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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
ISABEL RODRIGUES DE MORAIS
SÃO MIGUEL PAULISTA – CAPELA DE SÃO MIGUEL
ARCANJO – interfaces das memórias do patrimônio cultural
MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL
São Paulo
2007
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2
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
ISABEL RODRIGUES DE MORAIS
SÃO MIGUEL PAULISTA – CAPELA DE SÃO MIGUEL
ARCANJO – interfaces das memórias do patrimônio cultural
MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
MESTRE em História Social, sob a orientação da
Profª. Drª. Olga Brites.
São Paulo
2007
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3
Banca Examinadora
_______________________________________
_______________________________________
_______________________________________
4
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou
parcial desta Dissertação por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.
Assinatura: ________________________________ Local e Data: ______________
5
DEDICATÓRIA
Ao Geraldo, meu companheiro de sempre, pelas lutas
enfrentadas e pela grandeza com que as enfrenta.
Para Ligia, filha distante, porém presente em todos os
momentos.
Aos meus filhos Bruno e Regiane, com meu amor e
meu muito obrigada.
À minha mãe Oranides, cuja presença é sempre constante e
ao meu pai José Rodrigues, que de onde está, com certeza
sorri.
Aos moradores de São Miguel Paulista, aqueles que ali
mergulharam, nessa cidade de São Paulo, como o fermento
na massa, como o sal da terra, como os frutos que brotam da
terra após a chuva.
6
AGRADECIMENTOS
Desde pequena tive um sonho. Dizia, um dia gostaria de escrever um livro. Não
que me achasse boa escritora, porém a leitura sempre me foi companheira fiel. Desta
forma, terminar esta dissertação, que não deixa de ser um livro, tem o sabor de sonho
realizado. E para realizar sonhos, sempre contamos com a ajuda de muita gente,
companheiros de trabalho, família, amigos de antes e os que se fizeram no decorrer da
caminhada.
E, com certo sabor de vitória, agradeço a todos que colaboraram com este
trabalho, apresentando desculpas pela incompletude com que ele certamente se mostrará.
Devo agradecer aos meus depoentes que, com grande solicitude, forneceram-me
dados imprescindíveis para que esta pesquisa se realizasse. O Sr. Eurico dos Santos é,
com certeza, um deles, que além de relatar suas experiências, colocou-me à disposição
todo seu acervo sobre o bairro de São Miguel Paulista, produto de uma vida toda de coleta
e organização de material. Ao Sr. Jesuíno Braga, artesão, que com a mesma solicitude,
forneceu-me também seu material, suas histórias e ainda iluminou-me com suas criações;
à Madalena, sua esposa, pela paciência em ouvir todas essas histórias, receber-me em sua
casa e, ainda, preparar sempre uma guloseima para ser apreciada.
Depoente especial, Sr. João Feher foi quem primeiro abriu-me as portas da
Capela de São Miguel Arcanjo para que eu adentrasse nessa temporalidade
passado/presente que a Capela permite circular. Agradecimento especial à historiadora
Roseli Santaella Stela, pesquisadora incansável sobre São Miguel Paulista e também ao
Pe. Geraldo e à Associação Cultural Beato José de Anchieta pelo fornecimento de dados
para compreensão dessa história.
À diretoria da “Escola de Samba Unidos de São Miguel”, que através dos seus
membros, mesmo passando por horas difíceis, não deixou de prestar-me depoimentos
imprescindíveis. Também agradeço à diretoria do “Laticínio Gege”, na pessoa do Sr.
Domingos Pantaleão; à Sueli Brasil do “Grupo Escoteiro Padre Aleixo”; à artista plástica
Adinéia Batatinha; bem como à diretoria do jornal “Acontece Agora”, na pessoa do Sr.
Divaldo Rosa. Agradecimentos também ao poeta Osvaldo Pires Holanda; Sr. José Caldini
Filho; Sr. José Leite; Dona Tereza Pilon; Padre Aristides; Padre Ticão; Padre Nubio;
Coronel Senedin; José Vitorino, o Compadre; José Antonio Araújo; José Luis Souza;
Albertino Alves Nobre; Ronaldo Araújo Calixto; pessoas que gentilmente relataram suas
7
experiências recheadas de ações sociais que permeiam a história de São Miguel Paulista.
Agradeço também ao Sacha Arcanjo e Izal pelas discussões a respeito do Movimento
Popular de Arte e usos sociais da praça. Aos componentes da Associação Amigos da
Praça do Forró”, nas pessoas de Alzira Viana e Cícero do Norte que, em meio ao ritmo de
sua música, relataram experiências e lutas. Um agradecimento póstumo à dona Lyris
Rodrigues Ruott que não esperou esse trabalho chegar ao final.
Pensando no percurso acadêmico, quero agradecer à professora Heloísa Aguiar,
da Universidade Cidade de São Paulo (Unicid), pois foi quem primeiro acreditou que este
trabalho seria possível.
À professora Olga Brites, minha orientadora que, desde o projeto de pesquisa, foi
indicando os caminhos a percorrer, sem no entanto impor sua opinião como a única
possível, esperando pacientemente a gestação das idéias ainda embrionárias nesta
caminhada nada fácil, que é o processo de pesquisa e a sua escritura. Agradeço de modo
especial, às professoras Yara Aun Khoury e Mirna Busse Pereira, pelas leituras dos
primeiros escritos desta pesquisa, ainda quando cumpria os créditos do mestrado e,
depois, no exame de qualificação, oportunidade em que deram importantes sugestões que
permitiram avançar na escrita final do trabalho.
Agradeço, ainda, à Maria “Baia” pela ajuda incondicional, sem a qual “não sei o
que seria de mim”. Mariana e Aninha, sobrinhas queridas, pela ajuda nas transcrições das
fitas e pela ajuda na formatação e Cida, minha irmã, sempre presente nas horas difíceis de
organizar todo esse material.
Deixo, também, um agradecimento às minhas irmãs e aos meus cunhados sempre
prontos para estenderem suas mãos diante das necessidades. E viva o serpentário!
Devo agradecer ao apoio da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, por
intermédio do programa “Bolsa Mestrado”, o suporte financeiro essencial para que eu
pudesse realizar esta pesquisa. Sou grata à solicitude da prof. Ana Maria e ao pessoal da
Leste 4 e igualmente aos colegas de trabalho e à direção da EE “Sergio da Silva
Nobreza”, pela compreensão, apoio e incentivo.
Agradeço, ainda, à Lílian, amiga querida pelas leituras e sugestões apresentadas.
Igualmente agradeço à Beatrice, doutora e amiga nas horas difíceis.
Finalmente, aos sorrisos da Ju, Carol, Gu e Pedrinho que encheram de alegria os
breves momentos de descontração, nesse necessário período de reclusão.
8
RESUMO
Nesta pesquisa, procuro refletir sobre o bairro de São Miguel Paulista e o seu
cotidiano, especialmente ligado à presença da Capela de São Miguel Arcanjo. Este
templo religioso é considerado um dos exemplares mais antigos da cidade de São
Paulo, que conserva sua originalidade. O bairro de São Miguel Paulista, situado na
zona leste da cidade, foi nos primeiros anos de sua colonização um aldeamento
indígena chamado Ururaí. O processo de ocupação do bairro está, portanto, ligado à
fundação da cidade de São Paulo, por ser um local estrategicamente situado,
favorável à efetivação da cristã no Planalto Piratininga, tendo sido para isso,
necessária a construção de uma Capela que serviria de ponto de aglutinação desses
índios. O objetivo da pesquisa é analisar as dinâmicas sociais que se estabeleceram
e se estabelecem em torno desse bem cultural e as ações que viabilizam sua
preservação, enfocando especialmente os períodos que compreendem o tombamento
e primeira restauração pelo IPHAN (1939) e tombamento pelo Condephaat (1974),
até os dias atuais. Assim, foram analisadas as ações do poder público,
principalmente as relativas aos tombamentos, restauração e medidas que visam sua
proteção e, ainda, a participação ativa dos sujeitos sociais que se relacionam com
esse bem e que vivenciaram e vivenciam esses momentos e que têm ações voltadas
para sua preservação. Busco perceber a “Capela de São Miguel Arcanjo” como
parte de uma experiência social que envolve interesses e relações de poder que dão
significados diferentes a esse patrimônio, trabalhando as tensões daqueles que a
significam como patrimônio do passado e lutam pela sua preservação e, por vezes,
daqueles que a vêem como coisa velha e, portanto, não afinada com o “progresso”.
Serviram como fonte de pesquisa os documentos produzidos pelos órgãos oficiais e
os depoimentos orais de pessoas relacionadas à capela e ao bairro de São Miguel
Paulista, bem como as diferentes produções desses sujeitos. Da interlocução destas
ações e produções procuro entender o sentido histórico deste patrimônio cultural.
Palavras-Chave: memória; história oral; patrimônio; cidade; cultura.
9
ABSTRACT
In this research, I long to reflect about São Miguel Paulista district and its everyday
happenings, especially those related to the presence of São Miguel Arcanjo chapel.
