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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
DOUTORADO
ROGÉRIO JOSÉ SCHUCK
ATRAVÉS DA COMPREENSÃO DA
HISTORICIDADE PARA UMA
HISTORICIDADE DA COMPREENSÃO
COMO APROPRIAÇÃO DA TRADIÇÃO
Prof. Dr. Ernildo Stein
Orientador
Porto Alegre
Outubro de 2007
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
ATRAVÉS DA COMPREENSÃO DA
HISTORICIDADE PARA UMA HISTORICIDADE
DA COMPREENSÃO COMO APROPRIAÇÃO DA
TRADIÇÃO
ROGÉRIO JOSÉ SCHUCK
Porto Alegre
Outubro de 2007
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ROGÉRIO JOSÉ SCHUCK
ATRAVÉS DA COMPREENSÃO DA
HISTORICIDADE PARA UMA HISTORICIDADE
DA COMPREENSÃO COMO APROPRIAÇÃO DA
TRADIÇÃO
Tese de Doutorado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Filosofia da Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul
como requisito parcial para a obtenção do
Título de Doutor em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Ernildo Stein
Porto Alegre
Outubro de 2007
4
ROGÉRIO JOSÉ SCHUCK
ATRAVÉS DA COMPREENSÃO DA
HISTORICIDADE PARA UMA HISTORICIDADE
DA COMPREENSÃO COMO APROPRIAÇÃO DA
TRADIÇÃO
BANCA EXAMINADORA
PROF. DR. ERNILDO STEIN (Orientador)
PROF. DR. LUIZ ALBERTO HEBECHE
PROF. DR MÁRIO FLEIG
PROF. DR. DRAITON GONZAGA DE SOUZA
PROF. DR. URBANO ZILLES
5
DEDICATÓRIA
Para Mariana Menegat Schuck, minha filha, cuja
energia e alegria infantil, mesmo sem o saber
bem, sempre foi motivação mesmo nas horas de
ausência física como pai.
A todos que, de algum modo, me incentivaram na
caminhada e hoje fazem parte da minha tradição.
6
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Ernildo Stein pela acolhida deste
projeto, cuja orientação e discussões foram
fundamentais para que se tornasse uma realidade.
Ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
PUCRS, à Coordenação, a todos os professores,
assim como à Denise e Marcelo pela prontidão e
eficiência na Secretaria.
À CAPES que, através da modalidade “meia
bolsa”, auxiliou para o Doutorado se efetivar.
À UNIVATES, especialmente Reitoria e Chefia
de Centro de Ciências Humanas e Jurídicas, que
me incentivaram nestes anos de estudo, assim
como a todos os colegas, amigos e familiares com
quem partilhei idéias e experiências nesta
caminhada.
7
RESUMO
A presente tese pretende oferecer uma contribuição para a compreensão das
discussões da Hermenêutica filosófica, sobretudo do pensamento de Hans-Georg Gadamer.
O texto inicia com a abordagem da tradição moderna de construção do conhecimento, mais
especificamente com a Teoria do Conhecimento, para, na seqüência, abrir a discussão em
torno da verdade em outro sentido, como um acontecer no qual sempre estamos imersos
na e pela tradição. Através da compreensão da historicidade, somos levados a perceber
limites internos à pretensão moderna na construção do conhecimento. Possibilita-se, assim,
fazer uma crítica a tal perspectiva, uma vez que não consegue dar conta de suas pretensões,
abrindo espaço para discutirmos a questão do conhecimento por outras vias, de modo
especial vinculado à arte, história e linguagem, temas centrais em Verdade e Método.
Desse modo, o texto caminha na direção de uma historicidade da compreensão como
apropriação da tradição, demonstrando, desde a origem do conceito compreender, que
Heidegger e Gadamer podem ser considerados herdeiros legítimos da tradição que vem de
Schleiermacher, Dilthey e Droysen. Assim sendo, a apropriação da tradição nos permite
perceber que estamos diante da descoberta da tradição como acontecer, que está além do
enunciativo.
Palavras-chave: Hermenêutica, modernidade, tradição.
8
ABSTRACT
The present thesis aims at contributing to the understanding of the philosophical
Hermeneutics discussions, overall on Hans-Georg Gadamer's thought. The study starts
with the modern tradition view of the construction of knowledge, more specifically with
the Theory of Knowledge, opening later the discussion about the truth in another
perspective, as an occurrence in which we have already been immerged in and through the
tradition. Through the comprehension of the historicity, we are led to perceive internal
limits to the modern pretension in the knowledge construction. Thus, this favors a critic to
this perspective, once it is not able to respond to its presumptions, opening other
possibilities to the discussion about knowledge, specially related to arts, history, language,
central themes in Truth and Method. So, the study leads to the comprehension of the
historicity as appropriation of the tradition, demonstrating, since the origin of the concept
comprehension, that Heidegger and Gadamer can be considered the legal inheritors of the
tradition that comes from Schleiermacher, Dilthey and Droysen. Thus, the appropriation of
the tradition allows us to perceive that we are before the uncovering of the tradition as
happening, that lies beyond the enunciation.
Key words: Hermeneutics; Modernity; Tradition.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................................12
PRIMEIRA PARTE
NASCEDOURO DA HERMENÊUTICA
1 QUESTÕES CENTRAIS EM TEORIA DO CONHECIMENTO.............................19
1.1 Sobre Teoria do Conhecimento propriamente dito........................................................20
1.2 A perspectiva fenomenológica e a questão da objetificação..........................................23
1.3 Entre o ceticismo e o dogmatismo.................................................................................26
1.4 Racionalismo, empirismo e intelectualismo na construção do conhecimento...............30
1.4.1 Racionalismo...............................................................................................................30
1.4.2 Empirismo...................................................................................................................31
1.4.3 Intelectualismo............................................................................................................31
1. 5 Sobre a relação sujeito e objeto.....................................................................................33
1.6 Fenomenalismo e posicionamento crítico......................................................................35
1.7 Problemas em torno da verdade.....................................................................................36
2 O COMPREENDER: DO SURGIMENTO À COMPREENSÃO ATUAL ..............41
2.1 A Hermenêutica diante do universo do conhecimento ..................................................41
2.1.1 Hermes: o deus mensageiro.........................................................................................42
2.1.2 O nascedouro do conceito hermenêutica.....................................................................46
2.2 O Compreender: do surgimento do conceito racional de compreensão.........................47
2.2.1 A busca pelo conceito “Compreender”: um olhar a partir de K.O.Apel.....................47
2.2.2 O surgimento da palavra “compreender” na tradição hermenêutica...........................49
2.2.3 A compreensão como conceito fundamental da teoria do reconhecimento das ciências
do espírito.............................................................................................................................53
2.2.4 A compreensão como conceito básico de uma ontologia fundamental.......................55
10
3 O INÍCIO DA HERMENÊUTICA MODERNA..........................................................58
3.1 Hermenêutica moderna: breves distinções.....................................................................58
3.2 Espinosa..........................................................................................................................59
3.2.1 Um pensador radical....................................................................................................59
3.2.2 Entre teologia e hermenêutica.....................................................................................59
3.3 Friedrich Schleiermacher...............................................................................................63
3.3.1 Razões fundamentais pelas quais Schleiermacher deve ser considerado....................63
3.3.2 Duas correntes de pensamento hermenêutico.............................................................64
3.3.3 Schleiermacher no contexto da Hermenêutica............................................................66
3.3.3.1 Três elementos fundamentais para a compreensão em Schleiermacher...................68
3.3.3.1.1 Hermenêutica e Crítica..........................................................................................68
3.3.3.1.2 A Gramática..........................................................................................................69
3.3.4 Sobre a constituição do sentido propriamente dito.....................................................71
3.3.5 Acerca do infinito indeterminado................................................................................73
3.3.6 Alguns limites de Schleiermacher...............................................................................76
3.3.7 Distinções entre Schleiermacher e Gadamer...............................................................77
3.4 Wilhelm Dilthey ...........................................................................................................80
3.4.1 Dilthey diante das ciências do espírito........................................................................80
3.4.2 O mundo da vida diltheyano.......................................................................................84
3.4.3 Aproximações entre Dilthey e Gadamer.....................................................................88
3.4.4 Antecipando alguns limites da modernidade...............................................................90
SEGUNDA PARTE
O SURGIMENTO DE UMA NOVA FORMULAÇÃO DO PROBLEMA DA
VERDADE PELA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA
4 HEIDEGGER E A QUESTÃO DO COMPREENDER..............................................95
4.1 Dasein e o sentido do ser................................................................................................95
4.2 Compreensão e reflexividade.........................................................................................98
4.3 Linguagem como revelação do sentido dos entes........................................................100
4.4 Da linguagem para a compreensão...............................................................................105
4.5 Linguagem no contexto da modernidade.....................................................................111
5 DE HEIDEGGER A GADAMER: A PASSAGEM....................................................116
5.1 A proposta gadameriana de uma hermenêutica filosófica............................................116
5.1.1 Aspectos centrais de Gadamer influenciados por Heidegger....................................116
5.1.2 Historicização da tradição.........................................................................................121
5.2 Autoridade, tradição e história efetual.........................................................................126
5.2.1 Tradição e autoridade como condição de possibilidade............................................126
5.2.2 A autoridade a partir do olhar gadameriano..............................................................126
11
5.2.3 A tradição diante da hermenêutica gadameriana.......................................................131
5.2.4 Sobre a compreensão do sentido na hitória efetual...................................................135
6 ARTE, HISTÓRIA E LINGUAGEM: TEMAS CENTRAIS DE VERDADE E
MÉTODO...........................................................................................................................138
6.1 A estética como pedra de toque diante do entendimento objetivador..........................140
6.2 Por que tomar o jogo como fio condutor da virada ontológica?..................................142
6.2.1 Sobre a origem do jogo em Huizinga........................................................................143
6.2.2 O jogo propriamente dito em suas características estruturais...................................145
6.2. 3 A estrutura pré-reflexiva ontológica no processo de compreensão..........................148
6.2.4 O jogo como fio condutor diante da compreensão ontológica..................................151
6.3 Um olhar atento sobre a história...................................................................................153
6.3.1 Historicização da razão.............................................................................................153
6.3.2 Sobre a historicidade a partir do olhar gadameriano.................................................157
6.3.3 Um olhar mais atento sobre a linguagem..................................................................159
7 APROPRIAÇÃO DA TRADIÇÃO: um ponto central em Verdade e método............163
7.1 O modo de compreensão do conceito tradição em Gadamer.......................................164
7.1.1 O potencial de produtividade da tradição..................................................................169
7.2 Crítica de Theunissen à Hermenêutica Filosófica de Gadamer...................................170
7.2.1 Primeira tese: sobre a amplitude da apropriação da tradição....................................171
7.2.2 Segunda tese: sobre a fenomenologia do compreender.............................................172
7.2.3 Terceira tese: a apropriação da tradição como apropriação da tradição....................174
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................181
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................................187
12
INTRODUÇÃO
A relação com o saber, que foi fortemente influenciada pelo caráter ontológico-
objetivista do pensamento ocidental, levou a uma gradativa maior dependência dos
imperativos do método das ciências naturais e da racionalidade instrumental, criando a
expectativa de que tal ponto de vista seria suficiente para se chegar ao conhecimento
verdadeiro. A presente investigação pretende refletir sobre a possibilidade de superação
dos limites da modernidade diante do fenômeno da compreensão, no sentido de que não se
trata do problema de encontrarmos um método capaz de dar conta da verdade.
Nesse sentido, a discussão com Hans-Georg Gadamer se torna significativa, na
medida em que nos elucida que compreender e interpretar textos não é algo somente
reservado à ciência, mas pertence ao todo da experiência do homem no mundo, isto é,
adquirimos discernimento e reconhecemos verdades, quando compreendemos a tradição.
Aponta-se, assim, para além dos limites inscritos à perspectiva objetificadora, que busca no
método a possibilidade de submeter os textos, assim como qualquer outro objeto, ao
conhecimento científico.
Trata-se, pois, de um outro pensar, um pensar que não se deixa prender pelos
limites do método objetificador, porém também não mais metafísico. O pensar
gadameriano leva a uma hermeneutização da ontologia, na medida em que produz uma
nova relação com a questão ontológica. Levando em conta a postura humana diante da
verdade como acontecer, não cai no relativismo, justamente porque permanecem nela
elementos que possibilitam o acesso ao conhecimento. Trata-se, portanto, de ultrapassar os
limites da tradição metafísica da representação para a filosofia da interpretação. Ao buscar
compreender e não representar, a hermenêutica filosófica leva a uma superação do modo
de colocar a questão ontológica. Trata-se, agora, de interpretar o mundo e não repesentá-lo.
Assim, pelas vias da hermenêtica filosófica, nos damos conta de que também uma
questão ligada para além da linguagem enunciativa.
13
Através da linguagem, a hermenêutica filosófica ultrapassa a questão do sentido de
introduzir conceitos de verdade enquanto resultado dos enunciados científicos, chegando a
uma verdade que se mostra na interpretação, que acontece. Portanto, trata-se da linguagem,
não de enunciados sobre, mas que percebe o que acontece além do enunciado. Significa
um novo paradigma que leva a sério a questão do acontecer.
A perspectiva de construção do conhecimento pelas vias do método trouxe enormes
benefícios à humanidade, não podemos deixar de reconhecê-lo, sobretudo em termos de
avanços tecnológicos e domínio sobre questões que ameaçavam o homem, como é o caso
do controle de doenças. Em contrapartida, trouxe a crescente pretensão onipotente da razão
humana, que busca na ciência as respostas a todos os questionamentos do homem. Trata-se
de um modelo de construção do saber que vem reivindicando o status de modelo por
excelência na construção do conhecimento, tido como resultado de um ato objetificador do
pensar.
Contemporaneamente têm crescido as críticas a tal modo de se relacionar com o
conhecimento, que busca na noção pós-cartesiana do saber o sujeito racional onipotente o
qual quer ter a primazia do pensamento, como exclusiva, na produção do saber. A crítica
que se coloca está justamente nesse paradoxo, ao percebermos que tal modelo não
consegue dar conta de seus pressupostos, a saber, o domínio da razão sobre a totalidade do
saber.
Diante do fracasso do uso meramente instrumental da razão, que insiste em não
reconhecer os problemas gerados por sua pretensão objetificadora, surgem tentativas de
superação desse paradigma, demonstrando que existe outro modo possível de chegar à
compreensão. Nesse sentido, pode-se falar em termos da realidade que não se deixa
absorver plenamente, sendo que “algo escapa” à razão. É justamente esse “algo” que
escapa, que desmascara a pretensão absolutizadora de uma razão tencionando conduzir
plenamente o saber.
O olhar atento, a partir da perspectiva hermenêutica, nos possibilitará perceber que
um processo na historicidade, onde se numa relação entre velamento e ocultação,
sem se deixar dizer nem absorver plenamente. Nesse sentido, para além do que aparece,
por detrás do círculo da compreensão, permanece a “coisa mesma”, enquanto processo de
interpretação hermenêutica. Significa dizer que é um jogo iniciado num outro lugar, sendo
que “a bola” que apanhamos não foi jogada por nós, mas é atirada de algum lugar no
14
espaço. Esse é o acontecer, é o “pré”, o elemento da circularidade que aparentemente o eu
começa, mas que já está em jogo, porém sempre chegamos tarde a ele.
Portanto, o estudo que pretendemos aprofundar, no presente texto, nos coloca
diante da busca da verdade em sintonia com o pensamento de Hans-Georg Gadamer. Trata-
se da perspectiva que vem perpassando o pensamento de Husserl, Heidegger, os quais
querem tratar do problema do conhecimento, partindo da idéia de “ser-em” (Insein). Em
Gadamer, surge uma nova compreensão, a partir especialmente de questões ligadas à arte,
história e linguagem, trazendo à tona a busca da verdade em outro sentido, como um
acontecer, no qual sempre estamos imersos na e pela tradição. Nesse sentido, dá-se a
superação da teoria do conhecimento, onde o compreender não é um existencial do Dasein,
mas se efetiva nos processos de apropriação da tradição, no seu movimento de
historicidade. A apropriação da tradição possibilita, pois, o encontro com a verdade, sendo
a experiência da tradição histórica mediadora dessa verdade de que participamos e que
ultrapassa fundamentalmente qualquer tentativa de submetê-la a regras metódicas das
ciências objetificadoras.
O que está em jogo é muito mais do que a simples pretensão em se sobrepor um
paradigma de construção de conhecimento a outro. Trata-se de assumir uma nova postura
na conduta em relação ao conhecimento, o que Gadamer explicita na questão da
apropriação da tradição. Na compreensão de M. Theunissen, o tema mais extenso de
Verdade e Método é justamente a apropriação da tradição (Traditionsaneignung). Por isso,
Gadamer já inicia seu texto com a compreensão da obra de arte, assim como também deixa
espaço especial para a experiência histórica na hermenêutica filosófica. É justamente nessa
apropriação da tradição que vem à tona a verdade. O desafio está, portanto, em como me
relaciono com a tradição a fim de possibilitar o compreender, sabendo de antemão que a
fonte última está na razão. Desse modo, evidencia-se que nós é que pertencemos à história
e não o oposto. Nascemos dentro de uma tradição que antecede nossa consciência dessa
realidade, de modo que muito antes de nos compreendermos, estamos compreendendo
de uma maneira auto-evidente. Eis a realidade histórica do ser do indivíduo que antecede a
sua reflexão, onde se o acontecimento da verdade, a partir de onde lhe é possibilitado
compreender.
O presente texto se divide em duas partes, a saber, uma Primeira Parte, onde se
discute a respeito do Nascedouro da Hermenêutica, partindo de um olhar sobre questões
centrais em torno da Teoria do Conhecimento. Neste capítulo, o leitor é defrontado com a
15
tradição moderna de construção do conhecimento, paradigma que se fez e em grande parte
ainda se quer fazer hegemônico frente à ciência.
Ao abordar a Teoria do Conhecimento em seu viés mais tradicional, o leitor
experimenta a promessa de tranqüilidade oferecida pela metodologia das ciências
epistemológicas, situando-se dentro da tradição muito mais preocupadas com a perspectiva
objetificadora. Curioso é que tal experiência leva à possibilidade de discutirmos a ruptura
com a certeza, ao percebermos a impossibilidade, por parte das próprias ciências, de
apostarem no método como base única e última de legitimação do conhecimento. A
experiência inicial que o texto oferece é justmente a de nos sentirmos “em casa”, num
primeiro momento, quando o Primeiro Capítulo refaz a trajetória do modo tradicional de
construção do conhecimento. Consideramos essa experiência importante para, num
segundo momento, podermos abrir o debate que se situa para além das ciências
objetificadoras, a saber, à base da arte, da história e da linguagem.
Visamos, desde o princípio, construir condições a fim de possibilitar fazer a
experiência da apropriação da tradição, no intuito de buscar os pré-conceitos que formaram
a base, a partir dos quais a Teoria do Conhecimento, no sentido clássico, se estruturou.
Para tanto, partimos de uma definição do conceito, levando a discussão para distinções
entre o dogmatismo e ceticismo, assim como especificidades do racionalismo, empirismo e
intelectualismo. Tudo isso visando sempre enfocar o modo como se pretende chegar à
verdade, perpassado pela separação gida entre sujeito e objeto, processo esse que
denominamos objetificação, na medida em que o sujeito é o determinador das condições de
possibilidade do conhecimento do próprio objeto. Com isso acreditamos conseguir delinear
um horizonte de compreensão à base do qual podemos perceber o surgimento e a
consolidação do paradigma moderno na construção do conhecimento, com a sua pretensão
de verdade. Tal paradigma segue o modelo cientificista na busca do conhecimento.
Isso nos permite partir para um segundo momento, em nossa discussão, quando
buscaremos voltar o foco para a questão do compreender. Buscar-se-á reconstruir a
trajetória da construção do conhecimento, a partir de Hermes, o deus mensageiro grego,
que ultrapassa os limites de compreensão da esfera dos homens e também a dos deuses,
trazendo e levando a mensagem, com a missão de garantir a compreensão do sentido
intrínseco na mesma. A tarefa de Hermes torna-se elucidativa, no contexto que estamos
discutindo, pois, assim como ele, a compreensão não pode abdicar-se de um conteúdo de
sentido que garante o ser compreendido por parte daquele que se dispõe a buscá-la. Assim
16
como Hermes transfere a mensagem do horizonte de compreensão dos deuses para os
homens, sem poder usar da mesma linguagem, diante da hermenêutica filosófica, o leitor
se constantemente obrigado a buscar uma linguagem que conta de comunicar o que
não consegue ser dito num contexto atual, na expectativa de conseguir manter a linguagem
originária, enquanto tal, uma vez que, na circunstância atual, esta é vista a partir de um
outro horizonte de compreensão. Com essa introdução à hermenêutica propriamente dita,
traçam-se algumas notas introdutórias sobre o surgimento do conceito hermenêutica, que
se torna importante para podermos discutir a hermenêutica diante da modernidade. Tal
discussão se torna momentosa, na medida em que abre o horizonte de compreensão à
retomada do conceito “compreender”, a partir do olhar de K. O. Apel. Com Apel,
buscaremos abordar o surgimento do conceito “compreender” enquanto surgimento da
tradição hermenêutica do conceito compreender. Trata-se de uma reflexão que busca
distinguir o conceito compreender (Verstehen) de entendimento (Verstand), demonstrando
claramente a tradição dentro da qual ambos são gestados. Na seqüência, com Apel a
compreensão adquire o caráter de conceito fundamental da teoria do conhecimento das
ciências do espírito, até chegar à concepção de uma compreensão como conceito básico de
uma ontologia fundamental. As discussões de Apel nos são preciosas na proporção em que
elucidam a trajetória racional do conceito compreender, aproximando referenciais teóricos,
que são autoridade dentro da tradição filosófica. Desse modo, esse torna-se um texto muito
importante dentro da elucidação e contextualização da hermenêutica no universo do
compreender.
Em aprofundando este segundo momento, buscamos pistas que indiquem onde se
o início do movimento da hermenêutica moderna propriamente dita. Para tanto, três
autores se tornam indispensáveis, a saber, Espinosa, Schleiermacher e Dilthey. De
Espinosa podemos perceber o movimento de ruptura, trazendo o passado como objeto de
pesquisa para os desafios por ele vividos, superando a visão dogmática da interpretação da
Bíblia. Espinosa torna-se um pensador radical, na medida em que busca resgatar a questão
da totalidade do saber à base de uma fundamentação universal.
Com Schleiermacher, temos condições de estabelecer uma espécie de “divisor de
águas”, entrando no movimento da hermenêutica moderna, mesmo ainda muito preso à
perspectiva de achar um caminho seguro para a interpretação. Entretanto, é considerado o
primeiro a teorizar sobre o círculo hermenêutico e com ela possibilita-se uma crítica
consistente à teoria da subjetividade e da autoconsciência. No entanto, não podemos
17
esquecer que é-lhe conferido o mérito de iniciar o movimento de um modo de
compreensão que possibilitará condições para o surgimento da perspectiva heideggeriana e
gadameriana. Por fim, em fechando a Primeira Parte, Dilthey trará a contribuição da
historicidade como uma das chaves-de-leitura em sua teoria do mundo da vida
(Lebenswelt). Dilthey é um pensador radical, que sofre as conseqüências por manter a
firmeza de suas posições; porém, queremos aproximá-lo a Gadamer, a partir do conceito de
historicidade.
Na Segunda Parte, trataremos do surgimento de uma nova formulação do problema
da verdade pela hermenêutica filosófica. Inicialmente, buscaremos o significado do
compreender em Heidegger, que se tornou outro “divisor de águas” diante do
compreender, à medida que percebemos nele a pré-estrutura do compreender, com
intenção ontológica. Em Heidegger, iremos perceber que algo se revela e progressivamente
é velado na historicidade, sendo que a linguagem assume o papel de mediação ao mundo,
onde a abertura de sentido se articula lingüisticamente. A linguagem surge como
possibilidade de recuperar o sentido mais profundo da vida. Isso nos leva à busca dos
fundamentos, carregados por um sentido anterior à reflexão. Assim sendo, Heidegger nos
possibilitará avançar na crítica ao paradigma moderno na construção do conhecimento,
sem, no entanto, impossibilitar a chegada de Gadamer, no cenário de uma proposta que não
quer ser uma nova teoria do conhecimento. Este, porém, também não se enquadra mais nos
moldes daquela teoria clássica que apontávamos no primeiro capítulo.
O próximo passo consistirá em demonstrar e demarcar a passagem de Heidegger a
Gadamer, explicitando aspectos centrais de Gadamer influenciados por Heidegger, assim
como o distanciamento de Gadamer em relação a Heidegger. Possibilita-se, assim, a
abordagem gadameriana de temas centrais explicitados pelo autor em Verdade e Método,
no caso, a arte, a história e a linguagem. Portanto, reiterando a trajetória do autor, tomamos
o jogo como fio condutor da virada ontológica, o qual nos permite compreender o modo
como Gadamer constrói sua argumentação sobre a estrutura pré-reflexiva ontológica, no
processo de compreensão. O processo de historicização da razão, pelas vias da
historicidade, traz a compreensão de que a história é sempre resultado da historicidade.
Movemo-nos sempre dentro da história, sendo que já nascemos num contexto histórico que
sempre ultrapassa a nossa capacidade de compreendê-la plenamente. Nesse contexto, a
linguagem se torna fundamental, na medida em que é condição de possibilidade de
mediação ao nosso acesso ao mundo. Ela abre o espaço para o acontecimento de uma
18
experiência ontológica por excelência, que se dá, sobretudo, ao vivermos na linguagem.
Assim, o diálogo vivo assume um lugar de destaque em Verdade e Método. Desse modo, a
linguagem nos possibilita o acesso à tradição enquanto compreender do ser que é
linguagem. Assim chegamos ao último capítulo, onde se evidencia o projeto gadameriano
da apropriação da tradição (Traditionsaneignung), que, além de ser um ponto central, em
Verdade e Método, possibilita-nos perceber um novo modo de compreender a
hermenêutica, assim como um novo modo de compreender o compreender, impulsionado
pela hermenêutica filosófica.
Nesse ponto Gadamer se distancia de Heidegger, uma vez que não mantém mais o
vínculo com a expectativa de encontrar as estruturas existenciais da compreensão. Muito
antes, toma a apropriação da tradição como objeto de sua investigação. Portanto, funda-se
um novo paradigma hermenêutico, ao trazer para o campo do debate um elemento que
possibilita sua defesa às acusações de relativismo. O presente texto quer, portanto, levar a
perceber justamente o avesso de tal acusação, na medida em que evidencia o
desconhecimento e/ou paralisia paradigmática, por parte daqueles que insistem em acusar a
hermenêutica de relativista.
A presente investigação poderá ser ainda mais bem compreendida se o leitor aceitar
o desafio de, com as reflexões de Gadamer, deixar-se conduzir na busca de algumas pistas
que indicam a insuficiência do modelo objetificador, ao não conseguir dar conta de sua
pretensão, a saber, uma razão absoluta. Algo escapa à pretensão absolutizadora, sendo que
tais resquícios apontam para antes mesmo da própria reflexividade. Com isso, buscaremos
demonstrar que o movimento da compreensão tem seu início na estrutura pré-reflexiva,
que se torna condição de possibilidade da compreensão, onde a apropriação da tradição
abre-nos a porta de entrada para tal perspectiva.
19
PRIMEIRA PARTE
NASCEDOURO DA HERMENÊUTICA
1 QUESTÕES CENTRAIS EM TEORIA DO CONHECIMENTO
A discussão em torno da teoria do conhecimento nos exige, num primeiro
momento, que coloquemos de antemão à base de qual horizonte de compreensão se
buscará fazê-lo. Inicialmente, poderíamos ser remetidos à idéia de buscar definições
epistemológicas, o que, até certo ponto, no começo deste capítulo, é possível fazer-se.
Porém, na medida em que avançamos, perceberemos haver uma mudança no modo de
compreender o compreender, que se torna, em última instância, o horizonte a partir do qual
autores como Gadamer irão se concentrar, em sua tarefa de construção de novos sentidos,
frente ao modo como se dá o compreender propriamente dito. Desse modo, já de antemão é
insuficiente aceitar definições como as encontradas em dicionários de Língua Portuguesa,
que descrevem o conhecimento como sendo a ação ou resultado de conhecer; idéia; noção;
direito de fazer julgamento; apresentar noção de; saber; julgar; avaliar; fazer a distinção
1
, e
assim por diante. Tais definições nos dão uma idéia muito vaga de conhecimento, não raro,
permanecendo superficiais, uma vez que o conseguem identificar as condições
possibilitadoras do ato de conhecer enquanto tal, não estabelecendo relações mais
profundas implicadas no processo de compreensão, como veremos adiante.
1
Cf. Dicionário MOR DA LÍNGUA PORTUGUESA.
20
Nosso intento central, neste primeiro capítulo está voltado para a teoria do
conhecimento propriamente dita, permanecendo inicialmente preso à perspectiva clássica,
que nos leva a perguntar o que é o conhecimento. E, mais ainda, quais as condições de
possibilidade do conhecimento? Em que se fundamenta o conhecimento? Responder a
perguntas como estas, sem dúvida exige que nos debrucemos sobre alguns autores e
consigamos deles fragmentos de resposta ao quais possibilitem, num segundo momento,
construir uma discussão que traga à tona o modo de compreender propriamente
gadameriano.
Assim sendo, o primeiro capítulo buscará iniciar o movimento circular de
compreensão, a partir de um olhar mais geral sobre a teoria do conhecimento, o que será
retomado, num segundo momento, à base da hermenêutica no universo do conhecimento.
Trata-se, pois, de uma estratégia de construção de conhecimento, onde “o movimento da
compreensão discorre, assim, do todo à parte e novamente ao todo. A tarefa é ampliar, em
círculos concêntricos, a unidade do sentido compreendido”
2
. Portanto, a tarefa que se
coloca, neste primeiro capítulo, é traçar o horizonte mais amplo em que se situa nossa
questão para, a partir daí, fazer com que todo o texto se torne um efetivar-se da perspectiva
hermenêutica como tal. Assim, o leitor é convidado a experimentar essa perspectiva,
assumindo a postura de deixar-se levar pelo texto, que com certeza trará novos horizontes
para uma significativa compreensão.
1.1 Sobre Teoria do Conhecimento propriamente dito
Uma preocupação central da filosofia sempre foi a questão do conhecimento em seu
modo de efetivação. Mais especificamente, a busca pelas condições de possibilidade do
conhecimento, o modo como compreendemos os objetos, enquanto a ciência se ocupa com
o conhecimento do objeto enquanto tal
3
. Eis o que distingue a filosofia da ciência
propriamente dita, de modo que é praticamente impossível a tarefa de encontrar um
filósofo que não se tenha ocupado com tal questão, seja de modo mais explícito, ou nem
tão explícito assim. Tal tarefa, porém, não necessariamente se dava enquanto disciplina
filosófica, no sentido que conhecemos hoje, ou seja, em sentido de uma formalização
2
Gadamer, 1994, p. 63.
3
Na filosofia não buscamos a descrição de um universo empírico. Não se trata dos objetos como tais, mas da
condição de possibilidade do conhecimento dos mesmos.
21
disciplinar. A idéia de uma disciplina filosófica, como sabemos, é relativamente nova
diante de toda a tradição filosófica. Atribui-se aos gregos o mérito de terem introduzido na
literatura filosófica os vocábulos γνώσις (“conhecimento”) e έπιστήµη (“saber” ou por
vezes “ciência”)
4
. Entre os gregos, a questão do que é o conhecimento se aproximava da
questão do que é a realidade. Quando o paradigma da modernidade começa a se firmar,
sobretudo com os autores renascentistas, que mantinham o foco central em torno de
discussões sobre a questão do método, é que o problema do conhecimento emerge como
um dos problemas centrais.
Como disciplina filosófica independente, não se pode falar de uma teoria do
conhecimento nem na Antiguidade nem na Idade Média. Certamente
encontraremos numerosas reflexões epistemológicas na filosofia antiga,
especialmente em Platão e em Aristóteles. São, porém, investigações
epistemológicas que ainda estão completamente embutidas em contextos
psicológicos e metafísicos. É só na Idade Moderna que a teoria do conhecimento
aparece como disciplina independente. O filósofo inglês John Locke deve ser
considerado seu fundador
5
.
Autores como Descartes, Espinosa, Leibniz, Locke, Hume irão concentrar seus
esforços nessa perspectiva do método e com a estrutura do conhecimento, porém ainda não
enquanto disciplina filosófica específica, tarefa que Kant vai desenvolver enquanto teoria
do conhecimento.
Na filosofia continental, Immanuel Kant aparece como o verdadeiro fundador da
teoria do conhecimento. Em sua principal obra epistemológica, a Crítica da
razão pura (1781), tentou fornecer uma fundamentação crítica ao conhecimento
das ciências naturais. O método que usou foi chamado por ele próprio de
“método transcendental”. Esse método não investiga a gênese psicológica do
conhecimento, mas sua validade lógica. Não pergunta, à maneira do método
psicológico, como surge o conhecimento, mas sim como é possível o
conhecimento, sobre quais fundamentos, sobre quais pressupostos ele repousa
6
.
Desse modo, “em Kant é o tipo platônico que irá reviver. A filosofia assume
novamente o caráter de auto-reflexão, de visão de si do espírito”.
7
Portanto, Kant mantém a
pretensão de universalidade, num movimento que não perde o caráter transcendental de um
sujeito que almeja chegar a um conhecimento verdadeiro.
Num primeiro momento, urge ter presente, conforme exposto acima, que, antes de
Kant, os autores ainda não possuem a perspectiva de uma disciplina filosófica
propriamente dita, como sendo teoria do conhecimento. A preocupação maior se com o
4
Cf. Mora, 2001, p. 539.
5
Hessen, 2003, p. 14.
6
Ibidem, p. 15.
7
Hessen, 2003, p. 7.
22
método e a estrutura do conhecimento, que se tornará condição de possibilidade para que
Kant consiga desenvolver o problema do conhecimento enquanto objeto da teoria do
conhecimento como tal, ou seja, como fundamentação crítica do conhecimento científico.
Desse modo, ele não se limita ao domínio teórico, porém, através do conhecimento teórico,
avança no sentido de uma fundamentação crítica dos valores em toda a sua totalidade.
Para Kant, os pesquisadores da natureza conseguiram avançar com relação ao
conhecimento, quando “deram-se conta de que a razão compreende o que ela mesma
produz segundo seu projeto, que ela teria que ir à frente com princípios dos seus juízos
segundo leis constantes e obrigar a natureza a responder às suas perguntas”
8
. E, mais
adiante, complementa que “das coisas conhecemos a priori o que nós mesmos
colocamos nelas”
9
.
Kant é sem dúvida um divisor de águas, na medida em que, a partir de sua teoria,
nos é possibilitado afirmar que se uma enorme valorização à teoria do conhecimento.
Na modernidade, ela passa a ser considerada uma das senão a disciplina mais
importante. Em tratando da relação sujeito e objeto, a posição de Kant é muito clara.
Percebe-se isso, quando afirma: “Até agora se supôs que todo o nosso conhecimento tinha
que se regular pelos objetos; porém, todas as tentativas de, mediante conceitos, estabelecer
algo a priori sobre os mesmos, através do que ampliaria o nosso conhecimento,
fracassaram sob esta pressuposição”
10
. Por isso “não podemos conhecer nenhum objeto
como coisa em si mesma”
11
, restando a possibilidade de poder pensá-los
12
. Assim sendo,
tal disciplina passará a se ocupar com o problema do conhecimento enquanto objeto da
teoria do conhecimento propriamente dito, sem, entretanto, que a teoria kantiana possa ser
reduzida a tal. A partir de então, a preocupação volta-se para novos problemas, sobretudo
os epistemológicos, que irão trazer a preocupação com os contextos metafísicos ou
ontológicos
13
.
8
Kant, 1980, p. 11.
9
Ibidem, p. 13.
10
Ibidem, p. 12.
11
Ibidem, p. 15.
12
Cf. Ibidem, p. 16.
13
Diante desse quadro, “há ainda pensadores como Nicolai Hartmann que insistem numa estreita
dependência mútua entre a teoria do conhecimento e a metafísica (ou a ontologia)” (Mora, 2001, p. 539).
23
1.2 A perspectiva fenomenológica e a questão da objetificação
Diante desse contexto, surge a fenomenologia
14
do conhecimento, trazendo a
perspectiva de um conhecimento efetivado à base de um paradigma predominantemente de
confronto entre a consciência e o objeto
15
, ou, então, entre sujeito e objeto. Emerge nesse
contexto o modelo objetificador, pois a modernidade trouxe a pretensão de uma razão
absolutizadora, que deveria dar conta da totalidade do saber como tal. Isso influenciou
profundamente as ciências, delineando um quadro onde, inspiradas no Iluminismo,
acreditou-se que o melhor modelo seria aquele que desse primazia à separação rígida entre
sujeito e objeto
16
. Assim sendo, não inclui necessariamente um processo inter-subjetivo, ou
seja, acreditou-se na possibilidade de um conhecimento plenamente objetificável por uma
razão instrumental
17
. Tal modelo tem-se mostrado insuficiente, por exemplo, em se
tratando de construção de conhecimento em áreas em que a historicidade é central, porém
funciona, em outras áreas do conhecimento, como é o caso das que trabalham dentro de
uma perspectiva meramente técnica
18
.
Com isso pretendemos deixar claro que, na perspectiva mais tradicional de
construção de conhecimento
19
, mesmo que haja a necessidade da relação entre sujeito e
objeto, isto é, correlação, para que se possa efetivar o conhecimento, em tal concepção,
“sujeito e objeto permanecem eternamente separados. O dualismo do sujeito e do objeto
14
Falar em fenomenologia na atualidade exige levar em conta a fenomenologia de Husserl. Em sua
generalidade máxima, a Escola fenomenológica, assim como o movimento fenomenológico são complexos.
Segundo Spiegelberg, dentro desse movimento figuram “a fase alemã” (com a fenomenologia pura de
Husserl e sua evolução; Pfänder, Adolf Reinach, Moritz Geiger, E. Stein, R. Ingarden e outros; a
fenomenologia das essências de Scheler; as bases fenomenológicas de Heidegger e de Nicolai Hartmann) a
fase francesa (com as “relações” de Gabriel Marcel com o “movimento fenomenológico” ou ao menos com
os “temas fenomenológicos”; as bases fenomenológicas de Jean-Paul Sartre, M. Merleau-Ponty e Paul
Ricoeur) e outras diversas “fases” e “períodos” (cf. Mora 2001, p. 1014).
15
Objeto deriva de objectum, particípio passado do verbo objicio (infinitivo objicere), que significa “lançar
para adiante”, “oferecer-se”, “expor-se a algo”, “apresentar-se aos olhos”. Pode-se dizer que em geral
significa “o contraposto” (analogicamente ao vocábulo Gegenstand, geralmente traduzido por ‘objeto’) (cf.
Ibidem, p. 2129).
16
Ver a esse respeito prefácio de Flickinger et al (2000).
17
O conhecimento, ao tornar-se um objeto, não raro estático, como no caso da educação impulsionada pelos
moldes iluministas, acredita-se poder ser transmitido pelo professor em sua íntegra, independentemente do
contexto histórico ou problemas de fundamentação. Há ainda como pressuposta a idéia de progressividade.
18
Entenda-se técnica enquanto conhecimento técnico no domínio de habilidades, conhecimentos específicos
de ordem prática, com informações precisas de procedimento, facilmente assimilado, uma vez que trabalha
dentro de uma perspectiva de ciência perpassada pela objetificação. Por isso, geralmente os conteúdos são
ordenados e sistematizados numa seqüência gica e psicológica, o que pode ser visto em manuais e livros
didáticos.
19
É o paradigma que perpassa e se mantém dominante na modernidade, chegando anós na idéia de que é
possível transmitir o conhecimento. Este é entendido enquanto acúmulo (também de valores sociais)
podendo, pois, ser repassado como verdade.
24
pertence à essência do conhecimento”
20
. Desse modo, abre-se um espaço para novos
questionamentos, do tipo se o sujeito determina o objeto ou é o objeto que determina o
sujeito. A tentativa de responder a essas questões levou à radicalização em torno de dois
modos distintos de se trabalhar com pretensões de chegar a um conhecimento verdadeiro.
A visão predominante, na modernidade, traz a idéia de que a função do sujeito é
apreender o objeto; a função do objeto é ser apreensível e ser apreendido pelo sujeito”
21
.
No entanto, de início temos que reconhecer uma incapacidade, por parte do sujeito, em
conseguir dar conta do conhecimento enquanto tal, uma vez que
o objeto não é arrastado para a esfera do sujeito, mas permanece transcendente a
ele. Não é no objeto, mas no sujeito que algo foi alterado pela função
congnoscitiva. Surge no sujeito uma “figura” que contém as determinações do
objeto, uma “imagem” do objeto. [...] Há uma transcendência do objeto na esfera
do sujeito correspondendo à transcendência do sujeito na esfera do objeto.
Ambas são apenas aspectos diferentes do mesmo ato. Nesse ato, porém, o objeto
tem preponderância sobre o sujeito. O objeto é o determinante, o sujeito é o
determinado. É por isso que o conhecimento pode ser definido como uma
determinação do sujeito pelo objeto. Não é porém o sujeito que é pura e
simplesmente determinado, mas apenas a imagem, nele, do objeto. A imagem é
objetiva na medida em que carrega consigo as características do objeto.
Diferente do objeto, ela está, de um certo modo, entre o sujeito e o objeto. Ela é
o meio com o qual a consciência cognoscente apreende seu objeto
22
.
É nesse sentido que entra em jogo a fenomenologia do conhecimento, que
procurará elucidar o que significa ser objeto de conhecimento, o que significa apreender o
objeto, ser sujeito cognoscente, ou seja, como se dá isso que nós denominamos processo do
conhecer enquanto manifestação do fenômeno. Por isso,
o conceito de verdade que obtivemos, a partir da consideração fenomenológica
do conhecimento, pode ser chamado conceito transcendente de verdade, vale
dizer, ele tem a transcendência do objeto como pressuposto. É esse o conceito de
verdade da consciência ingênua e também o da consciência científica. Ambos
visam, com a verdade, a concordância do conteúdo do pensamento com o
objeto
23
.
O conhecimento, fenomenologicamente falando, significa apreender, enquanto ato
pelo qual um sujeito apreende um objeto, sendo este, pelo menos gnosiologicamente,
transcendente ao sujeito, haja vista que do contrário não haveria apreensão de algo
exterior. Nesse sentido, é denominado conhecimento verdadeiro aquele em que o sujeito
20
Hessen, 2003, p. 20
21
Ibidem, p. 20.
22
Ibid., p. 20 – 21.
23
Ibid., p. 23.
25
representa o objeto tal como é essa é a pretensão fenomenológica
24
. Esse conhecimento,
enquanto apreensão espiritual do objeto, resulta numa “imagem” do objeto no sujeito
enquanto estrutura gica, portanto, objeto da lógica. “O objeto defronta-se com a
consciência cognoscente enquanto algo que é, quer se trate de um ser real ou ideal. O ser,
porém, é objeto da ontologia”
25
.
A fenomenologia, sem dúvida, uma enorme contribuição ao problema do
conhecimento e suas condições de possibilidade, principalmente ao colocar em seu centro
a descrição do ato de conhecer como ato de conhecimento válido, não a explicação
genética
26
desse ato ou sua interpretação metafísica. No entanto, escapam-lhe elementos
significativos, como é o caso do significado de apreender, assim como a natureza do
apreendido, uma vez que existe o problema da proporção de elementos, como é o caso dos
sensíveis, intelectuais e emocionais, quando se trata da representação dos objetos pelo
sujeito. Nesse sentido, “nem a psicologia, nem a lógica, nem a ontologia são capazes,
portanto, de resolver o problema do conhecimento, que é algo completamente peculiar e
independente”
27
.
Surgem algumas dúvidas sobre a possibilidade do conhecimento: será o sujeito
realmente capaz de apreender o objeto como tal? Também sobre a origem do
conhecimento urge perguntar: será a fonte e o fundamento do conhecimento humano a
razão ou a experiência?
28
Como se percebe, não consenso em torno dessa temática, sendo que pode-se
fazer uma abordagem em sentido diametralmente oposto ao constante acima, ou seja, nesse
caso, não seria o objeto que determina o sujeito, mas o sujeito que determina o objeto.
Nessa perspectiva, a consciência cognoscente se comporta ativamente e não
receptivamente frente ao objeto. Isso nos remete ao interior de outro problema, a saber:
24
Contemporaneamente, é possível distinguir pelo menos três fenomenologias com um “viés” diferenciado
entre eles. Hessen destaca “a fenomenologia transcendental centrada em Husserl e em autores mais ou
menos fielmente husserlianos a fenomenologia existencial que se manifesta, certamente de modo muito
diverso, em autores como Sartre e Merleau-Ponty – e a fenomenologia hermenêutica” (Mora, 2001, p. 1015),
à qual iremos dedicar uma atenção especial no próximo capítulo. Ainda merece atenção especial a
fenomenologia lingüisticamente orientada, em cujos diálogos, com Heidegger e Gadamer, Paul Ricoeur
encontrou sustentação para desenvolvê-la, “na qual ‘lingüístico’ expressa uma ‘situação da linguagem’
(langagière). A hermenêutica de Ricoeur pressupõe a fenomenologia, reinterpretada em sentido não-idealista,
mas ao mesmo tempo a fenomenologia pressupõe a hermenêutica” (Mora, 2001, p. 1328).
25
Ibid., p. 25.
26
No sentido de exploração dos atos constitutivos da consciência transcendental.
27
Ibid., p. 25.
28
Cf. Ibid., p. 27.
26
qual o critério que me diz, em cada caso, se um conhecimento é verdadeiro
29
ou não?
Como posso reconhecer sua verdade? No fundo, voltamos às questões centrais de saber se
o conhecimento realmente é possível. Quais são suas condições de possibilidade? Como se
dá? Em torno de questões como essas, céticos e dogmáticos irão se “digladiar”, em longas
batalhas intelectuais, uns negando a possibilidade do conhecimento e os outros afirmando,
com veemência, a possibilidade do conhecimento, sendo as coisas conhecidas
compreendidas tal como se colocam ao sujeito, conforme veremos a seguir.
1.3 Entre o ceticismo e o dogmatismo
O cético
30
, ao afirmar que não há verdade alguma, comete uma autocontradição,
uma vez que, tão logo o faça, estará pressupondo já de antemão a possibilidade do
conhecimento verdadeiro, pois o faz com pretensão de que a sua sentença seja verdadeira.
Esse paradoxo semântico consiste na afirmação de que nenhuma proposição é verdadeira,
isto é, “se se afirma que nenhuma proposição é verdadeira, é preciso admitir a existência
de menos uma proposição que é verdadeira, isto é, a proposição de que nenhuma
proposição é verdadeira, com o que esta última proposição torna-se falsa”
31
. Mas não é
esse o problema, está em jogo também o fato de que o ceticismo como que não consegue
enxergar o objeto, mantendo seu olhar colado ao sujeito, à função cognoscente, que
desconhece praticamente por completo a referência ao objeto.
O ceticismo mantém a atenção completamente direcionada aos fatores subjetivos do
conhecimento humano. Segundo sua compreensão, todo o conhecimento é condicionado
por peculiaridades do sujeito e de seus órgãos de conhecimento, assim como por
circunstâncias externas, tais como o meio ambiente, a cultura. No entanto, cabe-lhe o
29
Os filósofos gregos buscavam a verdade, o verdadeiro, em oposição à falsidade, à ilusão, à aparência, e
assim por diante. Compreendiam que a verdade era idêntica à realidade, e esta última era considerada
idêntica à permanência, ao que é, no sentido de “ser sempre”, sendo o permanente concebido como
verdadeiro em oposição ao mutante como aparentemente verdadeiro, sem sê-lo “de verdade” (cf. Mora, 2001,
p. 2291 – 2292).
30
O vocábulo cético significa originariamente “aquele que olha ou examina cuidadosamente, sendo seu
fundamento da atitude a cautela, a circunspeção. Enquanto doutrina filosófica, do ponto de vista teórico, o
ceticismo é uma doutrina do conhecimento segundo a qual não há nenhum saber firme, nem se pode
encontrar qualquer opinião absolutamente segura. O cético se caracteriza por ser aquele que continua
investigando, duvida de tudo. Pirro foi quem levou o ceticismo a suas últimas conseqüências (cf. Mora, 2001,
p. 436 – 437).
31
Mora, 2001, p. 438.
27
mérito de manter um sentimento de problema, de modo que aquele que está operando com
seu paradigma, não se aquiete diante de soluções dadas a um problema, exigindo, não
raro, soluções novas e mais profundas.
Já o dogmatismo
32
compreende o problema do conhecimento como uma auto-
evidência de que o sujeito apreende o objeto, assim como a consciência cognoscente
apreende o que está diante dela. A possibilidade e realidade do conhecimento verdadeiro é
tão evidente que nem sequer chega a ser levantada a impossibilidade do mesmo. Em outras
palavras, há uma confiança na razão humana não-acometida por nenhuma dúvida. O
dogmático não percebe que o conhecimento é, essencialmente, uma relação entre sujeito e
objeto. Ele acredita que os objetos de conhecimento nos são dados como tais à consciência,
e não pela função mediadora do conhecimento. “Segundo a concepção do dogmatismo, os
objetos da percepção nos seriam dados diretamente, corporeamente, e assim também os
objetos do pensamento”
33
. Por isso, o dogmático não consegue escapar a uma certa
ingenuidade intrínseca em sua perspectiva de construção do conhecimento.
Assim, de um lado, temos o dogmatismo que entende ser a relação sujeito e objeto
como auto-evidente, por outro, o cético a contesta, sendo que o sujeito não seria capaz de
apreender o objeto, conforme vimos acima.
Surge uma outra possibilidade de pensarmos essas questões, à base do
subjetivismo
34
e do relativismo
35
. Para ambos, não há verdade universalmente válida,
resultando daí uma restrição da validade da verdade ao sujeito que conhece e que julga.
32
Do grego dogma, doutrina estabelecida. O vocábulo “dogma” δόγµα em sua origem remonta para
“opinião”, uma opinião filosófica, isto é, de algo que se referia aos princípios. Daí vem o termo “dogmático”
δογµατικός que significa “relativo a uma doutrina” ou “fundado em princípios”. Na teoria do
conhecimento, o dogmatismo é entendido sobretudo em três sentidos: 1) como a posição própria do realismo
ingênuo, que admite não a possibilidade de conhecer as coisas em seu ser verdadeiro (ou em si), mas
também a efetividade desse conhecimento no trato diário e direto com as coisas; 2) como a confiança
absoluta em determinado órgão de conhecimento (ou suposto conhecimento), principalmente a razão; 3)
como a completa submissão, sem exame pessoal, a certos princípios ou à autoridade que os impõe ou revela.
Como posição gnosiológica, o dogmatismo opõe-se antes ao criticismo que ao ceticismo (cf. Mora, 2001, p.
762 – 763).
33
Hessen, 2003, p. 29.
34
Uma definição geral de subjetivismo poderia ser “a ação e efeito de tomar o ponto de vista do sujeito
enquanto meramente subjetivo” (compreenda-se sujeito como sujeito individual). Em geral, ao falar de
subjetivismo, o sujeito que se tem em mente é algum sujeito humano, individual, sendo seu ponto de vista,
particular. Por isso o subjetivismo é equiparado ao relativismo, e especialmente ao relativismo individualista.
Não raro, ele é denunciado como manifestação da arbitrariedade do sujeito ou indivíduo que formula
opiniões (cf. Mora, 2001, p. 2774).
35
Entenda-se “relativismo” enquanto tese epistemológica, segundo a qual não verdades absolutas, apenas
“verdades” relativas, de modo que uma proposição ou juízo possui verdade ou validade dependendo das
circunstâncias ou condições em que são formuladas, sejam elas determinada situação, estado de coisas ou
determinado momento (cf. Ibid., p. 2504).
28
Perde-se, assim, o caráter genérico de uma pretensão universal, permanecendo a verdade
enquanto possibilidade que tem validade no sujeito que cognoscente.
Desse modo, apresentam-se condições para o surgimento do relativismo, cuja
proximidade com o subjetivismo é inegável. Logo, também para ele não há verdade
universal, absoluta. Nesse sentido, toda verdade é relativa, sendo sua validade restrita. Para
o relativismo, o conhecimento possui maior dependência de fatores externos, enquanto o
subjetivismo possui uma maior dependência de fatores que residem no sujeito cognoscente.
“O subjetivismo e o relativismo padecem de contradições semelhantes às do ceticismo,
este afirma não haver verdade alguma e, com isso, se contradiz. O subjetivismo e o
relativismo afirmam que não nenhuma verdade universalmente válida”
36
. Abre-se um
espaço para um novo problema, pois falar da verdade, sem que seja universalmente válida,
torna-se um contra-senso, haja vista que é a própria essência da verdade que fundamenta a
validade universal da verdade. Nesse sentido, verdade “quer dizer concordância do juízo
com o estado de coisas objetivo”
37
.
Como se percebe, ao negar a possibilidade do conhecimento, o ceticismo se torna
essencialmente negativo. Abandonando o conceito de verdade como concordância entre
pensamento e ser, nos encontramos diante do pragmatismo moderno
38
, que possibilita uma
guinada para o positivismo, de modo que “verdadeiro, segundo essa concepção, significa o
mesmo que útil, valioso, promotor da vida. [...] Para ele, o homem é, antes de mais nada,
um ser prático, dotado de vontade, ativo, e não um ser pensante, teórico”
39
. Resulta daí a
tendência de tal perspectiva em considerar como sendo válido apenas o que se relaciona
diretamente à prática do homem
40
.
36
Hessen, 2003, p. 38.
37
Ibidem, p. 38.
38
Referimo-nos ao grupo de correntes filosóficas que se desenvolveram, sobretudo nos Estados Unidos da
América e na Inglaterra, tendo repercussão também em outros países, de modo distinto. Como, ao contrário
do intelectualismo, o pragmatismo acredita ser o valor prático o critério de verdade, em sentido amplo, junto
ao pragmatismo clássico de autores como Peirce, W. James, G. H. Mead, podemos identificar os seguintes
aspectos em sua inclinação pragmatista: 1) o instrumentalismo de Dewey; 2) o “biologismo” enquanto
“biologismo epistemológico” ou tentativa de interpretação dos processos cognoscitivos em termos de
atividade, sobretudo “utilidade” biológica; 3) o postulado da economia do pensamento, no sentido, entre
outros, de Mach; 4) alguns aspectos da “filosofia da imanência”, sobretudo em Schuppe e Schubert-Soldern;
5) o chamado “totalitarismo (ou holismo) pragmático” de Quine e os aspectos pragmatistas da “tese de
Duhem-Quine”; 6) o pragmatismo conceitualista de C.I. Lewis (cf. Mora, 2001, p. 2341 – 2343).
39
Hessen, 2003, p. 40.
40
Isso irá repercutir em paradigmas de construção do conhecimento, sobretudo em cursos que trabalham
dentro de uma perspectiva mais tecnicista, que, não raro, delimitam seu olhar, a partir de um horizonte
pragmatista, isto é, a partir do que prova ser útil para uma conduta prática.
29
O problema é que o pragmatismo não consegue enxergar a esfera lógica,
desconhecendo o valor próprio, a autonomia do pensamento humano. Seu ponto forte é a
conexão com a vida, o que é bom, contanto que não nos leve a desconsiderar a autonomia
do conhecimento e a fazer dele uma simples função vital
41
.
