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SANDRA DE PÁDUA CASTRO
PESTE E ESTRANGEIRIDADE EM ESTADO DE SÍTIO
DE ALBERT CAMUS
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2007
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SANDRA DE PÁDUA CASTRO
PESTE E ESTRANGEIRIDADE EM ESTADO DE SÍTIO
DE ALBERT CAMUS
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais,
como requisito parcial à obtenção do título
de Mestre em Letras: Estudos Literários.
Área de concentração: Teoria da Literatura
Orientadora:
Profª. Drª. Márcia Maria Valle Arbex Enrico
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2007
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Para meus pais, Fernando e Neli,
e para minha filha Marina.
AGRADECIMENTOS
Deus, Luz e Força nesta jornada.
Neli, minha mãe, exemplo de amor incondicional e de dedicação.
Fernando, meu pai (in memoriam), que ausente se faz presença, através do desenho do
amor na minha memória.
Minha filha Marina, pelo companheirismo, compreensão de minhas ausências e pelo
incentivo a continuar caminhando em direção ao conhecimento.
Minhas irmãs Sônia e Simone, pelo apoio e amizade.
Minha amiga Denise, fraternal presença.
Meus familiares, pelo carinho e atenção.
Meus amigos, pela presença estimuladora.
Professora Drª Márcia Arbex, minha orientadora que, com paciência e acuidade me
conduziu nestes estudos, agradeço-lhe pela cordialidade, carinho e dedicação.
Professor Dr. Luis André Nepomuceno e Professora Drª. Sara Rojo, para mim exemplos
de vida; agradeço-lhes por aceitarem participar da banca examinadora deste trabalho.
CAPES, pela bolsa de estudos que me foi concedida durante um ano.
Às vezes me parece que uma epidemia pestilenta tenha atingido
a humanidade inteira em sua faculdade mais característica, ou
seja, no uso da palavra, consistindo essa peste da linguagem numa
perda de força cognoscitiva e de imediaticidade, como um automatismo
que tendesse a nivelar a expressão em fórmulas mais
genéricas, anônimas, abstratas, a diluir os significados, a embotar
os pontos expressivos, a extinguir toda centelha que crepite no
encontro das palavras com novas circunstâncias.
(Ítalo Calvino)
RÉSUMÉ
Le but de ce travail est d’étudier le texte de la pièce de théâtre État de siège (1948)
d'Albert Camus, à partir du concept de peste et d’étranger. Nous avons présenté tout
d’abord le parcours théâtral de cet auteur, en mettant en relief sa création des groupes
Théâtre du Travail et Théâtre de l’Équipe, ainsi que le projet du Nouveau Théâtre, et en
essayant d’observer comment sa philosophie a été mise en images sur la scène théâtrale.
Dans la pièce analysée, la peste est présentée sous différents aspects: comme
personnage, comme abstraction du mal et de toute forme d'injustice, comme une
analogie à un théâtre qui vise sensibiliser et, simultanément, être la vie elle même. Pour
démontrer cette analogie nous avons comparé les principes théâtraux d'Antonin Artaud
et ceux d’Albert Camus, plus particulièrement ceux qui touchent à la notion de peste.
Dans État de siège, ayant fait le constat de la confrontation d’un peuple à un pouvoir
arbitraire, nous avons essayé d’apporter des réponses à la question de la peste et de ses
rapports avec la condition humaine de l’extranéité. Toujours basés sur la pensée
camusienne, nous avons, en outre, identifié les diverses formes d’extranéité, dans le
contexte de cette pièce théâtrale. Enfin, le montage de cette pièce par la troupe Oficinão
do Galpão nous a permis de remarquer la pertinence et l’actualité de la pensée de
Camus en Amérique Latine et, plus précisément, au Brésil.
RESUMO
Trata-se, nesta dissertação, de um estudo da peça Estado de Sítio (1948) de Albert
Camus, tendo como eixos os conceitos de peste e de estrangeiridade. Partimos de uma
apresentação do teatro desse autor, destacando sua criação dos grupos teatrais Théâtre
du Travail e Théâtre de l’Équipe até a proposta do Novo Teatro, e procurando verificar
como o seu pensamento filosófico é colocado em imagens no palco. Na peça analisada
encontramos a Peste de diferentes formas: como personagem, como abstração do mal e
de toda forma de injustiça, e como analogia a uma forma de teatro que pretende tocar e,
simultaneamente, ser a própria vida. Para demonstrar essa analogia cotejamos o teatro
de Artaud e o de Camus, especificamente seus conceitos sobre a peste. Verificamos
nessa peça o confronto com um poder arbitrário e, embasados no pensamento
camusiano, procuramos responder o que é a peste e qual a sua relação com a condição
humana de estrangeiridade, além de identificar, no contexto de Estado de Sítio, as
várias formas de ser estrangeiro. Por fim, procuramos demonstrar, a partir da montagem
dessa mesma peça pelo grupo Oficinão do Galpão, a pertinência do pensamento de
Camus para a nossa contemporaneidade na América Latina e, mais precisamente, no
Brasil.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 10
CAPÍTULO 1
O TEATRO E A FILOSOFIA DE ALBERT CAMUS .......................................... 16
1.1 Théâtre du Travail [Teatro do Trabalho] .............................................................. 19
1.2 Théâtre de l’Équipe [Teatro da Equipe] ................................................................ 25
1.3 O Novo Teatro ....................................................................................................... 28
1.4 O Pensamento no Palco ......................................................................................... 36
CAPÍTULO 2
A PEÇA ESTADO DE SÍTIO E O CONCEITO DE PESTE ................................. 50
2.1 Estado de Sítio ....................................................................................................... 52
2.2 Camus e Artaud: aproximações e divergências ..................................................... 59
2.2.1 A Peste, segundo Artaud .................................................................................... 62
2.2.2 A Peste, segundo Camus .................................................................................... 66
CAPÍTULO 3
ESTRANGEIROS E ESTRANGEIROS EM ESTADO
DE SÍTIO ................................................................................................................... 76
3.1 Estrangeiros para eles mesmos: a população de Cádiz antes do estado de sítio ... 82
3.2 Estrangeiros na própria terra: a população de Cádiz em estado de sítio .............. 89
3.3 Estrangeiro que nega sua estrangeiridade: o Nada ................................................ 94
3.4 Estrangeiro que se impõe como divindade: a Peste ............................................... 96
3.5 Entre a afirmação e a negação: a estrangeiridade de Diego .................................. 103
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 112
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 126
INTRODUÇÃO
O tema proposto para esta dissertação é o teatro de Albert Camus, em especial a
peça Estado de Sítio, tendo como eixo os conceitos de Peste e de Estrangeiridade. Ler
esse teatro surgiu como proposta durante a disciplina isolada Seminário de Crítica
Literária – América Latina, ministrada pelas professoras Sara Rojo e Graciela Ravetti.
Da conjunção de autores estudados nessa época, tais como Homi Bhabha, Giorgio
Agamben, Antonin Artaud e Albert Camus, deparamo-nos com um questionamento
sobre a problemática do estrangeiro e seu movimento em direção ao outro, sobre o
estrangeiro e as questões do poder. No estudo do ser estrangeiro, percebemos que ele, o
estrangeiro, era mais que um paradigma para o estudo do homem e da condição humana.
Ao analisá-lo estávamos trabalhando no duplo do homem.
A escolha de Albert Camus se deve, primeiramente, por julgarmos necessária a
atualização de um pensamento que sempre defendeu a vida humana, colocando-a acima
de qualquer sistema teórico abstrato. O segundo motivo deve-se à sua própria condição
de estrangeiro tanto na Argélia, seu país pelo jus solis, como na França, seu país, em
parte pelo jus sangüinis,
1
em parte por questões culturais que dominavam naquela
época. Camus é uma voz que emerge de um entre-lugar. Originário de dois países, sem
pertencer a nenhum, ele é um estrangeiro em confronto com as mais diversas formas de
poder arbitrário. É esse confronto, embasado no seu pensamento filosófico, que está na
peça Estado de Sítio e nos desperta para o questionamento sobre o que é a peste e sobre
qual a sua relação com a condição humana de estrangeiridade.
1
Jus sanguinis parcial, uma vez que o pai de Camus era descendente de franceses, mas sua mãe era
descendente de espanhóis.
11
Em Camus, reencontramos a revolta que deverá permanecer viva para
contrapor-se a toda forma de injustiça e ao processo de desumanização que se verifica
no “acordar, bonde, quatro horas no escritório ou na fábrica, almoço, bonde, quatro
horas de trabalho, jantar, sono e segunda terça quarta quinta sexta e sábado no mesmo
ritmo” (CAMUS, 2005, p. 27). A revolta, em Camus, é uma forma de inserção
consciente no mundo.
Poderíamos evidenciar sua filosofia, e os conceitos de peste e de estrangeiridade
que nela perpassam, em qualquer uma de suas obras, seja nos romances, nos ensaios,
seja no teatro. Nossa opção pelo teatro será mais bem justificada na definição de Hannah
Arendt: “o teatro é a arte política por excelência; somente no teatro a esfera política da
vida humana é transposta para a arte. Pelo mesmo motivo, é a única arte cujo assunto é,
exclusivamente, o homem em suas relações com outros homens” (2005, p. 200).
Nas peças de Camus, encontramos o mesmo absurdo, a mesma revolta dos
romances e dos ensaios; a mesma estrangeiridade que flutua no restante de sua obra. No
entanto, relativamente aos romances, seu teatro é praticamente ignorado. Trazer à tona
esse teatro e demonstrar como os conceitos de peste e de estrangeiridade aí se
apresentam é objetivo deste trabalho. Para isso escolhemos uma das peças de menor
repercussão, relativamente às outras obras, e a que mais suscitou críticas negativas:
Estado de Sítio.
Nessa peça, deparamo-nos com uma metáfora do poder, do totalitarismo, de
questões políticas que remetem o homem para uma condição de estrangeiridade baseada
no desrespeito. A peste, nesse caso, passa a ser metáfora de tudo o que leva ao racismo e
à xenofobia. Descobrimos um outro sentido para a peste ao entrarmos em contato com
Antonin Artaud, cujos princípios teatrais estavam sendo seguidos por Camus e por Jean-
Louis Barrault em Estado de Sítio. Um teatro que fosse “tal qual a peste” era o ideal de
12
Artaud. Porém, esse teatro não desembocaria nem no racismo nem na xenofobia; seria
um teatro para a purificação; catártico, portanto trágico. Não que houvesse duas formas
diferentes de peste. A epidemia é a mesma, mas a reação é que seria outra, e a ação da
peste seria também levada de forma diferente pelo teatro, de forma teatral; ou digamos
como Artaud: “como uma ilusão verdadeira”.
Ambos os sentidos dados à peste seriam geradores de um “sintoma”
2
chamado
estrangeiro. Da peste teatro, o possível surgimento de um estrangeiro que vive a
virtualidade da revolta. Da peste, metáfora do totalitarismo, observamos, a partir da peça
Estado de Sítio, o surgimento de três tipos distintos de estrangeiro: o que se entrega e
muitas vezes pactua com a peste; o que se torna estrangeiro na própria terra devido a
imposições da peste; e, finalmente, o que se rebela e muitas vezes vence a peste.
Podemos observar que a atitude da revolta camusiana nos conduz a um tipo de
estrangeiro que, mesmo em minoria, consegue eliminar a peste ou pelo menos impedir a
destruição deflagrada por ela. Esse estrangeiro, nascido da revolta, seria um habitante
das liminaridades e conseguiria transitar pelos mundos criados pelos outros tipos de
estrangeiro. Ele habita o que chamamos de entre-lugar. E é dessa posição, meio física,
meio psicológica ou na interseção de ambas, que ele vê um lado e o outro e,
provavelmente, vê a si mesmo.
Desmetaforizando a Peste como a ação do poder e a Estrangeiridade como uma
reação a ele, percebemos o teatro camusiano como uma instância não de representação,
mas de apresentação e de provocação da vida num confronto com a morte. Percepção
abstraída menos de uma teoria camusiana sobre o teatro do que das idéias que permeiam
as suas peças.
2
Termo utilizado por Julia Kristeva em Estrangeiros para nós mesmos (1994).
13
Evidenciar o teatro e o pensamento de Camus, desmetaforizar a Peste e analisar,
nos personagens de Estado Sítio, como a estrangeiridade é alterada, desfeita e construída
sob a ação da Peste é o objetivo deste trabalho, que está dividido em três capítulos. No
primeiro, intitulado O Teatro e a Filosofia de Camus, seguimos o percurso teatral desse
dramaturgo, procurando localizar o nascimento e a importância da dramaturgia em sua
vida. Fizemos um levantamento, recorrendo à Olivier Todd, das peças montadas e
criadas por Camus desde o Théâtre du Travail, em 1936, até a adaptação e direção de
Os Possessos, sua última encenação, em 1959. Apesar de, ao longo de sua vida, ter-se
dedicado a várias profissões, Camus planejava dedicar-se totalmente ao teatro depois da
publicação de O Primeiro Homem. O levantamento das peças escritas e das encenadas
por Camus conduziu-nos ao seu próprio pensamento nelas plasmado. O ideal político, a
filosofia do absurdo e da revolta, o sonho de fundar uma tragédia moderna, de fazer
reviver o teatro que estava entregue ao comercialismo, tudo isso está no teatro de
Camus.
Especificamente, seu ideal político de inserção de valores em qualquer
posicionamento do indivíduo, seja de esquerda, seja de direita, e sua filosofia do
absurdo e da revolta é que sustentam o questionamento sobre a peste e a estrangeiridade.
A análise desse pensamento é efetuada na segunda parte do primeiro capítulo para
embasar as reflexões posteriores.
Como a peça Estado de Sítio foi inicialmente escrita com o intuito de seguir os
princípios de Antonin Artaud, consideramos conveniente, no segundo capítulo,
intitulado A Peça Estado de Sítio e o Conceito de Peste, até mesmo para aprofundar na
nossa compreensão do pensamento de Camus sobre o teatro, realizar um estudo
comparativo entre estes dois dramaturgos. Artaud almejava atingir a totalidade da vida
através da força mística de cada elemento teatral agindo alquimicamente com o
14
espectador. Camus, ao colocar a peste no palco, uma dupla metáfora, do teatro e do
poder arbitrário, inscreve a estrangeiridade como obstáculo para se atingir essa
totalidade da vida, almejada por Artaud. No entanto, ao mesmo tempo, ele aponta essa
mesma estrangeiridade como sendo ponto de partida para uma busca contínua por essa
totalidade, como forma de luta contra a peste poder e como forma que pode se originar
da peste teatro. Foi necessário, portanto, posteriormente a um estudo da peça Estado de
Sítio, do texto, dos elementos cênicos e de sua recepção, estabelecer as definições de
peste tanto de Artaud quanto de Camus. Ao extrapolar a definição artaudiana, Camus
revela, além de um nexo entre a peste e o teatro, as analogias e relações entre ela, a
realidade política e a própria condição da existência humana.
No terceiro capítulo, intitulado Estrangeiros e Estrangeiros em Estado de Sítio,
buscando averiguar como a estrangeiridade, sendo a própria condição humana, emerge
na peça Estado de Sítio e para verificar qual sua relação com a peste, procedemos a um
estudo sobre as personagens, suas ações e inações. Baseamo-nos, para esse estudo, em
Julia Kristeva, Hanah Arendt e, sobretudo, na filosofia de Albert Camus.
As possíveis faces da estrangeiridade, que surgem devido à separação homem /
mundo, ora sob um poder “doado”, ora sob um poder apropriado e impingido, estão
reunidas por Camus, em Cádiz, na peça Estado de Sítio. A cidade sitiada é,
metonimicamente, o grande teatro do mundo com suas relações de poder e,
metaforicamente, a condição humana na qual o homem, “num universo repentinamente
privado de ilusões e luzes, se sente um estrangeiro; num exílio sem solução, porque está
privado das lembranças de uma pátria perdida ou da esperança de uma terra prometida”
(CAMUS, 2005, p. 20).
O tema do estrangeiro percorre toda a obra de Camus. Quando não existe um
personagem nomeado como estrangeiro, a estrangeiridade está presente de forma mais
15
ou menos velada ou como o não-dito
3
. Em Estado de Sítio, por exemplo, o personagem
identificado como estrangeiro era a Peste. Era ela o elemento estranho, invadindo a
normalidade de Cádiz. No entanto, a invasão desmente essa normalidade. Revela o
absurdo da relação existente entre as pessoas daquela cidade e entre elas e o governo, o
país (a Espanha), o cosmo (na aparição do cometa), a divindade (“o grande e terrível
Deus!”). Viviam num mundo desconhecido, apesar de nomeado e demarcados os seus
limites. O estrangeiro invasor acaba por desmascarar a absurda estrangeiridade em que
viviam. Cada habitante era um estrangeiro para si mesmo; um exilado, mas em relação a
seu estatuto de sujeito. Camus contrapõe, em Estado de Sítio, formas diferentes de ser
estrangeiro, através da imagem da população antes e durante a invasão da Peste e
através das personagens Nada, Diego e da própria personagem Peste.
A título de conclusão, além de reafirmar a pertinência da filosofia camusiana
para a nossa contemporaneidade, procuramos demonstrar a proximidade entre o
conceito de entre-lugar, formulado por Homi Bhaba, e o pensamento de Camus sobre o
absurdo e a revolta. Embasados na montagem da peça Estado de Sítio pelo grupo
Oficinão do Galpão, especificamente na transposição e adaptação dos elementos
cênicos, buscamos identificar e desmetaforizar a peste e seus “sintomas”, no Brasil e na
América Latina. Ainda nas considerações finais deste trabalho, fazemos uma reflexão
sobre as formas de ação e discurso que devem prevalecer para identificar e destituir a
peste.
3
O não-dito, além do conteúdo subentendido derivado pela lógica de algo que foi escrito, é também
aquilo que sequer foi aludido; aquilo que não está na escrita. O que determinaria sua existência no texto,
nesse caso, seria justamente sua inexistência. Ele está além do nível informativo e do nível simbólico do
texto. Poderíamos classificá-lo, do ponto de vista da recepção, como o “evidente, errático e teimoso
terceiro sentido”, o sentido obtuso identificado por Roland Barthes, “aquele que é ‘demais’, aquele que
minha intelecção não consegue absorver bem, simultaneamente teimoso e fugidio” (1990, p. 46).
16
CAPÍTULO I
O TEATRO E A FILOSOFIA DE ALBERT CAMUS
Albert Camus escreveu peças, fez adaptações, dirigiu e algumas vezes
representou. No entanto, segundo Alcione Araújo, devido à repercussão de seus ensaios
e romances, teve obscurecido “seu trabalho em teatro – talvez sua maior e verdadeira
paixão”.
4
Esse fato é lamentado pelo dramaturgo na resposta dada a um correspondente
italiano que o questionara, em 1959, sobre sua atividade teatral: “Sei que se considera
esse setor da minha atividade como menor e lamentável. Esta não é a minha opinião.
Nele me exprimo tanto como nos outros. Mas talvez eu não seja um bom juiz de mim
mesmo...”.
5
No intuito de evidenciar essa parte importante do legado de Camus, estes
estudos.
Neste capítulo pretende-se realizar um levantamento sobre o teatro de Camus, a
partir das primeiras experiências com o Théâtre du Travail, objetivando identificar suas
concepções cênicas para, posteriormente, juntamente com um estudo sobre seu
pensamento filosófico, analisar a peça Estado de Sítio. A realização da primeira parte
4
ARAÚJO, Alcione. Camus, o dramaturgo. In CAMUS, Estado de Sítio, 2002 (Orelha).
5
Tradução nossa do original : “Je sais qu’on considere ce secteur de mon activé comme mineur et
regrettable. Ce n’est pas mon opinion. Je m’exprime là autant qu’ailleurs. Mais peut-être ne suis-je pas
bon juge de moi-même...” (apud QUILLIOT, 1962, p. 1689)
17
deste capítulo se baseia nos estudos de Olivier Todd, que foram concretizados em 877
páginas no livro Albert Camus - uma vida, publicado pela editora Gallimard em 1996,
traduzido para o português por Mônica Stahel e publicado no Brasil pela Record, em
1998. Na segunda parte, para que possamos abstrair da peça Estado de sítio os conceitos
de peste e estrangeiridade e estabelecer a relação desses conceitos com o absurdo e a
revolta, cotejaremos o pensamento de Albert Camus com as filosofias das quais ele
parte e se desvincula, e com as outras às quais ele se contrapõe.
O percurso teatral de Camus se inicia ainda na infância, quando na escola
primária fazia o papel de D’Artagnan e, já no liceu, quando lia os papéis das
personagens de Molière ou de Maurivaux. Tais experiências, válidas para o
desenvolvimento da inteligência e da disciplina, para aguçar a imaginação, despertar a
criticidade e o senso da necessidade da colaboração, tornaram-se mais importantes no
contexto de uma Argélia ainda francesa. Naquela época, segundo Todd, as disciplinas
escolares martelavam a idéia de uma França matricial e maternal, ensinando a história
de uma Argélia normalizada e afrancesada. A França ensinava, através dos manuais
didáticos, sua história de vinte e sete anos de lutas contra “os mulçumanos fanáticos” e
pela civilização, colocando-se como redentora e salvadora do Marrocos, Argélia e
Tunísia (1998, p. 42-43). Não que Camus tenha percebido, nesse período, o engodo da
colonização
6
. Mas já conhecera e sentira a injustiça, a miséria e as desigualdades entre
europeus e nativos; e o teatro tornou-se, para ele, um veículo de protesto. O que deve ser
ressaltado é a importância do teatro na formação de um jovem adolescente em um país
colonizado e a utilização desse teatro como voz desse jovem.
6
Talvez não o tenha percebido nem mesmo no período da guerra para a libertação da Argélia. Segundo
Todd, Camus queria para a Argélia “a coexistência dentro da igualdade de direitos; dois povos numa
nação e um Estado de direito multirracial”. A argeliana Lamria Chetouni (apud Todd, 1988, p. 777)
defende a posição de Camus, “ao mesmo tempo excluído e envolvido”, por entendê-lo “lucidamente
dividido entre duas fidelidades, estrangeiro e solidário, [...] pessoalmente vítima das contradições sociais
de que nasceu”: estrangeiro na Argélia e estrangeiro na França.
18
Em 1934, Camus, com vinte e um anos, casado, sob um diagnóstico de
tuberculose havia quatro anos, preparando seu DES
7
em Filosofia, dando aulas
particulares e trabalhando no serviço de meteorologia da Faculdade, é convidado pelo
amigo Claude de Fréminville e pelo seu professor Jean Grenier para ingressar no Partido
Comunista. Camus resiste. Em uma carta dirigida a Fréminville, afirma que “aderir seria
me forçar, esconder de mim as outras coisas que há em mim”.
8
Ele sonha com o teatro.
Em escrever com Fréminville uma peça que fosse - fala ao amigo buscando contagiá-lo
com o seu entusiasmo - “algo de monstruoso quanto ao estilo e quanto ao espírito. Mais
exatamente, algo que esmague, mas ao mesmo tempo a mais rica matéria em emoção,
em cotidiano, é o fait divers, o banal, a vida verdadeira. Ainda está meio vago, mas tente
compreender [...]” (apud TODD, 1988, p. 78). O teatro é taquiarrítmico: acelera o
coração e as idéias de Camus.
Fréminville insiste na adesão ao Partido; Jean Grenier o incita alegando que para
quem faz filosofia a política é necessária, e que um jovem tão talentoso deveria
desempenhar um grande papel político. Finalmente, conseguem convencê-lo. Embora
não considerasse que seu engajamento fosse ortodoxo, pois afirmava que se recusaria,
sempre, a colocar entre a vida e o homem um volume de O Capital, o fato de o Partido
Comunista ser um partido da classe trabalhadora representava, para Camus, uma
possibilidade de menos injustiças e do fim da miséria (TODD, 1988, p. 94-95). Isso o
seduz e o leva à descoberta, entre os comunistas, da fraternidade. Antifacismo,
antiimperialismo e anticolonialismo, para Camus, estavam contidos no Partido
Comunista.
7
Diplôme d’Études Supérieures de Philosophie, de 100 a 200 páginas. Tema escolhido por Camus:
Metafísica cristã e neoplatonismo, Plotino e Santo Agostinho. Segundo Olivier Todd, “de sua longa
excursão teológica, Camus não emerge nem plotiniano nem agostiniano. Ele seria, antes, pelagiano: o
pelagianismo professa que só o homem é artífice de seu destino, espiritual e terreno” (TODD, 1984, p.
111). Pelágio (séc.V) nega o pecado original e a corrupção da natureza humana.
8
Jean Grenier, Souvenirs. Gallimard, 1968, apud TODD, 1998, p.73.
19
Camus se torna secretário-geral da Casa da Cultura de Argel, que recebia ajuda
financeira do partido. Segundo Todd, ao oferecer tal auxílio, o objetivo confesso do
partido era “oferecer a cultura que estava ‘ameaçada pela mediocridade e pela violência’
e fazer de Argel a capital intelectual do Mediterrâneo; o objetivo inconfesso era
controlar os intelectuais burgueses e pequenos burgueses” (1988, p.145).
Independentemente desses objetivos, Camus realiza, sob a ajuda do partido e dos
amigos comunistas, o seu desejo de fundar um teatro político revolucionário.
Para o jovem Camus - que lia Santo Agostinho, Plotino, Chestov, Nietzsche
André Gide, Malraux e outros tantos; que já escrevia ensaios e críticas literárias e que,
reconhecidamente, sentia-se atraído mais pela literatura do que pela filosofia -, o teatro
era uma arte distinta, grandiosa:
Toda uma criação a ser feita, tangível, constituída de vigas e cavaletes,
potes de cola e de ligações elétricas – isso para começar – e com base
nisso organizar homens, animá-los, fazê-los mimar uma tragédia [...]
construir teorias artísticas, pensando que é preciso convocar os
bombeiros, e uma vez tudo lançado, tudo arrumado, fazer o todo
chegar à representação, sacudir os desgostosos, diverti-los, acreditar
em tudo aquilo que será dado e representado numa noite e de que nada
restará no dia seguinte, a não ser a necessidade de varrer e fazer as
contas. Não conheço experiência mais exaltante. (CAMUS apud
TODD, p. 105).
Foi com esse entusiasmo, com uma paixão latente, que Camus fundou o Théâtre du
Travail. O que fazer para e pelo teatro quando se adere ao partido comunista foi o seu
questionamento inicial. Suas encenações posteriores, durante a curta vida desse teatro
(1936 – 1937), procuraram responder a esse questionamento.
1.1 THÉÂTRE DU TRAVAIL [TEATRO DO TRABALHO]
Constava nos projetos de Camus para 1936 e 37, para depois de uma aventura
pela Europa de ônibus, trem e caiaque, que culminou no fim de seu casamento, a
20
apresentação de O Submundo, de Gorki, A Mandrágora, de Maquiavel, O tempo do
desprezo, de André Malraux, Vautrin, de Balzac e La Celestina, de Fernando de Rojas.
O Théâtre du Travail estreou em 25 de janeiro de 1936, com uma adaptação feita por
Camus da novela de Malraux, O tempo do desprezo. Coincidentemente, no mesmo dia
em que “Hitler afirmava, numa entrevista ao Paris-Soir, que a Alemanha estava
decidida a recuperar suas colônias” (TODD, 1988, p. 129). A trama da peça é a prisão e
o interrogatório do comunista Kassner pelos nazistas, sua fuga e o reencontro com sua
mulher. No reencontro, os espectadores participam como se fosse uma reunião popular:
um teatro de participação integrando o público, os atores e o tema. Camus, diretor,
participa também como ator. De acordo com o que relata Todd, “Camus tem um senso
de encenação que satisfaz seus fervorosos, mesmo os que dizem sorrindo: ‘Albert tem
uma voz terna, baixa. Contente em interpretar, ele interpreta melosamente. Não é seu
forte. Não se pode dominar tudo’” (1988, p. 131). A montagem, com entrada gratuita
para os desempregados, recebeu um público de setecentas pessoas, tanto na estréia como
no domingo seguinte. De acordo com Charles Poncet, no momento em que um orador se
dirigia ao público, “ficção e realidade se confundiram e da sala inteira, de pé,
respondendo ao orador, ator e tribuna, todos ao mesmo tempo cantaram o hino [da
Internacional Comunista] da revolta e da esperança”.
9
O sucesso da peça deveu-se ao bom humor, ao espírito de descoberta do grupo
teatral e, sobretudo, à seriedade com que Camus tratava o teatro e a sua busca por uma
doutrina teatral. Para esse jovem dramaturgo, o teatro é mais que representar e dirigir.
Segundo Todd ele pensa nas lições do alemão Piscator e dos russos Meyerhold e
Stanislavski (1988, p. 130). De Piscator ele abstrai a idéia de um teatro e de um drama
9
Tradução nossa do original « fiction et réalité se confondirent alor et, de la salle entiere dressée
répondant au salut de l’orateur et tribun tout a la fois, s’éleva l’hymne de la révolte et de l’espoir » (apud
QUILLIOT, in CAMUS, 1962, p. 1690).
21
“feitos para servir à platéia proletária sem uma rejeição completa da tradição”, em que
“o ator deveria converter-se num ser político, apresentando o material clara e
concretamente aos seus iguais, num estilo do manifesto de Lênin” (CARLSON, 1997, p.
344). De Meyerhold, Camus estaria recordando a proposta de “um teatro universal
festivo, que ‘intoxicaria o espectador com a taça dionisíaca de eterno sacrifício’ e faria
dele um ‘quarto criador’, além do ator, do diretor e do autor”. E de Stanislavsk,
provavelmente, “suas famosas produções de Tchekhov e Gorki que o tornaram símbolo
teatral do realismo no teatro russo” (CARLSON, 1997, p.308). Entretanto, já nesse
início de sua jornada, ele se identifica, mais claramente, com os preceitos de Jacques
Coupeau, no que se refere ao resgate da pureza do teatro, à disciplina e à rejeição ao
naturalismo. Coupeau, segundo Marvin Carlson (1989, p.330), deplorava um teatro
“entregue ao comercialismo, ao sensacionalismo e exibicionismo barato, à ignorância, à
indiferença e à falta de disciplina – aviltando a si mesmo e ao seu público”. Isso
convinha ao grupo de Camus, formado por professores, por estudantes burgueses que
tomavam o partido do povo, por pintores, comerciantes e um marceneiro. Mais tarde,
quando Camus já havia conhecido a fama e sua antítese, ele reconhece em Coupeau um
mestre e o considera um marco entre um teatro, até então, “colonizado por fabricantes e
comerciantes de cena [...] um comércio como qualquer outro, onde tudo se pagava ao
preço da besta”,
10
e um teatro da ressurreição das formas trágicas.
