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Rosa Maria Carollo Blanco
A CLÍNICA DO TRABALHO
E O TRABALHO DA CLÍNICA
Psicoterapia do Fazer
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção de título de Doutor
em Psicologia Clínica sob a orientação do Prof. Dr.
Luiz Benedicto Lacerda Orlandi.
PUC/SP
2006
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TERMO DE APROVAÇÃO
AUTOR: ROSA MARIA CAROLLO BLANCO
TÍTULO: A CLÍNICA DO TRABALHO
E O TRABALHO DA CLÍNICA
Tese defendida e aprovada em __/__/2006
pela comissão julgadora
_________________________________________________________
_________________________________________________________
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Dedicatória
A Maria Teresa C. Iguacel, parceira de
caminhada, cuja arte no viver nos
acompanha mesmo na ausência.
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Luiz Benedicto Lacerda Orlandi, mais que um
orientador, um Mestre.
À equipe da Clínica-Oficina Kairós: Ájax P. Salvador, Lucineide
Miranda de Farias, Margaret Buonano, Wladia Beatriz Pires Correia. Este
trabalho é conjunto desde o início.
Aos pacientes da Clínica, os reais autores do projeto, que nos
ensinaram a clinicar.
Ao CNPq, que viabilizou este trabalho.
Aos amigos.
SUMÁRIO
RESUMO ________________________________________
ABSTRACT ________________________________________
1. Introdução __________________________________________ 01
2. Um método possível: colagem ___________________________ 07
2.1. Psicopatologia como método _________________________11
3. Clínica-Oficina Kairós __________________________________19
3.1. A Casa _________________________________________ 28
3.2. Os pacientes, anamnese e família____________________ 33
4. Oficinas ___________________________________________ 38
5. A Clínica nas ruas ___________________________________ 42
5.1 Outras Clínicas ____________________________________59
5.2 Percursos ________________________________________72
6 Kairós e a Moeda de Sal ______________________________94
7 Conclusões _______________________________________100
8 Bibliografia _____________________________________102
RESUMO
Pensar e construir uma clínica psicológica a partir da
psicopatologia foi um ensinamento que veio de Carl G. Jung, quando
compôs sua obra tomando a esquizofrenia como paradigma. Esta
proposta foi levada adiante por James Hillman, ampliando-a para
quaisquer tipos de sofrimento psíquico: sugeriu que vejamos cada um
como um estilo de consciência, com uma proposta ética e estética que
pertence ao sofrimento e não ao seu portador.
Compor uma clínica que compreenda a patologia como algo
integrante na vida e da vida, ao invés de algo a ser extirpado ou
sanado. Para isto foi criada a Clínica-Oficina Kairós. Como terapêutica,
foi escolhido o trabalho artesanal realizado em conjunto com um grupo
de portadores de distúrbios mentais. O objetivo era suscitar um espaço
do fazer, criar, conviver, em contraposição à inatividade, paralisia e
isolamento costumeiros na vida desta população.
Um desdobramento deste projeto resultou em um uma retomada
crítica dos procedimentos clínicos consagrados e apontou caminhos para
compor outras clínicas. Para isto, é necessário dar passagem e escuta
aos discursos da psicopatologia, ao invés de, apenas, diagnosticá-los ou
analisá-los.
Palavras-chave: clínica; distúrbios mentais; esquizofrenia;
psicopatologia; fazer artesanal; terapia do fazer.
ABSTRACT
To think and to construct a psychological clinic from the
psycopathology were a teaching that lode of Carl G. Jung, when the
schizophrenia composed its workmanship taking as paradigm. This
proposal was taken ahead by James Hillman, extending it for any types
of psychic suffering: he suggested that let us see each one as a
conscience style, with a proposal ethical and aesthetic that belongs to
the suffering and not to its carrier.
To compose a clinic that understands the integrant pathology as
something in the life and of the life, instead of something to be
terminated or to be cured. For this the Kairós Clinic-Workshop was
created. As therapeutics, the carried through artisan work in set with a
group of carriers of mental riots was chosen. The objective was built to
excite a space of making, creating, to coexist, in contraposition to the
usual inactivity, paralysis and isolation in the life of this population.
An unfolding of this project resulted in one critical retaken of the
consecrated clinical procedures and pointed ways to compose other
clinics. For this, it is necessary to give passage and listening to the
speeches of the psycopathology, instead of, only, diagnosing them or
analyzing them.
Key-words: artisan work; clinic; mental riots; psycopathology;
schizophrenia; therapy of making.
1
1. INTRODUÇÃO
A Psicologia sempre privilegiou seus estudos a partir dos achados
da prática clínica. Este trabalho cobre o espaço de tempo de sete anos
da Clínica-Oficina Kairós, que começou como projeto de criação de um
espaço de trabalho para pessoas portadoras de transtornos mentais.
A idéia básica era a realização de um trabalho artesanal, um fazer
com as mãos. Sabemos que uma das coisas que param nas pessoas
assoladas pelas psicopatologias é, justamente, a atividade. Para dar um
pouco de paz a si mesmos, os pacientes dormem. O sono os protege
dos delírios, alucinações, tristezas, tormentos. Com isto acabam criando
um isolamento cada vez maior, uma caverna onde possam se defender.
A atividade, construir ferramentas e objetos, criar e inventar,
estão no mundo desde antes que a história humana começasse a ser
escrita. Ao abandonar a atividade, estamos nos abandonando à mera
vida vegetativa ou à repetição do conhecido. Restaurar esta
capacidade criadora, fazedora, foi o caminho escolhido para compor
uma clínica. As mãos e não somente a cabeça; movimento no lugar da
paralisia; criação no lugar do estilhaçamento.
A proposta desta clínica baseia-se, pois, nos achados sobre as
assim denominadas psicopatologias. O deparar-se com a psicopatologia
traz um impacto capaz de colocar em cheque todas as premissas ou
crenças teóricas nas quais se apóiam todos os profissionais da saúde.
Pelo menos, qualquer profissional que se permita ouvir e afetar pela
imensa dor que assola estas pessoas.
Este trabalho está norteado pelas balizas teóricas traçadas por
Carl Gustav Jung e re-vistas por James Hillman, seu mais instigante
seguidor. Jung compôs as primeiras vertentes da Psicologia a colocar
claramente sua discordância sobre a questão da saúde e a doença
mental serem consideradas como instâncias diferentes ou contrapostas
2
na vida das pessoas. Também foi o primeiro psiquiatra a refutar, nos
seus primeiros escritos em 1908 “o dogma prevalecente na psiquiatria
moderna - doenças mentais são doenças do cérebro (Jung, vol 3, p.
13). O alcance desta refutação percorre todo o século XX. a título de
ilustração, num artigo de uma revista de psiquiatria de 1984 publicou-
se, em tom de triunfante descoberta, que a década de 80 é a cada do
cérebro. A corrente organicista ganhou forças cada vez maiores na
medicina, contaminando toda a prática clínica e se, hoje, a doença
mental não está mais no cérebro, “com certeza”, há de estar no DNA.
Para transmitir os conceitos do ponto de vista psicológico” Jung
escolheu a esquizofrenia como paradigma para suas pesquisas e propõe
que nos debrucemos sobre os conteúdos dos delírios em busca das
respostas para os sistemas que a loucura monta. Hillman diz que, para
compreendermos um quadro psicopatológico, devemos transformamo-
nos no próprio quadro. Isto serve tanto para a prática como para a
teoria. (Hillman,). Jung partiu da esquizofrenia como paradigma,
Hillman propõe que cada quadro sintomático apresenta seu próprio
paradigma e que precisamos partir de cada um. Radicaliza e amplia esta
questão propondo o termo patologização no lugar de psicopatologia,
porque assume
“a capacidade autônoma da psique para criar doença, morbidez,
desordem, anormalidade e sofrimento em qualquer aspecto do
seu comportamento e de vivenciar a vida através dessa
perspectiva deformada e atormentada” (Hillman, ED, pp.9,10).
Na obra de Hillman está contida a premissa, já assumida por Jung,
que a infirmitas (não firmeza) - de onde vem a palavra enfermidade -
faz parte inextricável da vida; que criação e destruição o uma e
mesma coisa e propõe entendermos a psique como, nos dizeres de
3
Jung, um princípio criador sem causas. Hillman recoloca esta questão da
seguinte maneira:
“... insisto em chamar a patologização de atividade criadora ...
É, também, um princípio criador que entra na formação do
universo. E está, necessariamente, sempre aí. o gradualmente
superado através da ampliação do donio da razão. ... o
anormal mistura-se a cada ato da existência, pois a vida
psíquica baseia-se no complexo e a patologia jamais termina.”
(Hillman, ED p.25)
Continua propondo que, para se trabalhar com a dor, aflição,
desordem, o peculiar, enfim, esses temas fundamentais à psicologia não
podemos tratá-los da mesma maneira como compreendemos o
comportamento normal:
“Para compreender a psicologia do comportamento anormal (...)
não devemos nos voltar para o que é normal’. Nossas normas
devem adequar-se ao material que desejamos compreender,
devem ser normas igualmente patologizadas.” (Hillman, ED p
11)
Até porque, ’norma’ e ‘normal’ derivam da palavra norma, o
esquadro utilizado pelo marceneiro. É um termo técnico afeito à
geometria, portanto uma ferramenta bastante inadequada para a
psicologia. Olhar a patologia de dentro do seu quadro sintomático;
transformar-se no próprio quadro com suas especificidades, como
maneiras de aproximar-se de cada tipo de dor, sofrimento, desordem
etc. Construir um discurso de inteligibilidade para o que o olhar da
norma sempre chamou de incompreensível e falso.
Este trabalho carrega a marca do coletivo. É fruto da prática que
se inicia com a Clínica-Oficina Kairós. Começa com as discussões
4
semanais da equipe, debruçada sobre as questões que os pacientes nos
apresentavam; no mesmo começo estão os eventos e as conversas com
os pacientes durante as oficinas; estes foram sempre os primeiros
autores de nossa clínica. Depois, foram se juntando outras pessoas,
quando vieram os grupos de estudo, cursos, estagiários. Trocar
experiências e idéias com outros projetos similares foi uma interlocução
fundamental para a persistência no projeto.
Debruçar-se sobre a obra de Hillman para construir uma clínica é
sempre uma tarefa desafiadora e perturbadora, porque não aponta
caminhos. Ele diz que prefere as encruzilhadas. E ficamos nós, frente
às encruzilhadas. Das várias possibilidades, fomos selecionando
algumas, que nos pareceram condizentes com as setas que Hillman ia
colocando.
Algumas das escolhas compuseram-se como premissas:
1) Partir do pathos. Para ficar com o quadro e tornar-se parte do
próprio quadro, ficamos com os relatos dos pacientes. Seus
sofrimentos, dores, aflições, alegrias, da maneira como eles as
relatam.
2) Ficamos com a psique pensada como uma pluralidade de pessoas
os complexos mas vendo em cada um uma inteireza, uma
subjetividade que se apresenta. Nada nelas é parcial ou
inadequado. Cada história que um sofrimento nos conta é tomado,
como propõe Hillman, como um estilo de consciência, presente na
vida e fazendo parte dela.
3) Os acontecimentos psíquicos são algo que ocorre no mundo e na
vida do mundo. Psique como alma no mundo e não, apenas, nos
indivíduos humanos.
Hillman diz que a personalidade é um drama cheio de gente, onde
nem sempre o Ego desempenha o papel de diretor. Pensar a clínica
como o lugar onde se desenrola um drama sempre cheio de gente.
5
Pensar a prática clínica como aquele lugar onde deve sair a pessoa do
analista e a pessoa do paciente, para que a análise possa acontecer.
Quem é essa gente que atende pelos nomes de analista, paciente,
mãe, pai, chefe, delírio, alucinação e por vai? Às vezes, a trama
que se desenrola fala de nossos dramas demasiadamente humanos.
Às vezes, irrompem na sala as enormes figuras das tragédias. Ouvir
as histórias contadas como narrações à maneira dos textos míticos:
O que caracteriza a narrativa tica é que aqui, as suas pessoas
dramáticas não se limitam a representar o drama mas, elas o
constroem realmente. As dramatis personae são escolhidas e,
simultaneamente, se impõe. Uma trás outra após si e a história
por sua própria vontade - passa a existir...(Kerény, DG p. 21)
Hillman nos apresenta outra possibilidade para além da dicotomia
Ego x Inconsciente; Luz x Sombra; etc. Para além da dinâmica única
dos opostos, propõe que pensemos cada quadro com sua dinâmica
própria, com sua face, cheiro. Ele diz não poder pensar em opostos.
Seria como opor um poema a outro. Pensar nas várias tonalidades de
luz e de cores, das várias perspectivas que nos dão as sombras. Para
podermos ver, como ele diz, Cosmos em cada grão de areia. Isto
implica abandonar qualquer idéia de uma psicodinâmica ou de uma
psique estruturada hierarquicamente, com uma direção para um
centro, seja ele a consciência freudiana ou o self junguiano. Poder
imaginar-se várias dinâmicas como
“uma rie de histórias míticas em lugar de processos psíquicos;
como o auge e a queda de temas dramáticos, como genealogias,
como viagens, contendas, tréguas, como intervenção dos deuses.
(...) um deus é uma maneira de ser, uma atitude sobre a
existência e um conjunto de idéias (...) um deus forma a nossa
6
visão subjetiva para que vejamos o mundo de acordo com suas
idéias. [A realidade substancial da psicodinâmica pode ser
imaginada como uma] <<microfísica>> e transparecer como se
tratasse de uma série de saltos quânticos de minipercepções.
[Transparecer como faz o vidro]: como não é visível, confunde-se
com seus conteúdos e os dados da psique, ao ser alocados dentro
ou atrás do vidro, se transportam da realidade palpável à realidade
metafórica, abandonam a vida para entrar na imagem. (Hillman,
RP, pp 292, 298)
Abandonar a idéia de processos que levem, quer ao caminho da
cura, quer ao autoconhecimento; abandonar o centro do qual tudo
emana ou para onde tudo converge. Em seu lugar, várias
psicodinâmicas e movimentos de centração.
Nos últimos trinta anos, a farmacologia psiquiátrica teve enormes
avanços. Criaram-se drogas mais precisas e com muito menos efeitos
colaterais. A rigidez muscular provocada pelos antigos psicotrópicos está
muito diminuída; o andar robótico, o rosto inexpressivo, o olhar parado,
que dava aos pacientes a “cara de louco” está quase imperceptível.
Mesmo quando ocorre, a duração é muito curta. A existência de injeções
com dosagens mensais permitiu maior controle sobre o uso dos
psicofármacos e ajudou bastante nas desinternações. Além disso, o fato
de as drogas estarem cada vez mais precisas permite adequá-las melhor
a cada organismo. A psiquiatria se depara, muito mais do que as outras
áreas da medicina, com reações muito diferenciadas dos organismos às
diferentes drogas. Aqui, a experimentação e o acompanhamento
freqüente se fazem muito mais necessários. Mesmo sendo uma ciência
do corpo material, parece que o rebro insiste em não aceitar
generalizações exageradas. Insiste em não ser “de amplo espectro”.
Drogas criadas para determinados quadros sintomáticos não servem
para todos os portadores.
7
A intervenção bioquímica tem por função estancar a “inundação de
imagens do inconsciente”, como Jung descreveu estes quadros.
Enquanto não houver um mínimo de contenção desta enxurrada, as
águas estarão devastando tudo o que encontram com sua fúria. A
medicação serve para criar algumas comportas e, minimamente, dar
alguma direção e limite ao jorro.
Quando as águas voltam ao seu leito e a velocidade ou a violência
da torrente diminui, é possível começar uma clínica “do ponto de vista
psicológico” (Jung). Enquanto as águas estão à solta, inundando tudo, a
imensa tarefa que os doentes podem fazer é tentar não sucumbir e
esperar a medicação fazer algum efeito.
Como se sobrenada na enchente? Quando se ouve as narrativas
dos pacientes surgem as perguntas: como se agüenta o terror? Que
estratégias se podem criar para enfrentar esta guerra? Em meio ao
bombardeio, encontram-se caminhos ou refúgios para sobreviver.
Acontece uma estranha lucidez (instinto de vida?!), nos momentos mais
cruciais.
As vozes imperativas insistem em dizer-lhe que ele tem de matar
a namorada. Resiste, se atormenta. Ele é apaixonado pela namorada.
Mas as vozes insistem e elas são muitas. Compra um revólver e o leva
para o motel. No momento em que escom a arma apontada para a
cabeça da moça, algo acontece. Telefona, pede socorro. Pede para que
amigos venham e o impeçam. Consegue esperar.
As vozes mandam que saia para a rua e mate as pessoas. Mas
nem as conhece, não lhe fizeram mal algum. E matar é pecado. Três da
manhã. Ligar em desespero para a prima e conversar com ela até
amanhecer o dia e poder ir ao hospital.
Muitas vozes. Um alarido dentro da cabeça. Sair andando,
caminhar quilômetros, horas e horas, de dia ou à noite (já que não se
consegue pegar no sono com tanto barulho). Recolher-se ao quarto,
8
dias e dias e não falar com ninguém. É gente demais falando, a cabeça
não agüenta tanto barulho.
Colocar fogo na casa mas somente nas coisas que pertencem ao
irmão mais velho, brutamontes que só sabe xingar de vagabunda,
folgada, que não quer trabalhar. E quando fica com muita raiva, bate.
Nem o pai consegue segurá-lo.
Que lugar é esse, de onde provém essa estranha lucidez? O lugar
é desconhecido, mas aponta claramente para a existência de uma
múltipla possibilidade de ações para compor uma clínica que não fique
na, ou viva apenas, a doença. Uma clínica que se componha com ela ou
apesar dela. Trabalhar com as diversas ferramentas de que se dispõe,
mesmo sendo díspares ou contraditórias. “Situações patologizadas
requerem medidas igualmente patologizadas” (Hillman)
A primeira solicitação que se faz quando um paciente chega ao
consultório é que ele relate sua queixa. Sair da clínica onde a única
atenção ou cuidado é para com a queixa; a clínica queixosa, lamurienta,
que aprisiona no lamento tanto técnicos quanto pacientes. Sair ou
mudar o espaço destinado ao queixume para criar nele outras
narrativas, outros personagens.
Vender os objetos criados era outro dos propósitos da clínica e,
para tanto, a produção deveria atender a critérios de qualidade, como
em qualquer lugar de trabalho. Coisas mal feitas não são compradas por
ninguém e a Kairós não queria repetir a prática de permitir que
“qualquer coisa é linda; afinal, eles são doentes”. Trabalhar com a
premissa que, apesar da doença, as pessoas estão plenamente capazes
de realizar, criar.
Colocar a produção no “mundo fora” também carregava a idéia
de começar uma trajetória de saída do confinamento para um convívio
maior com as questões trazidas por “esse mundo” e poder reaprender a
9
lidar com elas. Há um certo abrigo na doença; ela justifica e avaliza a
reclusão.
Levar a terapia para as ruas, como propôs Hillman. Compor-se
com tudo o que isto significa. Esta saída para as ruas acabou colocando
em cheque a própria idéia de uma clínica fechada entre quatro paredes,
sejam elas hospitais ou consultórios individuais. A clínica confinada
também se mostrou protegida por suas práticas. O que começou como
um projeto para nos ajudar a trabalhar melhor com as psicopatologias,
se afirmou mais como um laboratório para se compreender melhor
alguns dos procedimentos clínicos mais bem estabelecidos.
Nosso laboratório tinha uma reunião semanal para discutir as
questões que esta clínica nos trazia. O nos, neste caso, não se trata de
um plural majestático. A marca do coletivo começa com uma pequena
equipe que tinha as mesmas inquietações:
Ájax Perez Salvador, psiquiatra, psicoterapeuta, muito tempo de
experiência em Saúde Pública. Trouxe seu arsenal de conhecimento
específico e sua enorme visão para derrubar paredes de solidez opaca e
construir outras que permitam a visão.
