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Michelly Pereira
Figurações de Eros em poemas e contos
de João Melo
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Michelly Pereira
Figurações de Eros em poemas e contos
de João Melo
Dissertação apresentada ao Programa de s-graduação em
Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
como parte dos requisitos para obtenção do grau de Mestre em
Literaturas de Língua Portuguesa, elaborada sob a orientação da
Profª Drª Maria Nazareth Soares Fonseca.
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Belo Horizonte
2007
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Michelly Pereira
Figurações de Eros em poemas e contos de João Melo
Dissertação defendida publicamente no Programa de Pós-graduação em Letras da
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e aprovada pela seguinte
Comissão Examinadora:
____________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Tânia Macedo
(USP)
____________________________________________________
Prof. Dr. Audemaro Taranto Goulart
(PUC MINAS)
____________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Nazareth Soares Fonseca - Orientadora
(PUC MINAS)
Belo Horizonte, ______ de ________________________ de __________.
Prof. Dr. Hugo Mari
Coordenador do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC MINAS
DEDICATÓRIA
Este trabalho é daqueles que, no meu caminho, ensinaram-me a
ter PAIXÃO CONSTANTE pela VIDA.
AGRADECIMENTOS
À CAPES, pela bolsa que transformou o MESTRADO em realidade para mim.
À minha FAMÍLIA, pelo amor incondicional, pelo apoio sempre.
À NAZARETH, a orientadora-amiga e amiga-orientadora; por me ensinar que o
caminho certo a seguir é aquele em que creio; por sempre acreditar em mim (desde
a graduação) e pelas lições diárias de humanidade aliadas ao ensino das Literaturas
Africanas de Língua Portuguesa.
Aos PROFESSORES da PUC, que acompanham minha caminhada com muito
carinho e sempre dispostos a ensinar.
À PUC, minha segunda casa.
Enfim, a TODOS aqueles que colaboraram, direta ou indiretamente, para a
realização deste trabalho. Eles sabem quem são.
Se os seres desejam o prazer, não poderíamos pensar que é
porque todos aspiram a viver? Ora, a vida é uma atividade e
cada ser exerce sua atividade sobre os objetos e com as
faculdades que mais aprecia; assim, o músico com a audição
sobre a melodia, o intelectual com o pensamento sobre os
objetos de contemplação, e assim por diante. Ora, o prazer
aperfeiçoa as atividades e, portanto, a vida, que todos os seres
desejam. Então, é normal que todos, de uma só vez, aspirem ao
prazer; pois o prazer aperfeiçoa, para cada um, a vida, que lhe é
preciosa...
(ARISTÓTELES apud LEBRUN, 1990, p.78)
RESUMO
Esta dissertação analisa diferentes expressões do erotismo em poemas e contos do
escritor angolano João Melo, discutindo-as a partir da noção de “força vital”, tal como
a entende o teórico malinês Hampaté Bâ, de “pulsão de vida”, discutida por Georges
Bataille, e de pontos de vista defendidos por Freud, Francesco Alberoni, Marilena
Chauí, Sobonfu Somé, Anthony Giddens, Michel Foucault, entre outros teóricos,
para ressaltar as diversas vestimentas com que Eros se apresenta nos vários textos
analisados.
Palavras-chave: erotismo; literatura angolana; João Melo; força vital; pulsão de vida.
ABSTRACT
This work analyses erotism's different expressions in poems and tales from Angolan
writer João Melo, discussing them from the "vital power" notion as understood by
Malian researcher Hambaté Bâ, from the "life drive", as discussed by Georges
Bataille and from points of view defended by Freud, Francesco Alberoni, Marilena
Chauí, Sobonfu Somé, Anthony Giddens, Michel Foucault among other, to highlight
the several faces with which Eros present itself in the studied texts.
Keywords: erotism; Angolan literature; João Melo; vital power; life drive.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO...................................................................................................9
2. SOBRE AS ROUPAGENS DE EROS...............................................................14
2.1. Eros se veste de força vital..........................................................................14
2.2. Eros em traje feminino................................................................................. 28
2.3. Eros com roupagem política e social......................................................... 34
3. A LINGUAGEM DO DESEJO NO CORPO DO POEMA.................................. 39
3.1. Eros doloroso................................................................................................41
3.2. Eros tátil-visual............................................................................................. 46
3.3. Eros na natureza........................................................................................... 52
3.4. Eros cristaliza-se no corpo.......................................................................... 57
4. EROS EM CONTOS.......................................................................................... 62
4.1. A consciência perversa de Eros..................................................................64
4.2. Revanche das mulheres...............................................................................72
4.3. O macho irresistível ou o desejo de sê-lo.................................................. 80
4.4. Eros banalizado............................................................................................ 86
5. PARA TALVEZ CONCLUIR..............................................................................94
REFERÊNCIAS..................................................................................................... 96
1. INTRODUÇÃO
Falar de Eros é uma tarefa prazerosa, embora nos obrigue a lidar com
algumas restrições. O tema é discutido de forma mais livre em alguns lugares,
dentre eles o acadêmico, mas enfrenta preconceitos e mal-entendidos quando vem
à pauta fora desses espaços e tem de lidar com interdições, normas e valores
histórica e culturalmente estabelecidos “para controlar o exercício da sexualidade”
(CHAUÍ, 1985, p.9). Nesse sentido, é de se pensar que o como falar de Eros,
sem se defrontar com preconceitos e limitações.
Bataille, quando se propôs a publicar o livro O erotismo (1987), afirmou, no
prefácio, que este “deixara de ser encarado como um assunto que um homem
sério’ não podia tratar sem arriscar a sua reputação” (p.8). É verdade que muito
mudou em relação ao entendimento que as pessoas têm do fenômeno erótico,
principalmente quando ele é estudado no campo da pintura, da escultura ou da
literatura. Mas como o erotismo está sempre sob suspeita, mesmo nesses campos,
pode ser estranha a postura de algumas pessoas diante de “algo suposto ser
meramente biológico e meramente natural” (CHAUÍ, 1985, p.10), a sexualidade, que
é intrínseca a todas as culturas, desde sempre.
Superados os percalços do caminho, este trabalho propõe discutir as
manifestações do erotismo em poemas e contos do escritor angolano João Melo,
procurando inovar em pelo menos dois aspectos.
O primeiro relaciona-se ao fato de que, embora a presença do erotismo em
obras de autoria feminina seja comentada neste trabalho, preferimos investigar mais
profundamente a visão do erotismo expressa em obras de autoria masculina. O
segundo ponto é que decidimos por analisar diferentes gêneros literários, mais
especificamente, contos e poemas do escritor escolhido. Justifica-se essa opção
porque nos interessa observar o modo como o escritor trabalha a linguagem nesses
diferentes gêneros e como neles se explicitam as manifestações eróticas.
O corpus escolhido para análise compõe-se, portanto, de poemas e contos do
escritor angolano João Melo (Aníbal João da Silva Melo), nascido em Luanda, em 5
de setembro de 1955. O escritor estudou em sua cidade natal até o ensino
secundário, tendo, posteriormente, estudado Direito em Coimbra (Portugal). No
9
Brasil, fez Licenciatura em Comunicação Social na Universidade Federal
Fluminense, onde também fez o Mestrado em Comunicação Social e Cultura
(UFRJ). Em Angola, dirigiu vários meios de comunicação estatais e privados e
ocupou diversos cargos de responsabilidade em órgãos sociais. Enveredou pela
carreira política, tendo sido chefe da seção de Informação Internacional do
Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), além de diretor da ANGOP no
Brasil. Atualmente é deputado em Angola, além de diretor de uma agência de
comunicação e professor em duas universidades privadas. É membro fundador da
União dos Escritores Angolanos (UEA).
Tendo em vista a diversificada formação acadêmica e profissional do autor,
não é de estranhar a variedade de temas com que ele trabalha em suas obras. Por
isso, é necessário salientar que o fato de privilegiarmos o tema do erotismo em seus
textos não significa que outros temas não sejam abordados neles, ainda que de
forma mais ligeira. Considerando a recorrência com que surge a temática erótica na
obra do autor, aqueles que cobram de João Melo uma produção literária mais
comprometida com aspectos político-sociais de seu país, apoiando-se no fato de seu
pai, Aníbal de Melo, ter sido um importante ativista político e o próprio escritor ser
deputado pelo MPLA (Movimento pela libertação de Angola). No nosso entender, a
opção do autor pelo erotismo e, principalmente, por expressá-lo de maneira irônica e
por vezes crítica, indica o seu compromisso com a realidade de seu país.
Salientamos que, embora o nosso olhar se detenha mais especificamente no
modo como o erotismo se manifesta nos poemas e contos do escritor, não temos a
intenção de apresentar uma visão sistemática e totalizante de sua obra. Procuramos
ler a manifestação do erotismo nos textos, observando suas diferentes nuances e,
sobretudo, a intenção crítica que a abordagem do tema assume, por vezes de forma
aguda e ferina.
Discutindo a função do erotismo na obra de João Melo, a estudiosa Tânia
Macedo [1992], refere-se à marca transgressora da produção literária de João Melo
dada pelo erotismo:
João Melo, ao realizar a opção por explorar o tema do erotismo em sua
poesia, exerce mais uma vez a recusa ao plenamente aceito e, nesse
movimento, procura re-apresentar uma experiência primordial, humana, em
contraste com convenções morais rigoristas, infringindo-as. Ocorre que essa
escolha acaba por lançá-lo em caminhos pouco trilhados na literatura
angolana contemporânea, contribuindo, dessa forma, para aumentar o
10
número de possibilidades temáticas do sistema literário em que seu texto está
inscrito (...).
A escolha de poemas e contos, neste trabalho, deve-se, sobretudo, ao fato de
que, após uma primeira leitura dos textos, ficam evidentes as diferentes
manifestações de Eros em cada um dos gêneros selecionados. Nos poemas,
encontramos um erotismo intensamente lírico, marcado por destaque dado à beleza
dos corpos e pela expressão intensa de uma subjetividade. Em contrapartida, nos
contos, o erotismo mostra-se, por assim dizer, “escancarado”, explicitando formas de
violências, geralmente relacionadas a encontros fortuitos e ocasionais, nos quais os
corpos procuram apaziguar a urgência de sexo.
A seleção dos poemas e contos foi acompanhada da leitura de textos teóricos
sobre o erotismo que pudessem dar uma sustentação mais densa às análises
pretendidas. Concomitantemente à leitura de textos teóricos, realizamos uma
primeira análise do corpus selecionado. nessa etapa, pudemos verificar que, na
poesia de João Melo, o erotismo pode ser percebido como expressão de “força
vital”, no sentido que lhe dá Hampaté (1993). Esse conceito mostrou-se um
eficiente operador teórico porque, ao mesmo tempo em que nos permitiu pensar o
erotismo a partir de outros critérios, propiciou-nos relacioná-lo com a concepção de
erotismo enquanto “pulsão de vida”, apresentada por Bataille (1987). Como força
vital ou pulsão de vida, o erotismo tem seu sentido expandido e essa visão foi
bastante eficaz para que pudéssemos perceber as manifestações eróticas, nos
textos estudados, em seus vários sentidos.
No decorrer do trabalho, valemo-nos de outras concepções de erotismo, as
quais se mostraram pertinentes ao estudo de diversas questões propostas pelos
textos do autor. Em vários deles, desejo, prazer e sexualidade mostram-se como
desdobramento do sentido de Eros, na medida em que o conceito de erótico que
conduz as análises ora se expande, permitindo considerar que erotismo e
sexualidade se assemelham (DURIGAN, 1985), ora assume delimitações mais
pontuais de acordo com encaminhamentos propostos pela concepção de erotismo
em Bataille (1987).
Com a intenção de dar a este estudo uma melhor organização, dividimos os
textos sobre os quais trataremos em diferentes blocos temáticos, vendo-os como
diferentes roupagens de Eros. Ressaltamos, todavia, que cada poema ou conto
pode transgredir os blocos temáticos, que, como procurarão demonstrar as
11
análises, tematizar não significa fechar os textos em significações estanques. A
intenção é perceber como Eros se mostra nos vários textos estudados, assumindo
sugestões elaboradas, camuflagens ou exposições mais cruas.
O primeiro capítulo aborda considerações teóricas, sem o objetivo de traçar
uma linha histórica ou de fechar o fenômeno do erotismo em uma única definição.
Não nos detivemos na diferenciação entre erotismo e pornografia, e sim na
exposição de algumas das diversas maneiras com que o erotismo pode se
manifestar nas artes em geral. Para melhor expor nossas percepções do erotismo,
nesse capítulo em particular, foram comentados poemas, contos, um romance, um
filme e um quadro.
No segundo capítulo, propusemos uma reflexão sobre o erotismo na poesia
de João Melo. Foram selecionados poemas de três obras do autor: Canção do
nosso tempo (1989a), Poemas angolanos (1989b) e O caçador de nuvens
(1993). Como pretendemos demonstrar, essas obras contêm poemas que tratam da
sexualidade de uma forma muito lírica, expressam uma valorização do elemento
feminino e celebram um erotismo-paixão, para o qual o toque, o tato, tem grande
importância.
No capítulo que se refere à análise dos contos do autor, foi incluído o livro
mais recente do escritor, O dia em que o Pato Donald comeu pela primeira vez a
Margarida (2006), além dos outros dois: Imitação de Sartre & Simone de
Beauvoir (1999) e The serial killer e outros contos risíveis ou talvez não (2004).
Ver-se-á que o erotismo presente nos contos funciona, por vezes, como um
mecanismo de desestabilização, de enfrentamento até porque se vale de termos e
expressões que, denotando mais crueza, expulsam do texto a visão romântica
1
do
amor. Nesse sentido, em alguns contos, homens e mulheres podem ser reduzidos a
meros objetos ou assumir o instinto poderoso dos animais. Como se procurará
demonstrar, a leitura dos contos deve estar sempre atenta ao uso intencional da
ironia e da crítica, vendo tais recursos como elementos importantes do discurso de
narradores nada dignos de confiança.
Para concluir, voltamos a ressaltar diferentes pontos que, nos poemas e nos
contos, podem demonstrar os vários espaços em que Eros se apresenta. Nessa
parte final, procuramos deixar claro que as conclusões não podem ser entendidas
1
Neste trabalho, estaremos utilizando os termos romantismo e romântico (a) (s) para explicar
determinados aspectos da poética de João Melo ligados ao apelo às paixões, à sensibilidade, à
delicadeza, aos sonhos e ao subjetivismo.
12
como uma síntese definitiva das discussões que permearam o trabalho, mas como
uma tentativa de apresentar algumas contribuições a posteriores discussões e
incentivar novas pesquisas.
Nesse sentido, consideramos pertinentes as palavras do próprio escritor
quando alude a questões que dizem respeito aos seus livros já publicados:
(...) o escritor deve ter a liberdade de escrever sobre tudo o que quiser e da
maneira que entender. (...) De resto, o autor, consoante a sua maneira de ver
as coisas, o seu estilo de vida, a sua opção, a sua sensibilidade, o seu estado
de espírito, de acordo com a conjuntura em que vive, pode num dado
momento escrever textos de um tipo e textos de outro tipo. (...) afinal,
literatura é acima de tudo linguagem. Nenhum escritor que se preze deve
perder de vista este facto. (MELO, [2005])
As palavras do escritor João Melo ratificam a impressão que tivemos ao tomar
contato com os seus livros: a escrita do autor pode revelar diferentes caminhos e
originar um tipo de texto diverso do outro. Se os livros se mostram diferentes com
relação aos temas e à abordagem privilegiada, a linguagem, instrumento capaz de
construir os mundos encenados, é o que confere aos textos do escritor uma
singularidade e os legitima enquanto arte. Nessa arte, o erotismo assume, como
pretendemos demonstrar, diversas roupagens muito aptas a revelar os estranhos
caminhos pelos quais Eros transita na literatura.
13
2. SOBRE AS ROUPAGENS DE EROS
A imagem assume fisionomias várias ao cumprir o seu destino de exibir
mascarar o objeto do prazer ou da aversão.
(BOSI, 2000, p.26)
Poderíamos começar este capítulo apresentando definições de erotismo
presentes em dicionários ou realizando, de forma breve, um percurso teórico-
histórico do erotismo e, conseqüentemente, também da literatura erótica. Mas tal
empreitada não se justificaria aqui, pois vários autores o fizeram de modo
significativo, como Jesus Antônio Durigan em Erotismo e literatura (1985),
Alexandrian na obra História da literatura erótica (1993) e Lúcia Castello Branco
em seus livros O que é erotismo (1984) e Eros travestido (1985). Decidimos,
então, percorrer algumas considerações teóricas que nos ajudarão a compreender
melhor alguns dos “trajes” utilizados por Eros. Para isso, preferimos começar de um
outro modo, abordando um sentido que não se encontra em dicionários, pelo menos
de forma explícita. Mas o erótico o é isso mesmo, o velado, que aparece no jogo
de mostrar-se e esconder-se, surgindo sutilmente entre fendas, como nos diz
Barthes (1973)?
O lugar mais erótico do corpo não é o ponto em que o vestuário se
entreabre? Na perversão (que é o regime do prazer textual) não <<zonas
erógenas>> (expressão aliás bastante importuna); é a intermitência, como
muito bem o disse a psicanálise, que é erótica: a da pele que cintila entre
duas peças (as calças e a camisola), entre duas margens (a camisa
entreaberta, a luva e a manga); é essa própria cintilação que seduz, ou ainda:
a encenação de um aparecimento – desaparecimento. (p.44)
2.1. Eros se veste de força vital
O conceito ao qual gostaríamos de nos referir primeiramente é o de erotismo
enquanto força vital. Não encontramos um teórico que defenda esse conceito de
maneira direta, mas nos valemos de dois estudiosos que, cada qual a seu modo, se
aproximam dessa concepção: o malinês Hampaté e o francês Georges Bataille.
14
Na verdade, esse sentido é muito antigo e está ligado à idéia de erotismo na
concepção africana. Entretanto, essa noção vem se alterando, para não dizer se
apagando, principalmente nos centros urbanos, em decorrência das transformações
que as redes de contato propostas pelo mundo globalizado introduzem nas culturas
ancestrais. Esse fenômeno é salientado por Mourão (1978):
A coesão da sociedade africana em torno da filosofia das forças vitais, em
que estas como um todo animam os homens segundo o seu status, as
árvores, os animais, a terra, ou melhor, os seres animados e inanimados,
rompe-se ante a interveniência de fatores externos que vêm romper essa
coesão da qual depende a organização desse grupo social. (p.53)
Pensamos poder valer-nos das palavras do teórico Hampaté (1993), para
perceber o erotismo através do conceito de “força vital”, da força que emana de
todas as coisas da natureza, integrando-se com elas e expressando-se através de
suas funções. As afirmações do teórico autorizam a associação proposta:
Os elementos da forja são associados ao simbolismo sexual, que é expressão
ou reflexo de um processo cósmico de criação.
Assim os dois foles redondos, acionados pelo ajudante de ferreiro, se
assemelham aos testículos do homem. O ar que deles escapa é a substância
de vida, transmitida, através de uma espécie de tubo que representa o falo,
ao forno da ferraria, que representa a matriz onde atua o fogo transformador.
(p.18).
De certa maneira, Bataille (1987) se aproxima da concepção de força vital
quando afirma ser o erotismo uma “pulsão de vida”, ou seja, um deslocamento
potencializado de energia que impele o ser para a vida, de modo que “devemos
encará-lo como o movimento do ser em nós mesmos” (p.35).
Vale ressaltar que a definição de erotismo apresentada por Bataille (1987) é
bastante complexa e passa por diferentes âmbitos. O teórico revê o conceito de
erotismo, alargando-o para muito além da manifestação corporal, concebendo o
erotismo como força que impulsiona para a vida. O erotismo está, então,
diretamente ligado à subjetividade do homem, sendo uma característica humana, e
não animal. Dessa forma, ao caracterizá-lo como atividade humana, o autor não leva
em conta que a natureza é extremamente erótica nem considera o fato de os
animais possuírem seus rituais de acasalamento, o que possibilitaria afirmar que
eles vivenciam, de algum modo, uma experiência erótica.
15
Em contrapartida, Hampaté (1993) considera a força vital inerente tanto a
animais, como a plantas. O estudioso entende, ainda, que essa força se mantém
presente no elemento que a contém mesmo depois que ele for retirado da natureza,
como na madeira utilizada para fazer instrumentos. A expressão “força vital” como é
concebida por Hampaté e em sociedades africanas está diretamente ligada às
tradições religiosas, porque essa força é entendida também como um espírito que
ajuda alguém a realizar seu propósito. Como exemplo podemos citar a força vital
presente nos instrumentos do ferreiro que o ajuda a executar seu trabalho e ainda, o
mantém conectado ao mundo espiritual. Nesse sentido é que podemos afirmar que a
noção de força vital não se restringe ao plano abstrato, ela se materializa nos
homens e nas práticas cotidianas africanas.
Por outro lado, Bataille (1987) ainda apresenta o erotismo como a
ultrapassagem de limites, o exceder fronteiras. O teórico considera que o mundo do
trabalho é o mundo do controle total dos impulsos excessivos e por isso é o mundo
dos interditos. Porém o instinto violento sempre subsiste no homem e haverá um
momento em que este sentirá necessidade de quebrar a ordem do mundo do
trabalho. Diante disso, o homem transgride as regras para extravasar a violência
contida enquanto trabalha. Essa atitude será denominada por Bataille de erotismo.
Ao transgredir, o homem busca a liberdade primitiva, a que existia antes da criação
de restrições (os interditos) que recaíram sobre a morte, a sexualidade e o trabalho.
Foi através dessas restrições que o homem se livrou da animalidade inicial.
Segundo Bataille (1987), “ele escapou trabalhando, compreendendo que morria e
passando da sexualidade livre à sexualidade envergonhada de onde nasceu o
erotismo” (p.29). Entretanto o homem jamais encontrará essa liberdade tal como a
procura. Mesmo assim, é necessário que transgrida, porque através da transgressão
é que ele se conhece e vence o interdito imposto por si próprio. Na visão do autor,
A transgressão excede sem destruir um mundo profano de que ela é o
complemento. A sociedade humana não é somente o mundo do trabalho.
Simultaneamente – ou sucessivamente ela é composta pelo mundo profano
e pelo mundo sagrado, que são as suas duas formas complementares. O
mundo profano é o dos interditos. O mundo sagrado abre-se a transgressões
limitadas. É o mundo da festa, dos soberanos e dos deuses. (BATAILLE,
1987, p.63)
16
Nesse ponto, percebemos que Hampaté se distancia muito das idéias de
Bataille. Isso porque o malinês, além de conceber a “força vital” numa relação fértil
com a natureza, percebe essa presença muito mais próxima do sagrado e não
considera, como o francês, a força dos interditos; por isso, é possível dizer que, na
visão de Hampaté Bâ, o erotismo estaria disseminado no mundo, porque é inerente
à noção de força vital. Poderíamos afirmar ainda que, enquanto para Bataille, a
sexualidade se liga ao “mundo profano”, para Hampaté Bâ, ela é uma das
manifestações vitais dos seres.
Bataille (1987) encerra suas reflexões dizendo-nos que “o sentido último do
erotismo é a morte” (p.135). Nesse sentido, o desejo do homem de amar, de procriar
ou de ultrapassar limites é um desejo de vencer a morte, de permanecer na vida, ou
seja, o desejo do impossível.