Inspirado na repressão violenta e cruel, pelo governo espanhol, de uma
insurreição de mineiros em 1934, Camus escreve Revolta nas Astúrias, sua segunda
tentativa teatral. Devido ao fato de o prefeito Augustin Rozis, prefeito de Argel,
pertencente à extrema direita, não ter cedido a sala, a peça não foi representada.
10
Tradução nossa do original: “(...) colonise jusque-là par les fabricants et les commerçants de la scène
[...] un commerce, comme tant d’autres, ou tout se payait, si j’ose dire, au poids de la bête” (Conferência
Sobre o Futuro da Tragédia pronunciada em Atenas, em 1955, CAMUS, 1962, p.1703).
22
Semanas de preparação de uma peça concebida “como uma tela [...] em que os atores
seriam convidados a bordar sobre ela, à maneira da Commédia dell’arte” (TODD, 1988,
p. 131) não se concretizaram. É interessante notarmos os vôos de Camus por diferentes
experiências teatrais. Essa peça apresenta, na sua publicação, um manifesto de Camus
que nos leva a reconhecer o aprofundamento de suas reflexões e o entrecruzamento de
sua filosofia e do teatro: “O teatro não se escreve, ou é então um último recurso. Que
essa ação [o teatro] conduza à morte, como é o caso aqui, [da tentativa de criação
coletiva de Revolta nas Astúrias no palco] para que ela atinja uma certa forma de
grandeza que é particular aos homens: o absurdo” (apud TODD, p. 131).
Se foi à maneira da Commédia dell’arte, Revolta nas Astúrias nos sugere um
jogo de falsos improvisos, “fruto de uma ardilosa organização predisposta a situações e
diálogos decorados antecipadamente”, que, segundo Dario Fo, exigem dos poetas e
atores “grande perícia e domínio do ofício” (1999, p. 17-18). Um sonho ambicioso de
Camus, ainda estreante. E não foi o maior deles, como veremos na peça Estado de Sítio,
estreada onze anos depois do fim do Théâtre du Travail.
Na impossibilidade da apresentação, pensaram em representar, pela décima
terceira vez, O tempo do desprezo, ou montar O Submundo, ou O Prometeu. O grupo
possuía muitos projetos – Hamlet, Otelo, Romeu e Julieta, Pena que ela seja uma puta,
de John Ford, A Mandrágora, de Maquiavel, O Vautrin, de Balzac e A Volta do filho
pródigo, de André Gide -, algumas realizações de pequenas peças apresentadas nas
festas organizadas em 1936 nos subúrbios de Argel por La Lutte Sociale (Revista de
publicação bimensal do partido) e uma peça realista de Ramon Sender, O Segredo.
Nos ensaios, alegria e participação transparecem. “Camus arrebata com seu
entusiasmo, passa facilmente do cômico ao trágico lírico. Faz economia das simples
leituras-ensaio e incentiva seus atores a encontrarem seu próprio tom” (TODD, 1988, p.
23
134). A direção parece lhe interessar mais que o interpretar. Executa as funções do
cenógrafo, dá indicações e opina na música, apesar de afirmar não possuir “nenhuma
cultura musical além daquela que podemos adquirir em virtude de gostarmos das
músicas que sentimos nossas”. Ensaiando O Prometeu, Camus “talha musicalmente
cada personagem”:
Cada vez que se fala em Júpiter: breve explosão de trombeta. Bem.
Então os temas se entrecruzam até o fim, em que Prometeu é
volatizado. Isso, em meio ao barulho das trombetas, das bombas e dos
raios. Nesse momento, breve calmaria, a flauta e depois os violões
tentam se fazer ouvir. Mas as trombetas de Júpiter explodem com mais
força nos quatro cantos e submergem o todo. Só Prometeu se cala.
Toda tragédia é assim resumida no final e simbolizada na arquitetura
musical (CAMUS apud TODD, 1988, p. 139).
A dedicação e a euforia não impediram o insucesso da peça. De acordo com
Todd, gracejos de alguns atores do grupo são ouvidos: “Prometeu? Prometa não fazer
de novo” (TODD, p. 136). Camus persiste: continua o ensaio de O Submundo – mesmo
insatisfeito com essa peça - e inscreve suas peças num repertório e numa temporada.
Simultaneamente ao teatro, apesar de um engajamento ‘não ortodoxo’ no
partido, Camus proferia conferências e participava de reuniões de estudo, até que dois
fatores vieram perturbar o vínculo de Camus com o PCF e ocasionar o rompimento com
o partido e o fim do Théâtre du Travail . Primeiro, a publicação de Retouches à mon
retour de URSS (1937), de André Gide, escritor referência para a juventude de esquerda.
Neste livro, que deixou Camus profundamente abalado, Gide descreve uma Rússia que
não correspondia ao que era sobre ela divulgado nos filmes aplaudidos no Ciné-Travail
em Argel e escreve: “duvido, que em qualquer outro país hoje, mesmo na Alemanha de
Hitler, o espírito seja menos livre, mais submisso, mais medroso (aterrorizado), mais
vassalizado” (GIDE apud TODD, p. 152).
24
O segundo fator foi a declaração, pelo 7º Congresso da Internacional
Comunista, de que a principal tarefa dos comunistas nos países coloniais seria trabalhar
na criação de uma frente popular antiimperialista. Acreditavam que, bloqueando o
nazismo e o fascismo, o proletariado argeliano se libertaria. Ou seja, a luta pela Argélia
seria protelada. Alguns membros, partidários da linha anticolonialista não aceitaram
essa decisão e foram expulsos. Esses antigos membros fundaram o Partido Popular
Argeliano (PPA), que clamava por um parlamento argeliano e recusava o
afrancesamento. As objeções de Camus ao PC começam a transparecer ao concordar
com algumas idéias do PPA. Ele desejava alçar os nativos ao nível dos europeus da
Argélia. É advertido pelos companheiros de que está “entrando no declive do
desviacionismo”, mas não se demove quanto ao apoio devido aos nativos e chega a
defender os mulçumanos em reuniões da célula intelectual, onde declara que “a cultura
não vive onde morre a dignidade e [...] uma civilização não pode prosperar sob leis que
a esmagam. Não podemos falar de cultura num país em que 900.000 habitantes são
privados de escola e de civilização”.
11
Camus é acusado pelo partido, recusa a retratar-se
e é, então, expulso.
Desvincular-se do partido não significou o fim de seu envolvimento político,
mas trouxe, inevitavelmente, o fim do Théâtre du Travail. Essa experiência com o
partido e com o teatro proporcionou a Camus, segundo Olivier Todd, a conclusão de
que, “seu negócio não era o teatro de mensagem política” (TODD, 1988, p. 158) e,
principalmente, de que ele não poderia “sacrificar nem os árabes e nem sua concepção
da arte às exigências de um partido que faz o conteúdo político de uma obra passar à
frente de qualquer outra consideração, sobretudo artística” (TODD, 1988, p. 161).
11
Manifesto dos intelectuais da Argélia, redigido por Camus e publicado no nº 2 de Jeune Méditerranée
[Jovem Mediterrâneo], em 02 de maio de 1937 (apud TODD, 1988, p. 157).
25
1.2 O THÉÂTRE DE L’ÉQUIPE [TEATRO DA EQUIPE]
Em 1937, Camus realiza sua segunda viagem à Europa, enquanto a Casa da
Cultura de Argel morre em silêncio. Ao regressar, ele constata o fracasso do teatro de
propaganda e revela seu pensamento ao amigo Charles Poncet: “o teatro, um dos
componentes essenciais de uma cultura, não pode economizar sua liberdade” (apud
TODD, 1988, p. 169). Decide, nessa época, fundar um teatro independente e, assim,
nasce o Théâtre de l’Équipe. Para escolher o nome do grupo, Camus se inspirou na idéia
de Jacques Copeau, que pretendia instruir uma equipe de atores voltada para a
renovação do teatro (CARLSON, 1989, p. 329). Para esse teatro, Camus redige um
manifesto e define um ideal:
O teatro é uma arte de carne que dá a corpos vibrantes a tarefa de
traduzir suas lições, uma arte ao mesmo tempo rude e sutil, uma
integração excepcional dos movimentos, da voz e da iluminação. [...]
De um lado está naturalmente a serviço dos grandes sentimentos
simples e ardentes em torno dos quais gira o destino do homem (e
apenas isso): amor, desejo, ambição, religião. Por outro, satisfaz à
necessidade de construção, que é natural no artista. Esta oposição faz o
teatro e o torna próprio a servir a vida e a tocar os homens. O Théâtre
de L’Équipe restituirá essa oposição. Isto é, ele pedirá às obras a
verdade e a simplicidade, a violência nos sentimentos e a crueldade nas
ações.
12
Ao mesmo tempo em que preparava a programação do teatro, Camus elaborava
seu dossiê para o concurso agrégation de Filosofia. Por motivo de saúde, foi proibido de
prestar o concurso. Em 1938, desempregado e sem a possibilidade de exercer a carreira
12
Tradução nossa do original: « Le théâtre est un art de chair qui donne à des corps vibrants le soin de
traduire ses leçons, un art en même temps grossier et subtil, une entente exceptionnelle des mouvements,
de la voix et des lumières. [...] d’une part le théâtre sert naturellement les grands sentiments simples e
ardents autour desquels tourne le destin de l’homme (et ceux-là seulement) : amour, désir, ambition,
religion. Mais d’autre part, il satisfait au besoin de construction qui est naturel à l’artiste. Cette opposition
fait le théâtre, le rend propre à servir la vie et à toucher les hommes. (...) Le thèâtre de l Équipe restituera
cette opposition. C’est-à-dire qu’il demandera aux oeuvres la vérité et la simplicité, la violence dans les
sentiments et la cruauté dans l’action » (apud QUILLIOT, in CAMUS, 1962, p. 1692).
26
de professor, começa a trabalhar no Jornal Alger Républicain
13
. Inicialmente, sem se
dedicar totalmente ao jornalismo, Camus trabalhou como redator no trabalho de
repicagem (redação dos despachos) e assumiu a crônica cultural e artística.
Posteriormente, junto com Pascal Pia,
14
trabalhou também nas reportagens.
O tempo tornou-se curto para o teatro. Mesmo assim, Camus monta quatro peças
para a temporada de 1937-1938 – La Celestina, A volta do filho pródigo, O navio
Tenacy e Os irmãos Karamazov -; uma peça para 1938-1939O vagabundo do mundo
ocidental, e planeja uma adaptação de A condição humana, de Malraux. Em Os irmãos
Karamazov, atuou no papel de Ivan. Em carta destinada à Francine Faure ele comenta
que, seu antigo professor e amigo, Jean Grenier, lhe dissera que tinha certeza de que ele
faria esse papel, pois Ivan é a inteligência sem Deus e sem amor. Camus concordou. Na
mesma carta comenta que Karamazov foi um sucesso de crítica e de estima, mas um
desastre financeiro e faz uma narrativa do seu trabalho no teatro: “Esta noite estou
distribuindo cartazes. Todos os meus domingos passo fazendo cenografia e todas as
noites ensaiamos reclamando”.
15
O Théâtre de L’Équipe não contava com o apoio da Casa da Cultura de Argel e
pretendia ser totalmente desvinculado de qualquer movimento político. Isso impediu o
projeto de uma turnê a Oran. Como se não bastasse a escassez do tempo e as questões
financeiras, o número de atores também reduziu. O grupo não se desfez, mas as
dificuldades aumentaram com o anúncio da Guerra, forçando Camus a se dedicar mais
13
Nesse período Camus já havia publicado Revolta nas Astúrias (1935), O Avesso e o Direito (1936),
escrito A morte feliz e escrevia os ensaios de Bodas e a peça Calígula.
14
Pascal Pia foi um grande amigo de Camus e quem, alguns poucos anos depois desse contato em Argel,
enviou para o escritor Malraux e para a editora Gallimard os manuscritos de O Estrangeiro, O Mito de
Sísifo e Calígula. Em Paris, trabalhou com Camus no Jornal Combat durante a Guerra.
15
Carta a Francine Faure em 10 de fevereiro de 1938 (apud TODD, 1988, p. 175).
27
ao jornal. Publica, nessa época, aproximadamente, cinqüenta artigos sobre arte e
literatura e faz algumas reportagens (TODD, 1988, p. 207). No entanto, a sua pretensão
era dedicar-se à sua obra e planejava uma tríade, como confessa em 1957, ao receber o
prêmio Nobel, em Estocolmo: escreveria um romance, uma peça teatral e um ensaio.
Para Camus, segundo Marcelo Alves, “o ensaio explica, o romance e o conto descrevem
e o teatro vivencia as contradições que o homem experimenta em seu confronto lúcido
com o mundo” (apud FERREIRA, 2004, p. 25-26).
Em 1939, quando o Reino Unido e a França declaram guerra ao Reich, Camus se
torna o redator-chefe do Le Soir Republicain (A Noite Republicana), um jornal ligado
ao Alger Republicain. Este último paralisou sua distribuição logo no início da guerra. O
Le soir resistiu ainda algum tempo, sob dificuldades financeiras e entre manobras com a
censura. Desempregado, Camus muda-se para Oran. Em Argel, os companheiros do
Théâtre de l’Équipe continuam se reunindo sem ele, que lhes envia sua adaptação de Les
Esprits, de Pierre de Larivey.
A guerra e as dificuldades financeiras obrigam Camus a transferir-se para Paris e
a distanciar-se, temporariamente, do teatro. No entanto, ele continua escrevendo peças e
fazendo adaptações. No final dessa segunda experiência com grupos teatrais, Camus
constata, em carta a Jeanne Sicard, de 19 de agosto de 1938, que deve ao teatro
“algumas de [suas] alegrias mais puras e um certo de número de amizades sólidas”
(apud TODD, p. 177). Termina O Mito de Sísifo e O Estrangeiro, que são publicados
em 1942, enquanto se recuperava de uma grave recaída da tuberculose, agora no pulmão
direito. Além disso, trabalhava no romance A Peste e na peça O Mal-entendido.
Calígula também poderia, segundo a intenção da Gallimard, ser publicado no mesmo
28
ano de O Estrangeiro e do Mito de Sísifo, mas Camus achava que ela ainda não estava
pronta e continuou no seu trabalho de lapidação.
1.3 NOVO TEATRO
Ao regressar a Paris, de uma fazenda próxima a Le Chambon, onde Camus se
hospedou para tratar um novo ataque da tuberculose, ele é recebido entre os intelectuais
de esquerda. Com os novos amigos realiza leituras e apresentações de peças; trabalha
como diretor e como ator na peça de Picasso, Le Désir attrapé par la queue [O desejo
agarrado pelo rabo]. Essa peça foi uma experiência com o teatro de câmera (ou teatro
intimista),
16
muito popular na Europa daquela época; nas palavras de Margot Berthold,
“foi uma conspirativa sessão privada, da qual participaram os literati importantes de
Paris, num apartamento em Saint-Germain-des-Prés - um happenig, uma brincadeira de
atelier” (2001, p. 526). Consistia na apresentação em uma sala pequena, sob um palco
nu, em que os atores, sem maquiagem e “destacando a emoção e a simplicidade,
encaravam a platéia quase tão diretamente quanto a câmera e o microfone do estúdio”
(BERTHOLD, 2001, p. 524). Dentre os atores estavam Jean-Paul Sartre e Simone de
Beauvoir; na platéia estava Jean-Louis Barrault, com quem Camus montaria, mais tarde,
a peça Estado de Sítio.
A primeira peça de Camus montada em Paris foi Le Malentendu [O Mal-
entendido], em junho de 1944, sob a direção de Marcel Herrand, ator, encenador e
16
O objetivo dessa técnica é a constante consciência do close. Segundo Jerzy Grotowski, a eliminação do
palco e da distância entre o ator e a platéia, tal como ocorre no teatro de câmera, são necessárias para que
“as cenas mais drásticas ocorram face a face com o espectador, para que assim ele esteja à mão do ator,
possa perceber sua respiração e sentir sua transpiração”; e para que seja preservado o “elemento que o
cinema e a televisão não podem roubar do teatro – a intimidade do organismo vivo” (apud BERTHOLD,
2001, p.526).
29
diretor do teatro des Mathurins. Ciente de que “a convenção do teatro é que o coração
se exprima e se faça compreender apenas pelos gestos e no corpo – ou pela voz, que é
tanto da alma como do corpo” (CAMUS, 2005, p. 94), Camus assiste aos ensaios.
Porém, de forma discreta, quase não opina, respeitando a direção de Herrand (TODD,
1988, p. 364).
Segundo Olivier Todd, O Mal-entendido “é uma obra de solidão, e nela Camus
se olha de perto”. No entanto, utilizando o vocabulário do meio teatral, a peça “não
pegou”. Alguns amigos tentam justificar dizendo que se trata de um complô dos alemães
e dos colaboracionistas que suspeitam da participação de Camus na Resistência. O
filósofo Brice Parain diz que, ao ler a peça, foi invadido “por uma tristeza compadecida
que não tinha os personagens por objeto” e que “os personagens falavam demais” (apud
TODD, 1988, p. 367). O fato é que, pertencendo à tríade do absurdo, O Mal-entendido
não foi nem bem entendido e nem bem recebido. Camus explica o sentido da peça, no
prefácio a uma edição de depois da guerra: “Se o homem quer ser reconhecido, deve
simplesmente dizer quem é. Quando ele se cala ou mente, morre sozinho, e tudo em
torno dele está destinado à infelicidade” (apud TODD, 1988, p.366).
Camus lamentou ter apresentado O Mal-entendido antes de Calígula. Em agosto
de 1945, começam os ensaios desta peça, no teatro Hébertot, sob a direção de Paul
Oettly. Com Calígula, aos trinta e dois anos, é reconhecido como dramaturgo e conhece
a fama. Em referência aos trinta artigos publicados sobre a peça, ele escreve em seus
Cadernos (1945-1948): “A razão dos elogios é tão má quanto a das críticas. Apenas uma
ou duas vozes autênticas ou emocionadas. A fama! Na melhor das hipóteses, um mal-
entendido” (apud TODD, 1988, p. 407).
30
De 1945 a 1948, fim da guerra e início da guerra fria, Camus distanciou-se do
palco, mas continuava escrevendo peças. Nesse período publica A Peste (1947), escreve
e apresenta as peças Estado de Sítio (1948) e Os Justos (1949) e trabalha nos ensaios de
O Homem Revoltado. Com o “cisma” entre os intelectuais de esquerda, que se
evidenciou após a publicação deste ensaio, em 1951, o teatro tomou novas forças nos
projetos desse dramaturgo que, visivelmente ressentido, chega a afirmar que prefere
a companhia das pessoas de teatro, virtuosas ou não, à dos intelectuais,
meus irmãos. Não apenas porque é sabido que os intelectuais,
raramente amáveis, não conseguem amar uns aos outros, mas é que na
sociedade intelectual, não sei por quê, tenho sempre a impressão de
que há alguma coisa pela qual tenho que ser perdoado. [...] Na
verdade, o pouco de moral que sei, aprendi nos campos de futebol e
nas cenas de teatro que continuarão sendo minhas verdadeiras
universidades.
17
Convém uma ligeira digressão para podermos explicar o “cisma” ao qual nos
referimos no parágrafo anterior. É, no mínimo, uma contradição falar em rompimento
quando não havia uma convergência anterior. O que de fato aconteceu foi o fim de uma
amizade, que não suportou as diferenças ideológicas, entre Sartre e Camus.
Relativamente ao pensamento filosófico, desde sua primeira leitura de Sartre (A
Náusea), Camus já se contrapunha às idéias sartrianas. Em outubro de 1938, quando
trabalhava no jornal Alger Républicain, ele redige um artigo no qual demonstra que o
livro o fascina, mas a filosofia da obra o aborrece:
17
Tradução nossa do original : «... la compagnie des gens de théâtre, vertueux ou pas, à celle des
intellectuels, mes frères. Pas seulement parce qu’il est connu que les intellectuels , qui sont rarement
aimables, n’arrivent pas à s’aimer etre eux. Mais voilà, dans société intellectuelle, je ne sais pourquoi, j’ai
toujours l’impression d’avoir quelque chose à me faire pardonner. [...] Vraiment, le peu de morale que je
sais, je l’ai appris sur les terrains de football et les scènes de théâtre qui resteront mes vraies universités »
(CAMUS, 1962, p. 1723).
31
O erro de uma certa literatura é acreditar que a vida é trágica porque é
miserável. [...] Constatar o absurdo da vida não pode ser um fim, mas
apenas um começo. [...] A Náusea é um romance em que o equilíbrio
entre a experiência e a vida é rompido, em que a teoria lesa a vida
(CAMUS apud TODD, 1998, p. 210-211).
Apesar de seu rompimento com o Partido Comunista, as concepções políticas de
Camus permaneceram de esquerda. Todavia, uma esquerda que não seguia o comando
da URSS. E mais: para Camus, a peste metaforizada no romance A Peste e na peça
Estado de Sítio era tanto o fascismo e o nazismo como o comunismo. Com o fim da
Segunda Guerra, Sartre e Camus concordavam que os intelectuais deveriam tomar
iniciativas diante das superpotências americana e soviética. Camus desejava criar uma
organização de defesa dos direitos humanos que não fosse teleguiada pelo Partido
Comunista Francês como era a Liga dos Direitos Humanos. Sartre não concordava. Para
ele a questão era binária: ou os Estados Unidos ou a Rússia. Camus buscava uma
terceira via que fosse a fundamentação de valores políticos. E numa reunião em que
estavam presentes Malraux, Koerstler e Sartre, ele argumenta:
Vocês não acham que todos nós somos responsáveis pela ausência de
valores e que, se todos nós, provindos do netzschismo, do niilismo ou
do realismo histórico, disséssemos publicamente que nos enganamos e
que há valores morais e que doravante faremos o necessário para os
fundamentar e ilustrar, vocês não acham que seria o início de uma
esperança?
(apud TODD, 1988, p. 435)
Até então, Camus e Sartre se comportavam como se as opiniões políticas não
devessem romper a amizade; mas, era evidente que essa estava abalada. Segundo Todd,
“as noitadas de bebografia” já não eram tão estimulantes e quase sempre terminavam em
discussões improfícuas entre Sartre e Koestler e Sartre e Camus (1988, p. 437). A
própria Simone de Beauvoir, que havia sido admiradora de Camus, passou a achá-lo
insuportável e por demais anticomunista. Enquanto Camus apenas defendia suas idéias
32
nas mesas dos cafés parisienses e nos artigos redigidos para o jornal Combat,
suportavam-no. Porém, concretizá-las, como o fez em O Homem Revoltado, foi uma
afronta, de fato, insuportável.
Esse livro rendeu a Camus um verdadeiro linchamento promovido pelos
intelectuais franceses encabeçados por Sartre. Nele, o autor critica a violência, o
totalitarismo de esquerda e de direita e as prisões e os assassinatos perpetrados em nome
da revolução. Critica, igualmente, todos aqueles que preferem defender sistemas
teóricos abstratos em detrimento da defesa dos seres humanos. Através de uma
entrevista para a televisão, em 1958, na qual ele define o teatro como “o lugar da
verdade”, nós podemos entender o significado e o motivo da repercussão de O Homem
Revoltado. Ele afirma em Pouquoi je fais Thèâtre, em 1959:
Se diz, geralmente, que [o teatro] é o lugar da ilusão. Não acreditem
nisso. A sociedade é que vive na ilusão, e vocês encontrarão,
certamente, menos maus atores no teatro que na cidade. Tome um
desses atores não profissionais que figuram nos nossos salões, nas
administrações ou mais simplesmente nas salas dos generais. Coloque-
o sobre esta cena, neste lugar exato e despeje sobre ele quatro mil
watts de luz, e a comédia não se manterá mais, vocês o verão, todo nu,
na luz da verdade
18
.
O Homem Revoltado significou “quatro mil watts de luz” sobre o cenário dos
intelectuais da época, que gerou, como conseqüência, o exílio político-filosófico de
Camus. Contudo, ele reencontra a camaradagem junto às pessoas de teatro. Um pouco à
maneira de um convento, onde pôde se refugiar e, principalmente, ser feliz.
Respondendo à pergunta da imprensa a respeito do porquê fazia teatro, Camus responde
18
Tradução nossa do original: «On dit généralment, que c’est [le théâtre] le lieu de l’illusion. N’en
croyez rien. C’est la société plutôt qui vivrait d’illusions et vous rencontrerez sûrement moins de cabotins
à la scène qu’à la ville. Prenez en tout cas un de ces acteurs non professionnels qui figurent dans nos
salons, nos administrations ou plus simplement nos salles de générales. Placez-le sur cette scène, à cet
endroit exact, lâchez sur lui quatre mille watts de lumière, et la comédie alors ne tiendra plus, vous le
verrez tout nu d’une certaine manière, dans la lumière de la verité (CAMUS, 1962, p. 1725).
33
primeiramente: “Simplesmente porque uma cena de teatro é um desses lugares do
mundo onde eu sou feliz”.
19
No período após a publicação de O Homem Revoltado,
publica A Queda (1956), recebe o prêmio Nobel em 1957, escreve O primeiro Homem
(não publicado em vida), faz viagens, conferências e muitos, muitos projetos teatrais; o
que podemos ler como muita, muita vontade de ser feliz.
Nos projetos de Camus estavam incluídas apresentações de peças estrangeiras e
de clássicas francesas, além de várias adaptações, e a participação, como ator, em
algumas delas. Pelos projetos podemos perceber no dramaturgo o mesmo entusiasmo e
ambição que o incendiavam na época do Théâtre de l’Équipe: a busca por obras que
traduzissem uma época na qual “o amor à vida se mistura ao desespero de viver”
20
.
Camus explica àqueles que lhe questionam o fato de adaptar textos quando poderia
escrever suas próprias peças: “quando escrevo minhas peças, é o escritor que está
trabalhando, em função de uma obra que obedece a um plano mais amplo e calculado.
[...] Quando adapto é o diretor que trabalha de acordo com a idéia que tem do teatro”
21
.
Mas, as adaptações não são aleatórias. Todas elas, de O tempo do desprezo a Os
possessos, são a escolha de um autor por obras que se coadunam com seu pensamento.
Réquien para uma freira, novela de Willian Faulkner, é apresentada em 1956,
com adaptação e direção de Camus, que vê em Faulkner um dramaturgo profundamente
trágico e, em seu romance, um tema tão antigo quanto moderno: heróis divididos entre
responsabilidades e destinos. As características religiosas do texto parecem
19
Tradução nossa do original :Tout simplement parce qu’une scène de théâtre est un des lieux du monde
ou je suis heureux” (CAMUS, 1962, p. 1720).
20
Tradução nossa do original amour de la vie se mêlait au désespoir de vivre” (apud QUILLIOT, In
CAMUS, 1962, p. 1692).
21
tradução Nossa do original: “quand j’écris mes pieces, c’est le escrivain qui esta au travail, em fonction
d’une oeurvre qui obéit à un plan plus vaste e calcule. Quand j’adapte, c’est lê metteur em scène qui
travaille selon l’iée qu’il a du théâtre” (CAMUS, 1962, p. 1727).
34
contraditórias ao pensamento camusiano e ele se explica: “Não acredito em Deus, é
verdade. Mas nem por isso sou ateu”
22
(apud TODD, p. 675). Foram mais de seiscentas
representações. Os organizadores de turnês disputavam a peça para mandá-la para a
Suíça, Bélgica, Luxemburgo e África do Norte.
A adaptação mais ambiciosa foi Os Possessos, de Dostoievski: quatro horas de
duração, sete quadros e vinte e três personagens. “Há mais de vinte anos vejo seus
personagens no palco”, afirma Camus (apud TODD, 1988, p. 741). Apesar de ser uma
peça de custo altíssimo e, além da dificuldade enfrentada para encontrar um teatro e
atores, a peça foi representada em janeiro de 1959. Camus insistia na necessidade de o
ator criar a sua interpretação. Para ele “um gesto, um tom correto, descobertos por um
ator ou atriz, tornam-se muitas vezes mais eficazes do que as instruções do diretor
aplicadas mecanicamente”; o ator deveria deixar que o texto lhe inspirasse. Na direção,
Camus “supervisiona os movimentos, os corpos em ação, não faz economia dos grandes
gestos [...] não cultiva princípios absolutos” (TODD, 1988, p. 745).
Para qualquer trabalho de Camus, após O Homem Revoltado, a crítica era
previsível: sobre a peça Os Possessos, intelectuais de direita saudaram superficialmente,
o “trabalho de animação, as mudanças de cenário espantosas, o empenho”, tratando a
peça como “curiosa experiência literária e teatral”; para a crítica de uma parte da
esquerda, a peça foi considerada “um espetáculo magnífico e perturbador” e que Camus
fora “bem-sucedido, contra todos os receios e todas as racionalizações”. Entre os
22
O ateu não crê na existência de Deus. Camus não questiona essa existência, mas acredita que mesmo
existindo Deus, isso é indiferente para o homem, assim como Deus é indiferente aos homens. Tal como
Nietzcshe (1987, p.78) ao abandonar as querelas sobre a origem do mal, e a relação deste com a existência
de Deus, para se ater a questões sobre a invenção de “juízos de valor, bom e mau”, também Camus em O
Homem Revoltado, após constatar a dessacralização da sociedade, elege como fundamental encontrarmos
nossos valores na revolta e uma regra de conduta longe do sagrado e de seus valores absolutos. Para
Camus, “o homem revoltado é aquele situado antes ou depois do sagrado e dedicado a reivindicar uma
ordem humana em que todas as respostas sejam humanas” (2003, p.33-34).
35
comunistas defendeu-se a opinião de que Camus tomava partido de Dostoieviski em
detrimento de Marx. Paul Morelle, crítico do Libération, jornal subvencionado pelo
partido comunista, afirma que Camus, na peça, faz uma alusão “a um certo desperdício
das forças do espírito de esquerda, particularmente na França” e, indignado, escreve:
“Isso não me parece honesto, vindo de um homem que foi [...] e que ainda gostaria de
parecer de esquerda” (apud TODD, 1988, p. 747).
Os Possessos, apesar de relativamente bem acolhido pelo público em geral, não
superou as despesas gastas. Camus procurava subvenção para o seu teatro. André
Malraux, que em 1959 era ministro de Estado encarregado dos assuntos culturais, estava
com uma proposta para a reforma do teatro voltada para o “teatro experimental”.
Camus, considerando essa expressão de “caráter dissuasivo e elitista”, elabora a
proposta de um “Novo Teatro”. Ele preferiu esse nome “que não compromete nada e
autoriza tudo” (apud TODD, 198, p.748). Na proposta enviada para Malraux, consta o
repertório de obras modernas e clássicas, tragédia grega, século áureo espanhol, teatro
elisabetano, período clássico e pré-clássico francês, previsto em três espetáculos anuais
(TODD, 1988).