Lucineide Miranda de Farias, psicóloga, psicoterapeuta. Seus
silêncios interrogantes irrompiam na sala, fazendo mais perguntas que
muitos discursos.
Margareth Buonano, pedagoga, psicóloga, psicoterapeuta, cujo
saber com as mãos, construiu a maior parte das tecnologias necessárias
às oficinas.
Maria Teresa Cabrera Iguacel, psicóloga, psicoterapeuta. Com sua
arte na vida e nas obras, trouxe o melhor das cores e dos tons. Como
artista, veio com o incisivo olhar para todo o supérfluo e a impiedade
que impede qualquer tentação para a banalidade. A capa que apresenta
este trabalho é um fragmento daquilo que ela foi e marcou neste
projeto.
10
Wladia Beatriz Pires Correia, psicóloga, psicoterapeuta. Inquieta
bailarina, quebrava os ritmos costumeiros trazendo novos, exigindo
outros movimentos.
11
A PEDRA
1
Manoel de Barros
Pedra sendo
Eu tenho gosto de jazer no chão
Só privo com lagarto e borboletas.
Certas conchas se abrigam em mim.
De meus interstícios crescem musgos.
Passarinhos me usam para afiar seus bicos.
Às vezes uma garça me ocupa de dia.
Fico louvoso.
Há outros privilégios de ser pedra:
a – Eu irrito o silêncio dos insetos.
b – Sou batido de luar nas solitudes.
c – Tomo banho de orvalho toda manhã.
d – E o sol me cumprimenta por primeiro.
1
Este poema e todas as epígrafes apresentadas neste trabalho pertencem ao livro Tratado Geral Das
Grandezas do Ínfimo do poeta Manoel de Barros
12
2. CLÍNICA-OFICINA KAIRÓS
Esta clínica é o resultado de uma busca que seus participantes
vinham perseguindo em suas práticas habituais nem sempre
satisfatórias. A busca sobre novas maneiras de se pensar a clínica vem
sendo feita em muitos lugares, uma vez que está cada vez mais
premente um olhar que atenda às exigências que o mundo está nos
apresentando. A afirmação que Hillman faz é esclarecedora desta
situação:
“Minha prática clínica diz que não posso mais distinguir
claramente entre a neurose do ‘eu’ e a neurose do mundo,
psicopatologia do eu e psicopatologia do mundo ... [aporque]
mundo externo é onde todas as subjetividades são
estabelecidas”. (C&A pp 10, 12)
Nossa escolha recaiu sobre o trabalho artesanal como prática
privilegiada para uma proposta clínica. A associação
trabalho/tratamento não é nova e passou por uma funda discussão ao
longo do século XX. As primeiras idéias sobre atividade associada a
tratamento vêm do projeto teórico que ficou conhecido como
Tratamento Moral que o trabalho e a ocupação terapêutica como
instrumento de aprendizagem da ordem, regularidade e disciplina.
(Benetton, in Silva 1997, pp. 20,21). Largamente difundido na Europa,
preconizava que a raiz de todos os males reside na inatividade. A
ociosidade não é o começo de todos os vícios (...) mas também da
demência. (Simon, in Silva, 1997, p. 32).
Portanto, (...) o uso do trabalho relacionava-se ao
enfrentamento da inatividade; era um instrumento de
organização manicomial e de aquisição de responsabilidade por
13
parte do doente. (...) o trabalho constituía um instrumento de
educação e treinamento, prescrito por um profissional médico,
(...) relacionado de forma orgânica com a instituição
manicomial. (Silva, 1997, p. 32).
Nas últimas décadas do século XX, a questão da atividade passou
a alocar-se melhor numa idéia de atendimento ampliado, onde opera o
conceito de reabilitação psicossocial entendido como proposto por
Saraceno et al:
“conjunto de todas as atividades que tendem à maximização das
oportunidades do indivíduo para sua recuperação e para a
maximização dos efeitos incapacitantes da cronicidade. Estes
objetivos contemplam o manejo a nível individual, familiar e
comunitário.” (Silva, 1997. p. 35)
Optando pelo trabalho artesanal, pretendemos encaminhá-lo de
uma maneira que leve em conta a psique, como Hillman a descreve:
que o corpo é psique, aquilo que o corpo faz, o modo como se
move, aquilo que percebe, é psique. ... onde o corpo vive e se
move e onde a teia de reações é tecida, também é psique; (...)
A psique existe inteiramente em um sistema de relações.”
(Hillman, 100 anos... p.84)
Esta maneira de olhar a psique vem dos ensinamentos de Jung
quando dizia que os conteúdos psíquicos têm sempre de ser
considerados numa rede de relações porque, dizia ele, não processos
psíquicos isolados, como não há processos vitais isolados.
O trabalho artesanal pretende ser realizado num ambiente que re-
crie o mesmo sentido dado a ele nas oficinas dos antigos artesãos, nas
quais os mestres eram mestres apenas por serem os de maior saber
14
sobre os fazeres. Sua função era a transmissão de sua experiência:
passar para os aprendizes - seus labores enlaçados com os de artistas
e artesãos de séculos passados; transmitir seu lugar, seu entusiasmo,
seus instrumentos de trabalho e sua entrega”, como descreve Gala.
Estabelecer, através do trabalho feito artesanalmente, o jogo de trocas
com o mundo (Fares), a conexão com a tradição pois, como diz
Benjamin: A experiência pertence à ordem da tradição, tanto na vida
coletiva como na vida privada.”
A maneira de funcionar nas oficinas será construída a partir de
uma noção criada por Walter Benjamin - CONSELHO. A análise que se
segue foi feita por Claudia Fares, de quem a tomamos emprestada,
porque descreve com muita precisão como trabalhar.
O ouvinte torna-se narrador justamente durante os atos
simultâneos de dar forma à matéria, pelo exercício das os e
de escutar a história que está sendo contada. É assim que o
ouvinte se torna capaz de narrar. É assim que se coloca a
importante noção formulada por Walter Benjamin: a do
conselho. O conselho não tem aqui o teor que normalmente
costumamos lhe atribuir. Para Benjamin, o conselho é
sinônimo de uma sugestão para a continuação de uma história,
do relato, da experiência partilhada, cujo fim não podemos
jamais adivinhar. ... O conselho não é, de maneira nenhuma,
uma interferência vinda do exterior sobre a vida de alguém. Pelo
contrário, ele se mostra como uma sugestão ao fluxo narrativo
comum, quer dizer, dentro da experiência comum da narração,
o conselho serve tanto para quem relata quanto para quem
escuta. ... Nessa experiência o homem está, todo o tempo,
sendo aconselhado, mantido por esta hisria que é comum.
(...) A experiência transmitida pela narrativa é, portanto,
comum ao narrador e àquele que a escuta. Neste sentido, o
artesão-narrador ou o narrador-artesão é aquele que está
esquecido de si mesmo justamente por acolher aquilo que ele
15
relata fazendo, ao mesmo tempo, a experiência daqueles que
escutam sua hisria.” (Fares, AC. P 49).
Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais
profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo de
trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira
que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se
teceu a rede em que esguardado o dom narrativo” (Benjamin
apud Fares, AC. P 49)
Aprendemos com Hillman que a psicoterapia é um modo de ouvir
e reagir e que todas as explicações sobre a vida humana são ficções. E
que podemos tirar alguma coisa delas, construir algo, realizar uma outra
ficção, uma imaginação e poderemos, no papel de artesãos-narradores -
sugerir possibilidades de continuidade dos enredos que eles descrevem.
“Na oficina do artesão, o exercício se desdobra
infinitamente, ganhando novas nuances. Aquele que tece
percorre uma experiência que, inevitavelmente, se conta, se
relata, no ato de fazer. Enquanto suas mãos trabalham contando
silenciosamente seu percurso que os olhos acompanham, o
ouvido dispõe-se a escutar o que a palavra, por sua vez, tece.
(Fares, AC p 49)
Aprender com as coisas é outro dos ensinamentos que Hillman nos
oferece para propor-nos a um modo de terapia que passe pelo fazer. Um
fazer que se narra silenciosamente, com o acompanhamento da visão e
do ouvido. Este fazer que, ao narrar-se, cria sugestões para a
continuidade da narrativa, não passa por explicações. Trata-se, apenas,
de dar passagem às conexões que o próprio narrar-fazer estabelece.
Não caberá, portanto, nenhum tipo de distanciamento; trata-se de um
fazer com, esquecido de si mesmo, que servirá tanto para quem relata
16
como para quem escuta. E assim, poder tecer a rede que está
guardando o dom narrativo.
3. TEMPO DA TESOURA TEMPO DA COLA
Uma Metodologia.
Sou beato de águas
de pedras
17
e de aves.
Debruçar-se sobre obras existentes e lançar mão delas para
fazer algum trabalho assemelha-se muito ao processo de fazer uma
colagem. Cada um recolhe uma quantidade qualquer de pedacinhos e os
reagrupa à sua maneira. Em especial, quando a obra escolhida é de C.
G. Jung, que nos deixou uma enorme quantidade de idéias e conceitos.
Ao longo de seus escritos vamos encontrando a mesma noção dita de
várias maneiras, algumas contradizendo-se. Ele não nos apontou qual
era a “correta” e isto contribuiu para que muitos de seus seguidores
criassem os mais diversos pontos de vista.
A possibilidade de usar inúmeras formas de utilizar uma colagem,
além de infinitos materiais, pode dar a impressão que é um processo
completamente arbitrário mas é mostrada de outra maneira por
Frederico Morais, quando fez a apresentação da obra do colagista Tide
Hellmeister. Diz ele que a colagem
“(...) é uma linguagem, uma poética, enfim. [As imagens] são
também criações mentais, existem virtualmente na imaginação
do artista e, quando viabilizadas (...) de forma encadeada
passam a constituir a expressão de um universo particular do
artista.” (Morais, apud Hellmeister, Collage, p 5)
Braque, a quem se atribui o invento do papier collé, referia-se aos
pedacinhos de papéis colados como certitudes. As pequenas certitudes,
familiaridades que se vão recolhendo ao longo do tempo em que se
estuda uma obra, vão compondo uma caixa de guardados, de
afetividades, às quais se recorre sempre que é necessário retomar a um
tema. E com esses papéis, tesoura e cola, introduzir uma informação
intelectual, um conceito.
18
Segundo Morais, fazer colagem é uma obra em dois tempos - o
da tesoura e o da cola:
Do lado da tesoura, temos a realidade, que é
descontínua, fragmentária, dispersa. Quando se toma um
material que vem inteiro, contínuo e ordenado, a tesoura corta,
recorta, divide, separa, isola, fragmenta, embaralha e cria a
dispersão. Depois vem a cola, que busca uma nova
continuidade, outra síntese, outra ordem ou, o que para Morais
é igualmente válido, a exacerbação das características iniciais.
A cola multiplica, junta, reaproxima, reúne, totaliza. A
tesoura des-monta, des-constrói o construído, desarticula o
articulado; a cola re-monta, re-constrói, re-articula. E assim, ao
recriar, reativar, o artista da colagem acrescenta à imagem
recortada o seu inteligível e o seu imaginário ... [ as imagens]
arrancadas do seu contexto original, postas em confronto ou
colisão com outras imagens provocam ...o desabrochar de novos
processos imaginativos, revelando [outros] sentidos da imagem
...” (Morais, apud Hellmeister, Collage, pp 10 e 11)
Tentar fazer uma colagem a partir de obras existentes, recortar
algumas das certitudes que irão compor uma outra figura, tentar colar
as pequenas familiaridades que se adquirem ao longo do tempo que se
passou estudando e tentando aprender. Jung dizia que tudo que
acontece em um determinado tempo, adquire as características desse
tempo. A isto ele chamou de sincronicidade. Ou, nos dizeres de
Marques, do Instituto Bricoleur,
“o meu tecido difere do teu quadro, porque nele gastei o meu
tempo, que o foi o teu tempo. Mas, com o meu tempo
também saberei fazer o meu quadro. E o teu quadro e o meu
quadro provarão que somos tão diferentes quanto foram nossos
tempos”. (apud Hellmeister, Design Gráfico. P 16)
19
Após meio século dos últimos escritos de Jung, fez-se necessário
confrontar seus pensamentos com outros, colocá-lo em outro tempo e
concretizar outra figura. Recolher da sua obra as petites sensations
(como propunha Cézanne) em vez dos ismos teóricos, seria tão ao
gosto do próprio Jung, que nos ensinou a nunca negligenciar qualquer
manifestação psíquica, mesmo que se chamasse delírio e não devesse
ser levado em conta, por ser obra da cabeça de um louco. Pois foi
exatamente daí, das chamadas loucuras que ele tirou todo o material
necessário à sua concepção da mente humana.
Erigir a esquizofrenia como paradigma para se compreender a
psique levou-o a propor uma forma de pensar o psíquico de uma
maneira nova na psiquiatria de sua época, dominada por um tipo de
medicina completamente materialista, isto é, centrada na anatomia e
fisiologia. Seus primeiros escritos são de 1901 e ali, apoiado nos
escritos de Freud, rompia com o mando máximo da medicina para a
qual as doenças mentais são doenças do cérebro, propondo um
acontecer psíquico autônomo e autogerador.
De todos os seguidores, James Hillman é, talvez, o mais
junguiano, no sentido de romper com o mando máximo das idéias do
próprio Jung. Ele diz que Jung será sempre bússola, mas jamais
doutrina. Talvez por isso mesmo continue apresentando-se como
junguiano, embora sua obra tenha seguido muitos outros nortes para
além daqueles que a bússola apontava primeiramente. Hillman fez seus
recortes a partir de algumas idées force que Jung lhe ofereceu e compôs
outra obra, tão diferente quanto foram seus tempos mas, as figuras que
ele criou a partir dos recortes contém a mesma radicalidade de
mergulho nos temas que aborda e a mesma coragem de romper com
mandos máximos.
20
Hillman nos lembra que coube aos psiquiatras debruçar-se sobre
as inquietações críticas de uma cultura apresentadas “in extremis”,
sintomaticamente. Os sintomas dos sofrimentos psíquicos se
apresentavam em todos os lugares com sua virulência e criações.
“O termo <<esquizofrenia>> cunhou-se oficialmente no período
imediatamente anterior à Primeira Guerra Mundial, um período
que assistiu à correspondente fragmentação na pintura, música,
literatura e à correspondente relativização do ego nas ciências
naturais. Os casos de personalidade ltipla eram importantes
porque confirmavam a multiplicidade do indivíduo num
momento em que o mesmo fenômeno fazia sua aparição na
cultura em geral. Graças a essa perspectiva esquizóide ltipla
contemplamos um mundo que não estava unido pela razão,
que já não estava unido em absoluto. Em seu lugar víamos
espontaneidade caótica, relatividade, descontinuidades,
desarmonias, superpovoação de espíritos e de imagens anímicas
viventes (...) (Hillman, R P. p 96)
Propor-se a uma clínica nessa perspectiva esquizóide, implica
escolher e acolher cada fragmento. Tomar cada um como uma petite
sensation e saber que é um vivente com sensações, opiniões e
necessidades, como um complexo, à maneira como Jung imaginou. Uma
psique composta de personalidades parciais que se comportam como
corpos estranhos, animados de vida, características e memórias
próprias, os muitos eu que somos cada um de nós.
Escrever um trabalho que busque uma certa inteligibilidade para o
que parece ininteligível parece exigir um exercício de ficar com o
fragmento, apresentá-lo da melhor maneira possível e ficar com a
tensão que exige o encontro com o inacabado, disforme, sem a saída
21
fácil de explicá-lo ou defini-lo. E, no entanto, ver cada pedacinho, como
uma certeza.
A vida psíquica pensada a partir da prática clínica exige, também,
ficar com a tensão. Pensada a partir dos eventos ocorridos, estes
mesmos eventos contrapõe-se às teorias criadas, um sem número de
vezes. Qualquer trabalho em Psicologia acontece no encontro ou
entrechoque dos acontecimentos e os pensamentos gerados a partir
deles. Hillman propõe Encruzilhadas, em vez de estradas - hodos , ficar
no encontro, onde acontecem as conexões. Encruzilhadas, no lugar do
metha hodos. Nas encruzilhadas das leituras e da prática é que foram
recortadas as certitudes teóricas deste trabalho, que serão
apresentadas. Assumir o caminho do erro:
O raciocínio psicológico prospera com a compulsão repetitiva e os
ciclos de retorno aos mesmos temas insolúveis (...) sua
aprendizagem é através do erro (...) O caminho errante nos conduz
àquilo de que estamos menos seguros, reduz nossos
conhecimentos e dissolve o conhecimento na dúvida, na liberdade
da incerteza. (...)
As reflexões psicológicas sempre tomam a luz desde um ângulo
peculiar. (...) O espelho psicológico (...) O Cavaleiro Errante em
sua aventura é, também, um factótum, (...) um bricoleur (...) que
psicologiza tudo o que têm à mão; não se trata de um arquiteto de
sistemas nem de um planejador. E deixa, antes de completar sua
tarefa, uma sugestão flutuando no ar, uma pista falsa, uma frase
aberta... (Hillman, R P , p 329)
A estas certitudes foram acrescentadas outras, recolhidas da
prática com todos aqueles que a compuseram: pacientes, técnicos,
interlocutores de outros projetos, familiares, secretárias... A cola
utilizada aqui, às vezes, faz contornos e delineia figuras; outras vezes,
22
acrescenta um material que se “descola” do resto e fica ali, no quadro,
como uma pergunta. Quando nos deparamos com os textos da prática,
eles sempre nos trazem o novo, o inusitado, o incompreensível. São o
elemento estranho ao quadro teórico, que fica ali; é o enigma que não
pede para ser decifrado: pede conexão. Fica ali para lembrar-nos o
tempo todo que, sem ele, voltaríamos à cegueira de Édipo, que tudo
quis ver e compreender. “Prefiro complicar o enigma a explicá-lo;
agravá-lo a defini-lo; confirmá-lo a resolvê-lo”. (Hillman)
Para fazer as reflexões psicológicas , Hillman propõe um modo de
trabalhar que Levi Strauss, denominou como ciência do concreto, um
pensar/fazer que atende pelo nome de bricolagem. Diz ele que:
“O bricoleur é aquele que opera sem plano prévio, com meios e
procedimentos afastados dos usos tecnológicos normais ...opera
com fragmentos de obras, pedaços... a regra de seu jogo é
arrumar-se com o que houver”, isto é, um conjunto de
instrumentos e materiais que não estão em relação com qualquer
projeto mas, que é resultado de todas as ocasiões oferecidas para
renovar ou enriquecer suas existências ou de conservá-las com os
resíduos de construções existentes. A poesia da bricolagem advém
sobretudo daquilo que o se limita a realizar ou executar; fala”
não somente com as coisas mas, por meio das coisas.” (Strauss,
pp 35 a 37)
As coisas a partir das quais fala um trabalho escrito,
baseiam-se em recortes feitos das obras escolhidas. Hellmeister disse
que as imagens escolhidas fazem parte da visão de mundo do colagista.
Sendo assim, descolar trechos de uma obra é uma forma de apropriação
de suas idéias, mas, quando se trata da obra de Hillman, de certa
maneira, temos sua autorização pois ele disse que “as idéias não são
minhas, elas estão .”
23
Desde o advento da psicanálise, uma das preocupações de
Freud foi afastá-la do modelo e da ciência médica. O primeiro nome que
ele deu à Psicanálise foi a Arte da Cura pela Fala. E o grupo das 4as
feiras em Viena vinha das mais diversas formações profissionais. Jung
seguiu as mesmas preocupações e propôs que, para compreendermos a
psique, era muito mais necessário o conhecimento de filosofia,
antropologia, literatura, etc. Em especial, dava os maiores créditos aos
poetas, que, para ele, sabiam falar mais e melhor sobre as paixões
humanas que qualquer diagnóstico. A idéia de Arte está associada à
psicanálise desde o seu nascimento.
