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E
ESC LA de SERVIÇ S CIAL
O O O
U . F . R . J
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL
Tatiana Bittencourt Andrade
A RELAÇÃO ESTADO / SOCIEDADE CIVIL:
Um estudo sobre a implementação de políticas sociais no bairro Maré a
partir da atuação do CEASM
Rio de Janeiro
2007
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LOMBADA
TATIANA BITTENCOURT
ANDRADE
A RELAÇÃO ESTADO / SOCIEDADE CIVIL:
UM ESTUDO SOBRE A IMPLEMENTAÇÃO DE
POLÍTICAS SOCIAIS NO BAIRRO MARÉ A
PARTIR DA ATUAÇÃO DO CEASM
UFRJ
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3
Tatiana Bittencourt Andrade
A RELAÇÃO ESTADO / SOCIEDADE CIVIL:
UM ESTUDO SOBRE A IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS SOCIAIS NO
BAIRRO MARÉ A PARTIR DA ATUAÇÃO DO CEASM
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de
Mestre em Serviço Social.
Orientadora: Profª. Dra. Janete Luzia Leite
Rio de Janeiro
2007
4
ANDRADE, Tatiana Bittencourt
A relação Estado / Sociedade Civil: um estudo sobre a
implementação de políticas sociais no bairro Maré a partir da
atuação do CEASM / Tatiana Bittencourt Andrade. Rio de
Janeiro 2007.
146 f.
Dissertação (Mestrado em Serviço Social) –
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-
Graduação em Serviço Social, 2007.
Orientador: Janete Luzia Leite
1. Estado 2. Sociedade Civil
3. Política Social. 4.ONG.
I. Leite, Janete Luzia (Orient.). II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Pós-Graduação em Serviço Social. III. Título.
5
FOLHA DE APROVAÇÃO
Tatiana Bittencourt Andrade
A RELAÇÃO ESTADO / SOCIEDADE CIVIL: um estudo sobre a
implementação de políticas sociais no bairro Maré a partir da atuação do
CEASM.
Rio de Janeiro, 21 de setembro de 2007.
____________________________________
Janete Luzia Leite (Orientadora) - Profª Dra – UFRJ
____________________________________
Carlos Eduardo Montaño Barreto - Prof. Dr. - UFRJ
____________________________________
Juçara Luzia Leite - Profª Dra.- UFES
6
Aos meus pais Eliziário e Shirley
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AGRADECIMENTOS
A meu Pai e meus irmãos especiais, fonte inspiradora, fortalecedora que
incansavelmente acompanhou toda esta trajetória incentivando e motivando
nos meus momentos mais decisivos. Muito obrigada!!!!!! Meus pais queridos!!!
Quanta dedicação! Quanto amor! Quanta compreensão, apoio, afeto,
confiança!! Não existem palavras que expressem o amor, a gratidão e a
admiração que tenho por vocês!! Obrigada pelo estímulo ao nosso investimento
acadêmico e profissional!! Pronto Mainha, agora a minha volta para o Nordeste
está mais próxima!!! Minhas irmãs lindas Poly e Nina!! Apesar da distância
física, o carinho, a atenção e o apoio de vocês foram fundamentais para o
alcance deste meu objetivo. Amo vocês!! Gabi... perdoe-me pelas ausências!!
Foi difícil não poder acompanhar de perto o seu desenvolvimento....Deninho!!
meu irmão, meu amigo, meu anjo, meu compadre, cunhado!! Como amo e
admiro você!! Obrigada pelo incentivo, pelas leituras e revisões, enfim, pelos
seus esforços na construção desta dissertação!!
Paula Kapp, minha mais que amiga!! Companheira de TODAS as
horas!!! Obrigada pelos momentos mais que presentes! Por ter compartilhado
até mesmo do desejo de tentar a seleção do Mestrado!! Por ter dividido
comigo: reflexões teóricas nas disciplinas, nos trabalhos acadêmicos, nas
várias madrugadas de estudos; momentos de alegria, diversão e desespero!! O
nosso “controle madrugal” foi determinante para a finalização deste estudo.
Obrigada por ter insistido tanto em me fazer acreditar neste projeto! Valeu a
pena!! Agora é hora de desengavetar nossos outros projetos!!! Amo você!!!!!!!!!
Aos meus queridos tios e primos baianos, capixabas, sergipanos e
cariocas que sempre torcem e vibram por todas as minhas conquistas. Esta
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torcida é um combustível para a minha caminhada. Amo vocês!!!! Felipe,
querido primo! Obrigada por ter estado ao meu lado em tantas horas!!!!!
À minha família “adotiva” tio Bob, tia Ângela, Wagner, Claudinha e
Charles, obrigada pelo acolhimento, pelo carinho, por exigirem tanto a minha
presença!! Acho que as minhas ausências valeram à pena!! Charles, meu
grande e eterno amigo, parceiro de tantas horas; que compartilhou comigo toda
a trajetória do curso de Mestrado, desde a construção do projeto para a
seleção até os últimos minutos da elaboração desta dissertação. Obrigada pela
força!! pelas sugestões; pelos puxões de orelha, pela sua presença. Você é
uma grande referência para mim! Intelectual, política e pessoal. Amo você!!
Aos meus amigos!! E como são muitos!! Àqueles baianos, sergipanos,
que mesmo de longe estiveram torcendo por mim e acreditaram nesta vitória;
aos eternos amigos do MESS, Leile, Kátia, obrigada! Aos novos amigos
cariocas e fluminenses Áurea, como é gratificante ter a sua amizade!! Angel,
Nanda, Cris e Nane obrigada pela amizade e pelo estímulo e pela torcida!; Isa,
sem a menor sombra de dúvidas, as reflexões que você me instigou fizeram
toda a diferença; àqueles que participaram intensamente nas etapas deste
trabalho: Neide, Jak, Sheila (amiga especial e querida!! fruto Mestrado):
obrigada pelo companheirismo, pelas leituras, revisões, indicações e sugestões
que vocês fizeram; foram determinantes para a construção deste trabalho.
À UFRJ, particularmente ao Programa de Pós Graduação de Serviço
Social: Janete, querida orientadora!! Obrigada por ter aceitado o desafio de
orientar esta dissertação! E por tê-la feito com tanto primor e dedicação até os
momentos finais!! Obrigada pelo companheirismo, pela força, pelo carinho!!
Desculpe-me pelos desgastes que lhe fiz passar. Tenha certeza de que esse
9
processo de construção foi um dos momentos mais enriquecedores da minha
vida, em vários sentidos! Obrigada por ter feito parte desta caminhada
evolutiva! À Iolanda, sempre tão atenciosa e compreensiva, à Laura Tavares,
cujos debates em sala de aula me proporcionaram momentos de grande
amadurecimento intelectual e político. Aos professores Carlos Montaño e
Jussara Leite, obrigada pelas contribuições na banca, pela compreensão
principalmente nestes momentos finais!! Também aos funcionários: Luíza, Luiz
e Fábio pela atenção e disponibilidade em atender sempre aos nossos pedidos.
Aos amigos, colegas, funcionários e usuários do CEASM, em especial
aos do Programa de Criança que contribuíram com os vários momentos de
reflexão crítica e instigaram o tema desta dissertação. Andréa, Lorena,
Alessandra e Dirlene, amigas e companheiras, obrigada pela torcida!! Renata,
Lourenço e Luiz, muito obrigada pelos dados fornecidos para a pesquisa!
Aos colegas, amigos e alunos do UNIFOA que instigaram o meu desejo
de investigação nos diversos debates travados nos espaços acadêmicos.
Aos novos colegas do CRAS Tuiuti e do CRAS do Caju da Prefeitura
Municipal do Rio de Janeiro em especial às companheiras Ana e Michelle, e
ainda mais especial a Elenice!!! Muito obrigada pela compreensão, pelo
estímulo e pelo apoio, sem os quais seria praticamente impossível concluir esta
dissertação. Valeu a pena!!
Um agradecimento muito especial aos amigos que, com um enorme
carinho e atenção, contribuíram de forma essencial, urgente e indispensável
nos momentos finais desta produção: Jak, Sheila, Neide, Charles, Áurea,
Denio, Paula, Pati e Leo (primo querido!Obrigada pelo esforço e dedicação!!).
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Todo dia o sol da manhã
Vem e lhes desafia
Traz do sonho pro mundo
Quem já não o queria
Palafitas, trapiches,
farrapos
Filhos da mesma agonia
E a cidade que tem braços
abertos
Num cartão postal
Com os punhos fechados
na vida real
Lhe nega oportunidades
Mostra a face dura do mal
Alagados, Trenchtown,
Favela da Maré
A esperança não vem do
mar
Vem das antenas de TV
A arte de viver da fé
Só não se sabe fé em quê
A arte de viver da fé
Só não se sabe fé em quê
11
RESUMO
ANDRADE, Tatiana Bittencourt. A relação Estado / Sociedade Civil: Um
estudo sobre a implementação de políticas sociais no bairro maré a partir da
atuação do CEASM Rio de Janeiro, 2007. Dissertação (Mestrado em Serviço
Social)- Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2007.
Este trabalho tem como objetivo analisar a relação
Estado/Sociedade civil no que diz respeito à execução de políticas sociais no
contexto da refuncionalização das ONG no cenário brasileiro a partir da década
de 1990. A opção metodológica para a realização desta análise foi o estudo de
caso do CEASM Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, associação
civil / Organização o Governamental, que atua no bairro Maré, município do
Rio de Janeiro, desde 1998. Para tanto, foi realizada uma pesquisa documental
a fim de identificar a relação estabelecida entre o Estado e o CEASM,
especialmente, no trato às expressões da “questão social”. Os documentos
selecionados abarcam aqueles referentes aos projetos desenvolvidos pelo
CEASM, bem como produções acadêmicas cujas temáticas abordam sobre o
processo de organização civil da comunidade. O desenvolvimento deste
trabalho se deu a partir da apropriação do debate existente entre os conceitos
de Estado e Sociedade Civil, bem como da reflexão sobre política social e
ONG.
12
ABSTRACT
ANDRADE, Tatiana Bittencourt. A relação Estado / Sociedade Civil: Um
estudo sobre a implementação de políticas sociais no bairro maré a partir da
atuação do CEASM Rio de Janeiro, 2007. Dissertação (Mestrado em Serviço
Social)- Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2007.
This piece intends to analyze the correlation Civil Society/State
concerning the execution of social policies about NOG’s refuncionalization
context, since the 90’s, on Brazilian panorama. The methodological choice
regarding the full realization of such analysis was the research on CEASM’s
case, civil association/Non Governmental Organization which comprehends
Maré’s neighborhood, Rio de Janeiro city, since 1998. Therefore took place a
documental survey in order to identify the relation CEASM and the State,
mostly, handling the “social quest” expressions. The selected documents unite
those referring to CEASM’s developed projects as well as academic pieces
which themes concerns community’s civil organization process. This work
development occurred by the appropriation of the existing debate between
State’s concepts and Civil Society and the reflection about social policy and
NOG.
13
LISTA DE SIGLAS
AMANH - Associação de Moradores e Amigos de Nova Holanda
BM – Banco Mundial
CAPs – Caixas de Aposentadoria e Pensão
CEASM – Centro de estudos e Ações Solidárias da Maré
CCQ – Ciclos de Controle de Qualidade
CF/88 – Constituição Federal de 1988
FHC – Fernando Henrique Cardoso
FMI – Fundo Monetário Internacional
INPS – Instituto Nacional de Previdência Social
LBA – Legião Brasileira de Assistência Social
ONG – Organizações Não Governamentais
ONU – Organização das Nações Unidas
PT – Partido dos Trabalhadores
RA – Região Administrativa
SAM – Serviço de Assistência ao Menor
14
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO _________________________________________________16
1.º CAPÍTULO - AS POLÍTICAS SOCIAIS BRASILEIRAS ______________21
1.1 - Políticas sociais: gênese e desenvolvimento _____________________22
1.2 – Constituição das políticas sociais no contexto brasileiro ____________36
1.3 Crise do padrão de intervenção estatal nos anos 1970: o novo trato à
“questão social” ________________________________________________44
1.4 As políticas sociais brasileiras no contexto neoliberal: o retrocesso das
conquistas sociais ______________________________________________52
2.º CAPÍTULO - ESTADO E SOCIEDADE CIVIL NA EFETIVAÇÃO DAS
POLÍTICAS SOCIAIS BRASILEIRAS_______________________________68
2.1 – Um debate conceitual: Estado e Sociedade Civil __________________68
2.1.1 O debate contemporâneo em torno do conceito de Sociedade
Civil _________________________________________________________81
2.2 A configuração da categoria Sociedade Civil no Brasil a partir do final da
década de 70 _________________________________________________87
2.3 – As Organizações Não Governamentais no contexto neoliberal ______99
3.º CAPÍTULO A TRAJETÓRIA POLÍTICA DO CEASM E SUAS
ESTRATÉGIAS DE AÇÃO FRENTE ÀS EXPRESÕES DA “QUESTÃO
SOCIAL ____________________________________________________107
15
3.1 – O bairro Maré ____________________________________________107
3.1.1 – A Maré em dados __________________________________120
3.2 – A gênese e atuação do CEASM a partir do contexto dos anos 1990 __124
CONSIDERAÇÕES FINAIS _____________________________________132
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS _______________________________136
ANEXOS __________________________________________________142
16
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como objetivo analisar a relação Estado/Sociedade
Civil no que diz respeito à execução de políticas sociais no contexto da
refuncionalização das ONG no cenário brasileiro a partir da cada de 1990.
Para tanto, será desenvolvido um estudo sobre atuação do CEASM Centro
de Estudos e Ações Solidárias da Maré, no intuito de identificar a relação que o
mesmo estabelece com o Estado, especialmente no trato à efetivação das
políticas sociais.
A escolha pela temática “Relação Estado / sociedade civil: um estudo
sobre a implementação de políticas sociais no bairro maré a partir da atuação
do CEASM” foi construída a partir da experiência profissional adquirida
principalmente no período (2005 a 2007) de atuação no CEASM como
Assistente Social de dois programas desenvolvidos e executados pela referida
associação civil / ONG, a saber: Escola de Dança da Maré e Programa de
Criança Petrobrás na Maré; concomitantemente, a inserção no curso de
Mestrado em Serviço Social, da Escola de Serviço Social da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, no ano de 2004, e conseqüente curso nas
disciplinas a fins com a área de pesquisa voltada para as Políticas Sociais.
Na realidade, a minha inserção profissional na referida instituição não se
deu mediante uma escolha natural, ou mesmo por conta de uma opção
claramente definida, ao contrário. A visão cientificamente pouco aprofundada
construída até o momento gerava resistências ao nculo de trabalho em
17
organizações não governamentais. Entretanto, postas as necessidades
objetivas e a disponibilidade em encarar desafios profissionais, a proposta de
trabalho foi aceita na referida associação civil. Ocorreu que, o impacto que me
foi causado durante os momentos de aproximação com a proposta de atuação
da instituição, bem como, com alguns profissionais integrantes da mesma, para
a minha surpresa, foi bastante positiva, tendo em vista a preocupação
evidenciada pelo CEASM em fazer despertar, de alguma maneira, a reflexão
crítica nos indivíduos (tanto os profissionais, quanto os usuários) envolvidos
com nos seus programas e projetos. Um exemplo desta frente de ação é o
estímulo aos mareenses de criação ou fortalecimento da identidade cultural de
pertencimento à Maré, de forma a superar a visão esteriotipada da população
em geral de identificação e valorização dos aspectos estritamente negativos e
de ausência, existentes nas comunidades da Maré, que prevalece na
representação construída pela população externa e pelos próprios moradores.
Tais elementos me fizeram aproximar aspectos da atuação do CEASM a certas
características do perfil de atuação de instituições da sociedade civil peculiares
da década de 1980, além daqueles característicos da década de 1990 (os
quais não me causaram surpresa).
O interesse em analisar a atuação do CEASM, foi gerado a partir do
processo de refuncionalização (em especial no que concerne à relação Estado
/ Sociedade Civil frente à intervenção nas expressões da “questão social
1
”) das
ONG no cenário brasileiro a partir da década de 90, englobando tanto aquelas
1
O conceito sobre “questão social” que embasará a construção do conteúdo deste trabalho
será a seguinte: “Por ‘questão social’, no sentido universal do termo, queremos significar o
conjunto de problemas políticos, sociais e econômicos que o surgimento da classe operária
impôs no curso da constituição da sociedade política. Assim, a ‘questão social’ está
fundamentalmente vinculada ao conflito entre o capital e o trabalho. (CERQUEIRA FILHO
apud. NETTO, 2005, p. 17).
18
ONG que atuaram no período de reabertura política e do processo de
constituinte da década de 80, de forma representativa, numa perspectiva
crítica, de denúncia e por isso mesmo, articulada aos movimentos sociais; bem
como aquelas criadas na década de 90, cuja conjuntura política do país,
contrariamente à década anterior, apresentava-se desfavorável à atuação
crítica e questionadora dos movimentos sociais, em decorrência da instauração
do projeto ideológico neoliberal como modelo norteador das relações sociais do
sistema capitalista, onde se insere a organização do Estado e, a reboque, da
sociedade civil.
A identificação de características no perfil de atuação do CEASM
próximas tanto das ONG que se destacaram na década de 80, quanto,
contraditoriamente, ao perfil típico daquelas que se proliferaram a partir da
década de 90, cujas ações estão votadas, em sua maioria, para a execução
direta de políticas sociais em “parceria” com o Estado (tornando-as, portanto,
funcionais ao projeto neoliberal), instigaram-me a problematizar com rigor
teórico a relação estabelecida entre o CEASM e o Estado, no que se refere à
execução das políticas sociais, desenvolvidas por esta ONG no Bairro Maré, a
partir da sua criação.
A opção metodológica para a realização desta análise foi o estudo de
caso do CEASM, que atua no bairro Maré, município do Rio de Janeiro desde
1998. Apesar de ter sido fundada em 1998, seus fundadores possuem uma
possui uma longa trajetória política de participação e mobilização no interior de
movimentos sociais das comunidades da Maré, os quais certamente
contribuíram para a definição do seu direcionamento político e ideológico.
19
Para tanto, foi realizada uma pesquisa documental a fim de identificar a
relação estabelecida entre o Estado e o CEASM, especialmente, no trato às
expressões da questão social”, via efetivação de políticas sociais. Os
documentos selecionados englobam aqueles referentes às ações
desenvolvidos pelo CEASM, bem como produções acadêmicas desenvolvidas
sobre temáticas que abordam o processo de organização civil da comunidade.
O desenvolvimento deste estudo se deu mediante a apropriação do
polêmico debate conceitual acerca do Estado e da sociedade civil, bem como
em torno da reconstrução dos fatos históricos para a constituição das políticas
sociais brasileiras e das ONG no contexto das décadas de 1980 e da década
de 90 até os dias atuais.
No primeiro capítulo será desenvolvido um estudo sobre o processo de
efetivação das políticas sociais brasileiras a partir da contextualização da
funcionalidade do Estado para com o sistema capitalista de produção, no
contexto do seu atual estágio monopolista. Diante das expressões da “questão
social”, o Estado intervém, através da implantação e implementação das
políticas sociais as quais se constituem, portanto, como instrumento de
intervenção estatal no trato às expressões da “questão social”.
No capítulo II será realizado um importante debate conceitual em torno
das concepções acerca do Estado e da sociedade civil, de forma a abarcar
algumas polêmicas existentes na atualidade sobre tais conceitos. O cerne
desta discussão está profundamente relacionado com a emergência do projeto
neoliberal, que impôs ao Estado um processo de refuncionalização em todo
seu âmbito, e obviamente, inclusive no que diz respeito a sua intervenção nas
20
expressões da questão social”. Será discutida a refuncionalização dos
organismos da sociedade civil (dentre estes, as ONG), que ocorre a reboque d
reorganização do Estado, fazendo-se condição necessária à concretização das
determinações do projeto neoliberal. Nas especificidades do cenário brasileiro,
será desenvolvida a polêmica discussão sobre a suposta dicotomia existente
entre o Estado e a sociedade civil. Entretanto, a ideologia neoliberal se apropria
de tais referências distorcidas em prol da desresponsabilização do Estado no
trato às expressões da “questão social”, acarretando assim o desmantelamento
das políticas sociais.
O terceiro e último capítulo constitui a apresentação e análise teórica em
torno dos dados coletados na pesquisa documental realizada no CEASM.
Inicialmente serão sinalizados os principais fatos que marcaram o processo de
construção histórica do bairro Maré, desde as suas primeiras ocupações até o
reconhecimento do governo municipal sobre a sua existência, e posteriormente
à caracterização do espaço urbano como status de bairro.
Dada a relevância teórica e política do tema proposto, acreditamos na
contribuição deste estudo em torno do debate em torno da efetivação e
ampliação dos direitos sociais.
21
CAPÍTULO I
AS POLÍTICAS SOCIAIS BRASILEIRAS
O conteúdo deste capítulo priorizará a análise da fase monopolista do
sistema capitalista, cuja característica marcante é a agudização da
concentração do capital e, por sua vez da “questão social”
2
, mediante a
intensificação da exploração da classe trabalhadora e da interferência política e
econômica do Estado na estrutura da sociedade, sob a determinação dos
grandes capitais.
Esta análise será realizada a partir da contextualização da
funcionalidade do Estado para o capital, desde a passagem do estágio
capitalista concorrencial para o monopolista dos tempos atuais, pontuando as
mudanças conjunturais de âmbito social, político e econômico, ocorridas,
enfatizando os aspectos da intervenção estatal na área social.
Após um período de grande expansão do capital monopolista, sob a
égide do modelo fordista-keynesiano (que implicava em altos índices de
produtividade e uma intervenção direta do Estado através de políticas sociais
3
),
uma intensa crise econômica é detonada
4
pela crise do petróleo na década de
70, eclodindo intensas transformações societárias a partir dos anos 80 e 90
(NETTO, 1996) dentre elas, a refuncionalização das políticas sociais,
2
Segundo Iamamoto e Carvalho, “a questão social não é senão as expressões do processo de
formação e desenvolvimento da classe operária e seu ingresso no cenário político da
sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado.
É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a
burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção, mais além da caridade e
repressão. (1998, p. 77)
3
Ver Faleiros (1980).
4
Segundo Netto (1996), tomando como referência o pensamento do economista marxista
Ernest Mandel, a própria dinâmica contraditória da sociedade capitalista gesta crises
econômicas (identificadas por Marx como crises cíclicas). Assim, para os autores, existe uma
clara diferença entre gestão da crise e detonação de uma crise.
22
conforme explicaremos a seguir. Essa discussão faz-se necessária, na medida
em que o objeto de estudo dessa dissertação situa-se no marco da efetivação
das políticas sociais, a partir da ampliação do papel de intervenção das
Organizações Não Governamentais no trato direto às expressões da “questão
social” no Brasil.
1.1 - Políticas sociais: gênese e desenvolvimento
A discussão sobre as políticas sociais nos remete ao entendimento de
que o capitalismo se reproduz mediante a configuração de fases sucedâneas.
Até o século XVI: capitalismo “primitivo ou de manufatura”; até o século XIX:
“clássico ou de livre concorrência”; até a atualidade: “monopolista” (BOCCARA,
apud BEHRING, 2002).
Marx (2007) aponta que o desenvolvimento da divisão social do trabalho
revela uma determinada forma de desenvolvimento das relações de
propriedade e, por conseguinte, de constituição das classes sociais. O modo de
produção capitalista se caracteriza então pela existência de 02 classes sociais
fundamentais: a burguesia, que detém a propriedade privada dos meios de
produção; e o proletariado, que vende a sua força de trabalho à burguesia. O
processo produtivo que daí decorre requer uma exploração da força de
trabalho, gerando acúmulo de riqueza a partir da apropriação privada pela
burguesia do excedente de trabalho produzido pelo trabalhador (mais-valia).
Essa riqueza socialmente produzida (capital) se concentra nos proprietários
dos meios de produção. Assim, a concentração de riquezas em prol da
23
burguesia está condicionada à miserabilidade e pauperização da classe
trabalhadora. Nesta perspectiva, as relações entre estas classes sociais são
permeadas de conflitos devido aos seus interesses antagônicos (NETTO,
2005). Os níveis de dominação e exploração da classe trabalhadora estão
submetidos a uma luta pela garantia das satisfações dos distintos (e
antagônicos) interesses das classes sociais. Neste contexto, a gênese da
“questão social” advém da formação e das manifestações da classe
trabalhadora, expressas na luta pela garantia dos seus interesses e,
conseqüentemente, da sua inserção política na sociedade. Desta forma,
atender a determinadas demandas da classe trabalhadora quando estas
constituem ameaças à acumulação e lucratividade, foi uma estratégia adotada
pela classe dominante com vistas a assegurar a expansão do capital
monopolista. Assim, na busca pela conquista da legitimidade política, o Estado,
segundo Netto (2005), “comitê executivo da burguesia monopolista”, diante das
demandas classistas, vivencia significativas mudanças no seu papel sobre a
estrutura da sociedade, ampliando assim suas bases de legitimação sócio-
política. Entretanto, tais intervenções apresentam-se de forma profundamente
diferenciada nos estágios capitalistas.
De fato, para assegurar sua produção e reprodução, o sistema
capitalista, ao longo de seu desenvolvimento histórico, constrói diversificadas
formas de acumulação de riquezas, envolvendo interferências na sua base
material, no gerenciamento produtivo, e nas relações sociais entre o Estado, o
mercado e a classe trabalhadora. Devido às contradições inerentes ao próprio
sistema, provocadas também pelos distintos interesses entre as classes
sociais, e pela elevada concentração de renda de uma em decorrência da
24
pauperização da outra, gestam-se as crises e as estratégias de superação das
mesmas. A instituição dos estágios capitalistas e dos regimes de crescimento
do sistema produtivo, portanto, estão submetidos à gica da produção e
reprodução do capital e, conseqüentemente, da superação dos períodos
depressivos que venham a eclodir. Assim ocorreu, por exemplo, com a
configuração dos estágios capitalistas: de manufatura, de livre concorrência e
monopolista, bem como, no contexto deste último, as crises de 1929 e da
década de 1970.
A forma anárquica e desorganizada da disputa entre os capitais na
intensa busca pelo lucro existente no período do capitalismo concorrencial,
gera impasses no processo produtivo que lhes são próprios, tornando
necessária a utilização de recursos externos à estrutura de mercado para
garantir a estabilidade dos “superlucros” dos monopólios. É a partir deste
contexto que a função do Estado é reestruturada, pois, se até o estágio
concorrencial, sua atuação limitava-se a instâncias exteriores ao processo
produtivo (de forma a garantir condições favoráveis para a produção e
reprodução do capital, intervindo de maneira pontual e estratégica), no estágio
monopolista, diante das demandas da estrutura capitalista (incluindo aquelas
postas pela classe trabalhadora), o papel do Estado é redefinido e alargado,
com determinações políticas e econômicas explicitamente definidas no
processo produtivo.
É pertinente destacar que no estágio monopolista, a competitividade do
sistema capitalista manifesta-se sob outros aspectos: a livre concorrência’ é
convertida em uma luta de vida ou morte entre os grupos monopolistas e entre
eles e os outros, nos setores ainda não monopolizados.” (NETTO, 2005, p. 23).
25
O domínio econômico mantém-se sob o comando dos monopólios. Neste
contexto, a ação monopolística ultrapassa limites territoriais,
internacionalizando a produção, determinando o progresso e o investimento
nas inovações tecnológicas.
Acerca das modificações no setor econômico ocorridas no interior do
modo de produção capitalista, pode-se observar que, inversamente ao que
ocorreu no capitalismo concorrencial (no qual prevalecia a uniformização da
taxa de lucros), no capitalismo monopolista uma elevação das taxas de
acumulação do capital, atrelada a um maior investimento no comércio exterior,
a implantação de avanços tecnológicos e a um conseqüente aumento
extensivo do exército industrial de reserva (Ibid.).
