sob o argumento de que foi ele que os livrou da escravidão no Egito. Reiteradamente, El
ameaça os hebreus de voltar a dispersá-los, de lhes retirar a Terra Prometida e de
devolver-lhes à escravidão, caso não adorem somente a ele. No tempo dos Reis, El
repreende todos aqueles hebreus que se inclinam para Astarte (ou Astaroth), deusa dos
sidônios, para Moloc (equiparado ao egípcio Amon), deus dos amonitas e para Camos,
deus dos moabitas (3 Reis 11).
21
A páscoa dos hebreus pode ser compreendida como o equivalente da comunhão
cristã; mas representa mais especificamente a reiteração da aliança entre um povo e seu
deus. O deus de Abraão, o deus de Isaac e o deus de Jacó parecem ter sido deuses
familiares, simbolicamente sintetizados mais tarde no deus da linhagem e, mais tarde
ainda, no deus de um povo. El não é nem um deus único, nem um deus universal. Seu
culto, notadamente quanto à queima da hóstia e o derramamento do sangue da vítima,
assemelha-se ao culto às divindades familiares dos gregos pré-arcaicos. A diferença era
que os deuses gregos pré-panteão ainda eram os próprios ancestrais, enquanto o deus
dos hebreus tornou-se deus de um povo inteiro. Era uma entidade externa – um inimigo,
um estrangeiro – sem representação corpórea, assumido por uma descendência. Era,
possivelmente, uma divindade cuja concepção estava a caminho de um Deus único,
22
que somente emergiu com certa clareza entre os cristãos – a Trindade una – e, de forma
mais acentuada, enfática e definitiva, com os muçulmanos. Mas El não era um Deus
único. Era externo, não estava dentro, sua relação com o povo era a de supremo x
submisso; separava os homens de si. Não tinha forma; era somente sangue.
El, o deus dos hebreus, é uma entidade separada do povo. Proíbe o povo de dar-
lhe representação corpórea. Em nenhum momento convida o povo para que se tornem
um só. Em lugar disso, obriga-os a adorá-lo. No sacrifício hebreu não há holocausto
humano nem canibalismo. A interdição do sacrifício humano entre os hebreus está
demarcada no Gênesis (22), quando El impede Abraão de imolar seu filho, ato tido
21
Escolher um nome para designar o deus dos hebreus não é tarefa simples. Ao que tudo indica, a
concepção do deus daquele povo era decorrente da união de algumas concepções divinas das tradições
politeístas mesopotâmica e cananéia, sendo a significação de Deus a combinação das significações
associadas a Marduk e Tiamat, mesopotâmios, e a El e Baal, cananeus, sendo este último um deus
veementemente rejeitado por El, no texto do Tanach. O Tanach, a Bíblia dos judeus, designa Deus, na
maior parte do texto, por Yahveh (Javé), cujo significado é Senhor, tanto como substantivo próprio quanto
comum. Nas traduções ocidentais, cristãs e judaicas, o nome usado é, em geral, Senhor. Todavia, Deus,
em hebraico, significa ′el (El), designação a que, por diversos motivos, aqui preferimos, principalmente
devido aos registros de que era El (e não Javé) que exigia o sacrifício de sangue e corpo (veja-se
Armstrong, 2002, e, principalmente, Miles, 1997, caps. 1, 2 e 3).
22
Armstrong (2002, cap. 2) sustenta que Javé, a concepção divina que se sucedeu El, já entre os judeus,
se aproxima bem de um Deus único. Javé exige dos judeus mais fraternidade e respeito ao próximo do
sangue, embora o sacrifício de sangue somente tenha desaparecido na era cristã.