Marilena Chauí (1990), no texto “Laços do desejo”, apresenta um histórico do
erotismo que parte de uma visão primordial muito ligada às forças da natureza, uma
força cósmica ordenadora do mundo, até os dias atuais. Dessa primeira concepção,
vale citar a recuperação, feita pela teórica, da visão de Abravanel:
Digo-te que o Céu, pai de todas as coisas geráveis, move-se num movimento
contínuo e circular sobre o todo do globo da matéria primeira, ao mover-se e
remexer todas as suas partes, germina todos os gêneros, espécies e
indivíduos do mundo inferior da geração; assim como, movendo-se o macho
sobre a fêmea, e movimentando-se nela, procria filhos (...). A Terra é o corpo
da matéria primeira, receptáculo de todas as influências de seu macho, que é
o u. A Água é a umidade que a nutre. O Ar é o espírito que a penetra. O
Fogo é o calor natural que a tempera e vivifica (...). Todo o corpo do Céu
produz com seu movimento o esperma, assim como o todo do corpo humano
produz o seu. E do mesmo modo que o corpo humano é composto de
membros homogêneos, quer dizer, não organizados, como ossos, veias,
panículos e cartilagens, além da carne, assim o corpo do Oitavo Céu é
composto de estrelas fixas de natureza diversa, além da substância do corpo
diáfano que penetra entre elas (...). A geração do esperma, do homem,
depende, em primeiro lugar, do coração que o calor, forma do esperma;
em segundo lugar, do cérebro, que o úmido, matéria do esperma (...); em
terceiro, do fígado, que tempera o esperma (...); em quarto, do baço que
engrossa o esperma (...); em quinto, dos rins que o tornam pungente, quente
e estimulante (...); em sexto, dos testículos, onde o esperma adquire
perfeição e compleição gerativa (...). Sétimo e último, do pênis que lança o
esperma (...). É assim que, no Céu, os sete planetas concorrem para a
geração do esperma do mundo (...). O Sol é o coração do Céu (...) a Lua é o
cérebro (...) piter, o fígado (...) Saturno é o baço do Céu (...) Marte, o fel e
os rins (...) Vênus, os testículos (...). Por último, Mercúrio é o pênis do Céu.
(ABRAVANEL apud CHAUÍ, 1990, p.20-21)
17
No texto de Abravanel, vê-se que o desejo está disseminado como um todo
na natureza e estabelece relações com as forças do universo. A visão da natureza
apresentada é animista, embora já possua alguma racionalidade.
A reflexão presente no artigo de Chauí (1990) consiste em construir um
percurso filosófico do desejo desde o século XVII, a fim de perceber que o sentido
atual de erotismo não é mais o mesmo de outras épocas. O que era natural passa a
ser interditado, o sentido foi transmutado após o “desencantamento do mundo”, ou
seja, a chegada da modernidade, que a autora considera “idéias e práticas
desenvolvidas na Europa a partir do século XVII, sob os imperativos da
racionalização de todas as esferas do real (...)” (CHAUÍ, 1990, p.19).
A estudiosa nos mostra também como a concepção de corpo mudou na visão
ocidental através dos tempos. Na era medieval, o corpo era o lugar da manifestação
do pecado, por isso tinha que ser vigiado. Na modernidade, o corpo passou a ser
máquina, e será explorado nas classes subalternas como força de trabalho. Na
contemporaneidade, o corpo torna-se objeto, e por isso vazio de sentido. Porém fica
claro que o corpo continua a ser controlado, mas a força desejante não. Considere-
se que, como explica Chauí (1990), a ética e a retórica, em determinado período,
foram os principais mecanismos de controle do desejo. Elas o mantinham em
oscilação entre o movimento e a fixidez. Atualmente, esses mecanismos não
funcionam da mesma maneira.
Essas significações que podem ser assumidas pelo corpo de acordo com
cada momento, aparecem de maneira singular no conto “Dina” (1980), de Luiz
Bernardo Honwana
2
. O conto se desenvolve no ambiente da machamba, da
plantação, revelando vários tipos de submissão. Interessa-nos discutir aqueles
referentes ao corpo. Todos os personagens masculinos, com exceção do capataz,
têm seus corpos utilizados para o trabalho, inclusive os idosos. Em contrapartida à
visão dos corpos explorados pelo trabalho obrigatório, o conto destaca um outro tipo
de exploração. Maria, a única mulher que aparece no conto, não tem poder sobre
seu corpo, pois esse é desejado pelo capataz que o utiliza, não somente para
satisfazer seu prazer, mas principalmente, para que o seu ato seja entendido como o
poder que ele tem sobre todos os corpos:
2
Nascido em 1942, o escritor moçambicano foi militante da FRELIMO (Frente de Libertação de
Moçambique) e teve seus contos traduzidos para diversas línguas.
18
Na confusão verde do fundo da machamba, Maria não viu o capataz
imediatamente. Esbracejou com aflição, tentando libertar as pernas. Um
braço rodeou-lhe os ombros duramente. (HONWANA, 1980, p.49)
Incapaz de reagir ao domínio do capataz, Maria se entrega. Nesse sentido, a
reação da personagem não é resultante do prazer, mas da inconsciência de seu
próprio corpo. Na cena de violência, Eros tem suas forças quase anuladas diante do
poder do capataz de subjugar:
Esmagado pelo peso do homem, o peito de Maria tinha um arfar brando e
compassado.
A voz do capataz chegava-lhe misturada a um longínquo rumor de vagas.
(...)
Tu não gostaste?... O homem pulou para o lado. Hein?... Não
gostaste? Compôs a roupa e virou para a Maria. Hei!... Acabou!...
Acorda!... (HONWANA, 1980, p.50)
Madala, pai de Maria, também tem sua energia anulada ao cumprir ordens.
Podemos perceber o sofrimento da personagem quando desloca a raiva contida
para a atividade que lhe foi ordenado fazer. É interessante observar que o trabalho
com a terra não lhe proporciona o prazer esperado, tendo em vista a ligação intensa
do homem africano com a natureza:
Madala inclinou-se para a frente e enrolou o caule de um arbusto em volta do
pulso. Deu um ligeiro puxão para lhe experimentar a resistência e depois
deixou o corpo pender para trás até que o arbusto se soltou da terra.
Colocou-o cuidadosamente no chão, alinhando-o com o monte dos que
tinha arrancado à sua volta. (HONWANA, 1980, p.53)
Marilena Chauí (1990) encerra seu artigo com a questão: “Que é, pois, o
desejo?”. Após tantas reflexões em torno de várias concepções, podemos afirmar
que Chauí chega ao mesmo ponto que Bataille (1987), isto é, define o desejo como
a busca de uma satisfação que nunca vai ser atingida. Além disso, ele é o esforço
do sujeito de se manter distante da morte; nas palavras da autora, é “manifestação
consciente do esforço individual de autoconservação na existência” (CHAUÍ, 1990,
p.56).
A afirmação de Chauí (1990) se realiza de forma ambivalente no conto de
Honwana (1980). Isso porque tanto ela pode ser negada quanto confirmada.
Negada, na medida em que as personagens têm sua vitalidade ameaçada pelo
capataz. Afirmada, quando tomamos a atitude de Maria como a única saída
19
possível. A personagem feminina se entrega ao capataz e, com esse ato, preserva
sua existência e a de seu pai.
Procurando apontar outros detalhes das roupagens vestidas por Eros,
podemos referir-nos a textos da obra de José Craveirinha
3
em que o erotismo é
trabalhado no sentido de força vital, com uma visão diferente da apresentada pelo
conto de Honwana. No conto “Chigubo” (1996), o autor descreve o ritual da dança
guerreira e a expressão corporal dos participantes. Os corpos que surgem estão
plenos de vitalidade. A dança embriaga, entorpece, permite o transe e se estende à
natureza:
A terra fremia, os corpos fremiam. (...) Pés, braços, vozes e tambores guiados
de compasso enchiam a tarde de fundo da Munhuana, de mato e exotismo.
(CRAVEIRINHA, 1996, p.33)
Os corpos delas agitavam-se em modelos de movimento. Voluptuosamente!
Da cintura para baixo a vida revolta-se e freme na carne e transforma-se em
ritmo. O mundo está ali agora e os olhos dos homens estão cheios de
tesoiros. Elas estãorias nas caras e os corpos são vulcões. África dança e
vive o som do chigubo e as ancas são muitas histórias de luar e sombras de
cajueiros em flor. África dança e o mundo está suspenso nos olhos dos
homens palpitantes nas promessas latentes. (CRAVEIRINHA, 1996, p.34)
Toda a sedução dos corpos que dançam é materializada na linguagem. Na
descrição da dança predomina o trânsito da força vital, que se faz presente,
principalmente, na marcação erótica do ritmo.
O livro póstumo do autor, Poemas eróticos (2004), como o próprio nome
indica, explora de forma mais intensa a temática erótica. Dele podemos citar “Louvor
aos louvores”, em que se percebe também a visão do erotismo como “força vital”:
Louvada
seja
a água
que satisfaz
minha sede.
Louvado
o milho maduro
da nossa
bela farinha.
E
louvada
seja a mulher
que louva
3
Nasceu em 28 de maio de 1922. O escritor moçambicano foi desportista, treinador e jornalista,
exercendo todas essas atividades com grande êxito. Além disso, ele é considerado o maior poeta de
Moçambique, fato que se confirma pelo merecimento do prêmio Camões recebido em 1991. Faleceu
em 7 de fevereiro de 2003.
20
a génese
do seu ventre
e nos concebe bem vivos
perante o mútuo pão fresco.
E
louvados
os lábios
no mútuo beijo
e mútuo pão
da mesma fome.
(CRAVEIRINHA, 2004, p.19)
No poema, a mulher é exaltada e exaltada a sua fertilidade, representando o
modo apoteótico como Eros é louvado em todas as coisas, inclusive nas
necessidades vitais do ser humano: sede e fome. A repetição da conjunção aditiva
“e”, juntamente com o significante “louvado” e suas variações, enfatiza a
expressividade musical do poema, aproximando-o muito de um hino de louvor, de
um canto à força vital que está no “mútuo pão”, alimento “da mesma fome”.
Sobre essa relação entre erotismo e religiosidade, Paz (1995) nos diz que o
corpo é o principal instrumento em ambos os casos, porque ele “se comunica com
as forças mais vastas e ocultas da vida” (p.185). Para o autor, o ato erótico
aproxima-se muito da experiência mística-religiosa:
O ato em que culmina a experiência erótica, o orgasmo, é indizível. É uma
sensação que passa da extrema tensão ao mais completo abandono e da
concentração fixa ao esquecimento de si próprio; reunião dos opostos,
durante um segundo: a afirmação do eu e sua dissolução, a subida e a
queda, o além e o aqui, o tempo e o não-tempo. A experiência mística é
igualmente indizível: instantânea fusão dos opostos, a tensão e a distensão, a
afirmação e a negação, o estar fora de si e o reunir-se a si próprio no seio de
uma natureza reconciliada.
É natural que os poetas místicos e os eróticos usem uma linguagem parecida:
não há muitas maneiras de dizer o indizível. (p.100)
Um fator a nos chamar a atenção no poema de José Craveirinha é a sua
estrutura, que, para Mendonça (2004), é “uma disposição gráfica não habitual” (p. 5)
na poesia do autor. Em vez de estarem alinhados, os versos formam uma escada,
explorando o recurso do enjambement, isto é, o sentido de um verso tem
continuidade no verso seguinte. Essa disposição mais movimento ao poema, um
ir e vir que contribui para manter a noção de deslocamento contínuo, de animação
constante, de algo nunca estático. Assim, teremos uma proposição de vida, porque o
movimento liga-se diretamente à idéia de erotismo na concepção africana, ou seja,
21
com o sentido de “força vital”, que para Hampaté (1993), “a vida é movimento
e o movimento começa com a contradição dos membros. (...) A não-contradição
equivale à morte” (p.18).
Interessante observar ainda que, para Hampaté (1988), a fala é
exteriorização da vida. É ela “que gera movimento e ritmo, e portanto, vida e ação”
(p.185). Sobre a relação fala e vida, o teórico diz:
(...) sendo a fala a exteriorização das vibrações das forças, toda manifestação
de uma força, seja qual for a forma que assuma, deve ser considerada
como sua fala. É por isso que no universo tudo fala: tudo é fala que ganhou
corpo e forma. (p.185)
Pensamos ser possível relacionar a visão do teórico com sentidos que se
produzem no filme Contos proibidos do Marquês de Sade (KAUFMAN, 2000), no
qual percebemos como a pulsão exteriorizada pela fala pode tornar-se incontrolável
na mesma proporção em que é tolhida. O filme relata uma história ambientada no
século XVIII em que o Marquês de Sade é perseguido tanto pela Igreja quanto pelo
Estado por seus escritos eróticos. Preso em um manicômio, ele tenta expressar a
sua imaginação erótica a qualquer custo: sendo-lhe tirados pena, tinta e papel,
utiliza osso e vinho para escrever nos lençóis; destituído desses, usa o próprio
sangue e escreve nas roupas; totalmente nu, sem nenhum objeto ao alcance, ele
escreve com as próprias fezes nas paredes.
Diante da história, concluímos que a personagem Sade faz com que suas
idéias cheguem aos seus leitores através da fala/escrita. Enclausurado, ele não
poderia reunir ouvintes, mas insiste em disseminar o registro de sua fala, que irá
circular além dos muros do manicômio.
Percebemos que o tempo todo o sujeito é proibido de escrever, mas, mesmo
sendo humilhado e torturado, a força erótica fala mais alto em sua alma do que a dor
da punição. O protagonista encontra na literatura erótica um caminho para
satisfazer, ou pelo menos aliviar, não apenas seus pensamentos mais íntimos, mas
também as ordens e valores de uma sociedade burguesa. Valores pregados e
quebrados pela própria burguesia, que se ameaçada por uma literatura que
desvela, quase na íntegra, suas mais perversas transgressões.
Desse modo, podemos afirmar que ao homem parece ser necessário,
sobretudo, falar. Dizemos “falar” no sentido africano, isto é, no sentido que está em
22
Hampaté e é apreendido por Leite (1995) quando estudou a palavra em
sociedades africanas, como o
elemento desencadeador de ações ou energias vitais. (...) É por isso que o
aparelho auditivo é assemelhado aos órgãos reprodutores femininos: ambos
são capazes de fazer gestar algo decisivo pela penetração, no interior dos
indivíduos, de um elemento vital desencadeador do processo. (p.105)
A crença na força de um elemento desencadeador de energias vitais pode,
com as necessárias restrições, remeter-nos às relações entre erotismo e pulsão de
vida discutidas por Freud (1996) em seu texto Além do princípio de prazer. O autor
nos apresenta a seguinte tese:
Se tomarmos como verdade que não conhece exceção o fato de tudo o que
vive morrer por razões internas, tornar-se mais uma vez inorgânico, seremos
então compelidos a dizer que ‘o objetivo de toda vida é a morte’, e, voltando o
olhar para trás, que ‘as coisas inanimadas existiram antes das vivas’. (p.49)
Diante disso, os instintos de autoconservação e auto-afirmação tornam-se
mais claros de se compreender, que eles atuarão somente para que o organismo
siga seu próprio caminho para a morte, que lhe é imanente. Sendo assim, “o que
nos resta é o fato de que o organismo deseja morrer apenas do seu próprio modo”
(FREUD, 1996, p.50).
O autor acrescenta que a libido de nossos instintos sexuais, vista como
energia de vida, “coincidiria com o Eros dos poetas e filósofos, o qual mantém
unidas todas as coisas vivas” (p.61). Citando Schopenhauer, Freud (1996) diz que a
melhor morte é o grande objetivo da vida e “o instinto sexual é a corporificação da
vontade de viver” (p.60).
Segundo Freud (1996), existem no consciente humano dois princípios que
nascem da libido: o princípio de prazer e o princípio de realidade. O princípio de
prazer age a fim de evitar o desprazer ou produzir prazer, exercendo uma pressão
no sentido de prolongar a vida. Em contrapartida, o princípio de realidade entra em
cena com o objetivo de adiar a satisfação, abandonando as possibilidades de obtê-la
e instaurando uma tolerância temporária do desprazer, sem contudo, desistir de
obter o prazer. É esse princípio o responsável por nos ensinar a conviver com as
frustrações. Mas mesmo assim, o princípio de prazer persiste
23
como o método de funcionamento empregado pelos instintos sexuais, que
são difíceis de ‘educar’, e, partindo desses instintos, ou do próprio ego, com
freqüência consegue vencer o princípio de realidade, em detrimento do
organismo como um todo. (p.20)
Também da libido nascem duas forças antagônicas: Eros e Thánatos, o
princípio de vida ou vital e o princípio de morte ou mortal, opondo-se entre si.
Entretanto, Derrida afirma que a pulsão de morte representa o suplemento da vida.
Thánatos é exterior a Eros e vem lhe “acrescentar o que falta, fornecer o que é
preciso como excedente” (DERRIDA apud NASCIMENTO, 1999, p.178). De modo
que, conforme acentua Freud,
partimos da grande oposição entre os instintos de vida e morte. Ora, o próprio
amor objetal nos apresenta um segundo exemplo de polaridade semelhante:
a existente entre o amor (ou afeição) e o ódio (ou agressividade). (...) Desde o
início identificamos a presença de um componente sádico no instinto sexual.
Como sabemos, ele pode tornar-se independente e, sob a forma de
perversão dominar toda a atividade sexual de um indivíduo. (1996, p.64)
Mostrando uma outra faceta do imbricamento entre pulsão de vida e pulsão
de morte, talvez seja pertinente valermo-nos de um quadro de famoso pintor
moçambicano, que pode ajudar-nos a entender melhor o que até aqui temos
exposto. Estamos falando do expoente máximo das artes plásticas de Moçambique,
Malangatana Valente Ngwenya
4
, e do modo como ele transpõe para seus quadros a
força vital, concebendo vida e morte como um ciclo e não como elementos em
oposição.
4
Malangata nasceu em Matalana, Moçambique, em 6 de junho de 1936. Exerceu diversos ofícios até
se tornar, em 1960, de fato, um artista profissional. Poeta, pintor e escultor, a expressão “artista vário”
é a que melhor define seu trabalho, o qual caracteriza-se pela multidisciplinaridade. Malangatana
possui reconhecimento mundial, tendo gigantescos painéis de sua autoria espalhados pelo mundo
todo.
24
25
O quadro acima intitula-se “Círculo contínuo” e é reproduzido em publicação
do Ministério dos Negócios Estrangeiros (1999, p.109). O título expressa uma
redundância, que círculo contém a idéia de continuidade. Percebemos ainda que
não há espaços vazios na pintura, de modo que esta esboça uma totalidade rara.
O desenho combina corpos e olhares, sendo a nudez dos corpos um dos
principais fatores a determinar o viés erótico. Para Bataille (1987), no erotismo
a ação decisiva é o desnudamento. A nudez se opõe ao estado fechado, isto
é, ao estado de existência descontínua. (...) Os corpos se abrem para a
continuidade através desses canais secretos (...). (p.17)
Ainda pensando na presença dos corpos no quadro de Malangatana, fica
evidente que não podemos refletir sobre o erotismo sem falar em corpo. Do ponto de
vista de Andreas-Salomé (1991), erotismo naquilo que se reveste de símbolos
corporais. O corpo seria o causador da subversão erótica, porque a vida sexual
localiza-se
no corpo e isolada das outras funções como, por exemplo, a digestão no
estômago ou a respiração nos pulmões; mas em contraste com aquelas, age,
a partir de seu domínio físico particular, sob a forma de uma agitação interior
do ser humano no seu conjunto e que causa uma perturbação de extrema
violência. (...) a vida sexual traz para primeiro plano, de modo muito mais
brutal e particular, o organismo corporal. (p.85)
Ao vislumbrar a tela de Malangatana, podemos dizer que ela apresenta traços
que sugerem impulso, movimento, com destaque para a imagem feminina no centro
e a intenção de propor o quadro como um grande útero ou um grande seio. A idéia
de gerar vida é reforçada pelo contorno escuro ao redor do mamilo de um dos seios
representados. Podemos identificar ainda algumas figuras de animais compondo o
círculo, fato que nos sugere a supressão da dicotomia homem x animal, que,
ambos aparecem inseridos em um mesmo círculo, quase se confundindo um com o
outro.
Entretanto, nos contornos da imagem central que simboliza VIDA, surgem
fragmentos de pessoas com faces e corpos desfalecidos, que podem representar a
morte, como se a ameaça de morte fosse necessária para alimentar a procura do
sentido vital. A fusão de elementos designando vida e morte remete-nos à
completude da existência, como entendida por Bataille (1987), “para nós que somos
26
seres descontínuos, a morte tem o sentido da continuidade do ser (...)” (p.13), que,
paradoxalmente se aproxima da noção de força vital tão bem expressa no quadro do
pintor moçambicano.
Uma outra vestimenta de Eros está presente no poema de Luís Carlos
Patraquim
5
. Em seu livro Monção (1980), percebemos, em alguns poemas, o
registro de uma poesia que não tem comprometimento, nem preocupação social.
a tendência erótica é marcante, revelando-nos um erotismo “polido”, desprovido de
culpa, com forte realce de corpos. Vejamos um exemplo:
era a casa baloiçando em teus cabelos
e brunida ao fogo
a lança inexorável
quilha de barco ou convés
era o plâncton e a espuma
na exuberância das marés
era, meu amor, o tacto
de nós tão assim completo
tão assim exacto
que flores nasciam e se davam
na água do momento
e na epiderme desse silêncio
era sem dizer
que falava o esquecimento
(p.36)
O poema acima parece buscar a cristalização de um momento efêmero, uma
experiência vivida, como podemos comprovar pelo verbo no passado: “era”. Para tal,
apresenta imagens excessivas que acabam por criar uma atmosfera onírica. A
imagem criada no primeiro verso remete-nos a uma desordem das coisas. As
imagens que se sucedem apontam para uma conformidade, uma perfeição, algo
único. Sobre a relação entre imagem e erotismo, vejamos o que nos diz Lima (1995):
A imagem (excessiva) é fruto do erotismo, é transgressão e mediação
fascinante.
A imagem (erótica) é sempre a imagem de uma memória emocionada do
excesso ou da exceção (em ambos os casos pelo mesmo motivo: o
arrebatamento!). (p.392)
5
O autor nasceu em Lourenço Marques, atual Maputo, no ano de 1953. Exercendo o ofício de
jornalista, foi obrigado a exilar-se de 1973 a 1975, na Suécia. De volta ao seu país, reassume o
trabalho em jornais e revistas. Desde 1986, reside em Portugal e colabora com a imprensa
moçambicana e portuguesa. Além de escrever poesia, o escritor tem desenvolvido roteiros para
cinema e teatro. Mas é como poeta que Patraquim ganhou o Prêmio Nacional de Poesia
Moçambique, em 1995.
27
Aqui cabe refletir: se o erótico é movimento, vida, insinuação, excesso, luta
contra a morte, velar e desvelar, podemos nos perguntar, então, se todas essas
acepções não se encontram no ser feminino. Em caso afirmativo, poderíamos
considerar que a mulher é o ser erótico por excelência, porque nela é gerada a vida?
Do ponto de vista de Bataille (1987), que afirma ser a mulher quem se propõe ao
desejo, talvez sim. Em contrapartida, na visão de Hampaté Bâ, não há
particularidades. Eros está disseminado e não alocado. O impulso de vida é a força
vital que está em todos os seres da natureza, não especificamente em um ser em
especial.
28
2.2. Eros em traje feminino
Na visão geral proposta por este capítulo, convém comentar a presença do
erotismo na escrita de algumas escritoras africanas. Segundo Padilha (2002, p.13),
essas escritoras tiveram acesso à escrita literária muito tardiamente, sendo que a
temática amorosa foi silenciada no momento da luta e também depois, “quando a
construção das nações demandava outras formas de acumpliciamento temático”
(PADILHA, 2002, p.14). Para Padilha (2002), nas duas últimas décadas é que
a presença do erotismo na poética africana, tanto de autoria masculina, quanto
feminina. A opinião da autora, entretanto, pode ser relativizada se considerarmos
que, mesmo em obras de autoria feminina produzidas no âmbito da literatura de
combate, o erotismo está presente, ainda que de forma velada, como, por exemplo,
no poema “Presença africana” de Alda Lara
6
:
(...)
Mãe forte da floresta e do deserto
ainda sou,
a Irmã-Mulher
de tudo o que em ti vibra
puro e incerto
A dos coqueiros,
de cabeleiras verdes
e corpos arrojados
sobre o azul...
A do dendém
nascendo dos abraços das palmeira...
A do sol bom, mordendo
o chão das Ingombotas...
(...)
Benguela, 1953 (Poemas, 1966)
(LARA, 1976, p.111)
Pelo trecho citado podemos perceber um corpo pulsante que vibra “puro e
incerto” na natureza. Esse corpo arrojado pode ser o de uma mulher, mas também,
e principalmente, o da Mãe-África sendo mordido pelo sol.