A estratégia monopolista de capitalização mediante o domínio de
mercados é permeada de contraditoriedades, assim como o próprio sistema
capitalista, pois sua expansão está atrelada à contra-tendências inerentes ao
processo de acumulação e valorização do capital. O diferencial existente no
referido estágio situa-se na urgência pela criação de instrumentos para além
dos vetores econômicos. É exatamente neste cenário, conforme pontuado,
que o papel do Estado é remodelado, a fim de garantir a estabilidade da
estrutura capitalista.
O Estado sofre um redimensionamento de suas funções políticas e uma
incorporação de novas funções econômicas, demarcando, assim, um papel
central na ordem capitalista. Dentre as novas funções econômicas, pode-se
distingui-las entre aquelas diretas e as indiretas:
O elenco de suas funções econômicas diretas é larguíssimo.
Possuem especial relevo a sua inserção como empresário
nos setores básicos não rentáveis (nomeadamente aqueles
que fornecem aos monopólios, a baixo custo, energia e
matérias-primas fundamentais), a assunção do controle de
26
empresas capitalistas em dificuldades (trata-se, aqui, da
socialização das perdas, a que freqüentemente se segue,
quando superadas as dificuldades, a reprivatização), a
entrega aos monopólios de complexos construídos com
fundos públicos, os subsídios imediatos aos monopólios e a
garantia explícita de lucro pelo Estado. As indiretas não
menos significativas; as mais importantes estão relacionadas
às encomendas/compras do Estado aos grupos
monopolistas, assegurando aos capitais excedentes
possibilidades de valorização; não se esgotam aí, no entanto
recordem-se os subsídios indiretos, os investimentos
públicos em meios de transporte e infra-estrutura, a
preparação institucional da força de trabalho requerida pelos
monopólios e, com saliência peculiar, os gastos com
investigação e pesquisa. A intervenção estatal macroscópica
em função dos monopólios é mais expressiva, contudo, no
terreno estratégico, onde se fundem atribuições diretas e
indiretas do Estado: trata-se das linhas da direção do
desenvolvimento, através de planos e projetos de médio e
longo prazo; aqui, sinalizando investimentos e objetivos, o
Estado atua como instrumento de organização da economia,
operando notadamente como um administrador dos ciclos de
crise (NETTO, 2005, p. 25 e 26, grifos nossos).
A “integração orgânica” residente entre aparelhos estatais e
estabelecimentos privados dos monopólios torna, portanto, explícita a
subordinação do Estado aos princípios capitalistas nas instâncias política e
econômica. A constituição do estágio monopolista atribuiu ao Estado o dever
de instituir mudanças sobre sua própria instrumentalidade - compromissada
com a ordem burguesa, e sobre o sistema a que está envolvido. Estas
mudanças implicam também em alterações atribuídas às intervenções políticas
do Estado, conferindo-lhe uma autonomia deliberativa que transcende os
espaços institucionais de representação legal do poder público.
Vale pontuar um outro componente diferenciador do estágio monopolista
referente ao gerenciamento direto do Estado no trato à manutenção e
reprodução da força de trabalho: enquanto na fase do capitalismo concorrencial
a ingerência estatal limitava-se à repressão coercitiva das manifestações dos
trabalhadores fruto conseqüente da exploração da força de trabalho e à
27
manutenção da estrutura relacional da ordem burguesa estabelecida; no
capitalismo monopolista, o Estado passa a ter uma participação contínua, uma
colocação determinante no que concerne ao controle da classe trabalhadora
ocupada e excedente através, por exemplo, dos investimentos em proteção
social. Além destas atribuições, ao Estado cabe também prover sua própria
funcionalidade na dinâmica do sistema capitalista, exercendo, desta maneira,
influências sobre a regulação dos níveis de consumo e absorção da força de
trabalho. Este desempenho estatal tem uma relevância significativa para o
sistema capitalista, pois condiciona a garantia da acumulação e valorização do
capital (NETTO, 2005).
Desta forma, as contradições inerentes à dinâmica do sistema capitalista
estão expressas nas relações existentes no interior da classe burguesa, bem
como entre esta e nos termos de Antunes (1998) a “classe-que-vive-do-
trabalho”. O Estado, utilizado pela ordem burguesa como instrumento funcional
ao capitalismo monopolista, incorpora a modalidade política democrática (até o
nível necessário), a fim de conquistar legitimidade junto ao conjunto dos
trabalhadores que, por sua vez, pode ou não ter seus interesses garantidos
pela intervenção estatal. Assim, o padrão de respostas estatais às
reivindicações trabalhistas não ocorre mediante um “ordenamento natural” da
sociedade. O atendimento do Estado a tais demandas, obviamente, prioriza a
garantia do acréscimo de recursos financeiros ao bloco hegemônico.
É no cenário dos monopólios, permeado de tensionamentos intra e extra
classes sociais, que a “questão social” passa a ser elemento de intervenção
contínua e sistemática do Estado. Para tanto, a reconfiguração da atuação
política e econômica estatal incidiu sobre a “questão social”, tornando-a objeto
28
da sua ação direta, por intermédio da implantação das políticas sociais. Se ao
Estado cabe o aprimoramento de suas funções políticas e econômicas para a
manutenção da ordem burguesa, o gerenciamento sobre as políticas sociais
lhe exige uma condução que satisfaça às prerrogativas monopolistas (em
primeiro plano) e às demandas do movimento operário, que se organiza como
classe, garantindo, nesta contraditória relação, a sustentação do consenso e
contentamento da classe trabalhadora com a oferta de serviços sociais. Assim,
... para exercer, no plano estrito do jogo econômico, o papel
de ‘comitê executivo’ da burguesia monopolista, ele [o
Estado] deve legitimar-se politicamente incorporando outros
protagonistas sócio-políticos. O alargamento de sua base de
sustentação e legitimação sócio-política, mediante a
generalização e a institucionalização de direitos e garantias
cívicas e sociais, permite-lhe organizar um consenso que
assegura o seu desempenho. (NETTO, 2005, p. 27, grifos do
autor).
Vale destacar que o nível de organização e luta da classe operária tem
um valor fundamental e definidor na elaboração e efetivação das políticas
sociais públicas, podendo influenciar ou não na garantia de plataformas
reivindicativas. A implantação das políticas sociais está, portanto, vinculada ao
potencial de enfrentamento e exigência do operariado sobre a classe
dominante.
Entretanto, faz-se necessário observar que, no capitalismo monopolista,
a intervenção do Estado no trato à “questão social” ocorre de forma
fragmentada, através da introdução não da política social, mas de políticas
sociais direcionadas, supostamente, a atuar no enfrentamento das expressões
da “questão social”, (como aquelas pautadas na área da saúde, da habitação,
da educação, da miserabilidade social). Num sentido contrário, enfrentar a
29
“questão social” em sua totalidade remete a contextualizá-la na ordem do
sistema capitalista, explicitando sua essência e as contradições inerentes à
relação capital/trabalho. Contudo, reverter as bases da interferência estatal a
este entendimento não favorece a manutenção e expansão do capitalismo
(NETTO, 2005). O olhar e o agir residual sobre a “questão social” particulariza
e individualiza a totalidade social, dificultando as possibilidades de
transformação social, ou seja, somente desta forma as políticas sociais são
funcionais à manutenção da ordem capitalista.
Mesmo sob caráter residual, cabe reforçar aqui a ampliação das funções
do Estado burguês no capitalismo monopolista, principalmente após a crise de
1929, quando o modelo de acumulação do capital sofreu uma crise recessiva
nas suas bases estruturais, a qual gerou profundos desdobramentos nas áreas
de intervenção estatal.
Ocorreu, neste período, uma dilatação na introdução da força de
trabalho ao sistema produtivo e a conseqüente elevação na taxa de mais-
valia e uma redução na lucratividade dos mercados, devido à baixa nos
valores dos produtos. Ao contrário do que previam os capitalistas, a diminuição
do exército industrial de reservas desencadeou avanços na organização dos
trabalhadores, interferindo negativamente na produção da mais-valia. Outros
fatores também contribuíram para a queda na taxa de mais-valia e para a
existência da crise: a diminuição da taxa de lucros; o agravamento da
concorrência e da especulação e, principalmente, a desaceleração do
desenvolvimento no setor produtivo. Behring e Boschetti (2007) sustentam que,
dentre as medidas adotadas pelo capitalismo mundial para estancar a crise, a
expansão do papel do Estado foi basilar.
30
A “revolução keynesiana”, protagonizada pela experiência americana do
New Deal, emergiu como solução para a crise de 1929/1932, caracterizada por
uma nova modalidade do processo de acumulação do capital. Desta forma,
... cabe ao Estado, a partir de sua visão de conjunto, o papel
de restabelecer o equilíbrio econômico, por meio de uma
política fiscal, creditícia e de gastos, realizando
investimentos ou inversões reais que atuem nos períodos de
depressão como estímulo à economia. (...) Tal intervenção
estatal para fugir da armadilha recessiva provocada pelas
decisões dos agentes econômicos individuais, com destaque
para o empresariado, tinha em perspectiva um programa
fundado em dois pilares: pleno emprego e maior igualdade
social, o que poderia ser alcançado por duas vias a partir da
ação estatal: 1. Gerar emprego dos fatores de produção via
produção de serviços públicos, além da produção privada; 2.
Aumentar a renda e promover maior igualdade, por meio da
instituição de serviços públicos, dentre eles as políticas
sociais. (BEHRING e BOSCHETTI, 2007, p. 85-86, grifos
nossos).
Nos Estados Unidos, o New Deal foi desenvolvido com o propósito de
superar a recessão, os altos índices de desemprego e a miserabilidade
decorrentes da crise de 29, além de retomar o crescimento econômico. A
principal estratégia deste modelo foi a intervenção do Estado nos vetores
social, político e econômico, a fim de restabelecer o progresso capitalista. Tal
experiência também influenciou países europeus para a saída da crise. No
Brasil, as repercussões da crise de 1929 atingiram significativamente as áreas
da economia e da política, conforme veremos mais à frente.
O emprego das políticas sociais, neste cenário, representou uma medida
estratégica do sistema capitalista para desinstalar a crise. Além disso,
significou também um importante pacto firmado entre classes sociais
(operariado e burguesia) nos anos seguintes. As políticas sociais se proliferam
gradualmente, intensificando-se no pós-Segunda Guerra Mundial, na transição
31
do “imperialismo clássico” ao “capitalismo tardio
5
ou “maduro”, demarcando
mudanças estruturais na sociedade capitalista. A denominação conferida ao
Estado caracterizado pelo investimento no bem estar da sociedade foi Welfare
State – ou Estado de Bem-Estar Social.
Importante assinalar que o modelo produtivo vigente neste contexto era
o denominado fordista, caracterizado por um sistema rígido e verticalizado,
pela produção em série e em massa e pela rigidez na divisão de tarefas.
Paradoxalmente, foi também marcado pelo avanço da organização do
movimento operário, pois estabeleceu alterações nas relações sociais e
políticas existentes entre as classes sociais. Aqui reside a interseção entre o
fordismo e o keynesianismo, dado o padrão intervencionista do Estado.
A simbiose desenvolvida entre ambos desencadeou as bases para a
consolidação das três décadas consecutivas de grande expansão do
capitalismo. Fenômeno este também denominado de trinta anos gloriosos,
devido ao intensivo processo de acumulação de capital, ao crescimento das
taxas de juros, ao elevado nível de internacionalização do capital e à melhora
nas condições de vida da classe trabalhadora (BEHRING e BOSCHETTI, op.
cit.).
As funções do Estado neste período estavam comprometidas com o
investimento no capital industrial e com a reprodução da força de trabalho,
posto que, de acordo com as idéias norteadoras do regime fordista de
produção, para alcançar a aceleração do sistema produtivo, seria necessário
atingir a expansão dos mercados e assegurar à massa trabalhadora a
5
O capitalismo tardio ou maduro caracteriza-se por um intenso processo de monopolização do
capital, pela intervenção do Estado na economia e no livre movimento do mercado,
constituindo-se oligopólios privados (empresas) e estatais (empresas e fundações públicas), e
expande-se após a crise de 1929-1932 e, sobretudo, após a Segunda Guerra Mundial.
(BEHRING e BOSCHETTI, 2007, p. 82-83).
32
manutenção de um determinado padrão de vida que lhe garantisse participação
no mercado consumidor. Por este motivo é que o estabelecimento de acordos
coletivos, com a representação sindical da classe operária (a exemplo da
sustentação de um padrão salarial), se fazia funcional ao sistema capitalista.
Pode-se constatar, portanto, a significância do papel do Estado nas relações
entre o empresariado e a classe trabalhadora para a sustentabilidade do
desenvolvimento capitalista. Nas referidas relações, a intervenção estatal se
concretizava mediante a promoção ampliada de políticas públicas e serviços
sociais para o operariado, pois, desta forma, seria possível direcionar parte da
renda do trabalhador ao consumo de bens, favorecendo, assim, a circulação e
o acúmulo do capital. A implantação de tais políticas e serviços funcionou como
um investimento em “salários indiretos”, sob a administração estatal, destinado
à classe trabalhadora, interferindo positivamente na ampliação do seu poder de
compra (IAMAMOTO, 2001).
Embora tenha sido estratégico para a expansão do modo de produção
capitalista, não se pode negar a contribuição do padrão fordista-keynesiano
para avanços na área social. O Welfare State é a expressão político-econômica
desse processo.
Esping-Andersen (1991), analisa o desenvolvimento do Welfare State
mediante resultados de pesquisa realizada em países de capitalismo
avançado, cujos dados indicam que seu experimento não ocorreu da mesma
forma em todas as nações. Mesmo entre os próprios países de primeiro mundo
houve contradições. A dependência dos indivíduos às relações de mercado,
bem como os investimentos estatais na efetivação dos direitos sociais
33
determinam os níveis de “desmercadorização
6
”. Entretanto, a real consolidação
desta não se limita à mera existência de serviços sociais (a exemplo da
previdência e assistência sociais). A questão se funda nas reais condições de
“emancipação” e conseqüente independência dos indivíduos dos ditames
mercantis. Desta forma, a consolidação dos direitos desmercadorizados”
ocorre de forma diferenciada, assumindo características particulares de
modelos de Welfare State nos referidos países.
O autor apresenta três modelos dominantes de Welfare State
contemporâneos nos países mais desenvolvidos:
o liberal (predominante nos Estados Unidos, no Canadá e na
Austrália), caracterizado por políticas restritas, focalizadas,
meritocráticas e não-universalistas, direcionadas à população de
baixa renda e conseqüentemente mais necessitada de serviços
sociais, cuja sobrevivência depende unicamente da venda da sua
força de trabalho; por funções estatais atreladas aos interesses
mercadológicos, que visam reduzir a garantia dos mínimos sociais
e assegurar a produtividade da previdência privada e pela
fragmentação da classe trabalhadora mediante a concessão
diferenciada corporativa de benefícios (e serviços sociais);
o conservador e corporativista (fundamentado no modelo
bismarckiano, adotado pela Alemanha, Áustria, França e Itália),
por meio do qual a oferta dos direitos sociais ocorre de forma
significativamente restrita, cujos critérios de elegibilidade estão
atrelados a valores tradicionais e religiosos. Neste modelo, o
6
Segundo o autor este fenômeno “ocorre quando a prestação de um serviço é vista como uma
questão de direito ou quando uma pessoa pode manter-se sem depender do mercado.” (Ibid.,
p. 102).
34
papel do Estado na administração dos benefícios e serviços
sociais é predominante em relação ao do mercado,
caracterizando assim os serviços de previdência privada, por
exemplo, como sendo secundários em comparação aos públicos
estatais; e
o social-democrata, marcado pela implantação de políticas sociais
universalistas, cuja amplitude distributiva se estende às camadas
médias, garantindo não apenas os mínimos sociais, mas o pleno
usufruto dos direitos antes concebidos para as classes
favorecidas. A ênfase deste modelo encontra-se na garantia do
bem estar social para toda a população, e não para uma classe
em detrimento da outra, anulando assim a disputa entre o Estado
e o mercado na oferta dos serviços sociais. É válido observar que,
ao contrário dos modelos anteriores, o social-democrata prioriza a
garantia do pleno emprego, em relação às políticas de
transferência de renda, conferindo-lhe um caráter de direito social
(ESPING-ANDERSEN, 1991).
Faz-se necessário destacar, contudo, que: a) a existência de Welfare
State “desmercadorizantes” é rara e recente, visto que, em se tratando dos
rendimentos e/ou benefícios sociais
7
, implicam uma efetiva liberdade aos
indivíduos
8
. Em geral, mesmo os valores dos benefícios se aproximando dos
salários (a partir do final da década de 60 e anos 70), ocorre que além da curta
7
A exemplo de auxílio doença, pensão, aposentadoria, licença-maternidade, licença para
educar os filhos, licença educacional, seguro-desemprego.
8
Assegurando-lhes, por exemplo, autonomia para o trabalhador decidir quando retornará ao
trabalho em caso de afastamento por situação de ausência de saúde; garantindo-lhes a
permanência do vínculo de trabalho, sem lhes causar danos nos rendimentos ou benefícios
(Ibid.).
35
durabilidade, os benefícios são concedidos mediante exigências burocráticas
as quais acabam por retardar o processo de beneficiamento; b) os modelos de
Welfare State acima apresentados não se encontram unicamente e puramente
representados em determinados locais. Em um mesmo Estado-nação é
possível identificar características peculiares a mais de um dos referidos
modelos.
Em se tratando dos países periféricos, onde o processo de
industrialização se deu mediante uma modernização conservadora, o Estado
exerceu um papel fundamental para a consolidação do sistema de acumulação
do capital. Nestas conjunturas, o Welfare State não se constituiu como modelo
característico de intervenção estatal. Segundo Abreu (1997), em geral, nestes
países, o Estado foi reestruturado pela nata oligárquica e patrimonialista da
sociedade, aliada à tecnocracia estatal e a grupos militares, no intuito de torná-
lo funcional ao progresso capitalista. Tal direção somente tornou-se possível
em decorrência da própria onda de industrialização capitalista e do
enfraquecimento dos movimentos operários e socialistas e dos ideais liberais.
Assim ocorreu com o Estado brasileiro, que dos anos 1930 aos anos 70,
adotou um regime de regulação no plano econômico e das relações sociais,
assinalado por um perfil corporativista e patrimonialista, o qual visava à
reestruturação econômica, política e social do país com vistas a atender às
exigências do sistema produtivo.
36
1.2 – Constituição das políticas sociais no contexto brasileiro
O surgimento das políticas sociais no Brasil, não se deu no mesmo
período histórico que os países de capital mais avançado, mesmo porque o
desenvolvimento do próprio modo de produção capitalista se deu também de
maneira diferenciada neste país
9
.
No século XIX, na contramão da disseminação do ideário do liberalismo
nos países ocidentais, o país ainda mantinha o regime escravista e, portanto,
não vivenciou as tensões decorrentes da organização dos trabalhadores, sua
constituição como classe e a radicalização de suas lutas. Somente no final
deste século, especificamente em 1889, identificam-se as primeiras conquistas
de um grupo restrito de trabalhadores à pensão e quinze dias de férias, cuja
expansão vai ocorrer gradualmente para outros setores. Dois anos depois é
criada a primeira Legislação para a assistência à infância que irá regulamentar
o trabalho infantil no Brasil. A “questão social” irá se manifestar no campo
político no início do século XX, a partir das primeiras greves operárias e das
primeiras legislações trabalhistas, quando do surgimento dos primeiros
sindicatos, sob forte influência do arco-sindicalismo (CARVALHO &
IAMAMOTO, 1998).
9
Segundo Fernandes (apud BEHRING, 2003a), a expansão do modo de produção capitalista
no território brasileiro se mediante três fases: a primeira situada no período equivalente
entre a reabertura dos portos até metade dos anos 1860; a segunda compreende o momento
da gênese e desenvolvimento do “capitalismo competitivo” (de 1860 a 1950), quando a
industrialização passa a ser o alicerce da economia brasileira; e por fim a terceira, demarcada
pela incursão do capitalismo monopolista, via investimentos comerciais, financeiros e
industriais, e que, a partir do pós-64, toma proporções determinantes. Assim, o autor afirma
que o modo de produção capitalista somente entrou em curso no país no período posterior a
1950, quando as bases da economia tomam outra direção: da agro-exportação para a
industrialização. È nesta segunda fase do capitalismo que o modo de produção capitalista
consolida-se. Porém ao contrário de que aparenta ter sido, o poder estatal não dispunha de
autonomia política para direcionar os investimentos econômicos e comerciais.
37
Inicialmente na agricultura e indústrias rurais, posteriormente os
trabalhadores urbanos, alterando significativamente o cenário do trabalho. Em
1911, a jornada de trabalho é regulamentada para 12 horas diárias. Em 1923,
ocorre a aprovação da Lei Eloy Chaves, “que instituiu a obrigatoriedade de
criação de Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAP) para algumas categorias
estratégicas de trabalhadores, a exemplo dos ferroviários e marítimos, dentre
outros.” (Ibid., p. 80). Entretanto, o formato das CAP’s permanecerá como
modelo na política social que se segue no decorrer do século, somente sendo
reestruturadas na Constituição de 1988.
Conforme salientado anteriormente, em 1929 o capitalismo atravessou
uma crise mundial gerando rebatimentos no Brasil: houve uma alteração na
composição da classe dominante, com a inserção de novas oligarquias
agrárias e dos capitalistas industriais; uma modificação expressiva e inovadora
no setor produtivo em prol da manutenção e consolidação do sistema
capitalista, da classe trabalhadora; além das mutações no papel do Estado, o
qual, adjetivado como “Estado de compromisso”, investiu em um processo de
modernização conservadora e na conquista da adesão e colaboração da classe
trabalhadora para a emersão do “Estado social”, sob a influência da conjuntura
internacional. Este período marcou o processo inicial de implantação das
políticas sociais no país, balizadas por um perfil autoritário, centralizador,
técnico-burocrático, paternalista e meritocrático.
Este processo de reestruturação do sistema produtivo experimentado
pelo país a partir da década de 30 (início do governo de Getúlio Vargas),
apresentou particularidades em torno da regulação do Estado no plano
econômico e das relações sociais. No primeiro, sua intervenção voltou-se para
38
o desenvolvimento industrial do país, ao invés de privilegiar o investimento nas
importações, priorizando os setores produtivos que lhe representasse
politicamente algum interesse. no plano das relações sociais, suas ações
estiveram direcionadas à intensificação do controle das classes subalternas,
via políticas de tentativas de consentimento (ideologia do pacto social) e
coerção (repressão da atividade sindical)
10
. A intenção era adestrar os
trabalhadores assalariados através da qualificação (para atender às
necessidades do mercado industrial), do convencimento e aceitação passiva às
exigências postas pelo processo de acumulação do capital. Para tanto, a
constituição de um proletariado com o referido perfil torna-se estratégia crucial.
A oferta de serviços sociais estava vinculada à idéia de concessão por parte
das elites dominantes e do Estado, intensificando assim a dominação
ideológica da força de trabalho. Ao Estatal, portanto, cabia exercer a coerção
sobre a organização de sindical, bem como cooptação de trabalhadores e
sindicalistas; o investimento em políticas de qualificação profissional, de
previdência social e de seletividade na concessão de benefícios sociais
(ABREU, 1997).
Getúlio Vargas, ao longo de seu governo (1930 a 1937 governo
presidencialista; de 1937 a 1945 – Estado Novo), centrou sua atuação na
busca por uma relação harmoniosa entre os atores da esfera produtiva, criou
condições favoráveis para a regulamentação entre as relações entre capital e
trabalho, garantindo desta forma a reprodução ampliada do capital que
sinalizava a emergência no desenvolvimento industrial, e da classe
trabalhadora que se mobilizava em prol de melhorias nas condições de vida e
10
Ver Carvalho & Iamamoto (1998).
39
de trabalho (SANTOS, 1994; COUTO, 2006). Neste período, a intervenção do
governo na esfera social limitou-se a constituir uma política de proteção social
enfatizada no campo previdenciário, com atenção voltada especificamente para
o trabalhador assalariado. Mais especificamente no segundo momento (1937 a
1945), as políticas sociais dispunham de caráter centralizador, autoritário e
técnico burocrático. Este quadro caracteriza o que Santos (op. cit.) denomina
de “cidadania regulada”, instaurada pelo Estado Novo, pautada no conceito de
cidadania
... cujas raízes encontram-se não em código de valores
políticos, mas em sistema de estratificação ocupacional (...)
definido por uma norma legal. Em outras palavras, são
cidadãos todos aqueles membros da comunidade que se
encontram localizados em qualquer uma das ocupações
reconhecidas e definidas em lei. A extensão da cidadania se
faz, pois, via regulamentação de novas profissões e/ou
ocupações, em primeiro lugar, e mediante ampliação do
escopo dos direitos associados a estas profissões, antes que
por expansão dos valores inerentes ao conceito de membros
da comunidade. A cidadania está embutida na profissão e os
direitos do cidadão restringem-se aos direitos do lugar que
ocupa no processo produtivo, tal como reconhecido por
lei”(grifos do autor; Ibid., p. 68).
A partir da Segunda Guerra Mundial, de acordo com Couto (2006), as
manifestações da população questionando a política do Estado Novo e
exigindo o retorno do governo constitucional tornaram-se mais expressivas
(COUTO, 2006). Além disso, outros fatores contribuíram para o
enfraquecimento da era Vargas, consolidado em 1945: o centralismo estatal; os
índices cada vez mais altos de exclusão e desigualdade social decorrentes do
processo desordenado de urbanização e do movimento migratório; a elevação
do exército industrial de reservas e, por outro lado, das organizações sindicais.
Porém, do pós-45 até 1964, apesar de apresentarem algumas
características democráticas trabalhistas de cunho populista e liberal (COUTO,
40
op. cit.), os papéis institucionais do sistema produtivo foram infimamente
modificados. No trato à participação nos benefícios, a disputa apresentou-se de
forma mais explícita. Permaneceram: o perfil regulador e controlador do
Estado; a garantia do direito de cidadão condicionada ao vínculo com uma
profissão regulamentada; o investimento na política de proteção previdenciária
e assistencial de modo compensatório (SANTOS, 1994). Os governos
populistas não obtiveram sucesso durante as gestões consecutivas. A
insatisfação de diversos atores sociais resultou em expressivas mobilizações
que denunciavam o descontentamento quanto à gestão governamental e
questionavam o atendimento às demandas sociais postas.
Após pouco menos de 20 anos de prática de democracia
relativa, esta revelou-se incompatível com uma ordem de
cidadania regulada (...) Dada a resistência da ordem
conservadora da cidadania regulada, o conflito resolveu-se
pelo rompimento da democracia limitada (...) tal é o significado
do movimento militar de 1964. Em aparência e, novamente,
como em 30, tratava-se de reformular as instituições em que
se processavam a acumulação e a distribuição compensatória,
e novamente por via autoritária (Ibid. p 75).
Se a conjuntura política anterior a 1964 não possibilitou a garantia de
uma cidadania plena à população, no pós-64 tal conjuntura mostrou-se
totalmente desfavorável. A configuração dos governos instaurados com a
deflagração do golpe militar foi marcada por um intenso conflito de interesses
contraditórios, pela cassação de direitos civis e políticos em prol do
fortalecimento e da manutenção do poder militar. Segundo Netto o golpe
expressou a derrota das forças democráticas, nacionais e
populares (...), entretanto, salienta que, na verdade, o governo
que se instaurou no poder através da aliança entre a
burguesia internacional, burguesia nacional e os militares,
derrotou foi uma alternativa de desenvolvimento econômico-
social e político que era virtualmente a reversão do
mencionado fio condutor da formação social brasileira (grifos
do autor; 2001, p. 25).