Subjetivismo, relativismo e pragmatismo, no fundo são ceticismos, sendo que o
dogmatismo se contrapõe ao ceticismo. um terceiro ponto de vista denominado
criticismo
42
, que, como o dogmatismo, possui uma confiança axiomática na razão humana,
isto é, para ele é indubitável que o conhecimento é possível, assim como a certeza de que a
verdade existe. Kant é considerado o fundador do criticismo, sua filosofia é conhecida
exatamente assim.
O criticismo não aceita nada, sem antes colocá-lo à prova, ao jugo da razão
humana. “Por toda parte pergunta sobre os fundamentos e reclama da razão humana uma
prestação de contas. Seu comportamento não é nem cético nem dogmático, mas
criticamente inquisidor – um meio-termo entre a temeridade dogmática e o desespero
cético”
43
.
Para Hessen (2003), o criticismo é o único ponto de vista correto, pois a aceitação
do criticismo geral significa reconhecer a teoria do conhecimento como disciplina
filosófica autônoma e fundamental. A objeção que tem sido feita à teoria do conhecimento
consiste em acusá-la de querer fundamentar o conhecimento, ao mesmo tempo que o
pressupõe, uma vez que ela mesma é conhecimento. Tal objeção poderia ser aceita, se a
teoria do conhecimento tivesse a pretensão de ser totalmente livre de pressupostos, porém
ela não o pretende, antes, pelo contrário, parte do pressuposto da possibilidade do
conhecimento. A partir daí, envereda por um exame crítico dos fundamentos do
conhecimento humano, assim como de seus pressupostos e condições mais gerais
44
.
41
Cf. Ibidem, p. 42.
42
Krínein significando examinar, pôr à prova. “Num sentido mais geral, o criticismo é a atitude que
considera a realide, ou o mundo, de um ponto de vista crítico, isto é, a atitude segundo a qual não é possível,
nem desejável, conhecer o mundo, ou agir nele, sem uma prévia crítica, ou um prévio exame dos
fundamentos do conhecimento e da ação. [...] A época moderna, que foi amiúde considerada uma “época
crítica”, revela o caráter desse criticismo que pretende averiguar o fundamento racional das crenças últimas,
não, porém, apenas das crenças que são explicitamente reconhecidas como tais, mas também de todos os
pressupostos. O criticismo aspira então a iluminar por completo as raízes da existência humana e até a buscar
o existir nessa iluminação.” (Mora, 2001, p. 621).
43
Ibidem, p. 43.
44
Cf. Ibidem, p. 44 – 45.
30
1.4 Racionalismo, empirismo e intelectualismo na construção do conhecimento
1.4.1 Racionalismo
No século XVII, o racionalismo
45
se firma como grande paradigma na construção
do conhecimento. Descartes lança as bases para a modernidade consolidar-se, mais adiante,
como sendo a grande detentora do modelo para se chegar a um conhecimento verdadeiro
46
.
Na doutrina das idéias inatas, iniciada por cero, na última fase do estoicismo,
encontramos os fundamentos do conhecimento, trazendo a perspectiva de um certo número
de conceitos inatos em nós, que são os mais importantes e tornam-se fundamentadores do
conhecimento. Originam-se na nossa razão, porém não provêm da experiência. Leibniz é o
grande continuador da obra de Descartes. Para ele, os conceitos inatos existem em nós
apenas em germe, potencialmente, enquanto que, para Descartes, eles estariam mais ou
menos prontos em nós. Apesar dessa diferença em suas concepções, há um ponto de
convergência na concepção de ambos os autores de que é evidente à razão de que os
conceitos inatos estão em nós. Ainda se destacam Malebranche, Espinosa, Wolff e
podemos, inclusive, acrescentar também Hegel.
45
Para o racionalismo, a verdadeira fonte do conhecimento é o pensamento, a razão. “O vocábulo
‘racionalismo’ pode ser entendido de três modos: 1) Como designação da teoria segundo a qual a razão,
equiparada ao pensar ou à faculdade pensante, é superior à emoção e à vontade; temos então um
‘racionalismo psicológico’. 2) Como nome da doutrina para a qual o único órgão adequado ou completo de
conhecimento é a razão, de modo que todo conhecimento (verdadeiro) tem origem racional; fala-se neste
caso de ‘racionalismo epistemológicoou ‘racionalismo gnosiológico’. 3) Como expressão da teoria que
afirma que a realidade é, em última análise, de caráter racional, o que nos leva assim ao ‘racionalismo
metafísico’” (Mora, 2001, p. 2442).
46
A filosofia moderna foi identificada com o racionalismo por diversos historiadores, principalmente devido
à grande influência exercida pelo cartesianismo.
31
1.4.2 Empirismo
O empirismo
47
, contrapondo-se ao racionalismo, afirma como sendo a única fonte
do conhecimento humano a experiência. Portanto, para o empirista não há nada a priori em
termos de conhecimento. Quando nascemos, o nosso espírito está vazio de conteúdos, é
uma tabula rasa, em linguagem contemporânea poderíamos dizer, um disquete formatado
que está vazio de conteúdo, totalmente “em branco”. Como todos nossos conceitos têm sua
procedência da experiência, a consciência cognoscente não retira o seu conteúdo da razão,
porém, provém da experiência, que é, para o empirismo, condição sine qua non para o
conhecimento.
Desse modo, o conhecimento vai sendo como que gravado em nosso espírito”, à
base das experiências que vamos tendo, sendo estas que dão à consciência cognoscente o
conteúdo, conforme já foi exposto em nota acima.
1.4.3 Intelectualismo
O intelectualismo
48
surge como uma espécie de mediação entre o racionalismo e o
empirismo, que são opostos, considerando que o racionalismo e o empirismo participam na
formação do conhecimento. “Como o racionalismo, ele sustenta a existência de juízos
necessários ao pensamento e com validade universal, concernentes não apenas aos objetos
ideais, mas também aos objetos reais”
49
. Para o intelectualismo, além das representações
intuitivas sensíveis, há ainda os conceitos, que, enquanto conteúdos não-intuitivos da
consciência, são essencialmente distintos das representações sensíveis, embora mantenham
47
De empeiría, experiência. Do grego έµπειρία (empeiria), experiência. Apesar de ter muitos sentidos,
destacam-se dois: como informação proporcionada pelos órgãos dos sentidos e como aquilo que foi chamado
de “vivências”, isto é, o conjunto de sentimentos, afeições, emoções etc., experimentados por um sujeito
humano e se acumulam em nossa memória, de modo que o sujeito que dispõe de um bom aprovisionamento
desses sentimentos, emoções, etc., é considerado “uma pessoa com experiência”. Freqüentemente se
restringiu o empirismo ao se contrastar o intitulado “empirismo inglês” (Bacon, Hobbes, Locke, Berkeley,
Hume) com o denominado “racionalismo continental” (Descartes, Malebranche, Espinoza, Leibniz, Wolff).
Foram dados muitos sentidos ao empirismo, de modo que é necessário precisar de que empirismo se trata em
cada caso. Destaque-se o empirismo “sensível”, o “inteligível”, o “crítico”, o “radical”, o “total”, o
“integral”, o “dialético” e o “lógico” (cf. Mora, 2001, p. 821 – 822).
48
“Freqüentemente se chama de ‘intelectualismo’ toda doutrina segundo a qual o experimentar se reduz a um
conhecer. Com base nessa idéia, pode-se caracterizar o intelectualismo como uma doutrina segundo a qual a
relação sujeito-objeto é fundamentalmente de caráter cognoscitivo (ou ao menos importa filosoficamente
somente na medida em que é de caráter cognoscitivo). Nesse sentido, muitas das filosofias contemporâneas
não são intelectualistas. o o são especificamente as filosofias contemporâneas que fazem do conhecer
apenas uma das possíveis relações entre o sujeito e o mundo” (Ibidem, p. 1532).
49
Ibidem, p. 59.
32
com elas uma relação genética
50
, na medida em que são obtidos pela experiência. Desse
modo, experiência e pensamento constituem, em conjunto, o fundamento do
conhecimento
51
.
Outra corrente que concorda com essa perspectiva é o apriorismo, mantendo, no
entanto, uma direção diametralmente oposta à do intelectualismo. Por a priori entende-se
que o conhecimento apresenta elementos independentes da experiência, não enquanto
conteúdos do conhecimento, mas formas do conhecimento, portanto formais. As formas
recebem seu conteúdo da experiência, no entanto, o fator a priori não provém da
experiência, mas do pensamento, da razão. “Os fatores apriorísticos assemelham-se, num
certo sentido, a recipientes vazios que a experiência vai enchendo com conteúdos
concretos”
52
.
Kant foi o grande fundador do apriorismo, buscando a mediação entre o empirismo
de Locke e Hume e o racionalismo de Leibniz e Wolff.
E ele o fez afirmando que o material do conhecimento provém da experiência,
enquanto a forma provém do pensamento. Com o material, tem-se em vista as
sensações. Elas são completamente desprovidas de determinação e de ordem,
apresentam-se como um puro caos. Nosso pensamento produz ordem nesse caos
na medida em que conecta os conteúdos sensíveis uns aos outros e faz com que
eles se relacionem. Isso ocorre por meio das formas da intuição e do
pensamento. Espaço e tempo são as formas da intuição. A consciência
cognoscente introduz ordem no tumulto das sensações na medida em que as
ordena espacial e temporalmente na simultaneidade ou na sucessão. Em seguida,
com a ajuda das formas do pensamento (doze, segundo Kant), introduz uma
outra conexão entre os conteúdos perceptivos. [...] Desse modo, a consciência
cognoscente constrói seu mundo de objetos
53
.
em Kant uma espécie de legitimação que se inerente ao pensamento, através
das formas e funções a priori da consciência, atribuindo à razão o fator racional enquanto
tal. Porém, enquanto os racionalistas provêm, em sua maioria, da matemática, os
empiristas provem da natureza, ou seja, os primeiros de uma ciência ideal, os outros de
uma ciência real.
50
Como exploração dos atos constitutivos da consciência transcendental.
51
Cf. Ibidem, p. 60.
52
Ibidem, p. 62.
53
Ibidem, p. 63.
33
1. 5 Sobre a relação sujeito e objeto
A concepção de teoria do conhecimento tem sustentado o princípio de que
conhecimento é uma conseqüência de uma relação entre sujeito e objeto. D surge a
problemática central de compreender corretamente como se essa relação entre sujeito e
objeto. Onde mesmo está o centro de gravidade, no sujeito ou no objeto? Como se
estabelece essa relação? É possível ela dar-se, sem que um determine o outro? Enfim,
questões como essas foram o centro das preocupações de muitos estudiosos, mas
algumas teorias clássicas que gostaríamos de analisar a seguir.
Uma primeira corrente é a do objetivismo, que considera o objeto como elemento
decisivo na relação de conhecimento. Portanto, o objeto determina o sujeito, sendo que este
deve ajustar-se ao objeto, de modo que uma espécie de cópia das determinações do
objeto. Um grande clássico dessa teoria é Platão, pois, para ele, as idéias são realidades
objetivamente dadas. Resulta que as idéias objetivamente dadas “formam uma ordem
fatual, um reino objetivo. O mundo sensível está defronte ao mundo supra-sensível”
54
.
Uma segunda corrente é a denominada subjetivista. Ao contrário do objetivismo, o
sujeito é ator principal, sendo que a verdade do conhecimento humano está nele suspensa.
Trata-se de um sujeito transcendente, onde “o característico do conhecimento já não
consiste mais numa focalização do mundo objetivo, mas num voltar-se para aquele sujeito
supremo. Não é do objeto, mas desse sujeito supremo que a consciência cognoscente
recebe seus conteúdos”
55
. Com isso se afirma que os objetos são produções da consciência;
logo, não são independentes dela, ou, em outras palavras, são enquanto produtos do
pensamento.
ainda uma outra possibilidade de pensarmos a relação sujeito e objeto, onde ela
ainda não surgiu tão claramente. Trata-se do realismo ingênuo, que não distingue a
percepção, enquanto conteúdo de consciência, e o objeto percebido. Desse modo, acaba
atribuindo aos objetos todas as propriedades que estão presentes nos conteúdos, uma vez
que identifica os conteúdos de consciência aos objetos, resultando que, para quem trabalha
dentro desse paradigma, as coisas são exatamente como as percebemos. É por isso que
permanece nele uma ingenuidade intrínseca, por lhe faltar criticidade.
54
Ibidem, p. 70.
55
Ibidem, p. 72.
34
também uma segunda forma de realismo, que sustenta a tese de que os objetos
correspondem exatamente aos conteúdos perceptivos. Trata-se do realismo natural, que
também não consegue escapar a um grau significativo de ingenuidade em sua perspectiva
de construção do conhecimento.
O realismo crítico sustenta que nem todas as propriedades presentes nos conteúdos
perceptivos convêm às coisas. É em nossa consciência que as propriedades ou qualidades
da coisa apreendida por nós, por meio de um sentido, existem. Porém, necessitam de certos
estímulos externos que atuam em nossos órgãos sensíveis
56
.
Assim sendo, pode-se afirmar:
Para o realismo crítico, o fundamento de maior peso é a independência dos
objetos de percepção com respeito às nossas percepções. [...] Desse modo, o
realismo crítico busca salvaguardar a realidade por vias racionais. Esse tipo de
fundamentação, porém, parece inadequado a outros representantes do realismo.
Segundo eles, a realidade não pode ser provada, mas apenas experienciada e
vivenciada. [...] As coisas opõem resistência à nossa vontade e ao nosso esforço
e é nessa resistência que vivenciamos a realidade das coisas
57
.
Em se contrapondo a essa perspectiva, surge o idealismo subjetivo, sustentando que
toda realidade provém da consciência do sujeito. O ser das coisas consiste em serem
percebidas por mim, enquanto conteúdo de minha consciência. Logo, assim que deixam de
ser percebidas por mim, também deixam de existir enquanto conteúdo. uma
dependência direta das coisas, enquanto conteúdos, da consciência que os percebe.
As diferentes concepções de conhecimento formam a base sobre a qual o paradigma
de alguém, que opera com elas, se consolida. Hessen (2003) tenta expor de modo claro
como operam essas concepções, através de um exemplo. Ele descreve:
Procuremos elucidar com um exemplo a diferença dessas concepções. Tomo na
mão um pedaço de giz. Para o realista, o giz existe exteriormente à minha
consciência e independentemente dela. Para o idealista subjetivo, o giz existe
apenas em minha consciência. Todo o seu ser consiste em ser percebido por
mim. Para o idealista lógico, o giz não está nem em mim nem fora de mim; ele
não está disponível de antemão, mas deve ser construído. Isso acontece por meio
de meu pensamento. Na medida em que formo o conceito giz, meu pensamento
constrói o objeto giz. Para o idealista lógico, portanto, o giz não é nem uma coisa
real, nem um conteúdo de consciência, mas um conceito. O ser do giz não é nem
um ser real, nem um ser de consciência, mas um ser lógico-ideal
58
.
56
Cf. Ibidem, p. 74 – 75.
57
Ibidem, p. 79 – 80.
58
Ibidem, p. 83.
35
Podemos perceber que estão em jogo duas formas principais sobre as quais surge o
idealismo: o subjetivo e o objetivo. Apesar de haver uma diferença essencial entre ambos,
também uma espécie de intuição fundamental comum, a saber, a tese idealista de que o
objeto do conhecimento não é algo real, mas ideal. O grande desafio está em provar tal
tese, uma vez que argumenta ser contraditório pensar num objeto independente da
consciência, visto que, enquanto penso num objeto, faço dele um conteúdo da minha
consciência. Ao afirmar, simultaneamente, que o objeto existe fora de minha consciência,
eu me contradigo. “Conseqüentemente, não existem objetos reais fora da consciência, mas,
ao contrário, toda a realidade está encerrada na consciência”
59
.
1.6 Fenomenalismo e posicionamento crítico
O fenomenalismo
60
sustenta a posição de que não conhecemos as coisas como elas
realmente são, mas somente como nos aparecem. Portanto, não somos capazes de conhecer
a essência das coisas, restando conhecermos o modo como as coisas aparecem na nossa
consciência. A coisa como tal é incognoscível. Em conformidade com o fenomenalismo,
“lidamos sempre com o mundo das aparências, com o mundo que aparece com base na
organização a priori da consciência, e nunca com as coisas em si mesmas. Em outras
palavras, o mundo no qual eu vivo é modelado por minha consciência”
61
. Resulta daí a
incapacidade do ser humano em saber como é o mundo em si mesmo, apenas lhe é
possibilitado o acesso à aparência das coisas, ou melhor dito, à coisa tal como me aparece.
Os meios puramente racionais não conseguem nem provar nem refutar o realismo e
o idealismo. um conflito insuperável entre realistas e idealistas, uma vez que o
conhecimento humano não consegue escapar a limites em sua capacidade de conhecer.
“Como seres que querem e agem, estamos presos à oposição entre eu e não-eu, entre
59
Ibidem, p. 84.
60
Por vezes também denominado “fenomenismo”. De phainómenon: fenômeno, equivalente a aparência.
Segundo essa concepção, o fundamento da doutrina repousa nas seguintes teses: 1) “todas as realidades são
fenômeno; não nenhuma realidade “em si” que se encontre além dos fenômenos ou seja subjacente a eles;
2) há realidades em si, mas estas são incognoscíveis; a única coisa que pode ser conhecida são os
fenômenos, ou as realidades enquanto fenômenos; 3) não é necessário sustentar nem que nem que não
realidades em si subjacentes aos fenômenos, e tampouco que somente fenômenos: afirma-se apenas a
possibilidade de reconstrução gica a partir de fenômenos ou de experiências sensíveis” (Mora, 2000, p.
1009).
61
Ibidem, p. 87.
36
sujeito e objeto; é impossível, por isso, superar teoricamente esse dualismo, vale dizer, é
impossível solucionar definitivamente o problema sujeito-objeto”
62
. Isso não significa que
não adianta discutir o assunto, porém, enquanto postura crítica, ter presente que os limites
da razão estão justamente ali onde ela pode ser mais surpreendida do que propriamente
conduzir o processo de conhecimento, exigindo-lhe uma postura de antes deixar-se
conduzir pelo acontecer histórico efetivo do que ser aquela que mantém o domínio sobre
tal.
1.7 Problemas em torno da verdade
Tudo isso nos leva ao questionamento sobre os critérios de verdade a serem
adotados, assim como às condições de possibilidade dessa em coerência com a pretensão
da própria ciência, a saber, chegar à certeza da própria verdade
63
. O problema, que de certo
modo foi tratado anteriormente, sobre tais critérios, em se tratando do fenômeno do
conhecimento, nos leva à compreensão de que, enquanto consciência natural, a verdade
consiste na concordância do conteúdo do pensamento com o objeto
64
. Significa dizer que o
sentido conferido às coisas, enfim, ao mundo, o é justamente porque é verdadeiro.
Contrapondo-se a essa perspectiva, temos a verdade enquanto concordância do pensamento
consigo mesmo, coincidindo com o idealismo lógico. Tal concordância se legitima à base
da ausência de contradições. No entanto, esse critério não é universal, pois vale para um
determinado campo do conhecimento, o das ciências formais ou ideais (lógica ou
matemática), onde o pensamento não lida com objetos reais. A veracidade se dá mediante a
62
Ibidem, p. 92.
63
A discussão em torno da verdade nos leva, enquanto perspectiva mais clássica, a uma primeira
compreensão em sentido grego e hebraico. Assim, emunah, para os hebreus, significava propriamente
segurança, confiança, sendo que a verdade das coisas é a sua fidelidade em oposição à sua infidelidade,
principalmente como revelação divina. para os gregos, a verdade é enquanto descoberta do que a coisa é,
ou daquilo que “é antes de haver sido”, de sua essência. Para o grego a verdade é alêtheia ou descoberta do
ser, como visão da forma ou perfil do que é verdadeiramente, mas que é ocultado pelo véu da aparência. Em
latim, a verdade expressa-se com o conceito veritas, que vem de verus, como expressão de uma confiança, no
sentido de conferir confiança à linguagem enquanto narrativa de algum fato ocorrido, mantendo a fidelidade
as coisas tais como aconteceram (cf. Mora, 2001, p. 2991 ss).
64
Cf. Hessen, 2003, p. 19. A essa concepção denomina concepção transcendente de verdade, que se
contrapõe ao denominado conceito imanente de verdade.
37
construção segundo as leis e normas do pensamento, que se mantêm devido à ausência de
contradição
65
.
Assim temos uma concepção de conhecimento enquanto reprodução ou produção
do objeto. Existe, no entanto, uma outra possibilidade de pensarmos essa questão: “basta
supor que exista uma coordenação, uma relação, feita conforme certas leis, entre o
conteúdo do pensamento e o objeto”
66
. Evidentemente que se trata de um conceito
imanente de verdade, cujo juízo é verdadeiro, devido à ausência de contradição, seguindo
as leis e normas do pensamento. “Nessa análise conceitual, deixo-me guiar pelas leis
lógicas do pensamento, o princípio de identidade e o princípio de contradição. É neles que
a verdade daqueles juízos está ancorada”
67
. Entretanto, as leis supremas do pensamento se
auto-fundamentam, cuja sustentação está no caráter de pressupostos necessários que elas
possuem para todo o pensamento e todo o conhecimento. “Nessas leis revela-se a estrutura,
a essência do pensamento”
68
.
Tal estrutura está diretamente vinculada com as categorias
69
que apresentam as
determinações mais gerais dos objetos (as estruturas objetivas do ser) ou aparecem como
determinações puras do pensamento (formas e funções a priori da consciência). Desse
modo, são formas do ser, determinações dos objetos ou formas do pensamento,
determinações do pensamento. Resulta daí a concepção objetivista e realista em
contraposição à concepção apriorística e idealista
70
.
A concepção apriorística e idealista atualmente é representada pelo neokantismo,
segundo o qual nossa consciência constrói os objetos, não apenas em seu ser-assim, mas
também em seu ser-aí, através das categorias enquanto determinações puras do
65
Cf. Ibidem, p. 123 – 124.
66
Ibidem, p. 122.
67
Ibidem, p. 128.
68
Ibidem.
69
Aristóteles foi o primeiro a usar κατηγορία em sentido técnico. Às vezes, pode-se traduzir por
‘denominação’; às vezes, por ‘predicação’ e ‘atribuição’. O mais comum é se usar simplesmente o vocábulo
‘categoria’. Kant reconhece que o conceito de categoria procede de Aristóteles, mas observa que a
enumeração aristotélica das categorias é fortuita. Seu sistema abrange as categorias de quantidade (unidade,
pluralidade, totalidade); as da qualidade (realidade, negação, limitação); as da relação (substância e acidente;
causalidade e dependência; comunidade ou reciprocidade entre agente e paciente); as de modalidade
(possibilidade-impossibilidade; existência – não existência; necessidade-contingência). As categorias são
constitutivas, isto é, constituem o objeto do conhecimento e permitem, por conseguinte, um saber da
Natureza e uma verificação da verdade como verdade transcendental. O problema das categorias como
problema fundamental da crítica da razão conduz ao problema da verdade como questão fundamental da
filosofia (cf. Mora, 2000, p. 416 ss).
70
Cf. Hessen, 2003, p. 135 ss).
38
pensamento. Em contrapartida, a concepção objetivista das categorias representada,
sobretudo, pela fenomenologia, pela teoria do objeto e pelo realismo crítico, sustenta que
somente podemos perceber o modo como os objetos são possíveis de serem apreendidos,
ou então, o modo como as categorias são possíveis de serem compreendidas como
propriedades do objeto, sendo estes em si mesmos determinados. Hessen (2003) refuta a
idéia de igualdade ou identidade entre consciência cognoscente e realidade absoluta,
trazendo a tese de que existe uma coordenação de certas partes constituintes do ser
fenomênico com o ser-em-si das coisas, sobre o qual se assenta a objetividade do
conhecimento
71
.
Com Kant, as categorias passam a ser entendidas do ponto de vista transcendental,
ou como “condições de possibilidade”. Elas são compreendidas como modos de ordenar e
conceituar os fenômenos. Após Kant, a noção de categoria adquire de novo um caráter
metafísico
72
. Segundo Eduard von Hartmann, as categorias são a envolutura lógica do
mundo, o que dele pode ser enunciado em suas formas mais gerais. Cada uma é aplicável
às esferas do mundo subjetivo, do mundo objetivo real e do mundo metafísico como
esferas do cognoscível
73
.
Assim sendo, firma-se historicamente o modelo de compreensão enquanto
objetificação, modelo que se torna predominante enquanto paradigma na construção de
conhecimentos ditos científicos.
Foi especialmente a idéia do método, ou seja, o assegurar a via do conhecimento,
através do ideal superior da certeza, o que deu validez a um novo conceito de
unidade de saber e conhecimento, que não se encontrava em uma conexão
evidente com nosso antigo conhecimento do mundo. Este é o primeiro
pressuposto subjacente na questão estabelecida. Esta nova concepção de ciência
fundamentou, pela primeira vez, o conceito estrito de filosofia que, desde então,
vinculamos à palavra ‘filosofia’
74
.
Por detrás desse paradigma, impera a idéia de que diante do saber científico chega-
se à verdade, construindo e não contemplando. Significa que “falar da objetividade, no
domínio do saber científico, é colocar um problema de ordem epistemológica.
71
Cf. Ibidem, p. 138 – 139.
72
Assim ocorre com Fichte, Hegel, Schopenhauer e Eduard von Hartmann, considerado por Hessen que,
desde Kant, empreendeu a mais importante busca de um sistema de categorias.
73
Mora, 2000, p. 1278 – 1279.
74
Gadamer, 1983, p. 92.
39
Conseqüentemente, é colocar a questão da neutralidade da ciência e dos cientistas
relativamente aos juízos de valor e aos engajamentos pessoais”
75
.
Houve uma mudança significativa na compreensão do que seja o saber na
perspectiva, por exemplo, grega, e o que denominamos ser a ciência
76
. É preciso ressaltar
que tradições de sabedoria e conhecimento em outras culturas, as quais não se deixam
absorver plenamente pela ciência compreendida no contexto da modernidade. Tais
tradições de sabedoria “não são formuladas na linguagem da ciência e sobre a base da
ciência”
77
. Desse modo,
a Época Moderna não obstante as discutidas derivações e datas se define
inequivocamente pelo fato de que nela aparece um novo conceito de ciência e de
método, primeiramente desenvolvido por Galileu, em âmbito parcial, e
fundamentado filosoficamente por Descartes
78
.
Com isso, percebemos existirem problemas substanciais que não podem ser
ignorados, pois exigem se levem em conta elementos que escapam ao domínio de uma
razão com a pretensão de dar conta da totalidade do saber como tal. Fica, pois,
comprometida a pretensão da ciência em ser a detentora da condição de possibilidade para
se chegar à verdade. É nesse sentido que “Hegel e Schelling são muito mais as vítimas do
dogmatismo nas ciências do que de sua própria mania dogmática de perfeição”
79
. Dentre os
problemas de que a própria ciência não consegue dar conta, está o fato de o próprio
cientista inserir-se num contexto histórico, cujo autodistanciamento total lhe é impossível,
assim como a impossibilidade em dar conta da realidade histórica.
Se houvesse a possibilidade histórica de realização completa da objetividade,
teríamos o caso absurdo de um sujeito objetivo, o que é uma contradição.
Ademais, teríamos a coincidência total entre pensamento e pensado e,
concomitantemente, estaríamos de posse da ‘verdade’, da certeza e da evidência.
Sendo assim, a ciência perderia sua razão de ser. Porque, sendo ela o processo de
produção do conhecimento do real, perderia toda a sua processualidade e,
conseqüentemente, deixaria de ser ciência, caso se considerasse possuidora do
real em sua objetividade pura e simples. Quando a ciência acredita determinar
75
Japiassu, 1978, p. 142.
76
Em criticando o contexto em que a modernidade nos jogou, nos é possível concordar que aquilo o que nós
designamos com o conceito usual de ciência “foi entendido pelos gregos, sobretudo, como o saber daquilo
sobre cuja base é possível fabricar algo: o chamavam poietike episteme ou techne. O exemplo mais claro e,
ao mesmo tempo, o tipo mais importante desta techne era a medicina, que não chamamos de ciência, mas de
arte de curar, quando queremos honrar sua tarefa humanitária. O tema que agora nos ocupa abrange, pois, à
sua maneira, o todo da marcha da história ocidental, os primeiros passos com a ciência e a atual situação
crítica em que se encontra um mundo que, sobre a base da ciência, transformou-se numa gigantesca oficina”
(Gadamer, 1983, p. 12-13).
77
Gadamer, op. cit., p.13.
78
Ibidem, p. 13.
79
Ibidem, p. 17.
40
completamente o real para apropriá-lo, constrói sua objetividade sobre um objeto
imóvel, conseqüentemente, morto
80
.
Ao que pode ser percebido, resta compreender a ciência enquanto processo
inacabado de busca de verdades provisórias
81
. “É através do modo como o sujeito se
compreende que pode chegar à compreensão dos outros, seja mediante suas obras, seja
mediante seus comportamentos. Por isso toda compreensão implica uma
autocompreensão”
82
. Fica evidente, pois, a necessidade em levarmos a sério a
hermenêutica enquanto possibilidade de auxiliar na compreensão da própria compreensão.
Nas palavras de Gadamer:
o sobressalto do mundo entendido comunicativamente consiste no que Sócrates
platônico qualificara como a segunda das boas viagens a fuga aos goi
viagem que também empreende Hegel. Compreender o mundo tal como se
compreende nossa própria conduta, quando se reconhece algo como ‘bom’: nesta
notável justificação, que Platão coloca na boca de Sócrates que espera sua
execução, se encontra legitimada filosoficamente uma compreensão do mundo
que, na verdade, não mais responde ao nosso conceito de ciência, porém da qual
a nossa própria experiência do mundo não pode prescindir. A época da ciência
que iniciara seu caminho depois da decadência e fim da síntese hegeliana de
filosofia e ciência, não conseguiu conservar, em si mesma, a herança desta
tradição
83
.
Colocamo-nos, pois, diante dessa conjuntura do saber, para podermos avançar em
nossa reflexão trazendo a dimensão e contribuições da hermenêutica diante do universo do
conhecimento. Hermenêutica enquanto mediadora nas ciências históricas entre o outrora, o
agora e o amanhã. É justamente que se a superação da aparente oposição entre o
sujeito cognoscente e seus objetos. Desse modo, a tradição não representa tanto o campo
objetivo onde pode se dar a dominação científica, mas muito antes um encontro conosco
mesmos, com nossas possibilidades, com o que pode ser de nós mesmos e com o que pode
suceder-nos
84
, conforme veremos no próximo capítulo.
80
Japiassu, 1981, p. 31.
81
Talvez nesse sentido uma das perspectivas mais instigantes seja a proposta por K. Popper, em tratando da
falseabilidade enquanto critério de avaliação das teorias científicas. Foi uma conseqüente culminância da
lógica da confirmação, o fato de que Karl Popper, em lugar da verificabilidade, introduzisse a falseabilidade
como condição lógica dos enunciados científicos. Em verdade, de imediato, o procedimento real da
investigação não se limita a esta auto-certeza do contrário. Mas que parece que define, de maneira adequada,
a fecundidade de uma proposta científica, no sentido de que sua resposta está ‘aberta’, ou seja, que a
experiência pode negar a esperada confirmação”. (Gadamer, 1983, p. 98 – 99).
82
Japiassu, 1978, p. 161 – 162.
83
Gadamer, op. cit., p.94 – 95.
84
Cf. Gadamer, op. cit., p. 101.
41
2 O COMPREENDER: DO SURGIMENTO
À COMPREENSÃO ATUAL
2.1 A Hermenêutica diante do universo do conhecimento
Para podermos falar em hermenêutica
85
, exige-se, num primeiro momento, a
exposição à base de qual horizonte de sentido e compreensão se pretende fazê-lo. Como é
sabido, o conceito de hermenêutica não é consensual, sendo que assume
contemporaneamente muitos significados. Da mesma forma, a origem do conceito
hermenêutica despertou muitas interpretações, porém, é possível que visualizemos alguns
pontos de convergência em torno dele, o que não significa que haja uma compreensão
unívoca.
É atribuído aos gregos o mérito de terem fundado o sentido original de
hermenêutica, que aparece no vocábulo έρµηνεία, significando, inicialmente, a expressão
de um pensamento, para, a partir daí, passar a ser compreendido mais como a interpretação
do pensamento
86
. Nesse sentido, abre-se um leque enorme de possibilidades de discussão,
podendo significar exegese, explicação, explanação, tradução, para chegarmos, no século
XVII, à concepção de arte da interpretação. Como se percebe, não um único olhar sobre
a questão da hermenêutica. Enquanto arte, de âmbito universal, tem se destacado a questão
da interpretação do “sentido das palavras, das leis, dos textos e de outras formas de
interpretação humana e tem sempre obtido e continua adquirindo expressão e significado,
sobretudo nos círculos literários, jurídicos, filosóficos e teológicos”
87
. uma diversidade
enorme de campos em que a hermenêutica, em sentido amplo, pode contribuir. Segundo
Grondin, “o conceito de hermenêutica é geralmente considerado uma criação da
modernidade. Isso, sem dúvida, é correto, enquanto se tem em mira a hermenêutica
85
Mais especificamente estamos tratando da Hermenêutica Filosófica.
86
Cf. Mora, 2001, p.1325ss.
87
Grondin, 1999, p. 09.
42
latina”
88
. No entanto, é atribuído aos gregos o mérito da formação da hermenêutica, ao
tentarem compreender seus poetas
89
.
Interessa-nos certa delimitação do assunto, de modo que iniciaremos por uma breve
exposição sobre Hermes, a quem é atribuída originariamente a tarefa de garantir o acesso
ao sentido, com pretensões de ser verdadeiro, para, depois, passarmos à análise de
correntes modernas e uma possível crítica às ciências objetificadoras e às pretensões do
Iluminismo, passando pela discussão schleiermachiana, como é sabido, imbuída do espírito
luterano.
2.1.1 Hermes: o deus mensageiro
Existe uma diversidade de funções atribuídas a Hermes, no panteão grego. A
origem de seu nome aponta para uma série de dificuldades, levando, por vezes, a pensar
que se trata de uma divindade pré-helênica de origem indo-européia. Outras vezes, é
relacionado com os montes de pedra, marcos que limitam o caminho, assinalando,
primeiramente, pontos sagrados, objetos de culto e de poder. Tais marcos delimitadores do
caminho vão aumentando cada vez mais, na medida em que cada viajante deveria
acrescentar uma pedra ao passar entre elas. Assim ele cumpriria um ritual de reverência,
garantindo a proteção da divindade na viagem.
uma outra possibilidade de leitura, que descreve os montes de pedra como
sendo tumbas. Assim, Hermes se converteria no daímon que os habita, de modo que
deveria ser considerado o guia das almas dos mortos até ao mundo subterrâneo. Sendo a
Arcádia
90
predominantemente terra de pastores, atribui-se a Hermes também o papel de
88
Grondin, 1999, p. 53.
89
Nesse sentido, é significativo levar em conta que, no século XVII, a compreensão hermenêutica “tinha
ainda sempre um sentido especial, referindo-se à explicação e interpretação de textos normativos,
particularmente da literatura clássica e da Sagrada Escritura, ou então também de textos jurídicos. Seu
conteúdo, porém, bem como sua origem etimológica, remontam a uma época ainda mais antiga, provindo da
mitologia grega. Platão designava os poetas como os ‘hermeneutas’ dos deuses que traduziam ou
interpretavam a sua mensagem” (Ruedell, 2000, p. 15).
90
Região onde mais se percebem esses túmulos.
43
cuidar dos pastores e dos rebanhos
91
. Mas ainda não é bem esse o sentido que adquire, com
relação ao nosso foco central de interesse. Enquanto filho de Zeus e da ninfa atlântica
Maya (segundo Hesíodo), na mocidade torna-se engenhoso, astuto, criador
92
, qualidade
que lhe permitirá infundir o gênio ao mundo.
Hermes irá assumir a função de mensageiro, após participar dos segredos dos
deuses. Ao mesmo tempo, Hermes também atende aos instintos, apetites, desejos
irracionais. Em sua forma de atuação, transgride e obedece
93
, é imprevisível, diurno e
noturno, divino e humano. Por isso é-lhe atribuída a tarefa de mediador, abre caminhos na
medida, assumindo a condição de explorador do desconhecido, na proposição em que
consegue desalienar, dar uma ordem ao caótico. Há, portanto, uma duplicidade em
Hermes, enquanto deus do deslocamento e dos imprevistos e deus da palavra subjacente.
Dá-se algo de desocultamento e de ocultamento, pelas vias da linguagem, em torno da
função que Hermes exerce.
Desse modo, podemos dizer que a hermenêutica surge do Mito de Hermes,
assumindo a tarefa de ser o mensageiro, o qual, na visão grega, possui o poder de reunir os
contrários para produzir algo novo. Enquanto mediador, transcende as leis humanas,
colocando-se no meio de tudo o que acontece, assumindo, assim, o papel de mediador. Sua
tarefa consiste em levar o conteúdo, melhor dito, a mensagem dos deuses para o horizonte
de compreensão da linguagem dos homens.
A isso normalmente denominamos tradução. Porém, o ato de traduzir um texto
de um idioma a outro não possibilita ainda captar a grandeza da tarefa de Hermes. Talvez
antes se pudesse dizer que Hermes é aquele que “transpõe” a mensagem do horizonte de
compreensão dos deuses para o horizonte de compreensão dos seres humanos. O problema
é que o homem não consegue compreender a linguagem que se desenrola no horizonte de
compreensão dos deuses. uma espécie de barreira lingüística que impede ambos de se
compreenderem.
91
Nesse sentido, outra interpretação, relacionando Hermes com uma raiz que significa fluir, sugerindo a
idéia ctônica de fecundidade, trazendo à tona a idéia de fecundidade dos rebanhos, levando a considerar a
pedra vertical como símbolo fálico.
92
na infância, quando encontra uma tartaruga, enquanto procurava pelas vacas de Apolo, Hermes fabrica
uma lira com seu casco, com a qual improvisa lindas canções, destacando-se como artista antes mesmo de
Orfeo. Como criador, identifica-se com seu pai Zeus.
93
Rouba as vacas de Apolo e as sacrifica aos deuses.
44
Uma metáfora talvez possa ajudar-nos a esclarecer mais o teor dessa tarefa:
passar de uma margem à outra de um rio, isto é, transpor algo de uma margem à outra,
sendo que a coisa em questão não é compreensível para quem habita em uma margem nem
a quem habita na outra. Desse modo, no movimento de ida e de volta, sempre é exigido
novamente que Hermes reitere o sentido da mensagem que está sendo levada por ele.
A palavra alemã que expressa bem esse sentido, mas cuja tradução é difícil, é
Übersetzer. Tal conceito expressa com mais precisão a tarefa de Hermes, uma vez que
Über aponta para a necessidade de supressão e movimento entre um espaço e outro, o que
não tem o significado de simplesmente transferir de um território ao outro. Nesse sentido,
podemos dizer que um é o território dos deuses (esfera do sacro), outro o dos homens
(esfera secular).
Retomando nossa metáfora, imaginemos que, numa margem estão os deuses e,
na outra, os homens, de modo que entre ambos se estabelece uma barreira comunicativa (o
rio que é muito largo) e não conseguem estabelecer comunicação entre si, senão pela
colaboração de Hermes. Ele tem, então, a tarefa de fazer com que a mensagem seja
compreendida, sem que perca o sentido, visto que haver, conforme se dizia acima, uma
espécie de “abismo lingüístico” entre ambos. Hermes está ali, no meio, mediando. Mesmo
entre a vida e a morte ele acompanha quem deve cruzar o rio, leva de um espaço a outro,
de um tempo a outro, de uma realidade a outra.
A esfera do sacralizado exige uma certa autoridade diante dos homens. Hermes
tem que levar a mensagem, com pretensa autoridade divina, porém não podendo
permanecer na linguagem dos deuses, para o horizonte da compreensão do homem. O
homem não consegue compreender, com clareza, a mensagem, pois está preso e limitado
por condicionantes da esfera profana, onde se dá a sua existência e o condiciona
historicamente. Não se trata, pois, de dois mundos, mas um mundo onde ocorrem dois
horizontes de compreensão imediatamente incompreensíveis entre si.
Portanto, exige-se a presença do mediador Hermes
94
, para que a mensagem
possa ser levada até à outra margem e “transposta” para o horizonte de compreensão dos
94
“Hermes, por vezes, é comparado, num conjunto de escritos denominado Corpus Hermeticum, ao deus
egípcio Toth, sendo denominado por Hermes Trismegistos ou Hermes Três Vezes Grande. Essa obra exerceu
considerável influência sobre o Renascimento, sendo que as idéias sobre harmonia universal desenvolvidas
por Bruno e Campanella, assim como por Copérnico, entre outros, parecem ter origem ‘hermética’. A idéia
de que ‘os antigos(herméticos, órficos, ‘caldeus’, etc.) possuíam uma sabedoria que precisa ser revelada se
45
homens e destes para os deuses, sem que ela perca o sentido. Tal tarefa exige a efetivação
de uma certa autoprodutividade
95
, necessária para que se possa dar a “transposição” de um
horizonte a outro.
O mensageiro Hermes dispõe de um instrumento, a vara mágica. Ela parece
dar-lhe poder de se movimentar entre o visível e o oculto, entre o unívoco e o equívoco, de
modo a manter certo domínio sobre os segredos que separam ambos. Isso remete também
para a idéia de livre-arbítrio, sendo-lhe atribuída essa incumbência, antes do surgimento
das leis e da moral. Com isso podemos perceber a problemática dessa, por assim dizer,
quase transposição de um horizonte a outro, que se aproxima de certa magia. Afigura-se
que não é possível reduzir o ato de tradução e compreensão, única e exclusivamente, a
elementos racionais de interpretação. Permanece ainda o elemento do “mágico”, que não se
situa no horizonte da reflexividade humana. É o humano que honra os deuses e o deus a
que se honra.
uma conjugação entre o humano e o divino em Hermes, de modo que os
contrários se tornam complementações e não opostos. como que um equilíbrio
dinâmico nas forças opostas, resultando numa coincidentia oppositorum, que consegue
transcender o dualismo. Equilibram-se tendências contrárias, como é o caso entre a razão e
a irracionalidade, a verdade e a mentira, o visível e o oculto, a vida e a morte
96
.
encontra também no movimento dos rosa-cruzes, originado nos escritos intitulados Fama (1614), Confessio
(1615) e O casamento alquímico de Christian Rosencreutz, de Johann Valentin Andréa movimento cujas
influências podem ser observadas em Comênio, Kepler e até em Newton, e possivelmente em Francis Bacon,
Robert Fludd, John Wilkins e Jakob Boehme. Como destacou Frances A. Yates (The Rosicrucian
Enlightenment, 1972), o rosicrucianismo está ligado à tradição da prisca theologia” (Mora, 2000, p. 501).
95
Essa idéia remete ao sentido da autopoêsis grega.
96
“Hermes-Toth se considera el primer gran sabio de Egipto, el ‘Moisés egipcio’, el Trimegisto, tres veces
grande; es el autor del habeas hermeticum donde se recogen la mayoría de las tradiciones y funciones
evocadas hasta aquí y de donde nacerán todas las prácticas herméticas futuras, la magia, la alquimia, la
adivinación, entre otras. [...] Dios de Hermópolis, se le rinde un culto diario consistente en cuidados
corporales, alimentos, meditaciones e invocaciones. Su ofrenda específica es una escribanía; en efecto, es el
funcionario modélico del mundo egipcio: sabe escribir y contar, y representa el deber de justicia, equidad y
rectitud. Regula el curso de la luna, comprueba el fiel de la balanza en el tribunal de los muertos, inscribe el
nombre de faraón en los frutos de árbol de la Historia en el templo de Heliópolis. Sabe también medir el
témonos del templo proyectado, porque es ‘el corazón de Râ’, es decir la residencia de su memoria y de su
imaginación, nueva prueba de que, si no le domina, al menos le antecede. Será pues su portavoz, y edictará
las leyes, nombrará los lugares y determinará las recetas adecuadas para aliviar los males que aquejan a los
hombres” (Verjat, 1998, p. 293).
46
2.1.2 O nascedouro do conceito hermenêutica
A primeira referência que se faz à hermenêutica (hermêneutikê) remete ao corpus
platônico, cuja função é de natureza sacra. Porém, enquanto título de uma obra, segundo
Gadamer, remete para o ano de 1654, na obra de J. Dannhauer: Hermeneutica sacra sive
methodus exponendarum sacrarum litterarum
97
. Trata-se de uma perspectiva ainda muito
mais ligada à expectativa de encontrar um caminho seguro (técnica) para a interpretação
propriamente dita das Sagradas Escrituras.
A perspectiva grega está muito mais ligada à idéia de mediação, de modo que
“hermeneía” inicialmente significa expressão ou interpretação
98
. A partir do século XVII,
passa a ter uma denotação de ciência, quando deixa de ser compreendida como doutrina
que queria apresentar as regras, os procedimentos seguros para uma correta interpretação.
Com o Renascimento, surgem três ramificações da hermenêutica, a saber, uma teológica
(ou sacra), uma jurídica e uma terceira denominada filosófica, que é nosso foco central de
interesse.
Antes desse período, temos apenas algumas regras esparsas que orientam a
Antigüidade e a Patrística. Quem deu enorme contribuição à difusão e valorização da
hermenêutica, foi Lutero
99
. Com Lutero, surge a perspectiva de sistematicidade, que
desembocará na doutrina universal da arte do entendimento em Schleiermacher, que, de
certo modo, possibilitou Dilthey ampliar a discussão para uma metodologia universal das
ciências do espírito (Geisteswissenschaften).
Dentro da mesma tradição, Heidegger consegue levar a discussão ao terreno ainda
mais fundamental, a facticidade humana, que Gadamer eleva à compreensão de uma teoria
da historicidade e da linguagem
100
. Gadamer traz à tona a discussão em torno de elementos
que denunciam os limites das ciências objetificadoras, exigindo que sejam abordadas
97
Gadamer, Gesammelte Werke 2, p. 93. Também Palmer (1989, p. 44) confirma esse mesmo ano.
98
Nas palavras de Gadamer: “Na verdade o fundamento sobre que se ergueu a filosofia na Grécia era o
irrefreável desejo de saber, mas não aquilo a que chamamos ciência” (Gadamer, 1983, p. 12).
99
“O princípio escriturístico do ‘sola scriptura’ devia, certamente, dar origem a uma hermenêutica elaborada,
mas esta não foi concebida por Lutero, o qual, sem uma teoria hermenêutica específica, ocupou-se com
trabalhos e preleções exegéticas, e sim por seu colaborador Flacius Illyricus, o qual certamente elaborou a
primeira teoria hermenêutica moderna da Sagrada Escitura. Ela valeu até fins do século 18, como obra básica
no campo da exegese. No século 17, a hermenêutica foi, entrementes, elaborada como arte universal da
explanação, portanto, em seu cerne, como história universal do espírito do racionalismo, por autores como J.
Dannhauer, G.F. Mayer e J.M. Chladenius” (Grondin, 1999, p. 27).
100
Cf. Grondin, 1999, p. 26.
47
questões como a postura humana na configuaração do saber
101
“mostrando-nos no processo
de compreender uma experiência ontológica subjacente a cada reflexão e a incitando”
102
.
2.2 O Compreender: do surgimento do conceito racional de compreensão
2.2.1A busca pelo conceito “Compreender”: um olhar a partir de K.O. Apel
O conceito compreender (Verstehen) se distingue antes mesmo do seu emprego
científico, sendo usado de modo distinto de entendimento (Verstand). O sentido mais
profundo do conceito compreender, à base de uma investigação histórico-conceitual, o
consegue evitar uma multiplicidade de significados tomada da memória da língua materna,
configurando-se em situações histórico-espirituais e conjuntos sistemáticos de problemas
dialeticamente frutíferos. Para Apel, “além do sentido histórico-filosófico, poderia tornar-
se visível também algo próprio da formação oculta da memória da linguagem”
103
.
Nesse sentido, o conceito racional de compreensão não se de modo imediato,
mas depende do conceito de “esclarecimento” das ciências da natureza. Dilthey teve o
mérito de elevar o conceito compreender ao conceito fundamental do reconhecimento
espiritual-científico, em contraposição ao sentido “esclarecer” das ciências naturais. Por
um lado, perseguir-se-á a história prévia da cristalização terminológica do movimento
filosófico e, por outro, o seu efeito até os mais recentes desdobramentos. Nesse sentido,
será possível abordar os significados do conceito compreender enquanto problema
histórico.
Conforme Apel, uma primeira vertente provém de Vico, passando de forma clássica
na época do “movimento alemão”, na denominada “formação das ciências hermenêuticas”,
seguindo por Herder, no despertar do sentido histórico, e passando pelo romantismo até
Hegel. Daí surge um movimento que se preocupará com a fundamentação das ciências
histórico-filológicas, que vem de Winkelmann a Schleiermacher, Humboldt, Boeckh,
Grimm, Ranke e Savigny
104
. A segunda vertente, perpassada pela interpretatio naturae
matemática, resultou na fundação das ciências exatas e da técnica. Tal perspectiva é
101
Cf. Flickinger, 2000, p. 7.
102
Ibidem, p. 8.
103
Apel, 1955, p. 143.
104
Cf. Ibidem, p. 144.
48
perpassada pela expectativa de “ler no livro da natureza” (Cusanus, Leonardo, Leibniz).
Esta segunda vertente, ligada à perspectiva da interpretatio naturae, que na época era
novidade, após longa preparação levou à manifestação clássica na formação do positivismo
da ciência da natureza de D’Alembert até Comte
105
. Droysen e Dilthey conseguiram tomar
o conceito “compreender”, graças ao amadurecimento pelo qual o mesmo passou na
tradição alemã da ciência do espírito.
Apel constata um desvio da teleologia escolástica e um panteísmo dos filósofos da
natureza, especialmente Kepler e Galileu. O primeiro entende o mundo, não enquanto
analogia de um ser vivo, mas como uma espécie de relógio
106
, enquanto o segundo adverte
sobre a necessidade de penetrarmos pelo caminho da especulação, para chegar ao ser
verdadeiro e interior das substâncias naturais, evitando, assim, permanecer em algumas
peculiaridades empíricas. Porém, eles ainda não tinham a idéia da oposição a um objeto, o
que veio possibilitar o desligamento da metafísica mais antiga, a saber, “um novo ‘Pathos’,
um ponto de vista totalmente especulativo do entendimento (interpretatio,
intellectio!)”
107
. Trata-se aqui do próprio Deus transcendente em sua ação criadora e não
ainda da concepção da ciência da natureza moderna, a saber, o ser das coisas da natureza
em si ou sua exteriorização.
O homem participa nas verités éternelles, pois, ao testar o experimento conforme o
modelo da geometria, o cientista da natureza matemática consegue entender as idéias de
Deus em sua construção hipotética da natureza. No entanto, o homem que participa das
verités éternelles deve também completá-las, através das verités de fait”, pois “ele
compreende antecipadamente, a partir do mundo das possibilidades, que ele sozinho
compartilha de todas as criaturas com Deus”
108
.
Cusanus atribuirá ao homem a idéia de um “segundo deus” (alter deus), enquanto
Deus é vis entificativa, o espírito humano aparece como vis assimilativa, de modo que
existe entre a obra de Deus e Deus a mesma relação que se pode estabelecer entre o nosso
espírito e o espírito em si
109
. A matemática nos possibilita uma espécie de exatidão divina
das coisas reais, construindo suas figuras do interior, assim como a natureza, como obra de
105
Cf. Apel, op. Cit., p. 144.
106
“A geometria forneceu a Deus as primeiras imagens para a criação do mundo, e com a imagem de Deus
ela foi transposta aos homens...” (Kepler, Harmonices Mundi, (1619), apud. Apel, op cit., p. 147).
107
Ibidem, p. 146.
108
Ibidem, p. 148.
109
Cf. Ibidem, p. 148 – 149.
49
Deus, produz suas coisas com causas vivas vindas do interior. Percebe-se que a idéia ainda
não se encontra no sentido da ciência da natureza moderna, mas aponta para indícios
também presentes em Leonardo, para o qual “o ser humano, como artista, pesquisador da
natureza e técnico (que para ele quase coincide), realiza uma segunda criação”
110
.
No entanto, Deus não deve ser confundido com uma idéia de, por assim dizer,
primeiramente matemático, mas, muito antes, primariamente onipotente, com poder de
arbitrariedade sem fundamento. O Deus dos nominalistas está fundamentado no
compreender matemático de Descartes e de toda a explicação da natureza, instaurando-se
assim o paradigma da mathesis universalis
111
. Percebe-se, assim, a condição prévia dada
pela operação dinâmica do espírito humano com o espírito criador divino, que é
impulsionada pela construção matemática sobre a natureza e com isso a idéia da
interpretatio naturae possibilitando o avanço da primeira fase da ciência da natureza no
Ocidente.
Diante desse contexto, criam-se condições para que o conceito compreender possa
ser definido a partir das condições de possibilidade da compreensão, isto é, sobretudo a
partir da totalidade dos conceitos. Kant é quem entra nesse debate, destacando na famosa
formulação Wir verstehen aber nichts recht als das, was wir zugleich machen können,
wenn uns der Stoff dazu gegeben würde
112
. Kant “leva ao pensamento central de seu
idealismo transcendental, conforme o qual a ‘compreensão da natureza prescreve a lei’, no
qual o espírito da modernidade se dá sua fundamentação metafísica”
113
.
2.2.2 O surgimento da palavra “compreender” na tradição hermenêutica
Apel propõe que, antes de se analisar a tradição alemã mais específica, a saber,
Droysen e Dilthey
114
, devemos nos ocupar com Giambattista Vico, que contrapôs uma
teoria do conhecimento à mathesis universalis. Vico pela primeira vez constatou o
problema central da compreensão das ciências do espírito, ao renovar a fundamentação da
110
Ibidem, p. 150.
111
Ver quanto a isso também o capítulo 3, quanto é exposta a perspectiva de Descartes e Espinosa a respeito
de tal conceito.
112
Reflexionen, Nr. 395. In. Apel, 1955, p. 152.
113
Ibidem, p. 153.
114
Adiante, dedicaremos atenção especial a Dilthey, ao tentarmos expor o início da perspectiva da
hermenêtutica moderna, juntamente com Espinosa e Schleiermacher.
50
verdade da matemática, pois nela “o homem trabalha, porque internaliza em si um mundo
imaginário de linhas e números, igualmente com a abstração, como Deus no universo com
a realidade”.
115
Ele irá defender a formação retórico-poética, o estudo da Antigüidade e da
tradição contra o cartesianismo universal abstrato, continuando assim na antiga tradição
humanística
116
. Ao “mundo da natureza”, Vico contrapõe o “mundo da história”. Esse
campo histórico não era praticamente percebido em Descartes. Desse modo, “o mundo
histórico foi feito com certeza pelos seres humanos”, sendo que seu ser deve ser
encontrado nas modificações da nossa própria inteligência, isto é, não necessita aqui de
representação, como na natureza externa criada por Deus.
É na história que o homem também se revela, pois assim como na geometria que
cria o mundo das medidas, enquanto constrói e observa seus respectivos princípios, na
história o homem reconhece o que ele mesmo criou. O homem conhece “como nas
modificações de seu espírito” o que na verdade não fez, porém que a “antecipação”, a
“rainha das ações humanas” realizou por ele. aqui um círculo na compreensão que se
ganha a partir do que é compreendido, o qual “Vico iniciou implicitamente, mas não trouxe
à sua consciência. Hegel e Dilthey irão herdar essa idéia”
117
.
Segundo Apel, “a tradição alemã do conceito ‘compreender’ nos remete
inicialmente à história da palavra em seu significado pré-científico. [...] O prefixo (ver-
stehen está no sentido de per- em perstarei, no latim”
118
. Inicialmente, a compreensão
permanece mais ligada ao verbo, mais tarde adquire o sentido de ratio, que será usado por
grande parte da Escola filosófica de Wolf até a atualidade. “Na compreensão a alma é
iluminada a partir do lógos
119
.