James Hillman começa com a literatura. Americano de
nascimento, cidadão suíço, seus estudos se dão em Paris, onde trabalha
como radio jornalista no pos guerra e em Dublin, onde participa de uma
revista literária. Antes disso, entretanto, entre 1944 e 1946, a Marinha o
envia para cuidar de feridos de Guerra na Alemanha destroçada.
O trabalho que eles me deram era com os cegos, os
aleijados e os surdos. (...) que voltavam da guerra do Pacífico.
Fiquei extremamente identificado com essa gente e com o horror
da reabilitação americana. s os levávamos a festas, bailes,
encontros (...) Tudo voltado para a adaptação mas nada significava
coisa alguma e ninguém nos oferecia treinamento, ferramentas
com as quais trabalhar. Então me mudei da caserna direto para o
hospital e vivi com os pacientes, o que não era permitido, mas
alguma coisa queria ir mais fundo naquilo e o único modo de fazê-
lo era chegar mais perto. (...) De qualquer maneira eu estava
envolvido com psicoterapia, aos 19 anos, sem nunca ter escutado a
palavra. (Hillman, E V p 103)
Este chegar mais perto do sofrimento para ir mais fundo, é
uma das marcas de sua obra. Após alguns anos, em 1955, vai para
Zurich onde cursa filosofia e faz sua formação como analista no Instituto
24
Junguiano, onde ficou por 20 anos, onze dos quais, na direção. Em 1974
volta para os EUA, porque eu precisava do novo, começa a escrever sua
obra mais autoral.
Talvez, por ter começado com a Arte da Palavra, Hillman
pôde desenvolver uma Psicologia mais afastada da Medicina como
quiseram Freud e Jung. Uma de suas grandes críticas é quanto à
linguagem que a Psicologia herdou da Medicina e a transformou em
palavras tão grandes, que as esvaziou. Ficou, apenas, o relato de
sentimentos introspectivos como depressão ou ansiedade,
completamente conceitualizados.
Será por isso que Flaubert disse a um jovem escritor para sair e
observar uma árvore por horas e horas? Pare de escrever sobre você
mesmo. Resgate as qualidades da árvore na sua linguagem.
A própria emoção inventa movimentos incríveis, insultos e maldições
complicadíssimos (..) A diferenciação, o matizar de emoções, tudo
isso é trabalho da cultura. A poesia moderna veio com Williams,
Pound, o imagismo, o próprio Elliot, insistiram em fragmentar grandes
emoções em imagens precisas. Este movimento apareceu ao mesmo
tempo que a psicanálise, um pouco antes da Primeira Grande Guerra
e a psicanálise é um tipo de imagismo um modo de fazer com que
as imagens tornem as emoções mais precisas. A psicanálise é um
movimento poético. (Hillman, E V pp 52, 53)
Pensar na Psicanálise como um movimento poético, como
um trabalho da cultura, também afasta Hillman de uma Psicologia que
contenha qualquer idéia de Civilização. Este movimento para a frente,
carrega uma noção de caminho em direção à consciência, que começa
nas hordas primitivas e se dirige ao mundo civilizado. Não importa se a
consciência se traduz na racionalidade egoica na obra de Freud ou no
caminho do Self, proposto por Jung. As duas idéias pressupõe um ponto
para onde deva convergir a cura da neurose (Freud) ou o processo de
25
individuação (Jung) A idéia de Civilização sugere a existência de uma
seqüência que leva a algum lugar, um mundo que tem uma História,
que se conta desde o começo.
Precisamos fazer uma distinção entre o sentido grego de kosmos
e o universo latino, unus verto, revertendo a um ponto: a
unificação monoteísta do sentido grego específico e plural das
coisas, o mundo como mundos. (Hillman, C&A p 19)
Abandonar qualquer idéia de processo, progresso,
crescimento psicológico, auto conhecimento e reconhecer o pensamento
selvagem da desordem que insiste em não se desenvolver de acordo
com nenhum critério pré estabelecido quer da prescrição médica, quer
da psicodinâmica. Pensar nos diversos mundos que as paixões criam, os
muitos centros que se produzem a partir de um determinado evento,
pensar a vida a partir da desordem, que insiste em ser crônica e não se
dispõe a evoluir no tempo, quer buscando suas origens no passado,
quer buscando sua finalidade.
Quando Hillman propõe a psicologia como um trabalho da
cultura, refere-se a esta, não com uma definição mas, querendo
dar à palavra uma penumbra, uma atmosfera conotativa. Ela
evoca o culto - e evoca o oculto (difícil de ver, deliberadamente
secreto, misterioso) e cultura também evoca formas orgânicas
em fermentação que crescem em vasos mornos, intensos,
ricamente alimentados e não naturais.
Cultura evoca uma intelligentsia ou iniciados - e estes podem
ser qualquer um numa sociedade (...) que apreciam, talvez vivam
em termos do oculto (aquilo que não está simplesmente dado
como idéias, qualidades, virtudes, formas). Ou seja, valores
invisíveis e o valor das invisibilidades. (Hillman, C&A p 33)
26
3.1 Tempo da Cola
Águas que sabem
a pedras
sabem a rãs.
Qualquer descrição clínica de psicologia ou psiquiatria começa
apresentando o estudo de caso falando de um paciente e apresenta seus
sintomas ou queixa. Os sintomas são algo que ocorre no paciente, no
portador. Apesar da mudança da nomenclatura que destituiu os nomes
como psicótico ou esquizofrênico (para não caracterizar ou taxar toda a
pessoa como doente), continuamos a descrever os sintomas como
pertencentes a um indivíduo e a doença é algo que pertence a ele. Afinal
é seu portador.
27
Ao pensarmos nos sintomas como linguagens ficcionais que nos
contam (como personificações) e que falam a todos nós, talvez
possamos fazer outras histórias ou lidar com eles de outra maneira.
[Os sintomas] são uma forma de tradução, uma forma de
converter algo literalmente conhecido, habitual e trivial, como as
psicopatologias da vida cotidiana, em algo desconhecido e
profundo. (Hillman, RP p178)
A psicopatologia torna-se doença quando os sintomas adquirem o
comando total da vida de pessoas que, quando assoladas por eles,
passam a viver toda a existência em função de seu comando. Quando as
falas sintomáticas passam a ser entendidas e vividas em sua concretude
literal, sem nenhuma possibilidade de filtro ou manejo. Quando os
sintomas se impõe de tal forma que toda a vida passa a ser remetida a
eles, nada mais acontece sem sua presença ou seu comando. Acontece
uma escravidão sem escapatória do senhor. Os sintomas se tornam os
donos da vida.
Um axioma da psicologia profunda assevera que aquilo que
não se admite na consciência irrompe nela de maneira torpe,
obsessiva, literalista e a afeta, precisamente, com as qualidades
que pretende excluir. A personificação que o é aceita como visão
metafórica retorna sob uma forma concreta: apoderamo-nos de
outras pessoas, aferramo-nos a elas. Investimo-las com imagens
reprimidas, de forma que crescem em importância, idealizam-se,
idolizam-se, enquanto que a psique sente-se mais fascinada ainda
por estes indivíduos concretos, mais aderida a eles, do que teria
sentido pelas pessoas metaricas que estão na raiz da projeção
sobre a gente. Sem as pessoas metaricas, somos conduzidos à
força às desesperadas garras dos literalismos. (Hillman, RP, p 132)
28
Uma clínica do sofrimento psíquico necessita, portanto, conhecer
esses senhores. Debruçar-se sobre o discurso dos delírios, alucinações e
tentar extrair deles outra ficção possível, além da mera escravidão.
Pensar nos sintomas como personificações que nos habitam e tem uma
vida e fala próprios. Para ouvir o relato que os portadores fazem de suas
experiências, nada mais vazio que qualquer linguagem médica ou
mesmo interpretação psicológica. Nos dois casos esvazia-se a escuta do
que é dito para voltar-se para a história do narrador: pessoal, étnica,
social. Outra conseqüência que decorre de pensar-se a patologia dentro
do corpo do narrador é o sigilo. Um grande segredo deve pairar sobre o
assunto, uma vez que vai desvendar-se a mais profunda intimidade de
uma pessoa. Este enorme segredo, assunto sempre a portas fechadas,
acarreta para o portador mais um elemento a carregar: sua doença é
seu segredo. A tal ponto isto é incorporado que muitos pacientes não
contam suas fantasias ao médico porque ficam com vergonha.
O que é narrado, os personagens apresentados pelas falas dos
pacientes, são instrumentos diagnósticos ou para a compreensão
técnica. O que fica de fora é sempre a narrativa doente. Assumida como
doente, é algo para ser sanado, curado, superado ou integrado. O que
Hillman nos propõe como primeira coisa a fazer com a patologia é
afirmá-la, deixar que a depressão sente na cadeira com sua imensa
tristeza, que o delírio e sua grandeza ocupem todo o espaço da sala.
Pensar nos sintomas como personificações faz pensar em dar-lhes
outros nomes. Jung disse que a medicina apropriou-se dos antigos
deuses e os transformou em doenças. Pobreza de linguagem, para
descrever a imensidão das histórias que a patologia nos conta.
Os relatos aqui apresentados são produto de uma forma de
entender o trabalho com o sofrimento psíquico. Como se apresenta a
vida, numa perspectiva deformada e atormentada? A primeira coisa a
fazer com a patologia é afirmá-la, convidá-la a sentar à mesa conosco,
29
deixar que ela se apresente. E, a partir daí, entrar em relação com as
pessoas psíquicas que aparecem, enquanto o resto da vida anda.
Ao trabalhar com uma clínica que leve em conta a existência real,
verdadeira e encarnada desses personagens, acolhe o desafio de ver
todo o tempo, as suas irrupções nos momentos mais inesperados.
Acolhe um trabalho em que as espontaneidades caóticas se tornam o
cotidiano. Hillman insiste em dizer que devemos reportar-nos a essas
personificações como estilos de consciência. Esses estilos de consciência
se fazem presentes na prática da clínica e na hora de escrever sobre
ela, pois personificar é uma forma de conhecer, especialmente aquilo
que é invisível...
Falar dos sintomas como personificações nos remete a outros
modos de consciência. E, consciências, são modos de experimentar.
Hillman fala de consciência mítica, que fala através de personificações,
para diferenciá-la de literal, isto é, aquela que traduz as experiências
através de conceitos fechados, leis ou “fatos comprováveis”, contados
“como realmente aconteceram”. A consciência mítica, remete a uma
psique imaginal.
O termo imaginal adquire importância capital na obra do
islamólogo Henri Corbin, que se valeu do termo com o propósito de
evitar qualquer confusão com o meramente imaginário e poder
devolver à imaginação seu legítimo lugar de valor noético, isto é,
restituir-lhe <<sua função de verdadeiro órgão de conhecimento,
capaz de criar>>. Corbin reconhecia à imaginação uma função
produtiva e não, somente, reprodutiva... Hillman, RP p 59)
E, no entanto, este pathos, este algo que nos acontece (pois é isso
que quer dizer pathos), realmente acontece. Aqui, Hillman segue Jung
sobre o critério de verdade ou realidade psicológica que é um fato e
não um julgamento. E, por fato, devemos entender que qualquer
30
pensamento, sensação, emoção, pode ser levada em conta enquanto
experimentada, enquanto acontecimento. Qualquer idéia, sob o ponto
de vista psicológico, não pode ser vista sob a ótica do verdadeiro ou
falso mas, no que esta idéia instala na vida de um indivíduo ou grupo.
Se é experimentado, se produz algum efeito, é real e verdadeiro.
Não há, portanto, confronto possível entre fantasia e realidade;
fantasia é realidade e a psique está criando realidade o tempo todo.
“Nada sabemos do Real mas, experimentamos, vivemos
diferentes afetos, desde <<fora>>, pelos sentidos e, desde
<<dentro>>, pela fantasia. (...) não deveríamos acreditar que a
fantasia é uma coisa que existe independentemente e, por fim, que
se possa tomar ao pé da letra. É uma expressão, uma aparência
que figura no lugar de uma incógnita que, entretanto, é uma coisa
real.” (Jung, OHSA, p 198)
Contar as histórias que os sintomas nos contam e não saber em
que lugar exatamente devemos colocá-las. Não se encaixam em
nenhuma moldura; não se adequam a qualquer idéia de desenho. Aqui,
a cola será mais fluida e, talvez, nem consiga colar. E, no entanto, estas
pessoas estarão presentes em todo o trabalho. Não somente presentes,
mas fazendo parte dele como as dissonâncias e ruídos que fizeram a
clínica olhar para si mesma. Foram elas que introduziram uma
informação, foi também com elas que aprendemos a recortar e a colar.
Levar em conta que personificar é a atividade psicológica básica,
que é
“de experimentar, conceber e falar espontaneamente das
configurações da existência como presenças pquicas ... é uma
forma de estar no mundo e de experimentar o mundo como um
campo psicológico... Personificar nos ajuda o a discriminar;
também nos oferece outra via para amar, para imaginar as
31
coisas de maneira pessoal, para que possamos aceder a elas
com o coração” (Hillman, R P, p74 a 78)
Trabalhar, escrever, clinicar, com a presença desta multidão de
pessoas ao mesmo tempo... Aceder às configurações da existência com
o coração. Eis a tentativa desta colagem: escrever sobre uma clínica que
se debruçou sobre os sintomas de sua prática, em meio a todos, às
vezes sabendo que certitude pegar, outras deixando-a de lado, para
poder compor figuras de uma clínica possível. Certitudes - sintomas,
relatos, delírios, textos, pedras, inquietações todos os personagens
que compõe um lidar que, necessariamente, propõe enigmas. Algumas
destas pessoas nos foram apresentadas da maneira que segue:
AS VOZES
Quem são elas? São homens e mulheres, pode ser um ou vários
falando ao mesmo tempo. Em geral são apenas ouvidas e sempre falam
mal de quem as escuta. Comentam, xingam, depreciam. Às vezes, vêm
do rádio ou da TV. Sempre falam coisas pessoais e inventam coisas que
o ouvinte nem fez; acusam. E não param; são muitas, falando o tempo
todo, não dão sossego, estão em todo lugar. Às vezes, e é que elas
são piores, mandam fazer coisas ruins. Ficam tão mandonas que são
chamadas de imperativas. Mandam, obrigam a sair à rua e matar gente
pessoas conhecidas ou não brigar, quebrar coisas, destruir. E não
param. Só calam quando se dorme.
LADRÕES DE PENSAMENTOS
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Roubam os pensamentos ou idéias, que usam para ficar ricos ou
ter poderes. Roubam e esvaziam a cabeça, que fica sem nada, oca.
Depois do roubo, não se consegue fazer nada porque não sai nenhuma
idéia e muito medo, porque os ladrões vão voltar. Eles sempre
voltam. Então, talvez seja melhor esconder todos os pensamentos mas
não ... “eles” descobrem e roubam de novo. Há outra coisa diferente
do roubo, mais sutil; a irradiação de pensamentos. As pessoas estão
ouvindo os pensamentos; todos sabem o que se está pensando, tudo.
Até os pensamentos mais íntimos, os mais vergonhosos. Não pra
parar de pensar e todos ficam sabendo. Nem sempre todos ficam
sabendo, só alguns, que têm mais poder. Então, só resta dormir (não se
pensa no sono) ou trancar-se no quarto, na tentativa de não ser
descoberto. Ficar no quarto por oito anos. Quando obrigado a sair,
medo, pânico ... ou então, fúria. A única defesa contra esse enorme
medo é a fúria.
PRESENÇAS
Milhares de formigas andando pelo corpo, picando, picando. Coça
muito, o corpo todo. Aranhas enormes subindo pelas pernas, subindo.
Cheiro de pneus queimados, ruim. Pessoas que aparecem e ficam na
frente, não se sabe de onde vieram; algumas vezes ficam ali,
algumas vezes falam. Macacos que se sentam na poltrona do consultório
e ficam olhando. Os bichos não param de picar, as pessoas não
desaparecem, o mau cheiro persiste. Não se sabe como fazê-los parar
ou mandar embora. Como dizem que não existem? Estão bem aí,
picando, olhando. E não desaparecem. Talvez dormindo...
CONSPIRAÇÕES
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O mundo todo está conspirando contra para destruir a família, os
entes queridos, o quarteirão, o bairro, o planeta. Não fuga possível
porque a conspiração é internacional, interplanetária. O que fazer além
de desesperar-se, tentar, tentar, tentar... o que? Não força possível
contra tal poder, que é inexorável. E “eles” não param de conspirar.
Quem são eles? A vizinha, que todos os dias põe o lixo na calçada mas
seu lixo tem a peste ou uma bomba. O médico que diz querer dar
remédio mas quer mesmo é envenenar, assim como não se pode comer
fora porque a comida está envenenada; até a merenda da escola do
filho tem veneno. O transeunte que olhou com “aquele olhar”. A mãe, o
pai, o irmão,... que não são mãe, pai ou irmão, porque algum maligno
lhes tomou o corpo e quer matar, machucar. Fazer o que? Desesperar-
se, esconder-se e às pessoas que se ama ou armar-se de uma ria do
tamanho da ameaça e quebrar tudo e todos, que dormir neste caso,
não é possível. Exige alerta máximo.
TODA LUZ
Pode tudo; não sono ou cansaço. Dormir duas horas por dia e
sair para a vida a todo gás. Gastar, gastar, comprar a cidade. Fazer
sexo com todos e muitas vezes repetidamente. Falar sem parar por dez
horas e nada, nada de ruim existe. que não deixam fazer tudo o que
se pode, não querem escutar. o para aceitar isso, irrita.
Generosidade total, doar a fazenda da família; não deixaram. Irritação
total. Afinal, era para caridade. Construir o palácio do Itamaraty com
lago e tudo com algumas pedrinhas quebradas, sem ferramentas além
de lixas e cola. Disseram que é impossível. Irritante esse cerceamento.
Não há nada que não se possa fazer. Não sono, cansaço; a
irritação porque o mundo não aceita ou impede.
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TODA ESCURIDÃO
Tudo está parado. este bolo que sobe para a garganta,
apertando, dando enjôo. Sem fome, vários quilos se perderam num
mês. sono, quase o dia todo. Sem sono, horas deitado no quarto,
olhos abertos, exausto. Não se dorme e tudo está escuro. Dia, noite?
Não se sabe mas, a luz faz mal. O corpo está exausto e se arrasta, ou
nem isso: quer ficar parado. Mexer-se pra que? Não nada a ser
visto. Só este negro, negro, negro. Só chorar dias e dias, sem fome sem
sono ou sono. Banho, escovar dentes? Pra que? Dói, dói muito. Dói
na alma. querer ficar quieto, querer que esta dor acabe. De onde
vem esta dor? Não se sabe, só dói. se quer que acabe. Então, talvez,
acabando com tudo, a dor passe: tomar formicida, cortar os pulsos, a
faca da cozinha, a arma que o parente guarda no sítio, a janela do
andar alto do prédio. Fracasso: não consegue nem acabar com tudo.
TAREFAS HERCÚLEAS E TRANSMUTAÇÕES
1) O exército precisa dele para poder fazer a bomba atômica,
porque do seu corpo que é retirada a energia para produzi-la.
Teve de doar-se ao exército para impedir que a família seja
assassinada. O tempo todo o corpo está ocupado com a
produção de energia. É muita coisa, muito trabalho. Mas não
para deixar morrer mais ninguém. As duas vezes que se
negou, morreram dois irmãos. É preciso salvar todos os outros.
O corpo trabalha, trabalha, eles sempre vêm buscar mais.
Cansaço. Não para acordar cedo depois de tanto esforço.
