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Luiz Cláudio Luciano França Gonçalves
MATER ORIGINALIS
OU
AUGUSTO DOS ANJOS E O
CAMINHO POÉTICO DO EU
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais,
como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Letras.
Orientadora: Profª. Drª. Suely Maria de Paula e
Silva Lobo.
Belo Horizonte
2007
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2
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Gonçalves, Luiz Cláudio Luciano França.
G635m Mater Originalis ou Augusto dos Anjos e o caminho poético do eu / Luiz
Cláudio Luciano França Gonçalves. Belo Horizonte, 2007.
211f.
Orientadora: Suely Maria de Paula e Silva Lobo
Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras
Bibliografia.
1. Anjos, Augusto dos, 1884-1914. 2. Poesia brasileira. 3. Monismo. I.
Lobo, Suely Maria de Paula e Silva. II. Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.
CDU:
869.0(81)-1
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3
Dissertação defendida publicamente no Programa de Pós-graduação em Letras da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais e aprovada pela seguinte Comissão Examinadora:
_________________________________
Prof. Dr. Reinaldo Martiniano Marques
(UFMG)
_________________________________
Prof. Dr. Audemaro Taranto Goulart
(PUC Minas)
_________________________________
Profª. Drª. Suely Maria de Paula e Silva Lobo
(Orientadora – PUC Minas)
Belo Horizonte, _________ de _________________________ de 2007.
_________________________________
Prof. Dr. Hugo Mari
Coordenador do Programa de
Pós-graduação em Letras da PUC Minas
4
A meus pais.
A Carolina e Rafael.
5
Agradecimentos
Profª. Suely, pela dedicação, pela generosidade e pela
amizade. Meu permanente respeito e gratidão por sua
presença decisiva de “água-do-regato” e de paixão
pela literatura – em todas as etapas desta pesquisa.
Professores do Departamento de Pós-Graduação em
Letras da PUC Minas, sobretudo àqueles com quem
tive o prazer de trabalhar, legítimos co-partícipes na
concepção deste texto: Profª. Melânia, Profª. Lélia,
Prof. Johnny e Profª. Nazareth.
Prof. Johnny, em agradecimento especial pela oportuna
orientação metodológica, pela atenção e pela paciência
na reconsideração das expressões gregas.
Funcionários do Departamento de Pós-Graduação em
Letras da PUC Minas.
Camila, pelo incentivo inicial. E por Carolina e Rafael.
Prof. Paulo Sérgio, pelo apoio inicial.
Bruna, pela presença nos momentos decisivos.
Padre Mauro, rosto desconhecido, pela sugestão do
silêncio.
Aqueles que contribuíram talvez involuntariamente,
entre os quais Tales de Mileto se destaca pela
tolerância.
Ao anônimo, real ou imaginário, pelo valiosíssimo e
vermelho impulso final.
Ao CNPq, agência sem a qual este trabalho seria
operacionalmente improvável.
6
Augusto dos Anjos não tinha
dessa tinta água clara.
Se água, do Paraíba
nordestino, que ignora a fábula.
João Cabral
7
RESUMO
Este trabalho, cuja natureza é predominantemente bibliográfica, apresenta uma leitura da
obra do poeta brasileiro Augusto dos Anjos (1884-1914). O corpus da pesquisa é composto por
toda a obra canônica do autor, publicada sob o título Eu (1912), bem como pelos poemas
posteriormente acrescentados sob o tulo Outras Poesias (1920). Episodicamente, agrega-se ao
corpus a obra coligida, composta pelos chamados Poemas Esquecidos. Quanto à dimensão
metodológica, esta pesquisa considera como estrutura primária, nos âmbitos formal e material,
uma tríplice chave interpretativa, composta pelos universos semânticos da diferenciação, da
situação-limite e do monismo. Fortemente comunicáveis entre si embora reivindiquem
tratamentos isolados –, esses três universos semânticos correspondem a três momentos lógicos
que perfazem uma trajetória que revela, ao longo dos poemas e de modo auto-referente e
intratextual, a orientação central da obra de Augusto dos Anjos: o monismo enquanto ideário
poético.
Palavras-chave: Augusto dos Anjos, poesia, monismo.
Linha de Pesquisa: Identidade e alteridade na literatura.
8
ABSTRACT
This is a predominantly bibliographical study consisting of a reading of brazilian poet
Augusto dos Anjos’s works (1884-1914). The research corpus comprises the author’s whole
canon, published under the title Eu (1912), as well as the poems posteriorly added under the title
Outras poesias (1920). The collected poems entitled Poemas Esquecidos are episodically
added to the corpus. As to the methodological dimension, the research takes as primary structure,
within the formal and material scopes, a triple interpretation key, composed of the semantic
universes of differentiation, limit-situation and monism. Strongly connected, though claiming
isolated treatments, those three semantic universes correspond to three logical moments of a
course that reveals, along the poems and in a self-referent and intratextual way, the central focus
of Augusto dos Anjos’s works: monism as a poetical set of ideas.
Key-words: Augusto dos Anjos, poetry, monism.
Research Line: Identity and alterity in literature.
9
SUMÁRIO
Da introdução
9
PARTE I - “Na anatomia horrenda dos detalhes”: O reino da diferenciação
16
PARTE II - “Numa impressionadora voz interna”: A situação-limite
39
1. Localização e sentido da situação-limite
43
1.1. O Eu e a “coletividade sofredora”
48
1.2. A recusa da diferenciação
79
2. A exigência da nova poesia
98
PARTE III - “Na compreensão monística de tudo”: a poesia monista
109
1. O Eu e o espírito científico de seu tempo
116
1.1. A Escola do Recife: poesia e ciência
120
1.2. O léxico científico
123
2. O monismo poético
138
2.1. As máscaras da Mônada: Deus e o Nada
141
2.1.1. A máscara de Deus e a recusa do Cristianismo
143
2.1.2. A máscara do Nada e a recusa do niilismo
167
3. A poética da involução e da restauração da ordem
183
Da conclusão 198
Referências
206
10
Da introdução
11
Se é verdade que a literatura, enquanto experiência de escrita, não é apenas um exercício
de estilo ou um jogo formal; e se é legítimo defender que toda literatura é a apresentação de um
olhar sobre o mundo ou antes esse próprio olhar –, talvez possamos compreendê-la, sem o
receio do excesso, como uma espécie particular de (de)cifração, da e pela linguagem.
Linguagem, é certo, não apenas operacional, ferramenta de expressão, mas uma “linguagem do
mundo”, idioma peculiar, irmão de uma certa “harmonia das esferas”, ou de uma “máquina do
mundo”, como gostariam de chamá-la, respectivamente, os antigos e os modernos. A poesia,
enquanto caminho literário em que se confundem discurso e objeto em que não se distingue o
que se diz do como se diz –, talvez seja esse algo translúcido, diáfano, que recobre a si mesmo, a
máquina em funcionamento, e que permite o exame minucioso de seu mecanismo não apenas
interior, mas sobretudo íntimo.
Se é igualmente verdade que o poeta é aquele que experimenta o equívoco dessa
linguagem de vidro espesso, e que demonstra que ser, dizer e ser dito são o mesmo, talvez seja
justo dizer que o autor ao qual se dedica este estudo credita à linguagem da poesia a
especificidade de uma qualquer anterioridade lógica subjacente, à maneira de uma proto-
linguagem, porque radicada num mundo imemorial, subterrâneo, incrustada num domínio
obscuro e interditado ao olhar que não veja as coisas últimas de que diz o verso. Augusto dos
Anjos é, de fato, poeta de palavra justa. Autor que faz mover sua escrita dura no território flácido
do efêmero, naquele lugar onde se está sempre prestes a ser desautorizado por sua própria forma
de dizer o mundo e que, para se ver livre da pena aquela que pune e aquela que escreve faz
da voz de todas as coisas sua voz, refém e em permanente despedida.
12
Augusto dos Anjos faz uma poesia aguçada, cortante, de dedo em riste. Mas sua lâmina
não é asséptica, à maneira de um João Cabral: Augusto faz poesia do escândalo da vida,
exasperando seu curso regular e adivinhando desde dentro sua materialidade e sua
intangibilidade. Poesia do caminho com susto, de sombras e trasgos que atormentam seus
fantasmas. Seu verso é o código de um pressentimento anti-histórico e inquietante, cujas muitas
respostas, que a voz poética não encontra em curso regular, repousam, silenciosas e imóveis,
num lugar de apartes, anterior e ideal.
foi dito que o idioma de Augusto dos Anjos “corresponde a uma ‘desumana’ paixão
exogâmica por tudo que não faça parte da corrupta tribo humana” (Roselfeld, 2004, p. 190).
Parece justo. Todavia, seu idioma “infra e transumano” não é senão uma linguagem
taumatúrgica, condição de um sujeito poético que, em sua consciência exorbitante porque épica,
revela pelo verso seu modo de ver a máquina em ação, e atinge seu coração por um curso de
contínua aproximação, como se adaptasse aos poucos o olhar à intensidade desconhecida. Não
apenas pelo perfil da escrita, o desvelamento da substância combustível e poética em Augusto
dos Anjos não ocorre num instante, num espasmo de fresta que se abre para se fechar, mas é
antes o resultado de uma trajetória, sendo esse desvelamento, ao mesmo tempo, a própria
trajetória. A esse caminho poético Augusto dos Anjos deu um nome: Eu.
Única obra publicada em vida pelo poeta, o Eu surge em 1912. Obra de fôlego, densidade
e energia, fruto de uma cultura extraordinária para seu tempo e seus vinte e oito anos de vida. O
Eu possui, dentro da presente abordagem, uma chave de leitura, que consiste em um ideário
poético totalizante, de pretensões reflexivas e quase sistemáticas, causa e resultado de uma
convicção-suspeita central, da ordem do metafísico: o monismo, ou a idéia de que todas as coisas
possuem uma Mater originalis comum, para a qual devem retornar ao cabo da existência. Sob o
13
olhar atento desse ideário que engendra a poesia, Augusto dos Anjos constrói seu mito, sua visão
peculiar de mundo, cuja apresentação depende de uma leitura capaz de acompanhar com cuidado
o sujeito poético ao longo de seu caminho tripartido em descoberta, assombro e esperança.
Com o objetivo de identificar uma unidade sustentável na trajetória poética que compõe o
Eu, o presente estudo sugere uma ferramenta específica, ou um plano de trabalho que se ajuste
ao caminho traçado pela poesia de Augusto. Tendo isso em vista, propõe-se o reconhecimento de
três momentos lógicos principais, devidamente abordados neste texto em três partes distintas: “A
diferenciação”, “A situação-limite” e “A poesia monista”. Dois desses três momentos, o primeiro
e o último, constituem os principais universos semânticos da poesia de Augusto dos Anjos,
sendo o momento intermediário “A situação-limite” o trânsito entre ambos. A etapa média
representaria um corte, ou antes, uma espécie de termo de ligação que não possui propriamente o
status de um universo semântico, e seu lugar transitório na poética do autor seria (conforme será
verificado oportunamente) a passagem do universo da diferenciação para o universo do
monismo. Segue-se uma breve apresentação de cada um das três etapas semânticas propostas.
A parte inaugural, dedicada ao tema da diferenciação, apresenta o momento inicial da
trajetória da obra. Seu caráter gico é negativo. Aqui, a voz poética caminha em meio aos
escombros de uma existência diferenciada (separada da Unidade original), testemunhando na
“anatomia horrenda dos detalhes” o processo insistente de desarticulação da existência pelo
curso da vida e da morte dos seres. Esse primeiro passo do sujeito é, a um tempo, uma
verificação e uma recusa da existência pela poesia, e culmina na exigência de uma solução
urgente, de um conforto, de um sentido. Essa exigência conduz a obra a um lugar limítrofe, a
uma situação-limite.
14
A segunda parte deste estudo – que apresenta a etapa da situação-limite – pretende
examinar o ponto de inflexão na trajetória poética do Eu. Sua orientação central é a consciência
da exigência de uma nova poesia, uma poesia que credite um sentido admissível à vida. Aqui, a
“impressionadora voz interna” do sujeito declara a necessidade e a urgência de romper com o
curso infrene vida-morte que atinge a existência. O limite em que se descobre a voz poética
conduz a obra ao seu momento final, onde se revela explicitamente o ideário monista do Eu.
A parte final deste estudo, dedicada ao monismo, é a apresentação da orientação central
da criação poética do autor. Pela idéia do monismo, a poesia augustiana encontra seu termo, e o
percurso em que se sustenta a visão de mundo do sujeito poético encontra sua elaboração mais
acabada e seu sentido dominante. Nesta parte, pretende-se examinar as formas a partir das quais
os poemas do Eu anunciam e explicitam a idéia da Mater originalis como Unidade imóvel e
silenciosa, em cujo seio a existência encontra sua completude pela recusa de si mesma. Trata-se
do momento final da trajetória da obra, o movimento involutivo, desejado e pressentido pela voz
poética que, seduzida pela “compreensão monística de tudo”, anuncia, deseja e profetiza o
retorno de todas as coisas ao seu princípio, à serenidade da Mônada original.
Vale lembrar que esses três momentos são aqui considerados como lógicos menos por
uma exigência de caráter operacional do que por uma inclinação metodológica que pretenda
privilegiar uma idéia de evolução poética interna, evolução que se traduz em uma trajetória. Em
outras palavras, o processo possui, dentro da presente leitura, importância decisiva, mas apenas
enquanto instrumento capaz de revelar os aspectos mais relevantes da criação poética do autor.
Enfim, tal opção analítica, feita de etapas lógicas comunicáveis, radica na prerrogativa do
tratamento econômico daquela trajetória, tida como um conjunto de momentos fortemente
ligados por uma idéia de síntese, explicitada finalmente pelo monismo.
15
De resto, como poderá ser notado ao longo desta pesquisa, é importante destacar que a
opção analítica aqui proposta não pretende atender a uma cronologia dos escritos ou à disposição
dos poemas no Eu, uma vez que os três momentos não são tratados pelo verso augustiano de
modo linear, à maneira de uma evolução cronológica ou de um discurso sistemático. Ao
contrário, os poemas recuperados serão, cada um a seu tempo, examinados pelo teor e
importância de sua presença em cada um dos três momentos propostos, sendo mesmo possível
encontrar, em alguns desses poemas, elementos indispensáveis para a adequada tematização de
cada um daqueles universos semânticos.
Nota-se, a partir do que foi dito, que a consideração cuidadosa dos momentos lógicos que
constituem o curso poético da obra de Augusto dos Anjos é indispensável neste estudo, ainda
que não exista aqui a pretensão de afirmar que tenham sido parte de um projeto autoral, ou que
sejam determinantes para a própria criação poética de Augusto. Pretende-se apenas adotar uma
postura analítica sustentável, através da qual seja possível, segundo a leitura desta pesquisa,
lançar sobre a obra do poeta paraibano um olhar sintético, abrangente, comprometido com o
espírito de sua poesia. O exame dos momentos lógicos da diferenciação, da situação-limite e do
monismo não é, portanto, mais decisivo do que funcional. Em outras palavras, este estudo julga
indispensável que as questões centrais que se manifestam pela poesia do Eu sejam examinadas
com justiça a partir da expressão da própria letra poética do autor, o que não prescinde, todavia,
de uma analítica anterior que permita o trato operacional conveniente.
O corpus desta pesquisa é composto por toda a obra canônica de Augusto dos Anjos,
publicada pelo autor sob o título de Eu, bem como pelos poemas posteriormente acrescentados
sob o título de Outras Poesias (Eu e outras poesias foi o nome adotado pela segunda edição da
16
obra de Augusto, organizada por seu amigo Órris Soares, em 1920). As Outras poesias, ainda
que em grande parte preteridas por Augusto por ocasião da reunião dos poemas para a edição
original da obra, constituem um grupo de poemas que em muito se aproximam da unidade
pretendida pelo autor do Eu, o que faz com que sua consideração seja legítima e capaz de
agregar valiosos elementos aos poemas publicados em 1912.
1
A chamada “obra coligida”,
composta pelos Poemas Esquecidos, pela epistolografia do autor e pelos textos em prosa
(crônicas jornalísticas) pouco acrescentará a esta pesquisa, seja em razão da opção do autor em
não publicá-la, seja em razão de seu conteúdo. Todavia, esse estrato será eventualmente
convocado na medida suficiente e necessária de sua contribuição (certamente com a devida
cautela, tendo em vista seu caráter recessivo).
Adota-se aqui a edição Augusto dos Anjos - Obra completa, organizada por Alexei
Bueno (2004), terceira reimpressão da publicação inicial (1994), de onde todas as citações dos
poemas serão extraídas. A escolha dessa publicação justifica-se por ser a única até o momento a
reunir toda a obra conhecida do autor, bem como a fortuna crítica mais significativa, segundo o
organizador. A edição ainda conta com um amplo estudo de notas e variantes, o que, em algumas
ocasiões e em confronto com outros comentários historiográficos, será de grande valia.
Outras três publicações do Eu serão consideradas, com o único propósito de municiar a
pesquisa com os estudos críticos nelas publicados. Trata-se da edição organizada por Antonio
Arnoni Prado (2000), bem como as seleções de José Paulo Paes (1986) e Ferreira Gullar (1976).
1
A respeito da ligação entre a poesia publicada por Augusto dos Anjos no volume de 1912 e a poesia mais tarde
editada, note-se o breve e relevante comentário de Moisés (2001, p. 435-439).
17
PARTE I
“NA ANATOMIA HORRENDA DOS DETALHES”:
O REINO DA DIFERENCIAÇÃO
18
Nesta sombria análise das cousas,
Corro. Arranco os cadáveres das lousas
E as suas partes podres examino...
Poema negro
19
Em maio de 1905, o periódico paraibano O Comércio recebe uma nova contribuição de
Augusto dos Anjos, algo que se tornara freqüente desde 1901. Trata-se do poema Soneto,
encimado por uma dedicatória a Nietzsche. Nos versos de abertura, o poeta formula uma meia-
pergunta:
Para que nesta vida o espírito esfalfaste
Em vãs meditações, homem meditabundo?!
O período da primeira publicação de Soneto corresponde a etapa importante do
amadurecimento intelectual de Augusto dos Anjos, já estudante de direito na Faculdade do
Recife desde 1903. O jovem poeta, que contava então vinte e um anos, operava nesse período
uma importante “mudança de seus rumos poéticos” (Magalhães Júnior, 1978, p. 114), ao mesmo
tempo em que iniciava contato com alguns nomes das letras alemãs, entre eles Nietzsche
2
, autor
que, algumas décadas antes do surgimento da pergunta de Augusto dos Anjos, diria em Humano,
demasiado humano:
[...] sentir-se desperdiçado enquanto humanidade (e não apenas enquanto indivíduo),
tal como vemos um broto desperdiçado pela natureza, é um sentimento acima de todos
os sentimentos. Mas quem é capaz dele? Claro que apenas um poeta: e os poetas
sempre sabem se consolar (Nietzsche, 2004, p. 40).
3
2
Segundo Magalhães Júnior, nesse momento da formação acadêmica de Augusto dos Anjos, o poeta trava contato
com as idéias de Tobias Barreto e com a obra de alguns nomes notáveis por sua contribuição ao estudo do Direito
germânico, como Friedrich Karl von Savigny e Von Ihering. Sobre Barreto figura singular não somente por seu
germanismo manifesto e incurável, mas também por sua índole polemista algo será desenvolvido na parte final
deste estudo, por ocasião das considerações sobre a presença da Faculdade do Recife na formação do poeta Augusto
dos Anjos. Quanto aos autores alemães mencionados, são citados pelo próprio Augusto em seus textos acadêmicos
(Magalhães Júnior, 1978, p. 114). Acrescente-se às recentes descobertas do poeta o nome de Nietzsche, cuja
referência na dedicatória de Soneto teria sido efeito do “impacto causado pela descoberta do filósofo alemão” (idem,
p. 115).
3
Nietzsche emprega nesse trecho a palavra aleDichter, traduzida por Paulo César de Souza por “poeta”. Dichter
designa genericamente o autor de obras de arte que se serve da palavra, e não apenas o poeta, como nota o próprio
tradutor.
20
Augusto dos Anjos parece ecoar a reflexão de Nietzsche em O lamento das coisas, poema
que viria à luz somente após a publicação original do Eu. O soneto abre o volume usual das
chamadas Outras poesias desde sua primeira edição, e debuta pela Gazeta de Leopoldina, a
vinte e seis de abril de 1914, cerca de seis meses antes da morte de Augusto:
É o soluço da forma ainda imprecisa...
Da transcendência que se não realiza.
Da luz que não chegou a ser lampejo...
O “desperdício” de que fala Nietzsche adquire materialidade em O lamento das coisas, e
é traduzido no poema augustiano como “o choro da Energia abandonada”, uma recessividade
rudimentar e carente de solução. Assim como O lamento das coisas, o Soneto dedicado ao autor
alemão também não figura na edição original do Eu. surge posteriormente, com as freqüentes
publicações em apêndice dos chamados Poemas esquecidos. Todavia, ao mencionar as “vãs
meditações” nietzschianas e o seu “sondar a substância das cousas”, o poema preterido parece
apontar para alguns dos principais elementos constituintes da poesia de Augusto dos Anjos. É
desse lugar privilegiado que a rede de reflexões e ecos sugerida por esse breve e imprevisto
diálogo aponta para o momento inicial da trajetória poética do Eu, que se apóia em uma visão de
mundo peculiar.
O que deflagra a poesia do Eu é a fusão entre uma vida psíquica feita de inquietação e
escândalo, e uma objetivação irredutível e insistente, causa de um certo “sentimento” inexorável,
irmão de uma urgência não menos típica, de uma necessidade, enfim: necessidade de consolo, de
ordem, personificada pelo tópos do sujeito poético, “e os poetas sempre sabem se consolar”. A
poesia de Augusto dos Anjos é o efeito inevitável de uma necessidade de alento pela poesia, e é,
ao mesmo tempo, essa própria necessidade, sem que, para tanto, o verso augustiano adquira um
caráter predominantemente psicológico. Isso se verifica a partir do ponto de partida dessa visão
21
de mundo peculiar, do cenário que o sujeito poético nos oferece. No contexto desse ponto de
partida, a densidade das paisagens que o Eu do Eu nos exibe sofre a marca de uma característica
proeminente: a diferenciação. É da diferenciação enquanto etapa lógica que nasce todo o
processo poético pelo qual se comunica a obra de Augusto dos Anjos. Esta parte I tem como
tema a diferenciação, primeiro momento da trajetória do Eu.
4
Nessa etapa inicial, o sujeito anuncia os elementos que comporão sua visão sintética de
mundo, fundada num olhar específico que avalia intimamente a realidade circundante. No
mundo que testemunha, o Eu, dotado de extraordinária capacidade perscrutatória encontra, por
meio do exame dos lugares mais remotos do fenômeno do mundo, a marca inequívoca da
diferenciação, o que nos remete ao título da presente parte. Assim, o chamado “reino da
diferenciação” nada mais é que o conjunto dos fenômenos que compõem o mundo apresentado
pelo sujeito do Eu.
Tendo em vista que a expressão “diferenciação”, além de ser a orientação principal da
presente parte, nomeia a característica principal da existência, segundo o olhar do sujeito poético
augustiano, alguns esclarecimentos se fazem indispensáveis acerca do termo. De fato, a
compreensão do que aqui se entende por “diferenciação” é, mais do que um preâmbulo, um
ponto amplamente importante para as pretensões não apenas desta parte. Isso ocorre por pelo
menos duas razões. Em primeiro lugar, porque a existência, segundo a visão de mundo expressa
pela poesia do Eu, confunde-se com essa diferenciação que lhe define internamente. Nesse
sentido, “diferenciação” e “existência” são termos equivalentes. Em segundo lugar, porque o
estudo da inclinação monista que marca a trajetória poética do Eu requer como prerrogativa a
4
É oportuno um esclarecimento de ordem meramente operacional, contudo fundamental para a seqüência deste
texto. Por “Eu” compreende-se aqui a obra escrita por Augusto dos Anjos, enquanto que por “Eu” (sem itálicos, mas
com a mesma maiúscula inicial) entende-se a voz poética da obra, o Eu do Eu. A partir daqui, sujeito e obra serão
sempre identificados a partir dessa distinção.
22
apresentação, o mais inequívoca possível, da idéia da diferenciação. Proceder à apresentação
dessa noção, tal como a entende o autor, exige uma brevíssima antecipação de alguns aspectos
que serão tratados ao longo desta pesquisa. Vejamos.
A poesia do Eu apresenta, grosso modo, um corte entre duas dimensões qualitativamente
distintas. A primeira delas é o reino da diferenciação (de que trata esta parte). A segunda, o reino
da Mônada, cuja apresentação pelos poemas manifesta o monismo de Augusto, o combustível de
sua obra.
5
O reino da diferenciação possui um caráter logicamente negativo dentro da economia
do Eu, uma vez que Augusto dos Anjos entende a diferenciação como um abandono, uma falta,
cuja natureza recessiva se apõe ao reino da Mônada, este logicamente positivo. Segundo o
ideário poético do autor, o reino da diferenciação corresponde ao curso regular da vida, à
reprodução dos seres, à sua degeneração, à mútua corrupção entre os corpos, à morte, à
existência enquanto fenômeno vulgar. Numa palavra, diferenciação significa perturbação, o que
é o mesmo que “existência”, como foi dito anteriormente. Essa perturbação é a distância
imposta entre todos os seres do mundo, bem como sua distância em relação à sua origem
primordial, a Mônada, unidade indiferenciada dos seres, também chamada por Augusto dos
Anjos de “mãe das outras energias”, “Eternidade”, energia intracósmica”, “Mãe original”,
“alfa” ou “minha mãe antiga”, para citar apenas alguns exemplos. Enfim, a existência-
diferenciação é uma perturbação imposta à própria Mônada, o que lhe confere aquele caráter
recessivo dentro da poesia augustiana.
6
5
Algumas considerações importantes sobre a expressão “Mônada” (que será, neste estudo, apresentada com a inicial
maiúscula apenas quando se referir à nada tal como a apresenta o verso do Eu) serão feitas na parte final deste
texto. Por ora, basta reter que o chamado “reino da nada” se apõe ao domínio tratado nesta parte, o reino da
diferenciação. A presença da Mônada seja enquanto ideário poético, seja enquanto imagem terá seu destaque
decisivo naquela terceira e última parte, e sua menção neste momento tem apenas caráter de mera notícia.
6
Na parte final deste trabalho o tema será plenamente desenvolvido, mediante a consideração do monismo tal
como o entende a obra de Augusto dos Anjos. Note-se, portanto, que é possível uma consideração mais acabada
sobre a separação entre o mundo da existência e a nada quando do termo deste texto. Na ocasião, pretende-se
23
A idéia da diferenciação como (marca da) existência persegue os versos de Augusto dos
Anjos incessantemente, quase sempre de modo manifesto, ainda que também subliminarmente.
O vocábulo “diferenciação” ocorre no Eu em alguns momentos, dentre os quais neste trecho de
Os doentes-V, onde já se nota a peculiaridade da perspectiva adotada pelo sujeito, além de claros
sinais de sua visão monista:
E, como um homem doido que se enforca,
Tentava, na terráquea superfície,
Consubstanciar-me todo com a imundície,
Confundir-me com aquela coisa porca!
Vinha, às vezes, porém, o anelo instável
De, com o auxilio especial do osso masséter
Mastigando homeomérias neutras de éter
Nutrir-me da matéria imponderável.
Anelava ficar um dia, em suma,
Menor que o anflóxus e inferior à tênia,
Reduzido à plastídula homogênea,
Sem diferenciação de espécie alguma.
7
Em comentário à última estrofe citada, Paes (1986) destaca a expressão diferenciação”,
chamando-a “palavra-chave” (p. 25). Não obstante a visão do mundo da “terráquea superfície”,
cuja “imundície” provoca “anelo” pela “plastídula homogênea”, é possível perceber todavia que
a expressão “diferenciação” não é, por si só, capaz de esgotar o sentido pretendido pelo poeta.
demonstrar de que modo a poesia do Eu reconhece na Mônada a única substância, a origem e o destino de todos os
seres. Por ora, basta trazer alguns aspectos iniciais capazes de permitir a compreensão do mundo da existência (reino
da diferenciação), por meio de um panorama inicial do ideário poético de Augusto, cuja explanação não prescinde
da rápida menção ao monismo do autor.
7
Por opção do próprio autor na edição original do Eu, o trecho citado traz “massétere “homeomérias”, no lugar
das grafias dicionarizadas “masseter” e “homeomerias”. Ao longo da obra, o expediente do deslocamento da
acentuação tônica é comum, como destaca Bueno (2004) ao apresentar os critérios de edição (p. 16-19), as notas e as
variantes de sua organização da obra augustiana (p. 815-861). O estudo de Bueno pode ser confrontado com as
observações historiográficas de Magalhães Júnior (1978) acerca do tema. Menciona o crítico que, “Tal como Cruz e
Souza, ele [Augusto] por vezes transformava palavras esdrúxulas em proparoxítonas e oxítonas” (Magalhães Júnior,
1978, p. 25), ao que agrega, em outras três ocasiões de sua obra (p. 225, 241 e 271), observações variantísticas sobre
o recurso augustiano do deslocamento da acentuação tônica, não apenas nas edições do Eu ou nas publicações das
Outras Poesias, mas também extensivas aos chamados Poemas Esquecidos. Seria prolixo destacar, ao longo das
citações dos poemas pelo presente estudo, todas as ocorrências a respeito do assunto, razão pela qual recomenda-se,
24
Mesmo uma primeira leitura dos versos citados indica que o termo carrega uma densidade
semântica exorbitante. Augusto parecia saber bem que “diferenciação”, ou qualquer outra
expressão exclusiva, seria incapaz de fazer justiça à existência, conforme à sua visão de mundo.
O reconhecimento dessa escassez, aliado à força da expressão poética, conduz o autor à adoção
de diversos sinônimos capazes de comportar cargas semânticas semelhantes e complementares.
Essa opção pela hipertrofia do sentido “diferenciação” pelas vias sinonímica, analógica e
metonímica é ocorrência regular na poesia augustiana, e seu exame contribui amplamente para a
compreensão do chamado “reino da diferenciação”. Nesse sentido, algumas expressões, tais
como “heterogeneidade”, “singularidade”, “individualidade” e “particularidade”, bem como
outras análogas menos freqüentes, são empregadas pelo poeta para apontar na mesma direção (a
presença da “plastídula homogênea” nos versos citados aponta, pela via do antagonismo, para
um dos sinônimos, “heterogeneidade”). Vejamos, a partir da recuperação dos poemas, algumas
ocorrências dos sinônimos mencionados.
Em As cismas do destino-III, verifica-se expressamente a presença da “heterogeneidade”
como marca da existência, em sentido equivalente ao de “diferenciação” no poema supracitado.
Augusto assim caracteriza a vida dos seres diferenciados:
É a evolução do novo para o velho
E do homogêneo para o heterogêneo!
Do “homogêneo” (da Mônada) os seres se separam, e passam a existir de modo
“heterogêneo”, isto é, a heterogeneidade é uma característica inerente à existência: os seres
mundanos são heterogêneos entre si, e distantes da unidade da Mônada.
para um exame mais minucioso da licença do poeta, os exames exaustivos dos dois intérpretes. A menção desse
expediente está, neste estudo, reservada apenas aos episódios dignos de nota.
25
No poema Mater originalis uma nova ocorrência do que o autor entende por
homogeneidade (o reino da Mônada), apontando ainda uma vez para a qualidade de seu oposto, a
heterogeneidade. A segunda quadra do soneto denuncia a impotência das faculdades mágicas do
“hierofante” diante da imponderabilidade da “mãe original das outras formas”:
O hierofante que leu a minha sina
Ignorante é de que és, talvez, nascida
Dessa homogeneidade indefinida
A mesma “homogeneidade indefinida” é chamada de “pátria da homogeneidade” no
poema Debaixo do tamarindo, indicando carga semântica equivalente, e sempre oposta à
heterogeneidade do mundo da existência:
Voltando à pátria da homogeneidade,
Abraçada com a própria Eternidade
A minha sombra há de ficar aqui!
O sinônimo “singularidade”, por sua vez, ocorre, por exemplo, em As cismas do destino-
II:
Em tudo, então, meus olhos distinguiram
Da miniatura singular de uma aspa,
À anatomia mínima da caspa,
Embriões de mundos que não progrediram!
8
8
Não é raro que Augusto dos Anjos pareça trazer a expressão “singular” como simples sinônimo de “específico” ou
“peculiar”, como nestes versos de A ilha de Cipango:
Lembro-me bem. Nesse maldito dia
O gênio singular da Fantasia
Convidou-me a sorrir para um passeio...
Não obstante a justiça do registro, o emprego de “singularidade” como claro sinônimo de “diferenciação” é
amplamente mais significativo. Mesmo nas ocasiões em que a expressão não parece assim se referir (como também
em Budismo moderno, poema citado a seguir), é possível notar uma marca subliminar que aponta para o uso aqui
defendido. Isso se deve à forte presença do ideário monista que anima toda a poesia do Eu, cujo caráter atrativo faz
justiça, em âmbito lógico, ao ideal poético do autor.
26
Ou ainda no célebre Budismo moderno, onde o superlativo absoluto “singularíssima”
revela também uma das marcas estilísticas próprias do poeta do Eu:
Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
9
À vida singular corresponde a existência diferenciada, heterogênea, que se impõe aos
seres existentes. O soneto Homo infimus traz mais um exemplo:
Fruto injustificável dentre os frutos,
Montão de estercorária argila preta,
Excrescência de terra singular.
Onde quer que a singularidade, a homogeneidade e a diferenciação sejam lembradas,
fazem referência ao mundo dos entes abandonados e ao curso vulgar de criação e destruição que
os acompanha. A expressão “individualidade”, outro sinônimo, traz a mesma idéia em Os
doentes-V:
Não me incomoda esse último abandono
Se a carne individual hoje apodrece [...]
Não apenas a “carne individual”, mas também “a individual psique humana” (em
Mistérios de um fósforo) compõe o cenário da multiplicidade dos seres existentes.
Para evitar a prolixidade da citação de outros inúmeros exemplos, note-se, enfim, o
terceto final de O último credo, onde mais uma ocorrência inequívoca, desta vez da
“particularidade”:
9
Note-se que o corte abrupto do primeiro verso citado acompanha o “corte” da tesoura. sobre o recurso freqüente
ao superlativo absoluto na poesia augustiana, é uma prática que permite a ocorrência incomum de versos de apenas
duas palavras, como o “Misericordiosíssimo carneiro”, em A um carneiro morto, ou o “Profundissimamente
hipocondríaco”, em Psicologia de um vencido (Antonio, 2004, p. 76).
27
Creio, perante a evolução imensa,
Que o homem universal de amanhã vença
O homem particular eu que ontem fui!
Verifica-se que, assim como a expressão “reino da diferenciação” é eleita para dar nome
a esta parte, nada impediria que seus sinônimos “singularidade”, “heterogeneidade”,
“individualidade” ou “particularidade” fossem escolhidos, o que não comprometeria
absolutamente o exame, uma vez que, de modo amplamente convergente, apontam para a mesma
significação e são sinônimas entre si. Esse esclarecimento, precisamente de ordem operacional,
se faz relevante na medida em que, a partir deste ponto, a presente pesquisa traz ocorrências mais
freqüentes dos sinônimos mencionados.
10
Para que possamos examinar com precisão a natureza da diferenciação (e, portanto, da
existência) conforme a compreende o Eu, nota-se desde que o ponto de partida deve ser a
expressão dessa diferenciação, ou seja, a expressão dos modos segundo os quais o Eu
experimenta e julga a existência-diferenciação. O sujeito poético do Eu não se exime da
dolorosa tarefa de perscrutá-la, mergulhando nos lugares mais recônditos da realidade concreta
10
É certo que é possível, mediante certo zelo conceitual, descobrir entre as expressões algumas nuances.
“Singularidade”, por exemplo, parece designar algo logicamente mais restrito do que “individualidade”: por
“singular” entende-se usualmente aquilo que define uma unidade absolutamente pessoal, própria, um ente único,
enquanto que individual” parece ser melhor compreendido se oposto a “coletivo”. Tendo isso em vista,
“particularidade”, por sua vez, parece se aproximar mais da idéia de singular do que de individual. Além disso, num
cômputo geral, qualquer uma das expressões convergentes poderia se opor a “coletividade”, o que seria, dentro da
presente leitura, um relevante equívoco interpretativo da obra augustiana, uma vez que “coletividade” não é o
mesmo que “unidade”, “homogeneidade”, “indiferenciação” ou “Mônada”. Nota-se, todavia, que tais sutilezas não
se aplicam ao propósito final da exegese poética que se dedica à apresentação da visão de mundo do Eu. Antes de
expor ambigüidades em função de problemas de ordem puramente conceitual, a escolha do poeta por uma ou por
outra palavra não parece indicar senão uma opção poética, voltada ora para a métrica, ora para o tom, ora para a
música ou para a fluência dos versos, ainda que sem sacrifício algum da convergência semântica pretendida. Este
estudo entende que uma abordagem justa da poesia de Augusto dos Anjos depende de uma distinção marcante entre
imagem e conceito. De resto, não se emprega, aqui, as expressões sinônimas sob o olhar atento de um formalismo
lógico à maneira aristotélica, o que torna prescindíveis as minúcias que envolvem ocasionais distâncias e
aproximações entre os termos. Faz-se aqui opção pela eliminação das eventuais e contingentes sutilezas envolvidas
pelas expressões, em nome de uma dilatação semântica da idéia poética do autor. Privilegiar qualquer uma delas
seria evitar um eventual problema terminológico, mas seria também um arbítrio que declina do desafio de transmitir
de modo mais completo o alcance da idéia de Augusto.
28
dos seres. Ao longo dos versos, é o olhar devassador do Eu que conduz pela mão o leitor,
convidando-o a experimentar as frações diminutas do real em sua mais intensa nudez. A
expressão-chave deste primeiro momento do percurso do sujeito (inicialmente lírico) é, portanto,
a qualidade última e irrevogável por ele conferida à existência concreta: a diferenciação fundada
no processo evolutivo. Evolução” nada mais é que um sinônimo adicional para “diferenciação”,
uma vez que se trata do caminho inverso àquele sustentado pela visão monista: “evoluir”
significa, dentro da poética do Eu, “afastar-se da Mônada”, ou seja, existir, obedecer ao curso da
vida e da morte. A Mônada não existe, porque é algo fora da existência.
11
O mundo de Augusto dos Anjos é habitado por seres sombrios, fantasmas que povoam a
existência e se confundem com os entes animados e inanimados. A cada um desses seres,
diferenciados entre si, o Eu concede voz e capacidade de intervenção. Não é raro que aparições
soturnas ditem ao sujeito os versos, configurando um mundo de diálogos recortados,
estabelecidos entre o Eu e suas próprias inquietações. Trata-se de um momento
predominantemente lírico da poesia do Eu, em que a voz poética, multifacetada, oferece o
cenário onde se configura o drama da vida, a evolução-diferenciação-existência. Nesse mundo, a
um tempo vítima e algoz, a marca da diferenciação se destaca, uma vez que representa a
separação entre mundo e Mônada. O Eu credita à heterogeneidade da existência a dor, a
desarticulação e a corrupção que orientam todo o fluxo vital. Segundo essa orientação poética,
existência e sofrimento são sinônimos. Contudo, é importante destacar que tal sofrimento não é
apenas de ordem física, moral ou psicológica, uma vez que, como teremos oportunidade de
verificar mais tarde, a diferenciação entre os seres promove a perturbação de uma ordem
11
Sendo inevitável a associação do termo “evoluçãoà pesquisa científica do tempo em que viveu o autor, o tema
foi fruto de inúmeras discussões entre os críticos do Eu. O tema da ciência e de sua eventual ligação com a poesia
de Augusto dos Anjos será tratado na parte final desta pesquisa, por ocasião da análise do monismo do poeta.
29
cósmica. Ao olhar do Eu, o mundo está precisamente fora da ordem. Portanto, vê-se que tal dor
essa espécie de anomalia que atinge hereditariamente toda a existência radica na própria
ordem do Ser. Nesse cenário de conflito entre a particularidade dos seres e a unidade monística,
a perturbação da ordem pela diferenciação é o elemento que deflagra a obra poética de Augusto,
e anuncia a particular visão de mundo do poeta. Augusto defende que a existência sofre de uma
doença congênita, ou antes, a existência é essa própria doença, incurável senão pela Mônada.
O poema de abertura do Eu é intitulado Monólogo de uma sombra. Ouçamos a estrofe
inicial desse importante poema, fundamental para o estudo da obra augustiana:
“Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Polipo de recônditas reentrâncias,
Larva do caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!
12
Monólogo de uma sombra é uma espécie de apresentação ou de “projeto” poético de
Augusto dos Anjos. Trata-se de um dos poemas longos da obra, e conta com cento e oitenta e
seis versos. Aqui, o Eu se apresenta em seu disfarce inicial: a Sombra, habitante vermiforme da
“escuridão do cósmico segredo”, ser de visão dilatada, capaz de revelações que o Eu recolhe
como suas.
13
O poema parece logo mitigar aquilo que o título da obra trazia de forma inexorável,
12
A título de simples menção, note-se a inobservância da alteração nica pretendida pelo autor em “polipo” (no
lugar de “pólipo”), por parte de Antonio (2004, p. 50), inobservância reiterada na mesma página. O mesmo engano
ocorre na edição do Eu e Outras Poesias preparada por Arnoni Prado (2000). Regra geral, o equívoco se deve
menos à informação acerca do já mencionado expediente augustiano hipótese que, nos casos mencionados, parece
improvável do que às eventuais e indiscriminadas revisões ortográficas. De fato, talvez pelas mesmas razões, a
alteração tônica pretendida em “Esquilo” (no lugar de Ésquilo) no poema Sonho de um monista, é precisamente
observada pelos textos de Antonio (p. 51) e de Prado (p. 37), ainda que, neste último caso, na introdução intitulada
Um fantasma na noite dos vencidos, o equívoco recorra (p. XXVII).
13
Não é incomum na poesia de Augusto dos Anjos a presença das imagens do verme, da larva ou de outros
elementos correlatos, cuja idéia convergente aponta, numa primeira leitura, ora para uma agência destrutiva, ora
para uma aparição imponderável, ora para um mistério oracular. Invariavelmente, a voz do “polipo” é invulgar, e
sua sabedoria rudimentar, bem como seu olhar dilatado, gozam de credibilidade ao Eu. Em relação à imagem
30
e contrapõe a um suposto solipsismo estampado no original como um grito: “EU” uma
desarticulação fundamental do sujeito poético que, não obstante, permanece consciente de sua
presença diante da Sombra.
14
O fenômeno não é raro nos poemas, como se verá. Em Monólogo
de uma sombra atestam-no as três últimas estrofes, únicas que não contam com as aspas, e que
não são a voz da Sombra:
Disse isto a Sombra. E, ouvindo estes vocábulos,
Da luz da lua aos pálidos venábulos,
Na ânsia de um nervosíssimo entusiasmo,
Julgava ouvir monótonas corujas,
Executando, entre caveiras sujas,
A orquestra arrepiadora do sarcasmo!
Era a elégia panteísta do Universo,
Na podridão do sangue humano imerso,
Prostituído talvez, em suas bases...
Era a canção da Natureza exausta,
Chorando e rindo na ironia infausta
Da incoerência infernal daquelas frases.
E o turbilhão de tais fonemas acres
Trovejando grandiloquos massacres,
Há-de ferir-me as auditivas portas,
Até que minha efêmera cabeça
Reverta à quietação da treva espessa
E à palidez das fotosferas mortas!
O Eu concede à Sombra uma voz, que lhe atormenta a “efêmera cabeça”. Enquanto a
Sombra declara suas impressões, o Eu é posto entre tênues parênteses, mantidos apenas pelo
drama ilustrado amiúde pelos versos. A Sombra revela na existência a “desarrumação dos
conseqüente d’“O deus-verme” – como em poema homônimo algo será dito posteriormente, por ocasião do estudo
das formas de apresentação do monismo pela poesia augustiana.
14
Uma pesquisa sobre a recepção crítica inicial do Eu aponta para os efeitos do “livro de escândalo” (como ao Eu
se refere João Luso, pseudônimo do escritor português Armando Erse, radicado no Brasil) a partir de seu título.
Uma vez que seria prolixo enumerar aqui toda a crítica pesquisada, é importante recuperar a obra de Magalhães
Júnior (1978), em especial o capítulo 25, intitulado “O escândalo do ‘Eu’” (p. 249), onde boa parte da crítica
inaugural é referenciada. Na ocasião, o autor apresenta comentários de alguns autores acerca do título da obra
augustiana, cuja natureza quase performática parece adquirir independência, a ponto de reivindicar uma crítica à
parte. Fazendo alusão a João Luso, “EU” é, mais que um título, um brado e uma imposição. Regra geral, no entanto,
vale lembrar que o poeta e sua obra são, com alguma freqüência, alvos do que João Ribeiro denomina “a preguiçosa
31
intestinos”; condena o filósofo moderno”, esse “mineiro doido das origens” a “coçar chagas
plebéias”; anuncia a natureza “Dessa estranguladora lei que aperta / Todos os agregados
perecíveis”, e a “trágica festa emocionante” do fenômeno da morte dos entes singulares.
É sintomático que as primeiras vinte e oito estrofes do poema de abertura do Eu sejam
dedicadas a uma voz que fala ao sujeito. Nesse intenso monólogo de “fonemas acres”, já se
anuncia uma ambigüidade que tornaria frágeis os limites entre a consciência do Eu e tudo aquilo
que lhe seria exterior. Não é difícil perceber que o Eu seja não apenas a Sombra que se
pronuncia, mas também a sua própria Sombra, que a si mesmo “fere”, choca e atormenta. No
entanto e além dessa alterização, a figuração da Sombra sofre uma transgressão pela via da
imanência, ou seja, explode e se torna extensiva a toda a existência, senão pela intervenção da
consciência (marca do Eu), ao menos pela solidariedade do sujeito poético ou pela intensa força
de objetivação que a Sombra apresenta. Monólogo de uma sombra é a antecipação de um
paradoxo que acompanha os versos augustianos ao longo de todo o Eu, e cujo exame será mais
tarde desenvolvido por este estudo: trata-se da distinção do Eu enquanto consciência, e de sua
simultânea participação indistinta no reino da diferenciação. Esse paradoxo adquire força
quanto mais seja possível separar, a partir do Eu, “existência” e “Mônada”, e sua força é sua
maior contribuição.
De qualquer modo, vê-se que, logo no poema escolhido para abrir a obra, manifesta-se
uma característica proeminente do verso do Eu, que consiste naquela mencionada concessão
da voz poética às suas múltiplas vozes. É especialmente importante, neste ponto, reconhecer,
num âmbito não apenas exegético, a convergência entre tais vozes na unidade do sujeito,
convergência operada não pelo enunciado, mas pela constatação do fenômeno da diferenciação.
ciência da mera opinião pessoal” (Ribeiro apud Coutinho, 1968, p. 53), tendo em vista o cenário histórico-cultural
que recebe o Eu, marcado ainda pelo “tom opinático e infalível” (Coutinho, 1968, p. 53) da crítica de então.