115
Vico, apud Apel, 1955, p. 154.
116
Conforme Apel (1955), Vico percebe a hierarquia medieval da ciência, a qual considera a origem a partir
da valoração do conteúdo e não conforme a segurança e precisão do método. Assim Vico tomará a sua “Nova
Ciência” justamente a partir do ponto de vista metodológico da Modernidade, a partir da fundamentação
sintética da já tradicional ciência do espírito muitas vezes observada no humanismo. Vico é, a princípio, um
dos últimos representantes da erudição tradicional, sendo que precede a ciência explicativa exata (science,
scientia generalis), porém quase ainda na defesa do antigo, ele toma teoricamente, e na aplicação concreta
como historiador, pela primeira vez o novo, mais alto princípio da “compreensão”, o qual somente após o
iluminismo deveria fundamentar uma época na filosofia e na ciência (cf. nota de rodapé, p. 154).
117
Apel, op. cit., p. 156.
118
Cf. Ibidem, p. 156 – 157.
119
Quão profundo é o pensamento da compreensão, o qual mais tarde conduz a área da filosofia aleà
exploração do mundo da cultura e da história humana, que está fundamentado de maneira religiosa em
Eckehart, isso confirma a frase 13 de sua tese defendida em 1329: “Tudo o que é próprio da natureza divina
isso também é próprio do homem justo e divino. Por isso tal homem age também em tudo o que Deus age:
ele criou junto com Deus céu e terra; ele é testemunha da palavra eterna, e Deus nada saberia fazer sem tal
51
No entanto, Lutero é quem tem o mérito de ter trazido para a compreensão alemã o
sentido mais completo da palavra compreender
120
, que contém dentro do saber
hermenêutico a totalidade da alma humana. Para ele, a compreensão espiritual é a
verdadeira compreensão da Escritura, pois ela provém do Espírito Santo, de modo que “a
Escritura pode ser compreendida por aquele que percebe dentro de si pelo menos uma
parte deste espírito”. No entanto, “ninguém pode ter o Espírito Santo, ele (o ser humano)
experiencia, prova e aí sente”
121
.
Nas palavras de Apel,
o substantivo Verstand ainda não designa aqui visivelmente o Seelenvermögen
fixado, porém significa algo como compreensão, muitas vezes também sentida,
significado. Está bem próximo do verbo, que se refere aos argumentos internos,
ocultos, secretos
122
.
Há, evidentemente, tons místicos, espirituais nessa interpretação apeliana. No
entanto, percebe-se que justamente tais elementos irão contribuir muito para fazer do
compreender o conceito fundamental das ciências do espírito. Cristian Wolff dá uma
definição de todo diferente das até aqui empregadas para a compreensão, quando expõe:
“Tão logo nós tenhamos idéias claras ou conceitos de uma coisa, assim compreendemos
isso”
123
. Suabedissen esclarece: É compreendido o que é apreendido na razão, portanto,
que significado e lugar é identificado no sistema das idéias”
124
. Na mesma direção irá
Schopenhauer, contudo com a entonação mais forte voltada para a contemplação:
Compreender tudo é um conceber imediato das conexões causais, e por isso
intuitivo, embora tenha que ser logo transferido para conceitos abstratos para ser
fixado. [...] Somente a matemática pura é totalmente compreensível. A
compreensibilidade dos fenômenos da natureza diminui na medida em que estão
cada vez mais altos na escala do ser
125
.
Hamann apresenta uma idéia inovadora do compreender enquanto histórico. Ele
exige ler livros históricos chama a atenção para a necessidade de lê-los com e no espírito
de seus autores, colocando-se no lugar do autor, pois, para ele, intenção, tempo, lugar de
homem”. Compare-se aqui a “Imago Dei”, uma coletânea de Cusanus, Kepler e Leibniz assim como o
princípio fundamental da teoria do conhecimento de G. Vico, como ponto de mudança da secularização.
Hegel e Schelling renovam mais uma vez a pretensão de especulação a pós-compreensão de Deus como
filosofia da natureza e filosofia da história (Apel, op. cit., p. 158).
120
No entanto, não no sentido de uma elaboração de uma teoria hermenêutica, conforme foi exposto
anteriormente.
121
Lutero, apud Apel, 1955, p. 158.
122
Apel, op. cit., p. 159.
123
Wolff, apud Apel, 1955, p. 161. Evidentemente aqui se trata de uma linha de desenvolvimento kantiana.
124
Suabidissen, apud Apel, op. cit., p. 161.
125
Schopenhauer, apud Apel, 1955, p. 161.
52
um autor são todos determinantes de sua expressão, sendo que há uma força de imaginação
(Einbildungskraft) determinante no entendimento histórico. “A compreensão da história,
conforme Hamann, deve ser uma vis divinandi, para ‘ler o passado como sendo futuro’. A
problemática aqui demonstrada somente setomada em E. Troeltsch e sobretudo em M.
Heidegger”.
126
Seguindo uma linha mais platônica, Ast faz emanar o ensino da totalidade espiritual
na compreensão como própria, ao propor um padrão que consiste em reproduzir a
compreensão, a partir de seu rebento espiritual produzido (geistigen Schaffenskeim). Para
ele, tudo partiu de um espírito e retorna novamente a ele. Isso remete a uma compreensão
espiritual enquanto concepção do ser naquilo que diz respeito ao espírito do autor e todo o
contexto histórico
127
.
Wolf define como primeira regra, e a principal da compreensão, transpor-se à
situação e manter a seqüência de idéias do autor. Para tanto, exige-se a “leveza da alma”,
assim como a capacidade de penetrar em pensamentos considerados estranhos. No entanto,
foi Schleiermacher quem, pela primeira vez, desenvolveu uma hermenêutica perpassada
filosoficamente. O grande objetivo de Schleiermacher é
compreender a linha de pensamento unívoca a partir do “contexto da vida, do
qual ele se origina”, a expressão isolada como um “momento de vida
interrompido”. [...] Schleiermacher denomina o processo de compreensão que se
move entre os dois procedimentos (compreensão ‘divinatória’ e ‘comparativa’)
em forma de círculo como auto-encontrar-se gradativo do espírito pensante”.
[...] Resumindo, Schleiermacher define: “A hermenêutica é o reconstruir
histórico e divinatório (geschichtliche und divinatorische), objetivo e subjetivo
do discurso dado”
128
.
Aug. Boeckh, que foi aluno de Schleiermacher e Wolf, deu a forma sistemática
conclusiva das ciências do espírito idealista-romântico em sua obra Enciclopédia e
metodologia das ciências filológicas (1877). “Sustentado pelo ensinamento de Schelling
sobre a produtividade inconsciente, ele explicita a exigência suprimida em Kant, Fichte
e Schleiermacher de que o intérprete deveria, o compreender o autor tão bem, como
compreendê-lo melhor que este a si mesmo”
129
.
126
Apel, 1955, p. 163.
127
Cf. Apel, op. cit., p. 167.
128
Apel, 1955, p. 168.
129
Apel, op. cit., p. 169.
53
A linguagem tornar-se-á, para W. von Humboldt, elemento importante na
compreensão, uma vez que por ela é-nos possibilitado compreendermos uns aos outros,
porque assim os homens “tocam reciprocamente o mesmo elo da corrente de sua idéia
interior e a formação do conceito interior, tocam a mesma tecla do instrumento espiritual,
do qual, porém, não brotam os mesmos conceitos em cada um”
130
.
2.2.3 A compreensão como conceito fundamental da teoria do reconhecimento das
ciências do espírito
No capítulo a seguir, discutiremos a difusão e desdobramento do conceito de
compreensão no contexto de uma fundamentação teórica do conhecimento das ciências do
espírito na Alemanha. Ao lado disso, o conceito racional da compreensão terá especial
atenção ao buscar explicar o conjunto de fatos da compreensão, no sentido do positivismo
psicológico-associativo.
Com J. K. Droysen, a história receberá um lugar de destaque. Para ele, a expressão
existe como material histórico, sendo que “a natureza espiritual do homem exterioriza cada
procedimento interior como percepção significativa, reflete em cada exteriorização
processos internos”
131
. Droysen chama a atenção ao aspecto circular que se torna possível,
a partir de determinadas relações e não no seu ser individual. Em suas palavras, “aquele
que compreende, porque ele é um Eu, uma totalidade em si, como aquele, ao qual ele deve
compreender, completa-se em sua totalidade, a partir da expressão particular, e a expressão
particular a partir de sua totalidade”. Nesse sentido, podemos dizer que o compreender é
tanto “indução como dedução”
132
.
W. Dilthey continua sobre bases mais amplas o compreender como modo de
conhecimento próprio das ciências do espírito. Segundo sua concepção, “nós explicamos
através de processos intelectuais, mas nós compreendemos por cooperação de todas as
forças da mente na concepção, através da imersão das forças da mente no objeto”
133
. Para
Dilthey, a objetivação da vida recebe a experiência do exterior ao interior, de modo que
“somente o que o espírito criou ele compreende. [...] A vivência apenas se torna uma
130
Ibidem, p.170.
131
Ibidem, p. 173.
132
Apel, op. cit., p. 173.
133
Dilthey, apud Apel, 1955, p. 173.
54
experiência de vida, quando o compreender, a partir da estreiteza e subjetividade da
vivência, conduz à região do todo e do coletivo”
134
. E mais adiante explicita: “No
compreender de um produto histórico como a expressão para uma interioridade, não
uma identidade lógica, porém, o comportamento único de igualdade em indivíduos
diferentes”
135
.
Para Dilthey, a compreensão é o procedimento no qual, a partir de sinais dados de
fora, nós conhecemos a interioridade. E esclarece:
Como espírito nós somos...em consciência referidos a tudo compreensível, por
isso o espírito altera tudo, o mundo e a si mesmo, através da mediação da
consciência até a compreensibilidade. Na compreensão das conexões nos damos
conta dos limites do incompreensível. Este incompreensível é, por um lado,
como a barreira do compreensível à consciência exterior... Por outro lado, a
incompreensibilidade é tida como a origem do compreensível, mais que
compreensível, é o vir a ser se esclarecendo compreensível, quando é tomado do
incondicional/absoluto da existência
136
.
Percebe-se a preocupação de Dilthey com relação à vivência enquanto
interioridade, ou seja, ele tenta aproximar as ciências do espírito às ciências empíricas,
numa perspectiva historicista em relação à efetivação da compreensão. Conforme Apel, E.
Spranger concebe a compreensão enquanto método da “psicologia da ciência do espírito”,
de modo que compreender significa penetrar na constelação especial de valores de um
contexto espiritual, onde a pessoa tem que apresentar um contexto de sentido para ser
compreendida, sendo que nós como que “nos transpomos na alma da pessoa, reproduzindo
em nós os seus atos”
137
.
Tal alma estranha a nós somente pode ser conhecida, porque podemos percebê-la
em nossa própria vida, “enquanto a percebemos ao mesmo tempo como estranha, como
uma mônada própria”
138
. E. Rothacker dirige a pergunta pelo “sentido da compreensão
como uma maneira de conhecimento característica das ciências do espírito” e conclui que
ele possui a mesma fonte originária de fatos e coisas como o perceber, sendo que não se
dirige somente à preocupação em compreender o desconhecido, mas é “igualmente e
originariamente auto-compreensão”
139
.
134
Apel, op. cit., p. 174
135
Ibidem, p. 175.
136
Dilthey, apud Apel, 1955, p. 177 – 178.
137
Apel, 1955, p. 180.
138
Ibidem, p. 182.
139
Ibidem, p. 183.
55
2.2.4 A compreensão como conceito básico de uma ontologia fundamental
Para buscar o lugar e a possibilidade de tornar elucidativa a função do
conhecimento, Apel expõe que o caminho para tal não se como método científico ao
lado do esclarecimento, nem como concorrente a operações lógicas intocáveis, mas como
“constituição do mundo pré-científico e certificação propriamente científica, as quais
tornam possível todo esclarecimento (seguindo a sustentação de hipóteses, conceitos
superiores, axiomas), seria agora perceptível a compreensão”
140
.
Inicia-se agora o que Apel denominou “o aprofundamento filosófico-radical, o qual
experiencia o conceito de compreensão em sua última fase de desenvolvimento”
141
.
Começa assim a encerrar uma problemática do conhecimento, que toca na filosofia
tradicional desde Kant, embora sob as palavras-chave de “síntese transcendental” e
“apercepção”, porém que nunca foi aprofundada desde Aristóteles até a exposição
completa do problema da originária “síntese hermenêutica” (algo como algo) da
compreensibilidade do ser. Essa última radicalização inspiradora do pensamento
hermenêutico nasceu a partir do encontro de duas Escolas filosóficas, a saber, a
Fenomenologia de E. Husserl, na qual o problema da constituição do mundo neumático
filosófico-fundamental foi tomado como a base mais ampla, em contraposição com a
Escola diltheyana da maneira de pensar científico-espiritual
142
.
É dentro desse contexto que vai situar-se a fenomenologia hermenêutica de M.
Heidegger, que “eleva o conceito da compreensão ao conceito básico ontológico
fundamental, ao organon do pensar vital e sua verdade histórica, a qual antecipa toda
correção do pensar lógico e com isso o procedimento do pensamento científico-
racional”
143
. Aqui a função pré-científica da língua materna se torna problema central no
pensamento, pois a relação entre compreensão e linguagem ocupará o lugar de destaque,
sendo que buscará os pré-requisitos históricos do ser na filosofia ocidental.
Husserl aborda o problema da compreensão geral, no sentido da constituição do
mundo. Em termos gerais defende uma fenomenologia da pura consciência, ponto que H.
140
Ibidem, p. 189.
141
Ibidem, p. 189.
142
Cf. Ibidem, p. 190, onde também se que “já o próprio Dilthey havia dado um ponto de partida à teoria
da constituição hermenêutica com o conceito do ‘significativo’, o qual irradia as ‘referências
vitais’(Lebensbezügen)”.
143
Ibidem, p. 190.
56
Plesner irá aprofundar enquanto unidade de constituição do sentido, o interpretado que se
refere à consciência presentificada ou visualizada. Nesse sentido, compreensão é “a relação
com uma sustentação de sentido pelo exposto de um conteúdo citado em forma
representativa. O manifestado não é simplesmente levado, porém, está aí como algo no
qual o intérprete o apreende”
144
.
Segundo Apel, o ponto central se coloca, quando
a síntese criadora do pensamento histórico-hermenêutico, com o desejo de uma
ontologia fenomenológica, funda o Logos” da ontologia existencial de M.
Heidegger e eleva pura e simplesmente o compreender ao conceito fundamental
de intuição. A fenomenologia de Husserl queria adiantar o esclarecimento
especulativo, especialmente naturalista, da descrição sem pré-supostos dos
fenômenos. Assim Heidegger prega que nós já nos ‘encontramos’ desde sempre
num mundo historicamente compreendido, lingüisticamente deduzido. A
descrição fenomenológica, se ela realmente pretende revelar ‘algo’, não pode
proceder sem pré-supostos hermenêuticos, no entanto ela pode compreender o
ser pré-ontológico’ o qual está implícito em cada constituição de mundo,
inicialmente na sintonia de pensar com a linguagem, apropriar-se do expresso e
através disso proporcionar à “existência concreta” na relação com seu “ser-junto”
histórico uma transcendente auto-compreensão e com isso a compreensão da
situação
145
.
Percebe-se, na citação acima, o surgimento da hermenêutica da existência humana,
historicamente compreendida já como “compreender no ser” numa relação intrínseca.
Nesse sentido, o compreender em Heidegger é pensado a partir do desocultamento do ser
que se manifesta como algo, sendo denominado sentido. Ele (o ser) mostra-se em si mesmo
como existencial, que originariamente constitui, com o situar-se, uma espécie de acordo, a
abertura do (Da), isto é, a verdade da situação. “No compreender repousa
existencialmente o modo se ser do ser-aí como poder-ser”. [...] “O mundo está aberto no
compreender como possível significante”
146
. Nesse sentido, pode-se dizer que
compreender, conforme o seu sentido existencial, é o próprio poder-ser do ser-aí.
Visto que o homem é um ser-sendo que discursa, ele descobre o mundo e o ser-aí
mesmo, fundando no discurso a verbalização lingüística, sendo-lhe possível o registro
acústico no ouvir, de modo que o ser-aí escuta, porém, escuta porque compreende num
horizonte de sentido onde “discursar e ouvir fundam-se no compreender”. É por isso que
Heidegger pode afirmar a respeito da linguagem, como organon completo do
compreender, que ela é o acontecimento de cada dizer, no qual historicamente a um povo
144
Plessner, apud Apel, 1955, p. 193.
145
Apel, op. cit., p. 195.
146
Heidegger, apud Apel, 1955, p. 196.
57
se abre seu mundo. O dito e o mencionado são como que transpassados e conduzidos pela
abertura do ser
147
. Delimita-se assim o horizonte mais longínquo, força motivadora e
inspiradora do pensar hermenêutico, aberto por esse horizonte, cujo desdobramento
conseqüente foi documentado pela história do termo compreensão, numa “lógica
hermenêutica”, a qual junta na explicação do mundo da língua materna, ao mesmo tempo,
uma filologia como “história do mundo” ou ciência da linguagem voltada ao conteúdo.
Assim, na compreensão parece “formar-se um organon, o qual apresenta o preciso pólo-
oposto ao ‘logístico’ e à crítica da linguagem lógica, na qual a ‘percepção’ racional e o
‘esclarecimento’ formam contemporaneamente sua lógica tradicional”
148
.
No próximo capítulo buscaremos pontuar as bases de sustentação da hermenêutica
moderna propriamente dita, tentando demonstrar onde se o início de tal perspectiva, na
distinção com a hermenêutica tradicional. Para tanto, buscaremos suporte nas discussões
de Espinosa, Schleirmacher e Dilthey.
147
Cf. Apel, op. cit., p. 198.
148
Cf. Ibidem, p.199.
58
3 O INÍCIO DA HERMENÊUTICA MODERNA
3.1 Hermenêutica moderna: breves distinções
Inicialmente necessitamos fazer uma breve distinção entre dois períodos distintos
de compreensão da hermenêutica propriamente dita, a saber, a hermenêutica tradicional e a
moderna. A hermenêutica tradicional surge entre os gregos e se estende até ao século
XVII/ XVIII. Um dos últimos representantes foi Espinosa. Já o início propriamente dito da
hermenêutica moderna se por volta do século XIX
149
, sendo marcada, sobretudo, por F.
Schleiermacher. Uma das contribuições centrais de Schleiermacher foi ter elevado o debate
sobre a doutrina da compreensão até aos dias atuais, sendo Gadamer um dos maiores
representantes.
Buscamos a seguir os elementos centrais de tais perspectivas, a fim de localizarmos
o eixo central constitutivo da argumentação que, em maior ou menor medida, permanece
subjacente a toda a compreensão contemporânea da hermenêutica. Para tanto, no presente
capítulo, nos atemos mais a Espinosa e Schleiermacher, passando, em alguns momentos,
por argumentos expostos também por Dilthey.
149
Tal demarcação não pode ser feita com precisão numérica, mas é nessa transição de um século ao outro,
juntamente com esses dois autores, que emerge uma nova compreensão sobre a hermenêutica.
59
3.2 Espinosa
150
(1632 – 1677)
3.2.1 Um pensador radical
Espinosa é de origem judaica
151
. Da teologia ele passou para a filosofia. Grande
admirador de Descartes, a radicalidade de seu pensamento em poucos anos lhe rendeu a
expulsão da comunidade de teólogos. Ele representa a cisão entre o saber, em sentido
tradicional, e o conhecimento, em sentido moderno. Como sabemos, a teoria do
conhecimento procura encontrar as condições capazes de fundamentar o nosso saber. Por
isso, a teoria do conhecimento, no contexto moderno, só faz sentido a partir de Descartes.
A hermenêutica conforme a compreendemos hoje, está profundamente marcada
pela teologia, cuja preocupação com a interpretação da Escritura Sagrada marca o campo
por excelência da origem da hermenêutica. Nesse contexto, surge a reflexão de Espinosa,
cuja obra Tratado Teológico-político
152
emerge como uma das principais para a separação
da corrente hermenêutica e das ciências naturais da época, cujo modelo era a física.
3.2.2 Entre teologia e hermenêutica
A interpretação da Escritura Sagrada faz sentido, que a ela não se pode atribuir
mais que a fé. Não tem valor objetivo; isso cabe à razão. Isto não significa a denúncia de
uma falta de sentido a partir da interpretação. Para Espinosa, a interpretação é importante a
fim de conseguir sentido, mas não pode chegar ao nível da interpretação verdadeira
153
.
Bacon havia colocado os primeiros pilares das ciências naturais, sendo que Espinosa
conhece tais caminhos. uma espécie de desqualificação da hermenêutica, a partir do
150
Assumimos o termo conforme a tradução da Coleção Os Pensadores, Ed. Abril Cultural, que traduz o
nome “Benedictus de Spinoza” por “Baruch de Espinosa”. Como sabemos, Baruch significa Bento em
português, ou Benedictus em latim.
151
Em 1492 membros da família Espinosa emigram para Portugal, sendo que seis anos depois foram
obrigados a converter-se ao cristianismo. Tornaram-se marranos ou cristãos-novos, isto é, judeus convertidos.
Embora aceitassem a nova fé, permaneceram vinculados à tradição judaica (cf. Espinosa, 1979, p.VI).
152
Publicada em 1665, nessa obra Espinosa defende a separação entre Estado e Igreja, política e religião,
filosofia e revelação, o que lhe rendeu muita perseguição e ódio. Foi acusado pelos teólogos da época de ser
um “ateu, blasfemador e elemento nocivo para a república”. No Tratado Teológico-político Espinosa analisa
a gênese e os efeitos da superstição e elabora a primeira interpretação histórico-crítica da Bíblia (cf.
Espinosa, op.cit., p. XI – XII).
153
“[...] nas Escrituras Sagradas não há verdades, no sentido próprio da expressão, mas tão-somente preceitos
morais e políticos, necessários para preservar a comunidade judaica através dos tempos” (ibid., p. XIV).
60
surgimento das ciências naturais. É nesse cenário que surge a obra Tratado Teológico-
político, que pode ser considerada aquela que marca o fim da hermenêutica tradicional e o
início da hermenêutica moderna. Nela nós encontramos um tipo de argumento
comprometido com o método cartesiano. Daí podermos demarcar o horizonte onde se
movimentam Platão - Aristóteles - Agostinho - Lutero Espinosa. A partir de Espinosa, a
Mathesis Universalis
154
tornar-se-á dominante nos séculos que seguem.
Espinosa, em sua tradição teológica, estava muito preocupado com o problema da
interpretação da Escritura Sagrada. Em suas palavras:
Pois bem, o quanto se pode dizer sobre o particular, deve extrair-se somente da
Escritura. Pois o que podemos dizer sobre coisas que excedem os limites de
nosso entendimento, fora do que se nos transmite, em palavra ou por escrito, a
partir dos mesmos profetas? [...] ...que não afirmemos nada sobre esses temas
nem atribuamos nada aos profetas, que eles mesmos não hajam dito com
clareza
155
.
Espinosa nunca conseguiu se distanciar de uma convicção própria da tradição
judaica, ou seja, do poder da Escritura, das leis, como compreendidas, por exemplo, no
Antigo Testamento, onde o poder da Palavra Divina, e este poder, deveria ser
respeitado. “Efetivamente, se recorremos aos volumes sagrados, veremos que tudo quanto
Deus revelou aos profetas lhes foi revelado ou com palavras ou com figuras ou de ambas
as formas a sua vez, quer dizer, com palavras e figuras”
156
. Assim, nada mais natural do
que introduzir uma interpretação à Escritura Sagrada.
Surgem questionamentos, tais como, o que a Escritura Sagrada ofereceu de
imediato? E, por outro lado, o que a Tradição Patrística introjetou nesses textos? Espinosa
sugere a introdução do modo da natureza à interpretação da Escritura Sagrada. A natureza
compreendida como um livro aberto para ser lido "lumen naturale" (uma luz na natureza).
O que a própria Escritura Sagrada não consegue expor como se fosse natural nunca
pode tornar-se objeto de conhecimento a partir de perspectivas impostas a ela. A Escritura
Sagrada é a palavra de Deus. Desse modo, a pretensão verdadeira do texto deveria quase
154
Em Descartes aparece a idéia de que deve haver uma ciência geral que explique tudo o que é possível
explicar referente à ordem e à medida, sem ser atribuída a nenhuma matéria particular. [...] a matemática
universal (mathesis universalis), contém tudo aquilo em virtude do qual se diz de outras ciências que são
partes da matemática”. Para Leibniz, por um lado, trata-se de uma matemática ou “calculatória” fundamental,
que precede logicamente todos os ramos da matemática e que é como o sistema formal mais geral que subjaz
a todos os sistemas formais. Por outro lado, trata-se do saber universal, que constitui o fundamento de todas
as ciências (cf. Mora, 2001, p. 1905 – 1906).
155
Espinosa, 1986, p. 77.
156
Ibidem, p. 78.
61
que evidenciar-se a si mesmo. Qualquer dúvida entre o escolher frente a um sentido duplo
de uma palavra deveria nos levar à impossibilidade de conclusões verdadeiras.
Deveríamos, ou recorrer ao sentido do texto fazendo uso de outras palavras, ou renunciar à
possibilidade de interpretação verdadeira. Ele é preciso ao afirmar:
Para nos defendermos dessa conturbação, liberar nossa mente dos prejuízos dos
teólogos, e não abraçar temerariamente as invenções dos homens como se
fossem doutrinas divinas, devemos abordar o verdadeiro método de interpretar a
Escritura e discuti-lo a fundo; posto que, se o desconhecemos, não poderemos
saber com certeza o que quer ensinar a Escritura nem o Espírito Santo. Dito em
poucas palavras, o método de interpretar a Escritura não é diferente do método
de interpretar a natureza, senão que concorda plenamente com ele. Pois, assim
como o método de interpretar a natureza consiste primeiramente em elaborar
uma história da natureza e em extrair dela, como de dados seguros, as definições
das coisas naturais; assim também para interpretar a Escritura, é necessário
desenhar uma história verídica e deduzir dela, qual de dados e princípios certos,
a mente dos autores da Escritura como uma conseqüência lógica. Todo aquele
que o faz assim (quer dizer, se para interpretar a Escritura e discutir sobre as
coisas nelas contidas, não admite outros princípios nem outros dados, à parte dos
extraídos da mesma Escritura e de sua história), procederá sempre sem nenhum
perigo de equivocar-se e poderá discorrer sobre as coisas que superam nossa
capacidade com a mesma seguridade que sobre aquelas que conhecemos pela luz
natural
157
.
O saber objetivo é visto como uma parte de nosso saber. O restante faz parte do
saber, porém enquanto saber objetivo, a cientificidade vai se tornando sempre mais
presença, ocupando mais espaço. Não podemos perder de vista que o não cientificamente
legitimado continua orientando as pessoas, isto é, para além do cientificamente
comprovado, em Espinosa percebe-se a inesgotabilidade presente na interpretação.
A teoria do conhecimento vai ter que se preocupar também com a legitimidade do
porquê da exclusão de outras partes. Ela nasce como processo redutor para depois se
expandir e entrar no processo interior da própria vida.
158
Nesse sentido, ela não pode
admitir o problema das múltiplas formas de conhecimento do homem que não podem mais
ser desditos. A hermenêutica busca resgatar a questão da totalidade do saber à base de uma
fundamentação universal.
Pois, assim como para examinar a fundo as coisas naturais, procuramos
investigar, antes de mais nada, as coisas mais universais e comuns a toda a
157
Ibidem, p. 193.
158
“Se lermos um livro que contém coisas incríveis ou imperceptíveis, ou escrito em termos muito obscuros e
não conhecemos seu autor nem sabemos em que época nem em que ocasião o escreveu, em vão nos
esforçaremos em assegurar-nos de seu verdadeiro sentido. Pois, ignorando tudo isso, não podemos saber de
nenhum modo que pretendeu ou pode pretender o autor. Pelo contrário, se conhecemos bem essas
circunstâncias, orientamos nossos pensamentos sem prejuízo nem temor algum a atribuir ao autor, ou a
aquele a que destinou seu livro, mais ou menos o justo, nem a pensar em coisas distintas das que pode ter em
sua mente o autor ou das que exigiam o tempo e a ocasião (ibidem, p. 208 – 209).
62
natureza, a saber, o movimento e o repouso, assim como suas leis e suas regras,
que a natureza sempre observa e segundo as quais atua continuamente; assim
também, o primeiro que que buscar pela história da Escritura é aquilo que é o
mais universal e que constitui a base e o fundamento de toda a Escritura, e que
todos os profetas, enfim, recomendam nela como doutrina eterna e mais útil para
todos os mortais
159
.
Podemos perceber em Espinosa separação do campo da religião do campo do texto
objetivo. Se alguém quiser saber o que Deus quis dizer, só pode recorrer ao texto como tal.
A relação de Espinosa com o texto aproxima-se mais à de um cartesiano que o toma como
objeto de estudo e conhecimento. Desse modo, a objetividade nas ciências modernas irá
pressupor um passo necessário que é anterior: é o passo que poderíamos denominar
objetificação.
O passado torna o mundo real como objeto de pesquisa
160
. Esse é o passo que se dá,
a partir de Descartes. A teoria moderna tem que criar o objeto, criar as características mais
específicas do objeto. Espinosa pressupõe dois elementos que, para ele, são necessários
para interpretar a Escritura Sagrada: primeiro, ela tem que ser lida enquanto expressão da
vontade divina. Segundo, ele quer separar a verdade objetiva e a exploração objetiva do
texto.
Como em Espinosa nos interessa demonstrar o movimento hermenêutico intrínseco
ao seu método, teremos que interromper a discussão neste ponto, considerando-o já
suficientemente abordado para tanto. A seguir, buscaremos em Schleiermacher a
teorização do que as teorias modernas irão denominar a hermenêutica moderna
propriamente dita.
159
Ibidem, p. 199.
160
“Exporei, em poucas palavras, como que se proceder, em casos semelhantes, para descobrir a mente
dos profetas pela história da Escritura. Também neste caso há que começar pelo mais universal, investigando,
em primeiro lugar, a partir das proposições mais claras da Escritura, o que é a profecia ou revelação e em que
consiste seu caráter primordial. Há que investigar, depois, o que é o milagre e prosseguir com as noções mais
comuns. que descer, a continuação, às opiniões de cada profeta e passar, finalmente, a partir daí, ao
sentido de cada revelação ou profecia, de cada história e de cada milagre” (ibidem, p. 202).
63
3.3 Friedrich Schleiermacher (1768 – 1834)
3.3.1 Razões fundamentais pelas quais Schleiermacher deve ser considerado
Schleiermacher torna-se um autor importante para o nosso contexto de discussão,
sobretudo por três razões fundamentais. Primeiro, por sua interpretação romântica da
religião, sendo esta compreendida enquanto relação do homem com a Totalidade (com o
Todo). Essa discussão leva à abordagem da metafísica e da moral. Mas isso, segundo
Schleiermacher, foi fonte de graves equívocos, que fizeram penetrar indevidamente na
religião grande quantidade de idéias filosóficas e morais.
Em segundo lugar, pelo modo como Schleiermacher trabalha com Platão, de modo
a operar numa espécie de mediação entre as velhas e novas concepções da filosofia,
sobretudo na Dialética, onde Platão se torna uma espécie de contrapeso ao racionalismo
extremo dos sistemas idealistas. Por fim, devido a algumas idéias antecipadoras de sua
hermenêutica. Com ele definitivamente se consolida a circularidade hermenêutica, de
modo que é preciso compreender o todo para poder compreender a parte e, ainda mais
geralmente, é preciso que o texto e o objeto interpretados e o sujeito interpretante se
encontrem num mesmo horizonte de compreensão.
Schleiermacher pode ser considerado o primeiro a teorizar, com certa clareza,
aquilo que as teorias modernas chamarão "círculo hermenêutico". Com efeito, no fundo do
problema proposto pelo círculo hermenêutico encontra-se tanto a questão da totalidade do
objeto a interpretar como, mais amplamente, a questão da totalidade maior. Essa totalidade
será foco central dos interesses filosóficos, pertencendo tanto o objeto como o sujeito da
operação de interpretação. Em Schleiermacher esse círculo apresenta-se definido em suas
dimensões fundamentais, a saber, o pré-conhecimento necessário da totalidade da obra a
interpretar e a pertença necessária da obra e do intérprete ao mesmo e mais vasto âmbito,
embora ele detenha mais a sua atenção na primeira dimensão.
64
3.3.2 Duas correntes de pensamento hermenêutico
Conforme dizíamos anteriormente, é difícil marcar uma perspectiva numérica
que precise quando começa o que denominamos atualmente de “hermenêutica moderna”.
No entanto, podemos antecipar que o que conhecemos até hoje como hermenêutica
tradicional não é o mesmo que Gadamer compreende.
Em Gadamer podemos perceber e marcar uma diferença entre a Tradição de
Schleiermacher, Dilthey e Droysen e por outro lado de Heidegger, Ricoeur e ele próprio.
Podemos observar uma cisão entre a corrente que tentou assimilar as ciências do espírito às
ciências empíricas e uma outra que diz não ser possível objetivar o conhecimento enquanto
tal. Sobretudo Schleiermacher e Dilthey firmaram uma oposição à corrente embasada nas
ciências naturais.
Surge, pois, uma segunda corrente que privilegia a questão do sentido. Dessa
corrente emergem Schleiermacher, Dilthey, Heidegger, Gadamer, Ricoeur, apesar de
Schleiermacher e Dilthey ainda se mostrarem muito presos pela preocupação com o
procedimento científico, com a questão do método, porém, já antecipam uma nova maneira
de compreender, que irá se desenvolver, sobretudo, com Heidegger, Gadamer, Ricoeur.
A perspectiva comprometida com a teoria do conhecimento leva à compreensão de
que a hermenêutica é considerada como forma autêntica de uma fundamentação do
conhecimento nas ciências do espírito. Nesse sentido, a própria cientificidade das ciências
do espírito está posta em jogo. Sendo assim, percebemos que a hermenêutica do século
XIX ainda anda nas trilhas de uma teoria do conhecimento. Ela se distancia do método das
ciências naturais e vai buscar uma fundamentação própria.
Heidegger, Ricoeur e Gadamer não estão mais tão presos à questão da
cientificidade, mas buscam expor a hermenêutica a partir de sua estrutura ontológica. Sua
preocupação central gira em torno do modo de experimentar o mundo enquanto modo
ontologicamente qualificado. É uma tentativa de expor a maneira como o homem lida com
o mundo e, em conseqüência, consigo mesmo, em nível ontológico.
Surgem muitos conflitos, de modo especial no que concerne ao modo de ser do
homem no mundo (Heidegger). certa dificuldade de assumir uma posição em favor das
ciências do espírito. O que não significa que a questão da cientificidade está ausente;
65
porém, o modo como se difere do modo paradigmático adotado pelas ciências,
sobretudo as exatas. Resultado disso são as freqüentes acusações de relativista feitas à
hermenêutica. Isso se dá, sobretudo, porque, ao buscar um tipo de conhecimento que
escapa aos rigores do método
161
, como, por exemplo, a perspectiva da experiência e o
encontro com a obra de arte, abala no sujeito a sua segurança depositada na certeza” que
no fundo não é o que lhe parecia ser.
Um ponto em comum entre os autores que estamos abordando, no presente texto
(exceto Ricoeur), é o fato de todos terem estudado filologia clássica. Eles possuem, pois,
um amplo conhecimento filológico, das linguagens tidas como “mortas”. Esses autores têm
que conviver com a experiência de trabalhar com uma linguagem que não oferece mais a
possibilidade de experienciá-la através do diálogo vivo, assim como também o sentido não
oferece condições de ser compreendido, exceto por textos.
Nesse sentido é importante percebermos que a questão da tradução e da
interpretação são dois passos que marcam profundamente seu trabalho. O que caracteriza a
fundo a diferenciação entre as duas correntes da hermenêutica moderna? A primeira está
presa pela preocupação com a ciência, ao passo que a segunda está mais ligada ao
esclarecimento de nossas experiências do ser no mundo, sobretudo pela linguagem e
história. A primeira está preocupada, antes de mais nada, até que ponto seria possível
encontrar uma metodologia capaz de fundamentar o sentido a ser encontrado, seja no
diálogo, seja no texto. Será que o sentido é acessível a partir de um determinado modo de
procedimento científico? Será que existem condições transcendentais condicionadoras
desse acesso de sentido de um texto, fala ou ação? Haverá uma fundamentação última de
nosso acesso ao sentido?
O que é denominado sentido parece constituir-se como se fosse algo presente; algo
como que um pseudo-objeto da investigação. Por isso Heidegger, Ricoeur e Gadamer
procuram mostrar que o sentido nasce a partir de formas de mediação que não remetem a
um sentido como se este fosse objeto, mas enquanto contexto a ser criado dentro de uma
determinada consciência da realidade. O sentido enquanto resultado de uma experiência.
Sentido enquanto procedimento de criação de algo que não pode chegar a se revelar
totalmente. Qual é o status do sentido dentro dessas visões?
161
O mesmo também pode ser percebido no espaço aberto pelo diálogo (Gespräch). Nele, o encontro com o
outro, e mesmo o acordo a que chegamos, remete a ambos os parceiros do diálogo a um outro patamar de
compreensão e até a estabelecer acordos que não são os mesmos do ponto de partida.
66
A partir daí, pode-se prever outro aspecto: se Schleiermacher e Dilthey, ao
procurarem a revelação de um sentido encoberto no próprio texto, não quiseram recair
numa abordagem igual à das ciências naturais, jogando tudo na objetividade ou pseudo-
objeto de sua pesquisa empírica, terão que recorrer à subjetividade. Por isso não
conseguem escapar ao risco de ficarem sujeitos ao perigo de cair num psicologismo. Sem
poder usar o texto empírico, eles terão que procurar no investigador as condições
determinantes.
Por outro lado, Gadamer, Ricoeur, Heidegger, não-condicionados, vão poder expor
o procedimento hermenêutico enquanto procedimento interativo entre o intérprete e seu
"objeto", ou seja, vão poder colocar uma estrutura que qualifica a hermenêutica como um
modo de ser, um modo de se encontrar.
Se a compreensão se torna o horizonte quase mais amplo, também se teria que
admitir um potencial explicativo. Schelling vai discernir, a partir da discussão da razão nas
teorias do sentido. Aparentemente cada época provoca uma forma específica de questões
filosóficas, dependendo do horizonte a partir do qual o questionamento faz sentido.
Determinadas posições teóricas são de antemão excluídas, por não fazerem sentido dentro
do horizonte histórico. Desse modo, a razão mesma não pode ser considerada o ponto
primordial de partida do conhecimento. Ela mesma está sendo inserida dentro de um
contexto de sentido que a determina. Certas épocas não permitem um certo
questionamento, porque não existe nenhuma demanda que forçaria tal pergunta
162
.
O projeto da hermenêutica moderna, a partir de Schleiermacher, inicia
fundamentalmente fazendo uma crítica à teoria da subjetividade e da autoconsciência. O
gesto da razão dominadora torna-se apenas um momento histórico. A hermenêutica corroe
em parte a autonomia do sujeito.
3.3.3 Schleiermacher no contexto da Hermenêutica
Scheleiermacher chegou à hermenêutica, não a partir da filosofia, mas esta tornou-
se uma preocupação motivada por seu trabalho, no caso, teológico. Procurava no debate
162
Exemplo disso poderia ser uma teoria compreensiva, como é o caso da psicanálise, se esta fosse levada do
horizonte de compreensão contemporâneo para a Idade Média. Certamente ela não seria compreendida por
quem se encontra dentro do horizonte de compreensão medieval.
67
sobre questões hermenêuticas o apoio para resolver problemas surgidos dentro do seu
contexto, sendo que seu intento parece estar mais voltado para a fundamentação teórica do
procedimento que compartilham teólogos e filólogos, “remontando, para além da intenção
de uns e outros, a uma relação mais originária da compreensão das idéias”
163
entra em
jogo também sua capacidade de distanciamento.
A busca de Schleiermacher nasce frente à preocupação de não ter acesso imediato
ao sentido de textos expostos na exegese. O outro (do diálogo) é um estranho, num
primeiro momento. Será que é possível tomar como ponto de partida a questão do sujeito
conhecedor do mundo ou será que a qualquer tentativa de compreender o mundo subjaz
uma relação igual? O outro, enquanto outro, pode ser tomado a sério como outro. Quais
as condições de possibilidade de compreender o outro, a fala do outro?
O empreendimento de Schleiermacher pode ser considerado uma filosofia
transcendental
164
, porém não preocupado com a filosofia transcendental, mas preocupado
com o sentido. O problema do sentido é o problema primordial, e não o problema da razão.
“Seu ponto de partida é a idéia de que a experiência da estranheza (Fremdheit) e a
possibilidade do mal-entendido são universais”
165
. Schleiermacher atribui à razão a função
de elemento da função de sentido, atribuindo ao sentido a função de local a partir do qual
qualquer compreensão vai se constituir. Os fatos têm que ser interpretados para poderem
trazer sentido. Desse modo, o comportamento mais racional possível em relação ao
ambiente não pode impedir a necessidade de o próprio homem entrar numa estrutura
argumentativa dentro dos próprios fatos.
Schleiermacher é radical ao sustentar a tese de que a própria razão tem que ser
tomada como momento no processo de efetivação do sentido. Em suas palavras: “Uma vez
que a arte de falar e a de compreender (correspondendo-se) existem uma em função da
outra, e porque o falar é, contudo, apenas o aspecto exterior do pensar; a hermenêutica
existe em conexão com a arte de pensar e, portanto, filosoficamente”
166
. Por mais formal
que seja o caminho de interpretação formal, ele nunca vai nos levar ao sentido total. O
163
Gadamer, 1996, p. 231.
164
Segundo Ruedell, “Manfred Frank, entretanto, defende a tese de que, em Schleiermacher, não apenas se
inicia o giro transcendenal da hermenêutica, mas que ele efetivamente é a sua maior expressão. E, além de ter
sido o primeiro a ter êxito numa elaboração sistemática da pergunta pelas condições da compreensão, ele
ainda teria uma contribuição essencial para a atual discussão hermenêutica. Está aí, sem dúvida, um dos
principais motivos que podem levar alguém a um estudo de Schleiermacher” (2000, p. 33).
165
Gadamer, op. cit., p. 231.
166
Schleiermacher, 2005, p. 93.
68
primeiro ponto abordado é a tentativa de fundamentação transcendental de nossa
compreensão. Exige tomar a sério a dimensão humana do outro. A razão não pode ser
tomada como instância última de nosso conhecimento. Quais são as condições para a
constituição de sentido?
Kant estabelece as condições transcendentais do conhecimento objetivo, conforme
vimos no capítulo inicial. Transcendental significa independente da experiência, mas
possibilitando a experiência. Essas condições não deveriam vir da experiência, mas
possibilitá-la. Para Schleiermacher, as condições transcendentais estão ligadas à
constituição de sentido. Transcendental é o não fundamentado na experiência, mas
possibilitador da mesma. O sentido não pode ser tomado como se fosse um objeto. Como
se cria sentido? Quais são as condições que possibilitam a criação de sentido?
Uma das respostas possíveis seria que o sentido seria quase a compreensão do
compreendido. O que compreendemos tem que ser já exposto. Ao falar, por exemplo, dá-se
a impressão de saber o que se fala, porém, sendo questionado é motivado a dizer o que
isso significa. Schleiermacher, nesse sentido, pode nos ajudar a aprofundar essa discussão,
à base de sua reflexão em torno dos elementos fundamentais para a interpretação.
3.3.3.1 Três elementos fundamentais para a compreensão em Schleiermacher
3.3.3.1.1 Hermenêutica e Crítica
O processo de interpretação torna-se uma espécie de circularidade infinita. Nela, “o
acervo lingüístico e a história da época de um autor é como o todo a partir do qual seus
escritos precisam ser compreendidos como algo singular, e aquele todo novamente a partir
destes”
167
. Em Schleiermacher, destaque-se que, por toda parte, “o saber perfeito consiste
em que, neste aparente círculo, todo particular só pode ser compreendido a partir do
universal do qual é parte, e vice-versa. E todo saber só é científico, se estiver constituído
dessa forma”
168
. A linguagem viva não é algo como objeto ou ferramenta a ser usada. Ela é
viva no seu ser presente , sobretudo no diálogo.
167
Ibidem, p. 116.
168
Ibidem, p. 116.
69
A hermenêutica e a crítica remetem uma à outra. Elas não podem “sobreviver
sozinhas”. O processo da compreensão exige a crítica, e a crítica exige a compreensão.
Não se trata da conotação usual de crítica a algo, mas de um procedimento da descoberta
de autenticidade de um texto. A hermenêutica representa em geral a arte de compreender
corretamente a fala
169
, sobretudo a fala escrita de um outro
170
, ao passo que a crítica é a
arte de julgar corretamente. Ela é considerada legitimação da autenticidade de um texto,
via provas, tais como documentos históricos. Um elemento é a legitimação, outro é a
compreensão do texto.
A identidade do entendimento do texto, pressupõe uma espécie de pré-compreensão
do conteúdo do texto. Trata-se, evidentemente, da compreensão e determinação da
autenticidade do texto. A autenticidade do texto necessita de um critério. Schleiermacher
diz ser o espírito do próprio autor.
A tarefa pode-se expressar também assim: ‘compreender o discurso,
primeiramente tão bem e, depois, melhor do que o seu autor’. Porque não temos
um conhecimento imediato daquilo que nele se encontra, devemos tentar trazer à
consciência o que lhe pode permanecer insconsciente, a não ser que, e na medida
em que, ele mesmo, refletindo, venha a ser o seu próprio leitor. Sob o aspecto
objetivo, o autor não tem dados diferentes dos nossos
171
.
A idéia por detrás disso obviamente é a de não poder chegar, em nenhum momento,
a uma constituição do sentido exclusivo. O intérprete inclui uma perspectiva de sentido ao
qual o texto não pode escapar. Sem interpretação, o texto possui inúmeros sentidos. Ao ser
interpretado, o intérprete introduz um sentido de interpretação ao texto.
3.3.3.1.2 A Gramática
Surge um terceiro elemento fundamental para a interpretação, a gramática,
enquanto tentativa de garantir a unidade de um texto. Parece que a palavra isolada possui
um leque amplo de possíveis interpretações, ao passo que o enquadramento dentro de um
169
“Falar é, em verdade, também uma mediação do pensar para o indivíduo. O pensar constitui-se por uma
fala interior, e, nesse sentido, a fala é apenas o próprio pensamento constituído” (Schleiermacher, 2005, p.
93).
170
“Antes da aplicação da arte, é preciso que a gente se coloque ao nível do autor; sob o aspecto objetivo e
subjetivo. Sob o aspecto objetivo, portanto, mediante o conhecimento da língua, assim como ele o tinha, o
que é ainda mais determinante do que se colocar ao nível dos leitores originários, os quais, por sua vez,
também precisam situar-se, primeiro, ao nível do autor. Sob o aspecto subjetivo, pelo conhecimento de sua
vida interior e exterior” (ibidem, p. 115 – 116).
171
Ibidem, p. 115.
70
texto, que por sua vez se enquadra numa obra do autor, representa uma recessão sucessiva
de sentido da palavra. Exemplo disso pode ser visto na apresentação de uma denúncia,
quando o denunciado alega que a frase usada foi distorcida em seu sentido verdadeiro, ao
se extraí-la de um contexto no qual foi pronunciada.
A gramática mesma faz parte da compreensão. O compreender é apenas um ser-
um-no-outro desses dois momentos (do gramatical e do psicológico)
172
. Quem não
conhece a gramática do idioma no qual o texto foi escrito pode ser levado a conclusões
erradas. Schleiermacher exige que, quem queira transferir um texto escrito de um idioma
para outro, tenha conhecimento profundo do idioma.
O relacionamento entre essas três áreas deve ser tomado como relacionamento
válido em geral. Isso significa dizer que sua mútua interdependência também deve ser
observada naquelas línguas que “ainda não morreram”. Devido à sua interconexão mútua,
é muito difícil encontrar o início de cada área. Isso se assemelha, por exemplo, à situação
da criança que aprende no dia-a-dia o falar. Nessa situação os três elementos se encontram
interligados.
A gramática, por sua vez, pode ser estabelecida à base da hermenêutica e da
crítica. A tradução completa na verdade é uma utopia
173
. Uma interpretação adequada
exige uma adequação tanto ao texto como ao termo.
A hermenêutica moderna vai inserir o processo da compreensão dentro da
linguagem vivida. A hermenêutica tradicional tende a tomar o texto como objeto de
compreensão. A compreensão exige a exposição de meus critérios de compreensão à base
de determinado fato. Schleiermacher é preciso, ao afirmar:
A unidade da obra é, na interpretação gramatical, a construção do âmbito da
linguagem, e os traços fundamentais da composição as formas de conexão. Aqui
a unidade é o objeto, aquilo pelo qual o autor é posto em movimento para se
comunicar. As diferenças objetivas, se, por exemplo, a abordagem é popular ou
científica, estão incluídas na concepção, mas o autor ordena para si o objeto
segundo sua maneira própria, que se espelha em seu arranjo. Da mesma forma,
uma vez que cada qual sempre tem idéias secundárias, e também porque estas
são determinadas por sua peculiaridade, conhece-se a peculiaridade pela
exclusão do semelhante e pelo assumir do estranho
174
.
172
Ibidem, p. 96.
173
Sempre permanece uma miserabilidade, uma vez que toda tradução nunca consegue dar conta da
totalidade do sentido em que se gestou o texto na língua materna.
174
Ibidem, p. 199 – 200.
71
O conhecimento dos fatos históricos dentro do contexto em que um texto surge, das
condições objetivas dentro das quais o texto surge, não é determinante para uma maior
compreensão do mesmo. O texto tomado em si é o mais importante, onde se abre um
sentido de interpretação com base em quem pergunta. É por isso que Schleiermacher pode
afirmar que “é possível compreender o discurso melhor do que o seu autor”. Nós buscamos
extrair um dos sentidos que mais nos convence. Não se pode, porém, tomar um texto por si
só, desligado de seu contexto temático, nem somente tomá-lo como se apresenta. O grande
desafio que permanece é fazer com que o texto chegue a conseguir revelar por si mesmo o
interesse que se tem na temática. Cada contribuição da literatura secundária oferecerá
novas pistas.
3.3.4 Sobre a constituição do sentido propriamente dito
A obra de Schleiermacher resulta numa fundamentação da interpretação assentada
no ato da compreensão, tanto no momento da instituição do sentido (autor ou locutor)
quanto no de sua interpretação (leitor)
175
. Com Schleiermacher evidencia-se a necessidade
de uma noção superficial do espírito da outra linguagem para conseguir fazer uma
tradução. Nunca vamos conseguir uma plena noção. A tradução exige uma pré-
compreensão do espírito para poder traduzir. O processo de compreender é muito mais um
processo de compreensão do que de apreensão do objeto. Nesse sentido, a compreensão
sempre tem a ver com o próprio intérprete.
Schleiermacher quer encontrar as condições de possibilidade da constituição do
sentido. Nenhum texto enquanto texto tem sentido. O sentido depende do ato da
compreensão. É por isso que o sentido não possui uma qualificação objetiva. É antes o
resultado de um processo de compreensão que nasce através desse processo, isto é, no
interior do próprio processo. Ele é resultado do procedimento. Ao compreender algo, não
buscamos um sentido inerente ao objeto, mas construímos um sentido.
Não faz sentido atribuir ao texto um sentido autêntico. Só tenho acesso ao texto via
interpretação. É o que verificamos também em Kant, pois perguntar à coisa em si não faz
sentido. O texto por si é um objeto que posso entender, mas ainda não compreendi.
um núcleo de significado que exige um horizonte de entrada, que não necessariamente é de
175
Cf. Ruedel, 2000, p. 49.
72
minha escolha. O sentido é um produto de interpretação que não pode ser tomado como
definitivo.
Schleiermacher quer apontar a relação indissolúvel entre o ser constituído pelo
espírito, a partir da linguagem, e, ao mesmo tempo, o ser constituído da linguagem pelo
espírito. uma espécie de interconexão. Nós pensamos na linguagem na qual nascemos.
A hermenêutica vai insistir na produtividade autêntica da própria linguagem.
Lutero, ao se opor à tradição da patrística, cuja finalidade era autenticar a maneira
de interpretar a Sagrada Escritura, acaba por dar as bases para uma boa discussão a respeito
da necessidade hermenêutica. Schleiermacher está preocupado com a possibilidade de
esboçar uma maneira autêntica do procedimento de interpretações. A hermenêutica
proposta por ele visa ser uma hermenêutica geral, que fornecesse as razões pelas quais o
intérprete usa determinadas regras ou procedimentos e não apenas contivesse “as regras” e
explicações do procedimento usado na interpretação enquanto tal. Por isso,
ao invés de perguntar como se interpreta este ou aquele tipo de texto, ele passa a
perguntar pelo que significa em geral interpretar e compreender e como isso
ocorre. Uma vez respondidas essas questões, se poderia, então, derivar as regras
gerais e específicas. Trata-se de uma consideração filosófico-teórica da operação
hermenêutica, não mais determinada pelo objeto, e sim, pelas condições, isto é,
pelo ‘como’ de sua efetivação
176
.
A hermenêutica torna-se a arte de compreender a fala ou escrita de alguém, do
outro. Schleiermacher, no fundo, “desloca a hermenêutica do domínio filosófico,
argumentando que a arte de compreender está internamente conectada com a arte de falar e
com a arte de pensar”
177
. Pressupõe-se uma instância entre o texto ou fala– e uma outra
pessoa em relação ao próprio intérprete.
A crítica irá assegurar a autenticidade do texto sobre o qual se discute. Trata-se
especificamente da exegese de um texto da Escritura Sagrada, do Novo Testamento. É uma
crítica com relação à confiabilidade do conteúdo do texto.
A gramática trabalha em torno da unidade de um texto à base de um procedimento
do particular ao todo e vice-versa
178
. O nosso grande problema é estar dentro de uma
176
Braida, 1999, p. 15
177
Ibidem, p. 15.
178
“O pensamento de Schleiermacher pode ser interpretado como uma reflexão sobre as relações entre o
universal e o particular. O universal, para ele, nunca se oferece em si, mas sempre aparece sob uma forma
particular; o particular, por sua vez, ao mesmo tempo que não se deixa subsumir inteiramente pelo universal,
contém em si algo que ultrapassa a sua particularidade e manifesta a presença do universal” (ibidem, p. 13).
73
tradição no processo de argumentação circular. Para tanto, deveríamos como que deixar
“em suspenso”, a princípio, nossas convicções de uma lógica racional.
Para Schleiermacher, os três elementos anteriormente abordados estão interligados.
A compreensibilidade do texto faz sentido, a partir da compreensão das origens do
texto. A idéia de gramática é a idéia de identificar a univocidade de um texto, a integração
de uma palavra dentro de um contexto como tal para possibilitar a identificação da palavra.
Em síntese ao exposto anteriormente, podemos afirmar que o processo de
compreensão tem algo a ver com uma necessária distância, sendo que esse processo de
compreensão baseia-se de antemão numa estrutura circular que gira em torno do particular
e do todo. Desse modo, a hermenêutica exige também o seu inter-relacionamento com a
crítica e a gramática. Isso também ocorre no diálogo. A gramática de um termo usado é
importante, porque sua colocação no contexto da conversa, muitas vezes não pode oferecer
a univocidade de interpretação.