6
Alda Ferreira Pires Barreto de Lara Albuquerque, nasceu em Benguela no dia 9 de junho de 1930.
Estudou nas Faculdades de Medicina de Lisboa e Coimbra. Casou-se com o escritor Orlando
Albuquerque. Teve participação em algumas atividades da Casa dos Estudantes do Império,
colaborou em alguns jornais e revistas e teve seus textos publicados em várias antologias. Faleceu
em 30 de janeiro de 1962.
29
Do ponto de vista da autoria masculina temos exemplos significativos da
presença de Eros na produção literária dos países africanos de Língua Portuguesa,
no período do pré-independência. Em muitas obras publicadas posteriormente à
independência, encontramos textos com registro de data anterior ao chamado “ano
das independências”, isto é, antes de 1975. Para mencionar alguns exemplos,
podemos citar o livro Poemas eróticos (2004) de José Craveirinha, publicado
somente após a morte do poeta em 2003, mas com alguns poemas de temática
erótica apresentando data de produção anterior a 1975. Também em A cidade e a
infância (1997) de Luandino Vieira
7
, percebemos de maneira significativa o
despertar da sexualidade no conto “O nascer do sol”, datado de 07/07/1955.
Citemos ainda a obra, de Virgílio de Lemos
8
e heterônimos, Eroticus
moçambicanus (1999), em que “o corpo busca/ o seu rosto” e “o desejo luz” (p.28)
nos poemas escritos entre 1944 e 1963, ou seja, Eros é motivação consistente
nessa obra. Desse modo, podemos considerar que a temática erótica se
apresentava em vários textos das literaturas africanas de língua portuguesa
produzidas antes de 1975, sem, no entanto, ocupar lugar de destaque. Se
considerarmos ainda a idéia de transgressão presente no conceito de erotismo
apresentado por Bataille (1987), podemos dizer que Eros se faz presente na
produção literária do pré-independência no impulso ao rompimento com a
dominação imposta pelo colonizador, na transgressão à exigência do trabalho
forçado, na busca pelo prazer de viver livremente; características essas que também
colocam em evidência o antagonista de Eros, isto é, a pulsão de morte.
É interessante observar como a poesia de autoria feminina produzida na
época atual exibe uma intenção erótica mais explícita. Nesse sentido, Ana Paula
Tavares, Ana de Santana, Maria Alexandre Daskálos, Amélia Dalomba e Vera
Duarte afirmam um “feminino liberto de toda e qualquer peia” (PADILHA, 2002, p.19)
e assumem as emoções próprias de um corpo livre para ser e viver o erótico.
7
JoLuandino Vieira nasceu em 4 de maio de 1935, em Portugal. Tornou-se cidadão angolano por
sua participação no movimento de libertação nacional e pela contribuição na fundação da República
Popular de Angola. Viveu sua infância e juventude em Luanda. Exerceu variados ofícios até ser preso
em 1959. Em seguida seria libertado e novamente condenado. Em 1972 é transferido para Lisboa,
onde cumpriria o restante de sua pena em regime de residência vigiada. Então, iniciou a publicação
de sua obra, grande parte escrita nas prisões. Em 1992, saiu da cena pública para dedicar-se
exclusivamente à literatura.
8
Virgílio de Lemos nasceu em 1929 na Ilha de Ibo, costa norte moçambicana. Em 1952, junto com
outros colegas, ele fundou a revista Msaho que propunha principalmente uma ruptura em relação ao
cânone português que ditava os paradigmas literários vigentes em Moçambique naquele momento.
30
Dentre as autoras citadas, destaquemos Ana Paula Ribeiro Tavares
9
, cujo
trabalho celebra os rituais e tradições de sua região, Huíla, sul de Angola. Em seu
livro Ritos de passagem (1985), o erotismo é marcado pela visão feminina de
rituais de iniciação e deslocado para a descrição de frutos típicos africanos, em uma
visão muito próxima à de força vital:
O mamão
Frágil vagina semeada
pronta, útil semanal
Nela se alargam as sedes
no meio
cresce
insondável
o vazio...
(TAVARES, 1985, p.15)
O poema citado explicita bem como, na poesia de Tavares (1985), a
sexualidade está metaforizada na natureza, principalmente nos frutos. Se
estabelecermos relações entre o título e o conteúdo do poema, notaremos como os
frutos com seus aromas, seus sabores e suas texturas podem servir de metáfora
para partes erógenas do corpo. Vejamos outro poema da autora:
A Manga
Fruta do paraíso
companheira dos deuses
as mãos
tiram-lhe a pele
dúctil
como, se, de mantos
se tratasse
surge a carne chegadinha
fio a fio
ao coração:
leve
morno
mastigável
o cheiro permanece
para que a encontrem
os meninos
pelo faro. (TAVARES, 1985, p.16)
9
Nasceu em 30 de outubro de 1952. A autora é formada em História, mestre em Literaturas Africanas
de Língua Portuguesa pela Universidade de Lisboa e membro da União dos Escritores Angolanos.
Atualmente, tem atuado em diversas atividades ligadas à literatura e à história africana e ocupa o
cargo de funcionária da Secretaria de Estado da Cultura.
31
Nesse outro poema de Tavares, a sexualidade expressa-se pela exploração
de vários recursos sinestésicos, que vão desde a sugestão do instinto dos animais à
descrição do fruto como um corpo de mulher que exala sensualidade, e no qual “o
cheiro permanece/ para que a encontrem/ (...) pelo faro”. É feito um apelo aos
sentidos, principalmente ao olfato, o que nos remete à condição animal no cio, da
fêmea emana o cheiro que atrai os machos. Nas palavras de Fonseca (2002), ao
analisar os poemas de Ritos de passagem (1985):
As cores e o sabor dos frutos o maboque, a anona, o mirangolo, a nocha, a
nêspera, o mamão são também imagens de um corpo que transcende em
cheiros, em tessitura macia e em forte sensualidade. (p.41)
Outra poetisa que trabalha o erotismo muito ligado à natureza é Amélia
Dalomba
10
. Em um de seus poemas, que tem como tema um fato corriqueiro,
envolvendo os elementos da natureza, o vento e a poeira são, metaforicamente, os
protagonistas de uma paixão tórrida:
O vento
Envolve-se com a poeira
apaixona-se perdidamente
para desagrado dos pais, de amigos, das suas
gentes
Pelas ruelas pobres dos bairros
pelas avenidas de poeira rara
até pelos túneis, pelas estações dos comboios
as carícias entre os dois
eram tão extrovertidas, tão insinuantes
Homens, mulheres e crianças da terra
levavam as mãos aos olhos, aos chapéus e aos
cabelos
rubros de tanta indecência
(DALOMBA, 2004, p.85)
A ventania é focalizada com suas conseqüências naturais: as pessoas
fecham os olhos e seguram chapéus, cabelos e saias para não se descomporem. A
10
A escritora angolana nasceu em Cabinda, em 23 de novembro de 1961. Além de ter exercido
atividades profissionais em diversas áreas do jornalismo, também publicou poemas e artigos no
Jornal de Angola. Atualmente, prossegue os estudos superiores de Psicologia e é membro da União
dos Escritores Angolanos.
32
autora se vale, porém, do incômodo sico causado pela ação do vento e da poeira
para remeter ao incômodo moral causado pelas paixões tórridas ou pelo erotismo
insinuante.
Em seu poema “Parto”, as metáforas escolhidas para expressar a sexualidade
da mulher são associações ao termo “vulcão”, mostrando que o fato de ser mãe não
impede ao ser feminino viver Eros de um modo vulcânico:
E na minúcia de um toque estremece ardente
meus lábios.
Arde
vulcão, espasmos, convulsões libertinas
entre uma ou duas guinadas
escorre suas larvas ao contorno mais próximo
da primeira curva
destino longínquo de 9 meses embalam o meu
ventre e meus pés
(...)
viram a sombra do meu seio erecto a cobrir
a boca metamorfoseada da larva.
estendo a mão e sinto sinto um
coração que bate pequeno, uma boca sem
dentes, uns olhos,
(...)
simples poesia de entrelaçar braços e... nascer
(DALOMBA, 2004, p.71)
no poema “Meretriz”, da mesma autora, percebemos como o erotismo
assume outro matiz:
Caminha matinal invadida de estrelas flores
negras
no escuro, corpo dilacerado de musgo
marcas chicotes nas coxas, olhos negros
(...)
páginas traçadas por letras de suor
rosto flagelado um nada de existir um pedaço
de ser
este todo de mulher meretriz da noite a cada
luz do dia
(DALOMBA, 2004, p.79)
O poema possui forte tom de denúncia. O léxico utilizado está muito ligado a
dor: dilacerado, flagelado, chicotes. Aqui a mulher tem sua sexualidade vivida a
33
favor do outro, seus próprios desejos não importam. As conseqüências são um
corpo torturado e a anulação dessa mulher: “um nada de existir um pedaço/ de ser”.
Saindo dos domínios poéticos e passando ao romance, podemos citar
Niketche: uma história de poligamia (2004), de Paulina Chiziane
11
. O livro, que tem
o nome de uma dança sensual do centro/norte de Moçambique, conta a história de
uma personagem que vive com suas cinco mulheres e não respeita os direitos delas
na sociedade tradicional.
A princípio, as cinco mulheres são submissas e passivas. A partir de certo
momento, resolvem agir para mudar suas próprias vidas. A atitude dessas mulheres
representa a transgressão dos valores, das normas impostas pelo marido (Tony).
Elas não chegam a romper radicalmente com o masculino, mas subvertem-no,
contestando as atitudes de Tony. Nessa sociedade, as mulheres vivem sua
sexualidade a favor do desejo masculino. Todavia, o erotismo é liberado aos poucos,
com a cumplicidade que se estabelece entre elas: as personagens começam a viver
seus desejos, a que todas se libertam, uma a uma, declaradamente diante da
sociedade. Nas palavras de Lobo (2004), no romance de Chiziane:
privilegia-se a paródia, o derrubar dos alicerces das convicções colectivas
mais arreigadas, a des-sacralização para instituir um entre-lugar que não seja
nem a aceitação cômoda de uma tradição secular, nem a submissão aos
ditames de uma modernidade asfixiante e modelizadora. (p.39)
Poderíamos dizer que essa visão de erotismo coincide com a de Alberoni
(1988). Para esse autor, o erotismo é um assunto que deve ser discutido pensando-
se nas relações de gênero, isto é, o erotismo não é o mesmo para homens e
mulheres. Melhor dizendo, ele se manifesta de um modo no ser feminino e de outro,
nos seres masculinos. Segundo o autor, “(...) o erotismo masculino é mais visual,
mais genital. O feminino, mais tátil, muscular, auditivo, mais ligado aos odores, à
pele, ao contato” (p.10). O que eles têm em comum é que, ambos, homens e
mulheres, “com freqüência, imaginam o outro como na realidade ele não é, e
esperam dele coisas que ele não pode dar. O erotismo se apresenta, então, sob o
signo do equívoco e da contradição” (ALBERONI, 1988, p.12). Essa visão está
presente de forma, por vezes, bastante conflitante nos contos de João Melo.
11
A escritora nasceu em 4 de junho de 1955, em Manjacaze, sul de Moçambique. Destaca-se por ser
a primeira mulher moçambicana a publicar um romance.
34
Considerando, então, a incompatibilidade de desejos dos seres masculino e
feminino, é preciso que haja um meio de estes se encontrarem. Isso se realiza
em um processo dialético, um processo de alteridade, no qual um se coloca no lugar
do outro, busca compreendê-lo e faz das fantasias do ser amado as suas. No
entanto Alberoni não quer dizer que, após o encontro pleno, as coisas estejam
resolvidas. Ele nos diz que o erotismo sem domínio, sem exclusividade sexual, sem
culpa, sem nojo ou rejeição, sem cansaço, sem problemas com sentimentos
profundos é “uma utopia” (ALBERONI, 1988, p.98).
Em Niketche, o encontro do erotismo masculino e feminino ocorre no final
da história. Antes disso, as personagens passam por diversas situações em que as
mulheres cedem, mas também, e principalmente, contestam, porque “o amor é
conquista, porém, ao mesmo tempo, submissão” (ALBERONI, 1988, p.123). Desse
modo, a presença da voz autoral se faz sentir na fala do narrador, em função da
característica mais reflexiva do texto.
2.3. Eros com roupagem política e social
No campo explicitamente teórico, temos as reflexões de Giddens (1993) que
focam o erotismo sexual, ou seja, o modo como a sociedade, através dos tempos,
tem lidado com o sexo. O autor informa que não pretensão, nem desejo, de se
escrever uma “história da sexualidade”. Ele levanta uma série de fatos históricos
apontando a função relevante de cada um para as transformações na vida íntima.
Giddens, comentando a obra de Foucault, diz que este estuda a sexualidade
do ponto de vista da repressão e da sua relação com a civilização, mostrando que
todos os benefícios das sociedades modernas têm um preço para os homens. Esses
pagam com a disciplina, que se reflete principalmente na repressão dos instintos,
pois é preciso criar “corpos dóceis” que sejam (supostamente) controlados, razão
pela qual o corpo, por sua exposição e reflexividade, torna-se foco do poder
disciplinar.
Essa teoria de Foucault (apud Giddens, 1993), pode ser mais bem
compreendida se retomarmos o conto de Luiz Bernardo Honwana, que
comentamos anteriormente. Sob essa ótica, o capataz pode ser visto como o poder
35
disciplinar que atua reprimindo a força vital presente nos corpos, e as demais
personagens representariam os “corpos dóceis”, cujos movimentos corporais
dependem da autoridade do capataz:
Dobrado sobre o ventre e com as mãos pendentes para o chão. Madala ouviu
a última das doze badaladas do meio-dia. Erguendo a cabeça, divisou por
entre os pés de milho a brancura esverdeada das calças do capataz (...). Não
ousou endireitar-se mais porque sabia que apenas devia largar o trabalho
quando ouvisse a ordem traduzida num berro. (...).
O sol estava mesmo em cima do seu dorso nu, mas convinha suportar um
pouco mais. (...) Alongando a vista, viu a mancha escura do corpo de
Filimone, igualmente dobrado sob a superfície das folhas mais altas dos pés
de milho, aguardando a ordem de largar o trabalho.
(HONWANA, 1980, p.40)
Giddens (1993) nos apresenta uma nova concepção de sexualidade, a
chamada sexualidade plástica, aquela que existe sem a necessidade de reprodução
e
tem as suas origens na tendência, iniciada no final do século XVIII, à limitação
rigorosa da dimensão da família; mas torna-se mais tarde mais desenvolvida
como resultado da difusão da contracepção moderna e das novas tecnologias
reprodutivas. A sexualidade plástica pode ser caracterizada como um traço da
personalidade e, desse modo, está intrinsecamente vinculada ao eu. Ao
mesmo tempo, em princípio, liberta a sexualidade da regra do falo, da
importância jactanciosa da experiência sexual masculina. (p.10)
Para o autor, o fato de a sexualidade ser libertada do poder falocêntrico, ou
seja, de as mulheres conquistarem a liberdade sexual, é um dos motivos pelo qual o
erotismo masculino tem assumido um caráter violento. Diante das conquistas das
mulheres, os homens não se sentem mais no controle das relações sexuais, mas
agem violentamente numa busca inconsciente de reencontrar o antigo poder. Nesse
mesmo sentido, o caráter sexual compulsivo masculino também é colocado em
evidência, que, aumentando o número de tentativas, aumentam as chances de se
conseguir reencontrar o poder.
Para concluir, o autor compara teorias de Marcuse, Foucault e Reich,
observando que os três estudiosos concordam em um ponto: “a permissividade da
época atual é um fenômeno do poder, e não um caminho para a emancipação”
(p.186). Isto porque, segundo ele, a sexualidade tornou-se mercadoria, e o erotismo,
“ligado à apreciação estética” (p.184), foi quase totalmente eliminado, sendo sua
retomada o único meio para ocorrer “uma mudança revolucionária futura” (p.184).
36
Compartilhando das idéias de Giddens, Chauí, em seu livro Repressão
sexual: essa nossa (des)conhecida (1985), questiona: será que os relacionamentos
modernos, que possuem uma “nova moral sexual” (p.152), não estão substituindo a
repressão por outra, ainda invisível, em vez de diminuí-la? A resposta para essa
pergunta, com certeza, nos será possível quando a civilização passar por novas
transformações e criar outro tipo de relacionamento diferente do chamado
“moderno”. Ou seja, qualquer assertiva é impossível no momento. Apenas quando o
que vivemos não existir mais, pelo menos na forma em que se encontra, é que
talvez consigamos chegar a alguma conclusão.
Para Marcuse (1978), “hoje, a luta pela vida, a luta por Eros, é a luta política
(p.23). A partir dessa afirmação, o autor reflete sobre a posição de Freud, que a
repressão como condição para a civilização. Ressalte-se que consideraremos aqui
repressão na concepção apresentada por Chauí (1985), como dito anteriormente,
sendo valores e normas estabelecidos histórica e culturalmente a fim de controlar a
sexualidade.
Marcuse (1978) designa como cultura o sacrifício do instinto erótico e sua
sujeição às atividades sociais. Para ele,
O Eros incontrolado é tão funesto quanto a sua réplica fatal, o instinto de
morte. Sua força destrutiva deriva do fato deles lutarem por uma gratificação
que a cultura não pode consentir: a gratificação como tal e como fim em si
mesma, a qualquer momento. Portanto, os instintos têm de ser desviados de
seus objetivos, inibidos em seus anseios. A civilização começa quando o
objetivo primário isto é, a satisfação integral de necessidades é
abandonado. (p.33)
O teórico nos apresenta um quadro de oposições para demonstrar a
transformação dos valores na sociedade:
de: para:
satisfação imediata satisfação adiada
prazer restrição do prazer
júbilo (atividade lúdica) esforço (trabalho)
receptividade produtividade
ausência de repressão segurança
(p.34)
A sublimação da energia erótica explicitada no quadro de Marcuse encontra-
se muito bem sublinhada no conto “Hamina ‘faz hara-quiri’ nos templos da Rua
Araújo” (1996) de José Craveirinha, escritor mencionado anteriormente. Nesse
37
conto, as personagens Hamina e Daíco têm o seu desejo sempre adiado em favor
da satisfação dos outros. O apelo erótico, no conto, apresenta-se de maneira
ambígua, porque o impulso que habita os corpos dos freqüentadores do “templo” da
Rua Araújo mostra-se reprimido em Hamina, ainda que ela seja prostituta, e em
Daíco, o músico. Os dois deslocam a energia erótica para o trabalho sempre
cobrado pelos freqüentadores do clube: “Hamina come here! Hamina anda cá!”
(1996, p.21). Ambos, Hamina e Daíco, vendem o seu corpo-trabalho para que
possam ter sua sobrevivência garantida. O trecho que se segue focaliza o
descompasso entre as necessidades de Daíco e o dinheiro que ele ganha, além de
demonstrar que ele se exaure na profissão movido pela necessidade de
sobrevivência e não pelo prazer; aliás, esse é sempre adiado como se pode
perceber no final da citação:
E Daíco mexe os dedos. Cada movimento é uma côdea de pão. Cem
movimentos um prato de arroz. Quinhentos movimentos uma coisa chamada
bife com outras coisas chamadas batatas. Duzentos e cinqüenta mil
movimentos é o tecto de zinco e as quatro paredes onde pendura o casaco,
as calças e a boina das manhãs de cacimba. Daíco todos os dias morre um
bocadinho ali, vendo a paisagem tornar-se mais bela como um rosto de
mulher sem pintura a estender-lhe a boca para um beijo. Cabelo de Daíco
ficou branco a pensar naquele beijo. Aindade vir? A tal mulher onde está?
(CRAVEIRINHA, 1996, p.22)
A referencia ao conto de José Craveirinha e as deduções permitidas pela
reflexão de Marcuse (1978), nos levam a considerar que a sociedade age
perversamente no sentido econômico, pois desvia a energia sexual para o trabalho,
garantindo assim que cada um de seus membros, particularmente os que são mal
remunerados, se extenuem para conseguir sobreviver.
O texto erótico, isto é, a expressão erótica na arte, pode ser tomado então
como esse espaço em que a repressão sexual existente na sociedade é
transgredida, na medida em que considera as manifestações do desejo.
Assim, o erotismo, seja como movimento, busca de prazer, manifestação
estética, denúncia, contestação, ou celebração da vida representa sempre a
ultrapassagem de limites (BATAILLE, 1987).
Podemos concluir que o fenômeno erótico existente em todas as culturas
pode se manifestar de maneiras infinitas. E que o erotismo pode revelar um desejo,
ou mesmo uma obsessão sexual. Todavia, ele simboliza o caráter quase irresistível
das pulsões vitais, expressando-as de forma mais crua, ou em manifestações mais
38
íntimas e espiritualizadas. É nesse sentido que investigamos concepções e
manifestações do erotismo presentes na obra do escritor angolano João Melo,
procurando demonstrar qual a roupagem usada por Eros nos contos e poemas
produzidos pelo escritor.
39
3. A LINGUAGEM DO DESEJO NO CORPO DO POEMA
A poesia traz, sob as espécies da figura e do som, aquela realidade pela qual,
ou contra a qual, vale a pena lutar.
(BOSI, 2000, p.227)
Se perguntássemos como é o corpo do poema ou de que esse corpo se faz, a
primeira resposta de qualquer leitor seria que o corpo do poema é um porque se
faz de palavras, mas também é vário, porque se faz com muitas e diferentes
palavras. João Melo nos responderia que não, o leitor se engana, porque “o poema
tece-se de carne:/ tem de doer/ ou fazer gozar”
12
(1989a, p.9).
Os três pequenos versos citados nos permitem dizer que a poesia, como a
concebe João Melo, está necessariamente relacionada aos sentimentos de prazer
ou dor; para isso, ela tem que ser de carne, porque é esta que possibilita o sentir.
Muito próximo da concepção poética de João Melo é o sentido de erotismo
apresentado por Alexandrian (1993), tendo em vista que, para o teórico, “o erotismo
é tudo o que torna a carne desejável, tudo o que a mostra em seu brilho ou em seu
desabrochar, tudo o que desperta uma impressão de saúde, de beleza, de jogo
deleitável (...)” (p.8). Faz-se necessária, entretanto, a ressalva: para João Melo, a
poesia não proporciona apenas prazer, mas também dor.
No livro Poemas angolanos (1989b), de João Melo, encontramos divisões e,
entre elas, uma que o autor nomeia de “lições de carne”. É dessa parte que
retiramos alguns dos poemas a serem analisados. A expressão “lições de carne”
remete-nos a algo quase didático ou, mais especificamente, a um aprendizado do
prazer ou da dor, se retomamos os versos já citados.
Todos os poemas recolhidos desse livro se intitulam “Lírica”, o que nos
autoriza afirmar que o erotismo disseminado no corpo desses textos encarna uma
concepção de poesia lírica, presente nos estudos de Cara (1988), na qual os
poemas são expressos em primeira pessoa ou em primeira voz. De acordo com a
autora, através dos tempos, a poesia lírica foi identificada por diferentes formas,
podendo ser considerada como a que dará destaque à produção, à reflexão estética
12
A partir desse capítulo, todas as vezes que nos referirmos à obra do autor em estudo,
mencionaremos apenas o ano seguido do número da página.
40
e à função emotiva da linguagem ou como aquela em que predomina a consciência
de uma subjetividade relativa. No nosso caminhar pela obra de João Melo,
investigaremos como o erotismo pode transitar por todas essas acepções de “lírica”
ao se manifestar nos poemas.
No livro Canção do nosso tempo (1989a), a temática volta-se para o
trabalho de construir o mundo e o poema com a ajuda de Eros. O sentido lírico,
então, reflete a preocupação estética. Essa obra é chamada de “livro-síntese” pelo
autor [2005] porque aborda três questões que lhe são caras. A primeira é a arte
poética; a segunda, a relação entre literatura, poesia, meio social, história, política,
etc; e a terceira, que está no escopo desse estudo, a relação íntima, o amor entre
homens e mulheres.
O livro O caçador de nuvens (1993) apresenta alguns poemas experimentais
e exercícios formais em que, a partir da linguagem popular, cria-se a poesia. Esse
livro também é dividido em partes. Os poemas que escolhemos foram retirados
daquela que se nomeia “Assim te amo” o que nos faz pensar que os poemas que
se encontram descreverão maneiras de amar.