This religious temple is considered one of the oldest of its type in the city of São
Paulo, that preserves its original state. The São Miguel Paulista district, located in
east side of town, was, in the early years of colony settlement, an indigenous site
called Ururaí. The district occupation process is, therefore, linked to the foundation
of São Paulo city, due to being a strategically well located place, favorable to
Christian faith consolidation on Piratininga plateau, being for that, necessary the
construction of a Chapel that would serve as an agglutination point for these
Indians. The objective of this research is to analyze the social dynamism that were
established and are still established around this cultural heritage and the actions that
make possible its preservation, focusing especially the timing that comprehend the
registration as listed building and the first restoration made by IPHAN (1939) and
the registration as listed building made by Condephaat (1974), until the present
days. Thus, public power actions were analyzed, mainly, those related to the
registrations as listed building, restoration, and measures aimed to its protection
and, yet, the participation of social individuals that interact with this heritage and
that have experienced and still experience this moments and that have actions
directed towards its preservation. On this way, I pursue to recognize the “São
Miguel Arcanjo Chapel” as part of a social experience that involve interests and
relations of power that give different meanings to this patrimony, analyzing the
stress of those that perceive it as a heritage and fight for its preservation and, on the
other hand, of those who see it as an “old thing” and, therefore, non-aligned with the
“progress”. Served as source of research the documents produced by official
government agencies and oral testimony of people having relations with the Chapel
and São Miguel district, as well as the different outputs of these individuals,
pursuing to understand the historical role of this cultural heritage.
Key-words: Memory, patrimony, oral history, culture, town.
10
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS...............................................................................
14
CAPÍTULO I
UM URURAÍ QUE ATRAVESSOU OS SÉCULOS... ........... 37
1.1 São Miguel Paulista, um fragmento da cidade ..........................................
38
1.2 Um bairro distante, uma origem remota ................................................... 57
1.3. Rumo a São Miguel: o bairro na década de 30 ......................................... 64
1.3.1. Da Igreja à Capela..........................................................................
....................................................................................
78
CAPÍTULO
II
TEMPOS, ESPAÇOS E MEMÓRIAS: histórias de São
Miguel ..........................................................................................
88
2.1. Descortinando outras cenas .......................................................................
90
2.1.1. A Capela restaurada... uma delícia ............................................................
90
2.2. Desvendando outras práticas .....................................................................
107
2.2.1. Movimento Popular de Arte ..................................................................... 107
2.2.2. A mesma praça: Padre Aleixo Monteiro Mafra X Praça do Forró .......... 115
2.2.3. Câmara Distrital (Simbólica) de São Miguel Paulista ..............................
134
2.2.4. Vinha gente de todo lugar, né... ............................................................... 142
CAPÍTULO
III
UM EXERCÍCIO DO OLHAR: produtos que evocam a
Capela
...........................................................................................
158
3.1. Um filatelista persistente ...........................................................................
159
3.2. Entre dois amores: São Miguel Paulista e Brunhozinho ........................... 175
3.2.1. “Outras memórias... outras histórias” de São Miguel e da Capela ........... 186
3.2.1.1. “Escola de Samba Unidos de São Miguel” .............................................. 186
11
3.2.1.2. A Insígnia do 29º Batalhão da Policia Militar .......................................... 200
3.2.1.3. Grupo Escoteiro “Padre Aleixo” .............................................................. 205
3.2.1.4. “Mania de Pintar Telas” .......................................................................... 213
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................
221
FONTES ORAIS ..................................................................................................... 225
PALESTRAS GRAVADAS E DIGITALIZADAS............................................... 230
OUTRAS FONTES.................................................................................................. 231
BIBLIOGRAFIA .....................................................................................................
235
12
SUMÁRIO DE FIGURAS
Figura 01
Capela de São Miguel Arcanjo: Patrimônio Histórico 1622, estampada
no convite de lançamento do bloco filatélico – 2004................................
13
Figura 02
Localização do bairro de São Miguel Paulista ......................................... 15
Figura 03
Maquete da Capela de São Miguel Arcanjo elaborada pelo Sr. Jesuíno
Braga....
45
Figura 04
Exterior da Capela – foto de 1941 – Acervo Unicsul .......................... 65
Figura 05
Símbolo do Rotary Club, criado em 1967 por José Caldini Filho............. 147
Figura 06
São Miguel Paulista, 1938 – Acervo Unicsul....................................... 151
Figura 07
Folder da programação de comemoração dos 382 anos de São Miguel
Paulista – 2004..........................................................................................
155
Figura 08
Carimbo comemorativo emitido pela ECT -2003...................................... 166
Figura 09
Bloco Comemorativo emitido pela ECT – Edital 1 – 2004....................... 171
Figura 10
Estampa da Capela no bilhete da Loteria Federal extração de
23/09/2000.................................................................................................
173
Figura 11
Cartão telefônico com a estampa da Capela de São Miguel Arcanjo -
Grupo Telefônica no Brasil – 2004...........................................................
174
Figura 12
Embalagem da caixa de leite tipo longa vida do laticínio “GEGE”.......... 178
Figura 13
Imagem da Capela como logomarca “Acontece Agora”........................... 185
Figura 14
Pavilhão da Escola de Samba “Unidos de São Miguel”............................ 193
Figura 15
Insígnia do 29º BPM/M – São Miguel Paulista......................................... 201
Figura 16
Estampa alusiva ao 1º aniversário do Grupo Escoteiro Padre Aleixo ...... 205
Figura 17
Reprodução da obra Capela de São Miguel Arcanjo” de autoria da
artista plástica Adinéia Batatinha dos Santos............................................
216
13
SÃO MIGUEL PAULISTA – CAPELA DE SÃO MIGUEL
ARCANJO – interfaces das memórias do patrimônio cultural
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Figura 1 – Capela de São Miguel Arcanjo: Patrimônio Histórico - 1622
14
CONSIDERAÇÕES INICIAIS

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Partindo da região central para o lado leste da cidade de São Paulo, numa
distância de aproximadamente vinte e cinco quilômetros, chega-se ao bairro de São
Miguel Paulista. Em toda sua extensão, esse bairro parece multiplicar o seu repertório de
imagens. São prédios de várias alturas, casas geminadas, quintais, movimento
incontrolável de carros, lojas que expõem suas mercadorias, pessoas que compram,
vendem, trabalham, estudam, transitam. Ao se adentrar nesse território
1
nada nos leva a
pensar que este foi um dos primeiros bairros, local em que se iniciou a formação da
cidade de São Paulo.
Ao observador atento porém, este local exporá territórios diferenciados
2
, e um
acontecer cotidiano pontuado de contradições. Na região central do bairro, em meio a um
comércio acentuado, lojas que vendem produtos das mais variadas espécies, bares,
restaurantes, igrejas evangélicas, instituições de atendimento à população, salões de beleza,
clubes, estacionamentos, bancos, vendedores ambulantes, bancas de jornal; notar-se-á a
presença de uma igreja, atualmente conhecida como “Capela de São Miguel Arcanjo” que
guarda as principais características da arquitetura luso-brasileira dos séculos XVI e XVII
3
;
um rastro do passado que expõe a origem colonial deste espaço urbano, modificado ao
longo do tempo em função de interferências simultâneas ou não, de interesses diversos.
1
Segundo Vidal, o território é um espaço construído por um ator individual ou coletivo em função de certos
objetivos e a partir de uma representação do espaço terrestre... o território é produzido por um sistema
cultural, vale dizer, que é a projeção de uma cultura sobre o espaço terrestre. VIDAL, Rodrigo. A cidade e
seu território através do ordenamento urbano em Santiago do Chile in Projeto História (14) Cultura e
Representação. São Paulo: PUC, fev.1997. p. 184.
2
A representação coletiva de território não é a soma de representações individuais, nem tampouco a
expressão de uma unanimidade, mas o resultado de uma seleção-exclusão de interesses dominantes ou
majoritários a partir de uma diversidade de interesses. VIDAL, Rodrigo. Op.cit., p.185.
3
Essas características, impropriamente chamadas de jesuíticas, existiam muitos séculos na arquitetura
ibérica, estando cristalizadas antes da formação da nacionalidade portuguesa: nave única, abside
retangular (isto é, capela-mor); recinto de transição entre exterior e interior (nártex, galilé, alpendre, etc.);
aspecto externo severo e cobertura de duas águas, criando empena frontal. A esse programa básico,
conforme a necessidade e os recursos disponíveis, eram acrescentados uma ou duas sacristias, por vezes um
corredor lateral aberto ou fechado no caso de São Miguel, o corredor está guarnecido por balaustres de
madeira – e uma sineira, quase sempre tosca armação a sustentar o sino. SPHAN-Condephaat, Bens
Culturais Arquitetônicos no Município e na Região Metropolitana de o Paulo. São Paulo: SNM
(Secretaria dos Negócios Metropolitanos), Emplasa (Empresa Metropolitana de Planejamento da Grande
São Paulo), Sempla (Secretaria Municipal do Planejamento), 1984, p.161.
15
Assim, a pesquisa voltada para a “Capela de São Miguel Arcanjo” relaciona-se à
inquietação provocada por sua presença solitária na Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra,
em São Miguel Paulista, bairro da zona leste da cidade de São Paulo. “Presença solitária”,
remanescente única de arquitetura colonial que se destaca em meio ao atual ambiente
urbano que o e espaço evidencia.
na cidade de São Paulo.