41
Tal argumentação é procedente, pois segundo o mesmo autor, em terras
brasileiras não se tinha condições concretas para uma revolução do tipo
socialista, muito embora houvesse uma forte mobilização social.
É válido ressaltar também que o golpe de 64, cujo escopo era reinserir o
Brasil na divisão internacional do trabalho de forma subalterna, garantiu a
dinâmica da reprodução ampliada do capital, cujo modelo econômico havia
iniciado com Kubistschek. Nesse sentido, o golpe militar brasileiro, remonta o
período que teve início forças políticas antagônicas ao modelo de capitalismo
dependente e de, uma forma geral, para Netto (idem),
... inseriu-se num contexto que transcendia largamente as fronteiras
do país, inscrevendo-se num mosaico internacional em que uma
sucessão de golpes de Estado (relativamente incruentos uns, como
no Brasil, sanguinolentos outros, como na Indonésia) era somente o
sintoma de um processo de fundo: movendo-se na moldura de uma
substancial alteração na divisão internacional capitalista do trabalho,
os centros imperialistas, sob o hegemonismo norte-americano,
patrocinaram, especialmente no curso dos anos sessenta, uma
contra-revolução preventiva em escala planetária (com rebatimentos
principais no chamado Terceiro Mundo, onde se desenvolviam,
diversamente, amplos movimentos de libertação nacional e social)
(grifos do autor; Ibid., p. 16).
Em síntese, a ditadura instituída no Brasil não se tratou de um fato
isolado e desconectado internacionalmente, conforme destacado, os governos
dos países latino-americanos estavam comprometidos com os interesses
capitalistas e, sendo assim, tal golpe, conseguiu o seu intento, qual seja,
derrotou as forças democráticas e manteve o modelo de desenvolvimento
dependente do capital internacional.
As determinações do capital internacional, aliadas ao contínuo
crescimento populacional, à crescente urbanização implicaram decisivamente
nas políticas do governo brasileiro do pós-64, dentre as quais as políticas
sociais. Os deveres do governo para com o pacto com o capital internacional,
42
segundo Santos (1994), consistiam em avançar o processo de concentração e
centralização do capital, instituindo condições favoráveis para um equilibrado
desenvolvimento da economia de mercado.
De acordo com Couto (2006), o cumprimento desta direção ideológica
gerou um elevado índice de concentração de renda: e, no ano de 1980 o grupo
que representava 1% da população do país detinha renda quase equivalente
ao que os 50% do restante da população possuía. O país vivenciou neste
momento uma significativa expansão econômica: o consumo de bens duráveis
alcançou os maiores níveis vistos; o parque industrial atingiu índices de
desenvolvimento estonteantes; além da elevação do Produto Interno Bruto
nacional, que chegou a apresentar aumento de até 11,4% de 1971 a 1972.
Estes fatos denominados de “milagre econômico” foram provenientes do
arranjo encontrado para garantir a concentração e a centralização de capitais,
ou seja, nos governos ditatoriais, teve continuidade a busca pelos
investimentos externos os quais, por sua vez, acarretaram, na elevação de
mais do que o dobro da dívida externa do país; na concentração de renda e de
poder; na intensificação da exploração sobre a classe trabalhadora,
redundando em precárias condições de trabalho e no enfraquecimento do
poder sindical e, obviamente no acirramento da questão social.
As medidas tomadas pelo governo para intervir na precarização das
condições de vida e de trabalho da população brasileira objetivavam atenuar as
expressões da “questão social” produzidas pelo processo de acumulação do
capital. Neste sentido, é possível observar um investimento na criação de
instituições tecnocráticas para responder às demandas postas pela classe
trabalhadora. Entretanto, como o intuito de tais medidas não ultrapassava a
43
amenização das mazelas sociais, as políticas sociais adotadas possuíam viés
compensatório e perfil altamente controlador (Ibid.).
A cidadania regulada, que de acordo com Santos (1994), estava pautada
nas estratégias dos governos pré-64, foi ressignificada no pós-64, sob os
auspícios dos governos ditatoriais,
“... incluindo-se agora, entre as dimensões reguladas, não apenas a
profissão, mas o próprio salário a ser auferido pela profissão,
independentemente das forças do mercado. O controle sindical e o
controle do salário profissional foram as formas autoritárias
encontradas para compatibilizar os objetivos de acumulação
acelerada, modernização tecnológica da economia e baixo vel de
investimento educacional” (Ibid., p. 79).
Em suma, Santos (1994) ao analisar a estruturação das políticas sociais
brasileiras até meados da década de 1970 afirma que as de cunho
compensatório estão intrinsecamente relacionadas a períodos de recessão
econômica, conforme ocorreu no contexto brasileiro nos anos 1920: as
primeiras CAPs foram criadas exatamente durante uma conjuntura econômica
desfavorável; na década de 30 as medidas de cunho sociais foram ampliadas
justamente na ocasião em que o país se vivenciava uma intensa crise
econômica. Por outro lado, as políticas redistributivas ampliam-se em fases
relativamente expansivas da esfera econômica. Outra observação relevante
ilustrada pelo autor refere-se à caracterização das políticas sociais nos
governos autoritários, quando, estrategicamente, são promovidos avanços na
legislação social a fim de conquistar o consentimento político da classe
operária, conforme ilustrado anteriormente.
Portanto, conforme afirma Faleiros,
esse modelo repressivo, centralizado, autoritário e desigual foi sendo
implantado como um complexo assistencial-industrial-tecnocrático-
militar. Controlado pela gestão tecnocrática, não veio a se constituir
como um projeto universal de cidadania. Era a continuidade de um
modelo fragmentado e desigual de incorporação social da população
em estratos de acesso, conforme os arranjos do bloco no poder,
para favorecer grupos privados ou particulares, conquistar clientelas,
44
impulsionar certos setores economicamente influentes, obter
lealdades e, é claro, dinamizar a acumulação. (2000, p. 48)
Finalizando, com o escopo de legitimar suas ações de perfil permeado
de repressão, tortura, censura, aniquilamento dos opositores, o governo
ditatorial utilizou-se da tentativa da cooptação da população (em sua maioria),
que por sua vez estavam submetidas a condições precárias de sobrevivência e
de trabalho. Os meios de comunicação, censurados, foram utilizados: para
difundir o discurso justificador das ações repressivas do governo, com vistas a
banir a ameaça comunista no país; e para divulgar informações deturpadas
sobre a intervenção estatal especialmente as de cunho social, em seu próprio
favor (COUTO, 2006).
No próximo item, após a contextualização do cenário internacional de
crise do sistema capitalista de produção, trataremos da e emergência de um
“novo modelo” de trato às expressões da “questão social” e seus respectivos
rebatimentos no cenário brasileiro.
1.3 – Crise do padrão de intervenção estatal nos anos 1970: o novo trato à
“questão social”
Ao final dos anos 1960, o mundo capitalista começa a vivenciar um
esgotamento na sua base estrutural, denominado por alguns autores de crise
dos “trinta anos gloriosos
11
”. A ascensão do modo de produção capitalista
consolidada, neste período, experimentou uma intensa crise política e
econômica, pois
11
Segundo Netto (1996) o capitalismo monopolista experimentou três décadas consecutivas de
expansão, as quais abarcam desde o final do segundo pós-guerra até meados da década de
70.
45
as taxas de crescimento, a capacidade do Estado de exercer
suas funções mediadoras civilizadoras cada vez mais
amplas, a absorção das novas gerações no mercado de
trabalho, restrito naquele momento pelas tecnologias
poupadoras de mão-de-obra, não são as mesmas,
contrariando as expectativas de pleno emprego, base
fundamental daquela experiência. As dívidas públicas e
privadas crescem perigosamente... (BEHRING e
BOSCHETTI, 2007, p. 103, grifos das autoras).
A burguesia financeira, insatisfeita com os rumos depressivos do regime
fordista-keynesiano, atrelou a causa da crise ao alargamento da intervenção do
Estado no sistema capitalista de produção, especialmente os investimentos
realizados na área social, cujos resultados, curiosamente, não influíam sobre a
elite dominante.
A conjuntura política dos anos 70 foi marcada por um estremecimento
nas bases do capitalismo mundial. Nítida, portanto, era a urgência do
capitalismo em fazer emergir um novo regime de produção que superasse o
esgotamento do padrão fordista-keynesiano de acumulação, caracterizado pela
rigidez no seu processo produtivo e pelo Welfare State. Assim, ocorre uma
transição para um outro regime de produção: a acumulação flexível (iniciado no
pós-70, e aprofundado na década de 90), caracterizado por possibilitar maior
dinamicidade ao sistema produtivo, alterando significativamente a estrutura da
sociedade capitalista (NETTO, 1996).
Harvey (apud ANTUNES, 1998) indica três peculiaridades da
acumulação flexível: a expansão do capital, o aceleramento nos níveis de
exploração da força de trabalho e o expressivo desenvolvimento condensado
dos vetores tecnológicos e organizacionais. Obviamente estes três vetores não
podem ser analisados desvinculadamente, uma vez que instituem uma tríade
46
basilar às novas protoformas de intervenção do capitalismo em escala
planetária. Desta forma,
busca-se uma flexibilidade no processo de trabalho, em
contrapartida à rigidez da linha de produção, da produção
em massa e em série; uma flexibilidade do mercado de
trabalho, que vem acompanhada da desregulamentação dos
direitos do trabalho, de estratégias de informalização da
contratação dos trabalhadores; uma flexibilidade dos
produtos, pois as firmas hoje não produzem
necessariamente em série, mas buscam atender as
particularidades das demandas dos mercados consumidores
e uma flexibilidade dos padrões de consumo. Este processo,
impulsionado pela tecnologia de base microeletrônica, pela
informática e pela robótica, passa a requerer novas formas
de estruturação dos serviços financeiros, inovações
comerciais... (IAMAMOTO, 2001, grifos da autora).
A “financeirização” do capital, também denominada “mundialização
econômica”, nos termos de Ianni (1994), desencadeia o aceleramento da
disputa no interior dos monopólios pela acumulação do capital. O acirramento
desta competitividade é sinalizado pelo investimento na “economia de trabalho
vivo” e nos avanços tecnológicos no setor industrial.
Mecanismos mais eficazes de gestão da força de trabalho (como os
CCQ Ciclos de Controle de Qualidade etc.) e novos conceitos como
flexibilidade, competitividade, globalização, reestruturação produtiva,
participação na empresa, foram criados como forma de “integrar” o trabalhador
à nova lógica econômica e empresarial (ANTUNES, 1998).
Neste contexto, o desenvolvimento excessivo do mercado financeiro é
revelado pela supervalorização da especulação e da acumulação, as quais se
tornam ainda mais expansivas com o fenômeno da “desterritorialização”,
caracterizado pela diluição das barreiras territoriais e temporais do mercado
47
internacional, garantindo, assim, condições mais “acessíveis e horizontais” nas
relações financeiras.
As alterações na divisão sóciotécnica do trabalho são visíveis:
acentuadas exigências de produtividade são postas à “classe-que-vive-do-
trabalho”, dentro da qual, os inseridos diretamente no processo produtivo
(aqueles que conseguirem atingir os critérios de produtividade impostos pelos
detentores do capital) ocuparão os escassos e seletivos postos de trabalho,
submetendo-se aos modelos “flexíveis” de contratação e às exigências
polifuncionais; enquanto que aos demais trabalhadores restará a disputa pela
inserção no mercado de trabalho, tendo em vista o índice de desemprego
estrutural provocado pelas “inovações” do sistema capitalista de produção,
dada a sua “indisponibilidade” em absorver um contingente significativo de
trabalhadores (IANNI, 1994). O terreno é fértil, portanto, para que os
empregadores exerçam maior pressão e controle sobre os trabalhadores em
favor da acumulação do capital.
Contudo, as determinações da flexibilização do capital o agravaram
somente as relações na divisão sóciotécnica do trabalho: “o mesmo processo
de amplas proporções, que expressa a globalização do capitalismo, expressa
também a globalização da “questão social” (Ibid., p.7), o que se faz considerar
a necessidade de melhor esclarecimento, uma vez que ela se espraia em
múltiplas expressões, aparentemente desconectadas:
... desemprego cíclico e estrutural; crescimento de
contingentes situados na condição de subclasse;
superexploração da força de trabalho; discriminação racial,
sexual, de idade, política, religiosa; migrações de indivíduos,
famílias, grupos e coletividades em todas as direções,
através de países, regiões, continentes e arquipélagos;
ressurgência de movimentos raciais, nacionalistas,
48
religiosos, xenófobos, racistas, fundamentalistas; múltiplas
manifestações de pauperização absoluta e relativa, muitas
vezes verbalizadas em termos de ‘pobreza’, ‘miséria’ e
‘fome.’(Ibid.:7)
Observam-se, neste quadro, mutações nas relações entre o Estado e o
mercado, haja vista a menor regulação estatal sobre o setor financeiro e,
consequentemente, uma maior autonomia deste último nas relações de
produção.
É neste contexto que é nítido o caráter classista do “Estado burguês”,
cujo redimensionamento da atuação política indica uma intervenção limitada
nos setores social, político e econômico da sociedade, de maneira a favorecer
o bloco dominante.
Ao retomar a análise em torno dos contraditórios modelos de atuação
estatal nas conjunturas referentes ao período do anterior regime fordista de
produção e do atual padrão de acumulação flexível, identifica-se que, nesta
primeira conjuntura, o Estado assume uma função social interventiva, através
do Welfare State, caracterizado pela ampliação da sua ação no trato à “questão
social”. O remodelamento da ação estatal na conjuntura atual é marcado pela
retirada do seu papel intervencionista na “questão social”, ou seja, a “redução
do Estado” no que concerne ao provimento das políticas sociais públicas para a
população (NETTO, 1996).
Se no período do pós-guerra, o capitalismo experimentou os
chamados “30 anos gloriosos”, caracterizados pela intensa intervenção estatal
no mercado e economia e na “questão social”; com a entrada de um novo
paradigma, as funções do Estado foram redefinidas, implicando, ao mesmo
tempo, na operacionalização de ajustes fiscais, de forma a salvaguardar os
interesses do mercado e reduzir os investimentos em políticas públicas de
49
pleno emprego e sociais. Instituições supranacionais (FMI Fundo Monetário
Internacional, BM Banco Mundial, ONU Organização das Nações Unidas
etc.), representantes dos interesses do capital internacional, passaram a
cumprir a função de coordenação das novas funcionalidades do Estado.
Quanto menor a sua intervenção na economia, maior a possibilidade de o
mercado expandir suas fronteiras e dar legitimidade necessária ao sistema
capitalista (ANTUNES, 1998).
No cenário brasileiro, contrariamente ao quadro da conjuntura
internacional do final da década de 1960, vivenciava-se, neste período, um
processo de ditadura militar atrelado ao denominado “Estado
Desenvolvimentista”. Se, por um lado, como afirma Faleiros (1980), a
sociedade “gozava” de um Estado que lhe vetava a liberdade de expressão e o
exercício da democracia, sob a ameaça de tortura e perda da liberdade de ir e
vir; por outro lado, o Estado, em comum acordo com os ditames capitalistas
dominantes, promovia a implantação e ampliação de políticas sociais (com
perfil assistencial, tecnocrático e compensatório) que não alteraram o nível das
desigualdades sociais resultantes do processo de acumulação do capital, mas
contribuíam para a amenização dos níveis de insatisfação da população sobre
o governo.
O investimento na expansão da atuação do Estado no campo social
caracterizou-se também pela institucionalização das políticas sociais, a
exemplo da uniformização do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS),
da extensão da cobertura previdenciária (aos trabalhadores rurais, empregados
domésticos, autônomos e ambulantes), da criação da renda mensal vitalícia
para idosos com baixo ou nenhum poder aquisitivo, da implantação do
50
Ministério da Previdência e Assistência Social, agregando a LBA, a Fundação
para o Bem-Estar do Menor (em substituição ao SAM, suprimido devido ao seu
caráter punitivo e agressor), dentre outras (BEHRING e BOSCHETTI, 2007).
Entretanto, em meados da década de 70, o modelo tecnocrático
modernizador-conservador do regime militar inicia um processo de declínio. A
conjuntura política do país toma outros rumos: a abertura do regime. Instaurou-
se no país o processo de transição democrática”, sob total domínio da classe
dominante, que atentava para as possibilidades de ascensão e expressão
política das massas populares, dado o acirramento da questão social”
conseqüente do regime militar.
A conjuntura nacional da década de 80 apresenta um cenário político-
econômico marcado por uma série de mudanças de ordem política, social e
econômica. A política econômica de governo, caracterizada por Soares (2001)
como inconstante e enfraquecida, provocou o aumento das dívidas interna e
externa, a instabilidade da moeda, a superinflação, dentre outros aspectos
12
, os
quais desencadearam, no final desta década, uma intensificação da crise
econômica, ocasionando o declínio do chamado “Estado Desenvolvimentista”.
Reside aqui a origem da avaliação existente sobre os anos 80 como sendo “a
década perdida”, do ponto de vista econômico. Politicamente, este período
significou muitos avanços na consolidação da participação democrática da
população, gerando significativas conquistas sociais, a partir das lutas travadas
e do processo da Constituinte. O processo de redemocratização vivenciado
pelo país também influenciou o enfraquecimento do “Estado
12
Por outro lado, é importante ressaltar que desde o início da década de 80, o Brasil assumiu
uma colocação de destaque no quadro latino-americano no que tange ao desenvolvimento
industrial, dados o avanço tecnológico e a expansão do mercado externo e interno (SOARES,
2001).
51
Desenvolvimentista”, desencadeando o ingresso, em meio à ala conservadora,
de integrantes de movimentos sociais em instituições governamentais (Ibid.).
Contudo, cabe ressaltar alguns entraves políticos decorrentes da
suposta “transição democrática”, no que concerne à participação da sociedade
civil organizada no cenário político nacional. A princípio, é pertinente alertar
que o esgotamento do “modelo econômico” do regime militar não deflagrou a
expulsão da classe burguesa do poderio do sistema; mesmo porque,
integrantes do regime militar ainda mantiveram-se no poder após o processo
de “transição democrática”, colocando em questionamento seu caráter
“democrático” e aproximando-o da perspectiva conservadora. Neste sentido,
Netto (1996) afirma que diante do contexto depressivo que o país vivenciava
desde 1982, a transição democrática não garantiu à população positivos
resultados no âmbito material. Entretanto, vale ressaltar a significância
resultante da elaboração da Constituição Federal de 1988, para tornar possível
a construção de uma sociedade justa e igualitária, pautada na garantia e
ampliação dos direitos sociais.
Desta forma, a Constituição de 1988 se configura como um marco na
luta pela solidificação dos direitos sociais, embasados no caráter universal de
proteção social. O processo da Constituinte ocorreu em uma conjuntura de
abertura política e de grande efervescência dos movimentos sociais no cenário
político nacional. A sociedade civil, por intermédio de suas organizações,
participou ativamente deste processo, contribuindo na elaboração da
Constituição. No entanto, o governo brasileiro, no início dos anos 90, norteado
pelo ideário neoliberal, passa a adotar medidas e ações cujas diretrizes
contrariam significativamente os princípios que regem a Constituição,
52
especialmente no âmbito dos direitos sociais. Esse quadro apresenta o
impasse entre direções amplamente antagônicas: de um lado, os aparatos
legais garantidores da efetivação das políticas universalistas de proteção
social, sob ação prioritária estatal; de outro, a organização do Estado neoliberal
em consonância com a acumulação do capital, embasado no esgotamento do
sistema de proteção social público estatal.
As mudanças ocorridas com a derrocada do regime autoritário não
garantiram uma ruptura estrutural no contexto sócio-político e econômico do
país. O modo de produção capitalista manteve-se hegemônico, porém com
nova roupagem: o projeto neoliberal
13
.
1.4 As políticas sociais brasileiras no contexto neoliberal: o retrocesso
das conquistas sociais
Apesar da primeira produção teórica de sustentação do chamado projeto
neoliberal ter sido originado no pós-45
14
, este somente se consolidou no
cenário mundial a partir da década de 70, com a crise do modelo econômico
fordista-keynesiano, o qual gerou a diminuição nas taxas de crescimento
econômico e elevação nos índices inflacionários. Até este período, o
neoliberalismo estava configurado num cenário de disputa política e ideológica
com o modelo keynesiano de Bem-Estar Social (ANDERSON, 1995).
Dentre as medidas propostas para solucionar a crise estavam
englobadas:
13
Vale lembrar que o “receituário” neoliberal apesar de ser “novo” no Brasil, não era tão
recente em outros países (SOARES, 2001).
14
Trata-se de O caminho da Servidão, de Friedrich Hayek, produzido em 1945.
53
o a constituição de um Estado limitado para intervir nas áreas social e
econômica;
o a estabilidade econômica, na qualidade de plano prioritário de governo;
o a manutenção “natural” de um determinado contingente de “exército de
reserva”, e, conseqüentemente, o aumento da desigualdade social;
o o enfraquecimento do poder sindical, com o posterior desmantelamento
de sua organização;
o o combate ao comunismo;
o o estabelecimento de reformas fiscais, a fim de garantir a redução da
contribuição tributária dos detentores dos meios de produção.
Estas medidas constituem-se eixos norteadores do “receituário”
neoliberal e pretendem, em primeiro plano, retomar as bases do crescimento
econômico e do acúmulo de capital.
As experiências dos Estados com a incorporação da ideologia neoliberal
apresentam um panorama altamente positivo (obviamente do ponto de vista
dos neoliberais): os resultados não foram alcançados com total plenitude em
todos os eixos: as taxas de inflação foram estancadas; o movimento operário
foi enfraquecido e as taxas de desemprego foram acentuadas (ANDERSON In
GENTILI & SADER, 1995).
Para Netto (NETTO In GENTILI & SADER, 1995), um fator diferencial da
proposta neoliberal é a tentativa de uma vinculação ideológica da sua
legitimação ao processo democrático. Importante se faz, pois, desmistificar a
contradição que reside nesta premissa. Para tanto, é imprescindível uma
reflexão crítica, que contemple elementos históricos capazes de garantir um
amplo entendimento acerca da realidade social. Conforme foi pontuado
54
anteriormente, o enfraquecimento do poder sindical e da organização dos
trabalhadores integra o receituário neoliberal (ANDERSON, 1995). Tal fato
contribui de forma determinante para a consolidação deste modelo. O atual
contexto capitalista apresenta novas formas de organização do capital, dentre
as quais a manutenção das relações harmônicas e consensuais entre as
classes, cuja realização ocorre, não mais por meio da coerção, mas do
estabelecimento do consenso, da conquista, do convencimento. Desta forma,
a democracia torna-se um estratégico instrumento para a consolidação da
hegemonia neoliberal, embora não fundamental
15
.
O processo de deterioração do Estado brasileiro, iniciado no período da
ditadura militar e tendo prosseguimento contínuo até o posterior governo de
Sarney, constituiu, segundo Oliveira (1995), terreno fértil para o
estabelecimento das diretrizes “anti-sociais”, que o Estado de Bem-Estar
Social não chegou a ser efetivamente instaurado no país.
Durante o governo Collor, ocorreu, mesmo que caricaturalmente, uma
visibilidade acerca da injusta distribuição de renda do país e sobre o
desmantelamento das políticas sociais, originando o termo “neoliberalismo à
brasileira”. O movimento pelo impeachment de Collor representou um avanço
no processo de organização e mobilização da sociedade civil, que foram
materializadas em respostas desta à desorganização e “dilapidação” do
Estado (Ibid., Op. cit.).
O crescimento da taxa de inflação no governo de Itamar Franco, e as
medidas graduais decorrentes para suas soluções, contribuíram com a
fertilidade do terreno para a consolidação e o fortalecimento do modelo
15
É necessário lembrar que o primeiro “laboratório” para implementação da proposta neoliberal
deu-se sob a ditadura de Pinochet, no Chile, em 1973.
55
neoliberal, que se consolida com o governo Fernando Henrique Cardoso.
Neste momento, a organização dos trabalhadores, bem como as conquistas
políticas da sociedade civil, foram brutalmente atacadas:
Os objetivos são os mesmos, e cá. Trata-se de destruir a
capacidade de luta e de organização que uma parte
importante do sindicalismo brasileiro mostrou. É este o
programa neoliberal em sua maior letalidade: a destruição da
esperança e a destruição das organizações sindicais,
populares e de movimentos sociais que tiveram a
capacidade de dar uma resposta à ideologia neoliberal no
Brasil. (OLIVEIRA, Op. cit., p. 28)
Dando prosseguimento à analise acerca das políticas sociais no
contexto do neoliberalismo, no Brasil, Soares (2001) discute que, segundo o
receituário neoliberal, a liberdade nas relações entre capital e trabalho deveria
imperar, dispensando a intervenção estatal e valorizando a autonomia nas
decisões do mercado. Ao Estado caberia algumas responsabilidades básicas,
como educação primária, saúde pública e a construção de uma estrutura para
a consolidação do “desenvolvimento ‘autônomo’ e auto-sustentado”. Mas o
Brasil encontrou dificuldades para a implantação deste projeto devido a alguns
fatores, a exemplo do momento de chegada do novo padrão de acumulação
(retardatário), e das limitações do Estado no que tange às suas relações entre
capital e trabalho. Assim, a entrada do modelo neoliberal no país ocasionou
... o agravamento da já iníqua situação de alocação de
recursos para as Políticas Sociais. Provocou-se uma
recessão, aumentando o desemprego e piorando ainda mais a
situação dos mais carentes, o que obviamente desencadeou
uma elevação na demanda por benefícios e serviços sociais
(particularmente os relacionados à Seguridade Social, como
Previdência e Saúde (...). A resultante dessa perversa
combinação, em um país como o Brasil, onde a pobreza não é
residual, foi (e continua sendo) o agravamento da miséria,
associada ao total desmantelamento das políticas sociais
(SOARES, Op. cit., p. 157).
56
Comparado com a América Latina, o Brasil atingiu níveis mais elevados
de desigualdade social. Em decorrência da amplitude do seu território e dos
níveis de complexidade e diversidade, a pobreza assume características
diferenciadas no país, originando a chamada pobreza multifacetada”. Existe,
neste cenário, uma intrínseca relação entre a desigualdade social, a pobreza e
as políticas de ajuste, no caso neoliberal.
Nesta direção, Laurell (2002) analisa que as transformações provocadas
pelo modelo neoliberal têm amplitude estrutural e representam um retrocesso
social, dada a queda significativa dos salários, a eclosão do desemprego
estrutural, além da intensificação acirrada da pobreza na população nacional.
O desemprego estrutural desencadeia o surgimento de uma “subclasse”,
culminada pela expressão máxima da “questão social”, caracterizada pelo
“desemprego prolongado”, agudização da pobreza e minorias sociais
intensificadas, dentre outras (IANNI, 1994).
A análise dessas transformações, com efeito, nas políticas sociais,
requer um olhar crítico e profundo, de forma que ultrapasse as barreiras
ideológicas impostas pelo modelo dominante. Nesta direção, cabe apresentar
algumas considerações abordadas por Netto (1996) acerca da percepção e
distinção dos aspectos reais e aparentes no entendimento sobre o fenômeno.
Segundo o autor, a identificação da dicotomia entre o real (essência) e o
aparente na análise da realidade social torna-se tarefa cada vez mais
desafiadora no mundo capitalista, posto que a ideologia capitalista dominante
atrela à estruturação da sociedade atual e suas determinações o status de
realidade. Esta funcionalidade garante a disseminação do recurso ideológico
em prol do próprio capital. Desta maneira, o sistema capitalista utiliza-se
57
estrategicamente da divulgação de uma cultura global”, que submete à
sociedade uma visão de mundo de acordo com os anseios da classe
dominante.