32
A poesia de Augusto dos Anjos se antecipa à crítica, e põe em discussão os termos “mundo” e
“sujeito” pela diferenciação que marca a ambos. Dito de outro modo, flutua indiferente sobre a
presente discussão a questão acerca da unidade, da alterização ou da polifonia do Eu, uma vez
que, distinto pela consciência ou indistinto pela dor da individuação, ele será sempre um
elemento do reino dos entes particulares, marcado pela diferenciação.
O Destino é uma outra voz importante nos versos augustianos. Sua apresentação com a
inicial maiúscula (assim como ocorria com a Sombra), é, mais do que um resíduo das influências
simbolistas do Augusto das poesias debutantes, uma pista do lugar recôndito de onde vêm essas
vozes, além de um sinal de contaminação pela inclinação metafísica da visão de mundo do
autor.
15
O Destino se manifesta em diversos momentos da obra, e seu exame detido requer um
estudo especialmente amplo. Por ora, note-se sua mais proeminente presença, no poema As
cismas do destino. Composto em quatro partes, esse poema é um dos pilares sobre os quais se
sustenta a trajetória poética do Eu, e sua citação neste texto será importante em diversas
ocasiões.
Na terceira parte do poema, o Destino discursa soberano ao longo de trinta e cinco
quadras, e sua aparição se anuncia progressivamente ao longo das duas partes anteriores. Cito as
estrofes vinte a vinte e três da parte III:
As diferenciações que o psicoplasma
Humano sofre da mania mística,
A pesada opressão característica
Dos 10 minutos de um acesso de asma;
15
uma opção editorial comum a todas as edições do Eu consultadas durante esta pesquisa, e que consiste em
trazer os títulos dos poemas em caixa alta (a segunda edição, de 1920, o faz, como pôde ser verificado em
exemplar pesquisado na cidade de Leopoldina, na última residência de Augusto). É possível que isso ocorra já a
partir da primeira edição, mas não foi possível o acesso a essa informação. O emprego indistinto das maiúsculas não
permite saber se o poeta desejaria que “Sombra” e “Destino” (nos títulos de Monólogo de uma sombra e As cismas
do destino) figurassem como nos versos dos poemas (com a inicial maiúscula). Ainda que seja legítimo pensar que
sim como admite esta pesquisa o argumento é indefensável porque improvável. De qualquer modo, na citação
dos títulos, opta-se aqui pelas minúsculas em sombra e em destino.
33
E, (conquanto contra isto ódios regougues)
A utilidade fúnebre da corda
Que arrasta a rês, depois que a rês engorda,
À morte desgraçada dos açougues...
Tudo isto que o terráqueo abismo encerra
Forma a complicação desse barulho
Travado entre o dragão do humano orgulho
E as forças inorgânicas da terra!
Por descobrir tudo isso, embalde cansas!
Ignoto é o gérmen dessa força ativa
Que engendra, em cada célula passiva,
A heterogeneidade das mudanças!
É expressa a presença das “diferenciações” que anulam no “psicoplasma / Humano” a
unidade, como num reflexo da diferenciação ontológica que isola o mundo da existência. No
último verso citado, percebe-se ainda uma vez a “heterogeneidade das mudanças”, onde
“heterogeneidade” poderia, sem sacrifício do sentido (e do decassílabo), ser substituída por
“singularidade” (o que, talvez, não tenha sido opção do poeta pelo possível eco de “passiva” e de
“dessa” dos versos precedentes). O trecho é, assim como toda a parte III, uma constatação do
movimento incessante de diferenciação a que todo o mundo é submetido, fruto do Ignoto”
princípio da atividade que deu aos seres a existência. Diz ainda o Destino nas estrofes seguintes:
Poeta, feto malsão, criado com os sucos
De um leite mau, carnívoro asqueroso,
Gerado no atavismo monstruoso
Da alma desordenada dos malucos;
Última das criaturas inferiores
Governada por átomos mesquinhos,
Teu pé mata a uberdade dos caminhos
E esteriliza os ventres geradores!
O áspero mal que a tudo, em tomo, trazes,
Análogo é ao que, negro e a seu turno,
Traz o ávido filóstomo noturno
Ao sangue dos mamíferos vorazes!
Ah! Por mais que, com o espírito, trabalhes
A perfeição dos seres existentes,
Hás de mostrar a cárie dos teus dentes
34
Na anatomia horrenda dos detalhes!
O “Poeta” reconhece, pela alteridade de sua própria voz, seu lugar desprezível, membro
do grupo das “criaturas inferiores”, diminuído pela força assombrosa do Destino que lhe fala,
ainda que, já na parte IV do poema, o Eu assuma a voz de todo o mundo sofredor:
Secara a clorofila das lavouras.
Igual aos sustenidos de uma endecha
Vinha-me ás cordas glóticas a queixa
Das coletividades sofredoras.
16
No que se refere à localização do mundo da diferenciação na poesia de Augusto dos
Anjos, o poema Os doentes que será também recuperado em outras ocasiões desta pesquisa
ocupa um lugar de destaque, tendo em vista a amplitude do cenário construído pelo Eu. Trata-se
de uma tempestade de imagens convergentes, que denunciam o processo permanente de
diferenciação dos seres. Esse poema não traz, em tese, uma outra voz senão a do próprio Eu. Em
tese, tendo em vista que o estilo augustiano não restringe somente às aspas as vozes que lhe
afligem, uma vez que sua consciência responde com desespero a uma vasta trama de
desarticulação interna.
17
Os doentes é uma profusão de nuances discursivas de tons distintos
16
É digna de nota a presença das “coletividades sofredoras” nesse último verso, corroborando a distância
anteriormente mencionada entre “coletividade” e “Mônada”. Como se verá mais tarde, a nada augustiana não é
uma simples reunião de individualidades, mas a homogeneidade em estado puro, anterior a qualquer fragmentação,
isenta de frações e elementos constituintes.
17
Note-se, a respeito, os poemas Contrastes e Vítima do dualismo, pelos quais o Eu declara a cisão interior de sua
consciência de poeta. São os “contrastes” inerentes à dimensão psíquica do Eu, e não a eventuais “contrastes” intra
mundi subjacentes, como teremos oportunidade de verificar mais tarde. Idéia semelhante trazem os versos de Noli
me tangere:
Agregados anômalos malditos
Despedaçam-se, mordem-se, dão gritos
Nas minhas camas cerebrais funéreas...
Fica clara em Noli me tangere, já a partir do título, a intenção do poeta de não apenas aludir a uma
representação pictórica muito difundida (por Coreggio e Tiziano, entre outros), mas também de dizer do drama
psíquico daqueles “contrastes”. O último terceto do poema diz:
Ai! Não toqueis em minhas faces verdes,
35
entre si, cujas cores predominantes são, a exemplo de toda a obra, o vermelho e o negro. Como
já declara o Eu em outro lugar,
A cor do sangue é a cor que me impressiona
E a que mais neste mundo me persegue!
(As cismas do destino - I).
Os doentes é um poema sem tréguas, a exemplo da tempestade de desarticulação que
aflige a existência. Seus versos furiosos querem um horror tangível. Revelam um mundo
devastado, digerido e regurgitado, transmitindo a franca idéia do transcurso de um tempo
impiedoso. Sua importância vai além do caráter pictórico dos versos, e exibe um sujeito poético
que não se favorece da cumplicidade e das confidências de suas vozes, ao passo que é por elas
constrangido e perturbado. Trata-se, numa visão sintética, de uma vasta colagem de impressões
do Eu, e que fortalecem, uma após a outra, a associação entre “existência”, “diferenciação”,
“evolução”, bem como entre todas as demais idéias relacionadas à vida que não mais se reúne
monisticamente e que, por isso, sofre de uma vocação congênita à corrupção, à doença.
18
Nesse
Sob pena, homens felizes, de sofrerdes
A sensação de todas as misérias!
18
É especialmente interessante, não apenas no poema Os doentes, mas em todos os muitos episódios do processo de
diferenciação no Eu, a idéia de um tempo que consome a vida e que não carrega em si a possibilidade da pacificação
do processo. Pelo contrário, o tempo da vida em Augusto dos Anjos é a figura faminta que não se detém em ponto
algum ao longo do curso pendular que oscila entre vida vulgar e morte vulgar. O caráter conflitante desse tempo de
recorrências e aporias é semelhante àquele da primeira parte de Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto.
No poema cabralino, Nunes (1974) distingue duas partes: uma,”da viagem de Severino até o Recife, pesado e
sombrio, que corresponde à morte”; e outra, do “auto natalino, leve e alegre, que corresponde à vida”. Na leitura de
Nunes, a primeira parte do poema de João Cabral é a “do tempo como desgaste dos seres e das coisas, um tempo
destrutivo e não cumulativo”. A aproximação entre o mundo augustiano da diferenciação e o mundo-tempo da
primeira parte de Morte e vida severina é tão mais marcante quanto mais se distingue no poema de Cabral um tempo
“que não se como aproximação natural à morte e sim como antecipação dela” (Nunes, 1974, p. 86). Como
ilustração à morte que se antecipa (em Cabral) e à morte que age com uma precipitação de programa (em Augusto),
vale trazer a citação de trecho de Cabral por Nunes (p. 86):
A chegando, aprendo que,
nessa viagem que eu fazia,
sem saber desde o Sertão,
meu próprio enterro eu seguia.
36
sentido, aquilo que seria “impressão” do Eu sofre uma mutação em expressão”, como se uma
idéia ou uma vaga alusão adquirisse, pelo golpe certeiro da lírica, uma presença escandalosa,
amplamente explícita e irrevogável. De fato, o Eu não examina seu próprio interior para dali
retirar uma visão de mundo, mas invade os cantos inexplorados do real e dali arranca cenários
corrompidos pelo equívoco mórbido da evolução. Os doentes é um poema de fôlego que devassa
a vida, trazendo uma contribuição decisiva à visão do mundo dos seres diferenciados: a “terra” é
a “urbe natal do Desconsolo” (parte II), e a humanidade sobre ela se reúne pela camaradagem
da moléstia” (parte III).
Atormentado pelos gritos de uma agonia de proporções intangíveis, o Eu implacável de (e
não apenas de) Os doentes é uma testemunha abandonada entre “restos” e “vômitos”, e que
constata na diferenciação “o ruído de uma tosse hereditária” (parte III), fruto da “diabólica
dinâmica daninha” (parte V) que insufla o insaciável curso da existência das “Hereditariedades
politípicas” (parte V). Diante disso, o sujeito sente mesmo uma “necessidade de suicídio” (parte
V), elemento puramente retórico na lira augustiana, que desde reconhece na morte individual
uma alternativa inócua à vida:
A pragmática má de humanos usos
Não compreende que a Morte que não dorme
É a absorção do movimento enorme
Na dispersão dos átomos difusos
(Os doentes - V)
A boca eternamente aberta da morte sempre prestes a, a exemplo da boca dos instintos
(da “matilha espantada dos instintos” em As cismas do destino) é o que tudo digere e tudo
Só que devo ter chegado
adiantado de uns dias;
o enterro espera na porta:
o morto ainda está com vida.
37
regurgita, numa tarefa incessante e cruel, cujo remédio não se encontra na existência. A
diferenciação e seus equivalentes são, a um tempo, os asseclas dessa morte regular e a regra
do mundo habitado pelo Eu, o mundo condenado a uma sina miserável de composição-
decomposição:
Atabalhoadamente pelos becos,
Eu pensava nas coisas que perecem,
Desde as musculaturas que apodrecem
À ruína vegetal dos lírios secos.
(Os doentes - VII)
Todavia, o reino da diferenciação, tal como figura no Eu, pode ser compreendido em
toda a sua força mediante o reconhecimento da índole monista de Augusto dos Anjos. Nesse
sentido, a paisagem de decomposição que se exibe em Os doentes – que consiste em um
momento de dilatação da sensibilidade em forma de repulsa e indignação por parte do Eu
pode ser compreendida em seu sentido mais completo diante da decisiva inclinação monista do
poeta. Num amplo cenário de cenas funestas, seres repulsivos e vozes misteriosas, o autor
constrói ao longo de toda a obra para aludir a título de Cioran seu breviário pela
decomposição, seu mundo afetado pela individuação. Mas a singularidade dos entes não passa de
um acidente da ordem natural do Ser, o que, como já foi dito, torna o mundo de diferenciação
um universo francamente negativo da construção do autor.
É certo que no poema Barcarola a voz das “dores todas do mundo” denomina o Eu
“poeta da morte”, e que o próprio Augusto opta por intitular um de seus sonetos como O poeta
do hediondo, cuja alma teria sido talhada “Para cantar de preferência o Horrível” (Minha
finalidade). Todavia, como teremos oportunidade de verificar, isso se deve sobretudo à força do
curso da diferenciação que se exibe no mundo em todas as suas versões, e não ao ideário poético
final do autor. A poesia augustiana não se restringe à recessividade que o Eu encontra na
38
diferenciação, cuja força é amplamente reconhecida pelo posicionamento do sujeito augustiano
diante da morte, da vida e de tudo que na existência-evolução lhe carece de sentido: a morte de
“seu” tamarindo, de seu filho, de seu pai, das casas e dos edifícios, morte que o Eu torna tão
própria. Assim, é especialmente importante fazer justiça à expressão “poeta da morte”,
considerando-a a partir da economia da poesia augustiana, e não apenas a partir de seu momento
fundador. A presente leitura do Eu não faz distinção entre “poeta da morte”, “poeta da vida” ou
“poeta da diferenciação”, uma vez que, dentro da visão de mundo de Augusto dos Anjos, o
momento da verificação do sofrimento do mundo pela diferenciação figura como uma etapa
lógica inicial e superável, em última instância, pelo monismo.
19
Antes, no entanto, de atingir o ponto final deste estudo o monismo –, interpõe-se uma
nota de passagem, tão importante quanto os extremos da melodia que articula. Entre o reino da
diferenciação e a Mônada, os dois “mundosdo Eu, não um trânsito imediato, arbitrário,
brusco ou apressado, mas a ação revolucionária de uma vigorosa intuição poética, uma síntese
de sentimento, ferramenta metodológica e momento lógico. Ponte erguida pela poética de
Augusto dos Anjos entre a condenação pela diferenciação e a restituição de uma ordem natural
pela Unidade, tal intuição é elemento indispensável na economia totalizante do Eu, porque nasce
dos escombros de um mundo cinza, e caminha, decidida, para a maturidade de um termo
apaziguador que encontra na Mônada a única alternativa. A parte seguinte é dedicada ao termo
19
A crítica que primeiro se ocupou do Eu insistiu na idéia de uma “poesia da morte”, aproximação corroborada e
influenciada por boa parte da primeira recepção popular, como verifica bem Cunha (2004, p. 165-166). Torres
(2004) foi um dos autores que inauguraram essa leitura, como denuncia o próprio título de seu artigo, O poeta da
morte, publicado em 1914. Poucos nomes, como o do poeta e ensaísta Medeiros e Albuquerque, por exemplo,
trilharam esse veio interpretativo, paradigma que era preterido em meados das décadas de 1930 e 1940, pelas
críticas de Raul Machado, Manuel Bandeira ou Álvaro Lins. Hoje, sabe-se da insuficiência de uma leitura orientada
pela idéia de um “poeta da morte”, sobretudo depois das importantes intervenções posteriores de Gullar (1976), Paes
(1986) ou Rosenfeld (2004), para citar apenas três das mais importantes. A parte seguinte voltará a tratar do tema,
por ocasião do desenvolvimento da trajetória poética que conduz o sujeito ao monismo manifesto do Eu.
39
médio do amplo processo que se destina à síntese da poesia de Augusto dos Anjos. Seu tema é a
origem e o sentido de uma situação radical, porque limítrofe.
40
PARTE II
“NUMA IMPRESSIONADORA VOZ INTERNA”:
A SITUAÇÃO-LIMITE
41
Morte, ponto final da última cena,
Forma difusa da matéria imbele,
Minha filosofia te repele,
Meu raciocínio enorme te condena!
As cismas do destino
42
Até aqui pudemos tratar do mundo da existência tal como o vê o Eu: um lugar de
perturbação e sofrimento, provocados pelo movimento contínuo da evolução dos seres. Tal
movimento é composto pelo processo vida-morte ou criação-destruição e atinge a todos os
seres existentes. Como pôde ser notado, o sujeito poético do Eu não verifica na natureza e na
vida comum dos homens senão um “tropismo ancestral para o Infortúnio” (Monólogo de uma
sombra). Esse “tropismo” nada mais é que o infinito processo vital evolutivo, que anima os seres
em seu perpétuo movimento de diferenciação, singularização.
Por meio da evolução da existência, os seres se diferenciam, se afastam: uns dos outros e
de sua origem primordial. Esse fenômeno seria, segundo o Eu poético de Augusto dos Anjos, a
própria perturbação, a anomalia, a dor ou, numa palavra, aquilo que foi chamado anteriormente
de diferenciação, compreendendo também todos os seus sinônimos. Com a existência (sendo
“existir” algo como “ser para fora”), a multiplicidade dos seres brota da Mônada, e o mundo
passa a ser movimento e desagregação. É a constatação desse mundo enquanto existência e dor
que provoca no Eu o sentimento da necessidade de recorrer à solução dada (ou proposta) por
Augusto dos Anjos em sua poesia: o retorno ao reino do homogêneo e do imóvel, em que
consiste seu monismo.
Nota-se, portanto, que o fenômeno da existência no Eu não é apenas um fato: é um
problema para si mesmo, por ter se afastado da Mônada, Unidade cósmica primordial. A “célula
inicial” de que fala o Eu na nona parte de Os doentes era a perfeição própria da absoluta
unidade, a origem radical de toda a existência que se seguiu. Com o momento subseqüente e
ontologicamente negativo da diferença entre os seres, uma passagem da perfeição à
43
imperfeição, do sentido à sua ausência. Na poética do Eu, “existência” corresponde a “ausência
de sentido”.
20
Como foi notado na parte anterior, trata-se de um antagonismo entre dois mundos: o
mundo do movimento, que se como fato verificado pelo Eu, e o mundo da imobilidade, a
promessa, o desejo, a profecia feita pelo Eu que busca uma saída. Desse antagonismo nasce a
inquietação poética central da lírica de Augusto dos Anjos. É a própria expressão poética do
corte, do cisma. O Eu é um ser “cismado”, ao mesmo tempo vítima e algoz de uma tensão
irreconciliável, que acontece internamente e adquire voz nos poemas. Assim, a poesia do Eu é
fruto de uma perpétua guerra entre duas forças, travada no campo aberto do território consciente
do sujeito poético: de um lado, a vocação ao sentido; de outro, a constatação de um mundo que
resiste ao sentido. Não obstante a complexidade que se apresenta por ocasião das sutilezas, dos
atalhos e dos detalhes íntimos dos bastidores da guerra, o quadro final do campo de batalha é
feito de traços simples, tragicamente comoventes: de um lado o fato da heterogeneidade; de
outro a necessidade lírica do monismo. Como passagem de um lado a outro, está o tema da
presente parte: a situação-limite.
20
Uma advertência se faz oportuna por ocasião do emprego da palavra “sentido”. Caso seja considerado com
justiça que a linguagem (não apenas poética) seja sempre capaz de conferir sentido, deve-se admitir que mesmo
um mundo “carente de sentido”, quando expresso, ganhe sentido pela expressão. A presente pesquisa não se opõe a
essa argumentação, mas não se orienta por ela. A expressão “sentidoé aqui empregada em âmbito ontológico, e
não semântico. Assim, o reino da diferenciação, embora expresso pelo sujeito poético do Eu, carece de sentido por
ser existencialmente inadmissível pelo Eu e por entrar em choque com a intuição poética do autor. Portanto, ao fazer
opção por esse emprego da palavra “sentido”, esta pesquisa pretende apenas fazer justiça à obra em estudo, que
parece possuir raras incursões metalingüísticas.
44
1. LOCALIZAÇÃO E SENTIDO DA SITUAÇÃO-LIMITE
Augusto dos Anjos viveu em um período histórico em que os métodos científicos
gozavam de ampla credibilidade. A ciência de seu tempo creditava à vida um sentido, por nela
encontrar uma ordem chamada evolução. Compreender em sua totalidade o fenômeno da vida
era uma prerrogativa desse saber positivo, deslumbrado pela crescente hipertrofia da razão e por
suas possibilidades. Mas Augusto dos Anjos não pode identificar uma ordem na existência,
porque não a considera com um olhar de cientista.
21
Os homens de ciência não vêem o que o
poeta. Este último é capaz de ver a evolução, mas por “evolução” não entende “ordem” ou
“sentido”, como a ciência. O que o Eu vê, simplesmente,
É a evolução do novo para o velho
E do homogêneo para o heterogêneo!
(As cismas do destino – III)
Aos homens de ciência o sujeito lírico diz, na mesma parte do mesmo poema:
Em vão, com a bronca enxada árdega, sondas
A estéril terra, e a hialina lâmpada oca,
Trazes, por perscrutar (oh! ciência louca!)
O conteúdo das lágrimas hediondas.
As categorias da ciência finissecular conferem critério ao mundo e medem-no com o
metro da evolução, tornando-o ordenado, compreensível, total, “esférico”, para usar uma
expressão parmenidiana. Mas o Eu não é capaz desse olhar: sua experiência diante da existência
é o desconforto. O sujeito lírico debate-se em sua ansiedade pelo sentido, articulando
internamente o conflito radical de uma consciência que se expressa pela indignação, sem meias
palavras, como num desabafo, denunciando a dor e o sofrimento resultantes daquilo que, ao
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olhar da ciência, era uma ordem positiva dotada de sentido. A perturbação do Eu diante da dor,
da morte e da desesperança regras de um mundo em permanente decrepitude estão na razão
direta das constatações que opera, do sentimento que experimenta. É a fatalidade do processo
vital, que não poupa nenhum ente, no “curso inquieto da terráquea luta” (As montanhas – II).
Em sua dolorosa caminhada entre os restos de um mundo moribundo do qual também faz
parte, é possível notar que o sujeito poético não apenas constata esse mundo, mas também o toca,
examina, escuta e, numa palavra, sente enquanto indivíduo singular o fenômeno da vida em sua
dor hereditária. A verificação da diferenciação enquanto regra do mundo é feita de uma poesia
essencialmente sensorial. A aproximação entre “Eu poético” e “mundo” (caso tenham sido em
algum momento apartados) não ocorre pela abstração das penumbras, das “vozes veladas”,
névoas, vapores e formas indiscerníveis. Sua matéria é a concretude em estado bruto. O Eu é
consciência, mas é também corpo, atirado no mundo, solidário de todos os seres que consigo
compartilham da dor de existir. O Eu, ao dizer da evolução e de seu impiedoso processo de vidas
e de mortes, não fala de uma morte in abstracto, mas arranca “os cadáveres das lousas”, examina
a “fauna imunda” em suas “partes podres”, em seus tormentos e falências, constatando
cruamente o universo que o cerca, perguntando por seu sentido. A tarefa do Eu é, numa
expressão feliz da crítica recente, o “afrontamento do terrível” (Bueno, 2004, p. 27).
O sujeito poético de Augusto é uma consciência visionária, um espião, ser dotado de um
olhar hipertrofiado, assombrado por visões, vozes indescritíveis, odores e texturas repulsivos,
aparições hediondas. Entre os fantasmas que o perseguem, está a sua própria consciência, a
sombra-assombrada desse “fantasma na noite dos vencidos”, como bem disse Prado (2000).
Todo o sofrimento do mundo desgovernado habitado pelo Eu tem uma origem: a
21
Sobre a índole científica do Eu, um exame mais acurado será feito por ocasião da parte seguinte, uma vez que
alguns intérpretes atribuem à essa índole o monismo do autor.
46
diferenciação da existência. Sendo o sujeito poético uma parte desse meio, sua inquietação ganha
um perfil algo trágico, não obstante a consciência que luta incansavelmente para desse trágico se
afastar. A essa consciência solitária que atesta em si mesma a própria diferenciação, só resta uma
opção: partir em busca de algo que dê sentido ao fato da existência. E esse sentido não pode ser
encontrado na individualidade, que não é senão uma simples peça do jogo do processo vital.
Estamos, portanto, no coração daquilo que foi acima mencionado como a dimensão trágica do
Eu: o sujeito lamenta por uma existência marcada pela singularidade, mas só o faz a partir de sua
própria singularidade, da qual é consciente.
Surpreendido nesse lugar urgente, o sujeito poético verifica, com o olhar dividido a
exemplo de um Janus, dois universos incompatíveis: de um lado um universo logicamente
anterior, falido, povoado de gritos, secreções e fraquezas, e de outro lado a necessidade de
atribuir sentido a esse universo, salvá-lo num momento lógico seguinte. A aporia não é uma
opção. Eis a reflexão que localiza a situação em que se encontra o Eu: a situação-limite, o
pasmo, a perplexidade diante de sua condição. Na trajetória lírica do Eu, a situação-limite ocupa
lugar médio entre a constatação da dor da existência e o anúncio da possível solução para aquela
dor (o monismo).
Pretende-se aqui traçar, por meio de alguns exames analíticos, o caminho que conduz o
Eu do Eu à situação-limite, tentando apresentar, ao mesmo tempo, no que consiste aquela
situação e quais as suas características. Para tanto, alguns passos devem ser seguidos.
Em primeiro lugar, a) demonstrar de que modo a voz do Eu se manifesta nos poemas
enquanto consciência lírica que se destaca na existência. Esse passo é importante na medida em
que a perplexidade da situação-limite só é possível conscientemente.
47
Em segundo lugar, b) apresentar os elementos segundo os quais o Eu anuncia sua recusa
à singularidade da diferenciação de que faz parte. Essa etapa corresponde à descoberta, pelo Eu,
de que não uma solução para a existência senão fora dela, ou seja, é o instante imediato que
antecede à perplexidade que caracteriza a situação-limite.
E enfim, c) pesquisar em que consiste a perplexidade da situação-limite em si mesma e
em sua urgência irrevogável.
Atingido esse último ponto, será possível prosseguir, na companhia inquietante do sujeito
poético de Augusto dos Anjos, rumo à resposta necessária ao problema da existência, que se dá,
num momento final, na apresentação do monismo do autor, tema de nossa última parte e,
segundo a presente pesquisa, ponto mais alto da poesia do poeta.
O processo que culmina na situação-limite do Eu é, portanto, composto pelo destaque
do Eu lírico enquanto consciência e pela recusa da singularidade. Sobre aquele primeiro passo (o
destaque do Eu como voz lírica), seria interessante um breve comentário. Ainda que, na
aparência, a proeminência do sujeito rico não seja aspecto especial por ocasião deste tema
uma vez que a poesia lírica se dá, regra geral, a partir da voz central de um “eu lírico” no caso
em estudo talvez isso seja especialmente significativo, tendo em vista o caráter ontologizante da
poesia de Augusto dos Anjos. Não é aqui exatamente o tempo para o tratamento cuidadoso da
dimensão ontológica do Eu, mas é importante que já seja dito que, sob a proteção de uma
posição semanticamente privilegiada (o “sujeito” poético), o Eu augustiano reserva a si mesmo
um lugar ontologicamente privilegiado. E vice-versa: o Eu é um ser privilegiado (sua
consciência é a própria voz que se eleva acima de todas as coisas), o que garante sua
proeminência enquanto sujeito poético. Em suma, o mais importante aqui é destacar na
existência uma consciência, e, ao mesmo tempo, destacar do poema um sujeito (tomado aqui de
48
modo unívoco por pura opção metodológica de análise: sabe-se que o Eu do Eu possui várias
vozes). Uma consciência sem sujeito é muda, porque não anuncia sua perplexidade, e uma
perplexidade que não se expressa não existe poeticamente. Por outro lado, um sujeito sem
consciência é vazio, e não perplexidade inconsciente. Ambos são um só: o sujeito lírico
consciente, rumo à inquietação perplexa da situação-limite, atravessando a existência como uma
lança e, no caso específico do Eu, apesar dessa existência.
Quanto à recusa da singularidade (tema enumerado acima como letra “b”), é discussão
que se relaciona diretamente com a anterior. Seu exame a partir dos poemas do Eu demanda o
estudo prévio daquela voz consciente, singular, que se destaca enquanto sujeito lírico. O Eu do
Eu não pode recusar a diferenciação (a singularidade) se não a identificar (enquanto marca
distintiva da existência) em si mesmo e nos demais entes. Logo, trata-se de um único
movimento: saber-se um ente singular e saber da singularidade dos seres existentes.
Vejamos ambos os aspectos, para que depois possamos atingir o núcleo da situação-
limite.
49
1.1. O Eu e a “coletividade sofredora”
A partir da própria singularidade que compõe a heterogeneidade da existência, o sujeito
poético (que dela faz parte) entende discutir, por analogia ou abstração, a singularidade em si
mesma. A diferenciação que vitima a vida deve ser recusada por ter um caráter problemático
para o Eu, por não constituir para ele um sentido. Esse movimento de singularização deve,
portanto, ser combatido. Para que isso seja possível, o Eu precisa reconhecê-la também em si
mesmo, uma vez que a solução radical que se exige para a existência não pode se apoiar numa
recusa parcial da singularidade. O Eu também se inclui, enquanto ente singular. O monismo
(desfecho desejado e anunciado pelo Eu) não se conjuga com nenhuma forma de existência que
não a da própria Mônada (que, a rigor, não é uma “existência”, que não um “fora” da
Mônada). O Eu deseja que a nau da existência a pique e, por mais que profetize o naufrágio,
sabe que dele não lhe será possível se salvar. Diz a estrofe inicial de Budismo moderno:
Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!
Em uma obra que traz no título da primeira edição a própria expressão da particularidade
Eu em letras grandes, maiúsculas e vermelhas, o sujeito que se faz ouvir está condenado a si
mesmo, preso em sua própria pele, vitimado por seus pensamentos, e entende tomar consigo a
voz de toda uma existência, clamando em nome dela por resposta. É o Eu que transita entre
escombros, que é vítima de uma vigília eterna, que é o visionário do drama da Vida. O Eu
augustiano está no título por seu caráter tentacular, por sua amplitude perceptiva e pela dimensão
excessiva de sua presença no mundo.
50
Enquanto sujeito lírico fadado à distinção da própria materialidade, o Eu se separa, no
entanto, da desordem comum dos seres. Mas tal distinção se apenas pelo destaque da
personificação (ou da consciência, como foi dito). O Eu é o representante da existência em que
se situa, o porta-voz de um mundo em escombros, a singularidade entre as singularidades. Trata-
se de uma distinção qualitativa em grau muito sutil. Entre as vozes indiscerníveis do universo
sofredor, o sujeito augustiano é apenas a voz proeminente, apenas a voz que identifica a dor da
diferenciação, apenas o ser que permite que a existência se manifeste. É o condenado que ainda
tem forças para falar, mas que se sabe um ente mundano e miserável como todo o resto.
Noite. Da Mágoa o espírito noctâmbulo
Passou de certo por aqui chorando!
Assim, em mágoa, eu também vou passando
Sonâmbulo... sonâmbulo... sonâmbulo...
Que voz é esta que a gemer concentro
No meu ouvido e que do meu ouvido
Como um bemol e como um sustenido
Rola impetuosa por meu peito adentro?!
- Por que é que este gemido me acompanha?!
Mas dos meus olhos no sombrio palco
Súbito surge como um catafalco
Uma cidade ou mapa-múndi estranha.
(Insônia).
O estranhamento e a apreensão diante do cotidiano e de sua marca fatal também se
revelam nestes versos de As cismas do destino – I, numa curiosa antecipação do martírio de Josef
K. na obra kafkiana O processo:
Por toda a parte, como um réu confesso,
Havia um juiz que lia o meu processo
E uma forca especial que me esperava!
O Eu, condenado ao gemido quando quer falar, é também particularidade, acidente
fenomênico digno de dissolução em nome do fim da perturbação e da anomalia que caracterizam
51
o processo vital. O sujeito poético, esse arauto da Unidade que prega seu próprio sacrifício, é o
Eu que revela mais uma vez sua apreensão em Gemidos de arte - I, fazendo sua a voz da própria
existência:
Esta desilusão que me acabrunha
É mais traidora do que o foi Pilatos!...
Por causa disto, eu vivo pelos matos,
Magro, roendo a substância córnea da unha.
Aqui, seria importante situar um dos elementos mais representativos na situação
consciente da subjetividade lírica do Eu. Trata-se de um recurso algo comum na obra augustiana,
uma expressão poética particularmente interessante, que consiste na ambientação inicial de
vários poemas. É em alguns desses momentos que Augusto dos Anjos revela uma das faces mais
densas de sua poesia, que consiste na rápida aclimatação inicial das figuras mais marcantes do
poema, na invenção dos mundos em que pretende atirar o leitor. Segundo Gullar, Augusto
é sobretudo um criador de “atmosferas”, nisso residindo talvez a força principal de sua
linguagem gótica” e teatral. Daí a adequação de tema e linguagem [...]. (Gullar, 1976,
p. 49).
Segundo Lins, para que Augusto criasse o clima poético próprio para suas idéias, ele
levantava “logo nos primeiros versos uma atmosfera que envolvia o leitor, que o obrigava a
colocar-se imediatamente dentro do espírito e do ritmo do poema” (Lins, 2004, p. 123). Ao
localizar de antemão o cenário do poema, o sujeito lírico marca com clareza sua posição
privilegiada, seu olhar atento e onipresente que, ainda que dentro do processo vital que exibe, é
capaz de dele se destacar enquanto voz lírica.
Com o objetivo de ilustrar esse recurso da ambientação inicial, será importante trazer os
exemplos de alguns poemas. O tratamento dado por Augusto dos Anjos aos cenários onde se
desenvolve sua poética é um pressuposto para que possa ser compreendida a natureza da
52
distinção entre o Eu e os demais entes. Aqueles cenários são, predominantemente, um efeito da
ambientação inicial que passaremos a examinar.
Ouçamos, como um primeiro exemplo, os versos de abertura do Eu, do mencionado
poema Monólogo de uma sombra:
"Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Polipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!
A simbiose das coisas me equilibra.
Em minha ignota mônada, ampla, vibra
A alma dos movimentos rotatórios...
E é de mim que decorrem, simultâneas,
A sáude das forças subterrâneas
E a morbidez dos seres ilusórios!
É notável que se forma, a partir de estrofes iniciais profundamente densas, toda a
atmosfera que conduzirá o poema. A voz que se apresenta (ou a voz da alteridade que fala ao Eu
por si mesmo) o faz ao longo de todo o poema, mas nas primeiras estrofes se sente o “clima”
(a “inclinação”) em que se o monólogo. Esse clima é o próprio espírito que anima o poema.
Apresenta-se rapidamente o cenário noturno, o palco ontológico onde se desenvolve o drama da
existência. A “Sombra” que fala ao Eu não é um ente deste mundo, e tem algo a anunciar. Ela é
um sinal da multidão de vozes que atormentam, enquanto termos da reflexão lírica, a consciência
do sujeito poético. A “Sombra”, o batedor do Eu, premiada com a prosopopéia de um monólogo
feito de pressentimentos, constatações e advertências, é uma mistura do homem platônico que
retorna à Caverna e da aparição atemporal que faltou a Dickens. Ela vem da “substância de todas
as substâncias”, dos recônditos do universo, da Mônada, esse “cósmico segredo”, instante sem
duração que precedeu a Vida. Mas não se sente, afinal, como o filósofo platônico. Ouçamo-la:
53
Aí vem sujo, a coçar chagas plebéias,
Trazendo no deserto das idéias
O desespero endêmico do inferno,
Com a cara hirta, tatuada de fuligens
Esse mineiro doido das origens,
Que se chama o Filósofo Moderno!
Quis compreender, quebrando estéreis normas,
A vida fenomênica das Formas,
Que, iguais a fogos passageiros, luzem...
E apenas encontrou na idéia gasta,
O horror dessa mecânica nefasta,
A que todas as coisas se reduzem!
Seria uma sombra capaz de desmascarar outras sombras? De gritar ao mundo da
“mecânica nefasta” que anima a existência?
Na rápida ambientação inicial criada pelo poeta, um aspecto figurativo se destaca: o
contexto poético do passeio noturno do Eu. Em quase todos os poemas onde se descobre um
cenário inicial rapidamente evocado, Augusto lança mão desse expediente algo comum em sua
lírica, e que provoca em alguns poemas um efeito dramático imediato. Porém, como já indica sua
própria “noturnidade”, não se trata de um passeio em devaneio, à maneira de Rousseau, ou de
uma caminhada ao modo nietzschiano, em companhia de reflexões filosóficas mais ou menos
acidentais. O caminho do Eu não é tranqüilamente reservado, retirado, ao mesmo tempo em que
não é cercado por uma atmosfera bucólica de bosques aprazíveis ou personagens campestres
agradáveis e peculiares. O passeio do Eu parece estar mais próximo daquele feito pelo príncipe
indiano, que, para além dos limites de seu castelo, descobre, em meio aos seres miseráveis de
toda sorte, sua hipersensibilidade à dor que resultará na doutrina budista.
Mas o passeio augustiano também não é um solilóquio impressionista e isento, confinado
à sua própria consciência. O passeio do Eu é noturno, porém menos por ser “escurodo que por
poder prescindir de luz. Suas companhias são fantasmas, indigentes, prostitutas moribundas,
abandonados, doentes, pássaros engaiolados, cadáveres e sombras, todos reunidos numa
54
tempestade afoita de declarações desconexas. É através do passeio noturno que o Eu ambienta ao
leitor e a si mesmo o seu mundo decomposto, ao mesmo tempo em que dele se destaca enquanto
porta-voz e testemunha privilegiada.
Segundo Bueno, esse recurso do passeio noturno seria um fator de aproximação entre
Augusto dos Anjos e Cesário Verde (Bueno, 2004, p. 26). A propósito desse paralelo, cita como
exemplo o poema O Sentimento dum ocidental, do poeta português. Ouçamos, a título de
exemplo do que diz Bueno, as duas estrofes iniciais de Ave Marias, primeira parte do poema
citado:
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba,
Toldam-se duma cor monótona e londrina.
22
22
Há, nessa rápida menção ao poema de Cesário Verde, alguns outros elementos que parecem aproximá-lo de
Augusto dos Anjos. Para o leitor familiarizado com a linguagem augustiana, é especialmente curioso o uso de
“edifícios” e de “chaminés”, que soam como o Augusto de Os doentes – IX:
Mas, a meu ver, os sáxeos prédios tortos
Tinham aspectos de edifícios mortos,
Decompondo-se desde os alicerces!
Ou de As cismas do destino – I:
Cala um ar danado de doença
Sobre a cara geral dos edifícios!
Idéia semelhante (ambientada em torno de edificações e construções) ainda ocorre por ocasião de Gemidos
de arte – III, onde, ao visitar a casa do “finado Toca”, o Eu só encontra escombros e sinais de destruição:
Na bruta dispersão de vítreos cacos,
À dura luz do sol resplandecente,
Trôpega e antiga, uma parede doente
Mostra a cara medonha dos buracos.
ainda uma série de outras figuras dignas de um estudo comparativo entre os dois autores, entre elas o
tratamento dado à podridão e à doença. A discussão seria ampla, e demandaria um exame mais cuidadoso também
do Livro de Cesário Verde. No entanto, para o fim da presente pesquisa, basta a menção feita por Bueno em relação
à idéia comum do passeio noturno.
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Vê-se que o expediente usado por Verde no poema consiste também numa ambientação
inicial a partir de um passeio noturno. Semelhante emprego da mesma figura ocorre na parte III
do mesmo poema, denominada Ao gás. Cito as estrofes iniciais:
E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.
Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.
Não obstante, a aproximação entre os autores, no que se refere a esse aspecto, talvez seja
menos natural do que aparenta ser. Afinal, o recurso do passeio em meio à “soturnidade” possui,
em Verde, um elemento quase ausente na poesia de Augusto: a melancolia. O Eu augustiano não
é melancólico: é perturbado e inquieto. Sabia-o bem João Cabral (Oliveira, 1999), ao colocar,
lado a lado, em O sim contra o sim, poema que integra a obra Serial, Augusto dos Anjos e
Cesário Verde. Sobre o poeta português, diz o verso de João Cabral:
Cesário Verde usava a tinta
de forma singular:
não para colorir,
apesar da cor que nele há.
Talvez que nem usasse tinta,
somente água clara,
aquela água de vidro
que se vê percorrer a Arcádia.
Já ao dizer de Augusto, prossegue o poeta pernambucano:
Augusto dos Anjos não tinha
dessa tinta água clara.
Se água, do Paraíba
nordestino, que ignora a Fábula.
Tais águas não são lavadeiras,
56
deixam tudo encardido:
o vermelho das chitas
ou o reluzente dos estilos.
E quando usadas como tinta
escrevem negro tudo:
dão um mundo velado
por véus de lama, véus de luto.
Donde decerto o timbre fúnebre,
dureza da pisada,
geometria de enterro
de sua poesia enfileirada.
O sim contra o sim é um dos poemas quadripartidos de Serial. É composto por quatro
pares de artistas: dois de poetas (Marianne Moore e Francis Ponge; Cesário Verde e Augusto dos
Anjos) e dois de pintores (Miró e Mondrian; Juan Gris e Dubuffet). João Cabral, a partir de uma
frente dupla (a obra augustiana e o olhar projetado por ele, João Cabral, sobre essa obra), cuida
do poeta paraibano como uma espécie de “pintor de poesias”, dotado dessa “dureza de pisada” e
dessa “geometria de enterro” que em tudo pretende a ordem das imagens inequívocas, resultado
insistente de uma poesia descritiva, minuciosa, “enfileirada”, mas nunca de “água clara”, como
em Cesário Verde. Nesse sentido, o olhar cabralino é preciso: o timbre fúnebre” de Augusto
vem de uma visão de mundo “que ignora a Fábula”, e que é descritiva por virtude e por
necessidade, por reconhecer no mundo um véu que resiste ao olhar: não se através de “véus
de lama”.
Não obstante a proximidade entre as imagens empregadas pelos dois autores, Augusto
dos Anjos parece se afastar de Cesário Verde pelo que, em sua lírica, repreende o tom
melancólico em nome de um certo expressionismo, feito daquela infalível escrita rubro-negra a
que se refere João Cabral (não obstante a concessão manifesta de Augusto a um azul mais
57
ameno
23
). A propósito da índole expressionista da obra de Augusto, Rosenfeld (2004) lembra
que não existem registros de que o poeta tenha conhecido o movimento expressionista alemão.
No entanto, sua “exogamia lingüística” (expressão atribuída a Adorno por Rosenfeld) seria uma
pista capaz de aproximar ambos os universos (Rosenfeld, 2004, p. 186).
24
Em caminho semelhante, Prado (2000), ao introduzir sua edição de Eu e outras poesias,
entende que “o tonus de sua lírica [de Augusto] vai situar-se no pólo oposto ao do locus poético
que Wordsworth preconiza em seu prefácio”, referindo-se a comentário do poeta inglês à
segunda edição de Lyrical Ballads. Nessa publicação, que contempla Wordsworth e Coleridge –
poetas fundadores do romantismo inglês o primeiro defenderia, segundo Prado, uma
“combinação entre intuição e consciência” em matéria poética; “um certo colorido de
imaginação graças ao qual as coisas familiares seriam apresentadas”. A referência ao “colorido
da imaginação” parece de fato contrastar com a proposta poética augustiana, pelo que Prado
arremata: “Nada mais distante o leitor verá da lírica de Augusto dos Anjos”, poeta que
apresenta “um novo instrumento literário que passa a dialogar com o inusitado” (Prado, 2000, p.
XXI-XXII).
De posse desse “novo estado poético, esdrúxulo e dissonante” (Prado, 2000, p. XXII), e
mergulhado no ambiente sombrio e noturno em que caminha e que cuida de intensificar com as
mais diversas figuras poéticas, o Eu cria, em sua hipersensibilidade ao sofrimento da existência,
atmosferas radicadas na tangibilidade inesgotável do mundo da diferenciação, composto não
apenas de imagens, mas de texturas, sons e odores, como atestam os versos de Os doentes – III:
23
A título de mera curiosidade biográfica, vale citar que, no ano de sua morte, Augusto responde ao “Inquérito” de
Licínio dos Santos, por ocasião da publicação carioca de A loucura dos intelectuais. Quando perguntando sobre “as
cores de sua predileção”, o poeta responde: “A vermelha e a azul” (Bueno, 2004, p. 799).
24
Algumas breves considerações sobre um expressionismo de Augusto dos Anjos serão feitas posteriormente, por
ocasião do estudo do léxico científico empregado no Eu. O tema do expressionismo no Eu parece ser especialmente
58
Era a volúpia fúnebre que os ossos
Me inspiravam, trazendo-me ao sol claro,
À apreensão fisiológica do faro
O odor cadaveroso dos destroços!
Outro exemplo ocorre ainda em Aberração:
Criando na alma a estesia abstrusa da ânsia,
Como Belerofonte com a Quimera
Mato o ideal; cresto o sonho; achato a esfera
E acho odor de cadáver na fragrância!
O tato, por sua vez, é tido no soneto O meu nirvana como “ínfima antena
aferidora/Destas tegumentárias mãos plebéias”.
Todavia, no que se refere ao recurso da intuição empírica, a poesia do Eu é, na essência,
visual, visionária. Poeta inevitavelmente visceral (em todas as significações do termo), Augusto
não se ausentaria na tarefa de atribuir aos sentidos a capacidade de verificar, de modo direto,
cirúrgico e impiedoso, todas as heranças de podridão e dor de seu universo anti-lógico. Daí que o
sujeito poético não se detenha na superfície da matéria. A intuição empírica não é aqui apenas
uma ferramenta de contemplação ou de fria conferência do real. Numa linguagem em nada
abstrata, Eu emprega a sensibilidade em sua potência máxima para descrever um mundo de
decomposição, morte e podridão.
Não conheço nenhum outro poeta brasileiro, anterior a Augusto dos Anjos, que, a fim
de exprimir a experiência concreta vivida, tenha de tal modo abandonado os recursos
literários usuais, dado costas aos canais prontos da metáfora prestigiosa. (Gullar, 1976,
p. 23).
Num mundo governado pelo desconforto da evolução, sua investigação crua das coisas e
sua indignação de consciência inquieta operam entre si uma intensa comunhão, cujo resultado
vasto e interessante, e não me constam estudos aprofundados a seu respeito. Todavia, a presente pesquisa não pode
se ocupar dele de modo mais detido.
59
lírico é o espetáculo cortante do efêmero. Manifestar o escândalo da vida não é uma tarefa do
intelecto, mas dos sentidos, no exame íntimo dos corpos orgânicos e inorgânicos em suas
secreções, texturas e odores. Em Poema negro, dedicado a Santos Neto, o sujeito lírico expõe
seu método empírico:
Nesta sombria análise das cousas,
Corro. Arranco os cadáveres das lousas
E as suas partes podres examino...