Figura 2
Localização do bairro de São Miguel
Paulista
16
Desse modo, a cidade “tomando a forma que o olhar revelava
4
, da observação do
espaço, onde velho e novo se confundem, muitas vezes despercebido e, em outras,
ressaltado aos olhos de quem gosta e se interessa pela história dessa cidade, senti
necessidade de refletir sobre o bairro de São Miguel Paulista e o seu cotidiano
especialmente ligado à presença da Capela de São Miguel Arcanjo. Nessa perspectiva,
entrei em contacto com aspectos de sua história, através de leituras e reflexões sobre os
antecedentes históricos da aldeia de São Miguel de Ururaí
5
; a geopolítica da Capitania de
São Vicente; as ações jesuíticas e a fundação de São Miguel; as transformações de São
Miguel na década de 30; além de bibliografia referente a esses temas.
Se as respostas sobre as origens da Capela de São Miguel Arcanjoque, segundo
Stella, apresenta a simplicidade das formas das residências de fazenda e a austeridade
de quem implacável ao tempo, resiste com a força de edificações conhecedoras de nobres
materiais
6
, foram encontradas nesse diálogo com as publicações existentes sobre o
assunto, a percepção dos vários tempos, impregnados na paisagem urbana, fez aflorar
inquietação diferente e, inicialmente, me perguntava: Por que essa Capela, notadamente de
origem colonial resistiu ao tempo? O que tornou possível sua travessia pelos séculos?
Quais experiências sociais foram construídas no bairro, tomando a Capela como
referência?
Dessa inquietação surgiu a necessidade de conhecer esse objeto, entender seus
modos de expressão, seu sentido histórico e os significados e vivências que diferentes
sujeitos atribuem à Capela de São Miguel Arcanjo e, construir um caminho para a
investigação. Para a discussão destas questões, foram fundamentais as reflexões de
Carlos
7
sobre a prática sócio-espacial da cidade enquanto condição, meio e produto da
ação humana, pelo seu uso ao longo do tempo, apontando a superação da idéia de cidade
como simples localização de acontecimentos, para revelá-la como possibilidade sempre
renovada de realização da vida. Nesta mesma perspectiva Fenelon ajuda a compreender
que a constituição dos espaços e territórios urbanos são resultantes das relações sociais
4
LISPECTOR, Clarice, apud CARLOS, Ana Fani Alessandri. O Espaço Urbano Novos escritos sobre a
cidade. São Paulo: Contexto, 2004.p.35.
5
Segundo BOMTEMPI, Sylvio. O Bairro de São Miguel Paulista. São Paulo: 1970, a primeira referência
nominal a São Miguel data de 1586, quando passa a figurar nos catálogos da Companhia de Jesus. A
denominação de Ururaí, em terras de o Paulo, correspondia à região que, começando pouco além da
Penha, estendia-se pela margem esquerda do Tietê.p.22
6
STELLA, Roseli Santaella. Anchieta:A contribuição canária na colonização paulista, IX Colóquio de
História Canário-Americana, Lãs Palmas, Casa Colón/Cabildo Insular de Gran Canária, v.I. 1992. p.700.
7
CARLOS, Ana Fani Alessandri, O Espaço Urbano Novos escritos sobre a cidade. São Paulo: Contexto,
2004. p. 7.
17
desenvolvidas na cidade, que acabam por definir e delinear a paisagem urbana, a imagem
da cidade.
8
Arantes também indica que, “as paisagens são criadas pela ação humana e, ao
se tornarem referências de tempo-espaço para as ões e experiências compartilhadas,
elas por sua vez realimentam o processo histórico”.
9
Diante destas questões, a definição da temática para investigação começou, então,
a se configurar: analisar como as dinâmicas sociais que se estabelecem em diferentes
temporalidades e diferentes histórias se juntam em torno desse bem cultural. Busco, dessa
forma, contextualizar o processo de ocupação do bairro e a presença da Capela como
elemento aglutinador dessas ações sociais e ainda, compreender, a partir das experiências
sociais das pessoas que se relacionam com a Capela de São Miguel Arcanjo, como os
modos de vida foram forjados e alterados gradativamente a partir das relações cotidianas
vivenciadas pelos moradores do bairro . Analiso as dinâmicas sociais que se deram a partir
da Capela e do bairro contidas nas memórias e recompostas como lembranças de relações
sociais experimentadas, legadas pelo viver e pela disputa de espaços sociais na cidade.
Busco identificar as várias significações culturais por meio de rupturas, dissidências,
diferenças, mudanças, permanências, que se realizaram e se realizam em torno desse bem
cultural e do bairro de São Miguel Paulista.
10
Nesse sentido, recorri a conversas com moradores da região e nos seus relatos, nas
suas narrativas pude apreender dimensões dessa problemática que é ter essa Capela como
referência cultural, como patrimônio histórico e como afirmação de determinados modos
de vida na cidade. Para isso foi necessário compreender, que na cidade convivem diversas
temporalidades marcadas pelas dinâmicas sociais nas quais a rua, a praça, o bairro estão
cheios de lembranças e memórias resultantes da experiência humana.
Ao incluir a produção social da memória e todas as maneiras pelas quais um
sentido do passado é construído, tive que perceber, que nelas todos participam, embora de
maneira desigual e que as experiências relatadas são significativas para entendermos
como os sujeitos se constroem historicamente e vão ao encontro do proposto por
Thompson, que considera a “experiência” como “sistemas densos, complexos e
8
FENELON, Déa Ribeiro (org.) Cidades. PUC-SP. Programa de Estudos Pós Graduados em História. o
Paulo: Olho Dágua, 1999. p.6.
9
ARANTES NETO, Antonio Augusto. Paisagens Paulistanas Transformações do Espaço blico.
Campinas: Unicamp,São Paulo: Imprensa Oficial, 2000, p.84.
10
Nesse sentido, o proposto é ter a memória popular como objeto de estudo, ampliar o que se entende por
“escrita da História”, ou seja, especialmente da produção histórica para além dos limites da escrita da
história acadêmica. Grupo de Memória Popular. Memória Popular: teoria, política, método in: Muitas
memórias, outras histórias. FENELON, Déa Ribeiro e outros (orgs). São Paulo: Editora Olho D’Água,
2000, p.282.
18
elaborados, pelos quais a vida familiar e social é estruturada e a consciência social
encontra realização e expressão criticando, dessa forma, uma abordagem estruturalista dos
processos históricos”.
11
Configurada a problemática, foi necessário compreender que os segmentos m
suas memórias urbanas e deixam cotidianamente marcas que elucidam de que forma, em
seu dia-a-dia, construíram e estabeleceram seu modo de vida na cidade. Assim, a cidade é
vista como um espaço plural, marcado por atuações diversas, não podendo ser confundida
com um espaço homogêneo e harmonioso. Foi necessário, ainda, entender como estes
espaços são produzidos e quais os seus mecanismos de preservação e de destruição. Nesse
sentido, o patrimônio urbano
12
entendido como um conjunto de bens, edifícios, paisagens
e objetos produzidos e apropriados em função de seu valor social, é selecionado dentre os
objetos que o compõe em face da carga de significado social que possui. Cada bem
cultural é um fragmento da memória social que identifica a história vivida pela cidade.
Então, a leitura possível da região de São Miguel Paulista deve possibilitar aos seus
moradores a imagem clara daquilo que efetivamente pode compor os fragmentos de sua
história.
Como outras partes da cidade de São Paulo, a região de São Miguel Paulista
evidencia os problemas e as potencialidades colocados pela preservação do patrimônio
cultural
13
e sua relação com o processo de desenvolvimento urbano. Essa complicada
dinâmica entre preservação e urbanismo continua a ser uma questão de difícil solução em
nossas cidades da qual bairro de São Miguel Paulista não escapa. Nesse espaço urbano,
sobrepõem-se e justapõem-se as marcas do período colonial brasileiro; dos primórdios da
industrialização na cidade de São Paulo, “uma metrópole que não pode parar”; do
11
THOMPSON, E.P. A Miséria da Teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1979.p.188-189.
12
Segundo Fonseca, a constituição de patrimônios históricos e artísticos nacionais é uma prática
característica dos Estados modernos que, através de determinados agentes, recrutados entre os intelectuais, e
com base em instrumentos jurídicos específicos, delimitam um conjunto de bens no espaço público. Pelo
valor que lhes é atribuído, enquanto manifestações culturais e enquanto símbolos da nação, esses bens
passam a ser merecedores de proteção, visando à sua transmissão para as gerações futuras. FONSECA,
Maria Cecília Londres. O Patrimônio em Processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ; MinC-Iphan, 2005, p. 21.
13
Verifica-se uma passagem da visão reducionista que enfatizava a noção de patrimônio nos aspectos
históricos consagrados por uma historiografia “oficial”, centrada em episódios bélicos e figuras
paradigmáticas quando não em recortes arbitrários foi-se projetando a uma nova perspectiva mais
ampla que inclui o “cultural” incorporado ao “histórico” as dimensões testemunhais do cotidiano e os feitos
não-tangíveis. Conforme GUTIERREZ, Ramón. História, Memória e Comunidade: o direito ao patrimônio
construído, in O Direito à Memória –Patrimônio Histórico e Cidadania. Departamento do Patrimônio
Histórico. São Paulo, DPH, 1992, p.121.
19
movimento migratório para a região sudeste brasileira e de um período contemporâneo que
caminha para uma cidade prestadora de serviços.
Não pretendo, portanto, pesquisar a Capela de São Miguel Arcanjo como um
documento congelado no passado, mas refletir sobre como ela é significada no presente
por sujeitos diferenciados, indo além da reflexão sobre seu papel em tempos remotos,
entendendo que o reconhecimento do passado e do presente, também é produzido na vida
cotidiana. Como historiadora engajada nas questões que privilegiam uma abordagem
social da História, concordo com Pollak quando afirma que analisar a interlocução dessas
ações no presente e os rastros deixados pelos seus agentes credibilidade à
reinterpretação do passado e sentido de identidade individual e do grupo. Para Pollak, “o
trabalho permanente de reinterpretação do passado é contido por uma exigência de
credibilidade que depende de coerência de discursos sucessivos”
14
.