Kosik (1976) discorre acerca das lacunas existentes entre o real e o
aparente; entre o fenômeno e a essência, enfatizando a urgência da superação
das leituras limitadas à parcialidade, particularidade, em favor das análises
cujas bases partem da totalidade social, a qual permite a apreensão do
fenômeno como um todo, sob o uso do conhecimento, da ciência, da filosofia.
Neste sentido, o autor analisa que na sociedade capitalista, embasada no
regime de acumulação do capital determinado pela propriedade privada e
absorção da mais-valia a aparência do fenômeno pode ser facilmente
identificada neste concreto. Contudo, somente a apreensão da essência do
fenômeno garante o fim da alienação, pois, no cenário do mundo capitalista,
possibilita a percepção do caráter manipulador, fetichista, individualista e
destruidor do modo de produção capitalista, tornando possível a construção da
consciência de classe.
Desta maneira, o desmantelamento das políticas sociais públicas não foi
ocasionado pura e simplesmente por uma crise econômica, conforme
apresentam as falas de governos e organismos internacionais do capital, mas
sim devido à introdução do modelo neoliberal.
A precarização do mundo do trabalho, atrelada ao desemprego
estrutural, o subemprego, o crescimento do mercado informal, o retrocesso
previdenciário, ocasionou níveis extremos de desigualdade social, os quais,
segundo Soares (2003), integram o modelo capitalista vigente.
58
No cenário brasileiro e da América Latina, na conjuntura neoliberal, a
intervenção estatal se mediante políticas sociais restritas e compensatórias,
materializadas por programas sociais limitados, cujos resultados das ações não
apresentam impacto de mudanças na realidade social. O foco de atenção e da
realização destes programas tem um nível reduzido de intervenção.
A aplicabilidade das políticas sociais neoliberais está pautada, portanto,
no redimensionamento do papel do Estado, do mercado e da sociedade civil.
Novos parâmetros de intervenção na “questão social” são definidos a partir da
mudança dos papéis das referidas instâncias. Ao Estado coube a restrição e
limitação da sua responsabilidade na “questão social”, ao passo que se foi
ampliando o papel do setor privado (instituições filantrópicas, religiosas,
Organizações Não Governamentais e Terceiro Setor, dentre outras), admitido
como integrante de uma rede de solidariedade, conferindo-lhes, um papel de
responsabilidade em torno das ações nas áreas sociais.
Entretanto, ao contrário do que está ideologicamente posto, as
“inovações” promovidas pela reestruturação produtiva trouxeram prejuízos às
conquistas dos direitos sociais no que tange justamente à promoção dos
serviços e políticas públicas estatais e universais, expressamente garantidas
na Constituição Federal de 1988 (MONTAÑO, 2003).
O receituário neoliberal determina ao Estado a redefinição das suas
funções: além da transferência de suas responsabilidades sociais para o
âmbito privado, implementa políticas sociais fragmentadas, precarizadas,
seletivas e focalizadas, preservando, assim, os interesses postos pela ideologia
neoliberal. O questionamento que se faz aqui se refere às modalidades de
59
respostas à “questão social” no contexto do Estado neoliberal, a partir da
inserção proliferada das instituições privadas. Desta forma,
... a função social da resposta às refrações da “questão
social” deixa de ser, no projeto neoliberal, responsabilidade
privilegiada do Estado, e por meio deste do conjunto da
sociedade, e passa a ser agora de auto-responsabilidade
dos próprios sujeitos portadores de necessidades, e da ação
filantrópica, “solidária-voluntária”, de organizações e
indivíduos. A resposta às necessidades sociais deixa de ser
uma responsabilidade de todos (na contribuição compulsória
do financiamento estatal, instrumento de tal resposta) e um
direito do cidadão, e passa agora, sob a égide neoliberal, a
ser uma opção do voluntário que ajuda o próximo, e um não-
direito do portador de necessidades, o ‘cidadão pobre’.
(MONTAÑO, 2003, P. 22)
Contrariamente à analise desenvolvida pelo autor supracitado, cujo
ponto de partida é a totalidade social, as análises neoliberais acerca das
políticas sociais são limitadas, superficiais e generalizantes: elas não são
meras “concessões de serviços”, segundo a ideologia dominante, têm um
caráter histórico e classista, tendo em vista sua concretização a partir das lutas
sociais (Ibid.).
A constituição das políticas sociais brasileiras, neste sentido, sob os
padrões universalistas e redistributivos, foi completamente desestruturada pela
lógica neoliberal, centrada na máxima apropriação do capital em detrimento da
consolidação dos direitos sociais. Sob a alegação da crise fiscal vivenciada
pelo Estado, as políticas sociais apresentam como peculiaridade o
desmantelamento dos direitos sociais e a sua transformação em ações
compensatórias e emergenciais. Assim, “as possibilidades preventivas e até
eventualmente redistributivas tornam-se mais limitadas, prevalecendo o
referido trinômio articulado do ideário neoliberal para as políticas sociais, qual
seja: a privatização, a focalização e a descentralização.” (BEHRING E
60
BOSCHETTI, 2007, p. 156, grifos das autoras). A diretriz da descentralização
referida diz respeito à transferência da responsabilização do Estado para o
setor privado no trato à “questão social”.
Assim, ao tempo em que, no Brasil, criavam-se mecanismos
político-democráticos de regulação da dinâmica capitalista,
no espaço mundial tais mecanismos perdiam vigência e
tendiam a ser substituídos, com a legitimação oferecida pela
ideologia neoliberal, pela desregulamentação, pela
flexibilização e pela privatização – elementos inerentes à
mundialização (globalização) operada sob o comando do
grande capital. (NETTO, 1999, p. 77, grifos do autor).
Assim, mesmo que Fernando Collor tenha sido o responsável pela
introdução do ideário neoliberal no Brasil, foi durante a vigência dos dois
governos de Fernando Henrique Cardoso que este modelo se consolida no
país.
Apesar da campanha política eleitoral de FHC, em 1994, apresentar
cinco prioridades da protoforma de governo (saúde, educação, emprego,
agricultura e segurança), demarcando prioridade nos aspectos sociais; ao
término do primeiro mandato, de acordo com Lesbaupin (1999) o país
apresentava os maiores índices de desemprego já identificados na história
nacional, chegando a atingir a liderança no índice mundial de concentração de
renda. De certo, o cenário social político e econômico nacional encontrado pelo
governo de FHC no início de sua gestão,
resulta de um processo de formação histórica de largo curso,
no interior do qual as camadas mais ativas das classes
dominantes, mediante instrumentos de repressão aberta e/ou
mecanismos mais refinados de controle, revelaram-se capazes
de erguer um sempre renovado sistema de privilégios e uma
metódica exclusão das classes e camadas subalternas dos
avanços sociais.(NETTO, 1999, p. 76)
61
Entretanto, mesmo admitindo-se aqui a existência de uma sociedade
desigual e excludente constituída historicamente, este padrão não foi
mantido como exponenciado a partir dos governos de FHC.
No discurso inicial do governo, a redução e o controle inflacionário
estavam vinculados à garantia da redistribuição de renda, fazendo cumprir
assim uma outra meta de governo: o “investimento social”. Obviamente, é
inconcebível que uma efetiva distribuição de renda esteja naturalmente
associada a um projeto qualquer de estabilidade econômica; principalmente em
se tratando de uma plataforma de governo, cuja meta basilar é a estabilidade
da moeda. Desta forma, a atuação governamental na área de políticas públicas
sociais sofreu um extremo retalhamento financeiro e político (LESBAUPIN,
1999).
As diretrizes da política econômica do governo FHC norteavam a política
social. Sendo assim, em hipótese alguma, as respostas às demandas sociais
estariam sob condições prioritárias; ao contrário, a lógica indica a satisfação
dos interesses privados em detrimento dos públicos. Expressivo, portanto, era
o distanciamento da política governamental de FHC da Carta Constitucional de
1988. O cenário econômico do país foi marcado pela abertura econômica para
o capital externo, endividamento e/ou falência de instituições empresariais
nacionais, contribuindo para o acirramento do desemprego estrutural, posto
que
tratava-se de implementar uma orientação política
macroscópica que, sem ferir grosseiramente os aspectos
formais da democracia representativa, assegurasse ao
Executivo federal a margem de ação necessária para
promover uma integração mais vigorosa ao a sistema
econômico mundializado integração conforme às
exigências do grande capital e, portanto, sumamente
subalterna. (NETTO, 1999, p. 79)
62
Estudos sobre os gastos sociais realizado durante o governo FHC
16
indicam um significativo declínio de recursos destinados às políticas sociais,
paralelamente ao aumento no quantitativo de receitas da União. Na área da
política educacional, cujo quadro não destoa do referente às demais políticas
sociais, concomitante ao aumento das demandas, observa-se uma diminuição
contínua dos recursos destinados a todos os programas da área (NETTO,
1999).
Acerca da Seguridade Social, identificada como a mais importante
conquista social na Constituição Federal de 1988, o quadro instaurado
apresentou-se desastroso: o governo inviabilizou e retardou qualquer
possibilidade de consolidação desta.
Neste sentido, diante do cenário catastrófico construído pela gestão
governamental de FHC, a utilização dos meios de comunicação, especialmente
os televisionados com alto nível de audiência pública, foi decisiva para garantir
a aceitação popular e a continuidade deste governo, dada a influência que
exercem para a formação da opinião pública (como sempre exerceram). Assim,
a aprovação das informações para divulgação trilhou um caminhou bastante
seleto: buscou-se omitir e obscurecer dados (inclusive os oficiais) que
indicassem avaliações negativas sobre o governo, assim como propostas
alternativas ao poder executivo vigente, com o intuito de garantir a continuidade
da gestão de FHC. Diante do quadro apresentado, pode-se afirmar que o
governo FHC, no que concerne às políticas sociais, acarretou uma profunda
desestruturação da Seguridade Social e pelo agravamento da “questão social”
16
A este respeito, ver especialmente LESBAUPIN (2000).
63
potencializado pela minimização da intervenção estatal no âmbito da política
social.
O final do governo de FHC é marcado pelo tensionamento político
envolvendo a proximidade das eleições, principalmente porque os oito anos de
heterodoxia neoliberal provocaram na população uma verdadeira onda aversiva
a quaisquer propostas que ao menos lembrassem as políticas empreendidas
pelo governo tucano. Pela quarta vez consecutiva, e com grande expectativa
popular, o candidato do Partido dos Trabalhadores
17
– PT, é o ex-operário e ex-
sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva – Lula.
Tal esperança é fruto dentre outros motivos de uma biografia específica
do candidato oposicionista, um contexto histórico que demonstrava sinais de
crise do plano real, a possibilidade de um representante da “esquerda” assumir
a presidência do Brasil e uma idéia de mudança do quadro que vinha sendo
pintado no Brasil desde o governo Collor. É óbvio que não se pode esquecer
de todo um trabalho de marketing, a utilização dos meios de comunicação de
massa, os votos anti-FHC e as diversas alianças feitas com partidos e
candidatos até então considerados opositores. Fala-se ainda em uma retomada
e união de alguns representantes dos movimentos sociais e um “vento” que
soprava a favor de uma transformação nos governos da América Latina e parte
da Europa, ou seja uma tendência que o Brasil poderia concretizar com a
maioria dos votos sendo destinadas ao candidato do PT.
Entretanto, a vitória de Lula nas eleições de 2002 não significou a
automática satisfação das demandas apresentadas pela classe trabalhadora.
17
Em meio a um contexto político caracterizado pela crise da ditadura militar, em 1979 ocorre a
fundação do PT, durante um movimento grevista do ABC paulista. Após uma década de
fundação, o PT foi consolidado a partir da sua inserção no cenário político do país, em 1989,
durante as eleições presidenciais, configurando-se desde então como uma “alternativa política
nacional” (COGGIOLA, 2004).
64
Pelo contrário, representou para a sociedade brasileira novos e complexos
desafios. É óbvio que não deve ser descartada a teoria de que perante o
desastre social conformado pelo governo de FHC, não é de se causar
estranheza a afirmação de que, o governo Lula foi “presenteado” com uma
“herança maldita”. Mas a equipe, que era formada pelos representantes dos
mais variados partidos que compunham a aliança, tinha plena consciência das
condições que iria encontrar o Brasil e de toda uma ordem mundial centrada no
liberalismo, na globalização e em mais uma fase feroz do capitalismo.
O Estado brasileiro encontrava-se submetido a políticas explicitamente
vinculadas aos interesses do grande capital. A situação política, social e
econômica do país era calamitosa, expressa pelo desmoronamento do
patrimônio público, elevação dos índices da dívida externa e interna, do
desemprego e da informalidade, conformando um quadro de acirramento das
desigualdades sociais.
Diante deste panorama, o governo Lula se depara com o seguinte
impasse: a necessidade de posicionamento entre contraditórios projetos para
nortear sua plataforma política, quais sejam: aquele empenhado com a
manutenção da ordem estabelecida, e aquele comprometido com a
construção de uma nova ordem, cuja prioridade estava voltada para os
interesses da classe trabalhadora (materialização do ideário democrático de
garantia da ampliação dos direitos sociais e da cidadania plena).
A festa da posse, os discursos iniciais do Presidente da República
Luís Inácio Lula da Silva, tanto no Fórum Social Mundial quanto em Davos, o
ideal de redução das desigualdades sociais e a emergente resolução do
problema da fome levavam a crer que o país acabara de “achar o seu rumo”;
65
enfim as classes menos favorecidas da sociedade brasileira teriam um Estado
que governaria também para ela.
Mas, na relação entre teoria e prática, Netto afirma que:
Em poucas palavras, pode-se resumir toda história da
seguinte maneira: com a expressa e resoluta decisão de
manter e aprofundar a macroorientação econômica da era
FHC, o PT abdicou de exercer um governo orientado para
mudar o Brasil numa direção democrático-popular. Com o
Executivo chefiado por Luiz Inácio Lula da Silva, não se
alterou, senão para maior abrangência o comando do capital
parasitário-financeiro decorridos dezoito meses da posse
do ex-operário e ex-sindicalista, a oligarquia financeira
permanece firme e incontestada no comando do centro
político decisório... (2004, p. 13).
Observa-se no contexto atual a tendência de integração do governo Lula
à ordem capitalista estabelecida. E mais que isso, a “submissão total às
práticas e ao discurso liberal (...) perda de autonomia de um projeto visto pela
maioria da população como de ruptura com as formas anteriores de política e
de macroeconomia.” (DIAS, 2006, p.127).
O aumento dos juros e o pagamento da dívida externa como prioridade
das metas do Estado; o crescimento mínimo, a baixa redistribuição de renda e
um alto crescimento dos banqueiros, dos fundos de pensão e dos rentistas
foram as principais marcas do setor econômico do Governo Lula no seu
primeiro mandato. Além destas, este governo também
... aprovou o projeto da PPP (Parcerias Público-Privado);
realiza anualmente o leilão de áreas de exploração do
petróleo; graças aos juros altos, aumentou a dívida interna
(que chegou à casa de 1 trilhão); e aumentou o lucro das
empresas privatizadas (telefonia, eletricidade). (LESBAUPIN,
2006, p. 11).
Ou seja, foi um abandono total ao discurso e a manutenção de uma
ordem já estabelecida, só que agora com uma nova roupagem. Lesbaupin
66
(2006), chega a afirmar que Lula é hoje “o principal defensor da política
econômica neoliberal”.
Paralelamente ao crescimento econômico, a população assiste, mais uma
vez, ao acirramento das expressões da questão social” e à apatia do governo
Lula diante do agravamento das desigualdades sociais. Observa-se neste
governo a submissão da política social à política econômica, reproduzindo
assim a condução política de governos anteriores no âmbito social. Desta
forma, este quadro parece indicar a falta de perspectivas de mudança de
direção política do atual governo acerca da construção de uma sociedade
cidadã.
Como exemplo desta realidade, Lesbaupin (2006), cita o aumento do
superávit primário, a aprovação das reformas da Previdência do setor público e
a reforma tributária, a aprovação da Lei de Falências, no campo fez a opção
pelo agronegócio e deixou para um segundo momento a reforma agrária e a
agricultura familiar. Além de destacar toda a submissão ao FMI e as normas
estabelecidas pelos blocos econômicos aos “países em desenvolvimento”.
Além dos novos projetos de ampliação da CPMF (que a princípio seria um
imposto provisório destinado à saúde, mas parece um tributo permanente e
que não resolve a situação deste setor no país) e a flexibilização das leis
trabalhistas, ou a redução ou fim da proteção social dos trabalhadores.
E como já foi visto neste trabalho, para uma alteração deste quadro e uma
construção de uma política social que atenda as demandas da sociedade, faz-
se necessário uma organização da classe trabalhadora e dos movimentos
sociais. Entretanto, é importante destacar que a conjuntura deflagrada pelo
governo Lula não é nada favorável para tal.
67
As instituições de esquerda construídas nos últimos vinte anos
o PT, o PC do B, a CUT foram desmontadas pelo governo
Lula enquanto oposição de esquerda. Provavelmente, teremos
de nos valer de outros setores: movimentos sociais, ONGs,
Igrejas. (LESBAUPIN, 2006, p. 11).
Diante deste cenário não promissor à ampliação dos direitos sociais,
partindo da contextualização histórica das políticas sociais brasileiras e da
análise acerca dos modelos de intervenção estatal junto às demandas sociais
postas pela classe trabalhadora, pretende-se no capítulo seguinte abordar
sobre as categorias Estado e Sociedade Civil e o jogo político e ideológico que
permeia o cenário de ambos os atores no “espetáculo” da efetivação das
políticas sociais brasileiras. A análise abarcará as Organizações não
Governamentais, cujo processo histórico possui particularidades que permitem
identificar uma profunda refuncionalização do papel destas na intervenção das
expressões da “questão social”.
68
CAPÍTULO II
ESTADO E SOCIEDADE CIVIL NA EFETIVAÇÃO DAS POLÍTICAS
SOCIAIS BRASILEIRAS
2.1 – Um debate conceitual: Estado e Sociedade Civil
O estudo sobre as concepções de Estado e sociedade civil será
inspirado nos conceitos elaborados por Marx (2003 e 2006), Marx e Engels
(2007), por Gramsci (2004) e os interpretados por Coutinho (1996, 2000, 2006
e 2007). Vale ressaltar a importância da fundamentação teórica de Marx,
Engels e Gramsci dado o fato de ser a partir, principalmente, das apreciações
destas fontes, que outros autores, a exemplo de Montaño (2003), Souza Filho
(2001), e Duriguetto (2005) os quais também contribuirão para uma melhor
compreensão acerca dos referidos conceitos –desenvolveram suas
considerações e críticas, a partir da apreensão das dimensões particulares ao
estágio atual do capitalismo.
Iniciemos, pois, com uma passagem dos escritos marxianos bastante
conhecida e citada nas produções intelectuais a exemplo de Bobbio (2007) e
Bottomore (2001), disposta no prefácio da Contribuição à Crítica da Economia
Política. Seu conteúdo foi elaborado a partir da revisão crítica que Marx (2003)
fizera da Filosofia do Direito de Hegel
18
, cujas conclusões gerais subsidiaram
seus estudos subseqüentes:
18
Faz-se necessário destacar que, conforme afirma o próprio Marx (2003), Bobbio (2007) e
Souza Filho (2001), deve-se a Hegel a introdução da teorização da sociedade civil, o qual
desenvolve o estudo sobre tal categoria nas sociedades modernas. Segundo Souza Filho (op.
cit.), a análise hegeliana sustenta-se na constatação da existência de instituições entre a
família e o Estado, desconstruindo assim a visão jusnaturalista de sociedade civil, “... que a
iguala à noção de estado civil como contraponto do estado de natureza. Ou seja, a concepção
69
... na produção social da sua existência, os homens
estabelecem relações determinadas, necessárias,
independentes da sua vontade, relações de produção que
correspondem a um determinado grau de desenvolvimento
das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de
produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a
base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura
jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas
de consciência social. O modo de produção da vida material
condiciona o desenvolvimento da vida social, política e
intelectual em geral. (MARX, 2003, p. 5; grifos nossos).
Depreende-se, pois, que Marx refere-se à sociedade civil como sendo o
conjunto das relações que os homens constroem na sua existência material;
denominado-a de “estrutura econômica da sociedade”; e ao Estado, a
“superestrutura jurídica e política” gerada a partir da base estrutural. Aqui, a
essência do real significado do termo “sociedade civil” encontra-se na
economia política. Por isso mesmo é que Marx (2007) reafirma que o sentido
das “relações jurídicas assim como as formas de Estado”, deve ser
apreendido considerando as condições materiais de existência da humanidade.
Esta afirmação de fato representa uma grande referência nos processos de
compreensão dos conceitos em debate. Também em A Ideologia Alemã
(MARX e ENGELS, 2007), pode-se identificar a expressão conceitual de
Estado e sociedade civil de relevância indiscutível para a abordagem desta
temática, a saber:
... é a verdadeira sede, o verdadeiro palco de toda a história [a
sociedade civil] (...) A sociedade civil compreende o conjunto
das relações materiais dos indivíduos dentro de um estágio
determinado de desenvolvimento das forças produtivas.
Compreende o conjunto da vida comercial e industrial de um
contratualista da sociedade que, em última instância, identifica Estado e sociedade civil sofre
uma profunda revisão a partir de Hegel, na medida em que o filósofo alemão diferencia
definitivamente o Estado da sociedade civil, criando (...) uma teoria triádica da sociedade
(SOUZA FILHO, 2005, p. 6). Esta teoria triádica refere-se à concepção hegeliana sobre a
composição da sociedade: mundo privado (compreendido pela estrutura familiar e relações
particulares); mundo político do Estado e mundo institucional, econômico e estatal da
sociedade civil (“em alusão à dimensão dos interesses privados e econômico-corporativos, as
corporações e a administração da justiça”) (LAVALLE apud. SOUZA FILHO, op. cit., p. 96).
70
estágio e ultrapassa, por isso mesmo, o Estado e a nação,
embora deva, por outro lado, afirmar-se no exterior como
nacionalidade e organizar-se no interior como Estado (MARX e
ENGELS, 2007, p. 33 e 34; grifos nossos).
Mais adiante, nas fundamentações sobre as relações do Estado e do
Direito com a propriedade, os autores complementam:
Com a emancipação da propriedade privada em relação à
comunidade, o Estado adquiriu uma existência particular ao
lado da sociedade civil e fora dela; mas este Estado não é
outra coisa senão a forma de organização que os burgueses
dão a si mesmos por necessidade, para garantir
reciprocamente sua propriedade e os seus interesses, tanto
externa, quanto internamente. (...) Sendo o Estado, portanto, a
forma pela qual os indivíduos de uma classe dominante fazem
valer seus interesses comuns e na qual se resume toda a
sociedade civil de uma época, conclui-se que todas as
instituições comuns passam pela mediação do Estado e
recebem uma forma política. (Ibid., p. 74; grifos nossos).
A partir destas colocações, pode-se constatar que a sociedade civil em
Marx e Engels é a base fundante da história; o locus onde se manifestam as
relações produtivas; pertence ao bloco da estrutura econômica da sociedade,
de onde procede a superestrutura da sociedade compreendida pelo Estado
(instituição política), bem como pelas instituições jurídicas e ideológicas. A
sociedade civil, como parte integrante da base estrutural da sociedade supera,
portanto o Estado e a nação. Porém, para além destas definições, é importante
apreender a essência dos conceitos de sociedade civil e Estado em Marx, os
quais remetem a uma visão de totalidade.
A sociedade civil está inserida em um contexto estrutural societário
determinado pelas relações de produção, associadas ao nível de
desenvolvimento das forças produtivas, produzido historicamente;
independente, portanto, da vontade de alguns. E o Estado, por sua vez, está
inserido nesta sociedade classista de maneira a, sob um invólucro de
71
representação dos interesses universais, garantir os interesses da classe
dominante a partir da exploração e dominação dos “não-proprietários”,
conforme reafirma Coutinho (1996).
A fim de melhor compreender a definição conceitual marxiana de
sociedade civil e do Estado, convém retomar a construção histórica realizada
por Marx e Engels (2007), segundo a qual, a existência da história humana
procede da própria existência dos seres humanos e da relação que estes
estabelecem com a natureza, a partir da necessidade de transformá-la para
criar os seus meios de sobrevivência, “suas condições de existência”, a
“própria vida material humana”. Esta qualidade é que difere o homem do animal
irracional. A construção destes meios de existência, ou seja, dos meios de
produção, depende dos meios de vida existentes e dos que serão
necessários ser confeccionados. O desenvolvimento dos meios de produção
está associado ao crescimento populacional, pois quanto maior for a extensão
da população, maior será a necessidade de construção das formas de
sobrevivência. Assim, tendo em vista que a história humana não se limita à
história de uma cidade, nem tampouco de uma nação, o “intercâmbio entre
nações” está condicionado ao desenvolvimento das forças produtivas, da
divisão do trabalho e das relações de produção.
A divisão do trabalho, por sua vez, provoca a separação entre o trabalho
industrial e comercial e o trabalho agrícola; entre a cidade e o campo. As fases
de desenvolvimento da divisão do trabalho geram distintas formas de
propriedade; “em outras palavras, cada novo estágio da divisão do trabalho
determina, igualmente, as relações dos indivíduos entre si no tocante à
72
matéria, aos instrumentos e aos produtos do trabalho.” (MARX e ENGELS, op.
cit., p. 12).
Sobre o processo de desenvolvimento da divisão do trabalho, Marx e
Engels (op. cit.) afirmam que na primeira forma de propriedade, a divisão do
trabalho ainda acontece de forma tímida; a propriedade sustentava-se nos
limites das relações familiares e a produção girava em torno de atividades
primárias (caça, pesca e agricultura); a segunda forma de propriedade, a do
tipo doméstica, ocorre na Antiguidade, quando o desenvolvimento da divisão
do trabalho incidiu de maneira mais avançada. Neste momento histórico, ocorre
a separação entre o campo e a cidade, com o surgimento dos palácios,
seguida dos distintos interesses entre as camadas do campo e das cidades. No
interior das cidades acontece também a divisão entre o comércio marítimo e a
manufatura. No processo de desenvolvimento e concentração da propriedade
privada, os pequenos proprietários de terra e os desprovidos dos meios de
produção passam a ocupar uma nova função na estrutura social: o
proletariado. Além deste, os proprietários e os escravos também faziam parte
da estrutura social deste período. A terceira forma de propriedade apontada por
Marx e Engels (op. cit.) é a “feudal”, suscitada devido a diversos fatores (a
decadência do poder imperial, a ampliação do domínio romano, a expansão da
agricultura). A divisão do trabalho pouco se expandiu; a estrutura social
compreendia a nobreza fundiária, resguardada pela figura de um monarca, o
clero, os artesãos, jornaleiros, camponeses e os servos (camponeses
determinados ao regime de servidão). A formação da classe burguesa ocorre
de forma lenta e gradual a partir deste período, mediante a necessidade de
organização política das burguesias locais para defender seus interesses
73
contra a nobreza feudal. É justamente no período de constituição da classe
burguesa que se desenvolve a sociedade civil propriamente dita.
O termo sociedade civil apareceu no século XVIII, quando as
relações de propriedade se desligaram da comunidade antiga
e medieval. A sociedade civil enquanto tal se desenvolve
com a burguesia; entretanto, a organização social resultante
diretamente da produção e do comércio, e que constitui em
qualquer tempo a base do Estado e do restante da
superestrutura idealista, tem sido constantemente designada
por esse mesmo nome.” (MARX e ENGELS, 2007, p. 33 e 34).
O fato é que, em todo o desenvolvimento da história humana, os
indivíduos vivenciavam funções sociais pré-estabelecidas pelo sistema
produtivo nos específicos estágios de desenvolvimento das forças produtivas.