Essa metodologia funesta nada mais é senão o resultado da capacidade visionária do Eu, e
do forte apelo visual que caracterizam os versos de Augusto dos Anjos. De fato, como já foi dito,
não são raras no Eu as menções à vista e ao olhar, e em muitos poemas é construído, através
do instrumento da visão, logo naquelas ambientações dos primeiros versos, o palco onde se
desenvolverá o drama das demais estrofes. Nesse olhar de poeta, as imagens nunca são
nebulosas, turvas, evanescentes. São duras, concretas, frias, concentradas. Não são, de fato,
impressões poéticas: são expressões. Os versos são explosões prestes a acontecer.
A pronta apresentação do cenário do drama é um preâmbulo sintético extremamente
eficaz para que o apelo visual adquira a potência dramática necessária à construção do poema.
Isso ocorre tanto nos poemas mais longos quanto nos mais curtos, ainda que o recurso seja mais
comum naqueles. Transcrevo, a propósito, o soneto O morcego, como um exemplo de poema
curto:
Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.
"Vou mandar levantar outra parede..."
- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!
60
Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!
A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, á noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!
A circunstância da aparição do morcego que entra “Imperceptivelmente em nosso
quarto” é logo posta por duas figuras: “meia-noite” e “meu quarto”, aliadas à figura do dado
perturbador que compõe todo o poema: o morcego, materialização da intrusiva “Consciência
Humana”, como revela o último terceto. Há, além disso, um transcurso temporal em O morcego
(assim como em vários outros poemas de Augusto): na narração que subjaz aos versos, uma
duração entre o recolhimento” do sujeito lírico e o ataque da consciência-morcego no quarto
verso.
25
O caráter dramático exemplar de O morcego vai ao encontro da observação de Auguste
Dorchain, recuperada por Moisés em seu estudo sobre a forma-soneto:
25
Um eco digno de menção de O morcego parece ocorrer em momento literário não tão distante, a saber, na obra de
Drummond. Cito as duas primeiras e a última estrofes do poema A bruxa (Drummond, 1993, p. 73-74):
Nesta cidade do Rio,
de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto,
estou sozinho na América.
Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído
anunciou vida a meu lado.
Certo não é vida humana,
mas é vida. E sinto a bruxa
presa na zona de luz.
[...]
Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
querendo romper a noite
não é simplesmente a bruxa.
É antes a confidência
Exalando-se de um homem.
A bruxa foi publicado pela primeira vez em José (1942). Para a presente argumentação (acerca da
ambientação inicial), o diálogo com o poema de Drummond permite perceber alguns elementos relevantes. A bruxa
61
Por sua progressão e conseqüente marcha para o desfecho, tem o soneto alguma
semelhança com a obra dramática, desde que se considerem os dois quartetos como a
exposição, o primeiro terceto como núcleo e o último como remate. (Dorchain apud
Moisés, s/d, p. 84).
Após o exemplo de um poema longo (Monólogo de uma sombra) e de um curto (O
morcego), vejamos agora um exemplo de um outro poema longo: As cismas do destino. Um dos
momentos mais significativos de Augusto dos Anjos, As cismas do destino poema
mencionado nesta pesquisa em algumas ocasiões – adquire progressivamente, ao longo de alguns
anos, a forma final que seria publicada no Eu. em 1908, a publicação em periódico de suas
primeiras quadras provoca fortes impressões iniciais.
26
Os versos do poema ilustram “o destino
do homem cansado, sofredor e decadente, presa dos cios na alma e no corpo” (Carvalho apud
Magalhães Júnior, 1978, p. 185). O exame de As cismas do destino requer uma aproximação
traz uma ambientação inicial, mas em tom bem distinto (menos condensado) daquele empregado por Augusto em O
morcego. Talvez porque, não obstante “morcego” e “bruxa” pertencerem ao mesmo domínio simbólico (vôo
noturno, impureza demoníaca), a bruxa drummondiana seja habitante imemorial do quarto do poeta, enquanto que o
morcego de Augusto surge para devassá-lo, para violentar seu repouso breve e suspeito. Se o poeta do Eu quer
expulsar a pauladas o invasor, tendo em vista sua presença indesejada e assustadora, Drummond acolhe a “presença
agitada” da bruxa enquanto algo interditado que se apresenta “exalando-se de um homem”. Ambas as figuras,
morcego e bruxa, são avaliadas em sua porção de humanidade (pelo que de humanidade lhes falta e lhes é próprio):
em Drummond, a bruxa “não é vida humana”, ainda que seja “confidência”; em Augusto, o morcego nasce de um
ventre desconhecido, mas é humano enquanto “Consciência”. Há, contudo, uma marcante distinção, quase
ilustrativa da distância que separa a índole poética dos autores: em Drummond a bruxa não é vista (“E sinto a
bruxa”) como simplesmentebruxa, mas como “ruído”, sinal de “vida”; em Augusto o morcego é a “Consciência
Humana”, esse “feio parto” que tudo quer ver e que é, ao mesmo tempo, intensamente visto (“E olho o teto. E vejo-o
ainda, igual a um olho, / Circularmente sobre a minha rede!”), ainda que sua invasão seja paradoxalmente
“imperceptível”, sutil.
26
Comportamento usual adotado não apenas por Augusto com o intuito de divulgar sua poesia, a publicação de
trechos de poemas e poemas inacabados em periódicos deu vazão às primeiras experiências que culminariam no Eu,
em 1912. Vale lembrar que, a rigor, segundo Moisés (2001, p. 77), o termo “periódico” não se aplicaria no Brasil até
1808, ano da publicação do poema augustiano. Referindo-se a períodos anteriores a 1808, a expressão é empregada
livremente em outros momentos deste estudo, como mero sinônimo de divulgação impressa de distribuição
irregular, embrião do futuro “periódico”. Especialmente sobre As cismas do destino, Magalhães Júnior (1978)
dedica-lhe todo um capítulo de sua obra, cujo conteúdo inclui um exame das variantes. Na ocasião, o intérprete
destaca o longo comentário do poeta e folclorista José Rodrigues de Carvalho, cujas primeiras linhas são:
Acabo de ler as “Cismas do destino”, de Augusto dos Anjos. Qual a impressão que me
ficou, não sei, tal o turbilhão de secretas emoções que me dominam. Há através
daqueles versos, rijos, confusos, frios e ilógicos, às vezes, a consciência misteriosa de
um mundo artístico e filosófico, que eu pressinto existir, mas que não me é dado
estudar (Magalhães Júnior, 1978, p. 183-184).
62
mais cuidadosa, tendo em vista sua importância para o tema da criação de atmosferas. Em sua
estrofe de abertura, canta o Eu:
Recife, Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!
Referindo-se à poesia de Augusto, Bandeira diz: “É uma expressão por estampidos”
(Bandeira, 2004, p. 115). A estrofe citada atesta-o: é uma estrofe feita de golpes. Golpes de
realidade, de crueza, de forte presença imagética. “Recife”, diz o Eu. Mas um único calafrio não
é suficiente. “Ponte Buarque de Macedo”, diz agora, mais preciso. Segue-se um próximo golpe:
o “Eu”, que caminha, é “assombrado” pelo Destino, por seu próprio corpo, por sua própria
peculiaridade, por sua própria singularidade. O destino, que atravessa a ponte na companhia do
Eu, não pode ser ignorado: é a “casa do Agra”.
27
A seguir, ouvimos:
27
Lins (2004, p. 123-124) lembra, a propósito da “casa do Agra”, que a sugestão inicial desse poema adquire mais
vivacidade àqueles que não ignoram o dado biográfico de que “aquela ‘casa do Agra’ no Recife é uma casa
funerária”. Augusto refere-se à mais conhecida empresa funerária do Recife de então, fundada por um sapateiro de
nome Manuel Gonçalves Agra (Magalhães Júnior, 1978, p. 181-182). Como diálogo que se estabelece, no domínio
das imagens, entre dois autores que carregam (não apenas em sua obra) as marcas da cidade do Recife, note-se ainda
o comentário de João Cabral de Melo Neto ao seu poema História de pontes, da obra Crime na Calle Relator
(1985-1987). Ainda que o poema de Cabral não referencie a “Ponte Buarque de Macedo” como faz Augusto em As
cismas do destino, a presença nominal não seria mais relevante do que a exploração da mesma “atmosfera noturna,
daquelas pontes do Recife”, como Cabral, em entrevista a Luiz Costa Lima, diz pretender (Athayde, 1998, p. 120).
Igualmente interessantes entre os dois poemas são as nuances do parentesco da “boca” comum, que assombra e
ameaça o transeunte que ousa atravessar a ponte, o que se nota, por exemplo, nestes trechos:
Boca de assombração, vazia,
Onde um único dente havia,
(Cabral, História de pontes)
Uivava, dentro do eu, com a boca aberta,
A matilha espantada dos instintos!
(Augusto, As cismas do destino)
Igualmente digno de menção é o poema Recife morto, de Joaquim Cardozo, uma das mais proeminentes e
expressas influências de Cabral. Escrito em 1924 e publicado vinte e três anos mais tarde na obra Poemas, Recife
morto traz um parentesco estilístico notável com o poema augustiano, muitas décadas antes da publicação do poema
cabralino. Eis os versos iniciais:
63
Na austera abóbada alta o fósforo alvo
Das estrelas luzia... O calçamento
Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento,
Copiava a polidez de um crânio calvo.
Lembro-me bem. A ponte era comprida,
E a minha sombra enorme enchia a ponte,
Como uma pele de rinoceronte
Estendida por toda a minha vida!
A noite fecundava o ovo dos vícios
Animais. Do carvão da treva imensa
Caía um ar danado de doença
Sobre a cara geral dos edifícios!
E assim se apresentam as quatro primeiras estrofes. Está introduzido o drama da miséria
de todos os seres, a partir de uma cadeia de imagens que se origina na primeira estrofe, e se
completa com a doença que atinge “a cara geral dos edifícios”. É o fim da apresentação da
atmosfera inicial. Toma fôlego o impulso augustiano de “analisar as impressões de corrupção
física dos seres e das coisas que o rodeavam” (Freyre, 2004, p. 77). O caminho para uma futura
perplexidade está aberto com a presença nefasta da citada “matilha espantada dos instintos”
(As cismas do destino – I).
28
As estrofes dezenove a vinte e um são o sinal seguinte:
Recife. Pontes e canais.
Alvarengas, açúcar, água rude, água negra.
Torres da tradição, desvairadas, aflitas,
Apontam para o abismo negro-azul das estrelas.
E mais tarde:
As janelas das velhas casas negras,
Bocas abertas, desdentadas, dizem versos
Para a mudez imbecil dos espaços imóveis.
Sob o aspecto puramente pictórico, agregam-se aos versos supracitados de Cardozo a presença d“o mar de sombra
das vielas”, dos “telhados sombrios” e dos “fantasmas” que “vagam pelas velhas ruas”, numa atmosfera que em
muitos momentos recordam o Augusto de As cismas do destino.
28
A idéia do “instinto” na poesia de Augusto dos Anjos ainda merece um estudo detalhado. Como ímpeto vital
irrevogável, o instinto in abstracto é, em geral, desprezado, uma vez que seria fonte original de vida e evolução,
fator de dor e sofrimento. Além disso, o poeta experimenta franca comiseração diante da vida “instintiva” dos
animais não-humanos, que se aproximam da vida humana pela submissão à dolorosa imponderabilidade da
existência em geral. Em As cismas do destino – II, ouve-se:
64
Na ascensão barométrica da calma,
Eu bem sabia, ansiado e contrafeito,
Que uma população doente do peito
Tossia sem remédio na minh'alma!
E o cuspo que essa hereditária tosse
Golfava, à guisa de ácido resíduo,
Não era o cuspo só de um indivíduo
Minado pela tísica precoce.
Não! Não era o meu cuspo, com certeza
Era a expectoração pútrida e crassa
Dos brônquios pulmonares de uma raça
Que violou as leis da Natureza!
O que merece o lamento do poeta não é apenas “um indivíduo”. A individuação é, por si
só, um infortúnio. O que merece lamento é toda a humanidade enquanto prática de
singularização. O Eu caminha para a recusa do singular, o segundo e definitivo passo rumo à
urgência da situação-limite.
Mas um poema longo como As cismas do destino reserva novos cenários, renovadas
ambientações. Vejamos outros de seus trechos. Cito a última estrofe da parte II:
A alma dos animais! Pego-a, distingo-a,
Acho-a nesse interior duelo secreto
Entre a ânsia de um vocábulo completo
E uma expressão que não chegou á língua!
Surpreendo-a em quatrilhões de corpos vivos,
Nos antiperistálticos abalos
Que produzem nos bois e nos cavalos
A contração dos gritos instintivos!
Dessa “contração dos gritos instintivos” o poeta lança mão como meio de aproximar a vida dos bois, dos
cavalos ou dos cães à vida humana, não raro como um sinal do indizível a que se submete a existência. No mesmo
poema, ocorre mais tarde o verso “O instinto de procriar, a ânsia legitima”, que caminha na mesma direção. em
Os doentes V, a seguinte estrofe, que acrescenta ao tema a já anunciada trajetória monista em que culminará o
Eu, associando ao instinto humano a “saudade inconsciente da monera”:
Era (nem sei em síntese o que diga)
Um velhíssimo instinto atávico, era
A saudade inconsciente da monera
Que havia sido minha mãe antiga
65
Nisto, pior que o remorso do assassino,
Reboou, tal qual, num fundo de caverna,
Numa impressionadora voz interna,
O eco particular do meu Destino:
O poeta concede voz, a partir daqui, ao Destino. A estrofe inicial da parte III é a seguinte:
"Homem! por mais que a Idéia desintegres,
Nessas perquisições que não têm pausa,
Jamais, magro homem, saberás a causa
De todos os fenômenos alegres!
Toda a parte III do poema é dedicada à voz do Destino, esse “eco particular”, a “voz
interna” do Eu, cujo timbre permite que o sujeito poético manifeste numa nova frente sua
presença consciente. A estrofe citada conduz a idéia geral do monólogo do Destino, ainda que
aqui não se verifique, a rigor, uma ambientação, uma apresentação de um cenário, como nos
demais exemplos. Todavia, ouçamos a última estrofe da parte III, e as primeiras estrofes da parte
IV:
Adeus! Fica-te ai, com o abdômen largo
A apodrecer!... És poeira, e embalde vibras!
O corvo que comer as tuas fibras
Há de achar nelas um sabor amargo!"
IV
Calou-se a voz. A noite era funesta.
E os queixos, a exibir trismos danados,
Eu puxava os cabelos desgrenhados
Como o rei Lear, no meio da floresta!
Maldizia, com apóstrofes veementes,
No estentor de mil línguas insurretas,
O convencionalismo das Pandetas
E os textos maus dos códigos recentes!
29
29
O verso 391 do poema, “Eu puxava os cabelos desgrenhados” figura alterado na transcrição equivocada de Santos
Neto em sua obra Perfis do Norte, publicado em Paris em 1910. A versão de Neto é “Eu puxava os cabelos
desgraçados”. A mudança também consta dos estudos de variantística da edição eleita para o desenvolvimento da
presente pesquisa. Segundo Magalhães Júnior, Augusto jamais teria empregado, em nenhuma variante do verso, o
adjetivo “desgraçados” (Magalhães Júnior, 1978, p. 189).
66
Após o longo e atento silêncio do Eu durante todo o tempo em que ouve o Destino – esse
desdobramento de sua consciência, seu estado mais recôndito e brutal surge na parte IV uma
outra ambientação. Tendo sido a parte III do poema dedicada à voz do Destino aquele mesmo
destino que amedronta o Eu na estrofe inicial da primeira parte (“Pensava no Destino, e tinha
medo!”) surge da profecia desse Destino um Eu recolocado e, a exemplo do início do poema,
de modo rápido e cortante. O poeta abrevia o efeito para intensificá-lo. Trata-se de um novo
estado de ânimo, um recomeço revigorado, após o monólogo do Destino na parte III.
Mas essa nova condição, em tudo o que parece trazer de alento uma vez que “Calou-se
a voz” terrificante daquela moîra – carrega também um desespero em tudo indiscreto e próprio, o
sentimento não apenas do mero exílio da consciência. O Eu do início da parte IV é a própria
expressão do abandono de uma consciência que se vê, a exemplo do louco Lear, “no meio da
floresta”, destronada pelo golpe do Destino que a tudo restitui seu lugar. Na obra de
Shakespeare, na segunda cena do terceiro ato, o Rei grita contra a tempestade a sua miséria:
Soprai, ventos, e exploda vossas faces! Fúria! Soprai!
Trombas e cataratas, vomitai torrentes,
Inundando os nossos campanários até aos coruchéus!
Chamas sulfurosas, rápidas como o pensamento,
Mensageiras do raio que fende os carvalhos,
Incendiai-me os cabelos brancos! E tu, trovão, que fazes tudo tremer,
Torna plano todo o mundo!
Quebra os moldes da natureza, extermina num momento os germes
Que produzem o homem ingrato!
30
30
“Blow, winds, and crack your cheeks! rage! blow!
Your cataracts and hurricanes, spout
Till you have drench’d our steeples, drown’d the cocks!
You sulphurous and thought-executing fires,
Vaunt couriers of oak-cleaving thunderbolts,
Singe my white head! And thou, all-shaking thunder,
Strike flat the thick rotundity o’ the world!
Crack nature’s moulds, all germens spill at once,
That make ingrateful man!”
(Shakespeare, w/d, p. 1044).
67
A exemplo do sujeito de As cismas do destino, o Rei Lear é esse “poor, infirm, weak”,
que lamenta sua porção inexorável de fortuna, carpindo contra toda a existência. Os queixos
exibem a fisiologia da angústia dos “trismos” que lhe interditam a palavra, a mesma palavra que,
se fosse capaz, explodiria como a fúria dos ventos na floresta. O Eu “puxava os cabelos
desgrenhados”, em seu desespero arrebatado de quem condena a natureza e tudo o que dela se
origina. A maldição de “apóstrofes veementes” surge como um recurso terminal de quem
constata que, tendo o Destino erguido a voz,
O Estado, a Associação, os Municípios
Eram mortos. De todo aquele mundo
Restava um mecanismo moribundo
E uma teleologia sem princípios.
Eis a natureza de Augusto dos Anjos: “uma teleologia sem princípios”. Mas é na
penúltima estrofe que o poeta parece compartilhar, com a máxima intensidade, da insanidade
desterrada do velho Rei shakespeariano:
Eu queria correr, ir para o inferno,
Para que, da psique no oculto jogo,
Morressem sufocadas pelo fogo
Todas as impressões do mundo externo!
A fúria da tempestade, o fogo que consome os cabelos brancos do derrotado Lear, todo o
inferno basta e é suportável diante das “impressões do mundo externo”. O inferno é o seu reino
decomposto, cuja alienação é sinônimo de injustiça e ingratidão.
Uma leitura detida de As cismas do destino permite defender a idéia de que a terceira
parte a voz da moîra que revela descritivamente ao Eu o lugar mais recôndito da Vida
representa o ápice do poema, aquele momento nuclear para o qual todo o poema converge e que,
para lembrar a sugestão de Poe em The philosophy of composition (1966), representa uma
68
unidade completa em sua densidade poética. certo, todavia, que Augusto dos Anjos se detém
no ápice do poema mais do que desejaria Poe, dedicando-lhe toda uma parte).
Uma leitura assim orientada pode conduzir à interpretação da terceira parte de As cismas
do destino como a mais representativa do poema, a julgar não apenas pela sugestão do título,
mas também pela longa preparação para o monólogo do Destino, desenvolvida nas duas
primeiras partes. No entanto, reconhecê-lo só dilata a importância da poderosa introdução,
cuidadosamente tecida ao longo das partes anteriores, além de não impedir que Augusto cuide de
inaugurar uma curta quarta parte que nada tem de mero complemento, mas que é demasiado
intensa, com uma aclimatação que se renova, mesmo quando o poema caminha para seu
termo. É certo que o Eu das oito estrofes finais está definitivamente amedrontado, e ainda que
o estivesse antes de ouvir a voz de seu Destino, é somente na parte final do poema que é possível
encontrar o sujeito que escuta aterrorizado o que lhe diz seu próprio Destino ao longo da parte
III. Eis a importância definitiva do fecho do poema, e eis o palco onde se o seu temor: na
intensificação progressiva do tom poético até o fim, que tem origem em
Calou-se a voz. A noite era funesta.
É um golpe duplo da lira (ou da faca) do poeta, que ecoa o primeiro verso do poema.
Aqui, um primeiro golpe é desferido quando a voz se cala, e o Eu surpreende-se em silêncio. O
silêncio não é aquele que se segue ao fim da parte III, mas o silêncio do próprio Eu, que antecede
ao “Calou-se a voz”. O segundo golpe, completando o ambiente em que se dará o fim do poema,
diz que a noite era funesta, uma vez que o Eu volta a olhar em redor, como fazia antes de fitar os
olhos do Destino.
O verso é, de fato, um falso alívio, e traz consigo aquele novo clima poético, após uma
fratura na longa intervenção do Destino, como se um movimento ou um corte de câmera
69
trouxesse um Eu em close no início da parte IV. A voz do Destino se foi, mas teria levado
consigo a tempestade? A resposta é um decidido “não”, pois em sua “imaginação atormentada”,
o sujeito sabe que ele – o Destino – prossegue seu caminho, agora em silêncio. O Eu é o excesso
de si mesmo. Atormentado, quer fugir, “correr, ir para o inferno”, para a floresta que responde
com fúria à fúria de um rei impedido de reinar, mas isso não parece senão uma inquietação inútil,
uma inquietação risível que não faz frente aos desígnios da Fortuna. Ferido de modo fatal pela
palavra final de seu fado, o Eu reconhece, numa estrofe derradeira, sua insuficiência, que é enfim
a insuficiência da própria existência individual:
Mas a Terra negava-me o equilíbrio...
Na Natureza, uma mulher de luto
Cantava, espiando as árvores sem fruto.
A canção prostituta do ludibrio!
Nota-se, portanto, a partir do exemplo de As cismas do destino, que a ambientação inicial
também é ocorrência comum nos primeiros versos de partes de alguns poemas mais longos e
que, em algumas ocasiões, Augusto dos Anjos lança mão desse recurso para articular
ambientações qualitativamente distintas ou que se relacionam por intensidades (cores, tons) algo
distantes dentro de uma mesma ambientação, desdobrada. No caso do poema citado, a
ambientação ocorre de modo expresso, tanto no início do poema, quanto no início da parte final.
Vejamos agora outro exemplo do recurso da aclimatação em um poema longo. As
estrofes seguintes abrem Viagem de um vencido:
Noite. Cruzes na estrada. Aves com frio...
E, enquanto eu tropeçava sobre os paus,
A efígie apocalíptica do Caos
Dançava no meu cérebro sombrio!
O Céu estava horrivelmente preto
E as árvores magríssimas lembravam
Pontos de admiração que se admiravam
De ver passar ali meu esqueleto!
70
Viagem de um vencido, uma das mais expressas apresentações do ideal monista de
Augusto dos Anjos, semais tarde recuperado por ocasião do tema. Por ora, é suficiente dizer
que seu conteúdo, na medida em que caminha a ampliação do cenário noturno que se anuncia já
na abertura, cuida de desdobrar, revelar e ocultar diversos aspectos apresentados pelas duas
estrofes iniciais. Há ecos do verso inicial, da “Noite”, da “estrada” e do “frio”, ao longo de toda a
construção. As árvores, que na segunda estrofe são “magríssimas”, “Pontos” que observam a
passagem do Eu, surgem depois “frias como lousas”. O Eu caminha na escuridão “sob a
espionagem fatídica dos astros”, “perdido no Cosmos”, em sua tarefa de examinar a intimidade
da vida e dela recolher as pistas mais ocultas. Testemunha e vítima dos “conflitos da matéria”, o
sujeito termina sua viagem como um “homem vencido”, diante de tudo o que de oculto parece
orientar o curso fenomênico.
O início de Noite de um visionário é um outro momento da lira augustiana, muito
semelhante àquele citado de As cismas do destino, e que também ambienta rapidamente o
cenário encontrado pelo Eu:
Número cento e três. Rua Direita.
Eu tinha a sensação de quem se esfola
E inopinadamente o corpo atola
Numa poça de carne liqüefeita!
Nesse poema, o sujeito poético transita pelo mundo
Como quem é levado para o hospício
Aos trambolhões, num canto de carroça!
Sua caminhada é uma enumeração de violências, às quais é submetida a vida particular
que, assim como o Eu, “se esfola” e “o corpo atola” na degradante realidade da heterogeneidade.
71
Outro exemplo atesta o emprego do mesmo recurso da aclimatação, desta vez em Os
doentes, o mais longo dos poemas do Eu. Ouçamos a estrofe inicial de sua parte IV:
Começara a chover. Pelas algentes
Ruas, a água, em cachoeiras desobstruídas
Encharcava os buracos das feridas,
Alagava a medula dos Doentes!
Está aberto por essa estrofe o caminho para uma poderosa descrição da miséria da
existência, talvez uma das mais intensas de toda a poesia augustiana. Dessa vez, atravessando
toda a parte IV, há um Eu denunciador, que não poupa o colonizador europeu ao mencionar a
“cova do morubixaba”, a “tumba de Iracema” e o sofrimento de toda uma “raça esmagada pela
Europa”. À maneira do próprio Augusto, não há alusões: o Eu se encarrega de devassar a
realidade. Atrelada àquela ontologia poética peculiar, o autor traz na ocasião acusações expressas
que apontam para uma perspectiva inequívoca diante da condição cultural brasileira da época,
posição que, no que se refere à figura do indígena, parece travar interessante discussão com o
período romântico que o precedeu. Vejamos, a propósito, alguns dos aspectos dessa discussão.
O indígena da quarta parte de Os doentes ainda é, de certa forma, o herói cultural da
primeira variante brasileira do romantismo literário, que ocorre, segundo Moisés (2001),
aproximadamente entre 1836 e 1853, e que tem como seu principal representante Gonçalves
Dias. Todavia, as semelhanças entre a poesia de Augusto e aquele romantismo ficam por conta
apenas da idéia de um aborígine forte, puro e bom, perspectiva que terá tratamentos amplamente
diferentes em ambos os termos da comparação. De fato, essa visão, que em Gonçalves Dias era
inflamada por um ideário nacionalista ainda paradoxalmente dependente de forte índole colonial,
foi, para o primeiro romantismo, fator motivador de uma certa epopéia indianista” (Moisés,
2001, vol. I, p. 335), vincando ainda uma vez o movimento contínuo que parece partir de um
72
Rousseau do Discurso de 1750. Já em Augusto dos Anjos, o indígena forte, puro e bom que,
inexpresso, ecoa na parte IV de Os doentes, parece surgir apenas para ambientar a violência à
qual lhe submetia o colonizador:
A civilização entrou na taba
Em que ele estava. O gênio de Colombo
Manchou de opróbrios a alma do mazombo,
Cuspiu na cova do morubixaba!
E o índio, por fim, adstrito á étnica escória,
Recebeu, tendo o horror no rosto impresso,
Esse achincalhamento do progresso
Que o anulava na critica da História!
Segundo Magalhães Júnior (1978), Augusto dos Anjos opera “uma reação vigorosa ao
indianismo do período romântico das nossas letras o de Domingos José Gonçalves de
Magalhães, José de Alencar, Gonçalves Dias e Bernardo Guimarães” (p. 196), e acrescenta que
“Nenhum outro poeta, antes dele, escrevera nesse tom sobre a tragédia das populações
indígenas” (p. 197). Devassado, o aborígine brasileiro era ultrajado pela raça “xantocróide”,
E sentia-se pior que um vagabundo
Microcéfalo vil que a espécie encerra,
Desterrado na sua própria terra,
Diminuído na crônica do mundo!
Portanto, nota-se que, se em um momento anterior a qualidade imaculada do selvagem
brasileiro era digna de exaltação, e marcava passo com o nacionalismo que nascia do recente
grito de independência, na poesia corrosiva de Augusto esse mesmo selvagem inspira piedade
e lamento, e, aos olhos do Eu, provoca, por sua condição violentada, a indignação e a denúncia a
que se dedica o Eu.
31
31
Posição semelhante à adotada diante da condição histórica abominável do indígena brasileiro assume o poeta
diante da idéia e da prática mais contemporânea da escravidão. O tema, razão de amplos debates na esfera
pública do Brasil recém-republicano, é matéria algo freqüente sobretudo na prosa e nas interferências públicas do
autor. Note-se, a propósito, o célebre Discurso do Dr. Augusto dos Anjos no Teatro Santa Rosa, a 13 de maio
73
É certo que, por ocasião desse ponto, é inevitável a tentação da abordagem histórico-
social, de resto legítima. No entanto, de qualquer modo que se examine a figura do nativo
brasileiro nos versos do Eu, é possível perceber que, mais importante do que salientar a presença
de um novo olhar sobre o indígena, o que a obra traz é um tratamento peculiar dessa figura, que a
reduz, em última análise, a mais um elemento da visão de mundo do poeta. Assim como trazem à
cena a prostituta, o ladrão, o “finado Toca” (Gemidos de arte III), o tamarindo, o coveiro ou o
próprio pai, os versos do Eu trazem também o aborígine, fazendo de sua imagem mais uma
ilustração do amplo inventário de corrupção existencial anunciado (e denunciado) pelo sujeito
poético. A violência imposta ao índio é a violência imposta à existência. Isso corresponde a dizer
que, não obstante o caráter oportuno do tratamento do tema (tendo em vista o momento
histórico-cultural em que acontece), e uma dimensão moral que eventualmente possa ser
explorada, a discussão mais importante é outra, bem distinta, mais perene e radical: a figura
temporal do índio está, na poética do Eu, submetida invariavelmente a uma visão geral de
mundo baseada numa concepção ontológica. Sua ocorrência é acidental ou, na medida em que
pertence a um sistema semântico e a ele se submete, ilustrativa.
Para atestá-lo, basta lembrar uma
corrente do ano de 1909, publicado a seguir no periódico A União, de João Pessoa. Ali, Augusto se refere à
escravidão como, por exemplo, “mercancia nefanda” (Bueno, 2004, p. 647). O pronunciamento se tornaria célebre,
no entanto, menos pela posição política que adota do que por sua meticulosa construção, de “léxico
incompreensível” para uma audiência despreparada. Num legítimo esforço de comunicar com precisão suas
convicções morais – sem abrir mão de provocar, épater le bourgeois (Bueno, 2004, p. 22), como era de seu feitio –,
Augusto provocou, nessa ocasião, efeito contrário, indispondo-se até mesmo com alguns de seus amigos. Um deles,
Santos Neto, teria dito a respeito do episódio: “Achei-o [Augusto] intolerável, uma vez” (Magalhães Júnior, 1978, p.
204). No mesmo trecho de seu comentário, o intérprete qualifica de “desastroso” o discurso, tendo em vista que teria
faltado ao poeta “senso comum como aptidão para comunicar-se com uma platéia popular”. Ao que acrescenta a
divertida observação:
Durante cerca de uma hora, o poeta despejou-lhes nos ouvidos uma catadupa de
vocábulos estranhos e incompreensíveis. A platéia, aturdida, tinha a impressão de que o
orador lhes falava numa língua nova e inusitada, como o esperanto ou o volapuque,
inventada expressamente para aquela ocasião. (Magalhães Júnior, 1978, p. 203).
74
segunda ocorrência da idéia do nativo, desta vez no soneto O lázaro da pátria. Eis a primeira
estrofe do poema:
Filho podre de antigos Goitacases,
Em qualquer parte onde a cabeça ponha,
Deixa circunferências de peçonha,
Marcas oriundas de úlceras e antrazes.
No soneto, o “Filho podre de antigos Goitacases” é uma extensão da idéia do nativo, um
prolongamento que remete à sua subseqüência evolutiva, e que não se refere apenas ao indígena,
mas à sua prole como um todo, de resto igualmente marcada pelas “úlceras” que lhe são
impostas pelo colonizador. Augusto fala do nativo apenas como um representante da existência
em sua obstinada e lamentável diferenciação. Como foi dito, o mesmo procedimento o poeta
reserva ocasionalmente a outras figuras exemplares do mundo da diferenciação, numa vasta lista
que compreende o velho tamarindo do Engenho onde nasceu Augusto, ou as “lagartixas” de
Gemidos de arte – III:
O lodo obscuro trepa-se nas portas.
Amontoadas em grossos feixes rijos,
As lagartixas, dos esconderijos,
Estão olhando aquelas coisas mortas!
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32
Note-se o eco posterior de Paisagens com cupim, poema do João Cabral de Quaderna (1956-1959). Nesse
poema, o autor recifense apresenta um cenário em deterioração à maneira augustiana, onde o “cupim” , um análogo
das “lagartixas”, parece ter estreito e equivalente parentesco com o “verme” da poética de Augusto, no que se refere
à sua silenciosa função funérea, metonimizada pela “corrupção” e pela “desintegração(Peixoto, 1983, p. 162). Na
parte 8 de Paisagens com cupim, para citar apenas um exemplo, diz João Cabral:
No canavial, antiga mata,
a vida está toda bichada.
Bichada em coisas pouco densas,
coisas sem peso, pela doença.
Bichada até a carne rala
da bucha e do pau-de-jangada.
Até a natureza poída,
porém inchada, da cortiça.
Eis o cupim fazendo a vez
do mestre-de-obras português:
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O Eu se serve de qualquer figura que se lhe apresente como própria para ilustrar o mundo
em decadência. aqui um desdobramento interessante, aludido anteriormente: nos versos do
Eu não é raro o sinal de alguma moral ou de uma tomada de posição acerca de alguns valores
morais. Por ocasião do presente tema a discussão parece inevitável. Todavia, a presente pesquisa
pretende defender posteriormente que não é sustentável ligar ao Eu uma doutrina moral, e que
sua principal orientação é uma ontologia.
Dito de outro modo: se em Os doentes é citada a figura do nativo brasileiro, ela nada mais
seria do que um caso isolado da dor do heterogêneo e da diferenciação que se manifesta em todo
o mundo pelo amplo inventário composto pelo sujeito lírico do Eu. Nessa espécie de
“mistagogia laica” e ressentida pelo engano a que foi submetida a ordem cósmica da
imobilidade, o Eu não localiza seu olhar, não se detém, como se nota, em um âmbito
geográfico especial – neste caso o Brasil – nem em um determinado cenário conjetural ou
finge robustez na matéria
carcomida pela miséria.
Eis os pais de nosso barroco,
de ventre solene mas oco
e gesto pomposo e redondo
na véspera mesma do escombro.
As poderosas imagens cabralinas da vida “bichada”, da “natureza poída” e “inchada, da “matéria /
carcomida pela miséria” e da “véspera mesma do escombro” são, aos olhos de um leitor atento do Eu,
flagrantemente familiares. Em Augusto mesmo uma “véspera do escarro” no conhecido Versos íntimos, além da
“bicharia infame” do inacabado A meretriz, ou ainda as “formas carcomidas” de Anseio, esses dois últimos poemas
publicados no grupo das Outras poesias. Gullar (1976) desenvolve breve e instigante aproximação entre as poesias
de Augusto dos Anjos e João Cabral, e cita, além de trecho da parte 7 do mesmo Paisagens com cupim, os poemas A
cana dos outros (Serial, 1959-1961) e Congresso no polígono das secas, primeira parte de Dois parlamentos
(1958-1960). Destacando a presença de Augusto na obra de João Cabral, Gullar defende que o poeta paraibano teria
sido o primeiro a “pôr em versos a indigência da morte (e vida) nordestina”, e que ambos os autores “são
testemunhas de um mundo que deteriora” (Gullar, 1976, p. 57-59). Nunes (1974) identifica, por sua vez, uma
“permanente idéia de morte na poesia cabralina” (p. 20). É especialmente fértil uma leitura comparada de Augusto
dos Anjos e João Cabral, mas seu estudo cuidadoso não pode ser aqui, por várias razões, pormenorizado.
76
contextual, ou em uma figura (o nativo brasileiro, por exemplo). O palco que se exibe é a própria
existência.
Não idéia contingente que faça distinta a desagregação que vitima a existência. Ao
contrário, o Eu lança por toda parte seu discurso de constatação, a partir do qual pretende
apresentar à vida as (des)razões de seu equívoco genético. No exemplo da parte IV de Os
doentes, a amplitude desse discurso é preparada pela estrofe inicial supracitada, perfazendo mais
um exemplo do recurso da ambientação.
Como exemplo final sobre o tema dessa ambientação inicial, um trecho especialmente
importante do início do mesmo poema Os doentes. Vale dizer que, se este exemplo é
apresentado aqui (após o exemplo da parte IV), é porque parece reunir de modo paradgmático
todas as características da poética augustiana da criação de atmosferas. Cito as quatro primeiras
estrofes de Os doentes:
Como uma cascavel que se enroscava,
A cidade dos lázaros dormia...
Somente, na metrópole vazia,
Minha cabeça autônoma pensava!
Mordia-me a obsessão má de que havia,
Sob os meus pés, na terra onde eu pisava,
Um fígado doente que sangrava
E uma garganta de órfã que gemia!
Tentava compreender com as conceptivas
Funções do encéfalo as substâncias vivas
Que nem Spencer, nem Haeckel compreenderam...
E via em mim, coberto de desgraças,
O resultado de bilhões de raças
Que há muitos anos desapareceram!
Essas quatro estrofes em forma de soneto compõem toda a primeira parte de Os
doentes.
33
A análise desses quatorze versos demanda um cuidado especial, tendo em vista que
33
O poema Os doentes breve e anteriormente examinado tem esse soneto como parte I, ao passo que as oito
partes seguintes possuem a forma fixa dos quartetos. Parece legítimo afirmar que a idéia inicial de Augusto dos
77
encaminha definitivamente a discussão para o tópico seguinte do processo da situação-limite: a
recusa da singularidade. Essa testemunha única da existência, “resultado de bilhões de raças”,
surpreende isolada sua consciência visionária, enquanto todas as demais dormem, abstêm-se.
Mas o Eu de Os doentes acordará a “metrópole vazia”. Assim, enquanto a noite “funcionava
como um pulso”, atravessada por uma voz, essa voz engendra as inumeráveis formas de
existência, concedendo-lhes vontade e movimento. São os diferentes timbres de uma só voz, uma
consciência solitária, singularizada. Um cachorro pede “água e socorro” aos transeuntes, a
“queixada específica de um burro” urra, e apenas o Eu é capaz de conhecer e compreender a
misteriosa “psiquê das massas mortas”. Reconhecendo seu confinamento à consciência, o sujeito
estanca, contempla terras e céus povoados de astros, semelhantes a “uma epiderme cheia de
sarampos”.
Dentro do quadro de Os doentes, essa primeira parte, citada integralmente, representa
papel fundamental. São ao menos quatro as idéias centrais dessa inicial ambientação do denso e
dramático cenário do poema. Vejamos.
Na primeira estrofe uma “cabeça autônoma” que “pensa”. Ela se destaca na (e da)
“cidade dos lázaros” enquanto consciência, subjetividade lírica. Trata-se, portanto, ainda uma
vez, de um exemplo da ambientação inicial dos poemas através do recurso do caminho noturno,
Anjos para o poema tenha sido a de um soneto, forma por ele aliás bastante cultivada. Nesse caso, o poeta teria, por
alguma razão, notado a insuficiência do soneto, e teria assim desenvolvido a idéia ali despertada, criando um poema
longo sem contudo abandonar o soneto original, transformando-o em uma primeira parte. Segundo os estudos de
variantística de Alexei Bueno (2004), nãoregistros de uma publicação de Os doentes que seja anterior à primeira
edição do Eu, em 1912, o que impediria o exame genético acerca da representatividade da parte I para a economia
do poema. Por outro lado, é legítimo pensar – com o que concorda esta pesquisa – que o poema tenha sido projetado
de modo a destacar a parte I das demais partes, enquanto ambientação inicial. Acima de quaisquer especulações, é
notável, a partir de uma leitura mais detida de Os doentes, a importância do soneto inaugural para a composição do
cenário em que se dão as imagens das demais partes. Uma experiência interessante seria, por exemplo, fazer uma
primeira leitura do poema a partir da parte II, para fazer depois uma segunda leitura, agora do poema completo. A
diferença é nítida, e a experiência pode ser feita em quaisquer poemas ou partes de poemas onde Augusto dos Anjos
procura ambientar o leitor.
78
pelo qual o sujeito poético se destaca da heterogeneidade (da “metrópole vazia”) da qual
conscientemente faz parte.
A segunda estrofe tem por idéia central um prolongamento daquilo que era inicialmente
um pressentimento. O calafrio de advertência sugerido pela primeira estrofe é aqui uma
“obsessão”. Na “terra onde eu pisava”, diz aquele Eu em vigília, “havia” “Um fígado doente que
sangrava/E uma garganta de órfã que gemia!”. O sujeito olha em redor e dor e sofrimento.
Mas apenas ele é capaz de ver.
na terceira estrofe o tom é alterado. Não um pressentimento ou uma obsessão, mas
uma consciência que se esforça no raciocínio, busca “compreender” pelas “funções do encéfalo”
toda aquela dor que testemunha. Mas é infrutífero o esforço: a ciência de Spencer e Haeckel o
tentaram, em vão (“nem Spencer, nem Haeckel compreenderam”). Lembrando Pessoa, tudo é
oculto, e ao intelecto resta o direito de debater-se contra seus grilhões.
É quando aparece a quarta estrofe. É mais uma expressão dura do sujeito. Se na primeira
estrofe o Eu é uma “cabeça autônoma” condenada ao pensamento, enquanto caminha entre os
escombros de seu mundo; se na segunda estrofe é o ente que atesta o fardo da existência, feito de
dor e doença; se na terceira estrofe, o sujeito reconhece a incompetência do intelecto para
“compreender” a natureza das “substâncias vivas”, na quarta estrofe o Eu personifica a existência
em que se situa conscientemente. É “coberto de desgraças” por uma força hereditária, por sua
filiação à evolução impiedosa que vitima os entes. O “resultado de bilhões de raças” é a própria
singularidade do Eu, que carrega consigo a mesma heterogeneidade de todos os seres que “há
muitos anos desapareceram”.
É o sinal de uma constatação irrevogável: a resposta para uma existência que se mostra
sem sentido não pode ser a vida individual, a morte individual, ou
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O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!
(Solitário).
É preciso declinar da singularidade, sacrificar a parte o indivíduo pelo bem do todo
o reino monístico da homogeneidade.
Vejamos a seguir como se dá no Eu essa recusa da singularidade dos seres.
80
1.2. A recusa da diferenciação
O sujeito lírico do Eu não deseja a perplexidade. Seus esforços serão no sentido de deixar
o desconforto da situação limítrofe que se revela, rumo ao conforto de um sentido admissível,
rumo a uma recolocação, uma resposta para suas inquietações. Essa resposta não pode estar na
individuação dos seres, uma vez que neles nada há que inspire a radicalidade necessária à
solução. Quando olha em redor, o Eu não nas vidas singulares uma resposta, mas sim novos
propósitos para buscá-la. De fato, tendo verificado que o ponto de partida da ausência de sentido
da existência é a diferenciação, o Eu não um caminho senão aquele que passa pela recusa
dessa diferenciação, na eliminação da singularidade dos seres, entre as quais a sua própria.
pôde ser notado, todavia, que essa eliminação não consiste na morte de cada uma das
individualidades. Esse não é o caminho para a eliminação da diferenciação. O Eu não vaticina a
morte coletiva: a coletividade nada mais é que a soma das unidades. A morte – inexorável dentro
da evolução que anima o mundo é um dos elementos que marcam decisivamente o processo
vital que determina a coletividade. Lins (2004), em seu comentário acerca da idéia da morte na
poesia de Augusto, diz com justiça que a morte “é um episódio” (p. 125). Ainda que este estudo
se afaste da crítica de Lins em rios aspectos (entre eles no que se refere à dimensão semântica
creditada pelo intérprete ao fenômeno da morte no Eu), é preciso reconhecer que por “episódio”
pode ser compreendido muito do que Augusto dos Anjos relaciona à idéia da morte em sua
poética. De fato, a morte, enquanto fenômeno corriqueiro da existência, está longe de ser um
elemento revolucionário ou uma modificação qualitativa. É por conta disso que a morte não pode
ser um elemento dos mais importantes na poesia de Augusto. À morte de um indivíduo segue-se
a morte de outro e de outro, e assim indefinidamente, prorrogando o curso do existir. De mãos
81
dadas com seu correlato a vida a morte vulgar é apenas o combustível para a “máquina do
mundo”.
A propósito disso, ouçamos este trecho:
Morte, ponto final da última cena,
Forma difusa da matéria imbele,
Minha filosofia te repele,
Meu raciocínio enorme te condena!
Diante de ti, nas catedrais mais ricas,
Rolam sem eficácia os amuletos,
Oh! Senhora dos nossos esqueletos
E das caveiras diárias que fabricas!
(As cismas do destino – II).
Eis a visão do Eu sobre a morte: ela é o termo da vida particular, a “Senhora” que fabrica
“caveiras diárias”, numa atividade burocrática e incompreensível, a serviço da existência. É
assim em quase todas as ocasiões em que o Eu se refere à morte, mesmo quando da morte de seu
pai, como se ouve aqui:
Podre meu Pai! E a mão que enchi de beijos
Roída toda de bichos, como os queijos
Sobre a mesa de orgíacos festins!...
Amo meu Pai na atômica desordem
Entre as bocas necrófagas que o mordem
E a terra infecta que lhe cobre os rins!
(Sonetos – III, “A meu pai morto”).
A morte de seu “velho tamarindo”, figura tão poderosa quanto recorrente no Eu, assim
cantado em Vozes da morte:
Agora, sim! Vamos morrer, reunidos,
Tamarindo de minha desventura,
Tu, com o envelhecimento da nervura,
Eu, com o envelhecimento dos tecidos!
Como foi lembrado em ocasião anterior, as ocorrências da morte em Augusto dos
Anjos são tão abundantes que o rótulo “poeta da morte muito lhe servia por ocasião das
primeiras interpretações do Eu. Atualmente, é possível reconhecer que Augusto dos Anjos se
82
refere à morte na mesma medida em que se refere à vida, uma vez que são termos correlatos em
sua poética. Talvez, dentro da índole poética do Eu, não seja mesmo desmedido identificar a
morte à vida, uma vez que a simples substituição de “morte” por “vida” não representaria
alteração semântica dentro da visão de mundo do poeta. Outro exemplo da horizontalidade
telúrica do fenômeno vulgar da morte seria do poema Asa de corvo, especialmente em seu fecho.
Cito o soneto:
Asa de corvos carniceiros, asa
De mau agouro que, nos doze meses,
Cobre às vezes o espaço e cobre ás vezes
O telhado de nossa própria casa...
Perseguido por todos os reveses,
É meu destino viver junto a essa asa,
Como a cinza que vive junto á brasa,
Como os Goncourts, como os irmãos siameses!
É com essa asa que eu faço este soneto
E a indústria humana faz o pano preto
Que as famílias de luto martiriza...
E ainda com essa asa extraordinária
Que a Morte - a costureira funerária
- Cose para o homem a última camisa!
34
Ou ainda Poema negro, como um exemplo final:
É a Morte - esta carnívora assanhada -
Serpente má de língua envenenada
Que tudo que acha no caminho, come...
- Faminta e atra mulher que, a 1 de Janeiro,
Sai para assassinar o mundo inteiro,
E o mundo inteiro não lhe mata a fome!
