAGO, 2002, 56-57).
Na obra nolliana, essa pobreza da experiência dá-se através de personagens-
narradoras sempre errantes que não produzem nada exemplar para seus leitores, que
estão deslocadas para sempre da cadeia produtiva, pois não conseguem fazer mais do
que dizer ou escrever discursos vazios e repetitivos. Se o que resta é a pobreza da
palavra escrita, João Gilberto Noll trabalha essa palavra a fim de esvaziá-la ao máximo
de seu sentido habitual até que ela transfigure-se em puro som, conforme ocorre em
diversas seqüências narrativas que ele cria. Mesmo que haja dúvidas e discordâncias
sobre o conceito de pós-modernismo, creio ser possível, devido aos textos aqui
analisados, trazer as opiniões de alguns teóricos do movimento que me ajudam a
entender a feitura da escrita nolliana.
Jean-François Lyotard, ao observar a crise da ciência e do saber em suas formas
de reprodução e transmissão nas sociedades ditas pós-industriais, cuja indústria de
informática é bastante avançada, percebe como crise do saber o fim da noção positivista
da ciência com a qual as academias e instituições estão comprometidas. Decorreria daí o
fim dos grandes relatos e o advento dos relatos menores, devido ao jogo de linguagem
estabelecido. Para Jean-François Lyotard, o que havia na sociedade ocidental européia
eram
[...] histórias populares [...] que contam o que se pode chamar de formações
(Bildungen) positivas ou negativas, isto é, os sucessos ou os fracassos que
coroam as tentativas dos heróis; e estes sucessos ou fracassos ou dão sua
legitimidade às instituições da sociedade (função dos mitos), ou representam
modelos positivos ou negativos (heróis felizes ou infelizes) de integração às
instituições estabelecidas (lendas, contos). Estes relatos permitem então, por
um lado, definir os critérios de competência que são os da sociedade nas
quais eles são contados, e, por outro lado, avaliar, graças a estes critérios, as
performances que aí se realizam, ou podem se realizar.
[...]
O saber que estas narrações veiculam, longe de se ater exclusivamente às
funções de enunciação, determina assim ao mesmo tempo o que é preciso
dizer para ser entendido, o que é preciso escutar para poder falar e o que é
preciso representar (sobre a cena da realidade diegética) para poder se
constituir no objeto de um relato. (LYOTARD, 1986, 37-39).
Ainda para o teórico francês, nessas sociedades não mais haveria quem emite e
quem recebe os enunciados, mas uma troca de proposições das quais as pessoas
escolheriam quais lhes interessavam. Segundo Jean-François Lyotard, seria o fim das
narrativas cristãs, das narrativas iluministas que legaram ao mundo ocidental o conceito
de verdade e, principalmente, o fim da grande narrativa da ciência, que legou ao
ocidente a noção de empirismo e de dados científicos concretos e corretos capazes de
medir a sociedade através do desempenho. O teórico francês trabalha com o conceito de
paralogia, sobre o qual irei falar mais adiante, percebendo essa possibilidade na obra
nolliana. Mesmo que João Gilberto Noll produza um relato de um único sujeito, não
produz nenhum motivo para ser exemplo ou modelo para ninguém. Não há, por parte do
narrador nolliano, o interesse em se legitimar ou legitimar qualquer discurso ou
instituição, não há comunicação possível entre o narrador e seus interlocutores, não há,
exceção feita a Berkeley em Bellagio, a criação de laços afetivos duradouros, o que será
demonstrado nos capítulos a seguir. Se há uma crise do saber e da narrativa, João
Gilberto Noll consegue enxergar o fato e construir sua literatura de modo a marcar sua
posição diante deste. O autor gaúcho insiste na produção de uma literatura que critica a
posição da cultura, utilizando-se para isso das mesmas ferramentas mimetizadas em sua
escrita.
É de se salientar o gosto de João Gilberto Noll pelos microcontos. Em seu livro
Mínimos, múltiplos, comuns, de 2003, o autor exercita-se nos pequenos relatos. É bom
que se diga dos tamanhos físicos desses textos, bem como do título, que não se apega a
frases de efeito nem modelares nem exemplares, da mesma forma que não se encontra
nos microcontos nenhum motivo para se comprazer com algo que poderia ser uma lição
de moral ou qualquer coisa que o valha. Se a estratégia não é nova, pois autores como
Dalton Trevisan já a utilizaram na década de 80, João Gilberto Noll é um continuador
dessa narrativa, que começa a ganhar muitos adeptos e, inclusive, antologias na década
de 90 do século XX e nos inícios do século XXI.
De acordo com Eneida Maria de Souza, ao analisar Canoas e marolas, a
narrativa pós-moderna de João Gilberto Noll é
[...] pautada pelo mal-estar e pela comprovação de uma poética que, não tendo mais nada
a dizer em termos de experiência e de saber acumulado no passado, utiliza-
se de uma retórica do fragmento e de uma solução formal minimalista. A
obsessão por situações de perda e pelo espectro da morte transforma a
escrita em encenação de enredos já conhecidos e de enunciações
estereotipadas, por se tratar de uma estrutura repetitiva e circular, portanto,
exaurida. Personagem e narrativa cumprem o ritual de uma estética e de
uma ética da negação, da letargia e do cansaço como uma das formas de se
inscrever na escrita faltosa e sem trégua [...]. (SOUZA, 2001, 84).
A escrita de João Gilberto Noll apresenta o mal-estar, o fragmento, a obsessão
por perdas e outras características elencadas pela ensaísta, o que ajudaria a denominá-la
como pós-moderna. Mas, longe de querer apenas rotulá-la, interessa saber como essa
vinculação vai além dessas características facilmente detectáveis e como a literatura
nolliana conecta-se à literatura brasileira anterior a ela e à literatura presente.
A obra de João Gilberto Noll já foi estudada por vários pesquisadores em
diversos artigos, dissertações e teses. A primeira dissertação de mestrado sobre a obra
do autor gaúcho foi escrita em 1987 por Maurício Vasconcelos e defendida na UFRJ.
Hoje, encontram-se registrados no Banco de Teses da CAPES trinta e oito trabalhos,
entre dissertações e teses sobre a obra nolliana. Esses trabalhos versam geralmente
sobre a metaficcionalidade da escrita de João Gilberto Noll, a errância de suas
personagens, as teorias pós-modernas identificáveis em seus textos e algumas
comparações entre sua obra e outras artes, principalmente o cinema.
Alguns desses trabalhos foram consultados para a prodão desta tese e dão
uma idéia geral de como a obra do autor vem sendo estudada no país. A escrita
nolliana presta-se quase sempre a análises comparativas voltadas para outras artes e
outros sistemas semióticos, talvez até pela grande dificuldade em classificá-la
encontrada pelos pesquisadores, além da proximidade temporal. É de se notar também
o fato de que algumas dessas teses e dissertações foram produzidas em um momento
— 1987 a 2001 em que a análise literária perde campo para os estudos culturais,
após a abertura da Academia para todos os tipos de texto.
Este trabalho propõe-se, então, como dito, a analisar três romances de João
Gilberto Noll A céu aberto, Berkeley em Bellagio e Lorde —, para perceber neles
como se produz essa escrita da excentricidade, que nega e, ao mesmo tempo, faz uso da
representação, troca as identidades, mistura gêneros, é crítica da história de seu tempo e
pergunta-se qual é sua identidade ou quais seriam suas identidades, ou melhor, se é
possível haver uma identidade única para uma escrita, além de devorar suas co-irmãs
brasileiras, inúmeros textos estrangeiros e até a si mesma.
No primeiro capítulo, tratarei, nos três romances indicados, das relações entre
literatura e autobiografia. A primeira questão a ser desenvolvida é o fato de as
personagens de João Gilberto Noll trazerem em si algumas questões muito importantes
no que tange à criação, principalmente seus narradores.
Os narradores, geralmente em primeira pessoa, são sujeitos perdidos ou em
eterna errância, no sentido das idéias de Gilles Deleuze (1988). Suas narrativas não se
fixam em nenhum ponto que se possa dizer exatamente qual seja, pois se as cidades
aparecem nomeadas, a escrita vaga, sem porto de ancoragem. As autobiografias,
tomando emprestado o conceito levantado por Philippe Lejeune (1991), e as chamadas
“autobiografias ficcionais” que João Gilberto Noll apresenta demonstram a força da
literatura nolliana em trazer o mundo caótico contemporâneo para sua escrita. Ao
mesmo tempo que traça essas autobiografias (ficcionais), o escritor e seus narradores
refletem sobre a própria escrita — em um exercício de metalinguagem —, o que muitas
vezes faz com que se confunda o escritor João Gilberto Noll e seus narradores, quase
sempre nomeados com o seu pré-nome, João. Estes são escritores que se encontram em
cidades nas quais o próprio escritor esteve recentemente, pouco antes de escrever esses
romances, como é o caso de Lorde e Berkeley em Bellagio.
Não se trata de confundir vida e obra, visto que o próprio autor nega que seus
textos “novos” sejam totalmente autobiográficos, mas Phillippe Lejeune lembra-nos da
possibilidade do pacto fantasmático, que seria uma forma indireta do pacto
autobiográfico (LEJEUNE, 1991, 59). Dessa forma, analisar como a experiência do
autor João Gilberto entra na produção da escrita nolliana é, portanto, não confundir vida
e obra, mas tentar perceber em que espaços a criação literária se faz, principalmente no
caso das autobiografias ficcionais montadas por João Gilberto Noll, nas quais os
sujeitos narradores escrevem suas próprias histórias e são testemunhas do mundo
contemporâneo.
Pretendo mostrar como João Gilberto Noll opera com esses conceitos e
empenha-se em muitas vezes desconstruí-los, ao mesmo tempo que os insere em seus
textos. Em Berkeley em Bellagio, obra publicada em 2002, que traz a própria
experiência do autor em uma viagem a Berkeley, nos Estados Unidos, e ao mesmo
tempo em Bellagio, na Itália, o próprio narrador, um escritor, narra-se ora em terceira,
ora em primeira pessoa, como escritor exilado em solo estrangeiro. Não é uma
autobiografia apenas, mas a demonstração de uma consciência muito grande da
representação que sempre guiou o trabalho de Noll. O escritor não seria justamente esse
sujeito em um mundo à deriva que precisa criar para não se confundir com a tradição
autoritária do passado que se encontra para sempre perdido?
No segundo capítulo, será analisada a questão da paternidade negada e da escrita
como forma de encontrar-se ou produzir esse sentimento de paternidade. Na escrita
nolliana, algumas questões repetem-se em termos de enunciado, reverberando na
enunciação de forma metafórica. Pelo viés do enunciado, seu conto “Alguma coisa
urgentemente”, que abre O cego e a dançarina, serve como base para a segunda questão
que me interessa levantar. O conto, de 1980, focaliza um filho que tem em seu pai a
presença de uma ausência, o que o obriga a conviver com a falta da autoridade paterna e
ter um pai sempre se desfazendo em pedaços à sua frente. Essa paternidade negada,
incômoda, pela metade, irá propagar-se em vários de seus romances.
A paternidade é uma questão cultural que estrutura todo um modo de vida de
uma sociedade, no caso, a sociedade ocidental e também a sociedade brasileira, que se
estrutura sob o signo do ocidente judaico-cristão. O pai, dentro da cultura, é o
representante da autoridade, é aquele que influencia a vida dos filhos, que, por sua vez,
devem matá-lo simbolicamente para se afirmar como sujeitos. A paternidade pode ser
metaforizada, pois está relacionada à busca de uma origem que está diretamente ligada
ao momento do nascimento e pode ser reconhecida enquanto tal através da
linguagem, pois nunca se chega a ela totalmente a não ser através da memória. Mesmo
não sendo relatos concebidos em um primeiro momento como relatos memorialísticos,
os textos de João Gilberto Noll parecem tentar inventar um presente que se faz a
partir de algo perdido no passado que se quer recobrar, mas, como toda busca da
origem, faz-se inútil e desesperançada, embora tenha que ser sempre reinventada pelo
discurso. Essa situação é recorrente nos enunciados dos três romances a serem
estudados e aponta diretamente para a condição da escrita nolliana como aquela que,
mesmo possuindo modelos, continua a se constituir como um jogo de continuidade e
descontinuidade dos mesmos. Ao mesmo tempo que reverencia os modernistas, rompe
com eles na enunciação ou no próprio enunciado ao reescrever algumas cenas do
modernismo brasileiro em seus textos, como ocorre em A fúria do corpo, por exemplo.
Essa literatura ex-cêntrica faz com que o criador e o pai aproximem-se, percebendo a
grande necessidade da individuação, principalmente do autor contemporâneo, que
necessita ao mesmo tempo estabelecer sua linhagem e romper com ela, o que liga essa
questão à primeira, pois o autor insere-se como aquele que representa a si próprio ao se
inscrever dentro da tradição.
A terceira questão, que ocupará o terceiro capítulo, diz respeito ao homoerotismo
expressão proposta para retirar a carga excessiva de preconceitos presente na
expressão homossexualismo —, conforme sugere Jurandir Freire Costa (1992), existente
em enunciados de contos e romances de João Gilberto Noll. Em praticamente todos os
textos, relações homoeróticas ocorrem ora de forma mais sutil, ora de forma
hipermimética, se se levar em conta a pouca literatura no Brasil que lida com essa
temática. Na literatura nolliana, a prostituição masculina, os encontros fortuitos com
garotos e as relações sexuais entre pessoas do mesmo gênero são recorrentes. Esses
textos “implicam a constituição de uma homotextualidade” textos escritos sobre
homossexuais e/ou por homossexuais ou isso seria uma forma, no nível da
enunciação, de se inserir em uma tradição brasileira por excelência, como a
antropofagia oswaldiana? Acredito que, embora possa haver uma representação política
nesses textos, essa representação do homoerotismo filia-se à tradição da devoração
antropofágica, pois não me parece haver interesse na obra de João Gilberto Noll em
fazer livros para agradar ao público homoerótico apenas, visto que as descrições dos
atos sexuais não trazem nenhum glamour ou apelo a um erotismo vulgar, conforme a
maior parte de alguns textos que trabalham com o tema. As relações homoeróticas, para
além do enunciado e da forma como são descritas nos textos nollianos, podem lembrar
em sua enunciação uma relação direta com a devoração antropofágica do modernismo
de Oswald de Andrade, aqui entendida como prática cultural de apropriação do que é do
outro, para ser refeito de forma crítica, conquistando sua própria autonomia e trazendo-a
para sua arte. Nesse sentido, essas relações confirmariam João Gilberto Noll como
herdeiro legítimo de uma antropofagia modernista, que ele vai aos poucos refazendo a
seu modo.
Essa estética antropofágica está diretamente ligada à vanguarda modernista,
principalmente da forma como foi preconizada por Oswald de Andrade no “Manifesto
Antropófago”, publicado em 1928. Dessa forma, a errância das personagens nos três
romances não seria apenas algo da ordem do pós-moderno, mas algo que lembra a
errância das personagens de dois romances importantes da literatura modernista:
Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte-Grande. As duas
personagens
oswaldianas vão do Brasil à Europa, descobrindo o velho mundo e devorando-o. As
personagens de João Gilberto Noll fazem percurso parecido: em A céu aberto, embora o
texto não nomeie exceção feita à Suécia —, a narrativa dos países pelos quais o
narrador viaja lembra a narrativa de Serafim Ponte-grande; em Berkeley em Bellagio, a
viagem da personagem inclui os Estados Unidos; em Lorde, Londres é devorada
juntamente com seu modo de tratar estrangeiros do terceiro mundo. A própria escolha
de um narrador em primeira pessoa aproximaria essas narrativas dos romances de
Oswald de Andrade e de sua utopia antropofágica rumo à liberdade dentro de uma
sociedade extremamente regrada e nem um pouco livre. Há nas narrativas de João
Gilberto Noll o desejo de transformar o tabu em totem, assim como a viagem ao
estrangeiro das personagens, sendo que suas experiências como estrangeiros devolvem-
nos à sua terra natal com um novo olhar que não é mais nem europeu ou norte-
americano, mas também não é totalmente brasileiro: é algo que está em busca de
identidade e coloca-se resistente, segundo Vera Chalmers, à “univocidade da civilização
ocidental ‘globalizada’” (CHALMERS, 2002, 108).
Essas três características recorrentes na escrita de João Gilberto Noll — as
autobiografias ficcionais de narradores escritores, a paternidade da escrita e o
homoerotismo enquanto prática antropofágica cruzam-se como um projeto literário
consistente e organizado que pode ser percebido através do teatro da aparição pleiteado
pelo próprio autor na entrevista citada no começo deste trabalho. Pretendo percorrer a
escrita nolliana, em particular a dos livros indicados, tendo como operadores de análise
as três características citadas e como elas se ligam ao lugar ocupado pelo autor na
literatura brasileira contemporânea. Espero que essa estrutura, um pouco errante, não
seja tomada pela vertigem o que não seria bom em um trabalho dessa ordem —, mas
o objeto e sua proximidade, por vezes, obrigam-me à fragmentação e, portanto, errar é o
que se pode esperar deste leitor que tenta imprimir sua letra ao trabalho de outro. Se a
errância é o que move a escrita de João Gilberto Noll, os próximos passos deste trabalho
falarão por si mesmos.
Capítulo I
“Protagonizar histórias?”
Só posso escrever o que sou.
Graciliano Ramos
Antonio Candido, em “Poesia e ficção na autobiografia” (1989), apontava
para uma corrente autobiográfica em poetas como Carlos Drummond de Andrade e
Murilo Mendes, e em um prosador como Pedro Nava, reportando-se, inclusive, a alguns
de seus antecessores brasileiros. Autores modernistas, os escritores escolhidos pelo
crítico em seu artigo seguem a tendência moderna de separar vida e arte no sentido de
que quanto menos realista a representação for, mais perto de uma base essencial da arte
eles estariam. Dessa forma, a autobiografia, direta, sem artifícios literários, deveria ser
negada ou construída de modo que não se parecesse tanto o retratado com o
pintor/poeta/escritor. De acordo com Antonio Candido, esses textos de autores mineiros
[...] podem ser qualificados de autobiografias poéticas e ficcionais, na
medida em que, mesmo quando não acrescentam elementos imaginários à
realidade, apresentam-na no todo ou em parte como se fosse produto da
imaginação, graças a recursos expressivos próprios da ficção e da poesia, de
maneira a efetuar uma alteração no seu objeto específico. Além disso [...]
estes traços imprimem um cunho de acentuada universalidade à matéria
narrada a partir de algo tão contingente e particular como é em princípio a
vida de cada um (CANDIDO, 1989, 51).
Antonio Candido constrói seu método de análise dentro do padrão da
modernidade de que o poeta ou o eu que se narra a si mesmo separa a sua vida da obra,
alterando a matéria narrada. Afirma também que esses escritores construiriam, a partir
de algo tão particular, como fatos vividos por estes sujeitos empíricos, algo universal —
mais uma prerrogativa moderna. Transformar o particular em universal é o grande
desejo dos modernistas brasileiros e europeus. “A sala de jantar domingueira”, como o
queria Oswald de Andrade, o cotidiano inserido na poesia, visto com olhos livres pelo
artista (ANDRADE, 1990). Uma arte que fosse vista e admirada por muitos, arte esta
que quebraria paradigmas e que instauraria a modernidade no ocidente. Segundo
Octavio Paz, a modernidade, prevista pelos modernistas, seria a instauração do novo, do
diferente, capaz de ser a negação do passado e ser afirmação da novidade (PAZ, 1984,
20).
Na literatura brasileira, muito existem narrativas autobiográficas e
memorialísticas. Flora Süssekind (2004) afirma que
[...] essa prosa de ficção autobiográfica [...] dominou o panorama literário
brasileiro de fins dos anos 70 e início da década de 80 [...] [e estaria]
próxima ao confessional, ao “diário adolescente”, ao testemunho, marcada
por um eterno tête-à-tête com o leitor, e cuja preocupação principal, mais do
que com o trabalho literário, seria sobretudo com a “sincera” expressão dos
fantasmas de quem escreve (SÜSSEKIND, 2004, 93-94).
Para Flora Süssekind, esse tipo de texto estaria carregado de cacoetes, como a
representação de um Brasil literário, a denúncia social e o pouco caso para com a
literatura, mas encontraria no leitor, ávido por conhecimento da vida das pessoas e de
alguns fatos históricos, principalmente sobre a ditadura militar, uma recepção calorosa,
criando, assim, uma armadilha para os autores brasileiros. Na opinião da ensaísta, bons
textos seriam aqueles que se afastam dessa armadilha para construírem, a partir da
biografia de seus autores ou de acontecimentos reais, um texto literário por excelência.
Em seu trabalho, encontra-se a idéia de que a arte supera a vida ou a ultrapassa em sua
forma de representá-la. Vida e realidade seriam apenas um ponto de partida para se
fazer a grande arte, que não se deixaria levar pela realidade inteiramente, não
produzindo um texto naturalista demais, nem superficial, confiando nos artifícios
literários.
Para Luiz Costa Lima,
[...] a nossa literatura sempre foi chegada ao memorialismo. Um
memorialismo, é certo, menos declarado com todas as letras, do que
presente sob a forma de matéria para lamentos, queixas e desabafos; o
poético, ou o que se supunha sê-lo, substituindo ou velando a prosa do
cotidiano (LIMA, 1991, 40).
Na visão de Luiz Costa Lima, esse memorialismo, na prosa brasileira, seria
saudável, também porque filtrado pelos escritores, que enriqueceriam os dados do
cotidiano através de suas imaginações férteis. A lógica do raciocínio é a mesma de Flora
Süssekind.
É interessante notar que tanto Antonio Candido quanto Luiz Costa Lima e Flora
Süssekind estão de acordo no que tange à formatação do que seja literário nesses textos
e, se o autor de Formação da Literatura brasileira opta por autores consagrados pelo
modernismo e Flora Süssekind lida com autores contemporâneos, Luiz Costa Lima não
faz referências explícitas a autores específicos. Para os três uma grande diferença
entre ser um autor biógrafo e um biógrafo autor, mais ou menos como Machado de
Assis construiu a definição de seu defunto autor. Mas como os três estão de acordo que
um texto deve deixar de lado a forma naturalista de representação para que haja “mais
literatura”, percebe-se que esse autobiografismo revelaria uma forma de lidar com a arte
de modo a fazê-la mais abrangente. Poemas autobiográficos, como os dos livros de
Carlos Drummond de Andrade, e autobiografias poéticas, como é o caso de Murilo
Mendes ou de Pedro Nava, analisados por Antonio Candido, não estariam longe do
modelo moderno, pois fariam “literatura de imaginação”, o que separaria a forma de
produção da modernidade do modo de fazer de autores como João Gilberto Noll. Utilizo
aqui o conceito de literatura de imaginação conforme utilizado por Harold Bloom,
crítico moderno, que afirma que o
[...] que antes chamávamos de “literatura de imaginação” é indistinguível de
influência literária, e tem com o poder do Estado uma relação não
essencial. Se queremos que quaisquer padrões de julgamento sobrevivam ao
nosso atual reducionismo cultural, precisamos reafirmar que a grande
literatura é exatamente isso, uma realização estética, e não propaganda do
Estado, mesmo que a literatura possa ser usada, e certamente ser usada,
para servir ao interesse de um Estado, de uma classe social, de uma religião,
de homens contra mulheres, brancos contra pretos, ocidentais contra
orientais (BLOOM, 2002, 17-18).
“Literatura de imaginação”, para Harold Bloom, seria então uma produção
estética e não um mero relato naturalista que traz as memórias do biografado de forma
direta e sem subterfúgios como elipses, metáforas, subentendidos, etc, utilizado para
propagar idéias ligadas às defesas dos direitos das minorias, por exemplo. Essa também
parece ser a opinião de Flora Süssekind quando afirma que os autores da década de 70
estavam mais preocupados com a “‘sincera’ expressão dos fantasmas de quem escreve”
do que com a produção do trabalho literário. Luiz Costa Lima é da mesma opinião, pois
acredita que as biografias ou poemas autobiográficos brasileiros possuíam “o poético,
ou o que se supunha sê-lo, substituindo ou velando a prosa do cotidiano”. O valor é
dado a uma literatura produzida em consonância com os paradigmas do que seja
conhecido como literário antes de qualquer coisa. A idéia de Harold Bloom é que a
literatura engajada em causas sociais da forma como é produzida na contemporaneidade
não seria uma “literatura de imaginação”. Sem colocar os críticos brasileiros no mesmo
lugar de enunciação do crítico norte-americano, é possível notar que uma
aproximação no modo de entender o literário através de uma prerrogativa moderna.
Ao contrário do autor de O cânone ocidental, os teóricos da pós-modernidade e
da crítica cultural afirmam que a literatura está em relação direta com as questões
sociais, com o contexto histórico vivido pelo autor e seus contemporâneos e com
questões ideológicas ligadas às diversas culturas, e isso não a faria menor ou uma
literatura “da não-imaginação”. De acordo com Linda Hutcheon, “o s-modernismo
ensina que todas as práticas culturais têm um subtexto ideológico que determina as
condições da própria possibilidade de sua produção ou de seu sentido” (HUTCHEON,
1991, 15). Adviria daí o caráter diferenciador das autobiografias ficcionais produzidas
por João Gilberto Noll em seus três romances, estudados aqui nesta tese, em relação às
autobiografias produzidas pelos poetas e prosadores modernistas e os autores das
décadas de 70 e 80. A literatura nolliana não quer apenas fazer uma narração de fatos da
vida de seu autor empírico como se fosse um homem a mostrar o exemplo de sua vida a
outros. Se as biografias analisadas por Flora Süssekind traziam em seu centro a
“sinceridade”, pois tinham um pacto com o verídico, na obra do escritor gaúcho não
essa preocupação em separar vida e obra, mas a plena consciência de que uma não se
distingue da outra, ao contrário, entrecruzam-se, assim como realidade e ficção não são
impermeáveis, pois a ficção acaba por ser o espaço no qual a representação de uma
devida realidade se faz ou que faz referência a esta realidade. De acordo com Wolfgang
Iser,
[...] o mundo representado no texto é uma materialidade que, por seu caráter
de como se, não traz em si mesmo sua determinação, que deve ser procurada
e encontrada apenas em sua relação com algo outro (ISER, 1996, 27).
Esse algo outro pode ser o contexto histórico, o mundo do leitor, que não é
contemporâneo da obra, mas que possua algo que a este sujeito leitor um referencial
ao qual ele precisa ligar-se. Toda a “verdade” da representação pode ser vivenciada
pelo leitor caso ele encontre semelhanças entre o mundo do narrado e seu próprio
mundo, o que equivale a dizer que o leitor suspende sua descrença sobre a narrativa se
este identifica elementos de sua própria realidade no discurso ficcional, passando,
assim, a sentir-se “dentro da obra”. A representação é sempre algo que (re)apresenta o
leitor a algo que, de certa forma, ele já conhece e é capaz de identificar.
De acordo com Philippe Lejeune, o que faz um texto autobiográfico é o pacto
que o autor estabelece com seu leitor, que ele denomina de “pacto autobiográfico”. Para
ele, autobiografia define-se como “relato retrospectivo em prosa que uma pessoa real
faz de sua própria existência, enfatizando sua vida individual e, em particular, a história
de sua personalidade” (LEJEUNE, 1991, 48, tradução minha). Segundo Philippe
Lejeune, a autobiografia é narrativa em prosa que trata da vida individual e a identidade
do autor é a mesma do narrador. Essa autobiografia distingue-se de outras formas
narrativas que se avizinham dela, tais como memórias, biografia, novela pessoal, poema
autobiográfico, diário íntimo e auto-retrato ou ensaio.
Para Wander Melo Miranda,
[...] todos os textos ficcionais que se aproximam dessa definição ou
permitem ao leitor suspeitar da identidade entre autor e protagonista, embora
o primeiro negue ou não afirme tal identidade, não são considerados como
autobiografia stricto sensu, porque para Lejeune, esta não comporta graus —
é tudo ou nada. Entretanto, mesmo em sentido restrito, a autobiografia tende
a assimilar técnicas e procedimentos estilísticos próprios da ficção. Isso
evidencia o paradoxo da autobiografia literária, a qual pretende ser
simultaneamente um discurso verídico e uma forma de arte, situando-se no
centro da tensão entre a transparência referencial e a pesquisa estética e
estabelecendo uma gradação entre textos que vão da insipidez do curriculum
vitae à complexa elaboração formal da pura poesia (MIRANDA, 1992, 30).
O pacto autobiográfico de Philippe Lejeune é limitado, inclusive por ele mesmo,
para analisar esses textos. Sua teoria alcança a autobiografia como aquela que é pensada
para ser a narrativa da história pessoal de alguém e que acaba por mostrar a
personalidade do biografado, mas que também narra a história de um tempo e um
contexto. A partir da afirmação de Wander Melo Miranda, é possível perceber a fina
linha que separaria a autobiografia do autor empírico que se faz narrador da sua
descrição de si mesmo. Como na própria autobiografia há a utilização, mesmo quando o
autor quer narrar-se de forma naturalista, de elementos literários, é possível perceber
que a autobiografia possui muito de ficcional. E se isso, para Wander Melo Miranda,
a ela um caráter paradoxal, é preciso então perceber que na autobiografia ficcional esse
paradoxo não ocorreria, embora nela o que ocorre, principalmente nas autobiografias
ficcionais nollianas, é a realidade adentrar a ficção com uma força tão grande que não
mais se percebe o fora e o dentro da arte e da vida. Isso é corroborado por uma
afirmação do próprio Philippe Lejeune, que percebe em sua teoria a aproximação da
vida e da arte de forma sutil através dessa escrita autobiográfica. Conforme o próprio
crítico francês afirma,
[...] não somos nunca causa da nossa vida, mas podemos ter a ilusão de nos
tornarmos seu autor, escrevendo-a, com a condição de esquecermos que
somos tão pouco causa da escrita quanto da nossa vida. A forma
autobiográfica dá a cada um a oportunidade de se crer um sujeito pleno e
responsável. Mas basta descobrir-se dois no interior do mesmo “eu” para
que a dúvida se manifeste e que as perspectivas se invertam. Nós somos
talvez, enquanto sujeitos plenos, apenas personagens de um romance sem
autor. A forma autobiográfica indubitavelmente não é o instrumento de
expressão de um sujeito que lhe preexiste, nem mesmo um “papel”, mas
antes o que determina a própria existência de “sujeitos” (LEJEUNE apud
MIRANDA, 1992, 40-41).
Como o próprio Lejeune afirma, não então como separar o que é literário do
que não é literário, e isso se graças à nossa falta de noção do que seja um sujeito
coeso. Afinal, estamos diante do mundo depois da psicanálise e o sujeito encontra-se
descentrado. Como assujeitados da linguagem não nos preexistimos, mas nos fazemos
enquanto narrativas, e a autobiografia traria a ilusão de uma certa coesão na vida do
sujeito ou em sua maneira de se olhar. Como diz Edgar Morin,
[...] aqui apresenta-se o princípio da incerteza, porque nunca sei, exatamente,
em que momento sou eu quem fala, se não sou eu falando, se não algo
que fale por mim, mais forte que eu, no momento em que creio falar
(MORIN, 1996, 54).
Dessa incerteza sobre quem fala pelo sujeito, ou se ele fala nele, ou o que fala
nele, é que se faria a incerteza mesma do humano que se percebe em uma situação a
qual ele não controla totalmente, mas que a escrita procuraria organizar. Esse esquema é
tornado visível por João Gilberto Noll em suas autobiografias ficcionais e é facilmente
percebido nesses diversos narradores que trocam de persona ou enunciam-se ora em
primeira, ora em terceira pessoa.
Luiz Costa Lima engendra sua teoria de que há alguns papéis a serem cumpridos
na produção de uma autobiografia ou na produção de qualquer texto ficcional. Segundo
ele, a persona seria inventada pelo sujeito para que ele entrasse em contato com o
mundo. Isso lhe daria uma janela pela qual olhar o mundo de forma exclusiva e à
[...] medida que a persona se convence de seu papel, melhor, se convence
que o que exibe é mais do que um papel, passa a ver o mundo de acordo
com as coordenadas deste e de acordo com elas [...] A janela do papel
cria uma estrada de mão única. Diante dela, deixa de trafegar o que não entra
em seu ângulo de visão [...] (LIMA, 1991, 52-53).
Dessa forma, o mundo da persona seria um mundo sonhado e não visto, sem
contradição, e a reflexão seria bloqueada. Assim,
[...] seu discurso próprio é o discurso memorialista. Nos lados da série
persona papel memorialismo, se dispõem as vias oblíquas. Sem que
revoguem o sonho da persona, dele se distinguem pela quebra de sua
unanimidade e por proporem alternativas para o uso da criticidade. São
estradas de duplo sentido (LIMA, 1991, 52-53).
Para Luiz Costa Lima, a persona seria aquilo que o sujeito inventa para poder
representar um papel. Nessa relação, a narrativa memorialista entraria como forma de o
sujeito se organizar para um outro e para si mesmo, sabendo ou não que seu retrato não
é tão real quanto seu papel lhe permite ser. Daí ficarem ainda mais complicadas as
relações entre esses papéis ou esses diversos “eus” que não se encaixam tão facilmente
quanto se quer dentro da teoria.
Essa distância mínima que separa o gênero “autobiografia” do gênero “romance”
que não quer ser biográfico, mas que acaba por ser, graças à encenação que o autor faz
de si mesmo em suas personagens, em seus cenários, em suas escritas, enfim, é que
marcaria o que Philippe Lejeune chama de “pacto fantasmático”. Esse pacto seria uma
forma indireta do pacto autobiográfico, pois o leitor os romances não apenas como
ficção, mas para desvendar um indivíduo, pois este se revela em determinados
fantasmas que assombrariam a narrativa (LEJEUNE, 1991, 59). Para Wander Melo
Miranda,
[...] o pacto fantasmático, ao realçar o desdobramento do autor em figuras e
“personagens” diversos, permite entrever, já em processo, a noção de autor
como ser de papel, e da autobiografia não como a representação verídica e
fiel de uma individualidade, mas como uma forma de encenação ilusória de
um eu exclusivo (MIRANDA, 1992, 38).
Não é por acaso que este trabalho propõe uma leitura da obra de João Gilberto
Noll ligada às narrativas de Oswald de Andrade. Em seus romances Memórias
sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, o autor modernista cria duas
biografias de burgueses, sendo que a primeira delas é uma autobiografia. Nestas, a vida
de Oswald de Andrade não é tão separada da vida das personagens principais, assim
como as opiniões de algumas delas sobre a cultura e o atraso das letras brasileiras. Tanto
João Miramar quanto Serafim são representações do pensamento oswaldiano a esse
respeito e tentam produzir no seu leitor uma reflexão sobre a necessidade de reformas
nessa sociedade. A narrativa de Miramar, mesmo que fragmentada, é em primeira
pessoa, e a narrativa de Serafim Ponte Grande alterna entre a primeira pessoa em seu
diário e a voz de um outro narrador. Essas vozes marcariam a relação entre vida e arte
que se cruzam dentro do projeto estético de Oswald de Andrade, antropofagizando os
gêneros e as formas do narrar. O modelo do romance de formação é alterado, ou melhor,
(re)feito através da aprendizagem das personagens sobre a cultura estrangeira para
regressarem (de)formados à sua cultura de origem, pois Miramar retorna, acatando a
civilização ocidental, mesmo que em sua escrita ele a renegue obliquamente ao aceitar
seu lugar de viúvo e crer que deva ser comportado. Seu silêncio, ao fim do livro, é
marca dessa aceitação, embora nessa escrita ainda assim a crítica exista. Em Serafim
Ponte Grande, apesar da morte de Serafim — o protagonista e muitas vezes narrador
, a narrativa continua e não mais aceita a verdade ocidental, pois o navio dos
antropófagos opta por não parar em nenhum porto a não ser “[...] para comprar abacates
nos cais tropicais” (ANDRADE, 1994, 161). Essa alteração de vozes, entre primeira e
terceira pessoa, é comum nas duas escritas. Outro fator que ligaria as narrativas de João
Gilberto Noll e de Oswald de Andrade é o tema da viagem sempre fragmentada com
uma sintaxe livre e constantemente em movimento, conforme disse sobre o escritor
paulista o crítico Antonio Candido:
Para a sua personalidade, sabemos que foi decisiva a experiência da Europa,
antes e depois da guerra de 1914. Na sua obra, talvez as partes mais vivas e
resistentes sejam as que se ordenam conforme a fascinação do movimento e
a experiência dos lugares. Memórias sentimentais de João Miramar e
Serafim Ponte Grande se desenrolam em torno do deslocamento de
personagens entre o Novo e o Velho Mundo, exprimindo a posição do
homem americano, que ele viveu com intensidade, ao adquirir consciência
da revisão de valores tradicionais em face das novas experiências de arte e
de vida. (CANDIDO, 1995, 61).
Na narrativa ficcional de João Gilberto Noll, a autobiografia é descaracterizada,
assim como na obra oswaldiana, não sem o conhecimento nem a intencionalidade do
autor, e o sujeito narrador está sempre a construir-se, em pleno presente, com muito
pouco do seu passado aclarado para seus leitores. Esse ser exclusivo aparece na
narrativa do autor de forma a confundir o leitor que, mesmo não querendo fazer a
relação direta entre as personagens do escritor e seu eu empírico, acaba por tomar essa
semelhança devido ao propósito do próprio autor em subverter o gênero autobiografia,
criando para si mesmo uma autobiografia ficcional.
Em Lorde, o narrador chama-se João e é um escritor do Rio Grande do Sul que
vai a Londres devido a uma bolsa para lecionar e dar palestras em uma universidade
londrina. Em Berkeley em Bellagio, o narrador recebe uma bolsa para ir escrever em
duas cidades, Berkeley, na Califórnia, e Bellagio, na Itália. Em A céu aberto, mesmo
que o narrador não seja um escritor e sua biografia não se pareça com a do autor
empírico, não há como negar que se trata de uma autobiografia ficcional.