As pesquisas realizadas e o envolvimento com os sujeitos que atuam nas
dinâmicas sociais referentes à Capela de São Miguel Arcanjo apontam para possibilidades
de estudos e ações que permitem caracterizá-la como um patrimônio múltiplo e, ao mesmo
tempo, singular por apresentar esta heterogeneidade de universos que possibilita encontrar
uma pluralidade de significados de aspectos da história da ocupação do Brasil Colonial e
da formação da cidade de São Paulo. Sua arquitetura alpendrada permite estudos sobre as
construções espanholas e portuguesas como indicam Amaral
15
e Freyre
16
e da arte barroca
do século XVII, da qual a Capela é representante pelos seus entalhes, sua mesa de
comunhão e sua pia batismal. Sua característica multidisciplinar permite ao pesquisador
circular pelos vários aspectos do conhecimento e da experiência humana.
Dentro da multiplicidade de significados que permite várias interpretações, a
singularidade de um patrimônio único, um dos poucos representantes desse período de
formação do Brasil e da cidade de São Paulo, que conserva ainda hoje suas funções
primeiras, ou seja, é um templo religioso, que até o início de obras de restauração
17
,
14
POLLAK, Michel. Memória, Esquecimento e Silêncio. Rio de Janeiro: Estudos Históricos, 1989, p.10.
15
AMARAL, Aracy A. A Hispanidade em São Paulo – da casa rural à Capela de Santo Antonio. São Paulo:
Nobel, 1981.
16
Sobre o assunto, FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. São Paulo: Record, 2001. p. 50, discutindo
a arquitetura jesuítica e de igreja do Brasil colonial, afirma: Se a casa-grande absorveu das igrejas e
conventos valores e recursos de técnica, também as igrejas assimilaram caracteres da casa-grande... Nada
mais interessante que certas igrejas no interior do Brasil com alpendre na frente ou dos lados como qualquer
casa de residência. Conheço várias em Pernambuco, na Paraíba, em o Paulo. Bem característica é a de
São Roque de Serinhaém. Ainda mais: a capela do engenho de Caieiras, em Sergipe, cuja fisionomia é
inteiramente doméstica. E em São Paulo, a igrejinha de São Miguel, ainda dos tempos coloniais”.
17
O projeto de restauração da Capela de São Miguel Arcanjo foi lançado em 2005e iniciado em 2006. Sobre
o assunto, ver Capítulo II – Tempos, Espaços e Memórias: histórias de São Miguel.
20
iniciada em 2006, esteve aberta ao público diariamente para visitação e oração e onde se
realizavam celebrações litúrgicas, como missas e casamentos. Conseguiu atravessar quase
quatro séculos da cidade de São Paulo
18
, que se transforma a cada momento, cria e recria
seus espaços, numa dinamicidade própria das megalópoles
19
. Dos rastros deixados pelo
passado no espaço urbano ela, a Capela, está ali, diferenciada, singular. Constitui-se em
elo entre um passado relativamente próximo, exaltado, descrito como glorioso, mas nem
sempre preservado e respeitado e num presente que guarda traços de permanências e
transformações constantes.
Todos esses aspectos fazem sentido pelos diferentes sujeitos que compõem a
história dessa Capela e, ao mesmo tempo, da localidade na qual está situada, o bairro de
São Miguel Paulista, na cidade de São Paulo.
Assim, apresentarei esse patrimônio “múltiplo e singular” de maneira especial.
Pretendo percorrer um caminho diferente daqueles a então trilhado nas várias
abordagens sobre ele. Analisarei as mesmas experiências, os mesmos momentos, os
mesmos locais, porém percebidos e comunicados sob outra ótica. Nas pequenas cenas do
cotidiano, despercebidas muitas vezes, reconhecerei as práticas e construções de diferentes
sujeitos e por meio de suas ações, de seus olhares, apontarei o inusitado, tornando-o
visível. Busco identificar seus diferentes usos e trabalhar as tensões daqueles que a
significam como patrimônio do passado e lutam pela sua preservação e, por vezes,
daqueles que a vêem como coisa velha, não afinada com o “progresso”.
Este trabalho pretende ir além das questões que privilegiam aspectos da ocupação,
bem como da formação da aldeia de São Miguel de Ururaí e da construção da Capela, não
por considerá-los irrelevantes, mas por entender que outras questões ainda não estudadas,
evidenciam a Capela como parte de uma experiência social; que envolvem interesses e
relações de poder e que dão significados diferentes àquele patrimônio do bairro. Não
18
A Capela de São Miguel traz gravada na verga de sua porta principal a data de 18 de julho de 1622, aceita
como a de sua consagração. Assim sendo, ela deve substituir outra mais antiga, pois o aldeamento para o
qual foi construída remonta à segunda metade do século XVI. Sua construção é atribuída a Fernão Munhoz,
o que é comprovado pelo próprio testamento do bandeirante. SPHAN-Condephaat, Bens Culturais
Arquitetônicos no Município e na Região Metropolitana de São Paulo. São Paulo: SNM (Secretaria dos
Negócios Metropolitanos), Emplasa (Empresa Metropolitana de Planejamento da Grande São Paulo),
Sempla (Secretaria Municipal do Planejamento), 1984, p.161.
19
Raquel Rolnik discute a questão da transformação da cidade de São Paulo no final do século 20, como a
cidade que parece não caber mais na imagem que tem de si mesma. Nem gigante industrial nem cidade que
mais cresce no mundo a cidade vem perdendo empregos industriais e se terceirizando, ou seja,
transformando-se em um centro comercial e de serviços altamente diversificado e sofisticado. (...) novas
formas de organização espacial, como shopping centers e centros empresariais, contestam a lógica de uma
estrutura territorial pré-eletrônica. ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei. Legislação, política urbana e
territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: Fapesp, 2003. p. 208-209.
21
pretendo, abordar uma história linear que evidencia a experiência indígena ou aspectos
arquitetônicos que justificam sua preservação e sim apontar as experiências sociais
diversas, de sujeitos que se relacionam com a Capela e com o bairro de São Miguel
Paulista e os diferentes usos que estes fazem dela, atribuindo-lhe valores também
diferenciados, numa perspectiva de tornar explícitas formas de expressão que trazem à
tona as tradições
20
e os modos de interpretar as mudanças históricas da região,
reorganizadas em diferentes temporalidades.
A Capela de São Miguel Arcanjo, refletida nas memórias dos sujeitos, representa a
questão fundamental da pesquisa, que grande importância à História Oral, desde a
produção das entrevistas e suas transcrições até a difícil tarefa de problematizá-las e
interpretá-las como metodologia de trabalho. Para Portelli, o “único e precioso elemento
que as fontes orais têm sobre o historiador, e que nenhuma outra fonte possui em medida
igual, é a subjetividade do expositor”. O autor considera que, as fontes orais:
...contam-nos não apenas o que o povo fez, mas o que queria fazer, o que
acreditava estar fazendo e o que agora pensa que fez. Fontes orais podem não
adicionar muito ao que sabemos, por exemplo, o custo material de uma greve
para os trabalhadores envolvidos; mas contam-nos bastante sobre seus custos
psicológicos. [...] elas se tornam únicas e necessárias por causa do seu enredo
o caminho no qual os materiais da história são organizados pelos narradores de
forma a contá-la. A construção da narrativa revela um grande empenho na
relação do relator com a sua história.
21
Estas reflexões me fizeram trilhar um caminho mais específico no tocante à
apreensão dos modos de vida dessas pessoas, voltando a atenção desse estudo não apenas
para o passado, mas para a relação passado-presente, considerando a memória popular
como prática política do presente, lugar em que o passado encontra esta existência ativa.
Dessa forma, procurei perceber na relação entre história e política , bem como na relação
presente e passado, os usos das memórias nas práticas e experiências sociais vividas, na
tentativa de explicá-las no movimento da História em constante transformação.
Nesse sentido, realizei diversas entrevistas com pessoas que viveram no bairro na
década de 30, período importante para a pesquisa porque foi a época da criação SPHAN
20
Grupo de Memória Popular. Memória Popular: teoria, política, método in: Muitas memórias, outras
histórias. FENELON, Déa Ribeiro e outros (orgs). o Paulo: Editora Olho D’Água, 2000, p.286. Para o
Grupo de Memória Popular, o significado político da história pode ser clareado se o compararmos com
algumas abordagens. Uma delas é a construção de tradições que é uma maneira pela qual o argumento
histórico funciona como força política, embora arrisque um certo conservadorismo; da mesma forma, a
análise adequada das relações contemporâneas de força política deve resgatar épocas históricas mais ou
menos distantes; deve também compreender os limites e as possibilidades mais amplos de uma época, no
que diz respeito a uma história mais abrangente das estruturas capitalistas e patriarcais.
21
PORTELLI, Alessandro. O que faz a Historia Oral diferente. In: Projeto História, 14. São Paulo: PUC,
1981, p. 31.