34
A citação integral desse soneto se presta aqui também a ilustrar o comentário feito por Gullar (1976), que o inclui
entre os mais representativos da habilidade de Augusto dos Anjos no trato da relação entre “tema” e “linguagem”.
Segundo Gullar, essa habilidade descobrimos em seus melhores momentos, e particularmente em sonetos como
Asa de corvo, O morcego, Lamento das coisas, entre outros. Mas é sobretudo em Asa de corvo que essa adequação
atinge seu ponto mais alto, fazendo com que os valores fonéticos, as rimas e as imagens formem uma totalidade
semântica cuja irradiação ultrapassa o que a mera leitura conceitual poderia captar”. (Gullar, 1976, p. 49). O
intérprete se refere aqui à repetição do som do “z”, um “segundo vel de conotaçãoque atravessa todo o poema,
carregando-o semanticamente e presentificando “duas palavras que não são nunca pronunciadas mas que seriam os
motores ocultos do discurso poético: aziago e azar” (Gullar, 1976, p. 50).
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Nesta sombria análise das cousas,
Corro. Arranco os cadáveres das lousas
E as suas partes podres examino...
Mas de repente, ouvindo um grande estrondo,
Na podridão daquele embrulho hediondo
Reconheço assombrado o meu Destino!
Surpreendo-me, sozinho, numa cova.
Então meu desvario se renova...
Como que, abrindo todos os jazigos,
A Morte, em trajes pretos e amarelos.
Levanta contra mim grandes cutelos
E as baionetas dos dragões antigos!
Partícipe da vida, a morte não responde à questão da singularidade, por se aplicar apenas
a ela. Tendo recusado a morte singular, só resta ao Eu o caminho de uma segunda (primeira?)
morte: a morte substancial, absoluta. Dito de outro modo, resta a própria ausência de existência.
Se a morte primeira aconteceu no instante em que o “descanso perpétuo” da Unidade primordial
explodiu na diferenciação, apenas uma morte de natureza equivalente seria capaz de se
contrapor. Este é o momento de uma intuição poética, uma espécie de contemplação que
anuncia, deseja e profetiza a dissolução de tudo o que é singular, em nome de uma unidade
transcendente submetida apenas a seus próprios critérios de perenidade e incomensurabilidade: a
Mônada original.
O caminho que chega ao monismo de Augusto dos Anjos é um processo que merece
atenção a cada uma de suas etapas e, de resto, como foi dito, é o objetivo final do presente
estudo. Numa visão sintética, o exame da situação limítrofe da perplexidade em que se encontra
o Eu é decisivo nesse processo. A situação-limite está a meio caminho entre a verificação do
problema da existência e a profecia de sua solução. A discussão está aqui em lugar privilegiado,
de onde se pode lançar um olhar retrospectivo, ao mesmo tempo em que se vislumbra o futuro da
solução proposta pela poética do Eu. É uma situação que coloca em discussão os limites da vida
singular e anuncia a necessidade de uma solução poética para fugir do incômodo da inquietação
84
existencial. Fazendo concessão a uma expressão de Nunes (1999), a situação-limite bem poderia
ser compreendida como o sinal de um pensamento poético”, tendo em vista sua importância
reflexiva e inflexiva para a poesia de Augusto dos Anjos.
Para operar a revolução que aniquila a singularidade, o Eu lírico se detém, em geral, na
marca mais proeminente daquela singularidade, que consiste na vida empírica dos seres,
enquanto particularidades condenadas a um mundo que ao Eu parece sem sentido. Essas
singularidades são postas no mundo, como entes sensoriais e empíricos. Numa palavra, o Eu
concentra esforços no combate ao singular enquanto fenômeno empírico tangível.
Em seu processo de recusa da própria singularidade, o sujeito poético do Eu assume a
tarefa de colocar em questão o aspecto principal que o liga à existência: sua situação enquanto
ente mundano. O aparato sensorial é aqui, especialmente, uma figura determinante, por ter como
substrato a matéria, fator de individuação. A exemplo de todo ente, o Eu é um ser telúrico,
atirado no mundo por força do processo vital e, como tal, ser empírico dotado de um corpo, de
uma materialidade. O Eu se serve de sua intuição empírica para verificar a natureza do mundo da
diferenciação, intuição que é, a um tempo, sua ferramenta de constatação e seu fator de
individuação. Nessa função intuitiva, o recurso empírico da visão possui proeminência.
Barthes nos lembra que o olhar “sempre procura: alguém, alguma coisa. É um signo
inquieto(Barthes, 1990, p. 278). Assim é o Eu enquanto ser-no-mundo: um amálgama da visão
empírica e da capacidade visionária do artista. Essa ambivalência da visão é a comprovação
da imensa carga semântica que essa figura carrega consigo. A visão atinge no Eu seu limite mais
extremo pelo exame da matéria que tomba incessantemente sobre a terra sob o signo da
diferenciação. É isso o olhar do Eu: um agregado da faculdade empírica do olhar e da intuição
visionária, talvez o próprio símbolo da criação poética, que transita incessantemente pelas
85
realidades recolhendo delas sua matéria. Toda a poesia do Eu traz, de modo sub e supra-liminar,
um convite ao exame minucioso do processo de desarticulação da Vida. À maneira de uma
medicina exploratória pioneira, o Eu ultrapassa a mera superfície material e penetra seus lugares
mais remotos, arrancando dali respostas insatisfatórias, porque físicas. O sujeito poético constata,
a existência porque nela “procura” por respostas, e nela não encontra senão a dor e o
sofrimento recônditos, provocados pela diferenciação.
Na quadra final de Versos a um coveiro, o sujeito vê
Um, dois, três, quatro, cinco... Esoterismos
Da Morte! E eu vejo, em fúlgidos letreiros,
Na progressão dos números inteiros
A gênese de todos os abismos!
A “progressão dos números inteiros” (que pode ser lido ou não como uma metáfora) é
expressão ambivalente: De um lado, os números inteiros são as inscrições nos “fúlgidos
letreiros” das incontáveis lápides do cemitério; de outro lado, são o mbolo da progressão
infindável e vital do espetáculo lamentável da evolução, que se multiplica impiedosa e “infinita
como os próprios meros”. O Eu contempla ambos os fenômenos vida e morte que, na
construção do poema, são indissociáveis, uma vez que pertencem ambas ao domínio da
existência.
Para onde quer que aponte o olhar, o Eu descobre a fragilidade do fenômeno da vida, que
traz consigo em potência a morte. Em sua hipersensibilidade de visionário, que parece identificar
a idéia de “vidaà idéia de “existência”, o Eu não dissocia o fenômeno vida-morte sequer dos
seres inorgânicos, como se nota nesta quadra final de Os doentes – II, já aludida anteriormente:
Meu ser estacionava, olhando os campos
Circunjacentes. No Alto, os astros miúdos
Reduziam os Céus sérios e rudos
A uma epiderme cheia de sarampos!
86
Mas, ao mesmo tempo em que permite uma visão privilegiada da existência, a
sensorialidade é também um instrumento precário e limitado: seu limite é a singularidade da
verificação subjetiva. O Eu lírico não é um ente extra-mundano. Pela denúncia do “embotamento
crasso dos sentidos” (Os doentes III), a lírica augustiana é conduzida àquela situação
irreversível de perplexidade diante do “Mistério”, que pertence a um domínio interditado à
sensibilidade. O sujeito poético atinge um território estranho e paradoxal. Agora não poder
sensorial que possa acompanhar o Eu em seu caminho, e o visionário precisa de novas armas,
novos instrumentos, novo “olhar”. Precisa espremer os olhos, esfregá-los, desembaçá-los e tornar
a ver, mas tornar outro.
O que se verifica pela singularidade é o drama das “espécies sofredoras” (Monólogo de
uma sombra), mas a capacidade empírica mesmo hipertrofiada como é a do Eu augustiano
não atende aos apelos de uma consciência que se descobre indefesa, desamparada, frágil. É o
início da declinação dos sentidos, da declinação da própria individualidade consciente do sujeito.
A suspeita depositada na intuição empírica e sua recusa aparecem no Eu em diversas
ocasiões. Entendo que essas ocasiões perfazem o momento que culmina na colocação da
situação-limite, alvo desta parte do estudo. Vejamos, pelos poemas, como isso ocorre.
Em Solilóquio de um visionário, uma ocorrência especialmente relevante, cujo
conteúdo já apresento, com a intenção de ilustrar o ideal poético augustiano de recusa da
singularidade. Cito o soneto:
Para desvirginar o labirinto
Do velho e metafísico Mistério,
Comi meus olhos crus no cemitério,
Numa antropofagia de faminto!
A digestão desse manjar funéreo
Tornado sangue transformou-me o instinto
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De humanas impressões. visuais que eu sinto,
Nas divinas visões do íncola etéreo!
Vestido de Hidrogênio incandescente,
Vaguei um século, improficuamente,
Pelas monotonias siderais...
Subi talvez ás máximas alturas,
Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,
É necessário que ainda eu suba mais!
O sujeito poético expõe em toda a fragilidade seu instrumental sensório, que sente
impotente diante do Mistério da existência. É quando as “impressões visuais” dão lugar às
“divinas visões” da intuição, único caminho para o pressentimento poético do “velho e
metafísico Mistério”. Nesse momento, o Eu deseja e profetiza sua nova morada: o “eterno”. É a
própria intuição monística, composta pelo discurso das quadras. Nos tercetos, Augusto se ocupa
de dizer do caráter prologal do reconhecimento da insuficiência sensorial, e termina concluindo
que
É necessário que ainda eu suba mais!
É improfícuo vagar um século, mesmo que livre das amarras dos sentidos. Dessa viagem
inútil resta a consciência da necessidade do passo seguinte. Em Solilóquio de um visionário, uma
supra-realidade acena dentro de um cenário de destruição. Depois que a “antropofagia de
faminto” do Eu anuncia sua nostalgia metafísica em “desvirginar” os Mistérios mais recônditos,
esse mesmo Eu reconhece que não lhe basta o movimento negativo da recusa da individualidade.
O sujeito intui uma natureza interditada aos sentidos e à existência particular.
Idéia semelhante ocorre em Viagem de um vencido, poema citado anteriormente como
exemplo do recurso da ambientação inicial. Nestes versos, a verificação empírica não faz mais
que revelar a miséria hereditária dos seres. Ouçamos as estofes quatro e cinco:
88
Eu procurava, com uma vela acesa,
O feto original, de onde decorrem
Todas essas moléculas que morrem
Nas transubstanciações da Natureza.
Mas o que meus sentidos apreendiam
Dentro da treva lúgubre, era só
O ocaso sistemático de pó,
Em que as formas humanas se sumiam!
Diógenes de Sinope, conhecido como “o cão”, filósofo cínico grego, viveu entre os
séculos V e IV a. C. É sua a célebre frase “Procuro o homem”. Diógenes o teria dito enquanto
caminhava, em pleno dia, com uma lanterna acesa. Augusto dos Anjos não procura o homem:
procura a Mônada. Carregando uma vela acesa, em Viagem de um vencido o Eu parte em busca
do “feto original”, do princípio gerador. Mas o que os sentidos proporcionam não é luz.
Mergulhado na “treva lúgubre” a que o indivíduo é condenado, nem todas as velas do mundo
seriam capazes de potencializar a vista do sujeito poético. Ao ente singular resta contemplar um
“ocaso sistemático de pó” que aplica à vida empírica sua regra.
Na estrofe inicial de Os doentes – III, ouve-se:
Dormia embaixo, com a promíscua véstia
No embotamento crasso dos sentidos,
A comunhão dos homens reunidos
Pela camaradagem da moléstia.
A menção ao “embotamento crasso dos sentidos” é inequívoca.
Em outra ocorrência, desta vez em A ilha de Cipango, o sujeito poético apresenta ainda
uma vez a figura poética da visão, e num monólogo que em algo lembra Pascal, diz de sua
fragilidade:
Os olhos volvo para o céu divino
E observo-me pigmeu e pequenino
Através de minúsculos espelhos.
Assim, quem diante duma cordilheira,
Pára, entre assombros, pela vez primeira,
89
Sente vontade de cair de joelhos!
35
O trecho citado remete, pela figura do “pequenino”, tanto ao desprezo pela vida singular,
quanto à aposição ao ideal monista do poeta. De fato, a idéia da singularidade na poética de
Augusto dos Anjos conjuga-se com o reconhecimento da dimensão ínfima da existência, no
mesmo tom em que essa marca só se sustenta diante da solução pela Mônada, diante da qual todo
ser existente é condenado a ser “pigmeu e pequenino”. Assim, o poeta ilustra, pelo primeiro
verso, a impotência da faculdade da visão que, em última instância, é a própria impotência
sensorial que marca a individualidade –, reafirmando-a nos versos seguintes e apontando, pela
recessividade ligada à vida singular, para a nostalgia da Unidade primeira do Ser. As duas frentes
de combate à diferenciação (desprezo pelos sentidos e nostalgia monista) são, no trecho citado de
A ilha de Cipango, fortemente representativas do ideário augustiano e de sua visão de mundo. A
referência ao caráter diminuto da vida particular diante da grandeza do Mistério da Unidade
lembra em algo o Eterno que Drummond não se preocupou em eternizar:
eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo
mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força o resgata
(Drummond, 1993, p. 55).
ainda a imagem altamente significativa que surge em Mistérios de um fósforo. É um
dos últimos trechos da publicação original do Eu:
Um dia restará, na terra instável,
De minha antropocêntrica matéria
Numa côncava xícara funérea
Uma colher de cinza miserável!
35
O poema A ilha de Cipango é fruto de uma interessante aproximação entre Augusto dos Anjos e Baudelaire. De
fato, o drama é semelhante àquele descrito pelo poeta francês em Un voyage à Cythère (Citera, ilha grega célebre
pelo santuário de Afrodite Anadiomena). Como lembra Magalhães Júnior (1978, p. 96), a relação não foi notada
pelo estudo de Barros (2004), dedicado a “aproximações e antinomias” entre os dois poetas. Jamil Haddad, por sua
vez, em sua tradução de As flores do mal, opta por aproximar A ilha de Cipango a Invitation au voyage (Magalhães
Júnior, 1978, p. 96).
90
Abro na treva os olhos quase cegos.
Que mão sinistra e desgraçada encheu
Os olhos tristes que meu Pai me deu
De alfinetes, de agulhas e de pregos?!
36
Vale mencionar também esta quadra, de soneto dedicado a Nietzsche, brevemente
mencionado na parte inicial deste estudo:
Para que nesta vida o espírito esfalfaste
Em vãs meditações, homem meditabundo?!
– Escalpelaste todo o cadáver do mundo
E, por fim, nada achaste... e, por fim, nada achaste!...
“Nada achaste”. A asserção desconsolada surge conclusiva, porque dentre os escombros
da vida nada se distingue. O poeta tem como alvo aqui o deslumbramento resultante da tirania do
espírito científico que é, em último nível, personificado na figura do “homem de ciência” e de
seu aparato sensório singular. Talvez mais do que a racionalidade de um certo socratismo lógico
– de resto já criticado pelo próprio Nietzsche em seus primeiros escritos
37
a crítica de Augusto
dos Anjos pretende atingir a própria filosofia, ou aquilo que nela é sophía. Recordando ainda
Nietzsche, “Até agora o houve filósofo em cujas mãos a filosofia não se tivesse tornado uma
36
Nesse poema uma exaltação incomparável à dimensão insondável de todo o processo químico que compõe a
vida a palavra “Pai” inscrita em maiúsculas não deve provocar equívocos de leitura: trata-se sim do pai do autor
empírico que, obedecendo (instintivamente) a uma cadeia conseqüente de energia vital que afeta toda a existência,
transmite ao filho, segundo as convicções do Eu, a cegueira hereditária dos “olhos”, incapacitando-o de vislumbrar
senão os acidentes fortuitos e cruéis da “ordem” cósmica (acrescente-se o temor progressivo de uma suposta
cegueira do poeta, manifesto por Augusto em sua correspondência à mãe, a partir de meados de 1908. Suposta, uma
vez que não registros conclusivos a respeito). É mais um exemplo decisivo de desprezo pelos frágeis
instrumentos de que dispõe o homem empírico (a hipótese de uma leitura que aproxime o “Pai’ da Divindade será
investigada na parte seguinte, por ocasião da presença de “Deus” nos poemas do Eu. Na ocasião, este estudo
pretenderá demonstrar que a Divindade é uma das figuras poéticas pelas quais o monismo augustiano se manifesta).
Numa outra frente de aproximação, o poema Mistérios de um fósforo provoca ainda interessante comentário de
Magalhães Júnior (1978, p. 176-177) acerca das rimas empregadas por Augusto, em diálogo com alguns momentos
dos Poemas saturnianos, de Verlaine.
37
O tema surge em O nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo, § 15. Nietzsche aproxima a figura
socrática (ora metafórica, ora histórica, ora ambos) ao otimismo teorético proporcionado pela racionalidade. Essa
visão “iluminista” ligada a crates contrasta com o recorrente “nada achaste” de Augusto dos Anjos, que em algo
lembra o nevermore do Corvo de Poe, porém menos por ser um refrão (a expressão de Augusto não o é) do que por
conter certa resignação cruel. É certo que em Augusto, a resignação parece ganhar algum condimento de indignação
que não se conjuga com a impavidez do refrão do Corvo.
91
apologia do conhecimento” (Nietzsche, 2004, p. 19). Pois bem: a poesia de Augusto dos Anjos
declina do ponto de partida dessa apologia, entendendo que o saber humano não é capaz de
ultrapassar os limites fenomênicos, tendo em vista sua natureza acidental e efêmera.
Seguindo a mesma argumentação, seria importante mencionar o importante poema Homo
infimus. Cito-o integralmente:
Homem, carne sem luz, criatura cega,
Realidade geográfica infeliz,
O Universo calado te renega
E a tua própria boca te maldiz!
O nôumeno e o fenômeno, o alfa e o omega
Amarguram-te. Hebdômadas hostis
Passam... Teu coração se desagrega,
Sangram-te os olhos, e, entretanto, ris!
Fruto injustificável dentre os frutos,
Montão de estercorária argila preta,
Excrescência de terra singular.
Deixa a tua alegria aos seres brutos,
Porque, na superfície do planeta,
Tu só tens um direito: - o de chorar!
Soneto cáustico dedicado à “Realidade geográfica infeliz” a que se chama homem, Homo
infimus carrega, sob a pele de uma declaração de guerra anti-iluminista, a mesma doutrina
augustiana da recusa da singularidade. Se a palavra “Homem” aparece assim, com a inicial
maiúscula, isso ocorre em Homo infimus por simples prescrição ortográfica. O poeta reafirma
aqui a cegueira da humanidade e sua incapacidade de alcançar algo além da realidade
fenomênica. É a extensão da fragilidade da vida individual a todo espécime humano, ao todo
agregado que compõe a abstração da “humanidade”, definida pelo poeta nos seguintes versos,
acima citados:
A comunhão dos homens reunidos
Pela camaradagem da moléstia.
92
(Os doentes – III)
A “criatura cega” cujos olhos sangram em Homo infimus é aquela cuja maior virtude
consiste em empreender esforços desastrados no sentido de conhecer a natureza em sua
intimidade. O homem, na fragilidade de seu domínio sensorial, exibe todo o seu desconforto ao
tentar se aproximar desse Mistério. De fato, o Eu não se ilude com a pífia precisão de suas
“antenas aferidoras” que, não obstante o minucioso exame das “partes podres” da existência, não
atingem senão uma trivial superfície. Essa desilusão o diferencia, o perturba e o conduz à recusa
da individualidade.
Enfim, o fracasso da singularidade no mundo de Augusto é representado pelo fracasso
dos sentidos e da matéria particular, cuja insuficiência atende ao objeto que pretende
discernir: o mundo dos acidentes fenomênicos, as ocorrências triviais da existência, cuja regra é
o subliminar processo de diferenciação, a heterogeneidade. Quanto ao sentido buscado pelo Eu,
como já foi dito, não pertence ao domínio do particular.
Assim como não é capaz de absorver o que subjaz à materialidade da vida, o homem
seja ele poeta ou não também não é capaz de traduzir a existência senão nela verificando a dor
da anomalia original, ou seja, negativamente. O Eu quer avistar no mundo um sentido, mas sente
a impossibilidade de fazê-lo a partir da ótica da heterogeneidade. Percebe-se aqui uma
contradição ab ovo que desvela o que há de mais trágico no sujeito do Eu: ele é um ser
condenado a buscar respostas onde perguntas. Daí nasce o vate, o profeta. A profecia
emerge, a um tempo, do excesso e da escassez. Do excesso, na medida em que o Eu deseja
exceder-se em sua condição consciente, rumo a uma espécie de supra-consciência capaz de
atingir o imponderável pela profecia, pela intuição. Mas essa profecia também nasce da escassez,
uma vez que só se excede sob pena de falta: neste caso, um escassear do mundo fenomênico, que
93
se mostra cada vez mais logicamente (economicamente) ausente, incapaz de fornecer respostas
sobre o sentido da existência.
Sendo o momento que se seguiria à verificação da heterogeneidade, e que teria a função
de anunciá-la radicalmente, a linguagem da situação-limite se encontra, desde já, impotente para
expressar de forma acabada aquilo que naquela heterogeneidade é radical. Dito de outro modo, a
linguagem (e com ela a linguagem poética) não é capaz de dizer a natureza em seu íntimo. Num
mesmo golpe, o poeta condena à impotência não apenas os sentidos, mas a linguagem e a própria
consciência que dela se serve. Um golpe basta, uma vez que sensorialidade, linguagem e
consciência (lógica) ocupam um só lugar: o da vida diferenciada.
O “indizível” na poesia de Augusto dos Anjos (que se dá, como veremos, também em
relação à Mônada) é tema que remete a alguns poemas que, dentro de certa leitura, parecem
possuir um caráter metalingüístico. É certo que o tema é especialmente vasto, e seu tratamento
mais cuidadoso exigiria um novo estudo. De qualquer modo, mesmo admitindo a natureza
reflexiva (metalingüística) de algumas ocorrências do Eu admissão de resto irrefutável em
certas ocasiões a impotência da linguagem poética é aqui apenas um dado secundário, uma
conseqüência, tendo em vista que o sujeito o é capaz de reconhecer sentido na própria
existência, nem na linguagem que a pretende dizer, nem na linguagem em si mesma (lógos).
Nessa cadeia de negações, a linguagem poética ocuparia, portanto, um lugar recessivo, e sua
fragilidade seria resultado da fragilidade que caracteriza a linguagem em geral e, em último grau,
caracteriza a própria existência.
Vê-se, a partir disso e ainda uma vez, aquela mencionada marca da poesia de Augusto
dos Anjos, que submete a semântica a uma espécie peculiar de ontologia: o sentido não pode ser
criado pela poesia, cuja natureza intuitiva está ligada antes à previsão, ao desejo, à profecia, à
94
compreensão intuitiva da Unidade genética que preside, nesse amálgama mito-ontologia-mística,
ao Todo da Vida. O Eu não é uma obra que diz o Mistério original, mas que o pressente. O
pressentimento seria tal mesmo se dele não fosse feita poesia, e o Eu é exatamente isso:
pressentimento feito poesia.
Igualmente indizíveis são a angústia da existência e o sentimento da morte, aquelas
situações radicais, limítrofes. Essa característica algo bergsoniana, que declina da capacidade
definidora dos conceitos, da potência da reflexão, parece revelar no Eu de modo definitivo sua
marca irracionalista.
38
Exemplos seriam alguns trechos de As cismas do destino, como este da
parte II, em que o poeta se compara ao cachorro:
Ser cachorro! Ganir incompreendidos
Verbos! Querer dizer-nos que não finge,
E a palavra embrulhar-se na laringe,
Escapando-se apenas em latidos!
Ou ainda estas outras quadras, de Os doentes – III:
Falar somente uma linguagem rouca,
Um português cansado e incompreensível,
Vomitar o pulmão na noite horrível
Em que se deita sangue pela boca!
Expulsar, aos bocados, a existência
Numa bacia autômata de barro,
Alucinado, vendo em cada escarro
O retrato da própria consciência!
Querer dizer a angústia de que é pábulo
E com a respiração já muito fraca
Sentir como que a ponta de uma faca,
Cortando as raízes do último vocábulo!
38
Reconhecidamente, o irracionalismo da poesia de Augusto dos Anjos não é tema livre de controvérsias exegéticas.
Todavia, isso ocorre nos momentos em que se liga sua obra a uma certa inclinação “científica”, interpretação que o
presente estudo pretende discutir na parte seguinte. Um dos elementos que mais se conjugam com o caráter
irracionalista do Eu parece ser o animismo preconizado pelo poeta, e que é, ao mesmo tempo, um recurso polifônico
e a expressão de uma visão de mundo.
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O soneto O martírio do artista é um dos momentos mais claros da angústia do indizível
que escapa à linguagem poética. Cito integralmente:
Arte ingrata! E conquanto, em desalento,
A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar o pensamento
Que em suas fronetais células guarda!
Tarda-lhe a Idéia! A inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento!
Tenta chorar e os olhos sente enxutos!...
E como o paralítico que, á mingua
Da própria voz e na que ardente o lavra
Febre de em vão falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem à boca uma palavra!
Antonio (2004) relaciona O martírio do artista ao que denomina “desarticulação da
linguagem” fenômeno observado no citado O morcego –, lançando mão da via da análise
pictórica: o poema que não apenas se , mas também se . O intérprete observa a “gagueira”
resultante do reconhecimento augustiano da incapacidade expressiva (p.110-111), ao que este
estudo credita grande parte da capacidade comunicativa de ambos os poemas. O martírio do
artista é uma expressão de limiar, a constatação da paralisia da voz e, num segundo nível, da
paralisia do idioma da arte, que culmina no desespero do artista, “Como o soldado que rasgou a
farda” ao reconhecer sua fragilidade diante do que pretende dizer.
Como já foi mencionado, o tratamento da atividade artística pelo Eu mereceria um estudo
à parte, dada a amplitude do tema. Mais importante para este momento é identificar o movimento
operado pelo sujeito poético rumo à perplexidade da situação limítrofe. Nesse sentido, a língua
que o Eu pretende não é a língua comum dos homens, mas o idioma da perplexidade, do
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assombro irredutível, cuja intensidade aspira ao universal, como neste poema, dedicado
enigmaticamente “a um poeta erótico”:
Mas de tal arte e espécie tal fazê-lo
Ambiciono, que o idioma em que te eu falo
Possam todas as línguas decliná-lo
Possam todos os homens compreendê-lo!
(Versos de amor).
Dentro de um mundo que não carrega, aos olhos do Eu, um sentido ontológico, não há
uma consciência sequer capaz de lhe garantir algo pela linguagem, seja ela poética ou não. O que
se na poesia do Eu, que acumula declarações que denunciam a fragilidade da consciência
lógica, é a vida individual ferida de modo fatal. Em meio aos fantasmas que povoam o mundo
dos doentes, o Eu encontra a decadência da vida, resultado da individuação dos seres. No
desprezo pela sensorialidade e por seus correlatos linguagem, expressão, consciência
individual o poeta declara o caráter acidental da vida em que se sustenta a heterogeneidade. E,
como a existência nada mais é do que a realização daquela individualidade, o indizível
substancial a Mônada não pode se dar no âmbito da existência. O Eu sabe que, com a morte
do indivíduo, os sentidos (e a consciência), que não ultrapassam os limites da particularidade
corpórea, sucumbem:
E o Homem - negro e heteróclito composto,
Onde a alva flama psíquica trabalha.
Desagrega-se e deixa na mortalha
O tato, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!
(Apóstrofe à carne)
A existência individual não é incapaz de atingir o grande Mistério da natureza: é
submetida aos acidentes que intenta revelar, e essa é sua marca trágica. O Eu é, como lembra
bem Paes (1986), um fantasma assombrado por outros fantasmas. O sujeito, trêmulo, exasperado
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e acuado, reage, num espasmo de desespero, pelo discurso da poesia, e trata de atirar suas setas
em toda parte, em tudo que se mova e que represente a vida, a herança prometeica da
singularidade. Após a matança, o que resta é o seu próprio ser, que não é poupado enquanto
singularidade, mas que, por representar um lugar de agência poética, goza de privilégio.
O Eu sabe que, com a extinção da vida física, o que resta dos sentidos é a certeza de sua
falibilidade e efemeridade (“Desagrega-se e deixa na mortalha / O tato, a vista, o ouvido, o olfato
e o gosto!”), e o processo vital segue seu curso incessante, agora sendo atestado por outro corpo,
outra consciência, que também perecerá. Pela declinação dos sentidos, a consciência lírica
reconhece, enfim, que é preciso superar o domínio fenomênico dos acidentes da
heterogeneidade. Numa palavra, o sujeito poético adquire um papel distinto, como que destacado
da existência. Tal destaque se enquanto o Eu ocupa aquele lugar privilegiado da consciência
lírica que deve, todavia, resignar-se diante de um paradoxo irrevogável. Os termos desse
paradoxo são: a) a recusa da diferenciação pelo Eu e b) a recusa do Eu por si mesmo, enquanto
diferenciação.
Como resultado desse conflito (agón), não obstante sua condição igualmente empírica, o
Eu começa a se certificar de que a imanência não se resolve na imanência, isto é, certifica-se de
que é preciso desafiar a suposta credibilidade da aferição sensorial (poetizada pela capacidade
visionária) e da consciência individual, e empreender um novo ânimo, uma nova visão, uma
nova poesia. É aquele novo olhar ao qual nos referíamos.
O que está sendo posto em suspeita não é apenas a capacidade dos sentidos no esforço de
atingir a natureza do real, mas a própria vida física, ou antes, a vida corpórea, da qual os sentidos
são apenas uma metonímia. A “vida” como nós a compreendemos não é a Vida aos olhos do Eu.
O resultado da dilatação dessa suspeita é a situação-limite. Aqui se identifica um momento
98
altamente positivo da poesia de Augusto. Atinge-se a formulação mais acabada da perplexidade
do Eu. Sobre os escombros de um mundo de doentes, ergue-se talvez a maior revolução poética
da obra, e que se dá nos seguintes termos.
39
39
A palavra revoluçãonão tem aqui nem nas ocasiões em que foi usada anteriormente uma mera função
retórica. De fato, a reação indignada do Eu frente à “evolução” que testemunha na existência reivindica a opção
orientada por uma certa “re-evolução”. A revolução sustentada pela situação-limite, como se verá, consiste na
superação do momento evolutivo da heterogeneidade, um rompimento com aquele processo, uma cisão qualitativa
na linha evolutiva. É preciso notar, contudo, que a “revolução” em questão não é a própria situação-limite, mas um
resultado dela. O ponto será desenvolvido a seguir.
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2. A EXIGÊNCIA DA NOVA POESIA
Os caminhos traçados até aqui nos levam a um lugar de convergência. Talvez seja
importante uma breve recapitulação.
Vimos que, após a verificação fatal da diferenciação a que é submetida toda forma de
existência (diferenciação que, como se viu, é fruto do impiedoso e lamentável processo de
evolução da vida), a poesia do Eu atinge o ápice de sua indignação. A expressão dessa
indignação pode ser reunida numa sentença: o sujeito lírico habita um mundo em que não divisa
sentido. Vimos que o Eu poético anunciava e sugeria em diversas ocasiões experimentar
perturbação. Sendo a verificação da dor, do sofrimento e da diferenciação uma particularidade da
visão consciente e, sendo essa visão apoiada sobretudo na condição corpórea do homem, atinge-
se, a seguir, o momento do desprezo pela vida fenomênica. A dimensão imanente termina por ter
como predicados a diferenciação e seus correlatos: dor e ausência de sentido. O sentimento lírico
do Eu não pode ser equívoco, e se traduz na perplexidade. Essa perplexidade é o combustível da
revolução poética do Eu, o que nos conduz à presente discussão.
Atingido o ponto em que nos encontramos, compreende-se que ao Eu não reste
alternativa senão a de propor a si mesmo o desafio de inaugurar uma nova trilha, um novo
caminho ou, como foi chamado acima, uma nova poesia, que deve ser agora livre da imanência.
A situação-limite é um corte na poética de Augusto dos Anjos, e agora estamos no coração desse
corte, passando de uma metade à outra. É o momento da apresentação de um segundo campo
semântico, diferente em substância do campo semântico anterior, e que constituirá o eixo central
da trajetória poética da obra. Esse campo semântico é o monismo. Entendo que o monismo
traduz o próprio espírito da poesia de Augusto dos Anjos, e representa seu momento lógico final.
100
A perplexidade experimentada (situação-limite) não é a expressão do monismo, mas é sua
condição.
Essa situação de perplexidade rica é radical, limítrofe. Sua forma de apresentação é
extremamente simples, como poderemos ver, ainda que sua significação seja das mais densas de
toda a poética de Augusto dos Anjos. A situação-limite é um momento de grande importância na
trajetória da obra poética do autor, não somente por representar um lugar de confluência (um
ponto de chegada), mas também por representar um ponto de partida.
No que se refere à primeira aproximação como ponto de chegada o suficiente parece
ter sido dito. Por sua vez, a leitura da perplexidade da situação-limite na segunda concepção
como ponto de partida destaca decisivamente o comprometimento da poesia do Eu com a
necessidade de distinção de um universo capaz de admitir sentido, uma vez que até então o Eu
testemunhava um universo “governado” pelas ingerências do processo vital, o que não lhe era
traduzido como algo dotado de sentido ontológico. Dito de outro modo, a inquietação de
Augusto não o permite, como foi dito, esgotar sua visão de mundo em um processo
interminável de vida-evolução-morte, processo que o poeta parece entender como abandonado a
si mesmo. A poesia do Eu não admite um universo injustificado e, nesse sentido, não obstante o
pessimismo que lhe possa ser relacionado, parece ser otimista em mais alto grau. A índole
poética que anima o Eu não é a resignação. Em seu lugar, o poeta experimenta a perplexidade, o
impulso para uma saída daquele processo, e assim passa a olhar adiante, revolucionariamente.
Relembrando Pascal, o Eu é, como os demais entes, um mero joguete, mas um joguete que se
distingue pelo que carrega de perplexo. O Eu é uma consciência indignada: a indignação
nasce da dignidade, e a dignidade do Eu é sua perplexidade.
40
40
A visão pessimista da poesia de Augusto dos Anjos é muito difundida, por razões evidentes. Não obstante a
legitimidade dessa leitura, o pessimismo parece ser apenas a nica do primeiro momento lógico da trajetória da
101
Aqui a obra apresenta um momento francamente sugestivo, porque limítrofe: há a
passagem de um universo semântico marcado pela negatividade da experiência de um mundo em
desarticulação, para um mundo positivo. A situação-limite – esse intermezzo cujo tema é a
perplexidade é a passagem natural de uma dimensão à outra, de um universo semântico a
outro. A situação de perplexidade corresponde a uma emergência, e não a uma invenção do Eu.
Trata-se de um acontecimento regular em que o Eu não pode se deter, dado que um
acontecimento é inextenso, não é capaz de comportar.
41
A perplexidade que nasceu provoca uma necessária e imediata tomada de posição que
tem como única opção um salto qualitativo. A eminência constante desse salto é precisamente a
situação-limite. Enquanto dura a eminência, suspende-se a duração, e com ela qualquer modo de
linguagem: daí o indizível da perplexidade. Esse acontecimento uma suspensão e, ao mesmo
tempo, um “prestes a tem como marca o devir, uma vez que não é um princípio, mas um
modo. Como lembra Jankélévitch,
No instante exato em que o acontecimento acontece, em que “o advindo advém”, nesse
instante o princípio da disjunção deixou de existir, mas essa suspensão-relâmpago dura
o menor intervalo possível. (Jankélévitch, 1995, p. 251).
obra, a heterogeneidade. Como já pôde ser notado, a presente pesquisa pretende contribuir, discutindo que há, como
prerrogativa da obra augustiana, um ideário poético de cariz ontológico, e que encontra eco no sistema semântico do
segundo momento lógico daquela trajetória, o monismo. Há, em última análise, um pensamento poético orientado
por uma visão de mundo totalizante e altamente positiva, que encontra sua expressão na resposta profética do
monismo. É quando surge a questão: seria uma poesia como essa – ontologicamente afirmativa capaz de
pessimismo?
41
Talvez seja aqui oportuno um breve esclarecimento sobre o título da presente parte, esclarecimento que, até aqui,
não se mostrava necessário. É legítimo dizer que o acontecimento da perplexidade aqui apresentado seja uma
situação. De fato, ao usar “situação”, pretende-se que o Eu se situe pelo discurso poético, o que não se opõe ao
caráter inextenso e fátuo do “acontecimento”. Do mesmo modo, o “limite” (que indica o corte entre dois universos
semânticos) poderia bem ser entendido como “fronteira”, uma vez que separa duas nações”, dois universos.
“Fronteira” seria talvez uma imagem com uma carga maior de significação. Todavia, se “limite” é o termo eleito,
isso ocorre pelo que falta de excessivo, de bastante, de urgente, de visceral em “fronteira”. Ao empregar “limite” no
lugar de “fronteira”, destaca-se, em primeiro lugar, a especificidade (toda fronteira é um limite, mas o inverso não é
verdade), ao mesmo tempo em que se enfatiza a dimensão existencial do Eu, e não apenas sua localização lógica.
102
Sob pena de artificialidade, o Eu deve seguir seu curso regular, abandonando
definitivamente o que havia transgredido (a imanência da diferenciação), rumo ao monismo,
esse novo sistema semântico (se a poesia do Eu teria opções dentro daquele sistema semântico
da diferenciação, e se poderia ter seguido a uma dessas eventuais opções e, portanto, limitar-se
ao primeiro momento lógico, é tema para outra ocasião. De resto, o presente estudo não seria
capaz de defendê-lo, uma vez que essas supostas alternativas intra-semânticas, confinadas aos
limites da heterogeneidade, parecem ser, a essa altura, meramente especulativas, e inserem
artificialismos hipotéticos num contexto em que se dá, de fato, uma exigência existencial
irrevogável. O certo é que tais opções parecem não existir, e que o ponto em que nos
encontramos ou em que se encontra o sujeito poético é uma emergência, e uma emergência
não comporta especulações).
É preciso haver algo que suplante a dor e o sofrimento do mundo, algo que não seja uma
mera invenção, mas uma espécie de “convicção taumatúrgica” anunciada pela própria poesia.
Nesse sentido, o pensamento poético que se depreende do Eu é fortemente marcado por uma
visão naturalista, que preza pelo curso regular da consciência ao longo de sua trajetória poética,
desprezando recursos artificiais. Esse algo”, essa resposta buscada pelo Eu, não está no mundo,
mas o transcende. Daí a diferença qualitativa entre as duas dimensões semânticas.
Sobre o tema da artificialidade, note-se, a propósito, um contraponto interessante entre as
índoles poéticas (e mesmo pessoais) de Augusto dos Anjos e de um autor dos quais mais se
aproximaria a expressão augustiana: Baudelaire. A nota é pertinente, tendo em vista não apenas
o tema do antagonismo natural-artificial, mas também as eventuais interpretações que pretendem
uma aproximação entre ambos os autores.
42
42
Note-se o artigo de Barros, “Aproximações e antinomias entre Baudelaire e Augusto dos Anjos” (2004),
mencionado. Sobre os elementos baudelairianos que ecoam no Eu, o autor faz uma breve análise bio-bibliográfica:
103
Em linhas gerais, pode-se dizer que o dandismo, essa orientação literária e existencial que
age no âmago da obra do autor francês, faz com que sua poética seja, na essência, uma reação a
todo naturalismo, ontológico e psicológico. Sobre o dandismo baudelairiano vale mencionar, por
exemplo, Os paraísos artificiais, obra editada em 1860. A certa altura, em O poema do haxixe,
diz: “Por tudo isso, prefiro considerar essa condição anormal do espírito como uma verdadeira
graça”. (Baudelaire, 2002, p.369). Já na parte III de Meu coração a nu, diz o autor:
A mulher é o oposto do Dândi.
Deve pois nos causar repulsa.
A mulher tem fome e quer comer – sede, e quer beber.
No cio, quer ser comida.
Que glória!
A mulher é natural, isto é abominável.
Por isso mesmo ela é sempre vulgar, ou seja o contrário do Dândi.”
(Baudelaire, 2002, p. 525).
A “aventurosa expedição” pelo mundo dos artifícios, preconizada por Baudelaire, tem
como corolário um trecho da parte XI dos “Projéteis”. Ele diz: “Duas qualidades literárias
fundamentais: sobrenaturalismo e ironia”. (Baudelaire, 2002, p. 510).
Junqueira (2002) lembra, a respeito do dandismo do autor francês, que chama de
“máscara”:
Lembro-me que, certa vez, num rápido encontro de livraria, me revelou Órris Soares
que descobrira, pelos idos de 1920, num ‘sebo’ da Paraíba, um velho exemplar de
Les fleurs du mal, de Charles Baudelaire, em cuja capa estava marcado a carimbo o
nome de Augusto dos Anjos. Tratava-se da segunda edição publicada em 1861. Uma
preciosidade bibliográfica. Mas o que lhe emprestava especial interesse era que o
poema “Une charogne” estava assinalado a lápis vermelho.
Teria sido Augusto quem o assinalara? É possível.” (Barros, 2004, p. 175).
De qualquer modo, Barros não se excusa em dizer que são “dois temperamentos poéticos essencialmente
díspares”, e que suas similitudes restringem-se à poetização do “repugnante” em “termos realistas” (Barros, 2004, p.
175). A análise do tema e da relação entre as obras de Baudelaire e Augusto dos Anjos é longa, e não será
desenvolvida aqui. Se muito, pretende-se com esse comentário trazer ao presente tópico a contribuição da analogia
entre os autores, com o único fim de enriquecer a exposição sobre o mencionado naturalismo do poeta brasileiro.
104
Mas a suprema volúpia de Baudelaire também já se anuncia: a do observador que se
transcreve e se oculta sob as máscaras, a do ndi estóico e aristocrático que recorre à
‘disciplina’, à ‘higiene e à ‘toalete para corromper sua espontaneidade, para
mortificar o corpo numa ascese do artificial. (Junqueira, 2002, p. 64).
Parece que, de qualquer ângulo que se olhe, o artificialismo de Baudelaire contrasta com
as soluções naturais propostas por Augusto, radicadas numa necessidade existencial e, em certo
sentido, mesmo ontológica. Como observa ainda uma vez Junqueira, o poeta francês se
destacaria por
[...] seu espiritualismo e seu estoicismo de santo e de esteta, seu ódio a tudo o que fosse
natural, sua necessidade de intermediação e do distanciamento criados pelas máscaras
[...]. (Junqueira, 2002, p. 68).
Se Baudelaire propõe uma poesia pela via do artifício, Augusto dos Anjos parece mover-
se no terreno das necessidades. Na obra de Augusto, anti-dândi por excelência, a passagem da
imanência (diferenciação) à transcendência (monismo) é um movimento natural, uma vez que o
que o provoca é uma natural (ontologicamente necessária) perplexidade.
43
Mesmo juízo pode ser
43
uma nuance de leitura especialmente importante em Junqueira, a esse respeito. Sobre o dandismo, o intérprete
observa:
O que seria exatamente esse ndi e qual sua mais funda significação? Para Baudelaire
como para Pascal –, a natureza estaria corrompida pela própria natureza [...]
(Junqueira, 2002, p. 69).
Citado pelo próprio Junqueira no mesmo trecho, diz Baudelaire no fragmento 22 de Projéteis:
O homem, isto é, cada um de nós, é tão naturalmente depravado que lhe custa menos
suportar o rebaixamento universal do que estabelecer uma hierarquia justa.
É inevitável supor, por conta da observação do intérprete, que o dandismo baudelairiano seja fruto do
mesmo impulso que conduz Augusto dos Anjos ao monismo, o que representaria um novo caminho de leitura,
amortecendo as antilogias entre os poetas. Dito de outro modo, se Baudelaire é, talvez por excesso de rigor e de
justiça, um ndi, ou seja, se é artificialista por excesso de naturalismo (por não aceitar com resignação o que de
artificial naquilo que se tornou a natureza), talvez não seja tão legítimo afinal (ou tão preciso) afirmar um anti-
dandismo de Augusto dos Anjos. De fato, a visão de mundo do poeta do Eu pode ser semelhante à de Baudelaire, na
medida em que Augusto não entende a vida comum dos seres como “natural”. Para ele, natural seria tudo aquilo que
antecede à individuação, o tempo mítico primordial anunciado pelo monismo. Na verdade, o exame desse ponto, que
exige um cuidado maior, termina por ser condicionado a uma certa leitura do dandismo, que ocorre menos como
conceito do que como noção, o que ganha uma trama ainda mais complexa dentro de um quadro comparativo que
ultrapasse a análise de um só autor.
105
feito em relação ao incômodo provocado pela ausência de sentido que o Eu verifica na
existência, ao imperativo da ordem (Kósmos) e ao estado perene de consciência do sujeito
poético ao longo de toda a obra.
Aqui atinge-se o núcleo nervoso da perplexidade do Eu, a inquietação que vislumbra a
necessidade existencial de atender às inquietações de um sujeito que se descobre situado
radicalmente: esse é verdadeiramente o fato patético do Eu do Eu. A exigência de uma saída
para a perplexidade reclama, atingido este ponto insustentável, um passo – ou um salto –
decisivo (décisif, como quer Camus na alusão ao mito grego em seu Le myth de Sysiph”), e um
salto decisivo é sempre radical. Eis o momento revolucionário da obra, que consiste em
reconhecer a falta da existência, e em procurar o antídoto contra o veneno da diferenciação. O
passo decisivo é o primeiro estágio na busca pelo antídoto.
A perturbação indesejável da existência exige uma atitude temerária que supere os limites
da imanência, o que conduz o poeta a operar dentro da obra uma espécie de revolução semântica,
caracterizada pelo reconhecimento da positividade do elemento transcendente, salto que se apóia
naquele fato patético da perplexidade em que o Eu se descobre. O poeta quer solucionar o
problema da existência fora dela, visto que a invenção de uma solução interna lhe parece
imprópria.
Antes de passarmos, todavia, à exposição sobre a natureza daquela solução transcendente
(o monismo), façamos a apresentação final e sintética da expressão da perplexidade na poesia do
Eu, sua situação limítrofe, o fato patético do sujeito poético.
Já foi dito que o caminho do Eu entre as “coletividades sofredoras” (As cismas do destino
IV) encontra, atingido certo ponto, a necessidade de uma operação revolucionária. Uma das
marcas dessa situação é o estado de consciência. É certo que consciente também demonstra estar
106
o Eu no momento anterior, da diferenciação. Todavia, em sua condição perplexa o sujeito
poético é consciente do lugar incômodo que intenta (ou anuncia) desesperadamente deixar. É a
consciência do acontecimento fugaz da urgência existencial, a consciência em estado máximo.
No centro dramático da insustentabilidade da situação-limite, e no ocaso de um mundo anti-
lógico (que, não obstante, aspira no Eu a uma ordem ontológica), os existentes são vítimas da
decomposição e da insuficiência, e é pela sensibilidade da intuição de uma saída, do
pressentimento de uma solução, que o poeta pretende conscientemente dar conta de sua
perplexidade. É o instante em que demonstra estar
sempre insatisfeito e inquieto, sentindo no próprio cosmos palavra por ele tão
prezada e usada a presença de mistérios, indecifráveis com os digos da filosofia e
da ciência, a presença por toda parte daquelas razões que a razão desconhece. (Lins,
2004, p. 122).