Dizem que é preguiça, mas não é. É cansaço. Não sabem que
correm perigo, não escutam os avisos. Dizem que são
espíritos; não são. São assassinos. que salvá-los e a
energia é retirada do corpo.
35
2) Ser um venusiano, com aparência de marciano, travestido de
terráqueo. Ver os pensamentos dentro da própria cabeça antes
de eles acontecerem. Ninguém consegue entender, conviver.
3) Pacto com deus e com o demônio para manter a guerra no
hemisfério norte. Esse pacto tem de ser renovado de sete em
sete anos. Está quase na hora da renovação. Até agora, o
pacto teve sucesso e faz mais de vinte anos que foi feito. É
preciso continuar, para proteger a família e o Brasil. Ser eu,
ser a esposa. A esposa são duas. Difícil saber com qual falar.
Ela orienta, ajuda. Como saber qual delas é? Fica difícil. O que
ajuda é o pacto.
4) “Eu e minha pessoa chegamos.” Endereço, telefone, datas?! E
fazer tudo sozinho. Pilhas enormes de documentos para cuidar.
Não entendem. Explicar, explicar, várias vezes... não
entendem. Ficar nervoso. Pânico: algo de muito ruim
aconteceu àquelas pessoas; ir todas as vezes e encontrar a
casa fechada. Angústia. Porque algo de muito ruim aconteceu a
elas. Alívio: viajaram em férias.
NINGUÉM
São pensamentos. Nada fica, nada retém. É como se atirasse
uma bola e ela fosse embora porque não encontrou nenhuma parede.
Cai no nada. Não aprende, nada fica. a persistência desses
pensamentos ruins. Não querer chegar perto das facas para não matar.
Raiva? Não, não a sensação física da emoção. o pensamento que
não é bom matar. Ficar horas vendo pornografia na Internet. Tesão?
Não, só o pensamento voltado para porcarias. Comprar algo e não saber
pra quê nem porquê. Começar tudo a parar tudo. Nada fica. Gostar ou
não das pessoas. Não há nenhuma relação com as pessoas. Gosto,
sabor... pizza. Mas dura aquele momento. Não lembrar do gosto.
36
esses pensamentos, sempre iguais, sempre os mesmos, sempre ruins.
Quando ficam ruins demais, enjôo e diarréia.
Estas pessoas psíquicas vividas, assim, em sua literalidade
concreta, são a matéria sobre a qual se debruça esta clínica. Partir delas
como fonte para aproximar-nos e compor uma ficção no lugar da
literalidade e concretude que paralisa. Afinal, são elas que vão nos
ensinar seus métodos, mostrar suas necessidades e contar suas
histórias. È com elas que queremos trabalhar e, seguindo suas
instruções, podermos “diferenciar nossa fragmentação, procurar a
diferenciação precisa de suas qualidades”. É a isto que se propõe o
“método psicológico” : Lidar com estas metaphorica, imagens agentes,
impulsionadoras, que comovem. Este é o sentido que Hillman dá quando
diz que a fala da alma é sempre metafórica e carregada de importância.
Ele pede emprestado do poeta Whitehead, o significado de importância
como transições de emoção e <<minha importância é meu valor
emocional, neste momento>>.
4. O TRABALHO DA CLÍNICA
37
Registros de lagartixas
nas ruínas:
elas tem sabimentos de pedras
Em 1999, nasce a Clínica-Oficina Kairós. A primeira tentativa de
implantação de oficinas de trabalho havia ocorrido dentro de um
equipamento público. Por entraves burocráticos e políticos, o projeto foi
abortado. Um grupo de amigos, que se juntava para estudar e discutir
sobre a clínica e como dar conta das demandas que o novo século
estava apresentando, resolveu fazer deste aborto a gestação de suas
inquietações. O grupo começou contabilizando o grande número de
tentativas similares que sofriam interrupções bruscas por diversos
motivos, incluindo a experiência inicial.
No domínio do Serviço Público, estas iniciativas sofriam
diretamente do mal das eleições a cada quatro anos. Se houvesse sorte
e o prefeito/governador fosse do mesmo partido, poderia continuar. O
hábito reiterado dos novos gestores não arcarem com políticas públicas
que tiveram sucesso ou, o que é pior, deram visibilidade ao antecessor-
adversário, é histórico. O exemplo mais gritante e famoso ocorreu em
Santos com o projeto do Hospital Anchieta.
Não pode haver continuidade quando as políticas são, assim, tão
descontínuas. No caso da Saúde Mental, estas interrupções são mais
agravantes dado que interrupções bruscas são a tônica nesta população
que tem suas vidas freqüentemente interrompidas pelas crises. Aqui, a
violência desta prática se faz mais agudamente presente.
Voltar-se, então, para o setor privado. Aqui os resultados não se
mostraram muito diferentes. As, assim conhecidas, Empresas de
Responsabilidade Social não fogem à lógica do mercado e do lucro.
Salvo honrosas exceções que possam existir, regra geral as empresas
patrocinam projetos que lhes dêem visibilidade e espaço nas dias.
38
Têm sido privilegiados projetos ligados a crianças, adolescentes, meio
ambiente e que, além disso promovam espetáculos ou que permitam a
confecção de edificantes documentários. Já se comprovou um acréscimo
nas vendas das empresas que se associam a temas como futuro,
limpeza, verde, pacificação etc. Nada que possa ser associado a doença
mental contém qualquer desses atributos.
Ainda assim, alguns projetos ligados à Saúde Mental conseguiram
patrocínio. Na maioria dos casos ocorreu a mesma coisa que no serviço
público. Quando mudam as políticas nas empresas, quando o mercado
se retrai, quando o projeto não desperta mais tanto interesse ou
novidade, cessa o patrocínio. Regra geral, também, isto é anunciado
sem prazo algum para qualquer ação remediadora mais imediata. A
interrupção brusca também é a norma.
Perder lugares de trabalho, perder a possibilidade de algum fazer
produtivo, de uma hora para outra. Nada muito diferente de qualquer
outro cidadão brasileiro para quem o desemprego ou a demissão
sumária é rotina. A diferença é que a maioria dos portadores de
distúrbios não tem qualquer possibilidade de emprego formal, nem lei
de amparo que o acolha.
As leis que prevêem a obrigatoriedade de emprego a deficientes
não contemplam os pacientes psiquiátricos. Para sanar a brutalidade das
antigas leis que os consideravam incapazes e permitiam os bichos de
sete cabeças, foram declarados capazes, cidadãos integralmente
reconhecidos, com todos os deveres. Mas, não emprego possível
para esta população. Porque ninguém os emprega, por causa de sua
condição e porque, em boa parte dos casos, esta mesma condição não o
permite. Porque são cidadãos capazes juridicamente e não trabalham,
não conseguem ser aposentados por invalidez. O ciclo se fecha e à sua
condição difícil, acrescenta-se o não ter acesso a renda alguma.
39
Nestas circunstâncias é que surgiram as várias propostas de
“oficinas de geração de renda”, com a idéia de que esta impossibilidade
total de acesso a um mínimo de autonomia financeira tolhe o exercício
da cidadania. Agora, juridicamente, os portadores de distúrbios mentais
são cidadãos plenos, mas o exercício deste direito não tem canais de
existência.
Perseguir a estabilidade no serviço blico ou a decantada
parceria com o setor privado. Como escapar das armadilhas que as duas
opções ofereciam?
A primeira grande questão foi a necessidade de autonomia, para
que o projeto pudesse caminhar ao largo das ameaças das interrupções
bruscas; escapar das possíveis ingerências quer do mercado, quer do
mal das eleições. Para isto, tinha de ser pequeno, teria de caber no
nosso bolso. A idéia é que, a longo prazo, poderia tornar-se auto-
sustentável. Mas deveria ter fôlego para continuar.
Outra resolução foi a que o espaço físico não deveria parecer-se
com um equipamento de saúde. Como os usuários das oficinas são
atendidos em outros lugares para obter medicação e acompanhamento,
as oficinas seriam seu lugar de trabalho. Eles mesmos diziam que a casa
“parece a casa da gente”. O começo, então, foi em uma casinha onde
cabiam a sala de oficinas e as outras salas serviam de consultórios
privados. Dar tempo de trabalho era algo que todo o grupo podia fazer.
Cada oficina ocorre em grupos de, no máximo, sete pessoas,
número que o espaço permite. Esta maneira pragmática garantiu que as
oficinas se mantivessem até hoje e ainda tem fôlego para mais. Depois
de uns anos, mudamos para uma casa maior, onde todos nos
acomodamos com mais conforto. Embora ainda seja pequeno, cabe no
bolso. As primeiras questões ficaram bem equacionadas. A casa é um
lugar de trabalho (dos cnicos e dos usuários), é “a casa da gente” e
ninguém pode decidir por nós se queremos ou não continuar.
40
Todo o resto do projeto não passou por qualquer resolução ou
planejamento. Foi surgindo à medida em que as questões se
apresentavam, foi se construindo com todos os participantes
aprendendo juntos.
Trabalhar com pedras. Ninguém tinha a menor idéia de como se
trabalhava com mármore. Este material surgiu da doação de amigos,
donos de uma marmoraria. Forneciam cinzeiros e saboneteiras
cortados para dar o acabamento. Com o tempo, isto ficou monótono e
pouco atraente. Começou a etapa de inventar. Ir às marmorarias e pedir
restos, sobras que vão para o lixo.
Conseguido o material, começava a discussão sobre o que daria
para fazer. As pedras, na grande maioria das vezes, nos diziam o que
fazer com elas: seu tamanho, dureza, porosidade... Surpreender-nos
juntos ao ver que as pedras de mármore são muito frágeis, delicadas,
que qualquer coisa as estilhaça, que requerem muito cuidado.
Descobrir ferramentas que se adaptassem às nossas necessidades
porque não tínhamos à disposição ninguém com quem aprender: ou
ferramentas industriais ou o cinzel do artista. Nenhuma delas servia
para os cacos com que trabalhamos. Inventar modos de lidar com um
material que oferece um infinito de possibilidades. Ao longo de seis anos
foi se criando um saber com as pedras que permite retirar de sua
aparência bruta o brilho e a maciez que encanta o olhar e o tato.
Descobrir a capacidade de dar forma ao informe, consertar o
deformado, dar leveza ao que parece pesado; criar luxo do lixo.
Parecia que conseguíramos seguir a noção de CONSELHO, como a
pensa Walter Benjamin. Mas uma grande questão e mais espinhosa era
sobre o que fazer com a produção. Como em tantos outros projetos,
cada pessoa ganha pelo que produz. Mas como vender? Trata-se de um
grupo composto por um psiquiatra, seis psicólogos e um mero
variante de pessoas que tiveram pouca ou nenhuma experiência
41
profissional. E, por mais estranho que possa parecer, foi esta parte do
trabalho que mais nos esclareceu sobre a clínica.
A clínica começou querendo ser um lugar de trabalho que não
tivesse cunho caridoso, assistencialista; que o trabalho terapêutico fosse
pensado no sentido de os terapeutas não fossem os donos de todo o
saber; que fosse um lugar de promover a ampliação de possibilidades
de vida, etc. e pensar no trabalho artesão como uma forma de terapia.
Enquanto o “saber com as pedras” foi a construção conjunta de
um repertório de vida, aconselhado pela experiência comum, estávamos
no caminho de nossos propósitos iniciais. No momento em que se
instalou a “clínica”, o projeto começou a fracassar. Aliás, fracassa em
duas pontas que se juntam: na geração de renda e na concepção em
que se baseava a idéia da clínica.
A idéia inicial era de uma clínica que não ficasse ou vivesse
apenas a doença mas que se compusesse com ela. Sair da clínica onde o
único cuidado é com a queixa; sair da clínica queixosa e lamurienta que
aprisiona tanto cnicos quanto pacientes. E, querendo produzir uma
experiência que sirva tanto para quem narra como para quem escuta,
começou a abrir-se a fenda que levou ao fracasso. Cometemos o maior
erro da psicologia como foi apontado por James Hillman quando disse
que ela deixou o ‘mundo’ lá fora”.
Isto ficou claro em uma discussão sobre o trabalho. Enquanto se
falava sobre as oficinas, o termos NÓS referia-se a todos os
participantes. Quando se falava da clínica, aparecia um nós, que se
referia aos terapeutas e um eles, que designava os usuários; como se os
terapeutas também não fossem usuários. Ninguém se dava conta desta
nomenclatura. Propondo-se a uma clínica em que a dicotomia
saúde/doença não fosse o parâmetro, instituiu-se a dicotomia instalada
em nós e eles.
42
Inconscientes da dicotomia, nossa prática clínica se processou
exatamente no caminho que não queríamos trilhar. E começamos pela
anamnese, historiar a doença, o primeiro procedimento de qualquer
manual de atendimento. Para o paciente ser admitido, era necessário
fazer uma entrevista e vir acompanhado de um parente. A entrevista
servia para coletar todos os dados da doença, seu início, evolução,
tratamentos, medicação etc. Ficamos com a queixa.
Esta prática requeria muito tempo de todos para, depois de lida
uma vez, arquivá-la. Não era retomada nenhuma outra vez porque, à
medida em que o paciente começava a freqüentar a casa, os dados da
doença eram todos comentados em meio às conversas que surgiam
durante o trabalho. E constatamos que muitas informações eram
diferentes da entrevista inicial, havia muitas omissões etc. Quando
questionados sobre isso, os pacientes explicavam que tinham vergonha,
medo de não serem aceitos, estavam mal” aquele dia, não quiseram
comentar na frente do parente e, principalmente, ainda não éramos
amigos, não nos conhecíamos.
Após muito tempo, diante desta trabalheira ineficaz, nos pusemos
a pensar para que servia este procedimento. E nos demos conta que
estávamos centrados na queixa e esta não nos dizia nada da pessoa que
vinha trabalhar conosco ou, nos dizeres de Hillman, não nos dizia
“como o paciente se move, respira, gesticula, que característica
fisionômica em seu rosto, que raça étnica, que animal, quais
são suas qualidades planetárias, que olhos estão dentro de seus
olhos” (Hillman, E V, 93 ).
A partir da constatação de nosso aprisionamento aos
procedimentos clássicos, passamos a revê-los. A “entrevista inicial
acompanhada de um parente” passou a ser uma conversa sobre o
43
trabalho, sobre o interesse e motivos de querer participar dele, quais os
desejos e expectativas. Passou a ser uma breve ficha com os dados
médicos e de outros tratamentos realizados fora da casa para
acompanhamento e troca de informações, ou seja, dados necessários
para o cuidado (não é isto que quer dizer a palavra terapia?).
Ao ficarmos com a queixa, quer do ponto de vista médico, quer do
ponto de vista psicológico – que busca nas histórias de caso a seqüência
dos eventos psíquicos – nos esquecemos de olhar para além do paciente
como caso e continuamos a colocar a patologia dentro de sua pele.
Esquecemos de olhar a patologia dos nossos procedimentos.
Cumpríamos todo o ritual:
1) Admissão do paciente, acompanhado de um parente, através de
uma entrevista inicial.
2) Reuniões com as famílias para discussão e acompanhamento dos
casos.
3) Reuniões clínicas semanais para discussão dos casos.
4) Entrevistas com pacientes e familiares em separado do grupo,
quando necessário.
Esses e outros procedimentos fazem parte do oficio de clinicar. A
questão é para que, como, quando e onde os estamos praticando.
Na medida do nosso caminho fomos repensando as maneiras de
fazer.
44
4.1 Anamnese – Primeira Entrevista
Sou aquele
que gastou a sua
história
na beira de um rio.
A primeira intervenção clínica é uma entrevista inicial que a
psicologia denomina de anamnese, nome que herdou da medicina.
Também herdou a idéia que deve servir para fazer um diagnóstico, ou
ser a primeira peça a compor o que chamamos de Estudo de Caso.
Desde seus primeiros escritos, Jung diz que diagnóstico é uma
ferramenta para o médico e que não diz nada da pessoa que está à sua
frente. Como ferramenta, inclusive, precisa ser usada com muita cautela,
pois os dados obtidos a partir dela são construções que sofreram muitas
modificações ao longo da história recente.
45
O século XX viu surgir um sem número de critérios para se pensar
o sofrimento psíquico até chegar ao “consenso de um enorme número
de pesquisadores” em muitos países que compuseram a única
classificação aceita: a da Organização Mundial da Saúde. Esta
classificação é a que norteia todas as decisões sobre políticas e
tratamentos a serem seguidos.
Como se trata de uma área tão avessa a enquadres uma vez que
os pacientes, mais que em qualquer outra área, insistem em não se
encaixar, os paradoxos e contradições aqui se fazem mais presentes. O
próprio CID-10 admite que uma classificação é um modo de ver o
mundo de um ponto no tempoe o modo atual de ver o mundo passou
a ser o de pesquisar os sintomas e eles comporem o quadro.
O propósito inicial era retirar o estigma que qualificava uma
pessoa por sua doença. Não mais esquizofrênicos; pessoas
portadoras de um distúrbio chamado esquizofrenia. Mas, de tanto
detalharem a sintomatologia, aboliram o portador. O critério atual é a
pesquisa de evidências. Os sintomas se dão num corpo biológico. Se não
nenhum fato externo ou bioquímico desencadeador, então há alguma
alteração na biologia.
Para intervir na alteração , medica-se. O fato de muitos pacientes
melhorarem com determinada medicação é indicativo da existência de
um transtorno, ou seja: o medicamento promove uma mudança, o que
indica a existência de uma doença determinada. Por mais estranho que
possa parecer a outras formas de pensar a psique, não se trata mais de
pensar o pathos a partir da historia de vida ou qualquer psicodinâmica.
Se os pacientes melhoram após tomarem determinada medicação,
(diminui a freqüência das crises, os sintomas diminuem ou remitem,
suas dores estão suportáveis ou administráveis) logo, o transtorno
existia ou passa a existir. Agora, somente a bioquímica é que nos
constitui.
46
Toda a idéia da cnica tradicional que tinha no médico seu
instrumento maior, pois era ele o detentor dos saberes da arte, como
era chamada a prática, foi abolida. Aboliram os pacientes para ficarem,
apenas, os sintomas. Mas também aboliram os clínicos. As antigas
descrições de evolução dos casos, busca de conexões causais no
entorno social ou familiar, foram abandonados porque, além de pouco
confiáveis, não são replicáveis em qualquer tempo ou lugar. Pensar a
patologia - como diria Winswanger -, como problemáticas da existência
seria devolver a psique ao início do século XX, quando os critérios eram
muito subjetivos, baseados na observação dos clínicos e estes, falham.
Restou a farmacologia.
No entanto, até a objetividade tem seus momentos de revolta e
apresenta dados que alarmam as estatísticas. Um destes momentos
surgiu diante de um quadro denominado hipomania. Até pouco tempo
atrás, este transtorno era considerado uma mania branda. Ocorre que
ele não responde adequadamente à medicação prescrita para a mania;
responde a outro tipo de medicação.
Pelo critério adotado, portanto, deveria ser considerado um
transtorno específico. O alarme soou alto porque a declaração de
existência deste novo quadro, elevaria para uns trinta por cento o índice
de portadores de distúrbios mentais na população mundial, em vez dos
estimados dez a quinze por cento. Para não correr o risco de ter de
cercar a cidade como alguém comentou no conto do Alienista de
Machado de Assis, decidiu-se, até agora, deixar a hipomania como uma
mania branda. A pretendida objetividade estatística não esconde, nem
de si mesma, que as decisões passam por critérios políticos e afetivos.
Admitir tamanha existência de loucura no planeta seria demasiado
penoso e assustador.
Embora pareça completamente contraditória a toda idéia de
objetividade, esta resolução compõe bem com o final do texto de
47
apresentação do CID-IX
2
(que foi retirado das edições seguintes):
diagnóstico é para quem acredita em diagnósticos .