Nesses textos nollianos não o “ir-e-vir” de uma autobiografia, mas são textos
fragmentados como que a mostrar a impossibilidade de se falar de si sem fragmentar o
texto. Vida e obra das personagens-narradoras confundem-se em alguns pontos com a
vida de seu autor empírico, de forma proposital. Não nada edificante nem exemplar,
e existem projetos nesses narradores que não serão concluídos ao final das narrativas.
Geralmente, as autobiografias organizam-se em torno de ações de pessoas distintas, que
conseguiram “vencer na vida”, alcançar o sucesso, serem grandes estadistas e poderem
contar ou mostrar como fizeram isso; nessas narrativas nollianas nada disso é possível.
A aprendizagem, marca do romance de formação, que, de certa forma, entra na feitura
de uma autobiografia, aqui fica relegada a um plano secundário, distante das ações do
mundo e de outros às quais as personagens narradoras estão sujeitas.
Em primeiro lugar, é certo que esses textos escritos por João Gilberto Noll não
são relatos autobiográficos reais, mesmo porque se classificam como romances em suas
fichas catalográficas, o que, de certa forma, impediria ao leitor a confirmação do gênero
autobiográfico. Portanto, pode-se afirmar que não há, por parte das três narrativas, a
criação de um pacto autobiográfico com o leitor, conforme teoriza Philippe Lejeune,
pois se o nome é o mesmo, João (em Lorde, por exemplo), o sobrenome não aparece de
forma explícita. Noll assume-se como a persona do escritor que cria um papel para si: o
de escrever sobre a vida de dois escritores, por exemplo. Como o pacto é ficcional, o
leitor pode ficar tranqüilo e certo de que o que lê é pura ficção, mas a intenção de João
Gilberto Noll é fazer carnaval dentro dos gêneros literários. É o ato antropofágico de
subverter a gica da narrativa de memórias ou do romance de formação, assim como
ocorre na literatura produzida por Oswald de Andrade. O leitor é sempre deslocado,
suas expectativas e estratégias são sempre quebradas pelas narrativas, além do pacto
fantasmático organizado pelo próprio autor, que faz questão de jogar seus leitores nas
situações mais insólitas.
Os textos de João Gilberto Noll trazem para seus leitores a forma como a
produção poética da contemporaneidade lida com as questões de hibridização de
gêneros, além de colocarem a impossibilidade de uma autobiografia real existir, pois os
sujeitos aparecem descentrados e sem uma característica de unidade que os identifique,
senão que são estranhos a si mesmos. É posto em xeque, assim, o que os modernos
faziam: a visão de um eu puro que contava sua vida de forma clara, concisa e direta para
seu leitor que o percebia inteiro. O que no modernismo eram artifícios literários para
separar vida e obra, na contemporaneidade continua a ser um artifício, mas com um
interesse muito maior sobre a ficção como forma de criticar a realidade. Não se busca,
portanto, nesses textos a prevalência de uma sobre a outra como se buscou durante muito
tempo nas narrativas modernistas ou na literatura dita de imaginação. Vale lembrar que o
Dom Quixote, escrito no século XVI, estava muito interessado em fazer essa mistura, a
ponto de os fatos da realidade serem muito mais fantasiosos do que os da ficção
cavalheiresca. Vida e arte, ficção e realidade podem muito bem misturar-se sem que uma
deva neutralizar a outra. Dessa forma, os narradores e as narrativas nollianas estão
interessados em discutir a criação literária, o papel do escritor na sociedade
contemporânea e o porquê de se continuar escrevendo em um mundo tão exaustivamente
representado.
As personagens de João Gilberto Noll são atores, ex-atores, escritores, diretores
de teatro, contadores de histórias, personagens que circulam em mundos imprecisos e
caóticos, nem sempre no Brasil, mas em lugares fictícios, ilhas, quase sempre, ou terras
em guerra com nomes estranhos, como que a recordar a possibilidade única de que a
criação se dá através do isolamento. Esses sujeitos da representação estão sempre a
se perguntar se vale a pena escrever em um mundo cada vez mais representado e tentar
sempre uma escrita que escape disso. Cidades como o Rio de Janeiro e Porto Alegre são
recorrentes em suas narrativas e lembradas como opostos. O Rio de Janeiro, conforme
representado em A fúria do corpo, é o caos total; Porto Alegre, conforme representada
em Lorde ou Bandoleiros ou Rastros do verão, uma cidade mais tranqüila, a cidade à
qual os narradores pertencem, sem alcançarem o sentimento de pertença. Em seus
últimos romances, Berkeley em Bellagio e Lorde, essas cidades são trocadas por
Berkeley, na Califórnia, Bellagio, na Itália, e por Londres, em Lorde, cidades nas quais
as personagens narradoras vagam e nas quais não sentem a necessidade nem o desejo de
se fixar. São cidades conhecidas por João Gilberto Noll, nas quais ele morou, onde
viveu, o que reforçaria a relação entre vida e arte em seus textos e acentua a idéia de
transfiguração do real vivido em ficcional a aparecer em sua escrita. Afinal, fazer teatro
da aparição está ligado a essa transformação do vivido em fantasmagórico, no sentido
de que toda ficção está intrinsecamente ligada à vida do seu autor, embora não seja a
única verdade e muito menos o que realmente aconteceu, não cessando de se inscrever
enquanto algo que assombra o sujeito empírico da escrita.
Em A céu aberto, um narrador errante e sem identidade definida. Ele começa
por narrar-se como um jovem que leva seu irmão mais novo a um campo de batalhas,
transforma-se em soldado, depois desertor, e ainda em “um vigia que guarda quase nada
de um abastecimento de trigo” (NOLL, 1996, 81), exilado, viajante em um navio,
sofrendo cárcere privado. Para Ana Martins Marques, o narrador nolliano está em
[...] trânsito, sempre de passagem, [...] não assume mais uma tarefa
cartográfica, não se impelido a mapear o território, a descrever,
inventariar, listar ou esboçar paisagens, nem parece capaz de conceber a
viagem como ilustração. Ele não pode contar com itinerários ou mapas
traçados de antemão. E se por vezes se envolve em viagens de retorno, elas
resultam sempre num deslocamento em relação à origem, como se
afirmando que não é mais possível voltar pra casa (MARQUES, 2003, 14).
Além dessa errância, não uma função específica para o narrador-personagem,
que vaga de um lugar a outro sem uma profissão fixa, por exemplo, o que contribui para
demarcar a identidade indefinida desse sujeito, conforme ele mesmo afirma:
[...] fosse qual fosse meu espaço natal, existissem ou não aquele velho
escroto do meu pai aquela guerra de pilantras o meu irmão vestido de fêmea
em primeira comunhão, aquilo tudo, confesso que no núcleo das minhas
pulsações estava tudo bem porque nunca tinha pensado muito mesmo em ser
feliz, uma vez ou outra chegava perto de um espelho e analisava que no
outro lado além de mim não havia mais ninguém e eu possuía contornos me
resguardando das formas que pareciam se desmanchar em volta... sim, a pele
curtida de sol, um bigode eternamente por sair, os dentes amarelados, os
olhos mais velhos do que eu mesmo aparentava, isso certo vamos dizer
me deixava feliz [...] (NOLL, 1996, 66).
Não noção de origem especificada, não certeza sobre a existência do pai,
não certeza do sexo definido do irmão. Não um sujeito completo, algo
fragmentado que possui um corpo com alguns contornos e que está em estado
decadente, como se pode perceber pelos dentes amarelados, os olhos velhos e a pele
curtida pelo sol. Segundo Antônia Cristina de Alencar Pires, o texto de A céu aberto
“configura-se na profunda perplexidade do sujeito que vivencia a decadência do mundo
e de si próprio, que a sua própria perda de lastro” (PIRES, 2000, 41). Essa aparência
esgarçada nos dá a definição do que é esse sujeito em frangalhos ou fragmentado. Não
o sujeito é fragmentado, mas também seu corpo. Eternamente condenado à errância,
esse narrador é a pura dispersão, como ele mesmo informa a seu leitor:
Não sei mais me concentrar. Tudo me chama como se me quisesse chupar
para uma força dissoluta. Dou demais de mim a cada chamado de fora, sofro
um sério estado de evasão e custo a perceber um outro eventual encargo de
atenção. Tudo me confunde já: custo a unir o que veio antes ao que
aconteceu depois, e quando canto começo de uma canção e termino estando
em outra. De mim é tudo incerto que chega um ponto do dia como agora em
que resolvo me sentar, crispar as mãos nos braços da poltrona e dar um
gemido que ninguém mais ouve (NOLL, 1996, 81).
Mesmo que não haja uma relação específica com a profissão do autor empírico,
é preciso perceber, dentro dos padrões pós-modernistas, essa relação com um autor que
o faz falar não da sua vida, mas da história contemporânea, principalmente no que
tange à falta de identidade desse sujeito perdido em meio ao caos, seja da guerra, seja da
grande cidade, seja do país estrangeiro. Não ter identidade significa, aqui, identificar-se
com o sujeito contemporâneo e, por que não dizer, com o escritor contemporâneo, que
escreve em um mundo cada vez mais representado e faz de sua escrita um lugar de
representação da não- representação. Veja-se o exemplo do teatro da aparição lançado
como teoria por uma das personagens no texto, um escritor de peças teatrais. Em
determinado momento da narrativa, ele diz:
[...] o que eu quero para esse Teatro da Aparição é que ele nem precise
existir, no duro. Para quê?
Para que mais e mais maneiras de externar a mesma merda se o
mundo carece não de uma linguagem mas de um fato tão ostensivo na sua
crueza que nos cegue nos silencie e que nos liberte da tortura da expressão, é
isso, pronto! (NOLL, 1996, 101).
É esse teatro da aparição que Noll vem construindo com suas obras muito
tempo; basta relembrar a entrevista citada na introdução à página 10. Existe nesse teatro
o desejo de que não existam mais artifícios literários, ou melhor, a literatura seria a
própria crítica da representação, a tentativa de esvaziar o objeto representado de toda e
qualquer possibilidade de representação; mas isso é apenas mais um dos artifícios que
tentam negar-se enquanto tais. É da impossibilidade de se representar aquilo que é
totalmente representado que a literatura de Noll vai falar. É importante salientar que, se a
personagem deseja que o Teatro da Aparição não exista, o autor empírico faz questão de
trazê-lo para a cena do seu texto. Se a representação é uma “merda”, palavra recorrente
na literatura nolliana, que sempre tem sua presença quase física na obra como um todo,
porque então alguém que continua a escrever? Ao mesmo tempo que o Teatro da
Aparição é a negação da representação, ele nega-se a deixar de representar, pois, parece
nos dizer o narrador, é impossível abandonar de vez a expressão. O sujeito da
representação, na realidade, não deixa de representar, muitas vezes estando mais ligado à
representação ficcional do que imagina. Basta relembrar as teorias sobre a autobiografia
trabalhadas no começo do capítulo para chegar-se à conclusão de que o que existe é
sempre uma aparição a mais, e nada além disso. É dessa fantasmagoria, no sentido de
algo que não se acaba de todo, que nunca está pronto, mas que se faz a toda vez que se
tenta organizar sua vida, é que o sujeito da autobiografia, seja ela ficcional ou não, irá se
fazer.
A autobiografia como representação da vida de alguém que estaria
representando para si mesmo e para os que o lerão é a única forma de expressão
possível, daí o fato de que a autobiografia ficcional de João Gilberto Noll hibridize-se e
represente-se criticamente. Ela se auto-ironiza ou, melhor dizendo, ela se parodia a si
mesma, chegando à paralogia de que fala Lyotard (1986), o que nunca seria o consenso,
mas o estado de dissenso sempre e cada vez mais longe. A literatura nolliana não se faz
como algo consensual, mas algo que sempre se dispersa em mais e mais questões
desdobráveis a partir de si mesma. Uma questão leva a outra e mais outra e mais outra, e
assim infinitamente, num eterno rolar sobre o próprio eixo. E dessa forma o próprio
autor vem alterando sua escrita cada vez mais, pois se as narrativas são semelhantes, as
questões permanecem sem nunca serem de todo aclaradas e são sempre e cada vez mais
instigantes. É nesse ponto que se pode perceber a transfiguração narrativa, pois o autor
transforma seu texto, partindo de uma representação mais próxima ao hiperrealismo,
nos primeiros romances, para, cada vez mais, afastar-se dele. Principalmente nessas
últimas narrativas aqui trabalhadas, em que o narrador sempre quer deixar de
representar, utilizando-se, para isso, de um instrumento de representação como o é a
literatura.
Os fatos esparsos organizam-se para aquele que lê sem que o autor possa intervir
totalmente em nada a não ser na organização dessas vozes narrativas estranhas e
próximas em sua dispersão e confusão diante da realidade e até mesmo da produção do
próprio texto. A arte não está separada da vida, a literatura continua de imaginação, não
perde o contato com seu próprio tempo, como alguns críticos o disseram da literatura
contemporânea, mas, ao contrário, demonstra estar em perfeita sintonia com este e não
concordar com o que ocorre à sua volta, como pode parecer em um exame mais
apressado. Conforme afirma Rose Meire da Silva Cordeiro, a escrita nolliana “não
corresponde à mundialização, entendida enquanto homogeneização da vida, a partir de
vetores econômicos massificantes e uniformizadores de diferenças” (CORDEIRO,
2000, 44).
O escritor o filho de Artur em A céu aberto —, depois de ter uma relação
sexual com o narrador, mais velho que ele, ou seja, depois de devorado pelo narrador, é
apresentado em um momento de trabalho:
Por aqueles dias o garoto começou a escrever uma nova peça. Ficava horas
sentado na cama em que dormia, a porta entreaberta, um caderno, uma
caneta. Às vezes quando eu passava pela fresta da porta o surpreendia
olhando perdido para a janela não muito aberta, ou numa expressão meio
risonha ou com o ar preocupado como se sofresse algum impasse na escrita;
o garoto era bonito não resta dúvida sentado assim escrevendo geralmente
sobre as pernas. Até que um dia começou a reclamar de que estavam
batendo demais numa estaca de obra ali perto, que entre o trabalho braçal e o
seu mental era covardia, tudo favorecia o braçal; para começar, reclamava
ele, de que operação se propaga mais o som?, o da estaca ou o da pena no
papel, hein?, não posso pedir para o sujeito parar porque terei a cidade
inteira contra mim; mas se eu fizer o favor de me retirar para bem longe para
escrever a minha peça, me diga que mortal que leva a vida por aqui não
acharia uma boa solução? Passarei a escrever à noite não importa, enquanto
você fica no paiol vigiando eu fico aqui escrevendo a minha peça como se
costurasse as horas submersas que tal? (NOLL, 1996, 114-115).
Nesse trecho, tudo o que sai da boca ou da voz da personagem-narradora que
delegará, em meio à sua fala, a voz ao escritor é a representação do que seja um escritor
na contemporaneidade a idéia moderna da solidão do escritor, escrevendo em seu
quarto e precisando de silêncio em um mundo barulhento; o incômodo causado pelo
modelo de escrever sem o contato com a rua. É interessante perceber que o escritor da
narrativa escreve a caneta em tempos informatizados. A necessidade de se isolar e a
computação não combinam mais, mas o escritor, que não quer representar, coloca-se
todo a favor da representação de seu trabalho como algo diferente da noção utilitária da
sociedade contemporânea, como se isso fosse possível. A voz narrativa apontaria,
assim, para a impossibilidade de se separar vida e literatura, silêncio e barulho; a forma
de fazer isso pela voz do escritor que quer negar a representação é uma forma de auto-
ironia para com seu próprio texto. Assim, a autobiografia ficcional nolliana negaria a
sua própria forma de se fazer, pois, afinal, ela é obra de alguém que se representa a si
mesmo não querendo se representar, mas, inutilmente, nadando contra a corrente de seu
próprio objeto que o enreda e o consome. É a plena consciência desse escritor, o autor
empírico, em perceber o quanto alguém imprime sua letra, sua marca em algo escrito ou
da ordem do Arquivo, conforme o quer Jacques Derrida (2001), que faz com que ele se
saiba implicado em sua escrita e que esses outros “eus” criados por ele façam parte, de
alguma forma, de sua autobiografia, que se escreve quase que automaticamente. Além
de lutar contra a corrente do seu próprio tempo, o escritor da narrativa, assim como o
autor empírico, luta contra a tecnologia que bane a caneta e instaura a pressa da leitura,
a qual, em princípio, não se prestaria à escrita literária. Jacques Derrida afirma que “os
limites, as fronteiras, as distinções terão sido sacudidos por um sismo que não poupa
nenhum conceito classificatório e nenhuma organização do arquivo” (DERRIDA, 2001,
14, 15). Na literatura nolliana não mais ordem garantida, visto que o conceito de
arquivo está alterado. Já não mais uma ordenação das coisas, dos gêneros, não há
mais consignação. Como um arquivo corrompido, a literatura nolliana recusa-se a
colocar as coisas em seus devidos lugares, nega-se a dizer onde está precisamente João
Gilberto Noll, o autor empírico, e onde está precisamente sua personagem narradora.
Em Berkeley em Bellagio, o narrador-personagem é um escritor, assim como
João Gilberto Noll. O texto começa em 3
a
pessoa para, na página 16, adentrar na
narrativa em um discurso de 1
a
pessoa, retornando à 3
a
pessoa na página 19. Na página
36, a 1
a
pessoa retorna ao texto para deixar lugar à 3
a
pessoa, a partir da página 53. Na
página 54, a narrativa retoma a 1
a
pessoa e vai até o final, sendo interrompida apenas
nas últimas páginas por verbos na 3
a
pessoa do plural, como a demonstrar a
identificação do narrador com seus dois outros amores, a menina Sarita e Leo, seu
companheiro.
Linda Hutcheon (1991), ao analisar um texto de Jerzy Kosinski, aponta para essa
variação de vozes narrativas no próprio narrador, o que marcaria a provisoriedade do
narrado e criticaria a convenção realista da representação. Não seria mais uma voz
onisciente, mas também não seria um narrador autobiográfico ciente de sua própria
capacidade de narrar. Em Berkeley em Bellagio, pelo contrário, o próprio escritor
personagem sente-se completamente perdido em sua tentativa de escrever um romance
em trânsito, visto que caminha por bosques tanto na Califórnia como na Itália. Como
afirma Gilles Deleuze,
as duas primeiras pessoas do singular não servem de condição à enunciação
literária; a literatura começa quando nasce em nós uma terceira pessoa
que nos destitui do poder de dizer Eu [...] (DELEUZE, 1997, 13).
Essa terceira pessoa seria uma fabricação do escritor para poder produzir sua
escrita. Uma pessoa “neutra”, mediadora entre o mundo real e a organização da escrita
literária, que enxergaria pelos olhos do escritor e escreveria através de sua mão, não de
forma mediúnica nem de forma totalmente consciente. Essa pessoa que torna o texto
inteligível, mais que uma pessoa, é uma ação que se inscreve no papel, ou melhor,
inscreve-se no corpo que inscreve no texto as impressões e as angústias do escritor.
Escrever alternando entre primeira e terceira pessoa é descerrar o véu que encobre a
produção da escrita literária. É performática essa atitude: representar mais uma vez o
que não se quer representado. Escrever sobre como é a invenção do eu e, ao mesmo
tempo, destituir-se do poder de utilizar o pronome pessoal na primeira pessoa do
singular parece um paradoxo. Esse sujeito não quer se reconhecer nessa forma
gramatical, o que indica que ele também não se reconhece como alguém inteiro. O autor
empírico parece demonstrar que um escritor que se preze é aquele que se multiplica em
diversos, nunca em um único ser de papel, para tentar organizar seu caos interior no
qual ele não consegue perceber-se totalmente, mas sabe que tudo aquilo que escreve é
ele também.
Essa alternância entre a primeira e a terceira pessoas ocorre sem aviso prévio
dentro da narrativa, sem dar tempo ao leitor de se organizar, conforme o trecho a seguir:
Quando ele chegou aos Estados Unidos, tinha menos de cem dólares. A
chefe do departamento de Espanhol e Português em Berkeley o esperava no
aeroporto de San Francisco toda de preto, loira, sorrindo meio culpada por
tantas atribulações que o consulado americano em São Paulo tinha me
causado por não ser um cara de altas formações acadêmicas, por estar
desempregado, sem endereço fixo, penso eu, por tudo isso relutaram —,
duas, três vezes meu passaporte voltara a Porto Alegre sem o visto —,
temendo com certeza que eu quisesse imigrar como tantos patrícios.
Lembro que numa dessas tardes de verão em Porto Alegre, ao receber um
não do consulado, sentei-me à beira do Guaíba e disse: eu vou, eu vou
embora para um lugar que ainda não foi feito e que me espera entre a
sombra da torre do convento ao norte e a velha figueira ao sul mais de
século sem se opor a nada; por onde vou, meu Deus, com que cuidados, se
aqui por onde penso que entro mais me fixo, gelado? No primeiro dia de
curso, olhei a cara dos alunos e vi que uma garota loira e sardenta na
primeira fila olhava para a região do meu púbis, meio parva, nada acalorada.
Pensei, falando no Graciliano de Angústia, se de fato minha braguilha creme
lhe aguçava o sentido do que havia no outro lado, se a curiosidade vinha-lhe
de sua privação ou seu excesso, se apenas fitava o que não via para me
agradar a ponto de eu lhe entregar a nota máxima... (NOLL, 2002, 16-17)
(grifos meus).
A voz narrativa começa em terceira pessoa e segue em primeira pessoa quase o
restante do trecho; é como se o narrador se olhasse de fora de si mesmo e passasse
depois a se enxergar por si. Essa relação entre essas duas pessoas apontaria para um
sujeito partido e, ao mesmo tempo, para uma identidade perdida entre um país e outro,
entre uma língua e outra, entre a academia e a liberdade fora dela. Entre um mundo de
uma possível segurança e o mundo pós-11 de setembro, pois a negação do visto está
relacionada aos atentados ocorridos em Nova York em 2001. Não interessa se João
Gilberto Noll viveu esses mesmos percalços, essas mesmas cenas, mas como essas
questões são representadas em seus textos. Os recursos literários são os mesmos do
modernismo, mas a possibilidade da alternância das vozes narrativas, a falta de vírgulas,
o passado e o presente se misturando com o futuro, o fato de não avisar seu leitor das
alterações que o texto irá sofrer fazem do texto de Noll algo mais radical nessa
experimentação com a linguagem. Seu texto chega mais perto, assim, daquilo que ele
mesmo afirma, na entrevista citada na introdução deste trabalho, em não separar a prosa
da poesia, e sua personagem escritor pode não só falar de suas experiências como
experienciar in loco a produção de seu próprio texto que, como uma fala poética,
encaminha-se cada vez mais para uma não-separação entre quem fala e quem ou
quem escreve, como se pode perceber nessa experiência em que a escrita parece fazer-se
ao mesmo tempo que a narrativa ocorre, pois, como diz o narrador, “se aqui por onde
penso que entro mais me fixo”. A alusão a Graciliano Ramos e a seu romance Angústia
levam-me a pensar em como João Gilberto Noll aponta para sua filiação. O romance de
Graciliano Ramos, que narra a vida de um funcionário público em primeira pessoa,
também pode ser confundido, de certa forma, com a vida do próprio Graciliano Ramos.
Dessa forma, mais uma vez, o autor de Berkeley em Bellagio aponta para si mesmo
escrevendo seu próprio texto ao falar dos textos alheios, assim como faz referência à sua
forma de produzir uma autobiografia ficcional que ao mesmo tempo tem tudo e não tem
nada a ver com sua biografia de sujeito empírico. Além de retomar Edgar Morin e toda
a teoria freudiana, para quem não se sabe realmente quem fala ou de quem se fala
quando o sujeito fala ou escreve, o autor gaúcho demonstra um domínio de sua escrita
pela confusão dos diversos “eus” envolvidos em uma produção desse tipo. Isso está
presente nos textos modernistas por excelência, que vão desde a poesia de Fernando
Pessoa, passando pelos textos de narradores estranhos à própria narrativa em James
Joyce, e chegando às narrativas experimentais com diversas vozes do pós-modernismo.
Ainda em relação a essa questão da junção entre prosa e poesia, está a relação
desse narrador com a linguagem, conforme se pode perceber no trecho a seguir:
[...] temendo talvez que o autor tivesse de dizer ao fim e ao cabo o que
nunca conseguira revelar antes nem nos livros nem na vida: sua oralidade,
mesmo em sua própria língua, não vinha de uma necessidade genuína: ao
falar, expressava não bem a forma daquilo que pensava ou sentia, e sim
parecia interpretar uma voz além das proporções, que assim o representava
limpo, estruturado, muito, muito longe do caos a que pretendia aludir:
esse mesmo — o seu. (NOLL, 2002, 24-25).
Nesse trecho, pode-se perceber o quanto o escritor João Gilberto Noll, ao
delegar a palavra à sua personagem-narradora, escritor que possui o seu nome, João,
tem a consciência do seu projeto que quer denunciar a forma de impostura de toda
forma de escrever uma autobiografia. Pois essa é a tentativa de organizar o sujeito que
escreve, que se encontra em um caos que nem mesmo ele sabe como ordenar. Daí a
consciência da representação que se faz na língua, através desse “neutro” que tenta
representar-se como organizado, estruturado, mas sabiamente consciente de sua
confusão. Esta confusão se faz na língua, ao transformar-se em persona, em ser de
papel, em letra sem corpo.
Para José Castello, “o romance [Berkeley em Bellagio] realiza um corte
profundo e radical no trajeto consagrado do escritor gaúcho”. E continua, citando
João Gilberto Noll:
Creio que esse livro traz uma certa serenidade que adquiri, um pendor
natural de minha idade, que me traz uma quietude maior diante do caos do
mundo [...] Tenho dificuldades de viver como real. Eu sou um esquizóide.
[...] Isso foi decorrência de minha opção insana pela escrita. (NOLL a
CASTELLO, 2002).
Esse abismo entre o que é a realidade e o que não é separa a escrita de João
Gilberto Noll de outras escritas contemporâneas. Essa dificuldade em lidar com a
realidade e sempre estar a escrever sobre a representação e não querer a mesma repete-
se a tal ponto que fica impossível separar a escrita da vida. É realmente um trabalho
insano. Nadar contra a corrente da sociedade do trabalho e do consumo através da
escrita. Aqui João Gilberto Noll se parece com o escritor de A céu aberto. Não mais
espaço para a arte ou a possibilidade de colar a arte ao real ou fazer dela essa
forma esquizofrênica, a única maneira de viver a realidade. O próprio autor reconhece-
se como um esquizóide e, portanto, sua literatura, tão colada a essa experiência de
sujeitos que perambulam, contemplativos, que muitas vezes não saem de si mesmos,
apontaria para a pouquíssima distância entre o sujeito empírico que imprime sua voz em
um texto sobre um narrador escritor e a experiência singular com a realidade e a
linguagem dessa personagem.
Em outro trecho de Berkeley em Bellagio, o narrador, vendo-se em 3
a
pessoa,
nos informa:
Dessa vez ele de fato não estava nada disposto a conversar. Sentaria a uma
daquelas mesas redondas, onde feito um carrossel de vozes todos se
apressavam a falar. Ele sabia, sofrendo assim de mutismo feito o mais total
disléxico em ngua inglesa ou em qualquer outra, apenas se embebedaria
daqueles sons sem semântica, não se comprometeria com nenhum assunto,
em pensamento continuaria disposto o-só para aquele parágrafo do livro
in-progress que teimava em não avançar [...]. (NOLL, 2002, 24-25).
O escritor, ao ver-se de fora, denuncia sua expatriação da língua. Não é só a
língua inglesa que o atrapalha em seu processo de criação, mas a sensação de nunca ter
falado por si mesmo ou nunca ter conseguido expressar-se de forma a fazer-se entender
em sua própria língua. Assim, o deslocamento da língua materna para outra língua que
não a sua só aumentaria o grande e maior deslocamento desse sujeito: seu grande
problema com a linguagem. A representação é colocada, mais uma vez, como lugar de
estranhamento. Não a linguagem externa, mas a do próprio sujeito fragmentado que não
consegue, esquizofrenicamente, entrar em contato consigo próprio. Essa esquizofrenia
está presente no texto como um todo e, claro, em outros textos de João Gilberto Noll
nos quais língua e fala não se encontram e não se organizam tal e qual se espera. O
escritor estaria fadado a representar sempre, mesmo não querendo, e tudo está para
sempre perdido, pois os outros significantes estariam sempre interpretando de forma
diferente o que ele diz. Sua persona estaria de tal forma construída que lhe é impossível
ficar livre dela. A vida passaria a misturar-se de tal forma à arte que o escritor deixa de
ser um sujeito empírico e passa a ser sua própria obra, como ocorrerá no momento em
que a voz narrativa enxerga-se no museu Guggenheim sendo visitado por brasileiros:
[...] eu ali parado no retângulo envidraçado, correntes forradas de veludo em
volta para que não se aproximem tanto, quem sou?, por que provoco
tamanha curiosidade alheia?, o que faço?, se é isso que todos querem ver,
enfim, eu sou alguém que nada faz, que nada tem, nem ao menos o seu
próprio corpo... Domingo, tarde enevoada, alguém se dirige ao Museu
Guggenheim, Quinta Avenida, Nova Iorque; põe-se na fila, compra o ticket
para me ver, eu sei que ela me deseja, deseja o tal corpo vazado, sim, o meu,
sem nada dentro. Pergunta à guia filipina o nome dessa obra que ela não
enxerga direito, na verdade é quase cega se já o não for inteiramente, mostra
a bengala fina e esbranquiçada para a guia filipina que arrisca um espanhol,
estropiado com a figura cega que já confessara ser de São Paulo; a guia
filipina responde numa frase quase cubista em castelhano, a bem dizer sem
nem tronco, mas a visitante brasileira entende tudo porque foi feita para
isso, para entender os que não querem mais ser entendidos, os que se
retiraram do convívio da expressão, são como mudos, vivem do que lhes
assoma dentro dos miolos, dizem o necessário pra ganhar o seu sustento,
nenhuma palavra entra em seu lazer, se é que suas vidas ainda o comportam.
(NOLL, 2002, 52).
O artista é visto como obra, e a sua vida, assim como havia sido demonstrado em
A céu aberto, não faz a mínima diferença em um mundo utilitário. Escrever não é mais
para esse mundo, parece dizer o escritor, concordando com Silviano Santiago, citado na
introdução seja ele João Gilberto Noll, o cidadão ou seu alter-ego, o de papel —,
afinal, ele não é nada. É apenas mais uma mercadoria a ser consumida pela mídia, é
algo que deve ser rotulado e exposto para o deleite de milhares de pessoas pouco
interessadas em sua humanidade, mas interessadas em seu estado de objeto artístico.
Não aqui a nostalgia de Baudelaire ao descobrir-se mercadoria, apenas a
constatação de que se quiser escrever e ganhar dinheiro com literatura deve ser assim.
No caso desse escritor, não mais o que fazer a não ser seguir o jogo e colocar-se
como objeto do desejo do outro, ser devorado por sua própria obra. O que interessa
nessa exposição é a obra de seu corpo vazado, ou seja, aquele através do qual se enxerga
algo ou quase nada, como a brasileira cega em conversa com a guia filipina. Mais uma
vez, as várias etnias e nacionalidades que percorrem o texto como um todo aparecem
para demonstrar a precariedade de todas as fronteiras e a convivência de várias línguas e
culturas em um mesmo local. Nova Iorque, Porto Alegre, Berkeley e Bellagio
equivalem-se enquanto espaços de disseminação de culturas híbridas obrigadas a falar
em várias línguas sem se darem conta de que a comunicação é impossível. O autor
como obra lembra-nos que a brasileira foi feita para entender os que o podem ser
entendidos. Afirmação de um escritor periférico. Afirmação nacionalista, afinal, o
escritor é brasileiro e defende a posição de que nós podemos entender os que não sabem
falar, essa posição de fora também de si mesmo e do mundo globalizado. Não falar
significaria estar fora da linguagem padrão, da norma das línguas nacionais, ou seja,
excluídos da comunidade humana que não aceita os que não compactuam com sua
organização calcada na iluminação do saber ou dos bons exemplos. Embora entre em
contato com este mundo, o escritor jamais fará parte dele, sua saída está em sua
linguagem antropofágica, tema que será desenvolvido no último capítulo desta tese.
Para Ana Martins Marques, na obra de João Gilberto Noll,
[...] a identidade tornou-se de tal forma vacilante que uma escrita de si
parece impossível. Diante da instabilidade a que as personagens estão
sujeitas, a escrita passa também ela a se dar sob o signo da precariedade
uma escrita fora de si (MARQUES, 2003, 102).
Essa escrita fora de si é o que se vê em determinadas situações dentro do próprio
romance, pois não só o narrador se vê a si mesmo de fora como a própria escrita faz isso
ao alternar a 1
a
e a 3
a
pessoas. Dessa forma, é como se João Gilberto Noll confirmasse a
impossibilidade de separar vida e obra ao ponto de poder-se perceber o de fora e o de
dentro, quando tudo está imiscuído, quando não se sabe totalmente o que é um e o que é
outro. O autor empírico sabe que ele está intimamente ligado ao que escreve e que tudo
aquilo que ele imprime no papel está em alguma parte de seu próprio corpo, arquivado
em tecidos, e, mesmo que os fatos não tenham sido vividos, ele está impregnado da
vivência de outros livros, está carregado da vida de outras personagens de papel e tinta
com as quais ele travou contato um dia. Escrever uma autobiografia ficcional é
colocar-se em contato direto com o mundo através dessa mediação que só a escritura é
capaz de fazer.
Em Lorde, a “verdade” da vida de João Gilberto Noll aparece tanto quanto em
Berkeley em Bellagio, de forma a representar sua própria persona ficcional dentro da
ficção ou dentro da realidade: o autor como obra. Noll lembra mais um misantropo: não
aparece tanto em público e não muitas fontes sobre sua vida pessoal. Sua encenação
de si mesmo restringe-se a determinados espaços, que são as entrevistas nas quais fala
de suas obras. Sobre Lorde, o autor afirma:
É preciso muita, mas muita telenovela no lombo para confundir literalmente
o que é contado em “Lorde” pelo narrador e o que eu vivi de fato na minha
temporada em Londres, acho eu. Talvez no início do livro exista algum
desnudamento psicologista. Mas, à medida que o romance se desenrola, o
cidadão João vai se distanciando do protagonista, não naquilo que rege suas
mentes, porque isso pode vir até da mesma matriz que pode ser chamada
de uma única e mesma inadequação humana —, mas no que diz respeito à
factualidade ficcional. Eu escrevi este livro que não foi escrito pelo
personagem de Lorde, simplesmente porque ele não escreve uma linha
sequer na Inglaterra. Nem de fato participa de palestras. Eu, João, escrevi
uma história, participei de palestras, e não fui incorporado, como no
romance, por outro cidadão. Estou aqui, de volta. Está certo, concedo: voltei
numa crise psicológica braba, num estado como jamais saí da escrita de um
livro. Mas aos poucos me reconciliei com o mundo exterior, que remédio?
Pirar? (NOLL a CASTELLO, 2004).
João Gilberto
Noll faz uma afirmação ambígua. Ao mesmo tempo que nega que
a personagem do romance seja ele, concede que no começo haja “algum desnudamento
psicológico” e que voltou numa “crise psicológica braba”. Não haveria mais do que
se quer dizer, ou a tentativa de negar que a linguagem seja sempre algo mais além do
que se espera ou que se consiga saber? Ainda mais se se pensar na fragmentação do
sujeito na pós-modernidade, conforme Stuart Hall (2001). Para o teórico, depois da
teoria marxista, da psicanálise de Sigmund Freud, do trabalho da lingüística de
Ferdinand de Saussure, das investigações de Michel Foucault e do movimento
feminista, o sujeito foi descentrado e não consegue mais reconstituir-se a não ser através
do discurso. Noll, o escritor, tenta desvencilhar-se, assim, de sua personagem, mas isso
é impossível, pois ele também é parte de um discurso. Mas essa relação não pára por aí,
e é possível enxergar o autor empírico em João, sua personagem. Mas não se enxerga o
autor gaúcho de corpo inteiro, mas sim em pedaços, estilhaçado como um espelho que
houvesse se quebrado, como um corpo vazado. Os estilhaços devem ser recolhidos pelo
leitor, não com intenção de montar um sujeito inteiro, coeso, mas apenas para criar a
insegurança em si mesmo, no leitor, de que ele está lendo um romance e não uma
autobiografia. Para o narrador de Lorde, uma dificuldade muito grande em separar
vida e obra, conforme ele mesmo nos diz: “Como viveria no Brasil dali a três, quatro
meses, se todas as tentativas de viver fora dos meus livros fracassavam? Sim, eu vivia
numa entressafra literária perigosa.” (NOLL, 2004, 17). Note-se como isso se parece
com a ambivalência da fala do escritor na entrevista citada.
João Gilberto Noll, em toda sua fragmentação, nos um sujeito em busca de
identidade que se mistura à própria história do autor pelo fato de este estar freqüentando
os mesmos lugares que sua personagem. Além disso, a forma de escrita e da narrativa
em primeira pessoa trai a forma de escrever do autor do romance em outros lugares de
sua obra, conforme se pode ver no trecho a seguir:
Virei-me como se soubesse desde sempre quem era. Este que eu
começaria a desconhecer. Deste lado eu, que tinha vivido aqueles anos,
vamos dizer, nu no Brasil, sem amigos, vivendo aqui e ali dos meus
livros, no menor intervalo a escrever mais, passando maus pedaços e todo
cheio de piruetas para disfarçar minha precariedade material não sei
exatamente para quem, pois quase não via ninguém em Porto Alegre.