O sujeito poético precisa se ver livre do vazio, do “Caos de corpos orgânicos disformes”
(As cismas do destino II), da desordem, paradoxalmente orientada pelo processo evolutivo.
Para Augusto dos Anjos, a evolução – termo caro à ciência de seu tempo – é uma ordem ilusória,
uma vez que nasce de um despropósito radical. Ora, uma ordem ilusória só pode corresponder a
uma desordem. Para se ver livre dessa falha, o Eu empreende um esforço que sabe excessivo,
árduo, uma espécie de ato heróico, que consiste em salvar o Ser de seu próprio fardo. O poeta
figura ávida pelo kósmos projeta extrair (ou anunciar) dessa salvação uma ordem subjacente: é
o movimento que resultará no pressentimento da Mônada original. Estamos no centro de toda a
reflexão convergente que governa a poética de Augusto, e que foi expressa de vários modos e em
vários momentos ao longo desta pesquisa: a necessidade do reconhecimento do sentido
metafísico. O incômodo da perplexidade radica nessa necessidade, na hipertrofia da consciência,
no acontecimento ou, nas palavras de Jankélevitch, “coisa única que acontece uma vez”, um
107
“quase-nada” sem extensão e que é “experimentado na fratura do instante” (Jankélevitch, 1995,
p. 253).
O mesmo Jankélevitch nos ajuda com uma bela imagem desse “acontecimento” de
perplexidade diante do imponderável ontológico: a fagulha (étincelle). Diz o autor: “[...] a
fagulha é, ao mesmo tempo, o que se acende e o que se apaga”. (Jankélévitch, 1995, p. 254). Eis
a imagem do fato patético: ele se acende pela perplexidade e se apagará ao se transformar na
profecia do monismo. O fato patético é ambíguo por ser limítrofe, expressão de um Eu
borderline. Apenas a perplexidade garante o inequívoco do fato patético, mas a perplexidade traz
sempre algo em gestação, em movimento, em devir.
Nota-se portanto que, numa visão sintética do processo consciente que atinge a presente
situação-limite, o Eu, carregando seu “cérebro sombrio” (Viagem de um vencido), manifesta
inicialmente a consciência da insustentabilidade e da inaceitabilidade da vida, cujo caráter
penitente se havia verificado. No mundo maculado do poeta, a vida, enquanto diferenciação e
evolução, é dor, e essa dor é inaceitável aos olhos do eu lírico. As armas do poeta-visionário, que
atestavam aquela dor, não se sustentam senão dentro do próprio processo de diferenciação que se
restringe à vida, à evolução e à morte dos entes mundanos. Por outras razões, Rimbaud defendia:
“Digo que é preciso ser visionário, tornar-se visionário”. Ou ainda e melhor: “... o poeta é um
verdadeiro ladrão de fogo” (Rimbaud, Carta do vidente, apud Lopes, 1996, p. 142). Na
consciência dessa nova situação, surge desse sujeito poético prometeico o fato patético da
exigência existencial, que resultará no monismo.
44
44
Note-se, a propósito de Rimbauld, o comentário de Peixoto (1983), que recupera as observações de André Breton
em seu ensaio Situação surrealista do objeto (Peixoto, 1983, p. 28). Como se extrai de Carta do vidente, a imagem
do “visionário” em Rimbaud está ligada a um esforço racional de desregramento de todos os sentidos (Lopes,
1996, p. 142), algo próximo da idéia augustiana de uma poesia de um “novo olhar”, da Ultima visio, livre das
contingências da diferenciação. O sujeito poético sabe que, pela dilatação da visão, “A Verdade virá das pedras
mortas”.
108
Posta a situação-limite do fato patético, é possível contemplar, num único olhar, a
estrutura fundamental do universo poético que compõe, até aqui, o Eu, e que resultará na
peculiaridade do tratamento monístico dado por Augusto num momento final. O salto qualitativo
inevitável rumo à transcendência permite ao Eu a salvação do Ser de si mesmo, ou a
transformação desse Ser em si mesmo, sua restituição, sua recuperação. Nutrindo-se dos favores
desse duplo caminho de recuperação salvando o Ser de si mesmo ou reconstituindo-lhe uma
condição primitiva a obra de Augusto dos Anjos parece fazer valer a ambigüidade própria do
discurso poético, que tem como marca a síntese das direções possíveis numa espécie peculiar de
nuance, que sinaliza um sentido final. A propósito dessa ambigüidade, Bonzon, examinando
aspectos da obra de Baudelaire, lembra a certa altura que
[...] a ambigüidade pode ser reconhecida como sendo a condição mesma da expressão
poética; ela não se situa no nível das significações, ela reside nas potencialidades que
essa expressão detém, na complexidade da experiência comunicada pelas palavras.
(Bonzon, 1962, p. 13).
45
Potencializado, completo e revigorado, porque dotado de uma nova poesia, o Eu-profeta
augustiano agora está preparado para revelar seu vaticínio e seu desejo, que se unem para
devolver à Vida o seu sentido, sua intimidade, que lhe havia sido seqüestrada por uma
necessidade confusa chamada existência. Augusto dos Anjos quer encontrar o coração da
existência, porque quer mandá-lo parar. Esse movimento entrópico se explicita progressivamente
a cada ocorrência do monismo na poesia augustiana, até que termina por envolver cada verso do
Eu na atmosfera monista que anima toda a obra. É precisamente esse processo que a parte
seguinte pretende examinar: o momento em que a poesia de Augusto dos Anjos se revela um
45
“[...] l´ambigüité peut être reconnue comme étant la condition même de l´expression poétique; elle ne se situe pas
au niveau des signification, elle réside dans le pouvoirs que cette expression détient, dans la complexité de
l´expérience communiqué par les mots”.
109
pensamento poético de índole sistêmica, o que equivale a uma profunda reflexão sobre a
existência e pelo contraditório que nela habita.
110
PARTE III
“NA COMPREENSÃO MONÍSTICA DE TUDO”:
A POESIA MONISTA
111
Quando pararem todos os relógios
De minha vida e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,
Voltando à pátria da homogeneidade,
Abraçada com a própria Eternidade
A minha sombra há de ficar aqui!
Debaixo do tamarindo
112
Não seria pequena a tarefa de apresentar aqui, a título introdutório ao tema, um histórico
da expressão “monismo” ao longo do pensamento ocidental. Se não fosse suficiente sua flagrante
amplitude, essa tarefa pareceria, até onde chega o olhar da presente pesquisa, tão inviável quanto
prescindível. Todavia, é justo reconhecer que a palavra “monismo”, quando recuperada, esteja
longe de suscitar uma recepção comum. Tendo isso em vista, talvez seja apropriado um inicial
aparte sobre alguns aspectos da expressão, não com o objetivo de trazer à poesia o conceito, ou
de corrigir os eventuais equívocos daquela sua recepção o que seriam tarefas ainda maiores do
que a primeira, e igualmente prescindíveis mas com o simples objetivo de eliminar alguns
resíduos que possam comprometer a visão do monismo segundo sua apresentação pela poesia de
Augusto dos Anjos.
Abbagnano (1982), em seu Dicionário de filosofia, traz no verbete “monismo” a seguinte
descrição:
Cristian Wolff chamava “monistas” os filósofos “que admitem um único gênero de
substância” (Psychol. Rationalis, § 32), compreendendo nessa categoria seja os
materialistas seja os idealistas. Porém conquanto algumas vezes a palavra tenha sido
usada para designar também os últimos ou pelo menos algum aspecto de sua doutrina,
o termo foi constantemente monopolizado pelos materialistas; quando usado sem
adjetivo designa o materialismo. Isso se deve provavelmente ao fato de ter sido
adotado por um dos mais populares autores de escritos materialísticos, isto é, pelo
biólogo Ernesto Haeckel (Der Monismus als Band zwischen Religion und Wissenschaf,
1893). (Abbagnano, 1982, p. 651-652).
Em linhas gerais e de acordo com a descrição de Abbagnano, pela idéia de “monismo”
compreende-se toda doutrina científica ou filosófica que tende a encontrar seu fundamento
em uma unidade irredutível (o “único gênero de substância” citado por Wolff, segundo
Abbagnano). Emprega-se o termo monismo, regra geral, como conceito antagônico ao de
“dualismo”. Monismo seria assim uma “teoria (ou doutrina) da unidade”. A partir das
113
ocorrências históricas dessa “unidade” (a “mônada”), é possível dizer que, por ser uma
substância, ela possui, invariavelmente, uma natureza ontológica, e que poderia derivar, como
lembra Abbagnano, em uma abordagem materialista ou idealista.
46
Isso corresponde a dizer que,
sendo o monismo, em sua origem, um conceito filosófico, é razoável admitir que uma doutrina
monista seja aquela que tem como fundamento ontológico como origem de todo ser um
único princípio, o que nos conduz à “substância” supracitada, seja tal substância material (numa
visão materialista) ou metafísica (numa visão idealista). Esse ponto inicial nos serve como apoio
para uma outra breve incursão, com o fim de encontrar as ocorrências históricas mais
significativas do monismo.
Enquanto elaboração conceitual, a primeira ocorrência da expressão “monismo” na
história ocidental parece ter sido pela obra de Gottfried Leibnitz (1646-1716). O monismo (ou
“monadologia”) de Leibnitz consiste, em linhas gerais, numa teoria metafísica baseada na
natureza ontológica fundamental de unidades últimas chamadas mônadas.
47
Segundo Leibnitz, as
mônadas seriam a substância de todos os seres existentes, e teriam, por sua vez, como
fundamento, uma única mônada primordial, a substância original chamada por Leibnitz de
“Deus”. O conceito ainda passaria pelas vigorosas críticas de Hume e de Kant, antes de ecoar no
século XIX. Nesse novo momento, mais importante para a presente pesquisa, Ernest Haeckel
(1834-1919) autor recuperado no verbete de Abbagnano é quem retomará com mais vigor o
46
Oportunamente será feito um exame da natureza materialista ou idealista ligada ao monismo, tal como este se dá
na obra de Augusto dos Anjos. Todavia, tendo em vista que não se trata de uma ontologia (e que, portanto, prescinde
do conceito), mas de uma poesia de caráter ontológico, precisar a forma sob a qual o autor compreende o monismo
não é tarefa simples. Por ocasião do tratamento do monismo tal como se manifesta na própria poesia de Augusto dos
Anjos, o estudo pretende ir ao encontro dessa abordagem.
47
“Monadologia” foi a expressão cunhada por Leibnitz em 1714, com o objetivo de sintetizar a idéia de seu sistema
filosófico, a pedido do príncipe Eugênio de Savóia (Abbagnano, 1982, p. 651). Porém, segundo Abbagnano, o
primeiro autor a empregar a expressão “mônada” teria sido Giordano Bruno, ao dizer de seu minimum, a “unidade
indivisível que constitui o elemento de todas as coisas” (Abbagnano, 1982, p. 651).
114
monismo. Contemporâneo de Augusto dos Anjos, Haeckel não é, a rigor, um filósofo, ainda que
sua doutrina tivesse inspiração filosófica. É antes um homem de ciência, no sentido dado ao
termo pelo século XIX. Augusto dos Anjos, conhecedor da obra de Haeckel, é um poeta que
nasce e se forma ouvindo as palavras finais do século XIX, o “século da ciência”, e é por esse elo
que o monismo do Eu remete à discussão sobre o conceito.
De fato, a ciência do século XIX é um domínio extra-literário que parece estabelecer
notável contato com a poesia de Augusto. Não a ciência em sua inespecificidade, enquanto mero
saber conceitual organizado, lato sensu. A ciência que aqui nos interessa é ilustrada por um
espírito científico específico: aquele predominante no período histórico que corresponde no
Brasil ao ocaso do regime monárquico e ao início da República. No ambiente em que viveu
Augusto dos Anjos é possível notar, a partir do cultivo dessa índole científica, a presença
importante do monismo de Haeckel.
O tema sobre o cientificismo na poesia do Eu encontra menção em algumas ocasiões da
literatura crítica sobre o autor, e essa é a principal razão pela qual as seguintes considerações se
justificam. As discussões levantadas apontam, em geral, para uma ligação mais ou menos
explícita entre a poesia de Augusto dos Anjos e aquele espírito científico. No entanto, por várias
razões, tais discussões são quase sempre mais sugestivas do que representativas. Se a questão é
ainda uma vez recuperada no presente estudo, é porque talvez seja legítimo neste momento
avaliar, uma vez reconhecida a importância daquele domínio extra-literário para a obra
augustiana, em que medida, e até que ponto, o monismo do Eu seria herdeiro do monismo
científico finissecular oriundo da Europa e, mais precisamente, de Haeckel.
Nota-se logo que, se essa discussão é apresentada na parte dedicada ao monismo, é
porque este parece ser o lugar adequado para o exame do impacto de um certo corpus de origem
115
científica no Eu. Penso que esta seja uma boa ocasião para avaliar o teor real da ligação entre o
monismo, tal como o apresenta o poeta, e a ciência divulgada no Brasil no período em que vem a
público o Eu, tendo em vista que o monismo, enquanto conceito, tem um lugar preciso no
domínio científico da época em que viveu Augusto dos Anjos.
Uma questão inevitável logo se apresenta: poesia “científica”? À aparente
improcedência da discussão que pode ser tida como a sugestão de um “paralelo” entre
universos semânticos aparentemente tão distantes como poesia e ciência apõe-se a necessidade
de discuti-la. Penso que a questão não pode ser ignorada, sob pena da omissão de dois aspectos:
a) o contexto sociocultural em que viveu o poeta, fortemente marcado pela ciência; b) a
peculiaridade de parte do corpo lexical de sua expressão poética. De resto, não se pretende aqui
aquele “paralelo” entre poesia e ciência, mas apenas tornar menos agreste e mais fértil um
terreno que há algum tempo vem sendo tocado de forma algo apressada. O monismo do Eu é
tema amplo e central na construção poética do Eu, e sua discussão merece uma atitude
propedêutica específica, que consiste numa inicial remoção de obstáculos que impeçam sua
adequada compreensão.
Para nivelar o terreno, será preciso seguir uma certa ordem temática cujos elementos são
dependentes entre si. Cada um desses elementos toca um aspecto particular da mesma questão, e
eles são dois. Em primeiro lugar, pretende-se a) examinar, em linhas gerais, no que consistia o
espírito científico da época em que viveu o poeta, em especial no que se refere ao monismo
enquanto conceito científico. Trata-se da questão mais geral. Em segundo lugar, pretende-se b)
estudar a representatividade do vocabulário da ciência presente no Eu. Essa última questão seria
assim mais específica, e não prescinde da primeira.
116
após ter passado por esses dois aspectos será possível proceder ao estudo acerca das
peculiaridades do monismo de Augusto dos Anjos, permitindo que sua obra se revele em sua
forma mais pura, em sua manifestação propriamente poética. Portanto, a presente pesquisa
considera os itens (a) e (b) supracitados como duas frentes introdutórias necessárias ao tema do
monismo. Cada uma delas será tratada separadamente.
117
1. O EU E O ESPÍRITO CIENTÍFICO DE SEU TEMPO
Algumas incursões exegéticas que acompanharam as cerca de quarenta publicações do
Eu mencionam, mesmo que de modo vago, uma influência da ciência finissecular na obra do
poeta. Com o passar dos anos, essa característica que se transformou num preâmbulo algo
comum adquiriu certa relevância que, pela abordagem desta pesquisa, mais se deve ao hábito
cristalizado pelo tempo do que à legitimidade da interpretação. Eliot nos lembra, a respeito de
um certo âmbito de análise literária, que a postura crítica é “tão inevitável quanto a respiração”
(Eliot, 1963, p. 22).
No caso em pauta, o fôlego crítico parece vir acompanhado de uma certa resistência
paradigmática, fundada numa simples herança interpretativa. Isso faz com que Augusto dos
Anjos seja freqüentemente conhecido como um poeta “científico”, sem que, no entanto, esse
rótulo seja avaliado com o devido cuidado.
48
Tendo em vista que os caminhos da ciência diferente do que ocorre com a literatura
são sempre submetidos à infalível linearidade do conceito de progresso, e que os princípios e
conclusões da ciência do passado são hoje prontamente recusados, parece evidente que não nos
compete aqui argumentar acerca da pertinência propriamente científica das teorias que o poeta
conheceu (empresa de resto inviável), mas sim acerca da suposta presença de alguns de seus
elementos em sua poética. Tal observação se faz especialmente oportuna quando nos lembramos
de que uma íntima dependência entre os dois universos (ciência e literatura) ligaria à poesia, de
48
Vale fazer aqui justiça à crítica que surge em meados da década de 70, cuja visão sobre o “cientificismo” do autor
ganha em prudência e poder de penetração. São alguns exemplos as críticas de Helena (1984), Paes (1986), Prado
(2000), Freyre (2004), Lins (2004), Machado (2004) e, principalmente, Gullar (1976). Oportunamente tais críticas
serão convidadas a oferecer sua contribuição à discussão.
118
algum modo, aquela noção de progresso, algo que seria, por si só, amplamente discutível e,
dentro da presente pesquisa, altamente indesejável.
Sabe-se que Augusto dos Anjos foi alguém formado nos últimos anos do século XIX,
época profundamente marcada pela credibilidade da ciência, pelos métodos científicos de
investigação e por grandes tentativas generalizantes nesse domínio. Se é verdade que, como
lembra Eliot, cada época tem sua crítica, sua própria marca, o poeta não pode ser destacado desse
Zeitgeist. Bueno (2004) é um dos autores que apontam tal período cultural como um dos
ingredientes da “visão de mundo” de Augusto e de toda uma geração. Segundo o autor, o século
XIX teria sido
o século por excelência do ufanismo científico, da euforia do conhecimento e da ilusão
do progresso ilimitado, criador de uma relativa onipotência do homem sobre a matéria,
crenças cruelmente frustradas pelo advento rbaro da Primeira Guerra Mundial, no
ano mesmo da morte do nosso poeta. (Bueno, 2004, p. 21).
O “século da ciência” foi a pátria de nomes como Augusto Comte, Herbert Spencer e o
citado Ernest Haeckel, autores que mantiveram, pelos favores prestados pela ciência, algo além
da fidelidade. Basta lembrar que Comte e Spencer formularam tentativas de aplicar em âmbitos
extra-científicos suas formulações fundadas na ciência empírica, perfazendo o que ficou
conhecido como a visão positivista. Comte é o primeiro grande expoente dessa linha de
pensamento. Em seu Système de politique positive apresenta, por sua doutrina dos Três
Estados, uma ordem hierárquica histórico-cultural do pensamento humano, composta pelos
estágios “teológico”, “metafísico” e “positivo”, perfazendo um sistema lógico de inspiração
francamente evolucionista. Na França, pátria de Comte, seu positivismo parece não ter tido
maiores desdobramentos, mas sua influência é sensível na Inglaterra de Spencer e na Alemanha
de Haeckel, autores conhecidos – e citados no Eu – por Augusto dos Anjos.
119
Spencer e Haeckel parecem ter sido, dos autores do domínio científico, aqueles mais
conhecidos por Augusto. O poeta, que teria sido “um penitente dos livros, devorando-lhes as
explanações com sofreguidão de fome” (Soares, 2004, p. 66), parecia ter uma competência
especial para recolher de suas leituras os elementos mais voláteis e adequá-los à sua lírica. Com
os dois autores mencionados, a poesia do Eu parece ter mantido uma relação algo peculiar.
Vejamos em que medida seria justo falar dessa relação.
Spencer foi o maior ícone inglês do evolucionismo, e foi dele a tentativa de dilatar o
alcance da doutrina darwinista. Foi autor de um amplo sistema científico-filosófico reunido em
dez volumes, escritos entre 1862 e 1893. De Spencer, Augusto se lembra expressamente por três
vezes no Eu (em As cismas do destino III, em Mater originalis e em Os doentes I). Desse
autor, o poeta teria extraído duas noções: uma, acerca do papel da ciência em geral; outra, acerca
do alcance do fenômeno da evolução. Segundo a interpretação de Gullar,
Lendo Spencer [Augusto] convenceu-se de que a ciência é incapaz de penetrar a
essência das coisas o incognoscível a realidade absoluta que seria fonte de todo o
conhecimento humano; que o evolucionismo não era um fenômeno limitado aos seres
vivos mas se estenderia a todo o mundo material e também à sociedade humana.
(Gullar, 1976, p. 15).
49
Quanto a Haeckel, autor das obras Os enigmas do universo e As maravilhas da vida, o
poeta se refere expressamente em duas ocasiões (em Agonia de um filósofo e em Os doentes – I).
Desse autor, Augusto teria descoberto um caminho científico para sua concepção monística do
universo, o que o torna aqui especialmente importante. Ainda segundo Gullar, Augusto teria
49
No trecho citado, não se deve entender a expressão “sociedade humana” como uma ordem institucional
politicamente organizada. Em Augusto dos Anjos, a sociedade humana nada mais é que a congregação dos homens
que comungam da perturbação imposta pela evolução. Nas palavras do poeta, em versos já citados anteriormente, a
sociedade é “A comunhão dos homens reunidos / Pela camaradagem da moléstia.” (Os doentes – III).
120
retirado de suas leituras haeckelianas a idéia de que a Monera estaria “na origem de todos os
seres animais”.
50
As convicções mais íntimas e a poderosa capacidade reflexiva do poeta Augusto teriam,
no entanto, resistido à sedução do momento histórico em que viveu o homem Augusto, leitor dos
cientistas. Nesse sentido, o Eu termina por ser uma obra que parece não comportar
“evolucionismos” ou “positivismos”, ao menos não como os entendiam os homens de ciência.
Uma razão última para isso é que, como foi notado na parte anterior, o poeta não enxerga a
ordem positiva que os cientistas conferiam ao mundo. Em seu lugar, a impiedade da
heterogeneidade e da diferenciação, que conferem à existência uma desordem e um despropósito
radicais. Assim, a existência não é, no Eu, uma categoria científica: é um problema de que deve
dar conta a poesia. Essa peculiaridade da visão de mundo de Augusto dos Anjos opera um corte
entre a ciência de seu tempo e a poética do Eu.
Não obstante a referência expressa aos autores mencionados, a presença da inspiração
científica no Eu parece ser, de modo mais direto, reflexo do momento intelectual vivido por
Augusto na Faculdade de Direito do Recife, onde o poeta estuda a partir de 1907. Vejamos, em
linhas gerais, quais os elementos dessa discussão, e qual a real importância dessa atmosfera para
a poesia do Eu.
50
Gullar, 1976, p. 15. A expressão do grego “monera”, que pode ser traduzida como “único” ou “solitário”, é,
segundo Paes, cunhada por Haeckel para designar “o tipo mais primitivo de ser vivo” (Paes, 1986, p. 19). A
expressão parece atender com eficácia ao monismo materialista de Haeckel, mas não à poética ontológica de
Augusto. No Eu, a Mônada não parece ser um ser vivo”, mas sim um ente metafísico, transcendente, à qual as
categorias de “vida” e “morte” não se aplicam. Oportunamente será desenvolvida com mais vagar a versão
monística do poeta.
121
1.1. A Escola do Recife: poesia e ciência
Na Faculdade de Direito, Augusto dos Anjos e sua geração respiram os ares tardios do
positivismo francês de Comte, do evolucionismo de Spencer e do monismo materialista de
Haeckel. Isso se principalmente através da herança intelectual deixada por Tobias Barreto
(1839-1889), figura polêmica, das mais influentes da Faculdade, cuja notabilidade no cenário
acadêmico se devia, porém, mais à sua personalidade enfática do que propriamente à sua
produção intelectual. Barreto parecia não nutrir especial afeto pela cultura inglesa, o que fazia
com que Spencer não fosse um de seus eleitos. Era, por outro lado, grande entusiasta de Haeckel
e da cultura alemã.
Augusto ingressa na Faculdade quase duas décadas após a morte de Barreto, cuja
influência residual ainda se nota nos corredores. Com Barreto havia nascido a chamada “Escola
do Recife”, esse que foi, não obstante sua distância em relação aos movimentos do sudeste,
importante movimento intelectual brasileiro dos fins do século XIX. Saldanha (1985) aponta
como membros do grupo Sílvio Romero, Lívio de Castro, Clóvis Beviláqua e Souza Bandeira,
entre outros. Tendo em vista que o ambiente intelectual da Escola tem adquirido peso por
ocasião de algumas interpretações do Eu, talvez seja oportuno um pequeno exame de suas
características centrais.
51
51
Um panorama da presença do movimento intelectual da Escola do Recife na cultura brasileira como um todo foi
estudado por Nelson Saldanha (1985). Especial importância para o tema tem o capítulo intitulado “Surgimento e
caracteres do grupo”, onde o autor faz rapidíssima menção a alguns nomes do campo literário. Em certa altura diz:
Caberia ainda mas não num estudo de síntese como este rastrear ressonâncias e
paralelos em outras figuras de nossas letras, como, a meu ver, no pré-moderno Augusto
dos Anjos, com seu spencerismo ostensivo e seu inconfundível cientificismo. [grifos
nossos]. (Saldanha, 1985, p. 125).
O pré-modernismo do poeta é discutível em vários aspectos, e atualmente parece se prestar a uma função
meramente classificatória. Note-se, como exemplo, a interpretação de Álvaro Lins (2004), no artigo intitulado
“Augusto dos Anjos: poeta moderno” ou ainda de J. Paulo Paes (1986) e Ferreira Gullar (1976), que aludem com
122
A produção intelectual da Escola do Recife trafegava por diversos âmbitos do
conhecimento. Alguns desses âmbitos surgem eventualmente a serviço de outros, numa
desenvoltura que sugere diletantismo. De fato, Sílvio Romero aponta, naquela que considera a
geração decisiva na constituição da Escola (1884 a 1889), predileção por temas de “Filosofia,
Etnografia e Antropologia” (Saldanha, 1985, p. 124). Vale lembrar que, pelo nome de
“filosofia”, entendia-se também as formulações científicas de caráter sistemático e generalizante
de Comte, Spencer e Haeckel, assim como sob o nome de antropologia não era raro que se
reunissem incursões políticas e sociológicas. Essa indistinção se deve principalmente ao
momento histórico atravessado pela cultura brasileira. De fato, num período em que não havia no
país uma demarcação o clara daqueles diversos domínios do conhecimento, e em que estava
em gestação uma mentalidade propriamente “nacional” (marca não apenas daquela época), o
inquieto movimento da Escola do Recife mantinha uma preocupação constante (e legítima) com
o destino político e social do país, partindo em defesa dos ideais republicanos, e amalgamando-
os, não sem versatilidade, ao espírito científico vindo da Europa.
Qualquer estudo mais profundo a respeito seria aqui prolixo e desnecessário, mas vale
lembrar o esforço de Antonio Paim (Saldanha, 1985, p. 124) no sentido de situar com alguma
precisão as fases da Escola do Recife e suas respectivas características, relacionando os nomes
de seus representantes. Por ora, é relevante apenas destacar do movimento sua inequívoca
inclinação positivista, marca aglutinante que aparece de forma quase invariável em todos os
autores da Escola, e que ilustra seu perfil de “movimento” intelectual.
propriedade a uma modernidade da poesia do Eu. O “specerismo” mencionado por Saldanha, por sua vez, não se
sustenta, segundo a presente pesquisa, senão como uma ocorrência acidental e, portanto, nunca decisiva ou
“ostensiva”. Quanto ao “cientificismo” lato sensu, a presente argumentação trata de discuti-lo. De qualquer modo, é
importante notar que Saldanha fala de Augusto dos Anjos por ocasião do estudo de “ressonâncias e paralelos”, o que
o torna, já no início da discussão, distante do movimento da Escola.
123
Augusto dos Anjos não fez parte da Escola do Recife, mas foi uma atenta testemunha de
seus reflexos. É precisamente aqui, nesse testemunho e nas impressões do poeta dentro dessa
atmosfera, que reside o dado principal que aproxima do Eu a presente discussão: o léxico
científico. De fato há, na poesia de Augusto, um corpo lexical composto por expressões
científicas especializadas que conduzem a leitura a certo proselitismo. Semelhante fenômeno
ocorre também com a prosa do autor, o que aponta para uma marca de sua índole pessoal. O
comentário de Bueno esclarece:
Se na questão do léxico, sobretudo talvez em sua prosa, nos parece que o poeta
sucumbiu a uma irresistível compulsão a épater le bourgeois com sua esmagadora
cultura, parece-nos que na sua poesia o uso do mesmo vocabulário, mitigado aliás na
última fase, é fruto de um fluxo de sensibilidade absolutamente autêntico, não dos
conceitos inerentes aos vocábulos, mas também do poder encantatório estranho e
musical de seu arcabouço fonético. A presença de semelhante uso até em sua
correspondência pessoal, escrita sem nenhuma intenção de fazer literatura, nos prova,
aliás, o quão natural era para ele tal processo [...]. (Bueno, 2004, p. 22).
Examinemos mais de perto o tema, uma vez que é pela presença desse vocabulário que a
obra de Augusto mais se aproximaria de uma visão “científica”.
124
1.2. O léxico científico
Os exemplos da terminologia cientificista no Eu são inúmeros: poderiam ser lembrados
os "neuroplastas” (em Decadência), a “filogênese” (em Os doentes IX), a energia
intracósmica” (em Sonho de um monista) ou os “encéfalos” (em A dança da psique), para citar
apenas alguns. A adoção do vocabulário científico pelo poeta muito contribuiu para uma forte
aproximação de sua poesia ao sistema semiótico e ao ideal científico de sua época, e talvez a
abundante presença desses termos seja o dado mais relevante por ocasião do argumento em favor
da presença de uma certa “poesia científica” no Eu. De fato, basta abrir qualquer uma das
páginas da obra para encontrar uma farta quantidade daquelas expressões.
52
Não obstante as observações acerca dessa espécie de poesia, é tempo de avaliar em que
medida a adoção do vocabulário da ciência faz do Eu uma obra comprometida com, ou
influenciada pela ciência de seu tempo. Afinal, como lembra Cunha a propósito da vigésima
nona edição do Eu e dos diferentes rótulos que lhe são impostos, “ainda não começamos a falar
sério de Augusto dos Anjos”. (Cunha, 2004, p. 169).
Segundo Freyre (2004, p. 78), o poeta seria como o indivíduo que G. K. Chesterton
julgava incompreensível, ou seja, o homem que foi capaz de aprender com a ciência “os nomes
de todos os vermes que o comiam e os nomes de todas as partes de seu corpo comidas pelos
vermes”. Trata-se do ensaio de uma nova frente de argumentação. De fato, a sensibilidade de
52
A expressão “poesia científica” tem um lugar preciso na historiografia literária brasileira. Paes (1986) lembra que,
assim como o parnasianismo, a “poesia científica” foi um movimento que intentava substituir o romantismo que, já
naquele tempo, experimentava “adiantado processo de dissolução” (p. 12). Ainda segundo Paes, os maiores
expoentes do estilo foram Sílvio Romero e Martins Júnior, tendo mesmo este publicado uma obra intitulada A
poesia científica. Em outra ocasião em sua publicação Visões de hoje (1881) Martins Júnior celebra fartamente
o ideal evolucionista da época, “reivindicando-lhe a aplicação na vida política, com a derrocada dos frades e dos reis
e o estabelecimento da república laica” (Paes, 1986, p. 13). O fenômeno da “poesia científica” parece ter, portanto,
forte identificação com o movimento da Escola do Recife, ainda que, como pretende mostrar este estudo, não tenha
seduzido a lírica de Augusto dos Anjos, não obstante o amplo emprego do vocabulário científico.
125
Augusto aos flagrantes miseráveis da existência teria sido antes o elemento primordial de sua
poesia, no lugar de uma mera orientação de ordem positiva ou da inclinação em “buscar a razão
científica de tudo e do Todo” (Spencer, 2004, p. 181). Seguindo na mesma direção, questão
especialmente importante se coloca: se é flagrante a presença do vocabulário científico, isso
ocorreria em virtude de uma postura sectária do autor, tornando-o defensor de certo “sistema”
científico através da poesia? Ou, por outro lado, a presença do léxico científico ocorre apenas na
medida de sua contribuição para o imaginário poético do Eu, possuindo assim importância
recessiva? A presente pesquisa se antecipa por esta segunda resposta, com o apoio da seguinte
observação de Gullar:
Pode-se dizer, a respeito de qualquer poeta significativo, que sua obra constitui um
“universo verbal”. Também metaforicamente pode-se falar de “sistema”. Cada poeta dá
“um sentido novo às palavras da tribo”, para usar a lebre expressão de Mallarmé. O
que permite empregar, para definir esse fenômeno, denominações como “universo” ou
“sistema” é o fato de que a metamorfose a que o poeta submete a linguagem comum,
embora não obedeça a uma sistemática explícita (isto é, à aplicação sistemática de um
método objetivo), tende a uma coerência. (Gullar, 1976, p. 50).
O mesmo intérprete, estudando a presença de um vocabulário “concretona poesia de
Augusto, traz, a propósito, uma lista de expressões encontradiças no Eu, e que apontariam para o
cultivo de uma linguagem predominantemente prosaica por parte do poeta. A lista de Gullar, que
está longe de ser exaustiva, conta com mais de trezentas palavras. Cito algumas, escolhidas ao
acaso: “anúncios”, “açougues”, “chocalho”, “cara”, “crédito”, “edifícios”, “funcionária”,
“fogão”, “garrafa”, “hélice”, “imposto”, “loja”, lixo”, “mobília”, “orelhas”, “prato”, “queixo”,
“toalhas”, “tesouras”, “10 minutos”, “300 gramas”. A relação apresentada por Gullar aponta
numa nova direção, e o tema mereceria um cuidadoso estudo à parte. Contudo, a pesquisa do
intérprete é tão curiosa quanto valiosa, tendo em vista que propõe uma leitura da obra que
indicaria um caminho amplamente diferente daquele proposto pela interpretação cientificista.
126
A pesquisa lexical de Gullar não se restringe a uma lista. O autor entende, uma vez
apontada uma nova trilha interpretativa para o Eu, “surpreender aqueles que se habituaram
conforme as definições simplistas e errôneas a ver em Augusto um simbolista ou um
‘cientificista’” (Gullar, 1976, p. 34).
53
Em outras palavras, “cientificismoe “prosaísmo” teriam,
dentro de um mesmo critério de avaliação, pesos equivalentes na poesia do Eu. O painel lexical
apresentado por Gullar é tão ostensivo que não pode ser tomado como matéria de exceção. Seria
pertinente chamar de “científica” uma obra que se apropria de forma tão irrecusável daquele
vocabulário cotidiano, feito de “orelhas” e “toalhas”? Ou que, como lembra o mesmo intérprete,
“rima blastodermas com palermas, plasma com entusiasma, carbono com abandono” (Gullar, p.
55)? De fato, mesmo uma leitura pouco atenta do Eu demonstra que a presença de expressões
“prosaicas” rivaliza em número e em representatividade com as expressões científicas e, em
diversos momentos, as supera.
54
53
A afirmação de Gullar traz para a discussão um suposto “simbolismo” da poesia de Augusto, tema que não
compete ao presente estudo. Murici (2004) citado por Bandeira em Itinerário de Pasárgada como um
“especialista em simbolismo” pretende aproximar Augusto dessa vertente, mas numa incursão comparativa que,
além de muito sucinta, privilegia apenas a poesia de Cruz e Souza, o que não atende ao objetivo final. Vale, a
propósito, lembrar também as interessantes pesquisas bio-bibliográficas de Magalhães Júnior (1978). O crítico
entende haver, na produção inicial de Augusto dos Anjos, um leque de diversas influências, entre as quais o
simbolismo de Cruz e Souza. No entanto, tal influência teria sofrido progressivo enfraquecimento, até culminar no
período “fluminense” de Augusto, assinalado pela publicação do Eu em 1912, onde se reconheceria a marca
poética peculiar do autor. De qualquer modo, o simbolismo de Augusto (que, assim como seu “pré-modernismo” e
seu “ultra-romantismo”, são recusados por Gullar em sua leitura do Eu) parece ser, conforme esta pesquisa, menos
preciso do que útil às aplicações classificatórias dos compêndios. De resto, vale lembrar que a poesia de Augusto
dos Anjos teria, ainda segundo Gullar, diversos elementos que a aproximariam da modernidade, dentre os quais se
destaca aquela maciça presença do vocabulário “prosaico”.
54
Antonio (2004, p. 55), em exame do poema Psicologia de um vencido, relaciona como palavra ou conceito
científico a expressão “terra”, conferindo-lhe o mesmo caráter de outros termos como “carbono” e “amoníaco”.
Gullar não relaciona “terra” em sua lista de termos prosaicos, o que não significa que considere “científica” a
expressão. Trazendo para a presente discussão a observação de Antonio, talvez seja preciso lembrar que “terra”
que, já à época do poeta não era uma palavra senão vulgar – ocorre em diversas ocasiões no Eu, e que, em nenhuma
delas parece ter caráter cientificista. Duas acepções são empregadas: uma delas, como no poema citado (Psicologia
de um vencido), em que a palavra é simplesmente sinônimo de “solo”; e a segunda e última, como em Versos
íntimos (“O Homem, que, nesta terra miserável, / Mora, entre feras, sente inevitável / Necessidade de também ser
fera.”), em que é sinônimo de planeta”. É certo que “terra”, numa visão ampla da poesia augustiana, suscita a
ocorrência do emprego metonímico (daí a importância de discutir seu suposto caráter cientificista), mas os poemas
não confirmam essa suspeita, assim como não confirmam a convicção de Antonio em seu comentário.
127
Pronunciando-se sobre a questão, diz Viana (2000):
Os vocábulos tomados à ciência e à filosofia concorrem para certo preciosismo que,
pelo menos em tese, afastaria o poeta do leitor comum (em tese porque a obscuridade
desses termos, de forte apelo musical, veio a se constituir em motivo de fascínio). Os
vocábulos prosaicos, além de propiciar uma maior comunicação, concorrem para
distanciar o poeta dos estilos imediatamente precedentes (naturalismo e simbolismo),
fazendo de Augusto um antecipador da modernidade. [grifo do autor] (p. 46).
É certo o que aqui está em pauta: não nos compete estudar poesia sob o aspecto
estatístico, reduzindo-a a um agrupamento de verbetes. Se Gullar ilustrou seu argumento com
uma lista de palavras, o fez com o propósito claro de fazer justiça ao espírito do Eu. O
argumento em favor de um prosaísmo decisivo da obra (o que não foi defendido por Gullar) não
seria mais do que uma nova leitura extremada: com o fim de fugir de um extremo, atingir-se-ia o
outro. Assim, uma redução seria substituída por outra, do que sabia bem Gullar. O que torna seu
argumento mais forte é, portanto, a pertinente objeção erguida contra uma eventual posição
cientificista.
Helena (1984) observa, a respeito do assunto:
Não é a ciência, nem o repertório do positivismo ou do determinismo ou do
evolucionismo que ali se torna exclusiva presença. Na palavra poética do poeta
manifesta-se, tão e somente, o dizer poético da linguagem. O vocabulário “científico”
apontado no EU apenas seria científico no texto de Haeckel e Spencer. (Helena, 1984,
p. 22).
De fato, na vertente científica com a qual travou contato, Augusto parece apenas
descobrir um lugar onde se sistematizam alguns elementos de sua poética e, se convoca a
presença dos “átomos difusos”, dos “doentes de hematúria” e da “acústica de todos os planetas”,
é para traduzir sua inquietação radical. Ignorá-lo seria algo como estudar a Ode triunfal de
Álvaro de Campos pelo exame da “tinta de tipografia”, das “debulhadoras a vapor” ou dos
“tramways” de que se serve. A fração do domínio da linguagem eleita por ocasião do Eu não
128
pode ser decisiva, portanto, na leitura da obra, sobretudo porque a permissividade da linguagem
é de uma generosidade cuja distinção é feita, no caso em questão, poeticamente. Não se trata
pura e simplesmente de um “versejar”, o que corresponderia a um mero agregado de vocábulos,
mas sim de um fazer poético que se sustenta em uma certa necessidade lírica e em uma peculiar
e deliberada transgressão semântica.
Com o propósito de ampliar a discussão, talvez lançando mão de uma outra frente
argumentativa que dilataria o domínio da expressão estética, vale lembrar Jakobson, citado por
Antonio (2004):
Assim como um trabalho poético não se encerra em sua função estética, as funções
estéticas não se limitam ao trabalho poético; o discurso de um orador, a conversação
corriqueira, os artigos de jornal, os anúncios, um livro científico, todos podem conter
considerações estéticas, expressar uma função estética e freqüentemente lidam com as
palavras valorizando-as em si, para além de sua função referencial. [grifo nosso]
(Jakobson apud Antonio, 2004, p. 11).
De qualquer modo que se veja a questão, é inegável que, sendo sujeito empírico
localizado historicamente, homem profundamente ligado à sua época, Augusto seja afetado pelas
inclinações culturais vigentes. O poeta do Eu era homem especialmente atento às modificações
contextuais de ordem política, social e cultural experimentadas pelo advento da República, o que
se evidencia em seus pronunciamentos públicos, em suas lições e em sua epistolografia. Não se
passa com isenção pela história. Como lembra Eliot, “Nenhum poeta, nenhum artista tem
sozinho seu completo significado”.
55
O eco está em Bandeira, quando diz em seu Itinerário de
55
“No poet, no artist of any art, has his complete meaning alone”. (Eliot, 1963, p.23). Eliot não se refere
expressamente a aproximações entre as artes e outros sistemas semióticos, como ocorre aqui. Contudo, o caráter
abrangente da afirmação parece permitir a citação do trecho sem prejuízo de sua leitura original. A afirmação de
Eliot conduz a seu conceito de “tradição”: uma comunicação entre presente e passado, e não um simples passado
cristalizado. A “tradição” se dá na obra em virtude de uma comunhão estética e histórica, traduzida em âmbito
particular pelo medium, essa expressão última do poeta, um “meio” entre o Eu e si mesmo: “o poeta não tem uma
‘personalidade’ para expressar, mas um ‘medium’ particular” (“the poet has, not a ‘personality’ to express, but a
particular medium”). (Eliot, 1963, p. 27). Bem compreendido, o conceito eliotiano de tradição talvez não se aplique
aqui, uma vez que parece conter uma forte carga de impessoalidade, inconjugável com as exigências existenciais da
129
Pasárgada: “O vocabulário, a sintaxe podem ser inatuais; as formas de sentir e de pensar, não.
Somos duplamente prisioneiros: de nós mesmos e do tempo em que vivemos”. (Bandeira, 1984,
p. 117-8). João Cabral prefere dizer: Acho que todo mundo é de seu tempo. Você pode ser da
sua época ou contra a sua época (Athayde, 1998, p. 79). Enfim, sabe-se da temeridade de
relacionar “perenidadea uma obra poética, tendo em vista que diversos fatores de ordem extra-
literária são a ela subjacentes de modo mais ou menos expresso. Contudo, no que se refere ao
discurso poético do Eu, a cultura fin de siècle, positiva, parece ganhar terreno apenas sob o olhar
atento de uma imponderável intuição lírica, irredutível, no caso específico, a qualquer orientação
científica. Como lembra bem Órris Soares, que foi figura próxima ao poeta, o Eu não pode ser
tomado predominantemente à luz de interferências exteriores, tendo em vista que não é senão
“um livro de sofrimento, de verdade, e de protesto”. Em outro trecho, diz o mesmo autor:
O que sempre existiu foram poetas comovendo-se em face dos fenômenos da natureza,
das leis regedoras da vida e do mundo, como outros se arrebatam diante dos quadros de
amor, exaltam-se pela beleza, quedam-se na contemplação, e vivem do ideal. (Soares,
2004, p. 72).
Eis o motor da poesia de Augusto dos Anjos: a comoção diante da Natureza. De fato, o
Eu manifesta seu “sofrimento” e “protesto” diante da constatação do fenômeno da diferenciação;
e por uma “verdade” poética incurável e inalienável entende reagir àquele sofrimento, verdade
que não se sustenta em princípios científicos.
No que se refere, portanto, à presente discussão, o Eu parece ser, em detrimento da
eventual visão antagônica, uma obra que coloca a terminologia de cunho científico a serviço de
uma criação poética, e anuncia antes um apelo existencial que, por um notável capricho
histórico, encontrou certa analogia sistemática na ciência de seu tempo e dela se serviu com
obra augustiana. É certo que a discussão é ampla, e conduz mesmo a algumas considerações sobre os chamados
“biografemas” encontradiços nos poemas, razão pela qual seria tão improcedente quanto prolixo desenvolvê-la aqui.
130
pouca cerimônia. Augusto talvez tenha construído sim uma espécie de ontologia poética que, em
substância, parece manter notável distância em relação à índole científica. Enfim, a marca
terminal do Eu, antes de ser a influência de um encanto fácil” proporcionado pelo conforto da
ciência, é o lírico e o subjetivo, “o existencial, o enfrentamento direto da consciência individual
com o universo” (Paes, 1986, p. 14). A exaltação do poder do racionalismo científico produziu
uma resposta inequívoca, absorvida com entusiasmo pela nova cultura republicana brasileira.
Porém e em virtude disso a voz da ciência foi insuficiente para um espírito como Augusto
dos Anjos. De fato, a ordem do universo, sua compreensão e sistematização palavras de ordem
dentro do domínio positivo repercutem como uma nova pergunta dentro da poesia do Eu: a
pergunta decisiva pelo próprio sentido da existência, a questão daquela mesma ordem, posta
agora sob o signo metafísico.
Se a existência é, para o poeta do Eu, um problema, só o é porque carrega consigo algo
inexplicável, incompreensível, desordenado, o que aos seus olhos aparece sem sentido. Esse
problema, se confrontado com a maneira peculiar da expressão augustiana, traz à tona, na
verdade, uma questão que antecede ao aparte crítico que defende o cientificismo: trata-se mesmo
de um paradoxo do âmbito da comunicação da poesia, situado entre um esforço de revelação do
encoberto (o Mistério, a Mônada) e uma linguagem nem sempre acessível. De fato, como foi
dito, a poesia do Eu lança mão em muitas ocasiões de uma linguagem requintada, e o faz com o
propósito de revelar o oculto. Mas, antes de nos anteciparmos em defender que Augusto dos
Anjos manifesta o oculto pelo oculto, é preciso creditar à discussão aquilo que enriquece o
paradoxo: em função do que pretende revelar, a expressão do Eu se revela, mais do que
ornamentada ou sectária, mítica. Por uma linguagem que remete ao mito pela natureza do oculto
que pretende manifestar, a poesia augustiana carrega consigo, por trás de um problema lexical,
131
um paradoxo da ordem da comunicação poética que, se é certo que não é tão raro, é fortemente
sugestivo em Augusto dos Anjos.
Schlegel diz que a poesia “não pode ser criticada senão pela poesia” (Schlegel, 1978, p.