A clínica psicológica, em especial no que se refere às
psicopatologias, tem sido refém destas categorizações e tem lidado com
elas de maneiras diversas. As mais comuns são a completa adesão ou o
completo rechaço. No entanto, deparar-se com as pessoas com quem
trabalha esta clínica implica o exercício de conviver com os pensamentos
mais conflitantes para que ela se efetive.
Apesar de todas as críticas, estranhezas, quanto aos pressupostos
que norteiam a diagnose médica, a medicação é fundamental para os
sofrimentos da alma in extremis. A recusa completa à medicação, vista
como suspeita de mascarar os verdadeiros problemas, não seria uma
outra maneira de abolir o que os pacientes relatam? Se a medicação
serve para o alívio da dor, então a maneira como pensam os
farmacêuticos pouco deveria ser levada em conta. A clínica heróica que
quer tratar estes pacientes apenas com psicoterapia talvez esteja
cuidando mais dela mesma e de suas preciosas premissas, apesar de
travestida de justa indignação com a psiquiatria oficial, com suas
objetividades ou interesses econômicos.
Se o diagnóstico é uma ferramenta para guiar o médico e o ajuda
a prescrever medicamentos melhores e mais eficazes, então, trata-se de
compor uma clínica que, no cruzamento com outras formas de lidar,
sirva ao propósito final. Aqui, podemos lançar mão da fala de Hillman,
quando diz que é preciso que saia a pessoa do analista e a pessoa do
paciente, para que a análise aconteça. É preciso que saiam a leis da
medicina, as indústrias farmacêuticas, as teorias psicoterápicas, as
ideologias, para que a dor possa ser minorada e o resto da vida possa
acontecer.
2
CID – Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-09
48
E, quando esta acontece, é possível conhecer melhor até a doença
e quem vive com ela. Neste sentido é que a anamnese deixou de existir
na Kairós, para dar lugar a uma conversa onde nos apresentávamos
mutuamente: nós e os pacientes. O que fazíamos, como pensávamos e
o que queríamos fazer juntos. Os dados sobre a doença ficaram restritos
ao necessário para o conhecimento dos técnicos. Todo o resto seria
construído no convívio.
Criar um laço de amizade demanda tempo; também demanda um
espaço aberto às confidências e à crença de seu acolhimento. À medida
que isto foi se construindo, foi possível estabelecer uma associação
entre nosso trabalho e os outros equipamentos de atendimento e
familiares. Como tínhamos ficado amigos, eles podiam contar coisas a
nós, que omitiam em outros lugares.
Nossos grupos são pequenos, então o acompanhamento é mais
próximo; o momento das oficinas é inteiramente dedicado ao trabalho e
às conversas. Enquanto as mãos trabalham, o papo rola mais solto, a
gente se distrai, não fica pensando coisa ruim. Assim, foi possível ver
crises que se avizinhavam, saber de acontecimentos em suas vidas e,
por exemplo, avisar que a volta do delírio de sempre se devia a uma
morte em família e não a uma piora do quadro, servir de mediadores
para conversas difíceis entre parentes.
Partilhar com todas as formas de saber que estejam a serviço de
minorar a dor e promover outros espaços de vida para esta população
em especial é mais que desejável; é, talvez, a maneira possível de se
dar conta de tamanho transbordamento. Para lidarmos com as
problemáticas da existência neste grau, é necessário lançar mão de toda
a ferramentaria que pudermos dispor, inclusive dos diagnósticos. Mesmo
não acreditando em diagnósticos.
49
4.2. Famílias
Caramujos sempre chegam depois.
Representa que estão chegando
da eternidade.
O “acompanhamento de parente” foi outro procedimento que teve
de ser reavaliado. Este foi colocado em cheque por um dos participantes
que chegou sozinho, indicado por um lugar que ele não soube explicar.
Estava completamente desorientado, sua fala quase ininteligível. Trazia
nosso endereço num papel e precisava fazer as oficinas. Foi entrevistado
naquele mesmo dia, sozinho, porque pareceu absurdo deixá-lo ir
embora em meio à sua aflição. Pedimos o telefone de sua família e, por
uns dois anos, não conseguimos saber o número certo. Depois
conseguimos contato - e os familiares jamais apareceram. E o homem
que não conseguia dizer onde morava nem o número de seu telefone,
que tem vários irmãos de mais ou menos 36 anos como ele, está
conosco até hoje. Continuamos a não saber nada sobre sua doença ou
medicação que faz uso. Mas sabemos que a casa e o grupo tornaram-se
seu lugar de referência e nculo afetivo. É onde comemora seus
aniversários, com quem quer sair nas fotos, preocupa-se com o bem
estar de todos, conta de suas andanças e trabalha muito bem. Suas
peças são cada vez mais elaboradas, estão cada vez mais macias e
brilhantes. Ele continua com mais ou menos 36 anos.
50
Além deste caso paradigmático, todos os outros pacientes iam e
vinham sozinhos para as oficinas em meio a delírios, ouvindo todas as
suas vozes ou querendo morrer. Quando os sintomas tomam um grau
além do suportável, que não nem para vir trabalhar, eles mesmos
fazem a pausa necessária. Para que, então, era necessária a presença
do familiar?
Quando falamos em família, pressupomos a família nuclear,
composta de pais, mães e irmãos. Quando esta família tem um de seus
componentes com uma condição de doença crônica, também
pressupomos que os parentes devem cuidá-lo. Partimos da idéia de que
alguém apto para cuidar de outro que, portanto, não está apto a
cuidar de si mesmo. De certa maneira, contradizemos os pressupostos
muito queridos da luta antimanicomial que pretende tratamentos para a
autonomia,inclusão e exercício da cidadania plena.
Como se apresentam estas famílias? Após conhecermos várias,
com composições as mais diversas, ficou claro que não há FAMÍLIA, mas
grupos familiares. E ficou-nos uma enorme pergunta: quem cuida de
quem?
Uma criança de 8 anos, pai e mãe esquizofrênicos. Os delírios da
mãe passam por um pavor absoluto porque querem envenenar sua
família. Todos os alimentos podem estar contaminados. Nada se come
que não seja preparado e meticulosamente lavado por ela; sequer se
toma água fora de casa. Ela providencia tudo e controla qualquer
possibilidade de contaminação. Ninguém sai sozinho: saem juntos para
evitar o inevitável atropelamento se ela não estiver presente. Os pais
juntos levam os filho à escola e vão juntos para o CAPs
3
. Freqüentam
a oficina nos mesmos dias e horários. Fazem suas terapias individuais
nos mesmos dias e horários e assim aceitaram a proposta de fazer
terapia separados; a garantia de que o outro está na sala ao lado.
51
Foram necessários alguns anos para poder comer fora de casa e, feito
supremo, deixar o filho fazer sua festa de aniversário de 14 anos em
casa convidando seus amigos.
Neste triângulo, a quem atribuir a função de cuidador? Qual deles
estava apto? Porque, apesar de tudo, o casal manteve sua casa
funcionando o tempo todo, pagaram suas contas e, à sua maneira,
estão criando este filho. Agora, a família recebeu a avó do menino, idosa
e completamente dependente.
Dois irmãos adultos, mãe idosa e doente. Um dos irmãos,
esquizofrênico com alto grau de severidade, seu pensamento está
desagregado boa parte do tempo. Quando este chegou às oficinas
passava todo o tempo em pé, fumando um cigarro atrás do outro,
aparentemente alheio a qualquer coisa. Um dia, precisamos saber o
endereço de um cartório e, para surpresa geral, este “alheio a qualquer
coisa” diz o endereço, descreve o trajeto a ser feito e o que havia no
entorno. Apesar de nossa incerteza quanto à fidelidade das informações,
seguimos suas indicações, aliás, de uma precisão impressionante.
Passamos a prestar mais atenção e vimos que a única coisa à qual ele
era alheio era a si mesmo e que ele estava atento o tempo todo às
necessidades dos outros. Levou 10 meses para concluir uma peça sua
mas estava sempre disposto a ajudar o trabalho dos colegas: fazer o
café, comprar lixas, preparar materiais. Quando conseguia falar de
forma inteligível, nos contava de como cuidava de sua mãe: marcava
suas consultas, levava ao médico, dava seus remédios. Quando ela não
conseguiu mais sair de casa, providenciou-lhe visitas domiciliares. Sua
vida tinha funções, propósitos, ocupações que ele desempenhava com
um alerta que não dispunha para si, tanto que nem percebia quando o
3
CAPs: Centro de Atendimento Psicosocial
52
cigarro queimava seus dedos. Quando sua mãe morreu e ele não teve
mais a quem cuidar, piorou sensivelmente, não veio mais às oficinas.
Seu João” morou na rua por oito anos. A irmã dele que morava
no Rio de Janeiro ficou viúva, filhos criados. Veio para S. Paulo e
conseguiu encontrá-lo e tirá-lo das ruas. Levou-o ao CAPs
4
e ficou
por uns dois anos parado, sem falar com ninguém. Chegaram a pensar
que era surdo e diziam que “as cadeiras tinham mais movimento que
ele”. Aos poucos, começou a mexer-se e, quando chegou às oficinas,
trabalhava como poucos, embora quase não conversasse. Sorria diante
de algumas coisas e nos ensinava técnicas de trabalho que havia
aprendido nos tempos em que era pintor de casas, antes de sua ida
para as ruas. Não tinha nenhum contato com seus filhos, não sabia onde
viviam. Em algum lugar do caminho, havia perdido tudo. Ficou conosco
uns 4 anos. Começamos a perceber que “Seu João” tinha de ir embora,
não cabia mais ficar ali. Foi na última conversa que ele relatou ouvir
vozes enquanto morava nas ruas. O psiquiatra que o acompanhava
nunca soubera disso. Ele nunca contara isso a ninguém antes. Seu
João” nos visita. Não toma mais qualquer tipo de medicação, vai todo
sábado ao forró, namora bastante. Quem cuidou de “Seu João” durante
os 8 anos em que viveu na rua?
Haveria mais famílias para apresentar, cada uma de um tipo e,
para cada caso, a pergunta poderia repetir-se: quem cuida de quem?
Estes casos talvez possam nos ajudar a repensar o que chamamos
de família e as atribuições que damos a seus componentes.
O coração da cegueira é a crença. Ver é crer. Aquilo que
claramente vemos nos convence de que vemos claramente. A
CAPs - Centro de Atendimento Psicosocial
53
crença central da análise afirma que a desordem pessoal
desenvolve-se no âmbito da família. O mito da família funde-se
com o método da análise como reconstrução do desenvolvimento
pessoal. Quando invoco a “memória e revejo os meus vividos” (
W.Shakespeare, soneto XXX) , minha análise é secular e burguesa
porque essas coisas, o passado, estão presas ao mito da falia e
uma família de uma variedade européia específica. Esta família
pode ainda existir em bairros ou reges de classe média branca
que provêm a população para o culto de Édipo da terapia, mas
essa falia dificilmente existe na grande cidade como um todo.
Essa cidade de pretos, marrons, beges, olivas, amarelos e todos
tingidos na alma de azul, o blues - procura sua cura menos em
sessões de autobusca, na atmosfera de um doce silêncio pensativo,
do que nas ruas. (Hillman, E R , p 109)
Pesquisas recentes da OMS
5
se depararam com um dado que
intrigou os pesquisadores. Em países do “Terceiro Mundo”, com seus
equipamentos de saúde precários, falta de medicação, populações sem
acesso a educação etc.., embora apresentassem o mesmo percentual de
transtornos esquizofrênicos que os países do “Primeiro Mundo”, sua
evolução e prognóstico era bastante diferente.
...a maioria dos pacientes psicóticos que tivera a oportunidade de
tratar-se em determinadas sociedades o ocidentais, em especial,
na África e na Ásia apresentavam, freqüentemente, um processo
de desenvolvimento da doença por início agudo, curso clínico
bastante curto, apesar de fulminante e, muitas vezes, a remissão
completa dos sintomas. (D E, p 221)
Os pesquisadores observaram que este fenômeno também
ocorria em grupos como os porto-riquenhos e mexicanos que vivem em
5
OMS - Organização Mundial da Saúde: dados e bibliografia relativos a estas pesquisas encontram-se em O
Desafio da Esquizofrenia, artigo de Cristina Redko - Cultura, Esquizofrenia e Experiência, p 221 a 242.
54
Nova York; o mesmo se verifica em alguns pontos do Brasil. Em países
como EUA ou Inglaterra, por exemplo, o processo da doença se com
início menos agudo mas com curso clínico muito mais longo e com maior
índice de reincidências.
Várias questões foram levantadas mas o que todas as
pesquisas apontam é para a maneira de sociabilidade familiar destes
grupos. O “Terceiro Mundo” funciona ainda à maneira da família
extensa, relações de vizinhança como fontes de ajuda mútua, redes de
amparo e sustentação.
O modo família extensa pode nem referir-se a um grupo de
pessoas determinado. Um programa de deshospitalização no Canadá
incluiu buscar moradias para os pacientes. Um rapaz escolheu um lugar,
não uma casa ou sua família. Quis morar perto da banca de jornal, onde
costumava ficar antes da internação e gostava do movimento. Outros,
escolheram morar com ex-companheiros de hospital: haviam ficado
amigos e não se sentiam à vontade perto dos “normais”. Outros
voltaram para seus familiares e antiga vizinhança. O modo família
extensa busca redes de referência e estas não podem ser prescritas por
qualquer critério técnico.
Parece ser que as famílias não estão precisando de mais
equipamentos de saúde e mais técnicos dizendo a elas o que ou como
fazer com seu parente. Confinadas no espaço privativo, “cada um com
seus problemas”, as famílias ficaram tão desamparadas e des-cuidadas
quanto seus “parentes doentes”
“Tudo o que eu queria e pedia desesperadamente era que alguém
ficasse com ele enquanto eu procurava uma ambulância. Meu desespero
era que eu estava sozinha para fazer tudo e eu sabia que não dava
conta”.
O apoio em rede que se preconiza necessário para o
tratamento dos transtornos mentais precisa ser repensado para este
55
modo de viver individualizado que condena “doentes” e “não doentes.”
O desespero de estar sozinho numa situação de dar conta de um surto,
pode se tornar, a longo prazo, tão devastador quanto a vivência do
próprio surto.
... a loucura afeta não o indivíduo doente como toda a falia,
assim como a rede de relações sociais. (...) após lidar com a
psicose por rios anos, tanto o indivíduo como as pessoas que são
mais próximas, se modificam radicalmente. A experiência da
doença impõe-se e (...) os pades culturais ordinários (...) se
modificam por um dos ataques mais devastadores sobre a pessoa:
a psicose”. (D E p 230)
De um lado, temos o paciente isolado do “mundo real” por
sua doença e, do outro, seu familiar, isolado pelo “mundo real da
doença”. O mais esclarecedor destes achados talvez soe a ironia
histórica. As populações mais pobres, mais ignorantes e necessitadas,
estas que são chamadas de excluídas, são as detentoras das
tecnologias afetivas mais sofisticadas. Resistiram ao que Jurandir Freire
chamou de higienização da família, proposta pela medicina do século
XIX e que, segundo ele, veio a redundar na
instituição conjugal e nuclear de nossos tempos
...higienicamente tratada e regulada ... [que] parece ter
renunciado ao direito de resolver, por conta própria, suas
dificuldades familiares. Cada dia apelam mais para os especialistas,
em busca de soluções para seus problemas dosticos. (...) Que a
família sofre e precisa ser ajudada, o dúvida! Não se trata de
negar a desorientação e o sofrimento emocional ... A vida
consiste em saber se os remédios propostos, ao invés de sanarem
o mal, não irão perpetuar a doença. ( Freire, OFNM, pp 11, 13,17)
56
Uma das máximas do atendimento das psicopatologias dita que é
necessária a cooperação da família para a eficácia do tratamento. Esta
máxima, embora desejável, encobre um subtexto: o da necessidade de
tutela. Ao olharmos este procedimento com algum distanciamento,
pudemos verificar um pouco do surrealismo de sua existência. Pessoas
em condições completamente adversas: delirando, alucinando, em plena
mania ou depressão que, fora do nosso “abrigo” (o nome oficial é
“oficinas abrigadas”), tem filhos, maridos, namorados, administram suas
casas, vão e vem sozinhos. Mas quando abrigados, necessitam de
acompanhamento. Passam pouco tempo no abrigo, depois o lançados
à vida comum. E sair andando sem rumo pela cidade, mesmo de
madrugada, é a estratégia que alguns deles usam para acalmar as
vozes. Perguntamo-nos que abrigo era esse. Continuávamos praticando
a clínica no seu sentido mais estrito. Continuávamos debruçando-nos
sobre a Klinós – a cama do doente.
Outra questão levantada a partir do paciente que veio sozinho foi
que não se confirmou a premissa de que, sem a cooperação da família,
o tratamento fica prejudicado. Ele e outros pacientes que moram
sozinhos ou com familiares mais doentes, têm mostrado no seu espaço
de trabalhar a mesma melhora que os outros.
Tomar a família como referência única ou de apoio obrigatório,
mostrou-se uma falácia. Do que estamos falando quando dizemos
família?
Além de haver famílias de vários tipos e, portanto, com
comportamentos que podem ir da total colaboração à franca hostilidade
ou com idéias contrárias a qualquer forma de tratamento, outras
questões a analisar quando se requisita a presença dos familiares.
Chamamos os familiares para que componham conosco uma rede de
apoio e suporte para lidar e conviver com as conseqüências que as
psicopatologias acarretam.
57
De inicio, seguindo o ritual, eram realizadas reuniões periódicas
com as famílias. Feitas aos sábados, dia em que juntar todos era mais
possível, as reuniões eram para conversar sobre a evolução dos
pacientes, se as oficinas estavam ou não ajudando, se houve mudanças
em casa, etc. A adesão a estas reuniões era pouca, errática e provocou-
nos sentimentos ambíguos, entre a raiva pela ausência (diante de nosso
empenho) e a sensação de que “algo estava errado”. Havia uma certa
perplexidade diante de nosso erro” por não conseguir fazer nosso
trabalho bem feito: tanto era assim que os parentes não vinham.
Conversamos com colegas de outras instituições e a queixa era a
mesma. Aqui, a queixa começa a contaminar toda a clínica, ou melhor,
uma clínica centrada na queixa contamina a todos. O mesmo sentimento
de frustração; a mesma irritabilidade diante da incompreensão das
famílias. A contaminação atingiu seu maior grau de perigo ao flagrar-
nos (como bons pais diante dos filhos) a reclamar da falta de
reconhecimento de nosso esforço, de nossa dedicação. Onde teria ido
parar o propósito do não paternalismo? Ficou na queixa, preso ao mais
primário: abrir mão do nosso “legítimo” lugar do saber é um processo
doloroso. Abrir mão de procedimentos consagrados que nos abrigam
(também para nós, a oficina era abrigada) nos destitui do lugar da
segurança. Como ousavam eles fazer isto conosco?
Reiteradamente, nas nossas reuniões semanais, estes assuntos
vinham à baila, com resultados tão iguais que o desânimo se instalava
até o momento em que retomávamos aquilo que nos mantinha no
projeto: nosso lugar de aprender, nosso lugar de trabalhar.
Um dia, fizemos um exercício básico no psicodrama: colocar-se no
lugar do outro. Agora, éramos familiares de um parente doente há 5, 20
anos. Convivíamos com incêndios na casa provocados por ele. Com um
filho que se trancava no quarto e não saía por nada e, quando não
suportávamos o mau cheiro pela falta de banho e forçávamos sua saída,
58
apanhávamos. E assim ficamos por oito anos, indo de médico em
médico, até acertar. Com uma filha adolescente e linda que, de repente,
fica tão agressiva que chega a nos quebrar duas costelas. Um filho que
desaparece e, após três meses de angústia, o reencontramos vivendo
como um mendigo na rua. Uma filha esquizofrênica que desaparece e
volta tempos depois com AIDS e grávida.