Nos três livros de João Melo - Poemas angolanos (1989b), Canção do
nosso tempo (1989a), O caçador de nuvens (1993) - a disposição gráfica dos
poemas é curiosa. Predomina um distanciamento entre poema e tulo. Os títulos,
em geral, encontram-se na margem superior da página, enquanto o corpo do poema
fica mais próximo da margem inferior. Raramente encontraremos um poema que
comece no alto da página, logo após o título. Se o poema é pequeno, ele ocupa
apenas a parte inferior da página. Esse tipo de ocupação da folha de papel sugere
um espaço a ser preenchido pelo leitor, contando principalmente com a imaginação
deste, que, primeiro, visualiza o título e, enquanto reflete sobre ele, percorre a
página em busca do poema, que vai confirmar ou frustrar as impressões criadas a
partir do título. Para Padilha (2004), esse modo de apropriação da folha de papel,
tão utilizado por João Melo, “incorporando os longos silêncios do branco”, permite ao
poeta “encontrar outros e surpreendentes sentidos e efeitos poéticos” (p.6). Talvez
fosse interessante considerar ainda que o espaço em branco, situado entre o título e
o corpo do poema, possa ser interpretado como um convite feito ao leitor instigando-
o à construção de sentidos sugeridos pelo título. Neste caso, os espaços em branco,
considerados na instância da recepção, e não apenas na da produção, constituiriam
41
uma parceria capaz de propiciar “surpreendentes sentidos e efeitos poéticos” para
autor e leitor.
Outro ponto comum entre os três livros que merece ser comentado é o uso da
interjeição, que aparece com freqüência nos poemas de João Melo. Ela representa
uma expressão de satisfação, de prazer, ou, às vezes, de angústia. E ainda, enfatiza
o sentimento expresso nos poemas, exteriorizando a dor ou o gozo.
3.1. Eros doloroso
Os poemas do autor, de maneira geral, possuem um léxico muito ligado a
imagens e a sentidos relacionados com a guerra, expressos em termos como
sucumbir, lutar, destrua, lança, arco, atinge, guerreiro, etc. Essas palavras nos
remetem a uma luta travada pelo eu-lírico para satisfazer o desejo ou mesmo para
vencê-lo. Apesar da aparente ligação com o contexto de guerras, que assolaram o
país natal do escritor por mais de trinta anos, não podemos dizer que essa violência
esteja presente nos poemas, uma vez que neles percebe-se apenas uma expressão
simbólica do poder e dos efeitos devastadores de Eros.
Considerando os poemas a serem analisados neste trabalho, arriscamo-nos a
dizer que, na maioria deles, uma forte tendência a determinar um único
interlocutor: a mulher. A voz lírica personifica o amante que reivindica como ouvinte
o ser feminino. Esses poemas vão de encontro às teorias de Alberoni (1988), porque
a dor do sentimento de abandono aqui, é do ser masculino. Parece-nos que o eu-
lírico masculino busca a continuidade no erotismo, o que, segundo Alberoni (1988),
é característico da mulher. No poema “Lírica VI”, o eu-poético reclama a atenção da
mulher amada e sofre com a dúvida sobre um possível reencontro:
São inacessíveis os mistérios do amor?
Ainda ontem te amei
deitados no molhado e doce
rente capim da margem do rio
Hoje desconheces meu olhar
foges para junto das outras raparigas
Mas eu não posso,
oh, eu não posso lutar contra ti!
Minha lança apenas
fere a ágil onça
42
Levar-te-ão para longe
os caminhos que agora segues?
(1989b, p.30)
O eu-lírico do poema convive com a lembrança de um determinado momento,
em que teve nos braços o ser amado. A lembrança da experiência vivida se mantém
constante porque, pensando com Bosi (2000), “tem um passado que a constitui; e
um presente que a mantém viva e que permite sua recorrência” (p.22). O motivo de
tal dor sentida pelo eu-lírico é, ainda recorrendo às palavras de Bosi (2000), o fato
de a imagem do ser desejado ser “um modo da presença que tende a suprir o
contato direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em
nós” (p.19). De maneira que, dificilmente, o indivíduo pode libertar-se da dor.
Podemos refletir sobre o termo “lança” presente no poema e assumi-lo em
diferentes formas simbólicas: como símbolo fálico ou mesmo como flecha do cupido,
que apenas fere, mas não é certeira. Os dois sentidos aludem ao sentimento do eu-
lírico, mais forte que ele mesmo, que não pode lutar contra o desejo de possuir o
ser amado e não consegue “acertá-lo”. Dito de outro modo, o eu-lírico não pode ser
objeto de desejo do ser desejado. Em um cenário edênico, a mulher é comparada,
no poema, à onça, animal esperto, arisco e ágil. Talvez isso explique a menção à
lança, que faz do indivíduo que deseja um caçador.
Em um outro poema, a ansiedade do eu-lírico de possuir o ser amado
também se faz presente, só que acompanhada de algum conforto:
Lírica XII
Hoje quero te amar toda
Até às últimas chanas!
Sem uma palavra
Sem uma explicação
Centro do círculo tremente,
vivo, que a fogo
tracei neste areal!
Ah o negro ventre brilhante
obsessivo
Pronta a ferir
minha afiada lança
Sucumbirás, querida,
tu sucumbirás!
(1989b, p.33)
43
Nesse poema percebemos o sentimento angustiante da voz poética,
entretanto encontramos marcas do poder masculino de inverter a situação,
apontando para o fato de que a mulher não resistirá ao desejo: “Sucumbirás,
querida,/ tu sucumbirás!”.
O uso da palavra “chanas” intriga o leitor. Por que não usar “chamas”?
Entretanto, se pensarmos no sentido da palavra “chanas” (do quimbundo “xanas”,
que significa “planície savânica das regiões orientais e centrais de Angola”),
poderemos dizer que o erotismo, presente no poema, se estende para o espaço
físico e anuncia a ausência de fronteiras: “Até às últimas chanas”. A imagem
demonstra, mais uma vez, a força vital queo pode ser contida em um ambiente e
que ultrapassa todos os limites.
Se passarmos a outros poemas, perceberemos que a urgência masculina de
possuir a mulher e, assim, satisfazer o seu desejo, permanece. Para Alberoni
(1988), “somente aquilo que foi desejado, desesperadamente, inúmeras vezes,
torna-se um objeto de amor estável. Ele o é apenas o resultado da sua
capacidade de nos dar prazer, mas da nossa vontade e da nossa paixão” (p.148).
Talvez esteja a explicação para a busca de um erotismo contínuo pelo homem.
Ele buscará o erotismo do modo como o quer o ser feminino, quando, além de
desejar desesperadamente, estiver tomado por um sentimento de paixão.
No poema “Canção do amor impossível”, pode-se perceber, através do
desabafo do eu-lírico, a recusa feminina como forma de adiar o encontro erótico:
Como deixar de amar-te, se quando dizes não,
logo o arrependimento assoma teus lábios cerrados?
Como deixar de amar-te, se quando preservas teus seios,
sinto-os arder, trêmulos e frágeis?
Como deixar de amar-te, se quando escondes teu ventre,
escondes também a chama que nele se oculta?
Como deixar de amar-te, se quando me foges,
uma estranha sombra reluz no teu olhar?
Como deixar de amar-te, se ao beijar-te de longe,
iluminam-se as tuas faces como dois sóis?
Ah, querida, como deixar de amar-te, se apesar
de não me quereres amar, me fazes feliz?
(1993, p.48)
A mulher se nega, mas o seu corpo a contradiz. O ser feminino quer e deseja
como sinaliza seu corpo, entretanto se nega através das palavras. De maneira
ambígua, a linguagem da fala não corresponde à linguagem do corpo. Bataille
44
(1987) afirma que a mulher se propõe ao desejo, mas também pode se negar a
permitir a satisfação do homem:
Se os homens têm a iniciativa, as mulheres têm o poder de provocar-lhes o
desejo. (...) em sua atitude passiva, elas tentam obter, suscitando o desejo, a
conjunção à qual os homens chegam, perseguindo-as.
(...) Freqüentemente, o objeto que se oferece à busca do homem se esquiva.
(p. 122-123)
(...) a proposição — é acompanhada pelo fingimento de sua negação. (p.124)
Então, como o homem pode resistir? No poema, o eu-lírico afirma ser feliz no
desejo pela amada, mas o que se depreende dos versos é que o desejo se mantém
porque, ainda que o ser amado diga não, cerre os bios ou fuja, fortes indícios
de que a paixão continua acesa.
Segundo Chauí (1985), “desejar é desejar alguma coisa ou alguém. É sentir
carência, falta. É buscar preenchimento, satisfação. Donde o vínculo interior entre
desejo e prazer” (p.159). Nesse poema, o eu-lírico busca, então, a satisfação de seu
desejo. A pergunta que se repete insistentemente “Como deixar de amar-te, se
(...)” reflete a persistência do ser desejante em não desistir do ser desejado,
porque há ainda um “se” que alimenta a esperança de haver correspondência.
O poema “Lírica XI” expressa a distância entre amante e ser amado,
apontada em outros poemas:
Gastos de impaciência, meus dedos
tocam teu nome
Ele é duro e ensimesmado
Grave, sequer estremece,
permanece sem um movimento
Grossa casca de imbondeiro!,
forte pele de boi!
Meu arco tenso te aponta
Mas não te atinge
MAS NÃO TE ATINGE
(1989b, p.32)
Observando que o nome pode ser considerado a metonímia da pessoa,
podemos afirmar que o eu-lírico dificilmente encontrará a correspondência do ser
amado, porque este se encontra “duro e ensimesmado/ Grave, sequer estremece,/
permanece sem um movimento”, ou seja, o reage com sensibilidade aos dedos
“gastos de impaciência”.
45
É interessante observar dois aspectos do poema. O primeiro é o recurso
utilizado pelo poeta no último verso, que é a repetição do penúltimo, mas escrito
com letras em caixa alta. Talvez esse recurso tenha sido usado para enfatizar o
desespero do eu-lírico de forma a fazer com que o último verso nos pareça um grito.
Um outro aspecto a ser considerado é a evocação do contexto cultural
angolano, através da referência a uma árvore, o imbondeiro, importante na tradição
do país. Na gíria popular angolana, imbondeiro significa o homem que tem pênis
grande, devido a associação feita com o tronco grosso da árvore. O imbondeiro,
considerado o “elefante do reino vegetal”, é, para os angolanos, uma árvore
sagrada, protegida, muito ligada a sentimentos religiosos, representando o
intermediário entre os deuses e os homens. Ela possui dois tipos de folhas conforme
a idade, por isso ouve-se dizer que o imbondeirofruto quando muda de roupa.
Além disso, ela pode ser usada de diversas formas. As crateras no interior do seu
tronco podem servir para armazenar água, cereais ou até como sepulturas. Das
raízes é possível produzir corante vermelho. Da entrecasca pode-se confeccionar
tecidos. Da polpa do fruto consegue-se uma farinha de sabor agradável, rica em
vitaminas e usada também como remédio. O ácido da polpa é utilizado como
coagulante da borracha. Na culinária, as folhas são usadas depois de cozidas em
sopas. Tudo isso nos mostra quão importante é essa árvore para as sociedades
angolanas, o que vem reafirmar algumas marcas da nacionalidade anunciada no
título do livro: Poemas angolanos (1989b).
O espaço cultural angolano é evocado em outros poemas como, por exemplo,
em “Lírica XVI”:
Sou o melhor guerreiro da aldeia
A minha lança é temida
por sua infalível pontaria
A carne mais fresca e saborosa
eu a trago pela manhã
sobre a minha cabeça
coroada de sol
Os inimigos respeitam a minha fama,
os amigos a propagam
Mas tantos poderes
— apaixonado e fraco
eu os derramo a teus pés
(1989b, p.35)
46
O erotismo está circulando nos espaços invocados pelos poemas. Aqui,
através da referência ao valor do guerreiro, o melhor, admirado pelos outros por
suas habilidades. A lança surge mais uma vez como símbolo fálico, podendo tanto
encarnar o poder masculino, quanto ser entendida em sua conotação sexual. Desse
modo, fortalece-se a masculinidade, mas também se acentua a fragilidade do
homem apaixonado, que deposita aos pés da amada o que tem de mais valioso: a
lança, a carne mais fresca e saborosa, a sua fama e poder.
Mais uma vez temos a angústia do homem que deseja, visto que Eros é
prazer, mas também pode ser dor. A respeito da paixão, diz Barthes (1981): “o
sujeito apaixonado, do sabor de uma ou outra contingência, se deixa levar pelo
medo de um perigo, de uma mágoa, de um abandono, de uma reviravolta
sentimento que ele exprime sob o nome de angústia (p.22). Por isso, dizemos que
Eros também pode ser doloroso, na medida em que está associado a outros
sentimentos que incomodam. Nesse sentido, vale considerar a relação estabelecida
no penúltimo verso do poema entre os termos “apaixonado” e “fraco”.
3.2. Eros tátil-visual
Se considerássemos um sujeito masculino que se expressa nos poemas de
João Melo e tomássemos a recorrência com que as mãos neles são mencionadas,
talvez pensássemos que a teoria de Alberoni (1988) não nos serviria. Dizemos isso
porque a freqüência com que as mãos surgem nos poemas do autor caracteriza e
enfatiza um erotismo muito tátil, que, segundo Alberoni (1988), é característico do
gênero feminino. Essa característica está presente no poema “Ode às os”, do
qual nos interessa apenas a primeira parte, porque ela estabelece relações entre
mãos e erotismo:
I
Mãos, doces
mãos,
boas
para o amor,
para
a espantosa descoberta
da carne,
47
mãos trémulas, in-
filtrando-se
pelas húmidas fendas
do corpo,
até
tocarem
o fruto supremo
e
romperem
o frágil casulo
da alegria.
(...)
(1989a, p.23)
O corpo, metaforizado, relaciona-se com a natureza, como se na
expressão “fruto supremo”. As mãos, aqui, têm uma conotação tátil, não constituindo
metáfora do trabalho, como aparece de modo recorrente nas literaturas de países
que, como Angola, conviveram com a opressão ligada ao trabalho forçado. O poema
é um elogio às mãos, sendo a primeira estrofe uma alusão clara ao poder das mãos
de proporcionar prazer. Eros encontra-se nos recônditos do corpo, é um mistério,
mas pode ser despertado pelo toque das mãos, que agem a fim de seduzir o objeto
desejado. Através da mistura dos sentidos “Mãos, doces” ocorre a descoberta
do prazer.
Também no poema “Táctil” as mãos, anunciadas no título, autorizam-nos
dizer que o erotismo que se seguirá nos versos é marcado pela recorrência ao
toque:
Percorro a tua carne de terra:
as faces crispadas,
os seios maduros,
as coxas de seda,
o ventre expectante
Avalio a textura da pele,
descubro as profundas enseadas
marítimas,
interrogo os sinais inesperados
e misteriosos
Liberto os temores
ocultos dos espíritos,
provoco tempestades,
faço explodir a alegria
do corpo reencontrado
— com os dedos,
antes de mais nada.
(1993, p.41)
48
A primeira estrofe descreve o transitar pelo corpo feminino através de um
único sentido: o tato. Após avaliar a textura do corpo desejado, o eu-lírico afirma
libertar “os temores”, fazendo-nos pensar que Eros encontrava-se reprimido,
guardado, preso ou escondido e que, através do toque, o erotismo despertará o
“corpo reencontrado”.
Segundo Freud (1973), “todos conhecem a fonte de prazer de um lado e o
influxo de nova excitação de outro que são proporcionados pelas sensações tácteis
da pele do objeto sexual” (p.47). Não se pode deixar de considerar que as mãos,
para Freud (1973), representam o instinto de domínio. Esse instinto pode ser
percebido nos poemas de João Melo como expressão do desejo de possuir o ser
amado, de obter prazer e dar prazer, que se mostra na arte de explorar “os sinais
inesperados/ e misteriosos” do corpo.
A possibilidade de prazer proporcionado pelas mãos é levada ao extremo no
poema “Do corpo e do espírito”:
As minhas mãos, cegas, erram pelo teu corpo.
O que buscam?
— a pele profunda
do teu espírito.
(1993, p.42)
Aqui, o prazer de olhar, presente em outros poemas, não é explorado, que
as mãos são “cegas” e vagam sem caminho certo. Entretanto, Chevalier e
Gheerbrant (2005) apontam que, na psicanálise, a mão pode ser “comparada com o
olho: ela (p.592). Dessa forma, as mãos fazem-se olhos e o eu-lírico através
do tato, com a possibilidade de enxergar o corpo da amada pelo toque.
No poema “Do corpo e do espírito”, mais do que proporcionar prazer carnal,
Eros busca ir além do corpo, atingir a alma, o êxtase, a transcendência. O erotismo
habita tanto o corpo, quanto a alma. De acordo com os ensinamentos ancestrais
africanos, apresentados por Sobonfu Somé (2003),
quando povos tribais falam de espírito, estão, basicamente, referindo-se à
força vital que em tudo. Podemos, por exemplo, citar o espírito de um
animal, ou seja, a força vital daquele animal que nos ajuda a realizar o
propósito de nossa vida e a manter nossa conexão com o mundo espiritual.
(p.26)
49
Assim, o relacionamento erótico é produto da força vital, porque se constitui a
partir da união de dois espíritos para criar um terceiro, o espírito do relacionamento.
Mas o prazer proporcionado pelo tato também pode estar aliado ao prazer de
olhar. No poema, o eu-lírico, que supomos masculino, detém o olhar sobre o corpo
feminino o que, de certa forma, vai ao encontro das palavras de Droguett (2001)
quando diz ser “no olhar (metáfora contemporânea por excelência)” que “encontra-
se o outro” (p.36). Desse modo, o olhar é o lugar de encontro com o ser desejado,
possibilidade de uma realização erótica.
No poema “As cores do teu corpo”, percebemos como Eros pode manifestar-
se através dos sentidos da visão e do tato intensa e simultaneamente:
As cores do teu corpo:
matizes selvagens rebentando nos meus olhos
As mil cores do teu corpo:
verde negro amarelo vermelho
Ah a festa doida das mãos
mergulhando nelas...
(1989a, p.34)
Temos, no poema, a indicação do prazer proporcionado pela "festa doida das
mãos". Eros está indicado pelo toque, mas também pelo olhar ao ser expresso pelas
cores. Nesse sentido, cada uma das cores, a seu modo, assume uma simbologia
que converge para o sentido erótico. Segundo Chevalier e Gheerbrant (2005), o
amarelo “é a mais quente, a mais expansiva, a mais ardente das cores” (p.40),
enquanto o vermelho é uma cor masculina e o verde, feminina (p.939). Diante disso,
podemos dizer que o anúncio da voz lírica, logo no segundo verso “matizes
selvagens” — representa a fusão das cores em um todo, cada cor representando um
elemento que compõe a cena erótica perfeita.
Por outro lado, para Ernest Schachtel (apud MARCUSE, 1978), a visão de
algo belo suscitaria mais um prazer mental, cerebral, ou até intelectual, no caso das
obras de arte:
O prazer de cheirar e saborear é de uma natureza muito mais corporal, mais
física, logo também muito mais aparentado ao prazer sexual do que o prazer
mais sublime suscitado por um som ou ao menos corporal de todos os
prazeres, a visão de algo belo. (p.54)
50
Considerando, dessa maneira, o poema uma expressão artística, poderíamos
ainda supor uma outra interpretação para “As cores do teu corpo”. Em uma
perspectiva metalingüística, o poema desvelaria a relação artista/obra de arte, de
modo que o prazer expresso seria do contato entre o pintor e sua obra.
Em outro poema, a presença das cores poderia também remeter-nos à beleza
de um quadro, considerando que, na visão do eu-lírico, o corpo desejado parece se
apresentar como uma pintura:
Lírica IX
Um enorme fogo irrompe
de teu corpo quedo
Rubro? Tem milhões de cores
Nelas ineroxavelmente
eu consumo meus olhos
pouco a pouco eu os consumo
Ah tu não me destruas, querida,
tu não me destruas!
(1989b, p.31)
Como no poema “Lírica XI”, ocorre aqui a repetição do penúltimo verso no
último, enfatizando certo desespero, um desejo incontrolável. Sentir o desejo faz
com que o indivíduo se destrua, se consuma. O erotismo é expresso, no poema,
pela exploração de recursos visuais. Poderíamos dizer que o eu-lírico se assemelha
ao voyeur. Todavia, na visão de Freud, essa não seria a denominação mais
adequada. Para o teórico (1973), voyeurs são pessoas anormais que têm fixação
nas funções excretórias. Nesses indivíduos, o olhar sobre os órgãos genitais está
associado à anulação da repugnância. Conseqüentemente, em vez de se constituir
como preliminar para o objetivo sexual, esse olhar o suplanta. Diferentemente do
que afirma Freud, o voyeur, no poema, embriaga-se na contemplação do corpo da
mulher amada e do fogo que dele irrompe.
No poema “Vício” de João Melo, todos os sentidos são conclamados para a
composição de uma grande festa, eles passeiam pelo corpo:
Beber os teus cheiros terrestres
sorver os teus seios
pequenos e doces como laranjas
afagar-te as nádegas frescas
como o primeiro pão da manhã
escutar o tambor íntimo
dos teus quadris retesados
51
e prestes a explodir
mergulhar no teu ventre aceso
como se fosse sempre
a vez derradeira
(1993, p.44)
Eros é visto, no poema, como indício de um “vício” em seu sentido positivo,
como uma força de vida. Cada encontro amoroso proporciona um prazer único,
“como se fosse sempre/ a vez derradeira”.
É importante salientar a menção ao tambor feita pelo poema. Esse
instrumento nos remete ao contexto angolano, que ele tem grande importância
nessas culturas, podendo seu som representar o pedido de fertilidade para a mulher,
a iniciação de jovens, entre outras coisas. Diante da importância de tal instrumento,
não poderíamos deixar de citar o seguinte trecho de um autor africano, que bem
aponta a relação do tambor com o sentido de “força vital”:
Instrumento africano por excelência, (...) o tambor é, no sentido pleno da
palavra, o Logos da nossa cultura, que se identifica à condição humana da
qual é uma expressão; ao mesmo tempo rei, artesão, guerreiro, caçador,
jovem em idade de iniciação, a sua voz múltipla traz em si a voz do homem,
com o ritmo vital de sua alma, com todas as voltas do seu destino. Ele se
identifica à condição da mulher, e acompanha a marcha do seu destino.
Assim, não é de se espantar que, em certas funções especiais, o tambor
nasça com o homem e morra com ele. (MVENG apud CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2005, p.862)
No poema “Vício”, o tambor está presente tanto para metaforizar o corpo
feminino, quanto para anunciar a presença exuberante de Eros. Através de seu som,
o tambor evidencia a existência da força vital circulante em cada pequena parte da
vida: os “cheiros terrestres”, as “laranjas” e “o primeiro pão da manhã”.
Nesse poema, o apelo aos sentidos audição, tato e paladar indica o
chamado para se entrar em ação e possibilita que o corpo sinta as delícias de viver
o prazer intensamente. A referência aos “cheiros terrestres” que emanam do corpo,
aos “seios/ pequenos e doces como laranjas”, ao “tambor íntimo” dos “quadris
retesados”, aludem à “festa dos sentidos”, conseqüentemente, à vivência do prazer
sem limites. Para Bataille (1987), essa ultrapassagem dos limites é uma
transgressão que ocorre em diferentes graus e, “de grau em grau, o caráter de
transgressão se acentua” (p.101).
52
Diante disso, fica evidente que o erotismo pode manifestar-se em um único
sentido, ou apropriar-se de vários ao mesmo tempo; ser a expressão do prazer
carnal, mas também, do intelectual.
3.3. Eros na natureza
Nos poemas de João Melo, independentemente de se tratar do corpo
feminino ou masculino, este sempre é percebido de maneira valorativa. Por isso, os
poemas apresentam corpos que despertam para a sexualidade, para a vivência
sexual. Corpos vigorosos, pulsantes, ardendo em erotismo e, em geral,
metaforizados por aspectos e/ ou elementos da natureza, como no poema que se
segue:
Lírica XIV
Como uma árvore aberta
teu corpo sob o meu
Veio com a enxurrada,
toda a virtude intacta
A noite te trouxe,
a noite medonha!