22
(Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e que também ocorreram o
tombamento e a restauração da Capela
22
. Além disso, nessa década, o bairro de São
Miguel Paulista passou por transformações sociais e econômicas, com instalação de
indústrias na região e grande afluxo de pessoas vindas de outros locais à procura de
trabalho e moradia. Algumas dessas pessoas, com mais de setenta anos de idade, foram
entrevistadas com o intuito de revelar como é interpretado por elas, o bairro no presente.
As diferentes experiências de vida desses sujeitos, quando somadas aos embates
cotidianos, propiciaram a compreensão dos elementos constituintes da construção do
bairro de São Miguel Paulista atualmente. Com isso, buscando visualizar o cotidiano dos
moradores do bairro senti necessidade de ampliar o leque de depoentes para melhor
compreender os valores atribuídos ao bairro e à Capela e também para identificar como
esses moradores se relacionam com outros segmentos sociais na cidade.
Ao buscar as pessoas que vivem em São Miguel Paulista desde a década de 30,
priorizei em princípio, por moradores considerados mais antigos de São Miguel, que
vivenciaram as transformações pelas quais passaram o bairro e, conseqüentemente, a
Capela de São Miguel Arcanjo, desde aquela época. Ao procurar contato com moradores
de São Miguel numa visita à Capela conheci João Feher, segurança da mesma, nascido em
1939, em São Paulo (SP), morador em São Miguel Paulista desde o nascimento. A
segurança da Capela era mantida pela Universidade Cruzeiro do Sul (Unicsul) e João
Feher foi contratado pela universidade para exercer esta função de 1995 até 2006, ano em
que foi dispensado em virtude do início das obras de restauração gerenciada pela
Formate
23
. Seu depoimento é valioso por sua grande relação afetiva com a Capela de São
Miguel Arcanjo. Relata acontecimentos ligados a ela, além de ter efetuado no período em
que foi segurança, várias ações no sentido de preservá-la e divulgá-la. Foi o Sr. João quem
ofereceu as primeiras indicações de pessoas que poderiam contribuir para a pesquisa.
Um outro depoente, nascido em 1930, no bairro de Perdizes (SP), morador em São
Miguel desde 1934, é Jesuíno Braga. Indicado por João Feher e conhecido por meio de
uma reportagem do Jornal “MetrôNews” com o título: “Artesão mostra seu amor por São
22
A Capela de São Miguel Arcanjo foi um dos primeiros bens tombados pelo SPHAN, logo após sua criação
em 1937. e foi restaurada entre os anos de 1939 e 1940, restauração dirigida pelo Arquiteto Luís Saia,
diretor regional do SPHAN em São Paulo.
23
A empresa FORMATE Projetos, Produção & Assessoria”, atua no gerenciamento de projetos, restauro
de bens imóveis, e integrados. Na elaboração do projeto, inicialmente, faz pesquisa histórica e iconografia
do tema proposto. Em seguida, formatação e orçamento do projeto para aprovação no Ministério da Cultura.
23
Miguel”.
24
Jesuíno morou nas proximidades da Capela quando ela era ainda a “Igreja” do
bairro.Vivenciou experiências no bairro e na Capela à época do tombamento pelo SPHAN
em 1937. É um artesão que procura destacar aspectos da Capela de São Miguel Arcanjo
rememorando através de suas maquete e esculturas, o que imagina ter sido a Capela na
década de 30. Evidencia seus ornamentos, suas imagens, esculpindo-as em madeira
recolhidas das árvores que se encontram na região e que por algum motivo foram
derrubadas. Aproveitou-se da madeira de uma figueira que “pra mim era a árvore mais
antiga de São Miguel”
25
em que brincava sob sua sombra quando criança e que um
“noroeste que passou por aqui derrubou”
26
para fazer a imagem de “São Miguel Arcanjo
do Século XVIII”
27
. É um depoente especial pelo envolvimento com as questões
relacionadas ao bairro e à Capela de São Miguel Arcanjo e por demonstrar ativamente
ações junto aos órgãos competentes do poder público, para que suas reivindicações sejam
ouvidas e atendidas.
Por meio do Sr. Jesuíno conheci dona Lyris Rodrigues Ruott, nascida em São
Miguel Paulista (SP) em 1912, que relembrou experiências do século passado,
relacionadas a São Miguel Paulista, com à Capela e à sua vida pessoal. Foi batizada,
casou-se e participou do coral e de outras atividades na Capela, quando ainda não existia a
Catedral de São Miguel Arcanjo. Infelizmente, não podemais relatar suas experiências
porque nos deixou no dia 16/02/2007.
Um outro depoente, Jo Caldini Filho, forneceu relatos importantes sobre a
constituição do bairro de São Miguel Paulista. Nascido em 1927 na cidade de Votorantin
(SP), veio para São Miguel Paulista com sua família em 1935. Participou da fundação do
Rotary Club de São Miguel Paulista; criou o símbolo do clube, nele introduzindo a
estampa da Capela de São Miguel Arcanjo; participou da organização do primeiro desfile
comemorativo do aniversário de São Miguel. Conhecedor da história do bairro e possuidor
de fotografias e documentos, registra o cotidiano do bairro em diferentes ocasiões.
No percurso do caminho da escuta dos moradores antigos do bairro fui descobrindo
outros sujeitos, com experiências diversas, que contribuíram para a construção da
pesquisa.
24
O Jornal MetrôNews” circula semanalmente 29 anos, com distribuição gratuita nas estações do
Metrô de São Paulo, com tiragem de 120 mil exemplares. Reportagem do dia 12 de junho de 2004.
25
Sr. Jesuíno em depoimento concedido à pesquisadora em 22/07/2004, nascido em São Paulo em 1930 e
morador em São Miguel Paulista desde 1934, quando do início da construção da Companhia Nitro Química
Brasileira. Em 1937, aos sete anos ele e sua família já moravam atrás da Capela de São Miguel Arcanjo.
26
Idem.
27
Idem.
24
Poeta, advogado, professor de Esperanto, este outro depoente é Osvaldo Pires
Holanda, 84 anos. Nascido em Acopiara (CE) em 1923, veio para São Miguel como
migrante em 1945. Trabalhou na Companhia Nitro Química Brasileira e participou
ativamente do “Movimento Popular Autonomista” (MPA) em 1962, que propunha a
emancipação política de São Miguel Paulista, daí sua importância nesta pesquisa.
Tereza Pilon, é também, uma depoente bastante significativa, conhecida por
indicação do Pe. Nubio ex-vigário da Catedral de São Miguel Arcanjo. Nascida em Quatá
(SP) em 1930, moradora no bairro desde 1948, é viúva, trabalhou na Nitro Química e
sempre freqüentou a Capela de São Miguel Arcanjo, participando das atividades de
arrecadação de fundos para a construção da nova Igreja. Conviveu com o Pe. Aleixo
Monteiro Mafra, sendo por muitos anos secretária da “Pia União das Filhas de Maria” da
Paróquia de São Miguel Arcanjo.
Nesta busca, inerente à pesquisa, deparei-me com José Vitorino dos Santos,
morador do Jardim São Vicente, como corretor de imóveis como ele mesmo disse “pra
não ficar parado”. É conhecido por “Compadre”, nasceu em Barbalha (CE), em 1927. É
viúvo, tem dois filhos, netos, bisnetos e tataranetos. É aposentado pela Nitro Química,
local onde trabalhou por 29 anos. Foi um dos primeiros moradores do Jardim São Vicente
e conta como era o bairro quando ele veio morar no local (onde mora até hoje) e fez “seu
barraquinho”. Pela sua fala, pude visualizar sua vinda para São Miguel Paulista, as
transformações ocorridas no local e suas experiências em “construir sua casa”, criar os
filhos, trabalhar na Nitro Química e na imobiliária em que atua há 23 anos.
Nestas mesmas condições, gravaram depoimentos José Luiz de Souza, barbeiro em
São Miguel e Araújo que conserta máquinas de costura e freqüenta a barbearia de José
Luiz de Souza. Intercalaram suas falas, dando opiniões, relatando experiências. José Luiz
de Souza veio para São Miguel Paulista em 1950, nascido em Irecê (BA), trabalhou como
servente de pedreiro e relata sua experiência ao chegar em São Paulo. Atualmente, possui
uma barbearia no centro do São Miguel Paulista e atende à clientela do bairro além dos
padres e do bispo da Diocese de São Miguel Arcanjo. Sua barbearia é um ponto de
encontro, onde algumas pessoas têm paradeiro para conversar e trocar idéias. O outro
depoente, José Antonio de Araújo, nascido em 1932 em Três Pontas (MG), veio para São
Paulo em 1950 com dezessete anos. Após dois anos, chegou em São Miguel Paulista por
ter comprado a Alfaiataria Ivani” depois tornada “Alfaiataria Araújo”. Relata as
mudanças pelas quais o bairro foi passando e as transformações sociais, inclusive no
25
“modo de se vestir”. Atualmente tem uma oficina de consertos de quina de costura e
comparece, diariamente, na barbearia do “Souza” para “bater um papo”.
Para completar este círculo de pessoas que vivenciaram as experiências sociais do
bairro no período, colhi depoimento de Albertino Nobre, vereador da cidade de São Paulo
entre os anos de 1982 e 1992. Morador em São Miguel desde 1948, para onde veio como
migrante da região de Senhor do Bonfim (BA), trabalhou na Nitro Química por 32 anos e
sempre esteve envolvido com as atividades religiosas do bairro, com as transformações e
com reivindicações dos moradores.