O apoio foi deliberado. Em quatro de janeiro, Pierre Moinot, colaborador de
Malraux, escreve informando que “o escritor teria conseguido o seu teatro” (TODD,
1988, p.767). No mesmo quatro de janeiro, Camus morre em um acidente
automobilístico na estrada de Lourmarin, onde se instalara para escrever O Primeiro
Homem, para Paris. Não soube da deliberação e não pôde cumprir sua proposta de
dedicação exclusiva ao teatro por mais dez anos.
36
1.3 O PENSAMENTO NO PALCO
O pensamento camusiano parte de Kant, é contrário a Hegel, Hurssel, aos
existencialistas em geral e fundamenta-se no absurdo, que deverá ser superado – o que
não significa ser abolido – pela revolta. O absurdo existe na revolta e a condição de
existência desta é o próprio absurdo.
Camus sempre refutou seu pertencimento ao existencialismo e, segundo Todd,
“teria de bom grado assinado um pequeno anúncio com Sartre para explicar que eles não
eram da mesma família intelectual” (1998, p. 431). Para adentrarmos no pensamento
filosófico do autor será necessário, portanto, um breve percurso pelas filosofias às quais
ele se contrapõe e identificar em quê, precisamente, há contraposição.
Da afirmativa kantiana de que o conhecimento objetivo – que depende dos dados
sensíveis e da razão – é possível, mas não dá conta de uma ontologia da realidade, ou
seja, de que “aquilo que o homem conhece (fenômeno) não é o mundo em si mesmo
(noumenon)”, emergiram o método fenomenológico, o existencialismo e também o
pensamento de Camus. Kant é o filósofo que, ao afirmar o inatismo da estrutura da
razão e centralizá-la como ponto de partida para o conhecimento, “introduz na
modernidade a questão fundamental da separação entre o homem e a natureza”
(JOURDAN, 2003, p. 306).
No entanto, em Kant, o fato de a razão não poder conhecer a realidade tal qual
ela é em si mesma, não impede a aquisição de conhecimentos verdadeiros e nem o
alcance do saber científico e necessário. Pois o conhecimento racional seria formulado a
partir de uma síntese, realizada pela razão, “entre uma forma universal inata [que é a
própria estrutura da razão] e um conteúdo particular oferecido pela experiência”
37
(CHAUI, 2003, p. 77). Verificamos a oposição de Camus a Kant, em relação ao
‘alcance do saber científico’ quando, em O Mito de Sísifo, ele afirma que toda ciência
desta terra “acaba em hipótese, a lucidez sombria acaba em metáfora, a incerteza se
resolve em obra de arte [...]. Entendo que posso apreender os fenômenos e enumerá-los
por meio da ciência, mas nem por isso posso captar o mundo” (2005, p.34).
Relativamente à formulação do pensamento racional e ao inatismo da razão, Camus
também contesta em O Mito de Sísifo: “Essa razão universal, prática ou moral, esse
determinismo, essas categorias que explicam tudo [...] não têm nada a ver com o
espírito. Negam sua verdade profunda, que é a de estar acorrentado” (2005, p. 35).
Entretanto, segundo Camila Jourdan (2003, p.314), podemos notar a presença
dos pressupostos kantianos em Camus, na medida em que este realiza uma “dialética
sem síntese” numa série consecutiva de teses e antíteses: natureza x razão (que continua
sendo natural); razão x absurdo (que surge no conflito da primeira série); absurdo x
revolta (que continua sendo absurda). Cada antítese afirma e nega a tese, mantendo,
dessa forma, o conflito. Para Camus, “a existência humana é natural, racional, absurda e
revoltada” (2003, p. 314); o mundo não é nem totalmente racional, nem unicamente
irracional, “é irracionável e nada mais do que isso” (2005, p. 61).
Posterior a Kant, Hegel introduz a afirmativa de que a razão é temporal
(portanto, não é inata) e histórica; ela não é nem exclusivamente subjetiva (afirmação
empirista), nem exclusivamente objetiva (afirmação inatista), mas a “unidade necessária
do objetivo e do subjetivo - o espírito absoluto” - como meta a ser atingida no percurso
histórico, através da síntese de opostos. O devir dialético da realidade seria a adequação
da certeza do sujeito à verdade do objeto: o conhecimento – fenômeno enfim
conquistado pela consciência do mundo, pela autoconsciência e pela razão.
38
Com Hegel, segundo Camus, “a verdade, a razão e a justiça encarnaram-se no
devir do mundo [...] Esses valores deixaram de ser referência para se tornarem fins”
(2003, p. 162). Se existirão somente no final da história, como realização dos objetivos,
não preexistem valores que orientem os meios de alcançá-los, e tudo se torna permitido
em nome do fim. A história é absolutizada; com isso o absurdo não é percebido e são
inseridas justificativas para a violência empreendida no presente. Apesar de toda a obra
de Hegel, segundo Camus “respirar o horror à dissidência, pois ele quis ser o espírito da
reconciliação, [...] na medida em que, para ele, o que é real é racional, ele justifica todas
as iniciativas do ideólogo em relação ao real” (2003, p. 163).
O método fenomenológico de Emund Hussel defende a idéia de que o “mundo
ou a realidade [...] é um conjunto de significações ou de sentidos que são produzidos
pela consciência ou pela razão” (apud CHAUÍ, 2003, p. 81) Com essa afirmativa,
Hussel pretende eliminar “o vazio deixado por uma epistemologia que torna ausente a
possibilidade de critérios absolutos para nosso saber. [...] quer eliminar a separação
entre aparência e a coisa em si, [...] entre o abstrato (homem) e o sensível (mundo)”
(JOURDAN, 2003, p. 308). Para isso seria necessário, através da intenção da
consciência, “chegar às essências dos fenômenos
23
, pois estes revelariam a realidade; as
essências seriam, elas mesmas, fenômenos” (JOURDAN, 2003, p. 307).
A fenomenologia hursseliana, ao se negar a explicar o mundo e querer
simplesmente uma descrição do vivido, se aproxima do pensamento de Camus, que
afirma, em O Mito de Sísifo, não existir a verdade, mas verdades (2005, p. 56) e que
“todo conhecimento verdadeiro é impossível. Só se pode enumerar as aparências e
23
Husserl almeja “um saber objetivo que forneça a realidade do conhecido, um fenômeno que seja
noumenon [...]. Para a fenomenologia, consciência e fenômenos são equivalentes” (JOURDAN, 2003, p.
307)
39
apresentar o ambiente” (2005, p. 26). No entanto, quando Husserl busca eliminar o
vazio entre o homem e o mundo, pretendendo descobrir a essência de cada objeto do
conhecimento, Camus afirma que ele “se lança num politeísmo abstrato” e “abandona o
caminho da evidência”. Ao afirmar que “as leis exatas dos processos psíquicos são
válidas mesmo se não houvesse nenhum processo psíquico”, ou seja, “mesmo que o
espírito não existisse, existiriam suas leis”, Husserl estaria mergulhando na razão eterna,
após ter negado o poder integrante da razão humana (CAMUS, 2005, p. 58-59).
Para Camus, que também parte de uma filosofia da não-significação do mundo, a
fenomenologia e o existencialismo caracterizam um ‘suicídio filosófico’, “um
movimento pelo qual um pensamento nega a si mesmo e tende a superar-se no que diz
respeito à sua negação” (2005, p. 55). Ele argumenta que há duas formas de
existencialismo e que ambas desembocam na divinização:
Uma delas com Kierkegaard e Jaspers, chega à divindade pela crítica
da razão; a outra, que chamarei de existencialismo ateu, com Husserl,
Heidegger e logo Sartre termina também com uma divinização, que,
no entanto, é simplesmente a da história, considerada como o único
absoluto. Não se crê mais em Deus, mas crê-se na história (apud
TODD, 1998, p. 431).
Para Sartre haveria um fenômeno do Ser (o Ser-Para-Si, o Ser do perceber que
não está no percebido e que é a própria consciência intencional) e um Ser do fenômeno
(o Ser-Em-Si, que não está no perceber). A separação entre o Em-Si e o Para-Si seria a
absurdidade da existência e dessa separação surgiria o Nada, “a impossibilidade de a
consciência ser objeto de si mesma” (JOURDAN, 2003, p. 309). Nessa impossibilidade
é que residiria a possibilidade de conhecimento, é que se daria o diálogo homem/mundo,
no qual o homem forneceria sentido ao mundo e a si mesmo.
40
Para Camus esse pensamento, apesar de partir da mesma constatação do
absurdo, acaba por divinizá-lo. É uma filosofia que, além de aceitar o absurdo, projeta
nele a esperança, e esta não pertence à lógica absurda. Dessa forma, dá-se um sentido
para a vida rompendo a principal característica do absurdo, que é a contradição, a tensão
Para-Si/Em-Si. O absurdo, segundo Camus, é essencialmente um divórcio e “a
esperança – de uma outra vida que é preciso merecer ou truque daqueles que vivem não
pela vida em si, mas por alguma grande idéia que a ultrapassa, sublima, lhe dá um
sentido e a trai - é uma esquiva mortal” (2005, p. 22).
Absurdo é a ausência de sentido da vida e continuar vivendo mesmo sabendo
dessa ausência. Não adianta querer dar-lhe um sentido, pois esse ou seria falso ou seria
insuficiente; seria até mesmo, inócuo, pois para o homem do absurdo camusiano, “a
vida será tanto melhor vivida, quanto menos sentido tiver” (CAMUS, 2005, p. 65). Uma
vez constatado o absurdo é preciso manter-se nele por meio de “uma consciência
perpétua, sempre renovada, sempre tensa” (CAMUS, 2005, p. 66), pois viver é fazer
com que o absurdo, iluminado pela consciência, viva. Porém, deve permanecer vivo
unicamente como ponto de partida. Em seguida, segundo Camus, “é preciso quebrar os
jogos fixos do espelho e entrar no movimento pelo qual o absurdo supera a si próprio”,
(2003, p. 20). Paradoxalmente, o absurdo se supera e se mantém na revolta, “que nasce
do espetáculo da desrazão diante de uma condição injusta e incompreensível” (2003, p.
21).
A revolta pode ser tanto metafísica quanto histórica ou artística. Metafísica
quando é uma revolta contra a condição existencial humana, contra a finitude, a
mortalidade, contra a ausência de sentido da vida, do viver sabendo que tudo acabará
um dia: ser feliz e morrer ou não ser feliz e morrer. Histórica quando é contra uma
situação de injustiça imposta pelos homens, por uma idéia, por um sistema. Artística, na
41
medida em que se materializa, pela exigência de unidade e pela recusa do mundo. Toda
revolta, fundamentada nessa exigência e nessa recusa, próprias da revolta artística, “é
fabricante de universos” (CAMUS, 2003, p. 295). A arte seria o protótipo da revolta.
A revolta, na concepção de Camus, surge simultânea à percepção da injustiça, e
dá seu valor à vida. Ela restaura a grandeza da vida e é
uma das poucas posturas filosóficas coerentes. [...] Não é aspiração,
porque não tem esperança. Essa revolta é apenas a certeza de um
destino esmagador, sem a resignação que deveria acompanhá-la. [...]
Consciência e revolta, estas recusas são o contrário da renúncia. Um
homem revoltado é aquele que se apóia na recusa categórica de uma
intromissão julgada intolerável e na certeza confusa de um direito
efetivo (CAMUS, 2003, p. 66).
O revoltado diz não ao que constata como injustiça e sim à existência de uma fronteira,
ao contrapor “à ordem que o oprime uma espécie de direito a não ser oprimido além
daquilo que pode admitir” (CAMUS, 2003, p. 25). Esse direito é um valor que ele
coloca acima de si próprio, acima de qualquer coisa, inclusive da própria vida. Quando
percebe esse direito, estende-o a todos os outros que vivem sob a mesma injustiça que
ele.
O indivíduo não é, por si só, esse valor que ele se dispõe a defender.
São necessários pelo menos todos os homens para abranger esse valor.
Na revolta, o homem se transcende no outro (grifo nosso) e, desse
ponto de vista, a solidariedade humana é metafísica [...]. A
solidariedade é o fundamento da revolta; sem ela, perde este nome, e
torna-se um consentimento assassino (CAMUS, 2003, p. 34-29).
Haveria uma medida, um limite na revolta que, uma vez ultrapassado, segundo
Camus (2003, p. 339), conduziria à destruição. A total liberdade, que o absurdo
pressupõe ao demonstrar a inexistência do futuro e descortinar o fato de que tudo é
permitido num mundo em que não existe amanhã, em que não há contas a prestar, exige
um limite como condição essencial da continuidade de existência do absurdo e da
42
revolta. A medida seria manter a tensão entre os pares, homem / mundo, conhecimento
/ objeto e, fundamentalmente, o par bem / mal. A eliminação de qualquer um dos termos
seria a desmedida. O revoltado que age dentro dessa medida é aquele que não reivindica
nem a liberdade total e nem a justiça total, pois, “a liberdade absoluta é o direito do mais
forte de dominar. Ela mantém, portanto, os conflitos que se beneficiam da injustiça. A
justiça absoluta passa pela supressão de toda contradição: ela destrói a liberdade”
(CAMUS, 2003, p. 330).
Distinguimos, ao analisar as ações do revoltado, a revolta “que se mantém fiel às
suas origens” daquela que “acaba em justificação do assassinato universal”. É através
das ações das personagens – tanto no romance quanto no palco -, que Camus coloca, em
imagem, a sua filosofia. O herói camusiano é aquele que se revolta contra o destino, os
deuses e a morte, como em Calígula; contra o absurdo sob a angústia de uma separação
ou sob a injustiça da condição humana em O mal-entendido; contra uma situação de
arbitrariedade de um poder como em Estado de Sítio e em Os Justos. Em toda revolta,
mesmo em Calígula, que diz ter compreendido “que só há uma maneira de nos
igualarmos aos deuses: tornarmo-nos tão cruéis como eles” (CAMUS, 1963, p. 24),
Camus acaba por demonstrar a vanidade da morte frente ao absurdo, pois ela apenas
perpetua a separação.
Sabato Magaldi atribui a Camus a realização de um teatro de tese, que converte
“o palco em instrumento de suas afirmações, [...] sem uma fusão completa entre a
mensagem a exprimir e o arcabouço cênico”. Segundo Magaldi, as criaturas que esse
teatro colocou em cena, não chegaram “a adquirir a consistência de carne e osso” (1999,
p. 299). No entanto, foi justamente dessa consistência requerida por Magaldi que Camus
buscou se afastar desde os tempos do Teatro da Equipe, por entender que a arte, tal
como a revolta, deve ser “esse movimento que exalta e, ao mesmo tempo, nega” a
43
realidade (2003, p. 291). Para Camus, “o ato de criação nega a si próprio” quando o
artista recusa totalmente a realidade (formalismo) e também quando a aceita totalmente
(realismo). Sobretudo, esse dramaturgo não pretende “repetir de modo estéril a criação”,
mas alcançar uma arte que seja “a expressão da mais alta revolta”, pelo encontro do
“grito mais dilacerante” com a “sua linguagem mais firme” (2003, p. 311). Esse grito,
em Camus, é a constatação do absurdo, e a linguagem a atuação da revolta; ambos
descrevendo a tragédia humana, sob a voz de um herói absurdo. Coloca, portanto, em
cena, um herói que despreza os deuses - sejam eles da razão ou do Olimpo -, que elege o
presente e a sucessão de presentes como seu reino, na mesma medida em que se torna
consciente da absurdidade da vida. Na consciência do absurdo, a ação revoltada. Na
revolta, um herói, cujo chamado é uma exigência de manutenção do paradoxo de lutar
contra o absurdo mantendo-se nele pela consciência. No mundo do absurdo não há
esperança de triunfo do herói, o insatisfeito consciente; e também não pode haver
desespero. O que existe é um sofrimento ativo que impele ao discurso, estabelece a
fraternidade e justifica a vida. Um sofrimento que é individual na experiência do
absurdo e se torna coletivo na revolta. Nesse mundo, o que carrega a grandeza, inerente
à tragédia, é o próprio absurdo transcendido em revolta.
A preocupação de Camus era com a possibilidade e a significação da tragédia no
mundo moderno. Seu caminho teatral é, todo ele, uma tentativa de fundar essa tragédia,
de encontrar uma expressão trágica que correspondesse ao dilaceramento interior. Ele
prenuncia que “uma grande forma moderna do trágico tem que nascer e nascerá”.
Apesar de afirmar que ele decerto não a alcançará e que “talvez nenhum de nossos
contemporâneos o faça”, todas as suas tentativas teatrais visavam “preparar o terreno
para essa moderna forma trágica” e ele pretendia usar de todos os meios “para acelerar
sua chegada” (apud WILLIAMS, 2002, p. 227).
44
Questiona-se “entre os homens educados no que constitui agora a tradição
acadêmica” a existência da tragédia em épocas diferentes da Antigüidade. Certamente,
como afirma Raymond Williams, “nunca houve, de fato, uma recriação ou imitação da
tragédia grega, o que, na verdade, não deveria causar surpresa, porque a sua
singularidade é genuína e, em aspectos importantes, intransferível” (2002, p.35). No
entanto, tecendo tradição e rupturas, o presente temporal constrói a si mesmo. E o fio da
tradição nessa tessitura “não é o passado, mas uma interpretação do passado” (2002,
p.34).
Para definirmos e identificarmos a tragédia moderna, sonhada e possivelmente
realizada por Camus, teríamos, antes, de nos libertarmos da “opressão e do peso da
permanência de uma tradição que, muitas vezes, conseguiu nos persuadir de que tem
uma espécie de direito autoral, tanto no que se refere à experiência trágica quanto à sua
forma” (WILLIAMS, 2002, p.227).
Conforme consta no prefácio da Origem da Tragédia, Nietzsche considerava que
“a arte trágica apreende a vida trágica do mundo”
24
. A vivência e a apreensão do trágico
por Camus deram-se num período de guerras, no qual o homem exibia sua máscara de
deus, sentindo-se livre para recriar o mundo à sua própria imagem; ele viveu as
angústias e os horrores do terrível absurdo da existência. No entanto, por mais que essa
visão deflagre uma perda de sentido e valor no mundo, na sociedade e na própria vida,
Camus rejeita o suicídio tanto físico quanto filosófico e busca, através da revolta,
transcender o niilismo:
24
CHAGAS, Silvio Donizete. In NIETZSCHE, Origem da Tragédia. Editora Moraes, 1984, p.V.
45
Um certo tipo de otimismo não é o meu ponto forte. Como o restante
de minha geração, cresci ao som do rufar dos tambores da Primeira
Guerra Mundial, e a nossa história, desde então, tem dado
continuidade a um relato de matança, injustiça e violência. O
pessimismo real, no entanto, tal como nós o encontramos hoje,
consiste em explorar toda essa crueldade e infâmia. De minha parte
lutei sem cessar contra essa degradação; tenho ódio apenas daqueles
que são cruéis. Nas profundidades mais escuras do nosso niilismo,
procurei apenas pelos meios de transcender o niilismo. (apud
WILLIAMS, 2002, p.231).
O conceito de revolta em Camus aproxima-se da sua própria definição de
Tragédia. Em ambos existem o confronto com uma ordem divina ou humana e um limite
que não se pode ultrapassar. Nas tragédias antigas esse limite se depreende da
ambigüidade do bem e do mal presentes nas forças que se combatem. São forças
legítimas, ambas dotadas de razão. Para Camus a fórmula trágica por excelência é :
“todos são justificáveis, ninguém é justo”
25
. Se cada um é injusto e justificável, há a
necessidade de um limite em cada confronto, de prudência em cada ação. Esse seria o
ensinamento das tragédias antigas que se observa também na revolta camusiana. O
limite estabelece a tensão que mantém vivas tanto a tragédia quanto a revolta. “A
tragédia ideal, e particularmente a grega, é primeiramente tensão, uma vez que ela é a
oposição, numa imobilidade forçada, de duas forças, cobertas cada qual por duplas
máscaras do bem e do mal”
26
.
O herói da tragédia se revolta contra a ordem que o oprime, mas a ordem se
afirma na negação do herói e ambos, dessa forma, se mantêm. O herói existe a partir da
revolta que a própria ordem desencadeia. Da mesma forma,
25
Tradução nossa do original: “la formule tragique par excellence [est] ‘tous sont justifiables, persone
n’est juste’”.(CAMUS, 1962, p.1706).
26
Tradução nossa do original: «La tragédie idéale, et particulièrement la grecque, est d’abord tension
puisqu’elle est l’opposition, dans une immobilité forcenée, de deux puissances, couvertes chacune des
doubles masques du bien e du mal » (CAMUS, 1962, p.1707).
46
O homem contemporâneo que grita sua revolta sabendo que esta
revolta tem limites, que exige a liberdade e sofre a necessidade, esse
homem contraditório, rasgado, doravante consciente da ambigüidade
do homem e da sua história, esse é o homem trágico por excelência.
27
Não existe, portanto, tragédia centrada unicamente no indivíduo ou na ordem.
São necessários confronto e equilíbrio absolutos entre os dois. Considerado por
Nietzsche como aquele que “empreendeu uma guerra monstruosa contra as obras de arte
de Ésquilo e de Sófocles” (1984, p.77), Eurípedes desequilibra, de acordo com Camus, a
balança trágica ao anunciar “o drama individualista, isto é, a decadência da tragédia”
28
.
A tragédia recrudesce em Shakespeare, que “lança suas criaturas apaixonadas contra a
ordem ao mesmo tempo má e justa do mundo”
29
, e novamente decai em Corneille, que
“faz triunfar a moral do indivíduo”
30
. O deslocamento do pêndulo - ordem cósmica
versus individualismo e sociedade sagrada versus sociedade construída em torno do
homem – desconfigura, até a eliminação, a tragédia.
Na conferência Sobre o futuro da tragédia, proferida em 1955, na Grécia, Camus
afirma que “a idade trágica parece coincidir, a cada vez, com uma evolução, em que o
homem, conscientemente ou não, liberta-se de uma forma antiga de civilização e se
encontra diante dela em estado de ruptura, sem, no entanto, ter encontrado uma nova
forma que o satisfaça”.
31
Não pertence mais ao antigo, mas o novo ainda não existe; o
27
Tradução nossa do original : « L’homme d’aujourd’hui qui crie sa révolte en sachant que cette révolte a
des limites, qui exige la liberté et subit la necessité, cet homme contradictoire, déchiré, désormais
conscient de l’ambigüité de l’homme et de son histoire, cet homme est l’homme tragique par excellence »
(CAMUS, 1962, p.1707).
28
Tradução nossa do original : « Euripede déséquilibrera au contrair ela balance tragique [...] il annonce
[...] lê drame individualiste, c’est-à-dire la decadence de la tragédie » (CAMUS, 1962, p.1707).
29
Tradução nossa do original : « Shakespeare lance alor ses créatures passionnées contré l’ordre à la fois
mauvais et juste du monde » (CAMUS, 1962, p.1708).
30
Tradução nossa do original : « Corneille fait triompher la morale de l’individu » (CAMUS, 1962,
p.1707).
31
Tradução nossa do original: « l’âge tragique semble coïncider chaque fois avec une évolution où
l’homme, consciemment ou non, se détache d’une forme ancienne de civilisation et se trouve devant elle
en état de rupture sans, pour autant, avoir trouvé une nouvelle forme qui le satisfasse » (CAMUS, 1962,
p.1703).
47
homem estaria, assim, entre épocas em que “o futuro é incerto e o presente
dramático”.
32
Nessa mesma conferência ele diz existir uma espécie de efeito pendular na
história, entre sociedades firmadas na religião e no homem, constatando que o mundo
moderno coincide com um drama de civilização que poderia favorecer o ressurgimento
da tragédia. Segundo Carlson, em uma leitura da exposição teórica de Camus sobre a
tragédia, “o homem transformou o intelecto, a ciência e a história numa nova divindade
que afivela a máscara do destino. [...] forcejando-se por livrar-se desse novo deus, cai
outra vez na situação ambígua e contraditória que dá azo à expressão trágica” (1997, p.
385).
Camus afirmava que a ressurreição das formas trágicas colocaria a arte
dramática no seu verdadeiro lugar, no cume das artes literárias. Ressurreição: voltar a
surgir não é fazer com que o passado retorne em uma repetição incessante; é o
nascimento do mesmo em época e em circunstância diferentes. Não seria simplesmente
reapresentar ou adaptar peças da Antigüidade a forma de se fazer re-nascer a tragédia.
Para Camus “o público está cansado dos Atridas, de adaptações da antigüidade, daquele
sentido trágico moderno que, infelizmente, raras vezes está presente em mitos antigos,
por mais generosamente recheados de anacronismos que eles estejam” (apud
WILLIAMS, 2002, p.227). Para o re-surgir da tragédia é necessário, como afirmou
Nietzsche, a confluência dos espíritos apolíneo e dionisíaco; são necessárias a
aniquilação do indivíduo e uma vontade violenta de existência. Aniquilar-se
dionisiacamente significa um esquecimento total de si mesmo e isso resultaria numa
entrega para o outro, para o coletivo, o absoluto, a vida; resultaria numa imagem
apolínea divina e esplêndida de individuação. E o que fez Camus senão colocar no palco
32
Tradução nossa do original: « où l’avenir est incertain et le présent dramatique » (CAMUS, 1962,
p.1701).
48
o aniquilamento e a subseqüente individuação por meio de uma revolta que só ganha
esse nome quando seu motivo de existência é extensivo ao outro? Quando demonstra
através de seus personagens que a vontade de vida é vontade de justiça?
Em suas peças, Camus expõe o absurdo e a revolta, a injustiça e a violência, a
dor de estar no mundo sem pertencer a ele e a ânsia de possuí-lo ou de possuir objetos e
pessoas como forma de evasão dessa dor; expõe a relação intrincada do indivíduo com o
social e com o universal e a violência que emerge dessa relação; enfim, ele põe no palco
a tragédia da vida. Em o Mal-entendido, de acordo com Raymond Willians, “a mais
trágica ou pelo menos a mais desesperada obra de Camus”, temos a ruptura das relações,
um homem que esconde sua identidade, a família que não o reconhece, o assassinato
decorrente do sonho da irmã de possuir “um lugar ao sol, onde ela pudesse alcançar a
plenitude de sua própria vida” (WILLIAMS, 2002, p.234). A falha trágica, a hamartia
que, segundo Aristóteles, faz sucumbir o herói, é vivenciada por todos os personagens
da trama de o Mal-entendido. Em Calígula, temos a representação da revolta metafísica,
quando essa desemboca na negação total dos deuses e das criaturas e o homem conclui
que “se Deus mata e nega o homem, nada pode proibir que se neguem e matem os
semelhantes” (CAMUS, 2003. p.55). O imperador, ao descobrir o absurdo com a morte
da irmã e amada Drusila, transforma-se, ele mesmo, em peste, ao querer ser tão cruel
quanto os deuses. Em Os Justos, temos o conflito da revolta, a medida a ser encontrada.
A questão que se instaura nessa peça é da legitimação do sacrifício da vida por uma
idéia e mais ainda, da legitimação do sacrifício da vida de outros por essa idéia. Estado
de Sítio, encenação do mito da peste que é símbolo do mal e da salvação, faz surgir, ao
contrário do herói trágico grego que termina isolado e exilado, um herói que se une à
coletividade através da revolta. É um herói que ama e por isso se rebela. Nessa peça, o
amor é indicado como sendo o âmago, a origem e a finalidade da revolta; ao amor,
49
Camus contrapõe a indiferença do Nada e o ódio da peste: uma batalha individual,
interna e simultânea à coletiva, externa.
Camus acreditava que, após a reforma de Jacques Coupeau, que retira o teatro
das mãos dos “comerciantes de cena” e favorece o surgimento de grandes escritores do
teatro, a tragédia seria possível. Segundo Camus, autores como André Gide, Martin du
Gard, Jean Giraudoux, Henri de Montherlant e Paul Claudel e outros tantos devolveram
ao teatro um fausto desenvolvimento e ambições desaparecidas; ao mesmo tempo em
que, na França e fora dela, surgiu um movimento de idéias e de reflexões sobre o teatro
que instalaram a dimensão trágica no centro das preocupações. Camus, em Sobre o
futuro da tragédia, afirma que, a produção mais significativa dessa época “é o belo livro
de Antonin Artaud, O Teatro e seu Duplo” (1962, p. 1704).
A admiração de Camus por Artaud pode ainda ser verificada na criação e
encenação de Estado de Sítio, a peça que representou a grande tentativa de Camus de
fundação da tragédia moderna. No capítulo II, abordaremos as confluências e
similaridades dos ideais desses dois dramaturgos, buscando, não um julgamento das
teorias teatrais de cada um, mas um melhor entendimento da peça e, especificamente,
buscando desmetaforizar a peste que é, ao mesmo tempo, símbolo do mal e da salvação.
É na “desmetáfora” da peste que encontramos sua relação com a estrangeiridade, tanto
como condição humana como decorrência de questões políticas.
50
CAPÍTULO II
A PEÇA ESTADO DE SÍTIO E O CONCEITO DE PESTE
A peste - calamidade, flagelo - refere-se, normalmente, às epidemias que
assolaram a Europa, provocando uma grande mortandade e eliminando, segundo
Froissart, “a terça parte do mundo” (apud DELUMEAU, 1989, p. 107). A causa das
devastações, chamadas de “a morte negra”, permaneceram uma incógnita até o final do
século XIX. Atribuía-se sua origem à poluição do ar, às conjunções astrais, às
emanações pútridas do solo e, sobretudo, à cólera divina contra os pecados do homem
de orgulho, cupidez e luxúria (DELUMEAU, 1989).
Na Bíblia há referências diretas da ira divina que, pelo pecado de um rei, toda a
nação é castigada. Davi, por exemplo, rei de Israel, cede pelo orgulho à tentação do
poder. Um grande rei, comprometido com a libertação de seu povo e em conduzi-lo a
construir a própria vida a partir do projeto de Deus, comete um único erro, o de
recensear Israel. Ele reconhece que seu erro é decorrente do orgulho e pede perdão, mas
isso não afasta o castigo de Israel. Javé lhe propõe três anos de fome, três meses de
guerra ou três dias de peste para a expiação de seu pecado. Davi escolhe a peste e
setenta mil israelitas pereceram (I CRÔNICAS, 11-21). O rei, o soberano – o corpo
político - adoecera de orgulho; o corpo do indivíduo, formador e parte do corpo político,
adoeceu pela peste. A peste, nessa crônica bíblica, assim como em Estado de Sítio,
aponta para uma mútua relação entre o corpo político e o corpo do indivíduo, entre a
51
realidade política e a condição de existência humana. Procuraremos verificar essa
correlação no final deste capítulo.