Entro em ti como quem
Raivosamente renasce
E em ti ó purificadora
eu reconstituo
nossa ciência exacta
(1989b, p.34)
no primeiro verso, estabelece-se uma comparação do corpo com um
elemento da natureza a árvore. Para Chevalier e Gheerbrant (2005), a árvore
simboliza o ciclo vital: “morte e regeneração” (p.84). Possuir o corpo, no plano
simbólico referido pelos estudiosos, poderia significar passar pela morte, mas
também assumir a regeneração. Tal simbologia nos remete à experiência do
erotismo que representa exatamente a renovação proposta no ciclo vital, expresso
nos poemas de João Melo. Dessa maneira, o corpo, assim como a árvore, é
elemento marcado pela força vital.
53
Por outro lado, os versos desse poema retomam a água com seu poder de
lavar e purificar, através da metaforização do corpo feminino, que é visto em
comparação com a abundância de água, a “enxurrada”. O verso “toda a virtude
intacta” sugere a pureza da mulher, que se faz pura e “purificadora”.
“raivosamente renasce” remete-nos à fusão momentânea dos seres, e a união
sexual assume, como foi mencionado, o sentido de renascimento, o que implica
morrer e novamente nascer. Assim, a dupla face do erotismo — as pulsões de vida e
morte — se encontrariam, coexistindo, como acredita Bataille (1987).
A natureza também pode influenciar as relações amorosas, determinando o
tempo certo de cada ato:
Lírica XVII
Amada amada
porque suplicaste
que eu lançasse o meu esperma
contra o negro capim?
Avisaste-me é certo
que apenas te poderias dar
quando a lua furtiva se ocultasse
atrás das montanhas
Mas por um instante
imaginei loucamente
que fosse um acesso de romantismo
(1989b, p.36)
Ao ser jogado fora, o esperma — símbolo de vida e energia — transgride uma
função que, sendo biológica, é também ritualística. O ato erótico assemelha-se ao
de semear/plantar, marcado pelos ciclos da natureza em culturas ancestrais
africanas. Por isso, lançar o esperma “contra o negro capim” simboliza uma
transgressão à ordem natural da semeadura. A mulher amada, vista como a
mantenedora dessa ordem, avisa ao homem que não está no momento de ser
fecundada.
Como se percebe, nesse poema, o ato erótico adquire conotações
ritualísticas, muito próprias das culturas ancestrais angolanas. Lembremo-nos de
que, nessa sociedade, a relação erótica “passa a ser bem mais que um meio de se
obter prazer” (SOMÉ, 2003, p.95), pois é um ato sagrado. Homem e mulher devem
seguir rigorosamente os rituais, caso contrário, as conseqüências serão drásticas
para ambos.
54
A natureza pode ainda evidenciar claramente o erotismo no sentido de força
vital, referido em grande parte do capítulo anterior. Vejamos como essa força
irrompe no poema “Canto vital”:
Em dois ou três minutos
derrama-se
em cascatas ardentes
o esperma inicial
A mulher constrói o fruto solar
no seu coração mais íntimo
len-ta-men-te
como quem tece
o mundo
Morremos de espanto
diariamente
incapazes de perscrutar o mar
e o colérico canto
dos tambores
Mas penosamente
reiniciamos o ciclo
(1989a, p.12)
O título do poema anuncia um canto de celebração da vida, e a seqüência
dos versos descreve os ciclos da fecundação, gestação, vida, morte e retomada do
ciclo. A ausência de pontuação, principalmente do ponto final, reforça a idéia de
circularidade da vida. Essa é corroborada pelo recurso do enjambement utilizado
nos versos, que, como mencionamos anteriormente, autoriza-nos pensar em
movimento contínuo, pela estrutura de ir e vir que se desenha nos versos.
Curiosamente, no verso “len-ta-men-te”, a linguagem reproduz o sentido. Isso
é possível porque o autor utiliza o recurso da separação de sílabas, obrigando o
leitor a ler devagar, pronunciando cada sílaba “len-ta-men-te”.
Na segunda estrofe, percebemos metáforas que aludem à gestação: “a
mulher constrói o fruto solar”. Já na terceira estrofe, temos a constatação de que nos
maravilhamos (ou pelo menos deveríamos) todos os dia com a vida, diante de seus
mistérios. O erotismo está disseminado na natureza e na vida como um todo. O mar,
que pode simbolizar ao mesmo tempo a vida e a morte, contém o desconhecido em
suas profundezas. O canto do tambor, “o eco sonoro da existência” (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2005, p.862), ecoa magicamente de modo inexplicável, o que nos
leva a concluir que somos impotentes diante do mistério da vida.
55
Vale ressaltar que a presença da natureza nos poemas está ligada ao
animismo, próprio da cultura ancestral africana, que, ao longo dos poemas, irá
pontuar a noção de Eros como “impulso de vida”.
Por outro lado, em “Elementos para um poema”, a força vital africana surge
através de vários elementos, que não os da natureza. Ela manifesta-se através
da enumeração de temas que podem servir ao autor como motivo de criação:
A poesia me chama
Sangue de coca-cola
lembrança de coxas abertas
aveludadas
Guerra guerra
espreitando atrás da nuca
Duas crianças de
olhos vivos esperançosos
— minhas filhas tão doces
Promessas delirantes de amor
O meu amor ama
o meu falo
Eu amo os meus amores
todos
Amigos — onde
é a farra?
Carcamanos filhos
da puta
Um país enorme exangue
(Ah mas hei de senti-lo pulsar
nos campos e nas estradas)
Agora a poesia me chama
— e sem saber pra onde
eu vou
(1989a, p.11)
As palavras no poema são misturadas, como se fossem lançadas na sua
forma bruta, sem lapidação. O apelo erótico está expresso por termos como sangue,
revolta, guerra, amigos, filhas, amor, país. Tudo se mistura, porque tudo é vida, tudo
faz gozar ou doer. Os versos “O meu amor ama/ o meu falo” sugerem uma visão
falocêntrica que, entretanto, conclama visões outras expressas por alusões à guerra
e a uma sociedade invadida por significantes herdados de outras culturas,
56
utilizados para compor o quadro erótico que mistura “Sangue de coca-cola” com
“lembranças de coxas (...) aveludadas”.
os versos: “Eu amo os meus amores/ todos” indicam o compartilhamento
do amor, um amor que se estende aos filhos, aos amigos e ao país: “(Ah mas hei de
senti-lo pulsar/ nos campos e nas estradas)”. O erotismo encontra-se, então,
disseminado pelos espaços e pelas pessoas, estende-se a tudo o que o eu-lírico
ama. É a força vital africana que pulsa nas pequenas coisas.
De um modo geral, o poema sugere que os motivos ou temáticas estão no
dia-a-dia. A poesia é que manda, porque ela determina o tema ou a direção. O eu-
lírico se entrega, apenas vai. Para Padilha (2004), “realmente ele vai, com
segurança cada vez maior, trilhando o caminho das palavras, perseguindo-lhes o
gosto fugidio, procurando, enfim, engravidar o branco da folha de papel com o
sêmen da sua escrita” (p.2).
Todavia, em alguns poemas, a natureza pode surgir apenas como cenário,
pano de fundo para o relacionamento compartilhado. Essa visão pode ser percebida
no poema “Crime perfeito”:
O dia morrendo tranqüilo
sem testemunhas
O mar
nada além
que o mar
e seu vai-vém
despreocupado
Um sol temerário
incendiando o crepúsculo
Um corpo deitado
Eu entro em ti bravamente
como um corsário
e tu sucumbes sem dor
de repente
(1989a, p.35)
O cenário é natural, tranqüilo, “sem testemunhas”. Mas uma quebra da
tranqüilidade apresentada nos versos iniciais, a partir de “eu entro em ti
bravamente”. Nos versos seguintes, percebemos a instantaneidade do gozo, porque
tudo acontece “de repente”. O tulo “Crime perfeito” remete-nos à visão do homem
como o “corsário”, aquele que rouba a tranqüilidade da cena com a impulsividade de
seu desejo, e também invade o corpo da mulher. Sem dúvida, o homem é o pirata
dos mares e do desejo.
57
3.4. Eros cristaliza-se no corpo
No poema “Assim te amo”, a natureza é invocada para compor o cenário em
que, novamente, a posse da mulher pelo homem se realiza:
Chego condevagar no teu corpo
bebo o maruvo adocicado dos lábios
queimo os dedos na raiz da pele
mergulho na noite luminosa do ventre
como se quisesse romper
o invólucro do tempo que o protege
— e capto o teu grito terrível
com a minha boca espantada
(1993, p.43)
O tulo sugere a descrição de um modo de amar, como dissemos
anteriormente, e, conforme salientado por Macedo [1992], pode revelar “uma
espécie de filosofia da volúpia” que percorre os textos do poeta. A relação sexual é
descrita com a lentidão necessária para que se cumpram as táticas preliminares
descritas em minúcias, visando à apreciação do corpo desejado e também a
proporcionar prazer a este. Sutilmente se desenha o diálogo amoroso entre os
corpos. No entanto, toda a tranqüilidade da primeira estrofe é quebrada na segunda
com o “grito terrível” e a “boca espantada”.
Recorrendo às palavras de Alberoni (1988), percebemos que o impulso
erótico “passa através do corpo, o próprio e o da outra pessoa, e busca no corpo o
prazer para si, para o outro, até transbordar, até buscar o prazer para os outros”
(p.215). Dessa forma, o poema aponta para um modo de amar em que o impulso
erótico dos corpos age a fim de encontrar o prazer próprio e, depois, dar prazer ao
outro.
Esse transbordamento de prazer pode ser percebido no poema
“Contemplação poética da amada”. Nesse, o prazer sexual e o da escrita poética
são vistos como duas faces de uma mesma metáfora:
Estás nua como um verso moderno:
és rosto, seios, pernas e sexo
— e a poesia brilha à tua volta
como uma luz translúcida. (1993, p.40)
58
A menção ao verso moderno nos remete à caracterização de uma poesia
mais livre, ou seja, a uma poesia que, como a mulher amada, seja “rosto, seios,
pernas e sexo”, enfim, nus. Conforme dissemos no capítulo anterior, reiteramos que,
segundo Bataille (1987), a nudez é a ação decisiva do erotismo, através dela, os
corpos se entregam à continuidade. Nesse sentido, no poema, busca-se uma
continuidade, relação corpo feminino/poesia. Assim, corpo e poesia se misturam: a
poesia está no corpo da mulher, e desse corpo emana a poesia. Sobre essa relação
entre erotismo e poesia, Paz (1995) afirma:
A relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem afetação, que
o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal. (...) A
imaginação é o agente que move o ato erótico e o poético. É a potência que
transfigura o sexo em cerimônia e rito e a linguagem em ritmo e metáfora.
(p.12)
Assim como o erotismo, a poesia destina-se a provocar prazer no mundo, no
seu exterior. Ambos destinam-se aos mesmos fins, contudo utilizam-se de meios
diferentes. O erotismo se realiza através do corpo, a poesia o faz por meio do
verbo.
Nos poemas de João Melo, os corpos podem aparecer também de maneira
passiva, em estado de repouso, como percebemos no poema “Interrogação”:
Por que será que o teu olhar me lembra o mar?
Por que espera o teu corpo em repouso,
como um navio ancorado no porto,
antes de partir para uma viagem sem retorno?
E por que será que estes pássaros terríveis
gritam sem parar quando entro em ti,
como se fosse ao encontro dos deuses?
(1993, p.45)
A realização erótica é comparada com algo único, “uma viagem sem retorno”,
e também com uma possibilidade de transcendência, ir “ao encontro dos deuses”.
Todo o campo semântico e lexical de mar é evocado para metaforizar o erotismo, e
o corpo é comparado a um navio: “Por que espera o teu corpo em repouso/ como
um navio ancorado no porto”. Segundo Macedo [1992], esse jogo metafórico
utilizado por João Melo para aludir ao corpo feminino, busca, entre vários sentidos,
aquele que possibilitará a “libertação da linguagem das amarras da pudicícia” e,
conseqüentemente, libertará também Eros.
59
A comparação do corpo com o navio realiza-se de modo ambíguo em outro
poema, “O marinheiro”:
Navego à vontade no teu dongo
aliso-lhe como se fosse uma mulher
primeiro o dorso as curvas
perfeitas da embarcação
por fim as pernas balançando
nervosas como palmeiras
ah amada o azul terrível do mar
está todo nos teus olhos negros
eu oiço o grito da kianda
e ximbico sem parar sem parar
(1993, p.46)
Nesse poema, o corpo da mulher serve de metáfora para o barco, e a relação
amorosa confunde-se com o ato de navegar, ou de impulsionar o barco que o
marinheiro maneja. Uma aproximação semântica nos autoriza associar o prazer
erótico com o prazer encontrado no trabalho, nesse caso, o prazer de manejar o
barco.
A imagem do barco pode, ainda, ser associada à idéia de transporte, como o
espírito que possibilita a vivência erótica, no sentido ancestral africano, se
pensarmos nas palavras de Somé (2003):
Expressamos o conceito de sexo como uma viagem com alguém. A pessoa
não quer fazer sexo com outra; ela quer ir a algum lugar. (...)
Os espíritos convocados tornam-se os cavalos que os levarão nessa viagem.
Levá-los-ão a um local determinado, para que tenham o aprendizado ou a
visão que sempre vêm no contexto da intimidade.
Em uma situação íntima genuína, o horizonte visual e espiritual aumenta. Não
há uma sensação de confinamento. (p.98)
Desse modo é que percebemos que o erotismo não se fixa somente nos
corpos, pois ele se transfere para o ambiente em que os amantes se encontram.
Talvez seja essa a representação da criação do terceiro espírito a que se refere
Somé (2003), explorada no poema “Densidade”:
Fecho os olhos: a tua respiração criminosa
fere-me os membros lassos
como uma dor insuportável
Exangue, não penso:
apenas sinto
— a tua presença inerte e vivida
O ar não encontra a saída do quarto:
60
move-se espessamente
como um silêncio cego
— a densidade elementar dos corpos
imobiliza-o de espanto
(1993, p.47)
A atmosfera descrita no poema sugere um trânsito de Eros fluindo dos corpos
e misturando-se ao ambiente. A “respiração criminosa”, acelerada, denuncia a
presença potente de Eros, da qual o ar mais pesado, mais denso e espesso é
expressão pulsante.
Percebemos pelo exposto que, nos poemas de João Melo, a natureza liga-se
a Eros tanto para lhe servir de “vestimenta”, quanto para compor o ambiente em que
ele atua, ou ainda para metaforizar os corpos erotizados. Mas o ponto máximo
dessa parceria (Eros e natureza) é a representação da força vital, sentido tão caro
às sociedades africanas.
Na tentativa de demonstrar como Eros se faz presente na poesia de João
Melo, poderíamos dizer que os poemas:
1) caracterizam-se com um erotismo que destaque aos corpos vigorosos e
cheios de paixão;
2) apresentam tato e visão como principais ferramentas para as ações de Eros;
3) têm marcas intensas do erotismo circulando em elementos característicos de
espaços culturais angolanos;
4) presentificam a concepção de “força vital” proposta pelos ancestrais;
5) buscam, sobretudo, descrever o deleite erótico.
Diante das características apresentadas, podemos afirmar que, concordando
com a estudiosa Tânia Macedo [1992], a poesia de João Melo rompe com uma
tradição literária, principalmente com a cultivada nos tempos sombrios das guerras,
na medida em que transgride através do pacto que realiza com seus leitores:
Ora, a poesia, força que se quer liberta e libertadora em um mundo de tantos
cativeiros, rechaça o interdito, na medida em que escolhe a representação de
uma das formas da experiência humana que ao longo do tempo mais tem
estado sujeita a numerosas regras e proibições a erótica. Nesse aspecto,
permite a presentificação e partilha dessa experiência por um rculo mais
amplo, o dos leitores, realizando a transgressão.
61
Por um outro ponto de vista, os poemas mostram que o erotismo é uma
realidade pela qual “vale a pena lutar” (BOSI, 2000, p.227) e nos quais Eros se faz
sempre presente. Fato é que eles provocam dor ou gozo, mas, certamente, não da
mesma maneira que os contos do escritor.
62
4. EROS EM CONTOS
A imagem amada, e a temida, tende a perpetuar-se: vira ídolo ou tabu. E a
sua forma nos ronda como doce ou pungente obsessão.
(BOSI, 2000, p.20)
Se os poemas de João Melo permitem ao leitor perceber o erotismo visto em
relação com a força vital, expandindo-se, pois, do corpo para a natureza, o mesmo
não acontece com os seus contos. Os contos eróticos do escritor angolano
caminham numa direção oposta. Talvez haja alguns pontos comuns entre os dois
gêneros, mas qualquer afirmativa a esse respeito será possível após uma
investigação mais criteriosa dos contos. É o que pretendemos apresentar neste
capítulo.
O primeiro livro de contos do autor, Imitação de Sartre & Simone de
Beauvoir (1999), que teve como primeira opção de título “Amores desencontrados”,
reflete angústias e frustrações dos seres humanos, tendo a mulher como figura
central. Essa se apresenta em imagens positivas, ainda que em meio às
dificuldades. Segundo o autor
13
, o livro é uma tentativa de descrever as mulheres,
sem a pretensão de conhecê-las a fundo, porque isso ele acredita ser impossível.
João Melo afirma que o tema escolhido para esse livro é a relação amorosa entre
homens e mulheres. O que podemos deduzir do título do livro é que todos os contos,
de algum modo, problematizarão os relacionamentos entre casais que buscam um
convívio a distância, assim como Sartre e Simone de Beauvoir, “que viviam em
apartamentos separados e foram muito felizes” (1999, p.85).
The serial Killer e outros contos risíveis ou talvez não (2004) foi
identificado como “romance”, em vez de “conto”, conforme se na capa e na folha
de rosto do livro. Para João Melo [2005], ele difere de seus outros livros de contos
por não apresentar unidade temática. Reúne várias estórias, que abordam diferentes
assuntos em cenários muito diversos e oferece ao leitor um retrato bem-humorado
da sociedade luandense, explorando temas que são caros a esse escritor:
carreirismo, vida fácil, corrupção, exibicionismo, novos ricos.
13
Declarações feitas em entrevista constante do site: <http:// www.uea-
angola.org/destaque_entrevistas1.cfm?ID=505> Acesso em: 14 dez. 2005.
63
O livro mais recente do autor, O dia em que o Pato Donald comeu pela
primeira vez a Margarida (18 estórias quase pós-modernas) (2006)
14
, apresenta
no seu título indícios do humor que estará presente em todas as narrativas. Além
disso, os contos explicitam claramente a crítica social através da ironia, perspectiva
que se mantém nessa obra do escritor, e que está presente também em outros livros
de contos de João Melo. A influência de termos próprios do mundo globalizado é
outra característica a se ressaltar nessa obra, em que aparecem vários termos em
inglês e em francês: tout court, jeans, softwares, best seller, inputs, fait divers, last
but not least, brainstorming, puzzle, entre outros. A influência estrangeira, inclusive a
norte-americana, pode ser percebida, de antemão, no título do livro. Como
desdobramento dessa presença, encontraremos ainda, persistentemente, temas
ligados à “pós-modernidade” e à globalização cultural. Nesse sentido é que o apelo
ao erotismo, nos três livros de contos de João Melo, ultrapassa as fronteiras
angolanas, através da caracterização das personagens ou da composição dos
lugares e da utilização da intertextualidade que neles se faz presente.
O autor demonstra erudição através do vocabulário escolhido, de que fazem
parte termos como: homofobia, misógino, homocêntrico, anódinas, inócuo, ignóbil,
improfícuo, lídimas. Também as citações de lugares, fatos e, principalmente, de
personalidades como Engels, Freud, Marx, Barthes, Reich, Mao Tse-Tung, Bakhtin,
entre outros, definem o tipo de contrato que os textos pretendem estabelecer com
seus leitores.
Aspecto interessante de se salientar é a caracterização dos narradores nos
contos de João Melo. Eles não o seres dotados de imparcialidade; pelo contrário,
emitem juízo de valor sobre a história e sobre as personagens, além de reforçar a
todo o momento a incerteza sobre o que dizem. Todos esses narradores (de
primeira ou terceira pessoa) parecem tecer uma narrativa de enganos, já que mais
confundem o leitor do que o ajudam. Tudo contribui para que o leitor duvide sempre.
A ironia e o humor marcam a intenção dos narradores em lidar sempre com
incertezas, com falsas pistas, com indecisões. Esse é um outro aspecto que vale
ressaltar nas narrativas. Durante a leitura, é possível fazer algumas previsões
acerca do que acontecerá. Entretanto, as pistas são sempre falsas, porque os finais
são sempre surpreendentes. Segundo Laranjeira (1999), nos contos de João Melo,
14
A análise dos contos não seguirá a ordem de publicação dos livros. Por isso, após o título do conto,
indicar-se-á, entre parênteses, a data de publicação do livro a que ele pertence.
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“um final imprevisto, geralmente, tem como causa o desejo de crítica e como
conseqüência a ironia benevolente, o sarcasmo impiedoso ou, então, a lição trágica
da vida adversa, dada em atmosfera de choque e surpresa (...)” (p.12).
Desse modo, João Melo fisga toda a atenção de seu leitor logo nas primeiras
linhas do conto. O leitor, então, se prende em cada um dos fios da narrativa e, ao fim
de cada conto, tem uma surpresa. Inesperadamente, como em um passe de mágica,
os fios desaparecem, ou mudam de cor. Às vezes, são dados tantos nós, que o leitor
não sabe como desatá-los.
4.1. A consciência perversa de Eros
Em alguns contos, a culpa, a dúvida e a incerteza serão os principais inimigos
das personagens, de modo que o erotismo será vivenciado conflituosamente, porque
a consciência o colocará a todo o momento em xeque.
No conto “Sexo e violência” (1999), título que mais parece nome de filme,
anuncia-se desde o início a violência do ato sexual. Sobre esse título, Laranjeira
(1999) afirma que ele pode ser entendido de três formas:
sugestão holywoodesca, seca e cortante, do sexo aliado à violência, ou, de
outro modo, a leitura de Bataille do amor/pulsão de morte, ou ainda quem
sabe? —, a outra leitura, a reichiana, da subjugação da libido e da classe
(grupo social), que, desinibida(s), irrompe(m) em força libertadora e mesmo
em violência revolucionária? (p.17)
No conto, a personagem masculina tem que se resolver com sua consciência:
ela sente culpa não apenas com relação à esposa, mas também com relação aos
outros homens que fazem parte do “quadrado amoroso”, “ou pentágono” (1999,
p.75).
O narrador-personagem, casado, envolve-se com Manuela, que é casada
com Simão e que, além disso, tem outro amante, Fernando. Na viagem que faz com
ela para a quinta que possui, o narrador anônimo está disposto a deixar a esposa e
pedir a amante em casamento. Entretanto, ele sofre a perseguição dos dois outros
homens: o marido e o outro amante de Manuela.
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É interessante observar que a amante do narrador também tem problemas de
consciência, haja vista a dificuldade que teve para falar ao narrador de seu
envolvimento com o cubano Fernando. Quando lhe fez essa revelação, olhou-o
“nitidamente receosa, de repente, de um gesto violento” (1999, p.74). Apesar de este
reagir serenamente, ela inicia algumas “prosaicas” considerações, tentando
justificar-se e dando explicações desnecessárias:
“O que é que tu queres?”, (...) no intuito claro de me preparar para as
pesadas verdades que se seguiriam. “Tu nunca tens tempo para mim!... Estás
sempre com medo da tua mulher, sempre com pressa... Praticamente nos
vemos de mês a mês! Não vejo nenhuma diferença entre os nossos
encontros e as vindas a Luanda do meu marido...”, discorreu ela. Daí que
(adivinharam): “Quando o Fernando quis dormir comigo, eu aceitei! E não
tenho que te dar satisfações!...” (1999, p.74-75)
Com a revelação da existência de um terceiro homem no jogo amoroso de
Manuela, o narrador-personagem passa a enfrentar a culpa por estar enganando a
outros dois homens, além da que sente em relação à própria esposa, que, no conto,
não tem papel tão considerável. Isso fica evidente nas citações que se seguem:
(...) devido à desafiadora confissão que ela me acabara de fazer, (...) minha
cabeça foi acometida por sentimentos cada vez mais confusos e
contraditórios (...).