Fundamentando-se na análise materialista-histórica de Marx, que parte do real
para produzir suas reflexões, observa-se nas distintas e processuais fases
expansivas da divisão do trabalho uma intrínseca relação entre a forma como a
sociedade se organizava nas relações sociais e políticas, bem como no setor
produtivo.
Em cada caso isolado, a observação empírica deve mostrar
nos fatos, e sem nenhuma especulação nem mistificação, a
ligação entre a estrutura social e política e a produção. A
estrutura social e o Estado nascem continuamente do
processo vital de indivíduos determinados; mas desses
indivíduos não tais como aparecem nas representações que
fazem de si mesmos ou nas representações que os outros
fazem deles, mas na sua existência real, isto é, tais como
trabalham e produzem materialmente; portanto, do modo como
atuam em bases, condições e limites materiais determinados e
independentes de sua vontade. (MARX e ENGELS, op. cit., p.
18; grifos dos autores).
Tal análise, portanto, contrapõe-se àquelas realizadas sobre qualquer
fato histórico desconsiderando o contexto real, a exemplo de possíveis
conceitos equivocados sobre a sociedade civil e Estado, deslocados de uma
visão de totalidade. A construção conceitual deve ocorrer situando o contexto
74
da história da humanidade, do processo de desenvolvimento das forças
produtivas e dos conflitos e contradições existentes entre as relações de
produção e as forças produtivas.
Neste sentido, mesmo considerando as especificidades da época
vivenciada por Marx no período da produção do Dezoito Brumário de Louis
Bonaparte (MARX, 2006), é acertado afirmar que suas constatações acerca do
Estado francês e sua relação com a sociedade são fundamentais para decifrar
os disfarces e nuances existentes no mundo da política; para o
descortinamento entre a essência e a aparência
19
;enfim, para o real
entendimento do conceito de Estado. Trata-se não de um estudo de caso sobre
a particularidade do Estado em um determinado momento, em uma
determinada nação, mas sim de uma teoria política sobre o Estado na
sociedade capitalista. O conceito de Estado é aqui compreendido com sendo
uma instituição a serviço da classe dominante. Para a burguesia, a
consolidação de um Estado “forte e absoluto” era estratégica para garantir a
conquista de seus interesses classistas via deterioração da outra classe social.
Mas é precisamente com a manutenção dessa dispendiosa
máquina estatal em suas numerosas ramificações que os
interesses materiais da burguesia francesa estão entrelaçados
da maneira mais íntima. Aqui encontra postos para sua
população excedente e compensa sob forma de vencimentos
o que não pode embolsar sob a forma de lucros, juros, rendas
e honorários. Por outro lado, seus interesses políticos
forçavam-na a aumentar diariamente as medidas de repressão
e, portanto, os recursos e o pessoal do poder estatal, ao
mesmo tempo que se via obrigada a travar uma guerra
ininterrupta contra a opinião pública e receosamente mutilar e
paralisar os órgãos independentes do movimento social, onde
não conseguia amputá-los completamente. (MARX, 2006,
p.67; grifos nossos)
19
A passagem que segue explicita a atenção marxiana quanto à diferença existente entre a
essência e a aparência: “E assim como na vida privada se diferencia o que um homem pensa e
diz de si mesmo, do que ele realmente é e faz, nas lutas históricas deve-se distinguir mais
ainda as frases e as fantasias dos partidos de sua formação real e de seus interesses reais, o
conceito que fazem de si do que são na realidade” (p. 51).
75
Esta união política, econômica e ideológica entre o aparelho estatal e a
classe dominante, acarretou sérios prejuízos à população, já que “... não pode
dar a uma classe sem tirar de outra
20
.” (MARX, op. cit., p. 140). Assim, o
Estado, na teoria marxiana, está inserido em um contexto contraditório e
integra o bloco dominante da sociedade classista.
Referindo-se às concepções acerca do Estado, Coutinho (2007) afirma
que a grande contribuição de Marx e Engels para a ciência política foi
exatamente a constatação do caráter classista do Estado; a sua formação
encontra-se na sociedade divida em classes sociais; cuja finalidade na história
humana reside na manutenção desta divisão classista, garantindo, assim, a
soberania da classe dominante em detrimento da classe não-dominante;
tornando os interesses desta classe dominante universais aos olhos da
sociedade em geral. Especificamente sobre a estrutura do Estado, os clássicos
Marx, Engels e Lenin enfatizam o caráter repressivo do Estado, obviamente
levando em consideração o perfil e as determinações estatais do momento
20
“Depois que a primeira Revolução transformara os camponeses de seu estado de semi-
servidão em proprietários livres, Napoleão confsolidou e regulamentou as condições sob as
quais podiam dedicar-se à exploração do solo francês que acabava de lhes ser distribuído e
saciar sua ânsia juvenil de propriedade. Mas o que, agora, provoca a ruína do camponês
francês é precisamente a própria pequena propriedade, a divisão da terra, a forma de
propriedade que Napoleão consolidou na França; precisamente as condições materiais que
transformaram o camponês feudal em camponês proprietário, e Napoleão em imperador. Duas
gerações bastaram para produzir o resultado inevitável: o agravamento progressivo da
agricultura, o endividamento progressivo do agricultor. A forma "napoleônica" de propriedade,
que no princípio do século XIV constituía a condição para libertação e enriquecimento do
camponês francês, desenvolveu-se no decurso desse século na lei da sua escravização e
pauperização. E esta, precisamente, é a primeira das idées napoléoniennesque o segundo
Bonaparte tem que defender. Se ele ainda compartilha com os camponeses a ilusão de que a
causa da ruína deve ser procurada, não na pequena propriedade em si, mas fora dela, na
influência de circunstâncias secundárias, seus experimentos arrebentarão como bolhas de
sabão quando entrarem em contato com as relações de produção”. (MARX, 2006, P. 135, 136)
76
histórico vivido pelos referidos teóricos
21
. Diferentemente, o contexto histórico
em que Gramsci faz suas reflexões teóricas demonstrava que a organização e
mobilização política das classes e diferentes grupos sociais haviam
conquistado legitimidade e certa autonomia frente tanto à esfera econômica,
quanto às instituições repressivas estatais. Tal explicação contribui para um
melhor entendimento sobre a construção gramsciana das suas novas e
diferentes constatações acerca do conceito de Estado:
... que habitualmente é entendido como sociedade política (ou
ditadura ou aparelho coercitivo para adequar a massa popular
a algum tipo de produção e à economia e um dado momento);
e não como um equilíbrio entre sociedade política e sociedade
civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a inteira
sociedade nacional, exercida através de organizações ditas
privadas, como a Igreja, os sindicatos, as escolas, etc.)
(GRAMSCI apud COUTINHO, 2007, p. 126 e 127 grifos do
autor)
Sendo assim, Gramsci (apud COUTINHO, 2007) apresenta a
idéia de que o Estado (no seu sentido mais amplo) reúne a sociedade política
(referente ao “Estado em sentido estrito” ou ao “Estado-coerção”) e a
sociedade civil. A primeira é constituída “pelo conjunto dos mecanismos
através dos quais a classe dominante detém o monopólio legal da repressão e
da violência e que se identifica com os aparelhos de coerção sob controle das
burocracias executiva e policial-militar”; a sociedade civil é “formada
precisamente pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração
e/ou difusão das ideologias, compreendendo o sistema escolar, as Igrejas, os
partidos políticos, os sindicatos, as organizações profissionais, a organização
material da cultura (revistas, jornais, editoras, meios de comunicação de
massa), etc.” (COUTINHO, op. cit., p. 127).
21
O período de existência de Marx e Engels foi marcado pela privação da participação política
da sociedade, restando aos raros grupos civis organizarem-se secretamente dada a conjuntura
repressiva e opressora do Estado (COUTINHO, 2007).
77
Vale ressaltar algumas questões fundamentais postas por Gramsci, para
garantir o melhor entendimento sobre a idéia de “Estado ampliado”, o qual
abarca as duas esferas: da sociedade política (Estado estrito) e civil. Para o
autor, existem dois pontos cruciais que diferenciam tais esferas: um referente
ao papel desempenhado na sociedade e nas relações de dominação e de
poder exercido e o outro à “materialidade (social-institucional) própria”. Se
ambas as esferas compreendem o Estado que para o autor pertence ao
momento da superestrutura – têm, portanto, a função de garantir a manutenção
e a expansão da base econômica, mediante os interesses classistas. Visando o
cumprimento desta função, no interior da sociedade civil ou a partir desta, as
classes lutam pela hegemonia
22
mediante o consenso e a direção política. No
caso da sociedade política, o instrumento utilizado é a ditadura ou a dominação
por meio da coerção. A segunda questão gramsciana apresentada diz respeito
à “materialidade (social-institucional) própria”: as instituições da sociedade
política (sob o comando do executivo e policial-militar) estão dispostas nos
próprios aparelhos repressivos do Estado, as da sociedade civil “...são os que
Gramsci chama de ‘aparelhos privados de hegemonia
23
’, ou seja, organismos
sociais coletivos voluntários e relativamente autônomos em face da sociedade
política.” (COUTINHO, 2007, p. 130)
Em síntese, sobre a conceituação gramsciana de sociedade civil, pode-
se afirmar que:
22
A conquista da hegemonia somente ocorrerá quando a classe candidata alcança ascensão
em amplitude nacional.
23
Refere-se aos organismos oriundos da luta de classes, a exemplo dos sindicatos, jornais de
opinião, partidos políticos, associações, etc. Estes “aparelhos” representam a possibilidade
que Gramsci reconhece quando afirma que ‘um grupo social pode e mesmo deve ser dirigente
[hegemônico] já antes de conquistar o poder governamental’; possibilidade que, aliás, no
quadro das sociedades complexas, onde o Estado se ‘ampliou’, torna-se também necessidade,
que prossegue Gramsci ‘essa é uma das condições principais para a própria conquista
do poder” (COUTINHO, 2006, p. 41).
78
1) a sociedade civil é para Gramsci um momento do Estado
ampliado, um espaço no qual têm lugar três relações de poder,
ainda que se trate de um espaço dotado de autonomia relativa
em face da sociedade política, ou seja, do Estado em sentido
estrito;
2) portanto, não se apresenta em Gramsci uma posição
dualista, que contraponha de modo maniqueísta a sociedade
civil (enquanto algo globalmente positivo) ao Estado
(concebido como algo intrinsecamente mau): a sociedade civil
nunca é homogênea, mas se apresenta como uma das
principais arenas de luta de classe e, portanto, como palco de
intensas contradições;
3) a sociedade civil é um momento da superestrutura
político-ideológica, condicionada ‘em última instância’ pela
base material da sociedade (que é o local onde tem lugar a
gênese das classes) (COUTINHO, 2006, p. 41).
Tomando um caminho diferenciado, Bobbio (2007), ao desenvolver
análise acerca das definições e concepções que envolvem a sociedade civil, e
entendendo que o estudo sobre o significado do referido termo esassociado
ao estudo do Estado
24
, organiza seu pensamento partindo da idéia de que a
explicação do termo a partir de um sentido “negativo” se sobressai em relação
a uma visão positiva” da mesma. Desta forma, comumente o significado do
termo é atribuído à negação do outro: sociedade civil é o conjunto das relações
sociais não reguladas pelo Estado; é uma esfera não política; enfim, refere-se
ao não-estatal. Ainda assim existem, para o autor, três diferentes significados
que englobam a acepção não-estatal de sociedade civil: pré-estatal, como
sendo uma pré-condição de Estado, ou que ainda não o é; anti-estatal,
compreendendo-a como uma antítese e, portanto, como uma alternativa ao
Estado; pós-estatal, entendendo-a como existência a partir da decomposição e
24
Segundo o autor, dada a explícita dicotomia existente entre os referidos termos, o uso
habitual do termo sociedade civil vinculado ao Estado ou ao sistema político ocorreu a partir de
Marx, quando, no prefácio de Para a crítica da economia política (1859), inspirou-se em Hegel
para expor suas deduções sobre o termo: “as instituições jurídicas e políticas [entendidas aqui
como sendo a própria sociedade civil] tinham suas raízes nas relações materiais de existência”,
definindo assim a sociedade civil como o lugar das relações econômicas, ou melhor, das
relações que constituem ‘a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e
política” (BOBBIO, op. cit., p. 38).
79
extinção do Estado. Esta última representa as idéias gramscianas, segundo as
quais, sob a influência do pensamento marxista, a gênese da sociedade civil
ocorrerá mediante a destruição do Estado, através do qual a sociedade civil
esgotará a sociedade política; pois a hegemonia garantirá à sociedade civil a
liberdade diante da sociedade política. Por outro lado, o incomuns as
atribuições em sentido “positivo” postas ao termo sociedade civil. Entretanto,
dentre as quais é possível identificar: “é o lugar onde surgem e se desenvolvem
os conflitos econômicos, sociais, ideológicos, religiosos que as instituições
estatais têm o dever de resolver ou através da mediação ou através da
repressão” (BOBBIO, op. cit., p. 35 e 36).
Retomando as idéias marxianas e gramscianas, Bobbio (op. cit.),
salienta que, apesar da influência do pensamento marxiano sobre o termo
sociedade civil, e a relação dicotômica desta com o Estado, a apropriação do
seu significado não aconteceu de forma linear entre os marxistas, a exemplo de
Gramsci que, contrariamente à afirmação marxiana (a qual centra a sociedade
civil no campo da estrutura), localiza-a no momento da superestrutura
25
.
De fato, conforme avalia Coutinho (2007), acertadamente, Bobbio
apresenta diferenças cruciais entre os conceitos de sociedade civil elaborados
por Marx e Gramsci – referentes à disposição desta e do Estado nas esferas da
estrutura econômica e da superestrutura da sociedade, conforme já citado
anteriormente porém, para o autor, o equívoco reside justamente no fato de
que a constatação de Bobbio, além de reduzir a amplitude conceitual de Marx e
25
A passagem de Gramsci a qual Bobbio se fundamenta para construir tais afirmações é a
seguinte: “... dois grandes planos superestruturais: o que pode ser chamado de ‘sociedade civil’
(isto é, o conjunto de organismos designados vulgarmente como privados’) e o da sociedade
política ou Estado’, planos que correspondem, respectivamente, à função de ‘hegemonia’que o
grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de ‘domínio direto’ ou de comando, que
se expressa no Estado e no governo ‘jurídico’”. (GRAMSCI,2004, p. 20 e 21)
80
Gramsci focalizando a análise em torno da localização da categoria na
estrutura ou superestrutura da sociedade, omite que, em Gramsci, mesmo a
sociedade civil tendo sido deslocada para a superestrutura; a estrutura, a base
material, continua pertencendo à base econômica. Esta é a centralidade da
análise tanto de Marx, quanto de Gramsci que, respeitados os momentos
históricos vivenciados por ambos, garante a fidelidade analítica “gramsciana do
princípio básico do materialismo histórico: o de que a produção e reprodução
da vida material, implicando a produção e reprodução das relações sociais
globais é o fator ontologicamente primário na explicação da história”
(COUTINHO, 2007, p. 123). Desta forma, “Gramsci não inverte nem nega as
descobertas essenciais de Marx, mas ‘apenas’ as enriquece, amplia e
concretiza no quadro de uma aceitação plena do método do materialismo
histórico” (Ibid.).
É neste sentido que Montaño (2003) aponta outras considerações
fundamentais para a crítica da análise construída por Bobbio. Segundo aquele,
ocorrem nesta análise algumas limitações. A apresentação do confronto
conceitual de sociedade civil entre Marx e Gramsci acontece de forma
desarticulada e restrita, conforme salientado por Coutinho (2007). A
apreciação dos conceitos de sociedade civil e do Estado sob a enfática
separação entre as esferas da estrutura e da superestrutura, ignora a teoria
gramsciana de “Estado ampliado”, ou seja, desconsidera a existência do
Estado em seu sentido amplo (o qual engloba a sociedade civil e a sociedade
política) e do Estado em seu sentido estrito (que faz parte da sociedade política
e consequentemente, do Estado “amplo”). Desta forma, Montaño deduz que o
estudo de Bobbio atrofia a amplitude conceitual de Marx e Gramsci,
81
confinando-lhes um caráter setorializado e fragmentado. Vale reafirmar,
portanto a centralidade da discussão posta por Gramsci: mesmo tendo
revelado distinções nas dimensões funcionais e institucionais das esferas da
sociedade civil e da sociedade política, é perceptível a unidade existente entre
ambas, a qual explica a vinculação de ambas no interior do Estado (sentido
amplo).
O debate sobre sociedade civil é amplo e polêmico, em função da
própria natureza do termo
26
. Entretanto, na atual conjuntura, situar com rigor
teórico os conceitos de Estado e sociedade civil faz-se imperativo, uma vez que
se trata de um debate que vem sendo travado por diferentes correntes do
pensamento social e político. Neste sentido, a análise e conceituação
gramsciana é o que norteará as reflexões que serão feitas acerca da relação
Estado/sociedade civil.
2.1.1 O debate contemporâneo em torno do conceito de
Sociedade Civil
As discussões acerca da categoria sociedade civil tornaram-se
efervescentes a partir da década de 1970, adquirindo centralidade nos espaços
de disputa política e ideológica de amplitude nacional e internacional. O debate
atual é travado a partir das seguintes contraposições: de um lado, a defesa da
concepção gramsciana, que conceitua a sociedade civil como a “esfera de
expressão, organização e luta dos interesses classistas” (DURIGUETTO, 2005,
26
Que se remete ao jusnaturalismo e toda a tradição liberal clássica.
82
p. 85); do outro lado, a concepção de que a sociedade civil é uma esfera
autônoma, cuja organização social em prol da ampliação dos direitos civis e
políticos se a partir de ações individuais. Esta última concepção está
associada, segundo Duriguetto (op. cit.) à emergência dos novos movimentos
sociais e ao acontecimento de alguns fatos históricos (a crise do socialismo
real e a crise do Welfare State das sociedades liberal-democráticas européias).
Neste sentido, a produção do alemão Habermas “Teoria da ação comunicativa”
tornou-se uma grande referência teórica para os estudiosos da categoria em
questão, influenciando desta maneira uma diversidade de textos sobre a
temática. O autor apresenta duas estruturas de racionalidade presentes nas
sociedades modernas: a racionalidade instrumental, ou rao instrumental-
estratégica (SOUZA FILHO, 2001), constituída pelas esferas econômica e
política (da administração pública), cujos interesses dos indivíduos estão
centrados na busca do lucro e do poder político; a estrutura da racionalidade
comunicativa ou razão interativo-comunicacional (SOUZA FILHO, op. cit.),
referente ao espaço onde ocorre a interação social entre os indivíduos a partir
do estabelecimento de normas e regras na sociedade. É neste espaço,
denominado de “mundo da vida”, que acontecem as vivências; onde os
indivíduos expressam seus sentimentos, se posicionam contra ou a favor da
“burocratização” e da mercantilização, buscando formas de solidariedade e de
coesão social” (DURIGUETTO, op. cit. p. 86). Assim, de acordo com Souza
Filho (op. cit., p. 102) existe, na perspectiva habermasiana, uma proposta de
um “sistema dual [razão instrumental-estratégica e interativo-comunicacional]
processado através de um modelo triádico” (por este ultimo, leia-se: Estado,
mercado e mundo da vida).
83
Nesta mesma direção, Souza Filho (2001) reafirma a preocupação sobre
a “polêmica contemporânea” em torno de novas concepções sobre a sociedade
civil, que, apesar da riqueza teórica incontestável, são desprovidas da
influência conceitual clássica: não apresentam relação entre a sociedade civil e
o Estado. Nestes estudos, obviamente, prevalece a desconsideração da
contribuição marxiana tendo em vista seu caráter revolucionário, envolvido pela
visão de totalidade, contrário à linha conceitual da concepção habermasiana,
grande responsável pela base conceitual da referida discussão.
A base conceitual habermasiana, portanto, é totalmente contrária à
teoria marxista, pautada na sociedade classista; a sociedade não é analisada a
partir da existência de uma base material econômica estrutural, a partir da qual
é desencadeada a superestrutura, cuja unidade situa-se na divisão de classes
sociais que lutam em prol de seus interesses; esta idéia é substituída pela
divisão da sociedade entre estruturas racionais autônomas, cada uma com
seus indivíduos com interesses específicos e autônomos. O foco aqui é nas
ações individuais, e não nas classistas. Tal visão apresenta um caráter
estritamente fragmentado, que limita os interesses ditos individuais,
enquadrando-os em esferas autônomas que se relacionam somente a partir da
comunicação. A luta pelos direitos sociais é travada em um nível comunicativo,
consensual e não combativo, como se fosse possível “solucionar os
problemas”
27
sociais através da disputa comunicativa entre os indivíduos
locados nas estruturas da racionalidade instrumental e comunicativa
respectivamente.
27
Habermas apud Souza Filho (2001, p. 103).
84
Ocorre no então chamado “mundo da vida” a manifestação das ações
comunicativas promovidas pelo “conjunto de associações voluntárias
desvinculadas do mercado e do Estado”, denominadas por Habermas de
sociedade civil (DURIGUETTO, op. cit. p. 86). De fato, sobre a composição da
sociedade civil, Habermas afirma que:
O seu núcleo institucional é formado por associações e
organizações livres, não estatais e não econômicas, as quais
ancoram as estruturas de comunicação da esfera pública nos
componentes sociais do mundo da vida. A sociedade civil
compõe-se de movimentos, organizações e associações, os
quais captam os ecos dos problemas sociais que ressoam nas
esferas privadas, condensam-nos e os transmitem, a seguir,
para a esfera pública política. O núcleo da sociedade civil
forma uma espécie de associação que institucionaliza os
discursos capazes de solucionar problemas, transformando-os
em questões de interesse geral no quadro das esferas
públicas. (HABERMAS apud SOUZA FILHO, 2001, p. 103).
No mundo da vida, de acordo com as análises proferidas por Souza
Filho (op. cit.), o referido “sistema”, tem comandado um processo de invasão
“colonizadora” no mundo da vida a partir da ação coercitiva gerenciada pela
racionalidade instrumental mediante as ações do Estado (via poder) e do
mercado (via dinheiro). Diz-se “invasão”, pois a tarefa de disseminação
ideológica está definidamente instituída como função do mundo da vida
(espaço da razão interativo-comunicacional) e não da racionalidade
instrumental. Os resultados desta “colonização” forçada têm se decaído
negativamente sobre a possibilidade emancipatória do mundo da vida. Para
Habermas, faz-se necessário, neste contexto, uma ação que barre tal
“colonização”.
Cohen e Arato (apud SOUZA FILHO, op. cit.), inspirados na concepção
habermasiana, tentam realizar algumas aproximações entre a Teoria da Ação
85
Comunicativa e a idéia gramsciana de sociedade civil, na tentativa de suprir a
lacuna afirmada por ambos, posta pela inexistência conceitual acerca da
categoria em questão, apesar dos próprios autores afirmarem a impossibilidade
de se realizar uma conexão pura, sem acréscimos. A sugestão seria então a
criação de uma “dimensão institucional do mundo da vida distinta da dimensão
simbólico-linguística, especializada na reprodução de tradições, solidariedade e
identidades.” (SOUZA FILHO, op. cit., p. 103). O conceito de sociedade civil
destes autores estaria fundado nesta dimensão institucional do mundo da vida,
que juntamente com o sistema teria “... uma dimensão pública representada
pelo Estado e pela sociedade civil, respectivamente, assim como possuiria uma
dimensão privada expressa pelo mercado, do ponto de vista do sistema, e pela
família e relações de amizade, na ótica do mundo da vida” (Ibid., p. 103).
A análise de Duriguetto (2005) em torno da produção teórica de Cohen e
Arato apresenta uma preocupação dos autores com a perspectiva e atuação
política dos movimentos sociais contemporâneos: “afirmamos que nossa teoria
reconstruída da sociedade civil é indispensável para entender adequadamente
a lógica, o que está em jogo e as potencialidades dos movimentos sociais
contemporâneos” (COHEN e ARATO, apud DURIGUETTO, op. cit.). De acordo
com os autores, a ação política dos referidos movimentos sociais tem dois
caminhos a trilhar: sob uma postura ofensiva e defensiva. A primeira, possibilita
aos movimentos sociais a proposição de temas relevantes para o conjunto da
sociedade, percepção e resolução de problemas, uma capacidade
argumentativa, garantindo uma “atmosfera consensual” no exercício de
influências sobre a sociedade política. A postura defensiva situa-se no campo
cultural, dos discursos, dos valores e visões de mundo. A centralidade da ão
86
dos movimentos sociais na esfera da sociedade civil reside no âmbito “da
democratização dos valores, normas e instituições” (DURIGUETTO, op. cit., p.
87).
O fato é que, seja via postura ofensiva, seja via defensiva, aos
movimentos sociais não é apresentado o caminho da luta política. A disputa
aqui é travada por meio do discurso consensual, garantindo, assim, um clima
harmonioso entre os indivíduos integrantes dos subsistemas autônomos. Desta
forma, supondo que os movimentos sociais se apropriem ou se orientem pelas
proposições habermasianas, é impossível identificar alguma possibilidade real
de transformação societária.
Partindo do pressuposto de que a sociedade é dividida entre classes
antagônicas, cuja divisão é absurdamente desigual, haja vista a necessidade
de uma classe social se apropriar da outra para manter-se detentora dos meios
de produção, garantindo assim o acúmulo do capital, e que a classe explorada
representa quantitativamente maior parte da sociedade, pode considerar que, a
depender da vontade coletiva desta massa explorada e das lutas travadas no
interior da sociedade entre as classes sociais com seus distintos e respectivos
interesses, torna-se visível a possibilidade de mudança na ordem social
determinada.
De acordo com a teoria gramsciana, as classes subalternas podem
chegar ao poder, porém através da guerra de posição” e não da disputa
consensual entre os indivíduos das estruturas de racionalidade. Esta “guerra de
posição” pressupõe “conquistas progressistas ou ‘processuais’ de espaços de
direção político-ideológica e de formação de um consenso organizado e
participativo no campo da sociedade civil” (DURIGUETTO, 2005, p. 84). Vale
87
ressaltar que o consenso a que se refere Gramsci é amplamente distinto
daquele proposto por Habermas. Sob a influência do pensamento gramsciano,
pode-se afirmar que o consenso indicado por Habermas ocorreria entre as
distintas classes sociais (com interesses profundamente antagônicos); neste
caso, jamais haveria consenso na luta pela tomada do poder. Em Gramsci, o
consenso ocorreria no interior de uma classe social, na sociedade civil
organizada, cujas ações formariam uma “vontade coletiva popular’ que se
expressará na ascensão de uma nova classe (ou bloco de classes) ao poder
político, explicitando a criação de um novo ‘bloco histórico
28
” (Ibid.).
2.2 – A configuração da Sociedade Civil no Brasil a partir do final da
década de 1970
A conjuntura política do país no final da década de 70 foi marcada pelo
processo de redemocratização política, associada à reativação dos
movimentos sociais e sindicais e da configuração dos novos movimentos
sociais”
29
. Eclodiam mobilizações em defesa da ampliação dos direitos civis,
políticos, sociais e trabalhistas como resistência à ditadura política instaurada,
28
Atribui-se a bloco histórico” o sentido de uma “ordem social em que a classe dominante na
esfera econômica detém também a dominação (sociedade política) e a hegemonia (sociedade
civil) sobre o conjunto da sociedade.” (DURIGUETTO, op. cit., p. 84)
29
Foi no contexto de reformas estatais, mudanças políticas e econômicas da sociedade que os
estudo sobre os “novos movimentos sociais” tomaram fôlego nas ciências sociais, a partir dos
anos 60 na Europa e nos EUA devido aos acontecimentos históricos resultantes das
contradições do capitalismo e mais tarde na década de 80 no caso Latino Americano. Segundo
Alvarez (2000) esta restrita divisão conceitual entre movimentos sociais novos” e velhos”
considera “novos” aqueles movimentos para os quais a identidade era importante e propunham
uma nova forma de fazer política e novas formas de sociabilidade tendendo a valorizar a
transformação no espaço das microrelações sociais. As análises focalizadas em velhos e
novos m como conseqüência uma visão fragmentada da totalidade social e repercussões
para a unidade da luta social. Tais conseqüências não analíticas como nas praticas sociais
podem ser identificadas no contexto atual com o avanço da proposta do chamado ”terceiro
setor”, a qual será melhor apresentada ainda neste capítulo.