Aí, veio a pergunta. Como receberíamos o convite de sair de casa,
num dia de descanso, para conversar sobre o parente doente? Que
adesão esperar quando o convite é para conversar sobre o que, pelo
menos por algum tempo (dia de descanso?!), gostaríamos de esquecer?
Já não é suficiente conviver todos os dias com isso?
A existência de uma doença crônica (como ocorre na maioria dos
casos) instaura uma outra vida, em geral em torno da doença. Passear,
fazer amigos, viajar... depende do estado do familiar; planejar finanças,
depende do quanto se vai gastar com remédios (não é sempre que tem
no posto). Os relatos passam, necessariamente, pela frase depois que
ele ficou doente...
Depois de ter ficado no lugar do outro, mudamos o modo de lidar
com as famílias, uma vez que ficamos convencidos de que, se era para
cooperar, trata-se de não sobrecarregar com mais doença quem a
carrega todos os dias. Então, os convites passaram a ser para compor
conosco o trabalho: mutirão para arrumar a casa quando fizemos a
mudança, tomar um lanche juntos para conversar de tudo, até da
doença se quisermos, e colocar-nos à disposição para qualquer pedido
de ajuda em que se faça necessário nosso conhecimento. Os convites
para participar deixaram de ser tarefa obrigatória para ser o lugar de
encontro para o que se quiser ou fizer necessário.
Aliamo-nos ao que um médico do século XIX chamou de
resistência dos ignorantes e que, pelo fato de serem ignorantes, são
mais ousados em exercitar a arte [da medicina] e mais prontos a
59
desconfiar dos médicos. Esta resistência não criou para si uma família
tratada e higienizada e, como não confia completamente nos médicos e
técnicos afins, não renunciou a buscar, em seu meio, as maneiras de
solucionar seus problemas domésticos.
Se é nestes grupos que se encontram as melhores
tecnologias para se lidar com os sofrimentos da alma, então é que
devemos buscar as respostas, mais do que nos equipamentos de saúde,
junto aos técnicos. Como estas populações se amparam e acolhem seus
parentes? Talvez possamos, a partir deles, criar novas maneiras de lidar
que não passem por algo chamado Saúde ou Doença, mas por encontrar
outras formas de conviver. Assim, a pergunta quem cuida de quem,
talvez possa ser respondida.
4.3 Ambiente Estruturado
Dentro dos caramujos –
há silêncios
remontados
O projeto do Trabalho Moral foi criado para servir à organização
das rotinas hospitalares. Enquanto os pacientes estavam ocupados,
havia mais tempo para realizar as outras rotinas institucionais. O
estabelecimento de rotinas fixas e bem prescritas, encerrava outro
propósito clínico que se mantém até hoje: oferecer um ambiente
estruturado.
Ambiente estruturado quer dizer lugar limpo e ordenado, rotinas
seqüenciais fixas, cada coisa em sua hora e lugar. A idéia de propor
60
assim o ambiente de trabalho vem de um projeto clínico que parte da
premissa de opor ordem externa à desordem interna. A psicopatologia
está “sem dúvida” dentro dos indivíduos: houve um rompimento das
funções egoicas e, não mais possibilidade de a consciência assumir o
comando e “por ordem na casa”. Jung discordava da idéia de
rompimento do Ego. Para ele, a inundação dos conteúdos do
inconsciente impedia o Ego de exercer sua função. Criou-se, então, a
idéia de uma psicoterapia que fortalecesse o Ego para que este pudesse
criar as comportas necessárias. Aqui não se pressupõe rompimento.
Trata-se de um Ego fraco que precisa de reforços.
Não podemos esquecer, porém, que este projeto começa nos
hospitais que se propuseram a um verdadeiro trabalho clínico ao invés
do habitual depósito de gente que eram os hospitais psiquiátricos de
então (alguns ainda o são). Faz parte das tentativas pioneiras de dar
dignidade a uma população tratada como escória. Nise da Silveira
chamava estes hospitais de esses tristes lugarese, no caso do Brasil,
esta realidade mudou muito recentemente.
Apresentar uma ordem externa pode ser a maneira de oferecer
algum critério de estruturação ao que se pressupõe desestruturado. A
psique é pensada como uma estrutura interna que desmoronou e não
reúne condições de reerguer-se sozinha. Neste sentido é que se oferece
a possibilidade de a ajuda vir de fora.
Sem dúvida que nos períodos de angústia dos picos das crises, o
encontro com algo ordenado, familiar, pode oferecer a corda a que se
agarrar e poder imaginar que o mundo não ruiu por inteiro. O contrário,
porém, também ocorre: nos picos da crise muitos estão tão longe deste
mundo que não chegam sequer a ver a limpeza e a ordem; é comum
que, nestes momentos, nem queiram ir a seus lugares de atendimento
nem tomar a medicação; ou, tomá-los em excesso para ficar viajando.
61
Embora na nossa concepção de psique, o Ego nem sempre exerça
o papel de diretor, começamos oferecendo o que as técnicas de
tratamento nos pediam para fazer: um ambiente estruturado. Não
propusemos o Trabalho Moral nem uma rotina estruturante mas,
arrumamos uma casa para eles. A casa foi inteira pintada, decorada;
compusemos, com a arquitetura, um lugar para trabalhar. Um lugar
alegre, colorido, que nem parece lugar de tratamento, parece a casa da
gente, disseram eles.
Durante três anos nosso trabalho se deu nessa linda casinha que
havíamos preparado para ser nossa casa de trabalho. De uma hora para
outra, tivemos o tempo de um mês para mudar, porque o dono vendeu
a casa. A época da mudança não podia ser pior: dezembro é o mês de
maior volume de vendas e tivemos de fechar a loja e interromper a
produção. Na seqüência viriam as férias de janeiro e nenhuma venda.
Conseguimos uma casa antiga, dessas que ainda sobraram em
vários bairros desta cidade de São Paulo que insiste em acabar com a
sua história. Como a cidade, a casa veio sofrendo maus tratos e seu
estado era deplorável. Suas possibilidades, entretanto, encantavam.
Fomos visitar a casa nova e a primeira reação dos pacientes foi de
profundo desgosto e recusa à mudança. Seguiram-se longas conversas
sobre a necessidade de aceitar as imposições que a vida traz e das
enormes possibilidades que implicam no ato da mudança: tratava-se de
criar um espaço em conjunto. Da primeira vez, os pacientes
encontraram a casa pronta. Agora, a apropriação do novo espaço seria
obra de todos.
A figura desolada da casa instalou uma crise. A Clínica - o espaço
físico estava muito doente, necessitando remédios e cuidados.
Decidimos restaurá-la, devolver-lhe sua face original. À medida que
íamos arrancando as camadas dos maus tratos, encontrávamos mais
desolação: ao arrancarmos um carpete imundo e extremante mal
62
cheiroso, deparamo-nos com uma parte do piso com a madeira
apodrecida e minando umidade e cheiro de esgoto. Um velho
companheiro de todos os pacientes fez sua aparição: o famoso “não
adianta, a gente não sabe fazer, nós não vamos conseguir, ao mesmo
tempo que alguns vinham até em fins de semana para ajudar”. Mas, a
outra casa era melhor” estava em todas as bocas.
Este fazer conjunto fez de nós um estranho exército de
Brancaleone. Terapeutas em roupas velhas e sujas, fazendo trabalho de
“peão” e alguns pacientes insistindo no tratamento de doutor, doutora.
O estranhamento dos pacientes, no entanto, serviu para que
pudéssemos conversar sobre a maneira de colocar-se na vida. A doença
da casa é a mesma que nos aflige e exige os mesmos cuidados. Se a
abandonamos ou desistimos dela, estamos desistindo de nós. Para
recuperar nossas vidas maltratadas, descuidadas, precisamos trabalhar
arduamente. E o trabalho é sujo, empoeirado, cansativo.
Aos poucos, começaram a aparecer os sinais de recuperação da
nossa doente. As madeiras originais, os materiais começaram a mostrar
a nobreza de sua origem: escadas e portas de antiga madeira maciça,
paredes sólidas que abrigam, pisos que readquiriam brilho. O “ambiente
estruturado” que oferecemos foi o mergulharmos juntos na tarefa de
refazer, na história da casa, na nossa própria história, um novo lugar de
viver. Não se trata, apenas, de restaurar a beleza do velho edifício.
Trata-se de dar-lhe um modo novo de mostrar-se e devolver ao mundo
uma alma com cores brilhantes, que o mundo havia insistido em apagar.
O “ambiente estruturado” foi outro dos procedimentos clássicos
que fomos obrigados a abandonar. Embora premidos pelas
circunstâncias, esta experiência de mudança nos obrigou a pensar em
todas as mudanças que deveríamos empreender. Rever modos
consagrados de trabalhar, na medida em que eles se mostram ou
ineficazes ou impossíveis de realizar.
63
Não éramos donos da casa, tivemos que deixá-la a toque de caixa.
E, no entanto, foi a casa nova, restaurada por todos, que se tornou
verdadeiramente “a nossa casa”. A apropriação do novo espaço se deu
com o trabalho de todos e isto a tornou nossa.
A história da casa nos fez perceber o quanto estávamos trilhando
um caminho difícil de desfazer: nossa formação clínica. Quando fomos
obrigados a desestruturar juntos, fomos confrontados por um insidioso
temor que percorre aqueles que trabalham com o sofrimento psíquico: o
medo de provocar mais dor, caso nossa intervenção seja inconseqüente.
Para preservar-nos da inconseqüência, nos valemos do aprendido
ao longo dos anos, na tentativa de assegurar-nos, minimamente, num
terreno tão cheio de perigos como é o da loucura. Como nada nos
protege do que não sabemos até onde isso vai chegar, paramos antes.
Nossa função é aliviar a dor, não aumentá-la e, para isso, lançamos
mão de toda a ferramentaria disponível.
Mas, nesta tentativa, talvez, caiamos na armadilha para a qual
Freire nos alerta e proponhamos remédios que, ao invés de sanarem o
mal, [ajudam] a perpetuar a doença. Perpetuamos, também, a doença
dos nossos procedimentos.
A população atendida em nossas oficinas é denominada por
pessoas em situação social de risco”. Estão ao desabrigo dos acessos
comuns à plena cidadania, estão entre os excluídos. Embora estas
denominações venham do grupo que mais se identifica com o ideário da
Luta Antimanicomial, estas mesmas denominações encobrem um sub-
texto que, se não se refere mais à tutela, aponta para um
responsabilizar-se por eles. Traçamos uma linha divisória que, aliada a
nosso temor, pode redundar em mais doença para todos.
Criamos, então as Oficinas Abrigadas de Trabalho.
Abrigadas de quê, ou de quem? Quem ou o quê as abriga?
64
No fio de navalha que é trabalhar com esta população não se trata
de lidar, apenas, com o risco do erro técnico; paira, também, a
responsabilidade jurídica. Se “algo de ruim” acontece com os pacientes
dentro de qualquer equipamento, haverá punições trabalhistas ou
penais para os responsáveis pela condução do trabalho. Neste caso,
como ousar?! Então, abrigamos a nós todos.
Rapaz de uns 20 anos, mora num albergue da prefeitura. Vai
todos os dias ao CAPs, onde toma as refeições. Diariamente, no final do
horário de atendimento (17:00), um técnico o acompanha até o ponto
de ônibus. Nos fins de semana, ninguém sabe se ou como ele come.
Um dia por semana, se faz uma atividade fora do equipamento.
Vão todos juntos, acompanhados de técnicos. Quando a atividade
termina, todos voltam para suas casas, sozinhos. E, na maioria dos
casos, levam duas horas de viagem.
Reunião marcada entre instituições para discutir projetos comuns.
Os visitantes chegam e ficam esperando um tempão o colega da casa
aparecer. Tempos depois, chega e explica que estava bem atrasado
porque ficou muito ocupado preparando a festa de aniversário de um
paciente.
Três episódios ocorridos em lugares diferentes e marcados pela
mesma perplexidade: qual é, afinal, o trabalho da clínica que se propõe
à promoção da cidadania? As horas vividas fora das instituições são em
número muito maior.O trajeto para chegar a elas ou de volta para casa
é muito longo e perigoso. Regra geral, esta população vive nas
periferias das cidades, em bairros de risco, em meio a tiroteios e
misérias. Levar os pacientes ao ponto de ônibus parece, no mínimo,
65
absurdo, porque no resto das horas do dia estão expostos a todas as
intempéries, inclusive às da fome.
Dentro de nosso “abrigo” será mesmo necessário que um técnico
prepare uma festa de aniversário? Se as pessoas dão conta de viver nas
condições adversas em que vivem, se são capazes de atender ao
chamado da cidadania e ser, por exemplo, presidente de mesa em dia
de eleição, o que nos leva a fazer por eles algo que são capazes de fazer
por si mesmos?
É necessário que se processe um “deslocamento de lugar”, para
que possamos realocar a clínica. Nosso deslocamento se processou
desde o começo, quando não sabíamos nada sobre como trabalhar com
pedras e tivemos de aprender todos juntos, inclusive com pacientes que
sabiam algumas coisas. A história da casa deu-nos outro norte e, a
partir dela é que as mudanças nos procedimentos puderam existir.
Também foi a partir da nova casa que começamos a trocar experiências
com outros projetos similares.
Nestas trocas pudemos constatar que aqueles que não se
deixaram contaminar pela clínica da queixa foram os que se produziam
fora da área da Saúde. O mais significativo é que o grupo de técnicos
que coordena os projetos vem da mesma formação profissional mas, o
fato de ocorrer em lugares onde havia uma mistura maior de grupos
sociais, promoveu o deslocamento, diluindo as tintas umas nas outras.
Um dos grupos que funciona num equipamento público criou uma
oficina de comida e conseguiu uma licença para montar uma barraca de
vendas na porta. O que começou como uma oficina de geração de renda
para portadores de distúrbios mentais (como a nossa), trouxe o bairro.
Apareceram os blocos de Napoleões retintos, os pigmeus do boulevard.
Os excluídos, em situação social de risco, eram todos. Não dava mais
para separá-los em categorias específicas.
66
Outro projeto começou no meio . Foi chamado a compor uma
escola de samba e a arcar com a responsabilidade de dar conta da
confecção, venda e administração de toda uma ala. Não tinham, sequer,
um lugar para trabalhar, quanto mais um ambiente estruturado.
Alugaram uma parte da casa de uma família do entorno e tudo
acontecia em meio a tudo e todos.
Outro projeto, ainda, tinha um contrato com empresas para a
fabricação de materiais de papelaria e, como qualquer contrato, com
quantidade, qualidade e data de entrega. As empresas não tinham
qualquer condescendência quanto à condição de doentes dos usuários.
Estes exemplos nos contam da necessidade de mudarmos os
clínicos. Diluir e misturar as tintas que se mostram em cores e
contornos nítidos implica abrir mão de nosso saber consagrado, que nos
separa de nossos pacientes. Implica, também, perder o controle da
situação, talvez nosso maior pesadelo. Quem perdeu o controle foram
eles; nossa tarefa é ajudar a restaurá-lo.
Em meio ao bairro, aos escombros da casa, do samba ou das
exigências do mercado, nossa tarefa fica tão sem contorno que, tanto
pode assustar e aí, levamos ao ponto de ônibus como pode apontar
outras direções.
Levar a psicoterapia para as ruas implica que os técnicos saiam do
confinamento de seus consultórios, clínicas, recintos fechados, assim
como dos recintos fechados dos conceitos e preceitos. Nosso maior
desafio é produzir o deslocamento do saber que nos constitui para
podermos criar um trabalho de fazer alma.
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5. A CLÍNICA DO TRABALHO
Já me dei ao desfrute
de ser ao mesmo tempo
pedra e sapo
A prática clínica era o território privilegiado de discussão, de
aprendizagem, de avanços. Os pacientes e os familiares nos diziam se
estávamos na trilha mais acertada - ou não. O intervalo entre as crises
espaçava; relatos de melhora na condução de suas vidas, menos
turbulência na relação com os familiares. Os parentes falavam de como
“agora está tudo melhor” ou vinham pedir apoio para interferir quando
havia problemas mais sérios. Tudo ficou menos ameaçador, menos
solitário. Contavam conosco, nosso trabalho se mostrava efetivo,
sentiam-se amparados. O desamparo de “ter de lidar sozinhos com isto”
era bastante aliviado pela existência de um lugar de cuidado solidário.
Se pensarmos na clínica apenas como um projeto gerador de
renda, fracassamos. Não conseguimos criar renda nem para eles nem
para nós. Continuamos pagando e eles recebendo muito pouco dinheiro.
O que nos junta, então? Por que vamos para todas as semanas e
como nosso trabalho faz diferença nas vidas dos usuários? Porque a
diferença é visível no empenho em suas produções, no riso mais farto e
solto, no carinho e cuidado de uns com os outros, na melhora de suas
vidas em casa.
uma enorme discussão entre os profissionais que trabalham
com oficinas de geração de renda. Alguns dizem que não leva a lugar
nenhum, outros que não é um trabalho terapêutico e, portanto, não
pertence ao âmbito da saúde mas deveria passar por outras políticas
públicas etc..
68
Nós assumimos que trabalhar pode ser psicoterapia. Mas
trabalhar, como? Se pensarmos o trabalho como o entendemos hoje,
todos os nossos projetos estarão fadados à frustração. A socióloga Leila
Blass diz que “toda forma de vida societária pressupõe atividades e
tarefas de trabalho, ou seja, não existe vida coletiva sem trabalho”. Diz,
também, que o trabalho como o conhecemos hoje, data do século XVIII
na Europa e que, antes disso, economia, produção, trabalho, estavam
fundidos com a política e a religião.
Das atividades humanas, trabalhar, é, talvez, a que mais carrega
a característica de ser “para os outros”. Qualquer que seja a produção –
peças de mármore, comida, espetáculo destina-se a um outro que,
muitas vezes, nem sabemos quem é. No caso das nossas oficinas era
evidente a diferença na satisfação de saber que um cliente desconhecido
havia comprado “minha peça”. Quando o comprador era um parente ou
amigo, pairava a suspeita de ter comprado “só para ajudar”. A
autenticação da qualidade do trabalho vinha de um outro desconhecido.
Ao longo do tempo fomos adquirindo um aprimoramento técnico
que permitiu maior discriminação e exigência na qualidade do produto
final, ao mesmo tempo em que a maneira de cada um trabalhar
mostrava seu jeito de conduzir as “questões da vida”; a maneira de
lidar com os processos de produção da peças traduzia os modos de
produzir a vida. Um dos modos mais freqüentes fala assim:
No início, cada vez que eu pegava uma pedra, não via nada que
pudesse fazer com ela. Era só um caco de pedra bom para se jogar fora,
quebrado e feio. Cada vez que quebrava no meio do trabalho minha
vontade era largar tudo, ir embora. Não nada certo, mesmo! Não sei
fazer nada direito.
Jogar tudo fora, ver nas coisas quebradas o lixo como único
destino, tomar como erro e incapacidade pessoal tudo o que acontece
de ruim é a tônica de sua forma de viver.
69
Aprender com as pedras. Juntar e colar de um jeito diferente e
novo pode dar em alguma outra coisa. Aprender a não jogar tudo fora
porque se a gente olhar bem, pode achar alguma coisa legal para fazer.
Persistir. A dureza das pedras esconde uma fragilidade que requer muito
cuidado. Seus veios e poros nos dizem onde cortar, preencher. A
qualquer interferência brusca, ela quebra. Às vezes, quase no final do
trabalho, um pequeno golpe dado no lugar errado desmonta tudo o que
foi feito. E, no entanto, o erro não foi “meu”, não sou “incompetente”;
só não prestei atenção ao que a pedra dizia.
O outro-pedra ensina a olhar para além de mim: minhas dores,
fragilidades, meus cacos. Ensina a atender às necessidades dela, a olhar
bem quais são suas características, prestar atenção ao que ela requer.