(...) se antes disso eu jamais me tinha preocupado com o Simão (...), passei a
experimentar em relação a ele um duplo sentimento de pena e culpa; pena
por ele estar longe, na frente de combate, enquanto a sua querida esposa,
em Luanda, disparava em leque, (...) (no fundo comecei a considerar o Simão
o mais desgraçado de todos os participantes naquele jogo); e culpa por ele
estar justamente na frente de combate, arriscando a vida para que nós (...)
lhe pudéssemos comer a mulher à vontade (em diversos momentos, cheguei
a perguntar-me se a minha atitude não seria contra-revolucionária?). (1999,
p.75)
O protagonista-narrador desse conto mostra-se avesso ao romantismo, como
podemos perceber pelas escolhas lexicais que ele faz: “Quando fizéssemos amor
(na altura, como podem deduzir, utilizei outras palavras, menos anódinas) (...)”
(1999, p. 73). Por ser avesso ao romantismo, as descrições do ato sexual feitas pelo
narrador serão também muito distantes do lirismo:
(...) a Manuela ficava totalmente transfigurada. (...) dizendo coisas que eu não
entendia, (...), uma paixão quase à beira da violência, tal o ardor que ela
punha naqueles berros fantasmagóricos, a veemência com que me abraçava,
o descontrolo (...) com que remexia o corpo em cima do meu (ela gostava de
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sentar-se sobre o meu pénis e torturar-me, digamos assim, metódica e
cientificamente, o que, confesso, eu não desgostava...).
(...) nos nossos momentos máximos de delírio, quando as pernas e os braços
ficam tão retesados que parecem partir-se aos pedaços, o quarto começa a
rodar sem cessar, os olhos se fecham e a boca se abre infinitamente,
adquirindo formas dantescas. “Dá-me!” gritava ela (...) “Eu preciso duma piça
angolana!...” (1999, p.73-74)
O final do conto é curioso. Quando o narrador e sua amante chegam à quinta,
desesperadamente, começam a se despir para se entregarem ao ato, por ele
definido como “animalesco”. Então, os rostos dos outros dois homens começam a se
interpor entre o casal e, estranhamente, o narrador confessa: “eu não conhecia
nenhum deles, mas, contudo, tinha a certeza absoluta de que eram eles e que
estavam dispostos a tudo...” (1999, p.77). A personagem entra em pânico e sai
correndo. No auge da perseguição, ele é acordado pela esposa. Era tudo um sonho!
Ao acordar, ele olha para a porta verificando se seus inimigos não irão entrar. A
princípio, podemos pensar que ele ainda se encontra meio aturdido pelo pesadelo e
que a traição nunca aconteceu, a não ser em seu sonho. Entretanto, se recorrermos
a Freud (1976), podemos admitir serem os sonhos manifestações do nosso
inconsciente, e também a tentativa ou realização dos desejos. Tais indicações
permitem-nos ler o conto recolhendo as pistas que nele se mostram: a esposa
confirma que eles possuem uma quinta e que irão passar o dia lá. Depois o próprio
narrador revela ao leitor: “Enquanto eu me ria da minha própria história, com um
travo meio amargo na boca, alguém, na platéia imaginária, levantou-se e: Isso
cheira-me a moralismo cristão, misturado com complexo de culpa revolucionário...”
(1999, p.78). O trecho citado sugere que a “platéia imaginária” seria a sua própria
consciência cobrando-lhe pelo que ele, talvez, viva no dia-a-dia. Não se pode,
todavia, desconsiderar que as reflexões do narrador são sempre uma estratégia de
simulação e precisam ser compreendidas no seu duplo sentido.
Esse aparente conflito de consciência é também encontrado no conto
“Imitação de Sartre e Simone de Beauvoir” (1999), no qual a personagem masculina,
Pedro, sofre com a cobrança da mulher, Ana, e de seu próprio inconsciente. A
narrativa descreve as brigas do casal, separado, e os muitos argumentos de
Pedro para tentar justificar o fato de um homem poder ter várias mulheres.
O conto inicia-se com a exploração de várias nuances do erotismo:
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Pernas de imbondeiro, pernas de imbondeiro. Na verdade (recordo), comecei
por ver o teu sorriso alarvemente belo, imenso como um enorme sol
pecaminoso, alegria despudorada e, no entanto, ingénua, puro desejo,
elucidado pelo húmido frescor dos teus dentes emoldurando a boca
vermelha, de onde brotava, como uma violenta explosão, a gargalhada
libidinosa; contudo, o que, antes de mais nada, as minhas mãos se viram
compelidas a tocar, movidas por um impulso talvez mágico, talvez atávico, sei
lá, foram as tuas pernas: lisas como um sonho, mas compactas (o que me
causou uma sensação angustiante de abundância). Mais lembranças: como
se fosse um deus, enfiei as mãos debaixo do teu vestido, acariciei-te
demoradamente as coxas fortes e grossas, apalpei-as, belisquei-as, até
perder a noção do tempo; com a mesma comoção com que, em ocasiões
posteriores, te chamei minha putinha ou minha vaquinha, murmurei: pernas
de imbondeiro, pernas de imbondeiro (triunfante, sorriste, antes de abrires
completamente as pernas, para facilitares a operação; eu podia sentir as
mãos mergulhando atônitas nas tuas raízes). (1999, p.81-82)
Como podemos perceber, nesse trecho há a mistura de uma visão lírica,
romântica, com o apelo a expressões mais grosseiras, chulas até. A linguagem
utilizada pelo autor no conto nos sugere o comportamento do casal, nem tão violento
quanto outros, mas nem tão romântico.
Algumas descrições de Ana são feitas de forma mais lírica — “como se saísse
do interior do poema de Jorge de Lima. (...) Estás bela, querida, criminosamente
bela” (1999, p.83) —, apontando o encaminhamento da narrativa para um desfecho
mais harmonioso.
Conforme as avaliações da própria personagem Pedro, também narrador do
conto, as respostas que dava à mulher eram bem cínicas. A partir das perguntas que
a mulher faz, a personagem masculina tece uma série de considerações usando
argumentos variados políticos, históricos, sociais, culturais para justificar o seu
comportamento, bem como para, ironicamente, aludir a costumes típicos do meio
social em que vive.
(...) sabes que o próprio Marx comia todas as empregadas domésticas que
lhe apareciam pela frente?... (1999, p.82)
Tanto eu como tu somos dois animais urbanos, temos uma formação
europeizada (maldito colonialismo), as nossas raízes estão mergulhadas num
limbo sombrio qualquer (...). (1999, p.82)
Mas, depois da independência, uma doença estranha assolou a cidade: os
homens começaram a arranjar muitas mulheres (digo publicamente) e
atribuem isso à influência irrevogável da tradição (...). (1999, p.83)
Tenho um amigo que diz: a monogamia é a coisa mais antinatural que existe.
Talvez, penso. Tenho viajado um pouco e vejo: é raro o homem que não
tenha mais do que uma mulher (...). (1999, p.83)
A rotina, o grande inimigo dos casais é a rotina, procurava eu ensinar. (1999,
p.85)
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Todavia, todos os argumentos servem apenas para prolongar a discussão,
que inevitavelmente termina em sexo, pois não convencem ninguém, como o
narrador diz: “Enfim, talvez todas essas recordações, associações e elucubrações
não passem da busca desesperada de uma boa desculpa para explicar a mim
próprio por que estou aqui e por tudo aquilo que eu sei —vai acontecer a seguir”
(1999, p.83). Desse modo, o ambiente erótico cria-se a partir das discussões, que
é após as brigas que eles se entregam um ao outro, isto é, o jogo da sedução surge
em meio às desavenças do casal, e esses desentendimentos são desfeitos na
relação erótica.
O ponto final, e também inicial da discussão, é sempre o exemplo dado por
Sartre e Simone de Beauvoir. Pedro, dissimuladamente imparcial, contava a história
do casal francês, afirmando que os dois eram muito felizes. Depois de se amarem,
quando ela pede a ele que volte para casa, mesmo indeciso, Pedro recorre ao
exemplo de Sartre:
Volta para casa, meu amor, eu não agüento mais, pedes. (...) mas eu sinto
uma estranha agonia no peito, não sei se quero ficar ou partir, apenas tenho
uma vontade enorme de chorar. O que achas da minha idéia?, pergunto. Qual
idéia? Aquela de imitarmos o Sartre e a Simone de... Quem começa a chorar
és tu. (1999, p.86)
Apesar de todo o discurso ardiloso, construído para defender o fato de os
homens terem muitas mulheres, em um diálogo com um amigo, Pedro demonstra
ainda ter algumas dúvidas em relação aos direitos das mulheres, quando questiona
se elas também teriam direito à poligamia:
O tem razão, portanto: a monogamia não é natural. que o gajo nunca
me responde quando lhe pergunto: porra, pá, e se a tua mulher quiser ter
vários homens? Problema angustiante: a poligamia confunde-se, pelo menos
na nossa época, com o machismo — por isso é injusta. (1999, p.84)
O posicionamento contraditório da personagem diante da questão
“relacionamento amoroso” fica patente quando, embora considere a monogamia
antinatural, Pedro demonstra não gostar de imaginar que Ana tenha outro(s), o que
podemos depreender da pergunta extremamente desnecessária que ele dirige a ela,
tendo em vista a situação atual em que se encontram: “já dormiste com alguém
desde que nos separámos?” (1999, p.84). O diálogo que se segue também
corrobora a interpretação de que Pedro se sente incomodado com o fato de a
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mulher ter um outro alguém, respondendo com um “talvez” à pergunta que ela lhe
direciona: “O que é que tu achas?, concordas que também preciso de afecto?”
(1999, p.84). Para Laranjeira (1999), tal relação demonstra a “manifestação de um
comportamento machista, por parte de quem não pode admitir que as mulheres
procedam consigo do mesmo modo que procede com elas” (p.24).
O encerramento do conto é ambíguo, porque em uma primeira leitura, pode
ser interpretado como a separação definitiva do casal ou apenas como uma atitude
irreverente de Pedro, que sai e reclama do sol, como se tivesse esquecido toda a
discussão com Ana:
Não me disseste nada, mas eu sei; esta foi a última vez que fizemos amor.
Por isso, antes de sair, resolvo (como se discursasse para ti) guardar para
sempre o sabor da tua pele em todas as minhas extremidades. Na rua, o
calor é insuportável. O sol de Luanda, em Abril, é uma coisa fodida. (1999,
p.86)
Em uma segunda leitura, se retomarmos os trechos do conto em que é citado
o hábito de se “dar às mulheres designações caricatas, como Luanda Um, Luanda
Dois, etc” (1999, p.83) e nos valermos da citação de Barthes, “a moda é uma coisa
fodida” (1999, p.83), deslocando-a para o costume de se ter mais de uma mulher
(como é apresentado no conto), ou se ainda observarmos o lirismo expresso na
antepenúltima frase, “guardar para sempre o sabor da tua pele em todas as minhas
extremidades” (1999, p.86), podemos deduzir que o casal se ama novamente, e que
a referência ao sol poderia aludir ao calor dos corpos. Tal leitura privilegia a visão de
que é impossível resistir a Eros.
no conto “Crime e castigo” (1999), a situação mostra-se um pouco mais
complicada. A personagem principal tem duas mulheres, e o triângulo amoroso se
anuncia nas primeiras linhas da narração: “Freud disse: em todo acto sexual, há
sempre duas pessoas a mais (cito de memória)” (1999, p.45). Pedro Domingos João
ocupa importantes cargos no governo, após ter lutado pela independência. Ele
convive com dilemas que envolvem a vida que tem, até que ocorre a morte de uma
de suas mulheres.
O narrador apresenta a personagem com a designação de “o camarada Tiro
Infalível” (1999, p.45). Considerando a ambigüidade do nome, o leitor poderá
assumi-lo tanto a partir das conotações políticas, quanto sexuais. Como a narração
segue descrevendo o triângulo amoroso, a interpretação primeira que se faz é a de
70
que a designação vem ressaltar a vitalidade sexual da personagem. No segundo
parágrafo, o narrador, embora negue qualquer ligação entre o nome da personagem
e o sentido sexual, acaba por reforçar essa ligação ao referir-se à “comentada
vitalidade sexual” da personagem:
Antes de avançarmos, convém fazer alguns esclarecimentos: o pseudónimo
de Pedro Domingos João era um autêntico nome de guerra e nada tinha a ver
com o sentido pecaminoso que se atribui, no português angolano, à
expressão “dar um tiro”. Todos lhe tratavam, portanto, por Tiro Infalível, não
por causa da sua comentada vitalidade sexual, (...). (1999, p.45)
A ligação entre Eros e alma é desconstruída no conto, como podemos deduzir
da observação feita, entre parênteses, pelo narrador no seguinte trecho: “(...)
cedendo ao apelo irremediável do sangue, festejavam a ligação física dos seus
corpos (no exemplo aqui vertido, a alma desempenhava um papel rigorosamente
inócuo)” (1999, p.45). Nesse sentido, podemos afirmar que, no relacionamento
amoroso apresentado pelo conto, o corpo “se contenta em sacrificar ao
acasalamento uma partícula de si, não se envolvendo nisso a não ser através de
uma função estritamente delimitada, preservando em seu ser todo o resto” (p.105),
conforme salienta Lou Andreas-Salomé (1991, p.105). Na opinião da teórica, o
simples acasalamento gera relacionamentos superficiais, sem envolvimento
sentimental.
No conto, a personagem envolve-se com outra mulher, ao buscar o exótico:
as mulheres da cidade. A outra mulher é Rita, “uma mulata que usava cinco perucas
e ia à praia de salto alto” (1999, p.47). Percebemos, inclusive, que o exótico terá, no
conto, a função de alimentar o desejo erótico, o que nos permite aludir à seguinte
afirmação de Freud (1996): “a novidade é sempre a condição do deleite” (p.46). A
fala do narrador parece confirmar a visão de Freud: “ela recebia-o sempre com a
peruca roxa, além de outras loucuras impublicáveis” (1999, p.47).
O único problema para Pedro Domingos João era trocar as imagens de suas
mulheres, enquanto tinha relações sexuais com elas. A sua consciência era
apaziguada de duas formas. A primeira era a justificativa de que “dava-lhes tudo”
(1999, p.48) e, por isso, não acreditava estar em falta com nenhuma delas. Como
era um homem de grande poder aquisitivo, tinha condições de manter as duas. A
segunda forma de se desculpabilizar era afirmando para si mesmo: “que culpa tenho
eu, se elas gostam de mim?” (1999, p.48).
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A narrativa atinge seu clímax no ponto em que a personagem recebe a notícia
da morte da esposa, resolvendo o dilema em que se encontrava ao ser nomeado
embaixador, questão que “trazia ao bojo uma maka muito complicada: qual das suas
duas mulheres ele levaria?, qual delas, afinal de contas, merecia ser a embaixatriz?”
(1999, p.48). Justificando o posicionamento de Tiro Infalível com dados de situações
reais vividas em Angola, a teórica Inocência Mata (1999), em análise do conto, nos
convida a pensar nas mulheres companheiras de guerrilha, que, além de
enfrentarem o exílio, “se viram ofuscadas com o glamour” das mulheres residentes
na cidade. Tal consideração coloca de um lado Lemba, a esposa companheira de
guerrilha, e de outro a amante Rita, sofisticada e, por isso, merecedora do título de
embaixatriz.
Retomando o título do conto, podemos estabelecer associações entre a
personagem criada por João Melo e a de Dostoievski, no romance Crime e castigo,
embora, no conto do escritor angolano, a culpa tenha uma explicação menos
existencial e mais irônica. Tiro Infalível convive com a culpa que pode ser a de ter
duas esposas, a de ter assumido bons cargos no pós-independência, ou talvez, até
a culpa por ter matado a mulher, como fica sugerido de alguma forma no conto.
Assim, é para apaziguar sua consciência que ele justifica seus atos e se redime de
todas as suas culpas. Talvez a banalização da culpa no conto de João Melo é que
tenha levado Inocência Mata a considerar a intertextualidade realizada com o
escritor russo como “falsa intertextualidade dostoieviskiana”. Embora a culpa seja
vivida de modo diferente pelas duas personagens, há efetivamente uma
intertextualidade, na medida em que João Melo retoma a situação vivida pela
personagem de Dostoievski, dando a ela uma versão irônica.
O real motivo da morte de Lemba não fica claro. Dizemos isso porque ela foi
encontrada morta “na casa de banho, com a corda no pescoço” (1999, p.48), mas,
em momento algum, o narrador afirma que ela tenha se matado. Por outro lado, o
narrador apresenta ao leitor algumas pistas que podem incriminar Tiro Infalível. A
primeira é quando a personagem “numa espécie de acto falho, cobriu o corpo de
Rita com o lençol e saiu” (1999, p.48). Rita não era a morta e o “ato falho”, como
proposto por Freud (1976), que inclusive fora mencionado no conto, representa a
ocultação da verdadeira vontade e também o desvio da atenção de algo importante
para algo banal. Pode ser possível que Pedro Domingos João tenha matado a
mulher e, naquele momento, encenava inconscientemente os reflexos de seus atos.
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Juntem-se a isso as declarações do narrador: “Apesar de tudo, estava contente”
(1999, p.48) e “(...) ouvimos, com espantosa nitidez, o suspiro de satisfação que ele
soltou do fundo do seu ser: eu sou mesmo infalível...” (1999, p.49). Essas falas
sugerem que a personagem, de modo perverso, ou “execrável”, nos dizeres de Mata
(1999), estava feliz com a morte da esposa, comportamento que induz Eros a
assumir o seu inverso, e também suplementar, Thánatos, a pulsão de morte.
4.2. Revanche das mulheres
Também em “O criador e a criatura” (1999), Eros se manifesta assumindo o
seu antagonista, a pulsão de morte. O narrador brinca com o leitor quando diz:
“Todos sabem como esta história vai terminar” (1999, p.53). Entretanto,
dificilmente alguém saberia, porque o final é surpreendente, a ponto de quase
nenhum leitor poder imaginá-lo.
O conto é uma narrativa fragmentada, técnica que faz a literatura produzida
por João Melo dialogar com outras linguagens, como a do teatro e do cinema. Cada
parte numerada e nomeada de flash back coloca em evidência alguma atitude de
Carlos no pretérito, representando um retorno ao passado. As partes nomeadas, que
se intercalam às outras, aparecem como respostas de Noémia, no tempo presente.
Por exemplo: no primeiro flash back, Carlos berra com Noémia; a parte que se
segue nomeia-se “Noémia grita pela primeira vez na vida”.
O casal Carlos e Noémia vivia muito bem até o dia em que a esposa,
submissa, revolta-se contra a prepotência do marido. A história representa uma
“revolução” a partir do momento em que se narra o protesto de uma mulher em uma
sociedade de tradição extremamente machista.
A esposa, caracterizada pelo narrador como romântica e sonhadora, como
aquela que ama e confia, escreve poemas e, conforme palavras do narrador, sonha
com osgas, dado importantíssimo para se compreender o conto: “Quem poderia
adivinhar que ela escrevia poemas secretamente, quase em desespero, e que
também costumava sonhar?, com nuvens, anjos, viagens e canções. E osgas”
(1999, p.57).
73
Em contrapartida, a imagem que temos do marido é de “Grande Sedutor”, “um
filho da puta”, “mabeco sarnento” (1999, p.54). Através das designações atribuídas à
personagem, podemos dizer que o narrador “toma partido” de Noémia ao
caracterizar Carlos negativamente, salientando exacerbadamente a sexualidade
deste, de modo grotesco, chulo e até animalesco. Semelhante à personagem de
outro conto, o camarada Tiro Infalível, Carlos se defende dos protestos da esposa
alegando não deixar lhe faltar nada: “Onde foi que eu errei? Quando nos casámos,
disse-lhe: eu tenho as minhas aventuras fora, mas não te preocupes, tu és a
minha mulher, nada te faltará...” (1999, p.55).
Em outro momento, Carlos se afirma como aquele responsável pela
aprendizagem de prazer de Noémia:
(...) jamais vais conhecer um homem como eu... sim, ninguém te há-de foder
como eu... Eu ensinei-te a ter prazer, a falar quando temos relações, a soltar
palavrões quando gozas... Tu foste criada por mim, ouviste?, tu não passas
de uma criação minha... Liberdade, é isso o que queres? A tua liberdade está
aqui, entre as minhas pernas!... (1999, p.57)
Nesse sentido, as osgas lagartixas cheias de pêlos, com as quais
Noémia costumava sonhar e das quais também tinha medo, podem ser
interpretadas como símbolo da própria sexualidade, que, por causa dos pais
“extremamente zelosos” (1999, p.54), Noémia tinha uma visão romântica do amor e
do sexo. No final da história, quando vence a prepotência do marido, diz “— não
tenho mais medo! o tenho mais medo!” e escreve em seu diário que não tinha
“mais medo das osgas” (1999, p.58).
O protesto de Noémia consiste, a princípio, em recusar-se a “fazer amor com
o marido, contrariando uma prática (uma tradição) de mais de dez anos” (1999,
p.53). Assim ela o atinge a ponto de incomodá-lo e faz com que ele lhe atenção.
O erotismo faz-se estratégia para reclamar seus direitos e demonstrar sua
insatisfação. Com palavras duras, Noémia ofende Carlos, atingindo-o no que é mais
caro aos homens, no que eles mais prezam como símbolo da sua virilidade:
“Atrasado e inútil, como esse pedaço de carne mole que tens entre as pernas...”
(1999, p.55).
Em alguns momentos, Noémia se apropria da linguagem utilizada por Carlos
e diz para o marido: “Vai foder com as tuas amantes...” (1999, p.56). Essa
74
apropriação é um dos primeiros sinais de que, como o título do conto sugere, à
moda do criador, a criatura torna-se violenta, porque foi violentada de várias formas.
Além disso, podemos interpretar o título também a partir da relação que se
estabelece, na literatura, do escritor como criador e da personagem como sua
criatura. Considerando o conto como metáfora dessa relação, podemos dizer que o
escritor é responsável pelas personagens até o momento em que as cria e as coloca
no papel. A partir de então, é a leitura de cada leitor que determinará as feições da
personagem, podendo fazer dela algo até oposto ao que pretendia o criador.
Outra leitura possível diz respeito à intertextualidade com o mito Pigmaleão. O
mito grego é a história de um excêntrico escultor que, de tão exigente com as
mulheres, esculpiu em mármore o modelo ideal do ser feminino. Tal era a perfeição
da estátua que ele chegou a tratá-la como se fosse real, cobrindo-a de galanteios
constantes. A pedido de Pigmaleão, a deusa Afrodite torna a sua escultura uma
mulher real, de carne e osso. Do mesmo modo que Pigmaleão esculpiu a mulher
ideal que desejava, Carlos a personagem do conto de João Melo considerava-
se o criador de Noémia, transformando-a na mulher modelo, o que, segundo ele,
nenhum outro homem poderia fazer.
O modo como Carlos tratava a esposa pode ser depreendido da narrativa,
sobretudo em seu clímax, quando o erotismo aparece totalmente desvinculado de
qualquer sentimento e é vivenciado como arma:
O homem perseguiu-a (...) apontando para o próprio pénis, que lhe emergia
da púbis não com um sintoma de paixão, mas apenas como o sombrio
instrumento de um crime premeditado, um flagelo pronto a abater-se sobre o
mundo, enfim, uma coisa vil. Gritava:
— Sem isso não és nada!... Sem isso não és nada!... (1999, p.58)
Diante da submissão, Eros abandona o corpo e a alma de Noémia: “Estou
árida, por dentro e por fora. O cacimbo cobre totalmente os meus olhos. Os meus
seios não vibram mais. O meu ventre é um deserto revestido de pêlos obscuros”
(1999, p.56). A partir de então, podemos dizer que o conto expõe a sexualidade
desvirtuada, separada do prazer. A pulsão de vida encontra-se totalmente anulada.