Assim sendo, num primeiro momento, urge deixar “em suspenso” minhas
convicções pressupostas, meus pré-conceitos. A exigência é a de tentar entregar-se ao
contexto dessa teoria para reforçar ao máximo a teoria que se está trabalhando e depois
descobrir os próprios pressupostos. Em outras palavras, não consigo o auto-entendimento
de minha própria posição, sem passar por um distanciamento de minhas convicções. A
necessidade de aceitar ou desfazer minhas convicções se fundamenta pela passagem do
olhar de uma posição diferente da minha.
Quem quer trabalhar com hermenêutica vai descobrir, ao longo do
desenvolvimento, o próprio interesse. O processo de esclarecer o meu próprio interesse
passa pelo olhar para dentro de uma posição que se apresenta como possibilidade.
3.3.5 Acerca do infinito indeterminado
A situação eu x texto se estabelece no sentido que o próprio texto me oferece. Num
primeiro momento, uma espécie de injeção de um sentido provisório, que deveria ser
corrigido ou confirmado. Temos que nos posicionar sempre novamente frente ao texto.
Quem trabalha somente uma teoria, trabalha com o interesse de aperfeiçoá-la ou extrair daí
um elemento de interesse.
74
O diálogo e a dialética tem a mesma raiz. O diálogo constitui uma situação quase
que existencial ontológica, ao passo que a dialética vai se tornar quase que uma ferramenta
metodológica. Por isso Gadamer vai retomar a perspectiva do diálogo.
Schleiermacher introduz na hermenêutica duas questões: a linguagem e o
pensamento do autor. O que se torna importante é o fato de que linguagem e pensamento
do autor adquirem uma característica específica. Ao usar uma formulação, para dizer algo,
o autor mexe na linguagem. O auge dessa experiência se na poesia. Ao falar, ao
escrever, o autor modifica sentidos, conotações. Modifica o uso quotidiano para expressar
algo individual. O autor faz uso peculiar das palavras. Ele não pode, porém, atingir a
plenitude de sentido.
Seguindo essa linha de raciocínio, podemos afirmar que a linguagem provoca a
autocompreensão do melhor sentido a ser expresso. “O discurso também não será
compreendido enquanto fato do espírito, se não for entendido como designação da língua,
porque a vinculação natural com a linguagem modifica o espírito”
179
. O intérprete pode,
a partir de sua posição individual, chegar o mais perto possível do todo. Discurso, porém,
“também não será compreendido enquanto modificação da linguagem, se não for entendido
enquanto fato do espírito, porque neste está o motivo de toda influência do indivíduo sobre
a linguagem, a qual apenas se constitui por meio do discurso”
180
. Não podemos perder de
vista que o intérprete nunca poderá chegar à certeza de ter atingido a plenitude do sentido.
Em outras palavras, significa dizer que nós não temos acesso ao infinito
indeterminado. O próprio autor, ao tentar expor seu pensamento, nunca pode estar
plenamente certo de ter expresso o sentido por ele intencionado. Por isso, Schleiermacher
esclarece que
[...] a construção de um determinado finito existe a partir de um indeterminado
infinito. A linguagem é um infinito, porque cada elemento pode ser determinado
de uma maneira particular e pelos demais. Da mesma forma, porém, também o
aspecto psicológico, pois cada intuição de alguém particular é infinita. E a
influência de fora sobre o ser humano, em relação ao infinitamente distante, é
também algo que diminui gradativamente. Tal construção o pode ser dada por
regras que tragam em si a certeza de sua aplicação
181
.
Desse modo, porque o eu está sendo exposto à interpretação do outro, não pode, de
antemão, garantir a identificação do sentido com a palavra. No entanto, convém deixar
179
Schleiermacher, 2005, p. 97.
180
Ibidem, p. 97.
181
Ibidem, p. 99.
75
destacado que em Schleiermacher existe, sim, pretensão universal. Não é possível garantir,
no entanto, de antemão, a universalidade. Schleiermacher pressupõe uma possibilidade
principal que marcaria toda nossa tentativa de chegar à compreensão de um texto.
A interpretação gramatical expressa pela primeira vez e de modo muito claro o
círculo hermenêutico. O elemento do sentido particular da linguagem se determina pela
unidade maior e vice-versa
182
. Significa que, ao querer compreender uma palavra, preciso
do mínimo de compreensão do texto enquanto todo. Este se constitui à base de seus
elementos particulares. Necessitamos do que Gadamer denomina de antecipação de uma
idéia do que o texto quer dizer, o que é dado pelo título. Esta prefiguração se especifica à
base de seus elementos os quais não são elementos que podem ser expostos, a partir de sua
participação como tal, mas assumem o sentido de seu conjunto. A palavra com o contexto
geral e vice-versa marca a primeira passagem do chamado círculo hermenêutico.
Na interpretação psicológica surge a seguinte situação: o próprio autor, a partir de
suas intenções de formular seu pensamento, sempre está sendo corrigido, desviado e
imitado pelas expressões como expressões completas, que consegue via linguagem.
Também aí pode-se observar uma mútua influência com relação ao projeto pretendido pelo
autor e uma certa resistência da linguagem que começa a irritar ao autor devido à sua
impropriedade em expressar o sentido desejado.
A idéia do círculo hermenêutico está presente na estratégia argumentativa de
Schleiermacher, sobretudo em sua argumentação em torno da estrutura da gramática.
Desse modo, a hermenêutica é composta por dois processos de abordagem do texto, a
saber, em primeiro lugar, um texto expõe o papel da linguagem, através de sua estrutura
gramatical quanto ao processo de estrutura do sentido. Depois, ele também remete à
própria autoria do texto-autor, que enquanto pessoa tenta projetar o sentido a ser
explicitado através do texto. Os dois processos de abordagem, juntos, vão formar a
interpretação ao ver de Schleiermacher. Eles trabalham com um infinito indeterminado e
um finito determinado.
Schleiermacher considera a idéia geral o sentido geral a ser expresso através do
texto. Tanto o autor quanto o intérprete nunca podem estar certos de terem interpretado o
182
no esboço Hermenêutica: primeiro projeto [1809-10] aparece claramente exposto por
Schleiermacher: “Mas o particular é compreendido apenas através do universal. Do contrário, ele é sempre
apenas agregado” (Schleiermacher, 1999, p. 67).
76
conjunto total que se propõe. Em outras palavras, nunca é possível chegar ao conjunto do
infinito indeterminado, pois se isso fosse possível, perderia seu caráter (e status) de infinito
indeterminado. Schleiermacher, com esse termo, quer indicar uma finalidade de sentido
que na sua plenitude, por princípio, é inacessível. O único capaz de chegar ao infinito
indeterminado seria Deus.
O infinito indeterminado é quase como que o ponto de orientação de uma
interpretação, sem que os participantes pudessem chegar a se apropriar desse infinito
indeterminado. Quer-se chegar o mais perto possível, sem, no entanto, poder dominá-lo.
Posso falar sobre ele enquanto e como, porém, não esgotar seu potencial e minha
interpretação.
3.3.6 Alguns limites de Schleiermacher
Gadamer vai fazer uma restrição a Schleiermacher. Em seu entendimento,
Schleiermacher não pode prescindir quase de uma perspectiva dogmática capaz de
fundamentar uma linha de interpretação. De certo modo, Schleiermacher havia se dado
conta desse limite, que pode ser percebido em suas palavras: “Não podemos esperar uma
decisão dogmática sobre a inspiração, porque esta precisa assentar-se na interpretação”.
183
Gadamer tenta resolver o problema introduzindo a história como meio possibilitador de
sentido.
A possibilidade de restringir a interpretação única e exclusivamente à base da
Escritura, parece negar a estrutura argumentativa de qualquer verdadeira interpretação.
Schleiermacher propõe, com certa insistência, a pressuposta como uma
inquestionabilidade à estrutura. Gadamer vai tentar demonstrar que essa interioridade vai
poder ser demonstrada via história, sem ter que remeter a um infinito indeterminado.
Com isso, parece que Schleiermacher quer evitar o dogmatismo de Lutero (texto
como objeto), recusando a idéia da objetificação do texto. O ponto central é a perda do
domínio do sujeito em relação ao processo. Para tanto, ele buscará a argumentação
transcendental. Ele retoma a pergunta já colocada pela crítica transcendental de Kant.
183
Schleiermacher, 2005, p. 106.
77
Porém, ao retomar a pergunta, torna-a produtiva dentro do processo de compreensão. O
conceito da razão em Kant e na hermenêutica não pode ser identificado.
Cada interpretação marca uma linha possível
184
de nos aproximarmos ao infinito
indeterminado. Cada obra determinada deveria levar a aproximar-se ao infinito
indeterminado. Surge aqui a primeira noção de círculo hermenêutico. Para Schleiermacher,
cada palavra que estamos usando contém um potencial de sentido, o qual em sua totalidade
não pode ser atingido. Percebe-se assim que a palavra, por si só, não faz sentido. Do ponto
de vista do conteúdo, o círculo não é vicioso, porém do ponto de vista formal, ele é
vicioso, no sentido de ter que pressupor o todo para ir à parte, e vice-versa.
Schleiermacher busca expor no primeiro ponto, as condições gerais e universais de
todo o ato de interpretação. Busca as condições de possibilidade da instauração de um
sentido. Depois a hermenêutica, num segundo momento, transforma o estranho da fala, do
texto, em algo próprio. A distância e a experiência do estranho (o outro) tornam-se
necessários em qualquer ato de compreensão. Parece que o processo de compreensão
reforça a necessidade de respeitar a “outreidade” enquanto tal. É o algo ao qual não temos
de imediato o acesso. No momento em que ele fala, conseguimos construir uma ponte para
nós
185
. O mútuo entendimento vai se dando passo a passo, e assim possibilita-se o avanço
na compreensão.
A auto-alienação passa pelo tomar a sério o outro enquanto outro. O re-
espelhamento é o outro. Toco a mim mesmo, no momento em que tomo o outro a sério.
Schleiermacher acreditava na possibilidade de expor uma ferramenta capaz de dar conta do
processo de compreensão. Não existe a possibilidade de injetar um ponto de partida, a
partir do qual se poderia julgar sobre a veracidade ou falsidade.
Será que existe então uma possibilidade de julgar? Se pudéssemos assumir tal
possibilidade, deveríamos assumir um modelo ideal de texto, a partir do qual se poderia
julgar. Gadamer sabe que deve haver possibilidades capazes de nos aproximar de uma
interpretação mais verdadeira.
184
Schleiermacher inicia expondo que A hermenêutica enquanto arte de compreensão ainda não existe
universalmente, mas somente várias hermenêuticas especiais” (ibidem, p. 91).
185
“Como todo discurso tem uma dupla relação, com a totalidade da linguagem e com o pensar geral de seu
autor: assim também toda compreensão consiste em dois momentos; compreender o discurso enquanto
extraído da linguagem e compreendê-lo enquanto fato naquele que pensa” (Schleiermacher, 2005, p. 95).
78
A história da compreensão em Schleiermacher faz da razão um instituto do sentido,
e não da verdade. Portanto, a idéia da compreensão está liberada do domínio de uma razão
a-histórica. O processo de compreensão pressupõe, necessariamente, o não-entendimento à
distância. A hermenêutica enquanto ciência deve-se à substituição do conceito da razão por
aquele da linguagem. Não uma linguagem como instrumento para expressar o nosso
pensar, mas muito mais.
3.3.7 Distinções entre Schleiermacher e Gadamer
O movimento em direção à verdade faz-se pela linguagem, sendo que “interpretar é
arte”, ou seja, “o feliz desempenho da arte reside no talento lingüístico e no talento do
conhecimento particular do ser humano”
186
. A linguagem, nesse sentido, é enquanto
universal e individual. A apropriação da estrutura do sentido (que inclui produtividade
interna) se faz através de uma produtividade interna da compreensão. Significa um auto-
encontro ou auto-localização sucessiva do espírito pensante. O círculo hermenêutico nos
leva a um auto-encontro conosco mesmos. Por isso Gadamer tomou Schleiermacher como
ponto de cisão entre a hermenêutica tradicional e a moderna.
Enquanto Schleiermacher tem como ponto de apoio o processo de compreensão do
sentido, torna-se uma preocupação central sua a produtividade originária que não pode
mais vir de um sujeito. A hermenêutica tradicional poderia ser caracterizada, então, como a
tentativa de apropriação adequada de sentido a ser encontrado no texto, enquanto a
hermenêutica moderna não seria a apropriação de sentido, mas produção do intérprete e
autor que não pode remeter a um sujeito dominador.
Para Gadamer, Schleiermacher tinha como pressuposto a idéia da unidade, que
deveria também ser atribuída ao contexto histórico dentro do qual o texto nasceu. Para ele
a inserção da unidade de um texto em seu condicionamento histórico não pode ser
fundamentada. Exige-se uma fonte diferente que não pode ser reduzida ao pressuposto de
uma unidade.
O condicionamento histórico, enquanto objetivo, é totalmente diferente da
historicidade enquanto sentido. Aqui se reflete, sobretudo, o clássico. O texto torna-se
186
Ibidem, p. 99.
79
clássico à base da persistência de um potencial de sentido que passa o histórico. O
potencial de sentido ao longo da história se vê enriquecido, de modo que a historicidade se
constitui junto com o texto, e não é adscrito pelo intérprete.
A compreensão remete a um horizonte mais amplo, que deixa a razão num patamar
mais amplo, não-atingível por um intérprete inserido em um contexto que não lhe
possibilita sair fora deste. Demonstra-se, assim, que não deveríamos confiar única e
exclusivamente na base racional nos moldes pretendidos pela perspectiva moderna. A
razão não ocupa mais o lugar único, porém, ela não é despedida. Parece que a compreensão
inclui uma certa necessidade, algo da pessoa do outro. Consigo quase que olhar a partir da
perspectiva do outro.
Com base na reflexão de Gadamer, podemos perceber que Schleiermacher
permaneceu muito preso à idéia de uma razão instrumental. A grande diferenciação está na
ampliação do texto frente à compreensão e na função do não-entendimento. Nesse sentido,
Gadamer vai além de Schleiermacher, ao trazer para dentro a perspectiva do acordo
enquanto superação e possibilidade de um encontro em outro nível de compreensão.
Schleiermacher pressupõe o não entendimento entre as pessoas que motiva a sua
tentativa de compreensão mútua. Por isso, a idéia do consentimento torna-se de modo
quase clandestino, o verdadeiro fim da hermenêutica de Schleiermacher. Gadamer toma o
oposto, isto é, o que caracteriza o diálogo, ou a tentativa de compreensão mútua, é uma
espécie de compreensão primordial, que, em certas situações, não é possível. A
possibilidade dessa mútua compreensão faz surgir o questionamento hermenêutico.
Gadamer não quer chegar ao acordo final
187
, mas este é uma necessidade da
autocompreensão ao longo da experiência do não-entendimento, por parte do outro.
187
No sentido de um acordo último.
80
3.4 Wilhelm Dilthey (1833 – 1911)
3.4.1 Dilthey diante das ciências do espírito
Wilhelm Dilthey mantém sua perspectiva romântica, mostrando-se muito preso
à preocupação com os procedimentos científicos na construção do saber. Sua intenção é
“fundamentar a validade das ciências do espírito (Geisteswissenschaften)”
188
. Ele busca
encontrar uma metodologia capaz de fundamentar o sentido a ser encontrado, sem escapar
ao risco de cair num psicologismo, entendendo a compreensão como um mero “processo
através do qual conhecemos algo psíquico”. Para ele, com a ajuda de signos percebidos do
exterior, através dos sentidos, podemos chegar a conhecer a interioridade. Aposta na idéia
de que, reproduzindo os diversos indícios que chegam aos nossos sentidos, podemos
chegar ao ponto de lhe reconstruir a interioridade correspondente
189
.
Dilthey mantém a expectativa de tentar identificar as ciências do espírito com
as ciências empíricas. Surge, a partir daí, uma hermenêutica considerada como uma forma
autêntica de fundamentação do conhecimento nas ciências do espírito. Essa perspectiva
está comprometida com a teoria do conhecimento tradicional. Para Dilthey, um
processo de distanciamento do método das ciências naturais e busca-se uma
fundamentação própria. Isso pode ser visto, quando sustenta que “o sentido histórico
permite ao homem moderno ter presente, no espírito, todo o passado da humanidade;
graças a ele, o homem ultrapassa os limites do seu próprio tempo e pode atualizar em si
todo o passado da humanidade”
190
.
Desde o início da leitura da obra de Dilthey, pode ser percebida uma
preocupação com a questão da circularidade do conhecimento, preocupação essa que nos
remete à busca pela totalidade do saber como tal. Conforme Gadamer, ele “pensava a
compreensão como a reprodução de uma produção originária”
191
. Nesse sentido, Dilthey
pretende firmar-se no historicismo, concebendo que o espírito objetivo é produto da
188
Reale; Antiseri, 1991, p. 455: lê-se ali que Dilthey “contrário à filosofia da história de Hegel, ele também
é avesso ao positivismo, que reduz o mundo histórico à natureza, ao pretender aplicar ao mundo histórico o
esquema causal-determinista, que, para Dilthey, só é válido para a natureza”.
189
Cf. Dilthey, 1984, p. 150.
190
Dilthey, 1984, p. 149.
191
Gadamer, 1996, p. 366.
81
atividade de homens históricos, sendo que, para ele, toda a realidade, que está aí, não passa
de conexões históricas que podem ser conhecidas. Assim sendo, as instituições, o
indivíduo, as civilizações e as épocas históricas não passam de conexões dinâmicas
192
produzidas historicamente e que permanecem disponíveis para serem compreendidas como
tal.
Na relação todo-parte, ele toma como ponto de partida a circularidade em que:
[...] os detalhes de um texto só podem entender-se desde o
conjunto, e este desde aqueles, porém projetando-o agora sobre
o mundo da história. Não somente as fontes chegam a nós como
textos, mas a realidade histórica mesma é um texto que pode ser
compreendido
193
.
A parte, uma vez compreendida a partir do todo, nos levaria a acreditar que “há
de se compreender a um autor melhor do que ele mesmo se compreendia”
194
. O olhar
totalizante parece ser herança de Schleiermacher, o qual nessa mesma direção argumenta
que “também dentro de um escrito particular o que é particular somente pode ser
compreendido a partir do todo”
195
.
Dilthey não consegue escapar a uma tendência ao
psicologismo, que se manifesta no desenrolar de sua obra, através de uma espécie de
crença de que a vida é o fato fundamental que deve ser tomado como ponto de partida da
filosofia. Nesse sentido, somente seria possível conceituar a história, na proporção em que
se consegue um conceito da vida. A vida, para ele, “estende-se a todo o domínio do
espírito objetivo, na medida em que nos é acessível, através da vivência”
196
. Portanto, o
compreender se revivendo, com uma experiência íntima, a vida do espírito em sua
evolução histórica
197
.
O fato de ter que recorrer à subjetividade expõe Dilthey ao risco de cair num
psicologismo, ou seja, é grande o risco de tudo se “centralizar na ‘psicologia’ que deve
compreender a ‘vida’ em sua efetiva conexão evolutiva e histórica, como a maneira de ser
192
Cf. Reale; Antiseri., 1990, p. 458.
193
Gadamer, op. cit, p. 254.
194
Ibid., p. 366.
A esse respeito Schleiermacher dirá que antes de aplicar a arte da interpretação é preciso colocar-se na
posição do autor, e isso tanto do lado objetivo quanto do subjetivo. Do lado objetivo, isto é, por meio de um
conhecimento da língua tal como o autor a possui; isso, porém, é uma tarefa mais determinada do que
colocar-se na posição dos leitores originais, os quais também necessitam pôr-se na posição daquele. Do
lado subjetivo no que concerne ao conhecimento de sua vida interior e exterior(Schleiermacher, 1995, p.
94).
195
Ibidem. p. 97.
196
Dilthey, op. cit., p. 184.
197
Cf. Pucciarelli, 1952, p. 16.
82
do homem, como possível objeto das ciências do espírito e a um tempo como raiz dessas
ciências”
198
. Dilthey nos leva à compreensão de que uma realidade a qual não se deixa
absorver pela reflexão. Isso se demonstra no fato de que o homem desde sempre se
experimenta no seio de um mundo do sentido que é anterior à sua experiência. “Para ele
significado não é um conceito lógico, mas se entende como expressão da vida”
199
. A vida
mesma é vista como auto-interpretação, sendo que nela pode ser percebida uma estrutura
hermenêutica.
Dilthey irá manifestar que a história é a condição de possibilidade para o que o
homem é, de modo que sempre perpassa, como pano de fundo, a idéia de uma realidade
que é a história e que todo conhecimento é conhecimento histórico. Na experiência vivida
encontra-se o instrumento fundamental com que Dilthey opera. Isso leva a procurar no
investigador as condições determinantes. Não ainda a idéia de uma hermenêutica como
modo de ser, modo de se situar.
Seguindo os passos de Schleiermacher, Dilthey também se baseia no
protestantismo, que remete o princípio da Escritura em favor de uma tradição
200
. Ele ao
buscar entender uma obra, desde o contexto do conjunto, acaba necessariamente por
remeter a uma restauração histórica do nexo vital, ao qual pertence a fonte original.
Segundo ele,
o velho postulado interpretativo de entender os detalhes por
referência ao todo já não podia remeter-se nem limitar-se à unidade
dogmática do cânon, senão que teria que aderir ao conjunto mais
abarcante da realidade histórica, a cuja totalidade pertence cada
documento histórico individual
201
.
Dilthey acaba por eliminar a diferença entre os documentos sagrados e
profanos, resultando que a função da hermenêutica passa a ser vista como arte da
interpretação correta das fontes escritas, que abrange a totalidade da historiografia. Assim,
“a compreensão e a interpretação intervêm, pois, sempre, inclusivamente, na própria vida,
atingem a perfeição nas artes de aplicar obras instigantes e de mostrar a sua unidade no
espírito do autor”
202
. Unidade vital passível de ser apreendida aos olhos de Dilthey.
198
Cf. Ibidem, p. 14.
199
Gadamer, 1996, p. 286.
200
Cf. ibid., p. 228.
201
Ibid., p. 229.
202
Dilthey, op. cit., p. 161.
83
Dilthey trabalha com a certeza de poder compreender a história universal, que
surge como um livro obscuro, cuja investigação histórica se compreende a si mesma,
segundo o modelo da filologia de que se serve. Ela é “a obra completa do espírito humano
escrita nas línguas do passado, cujo texto de ser entendido”
203
. Para Dilthey, “a
finalidade última da hermenêutica é compreender o autor melhor do que ele próprio se
compreendeu; proposição que é a conseqüência necessária da teoria da criação
inconsciente”
204
. Nesse sentido, para ele, trata-se de compreender o conjunto de uma obra
com a ajuda de palavras e de combinação de palavras, o que leva-o a afirmar que a plena
compreensão do pormenor pressupõe já a do todo
205
.
Nesse sentido, para Gadamer,
Dilthey toma conscientemente a hermenêutica romântica e a
amplia até fazer dela uma metodologia histórica, mais ainda, uma
teoria do conhecimento das ciências do espírito [...]. Os detalhes de
um texto podem entender-se desde o conjunto, e este só desde
aqueles, porém projetando-o agora sobre o mundo da história; [...]
a realidade histórica mesma é um texto que pode ser
compreendido
206
.
O sentido de um texto teria que compreender-se desde ele mesmo. Em
conseqüência, resulta que o fundamento da historiografia é a hermenêutica
207
. No perceber
de Gadamer, Dilthey desenvolve sua argumentação, no intuito de demonstrar que o
individual se determina em seu significado próprio desde o conjunto
208
. Por isso, o
desenvolvimento da essência humana no tempo possui uma produtividade própria, sendo
que a história tem um sentido em si mesma, ou seja, nas palavras do próprio Dilthey, o
conceito de história “depende do conceito da vida, pois a vida histórica é parte da vida
geral. Mas a vida em geral é o que se dá na vivência e na compreensão. [...] A vida é o fato
fundamental que deve constituir o ponto de partida da Filosofia”
209
.
A tentativa de Dilthey em fundamentar filosoficamente as ciências do espírito
se coloca entre a experiência histórica e a pretensão idealista da Escola histórica. Parece
que é de seu propósito completar a crítica kantiana da razão pura com uma crítica da razão
203
A esse respeito, veja Gadamer, op. cit, p. 230.
204
Dilthey, op. cit., p. 164.
205
Cf. Ibid, p. 163.
206
Gadamer, op. cit, p. 254.
207
Cf. ibid., p. 254 e 255.
208
Cf. ibid., p. 255.
209
Dilthey, op. cit., p. 184.
84
histórica. Segundo tal perspectiva, a razão histórica necessita de uma justificação igual à
razão pura. A teoria da verdade constituir-se-ia então como cópia da realidade, porém isso
já não bastava evidentemente para sua legitimação
210
.
Dilthey se depara com a questão de como pode converter-se em ciência a
experiência histórica, uma vez que “o que suporta a construção do mundo histórico não são
os fatos ganhos pela experiência e incluídos logo numa referência valorativa, senão que sua
base é muito mais a historicidade interna da mesma experiência”
211
. Assim, Dilthey vai
firmando a condição de possibilidade no ser histórico, em um homem concreto, histórico,
cognitivo, condicionado pelo horizonte e pelo contexto histórico em que vive e atua. Tal
sujeito do conhecimento não é o sujeito transcendental com suas funções a priori, sendo o
mesmo que investiga a história aquele que a faz
212
. Sua preocupação continua sendo a
questão de “converter em ciência a experiência histórica”
213
.
3.4.2 O mundo da vida diltheyano
É nas instituições que Dilthey irá perceber a efetivação do contexto vital, onde
o indivíduo forma a sua subjetividade. Tal contexto histórico carrega a estrutura do mundo
humano como histórica, onde acontece o mundo da vida, o Erleben, que se efetiva
concretamente. Trata-se, pois, de sistemas de cultura e de organizações sociais que
possuem existência histórica a possibilitar a relação dos indivíduos. “É a vida mesma a que
se desenvolve e conforma frente a unidades compreensíveis, e é o indivíduo concreto o que
compreende essas unidades como tais”
214
. Nesse sentido, “todas as criações culturais estão
penetradas pelo espírito da época e participam da historicidade inerente ao ser espiritual.
Para conhecer um indivíduo, para interpretar uma época ou uma criação cultural, é preciso
acudir à história”
215
.
A história firma-se como chave-de-leitura para o acesso ao mundo. Dilthey
dava razão à Escola histórica que acreditava “não existir um sujeito geral mas somente
210
Cf. Gadamer, op. cit, p. 278 – 279.
211
Ibid., p. 281.
212
Ver, a esse respeito, Reale; Antiseri, op. cit., p. 455.
213
Gadamer, op. cit., p. 280.
214
Cf. Gadamer, op. cit. ,p. 283.
215
Pucciarelli, op. cit., p. 21.
85
indivíduos históricos”
216
. O espírito objetivo de que Dilthey trata não é, como para Hegel,
a manifestação de uma Razão Absoluta, mas o produto da atividade de homens históricos,
de suas relações recíprocas, condicionadas pela pertença a um processo temporal, que
constituem a estrutura do mundo humano. O compreender (Verstehen) diltheyano deve ser
compreendido como “processo pelo qual, com a ajuda de signos percebidos do exterior
através dos sentidos, conhecemos uma interioridade. [...] Por isso chamamos compreensão
o processo através do qual conhecemos algo psíquico”
217
. A objetivação da vida é a
primeira característica no mundo histórico humano. “O nexo da vida, tal como se lhe
oferece ao indivíduo (e como é revivido e compreendido no conhecimento biográfico dos
demais), se funda na significatividade de determinadas vivências”
218
. “Cada parte expressa
algo do todo da vida e tem, portanto, uma significação para o todo do mesmo modo que
seu próprio significado está determinado desde este todo”
219
.
Gadamer comenta:
O passo decisivo que deverá dar Dilthey em sua fundamentação
epistemológica das ciências do espírito será empreender, a partir da
construção de um nexo próprio na experiência vital do indivíduo, a
transição a um nexo histórico que não é vivido, nem
experimentado por indivíduo algum
220
.
A vida mesma permanece sempre o ponto de partida de Dilthey. A vida, para
ele, se abre, na medida em que conseguimos nos elevar, metodicamente, acima da
causalidade subjetiva do próprio ponto de partida e da tradição que lhe é acessível,
“alcançando assim a objetividade do conhecimento histórico” no qual ela se gestou. “O
nexo de vida e saber é para Dilthey um dado originário”
221
. A hermenêutica se coloca, para
Dilthey, como o medium universal da consciência histórica, para a qual não há outro
conhecimento da verdade que o compreender a expressão, e na expressão a vida. “Em
qualquer ponto da História vida, e a História compõe-se de vida, de todos os tipos de
vida nas relações mais diversas. A História é a vida captada pelo ponto de vista da
totalidade da Humanidade, constituindo uma conexão”
222
.
216
Cf. Gadamer, op. cit., p. 283.
217
Dilthey, op. cit., p. 150.
218
Gadamer, op. cit., p. 283.
219
Ibid.., p. 283.
220
Ibid., p. 283.
221
Confira a esse respeito os argumentos expostos em Verdad y Método, p. 297 e 298.
222
Dilthey, op.cit., p. 179.
86
Nesse ponto Dilthey o deixa claro, ao expor que “poderia pensar-se o
conhecimento de nexos históricos cada vez mais amplos e estendê-los até um
conhecimento histórico universal”
223
. A compreensão histórica se estende, sobretudo, ao
que está dado historicamente e é verdadeiramente universal, porque tem seu sólido
fundamento na totalidade e infinitude interna do espírito.
[...] temos que construir o todo com as partes, mas é no todo que deve
residir o 'momento' em razão do qual se atribui um significado às partes e
estas encontram o seu respectivo lugar. A própria História efetiva
princípios cuja validade nasce da explicação das relações contidas na vida
224
.
Segundo Dilthey, as barreiras que impõe à universalidade da compreensão a
finitude histórica de nosso ser, lhe são de natureza somente subjetiva. A crítica que
Gadamer dirige a Dilthey está no fato de ele pensar a investigação do passado como
“deciframento e não como experiência histórica”
225
. Hermenêutica, em Dilthey não tem a
ver com o captar o sentido que se abre, mas antes compreender os fatores isolados dentro
duma concepção historicista. Não há, em Dilthey, a idéia de estabelecer-se um acordo.
Esse é um aspecto no qual Gadamer se diferencia, trazendo para dentro da compreensão a
idéia do acontecimento da história e não mero projeto. Se quisermos reduzir a história a
fatores isolados, teríamos que inserir nela um fio condutor pela expectativa que buscamos,
ou legitimar, ou averiguar. Em outras palavras, existe a construção de um sentido em
relação à história, de modo que o sentido se abre para a compreensão. Na perspectiva
gadameriana não existe a história como tal, como um objeto disponível ao sujeito.
Levanta-se aqui uma série de questões, principalmente ligadas à questão da
inesgotabilidade da vida, onde, conforme pensa Dilthey, “a constante transformação do
nexo de significados, que é a história, não implicará a exclusão de um saber que pode
alcançar objetividade”
226
. Gadamer ialém, perguntando-se sobre a consciência histórica,
no sentido de tentar descobrir se ela não será, em última instância, um ideal utópico, que
contém em si mesmo uma contradição.
Referindo-se ao nexo estrutural, que se compreende desde seu próprio centro,
Gadamer dirá que “é algo que responde ao velho postulado da hermenêutica e à exigência
223
Ibid.., p. 292.
224
Dilthey, op. cit., p. 186.
225
Cf.Gadamer, op. cit., p. 303.
226
Cf. ibid., p. 291.
87
do pensamento histórico de compreender cada época desde si mesma e de não medi-la com
o padrão de um presente estranho a ela”
227
.
A história, no fundo, é como que a forma necessária da ciência de tudo o que
chega a ser. É quase como que uma metaciência. O que norteia essa corrente é uma crença
de que a possibilidade de captar a totalidade do sentido como tal, e que a condição de
possibilidade para tal é conseguir estabelecer um método de tal eficiência que conta da
totalidade do saber como tal. No entanto, enquanto Dilthey busca legitimar seu ponto de
vista à base da vida, que se corporifica e se apresenta na história, podendo ser
epistemologicamente analisada, para Gadamer a relação com a vida se diferencia em
muito. Para entendermos melhor a compreensão gadameriana, que vai se firmar sobre a
historicidade, necessitamos refletir sobre a relação da subjetividade frente à compreensão.
A questão que permanece é: “Como é possível que uma individualidade possa
transformar em conhecimento objetivo com valor universal o dado sensível que é, para ela,
essa individualidade?”
228
Dilthey responde a essa questão, dizendo que “a condição de que
depende essa possibilidade consiste no fato de nenhuma manifestação individual estranha
poder apresentar alguma coisa que não esteja, também, contida na individualidade viva que
a percebe”
229
. Isso só é possível dentro de uma certa circularidade no compreender. Dilthey
explicita-o em descrevendo sobre o método.
Extrair o todo do detalhe e seguidamente o detalhe do todo. A totalidade de
uma obra exige que se chegue à individualidade do autor, ao conjunto literário de que
depende. O método comparado faz-me compreender cada obra e até cada frase com mais
profundidade. A compreensão resulta, pois, do todo que, no entanto, resulta, por sua vez,
do pormenor
230
. Parece que a consciência histórica quer ocupar o lugar que em Hegel era
ocupado pelo saber absoluto do espírito. “O próprio Dilthey aponta o fato de que somente
conhecemos historicamente, porque nós mesmos somos históricos”
231
, porém limites
que se tornam difíceis de serem ultrapassados, uma vez que na sua pretensão de
absolutização, em Dilthey a razão absoluta não é o espírito objetivado, porém, muito antes,
produto da atividade de homens históricos. “Nossa consciência é, por sua vez, consciência
227
Ibid., p. 292.
228
Dilthey, op. cit., p. 167.
229
Ibid.., p. 168.
230
Dilthey, op. cit., p. 168.
231
Gadamer, op. cit., p. 291.
88
histórica, porque a historicidade é a essência do homem. [...] A experiência do passado,
plenamente assimilada, se incorpora e se fixa como um elemento plástico e influi sobre os
atos do presente”
232
. De certa forma, as questões do passado estão, sim, a orientar as
decisões do presente, assim como criando condições para a projeção do futuro.
3.4.3 Aproximações entre Dilthey e Gadamer
Nesse ponto uma certa aproximação de Gadamer em relação a Dilthey.
Quando Gadamer analisa a questão dos “pré-juízos”, sua crítica dirige-se tanto contra o
Iluminismo como contra o falso Romantismo. Em Dilthey, a consciência histórica teria que
“realizar em si mesma uma superação da própria relatividade, de tal modo que, com isso,
torne possível a objetividade do conhecimento espiritual-científico”
233
. Para ele, “os
sistemas filosóficos mudam com os costumes, as religiões e as constituições. Revelam-se,
portanto, como produtos historicamente condicionados”
234
.
Por indissolúvel que seja o fundamento da vida histórica sobre a qual se
eleva, a consciência histórica é capaz de compreender historicamente sua
própria possibilidade de comportar-se historicamente, [...] numa relação
reflexiva consigo mesma e com a tradição em que se encontra.
Compreende-se a si mesma desde sua história. A consciência histórica é
uma forma de autoconhecimento
235
.
A investigação temática da vida da consciência está obrigada a superar, como
em Dilthey, a vivência individual como ponto de partida. Isso nos remete à concretização
da vida. Porém, “Dilthey retrocede até à unidade da vida, ao 'ponto de vista da vida', e de
uma forma muito parecida à ‘vida da consciência’ de Husserl”
236
.
Gadamer explicita a perspectiva traçada por Dilthey trazendo para o debate a
pretensão de Husserl. Segundo ele, Dilthey “pretende derivar a construção do mundo
histórico a partir da reflexividade que é imanente à vida, e Husserl pretende derivar a
construção do mundo histórico a partir da ‘vida da consciência’”
237
. Tanto em Husserl
232
Pucciarelli, op. cit., p. 22.
233
Cf. ibid., p. 295.
234
Dilthey, 1992, p. 18.
235
Gadamer, op. cit,, p. 296.
236
Cf.ibid., p. 310.
237
Ibid.., p. 313.
89
como em Dilthey, “os dados imanentes à consciência examinada reflexivamente não
contêm o tu de maneira direta e originária. (...) O ‘outro’ aparece em princípio como objeto
da percepção, que mais tarde ‘se converte’ por empatia em um tu”
238
.
Para Gadamer, falta em Dilthey e Husserl justamente “o sentido de que o
conceito da vida é desenvolvido em ambas as direções como mais abrangente”
239
. Desse
modo, a questão da historicidade entra no jogo, como mais abrangente que a questão do
historicismo, conforme vimos anteriormente. Em outras palavras, a questão da vida, aos
poucos, assume o centro das preocupações de Dilthey, no sentido de “incorporar em si o
que existe fora dela. Todo o vivo se nutre do que lhe é estranho”
240
, sustentado na crença
da possibilidade de poder captar o todo. Por isso, em Dilthey “a relação com a vida não é a
do pensamento com outros estados espirituais, mas da vida com a consciência daquilo que
o homem vive, experimenta e olha na sua totalidade, na urdidura de vida própria e
mundo”
241
.
Em contrapartida, a tradição hermenêutica situada em Gadamer, vai tentar
expor a hermenêutica, a partir de sua estrutura ontológica. A preocupação em torno do
modo de experimentar o mundo enquanto modo ontologicamente qualificado exige uma
postura diferenciada. Trata-se, ao que parece, de uma tentativa de expor a maneira como o
homem lida com o mundo e, em conseqüência, consigo mesmo em um nível ontológico,
isto é, buscando sempre, enquanto ente no mundo, o fundamento da verdade, perguntando
pelo ser
242
, que se revela e se oculta
243
, sabendo de antemão nosso limite de nunca
podermos apreender a verdade toda, pois, conforme o expõe Coreth em suas investigações
de Gadamer, ela “acontece” no encontro e relação de sujeito e objeto, na mediação entre
presente e passado
244
.
Essa corrente permanece mais ligada à questão de tentar esclarecer as
experiências do nosso ser-no-mundo
245
, sobretudo buscando respostas pela linguagem e
238
Ibid.., p. 314.
239
Ibid.., p. 315.
240
Cf. Gadamer, op. cit., p. 317.
241
Dilthey, 1992, p. 34.
242
Cf. Coreth, 1973, p. 162.
243
Ibid.., p. 151.
244
Ibid., p. 155.
245
A esse respeito, veja-se o §12 de Ser e Tempo, onde Heidegger analisa o ser-no-mundo em geral como
constituição fundamental do Ser-aí.
90
história
246
. Procurará mostrar que o sentido se instaura a partir de formas de mediação, que
não remetem a um sentido como se este fosse objeto, mas enquanto contexto em que ele
acontece, dentro de uma determinada consciência da realidade.
3.4.4 Antecipando alguns limites da modernidade
Para falar em limites da modernidade, inicialmente temos que compreender o que
se entende por modernidade no contexto em que se situa a presente discussão. Para tanto,
podemos tomar como ponto de partida que a racionalidade moderna “tem origem no
empirismo e no racionalismo do século XVI. O empirismo, proposto por Bacon aposta na
emergente ciência do seu tempo, dizendo que o homem poderá ‘prever para prover’”
247
. É
claro que estamos tratando de situar aproximadamente esse movimento que entrelaça
sujeito e objeto, princípio fundamental do empirismo, que tem na experiência, conforme já
vimos antes, sua sustentação enquanto construção científica.
Entretanto, uma “outra formulação da racionalidade moderna se refere ao
racionalismo”
248
. Nesse sentido, Descartes é o grande expoente, afirmando o pensamento
como ponto de partida, sendo que “a racionalidade traz as bases do pensamento moderno
com a exigência da subjetividade”
249
. Assim sendo, o modo de fazer ciência é dominado
pela racionalidade ocidental, resultando no mito da possibilidade de explicação de tudo e,
conseqüentemente, na crença em se poder construir a base para chegar à verdade enquanto
tal. “A opção da modernidade por esse modelo de racionalidade tem justificado a ação de
controle e previsões de ação do sujeito sobre o objeto”
250
. Nisso reside um dos elementos
centrais que instauram o paradigma objetificador moderno, onde o objeto é entendido
como resistência, como o que se coloca à frente do sujeito, sendo que este tem o poder (e
quase que o dever) de dominá-lo
251
. Portanto,
246
Sobre esse ponto o §34 de Ser e Tempo parece abordar bem as bases sobre as quais nossa discussão
posterior irá se firmar.
247
Hermann, 1996, p. 17.
248
Ibid., p. 18.
249
Ibid., p. 18.
250
Ibid., p. 19.
251
“Ao trazer à tona o princípio da subjetividade, a modernidade expressa sua no sujeito com capacidade
de reflexão, que conquista sua autonomia e sua liberdade. A idéia do sujeito autônomo surge, portanto, com a
modernidade e com que esta deposita na razão. Embora o movimento iluminista, que sustenta o ‘discurso
filosófico da modernidade’, sempre tenha sido acompanhado por um contradiscurso, como, por exemplo, o
romantismo, as críticas tornam-se mais sistemáticas, a partir do século XIX, sobretudo por duas razões: uma
91
a modernidade que nasce com ao iluminismo, no século XVIII, apóia-se
justamente na possibilidade da razão de enunciar verdades universais, de
entender e dominar o mundo, superar os mitos e forças mágicas, de forma a
emancipar o homem. Retira-se a tutela de um princípio organizador exterior ao
próprio homem, surgindo a possibilidade de que ele construa racionalmente seu
destino, livre de tirania. Caem, assim, os fundamentos teológicos e o mundo é
secularizado. Propõe-se uma ordem fundada na razão, um ideal de ciência, que
permita a liberdade do reino da necessidade
252
.
limites que ficam evidentes quanto ao modo de operar do cientificismo
objetificador, impulsionado, sobretudo, pelos tempos modernos
253
em sua pretensão auto-
esclarecedora iluminista, que não consegue dar conta dos limites frente ao saber. O uso
meramente instrumental da razão humana favoreceu a crise da racionalidade iluminista
254
ao pretender ser o modelo para se chegar à certeza
255
mediante a soberania do sujeito,
independentemente da sua historicidade e da tradição que sempre lhe antecede. “O
sujeito que compreende é finito, isto é, ocupa um ponto no tempo, determinado de muitos
modos pela história”
256
, de modo que seu horizonte de compreensão já se encontra inserido
na história onde sua reflexão se dá, fazendo esta parte dela. No entanto, o sujeito
permanece “ocupado por pré-conceitos que pode modificar no processo da experiência,
mas que não pode liquidar inteiramente”
257
. Assim sendo, a crítica de Gadamer ao
racionalismo da ilustração se sustenta, porque “o pensamento iluminista é cego para a
primeira refere-se à crítica à estrutura auto-referencial do princípio da subjetividade, que faz com que o
sujeito se debruce sobre si mesmo, determinando relações objetificadoras e de domínio do sujeito sobre o
mundo. Uma segunda crítica situa-se no âmbito antropológico e social, com a desconfiança de o projeto da
modernidade levar adiante sua finalidade emancipatória, seus tão caros ideais de liberdade e igualdade,
justamente pela imposição de relações de domínio” (Hermann, 2006, p. 12).
252
Hermann, 1996, p. 19.
253
“Como filhos dos tempos modernos não queremos que nos vejam como herdeiros de uma época que
acabou. Por isso Habermas, o iluminista, fala de um projeto inacabado da modernidade. Todos os projetos
históricos são inacabados e tanto mais o projeto da razão do iluminismo. A cultura ocidental constituiu-se de
projetos inacabados e entre eles sucessivos projetos iluministas, desde os gregos, que m como
imperativo serem retomados sempre por herdeiros que em vão procuram concluí-los. Os projetos da
racionalidade têm isto de imaginário: estabelecer definitivamente a idade da razão” (Stein, 2001, p. 11).
254
Crise esta que levou a sociedade moderna à beira do colapso social e ecológico, devido, entre outros, à
exploração desenfreada dos recursos naturais e à brutal desagregação social de amplas comunidades”
(Flickinger, 2000, p. 8).
255
“Assim, a hermenêutica tem que desconstruir uma racionalidade que, colocada sob limites estreitos, quer
mais a certeza que a verdade. E mostra a impossibilidade de reduzir a experiência da verdade a uma
aplicação metódica, porque a verdade encontra-se imersa na dinâmica do tempo. No ambiente cientificista da
modernidade, estabeleceu-se o predomínio do positivismo, que se apóia em dados objetivos como
procedimento válido para produzir conhecimento. Contra isso, a hermenêutica quer demonstrar que não
mais condições de manter o monismo metodológico, uma forma exclusiva para determinar o espaço de
produção do conhecimento. A hermenêutica opõe-se ao ‘mito do objetivismo’; ou seja, à crença em uma
verdade objetiva, que corresponde a uma realidade também objetiva, trazendo a perspectiva do interpretar, do
produzir sentido, e a impossibilidade de separar o sujeito do mundo objetivado. Desse modo, quer fazer valer
o fenômeno da compreensão diante da ‘pretensão de universalidade da metodologia científica’, como
precisamente observou Gadamer” (Hermann, 2006, p. 19 – 20).
256
Stein, 1986, p. 37.
257
Ibid., p. 37.
92
inevitabilidade de pré-conceitos em todo o processo de compreender. [...] O iluminismo,
contudo, pensa poder situar-se num ponto de vista fora da história”
258
. Tal pretensão é,
evidentemente, inconcebível .
Portanto, a história, os pré-conceitos, a tradição, a autoridade, a linguagem são,
para Gadamer, indispensáveis para podermos pensar a racionalidade no mundo. Significa
reconhecer a necessidade de descer para trás da reflexividade e buscar sua origem
259
na
pré-reflexividade
260
, onde a experiência do sujeito lhe possibilita a inserção em um
horizonte de sentido posteriormente tematizável pelas vias da reflexividade. A
hermenêutica nos esclarece “a impossibilidade de um ponto arquimédico para fundar a
reflexão, uma espécie de belvedere do espectador imparcial, ou ao menos de um
observador privilegiado”
261
.
Assim sendo, contemporaneamente a hermenêutica não pode escapar a um
caráter questionador das pretensões da modernidade, assumindo, não raro, o papel de
denunciadora do que poderíamos denominar de uma impossibilidade da pretensão
absolutizadora. Não significa, de modo algum, deixar de reconhecer preciosas
contribuições que a modernidade trouxe, sobretudo no campo das ciências, como é o caso
da saúde. É inquestionável o benefício na melhoria da qualidade de vida do ser humano, de
modo que o problema que se coloca é a reivindicação exclusiva do paradigma
cientificista
262
. O problema maior é aceitarmos o uso meramente instrumental da razão
humana como sendo “o” modo exclusivo para o acesso ao conhecimento, enquanto certeza,
ao invés de buscarmos a discussão em torno da verdade enquanto espaço não-determinável
pelo cientificismo
263
.
Sem negar a importância do ambiente cientificista moderno para o homem
contemporâneo, a hermenêutica moderna vem trazer à tona a discussão em torno dos
limites da pretensão moderna, vindo a denunciar os limites de sua pretensão justamente por
não conseguir dar conta dos mesmos. Portanto, a hermenêutica traz consigo a pretensão em
258
Ibid., p. 37.
259
No sentido de fundamentação.
260
Com a hermenêutica podemos afirmar “o bastidor de legitimidade que recupera a unidade do modo
descontínuo de pôr problemas próprios dos métodos científicos” (Stein, 1986, p. 49).
261
Ibidem, p. 49.
262
Especialmente os procedimentos em laboratórios que dificilmente conseguem escapar a uma perspectiva
tecnicista, exigindo a separação rígida entre sujeito e objeto, além de uma pressuposição de neutralidade ou
imparcialidade do cientista, mantendo a crença de que os procedimentos técnicos bastam a si próprios.
263
Cf. Schuck, 2006, p. 61ss.
93
ampliarmos o debate, sem excluir da pauta a questão da modernidade. No fundo, ela busca
desconstruir uma racionalidade, racionalidade esta que, “colocada sob limites estreitos,
quer mais a certeza que a verdade, e demonstrar a impossibilidade de reduzir a experiência
da verdade a uma aplicação metódica, porque a verdade encontra-se imersa na dinâmica do
tempo”
264
.
Rompe-se, assim, com a idéia de um único método
265
para chegar à verdade. Exige-
se, por parte do próprio investigador, que ele leve em conta sua situação histórica, sua
historicidade e finitude, sem poder escapar ao fato de ele se encontrar já desde sempre
inserido num horizonte de sentido, numa tradição, que lhe ultrapassa a possibilidade em
trazer à consciência o todo no qual se insere. Por isso, no ambiente cientificista moderno,
criam-se condições favoráveis para o predomínio do positivismo, à base do método que se
apóia em dados objetivos como procedimento válido, levando a um monismo
metodológico, ofuscando, de certa forma, a possibilidade de percepção de outras formas de
conhecer a realidade
266
.
Uma das chaves-de-leitura para compreedermos a origem da hermenêutica, no
sentido moderno, está justamente na compreensão da bipolaridade sujeito-objeto, que sem
dúvida na modernidade criou o “mito do objetivismo”, conforme exposto acima. Diante
da “pretensão de universalidade da metodologia científica”, a hermenêutica se posicionará
no sentido de querer fazer valer o fenômeno da compreensão
267
.
Com Schleiermacher, a hermenêutica ainda se encontra muito presa à
perspectiva de encontrar procedimentos científicos capazes de dar conta de uma
metodologia que fundamente o sentido a ser encontrado. Schleiermacher estava
preocupado mais com os estudos teológicos, de modo que acreditava ser possível encontrar
um método a partir do qual dar-se-iam as interpretações da Sagrada Escritura. Veja-se que
essa tendência, ao fazer da hermenêutica uma espécie de legitimadora de procedimentos
para a interpretação, por um lado se liga ainda à questão procedimental, a saber, pelo uso
meramente instrumental da razão. Porém, por outro lado, traz a novidade que irá dar as
condições para o surgimento da “hermenêutica moderna”, ao contrapor-se ao caminho
causal-explicativo, uma vez que a hermenêutica passa a não ser mais compreendida
264
Hermann, 2003, p. 15.
265
Méthodos, no sentido de caminho.
266
Cf. Hermann, op. cit., p. 15.
267
Cf. Ibidem, p. 16 – 17.
94
enquanto interpretação filológica, de modo que a interpretação não é algo externo ao
interpretado, porém caracteriza-se, antes de mais nada, “pela exposição e avaliação do
envolvimento do homem no processo do saber”
268
.
Na Segunda Parte do presente texto, nos será possível compreender ainda
melhor tal situação, na medida em que formos percebendo o surgimento da formulação do
problema da verdade pelas vias da Hermenêutica Filosófica. Buscamos, assim, uma nova
formulação de tal problema, na proximidade da discussão com Hans-Georg Gadamer, sem
podermos deixar de fazer a discussão inicial com Heidegger.
268
Flickinger, 2000, p.07.
95
SEGUNDA PARTE
SURGIMENTO DE UMA NOVA FORMULAÇÃO DO PROBLEMA
DA VERDADE PELA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA
4 HEIDEGGER E A QUESTÃO DO COMPREENDER
4.1 Dasein e o sentido do ser
Heidegger é outro “divisor de águas” na história da compreensão. Com ele
somos levados a perguntar pelo modo de compreender aquilo que acontece em nós. O
sujeito tem seu lugar repensado a partir de Heidegger
269
. Ao invés de a subjetividade
humana ser o sentido do ser, o ser é um projeto do sujeito. Significa dizer que o sujeito é o
Da” do Sein”
270
. O aí” do “ser”, ele é “ser-aí”. Agora ele está aí, nele se revela o
sentido.
A questão sobre o sentido do ser só é possível quando se dá uma compreensão do
ser. A compreensão do ser pertence ao modo de ser deste ente que denominamos
Dasein. Quanto mais originária e adequadamente se conseguir explicar esse ente,
269
A presente discussão foi iniciada nos estudos de mestrado e agora é retomada no intuito de podermos
aprofundá-la e dar-lhe o enfoque antes não conseguido.
270
O conceito “Dasein” é de difícil tradução. Na verdade, não há no português uma palavra que indique com
precisão seu sentido. Foi traduzido, por exemplo, como “eis-aí-ser”, “estar-aí”, “ser-aí”, “presença”. Na
perspectiva em que estamos abordando, é importante destacar que não deve ser compreendido no sentido
passivo, como é o caso de simplesmente “jogado” no mundo. O “Sein” revela um princípio de ação frente ao
mundo, ou, dito de outro modo, uma necessidade de se “projetar”, de modo que o ser é” pelo que faz ou
deixa de fazer no aí concreto, conforme possibilidade e limites que o mundo lhe oferece. Ao passo que “Sein
parece também mostrar a abertura ao devir, revelando a infinitude do processo de construção de nosso ser
mergulhado na finitude do existir concretamente “agora”.
96
maior a segurança do alcance na caminhada rumo à elaboração do problema
ontológico fundamental
271
.
Heidegger traz à tona a questão do sentido do ser, sem, no entanto, desaparecer o
problema do sujeito; porém, ele é repensado, sendo que,
o modo de ser do estar-aí que se descreve através do lidar com o ente disponível,
o utensílio, não pretende anular este sentido da práxis no nível da relação com o
objeto, mas quer atingir a dimensão mais profunda e antecipadora, onde se
uma unidade entre mundo e estar-aí, no complexo e ao mesmo tempo simples
modo de ser-no-mundo em que o estar-aí já sempre se compreende
272
”.
Compreender o ser o é mais do que abrir o espaço que possibilite o
conhecimento dos entes. “Qualquer conhecimento se realiza já sempre na base do modo de
ser do estar-aí, modo de ser que denominamos ‘ser-em’, isto é, o já-sempre-estar-junto-de-
um-mundo”
273
. Nesse sentido, o transcendental é uma característica da minha compreensão
do ser, não dos entes ou do ser. Isso porque, acima da realidade está a possibilidade. “De
fato, apenas enquanto o ser-aí é, ou seja, a possibilidade ôntica de compreensão do ser, ‘dá-
se’ ser. Se o ser-aí não existe, também nem ‘independência’ nem ‘em si’ podem ‘ser’”
274
.
Para Heidegger, o ser do Dado Dasein se sustenta na disposição enquanto
estrutura existencial. Desse modo,
Dizer que o Dasein existindo é o seu Da significa, por um lado, que o mundo
está 'pre-sente', o seu Dasein é o ser-em. Este é e está igualmente 'presente' como
aquilo em função de que o Dasein é. Nesse em função de, o ser-no-mundo
existente se abre como tal. Chamou-se essa abertura de compreensão
275
.
No sentido de existência, essa compreensão sempre remete ao ser desse poder-
ser, nunca simplesmente dado, mas que “é” junto com o ser do Dasein. Não está solto no
ar, pois é a possibilidade de ser que está entregue à sua responsabilidade, de modo que é a
possibilidade que lhe foi inteiramente lançada
276
. Conforme Heidegger, “esse ‘saber’ não
nasce primeiro de uma percepção imanente a si mesmo, mas pertence ao ser do Da do
Dasein que, em sua essência, é compreensão”
277
.
Uma das questões centrais em Heidegger é justamente a oposição radical à
subjetividade. Isso fica evidenciado, quando ele escreve: “compreender é o ser existencial
do próprio poder-ser do Dasein, de tal maneira que, em si mesmo, esse ser abre e mostra a
271
Heidegger, 1995, p. 266.
272
Stein, p. 117 – 118.
273
Ibid.., p. 26.
274
Heidegger, op. cit., p. 279.
275
Ibid.., p. 198.
276
Cf. ibid.., p. 199.
277
Ibid.., p. 200.