Diante dessa diversidade, percebi que apenas depoimentos de moradores antigos
não forneciam elementos para a percepção da complexidade das relações que envolvem a
Capela e o bairro e senti necessidade de ampliar o leque de depoentes, abrangendo outros
segmentos da população, pessoas mais jovens, que poderiam explicitar outros tipos de
experiências e outros valores. Dessa forma, colhi depoimentos de freqüentadores da
Capela; usuários da praça que está no seu entorno; moradores mais recentes de São Miguel
Paulista e, às vezes, filhos dos “mais antigos” do lugar; migrantes ou descendentes que
moram no bairro; membros da Diocese de São Miguel Paulista; empresários; comerciantes
e artistas.
Dentre esses depoentes, merece destaque o Padre Antonio Luiz Marchioni (Pe.
Ticão), nascido em Urupês (SP), em 1952, pároco da Igreja São Francisco de Assis em
Ermelino Matarazzo, 21 anos dedicando-se à Pastoral Social na defesa dos direitos dos
mais pobres, à luta pela moradia, à defesa dos direitos dos deficientes e idosos, à luta por
unidades básicas de saúde. Liderou movimentos para a implantação da Faculdade de
Tecnologia (Fatec) e do campus da Universidade de São Paulo (USP-LESTE) para essa
região. Um outro morador de São Miguel Paulista, Ronaldo Araújo Calixto, nascido no
bairro em 1956, visitante da Capela, permitiu que eu gravasse seu depoimento num
encontro casual. Exerce a profissão de vendedor, conheceu o Pe.Aleixo, freqüentou e
freqüenta a Capela e estava lá nesse dia porque foi levar seu filho para visitá-la.
As entrevistas foram realizadas na própria Capela (quando houve possibilidade) ou
nas residências dos moradores, especificamente em São Miguel Paulista, Jardim Helena e
Vila Jacuí, bairros que formam o distrito de São Miguel Paulista. Nelas busquei conhecer
aspectos da vida desses sujeitos: onde moravam, de onde vieram, como interpretam suas
experiências no bairro em tempos pretéritos, o que relembravam, como eram as formas de
organização social em determinados momentos, enfim, busquei o entendimento de como
26
viveram as experiências sociais relacionadas ao bairro, à Capela de São Miguel Arcanjo e
quais os sentidos atribuídos a esse bem cultural.
O uso das fontes orais como metodologia de pesquisa depende de métodos próprios
e específicos na produção e análise de documentos e de uma relação constante entre
entrevistador e entrevistado que podem, às vezes, inverter seus papéis. Nesse sentido, as
entrevistas representaram uma troca de experiências, aspirações, confianças e
desconfianças, apesar de almejar a igualdade entre entrevistador e entrevistado para evitar
manipulações e distorções, isso nem sempre foi possível. Segundo Portelli
28
, essa relação
depende mais da confiança e segurança do entrevistado do que da vontade do
entrevistador.
Ao emergirem as memórias de segmentos que participaram da construção dessa
história procurei interpretar o sentido das produções sobre a Capela, tornando públicas
formas de expressão confinadas ao silêncio. Embora a história oral seja fonte
imprescindível não pode ser pensada como auto-suficiente. A força da narrativa na
recuperação e preservação da memória promove o diálogo entre as experiências; busca
apreender seus significados e reavaliar comportamentos; reconstrói seu modo de vida;
relata ou organiza registros e ordena vestígios, o que possibilita a sua releitura; cria,
portanto, fontes históricas, que promovem a “abertura” de perspectivas para novas
significações.
Os relatos partiram da experiência do narrador, sem um roteiro previamente
organizado, respeitando o que se queria rememorar naquele momento, porque para o
pesquisador, o importante é valorizar o que aparentemente não tem importância, como
fonte de pesquisa. A espontaneidade dos relatos possibilitou desvendar e expressou as
relações sociais, experiências, contradições e ambigüidades dos sujeitos envolvidos na
experiência.
Trazer à tona o rico e diversificado conjunto de materiais produzidos pelos sujeitos
sociais que se envolveram ou se envolvem com a Capela de São Miguel Arcanjo
possibilitou uma análise criteriosa das fontes e, nesta perspectiva, sob os diferentes relatos
que fazem parte dessa história, fui descobrindo nas recordações e imagens por vezes
apagadas, as ações e os sentidos dados a esse bem cultural e ao lugar que ele ocupa. Por
intermédio da interpretação afetiva, muitas vezes saudosa, das experiências cotidianas
dessas pessoas pude problematizar as experiências e os significados atribuídos à Capela de
28
PORTELLI, Alessandro. Formas e significado da história oral. Projeto História . 14 .São Paulo: PUC,
1997, p.09.
27
São Miguel Arcanjo, bem como a lugares, imagens e sons que trazem representações
fragmentadas como suporte de memórias diferentes.
A Capela de São Miguel Arcanjo é um “patrimônio cultural” preservado dentre
tantos outros monumentos existentes na cidade de São Paulo, fadados à destruição da qual
foi alvo a cidade nas primeiras décadas do século XX, como escrevem Saia e Pires:
A partir de meados do século XIX a cidade passa por intensas transformações e
despontam, ainda que timidamente, as chaminés das primeiras fábricas
localizadas próximas às várzeas ribeirinhas. Juntamente com a alta torre do
segundo edifício da Estação da Luz (1900), podem ser consideradas as primeiras
intromissões leigas” a marcar o perfil paulistano, dominado até então somente
pelas igrejas.
Além de alterarem o ambiente urbano, essas novas construções anunciavam
novos ritos e poderes, temporais e espirituais, e uma nova e avassaladora forma
de viver e de organização social: a industrialização, o crescimento e as
transformações urbanas, o comércio e o consumo modernos.
As velhas igrejas foram atingidas por esse processo, algumas demolidas, outras
substituídas por templos maiores e modernos, poucas resistiram com suas
feições originais.”
29
Os autores permitem refletir sobre como as igrejas e as indústrias tornaram-se
referências culturais na cidade de São Paulo. No caso da região de São Miguel Paulista, as
ações estavam aglutinadas em torno da Capela de São Miguel Arcanjo até a instalação de
indústrias no bairro, que a partir daí, se tornam também, referências culturais, que aos
poucos transformam o viver urbano, trazendo para o bairro novos moradores, novas
experiências e novos modos de expressão.
A Capela de São Miguel é um monumento cultural que permite perceber várias
formas de atuação da sociedade civil em ações locais, demonstrando as relações de forças
que se estabelecem em torno desse bem. Da análise dessas ões e das condições de
produção é possível interpretar como se dão as relações entre memórias e identidades
30
, no
sentido de experiências comuns, compartilhadas entre os sujeitos sociais envolvidos e
emergem experiências sociais concretas forjadas a partir das vivências em torno da Capela
de São Miguel Arcanjo, evidenciadas por várias formas de atuação, que tentam garantir a
preservação da Capela para as gerações futuras.
29
SAIA, Helena e PIRES, Walter. Da Capela à Metrópole. São Paulo: ImagemData, 1997, p.10.
30
Hall, discute a questão da identidade como um sistema de significação e representação cultural que se
multiplicam e, portanto, o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos. HALL, Stuart. A
identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. E ainda, Silva discute que no
trabalho com memórias, no esforço de analisá-las e interpretá-las não se pode perder de vista suas
especificidades, sua seletividade e a forma como o compostas por cada sujeito [...] as memórias ganham
novo sentido cada vez que são narradas, pois a experiência faz-se presente na interpretação que o narrador
faz do passado. SILVA, Dalva Maria de Oliveira. Algumas experiências no diálogo com memórias. In
FENELON, Déa Ribeiro e outros (orgs). Muitas memórias, Outras Histórias. São Paulo: Olho D’Agua,
2004, p.192.
28
Uma das iniciativas existentes sobre a preservação da Capela de São Miguel
Arcanjo é a proposta de sua restauração, apresentada em 200l.
O projeto de restauração arquitetônica da Capela, lançado em 2005, conta com o
apoio da Petrobrás, Grupo Votorantin e Banco Itaú que, juntos, disponibilizam o aporte de
R$ 3,l milhões, via Lei de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet)
31
. A entidade civil
“Associação Cultural Beato José de Anchieta”
32
é responsável pelo projeto, com a direção
do Vigário Episcopal de São Miguel Paulista Pe. Dr. Geraldo Antônio Rodrigues
33
.
Os membros da “Associação Cultural Beato José de Anchieta” também ofereceram
contribuições importantes sobre as propostas de restauro. Desse modo, entrei em contato
com o Pe. Geraldo Antonio Rodrigues, responsável pela direção do projeto e com Roseli
Santaella Stela pesquisadora da documentação para elaboração do projeto de restauro que
está acontecendo atualmente.
As pesquisas sobre os movimentos sociais que reiteram a preservação desse bem
cultural demonstram a existência de várias pessoas preocupadas com essa finalidade.