Sim, disfarçara nas entrevistas ao lançar meu derradeiro livro, sim, vou
passar uma temporada em Londres, representarei o Brasil, darei o melhor
de mim — o quá-quá-quá surfava na minha traquéia sem poder sair,
entende? (NOLL, 2004,11).
Compare-se essa fala do narrador de Lorde com o que o próprio autor empírico
fala na entrevista transcrita e haverá o mesmo problema de um leitor em deslocamento
para aquilo que é romance, mas que se recusa a aceitar as regras da ficção romanesca e
embrenha-se no terreno do autobiográfico, seja através da utilização de questões
pertencentes à autobiografia ou mesmo, e principalmente, do pacto fantasmático.
Segundo Gilles Deleuze, “escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em
via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida.” (DELEUZE, 1997,
11). Daí o fato de a escrita nolliana ser aquela que conta e muito com seu leitor, pois ela
não é recheada de algo vivido ou factível que possa ser resgatado em documentos, mas,
ao contrário, ela é a representação de situações que possam ser vividas, mas que não são
totalmente verificadas na realidade. A vida do escritor não é o que está escrito, mas sua
experiência da escrita, sim, é o que é vivido. Isso equivale a dizer que, para um escritor
como Noll, a escrita é a vida, visto que ele mesmo afirma que tem dificuldade em viver
o real. O leitor é chamado a participar, tornando assim possível esse devir de que fala
Deleuze, pois essa escrita será verdadeira ou real se o leitor produzir sua leitura
juntamente com o narrado. Aí, sim, a narrativa faz sentido e a vida pode ser entrevista,
embora nunca em sua totalidade, mas em sua condição de fragmento, assim como essa
literatura que a representa. Por isso esse processo esquizofrênico de não querer encarar a
realidade, dessa escrita que parece estar fora de si, desse teatro da aparição sempre em
deslocamento, desejando ser realidade, mas sabendo-se preso na representação. Não
fronteiras específicas; a escrita nolliana parece dizer a seu leitor para abandonar
totalmente a esperança de algo concreto, inteiro, unívoco.
A traição à escrita do próprio João Gilberto Noll dá-se no quanto o autor
persona deixa-se entrever em seu papel criado do escritor brasileiro que vai a Londres
para “representar o Brasil”. É certo que a persona volta com problemas e o escritor de
papel embrenha-se em uma mata em Liverpool tomado por um outro, mas o autor
empírico que volta seria também um sujeito transformado. O sujeito que vive a
experiência da viagem é tomado, de uma certa forma, pela cultura com a qual ele travou
contato. O ato de ser tomado por outro é antropofágico, mesmo que às avessas, e o
sujeito da realidade, autor de Lorde, implica-se ainda mais ao descrever(-se) tomado por
seus livros na voz do escritor de papel, conforme afirma:
Eu fora autor de livros, eu os trouxera. Corri até a sala. estavam eles
sobre a lareira. Eu não os renegava. Mas, sim, o tempo que tinham me
roubado para que existissem ali, de pé. Claro, era por eles que eu estava na
Inglaterra. Era por eles que não queria voltar para o lugar onde tinham
sido germinados. Eu não podia ser visto exatamente como amnésico, mas
bagaço deles. Ah, que me retornassem à mente inteiros num país distante,
aqui. E se somassem e eu pudesse extrair deles o discurso para o meu pão.
Aproximei-me, passei a mão por cada volume, percebi que eu estava como
se analfabeto. Seus títulos nada me diziam, me sentia frígido para as letras.
As capas bem empoeiradas: é, não fazia tão pouco tempo que eu vivia aqui.
(NOLL, 2004, 43-44).
O narrador sente-se frustrado por não conseguir escrever. Não está mais em seu
país, não domina a língua do outro, não se reconhece em seus próprios livros. A amnésia
do narrador é a mesma falta de identidade do exilado, daquele que não se reconhece na
cultura, nem na sua nem na do outro. O escritor como obra é justamente esse que é
reconhecido pelos seus livros e não se reconhece mais neles, mas é seu próprio fruto.
Obra de suas obras, esse sujeito sem identidade é para sempre exilado em um mundo que
não quer o humano, mas sim o seu produto. Dessa forma, o escritor aparece como essa
mercadoria que precisa exercer todos os dias sua função para ganhar o pão de cada dia. A
ironia de João Gilberto Noll volta-se para si próprio, o autor empírico que escreve e
ganha bolsas, viaja e faz palestras em outros países.
O narrador de Lorde está sempre entrando em contato com o outro e sendo por
ele engolfado, tomado, possuído. Essa relação dá-se também na idéia da representação e
até da própria língua não se reconhecer na própria língua, não trazer memórias da
América do sul, vir a Londres para ser vários. É como se a língua se transformasse em
algo estrangeiro e, mais uma vez, o sujeito não conseguisse se dizer ou soubesse da
impossibilidade de se falar em sua língua ou em qualquer outra, mas a escrita é feita em
sua própria língua e, por isso, ela é extrapolada, alterada, segundo Gilles Deleuze:
[...] para escrever, talvez seja preciso que a língua materna seja odiosa, mas
de tal maneira que uma criação sintática nela trace uma espécie de língua
estrangeira e que a linguagem inteira revele seu fora, para além de toda
sintaxe. (DELEUZE, 1997, 16).
A escrita é também essa estrangeiridade, essa alteridade que faz com que o autor
empírico identifique-se ou perceba-se através desse outro que ele cria para se
reconhecer. Conforme foi dito acima, parece ser necessário estrangeirar-se de sua
própria língua, fazer-se outro para tentar ordenar o caos que existe no sujeito. O autor
produz sua própria forma de se montar a si mesmo, produzir novos “eus” para narrar-se,
para (re)conhecer-se. Seu corpo vazado é aquele que, como diz Deleuze, possui “olhos
vermelhos” e “tímpanos perfurados” (DELEUZE, 1997, 14), para produzir essa outra
língua que não é mais apenas a sua, mas uma língua que não pertence a ninguém,
trespassada que está de todas as outras, principalmente a língua dos diversos textos com
os quais entrou em contato, escavou, como diria o filósofo francês. Nesse teatro da
aparição que é a escrita nolliana, essas diversas línguas são escavadas, devassadas, e
nem o próprio corpo do autor empírico escapa, pois está transformado em persona, em
papel e tinta, em fragmentos e estilhaços que refletem sua própria vida real.
João Gilberto Noll faz uso do pacto fantasmático para fazer valer sua condição
de escritor que não precisa prender-se a regras para organizar seus textos, mas que pode
fazer até da norma o que bem entender, pois o terreno da ficção é fértil e nada fácil de
ser esgotado. Seus textos levam o leitor para o terreno da mistura de gêneros e da
carnavalização das teorias críticas sobre a memória e a escrita. A própria literatura, mais
que canônica, quer ser reinventada e mostra que possui fôlego para isso basta que
haja escritores interessados em (des)construir normas e regras e leitores que estejam
interessados em textos que os desafiem. Como afirma Jacques Ranciére, o
[...] ‘próprio’ da literatura é a ausência de regra fixando uma dupla relação: a
relação entre o enunciador e seu enunciado, a relação entre o enunciado e
aquele que o recebe. É isto o que significa a aventura da letra sem corpo [...]
(RANCIÉRE, 1995, 37-38).
Dessa forma, a literatura se produz em constante processo, e a escrita de João
Gilberto Noll não foge à regra, pois seu horizonte é o outro, seu leitor. Leitor que deseja
ser desafiado pelo jogo sem fim entre velar e desvelar o próprio jogo da representação.
É nesse caminho que Noll vai construindo sua obra, discutindo o que seria
protagonizar histórias em uma época de poucas histórias novas. Se os protagonistas de
suas histórias não se reconhecem como pessoas capazes de protagonizar nem suas
próprias vidas, o que lhes resta é o discurso: abrir a voz, soltar a escrita como se fosse
um jorrar eterno e sem fim. Alterando Roland Barthes, Noll é um scriptor (pós)
moderno que
[...] nasce ao mesmo tempo que o seu texto; não está de modo algum
provido de um ser que precederia ou excederia a sua escrita, não é de modo
algum o sujeito de que seu livro seria o predicado; não existe outro tempo
para além do da enunciação, e todo o texto é escrito eternamente aqui e
agora (BARTHES, 1987, 51).
Embora Roland Barthes acredite na morte do autor, a obra de João Gilberto
Noll vem comprovar que este nunca esteve tão vivo. o em sua biografia cil de
ser encontrada em qualquer enciclodia, esta também resultado de invenções, mas
em seu texto que se faz sempre em contato direto com sua biografia cotidiana, na
experiência da escrita, no dia a dia do escritor. Pois o se escreve o que não se é,
conforme a egrafe deste capítulo, e essa escrita sempre errante pode ser obra de
um sujeito em eterna errância que, sem nunca terminar, vai traçando algo indefinido
que não sabe para onde ir, o que fazer, o que falar, como pensar, não se encaixando
em nada daquilo que lhe possa ter sido algum dia previsto. Por isso, a próxima
questão que me interessa é perceber como a noção de paternidade é inerente a essa
escrita e como esse escritor ou suas personagens colocam-se diante dessa questão.
Capítulo II
“O hino do quartel do meu pai”
Aquilo que herdaste de teus pais,
conquista-o para fazê-lo teu.
Goethe
Em O cego e a dançarina, seu livro de estréia, João Gilberto Noll traz um conto
que será paradigmático da sua relação com a questão da paternidade. No conto,
intitulado “Alguma coisa urgentemente”, o narrador, um adolescente, vê-se obrigado a
conviver com a ausência/presença paterna. Ele seu pai definhando com o passar do
tempo e, finalmente, este volta para morrer no apartamento do narrador. Esse pai que
retorna sempre menor, devido às suas deformações, como a perda dos dentes, do braço,
aparece também na metáfora das coisas em estado de putrefação no apartamento. Ele é
descrito como “filósofo sem livros”, e o narrador lembra-se dele em Porto Alegre, na
“região de origem”. Como se não fosse um sinal de menos quase o tempo todo, pois
subsumido em uma ausência, obrigado que é por sua profissão ou guerrilheiro ou
traficante de armas , a personagem seria uma marca da autoridade paterna
(des)aparecida, ao mesmo tempo que representa a autoridade metafórica roubada dos
brasileiros durante a ditadura militar nos anos 70. Ressalte-se que o texto é publicado
em 1980, o que permite dizer que a relação é pertinente. O pai ausente/presente
atrapalha a possibilidade de um futuro para seu(s) filho(s).
O adolescente não possui nada senão essa presença/ausência e o fato de não
saber que sua identidade não está formada e nem será completada de todo. Exemplar
disso é justamente a sexualidade do narrador, que tem relações sexuais com a
empregada do melhor amigo, com as colegas de escola e se prostitui com um homem
mais velho, como se essa indecisão sexual fosse a marca de uma identidade inconclusa.
O que resta ao adolescente é apenas a representação de si, do pai, do momento, pois,
como ele mesmo afirma, “se referir ao meu pai presumia um conhecimento que eu não
tinha” (NOLL, 1986, 13).
O narrador sente que alguma coisa precisa ser feita urgentemente, sem a qual ele
não pode continuar. Ele não sabe o que fazer, e afirma: “mas consegui ficar
olhando o mar e sentir que precisava fazer alguma coisa urgentemente. [...] Eu preciso
fazer alguma coisa urgentemente, a minha cabeça martelava” (NOLL, 1986, 16). Com a
morte do pai, que, se não é morto no enunciado pelo adolescente, é morto por este
enquanto narrador ao término da narrativa, o adolescente poderá, talvez, escrever sua
própria história. Aliás, o próprio pai, em um determinado momento, sugere ao narrador,
em discurso indireto, que procure fazer outra história de sua vida (NOLL, 1986, 15).
Justamente quando o pai está para morrer, o narrador revela a seu leitor:
[...] era a primeira vez que meu pai me chamava pelo nome, eu mesmo levei
um susto de ouvir meu pai me chamar pelo meu nome [...] o meu pai me
chamava pela primeira vez pelo meu nome [...] e fui correndo pro quarto e vi
que o meu pai estava com os olhos duros olhando pra mim, e eu fiquei
parado na porta do quarto pensando que eu precisava fazer alguma coisa
urgentemente. (NOLL, 1986, 19).
Com a morte do pai, o sujeito passa a ser nomeado, como se da morte da
autoridade o sujeito ganhasse a possibilidade do nome, como se agora ele pudesse
desenhar a sua identidade, fazer outra história de sua vida. Mas esse narrador tão
desterritorializado não sabe o que fazer e, por isso, está na premência de identificar-se
com algo no mundo, mas não sabe com o quê. Narrar é a única forma de se fazer
enquanto sujeito, mas não sabe muito bem o que narrar. É o que parece nos dizer esse
narrador em uma situação limite a adolescência, a orfandade , sem saber
exatamente o que fazer com essa vida sem a figura paterna que nunca cumpriu sua
função.
O conto é exemplar de como João Gilberto Noll enquadra-se como um escritor
que precisa problematizar essa questão ocidental: matar seu pai simbolicamente para
crescer. Se isso pertence ao escritor empírico, como dado biográfico, o é o que se
pretende discutir aqui, embora, conforme demonstrei no capítulo I, a ficção
autobiográfica sempre esteve presente em sua obra. Se o adolescente representado não é
o próprio autor empírico, e nem poderia ser, pois é representação, algo de seu processo
como adolescente querendo criar uma identidade para si e sentindo-se deslocado no
mundo pode lembrar o pacto fantasmático de que fala Phillippe Lejeune. Por outro lado,
esse conto serve como metáfora para o fato de que todo autor tem que se haver com a
morte paterna ou com a tradição que está sempre a rondar sua vida literária. Procurar
fazer outra história de sua vida e escrever em meio à ausência/presença do pai literário
maior é o que parece mover esses sujeitos narradores.
A paternidade é algo sempre muito complexo para o ocidente cristão.
Culturalmente, é a paternidade que funda a nossa noção de ocidente, pois é graças à
substituição das deusas da fertilidade por um novo Deus, maior que todos os outros,
conforme pode-se ver no berço da civilização ocidental — a Grécia e o mediterrâneo —,
que Zeus cresce e reprime completamente as deidades femininas. Exemplar dessa
alteração cultural de transição do sistema matriarcal para o sistema patriarcal é a obra de
Ésquilo, As Eumênides, em que Orestes é defendido por Atena contra a fúria das
Erínias, as eumênides do título, que vieram para vingar o assassinato de Clitemnestra, a
mãe deste. Atena representa a nova mentalidade do patriarcado, no qual é permitido o
assassinato da mãe, pois causou a morte do marido. Na sociedade ligada às forças da
terra, o crime de matricídio não seria perdoado, mas, a partir do reinado de Zeus, o
matricídio é tolerado e o parricídio é que passa a ser um tabu. O fato tem raízes na
história da paternidade, pois Zeus sobe ao trono dos deuses depois que os homens
descobrem seu poder e sua participação na procriação, o que, segundo Jacques Dupuis,
ocorre no 5
0
ou 4
0
milênio antes de Cristo. Vejamos o que diz o teólogo belga:
seis ou sete milênios, as sociedades humanas mais adiantadas
descobriram a relação entre o ato sexual e a procriação. Isso levou-as a
tomar consciência da paternidade. Tal novidade acarretou de modo
imperceptível uma revolução profunda, que transformou as estruturas
sociais, as religiões e os comportamentos sexuais. No entanto, a lembrança
dessa revolução apagou-se a tal ponto que o conhecimento da paternidade é
hoje considerado como inato. (DUPUIS, 1989, 3).
Dessa forma, a religião será afetada e, evidentemente, também as narrativas
mitológicas. As tragédias, portanto, tratarão disso, como a peça de Ésquilo, que data do
século VIII A.C. A mesma noção de substituição do matriarcado pelo patriarcado é
visível em Totem e tabu, publicado em 1913. Para Sigmund Freud,
[...] nas mitologias, quando certa geração de deuses é vencida por outra, o
que se denota é a substituição histórica de um determinado sistema religioso
por outro novo, seja como conseqüência de conquista estrangeira, seja de
evolução psicológica (FREUD, 1999, 154).
Assim, é possível visualizar como se deu a substituição de deusas da fertilidade
pelos deuses todo-poderosos, cuja imagem Zeus encarna à perfeição, sendo deposto
pelo deus todo-poderoso dos Judeus e o deus de amor dos cristãos. Cabe lembrar que
essa transformação não foi feita de forma rápida, mas de maneira paulatina ao longo dos
tempos. Segundo Jacques Dupuis, a
[...] descoberta da paternidade foi uma tomada de consciência muito lenta.
Não provocou uma brusca revolução social. As sociedades antigas podiam
muito bem reconhecer a existência do Pai sem com isso modificar suas
estruturas sociais, sua vida religiosa e sua vida sexual. Foram necessários,
portanto, muitos milênios para que se operasse insensivelmente uma
“revolução patrilinear”, ao cabo da qual constatamos o estabelecimento das
sociedades patrilineares com estados de patriarcalização mais ou menos
avançados. O fato decisivo dessa transformação é o desencadeamento das
guerras, que se evidencia nas literaturas antigas, especialmente na literatura
sânscrita: é pela guerra que os homens tornaram-se os senhores da
sociedade, como chefes de famílias, como reis e como deuses (DUPUIS,
1989, 95).
Como os homens descobriram sua participação na reprodução a partir de uma
experiência na cultura e fortaleceram seu poderio durante séculos de civilização, a
conseqüência é o fato de que a paternidade é uma das questões maiores da cultura com a
qual todo sujeito, para se conceber enquanto tal, tem que acertar suas contas.
Sigmund Freud desenvolve sua teoria a partir desse princípio básico para a
fundação do ocidente, conforme nós o conhecemos. A pesquisa e institucionalização do
Complexo de Édipo metaforizado por ele através da mitologia grega e todas as relações
que estabelece entre o totem e o tabu, assim como o mal-estar na civilização, vão
sucedendo-se e sendo aprofundadas durante sua trajetória. Em Totem e tabu, o pai da
psicanálise demonstra, a partir de pesquisas antropológicas, o quanto a necessidade de
livrar-se do pai, mesmo que simbolicamente, move o neurótico a uma rie de escolhas
para sua vida futura. Para Sigmund Freud, “os começos da religião, da moral, da
sociedade e da arte convergem para o complexo de Édipo” (FREUD, 1999, 159).
O conceito de paternidade está aqui entendido como uma questão
sociológica/antropológica que estrutura todo um modo de vida de uma sociedade, no
caso, a sociedade ocidental, e depois a estruturação da sociedade brasileira, que se
sob o signo do ocidente judaico-cristão. A partir dessa premissa, pode-se pensar em
como um texto é criado. A idéia de paternidade perpassa desde o fato de quem cria a
história o criador, o pai até a quem o escritor recorre para compor seus textos.
Estas questões interessam-me e estão na base do trabalho do crítico literário. Não se
trata de uma origem que remonta à busca da originalidade romântica, que me parece um
tanto debatida e por demais repetida. O que me interessa é como essas relações se
tecem dentro de textos que possuem como ponto de partida a busca empreendida por
sujeitos narradores ou personagens por seus pais ausentes ou desaparecidos de alguma
forma, valendo-se sempre da memória. O pai, dentro da cultura, é o representante da
autoridade, é aquele que influencia a vida dos filhos, que devem matá-lo
simbolicamente para poderem afirmar-se enquanto sujeitos.
É notável quanto essa produção sobre a paternidade influencia muitos escritores
do ocidente. Talvez até o advento dos testes de DNA e da revolução genética,
justamente pelo fato de ser algo que não se comprovava facilmente na cultura ocidental-
judaico-cristã assolada pelo advento da burguesia, vários textos foram escritos e muitas
teorias ainda estão por se fazer sobre a questão. Vários escritores trabalharam com essa
busca paterna em toda a literatura brasileira; não me estenderei sobre a literatura
estrangeira por falta de espaço, mas basta citar os casos de Franz Kafka, William
Faulkner, James Joyce, Paul Auster para se ter uma idéia. Escritores que vão de
Machado de Assis, passando por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos
Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Lúcio Cardoso, Autran
Dourado, Carlos Sussekind, Raduan Nassar e, mais recentemente, Miltom Hatoum,
além de outros, escreveram histórias sobre personagens que não conseguem se esquecer
de pais que se fazem presentes pela ausência ou que não conheceram seus pais e são
obrigados a conviver com suas memórias.
Alguns escritores brasileiros representaram situações em seus textos através de
personagens com a vontade de se livrar do Complexo de Édipo, alguns com problemas
de crescimento devido à presença autoritária do pai, alguns cobiçosos da mãe e das
outras mulheres da família. Mas o que me interessa é como essa formulação está ligada
à produção literária e mais especificamente à produção literária de João Gilberto Noll.
Segundo Freud, o inconsciente levaria o sujeito a desejar a morte paterna, pois o
pai impediria seu crescimento. Como o assassinato real do pai é tabu em nossa cultura,
uma das saídas seria o imaginário, no qual o sujeito faz uso de elementos de sublimação
para produzir a morte paterna. A arte é apontada pelo psicanalista como um desses
lugares, conforme afirma:
Apenas em um único campo de nossa civilização foi mantida a onipotência
de pensamentos e esse campo é o da arte. Somente na arte acontece ainda
que um homem consumido por desejos efetue algo que se assemelhe à
realização desses desejos e o que faça com um sentido lúdico [sic] produza
efeitos emocionais — graças à ilusão artística — como se fosse algo real. As
pessoas falam com justiça da “magia da arte” e comparam os artistas aos
mágicos. Mas a comparação talvez seja mais significativa do que pretende
ser. Não pode haver dúvida de que a arte não começou como arte por amor à
arte. Ela funcionou originalmente a serviço de impulsos que estão hoje, em
sua maior parte, extintos. E entre eles podemos suspeitar da presença de
muitos intuitos mágicos. (FREUD, 1999, 97).
U
ma das formas de se livrar da presença da autoridade paterna, para um escritor,
está dentro da tradição literária, em como lidar com ela. Como “tradição supõe
obediência a uma autoridade e fidelidade a uma origem” (COMPAGNON, 1996, 9),
pode-se pensar essa tradição como um pai ao qual se pertence por ser seu próprio filho.
Desde os princípios da literatura, os sujeitos que se arriscam na aventura literária têm
que se haver com esse problema. A tentativa é sempre de alteração através da negação
ou da imitação, emulação ou outros conceitos, como apropriação, por exemplo. Aquilo
que foi escrito antes da produção do escritor deve ser levado em consideração para a
produção do novo, mesmo que inconscientemente. É na arte que se mata o pai,
transformando-o em algo diferente, relembrado, alterado, estranho até a si mesmo.
Nessa disputa entre novo e velho chega-se ao pós-moderno, que revisita parodicamente
outros textos anteriores ao texto que se faz no presente e os altera de forma crítica,
conforme Linda Hutcheon (1991) acredita. Alguns teóricos são importantes para se
entender essa questão, como Harold Bloom, T. S. Eliot e Octavio Paz.
Para T. S. Eliot, em seu texto, publicado em 1920, “Tradição e talento
individual”, a necessidade da criação de uma individualidade faria com que o poeta
tentasse diferenciar-se de outros. Isso não se faria de forma simples, pois os poetas
mortos deixam suas marcas nos textos dos vivos. Para o poeta norte-americano, a
tradição implicaria um significado mais amplo, pois ela não poderia ser herdada, mas
conquistada através de muito esforço. A historicidade contaria em muito para a
produção literária do presente, pois o
[...] sentido histórico leva um homem a escrever não somente com a própria
geração a que pertence em seus ossos, mas com um sentimento de que toda a
literatura européia desde Homero e, nela incluída, toda a literatura de seu
próprio país têm uma existência simultânea. Esse sentido histórico, que é o
sentido tanto do atemporal quanto do temporal e do atemporal e do temporal
reunidos, é que torna um escritor tradicional. E é isso que, ao mesmo tempo,
faz com que um escritor se torne mais agudamente consciente de seu lugar
no tempo, de sua própria contemporaneidade. [...] Nenhum poeta, nenhum
artista, tem sua significação completa sozinho. Seu significado e a
apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os
poetas e os artistas mortos. o se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo,
para contraste e comparação. (ELIOT, 1989, 39).
T. S. Eliot deixa pouco espaço ao escritor da nova geração, pois se este traz em
seus ossos toda a literatura européia anterior a ele desde Homero, que haver muita
luta para lidar com essa autoridade. O escritor latino-americano e, principalmente, o que
me interessa aqui estudar, um escritor brasileiro, estaria completamente à mercê, ou
melhor, condenado a ser obediente a essa autoridade ou origem.
Para Harold Bloom, que desenvolve A Angústia da influência em 1973, um
grande autor sempre errado os outros textos anteriores ao seu, por isso os grandes
textos, como se fosse um pai de todos, conforme ele considera Shakespeare, seriam a
autoridade que não deixaria que os novos produzam longe da tradição. O crítico, em
prefácio escrito já na década de 90, em que ilumina melhor seu raciocínio, afirma que
“o grande texto está sempre em ação, com toda força (ou fraqueza) lendo errado textos
anteriores” (BLOOM, 2002, 20). E continua:
A angústia pode ou não ser internalizada pelo escritor que vem depois,
dependendo de temperamento e circunstâncias, mas isso dificilmente
importa: o poema forte é a angústia realizada. [...] a angústia da influência
resulta de um complexo ato de forte leitura, uma interpretação criativa
que eu chamo de “apropriação poética”. O que os escritores podem sentir
como angústia, e o que suas obras são obrigadas a manifestar, são as
conseqüências da apropriação poética, mais que a sua causa. (BLOOM,
2002, 23-24) (grifos do autor).
A angústia da influência, portanto, deve ser transformada em texto para que o
escritor consiga entrar em contato com seu grande pai, o escritor forte anterior a ele.
Portanto, o que todo escritor sempre faz, para Harold Bloom, é apropriar-se do que é do
outro, do ancestral; roubar e ler errado o ancestral equivaleria a matá-lo, e assim,
produzir a novidade com seus restos. Bloom considera a possibilidade da inconsciência,
mas não consegue perceber um grande escritor sem consciência da produção anterior à
sua. Afinal, a
[...] influência poética quando envolve dois poetas fortes, autênticos
sempre se por uma leitura distorcida do poeta anterior, um ato de
correção criativa que é na verdade e necessariamente uma interpretação
distorcida. A história da influência poética frutífera, o que significa a
principal tradição da poesia ocidental desde o renascimento, é uma história
de angústia e caricatura auto-salvadora, de distorção, ou perverso e
deliberado revisionismo, sem o qual a poesia moderna como tal não poderia
existir (BLOOM, 2002, 80).
A autenticidade do grande texto está justamente no fato de o grande escritor ou
grande poeta conhecer a produção anterior à sua e tentar reescrevê-la, lendo-a de forma
errada. Esse erro produziria uma nova grande obra, mas sempre em contato com a obra
passada sem a qual ela não poderia existir. É como se a identidade do grande texto novo
devesse passar obrigatoriamente pela identificação com o grande texto anterior.
Metaforicamente, a paternidade do texto anterior deve ser reconhecida no texto novo,
que deve seus caracteres ao seu Pai criador. Para Harold Bloom, seguindo Soren
Kierkegaard, aquele que se dispõe a trabalhar à luz seu próprio pai” (BLOOM,
2002, 76). O crítico norte-americano retoma, a partir de um trecho de Thomas Mann,
explicando sua obra, as relações entre a obra do escritor alemão, autor de A montanha
mágica, e a de Johann Wolfgang von Goethe como o relacionamento entre o efebo e o
precursor, nas quais o efebo aprende com seu mestre e, numa revisão do seu
aprendizado, refaz a grande obra. Harold Bloom trabalha com a noção de influência tão
pouco em voga no momento, cita Friedrich Nietzsche “Quando não se teve um bom
pai, é necessário inventar um” (BLOOM, 2002, 104) — e continua a costurar sua teoria,
dessa vez citando, sem identificar de onde, Sigmund Freud:
Quando a criança fica sabendo que deve a vida aos pais, que sua mãe lhe
deu vida, os sentimentos de ternura nela se misturam com o desejo de ser ela
própria grande e independente, para formar o desejo de pagar aos pais por
esse dom e saldá-lo com um de valor idêntico. É como se o menino dissesse,
em seu desafio: “Não quero nada de meu pai; vou pagar-lhe tudo que lhe
custei.” Tece então uma fantasia de salvar a vida do pai numa situação
perigosa, com o que ficará quite com ele, e essa fantasia é muito comumente
deslocada para o Imperador, o Rei ou qualquer outro grande homem, após o
que pode entrar na consciência e até ser usada pelos poetas. Até onde se
aplica ao pai, a atitude de desafio na fantasia de “salvar” tem de longe mais
peso que os sentimentos ternos, sendo estes últimos dirigidos para a mãe. A
mãe deu ao filho a vida dele, e não é fácil substituir esse dom único por
qualquer coisa de igual valor. Por uma ligeira mudança de significado,
facilmente efetuada no inconsciente comparável à maneira como nuanças
de significado se fundem umas nas outras nos conceitos conscientes —
resgatar a mãe adquire o significado de dar-lhe um filho ou fazer um para ela
— um igual a ele mesmo, claro... todos os instintos, o amoroso, o de
gratidão, o sensual, o desafiador, o auto-afirmativo e independente são
satisfeitos no desejo de ser o pai de si mesmo. (FREUD apud BLOOM,
2002, 111-112).
Conforme a citação, os sentimentos de ternura são direcionados à mãe, esta, sim,
reconhecida como a que deu a vida à criança; ao pai, a criança direciona a fantasia da
salvação pelo viés da competição. Mesmo que o pai seja visto como aquele que lhe deu
a vida, a criança enxerga nessa figura uma oposição, um obstáculo, e isso o projeta para
a construção de algo tão grande quanto a produção paterna, seu filho. Ao seguir Freud e
sua teoria, nota-se que Bloom toda a relação do inconsciente com a escrita e, mais
uma vez, vida e obra se refletem, pois o escritor, assim como todo ser humano, quer ser
pai de si mesmo, salvando seu próprio pai.
Bloom termina afirmando que “os precursores nos inundam, e nossas
imaginações podem morrer por afogamento neles, mas nenhuma vida imaginativa é
possível se essa inundação for inteiramente evitada” (BLOOM, 2002, 206). Para Bloom,
portanto, é impossível se fugir ao pai o que é uma releitura sempre errada e o que
constituiria a grande obra nova seria a forma como ela é produzida. O escritor é um
prisioneiro da tradição e, mesmo querendo fugir a ela, não consegue, e é dessa luta
angustiante que se fará sua produção.
Octavio Paz itrabalhar com a questão da criação literária, principalmente em
seu livro Os filhos do barro, publicado em 1972, em um artigo intitulado “A tradição da
ruptura”. O escritor mexicano irá trabalhar com a noção de tradição moderna da poesia,
afirmando que esta rompe com a tradição para instaurar uma nova que será rompida por
outra, e assim sucessivamente. Essa tradição seria heterogênea, pois estaria condenada à
pluralidade (PAZ, 1984, 17-35). Em outro artigo, intitulado “Tradução e metáfora”, ele
continua com a idéia da tradição e da história. Para Octavio Paz, a
[...] história de cada literatura e de cada arte, a história de cada cultura, pode
dividir-se entre imitações felizes e imitações infelizes. As primeiras são
férteis: mudam o que imita e mudam aquilo que é imitado; as segundas são
estéreis (PAZ, 1984, 112).
Os três teóricos falam em apropriação, influência e troca entre os novos e os que
vieram antes deles. Nessa alteração do que foi feito pelo anterior, pode-se, por
aproximação, colocar o novo e o velho como metáforas dentro de uma questão que seria
a da paternidade da escrita. Enquanto os novos, para escrever, devem apropriar-se do
que é do ancestral, teoria de que a antropofagia vai dar conta e que será trabalhado no
próximo capítulo, o que interessa aqui é a guerra travada no interior dessa escrita nova
que se faz a partir do que seleciona da velha. Isso se nos enunciados nollianos de
forma a mostrar as relações existentes entre homens mais velhos e rapazes mais jovens,
principalmente nas relações de filhos com seus pais ausentes e, por isso mesmo,
paradoxalmente muito presentes.
Alguns exemplos na obra nolliana exemplificam as relações entre novos e velhos
ou pais e filhos nos textos anteriores aos romances aqui trabalhados. Em O cego e a
dançarina, são vários os contos que descrevem histórias de relações entre pais, muitas
vezes ausentes, e filhos que não sabem como viver a partir desse fato. O conto “O meu
amigo” apresenta o pai do amigo do narrador que fugiu sem que o menino se lembre de
quem ele seja; em “A virgem dos espinhos”, a personagem feminina lembra-se do pai,
morto três meses antes, logo após cometer algo “pecaminoso”, segundo seu ponto de
vista, reforçado pela atitude do pai em vida; em “Casimiro”, o protagonista lembra-se do
pai que o quer “a seu lado abrindo atalhos nas transações comerciais, presto e ágil como
deve ser um jovem comerciante” (NOLL, 1986, 78), mas ele é poeta e, portanto, não
cumprirá o desejo paterno; em “O filho do homem”, o pai do narrador é um contador de
histórias que está morto; em “Cenas imprecisas”, pai e filho não têm uma boa relação e a
imagem representada do pai é a de um tirano dono de um bordel, que obriga os seus
subalternos a atitudes extremas que culminam na morte destes; em “A construção da
mentira”, o pai morreu antes de o narrador nascer; em “A vida”, o pai possui um cuidado
muito grande com a filha, mas vê-se sem lugar no mundo; em “O cego e a dançarina”, o
menino que atira no narrador é filho de um pai que não o conhecia.
Em O cego e a dançarina, oito dos vinte e cinco contos trazem essa figura
paterna no enunciado. Nos seus romances isso se repete: em Rastros do verão, o
narrador vai a Porto Alegre e quase ao final da história o leitor descobre que ele foi
para encontrar o pai. Além desse encontro com o pai, o narrador encontra-se com um
menino que tem um pai viajante que não conheceu, pois “a única imagem que tinha dele
era a de um homem sem face” (NOLL, 1997, 329). Em A fúria do corpo, essa seqüência
do encontro do narrador com um menino órfão de pai também se faz presente, mesmo
que ela freqüente muito pouco espaço na narrativa. Além disso, o menino de Rastros do
verão e o menino índio de A fúria do corpo parecem-se demais, e essa personagem que
se encontra sempre com o narrador repete-se na representação do menino mudo de pele
azeitonada de Canoas e marolas. Em O quieto animal da esquina, o narrador-
personagem é órfão, pois seu pai sumiu e ele irá encontrar na figura de Kurt uma
espécie de protetor, um substituto para a figura paterna. Em Harmada, o narrador vai
encontrar-se com uma menina, Cris, que, mesmo não sendo sua filha, vai contar a todos
que ele é seu pai, e o narrador não a desmente. Em Canoas e marolas, o narrador é um
pai à procura de uma filha que ele nem conhece. Em termos numéricos, de dez
romances, sete lidam com essa figura paterna e suas relações com os filhos no
enunciado. Creio poder afirmar a recorrência dessa imagem de uma paternidade
sufocante que se faz mais pela ausência do que pela presença, mas inegavelmente
alterando a vida das personagens.
Nessa busca pela paternidade aí, também, a busca pela identidade. Isso está
muito claro em alguns momentos, pois essas personagens de João Gilberto Noll são
sempre errantes, como se não tivessem parada nem sossego. Marcariam essas narrativas
cujas personagens não se concebem com identidades acabadas e prontas os sujeitos sem
nome e a anomia dos lugares entendidos como espaços “do estado e da sociedade em
que desaparecem os padrões normativos de conduta e de crença e o indivíduo, em
conflito íntimo, encontra dificuldade para conformar-se às contraditórias exigências das
normas sociais” (HOUAISS, 2006).
A primeira frase que abre o primeiro romance publicado, A fúria do corpo, é
emblemática dessa questão “O meu nome o” (NOLL, 1997, 25) —, corroborada
pela afirmação do narrador mais adiante:
Alguém tropeça no meu sono e eu grito o nome não digo. Nome não. o
adianta retalhar meus nervos, me inquirir, interrogar, nem mesmo torturar.
Nome não. Quando criança me ensinaram assim: nome, idade, endereço,
escola, cor preferida. Não, não vou entregar ao primeiro que aparece; nome,
idade, essas coisas soterram um tesouro: sou todos, e quando menos se
espera, ninguém. Meu nome não. (NOLL, 1997, 40).
A não-nomeação é uma marca dentro dos romances de João Gilberto Noll e,
quando muito, utiliza-se apenas o primeiro nome da personagem; muitas vezes, o
próprio nome do escritor ou autor empírico, João. Essa relação estabelece-se dentro das
relações de autobiografia ficcional, estudada no primeiro capítulo, e organiza-se mais
como uma vontade de fazer a vida adentrar na literatura ou de apontar para a
inexistência de fronteiras entre as duas na literatura contemporânea. O nome soterraria
um tesouro, mas esse sujeito que sabe seu nome, mas não o quer dizer, recusa-se
terminantemente a seguir as normas estabelecidas, nega-se a se identificar com o
sistema vigente. No caso de A fúria do corpo, a alusão direta à ditadura militar,
implantada no Brasil a partir de 1964, não apaga a não-inserção desse sujeito na
civilização ocidental conforme ela está configurada para o novo mundo desde o século
XVI. Não dizer o nome significa não querer dizer ou revelar uma identidade.
Sem essa nomeação e com o sentimento de orfandade que se alastra por seus
romances, Noll pretende discutir a questão da paternidade da obra. Como situar-se
diante da tradição herdada é o que ele parece comunicar em seu processo de criação
apontado em vários momentos de seus textos. As personagens narradoras contam suas
próprias histórias, são criadoras de si mesmas, pois não se esquecem dessa paternidade
negada e vão sempre se narrando a si e a seus insucessos diante da orfandade. Parece
haver em Noll a revolta para com a impossibilidade de esquecer esse passado, essa
autoridade que adentra a narrativa sem que menos se espere, e para com a forma de
escrever nessa cultura. O escritor que critica as instâncias da sociedade patriarcal
judaico-cristã vê-se enredado em seus interstícios sem ter como fugir a isso, conforme
se pode facilmente comprovar nos três romances aqui abordados.