Para um reconhecimento do papel da peste, como uma forma de discurso e como
personagem, faremos um estudo do texto, da apresentação e recepção da peça Estado
de Sítio. Nosso objetivo será demonstrar como, em único significante – a peste -
transitam vários conceitos. Observamos que a peste, tal como um mito na definição de
Roland Barthes, é um modo de significação, uma forma, uma fala que se apropria de um
conceito pré-existente. No mito, esse “conceito pode cobrir uma grande extensão de
significante [assim como] poderá servir de significante a um conceito repleto de uma
história extremamente rica” (1993, p. 142).
A imagem e o conceito de peste gerado pelos sobreviventes da epidemia na
época em que essa assolava o mundo, atravessou a história, carregando a definição de
mal. Um padre português que viveu em Milão durante a epidemia que teve início em
1576, afirma que “a peste é, sem dúvida, entre todas as calamidades desta vida, a mais
cruel e verdadeiramente a mais atroz. É com grande razão que é chamada por
antonomásia de o Mal. Pois não há sobre a terra nenhum mal que seja comparável e
semelhante à peste” (apud DELUMEAU, 1989, p. 121). Uma das características
essenciais que se configura no decorrer da epidemia é a “dissolução do homem
mediano”; sob a peste, “não se pode ser senão covarde ou heróico, sem possibilidade de
acantonar-se entre os dois”. Dessa característica é que vemos surgir em Estado de Sìtio,
de um lado a figura do Cura e a do Juiz, e de outro a figura de Diego. Enquanto o cura
foge da cidade abandonando os fiéis e o juiz passa a servir às leis impostas pela peste,
Diego se faz herói enfrentando-a. Temos portanto, no mal, o desvelamento do bom e do
mau. É essa capacidade de revelação que possibilita a apropriação do conceito de peste
52
para o teatro almejado por Camus e por Artaud. Analisaremos esse teatro após um
estudo da peça.
2.1 ESTADO DE SÍTIO
O tema do absurdo, da injustiça, da revolta coletiva e da solidariedade é
apresentando em Estado de Sítio, sob a encarnação da epidemia da peste em uma
personagem que é o próprio totalitarismo. A Peste, representada por um homem, depõe
o governo, instaura o estado de sítio na cidade de Cádiz, subordina os habitantes e
destrói as vidas. Os indivíduos, seviciados, não possuem a coragem necessária à revolta.
Dentre eles, Diego percebe a absurdidade, incita os conterrâneos à revolução e enfrenta
a Peste e a Morte. No momento em que estava para vencê-las, Vitória, sua noiva é
atingida pela epidemia. Ele pactua com a Peste pela vida de Vitória e pela libertação de
Cádiz. Entrega-se tragicamente, e a realização dessa tragédia destitui o regime totalitário
e afasta a epidemia. Não elimina, mas altera a realidade da Peste.
A peça possui algumas semelhanças com o romance A Peste (1947), tais como o
fato de a epidemia irromper primeiramente nos bairros pobres e o descaso dos políticos.
Também há algumas proximidades entre alguns personagens do romance e da peça, tais
como, respectivamente, padre Paneloux e o Cura; os balseiros que se apresentaram para
repatriar Rambert e o barqueiro mercenário corrompido por Diego para afastá-lo da
epidemia; e Cottard e a figura do Nada. Os protagonistas como Rieux e Diego
assemelham-se na profissão da medicina, mas divergem na ação e na interioridade:
tiveram formas diferentes de encarar o absurdo. Apesar das semelhanças perceptíveis,
Camus nega que a peça seja uma adaptação do romance. Porém, certamente, os estudos
53
realizados pelo escritor, para o romance, puderam sustentar a elaboração de Estado de
Sítio.
Escrita durante o verão de 1948 a partir de um convite de Jean Louis Barrault,
[que pretendia elucidar os princípios de Antonin Artaud] essa peça foi considerada por
Camus, de seus escritos, o que mais se assemelhava a ele. Estado de Sítio representou
um ato de ruptura no qual, ambiciosamente, Camus buscou “misturar todas as formas de
expressão dramática, desde o monólogo lírico até o teatro coletivo, passando pelo
interpretar mudo, o simples diálogo, a farsa e o coro” (CAMUS, 2002, p. 27). Apesar de
Camus configurá-la como uma tragédia moderna, Pierre Louis Rey defende a idéia de
que se trata de um drama, uma vez que, pela própria distinção elaborada por Camus, na
tragédia enfrentam-se forças legítimas, igualmente armadas de razão, enquanto no
drama apenas uma é legítima. E, se em Estado de Sítio uma das forças é representada
pelo totalitarismo, esta não poderia ser uma força legítima sob nenhuma circunstância.
Rey afirma que,
como em Calígula e O mal-entendido, Camus não escreve uma
tragédia, mas uma peça em que se manifesta uma forma de trágico, a
originalidade de Estado de Sítio se mantendo na forte realidade de
uma coletividade unida por um temor comum, animada por cenas de
rua e levada, pela aparição de um cometa ou pela presença do vento e
do mar, às dimensões do cosmos . [Mas de qualquer forma], Camus
suscita o instante trágico em que o indivíduo se levanta contra as
formas cósmicas de pensamento
. (in CAMUS, 2002, p. 16)
De fato, se não considerarmos a ambigüidade da Peste e a identificarmos apenas como
símbolo do totalitarismo, Estado de Sítio não seria uma tragédia, de acordo com a
definição de tragédia apresentada por Camus. No entanto, a Peste é símbolo do mal e da
salvação; ela separa e une; extermina e cria um novo povo; é passagem, páscoa, morte e
ressurreição; ela é o bem e o mal: duas “forças legítimas, igualmente armadas de razão”.
54
Com as conceituadas, mas, segundo REY (in CAMUS, p.09), “excêntricas”
colaborações de Balthus - no cenário e figurinos – e de Arthur Honegger, na música -,
acrescidas de um prestigiado elenco, a peça foi apresentada, pela primeira vez, em 27 de
outubro de 1948, pela Companhia Madeleine Renaud – Jean Louis Barrault, no Théâtre
Marigny, em Paris. Sob a direção de Jean Louis Barrault, prometia uma encenação
grandiosa, mas obteve uma recepção altamente negativa da crítica. Nas palavras de
Camus ela foi um grande "fiasco", e para Barrault, que esperava muito da parceria com
Camus, foi, segundo ele, seu "primeiro desgosto no teatro" (in CAMUS, 2002, p. 187).
À crítica não escapou nada: música, cenários, coreografia, texto, simbologia e, até
mesmo, o local onde foi situada a ação da peça. Nada agradou. Gabriel Marcel escreveu
no Les Nouvelles Littéraires, de 4 de novembro, que não achava “honesto nem corajoso
ter situado a ação na Espanha”. Segundo esse crítico, não era da Espanha que chegavam
as “novidades capazes de desesperar os que se preocupam com a dignidade e a liberdade
humanas” e que a peça deveria ser situada em “algum porto da Dalmácia ou da Albânia,
por exemplo”. Ou seja, não era o fascismo que o dramaturgo deveria atacar, mas o
comunismo. Camus responde que seu objetivo foi
atacar frontalmente todo tipo de sociedade política que se organiza à
direita ou à esquerda, de modo totalitário. Nenhum espectador de boa
fé pode duvidar que essa peça toma o partido do indivíduo, da
natureza humana naquilo que ela possui de mais nobre, do amor
terrestre, enfim, contra as abstrações e os terrores do Estado totalitário,
seja russo, alemão ou espanhol
(2002, p. 182).
Além das críticas relacionadas ao tema e à encenação, outros também se
aproveitaram para manifestar suas divergências ora em relação a Camus ora em relação
a Barrault. Pierre Quemeneur escreveu em La Scène, quando Estado de Sítio ainda
estava sendo encenada: “A causa do desastre me parece inerente ao próprio gênio do
autor (E estou pensando mais em Camus do que em Barrault). Não acredito que Camus
55
tenha o dom do demiurgo. Ele me parece marcado por uma estranha impotência para
criar personagens” (in CAMUS, 2002, p. 174). Mme. Dussane, em Le Mercure de
France, de 1º de janeiro, coloca toda a responsabilidade do fracasso sobre Barrault e diz
que
Os meios pelos quais Barrault transmite o texto de Camus o
destruíram na transposição, porque lhe eram antagônicos em sua
essência.[...] Criticou-se a frieza do texto de Camus, sua extensão, sua
retórica. Mas o texto de Camus grita sua revolta contra a tirania
administrativa, a subversão triunfal do amor, as aspirações
imagináveis para a liberdade, ainda que anárquica... E eis que todo
esse poema da indisciplina foi encenado segundo uma estética de
caráter militar! [...] Vamos esperar o próximo livro, em que Camus
será apenas e, completamente, ele mesmo.[...] Vamos esperar o
próximo espetáculo, em que Barrault se submeterá ao respeito de uma
obra e se renovará. (In CAMUS, 2002, p. 172-173).
Pela receptividade negativa da peça podemos supor a possibilidade de que
através dela tenham, realmente, Camus e Barrault, sob a luz de Artaud, atingido seus
objetivos. Segundo Rey, Camus não conseguiu deixar de pensar que, “se a peça fora mal
recebida, é porque era perturbadora no plano ideológico” (in CAMUS, 2002, p. 174). A
reação à peça poderia ser uma reação à peste provocada por um teatro que buscava ser,
como definia Artaud (1999, p. 23), tal como a peste.
Para Barrault, que esperava muito da parceria com Camus por considerar “que o
homem de teatro só terá valor se tiver autores” e desejava “do fundo do coração que
Camus se tornasse o nosso autor”, a experiência foi decepcionante, mas não afetou a
imensa vontade de continuar trabalhando com Camus. Questionando-se sobre os
possíveis erros, ele escreve em J.-L. Barrault, Nouvelles réflexions sur le théâtre (1959),
que a fonte do fracasso estaria nas diferentes concepções da peste. Para ele,
56
a Peste era salvadora pela acumulação das forças negras
desenvolvidas até o paroxismo: concepção iniciadora, mágica,
inspirada por Artaud. Para Camus, a Peste ou o ditador era o Mal, o
mal social acarretado apenas pelo medo que, uma vez suprimido, o
faria fugir. [...] Eu acredito que as pessoas sinceras não distinguiram
muito bem se nossa Peste era a salvadora do mal maior, ou o mal do
qual precisavam se salvar
. (In CAMUS, 2002, p. 188)
Apesar de ser o mais atacado pela crítica, Barrault disse que gostaria de ter
mantido a peça em cartaz por mais tempo (foram 23 apresentações de 27 de outubro de
1948 a 15 de janeiro de 1949), mas que isso os faria naufragar economicamente. Ele
também desabafou: "na noite da última apresentação da peça, as pessoas de Paris mal
conseguiam disfarçar sua alegria com a idéia de que havíamos fracassado; padeci de
uma dor física da qual ainda tenho a cicatriz" (In CAMUS, 2002, p. 187-188). Esse
desabafo nos aproxima de uma Paris semelhante à cidade de Oslo, na Noruega, para a
qual Eugênio Barba, o dramaturgo italiano, havia retornado, em 1964 após sua
temporada de quatro anos na Polônia, com Grotowski. Segundo Barba, a única iniciativa
dos habitantes daquela província de Oslo era enfeitar-se servilmente com as plumas dos
êxitos alheios ou alegrar-se com os erros dos outros, sem ter nunca a coragem de
assumir os próprios”.
33
Que semelhança é esta, implícita, entre Paris, Oslo e Cádiz, a cidade da peça de
Camus? É que todas elas receberam a visita inesperada da Peste, ou como teatro ou na
vida, como uma doença. Se reconstituirmos os princípios do teatro de Artaud em um
paralelo à filosofia de Camus, encontraremos aquela cidade de Cádiz na sua
mecanicidade cotidiana e reconheceremos nela os habitantes, não só da cidade de Paris
ou de Oslo, mas de qualquer outra cidade desde "mundo em declínio, que está se
suicidando sem perceber” (ARTAUD, 2002, p. 26).
33
Tradução nossa do original: “acicalarse servilmente con las plumas de los éxitos ajenos o alegrarse de
los errores de los otros, sin tener nunca el coraje de asumir las consecuencias de los propios" (BARBA,
s/d, p. 32).
57
Se analisarmos essa recepção de acordo com os conceitos formulados por Hans
Robert Jauss, sobre a estética da recepção, diríamos que o motivo dessa recepção estaria
na distância entre o horizonte de expectativa e a obra: quanto menos a obra exige uma
mudança de horizonte do leitor, menor valor estético ela terá (1994, p. 31). Estado de
Sítio apresentada em um período recente do pós-guerra parece não ter atendido à
expectativa do público. Resta-nos argumentar que poderia ser um público que não
queria ir além do seu horizonte ou que o tema já estaria saturado para os espectadores da
época, que necessitavam, talvez, esquecê-lo para seguirem vivendo. Até mesmo Roger
Vailland, que em 16 de novembro de 1948 havia publicado uma crítica negativa no
Action, afirmou que “o público burguês que freqüenta o Théâtre Marigny parece muito
despreparado para o espetáculo oferecido por Albert Camus e Jean Louis Barrault” (in
CAMUS, 2002, p. 174).
Contrariamente ao questionamento de Rey sobre o fato de a peça ter chegado
“tarde demais” (in CAMUS, 2002, p. 7), diríamos que ela chegou um pouco cedo para
1948, mas que está no instante preciso de nossa contemporaneidade. Não podemos, em
Estado de Sítio, limitarmo-nos à apresentação de um passado acabado. A peça está
historicamente delineada, mas também ativa para uma leitura contemporânea. Estado de
Sítio, que na época foi dupla metáfora da ocupação alemã e da guerra civil espanhola,
presta-se hoje à metáfora da dissimulação com que se revestem os países considerados
de primeiro mundo em relação aos de terceiro e das diversas guerras que eclodem
sucessiva e simultaneamente devidas ao fanatismo, ao culto narcisístico, à megalomania,
à ambição e, sobretudo, à ausência de valores e de uma ética que fundamentem os
relacionamentos entre os diferentes povos.
As indicações cênicas de Camus e também as rubricas quanto à movimentação
dos atores e à presença dos elementos naturais no palco extrapolam as limitações a que o
58
teatro está sujeito. Para a peça com um elenco de vinte e seis atores, Camus prescreve
cenas nas quais “um cometa se desloca no céu” (2002, p. 33), “um vento frio que sopra
enquanto o sol começa a se pôr” (2002, p. 53), um jovem emite um “ruído de aspiração
como se estivesse bebendo uma palavra da boca do médico... como se a palavra fosse
muito grande para sua boca, e fosse preciso muito esforço para se livrar dela” (2002, p.
52), além de inserir cenas com “diálogos e murmúrios incompreensíveis” (2002, p. 33-
34;100). Tudo isso nos leva a considerar a afirmativa de Rey, de que Estado de Sítio é
um desses “espetáculos impossíveis, que balizam a história de nosso teatro, [restando-
nos] o consolo, não desprezível da literatura” (in CAMUS, 2002, p.21).
No entanto, a peça foi representada em outros países, principalmente na
Alemanha (Munique, 1950; Nuremberg, 1959; Osnabrück, 1962; Hamburgo, 1969),
incluindo uma apresentação ao ar livre, em 1959; voltou a ser representada na França,
em 1964, no festival de Châlon-sur-Saône. Essas apresentações obtiveram sucesso, com
boa acolhida do público, apesar de os críticos, especialmente na França, falarem “mais
do texto da peça do que de suas possiblidades cênicas” (in CAMUS, 2002, p. 175).
Também no Brasil, ela foi adaptada pelo grupo Oficinão do Galpão, apresentada em
Belo Horizonte, de dezembro de 2005 a janeiro de 2006. Podemos afirmar, sobre essa
montagem, que, além de mostrar a atualidade do pensamento de Camus, ela comprova a
encenabilidade da peça, ao demonstrar que alterações nas indicações cênicas, conforme
a viabilidade da apresentação, não comprometem a teatralidade do texto e nem a
encenação da peça.
59
2.2 CAMUS E ARTAUD: APROXIMAÇÕES E DIVERGÊNCIAS EM
TORNO DO CONCEITO DE PESTE
Como vimos, Jean Louis Barrault afirmou que uma das causas da recepção
negativa de Estado de Sítio foi o fato de Camus e ele terem concepções diferentes sobre
a Peste. Barrault dizia compartilhar da concepção artaudiana e Camus teria relacionado
a figura da Peste ao mal acarretado pelo medo, o mal social. A proposta feita por
Barrault a Camus era a de encenar o mito da peste sob a inspiração dos princípios de
Antonin Artaud. Duas propostas em uma: uma a de encenar o mito – e isso requeria um
tema - e a outra que fosse sob a inspiração de Artaud – isso aludia a um teatro que fosse
como a peste e que fosse o duplo da vida. Camus aglutinou as propostas: o mito era a
Peste e o teatro também o pretendia ser. Estado de Sítio buscou refletir os atritos do
mundo moderno e destacar o conflito e a rebelião existentes na interioridade do homem.
No entanto, a associação das visões de Artaud e de Camus foi problemática, uma
vez que neste último, estavam prévia e claramente estabelecidos os conceitos de Jacques
Coupeau. Enquanto Artaud
34
ressaltava “o espírito e não a letra do texto [...] e vivera
obcecado pela sensação de que as palavras eram incapazes de capturar a vida interior”
(CARLSON, 1997, p.379, 380), segundo Margot Berthold, “o foco de interesse original
de Copeau residia na literatura. Seu ideal era a humanização do teatro a partir da
palavra” (2001, p. 480). Camus, em Estado de Sítio, buscou alguns elementos em
Artaud, mas permaneceu ligado a Coupeau. A peça é, portanto, resultante de uma
tentativa de conciliação de visões.
A afirmação de Barrault quanto ao fracasso da peça nos conduz, antes, à analise
do emissor, que da própria mensagem. Talvez Camus, apesar de imbuído dos princípios
34
Palavras de Artaud, referindo-se ao uso da palavra no teatro afirma: “Tenho por princípio que as
palavras não pretendem dizer tudo, e que por natureza e por causa de seu caráter determinado, fixado de
uma vez para sempre, elas detêm e paralisam o pensamento em vez de permitir e favorecer o seu
desenvolvimento” (1999, p.130).
60
de Copeau, estivesse mais próximo de Artaud que o próprio Barrault. Este, apesar de
ter sido um dos primeiros a defender e a considerar Artaud como “um dos cinco teóricos
supremos que todo jovem artista deve conhecer”, segundo Marvin Carlson,
tinha interesse mínimo na mudança radical do teatro, preocupando-se
mais em aprofundar e em enriquecer a tradição já firmada. Seu
bastante convencional ‘espectro do teatro’ – com o ‘gesto puro’ de um
lado e a fala pura de outro, e Shakespeare e Molière , no centro –
pouco tem a ver com o tipo de visão apocalíptica encontrado em
Artaud
(1997, p. 383).
A despeito das colocações de Carlson é indiscutível a amizade e o respeito entre
Barrault e Artaud. Este último, na nota Em torno de uma mãe, em O Teatro e seu Duplo
fala sobre a Ação dramática de Jean Louis Barrault:
Seu espetáculo demonstra a ação irresistível do gesto, demonstra
vitoriosamente a importância do gesto e do movimento no espaço.
Devolve à perspectiva teatral a importância que não deveria ter
perdido. Faz da cena, enfim, um lugar patético e vivo. [...] Até agora,
apenas o Teatro de Bali parecia ter mantido um vestígio desse espírito
perdido. [...] Mas por outro lado, do teatro essa realização não tem a
cabeça, ou seja, o drama profundo, o mistério mais profundo do que as
almas, o conflito dilacerante das almas em que o resto é o caminho.
Em que o homem não passa de simples ponto e em que as vidas se
saciam em sua fonte. Mas quem bebeu da fonte da vida? (ARTAUD,
1999, p. 166).
Mas quem bebeu da fonte da vida? É muito difícil associar a figura de Artaud e seus
ideais a qualquer dramaturgo. O que podemos é observar algumas propostas de seu
teatro impregnadas em muitos grupos teatrais
35
. Trata-se, portanto, entre Camus e
Artaud, de registrarmos algumas semelhanças e alguns sonhos que se cruzaram.
35
De acordo com Teixeira Coelho “o teatro de Artaud deu as bases para a maior parte do teatro relevante
de hoje. (Outros encenadores e teóricos da época, como Appia e Gordon Craig, expuseram idéias
próximas às de Artaud. [...]) O Bread & Puppete tem coisas de Artaud, e nele se alimentaram uma fileira
de encenadores; o Living Theatre, o Teatro Laboratório de Grotowski, muita gente, um pouco em toda
parte; o Oficina, a partir de O Rei da Vela, tem coisas de Artaud; nenhum grupo teatral deixou de se
impregnar de algumas propostas de seu teatro” (1983, p. 94).
61
Apesar de diferirem – Artaud e Camus – quanto à função e possibilidades do
veículo ‘palavra’,
36
tinham em comum o objetivo de um teatro não-comercial e não-
convencional, “um teatro como instrumento revolucionário, uma ferramenta para
reorganizar a existência humana” (CARLSON, 1997, p 377). Ambos viam no teatro
mais que uma representação, viam a vida e possibilidades de se despertar para ela. Para
Camus , o teatro “é a própria vida, forte, livre, da qual todos nós temos necessidade”
37
e, para Artaud, a vida é o duplo do teatro.
Outras semelhanças são perceptíveis nas concepções estéticas e políticas desses
dramaturgos. Por exemplo, as expectativas e tentativas de fundar uma tragédia que fosse
a expressão da própria vida, assim como as relações com o surrealismo. Artaud teve
uma rápida passagem pelo surrealismo, de 1924 a 1926. Foi dele expulso por André
Breton, por não compartilhar da mesma idéia de revolução presente nesse movimento.
Segundo Carlson, Artaud, “caracterizou a revolução de Breton como uma ‘revolução
para castrados’” (1997, p. 379). Os surrealistas e os críticos diziam que Artaud não se
importava com a revolução e o acusaram de “formalista, defensor da arte pela arte”.
Porém, a revolução que ele acreditava como única merecedora de incentivo era a da
libertação do homem interior. Artaud afirmava que “não há revolução sem revolução da
cultura, isto é sem uma revolução da consciência moderna diante do homem, da
natureza e da vida” (apud COELHO, 1983, p. 71) e condenava, no surrealismo, a sua
adesão ao marxismo.
Camus, em O Homem Revoltado, dedica um capítulo inteiro à poesia revoltada e
elege um único nome, no final deste capítulo, como o “poeta do nosso renascimento”:
36
Essa diferença se torna essencial na atuação do homem revoltado, daquele que se descobre um
estrangeiro no mundo. Para Camus
Cada equívoco, cada mal entendido leva à morte; a linguagem clara,
a palavra simples – só elas podem salvar dessa morte” (2003, p. 326)
.
37
Tradução nossa do original : “c’est la vie même, forte, libre, dont nous avons tous besoin” (CAMUS,
1962, p. 1728)
62
René Char. São vinte páginas em que demonstra sua ausência de afinidades com o
surrealismo, especificamente com o tipo de revolta e revolução que esse movimento
defende. Nomeia-os de “niilistas de salão”, “defensores da violência” e, com relação à
adesão ao marxismo afirma que
Bem–nascidos demais para matar todo mundo, os surrealistas, [...]
chegaram a achar que, para liberar o desejo, era preciso demolir a
sociedade. Resolveram servir à revolução de sua época. [...] esses
frenéticos queriam uma revolução qualquer, algo que os tirasse do
mundo do comércio e dos compromissos, em que eram obrigados a
viver. (CAMUS, 2003, p. 118).
Quando alguns surrealistas romperam com o marxismo, Camus afirmou que era porque
neles “havia algo além do niilismo, uma segunda fidelidade ao que há de mais puro nas
origens da revolta: eles não queriam morrer” (2003, p. 119).
Algumas semelhanças são evidentes, mas nos interessa, sobretudo, aquelas que
nos conduzem à compreensão da Peste colocada em cena por Camus e da definição de
teatro de Artaud, logo a definição dele da peste e do mal. Pretendemos demonstrar que a
noção de ‘teatro peste’ de Artaud não está completamente ausente de Camus; que o mal
salvador de Artaud e o mal social de Camus não são excludentes e que, em Estado de
Sítio, não é apenas o mal social que está em cena. Para isso, faremos um estudo da
simbologia da peste nesses dois autores.
2.2.1 A Peste, segundo Artaud.
Artaud inicia o ensaio O teatro e a Peste narrando um sonho do vice–rei da
Sardenha, Saint Rémys, em que este se “viu pestífero e viu a peste arrasar seu minúsculo
Estado”. Todos os elementos da peste estavam em seu sonho. Sentiu todas as dores, o
corpo metamorfoseando-se em carvão, suas entranhas sendo queimadas e tudo mais. No
63
entanto, ele não morre no sonho, porque nos sonhos não se morre, “neles a vontade
atua até o absurdo, até a negação do possível, até uma espécie de transmutação da
mentira com a qual se refaz a verdade”. Ao despertar, ele toma a atitude, “sob a força
especial da influência que o sonho exerceu sobre ele” de não permitir que um navio
vindo de Beirute atracasse e desembarcasse no seu reino. O navio realmente conduzia a
“peste oriental, o vírus original” e atracou no porto de Marselha, que já havia sido
atingida pela peste. Contudo, foi desde a chegada do navio que houve o “alastramento
generalizado da epidemia” (ARTAUD, 1999, p. 10).
Para Artaud, o contato com a peste através do sonho foi insuficiente para
provocar no vice-rei o surgimento da doença, mas suficiente para afastar, do seu reino, a
epidemia. O contato, através do sonho, com todos os símbolos que emanam da peste, foi
um contato salvador. O teatro exerceria, para o espectador, a mesma função do sonho. O
teatro, de acordo com Artaud, deve possuir a força de um sonho; deve atravancar e
dissolver o mal antes de sua materialização. Só expondo e sendo o próprio mal na sua
virtualidade, no seu vir a ser, o teatro realiza essa façanha. Para ser o mal, Artaud afirma
que o teatro tem que ser como a peste. Não que seria contagioso e sim que, como
afirmou Teixeira Coelho, seria uma forma de revelação, ao “jogar à frente do homem,
adiante dele sua imagem profunda” (1983, p. 84); desse homem que tem “medo de
jogar-se na existência aqui e agora” e refugia-se na defesa de uma civilização, de uma
cultura, “quando deveria defender a vida, particularmente quando essa cultura nunca
coincidiu com a vida, sendo feita apenas para dirigir, quer dizer, sufocar a vida” (1983,
p. 81).
Para ser como a peste o teatro teria que, segundo Artaud, destruir os quadros
habituais da cultura e da vida que se separa da poesia. A cisão vida-coisas, é para
Artaud, “a causa de as coisas se vingarem, e a poesia que não está mais em nós e que
64
não conseguimos mais reencontrar nas coisas reaparece de repente, pelo lado mau das
coisas” (1999, p. 3). A re-aglutinação não será efetivamente alcançada, pois sempre
haverá algo a ser encontrado e reunido. A busca repetitiva e o alcance gradual – e nunca
total - da poesia se dará pela vivência da cisão. Porém, uma vivência virtual, através de
símbolos. Segundo Teixeira Coelho, nessa óptica artaudiana,
A batalha de símbolos que o teatro pode encenar é a batalha dos
homens por trás dos símbolos. E é imprescindível mesmo que essa luta
se dê através dos símbolos. Essa alteração dos sentidos em repouso,
exercitada pelo teatro, a liberação do inconsciente recalcado,
conduzem a uma espécie de revolta virtual - e é exatamente por ser
virtual que a transformação acionada pelo teatro tem seu valor; é
enquanto virtualidade que esse jogo interessa
(1983, p. 83). (Grifo nosso)
Cada apreensão, cada contato da alma com esses símbolos é um mergulho na própria
treva. Jamais será um alívio, uma purgação consoladora. A paz e o equilíbrio, segundo
Carlson não é objetivo do teatro de Artaud; o que ele deseja é “confrontar a alma, talvez
demasiado complacente, com as energias aflitivas e abissais que não admitem
reconciliação” (1997, p. 381).
Se o mal, como disse Artaud, “só se explica por nossa impotência para possuir a
vida” (1999, p. 3), essa impotência, a mesma de um pestífero, mais que simplesmente
exposta aos olhos do espectador, deverá ser sentida por ele, pelos atores, autores, e
diretores
38
. Da peste é que se deve extrair “o jogo absoluto e sombrio de um espetáculo”
(1999, p. 18). Quando a peste domina uma cidade tudo nela se desmorona, se liquefaz:
sua organização, a relação entre as pessoas, os conceitos, a moral, os sentimentos...
Tudo ganha uma outra face, tudo é despido das máscaras que viabilizavam uma
pseudoconvivência. Instala-se, sob a peste, “atos gratuitamente absurdos por parte de
pessoas que não acreditavam que a morte fosse capaz de acabar com tudo” (1999, p.
38
Artaud afirma que “só tem o direito de se dizer autor, isto é, criador, aquele a quem cabe o manejo
direto da cena” (ARTAUD, 199, p. 138).
65
20). O último ato, o último instante revela o assassino no virtuoso, a pureza no
libertino, o libertino no casto, o altruísmo no avarento; mas são atos que não alteram a
realidade da peste. Artaud compara esses atos com o estado do ator “integralmente
penetrado e transtornado por seus sentimentos, sem nenhum proveito para a realidade.
[...] Tudo no aspecto físico do ator, assim como no do pestífero, mostra que a vida
reagiu ao paroxismo e, no entanto, nada aconteceu” (1999, p. 20). Também no pestífero,
apesar da desorganização física provocada pela peste, o mal sofrido não é materializado.
Isso se comprova no cadáver que, “quando aberto, não mostra lesões [...] o corpo fica
duro como pedra. Mas não há nem perda nem destruição da matéria” (ARTAUD, 1999,
p. 15).
“A ação do teatro e da peste [estão] no plano de uma verdadeira epidemia”
(ARTAUD, 1999. p. 21), mas enquanto a imagem da peste em uma cidade é o de uma
“força espiritual se esgotando”, no teatro, a imagem da peste é uma força espiritual que
permanece por não se concretizar. O ator vive a peste, portanto revolve o mal; ele tem
em si, por exemplo, o assassino que a peste lhe revela. Todavia, ele não comete o
assassinato. Segundo Artaud, “é preciso muito mais virtude ao ator para impedir-se de
cometer um crime do que coragem ao assassino para executar seu crime” (1999, p. 21).