88
que neste momento perdera sua sustentação. Neste período, de acordo com
Duriguetto (2005), as ações da sociedade civil ressoavam com relevância
positiva, ao passo que as do Estado, de forma negativa, dado o seu perfil
autoritário, controlador, centralizador e repressivo. A relação entre a sociedade
civil e o Estado era, portanto conflituosa e oposicionista. O posicionamento da
sociedade civil era expressivo com relação ao Estado: rejeição à ditadura.
Seu uso [conceito de sociedade civil] entre nós [Brasil], tanto
na Universidade quanto no jornalismo político, data da
segunda metade dos anos 1970, quando se acentuam os
processos de corrosão da ditadura militar implantada em 1964:
essa corrosão foi provocada, em grande parte, precisamente
pela irrupção de novos movimentos sociais típicos de uma
sociedade civil moderna, entre os quais se destacou o novo
sindicalismo operário surgido na região mais industrializada do
país, o chamado ABC paulista. (COUTINHO, 2006, p 42).
É pertinente sinalizar uma análise fundamental de Coutinho (1993,
2006), acerca do processo de formação político econômico e social do Estado
brasileiro, com traços particulares e “não-clássicos”. Segundo o autor, o Estado
brasileiro sempre foi qualificado como sendo forte e soberano em relação à
sociedade civil, caracterizando-se assim como um país de formação “oriental”.
Gramsci (apud COUTINHO, 1993 e 2006) apresentou duas configurações de
formação social e política da sociedade: a do tipo “oriental”, marcada pela
presença de um Estado extremamente forte em detrimento de uma sociedade
civil “primitiva e gelatinosa”; e a do tipo “ocidental”, caracterizada pela
conformação de um equilíbrio entre o Estado e a sociedade civil
30
.
30
Reside aqui uma discordância pontual apresentada por Coutinho (1993) com relação a estas
definições: sobre a formação “ocidental”, Gramsci não afirma que a sociedade civil,
contrariamente ao que ocorre na “oriental” estaria numa posição independente e sobreposta
em relação ao Estado; afirma apenas que há uma relação moderada, equilibrada entre ambos.
89
Retomando o processo de formação político, social e econômico do
Brasil, de fato suas raízes são oriundas do início da sua história. Por isso
mesmo é que Coutinho (1993) inspira-se no pensamento gramsciano e no
conceito leniniano de “via prussiana”
31
para analisar o processo histórico da
evolução política do país. Tanto o conceito de Lenin da “via prussiana”, quanto
o de Gramsci de “revolução passiva
32
que segundo Coutinho (Ibid.) são
“análogos” tratam de determinadas mudanças ocorridas nos processos de
formação, as quais não são oriundas de uma construção coletiva, de uma
unidade nacional, mas sim de um determinado grupo que exerce o domínio
econômico e político da sociedade, não acarretando assim a “correção” de
atrasos existentes, ou seja, trata-se de uma “revolução passiva” “pelo alto”.
Na verdade, o que ocorre é uma revolução sem revolução”, uma revolução
“transformista”, pois o processo revolucionário exclui a participação
democrática do povo na luta pela transformação e utiliza-se da cooptação de
forças/ representações políticas. Ocorre, portanto, uma “revolução-
restauração”, ou seja “... o desenvolvimento das forças produtivas, corresponde
a conservação de elementos atrasados das relações sociais” (COUTINHO,
2007, p. 66). No Brasil, é possível sinalizar, no contexto da formação do seu
Estado, pelo menos dois fatos históricos que, curiosamente podem ser
explicados a partir do conceito gramsciano de “revolução passiva” e das “vias
31
Refere-se à análise de Lenin sobre o caso da Prússia. Em comparação com o
desenvolvimento capitalista da Prússia com os Estados Unidos, a Inglaterra e a França, lenin
constatou que houve no primeiro uma modernização conservadora, pois o capitalismo
configurado conservava elementos da velha ordem” (COUTINHO, 1993, p. 78) mediante
acordos políticos entre segmentos historicamente dominantes e a emergente classe dominante
burguesa.
32
Gramsci criou o conceito de “revolução passiva” para entender o processo de formação
social e política italiana, mais precisamente, alguns fatos históricos marcantes desta formação
datados do século XIX. Segundo suas constatações, as transformações ocorridas tratam-se de
“revoluções pelo alto”, pois não se deram mediante a participação da massa e não
acarretaram mudanças profundas na estrutura da sociedade.
90
prussianas” de Lenin: na chamada “Proclamação da Independência” do Brasil
sobre Portugal, o primeiro imperador brasileiro era filho do então rei de
Portugal; após o período ditatorial iniciado em 1964, o primeiro presidente civil
era integrante do partido de sustentação dos governos militares. Portanto, em
ambas as situações a mudança política não alterou estruturalmente a
sociedade brasileira, pelo contrário, permaneciam os elementos da antiga
ordem.
O cenário da formação da sociedade brasileira foi constituído de
governos representantes das classes dominantes, cujas ações sempre
rumaram para a reprodução da ordem, para a manutenção do bloco
hegemônico no poder, cujas revoluções” ou mudanças conjunturais
estabelecidas excluíram a participação popular da tomada de decisões, da
construção dos projetos de mudanças.
Prosseguindo com as considerações em torno do processo de formação
da sociedade brasileira, em especial no extenso período de ditadura vivenciado
pelo país desde 1964, Coutinho (1993) sinaliza que
“...numa formação social do tipo oriental como a brasileira, em
que a sociedade civil ainda era fraca, as classes dominantes
não experimentam a necessidade, quando querem dar um
golpe e estabelecer uma ditadura, uma dominação sem
hegemonia, de recorrer a mecanismos próprios da sociedade
civil.” (COUTINHO, 1993, p. 88)
Entretanto, apesar da política de repressão, perseguição e
desmobilização dos movimentos sociais, ocorreu, no interior da sociedade civil,
um efeito contrário: foi exatamente neste momento que a sociedade civil
alcançou níveis expressivos de desenvolvimento. Isso significa que, mesmo
diante das incansáveis tentativas de cooptação e dominação dos organismos
da sociedade civil, o Estado autoritário não conseguiu abafar sua organização.
91
No processo de reabertura política, a conjuntura era ainda mais favorável para
a sociedade civil, em decorrência da sua própria postura combativa. O governo
construiu um projeto de abertura, obviamente excluindo a participação da
sociedade civil – ou seja, a construção foi “pelo alto” – o qual previa a
participação de alguns segmentos, porventura cooptados. Entretanto, para
surpresa do Estado ditatorial, a sociedade civil organizada, extrapolando os
limites do “projeto de abertura”, acabou por “dar lugar a uma abertura bem
mais radical do que a prevista no projeto originário do governo militar”
(COUTINHO, op. cit., p. 89). Ddecorre a afirmação de que “o Brasil havia se
tornado, malgrado tudo, uma sociedade gramscianamente ‘ocidental” (Ibid.).
Faz-se oportuno sinalizar aqui um outro conceito gramsciano: “guerra de
posições”, cuja centralidade encontra-se na disputa pela hegemonia, nas
alianças políticas no interior das classes sociais como uma importante
estratégia. Nos escritos do rcere, Gramsci ultrapassa a sua visão inicial de
remeter à fábrica a condição de “território nacional’ da classe operária”, pois
entendeu que, para o operariado se tornar uma “classe dirigente” deve ir além
dos limites das instituições econômicas, “mas deve também exercer sua
direção político-cultural sobre o conjunto das forças sociais que, por essa ou
aquela razão, desse ou daquele modo, se opõem ao capitalismo.”
(COUTINHO, 2007, p. 64 e 65). Para tanto se faz necessário que a classe
operária apreenda o “território nacional”, onde está inserido e aposse “os
mecanismos de reprodução global da formação econômico-social da formação
que pretende transformar” (Ibid., p.65; grifos do autor).
Analisando o contexto brasileiro com base nas constatações teóricas
gramscianas acima apresentadas, pode-se observar que, no processo de
92
reabertura política do final da década de 70, os “sujeitos políticos oposicionistas
se empenharam na ‘guerra de posição’ que pôs fim à ditadura”, dado o
envolvimento, a mobilização da população em prol de um projeto de unidade
nacional. Entretanto, a superação da ditadura instaurada se deu de maneira
“pacífica”, “negociada”. O “projeto de abertura“ foi construído “pelo altocom a
participação de organismos “de baixo”, porém, mesmo com a presença da
oposição representando a maioria no Colégio Eleitoral (fundado pelos governos
militares) “terminou por preponderar uma solução ‘pelo alto’, conciliadora”
(COUTINHO, 2006, p. 46). Daí decorre uma constatação fundamental para o
entendimento do conceito de sociedade civil no Brasil apreendido pelos
estudiosos deste período: os sujeitos políticos envolvidos neste processo de
reabertura não se atentaram, com a importância devida, para um “risco” que
esta forma de transição política (acordada, combinada, negociada) poderia
acarretar:
o de que o regime político dela resultante terminasse por
reproduzir, ainda que atenuados, alguns dos traços mais
característicos e perversos do tradicional modo ‘prussiano’ e
‘passivo’ de promover as transformações sociais no Brasil.
Uma transição desse tipo que poderíamos chamar de ‘fraca’
– implicava certamente uma ruptura com a ditadura implantada
em 1964, possibilitando em conseqüência a criação de um
regime de liberdades formais; mas conservava muitos dos
traços autoritários e excludentes que caracterizam o modo
tradicional de se fazer política no Brasil. (COUTINHO, 2006, p.
46).
Na segunda metade da década de 80 ocorre uma reconfiguração na
relação entre o Estado e a sociedade civil, bem como dos seus respectivos
papéis na sociedade. Segundo Duriguetto (2005), as ações populares
experimentaram, neste período, uma nova fase: a “institucional” em
decorrência do processo de construção da Constituição Federal de 1988
93
(CF/88) O “movimento de participação popular na Constituinte” significou para
a sociedade a garantia da inscrição das demandas populares na nova
Constituição Federal.
Desta forma, diferente do que ocorreu na conjuntura nacional do período
referente aos governos militares, quando prevalecia uma direção oposicionista
da sociedade civil em relação ao Estado posições estas expressadas em
produções acadêmicas e debates promovidos no interior dos movimentos
sociais a década de 80 constituiu de fato uma mudança no perfil de
relacionamento entre o Estado e a sociedade civil: a ação “conjunta” entre
ambos no processo de constituinte. A partir de então os debates e produções
acadêmicas passaram a estar focados nas experiências de gestão pública
com as novas modalidades de administração popular democrática”
(DURIGUETTO, 2005, p. 89), bem como na atuação da sociedade civil em
relação às políticas sociais.
Nesta perspectiva, a partir do processo de construção da CF/88, as
relações entre a sociedade civil e as políticas socais sofrem um
redimensionamento: as ações populares conseguiram garantir espaço
significativo na formulação e controle das políticas sociais. A CF/88 representa,
desta forma, a garantia de novos espaços de participação popular na gestão,
proposição e organização das políticas sociais, a exemplo dos conselhos de
políticas e dos conselhos de direitos (cuja composição é paritária, ou seja,
metade dos seus membros são representantes do Estado e a outra metade, da
sociedade civil organizada). Trata-se de “novos espaços públicos de debate,
negociação e deliberação, em que se buscaria formular a noção de interesse
público, bem como o papel e as responsabilidades estatais.” (Ibid. p. 89).
94
Entretanto, pouco tempo após a promulgação da CF/88, na década de
90 o país experimenta, conforme desenvolvido no capítulo anterior, a
invasão de uma fatídica onda neoliberal, que acarreta transformações
profundas no país nas suas dimensões políticas, econômicas sociais e
ideológicas. Desta forma a então
“conjuntura constitucional’ e seus avanços no campo dos
direitos sociais e da participação popular na sua formação e
fiscalização foi contra-arrestada pelo avanço de um discurso
que, usando o argumento da necessária redefinição das
relações entre o Estado e a sociedade, passa também em
investir na participação social no campo da sociedade civil.
Esta participação é incentivada, a partir dos anos 1990, pelo
projeto neoliberal em ascensão, não na direção do controle
social na gestão e implementação das políticas sociais, mas
na direção de transferir e atribuir às organizações da
sociedade civil o papel de agentes do bem-estar social
mediante práticas voluntárias, filantrópicas e caritativas”.
(DURIGUETTO, 2005, p. 89 e 90).
Nesta direção, o projeto neoliberal retoma a imagem negativa existente
na década de 80 sobre o Estado associada à idéia positiva da sociedade civil
com o propósito de desqualificar as ações estatais e os movimentos sociais
característicos da década de 80 e supervalorizar as da sociedade civil. Esta
proposta tende a transformar estrategicamente a sociedade civil em um
instrumento de materialização do Capital para a desresponsabilização do
Estado no trato às políticas sociais, precarizando assim ainda mais o
enfrentamento das expressões da “questão social”. Porém, convém chamar a
atenção para as diferentes conjunturas desenhadas no país nas décadas de 80
e de 90 para melhor entender as relações entre a sociedade civil e o Estado, o
papel e posicionamento político que ambos exerciam nos referidos períodos.
Na década de 80, conforme sublinhado em páginas anteriores, as ações da
sociedade civil estavam voltadas para a luta contra o governo autoritário,
95
repressivo e centralizador do Estado; a luta estava direcionada à resistência à
ditadura, em prol da conquista e ampliação dos direitos sociais, civis e políticos
dos cidadãos brasileiros. Daí explica-se a relevância negativa ainda assim
equivocada em torno da esfera estatal e positiva dos organismos da
sociedade civil. A partir da década de 90, a tendência à ampliação das ações
da sociedade civil, sob um aspecto altamente positivo, em detrimento às do
Estado, sob uma perspectiva negativa corresponde à estratégia da ideologia
neoliberal de desresponsabilizar e enfraquecer a esfera estatal de forma a
transferir para a sociedade civil suas funções de agentes das políticas públicas
sociais, funções estas definidas na recém promulgada Constituição Federal de
1988.
No entanto, vale ressaltar que
o apelo à participação da comunidade na solão dos seus
problemas não é novo, se considerarmos as propostas de
desenvolvimento de comunidade largamente disseminadas na
América Latina na década de 50, nos marco da ideologia
desenvolvimentista (...) Implícitas nesta proposta, encontram-
se as noções de solidariedade e a idéia de que, por meio das
relações comunitárias, os conflitos sociais podem ser
superados pelo esforço organizado dos membros da
comunidade no encaminhamento de soluções que
potencializam as ações coletivas. (RAICHELIS, 2005, p.
79;grifos da autora).
Atualmente este discurso permanece quase que inalterado, visto a
filantropia da qual se trata não diz respeito à “tradicional”, mas a do “grande
capital”, porém sob uma nova roupagem, camuflando ainda mais as diferenças
entre as classes sociais e, portanto, entre os interesses entre as classes;
diluindo as contradições peculiares ao modo de produção capitalista; unificando
no âmbito da sociedade civil as tão antagônicas organizações privadas e
empresariais, em prol de um suposto “bem comum”. Assim, ocorre uma
96
redefinição do papel socializador do capital” que amplia “suas funções para
fora da empresa como parceiros na implementação de políticas sociais” (Ibid.,
p. 79); e também uma refuncionalização do papel do Estado, organismo
privilegiado do capital, que reduz os orçamentos destinados às políticas sociais
com vistas a “transferir” suas responsabilidades para as instituições da
sociedade civil.
Ocorre, porém que a idéia de “transferência” desta desresponsabilização
do Estado não garante de fato que os novos executores atuem com a mesma
lógica, posto que, conforme regulamenta a CF/88, o Estado é a instituição
privilegiada para implantar e executar as políticas sociais numa perspectiva de
garantia de direitos sociais, e às instituições da sociedade civil cabe a
participação através da proposição e do controle de tais políticas. No contexto
neoliberal, sob o estímulo à “transferência” das ões estatais, a natureza dos
serviços prestados tem uma lógica contrária à garantia de direito social; o perfil
de tais ações assume um viés caritativo, filantrópico e solidário. As políticas
sociais na conjuntura neoliberal são desenvolvidas com vistas a amenizar os
reflexos arruinantes oriundos do modelo de desenvolvimento social
determinado pelo próprio projeto neoliberal; são, portanto compensatórias e
limitadas.
Configura-se neste cenário uma proliferação de organismos
institucionais gerados no interior da sociedade civil, com o intuito de interferir
diretamente nas expressões da “questão social”, através da criação de ações,
programas e projetos próprios, em geral com recursos externos
(governamentais e/ou não-governamentais, nacionais e/ou internacionais), com
uma diversidade de direcionamento político, ideológico e interventivo, de
97
origem, atuação, propósito e financiamento. Diante desta diversidade, emerge,
pois um confronto político-ideológico com a preocupação de grupar tais os
recém organismos juntamente com as instituições civis já existentes, em uma
única definição, denominação e conceituação. São originários deste confronto
os termos: “terceiro setor”, “entidades blicas não-estatais”, “público porém
privado”. Ocorre aqui a inserção de antigas terminologias, mas que neste
contexto, sofrem alterações significativas no seu conteúdo e papel político e
social na relação com as políticas blicas, a exemplo das ONG e das
organizações comunitárias em especial, além das associações filantrópicas,
ações voluntárias e da chamada filantropia empresarial.
Acerca da polêmica discussão em torno do termo “terceiro setor”,
Montaño (2003) sinaliza a existência de uma tendência predominante na
utilização deste termo, a qual, desprovida de rigor teórico, é analisada por via
de bases superficiais e mistificadoras.
A perspectiva hegemônica, em clara inspiração pluralista,
estruturalista ou neopositivista, isola os supostos “setores” um
dos outros e concentra-se em estudar (de forma desarticulada
da totalidade social) o que entende que constitui o chamado
“terceiro setor”: estudam-se as ONGs, as fundações, as
associações comunitárias, os movimentos sociais etc., porém
desconsideram-se processos tais como a reestruturação
produtiva, a reforma do Estado, enfim, descartam-se as
transformações do capital promovidas segundo os postulados
neoliberais. (MONTAÑO, 2003, p. 51).
De fato, Fernandes afirma que a idéia de um ‘terceiro setor’ supõe um
‘primeiro’ e um ‘segundo’, e nesta medida faz referência ao estado e ao
mercado” (1994, p. 127). Não se trata de uma visão de totalidade. De fato a
opção por trabalhar com a terminologia “setor” reflete o entendimento do autor
sobre o tema em questão: Estes “setores” são entendidos como sendo
autônomos e independentes.
98
A relação com o Estado aparece de forma totalmente fragmentada: "O
Estado continua a existir, naturalmente, e sem ele não ordem que se
sustente, mas esta é uma outra questão, pois pensamos aqui em estruturas
não-governamentais." (FERNANDES, op. cit., p. 135). Estas estruturas são
denominadas de “privadas com funções públicas”, ou como “privadas, mas sem
fins lucrativos”, e, se comparadas ao Estado, podem ser caracterizadas como
“microorganizações”, cujos objetivos visam “atender a demandas sócio
culturais que não são satisfeitas pelo mercado” (Ibid., p. 66).
É pertinente chamar a atenção para o pano de fundo destas
preocupações, retomando as coerentes afirmações feitas por Montaño (op.
cit.). A análise destas questões deve inferir uma visão de totalidade, de modo a
situar e relacioná-las à conjuntura política social e econômica vigente: sob a
égide neoliberal, as sociedades capitalistas vivenciam neste período profundas
transformações societárias. O pano de fundo do fenômeno do “terceiro setor”
abarca: as transformações no mundo do trabalho; a redefinição do papel do
Estado; a agudização das expressões da questão social” a predominância da
lógica mercadológica e seqüelas sociais; o fim do socialismo real (no Leste
Europeu); a fragmentação e enfraquecimento dos movimentos sociais, da
intensificação de ideologias religiosas e étnicas (LANDIM, 1999).
Nesta perspectiva, juntamente com este diversificado conjunto de
organismos sociais, as ONG estão inseridas no contexto de refuncionalização
do Estado e das ações políticas da sociedade civil; são “convidadas” a
tornarem-se “parceiras” do Estado e do empresariado nas propostas,
compensatórias, de intervenção social.
99
O debate polêmico em torno do papel das ONG e das transformações
ocorridas no seu processo de formação e no direcionamento político e
ideológico de sua atuação social será abordado com particularidade no item a
seguir, tendo em vista a importância do entendimento deste debate para a
análise do objeto a que se propõem esta pesquisa.
2.3 – As Organizações Não Governamentais no contexto neoliberal
No cenário político brasileiro das décadas de 1970 e 1980, em apoio aos
movimentos sociais, as ONG atuaram como um canal de participação política
em oposição e resistência aos governos militares, no desenvolvimento de
projetos de assessoria política, organizacional e sociais; na articulação com
organizações populares, adquirindo assim uma importância singular neste
momento político do país. (cf.: GOHN, 1998; PETRAS, 1999; MONTAÑO,
2003)
No Brasil, particularmente após a CF/88, as ONG experimentam um
processo de refuncionalização, com alterações na natureza das suas ações: ao
invés do apoio político e organizacional, passaram investir na execução de
projetos de desenvolvimento, em articulação com instituições governamentais
e/ou não-governamentais, nacionais e/ou internacionais. Através da prestação
de serviços socais as ONG passaram a atuar nas lacunas oriundas da
negligência do Estado no enfrentamento das expressões da “questão social”.
Neste período, observa-se um aumento expressivo de quantitativo de ONG,
acirrando assim a disputa por recursos financeiros (MONTAÑO, 2003).
100
Incluíram-se nesta corrida financeira as ONG mais antigas que se rejeitaram a
tais condições a fim de garantir sua própria sobrevivência (PETRAS, op. cit.).
Fernandes (1994) desconsidera e até mesmo despolitiza o processo
histórico de formação das ONG no Brasil, principalmente em se tratando a sua
vinculação com os movimentos sociais da década de 1980. Ao contrário desta
sinalização, Fernandes (op. cit.) destaca a sua gênese como sendo
proveniente das “tendências” do “terceiro setor”.
Apesar de citar a atuação das ONG nos períodos ditatoriais como frente
de enfrentamento do Estado repressor, Fernandes (op. cit.) sequer menciona a
importância política e ideológica que as mesmas tiveram, juntamente com a
atuação os movimentos sociais do referido período. Pelo contrário, afirma que
“não se imaginava que estas iniciativas fossem destinadas a uma longa
duração (...) questionava-se mesmo o sentido da sua permanência enquanto
instituição” e os integrantes destas que decidiram ficar”, perceberam que “o
tamanho pequeno tem suas vantagens”; constataram que “atividades de
interesse público podem ser exercidas fora do governo”. (FERNANDES, 1994,
p. 135).
A análise do autor em torno das ONG é realizada a partir da
identificação da data de fundação
33
(); do campo de atuação (divididos em 17
categorias temáticas ); dos grupos beneficiários
34
; e do financiamento. Sobre
este último, vale destacar algumas afirmações. O financiamento dos
movimentos sociais das décadas de 70 e 80, incluindo as ONG, provenientes
33
Segundo o autor, as ONG "tornaram-se um fenômeno massivo a partir da década de 70",
porém datam de períodos anteriores à década de 1950. (FEERNANDES, 1994, p. 69)
34
Totalizam quinze grupos, dentre os quais: "trabalhadores rurais, trabalhadores, micro-
empresas, profissionais liberais, comunidades, mulheres, grupos étnicos, crianças, migrantes,
marginalizados, terceira idade, associações civis, pobres, outros, ONG, cuja fonte é a Coleção
de Diretórios - diretório das ONG na América Latina. (FERNANDES, 1994, p. 75).
101
de recursos de organismos civis estrangeiros e não pelo Estado e pelo
mercado nacionais explica-se simplesmente pelo fato de que tais movimentos
”evitavam relações com o Estado e não eram parceiros das empresas privadas.
(...) não exploravam tampouco as possibilidades do mercado como um veículo
de comunicação”. Por isso “... foram caracteristicamente pobres (...) tanto no
público-alvo, como nos meios que dispunham” (FERNANDES, 1994, p.79). A
superficialidade analítica explícita nestas afirmações remete à afirmação de
Montaño (2003) que critica a ausência de rigor teórico nos estudos sobre o
chamado “terceiro setor”.
Neste sentido, vale destacar algumas constatações e “coincidências”
identificadas por Petras (op. cit.) no contexto de refuncionalização das ONG´s
no cenário neoliberal, em torno do financiamento e dos resultados do
investimento financeiro destinados às mesmas:
1) a proliferação das ONG ocorre justamente em um quadro favorável de
investimentos financeiros externos, sob a autorização do projeto neoliberal,
obviamente, e de agudização das desigualdades sociais;
2) apesar da ampliação de recursos destinados às ONG, o nível de
desigualdades sociais não declina (aliás somente uma pequena parcela dos
beneficiários das ões não governamentais alcança algum nível de
prosperidade, de mudança sócio-econômica familiar; as expressões de
contestação e reprovação ao projeto neoliberal não lhe causam o menor
incômodo.
Nesta perspectiva, consolida-se política, social e ideologicamente uma
supervalorização da inserção de organizações não governamentais na
intervenção direta nas áreas sociais, via atividades de “interesse público”,
102
demolindo assim a visão sobre o Estado ou caracterizando-o como ineficaz ou
ineficiente. Contudo, o resulta em índices positivos no quadro das
desigualdades sociais do país.
Articulando com a discussão anterior sobre a suposta dicotomia
existente entre Estado e sociedade civil, embasada na idéia de ineficiência do
Estado e de disposição e sensibilidade da sociedade civil para intervir na área
social, camufla a natureza de classe que têm ambas estas esferas.
A contraposição da ‘sociedade civil’ ao Estado também é uma
dicotomia falsa. Além do mais, boa parte da discussão sobre a
sociedade civil não enxerga as contradições básicas que
dividem a ‘sociedade civil’ (...) tanto conflito entre as
classes na sociedade civil quanto entre a ‘sociedade civil’ e o
Estado (...) Contrapor o ‘cidadão’ ao ‘Estado’ significa não ver
as profundas ligações de certos cidadãos (elites exploradoras,
classe média-alta) com o Estado e a alienação e exclusão da
maioria dos cidadãos (trabalhadores, desempregados,
camponeses) do exercício efetivo dos seus direitos sociais
básicos (...) A discussão da sociedade civil, com a do Estado,
precisa especificar os contornos sociais das classes e as
fronteiras impostas pela classe privilegiada. (PETRAS, 1999,
p. 30 e 31).
A visão negativa sobre o Estado tende a interferir nas possibilidades de
ampliação da justiça social e da cidadania; afinal, a partir da CF/88 o Estado
brasileiro, independente do governo, formalmente teria função prioritária na
execução das políticas sociais. A participação da sociedade civil se daria na
formulação e controle de tais políticas. Entretanto esta não é a tendência que
vem sendo difunda e executada nas sociedades capitalistas a partir do final da
década de 80, com fôlego na década de 90. As ONG não substituem a oferta
de políticas sociais abrangentes e em longo prazo típicas de um Welfare State.