Em A céu aberto, o narrador vai à procura do pai que luta em uma guerra
distante, levando consigo o irmão, e conseguirá alguns substitutos para o velho coronel
durante a narrativa. Nesse romance, percebe-se logo que a figura paterna não
descanso à personagem narradora, que abre o texto indo em busca do pai. Na segunda
página do romance, o narrador, preocupado com a saúde do irmão, diz: “Pensei logo no
nosso pai. A gente não tinha mais ninguém. que o nosso pai estava na guerra [...]”
(NOLL, 1996, 10). O narrador empreende junto com o irmão uma busca à figura
paterna, que será encontrada em um acampamento militar, Como informa a seus
leitores:
Não foi difícil chegarmos ao nosso pai no acampamento militar. [...] a tenda
do nosso pai era a que mais se realçava [...]. E de fato o nosso pai estava ali
dentro da barraca de lona chumbo, sentado numa cadeira de braços, botas,
uniforme roxo e o anelão de sempre no anular esquerdo [...] o general que
conseguira destruir a ponte dos Novaes [...] sentia que estava prestes a
perder minhas regalias de menor, embora não soubesse direito o ano em que
eu nascera, o meu pai nunca se preocupou com essas coisas de registro,
sempre esteve com a atenção toda posta na artilharia do exército, no perigo
que seria o inimigo tomar o ápice do monte [...]. (NOLL, 1996, 19-21).
A descrição do pai é montada para que percebamos o seu poder e sua posição de
destaque, como o fato de a barraca estar bem situada no acampamento e a forma como o
pai o mundo: apenas interessa ao pai a conquista, a posse dos territórios, encarnação
que é do guerreiro civilizador engendrado pela sociedade patriarcal, enquanto ao
narrador não é dado nem conhecer sua própria idade. Assim, o sujeito sem nome, sem
idade e sem registro defronta-se com um pai dono de seu território, de sua patente de
general, bem posto na vida e com sua identidade definida. Dessa forma, faz-se a grande
diferença entre pai e filho, novo e velho, a tradição e aquele que acaba de chegar a esse
lugar. Cabe lembrar o medo que o narrador tem de perder “suas regalias de menor”,
como a representar a dificuldade de crescer à sombra de pai tão poderoso. Ainda
corrobora essa visão a utilização do pronome possessivo “nosso” junto ao vocábulo
“pai”, o que demonstra que, por mais que se queira, é impossível esquecer esse sujeito
que pertence ao narrador que, por sua vez, pertence a essa figura dentro da sociedade
patriarcal. Na narrativa, o narrador encontrará uma posição no exército paterno, mas
essa colocação durará pouco tempo, visto que a personagem não consegue enquadrar-se
nessa categoria da luta dos homens. O narrador dirá que é uma “cabeça alienígena do
exército” (NOLL, 1996, p.42), que não sabe qual lugar tomar em uma barraca que serve
de restaurante e que sua presença não é notada nem mesmo pelo pai (NOLL, 1996,
p.43). A personagem-narradora acaba por entrar na guerra (NOLL, 1996, p.45), mas não
consegue e se confessa covarde e impotente para lutar, desejando voltar ao lugar de
origem, conforme afirma: “[...] ai, cansei, eu disse vomitando: eu quero é voltar para o
lugar de onde nunca deveria ter saído, eu quero é me apagar [...](NOLL, 1996, 49). O
narrador, finalmente, deserta e irá encontrar-se com o pai uma última vez:
[...] estava o meu pai sentado numa poltrona de palha bem maltratada
com um espalhafatoso espaldar feito a cauda de um pavão, e quando ele me
viu com uma roupa civil toda rasgada, a imagem viva de um desertor,
percebi que seus dedos começaram a tamborilar nos braços da poltrona de
palha, coisa que costumava fazer ao ficar nervoso, [...] e fui me
aproximando pisando o medo de uma perna e a indiferença de outra,
molhando meus pés e a bainha da calça estropiada pelas poças d’água, e ao
chegar perto dele parei, baixei a cabeça e retorci as mãos em sinal de
respeito e grave temor embora não fosse nada disso que começava a sentir
[...] mas eu decididamente não tinha mais nada a ver com aquela merda
toda de exército de guerra de pai de irmão [...] me inclinei um pouco até
chegar a três palmos da cara do meu pai que estava bem velho bem
enrugado bem acabado e expulsei uma cusparada que foi justo no seu olho
esquerdo que não sabia se abria ou fechava com aquele cuspe encardido
querendo colar na sua íris azulada de o negra ... Afastei o olhar de cima
do velho para sempre. [...] Olhei para trás e notei que uma colina escondia
para sempre meu pai de mim. (NOLL, 1996, 62- 63).
A deserção do narrador não se faz sozinha, é preciso uma ação enérgica para se
separar do que é o pai e do que ele significa. Ao se desligar do exército e decidir não
mais lutar na guerra, o narrador escolhe o caminho da margem. Em um mundo de
homens que vivem em guerra, a escolha desse caminho coloca esse sujeito como pária.
Daí o fato de renegar essa paternidade guerreira através da cusparada no olho do pai
“bem velho bem enrugado bem acabado”. Cuspe que “fura” o olho do pai e altera a vida
da personagem-narradora, condenada agora a deslocar-se ainda mais, pois deseja ser um
desertor do mundo patriarcal, pelo menos no que diz respeito aos valores paternos com
os quais rompe nesse momento da narrativa. O narrador deixa para trás sua linhagem,
sua família, sua cultura e, a partir de agora, irá encontrar alguns avatares para seu pai.
Como é o caso do pianista homossexual Artur e do capitão do navio que irá seviciá-lo e
levá-lo para outro país. Nota-se que a paternidade vai aos extremos, desde o pai
primeiro, com sua autoridade advinda do militarismo e da virilidade guerreira, até o
Capitão de navio, não mais militar, mas senhor de seu Navio/castelo, que obriga o
narrador a cometer atos que ele não faria por livre e espontânea vontade, o que o torna,
portanto, também autoritário. Representantes de hierarquias, sejam elas militares ou de
posses, esses dois sujeitos marcariam a civilização guerreira e viril com a qual o
narrador não quer compactuar, mas com as quais não consegue romper facilmente, pois
nele mesmo resquícios, traços desse arquivo da cultura, como algo entranhado e
inscrito em seu corpo.
Em Artur, pianista e homossexual, representante de uma linhagem diferente dos
dois sujeitos anteriores, o narrador encontrará uma ligação com a música e com a arte, o
que o livraria de uma relação autoritária, mas, ainda assim, é uma relação hierárquica
em que a diferença de idade marcaria uma espécie de relação entre precursor e efebo. É
com Artur que o narrador inicia uma amizade, entrevista pelos leitores em flashback. É
Artur quem, de certa forma, cuida da educação do narrador. É Artur que diz ao narrador
que lhe delega a voz:
[...] Artur que me confessou uma noite que desconfiava seriamente estar
entrando na carreira de pederasta, se é que você me entende, olha a minha
idade, vejo que homem nenhum poderá mais se interessar verdadeiramente
por mim, se for pelo meu antigo rosto sem papada e bolsas sob os olhos,
se for pelos meus braços de outrora que ostentavam alguma malhação até
pela ajuda do piano, se for por este outro homem que já se esboroou em
mim; pois que cara em consciência pode vir hoje até aqui, e escavar com
sua língua a minha boca cheia de próteses dentárias alcoolizadas [...] mas
você não, em você nunca tocarei, em você eu vejo apenas o filho do velho
Nicolau, do meu amigo [...]. (NOLL, 1996, 26-27).
A fala de Artur sobre a pederastia, se não implica o termo original, enquanto
função, remete o leitor a essa primazia do velho sobre o novo enquanto parte do
aprendizado. Artur, ao reconhecer no narrador o filho de seu amigo e não lhe impor
nada, pois os mais velhos, na narrativa, vão sempre impor suas vontades a ele, torna-se
a representação de um pai menos castrador, bem menos autoritário, e cumpre a função
paterna da mesma forma, pois ele, segundo o narrador, nunca se “interessou pela
paternidade de sangue” (NOLL, 1996, p. 85). Não interessar-se pela paternidade de
sangue daria a essa personagem um caráter menos autoritário, pois não possuiria o filho.
Retirada a posse, a autoridade não se constitui como autoritária, deixando o filho mais
livre para identificar-se com a figura paterna. Ao contrário do pai do narrador, não
preocupado com o registro, mas preocupado com a guerra, Artur está preocupado com o
aprendizado do narrador, tomando-o como um efebo.
Cabe, nesse momento, um parêntese para essa questão, pois uma parte da crítica
sugere, ao invés da metáfora da filiação criativa, a metáfora das amizades literárias.
Partindo do texto “Kafka e seus precursores”, de Jorge Luis Borges, essa relação de
amizade literária ganha corpo e deve ser trazida aqui como contraponto à tese
sustentada por mim. Para o escritor argentino, a palavra precursor, tão cara aos críticos,
vide a teoria de Harold Bloom, deveria ser purificada de toda conotação de polêmica ou
rivalidade, pois “cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa
concepção do passado, como de modificar o futuro. Nessa correlação, não importa a
identidade ou a pluralidade dos homens” (BORGES, 1999, 98). Dessa forma, não
uma tradição a ser perseguida, conforme os críticos anteriores afirmam, mas algo a
ser refeito; as obras do presente é que lançariam luz sobre as obras do passado graças a
essas afinidades eletivas de que fazem uso os escritores.
Para Eneida Maria de Souza,
[...] é possível estabelecer laços de amizade literária entre os autores,
substituindo-se a tradicional metáfora familiar, que corresponderia à
construção de modelos literários a partir dos conceitos de influência e de
tradição cultural, herança recebida pelo autor de forma passiva e conforme
as exigências da crítica, notadamente de caráter historicista. A relação de
amizade implica a escolha de seus precursores pelo escritor, à maneira da
fórmula consagrada por Borges, o que acarreta a formação de um círculo
imaginário de amigos reunidos por interesses comuns, de parceiros que se
unem pela produção de um vínculo nascido da região fantasmática da
literatura. O contato literário entre escritores distanciados no tempo, e
participantes da mesma confraria, fornece subsídios para que sejam feitas
aproximações entre os seus textos, estabelecendo-se feixes de relações que
independem de causas factuais mas que se explicam por semelhantes ou
diferentes poéticas de vida e de arte (SOUZA, 2002, 117-118).
Essa amizade literária tão bem sustentada por Eneida Maria de Souza é algo a
ser levado em consideração, porque procura não criar hierarquias, mas uma
possibilidade de os escritores estarem em linhas sincrônicas de tempo devido às suas
eleições. Assim também é a metáfora da constelação de Haroldo de Campos (1989),
defendida em O seqüestro do barroco na Formação da literatura brasileira: o caso
Gregório de Matos, no qual afirma que, no Brasil,
[...] esse enredo metafísico vê acrescida à sua intriga uma componente de
“suspense”: o nome do pai [...] apresenta-se (ou ausenta-se) desde logo,
submetido à rasura e em razão, exatamente, de uma “perspectiva histórica”
(CAMPOS, 1989, 8).
Como o nome do pai está rasurado pela perspectiva histórica, para Haroldo de
Campos não necessidade em se tocar, portanto, na questão da origem ou da
paternidade da escrita ou de uma linhagem literária. Por isso, ele busca uma saída outra,
que estaria na estética da recepção de Hans Robert Jauss, e propõe sua “constelação”,
que é da ordem da sincronicidade e não da diacronicidade.
Para Jacques Rancière, a escrita sempre coloca a questão da paternidade em
jogo:
Antes de ser polissemia ou disseminação, a escrita é divisão. E é a essa
divisão que a literatura figura, ao reexpor sem cessar a questão do pai do
discurso e do corpo da letra. Ela tem seu ato no gesto que desfaz a relação
estabelecida da realidade e da ficção, ou da filosofia e do poema, para
devolver toda matéria de ficção ou todo ritmo poético ao estatuto da letra
abandonada: letra emancipada que apaga a divisão de legitimidade na
comunidade indiferente dos seres falantes, letra órfã à procura de seu corpo
de verdade. E talvez essa dupla figura do abandono à literatura sua tensão
específica. Seu movimento se desdobra no intervalo de duas escritas, no
intervalo que separa a fábula da letra abandonada da fábula do corpo de
verdade, do logos que se tornou carne sensível do mundo. (RANCIÉRE,
1995, 41).
Mesmo que Jacques Rancière não esteja obrigatoriamente falando em tradição, a
palavra pai não está utilizada metaforicamente, pois ela lembra o enunciador primeiro
de um discurso em sua relação com os outros saberes com os quais ele se depara antes
de traçar seu texto no papel. Daí a relação entre a letra órfã e a divisão que ocorre em
toda literatura. O saber primeiro não é do escritor que escolhe sobre o que escrever,
sobre o que contar, mas é o saber de um povo, portanto, anterior a ele, cravado na
tradição, e por isso eu continuo a perceber, sem negar as outras correntes, que em João
Gilberto Noll essa divisão da escrita se faz. Ser escritor brasileiro que tem o nome do
pai rasurado historicamente, conforme o quer Haroldo de Campos, já é um começo para
não se aceitar essa paternidade ocidental. Mas, ao mesmo tempo, sabe-se que não
como fugir a ela. Como o que existe é uma orfandade, nada melhor do que procurar
amizades literárias, conforme o quer Eneida Maria de Souza e Jorge Luís Borges.
que, mesmo não existindo uma hierarquia, uma escolha que norteia essa escrita, essa
letra órfã. Se ela se faz de forma sincrônica, ainda assim é uma escolha que implica
julgamento de valor, e é nesse jogo que entendo o trabalho de Noll e de toda a produção
contemporânea, pois ela opta por escolher a quem imitar, emular, representar, alterar,
rasurar ou endeusar, podendo até ficar à sua sombra e não produzir algo fértil, como
nota Octavio Paz. João Gilberto Noll é filho órfão da tradição e tem, a cada vez que
escreve, que se tornar pai de seu próprio discurso. Sua escrita coloca em jogo a questão
da paternidade na e da escrita e faz questão de tornar isso patente e explícito.
É na sua própria paternidade que o narrador de A céu aberto defronta-se com o
problema de sua identidade. Em um dos momentos da narrativa pós-guerra e algo
completamente fora dos padrões, conforme toda narrativa nolliana, em que imaginação
e realidade fundem-se, através da voz do narrador, nunca se dando claramente a ver —,
a narração assemelha-se mais a um surto, e o narrador está às voltas com seu irmão
transformado, vivendo juntos como marido e mulher em uma casa, quando se junta a
eles o filho de Artur. Os três irão ter relações sexuais e, depois de uma dessas relações,
trava-se o seguinte diálogo:
Se você se emprenhar hoje, nunca saberemos de quem é o filho disse
o rapaz.
— Faremos um exame — respondi.
Não, não gostaria de exame nenhum para conhecer a paternidade, prefiro
assim, sempre na dúvida, com isso a criança terá dois pais pelo resto da vida,
que bom — ela comentou. (NOLL, 1996, 110).
Ao se escolher não saber quem é o pai, abre-se o espaço para a indiferenciação
novamente, mas o próprio narrador é incapaz de habituar-se a isso. Ele não quer ficar na
dúvida, conforme diz ao saber que vai vir um filho:
Aos poucos fui me acostumando com a idéia de dividir a paternidade de uma
criança com outro homem, sem problema, mas o que me deixava sem
dormir era o fato de esse outro homem ser aquele cara que eu pretendia
comer mais vezes [...]. (NOLL, 1996, 112).
Percebe-se aqui no enunciado o desejo sexual do narrador e sua inconclusão
quanto a padrões, mas isso se reflete enquanto enunciação, pois dividir a paternidade
com outros homens que se quer devorar está na base da idéia que representa a
paternidade da escrita. Escrever é, pois, dividir a paternidade com outros homens os
quais se deseja comer mais vezes, segundo o princípio antropofágico. No enunciado, a
criança terá dois pais, conforme deseja a personagem da mulher/irmão. Essa dupla
paternidade, que não é possível pelas relações biológicas, reflete-se na enunciação, pois
o texto nolliano possui várias vozes e joga com todas as possibilidades de assunção da
paternidade que possam existir. Escolher os autores a quem buscar empréstimos ou com
quem medir forças são escolhas conscientes e inconscientes que estão no cerne de sua
metaficção.
Logo adiante, o narrador diz ter a certeza de que o pai da criança era o rapaz,
filho de Artur. Essa certeza aponta para o fato da velha idéia da incerteza masculina
sempre diante dessa complexidade chamada “paternidade”. Ao se preocupar mais com o
fato de querer continuar relacionando-se sexualmente com o rapaz, o narrador
demonstra não ter tanto problema com a idéia de quem seja o pai. Ele parece renegar o
desejo de paternidade, ou o desejo da posse sobre o filho. Sua preocupação está mais
ligada ao fato de possuir outro corpo, o que indicaria que o desejo é menos de
paternidade do que de ordem sexual. A paternidade seria uma questão secundária nessa
relação a três. O interessante é perceber que as questões da suspeição, algo da sociedade
patriarcal, não é o que mais interessa ao narrador, embora ele não consiga passar sem
ela. Nessa questão, a personagem narradora está indo mais uma vez contra as noções do
patriarcado, que coloca como função masculina a propagação da espécie. A
personagem, mais uma vez, transgride as regras, pois não se mostra de acordo com as
normas dessa mesma sociedade. Adviria d também o fato de poder existir a
possibilidade da dupla paternidade da criança.
Mais tarde, o leitor fica sabendo que a criaa nasceu com as feições do
narrador, na Suécia, mas que morreu logo em seguida. É o retorno da questão da
paternidade, que, embora secundária, não deixa de atormentar o sujeito no enunciado.
Assim como na enunciação pode-se perceber que a produção é natimorta, ou está
sempre condenada a morrer, estando fadada ao esquecimento. Nesse ponto, volta-se
para a questão da tradição, que pode ser feita, de acordo com T. S. Eliot, em termos
comparativos, e, portanto, essa obra para sobreviver precisa aguardar seu tempo que não
mais depende de seu criador, mas do público e de seus referenciais calcados na tradição.
O pai do discurso não é e nem nunca está sozinho, ele está dentro desse espaço que não
sabe calcular muito bem qual seja, mas que está mais próximo dele do que ele imagina
o mundo do pai e seu legado, a tradição —, e é com ela que ele tem que lutar
continuamente se quiser ter sua produção reconhecida.
Em um determinado momento de A céu aberto, o narrador encontra-se com uma
garotinha:
Uma garotinha passa e pergunta se por acaso quero receber um perdão.
Pergunto, de quem? Do espírito que me governa e que a partir de hoje mora
aqui e ela mostra a barriga. Quero, quero um perdão, me ajoelho. A
menina me cospe no olho. O mundo está ficando irrespirável, quando se
espera um perdão vem, sei lá, uma lição de moral, ou uma cusparada que
no mesmo.
Serei um charlatão, meu pai? pergunto à menina que insiste em se
atravessar no meu caminho.
— Serei teu pai? — pergunta a menina.
— És a figura que eu levaria para um desterro.
— Serás desterrado?
Digamos assim: que eu sou um príncipe na terra incerta. (NOLL, 1996,
135-136).
Esse diálogo é uma repetição, com novos elementos, da cena em que o narrador
despede-se do pai. A menina repete o mesmo gesto do narrador para com o pai a
cusparada no olho e este, mais uma vez, será desterrado. Ao receber de volta o cuspe
no olho, a personagem-narradora estaria representando o eterno retorno do mesmo e
colocando-se no lugar do pai. É ao receber o cuspe, aquilo com que outrora castigou a
autoridade, que o sujeito pode, enfim, ter seu lugar. A assunção desse lugar marcaria a
possibilidade de uma identidade, embora sempre em processo, pois o narrador vai se
dizer um príncipe e não um rei, negando-se a tomar esse espaço. João Gilberto Noll
aponta mais uma vez para sua própria literatura desterritorializada, portanto, desterrada,
mas que conta com a tradição para se fazer. Ao revelar-se um príncipe, o narrador acaba
por se colocar como o segundo, não como o primeiro, reatando e, ao mesmo tempo,
rompendo com a hierarquia patriarcal. O ciclo então é cumprido: leu errado o pai,
produziu uma nova obra e, por sua vez, recebe uma nova obra de outro, no caso, a
menina mais nova que traz em seu ventre uma nova criação, pois esgrávida. É
como se esse sujeito relutasse em aceitar essa função, mas não consegue perceber-se de
outra forma.
Em outro momento da narrativa, o narrador conta que o pai fora assassinado,
mas esta é apenas uma notícia, nunca uma certeza. O narrador romperá mais uma vez
com tudo à sua volta e com seu passado, dessa vez através do assassinato da
mulher/irmão. Esse sujeito precisa sempre romper com o passado, a origem, para poder
sobreviver e se impor; portanto, é preciso deslocar-se, desterritorializar-se. O
rompimento com a família faz com que se desloque mais uma vez, indo para o navio e
para um país estrangeiro, sendo confundido com um terrorista internacional. Essa
escrita que rompe com sua família e reata com ela de forma sempre diferente é a própria
escrita de João Gilberto Noll.
Ao desterritorializar-se, estabelece-se, para o narrador, a impossibilidade de a
produção ser dele sozinho. um desejo de autonomia, mas não se sabe o que fazer
com essa liberdade. O filho desterrado volta-se, portanto, para a memória do pai.
uma produção da qual não se sabe o que possa ser, pois no enunciado existe a filha
natimorta do narrador e na enunciação, a própria escrita nolliana, sem rumo, sem
precedentes, mas ao mesmo tempo apresentando suas raízes, suas origens, mesmo que
disfarçadas ou nunca aceitas totalmente. Essa não-nomeação do pai torna a obra para
sempre órfã, embora ela seja pertencente a um corpo que a escreveu e, nesse sentido,
corrobore a noção de uma escrita que se faz na contemporaneidade, que quer negar o
pai, mas que não consegue a não ser que desloque esse lugar.
Em Berkeley em Bellagio, a questão da paternidade parece estar desaparecida,
embora Noll exerça o seu trabalho a partir da idéia da criação mais especificamente.
Dessa vez, a história do escritor entre dois mundos e duas línguas, conforme havia
trabalhado em Bandoleiros, aparece como uma reescrita, logicamente transfigurada. Em
Berkeley em Bellagio, o narrador vai encontrar-se ao final com uma filha adotiva, filha
de seu companheiro com uma estrangeira. Aqui, as relações que apontariam para a
questão da paternidade seriam as relações entre o velho e o novo e uma nova
possibilidade de constituição de uma família para um casal homoerótico, apontando
para uma nova maneira, uma criação dentro do estado patriarcal. As relações sexuais
entre homens mais velhos e rapazes mais jovens são recorrentes na obra nolliana e irei
tratar desse assunto mais especificamente no terceiro capítulo, mas nesse romance e no
seguinte, Lorde, esse tipo de relação impera.
De uma relação sexual entre o escritor-narrador-personagem e um rapaz mais
novo, o narrador conta, colocando-se em terceira pessoa:
O escritor porto-alegrense continuava ali, ao vento mais que Minuano, sem
saber se cuspia no pedregulho da trilha ou se engolia mais e mais aquilo que
lhe fizera um homem vivo, o mesmo esperma de seu pai, pois o sêmen de
um homem contém o esperma de toda a humanidade [...]. (NOLL, 2002,
30-31).
Ao fazer menção à figura paterna e a seu esperma, João Gilberto Noll traz à
baila a relação entre paternidade e criação literária. O esperma do rapaz mais jovem
transformado pela imaginação do escritor-narrador em esperma do pai, fazendo-o vivo,
apontaria para a questão da criação que sempre se renova em uma relação de troca entre
o pai e seu filho. Novo e jovem substituem-se ao interagir dentro da tradição. Lembre-se
T. S. Eliot e a relação levantada por ele de que o escritor traz em seus ossos os outros
escritores de sua geração e aqueles anteriores a ele. Aqui, o esperma produz a mesma
função, mas é interessante como Noll retrabalha a idéia de Eliot, pois na palavra ossos
uma idéia de algo calcificado, internalizado, e na palavra esperma uma idéia de
fluidez muito maior.
Não é a primeira vez que a palavra esperma aparece na obra de Noll; ela é
companheira constante de seus narradores. O esperma é a parte masculina da
fecundação, o líquido viscoso que é capaz de produzir vida, símbolo da virilidade
masculina e imagem da potência do macho na cultura ocidental. O esperma e o leite,
líquidos que se parecem em sua densidade, são sinônimos de vida, de origem, estão
ligados de forma a encharcarem as narrativas deste escritor e de seus narradores. Há,
nessas expressões, toda uma simbologia das forças vitais que movem os seres humanos
mesmo quando estes não querem se mover. Nas personagens nollianas, sempre
empurradas adiante por uma inércia constante, esse esperma funcionaria como algo que
traz ao sujeito a lembrança física de que ele está vivo, que algo ainda pulsa dentro dele,
que é preciso fazer alguma coisa mesmo que não se saiba o que fazer. Essa presença
quase física do fluido seminal na obra de Noll, pois o leitor adquire a sensação de
viscosidade, de fluidez dessa palavra, representaria a relação de proximidade entre a
literatura nolliana e a idéia de criação que se faz neste trabalho. Se o esperma é o líquido
da vida, é o líquido do pai que é passado para seu filho, cumprindo, assim, uma
linhagem, fundando narrativas que, como o próprio esperma, se liquefazem, pois,
embora contidas dentro das ginas e da continência de uma forma, não se fixam em
nenhuma delas, pois alteram a possibilidade de gêneros e de leituras, bem como a noção
de representação com seu teatro da aparição. A tradição se espalharia, assim, de forma
fluida, e não de forma cristalizada. Não apenas uma releitura errada, mas uma troca
permanente e líquida que não se cristaliza, que não se concretiza de todo, que não se
pode ver a olho nu tão tranqüilamente como uma radiografia. É preciso tentar perceber
essa matéria viva que passa de geração a geração pela conquista do lugar do pai que
nunca se repete como igualdade, mas como diferença.
Mais adiante, o narrador de Berkeley em Bellagio continua a recorrer a essa
visão para mostrar-se como criação de um pai que, mesmo que não mencionado, existiu
em algum espaço temporal, conforme ele mesmo diz:
Não fosse um homem ter despejado seu gozo dentro de uma mulher, não
fosse isso o filho que ele era não estaria aqui nem haveria para sua escuta o
Liszt que ele ouvia agora [...]. (NOLL, 2002, 32).
está a forma de perceber a fluidez dessas relações que João Gilberto Noll
representa. As gerações sucedem-se e a tradição é transmitida, inclusive pelo ouvido.
Não haveria a escrita, mas a música, a poesia, herdadas de uma tradição que o
produziu. Assim, sua literatura incorpora em si todas as possibilidades de vida
existentes dentro da cultura. Daí advém essa literatura fluida, que insiste em
desterritorializar-se, desterrar-se e até mesmo passar por todas as línguas. Ser errante,
esse narrador que vai de seu país de origem a outros países como o narrador de Berkeley
em Bellagio é, assim, como a imagem do esperma, algo que não se fixa, mesmo que
possua uma forma, mesmo que pertença a um corpo, ainda que a narrativa teime em não
descrevê-lo completamente, que mais se faz por suas ações do que por sua capacidade
de estabelecer pontos de contato com a realidade e com os outros que o cercam. Assim
como o esperma, essa personagem se reproduz em vários “eus”, sempre fluido, sempre
errante, sempre inclassificável, quase sem limites.
O leitor será informado de que o narrador de Berkeley em Bellagio está em crise
com a sua produção e com toda a produção escrita de um modo geral, conforme diz:
[...] de uns tempos pra cá não queria mais saber de romances, novelas,
contos, muito embora os escrevesse. Quando sentia agora a necessidade da
palavra, ia direto a algum poema. Para ele, a poesia era o verbo em estado
musical, se algum sentido ela expressava este não vinha de outra coisa que
não da melodia deslizante pelas entrelinhas feito um veio d’água que mal se
percebe. Nesse eque sentia pelo que ainda não se fixara em norma do
sentido — esse algo tateante que vinha e lhe escapava sem o apoio de
cordas, sopros, bemóis, nessa sutilização do significado que não o levava a
parte alguma, daí vinha o sinal de que o seu tempo interior se esterilizava a
ponto de ele não ver mais como se desenredar: quisesse ou não, se
aventurava sem retorno por essa louca deserção. (NOLL, 2002, 32).
Essa deserção é justamente a transfiguração dessa narrativa que vai por lugares
nada convencionais e acaba por fazer-se tal e qual um poema. É esse veio d’água, de
acordo com essa voz narrativa, que deseja a sutilização do texto como ocorre na música
ou o deslize do significante que move a poesia sem a prender a um sentido único. João
Gilberto Noll aponta para sua criação, que não precisa ou não quer ser compreendida
com um único sentido, mas em seu caráter deslizante e inconcluso que a faz, mais do
que mera narrativa, uma prosa que se quer poesia. O autor gaúcho parece seguir o
conselho de Octavio Paz quando este afirma que o romance tem de ser poesia e prosa ao
mesmo tempo, sem ser totalmente um ou outro (PAZ, 1984, 54).
Em uma conversa com um escritor do Equador em Bellagio, o narrador fala,
através do discurso indireto livre, de sua própria escrita, pela boca do equatoriano:
essa gente como os protagonistas da minha ficção que ele já tinha lido
quase toda homens desadaptados ao circuito social, caminhantes à
procura de um lugar onde a sociedade humana não pudesse alcançar. Seres
sem cidadania ou qualificação [...]. o seu protagonista pensa não jogar,
coitado, talvez seja o que mais joga, e sem tirar nenhum proveito desse
match. (NOLL, 2002, 40).
As personagens nollianas aparecem em sua própria narrativa em forma de
espelho, numa intratextualidade que ocorre não pela primeira vez na obra como um
todo. Dessa forma, suas personagens falariam de si mesmas para representar uma forma
de não-representação, embora dentro de um veículo de representação. Daí a idéia de que
os protagonistas são os que mais jogam, pois, ao narrar, jogam com as aparências de
que não representam, ainda que no teatro da aparição estejam sempre presentificando
uma experiência que não é do passado, mas ocorre no mesmo tempo da narrativa. Seria
simples se essa narrativa que se quer presente não fosse também ela algo passado,
pensado, organizado, embora se queira sem fixação, sem representação.
Essa metaficção é uma marca da escrita de João Gilberto Noll e serve para
reafirmar o caráter singular da escrita do escritor porto-alegrense e sua vontade de
refletir sobre essa possibilidade da criação em sua própria obra. Dessa forma, o escritor
aparece conversando com outro escritor, que fala sobre a obra do narrador-escritor do
romance Berkeley em Bellagio, que aponta para a obra do próprio Noll, conforme
demonstrado no capítulo I. Como ele, o narrador-escritor mesmo diz:
[...] sou apenas um escritor pretérito, me amanso, não quero criticar nada
nem ninguém, sou sombra, nada mais me assusta, provoca minha ira, meu
descontentamento. (NOLL, 2002, 49).
Esse escritor que se diz amansado e se reconhece como passado nada mais faz
do que se reinventar em sua escrita a todo momento. Ao trazer essa metaficção, João
Gilberto Noll torna possível um espelhamento em sua obra que a perpassa como um
todo, colocando-se, inclusive, como personagem de si mesmo e representando até
mesmo seu próprio fingimento numa criação de simulacros e cópias que, mais uma vez,
apontariam para o ato de criar a si próprio dentro da tradição literária ocidental. Sua
criação é tão pretérita quanto seu narrador-escritor se reconhece. É aquela que se
alimenta das outras, que vive do esperma do pai e não se prende totalmente a ele. Essa
literatura feita como prosa que pretende ser poesia, que altera todos os gêneros e que os
mistura em seu cadinho de mixagem na qual som e letra, voz e corpo, ouvido e visão,
tudo em um só lugar é movido por essa sinestesia que beira o místico, ou, conforme ele
mesmo diz, uma “vertigem musical”, “uma ladainha”.
Em Berkeley em Bellagio, o narrador comenta, ao encontrar um novo colega em
Bellagio:
Ele desce indo para a aldeia, pára, percebo sem maiores surpresas que ele
tem o physique du rôle do protagonista do romance que vim para escrever
aqui e que avança, é ele, é ele sim, pergunto de onde [...] ele pergunta sobre
o que eu escrevo, vou lá filosofando em torno do meu personagem de
sempre que aparece a cada livro; ele pergunta meio irritado o que acontece
de fato nos meus livros, digo que não sei contar talvez porque nada aconteça
de fato nessas minhas histórias, mas conte, conte o que de fato acontece
nesse não-acontecer [...] os meus romances então não passam de seqüelas do
subdesenvolvimento, esses personagens um tanto crônicos que faço, que não
sabem nem para onde ir, se for verdade que procuram algum caminho; ainda
não encontraram nem ao menos técnica mais elementar da vida, ou seja, não
sabem como lançar a intenção num gesto claro, soberano, preciso
assim, diz ele, o cara se destaca da natureza e passa a cavar seu próprio
enredo. (NOLL, 2002, 57-8).
Esse narrador que escreve sempre sobre as mesmas personagens e sua escrita
aparecer em sua própria obra, criticada por ele mesmo, marcaria essa escrita nolliana
cheia de improvisos formais que caminham em direção a um nada cada vez maior: sua
própria escrita. Essa ironia para com sua própria escrita, como se ela fosse algo que não
se faz concretamente, como seqüelas do subdesenvolvimento”, não é simplesmente
algo jogado sobre o papel, mas algo programado para ser assim. Não se espere de João
Gilberto Noll essa atitude ingênua diante da página em branco, pois, embora o teatro da
aparição deseje ser um presente contínuo, uma ciência de quem o produz de que a
escrita é sempre a representação de uma escrita passada. A escrita nolliana é essa escrita
que se “destaca da natureza e passa a cavar seu próprio enredo”. Ao destacar-se da
natureza, ela demonstra que é trabalhada, estudada, para ter esse jeito estranho de ser.
Seu enredo é cavado no mais alto grau da tradição, mesmo que em um primeiro
momento não se note nada. Não estou falando de uma tradição passadista, mas de uma
tradição moderna, de ruptura e criação de uma nova tradição.
O narrador de Berkeley em Bellagio imagina levar um garoto para casa e vê-lo
enquanto “vomita um pouco sobre as iniciais do meu pai na fronha” (NOLL, 2002, 74).
Ver alguém jovem vomitar nas iniciais do pai é o mesmo que borrar o nome do pai.
Essa operação assemelha-se à cena, em A céu aberto, da cusparada no olho. Assim, a
juventude borra o nome do pai para poder gerar sua própria obra, o que ocorre com o
próprio escritor, pai de sua escrita, solitário, sempre borrando ou esquecendo ou
tentando preencher essa ausência/presença paterna para se fazer pai de sua própria obra.
O narrador volta ao Brasil em uma tremenda crise de identidade, que se reflete
no fato de ele achar necessário matricular-se em um curso de português para
estrangeiros (NOLL, 2002, p.82,3), até o momento em que retoma a língua literalmente,
conforme conta:
[...] a língua sai de mim em pedacinhos, escorrega de repente, apanho-a
cansado, devolvo-a à minha boca, a palavra ecoa novamente, vibra mais alto
agora, o seu sentido como que sacode a cabeleira, me encolho, para disfarçar
esse momento, penso que logo recomeçarei a trabalhar no meu romance,
onde eu estava mesmo? (NOLL, 2002, 87).
Essa relação com a ngua, outro ponto com o qual a escrita nolliana sempre se
depara, marcaria a relação de criação de forma inconteste. É ao apanhar a ngua de
volta que o romance que o narrador estava escrevendo pode continuar. Ele não sabe
onde parou, mas sabe que tem que ir em frente. Seu romance será melhor produzido à
medida que ele se resolver na língua materna. Seu problema com a língua resolve-se de
duas formas: uma no nível lingüístico e outra no nível afetivo. A questão lingüística diz
respeito à sua volta ao país de origem e à volta ao seu idioma natal. Nesse contato, é
possível voltar a lutar com a língua, a torná-la outra, fabricá-la novamente. E o afetivo
resolve-se quando ele volta para a língua do amante, também no país de origem, pois é o
que acontece em seguida, até o momento em que ele entrar em nova crise, pois tudo é
efêmero nessa escrita.
Ele, o narrador, envolve-se de novo com Leo e sua filha, a qual acredita que o
narrador é seu pai (NOLL, 2002, p.86), e, numa cena de afetividade, pouco comum na
literatura nolliana, o narrador conta-nos que a menina pensa que ele é seu pai:
[...] ela talvez ainda pense que quem a abraça é o pai, que outro homem
ali, por certo, mas está de pé, um amigo do pai bem pode ser; o que ela ainda
não pode compreender é que o pai por trás me alisa a cabeça e um estranho
alisa os cabelos dela [...]. (NOLL, 2002, 88).