Mas Noémia responde à dominação que sofre pelo marido. A atitude final dela
de repúdio ao marido representa a morte de um poder simbolizado por um órgão, é
o extremo da rejeição (FOUCAULT, 1985). O falo como arma representa o poder
75
criador, a autoridade e a sabedoria masculina, mas tem sua morte estampada, como
em um espetáculo. É assim que a pulsão de morte predomina sobre Eros.
Por outro lado, o conto “Vêm as portuguesas” (2004) aponta para uma
saída diferente, sugerindo que as mulheres, nos contos de João Melo, podem
responder ao poder masculino de muitas formas.
No conto, o português Joaquim Manuel da Silva, após ouvir uma notícia um
tanto sensacionalista na RTP Internacional, canal da TV portuguesa, que anuncia o
encaminhamento de várias portuguesas para Angola a fim de resgatar os maridos,
teme que sua esposa, Maria das Dores, vá buscá-lo e impeça seu envolvimento com
a jovem angolana Zinga Cristina. Como não obtém mais nenhuma informação
relacionada à notícia, sem ter certeza de nada, decide abandonar a namorada
angolana e ir a Portugal averiguar a veracidade da notícia. Brincalhão, o narrador
salienta que, “como se costuma dizer, isso era a última coisa que ele deveria ter
feito” (2004, p.103) e afirma ser um risco que Joaquim Manuel da Silva resolve
correr por sua própria conta, advertindo para a inverossimilhança do noticiário, que
pode muito bem ter dado uma falsa notícia: as novelas da Globo “são menos
fantasiosas do que o noticiário da imprensa lusitana acerca de Angola” (2004,
p.100).
A notícia ouvida por Joaquim veicula a imagem que as portuguesas têm das
angolanas, negras e mulatas de “garras pecaminosas” (2004, p.97). Além de
temerem o forte poder de sedução das angolanas, as portuguesas acreditam que
podem perder os maridos também pela selvageria das concorrentes, o que levaria
ao extermínio da raça “portuguesa”. É importante destacar o modo irônico como o
narrador avalia a visão das mulheres portuguesas sobre as angolanas:
Embora oficialmente o canibalismo tenha sido abolido do continente
africano, não era também de descartar totalmente a hipótese de as pérfidas
angolanas os terem comido, literal e não metaforicamente, (...) O que se
passava em Angola com os seus maridos (ou ex-maridos, quem poderia,
entretanto, sabê-lo?) era um autêntico genocídio, que tinha de ser parado
imediatamente. (2004, p.97-98)
Segundo o narrador, a imagem construída sobre as angolanas, vistas como
ameaça nacional, justifica-se pela experiência das portuguesas com as brasileiras,
“espúrias e sem-vergonha” (2004, p.98), que invadiram Bragança com o único
objetivo de “roubarem os maridos às lídimas e castas cidadãs portuguesas” (2004,
76
p.98). A visão irônica do narrador apresenta o erotismo como uma ameaça à ordem
e aos bons costumes.
A mulher, angolana ou brasileira, representa o pecado a ser combatido, já que
as portuguesas, pelo menos segundo a notícia da RTPi, defendem a experiência
erótica somente dentro da tradição cristã. Se os maridos são seduzidos por
mulheres “sem-vergonha”, eles abandonam a sagrada lei cristã que os proíbe de
deixar a esposa legítima.
Considerando que, no conto, as mulheres portuguesas são responsáveis pela
legalidade lusitana, elas são vistas como “herdeiras legítimas da Padeira de
Aljubarrota” (2004, p.98). Esta, segundo a lenda, é uma heróina portuguesa cujo
nome está associado à vitória de Portugal sobre os espanhóis, na batalha de
Aljubarrota, em 1385. Sua imagem, entretanto, vincula-se à da “Maria rapaz”, devido
ao destaque de sua força e músculos. Com a sua de padeira, ela teria matado
alguns castelhanos que se esconderam em seu forno durante a batalha.
A idéia de moralismo e ordem se mantém também através do nome da cidade
de Joaquim Manuel da Silva: Montemor-o-Novo. Na realidade, trata-se de uma
cidade pouco conhecida de Portugal, que se destaca pela tradição ancestral
religiosa e pela nobreza agrária. A cidade possui casarões setecentistas e inúmeros
conventos e igrejas em estilo manuelino e barroco. Não é necessário mais que isso
para se instaurar a imagem de uma comunidade rigorosamente puritana e cristã.
Em contrapartida ao puritanismo português expresso no conto,a exaltação
da mulher negra e das qualidades que, conforme diz o narrador, deixariam os
portugueses “completamente tropicalizados” (p.99):
Olhou para o lado, onde estava, esplendorosamente nua, Zinga Cristina, uma
belíssima negra angolana que ele tinha acabado de descobrir no Clube
Paradise, 18 anos feitos recentemente, os olhos profundos contendo toda a
sabedoria do mundo, os seios agressivos levantados para o céu, as coxas
totalmente expostas, a pele escura lisa como veludo (...). (2004, p.99-100)
Essa imagem da angolana vista como a expressão de Eros mágico, é
reforçada, no conto, por imagens e alusões. O trecho: “(...) as angolanas possuem
um segredo que, para usar a expressão delas, enfeitiça todos os brancos que
conseguem levar para a cama” (2004, p.102), alude à imagem estereotipada da
mulher negra insistindo em sua vigorosa sexualidade. Por outro lado, o nome da
77
angolana lembra o da rainha Nzinga Mbandi (FERNANDES, 2007)
15
do reino de
Matamba que, entre 1626 e 1640, empreendeu uma guerra contra os portugueses e
fez, aos 82 anos de vida, com que o Papa Alexandre VII reconhecesse Angola
como seu reino.
A ironia, como se vem afirmando, está muito presente no conto. O uso do
advérbio “apenas” em determinado trecho, intensifica a insignificância, para as
portuguesas, dos grandes problemas nacionais de Angola, os quais são oriundos
“apenas” da incompetência dos cidadãos angolanos. As mulheres portuguesas
acreditavam ainda que os maridos iam a Angola em missão civilizatória:
Não se tratava apenas dos efeitos da guerra, do atraso económico, do avanço
galopante da Sida ou da generalizada corrupção dos seus dirigentes. Se
fosse apenas isso, eles, os angolanos que se virassem.
(...) os maridos portugueses que iam para ajudar o país a resolver os
problemas que os próprios nativos não conseguiam solucionar estavam a ser
alvo de bem urdidas conspirações, para nunca mais porem os pés em
Portugal. (2004, p.99)
Para uma portuguesa, o maior problema é seu marido passar por um
processo de assimilação, que aqui pode ser visto como uma desconstrução do
antigo modelo português para fins de dominação angolana. O erotismo, nesse caso,
envolve o processo de assimilação inverso:
A operação começava logo no aeroporto de Luanda, onde eles eram
aguardados por batalhões de negras e mulatas, que os levavam para local
desconhecido. Quando reaparecessem, deixariam de cheirar a chulé,
passariam a lavar os dentes todos os dias e, como se isso não fosse
suficiente, passariam a dançar o semba, o kizomba, o kuduro e a tarrachinha.
Estariam, pois, completamente tropicalizados. (2004, p.99)
Ironicamente, no processo representado no conto, os portugueses, logo que
chegam ao país africano, são levados a assimilar valores e costumes angolanos.
Dessa forma, eles passam por processos de higienização e também aprendem
danças consideradas extremamente sensuais em Angola, como a tarrachinha,
“dança sensual, em que o par se mantém agarrado, movimentando-se com extrema
lentidão e erotismo” (2004, p.119). Nesse sentido, quem tem o domínio, então, são
as angolanas, não o cidadão português. Podemos dizer que o erotismo presente no
conto faz-se estratégia para ironizar questões históricas e culturais, isto é, o
processo de assimilação e o imaginário colonizador- colonizado.
15
Informações disponíveis em: <www.ritosdeangola.com.br/Historico/343_anos2.htm>
78
Após ouvir a notícia, Joaquim Manuel da Silva é tomado pelos sentimentos de
medo e culpa. Medo de que a mulher a Angola buscá-lo e culpa, por estar
vivendo um relacionamento que não segue as leis cristãs. Por isso, ele não procura
mais a angolana Zinga Cristina.
O final do conto demonstra a força de Eros e, forçosamente, desconstrói a
imagem das mulheres portuguesas até então reforçada:
Quando chegou a Montemor-o-Novo, sem avisar ninguém, era noite.
ele, portanto, pode ser culpado pelo facto de, após ter entrado em casa o
mais silenciosamente que podia, para não despertar a Maria das Dores,
usando as chaves que o acompanhavam para todo o lado, ter encontrado o
compadre Antero em cima dela, ambos grunhindo e resfolegando como dois
porcos. (2004, p.103)
Os sentimentos de culpa e medo vividos por Joaquim Manuel logo se
transformam em raiva, que o faz comparar Antero e Maria das Dores com animais
sujos, “dois porcos”. Ironicamente, o narrador adverte que, mesmo sendo o
português um “tipo pacífico” (2004, p.103), “se esta estória terminar em sangue, a
culpa não é minha” (2004, p.103).
A mulher, nos contos de João Melo, pode simplesmente assumir o controle da
relação amorosa para se livrar do jugo masculino, jogando o jogo da dominação a
seu modo, em vez de ter reações violentas ou encontrar um amante.
No conto “O mulaticida” (2004), ressurge o poder extraordinário da mulher
angolana, em especial, as mulatas. Elas representam a última esperança do
comandante Tigre para vencer a guerra. Segundo a personagem masculina, as
mulatas podem ser, quando o quererem (sic), verdadeiras armas de destruição
maciça... (2004, p.111). Ainda segundo essa personagem, o mulaticida, o poder
destruidor das mulatas tem dois efeitos, causar mortes, ou desmoralizar:
imaginaste se as mulatas de Benguela conseguem infiltrar-se no recinto? Aquilo
tudo tinha-se transformado numa pouca-vergonha!... Ou então quem sabe?
numa carnificina...” (2004, p.112).
O marido de Maria Luísa tem aversão aos mulatos em geral, ele os como
grandes inimigos. Em conseqüência dessa visão, a personagem cria uma série de
pressupostos, como: “o poder em Angola é controlado pelos mulatos” (2004, p.113);
“os mulatos são os mais ricos do país” (2004, p.113); “os bancos concediam
empréstimos aos brancos e mulatos” (2004, p.114).
79
No que diz respeito às mulatas, então, ele atinge “literalmente o delírio” (2004,
p.114). Segundo o mulaticida, elas são as piores, pois podem acabar com a vida de
um homem, levando-o “à falência e até mesmo ao suicídio, por causa das suas
manias de grandeza e outros defeitos supostamente congénitos” (2004, p.114).
Jocosamente, ele também afirma o contrário quando diz que: “no Huambo um mudo
tinha começado a falar ao ver uma mulata na rua” (2004, p.114).
Curiosamente, a mulher prefere manter a “fobia” do marido, visto que, do
contrário, é ela quem se sente ameaçada em seu relacionamento. Isso porque o
marido tem atitudes extremamente opostas, ou alimenta a sua aversão, ou então
passa a sentir-se seduzido pelas mulatas. Ao começar a freqüentar o “Mulatão
Point” (2004, p.115) para conhecer melhor os mulatos a fim de combatê-los, o
marido de Maria Luísa, contraditoriamente, começa a gostar deles e a aceitá-los. É a
partir desse ponto que Maria Luísa demonstra ter total controle do relacionamento
amoroso, que usa uma série de ardis para fazer com que o marido pense da
maneira que lhe é mais conveniente.
O leitor se confunde quando o narrador revela que a mulher, Maria Luísa, é
uma mulata. Entretanto, fica claro que, “a retórica racial do marido não chega a
molestá-la” (2004, p.112). Como pode alguém que tem aversão a mulatas casar-se
com uma? O comportamento da personagem parece-nos ambíguo, ele repugna
aquilo que deseja.
Assim, podemos entender que o título do conto assume pelo menos duas
possíveis conotações. A primeira diz respeito ao sentido presumível, embora o termo
não seja dicionarizado, de que o mulaticida é quem comete “mulaticídio”, isto é,
aquele que mata mulatos. A segunda associação possível está ligada à utilização do
termo “matar” na obra de João Melo. Pelo menos em The serial Killer e outros
contos risíveis ou talvez não (2004), a palavra tem a ver com o sentido sexual,
referindo-se àquele que tem relações sexuais com mulatas. Nesse livro, a escolha
de um léxico ligado a sentidos de morte, como matar, serial killer, tumor, matadouro,
evidencia que o erotismo está sempre relacionado com a pulsão de morte, seu
sentido antagônico.
Ao fim do conto, comprova-se que a denominação mulaticida, dada ao marido
pela esposa, associa-se à aversão que a personagem tem a mulatos e também,
contraditoriamente, ao seu desejo pelo diferente.
80
4.3. O macho irresistível ou o desejo de sê-lo
Em vários contos de João Melo, o homem detém total controle sobre o desejo
da mulher, ele é que tem o poder de seduzir e, conseqüentemente, sempre possui a
mulher desejada.
Em The serial killer (2004), um suposto criminoso é entrevistado por uma
escritora. A personagem responde a todas as perguntas de maneira esquiva,
evitando respostas objetivas e diretas. Esse artifício geralmente é usado por quem
está sob julgamento, pela lei ou pelo outro: agindo assim, nada do que disser poderá
ser usado contra ele. O diálogo, permeado por não ditos, realça o caráter cômico do
conto.
Dizemos “suposto” criminoso, porque em todo o diálogo que constitui a
narrativa, não menção alguma a um crime que a personagem tenha cometido.
Pelo contrário, ela declara não ter problemas com instituição alguma. Como poderia,
então, tratar-se de um criminoso? Essa sugestão está contida no título, que se
refere a um assassino em série. Ao longo do conto é que vamos descobrir a
verdadeira identidade da personagem anônima.
A primeira pista que temos é dada pela teoria que a entrevistadora formulou:
“(...) quando os países estão em crise, a libido dos povos aumenta, podendo mesmo
ficar completamente descontrolada” (2004, p.12). Segundo a escritora, o
entrevistado é o exemplo disso.
A segunda pista é a afirmação da entrevistadora: “—Ora, segundo me
disseram, o senhor é um exemplo desse, digamos assim, 'acirramento sexual' típico
das situações de crise” (2004, p.12). A partir de então, a maioria das perguntas que
se seguem tem relação direta com a vida sexual do entrevistado.
O entrevistado responde cinicamente: “—Faço o que posso, faço o que
posso...” (2004, p.12). Nesse ponto, a personagem confirma sua exacerbada
sexualidade, detalhe que faz questão de salientar a todo momento como motivo de
orgulho. A estratégia posta em prática no conto permite ao leitor deduzir que the
serial killer” se refere a um matador em série, porém no sentido sexual do termo.
Em alguns pontos, o entrevistado responde à pergunta com outra ou
desconstrói a afirmação feita pela escritora:
81
— Alguém lhe chamou, uma vez, porco machista...
— Isso é um slogan. Não é um nome.
(...)
— Descreva-me a sua família.
— A extensa ou a restrita? (2004, p.12)
O diálogo se desenvolve de forma estranhamente incoerente até que a
entrevistadora não faz mais perguntas e, no momento em que o entrevistado à
escritora uma boa intriga para contar aos seus leitores, delineia-se um final muito
sugestivo:
*
— Mata-me! Mata-me!
*
— Quer mesmo saber o meu nome?
— Hum...
— Chamam-me The Serial Killer. Acha apropriado? (2004, p.13)
Os espaços separados por asteriscos sugerem partes da narrativa que o leitor
deve preencher. Entretanto, considerando a comentada “atividade sexual” da
personagem serial killer, a primeira leitura que se faz é de que ocorreu o ato sexual
entre a entrevistadora e o entrevistado. Nesse sentido, o diálogo que consideramos
incoerente, foi também, de certa forma, um recurso eficiente do serial killer para
seduzir a entrevistadora. O erotismo faz-se, portanto, forte estratégia com poder de
sedução. A resposta dela em apenas um murmúrio, sem palavras, demonstra que
ela não tem mais perguntas a fazer, sugerindo que a atitude do entrevistado satisfez
a todas suas perguntas.
No conto “O livro da deambulação” (2004), a personagem masculina, também
anônima, cita artes de sedução, como se realizasse um ensaio para escrita de um
livro, apesar de negar ser escritor. Todas as considerações tecidas por essa
personagem levam o leitor a crer que se trata de um conquistador, um grande
sedutor. Entretanto, ao final do conto, essa idéia é dissipada por um fim trágico: o
narrador encontra-se preso em uma cadeira de rodas desde que nasceu:
Por outro lado, a minha mulher acaba de entrar no quarto e jamais ela poderá
descobrir que eu tenho esta vida dupla. (...) Tenho, pois, de interromper estes
meus pensamentos perversos. É hora do meu banho da tarde e ela vem
ajudar-me a sair da cadeira de rodas para entrar na banheira. Na verdade, eu
vivo nesta cadeira de rodas desde criança e confesso não sei o que
seria da minha vida sem a única mulher que realmente conheci. (2004, p.48)
82
O título do conto nos remete à idéia de deambulação concebida como valor,
componente fundamental para o Surrealismo, signo da disposição de recomeçar a
vida a cada dia. Nesse movimento artístico, acreditava-se que o caminhar pela rua
proporcionaria o eventual, o elemento de que o artista precisaria. Assim como o
narrador-personagem de João Melo acredita que a rua é o lugar de se viver o
erotismo.
Além dessa característica, o conto em análise tem em comum com o
Surrealismo a valorização da imaginação. O primeiro manifesto surrealista é um
elogio à imaginação e afirma que a imaginação suspende por instantes os
interditos terríveis, devendo o artista se entregar a ela sem medo de se enganar. No
conto, a imaginação terá o mesmo papel para a personagem que convive com vários
interditos por estar em uma cadeira de rodas: ela proporciona a vivência de um
prazer sexual, que se realiza na deambulação, no caminhar livre pela fantasia
erótica. Nesse sentido é que a fantasia tem presença forte na narrativa, e através
dela o erotismo se constitui.
O narrador-personagem inicia sua estória dizendo que irá partilhar
confidências com seu interlocutor. Essas confidências dizem respeito à vida sexual
desregrada que, segundo ele, vive sem que sua mulher saiba. Em seguida, ele
comenta o fato de o erotismo, nos dias atuais, ser liberado totalmente, tanto para
homens, quanto para mulheres. Ele se explica dizendo que, por não ser uma pessoa
pública, como um escritor por exemplo, não se compromete levando uma vida
desregrada, não precisa ter culpas por denegrir a moral nacional. De certa forma, a
personagem esboça o retrato do escritor que pode viver todos os seus desejos,
ilusões e até mesmo perversões, através de sua escrita.
A personagem anônima apresenta-se como um simples cidadão e não como
um reprodutor no sentido sexual do termo. Essa função mostra-se deslocada para
um aparelho,
um reprodutor de CDs que deixa todas as gajas malucas de ouvirem o
som que dele se exala, doce ou agressivamente, conforme a preferência de
cada uma delas (têm de conhecer o meu reprodutor de CDs, para saberem
como o verbo exalar corresponde, literalmente, à qualidade do respectivo
som). (2004, p.44)
83
A personagem exalta a potencialidade de sedução do aparelho toca CDs de
seu carro, que não pode dizer o mesmo de si. No trecho citado, utiliza-se do
recurso da sinestesia, a mistura dos sentidos e sensações, para descrever o som
sedutor que exala como um cheiro que pode, ainda, ser doce ou agressivo.
Ironicamente, a personagem justifica o fato de o escrever uma “teoria da
deambulação” no momento, dizendo que está muito ocupado com a prática, “ou
seja, com o acto de deambular em si mesmo, que a teoria pode perfeitamente ficar
para depois, quando me aposentar e o kinjango, desgraçadamente, deixar de me
obedecer” (2004, p.46).
Em um outro momento do conto, o narrador-personagem exalta sua “intensa
sexualidade” como um favor às mulheres:
Não é para me gabar, mas a verdade é que, de tanto deambular pela cidade,
posso orgulhar-me de ser um dos seus profundos conhecedores, inclusive
dos seus segredos mais escabrosos e impublicáveis. Se pensaram naquilo,
acertaram. (...) não deixa também de ser, digamos assim, uma espécie de
merecida compensação ao vasto contingente de mulheres mal amadas ou
mesmo não-amadas que todos os dias circula pela cidade. (2004, p.44)
Ao caracterizar as mulheres como “presas fáceis”, a personagem se coloca
no papel de caçador. Todavia, essas aproximações semânticas não adquirem o
lirismo dos poemas, que se voltam para um ser feminino em especial: a mulher
amada. No conto em referência, as mulheres são caracterizadas de modo irônico
quando comparadas a um objeto disponível, cuja oferta é farta e variada. Segundo o
narrador, um infindável número de mulheres carentes, necessitadas e
interesseiras à espera de
homens autênticos, daqueles com boa lábia, que estão sempre prontos a
enfiar o seu órgão sexual dentro de qualquer mulher (...). Portanto, se o leitor
pertencer a essa categoria, pode começar a praticar o exercício da
deambulação, que a caçada é, à partida, garantida. (2004, p.44-45)
As mulheres o vistas, pelo narrador, sob dois aspectos. Um deles é a sua
desvalorização, o que faz com que elas se tornem objetos descartáveis. Outro modo
diz respeito a uma visão tola, romântica: as mulheres sonham com príncipes
encantados e se entregam “à fase do aniquilamento” (2004, p.48) quando julgam tê-
lo encontrado:
84
(...) enorme quantidade de mulheres que anda pelas ruas da cidade, a fim de
levá-las a abrir livremente as pernas, pensando terem encontrado, finalmente,
o seu príncipe encantado ou, no mínimo, alguém disposto a patrociná-las,
como se diz agora, em troca de alguns favores sexuais (...). (2004, p.45)
Vê-se que, na fantasia sexual da personagem, o erotismo configura-se como
um jogo, uma caçada, em que os envolvidos podem ser reduzidos a objetos ou a
animais. Observe que, em sua fantasia, ele se coloca no lugar do predador, daquele
que em sua deambulação possui a “enorme quantidade de mulheres que anda pelas
ruas da cidade” (2004, p.45). Observe-se, também, a referência ao poder da
literatura de transpor as barreiras do real. Quando o narrador afirma que “todos os
grandes escritores são misóginos” (2004, p.48), ele alude ao poder de, em sua
fantasia, a caçada às mulheres ser possível. Considere-se ainda, no conto, a
diluição das fronteiras, tanto no que se refere a imagem do escritor, quanto às
possibilidades de a criação literária fazer de um paralítico, preso em uma cadeira de
rodas, aquele que consegue possuir todas as mulheres.
O homem com valores misóginos reaparece no conto “O canalha” (2006,
p.145). Esse conto apresenta a estória de um homem que é um “canalha sexual”,
segundo a classificação do narrador. A narrativa assume aspectos ensaísticos na
medida em que o narrador cria categorias para classificar o canalha, explicitando
características e situações em que cada um pode atuar de acordo com a sua
especialidade.
Para enveredar-se pelo caminho da sedução, fazer da vivência erótica um
trabalho, segundo o narrador, o canalha sexual tem que sê-lo em tempo integral,
caracterizando um erotismo sem limites, ou que, como força vital, ultrapassa todos
os limites.
Para tal, o narrador afirma que a linguagem é um importante instrumento de
sedução, porque todo homem que aspira seduzir utiliza “a chamada 'lábia',
'conversa' ou 'papo'” (2006, p.147) que “constitui a principal ferramenta de trabalho
dos canalhas sexuais, pelo menos na fase da abordagem” (2006, p. 147). Por isso,
como meio de ressaltar sua intensa vitalidade sexual, e também sua opção sexual, o
canalha sempre se apresentava acrescentando ao seu nome o “aposto ou
continuado” (2006, p.148): heterossexual.
Ao mesmo tempo em que o narrador apresenta características que condenam
o canalha, também aponta atenuantes para ele. Por exemplo, quando o narrador
85
expõe ao leitor as “canalhices sexuais” do outro, em seguida afirma que ele podia
ser assim, mas canalha social não era, porque não era casado. Desse modo,
percebemos que o narrador avalia as ações do canalha julgando-as incorretas, mas
também demonstra certa simpatia por ele, o que denota um comportamento
contraditório em relação ao outro.