Os serviços ofertados à população são limitados quanto à amplitude de
abrangência sobre o quantitativo e o perfil da demandas da população.
À população resta uma sobrecarga exploratória: além do financiamento
103
ao Estado mediante os impostos, passa também a realizar uma espécie de
autofinanciamento” (o que gera um duplo financiamento, pois os impostos
estariam destinados também ao financiamento de políticas sociais, cujo
orçamento não prioriza as ações nesta área) das expressões da ”questão
social” vivenciadas pela própria população.
Por outro lado, diante deste cenário catastrófico, cujas Organizações
Não Governamentais m contribuindo com a evolução do quadro, o então
considerado “Homem das Idéias do Ano” pelo Jornal do Brasil, em 1994,
considerou ao final do seu dito “estudo” sobre o “terceiro setor” que as
perspectivas de futuro “devolvem à moral as razões para a ação (...) as
experiências que animam o terceiro setor induzem à crença de que há, sim,
coisas positivas e mesmo portentosas a fazer.” (FERNANDES, 1994, p. 145).
Esta visão moralista, desprovida de embasamento teórico ressoa nos ares dos
organismos da sociedade civil de forma a influenciar e inspirar uma infinidade
de indivíduos, grupos civis, jurídicos e empresariais a criar instituições de
atendimento social à população nos quais, sejam quais forem suas "intenções",
"comprometimento" ou "seriedade", suas ações não implicarão em mudanças
estruturais na formação histórica social do país, pois não ultrapassarão sequer
os limites institucionais. A avaliação existente em torno dos chamados
“problemas sociais” é isenta de uma visão de totalidade; desta forma não são
entendidos como sendo na realidade expressões da “questão social”.
Os investimentos das ONG para a construção e execução de projetos
sociais se autojustificam em uma suposta “nova identidade” dos novos
movimentos populares. Decorre desta afirmação um perigo ideológico: a
confusão entre as ONG e os movimentos sociais. De fatos ambos tiveram uma
104
proximidade inegável nas décadas de 70 e 80 numa luta política e ideológica
em prol da cidadania plena através da efetivação e ampliação dos direitos
sociais, civis e políticos. Entretanto, com o advento do neoliberalismo, a
natureza destas organizações aponta para uma proposta de atuação
totalmente diferenciada. Em sua maioria, a postura apolítica das ONG, a partir
enfoque nas ações de auto-ajuda, acabam por despolitizar e desmobilizar a
organização dos movimentos populares. Desta forma, o neoliberalismo
desenfreou uma “proliferação de ONG que fragmentam as comunidades
pobres em grupos setoriais e subsetoriais, impossibilitando-os de enxergar o
cenário social maior que os aflige e, não permitindo que se unam na luta contra
o sistema” (PETRAS, op. cit. p. 49).
Nas abrangências territoriais da América Latina a expansão das ONG
está intimamente associada ao enfraquecimento dos movimentos sociais.
Desta forma, as ONG despolitizam as lutas sociais (questão política esta de
enorme relevância para o entendimento do momento conjuntural dos
movimentos sociais na atualidade). Observemos quão raro é a participação e
inserção de ONG em lutas políticas, a exemplo de greves, protestos,
manifestações populares inclusive contra as próprias mazelas . Entenda-se que
o foco de atenção é o mesmo: expressões da “questão social”. O que difere é a
forma de intervenção: via atuação política (lutas) ou via atuação interventiva
(criando ações paleativas e remediativas de amenização das desigualdades
sociais). (Ibid.).
A oferta de serviços sociais à população na realidade representam uma
“primeira onda dos tratamentos de choque administrados pelas ditaduras
neoliberais”, causando assim uma “imagem favorável das ONGs” (PETRAS,
105
op. cit., p 44). Entretanto, o resultado da atuação das ONG acaba por “desviar
o povo, da luta de classe para formas inofensivas e ineficientes de colaboração
com os seus opressores” (Ibid., p. 41).
Nesta perspectiva, constata-se que “à medida que cresceu a oposição
ao Neoliberalismo, no início dos anos oitenta, os governos europeus e norte-
americanos, juntamente com o Banco Mundial, aumentaram a destinação de
verbas para as ONGs” (Ibid., p. 45), expressando desta forma a intrínseca
relação existente entre os organismos internacionais financeiros e a
refuncionalização dos movimentos sociais, através do crescimento de
instituições da sociedade civil. As ONG, nesta perspectiva, funcionaram como
uma perfeita estratégia neoliberal de estagnar e subverter os movimentos
sociais que neste dado momento representavam certo perigo, incômodo ao
ordenamento capitalista. Tal afirmação explica a funcionalidade da proliferação
das ONG ao neoliberalismo e à subordinação desta a tal projeto. As ONG
encaixaram-se perfeitamente no discurso negativo sobre o estatal; que
defendia a oposição entre a sociedade civil e o Estado” Este é um elemento
comum entre os discursos das ONG e do BM : ambos defendiam o
antagonismo entre a sociedade civil e o Estado. Por um lado as ONG
opunham-se ao Estado, sob o legado de um suposto posicionamento
“esquerdista” em prol da defesa da sociedade civil; já o BM e aliados da
“direita” (classe dominante) opunham-se na defesa dos interesses de mercado.
... o enfraquecimento das agências financiadoras
governamentais e das organizações populares, somado ao
fortalecimento das ONGs, que por sua vez são muito
dependentes dos recursos enviados elos doadores
internacionais, debilita a capacidade institucional dos países
latino-americanos de formular e defender alternativas a uma
agenda de desenvolvimento elaborada pelas instituições
financiadoras e pelas agências de desenvolvimento. Isso cala
106
a voz da oposição e enfraquece medularmente os processos
políticos democráticos. Por uma ironia da história, as ONGs,
que se consideram e são muitas vezes consideradas por
outros como agentes da democracia, tornaram-se assim,
instrumentos destinados a minar as bases institucionais da
participação política. Na melhor das hipóteses, isto indica
também que o principal legado do ajuste estrutural nos anos
80 não é a penúria econômica imposta a milhões de pessoas,
mas a imposição de uma nova ordem hegemônica, que
debilita as importantes bases institucionais da participação
política, que não requer que as pessoas contribuam para a sua
própria opressão. (PETRAS, 1999, p. 89).
O fato é que esta disputa / tentativa de cooptação das ONG somente
acarretam a conquista dos interesses do bloco dominante, base econômica
(estrutura da sociedade), pois, à medida que atuam, de maneira
compensatória, sobre as mazelas sociais geradas não ocasionalmente pelo
próprio sistema capitalista, acabam por contribuir com o desmantelamento do
Welfare State, com a diluição das conquistas trabalhistas. Tudo faz parte de um
grande projeto: as ONG e os organismos da sociedade civil em geral são
levados a modificar seu foco de atuação (do perfil político questionador e
propositivo para um perfil interventivo, despolitizado, focalizado, “inofensivo” e
“ineficiente”).
No capítulo seguinte será realizado um estudo de caso sobre a atuação
do CEASM – Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, a qual trata-se de
uma instituição da sociedade civil que, mesmo tendo sido gestado já na década
de 90, sofreu modificações em torno das suas frentes de ação no que se refere
às expressões da “questão social”.
107
CAPÍTULO III
A TRAJETÓRIA POLÍTICA DO CEASM E SUAS ESTRATÉGIAS DE
AÇÃO FRENTE ÀS EXPRESÕES DA “QUESTÃO SOCIAL”
3.1 – O bairro Maré
O entendimento acerca da configuração do bairro Maré na
atualidade remete ao menos sinalizar o processo histórico de sua construção,
articulando-o ao processo de urbanização da cidade do Rio de Janeiro. Desta
forma, faz-se necessário identificar alguns fatos que marcaram o
desenvolvimento da organização urbana desta cidade, bem como as
peculiaridades em torno das ações estatais direcionadas ao campo
habitacional.
A caracterização do processo de urbanização da cidade do Rio de
Janeiro sempre foi marcada pela desigualdade, pelo beneficiamento de uma
classe em detrimento de outra. No século XIX, por exemplo, com a chegada da
família real portuguesa, o espaço urbano deste município sofreu modificações
profundas, com o intuito de garantir as melhores condições de moradia para a
Corte Portuguesa, acarretando à população residente na cidade uma
reorganização da área urbana. Contudo, esta reorganização ocorreu de
maneira diferenciada e desigual, mediante o poder aquisitivo e econômico dos
indivíduos. Desta forma, a maior parte da população foi submetida à
deterioração das condições sociais, dentre as quais as habitacionais; ao
contrário da classe dominante, que usufruiu de melhores recursos
habitacionais.
108
Retomando a discussão apresentada nos capítulos anteriores, o modo
de produção capitalista gera contradições peculiares ao seu próprio processo
de desenvolvimento. Neste sentido, conforme afirma Gonçalves, “o urbano
reflete, sob diversos ângulos, o desenvolvimento capitalista” (1998, p. 31);
expressa a própria organização e contradição da sociedade capitalista. Estes
espaços abrigam ambas as classes sociais (a classe dominante e a classe não
dominante). A existência de classes sociais com interesses antagônicos
dividindo o mesmo espaço urbano é peculiar, portanto à sociedade capitalista.
Desta forma, a organização e ocupação deste espaço ocorrem de forma
desigual tendendo a privilegiar a classe burguesa.
Somente a partir do final do século XIX e início do século XX, em
decorrência do quadro caótico de insalubridade e periculosidade que alcançara
o cenário da cidade do Rio de Janeiro, o processo de urbanização se
desenvolveu, pois até então as elites e as classes subalternas comungavam do
mesmo espaço: o centro da cidade.
As infra-estruturas foram criadas sob medidas, com bases amplamente
classistas: cada bairro para cada classe social. Da mesma forma, os meios de
transporte foram desenvolvidos com vista a atender ao que o Estado entendia
como necessidade de cada classe. Assim, para a população pobre, bairros
mais afastados do centro urbano e trens para direcioná-los ao exercício
cotidiano de venda obrigatória da força de trabalho (condicionante de
sobrevivência); para as elites, bairros mais privilegiados geograficamente (zona
sul) e bondes.
109
Entre as décadas de 1870 e 1890, a população da cidade do Rio de
Janeiro quase que duplicou, devido a fatores como a chegada dos imigrantes
europeus, aos escravos libertos juntamente como seus descendentes, e que,
no entanto, o foi oferecido a esta população nenhum tipo de proteção social.
Ao contrário, as precárias condições de sobrevivência era alvo do descaso
político do Estado em consonância com a classe dominante, numa conjuntura
política de transição do regime “escravocrata para o do trabalho livre”
35
(CEASM, 2003. p. 15).
Mesmo tendo sido iniciada uma ampliação da infra-estrutura urbana
no Rio de Janeiro, a população ainda permanecia concentrada no centro da
cidade, denunciando a disparidade social existentes entre as classes sociais e
um quadro caótico de insalubridade. Neste cenário, ganhavam relevância
política propostas de “embelezamento” e saneamento da capital fluminense. A
preocupação do governo estava centrada na construção de uma cidade
pautada na ordem e no progresso. Nesta perspectiva, a Reforma Passos foi
realizada com o objetivo de limpar a cidade, mediante a substituição dos
“sujos” pelos “civilizados”. Assim se configurou o “bota-abaixo”, uma política
“higienista autoritária que impedia e destruía as construções consideradas
insalubres e perigosas, além de um arrasamento de morros e do aterro de
mangues e lagoas que margeavam a urbi primordial” (CEASM, 2003, p. 15).
Assim, “o passado, as tradições, os grupos populares e todos os sinais de sua
35
Este cenário catastrófico chegou a ser alvo de críticas e comparações inclusive a contextos
internacionais (Buenos Aires destacava-se como um quadro oposto ao do Rio de Janeiro, nos
aspectos referentes ao desenvolvimento urbano), o que impulsionou a criação de formas
estratégicas de camuflagem destas disparidades sociais que incomodavam os olhos da classe
dominante. Desta forma, foram sendo desenvolvidas infra-estruturas diferenciadas para o perfil
de cada classe social.
110
presença se tornaram fonte de vergonha, mal-estar e indignação, manchas que
conspurcavam a ordem e o progresso.” (NOVAIS, 1998, p. 31).
Aos trabalhadores, o governo municipal estabeleceu duas alternativas:
acatar à ocupação geográfica imposta pela prefeitura (subúrbios),
responsabilizando-se com os custos inerentes ao deslocamento ou “ocupar
áreas ainda não dominadas pelos interesses da especulação imobiliária e da
propriedade privada, isto é, as encostas dos morros próximos à urbi primordial”
(CEASM, 2003, p. 15).
Neste contexto político, social e econômico de total desprezo por parte
da ação estatal, emergiram as chamadas “favelas”, como estratégias de
sobrevivência para a população desprovida de qualquer tipo de proteção social,
apesar de no final do século XIX terem sido mais comuns as formas
habitacionais do tipo cortiços e barracões. A primeira “favela” na capital
fluminense surgiu no morro da Providência, datada da década de 1890
36
(ABREU, 1994).
A denominação “favela” originou-se no processo de ocupação do morro
da Providência, entretanto, foi disseminada preconceituosamente de maneira a
estigmatizar os espaços urbanos caracterizados por condições habitacionais e
sanitárias precárias ou inexistentes (Ibid.).
Mais uma vez a população era culpabilizada pela visibilidade negativa
que marcava a capital carioca, e, portanto era obrigada a acatar as condições
impostas pelo Estado (aliado, obviamente à elite dominante) como solução
36
Os primeiros moradores desta localidade foram os remanescentes do cortiço “Cabeça-de-Porco”,
seguidos dos soldados sobreviventes da guerra de Canudos.
111
para os problemas de “desordem” e “atraso” instaurados. “É assim que, em
1902, a imprensa identificava o morro da Provincia, como ‘uma vergonha
para uma capital civilizada” (CEASM, op. cit., p. 16). A favela, mais de 100
anos é vista tanto pelo senso comum, como pelos órgãos públicos em geral
como
Abrigo da marginalidade urbana, mas também residência do
trabalhador honesto; ‘chaga da cidade’, mas igualmente,
‘berço do samba’; solução urbanística desprezada e, ao
mesmo tempo, elogiada; as imagens da favela impuseram-se
no decorrer do século XX e já se incorporaram ao imaginário
coletivo da cidade. (ABREU, 1994, p. 34).
A ação estatal nas “favelas” constituía-se do combate à população
residente, acusada de gerar riscos à saúde por via das epidemias de
decorrentes. O investimento na medicina sanitarista representou a forma como
o Estado lidava com as expressões da “questão social” geradas pela ordem do
sistema capitalista. Assim os sanitaristas percorriam às “favelas”, com suas
ações policialescas para higienizar os espaços urbanos, sanando assim os
riscos à saúde da classe de interesse do Estado. A prioridade da intervenção
estatal estava voltada, portanto, para as localidades de interesse da
especulação imobiliária (os espaços ocupados ou com vistas a ser ocupados
pela burguesia) quais eram compatíveis ao projeto modernizador do município.
Vale ressaltar, portanto, que as áreas ocupadas pela população pobre somente
consistia foco da ação do Estado quando causavam algum impacto negativo à
classe dominante
37
. Mesmo porque, como o havia até este período políticas
sociais voltadas para a área da habitação
38
e a alternativa governamental de
37
Quando, por exemplo, as áreas ocupadas, ditas pelo Estado provisoriamente” pela classe
subalterna tratavam-se de interesse dos investidores do mercado imobiliário.
38
As políticas públicas no início do século XX estavam focadas para a proposta
modernizadora.
112
transportar toda a população de baixa renda para zonas geográficas afastadas
não era consentida por toda essa população, expulsa-la das áreas de interesse
econômico não garantiria a “resolução do problema”, pois os excludentes
poderiam construir outras formas de moradia em locais não habilitados pelo
poder público (Ibid.).
A negligência do Estado quanto à tomada de providências em torno da
questão habitacional, somada à expansão populacional acarreta uma
proliferação de “favelas” em diversos espaços da cidade do Rio de Janeiro,
cujos moradores representavam 9% (cerca de 100.000 habitantes) da
população carioca em meados da década de 1920 (CEASM, op. cit.). O
aumento populacional tornou-se ainda mais acirrado após os anos 30, no
contexto do desenvolvimento industrial, quando muitos nordestinos migraram
para a região sudeste em busca de formas de sobrevivência.
Até o primeiro momento do governo de Vargas a ação estatal, em
decorrência de uma estratégica política, optou por manter uma relação pacífica
com os moradores, garantindo assim seu título de pai dos pobres”. na
ditadura, o governo repressor e autoritário impõe novas condições aos
moradores das “favelas”: as moradias localizadas nestas áreas habitacionais
foram consideradas como ocupações marginalizadas diante do Código de
Obras estabelecido por Vargas, o qual determinou a não inclusão destas nos
mapas oficiais da cidade, tendo em vista seu caráter de ilegalidade e
provisoriedade. Desta forma, além de exigir a destruição, impediu a construção
de novas habitações. Porém, os moradores, já em número representativo, dado
o alto crescimento populacional, resistiram a tais determinações (ABREU,
113
1994). Conforme será apresentado mais adiante, o início da formação do
complexo da Maré data deste período.
Durante o governo getulista, o então governo municipal do Rio de
Janeiro, capital da República, realizou o cadastramento dos moradores
residentes nas áreas ditas “ilegais” situadas principalmente na zona sul da
cidade (área de grande valorização comercial), com vistas a removê-los para
conjuntos habitacionais a serem construídos pela própria Prefeitura do
Município nas zonas periféricas, afastadas do centro da cidade e
consequentemente, distanciadas também do campo visual do governo, da
imprensa e da elite dominante, que aspiravam pela imagem limpa e organizada
da capital fluminense. Contudo, mesmo considerando a intenção estatal
sobreposta a tal ação (erradicar o “problema das construções ilegais”), convém
ressaltar o prolongamento da ação estatal de identificação e reconhecimento
da população moradora das chamadas “favelas”, ou seja, somente após 50
anos de existência foi realizado pelo Estado um recenseamento das “favelas”,
cujos dados passaram a constar em documentos oficias de mapeamento e
estatísticas
39
. O recenseamento de 1948 significou, de alguma maneira, um
reconhecimento por parte do governo municipal sobre a população excluída
residente em espaços ocupados irregularmente e sob o descaso político social
39
Segundo o CEASM (op. cit.), a partir dos dados do recenseamento de 1948 revelavam um
número de 105 “favelas” existentes no Rio de Janeiro, as quais englobavam 138.837
moradores. Deste universo, 44% das “favelas” estavam concentradas na zona oeste da cidade
(abarcando 44% da população “favelada”); 25% localizadas na zona sul (com 21% desta
população) e na região central e da Tijuca existiam 22% das “favelas”, com 30% da referida
população. Também foi identificada neste recenseamento a população migrante: 52% dos
moradores das “favelas” cariocas eram provenientes dos estados do Rio de Janeiro, Minas
Gerais e Espírito Santo. Os dados também revelaram a relevância para os moradores destes
espaços marginalizados de residirem próximos aos seus locais de trabalho. Somente neste
período as áreas ditas “ilegais” passaram a integrar o plano de ação oficial do governo
municipal.
114
do Estado. Entretanto, vale destacar a conjuntura política configurada neste
período, a qual determinou particularidades nas relações entre o Estado e as
representações dos moradores: obviamente o contexto era desfavorável para a
representação tendo em vista o perfil ditador do governo, que inibia a
expressão política da população.
Posteriormente, nas décadas de 50 e 60 o desenvolvimento urbano da
cidade do Rio de Janeiro é marcado mais uma vez por uma onda de
crescimento populacional deflagrado pela migração de indivíduos oriundos, em
sua maioria, da região Nordeste. Este movimento migratório contribuiu para a
ocupação ilegal de zonas urbanas e pela conseqüente formação dos subúrbios
e da periferia do município.
Após o recenseamento de 1948, que pode ser considerado um fato
importante ocorrido no processo de urbanização da cidade do Rio de Janeiro,
as propostas de oficialização das “favelas” somente aconteceram a partir do
Plano Diretor Decenal da Cidade do Rio de Janeiro, em 1992, que, ao
contrariamente às determinações de 1937, no governo getulista, definia “não
remoção das favelas e a inserção das favelas e loteamentos irregulares no
planejamento da Cidade com vistas à sua transformação em bairros ou
integração com os bairros em que se situam” (Art. 44, do Plano Diretor Decenal
da Cidade do Rio de Janeiro, apud. CEASM, 2003, p. 19). Somente a partir
deste Plano, passados mais de 100 anos de existência, as “favelas” passam a
integrar os registros e documentos oficiais da cidade
40
. Desta forma as
40
Artigo 149 deste Plano: “as favelas integrarão o processo de planejamento da Cidade,
constando nos mapas, cadastros, planos, projetos e legislação relativos ao controle do uso e
ocupação do solo, e da programação de atividades de manutenção dos serviços e da
115
caracterizações: ilegal, irregular, provisória, que, oficialmente, qualificavam as
“favelas” foram superadas no trato do governo municipal, que após o Plano
Diretor de 1992, passou a definir a favela como “
Área predominantemente habitacional, caracterizada por
ocupação da terá por população de baixa renda, precariedade
da infra-estrutura urbana e de serviços públicos, vias estreitas
e de alinhamento irregular, lotes de forma e tamanho irregular
e construções não licenciadas, em desconformidade com os
padrões legais. (Art. 147; Plano Diretor Decenal da Cidade do
Rio de Janeiro, apud. CEASM, 2003, p. 19).
Obviamente esta mudança na identificação das “favelas” ocorreu
mediante um processo de luta política remota de tempos anteriores à década
de 90. A organização dos moradores via instituições representativas como as
associações foram fundamentais para o desencadeamento do reconhecimento
oficial destes espaços urbanos, a partir desta conquista, passaram a ter espaço
para continuar a reivindicação dos seus direitos; passa a ter o direito de ser
ouvida, de ser representa.
O processo de constituição histórica do bairro Maré integra toda essa
trajetória política sinalizada, porém dadas as suas especificidades, as quais se
constituem foco desta pesquisa, os fatos marcantes do referido processo
histórico serão apresentados a partir de então
41
.
A primeira habitação
42
(em forma de barraco) construída no local onde
atualmente é denominado de Bairro Maré aconteceu na década de 30, no
morro do Timbau, quando inicialmente uma família e posteriormente outros
conservação dos equipamentos públicos nela instalados” (Plano Diretor Decenal da Cidade do
Rio de Janeiro, apud. CEASM, 2003, p. 19).
41
Vale ressaltar que todos os dados obtidos e apresentados neste estudo sobre a história da
Maré encontram-se disponíveis no endereço: www.ceasm.org.br
42
O mapa 4, no anexo 4 apresenta o processo de evolução urbana da Maré.
116
interessados passaram a constituir uma vizinhança. Porém, segundo o
CEASM, a “história da Maré urbana começa mesmo nos anos 40”, a partir do
desenvolvimento industrial da capital, que se tornara o segundo maior centro
industrial urbano do país, e do fluxo de migrantes provenientes, em sua
maioria, da região do Nordeste, que, como estratégia de sobrevivência, ocupou
regiões desvalorizadas financeiramente, dada a inexistência de política pública
habitacional na referida conjuntura.
Além da natureza e geografia do terreno, os aspectos urbanos
chamaram a atenção de moradores para aquela região mediante: a
proximidade do núcleo industrial da Leopoldina
43
; a escassez de opções de
moradia
44
, restando à população ainda mais excluía a região alagadiça da
Maré
45
; a proximidade com a Avenida Brasil
46
, propiciando facilidade às
necessidades de deslocamento. A construção desta avenida, concluída em
1946 e ainda expandida nos anos 50, foi determinante para o processo de
43
Confirmando a constatação feita pelo Recenseamento de 1948 de haver uma tendência e
preferência de construção de moradias em localidades próximas às do local de trabalho.
44
Tendo em vista que, nesta ocasião, a especulação imobiliária não demonstrava interesse na
área da atual Maré e também tinha se apossado do domínio comercial das áreas mais
privilegiadas do subúrbio.
45
A área geográfica da Maré, conforme expressa o próprio nome, é localizada à margem da
Baía de Guanabara e constituída de uma extensa área plana e somente uma área que destoa
desta caracterização por se tratar de um terreno mais elevado junto à superfície e única
naturalmente de terra firme: refere-se à comunidade do Timbau, primeira do atual bairro Maré.
No século XVI foi construído nesta região o Porto de Inhaúma, localizado onde atualmente
situa-se uma das principais avenidas do bairro Maré: a Av. Guilherme Maxwell (antes, rua Praia
de Inhaúma), que se estende para além da Av. Brasil e alcança o Bairro de Bonsucesso. Vários
aterros foram realizados desde as primeiras cadas do século XX nesta região. A escolha do
Timbau como primeiro espaço de ocupação da Maré se deve ao fato deste ser a única área
que a maré não adentrava. A forma de habitação construída nas demais áreas da Maré neste
processo de ocupação foi a do tipo palafitas, adequada às necessidades de proteção aos
moradores do movimento natural das marés.
46
Não foi à toa que a construção de habitações ocorreu de forma incisiva nos limites de toda a
longa extensão da Av. Brasil: por garantir o atrativo de facilidade de acesso não somente nos
limites territoriais da capital fluminense como também de outros municípios da atual baixada
fluminense.
117
ocupação da região. As comunidades Rubens Vaz e Parque União são
provenientes diretamente deste fato.
Ao final da década de 40 a ocupação da região havia tomado o único
morro existente, Timbau, se estendendo nas regiões alagadas. Assim ocorreu
o início do povoamento as comunidades da Baixa do Sapateiro e Parque Maré,
cujas habitações eram caracterizadas pelo tipo de palafitas e pelos barracos de
madeira sobre a lama e a água da região. A extensão das palafitas sobre toda
a área alagada da Maré ocorre sem qualquer intervenção do Estado, conforme
pontuado anteriormente, até o início dos anos 80. , quando o povoamento sofre
uma erradicação, via construção de conjuntos habitacionais e transferência
para outras localidades.
O projeto de modernização da Zona Sul nos anos 60, no governo
estadual de Carlos Lacerda, desencadeou um novo fluxo de ocupação da Maré
proveniente da ão de erradicação de favelas e conseqüente remoção da
população residente. Assim se deu a gênese da comunidade Nova Holanda:
foram construídas habitações “provisórias” para abrigar a população removida.
A intervenção do Estado na região da Maré, somente ocorreu a partir da
década de 80
47
: a) via intervenção da União através do Projeto Rio, cuja
proposta objetivava a construção de conjuntos habitacionais a fim de deslocar
os moradores das palafitas para construções “pré-fabricadas”. Deste projeto
resultaram as comunidades da Vila do João, Vila do Pinheiro, Conjunto
47
Nesta década a sica Alagados lançada pelo grupo musical Paralamas do Sucesso,
inspirada nas palafitas da Maré deu visibilidade nacional à situação de precarização extrema
vivenciada pela população da Maré.
118
Pinheiro e Conjunto Esperança; b) via inclusão da Maré na 30ª Região
Administrativa, criada em 1988 pelo governo municipal
.
“A primeira R.A. da
cidade a se instalar numa favela marcou o reconhecimento da região como um
bairro popular” (CEASM).
As comunidades mais recentes da Maré: Nova Maré e Bento Ribeiro
Dantas, foram criadas nos anos 80 e 90, também originadas de política
habitacional com vistas à transferência de famílias removidas de áreas de risco
da cidade. Salsa e Merengue é a mais recente: inaugurada em 2000 pela
prefeitura, cuja escolha nominal foi dos moradores, representa uma extensão
da comunidade Vila do Pinheiro.