81-97 apud Gusmão, 2003, p. 244), ao que esta pesquisa não se opõe. Amortecer as distâncias
entre a criação poética de Augusto e um domínio “extra-literário” (seja ele científico ou não)
corresponde a uma opção de leitura sustentável, mas que pretende descobrir dentro da própria
obra elementos que lhe sejam logicamente anteriores. Eis o momento de lembrar a afirmação de
Schlegel, cujo exame permite defender que aquilo que o poema traz é, sempre, legitimamente
poético: aquilo que era “extra” (neste caso, a ciência) perde em determinação, em delimitação, e
ganha um sentido contaminado por algo “intra” e, como resultado, passa a ser parte indissociável
da própria obra literária, sendo finalmente por ela envolvido. Trata-se daquela vigorosa pulsão
última da própria linguagem, que consiste na tentativa de conferir à coisa sentido seja tal
sentido a própria coisa ou uma alegoria (um “dizer de outro modo”) –, antevendo, todavia, um
permanente deslizamento semântico.
Nota-se que um argumento sobre a influência decisiva da ciência positiva sobre a poética
de Augusto não sobrevive a um exame mais cuidadoso. A adoção do léxico de índole científica,
aspecto tido como o mais marcante daquela influência, não parece ter mais importância do que a
capacidade de penetração e a acuidade intelectual do poeta, que terminam por conduzi-lo a uma
visão monista mais por necessidade ontológica e sensibilidade existencial do que por opção
teórica.
Esse perfil ontologizante parece ter aberto no Eu uma perspectiva algo inédita na
literatura poética brasileira e que, precisamente por conta desse ineditismo, tenha sugerido a
presença da ciência, domínio que não traçava com a ontologia nítidas fronteiras. Em fins do
132
século XIX, uma aproximação indiscriminada entre ciência e metafísica, provocada, por um
lado, pelo advento de uma ciência exorbitada, e, por outro, por uma visão dilatada da metafísica,
perfazendo a hýbris dos novecentos. Contudo, num cômputo final, pode ser notado que Augusto
dos Anjos, por trazer em sua poesia uma vocação à universalidade (e, por conta dessa temática
universal, poderia ser chamado de um poeta “maior”), submete a ciência – e com ela a metafísica
à potência inevitável da poesia e, sem perder de vista a unidade de sua obra, edifica um verso
que faz do vocabulário científico adotado não mais que um instrumento de considerável
importância semântica.
Armado pela inquietação lírica, Augusto não parecia ter “a alma facilmente conformável”
(Oiticica, 2004, p. 113) do cientificismo de seu tempo, e em seu lugar experimentava seu
desconforto de poeta diante dos enigmas insondáveis do universo, cuja natureza os arautos da
“nova ciência” especialmente Haeckel pretendiam decifrar de modo positivo e inequívoco.
Mas o sujeito poético do Eu não se ilude com convicções cristalizadas e, se, eventualmente,
parece mergulhar nessa ilusão, é menos por uma concessão trivial do que para aliviar o peso de
suas incertezas de poeta. Dizem os versos de abertura do Poema negro:
Para iludir minha desgraça, estudo.
Intimamente sei que não me iludo.
O Eu é “o caniço pensante de Pascal diante do ‘silêncio eterno desses espaços infinitos’ a
interrogar-se sobre o sentido da vida” (Paes, 1986, p. 14). Além disso, segundo Machado,
Augusto dos Anjos não foi um influenciado direto de individualidades e escolas, de
modo que se possa afirmar haver pertencido às hostes militantes sob essa ou aquela
bandeira. (Machado, 2004, p. 99).
Miranda (1995), em obra que reúne ficção e elementos biográficos, observa com justiça,
aludindo às múltiplas influências a que o poeta teria se rendido:
133
A poesia de Augusto não é simbolista, nem cientificista, nem parnasianista; é feita de
carne, de sangue, de ossos, de sopros da morte; é ele, integralmente, na nudez de sua
sinceridade existencial, no clamor de suas vibrações nervosas, na apoteose de seu
sentir, nos alentos e desalentos de seu espírito. Seus poemas são lâminas de aço polido
que refletem seu rosto descarnado. [...] Professava a de um monista, vasculhava as
maravilhas da vida, os enigmas do universo, a origem das espécies, sentia em si as
dores do mundo, o nascimento e o desvanecimento da matéria. Que escola é esta?
(Miranda, 1995, p. 237).
Esse mesmo (des)lugar histórico da poética augustiana que é, no trecho supracitado,
enriquecido pelas alusões às presenças de Haeckel, Darwin e Schopenhauer , é igualmente
observado por João Cabral, em duas entrevistas. Na primeira, concedida a Sérgio Fonta, em
1973, referindo-se ao movimento Modernista e ao cenário literário por ele encontrado, diz
Cabral:
Dessa geração que eles [os modernistas] encontraram, tenho a impressão de que
apenas um grande poeta, que é Augusto dos Anjos, quer dizer, final do Simbolismo e
do Parnasianismo. (Athayde, 1998, p. 43).
Na segunda, quase dezesseis anos depois, o poeta crítico diria, em entrevista a Luiz Costa
Lima:
[...] Apesar de eu fazer uma coisa muito especial, que sinto que é fora da tradição luso-
brasileira, pois me considero tão marginal quanto Sousândrade ou Augusto dos Anjos,
minha sensibilidade não se fechou. (Athayde, 1998, p. 78-79).
Posição similar assumem outros intérpretes, entre eles José Américo de Almeida, ao dizer
de Augusto que “sua poesia não tem escola” (Magalhães Júnior, 1978, p. 305).
Espírito excessivamente perturbado pelo problema que identifica no coração da
existência, o poeta cria “uma metafísica lírica de integração entre o eu e o Cosmos”, e sua obra é
“a adaptação de uma individualidade criativa a um Zeitgeist marcado pela obsessão cientificista”
134
(Paes, 1986, p. 14).
56
Ainda na mesma direção, afirma o folclorista e poeta José Rodrigues de
Carvalho, por ocasião de suas impressões acerca da primeira publicação do poema As cismas do
destino, em 1908: “[...] fácil não será dizer a que escola é filiado o poeta paraibano” (Magalhães
Júnior, 1978, p. 184). Em outro justo comentário, Gullar diz que, caso o Eu seja lido como uma
obra credora da ciência,
perde-se precisamente o que define a poesia de Augusto como a mais patética
indagação feita, na poesia brasileira, acerca da existência do mundo e do sentido da
vida humana. (Gullar, 1976, p. 35).
O mesmo intérprete parece definir bem o lugar da ciência na poesia do Eu, quando
lembra que compreenderemos melhor a poesia de Augusto quando despertarmos para o fato de
que os problemas levantados pela ciência do século XIX sobre a origem da existência “não são
meros pretextos literários para cometer sonetos e poemas: são problemas vitais e que a
necessidade de resolvê-los conduziu-o [Augusto dos Anjos] a viver uma experiência poética de
densidade rara em nossa literatura” (Gullar, 1976, p. 35). O contexto finissecular da hipertrofia
do conhecimento “torna possível, no território da poesia, o fenômeno desconcertante que é a
obra poética de Augusto dos Anjos” (idem, p. 26).
Como comentário adicional ao tema, talvez seja oportuno lembrar os versos de Canto
íntimo. A segunda e a terceira estrofes dizem:
O Sol está moribundo.
Um grande recolhimento
Preside neste momento
Todas as forças do Mundo.
De lá, dos grandes espaços,
56
O autor menciona aqui a expressão “Zeitgeist” (“Espírito do tempo”, ou “Espírito da História”), fazendo
referência, a meu ver inequívoca, à obra hegeliana. A obra de Hegel parece se aproximar das grandes tentativas
sistemáticas de “generalização” que ocuparam o século XIX. Talvez daí a menção de Paes, que entende a
“individualidade criativa” de Augusto como uma contrapartida ao Geist de seu tempo.
135
Onde há sonhos inefáveis
Vejo os vermes miseráveis
Que hão de comer os meus braços.
57
O poema é parte do grupo dos chamados Poemas Esquecidos. Não foi escrito após o
contato de Augusto com os vestígios finais da Escola: Canto íntimo foi escrito em 1905, ainda no
remoto Engenho de Pau d’Arco, onde nasceu o poeta. O que seria o grande recolhimento” de
que falam esses versos debutantes? Se permitirmos, ouviremos por detrás da expressão os sinais
de um espetáculo universal de união, de convergência, como se todo ser, “todas as forças do
Mundo” respondessem em uníssono ao seu destino mais íntimo. Na primeira quadra citada ouve-
se mais do que uma certa tristeza ou uma melancolia. também cautela, alguma apreensão
soturna, daquelas que experimenta quem está diante do imponderável. A idéia daquele
“recolhimento” que orienta o “Mundo” parece apontar para uma certa perenidade, para uma
experiência de assombro, para uma vaga noção da misteriosa pulsão vital unificada, idéia que
caracterizaria a Mônada nos poemas publicados no Eu, sete anos mais tarde. O “grande
recolhimento” é a própria Mônada, certamente numa expressão titubeante, reticente, porém
inequívoca na essência.
Seria necessário o transcurso de alguns anos para que o poeta que escreveu o Canto
íntimo testemunhasse o ambiente residual da Escola do Recife, experimentando ali as fragrâncias
de uma ciência que tanto seduziram outros autores. Diante disso, é possível dizer que Augusto
dos Anjos parece ter não apenas manifestado adesão a um monismo: em seus primeiros
passos, sua poesia carrega os traços da inclinação monista latente, sem que para isso precisasse
travar contato com a atmosfera do cientificismo generalizante que afetava a Faculdade do Recife.
57
Aqui uma relação com os primeiros versos de Noturno (1902), soneto preterido pelo poeta na edição do Eu (o
segundo Noturno, publicado em Outras Poesias é poema escrito e publicado em 1904). Diz o Noturno de 1902:
“Para o vale noital da eterna gaza/Rolou o Sol imenso moribundo –/E a noute veio na negrura d’asa,/Santificada
pela Dor do Mundo!”
136
nos tempos de Engenho, o sujeito poético parece profetizar a morte o caminho inverso à
individuação do impiedoso sol paraibano, e adverte sobre o motor principal da criação poética
que se seguirá. Augusto sente em sua lira de iniciante o “grande recolhimento” como intuição
primitiva daquela posterior linguagem substancial que será adotada no Eu, uma linguagem
monística, o idioma do umbral (para usar uma expressão de Jankélévitch), a idéia da potência
última e totalizante. Enfim, o que era uma vaga e preciosa intuição em 1905 torna-se em 1912
(por ocasião da publicação do Eu) um inquietante pressentimento, já plenamente elaborado
enquanto intuição lírica.
Aspecto igualmente interessante acerca do léxico augustiano foi sugerido na parte
anterior deste estudo, pela recuperação do comentário de Rosenfeld (2004): trata-se do
expressionismo ao qual se ligaria a poesia de Augusto. As referências de Rosenfeld são,
particularmente, feitas aos poetas expressionistas alemães Gottfried Benn, autor de Morgue (obra
publicada no mesmo ano em que surge o Eu, 1912) e Georg Heym, autor do poema em prosa
Autópsia, escrito quase ao mesmo tempo em que Benn escrevia Morgue. Sobre Autópsia, o
intérprete diz ser uma “descrição, de horripilante beleza, da dissecação de um cadáver.”
(Rosenfeld, 2004, p. 186). No mesmo trecho, outro poeta expressionista alemão é citado Trakl
cuja obra “sussurrava versos que continham visões de uma humanidade de cara quebrada’,
cujos caminhos desembocam em negra putrefação’. Pergunta Rosenfeld: “Quem não se
lembraria da temática essencial de Augusto dos Anjos?”.
É, de fato, inevitável a aproximação. Ainda que a presente pesquisa se distancie do
intérprete no que de “essencial” haveria na temática de Augusto dos Anjos, a expressão “cara
quebrada”, por exemplo, seria prontamente reconhecida por qualquer leitor mais atento do Eu.
Rosenfeld continua:
137
Augusto dos Anjos nasceu em 1884, Benn em 1886 e Trakl e G. Heym em 1887.
Todos, com exceção de Benn, morreram por volta de 1914. Há naturalmente diferenças
profundas, de forma e substância, entre cada qual desses poetas de uma geração e,
em especial, entre os três alemães e o brasileiro. Mas há, sem que se queira fazer de
Augusto dos Anjos um expressionista (movimento do qual dificilmente pode ter tido
notícia), coincidências notáveis, particularmente entre este e Benn. (Rosenfeld, 2004,
p. 186).
Rosenfeld destaca, principalmente, a fração sectária do vocabulário adotado por Augusto
dos Anjos, como um forte indício expressionista no Eu. Se “nas tavernas de Benn os dentes
verdes (de um rapaz) acenam a uma conjuntivite (pertencente a uma moça)’”, em Augusto
“desagrega-se em o tato, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto’, aparecendo numa tasca até a
mandíbula inchada de um morfético’”. (Rosenfeld, 2004, p. 186-187).
Surge, ao lado da montagem do termo técnico no contexto da língua tradicional a
dissociação pelo lingüisticamente heterogêneo uma metafórica grotesca, “marinista”,
que opera com o incoerente. (Rosenfeld, 2004, p. 187)
58
A inclinação expressionista de Augusto dos Anjos, sua “estética da dissonância” (Viana,
2000, p. 48) é também destacada por Moisés (2001). O intérprete, cujo comentário contempla
alguns aspectos do artigo de Rosenfeld, declara que o cenário poético do Eu
[...] nem é simbolista, nem muito menos parnasiano: é expressionista. Se entendermos
que o Expressionismo está para o Simbolismo assim como o Impressionismo está para
o Realismo, compreende-se que Augusto dos Anjos se inclinou, espontaneamente,
como nenhum outro entre nós, para as linhas avançadas do Expressionismo,
metamorfose da estética simbolista. Focalizando os tormentos d’alma e as paixões do
ser humano, o Expressionismo procurou contrabalançar a desumanização do Realismo.
O poeta paraibano, decerto sem conhecer os expressionistas, sobretudo alemães, viveu
um drama que se diria expressionista e vazou-o numa forma correspondente que,
distinguindo-o dos pares nacionais da belle époque, o aproxima dos europeus
contemporâneos. (Moisés, 2001, p. 439).
Enfim, independente de nuances e aproximações, o poeta não encontrou respostas na
ciência para o seu drama expressionista, como até aqui se pretendeu demonstrar. Quando muito,
138
nutriu-se da ciência como um suplemento. No lugar das respostas do evolucionismo, o Eu coloca
sua pergunta sobre o sentido; no lugar da credibilidade conceitual, coloca sua índole perplexa e
anuncia a situação-limite; no lugar de um comprometimento com o positivismo, uma inquietação
existencial feita de pressentimentos. Como resposta à perturbação que se instala no curso dos
seres, o poeta propõe, o fora da poesia, mas ainda mais intensamente dentro dela, uma mistura
de intuição lírica, profecia e desejo. É da aspiração à Mônada, ao Uno-primordial (o Ur-einen de
que fala Schopenhauer), à Unidade cósmica, que se constrói o passo final da trajetória poética do
Eu. O sujeito poético intui o fim da diferenciação, anuncia a profecia do fim da heterogeneidade
entre os seres, e apela para a morada terminal da Mônada primordial, compelido pelo sentimento
do termo necessário da dor e do sofrimento da existência.
Do que foi dito, a conclusão natural a que se chega é a seguinte: o monismo de Augusto
dos Anjos não é uma alternativa, mas uma necessidade ontológica imperscrutável, que se no
Eu pela intuição lírica, pelo desejo e pela profecia do sujeito poético, que quer o fim da
diferenciação pela recuperação da Mônada substancial.
58
Por “marinista”, Rosenfeld se refere provavelmente ao poeta italiano Giambattista Marini (1569-1625), autor
marcado pelo preciosismo vocabular.
139
2. O MONISMO POÉTICO
Após ter cuidado dos dois primeiros aspectos propostos no início desta parte (discutir a
ciência e o léxico científico), é tempo de avaliar o monismo enquanto elemento poético que
lança os fundamentos e o télos da lírica de Augusto dos Anjos. Toda a pulsão que contagia a
criação do Eu tem em vista esse momento final (que já havia sido também inicial, uma vez que a
Mônada, como se verá, é, simultaneamente, princípio e fim das coisas). O monismo de Augusto
dos Anjos consiste na idéia de um princípio-fim ontológico irredutível e transcendente, dotado
de um poder de atração que engendra todos os seres, estabelecendo, portanto, uma teleologia.
Esse princípio é a Mônada. Cada poema, cada movimento poético, parece participar de um único
impulso confluente ao mesmo tempo razoável e irracional que, paradoxalmente, lhe imprime
o movimento que pretende a imobilidade terminal do Uno, o “enigma da substância” (Miranda,
1995, p. 236). Para tentar captar e expressar o que no âmago dessa potência que engendra a
poesia de Augusto dos Anjos, o meio mais justo me parece ser identificar, a partir dos próprios
poemas do Eu, como o autor entende e expressa essa noção, com o propósito de avaliar o ideal
monista em suas implicações para a economia da obra e para seu objetivo final.
Em Mistérios de um fósforo, poema que fecha o Eu, a vida em sua origem unívoca é
assim cantada por Augusto:
Vida, mônada vil, cósmico zero,
Migalha de albumina semifluida,
Que fez a boca mística do druida
E a língua revoltada de Lutero;
Nessa estrofe, a menção expressa da “mônada vil” não oculta sua natureza seminal, assim
como evita a presença de quaisquer figuras, de quaisquer mediações que a representem. É a
Mônada augustiana, sem representações, máscaras ou figuras, num momento final, no poema
140
final do Eu. A intensidade da presença de “mônada” parece amplificar a palavra “vida”, atirá-la
para além do território da existência, e parece dilatar seu alcance até à idéia da própria Vida
enquanto pulsão vital, e não apenas acidente ontológico (diferenciação). Essa assertividade na
expressão da Mônada não é, todavia, um expediente semântico comum a todos os poemas do Eu.
De fato, Augusto emprega, ao longo da obra, expressões metafóricas para se referir ao
mesmo objeto: a Mônada original. O uso da metáfora parece ser aqui, além de um poderoso
recurso literário que afeta, não raro, o resultado dos versos em sua música e rítmica, o
reconhecimento do indizível que se associa à idéia da Mônada. O Eu, nesse sentido, é apenas
mais um exemplo de que a metáfora parece ser, em última instância, o próprio reconhecimento
da incapacidade de precisar a coisa metaforizada, e um poderoso recurso de ampliação
semântica, de alegorização ou, numa palavra, um recurso dos mais poderosos do próprio
fenômeno de criação poética. Essa incapacidade de dizer as coisas últimas tudo aquilo que se
refere à Mônada – parece fazer com que o Eu revista sua idéia da Mônada com imagens capazes,
segundo o seu pressentimento, de ilustrar a grandeza da intuição que assombra, seduz e interdita
a palavra. No Eu, a metaforização da Mônada não obedece a uma exigência de estilo, mas é o
resultado da descoberta de uma vasta clareira no território fartamente guarnecido da linguagem.
Pelo reflorestamento dessa clareira, Augusto pretende pintar com cores as mais vivas sua
Mônada, não para ofuscar seus contornos ou para dela se aproximar pela via do artifício, mas
com o intuito de torná-la mais tangível.
Ao falar da existência em sua dor ontológica, o Eu experimentava o conforto da palavra
sempre a postos, da expressão disponível, justa, radicada na verificação, no truísmo revelado
pelo olhar de visionário. aqui, quando do pressentimento da coisa terminal, da energia
subjacente à Vida e que anima a própria poética do Eu, o sujeito rico reconhece e manifesta,
141
em muitas ocasiões, a dificuldade própria que acompanha o parto de uma poesia metafísica,
transcendental (no sentido não-kantiano da palavra), e recorre a substitutos metafóricos que
possuam característica correlata, que pertençam, por assim dizer, ao mesmo campo semântico.
Essa característica não é senão a própria intangibilidade do ente metafísico, sua
imponderabilidade, engendrada por sua natureza eterna, perfeita e inatingível senão
poeticamente, pelo pressentimento, pelo desejo e pela profecia.
Pelo movimento lírico empenhado na tradução de seu monismo, Augusto dos Anjos
desvela na poesia seu mais caro poder: o de tocar, mesmo que levemente, mesmo que com “o
pentágono dos dedos” (Os doentes – V), o reino misterioso das perenidades. Trata-se de um novo
estado poético. No Eu, essa perenidade se exibe na fresta aberta pelo pressentimento, sempre
que o sujeito lírico se refere ao lugar terminal da obra, o monismo.
142
2.1. As máscaras da Mônada: Deus e o Nada
Em meio às “máscaras” que carregam consigo o objeto (ou a figura poética) do monismo,
duas se destacam: Deus e o Nada. São ambas representações, ou antes e melhor, dramatizações
da Mônada. “Deus” e “Nada” parecem ocorrer ora como um sinal daquela Mônada, ora como
uma hipertrofia de seu sentido, o que culminaria assim, respectivamente, na visão místico-
religiosa ou na visão niilista. Em outras palavras, “Deus” parece alegorizar a Mônada naqueles
momentos em que a voz poética pretende torná-la mais familiar, quando quer vesti-la com
roupas que o leitor se acostumou a reconhecer, senão no âmbito da linguagem vulgar, pelo
domínio da ou da ausência dela. Já “Nada” surge nas ocasiões em que o sujeito poético
distingue o indistinto na Mônada, ou seja, quando ele a vislumbra em toda a sua potência
semântica: a Mônada é intuída como “Nada” por excesso de sentido, por transgredir,
transbordando, o domínio do sentido. De certo modo, como poderá ser notado por ocasião da
conclusão desta parte, a figura de Deus aponta na mesma direção, na medida em que suas
ocorrências têm como fim destacar a transcendência conferida à Mônada.
Essas duas figuras apartadas por força de análise – não são, como veremos, tão
distantes entre si, uma vez que apontam para um alvo. Tampouco parece legítimo estabelecer
entre “Deus” e “Nada” uma hierarquia qualquer. O tratamento semântico dessas duas figuras
pelo Eu é, em geral, idêntico àquele reservado à expressão da própria Mônada desmascarada, o
que se deve ao fato de serem termos sinônimos e se distinguirem no nível do enunciado, no
nível da capacidade expressiva do Eu quando delibera em determinados momentos. Isso
corresponde a dizer que, ao tratar das figuras da Mônada, é certo que já nos deparamos com o
Augusto monista, ainda que em lugar de “Unidade”, “Mistério Eterno” ou de “Princípio
cósmico”, o autor prefira “Deus” ou “Nada”. Contudo, dado que em alguns momentos há
143
nuances dignas de exame, e que ambas as figuras possuem entre si distinções importantes num
exame do monismo augustiano, esta pesquisa propõe um estudo à parte de ambas as máscaras.
144
2.1.1. A máscara de Deus e a recusa do Cristianismo
A Mônada no Eu é uma substância que a poesia pretende atingir, seja enquanto máscara
de Deus, seja enquanto máscara do Nada. Em diversas ocorrências, a Mônada é associada à
figura da Divindade. Essa Divindade é representada como princípio e fim, o Ser de onde todas as
coisas teriam surgido, e para onde todas deveriam retornar. São as ocasiões onde a Unidade
original aparece com a máscara de Deus. Ao atribuir a capacidade genética a um princípio
cósmico único e universal, a poesia de Augusto dos Anjos parece desaguar, em algumas
ocasiões, numa visão de índole místico-religiosa, como ocorre nas duas primeiras quadras do
soneto Sonho de um monista:
Eu e o esqueleto esquálido de Esquilo
Viajávamos, com uma ânsia sibarita,
Por toda a pró-dinâmica infinita,
Na inconsciência de um zoófito tranqüilo.
A verdade espantosa do Protilo.
Me aterrava, mas dentro da alma aflita
Via Deus – essa mônada esquisita –
Coordenando e animando tudo aquilo!
Tendo em vista que a palavra “Deus” poderia conduzir a leitura (não apenas no trecho
citado, mas em outras ocorrências) a um certo teísmo ou mesmo a uma visão cristã o que seria
inconjugável com o monismo do autor – seria importante aqui marcar as diferenças entre as duas
interpretações, a saber, entre a visão cristã e a visão monista, sob o olhar atento da poesia do Eu.
A presente pesquisa crê, a partir disso, esclarecer as características segundo as quais “Deus”
aparece na obra como uma marca monista, perfazendo uma ontologia poética, e não como uma
presença teísta ou cristã. Portanto, o exame empreendido a seguir apresentar no Eu a máscara
monista de Deus possui uma face claramente negativa: a recusa do teísmo do autor, ao mesmo
tempo em que possui outra, positiva: a defesa de seu monismo. As duas faces não podem ser
145
tratadas em momentos diferentes, uma vez que a figura de Deus no monismo do poeta aparece
predominantemente conjugada com um de seus principais ingredientes: o ateísmo.
A expressão “Deus” não carrega, no trecho citado de Sonho de um monista, uma
conotação cristã. Para atestá-lo, basta verificar a inequívoca adjetivação “mônada esquisita” a
seguir. Contudo, talvez seja pertinente afirmar que “Deus pode ter aqui uma conotação
religiosa. Para tanto, basta que nos detenhamos no fato de que a palavra “religião” guarda o
sentido de uma situação universal de distanciamento, de afastamento, de perda, que envolve dois
termos apostos: de um lado, o Ente Criador ou original, transcendente (nesse caso, a Mônada) e,
de outro, os entes criados, imanentes, que do Criador se desprendem (o “tudo aquilo” do último
verso citado). O tema da Criação ou deflagração da existência pela Mônada será a seguir
desenvolvido. Por ora, basta dizer que o monismo pode ser sim considerado como a religião do
Eu, e pode ser mesmo aproximado de uma certa cosmologia de inclinação mítica, o que
corresponde a uma certa poesia das origens.
59
De fato, parece mesmo que, mutatis mutandis, o
poeta faculta à Mônada divindade e transcendência, o que perfaz sua aproximação com “Deus”.
Em outras palavras, “Deus” ocorre como um substituto à altura para “Mônada”, mas isso é
possível tendo em vista o caráter divino e transcendente do primeiro: a transcendência determina
a divindade. Vejamos com mais cuidado esse ponto.
Testemunhos críticos revelam que a religião cristã era a fé que professava Augusto.
Magalhães Júnior (1978) contribui lembrando das “dúvidas espirituais” que dividiam o poeta.
Augusto era afetado, por um lado, pelo temperamento positivo do pai, “racionalista e versado em
Augusto Comte” (p. 24). Alexandre Rodrigues dos Anjos, contemporâneo de Tobias Barreto e
formado em direito no Recife, “importava livros franceses, tendo ainda em sua biblioteca obras
146
de Dante, Petrarca, Leopardi, etc., além de poetas portugueses e brasileiros” (sic.) (p. 15). Por
outra frente passava o irmão do pai do poeta, Aprígio Carlos Pessoa de Melo, igualmente
formado em direito no Recife, e cuja credulidade de “católico praticante, muito zeloso de sua fé”
(p. 24) impressionava especialmente Augusto dos Anjos. Seguindo a breve menção biográfica,
vale dizer que a epistolografia do poeta revela uma personalidade sensível à questão religiosa.
Bandeira (2004), por sua vez, diz que Augusto “acreditava” em Deus, e que “rezava as preces
católicas” (p. 115). Ainda que este estudo não pretenda se deter na questão da distância entre um
“autor empírico” e uma “voz poética”, verifica-se, buscando a ligação entre esse dado biográfico
e a obra augustiana, que a poesia do Eu nos apresenta apenas dois trechos que atestariam
expressamente a observação de Bandeira. O primeiro é de As cismas do destino – I:
Ah! Com certeza, Deus me castigava!
O segundo, de A um carneiro morto:
Se fosses Deus, no Dia de Juízo,
Talvez perdoasses os que te mataram!
A menção a um Deus prescritivo, que inflige castigo e que julga, além da referência ao
“carneiro” do título do segundo poema citado, são elementos que parecem apontar para uma
visão judaico-cristã. Contudo, o cristianismo de Augusto sustentado predominantemente pela
herança familiar – é mitigado por tudo aquilo que, em matéria de moral, Augusto parecia
recusar. Ao examinar o tema, é possível afirmar que as ocorrências de um suposto cristianismo
no Eu não passam de dados acessórios prescindíveis, desabafos, clamores precipitados, pistas de
exacerbações da ordem do páthos, e que mais acusam uma indignação momentânea do que
59
A discussão que relaciona o mito à poesia de Augusto dos Anjos não está prevista por este estudo. No entanto, a
partir daqui e rumo à exposição final do monismo do autor, serão feitas algumas breves aproximações entre o mito e
147
propriamente uma reiterada. Referindo-se ao tema, Moisés observa com precisão que a poesia
de Augusto traria “uma vaga idéia cristã na consciência trágica da podridão da matéria”.
(Moisés, 2001, p. 440).
Façamos um breve exame desse aspecto, que se torna relevante na medida em que se
pretende demonstrar que o sujeito poético se afasta da uma visão cristã de Deus. De fato,
somente mediante o reconhecimento desse afastamento seria possível examinar a presença de
Deus como uma representação do monismo.
Talvez seja legítimo sustentar que o Cristianismo, assim como as demais religiões
monoteístas (o Judaísmo e o Islam) sejam sustentadas por dois grandes pilares: de um lado uma
metafísica, e de outro uma moral. Como foi acima mencionado, a poesia do Eu não preconiza
uma moral. Conseqüentemente, não pode conter uma moral cristã. Se a sugere, é apenas
episódica e retoricamente. Em Gemidos de arte – I, por exemplo, há a seguinte ocorrência:
Outras constelações e outros espaços
Em que, no agudo grau da última crise,
O braço do ladrão se paralise
E a mão da meretriz caia aos pedaços!
Barros (2004), em um de seus trechos em que compara as poesias de Augusto e de
Baudelaire, sustenta, em contrapartida ao caráter “voluptuoso” do autor francês, que Augusto dos
Anjos “é de um puritanismo de quaker em matéria de sensualismo”, ao que acrescenta que na
obra do poeta paraibano destaca-se “a irascibilidade condenatória de um profeta bíblico” (Barros,
2004, p. 178). Todavia, submetendo a posição crítica de Barros à estrofe supracitada, uma
análise mais cuidadosa permite defender que o suposto moralismo dos versos transcritos de
Gemidos de arte I não passa de uma pista falsa: Augusto, autor de visão dilatada, não lamenta
pela parte, mas pelo todo. Ao todo da existência se dirige aquela “irascibilidade condenatória”. A
a obra augustiana, sempre com o propósito de esclarecer o monismo, tal como o apresentam os poemas do Eu.
148
hipertrofia do olhar, característica irrevogável da voz poética augustiana, é uma das chaves de
leitura mais valiosas do Eu. O “ladrão” e a “meretriznão estão sozinhos. Com eles, toda
uma humanidade maltrapilha, que inspira ao Eu piedade e asco. As duas personagens são apenas
uma intensificação, uma representação mais acabada, mais enfática, a sublimação (não apenas
retórica) de um todo abrangente: a humanidade. Basta notar que, cinco estrofes antes, o poeta
dizia:
Ser homem! escapar de ser aborto!
Sair de um ventre inchado que se anoja,
Comprar vestidos pretos numa loja
E andar de luto pelo pai que é morto!
A existência sofre, é certo, de um “mal” congênito. Mas esse mal não é senão uma
desordem. Sua origem não é moral: é ontológica. Não no Eu a idéia de uma queda, mas de
um abandono da existência à própria sorte, tendo esta uma vez se desligado da Unidade original
à qual precisa se religar: eis a religião monista. O “mal” não encontra no ladrão e na meretriz
senão uma amplificação, um recurso retórico. Em A meretriz, poema inacabado publicado sob a
rubrica das Outras Poesias, ouve-se:
Inícios atrofiados de ética, ânsia
De perfeição, sonhos de culminância,
Libertos da ancestral modorra calma,
Saem da infância embrionária e erguem-se, adultos,
Lançando a sombra horrível dos seus vultos
Sobre a noite fechada daquela alma!
Aqui o Eu emprega a palavra “ética”. Para o propósito da análise presente, pode-se
compreendê-la como sinônimo de “moral”, ainda que as duas expressões não sejam, a rigor,
imediatamente convergentes. No entanto, o sentido é o mesmo das ocorrências anteriores: a
meretriz, chamada pelo Eu de “funcionária dos instintos”, é aqui um exemplo extremo da miséria
da existência:
149
É ela que, arremessada sobre o rude
Despenhadeiro da decrepitude,
Na vizinhança aziaga dos ossuários
Representa, através os meus sentidos,
A escuridão dos gineceus falidos
E a desgraça de todos os ovários!
Vê-se que o poeta não tem como alvo de sua condenação uma parcela da existência, mas
“todos os ovários”, que processam o curso infrene de nascimento-crescimento-morte que afeta
todo ser. A “meretriz” nada mais é do que o elemento eleito pela voz do Eu para ilustrar o
processo evolutivo.
Carente de uma moral minado em um de seus grandes pilares o suposto cristianismo
do Eu termina por ser ferido de modo fatal: no lugar de uma Providência (categoria que
garantiria aquela moral), o fluxo impiedoso e desgovernado da desarticulação dos seres; no
lugar de um conceito moralizante, o sofrimento e a dor ontológicos. Assim, o poeta não é
imoral, mas amoral, que a imoralidade implicaria na preterição de uma moral subjacente, de
resto insustentável segundo uma exegese dos versos do Eu. Como se viu anteriormente, o mundo
é tratado pelo autor a partir de uma doutrina poética do sofrimento, da dor da existência (todas
categorias ontológicas, não morais) e do caráter perturbador da vida enquanto diferenciação. A
vida não é uma dádiva, assim como não é um castigo (moral), mas um fato, o preço pago pela
heterogeneidade, pela individuação, pela diferenciação.
60
Ainda que o Eu seja obra de um autor inserido na cultura moral judaico-cristã, não revela
senão um amoralismo, como se Augusto compreendesse que, antes de uma moral, o que
realmente importa é uma ontologia que lhe seria anterior. A única ocorrência expressa de um
60
Bandeira ainda associa à poesia de Augusto certo “maniqueísmo”, fundado no “bem” do “mundo de Deus” e no
“mal” da força cósmica furiosa”. A leitura do presente estudo, insisto, não vai ao encontro dessa afirmação, uma
vez que, como foi dito, o observa na poesia augustiana um fundamento moralizante. Se um “bem” e um
“mal” no Eu, isso não ocorre enquanto doutrina moral.
150
imoralismo parece ser dos seguintes versos de As cismas do destino I, onde o Eu combate
impiedosamente a própria moral cristã:
Escarrar de um abismo noutro abismo,
Mandando ao Céu o fumo de um cigarro,
Há mais filosofia neste escarro
Do que em toda a moral do Cristianismo!
Magalhães Júnior (1978) traz um longo exame da crítica de José Rodrigues de Carvalho,
poeta e folclorista, impressionado pela leitura de As cismas do destino em sua publicação pela
revista pernambucana Terra Natal, em 4 de julho de 1908. A certa altura, diz Carvalho acerca
dos versos supracitados:
Quem não conhecesse o autor dessa blasfêmia, satânica aos olhos dos que não vivem
ligados pelo fio intangível da aos sonhos da religião, pediria os mais negros
anátemas para fulminar esse Voltaire indígena. Mas é preciso estudar através do vidro
enfumaçado dessa estrofe o sentir do espírito de uma época: o poeta fala pela boca de
um momento de desespero, em que o subjetivismo religioso não tem conseguido fazer
mártires. (Magalhães Júnior, 1978, p. 185-186).
O comentário do longo artigo de Carvalho foi publicado no periódico A União, logo após
o surgimento público do poema. Suas primeiras linhas, citadas em outro momento deste
estudo, parecem acompanhar o espírito augustiano da criação de atmosferas, ao anunciar o tom
da crítica, entre a perplexidade e a admiração: “Acabo de ler as ‘Cismas do destino’, de Augusto
dos Anjos. Qual a impressão que me ficou, não sei, tal o turbilhão de secretas emoções que me
dominam” (Magalhães Júnior, 1978, p. 183-184). O artigo de Carvalho amortece o golpe
desferido por Augusto dos Anjos no Cristianismo, mas reconhece sua força.
Outro significado tem esta quadra do soneto Último credo, que não apenas sugere a
submissão da visão cristã ao monismo manifesto do autor, mas anuncia a morte do Cristo:
É o transcendentalíssimo mistério!
É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
151
É a morte, é esse danado número Um
Que matou Cristo e que matou Tibério!
Isso nos conduz ao outro grande sustentáculo religioso contestado pela poesia de
Augusto: a metafísica cristã.
Assim como todos os seres existentes, o destino fatal do Cristo (que, como se sabe, no
Cristianismo representa a individuação material da Divindade a “carne”) é a morte, a
dissolução, a decomposição. Augusto anuncia aqui a morte do Deus cristão, ao anunciar a morte
de Cristo. Outra ocorrência de trecho análogo consta da quinta parte de Os doentes:
Não me incomoda esse último abandono
Se a carne individual hoje apodrece
Amanhã, como Cristo, reaparece
Na universalidade do carbono!
Se a “reaparição” do Cristo no terceiro verso já não fosse comprometida pelo verso
anterior, e se ainda é capaz de sugerir uma inicial concessão à ressurreição cristã, logo a
“universalidade do carbono” do quarto verso trata de reduzi-lo a uma metáfora da matéria
corruptível de que é composta toda existência diferenciada. É mais um anúncio do
pressentimento da Mônada original, da “universalidade” a que todas as coisas devem retornar
após o “último abandono” da morte.
Outro exemplo consta do Poema negro:
Como as estalactites da caverna,
Cai no silêncio da Cidade Eterna
A água da chuva em largos fios grossos...
De Jesus Cristo resta unicamente
Um esqueleto; e a gente, vendo-o, a gente
Sente vontade de abraçar-lhe os ossos!
Aqui, a palavra “Cristo” ganha o acréscimo temporal de “Jesus”, reforçando ainda mais
aquela noção telúrica da desagregação que atinge impiedosamente toda a existência. “Jesus
152
Cristo” é apenas mais um acidente fenomênico, confuso, que não guarda distância em relação
aos entes mundanos que com ele se solidarizam, que querem “abraçar-lhe os ossos”.
Em Mistérios de um fósforo, o poeta ataca não somente a figura transcendente do Cristo,
mas também o profeta judaico:
Raciocinar! Aziaga contingência!
Ser quadrúpede! Andar de quatro pés
E mais do que ser Cristo e ser Moisés
Porque é ser animal sem ter consciência!.
61
Outro aspecto da metafísica cristã seria o tema da Criação, intimamente ligado à
transcendência. A idéia religiosa da Criação na poética de Augusto não indica senão uma origem
causal puramente mecânica. Nada mais distante, portanto, de uma visão cristã da Divindade
Criadora, dotada de uma vontade teleológica. O Deus de Augusto, a Mônada, “coordena” e
“anima” o universo, engendrando na mecânica cósmica da existência o elemento dinâmico
perpétuo, princípio único deflagrador do processo da vida e da morte.
62
Não se trata aqui de um
teísmo mas, quando muito, de um deísmo, de uma intuição poética que descobre, fora da
existência, um tempo mítico que transcende o processo vital, uma potência anímica original,
insondável, fator de movimento e transformação. Em lugar de uma gênese religiosa oriunda do
fiat divino, uma certa cosmologia radicada num princípio puramente mecânico. Antes de uma
Criação, uma origem pura e simples, a mera deflagração involuntária da vida. Portanto, em
61
A quadra é também importante em função da menção à “consciência”. A bestialidade exaltada em detrimento da
reflexão alude ainda uma vez ao monismo (aqui subliminar) do autor, na medida em que o pensamento assim
como o corpo seria também parte desse mundo telúrico fadado à morte e à corrupção, da qual não faz parte o
“transcendentalíssimo mistério”. Esta pesquisa crê ter tratado suficientemente do tema por ocasião do exame da
“consciência” enquanto determinação inicial e ponto de partida da trajetória do sujeito poético.
62
Dado que o monismo do poeta do Eu ocupa um lugar nuclear em toda a obra, é quase inevitável identificá-lo
também nas origens de sua poesia ontológica, ou seja, a Mônada não apenas como solução para o problema da
diferenciação, mas também como um ente transcendente, lógica e ontologicamente anterior à existência. A idéia de
um retorno à Mônada, como conclusão desta parte, pretende tornar mais claro esse ponto.
153
matéria de Criação como desdobramento que vai do “um” ao “múltiplo” o Eu adota como
princípio o mecanicismo.
O mesmo mecanismo criador que engendrou a vida num instante original transmite sua
herança aos entes existentes. O processo vital da existência traz consigo, portanto, a marca
genética que, na origem, operou a separação da Mônada, e prossegue em contínuo ciclo de
diferenciação, reafirmando impiedosamente aquele equívoco primordial. A propósito dessa
discussão, Bueno menciona que o Eu apresentaria um “mecanicismo quase otimista do caráter
evolutivo do universo” que contrastaria com “um forte elemento de negação da vida enquanto
criadora do sofrimento” (Bueno, 2004, p. 23). A afirmação de Bueno é tão curiosa quanto
reveladora, na medida em que o “otimismo” a que bem se refere o intérprete nada mais é do que
o citado tropismo da existência em direção à Mônada. A observação do intérprete seria
digna de menção pela simples presença de um “otimismo” ligado à obra augustiana, posição
compartilhada pela presente pesquisa, e que se opõe frontalmente a uma crítica tradicional que
insiste na idéia de um Augusto dos Anjos “pessimista”. Todavia, aqui algo especialmente
relevante: Bueno parece ter seu argumento enfraquecido ao acrescentar que haveria uma
contradição entre esse otimismo e aquele “elemento de negação da vida” que aspira à Mônada. A
ressalva permite perceber a exata contribuição desse “otimismo” ao estudo da poesia augustiana,
tal como a compreende este estudo.
De fato, examinando o Eu mediante o ponto de vista de Bueno, não é simples identificar
a contradição apontada. Isso se deve ao fato de que o intérprete, entre todas as valiosas
contribuições fornecidas ao exame da obra augustiana, furtou-se de uma principal: Augusto dos
Anjos é otimista por ser monista. O poeta pressente na existência, não obstante a dor que lhe é
peculiar, essa vocação à nada enquanto solução radical. De fato, Augusto seria “otimista” em
154
relação à existência, sem que isso seja contradito por sua doutrina da perturbação pela
diferenciação, de resto fartamente desenvolvida. Não se trata aqui de um otimismo com
caprichos iluministas, ou do tipo cientificista e conceitual, nem tampouco seria o otimismo que
Nietzsche chamaria de “socrático (Nietzsche, 2003, p. 142), mas um otimismo simples,
prosaico, que o Eu manifesta ao pressentir a solução para aquilo que se lhe revela como
problemático, a saber, o processo vital. Esse otimismo parece ocorrer no Eu, em última
instância, como uma resistência tão sutil quanto agressiva ao seu oposto, o pessimismo, que
corresponde àquela ausência de sentido que a intuição do novo estado poético (a poesia monista)
quer superar. A resistência imposta pelo sujeito poético do Eu a uma visão pessimista é sinal do
próprio ideário poético de Augusto, o que lhe resta quando o último ente sofrer a última
corrupção. A Vida, para que seja digna desse nome, é sinônimo de “Mônada”, e eis o ponto que
deve conduzir a avaliação desse “otimismo” augustiano, que encontra na imobilidade da Mônada
a Vida total, cujo valor incomensurável é mais que uma solução para a perturbação da vida
vulgar.
Era um sonho ladrão de submergir-me
Na vida universal, e, em tudo imerso,
Fazer da parte abstrata do Universo,
Minha morada equilibrada e firme!
(As cismas do destino – II)
Pelo que foi dito é possível, portanto, localizar com certa precisão a doutrina augustiana
da criação dos seres, que consiste na deflagração mecânica da existência a partir de um princípio
atemporal, metafísico, portanto transcendente. Característica do Deus cristão, a transcendência
também se aplica à Mônada augustiana. Todavia, aqui o elemento da transcendência não se faz
155
presente senão por ocasião do monismo (e já não se fazia presente por ocasião do Cristo, como
se viu). Desmanchado o elo que une Cristo a Deus, cai por terra uma metafísica cristã.
63
Vejamos uma outra ocorrência de “Deus”, desta vez no poema Noite de um visionário:
É a potencialidade que me eleva
Ao grande Deus, e absorve em cada viagem
Minh'alma - este sombrio personagem
Do drama panteístico da treva!
Depois de dezesseis anos de estudo
Generalizações grandes e ousadas
Traziam minhas forças concentradas
Na compreensão monística de tudo.
O trecho é denso e merece uma interpretação cuidadosa. Esse poema, assim como o
citado Poema negro, é pleno de uma carga dramática flagrante. Aqui, o Eu menciona sua
“elevação” ao “grande Deus”, para a seguir lembrar o “drama panteístico da treva”. Duas
perguntas tornam-se então especialmente importantes: a) haveria nesse caso uma referência
expressa ao panteísmo, e não ao monismo? e b) a inicial sugestão de uma “elevação” ao “grande
Deus” faria uma aproximação entre “elevação” e a “salvação” cristã? Vejamos.
Para uma adequada compreensão da primeira quadra citada, é preciso ter em mente com
clareza aqueles dois mundos” que compõem a poesia do Eu: de um lado, o mundo da
diferenciação, da imanência e da dor; de outro, o mundo da Mônada, da transcendência e da
imobilidade. Como foi dito, a existência (reino da diferenciação) estaria fadada, segundo a
intuição lírica do Eu, ao retorno à unidade que lhe deu origem. Potencialmente (“a
63
A mesma idéia de corruptibilidade do Cristo pela recusa de sua divindade pode ser encontrada no poema A um
carneiro morto, onde o poeta diz a Cristo:
Se fosses Deus, no Dia de Juízo,
Talvez perdoasses os que te mataram!
O mesmo trecho já havia sido citado acima, como exemplo de um mero desabafo do sujeito poético em sua
inquietação lírica. As duas citações dos versos participam, portanto, de uma mesma argumentação, a saber, no
sentido de uma recusa do Cristianismo por parte do Eu. Os contextos são, por sua vez, ligeiramente diferentes.
156
potencialidade que me eleva”), o curso da existência lhe conduz à imobilidade da Mônada. Entre
esses dois “mundos” não senão uma assimetria, um desnível, sendo o mundo da diferenciação
um subproduto equivocado da Mônada. Eis o “drama panteístico da treva”, da treva da
existência, da qual o Eu seria “sombrio personagem”, e para o qual deseja uma solução. Portanto,
vê-se, antes de um apelo cristão, um anúncio de uma volta à unidade cósmica original, chamada
aqui de “Deus”.
Respondendo à primeira pergunta acima formulada (se o trecho faria referência a um
panteísmo), é importante notar que aquele panteísmo não surge como um corpo estranho dentro
de um contexto monista: refere-se à diferenciação, à dor-herança de que se ocupa todo ser, tendo
sido apartado da Mônada num instante anterior ao surgimento da vida. Respondendo à segunda
pergunta (se o trecho faria referência à “salvação” cristã), vale afirmar que “elevação” poderia
ser, de fato, uma “salvação”, mas não uma salvação cristã: a “elevação” não conduz a “Deus”, a
menos que “Deus” seja justamente compreendido como “Mônada”.