Nessa cena, começa uma narrativa utópica, que é a vida desse casal com sua
filha. O pai verdadeiro alisa a cabeça daquele que não é pai, que, por sua vez, alisa a
cabeça da filha. Um triângulo amoroso sempre diferente dos triângulos amorosos de
narrativas da tradição, mesmo que seja um triângulo em que a relação não se no
erotismo dos corpos (BATAILLE, 2004). É a dúvida sobre a paternidade mais uma vez
pairando no ar, assim como em A céu aberto, algo que está em suspenso e com o qual
não se pode lidar a não ser através da dúvida numa relação, de certa forma,
hierarquizada, pois alguém na frente e alguém atrás do narrador. Ele encontra-se
entre duas pessoas, duas instâncias, duas gerações que acabam por produzir uma
linhagem, mesmo que descontínua como essa. Estão os três a começar algo novo e que
fará com que eles permaneçam juntos até o fim, o que é novo na narrativa de João
Gilberto Noll, pois finais felizes praticamente inexistem em sua literatura. Quase
sempre o fim é algo ligado ao escatológico, mesmo quando as personagens chegam à
exaustão ou deformadas, o que não é o caso. E, nessa relação, o narrador conta histórias
para sua nova filha:
[...] eu ficaria com Sarita, lhe contaria histórias fabricadas na hora, como
fazia o meu pai à noite, no escuro me contava coisas macabras de outro
mundo, são essas histórias as melhores, recolhia os casos do meu pai e os
passava a Sarita [...]. (NOLL, 2002, 91).
Esse pai narrador legou a seu filho suas histórias, as quais ele agora passa
adiante, recontando e recriando-as. É o narrador, dono de sua própria trajetória, que
aprendeu a trabalhar com o material alheio. Segue com sua relação de companheirismo
com Leo e a menina, compensando a falta da mãe com os dois pais que ela possui agora
(NOLL, 2002, p.98) a mesma cena da dupla paternidade repetida com pouca
diferença em A céu aberto. Se por um lado isso aponta para uma amizade, também
aponta para um deslocamento da noção de paternidade, o que contribui para a minha
tese de que se algo de concreto com a paternidade da escrita é que ela deve ser
sempre deslocada, assim como a tradição na qual está inserida. Uma das histórias
contadas a Sarita torna-se realidade no campo de refugiados em plena Porto Alegre e o
narrador tem sua história vivida pela filha adotada, além do que se reconhece como pai
da menina refugiada que brinca com Sarita. Ele é pai duplamente. Dessa forma, escrita e
vida misturam-se e a criação literária sobre a paternidade faz-se como algo para além da
escrita. Enunciado e enunciação juntam-se para teorizar sobre o que é ser pai da escrita
e o que é essa paternidade da qual todo escritor tenta apropriar-se para criar a si mesmo.
Ele mesmo diz:
[...] e eu avançava no meu livro, encontrava nele caminhos insuspeitados,
atalhos, trilhas abertas a machadadas, e de repente perdia o fôlego, ele, este
que em mim chamavam de livro refluía exaurido para a concha da pausa, e
eu antes do descanso acabava sempre tocando com cuidado nesse seu retiro
todo em musgo e que amanhã vicejaria se eu soubesse tratá-lo como hoje.
(NOLL, 2002, 91-92).
E o livro produzido pode ser pensado como o próximo livro de João Gilberto
Noll, pois sua representação leva o leitor a enxergar no seu narrador, conforme
demonstrado no capítulo I, ele mesmo, o autor empírico, mesmo que fragmentado. Seu
livro que reflui todo em musgo traz, mais uma vez, a metáfora da natureza para falar da
criação, essa coisa viscosa — como o esperma do pai, que não abandona seu criador —,
essa matéria da qual ninguém conseguirá se ver livre se com ela tiver travado contato.
Resta ao escritor permanecer na inércia dessa escrita que parece (re)fazer-se por si
própria.
Em 2004, com Lorde, João Gilberto Noll volta à carga com mais um narrador
escritor tentando produzir seu livro em terra estrangeira. Dessa vez, o cenário é Londres
e seu narrador, João, vai perambular pela cidade até ser tomado pelo seu agente ou o
que quer que seja essa entidade estranha que acaba por englobar o narrador. Esse
narrador que não sabe bem qual identidade possui encontra-se em terra estrangeira,
assim como os narradores de A céu aberto e Berkeley em Bellagio, e -se como um
escritor comum em crise criativa, conforme nos diz: “A coisa em mim desde sempre
um homem comum — fora ter escrito sete livros, só...” (NOLL, 2004, 79).
A paternidade em Lorde fica um pouco de lado, ou pelo menos não aparece tão
claramente como em outros textos nollianos, mas a disputa entre novo e velho reafirma
a questão da paternidade da escrita em luta com a tradição. Seu agente é a encarnação
da figura paterna, visto que assume a função de tutor da personagem-narradora. A
personagem é descrita como uma espécie de benfeitor, embora o narrador não tenha
certeza de que ele o seja. É através de um convite desse sujeito que o narrador vai a
Londres. Esse inglês é o guia do narrador em sua chegada à cidade, é aquele que o
conduz ao Hackney, no norte da cidade londrina, onde o narrador irá residir; é também
o inglês quem carrega as chaves da casa (NOLL, 2004, 18). Carregar as chaves da casa,
simbolicamente, é função do patriarca da família. A idéia de um tutor também cria para
o leitor a idéia de paternidade, pois esse inglês não-nomeado encarregar-se-á dos
cuidados para com o narrador, novo em um país que não é o seu. O narrador, desterrado
e órfão, precisa juntar-se a alguém de um país estrangeiro para poder reconhecer-se ou
recuperar um sentimento mínimo de identidade. O narrador, em um determinado
momento da narrativa, informa ao seu leitor:
Se não aderisse cegamente àquele inglês que me chamara até Londres, se
não o reinventasse dentro de mim e me pusesse a perder a mim próprio,
sendo doravante ele em outro, neste mesmo que me acostumara a nomear de
eu, mas que se mostrava dissolvido ultimamente, pronto para receber a crua
substância desse inglês, ora, sem isso não calcularia como prosseguir. E uma
substância que eu saberia moldar, eu sei, eu saberia: em outro e outro ainda,
em mais.
Tinha vindo para Londres para ser vários [...]. (NOLL, 2004, 27-28).
Note-se como essa possibilidade de ser outro, de reinventar-se a si mesmo
passaria pela assimilação do inglês, que, durante a narrativa, vai assumindo novos
nomes, novas identidades — Mark, Bob, George —, mas sempre representando o
mesmo. A assimilação da tradição, desses estranhos outros, produziria, assim, a
diferença, mesmo que advinda de um sentimento de reconhecimento daquilo que lhe é
estranho. Essa substância a ser moldada pode ser tanto o próprio corpo a língua, por
exemplo como a escrita. Dessa metáfora da substância advém também a idéia de
esperma, substância viscosa que (re)produz outra vida ao juntar-se a outras substâncias.
Essa relação com o pai ou com aqueles que acabam por cumprir a função paterna é
sempre fluida. Para esse narrador que confunde vida e obra e para seu autor empírico
que faz questão de confundir seu leitor, a criação é o que realmente interessa e é dessa
forma, em conflito, que ela sempre se produz.
que se destacar uma cena em particular em que o narrador vivencia um
momento de embate entre um senhor inglês e ele, conforme se pode ver a seguir:
Os dois se olharam. E deste cruzamento de olhar eu não tirei nada. Fazia
uma tarde linda fora, o inverno dava indícios de ceder. Embora na lareira
atrás do homem um fogo ainda ardesse, quase morto. [...] Na figura do velho
que continuava a me examinar, o retrato da dor estampado, dor talvez de ter
conhecido a memória da glória antepassada sem poder reconstituí-la na pele
que agora lhe parecia derradeira, amarelada como a de um defunto. O que
ele queria da minha pessoa, eu desconfiava, era a tentativa de drenar de mim
para ele, não se sabia como, a minha resistência digna de um deus. E eu
mais resistiria com a sua cobiça em cima de mim. Tudo o que me acontecia
passaria a ser providencial. E eu ficaria invencível. Nesse ínterim da visita
procurei não olhar para o jovem inglês metido no seu terno escuro, à
paisana. Ele, sim, poderia desestabilizar o meu momento de vitória calado,
ao contrário daquele velho sir que não tinha mais nenhuma espécie de
fortuna humana para poder trocar com a minha maníaca perseverança. Então
eu fitei o velho sir. Comecei a querer dar um fim àquele encontro. Se eu o
fitasse duro, como um amante audaz que pede tudo ou nada, ele não teria o
que encontrar nos bolsos, o seu passado assomaria com todo o seu bolor, o
seu espírito tremeria mais que a própria mão; se eu o fitasse, ele abaixaria a
cabeça — como de fato aconteceu. E se retirou. (NOLL, 2004, 79).
Percebe-se nesse embate que o velho está prestes a sugar a resistência do
narrador; não se pode esquecer que esse é o ponto de vista do sujeito narrador-escritor e,
conseqüentemente, que pode ser apenas um delírio, exemplificando a questão da
tradição e da nova escrita. O próprio narrador diz que havia um jovem inglês que
poderia lhe tirar a estabilidade e se instaura mais uma luta pelo poder. Novo e velho
são apenas papéis que os sujeitos ocupam, mas que estão sempre a fazer-se nessa
cultura patriarcal. O narrador ainda vai narrar mais um encontro entre novo e velho,
como se pode ver a seguir:
Fomos nos retirando pela rua solitária. A criada albina olhou um pouco
nossos passos vagarosos, senti. Dobramos para Great College Street,
entramos por um arco que dava para um pátio oceânico, cercado de belas
construções seculares uma delas, uma entrada complementar para a
Abadia de Westminster. Ali funcionavam colégios com a mesma
longevidade dos prédios. Adolescentes de terno e gravata jogavam uma
pelada no gramado e diziam cabeludos palavrões. A bola caiu nas
imediações dos pés do inglês meu companheiro de passeio. Ele chutou e foi
avante com tudo, entrando no jogo com a garotada. A bola era quase sempre
dele. Até que os garotos vieram em bloco, não o deixando mexer nem os
braços. Derrubaram-no berrando blasfêmias contra aquele homem com o
dobro da idade deles e que em segundos se tornara um distúrbio para os
times. Em segundos eram não poucos adolescentes em cima do corpo do
meu companheiro, num misto de ira e gozação. De repente abriram a guarda.
E ele estava ali, com seu terno meio embarrado aqui e ali, a face suja, cabelo
em desalinho. E sorria. Olhava para o céu azul e sorria. (NOLL, 2004, 79-
80).
Nesse embate, um velho que se mete em um jogo com garotos em pleno
coração da tradição londrina e, por isso mesmo, ocidental. As áreas da Abadia de
Westminster e da Great College Street, marcos da tradição, são invadidas por moleques
que falam palavrões, instaurando-se a transgressão à tradição, o novo imiscuindo-se
naquilo que é da ordem e está acomodado pelo tempo. Essa cena pode ser pensada como
metáfora da criação literária e seu eterno jogo com a tradição. O velho aceita o jogo e
quase derruba os jovens que o derrubam e, mesmo assim, o velho, depois de derrubado,
enlameado e xingado, sente-se feliz. Embate melhor não há, pois o pai é subjugado por
seus filhos e ainda assim consente, mesmo que forçado ou impotente, que estes façam
de suas vidas o que quiserem. A tradição enlameada é ainda a tradição, e a juventude
pode fazer outra história da sua vida se derrubar seu pai e o sujar. Só assim eles
conseguirão ser pais de suas criações.
O escritor não volta ao Brasil, perde-se em Londres, é tomado pelo Velho
Mundo. Dessa forma, João Gilberto Noll parece dizer que entrou na tradição, ela agora
está em seus ossos ou em seu esperma e servirá para fecundar novos escritores. O
narrador tem a certeza, ao final do romance, de que ele será um dos donos da cadeira de
Língua Portuguesa na Universidade da Cidade de Liverpool (NOLL, 2004, 104). E
demonstra seu interesse pela língua mais uma vez:
[...] pouco me interessavam então as teorias no campo literário, as exegeses,
as metáforas, a palpitação de alma dos grandes escritores. Mais me valia o
conhecimento da língua portuguesa, como ela se formara, com que cara e
dinâmica se apresentava hoje. Porque ligamos uma palavra a outra e
montamos frases suntuosas ou secas, sinuosas ou diretas, brutas ou
subliminares. Se o que dissemos com tais frases tem ligação imediata com as
coisas ou se servem apenas ao descarrego para os nossos neurônios
impossíveis. E se for essa última hipótese a prevalecer, por que não nos
calamos, mesmo que com isso eu venha a perder o emprego de professor
desse delírio chamado Língua Portuguesa? Formaremos assim um novo
Departamento nessa Universidade, o dos cânones do Silêncio, desse jeito
mesmo, com S maiúsculo, e nele evocaremos o que se esqueceu de ecoar, de
vir até aqui. De início será a única cadeira da Universidade, a nova Teologia,
de onde sairão miríades de outras tantas ramificações. (NOLL, 2004, 104).
Esse narrador deseja novamente entranhar-se em sua ngua, percebê-la, senti-la,
estudá-la e, ao mesmo tempo, quer estrangeirar-se dela, e, mais uma vez, está a se
perguntar para que escrever. Sua metáfora e sua discussão metaficcional estão diante de
uma encruzilhada: para que escrever? E se há apenas a possibilidade de desentranhar da
língua aquilo que ela possui de mais genuíno, sua forma, seu corpo, para dizer aquilo
que o sujeito pode saber, a representação acaba por ser algo da ordem do silêncio,
principalmente nessa escrita que se faz negando-se a si mesma. O teatro da aparição, em
sua instantaneidade, cria a ilusão de não-representação, opera com a transformação da
escrita em fala, prosa, poesia, tenta desfazer o ilusionismo que não é, por sua vez,
desfeito, pois é representação também. Os cânones do Silêncio é o que essa escrita
procura, mas sabe de antemão da impossibilidade de estes se fazerem sem base
alguma, pois é na recuperação do que foi esquecido, do que não ecoou é que irá
produzir-se. João Gilberto Noll parece dizer, com isso, que a entrada na tradição não é
tranqüila, é algo sofrido e é um processo, pois não ocorre como algo pronto, está sempre
em devir buscado pelo sujeito. A escrita nolliana procura seus precursores, altera a
ordem de seus pais e faz questão de enlamear a tradição para deslocá-la, e isso é feito de
forma antropofágica. E uma das questões em que essa antropofagia instaura-se ou
deixa-se ver está nas relações homoeróticas representadas, o que será tratado no
próximo capítulo.
Capítulo III
“Um beijo que morde”
[...] por que seguir leis comuns se
eu não era comum, por que fingir-
me igual aos outros, se era
totalmente diferente? [...] É esta a
única liberdade que possuímos
integral: a de sermos monstros para
nós mesmos.
Lúcio Cardoso
De acordo com João Silvério Trevisan, em seu livro pioneiro, Devassos no
paraíso, publicado pela primeira vez em 1985, que resolve recolher e relatar os casos
homoeróticos existentes na literatura e nas outras artes no Brasil, percebe-se que poucos
escritores estiveram interessados em tratar do tema das relações homoeróticas.
Na parte IV de seu livro, João Silvério Trevisan revisa as artes brasileiras, da
literatura ao cinema, passando pelas artes plásticas, fotografia e chegando à televisão,
fazendo um levantamento sobre a questão da representação do homossexual ou de
relações homoeróticas nesses veículos. No caso da literatura, que me interessa mais de
perto, Trevisan afirma que desde Gregório de Matos a personagem homossexual era
representada. O autor debruça-se rapidamente sobre o caso de Álvares de Azevedo,
chega ao naturalismo brasileiro, através de O cortiço e O bom crioulo, e afirma sobre o
livro de Adolfo Caminha: “Poucas vezes a literatura brasileira produziu uma obra tão
corajosa e direta sobre amores proibidos” (TREVISAN, 2002, 254).
O autor de Devassos no paraíso revisa a obra de Olavo Bilac, João do Rio e
Mário de Andrade e, demorando-se nos poemas e nas cartas do poeta modernista, faz
mais uma análise da vida do que propriamente da obra com relação ao homoerotismo
presente nela. Lúcio Cardoso e seu romance Crônica da casa assassinada, Otávio de
Faria e sua Tragédia burguesa e Guimarães Rosa com Grande sertão: veredas são
também analisados. Na obra de Guimarães Rosa, João Silvério Trevisan destaca a
“deslumbrante celebração à ambigüidade” do romance (TREVISAN, 2002, 263).
Cassandra Rios e sua literatura denominada à época como pornográfica, que descrevia
uma homossexualidade feminina com conotações sadomasoquistas, é outra escritora
identificada com a questão homoerótica para João Silvério Trevisan, que também
menciona a literatura de Aguinaldo Silva para depois analisar as produções de Caio
Fernando Abreu e Silviano Santiago. O autor crê que Caio Fernando Abreu possui uma
“voz personalíssima [...] com seus contos cheios de rapazes sonhadores e abúlicos, em
clima pós-desbunde, procurando amor na cidade grande ou arrastando consigo uma
sexualidade sem paz(TREVISAN, 2002, 265). Silviano Santiago é visto como “um
ficcionista mineiro que escreveu contos sensíveis, advogando a necessidade de uma
literatura engajadamente guei”, (sic), que, para Trevisan, é um “fato raro na vida
literária brasileira” (TREVISAN, 2002, 265). É importante salientar que, para
Trevisan, a partir da década de 1970 é que surgiram poetas definitivamente
envolvidos com a questão homoerótica. O autor também analisa as obras de Roberto
Piva, visto como “uma presença precursora e excepcional” (TREVISAN, 2002, 266),
de Glauco Matoso, cujo trabalho “parece um sopro de radicalidade necessária à poesia
que perde assim seus limites e estribeiras” (TREVISAN, 2002, 267), e de Valdo Motta,
visto como inimigo “da pusilanimidade [...] [que] busca o ideal de uma poesia
apocalíptica e escatológica no sentido tanto de fim de ciclo histórico quanto de
ligação à fecalidade” (TREVISAN, 2002, 269).
Oswald de Andrade é um caso à parte para João Silvério Trevisan. Segundo ele,
a obra do escritor modernista está “pontilhada por situações e personagens
homossexuais sem meios-termos, mas criticamente apresentadas, em geral associando-
os à decadência burguesa”. João Silvério Trevisan cita O rei da vela, de 1933, e suas
situações cômicas, que envolvem questões homossexuais. Comenta rapidamente Chão e
depois passa a comentar Serafim Ponte Grande, que como um texto com “deliciosas
situações em que a pederastia funciona dentro de um clima de amoralismo e depravação
corrosivos” (TREVISAN, 2002, 278), para arrematar que, apesar “do seu escracho, os
acentuados preconceitos de Oswald de Andrade deviam-se à sua proximidade cada vez
maior com o Partido Comunista de então, pautado pelo rigor do moralismo stalinista”
(TREVISAN, 2002, 278). Sabe-se que Josef Stalin cria uma perseguição homofóbica
durante seu comando, pois enxergava a prática homossexual como produto da
decadência burguesa. Mesmo que Oswald de Andrade tenha suas simpatias pelo Partido
Comunista, quando escreve Serafim Ponte Grande suas opiniões estão dentro de um
preconceito menos político do que de classe ou de cultura. Vale lembrar que sua
literatura antropofágica tinha como finalidade destruir o gosto burguês e não ser uma
bandeira a favor do homoerotismo. Mesmo assim, dentro dessa liberdade pregada pelo
movimento antropofágico é possível divisar uma liberdade sexual grande, a qual o
homoerotismo poderia alcançar não houvesse outros fatores envolvidos, como questões
anteriores da própria cultura, que preferia mascarar a explicitar.
Denílson Lopes irá tratar da questão da literatura homoerótica em seu livro O
homem que amava rapazes, de 2002. Em um artigo denominado “Uma história
brasileira”, Denílson Lopes pretende fazer o que ele chama de história de uma
homotextualidade na literatura brasileira. Ele irá lançar mão de uma teoria bastante
polêmica, retirada de Jacob Stockinger, que afirma que a “sexualidade entra na
definição do texto, e não por aspectos ideológicos ou biográficos, indo além da
identificação de práticas eróticas” (STOCKINGER apud LOPES, 2002, 122). Partindo
do trabalho de João Silvério Trevisan, que ele chama de levantamento introdutório,
Denílson Lopes pretende ir além e, para isso, arma-se de mais teoria do que seu
predecessor. É um trabalho corajoso, mas que não vai muito além do levantamento da
questão, embora insira esse novo conceito homotextualidade —, bastante
instigante, mas que não foi desenvolvido para além desse artigo, pelo menos até agora.
Parece haver um cansaço por parte do crítico com a questão ou, impossibilitado de ir
adiante em sua teoria por falta de argumentos, ele talvez tenha abandonado a discussão
sobre o assunto, o que é lamentável para um tema que precisa ser mais bem pesquisado.
Denílson Lopes dá um passo além de João Silvério Trevisan ao não reconhecer a
questão da homotextualidade em Gregório de Matos, mas reconhece, da mesma forma
que o autor de Devassos no paraíso, em O bom crioulo um texto da emergência
homoerótica na literatura brasileira. Essa afirmação parece-me equivocada, pois o
homoerotismo no texto de Adolfo Caminha, publicado em 1895, é tratado como doença,
como falta de opção, como marginalidade, e não visto como possibilidade afetivo-
sexual para os sujeitos. Denílson Lopes reconhece que “é ainda necessário buscar
construir o solo que possibilitou a emergência decisiva de uma homotextualidade, para
além de trabalhos isolados, momento que se no interior da literatura
contemporânea” (LOPES, 2002, 123). O levantamento dele está ligado diretamente à
literatura, diferentemente da recolha de Trevisan, que não estava interessado apenas na
questão literária. Fato interessante: Denílson Lopes praticamente exclui as mulheres de
seu trabalho. Vejamos:
Quando as energias utópicas e rebeldes que agitaram os anos 60 e parte dos
70 começam a perder força, um horizonte pós-moderno constituído e
interpretado por desejos e identidades homoeróticas emerge. Paisagens entre
a melancolia e a alegria possível, a deriva sexual e o temor da Aids, a
solidão e a ternura, a desterritorialização e a busca de novos tipos de
relações. É nesse sentido que pode ser entendido o melhor da obra de Caio
Fernando Abreu, Keith Jarret no Blue Note, de Silviano Santiago, bem
como os trabalhos de Edilberto Coutinho, José Carlos Honório, Jean-Claude
Bernardet, João Gilberto Noll, Bernardo Carvalho, letras de Cazuza e
Renato Russo, poemas de Ana Cristina Cesar. (LOPES, 2002, 140).
Denílson Lopes maior ênfase ao trabalho de Caio Fernando Abreu e Silviano
Santiago e, conforme João Silvério Trevisan, acredita que os textos desses autores
sejam engajados em produzir uma literatura homoerótica. A João Gilberto Noll, que
nem aparece na lista do autor de Devassos no paraíso, Denílson Lopes dedica um
parágrafo, pois não consegue identificá-lo a uma literatura homoerótica, embora cite
A céu aberto como um texto que possui traços dessa homotextualidade que ele
reivindica. Conforme ele mesmo afirma:
Para além dos espaços, no retratamento da tensão existente na deriva que
possibilita encontros e desencontros das desidentidades contemporâneas,
entre as viagens e o desejo de casa, estabilidade, talvez a obra mais
representativa seja a de João Gilberto Noll, que representou nos anos 80 a
versão brasileira mais bem sucedida de uma estética road movie, emoções
traduzidas por imagens secas e vocabulário enxuto. No quadro geral de uma
pan-sexualidade, fica a questão se os encontros entre homens e meninos,
como em “Alguma coisa urgentemente” (in O cego e a dançarina, 1980),
em Rastros do verão (1986), no desejo exacerbado de A ria do corpo
(1981) e mesmo no jogo de duplos masculinos, no espaço entre Brasil e
Estados Unidos, em Bandoleiros (1985), implicam a constituição de uma
homotextualidade, mas certamente seu último romance, A céu aberto
(1996), constrói um universo onírico, elíptico, decisivamente homoerótico
de uma guerra deslocalizada em que a deriva espacial se conjuga à deriva do
desejo. (LOPES, 2002, 144-145).
A citação é grande, mas é necessário analisar as afirmações de Denílson Lopes
no que diz respeito ao trabalho de João Gilberto Noll. Em um primeiro momento, a obra
do escritor gaúcho é vista sob a ótica dos exercícios comuns à pós-modernidade, e só ao
fim do trecho é que A céu aberto é considerado um homotexto. Não deixa de ser
instigante essa indecisão do crítico. O fato é que a obra de Noll, com seu elevado teor de
inclassificação, acaba por desnortear a crítica. Mesmo descrevendo em vários de seus
textos cenas homoeróticas, ainda assim não se consegue classificá-las como algo da
ordem do homoerotismo. Em comparação com os outros escritores, Noll não abre em
momento algum seu texto para uma afetivização das relações homoeróticas como o quer
Denílson Lopes, o que o colocaria sob suspeição. Isso está relacionado ao fato de um
homotexto estar diretamente relacionado, para Denílson Lopes, a essa afetivização que
marcaria um espaço diferenciador para esses textos.
No cômputo geral, o homoerotismo, quando aparecia na literatura brasileira, era
mostrado de forma subtendida e sutil. Em raros casos no cenário da literatura nacional
era levado a sério e, nas muitas vezes em que aparece, é tratado como doença. Parece-
me que a partir de finais da década de 70 do século XX é que se começou a dar
espaço a essa literatura, no que os dois autores parecem concordar. Além disso, os
formadores do none brasileiro, de um modo geral, optaram por não reconhecer a
literatura que tratava do assunto como uma literatura que deveria receber um tratamento
sério, pois para muitos era considerada uma literatura marginal, apelativa ou sem
conteúdo. Assim como as personagens e seus amores eram marginalizados, textos que
tratavam dessas questões também o foram. Uma ou outra antologia sobre o assunto
aparece de vez em quando no mercado editorial brasileiro, conforme informa tanto João
Silvério Trevisan quanto Denílson Lopes, como a que Gasparino Damata organiza em
1967. Beatriz Resende, ao pesquisar textos da belle épóque em uma antologia
denominada Cocaína Literatura e outros companheiros de ilusão (2006), traz alguns
textos em que as relações homoeróticas, principalmente femininas, aparecem, o que
demonstra que essas relações eram mostradas, mas não discutidas. Em Frescos trópicos,
James N. Green e Ronald Polito informam sobre um texto que, segundo os autores,
pode ter sido a “primeira história pornográfica homoerótica brasileira”, intitulada O
menino do Gouveia, publicada provavelmente em 1914 pela revista Rio Nu, que
circulava desde 1898. O texto, que possuía 15 páginas e vinha acompanhado de uma
ilustração em que dois homens copulavam, é considerado pelos autores como não-
possuidor de valor literário, ainda que seu autor, Capadócio Maluco, apresente uma
“interpretação positiva das práticas homoeróticas” (GREEN e POLITO, 2006, 37-38).
A literatura de cunho homoerótico passa a ter destaque no mercado editorial a
partir dos anos 80 com os caminhos abertos pelo pós-modernismo, que privilegia a voz
daqueles que não possuíam espaço para falar, como, por exemplo, negros, mulheres,
indígenas e homossexuais. A organização desses movimentos e a entrada desses setores
em grupos de estudos e análises nas universidades através dos estudos culturais também
ajudam o assunto a difundir-se. A escalada da AIDS, como uma doença “maldita” dos
homossexuais, e das histórias que passam a ser criadas para falar, seja da perda de entes
queridos ou de biografias ou autobiografias de pessoas infectadas, que mostrariam em
seus textos como viver com a doença, parece ter alavancado ainda mais essa produção
denominada por Denílson Lopes de homotextos.
Marcelo Secron Bessa, em seu texto Histórias positivas (1997), mostra um
levantamento feito por Franklin Brooks e Timothy F. Murphy entre 1982 e 1991 que
demonstra que nos EUA havia 134 livros sobre o tema, entre contos, romances e
novelas, e 34 livros de poemas, 31 livros de biografias ou autobiografias e 31 artigos
críticos (BESSA, 1997, 39). No Brasil, desconheço algum tipo de produção que
contabilizaria essa literatura dessa forma até o momento.
Os estudos sobre esse tipo de produção também cresceram e a teoria literária
viu-se enriquecida com novas teorias, como a idéia de uma escrita de gênero que
incluiria a escrita gay e a teoria queer. Sobre essas questões, têm destaque no Brasil o
trabalho pioneiro, citado, de Denílson Lopes, o trabalho de Jurandir Freire Costa, na
área da psicanálise, e o trabalho de Guacira Lopes Louro e Thomas Tadeu da Silva, na
área da educação, com relação à teoria queer.
Jurandir Freire Costa é responsável pelo grande trabalho de juntar suas pesquisas
na área da psicanálise e da medicina social a análises de escritores homossexuais em
seus livros, do qual A inocência e o vício, cujo subtítulo, “Estudos sobre o
homoerotismo”, é responsável pela utilização das expressões homoerotismo ou
homoerótico nessa tese. É graças a esse tipo de trabalho que se pode visualizar o
homossexualismo com menos preconceito, liberando-o do ranço com que foi tratado
durante muito tempo. Ao acreditar que os sujeitos são fruto de sua linguagem, pois as
“subjetividades [...] são uma decorrência do uso de nossos vocabulários ou da maneira
como ensinamos e aprendemos a ser sujeitos” (COSTA, 1992, 16), e que cultura é um
conceito que circunscreve algo a seu tempo e a um espaço delimitados geograficamente
e historicamente é que Jurandir Freire Costa consegue teorizar sobre a necessidade de
alterar a palavra homossexualismo, carregada de negatividade durante tantos anos de
existência na cultura, para homoerotismo, que seria uma forma mais positiva e mais
saudável de perceber esses sujeitos que não se enquadram no sistema único de desejo da
sociedade ocidental. Para Freire, o termo homoerotismo seria mais adequado, pela sua
amplidão, para descrever as peculiaridades da sexualidade brasileira, que não se
enquadra no tipo de sociedade, de certa forma homogênea, quanto a políticas sexuais,
como os EUA e a Europa ocidental.
Outro teórico da questão, Jonathan Katz, afirma, em seu livro A invenção da
heterossexualiddade, que a própria palavra heterossexual e sua representação foram
criadas pelo discurso médico no século XIX com noções negativas. Para esses
cientistas, heterossexual seria, em um primeiro momento, aquele que pensa em sexo e
quer praticá-lo a todo momento. Segundo o escritor norte-americano, com o passar do
tempo, a expressão heterossexual passou a se contrapor ao termo homossexual e a ser
aceito como prática saudável de orientação sexual. Jonathan Katz cita o caso do médico
alemão Kraft-Ebing e seu livro Psychopathia sexualis, de 1892, que utiliza o termo.
Segundo Jonathan Katz, o
[...] uso de Kraft-Ebing da palavra hetero-sexual para significar um erotismo
normal de sexo diferenciado indicou um primeiro afastamento histórico da
centenária norma reprodutiva. Seu uso dos termos hetero-sexual e homo-
sexual ajudou a tornar a diferença entre os sexos e o eros as características
distintivas básicas de uma nova ordem social, lingüística e conceitual do
desejo. Seus hetero-sexual e homo-sexual ofereceram ao mundo moderno
dois erotismos de sexo diferenciado, um normal e bom, outro anormal e
ruim, uma divisão que viria a dominar a nossa visão do século XX do
universo sexual (KATZ, 1996, 40) (grifo meu).
Pelo trecho acima, nota-se e pode-se concordar com Freire que a questão de uma
homossexualidade doentia e de uma heterossexualidade saudável é uma criação de
linguagem e de uma cultura calcadas na reprodução humana como fim e base da
sociedade ocidental. O que em um dado momento era um conceito médico ganha o
mundo e torna-se preconceito devido ao grande número de publicações e à forma como
esse discurso passa a ser desvirtuado ao atingir o público leitor, graças inclusive à
literatura. Em Eros travestido, Lúcia Castello Branco demonstra como a burguesia
divertia-se com os trechos dos romances naturalistas que traziam relações eróticas de
um modo geral. Segundo a autora,
[...] além de obedecerem às normas de conduta de seu tempo, os escritores
realistas acabavam por atingir, através da diluição do erotismo, efeitos de
maior eficácia. Ofereciam o prazer de forma diluída e elaborada para
proveito próprio e de um leitor também distante que, imitando suas atitudes
de observadores, usufruía calado dos efeitos eróticos do silêncio e do
visualismo exaustivo. Leitor e narrador assumiam, portanto, as posições de
voyeurs e lançavam mão de um recurso tão antigo quanto a história do
erotismo, o voyeurismo, no qual o indivíduo atinge sua satisfação não por
fazer, mas por ver o que é feito. Sem compromisso e com discrição, os
escritores realistas terminaram por encontrar suas fórmulas para gozar dos
prazeres à margem, permitindo que Eros fosse visto por olhos sensíveis e
refinados daqueles que entendiam que “ver” pode, às vezes, ser tão efetivo e
gratificante quanto “fazer” (BRANCO, 1985, 38).
Assim, através desse voyeurismo, que trazia um grande prazer ao público
burguês que consumia avidamente essa literatura, os preconceitos, tratados como
conceitos médicos, nessas narrativas eram passados adiante e ajudavam a isolar ainda
mais a figura do homossexual, visto como ser doente, criminoso e nocivo para a
sociedade. Como os escritores realistas e naturalistas consideravam-se e eram
considerados cientistas, muitas vezes suas palavras eram tidas como verdades absolutas
e a “sociedade garantia-lhes o direito de tocar no que não poderia ser tocado por mãos
de leigos” (BRANCO, 1985, 51).
Outro pensador ocidental que ajuda a discutir a questão é Michel Foucault com
sua História da sexualidade:
O homossexual do século XIX torna-se uma personagem: um passado, uma
história, uma infância, um caráter, uma forma de vida; também é
morfologia, com uma anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia
misteriosa. Nada daquilo que ele é, no fim das contas, escapa à sua
sexualidade. Ela está presente nele todo: subjacente a todas as suas
condutas, que ela é o princípio insidioso e infinitamente ativo das
mesmas; inscrita sem pudor na sua face e no seu corpo que é um segredo
que se trai sempre. É-lhe consubstancial, não tanto como pecado habitual
porém como natureza singular. É necessário o esquecer que a categoria
psicológico, psiquiátrica e médica da homossexualidade constituiu-se no
dia em que foi caracterizada [...]. A homossexualidade apareceu como uma
das figuras da sexualidade quando foi transferida, da prática da sodomia,
para uma espécie de androgenia interior, um hermafroditismo da alma. O
sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma espécie.
(FOUCAULT, 2005, 43-44).
De acordo com os trechos citados, o homossexual passa a ser visto como uma
personagem estranha e facilmente classificável, necessária a ciência para uma possível
cura, pois é vista como algo negativo dentro da sociedade reprodutiva patriarcal
ocidental judaico-cristã. Essas inferências médicas passariam a organizar uma espécie
que não merece mais do que o estudo da medicina para sua redenção, o que coloca o
homossexual como alguém alienado de seu próprio processo, incapaz de fazer suas
escolhas e incompetente até mesmo para gerenciar sua vida, digno de pena e receptáculo
de todas as formas de negatividade que a sociedade pode conceber. Daí a necessidade
da alteração postulada por Jurandir Freire Costa para o termo homossexualismo, pois
poderia pensar-se na construção de uma democracia sexual verdadeira, algo que esse
termo não pretendeu construir, posto que utilizado para diagnosticar a doença ou criar a
marginalização do indivíduo. Partindo dessa premissa, utilizo o termo homoerotismo
para referir-me às relações apresentadas por João Gilberto Noll em seus textos, o que
aproximaria sua escrita de uma produção queer.
Guacira Lopes Louro, em seu livro Um corpo estranho, ensaios sobre
sexualidade e teoria queer, desenvolve a idéia do que é o queer:
Estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o sujeito da sexualidade
desviante — homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis, drags. É o
excêntrico que não deseja ser “integrado” e muito menos “tolerado”. Queer é
um jeito de pensar e de ser que não aspira o centro nem o quer como
referência; um jeito de pensar e de ser que desafia as normas regulatórias da
sociedade, que assume o desconforto da ambigüidade, do “entre-lugares”, do
indecidível. Queer é um corpo estranho, que incomoda, perturba, provoca e
fascina. (LOURO, 2004, 7-8).
O queer é uma forma bastante radical de se operar teoricamente com essa
questão do estranho e, talvez, as personagens de João Gilberto Noll inscrevam-se nesse
esquema, pois perturbam não só a ordem das coisas como os paradigmas de convivência
e aceitação social com as quais se deparam. A teoria queer pressupõe um espaço em que
o desejo torna-se o móvel e o sujeito da representação organiza-se como excentricidade,
não necessitando mais do centro ou tendo como possibilidade um outro centro para se
organizar enquanto sujeito. A teoria queer trabalha com algo instável, pois não uma
única política para esse tipo de questão ou estratégia única, mas, como existem queers
de todo o tipo e práticas sexuais as mais diversas, essa teoria tenta dar conta dessa
instabilidade, percebendo que o que há é a diferença.
Para David Halperin, citado por Nikki Sullivan, queer seria mais um
posicionamento do que uma identidade, no modo de pensar humanista; o está restrito
a gays e lésbicas, mas pode ser tomado por qualquer um que se sinta marginalizado
como resultado de suas práticas sexuais (HALPERIN apud SULLIVAN, 2003, 44).
Nikki Sullivan cita um panfleto anônimo intitulado Queer power now”, que diz o
seguinte: “Queer means to fuck with gender. There are straight queers, bi-queers, tranny
queers, lez queers, fag queers, SM queers, fisting queers” (SULLIVAN, 2003, 44). Não
há, portanto, uma única identidade, identidades em determinados momentos e
determinadas situações que podem ser desfeitas ou refeitas, desconstruídas, montadas,
desde que o sujeito deseje, o que equivale a dizer que um descentramento e que tudo
é deslocamento. Vale lembrar, ainda, que a teoria queer, conforme Gloria Anzaldúa, é
uma teoria que serve para abarcar uma série de queers ligados à raça, etnias, classes,
etc, e que, nesse momento, é utilizado para solidificar as prioridades desses grupos. Ela
lembra que o termo também homogeneíza e apaga as diferenças (ANZALDÚA apud
SULLIVAN, 2003, 44).