97
quantas anda seu próprio ser”
278
. Isso também aparece claramente, quando diz que, “na
compreensão, o Dasein projeta seu ser para possibilidades”
279
, sendo estas como que
aberturas. Tal projetar da compreensão, segundo Heidegger, possui a possibilidade própria
de se elaborar em formas, as quais denomina interpretação”. A interpretação se funda
existencialmente na compreensão e não vice-versa, sendo que é ali onde a compreensão se
torna ela mesma e não outra coisa. “Interpretar não é tomar conhecimento de que se
compreendeu, mas elaborar as possibilidades projetadas na compreensão”
280
. O
compreendido, aquilo que se abre na compreensão, “é sempre de tal modo acessível que
pode explicitar-se em si mesmo como isto ou aquilo”
281
, ou seja, “o ‘como’ constitui a
estrutura da explicitação do compreendido; ele constitui a interpretação”
282
, sendo que
“isso só é possível pelo fato de já se oferecer para ser pronunciado”
283
.
Em Heidegger, tudo o que está à mão sempre já se compreende, a partir da
totalidade conjuntural. Segundo ele, “o que acontece é que, no que vem ao encontro dentro
do mundo como tal, a compreensão abriu uma conjuntura que a interpretação expõe”
284
.
Dessa forma, pode-se falar numa “visão prévia”, sendo que, enquanto abertura do Da,
sempre diz respeito a todo ser-no-mundo. Ele expressa isso, dizendo que, “no projeto da
compreensão, o ente se abre em sua possibilidade”.
285
Não se trata, portanto, de jogar no
vazio ou sobre a nudez de algo, mas, sim, de que o “caráter de possibilidade sempre
corresponde ao modo de ser de um ente compreendido”
286
.
Isso se percebe mais claramente, quando Heidegger escreve:
Se, junto com o ser do Dasein o ente intramundano também descobre, isto é,
chega a uma compreensão, dizemos que ele tem sentido. Rigorosamente, porém,
o que é compreendido não é o sentido, mas o ente e o ser. Sentido é aquilo em
que se sustenta a compreensibilidade de alguma coisa. Chamamos de sentido
aquilo que pode articular-se na abertura da compreensão
287
.
A compreensão, para ser significativa, precisa ter sentido. Portanto, não
significa que a compreensão seja sentido: “o que é compreendido não é o sentido, mas o
278
Ibid.., p. 200.
279
Ibid.., p. 204.
280
Ibid., p. 204.
281
Ibid., p. 205.
282
Ibid., p. 205.
283
Ibid., p. 206.
284
Ibid., p. 206.
285
Ibid., p. 208.
286
Ibid., p. 208.
287
Ibid., p. 208.
98
ente e o ser”
288
. Porém, não existe acesso à compreensão dos entes, sem passar pela
compreensão do ser. O sentido surge como um espaço próprio, uma espécie de mediação
em que o Dasein pode se manifestar aos entes.
Essa manifestação do Dasein sempre conserva um aspecto de ocultamento,
possibilitando, no entanto, uma apreensão de um sentido que possibilita uma compreensão,
um desvelar. Isso tudo remete à idéia de que o sentido nasce a partir de formas de
mediação, que não remetem a ele, como se fosse objeto, mas enquanto contexto a ser
criado, dentro de uma determinada consciência da realidade. O sentido surge enquanto
resultado de uma experiência ou, em outras palavras, ele é como que a gestação de algo
que não pode chegar a ser captado totalmente na compreensão.
A razão em si mesma não pode ser considerada o ponto de partida do
conhecimento. Ela mesma está sendo inserida dentro de um contexto de sentido que a
determina. Algo está a nosso dispor, algo enquanto algo é captado e que conseguimos
transmitir pela linguagem, sendo que não é a linguagem que detém o poder de determiná-
lo.
Portanto, o Dasein tem sentido na medida em que a abertura do ser-no-
mundo pode ser ‘preenchida’ por um ente que nele se pode descobrir. Somente o Dasein
pode ser com sentido ou sem sentido”
289
. Em outras palavras, compreendemos na medida
em que há o “des-ocultamento”, o “desvelamento” da constituição do ser da existência.
4.2 Compreensão e reflexividade
A historicidade fundamental do Dasein vai implicar que seu ser é uma
mediação entre passado e presente, na direção do futuro. Estabelece-se como condição de
possibilidade de nossa compreensão. Nós nos compreendemos a partir dos “pré-conceitos”.
Mas não no sentido de impor os nossos “pré-conceitos” ao texto, porém no sentido de
deixar-se dizer algo pelo próprio texto
290
. Se quisermos, podemos também dizer que “a
racionalidade ‘a priori’ da tradição passa a manter-se como condição de possibilidade, que,
288
Ibid., p. 208.
289
Cf. ibid., p. 208.
290
Cf. ibid., p.234 – 235.
99
no entanto, se gera no próprio processo do conhecimento empírico que se produz através
dos modos fundamentais do ser do estar-aí que emergem no ‘mundo’”
291
.
Isso remete à idéia da superação da filosofia da subjetividade, como se em
Kant. Em Gadamer, não é a eliminação da razão objetificadora, mas é o pensar a
subjetividade, a partir de onde pensamos a tradição
292
. O homem se encontra desde
sempre inserido na tradição. Então é preciso dizer que toda compreensão é marcada por
“pré-conceitos”, juízos prévios, que se gestaram na tradição. Seria dizer que aqui está a
superação da filosofia da subjetividade
293
. A subjetividade não é a ponte a partir de onde o
sentido se gera, mas o sentido se revela na subjetividade, se gera na história, se transmite
de geração em geração, de modo que eu posso dizer que os “pré-conceitos” se gestaram na
tradição
294
, são condições transcendentais de minha compreensão
295
.
Mesmo o historicismo, quando advoga o ideal de um conhecimento pleno dos
acontecimentos históricos, está no fundo repetindo a filosofia da subjetividade da
modernidade. Trata-se, agora, de mostrar que há uma realidade a qual não se deixa
absorver pela reflexão. O sujeito desde sempre se experimenta no seio de um mundo do
sentido, sem, no entanto, poder determiná-lo à base de sua subjetividade.
Portanto, o sujeito não consegue dominar o movimento da reflexão, ele não
pode simplesmente tornar-se objeto da sua reflexão. Antes pelo contrário, ele é mais
conduzido ou carregado pelo movimento que antecede a sua reflexão do que aquele que
conduz. Evidencia-se, pois, a existência de um momento pré-reflexivo que é condição de
possibilidade para a reflexão a qual se inicia num segundo momento. Há um espaço
291
STEIN, Seis estudos sobre "Ser e Tempo", p. 78.
292
Para Gadamer, “a razão existe como real e histórica, isto é, a razão não é dona de si mesma, senão que
está sempre referida ao dado no qual se exerce” (Gadamer, 1996, p. 343).
293
Segundo Manfredo A. de Oliveira, “isto significa a superação da postura da filosofia transcendental no
sentido de que a subjetividade perde a primazia, como instância doadora de sentido a tudo, e a história
emerge como a dimensão mais profunda de possibilitação da própria subjetividade. Aqui, convergem, numa
mesma convicção de fundo, por um lado, a dialética através da ‘superação’ hegeliana da filosofia da
subjetividade e, por outro lado, a hermenêutica, precedida que foi pela fenomenologia do ‘mundo da vida’ na
obra tardia de E. Husserl, e, sobretudo, pela filosofia da ‘ex-istência’ de M. Heidegger. Em ambas as
tradições, se trata de uma superação da filosofia da subjetividade na direção de uma reviravolta
historiocêntrica do pensar, embora a concepção desta reviravolta seja distinta em cada uma destas tradições
de pensamento. ( Oliveira, 1997, p. 28).
294
O sujeito do conhecimento, como vimos, é sempre inserido num mundo determinado, numa tradição
histórica determinada, que constitui um todo de sentido, a partir do qual se sempre, implicitamente, seu
conhecimento e sua ação no mundo.
295
Ver a compreensão que Gadamer tem da tradição, Verdad y todo, p. 348 351, principalmente com
relação à produtividade hermenêutica no comportamento histórico.
100
próprio, que exige, por parte do sujeito, que ela esteja disposta a entrar nesse jogo, sem, no
entanto, permitir que ela o determine.
Aproximamo-nos da idéia de uma espécie de autopoêsis, que não pode ser
determinada pela razão impositiva. Não se trata de algo, frente ao qual a subjetividade cale,
mas ela, ao perguntar pelo ser, torna-se um ente que pergunta por outros entes. Porém, ao
perguntar, sabe que “o sentido do ser jamais pode ser contraposto ao ente ou ao ser
enquanto fundamento de sustentação de um ente, porque o fundamento só é acessível como
sentido, mesmo que, em si mesmo, seja o abismo de uma falta de sentido”
296
.
Heidegger sabe de seu caráter de finitude; no entanto, ocupa-se do ser enquanto
ser, que faz possível os existenciais
297
. algo que se revela, estando o sujeito
impossibilitado de apreender a totalidade do que lhe é revelado. Entretanto, parece que
quase como que uma reflexividade ontológica, pois o sujeito não pode simplesmente
tornar-se objeto de sua reflexão. Parece que antes é remetido a um nível pré-reflexivo, o
que não significa a ausência total de presença de possibilidade de compreensão.
4.3 Linguagem como revelação do sentido dos entes
Heidegger não se coloca, nem do lado de um metodologismo, nem de um
fundamentacionismo. Entre Heidegger e Gadamer certa proximidade; aliás, podemos
dizer que Gadamer é impensável sem Heidegger. A tese fundamental está no fato de todo
intérprete estar envolvido na interpretação. Entretanto, o Dasein é constituído de
comportamentos ontológicos, de modo que não é possível pensar algo antes. A realidade é
depois do Dasein. Aqui entra a característica do cuidado como o já-sempre-no-mundo
298
.
Não existe nada, a não ser via interpretação. porque interpretamos as coisas passam a
“ex-istir”. Isso remete ao aspecto ontológico.
As modificações da temporalidade é que possibilitam o Dasein. Possibilidade
não é o que vem, mas o que é, é o Dasein. “A experiência do ser-no-tempo das
296
Heidegger, op. cit., p. 209.
297
Cf. ibid., p. 204.
298
Cf. ibid., § 41.
101
representações coloca, de modo igualmente originário, algo que se transforma ‘em mim’ e
algo que permanece ‘fora de mim’”
299
. Acima da realidade está a possibilidade; o sentido
está, pois, ligado ao poder-ser, portanto, é possibilidade.
Então a linguagem, para Heidegger, não é simplesmente um objeto presente,
que está diante de nós, mas todo pensar se faz linguagem. Quer dizer, a linguagem é
mediação de meu acesso ao mundo. Todo pensar se faz numa abertura. Uma abertura de
sentido que se articula lingüisticamente. Um espaço lingüisticamente mediado, no qual se
abre para nós a experiência de mundo das coisas.
Ricoeur, nesse sentido, coloca bem a questão, ao considerar pressuposto o
fato de que nunca se começa de zero, isto é, desprovido de ‘pré-juízos”. Entra-se na
conversa, a partir de uma determinada cultura. Nós damos uma pequena contribuição, que,
depois, por assim dizer, sai pela porta dos fundos, e a conversa continua
300
. Entretanto, é
condição que se esteja dentro da conversa, para saber do que se está tratando. Para
compreender, portanto, exige-se como condição o estar ligado à linguagem, estar ‘por
dentro”, conforme Heidegger o demonstra:
Na medida em que a proposição (o juízo) se funda na compreensão,
representando uma forma derivada de exercício de interpretação, ela também
‘possui’ um sentido. O sentido, porém, não pode ser definido como algo que
ocorre em um juízo ao lado e ao longo do ato de julgar
301
.
É importante perceber que Heidegger salienta que o “como” não ocorre pela
primeira vez na proposição. Nela, ele apenas se pronuncia, o que, no entanto, é possível
pelo fato de já se oferecer para ser pronunciado.
Linguagem é, portanto, um espaço de revelação das coisas, porque nela se diz
o sentido a partir de onde eu posso perceber o sentido das coisas. Então linguagem é, em
primeiro lugar, um dizer do ser, com sentido. Linguagem é, para Heidegger, não em
primeiro lugar representação, proposição. Não é que ele negue isso, mas, na proporção
análoga a Wittgenstein, Heidegger vai dizer que a proposição não é a proposição
originária. Há uma dimensão anterior à própria proposição que torna a proposição possível,
e essa dimensão anterior à proposição é a doação do ser, a doação do sentido
302
.
299
Ibid., p. 270.
300
Cf. Ricoeur, 1991, p. 55 - 72.
301
Heidegger, Ser e Tempo, p. 211.
302
Cf. ibid, p. 227.
102
Na linguagem, por assim dizer, se dá a revelação do “centro” para nós, porque
a linguagem, em última instância, é desvelamento do ser. Nela o sentido radical se desvela.
Porque se desvela, ele desvela também o sentido dos entes. Quer dizer que a linguagem
aponta para o ser que aponta para os entes. Dito de outro modo:
A linguagem do homem pode falar dos entes, mas não do ser. Por isso, a
revelação do ser não pode ser obra de um ente, ainda que privilegiado como o
ser-aí, mas pode se dar através da iniciativa do próprio ser. (...) O homem não
pode desvelar o sentido do ser. Ele deve ser o pastor do ser e não o senhor do
ente
303
.
A linguagem não é simplesmente informação, na maneira de manipular os
objetos, mas ela é revelação do sentido dos entes, porque nela ocorre o acontecimento do
ser. Nela ocorre o evento da revelação dos sentidos. E, a partir desse sentido, os entes se
revelam. E onde isso acontece? Ora, a temporalidade é o sentido do Dasein, o ser do ser
humano é de uma força existencial e não essencial. O cuidado se coloca como o traço
ontológico de todos os entes
304
.
O desvelamento do sentido faz com que o sujeito possa ver com clareza o
objeto. A linguagem é, acima de tudo, possibilidade de desvelamento do sentido que faz
com que eu possa captar o sujeito. Não é que se vai ter acesso à verdade, o que se tem é
apenas a interpretação
305
. É que, em Ser e Tempo, Heidegger vai fazer toda uma análise
do que é o homem como sentido e como a linguagem é elemento central da nova forma de
compreender o homem.
Ele não pretende elaborar uma teoria da metodologia das ciências
hermenêuticas, mas pretende rearticular a ontologia, ou seja, articular uma ontologia
hermenêutica. Nela, a matéria do ser humano não é a essência. A substância do homem é a
existência, ou então, dito de outro modo, está claro, para Heidegger, que a existência
precede a essência, de modo que primeiramente é necessário que eu exista, para depois
construir a minha essência, de modo que me é possibilitado projetar-me, isto é, poder-ser.
A existência é essencialmente transcendência, sendo o homem projeto, e as coisas do
mundo utensílios em função do projetar humano
306
.
303
Reale; Antiseri, op. cit., p. 590.
304
Cf. Heidegger, Ser e Tempo,p. 279.
305
Cf. Coreth, 1973, p. 155.
306
Cf. Reale; Antiseri, op. cit., p. 583 – 584.
103
O ser do Dasein é o cuidado, por isso somos aparentemente realistas, porque
estamos habitual e familiarmente junto das coisas. Heidegger denomina esse modo de ser
da decaída, em função desse ocupar-se sem mediação. Isso é uma tendência, para fugirmos
dos outros dois modos que é o futuro - ser-diante-de-si-mesmo - e o passado - já-ser-no-
mundo. “Entre o passado e o futuro está aquele ocupar-se com as coisas que é o presente.
Essas três determinações do tempo encontram seu significado em seu ser ‘fora de si’: o
futuro é um pretender-se, o presente é estar preso às coisas, e o passado é retornar à
situação de fato para aceitá-la”
307
. Em Filosofia não realismo. O idealismo é a única
possibilidade de uma questão filosófica. “Se o título idealismo significar o mesmo que
compreender a impossibilidade de se esclarecer o ser pelo ente mas que, para todo ente, o
ser é o ‘transcendental’, então é no idealismo que reside a única possibilidade de uma
problemática filosófica”.
308
Todo ente pressupõe como transcendental a compreensão do ser. Ser aqui
entendido como um conceito indefinível, o mais universal, sendo que “a impossibilidade
de se definir o ser não dispensa a questão de seu sentido, ao contrário, justamente por isso
a exige”
309
. Conforme Coreth, o compreender é possível, olhando para a coisa que se
abre e mostra na conversação com o texto metafísico
310
. Parece que aqui é conveniente
falar do papel fundamental que a linguagem exerce nessa tarefa, conforme o visto. É nesse
ponto que Heidegger se torna indispensável para compreender Gadamer. A questão central
gira em torno da descoberta da pré-estrutura da compreensão. Segundo Gadamer,
Heidegger entra na problemática da hermenêutica e críticas históricas com o
fim de desenvolver, a partir delas, desde o ponto de vista ontológico, a pré-
estrutura da compreensão. Nós, pelo contrário, perseguimos a questão de como,
uma vez liberada das inibições ontológicas do conceito científico da verdade, a
hermenêutica pode fazer justiça à historicidade da compreensão
311
.
Porém, antes de chegar ao seu intento, Gadamer sabe o quão importante se faz
situar a problemática, partindo da estrutura circular da compreensão, mais especificamente,
a partir da temporalidade do "estar-aí"
312
. E parte da citação da obra de Heidegger:
O círculo não deve ser rebaixado à condição de um círculo vicioso, e nem sequer
a de um círculo vicioso tolerado. Nele se encerra uma possibilidade positiva do
conhecimento mais originário, possibilidade que, contudo, será assumida de
307
Ibidem, p. 588.
308
Heidegger, op. cit., p. 274.
309
Ibid., p. 29.
310
Cf. CORETH, op. cit., p. 177.
311
Gadamer, 1996, p. 331.
312
Cf. ibid., p. 332.
104
maneira autêntica quando a interpretação tiver compreendido que sua primeira,
constante e última tarefa consiste em não deixar que o acontecer prévio, a
maneira prévia de ver e a maneira de entender prévia lhe sejam dadas por
simples ocorrências e opiniões populares. Mas em assegurar-se o caráter
científico do tema mediante a elaboração dessa estrutura de prioridade a partir
das coisas mesmas
313
.
Para Heidegger, “o ‘círculo’ da compreensão pertence à estrutura do sentido,
cujo fenômeno tem suas raízes na constituição existencial do Dasein, enquanto
compreensão que interpreta. O ente em que está em jogo seu próprio ser como ser-no-
mundo possui uma estrutura de círculo ontológico”
314
.
Podemos perceber, nessas duas citações acima, que o projeto de Ser e Tempo é
explicitar o sentido do ser. Somente se chega ao sentido do ser, mediante o sentido do
Dasein. chega-se ao sentido do Dasein, mediante o sentido do ser. Indo mais adiante,
aos poucos podemos perceber que Gadamer vai, por assim dizer, se distanciando de
Heidegger. Podemos perceber, aqui, que a hermenêutica adquire dois sentidos diferentes.
Para Heidegger, vai consistir na interpretação do meu próprio ser, ao passo que, para
Gadamer, aparece a idéia de que tenho meu “pré”
315
, de modo que consigo entender o
outro, se entro de uma “boa maneira” no círculo. Em Heidegger, não se percebe a presença
do “outro”, o que há é a idéia de abertura do Dasein.
Gadamer buscará muito mais na hermenêutica a perspectiva de “entender aos
outros”, o que em Heidegger não possui essa conotação. Gadamer retoma a hermenêutica e
reintroduz a noção de sujeito. Podemos percebê-lo, por exemplo, quando ele assevera que
“toda a interpretação correta deve proteger-se contra a arbitrariedade das ocorrências e
contra a limitação dos hábitos imperceptíveis do pensar, e orientar a atenção ‘às coisas
mesmas’”
316
. E, logo após, toma o “texto” como o outro em sua exposição, sem, no entanto
perder os fundamentos da teoria heideggeriana, o que percebemos, quando ele afirma que
"aquele que compreende um texto realiza sempre um projetar”
317
. que aqui o texto o
é mais um ente disponível, pois “tão pronto como aparece no texto um primeiro sentido, o
intérprete projeta em seguida um sentido do todo”, e afirma a necessidade de o projeto
313
Heidegger, 1998, p. 176.
314
Cf. Heidegger, 1995, p. 210.
315
O prefixo vor “pré” apresenta certa indeterminação do sentido concreto em que devem tomar-se os
termos “Vorhabe, Vorsicht und Vorgriff, literalmente é ‘o que se tem previamente como dado e projeto, o que
se prevê, e o modo como se projeta encerrar o tema ou os conceitos a partir dos quais se pretende acercar-se a
ele’” (Gadamer, 1996, p. 332).
316
Gadamer, op. cit., p. 333.
317
Ibid.., p. 333.
105
prévio ter que “ir sendo constantemente revisado em base ao que vai resultando conforme
se avança na penetração do sentido”
318
.
O intérprete deve examinar suas opiniões prévias em relação à sua origem e
validez, o que retomaremos adiante. Convém que fique clara essa mudança de perspectiva,
sem a pretensão de encerrarmos a discussão, conforme todo o texto o tenta demonstrar. A
hermenêutica atualmente exerce um papel fundamental para se poder discutir a
possibilidade do ser. Não se trata de um sentido restritivo, mas, como o diria Stein,
um pensador que opera com os instrumentos da hermenêutica diante da
significabilidade universal escondida nos atos e fatos humanos da história,
aprende também a ver a inesgotabilidade da ação da história sobre nós, portanto,
a ver a impossibilidade de tornar transparentes todos os sentidos da tradição
histórica
319
.
Tal inesgotabilidade se fará ainda mais compreendida, na medida em que, mais
adiante, adentrarmos na discussão com Gadamer, especialmente na questão da apropriação
da tradição e suas implicâncias. A arte e a história nos oferecerão condições para entrarmos
em tal perspectiva, na proporção em que abrem o espaço de algo que escapa e não se deixa
dominar pelas vias metodológicas. Permaneçamos ainda com Heidegger que algumas
pistas nessa direção.
4.4 Da linguagem para a compreensão
O desafio que nos colocamos, frente a Heidegger, está em compreender o que
caracteriza a linguagem a partir da subjetividade, frente ao sentido como possibilitador de
compreensão. Num primeiro momento, faz-se necessário refletir, à base de Heidegger, a
necessidade de uma superação da filosofia da subjetividade. Para tanto, iremos nos
concentrar nos parágrafos 31,32,34,43 e 44 de Ser e Tempo. Também serão abordados
diretamente os comentadores Ernildo Stein, Manfredo A. de Oliveira e João A.
MacDowell. Sendo assim, o presente capítulo busca a "pré-compreensão" gadameriana, à
base da qual depois buscaremos abrir a discussão hermenêutica em torno da obra Verdad y
Método.
318
Cf. ibid., p. 333.
319
Stein, 1987, p. 84.
106
Heidegger não é um teórico da ciência do espírito, ele aproxima-se mais da
característica de ontólogo. Vem do neokantismo e da fenomenologia transcendental e ele
sabe que Filosofia é, em última instância, o saber do sentido
320
.
Como ontólogo, Heidegger não poderia deixar de dirigir a pergunta pelo ser.
Por sua vez, o ontológico se dá, pelo assim dizer, no ente intramundano que pergunta.
Portanto, nós temos a condição de possibilidade de enunciar algo sobre os entes, a partir do
ser.
Tal visão deixa claro que, para Heidegger, não existe acesso aos entes, sem
passar pela compreensão do ser. Dito de outro modo, o ente que pergunta sobre algo se
eleva ao ser. Algo, enquanto algo, se dá, num primeiro momento, no nível dos disponíveis.
Nesse sentido, pode-se falar que o Dasein entende os entes como mediação entre os entes e
o ser. O que torna essa situação mais clara é que a caracterização ôntica do Dasein consiste
em que é ontológico.
Segundo o que podemos perceber, Heidegger explicita que o Dasein ocupa um
lugar prévio em relação aos demais entes. Por um lado, percebe-se uma prioridade ôntica,
pois o Dasein está determinado em seu ser pela existência, ao passo que, por outro lado,
surge a prioridade ontológica, que ele mesmo é, por razão da determinabilidade de sua
existência, em nível ontológico. Parece que no fundo, para Heidegger, a ontologia é única e
exclusivamente aquela indagação que se ocupa do ser enquanto ser, porém não como uma
mera entidade formal, nem como uma existência, senão como aquilo que faz possíveis as
existências.
Com relação à estrutura da compreensão, Heidegger vai tomar o sentido como
uma estrutura antecipadora, ao passo que a linguagem entendida, a partir da subjetividade,
aparece como uma obra da própria subjetividade. É, portanto, um produto da própria
subjetividade, para que ela possa se formar e assim manipular o mundo.
320
A esse respeito, MacDowell dirá que “a nova aspiração a deixar os fenômenos anunciarem, por si mesmos,
o seu sentido, entendida radicalmente, implica que a verdade, meta de toda a inquietação filosófica, não
significa senão aquilo que os gregos chamavam de alêtheia, o desocultamento do ente. A íntima conexão
entre a verdade como alêtheia e a idéia de fenomenologia manifesta-se claramente na explicação que
Heidegger do termo na introdução de Sein und Zeit, remontando ao sentido grego de phainómenon e de
lógos (SZ §7). O significado da expressão phainómenon, diz ele, é: o que se mostra a si mesmo por si
mesmo, o manifesto”. (MacDowell, 1993, p. 119).
107
Sujeito, para Heidegger, quer dizer aquele que se relaciona com o mundo como
aquele que manipula o mundo. O pólo sujeito-objeto é inseparável, sendo que o objeto é
aquilo que está diante de, ou então dito de outro modo, “todo sujeito é o que é somente
para um objeto e vice-versa”
321
. É aquilo de que o sujeito pode dispor, aquilo que está à
mão, como um ser simplesmente dado (Vorhandenheit)
322
, aquilo que eu posso pegar.
Para Heidegger, “a circunvisão descobre, isto é, o mundo já compreendido se
interpreta. O que está à mão se ‘explicita’ na visão da compreensão. (...) O que se
interpreta reciprocamente na visão de seu ser-para como tal, ou seja, que se explicita na
compreensão, possui a estrutura de algo como algo”
323
.
Ora, pensar o mundo, a partir da subjetividade, é pensar o mundo como
objetalidade. Nesse caso, mundo é aquilo de que eu posso dispor, sobre o que eu posso
dominar, a que eu posso me impor
324
. O sujeito é sujeito, na medida em que se impõe ao
objeto. Cabe ao sujeito manter uma atitude ativa frente às coisas que são nada mais que
objetos disponíveis. O mundo é composto destes dois elementos: de objetos que estão
disponíveis no mundo. Este é um mundo que já sempre está aí, composto por existenciais e
por instrumentos que são utilizados”
325
. Portanto, que está aí a nosso dispor.
Vista sob a perspectiva da teoria da subjetividade, a linguagem
necessariamente é apenas um instrumento de que o sujeito dispõe para ter as informações
necessárias, a fim de se impor ao objeto. O que nos é revelado na compreensão, chega para
nós como algo enquanto algo. Esse algo enquanto algo se dá, num primeiro momento, no
nível dos entes que estão-aí. Temos uma compreensão de algo que se manifesta enquanto
algo, que passa pela linguagem. A linguagem tem essa tarefa de ser mediadora, para que a
compreensão possa se efetivar. Ao que percebemos, um dos grandes problemas da
linguagem, na modernidade, é que ela passou a ser compreendida como mera informação,
ou seja, ela ficou restrita à informação, mesmo sendo condição de possibilidade de os
homens agirem no mundo.
321
Heidegger, 1995, p. 275.
322
Vorhandenheit é um substantivo formado do substantivo Hand’ (= mão) e da preposição vor’ (=diante
de, no sentido espacial, e antes de, no sentido temporal). Designa o modo de ser da coisa enquanto o que se
simplesmente antes e diante de qualquer especificação” (Heidegger, op. cit., Notas Explicativas, p. 311
312).
323
Ibid.., p. 205.
324
Cf. Reale; Antiseri, 1991, p. 584.
325
Stein, 1997, p. 109.
108
Em Heidegger, a própria linguagem é instância fundadora de sentido. Nesse
sentido, podemos dizer que, na modernidade, a experiência fundamental do sentido do ser
é objeto. Objeto é o sentido que o ser tem para o homem moderno; ele aparece como um
disponível, aquilo de que se pode dispor, aquilo a que eu posso me impor, ou seja, o real é
o manipulável, é o dominável, aquilo que pode pôr-se à disposição do homem.
Nesse sentido, Heidegger dirá que "a verdade (descoberta) deve sempre ser
arrancada primeiramente dos entes. O ente é retirado do velamento"
326
. Parece que não se
ignora aqui o caráter ontológico de Heidegger, pois trata-se de um ente que, por sua vez,
pergunta pelo ser. Pode-se dizer, aqui, que algo enquanto algo se num primeiro
momento, no nível dos entes disponíveis.
Nesse contexto, a linguagem é simplesmente vista como informação, ou seja,
um meio através do qual o homem tem os conhecimentos necessários para impor-se ao
real. Essa é a concepção hoje universalmente vigente e, na ótica de Heidegger, é uma
forma de manifestação da verdade. Veja-se bem, uma forma, portanto, não é a forma.
Nessa linha de raciocínio, segundo MacDowell, "o compreender humano não é
absoluto; ao mesmo tempo que manifesta, ele oculta também o ente. Heidegger introduz
aqui o elemento da finitude histórica do compreender, negligenciado por Husserl"
327
.
Admitindo, que algo enquanto algo se revela na compreensão, percebemos claramente o
limite de sua finitude. Logo, jamais é possível a compreensão em sua totalidade.
Todo esforço de Heidegger vai consistir em demonstrar que essa não é a forma
originária de manifestação, nem do homem, nem do mundo, nem da linguagem
328
. Não é
que Heidegger negue a importância da modernidade como tal, o problema é a
absolutização de uma forma da verdade, que não é a mais originária. Isso se torna um dos
problemas centrais para Heidegger, uma vez que, na perspectiva objetificadora, o real cada
vez mais reduz-se, em última instância, ao manipulável. Dito de outra forma, "como
outrora, o problema central para ele é o da verdade do ser, estanão é entendida, todavia,
326
Heidegger, op. cit., p. 291.
327
MacDowell, op. cit., p. 122.
328
A esse respeito, ver Apel, K.-O. La Transformación de la Filosofía - Tomo I, p. 283, onde discute sobre a
intenção heideggeriana de, em certo modo, "superar" a redução moderna da pergunta pelo ser, mediante a
pergunta pela linguagem.
109
como o valor do conhecimento do ser, mas sim como o sentido da compreensão do ser"
329
.
Poderíamos aqui nos perguntar: como se dá essa "verdade do ser"?
Não é que não haja a experiência da manipulabilidade, a questão é saber se
essa é a experiência fundante e originária da vida humana. "O autor move-se neste mundo,
mundo da compreensão, da compreensão do sentido, mundo hermenêutico, definitivamente
cortado para a Filosofia, da totalidade metafísica, onto-teo-lógica, critológica e natural. A
posição filosófica se sobre um plano em que apenas o homem"
330
. É nesse sentido
que, para Heidegger, a linguagem hoje virou informação, sendo que cada vez mais vemos
as abreviações. Linguagem virou um meio, a mediação necessária da manipulação do
mundo.
Ora, sendo que "o ser recebe o sentido da realidade"
331
, o ser do homem hoje,
na linha de raciocínio de Heidegger, determina-se a partir da máquina. A máquina é a
expressão do que é o ser humano como sujeito. O problema da nossa época não é ter
entendido a linguagem como informação, é ter reduzido linguagem a informação. E as
conseqüências desse processo podem tranqüilamente ser percebidas. Basta ver a
quantidade de reprodução do saber que se oferece via os mais diversificados meios de
informação
332
. O mundo contemporâneo absolutizou a dimensão instrumental da
linguagem. Linguagem se reduz a puro instrumento, em poder do qual se tenta encontrar
com os outros e com o mundo. No entanto, a linguagem deveria ser entendida como
mediação necessária de nosso acesso ao real
333
.
329
MacDowell, op. cit., p. 180.
330
Stein, op. cit., p. 22.
331
Heidegger, op. cit., p. 267.
332
Entenda-se aqui a reprodução do saber enquanto meras cópias, ou seja, meras repetições feitas de uma
maneira diferente, não raro, com criatividade. Isso se manifesta, sobretudo, em mecanismos que se criam
com a preocupação voltada, acima de tudo, a atender a um mercado consumista. Exemplificando, isso pode
ser percebido na ilusão que se criou em relação ao uso do computador nas escolas. Na verdade, tal máquina,
enquanto acesso a textos, não oferece nada mais do que é oferecido em livros. Ela o faz, isso sim, de um
modo mais atraente. No entanto, cria uma falsa concepção (impressão), ao mostrar mecanismos que
possibilitam ao usuário ouvir mensagens, que no fundo não passam de reprodução das obras ali concentradas,
criando uma falsa impressão de que é a máquina que está manifestando ou que ela é a "reveladora" . O que
acontece, no fundo, é quase que uma inversão e desapropriação do texto mesmo, passando o computador a
ocupar o lugar que lhe pertence por excelência.
333
Segundo Manfredo A. de Oliveira, “as filosofias da consciência na modernidade foram, assim, como Hegel
viu muito bem, filosofias da subjetividade, mas não filosofias da sociabilidade, da práxis comunicativa, como
dizemos nós hoje. Substituir o paradigma da 'consciência' pelo paradigma da ‘linguagem’, para pensar o
conhecimento significa passar da subjetividade para a sociabilidade. Nisso uma coincidência de fundo
entre hermenêutica e a filosofia analítica, a partir do segundo Wittgenstein. É a partir daqui que se deve
entender a ‘reviravolta lingüística’ da filosofia transcendental como a articulou K. O. APEL, em seu livro
Transformation der Philosophie, vol. 2, Frankfurt am Main:1976. A linguagem deixa de ser um 'instrumento'
110
O ideal, ao que podemos perceber, é tornar esse instrumento o menos
complicado possível. Por isso, vai-se buscar falar a língua mais simples possível. Isso
porque é uma linguagem extremamente instrumental. Leibniz traz a idéia de que
deveríamos ter um instrumento extremamente imune de defeitos com o qual eu possa, em
dois segundos, ter uma vasta teoria em nossa disposição. Extremamente simples e ao
mesmo tempo rigoroso, com o qual se logre fazer um discernimento de todas as
linguagens. O menos complicado possível e extrema facilidade na utilização.
No entanto, por mais que se queira manipular a linguagem e reduzi-la ao
caráter instrumental, para Heidegger é impossível à razão absolutizadora conseguir
determiná-la. Para ele, é claro que, “como pronunciamento, a linguagem guarda em si uma
interpretação da compreensão do ‘Dasein’”
334
.
Ao longo de sua reflexão, Heidegger expõe a importância do escutar,
salientando que "a escuta é constitutiva do discurso"
335
. Talvez aqui repouse um dos
grandes problemas de nossa época, pois o ritmo que o mundo urbanizado impõe aos
indivíduos, bem como a disputa pelo espaço físico, de trabalho, e assim por diante,
parecem criar um espaço desfavorável para que o ente concreto, ou autêntico, possa ir além
do senso comum.
Nesse meio, como não poderia deixar de ser, não raro o indivíduo foge de si
mesmo, por desconhecer-se a si mesmo. O existir autêntico, ou, talvez, do ponto de vista
heideggeriano, o desocultamento da constituição do ser da existência, através do
"descobrimento" da finitude da existência, exige a escuta e o silêncio enquanto
pertencentes à linguagem discursiva como possibilidades intrínsecas
336
. Isso tudo remete à
consciência de um ente que se reconhece finito, ôntico.
Falar muito não assegura em nada uma compreensão maior. Conforme o
veremos adiante, "discurso e escuta se fundam na compreensão. A compreensão não se
secundário para comunicação aos outros daquilo que fora antes conhecido sem ela para emergir como a
mediação necessária de nosso acesso ao real. Ela é, assim, condição de possibilidade e de validade da
compreensão e, com isso, de nosso pensamento conceitual, do conhecimento objetivo e de nossa ação
portadora de sentido” (Oliveira, 1997, p. 19).
334
HEIDEGGER, M. , Ser e Tempo, p. 227.
335
Ibid., p. 222.
336
Cf. ibid.., p. 220.
111
origina de muitos discursos, nem de muito ouvir por aí. Somente quem compreendeu é
que poderá escutar"
337
.
4.5 Linguagem no contexto da modernidade
Tudo o que foi visto anteriormente aponta para um problema muito sério, o de
massificação do ser. O homem vai, por assim dizer, sendo vítima de suas próprias fiações.
O conteúdo mais profundo e a significação das coisas da vida humana começam a se
ausentar. Então o que acontece? O homem inautêntico. Não tem mais acesso à
profundidade de sua vida, de seu ser
338
.
A linguagem tornou-se um fenômeno de superfície
339
. Por isso, certas
linguagens na vida humana, que para Heidegger aparecem muito estranhamente. Uma vez
ou outra, ele fala na linguagem da religião que não tem mais ideal. As coisas ficaram
alheias à vida, houve um desengate entre o sentido mais profundo da vida com a própria
vivência.
Porém, ao que parece, Heidegger busca recuperar o sentido mais profundo,
sobretudo na linguagem da poesia onde tudo fala de uma mesma totalidade que é o ser.
Todos os poemas falam de um único poema. O ser é o todo do poema, ao passo que o
poema é feito do todo. "A comunicação das possibilidades existenciais da disposição, ou
seja, da abertura da existência, pode-se tornar a meta explícita do discurso 'poético' "
340
.
E é aí que ele vê a possibilidade de emergir uma outra configuração do que seja
a linguagem e uma outra experiência de vida, seja do sentido do mundo, seja do sentido da
vida humana. Uma outra compreensão do que seja o ser humano.
Não é que Heidegger queira eliminar a técnica, a ciência moderna. Parece que,
muito antes, o que ele quer liga-se mais à questão de que a poesia seja um complemento
necessário e indispensável, para poder salvar o homem de sua existência inautêntica, num
337
Ibid.., p. 223.
338
Cf. Reale; Antiseri, op. cit., p. 585.
339
uma forte tendência para tornar tudo muito superficial, de modo a conter o máximo no mínimo
possível. No entanto, não praticamente a preocupação com o sentido mais profundo do termo ou conceito
empregado, apenas sua utilidade enquanto instrumento necessário.
340
Heidegger, Ser e Tempo, p. 221.
112
mundo em que se perdeu o sentido profundo da existência. Isso por causa da absolutização
de uma das dimensões da existência.
Então a linguagem na poesia, que parece, ao uso da informação da linguagem
precisa, ser vaga, ambígua, confusa. É ela que guarda a vinculação com a vida e faz
emergir o sentido da vida, onde "o discurso é a articulação em significações da
compreensibilidade inserida na disposição do ser-no-mundo"
341
.
Surge, nesse contexto, como exigência fundamental do nosso tempo, a
formalização da linguagem. Uma linguagem o-formalizável é considerada invisível.
Aquilo que não é formalizável não é visível; por isso, ao ver de Heidegger, o ideal do
mundo contemporâneo é o cálculo. A linguagem-cálculo é vista como perfeita, sem
problemas de equivocidade.
Para Heidegger, a formalização da linguagem é apenas uma das revelações
possíveis da linguagem. É a linguagem vinculada à subjetividade. A grande questão da
filosofia é, segundo Heidegger, superar a teoria da subjetividade e, conseqüentemente, essa
maneira de entender o mundo. Para a modernidade, a linguagem é obra da subjetividade,
ao passo que Heidegger "pretende encontrar a perspectiva geral dentro da qual o ser do
ente pode manifestar-se na sua plena verdade"
342
.
Permanece em aberto a questão se o caráter instrumental da linguagem dá
conta daquilo que, em última instância, é a linguagem. Não é exatamente essa consideração
da linguagem humana que nos leva a compreender que o grande problema da filosofia
contemporânea é a superação do paradigma da subjetividade? Não seria esse o problema
fundamental de nossa época? Superar a filosofia da subjetividade e tornar possível no
mundo o sujeito, o objeto, o homem, o mundo, tudo isso não teria que mudar, se nós
pensássemos a partir de um outro modo? Estamos, pois, frente a uma questão
paradigmática.
Contemporaneamente quase ninguém mais fala do universal na filosofia. Falar
sobre como se atinge o universal na Filosofia é uma coisa que vinha compulsoriamente,
principalmente da Idade Média. Faz-se, sim, uma espécie de triagem básica. "Vamos da
341
Ibid., p. 221.
342
MacDowell, op. cit., p. 124.
113
representação às coisas mesmas; às coisas mesmas que se dão como 'mundo' no horizonte
do sentido constituído pela compreensão"
343
.
Pelo que vimos acima, todo o esforço de Heidegger vai na direção de fazer
surgir um novo modo de compreensão, e nisso ele busca dar um passo para trás, não no
sentido de recuar, mas no sentido de descer para trás da subjetividade. vamos
compreender que a subjetividade não se entende a partir de si mesma, ela é, por assim
dizer, carregada por um sentido que é anterior. Parece que Heidegger como que passa por
dentro da própria subjetividade, indo mais a fundo, quase que descendo para trás dela
mesma. "O que se abre na compreensão, o compreendido, é sempre de tal modo acessível
que pode explicitar-se em si mesmo 'como isto ou aquilo'".
344
Portanto, o sujeito não
consegue entender plenamente a si mesmo, pois, para Heidegger, a própria interpretação
está fundada numa "concepção prévia"
345
.
Sendo que todo sentido se articula pela mediação da linguagem, ela torna-se
mediação intranscendível de todo e qualquer sentido, mas não é a doadora do sentido. A
hermenêutica traz a descoberta de que a constituição do sentido é histórica. O sentido se
gesta intersubjetivamente, de geração em geração, sendo que o lugar onde é gerado é na
história, na apropriação da tradição, mais especificamente.
Falar da linguagem significa, portanto, falar dos fundamentos. Ela emerge
como a forma mesma de fazer filosofia primeira. Convém destacar que Heidegger e
Gadamer opõem-se radicalmente ao modelo da subjetividade. Nesse sentido, a
hermenêutica iinvestir na necessidade de retirar o domínio do sujeito em sua situação
frente ao mundo. Dessa forma, a linguagem não pode ser dominada por aquele que se
movimenta desde sempre dentro dela. O homem não é mais o dono, no sentido de
determinador da linguagem.
A linguagem é mediação de acesso ao real. Aplicando-se isso à atualidade,
significa dizer que, no século XX, se um deslocamento da reflexão transcendental. Ao
invés de perguntarmos pelas condições transcendentais na consciência, agora nos
perguntamos sobre as condições de possibilidade do conhecimento inter-subjetivo.
343
Stein, 1988, p. 24.
344
Heidegger, op. cit., p. 205.
345
Cf. Ibid., p. 207.
114
Stein, a esse respeito, referindo-se aos elementos novos, diz :
Em lugar da consciência, põe-se uma hermenêutica do ser-aí; em
lugar da transparência, põe-se a inelutabilidade do ser histórico, do
dado; em lugar da teoria pura da tradição, introduz-se a descoberta
da idéia da compreensão do ser-no-mundo, já sempre jogado no
mundo e historicamente determinado; em lugar do ideal do
pensamento puro da teoria tradicional, a idéia de uma práxis que
antecipa toda divisão entre teoria e práxis e faz do conhecimento
um modo derivado da constituição ontológica do ser-aí; enfim, o
górdio da teoria tradicional do conhecimento é cortado com a
eliminação da idéia de uma justificação ontológica possível
346
.
Poderíamos falar numa possível superação da filosofia da subjetividade, onde o
sujeito, num primeiro momento, parece desaparecer. Um caso extremo do nosso século são
o estruturalismo e as teorias do sistema. Não entraremos nessa temática, apenas ficam aqui
registradas.
Para além da problemática da linguagem, entra de cheio na filosofia de hoje o
problema do sujeito. Em Heidegger, na verdade ele nunca desaparece, mas ocupa um lugar
diferenciado. Com a superação da teoria da subjetividade em Heidegger não desaparece a
subjetividade, ela é deslocada. Ao invés de a subjetividade ser o centro criador do sentido
de tudo, agora é o ser que sentido à subjetividade
347
. A subjetividade é Dasein
348
. Aqui
o específico do sujeito é re-velar, a-colher. Por isso, Heidegger vai dizer que a linguagem
do homem, enquanto ser da linguagem, é "a casa do ser". "Pastor do ser"
349
. Quer dizer, é a
esfera, é a instância onde o sentido se re-vela, se re-trata. O sentido se no Dasein, mas
este não constitui o sentido. O "nós" cotidiano sustenta a consciência enquanto sentido.
Heidegger tem claro que “o ente se abre em sua possibilidade”. Para ele,
“sentido é aquilo em que se sustenta a compreensibilidade de alguma coisa”. Ou então,
“aquilo que pode articular-se na abertura da compreensão”
350
. Conforme vimos
anteriormente, sempre é um ente que pode descobrir e preencher a abertura do ser-no-
346
Stein, op. cit., p. 28.
347
“Qualquer ontologia, mesmo se de caráter existencial, es comprometida com o ponto de partida da
subjetividade. O sentido de ser não é condicionado pela compreensão de ser. Pelo contrário, é o ser que
determina o destino do pensar humano” (MacDowell, op.cit., p. 199).
348
Ver a esse respeito Stein, Seis estudos sobre "Ser e Tempo", p. 24 – 26. O termo Dasein permanece aqui no
alemão, sobretudo devido à dificuldade em se encontrar alguma palavra que possa expressar seu sentido em
português. Optamos por deixá-lo no alemão, a fim de evitar possíveis equívocos, porém não deve ser
entendida como sinônimo de existência. Talvez um sentido mais aproximado seria o "ser-aí", ou então "estar-
aí". Entretanto, dever-se-ia entender "Sein", não de modo passivo, mas ativo, a saber, é um que não está
simplesmente jogado, mas que "é-aí-sendo", dizendo-o de modo exagerado.
349
Cf. Reale; Antiseri. op. cit., p.590.
350
Cf. Heidegger, op. cit., p. 208.
115
mundo. Sendo assim, “sentido é a perspectiva em função da qual se estrutura o projeto pela
posição prévia, visão prévia e concepção prévia. É a partir dela que algo se torna
compreensível como algo”
351
.
O sentido é um existencial do Dasein e não uma propriedade colada sobre o
ente, de modo que “somente o Dasein pode ser com sentido ou sem sentido. Isso significa:
o seu próprio ser e o ente que se lhe abre podem ser apropriados na compreensão ou
recusados na incompreensão”
352
. A experiência do sujeito é a de não poder determinar o
espaço dentro do qual sua compreensão se dá. Agora como que o procedimento
hermenêutico se estabelece, enquanto procedimento interativo entre o intérprete e seu
objeto. Em outras palavras, numa perspectiva heideggeriana, pode-se dizer que se
estabelece uma estrutura que qualifica a hermenêutica como um modo de ser, um modo de
se encontrar. Isso à base de uma visão prévia, de nossa pré-compreensão, a partir de onde o
sentido se estrutura em nós. Disso podemos deduzir que, quanto mais o ente se conhece,
maior a possibiliade de uma melhor compreensão ou, conforme Heidegger, “a
compreensão enquanto abertura do ‘Da’ sempre diz respeito a todo o ser-no-mundo. Em
toda compreensão de mundo, a existência também está compreendida e vice-versa”
353
.
Nesse sentido, o sujeito coloca-se frente ao objeto, não como tabula rasa,
porém, também não como aquele que detém o poder de determinar nele o compreensível.
A relação aproxima-se muito mais da alteridade do que de dominação e subordinação.
Nesse aspecto, Gadamer vai além de Heidegger, ao demonstrar que, no caso da
interpretação de um texto, não podemos ignorar que a compreensão não é livre de
pressupostos. É justamente nesse aspecto da abertura à alteridade do próprio texto, à
opinião do outro ou à do texto e “deixar-se dizer algo por ele”,
354
o que não está presente
em Heidegger, que Gadamer vai além. No próximo capítulo, essas questões ficarão ainda
mais bem discutidas, quando veremos como se a transição de Heidegger a Gadamer, ao
tentarmos explicitar elementos heideggerianos incorporados por Gadamer e o gradativo
distanciamento gadameriano.
351
Ibid., p. 208.
352
Cf. ibid.., p. 208.
353
Ibid.., p. 209.
354
Cf. Gadamer, op. cit., p. 335.
116
5 DE HEIDEGGER A GADAMER: A PASSAGEM
5.1 A proposta gadameriana de uma hermenêutica filosófica
Gadamer não escreveu uma teoria das ciências hermenêuticas; porém, nele se
resgata uma hermenêutica filosófica. Chama a atenção para uma esfera que está além, de
modo que o que ele pretende fazer é muito antes uma ontologia hermenêutica. Diante dessa
pretensão, a questão central permanece sendo o modo como se o conhecimento no
mundo. Ele sabe muito bem que pressupostos na compreensão que o muito mais do
que dados objetivos, que podem ser buscados pelas ciências objetificadoras.
Gadamer conhece a fundo o pensamento de Schleiermacher e Dilthey, período em
que a hermenêutica assume fortemente uma tendência ao método transcendental, numa
tentativa de expor as condições transcendentais possibilitadoras do conhecimento. Em
Heidegger e Gadamer, a hermenêutica investe na necessidade de retirar o domínio do
sujeito frente à sua situação no mundo
355
. Além disso, Droysen e Dilthey tentam construir
uma crítica da razão, crítica essa feita à base de uma razão histórica, ponto que merecerá
atenção especial a seguir.
5.1.1 Aspectos centrais de Gadamer influenciados por Heidegger
A filosofia alemã do início do século XX é profundamente marcada pela mudança
paradigmática possível, graças às contribuições de Heidegger e Gadamer. A questão do
método enquanto procedimento lógico-analítico, para se chegar à verdade, trazendo
consigo a sensação de segurança, sofre com esses dois geniais pensadores uma inevitável e
355
Trata-se da perspectiva de um sujeito que no uso de suas faculdades cognitivas busca dominar o mundo e
adaptá-lo às suas necessidades numa relação objetificadora, onde o objeto é tido muito antes como ameaça e
resistência ao domínio do sujeito que busca subjugá-lo à razão, conforme vimos anteriormente.
117
insuperável crise. “A idéia de método tem um sentido diferente, quando se fala em
hermenêutica: não é um procedimento e não se pode dizer que o seja, porque um problema
sério é o da não-separação entre sujeito e objeto”
356
. A obra de Gadamer, Verdade e
Método, em suas três partes, tenta mostrar verdades não-produzidas pelo método lógico-
analítico, que existem no nível da experiência da arte, do conhecimento histórico e da
linguagem
357
. Sem assumir a pretensão de ser a verdade absoluta, porém também não
permanecendo como verdade meramente empírica, a hermenêutica se aproxima das duas e
faz emergir, a partir do discurso e da linguagem, perpassada pelo potencial que antecede à
subjetividade em seu mundo vivido, um novo modo de se relacionar com a verdade
enquanto acontecer no mundo. Stein o expõe com maestria:
O fato de, ao lado da idéia da experiência, o autor usar a expressão acontecer é o
que mais choca a tradição analítica e a análise lógica. Que se possa falar, como
Gadamer diz, do acontecer da verdade, esse é o grande escândalo da
hermenêutica filosófica, quando queremos falar nas ciências humanas, nas
ciências do espírito. Falar de uma verdade que acontece parece sem sentido,
quando no fundo a verdade segundo a tradição analítica é uma propriedade de
proposições que podemos estabelecer através de determinados critérios.
Sobretudo, analisando a correção da estrutura lógica das proposições e
mostrando que elas não apenas fazem sentido, mas são verdadeiras
358
.
De Gadamer não se pode dizer que segue passo a passo Heidegger. Em Heidegger,
a historicidade do ser faz parte de uma meta-estrutura de Ser e tempo. Gadamer não
estipula uma tábua de categorias, o que talvez possibilitou um acesso mais rápido ao
conhecimento da obra. Ele “desenvolve o problema hermenêutico universal, de um lado,
seguindo a crítica que Heidegger faz à filosofia transcendental’ e, de outro lado,
assumindo ‘seu pensamento da viravolta’ (Kehre)”
359
.
Gadamer tem de Heidegger a questão da virada ontológica da hermenêutica.
Verdade e Método é uma obra de ontologia indireta. Por isso, “num segundo aspecto,
Gadamer reconhece a investigação que visa buscar a matriz de sua hermenêutica, como
inversa ao interesse de Heidegger. A problemática da hermenêutica é abordada “com
intenção ontológica, a pré-estrutura do compreender.
360
Ele envolve a subjetividade,
356
Stein, 1996, p. 24.
357
Cf. Stein, 1996, p. 44.
358
Stein, 1996, p. 71.
359
Stein, 2002, p. 29.
360
Ibidem, p. 29.
118
porém enquanto acontecer. um acontecer na hermenêutica que é maior do que o que eu
exponho, dentro do qual está o elemento da faticidade
361
.
Gadamer segue Heidegger porque lhe parece mais sensato substituir a
investigação transcendental de Husserl pela hermenêutica da faticidade, onde se
afirma a indepassabilidade de todo o livre relacionar-se com seu ser, isto é, da
reflexão, podemos nós acrescentar. Nesse sentido, a faticidade como estrutura
existencial do Dasein’, raciocina Gadamer, ‘deve encontrar sua marca na
compreensão da tradição histórica...’, sendo que a consciência histórica efetual
será como que o contraponto da situação hermenêutica, isto é, não situação
hermenêutica se não existir uma consciência histórica efetual, isto é, uma
consciência de que nós somos determinados por fatos históricos
362
.
A questão da tradição histórica torna-se, assim, uma temática central em Gadamer,
que já no início assume explicitamente em Verdade e método suas raízes heideggerianas.
Isso aparece já no Prefácio à segunda edição, onde se lê:
Gostaria de denominá-lo o problema da imanência fenomenológica. É verdade,
meu livro situa-se em chão fenomenológico. Talvez soe paradoxal que
justamente esteja na base do desenvolvimento do problema hermenêutico
universal que eu empreendo, a crítica heideggeriana da postura transcendental e
seu pensamento da “viravolta” (Kehre). Penso, no entanto, que também pode ser
aplicado a princípio do mostrar fenomenológico, a esta mudança (virada) de
Heidegger que propriamente libera o problema fenomenológico para si mesmo.
Por isso mantive o conceito “hermenêutica” do jovem Heidegger, mas não no
sentido de uma doutrina de método, mas como uma teoria da experiência real
que é o próprio pensamento
363
.
O ser-no-mundo em Gadamer é, porém, antes de mais nada, um poder-ser, realizar-
se, efetivar-se. É, antes de mais nada, possibilidade pela auto-compreensibilidade. O ser
para o ser é a base do que está sendo. A compreensibilidade faz com que o ser no
mundo, em Heidegger, assuma-se na sua finitude. Trata-se da compreensão do sentido do
ser, ou então a compreensão do ser enquanto compreensão do que é, porém não do que é
como objeto. O homem se compreende quando compreende o ser, e compreende o ser
quando compreende a si mesmo. Essa circularidade funda uma idéia da ontologia, sendo
que não mais a idéia de um mundo paralelo. Portanto, o fundamento do compreender é
posto no próprio homem. Compreender é uma estrutura do Dasein, que no fundo, em Ser e
tempo, é desenvolvido sempre como um existencial do homem
364
. O que acontece é
sempre um desvelamento de algo que não se deixa revelar totalmente, permanecendo
velado.
361
Stein, 2002, p. 29 – 30.
362
Cf. Stein, 1996, p. 71 – 72.
363
Gadamer, 1996, p. 19.
364
Cf. Stein, 1996, p. 57 – 58.