Confirmando a posição contraditória do narrador, é ele mesmo quem diz:
Estes são dois exemplos, mais ou menos publicáveis, das canalhices em que
ele se tinha especializado. Quando penso nelas, sinto um profundo mal-estar,
para não dizer raiva, ressentimento ou até mesmo ódio, em relação a ele.
Será, simplesmente, a velhinha e prosaica inveja? Deixo isso ao critério dos
leitores. (2006, p.152)
As falas do narrador sugerem que ele, apesar de condenar, gostaria de estar
no lugar do outro. Por outro lado, o narrador parece estar envolvido com o canalha,
talvez, até seduzido por ele, já que se sente impossibilitado de qualquer ação:
Eu ia perdendo as estribeiras. Este canalha deveria ser severamente punido,
pelo menos literariamente.
O que me impede, entretanto, de fazê-lo? (2006, p.153)
As descrições do jogo sexual que o canalha empreendia com as mulheres
que seduzia desconstrói o adjetivo “íntima”, que supomos intrínseco ao
relacionamento sexual. Diferentemente da personagem anônima do conto “O livro da
deambulação” (2004), o canalha faz questão de contar em detalhes “os pormenores
mais íntimos dos seus múltiplos envolvimentos amorosos” (2006, p.151). Enquanto
um relata suas técnicas de aproximação, mas se exime dos detalhes íntimos, o outro
faz questão de expor tudo, o mais intimidade. Claro, que tal atitude aponta, no
conto, para a alusão a tendências do mundo atual, que vivemos no mundo dos
reality shows, em que não há mais reservas, tudo deve ser exibido ao público.
Em determinado momento da narrativa, mais perto do desfecho, o narrador
caracteriza o canalha:
dias, depois de muito tempo sem vê-lo, reencontrei-o ocasionalmente,
numa rua qualquer. Estava na mesma, não só física, mas também
psicologicamente. Misógino como sempre. A mutação andrógina pós-
moderna, digamos assim, não chegou a afectá-lo. Mas, de algum modo,
pareceu-me mais maduro. Refinado? (2006, p.152)
86
Parece-nos que o canalha, do mesmo modo que a personagem anônima de
“O livro da deambulação” (2004), revela ser misógino, machista. O que pode ser
comprovado pelas suas atitudes em relação às mulheres, ou seja, ele as usa como
objeto, depreza o ser feminino.
Além disso, no trecho citado, a temática do pós-moderno aparece nas falas
do narrador. Sugere-se que Eros não tem face na pós-modernidade, mas que o
canalha não se tornou um ser de aspecto andrógino, isto é, ele continua muito
macho. Se retornamos ao mito do andrógino, mencionado por Platão em O
Banquete, no qual os seres andróginos são completos, metade masculina, metade
feminina, poderíamos interpretar os dizeres do narrador como uma insinuação de
que os indivíduos pós-modernos não precisam do outro, porque se completam por si
mesmos.
4.4. Eros banalizado
A perspectiva do erotismo, vivenciado em sociedades pós-modernas,
mantém-se nos contos mais recentes do autor. Neles, Eros se apresenta quase
pós-moderno”, designação que o próprio autor utiliza na folha de rosto do seu último
livro. Todavia, devemos salientar que, para não termos problemas com
nomenclaturas que aqui não nos interessam, preferimos dizer que o erotismo
presente nos contos aqui discutidos é aquele vivenciado nas relações atuais.
No conto “O dia em que o Pato Donald comeu pela primeira vez a Margarida”
(2006), um jovem rapaz deixa-se tomar pelo sentimento de desejo por uma mulher
que, inexplicavelmente, o provoca e depois se esquiva. Ambos cresceram juntos e
foram prometidos um ao outro em conversa das es, que eram muito amigas.
Todas as personagens são anônimas, o que sugere certa universalidade da situação
expressa no conto.
A narrativa inicia-se com o depoimento do narrador-personagem masculino
repugnando-se a si mesmo por não conseguir ter a mulher tão desejada em seus
braços. Isso porque o homem que não consegue uma mulher tão desejada,
principalmente uma que se propõe ao seu desejo, sente-se envergonhado perante a
sociedade, como se houvesse algum problema com ele:
87
Quando tento lembrar, tenho vontade de chorar, de rebolar no chão, de
quebrar a cabeça contra as paredes. Um tumor na memória.
Uma palavra explode dentro de mim: buelo. De repente, sinto-me coberto de
pus. (2006, p.95)
Ainda pequenos, ele é ridicularizado por ela no que é mais caro à sexualidade
masculina, o tamanho do pênis tido como maior prova de macheza: “Brincámos de
papá e mamã. Nesse dia, lhe mostrei a minha pila. Ela disse: Ih, tão pequenina!
(2006, p.96).
Contraditoriamente, ela provoca e busca o prazer no toque dele, mas depois
recua:
No dia em que fez nove anos, em plena festa, ela me chamou para o quarto
dela. Estranhos caroços lhe brotavam ultimamente no peito. O que seria
aquilo? Levantou a blusa, pegou minhas mãos, pediu que eu tocasse. Minha
cabeça ficou escura, a boca seca, as pernas sem forças, a barriga ardia como
fogo. Abracei-lhe. Mas a boca dela estava fechada quando, desajeitado, lhe
procurei. No meu coração, raiva e gozo. (2006, p.96-97)
Segue-se a adolescência, não muito diferente da infância. Ela continua a
provocar e, em seguida, resistir, humilhando-o ou desmoralizando-o. Em certo
momento da narrativa, ele resolve investir em outros relacionamentos que não
dão certo esquecendo-se da tão desejada. No desabafo, chama-a de Cleópatra,
remetendo-nos à rainha egípcia que tinha vários amantes. A referência à
personagem histórica remete a uma estratégia que será explorada no conto desde o
título.
A idade da personagem apresenta-se como um problema quando ele faz a
constatação de que ainda é virgem: “Vinte e três anos, a quando continuaria
virgem?” (2006, p.100). Como alternativa, ele encontra solução na masturbação. O
prazer passa a ser vivido na evocação da imagem, na fantasia:
Não tinha outra alternativa: virei manudependente sexual.
Todas as noites, meu visgo desperdiçado na pia. Imagem dela, de calcinha
florida, na minha frente. Cheguei a masturbar-me três vezes seguidas. (2006,
p.100)
Para seduzir de vez a mulher tão desejada, ele recorre a todas as crenças,
mas apenas “um padre, também meio feiticeiro” (2006, p.100) é que resolveu o
problema de imediato. Ao chegar em casa, lá estava a mulher à sua espera.
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A partir de então, a personagem masculina muda de imagem, passando de
cão dócil, “cão cabíri”, a outros tipos mais violentos, “pastor alemão. Bulldog. Pitbull”
(2006, p.100), tornando-se assim, um predador.
Entretanto, em vez de buscar imediatamente a realização sexual tão
desejada, a personagem decide vingar-se. A cena final do conto é uma descrição
pormenorizada, sem metáforas, mas com alguma delicadeza, das preliminares
sexuais. Contrariando um aspecto relevante das relações atuais, que abandonam os
rituais em favor da velocidade, que as pessoas sempre têm muita pressa, as
preliminares do ato sexual fazem-se com lentidão. Essa lentidão faz parte do plano
de vingança da personagem, sugerida ao leitor pela fala: “Beijei-lhe a boca. Gozo e
raiva. Mordi-lhe” (2006, p.101). De forma irônica, o conto desconstrói a intenção
sugerida pela fala da personagem masculina: Tira as calças, garina. Hoje vou
comer o teu segundo cabaço! (2006, p.101). É interessante observar como essa
desconstrução do desejo erótico será sugerida pela alusão a um fetiche que, de
certa forma, tanto explica o inesperado desfecho, quanto intensifica os sentidos
dados pelo título:
Ela usava uma cueca amarela, toda rendada.
Ah, garina, onde as calcinhas floridas da nossa infância?
O meu kinjango murchou. Repentina e irrevogavelmente. (2006, p.101)
Todo o desejo se sustentava no fetiche das calcinhas floridas vislumbradas na
candura da infância. Após a frustração ou não manutenção do fetiche, o desejo se
esvai.
Pensando na relação da narrativa com o título, poderíamos dizer que as duas
personagens principais se assemelham às personagens anunciadas, isto é, ele
corresponderia ao Pato Donald e ela, à Margarida. Desse modo, além de ironizar as
duas personagens criadas por Walt Disney, as de João Melo também assumem
características correspondentes. Assim, poderíamos dizer que a personagem
masculina se identifica com o Pato Donald na medida em que, como o outro,
marcado pela teimosia, arruma confusão e é sempre trapaceado por todos,
inclusive, no jogo do amor. A personagem feminina representaria a correspondência
da Margarida, que é muito esperta, sempre desejada pelo Pato Donald, mas nunca
de fato seduzida.
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Curiosamente e de modo um tanto contraditório, a personagem de Walt
Disney é um pato que usa apenas uma camisa e um quepe, sem calças. Entretanto,
quando sai do banho, Donald aparece enrolado em uma toalha que cobre somente a
parte de baixo, que sempre está à mostra pelo fato de ele usar apenas camisa.
Essas reservas em relação ao corpo da personagem nos levam a considerar
também a relação assexuada que se estabelece entre as personagens de Walt
Disney. Nessa relação os contatos sexuais sequer são sugeridos. É necessário,
entretanto, comentar que Walt Disney tornou-se uma lenda, sendo responsável pela
criação de inúmeras referências no imaginário infantil de sucessivas gerações.
Talvez por isso, em suas histórias facilmente compreensíveis, que refletem os
valores da tradição americana, as relações esboçadas sejam de natureza
assexuada. Na retomada das personagens de Walt Disney feita por João Melo, a
sexualidade e o erotismo são o motor da narrativa. No conto que parodia as
personagens de Walt Disney, a intenção do título acaba por sugerir a idéia de
castração aludida pelo narrador quando diz: “se algum dia encontrar o Walt Disney,
também lhe trato da saúde” (2006, p.99).
Em outro conto, “Retrato da personagem em busca do escritor” (2006), a
relação amorosa também aparece muito influenciada por tendências do mundo
atual. A personagem anônima, extremamente contraditória, afirma-se insignificante.
Entretanto, afirmando que sua estória é extraordinária, busca um escritor para
escrevê-la. O curioso é que essa personagem, além de se considerar insignificante,
acrescenta que não se lembra de nada na sua vida, inclusive do que diz respeito à
sua vida sexual: “Sequer me lembro em que ocasião o meu pénis ficou duro pela
primeira vez, nem da causa dessa sensação, que até hoje me perturba” (2006,
p.63). Como pode, então, um escritor escrever a estória de quem não consegue
contá-la?
A personagem assume estar acometida pelo mal pós-moderno, um “impulso
para realizar simultaneamente uma rie de coisas” (2006, p.64), terminando por
não realizar nada, nem definir coisa alguma em sua vida. Portanto, as suas relações
amorosas são tão fugazes, que nem merecem ser lembradas: “Não me lembro de
nenhuma paixão, platónica ou consumada, da infância, da adolescência ou mesmo
da minha vida adulta” (2006, p.65). Como conseqüência disso, estranhamente, a
personagem não tem lembrança da vivência de nenhuma experiência sexual, nem
só, nem acompanhado. E declara: “Em suma: nunca fodi ninguém” (2006, p.66).
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Paradoxalmente, a personagem expõe sua vida e deseja que ela circule em
livros a que todos tenham acesso, mesmo não existindo o que dizer sobre si. A vida
da personagem é vazia, sem acontecimentos. Mas houve algo anterior,
esquecido. Isso porque a personagem afirma ter um diploma, mas não se lembra de
como o conseguiu. Parece-nos que tudo foi vivido tão rápido que ela não consegue
lembrar-se de nada, por isso busca um escritor para registrar suas experiências. No
entanto, elas se perderam, não mais como efetuar esse registro.
Conseqüentemente, suas experiências eróticas também foram esquecidas. De certa
forma, nelas Eros se apagou.
Do mesmo modo, no conto “O fim do mundo” (2006), a personagem
masculina comenta diretamente a facilidade de obter fugazes relações sexuais nas
sociedades globalizadas:
(...) a qualquer hora do dia e da noite, as ruas estão cheias de animais, de
diferentes tipos, portes e estados de conservação, prontos a ser abatidos pelo
primeiro predador com quem se cruzarem (passe a crueza da analogia). A
cidade está hoje transformada, digamos assim, num grande zoológico sexual.
(2006, p.104)
Ironicamente, como se fosse um exemplo moral, a personagem alude à
situação mundial: “(...) em todo o mundo, a moral e os bons costumes estão em
baixo...” (2006, p.107).
Esse narrador-personagem anônimo, casado, que se considera um grande
“caçador de palancas” e mantém um “matadouro particular”, apaixona-se à primeira
vista por uma mulher que caminha na rua. Os dois se envolvem e a vida dele muda
radicalmente.
O erotismo é explorado em todo o conto, sendo, inclusive, alvo da busca
ansiosa das personagens. Primeiramente o homem se perturba com a visão do
corpo feminino. Depois, seu corpo se erotiza, estimulado apenas pelo “toque” do
olhar da mulher: “Olhar dela penetrou dentro de mim, incendiou minha barriga, parou
no meio das pernas. Que espasmos, aqueles?” (2006, p.103). A personagem se
rende a um relacionamento puramente sexual, o que, segundo Somé (2003), é muito
perigoso para ambos envolvidos: isso pode levar ao esvaziamento dos seres e da
relação e, em decorrência, “o relacionamento não tem qualquer tipo de força que lhe
dê fundamento ou solidez” (p.30).
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No conto, os mecanismos midiáticos atuais, e não mais os tradicionais rituais,
fazem do ato sexual uma necessidade mecânica, resultando em um prazer artificial.
Nesse sentido é que agem os produtos da indústria cultural, dos quais a
personagem confessa ser adepto, pois é um consumidor de filmes pornográficos.
O envolvimento com a “palanca” encontrada na rua é tão rápido que o homem
não tem tempo nem para pensar. Ao levá-la para seu “matadouro particular”, ele
oferece um filme e quando retorna com um uísque, a mulher já se encontra nua.
Pouco a pouco, o erotismo deixa de ser vivido desregradamente por ele, que,
passa a ser caça, deixando de ser caçador. Ao longo da narrativa, o narrador-
personagem apresenta prenúncios de que sua situação irá inverter-se, às vezes,
perguntando: “Afinal, caçador ou presa?” (2006, p.107), até que conclui: “Ex-
caçador.” “Ex-matadouro” (2006, p.108). Nesse momento, a nova mulher amante
está morando em seu apartamento, que ele utilizava para levar outras “vítimas”. Em
decorrência disso,o tendo mais onde levar novas conquistas, ele deixa de buscar
outras mulheres, dedicando-se exclusivamente à amante, mas mantendo a esposa.
O homem passa então, a perder o controle da situação e a mulher que ele
colocou em seu apartamento o proíbe de dormir lá, reclama da mesada e até do
sexo: “— Já não me fodes como antigamente! Estás mesmo velho!...” (2006, p.110).
Mesmo diante dessas perspectivas negativas, o homem, cego de paixão,
resolve ir morar com a amante e abandonar a esposa. Chegando em seu antigo
apartamento, ironicamente, encontra outro em seu lugar. A mulher chama o novo
amante para expulsá-lo de lá. A situação é ironizada ainda pelo fato de ele ter
subido dez andares com sua mala, o que torna o desfecho mais trágico, e também
cômico, ressaltando o grande esforço da personagem para que sua nova escolha
desse certo.
Servindo-nos das palavras de Rollo May (1978), podemos dizer que, em
vários contos de João Melo, assistimos à crescente
(...) banalização do sexo e do amor. Anestesiando os sentidos para obter
melhor desempenho, utilizando o sexo como instrumento para provar a
própria identidade e perícia, usando a sensualidade para ocultar a
sensibilidade, castramos o sexo, tornando-o insípido e vazio. (p.70)
Nesse sentido, no conto “O fim do mundo” (2006), o leitor depara com a lógica
perversa de relacionamentos atuais, em que não envolvimento sentimental. Os
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encontros buscam a satisfação de uma necessidade imediata, a curto prazo
(GIDDENS, 1993).
Para Bauman (2004), na época atual, as relações estão se tornando mais
flexíveis, gerando níveis de insegurança sempre maiores. As pessoas, tanto homens
quanto mulheres, estão priorizando os relacionamentos em “redes”, os quais se
tecem e se desmancham facilmente, conseqüentemente, não sabem mais como
manter laços a longo prazo. Portanto, relacionamentos longos, duradouros, são
característicos do passado, o que vale agora é retorno imediato e fácil.
Por fim, vale comentar a linguagem utilizada nos contos, que se apropria de
termos vulgares, palavras obscenas, ecoando a violência inerente ao ato sexual.
Expressões como “abatê-la” (1999, p.48), “ter de abrir as pernas sempre que o gajo
quisesse fornicá-la” (1999, p.53), “Porra!” (1999, p.55), comer uma gaja (2006,
p.151), “Filha da puta” (2006, p.99), expressam a opção por um tipo de narrativa que
expõe a crueza do desejo e a sua não romantização. Para Coutinho (1979), o uso de
vocabulário sujo atende a uma estratégia literária de utilizar palavras que, “não se
justificam pelo simples prazer de escrevê-las. Mas sim pela necessidade e dentro do
contexto da obra” (p.36). Portanto, se João Melo optou por utilizar essas palavras, é
porque o contexto representado em seus contos, carregados de realismo, assim o
exigia.
A fim de compreender melhor a opção lexical adotada pelo autor, podemos
citar Bataille (1987), que afirma: “Os nomes sujos do amor não deixam de ser menos
associados, de uma forma estreita e irremediável para nós, a essa vida secreta que
levamos ao lado dos sentimentos mais elevados” (p.129). Desse modo, se João
Melo assim decidiu, talvez seja porque o objeto de sua escrita, o relacionamento
entre homens e mulheres no seu momento mais íntimo, se apodera desses nomes.
Essa escolha associada ao fato de o autor utilizar, concomitantemente, um
vocabulário por vezes rebuscado, além de palavras estrangeiras e também de
termos das línguas étnicas, representa uma rasura na língua portuguesa e, de
alguma maneira, na norma literária da chamada literatura de combate. De certa
forma, a opção por uma maior “crueza de situações e de linguagem” (LARANJEIRA,
1999, p.12) realiza nos contos de João Melo aspectos do que Deleuze e Guattari
(1977) denominam de “desterritorialização da linguagem”.
Por outro lado, retomando as teorias desconstrucionistas de Derrida (apud
GOULART, 2003), a linguagem utilizada por João Melo em seus contos desconstrói
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as conveniências culturais, na medida em que desfaz as metáforas, ou seja, deixa
aparecer o que está escondido, a verdade mais sórdida ocultada pela cultura.
Diante do exposto, podemos dizer que, em seus contos, João Melo se revela
um grande crítico da sociedade, criador de um texto de fruição, que, conforme
salienta Barthes (1973),
coloca em situação de perda, aquele que desconforta (talvez até chegar a um
certo aborrecimento), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas,
do leitor, a consistência dos seus gostos, dos seus valores e das suas
recordações, faz entrar em crise a sua relação com a linguagem. (p.49)
Através de seus contos, João Melo mexe com o leitor, instiga-o a romper com
uma tradição literária de modo mais efetivo. O escritor cria espaços de tensão na
literatura, demonstrando uma crise nas relações sociais e fazendo com que o leitor
vacile, perca as bases e duvide até da própria linguagem, porque, como diz Barthes
(1973, p.97), no texto de fruição “nada se reconstitui, nada se recupera”.
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5. PARA TALVEZ CONCLUIR
Após as considerações tecidas ao longo deste trabalho, esperamos que os
vários aspectos que o erotismo assume na obra do escritor João Melo tenham-se
evidenciado de forma mais clara. Como se procurou demonstrar, os poemas de
João Melo exploram uma linguagem lírica, suave e intensa para compor imagens
irresistíveis, idealizadas e românticas. Tal aspecto torna mais evidente as marcas de
uma subjetividade que transita de forma mais acentuada no gênero poema. Neles, o
sentimento é importante, tanto o positivo de prazer, quanto o negativo de dor. Para o
poeta, a poesia é o caminho das aflições da carne, porque através dela, pode-se
gozar ou vivenciar a dor. Em contrapartida, nos contos, expressam-se a dor,
particularmente a de ser enganado, e o incômodo, que algumas personagens
enfrentam ao sentirem culpa em determinadas situações. Mesmo assim, como
pudemos demonstrar, o sentimento de culpa e as vidas acerca dos
relacionamentos amorosos não são causadores de grande sofrimento para as
personagens.
Os poemas do escritor reverenciam a tradição e os valores e, neles, o espaço
cultural angolano está sempre sendo evocado. Os órgãos do sentido, principalmente
tato e visão, como destacamos, são relevantes para se compreender o erotismo
expresso nos poemas de João Melo.
em alguns contos do escritor, o homem surgirá como o detentor de grande
potência sexual, aquele que domina e conquista todas as mulheres. Por outro lado,
em outros contos, encontramos a mulher subvertendo a relação amorosa. Isso
porque, nesses casos em especial, ela irá reagir à dominação masculina. Nesse
sentido, em uma forte visão crítica, o erotismo opressor masculino encontra
resistência e resposta do ser feminino.
Nos contos de João Melo, as sensações proporcionadas pelos órgãos dos
sentidos irão aparecer, mas não da mesma forma intensa e recorrente com que
aparecem nos poemas. Nos contos, o erotismo se manifesta através da utilização de
palavras obscenas, de termos chulos que, conforme afirmamos, explicitam a
violência inerente ao ato sexual. Tal recurso convive com o emprego de termos
eruditos, palavras de origem estrangeira e também de termos das línguas étnicas. E
por oscilar entre extremos é que a linguagem nos contos de João Melo é sempre
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transgressora, tanto por desestabilizar o leitor, quando expõe com crueza aspectos
do erotismo, quanto por estabelecer relações com outros textos, relendo-os de forma
irônica e crítica. Nos contos, por vezes são exploradas imagens fetichizadas,
raramente belas, carregadas de realismo, normalmente expressando poder e
dominação.
É possível afirmar então, que nos poemas, o erotismo está mais próximo da
concepção de “força vital”, como proposta pelo teórico africano Hampaté (1993),
tão cara às sociedades africanas e ainda cultuada, particularmente, nas zonas rurais
de vários países. Essa concepção se presentifica nos poemas, principalmente
através da natureza, que se faz aliada de Eros seja para metaforizá-lo, seja a fim de
compor o cenário para os amantes. Nesse sentido, é que tomamos os pressupostos
de Sobonfu Somé (2003) para reafirmar que, segundo a tradição africana, todas as
forças universais conspiram a favor de Eros, inclusive a natureza exuberante.
Os contos, entretanto, presentificam, com freqüência, a versão antagonista de
Eros, a pulsão de morte (FREUD, 1996), além de apresentarem alto grau de crítica
social. Não estamos afirmando que a poesia de João Melo não seja crítica, mas
consideramos que essa característica se torna mais evidente nos contos, em
aspectos que procuramos examinar na análise realizada.
Pensamos que, para muitos leitores, os contos, por vezes, beiram à
pornografia, pois exploram um erotismo cru, o que os faz diferentes dos poemas.
Lembramos, todavia, que nossa proposta não se deteve em diferenciações
preocupadas em separar erotismo e pornografia, mas sim, em discutir as estratégias
utilizadas pelo escritor na criação de estórias que têm como tema o erotismo, vivido
às vezes de forma romântica, às vezes de modo desregrado. Esse é um aspecto da
leitura aqui realizada, o que não impede que surjam outras ou compreensíveis
divergências.
Enfim, importante mesmo de se afirmar é que os poemas e contos de João
Melo, mesmo com Eros vestindo diferentes roupagens, realizam um diálogo perfeito,
porque em um gênero temos a reivindicação por sentimentos que tornam os homens
mais humanos e em outro, a crítica do esvaziamento das relações amorosas,
característico, talvez, do mundo em que vivemos.
96
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