Na realização de um assassinato o furor se esgota, o assassino “se descarrega e perde
contato com a força que o inspira, mas que não mais o alimentará”. Na não-realização, o
ator não elimina o assassino que descobriu nele mesmo; não é propriamente uma luta do
bem contra o mal, mas uma conexão de forças direcionadas para a vida, para o
desenvolvimento de uma vida “inteiramente sob o signo da verdadeira magia”
(ARTAUD, 1999, p. 3). O mal, em Artaud, não existe para ser eliminado, mas para ser
utilizado. Em Cartas sobre a crueldade, nas quais presta esclarecimentos sobre o
66
Manifesto do Teatro da Crueldade, Artaud relaciona crueldade com o bem e diz que o
mal é inerente ao mundo:
No mundo manifesto, e metafisicamente falando, o mal é a lei
permanente, e o que é bem é um esforço e já uma crueldade acrescida
a outra. [...] É com crueldade que formam as coisas, que se formam os
planos do criado. O bem está sempre na face externa, mas a face
interna é um mal. Mal que será reduzido com o tempo, mas no instante
supremo que tudo o que existiu estiver prestes a retornar ao caos
(1999,
p. 120).
O teatro almejado por Artaud tanto pode levar à morte como pode provocar a
cura. Por isso, este teatro é considerado por Teixeira Coelho “um teatro perigoso. [...]
Não é qualquer um que suporta essas visões, a visão de si mesmo.[...] Um teatro que
corre o risco de tocar na vida, um teatro capaz de encarar o risco que é aproximar-se da
vida” (1983, p. 85). Vida e morte são simultâneas e não consecutivas. Tocar na vida é
conhecer a morte. A peste é isto, vida e morte entrelaçadas, interpenetradas.
2.2.2 A Peste, segundo Camus
Resultante da imbricação Camus, Artaud e Barrault, Estado de Sítio pertence a
um tipo de teatro cujo objetivo é forjar consciências. Forjar no sentido de trabalhar na
forja, na fabricação de um metal, entre aquecer e resfriar, com fornalha, fole e bigorna;
com a crueldade que a ação impõe. Estado de Sítio pertence a um tipo de teatro cuja
crueldade é, como almejava Artaud
benfazeja pois, levando os homens a se verem como são, faz cair a
máscara, põe a descoberto a mentira, a tibieza, o engodo; sacode a
inércia asfixiante da matéria que atinge até os dados mais claros dos
sentidos; e, revelando para coletividades o poder obscuro delas, sua
força oculta, convida-as a assumir diante do destino uma atitude
heróica e superior que, sem isso, nunca assumiriam
(1999, p. 19).
67
A peça é um exemplo patente da tentativa de Camus de realizar um teatro que
fosse como a peste. O tema era a peste, mas o teatro também pretendia ser. Era a
representação da peste em um teatro peste, procurando provocar, nos atores e no
público, os sintomas que vivenciariam se estivessem sob a invasão e o domínio dela.
Provocar os sintomas e os anticorpos. A doença e a cura.
A peste é apresentada em planos diferentes: artaudianamente, como energia a ser
utilizada em benefício da vida e, camusianamente, como formas diferenciadas de
materialização do mal a ser transcendido, através da revolta. Como energia, é também o
mesmo absurdo camusiano: o que não pode ser eliminado e muito menos ser admito, ser
aceito. Da não admissão é que nasce a revolta, também ela uma energia, em termos
artaudianos, que para se manter não pode se realizar. Como manifestação do mal, a
peste se apresenta, devido à não-vivência do absurdo - seja por desconhecê-lo seja por
aceitá-lo -, na epidemia e no totalitarismo.
Através da peste, além de expor uma realidade política que se configura em uma
coletividade, a peça mostra as realidades internas
39
dos habitantes de uma cidade através
de um teatro que pretende ser um somatório dessas realidades, que é, para Camus, a
vida. Instaura-se na peça um processo de metaforização que revela um nexo entre o
peste e o teatro, a peste e a realidade política, e a peste e a própria condição da
existência humana.
Na imagem da peste, a encenação de Estado de Sítio: exploração dos
princípios artaudianos:
39
Mesmo que, segundo Camus, não possamos atingir a totalidade do conhecimento, e que “um homem
permaneça eternamente desconhecido para nós”, podemos conhecê-los na prática. Ele escreve em O Mito
de Sísifo: “eu conheço na prática os homens e os reconheço na sua conduta, no conjunto de seus atos, nas
conseqüências que sua passagem suscita na vida. [...] Trata-se dos sentimentos inacessíveis no interior do
coração, mas parcialmente traídos pelos atos que impulsionam e as atitudes de espírito que supõem”
(2005, p. 26).
68
Alguns elementos evocados por Artaud como essenciais para a realização de um
teatro verdadeiro, tais como gritos, gestos, ruídos, música, movimentação dos corpos,
jogos de sombra e luz, aparições do cometa e da peste preenchem a encenação de
Estado de Sítio, considerada por Ilona Coombs “a peça mais visual de Camus”. A
fruição estética oferecida pela encenação está também no texto destinado à
representação; é a partir das indicações nele contidas e das descrições de Ilona Coombs
do espetáculo, que absorvemos o visual e o auditivo, os signos e os símbolos; o visível e
o invisível criando uma atmosfera de apocalipse. No palco,
altas muralhas dentadas que se recortavam em sombras chinesas sob
um céu que, alternadamente, se coloria e descoloria durante a
passagem do cometa. À musica de cena somava-se o badalar dos sinos
dos mortos, os zunidos das preces do povo, os golpes surdos das
execuções, o estalo surdo das portas que se fechavam uma a uma [...].
Vários espaços de representação [eram] destacados por um feixe de
luz de acordo com a necessidade da ação
(In CAMUS, 2002, p. 171-172).
No texto, as indicações de Camus. Os jogos de movimentos e de gestos em consonância
com a música e o silêncio, com as luzes e a escuridão; a alternância de gritos com
significado ora de medo, ora de alegria, ora de desespero. Durante a passagem do
cometa, por exemplo,
Duas ou três cabeças se voltam. Um ou dois personagens se deslocam
com precaução, e depois tudo volta à imobilidade. O zunido fica mais
intenso, torna-se estridente [...] o cometa cresce de modo
desmesurado. Bruscamente, um grito terrível de mulher. A música
cessa imediatamente e o cometa se reduz a seu tamanho normal
(Camus, 2002, p. 33-34)
Os operários invisíveis, “dos quais apenas se percebe a agitação” (2002, p. 81), têm seus
movimentos traçados na fala da Peste, que os comanda do alto de sua torre. Também a
dança da morte, que antecede a imobilidade do fim traçado pela Secretária, e os sons de
gemidos e do ranger das carroças que transportavam os empesteados, criam ruídos e
69
imagens que levam à visualização do que não está concretamente em cena – a
impotência que nasce sob o jugo da dor:
Gemidos e silêncio. Da orquestra, restam apenas os sinos. O Zunido
do cometa recomeça suavemente. [...] A secretária avança, riscando
um nome a cada passo, enquanto a bateria marca cada um dos seus
gestos. Nada ri com escárnio e a primeira carroça dos mortos passa
rangendo. A Peste se ergue no alto do cenário e faz um sinal. Tudo
pára, movimentos e ruídos. A Peste fala (CAMUS, 2002, p. 75).
Porém é, sobretudo, na pantomima de um ator que representava na praça do mercado da
cidade a peça “Os Espíritos, [...] um ato sacro do imortal Pedro de Lariba”
40
(CAMUS,
2002, p. 51) que reconhecemos os movimentos da epidemia. É ele, o ator, - nomeado
por Camus (2005, p. 92) como aquele que possui um destino absurdo por reinar no
perecível e no qual Artaud (1999, p. 20) identifica as analogias com o pestífero - o
primeiro a morrer em Cádiz. O primeiro, portanto, a viver a peste.
Interessante notar que, ao colocar uma peça de teatro sendo representada no
teatro, a peça Os Espíritos dentro da peça Estado de Sítio, Camus indica as analogias
entre vida e teatro. A peça contém e está contida numa peça maior (mise en abîme), que
é a que chamamos de vida, criando uma perspectiva de infinito e estabelecendo, assim, o
teatro tal qual um Aleph borgiano: um espaço recortado, de pequena dimensão
41
, mas
habitado por todo o espaço cósmico sem diminuição de tamanho; um mundo por onde
se vê o universo, até o instante perturbador de ver a si mesmo vendo este mundo. No
entanto, segundo as indicações de Camus, a peça “começa efetivamente, mas o que os
atores dizem não é compreensível, pois sua voz é atrapalhada pelos barulhos do
mercado” (2002, p. 48). Esse ‘Aleph’ dentro do ‘Aleph’, Os Espíritos dentro de Estado
40
A comédia Les Esprits, de Pierre de Larivey, foi adaptada por Camus em 1940. É comum, em seus
romances e peças, ele citar passagens, trechos de outras de suas obras anteriores; por exemplo, o
personagem Mersault de O Estrangeiro tinha no cárcere um pedaço de jornal, cuja reportagem nele
narrada era a mesma situação de O Mal Entendido.
41
O diâmetro do Aleph visto pelo personagem Borges, no porão da casa de Carlos Argentino, media de
dois a três centímetros (BORGES, 1986, p. 125).
70
de Sítio, acontece sob o alheamento da cidade de Cádiz. O teatro, assim como a vida,
acontecia, mas ninguém se importava, ninguém percebia.
A ausência de luz e o movimento de um cometa como uma incógnita no céu
prescrevem o início de Estado de Sítio. Assim como no Gênesis o espírito de Deus se
movia sobre a face das águas, um cometa se desloca lentamente no céu de Cádiz até que
se faz a luz e os personagens se tornam visíveis. No prólogo, Camus retoma a visão do
caos original, aquele momento anterior à criação "em que a Terra estava sem forma e
vazia" (GÊNESIS, 1-1). Segundo Mircea Eliade, "uma forma, seja qual for, pelo fato de
que existe e dura, debilita-se e se gasta. Para que revigore é essencial voltar ao caos, à
orgia, às trevas...”.
42
O caos é considerado por Artaud como um princípio recriador da
vida, pois contém “infinitas perspectivas de conflitos e pode ser tão decisivo quanto
perigoso” (1999, p. 52). Para Camus o caos é o instante que precede e abarca a possível
percepção do absurdo, percepção que induzirá o despertar da consciência. Ao tema
sonoro da cena inicial mistura-se a luz do cometa e o diálogo e os gritos das
personagens, numa busca de correspondência entre sons, palavras e gestos para que
esses, ao emergirem do caos original, plenos de energia, transformassem espectador e
teatro. Transformação que é o ideal de Artaud, cujo teatro, assim como a alquimia,
objetiva a fabricação do ouro a partir de símbolos que colocariam o Cosmos em
ebulição e destruiriam, minuciosa e exacerbadamente, toda forma insuficientemente
apurada (ARTAUD, 1999, p. 51-53).
Os princípios e os elementos do teatro artaudiano foram explorados até mesmo
onde há contradição entre Artaud e Camus: na palavra. Devemos ressaltar que Artaud
não rejeitava totalmente o uso dela no teatro. Em Cartas sobre a Linguagem, Artaud
42
Tradução nossa do original: “una forma, sea cual fuere, por el hecho de que existe como tal y dura, se
debilita y se gasta. Para retomar vigor le es menester (...) volver al caos, a la orgia, a las tinieblas..."
(apud
PALACIOS, s/d: 32).
71
esclarece a um leitor que o que pretendia era não “encenar peças baseadas na escrita e
na palavra”. A parte falada e escrita poderia existir, mas “num sentido novo” (1999, p.
130). Em O Teatro Oriental e teatro ocidental, Artaud escreve que “não se trata de
suprimir a palavra do teatro, mas de fazê-la mudar sua destinação, e sobretudo de
reduzir seu lugar [...]”. Acreditamos que Camus não tenha perseguido esse objetivo de
Artaud. No entanto, coloca em cena diálogos incompreensíveis, simultâneos nos quais
os interlocutores, verborreicamente, expõem seus pensamentos (CAMUS, 200, p. 100).
São palavras que traduzem a sua própria ineficiência, tal como Artaud as caracterizava.
Até o instante do nascimento do herói em Diego, as palavras, cujo esvaziamento
é denunciado por Artaud, eram veiculadas pelo medo ou pela hipocrisia. Eram palavras
que já haviam sofrido o divórcio entre significante e significado, entre ‘coisa’ e vida.
Podemos verificar esse divórcio nas orações proferidas, que representavam mais a fé do
homem nele mesmo que na divindade. Criam-se merecedores de uma proteção divina e
pediam perdão pelo que eles nem sabiam o que haviam cometido. Eles repetiam
mecanicamente os versos dos salmos, assim como faziam com o ato de viver. Deus, o
Senhor, era servo, o guarda daqueles homens empesteados pelo medo, repletos de
hipocrisia que desvivifica a palavra:
O Senhor é meu refúgio e minha fortaleza,
Pois é ele que me protege da armadilha do caçador de passarinho
E da peste mortífera.
(CAMUS, 2002, p.56)
Na imagem da peste, a condição humana e a realidade política:
Hannah Arendt, em A Condição Humana (1958), esclarece que, devido ao “fato
de que homens e não o Homem vivem na terra e habitam o mundo, todos os aspectos da
condição humana têm alguma relação com a política” (2007, p.15). Porém, é só na
modernidade, cientificamente datada a partir do século XVII, que houve, segundo
72
Michael Foucault, uma “crescente implicação da vida natural do homem nos
mecanismos e nos cálculos de poder. [...] A vida torna-se a aposta em jogo na política”
(apud AGAMBEN, 2002, p. 125). A conseqüência primária disso, ainda segundo
Foucault, é que tudo que diz respeito à vida biológica tornou-se pertencente a um poder
soberano, que, “através das mais sofisticadas técnicas políticas”, procedeu a uma
“animalização do homem”, da qual deriva “a simultânea possibilidade de proteger a vida
e de autorizar seu holocausto” (apud AGAMBEN, 2002, p. 11).
Albert Camus, em Estado de Sítio, nos conduz a um questionamento sobre a
ação política, que é parte essencial da condição de existência humana, ter se tornado a
forma decretante da inexistência; sobre o fato de o estar entre os homens ser uma
condição de estrangeiridade, de medo e de domínio. A peça está historicamente situada
numa época, como afirma Camus em O Homem Revoltado (2003, 14) que “em
cinqüenta anos desterra, escraviza ou mata setenta milhões de seres humanos”.
Presenciou-se a Primeira Guerra Mundial, os expurgos dos processos de Moscou em
1936, a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), as primeiras explosões atômicas, os
massacres e destruições da Segunda Guerra Mundial seguida de uma guerra fria.
(BARRETO, s/d). Nesta, podemos contar mais cinqüenta anos de mortes intensificados
pela corrida armamentista. O fim da Guerra não significou, tal como na cidade de Cádiz,
onde se passa a peça de Camus, o início da paz.
A realidade política daqueles e desses anos é a realidade da força e do medo.
Mas isso foi diferente em algum tempo? Segundo Norbert Elias o que se verifica é que,
repetidamente, através de diferentes épocas, “unidades de sobrevivência, sejam elas
Estados ou tribos, se organizam, ao cabo de uma série de lutas, no sentido de uma
hierarquia de status e de poder” (1985, p. 30). Uma vez alcançado o poder, esses
73
Estados ou tribos passam a lutar entre si pela supremacia. O vencedor continua em luta
sob o pretexto de uma ameaça contínua da sua segurança. Entende-se que, manter o
poder é expandi-lo sob os demais. Ocorre assim, “uma dilatação ilimitada do respectivo
espaço de dominação”, até se defrontarem com a realidade geográfica e humana: os
limites do planeta e “um limite muito inconveniente: o fato lamentável de que os
homens morrem” (ARENDT, 1989, p.174). A busca pelo poder esbarra,
inexoravelmente, com a morte. Associar-se a ela foi a forma encontrada para garantir e
intensificar o domínio sobre o outro. Sob o que Norbert Elias denominou de “febre
hegemônica”, é que os homens, tribos ou Estados têm se movimentado, disseminando
sofrimento e terror, a ponto de elevar “o assassínio recíproco de povos a uma instituição
permanente”, de tornar a guerra “parte do destino, das condições de vida do homem”
(1985, p. 14). No entanto, não se percebe que aquele que mata, mata a si próprio; que a
destruição possui dois vértices opostos e simultâneos; que a guerra é uma condição
permanente de autodestruição.
Quando ele, “O Homem”, se apresenta em Cádiz, uma cidade situada em todos
os tempos, dizendo-se a Peste e trazendo a morte como Secretária, apossa-se
primeiramente do poder do governador sobre uma população, sobre uma forma de vida
política regida por atos mecânicos, banais, na cotidianeidade da inconsciência. “Preciso
do seu lugar. [...] digamos, duas horas; seria suficiente para me passar seus poderes?”,
pergunta “O Homem” ao governador (CAMUS, 2002, p. 63). Seu objetivo era o poder
sobre a vida natural e é na sua ação e no seu discurso, durante o seu domínio, que o
identificamos como uma doença:
A PESTE: Sou eu quem azeda o vinho e seca as frutas. Mato a folha
da parreira quando vai dar uvas e a deixo verde quando vai alimentar o
fogo. [...] Tenho as prisões, os carrascos, a força e o sangue! Esta
cidade será arrasada e, sobre seus escombros, a história vai agonizar
no silêncio das sociedades perfeitas (CAMUS, 2002, p. 145).
74
A Peste mata o que possibilita a vida. Ela age, pela força e pelo medo, naquilo que
Arendt analisou como uma das condições básicas
43
para a vida do homem na Terra: na
pluralidade, retirando do homem a sua capacidade de ação. Ela o faz ao romper o “duplo
aspecto de igualdade e diferença” que singulariza os seres humanos e lhes possibilita a
vida em comunidade (ARENDT, 2007, p. 189).
O medo é um impeditivo para a ação defensiva e, portanto, um mantenedor da
Peste em Cádiz. Segundo Jean Delumeau, “quem quer que seja presa do medo corre o
risco de desagregar-se. Sua personalidade se fende, a impressão de reconforto dada pela
adesão ao mundo desaparece; o ser se torna separado, outro, estranho” (1989, p. 20).
Pelo medo, a Peste age, se dissemina e se solidifica, na convivência humana. Em Cádiz,
impossibilita os relacionamentos ao separar os homens das mulheres (2002, p. 76), ao
deportar os que não se enquadram ao seu regime (2002, p. 92), ao concentrar os
contaminados (2002, p. 95) e impedir, pela força, a ação e o uso da palavra (2002, p.
74;77;103). É dessa forma que ela retira o poder dos habitantes, gerado pela convivência
entre eles. E, como afirma Arendt, “o que primeiro solapa e depois destrói as
comunidades políticas é a perda do poder [inerente ao convívio em comunidade]” (2007,
p. 212).
O que movimenta a Peste não é propriamente o poder, mas a vontade de poder.
No entanto, mesmo violentando o homem no que ele tem de mais sublime, que é sua
necessidade e capacidade de palavra e ação, ela não adquire esse poder. Ela enfraquece
os homens e, nessa fraqueza, a força dela é relativizada. É a mesma força, só que, em
comparação com a fraqueza dos outros, aparenta ser maior. Se ela age pela vontade de
43
São três, de acordo com Arendt, as atividades humanas fundamentais: O labor, que corresponde ao
processo biológico do corpo humano; o trabalho que corresponde ao artificialismo da existência humana e
a ação, atividade política por excelência, que corresponde à condição humana da pluralidade (2007, p.15).
75
poder é porque não o possui e se ela o deseja é porque é fraca. Segundo Arendt, “a
vontade de poder, denunciada ou glorificada pelos pensadores modernos de Hobbes a
Nietzsche, longe de ser uma característica do forte, é, como a cobiça e a inveja, um dos
vícios do fraco, talvez o seu mais perigoso vício” (2007, p. 215). Seu perigo se
concretiza ao atacar, precisamente, aquilo que é inerente ao homem: a sua
estrangeiridade. Ela ataca o espaço entre os homens, as fronteiras que os definem como
homens. Cria, assim um único corpo, o “Leviatã, [...] formado por todos os corpos dos
indivíduos [...] corpos absolutamente matáveis” (AGAMBEN, 2002, p. 131).
“Eu reino, é um fato, logo um direito. No entanto, um direto que não se discute:
vocês têm de se adaptar”, declara a Peste no alto do cenário em Estado de Sítio (2002, p.
75). Ela constitui e se constitui o próprio direito. Torna-se o espaço da decisão entre
aquele que deve permanecer e o que deve perecer. Submete e intimida a todos porque
possui as armas, a estratégia e a astúcia, e caminha sempre na busca de um poder
ilimitado; para isso necessita sobrepujar e eliminar toda e qualquer diferença entre os
povos e entre os homens.
É essa a Peste representada num teatro que se apresenta como a peste. A Peste
personagem é a perspectiva do fim da comunidade dos homens; o teatro Peste é a
possibilidade de vida. De um mesmo mito, o tudo e o nada, a vida e a morte.
Estado de Sítio serve-nos como paradigma de uma comunidade humana na qual
o nada e a morte são sintomas da existência da peste. Analisar os habitantes de Cádiz,
antes e durante a ação da peste, é nosso objetivo no próximo capítulo. Pretendemos
demonstrar que a estrangeiridade, apesar de inerente à condição humana, pode também
ser alterada, desfeita e, até mesmo, construída sob a ação da peste.
76
CAPÍTULO III
ESTRANGEIROS E ESTRANGEIROS EM ESTADO DE SÍTIO
Partindo de um questionamento sobre o sentido da vida, após a “morte de
Deus”
44
, naquele “universo subitamente privado de ilusões e de luzes”, do qual nos fala
Camus, “o homem se sente como estrangeiro” (2005, p. 20); e se define como tal, ao
perceber o enorme espaço entre ele e a sua vida, entre sua atração pela unidade e pelo
conhecimento e a certeza de que jamais irá alcançá-los, de que haverá “uma defasagem
constante entre o que imagina saber e o que realmente sabe” (CAMUS, 2005, p. 32).
Sentir essa impossibilidade sob a necessidade de estar sempre caminhando em direção
ao outro e em busca do conhecimento e, fundamentalmente, saber que tudo o que foi ou
que não foi alcançado acabará um dia, é sentir o absurdo. É esse mesmo sentimento que
um estrangeiro experimenta ao entrar em contato com um outro – seja país, língua ou
indivíduo. Mersault, protagonista de O Estrangeiro (1942) era um condenado à morte:
aquele que vê o fim. Ele é o estrangeiro na medida em que percebe e vivencia esse fim,
em que vivencia o absurdo.
A proposta deste capítulo é estudar a distância, os espaços criados pelas
diferenças e os abismos cavados pelo desconhecimento desses espaços, objetivando
analisar, na peça Estado de Sítio, as formas que o estrangeiro reveste, assim como
44
De acordo com Camus, “a filosofia de Nietzsche começa justamente por ser uma revolta. Com ele, a
revolta parte do ‘Deus está morto’, que ela considera fato consumado; volta-se em seguida contra tudo
aquilo que visa substituir falsamente a divindade desaparecida e desonra um mundo. [...] Contrariamente
ao que pensam alguns de seus críticos cristãos, Nietzsche não meditou o projeto de matar Deus. Ele o
encontrou morto na alma de seu tempo” (CAMUS , 2003: 89).
77
identificar as decorrências políticas e existenciais disso. Para isso, partimos da
equivalência entre esses espaços e as noções do absurdo e da revolta camusiana.
Cumpre esclarecer que o conhecimento desses espaços não eliminará a
existência deles entre os homens e nem entre estes e o mundo, mas o desconhecimento
deles fortalece o vazio de onde se erigem preconceitos, racismo, dominações, xenofobia,
enfim, tudo aquilo que podemos metaforizar sob o signo da peste, assim como o fez
Camus no romance A Peste e na peça Estado de Sítio.
Observamos que os conceitos de peste e de estrangeiridade formam o tema
central da obra de Camus. Em A peste, uma epidemia condena toda uma cidade à
separação do resto do mundo e à separação dentro da própria cidade; condena à
estrangeiridade. O movimento dos médicos e de alguns voluntários representa a luta
contra uma ordem terrena e cósmica, contra a doença e a morte. No romance O
Estrangeiro, a peste não está nomeada. No entanto é passível de ser identificada na
violência da exclusão do diferente, na mordaça que aprisiona os sentimentos e as
palavras, enfim, na sociedade que mutila o que há de humano nos homens. Nesse
romance, Camus coloca Mersault frente aos homens e descreve-nos o absurdo, o
divórcio entre o homem e mundo. O absurdo maior é que não nos vemos no mundo; e é
isso que deflagra a cegueira em relação ao outro. Vemo-nos de forma distorcida sob um
padrão determinado e que normalmente não questionamos. Quem é o estrangeiro nesse
livro? Acreditamos que o leitor, que é o primeiro a julgar Mersault desde as páginas
iniciais, é o estrangeiro no qual o autor busca provocar a consciência, incitando-a a
liberar-se. No entanto, é realmente difícil para esse leitor, empedernido em uma
ideologia milenar, não estranhar o comportamento do protagonista de O Estrangeiro. É
essa ideologia, fundamentada numa história que impede que os homens a escrevam, que
Camus denuncia.
78
Sísifo e Mersault rolam a mesma pedra. No entanto, enquanto o Sísifo
camusiano vê a pedra descer e vive as pausas intercaladas às subidas, vive sua descida
ao encontro da pedra, Mersault só realiza a vivência da descida quando é condenado à
morte por aqueles que se autodesignam juízes e se julgam aptos para discernir o bem do
mal e para impor o que consideram bem. A diferença entre Sísifo e o Mersault do início
do romance está, portanto, na pausa do olhar: um ver fora e olhar dentro concomitantes.
Segundo Julia Kristeva, o “sintoma estrangeiro começa quando surge a
consciência de minha diferença e termina quando nos reconhecemos todos estrangeiros,
rebeldes aos vínculos e às comunidades” (1994, p. 9). Essa diferença se constitui em
relação a quê? Diferenças de línguas são mais visíveis, tanto que elas “foram tomadas
como uma das fundações sobre as quais encenamos a política da identidade: a língua
servia para definir as fronteiras de uma comunidade, distinguido-as de outra”
(MIGNOLO, 2003, p. 398). Porém, outras diferenças calcadas pelo preconceito e pela
megalomania são as que mais estrangeirizam. E, nesse caso, o outro se torna estrangeiro,
independente da língua nativa, ou de um conceito jurídico que assim o limitaria por não
ser cidadão no país que reside, ou no qual simplesmente transita. No mundo grego
arcaico, por exemplo, era necessário que o pai fosse de origem grega para que o
indivíduo pudesse ser assim também considerado; Sócrates considerava estrangeiro,
aquele que não tivesse a mesma cultura, educação e origem que ele; e o bárbaro era
identificado (e excluído) por meio do seu discurso, considerado “lento, pesado ou
incorreto” e de “uma pronúncia pesada e empastada” (KRISTEVA, 1994, p. 57).
Historicamente, para o relacionamento com o estrangeiro, sempre existiram leis
de acolhimento e de direitos e deveres. No entanto, essas leis foram insuficientes para
evitar perseguição e massacre de culturas e de povos. Foram insuficientes ou tornaram-
se inexistentes para o favorecimento de instalações de campos de exclusão e extermínio.
79
Independente de leis, ou amparando-se nelas, continua-se desterrando, escravizando e
assassinando o diferente, aquele que, em determinado momento, sob o olhar do outro, se
torna um estrangeiro. “Nada saberemos enquanto não soubermos se temos o direito de
matar esse outro que se acha diante de nós ou de consentir que seja morto”, afirma
Camus (2003, p.14). No entanto, mesmo sob a existência de um direito – seja ele
forjado, adquirido ou prescrito – o ato em si do assassinato é inócuo para a diferença.
Elimina-se o diferente, mas não a diferença. O ato somente cava, mais ainda, o abismo
da separação homem /mundo.
Apesar de a sistematização da diferença alterar-se no tempo - dependendo de
fatores, por exemplo, geográficos, econômicos, raciais, religiosos - é constante a
existência de um grupo detentor de um poder econômico ou cultural prevalecendo e
atuando, violentamente, sobre outro (SANTIAGO, 2000, p. 11). Porém, essa relação
dominante / dominados, carrasco / vítimas não configura a origem do absurdo e das
diferenças: é antes um discurso de manutenção de uma dicotomia
45
que parte tanto de
um lado como de outro. Esse é um discurso, segundo Camus, sustentado pelo
pensamento hegeliano.
46
A diferença existe, mas determinar a falácia dos opostos de
45
Giorgio Agamben, em uma entrevista com Flavia Costa, para a Revista do Departamento de Psicologia,
UFF (2006, p.133) defende a necessidade de se superar a lógica binária e de transformar “as dicotomias
em bipolaridades, as oposições substanciais num campo de forças percorrido por tensões polares que estão
presentes em cada um dos pontos sem que exista alguma possibilidade de traçar linhas claras de
demarcação”.
46
“O mundo de hoje só pode ser, aparentemente, um mundo de senhores e escravos, porque as ideologias
contemporâneas, aquelas que modificam a face do mundo, aprenderam com Hegel a pensar a história em
função da dialética domínio/servidão. Se [...] há apenas uma ligação senhor-escravo, não pode haver outra
lei no mundo a não ser a lei da força. Somente um deus ou um princípio acima do senhor e do escravo
podiam intervir até então, fazendo com que a história dos homens não se resumisse unicamente à história
de suas vitórias ou de suas derrotas. Hegel [...] fornece, no nível da dialética do senhor e do escravo, a
justificação decisiva do espírito de poder no século XX. O vencedor sempre tem razão, esta é uma das
lições que se pode tirar do maior sistema alemão do século XIX. [...] Se Nietzsche e Hegel servem de
álibis para os senhores de Dachau e de Karaganda, isso não condena toda a sua filosofia, mas deixa a
suspeita de que um dos aspectos de seus pensamentos, ou de sua lógica, possa ser levado a esses terríveis
confins” (CAMUS, pp 164 , 165).
80
valores é somente uma forma de justificar a apropriação do poder e a conseqüente
violência contra o outro.
O que se torna necessário questionar, para reduzir a injustiça, é a constituição e
legitimação do poder, pois é nisso que se sustenta aquele que retira do outro a sua
condição de sujeito e é, também por ele, que o outro se entrega à reificação. As diversas
estrangeiridades são prefiguradas nessa e por essa “rede de mecanismos ou dispositivos
que funciona como uma maquinaria, disseminada por toda a estrutura social, [pois] além
do sistema estatal, existe uma mecânica de poderes locais, específicos, circunscritos, que
se expandem por toda a sociedade” (MACHADO in CALOMENI, 2003, p. 29). Nessa
rede, em Estado de Sítio, é que localizamos os diversos nós, os entrelaçamentos que
configuram as diferentes formas de ser estrangeiro.