Para ressaltar suas qualidades não visíveis é necessário desbastar,
colar, polir, juntar; ensina, também, que nem sempre ela se curva a
meus desejos, aceita minha intervenção, mesmo que cuidadosa e
carinhosa. Às vezes ela, simplesmente, me ignora e impõe outro
destino.
O outro-comprador gostou do meu trabalho. Nem estava tão bom,
era uma peça igual às outras. Mas alguém escolheu esta. Aprender que
alguém gosta do meu trabalho que “nem estava tão bom” lança dúvidas
sobre a noção cristalizada do não sei fazer nada direito. Insinua para
outras possibilidades que não a da inutilidade e estorvo. Se alguém
gosta do que faço, pode ser que haja algo apreciável em mim. O
desvalor completo como marca da existência, comporta-se como a
dureza da pedra que, ao contato com o outro, encontra fendas e
porosidades, capazes de mudar o manejo.
O outro-vozes ensina o silêncio. Calar é necessário quando há
muitas vozes falando ao mesmo tempo, atormentando, fazendo muito
barulho. Não é o momento de acrescentar mais uma voz dizendo o que
se tem que fazer.
70
Aprender a negociar com um venusiano travestido de terráqueo e
mostrar-lhe que as pedras da Terra não são como as de Vênus e não
para fazer as mesmas esculturas que lá.
O outro-paciente ensina a não se espantar ou querer resolver as
dores do colega, porque as reconhece e sabe que, nesse momento
agudo, é preciso tempo e paciência; ensina outra noção de tempo, de
intervenção. Às vezes, ficar quieto, outras ficar ao lado. Em todas,
entretanto, fazer saber que este é um lugar onde a acolhida e o suporte
estão presentes. Que, aqui, se pode descansar um pouco.
Com os outros, também é a marca do nosso trabalho. O encontro
freqüente, sistemático e compromissado com a produção de algo,
inaugura um corpo, uma corporação. Este corpo em ação que vai se
compondo ao longo do tempo em que este encontro compromissado se
processa, cria um mínimo social onde seus componentes se reconhecem
como parceiros. Pedir emprestada esta noção de Antonio Cândido, que a
destinava a sugerir as condições de vida no tipo disperso de
povoamento.
Este mínimo social, composto por pessoas dispersas por toda a
cidade de São Paulo, se comporta como os Parceiros do Rio Bonito:
cria uma base territorial, um sentimento de localidade, cuja
formação depende do intercâmbio entre as pessoas; (...) é uma
naçaõzinha, que requer a necessidade de cooperação. Um dos
elementos de sua caracterização [é] o trabalho coletivo. (...)
Poderia (...) definir-se como o agrupamento territorial (...) cujos
limites são traçados pela participação dos [usuários] em trabalhos
de ajuda mútua. É membro do [território] quem convoca e é
convocado para tais atividades. (...) Nesta maneira de trabalhar
não obrigação com as pessoas e, sim, com Deus, por amor de
quem serve o próximo, contou um velho caipira.
71
Durante o trabalho, levam-se em conta os de menor
capacidade devendo [o mestre] moderar o ritmo a fim de o
forçá-los... (Candido, PRB pp 65 a 70)
Este povoado disperso requeria um nimo social para poder
constituir-se como naçaõzinha; para poder criar o sentimento de
localidade, necessitava de um lugar a que os participantes têm
consciência de pertencer. Estas parecem ser as condições necessárias
para que uma clínica do trabalho possa se configurar em psicoterapia.
Um dos aspectos importantes da vida do mínimo social é seu
aspecto festivo. Neste pequeno sócio criou-se um agrupamento de
vizinhança que promove encontros, acompanha o colega de trabalho até
a condução “para ficar batendo papo”, comemora aniversários, chama
amigos de fora para ver nossas peças; permite dizer às pessoas que vou
ao meu emprego, encontrar com meus amigos.
Se pensarmos a clínica como um lugar onde se voz às
conexões, então criar o mínimo social permite a conexão com esses
outros-pedras, pessoas, temas, conflitos; permite esquecer-se de si
mesmo e poder criar o dom narrativo, acompanhado de todos os outros
que não, apenas, da minha doença.
Enquanto nosso mínimo social criava um território onde a rede de
relações se ampliava, nós continuávamos “no mesmo lugar”. Nosso
trabalho para “dentro da casa” estava na contramão do projeto de levar
a psicoterapia para as ruas.
Uma dos propósitos das oficinas passava por sair do
confinamento, do isolamento. Os portadores de distúrbios passam a vida
(na maioria dos casos) relegados ao confinamento, quer nas internações
fechadas ou abertas, nas casas onde vivem. Dificilmente conseguem
sair, ter uma rede de amizades. Marcados por serem diferentes,
estranhos, ou se restringem “a ficar em casa sem fazer nada, vendo
72
televisão” ou a esconder sua condição “para ninguém olhar pra gente
como se a gente fosse louco”. Regra geral, a vida destas pessoas
acontece em lugares fechados, com os familiares “é difícil conhecer
gente nova, a gente fica sem graça”.
Colocar a possibilidade de circulação dos produtos implicava ações
de saída, ampliação. Tentaram-se várias maneiras de ir para o mundo.
Participar de feiras, fazer parcerias com lojas, montar uma loja
gerenciada pelos usuários. O mundo do comércio tornou-se nosso
cavalo de batalha. Amigos tentaram ajudar, orientações de empresários,
tentar lidar com as intrincadas regras dos negócios. Várias reuniões de
todos os participantes para compor um empreendimento que fosse
adiante.
A constatação de nossa incompetência nos fez saber várias
coisas: nenhum de nós tinha a menor vocação para o comércio, não
tínhamos nem vontade de aprender esse ofício; sozinhos não
chegaríamos a lugar nenhum. Além disso, verificamos que nós também
estávamos confinados.
Começamos por trocar experiências com outros projetos similares.
A tônica das inquietações, dúvidas, sucessos e fracassos, assemelhava-
se bastante. Em meio às semelhanças, apareceram as diferenças que
apontavam as saídas. Foi nesses encontros que conhecemos o bairro
dos excluídos, o samba em meio a tudo, as exigências do mercado.
Sair do isolamento implica deixar que a clínica se contamine pela
rua. A clínica asséptica dos lugares abrigados, cuidada por técnicos
especializados, está exigindo outras misturas; ousar em terrenos não
palmilhados, ao invés do consagrado que nos autoriza. Nosso saber,
nosso esteio, colocado em suspenso, no lugar do chão que pisamos. E
aí, repensar o que será e poderá esta clínica.
Estávamos neste pé, quando fomos invadidos pelo mundo dos
negócios. Recebemos uma proposta de um grande laboratório
73
farmacêutico que, se fosse aprovada, teríamos de produzir de 200 a 300
peças. Até aqui, cada um trabalhava no seu ritmo, respeitadas as
condições e estilos de cada pessoais, como mandava o figurino técnico.
Discussão coletiva. Fazer, dar conta, aceitar prazos, colocar preços
justos, redefinir horários, disponibilidades. E, de novo, constatar que o
ritmo e o estilo pessoais são mutantes (mesmo com doenças no meio)
quando as situações o exigem. Falas do tipo: agora a gente não vai
poder ficar parando a toda hora; não pra ficar dormindo, agora é a
maior responsa. Temos de ter mais compromisso com as peças. E quem
não fizer? Aí tem de dar pro outro e ficar sem a grana. Não dá pra todos
perderem porque uns não fazem. Se ficar mal, paciência, quando
melhorar, volta. E também não dá pra reclamar. Resolvido que
também os técnicos iam ganhar igual a eles pelas peças que fizessem. E
que seria necessário mais gente. Quem? Quem quisesse trabalhar. De
outros lugares, de outras instituições, parentes, vizinhos... E que, daqui
pra frente, cada um será responsável sozinho pelo controle e andamento
de seu trabalho sem a supervisão de nenhum técnico. Não haverá
‘clínicos’, apenas, mestres do saber com as pedras. Aí, qualquer um dos
mais antigos poderá ensinar os mais inexperientes.
No entanto, de algum modo, ainda nos atribuíamos o encargo de
ser os mestres, aqueles que deveriam impor o ritmo do trabalho. Impor,
neste caso, era fazê-los aceitar nossas propostas. Ao longo do tempo
em que trabalhamos juntos, alguns se esforçavam mais que outros para
dar conta de fazer suas peças. Quando havia prazos de entrega era
preciso ajudar a terminar as peças dos retardatários. Mas, depois, eles
recebiam por peça produzida. Isto não pareceu justo aos mestres, que
propuseram o que lhes parecia mais justo: dividir o dinheiro com quem
trabalhou. Os outros-pacientes discordaram; nossa justiça foi
confrontada com outra justeza. Não importava se alguém fez mais que
outro: estava ali, fazia parte da naçãozinha, seu ritmo precisava ser
74
levado em conta. O valor de sua produção era equivalente, não se
media por concretudes acabadas.
Saímos desta reunião cientes de que nosso modo anterior de
conduzir as oficinas carregava um pesado viés da prática oficial,
encoberto pelo cuidado clínico. Chegarão pessoas novas, o encargo do
trabalho não recairá, apenas, sobre os técnicos, poderemos ser mais
integralmente NÓS.
E, talvez, finalmente, começar a clínica que queríamos no início.
Instalar esse NÓS significa repensar o ofício de clinicar. O cuidado
solidário, no lugar do trabalho solitário. Se as famílias e pacientes não
se sentiam mais sozinhos para lidar com as questões que a doença
trazia, agora seria a vez de criar um território onde os técnicos não se
sintam desamparados. Um lugar onde não caiba ao técnico a função de
tudo saber, ter a solução para todos os problemas dos pacientes. Esta
maneira de ver não inclui um olhar em que o paciente, por definição, é
excluído, frágil e requer proteção. Se nos propusemos a criticar o
Trabalho Moral, será necessário, agora, repensarmos o quanto de
moral nos termos em que pautamos nosso trabalho. Pensar na clínica
como um projeto solidário, como um modo de lidar que
Não é propriamente um socorro, um ato de salvação ou um
movimento piedoso; é antes um gesto de amizade, um motivo de
folgança, uma forma (...) de cooperação para executar um
trabalho. (Candido, PRB, p69)
E criar nela experiência partilhada, embora jamais possamos
adivinhar seu fim. Uma clínica que se realize no entre, este tempo que
fala e aponta para a análise que não se de pessoa a pessoa - de ego
para ego - mas entre. Uma clínica que se faz enquanto se narra, que se
faz no gerúndio. Um tempo de fazer alma. Até porque, assume
75
radicalmente a máxima dita por um grande louco, sonhador da
humanidade, chamado Cervantes: Tudo é o que tudo pode vir a ser.
76
6. KAIRÓS E A MOEDA DE SAL
Preciso de alcançar
a indulgência
pedral
Se o trabalho como é visto pelo mundo civilizado não serve a
nossos propósitos, porque não estamos nos inserindo nas regras do
mercado nem formal ou informal ou outro nome que queira assumir,
talvez voltarmo-nos para o trabalho tribal nos ilumine um pouco mais.
Afinal, compomos tribos estranhas à civilização vigente.
Pensar/fazer bricoleur. Isto fala de nosso trabalho que usa restos,
pedaços, quer de coisas quer de histórias. Histórias de pessoas que
tiveram suas vidas feitas pedaços, histórias que se fragmentaram e das
quais aproveitamos qualquer situação oferecida para enriquecer ou
conservar. Trabalhamos com o que encontramos, cacos de pedras ou
cacos de vidas e fazemos outros. As pedras falam conosco e, à medida
que as formas vão saindo, falamos através delas: de nosso empenho,
cuidado, atenção, inventividade...
Aproveitamos as oportunidades. Kairós, é o nome de um dos
tempos que os gregos sabiam existir. Tempo da oportunidade, quando
oportunitas significava olhar através de uma fresta; também era o
tempo certo, aquele momento exato de soltar a flecha para que
atingisse seu alvo. Tempo exato, tempo sem seqüência, porque é
aquele que se apresenta no momento. Um tempo para ser agarrado.
Nosso nome, nosso tempo de fazer.
Fomos buscar em outros tempos e geografias um sentido para
nosso fracasso econômico. Fomos buscar em outras lógicas de pensar
para apoiar-nos em nossos desalentos. E, de novo a ajuda veio da
poesia da bricolagem.
77
Lá pelos idos de 1958, um antropólogo francês, Godelier, foi
estudar uma das remanescentes economias neolíticas do planeta, entre
os Baruya, na Nova Guiné. Pensemos nele chegando imbuído de seus
honestos propósitos de pesquisador, com seu acervo de ideário marxista
e suas noções de economia, trabalho, mercadoria, valor, mais valia, etc.
e com a convicção de que a religião era o ópio dos povos.
Imaginemos, por uns momentos o encontro entre um civilizado
francês, marxista do século XX, deparando-se com povos para quem a
vida se compunha com parâmetros que, não desdiziam tudo o que
ele pensava, como nem tinham nenhuma conexão com qualquer lógica
conhecida. Ele nos conta esta história:
Os Baruya fabricavam sal a partir de uma planta. Tratava-se de
um complexo processo de processo até a produção de sal em barras que
ocorria na oficina de um proprietário. O que definia o “ser proprietário”
era o fato de ele ser um especialista no ofício, sobretudo, “um mestre na
magia do sal”. Ao final da produção, os proprietários redistribuíam o sal
entre os aliados, parentes, tribos aliadas etc. Não ficavam com o
excedente.
Outra estranheza era a maneira como eles trocavam com os
estrangeiros. As rotas comerciais entre tribos que ficavam, às vezes, a
quatro dias de caminhada, tinham sido abertas por indivíduos
audaciosos, cujos nomes passavam à posteridade, que estabeleceram
relações de amizade e selaram um pacto de comércio e proteção. Este
pacto é normalmente refeito de geração em geração. Cada parceiro se
compromete a abrigar e proteger seu hóspede. Assim, o comércio
significa paz e traduz as relações políticas entre as tribos.
Voltando ao sal. O interessante é que o consumo de sal entre os
próprios Baruya era mínimo. Não porque fosse fisicamente raro entre
eles. O que o tornava raro e, portanto, valioso, é porque seu consumo
78
era de uso exclusivo em cerimoniais. Seu grande valor era dado pela
significação religiosa e social, além da gastronômica e biológica. Era um
“artigo de luxo” do qual as pessoas se privavam ordinariamente cada
vez que o cotidiano cedesse ao ritual.
Este valor “de luxo” servia também para avaliar as trocas com os
vizinhos. Quando iam trocar o sal pelas capas com a tribo dos Kanasé,
com quem tinham um “pacto de amizade eterna”, nosso antropólogo
com espanto, que, em termos de horas trabalhadas e esforço
despendido, os Baruya recebiam 3 vezes mais do que davam. E, no
entanto, as duas tribos concordavam, cientes da desigualdade. O que
fazia do sal um produto “de luxo” e, portanto, caro, era o fato de este
exigir um “saber técnico e mágico”. Por sua vez, os Baruya pagavam
caro por umas nozes coletadas sem esforço por outra tribo porque estas
nozes tinham “o poder mágico de atrair grandes quantidades de caça” e
de purificar os guerreiros.
O que conta nas trocas entre grupos é a satisfação recíproca de
suas necessidades e não uma balança de seus gastos de trabalho. Como
diziam os Baruya “se recebemos o suficiente, o trabalho é coisa do
passado, é esquecido”. O sal é objeto precioso:
porque entra (...) na categoria das coisas “boas para
comer, raras e essenciais”
porque é consumido exclusivamente nos momentos de vida
social, nascimento, iniciação, casamento, isto é, no conjunto de
cerimônias que celebram [a tribo];
porque sua fabricação não pode ser levada a termo a não
ser pelos cuidados de especialistas que possuem, ao mesmo
tempo, o sabercnico e o saber mágico de sua cristalização;
porque, graças a ele, os Baruya obtém tudo o que lhes
falta”: proteger-se do frio, compensar uma morte, iniciar suas
filhas e seus guerreiros. (Godelier, Moeda de Sal, pp 147, 148)
79
O sal é o que se produz para os outros e é um objeto que se
distribui “entre os seus”. Jamais é um objeto de troca [econômica] mas
sempre de dádiva e redistribuição, um objeto de troca social. outro
motivo pelo qual o sal é precioso. Suspensa acima da lareira de algumas
cabanas Baruya são vistas barras de sal velhas de quase uma geração,
enegrecidas pela fuligem e secas. Por “nada neste mundo” seu
proprietário as venderia ou consumiria, pois elas são o símbolo de uma
amizade desaparecida ou de um pacto selado com o inimigo, linguagem
muda que conta em cada instante presente o que, do passado, não deve
envelhecer. não são, portanto, para serem comidas ou para serem
trocadas, nem para serem dadas. Elas só são “próprias para pensar”.
Nosso antropólogo deu a seu estudo o nome de Moeda de Sal.
Pensarmos nossos trabalhos na ótica do bricoleur e criar nossas
moedas de sal. Se, nos tempos atuais, a idéia é o atendimento em rede,
talvez se trate de criarmos uma rede entre as tribos vizinhas. Criar um
movimento que se estabeleça com relações de amizade, que sele pactos
de comércio e proteção, que crie “artigos de luxo”, cujo valor não se
mede em horas de trabalho e esforço mas, que se torne raro porque não
servirá para o uso cotidiano. Servi para enriquecer a existência ou
conservá-la com os resíduos de construções existentes. Servirá,
também, para celebrar as tribos.
Não será um comércio de trocas iguais, equivalentes, mas as
desigualdades servirão para a satisfação recíproca das necessidades de
todos. Haverá, sim, proprietários, - aqueles que detém o saber mágico e
técnico - mas, a função destes será sempre a redistribuição.
Os “artigos de luxo” assim produzidos serão preciosos porque se
produzem “para os outros” e se distribuem “entre os seus”. Serão
preciosos, porque são dádiva, troca social e traduzem as relações
políticas entre as tribos. Ao lidarmos com nossos objetos produzidos
80
como algo precioso, raro, que serve à celebração e não ao cotidiano,
poderemos, então, vê-los como a categoria de coisas “boas, raras, mas
essenciais” e aí, teremos tudo o que nos falta. E nossas moedas de sal,
assim guardadas, serão memórias que nos contam sobre aquilo que não
pode envelhecer, passarão a ser “próprias para pensar.” Um trabalho
próprio para pensar, feito para os outros, que nos celebra, que é dádiva
e redistribuição, traduzirá as relações políticas que possamos
estabelecer tribalmente. E apoiar-se em uma paráfrase de Hillman
sobre uma forma civilizada de pensamento e que pode ser mais útil para
nossos propósitos: Compartilho, logo existo.
Alegria de compartilhar, fazer conjunto, trocar com outras tribos.
Novamente, o mundo lá fora irrompeu e obrigou a repensar. Novamente
o dono da casa quer vendê-la e teremos de sair. havia ficado claro
que precisávamos trocar com outras tribos. Se, no início, nosso projeto
devia caber no nosso bolso, talvez se tratasse de abolir o bolso. No
momento atual, estamos em discussão para formalizar parcerias com
outros projetos para que possamos trabalhar ou ensinar o que
aprendemos em outros lugares. Nossos agora amigos irão conosco. Não
sabemos em que porto iremos atracar. sabemos que faremos isso
todos juntos, mesmo que alguns dos tripulantes não possam
acompanhar na viagem. O caminho traçado deu a cada um de nós
algumas moedas de sal próprias para pensar e estarão em nossas
lareiras como memórias sobre o que não pode envelhecer.