A segunda quadra citada reforça a leitura. Examinemos com cuidado.
O “sombrio personagem” (terceiro verso da primeira quadra) pretende, nesta segunda
quadra, uma compreensão de todas as coisas. Ele termina por ter como destino aquele Deus,
agente mecânico da existência, numa generalização resultante de inequívoca convicção
monística:
Na compreensão monística de tudo.
Compreender monisticamente consiste em aceitar o monismo, aceitar (e desejar) que o
panteísmo da diferenciação seja submetido ao monismo, grande totalidade do Ser. Em outras
palavras, se há uma menção ao panteísmo, isso ocorre não por um enfraquecimento do monismo,
mas por seu fortalecimento. O panteísmo se refere a todas as coisas, mas a Mônada não faz parte
157
de todas as coisas: as transcende. O panteísmo, que, no rigor da expressão afirma “tudo é Deus”,
ganha, mediante um monismo último, um sentido teleológico. Ele o panteísmo não é senão
um desdobramento (lamentado pelo Eu e, portanto, negativo) do monismo.
Augusto dos Anjos é, como pudemos estudar em momento anterior, um exímio
construtor de cenários poéticos, habilidoso especialmente na ambientação da idéia central do
poema e da imagem condutora dessa idéia. Aqui talvez seja o momento da mais ousada
ambientação, porque não apenas de um poema ou de um conjunto de imagens, mas de toda a
obra. Que ambiente último o autor nos oferece, e que seja capaz de conferir sentido poético a
uma idéia tão ampla quanto o monismo? Quais as dimensões de um cenário que pretende
envolver toda a obra? A resposta a ambas as questões nos conduz a uma modificação
hermenêutica no tratamento crítico da poesia do Eu. É o momento de reconhecer que a obra de
Augusto dos Anjos não é apenas lírica.
O cenário que o poeta articula é a dramatização de seu mais profundo ideal monista, a
narrativa da explosão da unidade original transcendente, que eclode na multiplicidade. Nesse
instante zero, Deus (a Mônada) marca a individuação, e nela passa a estar presente enquanto
destino, fim, télos. Essa individuação carrega consigo uma espécie de “código genético”
irrevogável e de intimidade imperscrutável (“código” que se manifesta através daquele
mecanismo vital acima mencionado). É o monismo em sua dilatação xima, ou em sua forma
mais rigorosa e acabada, diria que quase com pretensões sistemáticas. Toda a existência tem
origem num princípio único para o qual tende (ou deve) retornar. Eis aqui o que de épico na
lira de Augusto e que, segundo Moisés, constitui a marca central das obras de poesia do gênero:
Elas respondem às indagações permanentes do homem e parecem participar duma
esfera acima da relatividade de cada indivíduo. Ora, o nome dessa grandeza artística
pode ser compreendido enquanto expressão da categoria do épico: o aflitivo desejo que
158
todos têm de superar os limites da condição humana, participar da natureza,
imortalizar-se. (Moisés, s/d, p. 65).
Em outro trecho, o mesmo intérprete diz, por ocasião da criação literária da poesia épica:
E quando isso ocorre, a ordem cósmica readquire um momentâneo equilíbrio: o esforço
criador do artista corresponde a uma agitação na harmonia smica, que cessa quando
a obra termina e se agrega à natureza-matriz. (idem).
O que Moisés chama de “natureza-matriz”, Augusto dos Anjos chamaria de “Mônada”,
Mater originalis”, em sua ontologia poética lírica-épica. O autor do Eu oferece ao leitor sua
visão global de mundo universal menos por um projeto do que pela intuição poética que
ultrapassa em muito as fronteiras supostamente traçadas pelo título da obra. O Eu do Eu não é
apenas lírico, porque não pratica o solipsismo de uma inquietação psicológica ou de uma
meditação existencial exclusiva. Fazendo uso de exemplo dado por Moisés, o épico ocorre
quando um poeta “se despoja do ‘eu’ sentimental e afetivo para se lançar na direção da ‘máquina
do mundo’”. Assim,
um vasto palco se abre à frente do poeta, em que se alonga uma ampla dimensão
cósmica, diametralmente oposta a qualquer introversão lírica ou monólogo amoroso;
agora, o diálogo trava-se com o outro, o estranho planeta ou mesmo o cosmos em que
habitamos. (Moisés, s/d, p. 72).
Nesse contexto de reunião de elementos capazes de apresentar uma perspectiva
abrangente do fenômeno da Vida, o monismo é a pedra de toque do Eu, é a orientação central do
Eu que deriva eventualmente para a expressão textual do panteísmo, sintoma da irrevogável
“energia monística” que devassa o cérebro do sujeito poético, como ele próprio denuncia neste
terceto de O caixão fantástico:
A energia monística do Mundo,
À meia-noite, penetrava fundo
No meu fenomenal cérebro cheio...
159
É a “máquina do mundo”, segundo a poesia augustiana: a “mecânica nefasta”, o
“mecanismo moribundo” da existência, em eterno débito – contraído diante do olhar do Eu épico
– para com o “cósmico zero” da Mônada.
Outra imagem que e em discussão um suposto panteísmo ocorre em Última Visio,
poema do grupo Outras poesias, publicados originalmente em 1920. Do soneto transcrevo as
duas quadras:
Quando o homem, resgatado da cegueira
Vir Deus num simples grão de argila errante,
Terá nascido nesse mesmo instante
A mineralogia derradeira!
A impérvia escuridão obnubilante
Há de cessar! Em sua glória inteira
Deus resplandecerá dentro da poeira
Como um gazofiláceo de diamante!
O “simples grão de argila errante” e a “poeira”, esses rasteiros habitáculos de Deus,
sugerem, mais que um panteísmo, um monismo, em função da impressão microscópica
resultante das imagens ínfimas da “poeiraou do “grão de argila”, que parecem pretender uma
quase-inexistência concreta, uma “mineralogia derradeira”, radical. Nesse sentido, confundem-se
as dimensões microscópica e macroscópica, numa convergência extremamente sutil que não se
sob o critério da grandeza, mas da identidade qualitativa operada pela via metonímica. Essa
identidade qualitativa não sugere mais do que a filiação da diferenciação à Mônada.
64
64
O importante soneto Mater originalis traz os seguintes versos:
Forma vermicular desconhecida
Que estacionaste, mísera e mofina,
Como quase impalpável gelatina,
Nos estados prodrômicos da vida;
A “Forma vermicular desconhecida” corresponde aqui à nada, à “Mãe original das outras formas” de
que fala o primeiro terceto do mesmo soneto. Sua presença não se situa, portanto, no mesmo âmbito do “verme” ou
160
Até aqui, pudemos perceber que a expressão “Deus”, como a traz o Eu, não conduz a
leitura a um teísmo. Apenas em raras ocorrências, os versos de Augusto parecem apresentar
Deus sob a forma teísta. Esse elemento é igualmente importante para a discussão acerca da
“religião” da obra. De fato, tal apresentação da Divindade seria aqui uma objeção ao monismo, o
que a torna digna de exame. Estes são versos de Viagem de um vencido:
Quem sabe, enquanto Deus, Jeová ou Siva
Oculta à tua força cognitiva
Fenomenalidades que hão de vir, [...]
Analisemos a aparente objeção. O trecho transcrito é a voz “da alma das cousas”, que fala
ao Eu viajante sobre o caráter imperscrutável da intimidade da natureza (é uma das vozes do eu
épico). Enquanto o Eu protestava contra a “impotência angustiosa de falar” e contra a impiedade
da dor que lhe torturava “profundamente”, surge essa voz, “Tão grande, tão profunda, tão feroz”,
e lhe recomenda a inutilidade de “espiar enigmas”. Essa voz misteriosa, a voz da própria
natureza, representa aqui papel dramático relevante, na medida em que anuncia ao Eu viajante,
torturado pelas esperanças da ciência e do conhecimento, a impossibilidade de investigar a
profundidade das coisas. A voz menciona que “Deus, Jeová ou Siva” interdita ao saber “força
cognitiva”) o “Mistério Universal” da existência. Parece aqui haver, num sentido não
propriamente monístico, a idéia de uma Divindade prescritiva. A presença dos correlatos “Jeová”
e “Siva” é o dado mais forte nesse sentido. De fato, não há o mesmo tom anterior, de uma
unidade cósmica para a qual todo ser converge, mas a crua impassibilidade de um Deus que
guarda o segredo da natureza. Teríamos aqui um teísmo?
da “larva” dentro da poesia augustiana, mas estabelece um diálogo com aquelas imagens convergentes do “macro” e
do “micro”, do ínfimo e do ilimitado, reunidas pelo ideário monista. A seguir (quando algo será dito acerca da
imagem do “verme” no Eu), serão estabelecidos de modo mais completo os termos dessa distinção.
161
Para buscar responder à objeção, nada mais justo do que recorrer ao próprio verso do Eu.
O autor traz a resposta no trecho final da viagem da voz poética, no mesmo poema, “vencido”
pela impotência que lhe é revelada:
Porque, naquela noite de ânsia e inferno,
Eu fora, alheio ao mundanário ruído,
-A maior expressão do homem vencido
Diante da sombra do Mistério Eterno!
No trecho, o “Mistério Eterno” parece enfraquecer o sentido anterior de “segredo não
revelado por Deus”. Por outro lado, não apenas pela significação inequívoca do lexema
“Mistério” no Eu, os versos apontam para a própria Mônada, cuja natureza é transcendente, não
apenas à existência, mas também ao conhecimento. É recuperada a idéia do monismo, uma vez
que muitas outras expressões, sinônimas daquele “Mistério Eterno”, são também sinônimas da
Mônada. Veja-se, como exemplo, uma ocorrência de substância universal”, em Agonia de um
filósofo:
Rasgo dos mundos o velário espesso;
E em tudo igual a Goethe, reconheço
O império da substância universal!
Outras expressões ocorrem nesta quadra do já citado Último credo:
É o transcendentalíssimo mistério!
É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
É a morte, é esse danado número Um
Que matou Cristo e que matou Tibério!
Ouçamos também este trecho de Solilóquio de um visionário:
Para desvirginar o labirinto
Do velho e metafísico Mistério,
Comi meus olhos crus no cemitério,
Numa antropofagia de faminto!
162
Mas é do mesmo Viagem de um vencido, origem inicial da objeção, que surge o golpe
final e conclusivo. Antes mesmo de atingir o ápice do poema (a definição da substancialidade do
“Mistério Eterno”), diz o poeta do mesmo Mistério:
Crânio, ovário, montanha, árvore, iceberg,
Tragicamente, diante do Homem, se ergue
A esfinge do Mistério Universal!
“Mistério Eterno”, “Mistério Universal”, substância universal”, ‘transcendentalíssimo
mistério”, “número Um”, pneuma”, nous”, ego sum qui sum”, seja qual for o nome desse
destino totalizador, dessa Morte universal a que todo ente está fadado, é sempre um sentido
último o que pretende Augusto: ele deseja dizer a Mônada, deseja conhecê-la, mas é capaz do
pressentimento, do desejo, da profecia. No fundo e nesse sentido, a expressão monista definitiva
do Eu se depara com uma questão da ordem da comunicação poética. É como se Augusto
dissesse desse Mistério o que Pascal confessava diante do seu, ao dizer que “le silence éternel de
ces espaces infinis m’effraie”. Portanto, uma leitura teísta da Divindade no Eu seria, segundo a
orientação do presente estudo, uma compreensão inadequada da expressão “Deus”, além de uma
interpretação que não resiste à análise dos poemas e a uma visão sintética da poesia de Augusto
dos Anjos. Quando, progressivamente, o exame dos poemas força uma aproximação entre a
capacidade poética do dizer a transcendência e sua própria compreensão pelo Eu, o problema da
comunicação adquire proeminência, e quase é possível ouvir o decreto final da Mônada, a
linguagem indiscernível do ego sum qui sum, da voz que se pronuncia no deserto, e que desafia
incessantemente a capacidade expressiva do Eu.
As máscaras do monismo do poeta, além de um sinal do reconhecimento do indizível por
parte do sujeito, parecem ser concessões que sua poesia faz à nossa compreensão. Fazendo uma
163
breve digressão, se Aristóteles admitia, em âmbito filosófico, que o Ser se manifesta (se diz)
de modos diversos, Augusto parece pressentir que o mesmo ocorre com sua Mônada, que se diz
à maneira de uma composição, cuja unidade – ora plena, ora deslizante – se constrói amiúde pelo
que nas imagens se revela.
Um dos poemas mais representativos da índole monista do poeta parece ser o
mencionado Sonho de um monista, soneto que transcrevo integralmente:
Eu e o esqueleto esquálido de Esquilo
Viajávamos, com uma ânsia sibarita,
Por toda a pró-dinâmica infinita,
Na inconsciência de um zoófito tranqüilo.
A verdade espantosa do Protilo.
Me aterrava, mas dentro da alma aflita
Via Deus - essa mônada esquisita -
Coordenando e animando tudo aquilo!
E eu bendizia, com o esqueleto ao lado,
Na guturalidade do meu brado,
Alheio ao velho cálculo dos dias,
Como um pagão no altar de Proserpina,
A energia intracósmica divina
Que é o pai e é a mãe das outras energias!
Depois de algumas observações, essa nova citação (agora integral) do soneto parece
lançar luzes algo conclusivas sobre sua leitura. De fato, a divinização da “energia intracósmica”
e a identificação entre “Deus” e “mônada” indicam a adoção de uma espécie peculiar de deísmo,
um sistema totalizante que tem como resultado natural o ateísmo. Bandeira lembra, a propósito,
o dado heterodoxo da concepção do universo augustiano, que aceita a dimensão onipotente da
Divindade (do “Grande Todo” de A um epiléptico), mas o faz em função de sua “angústia
metafísica” (Bandeira, 2004, p. 115) e de sua vontade de resolver, na unidade terminal da
Mônada original, o processo infrene de dissolução da existência. A exemplo do “velho” Ésquilo
que lhe faz companhia no soneto (ou “Esquilo”, pelo recurso mencionado do deslocamento da
164
acentuação tônica usualmente empregado por Augusto), o Eu distingue no curso da vida um
caráter trágico, cuja solução só pode estar na visada sintética de seu “sonho” de monista.
Um aspecto interessante da mesma questão é o da excêntrica figura poética do “deus-
verme” na poesia do Eu. Uma vez que sua consideração pode suscitar ou um desvio ou uma
ampliação da discussão sobre a máscara da Divindade, um breve parêntese deve ser aqui
acrescentado.
A leitura da obra de Augusto dos Anjos não permite a identificação entre “verme” e
“Deus” (identificação que poderia suscitar uma outra, conseqüente, entre “verme” e “Mônada”,
através do termo médio “Deus”). Todavia, o verme possui, num único momento do Eu, atributos
de Divindade, o que inaugura um notável aparte dentro desse mesmo tema. Refiro-me
precisamente ao poema O deus-verme, soneto que cito integralmente:
Fator universal do transformismo.
Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme - é o seu nome obscuro de batismo.
Jamais emprega o acérrimo exorcismo
Em sua diária ocupação funérea,
E vive em contubérnio com a bactéria,
Livre das roupas do antropomorfismo.
Almoça a podridão das drupas agras,
Janta hidrópicos, rói vísceras magras
E dos defuntos novos incha a mão...
Ah! Para ele é que a carne podre fica,
E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção!
65
65
Sobre a relação entre o “verme” em O deus-verme e o sujeito poético de Augusto dos Anjos, note-se o
comentário de Antonio e a dita “desconstrução do sentido de Deus” (Antonio, 2004, p. 68), cotejada com outro
soneto examinado anteriormente pelo intérprete, Psicologia de um vencido (p. 54-63). Na ocasião, o comentador
considera O deus-verme como uma ampliação de Psicologia de um vencido, no que concerne à idéia do “verme”
pelo emprego metafórico. Diz Antonio: “[...] ele [Augusto] questiona a religião, propondo um novo deus [...] que se
torna um olhar para si mesmo através da linguagem (dEUs-VER-ME)” (p. 69). O presente estudo compartilha dessa
posição do intérprete, na medida em que o Eu e “verme” se relacionam pela diferenciação que lhes vitima.
165
À luz desse poema, o elemento poético do “verme” pode provocar, se tratado com
descuido, conclusões inadequadas. Daí a necessidade de algumas observações oportunas.
Inicialmente, é preciso lembrar que o “verme” (enquanto imagem e recurso semântico)
possui algumas ocorrências no Eu, sinonímicas ou não. Em quase todas elas, essa figura está
associada ao processo de composição e decomposição da vida e, portanto, é um elemento que
integra o mundo imanente da existência, o reino da diferenciação do qual o Eu participa. Na
estrofe inicial de A ilha de Cipango, ouve-se:
Estou sozinho! A estrada se desdobra
Como uma imensa e rutilante cobra
De epiderme finíssima de areia...
E por essa finíssima epiderme
Eis-me passeando como um grande verme
Que, ao sol, em plena podridão, passeia!
No trecho supracitado, o sujeito poético é comparado por si mesmo a “um grande verme”
que passeia “ao sol, em plena podridão”. Trata-se de uma simples analogia que tem por único
propósito a aclimatação do poema, a intensificação da situação existencial do Eu, que caminha
verificando em toda parte a miséria e a dor da diferenciação. Sendo o Eu uma fração dessa
diferenciação e, como resultado disso, mais um ente que compartilha da miséria entre seus
quase-iguais (o Eu se distingue pela consciência, como se viu anteriormente), a metáfora do
verme que “passeia” pela vida (“a vagar na terra”, como em Álvares de Azevedo) soa
descomprometida, espontânea, e ocupa uma dimensão semântica aparentemente diferente
daquela ocupada por O deus-verme.
No entanto, se o título do soneto fosse outro (por exemplo, simplesmente O verme, em
lugar de O deus-verme), nada faria com que o poema merecesse mais atenção por ocasião da
presente discussão. Vê-se que o “verme” não adquire, fora do título, nenhuma menção de
divindade (basta notar mesmo o primeiro verso do último terceto, onde o pronome “ele”
166
referindo-se ao verme ocorre em minúsculas, o que aponta, dentro da poesia augustiana, para
uma clara distinção em relação a “Deus”). O verme prossegue exercendo “sua diária ocupação
funérea”. Continua sendo um análogo da vida microscópica em sua ínfima vulgaridade,
nutrindo-se na “podridão das drupas agras” e nas “vísceras magras”. Ele é o “filho da teleológica
matéria”, habitante inespecífico e rastejante da heterogeneidade, e em nada se distingue dos
demais seres imanentes e passageiros. Enfim, nada que lhe credite alguma divindade.
Isso nos permite fechar aqui o parêntese, uma vez que o soneto em nada contribui para a
discussão augustiana acerca da Divindade e, mediante um exame mais cuidadoso, sua eventual
importância inicial é flagrantemente reduzida ao título, que não é senão um epifenômeno da
visão de mundo do poeta, um aparte retórico que reconhece, pela metonímia de “deus”, a
amplitude da tarefa imanente e vulgar do verme. Fazendo abstração do título, O deus-verme
ocupa seu lugar próprio no Eu: o reino da diferenciação. Penso que se possa concluir que, não
obstante o importante papel ocupado pela figura poética do “verme” na rica-épica de Augusto
dos Anjos, seu destaque é restrito, em função do lugar que lhe confere Augusto. Cabe-lhe a
tarefa sisífica de decompor as partes de uma vida insistente e de permitir sua recomposição. A
esse “operário das ruínas” (Psicologia de um vencido) não resta divindade, insisto, senão na
consideração de um título isolado.
66
66
Ainda sobre a mesma questão, talvez seja importante a citação de dois trechos de Monólogo de uma sombra,
poema examinado em ocasião anterior, onde a voz da “sombraque se dirige ao Eu anuncia sua natureza de “larva”
pelos seguintes versos:
Larva do caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo
E, ainda uma vez, pelo fim de seu monólogo:
E eu sinto a dor de todas essas vidas
Em minha vida anônima de larva!
aqui, em ambos os casos, recurso imagético e semântico semelhante ao sugerido pelo lexema
augustiano do “verme”. Tendo em vista que como pôde ser percebido a partir de estudo anterior sobre o trecho
167
Enfim, talvez aqui seja possível lançar um olhar sintético sobre o tema da máscara de
Deus no Eu. Ao fazê-lo, é possível extrair das discussões apresentadas três conclusões:
a) A poética de Augusto não garante a Deus senão uma única característica cristã: a
transcendência;
b) Se “Deus” no Eu é um Ser transcendente, isso ocorre apenas porque “Deus” e
“Mônada” são o mesmo. A transcendência é uma característica da Mônada original, que tem
Deus como uma de suas figuras poéticas;
c) A poesia de Augusto parece ter um caráter tão deísta (e portanto ateu) quanto monista,
o que corresponde, num momento final, a um ateísmo mecanicista que tem como princípio
ontológico um ente transcendente.
Cada uma dessas três conclusões teve seu lugar por ocasião da discussão da máscara de
Deus na poesia augustiana. Quando tomadas em conjunto, cada uma delas guarda uma profunda
correspondência com as demais, perfazendo, num momento final, a noção da Divindade tal como
a apresenta o verso da obra, a saber, como uma representação da Mônada.
citado de Monólogo de uma sombra (note-se a parte de abertura deste estudo) a “sombra” se apresenta no poema
como uma das vozes do sujeito, a presença da sombra-larva pode ser tratada de modo equivalente à presença do
“verme” no trecho acima recuperado de A ilha de Cipango, o que reúne ambas as ocorrências em uma mesma
análise. Equacionando: o Eu, a sombra, a larva e o verme são imagens análogas entre si, conteúdos semânticos
equivalentes, integrantes do universo da diferenciação, com destaque para o Eu que se apresenta enquanto
consciência. Em favor desse argumento, vale mencionar um outro momento do mesmo Monólogo de uma sombra,
em que o “verme” é apresentado em seu devido lugar, em sua figuração determinante e dominante na poesia do Eu.
Quem fala aqui é, ainda uma vez, a sombra:
A desarrumação dos intestinos
Assombra! Vede-a! Os vermes assassinos
Dentro daquela massa que o húmus come,
Numa glutoneria hedionda, brincam,
Como as cadelas que as dentuças trincam
No espasmo fisiológico da fome.
168
2.1.2. A máscara do Nada e a recusa do niilismo
Uma outra figura poética da Mônada augustiana é o Nada. A respeito dessa questão, é
oportuno recuperar um comentário de Gullar:
Com Augusto dos Anjos penetramos aquele terreno em que a poesia é um
compromisso total com a existência. Não fosse assim, e seu discurso niilista não teria
sido um discurso realmente poético e, muito menos, jamais se teria incorporado como
elemento vivo à literatura brasileira. [grifo nosso]. (Gullar, 1976, p. 35).
Talvez o trecho mereça uma única ressalva: se Augusto dos Anjos é um autor niilista, seu
niilismo é de caráter puramente moral (ou existencial), uma vez que um niilismo ontológico seria
inconjugável com seu monismo. No que se refere ao amoralismo do sujeito poético do Eu,
pensa-se terem sido examinados anteriormente seus aspectos principais. Gullar não é o único
intérprete a ligar o niilismo à poética de Augusto. Kopke (2004) menciona, ao encontro do
“discurso niilista” mencionado por Gullar, um “idearium niilista”, sem, no entanto, localizar com
maior precisão esse idearium. Resta-nos, por ora, o exame de alguns aspectos desse suposto
niilismo, o que se relaciona diretamente à apresentação da máscara monista do Nada.
Nesse contexto, começo por dizer que me reservo o direito de tematizar o comentário de
Gullar dentro de um domínio existencial (que, creio, tenha sido o sentido pretendido pelo autor
quando lembra o “discurso niilista” de Augusto dos Anjos). De fato, a inquietação de poeta do
autor do Eu não se engana acerca de sua perplexidade. Após ter testemunhado a dor e o
sofrimento da existência nos termos propostos, seria regular (e mesmo inevitável) uma postura
niilista, niilismo esse menos ligado a uma convicção sistemática, a um projeto ou a uma
orientação criativa do que a um desfalecimento, um desalento diante da vida, provocado pelo
choque da crua constatação de seu equívoco. Sentimento semelhante parece ter manifestado
169
Baudelaire pelo spleen ou em seu O gosto do nada (Le goût du néant), ao dizer de um “espírito”
hoje “inerte” ou “sombrio”, a quem as antigas lutas agradavam:
Espírito inerte, a quem as lutas agradavam,
A Esperança, cuja espora te atiçava o ardor,
Já não te quer montar! Deita-te sem pudor,
Velho corcel, já trôpego a cada obstáculo.
67
O Eu de Augusto dos Anjos, mergulhado em seu niilismo, é o ente que experimenta o
literal fin de siècle esmorecedor da constatação da existência como um engano. Todavia,
apartando-se do flâneur baudelaireano, o Eu é tomado pela urgência de uma solução, e não se
contenta com uma verie perdida na multidão. O flâneur transita indeciso entre as paisagens e
cenários urbanos de uma modernidade que se afirma pelo prazer da circunstância (Benjamin,
2002, p. 700), ao passo que o sujeito augustiano não caminha senão entre as ruínas de um mundo
que lhe salta aos olhos pelo que tem de terrível. Nesse aspecto, uma distinção marcante entre
as vozes poéticas augustiana e baudelaireana, uma vez que, ainda que ambas compartilhem do
desfalecimento que resulta do olhar sobre o mundo, o Eu não golpeia o Ideal com a arma do seu
spleen peculiar, mas encontra nele um antídoto (Benjamin, 2002, p. 699-700). O Eu, a rigor, não
caminha, porque não é indeciso ou impreciso: o Eu pisa. Se Baudelaire, segundo Bonzon (p. 20),
“crê profundamente na existência do Mal” (“Baudelaire croit profondément à l’existence du
Mal”), ou seja, na existência de um mal maiúsculo, metafísico, Augusto não precisa crer, porque
não apenas sabe de sua existência, mas o mal metafísico em sua modalidade de diferenciação,
de perturbação cósmica. Portanto, fazendo uma pequena digressão à parte anterior deste estudo,
67
Morne esprit, autrefois amoureux de la lutte, / L’Espoir, dont l’éperon attisait ton ardeur, / Ne veut plus
t’enfourcher! Couche-toi sans pudeur, / Vieux cheval don’t le pied à chaque obstacle butte.” (Baudelaire, 1993, p.
200). Para uma leitura comparada dessa tradução, feita por Fernando Pinto do Amaral, ver também a tradução de
Ivan Junqueira, esta mais atenta à poética do que à força semântica dos versos, presente na edição Poesia e prosa
(2002, p. 164). O último verso citado, por exemplo, é traduzido por Junqueira como “Cavalo que tropeça e cujo
reluta”, o que parece amortecer a importância de “chaque obstacle” para a idéia sintética do poema.
170
a situação-limite que conduzia o Eu à busca de respostas para sua inquietação aparece aqui com
toda força, e Gullar, ao dizer de um “discurso niilista”, não se refere ao Nada enquanto máscara
da Mônada, mas a uma falta existencial, um intervalo ou, numa palavra, o que este texto havia
chamado de “situação-limite”.
Assim, se o emprego de “Deus” fosse um sinal do contágio cristão (de resto, como esta
pesquisa entende ter mostrado, apenas um contágio), o emprego da máscara “Nada” seria um eco
da perplexidade existencial experimentada pelo poeta. Nesse sentido, ao substituir “Mônada” por
“Nada”, Augusto apresentaria um reflexo daquela inquietação da situação-limite, quando não
encontrava na existência coisa alguma que representasse a possibilidade de salvação diante da
diferenciação.
Mas, como será notado a seguir, esse não é o tratamento positivo, monístico, do Nada
pelo Eu.
Ao efetuar o passo lógico que se segue à situação-limite, rumo ao monismo como única
solução (o que foi chamado anteriormente de “nova poesia” do Eu), o sujeito traz à letra do
poema esse Nada, porém agora como uma perplexidade qualitativamente diferente: o Nada é o
reconhecimento do indizível em sua intensidade máxima. Ora, dizer “Deus” (usar a máscara de
Deus para a nada) é remeter a algo, não obstante a carga metafórica que manifesta a
dificuldade peculiar do fazer poético em si mesmo. Por outro lado, dizer “Nada” é assumir nova
posição diante do mesmo objeto. Mais do que uma legítima expressão metaforizante, trata-se de
uma certa sintomática da figura poética, pela qual o Eu anuncia, paradoxalmente, pelo termo
“Nada”, o máximo possível de Ser que se possa conceber. É uma das mais determinantes
sutilezas do Eu, que carrega semanticamente a Mônada pela metáfora do Nada. Talvez aqui, pela
presença expressa do Nada na poesia do Eu, tenhamos atingido um dos mais elevados veis de
171
abstração da construção épica augustiana, e que pode ser assim sintetizado: a Mônada é o Ser, e
uma das máscaras desse Ser é o Nada.
Vejamos, na própria expressão do autor, o que diz Augusto dos Anjos sobre a máscara do
Nada.
No segundo dia de fevereiro de 1911, Augusto escreve Soneto, poema dedicado àquele
que seria o seu primeiro filho, “nascido morto com 7 meses incompletos”, segundo a dedicatória.
O poema, que em alguns momentos lembra o Fagundes Varela de Cântico do calvário (Antonio,
2004, p. 72), é uma declaração de indignação diante do curso da diferenciação, personificada
aqui pela morte prematura do filho do poeta. Transcrevo-o integralmente:
Agregado infeliz de sangue e cal,
Fruto rubro de carne agonizante,
Filho da grande força fecundante
De minha brônzea trama neuronial,
Que poder embriológico fatal
Destruiu, com a sinergia de um gigante,
Em tua morfogênese de infante
A minha morfogênese ancestral?!
Porção de minha plásmica substância,
Em que lugar irás passar a infância,
Tragicamente anônimo, a feder?!
Ah! Possas tu dormir, feto esquecido,
Panteisticamente dissolvido
Na noumenalidade do NÃO SER!
Por trás da crueza e da amargura que acompanham os versos, transparece uma das mais
emblemáticas e belas figuras poéticas do Eu: o Não-ser. Como se não fosse suficiente enfatizar
sua “numenalidade” (que aqui aponta tão-somente para uma transcendentalidade, como
veremos), essa figura vem destacada pelas maiúsculas, e vem acompanhada por uma vigorosa
exclamação: “NÃO SER!”. Eis um exemplo clássico do poetar sobrevivente de Augusto dos
Anjos, que não descansa, que não concede sequer uma breve trégua, que é o ponto nevrálgico
172
desse colossal cabo-de-guerra que atravessa a Vida oscilando entre a condenação e a salvação, e
que encontra fôlego ainda maior para dizer, de dentro da dor, sua força.
No que se refere ao penúltimo verso (“Panteisticamente dissolvido”), este estudo já
entende ter abordado de modo suficiente o suposto panteísmo de Augusto dos Anjos, por ocasião
do exame da presença cristã no Eu. No verso citado de Soneto, o tratamento poético da figura
não se difere de outras ocorrências. O último verso, que traz a “noumenalidade” como
característica do “NÃO-SER”, merece um exame pouco mais cuidadoso, por contribuir para a
caracterização da máscara do Nada.
As duas idéias centrais do verso são a noumenalidade e o Nada. Logo se nota uma relação
atributiva: a noumenalidade seria uma característica do Nada, ao passo que o mundo fenomênico
seria o mundo da existência. Enfim, trata-se da distinção suficientemente mencionada entre o
reino da diferenciação (fenômeno) e a Mônada (nômeno). Augusto dos Anjos traz para sua
poesia a idéia de que a existência (diferenciação) seria fenômeno (literalmente, “aquilo que
aparece”), ao passo que a Mônada seria o mundo nomenal. O que cabe, por ora, é um breve
esclarecimento sobre esse suposto dualismo. Seria possível encontrar, na separação entre mundo
da existência e Mônada, um dualismo? Se sim, seria possível aceitar um dualismo em face de um
monismo? O ponto deve ser logo esclarecido.
A resposta, como se pressente, é algo simples, porque está na origem do espírito épico
do Eu. Num contexto monista, não pode haver lugar para um dualismo. Faria (2004) tenta
sintetizar assim o argumento central em favor de um suposto dualismo de Augusto: “Augusto
dos Anjos quis ser monista, quando nele se adivinha o mais evidente dualista”. A seguir, o
intérprete dispara que “o monismo apenas lhe serviu para justificar a herança funesta da doença”
(Faria, 2004, p. 143), referindo-se talvez à pneumonia não tuberculose que vitimou o poeta
173
paraibano. Em outro trecho, ainda na mesma linha explanatória, o intérprete diz sobre Augusto:
“O que realmente ele foi decanta-se nas entrelinhas pungentes do Eu. Sem que percebesse, era
um dualista com simpatias pelo monismo, nada mais” (idem).
Os argumentos sustentáveis em favor de um Augusto dos Anjos dualista são raríssimos, e
talvez o que exista de mais representativo nesse sentido seja o comentário de Faria, supracitado
em seus aspectos mais fortes. Em busca de elementos comprobatórios, o intérprete procura
exemplos de dualismo a partir da própria poesia de Augusto. Tarefa árdua. Entre alguns poucos
exemplos (quase todos já analisados anteriormente pelo presente estudo), são citados os
seguintes versos de Agonia de um filósofo: “Rasgo dos mundos o velário espesso; / E em tudo,
igual a Goethe, reconheço / O império da substância universal!”. Curiosamente, os versos
parecem partir em defesa do monismo do autor, e não de um suposto dualismo. Empregar os
versos de Agonia de um filósofo em favor de um dualismo seria como saltar pela janela como
solução para a vertigem. Todavia, descobre-se logo a intenção do intérprete ao citar os versos.
Ele diz a seguir:
[...] a substância universal de Haeckel, na sua justificação básica, esfacela-se perante
os atuais conhecimentos, provados através da exatidão científica. E assim, também,
esfacela-se o conteúdo monista de Augusto dos Anjos, quando eleva em matéria
poética pressupostos inteiramente falsos. Não o que de poesia, compreenda-se, mas
o que há detrás dessa mesma poesia e que a não atinge em sua realização estética.
(idem).
Faria pretende combater o monismo de Augusto dos Anjos afirmando sua
insustentabilidade científica. Com o perdão pela nova analogia, seria como avaliar a música de
Stockhausen a partir do estágio em que se encontrava a tecnologia eletrônica em meados de
1960. Augusto dos Anjos não faz ciência, e Faria atira no vazio. Parafraseando o próprio crítico,
talvez Faria quisesse, armado com seu argumento analógico, combater o monismo de Augusto,
174
porém em seu comentário “se adivinha” uma crítica corrompida pela base. Para atestar a posição
inequívoca do intérprete, basta ouvi-lo: “Antes de se considerar a poesia de Augusto dos Anjos,
impõe-se verificar até onde suas idéias científicas se ajustam aos conhecimentos atuais” (Faria,
2002, p. 144). Que a via crítica que trata indiscriminadamente sistemas semânticos distintos seja
improcedente, penso já ter defendido anteriormente, em exame acerca da influência da ciência na
poesia de Augusto. Em todo caso, o fato é que Faria, não satisfeito em decretar o parentesco
entre a poesia augustiana e a ciência do século XIX, entende poder julgar a poesia no tribunal da
ciência. Em outras palavras, o intérprete pretende submeter a poesia a um critério de verdade
chamado de realização estética”, o que, como foi mencionado, não se sustenta dentro da
presente leitura. Para lembrar Cícero (2004) por ocasião de discussão semelhante, “nenhuma
paráfrase capta o significado de um poema”, e um poema “não tem o que os lógicos chamam de
truth-value, ‘valor de verdade’ ou ‘valor-verdade’” (p. 17). Truísmos à parte, se é certa a
presença do monismo científico no Eu, resta admitir que o que de verdadeiramente influente
nessa ciência só pode ser aferido pela própria obra de Augusto dos Anjos.
68
A defesa do dualismo no Eu, sugerido pela distinção entre fenômeno e nômeno, possui,
contudo, alguns elementos que supostamente lhe favorecem. Como contribuição a essa
discussão, talvez seja importante citar na íntegra dois poemas. O primeiro deles é Vítima do
dualismo:
Ser miserável dentre os miseráveis
- Carrego em minhas células sombrias
Antagonismos irreconciliáveis
E as mais opostas idiosincrasias!
Muito mais cedo do que o imagináveis
Eis-vos, minha alma, enfim, dada às bravias
68
A propósito dessa discussão, retome-se o início desta parte, onde é estudada a relação entre a obra de Augusto e a
atmosfera cultural em que nasce sua poesia. Lá, duas frentes são prioritariamente investigadas: a presença do léxico
científico no Eu e a influência do movimento intelectual da Escola do Recife no pensamento do autor.
175
Cóleras dos dualismos implacáveis
E à gula negra das antinomias!
Psique biforme, O Céu e o Inferno absorvo...
Criação a um tempo escura e cor-de-rosa,
Feita dos mais variáveis elementos,
Ceva-se em minha carne, como um corvo,
A simultaneidade ultramonstruosa
De todos os contrastes famulentos!
O outro é Contrastes:
A antítese do novo e do obsoleto,
O Amor e a Paz, o Ódio e a Carnificina,
O que o homem ama e o que o homem abomina,
Tudo convém para o homem ser completo!
O ângulo obtuso, pois, e o ângulo reto,
Uma feição humana e outra divina
São como a eximenina e a endimenina
Que servem ambas para o mesmo feto!
Eu sei tudo isto mais do que o Eclesiastes!
Por justaposição destes contrastes,
Junta-se um hemisfério a outro hemisfério,
Às alegrias juntam-se as tristezas,
E o carpinteiro que fabrica as mesas
Faz também os caixões do cemitério!...
Vítima do dualismo traz em seu próprio título o dualismo. De modo mais sutil, Contrastes
também é um título que induz a uma leitura dualista. Ambos os poemas parecem ser, entre todos
os que compõem o Eu, aqueles que mais contribuiriam nesta discussão. Cabe aqui, contudo,
demonstrar, a partir da análise de ambos os casos, que Augusto dos Anjos não compromete seu
monismo visceral ao despertar o leitor para um suposto dualismo que, de resto, não encontra
apoio na visão de mundo do poeta.
Quanto ao primeiro soneto, um breve exame é capaz de notar que os “dualismos
implacáveis” a que se refere o poeta (cujo plural “dualismos” já esvazia significativamente o que
176
a expressão traria enquanto princípio gico) não habitam senão o domínio da contingência
individual do Eu, uma vez que as “antinomias” afetam antes a “psique biforme” do sujeito,
dividido pela tragédia da inquietação (aqui lírica, não épica) entre “Céu” e Inferno”. Trata-se de
dualismo semelhante àquele que admira Baudelaire em, por exemplo, A tampa, poema
acrescentado à terceira edição de As flores do mal, publicada em 1868. Ali, o poeta francês diz
do homem:
Servidor de Jesus, cortesão de Citera,
Mendigo tenebroso ou Creso rutilante
69
A agonia (agón) interior do sujeito aqui lírico corresponde, portanto, a uma
metonímia da própria visão de mundo do poeta, que enxerga na distância entre existência e
Mônada uma anomalia, o que não implica na admissão de duas substâncias primordiais. Sem que
duas substâncias primárias sejam aceitas, um dualismo não se sustenta. Não no Eu sinais de
que o poeta encontre em sua noção de existência uma substância subjacente, um “outro” da
Mônada original, capaz de governar com autonomia o reino da diferenciação. O governo da
Mônada é monárquico, ditatorial, e não comporta paralelismos, ao passo que os “dualismos”
nada mais parecem ser senão os acidentes que integram e determinam a vida contingente, ou
A simultaneidade ultramonstruosa
De todos os contrastes famulentos!
Se há um dualismo no Eu, isso se dá mediante um conflito em foro íntimo, que perturba o
sujeito lírico e que é, enfim, o motor da própria criação poética. Trata-se de uma inquietação
psicológica que Augusto dos Anjos traduz pela expressão “dualismo”. Esse conflito, de certo
69
“Serviteur de Jésus, courtisan de Cythère, / Mendiant ténébreux ou Crésus rutilant”.
177
modo “superado” pela “nova poesia” monista, é uma espécie de ante-sala que, sendo da ordem
do lírico, reúne forças para o épico do espírito monista.
Quanto ao segundo soneto citado, os versos apontam na mesma direção, o que pode ser
atestado pelo trecho final:
Às alegrias juntam-se as tristezas,
E o carpinteiro que fabrica as mesas
Faz também os caixões do cemitério!...
O título do poema Contrastes possui a mesma carga semântica empregada no último
verso citado de Vítima do dualismo, o que relaciona diretamente os dois sonetos. Em Contrastes,
a ligação da vida (“as mesas”) à morte (“cemitério”) a correspondência entre composição e
decomposição encontra sua mediação na figura do “carpinteiro”, um análogo do “verme” e da
“bacteriologia inventariante” (Monólogo de uma sombra), segundo a visão poética do autor. O
reino da imanência é, ainda uma vez, o lugar dos “contrastes” que gerenciam o âmbito da
heterogeneidade, que em Vítima do dualismo se expressa também na “psique biforme” do Eu.
Spencer (2004) é um dos críticos que parecem concordar com o dualismo psicológico do poeta,
ao dizer de Augusto que “[...] o seu dualismo provinha do choque de duas forças irreconciliáveis
que atuavam minuto a minuto em seu espírito de escol” (Spencer, 2004, p. 182).
70
Do que resta, portanto, da suposta objeção de Vítima do dualismo e Contrastes, parece ser
a presença de uma falsa interferência, mediante a qual não se justifica a posição em favor de um
70
O comentário de Spencer seria preciso, caso não creditasse logo depois a Augusto dos Anjos o complexo adjetivo
“evolucionista-monista-transformista”. A união dos três termos não parece, de fato, um contra-senso, sobretudo no
que se refere ao eclético período histórico-cultural em que veio à luz o Eu. No entanto, a presente pesquisa julga
importante uma breve ressalva: Augusto não é um autor evolucionista, nem tampouco transformista, a menos que
tais inclinações possam ser compreendidas em face de seu monismo (sobre um suposto evolucionismo encontradiço
na poesia de Augusto o que envolve também o tema do transformismo, derivação do evolucionismo basta
recuperar a discussão desenvolvida a respeito da expressão “evolução” ao longo de toda a primeira parte deste
estudo). Especialmente sobre o conceito do transformismo em Augusto, note-se o comentário de Gullar (1976, p.
51), com o qual concorda a posição crítica assumida por esta pesquisa.
178
dualismo “objetivo”. A compreensão do monismo de Augusto dos Anjos pressupõe que sobre
mundo fenomênico pese a carga de ser um subproduto equivocado da substância única e
primordial dentro da poética do Eu.
Em 1920, com a edição das Outras poesias, surge um poema dedicado a Farias Brito,
filósofo brasileiro classificado nas hostes panteístas. É uma nova ocorrência do nômeno.
Vejamos.
Cansada de observar-se na corrente
Que os acontecimentos refletia,
Reconcentrando-se em si mesma, um dia,
A Natureza olhou-se interiormente!
Baldada introspecção! Noumenalmente
O que Ela, em realidade, ainda sentia
Era a mesma imortal monotonia
De sua face externa indiferente!
E a Natureza disse com desgosto:
"Terei somente, porventura, rosto?!
"Serei apenas mera crusta espessa?!
"Pois é possível que Eu, causa do Mundo,
"Quando mais em mim mesma me aprofundo
"Menos interiormente me conheça?!"
(Natureza íntima)
A “Natureza” é aqui uma metonímia da Mônada, e o “noumenalmente” do quarto verso
está ligado à natureza da reflexão, da introspecção, do sentimento expresso pela voz que lhe
concede o sujeito poético: “A Natureza olhou-se interiormente!”. Nessa auto-contemplação, a
Mônada, “causa do Mundo”, não conhece seus propósitos ou sua própria natureza interior, uma
vez que não é uma consciência, assim como não é uma vontade. De fato (como pôde ser notado
por ocasião do exame da máscara de Deus), a Mônada é, em Augusto dos Anjos, um princípio
mecânico, o que lhe afasta da noção de causa consciente.
179
Uma outra ocorrência é do mencionado Viagem de um vencido, poema extremamente
significativo da obra augustiana, mas que não foi pelo autor incluído na edição original do Eu.
71
Ouçamos as estrofes três e quatro:
Sozinho, uivando hoffmânnicos dizeres,
Aprazia-me assim, na escuridão,
Mergulhar minha exótica visão
Na intimidade noumenal dos seres.
Eu procurava, com uma vela acesa,
O feto original, de onde decorrem
Todas essas moléculas que morrem
Nas transubstanciações da Natureza.
Ainda uma vez, a identidade entre aquela mesma Natureza e a “intimidade noumenal
dos seres”, esse grande mistério representado pelo imponderável e imperscrutável da Mônada, do
“NÃO-SER”. Num jogo figurativo tão sutil quanto intrincado, o vate trata de anunciar o Nada
procurando por respostas, mergulhado na escuridão ofuscante das evidências.
Enfim, como conclusão acerca das ocorrências da noção de nômeno na poesia do Eu, é
possível afirmar que apenas à Mônada é devido compor o reino transcendente, que se separa
qualitativamente do domínio dos fenômenos da existência. Se Augusto dos Anjos recorre à idéia
do nômeno, o faz por duas razões: primeiro, para creditar transcendentalidade à Mônada; e
segundo, para municiar a máscara do Nada e agregar mais um elemento ao seu universo
semântico. De fato, pelo afastamento operado por “nômeno” entre “Nada” e “fenômeno”, o Nada
augustiano pode ser ligado à Mônada por tudo o que não é. Ora, o Nada não é ausência, porque a
ausência ainda é algo; o Nada simplesmente não é. Mas isso menos por uma convicção do que
pelo reconhecimento da imponderabilidade que lhe é própria (que é própria da Mônada), como
71
Segundo os estudos variantísticos de Bueno, não registros de publicação de Viagem de um vencido que seja
anterior à primeira edição das Outras Poesias, de 1920 (Bueno, 2004, p. 831). Pelo teor dos versos, é possível
defender que o poema tenha sido escrito após a publicação original do Eu, o que indicaria que Viagem de um
vencido não teria sido de fato preterido.
180
podemos notar, por exemplo, pelo cenário do poema que veremos a seguir, intitulado Numa
forja.
Um dos poemas publicados sob a rubrica de Outras poesias, e um dos momentos mais
formalmente heterodoxos de Augusto dos Anjos, Numa forja é poema poderoso, e um dos mais
assombrosos exemplos da inesgotável capacidade do autor na criação de atmosferas poéticas.
Seria importante observar, numa breve incursão ao longo dos versos desse poema, o caminho
percorrido pelo Eu, com o propósito de trazer uma nova e oportuna contribuição na discussão
acerca da máscara do Nada.
No ambiente descrito pelo poema, o Eu entra numa oficina de fundição. Desta vez não
lhe protege a noite, como é usual:
De inexplicáveis ânsias prisioneiro
Hoje entrei numa forja, ao meio-dia.