Segundo Elie Wiesel,
47
constam na Bíblia referências a três tipos distintos de
estrangeiros: o Guer, o Nokri e o Zar. O Guer vive em terras estranhas e respeita os usos
e costumes do povo dessa terra convivendo com eles em harmonia, dividindo alegrias e
sofrimentos. O Nokri é uma espécie de Guer, mas que prefere permanecer diferente e
manter seu status de estrangeiro. O Zar é aquele que vive na própria terra e despreza
seus conterrâneos, considerando-se estrangeiro em relação a eles; torna-se estrangeiro
sem o ser juridicamente, afirmando sua estrangeiridade a partir da negação do outro
(1982, p. 135-140). E o outro é todo o infinito além dele. Na negação, ele perde o
contato com aquilo que o torna, precisamente, um “eu”. Negando o outro, ele nega e
destrói a si mesmo até tornar-se um nada. E “Nada”, representante claro do niilismo, é
como foi nomeado o personagem de Camus, em Estado de Sítio.
47
Elie Wiesel é judeu, sobrevivente dos campos de concentração nazistas, ganhador do prêmio Nobel da
Paz em 1986.
81
As diversas formas de estrangeiridade reveladas em Estado de Sítio estão
diretamente relacionadas à experiência e à não-experiência do absurdo e, também, à
ação da Peste, sob a qual o indivíduo é transformado em estrangeiro, exilado tanto fora
quanto dentro da própria terra. Da não-experiência, temos o estrangeiro para ele mesmo.
Da experiência, temos o reconhecimento da estrangeiridade. Esse reconhecimento pode
suscitar formas diferentes de relação com o outro, com o mundo, com a vida, abrindo-
nos à perspectiva de novas modalidades de estrangeiro. Um modo seria aquele que faz
da estrangeiridade sua ação no mundo, como forma de uma busca contínua pelo outro e
por si mesmo, objetivando sempre minimizar o sofrimento do mundo. Seria aquele que
supera o absurdo pela revolta consciente e constante. Um outro modo de relação com o
outro seria aquele no qual o indivíduo desiste da busca, por acreditá-la inatingível; foge
do confronto e elege o nada para ocupar o trono de seu reino; torna-se um prisioneiro do
absurdo distanciando-se da revolta que engrandece a vida. Em ambas as modalidades
decorrentes da experiência do absurdo, o reconhecimento de ser estrangeiro “desperta
aquele singular estado de alma em que o vazio se torna eloqüente, em que se rompe a
corrente dos gestos cotidianos, em que o coração procura em vão o elo que lhe falta”
(CAMUS, 2005, p. 23).
O fato é que “viver sob este céu sufocante nos obriga a sair ou ficar. A questão é
saber como se sai, no primeiro caso, e por que se fica no segundo” (CAMUS, 2005, p.
43). Procuraremos responder essa questão na análise das personagens de Estado de
Sítio.
82
3.1 ESTRANGEIROS PARA ELES MESMOS: A POPULAÇÃO DE CÁDIZ
ANTES DO ESTADO DE SÍTIO
Sob um “tema sonoro que lembra uma sirene de alerta” e em uma “cena
completamente escura”, este diálogo “quase incompreensível, como um murmúrio” é
travado no início do prólogo, entre os habitantes de Cádiz, que estavam estupefatos com
a aparição de um cometa
48
:
_ É o fim do mundo!
_ Não, homem!
_ Se o mundo acabar...
_ Não, homem. O mundo sim, mas não a Espanha!
_ Mesmo a Espanha pode morrer.
_ De joelhos!
_ É o cometa anunciando o mal!
_ A Espanha não, homem! A Espanha não!
(CAMUS, 2002, p.33)
Começamos a conhecer os habitantes de Cádiz. O destaque no trecho acima, do diálogo,
revela-nos a ineptidão das falas, pois, como pode a Espanha ou qualquer outra parte
sobreviver sem o todo? Um país o é, também, por aquilo que não é. Imaginamos o mapa
da Espanha girando ao redor do sol, arredondando-se nos giros, nos movimentos de
rotação e translação, até virar poeira cósmica e desaparecer no universo. Cômico pelo
ridículo e trágico por ser a retratação de uma auto-imagem.
Nas falas dos habitantes de Cádiz encontramos o germe do racismo: auto-
suficiência, megalomania e desprezo pelos outros. O mundo acabaria, as pessoas
acabariam e não haveria mais nenhum sobrevivente, apenas eles, os escolhidos na arca
de Noé. O racismo, segundo Caterina Koltai,
48
O Cometa é uma das representações mentais da epidemia da peste. Segundo Jean Delumeau, a peste é
identificada “como uma nuvem devoradora vinda do estrangeiro [...], como um dos cavaleiros do
apocalipse, como um novo ‘dilúvio’, como um ‘inimigo formidável’ e sobretudo como um incêndio
freqüentemente anunciado no céu pelo rasto de um cometa” (1989, p. 112).
83
tem a ver tanto com determinado dispositivo social quanto com a
própria estrutura do sujeito no processo de suas identificações egóicas.
[...] O sintoma se situa numa zona de intersecção entre o mais
singular, o mais íntimo de um sujeito, e o discurso universal no qual
ele se inscreve (2000, p. 26).
Pelos habitantes, portanto, passamos a conhecer também o universo político e social de
Cádiz.
O nacionalismo, na peça, é assim colocado em questão, na sua origem: o que é
um país ou uma nação, e quem e porque o sustenta como tal. Hannah Arendt nos
esclarece que há duas formas distorcidas de nacionalismo: o chauvinismo e o
nacionalismo tribal. Enquanto o primeiro é “extrovertido, interessado nas evidentes
realizações materiais e espirituais da nação, o segundo [...] é introvertido, concentrado
na própria alma do indivíduo, que é tida como a encarnação intrínseca de qualidades
nacionais” (1989, p. 258). Essas formas nos colocam diante da probabilidade,
respectivamente, do imperialismo e do totalitarismo. São esses sentimentos
“nacionalistas”, o crisol de ideologias racistas. Na Alemanha de Hitler, por exemplo, a
ideologia racista, segundo Arendt, “permaneceu – pelo menos em seus estágios iniciais
– tão intimamente ligada a sentimentos nacionais que se tornou difícil distinguir o mero
nacionalismo do racismo declarado” (1989, p. 195).
No entanto, mesmo considerando-se superiores, os habitantes daquele pedaço da
Espanha (mais uma vez a relação metonímica), movidos pelo medo, colocam-se de
joelhos sob o cometa, prontos para a submissão, para a entrega. Para a hipocrisia da
entrega, pois aqueles que se ajoelhavam eram os mesmos que afirmavam a distinção que
lhes garantiria permanecerem vivos frente às calamidades que o cometa prenunciava.
Eles se ajoelham frente ao cometa – “o grande e terrível Deus!”, e se curvam frente à
ordem de um oficial da guarda civil, representante do governo, que era o símbolo
84
máximo do discurso que possuíam e no qual estavam inseridos. A atitude contraditória
às falas acaba por demonstrar a fragilidade do povo de Cádiz. Eles não eram o que
afirmavam ser, mas não estavam conscientes disso. É, sob a luz do cometa, que a
contradição fala / comportamento se desvela.
Voltemos, portanto, ao cometa. Ele mesmo um “símbolo de poder”, um
semióforo
49
. A fecundidade do semióforo está nos inúmeros efeitos de significação que
dele brotam e que se tornam acessíveis àqueles que se relacionam com ele. Porém, a
força simbólica do cometa não pôde ser apreendida pelos habitantes que, ora se
julgavam “[...] inteligentes demais para acreditar nisso. Hoje em dia ninguém acredita
mais em sinais” (2002, p. 35), ora eram dominados pelo medo, que nascia concomitante
às significações que eles intuíam sobre o cometa: “é sinal de guerra! [...] é uma
praga![..] é um sinal, e sinais não aparecem à toa” (2002, p. 34). O próprio poder local
impede a percepção da amplitude semântica do símbolo, preferindo considerar “falsa a
aparição de qualquer cometa” (2002, p. 39).
“É o cometa anunciando o mal!”, diz a população. Anunciando ou denunciando?
Ele era uma luz no céu completamente escuro. Emitia um som no seu trajeto que se
“desenvolve musicalmente como uma palavra inteligível e ameaçadora”; cresce
desmesuradamente ao mesmo tempo em que o som se amplifica e se densifica em
palavra. O cometa se torna como uma grande boca aberta no céu: ele fala, grita
contraindo-se. No entanto, como entender essa voz se cada um não entende a sua
própria? Bem afirmou Artaud que, “quando tudo nos leva a dormir [...] é difícil acordar
e olhar como num sonho, com olhos que não sabem mais para que servem” (1999, p.06).
49
De acordo com Marilena Chauí “existem alguns objetos, animais, acontecimentos, pessoas e
instituições que podemos designar com o termo semióforo. São desse tipo as relíquias e oferendas, os
espólios de guerra, as aparições celestes (grifo nosso), os meteoros, certos acidentes geográficos, certos
animais, os objetos de arte, os objetos antigos, os documentos raros, os heróis e a nação” (2000, p. 11-12).
85
O cometa transita no céu, mas ilumina a terra. Ilumina, tal qual uma seta, indicando
para onde todos deveriam dirigir o olhar, como um gesto acompanhando a fala. E o que
se tornava iluminado eram homens e mulheres, e entre eles só um diálogo quase
incompreensível, como um murmúrio, entre eles o abismo da palavra não pronunciada.
“Oh, Cádiz! Uma praga caiu sobre você” (2002, p. 34). Não. A praga já existe entre
vocês. Isso denuncia o cometa, indicando, antes de desaparecer no céu, o oficial da
guarda civil, representante do poder em Cádiz.
Na última indicação, o cometa aponta, portanto, para o poder que se sustenta no
abismo entre os homens; que preenche, ilusionariamente, esse abismo. O poder que
emerge como resultado da transferência de pseudopoderes individuais, que objetiva a
comodidade da não responsabilidade, da não co-responsabilidade. É uma transferência
de voz: alguém passa a falar pelo outro, e esse outro fala e faz o que o alguém
determina. “Voltem para suas casas! Vocês viram o que viram, e basta. Muito barulho
por nada; acabou-se. Estão procurando chifre em cabeça de cavalo. Cádiz é assim. É
sempre Cádiz” (CAMUS, 2002, p. 34), grita o oficial da guarda sob a centelha de luz
que ainda emanava do cometa.
Cádiz é assim. É sempre Cádiz. Aquela que não deve perceber as alterações, as
mobilidades; que não deve falar, porque já possui outro para falar por ela. Era o retrato
do homem cotidiano, definido por Camus (2005, p. 91) como aquele que “nada lhe
interessa além de si mesmo, principalmente aquilo que poderia ser”, do “homem
inconsciente [que] anda apressado atrás de uma esperança qualquer” Nomeavam o
outro, que estava além de suas fronteiras geográficas, como estrangeiro, mas
desconheciam-se como tais.
86
Não se pode dizer, entretanto, que, antes da invasão da Peste, os habitantes de
Cádiz eram estrangeiros na própria terra. Eram sim, estrangeiros para eles mesmos. A
descrição desses habitantes, oferecida pelo personagem Nada, nos aproxima da vida
anódina estabelecida sob este tipo de estrangeiridade: “Enquanto vocês fazem as suas
três refeições diárias, trabalham as suas oito horas e mantêm suas duas mulheres,
imaginam que tudo está na mais perfeita ordem. Não, vocês não estão em ordem, mas
em fila. Bem alinhados, a fisionomia serena, já maduros para a calamidade” (2002,
p.37).
Estavam à vontade dentro do artifício humano que se concretiza na organização
de uma sociedade política, a qual, supostamente, atribui um sentido igualitário aos seres
humanos. Supostamente porque, segundo Hannah Arendt, “não nascemos iguais – cada
um de nós é feito como é – único, singular, intransponível. Tornamo-nos iguais como
membros de um grupo por força da nossa decisão de nos garantirmos direitos
reciprocamente iguais” (1989, p. 335). A sociedade política é formada por iguais
diferentes. Do paradoxo é que emana a suposição da igualdade e a certeza da diferença,
muitas vezes desprezada ou negligenciada, tanto pelos governos quanto pelos
indivíduos.
Os habitantes de Cádiz, mesmo que eventualmente Camus os nomeie como um
homem ou uma mulher, são freqüentemente designados pelas suas profissões e suas
vozes são representadas pelo coro. Quase sempre quem fala é a massa, e não o
indivíduo. E quando este fala está representando a classe. O anonimato é representado
por “uma voz”, o niilismo pelo personagem Nada e o restante da cidade são mercadores,
pescador, governador, alcaides e o juiz. Os únicos nomeados são Vitória e Diego. A
própria Peste é um nome que remete simultaneamente ao totalitarismo e à doença,
87
criando uma analogia entre eles. O que isso demonstra é a existência de identidades
forjadas dentro e em benefício do artifício humano.
A cidade eram eles. A lei que o governador decretava parecia estar em
consonância com o que eles queriam, ou seja, que lhes fossem assegurados o direito de
pertencimento a uma comunidade e de possuir um governo que os representasse e os
protegesse. O que quer que, por mais absurdo, fosse decretado pelo governo, mesmo
recebido com ironia, era cumprido. E o que o governador de Cádiz decretava era o
silêncio com relação à aparição do cometa, e o que ele impunha era a mesmice:
ARAUTO: Ordem do governador. Que todos se retirem e voltem para
suas atividades. Os bons governos são aqueles em que nada acontece.
A vontade de seu governador é que nada aconteça em seu governo e
que continue bem, como sempre foi. Fica assegurado aos habitantes de
Cádiz que nada aconteceu hoje que valha a pena o alarme ou a
desordem [...]. Todos deverão considerar falsa a aparição de qualquer
cometa no céu desta cidade. Aquele que não estiver de acordo com
esta decisão, ou quem falar em cometas [...] será punido com o rigor
da lei. (CAMUS, 2002, p. 38).
Podemos observar a obediência ao governo quando, na praça do mercado, os
habitantes seguiram suas vidinhas - vendendo, roubando, mendigando, enganando,
tagarelando -, num burburinho que ofuscava ou tornava imperceptível o vazio no qual
viviam. Um vazio, que como o define Rollo May (1985, p. 14), é próprio daquele que
não só ignora o que quer como também não tem uma idéia muito nítida do que sente. Ao
visitar o mercado, o governador exclama: “Estou alegre por vê-los aqui reunidos como
sempre; empenhados nas ocupações que fazem a riqueza e a paz de Cádiz. Nada
acontece e nada acontecerá e isto é muito bom. A mudança me irrita” (CAMUS, 2002,
p. 49). A fala demonstra a relação de troca, em que o governo oferece a condição para o
trabalho e o povo produz a riqueza que redundará na paz. Uma pseudopaz, já que essa
só reina para o beneficiário da riqueza e enquanto houver riqueza. Contudo, isso – a
88
produção de riqueza pelo povo e para uma minoria, é que não deve mudar. “Um
homem do povo” (CAMUS, 2002, p. 49) percebe o engodo da afirmação do governador:
“Não, governador, é claro que nada mudou. Nós, os pobres, podemos assegurar. Todo
final de mês continua apertado. A cebola, a azeitona e o pão são o nosso sustento; e a
gente continua contente em saber que outros comem galinha ensopada todos os
domingos”. No entanto, esse personagem era apenas um homem do povo. “E o povo, e
não o indivíduo representa a imagem do homem” (ARENDT, 1989, p. 335). A resposta
do povo, através do coro, era de conformidade: “Nada mudou! Nada acontece, e nada
aconteceu. [...] Na verdade, tudo está em seu lugar, o mundo se equilibra. É meio-dia do
ano, a estação alta e imóvel! Felicidade, felicidade”. No entanto, é na fala dos bêbados,
que rodeiam o personagem Nada, que encontramos a determinação de toda cidade:
“Vamos deixar correr as horas, este reino não terá história” (CAMUS, 2002, p. 50).
Os habitantes de Cádiz não percebiam a absurdidade em que estavam inseridos.
Eles estrangeirizavam por desconhecerem a própria estrangeiridade, que lhes poderia ser
revelada na constatação do absurdo e na opção de vivê-lo, negando-o, já que “o absurdo
só tem sentido na medida em que não seja admitido” (CAMUS, 2005, p. 46). A
decorrência política do desconhecimento ou da inconsciência do absurdo era a
manutenção de um governo que prezava a imobilidade, decretava o silêncio e impunha a
mesmice. Esse governo não era totalitário, mas já demonstrava a intolerância à oposição
e, naquela cidade, percebia-se a existência de uma massa politicamente neutra e
indiferente.
50
Essa forma de governo facultou a invasão da Peste, e é, sob o regime da
Peste, que os habitantes de Cádiz se tornaram estrangeiros na própria terra. Quando a
50
Segundo Hannah Arendt, “o termo massa se aplica quando lidamos com pessoas que, simplesmente
devido ao seu número, ou a sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem integrar numa
organização baseada num interesse comum, seja partido político, organização profissional ou sindicato de
trabalhadores. Potencialmente, as massas existem em qualquer país e constituem a maioria das pessoas
neutras e politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de
voto” (1989, p. 360).
89
Peste, enfim, é supostamente vencida, os governantes antigos retornam a Cádiz ao som
de trombetas e das palavras de Peste:
Escute! É a minha oportunidade que está voltando. Lá estão seus
antigos senhores, a quem vocês encontrarão cegos às feridas dos
demais, bêbados de imobilidade e esquecimento. [...] Glória aos
estúpidos, pois eles preparam o meu caminho! Eles fazem a minha
força e minha esperança (CAMUS, 2002, p. 159).
3.2 ESTRANGEIROS NA PRÓPRIA TERRA: A POPULAÇÃO DE CÁDIZ EM
ESTADO DE SÍTIO
De acordo com Catherine Koltai (2000, p. 21), “a figura do estrangeiro pode ser
abordada como algo que se situa na fronteira do subjetivo com o social, do singular com
o político”. O estrangeiro na própria terra decorre da subjetividade, quando, por
exemplo, ao retornar de um exílio, o nativo não reconhece mais a terra natal. Ele vive a
terra no tempo de sua memória, enquanto que o tempo cronológico se encarregou de
transformar as pessoas, os fatos, a natureza, a arquitetura, etc. No entanto, o que é
tornado estrangeiro na própria terra, o é, sobretudo, por decorrência de ações políticas.
Para afirmarmos esse processo de estrangeirização em Cádiz, com a invasão da Peste,
necessitamos recorrer ao conceito jurídico de estrangeiros e aos direitos de que são
desprovidos.
Se partíssemos da definição de estrangeiro somente como aquele que não
pertence à nação em que estamos, aquele que não tem a mesma nacionalidade,
limitaríamos o nosso percurso. Todavia, quando a nação – na pessoa do Estado - não
reconhece mais como cidadão ou como nacional aquele que nela reside, sem o expulsar,
sem o tornar apátrida, essa mesma nação torna-o estrangeiro. Nesse caso, o estado de
90
pertencimento determinado pelo “jus solis e pelo jus sanguinis – o direito segundo a
terra e o direito segundo o sangue” (KRISTEVA, 1988, p. 100) deixa de ser garantia
para o que, até então, era considerado nacional. Se o Estado, representante da soberania
do povo, não reconhece seu próprio membro, este se torna uma anomalia dentro do
Estado. Não existindo lei que o abarque, que o proteja, é como se ele não existisse. Não
existindo ele pode ser eliminado, pois não há lei que ampara o que não existe. O
estrangeiro na própria terra é assim “uma vida que cessa de ter valor jurídico e pode,
portanto, ser morta sem que se cometa homicídio [...] uma vida que cessa de ser
politicamente relevante, é então somente, ‘vida sacra’
51
e, como tal, pode ser
impunemente eliminada” (AGAMBEN, 2002, p. 146).
O nacional, sendo desprezado como tal pelo Estado, passa a viver sob leis
comuns ao não nacional. O estrangeiro, em comparação ao cidadão, é desprovido de
alguns direitos, sobretudo políticos, Em alguns países, “o estrangeiro e o nativo se
equiparam quanto aos seus direitos civis (o que equivale, grosso modo, ao direito
privado), mas, nitidamente, restam diferenças quanto aos direitos políticos”
(KRISTEVA 1988, p. 105). No Brasil, por exemplo, aquele que reside no país, mas
nasceu fora do território nacional e não adquiriu a nacionalidade brasileira, sofre
limitações constitucionais. Luis Bassegio e Roberval Freire
52
, membros da Secretaria de
Serviço Pastoral dos Migrantes, afirmam, em relatório sobre o Fórum Social das
Migrações, que aconteceu em Porto Alegre em janeiro de 2005, que “a atual lei dos
estrangeiros é ultrapassada, xenofóbica e tem resquícios da ditadura militar”.
É importante salientar que os estrangeiros “não participam do processo legal que
conduz à adoção das leis. Além disso, a existência jurídica do estrangeiro é gerida não
51
A vida insacrificável e, todavia, matável, é a vida sacra.
52
Rede Social de Justiça e Direitos Humanos - http://www.social.org.br/relatorio2005/relatorio017.htm
91
por uma lei, mas pelas formas menos nobres da regulamentação: as disposições do
Executivo [regulamentos e decretos]” (KRISTEVA, 1994, p. 107). O estrangeiro, como
observa Daniele Lochak, citada por Kristeva, é assim “reduzido a um objeto passivo.
[...] alienado em relação à ordem jurídica” (1994, p. 106).
O que aconteceu em Cádiz, com a invasão da Peste, foi, além da perda dos
direitos políticos pelos cidadãos, a perda da cidadania, dos direitos civis: eles foram
reduzidos a homens
53
, tornados apátridas na pátria, vivendo sob as mesmas leis dirigidas
ao estrangeiro. Quando a Peste, em Cádiz, iniciou seu regime, tornou a todos uma
anomalia passível de ser concentrada, eliminada e deportada. A Peste, ao ser procurada
por “Uma Mulher” que lhe questionava a respeito do marido desaparecido, trata
ironicamente o fato:
PESTE: Que coisa vulgar! Não se preocupe, ele já encontrou uma cama.
A MULHER: É um homem e merece respeito.
A PESTE: Uma fênix, naturalmente!
(CAMUS, 2002, p. 94)
Na ironia da Peste, a definição de homem: por que insistir em tratar como fênix, como
uma pessoa rara, única em seu gênero, aquele que não é nada quando destituído da
proteção de um Estado, que não é nada fora do conceito de povo? Um homem, para a
Peste, só representava como unidade na contagem dos assassinatos legitimados por ela:
“O destino, a partir de agora, é programado, já instalou seus escritórios. Vocês irão
figurar nas estatísticas e, enfim, servirão para alguma coisa. [...] Trago o silêncio, a
ordem e a justiça absoluta” (CAMUS, 2002, p. 76).
53
O Homem, que foi considerado no século XVIII, com a Declaração dos Direitos do Homem, a fonte da
lei, não poderia ser agraciado com ela sendo somente homem, pois “mal o homem havia surgido como ser
completamente emancipado e isolado, que levava em si mesmo a sua dignidade, sem referência a alguma
ordem superior que o incorporasse, diluía-se como membro do povo, que havia sido proclamado como
único soberano em questões de lei. [...] O povo, e não o indivíduo, representava a imagem do homem”
(ARENDT, 1989, p.325). Não pertencer a um povo, ou ser apenas homem, significa também, não ser
protegido pelos Direitos do Homem.
92
Ao destituir o antigo governo e suas pilhéricas leis, a Peste impôs o que
considerava ordem substituindo o caos e decretou uma morte única para todos. E para
suas ações, ainda possuía justificativas: “Eu os concentrei. Até hoje, viviam espalhados
e na frivolidade – um pouco dispersos, por assim dizer! Agora são um bloco coeso”
(CAMUS, 2002, p. 95).
Para atingir seus objetivos, a Peste necessitava antes igualar todos os homens,
pois abominava “a diferença e a falta de razão” (CAMUS, 2002, p. 77). Todos deveriam
ser iguais perante a lei que ela impunha, para que fossem úteis ao seu regime de
servidão, medo e morte. Quando o ‘Pescador’ ao preencher seu certificado de existência,
exigido pelo regime da Peste, é questionado sobre os acontecimentos importantes da sua
vida, ele reage:
PESCADOR: Minha vida me pertence. É privada, não diz respeito a
ninguém.
SECRETÁRIA: Privada! Estas palavras não fazem sentido para nós.
Naturalmente trata-se de sua vida pública. Aliás, a única autorizada a
vocês. (2002, p. 83).
Para eliminar a diferença despojava-se o homem da sua privacidade, tornando
pertencente ao direito público o que era privado. Segundo Arendt “onde quer que a vida
pública e a sua lei de igualdade se imponham completamente, onde quer que uma
civilização consiga eliminar ou reduzir ao mínimo o escuro pano de fundo das
diferenças, o seu fim será a completa petrificação” (1989, p. 335). É interessante notar
que a manifestação da peste no corpo físico, também funciona como uma petrificação
das glândulas, caracterizando-se pela presença de linfonodos intumescidos e por
abscessos que se recusam ao bisturi, devido ao seu enrijecimento. A doença
concretizava os objetivos do regime: disseminava o medo e eliminava petrificando,
tornando em “bloco coeso”, o que era humano. A peste como epidemia, em Cádiz, foi o
93
que podemos chamar de bioterrorismo e mantinha com o regime da Peste uma relação
de suporte e de interdependência.
Com o propósito de anunciar aos habitantes que esses permaneceriam na cidade,
mas que esta não mais lhes pertencia, e de divulgar o pertencimento da cidade e dos
homens à nova potência, a Peste envia seus cinco mensageiros apocalípticos (CAMUS,
2002, p. 69-74), derramando um a um suas taças de amarguras, enquanto a cidade,
apavorada, tentava fugir. Em cada mensageiro, uma lei que os estrangeirizava. O
primeiro anuncia a estrela negra suspensa e fixa nas portas com os dizeres “somos todos
irmãos”, o que poderia ser interpretado por somos todos iguais, somos todos nada, e
teremos o mesmo fim. O segundo mensageiro determina a “lealdade à nova sociedade”.
A garantia de manutenção da vida passou a depender da servidão aos princípios e regras
decretados. O terceiro retirava o direito de ir e vir e, substancialmente, o direito de
“permanecer em lugar público, ou circular pelas ruas da cidade sem um passe,
devidamente carimbado, entregue apenas em alguns poucos casos e sempre de modo
arbitrário”. O quarto mensageiro anunciava a primazia da delação:
Está totalmente proibida a assistência a qualquer pessoa atacada pela
doença, a não ser denunciando-a às autoridades, que se encarregarão
dela. A denúncia entre os membros de uma mesma família é
particularmente recomendada e será recompensada com uma dupla
ração alimentar, chamada ração cívica
54
(CAMUS, 2002, p. 71).
A tribulação dos habitantes intensificava-se a cada taça. O quinto, e último,
mensageiro despejou o silêncio entre os homens, alegando que “as próprias palavras
poderiam ser o veículo de infecção”. Coibir as relações e retirar a palavra, a fala
54
A delação é difundida nas sociedades totalitárias, assim como nas ditatoriais. Segundo Hanna Arendt,
“a atomização da massa na sociedade soviética foi conseguida pelo habilidoso uso de repetidos expurgos
que invariavelmente precediam o verdadeiro extermínio de um grupo. A fim de destruir todas as conexões
sociais e familiares, os expurgos eram conduzidos de modo a ameaçarem com o mesmo destino o acusado
e todas as suas relações, desde meros conhecidos até os parentes e amigos íntimos [...] Para salvar a
própria pele, os acusados prestam informações e acorrem com denúncias que corroboram provas
inexistentes” (1989, p. 372-373).
94
significa retirar aquilo que distingue os homens dos outros animais. Como afirma
Arendt,
A perda da relevância da fala (e o homem, desde Aristóteles, tem sido
definido como um ser que comanda o poder da fala e do pensamento) e a
perda de todo relacionamento humano (e o homem, de novo desde
Aristóteles, tem sido concebido como “o animal político, isto é, que por
definição vive em comunidade) [...] é a perda, em outras palavras, das
mais essenciais características da vida humana
(1989, p. 330).
Ao fim das mensagens, o que, unicamente, deveria ser apreendido pelos
habitantes era a mudança da condição de cidadãos para a condição de estrangeiros em
uma terra não-estranha e, a partir da invasão, inimiga. A compreensão do que estava
acontecendo, não era bem quista, pois, como afirmou a Secretária da Peste “quanto
menos compreenderem, melhor aceitarão” (2002, p. 69). No entanto, havia homens que
compreendiam e, apesar disso, aceitavam a situação, as condições impostas. A esses
identificamos como estrangeiros que se reconhecem como tal, mas que negam a atitude
de defesa da vida. São os que descobrem a existência do absurdo, sem, no entanto, se
manterem na “aresta vertiginosa” da descoberta.
3.3 ESTRANGEIRO QUE NEGA SUA ESTRANGEIRIDADE: O NADA
Retomando a distinção bíblica destacada por Elie Wiesel, Nada seria o Zar
55
.
Percebemos que O Nada havia confrontado o absurdo, que ele já o reconhecia, pois,
após o surgimento do cometa, ele esclarece à população: “estamos convivendo com isso
e vamos conviver cada vez mais” (CAMUS, 2002, p. 36), aludindo ao próprio absurdo e
ao desconhecimento desse pelos habitantes de Cádiz. Ele via a peste presente e
55
Na tradição judaica o Guér deve ser amado, o Nokri respeitado e o Zar desprezado.
95
adivinhava a futura. No entanto, a percepção do absurdo o conduziu à loucura, à fuga e
à anexação dos seus desejos aos da Peste. Nele, a revolta deu seus gritos, mas gritos
estéreis. O Nada “rejeita o fardo da revolta, foge da tensão que ela pressupõe”
(CAMUS, 2003, p. 124), e encarna a negação total, a indiferença e o desprezo pela vida.
Inicialmente, Nada é o revoltado metafísico, insurgindo contra sua condição de
criatura e contra a criação. É aquele que “certamente não é ateu, como se poderia
pensar, e sim, obrigatoriamente blasfemo” (CAMUS, 2003, p. 40). Sua filosofia assenta-
se na base de que, como o Nada afirma, “se Deus nega o mundo, eu nego a Deus”
(2002, p. 88). Ele reconhecia o próprio Deus como “um menino de coro, embora
conhecedor de música” (2002, p. 37) frente às atrocidades que o homem cometera para
“fundar ao preço do crime, o império dos homens” (CAMUS, 2003, p. 41). Transitando
pelo ódio, da negação de Deus à negação dos homens, desemboca num niilismo
devorador, ou seja,
na incapacidade de acreditar no que existe, de ver o que se faz, de
viver o que é oferecido. [...]. Ao suprimir todo princípio de esperança,
o niilismo rejeita qualquer limite e, com uma indignação cega, de
cujas razões nem se dá conta, acaba julgando que é indiferente matar
aquilo que já está fadado à morte (CAMUS, 2003, p. 88;325).