Voltando à tese de Denílson Lopes, esta defende que aquilo que compõe um
homotexto estaria baseado em algumas características que seu ensaio aponta. Não são
características exclusivas de homotextos, mas elas se repetem em produções do tipo. A
primeira delas seria a “centralidade do artifício na constituição de uma identidade e uma
estética homoerótica” (LOPES, 2002, 133). O artifício é pensado enquanto máscara e
deve ser entendido através da produção de linguagem, pois, desde as personagens cheias
de apetrechos, como travestis e drags, à linguagem desses textos algo de artificial,
fora do padrão de uma literatura considerada bem comportada. Muitas vezes o excesso
de palavras, de descrições, de organizações frasais beirariam o barroco, tal a quantidade
de artifícios utilizados, demonstrando um gosto pelo espetáculo.
A estética camp é um tipo de produção cultural muito conectada ao universo
homoerótico e cuja palavra que a nomeia, derivada do termo francês camper, tem o
significado de apresentar-se de forma exagerada”, e, no inglês, significa “efeminado”,
algo que ressignifica valores da sociedade patriarcal, como as questões de gênero e de
cultura. Para Susan Sontag, o camp era uma atração para as qualidades humanas que se
expressavam por si mesmas em “tentativas de falsas seriedades”, tendo estas qualidades
um estilo particular e único que refletia a sensibilidade da época. Isto implica a estética
do artifício mais que da natureza. O termo começou a ser utilizado a partir dos anos 60
para referir-se à teatralização hiperbólica da feminilidade na cultura gay, sobretudo em
relação a uma série de práticas performativas que adquiriram um caráter coletivo e
político. Estas práticas tinham um enorme potencial subversivo ao tornar manifesta a
artificialidade das diferenças de gênero e romper a fronteira entre o âmbito fechado da
representação cênica e o espaço público da reivindicação política (SULLIVAN, 2003,
81-85).
A impureza seria outra dessas características, através do plágio, da citação e
autocitações explícitas, conforme se percebe nessa literatura de um modo geral. A
quantidade de fragmentos de outros textos e as paródias reforçariam ainda mais essa
artificialidade com a qual esses textos operam. O gosto pelo onírico e pelo elíptico
apareceria também nessa escrita homoerótica em que sonhos mesclam-se ao real das
narrativas sem dar muito tempo ao leitor de saber qual é a diferença entre um e outro.
Pode-se notar que as características de um homotexto apontadas por Denílson Lopes em
seu artigo aproximam-se de caracterísitcas presentes em alguns textos que não se
querem ou não desejam ser homotextos. Acredito que é necessário mais do que essas
características para que essa produção seja reconhecida como homoerótica. uma
questão de engajamento político que Denílson Lopes não quis mencionar e uma
intencionalidade, por parte do autor, em trabalhar com o tema não como forma de
denúncia ou descrição de uma situação, mas como forma de trazer o universo que lhe é
próprio muitas vezes, visto que ele se assume como um sujeito orientado sexualmente
para o homoerotismo. Creio que esta seja uma questão muito mais espinhosa do que se
apresenta nesse momento. Em muitos estudos e pesquisas sobre homoerotismo na
literatura, tomam-se muitas vezes as descrições de cenas ou questões relativas a relações
homoeróticas, mas com freqüência não se aprofunda a questão, caindo-se quase sempre
em proselitismo. Aqui é preciso um pouco mais de cuidado para que não se tome tudo
aquilo que fale desse universo como a descoberta da grande novidade e não se deixem
passar textos que não possuem interesse, além do político, por obras-primas. Nem
também relegá-los a um lugar de literatura da “não-imaginação”, para ficar em um
termo utilizado nesta tese, só porque são textos políticos. Esse cuidado é necessário a
todo pesquisador, até mesmo para o bem da teoria com a qual se quer trabalhar, e visto
que é uma literatura que cada vez aumenta em número de publicações e de leitores.
Muitas vezes se faz uma literatura engajada em dar visibilidade a esses grupos
de minorias e fazer a política de aproximação entre o público e esse segmento editorial.
Mesmo mantendo o estatuto de coisa escrita, sendo, portanto, literatura, há, em vários
casos, um flerte muito grande com o mercado, o que levaria à produção de estereótipos.
Marcelo Secron Bessa chama a atenção para a dificuldade de se definir uma literatura
gay no Brasil, pois uma grande dificuldade de os escritores brasileiros, ligados
principalmente à academia, assumirem-se como gays e fazerem textos especificamente
para esse público. Marcelo Secron Bessa cita Caio Fernando Abreu:
Acho que literatura é literatura; ela não é masculina, feminina ou gay. E
como o ser humano também não é. Não acredito nessas divisões, o que
existe é sexualidade. Cada um é sexuado ou assexuado; se você é sexuado,
tem mil maneiras de exercer a sexualidade. E se nós formos
compartimentalizar essas coisas, acho que dilui, pois fica uma editora gay,
publicando escritor gay, que vai ser vendido numa livraria gay, que vai ser
lido apenas por gays. (ABREU apud BESSA, 1997, 43-4).
Além disso, não por esse motivo é difícil pensar em uma literatura gay no
Brasil; é também difícil definir que mercado é esse e quem é o público consumidor
desse tipo de literatura, pois entre a população, de um modo geral, a assunção de uma
identidade gay é também bastante discutível. Mesmo com toda visibilidade conseguida
pelos grupos que lutam pelos direitos de minorias, ainda muito por se fazer com
relação à liberação das possibilidades e maneiras de se conviver com essas sexualidades
ditas periféricas com tranqüilidade. Ainda está por se fazer a possibilidade da parceria
civil, da criminalização da homofobia, da liberdade do cidadão homossexual de sentir-
se com direitos nessa sociedade tão pouco libertária como a sociedade brasileira, em que
até os direitos do cidadão, de um modo geral, não são respeitados.
Nesse caminho, é preciso separar o que se chama de literatura homoerótica da
gay fiction. Chamo literatura homoerótica textos que não são apenas produtos de
entretenimento, nem apenas engajados politicamente. O Homoerótico não pode ser
pensado em um passado em que não se refletia nem se teorizava sobre esse tipo de
produção, do grande problema em tentar enxergar em uma produção dos finais do
século XIX e começos do século XX esse tipo de texto, conforme alguns trabalhos
demonstram. Pode haver uma homotextualidade, sim, pois o tema aparece, mas não
creio que se possa chamar essa produção de homoerótica, pois não uma intenção
direta e uma consciência do que seja a questão, pois esta é barrada pelo preconceito
pertencente a cada época. Portanto, literatura homoerótica está aqui entendida como
uma produção que quer discutir a questão das identidades homeróticas, queers, gays,
sabendo que a noção de gênero nada mais é do que uma ilusão de naturalidade, que é
“uma identidade tênue constituída em e através da estilizada repetição de ações”
(BUTLER apud SULLIVAN, 2003, 85). Essa literatura defende uma saída para as
questões afetivas dos sujeitos excêntricos, trabalha com o artifício, com o onírico, com
o impuro, não perdendo de vista seu ponto central: a literatura e outros temas maiores,
como as questões humanas que envolveriam a todos.
textos que entram na moda de descentralização do cânone e contam histórias
de triângulos amorosos, casos entre sujeitos excêntricos, mas de uma forma linear e
pouco criativa. Quase sempre a gay fiction está recheada desse tipo de texto, muitas
vezes histórias glamourizadas ou ligadas demais a meros relatos “reais” de seus
narradores. São descrições de cenas de relações sexuais, carinhos que lembram mais
revistas cor-de-rosa femininas das décadas de 50 a 80 e ainda encontradas em bancas de
revistas por todo o país.
A literatura que se distingue desse tipo é feita no país, mas carece de uma maior
visibilidade, ofuscada como se encontra pela literatura de mercado. um público para
esse tipo de literatura, principalmente o público acadêmico, como se pode perceber pela
aceitação cada vez maior de autores como Silviano Santiago, João Silvério Trevisan e
Caio Fernando Abreu, este último um dos grandes mestres da literatura homoerótica,
que não aceitava rótulos, conforme pode ser visto em trecho da entrevista citada. É
preciso deixar claro que nem todo público que esses textos é formado pela
comunidade gay. Dessa forma, o homoerotismo não é apenas uma categoria, mas uma
peculiaridade da literatura de João Gilberto Noll, que assume um ponto de vista ao
tornar sua literatura palco das representações de relações homoeróticas. Não uma
literatura bem-comportada, mas uma literatura transgressora que, ao descrever cenas de
relações homoeróticas, faz uso do erotismo conforme preconizado por Georges Bataille
(2004). O erótico tanto no escritor gaúcho quanto no teórico e escritor francês abre-se
para a violência natural, mesmo dentro da cultura civilizada, como tentativa de
continuidade para seres tão descontínuos quanto os seres humanos. Esse erotismo
natural no qual o sujeito do gozo é o mesmo sujeito da morte, no qual dor e prazer se
unem, provocando a chamada “pequena morte”, é que interessa a eles. Para Bataille, a
“violência do prazer espasmódico se faz no mais recôndito do meu coração. Ao mesmo
tempo, esta violência me estremeço ao dizê-lo é o coração da morte: se abre em
mim” (BATAILLE, 2002, 37).
O homoerotismo nos romances de João Gilberto Noll vai muito além da mera
descrição de cenas ou da narração do cotidiano de sujeitos homoeróticos. A
excentricidade desses sujeitos é narrada com relação ao mundo que os cerca e de acordo
com as relações que eles estabelecem com os diversos representantes dos grupos
humanos na cultura hoje. Na enunciação de Noll, pode-se perceber também o que se
pode chamar de homoerotismo ao trabalhar com as características levantadas por
Denílson Lopes, mas ultrapassando-as. Nesse ponto, o queer lembraria o dissenso ou a
paralogia, já comentados em capítulos anteriores, nessa literatura que não se encerra em
si mesma, mas entra em contato com o mundo o no consenso, mas na dissensão das
coisas. Não estou buscando rótulos para nomear as produções nollianas, pois elas se
organizam por si mesmas, produzindo sua própria teoria, mas esses termos podem
facilitar a entrada nesse universo tão próprio que é o universo de João Gilbertto Noll e
suas representações.
Além de trabalhar com os conceitos queer e homoerotismo, considerei pertinente
utilizar em minha análise o conceito de antropofagia, traço tão presente nos textos
nollianos. O conceito retirado diretamente de Oswald de Andrade e seu “Manifesto
Antropófago” (1928) remete-me a essa devoração do que é da outra cultura, do
estrangeiro, para poder produzir a arte brasileira. Não deixa de ser interessante, ainda
que não confirmada pelo próprio autor, a semelhança da proposta de literatura feita por
Oswald de Andrade e a proposta da literatura produzida por Noll. Esta tese quer
comprovar na obra nolliana uma confluência, para lançar mão de um termo utilizado
pelo próprio Noll, da antropofagia oswaldiana, confirmando esse escritor gaúcho como
herdeiro da tradição. Nesse ponto, o homoerotismo é uma forma antropofágica de se
produzir essa literatura.
Benedito Nunes, em seu texto “A Antropofagia ao alcance de todos”, demonstra
todo o raciocínio de Oswald de Andrade ao produzir seu manifesto. Nunes nota que o
autor paulista e grande teórico da antropofagia parte de uma idéia de Michel Eyquem de
Montaigne retirada de seu ensaio “Dos canibais” e das diversas leituras que o escritor
brasileiro havia feito dos cronistas viajantes do século XVI ao XIX no Brasil para,
partindo dos rituais antropofágicos dos índios brasileiros narrados pelos cronistas,
construir sua formulação antropófaga. Nessa realização, Oswald de Andrade releria
esses relatos com um olhar brasileiro e nada colonizado. O ato de deglutir a carne
estrangeira e assimilar o que ela tinha de melhor é tomado pelo escritor paulista como
metáfora de uma necessidade de afirmação da arte brasileira como centro e não como
periferia. Para Benedito Nunes, a antropofagia é um
[...] vocábulo catalisador, reativo e elástico, que mobiliza negações numa
negação, de que a prática do canibalismo, a devoração antropofágica é o
símbolo cruento, misto de insulto e sacrilégio, de vilipêndio e de flagelação
pública, como sucedâneo verbal da agressão física a um inimigo de muitas
faces, imaterial e protéico. São essas faces: o aparelhamento colonial
político-religioso repressivo sob que se formou a civilização brasileira, a
sociedade patriarcal com seus padrões morais de conduta, as suas esperanças
messiânicas, a retórica de sua intelectualidade, que imitou a metrópole e se
curvou ao estrangeiro, o indianismo como sublimação das frustrações do
colonizado, que imitou atitudes do colonizador. Como símbolo da
devoração, a Antropofagia é a um tempo metáfora, diagnóstico e
terapêutica: metáfora orgânica, inspirada na cerimônia guerreira da
imolação pelos tupis do inimigo valente apresado em combate, englobando
tudo quanto deveríamos repudiar, assimilar e superar para a conquista de
nossa autonomia intelectual; diagnóstico da sociedade brasileira como
sociedade traumatizada pela repressão colonizadora que lhe condicionou o
crescimento, e cujo modelo terá sido a repressão da própria antropofagia
ritual pelos Jesuítas; e terapêutica, por meio dessa reação violenta e
sistemática, contra os mecanismos sociais e políticos, os hábitos intelectuais,
as manifestações literárias e artísticas, que, até a primeira década do século
XX, fizeram do trauma repressivo, de que a Catequese constituiria a causa
exemplar, uma instância censora, um Superego coletivo. Nesse combate sob
forma de ataque verbal, pela sátira e pela crítica, a terapêutica empregaria o
mesmo instinto antropofágico outrora recalcado, então liberado numa
catarse imaginária do espírito nacional (NUNES, 1990, 15-16).
Nota-se nessa síntese perfeita de Nunes todo o programa antropófago realizado
por Oswald de Andrade, que prescindiria da devoração do alheio como forma de se
(re)inventar a literatura brasileira. A idéia da devoração dessas obras que não são
nossas, mas pertencem à cultura estrangeira, deveria ser um passo para a aquisição da
autonomia da literatura, que deixaria de ser uma arte importada para tornar-se literatura
de exportação da qual o nome Pau-Brasil é prova cabal. Além da devoração das obras,
há a devoração dos atos da civilização ocidental para a transformação do tabu em totem.
Segundo Adriano Bitarães Netto, a
[...] devoração deixou de ser, para os intelectuais das vanguardas européias e
latino-americanas, um estereótipo de crueldade e constituiu-se como uma
importante força instintiva, extremamente adequada para se criticarem os
tabus instaurados pela arte acadêmica, pela moral cristã, pelo discurso
iluminista, pelas atitudes imperialistas. Totemizado pela visão estética,
filosófica e antropológica do início do século XX, o gesto antropofágico
tornou-se, metaforicamente, um ritual indispensável para se questionar a
produção artística, a prática religiosa, a identidade nacional, a política
capitalista e a relação entre as culturas (BITARÃES, 2004, 41).
O canibalismo, de tabu, algo condenável, é transformado em algo positivo, como
prática cultural fundadora da nova arte que se produzia no mundo. No Brasil não seria
diferente. Só a partir dessa estratégia seria possível retirar a poesia que andava “oculta
nos cipós maliciosos da sabedoria” (ANDRADE, 1990, 41). É a partir do canibalismo
que Oswald de Andrade cunha o termo mais positivizado: a antropofagia. É através
dela que o relógio da literatura brasileira será adiantado ao exaltar a alegria dos que não
sabem e descobrem.
A Oswald de Andrade interessava o que era do outro e isso seria
conseguido em contato direto com esse estrangeiro, com essa alteridade que lhe era
estranha, na qual ele não se reconhece e só pode assimilá-la caso a devore. Para Haroldo
de Campos, a
[...] antropofagia oswaldiana [...] é o pensamento da devoração crítica do
legado cultural universal, elaborado não a partir da perspectiva submissa e
reconciliada do “bom selvagem” (idealizado sob o modelo das virtudes
européias no Romantismo brasileiro de tipo nativista, em Gonçalves Dias e
José de Alencar, por exemplo), mas segundo o ponto de vista desabusado
do “mau selvagem”, devorador de brancos, antropófago. Ela não envolve
uma submissão (uma catequese), mas uma transculturação; melhor ainda,
uma “transvaloração”!: uma visão crítica da história como função negativa
(no sentido de Nietzsche), capaz tanto de apropriação como de
expropriação, desierarquização, desconstrução. Todo passado que nos é
“outro merece ser negado. Vale dizer: merece ser comido, devorado.
(CAMPOS, 1992, 234-235).
Oswald de Andrade representa, em sua geração, um escritor que tentava romper
com toda e qualquer forma de conservadorismo. Antonio Candido o vê como um
problema literário que subvertia todos os valores em livros como Memórias
sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande (CANDIDO, 1992, 17-19).
Conforme afirma Haroldo de Campos, a antropofagia oswaldiana recusava-se à
submissão, assim como outras correntes da literatura brasileira anteriores a ela. E isso
produz essa nova literatura que rompe radicalmente com suas antecessoras, causando o
que o crítico paulista denomina de transvaloração.
Em suas obras, Oswald de Andrade, segundo Bitarães, “traça, de forma sempre
contraditória, quais foram seus predecessores, ao mesmo tempo em que pratica uma
escrita parricida, na qual devora e nega as relações intelectuais que ele mesmo havia
referenciado” (BITARÃES, 2004, 57). Isso reforça ainda mais a idéia de antropofagia e
de expropriação e apropriação do que é do outro produzida por Oswald de Andrade,
conforme bem sintetizada por Haroldo de Campos.
Tanto em seus enunciados quanto em sua enunciação os romances de João
Gilberto Noll aqui trabalhados renovam a devoração antropofágica. Essa devoração se
pela ação sobre outras literaturas e culturas de forma parricida e, principalmente, na
adoção de uma escrita da diferença, queer, paralógica, que transforma o ato da
devoração homossexual presente no enunciado desses romances em ato de devoração
antropofágico. Essa antropofagia pode ser entrevista na enunciação nolliana, nessa
poética da aparição, que acaba por produzir antropofagicamente uma nova forma de
escrever dentro da literatura brasileira.
O primeiro exemplo de antropofagia em Noll estaria ligado à reescrita de textos
modernistas em seus romances e contos, o que Denílson Lopes percebe como plágio e
Linda Hutcheon perceberia como paródia. Em A fúria do corpo, cenas inteiras que
lembram Oswald de Andrade em seus romances principais Memórias sentimentais
de João Miramar (1928) e Serafim Ponte Grande (1933) — e também repetem a
linguagem que Oswald de Andrade utiliza em seus poemas, por exemplo, como se pode
perceber nessa seguinte cena de carnaval:
[...] eu e Afrodite pagamos no ato, cantamos a saborosa marchinha “Me dá
um dinheiro aí”, entornamos garrafas de xampanha inteiras sobre mim
Afrodite a suíça o boyfriend romano, eles querem aprender “Me dá um
dinheiro aí”, pulamos pelo quarto em cima da cama pego a cabeça loura da
suíça e a enfio pela privada ela pede mais enfio de novo o ragatço está
pelado e se punhetando no seu gigantesco caralho Afrodite passa as agudas
unhas pelo caralho lanhando o gigantesco em arabescos de linhas de sangue
e saímos pulando “Me um dinheiro aí” pelas escadas abaixo [...]. (NOLL,
1997, 122).
Como não bastasse ser carnaval no enunciado, um carnaval na própria
linguagem, na qual termos das línguas italiana e inglesa são integrados à língua
portuguesa, que tem sua sintaxe alterada, bem como sua pontuação. Essa situação
lembra alguns trechos de Serafim Ponte Grande (1933), de Oswald de Andrade, em sua
relação com o escatológico e a linguagem de baixo calão. A cena é emblemática da
subversão das noções de civilizado e selvagem, pois as personagens brasileiras trazem
as personagens de outras nações, ditas centrais, para o terreno da sexualidade liberta dos
bons costumes. A música que eles cantam e ensinam aos estrangeiros simbolizaria a
necessidade de dinheiro, o material primeiro da civilização ocidental, agora
carnavalizado. Ensinar ao estrangeiro a cantar “Me um dinheiro aí” é uma subversão
total da ordem das coisas no mercado dos capitais nacionais. O gesto de Afrodite, nome
ocidentalizado da personagem feminina, de unhar o pênis do italiano está ligado ao fato,
comum entre os selvagens, de arranhar os corpos dos parceiros sexuais, demonstrando
um erotismo primitivo, distante do erotismo fabricado pela sociedade de consumo. Ao
mesmo tempo que se está fazendo um carinho, uma violência do próprio ato
sexual, no qual os corpos tentam satisfazer-se no jogo do desejo sexual. O beijo e a
mordida são faces da mesma moeda nessa literatura.
Além de Oswald de Andrade, Mário de Andrade e outros escritores são
retomados pelo discurso nolliano em alusões as mais diversas, que vão da simples
citação à mais completa paródia. Em outra cena, as personagens de A fúria do corpo
encaminham-se para a floresta da Tijuca e a personagem, denominada “a suíça”, tem
um orgasmo involuntário (NOLL, 1997, 130) muito semelhante à cena ocorrida em
Amar verbo intransitivo (1927), de Mário de Andrade, em que a personagem Fraülein
Elsa tem um orgasmo involuntário na visita que a família Sousa Costa faz à mesma
floresta da Tijuca (ANDRADE, 1978, 135).
Logo após, no romance nolliano, Wagner, o compositor alemão, tocava na
rádio MEC, quando a personagem Afrodite muda o dial para uma “estação que toca
caminhando e cantando e seguindo a canção somos todos irmãos braços dados ou
não (NOLL, 1997, 131-2). Percebe-se, aqui, uma paródia nolliana a partir do
fragmento do “Manifesto da Poesia Pau Brasil” no qual “Wagner submerge ante os
cores de Botafogo. rbaro e nosso (ANDRADE, 1990, 41). A paródia, no
sentido que Linda Hutcheon (1991, 45-47) dá para a questão, aparece para
ressignificar o movimento antropófago oswaldiano a partir do qual Noll lança a ponte
entre modernismo e pós-modernismo, na qual se fazem ruptura e continuidade e o
velho e o novo trocam de lugar para se atualizarem mutuamente. O autor emrico
abre o arquivo da tradição e insere-se dentro de sua escrita, implicado que está em
sua escritura.
Ainda em A fúria do corpo, uma personagem diz ao narrador: “eu consolo o
coração dos moços, sou atleta da noite, sou a estrela da manhã” (NOLL, 1997, 189)
mais uma relação com os modernistas brasileiros. Desta vez é Manuel Bandeira quem
comparece nesse romance. Bandeira reaparece citado de forma alusiva na sociedade
minimal, em Bandoleiros (1985), na qual os poetas terão “álcool, alucinógenos,
mulheres tudo” (NOLL, 1997, 239), como em Pasárgada. Esses plágios/paródias são
comuns na escrita de João Gilberto Noll como um todo, mas não necessidade de
mais exemplos no momento, até mesmo porque seria necessário listar muitas citações
como estas, o que não é o foco deste trabalho.
Em A céu aberto, uma viagem de navio que lembra as viagens das
personagens oswaldianas para a Europa, assim como em Berkeley em Bellagio e Lorde,
e essas viagens são claramente situadas em países do hemisfério norte, lembrando as
peripécias das personagens oswaldianas, presentificadas agora na literatura nolliana.
Em sua dissertação de mestrado O discurso antropofágico de Serafim Ponte
Grande, Lauro Belchior Mendes afirma o interesse de Oswald de Andrade em destruir a
retórica da civilização ocidental através da união do carnaval e da excentricidade.
Segundo Mendes:
A conduta, o gesto e a palavra se tornam excêntricos, do ponto de vista da
lógica habitual. A excentricidade constitui uma categoria especial da
percepção carnavalesca, porque permite que tudo aquilo que é normalmente
proibido se exprima sob uma forma concreta. O carnaval une o sagrado e o
profano, o alto e o baixo, contestando Deus e expressando-se através de um
discurso subversivo. (MENDES, 1977, 40).
É necessário salientar no trecho citado a palavra excentricidade, que me leva à
palavra queer, além de lembrar da noção de paralogia, expressões que podem ser
levadas para o mesmo campo semântico caso tomemos as personagens nollianas em
paralelo com as personagens oswaldianas. Personagens sempre fora do centro, as
personagens nollianas perambulam por todos os locais do mundo real ou ficcional,
como o Rio de Janeiro, Porto Alegre, Berkeley, Bellagio, Londres, sem se fixarem em
lugar algum. As personagens oswaldianas, mesmo quando no centro, teimam em
escapar dele e irem refugiar-se em locais periféricos, como João Miramar, que escolhe
voltar para o Brasil e morar na fazenda, e as personagens do navio “El Durasno”, em
Serafim Ponte Grande, sempre errantes pelo mar.
É de se notar que, nesses dois romances mais ousados e mais radicais de Oswald
de Andrade Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande —, as
personagens principais saem do Brasil para conhecer o velho mundo. Ao viajarem pela
Europa, as personagens travam contato com a dita civilização ocidental, como se pode
ver em passagens de Memórias sentimentais de João Miramar nas quais os valores da
civilização são vistos como atrasados e nada libertadores dos instintos humanos. João
Miramar, o burguês entediado com a vida que leva, e Serafim, da mesma forma, são
encarnações de como o mal-estar civilizacional é contraproducente para a felicidade
humana. Antonio Candido, ao comentar Memórias sentimentais..., produzido em 1923 e
publicado em 1928, afirma que essa obra, além de ser das “maiores de nossa
literatura”, traz a “burguesia endinheirada [que] roda pelo mundo o seu vazio, as suas
convenções, numa esterilidade apavorante” (CANDIDO, 1992, 25). Esse vazio está
presente nas personagens nollianas, que, embora não se portem como os burgueses
oswaldianos, ainda estão carregadas da ideologia burguesa que move a cultura ocidental
na qual eles estão inscritos.
Miramar, depois de viajar pela Europa, mais precisamente Espanha, França,
Alemanha, Itália, Suíça, Inglaterra, novamente França, Portugal, vai à África,
retornando à Espanha, para, então, voltar ao Brasil. Em todos os locais da Europa,
Miramar sente saudades do Brasil, conforme fica claro na paródia à “Canção do exílio”,
capítulo 52, denominado “Indiferença”. Volta transformado, não suportando a vidinha
regrada e burguesa que leva, mas é incapaz de romper com ela, exceto através da
escrita. Essa escrita que ri da burguesia e até de si mesma seria uma das formas de
paralelo com a escrita nolliana, cada uma com um sentido de destruição diferente e com
diferentes objetos para os quais voltar seus olhos. Oitenta anos separam os dois
escritores e suas produções. uma diferença em termos de mentalidade ou de
imaginário, pois se o texto de Oswald de Andrade prescinde da destruição da sociedade
ocidental porque acredita na utopia da modernidade e na possibilidade de reversão do
atraso da literatura nacional, o texto nolliano não tem mais em que acreditar, pois
encontra-se no momento da descentralização de todos os valores iluministas da
sociedade ocidental.
No capítulo 77 de Memórias sentimentais..., intitulado “Meses fazendeiros”,
tem-se a visão do que a burguesia paulistana fazia para viver no final do século XIX e
começo do século XX:
Celiazinha no colo da Maria portuguesa abria primeiros olhos para a vaca da
escada matinal e depois passo a passo para o pomar dos trópicos inchados.
Célia monotocava shimmys e Mozart no piano bandolim da sala de jantar
entre paisagens iguais das janelas.
E os dias ronronavam a máquina surda de café com o sustenido nostálgico
da serraria araponga.
Colônia bodes botados hóspedes rústicos na manhã.
Meios porcos invadindo telhas vãs de cozinha com jabuticabas e gatos
esfomeados.
Siás donas e lentidões de negros.
Italianos de pé no chon e santuários empetecados e milagrosos.
E homens e mulheres a e a cavalo nas estradas enferrujadas pelo sol
lavrador. (ANDRADE, 1993, 71).
Note-se como a linguagem é alterada, se comparada à literatura produzida em
fins do século XIX e começos do século XX, para próximo de algo da ordem do
coloquial, da oralidade, além do que se pode perceber a vida calma e monótona da
burguesia rural brasileira da época. A melodia moderníssima do shimmy, rápida, última
moda na Europa, contrasta com a pasmaceira geral. Mozart, o máximo da civilização
ocidental, do clássico, contrasta com esse moderno shimmy, o que não altera muita coisa
nesse ambiente chato e empertigado, o que é sinal da frivolidade e da esterilidade da
qual fala Antonio Candido. Esses estrangeirismos são devorados pela cultura brasileira
e misturados no mesmo ambiente. Apropriados e expropriados pelos brasileiros, os
compositores europeus são um prato cheio para a cultura antropofágica. Porcos e bodes
e jabuticabas em meio a escravos e a criados portugueses e italianos, essa mistura de
raças, mas também essa mistura de homens e animais, crítica à organização
socioestruturante da civilização brasileira, agora parte da civilização ocidental. A
situação burguesa é o fim da linha para a civilização ocidental, que causa o grande mal-
estar na personagem narradora. Através dessa representação, Oswald de Andrade queria
que se alterasse a prática burguesa da vida com sua utopia antropofágica. A palavra
colônia, que antecede as expressões “bodes botados hóspedes rústicos na manhã”,
marcaria esse desespero do narrador e, por sua vez, do escritor com esse lugar
excêntrico que ele ocupa, crítico que é da cultura importada produzida no Brasil.
Ao fim do romance, o próprio Miramar está desgastado e praticamente
engessado em sua vida burguesa, saindo dela através da escrita, conforme se nota no
capítulo seguinte:
163. ENTREVISTA ENTREVISTA
Com que então o ilustre homem pátrio de letras não prossegue suas
interessantíssimas memórias?
— Não.
Seria permitido ao grosso público ledor não ignorar as razões ocultas da
grave decisão que prejudica assim a nossa nascente literatura?
— Razões de estado. Sou viúvo de D. Célia.
— Daí?
Disse-me o Dr. Mandarim que os viúvos devem ser circunspectos. Mais,
que depois dos trinta e cinco anos, mezzo del camin di nostra vita, nossa
atividade sentimental não pode ser escandalosa, no risco de vir e servir de
exemplo pernicioso às pessoas idosas.
— O Dr. Mandarim, com perdão da palavra, é uma besta!
— Engano seu. O Dr. Mandarim é baedecker de virtudes. Adoro-o.
A crítica vai acusá-lo e a posteridade clamar porque não continuou tão
rico monumento da língua e da vida brasílicas no começo esportivo do
século 20.
possuo o melhor penhor da crítica. Li as Memórias, antes do
embarque, ao Dr. Pilatos.
— E ele?
O meu livro lembrou-lhe Virgílio, apenas um pouco mais nervoso no
estilo. (ANDRADE, 1993, 107).
Em tom de autoparódia, Oswald de Andrade desconstrói toda possibilidade de
continuar a compactuar com esse tipo de cultura que submete as pessoas aos
mandamentos de chefes, médicos e donos da palavra, de um modo geral, em que
nenhuma felicidade é possível ao indivíduo. Miramar é vítima do sistema e sua
escrita, através da qual ele mesmo se posiciona nessa entrevista, é que pode livrá-lo
dessa mesmice e da “canastrice” que a civilização ocidental lhe legou. Note-se que ao
fim do romance ele não quer mais a escrita também, como uma forma de suicídio
cultural. Mas o não querer a escrita é a forma de a crítica de Oswald de Andrade ir até
o limite daquilo que as regras do bom comportamento amputam: a criatividade do
sujeito. Sua excentricidade, aquilo que lhe singularidade, sua diferença, deve ser
suprimida em nome do bom tom e das boas maneiras. As críticas de Oswald de
Andrade não poupam os bons modos da escrita parnasiana ao citar o título do poema de
Olavo Bilac, que, por sua vez, retoma Dante Alighieri, dado como sendo uma fala do
Dr. Mandarim. Ironia maior de Oswald de Andrade para com o papel representado pelo
escritor parnasiano, muito mais estrangeiro no Brasil do que o escritor paulista. A
história da cultura ocidental também é satirizada ao nomear como leitor de suas
memórias o doutor Pilatos, que, como representante da classe dos bacharéis, lava as
mãos como o da história bíblica. Se a escrita das memórias é o que faria o sujeito
procurar encontrar-se a si mesmo, essa escrita da vida de João Miramar lhe traz
desencontros com a cultura na qual ele está inserido. Dessa forma, é impossível sentir-
se pertencente a ela; daí o gesto radical de abandonar a própria escrita, fruto que é do
código comunicacional do ocidente.
Vou me furtar a fazer um resumo de Serafim Ponte Grande porque esse trabalho
foi feito por João Silvério Trevisan em Devassos no paraíso, conforme apresentado
no trecho abaixo:
[...] Serafim sente tesão por seu amigo Pinto Calçudo (nome que pode
também dar a idéia de pênis devorador) e quer trepar com um garotão (“um
Apolo”) que se tornara seu vizinho de casa. Doutra vez, Serafim sonha que
tinha mudado de sexo e tornava-se noiva de Pinto Calçudo. Logo depois, no
entanto, Pinto Calçudo solta um peido, “pelo que é posto imediatamente fora
do romance”. Obcecado pela penetração anal como um Casanova tropical
(ou Cascanova, como ele próprio se proclama), Serafim acaba enrabando
sua respeitosa esposa, Dona Lalá. Depois, conhece em Nova York um pintor
que admira os alemães pelos seus “dons polissexuais”; conversam sobre
uranismo (sinônimo ainda usado para homossexualismo), aque Serafim
lhe oferece suas “vias urinárias”, num safado trocadilho com “amor
uranista” [...]. (TREVISAN, 2002, 278).
É notável como nesse romance, publicado em 1933, Oswald de Andrade carrega
nas tintas, principalmente das relações anais a personagem principal tem obsessão
pela questão anal. Como essa relação é proibida dentro dos limites morais da sociedade
ocidental civilizada, que pratica o sexo para a procriação, o fato de ela aparecer em
várias situações do romance é uma afronta ao gosto burguês, pois não há, como nos
romances realistas, nenhum interesse em julgar esse tipo de prática, nem intenção de
fazer disso objeto de estudo. É pela sátira que se postulam as relações sexuais, sejam
elas homoeróticas, nos casos do vizinho, do pintor e do amigo, sejam elas
heteroeróticas, no caso da mulher. O fato é que as relações homoeróticas aparecem no
romance, muitas vezes ligadas à pura satisfação dos desejos sexuais de Serafim, e nada
além disso. Pode-se dizer que o que se quer é a transgressão pela transgressão.
O navio El Durasno, da parte final, é a encarnação dessa única possibilidade. Só
se abandona a cultura rompendo radicalmente com ela, ilhando-se, pois as personagens
deixam para trás tudo ou quase tudo o que poderia lembrar a civilização ocidental e seus
bons modos, conforme se pode verificar no trecho que se segue:
Seguiu-se um pega em que todos, mancebos e mulheres, coxudas, greludas,
cheirosas, suadas, foram despojadas de qualquer calça, saia tapacu ou fralda.
[...]
Um princípio de infecção moralista, nascido na copa, foi resolvido à
passagem da zona equatorial. E instituiu-se em El Durasno, base do humano
futuro, uma sociedade anônima de base priápica.
[...]
Passaram a fugir do contágio policiado dos portos, pois que era a
humanidade liberada. Mas como radiogramas reclamassem, El Durasno
proclamou pelas antenas, peste a bordo. (ANDRADE, 1994, 161).
É claro que, mesmo que se rompam, alguns traços da cultura ficam e devem ser
(re)inventados. Nessa sátira, os transgressores entram na nau dos insensatos para
poderem libertar-se da ditadura da cultura. a loucura, a peste ou a morte parecem
salvar o sujeito ocidental dos desastres causados por sua própria vontade civilizacional,
que o afastou completamente da natureza. Embora João Gilberto Noll não utilize a
sátira, as personagens nollianas não fazem diferente: elas, muitas vezes, desaparecem,
morrem ou embrenham-se por lugares distantes da civilização ocidental, (re)inventando
novas posturas diante das situações que aparecem a elas.
Em Serafim Ponte Grande, os locais pelos quais passa a personagem, além da
Europa, incluem também um oriente completamente ocidentalizado, conforme se
pode ver nos capítulos em que tudo aquilo de que ele se aproxima são organizações
ocidentais. A viagem de Serafim inclui também os Estados Unidos. Errar por países sem
ter uma parada fixa é uma metáfora da dispersão, do dissenso. É certo que em Oswald
de Andrade ainda um interesse em conhecer a cultura alheia e depois devorá-la, pois
sua personagem é um sujeito colonizado em meio à civilização ocidental. Para Lauro
Belchior Mendes, Serafim aparece como uma vítima, em um primeiro momento, da
civilização ocidental, e depois passa a tomar consciência disso, passando a agir como
um devorador da mesma. O código sexual é utilizado, pois é através deste que ele irá
devorando todo o ocidente e oriente:
As interdições são transgredidas pela vulgaridade do discurso de Serafim
Ponte Grande. Além de erros gramaticais, encontramos palavras
indecorosas, comparações blasfêmicas, e os pensamentos veiculados pelas
personagens e suas ações agridem o código da escrita do bom gosto, imposto
pela ideologia dominante. (MENDES, 1977, 86).
para notar que, em paralelo, a linguagem dos romances, tanto de Oswald de
Andrade quanto de João Gilberto Noll, apresentaria essa subversão da linguagem
através dessa agressão ao código da escrita do bom gosto. A falta de decoro, muito
maior no escritor gaúcho do que nos romances do escritor paulista, faz parte dessa
relação de devoração da escrita acadêmica que, em João Gilberto Noll, ultrapassa a
narrativa hiperrealista e cria algo bastante particular, da ordem da dispersão quase que
absoluta. Nesse ponto, sua escrita difere, e muito, da escrita de seus contemporâneos.