Lutam para perpetuar a sua memória; possuem arquivos pessoais que guardam a história
de acontecimentos relacionados à Capela; discutem o uso do espaço público de localização
da Capela; entrelaçam histórias de vida relacionadas ao passado do bairro; registram seus
significados por assinaturas, escritos, eventos, réplicas, reproduções, fotografias, pinturas,
maquetes, vídeos-depoimento, publicações e outras formas de rememorar e perpetuar a
história desse bem; estabelecem ações visando a restauração pela qual passa a Capela de
São Miguel Arcanjo no momento
34
que podegarantir sua preservação para as gerações
futuras. Um elemento diferenciador da pesquisa é justamente pensar nos sujeitos sociais
partindo de suas lembranças e produções, em seu dia-a-dia, revelando outras faces,
percebendo este narrador anônimo, excluído da historiografia oficial; registrando suas
31
Lei Rouanet (Lei 8313/91) Institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura” (PRONAC), cuja finalidade
é canalizar recursos para os projetos culturais. (WWW.cultura.gov.br/corpo.php)
32
A “Associação Cultural Beato José de Anchieta” (ACBJA) de caráter filantrópico e cultural tem como
objetivo incentivar e promover estudos, pesquisas e trabalhos de preservação sobre o patrimônio histórico
da Diocese de São Miguel Paulista e sobre a obra do Beato José de Anchieta. A ACBJA atua em nome da
Diocese de São Miguel Paulista nas seguintes áreas culturais: Projeto de Restauro, Projeto de Artes nicas
e organização do Arquivo Diocesano e do Museu Diocesano D.Fernando Legal.
33
A Diocese de o Miguel Paulista foi criada pelo Papa João Paulo II, com a bula Constat
Metropolitanam Ecclesium de 15/03/1989, desmembrada da Arquidiocese de São Paulo. O Bispo Diocesano
atual é Dom Fernando legal, SDB e a Região Episcopal de o Miguel tem como Vigário Episcopal o Pe.
Geraldo Antonio Rodrigues.
34
A Capela de o Miguel Arcanjo foi restaurada entre os anos de 1939 e 1940, restauração dirigida pelo
Arquiteto Luís Saia, diretor regional do SPHAN em São Paulo e está em processo de restauração iniciado
em 2006.
29
histórias, suas experiências; seguindo um movimento que sai do presente, vai para o
passado e volta para o presente.
Outros depoentes foram também importantes na pesquisa, pelas suas produções
sobre a Capela, como a artista plástica Adinéia Batatinha dos Santos, autora da obra A
Capela de São Miguel Arcanjo”, doada ao acervo artístico do Palácio Nove de Julho da
Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo e o ex-sacerdote da Igreja Católica,
Aristides Pimentel, morador em São Miguel onde foi vigário-auxiliar da Diocese de São
Miguel. Confecciona réplicas da Capela em gesso e resina e está escrevendo a cronologia
histórica do bairro de São Miguel Paulista, baseado na obra de Sylvio Bomtempi
35
e
atualizada conforme sua experiência.
A empresa “Usina de Beneficiamento Laticínios GEGÊ” e o jornal “Acontece
Agora” utilizam a estampa da Capela em seus produtos. Domingos Pantaleão, gerente da
empresa e residente em São Miguel desde 1961 e Divaldo Rosa, proprietário da “Acontece
Agora Empresa Jornalística Ltda”, deram seus depoimentos para a busca do entendimento
sobre os motivos dessas ações.
Um outro depoente, fundamental na pesquisa, é Eurico dos Santos, nascido em São
Miguel em 1944. É filatelista e tomou a iniciativa em julho de 1993 de propor à Empresa
Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) a emissão de um selo com a estampa da “Capela
de São Miguel Arcanjo” e só viu seu intento realizado após onze anos. No ano de 2003, foi
lançado um “Carimbo Comemorativo” da ECT, em comemoração aos 381 anos do bairro
de São Miguel Paulista e a emissão do selo alusivo à Capela ficou para o ano seguinte,
inserido nas comemorações dos 450 anos da Cidade de São Paulo. Solicitou a divulgação
da Capela através dos cartões telefônicos do Grupo Telefônica do Brasil” cujo
lançamento deu-se nas comemorações dos 383 anos do aniversário de São Miguel
Paulista, em 2005. É, também, um dos responsáveis pela publicação da estampa da Capela
no bilhete da Loteria Federal em 23/09/2000. Possui um arquivo pessoal de materiais que
se referem ao bairro e à Capela e tem, ainda, outras ações, explicitadas posteriormente.
A pesquisa, pretende dar visibilidade a estes homens e mulheres, evidenciando
suas lutas pela preservação da Capela e a outros sujeitos que mantêm com esse patrimônio
outros tipos de relações, diferenciadas das indicadas até o momento. Desenvolvi a
investigação buscando os sujeitos sociais envolvidos na preservação desse bem cultural e
as ações que promovem. Busquei entender, em suas narrativas e produções, as trocas
35
BONTEMPI, Sylvio, O Bairro de o Miguel Paulista. Secretaria de Educação e Cultura, Prefeitura do
Município de São Paulo. São Paulo: 1970.
30
sociais, os valores afetivos, as simbologias, as referências pessoais e ainda, as tensões
entre os diferentes valores que aparecem na confluência das lembranças e produções,
muitas vezes contraditórias e conflituosas.
Outros depoentes mereceram atenção, porque participam e/ou participaram de
movimentos atrelados aos usos sociais da Capela e da Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra.
São eles, Sacha Arcanjo, 57 anos, cantor e compositor, coordenador cultural da Oficina
Cultural Luiz Gonzaga, nascido na Bahia; está em São Miguel desde os 18 anos de idade,
participou do Movimento Popular de Arte (MPA); e Izaltino Ribeiro professor, nascido em
Congoinhas (PR) em 1954, mora em São Miguel Paulista desde 1965 e também participou
do MPA.
Edinaldo Alexandre de Queiroz, Caldeira, Alzira Viana, Cícero do Norte e
Teotônio dos oito Baixos, são artistas, compositores e tocadores de instrumentos que
fazem parte da “Associação Amigos da Praça do Forró”. Utilizavam a praça para
apresentação de suas produções e após a revitalização, em 2006, estão impedidos de usá-
la. Reúnem-se em locais próximos para discussão do uso da praça e apresentação de seus
grupos musicais. Estes moradores, evidenciam tensões e conflitos sobre os usos dos
espaços do bairro e, portanto, deram depoimentos sobre essas questões.
Também deram seus depoimentos alguns componentes da diretoria da Escola de
Samba Unidos de São Miguel: Maria de Lourdes da Silva, Diretora Social, nascida em
Paranavaí (PR), moradora em São Miguel Paulista trinta anos; Aidil Celeste da Silva,
responsável pela ala das baianas, nascida em Caiti (BA), moradora no bairro de São
Miguel Paulista 30 anos; Almir José dos Santos, responsável pela ala das crianças,
nascido em Itabuna (BA), morador em São Miguel Paulista desde 1964 e Alessandra Irene
dos Santos, porta-bandeira, nascida em São Miguel Paulista em 1972.
Procuro discutir, abordagens que rejeitam uma história que oferece uma única
versão do acontecimento e que concentra a discussão num passado distante e acabado. A
proposta é estimular o depoimento dos que fizeram a história local, evocando o passado
como um direito de pensar as suas experiências a partir das suas narrativas. Busco destacar
neste trabalho as vivências, as experiências de vida e as lutas sociais que se forjaram
dentro dessa dinâmica, fazendo aparecer as suas potencialidades, procurando entender
como as diferentes propostas se tensionam, se aliam e se modificam. Trazer à luz essas
experiências, não significa sacralizá-las como a história dos vencidos e sim, como a
produção de um direito ao passado que se faz como crítica e subversão constantes das
31
versões instituídas,
36
buscando as visões de mundo dos que estão envolvidos na
preservação da Capela e esta como elemento do bairro, que aglutina ações sociais.
Rodrigues, trouxe questões importantes para as reflexões sobre as lembranças
desses sujeitos, ao responder a questão: Para que lembrar? Afirma que:
... lembrar é reviver o que já mudou ou desapareceu, é construir ainda que
simbolicamente, uma perspectiva temporal da vida, individual ou coletiva; é
apropriar-se de remanescentes de um tempo pretérito, de coisas ou fatos que,
mesmo inconscientemente, integram nossa vida pessoal ou coletiva e que,
portanto, são nosso presente. Lembrar é assim um ato de construção do presente.
37
Ao construir seus discursos, os depoentes partiram de um presente vivido como
tensão; revelaram suas ações e provocaram um movimento em que foi possível apreender
os sentidos atribuídos às suas experiências. Assim, lembrar o é apenas reviver o
passado, mas repensá-lo com imagens e idéias do presente. O testemunho oral é a
recuperação do vivido, transmitido por quem o viveu, apoiado na sua memória, atribuindo-
lhe significado, da mesma forma que ao escutar as narrativas e sistematizá-las, o
pesquisador também atribui significados a essas experiências. Ao elaborar essas versões,
busquei decifrar a significação social da Capela de São Miguel Arcanjo, tendo como
referência esse viver urbano em constante transformação.
A Capela de São Miguel Arcanjo contempla ações de órgãos do poder blico na
tentativa de preservá-la, sendo tombada
38
nas esferas federal, estadual e municipal
39
. Nesse
sentido, desenvolvi a pesquisa, buscando verificar como se processaram as práticas que
garantiram a preservação desse patrimônio, cuja importância já foi identificada e as
relações sociais inseridas neste contexto, a partir de 1937, época em que ocorreu a criação
do Sphan na qual foram realizados o tombamento e a restauração da Capela. Além disso,
foram também analisados, os períodos em que ocorreram o tombamento da Capela pelo
36
PAOLI, Maria Célia. Memória, História e Cidadania: O Direito ao Passado, in O Direito à Memória
Patrimônio Histórico e Cidadania. Departamento do Patrimônio Histórico. São Paulo, DPH, 1992, p.27.