Sentindo-se “livre [do domínio de Deus ou dos homens] para desprezar as coisas e
vomitar nas honrarias” (2002, p. 36), Nada se torna o nada que destrói, ou almeja a
destruição do mundo:
Que o mundo morra! Ah, se eu pudesse ter o mundo frente a frente,
como um touro tremendo as patas, os olhos ardendo de ódio, a fuça
rosada e a baba feito uma cortina suja! Que momento! Esta velha mão
não vacilaria e cortaria o cordão da medula com um único golpe. A
besta, fulminada, cairia através dos espaços intermináveis, até o fim
dos tempos (CAMUS
, 2002, p. 39).
Bêbado de ânsia por destruição, Nada nega a solidariedade e lança-se no consentimento
ao assassinato pela cumplicidade com o regime da Peste. A Secretária da Peste, após
96
Nada se apresentar a ela, exclama: “Bom sinal! Com um nome desses, a gente tem
muito que fazer juntos! Passe para o lado de cá. Será funcionário do nosso reino”. Sua
atitude perde, ao pactuar com a Peste, o direito de ser chamada de revolta.
Uma coisa é conceber a existência humana como desprovida de sentido, outra é
querer forjar um sentido para ela e, outra ainda, é querer destruí-la devido à sua ausência
de sentido. São passos subseqüentes ao encontro da violência contra a vida. E essa não é
a lógica do absurdo. O homem absurdo é aquele que vive sem esperança, que mantém o
caos como sendo seu próprio inferno, seu próprio lugar, e para isso converte a vida em
revolta. E a vida é, na “conclusão última do raciocínio absurdo, [...] o único bem
necessário” (CAMUS, 2003, p. 16).
O Nada é a atitude de uma consciência que percebe a realidade, a densa
separação entre ele e os outros, ele e o mundo, a estranheza dessa separação e a
estrangeiridade a que ela remete. Deseja eliminar essa realidade. Na ânsia de eliminá-la,
elimina a si mesmo. “Por que reinar, se nada tem sentido? Por que a imortalidade, se a
face da vida é horrenda? Não há pensamento absolutamente niilista, senão talvez no
suicídio” (2003, p.283). O personagem Nada descobriu o deserto, mas não aprendeu a
subsistir nele e opta pelo suicídio justificando-o: “... não se pode viver bem sabendo que
o homem não é nada, e que a face de Deus é horrível” (2002, p. 163).
3.3 ESTRANGEIRO QUE SE IMPÕE COMO DIVINDADE: A PESTE
Enquanto o Guer e o NoKri, categorias bíblicas do estrangeiro, devem ser,
respectivamente, amado e respeitado pelo povo que os acolhe, o Zar deve ser
desprezado. Porém, em que categoria se enquadra e como ser tratado, aquele que não
97
pertence à terra - nem pelo jus soli, nem pelo jus sanguinis – e, no entanto, nela
penetra, como um bacilo, com o único intuito de destruir, sob o pretexto de impor sua
própria ordem? Esse invasor torna, os outros, estrangeiros em sua própria terra,
apropriando-se de suas vidas e determinando-lhes o destino. Concentra, massacra,
escraviza. É o outro se afirmando como único eu, dividindo o mundo em dois: ele e os
outros. Essa atitude suscita o questionamento da auto-imagem que esse eu possui e dos
discursos nos quais se sustenta tal visão. No caso do estrangeiro invasor, prevalece o
discurso racista e o niilista, ambos fundamentados no ódio. Tentar desvendá-lo significa
um contato com a face mais obscura das sociedades e com uma parte sombria da
história, que ainda hoje paira sobre nós.
Em Cádiz, a Peste se apresenta como tal ao governador: “Eu sou a Peste”
(CAMUS, 2002, p. 6). No entanto, antes de se apresentar e de enviar seus mensageiros
que colocam em ação o que ela diz ser (a peste), ela é nomeada por Camus como “O
Homem” (2002, p. 61-68) e como um estrangeiro que chega a Cádiz (2002, p. 61). O
Homem era a representação concreta dos significados que perpassam na imagem da
epidemia. Esses significados são resultantes do entrecruzamento de vários discursos.
Isso nos induz à afirmação de que não é o homem que invade Cádiz e sim o discurso do
qual ele é a representação e a condensação máxima. Nesse discurso, reconhecemos,
através da história, os mitos que o sustentam, assim como sua associação a outros
discursos científicos e religiosos. Segundo Norbert Elias, para que determinado povo
pactue com uma ideologia, ele cria, um “mito social [...] que lhe demonstre o valor
incomparável de sua nação” (1985, p. 29). Revestido desse mito ele passa a conceituar
os outros povos como uma raça pertencente à camada inferior de uma estratificação
forjada e a justificar suas invasões e extermínios.
98
Podemos verificar que foi, sob “uma ideologia que interpreta a história como
uma luta natural entre raças”, que ocorreram invasões, colonização, escravidão e
massacres de povos inteiros. No entanto, como afirmou Arendt, (1989, p. 187) “não
importa o que digam os cientistas, a raça é, do ponto de vista político, não o começo da
humanidade, mas o seu fim, não a origem dos povos mas o seu declínio, não o
nascimento natural do homem mas a sua morte antinatural”.
A peste sempre existiu e seu bacilo, como afirma Rieux, em A Peste, “não morre
nem desaparece nunca” (CAMUS, 1997, p. 269). O que entendemos é que esse bacilo,
ao longo do tempo, passou por mutações, até atingir uma forma que identificamos, em
Estado de Sítio, como totalitarismo. As mutações continuam. E é urgente, a cada tempo,
identificá-las.
Em Estado de Sítio, inicialmente identificamos a Peste pelos seus trajes, “uma
espécie de uniforme que tem uma condecoração” (2002, p. 61). O uniforme é usado
tanto como uma afirmação simbólica de uma potência, tanto como a identificação do
seu usuário com o discurso ou a ideologia dessa potência. Ao usar o uniforme a Peste
mostrava a força que era e que, ao mesmo tempo, representava. Ela era a parte visível do
símbolo e dessa forma se apresenta:
PESTE: Olhe para mim: eu sou a própria força!
DIEGO: Tire o uniforme. Dispa-se. Quando os homens da força tiram o
uniforme, não são mais bonitos de se ver!
PESTE: Talvez. Mas a força deles é ter inventado o uniforme.
(CAMUS, 2002, p.149).
A primeira apresentação da peça exibiu a Peste, contrariamente ao gosto de
Camus, trajando uniforme nazista. Camus não pretendia que a imagem da Peste
estivesse somente ligada ao nazismo, para que a peça pudesse dizer do seu repúdio a
toda sociedade política contemporânea. Para ele, o mal da época
99
se chama Estado, policial ou burocrático. Sua proliferação em todos os
países, sob os mais diversos pretextos ideológicos, como a insultante
segurança que lhes dão os meios mecânicos e psicológicos da
repressão, cria um perigo mortal para o que há de melhor em cada um
de nós” (2002, p. 183).
O “perigo mortal”, a que se refere Camus, tem suas origens na absorção do
niilismo pela filosofia política. O niilismo, segundo esse autor, está “estreitamente
ligado ao movimento de religião desiludida e termina no terrorismo” (2003, p. 196). A
invasão a povos estrangeiros serviu-se de inúmeros pretextos tais como civilizar, salvar
almas ou eliminar culturas consideradas nocivas para o nativo. A invasão possuía
objetivos, mesmo que fossem objetivos hipócritas, cínicos. Contentava-se, como
afirmou Arendt (1998, p. 277) em relação aos governantes russos e austríacos de antes
da Primeira Guerra Mundial, “com a ociosa irradiação de poder, e satisfeitos em
controlar seus destinos exteriores, deixava intacta toda a vida espiritual interior”. No
entanto, o que Camus coloca sob o signo da Peste, este estrangeiro que se apodera do
poder absoluto, “interfere com igual brutalidade no indivíduo e na sua vida interior”. O
que parece sustentar todos os seus atos é um profundo desprezo pela vida humana, e
“um supremo desprezo por todo fato e toda realidade” (ARENDT, 1989, p. 435). A
Peste parece gritar como Sade, citado por Camus como aquele que só extrai da revolta o
não absoluto: “é preciso matar o coração, esse ‘ponto fraco do espírito’” (2003, p. 60).
Numa seqüência premeditada, classifica e atomiza os homens, privando-os de sua
condição legal, para posteriormente separá-los do mundo e ajuntá-los em campos de
concentração e, assim, eliminá-los como “piolhos”,
56
alegando uma limpeza da terra
(ARENDT, 1989, p. 329).
56
Himmler, chefe da SS, citado por Arendt: “fomos os primeiros a realmente resolver o problema do
sangue pela ação (...) e por problema de sangue não entendemos, naturalmente, o anti-semitismo. O anti-
semitismo é exatamente a mesma coisa que catar piolhos. Catar piolhos não é uma questão de ideologia,
mas uma questão de limpeza” (1989, p. 436).
100
Segundo Camus, “por uma lógica inevitável do niilismo”, partindo do mesmo
fato histórico identificado por Nietzsche – a morte de Deus, os “livre-pensadores”
tomaram a cargo “aquilo com que ele próprio [Nietzsche] havia sonhado – a super-
humanidade. [...] O nietzschismo, teoria da vontade de poder individual, estava
condenado a inscrever-se numa vontade de poder total”. Se o homem está entregue ao
acaso, à história ou ao devir, ou “se o mundo não tem rumo”, a ambição do homem é
dar-lhe uma direção, “que culmine em um tipo superior de humanidade” (2003, p.100).
Essa ambição é que move a Peste, em Estado de Sítio, que com uma firme crença na sua
onipotência, se reconhecia como o único poder do mundo:
Antes, pretendiam temer a Deus e seus acasos. Mas seu Deus era um
anarquista: misturava os gêneros. Acreditava que podia ser ao mesmo
tempo bom e poderoso. Era uma falta de sinceridade e de
conseqüência, é bom dizer. Quanto a mim, escolhi apenas o poder.
Escolhi a dominação (CAMUS, 2003, p.158).
Destituindo Deus e deificando o acaso ou a história, “o homem, infiel a sua verdadeira
revolta está fadado às revoluções niilistas [...] que buscam desesperadamente a unidade
do gênero humano, [...] a unidade do mundo” (CAMUS, 2003, p. 160). Esse homem tem
como meta apressar a história – que carrega o significante de progresso e evolução -,
antecipando a morte; eliminar a diferença e os diferentes para que restem e procriem
apenas os que são considerados melhores, puros, perfeitos para habitarem o olimpo de
deuses humanos. A diferença é, para isso, assinalada, delimitada em partes eleitas como
antagônicas de um todo fictício ou vindouro, para posteriormente ser eliminada. Não
apenas marginalizada ou expatriada: a diferença é concentrada para ser eliminada. “A
partir de hoje, vocês vão aprender a morrer em ordem. [...] Uma única morte para todos.
O destino, a partir de agora é programado, já instalou seus escritórios”, decreta a Peste
em Cádiz (CAMUS, 2002, p. 76).
101
“Abomino a diferença e a falta de razão”, grita a Peste do alto de seu palácio –
erguido pelos próprios habitantes de Cádiz – ao instituir a morte lógica, a morte
organizada. É preciso esclarecer que, não somente as diferenças intrínsecas à
comunidade eram abominadas pela Peste, mas, sobretudo aquelas que ela mesma
determinava como diferença. Sua marca, “a estrela do tumor”, designava aqueles que
seriam mortos; os não marcados, aqueles que poderiam ser mortos.
Os habitantes de Cádiz foram previamente reduzidos a nada. E essa estratégia só
se realizou a partir do princípio niilista de que tudo é permitido, inclusive a destruição,
defendida pelos niilistas como “uma paixão criadora” (CAMUS, 2003, p. 188). Nessa
defesa, aconselhava a Peste à Secretária: “se você quiser alguma coisa que lhe baste...
encontre-a na alegria de destruir“ (CAMUS, 2002, p. 156). No entanto, o tudo é
permitido – “a licença para destruir” – pressupõe que se possa também ser destruído.
Logo, será preciso lutar e dominar. A lei nesse mundo será a lei da força, e o que o
movimentará será a vontade de poder.
Ao chegar em Cádiz, o homem nomeado Peste, não faz guerra contra o governo
para destituí-lo. Ele simplesmente negocia uma troca, sutilizando ameaças e
demonstrando a força, que tudo lhe possibilitava. Julgava-se um homem “correto por
princípio” e explica ao governador: “Faço questão de obter seu consentimento. Eu não
queria fazer nada sem sua permissão porque estaria contrariando meus princípios”
(2002, p. 65). Em defesa do diálogo para a negociação com o governador, a Secretária
argumenta, sarcasticamente, à Peste: “Somos visitantes e devemos nos curvar aos
costumes do lugar”. Dessa forma foi que a Peste se instalou em Cádiz, forjando um
clima de diplomacia, de diálogo. Era como se ela estivesse cumprindo um dever e
prestando um favor à cidade. “O seu cinismo moral e a sua crença de que tudo é
102
permitido”, repousavam, tal como nos líderes totalitários descritos por Arendt, “na
convicção de que tudo é possível” (1989, p. 437). E de fato, pelo menos no início, não
houve obstáculos ao seu domínio.
A Peste representava o Outro, na figura inconteste de um deus, de uma potestade
a quem lhe cabia, mesmo que irreconhecível, o direito de finalizar a vida. Um outro para
Cádiz dirigir-lhe o ódio e a repulsa. Mas Cádiz era o outro para a Peste. E nesse
confronto venceria aquele que detivesse o maior ódio e a maior força, para despertar o
medo e a visão da impotência. Num embate de ódios e apelos para a destruição,
a humanidade inteira não bastaria para saciar a sede de sangue, e seria
preciso correr para a aniquilação universal. [...] não adianta imaginar
um mecânico que possa pulverizar o universo, [pois], na poeira dos
globos, a vida vai continuar. O atentado contra a criação é impossível.
Não se pode destruir tudo. Há sempre um resto (CAMUS, 2003, p.
62).
Que armas, então, utilizar contra este estrangeiro invasor, que se fundamenta no
sofisma de que, se o assassinato é um atributo divino e ele mata, logo ele é Deus? A
tolerância seria ridícula por ser um consentimento à servidão. A revolta armada seria um
suicídio improfícuo. Um acordo, tal como o efetuado pelo governador, seria entrega,
covardia. Aguardar uma parúsia, divina ou revolucionária, passivismo. O mal maior que
esse Outro impingia a Cádiz era retirar-lhe a resposta e a ação; retirar-lhe a possibilidade
de lutar pela liberdade. Na peça, quem aponta para a resposta – que é descoberta,
aleatoriamente, por Diego - é a própria representante da morte, a Secretária da Peste:
“há uma falha na máquina [...] sempre bastou que um homem vença seu medo e se
revolte para que a máquina comece a falhar. Não digo que ela pare, longe disso. Mas,
enfim, ela falha e, às vezes, degringola completamente” (CAMUS, 2002, p. 130). No
entanto, o medo só é vencido quando o indivíduo percebe que ele, o medo, não lhe serve
mais de defesa, quando sabe que aquilo que ele teme lhe acontecerá inexoravelmente.
103
Quando isso acontece, a arma inicial do dominador se revela inexistente. O erro da
Peste foi subestimar a força de Cádiz e basear-se na “idéia impudente e presunçosa de
que se pode fazer tudo, e na insolente convicção de que tudo o que existe é apenas um
obstáculo temporário a ser certamente vencido” (ARENDT, 1989, p. 437).
A vitória de Cádiz dependeu do erro da Peste e do reconhecimento do próprio
erro por seus habitantes (no início, somente por Diego). Todavia, foi uma vitória apenas
de Cádiz, pois o ódio da Peste “precisa de vítimas frescas” (2002, p. 156), e ela invadiria
outro lugar para ocupar o vazio ainda não reconhecido por seus habitantes. O vazio que
representa o espaço que os definem como estrangeiros.
3.5 ENTRE A AFIRMAÇÃO E A NEGAÇÃO: A ESTRANGEIRIDADE DE
DIEGO
Diego, estudante de medicina, amigo do Nada, é o personagem no qual Camus
busca exemplificar o herói da tragédia do absurdo. Esse personagem que, até a invasão
da Peste, vivera como um homem cotidiano
57
na esperança de ser feliz, sem acreditar
nas calamidades anunciadas pelo cometa e sem querer se envolver com as questões
políticas ou morais de Cádiz, transforma-se sob a visão do absurdo ostentado nas mortes
decretadas pela Peste. São três elementos distintos e interligados na tragédia camusiana:
o absurdo, a injustiça e a revolta, que correspondem na peça, respectivamente, à
passividade dos indivíduos num universo por eles desconhecido, à invasão da Peste e à
ação de Diego.
57
Em O Mito de Sísifo, Camus define o homem cotidiano contrapondo-o ao homem absurdo. O homem
cotidiano seria aquele que não gosta de demorar, tudo o apressa, que nada lhe interessa além de si mesmo;
é o homem inconsciente, que vive apressado atrás de uma esperança qualquer (2005, p. 91).
104
No início da invasão, Diego se julgava capaz de ajudar as pessoas, abrandando
o sofrimento ou mesmo curando. Ele direcionava sua força para combater o invasor no
corpo físico do outro. Paliativos, pois lutava contra a doença somatizada e não
vislumbrava sua origem: a injustiça. Vitória, sua noiva, o encontra, já fragilizado, nesse
momento: “Não me reconheço mais. Nunca tive medo de homem algum, mas isto é
mais forte do que eu. A honra já não me serve de nada, estou abandonado” (CAMUS,
2002, p. 59). Esse era o instante em que Diego ouvia o chamado, o instante em que
estava sendo levado “para longe dos caminhos comuns do homem” (CAMPBELL,
2005, p. 66). Não se reconhecia mais porque ainda não se conhecera. Ainda não se
evidenciara a distância que o separava do mundo e dos outros homens. Todo o Diego
construído até então se desmorona, pois era somente imagem. Destruída a imagem, ele
inicia um caminho distinto da existência banal daquele que não indaga (GUIMARÃES,
1971, p. 52).
A cidade de Cádiz, com suas fronteiras invadidas e fechadas pela Peste, fora
tomada por mortes e desespero. O homem via no outro o provável contágio. Cada um
se tornara um veículo da peste. “O outro como uma ameaça trazia um ensinamento
paradoxal: todos eram potencialmente o Outro [...] o Outro como algo /alguém que
devia ser evitado, que não só estava desqualificado, mas também não era fonte de valor,
já que emblematizava o não-valor: a morte”
58
(ACHUGAR, 2004, p. 15). A peste, mais
que no corpo, agia nas fronteiras entre os homens.
Aos habitantes, acuados, dominados pelo medo, não havia como se libertarem da
dor. Não havia como cantar as alegrias da terra, uma vez que foram arremessados a uma
terra estranha dentro da sua própria e destituídos, inclusive, da fala, da palavra.
58
Hugo Achugar se refere a uma epidemia de poliomelite ocorrida no Uruguai em fevereiro de 1956.
Tradução nossa do original: “El otro como amenaza conllevaba una paradójica enseñanza: todos eran,
potencialmente, el Otro [...] o Otro como algo/alguien que havia de ser evitado, que no solo estaba
descalificado sino que, además, no era fuente de valor ya que emblematizaba el no-valor, la muerte”.
105
Paradoxalmente, para evitar o contágio da doença que ela mesma disseminava, a Peste
ordenou que todos os habitantes usassem na boca um tampão embebido em vinagre que
os induziriam à discrição e ao silêncio. Viver a dor sem nomeá-la: a isso foram
reduzidos os moradores de Cádiz. Com a palavra silenciada, esterilizava-se a vida e toda
possibilidade de revolta.
No entanto Diego, apesar do medo e, talvez, pelo desespero ao constatar a
estrangeirização induzida pela Peste, intentava despertar a força de reação nos
silenciados, dirigindo-se ao coro e, posteriormente, desafiando a Peste:
DIEGO: Onde está a Espanha? Onde está Cádiz? Este cenário não é de
nenhum país! A gente está em outro mundo, onde o homem já não
pode viver. Por que estão mudos? [...] Também estou com medo.
Vamos gritar nosso medo, faz bem!
CORO: Éramos um povo, agora somos uma massa [...] ninguém pode
fazer nada por ninguém [...] estamos pisando em nós mesmos.
PESTE: Isto é sabedoria. Aproxime-se, Diego, agora que
compreendeu.
DIEGO: Somos inocentes! [...] A inocência, carrasco, compreende? A
inocência.
PESTE: Inocência? Não conheço!
DIEGO: Então, aproxime-se. O mais forte vai matar o outro.
PESTE: O mais forte sou eu... inocente.
(CAMUS, 2002, p. 101).
Ele logo percebe sua impotência e foge procurando, em vão, abrigo na casa do juiz, pai
de Vitória. Este lhe recusa o abrigo, alegando servir à lei. Se a lei for o crime, “o crime
se converte em lei e deixa de ser crime”, argumenta o juiz (2002, p. 105). Diego foge.
Quer fugir da cidade, do mundo; quer fugir dele mesmo. Mas já não há mais significado
em nenhum recanto da vida. Diego já experimenta o sentimento do absurdo.
Nesse vazio de saber-se impotente ouve os dois discursos femininos que irão
alterar a direção do drama. Interessante notar como Camus constrói o herói Diego entre
duas figuras femininas; uma representante do amor – sua noiva Vitória - e outra da
106
morte – A Secretária: duas forças em tensão para criar a tragédia. Vitória e a Secretária,
imbuídas da tarefa de despertar a consciência do herói para que ele ouça o chamado e
viva sua aventura, representam uma visão da mulher colocada em sua dupla e mítica
face: Mãe da vida e Mãe da morte (CAMPBELL, 2005, p. 295). Se acrescentarmos a
esse papel do feminino na peça os estudos de Kristeva (1994), nos quais ela constata que
o primeiro estrangeiro foi uma estrangeira, concluiremos que a estrangeiridade é
desvelada por aquela que é, primariamente, estrangeira.
Vitória, em um discurso de exaltação ao amor e à coragem o instiga a enfrentar
a situação a partir de si mesmo:
VITÓRIA: Carregar meu amor é muito custoso! Não vou carregar a dor
do mundo! Isso é tarefa para os homens. Uma dessas tarefas inúteis,
estéreis, intermináveis, que vocês assumem para se livrar da única batalha
realmente difícil, da única vitória da qual poderiam se orgulhar.
DIEGO: O que tenho de vencer neste mundo senão a injustiça que fazem
conosco?
VITÓRIA: A peste que está em você. O resto vai por si.
(CAMUS,
2002, p.118)
Em outras palavras, o que parecia ser egoísmo nas palavras de Vitória, era uma
exortação à revolta, pois esta, além do reconhecimento de injustiça e do desejo de
eliminá-la, depende também do reconhecimento da “peste” em si próprio. De acordo
com Camus, “carregamos todos, dentro de nós, as nossas masmorras, os nossos crimes e
as nossas devastações. Nossa tarefa não é soltá-los pelo mundo, mas combatê-los em
nós mesmos e nos outros. A revolta está na base desse combate” (2003, p. 345).
O discurso de Vitória foi aparentemente improfícuo, pois Diego continua sua
fuga desesperada; corrompe um barqueiro para que o leve, mas antes de embarcar, a
Secretária da Peste rouba a cena e a vida do barqueiro. E é um segundo discurso
feminino, o da Secretária, que simbolizava a Morte, que demonstra a Diego a
inocuidade da fuga. Como afirmou Carlos Eduardo Guimarães, ao analisar na filosofia
107
camusiana a tragédia do destino humano, “é pela morte que nossa sensibilidade chega
ao absurdo. [...] A morte descoberta penetrará tudo. É ela que faz trágica a dor e a
injustiça sofrida pelos homens. É ela que faz trágica a felicidade. Sofrer para morrer. Ser
feliz e morrer” (1971, p. 32). De frente com a Morte é que o absurdo se revela
totalmente a Diego.
A Secretária impede que Diego embarque, dizendo-lhe que a sua fuga não está
prevista e que “além disso, eu o conheço, você não vai desertar”. Ela estimula a cólera e
a revolta em Diego com a sua ironia, sua linguagem dúbia, com suas ameaças e
demonstrações de poder. E tudo fica claro para Diego, que argumenta com a Secretária:
[...] Eu já entendi seu sistema. Vocês lhes deram a dor da fome e das
separações para distraí-los da sua revolta. Vocês os exaurem, devoram
seu tempo e suas forças para que não tenham nem lazer nem ânimo. Eles
se arrastam [...]. Estão sozinhos, mesmo sendo uma massa; eu também
estou sozinho. Cada um de nós está sozinho graças à covardia dos outros.
Mas eu, seviciado como eles, humilhado como eles, digo que vocês não
são nada. [...] Enquanto conseguem vitórias aparentes, já estão vencidos,
pois há no homem uma força que vocês não vão diminuir, uma loucura
iluminada, um misto de medo e coragem, ignorante e vitoriosa para todo
o sempre. É esta força que vai se erguer
(2002, p. 128).
Após gritar sua indignação, Diego, num ato através do qual demonstra não mais ser uma
presa do medo, esbofeteia a Secretária. A revolta, a partir desse instante, passa a nortear
sua vida. Diego não é mais um estrangeiro para si mesmo. A marca da peste desaparece
de seu corpo e a máquina do poder pestial começa a ser desmontada.
A primeira atitude de Diego, sob a revolta, foi restituir a fala aos homens,
retirando-lhes a mordaça, conclamando-lhes a abandonarem o medo e se manifestarem
contra a Peste: “Joguem fora as mordaças, e gritem comigo que não sentem mais medo.
Ó santa revolta, viva negação de um povo: dê a estes amordaçados a força do seu grito”
(2002, p. 135). No entanto, o povo resistia, alegando que o antigo temor ainda persistia
108
nos seus corações (2002, p.136). A resistência à revolta parecia ser maior que a
resistência à Peste: é mais fácil aceitar uma força externa que admitir a interna, pois
admiti-la seria transformá-la em ação e, quem age corre o risco de errar; é melhor deixar
a ação para o outro, permanecer na posição de vítima e ter “o pão, a azeitona e a vida”
garantidos. Mas Diego insiste. Insiste até que o coro arranca as mordaças com um
grande grito de liberação e se inicia a rebelião.
Durante a rebelião alguém rouba o caderno da Secretária, utilizado para desferir
as contaminações e a morte, acreditando que não haveria mais mortes com a destruição
do instrumento. A filha do juiz, irmã de Vitória, apossa-se do caderno e nele risca o
nome de seu irmão, matando-o. Alguém acredita, que pelo seu ato, também deveria ser
eliminada; arranca-lhe o caderno e faz com ela o mesmo. Um outro homem, ainda, vê
no caderno “uma chance de eliminar alguns filhos da puta que engordavam enquanto a
gente morria de fome” (2002, p. 144). Diego e o Pescador conseguem recuperar o
caderno, mas a Peste usa desse fato para convencer Diego a desistir da revolta: “Olhe!
Eles mesmos estão fazendo o nosso trabalho! Acha mesmo que merecem sua luta por
eles?” (2002, p.144). No entanto, a revolta do homem absurdo não é contra o homem e
seus crimes de paixão, mesmo que não concorde com eles. Sua revolta é contra os
crimes de lógica
59
, que desterra, concentra, escraviza e mata; é contra o assassinato
legitimado, que retira a humanidade do homem para justificar os crimes cometidos
contra ele. Daí a resposta de Diego:
Faça o que fizer, estes homens sempre serão maiores que você. Se
chegam a matar é na loucura do momento. Mas você massacra
segundo a lei e a lógica.[...] O maior crime deles terá sempre um
motivo. Mas, não encontro motivo para o crime que, em todos os
tempos cometeram contra eles (2002, p. 154).
59
Crimes de lógica, segundo Camus, são, diferentemente dos crimes de paixão, crimes premeditados; são
aqueles que, muitas vezes, se justificam a partir de uma filosofia (CAMUS, 2003, p. 13-14).
109
Uma vez experimentada a revolta, pelo absurdo, a constatação primeira é a
existência dos outros homens sofrendo a mesma injustiça. “Na experiência do absurdo,
o sofrimento é individual. A partir do movimento de revolta, ele ganha a consciência de
ser coletivo, é a aventura de todos [...] eu me revolto, logo existimos” (CAMUS, 2003,
p. 35).
A revolta é mantida, e a Peste recua. Quando os homens acreditavam tê-la
vencido, Vitória, contaminada pela peste, é trazida numa maca. Diego se desespera. “E
então, renunciamos? Você não tem mais força! Seu olhar está perdido. E eu tenho o
olhar fixo do poder”, diz-lhe a Peste (CAMUS, 2002, p. 148). No entanto, Diego propõe
morrer no lugar de Vitória. A Peste tenta dissuadi-lo e faz uma contraproposta: “se me
oferece a sua vida em troca da vida dela, vou ter de aceitar, e esta mulher viverá. Mas
faço-lhe outra proposta: dou a vida desta mulher e os deixo fugir juntos, se concordar
em deixar a cidade para mim”. Diego recusa: “O amor desta mulher é o meu reino.
Posso fazer dele o que quiser. Mas a liberdade destes homens pertence a eles, e eu não
posso dispor delas” (CAMUS, 2002, p. 150).
A recusa de Diego é a afirmação do valor de sua revolta. “A revolta é o próprio
movimento da vida e não se pode negá-la sem renunciar à vida. [...] Ela é amor e
fecundidade ou então não é nada” (CAMUS, 2003, p. 349). Não haveria sentido entregar
os homens à Peste e continuar vivendo. Se assim o fizesse, seriam eles, Vitória e Diego,
não mais que como nos versos de Affonso Romano, “Eva e Adão a refazer o amor e
dois irmãos - Caim e Abel! - a reiventar a guerra” e dar prosseguimento às injustiças.
Se não forem todos salvos, de nada serve a salvação de um só.
