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Independente de leis, ou amparando-se nelas, continua-se desterrando, escravizando e
assassinando o diferente, aquele que, em determinado momento, sob o olhar do outro, se
torna um estrangeiro. “Nada saberemos enquanto não soubermos se temos o direito de
matar esse outro que se acha diante de nós ou de consentir que seja morto”, afirma
Camus (2003, p.14). No entanto, mesmo sob a existência de um direito – seja ele
forjado, adquirido ou prescrito – o ato em si do assassinato é inócuo para a diferença.
Elimina-se o diferente, mas não a diferença. O ato somente cava, mais ainda, o abismo
da separação homem /mundo.
Apesar de a sistematização da diferença alterar-se no tempo - dependendo de
fatores, por exemplo, geográficos, econômicos, raciais, religiosos - é constante a
existência de um grupo detentor de um poder econômico ou cultural prevalecendo e
atuando, violentamente, sobre outro (SANTIAGO, 2000, p. 11). Porém, essa relação
dominante / dominados, carrasco / vítimas não configura a origem do absurdo e das
diferenças: é antes um discurso de manutenção de uma dicotomia
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que parte tanto de
um lado como de outro. Esse é um discurso, segundo Camus, sustentado pelo
pensamento hegeliano.
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A diferença existe, mas determinar a falácia dos opostos de
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Giorgio Agamben, em uma entrevista com Flavia Costa, para a Revista do Departamento de Psicologia,
UFF (2006, p.133) defende a necessidade de se superar a lógica binária e de transformar “as dicotomias
em bipolaridades, as oposições substanciais num campo de forças percorrido por tensões polares que estão
presentes em cada um dos pontos sem que exista alguma possibilidade de traçar linhas claras de
demarcação”.
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“O mundo de hoje só pode ser, aparentemente, um mundo de senhores e escravos, porque as ideologias
contemporâneas, aquelas que modificam a face do mundo, aprenderam com Hegel a pensar a história em
função da dialética domínio/servidão. Se [...] há apenas uma ligação senhor-escravo, não pode haver outra
lei no mundo a não ser a lei da força. Somente um deus ou um princípio acima do senhor e do escravo
podiam intervir até então, fazendo com que a história dos homens não se resumisse unicamente à história
de suas vitórias ou de suas derrotas. Hegel [...] fornece, no nível da dialética do senhor e do escravo, a
justificação decisiva do espírito de poder no século XX. O vencedor sempre tem razão, esta é uma das
lições que se pode tirar do maior sistema alemão do século XIX. [...] Se Nietzsche e Hegel servem de
álibis para os senhores de Dachau e de Karaganda, isso não condena toda a sua filosofia, mas deixa a
suspeita de que um dos aspectos de seus pensamentos, ou de sua lógica, possa ser levado a esses terríveis
confins” (CAMUS, pp 164 , 165).