Ali, diante da “térmica violência de um braseiro”, o sujeito “o horror da metalúrgica
batalha” entre os metais, aos quais só restava “Sofrer, berrar, tinir”. Compreendendo num ímpeto
as razões da dor dessa matéria bruta, o Eu declara:
Compreendia por fim que aquele berro
À substância inorgânica arrancado
Era a dor do minério castigado
Na impossibilidade de reagir!
Era um cosmos inteiro sofredor,
Cujo negror profundo
Astro nenhum exorna
Gritando na bigorna
Asperamente a sua própria dor!
Era, erguido do pó,
Inopinadamente
Para que à vida quente
Da sinergia cósmica desperte,
A ansiedade de um mundo
Doente de ser inerte,
Cansado de estar só!
181
A dor da matéria não é senão a angústia da “sinergia cósmica” que, em cooperação, luta
inconscientemente pelo despertar de suas Forças comuns:
Como que a forja tétrica
Num estridor de estrago
Executava, em lúgubre crescendo
A antífona assimétrica
E o incompreensível wagnerismo aziago
De seu destino horrendo!
E assim atingimos o trecho final do poema:
Ao clangor de tais carmes de martírio
Em cismas negras eu recaio imerso
Buscando no delírio
De uma imaginação convulsionada
Mais revolta talvez de que a onda atlântica
Compreender a semântica
Dessa aleluia bárbara gritada
Às margens glacialíssimas do Nada
Pelas coisas mais brutas do Universo!
Numa forja não havia sido publicado antes da edição de 1920. O tom dos versos revela,
contudo, um parentesco irrevogável com a publicação original da obra. Ao leitor familiarizado
com a poesia augustiana, é notável, sob o aspecto formal, o emprego dos versos polimétricos,
procedimento incomum e que ocorre apenas em outro poema da obra canônica do autor,
intitulado Mãos. Se não por outras razões, Numa forja mereceria destaque pela presença desse
novo tratamento do processo formal da escrita, talvez um novo caminho na criação poética
augustiana, interrompido por sua morte prematura.
O “Nada” é, em Numa forja, um análogo de “Universo”, tratamento metonímico da
Mônada. A matéria que experimenta a dor pela transformação na forja grita inutilmente pela
Mônada em sua “aleluia bárbara”, cuja “semântica” é incompreensível pelo Eu. Aqui se revela
182
com certa segurança aquela chamada “ausência de sentido” ligada à existência pelo sujeito, à
qual este estudo se refere no início da parte anterior: o Eu não encontra sentido ontológico na
angústia dos seres existentes que, “às margens glacialíssimas do Nada” expressam a polêmica
(pólemos) que aflige o curso da vida.
Pelo que foi dito fica apresentada a dupla face do Nada pela poesia augustiana: se, num
primeiro momento, um lado negativo, “niilista”, como o entende bem Gullar (1976) em seu
comentário que abre a presente parte, também outro lado afirmativo, que apresenta o Nada de
modo inequivocamente positivo, em sua figuração monística. Pela máscara do Nada, conjugada
com a máscara de Deus, integraliza-se a imagem poética da Mônada, em toda a potência
semântica que lhe credita a construção poética da obra. Numa visão retrospectiva, pode-se notar
que, reunindo duas figuras, as máscaras de Deus e do Nada, a Mônada se anuncia, a um
tempo, como a Mater originalis transcendente, portanto ideal, e inconsciente.
Para lembrar uma observação tão espontânea quanto precisa de Miranda (1995),
“Augusto partia do real e mergulhava no ideal” (p. 237). O Eu do Eu revela uma visão de mundo
mecanicista, atéia e fartamente inspirada numa espécie de ontologia poética marcada por um
princípio cósmico e mítico: cósmico, porque abrangente e ordenador; mítico, porque seu lugar é
o instante original. Nesse sistema cindido pela falha que fez a vida se desgarrar no abandono, o
desejo pelo retorno, pela involução à nada e sua profecia são os instrumentos do Eu: se a
compreensão do sentido do curso da existência lhe é interditado – e, portanto, inexistente – cabe-
lhe a intuição monística pela poesia, que concede ao sujeito consciente sua última esperança: o
pressentimento da Mônada como princípio teleológico. A Mônada é a salvação da existência,
porque é a Vida incorruptível: eis a esperança municiada, pronta para operar no coração do
sujeito poético.
183
Pela orientação principal da poesia épica do Eu vislumbra-se o “homem”, tal como o
Augusto dos Anjos: um ser que não compreende seu próprio mundo, e que por isso deseja um
outro. Nesse outro mundo não diferenciação entre os seres. Não dor, não sofrimento ou
morte, e todas as coisas são envolvidas pela proteção materna da Unidade, devolvidas à sua
condição inicial, atemporal e imóvel. O Eu deseja e anuncia uma trajetória involutiva. É a
profecia monística terminal, ritualizada pela poesia: se a Mônada é o mito seminal augustiano, o
Eu é o rito que a presentifica, anunciando-a.
72
72
É oportuno notar que, quando aqui se recorre ao mito (neste trecho e em outras ocasiões do presente estudo), não
o propósito de envolver mais do que apenas um de seus aspectos: se é possível articular a nada tal como a
entende a poesia de Augusto com o mito, é porque a relação se funda na idéia de que ambos os termos ocupam
lugar num tempo primordial; são acontecimentos fundadores que permitem uma explicação para a existência e, no
presente caso, uma explicação pela via poética, incrustada no discurso do poema. Não há aqui a intenção de resgatar
ou de ligar à nada outra característica do mito, senão a de ter ocorridoin illo tempore(Mafra, 2004, p. 11)
e, a partir dessa ocorrência, ter inaugurado uma certa visão de mundo. Tal característica é, segundo Mafra, destacada
por Eliade (1977) como “acontecimento ocorrido no tempo primordial” (Mafra, 2004, p. 10), mas não é, segundo o
intérprete, característica suficiente para dar conta de uma explicação abrangente do mito que, sendo algo “capaz de
explicar a vida do homem, este nunca atingirá o estágio de sua plena interpretação, estará sempre à busca de seu
sentido” (Idem, p. 11). Segundo Eliade, “Todo o mito, independentemente de sua natureza, enuncia um
184
3. A POÉTICA DA INVOLUÇÃO E DA RESTAURAÇÃO DA ORDEM
Paes (1986), referindo-se à poesia do Eu, emprega o justo termo “evolucionismo às
avessas” (p. 26), e lembra “o desejo de volta ao inorgânico” (p. 27) que persegue e engendra a
poesia de Augusto. Não obstante a crítica precisa de Paes, sua menção ao tema parece carregá-lo
de algo recessivo. O intérprete parece sugerir que, como numa relação figura-fundo, a figura que
se impõe ilustraria a regra da evolução problemática da existência, ao passo que ao fundo estaria
a resposta augustiana ao problema. Dito de outro modo, Paes parece entender que o reino da
diferenciação é o fio condutor da poesia augustiana, em detrimento do que chama de
“evolucionismo às avessas”. Diante desse cenário, o notável comentário de Paes parece incorrer,
segundo a presente leitura, num equívoco crítico, cujos termos seriam os seguintes: Augusto dos
Anjos (chamado por ele de “evolucionista confesso”) colocaria em primeiro plano, enquanto
matéria poética, o que foi chamado de “evolução”, ao passo que a solução pelo monismo teria
um caráter secundário. Como resultado da interpretação de Paes que, note-se, é intitulada
Augusto dos Anjos ou o evolucionismo às avessas –, haveria uma regular recessividade ligada à
involução proposta pelo ideário épico predominante no Eu, como resultado do destaque do
mundo fenomênico.
Não obstante a amplitude e a legitimidade do estudo de Paes, cuja importância crítica
foi anteriormente reconhecida, a presente pesquisa não pode deixar de se afastar do intérprete
quanto a essa sutileza exegética que, de resto, se mostra menos sutil do que pretenderia. A regra
da poética do Eu é, como pôde ser notado até aqui, a involução, e não a evolução. Dentro do
poeta não dorme um profeta: ali o profeta se agita e toma para si a poesia. Se os versos se
acontecimento que teve lugar in illo tempore e constitui, por este facto, um precedente exemplar para todas as
acções e “situações” que, depois, repetirão este acontecimento” (Eliade, 1977, p. 504).
185
ocupam mais freqüentemente da existência (reino da diferenciação, evolução) e de fato o
fazem é com o propósito de atestar e propor a correção de uma falha ontológica, por meio do
amplo testemunho sensorial da recusa da individuação por si mesma, o que ocorre em função do
caráter corruptível da vida. Augusto dos Anjos foi um intérprete preciso da miséria da existência,
e foi minucioso ao examinar sua corrupção, porque Prometeu condenado pela mesma mão que
seria capaz de salvá-lo – buscava respostas num lugar que sabia inadequado.
Sobretudo, vale lembrar que uma marca particular da Mônada impede que a obra
augustiana cuide da recuperação (involução) à Unidade como uma exceção ou como uma
simples reação; essa marca é a caracterização da Mônada como princípio teleológico. Em cada
mínima parte da vida em processo de desenvolvimento e corrupção, um mecanismo, uma
“energia intra-atômica” (Monólogo de uma sombra) que aponta para sua devolução à Mônada.
Na estrofe que abre a parte II do poema As cismas do destino, diz o Eu:
Foi no horror dessa noite tão funérea
Que eu descobri, maior talvez que Vinci,
Com a força visualística do lince,
A falta de unidade na matéria!
Trata-se, ainda uma vez, do lamento da voz poética pelo que na matéria no reino da
diferenciação – não há de convergência, de “unidade”, uma vez distante de sua origem.
O monismo teleológico de Augusto dos Anjos, solução radical para o problema da
existência dentro de sua poesia, apresenta, como de ser notado até aqui, algumas formas de
elaboração. As figuras de Deus e do Nada são, nesse sentido, amplamente empregadas, e
representam uma dimensão algo “perscrutável”, “discernível” numa leitura do monismo do
autor. São aqueles elementos suscetíveis de pontuação, de exame, que permitem um estudo
preciso do monismo enquanto feixe de ocorrências, figuras poéticas mais ou menos expostas
186
pelo enunciado. Todavia, basta uma leitura cuidadosa do Eu para perceber que há, no íntimo da
índole poética do autor, algo de radicalmente indizível que escapa à letra do poema, que escapa a
“Deus” e a “Nada”, que escapa a qualquer figura ou ocorrência de que dispusesse o poeta. Esse
“algo” é o tema deste capítulo.
Até aqui pudemos perceber um tipo notável de cadeia de remissões que pretende conduzir
a leitura ao núcleo do Eu: parte-se da consciência do reino da diferenciação, passa-se à intuição,
ao fato patético da situação-limite, trajetória que deságua na figuração monística de Deus e do
Nada. O passo seguinte atinge, num momento final, o que a obra carrega de mais visceral, de
mais poético. Trata-se do monismo desmascarado, aquele algo atópico, radical, o que não ocorre
senão sutil e violentamente, o que não se manifesta prontamente, e é antes uma intuição do que
uma expressão, expressão da épica augustiana. É o legítimo território do Mistério, em que se
fundam aquelas ocorrências de Deus e do Nada. É quando o profeta se rende ao que é dito
pela poesia.
O ponto mais elevado dessa “nova poesia” que salta dos versos do Eu é de uma
fecundidade paradoxal, que se manifesta menos como as convicções “de um evolucionista
confesso que apostava da sua em favor de um evolucionismo às avessas” (Paes, 1986, p. 26)
do que como o ideário de um poeta que profetiza, deseja e pressente, no cerne do mundo
corruptível e poderoso da vida vulgar, um télos, uma ordem, cuja regra é o regresso, a trajetória
invertida, o caminho “às avessas”.
Se as máscaras são acenos mensuráveis da Mônada, esta é a intuição poética última de
Augusto, sua própria poesia, ou a própria coisa à qual pretendem os versos. Precisamente aqui
reside a surpreendente simplicidade que anima a trajetória do Eu, a peculiaridade primordial da
187
poesia ontológica de Augusto. A leitura desse monismo ilegível se revela, a meu ver, como o
maior desafio interpretativo da obra, porque último.
O Eu, diante do reino da diferenciação, perguntava-se, com a simplicidade das dúvidas
radicais, não sem lembrar algum Álvaro de Campos:
A passagem dos séculos me assombra.
Para onde irá correndo minha sombra
Nesse cavalo de eletricidade?!
Caminho, e a mim pergunto, na vertigem:
- Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem?
E parece-me um sonho a realidade.
(Poema negro)
A questão central a que pretende responder o sujeito poético, esse Eu-sombra, bem
poderia ser assim sintetizada:
De onde vem o fluxo sempre renovado de vir-a-ser?
Augusto dos Anjos não é o autor dessa formulação: o filósofo pré-socrático Anaximandro
de Mileto a teria feito, segundo Nietzsche (1996 (2), p. 54), o que pode ser atestado pela doutrina
dedutível da doxografia de Anaximandro e dos poucos fragmentos que do autor grego nos
restaram. Seria Augusto dos Anjos um herdeiro remoto das inquietações de Anaximandro? Teria
em mente Anaximandro as mesmas preocupações que atormentariam o poeta vinte e sete séculos
depois?
É a evolução do novo para o velho
E do homogêneo para o heterogêneo!
(As cismas do destino – III)
Eis o “vir-a-ser”, segundo Augusto dos Anjos. Ao “fluxo” de Anaximandro o poeta
paraibano prefere “evolução” e, enfim, a aproximação parece ao menos sugestiva, para não nos
188
precipitarmos. Mas em que medida há uma real aproximação? Até que ponto não seria artificial
um parentesco entre o pensamento de Anaximandro e a intuição poética de Augusto dos Anjos?
Seria o momento de procurar em um momento histórico mais remoto as origens do monismo
poético de Augusto? Examinemos mais de perto as questões.
Para fazer justiça à contribuição de Anaximandro à presente discussão, seria importante
fazer algumas breves e prévias considerações, com o único objetivo de recuperar alguns
elementos acerca desse autor, lembrado expressamente por Augusto dos Anjos.
Anaximandro nasce em Mileto, colônia jônica na Ásia Menor, fundada por volta do
século XI a. C. Viveu durante o período pré-socrático (ou naturalista, cosmológico) da filosofia
grega, que compreende os séculos VII a V a. C. Esse período foi fragmentado pela crítica
moderna em escolas de pensamento, entre as quais está a escola milesiana, à qual pertenceu
Anaximandro.
73
Os pensadores milesianos pré-socráticos conhecidos são três: Tales,
Anaximandro e Anaxímenes. A Anaximandro atribui-se a primeira tentativa no ocidente de um
pensamento marcado pela índole propriamente filosófica, que Tales, seu antecessor, teria
flagrantes dívidas para com uma lógica essencialmente mítica.
74
Anaximandro, assim como os demais escritores milesianos, era profundamente tocado
pela questão das origens da existência. Para buscar a melhor expressão para sua inquietação,
73
O período pré-socrático conta com muitos representantes divididos em diversas escolas de pensamento. Contudo,
a investigação detida dessas escolas seria aqui inviável, além de ser desnecessária para os propósitos deste estudo. A
relação bibliográfica sobre o assunto é vasta. Entre tantas publicações, recomenda-se a de Jonathan Barnes,
Filósofos pré-socráticos, traduzida por Julio Fischer, ou ainda o primeiro volume da História da filosofia antiga,
de Giovanni Reale, traduzida por Marcelo Perine.
74
Segundo Nietzsche, os escritos de Anaximandro “são marcos de milha” no caminho que conduzem a reflexão
mais profunda de seu tempo (Nietzsche, 1996, p. 51). Escritor da primeira obra filosófica em língua grega (Da
Natureza, título não creditado ao autor), Anaximandro de Mileto é, ainda segundo Nietzsche, “o primeiro escritor
filosófico dos antigos”, e “filósofo típico” (Nietzsche, 1996 (2), p. 51). A observação nietzscheana é justa, embora
seja importante lembrar do lento processo que culmina na separação nem sempre evidente entre o discurso
mítico e o discurso filosófico, na Antigüidade.
189
orientou-se por uma visão cosmológica da physis.
75
Seu pensamento consiste basicamente numa
tentativa de apresentar, por meio de uma unidade inicial cósmica, uma resposta para o que
chamou de “corrupção” dos seres, o mundo regido pelo processo de composição e destruição,
idéia muito próxima da “angústia milenária” (Noite de um visionário) que (des)orienta o curso da
vida nos versos do Eu. É certo que os estudos dos autores pré-socráticos são sempre
condicionados à doxografia que permite o acesso aos escassos fragmentos, assim como é
igualmente lícito admitir que o pensamento desses autores possa ter sido, por várias razões,
amplamente transformado através dos tempos.
76
Todavia, diversas leituras críticas apontam que
Anaximandro pretendia descobrir na base da corrupção dos seres um princípio cósmico original,
no qual radicaria a existência material e espiritual. Tal descoberta corresponderia a elaborar uma
resposta sustentável, a partir da ciência rudimentar da época, àquela questão radical mencionada
por Nietzsche: “De onde vem o fluxo sempre renovado de vir-a-ser?”
Ao longo dos poemas de Augusto dos Anjos, o nome de Anaximandro aparece uma única
vez, no soneto Agonia de um filósofo, que cito integralmente:
Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo...
O Inconsciente me assombra e eu nele rolo
Com a eólica fúria do harmatã inquieto!
Assisto agora á morte de um inseto!...
Ah! todos os fenômenos do solo
Parecem realizar de pólo a pólo
O ideal de Anaximandro de Mileto!
No hierático areopago heterogêneo
Das idéias, percorro como um gênio
75
Melhor traduzida por “Natureza”, a expressão grega physis representa a força telúrica original que rege e organiza
os fenômenos físicos. Seu emprego foi assegurado com esse sentido não apenas por Anaximandro, mas pelo próprio
panorama lexical helênico do período em que viveu o autor.
76
Para uma visão geral dos problemas envolvidos na pesquisa do remoto pensamento pré-socrático, sobretudo no
que se refere à doxografia dos autores e às inflexões históricas mais relevantes para a interpretação dos fragmentos,
é importante recuperar o cuidadoso comentário introdutório de Barnes (2003, p. 9-40).
190
Desde a alma de Haeckel á alma cenobial!...
Rasgo dos mundos o velário espesso;
E em tudo igual a Goethe, reconheço
O império da substância universal!
77
Aqui, o “império da substância universal” corresponde ao “ideal de Anaximandro de
Mileto”, chamado pelo filósofo grego de arché. Os sentidos do termo grego arché são vários,
porém convergentes: “começo”, “início”, “regência” e “direção” são traduções possíveis, e sabe-
se que a expressão era originalmente empregada para designar algo como uma gerência de
caráter político ou um cargo de magistratura (Barnes, 2003, p. 22). Todavia, dentro da
construção filosófica de Anaximandro, a melhor tradução de arché parece ser mesmo aquela já
amplamente adotada entre os intérpretes do pensamento pré-socrático: “Princípio”. A instituição
da arché foi a preocupação central dos filósofos da escola milesiana, e cada um deles o dotou das
características que julgava pertinentes.
Souza (1996) salienta que “Anaximandro afirma que, ao longo do tempo, os opostos
pagam entre si as injustiças reciprocamente cometidas” (p. 16).
Em Anaximandro, os seres são
submetidos a “modificações”, idéia que guarda, dentro do pensamento do autor, uma indiscutível
semelhança com o que Augusto dos Anjos entende como “evolução (ou diferenciação,
individuação). Por outro lado, é igualmente legítima a aproximação que se anunciava acima
– entre a presença do termo arché em Anaximandro e a presença da Mônada no poeta, a
“substância de todas as substâncias” de que fala o Eu em Monólogo de uma sombra. Não menos
77
No primeiro terceto, a palavra “areopago” é exemplo da já mencionada alteração da acentuação tônica, comum em
várias ocorrências da poesia augustiana. É digna de menção a presença da “colina de Marte” (areópago), cuja
referência pode ser mítica ou histórica, ou ambas. Mítica, uma vez que Marte, deus helênico da guerra, é convocado
por Augusto dos Anjos para personificar o curso polêmico (pólemos) de que se ocupa o reino da diferenciação em
seu eterno conflito imposto pela individuação. A referência histórica, por sua vez, cabe à compreensão da “colina de
Marte” como supremo tribunal da antiga Atenas, cuja importância política é progressivamente reduzida a partir do
século V a.C. Augusto parece pretender, pela citação de “areopago” (areópago), trazer ao contexto a idéia da guerra
(pela leitura mítica) e do restabelecimento da justiça (pela leitura histórica), ambas as remissões intimamente ligadas
à idéia do reino da diferenciação tal como o apresenta o Eu.
191
sintomática é a menção de Anaximandro às “injustiças” derivadas daquele “movimento”, que
encontram eco nas noções augustianas do sofrimento e da dor universais, fruto da diferenciação.
Diz Anaximandro, segundo Simplício em seu Comentário à Física, 24, 13:
Pois donde a geração é para os seres, é para onde também a corrupção se gera segundo
o necessário; pois concedem eles mesmos justiça e deferência uns aos outros pela
injustiça, segundo a ordenação do tempo. (Souza, 1996, p. 50).
78
Anaximandro injustiça nessa espécie de fardo hereditário ao qual está condenada a
existência (vir-a-ser). O restabelecimento da justiça consiste no regresso ao arché. Vê-se
portanto que, ainda que o monismo de Augusto seja com freqüência aproximado do ideal dos
grandes sistemas científicos generalizantes do culo XIX, o poeta submete-os aos elementos
fundadores de sua índole lírico-épica pessoal que, nesse âmbito, parecem antes manter contato
mais ou menos estreito com a filosofia pré-socrática. Além disso, para que nos detenhamos numa
questão estilística, vale lembrar que os escritos de Anaximandro parecem se valer fartamente da
expressão poética, o que não se aplica absolutamente aos cientistas do século XIX. Como
ilustração, talvez seja importante recuperar o comentário pessoal de Simplício ao trecho já
citado. Referindo-se à idéia de “injustiça”, tal como a apresenta Anaximandro, diz Simplício no
mesmo Comentário à Física, 24.13-25:
Ele se pronuncia a esse respeito com palavras um tanto poéticas.
(Barnes, 2003, p. 88).
79
78
Em sua obra Filósofos pré-socráticos, Barnes traz assim o mesmo trecho de Simplício:
E as coisas das quais se originam as coisas existentes são igualmente as coisas em que
elas são dissolvidas, consoante com o que deve ser. Porquanto devem prestar contas e
reparação umas às outras por suas injustiças, conforme a sentença do tempo.
O sentido final é ligeiramente diferente, talvez em virtude da idéia da “dissolução”, que não ocorre na
tradução de Cavalcante de Souza. Todavia, essa sutileza em nada modifica a presente leitura.
79
O recurso da expressão poética (seja pelo tom, seja pela versificação) está presente, em certa medida, em todos os
autores pré-socráticos, como relatam trechos da doxografia conhecida e da crítica moderna. A título de exemplo,
192
Mais do que um simples agregado semântico extra-textual, o pensamento dos naturalistas
gregos com destaque para Anaximandro parece contribuir enfim, no que se refere à
inclinação poética do Eu, com uma presença mais marcante do que a que se atribui comumente
àquela ciência adotada com entusiasmo em fins do século XIX. A presença de Anaximandro em
Augusto dos Anjos não se evidencia somente pelo que de irrevogavelmente poético na obra
do autor grego, mas também – e talvez mais importante – pelo que há de uma pretensão à ordem
no olhar pré-socrático, que não encontra na existência um mero agregado aleatório de partes,
assim como não encontra na história uma série gratuita de eventos.
80
Se há uma injustiça ontológica que ocorre, segundo Anaximandro, a partir do curso
geração-corrupção-geração, e que deve ser revertida, o restabelecimento da justiça na poética do
Eu corresponde a uma igual inversão, a um retorno. Nesse sentido, a obra de Augusto dos Anjos
culmina numa espécie de poética da involução (semelhante ao que Paes denomina
“evolucionismo às avessas”, em artigo mencionado). A inversão do curso da vida vulgar é a
solução de Augusto dos Anjos para o que antes era um problema: a diferenciação, a corrupção. O
poeta profetiza a involução rumo à Mônada, o que era em Anaximandro o arché. Se este anuncia
vale mencionar o nome de Parmênides, autor dos mais densos do período naturalista, e que escreve seu poema
intitulado Sobre a natureza ou, usual e simplesmente, Poema.
80
Anaximandro de Mileto não é o único autor pré-socrático mencionado por Augusto dos Anjos. Em duas de suas
crônicas publicadas pelo jornal paraibano Nonevar do qual também foi colaborador Raul Machado , o poeta
assina “Anaxágoras”, em clara referência ao autor grego que – ainda que contemporâneo de Sócrates – é relacionado
comumente como integrante do grupo dos pré-socráticos. As crônicas “Noite dos artistas” e “Crônica” foram
publicadas, respectivamente, em 31 de julho e em 1 de agosto de 1909, e em nada aludem a Anaxágoras senão pela
lembrança pseudonômica. O mesmo ocorre com as diversas quadras assinadas por “Tales de Mileto”, compostas
entre 1908 e 1910. o espécies de “diversões rimadas” (Bueno, 2004, p. 842), que aludem pelas iniciais que as
intitulam a personagens da época, tais como Raul Machado e Américo Falcão. As quadras revelam “um Augusto
mundano e bem-humorado, quase frívolo”, como observa Bueno em suas notas aos chamados Versos de
circunstância (Bueno, 2004, p. 842). Oportunamente, é importante ressaltar que não registros sobre o contato de
Augusto com o pensamento daquele período inaugural da filosofia ocidental. Seja em função da vasta literatura à
qual teria tido acesso o poeta, seja em função do caráter doxográfico do estudo da obra pré-socrática, o contato
193
um termo para a injustiça “segundo a ordenação do tempo”, o poeta paraibano anuncia seu
desejo e sua esperança nessa restituição da ordem. Eis o sentido do “ideal de Anaximandro de
Mileto” referido por Augusto no já citado Agonia de um filósofo: o itinerário regressivo da
existência, que culminaria em sua extinção na Mônada, pela Mônada.
Na publicação do Eu que contou com as chamadas Outras poesias, surgiu pela primeira
vez um poema intitulado A um gérmen. Cito-o:
Começaste a existir, geléia crua,
E hás de crescer, no teu silêncio, tanto
Que, é natural, ainda algum dia, o pranto
Das tuas concreções plásmicas flua!
A água, em conjugação com a terra nua,
Vence o granito, deprimindo-o... O espanto
Convulsiona os espíritos, e, entanto,
Teu desenvolvimento continua!
Antes, geléia humana, não progridas
E em retrogradações indefinidas,
Volvas à antiga inexistência calma!...
Antes o Nada, oh! gérmen, que ainda haveres
De atingir, como o gérmen de outros seres,
Ao supremo infortúnio de ser alma!
A um gérmen é poema citado por Soares (2004) como um dos exemplos mais marcantes
da ampla compreensão do Eu no que se refere à “regência do mundo” (p. 66) pela recomposição
de uma ordem pré-estabelecida, de uma “antiga inexistência calma”. Mais do que isso, no
entanto, os versos de A um gérmen sintetizam de modo notável o anúncio augustiano do fim do
“desenvolvimento” (evolução), e das “retrogradações indefinidas” que culminarão na Mônada,
aqui mascarada pelo “Nada” do melancólico antepenúltimo verso.
Em última visio, o sujeito “pré-socrático” sentencia assim sua profecia definitiva:
(indireto) é apenas possível. O mais importante neste ponto, todavia, é apenas tentar estabelecer um diálogo entre o
ideal nuclear da obra de Augusto e as teorias cosmológicas do período naturalista, pré-socrático, da filosofia grega.
194
A Verdade virá das pedras mortas
E o homem compreenderá todas as portas
Que ele ainda tem de abrir para o Infinito!
É o anúncio de uma nova existência? Não, se “existir” aponta para algo “externo”, uma
vez que à Mônada nada escapa, e, tal como uma força inexorável, uma moîra que tudo
compreende enquanto inconsciência, traçará o destino da vida e da morte:
É o júbilo aparente da alma quase
A eclipsar-se, no horror da ocídua fase
Esterilizadora de órgãos... É o hino
Da matéria incapaz, filha do inferno,
Pagando com volúpia o crime eterno
De não ter sido fiel ao seu destino!
(A meretriz)
A Mônada, desmascarada, plena, é a Força que habita o fundo de cada ente, e que lhe
infiltra a teleologia da “integração completa” de que fala o Eu no já citado Numa forja:
Ria com essa metálica tristeza
De ser na Natureza,
Onde a Matéria avança
E a Substância caminha
Aceleradamente para o gozo
Da integração completa.
Uma consciência eternamente obscura!
Submetido à intuição irredutível de um Uno irrevogável, o Eu reconhece, no poema
Minha finalidade, toda a imponderabilidade misteriosa da Mônada:
Turbilhão teleológico incoercível,
Que força alguma inibitória acalma,
Levou-me o crânio e pôs-lhe dentro a palma
Dos que amam apreender o Inapreensível!
Predeterminação imprescriptível
Oriunda da infra-astral Substância calma
Plasmou, aparelhou, talhou minha alma
Para cantar de preferência o Horrível!
Na canonização emocionante,
Da dor humana, sou maior que Dante,
195
- A águia dos latifúndios florentinos!
Sistematizo, soluçando, o Inferno...
E trago em mim, num sincronismo eterno
A fórmula de todos os destinos!
Eis aqui mais um claro sinal da presença de Anaximandro no pensamento poético de
Augusto dos Anjos: a idéia da indeterminação do Princípio original. Sua menção neste estudo
não é uma novidade, e para atestá-lo basta recuperar a discussão acerca do potencial metafórico
das máscaras de Deus e do Nada. Não é um simples acaso que as figurações da Mônada no Eu
atinjam um grau máximo de indeterminação, seja pelo imponderável (Deus) e pelo indizível
(Nada) que as envolvem, seja pelo caráter transcendente que marca a Unidade original dos seres.
Transcendência e indeterminação são, sob uma perspectiva lógica, indissociáveis. Segundo
Souza (1996), Anaximandro entendia que
[...] o universo teria resultado de modificações ocorridas num princípio originário ou
arché. Esse princípio seria o ápeiron, que se pode traduzir por infinito e/ou ilimitado.
(Souza, 1996, p. 16).
No mesmo lugar em que se deteve Anaximandro, a poesia augustiana se detém: “nas
sombras profundas que, como gigantescos fantasmas, deitam-se sobre a montanha de uma tal
contemplação do mundo” (Nietzsche, 1996, p. 54). E, enfim, aplica-se a ambos os autores a
observação nietzscheana:
Quanto mais se procurava aproximar-se do problema como, em geral, pode nascer,
por declínio, do indeterminado o determinado, do eterno o temporal, do justo a
injustiça –, maior se tornava a noite. (Nietzsche, 1996, p. 54).
Anaximandro elege como arché a própria indeterminação, o “Inapreensível” de que fala o
poeta. O indizível, o insondável, o imponderável que já havia acenado pela escolha da máscara
do Nada e pela transcendência misteriosa pela máscara de Deus liga-se definitivamente à
196
Mônada pela indeterminação, sendo a existência fenomênica o seu outro, a plena determinação –
insubstancial pela consciência e pelos sentidos. Se o dado corriqueiro da vida comum atesta
sua transitoriedade de corrupção, a Vida pela nada é o resultado de uma dilatação do olhar
sobre a existência, que a submete, trazendo à tona o caráter fortemente transgressor da poética
augustiana. Como resultado de visões de mundo surpreendentemente convergentes, a poesia do
Eu e o pensamento de Anaximandro apontam ambas para uma teleologia irrevogável que
imprime no mundo dos seres uma marca comum: a involução necessária, seja pelo destino, seja
pelo desejo. O que na poesia do Eu é a união de forças entre todos esses elementos que
impulsionam a nova poesia, a poesia da involução, a poesia monista: o reconhecimento do
destino e da teleologia do curso da vida vulgar, bem como o pressentimento e o desejo da
solução pela Mônada. O sujeito de Augusto quer, anuncia e pressente poeticamente o
movimento involutivo, e no fundo não se exaspera, porque a sabe necessária.
Assim, a chamada “nova poesia” de Augusto dos Anjos não é uma simples novidade
dentro da cronologia dos escritos, ou um apanhado estilístico setorizado, como já se nota. Não se
trata tampouco apenas de uma novidade lógica: esse novo estado poético, a poesia da involução,
radica em uma visão de mundo orientada pelo monismo, sendo uma poética renovada porque
livre do cárcere da diferenciação. A “nova poesia” augustiana é plenamente integrada pelo
ideário de uma Unidade, e aspira a um Grande Tempo (Eliade, 1977, p. 504) de reintegração,
quando todas as coisas se libertarão do devir, rumo ao tempo fabuloso do arché. Essa involução,
que se em Anaximandro por uma filosofia poética, e em Augusto dos Anjos por uma poesia
filosófica (porque ontológica), é o próprio espírito de cada verso do Eu: o anúncio inequívoco do
regresso à Mater originalis, que, ainda que se materialize na irregularidade do invulgar, no
silêncio e no assombro, é um intocável cuja natureza a poesia transgride, e cuida de retomar em
197
um grau máximo de tangibilidade e de carga semântica. É o movimento fabuloso que a poesia
é capaz de operar: a indeterminação como único e último sentido. De fato, se Anaximandro
recorre à poesia como modo de expressão, é porque carrega de indeterminação seu arché,
realizando-o – ou descortinando sua realidade – pelo discurso mítico.
Enfim, um momento alto dessa poesia “crepuscular, apocalíptica” (Moisés, 2001, p.439),
talvez seja o poema Louvor à Unidade, uma declaração proeminente da retroação monista
vaticinada pelo Eu:
"Escafandros, arpões, sondas e agulhas
"Debalde aplicas aos heterogêneos
"Fenômenos, e, há inúmeros milênios,
"Num pluralismo hediondo o olhar mergulhas!
"Une, pois, a irmanar diamantes e hulhas,
"Com essa intuição monística dos gênios,
"A hirta forma falaz do aere perennius
"A transitoriedade das fagulhas!"
- Era a estrangulação, sem retumbância,
Da multimilenária dissonância
Que as harmonias siderais invade.
Era, numa alta aclamação, sem gritos,
O regresso dos átomos aflitos
Ao descanso perpétuo da Unidade!
Uma solitária transcrição de Louvor à Unidade seria prova sustentável e suficiente do
ideário monista de Augusto dos Anjos. Escrito provavelmente após a edição original do Eu, esse
poema é a palavra final do sujeito poético, o Eu prometeico, exasperado, profeta, essa sombra
assombrada pela existência, fantasma entre fantasmas. O Eu do Eu é esse olhar que transgride a
coisa vista, e que acumula transgressões, porque possui a capacidade de confundir o ínfimo e o
ilimitado, de compartilhar conscientemente com os entes mundanos do desejo de um alento,
cúmplice piedoso que é das vítimas da diferenciação, entre as quais se inclui.
198
Essa leitura da poesia de Augusto dos Anjos sustentada pela orientação atenta do
monismo poético permite notar que o Eu, longe de ser a expressão de uma mente resignada,
comprometida com um certo pessimismo de downer, é, ao contrário, uma prática constante de
restauração, a demonstração acabada de uma profunda consciência trágica, cuja tradução é um
destino inexorável que envolve a tudo e a todos. Sua essência só pode ser percebida no domínio
do escatológico, por aquele “sentido que me esqueço de ter”, de que diz Álvaro de Campos.
Exemplo radical de uma poesia exorbitada, visceral e sem tréguas, o Eu não é apenas mais um
brado de indignação ou uma poesia feita de escombros e de morte: é um poderoso louvor à Vida
por louvor à Unidade. “Vida” em Augusto dos Anjos corresponde à vida intra-uterina e comum
da Mônada. Quanto à “outra” vida, diferenciada, “deve ser estancada como se fosse uma
hemorragia de verdades fundamentais que se lançam no lodo do mundo” (Miranda, 1995, p.
178). Sua poesia é uma procura incessante pela Ordem, pelo “transcendentalíssimo mistério”. Ao
leitor atento, resta a impressão de que cada verso parte à procura desse ínfimo superlativo, do
“algo” que se deixa encontrar na inexistência silenciosa, no “descanso perpétuo da Unidade!”,
no seio da Mater originalis.
199
Da conclusão
200
Eu voltarei, cansado da árdua liça
À substância inorgânica primeva
(Augusto dos Anjos, Os doentes – V)
201
Se toda convicção é uma grosseria, toda crítica é uma indiscrição. Indiscrição tanto mais
explícita quanto maior é o grau de inscritura da obra criticada. De resto, talvez Augusto dos
Anjos não tenha escrito, mas inscrito, por uma poesia brutal, os códigos de leitura de uma
dimensão indecifrável, fruto de seu Eu perturbado por uma perturbação terminal, pelo silêncio de
morte que se segue à sua única pergunta: a pergunta pela Vida. Nesse ato de inscrever “na página
dura de um muro de pedra” – para emprestar expressão cabraliana –, Augusto dos Anjos
imortaliza um Eu encarnado e lírico que explode numa épica, realizando (poetizando) essa
espécie de pontificado que, pela idéia do monismo, promove a existência a categoria superior,
tornando-a Vida.
A necessidade, não apenas psicológica, de reunir numa unidade toda a Natureza, não é
apenas uma prerrogativa para o seu “livro de versos”, como o poeta se refere ao Eu em carta de
1912 endereçada à mãe, quando morava no Rio de Janeiro recém-republicano. Essa suspeita na
convergência de todas as coisas desconfiança com feitio de escândalo –, não parece apenas um
ponto de partida e de chegada, tampouco uma mera orientação intelectual ou filosófica que parte
uma vez reconhecidas as restrições da discursividade regular em busca de expressão poética.
Para além disso, o monismo do poeta é o seu breviário, o alento que radica no território do
escatológico, a nostalgia do mundo da ordem e de tudo que aflui, cuja essência, reconhecida pelo
Eu nalgum tempo remoto, espera pelo fecho dos versos para se pronunciar. Nesse sentido,
manifesta-se uma das principais chaves de leitura do Eu.
Augusto dos Anjos é um autor condenado à busca pela ordem, a exemplo das
arqueológicas incursões hodiernas que, a despeito da força dos existencialismos, das psicologias
e dos pragmatismos que as desafiam, prosseguem na procura nem sempre manifesta, é certo
202
por uma subjetividade fundadora, universalizante ou, numa palavra, ordenadora. Nesse sentido, a
poesia do Eu parece ser, em essência, uma poesia “cerebral”, intelectual. Todavia, se o monismo
augustiano opera essa busca pela via da metafísica o que o constrange a revelar seu ateísmo e
seu amoralismo –, isso ocorre por um profundo sentimento de pertencimento e de solidariedade
diante da existência. Esse sentimento, que confere significado à obra – para aludir à definição de
Pound para a literatura, essa linguagem carregada de significado –, sentimento que acontece
diante da ordem desejada, lança luzes renovadas sobre uma busca não apenas racional (socrática,
para emprestar de Nietzsche o sentido), mas, principalmente, fundada num certo pendor para o
descomunal, para tudo o que antecede a fragilidade da expressão.
O Eu é, mais que uma obra de poesia que marca a modernidade brasileira, uma empresa
sanitária: um recolher temerário de destroços que pretende reconstruir uma síntese perdida, dizer
do afluxo de todas as coisas. Augusto dos Anjos cria um Eu comovido pelo abandono a que as
coisas do mundo foram condenadas, e que segue no encalço do apetite do tempo, tentando
ajustar à imobilidade e ao silêncio tudo aquilo que grita e é incerto. A leitura atualizada dessa
poesia revela mais do que o desejo arbitrário de inscrever num lugar perene uma meta-
discursividade: revela o verso poderoso de uma espécie peculiar de fauve para lembrar o
comentário de Moisés –, que extrai poesia dos lugares mais rudimentares, dando voz ao orgânico
e ao inorgânico, à pedra, ao metal, ao cão, à Sombra, ao Destino, numa palavra, aos órfãos todos
da Mater originalis, tornando-os capazes de gritar não apenas seu abandono fundador, mas
também sua esperança.
A filosofia, bem como a ciência, foram impotentes para responder à questão radical
proposta pelo Eu a si mesmo. A poesia foi seu alento – efêmero, é certo –, e sua formulação mais
acabada. Foi pelo verso exigente do discurso radical da poesia que Augusto dos Anjos
203
migrante perseguido pelo agreste onde nasceu e pelos demais agrestes que elegeu – fez da índole
poética um deslumbre e um assombro. O monismo essa doutrina da Mãe Original saudosa e
tentacular – permitiu-lhe retirar, ou melhor, arrancar, do mundo incerto e cinzento em que
caminhava, a mais justa expressão do kósmos e das energias misteriosas que o compõem,
supostas. Supostas, porque Augusto é tocado pela força de uma ordem apenas pressentida, o que
não lhe permite senão a poesia de uma pulsão primária, cujos versos têm o poder de agarrar pelo
braço o leitor e exigir-lhe fôlego, conduzindo-o a uma dimensão seminal imponderável, e que
permanece interditada até o momento em que o Eu se lhe revela o bastidor dos olhos. Na
amplidão da campa da existência, onde não atesta senão um terrível equívoco ou um equívoco
sublime, no sentido kantiano da expressão –, a voz poética do Eu verifica, pelo pressentimento
de uma potencialidade convergente, uma necessidade que se reverte, num momento final, em
desejo: desejo de conforto, de acolhimento uterino na Unidade, no Mistério que abandonou a
existência no mesmo instante em que foi por ela abandonado: o Eu do Eu não quer senão a
ternura da Mater Originalis.
Mas o poeta temia a cegueira dos olhos. Espírito hipersensível ao drama da vida, tal como
um Buda eternamente exilado que se repete a primeira das Verdades, transgrediu e amplificou
seu medo de “última das criaturas inferiores”, fazendo de seu Eu um visionário. Um visionário
que não procura em riste por nebulosas ou amplidões etéreas, mas que crava os olhos nas
vísceras da vida. A visada certeira do Eu atinge, como uma seta, todas as coisas, e as atinge
desde dentro. Perturbado pelos inadmissíveis da corrupção e da morte, o poeta fez do curso vital
um acidente, e optou por despejar a contingência da vida vulgar na plenitude ilimitada e uterina
da Mônada, união de todas as coisas. Como resultado dessa “morfologia do terrível”, que faz da
204
diferenciação uma doença, resta a Augusto dos Anjos ser poeta de matéria estranha, poeta
noturno. O Eu vê melhor na escuridão.
A poesia augustiana não foi recitada com cerimônia: faltam-lhe adornos. Sua linguagem
não é jamais refratária ou alusiva, e não foi por mero capricho que muito falou da corrupção e da
morte: foi por cortesia ao leitor. Augusto foi cortês por ter escrito uma poesia impossível, a única
possível, poesia estanque, inimiga de deslizamentos, verso do tipo que permite ao leitor
perguntar, mas por um instante: “Por onde me guiam esses versos?”. Augusto optou por gritar
a arte a fazê-la:
Grito, e se grito é para que meu grito
Seja a revelação deste Infinito
Que eu trago encarcerado na minh'alma!
(Gemidos de arte – III)
Ao atingir o ponto conclusivo deste estudo, resta uma indiscrição final, o próprio enigma
da Mônada: a vida não é a Vida, assim como a morte não é a Morte. Sobre esse enigma-
fundamento o poeta levanta sua oração de silêncios irresistíveis, e, como uma pausa musical que
carrega em si o sentido que lhe antecede e procede, o grito augustiano é crônico, quer arrebentar
todas as calmas, atingir as mais remotas altitudes e profundidades. Sua linguagem-grito é, para
lembrar Blanchot, a linguagem-anfitriã de uma Morte total, que se afirma como Vida total. Cada
verso do Eu é uma contração a mais na existência, um incessante pretender. Se cada poeta sente
de onde a poesia pode nascer, Augusto dos Anjos sabe de onde ela deve ser arrancada.
O desejo da ordem, esse “Infinito / Que eu trago encarcerado na minh’alma” é o motor do
verso, porque gera o sentido, o único possível, o único aspirado. Porque é o que torna o silêncio
um escândalo, o que torna latentes entre si o imóvel e a imobilidade. É o leitor quem reconhece
os termos da cortesia, agradece e pode optar por aceitá-la: a Mônada é ausência, porque presença
205
em excesso. Está solucionado o enigma. O Eu nasce do mal-estar e da apreensão que antecedem
a todas as explosões, nasce de um sendo exorbitado. Poesia de sim, absurdamente positiva,
poesia de esperança. E, finalmente, é possível compreender porque não interessou a Augusto dos
Anjos cantar a vida ou o amor. Por excesso de vida e amor, amor e vida se integram e celebram
sua resistência, operam mútua transgressão pelo verso e, nessa comutação equívoca ora
mistério, ora revelação –, descobrem onde viviam antes de existir, descobrem-se em sua potência
máxima e mínima.
Enfim, por tudo o que os versos do Eu são capazes de revelar e de ocultar, Augusto dos
Anjos inscreveu certamente “poesia de superior qualidade, conceptual e formal, como nenhuma
outra no tempo e mesmo de toda a nossa literatura” (Moisés, 2001, p. 441), mas foi, sobretudo,
poeta do Universal, menos por pretensão à profundidade do que por não ter em seu canto
alternativas equivalentes. No termo da trajetória, o sujeito poético não se surpreende, porque sua
voz já anunciava a identidade entre princípios e fins. O Eu convida a retornar, a involuir. Convite
para a paz. As duas frentes fundadoras da trajetória involutiva da obra são, por um lado, a
comiseração e o desfalecimento diante do sofrimento do mundo e, por outro, a necessidade e o
desejo de restituir a justiça pela Vida, contra a existência. Justiça com feitio de vingança. Como
uma Fedra euripidiana, o Eu sabe que não opção quando um dos termos é a Vida. Diante da
Vida não há o contraditório, mas apenas o contrário, que é Ela mesma.
Sendo poesia da Unidade, de uma química fonética, da física do verso, o Eu é, ao mesmo
tempo, o lugar das amplidões inacessíveis da metafísica e da fração mais ínfima e repulsiva da
matéria. Naturalista por vocação, Augusto dos Anjos foi homem de gesto austero, talvez pela
importância da batalha que antevia. Considerava a ironia uma presunção, e em sua obra, olhava
para o cárcere da terra imaginando o cenário mais vasto, recusando seus próprios versos em
206
nome de uma poética terminal, anacrônica, transcendente, mineral, estranha a tudo que fosse a
celebração da toilette. Poesia cortês, porque justa. Obra que celebra Euterpe e Calíope, mas que,
no fundo, celebra Melpômene, o Eu é um agregado de incontáveis variações de um verso não
escrito, um verso em branco, anti-verso em vermelho, pouco à vontade na diferenciação do
papel. Poesia impossível porque “profundíssimamente” desmascarada, o Eu são vozes
admiradas, Gemidos de arte:
Fico a pensar no Espírito disperso
Que, unindo a pedra ao gneiss e a árvore à criança,
Como um anel enorme de aliança,
Une todas as coisas do Universo!
E assim pensando, com a cabeça em brasas
Ante a fatalidade que me oprime,
Julgo ver este Espírito sublime,
Chamando-me do sol com as suas asas!
207
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