Diego morre, mas isso não significa a morte da Peste, mas a vida de Vitória e a
liberdade dos habitantes de Cádiz. Perguntamo-nos se Diego poderia ter matado a Peste,
110
se poderia ter destruído o mal e libertado o futuro de novos ataques; e se poderia, por
que não o fez. A resposta imediata: se o fizesse, ele estaria agindo como o carrasco e
destruiria o valor da revolta. Além disso, ele estaria destruindo um único carrasco; seria
necessário eliminar a todos; se o fizesse ele se tornaria também um carrasco a ser
eliminado. No mais, carrasco por carrasco, vida por vida, ele só poderia matar uma
única vez e depois teria que morrer, pois, na revolta, segundo Camus, “o assassinato é o
limite que só se pode atingir uma vez e depois do qual é preciso morrer” (2003, p. 324).
Mesmo que estivesse assassinando para, provavelmente, libertar o futuro, ele não
encontraria justificativas no absurdo e na revolta para isso. Se ele acreditasse no futuro,
ele não seria um homem do absurdo, e sim um homem da fé ou da história. “De nada
adianta aos revoltados, decididos a passarem pela violência e pelo assassinato para
preservarem a esperança de existir, substituírem o Nós existimos pelo Nós existiremos.
Quando assassino e vítima tiverem desaparecido, a comunidade irá refazer-se sem eles”
(2003, p.324). Para Camus, a única regra original seria “aprender a viver e a morrer e,
para ser homem, recusar-se a ser Deus” (CAMUS, 2003, p. 350).
O fato de que “um homem permanece eternamente desconhecido e que nele há
sempre algo de irredutível que nos escapa” (CAMUS, 2005, p. 26) é revelado na visão
do absurdo. O absurdo é luz incidindo sobre a condição de ser estrangeiro, de se estar
num mundo no qual o homem, como afirmou Elie Wiesel,
vindo de lugar nenhum, mergulha num universo que existia antes e
que existirá depois dele: um mundo que absolutamente não precisava
dele [...] atravessa a existência em companhia de outros estrangeiros e
lhe é dado aproximar-se deles unicamente para medir a distância que
os separará para todo o sempre” (1982, p. 134).
A contemplação dessa realidade, que é exposta pelo absurdo, desperta angústia, perturba
a consciência. Podemos fazer uma analogia desse momento com o início da aventura do
111
herói, descrita por Joseph Campbel em seu livro O herói de mil faces (1949). Segundo
esse autor, existem algumas semelhanças entre as diversas mitologias; dentre elas, o
percurso do herói, desde o chamado para a aventura, passando por uma provável recusa
a esse chamado para, posteriormente aceitá-lo e iniciar a jornada transitando por um
caminho de provas, até o momento de realizar sua missão e se tornar, de fato, o herói
(2005, p. 57-248).O absurdo seria considerado o arauto; a crise do seu aparecimento
seria “o chamado da aventura [que] descerra as cortinas de um mistério de
transfiguração [...] que revela um mundo insuspeito, e o indivíduo entra numa relação
com forças que não são plenamente compreendidas”. A aventura seria viver e agir sob a
angústia da estrangeiridade descoberta. O heroísmo, a realização de sua missão, seria a
entrega para a salvação de Cádiz.
“O primeiro avanço da mente que se sente estranha é reconhecer que ela
compartilha esse sentimento com todos os homens, e que a realidade humana, sofre com
esse distanciamento em relação a si mesma e ao mundo” (CAMUS, 2003, p. 35). Essa
mente passa a agir recusando essa condição: ela diz um não que é a “afirmação da
existência de uma fronteira” (CAMUS, 2003, p. 21), que deverá ser preservada como
condição da existência do “aquém”, de tudo aquilo que existe nas polaridades. Existe,
portanto, uma revolta contra o absurdo e inerente a ele. Todo o valor do absurdo está na
revolta que ele desperta. Todo o valor da revolta está em preservar o absurdo e a vida;
logo, em preservar os homens e a separação entre eles; os pólos e a tensão entre eles; em
preservar a estrangeiridade e os estrangeiros. Mesmo que isso signifique não preservar a
própria vida, como vimos em Diego.
112
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em Estado de Sítio, objetivando a eliminação dos homens, a Peste principia pela
eliminação dos sentimentos: “o patético desaparece quando chego. Fica proibido o
patético, bem como outras pilhérias como a ridícula angústia da felicidade, o rosto idiota
dos apaixonados, a contemplação egoísta das paisagens e a maldita ironia” (CAMUS,
2002, p. 76); chega à eliminação da palavra: “... as próprias palavras podem ser o
veículo da infecção, fica ordenado, a todos os habitantes, que mantenha constantemente
um tampão, que os preservará do mal e os induzirá à discrição e ao silêncio” (CAMUS,
2002, p. 74); até culminar na eliminação da própria linguagem, esvaziando a palavra de
sua significação a partir da coisificação do homem:
NADA: A norma aqui é agir de modo que ninguém se entenda, mesmo
falando a mesma língua. E, posso lhe garantir, estamos nos
aproximando do instante perfeito, em que todo mundo falará e nunca
encontrará eco. E onde quer que duas linguagens se encontrem nesta
cidade, elas se destruirão tão completamente que tudo se encaminhará
para o último desfecho – o silêncio e a morte. (CAMUS, 2002, p. 99)
A linguagem é o alvo da Peste, pois é ela, a linguagem, que, ao nomear, substancia e
presentifica tanto o objeto quanto o homem. Sua eliminação acontece pela eliminação
do sentimento, da sensibilidade e na medida em que os homens não se exercitam em
direção ao outro dialogicamente, tradutoriamente, mas como forma excludente,
elegendo obstáculos. A Peste seria, patologicamente, a ausência de tradução.
Uma mulher e o Nada falam simultaneamente, em uma confusão babélica, a
mesma língua, mas a linguagem é outra, pois partem de referenciais diferentes e não se
113
escutam mais (CAMUS, 2002, p. 100). Consideravam somente a eles mesmos, sua
própria dor, sua própria razão. Abre-se, assim, entre eles, uma imensa fronteira, que nem
precisa ser vigiada, porque cada um está encerrado em sua muralha, em seus conceitos.
Fronteira é a imagem perfeita do absurdo: ela não é um lugar nem outro e é, no
entanto, a presença comum desses lugares. No entanto, todas as fronteiras, como
afirmou Edgar Morin (apud REIS, 1999, p. 85), “inclusive as membranas dos seres
vivos, inclusive as fronteiras das nações, são, ao mesmo tempo, não só barreiras, mas
também lugares de comunicação e de intercâmbio. Elas são o lugar de desassociação e
associação, de separação e articulação”. O problema não está, portanto, na existência de
fronteiras, mas na maneira como são utilizadas. Elas somente serão lugares de
intercâmbio e comunicação quando, tal qual o absurdo, forem mantidas sob o propósito
da não-violência, na tensão entre reconhecê-las e não admiti-las, ou seja, na revolta.
Não admitir sua existência é manter aceso o desejo de unidade, a fome pelo absoluto, na
certeza de que o que alimenta é a fome, de que a realização de um desejo é também o
fim dele.
Diego constata que o não reconhecimento da separação entre ele e os homens foi
o erro que sustentou o medo e permitiu a invasão de uma força desestruturadora e
desumanizante. Constata também que a forma de luta contra a Peste era nem pactuar
com a separação e nem desprezar sua existência. Viver, apesar dela, pela palavra. Não
pelo monólogo, mas pelo diálogo, pela cumplicidade mútua dos homens.
114
A cumplicidade e a comunicação descobertas pela revolta podem
viver no diálogo livre. Cada equívoco, cada mal entendido leva à
morte; a linguagem clara, a palavra simples – só elas podem salvar
dessa morte. O ponto alto de todas as tragédias está na surdez dos
heróis. O diálogo à altura do homem custa menos do que o evangelho
das religiões totalitárias, monólogo ditado do topo de uma montanha
solitária. Tanto no palco como na realidade, o monólogo precede a
morte. Todo revoltado, só pelo movimento que o soergue contra o
opressor, defende portanto a causa da vida, comprometendo-se a lutar
contra a servidão, a mentira e o terror e afirmando que estes três
flagelos fazem reinar o silêncio entre os homens, obscurecendo-os uns
aos outros e impedindo que se reencontrem no único valor que pode
salvá-los do niilismo, a longa cumplicidade dos homens com o seu
destino (CAMUS, 2003, p. 326).
O herói camusiano conclamava os habitantes de Cádiz à fala, à manifestação da
peculiaridade humana que os salvaria da Peste. É interessante, ainda, observar o
reconhecimento em Diego. Não a constatação e sua conseqüência, mas os espaços
simultâneos habitados por Diego na suspensão do tempo, no instante exato do
reconhecimento. Porque, é esse instante que aproxima o absurdo e a revolta camusianos
ao conceito de entre-lugar. Homi Bhabha define esse lugar como um local de
negociação, como o lugar do contato e da interação entre culturas e indivíduos
diferentes. Consideramos que o absurdo e a revolta conduzem a um entre-lugar.
Diego, após fugir “como um desvairado” (2002, p. 120) encontra-se na praia,
entre o mar e a terra, no limite de uma opressão intolerável. No cenário, “luz sobre o
cais” (2002, p. 121). Em Diego, as trevas do medo. Física e espiritualmente num
momento limítrofe, num local fronteiriço; ele vive como num ritual de passagem, pois
aquele instante adquire um valor iniciático, que torna “a fronteira como o ponto a partir
do qual algo começa a se fazer presente” (HEIDEGGER apud BHABA, 1998, p. 19).
Nesse espaço, no contato com a Morte, Secretária da Peste, ele revive o passado
estendendo a sua revolta a tudo o que antes era aceito: “eu já entendi seu sistema. Vocês
lhes deram a dor da fome e das separações. Vocês os exaurem, devoram seu tempo e
115
suas forças para que não tenham lazer nem ânimo!”; projeta um futuro de lutas e se
manifesta, verbalmente, no presente: “há no homem uma força que vocês não vão
diminuir [...]. é esta força que vai se reerguer, e você [à Secretária] vai saber que sua
glória não passa de fumaça” (CAMUS, 2002, p. 128). O presente que Diego vive não é
mais um prolongamento do anterior, e sim “um presente expandido e excêntrico de
experiência e aquisição de poder” (BHABHA, 1998, p. 23). O instante do
reconhecimento desloca o tempo e abre um “espaço interrogatório, instersticial, entre o
ato da representação – quem? o quê? onde? – e a própria presença da comunidade”
60
(BHABHA, 1998, p. 22).
Diego se desloca para além do tempo e passa a habitar, pela consciência, o
outro, ao habitar em si mesmo. Desestrangeiriza-se ao se descobrir estrangeiro, ao
descobrir o outro de si em si. É como, reconhecidamente estrangeiro, como o outro, na
definição que o absurdo lhe dá, que Diego deflagra a rebelião contra a Peste e para a
conquista da liberdade. Do momento em que argumenta com a Secretária, até o instante
em que retira a mordaça do pescador, invoca a participação da comunidade e enfrenta
verbalmente a Peste, Diego “revela o intersticial”; realiza a “tradução cultural”; torna-se
o elemento estrangeiro através do qual “o novo entra no mundo”. (BHABHA, 1998, p.
311). A natureza performativa da revolta é a mesma da tradução: “é antes a linguagem
in actu (enunciação, posicionalidade) do que a linguagem in situ (énoncé, ou
proposicionalidade)” (BHABHA, 1998, p. 313). A revolta camusiana é a atualização da
linguagem e a forma pela qual “o homem se transcende no outro” (CAMUS, 2003,
p.34).
60
Homi Bhabha analisa a reflexão de Renée Geen, artista afro-americana, sobre a formação de
comunidades e a luta pelo poder entre grupos diversos e no interior dos grupos étnicos. Transpondo esse
questionamento para o universo da peça, percebemos que Diego passou, inevitavelmente, por essas
perguntas (dirigidas ao outro e a si mesmo): O está sendo dito? Por quem ? Quem diz o quê? Quem está
representando quem? Acreditamos que esse seja o caminho da consciência que possibilita a permanência
no absurdo e na revolta.
116
Apesar de a liberdade e a justiça serem “exigências que se situam no princípio
do movimento de revolta” (CAMUS, 2003, p. 330), a liberdade total não é reivindicada
por Diego, pois
a revolta contesta, justamente, o poder ilimitado que permite violar a
fronteira proibida. [...] O revoltado quer que se reconheça que a
liberdade tem seus limites em qualquer lugar onde se encontre um ser
humano, já que o limite é precisamente o poder de revolta desse ser
(CAMUS, 2003, p. 326).
O herói camusiano, trágico porque consciente, revoga uma situação, mas não
chega a criar uma nova era de justiça e liberdade absolutas. O próprio Nada constata
que, após a morte de Diego na batalha com a Peste, os antigos homens do poder, “os que
escrevem a história, os de antes, os de sempre, os petrificados, os tranqüilos, os
confortáveis, os estagnados, os bem polidos [voltam]. Vão cuidar dos heróis. Vão deixá-
los frescos embaixo da laje” (2002, p. 162). Ao voltarem, com belos discursos e
condecorações mútuas, apropriam-se da memória, camuflam o passado e reconstroem,
sob falsas narrativas, a cidade. Uma cidade na qual, ainda, haverá injustiça. Por isso a
revolta deve ser eterna. A pedra rola montanha abaixo: é necessário, tal qual Sísifo,
descer a montanha, buscá-la e empurrá-la novamente para o topo. Será necessário “um
estado constante de contestação e fluxo” (BHABHA, 1998, p. 312), tal como na
estrangeiridade das línguas para a realização da tradução.
Um estrangeiro é aquele que, na perspectiva dos estudos realizados neste
trabalho, constata o absurdo e, devido a isso, engaja-se em um processo ininterrupto de
tradução. Se somos todos estrangeiros, somos todos também tradutores do outro e não
há como se eximir dessa tarefa sem se ver reduzido a marionete e ser transformado em
um estrangeiro para si mesmo, em um mero receptáculo da peste, como aconteceu com
a população de Cádiz, em Estado de Sítio. Estrangeiros assim, que não realizam a
tradução, é que são passíveis de aproveitamento por um estado totalitário. Essa
117
estrangeiridade decorrente da inércia, da passividade e, sobretudo do não-diálogo, é
que é terreno propício para a invasão da Peste - assim codinominada a personagem que
instaura o estado de sítio na peça de Camus e continua, ainda na nossa
contemporaneidade, sob novas roupagens, instaurando o horror e a devastação. Nomeá-
la é imprescindível, mas não é solução, pois ela subsistirá sob o nome. Reconhecê-la
hoje, por exemplo, “na devastadora hegemonia planetária do Estados Unidos”
(MALARD, 1999, p. 73), sequer reduz os males que esse país provoca. Porém, calar
diante de suas atrocidades é assumir o papel do Nada na história. Na filosofia
camusiana, não há solução. Há limites a serem encontrados, pois “a não-violência
absoluta funda a servidão e suas violências; a violência sistemática destrói a
comunidade viva e a existência que dela recebemos” (CAMUS, 2003, p. 334).
Reconhecer os limites pressupõe o reconhecimento da estrangeiridade e do espaço, entre
o eu e o outro, que deve ser preservado. Se esse espaço, “por excesso de injustiça”, for
invadido, tornando assim inevitável a violência, esta jamais poderá ser realizada “a
serviço de uma doutrina ou de uma razão de Estado”. Uma vez materializada a peste, o
limite já foi rompido, a violência e a injustiça já foram instauradas. A revolta, dentro de
seus valores de “fidelidade à condição humana” (CAMUS, 2003, p. 333), é que
reivindicará a paz. A comunicação será, prioritariamente, sua arma e escudo. Contudo, o
essencial será impedir a materialização da peste. Impedir que “um Jeová de botas” reine
“sobre multidões silenciosas ou, o que dá no mesmo, limitadas a gritar palavras de
ordem” (CAMUS, 2003, p. 213).
Evitar a materialização da peste através da vivência do absurdo, da consciência
da estrangeiridade, das diferenças que se assomam em cada contato com o outro é o
sonho que envolve toda a filosofia camusiana. O teatro deveria provocar essa vivência.
Ele é um instrumento que conduz à experiência de um contato virtual com a peste. Esse
118
contato torna desnecessária a concretização dela entre os homens ao despertar-lhes a
revolta, que desperta valores e mantém aceso o desejo de justiça. Não apenas o teatro,
mas a arte, segundo Camus, “nos conduzirá às origens da revolta, na medida em que
tenta dar forma a um valor que se refugia no devir perpétuo mas que o artista pressente e
quer arrebatar à história” (2003, p. 296). A arte, sem exaltar e sem banir a realidade de
sua criação, sem recusar de modo absoluto o real (CAMUS, 2003, p. 308) pode arrancar
da história a peste, que a história mesma gesta. O ponto de contato com o real é que nos
permitiu, em Estado de Sítio, desmetaforizar e analisar a peste sob o signo do
totalitarismo e que nos permite, hoje, a partir do Brasil, por exemplo, uma leitura dos
seus conflitos internos e dos conflitos que “para ele acorrem, vindo também de fora, do
exterior, de outros países” (COELHO, 2000, p. 93).
Fica claro, mas devemos ressaltar, que o teatro defendido por Camus como arte
revolucionária é aquele que não serve de manutenção de um sistema ao disseminar
modos de representação da vida de acordo com esse mesmo sistema; é aquele que não se
sustenta, sob a racionalidade do lucro, na indústria cultural. Camus acreditava que sua
época ressuscitaria a tragédia, que o teatro seria outro após Coupeau, após Artaud... O
teatro comercial está mais vivo do que quando começou. Felizmente, não foi o único
que sobreviveu.
Em Belo Horizonte, durante a temporada da 32ª Campanha de Popularização do
Teatro e Dança, de dezembro de 2005 a fevereiro de 2006, o grupo Oficinão do Galpão
interpretou, sob a direção de Marcelo Bonés, a peça Estado de Sítio de Camus. Com
ligeiras alterações no texto - cortes e recortes - e algumas transformações nas indicações
cênicas, a apresentação permitiu ao público, que lotou o Galpão Cine Horto durante
todo o período citado, um reconhecimento da “peste”.
119
Marcelo Bonés, para apresentar o espetáculo, que no original possui “indicações
cênicas que são quase cinematográficas”,
61
introduziu uma narradora – Madalena
Carúnia - para conduzir a história da peça. Madalena conta que “uma cidade qualquer,
dessas que ninguém sabe o nome”, um dia foi sitiada pela peste. No entanto, algumas
marcas reconhecíveis de um passado e de um presente transladavam essa cidade, que
existe em todo lugar, para o Brasil. Por exemplo, na fala da Peste, “até hoje vocês
morriam um pouco ao acaso”, este acaso é explicitado, na peça do Oficinão, através da
menção às mortes estúpidas oriundas das chacinas, guerrilhas do tráfico, do trânsito, das
enchentes. Sobretudo as chacinas, no campo e na cidade, falam de um Brasil que
conhecemos. Também na fala da esposa do Juiz, mãe de Vitória, foi acrescida a
denúncia da burocracia, da corrupção e do desvio de dinheiro público que modelam o
passado e o presente deste país.
No palco, na montagem da peça, identificamos outros índices. No lugar de “altas
muralhas dentadas”, como foi na primeira exibição de Estado de Sítio em Paris, Marcelo
Bonés ergueu caixas e mais caixas vazias de cerveja, que eram trocadas de lugar e
montadas conforme a exigência da cena. Metros de caixas amarelas eram o muro da
cidade, o palácio da Peste, a igreja, o mercado, o palanque; assim como eram os móveis
e as paredes das casas. O espaço público foi erguido da mesma matéria que o privado
em uma alusão ao comportamento, semelhante ao torpor causado pelo álcool, de inércia
moral e indiferença, dos moradores da cidade. A vida acontecia, o amor acontecia e eles
não viam. Permaneciam hipnotizados frente à tela de uma televisão; uma minúscula tela
sobre a caixa representava o imenso poder que era exercido sobre a população.
Enquanto presos à tela não havia o fator distintivo da sociedade dos homens: a ação.
Essa, segundo Arendt, “depende inteiramente da constante presença de outros” (2007, p.
61
Marcelo Bonés em conversa informal com a autora desta dissertação, após uma das apresentações.
120
31). O outro era assim excluído naquela cidade que pincela o presente deste país. Na
inexistência do outro, a inexistência de cada um. Antes e durante a invasão da Peste,
permaneceram estrangeiros para eles mesmos e alheios uns aos outros. Circunstância
que favoreceu, para a montagem da peça, além da participação dos atores que
representavam os moradores da cidade, a utilização de pequenos bonecos de plástico
para representar os mortos da epidemia e os que estavam na fila para a morte. Aquele
que aguardava a morte possuía as mesmas características daqueles que já haviam
morrido: eram mortos viventes, “convencidos de que nada [daquilo] lhes dizia respeito”
(CAMUS, 2002, p. 77). Estavam na lista da Peste. A morte chegaria.
Madalena Carúnia, a narradora, dizia não saber contar quem era Diego. No
palco, um jogo de par ou ímpar decidia qual ator habitante assumiria o papel dele.
Qualquer um deles poderia ser o herói. O que os diferenciava do restante da população
era o amor por Vitória; era a capacidade de morrer por esse amor. O jogo, posto em cena
por Marcelo Bonés, mostra-nos que para ser Diego basta saber amar e saber se doar.
Não é necessário que a cidade aguarde uma parúsia. Sua libertação não vem de Diegos,
mas de cada um, na medida em que, com amor, se exercitam em direção ao outro. O que
torna Diego um herói é o reconhecimento do mal e a coragem de enfrentá-lo, mesmo
sabendo que não obteria nem Vitória e nem a vitória. Diego morre para salvar aquilo
que acaba sendo o que o revoltado procura e que está na própria atuação da revolta: o
amor. O universal de Diego viaja da ficção para nomear aqueles que se empenham, após
descobrirem, no absurdo, a eternidade da injustiça e do mal, a pelo menos reduzi-los no
mundo. A peste existe. O jogo foi iniciado. Resta saber, parafraseando Artaud, se haverá
um núcleo de homens capazes de impor essa noção superior de vida e devolver a todos
121
nós o equivalente natural e mágico do amor e da convivência em que não acreditamos
mais.
62
Consideramos que a peça apresentada pelo Oficinão do Galpão mostrou a
atualidade do pensamento de Camus e, através da simplicidade dos elementos cênicos,
mostrou também a complexidade dos problemas que envolvem nossa
contemporaneidade. Os elementos cênicos acrescidos ao texto indicavam a peste interna
ao país, nas roupagens da violência, da corrupção e da injustiça e na alusão ao golpe
militar de 1964, um passado que ainda repercute neste país; a peste interna aos
habitantes, na inconsciência e na alienação; e a externa ao país, promovida pela invasão
e domínio, favorecidos pelo fenômeno da globalização, dos espaços físicos e culturais.
A Peste que invade aquela cidade imaginária e que foi destituída pelo discurso e
ação política de Diego, exige hoje, um reconhecimento. Deveremos aprender a
reconhecer as suas metamorfoses e travestimentos e a sutilização dos meios que ela
emprega para destruir. Ela continua agindo no mesmo espaço do absurdo, naquilo que
Camus definiu como sendo o único laço entre os homens e o mundo, e que depende
tanto do homem quanto do mundo para poder existir (CAMUS, 2005, p. 27). Ela age
separando os homens ao retirar o espaço da separação. Ao se retirar um ‘buraco’, outro
maior é aberto. A Peste cava um abismo entre os homens e entre eles e o mundo,
suprimindo o contato, a comunicação. Ela não usa mais “mordaças embebidas em
vinagre” mas continua ferindo a capacidade de discurso e de ação, ferindo a capacidade
de traduzir-se e de traduzir o outro.
Notadamente a América Latina, que ocupa o local imaginário de periferia ou de
margem, é considerada, “para o primeiro mundo. [...] para o olhar hegemônico Euro /
62
“Resta saber se haverá um núcleo de homens capazes de impor essa noção superior do teatro e devolver
a todos nós o equivalente natural e mágico dos dogmas em que não acreditamos mais” (ARTAUD, 1999,
p. 29).
122
yanqui, antropocêntrico, o lugar da carência”,
63
do vazio, segundo Hugo Achugar. Mas
não é porque ocupa esse espaço, ou porque seja considerada esse “Planeta sin boca”
(referimo-nos aos planetas de Lacan, citado por Achugar) que não possui voz. O que
acontece é que existe uma “autoridade que determina que não têm nada a dizer ou, o que
também é possível, a autoridade carece do instrumento que lhes permite ouvir o que os
planetas / a periferia, a margem têm para dizer”.
64
Determina ou que não têm nada a
dizer ou determina o que podem dizer em função do que quer ouvir. De qualquer forma,
a voz é cerceada, singularidades e diferenças são apagadas sob o olhar dessa
“autoridade”. E o que é pior, sob esse domínio, “lo planeta [América Latina] sin boca”
passa a ser, também, um planeta sem olhos, que olha para si mesmo com os olhos do
dominador: já não é mais o que é, mas o que o outro quer que ele seja.
Recobrar a voz é um ato heróico, é posicionar-se, é lutar contra a Peste. Silviano
Santiago, no ensaio O entre-lugar do discurso latino-americano, defende que “falar,
escrever, significa: falar contra, escrever contra” e que é preciso que a América Latina
“assinale sua diferença, marque sua presença, uma presença muitas vezes de vanguarda.
O silêncio seria a resposta desejada pelo imperialismo cultural, ou ainda o eco sonoro
que apenas serve para apertar mais os laços do poder conquistador” (2000, p. 17).
Devemos salientar que um herói, tal como exposto por Camus, não é um
semideus. Ele é simplesmente aquele que fala sob a injustiça e age no sentido de
demovê-la ou diminuí-la; é aquele que possui “a mera disposição de agir e falar, de
inserir-se no mundo e começar uma história própria” (ARENDT, 2005, p. 200).
63
Tradução nossa do original: a América Latina é considerada “para el Primer Mundo, [...], para la
hegemónica mirada euro / yanqui / antropocêntrica, el lugar de la carência
(AGHUGAR, 2003, p. 20)
64
Tradução nossa do original: Existe uma “autoridad que determina que no tienen nada a decir o, lo que
también es posible, la autoridad carece del instrumento que les permita oir lo que los planetas / la
periferia, el margen tiene para decir” (AGHUGA, 2003, p. 20).
123
Discurso e ação concatenados produzem indivíduos “que podem distinguir-se, ao invés
de permanecerem apenas diferentes” (ARENDT, 2005, p. 191).
A Peste, quando chega em Cádiz, se apresenta e diz para quê veio. “Em tom
cortês”, ela responde ao governador que o que quer é o lugar dele, diz que é a Peste e
que está triste, mas que terá muito que fazer naquela cidade (CAMUS, 2002, p. 63). E
faz. Ironia na fala e violência na ação. Perguntando-nos o que difere o discurso e ação
da Peste e o de Diego, constatamos que a fala da Peste é um “monólogo ditado do topo
de uma montanha solitária” (CAMUS, 2003, p. 326). O discurso e a ação só existem na
presença e na relação com outros. “A ação e discurso são circundados pela teia de atos e
palavras de outros homens, e estão em permanente contato com elas” (ARENDT, 2005,
p. 201). A atitude de Diego está para a construção e manutenção das relações, assim
como a atitude da Peste está para a destruição. Ela não fala com o outro, mas age sobre
ele. Não há, portanto, discurso: apenas ação, que incapacita o outro. A peste se revela
pelo que faz e não pelo que diz. Ela é força, e não poder. O local de enunciação de
Diego é a revolta, o amor e o desejo de justiça. O local de enunciação da Peste é a
mentira, o ódio e o desejo de poder. Mas este,
Só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as
palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras
não são empregadas para velar intenções mas para revelar realidades e
os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e
novas realidades. [...] Se o poder pudesse ser possuído como a força
ou exercido como a coação, a onipotência seria uma possibilidade
humana concreta
(ARENDT, p. 213).
A Peste não possui o poder, Diego não possui o poder. O poder está no entre, está no
inter e não pode jamais ser possuído. Ele está na tensão dos pólos Diego / mundo. Ele
é uma potência que se atualiza somente entre os homens e não neles.
124
Quando Hugo Achugar se refere ao poder de um centro em silenciar as
margens, e se questiona: “somente a partir do poder se pode falar ou produzir valor?”,
ele mesmo responde: “na realidade, creio que não. [...] A peculiaridade consiste mais
no posicionamento que nos próprios lugares”.
65
Não existem centro e margens como
pólos. Existem indivíduos, idéias e valores. Que um centro fictício grite “eu não estou
ouvindo vocês, vocês não sabem falar”; ele apenas nos diz da sua incapacidade ou
desinteresse em ouvir, e não de seu poder. O que um determina que o outro seja, não é,
necessariamente, o que o outro é. O que cada um é, está no seu discurso, é revelado
nele. Os discursos são diferentes porque os seres são diferentes, as idéias, os valores. O
nosso contato constante é com a diferença e só a reconhecemos porque nos
posicionamos frente a ela, guardando nosso espaço, respeitando o do outro e, dessa
forma, criando um terceiro espaço de convivência. É nesse posicionamento que reside
tanto a capacidade para afastar a peste quanto para impedir a sua materialização.
No entanto, o ‘guardar o próprio espaço e respeitar o espaço do outro’ não
significa aprisionar-se em discursos nacionalistas ou identitários fixos. Como afirmou
Sara Rojo, em análise do pensamento de Homi Bhabha,
Trata-se, de negociar com outros pensamentos, formas e costumes de
vida e não criar uma espécie de hibridismo. O que me parece que
poderíamos buscar é uma pluralização consciente na qual devem estar
claras quais são as propostas e de onde e por quê estão nascendo.
Trata-se de fazer uma reflexão a partir do que somos, mas sem que por
isso voltemos a criar fronteiras políticas rígidas.
66
65
Tradução nossa do original: ¿ Solo desde el poder se puede hablar o producir valor? [...} En realidad
creo que no. [...] La peculiaridad consiste más en el posicionamiento que en los propios lugares”
(ACHUGAR, 2003, p. 21).
66
Tradução nossa do original: “Se trata de negociar con otros pensamientos, formas y costumbres de vida
y no de crear una espécie de hibridismo, lo que me parece que si podríamos buscar es una pluralización
consciente en la cual deben estar claras cuáles son las propuestas y de donde y por qué están naciendo. Se
trata de reflexionar desde lo que somos pero sin que por eso volvamos a crear fronteras políticas rígidas”
(ROJO, 2002, p. 217)
125
Consideramos que o teatro, por ser justamente a arte que trata “do homem em
suas relações com outros homens” (ARENDT, 2005, p. 200), é ele mesmo um espaço do
poder, que remete à vida os viventes, despertando-lhes sua estrangeiridade e a
necessidade constante, devido a essa característica, da tradução. Estado de Sítio, mais
que uma alegoria, foi, no texto e no palco, metáfora e metonímia, mito e realidade. Foi
um instante Aleph.
126
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