119
De que o livre relacionar-se com seu ser não consegue chegar atrás da faticidade
desse ser, nisso reside a pointe da hermenêutica da faticidade e sua oposição à
investigação da constituição transcendental da fenomenologia de Husserl.
Indepassável reside antes do Dasein, aquilo que possibilita e limita seu
projetar. Essa estrutura existencial do Dasein deve também encontrar seu
desenvolvimento na compreensão da tradição histórica e assim, seguimos,
primeiramente Heidegger.
365
Compreender é a categoria das categorias, sendo que todas as demais categorias são
co-originárias. Não há uma função original que dá unidade às categorias. O que dá unidade
é uma categoria que é o compreender. Em Heidegger, toda a teoria do conhecimento se
fundamenta numa teoria anterior, não cronologicamente verificável. Em Gadamer, não se
trata mais de resolver o problema do conhecimento. A “coisa” é autocompreensiva e se
compreende historicamente. “Gadamer transfere a indepassabilidade da faticidade para a
‘compreensão da tradição histórica’. Esse passo do filósofo representa uma operação
epistêmica de profundo alcance e é a partir dele que surge a hermenêutica filosófica”
366
. O
que tem sentido é compreensível e é compreendendo-se. O que é compreensivo
compreende-se historicamente.
Heidegger somente se ocupou da problemática da hermenêutica histórica e da
crítica histórica, para, a partir daí, desenvolver com intenção ontológica a pré-
estrutura do compreender. s seguimos, no sentido inverso, os passos da
questão de como a hermenêutica, uma vez liberada dos freios ontológicos do
conceito de objetividade da ciência, pode tornar-se capaz de fazer justiça à
historicidade do compreender
367
.
Desse modo, a historicidade em Gadamer tem um caráter dinâmico, de mobilidade,
de acontecer
368
. A hermenêutica em Heidegger tem uma raiz importante na
autocompreensão. “Gadamer substitui a ontologia da pré-estrutura do compreender, numa
direção inversa’ da hermenêutica de Heidegger, pela ‘historicidade do compreender’”
369
.
O reconhecimento de si mesmo no outro se mediado pela linguagem. No
entanto, é pela experiência que alcançamos a própria lingüisticidade da compreensão. A
linguagem é o meio (centro) da compreensibilidade, sendo que chegamos a ela pela e na
experiência. Segundo Stein,
o conceito central de Verdade e método é a expressão experiência. O problema
da experiência é desenvolvido de várias maneiras, mas sempre dando ao conceito
365
Gadamer, op. cit., p. 330.
366
Stein, 2002, p. 30.
367
Gadamer, op.cit., p. 330.
368
“O acontecer da verdade é um acontecer que não podemos dizer seja um processo antimetódico, mas é um
processo que põe em crítica o método do conhecimento lógico-analítico” (Stein, 1996, p. 72).
369
Stein, 2002, p. 29.
120
de experiência uma amplitude que substitui de certo modo aquilo que no
universo lógico-semântico se chamaria o processo dedutivo
370
.
A experiência não pode ser uma espécie de promovedora. Ela não é pressuposição
para o saber e nem coroamento de plenificação do próprio saber. Se saber na
experiência não o é totalizante como Hegel. A experiência é uma centralidade da própria
compreensão histórica. Não se pode discutir a experiência sem considerar Heidegger.
Experiência em Gadamer sempre se refere ao encontro com o outro. A idéia de Heidegger
é de uma ontologia fundamental do Dasein. Somente pode construir-se pela auto-
referência, ou pelo nível especulativo.
O hermenêutico não é esgotável por aquilo que planejamos para penetração no
texto. Enquanto a hermenêutica do século XIX buscava ser uma doutrina do método do
compreender e do interpretar, a hermenêutica filosófica, a partir do século XX, traz a tarefa
crítica de corrigir um pensamento errado das ciências do espírito sobre si mesmas, a saber,
a verdade da arte, a verdade da história e a verdade da linguagem, não é mediada
metodologicamente. Por isso,
compreender se apresenta não tanto como um agir do intérprete, mas muito mais
como um acontecer no qual estão inseridos o intérprete e o objeto da
interpretação. Também a consciência da história efetual possui uma tarefa crítica.
Compreender não é apenas explicado formalmente a partir da pergunta e da
resposta, mas muito mais na perspectiva de uma distância no tempo como fusão
de horizontes
371
.
A hermenêutica não pretende chegar aos objetos como soma de métodos. A
hermenêutica gadameriana tem o sentido de uma espécie de ontologia fundamental. Nela
vem à tona toda a força da linguagem enquanto condição de possibilidade da revelação do
ser. No auge da perspectiva objetificadora, nossa atividade sobre a linguagem chegou ao
limite de cairmos na linguagem ordinária. Aí nunca recupero o começo dela mesma,
permanecendo na mera instrumentalização da mesma. Recupera-se com a hermenêutica a
idéia da auto-referência, de modo que algo está na própria linguagem, no texto, para o qual
não resolve uma competência instrumental-lingüística. começa Verdade e Método, para
além do que faço. O texto tem uma autoridade sobre mim, à qual não consigo resgatar.
A hermenêutica conduz a quem segue seu paradigma, na condição de ser aquele a
quem acontece algo, e não determina. “Heidegger substitui a reflexão pela interpretação do
sentido do ser do Dasein. Em lugar da questão da validade, é posta a pergunta pelo ser,
370
Stein, 1996, p. 69.
371
Stein, 1996, p. 77.
121
pelo sentido do ser. A elevação da hermenêutica a uma doutrina filosófica fundamental
levou discípulos para além das idéias de Heidegger. Entre eles se situa Gadamer”
372
.
Temos que desconstruir o modelo objetificador, sem entrar em suas armadilhas. A idéia do
objeto é uma representação em que o objeto me aparece como algo sólido que se sustenta
em si e que na linguagem mostra que não é bem assim.
A coisa tem algo de que a linguagem não consegue dar conta em sua totalidade. As
palavras nunca são suficientes para expressar a totalidade da realidade. Na hermenêutica
não categoria prédeterminada que obrigaria aquele, que busca o conhecimento, a seguir
determinado método. Não há a tentativa de colocar os tópicos fundamentais.
5.1.2 Historicização da razão
A hermenêutica se indaga sobre a sua contribuição enquanto filosofia como tal,
considerando que por detrás sempre permanece a questão da finitude. A razão pura de que
tratava Kant
373
, no século XX vai se historicizando e sendo marcada pela busca da verdade
enquanto acontecer, portanto ela sai do contexto de historicismo.
Surge assim o problema da historicização do sentido como um problema
fundamental que a hermenêutica levanta e que permanece como ineliminável. Ela pensa
sobre a constituição do sentido dos objetos (condições de possibilidade dos objetos em
Kant transcendental). Assim sendo, a hermenêutica traz a descoberta de que a constituição
do sentido é histórica e denuncia a insuficiência do acesso à verdade por procedimentos
empíricos
374
. O sentido se gesta inter-subjetivamente de geração em geração, na história
ele é gerado. Daí emerge um sujeito enquanto conceito unitário da pessoa que age ao
mesmo tempo espiritual como corporalmente. Essa teoria, conforme Apel, de uma pessoa
unitária, é fundamental para uma teoria da ação. A hermenêutica é modo de compreender e
não método.
372
Stein, 2002, p. 31.
373
O elemento central da tradição kantiana, a saber, o dualismo é colocado em suspeita. “É por ele que fomos
introduzidos na modernidade numa separação entre consciência e mundo, entre palavra e coisas, entre
linguagem e objeto, entre sentido e percepção. Há, certamente no ponto de partida de Heidegger, no
movimento fenomenológico, uma crença firme de que esse dualismo somente pôde ser instaurado através do
esquecimento do ser, através da introdução de um universo de fundamentação filosófica conduzida apenas
pelo esquema da relação sujeito-objeo” (Stein, 2002, p. 88 – 89).
374
Compreender não é somente compreender objetivamente, às vezes se compreende simplesmente de outro
modo.
122
O ponto central que Gadamer toma de Heidegger é a idéia de que
somos um projeto já projetado, somos um jogo que sempre foi jogado. Assim
se faz uma passagem da situação hermenêutica para o acontece da verdade. [...]
Gadamer tomou do segundo Heidegger, depois de Ser e Tempo, essa idéia de que
nós somos, desde sempre, um jogo jogado e que na hermenêutica nunca
recuperamos tudo.[...] A Gadamer não interessa propriamente, em seu livro,
aquilo que queremos e fazemos, mas aquilo que para além do que queremos e
fazemos nos acontece e que se refere a elementos que em gérmen estavam em
Ser e tempo, mas foram totalmente desenvolvidos depois, em Contribuições
para a filosofia
375
.
O fundamental é que a hermenêutica gadameriana descobriu, não em primeiro
lugar, um novo método de trabalho, mas o acontecer da verdade, “no qual estão inseridos o
intérprete e o objeto da interpretação”
376
, que não se deixam prender em esquemas lógico-
formais
377
.
É nesse contexto que a linguagem torna-se mediação necessária de todo
conhecimento. Em Heidegger, o ser se revela na linguagem. A linguagem passou de uma
concepção meramente instrumental de comunicação para ocupar um status de condição de
possibilidade. Ela é mediação de acesso ao sentido do real. A questão da linguagem é a dos
fundamentos. Ela é a forma mesma de fazer filosofia primeira. A forma moderna de
ontologia é uma reflexão da linguagem sobre si mesma. É uma grandeza transcendental.
Então, sim, existe sentido em dizer que é necessária uma reestruturação da filosofia
transcendental, a partir dos problemas levantados pela hermenêutica filosófica. Significa
dizer que, no século XX, se um deslocamento da reflexão transcendental. Ao invés de
perguntar pelas condições transcendentes na consciência, agora nos perguntamos sobre as
condições de possibilidade do conhecimento inter-subjetivo. Não se deve partir do fato da
consciência, mas trata-se de passar de uma filosofia da consciência para a filosofia da
linguagem, enquanto reflexão da linguagem sobre si mesma.
Filosofia se faz fazendo crítica ao mundo vivido, e a hermenêutica tem uma
função essencial. O mundo vivido tem uma força racional tão grande que ultrapassa a
pretensão do discurso racional.
375
Stein, 1996, p. 64.
376
Ibidem, p. 77.
377
“A interpretação é hermenêutica, é compreensão, portanto, o fato de nós não termos simplesmente o
acesso aos objetos via significado, mas via significado num mundo histórico determinado, numa cultura
determinada, faz com que a estrutura lógica nunca dê conta inteira do conhecimento, de que não podemos dar
conta pela análise lógica de todo o processo do conhecimento. Ao lado da forma lógica dos processos
cognitivos, precisamos colocar a interpretação” (Stein, 1996, p. 18).
123
No conceito de mundo da vida inaugura-se, portanto, a retomada de um universo
de interrogação que continua a velha temática da fundação da tradição, reposta,
no entanto, em nova clave. Não é simplesmente a busca do antepredicativo,
daquilo que é anterior a toda experiência, o ‘logicamente nu’ de Wilhelm Szilasi.
O mundo vivido é constituído a partir do universo da significação, mas já sempre
dado para toda atividade significativa do ser humano. É, de certo modo, a fonte
da significatibilidade possível, já sempre dada e que, contudo, se atualiza sempre
de novo na significação que se constitui
378
.
“Mas o mundo vivido não significa um novo fundamento no sentido clássico. É um
lugar para o qual nos remetemos”
379
. Estamos num horizonte de sentido
intersubjetivamente partilhado, a linguagem ordinária, que Platão denominou dóxa, é
aquilo que é aceito sem crítica. A primeira tarefa consiste em fazer emergir uma instância
crítica do mundo do senso comum. É no próprio mundo vivido que razões
historicamente fundamentadas. A tarefa primordial da razão está, pois, em pôr em
evidência, criticar a dóxa, relativizar todos os conteúdos considerados normais na vida
histórica.
A segunda crítica da razão é a crítica das teorias existentes, quando se deve
perguntar sobre sua validade. É a crítica aos profissionais da razão. A razão tem que ser
conquistada, gestada historicamente. Hermeneuticamente falando, não se trata de uma
transmissão de conhecimentos (ou conteúdos formais) a serem assimilados ou
memorizados por parte de quem deseja conhecer. A crítica se dirige à pretensão moderna
de uma razão capaz de dar conta do saber absoluto enquanto tal
380
.
Pista disso poderia ser buscada na diferença entre a crítica em Platão e na filosofia
transcendental. Para Platão, a verdade estava, de certa maneira, fora do mundo. Porém, na
modernidade, a razão vai fazer uma crítica a si mesma. Em primeiro lugar, consiste em
saber até onde a razão pode ir, os limites intransponíveis da razão. Ela quer refletir a si
mesma. Kant aponta para uma finitude estrutural da razão, uma vez que aponta a limites
intransponíveis.
A grande tarefa da filosofia contemporânea, para Apel, é que filosofia não é
pressuposição de objetos, mas da vida concreta. Refere-se às condições de possibilidade. A
filosofia não trabalha com dedução. Filosofia, contemporaneamente, para Apel, é a que
leva a sério a historicidade, sem cair num historicismo.
378
Stein, 2004, p. 12.
379
Stein, 2004, p. 39.
380
Convém ressaltar e reconhecer os méritos e a importância do conhecimento científico,
contemporaneamente, sobretudo em termos de qualidade de vida e contribuições no aumento da longevidade.
124
A tese básica de onde parte Apel é a própria ciência moderna que trouxe a idéia de
que nossa realidade é fruto da racionalização. A racionalização significou desencantamento
do mundo, resultando que os outros tipos de saber, que não se movem dentro do paradigma
objetificador, foram reduzidos ao mundo subjetivo. O dualismo do esquema sujeito-objeto
nos levou ao solipsismo de um sujeito dominador, que se esqueceu do ser em suas teorias
do conhecimento da filosofia moderna. A hermenêutica filosófica, no entanto, nos devolve
a possibilidade de repensar as condições de possibilidade da compreensão.
O conhecimento das ciências, sob o olhar contemporâneo, é sempre hipotético.
Entretanto, o objeto da filosofia é o não-hipotético, o incondicionado, sendo que dentro
desse contexto a razão não é algo objetificável. A reviravolta lingüística pragmática, no
fundo, vai aprofundar a consciência de Kant. Diante disso, a hermenêutica filosófica surge
com a pretensão inovadora ao demonstrar que a linguagem é mediação universal de acesso
ao mundo. Gadamer o deixa explícito ao final de Verdade e Método, quando descreve, em
refletindo sobre o aspecto universal da hermenêutica: “O ser que pode ser compreendido é
linguagem”
381
. Assim, todo sentido se articula pela mediação da linguagem, sendo que ela
é mediação intranscendível de todo e qualquer sentido.
A hermenêutica argumenta à base da determinação de conceitos, no contexto da
linguagem, no qual estão sendo usados os mesmos. Nenhum dos parceiros do processo
dispõe do potencial pleno (conjunto da linguagem) que o ideal oferece. Desse modo, a
hermenêutica atende a uma dimensão de historicidade da linguagem, à qual os lógicos
analíticos não remetem. A hermenêutica não está interessada no conflito de interpretações,
mas nas condições de possibilidade do acontecer das interpretações. Em Gadamer se
resgata uma hermenêutica filosófica. A linguagem é o lugar onde a existência humana
constitui sua existência. O acontecer do homem se dá na e pela linguagem.
A hermenêutica filosófica proposta por Gadamer não é mera aplicação, ela está
intrinsecamente ligada à alteridade. uma espécie de co-sujeito, isto é, fala-se sobre algo
a alguém, ao mesmo tempo que esse alguém possui a mesma possibilidade de falar.
Estabelece-se, pois, uma condição de igualdade entre o ir e vir da fala, que permanece
enquanto disposição a ambos os parceiros do diálogo que vão se encontrando em torno de
381
Gadamer, 1996, p. 567.
125
“algo”. Portanto, nesse contexto, o “eu” é-com-os-outros num mundo dotado de sentido
382
.
Por isso a hermenêutica talvez é a forma mais radical de corromper um projeto teórico que
joga tudo na perspectiva da objetificação, o que permite a Gadamer escrever:
“Compreender o que alguém disse é r-se de acordo na coisa, não colocar-se no lugar do
outro e reproduzir suas vivências”.
383
Percebe-se que não na hermenêutica uma
separação entre procedimento formal e conteúdo. Ela apenas tematiza o processo de
compreensão, o modo como compreendemos.
A racionalidade na hermenêutica filosófica não é pensada como estrutura imanente
à lógica da natureza, conforme a modernidade o pensa enquanto um lógos “aprisionado”.
um processo onde a linguagem possibilita o aspecto dialógico, o qual, por sua vez,
permite que o acordo possa acontecer. A interpretação se dá na linguagem.
O tema da reflexão é transformado em compreensão na linguagem e nada mais
tem a ver com o todo transcendental do qual Gadamer explicitamente se afasta
e a linguagem torna-se então o horizonte universal e o meio (medium) da
compreensão da própria comunicação. Assim o conceito de reflexão é
‘deslocado’ do ambiente da consciência no sentido clássico. Não se mais na
reflexão a compreensão do saber sobre si mesmo, a compreensão do saber
consigo mesmo. Gadamer diz que a linguagem envolve todo o sabido e todo o
saber como verdadeiro centro (Mitte) do ser humano
384
.
A filosofia tem, em última instância, a estrutura da pergunta e da resposta. Tanto
Apel como Habermas insistem na idéia de que a hermenêutica teria esquecido a questão da
validade, ponto do qual discordamos. O que ambos não concebem é o fato de que a questão
da validade em Gadamer não é tratada dentro do paradigma da modernidade, conforme já o
expusemos anteriormente. Desse modo, fazer uma leitura de Gadamer nos moldes do
paradigma objetificador moderno leva a não compreendê-lo, ocasionando o fechamento do
processo de compreensão.
382
O pensamento da filosofia da consciência do racionalismo a expectativa do espelhamento, processo
reflexivo, expectativa de verdade fixa. Olho o outro com minhas categorias. Permanece presa ao modelo de
interpretação sustentado na complicatio (dobra) e explicatio (tudo está contido no uno).
383
Gadamer, 1996, p. 461.
384
Stein, 2002, p. 31.
126
5.2 Autoridade, tradição e história efetual
5.2.1 Tradição e autoridade como condição de possibilidade
Aproximando essa discussão da questão da tradução de textos, percebemos que é
preciso uma espécie de condição, a partir da qual a própria tradução faz sentido. Tendo em
vista que nosso acesso imediato à tradução é insuficiente, necessitamos trazer à tona as
ferramentas que nos ajudam em tal tarefa. Nesse sentido, a discussão anterior em torno de
Hermes poderá nos ajudar na compreensão dessa tarefa que exige, acima de tudo, o olhar, a
partir da perspectiva interna à própria hermenêutica filosófica.
A lira feita por Hermes emite sons que resultam em forças capazes de transformar a
ordem estabelecida pelos deuses, gerando o movimento nas coisas. Hermes age com
astúcia, fazendo a mediação e, com isso, a garantia da instauração de sentido. Isso revela
que há, portanto, a necessidade em conseguir certa distância entre dois lados, a saber, a
autoridade e a tradição, que marcam como pressuposto a mediação que se deve buscar.
Autoridade e tradição apontam para elementos não-abordáveis de modo imediato,
mas que se tornam condição de possibilidade para o conhecimento, na medida em que são
capazes de revelar subjacente a elas o horizonte a partir do qual a história efetual consegue
se efetivar. Para tanto, a fim de esclarecer melhor esses dois conceitos, urge que
aprofundemos a discussão acompanhando a argumentação de Gadamer, sendo que nos
propomos fazer breves interpretações para um maior esclarecimento de tal.
5.2.2 A autoridade a partir do olhar gadameriano
Ao abordar a questão da autoridade e da tradição, não é por acaso que Gadamer
o faz dentro de um subcapítulo intitulado Os pré-conceitos
385
como condição da
compreensão, trazendo junto o propósito de uma reabilitação, pois com isso antecipa
385
O conceito “pré-conceito” sempre é usado com hífen para evitar qualquer confusão com o conceito da
Língua Portuguesa “preconceito”, que tem o sentido mais enquanto idéia errônea, destituída de fundamento.
O sentido com que usamos o conceito, aproxima-se mais a um conhecimento prévio, juízo prévio, ou talvez
conceito anterior, no sentido de que já foi efetivado.
127
que conhece a fundo os problemas surgidos com a Ilustração
386
, que, não raro, serviu-se da
autoridade muito mais para difundir o autoritarismo e interesses subjetivistas, do que
propriamente o compromisso com a questão da verdade. Portanto, a reabilitação tem a ver
com a tarefa de recolocar o sentido original para o conceito de autoridade, que Gadamer
encara como sendo um ponto do qual parte um dos problemas centrais da hermenêutica.
Ele assevera:
O que frente à idéia de uma autoconstrução absoluta da razão se apresenta como
um pré-juízo limitador, faz parte, em verdade, da realidade histórica mesma. Se
quisermos fazer justiça ao modo de ser finito e histórico do homem, é necessário
levar a cabo uma reabilitação radical do conceito de pré-juízo e reconhecer que
existem pré-juízos legítimos
387
.
Por isso a modernidade trouxe como uma de suas contribuições mais
significativas, uma nova relação para com a questão da autoridade. A partir da
modernidade, e ainda mais contemporaneamente, a autoridade não pode mais se efetivar
simplesmente mediante outorgação. Ela exige o reconhecimento por parte daquele que será
beneficiado
388
com ela, de modo que não pode ser efetivada de modo arbitrário. Antes pelo
contrário, exige o reconhecimento por parte dos envolvidos no espaço onde se sua
efetivação, sendo que não pode se dar por vias impositivas, mas pelas vias da aceitação
livre.
Portanto, a questão da autoridade passa a ser compreendida mais enquanto
conseqüência de um ato racional, onde o sentido equivocado com que a Ilustração tratou a
autoridade é colocado sob o crivo da submissão à razão. Por isso, Gadamer pode falar em
falsa inclinação preconcebida em favor das autoridades e que levava a muitos “mal-
entendidos”, que, segundo Schleiermacher, são causados por causa da sujeição e da
precipitação.
Em outras palavras, a autoridade repousa, em última análise, no fato de que
aquele que a tem, naquela área ou horizonte de compreensão, a princípio sabe mais. Nesse
sentido, podemos afirmar que contemporaneamente a autoridade não tem a ver, por assim
386
Em primeiro lugar, a crítica à Ilustração se dirige contra o cristianismo, que na tradição religiosa mantinha
centralizada a interpretação da Sagrada Escritura, com sua interpretação dogmática. Em segundo lugar,
dirige-se à tendência geral de não deixar valer outra autoridade senão a que diz tudo desde a cátedra da razão,
de modo que, para ela, a fonte última da autoridade é a razão e não a tradição (cf. Gadamer, 1996, p. 338).
387
Gadamer, 1996, p. 334.
388
No sentido de que irá receber algo daquele a quem reconhece a autoridade, no sentido de reconhecer esse
alguém como aquele que está adiante, portanto, que tem uma visão mais ampla, que de fato conhece, sabe do
que está falando.
128
dizer, com a questão da obediência por obediência, a “obediência cega”, e muito menos
com a submissão a alguém, mas antes com a questão do saber
389
. Significa também dizer
que se trata, antes de mais nada, de percebermos que “o rechaço de toda autoridade não
somente se converteu em um pré-juízo consolidado pela Ilustração, mas que também
conduziu a uma grave deformação do conceito de autoridade”
390
.
A autoridade se constitui pelo reconhecimento livre de que aquele que está à
minha frente me é precioso, pois sabe mais. Em outras palavras, reconheço nele alguém
que está à frente, em termos de conhecimento com relação a mim. A verdadeira essência
do poder de a autoridade dar ordens e encontrar obediência tem seu verdadeiro fundamento
num “ato da liberdade e da razão, que concede autoridade ao superior, basicamente porque
possui uma visão mais ampla ou é mais consagrado, isto é, porque sabe melhor”
391
.
Evidentemente isso não tem a ver com o conceito de obediência cega, mas que “a
autoridade é, em primeiro lugar, um atributo de pessoas”
392
que a exercem, porque
a autoridade não se outorga, adquire-se, e tem de ser adquirida se a ela se quer
apelar. Repousa sobre o reconhecimento e, portanto, sobre uma ação da razão
mesma que, tornando-se consciente de seus próprios limites, atribui ao outro uma
perspectiva mais acertada
393
.
Isso não significa que o outro saiba tudo, mas, enquanto ponto de partida,
reconhece-se que ele possui autoridade, porque tem algo a mais a dizer, possui um
conhecimento maior, poderíamos também dizer uma visão mais ampla, naquela
determinada questão, área ou situação. Aquele que quer manter sua autoridade deve manter
a coerência com a idéia de que "o que disse não é irracional ou arbitrário, mas que, em
princípio, pode ser reconhecido como certo"
394
. Portanto, racionalmente demonstrável,
não-irracional ou arbitrário, mas que tem fundamentos e não é mera opinião.
Para evitar confusões, Gadamer descreve claramente a essência dessa questão da
autoridade, explicitando:
A autoridade das pessoas não tem seu fundamento último em um ato de
submissão e de abdicação da razão, mas num ato de reconhecimento e de
389
Hermes tem reconhecida sua autoridade sempre novamente à medida que consegue realizar sua tarefa com
êxito, de modo que, graças a ele, consegue-se evitar a confusão em torno da compreensão entre deuses e
homens.
390
Gadamer, 1996, p. 347.
391
Ibidem, p. 348.
392
Ibidem, p. 347.
393
Ibidem, p. 347.
394
Ibidem, p. 348.
129
conhecimento: reconhece-se que o outro está acima
395
de nós em juízo e
perspectiva e que, por conseqüência , seu juízo precede ou tem primazia em
relação ao nosso próprio
396
.
Portanto, a conquista da autoridade não se à base do domínio impositivo, por
parte daquele que é tido com autoridade. A autoridade sempre é histórica, ela nasce do
sujeito que dela participa e consegue a livre adesão do outro. Nesse sentido, não é
conquista, no sentido impositivo, mas, em certo sentido, é conquista à base do
reconhecimento livre. Ela não é a nova instância autoritária, mas antes um resultado de um
processo histórico. A história é construída, só existe a construção de um sentido em relação
à história. Sabemos que não existe a história como tal. Trata-se da produção do sentido da
história e não somente do reconhecimento dentro da história. Pertencemos a ela, porque
nós mesmos não podemos distanciar-nos dela. Isso não significa que estejamos num
mundo predeterminado, fatalístico.
Percebemos, pois, haver como que um fio condutor, que perpassa aquilo que se
apresenta como desconhecido. De certo modo, se poderia dizer “oculto”, no sentido de
manter velado o que poderá aparecer. O desconhecido não significa totalmente o não-
conhecido, surgido de repente, não se sabe de onde, mas, antes, pelo contrário, o que está
aí hoje o “é” dentro de um tempo e espaço, no qual foi gestado. Um grande desafio sempre
permanece, a saber, como des-velar o presente, como desocultá-lo. Seu contexto de sentido
foi mais explicitamente evidenciado. “Faz-se na história um desdobramento do sentido que
não pode mais ser revogado, e sim marca o horizonte de nossa compreensão”
397
.
Nesse sentido, percebe-se a presença da historicidade envolvendo o indivíduo,
bem como a consciência histórica como “um momento novo dentro do que sempre tem
sido a relação humana com o passado”
398
de modo a permitir o surgimento de um novo
sentido, de uma nova compreensão. Urge reconhecer o momento da transição no
comportamento histórico e elucidar sua própria produtividade hermenêutica
399
. Gadamer é
395
“Acima”, aqui não deve ser compreendido no sentido de colocar-se a autoridade numa pirâmide e ficar
num nível acima. Antes se aproximaria mais do sentido de já-estar-à-frente e poder mostrar o caminho com
segurança. No alemão é possível captá-lo melhor: Die Autorität von Personen hat aber ihren letzten Grund
nicht in einem Akt der Anerkennung und der Erkenntnis - der Erkenntnis nämlich, dass der andere einem an
Urteil und Einsicht überlegen ist und dass daher sein Urteil vorgeht, d. h. vor dem eigenen Urteil den
Vorrang hat” (Gadamer, H.-G. Wahrheit und Methode. - 1. Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. -
6. Aufl. Tübingen: Mohr, 1990, p. 284).
396
Gadamer, 1996, p. 347.
397
Coreth, op.cit., p.129.
398
Ibid.., p. 351.
399
Ibid.., p. 351.
130
preciso ao afirmar que "o que satisfaz nossa consciência histórica é sempre uma
pluralidade de vozes nas quais ressoa o passado"
400
.
A questão da autoridade adquiriu, sobretudo impulsionada pela Ilustração, uma
conotação muito negativa. Gadamer buscará aproximar os conceitos de autoridade e razão,
afastando-se da idéia cartesiana, segundo a qual "um uso metódico e disciplinado da razão
é suficiente para proteger-se de qualquer erro"
401
, sem, no entanto, negar a razão presente
na história.
Segundo ele,
a difamação de toda autoridade não se converteu em um 'pré-juízo'
consolidado pelo Iluminismo, mas conduziu também a uma grave deformação do
conceito mesmo de autoridade. Sobre a base de um esclarecedor conceito da
razão e liberdade, o conceito de autoridade pode se converter simplesmente no
contrário de razão e liberdade, no conceito da obediência cega. Este é o
significado que conhecemos a partir do uso lingüístico da crítica às modernas
ditaduras
402
.
Seguindo a trilha de Gadamer, percebemos que o problema central combatido pelo
Iluminismo foi o de entender que a autoridade se fundamentava numa espécie de
obediência institucionalizada ou, então, por imposição ou decreto de ordens e idéias, de
modo arbitrário, numa relação de sujeição de alguém sob o domínio incondicional de um
superior.
Ao invés de a Ilustração garantir a ascensão da autoridade pelas vias da imposição,
para Gadamer, a verdadeira conseqüência da Ilustração não é esta, “mas seu contrário, a
submissão de toda autoridade à razão”
403
. Assim, Gadamer garante à razão sua liberdade e
insbubmissão, exigindo constante reafirmação no diálogo, assim como a hermenêutica
passará a ter um papel de destaque diante da questão da interpretação. Ele o deixa claro em
afirmando:
A reforma prepara assim o florescimento da hermenêutica que ensinará a usar
corretamente a razão na compreensão da tradição. Nem a autoridade do
Magistério papal nem o apelo à tradição podem tornar supérflua a atividade
hermenêutica, cuja tarefa é defender o sentido razoável do texto contra toda
imposição
404
.
400
Ibid.., p. 353.
401
Ibid.., p. 345.
402
Ibid.., p. 347.
403
Ibid.., p. 346.
404
Ibid.., p. 345.
131
Para Gadamer, a questão da oposição entre a crença na autoridade e o uso da razão,
instaurada pelo Iluminismo, repousa, sobretudo, no fato de que, "na medida em que a
validez da autoridade passa a ser o lugar do próprio juízo, ela é, de fato, uma fonte de "pré-
juízos"
405
.
Porém, isso não exclui que possa ser também uma fonte de verdade, coisa que o
Iluminismo ignorou sistematicamente em sua repulsa generalizada contra toda autoridade.
Como foi visto, a autoridade é conquistada
406
, porém nunca à margem da história,
sem a perspectiva dominante que visa impor sobre o outro a perspectiva pessoal. Nesse
sentido, é preciso ter clareza de que " uma forma de autoridade que o romantismo
defendeu com uma ênfase particular: a tradição".
407
Tradição que escapa à perspectiva de
autofechamento, conforme veremos a seguir.
5.2.3 A tradição diante da hermenêutica gadameriana
No contexto da hermenêutica filosófica contemporânea, a tradição surge como
"uma" forma de autoridade. Veja-se bem, "uma" forma, e não "a" forma. A autoridade,
para Gadamer, está inserida na própria história, na própria tradição. Significa dizer que ela
nasce pela razão da própria história. É por isso que o homem, “quando pergunta, o faz
dentro de uma tradição cultural específica”
408
, inicialmente, na qual ele nasce.
Desse modo, é-nos possível afirmar que falamos a partir de uma determinada
realidade, ou mesmo de uma cultura, enfim de uma sociedade e Estado, de uma família,
onde nos compreendemos já de uma maneira auto-evidente, que iformar toda a base a
partir de onde compreendemos. Esse é o horizonte de compreensão, a partir do qual é
possível compreender o mundo e nele também a nós mesmos. “Os costumes se adotam
livremente, porém, não são criados por livre determinação, nem sua validez se fundamenta
nesta. Precisamente é isso o que denominamos tradição: ser válido, sem precisar de
fundamentação”
409
. Essa é, portanto, a realidade histórica do indivíduo que compõe a
tradição, a partir da qual ele compreenderá, num primeiro momento, o mundo
410
.
Conforme antecipávamos anteriormente, na tradição se a efetivação dos “pré-juízos”,
405
Ibid.., p. 346.
406
Essa conquista pressupõe como condição de possibilidade o diálogo.
407
Ibid.., p. 348.
408
Oliveira, 2001, p. 201.
409
Gadamer, Warheit und Metode., p. 285.
410
Cf. Oliveira, op. cit, p. 227.
132
que são muito mais que seus juízos, são a realidade histórica de seu ser
411
, a partir da qual
lhe é possibilitado tomar consciência
412
de seu ser-no-mundo
413
. Nesse sentido, a tradição
se coloca como condição de possibilidade, na medida em que conseguimos, à base de
perguntas que fazemos a ela, abrir novas possibilidades de compreensão no momento
presente, assim como também novos questionamentos se constituem, de modo que não
pode ter-se gestado do nada, nem se esgotam ao se efetivarem.
Segundo essa linha de raciocínio, percebemos haver uma seqüência evolutiva do
que chega a nós, hoje. É bem verdade que “o futuro, porém, sempre é possível, a partir
das raízes do passado. A tradição pertence à essência da história”
414
.
Um equívoco de
interpretação a ser evitado seria o de tomar a tradição enquanto tentativa de atualizar tal e
qual as experiências vividas no passado. Não se trata de repetir eventos, mas muito antes
de permitir que aconteçam novamente.
Tradição, no sentido em que a buscamos abordar, liga-se muito mais a uma forma
de autoridade que possibilita à razão, através do diálogo, perceber sua própria
automanifestação, isto é, o modo como a razão está presente, mesmo que ocorram
mudanças históricas, enquanto momento de liberdade e efetivação da própria história.
Sendo assim, ela é essencialmente conservação, não no sentido de um ressurgir do igual,
porém, enquanto conservação, ela nunca deixa de estar presente, mas sempre de modo
atuante nas mudanças históricas
415
.
Torna-se, assim, uma condição de possibilidade para a
abertura a novos horizontes de compreensão. “Ora, isso significa dizer que nossa
historicidade não é uma limitação, mas ‘condição de possibilidade’ de nossa compreensão:
compreendemos, a partir de nossos pré-conceitos que se gestaram na história e são agora
‘condições transcendentais’ de nossa compreensão”
416
.
Talvez uma das passagens mais elucidativas de Gadamer seja quando ele esclarece
que a compreensão é a inserção num processo de tradição, na qual passado e presente se
411
Cf. Gadamer, 1996, p. 344.
412
Para Gadamer, a tradição é mais ser do que consciência, no sentido de que ela é tradição de sentido que
nos condiciona sem que possamos elevá-la plenamente à esfera da consciência, isto é, “é a partir dela que se
tornam possíveis nossos conhecimentos, nossas valorizações, nossas tomadas de posição no mundo. Assim,
pode-se dizer com Gadamer que os pré-conceitos não são pré-conceitos de um sujeito, mas muito mais a
realidade histórica de seu ser, aquele todo histórico de sentido no qual os sujeitos emergem como sujeitos”
(Oliveira, op. cit., p. 229).
413
Cf. Coreth, 1973, p. 49 e 83.
414
Coreth, op .cit., p. 131.
415
Cf. Gadamer, op .cit., p. 349.
416
Oliveira, op.cit., p. 227 – 228.
133
entrelaçam continuamente
417
, sendo que nunca se pode esgotar em definitivo o sentido em
sua totalidade e fixá-lo lingüisticamente
418
. O que ocorre de fato é que a herança espiritual
e cultural forma o fundo do nosso mundo histórico da compreensão.
Ora, toda compreensão quer apreender uma verdade
419
. A questão da verdade é a
pergunta fundamental e decisiva que se coloca frente aos problemas em torno do
conhecimento. Para Gadamer, se essa questão se dirige à história, ela é vista e
compreendida, apenas e sempre, através de uma consciência que se situa no presente
420
.
O
presente é visto e compreendido, através das intenções, modos de ver e “pré-conceitos”
que o passado transmitiu. Não existe o presente enquanto tal, desprovido do passado e
isolado. O passado, no entanto, não é como um amontoado de fatos, que passam a tornar-se
objeto da consciência; é antes um fluxo em que nos movemos e participamos em todo o ato
de compreensão. Nessa linha de raciocínio descreve Rabuske:
Segundo Gadamer, o compreender é acontecimento. A consciência exposta aos
efeitos da história sabe da abertura do acontecer do sentido. A coisa da tradição
nunca aparece na luz da eternidade. Mas, contra a dialética hegeliana que
desemboca no saber absoluto do todo, a Hermenêutica de Gadamer afirma
energicamente a finitude do acontecimento lingüístico. A Hermenêutica é uma
dialética que sempre se mantém inacabada. O movimento de explicitação e de
especulação nunca se conclui
421
.
Fica, assim, evidente que não há a possibilidade de haver uma visão ou uma
compreensão puras da história, sem referência ao presente
422
; porém, este, por um lado,
produz uma consciência atual constituída e sustentada pela “história da influência”
(Wirkungsgechichte) e, por outro, esse fato mesmo aponta para a necessidade de
417
Cf. Ibidem, p. 133.
418
Cf. Ibidem, p. 166.
419
A questão da verdade tem sido desafio central que perpassa os debates nos mais diversos níveis, seja nas
ciências do espírito, humanas, sociais, e assim por diante, de modo que podermos falar em termos de
pretensão de verdade. “Compreendemos diversamente com freqüência, porque nós mesmos falamos
novamente sobre a verdade, quando aplicamos à nossa situação algo verdadeiro (uma afirmação exata, uma
crítica, uma concepção plausível, etc.). Sem dúvida, cada época e, eventualmente, cada indivíduo o faz à sua
maneira e, assim, ‘diversamente’. Mas, o que cada tentativa de compreensão pretende, continua sendo uma
verdade, sobre a qual se pode eventualmente discutir. Seria um curto-circuito histórico, explicar como
relativista a verdade aceita, no caso, de maneira diversa” (Grondin, op. cit., p. 230).
420
Exemplo simples e elucidativo pode ser percebido, por exemplo, na releitura de uma carta, algum tempo
após a primeira vez que a tenhamos lido. Parece que a mesma carta, lida na primeira vez, agora, após passado
algum tempo, não a conseguimos mais interpretar da mesma maneira como então, sendo que, não raro, após
percorrida essa “distância temporal”, percebemos elementos que na época não puderam ser captados pela
nossa primeira leitura.
421
Rabuske, 1994, p. 45.
422
Cf. Palmer, op. cit., p. 180.
134
consciência de nossa situação hermenêutica, trazendo a consciência dos limites desse
empreendimento, o que é conseqüência de nossa finitude
423
.
Assim sendo, não podemos abandonar o presente e entrar no passado "des-ligado"
dele. O significado da obra passada define-se em termos das questões que se lhe colocam,
a partir do presente
424
.
Permanece em aberto a questão, que se coloca sempre novamente, do saber de um
possível sentido autêntico do texto que queremos traduzir para a nossa linguagem. A
interpretação não se através da reprodução de um sentido originário, nem tampouco é
uma repetição formal de palavras, conceitos petrificados. Podemos percebê-lo bem com
relação à poesia. Por mais completo e sofisticado o instrumentário, na análise de uma
poesia, isso ainda não garante o acesso ao seu sentido autêntico. Pode, inclusive, vir a
fechar o potencial de abertura ao diálogo intrínseco à poesia, ao tentar incutir nela
expectativas de sentido fixas no olhar do sujeito, que, desse modo, inviabiliza a
instauração do espaço do diálogo, condição sine qua non para que se a abertura a novos
horizontes de sentido. Com isso queremos dizer que não existe um sentido único do texto.
O mesmo acontece nas artes, conforme veremos adiante.
Exemplo disso pode ser visto no fato de haver certas palavras, cuja tradução para
outra língua é difícil, ou mesmo impossível, ao se tentar manter o sentido original de tal
palavra ou conceito. É o caso, por exemplo, do conceito saudade, compreendida a partir do
contexto brasileiro. A dificuldade com o conceito saudade se torna clara, se quisermos, por
exemplo, fazer a tradução para a língua alemã. Ela não possui uma palavra que consiga
expressar o mesmo sentido que tem o conceito saudade dentro do contexto brasileiro.
Outro exemplo é a releitura de um texto ou uma carta, alguns meses ou mesmo anos
após a lermos pela primeira vez. A nova leitura se em um novo contexto e noutro
horizonte de compreensão, não raro, com expectativas e interesses, assim como um
conjunto de questionamentos bem diferentes dos que tínhamos naquela época. Logo,
423
Cf. Oliveira, op. cit., p. 229.
424
Cf. ibid., p. 185 – 186.
135
estamos diante de uma situação onde não podemos “pré-supor” de antemão um sentido
único do texto
425
.
5.2.4 Sobre a compreensão do sentido na história efetual
Gadamer irá tomar o jogo como modelo estrutural, para explicar o porquê do
processo de estruturação na área do conhecimento
426
. “algo” que se manifesta, um
conjunto de sentido que, na hermenêutica, não depende da subjetividade que impõe sobre o
objeto o que ela busca conhecer. Em outras palavras, não é a subjetividade que arranca o
sentido do objeto, impondo sobre ele as condições sobre as quais deve se manifestar. Ao
invés disso, na hermenêutica gadameriana, uma relação de alteridade, algo que, na
argumentação posterior de Gadamer acerca do diálogo vivo, desembocará numa teoria da
intersubjetividade, de modo que a subjetividade não desaparece, mas somos convidados a
repensar nossa postura frente ao outro, frente ao texto ou objeto de conhecimento. Isso se
pelo fato de que, “tomando a sério a posição do outro, ele obriga a tornar transparentes
para si mesmo as implicações e os pressupostos que alimentam sua própria postura”
427
.
Portanto, o sentido não deve ser imposto, mas des-coberto, des-ocultado. Essa é a
diferença fundamental entre Gadamer e Heidegger. Assim como no jogo, numa perspectiva
hermenêutica de construção de conhecimento, algo” se a compreender, na medida em
que aquele que quer compreender deve ser capaz de ouvir o outro, numa relação de
alteridade, sem hierarquia, mas igualdade de condições, para com ele estabelecer um
diálogo
428
, reforçando ao máximo seus argumentos, a fim de tornar transparentes a si
mesmo as implicações e os pressupostos que alimentam sua própria postura. Busca-se,
assim, chegar à compreensão num vir ao encontro, enquanto acontecer, que inclui a nós
mesmos, na medida em que vamos vivendo na linguagem.
A dialética, como arte de conduzir um diálogo, é, ao mesmo tempo, a arte de olhar
juntos na unidade de uma perspectiva, isto é, a arte de formar conceitos como elaboração
425
Se existisse apenas um sentido, certamente contentar-nos-íamos com a perspectiva dogmática de
conhecimento.
426
Aprofundaremos este ponto no próximo capítulo.
427
Gadamer, 1996, p. 10.
428
Diferentemente da conversação, que se dá em torno de assuntos superficiais, e não raro banais, o diálogo é
sempre um encontro profundo com minhas convicções, ao mesmo tempo também com as convicções do
outro que exige que eu reflita sobre minha própria perspectiva.
136
do que se opinava comumente
429
. Significa que o que vem à tona, em sua verdade, é o
lógos, que não é meu nem teu, é comum a todos e não exclusivamente meu, e que, por isso,
sobrepuja tão amplamente a opinião subjetiva dos companheiros do diálogo, que, inclusive,
aquele que o conduz permanece sempre como aquele que não sabe, tendo que assumir o
risco implícito no processo, permanecendo na expectativa de chegar ao conhecimento.
Nessa perspectiva, a compreensão é algo mais do que um recurso metodológico
para descobrir um determinado sentido. O que se manifesta na linguagem não é uma mera
fixação de um sentido pretendido, como o buscavam os iluministas, à base da autonomia
da razão humana, mas um intento em constante mudança, mais exatamente uma tentação
reiterada de submergir-se em algo com alguém
430
. A presença do outro, o encontro com ele
ajuda a descobrir e a abandonar a própria clausura. A experiência dialogal que assim se
produz não se limita às esferas das razões de uma ou outra parte. um potencial de
alteridade, algo mais, que está além de todo consenso construído no comum. Segundo
Gadamer, é na aceitação da diferença e da distância em relação ao outro que se configura o
sentido enquanto resultado do diálogo vivo.
Gadamer, a esse respeito, é preciso, ao afirmar que a linguagem, na qual algo vem à
fala, não é possessão disponível de um ou outro dos interlocutores. Todo diálogo pressupõe
uma linguagem comum ou, melhor dito, constitui, a partir de si, uma linguagem comum.
Há, ali, algo postado no meio, como dizem os gregos, onde participam os interlocutores e
sobre o que eles criam um intercâmbio mútuo. O acordo sobre o assunto, que deve surgir
no diálogo, significa necessariamente que se elabora uma linguagem comum apenas no
diálogo. Este não é um processo externo de ajuste de ferramentas, e nem sequer é correto
dizer que os companheiros de conversa se adaptam uns aos outros, mas que ambos vão se
encontrando, à medida que se estabelece o diálogo vivo sob a verdade da própria coisa
431
.
É esta a que os reúne numa nova “comum-unidade”. O acordo no diálogo não é uma mera
representação e impor o próprio ponto de vista, mas uma transformação rumo ao comum,
de onde já não se continua sendo o que se era.
Nesse sentido, nos é possibilitado dizer que na compreensão não existe a primazia
do sujeito, sendo exigência voltar do conceito à palavra, pois somente assim voltamos à
fonte pré-reflexiva da própria razão. Conforme demonstrado anteriormente, não podemos
429
Cf. Gadamer, 1996, p. 445 – 446.
430
Cf. Gadamer, 1994, p. 324.
431
Ibidem, p. 457 – 458.
137
nos limitar ao simples resultado de um ato objetificador do pensar, menos ainda como
mero objeto de manipulação, por parte do sujeito cognoscitivo
432
.
Assim podemos dizer que sujeito e objeto, encontram-se numa situação histórica, a
partir de onde se possibilita a efetivação do jogo da compreensão, à base da linguagem
enquanto mediadora de tal processo. Portanto, o diálogo vivo é, por excelência, o campo
onde o Ser para a linguagem encontra condições para se efetivar como seu campo
primordial de experiências
433
.
Assim sendo, antes de sermos os senhores da história, antes de sermos os detentores
das condições últimas de possibilidade do conhecimento, urge, pois, que levemos a sério a
possibilidade de permitirmos um outro sentido, com relação à verdade, assumindo-a como
um acontecer, permitindo assim que se efetive o elemento “pré” na circularidade da
compreensão. Desse modo, a proposta gadameriana ultrapassa as possibilidades de
domínio das condições de possibilidade, por parte de um sujeito dominante, uma vez que
este sempre chega tarde ao lugar onde já está sendo a compreensão.
No próximo capítulo, abordaremos temas centrais de Verdade e Método, no caso a
arte, a história e a linguagem, enquanto espaços que questionam a primazia do pensamento
construtivo objetificador como a base de legitimação para o conhecimento, mostrando que
há espaços anteriores à perspectiva metodológica onde acontece a verdade de outro modo.
432
Cf. Flickinger, 2003, p. 47.
433
Ibidem, p. 57.
138
6 ARTE, HISTÓRIA E LINGUAGEM: TEMAS CENTRAIS DE
VERDADE E MÉTODO
Ao longo das últimas décadas, vem crescendo o interesse em torno do pensamento
hermenêutico. As atenções têm se voltado, sobretudo, para o debate filosófico que se
concentra na epistemologia e na legitimação do conhecimento, para além da perspectiva
defendida pelas ciências
434
do espírito e da natureza. “A história do desenvolvimento das
ciências, ao longo dos últimos dois séculos, prova do fato de que o velho sonho de
reunir o conjunto do conhecimento humano num sistema acabou”
435
. Nesse contexto, as
reflexões de Hans-Georg Gadamer oferecem a possibilidade de acompanharmos uma
crítica contundente, assim como pistas de superação diante da perda de convencibilidade
da noção pós-cartesiana
436
do saber. O resultado disso tudo foi a abertura de espaço a
concepções não mais irrestritamente comprometidas com a idéia iluminista de autonomia
da razão humana, vindo a questionar a primazia do pensamento construtivo como base de
legitimação exclusiva da produção do nosso saber
437
.
O conhecimento humano não deve ser limitado a um ato objetificador do pensar,
onde a razão unilateralmente pode impor aos objetos as condições sob as quais estes devem
se revelar. A razão humana, quando colocada diante da hermenêutica, tem denunciados
seus limites em sua pretensão absolutizadora, justamente por não conseguir dar conta de
suas próprias pretensões, pois ela mesma se encontra inserida dentro de um mundo que
434
Hoje é impossível querermos falar em ciência no singular.
435
Flickinger, 2007, p. 1.
436
“O argumento central da filosofia hermenêutica podeser demonstrado de uma forma muito melhor, se
reportado ao título da obra de Gadamer, Verdade e Método. Desde Descartes o método representa caminho
mais fácil para chegar à verdade, no sentido de veritas e adaequatio intellectus ad rem: correspondência entre
fato e proposição. A verdade desta última poderia ser verificada reportando-se ao primeiro. Os processos
metódicos excluíram a intervenção de elementos externos por exemplo, os ‘Ídolos’ de Bacon. A
verificabilidade acabou por se tornar a medida das pretensões de conhecimento, as quais se baseavam na
certeza proveniente da adesão a um método” (Bleicher, 1992, p. 165).
437
Cf. Flickinger, 2003, p. 47.
139
escapa à possibilidade de plena compreensão, pois é anterior a ela
438
. Desse modo, se
reduzíssemos as nossas experiências “à mera objetificação do mundo, ocultaríamos o rico
potencial de sentido que resulta do vir deste ao nosso encontro sob condições por nós não
dominadas”
439
, condições estas que, ao querermos dominá-las, fecham o conjunto de
sentido dentro do qual a compreensão se efetiva
440
. Podemos então afirmar que a
compreensão necessita de pré-conceitos, sendo que “a idéia de Razão absoluta ignora o
fato de a Razão só se poder afirmar em condições históricas”
441
. Adiante voltaremos a esse
ponto.
O problema é que o Iluminismo, ao não reconhecer limites do impulso dominador
da racionalidade instrumental, acabou criando uma falsa expectativa com relação ao
conhecimento, levando a racionalidade à crença em sua absolutidade. Em contraposição,
Gadamer defende a reabilitação de um conceito que adquiriu sua conotação negativa
justamente com o Iluminismo, afirmando que “toda compreensão é ‘preconceituosa’”
442
,
isto é, constitui-se a partir de conceitos prévios os quais escapam ao domínio do sujeito.
Nesse sentido, urge discutirmos sobre os problemas advindos da crença na razão absoluta,
que busca em si mesma os critérios de autofundamentação, que acabam por levá-la a uma
determinada postura frente ao conhecimento.
Portanto, ao operarmos com a hermenêutica filosófica, não se trata de contestar o
potencial reflexionante da razão, mas antes de reconhecer que uma base pré-racional
que sustenta a racionalidade desde a sua origem. “Esta base, enquanto experiência
ontológica, precede o próprio pensamento científico que se vê, assim, questionado na sua
pretensão fundadora”
443
. um acontecer ontológico, que é anterior e mesmo
intransponível, por parte do sujeito cognoscitivo, o qual quer manter a supremacia frente
ao conhecimento, sendo-lhe exigência o entregar-se a tal acontecimento muito antes de
impor a ele suas pretensões. Desse modo, a hermenêutica volta-se às fontes gregas na
questão do saber, buscando a experiência fundante no próprio impulso originário do
perguntar filosófico sobre uma base de legitimação apontando para experiências que não se
438
Não se trata de uma “irreflexividade”, porém, muito antes, da percepção de que uma historicidade que
não se deixa apanhar nos moldes de uma metodologia capaz de dar conta do saber enquanto tal.
439
Ibidem, p. 48.
440
Desse modo, dar-se-ia o fechamento da perspectiva, sendo que recairíamos na mera repetição de
conhecimentos pré-efetivados, isto é, tautologias.
441
Bleicher, 1992, p. 154.
442
Ibidem, p. 154.
443
Flickinger, op. cit., p. 48.
140
enquadram na visão objetivista do conhecimento. É o caso da arte, da história e mesmo da
linguagem, que veremos a seguir.
6.1 A estética como pedra de toque diante do entendimento objetificador
um “acontecer ontológico primordial” que se frente a uma obra de arte.
Podemos compreendê-lo como o vir ao encontro de algo inqualificável, do qual não
podemos fugir, enquanto presença misteriosa, alheia a nós e instigante
444
. Essa situação
leva o sujeito a perceber-se desnudado em suas pretensões dominantes e assumir o próprio
equívoco, ao perceber que o tecido invisível, que acreditava estar cobrindo seu corpo, de
fato não existe. Trata-se, pois, da autopercepção de limites que levaram o sujeito moderno
a posturas que em nada contribuem para a busca mais profunda da verdade.
Flickinger a esse respeito ressalta:
Todos sabemos o que se passa conosco diante de uma obra de arte: por mais
detalhada e sagaz que seja a descrição da obra em questão, enquanto objeto ela
não satisfará jamais ou, melhor dito, nunca esgotará os possíveis sentidos do ser
da obra experienciada. Muito pelo contrário, a caracterização mais perfeita de
uma tal obra dá-nos, antes, a impressão de encobrir o cerne que nela nos fascina,
ao invés de revelá-lo
445
.
Algo se revela, ao passo que também se oculta. Revela-se aos olhos daquele que
consegue experienciar, isto é, vivenciar-com, enquanto que se oculta àqueles que
pretendem dirigir o olhar objetificador sobre a obra de arte. Isso pode ser percebido muito
bem, quando, ao pretender impor sobre a obra de arte as condições sob as quais ela deve se
manifestar, curiosamente, o que teremos é o findar do processo produtivo da mesma
446
.
“Vemo-nos, destarte, coagidos a abandonar o olhar objetificador e entregar-nos a esta
presença alheia a nós, instigante e misteriosa”, de tal modo que “este vir ao encontro de
algo inqualificável, do qual não podemos fugir, que quero denominar, aqui, um acontecer
ontológico primordial
447
. Com isso somos remetidos para o interior da obra de arte, desde
a experiência que fazemos da mesma.
444
Cf. Flickinger, op.cit., p. 51.
445
Ibidem, p. 50 – 51.
446
É o caso, por exemplo, quando estamos diante de uma obra de arte e o “guia” começa a explicar a respeito
da mesma, descrevendo o modo como deveríamos dirigir nosso olhar para ela, a fim de extrair-lhe o
significado que ele está atribuindo àquela obra.
447
Ibidem, p. 51.
141
A primeira parte de Verdade e Método gira em torno da experiência que nos leva a
uma postura diferente daquela do impulso dominador da racionalidade. O título já o
evidencia, a saber, Elucidação da questão da verdade desde a experiência da arte.
Evidentemente Gadamer está falando de formas de experiência em que “se expressa uma
verdade que não pode ser verificada com os meios de que dispõe a metodologia
científica”
448
. Com isso, ele não desmerece nem deixa de reconhecer a importância e o
valor das ciências que se constroem sobre a base metodológica; porém, coloca em xeque a
supremacia e pretensão exclusivista da perspectiva objetificadora. Ele o deixa claro no
Prólogo à segunda edição, onde se lê: “Não pretendia desenvolver um sistema de regras
para descrever ou inclusive guiar o procedimento metodológico das ciências do espírito”.