Outra forma sob a qual a antropofagia aparece no texto nolliano transparece na
utilização da escatologia. Forma bastante ligada ao modo de representação pós-
moderno, mas que não escapa das obras da modernidade literária pós-vanguardas, pois
tanto no surrealismo como em textos como o Ulisses, de James Joyce, essa questão
aparece, a escatologia é um ponto crítico por onde atacar a civilização ocidental, que
baniu de seu cerne, em nome da higienização, as práticas ligadas à defecação, ao
sangue, à morte. Em Noll, ela é mais do que presente, pois, em todos os romances, as
cenas se repetem e todas são hiperrealistas como a lembrar a presentificação do
teatro da aparição —, carregadas das fezes, do sangue ou do esperma que permeiam
suas narrativas.
O gosto pelo escatológico advém das narrativas grotescas românticas e passam a
dominar a narrativa moderna, interessada em criar imagens menos romantizadas do
mundo. É assim nas vanguardas européias com o desejo de deformar a realidade,
conforme fazem os cubistas e expressionistas, os dadaístas como Duchamp e seu
mictório, além da utilizão que faz do próprio esperma para produzir suas pinturas,
assim como os surrealistas, que vão misturar em seus quadros e esculturas imagens
pouco comuns à representação acadêmica organizada até então. Eliane Robert Moraes
afirma que os artistas modernos encontravam-se diante “de um mundo em pedaços e do
amontoado de ruínas que se tornara a história [e] restava ao artista capturar os
fragmentos e as instáveis sensações do presente” (MORAES, 2002, 57). Dessa
fragmentação do mundo e das coisas, retoma-se a escatologia, fragmenta-se a realidade,
os corpos são destruídos, oferecidos em pedaços (MORAES, 2002, 60). O combate ao
gosto burguês da sociedade é um dos fatores que levam os artistas a utilizarem-se desses
elementos escatológicos, como o faz Chaim Soutine com sua “Carcaça de boi” em
1927, como fez João Cabral de Melo Neto em sua “Antiode”, como os artistas da arte
abjeta fazem na contemporaneidade.
Em Oswald de Andrade, a escatologia aparece para desmontar o gosto burguês e
a literatura parnasiana cheia de imagens clássicas e nobres com que se deu a poesia em
fins do século XIX e que vigorava até o presente modernista e até bem depois dele. O
próprio Andrade, em artigo publicado em 1926, na Revista do Brasil, intitulado “Objeto
e fim da presente obra”, refere-se a seu livro e a seu leitor da seguinte forma:
Os retardatários — você, com certeza, leitor — pensam que têm gosto
porque aprenderam umas coisinhas. São os mantenedores do gosto. O que
sai das coisinhas é de mau gosto. Mas nós endossamos o mau gosto e
recuperamos para a época o que os retardatários não tinham compreendido e
difamavam. (ANDRADE, 1994, 34).
Essa forma de lidar com o leitor de modo irreverente e sarcástico é um ato
antropofágico, pois, desde o primeiro momento, o outro, interlocutor privilegiado, é
devorado pelo riso e pelo deboche. O gosto do leitor é desacreditado e aquilo que
aparece ao leitor como mau gosto é o que vale para o modernista. Retomar a escatologia
é função primeira para o antropófago, pois, conforme Lauro Belchior Mendes, a escrita
antropofágica oswaldiana realiza um ritual “na medida em que (...) busca a purificação e
libera a energia reprimida pelo bom senso”. Esta produziria um ritual simbólico, pois
“realiza-se numa escala que vai do ato inicial da devoração ao ato final da defecação, e
instaura o primado do não-senso” (MENDES, 1977, 47).
Nos romances de João Gilberto Noll, é possível perceber essas cenas muito
facilmente, pois sua escrita paralógica quer descentralizar o gosto burguês que ainda
reina na noção senso comum de literatura. ainda discursos na própria academia que
confundem a obra nolliana com pornografia. O autor pretende, com isso, mais uma vez,
fazer carnaval de gêneros e, por isso mesmo, causar dissenso. Daí sua insistência em
escrever e descrever cenas com a presença de esperma, sangue, fezes e urina, essas
[...] matérias moventes, fétidas e mornas, cujo aspecto aterrador, nas quais a
vida fermenta, [...] nas quais fervilham os ovos, os germes e os vermes,
estão na origem dessas reações decisivas que chamamos náusea, enjôo,
repugnância (BATAILLE, 2004, 86-7) (grifos do autor).
Essas matérias moventes aparecem quase a todo momento nos textos nollianos,
sendo que a fúria do corpo, como o próprio nome indica, é um produto cabal. Partidária
da literatura pós-moderna, que também adere à escatologia como forma de se libertar o
gosto e trabalhar dentro da noção de decadência da cultura, demonstrando que a
civilização e o progresso só nos legaram miséria e o que nos resta é o corpo, a
personagem nolliana desse romance mostra-nos sua nudez e suas vísceras a céu aberto,
conforme se pode notar na cena seguinte:
[...] pego tua mão fria — passo ela pelas minhas pernas, coxas, levo-a até
meu pau, a mão fricciona meu pau que responde-incha, incha e adivinho o
vermelho do pau cego no escuro-escuro, você acomoda a boceta em cima
dele [...] a única luz é o desejo que se acomoda entre nossas pernas, você me
chama de avarento, que eu gostaria de estar dando o cu nesse momento,
prendendo alguma coisa dentro como a prisão de ventre, respondo que
qualquer coisa menos o cu, saboreia respondo com quase brutal veemência,
pensa que meu pau é teu agora e se ele duro feito pica é porque é um
caralho que mexendo numa xota molhada, você exala um suspiro como
quem muito nem respira [...] me chupa o pescoço [...] você chupa mais,
sempre mais como se tua boca sorvesse todos os meus glóbulos, eu te chamo
puta rasgada, mordo com toda gana um bico de seio, você geme a dor, berra,
cresce no desespero do teu gozo, puxo teus cabelos e tua cabeça arqueia para
trás eu puxo [...] sinto as primeiras palpitações do escroto, o esperma vai
jorrar, você grita goza-goza-goza porque já pressente a contração do teu
gozo, o mundo é maravilha [...] grito, você grita, ejaculo rente à tua alma e
sujo o mistério com meu leite [...]. (NOLL, 1997, 39).
Nessa relação sexual que está entrecortada de palavras bastante poéticas, a
escatologia aparece através de um vocabulário pouco usual na literatura como um todo,
mas nada incomum para a literatura hiperrealista à qual esse romance se liga. Mas, ao
mesmo tempo que essa cena escatológica aparece, o texto é todo recortado por imagens
que misturam sensações diversas ligadas aos outros sentidos, para além do tato e da
visão. É essa relação violenta, narrada com um lirismo inquietante, que João Gilberto
Noll traz para seus textos. O gosto burguês é acertado não no enunciado quanto na
enunciação. Não se espere desse autor apenas uma descrição de um ato sexual, coisa
comum no tipo de literatura erótica burguesa do século XIX e da maior parte da
literatura gay de mercado. Essas cenas violentas fazem da palavra seu lugar de exceção,
pois são escolhidas a dedo. Se o corpo comparece com seus orifícios e suas secreções, a
linguagem comparece com suas falhas e fissuras, para também apontar essas diferenças
entre a natureza realista da descrição e a urgência desse corpo que precisa libertar-se
para poder sobreviver em meio a uma realidade opressora. Da mesma forma, essa
literatura precisa copular com a linguagem para poder fazer-se livre das amarras
impostas pelo bom gosto. Daí o excesso de palavras como esperma, porra, cagar,
mijar, foder, encontradas na obra nolliana em geral, diversas vezes repetidas. Na obra
nolliana, aparecem cenas movidas por um “sentimento de uma violência elementar, que
anima, não importa quais sejam, os movimentos do erotismo. Essencialmente, o campo
do erotismo é o campo da violência, o campo da violação” (BATAILLE, 2004, 27). As
relações sexuais são representadas muito próximas da violência habitual que as move.
Nessa cena e na cena do carnaval citada anteriormente, o espaço do erotismo é mais
selvagem do que civilizado e, por isso mesmo, mais antropofágico.
Outro espaço no qual a antropofagia faz-se clara é nas cenas de devoração
sexual. Em todos os romances e contos nollianos, essas representações,
principalmente homoeróticas. Homens que, através do código sexual, devoram outros
homens. Em muitos momentos das narrativas nollianas, cenas de relações sexuais são
descritas de forma a demonstrar que o código sexual é mais explícito e, também por isso
mesmo, antropofágico.
Em A céu aberto, o narrador conta-nos suas aventuras eróticas com outros
homens. No trecho abaixo, pode-se ver uma relação hierárquica:
O homem então sentou-se de novo na cadeira feita da mesma lona da tenda,
abriu as pernas, o negócio dele cada vez mais empinado, e ordenou que eu
me ajoelhasse, e de imediato empurrou a minha cabeça ao encontro do
negócio dele que eu fui obrigado a abocanhar, para cima e para baixo, ele
guiando a minha cabeça com mão de ferro para cima para baixo, quando
para baixo o negócio dele encostava na minha garganta e ficava
(surpreendentemente para a idade do homem) a cada vez mais grosso e
comprido, e eu a bem da verdade não sabia direito o que sentir, achar
daquilo tudo, eu permanecia ali com a cabeça para cima para baixo sem
perceber um gosto nítido na boca, salvo uma sensação um tanto excessiva e
áspera, mas nada que eu não pudesse levar por mais alguns minutos, até que
a porra do general viesse a explodir na minha garganta e a molhar meus
dentes e língua, o que me faria (eu pensava já com alta palpitação) sair
correndo e ir até o buraco debaixo do chuveiro e cuspir pra dentro as
sobras do esperma velho daquele general que na certa estaria todo
estatelado sobre a cadeira de lona, resfolegante e tão empedernido de si
mesmo que nessas alturas já teria se mineralizado a ponto de fossilizar
também toda aquela guerra nebulosa e não a guerra, cada um dos seus
componentes, eu próprio, o inimigo, o rapaz com jeito árabe, o garoto
clarinho... todos de agora em diante submersos como um vaso etrusco, e
assim seja amém... (NOLL, 1996, 53-54).
Nessa hierarquia sexual, na qual o narrador é obrigado a praticar felação em um
general do exército no qual está servindo, a demonstração de uma relação de
consumo: o narrador é forçado a servir ao general. Dessa forma, João Gilberto Noll
transforma o ato sexual em algo para além do meramente visual. São narradas as
sensações de tato e de paladar, “sensação um tanto excessiva e áspera, sem perceber um
gosto nítido na boca
,
para depois apresentar ao leitor o próprio ato de cuspir o esperma
velho. Novamente, as relações de poder entre novo e velho são levantadas pelo autor
porto-alegrense e trazidas como forma de mostrar a organização ocidental.
A poesia entra na narrativa através da ladainha na qual o narrador continua sua
caminhada em direção ao nada, mas com a idéia de que esse ato de cuspir a civilização
ocidental fizesse parar o que ela produziu de pior: a guerra. A única certeza é o
discurso e nada mais; daí a literatura fazer-se sempre adiante, em um lugar cada vez
mais distante do primeiro ponto. A origem está perdida e é sempre deslocada, da
mesma forma que as personagens podem seguir, nunca parar, a não ser quando
morrem. Note-se que o próprio narrador diz de sua completa subserviência e
passividade ao ato do general. Não há nada que ele faça para parar o outro, como se
fosse movido pelo desejo do outro e não por seu próprio desejo: a inércia é que move a
errância das personagens nollianas. Se nas personagens oswaldianas um desejo de
conhecimento, fruto da utopia modernista, nas personagens nollianas não há mais
desejo, existe a inércia, e a movimentação se faz a partir disso o mundo já não vale
a pena para essas personagens.
Essa mesma devoração reaparece no caso do irmão que é descoberto pelo
narrador em fotos tiradas pelo padre pedófilo, outro sinal de hierarquia e de relação
sexual de consumo. Nessa relação, também existe a transformação do irmão em mulher,
ou em um ser híbrido que possui pênis e seios. É nesse momento da narrativa que o
leitor terá acesso à relação incestuosa entre o narrador e seu irmão/mulher:
[...] uma foto do meu irmão segurando com as duas mãos a vela, os lábios
roçando a chama, uma outra num ângulo a partir das coxas, em nenhuma
foto viam-se pêlos, na certa o padre raspava o garoto porque ele possuía
idade suficiente para pêlos pubianos, e agora estava ele ali com a glande à
mostra querendo se encorpar, os mamilos como que inchados, e tudo isso
me deu a impressão de que o meu irmão andava se realizando dessa forma,
que era isso mesmo que ele queria da vida, ser motivo de deleite feito a
única fruta do mundo no ponto. [...] Levantei-me e o levei no colo aa
cama. A luz vinha do corredor, e naquela penumbra descobri de vez que era
o meu irmão sim a minha mulher, e me debrucei e beijei seus cabelos e
enfurnei a mão entre suas pernas e fui indo assim e me deitei também.
(NOLL, 1996, 73-74).
Nessa passagem, além da constatação da existência da pedofilia, o narrador nos
notícia de uma forma estranha de vida em seu irmão, que possui seios e pênis. Essa
transexualidade, como a lembrar o efebo ou o hermafrodita e o andrógino, levaria ao
campo das sexualidades ambíguas e periféricas que João Gilberto Noll apresenta como
forma de amores possíveis dentro de seus textos. A devoração do próprio irmão
travestido em mulher marcaria o incesto e o instalaria diretamente nessa literatura
paralógica. O incesto é mais um dos tabus quebrados nessa literatura e não aparece de
forma aleatória. É mais uma das marcas antropofágicas, pois, pela percepção de Oswald
de Andrade e seu utópico Matriarcado de Pindorama”, não haveria problema com
relação a isso, pois nas sociedades matrilineares não preocupação com a castidade,
de onde adviria o nome incesto, de in-castus (DUPUIS, 1989, 109). Pois, se o incesto é
uma nomeação posterior à ascensão da sociedade patrilinear e antes da separação dos
primos em irmãos não havia essa interdição, é certo que ele é uma invenção da cultura
para organizar uma sociedade, pois assim ficaria mais fácil a divisão das mulheres e,
portanto, haveria uma contenção da violência. No romance nolliano, não
permissão para o incesto como também a possibilidade da transformação de um
homem em mulher. Essa transformação ocorre sem aviso prévio ao leitor, que, até
então, estava integrado em uma narrativa em que elementos fantásticos não occorriam.
Porém, na narrativa muitas vezes surrealista de João Gilberto Noll, transformações
desse tipo podem coexistir com um hiperrealismo sem que um exclua o outro. Se em
Serafim Ponte Grande havia a sátira e a personagem principal transformava-se em
mulher em sonho, na narrativa de A céu aberto não um sonho que explique essa
transformação, assim como também não é através da sátira que ela ocorre, mas como
um elemento inusitado a mais na narrativa. Nada mais complicado para a sociedade
burguesa do que lidar com essa transformação, afinal, o transexual não é de todo
homem nem de todo mulher. Esse ser andrógino é visto como um mal que se tentou
extirpar através da higienização e hoje está em meio à sociedade para conviver com ela.
Ainda à margem, o transexual é uma representação queer, sem identidade definida, uma
incógnita, um corpo estranho, que pode ter lugar nessa literatura paralógica ou numa
literatura que quer pensar a cultura de seu tempo, uma literatura que faz do
homoerotismo uma aparição. Não nenhuma representação da doença ou do crime
ligados a essa personagem dentro da cultura, como sempre se representou. Mas não há,
também, nenhuma centralidade nesse sujeito, pois ele é mais um dos sujeitos que
cruzarão o caminho da personagem narradora que, mais tarde, irá livrar-se dele assim
como dos outros, pois não possibilidade de laços afetivos duradouros na
representação nolliana.
Assim como os atos sexuais praticados, não faltam, nessa narrativa, pensamentos
sádicos e canibalismo:
Não sei se me entendem, mas eu olhava para as minhas unhas e a vontade
de tratar bem delas me vinha logo à mente como se eu o quisesse
esquecê-las no remoto dia em que uma mulher sentada num muro baixo
comigo cortou-as bem rente e depois lixou-as e depois beijou-as
distraidamente, como se beijá-las fizesse parte da tarefa de cortá-las, e eu ia
matutando nesses assuntos durante a noite como vigia do paiol à beira da
estrada de terra, eu ia matutando que de manhã cedinho eu deitaria na cama
onde estaria minha mulher e enfurnaria a mão entre suas pernas e beijaria
sua nuca e arrancaria se deixassem um naco de carne do braço e um grito
lancinante dela, os meus dentes afundam com destreza no ombro,
encontram o osso da espádua firme, enfio por trás e ela grita, dou seis
bombeadas e me acabo. (NOLL, 1996, 79).
A devoração desse outro feita através da própria criação da dor no outro está
presente em toda a narrativa. O sadismo dessa cena marcaria a possibilidade de outros
amores, bem como especifica e esclarece ainda mais a idéia de canibalismo ligada
diretamente ao ritual antropofágico preconizado pela horda antropófaga. Em tempos
remotos, isso era comum, mas o narrador não vive em um ambiente selvagem: ele está
incrustado na civilização ocidental, aquela que lhe legou o mal-estar, pois o homem
civilizado sublima esses desejos selvagens e ele faz justamente o contrário. Devorar o
outro, literalmente sua carne, transgredir através do desejo erótico pela carne do outro é
um ato brutal que indicaria não-conformidade com a lei. A violência é gerada pela
interdição, pois o ato de comer a carne do outro, aqui, é trazido sem a sacralidade do
ritual antropófago primevo, mas pelo desejo da crueldade que só existe pela vontade
maior de transgredir a interdição. Ir além dos limites, tentar ser contínuo em toda sua
descontinuidade, é o que deseja o narrador ao lacerar e violar seu irmão/mulher. É
aquilo que Bataille chama de “atração pela interdição” (BATAILLE, 2004, 109) que
move o narrador e as personagens nollianas, não só interessadas em transgredir as regras
sexuais, mas também move seu autor empírico, interessado em transgredir as normas da
narrativa, alterar a linguagem, os gêneros, quebrar a expectativa dos leitores.
Ainda dentro das devorações sexuais, há a relação violenta com o filho de Artur:
[...] sim eu espalmei a mão na bunda do garoto, ele quis reagir e notei na
respiração quase arrebentando, depois foi lhe caindo uma resignação diante
do fato de estar sendo bolinado por mim na nádega, depois começou a
gotejar pela cara e pescoço um suor cheirando, penetrante, depois as nossas
roupas rasgadas a dele e a minha, a mesma fúria: cuspi fundo na palma da
mão, untei meu pau de saliva, o pau entrou de um golpe, o rapaz berrou, a
cotovia a coruja o quero-quero carpideiro, tudo isso respondeu aos berros,
esqueci não quis saber tinha ouvidos para o meu próprio ronco, côncavo,
interno, avarento, miserável e só. Quando eu próprio gritei enfim olhei para
o meu púbis e o vi todo banhado em sangue, no começo não entendi mas
logo me dei conta de que eu arrebentara o cu do garoto que na certa não era
dado a permitir que enfiassem aquelas rijas postas de carne pelo seu ânus
mas a verdade era que ele agora não mais emitia expressão de dor, vi que
tirava completamente a roupa para entrar no rio em silêncio, como se fosse
limpar o estrago com merecido estoicismo, tratar do que acontecera
exatamente como tinha de ser, despido de qualquer lamento... (NOLL, 1996,
105-106).
O ato da devoração anal é tão canibal quanto o ato da devoração da laceração do
outro, conforme o trecho citado anteriormente. Nos dois casos citados, as relações são
do mais velho com o mais novo. A repetição que se faz na narrativa através da
expressão “depois”, repetida três vezes, o grito do rapaz reverberado nos três pássaros
dá mais uma vez o mote da relação sexual que ocorrerá. Enunciado e enunciação
coincidentes, organizados de forma metódica, representando essa relação homoerótica
em que as “matérias moventes” aparecem novamente. O sangue advém da violenta
forma de relação em que se utiliza a saliva a umidade desses elementos ligados
diretamente ao ato sexual erótico por sua violência natural é a figuração dessa
transgressão que o próprio erotismo dos corpos pede. Se existe a interdição, primeiro da
relação sexual com alguém do mesmo sexo, segundo pela relação sexual violenta, se
isso não pode ou não precisa ser representado ou, se representado, deve ser apresentado
de forma higiênica, uma atração maior por ultrapassá-la, testar limites, rompê-los.
Não a relação sexual é algo transgressor, mas também o narrador que a narra e o
autor que a produz, quando se pensa na literatura bem comportada que a própria gay
fiction quer ser, por exemplo. Pode parecer não ser transgressor caso pense-se em Sade,
ou na literatura hiperrealista, carregada de cenas desse tipo, mas na obra de João
Gilberto Noll essas descrições não são gratuitas e, muito menos, estão fora da violência
desejada para sua enunciação. O narrador pensa em seu próprio ronco “côncavo,
interno, avarento, miserável e só”, sua condição humana, ser descontínuo durante o ato
sexual. Essa atitude da personagem narradora em narrar, daí repetir o ato sexual,
instaura a estrutura perversa no texto de Noll, pois segundo Severo Sarduy, a “repetição
é o suporte último da imaginação sádica e, sem dúvida, o de toda perversão”
(SARDUY, 1979, 17). Essa atração pela violência e pela morte fazem do desejo
homoerótico algo singular, desesperado em sua tentativa de ser contínuo. Dessa forma,
repete-se a narrativa do ato e reforça-se o desejo do narrador em ter satisfeito seu
desejo, independentemente do que o outro possa pensar ou desejar. É de forma invasiva
e violenta que ele age com o rapaz, e sua narrativa explora esse instante fugaz
[...] em que a configuração de seu desejo se realiza, se afasta cada vez mais,
é cada vez mais inalcançável, como se algo que cai, que se perde, viesse a
romper, a criar um hiato, uma brecha entre a realidade e o desejo. Vertigem
desse inalcançável, a perversão é a repetição do gesto que crê alcançá-lo. E é
por chegar ao inacessível, por unir realidade e desejo, por coincidir com seu
próprio fantasma, que o perverso transgride toda lei (SARDUY, 1979, 17).
Essa perversão é perfeitamente encontrada nas personagens nollianas, que
repetem à exaustão essas cenas sexuais para tentarem alcançar o que possa ser o
inacessível, aquilo que não há como alcançar. A escrita e o discurso dessas personagens
são uma tentativa para que isso ocorra, mas que se sabe de antemão para sempre
perdido. No fim das contas, não se consegue nada, mas parte-se sempre em busca de
algo, mesmo que seja através da morte, talvez a única forma de conseguir este
inalcançável. A transgressão à lei, ao interdito, é uma forma de se tentar alcançar o
inatingível, e daí a tentativa de transformar o tabu em totem, senão para a sociedade,
para a coletividade, como gostaria Oswald de Andrade, pelo menos para si próprio,
conforme esse sujeito nolliano se vê, só e desprovido de companhias.
Outra forma de assunção do tabu em A céu aberto é a questão do sexo a três:
[...] éramos outros agora os dois, a minha mulher apareceu na porta
perguntando se tínhamos feito café, ela veio para perto, vestia calcinha,
havia uma nódoa roxa num dos seios, um calor tomou conta dos três, o sino
do meio-dia começou a tocar na torre, nós três demos boas risadas, nos
encaminhamos no meio das risadas para o quarto com cama de casal, o meu
e dela, deixamos assim escuro, nos deitamos, minha mulher perguntou qual
de nós iria gerar ali naquele instante um filho nela, ela estava nos dias férteis
e não falharia, sim, quem de nós dois iria plantar a semente da criança ali
dentro dali a instantes, eu e ele nos olhamos, suávamos muito como
pugilistas antes do último round, ele foi nela até o fim, então fui eu dentro
dela também até o fim, a minha mulher se mostrava tão molhada entre as
pernas que parecia ter urinado nos lençóis. (NOLL, 1996, 109).
Dessa relação excêntrica, a possibilidade da geração de um filho, do
surgimento de uma nova vida. João Gilberto Noll percebe os novos rumos das relações
entre os seres humanos. Embora nada nova, a relação a três é ainda tabu, pois não se
sabe como classificá-la e nem tampouco se definir quais são os papéis a serem
representados nessas relações. A excentricidade queer está mais uma vez representada
nessa literatura, pois o mesmo rapaz que foi devorado pelo narrador agora devora o
irmão/mulher deste, assim como o narrador continua a cometer incesto. Muito pouco é
dito da relação a três, mas a escatologia não escapa ao leitor, como que a lembrar que
todo ser nasce entre sangue e urina. O excêntrico, o escatológico, o dissenso e o
paralógico são forças motrizes dessa escritura, pois não um exemplo, apenas fios
de estória alinhavados com um mínimo de concisão, que está muito mais na mão do
leitor que se aventura por essa literatura do que no produto livro.
Em outro trecho de A céu aberto, mais uma vez a antropofagia é retomada:
Cheguei a pensar na ocasião o que seria de mim sem o gosto pelo sexo: não
seria então melhor?, eu talvez fosse fazer outra coisa como plantar num
campo que precisasse de mim, pilotar um avião sobre os Andes, sofrer uma
queda com o aparelho sobre os píncaros da neve, sofrer da fome decisiva,
pegar da carne do companheiro, comê-la aos pedaços, digeri-la com
dificuldade, aos poucos, esquecer do paladar com medo de sentir meu
próprio gosto, depois cagar os restos do companheiro, mijar a cerveja que
ele tomara ontem, filtrar no meu corpo o homem com quem brindara à noite
o vôo da manhã seguinte, deixar o melhor dele no meu organismo, dele a
minha nova proteína, dele o novo mistério que me habita, ele o meu novo
Deus agora que o comi. (NOLL, 1996, 121).
está mais uma prova cabal dessa relação antropofágica entre as obras de João
Gilberto Noll e Oswald de Andrade. Se ao Antropófago oswaldiano interessa o que é
do outro, na obra do escritor gaúcho não é diferente. Fatos históricos podem
transformar-se em peças a serem devolvidas e ensaiadas quase que de forma precisa por
seu narrador. O fato do acidente nos Andes com uma expedição norte-americana é
verídico, e o escritor aproveita-se dela para fazer metalinguagem. Sua antropofagia é
oswaldiana, sobretudo pela possibilidade de tornar ainda mais explícito o que Oswald
de Andrade não havia conseguido em seu tempo. O retorno do ritual antropofágico faz-
se novamente encenado, não como ritual, mas como escrita, pois a assimilação do outro
dá-se através desse discurso do narrador, que devora o outro na forma de uma escrita
ritual, pois o estrangeiro é assimilado como Deus, escrito em maiúscula. A relação entre
sexo e religião mais uma vez faz-se presente dentro dessa literatura que abole fronteiras
entre sagrado e profano e, mais do que abolir essas fronteiras, quer demonstrar o quanto
as duas forças, separadas exclusivamente pela religião, são mais próximas do que se
gostaria. Através de palavras que lembram o esforço científico em compreender o
universo e a natureza, o narrador leva seus leitores à selvageria da natureza, que não
precisa de nomes para poder refazer-se todos os dias — o totem e o tabu sempre
estiveram mais ligados do que se pode pensar, pois pertencem ao mesmo lugar.
Em Berkeley em Bellagio, a religião e o sexo misturam-se:
Raro é esse ragazzo para quem ele olha agora e diz: sim, Deus baixou aqui, é
vivo. De imediato tocou na espádua arcaica do peninsular divino, mesmo que
o ragazzo não soubesse, não importa, era Deus que ele continha no seu peito
arfante, não o deus que não saía das igrejas mas o Deus que pulsava atrás da
calça apertada do ragazzo, o Deus que se aplumava e se punha rígido,
colosso! —, o Deus que foi levado pelo escritor porto-alegrense para atrás de
uma cortina malcheirosa pelo tempo, o Deus que ali se deixou ordenhar como
um bovino e que ali se deixou beber não bem em vinho mas em leite que o
nosso senhor gaúcho engoliu aos poucos, na carestia da idade, lembrando-se
da Primeira Comunhão, terço nas mãos, ar de bem-aventurança — de joelhos
olhou o ragazzo como se rezasse pelos mortos seus amigos, por aqueles que
não mais podiam aproveitar a vida desse jeito, sentindo sim o gosto áspero
que ele não experimentava havia tanto, gosto desse nobre líquido que corre
em seus microfilamentos [...]. (NOLL, 2002, 29-30).
O sagrado e o profano misturam-se a ponto de perderem seus limites. No desejo
de continuidade, é o “líquido nobre” que dá a vida que é vertido em aquilo que não gera
uma nova vida, mas gera o escritor. As relações com o esperma mostradas no capítulo II
apontariam para essa relação entre velho e novo, em que um alimenta-se do sêmen do
outro para poder produzir. Se se pensar na forma como o esperma era visto na literatura
do século XIX tome-se para isso a cena do “desperdício” de esperma em O bom
crioulo —, é perfeitamente notável a forma como João Gilberto Noll vale-se desse
líquido excretado para produzir sua metáfora da criação mais uma vez. É o líquido do
rapaz jovem que faz com que o escritor porto-alegrense se renove. O pênis do rapaz, o
novo Deus, é aquele ao qual se devem render tributos, pois ele tem o poder da vida
daí a lembrança da primeira comunhão. Dessa forma, João Gilberto Noll retoma o
canibalismo, no qual os limites da transgressão, principalmente da transgressão
homoerótica, leva o sujeito a sentir-se unido, contínuo, mesmo que se saiba curto e
efêmero esse momento. Para Eliane Robert Moraes, à
[...] fusão dos corpos corresponde a violação das identidades: dissolução das
formas constituídas, destruição da ordem descontínua das individualidades.
Na experiência do amor, objetos distintos se fundem e se confundem até
chegar a um estado de ambivalência no qual o sentido de tempo de
duração individual amplia sua significação. A passagem da vida é, então,
testada no seu termo final: “o sentido último do erotismo é a morte” [...]
(MORAES, 2002, 50).
Nessa fusão de corpos o canibalismo é representado na obra nolliana. Essa
devoração ocorre em muitas situações e todo o erotismo leva suas personagens ao
êxtase e também à sua própria transfiguração no outro. Ser tomado pelo outro é uma
forma de ser devorado. É mais um exemplo de homoerotismo que os romances de João
Gilberto Noll salientam com uma singularidade incrível, conforme se pode notar na
cena que se segue:
[...] enquanto eu abria a porta, ele entrava junto, eu passava a chave me
aproximando de seus lábios sonhadores. Toquei-os com os meus, de leve, as
línguas quase se roçaram, recuaram, eu queria sim entrar por sua boca
adentro, inteiro, nele permanecer em mim bem dentro dele, acompanhá-lo
para sempre ou mais, ser ele [...]. (NOLL, 2002, 48).
Esse desejo de ser o outro, partindo do ponto de ser objeto do desejo do outro, é
uma desejo homoerótico, identificado com a perversão. A perversão não está aqui
identificada como algo da ordem do desvio, conforme sempre foi tratada pela sociedade
ocidental desde a medicalização dos homossexuais a partir do século XIX. Ela está no
fato de os próprios narradores enxergarem-se como seres que desejam gozar do corpo
do outro apenas para sua satisfação pessoal, conforme se pode ver nas cenas descritas
até aqui. Essa vinculação ao mal não é algo homoerótico apenas, mas, nas personagens
nollianas, aparece de forma a mais uma vez desestabilizá-las, como signos exemplares
dentro de uma cultura que deseja receitas de bem-viver. A literatura de João Gilberto
Noll recusa-se a ensinar aos homens, às mulheres, aos gays como devem comportar-se,
conforme a gay fiction parece querer fazer. Se para Severo Sarduy a repetição faz parte
da imaginação perversa, para a personagem nolliana repetir a cena, narrá-la outra vez,
(re)apresentá-la, faria aumentar ainda mais esse sentido da perversão. O gozo das
personagens ocorre se houver esse tipo de relação, no mais das vezes violenta com
um outro semelhante a elas, para que haja uma sensação da continuidade.
Em mais uma relação entre o escritor narrador de Berkeley em Bellagio e um
jovem rapaz, a narrativa demonstra essa transgressão dos limites entre velho/novo,
sagrado/profano, símbolo da devoração maior da cultura, conforme se pode perceber no
trecho a seguir:
[...] agora nem precisarei mais do meu desejo incalculável por todos os
homens e por aquela única mulher, a brasileira em Berkeley, a que me fez
suar em frêmitos com seu pênis submerso; agora me ajoelho diante do
ragazzo imagino que com a braguilha aberta, a sua tora de fora, a glande
esticada, lustrosa; falo em meu latim que aprendi no colégio do meu tempo
de garoto, falo o que me vem à boca, ocupo em versículos meus lábios,
meus dentes gengivas — não interessa o que tenho pra dizer na língua
morta, eu mesmo estou morto, digo ao ragazzo que me esqueça que eu
esquecerei seu estupor diante deste louco, o mordomo se afasta e foge, corre,
vai gemendo sob a lua até que o vento grosso entre as montanhas congela o
seu terror diante da carne que em mim perde os sentidos, desmaia sobre a
laje fria — se ausenta... (NOLL, 2002, 50).
Nesse trecho, é possível perceber como João Gilberto Noll organiza seu texto que,
mais do que mera representação realista, utiliza-se da palavra de forma subjetiva e
extremamente poética. O que é uma escrita sobre outra escrita, a ambigüidade das
orações e das expressões traz de novo o entre-lugar, o elíptico, marca de uma escrita
gay, conforme diz Denílson Lopes. A expressão falo, ao mesmo tempo que significa o
verbo falar, representa o pênis do “ragazzo” na boca do narrador, e o latim que é falado
em versículos aproxima-se, por sonoridade, aos testículos. A felação realiza-se, não
mais relatada explicitamente, pois a escrita da palavra é outra, mas o ato está entre as
palavras, inter-dito. A expressão ragazzo é mais uma palavra estrangeira dentro desse
texto tão carregado de outras línguas. Essa escrita também se colocaria como uma
escrita de devoração de culturas das quais ela se torna co-autora, mas nunca submissa, e,
assim como o sujeito que a enuncia, faz-se cambiante, dividida e fragmentada.
João Gilberto Noll, sobre Berkeley em Bellagio, afirma: “Trabalho com um tempo
que não é utilitário e não vai ter nenhum resultado prático” (2002). Esse tempo que não
se firma é disperso, tão errante quanto a voz que o enuncia; aponta para a falta de laços
da personagem-narradora e de sua experiência, que não serve de exemplo a ninguém,
como ele demonstra no trecho a seguir:
Na minha consciência eu já achava que não, achava que, durante esse
meu interminável sono, tudo o que eu fora levado a conversar com
angloparlantes dessa villa da Lombardia tinha se blindado de tal modo que
não se deixava penetrar mais pelo vírus de nenhuma outra língua, porque é
certo, não fora um sono qualquer, eu estava perto de entender —, I’m
interstanding, é isso, I’m speaking everything —, era esse o sono pelo qual
os gringos em volta estavam esperando, para que a partir daí eu passasse
definitivamente a fazer parte deles, talvez com um disco rígido na mente
com o programa inteiro dessa tal de língua inglesa. (NOLL, 2002, 55).
Nesse momento, o narrador acredita estar sendo cooptado pelos “gringos” para a
língua deles. É interessante perceber que o narrador acredita que sua mente ou sua
língua estaria blindada à entrada de outra, mas ele está entre as línguas, entre as culturas
pelas quais transita. O entre-lugar aparece como marca do sujeito gay e dessa escrita
que altera as línguas nas quais ela toca através da mistura criada em expressões não-
dicionarizadas, como angloparlantes, interstanding, que misturam português, italiano,
inglês, bem como as expresões villa, speaking everything, completamente ligadas ao
contexto, mas formas artificiais de escrita se se levar em conta a língua materna do
autor. Essa identidade do entre-lugar, do híbrido que nunca se completa, apontaria para
o caráter inventado e instável de todas as identidades e para a antropofagia produzida
por essa escrita para devorar as outras culturas com as quais ela se relaciona.
Ainda marcaria essa escrita antropofágica nolliana o desejo pelo mesmo gênero,
conforme trecho de Berkeley em Bellagio:
[...] nos encontrávamos justamente no purgatório —, onde mais apropriado
seria para nós dois?, pois ambos vivíamos procurando alguém que nos desse
a razão para estancar a compulsão por praticamente todos os outros corpos
iguais ao nosso — esse alguém que esperávamos acontecer e assim de súbito
nos conduzisse ao pomar da cama, um outro alguém do mesmo gênero, é
certo, pois essa adição do mesmo nos inspirava mais a pele, nossa fonte
arcaica de afeição, desde o dia longínquo em que tocamos nosso púbis pela
primeira vez sem a intenção de usá-lo para mijar, quando o gozo que até ali
não viera em plenitude nos arrebatou justo da nossa própria forma para outra
idêntica [...]. (NOLL, 2002, 70).