Em suma, a Maré compreende dezesseis comunidades
48
, destas, nove
foram construídas pela intervenção do Estado. Cada comunidade tem histórias
e características diferenciadas e específicas, dotada de uma diversidade
cultural a qual a faz ser qualificada de “colcha de retalhos” (CEASM) expressa
é caracterizada pelo Censo do IBGE 2000 (apud. CEASM, 2003), como o maior
complexo de favelas do Rio de Janeiro e um dos espaços populares mais
conhecidos do país, pelas expressivas condições de precarização e exclusão
social, cuja identificação também ocorre por conta da sua localização junto: à
Baía de Guanabara, à Av. Brasil e às principais vias de acesso do Rio de
Janeiro (Linha Vermelha e Linha Amarela), às “modernas arquiteturas” do
Aeroporto Internacional e da Cidade Universitária da UFRJ. Este fato contribuiu
48
Em suma as comunidades com suas datas de criação são: 1940 - Morro do Timbau ;1947 -
Baixa do Sapateiro;1948 - Conjunto Marcílio Dias 1953 - Parque Maré 1955 - Parque Roquete Pinto
1961 - Parque Rubens Vaz 1961 - Parque União 1962 - Nova Holanda1962 - Praia de Ramos 1982 -
Conjunto sperança1982 - Vila do João 1989 - Vila do Pinheiro1989 - Conjunto dos Pinheiros1992 -
Conjunto Bento Ribeiro Dantas 1996 - Conjunto Nova Maré 2000 - Salsa e Merengue.
119
para uma visão generalizada da região como um espaço miserável, violento e
sem condições dignas de vida.
O reconhecimento do complexo da Maré como bairro ocorreu em 1994.
Atualmente, a 30ª Administração Regional localizada no então bairro Maré
abrange toda a área do “complexo” da Maré, desde as mais antigas até as
mais recentes habitações, construídas via intervenção do Estado (CEASM).
Entretanto, nem o Plano Diretor de 1992, nem o satatus de bairro recebido em
1994, foram suficientes para que os mareenses reconhecerem a Maré, de fato
como um Bairro, pois a mudança ocorreu apenas na caracterização nominal
(de favela para bairro), não garantiu transformações nas condições de vida
desta população. Para os moradores,
Seria necessária a melhoria das condições dos serviços
urbanos e, principalmente a conformidade entre as regras da
cidade e as da favela; em particular no que diz respeito às
práticas e intervenção do poder público quanto às regras de
sociabilidade da cidade e as da favela, no sentido do
reconhecimento e da expansão dos direitos e deveres de
cidadania política dos seus moradores no campo cultural,
jurídico e econômico. Nesse caso, o bairro se coloca como um
projeto, um vir a ser, que para ser materializado demanda uma
nova forma e conteúdo de poder público. (CEASM, 2003, p.
26).
De fato, o descaso do Estado com relação à massa trabalhadora, em
especial à população residente em espaços urbanos não planejados e
desprovidos de infra-estrutura mínima de sobrevivência é remoto de tempos
anteriores, conforme sinalizado neste trabalho. Entretanto, para além de uma
visão simplória acerca das funções do Estado na sociedade, faz-se necessário
retomar o debate conceitual realizado no capítulo anterior para reafirmar o
caráter classista do Estado e compreender que a atuação ausente ou pontual
120
do mesmo sobre a classe trabalhadora
49
, é peculiar às suas funções
específicas de garantir a manutenção e a expansão do acúmulo do capital.
Para tanto, o investimento em políticas sociais não se justifica.
3.1.1 – A Maré em dados
Os dados apresentados neste item foram extraídos do Censo / CEASM
2000, produzido pelo CEASM - Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré,
sob apoio também de Institutos de Pesquisa, no período de junho de 20 a
junho de 2001, com vistas a obter maior exatidão no retrato da população
residente e recursos sociais existentes no bairro Maré. A proposta censitária do
CEASM previa a obtenção de uma riqueza maior dos dados com vistas a
subsidiar a construção de futuros projetos em benefício da população
mareense. Para tanto, a coleta ocorreu de forma a identificar indicadores
sociais específicos de cada comunidade. A análise dos dados foi desenvolvida
a partir da organização de quatro eixos: população, habitação, educação e
trabalho infantil. Neste trabalho será apresentada parte dos dados e de suas
respectivas análises, considerada de maior relevância para o objeto desta
pesquisa.
Sobre os dados referentes à população, em comparação com os
resultados do Censo Demográfico do IBGE / 2000, observa-se uma
incompatibilidade entre algumas informações obtidas por ambas as pesquisas
censitárias, a exemplo do quantitativo populacional. De acordo com o Censo do
49
O conceito utilizado para classe trabalhadora refere-se ao de Antunes que concebe como integrantes da
classe-que-vive-do-trabalho todos aqueles trabalhadores que tem na sua força de trabalho a única forma
de sobrevivência, independente da condição de empregado ou de desempregado.
121
IBGE/2000 (apud. CEASM, 2003), a Maré lidera o ranking populacional das
principais favelas do Município do Rio de Janeiro, seguida da Rocinha, Alemão
e Jacarezinho, respectivamente. Com base nesta fonte, a população de todas
as favelas acima citadas vem crescendo gradativamente, mas no caso da Maré
a população cresceu de 68.817 em 1996 para 113.817 em 2000. De acordo
com a pesquisa censitária do CEASM, o bairro Maré conta com uma população
de 132.176 habitantes, a qual representa 0,97% da população total do
município do Rio de Janeiro. Tal quantitativo corresponde inclusive ao número
de habitantes de um município do estado do Rio de Janeiro. Se assim o fosse,
a Maré ocuparia a posição de 11.ª no quadro da população do estado.
(CEASM, 2003).
No que se refere à densidade habitacional
50
, a média do bairro Maré é
de 3,45 habitantes por domicílio, conforme pode se identificado na tabela
abaixo. Observou-se uma concentração maior de habitantes por domicílio nas
comunidades formadas pelos conjuntos habitacionais criados pelo Estado (com
caráter de remoção de famílias de áreas de interesse especulativo e de áreas
de risco), mesmo em momentos diferenciados. (Ibid.).
50
Ver anexo 1 , mapa 1.
122
Tabela I – Distribuição da População e de Domicílios no Bairro Maré
Comunidades População Domicílio P/D
Parque União 17.796 5.876 3,00
Vila Pinheiros 15.485 4.310 3,60
Parque Maré 15.399 4.595 3,35
Baixa do Sapateiro 11.467 3.302 3,47
Nova Holanda 11.295 2.967 3,81
Vila do João 10.651 3.001 3,55
Rubens Vaz 7.996 2.482 3,10
Marcílio Dias 7.179 1.888 3,80
Timbau 6.031 1.858 3,20
Conjunto Esperança 5.728 1.708 3,4
Salsa e Merengue 5.309 1.349 3,94
Praia de Ramos 4.794 1.360 3,52
Conjunto Pinheiros 4.767 1.329 3,58
Nova Maré 3.142 695 4,50
Roquete Pinto 2.515 864 2,90
Bento Ribeiro Dantas 2.199 566 3,90
Mandacaru 424 123 3,44
Maré 132.176 38.273 3,45
Fonte: Censo/CEASM – 2000.
Em se tratando da densidade demográfica
51
, constatou-se que, na
maioria das comunidades mareenses, a média de habitantes por cada 100 m²
superava a média da capital carioca (232,7 hab. / 100 ). As comunidades
que apresentam os índices mais elevados são aquelas que se originaram de
ocupações, realizadas pelos primeiros moradores.
Os dados referentes à educação apontam que o bairro Maré conta com
dezesseis escolas do ensino fundamental e duas do ensino médio. Mesmo
considerando a insuficiência de instituições escolares (principalmente do
Ensino Médio), constata-se, pois uma expansão dos investimentos estatais na
área educacional nos vinte últimos anos anteriores à realização do Censo. Tal
ampliação é decorrente do processo de mobilização e organização das lutas
51
Ver anexo 2 , mapa 2.
123
dos moradores em prol da efetivação dos direitos sociais. Vale lembrar que
somente após o Plano Diretor de 1992 a população residente nas “favelas”
conquistou o direito de expressar seus questionamentos; foi também a partir
deste Plano que ocorreu o reconhecimento das áreas destes espaços urbanos,
passando estes a constarem nos registros oficiais do município.
O resultado desta ampliação das unidades educacionais públicas, ainda
que insuficiente, configurou um quadro em que 94% das crianças com idade de
7 a 14 anos (cerca de 1.200) estavam em situação regular de matrícula nas
escolas (a taxa nacional é de 94,9%). Entretanto, foi identificado pelo Censo
um percentual de 6% na referida faixa etária fora da escola, conforme
apresenta a tabela a seguir.
Tabela II – Crianças de 7 a 14 anos fora da escola nas comunidades/2000
Ranking Comunidade %na comunidade
01 Nova Maré 16,5
02 Salsa e Merengue 1,4
03 Vila do João 9,2
04 Mandacaru 8,8
05 Vila Pinheiros 7,2
06 Parque Maré 7,1
07 Nova Holanda 6,4
08 Morro do Timbau 5,7
09 Bento Ribeiro Dantas 5,5
10 Conjunto Esperança 5,0
11 Baixa do Sapateiro 4,5
12 Parque União 4,5
13 Marcílio Dias 4,2
14 Rubens Vaz 3,7
15 Conjunto Pinheiros 3,6
16 Praia de Ramos 2,5
17 Roquete Pinto 1,7
Média Bairro Maré 6,4
Fonte: Censo CEASM – 2000.
Outro dado fundamental para a caracterização da situação escolar dos
moradores da Maré identificadas pelo Censo Maré /2000 diz respeito às taxas
124
de analfabetismo. Existe um total de 7,9% de adultos a partir de 14 anos de
idade na situação de analfabetos.
3.2 A gênese e atuação do CEASM a partir do contexto dos anos
1990
Este item tratará de uma das partes fundamentais deste trabalho: a
apresentação e análise dos dados obtidos com a pesquisa de campo, a qual se
constitui como um elemento fundamental para a realização da análise de
estudo proposta. Para tanto, cabe situar a metodologia utilizada para o
desenvolvimento da pesquisa, bem como a revelação do processo de obtenção
dos dados, os limites e desafios encontrados para a sua realização.
A metodologia referenciada deste trabalho foi o estudo de caso, a partir
do qual será desenvolvida uma análise teórica acerca do tema proposto por
entender a clara vinculação deste caso com a temática em questão: a relação
Estado e sociedade civil, no que diz respeito à efetivação de políticas sociais.
Para tanto, optou-se pela pesquisa documental através da qual se serão
selecionados e reunidos os dados a partir dos quais a análise se realizará. Os
documentos definidos deveriam abarcar aqueles referentes aos projetos
desenvolvidos pelo CEASM, bem como documentos da ONG como um todo e
produções acadêmicas (cujas temáticas abordam sobre o processo de
organização civil da comunidade) os quais permitissem identificar a relação
existente entre o CEASM e o Estado, nas suas instâncias municipal ou
estadual ou federal.
125
Em decorrência da vinculação já existente entre pesquisador e objeto de
pesquisa, através da atuação profissional em dois programas em anos
anteriores, o contato com os representantes institucionais se deu forma
acessível. Entretanto, vale mencionar que a ONG se encontra numa fase muito
particular de tensionamento, dadas as divergências políticas existentes entre
os integrantes da diretoria e seus fundadores. Tal fato gerou implicações
graves ao desenvolvimento da pesquisa, tendo em vista a dificuldade posta na
obtenção de dados relativos à instituição. Alguns documentos, definidos como
fundamentais para a realização da pesquisa não puderam ser acessados
como, por exemplo, o Estatuto da instituição e de outros documentos que
explicitassem a relação direta ou indireta existente entre o CEASM e o Estado.
Outros acessos também foram impossibilitados: sobre as informações
referentes aos programas e projetos desenvolvidos pela instituição, nem todos
puderam ser acessados.
Neste sentido, os dados foram obtidos a partir do contato direto com os
representantes institucionais no próprio CEASM ou em outros espaços,
seguidos de contatos telefônicos e/ou eletrônicos. Para tanto, em relação às
informações dobre os programas e projetos institucionais, foram sugeridos
alguns itens específicos para simplificar e facilitar tanto aos informantes a
organização do material necessário, quanto ao pesquisador a organização e
análise dos dados. Desta forma, os itens sugeridos foram: objetivos do
programa/projeto; público alvo do programa/projeto; metodologia do
programa/projeto; financiamento do programa/projeto; relação estabelecida
com o Estado. A construção dos quatro primeiros itens ocorreu de forma a
prever a desinformação do último item. Assim todos estes itens direcionadores
126
de coleta foram pensados de maneira que contribuíssem com a identificação
da relação da ONG com o Estado, bem como, em caso de haver a relação,
como se daria esta relação.
Desta forma, a apresentação que segue refere-se aos documentos que
porventura puderam ser disponibilizados para a realização da pesquisa, as
quais, mesmo com as lacunas existentes contribuíram de forma determinante
para. Trata-se das ações desenvolvidas pela ONG no bairro Maré e de
documentos informativos da ONG de forma geral.
Sobre as produções acadêmicas somente foi possível acessar a
dissertação de Mestrado de uma das diretoras do CEASM, que trata do
processo de constituição política vivenciado pelas diferentes fases da
Associação de Moradores da comunidade Nova Holanda.
A exposição dos dados far-se-á mediante a apresentação da nese do
CEASM, seguida das ações desenvolvidas pela instituição e das “parcerias”
firmadas. No item seguinte serão realizadas reflexões em torno da
apresentação destes dados com o subsídio do instrumental teórico debatido
nos capítulos anteriores.
O processo de formação do CEASM se deu a partir da união de
moradores da Maré cuja preocupação centrava-se na ampliação do leque
cultural e educacional dos moradores permitindo-lhes projetar suas vidas para
além dos limites territoriais concretos e abstratos existentes para os mareenses
em geral.
Surgiu da idealização de seis moradores de diferentes comunidades da
Maré, todos com história de participação política (iniciada por alguns já na
década de 70, ainda na fase da adolescência) expressivamente a partir da
127
década de 80 em espaços ou grupos políticos nas distintas comunidades da
Maré, a exemplo: das associação de moradores, dos Grupos de Jovens e
Pastorais da Juventude da Igreja Católica
52
, rádio comunitária
53
e associação
cultural. Este grupo de moradores, além da trajetória política nos movimentos
sociais da Maré, distoava da população mareense em geral por conta de
integrarem um ínfimo percentual de moradores desta localidade que haviam
concluído o nível superior (todos realizados em Instituições do Ensino Superior
públicas) e que, atualmente investiram em cursos de Pós-Graduação Stricto
Sensu.
Desta forma, em 1997 o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Ma
– CEASM,
...foi criado com a missão de promover ações qualitativas,
integradas e de longo prazo no espaço local, visando melhorar
a qualidade de vida dos moradores do lugar. Da mesma forma,
o CEASM busca contribuir na superação das representações
estereotipadas que caracterizam o olhar hegemônico na
cidade em relação às favelas. Nessa perspectiva, os
moradores das comunidades populares são percebidos como
potencialmente criminosos, por um lado, ou como vítimas
passivas e indefesas de um sistema monolítico injusto e cruel.
As duas visões, extremadas, terminam por não reconhecer a
complexidade dos espaços populares, sua heterogeneidade e
a pluralidade de práticas ali desenvolvidas. (CEASM, mimeo,
2007)
Segundo informações disponíveis no endereço eletrônico da instituição,
a partir da presença do CEASM no cenário social da Maré, criou-se uma nova
perspectiva de reivindicação comunitária: a aquisição de bens culturais como
caminho para conquista definitiva da cidadania”.
52
Vale destacar que em 1982 a Pastoral da Juventude articulava-se junto a Teologia da Libertação da
Igreja Católica a qual desenvolvia ações de conscientização política para a comunidade.
53
Em 1995, foi inaugurada a primeira Rádio Comunitária do Rio de Janeiro: a Rádio Maré. (CEASM)
128
Silva (1995) em análise sobre a trajetória política da Associação de
Moradores e Amigos de Nova Holanda - AMANH, afirma que no período que
compreendido entres as gestões da AMANH de 1984 a 1993, houve mudanças
brusca nas propostas e intervenções políticas deste movimento associadas aos
respectivos momentos conjunturais vividos. A primeira gestão é marcada por
uma atuação voltada para o questionamento e “reivindicação dos direitos
sociais básicos”, tendo em vista, conforme abordado no início deste capítulo, a
carência de investimentos públicos sociais na região. È válido lembrar que as
primeiras intervenções sociais estatais na área da Maré somente ocorrem na
década de 90; quando também aconteceu reconhecimento por parte do poder
do Estado da existência desta população mediante a inclusão desta nos
registros oficiais como mapas, etc.; Ainda a respeita do início da trajetória
política da AMANH, a autora revela que o período é caracterizado pela
priorização da “mobilização e a pressão permanente sobre os órgãos públicos,
através de ações coletivas de impacto, como passeatas, atos públicos ou
mesmo o fechamento da Av. Brasil” (SILVA, 1995, p. 135). Ecoavam neste
período palavras de ordem em prol da mobilização e sensilibilização dos
moradores para a ação de uma luta conjunta em prol de um bem coletivo: a
consecução dos direitos básicos.
Em meio a este perfil de movimento “combativo, crítico ao Estado e
agressivo em relação às políticas clientelistas” (Ibid.), a AMANH vivencia
também a influência das estratégias estatais de cooptação de seguimentos
políticos de forma a enfraquecer a luta política direcionando o seu foco de
atuação para outras áreas que não fossem às referentes à ação
governamental. Neste sentido, segundo a autora, vários foram os militantes
129
afastados da inserção deste movimento social, em prol da aceitação de cargos
políticos e outros donativos. Ainda assim o grupo dito “hegemônico” que
permanecia na AMANH, compreendia militantes cujos interesses estavam
prioritariamente relacionados à consciência acerca da cidadania. Entretanto,
configura-se um quadro contraditório, vivenciado, principalmente pela gestão
de 1990 a 1993, em que a perspectiva reivindicatória da associação parece
não atender às demandas postas pela população de Nova Holanda, que
valoriza as ações de cunho assistencialista, limitadas ao atendimento direto de
necessidades básicas. Como a população não se percebe como sujeitos
históricos, não entende nem valoriza o perfil de atuação das gestões da
AMANH, quando direcionado para o desenvolvimento da consciência social.
Tomada ciência sobre alguns fatos que marcaram a trajetória política da
AMAHN, compreende-se a afirmação exposta no endereço eletrônico do
CEASM de que o Pré-vestibular comunitário primeira ação desenvolvida pelo
CEASM, datada do ano de 1998, “marca um momento de transição nas lutas
sociais no bairro. Até então, o foco das reivindicações era geralmente dado à
conquista de infra-estrutura básica: esgoto, luz e água encanada”. (CEASM),
que a proposta desta ação está intimamente associada a uma perspectiva de
comprometimento ao exercício da cidadania.
As ações do CEASM estão distribuídas nas áreas da educação, da
cultura e da comunicação, a partir da oferta dos seguintes programas e
projetos:
130
A. REDE DE EDUCAÇÃO:
Curso Pré-Vestibular Comunitário.
Curso Preparatório para a 5ª Série e para o Ensino Médio.
Núcleo de Línguas.
Laboratório de Informática.
Programa Criança.
Observatório Social da Maré.
Biblioteca Popular Paulo Freire.
B. REDE DE COMUNICAÇÃO
Jornal O Cidadão (tiragem de 20.000 exemplares)
C. REDE DE CULTURA
Memória da Maré
Escola de Cidadãos Dançantes
Oficinas Culturais (artes plásticas, teatro, música e
percussão)
Projeto Viver com Arte
Oficinas de produção gráfica, fotográfica, de vídeo e desenho.
Os objetivos destes projetos estão voltados para a garantia do acesso a
bens e serviços educacionais (visando o estímulo à consciência crítica, à
permanência do aluno na escola, a melhoria do desenvolvimento educacional a
fim de possibilitar inclusive o ingresso de um maior número de mareenses nas
universidades públicas), artísticos e culturais (como o registro, divulgação e
131
preservação da “história da Maré em seus diversos aspectos “), bem como
pretendem contribuir para concretização da intervenção estatal com vistas à
garantia da cidadania.
O público alvo destas ações é bastante diversificado, porém com uma
prevalescência do público infanto-juvenil.
A realização destes projetos se dá através de articulações estabelecidas
com instituições estatais e privadas de capital nacional e internacional, a saber:
No âmbito do bairro Maré, tais articulações são desenvolvidas com as escolas
municipais, associações de moradores, postos de saúde e outras associações
civis atuantes na região. No âmbito externo ao bairro, destaca-se o estreito
vínculo com universidades, institutos de pesquisa, empresas públicas e
privadas, embaixadas, ONG , etc. São exemplos desta parceria”: A Prefeitura
Municipal do rio de Janeiro, através da Secretaria Municipal do Trabalho, da
Educação, da Saúde; a Petrobras, Light, Infraero, BNDES, Prefeitura do Rio de
Janeiro, Embaixada do Canadá e Ashoka.
A exemplo do primeiro projeto do CEASM, o Pré-vestibular, sua
concretização ocorreu desde a articulação com a Igreja Católica, que cedeu o
espaço físico inicial para a realização das aulas, quanto, posteriormente, da
Embaixada do Canadá, que financiou a primeira fase da construção do espaço
físico do CEASM e consequentemente do Pré-Vetibular.
132
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pretende-se, ao final deste trabalho pontuar algumas reflexões
consideradas como fundamentais acerca da temática em questão. Inicialmente,
faz-se necessário deixar claro que não se pretende realizar aqui conclusões
definitivas sobre o objeto que se pretendeu estudar. A pretensão é sinalizar
questões entendidas como relevantes e que poderão contribuir para
argumentações e pesquisas futuras; para um melhor aprofundamento teórico
do tema desenvolvido.
Para melhor compreender as considerações desenvolvidas, serão
retomados os caminhos planejados e percorridos para a construção deste
estudo. A análise da “relação Estado / sociedade civil: um estudo sobre a
implementação de políticas sociais no bairro Maré a partir da atuação do
CEASM” remete a uma fundamental clareza de que a centralidade do debate
localiza-se nas seguintes afirmações:1) a sociedade capitalista constitui-se de
classes sociais distintas e com interesses antagônicos;2) diante dos conflitos
existentes entre ambas, a classe dominante utiliza-se da instituição do Estado
para garantir a sua manutenção do poder e, consequentemente a continuidade
e aceleração do acúmulo do capital. Neste cenário, as políticas sociais
constituem-se instrumentos do Estado para a intervenção nas expressões da
“questão social”, que por sua vez, o originadas das contradições existentes
entre o capital e o trabalho,ou seja, entre os conflitos oriundos das relações
entre as referidas classes sociais. Se o Estado significa um instrumento
institucional, legítimo e legal de manutenção dos interesses da classe
133
dominante, obviamente, a criação e efetivação das políticas socais somente
ocorre mediante a consonância dos interesses desta classe. Diante da
definição de papéis da estrutura social, posta pelo sistema capitalista, ocorre,
pois, no cenário político, econômico e social da atualidade, uma determinação,
obviamente por parte do capital e consequentemente do Estado (que está a
serviço do capital) de certas novidades no modo pelo qual as políticas socais
devem ser desenvolvidas. Visto que: estas políticas são formadas mediante a
estratégia do Estado capitalista de atenuar os conflitos existentes entre as
classes sociais; e que no interior destes conflitos a classe trabalhadora (em
níveis diferenciados, de acordo com as particularidades da correlação de forças
dada em determinadas conjunturas) tem a possibilidade de interferir na
estrutura da sociedade capitalista, a especificidade do papel do Estado na
conjuntura atual é de estimular e induzir os organismos da sociedade civil a
assumirem papéis estrategicamente fundamentais na execução das políticas
sociais de forma a desviar o seu foco de atenção (quando direcionado à
denúncia e reivindicação contra o sistema capitalista), afastando assim as reais
possibilidades desta classe interferir na hegemonia do bloco dominante.
Nesta conjuntura, o trato à efetivação das políticas sociais é redefinido
de modo que o papel do Estado diminui na execução direta de tais políticas, ao
passo que aos organismos da sociedade civil, dentre estes as ONG, há uma
tendência estimulada pelo próprio Estado, a serviço da classe dominante, de
que tais organismos direcionassem sua atuação para a execução direta das
políticas sociais, deslocando assim o foco da atuação crítica e reivindicatória.
Desta forma, ocorre portanto, uma desresponsabilização do Estado no trato às
expressões da “questão social” através das políticas públicas sociais, a qual
134
conduz propositalmente à refuncionalização dos organismos da sociedade civil
a atuarem na execução das políticas, ao invés de contribuírem com
proposições destas e de denunciarem o Estado pelo o cumprimento do seu
papel no trato à efetivação das mesmas.
A justificativa para tais refuncionalizações está baseada também na idéia
negativa de ineficiência” e “incapacidade” do Estado em executar tais políticas
sociais. A idéia de contestação à esfera estatal tende a depreciar o “sentido da
coisa pública: a idéia de que o governo tem a obrigação de cuidar de seus
cidadãos e de oferecer-lhes vida, liberdade (...); esta responsabilidade política
do Estado é essencial ao bem estar dos cidadãos” (PETRAS, 1999p. 48).
As ONG, também consideradas como organismos da sociedade civil, no
contexto atual de refuncionalização, acabam por fomentar “a idéia neoliberal da
responsabilidade privada pelas questões sociais e a importância dos recursos
privados para resolver esses problemas” (Ibid.).
A contraposição entre o poder local” e o estatal equivale a uma reflexão
a-histórica. O destaque dado ao chamado “poder local” é totalmente funcional à
idéia neoliberal de que as ONG resolveria os conflitos existentes entre ambos
assumindo um papel de “mediação” entre o Estado e a sociedade civil.
Neste sentido, cabe uma reflexão de um dos fundadores do CEASM
acerca da sua origem e função social:
Toda nossa lógica de trabalho é a de construção de
alternativas no campo da técnica, da academia e da linguagem
cientifica e no campo do corpo a corpo, que possa permitir
uma nova percepção do seu espaço local e da cidade do Rio
de Janeiro, e, ao mesmo tempo, trabalhar na direção de
pensar o Rio de Janeiro na possibilidade de construir um novo
Rio de Janeiro. Para isso temos que pensar a partir de novos
conceitos. Então o CEASM e o Observatório de Favelas
formam uma rede na Maré que se articula com outras redes
para refletir sobre sua realidade, pesquisar sua realidade e
desenvolver um conjunto de trabalhos que possa repercutir
135
cada vez mais as vozes de jovens, crianças, adolescentes das
favelas do Rio de Janeiro dentro desta cidade (...) Nosso
trabalho é construir experiências inovadoras à realidade
estabelecida. Para isso temos que ter ação local e, ao mesmo
tempo, percepção da cidade como um todo e responsabilidade
de construir ações em rede. (SILVA, 2006, 83)
Tal entendimento revela uma pretensão da ONG, de que, sua atuação
remeterá à construção de alternativas para a classe trabalhadora. Entretanto,
como vimos no início destas considerações, não se trata de uma questão local,
mas estrutural. Neste sentido, vale retomar a contribuição gramsciana de que a
mudança estrutural somente ocorrerá mediante tomada do poder. Para tanto, é
crucial que a classe que pretende tomar o poder, torne-se hegemônica. O que
não acontecerá mediante a iniciativa de atuação local de organismos da
sociedade civil articulada a outros “parceiros” locais.
136
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142
ANEXOS
143
LISTA DE ANEXOS
- ANEXO 1 -------------------------------------------------------------------------------- p. 144
MAPA 1 – Densidade Habitacional
- ANEXO 2 -------------------------------------------------------------------------------- p. 145
MAPA 2 – Densidade Demográfica
- ANEXO 3 -------------------------------------------------------------------------------- p. 146
MAPA 3 – Evolução Urbana da Maré
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