Mais adiante complementa: “Contudo, minha verdadeira intenção era e segue sendo
filosófica; não está em questão o que fazemos nem o que deveríamos fazer, mas o que
ocorre conosco acima de nosso querer e fazer”
449
. Não se trata de colocarmo-nos frete a
algo incompreensível, irracional. Quem se movimenta dentro do paradigma das ciências
objetificadoras, depara-se com uma situação que lhe impede continuar a legitimação do
conhecimento pelas vias internas a tal paradigma, sendo que a passagem para a proposta
gadameriana não poderia deixar de ser conflituosa. A experiência de perda do domínio é
sempre irritante para quem está já habituado a um mundo que promete a segurança pelas
vias metodológicas.
Ao lidar com a necessidade de mudança paradigmática, a hermenêutica filosófica
não poderia escapar ao risco de encontrar resistência e perseguição. A resistência é
compreensível se tomada tanto em T. Kuhn quanto em Maturana. Porém, a perseguição à
hermenêutica filosófica, com a tentativa de imputar-lhe um adjetivo como relativista,
evidencia a pretensão daqueles que insistem em ignorar o novo paradigma que se lhes
apresenta. Trata-se, pois, de uma tentativa em buscar a segurança, ao não assumir o risco
de se colocar numa nova postura, procurando no antigo paradigma a segurança em repor
suas velhas experiências.
A questão que nós colocamos intenta descobrir e fazer consciente algo que a
mencionada disputa metodológica acabou ocultando e desconhecendo, algo que
não supõe tanto limitação ou restrição da ciência moderna quanto um aspecto
que lhe precede e que em parte a faz possível
450
.
448
Gadamer, 1996, p. 24.
449
Ibidem, p. 10.
450
Ibidem, p. 11.
142
O que devemos entender para evitar mal-entendidos é que, assim como Kant coloca
uma questão filosófica ao perguntar quais são as condições de nosso conhecimento, pelas
quais é possível a ciência moderna, bem como até onde ela chega, em Gadamer não se trata
de reavivar a disputa metodológica entre as ciências da natureza e as do espírito, mas muito
antes permitir a reflexão em outro sentido. Exemplo disso pode ser visto na experiência
frente à obra de arte, uma vez que ela “supera, por princípio, sempre qualquer horizonte
subjetivo de interpretação, tanto no artista como no seu receptor”
451
.
Que na obra de arte se experimente uma verdade que não se alcança por outros
caminhos é o que faz o significado filosófico da arte, que se afirma frente a todo
raciocínio. Junto à experiência da filosofia, a da arte representa o mais claro
imperativo de que a consciência científica reconheça seus limites
452
.
Eis a razão pela qual Verdade e Método começa com uma crítica à consciência
estética, buscando defender a experiência da verdade que nos comunica, no encontro com a
obra de arte, contra uma teoria estética que se deixa limitar pelo conceito de verdade da
ciência
453
. Nesse sentido, é possível afirmar que “contra a posição kantiana, portanto,
Gadamer enfatizaria a prioridade, tanto ontológica quanto temporal, da presença
misteriosa de algo que solicita e escapa, simultaneamente, na medida em que submetido a
uma qualquer explicação”
454
.
Antes de entrarmos na análise da arte, história e linguagem como espaços por
excelência para o acontecer da experiência ontológica, convém nos determos brevemente
na discussão que Gadamer desenvolve com Huizinga, buscando no jogo o fio condutor
para a explicação da compreensão. O jogo será tomado muito mais enquanto modelo
estrutural para possibilitar a nossa aproximação a um espaço que não se deixa dominar
pelas vias da razão objetificadora.
6.2 Por que tomar o jogo como fio condutor da virada ontológica?
Entre a primeira e a segunda parte de Verdade e todo, Gadamer desenvolve um
capítulo não muito extenso sobre a ontologia da obra de arte e seu significado
hermenêutico. Nesse capítulo, busca a base ontológica da experiência hermenêutica,
451
Ibidem, p. 13.
452
Ibidem, p. 24.
453
Cf. ibidem, p. 25.
454
Flickinger, op. cit., p. 51.
143
tomando o jogo como fio condutor da explicação ontológica. O conceito de jogo, enquanto
fio condutor da explicação ontológica é tomado como uma oposição radical ao significado
subjetivo sustentado, sobretudo, por Kant e Schiller. Nesse sentido, Gadamer expõe que
devemos "libertar" esse conceito da significação subjetiva
. Parece, já no início, tratar-se de
construir a base sobre a qual o conceito será abordado, buscando como que demarcar todo
o emaranhado de "pré-conceitos" que devem ser tratados com o devido cuidado.
Ainda que a razão não ocupe mais o lugar único, contudo, ela não é "despedida". O
conceito de jogo nos ajudará a compreender melhor a subjetividade, não mais como
instância determinadora em relação à compreensão. O jogo é tomado como modelo
estrutural para a explicação da compreensão, abrindo espaço para compreendermos o
processo ontológico enquanto situação insuperável, por parte dos parceiros entregues ao
jogo.
6.2.1 Sobre a origem do jogo em Huizinga
Gadamer buscou na obra Homo ludens, de Huizinga, seguir as pistas e detectar o
momento lúdico, que é inerente a toda cultura. Uma questão central é que o jogo nasce na
área do culto que, por sua vez, acontece num espaço onde se reconhece, de antemão, uma
autoridade superior, por parte daqueles que praticam o culto. Para Huizinga, é no mito e no
culto que se originam as grandes forças instintivas da civilização humana, a saber, "o
direito e a ordem, o comércio e o lucro, a indústria e a arte, a poesia, a sabedoria e a
ciência. Todas elas têm suas raízes no solo primitivo do jogo"
455
.
Ele o expõe claramente:
O homem primitivo procura, através do mito, dar conta do mundo
dos fenômenos atribuindo a este um fundamento divino. Em todas
as caprichosas invenções da mitologia, um espírito fantasista
que joga no extremo limite entre a brincadeira e a seriedade
456
.
Percebe-se que o jogo abre o espaço que aponta para a direção de ser uma tentativa
de se colocar para além de si mesmo, entrando na mística do fascínio que ele exerce sobre
os parceiros em jogo, sem nenhuma possibilidade de prever coisa alguma. Exige-se a
entrega a tal espaço para que o jogo se efetive. Ambos os parceiros, que se encontram
455
Huizinga, 1971, p. 7.
456
Ibidem, p. 7.
144
numa situação de jogo, assumem o risco de ter suas expectativas confirmadas ou não, sem,
no entanto, ser possível antecipar coisa alguma, no sentido de atingir os fins ou não.
É o espírito de puro jogo que leva as sociedades primitivas à busca de
tranqüilidade, usando de sacrifícios, ritos sagrados, consagrações e mistérios, onde a
realidade e a fantasia encontram terreno fértil para se encontrarem. Isso pode ser visto, por
exemplo, nos desenhos feitos ao fundo das cavernas. Tal feito aponta para uma tentativa de
iniciar um ritual de caça, nesse caso, abrindo um espaço próprio para a vivência e o
experimentar de algo que ultrapassava o cotidiano. Talvez seja uma das primeiras
experiências que apontam para o início do jogo propriamente dito. A experiência que ali se
dava, ultrapassando o conhecimento racional, impossibilitava antecipar o sucesso ou o
fracasso diante da caçada que iria ocorrer. Desse modo, tal experiência, ao mesmo tempo
que fascina, também assusta.
Nesse sentido, Gadamer, referindo-se a Huizinga, argumenta que "isso levou-o a
reconhecer na consciência lúdica essa peculiar falta de decisão que torna praticamente
impossível distinguir nela o crer do não crer". Isso aparece claramente na seguinte citação:
O selvagem nada sabe das distinções conceptuais entre ‘ser’ e
‘jogo’, nada sabe sobre ‘identidade’, ‘imagem’ ou ‘símbolo’.
Portanto, continua em aberto a questão de saber se a melhor
maneira de apreender o estado de espírito do selvagem no
momento em que celebra seus rituais não será o recurso à noção
primária e universalmente compreensível de ‘jogo’. Em nossa
concepção do jogo desaparece a distinção entre a ‘crença’ e o faz
de conta’
457
.
Percebemos assim, que o culto, assim como o jogo, remonta a uma origem "pré-
racional". Tanto o jogo quanto o culto mantêm sua autonomia frente à subjetividade. Quem
quer dominá-los, acaba como que sendo excluído do acesso ao espaço onde eles se
efetuam. Quem assume o risco e se entrega, através da experiência de se deixar levar, se
torna participante. O sentido não está submisso a uma base racional.
O jogo, assim como o culto, não se efetua sem o participante, porém, em momento
algum, pode-se atribuir a existência do jogo ao participante. Ele simplesmente joga,
permitindo que o jogo se desenrole em si mesmo, ou seja, em seu ser jogado. Conforme
Gadamer, “enquanto o jogo é para ele, é claro que o jogo possui um conteúdo de sentido
457
Ibidem, p. 29 – 30.
145
que tem que ser compreendido e, portanto, pode separar-se da conduta dos jogadores”
458
. O
jogo como tal é imprevisível. Isso não significa que seja caótico, no sentido de não levar a
lugar algum.
Gadamer expõe claramente que, para que o jogo aconteça, “é importante que se
coloque no próprio jogo uma seriedade, até mesmo sagrada”
459
. Isso porque o jogo tem que
ser jogado. Só no seu ser jogado ele existe. Ele precisa de um espaço próprio. “Aquele que
joga sabe, ele mesmo, que o jogo é somente jogo, e que se encontra num mundo que é
determinado pela seriedade dos objetivos”.
460
O jogo se efetua ao ser jogado, seguindo as
próprias regras do jogo, conforme veremos a seguir.
6.2. 2 O jogo propriamente dito em suas características estruturais
no jogo regras específicas que exigem respeito a elas, por parte dos jogadores.
Os jogadores se expõem ao risco de chegar a algum resultado ou não, isto é, é-lhes
impossibilitado prever o resultado. “Não é a relação que, a partir do jogo, de dentro para
fora, aponta para a seriedade, mas é apenas a seriedade que no jogo que permite que o
jogo seja inteiramente um jogo”
461
.
O jogo exige a predisposição de quem vai entrar nele e o conhecimento de suas
regras, conforme veremos adiante, sem, no entanto, haver a possibilidade de prever
qualquer resultado enquanto ele está se efetivando. Daí a necessidade de chegar a uma
perspectiva interna a ele e abandonar-se totalmente em tal espaço, assumindo como
condição o risco de obter o resultado desejado ou não. “O atrativo que o jogo exerce sobre
o jogador reside exatamente nesse risco. Usufruímos com isso de uma liberdade de decisão
que, ao mesmo tempo, está correndo um risco e está sendo inapelavelmente restringida”
462
.
O jogo possui uma “essência própria”, independente da consciência daqueles que
jogam. O horizonte temático não pode ser limitado, nem dominado pela subjetividade. O
que lhe é possibilitado é decidir sobre este e não aquele jogo. Segundo Huizinga, “trata-se
de uma realidade que ultrapassa a esfera da vida humana. Portanto, seu fundamento não
458
Ibidem, p. 154
459
Ibid., p. 144.
460
Ibid., p. 144.
461
Ibid., p. 144.
462
Ibid., p. 149.
146
reside na subjetividade, pois, se assim fosse, limitar-se-ia à humanidade”
463
, ou, se
preferirmos, à lógica da reflexividade calculante.
Outro fator de destaque é que a autoprodutividade, o movimento de vai-vém do
próprio jogo, além de seduzir e cativar leva a uma expectativa, por parte dos envolvidos.
No princípio, eles estão impossibilitados de se posicionarem frente a qualquer tentativa de
domínio do jogo. Eles simplesmente podem jogar, é claro, dentro das regras do próprio
jogo.
Constantemente somos surpreendidos, isso leva o jogador a irritar-se, devido à
perda do lugar por ele anteriormente dominado. Não é possibilitado ao jogador dominar
esse espaço dentro do qual o jogo se efetiva. Na perspectiva hermenêutica, poderíamos
dizer que a bola é jogada de algum lugar do espaço. É como que admitir de antemão que
algo se no jogo, sobre o que a subjetividade não tem o controle. “É o jogo que mantém
o jogador a caminho, que o enreda no jogo e que o mantém em jogo”
464
. Cabe ao jogador
manter a perspectiva do jogar, seguindo as regras intrínsecas ao próprio jogo.
Parece que o jogo não tem um sujeito capaz de dominá-lo. O sujeito do jogo é o
próprio jogo. O jogo se joga, e ponto final. Os jogadores estão sendo quase que absorvidos,
isto é, participam enquanto contribuintes da possibilidade do jogo. Outro fato que pode ser
destacado é a total impossibilidade de anteciparmos qualquer resultado e a necessidade de
levar o jogo a sério. Segundo Gadamer,
quem não leva a sério o jogo é um desmancha-prazeres
465
. O modo
de ser do jogo não permite que quem joga se comporte em relação
ao jogo como em relação a um objeto. Aquele que joga sabe muito
bem o que é o jogo e que o que está fazendo é 'apenas um jogo',
mas não sabe o que ele 'sabe' nisso.
466
Qualquer tentativa de dominá-lo implica em não lhe reconhecer as regras
intrínsecas. Huizinga, a esse respeito, destaca que “todo jogo tem suas regras. São estas
que determinam aquilo que ‘vale’ dentro do mundo temporário por ele circunscrito. As
463
Ibid., p.5 – 6.
464
Gadamer, op. cit., p. 181.
465
O termo "Spielverderber" comumente é traduzido do alemão para o português como "desmancha-
prazeres".
Talvez aqui ele deveria assumir mais o sentido de "in Unordnung bringen"
, ou seja, é uma espécie de tentativa
de acabar com o "existente aí", ou não se enquadrar nas regras. "Verderben"
possui um sentido de arruinar;
estragar. Nesse sentido, pode-se dizer que tal já "pré-supõe" o que "está-aí" à disposição.
466
Gadamer, 1996, p. 144.
147
regras de todos os jogos são absolutas e não permitem discussão”
467
. O cumprimento das
regras acaba tornando o jogo mais atraente, sem a possibilidade de manipulação por algum
dos parceiros. Ao participarem de um jogo, os parceiros estão como que entregues ao
próprio jogo, em igualdade de condições.
Lançados à própria autoprodutividade do jogo, sem nenhuma certeza de que dali
vai resultar alguma jogada com resultado positivo, resta-lhes jogar sem deixar passar as
possibilidades que o próprio jogo lhes oferece e entregar-se completamente a tal
autoprodutividade que, além de fascinante, pode ser surpreendente. Não há certeza alguma
em se efetuar uma jogada, apenas expectativas. É possibilitado ao jogador, seguindo as
regras, mover-se dentro do espaço do próprio jogo, através da jogada que lhe é possível ser
feita. A total imprevisibilidade ou antecipação de um resultado torna o jogo fascinante.
Se, no entanto, alguém tentar abrir o jogo, e convencer seus parceiros a fazerem o
mesmo, “mostrando as cartas que estão na mão”, o jogo se tornará “in-jogável”. Alguém
poderia argumentar, dizendo que dessa forma o jogo se tornaria transparente. De fato,
torna-se transparente, mas nesse caso não se trata mais de um jogo, e sim da reflexão
e/ou análise racional do jogo. O jogo acontece necessariamente num espaço pré-reflexivo.
No momento em que alguém, como participante o abre, para calcular de antemão todas as
formas de jogo, o tornará in-jogável.
Surge, a partir dessa situação, a expressão “vamos abrir o jogo”, que significa “des-
ocultamento” ou então uma tentativa de tornar o jogo transparente, isto é, refletir
racionalmente sobre ele. Ao querer abrir o jogo, nós estamos num nível de reflexão sobre
ele. Não jogamos mais, queremos ver o resultado. A antecipação do resultado remete à
idéia de fim do jogo.
Ambos os parceiros do jogo estão como que envolvidos numa situação em que um
não sabe o que o outro sabe. Desse modo, ambos não sabem o que se sabe a respeito disso.
Frente à imprevisibilidade e busca de segurança, abrir o jogo assume um caráter de
reflexividade sobre a situação, na perspectiva de buscar a total transparência ou, então,
buscar saber o que não se sabe disso
468
.
467
Huizinga, op. cit., p. 14.
468
jogos de baralho em que o ocultamento das cartas que estão na mão do parceiro de jogo, permite o
“blefe”, de modo que devolve ao outro parceiro a decisão de interromper o jogo, exigindo que as cartas sejam
colocadas na mesa para a análise final, quando se termina o espaço do jogo. A decisão pela não interrupção
148
Portanto, a expressão “abrir o jogo” deveria ser entendida no sentido de abandonar
o espaço pré-reflexivo e assumir o risco de torná-lo reflexivo, sabendo de antemão que
significa também interromper o movimento fascinante do próprio jogo. Conseqüentemente,
aceita-se o fato de não mais poder jogar com o parceiro dentro daquele espaço.
6.2. 3 A estrutura pré-reflexiva ontológica no processo de compreensão
Até aqui tentamos demonstrar que a estrutura pré-reflexiva ontológica torna-se
condição para a reflexão. Como percebemos, o intento de Gadamer é tomar o jogo como
modelo estrutural para a explicação da compreensão e não enquanto identidade do
conteúdo. Significa dizer que não é tanto o processo metodológico, mas muito mais o
processo ontológico de compreensão, enquanto situação insuperável, por parte dos
parceiros entregues ao jogo.
Não que a perspectiva da hermenêutica negue a racionalidade, mas demonstra que
a estrutura encontra-se num nível pré-reflexivo. O elemento fundador da racionalidade é,
portanto, a estrutura pré-reflexiva. O processo de compreensão exige certo entregar-se à
situação, de modo semelhante ao que acontece no jogo. O jogo deveria ser tomado
como modelo estrutural para explicar o porquê do processo de estruturação. Nós mesmos
estamos nos encontrando como parceiros do processo de compreensão, na medida em que
nos deixamos envolver, levar pelo jogo dentro de um espaço próprio. Isso pode ser
claramente percebido, por exemplo, na utilização do jogo como meio terapêutico na
ludoterapia.
Nesse contexto, perdem-se as regras de distanciamento, principalmente por deixar
de lado os elementos normativos que qualificam a “normalidade” dentro da qual o paciente
está com problemas. Dessa forma, dentro de determinado espaço, o paciente pode se
libertar dos condicionamentos normativos do quotidiano que o escravizam. Huizinga
parece expressar bem isso, ao dizer:
Desde a mais tenra infância, o encanto do jogo é reforçado por se
fazer dele um segredo. Isto é, para nós, e não para os outros. O que
os outros fazem, “lá fora”, é coisa de momento e não nos importa.
significa continuação, sob risco de piorar suas próprias possibilidades de obter o resultado esperado ou obter
a jogada desejada.
149
Dentro do círculo do jogo, as leis e costumes da vida quotidiana
perdem validade. Somos diferentes e fazemos coisas diferentes
469
.
Exige-se do jogador, por outro lado, um determinado comportamento, conforme as
regras do jogo. O espaço do jogo possibilita uma quebra da hierarquia estabelecida pelos
condicionamentos do dia-a-dia. Ele desempenha um papel de auto-atração, lançando sobre
nós um feitiço, tornando-se fascinante, cativante, impossibilitando o seu domínio, por parte
do jogador. Ele tem existência própria, uma “natureza própria”, ou seja, “o sujeito do jogo
não são os jogadores, porém o jogo, através dos que jogam, simplesmente ganha
representação”
470
. Nele toda postura dominadora fica de lado. O jogo exerce um fascínio
sobre nós e, aparentemente, também nos submete não se sabe a quem
471
.
O próprio jogo assume o lugar antes dominado pela subjetividade. Porém, para ser
jogado, ele sempre exige a participação dos parceiros que o executam, os quais não
conseguem se desconectar de sua subjetividade. O movimento, o vaivém pertence tão
essencialmente ao jogo que, em último sentido, faz com que de forma alguma haja um
jogar-para-si-somente. É necessário e condição, para que seja um jogo, que haja alguém ou
algo com o qual o jogador jogue, de modo a ele ter um contralance ao lance dado, mesmo
que não seja tal uma pessoa.
O jogo só cria uma situação favorável devido à possibilidade de o jogador se
colocar a si mesmo em risco. Posso auto-experimentar a mim mesmo no jogo, ele me a
possibilidade de um comportamento que normalmente não devo ter. Assim podemos
afirmar que, ao jogar, se experimentam diferentes papéis sociais. De certo modo, é um
processo reflexivo, mas não no sentido teórico nem epistemológico. É como experimentar
a participação numa “quase-reflexividade” ontológica. É ali que ele poderá fazer a
experiência enquanto experimentação de si mesmo, sem ser perturbado pelos
condicionamentos do dia-a-dia. É aquela idéia de que algo, enquanto algo se revela,
adquire sentido, à proporção que seu sentido é, por assim dizer, de certo modo
compreendido por aquele que está fazendo a experiência.
469
Huizinga, op. cit., p. 15.
470
Gadamer, op. cit., p. 145.
471
Os participantes submetem-se, simplesmente, às regras do jogo, reconhecendo-as como base comum da
ação e sabendo que, sem o respeito entre as partes e às regras estabelecidas, o jogo não se efetuaria. É nesse
sentido que se afirma a seriedade do jogo; uma seriedade que reconhece, além da autonomia do processo,
também os parceiros enquanto condição imprescindível para que o jogo se possa jogar(Flickinger, op. cit.,
p. 53)
150
A mesma estrutura encontramos na analogia da ficcionalidade interna da obra de
arte. Percebe-se certa experiência da produção de um espaço próprio da obra de arte,
onde “o sujeito da experiência da arte, o que fica e persevera, não é a subjetividade de
quem a experimenta, mas a própria obra de arte”
472
. Enquanto tal, é marcada uma diferença
clara do nosso acesso direto à obra, via reflexão, e o acesso direto, via ontologia
473
.
O jogo deveria lançar uma luz para a própria experiência estética. O modo de ser
da obra de arte é intimamente vinculado ao seu ser experimentado, no sentido de
experienciado, e não à análise do modo objetivo. Nessa linha de raciocínio, Gadamer dirá
que “a obra de arte tem seu verdadeiro ser no fato de que se converte em uma experiência
que modifica a quem a experimenta”, sendo que “o sujeito da experiência da arte não é a
subjetividade do que experimente, mas a obra de arte mesma” e mais adiante
complementa, em afirmando que o jogo tem uma essência própria, independentemente da
consciência daqueles que jogam
474
.
O jogo marca um horizonte para além daquele dos participantes. Apesar de o jogo
acontecer, devido à participação ativa dos seus envolvidos, o ato de jogar não deve ser
entendido como um mero desempenho de uma atividade. Conforme Gadamer,
“lingüisticamente o verdadeiro sujeito do jogo não é, com toda evidência, a subjetividade
de quem, entre outras atividades, desempenha também a de jogar; o sujeito é muito mais o
jogo mesmo”
475
.
É através dos jogadores que o jogo simplesmente ganha sua representação. No
jogar “o movimento que nestas expressões recebe o nome de jogo não tem um objetivo ao
qual desemboque, senão que se renova em constante repetição”. Portanto, “é o jogo que é
jogado ou desenvolvido; não aqui nenhum sujeito que seja o que jogue. É o jogo a pura
realização do movimento”.
476
É, pois, o próprio jogo que mantém o jogador a caminho, que
o enreda no jogo.
472
Gadamer, op. cit., p. 145.
473
Não é nosso intento entrar na discussão sobre a obra de arte. Apenas registramos aqui o fato de que a
reflexão sobre o jogo pode ser muito válida para a análise da própria obra de arte. Com isso, não descartamos
que o contrário também seja igualmente possível. Fica, pois, essa questão registrada mais sob a forma de tese;
o leitor poderá encontrar, na obra de Gadamer, uma vasta reflexão a esse respeito.
474
Cf. Gadamer, op. cit., p. 145.
475
Ibid., p. 147.
476
Cf. ibid., p. 146.
151
6.2.4 O jogo como fio condutor diante da compreensão ontológica
Gadamer irá aplicar a estrutura do jogo na área do conhecimento, da compreensão,
não enquanto metodologia, mas enquanto base estrutural para compreendemos o
movimento dentro do qual a compreensão se dá. "algo" que se manifesta, um conjunto
de sentido que, na hermenêutica, não depende mais de uma subjetividade que impõe sobre
o objeto o que ela busca conhecer. Em outras palavras, não é a subjetividade que extrai o
sentido do objeto. Uma das regras básicas do jogo interpretativo é, como no jogo tout
court, o não dever contar com um suposto sentido autêntico a ser revelado ao longo da
investigação interpretativa”
477
. Ao invés disso, na hermenêutica gadameriana, há uma
relação de alteridade entre a subjetividade e o objeto, de modo que a subjetividade não
desaparece.
No jogo hermenêutico não regras, de modo que a expressão “jogo
hermenêutico” não pode ser usada da mesma forma como se usa para os jogos em geral.
Isso porque o jogo hermenêutico não é determinado; ele se na relação com a
historicidade e da linguagem, entre o desvelamento-velamento e ocultação.
Metaforicamente, poderíamos dizer, significa que a bola é lançada de algum lugar do
espaço. O jogo hermenêutico inicia num outro lugar que aquele proposto pelas ciências da
natureza e do espírito. Esse é o acontecer, é o “pré”, elemento que possibilita a
circularidade. Convém percebermos que somente aparentemente eu começo a
circularidade, mas ela já está em jogo, de modo que eu sempre chego tarde ao jogo. Há um
processo pré-reflexivo que chega a ponto de quase tornar-se a instância de autoridade que
determina a reflexão.
Trate-se de um texto, cujo sentido deva ser decifrado, de um parceiro de diálogo
ou de uma obra de arte, o intérprete depende tanto do potencial de sentido
inscrito no próprio ‘objeto’ quanto do modo de acesso a este [...]. O sentido
nasce do vir ao encontro de um ou outro, eu-tu, eu-texto, eu-obra de arte, etc.
Constrói-se no vaivém oscilante entre os dois pólos, sem repouso final. Muito
pelo contrário, o que se experimenta é a incapacidade de esgotar o potencial de
sentido contido nessa experiência. Neste contexto, é a perda da certeza última,
legitimada tradicionalmente pela reflexão, que desconforta e faz sofrer
478
.
Gadamer busca demonstrar a tarefa da hermenêutica em “defender o sentido
racional do texto contra toda imposição”
479
provinda de fora. Nesse sentido,
semelhantemente ao jogo e ao culto, qualquer tentativa de dominar a compreensão é
477
Flickinger, op. cit., p. 53.
478
Ibidem, p. 54.
479
Gadamer, 1996, p. 335.
152
passível de confusões e equívocos. Assim como no jogo, “algo” se a compreender, na
medida em que aquele que quer compreender deve ser capaz de ouvir o outro. Pressupõe-
se uma relação de alteridade, sem hierarquia, mas igualdade de condições, para com ele
estabelecer um diálogo (Gespräch). A idéia a que se chega, efetuado o diálogo, é um
resultado de uma experiência ontologicamente determinada.
O intérprete de um texto deve ganhar a compreensão do texto”, “estar aberto à
compreensão do texto, não quer dizer que eu compartilhe com o que está sendo dito, porém
é condição para uma verdadeira possibilidade de compreensão”
480
. Aquele que se dirige a
um texto, no intuito de interpretá-lo à base de sua pré-compreensão, apenas busca legitimar
suas próprias idéias. Há, sem dúvida, algo a que se tem acesso, que se abre à compreensão,
sem que seja possível compreendê-lo em sua totalidade, mas enquanto “algo” dentro da
totalidade de sentido que se manifesta.
Gadamer sabe muito bem que “aquele que quer compreender está exposto aos erros
de opiniões prévias, que não se comprovam nas coisas mesmas”
481
, mas sabe também ser
necessário “que examine tais opiniões enquanto sua legitimação, isto é, enquanto a sua
origem e validez”
482
. É o jogo da compreensão que vai sendo efetivado. Segundo Gadamer,
frente a todo texto, nossa tarefa é não introduzir direta e
acriticamente nossos próprios hábitos lingüísticos. Pelo contrário,
reconhecemos como tarefa nossa o ganhar a compreensão do texto
somente desde o hábito lingüístico de seu tempo e seu autor
483
.
Gadamer, nesse sentido, não nega a reflexão de Heidegger, ou seja, o texto de fato
está-aí, disponível. Cabe ao intérprete dirigir-se a ele e buscar a interpretação. Porém, se o
fizer conforme a pretensão objetificadora, o texto se fecha em sua possibilidade de
interpretação, ocorrendo somente, no máximo, a legitimação do que era conhecido. Ao
serem introjetadas no texto as perspectivas que interessam ao intérprete, sem a
preocupação em buscar o encontro com a coisa mesma, não estaremos senão reafirmando
tautologias.
Semelhante ao jogo, também na interpretação de um texto não está na
subjetividade a capacidade de dominar a situação. Pelo contrário, exige-se um entregar-se à
situação, a fim de avançar no processo de efetivação da instauração do sentido ou, em
480
Gadamer, op. cit., p. 334.
481
Ibid., p. 333.
482
Ibid., p. 334.
483
Ibid., p. 334.
153
outras palavras, avançar no processo de penetração do sentido, enquanto resultado da
experiência que o intérprete faz, sem poder compreendê-lo em sua totalidade. Gadamer não
pretende encontrar um sistema de regras para descobrir ou guiar o procedimento
metodológico das ciências do espírito
484
, mas um outro sentido na questão da verdade,
como acontecer, que de modo especial se dá ligado à história e linguagem.
6.3 Um olhar atento sobre a história
Como sabemos, o título original da obra Verdade e Método deveria ter sido
Compreender e acontecer”. Mas o editor demonstrou insatisfação com a proposta de
fundamentos de uma hermenêutica filosófica. Segundo Habermas, o êxito da obra está na
relevância de uma pergunta que lhe subjazia, que a obra pretendia responder. Esse fator
levou a obra de Gadamer a ser uma das mais discutidas do século XX na Alemanha.
Compreender e acontecer expressava bem este pensamento: “O compreender do intérprete
‘pertence’ a um acontecer que parte do texto necessitado de interpretação”
485
. Mas é o
título Verdade e Método que irá se firmar e levar a obra para além das fronteiras alemãs,
vindo a conquistar espaço cada vez mais significativo no mundo.
Ao avançarmos para a segunda parte de Verdade e Método, no capítulo intitulado A
extensão da questão da verdade à compreensão nas ciências do espírito, num primeiro
olhar nos chama a atenção que Gadamer o faz à base de uma discussão em torno de
“preliminares históricos”. A história ocupa um lugar de destaque na obra de Gadamer,
pois, trata-se de um espaço no qual desde sempre nos movimentamos para compreender o
mundo, sem podermos dominá-la. O mesmo ocorre com a linguagem, que analisaremos
mais adiante.
6.3.1 Historicização da razão
A hermenêutica se indaga sobre a sua contribuição enquanto filosofia como tal,
considerando que por detrás sempre permanece a questão da finitude. A razão pura de que
484
Cf. Gadamer, 1996, p. 10.
485
Habermas, 2001, p. 99.
154
tratava Kant
486
no século XX vai se historicizando e sendo marcada pela busca da verdade
enquanto acontecer, portanto, ela sai do contexto de historicismo.
Surge assim o problema da historicização do sentido como um problema
fundamental que a hermenêutica levanta e que permanece como ineliminável. Assim, a
hermenêutica filosófica passa a se ocupar da constituição do sentido dos objetos (condições
de possibilidade dos objetos em Kant transcendental). Assim sendo, a hermenêutica traz
a descoberta de que a constituição do sentido é histórica, sendo que denuncia a
insuficiência do acesso à verdade por procedimentos empíricos
487
. O sentido se gesta
intersubjetivamente de geração em geração, na história, ele é gerado. Daí emerge um
sujeito enquanto conceito unitário da pessoa que age, ao mesmo tempo espiritual como
corporalmente. Essa teoria, conforme Apel, de uma pessoa unitária, é fundamental para
uma teoria da ação. A hermenêutica é modo de compreender o não-método.
Conforme Stein o expressa bem, o ponto central que Gadamer toma de Heidegger é
a idéia de que
somos um projeto já projetado, somos um jogo que sempre foi jogado. Assim
se faz uma passagem da situação hermenêutica para o acontecer da verdade. [...]
Gadamer tomou do segundo Heidegger, depois de Ser e Tempo, essa idéia de que
nós somos, desde sempre, um jogo jogado e que na hermenêutica nunca
recuperamos tudo.[...] A Gadamer não interessa propriamente, em seu livro,
aquilo que queremos e fazemos, mas aquilo que para além do que queremos e
fazemos nos acontece e que se refere a elementos que em gérmen estavam em
Ser e Tempo, mas foram totalmente desenvolvidos depois, em Contribuições
para a filosofia
488
.
O fundamental é que a hermenêutica gadameriana descobriu, não em primeiro
lugar, um novo método de trabalho, mas o acontecer da verdade, “no qual estão inseridos o
intérprete e o objeto da interpretação”
489
que não se deixam prender em esquemas lógico-
formais. Por isso podemos afirmar:
A interpretação é hermenêutica, é compreensão, portanto, o fato de nós não
termos simplesmente o acesso aos objetos via significado, mas via significado
num mundo histórico determinado, numa cultura determinada, faz com que a
486
O elemento central da tradição kantiana, a saber, o dualismo é colocado em suspeita. “É por ele que fomos
introduzidos na modernidade numa separação entre consciência e mundo, entre palavra e coisas, entre
linguagem e objeto, entre sentido e percepção. Há, certamente no ponto de partida de Heidegger, no
movimento fenomenológico, uma crença firme de que esse dualismo somente pôde ser instaurado através do
esquecimento do ser, através da introdução de um universo de fundamentação filosófica conduzida apenas
pelo esquema da relação sujeito-objeto” (Stein, 2002, p. 88 – 89).
487
Compreender não é somente compreender objetivamente, às vezes se compreende simplesmente de outro
modo.
488
Stein, 1996, p. 64.
489
Ibidem, p. 77.
155
estrutura lógica nunca dê conta inteira do conhecimento, de que não podemos dar
conta pela análise lógica de todo o processo do conhecimento. Ao lado da forma
lógica dos processos cognitivos, precisamos colocar a interpretação
490
.
É nesse contexto que a linguagem torna-se mediação necessária de todo
conhecimento. Em Heidegger o ser se revela na linguagem. A linguagem passou de uma
concepção meramente instrumental de comunicação para ocupar um status de condição de
possibilidade. Ela é mediação de acesso ao sentido do real. A questão da linguagem é a dos
fundamentos. Ela é a forma mesma de fazer filosofia primeira. A forma moderna de
ontologia é uma reflexão da linguagem sobre si mesma. É uma grandeza transcendental.
Então, sim, existe sentido em dizer que é necessária uma reestruturação da filosofia
transcendental, a partir dos problemas levantados pela hermenêutica filosófica. Significa
dizer que no século XX se dá um deslocamento da reflexão transcendental. Ao invés de
perguntar pelas condições transcendentes na consciência, perguntamos sobre as condições
de possibilidade do conhecimento intersubjetivo. Não se deve partir do fato da consciência,
mas trata-se de passar de uma filosofia da consciência para a filosofia da linguagem,
enquanto reflexão da linguagem sobre si mesma.
Desse modo, percebe-se que filosofia se faz fazendo crítica ao mundo vivido, e
aí a hermenêutica tem uma função essencial.
No conceito de mundo da vida inaugura-se, portanto, a retomada de um universo
de interrogação que continua a velha temática da fundação da tradição, reposta,
no entanto, em nova clave. Não é simplesmente a busca do antepredicativo,
daquilo que é anterior a toda experiência, o “logicamente nu” de Wilhelm
Szilasi. O mundo vivido é constituído a partir do universo da significação, mas já
sempre dado para toda atividade significativa do ser humano. É, de certo modo, a
fonte da significatibilidade possível, sempre dada e que, contudo, se atualiza
sempre de novo na significação que se constitui
491
.
O mundo vivido tem uma força racional tão grande que ultrapassa a pretensão do
discurso racional. “Mas o mundo vivido não significa um novo fundamento no sentido
clássico. É um lugar para o qual nos remetemos”
492
. Estamos num horizonte de sentido
intersubjetivamente partilhado, a linguagem ordinária, que Platão denominou dóxa, é
aquilo que é aceito sem crítica. A primeira tarefa consiste em fazer emergir uma instância
crítica do mundo do senso comum. É no próprio mundo vivido que razões
historicamente fundamentadas. A tarefa primordial da razão está, pois, em pôr em
490
Stein, 1996, p. 18.
491
Stein, 2004, p. 12.
492
Stein, 2004, p. 39.
156
evidência, criticar a dóxa, relativizar todos os conteúdos considerados normais na vida
histórica.
A segunda crítica da razão é a crítica das teorias existentes, quando se deve
perguntar sobre sua validade. É a crítica aos profissionais da razão. A razão tem que ser
conquistada, gestada historicamente. Hermeneuticamente falando, não se trata de uma
transmissão de conhecimentos (ou conteúdos formais) a serem assimilados ou
memorizados, por parte de quem deseja conhecer. A crítica se dirige à pretensão moderna
de uma razão capaz de dar conta do saber absoluto
493
enquanto tal
494
.
Pista disso poderia ser buscada na diferença entre a crítica em Platão e na filosofia
transcendental. Para Platão, a verdade estava, de certa maneira, fora do mundo. Porém, na
modernidade, a razão vai fazer uma crítica a si mesma. Em primeiro lugar, consiste em
saber até onde a razão pode ir, os limites intransponíveis da razão. Ela quer refletir a si
mesma. Kant aponta para uma finitude estrutural da razão, uma vez que aponta limites
intransponíveis.
A grande tarefa da filosofia contemporânea, para Apel, é que filosofia não é
pressuposição de objetos, mas da vida concreta. Refere-se às condições de possibilidade. A
filosofia não trabalha com dedução. Filosofia, contemporaneamente, para Apel, é a que
leva a sério a historicidade, sem cair num historicismo.
A tese básica de onde parte Apel é a própria ciência moderna que trouxe a idéia de
que nossa realidade é fruto da racionalização. A racionalização significou desencantamento
do mundo, resultando em que os outros tipos de saber, que não se movem dentro do
paradigma objetificador, foram reduzidos ao mundo subjetivo. O dualismo do esquema
sujeito-objeto nos levou ao solipsismo de um sujeito dominador, que se esqueceu do ser,
em suas teorias do conhecimento da filosofia moderna. A hermenêutica filosófica, no
entanto, nos devolve a possibilidade de repensar as condições de possibilidade da
compreensão para além da perspectiva das ciências metodológicas.
493
Cf. Gadamer, “foi Hegel que descreveu em sua Fenomenologia do Espírito esse movimento da
autoconsciência em direção a si mesma. Hegel viu naturalmente na autoconsciência filosófica da razão
absoluta o fim absoluto desse movimento” (Gadamer, 2007, p. 141).
494
Convém ressaltar, sem deixar de reconhecer os méritos e a importância do conhecimento científico
contemporâneo, sobretudo em termos de qualidade de vida e contribuições no aumento da longevidade.
157
6.3.2 Sobre a historicidade a partir do olhar gadameriano
Conforme amos anteriormete, a questão central do historicismo consiste
em ver o pensamento do autor como uma tarefa redutora, onde a virtude da cientificidade é
“considerar a compreensão como uma espécie de reconstrução que reproduziria de algum
modo a gênese do texto mesmo”
495
. Em contrapartida, a historicidade é compreendida
muito mais como um modo de ser do mundo histórico. Significa dizer que “não há
nenhuma consciência, em cuja presença a história seria suspensa e concebida”
496
. Em
Heidegger, a historicidade se liga, sobretudo, à questão da estrutura do ser e se constitui
enraizada na temporalidade, que é a condição de possibilidade da historicidade
497
. Por isso
o Dasein não é temporal por estar na história, mas existe historicamente, por ser
temporal
498
. Essa questão é fundamental para que possamos compreender o horizonte
dentro do qual se dá o debate.
A historicidade não resulta da história, mas é a história que é resultado da
historicidade, ou, então, dito de outra maneira, enquanto capacidade de construir uma
história, ela é um modo que tem o Dasein de assumir seu próprio futuro, é possibilidade de
construir a história. A pergunda fundamental de Gadamer não é como interpretar, mas o
que é interpretado. Em princípio, por isso, não se pode ler Gadamer diretamente, a partir de
Dilthey e Schleiermacher, como se fosse um novo teórico das ciências do espírito
499
.
Enquanto Dilthey vai buscar fundamentar um método científico, tomando a
hermenêutica na mesma direção em que segue o romantismo, acreditando sempre poder
construir uma teoria do conhecimento das ciências do espírito
500
, Gadamer se pergunta
pelas condições de possibilidade, isto é, como é possível a compreensão. A questão da
compreensão se dirige ao modo como compreender a compreensão, se sabemos que somos
desde sempre carregados pela história
501
. Portanto, a compreensão deveria ser pensada a
partir da historicidade.
495
Gadamer, op. cit, p. 451.
496
Gadamer, 2007, p. 141.
497
Ver a esse respeito, os §§72 – 77 de Ser e Tempo, onde Heidegger aborda sobretudo a questão da
temporalidade.
498
Cf. Heidegger, op. cit., §72.
499
“O ideal da compreensão histórica universal é uma falsa abstração que esquece a historicidade” (Gadamer,
2007, p. 143).
500
Cf. Gadamer, op. cit., p. 254.
501
Nessa linha de reflexão, veja Verdad y Método, p. 258, onde Gadamer também aborda a questão do sentido
em si mesmo da história.
158
Para Gadamer, o ideal moderno de um saber plenamente transparente em si
mesmo está sendo colocado em xeque pelo conceito de horizonte de sentido. Segundo ele,
toda compreensão, em princípio, parte de um horizonte de sentido, compreende algo, que
pode tornar-se elemento desse horizonte originário. Então, o círculo não é um círculo
vicioso, é um círculo interpretável
502
. A reflexão hermenêutica é, portanto, uma reflexão
sobre a influência da historicidade no nosso conhecer. Ela descobre a história agindo em
nós, em qualquer compreensão, em qualquer conhecimento do mundo. Nesse sentido, a
tarefa fundamental da hermenêutica seria tematizar a história do sentido que age sobre nós,
numa espécie de mediação. Nas palavras de Gadamer,
o horizonte do presente não se forma, pois, à margem do passado. Nem
existe um horizonte do presente em si mesmo, nem horizontes
históricos que houvera que ganhar. Compreender é sempre o processo de
fusão destes horizontes para si mesmo
503
.
A pretensão da universalidade hermenêutica nasce precisamente dessa
tendência integradora, desvelando a historicidade. Implícito a tal perspectiva, permanece
sempre o risco da perda da autocerteza subjetiva. Flickinger o precisa ao refletir sobre a
dificuldade da aceitabilidade da razão humana: “Como no jogo, ao qual se entregam os
jogadores, abrindo-se uns aos outros, o compreender desdobra-se no interior de contextos
intransponíveis por parte dos sujeitos envolvidos”. E complementa: “Dentro destes
contextos, os indivíduos tomam parte ativa na produção de sentidos possíveis,
denominados por Gadamer horizontes; horizontes estes que não podem ser
objetificados”
504
.
Não como negar a história e a linguagem como espaços dentro dos quais
sempre nos movimentamos. Compreendemos o mundo a partir da capacidade de nos
aproximarmos da história e da linguagem, pois desde sempre nos movimentamos dentro
de tal espaço. “Tudo o que se compreende está na história e se desdobra na linguagem”
505
.
Entretanto, apesar de nossa compreensão do mundo se dar a partir da história e da
linguagem, nossa subjetividade não consegue dominar tal espaço, pois a razão histórica
não é a faculdade de ‘suspender’ o próprio passado histórico na presença absoluta do saber.
502
Nas palavras de Gadamer: "Na realidade, o horizonte do presente está num processo de constante
formação, na medida em que estamos obrigados a pôr em prova, constantemente, todos os nossos pré-juízos"
(Verdad y Método, p. 376).
503
Ibid.., p. 376.
504
Flickinger, op. cit., p. 55.
505
Ibidem, p. 55.
159
A consciência histórica é ela mesma histórica”
506
. Na concepção gadameriana, história e
linguagem assumem o papel de meios primordiais, aos quais o homem está entregue
inevitavelmente. Nesse sentido Gadamer pode conceber o Iluminismo moderno como
profundamente não-crítico. “Pois existe realmente um ‘pré-juízo’ do Iluminismo que é
aquele que suporta e determina sua essência: este ‘pré-juízo’ básico do Iluminismo é o
‘pré-juízo’ contra os ‘pré-juízos’, enquanto tais, e, com isso, a despotencialização da
tradição”
507
. O não reconhecimento do peso da história e da linguagem implicaria a
negação do fato de que estamos inevitavelmente entregues desde sempre a tal espaço, o
que é insustentável. Trata-se, pois, de um processo onde os envolvidos se descobrem
inseridos “em uma ordem do acontecer não-manejável por eles”
508
. Aproximamo-nos de
uma situação tal como a de um jogar sem ter o domínio, o que é profundamente irritante
para quem se movimenta dentro de uma tradição do saber constituído à base do impulso
dominador da razão, que aposta na perspectiva calculante para dar conta da verdade.
6.3.3 Um olhar mais atento sobre a linguagem
Sem negar a importância do ambiente cientificista moderno para o homem
contemporâneo, a hermenêutica moderna vem trazer à tona a discussão em torno dos
limites da pretensão moderna, ao denunciar a impossibilidade de sua pretensão, justamente
por não conseguir dar conta da mesma. Portanto, a hermenêutica traz consigo a pretensão
em ampliarmos o debate, sem excluir da pauta a questão da modernidade. “A razão
histórica, que dissolve a restrição do horizonte do tempo e, desse modo, todas as
pretensões de uma validade absoluta, permanece, contudo, razão”
509
. No fundo, ela busca
desconstruir uma racionalidade, racionalidade esta que “colocada sob limites estreitos, quer
mais a certeza que a verdade, e demonstrar a impossibilidade de reduzir a experiência da
verdade a uma aplicação metódica, porque a verdade encontra-se imersa na dinâmica do
tempo”
510
.
Nessa direção, tanto Apel como Habermas insistem na idéia de que a hermenêutica
teria esquecido a questão da validade, ponto com o qual discordamos. O que ambos não
506
Gadamer, 2007, p. 144.
507
Gadamer, op. cit., p. 337.
508
Flickinger, op. cit., p. 55.
509
Gadamer, 2007, p. 141.
510
Hermann, 2003, p. 15.
160
concebem é o fato de que a questão da validade em Gadamer não é tratada dentro do
paradigma da modernidade. Desse modo, conforme temos argumentado no presente texto,
fazer uma leitura de Gadamer, nos moldes do paradigma objetificador moderno, leva a não
compreendê-lo, ocasionando o fechamento do processo de compreensão.
A corrente da qual Gadamer participa permanece mais ligada à questão de
tentar esclarecer as experiências do nosso ser-no-mundo
511
, sobretudo buscando respostas
pela linguagem e história
512
. Procurará mostrar que o sentido se instaura a partir de formas
de mediação, as quais não remetem a um sentido como se este fosse objeto, mas enquanto
contexto em que ele acontece, dentro de uma determinada consciência da realidade.
Rompe-se, assim, com a idéia de um único método
513
para chegar à verdade. Exige-
se, por parte do próprio investigador, que ele leve em conta sua situação histórica, sua
historicidade e finitude, sem poder escapar ao fato de ele se encontrar já desde sempre
inserido num horizonte de sentido, numa tradição, que lhe ultrapassa a possibilidade em
trazer à consciência o todo no qual se insere.
A perspectiva da hermenêutica filosófica acaba por denunciar o ambiente
cientificista moderno, que criou condições favoráveis para o predomínio de perspectivas,
como é o caso do Iluminismo
514
. Tais perspectivas de construção de conhecimento,
sustentam-se à base do método que se apóia em dados objetivos como procedimento
válido, levando a um monismo metodológico, ofuscando, de certa forma, a possibilidade
de percepção de outras formas de conhecer a realidade
515
. O problema é que apenas se
aceita como passível de veracidade aquilo que é possível ser comprovado pelas vias
metodológicas, resultando no impulso do modelo objetificador na construção do
conhecimento.
511
A esse respeito, veja-se o §12 de Ser e Tempo, onde Heidegger analisa o ser-no-mundo em geral como
constituição fundamental do Ser-aí.
512
Sobre esse ponto o §34 de Ser e Tempo parece abordar bem as bases sobre as quais nossa discussão
posterior irá se firmar.
513
Méthodos (metá + hodós) no sentido de caminho para se chegar a um fim.
514
Conforme o esclarece Flickinger: “[…] pois questiona-se se o conceito de racionalidade, tal como
articulado pelo Iluminismo, já se teria esgotado, obrigando-nos a buscar orientações novas, ou se sequer teria
chegado ao seu desdobramento pleno, exigindo-se, portanto, a sua implementação verdadeira. Os defensores
da tradição iluminista – entre outros J. Habermas, A. Wellmer, K. O. Apel opõem à falange dos teóricos da
pós-modernidade a inaceitabilidade de renunciar à pretensão universal da fundamentação racional do saber e
do agir, se não se quiser recair em concepções pré-racionais, abertas à mitologização. Por outro lado, os
representantes do pós-modernismo insistem em que sua preocupação principal consistiria exatamente na
descoberta das implicações irracionais da imposição irrestrita do conceito moderno de racionalidade, as quais
justamente teriam levado a combatê-la” (2003, p. 47).
515
Cf. Hermann, op. cit. p. 15.
161
Uma das chaves-de-leitura, para compreendermos a origem da hermenêutica, no
sentido moderno, está justamente na compreensão da bipolaridade sujeito-objeto, que, sem
dúvida, na modernidade criou o “mito do objetivismo”, conforme exposto acima. Diante
da “pretensão de universalidade da metodologia científica”, a hermenêutica se posicionará
no sentido de querer fazer valer o fenômeno da compreensão
516
.
Com Schleiermacher, a hermenêutica ainda se encontra muito presa à
perspectiva de encontrar procedimentos científicos capazes de dar conta de uma
metodologia que fundamente o sentido a ser encontrado. Schleiermacher estava
preocupado mais com os estudos teológicos, de modo que acreditava ser possível encontrar
um método a partir do qual dar-se-iam as interpretações da Sagrada Escritura. Veja-se que
essa tendência, ao fazer da hermenêutica uma espécie de legitimadora de procedimentos
para a interpretação, por um lado, ainda se liga à questão procedimental, a saber, pelo uso
meramente instrumental da razão. Porém, por outro lado, traz a novidade que irá dar as
condições para o surgimento da “hermenêutica moderna”, ao contrapor ao caminho causal-
explicativo, uma vez que a hermenêutica passa a não ser mais compreendida enquanto
interpretação filológica. Desse modo, a interpretação não é algo externo ao interpretado,
porém caracteriza-se, antes de mais nada, “pela exposição e avaliação do envolvimento do
homem no processo do saber”
517
.
Portanto, é na terceira parte de Verdade e Método que Gadamer dedica atenção
especial à linguagem. A linguagem abre o espaço para o acontecimento de uma experiência
ontológica por excelência, sem que o sujeito, com seus impulsos dominadores, possa
apropriar-se de tal, conforme foi exposto. Diante dessa experiência, a linguagem torna-
se condição de possibilidade para a efetivação do horizonte do compreender. Entretanto,
isso não significa que a linguagem possa ser assumida como ferramenta objetificante das
pretensões do sujeito. Muito antes, para que compreendamos a linguagem enquanto
“horizonte intransponível à reflexão”, necessitamos vivenciá-la. O diálogo vivo assume,
assim, lugar de destaque na filosofia de Gadamer.
Apesar de a exposição da ontologia da linguagem não conseguir dar conta,
ainda, na terceira parte de Verdade e Método, das experiências implícitas na linguagem
516
Cf. ibidem, p. 16 – 17.
517
Flickinger, 2000, p. 07.
162
vivida
518
, é sem dúvida aí o início de um novo olhar sobre o compreender, onde a
linguagem passa a ser compreendida como “horizonte intransponível à reflexão, que,
vivida, não se deixa esgotar no papel de mero objeto e aponta, através de si mesma, o que
nela se esconde e solicita a reflexão”
519
.
Viver na linguagem significa, em outras palavras, condição de possibilidade
para chegarmos a um nível mais profundo no diálogo, pois “é só no diálogo vivo que o Ser
para a linguagem encontra seu campo primordial de experiências”
520
. Isso nos remete ao
processo compreensivo, abrindo espaço para o desocultamento da experiência ontológica
subjacente a todo impulso do querer compreender. Desse modo, a linguagem torna-se, em
Gadamer, horizonte intransponível à reflexão, pois, ao ser vivida, não se deixa apanhar
como mero objeto, apontando, através de si mesma, o que nela se esconde e não pode
prescindir de reflexão
521
.
É pelas vias da linguagem que nos é possibilitado o acesso à tradição. Em outras
palavras, a apropriação da tradição é sempre um compreender do ser que é linguagem.
Nesse sentido, não podemos negar nossa pertença à tradição. Nascemos numa tradição que
antecede o nosso existir no mundo, sendo que, num primeiro momento, nossa compreensão
de mundo se inicia num diálogo profundo com a própria tradição. Significa dizer que me
auto-compreendo, num primeiro momento, enquanto pertencente à tradição, conforme
veremos a seguir.
518
Flickinger, 2003, p. 56.
519
Ibidem, p. 57.
520
Ibidem, p. 57.
521
Cf. Ibidem, p. 57.
163
7 APROPRIAÇÃO DA TRADIÇÃO: UM PONTO CENTRAL EM
VERDADE E MÉTODO
A questão da apropriação da tradição [Traditionsaneignung
522
] é um tema-chave da
obra Verdade e método de Gadamer. O autor demonstra por ele uma preocupação especial.
Desde o início da obra, Gadamer antecipa muito discretamente a importância que tem a
questão da tradição dentro da perspectiva em que a obra irá se desenvolver.
No prólogo à segunda edição de Verdade e Método, percebe-se a preocupação de
Gadamer em deixar suficientemente clara a sua perspectiva, pois, na segunda e terceira
páginas, enfatiza que o pretende desenvolver um sistema de regras para descrever (ou
com pretensões de se tornar um norte para) o procedimento metodológico das ciências do
espírito, nem quer reavivar a disputa entre as ciências da natureza e as do espírito
523
. O que
pretende é muito antes permanecer situado no campo filosófico
524
, dirigir a pergunta sobre
“o que ocorre conosco acima de nosso querer e fazer”
525
, de modo que não se coloca a
questão do que fazemos ou que deveria ser feito, mas o que acontece conosco, mesmo
acima de nossa capacidade de entendê-lo, no que participamos, sem podermos definí-lo.
Esta é, para nós, também questão central na discussão que estamos desenvolvendo.
A questão que se coloca está ligada ao fato de que não podemos negar nossa
pertença à tradição (ou tradições), uma vez que constituímos nosso ser, nossa consciência
522
A tradução espanhola que usamos preferiu o termo “apropriamento” a “apropiación”, alegando que assim
evitar-se-ia a cacofonia resultante do uso continuado em conjunção com “tradición”. Entretanto, para o uso
na língua portuguesa, não vemos esse problema, de modo que optamos por traduzir como “apropriação”, pois
expressa melhor o sentido no contexto em que a estamos discutindo.
523
Cf. Gadamer, 1996, p. 10 – 11.