Concluir que não compete à clínica “gerar renda” compreendida
como prover a subsistência. Os detratores das oficinas, afinal, tinham
razão. O âmbito da estrita sobrevivência não pertence ao campo da
psicologia, sequer da Saúde. O fracasso nesta área não se deve a
qualquer erro de projeto mas, a erro de lugar. Entretanto, o trabalho
como proposto pela moeda de sal e a poesia da bricolagem pode compor
uma clínica, uma psicoterapia. Não mais ligada à saúde ou doença, não
81
mais confinada; uma clínica na qual possamos parar de ver pacientes,
para poder ver cidadãos, como propõe Hillman. Uma psicoterapia, como
um modo de ver e reagir, uma habilidade de fazer alma, uma poesis.
Repensar o que possa ser o analista:
“Sou um analista. Falo às questões que residem dentro do
fórum público, na alma da cidade. Sou mais um garimpeiro que um
urbanista; persigo os vazamentos de gás que embaçam e
envenenam nossas relações pessoais, o escoamento de energia na
insônia, na impotência, no cio; vou atrás dos ratos, impulsos que
roem os cantos de nosso espaço interior; a queda de força no
desespero. Essa cidade é indizível no fórum. Ainda assim, podemos
conectar sua interioridade, com a interioridade de nossa vida
pública.” (Hillman, C&A p 43)
Ao começar este trabalho, a idéia era partir dos casos dos
pacientes para aprender mais sobre a prática clínica, o que, de fato,
ocorreu. A grande diferença é que sempre se parte do princípio de que
devemos partir da experiência clínica, isto é, dos casos dos pacientes,
para aprender sobre como trabalhar com eles, para atendê-los melhor e
o que aconteceu é que foram os pacientes, agora, parceiros de trabalho
que nos mostraram o quanto o caso clínico deveria ser a própria prática.
E começou, exatamente, com a história de caso, desde o início, desde o
nascimento, o que serviu ao propósito. Mas, enquanto mantivermos o
foco em como lidar com os problemas deles, continuaremos a falar de
tratamento. Mesmo atendendo por outro nome, mesmo que não mais
prescrevamos as atividades, como no Trabalho Moral, mesmo que
passemos a pesquisar e perguntar quais são as suas necessidades,
ainda assim, será uma clínica que trata, e não um cuidar.
A luta antimanicomial retirou os pacientes das internações
fechadas; impediu a criação de Bichos de Sete Cabeças e, por isso, foi
82
vitoriosa e mais do que bem vinda. Agora, trata-se de uma luta, talvez,
a mais longa dicil: tirar os cnicos dos manicômios. A proposta da
rede tribalista implica sair para além dos muros de proteção, implica
aceitar a contaminação, o ruído, o risco. Implica que cada urbanista se
torne um garimpeiro e o trabalho do garimpo não garante que se vá
encontrar alguma pepita salvadora no final. Nem ao menos assegura
que o veio que se buscava seja aquele que conter o tesouro de todas
as respostas. E, no entanto, contém a maior de todas as promessas.
Uma clínica feita por amigos, parceiros de caminhada, que
constroem uma narrativa que se faz enquanto se narra, implicada e
imbricada, sem saber nunca qual será o seu fim, requer um desnudar-se
da armadura protetora dos saberes estabelecidos, lidar com os medos
de arriscar e poder causar mais dor, lidar com a angústia do lugar do
não saber; fazer a aposta mais ousada de acreditar no valor dos
invisíveis e no valor das invisibilidades.
7. ENCRUZILHADAS E HERMAS
6
Bom é
constar das paisagens
como um rio, uma pedra.
O trajeto percorrido por sete anos na Kairós nos fez chegar a
novas encruzilhadas. Se caminhamos muito tempo, as pedras no
meio do caminho nos fizeram parar, contornar e, às vezes, quebrá-las
para poder passar. Outras vezes, tivemos de escalá-las e se mostraram
6
Hermas: <<monte de pedras>>, relacionados ao deus Hermes, eram marcos que delimitavam os caminhos e
que indicavam limites de certas terras. Destes montes de pedras surgia um pilar que estava coroado por um
busto itifálico, símbolo de fecundidade e prosperidade. (DMC p. 188)
83
íngremes, quase intransponíveis. Mas, como hermas, também
apontaram como seguir.
Uma das hermas apontavam para o escorregadio terreno legal. As
leis criadas para proteger e libertar os portadores de distúrbios das
tutelas, quer do Estado, quer da família, não libertaram os técnicos que
trabalham com eles, uma vez que os técnicos são legalmente
responsáveis por tudo o que possa acontecer às pessoas sob sua
guarda. Ser responsável juridicamente pelos atos de alguém, retoma a
tutela de um modo mais insidioso, porque não está declarado. Pousa
como uma espada de Dâmocles sobre a cabeça dos profissionais que,
ameaçados, refugiam-se nos procedimentos seguros.
O paradoxo de liberar pacientes e aprisionar os profissionais pode
ser um dos responsáveis pela manutenção de práticas que nem sempre
se mostram efetivas mas mantêm tudo em segurança. A título de
exemplo, podemos falar de um processo trabalhista sofrido por um CAPs
de São Paulo. Uma família moveu uma ação trabalhista contra um dos
programas de oficinas de trabalho sob a alegação do não cumprimento
do nculo empregatício. A vida e integridade física dos pacientes é de
responsabilidade dos profissionais, mesmo quando a proposta é de
espaços abertos dos quais os usuários possam entrar e sair mais
livremente que nas instituições fechadas. Se algo acontece de errado,
mesmo se o paciente sair e algo der errado, conseqüências legais.
Era muito mais simples quando as internações eram fechadas a
chave e grades, quando havia seguranças para conter os possíveis
excessos. Agora, quem está inseguro e amedrontado é o profissional. A
segurança, então, passa a ser a principal preocupação, dificultando as
ousadias. A possibilidade de perder o emprego e a carreira cria um
ambiente em que permitir o afrouxamento dos controles constitui uma
temeridade.
84
Este vigia introjetado, como diria Foucault, pode ser o maior
obstáculo à saída dos técnicos dos manicômios fechados. Mesmo com
portas e janelas abertas, mesmo com a liberdade dos pacientes de ir e
vir, ficaram os profissionais com o encargo de vigiar. Neste estado de
vigia, é pouco provável que floresça uma clínica que favoreça o exercício
da cidadania. A não ser que, novamente, caiamos na armadilha da
clínica nós e eles.
Nos encontros e discussões com os outros projetos ficou claro que
pudemos existir mais livremente porque estávamos fora do âmbito
da Saúde. Nosso trabalho se dava em um ambiente fora da jurisdição
médico-legal e podia funcionar de outra maneira. O mesmo ocorria com
outros projetos que aconteciam em Centros de Convivência (Ceccos),
mesmo sob o regime estatal.
Os Centros de Convivência foram criados no início dos anos 1990
como unidades de saúde da rede pública municipal na cidade de São
Paulo. Apesar de estarem ligados à área da Saúde Pública, foram
pensados a partir de um parâmetro mais ligado à idéia de promoção de
qualidade de vida. Regra geral, várias secretarias ou órgãos entram em
associação para compor as atividades do Centro, como a Secretaria da
Cultura, Centros Culturais e Esportivos, etc. Tem maior possibilidade de
associação com organismos não governamentais e maior agilidade para
propor suas ações. Os grupos montados para as atividades são
heterogêneos e não se restringem a identidades patológicas, sociais ou
de qualquer outro tipo e seus modos de gestão, regra geral, se dão de
forma participativa com todos os membros.
O modo Cecco pode ser pensado como outra herma, esta de
grande alcance, porque nestes lugares, onde a proposta é o convívio de
todos em torno de algo em comum, é possível a criação de mínimos
sociais. Como Antonio Candido nos mostrou, esta forma sofisticada de
sociabilidade contém elementos essenciais para se compor uma clínica
85
cidadã: cria territórios que permitem a existência de um sentimento de
localidade, de pertinência, que não é de obrigação entre as pessoas, que
atende a valores que não a estrita sobrevivência, que é festiva e cujos
produtos de luxo, servem para pensar.
Se buscarmos na literatura sobre o que deve ser uma
psicoterapia, talvez encontremos na criação destes mínimos sociais uma
forma de sair do confinamento e da queixa, porque neste outro formato,
todos seremos parceiros dos rios bonitos. A possibilidade desta parceria
requer uma saída do modo dico-legal para outro que possa transitar
para fora de qualquer idéia de tutela. Todos seremos responsáveis pela
execução de nossos ofícios, pelas relações estabelecidas entre os
participantes, pelos caminhos que iremos construir.
Outra herma importante indica a possibilidade de relação com as
pessoas delírios, alucinações, ideações persecutórias, etc., não apenas
como crenças falsas que só existem na sua cabeça. Classificá-las como
crenças falsas e localizá-las dentro da cabeça de alguém não as faz
desaparecer nem diminuir o tormento que causam.
Psicoterapia significa cuidar da alma, não tratá-la.
Servir a alma significa deixá-la mandar, ela guia, nós
seguimos. (...) Ao tomar a atividade desordenada e peculiar como
um de nossos guias, a terapia pode albergar o estranho, o
decadente, o fantástico. (...) Posto que nos ocupamos dos aspectos
falidos da vida, teríamos que descartar qualquer êxito terapêutico.
Como patologizar é aterrador, vemo-nos obrigados a seguir o
medo, não com coragem mas, como via que nos adentra ao terror
das profundidades da alma (...) [implica] estar em meio à
desordem ao mesmo tempo que se está desde uma perspectiva
mítica. Tentamos seguir a alma [e], ao seguir a patologização em
seu avançar tentamos descobrir precisamente os métodos e as leis
do imaginal enquanto diferente do racional e do sico. A loucura
nos ensina o seu método. (Hillman, R P pp 177 e 178)
86
Se nos voltarmos para os sistemas que a loucura monta, veremos
as estratégias que os portadores usam para sobrenadar a enchente e,
então talvez possamos encarar os sintomas não como algo a ser sanado
mas como informantes sobre o que pode dar certa continência à vazão.
Aqui, os nimos sociais precisam ser criados com os quems habitam
esta seara chamada psique. Hillman se refere a ela como uma paisagem
cheia de gente, como uma cidade, como Nova York, onde vivem todos e
acontece de tudo.
Ao longo deste trabalho fomos apresentados a muitos dos
personagens desta cidade e nos propusemos a ser seus vizinhos
solidários. Como participar desta reunião?
Quando as Vozes estão imperativas, às vezes, é possível encontrar
uma delas que se amedronte quando a gente, tão imperativamente
quanto ela, manda que se cale. Outras vezes, é preciso deixá-las falar e
tentar ignorá-las. Outras pessoas mais fortes que elas podem intervir:
Deus, por exemplo. Quando a faz parte desta paisagem específica,
Ele entra para contrapor-se às forças do mal, porque as Vozes que
mandam matar são vozes do demônio. Rezar junto ou ler um trecho da
bíblia é um remédio bastante eficiente nestes casos. Às vezes, basta
alguém muito próximo estar junto, para impedir de obedecer ao que
elas mandam.
A estranha lucidez apontada no início do texto parece vir de
estratégias de defesa que se montam no interior da cidade com
parceiros solidários tão improváveis quanto os próprios personagens
sintomáticos. Algm telefona para uma prima específica no meio da
madrugada para pedir ajuda; outro sai andando, literalmente,
quilômetros, dia ou noite, para acalmar as vozes; um outro, ainda, se
retira do convívio das pessoas, recolhe-se a seu quarto e não quer ouvir
ninguém tem gente demais falando. Quando o exército usa seu
87
corpo para tirar energia, fica dormindo muito tempo para refazer as
forças e poder salvar sua família.
O modo habitual de se lidar com estas questões é no sentido de
demover o paciente de suas idéias, aflições, propondo que saia do
quarto, que se levante porque não faz bem ficar tanto tempo dormindo,
que se movimente; que pare de pensar nisso, porque faz piorar; que
pare de andar por aí, porque é muito perigoso, especialmente, de
madrugada. Estas sugestões de saneamento provocam maior aflição
porque contrariam o que o sintoma manda.
No caso do paciente que cuidava da mãe a preocupação de todos
era no sentido de ele se preocupar mais com ele mesmo, fazer coisas
mais produtivas para si em vez de cuidar dos outros. Mas, e se
pudéssemos ver este cuidar dos outros como a sua maneira possível de
conexão com o mundo? Se a psicoterapia deve ser a busca das
conexões, o que nos impede de ver que esta pode ser a maneira de ele
manter algum ponto de contato e que, sem ele, pode romper-se o tênue
fio de ligação e tudo poder esvair-se? Talvez se trate de dar mais outros
para ele cuidar.
O rapaz de mais ou menos 36 anos anda quilômetros; vai correr
na São Silvestre. Sobre ele era dito que não estabelece vínculos, não se
fixa em nenhum lugar, precisa de maior concentração, é muito disperso.
Mas ele precisa da dispersão, da amplidão de caminhos a percorrer para
acalmar as aflições que tomam conta do seu corpo. Ajudá-lo a andar e a
correr; colocar-lhe desafios cada vez mais complicados na execução de
suas peças. Isto o ajudava a concentrar-se. Talvez porque nada lhe
tenhamos perguntado ou tentado extrair de seu discurso ininteligível no
início; porque entrou para trabalhar conosco e assim foi aceito; porque
não tentamos demovê-lo das estranhas idades de sua família é que, aos
poucos, pode falar sem ansiedade, sem medo de ser mal entendido. E
88
poder estabelecer todos os vínculos que desejou, que torçam para que
chegue ao final da São Silvestre.
Se pudermos conectar com o quem, vizinho solidário, de cada
paciente e estabelecer com ele uma relação de ajuda mútua, então,
poderemos ser parceiros nestes outros rios. As hermas, aqui, apontam
para criar conosco o mínimo social de cada um. Não se trata de eliminá-
los como crenças falsas mas, poder compor com elas outras estruturas
dramáticas. Não se trata de buscar pessoas ou situações reais, para
contrapor; para alguns,estes vizinhos não são nem mesmo pessoas.
Trata-se de ajudar a delimitar, discriminar e reconhecer quem são esses
vizinhos e localizar suas necessidades, desejos, forças. Como fazemos
com as pedras.
Algo existe ali, corpo estranho na colagem, mas que, sem ele, não
seria esta colagem. Deixar o corpo estranho ali caminha em outro
sentido que não o de deixar que ocupe todo o quadro. Por isso é
necessário que ele possa ser melhor dimensionado. Mas sabendo que
este elemento não poderá ser abolido, mesmo quando continua
indecifrável.
Compor mínimos sociais com as pessoas psíquicas nos faz retomar
as premissas com as quais quisemos trabalhar: ficar com os relatos dos
pacientes; pensar a psique como um lugar cheio de gente e ver histórias
de vida, no lugar de históricos de caso. Pensar a realidade psicológica
como a vida que se compõe com os enigmas ao invés de tentar
solucioná-los.
Seguir a alma nos levou a lugares inusuais, embora propostos,
desde o início pelos inventores da Psicologia. Freud já não quis a
Psicanálise associada à Medicina. Jung propunha que, para se
entender melhor a psique, era preciso aliar-se à filosofia, antropologia,
literatura e dizia que os poetas sabiam falar mais e melhor sobre as
paixões humanas do que qualquer cientista. Hillman diz que precisamos
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pensar o homem em seu background artista e a imaginação como a
atividade da alma, por excelência.
Retirar os sofrimentos da alma dos estabelecimentos ligados à
Medicina parece ser, então, uma medida que retoma aquilo que os
grandes construtores da Psicologia atual nos propuseram desde o início.
Devolver a Psique para as ruas, cidades, famílias; encontrar fora dos
muros protetores e protegidos dos saberes legalizados, normatizados,
parece ser o caminho que a psique está pedindo para encontrar outros
modos de se lidar com ela. Aliar-se aos sintomas, ficar seu amigo,
também é algo que a psique está pedindo para ser feito. Se são eles que
nos orientam, nos mostram seus métodos e leis, então, trata-se de dar
a eles um lugar legítimo de existir, mesmo quando é feito de materiais
que destoam do quadro.
Sair dos quadros emoldurados da medicina, sair da psicodinâmica
única, da psique pensada como uma estrutura que, ao mover-se fora de
sua ordem prevista, passa a ser chamada de doente. Mover-se na
direção apontada pelo convívio pode fazer com que, finalmente,
possamos seguir a proposta de Hillman de parar de ver pacientes, para
podermos ver cidadãos.
90
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dar voz às pessoas que nos habitam com uma escuta que não
desqualifique é uma tarefa da qual ninguém sai imune. Escrever sobre
estas pessoas exige um deslocamento do lugar de nossas vidas
humanas, demasiadamente humanas, de nossa normalidade, para ficar
com as estranhezas, estranhos e estrangeiros, línguas que não
conhecemos.
Estrangeira recém chegada em país alheio, a tarefa de estabelecer
conexões é questão de sobrevivência. O que dizem e o que querem
estas línguas? Pensar na psicoterapia como a busca das conexões que
estão , acompanhar os discursos em línguas de outros planetas.
Quando chegamos mais perto para ir mais fundo, podemos ter a sorte
de encontrar a estranha lucidez destas falas e poder oferecer a elas uma
pequena herma. Ao aliar-nos à resistência dos ignorantes, podemos ver
os caminhos que ela nos propõe.
Soubemos que “Seu João” precisava ir embora quando começou a
manifestar um comportamento inadequado, segundo o jargão da clínica
clássica. O homem quieto, calado, sem movimento é despertado de seu
sono de tantos anos pela visão dos seios e nádegas das mulheres da
clínica. O primeiro sinal de seu despertar foi quando começou a avançar
pelo corpo da secretária e das psicólogas. “Seu João” precisava da
boemia, das mulheres, namorar. A boemia que havia feito “Seu Joâo”
perder tudo – casa, família, emprego – era exatamente o que ele
precisava reaver para sair de sua imobilidade. É desta alegria
reencontrada que ele nos conta quando nos visita.
91
Encontrar juntos aquilo que, em cada um, é capaz de acionar o
“mínimo social” que permite a construção da vida. “Seu João”
reencontra a boemia. O rapaz que ficou no quarto 8 anos, precisa
desenhar: desde muito jovem persegue o desenho mas, não era aceito
em nenhuma escola por causa de sua condição. O filho, a namorada, a
religião, o desenho, um lugar. Pensar na psicoterapia como aquele
trabalho que se propõe a compor o mínimo social”, que participa da
construção e, não aquele que analisa ou propõe os estilos da
arquitetura.
Nesta maneira de ver a psicoterapia, também não cabe o modelo
médico-legal que cria o discurso contraditório da busca pela autonomia,
ao mesmo tempo que responsabiliza uns pela vida de outros
perseverando na classificação que propõe tutelas. A proposta do modo
Cecco tem a ver com uma busca da psicologia para fora dos muros da
medicina proposta que está colocada desde seu aparecimento. Os
modos podem ser inúmeros, mas o caminho de saída requer alianças
com outros critérios que não o da Saúde pensada como tratamento.
Se a aposta maior é ficar com os valores invisíveis e o valor das
invisibilidades tentar, como o poeta, encontrar as grandezas do ínfimo, o
sabimento de pedras. Ficar em meio ao terror que a loucura promove e
encontrar ali, o elemento que sai do quadro. Pois naquele elemento que
não pertence ao quadro, que se compõe de materiais estranhos ao
desenho, que propõe enigmas, é que estará, provavelmente, a estranha
lucidez que permite não sucumbir e faz sobrenadar na enchente.
Grandezas do ínfimo que criam sabimentos de pedras, moedas de
sal, pedras de sal em cima da lareira como lembranças daquilo que, do
passado, não pode envelhecer, o caminho errante ou a riqueza dos
milhões de erros, são elementos pouco seguros para se criar algum
trabalho escrito. Entretanto, estão dentro da mais precisa matéria
92
psicológica que Jung nos forneceu. Nós somos feitos da mesma matéria
que são feitos os nossos sonhos.
93
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