Essa atração pelo mesmo gênero fica clara nesse trecho, o que leva ainda a
perceber na obra nolliana uma relação muito grande com as políticas que se fazem no
momento ou com o mundo que a cerca. Toda a idéia de que os órgãos sexuais não são
utilizáveis apenas para funções meramente fisiológicas está expressa nesse desejo pelo
outro: aquele que é igual a si mesmo, aquele que é capaz de tornar o narrador contínuo,
pois este sabe, ou pensa que sabe, que o outro sente como ele. Daí fazer do outro o seu
igual, tomar dele o que lhe é de direito, desde o gosto até o gozo, conforme se pode ver
no narrador de Lorde tomado por seu tutor inglês. Essa suposta igualdade é tão efêmera
quanto os momentos descritos, mas um desejo de imortalidade nessa transformação,
de assunção de um eu no outro, que acaba por levar à metáfora do escritor, pois o
trabalho de criação de personagens o faz querer ser outros ou viver nesses outros ou
através deles. A dispersão do eu com a qual João Gilberto Noll e outros escritores
trabalham uma idéia, mesmo que simplista, do quanto essa vivência do outro no
próprio escritor faz parte de seu trabalho.
Em Lorde, a relação sexual entre homens continua, embora sublimada:
Do lugar em que me sentei eu podia ver um jovem que olhava pela janela o
tempo todo. [...] um pequeno deus solitário para o qual fiquei olhando com
quase devoção. Aquela viagem poderia durar a vida toda, porque eu sempre
teria nele um detalhe a observar: a pequena argola na orelha, o piercing no
lábio inferior, o alheamento sem pose, o capuz meio caído deixando ver os
cabelos claros levemente ondulados. Seu pé sobre o assento da poltrona
dianteira virada para a sua. Até que ele me observou. E eu baixei os olhos
sabendo que o trem ia parando na minha estação de London Bridge. Ele
levantou também. Ficamos lado a lado esperando que a porta se abrisse.
Saímos para a mesma direção. Paramos diante do mesmo cartaz contendo
roteiros de várias linhas de ônibus. Se os dois fixassem a atenção na mesma
linha, a noite poderia prometer, pensei desabusado comigo mesmo. Aliás
não passava um dia em que eu não imaginasse desnudar o corpo de
alguém. (NOLL, 2004, 66-67).
Note-se mais uma vez, assim como em Berkeley em Bellagio, a relação do novo
e do velho e o jovem visto como um deus. Mesmo que pequeno, este deus é desejado
pelo narrador em sua relação homoerótica em que sagrado e profano imiscuem-se de tal
forma que não se sabe separar um do outro. Nessa representação, a sublimação é mais
forte e a arte é que preenche os contornos do que deveria ser algo físico. Mas a fixação
do narrador é a mesma, a relação sexual e o desejo por alguém do mesmo gênero que
ele. Se o desejo é sublimado, é bom não perder de vista que o narrador continua com
seu desejo sexual a mover seus passos. Talvez este seja o único desejo que lhe reste,
pois, em toda a sua inércia, não nada além deste. Ele erra por Londres sem saber
aonde ir, não cumpre sua função escrever um livro, na cidade nem deseja ver
muita coisa, nem aprender a cultura britânica. Seu desejo é sexual, mesmo que castrado
quase o tempo todo na narrativa, pois os encontros sexuais são reduzidos.
Já ao final do livro, o narrador mantém uma relação homoerótica e talvez a única
que se aproxime de algo completo de todo o romance:
As luzes do quarto estavam acesas. Ele se deitou, disse que bebera demais.
Eu deitei por cima, de frente. Éramos duas caras tão próximas que já não nos
podíamos reconhecer. Era massa de carne em excesso que ajudávamos a
aumentar tirando nossas roupas sem sair daquela posição eu em cima
dele, de frente. Estávamos nus, de repente. De forma que, de repente, não
tínhamos mais nada a dizer. Então ele se ajeitou por baixo de mim, pegou no
meu pau e no dele e os uniu. Assim começou a masturbá-los, primeiro
lentamente. Eu levantava os quadris para olhar. E envolvi, com a minha
mão, a dele, que tocava a bronha nos dois. Éramos dois homens que, embora
sem a idade tenra, pareciam dois galos de rinha no máximo da força e que,
em vez de se bicarem até a morte, entravam num rito com a efusão de outro
sangue, este leitoso, que vinha agora em golfadas sujando nossas mãos,
barriga, pélvis, pernas... (NOLL, 2004, 107).
Novamente, uma relação entre iguais e dessa vez descrita em pormenores,
que lembram outros trechos citados. Essa repetição do ato sexual entre iguais aparece na
repetição da expressão de repente, utilizada duas vezes. A idéia de briga, presente em
outros romances quando se dá uma relação sexual entre homens, aumenta a forte atração
dessas personagens pela violência que o próprio ato sexual traz em sua primitividade.
Da mesma forma, o esperma, resultado do gozo e ao mesmo tempo indicativo de
término da relação sexual e da continuidade, comparece mais uma vez como signo da
virilidade masculina, leitoso, vindo em golfadas, que marcam a forma de perceber a
aparição desses elementos nas narrativas nollianas. As palavras consideradas de baixo
calão, como forma de trazer o horror da relação sexual para o espaço do belo,
configuram uma estratégia recorrente na obra nolliana como um todo. Para Georges
Bataille, os
[...] órgãos e os atos sexuais possuem, em particular, nomes que dependem
da degradação cuja origem é a linguagem específica do mundo da
decadência. Esses órgãos e esses atos têm outros nomes, mas uns são
científicos e os outros, de uso mais raro, pouco durável, participam da
criancice e do pudor dos apaixonados. Nem por isso, os nomes chulos do
amor deixam de ser associados, de uma maneira restrita e irremediável por
nós, a essa vida secreta que levamos juntamente com os sentimentos mais
elevados. É, finalmente, pela via desses nomes inomináveis que o horror
geral se formula em nós, que não pertencemos ao mundo degradado. Esses
nomes exprimem esse horror com violência. Eles mesmos são violentamente
rejeitados pelo mundo honesto. o existe conversa concebível entre um
mundo e outro (BATAILLE, 2004, 217).
Na obra de João Gilberto Noll, não mais diferença entre mundo honesto e
mundo decadente tudo é uma e mesma coisa. Suas personagens devoradoras de
outros homens ou outras formas de gênero são partes desse todo e, por isso mesmo, o
uso do vocabulário chulo de seus narradores, como se não houvesse outra forma de se
expressar com relação ao sexo. Esses escritores ou personagens que resolvem
(re)apresentar suas vidas para os leitores não querem que se faça distinção entre
fronteiras. Daí os nomes serem os mais próximos possíveis daquilo que é falado na rua,
e, embora recebam um tratamento de ordem poética, são o que são: linguagem pura,
nada pudica, escancarada em sua aparição dentro desse teatro do romance.
O que seria queer, então, na escrita nolliana ou homoerótico seria o fato de haver
uma linguagem estranha. Algo que não quer se assentar em um mesmo lugar, mesmo
que o autor as repita à exaustão. Uma linguagem que quebre as relações básicas e
sistêmicas entre prosa e poesia, por exemplo. Na obra nolliana, essa questão vai muito
além, pois o homoerotismo é parte de sua escrita, para além da bandeira levantada em
prol dos direitos gays. É em nome do literário que sua literatura organiza seu
homoerotismo. Mais do que procedimentos políticos de minorias, seu texto produz o
homoerotismo da linguagem, nisso que se poderia chamar de texto sobre outro texto,
devorador de outros textos, inclusive, e crítico das relações entre sexualidade e
sociedade. Contudo, faz essa crítica através de sua relação com a linguagem. Nesse
sentido, seu texto seria queer a partir da representação do homoerotismo que ele faz.
Enquanto a gay fiction faz suas representações de relações homoeróticas de vitrine,
enquanto Caio Fernando Abreu faz uma literatura extremamente lírica, principalmente
no que tange a essas relações a que Denílson Lopes irá nomear como “busca da
afetivização da realidade” (LOPES, 2002, 159), e Silviano Santiago tenta entender qual
é o lugar desse seres, enxergando-os como sujeitos “normais”, pois acredita numa idéia
de homossexual discreto ou malandro (SANTIAGO, 2004), João Gilberto Noll, por sua
vez, recusa-se a entrar ou encaixar-se nessas representações. Não obrigatoriamente
um engajamento social, embora não se exclua de nenhum de seus textos essa ligação.
Para Severo Sarduy, a
[...] única coisa que a burguesia não suporta, o que a “tira dos eixos”, é a
idéia de que o pensamento possa pensar sobre o pensamento, de que a
linguagem possa falar da linguagem, de que um autor não escreva sobre
algo, mas escreva algo (SARDUY, 1979, 22).
Creio poder concordar com o autor cubano e percebo isso na literatura nolliana:
ela não é especificamente sobre algo, mas ela é algo em si mesma. Pode-se perceber,
sim, uma política em prol de um mundo de diferentes e marginais nos romances e
contos de João Gilberto Noll, mas não nada que aponte apenas para isso. Em suas
obras, a representação de relações homoeróticas está muito mais ligada a uma noção
violenta, mais visceral, mais escatológica, mais descentralizada. É uma escrita
fragmentada, paralógica, queer, perversa, deglutidora e, portanto, antropófaga, de todas
as convenções, sejam elas ocidentais ou globalizadas, o que marcaria sua singularidade
dentro do painel da atual literatura mundial.
Conclusão
“A coisa em mim
Procurei, neste trabalho, privilegiar os temas da autobiografia ficcional, da
paternidade na e da escrita e do homoerotismo como prática antropofágica na obra de
João Gilberto Noll, como recortes advindos de minha escolha pessoal. Penso que toda
leitura literária pauta-se pela experiência de quem e que toda escrita sobre um texto
deve seguir a identificação que o leitor criou em sua interação com este. “A coisa em
mim”, nome desta conclusão, está relacionada ao fato de que me sinto extremamente
tocado pela literatura nolliana, que me marcou profundamente desde meu primeiro
contato com ela.
Em um trabalho dessa ordem não é possível deixar-se dominar pelo objeto, pois
que se trabalhar de forma analítica. Na leitura de um texto como o do autor dos três
romances, que abraça a vertigem, um analista não se pode dar ao luxo de abraçá-la tanto
quanto gostaria. Deve-se tentar o estranhamento, o distanciamento, como se fosse
simples, como se a leitura fosse uma questão de bom senso. Ao contrário, a produção de
sentidos e, principalmente, uma produção de sentidos diante da escrita nolliana é
extremamente multifária, e, portanto, o leitor tem que se esmerar por fazer um recorte,
por escolher com quais temas ou objetos ele vai ter de lidar para apresentar a seus
leitores — e isso é um trabalho quase impossível.
Creio que o sentimento maior que se concretiza depois da leitura das obras de
João Gilberto Noll seja o sentimento de abandono, de desamparo, de perda de lastro.
Debruçar-se sobre as páginas nollianas é um exercício de lançar-se no abismo da
miséria humana e no fundo reconhecer-se como o é o ser humano: falho, incompleto,
desenraizado, estrangeiro, pois, se a comunidade humana liga-se através dessa coisa
chamada linguagem, essa literatura faz questão de apontar para o fracasso dessa ligação.
Depois de analisada a obra, restam poucas palavras que dêem conta de enfatizar o que
foi a proposta deste trabalho: analisar três romances de João Gilberto Noll através de
três eixos que se comunicam em sua obra de forma a fazer dela algo singular na
literatura brasileira contemporânea.
Para Noll, em entrevista a Ronaldo Bressane (2000), sua escrita é aquela que lida
com um certo desconforto do leitor. Ela não está interessada em causar ou possibilitar a
este um conforto moral, um conforto pequeno-burguês. uma necessidade para o
escritor de levar seu leitor a uma jornada na qual este vislumbre algo para além da
realidade concreta que se lhe aparece todos os dias.
Esse desconforto, organizado pelos seus temas os mais insólitos e pela implosão
de todos os valores burgueses com os quais o seu leitor está acostumado, é o motor
propulsor da angústia de sua literatura. o que existe é o sentimento de perda e de
desamparo nessa escrita do desconforto que traz ao seu leitor a inquietude de se saber
em um mundo por demais arrasado e, ao mesmo tempo, com a possibilidade de o
poético e o belo instaurarem-se em meio ao desencanto e à destruição. Não certeza
de saída, há, sim, a derrocada dos valores burgueses, o fim dos seres de papel, quase
sempre desaparecidos, subsumidos em suas angústias cotidianas, embora eles, em suas
elocubrações, não se cansem de dizer o quanto estão cansados de representar e de se
representar em um mundo tão exaustivamente representado. É dessa representação
que o autor faz questão de retirar suas diversas personas, para narrar seus romances e
contos. É nessa explosão de “eus” os mais diversos, embora advindos de um sujeito,
que se faz essa produção que não cessa de se escrever e de se inscrever na
contemporaneidade brasileira.
Desse cansaço de tudo, vem a perambulação das personagens, o que, segundo
Noll, seria uma forma de contemplação, quando ele mesmo afirma que a “contemplação
é a chave do que faço” (NOLL a BRESSANE, 2000). Suas personagens são sempre
errantes e estão procurando lugares onde possam contemplar, embora não se saiba bem
o quê. Essa deriva das personagens que as leva à perambulação está diretamente ligada
à interrogação que se faz ao mundo. As personagens nollianas contemplam um mundo à
deriva e continuam a querer produzir literatura em meio a tantas ruínas.
Essa idéia da contemplação é algo comum em suas personagens. Nos romances
aqui analisados, todas as personagens estão à procura de algo que não sabem muito bem
o que seja, pode ser o pai, a escrita, o outro, o próximo livro o importante é a busca.
Não desistência. Embora haja o desejo de desistir, de parar, sempre algo que as
faz mover. O que as leva a essa movência, a essa errância, não é a certeza de algo
concreto, mas algo buscado e para sempre perdido que se sabe desde sempre. É também
através dessa contemplação que esses narradores contemplam suas próprias escritas,
recusando-se a serem meras mercadorias, recusando-se a se enxergarem como iguais em
uma sociedade que necessita sempre mais das coisas e pessoas uniformes. Essa recusa e
esse desejo de ser diferente é o que faz com que essa escrita seja singular e represente
esse processo de busca da singularidade, não a tomando como pronta e acabada, mas
sabendo desde já que nenhuma identidade se faz a partir de um a priori, mas sim de
algo sempre em processo, que essa escrita abraça em sua velocidade vertiginosa em
direção ao abismo.
João Gilberto Noll consegue enxergar essa perambulação de suas personagens
em si mesmo, o que se coaduna com a minha idéia de uma escrita autobiográfica que se
faz sem querer ser autobiografia. Ele, assim como suas personagens, diz de si mesmo
que viveu “sem pouso e sem família, sem uma casa própria”
(NOLL a BRESSANE,
2000).
Essa escrita da autobiografia ficcional tem um ponto de apoio nesse encontro
entre a forma de viver, do escritor empírico e de suas personagens, uma vida de
insegurança, sem conforto, sem parada, sem pouso. Assim como suas personagens
escritoras, Noll mantém um sacerdócio junto à causa literária. Suas personagens
parecem viver apenas para expressarem seus incômodos com o mundo e tentarem
encontrar-se, o que, de certa forma, implicaria um sacerdócio a uma causa da
contemplação, do ócio, para se poder perguntar sobre o que é a vida, afinal.
Em A céu aberto, a procura do pai é o ponto de partida da personagem principal,
assim como em Berkeley em Bellagio e Lorde é a busca da escrita que guia os
narradores. Dessa contemplação, é preciso que esses sujeitos e o próprio escritor tentem
retirar o máximo da possibilidade de fazer-se entender e entender-se a si mesmo. Noll
afirma: “sou um escritor brasileiro, ponto. Tento fazer um estudo da indeterminação,
das identidades em vôo cego, rumo ao que elas não podem nem ainda conceber” (NOLL
a NINA, 2002). O autor sabe que ele está naquilo que escreve e que suas personagens
acabam por representar seu eu fragmentado e disperso. Para isso, faz uso do pacto
fantasmático e representa-se nessas personagens que escrevem ou tentam escrever em
um mundo à deriva através da insistência em trabalhar com a linguagem, mesmo que
esta não seja mais sinônimo de comunicação.
Para João Gilberto Noll, a transgressão é sempre necessária. E, segundo ele,
“suas personagens estão comprometidas com esse desejo ardente de se fundir
cosmicamente” (NOLL a BRESSANE, 2000). Como isso é impossível, ocorre sempre a
dor da impossibilidade, o sentimento de estrangeirismo, de desgarramento que
acompanha essas personagens. Por isso essa transfiguração em diversos “eus” e a
dificuldade de aceitar-se como algo único. Nessa transgressão, também é permitido ao
leitor perceber as relações sexuais entre homens, em um homoerotismo violento,
perverso, no qual os sujeitos perdem-se em meio aos corpos dos parceiros e muitas
vezes são tomados por estes. Essa transgressão devoradora é uma ponte para a
antropofagia, com a qual o escritor gaúcho tem uma forte ligação.
Da incapacidade de fusão dos diversos “eus”, advêm essas identidades que não
se esgotam ou não podem ser colocadas num mesmo lugar, seja a de suas personagens,
seja a dele mesmo enquanto escritor, que, se por um lado é dono de um estilo, é também
responsável pela quebra de toda e qualquer noção de gênero ou de limites dentro de sua
literatura. Uma escrita que cria vários “eus”, que desconstrói a idéia de unidade,
inclusive dela própria, sempre errante e sempre inconclusa, é uma escrita que lega a seu
leitor a sensação de estrangeiridade, a sensação de não-pertencimento, embora este se
saiba incrustado nessa mesma civilização que, em nome da modernidade ou da
civilização, constrange-o a todo tipo de opressão. Ser estrangeiro nessa literatura é
espernear contra os limites da história, da cultura, do corpo. É a tentativa de se imiscuir
nesse inanimado do pensamento, deixar-se levar pela vertigem, pela digressão, pelo
devaneio aos quais essa literatura sempre convida seu leitor, em nome de uma libertação
maior na qual não haja limites, mas que acaba por esbarrar na dura realidade que o
espera depois de fechado o livro. A vertigem é incessantemente barrada pela violência
maior da realidade. O escritor deixa claro que a tragédia de suas personagens está no
rompimento com a pólis também, não mais a pólis grega, mas a pólis contemporânea,
essa cultura midiática, de consumo, na qual o sujeito não tem vez e é obrigado a
fragmentar-se para sobreviver e errar constantemente.
Dos raros limites entre prosa e poesia que sua literatura quer produzir, o escritor
gaúcho afirma que o que quer é chegar a um hibridismo entre prosa e poesia numa
“utopia da linguagem”; ele quer “uma literatura além dos gêneros” (NOLL a BRASIL,
2004). Uma literatura sem lugar, de difícil classificação, sem centro, queer até mesmo
em sua indeterminação de papéis ou posições, exceto em relação à defesa da escrita
literária. Uma escrita que produz sua própria teoria, sua saída, que insiste, através de
artifícios literários, em misturar poesia e prosa. Uma escrita que insiste em produzir a
beleza em meio a tanta desilusão e desencanto. Uma escrita que mistura sexo e morte,
erotismo e religião, beleza e degradação no mesmo espaço. Espaço brido, a literatura
nolliana assume-se com todas as letras como aquela que faz questão de autodescobrir-se
e produzir-se sempre nova, dando à luz a si mesma a partir dos contatos infinitos com os
diversos textos anteriores a ela, conforme procurei demonstrar no capítulo III, no
contato direto com a escrita antropofágica oswaldiana.
Nesse sentido, a descoberta do mal nos romances de João Gilberto Noll está
ligada à própria representação desse mal. A maldade humana pode ser entrevista na
crueza dos detalhes dessa escrita. Segundo ele, a literatura deve trabalhar com o mal,
não deve ser politicamente correta, pois o escritor não deve ver as coisas de cima, com
um olhar complacente. O mal, para o escritor, é um atrativo muito forte, e ele quer
apontar para esse mal, “levantar esse tapete onde se coloca debaixo todos os detritos que
não se quer que sejam vistos socialmente” (NOLL a BRESSANE, 2000). Para ele, só se
pode iluminar o drama humano com más intenções por isso que transgredir no
espaço literário, que haver uma escrita convulsiva, inadequada aos padrões de
conduta e bom comportamento.
A consciência do mal que move essa escrita que deseja destruir o gosto burguês
e quer brigar contra o politicamente correto é o que faz dela algo para além da mera
representação de ações encadeadas e afinadas ou harmônicas. Daí as cenas de
canibalismo, sadismo, incesto que ela teima em representar como se fosse uma escrita à
procura desse mal comum que a nossa cultura insiste em não falar sobre, em não querer
pensar sobre, varrido pra debaixo do tapete, conforme ele mesmo diz. Pior ainda que as
cenas descritas com crueza de detalhes é a eterna solidão da personagem errante,
incapaz de criar laços em um mundo cada vez mais desumanizado que se recusa a
refletir sobre sua própria situação. A contemplação nolliana, feita através desses
percalços vividos por seus narradores, vai muito além da representação. Ela quer atingir
seu leitor de uma forma violenta, o que me leva a pensar nesse erotismo de que o
literário é capaz. Ao mesmo tempo que se aproxima da beleza, ele aponta também para
a morte de forma violenta. João Gilberto Noll acha que “a literatura sempre tem um
grito erótico muito profundo, é um espernear erótico bastante intenso. [...] a literatura
tem uma função libidinal muito forte” (NOLL a ROSARIO, 2004). Da mesma forma
como escreve essas cenas de crueza tão eloqüentes em que gozo e morte confundem-se,
em que a violência humana mostra toda a sua força, o escritor deseja pedir perdão a seus
leitores. Mas a essa literatura o perdão pode ser dado através do reconhecimento da
beleza da produção que cada frase traz. Tornada pura poesia, sua prosa é desconcertante
e as cenas que deveriam chocar produzem um efeito fascinante de que a linguagem
artística é capaz.
Nessa escrita maléfica a serviço do bem, João Gilberto Noll desenha o caos da
cultura ocidental judaico-cristã, percebe sua falta de sentido, enxerga o individualismo,
no qual existe pouquíssimo espaço para a representação do próprio sujeito, perdido que
está em sua redoma, confortado que está pelo consumo. Sujeitos descentrados,
excêntricos, suas personagens acabam por mostrar-se antípodas do leitor que não quer
perceber-se nesse mundo desabrigado, a céu aberto. Não redenção, apenas um
grande desconforto que essa literatura faz questão de deixar claro, pois, para o escritor
gaúcho, “a literatura tem um forte apelo amoral” (NOLL a BRASIL, 2003). Para ele, na
literatura, a demência deve falar mais alto, ele quer trazer a abjeção para a sua cena,
pois não se escreve para agradar aos “bem pensantes”, mas com a fidelidade àquilo que
é “irrefreável”, pois repousa nisso a reinvenção, a novidade retirada daquilo que se
convencionou chamar realidade (NOLL a BRASIL, 2004).
Essa literatura amoral tem uma função: a de colocar em jogo tudo aquilo que não
se quer desvelado. Conforme demonstrado no terceiro capítulo, as relações sexuais são
explicitadas em seus romances não apenas com a intenção naturalista de apontar algo
que não se quer mostrar, mas com uma intenção ética de visualizar uma questão como
essa, que não quer dar aos amores sua transparência. A opacidade dos afetos sexuais
literários não cabe nessa escrita, pois as palavras devem ser ditas, a linguagem deve ser
utilizada conforme ela é. D que todas as ditas “sujeiras vergonhosas” devam
comparecer no banquete da escrita nolliana como forma de desprezar os valores que
querem calar esses amores e desmascarar a boa intenção literária, que não levaria a
reflexão ao sujeito leitor. Esse desejo beira a anarquia, o que Noll enxerga como parte
de sua escrita, que se sente “um escritor da convulsão, é nesse sentido que eu acho
que a coisa é anárquica, se você for levar à questão última”. Para o autor, se não for para
negar o status quo, não há função para a escrita, porque a literatura não deve homologar
nenhuma instituição nem legitimar discursos, sendo o seu compromisso para com ela
mesma. Ela é um fim em si mesma e isso faz dela um terreno de liberdade (NOLL a
ROSARIO, 2004).
Nessa aventura é que sua escrita trabalha com o irrefreável de todas as paixões,
com um erotismo muito forte, principalmente um homoerotismo em que a devoração do
corpo do outro, por seu igual em gênero, faz parte de um ethos que deseja tirar a
referência do centro. Sai o amor calado e organizado e entra o amor (des)organizado,
aquele que permite aos sujeitos entrarem em contato com o seu mais íntimo desejo e
concretizá-lo, independentemente da vontade do outro. São seres egoístas que se fazem
em constante tensão com o outro o que me leva de volta à questão da antropofagia, na
qual o que está em jogo é a devoração das culturas, dos textos escritos sobre boas
maneiras, dos textos amorosos polidos e a busca incessante de uma nova escrita, vital, e,
por isso mesmo, anárquica, pois é da liberdade que ela se faz.
Sobre a questão da paternidade da escrita, ao responder sobre linhagens
literárias, o escritor afirma que acredita “que existam. Mas nem sempre são linhagens
onde você se filiar conscientemente. São confluências” (NOLL a BRESSANE,
2000). Essa linhagem, assumida por João Gilberto Noll na figura de Clarice Lispector, é
visível na obra do autor gaúcho, que até títulos de contos ou passagens podem ser
facilmente comprovados, conforme faz com a obra de alguns modernistas. Essa
literatura faz-se de forma inconsciente, os modelos ou as confluências são relativamente
variados, e, por isso mesmo, o escritor não pode apropriar-se de todos conscientemente.
autores reconhecidos conscientemente pelo escritor gaúcho, mas também é
preciso lembrar dos escritores que aparecem inconscientemente, pois a paternidade de
toda escrita opta consciente ou inconscientemente em criar-se como pai de si mesma.
A escrita nolliana é um exemplo de como remexer no cadinho dos seus precursores e
escolhê-los de forma a vincularem-se, mas também, como todo bom filho, mata seus
pais através de paródias e plágios, como o faz com Oswald de Andrade, conforme
demonstrei no terceiro catulo. Embora não tenha percebido, em nenhuma entrevista,
João Gilberto Noll sequer citar o nome de Oswald de Andrade, espero ter
demonstrado que essa confluência existe de forma inegável em sua produção literária.
Esse princípio antropofágico de devorar a obra alheia presente na obra oswaldiana
o autor de Berkeley em Bellagio leva a cabo com uma grande maestria, para refletir
sobre as infinitas possibilidades de combinação em sua obra, que, mesmo descentrada
e em constante ebulição, possui algo com o qual se conecta dentro da tradão literária
do ocidente.
João Gilberto Noll afirma que a literatura que ele produz não tem
“necessariamente uma mensagem explícita”. Afirma que o que existe é uma “utopia de
aparição”. Daí a crueza das cenas e dos temas com os quais trabalha, pois sua literatura
visa esses deserdados, os excluídos (NOLL a BRESSANE, 2000). A política defendida
pelo escritor gaúcho é a política da escrita, na qual se pode tratar de todos os assuntos
devido ao grande poder da literatura em ser multidisciplinar antes de tudo. Se sua escrita
é aquela que trabalha com os fatos do cotidiano, coisa bastante modernista, ao mesmo
tempo permite-se representar a exclusão dos sujeitos desse mesmo mundo moderno. A
aparição em seus romances apontaria para o fato de haver uma presentificação muito
grande, como ele mesmo afirma, do sangue, das fezes, da urina, do canibalismo, de
relações sádicas, mas também que esses elementos se fazem escrita para tratar das
impossibilidades da vida nesse mundo contemporâneo. Essa imposição quase biológica
da cena é uma constante, como que a demonstrar a necessidade de discutir o que não se
quer discutir, conforme o padrão de uma cultura que obriga todos a seguirem padrões
quase que diametralmente opostos a seus desejos. A cultura ocidental vê-se criticada
pelas mesmas ferramentas que ela possui: da imagem, da aparição, o autor faz sua
bandeira para desvelar o que é uma cultura de superfície. Essa presentificação dá-se
nessas cenas cruas, nas quais uma presença quase física do sexo, como ele mesmo
afirma: “O sexo em Berkeley em Bellagio vem de uma necessidade de fusão cósmica
que ganha inclusive tons litúrgicos” (NOLL a NINA, 2002). Nessas cenas, misturam-se
sexo e religião, demonstrando a grande dificuldade de os seres humanos integrarem-se,
embora o desejem. É uma espécie de comunhão, o que, mais uma vez, lembra-me o
princípio antropofágico de aproveitar-se da carne do outro para se fazer melhor,
construir-se como outro também, mudando as identidades constituídas através dessa
fusão. Afinal, o rito primitivo antropofágico nada mais era do que um sacramento no
qual o sujeito religava-se ao divino, ao sagrado, sem com isso abrir mão da violência do
próprio ritual. Em todas as relações sexuais homoeróticas nos romances, não espaço
para uma relação civilizada: a aparição do sexo nesses textos é algo da ordem do
excesso, que lembra esses ritos primevos.
Para João Gilberto Noll, existe uma deserção da companhia do outro na cultura
que consegue algum alívio ao tocar a carne humana, para, a partir daí, entrar nesse
gozo provisório, efêmero, que é o contato com o outro. É no sexo que o autor de A céu
aberto percebe uma certa possibilidade de redenção, pois, se os corpos não se fundem,
dá-se a tragédia da incomunicabilidade. Esse erotismo sustentado pelo autor é aquele
capaz de criar cenas violentas nas quais o ato religioso do sacrifício carnal é utilizado
juntamente com a violência do estado primitivo da sexualidade. Principalmente em
relações homoeróticas, o escritor produz cenas de um teor sexual muito presentificado,
forte, mas, ao mesmo tempo, poéticas ao extremo. É essa qualidade de juntar os
avessos, os contrários, que faz com que sua literatura seja uma literatura transfigurada,
na qual o realismo, mais do que a serviço da denúncia social, aparece ao lado da poesia,
produzindo a quebra de todas as fronteiras entre realidade e ficção, religião e erotismo,
morte e vida, tudo encenado dentro desse teatro da aparição, que beira a vertigem. Sua
literatura é, assim, o palco no qual o teatro é realmente tomado como artifício literário,
uma vez que considera o aspecto teatral da literatura algo muito importante (NOLL a
BRESSANE, 2004). Essa teatralização também está ligada a uma literatura do
acontecimento, conforme mostra o autor quando afirma que sua literatura não reflete
apenas algo da realidade, mas convida seu leitor a “revivenciar esse mistério da
condição humana que não é apenas prazer, é também às vezes, por exemplo, tocar fundo
num lado escuro, numa aberração”
(NOLL, 2004).
Esse acontecimento que torna sua escrita uma liturgia é o que se em todas as
suas histórias: são cenas que são substituídas por outras cenas, e assim sucessivamente,
uma atrás da outra sem parar, numa rapidez vertiginosa. Isso faz com que essa narrativa
se transfigure, não elegendo mais apenas o realismo como forma, mas entranhando nele
uma poética mais porosa em que nada está amarrado, mas, ao mesmo tempo, tudo está
estranhamente ligado, os fatos estão como o sonho que adentra a realidade das
personagens ou os devaneios que se transformam em instantes preciosos de reflexão
sobre a escrita. Assim como as seqüências de relatos sexuais não estão ali por mero
prazer de seu autor ou narrador ou para o deleite de seu leitor, mas para que este entre
em contato com essa “aberração”, com essa demência interditada, que durante muito
tempo a sociedade ocidental recusou-se e ainda se recusa a tocar. É nesse teatro da
aparição que o leitor é convidado a escrever conjuntamente com o escritor, pois
representar o que se está representando, desvelando seu próprio processo de escrita
numa performance que nunca cessa de se inscrever, é o que o autor faz em suas “quase
liturgias”, como ele mesmo afirma, pois há momentos em que a história contada não é o
que realmente interessa, mas o acontecimento. Daí o fato de trabalhar com instantes de
contemplação em que sua literatura vai em direção a uma dispersão na qual o estado
poético impere. Tudo é feito no embate entre o escritor e o livro nunca pronto em um
primeiro momento, mas sempre in progress (NOLL a ROSARIO, 2004).
Essa literatura quase do acaso só poderia ser do acontecimento, na qual as ações,
as coisas vão-se sucedendo, os espaços entrecruzam-se para dar lugar à vertigem do
teatro da aparição. É impressionante como o escritor coloca-se com relação à sua
produção, pois nada parece fora do lugar em sua enunciação. Embora caótica, a escrita é
extremamente coerente e capaz de criar a beleza do grotesco, de modo que o leitor não
pode fazer outra coisa senão duvidar dessa fala de seu autor. O ato de representar está
presente na obra de João Gilberto Noll, pois sua persona é utilizada para produzir um
sentido que não se claramente em seus escritos. Embora seja uma escrita do acaso,
conforme ele afirma, nada em sua estrutura me parece do acaso. Sobre a mistura entre
ficção e realidade ou vida e arte, Noll comenta que sua literatura é um “misto de
imaginação e memória”, e, segundo ele, sua maturidade veio através de Berkeley em
Bellagio, pois é o livro em que mais um equilíbrio entre a vivência e o arsenal
simbólico (NOLL a NINA, 2002).
Nessa relação entre imaginação e memória é que seu texto faz-se forte e
extremamente criativo, para pensar as relações existentes entre o que é da vida e o que é
da arte, conforme demonstrado no primeiro capítulo. Nada é totalmente verdadeiro, pois
não são fatos que ocorreram da mesma forma, mas, ao mesmo tempo, nem tudo é
totalmente inventado. É dessa reatualização dos fatos vividos que se faz essa narrativa
transfiguradora de que João Gilberto Noll é capaz. E ele continua afirmando que
Berkeley em Bellagio é seu livro mais pessoal, porque nele nomeia a personagem com
seu próprio nome, mas mantendo o jogo do ocultar e do desvelar-se como máscara
ficcional (NOLL a LOPES, 2004).
Essa transfiguração narrativa e essa maturidade do escritor é onde Noll chega e
pode dar-se ao luxo de inscrever-se a si mesmo, o que faz dele o grande escritor que é.
Representar-se a si mesmo representando é um ato de mimese diferenciador de seus
contemporâneos, pelo menos no que tange ao universo brasileiro, pois ele sabe-se voz e
não um corpo inteiro, pronto e acabado; sabe-se em trânsito, não espacial, físico, mas
abstrato; percebe-se alguém como pessoa de um discurso dentro dos padrões da
gramática, mas que não quer obedecê-los, colocando-se como processo de escrita pura.
Espaço de experimentação e acontecimento, o jogo do acaso realiza-se nessa literatura a
ponto de torná-la aparentemente uma representação do acaso, embora ela, em seu
processo, não seja nada ao acaso. Se o jogo deixa o autor eufórico, seu leitor não fica
menos, embora em constante desconforto, por ser jogado de um lado a outro, ter suas
expectativas quebradas e tendo que se deparar com sua própria face nesse espelho
metáfora tão cara a Noll —, capaz de inscrever em si mesmo seu próprio horror. O que
move toda leitura literária é a tentativa de desvendar os mistérios e os segredos do outro.
Reinventando-se a si mesmo, é esse leitor que a obra nolliana procura fazer seu
cúmplice, seu parceiro nessa longa jornada, que, embora de poucas páginas, é
dilaceradora de toda e qualquer possibilidade de esperança, exceção feita a Berkeley em
Bellagio e seu final esperançoso para todas as personagens ali envolvidas.
Sobre seu processo de criação, Noll explica que é inconsciente, compulsivo, que
ele se abandona ao texto no ato da escrita. Ele afirma não saber onde vai parar, que o
livro é que se faz sem que ele tenha plena consciência da ação. Não nega que ele faça
revisão e que tenha um acurado processo de reescrita, mas isso ocorre em uma segunda
etapa da produção. Porém, a prevalência do inconsciente em sua forma de escrever é
primordial para seu trabalho (NOLL a LOPES, 2004).
Por ser compulsivo em sua escrita, João Gilberto Noll dá a seu leitor a chance de
também entrar em sua compulsão e participar dos temas que ele seleciona para
trabalhar, os quais são quase sempre repetidos à exaustão. Mostrei em meu trabalho que
as compulsões quase obsessivas com a representação de si mesmo, com a busca pela
paternidade perdida e com as relações homoeróticas fazem parte da obra do escritor
como um todo e transfiguram-se em metáforas para sua escrita. Se é o inconsciente que
as produz, pode-se dizer que o escritor tenta fazer a travessia desses fantasmas, dessas
aparições em sua obra como forma de perpetuar-se enquanto escritor. Essas obsessões
foram tomadas neste trabalho como pontos fulcrais dessa escrita, pontos que
diferenciam sua poética de outros escritores, que marcam seu trabalho e lhe garantem
uma identidade, senão única, pelo menos vislumbrada. Há uma marca quando se lê João
Gilberto Noll, pois essas questões são prementes e desenvolvem-se obsessivamente em
seus contos e romances.
A literatura nolliana é perigosa e não se quer fascista, ela reclama pela liberdade.
Essa liberdade faz com que sua literatura não acredite no pensamento absolutista,
expondo, assim, as contradições humanas, as paixões humanas. Assim, a literatura
coloca em questão até seus próprios fundamentos (NOLL a ROSÁRIO, 2004). É nessa
literatura perigosa, literatura que busca a liberdade, que coloca em questão seus próprios
fundamentos, que me embrenhei para buscar essas questões obsessivas, como as
diversas compartimentalizações do eu nessa escrita autobiográfica e fantasmática, da
paternidade da escrita e do homoerotismo. São os caminhos perigosos do texto, suas
reentrâncias, suas rugosidades, seus poros pelos quais o leitor adentra.
A escrita de João Gilberto Noll possui esses descaminhos nos quais o leitor
perde-se para contemplar sua própria humanidade, e, se essa literatura produz uma
perda de lastro, uma sensação de estrangeiridade, um desamaparo muito grande, ainda
assim ela acredita na possibilidade de uma esperança de encontro nessa comunicação
tão rarefeita, pois a criação da beleza em meio ao caos é ainda uma esperança de
produzir algo no qual a humanidade encontre-se. Essa escrita faz da busca sua aparição
maior, e desvelá-la é o que todo leitor deveria fazer.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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