524
Convém destacar que a filosofia, justamente por não tratar de objetos, mas do modo como podemos
compreender os objetos, a torna inconfundível com a ciência. Ao perguntar como é possível a compreensão,
Gadamer tinha bem clara essa perspectiva da herança inegável kantiana. O modo como inicia a obra Verdade
e Método e os capítulos seguintes são prova fática dessa sua clareza, ao iniciar justamente com a experiência
frente à obra de arte.
525
Gadamer, op. cit., p. 10.
164
de mundo, nosso ser sujeito da história dentro da tradição. Experimentamo-nos como
sujeitos que fazem história e que, por sua vez, também é feito pela mesma, sendo
impossível o total auto-distanciamento de tal situação, a ponto de podermos “saltar para
fora” da tradição na qual nascemos e que, por assim dizer, forma nosso ser no ponto de
partida para a construção da subjetividade. Portanto, algo anterior ao que aparece e que
deve ser levado a sério para podermos discutir com Gadamer sobre a importância da
apropriação da tradição.
O fato de nascermos dentro de tradições nos coloca frente a algo que, num primeiro
momento, antecede e determina nossa compreensão do mundo. Essa situação, que é
condição sine qua non para nosso ser-consciente-no-mundo, nos abre a possibilidade de
um encontro conosco mesmos e com a base sobre a qual construímos nosso “eu”. Nesse
sentido, Gadamer abre a possibilidade de discutirmos essa questão à base de um horizonte
de sentido que se mostra como espaço aberto, anterior ao eu, conforme veremos.
7.1 O modo de compreensão do conceito tradição em Gadamer
Na Introdução a Verdade e Método, Gadamer destaca a proximidade e
inseparabilidade entre compreensão e tradição. Instigando o leitor a ultrapassar limites da
metodologia das ciências do espírito, ele chama a atenção de que, “quando se compreende
a tradição, não somente se compreendem textos, porém que se adquirem perspectivas e se
conhecem verdades”
526
. Trata-se de não ignorar a metodologia científica, porém de
reivindicar a ela o reconhecimento de seus próprios limites diante de um contexto onde “o
fenômeno da compreensão não somente atravessa todas as referências humanas ao mundo,
mas que também tem validez dentro da ciência”
527
. A hermenêutica filosófica surge como
uma espécie de resistência que tem justamente no fenômeno da compreensão a
possibilidade de compreender o que ocorre, apontando para uma metodologia filosófica
que Gadamer denomina “o problema da imanência fenomenológica”. E conclui: Isto é
efetivamente correto, meu livro se assenta metodologicamente sobre uma base
fenomenológica”
528
.
526
Ibidem, p. 23.
527
Ibidem, p. 23.
528
Ibidem, p. 19.
165
Ao expressar “a base fenomenológica”
529
sobre a qual a obra se assenta, Gadamer
não está sugerindo que se trata da mesma fenomenologia anteriormente a ele desenvolvida,
sobretudo por Husserl. Percebe-se que ele tem uma preocupação em expor à base de qual
tradição está se movimentando: “A atualidade do fenômeno hermenêutico repousa, em
minha opinião, no fato de que somente um aprofundamento no fenômeno da compreensão
pode ocasionar uma legitimação deste tipo”
530
. Em outras palavras, poderíamos dizer que,
com isso, deixa explícito ao leitor, que queira refazer sua trajetória, que ele tem
consciência de qual tradição está se apropriando para poder efetivar sua reflexão
531
.
Vamos tentar especificar melhor a questão discutida aqui: o que é tradição para
Gadamer e como ela se relaciona com a compreensão enquanto imanência
fenomenológica? Para compreendermos o que Gadamer está querendo dizer neste ponto,
urge pontuarmos que a tradição nunca é algo estático, situado em um tempo e limitado
dentro de um determinado contexto. Antes pelo contrário, a tradição possui uma
produtividade própria, de modo que “nosso ser histórico e finito está determinado pelo fato
de que a autoridade do transmitido, e não somente o que se aceita racionalmente, tem
poder sobre nossa ação e sobre nosso comportamento”
532
, comportamento esse que não é a
mera reprodução de esquemas preestabelecidos, mas que assume sempre nova
configuração à medida que se torna diálogo vivo
533
.
O próprio Gadamer, num texto intitulado História do universo e historicidade do
homem (1988), publicado originalmente na obra Gesammelte Werke 10, Hermeneutik im
Rückblick, recentemente traduzida para a língua portuguesa, pergunta: “O que é
propriamente tradição? O que é legado? O que significa ser entregue pela tradição? Uma
informação?” e complementa, respondendo: “Não se trata manifestamente de um mero
prosseguimento da transmissão de uma informação sobre algo que aconteceu ou da
descoberta de seus rastros com base em resíduos. Ao contrário, trata-se de
monumentos”
534
. Talvez a tradução de “Was heiβt da Tradiertwerden?” por “O que
significa ser entregue pela tradição?” não consiga expressar na íntegra o sentido.
529
Gadamer é herdeiro da perspectiva fenomenológica de Heidegger, segundo a qual não é o lógos que é
acentuado, mas o fenômeno. O lógos acontece no fenômeno. Algo se esconde no que aparece, de modo que
se corre o risco de chegar ou não a um lugar almejado.
530
Ibidem, p. 24.
531
Com isso já estamos apontando para a terceira tese desenvolvida por Theunissen, conforme veremos
adiante.
532
Ibidem, p. 348.
533
Cf. Gadamer, 1994, p. 332.
534
Gadamer, 2007, p. 192.
166
Infelizmente a tradução não consegue escapar a certa miserabilidade em suas pretensões,
de modo que talvez seja mais apropriado compreender tal enunciado de Gadamer por “O
que significa receber seu ser da tradição?” ou então “O que significa tornar-se pela
tradição?” “Trata-se de monumentos”, eis sua resposta, monumentos que se eternizam
poderíamos acrescentar. Mas o que ele está querendo dizer com isso?
Tradição não deve, portanto, ser confundida com costume(s), pois este(s) não se
efetiva(m) por livre determinação, assim como sua validez não se assenta nesta, mas que,
muito antes, a tradição é o fundamento da validez dos costumes. Essa perspectiva de
admitirmos a tradição como fundamento é um dos pontos mais importantes da obra de
Gadamer, tornando-se objeto central de suas preocupações, tanto implícita quanto
explicitamente. Com isso é possível demonstrar que, além de distingui-lo de Heidegger,
possibilita-nos afirmar que as acusações de relativismo, freqüentemente feitas à
hermenêutica filosófica, não se sustentam.
Enquanto Heidegger mantém-se vinculado à perspectiva de encontrar as estruturas
existenciais da compreensão, Gadamer, ao tomar a apropriação da tradição como objeto de
sua investigação, explicita que a sua proposta hermenêutica não se efetiva sobre a nudez ou
vazio de algo. A proposta gadameriana seria relativista, se, ao invés de buscar a
compreensão da verdade na tradição, se limitasse a analisar de modo historicista o passado.
A questão da incompreensibilidade da proposta de Verdade e Método parece girar em
torno do fato de a proposta gadameriana não seguir o método das ciências da natureza e
das ciências do espírito. Talvez seja esse o ponto central por que os que estão imbuídos do
paradigma
535
objetificador não conseguem compreender tal proposta, limitando-se a acusar
a hermenêutica filosófica de relativista, em lugar de procurar compreendê-la dentro do
paradigma desenvolvido e proposto por Gadamer.
535
O conceito paradigma aqui usado é no sentido proposto por Thomas S. Kuhn em sua obra A estrutura das
revoluções científicas, onde a “ciência normal”, ou seja, tal como comumente entendida, “se desenvolve
dentro de um paradigma no qual, e dentro do qual, parece que se vão acumulando os conhecimentos; os
homens de ciência vão resolvendo as perplexidades como que se defrontam e com isso acontece o que se
estima progresso. O que não se acha dentro do correspondente paradigma é rejeitado por ser ‘metafísico’, por
não ser, propriamente falando, científico. A aparição de anomalias dentro do paradigma não obriga, nos
primeiros momentos, a descartá-lo; os conceitos e as teorias se reajustam, mas o paradigma se mantém.
Quando as anomalias, contudo, são excessivas, começa-se a pôr em vida a própria validade do paradigma
adotado (inconscientemente adotado). Acontece então uma revolução científica, que termina por consistir
numa mudança de paradigma. No trânsito de um paradigma a outro, a ciência oferece um aspecto ‘anormal’;
em vez de perplexidades, surgem problemas, que terminam por romper o paradigma até então estabelecido e
contribuem para o assentamento de um novo paradigma” (cf. Mora, 2001, p. 2200).
167
Nesse contexto de resistência, o problema da verdade envereda por um caminho do
qual a ciência, com sua metodologia científica, não consegue dar conta, a saber, o
acontecimento da experiência da verdade. Trata-se da experiência da filosofia com a da
arte, assim como com a história e a linguagem, conforme vimos anteriormente. Gadamer é
preciso ao afirmar que, “junto à experiência da filosofia, a da arte representa o mais claro
imperativo de que a consciência científica reconheça seus limites”
536
. Isso porque a ciência
não consegue a verificabilidade de tais limites, valendo-se de sua metodologia
537
. Desde
logo, a questão da apropriação da tradição, conforme Theunissen (2001) o expressa muito
bem, é um tema que envolve e perpassa toda a obra Verdade e Método, como veremos
adiante, em analisando as três teses propostas por ele.
Tradição não é, portanto, a mera reprodução de algo, mesmo que haja nela
resquícios de algo que permanece enquanto algo. Porém, desde sempre ela adquire um
sentido produtivo no seu modo de ser, ou seja, ela é, ao mesmo tempo, como que a
“presentificação”
538
de algo que permanece enquanto algo, porém que também se num
novo horizonte de sentido, adquirindo novo sentido. É isso que faz com que cada época
compreenda a “coisa mesma” à base de seus próprios pressupostos. Algo permanece,
enquanto também se transforma em novo, sendo uma nova compreensão que se efetiva
num presente aberto
539
. “A experiência da tradição histórica vai fundamentalmente além do
que nela é investigável”, pois “ela proporciona sempre verdade, uma verdade em que
que lograr participar”
540
.
Conforme percebemos, ao partir da arte e da tradição histórica, não é por acaso que
Gadamer o faz. Desde o princípio, somos como que conduzidos para o encontro da
estratégia do autor, que nos situa numa relação com a compreensão enquanto acontecer da
tradição. Portanto, somos participantes, antes de qualquer possibilidade de sermos
determinadores. Isso já denuncia que podemos estar ofuscados pelas promessas de verdade
536
Gadamer, op. cit., p. 24.
537
Este é um ponto de irritabilidade aos que não conseguem usar da hermenêutica filosófica conforme
proposto por Gadamer, para satisfazer seus desejos objetificadores. No expor de Flickinger: “Nada pior para
o cientista do que renunciar, forçadamente, a suas certezas básicas” (2007, p. 7).
538
Na ausência de um conceito na língua portuguesa que expresse a ação de tornar presente, sem ser a
repetição na íntegra de algo ocorrido no passado, usamos o conceito “presentificação”. Talvez o conceito que
mais se aproxima é o de “fusão de horizontes”, porém, como se trata de um sentido um pouco diferente do
que estamos discutindo aqui, preferimos o conceito “presentificação”, entendido como ação de tornar
presente, isto é, pressupõe movimento dentro do qual se dá a gestação do sentido da coisa a ser
compreendida.
539
Presente em que não se dá a verdade definitiva enquanto tal, mas que se mantém aberto a novas
possibilidades de compreensão em coerência com a tradição apropriada.
540
Ibidem, p. 25.
168
que as ciências nos trouxeram. Tais propostas se impõem como exclusivas para chegarmos
à verdade e compreensão do mundo, efetivado à base das vias do método. Ele o expressa
argumentando:
Por isso, a hermenêutica que aqui se desenvolve não é tanto uma metodologia
das ciências do espírito, quanto o intento de chegar a acordos sobre o que são em
verdade tais ciências, mais além de sua autoconsciência metodológica e sobre o
que as vincula com toda nossa experiência do mundo
541
.
Sem dúvida, há a exigência de uma mudança paradigmática, por parte de quem está
preso às amarras da perspectiva objetificadora. Pelo exposto acima, fica evidente que não
a possibilidade de admitir a reflexão sobre as ciências fora da tradição. Em outras
palavras, as ciências mesmas estão inseridas dentro de uma tradição que as impossibilita
“saltar para fora” de tal situação. Significa dizer que nós pertencemos à história muito
antes que ela nos pertença, pois estamos sempre nos compreendendo a nós mesmos na
reflexão, talvez até possamos dizer, de maneira auto-evidente.
Trata-se de uma nova consciência crítica que desde então deve acompanhar todo
filosofar responsável, colocando os hábitos de linguagem e de pensamento que
se formam no indivíduo, através de sua comunicação com o entorno, ante o foro
da tradição histórica a que todos pertencemos comunitariamente
542
.
Tal pertença à tradição histórica, num primeiro momento, nos torna
“prisioneiros”
543
de um mundo que nos antecede, sendo que nosso acesso a ele é sempre
limitado. Não significa, pois, que venhamos a ficar “eternamente prisioneiros” de tal
tradição. Desse modo, de antemão temos que admitir a impossibilidade de dar conta da
totalidade da tradição histórica, o que não significa a impossibilidade de acesso ao mundo,
porém reconhecimento e ciência de que um limite interno à razão humana. Com isso,
percebemos que a “compreensão não é nunca um comportamento subjetivo com respeito a
um ‘objeto’ dado, mas que pertence à história efetual, isto é, ao ser do que se
compreende”
544
.
Assim firma-se a tese central de Gadamer, a saber, “que em toda compreensão da
tradição opera o momento da história efetual”
545
, que não se esgota no dizível,
permanecendo uma dimensão de não-apropriação plena naquilo que é apropriado da
tradição. “Na verdade, a tradição sempre é também um momento da liberdade e da
541
Ibidem, p. 25.
542
Ibidem, p. 27.
543
No sentido de que não podemos, num primeiro momento, ignorar o fato de nascermos dentro de tradições.
544
Ibid., p. 14.
545
Ibid., p.16.
169
história”, sendo “essencialmente conservação, e como tal nunca deixa de estar presente nas
mudanças históricas”
546
. Em linguagem mais precisa:
Em nosso comportamento com respeito ao passado, que estamos confirmando
constantemente, a atitude real não é a distância nem a liberdade com respeito ao
transmitido. Pelo contrário, nos encontramos sempre em tradições, e este nosso
estar dentro delas não é um comportamento objetivador que pensou como
estranho ou alheio o que disse a tradição; esta é sempre mais algo próprio,
exemplar ou aborrecível, é um reconhecer-se naquilo que para nosso juízo
histórico posterior não se percebe apenas conhecimento, senão um imperceptível
ir transformando-se ao passo da mesma tradição
547
.
E justamente este encontrar-se em tradições, assim como fascina, também ofusca,
de modo que mantém a marca de um passado não plenamente recuperável, ao passo que
traz a expectativa da recuperação do passado. Não significa a não-reflexividade, mas o
reconhecimento de um limite interno à razão, por não conseguir dar conta da totalidade da
situação.
7.1.1 O potencial de produtividade da tradição
O encontrar-se sempre em tradições aponta para o modo próprio de nossa
existência. Nós não somos independentemente de tradições, assim como não conseguimos
pensar fora delas. Logo, nos encontramos dentro delas
548
, à base das quais conseguimos
certa consciência histórica. Portanto, tradição e tradicionalismo são conceitos distintos.
Mesmo havendo certa proximidade entre ambos, em Gadamer a superação da
compreensão do modo como a Ilustração tratou tal conceito. Trata-se, pois, da superação
do sentido de renovação da tradição, conforme a Ilustração o pretendia, para torná-la uma
reflexão crítica com a possibilidade de instauração de uma nova compreensão, de um
momento novo, e não algo radicalmente novo, mantendo, evidentemente, aspectos
conservados rumo a uma imperceptível transformação que não perde a racionalidade. “Em
outras palavras, que reconhecer o momento da tradição no comportamento histórico e
elucidar sua própria produtividade hermenêutica”
549
.
546
Ibid., p. 349.
547
Ibid., p. 350.
548
A esse respeito veja-se 5.2.3 do presente texto, onde se aborda essa mesma questão.
549
Ibid., p. 351.
170
A essência da tradição se mostra ali onde podemos participar. “O que satisfaz nossa
consciência histórica é sempre uma pluralidade de vozes nas quais ressoa o passado”
550
, o
qual se “presentifica”, sem ser mera repetição, e também sem podermos falar em
conhecimento completo da história, o que nos remeteria para a perspectiva das ciências
naturais.
Em se tratando da relação com o texto, significa dizer que é no próprio texto que se
deve abrir “um horizonte de interpretação e compreensão que o leitor tem que conseguir à
base do conteúdo”
551
. Esse conteúdo se torna significativo, justamente quando elevado a
um diálogo vivo.
o conceito tradicionalismo aponta para a possibilidade de uma recuperação na
íntegra de um sentido, tal como ele se efetivou no passado. Não se trata de uma atualização
de algo a um contexto na contemporaneidade, antes seria mais a transferência de algo do
passado para o presente, no sentido de que, mantendo as mesmas características, e, no caso
de uma experiência, acreditando-se poder fazê-la da mesma forma como fora feita outrora.
A perspectiva tradicionalista se liga à expectativa de reprodução de algo trazido do
passado, que mantém a mesma essência, podendo esta ser transmitida sem a preocupação
com o novo contexto dentro do qual se desenrolará
552
. Portanto, trata-se da expectativa de
“transportar” para o presente, ou refazer a mesma experiência, nos mesmos moldes de
como fora feita no passado.
Em dando seqüência às reflexões em torno da tradição, optamos por expor a crítica
de Theunissen para, a partir daí, podermos compreender ainda melhor a questão da
tradição e seu peso na discussão desenvolvida por Gadamer.
7.2 Crítica de Theunissen à hermenêutica filosófica de Gadamer
Em sua crítica à hermenêutica filosófica de Gadamer, Theunissen (2001) apresenta
três teses que julga centrais para compreender a amplitude e extensão da obra de Gadamer.
550
Ibid., p. 353.
551
Cf. Gadamer, 1994, p. 332.
552
Entretanto, por menos que queira a perspectiva tradicionalista, não escapa a certa perda do espaço original
no confronto com o presente, sendo que este não é o mesmo dentro do qual anteriormente havia se
desenvolvido a experiência. Isso mostra uma das razões pelas quais o tradicionalismo tende a tornar-se
dogmático e, não raro, fechar-se sobre si mesmo.
171
Passaremos, a seguir, a expô-las. Num primeiro momento, nos preocupamos em
reconstruir os argumentos de Theunissen para, num segundo, passarmos a analisá-los.
Para Theunissen, a perspectiva da hermenêutica filosófica, conforme o pretendia
Gadamer, leva numa direção inversa à ampliação até outras correntes de pensamento,
invertendo sua orientação até a tradição. Nessa direção também vai Vattimo, entroncando-
a com a perspectiva de Heidegger. Nesse sentido, na retórica encontrar-se-á uma espécie
de “meio para dissolver o velho conceito europeu de ser
553
. Passemos então às três teses
propostas por Theunissen.
7.2.1 Primeira tese: sobre a amplitude da apropriação da tradição
A primeira tese sustenta que a apropriação da tradição é o tema que envolve toda a
obra Verdade e Método, pois a compreensão hermenêutica da tradição constitui,
certamente, um dos aspectos centrais da obra de Gadamer, na medida em que “o sim à
liberdade que nos dão as tradições, vai de comum acordo com o não a uma liberdade que
nos tornamos frente a elas”
554
.
Não como escapar ao fato de estarmos constantemente sendo interpelados pela
tradição, que, enquanto se manifesta na racionalidade, ao mesmo tempo mantém elementos
de que a própria racionalidade, condicionada pela situação em que se encontra, não
consegue dar conta. Nesse sentido, ao tomar Habermas como uma espécie de interlocutor,
Theunissen enquanto obriga a consciência hermenêutica para com a razão, denuncia,
reconhecendo plenamente o autocompromisso da hermenêutica filosófica com uma
racionalidade imanente à tradição, a uma razão independente das tradições vivas”
555
. Tal
perspectiva, vista sob a argumentação gadameriana, pode tornar-se problemática, uma vez
que, na hermenêutica filosófica proposta por Gadamer, não a possibilidade de
concebermos uma razão independente das tradições vivas, pois ela, desde sempre, se
reconhece e conhece imersa na tradição.
O consagrado pela tradição e pelo passado possui uma autoridade que se fez
anônima, e nosso ser histórico e finito está determinado pelo fato de que a
553
Theunissen, 2001, p. 73.
554
Ibidem, p. 77.
555
Theunissen, op. cit., p. 77.
172
autoridade do transmitido e não somente o que se aceita racionalmente, tem
poder sobre nossa ação e sobre nosso comportamento
556
.
É no mínimo curioso que Gadamer conclui seu texto sobre El modelo de lo
clásico
557
afirmando, com relação ao compreender, que este “deve pensar-se menos como
uma ação da subjetividade do que como um inserir-se [Einrücken in ein] a mesma em
direção a um acontecer da tradição”
558
. Nessa direção, Theunissen discute, à base da
abordagem fenomenológica de Gadamer, que, conforme veremos, em se tratando da
compreensão, esta se efetiva na apropriação da tradição viva.
7.2.2 Segunda tese: sobre a fenomenologia do compreender
A racionalidade está desde sempre imanente à tradição. Logo, falar em tradição
pressupõe de antemão a existência dentro dela. Ao mesmo tempo que vive os desafios do
presente, também se relaciona a uma tradição que se abre a um presente sempre aberto
559
.
Em sua segunda tese, Theunissen expõe que “Gadamer oferece uma descrição
puramente fenomenológica do compreender que se apropria da tradição”. E complementa,
argumentando que “se converte em ‘fenômeno hermenêutico’ no sentido forte de que cai
numa redução que põe as posições ontológicas [Seitsetzungen] entre parênteses”
560
.
Theunissen fará uso das confissões de Gadamer a respeito de suas raízes
husserlianas, no que tange à fenomenologia transcendental. Ele percebe a intensidade do
que Gadamer expressa no Prólogo à Segunda Edição de Verdade e Método ao dizer: “Meu
livro se assenta metodologicamente sobre a base fenomenológica”
561
. Mais adiante, a obra
também o evidencia ao fazer uso do conceito de horizonte e se aproximar do conceito de
mundo da vida, no sentido de que não se deve pensar a subjetividade como oposta à
objetividade, porque este conceito de subjetividade estaria também sendo pensado de
maneira objetivista. Portanto, a influência de Husserl no pensamento de Gadamer é fato
consumado, o que, no entanto, não significa que este seja limitado a tal. O que se percebe
556
Gadamer, op. cit., p. 348.
557
Ibidem, p. 353ss.
558
Ibidem, p. 360.
559
O fechamento do presente no fundo significa que perdemos a perspectiva do diálogo com a tradição e
passamos a repetir, de modo tautológico, o que julgamos ser verdadeiro.
560
Ibid., p. 74.
561
Gadamer, op. cit., p. 19
173
de fato é o efetivar-se da tradição dentro da qual Gadamer se movimenta. É justamente
desse movimento que estamos falando no presente capítulo.
Surge, com isso, uma questão instigante a respeito do modo como em Verdade e
Método se resolve o problema do objeto de investigação propriamente dito. Nas ciências
do espírito, a motivação e o interesse do investigador, que se volta para a tradição,
repousam no objeto, numa relação em que o sujeito buscaimpor a este as condições sob
as quais pretende extrair-lhe a verdade. Nesse sentido “o romantismo entende a tradição
como o contrário da liberdade racional e nela um dado histórico como pode sê-lo a
natureza”
562
.
A hermenêutica filosófica traz à tona o momento da tradição no comportamento
histórico, chamando a atenção para a impossibilidade em podermos tomar a história como
objeto, pois “carece de sentido falar de um conhecimento completo da história”
563
. No
entanto, a investigação histórica sempre permanece sustentada pelo movimento histórico
no qual se encontra a vida mesma. Nesse contexto, em diferentes momentos, entra em jogo
a coisa que se representa historicamente sem se esgotar. “O que satisfaz a nossa
consciência histórica é sempre uma pluralidade de vozes nas quais ressoa o passado”. E
Gadamer complementa: “Este aparece na multiplicidade de ditas vozes: tal é a essência
da tradição de que participamos e queremos participar”.
564
Participamos da tradição de
modo que é nela que se o movimento histórico em que se desenrola a nossa vida. Não
como sair dessa situação, não há como sustentar uma perspectiva que admita a
subjetividade intacta do peso que a tradição exerce sobre ela. Nisso Theunissen está correto
e é muito preciso, ao escrever: “O pensamento fundamental e mais inovador de Gadamer é
que cada compreender atual pertence ao acontecer da tradição viva”
565
.
Esta é uma afirmação central de Theunissen, onde percebemos a sua profundidade e
a seriedade de sua crítica. De fato, não a possibilidade de um compreender atual, isto é,
“presentificado”, sem que se dê a abertura ao acontecer da tradição viva. Em outras
palavras, significa reconhecer que a tradição viva, enquanto “presentificação” da
compreensão, exige o encontro do sujeito com as tradições à base das quais acontece sua
compreensão.
562
Ibid., p. 349.
563
Ibid., p. 353.
564
Ibid., p. 353.
565
Theunissen, op. cit., p. 81.
174
7.2.3 Terceira tese: a apropriação da tradição como apropriação da tradição
Na terceira tese, Theunissen procura sustentar que a informação sobre o tema da
apropriação da tradição de Gadamer proporciona o modo e maneira como ele mesmo se
apropria da tradição
566
. Esta é a principal das três teses, pois “haverá que ter em conta algo
mais que uma marcha através de um pedaço de história do espírito, a saber, um processo de
autoconstituição da hermenêutica filosófica”
567
. Para desenvolver essa tese, descreve
quatro níveis distintos, que iremos expor e analisar a seguir.
O primeiro nível caracteriza-se por uma apropriação criativa do dialogismo judeu-
alemão, que, segundo o próprio Gadamer, foi muito prematura. Provém daí a proximidade
com Buber, Rosenzweig, Jacobi, Herder, Hamann e Wilhelm von Humboldt, assim como
Schleiermacher
568
e outros. Dessa corrente temos a proximidade entre linguagem e
diálogo.
Gadamer concebe um texto transmitido e, em última instância, as tradições
vivas mesmas – como um tu. Também é uma herança dialógica que não busque o
tu, como Schleiermacher, no sujeito do qual procede o texto. O texto mesmo é o
tu. Porém também o é no modo dialógico, de um interlocutor que me fala. A
dialógica pode servir de modelo de um compreender que se coloca frente à
pretensão das tradições vivas, porque, ao interpelar a alguém, o pressupõe um ser
interpelado
569
.
Mesmo que o texto seja o tu, não significa a necessidade de retrocesso à
subjetividade do outro, porém que a experiência hermenêutica leva à compreensão de que
“a tradição não entende o texto transmitido como a manifestação vital de um tu, mas como
um conteúdo de sentido, sem nenhum vínculo com os que estão opinando ali, ao eu e ao
tu”
570
. O tu não pode ser tomado como objeto, antes pelo contrário, ele mesmo é sujeito de
sua experiência junto a um outro tu. O que acontece ali, “postado no meio”, como dizem os
gregos, nessa experiência hermenêutica se abre o espaço que tem a ver com a questão da
tradição. Por isso é que a tradição tem que falar por si mesma, pois não pode ser dominada
e conhecida pela experiência, é linguagem, sendo que mantém a autonomia frente ao
comportamento moral de um tu. “É pura ilusão ver no outro um instrumento
566
Ibidem, p. 83 – 84.
567
Ibidem, p. 84.
568
Cf. Ibidem, p. 85.
569
Ibidem, p. 85.
570
Gadamer, op. cit., p. 434.
175
completamente dominável e manipulável”
571
. A presença do outro que encontramos nos
instiga, mesmo antes que ele abra a boca, para pronunciar uma palavra, a abandonar a
própria clausura
572
.
O outro, para ser, necessita do reconhecimento de sua ipseidade. Não quer dizer que
ele tenha primazia sobre o eu ou então que seja detentor da verdade. O outro é condição de
possibilidade para o verdadeiro encontro com o eu, sendo que se abre o espaço ao
diálogo. Não há diálogo que se efetive solipsisticamete, o que não significa que o outro
necessariamente deve ser uma pessoa. O encontro com a tradição leva ao reconhecimento
dos próprios limites e possibilita ao sujeito situar-se no mundo.
Em dando seqüência à sua reflexão, Theunissen divide o segundo nível em duas
etapas. Na primeira parte, se a constatação de que compreender um texto significa
apanhar o que este tem a dizer do assunto, apontando para além dos interlocutores. Trata-se
de trazer à tona a perspectiva dialética socrático-platônica, que busca por detrás das
opiniões, e seguir em direção ao verdadeiro, ultrapassando as aparências. “No diálogo do
mundo da vida, compreender era um compreender-se das pessoas, entre as quais reinava,
de antemão, um acordo do que não teria senão que afirmar-se no curso de sua
conversação”
573
. Assim como o diálogo vivo, persegue-se o acordo, mediante a afirmação
e a réplica, mediante palavras adequadas, gestos, ênfases que ajudem o interlocutor na sua
compreensão. Do mesmo modo a escritura deve abrir, no texto mesmo, um horizonte de
interpretação e compreensão que haverá de levar o leitor a uma tentação reiterada de
submergir-se em algo com alguém. algo mais, portanto, um potencial de alteridade que
está além do consenso no comum
574
.
A busca da verdade é a meta almejada por Gadamer. Nesse caminho a dialetização
platônica ajuda, mas não se pode parar por aí. Ao permanecer numa relação externa com a
coisa, portanto com a verdade, a dialética socrático-platônica não reconhece no texto
mesmo um tu. Gadamer consegue sustentar sua argumentação à base do conceito
participação, que mantém um modo platônico, sem cair numa relação externa. “A
participação das idéias se converte em uma participação das tradições, tanto por parte do
571
Ibidem, p. 436.
572
Gadamer, 1994, p. 324.
573
Theunissen, op. cit., p. 87.
574
Cf. Gadamer, 1994, p. 324 e 332.
176
texto como por parte do intérprete”
575
. Ambos vão entrando em sintonia em torno da coisa
mesma, sendo que “há algo ali, postado no meio, como dizem os gregos, onde participam
os interlocutores e sobre o que eles criam um intercâmbio mútuo”
576
.
num outro nível, Theunissen percebe um novo giro no pensamento hermenêutico
dado por Gadamer, ao invocar “um Hegel que unifica a dialética socrática com a filosofia
dos primeiros gregos e o platonismo tardio”
577
. Para ele, isso se explicita na afirmação de
que, “se consideramos conveniente guiar-nos mais por Hegel que por Schleiermacher,
teremos que acentuar de uma maneira distinta toda a história da hermenêutica”
578
. Isso nos
remete à expressão hegeliana “fazer da coisa mesma”, que, para Gadamer, está relacionada
ao processo de desvelamento de uma verdade a qual se mostra ao intérprete, que faz uma
busca prévia do todo de sentido e submete-o à prova nas partes individuais. Resulta daí que
no texto a verdade se mostra como conformidade do particular com o conjunto.
Obviamente que interessa a Gadamer essa relação com o fazer da coisa mesma, que aponta
para o acontecer constitutivo do compreender. Nisso Theunissen é preciso, ao afirmar:
“Que Gadamer dirija seu questionamento a Hegel, tem motivos mais profundos. Em última
instância, desde seu ponto de vista, é Hegel quem, com o fazer da coisa mesma, aponta ao
acontecer constitutivo do compreender”
579
. E este acontecer é concebido como história,
história da formação em que um presente chega a si, pela apropriação da sua tradição, o
que anteriormente denominamos presentificação.
Porém, Gadamer não permanece amarrado à perspectiva hegeliana. A questão
central gira em torno da não-aceitação do acontecer fundamental como “automediação
total da razão”, pois o conceito de experiência torna-se nele o ponto de separação de ambas
as perspectivas. Na hermenêutica existe a culminação (Vollendung), mantendo a abertura
para novas possibilidades; significa dizer que a experiência não se acaba e nem se alcança
uma figura mais alta do saber. Nela a experiência completa é propriamente o (Da). Do
contrário, temos uma consumação [verenden] da experiência no saber absoluto. Theunissen
o sintetiza bem ao escrever:
Em todo caso, a outra face deste agarrar-se a todos os níveis recorridos é que o
pensamento não está assentado em nenhum nível. Enlaçar com o dialogismo
575
Ibidem, p. 88.
576
Gadamer, 1996, p. 457.
577
Ibidem, p. 88 – 89.
578
Gadamer, op. cit., p. 225.
579
Ibidem, p. 89.
177
era soltar-se, acompanhados da consciência de não ser adequados à meta. Porém,
de antemão, estava muito clara essa inadequação do modelo socrático-
platônico. Ao final, o princípio do pensamento hegeliano obriga Gadamer a
reconhecer uma finitude que ele nega como universal-especulativa. Quanto mais
se acerca a sua meta, a maior distância está de seu vis-a-vis
580
.
E assim somos remetidos ao último passo na análise de Theunissen, quando
percebemos, que no fundo, o que Gadamer busca “não é a ontologização da hermenêutica,
mas a hermeneutização da ontologia”
581
. Essa hermeneutização se percebe no diálogo
onde aquele que quer conduzi-lo, de repente se encontra numa situação em que mais é
conduzido do que o condutor, o que acaba se tornando condição de possibilidade para o
verdadeiro diálogo. O mesmo percebe-se na primazia hermenêutica da pergunta sobre a
resposta. Aos poucos, a linguagem vai assumindo a função mediadora, “mantendo o
contato com a metafísica pré-hegeliana, quando, para abranger o todo, que era desde
sempre algo característico do pensar faticamente especulativo, recorre a um falar que
supera o dito na infinitude do não-dito”
582
. Theunissen é mais explícito:
Que Gadamer coloque a linguagem no meio entre tu e eu, entre o texto e o
intérprete, é algo fundamentalmente distinto de que, fascinado como está pelo
jogo sem jogadores, substitua os falantes pela linguagem. Em seu giro
lingüístico-ontológico do conceito de jogo, está repercutindo a afirmação
heideggeriana de que é a linguagem quem fala; uma afirmação que ele inclusive
intensifica. Porém, delegar o falar na linguagem forma parte da ontologização da
hermenêutica, que parte de toda dialética, e a intelecção da linguagem como
meio entre os falantes pertence a uma hermeneutização dialetizante da
ontologia
583
.
Ficam, pois, evidenciadas as raízes heideggerianas e hegelianas que, no olhar de
Gadamer, passam a ter um novo sentido. “Mais central é, no entanto, a forma de dialética
não-tematizada em Verdade e Método, que impulsiona todo o movimento da obra”
584
.
Talvez tenhamos uma chave de leitura que possibilita a percepção da perspectiva
hegeliana ao inverso? Por que Gadamer concluiu o ensaio sobre A idéia da lógica
hegeliana com a frase: La dialéctica ha menester de reducirse a hermenéutica”?
585
São
questões que parecem apontar a elementos implícitos que denunciam, por assim dizer, que
a hermenêutica filosófica não pode ser confundida com a dialética hegeliana, pois
a negação de seu movimento do pensar desvela o que a dialógica pré-dialética
não controla, o que Platão, com sua dialética dialógica, e Hegel, com sua
580
Ibidem, p. 91.
581
Ibidem, p. 91.
582
Ibidem, p. 92.
583
Idem Ibidem.
584
Theunissen, op cit, p. 93.
585
Gadamer, 2000, p. 107.
178
dialética aparentemente desdialogizada, não captam e desvela tudo isso de tal
maneira que o não pensado se faz pensável no pensado cada vez
586
.
A finalização desta frase de Theunissen nos faz pensar nas palavras de Gadamer,
quando discute a respeito da primazia hermenêutica da pergunta e nos leva a uma
autocrítica impulsionada pela famosa docta ignorantia socrática, pois todo aquele que
pergunta consegue perguntar à base do pressuposto de que possui um saber sobre a
coisa em questão. “Todo perguntar e todo querer saber ‘pré-supõem’ um saber que não se
sabe, mas de maneira tal que é um não-determinado não-saber o que conduz a uma
determinada pergunta”
587
. Por isso é tão importante levar a sério a pergunta que nos é feita,
pois necessitamos encontrar uma determinada perspectiva, a partir da qual possamos
delimitar o horizonte da pergunta feita. “A decisão da pergunta é o caminho para o saber.
[...] se chega a saber a coisa mesma, quando se resolvem as instâncias contrárias e se
penetra de cheio na falsidade dos contra-argumentos”
588
. Portanto, o horizonte do
perguntar nos lança a um determinado sentido, onde
o que vem à tona, em sua verdade, é o lógos, que não é meu nem teu, e que, por
isso, sobrepuja tão amplamente a opinião subjetiva dos companheiros do
diálogo, que inclusive aquele que o conduz permanece sempre como aquele que
não sabe. A dialética, como arte de conduzir um diálogo [Gespräch], é ao
mesmo tempo a arte de olhar juntos na unidade de uma perspectiva, isto é, a arte
de formar conceitos como elaboração do que se opinava comumente
589
.
O diálogo
590
constitui um espaço próprio para que o lógos possa se efetivar, onde
nasce algo novo, no sentido de que não é a reposição da compreensão de um ou outro dos
interlocutores, mas que possibilita o encontra-se em um outro vel. Conforme já
apontávamos anteriormente, há, ali, algo postado no meio, onde participam os
interlocutores e sobre o que eles criam um intercâmbio mútuo, sendo que se um
verdadeiro encontro
591
.
Em finalizando suas reflexões, Theunissen expõe que “da apropriação gadameriana
da tradição podemos concluir que o compreender, o qual ele intenta compreender, por
586
Theunissen, op cit., p. 93.
587
Gadamer, op. cit., p. 443.
588
Ibidem, p. 442.
589
Ibid., p. 445 – 445.
590
Conforme Gadamer o expõe com precisão: “Costumamos dizer que 'levamos' um diálogo, mas a verdade é
que, quanto mais autêntico o diálogo, menos possibilidade m os interlocutores de 'levá-lo' na direção que
desejariam. [...] Como uma palavra puxa a outra, como o diálogo voltas para e para lá, encontra seu
curso e seu desenlace, tudo isso pode ter talvez uma espécie de direção, mas nela os dialogantes são menos os
que dirigem do que os que são dirigidos. O que 'sairá' de um diálogo ninguém pode saber por antecipação
(Verdade e método, p. 461).
591
Cf. Ibiem., p. 457.
179
meio de tradições, não nos entrega à mercê delas”
592
. Com isso está evitando o
aprisionamento da subjetividade à tradição, sem, no entanto, dispensá-la como espaço, a
partir de onde pode dar-se o compreender de um sujeito que se movimenta com seu pensar
dentro de espaços de jogo que não pode dar-se aquém das tradições vivas. Portanto, à
subjetividade não é possível manter-se restringida ao indivíduo, de modo que “a
apropriação pode ser o que sempre é: uma transformação responsável de si mesma”
593
.
Em outras palavras, “este conceber próprio não se refere a um conceber
particular, porém a um tempo histórico que leva o transmitido de um modo novo à
linguagem”
594
. Não se trata, pois, de uma mera impressão subjetiva, mas de um conteúdo
de sentido que leva ao encontro com algo que ultrapassa os limites de uma impressão
meramente subjetiva, carregando consigo a marca de um conteúdo crítico, reflexivo, sendo
guiado pela razão no contato com a tradição viva, capaz de falar a um presente aberto,
justamente pelo fato de não ser subjetivista, porém, mantendo um conteúdo de sentido
racional, instaurável de um modo novo à linguagem.
Com Gadamer temos o despertar de um novo sentido em relação à tradição, que em
nada tem a ver com a perspectiva do tradicionalismo
595
. Porém, “sua convicção é que a
consciência hermenêutica desperta depois que as tradições vivas se fizeram
questionáveis”
596
, de modo que continuam “falando” no contexto presente. “Interpretar a
hermenêutica fenomenologicamente não significa, pois, cerceá-la. Em vez de um
cerceamento, se trata de fazê-la inequívoca”
597
.
Portanto, fica evidenciado que não é possível ao ser humano ser sujeito da história,
sem que se aproprie da tradição. “Somente um ser-aí que obedece às suas próprias
tradições, isto é, àquelas que lhe são próprias, sabe e pode tomar decisões que fazem
história”
598
. Evidentemente não se trata de um obedecer cego, porém, muito antes, da
possibilidade do encontro mais profundo com as próprias raízes, o que poderíamos
denominar como certo grau de autoconsciência. Autoconsciência no sentido de conseguir
“descer” para trás do “visível”, chegando ao nível do “pré” e, a partir daí, construir um
592
Theunissen, op. cit., p. 94.
593
Ibidem, p. 94.
594
Ibidem, p. 94.
595
Trata-se muito antes de repor algo do passado mantendo a mesma estrutura e compreensão, conforme o
víamos anteriormente.
596
Theunissen, op. cit., p. 95.
597
Ibidem, p. 95.
598
Gadamer, 2007, p. 143.
180
horizonte de significação. Podemos até dizer que a não-apropriação da tradição poderá
levar a um viver inautêntico, pois a não-apropriação da tradição, lugar a partir de onde a
subjetividade se constituiu, significaria a “apropriação” de uma tradição vinda, talvez, não
se sabe de onde
599
. É impossível a existência sem o contato com tradições, sejam elas quais
forem. Em contrapartida, podemos dizer que o viver autêntico, “consciente”, pressupõe o
assumir a apropriação da própria tradição, dentro da qual o “eu” se constituiu, a partir da
qual podem dar-se novos sentidos e significados à existência.
Ficam, pois, ecoando as palavras do sábio filósofo que vem mudando conceitos e
concepções, a saber: “Ao se compreender a tradição, não se compreendem apenas textos,
mas também se adquirem perspectivas e se conhecem verdades”
600
. Verdades que, ao que
demonstramos, exigem a abertura para o diálogo, o qual não se esgota no expresso por uma
determinada época.
599
É o caso, por exemplo, da assimilação de valores e princípios vindos de outras culturas,
contemporaneamente disseminados pela mídia e grandes veículos de comunicação, como é o caso do cinema
capitaneado pelos Estados Unidos, que não formam opiniões, mas, acima de tudo, difundem um modo de
viver e um espírito que leva grandes massas a aderirem a novos valores à base de uma tradição estranha a
elas. Não raro, tais valores significam a abdicação e negação daqueles dentro dos quais o espírito de tal povo
se formou. Portanto, aí, um processo de alienação, na medida em que não possibilita o diálogo verdadeiro
com a tradição.
600
Gadamer, 1996, p. 23.
181
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os debates contemporâneos levam à crescente convicção de que os caminhos
traçados pelo caráter ontológico do pensamento ocidental, sustentado a partir da relação
sujeito-objeto, que caracterizamos no presente texto como objetificadora, em sua
convicção representacional não mais é suficiente para a efetivação do conhecimento.
Novas possibilidades se abrem. O presente texto se situou dentro dessa perspectiva,
apontando para além da tentativa “engessante” do rigor metodológico da ciência moderna.
Não negamos o valor e importância da ciência moderna, porém o debate trouxe a
confirmação da relevância da hermenêutica, ao descobrir dentro da própria tradição
científica, elementos que precedem em sua lógica investigadora.
Assim sendo, ao caminharmos através da compreensão da historicidade,
evidenciamos a necessidade de uma nova postura frente ao saber, a fim de seguirmos rumo
a uma nova historicidade da compreensão como apropriação da tradição. Nesse intuito, o
primeiro capítulo manteve a pretensão de oferecer ao leitor o contato com a discussão
clássica em torno da Teoria do Conhecimento. Com tal abordagem, foram lançadas as
bases e, de certa forma, inseriu-se o leitor num processo circular de compreensão,
buscando o horizonte mais amplo do debate, que não poderia ser ignorado num primeiro
momento. Trata-se, no fundo, de um ponto de partida enquanto uma espécie de ensaio da
apropriação da tradição moderna, no sentido de produzir condições, para, num segundo
momento, percebermos limites internos nas afirmações com pretensões dominadoras das
correntes do pensamento moderno.
Ao buscarmos a origem do conceito hermenêutica em Hermes, dedicando-lhe uma
longa reflexão, abrimos o espaço para a percepção de que necessitamos admitir a
atualidade do pensamento grego, cuja tarefa de Hermes, em levar a mensagem do
horizonte de compreensão dos homens aos deuses e vice-versa, aponta para algo não-
182
dominável pela pretensa certeza das vias metodológicas. Por isso esse capítulo foi
importante, no sentido de servir como estranhamento das certezas cristalizadas pela
perspectiva de quem nasceu dentro da tradição objetificadora e, num primeiro momento,
não consegue tomar a distância necessária, a fim de conseguir uma autopercepção de
elementos condicionantes de seu olhar.
Em buscando a origem do conceito compreender, Apel, em seu texto O
compreender, nos brindou com a distinção do conceito compreender (Verstehen) de
entendimento (Verstand). Destaque-se a memória da língua materna presente na mediação
de nosso acesso à coisa. Em refazendo a trajetória junto a grandes pensadores, que deram
ao conceito compreender concepções com sentidos um pouco diferentes, Apel vai
explicitando a essência que mantém um fio condutor no conceito, até desembocar na
corrente hermenêutica contemporânea, cujo maior representante é Gadamer, herdeiro
direto de Heidegger. Daí a noção de abertura, encontro, acontecer do ser. Antes de
entrarmos no debate com Heidegger, optamos por conduzir a reflexão no intuito de
localizar o início da hermenêutica moderna propriamente dita. Nesse ponto, três autores se
fizeram centrais, a saber, Espinosa, Schleiermacher e Dilthey. Com eles foi possível
identificar o momento em que se dá uma nova compreensão sobre a hermenêutica, o que
possibilitou, após, o surgimento da concepção heideggeriana. Podemos aafirmar, nesse
sentido, que Heidegger e Gadamer não poderiam ter chegado onde chegaram sem as bases
pressupostas desses três autores.
Assim sendo, na passagem do século XIX para o XX, com F. Schleiermacher ganha
impulso a perspectiva hermenêutica na construção do conhecimento. Conforme vimos,
mesmo ainda muito preso à expectativa de encontrar um método que conta do processo
de compreensão como tal. Schleiermacher tem o mérito de lançar os fundamentos para que
Dilthey e Droysen possam seguir na mesma trajetória e ampliem a discussão, trazendo-a
para dentro elementos da história e da subjetividade humana, mais tarde aprofundados por
Heidegger e Gadamer.
Desde Bacon e Descartes, passando pelo Iluminismo, a legitimação do
conhecimento vem sendo marcada pela separação rígida entre sujeito e objeto, acreditando-
se que a razão vai conseguir dar conta de uma reflexão absoluta, não deixando espaço para
a influência da postura humana na configuração do saber. Gadamer colocou em xeque a
metodologia objetificadora como base última da legitimação do conhecimento. Não se trata
183
de deixar de reconhecer o potencial reflexivo da razão, mas reconhecer uma base pré-
reflexiva, a partir de onde tem início o movimento da compreensão, enquanto experiência
ontológica que precede o pensamento cientificista, o qual se questionado na sua
pretensão de ser a condição de possibilidade para todo o conhecimento verdadeiro.
Tomando como base a investigação de Gadamer, percebemos a insuficiência do projeto
objetificador, assim como também podemos acompanhar a crítica à razão moderna, ao
questionar a primazia do pensamento construtivo como base de legitimação exclusiva da
produção do nosso saber. Trata-se da crítica da razão absoluta, a partir da percepção da
impossibilidade de uma reflexão absoluta.
Entramos, assim, na segunda parte do texto, que nos permitiu perceber o
surgimento de uma nova formulação do problema da verdade pela hermenêutica filosófica,
na medida em que, com Heidegger, é possível construir um novo horizonte de
compreensão. Significa dizer que, ao trazer à tona a questão do sentido do ser, estabeleceu-
se uma estrutura que qualifica a hermenêutica como um modo de ser, um modo de se
encontrar, sendo a compreensão enquanto abertura do Da do Dasein. Por isso a estrutura
existencial do Dasein é, num primeiro momento, uma chave de leitura para
compreendermos a compreensão em Gadamer. Assim, foi possível demonstrar como se
a passagem de Heidegger a Gadamer, ao tomar aquilo que, para além do que queremos e
fazemos, nos acontece. O acontecer da verdade que se revela e oculta manifesta-se na
linguagem a qual possibilita o ser que pode ser compreendido.
Não pretendendo ser uma nova teoria do conhecimento, a perspectiva da
hermenêutica filosófica tem demonstrado limites internos da razão, ao evidenciar que ela
mesma se encontra inserida num horizonte que a precede, de tal modo que não pode por
ela ser objetificado, não conseguindo a subjetividade deter o domínio sobre tal situação. O
uso meramente instrumental da razão humana tem seu valor dentro do paradigma das
ciências, sobretudo as exatas, porém, é um equívoco tomá-lo como o modo exclusivo para
chegarmos ao conhecimento. um equívoco na modernidade em limitar o conhecimento
ao modelo objetificador, pois a razão absoluta não consegue dar conta de sua pretensão,
justamente porque “há algo que lhe escapa” ao domínio. É o caso, por exemplo, da
impossibilidade de a razão tomar a própria subjetividade como objeto. O mesmo ocorre
frente à experiência enquanto acontecer, como o que ocorre frente a uma obra de arte, que
nunca esgota os possíveis sentidos do ser da obra experienciada. Em tal experiência, o que
184
vem ao nosso encontro aproxima-se mais de algo inqualificável, que nos interpela de modo
instigante e misterioso.
Necessitamos uma mudança profunda de atitude frente ao saber, lançando-nos a um
espaço próprio e numa relação intersubjetiva na construção do conhecimento, onde a
historicidade traz a marca de um presente sempre aberto que nos impulsiona a uma relação
diferenciada do modelo objetificador. Significa considerar o vínculo com a história, que
em Heidegger aponta para um passado não reflexivamente recuperável, o que caracteriza
um limite da razão. Eis que novamente a reflexão de Gadamer mostra sua importância,
uma vez que, nesse ponto, nos é possível perceber como ele faz uma crítica à razão
moderna, ao trazer à tona elementos que remetem a uma estrutura a qual escapa à razão
objetificadora. A experiência, portanto, forma um horizonte de compreensão que foge ao
domínio da razão e não pode ser por ela objetivado.
Nesse sentido, o vínculo da razão com a história é inegável. Gadamer irá investir
nesse aspecto, demonstrando a impossibilidade da razão absoluta, haja vista que ela está
como que “presa” na história.
A efetivação da racionalidade se historicamente, porém,
não de modo totalmente determinado. Necessitamos admitir esse vínculo com a história, a
fim de não cairmos em tautologias. Algumas pistas a esse respeito foram buscadas na
recuperação da idéia da historicidade enquanto marca de um presente aberto, no sentido de
um acordo que é constantemente restabelecido no diálogo. O acordo escapa a tautologias,
justamente por ser um tempo sempre renovado com o presente aberto. Assim, podemos
perceber os limites da pretensão da razão moderna, que, por mais que busque ser absoluta,
não consegue escapar às limitações inerentes a ela mesma. A apropriação da tradição nos
traz à tona a verdade, ali onde a história e a linguagem são campos por excelência, onde se
pode perceber esse horizonte pré-reflexivo que está na base de todo nosso saber e agir.
Ao fazermos uma crítica à modernidade, assim como Gadamer, nos opomos
radicalmente ao modelo cientificista instrumental enquanto modelo para se chegar à
verdade. Pelo que foi demonstrado, a hermenêutica nos traz a compreensão sobre a
insuficiência de um sujeito que quer ter o domínio frente ao mundo. Isso se demonstra
também na linguagem que não se deixa dominar por aquele que se movimenta desde
sempre dentro dela. O homem não é, frente a ela, o dono, no sentido de determinador da
linguagem. Ele necessita dessa experiência profunda encontrada no diálogo vivo,
compreendendo-o enquanto caminho por excelência para a autocompreensão do ser
humano.
185
Ao que ficou demonstrado até aqui, ao invés de a razão ser o centro criador do
sentido de tudo, a experiência do sujeito é a de não poder dominar o espaço dentro do qual
sua compreensão se dá, sendo este anterior ao campo da consciência enquanto percepção
lógica. Assim sendo, o procedimento hermenêutico se estabelece enquanto procedimento
interativo entre os parceiros do diálogo. A subjetividade se encontra, desde sempre,
inserida na tradição. Então, é preciso dizer que toda compreensão é marcada por "pré-
conceitos", que se gestaram na tradição. Assim sendo, dá-se a superação da perspectiva
objetificadora. O sujeito não é a ponte a partir de onde o sentido se gera. O sentido se
revela na consciência do sujeito, gera-se na história e se transmite de geração em geração,
de modo que podemos afirmar que os "pré-conceitos" se gestaram na tradição e são
condições de possibilidade da compreensão.
Trata-se de percebermos que uma realidade a qual não se deixa absorver pela
reflexão, sobretudo no modo como a racionalidade moderna o pretende, com seu impulso
dominador da razão. Nesse sentido, a arte, a história e a linguagem tornam-se temas
centrais para demarcarmos o lugar, a partir de onde Gadamer constrói sua argumentação.
Percebe-se que ali um acontecer ontológico primordial intransponível, por parte do
sujeito envolvido no processo de compreensão. Há, portanto, uma base de legitimação a
apontar para experiências que não se enquadram na visão objetificadora do conhecimento e
que podem, ademais, ser buscadas, sobretudo, junto à arte e à história.
Ao tomarmos o jogo como fio condutor da virada ontológica, novamente
oferecemos ao leitor a oportunidade de experienciar a necessidade de entregar-se a um
espaço não-tematizável pelas vias da lógica cientificista. O jogo abre o espaço para
percebermos uma experiência que nos abre um espaço, cuja autoprodutividade nos leva à
necessidade de reconhecer uma estrutura pré-reflexiva ontológica a qual se torna condição
de possibilidade para a nossa reflexão. Nesse sentido, um olhar atento sobre a historicidade
da compreensão possibilitou perceber, juntamente com a linguagem, que um momento
anterior, condição de possibilidade para o efetivar-se da compreensão. É por isso que o ser
que pode ser compreendido é linguagem; e esta é mediação intranscendível de todo e
qualquer sentido que sempre se dá historicamente.
Chegamos, assim, ao último capítulo, tendo presente o diálogo vivo em que o ser
para a linguagem encontra seu campo primordial de experiências. Nesse capítulo
assumimos como ponto de partida a argumentação de Michael Theunissen, em
186
demonstrando que a questão da apropriação da tradição é um tema-chave de Verdade e
Método. E assim o constatamos, a partir da análise de Verdade e Método. As três teses de
Theunissen, especialmente a última, as quais nos levaram à percepção de que Gadamer não
busca a ontologização da hermenêutica, mas a hermeneutização da ontologia. Isso pode ser
percebido na estrutura do diálogo (Gespräch) bem como também na estratégia de
construção da obra Verdade e Método, em suas três partes. Em culminando a discussão,
percebemos o potencial transformador da questão da apropriação da tradição. A
compreensão da historicidade como apropriação da tradição nos leva a uma nova
perspectiva frente às próprias tradições de conhecimento. Em outras palavras, emerge daí
uma possibilidade fecunda para trabalharmos a questão da verdade em outro sentido, a
saber, como um acontecer que exige uma nova postura, por parte do sujeito. Urge, pois,
que as tradições vivas sejam apropriadas para novos sentidos se efetivarem, mesmo
sabendo que permanece sempre um aspecto de ocultamento e desvelamento, onde a “coisa
mesma” se recusa a aparecer plenamente.
187
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