37
Palestra proferida por Marli Rodrigues, autora de produções sobre Memória e Patrimônio. em 11/09/2004
na Cogeae-PUC/SP
38
O tombamento significa um conjunto de ações realizadas pelo poder público com o objetivo de preservar,
através da aplicação de legislação específica, bens culturais de valor histórico, cultural, arquitetônico,
ambiental e também de valor afetivo para a população, impedindo que venham a ser demolidos, destruídos
ou mutilados. Tombamento e Participação Popular, DPH, São Paulo: 200l. p.11.
39
A Capela de São Miguel Arcanjo é tombada nas esferas federal, estadual e municipal. Na esfera federal,
foi um dos primeiros bens tombados logo após a criação do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional) em 1937 Processo 180/T, inscrição 211 fls.38 (21.l0.38). Livro História Livro
Belas Artes (www.iphan.gov.br) o acesso em 30.09.2004. O tombamento estadual é regido pela
lei.10247/68. Processo de Tombamento 00368/73, tombamento ex-ofício em 11/12/74 pelo Condephaat
(Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Arquitetônico do Estado de o
Paulo)(www.patrimonio.sp.com.br) acesso em 25.03.2004. É tombada pelo Conpresp (Conselho Municipal
de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental de São Paulo) através da resolução 05/91 que
traz os bens tombados pelo Condephaat para o Conpresp, publicação DOM de 19.04.91
32
Condephaat em 1974 e a restauração que esatualmente acontecendo, iniciada em 2006;
para isso, foram utilizadas como fonte de pesquisa, a documentação produzida por esses
órgãos, que incluíram os processos de tombamento, os relatórios de atividades, atas de
reuniões cartas, memorandos, ofícios. Foram analisados, também, os depoimentos dos
sujeitos que vivenciaram e vivenciam estes momentos, além de suas produções que trazem
a Capela como representação e que proporcionaram outros olhares na história o apenas
nos documentos escritos, e que possibilitaram atentar para as ações que configuram o
presente vivido.
A perspectiva que embasa a pesquisa traz uma proposta que pretende pensar na
interlocução desses diferentes grupos sociais, conforme Possamai, “mapeando sua
evolução ao longo do tempo, mas também analisando o processo de construção do mesmo,
buscando-se as práticas e representações a ele associadas”.
40
Desse modo, o busco o
valor atribuído à Capela apenas pelas suas características físicas, inegavelmente
singulares, mas pelo seu valor histórico na sua significação social, entendendo que o
aspecto físico e o convívio social não se separam. Busco, portanto, o que a sua preservação
representa para o grupo social ao qual pertence, restabelecendo o sentido histórico desse
processo.
No diálogo com as fontes, privilegiando as produções específicas relacionadas à
capela e ao bairro, a análise de desenhos, pinturas, objetos, maquetes, músicas, poesias,
encartes, embalagens, emblemas, logotipos, cartazes, escritos, esculturas, festas,
aniversário do bairro, lançamento de produtos e consulta a arquivos pessoais que
possibilitaram entender o que é valorizado pelos sujeitos bem como as relações afetivas
estabelecidas com a Capela, objeto desse estudo. Nas representações sociais, carregadas de
significações, busquei as formas de expressar e viver a Capela, dialogando com os vários
suportes documentais e procurei dar sentido às várias experiências sociais, surpreendendo
como o real está presente nestas representações e como nestas, mediadas por heranças
culturais, situam-se as marcas do vivenciado.
40
Segundo Possamai, para se discutir patrimônio tem que se relacionar dois aspectos: o primeiro refere-se
às chamadas políticas públicas de preservação, nas quais o patrimônio é pensado em âmbito das políticas
culturais das instituições públicas ou privadas e suas relações com os diferentes grupos sociais. Fazem parte
desse domínio a definição dos objetos (prédios, artefatos, obras de artes, espaços)a serem preservados,
assim como as formas ou soluções encontradas para um determinado bem ser preservado. O segundo,
envolve a problematização do patrimônio, tentando buscar o seu sentido.POSSAMAI, Zita Rosane. O
patrimônio em construção e o conhecimento histórico. In Ciências & Letras Revista da Faculdade Porto-
Alegrense de Educação, Ciências e Letras. N.27. Porto Alegre: 2000. p.14.
33
Outras produções foram analisadas, em especial a imprensa local, e possibilitaram
reflexões sobre como esta Capela é veiculada na dia muitas vezes, revelando situações
de descaso com o patrimônio, conflitos existentes, interesses políticos e relações de poder,
entendendo, dessa forma, que a imprensa não é neutra e que ao informar, impõe
significados e expressa valores.
As fontes oficiais para a pesquisa sobre o tema foram encontradas em órgãos como
o IPHAN
41
, Superintendência Regional/SP. e de outros órgãos responsáveis pelo
patrimônio, como o Condephaat e o Conpresp. Outros órgãos oficiais foram consultados
como a Subprefeitura de São Miguel Paulista, Departamento de Patrimônio Histórico
(DPH), Arquivo do Estado; arquivos da Cúria Metropolitana de São Paulo, Diocese de São
Miguel Paulista e Associação Cultural Beato José de Anchieta (ACBJA), buscando os
elementos que pudessem articular as ões oficiais e as não oficiais e fazendo um
entrelaçamento destas ações para melhor compreender como se dá essa interlocução.
Para realização desses propósitos, utilizei uma bibliografia que aborda os aspectos
mencionados neste trabalho e que aproxima o objeto de estudo do pesquisador para obter
pistas para encaminhar a investigação. Assim busquei as produções que abordam o bairro
de São Miguel Paulista e adjacências.
Nesse sentido, as obras de Sylvio Bomtempi
42
e Roseli Santaella
43
, foram válidas
para o entendimento de como se processou a ocupação do bairro, assim como os estudos
de Paulo Fontes
44
e Antonia Sarah Aziz Rocha
45
ofereceram elementos para compreensão
da formação das classes trabalhadoras e das lutas operárias em São Miguel relacionadas à
Companhia Nitro Química Brasileira. Lucrecia D’Alessio Ferrara
46
e Tereza Pires do Rio
41
O SPHAN foi organizado pelo Decreto nº 25, de 30.11.1937. Em 1946, foi transformado em Diretoria, sob
a sigla DPHAN; em 1970 passou a ser Instituto IPHAN, e nove anos depois, como Secretaria voltou a ser
SPHAN. Em 198l, mantendo essa sigla, transformou-se em Subsecretaria e, em 1990, passou a denominar-
se Instituto Brasileiro de Patrimônio Cultural (IBPC), voltando a ser, em 1994, Instituto Histórico e
Artístico Nacional IPHAN conforme RODRIGUES Marli, Imagens do Passado: A instituição do
patrimônio em São Paulo, 2969-1987. São Paulo: Unesp,2000, p.26.
42
BOMTEMPI, Sylvio. O Bairro de São Miguel Paulista história dos bairros de o Paulo. São
Paulo:Prefeitura Municipal, 1970.
43
STELLA, Roseli Santaella. Anchieta: A contribuição canária na colonização paulista. IX Colóquio de
História Canário-Americana. Lãs Palmas, Casa de Colon/Cabildo Insular de Gran Canária, v.1. 1992.
________ Anchieta e São Miguel: Fundação e Capela – Encontro com Canárias no Aniversário da Cidade
de São Paulo. São Paulo: Etcetera, 2002..
44
FONTES, Paulo. Trabalhadores e Cidadãos. Nitro Química: a fábrica e as lutas operárias dos anos 50.
São Paulo: Annablume, 1997.
45
ROCHA, Antonia Sarah Aziz. O Bairro à Sombra da Chaminé um estudo sobre a formação da classe
trabalhadora da Companhia Nitro Química Brasileira de São Miguel Paulista (1935 a 1960). Dissertação de
mestrado, PUC-SP: 1992.
46
FERRARA, Lucrecia D’Alessio, Olhar Periférico. o Paulo: EDUSP, 1993.
34
Caldeira
47
abordam a questão dos moradores do local e do poder estabelecendo as
“características culturais de uma população proveniente de várias raízes sociais (migrantes
de várias regiões do país), através das manifestações representativas de seu cotidiano”. No
entendimento destas questões, as discussões sobre patrimônio oferecidas por Maria Cecília
Londres Fonseca
48
, Antonio Gilberto Nogueira
49
, Célia Reis Camargo
50
, bem como Marli
Rodrigues
51
foram fundamentais, pelo estabelecimento da trajetória da constituição das
idéias de patrimônio cultural no Brasil. Alessandro Portelli
52
e Marieta de Moraes
Ferreira
53
foram essenciais nas discussões sobre História Oral observando sua metodologia
e seu uso para a história cultural e política, considerando as “fontes orais condição
necessária (não suficientes) para a história das classes não hegemônicas”. Sobre as
questões da “memória” sobressaem os estudos organizados por Maria Clementina Pereira
Cunha,
54
que discutem o direito ao passado como uma das dimensões fundamentais da
plena cidadania e, ainda, as discussões organizadas por Déa Ribeiro Fenelon e outros, que
tratam de “Muitas memórias, outras Histórias”.
55
Sobre as questões de interpretação do passado, as discussões promovidas por
Antonio Augusto Arantes
56
também foram importantes, por delinearem as diversas
estratégias de reinterpretação do passado para constituição do presente. Além disso, Stuart
Hall
57
ao explorar algumas questões sobre a identidade cultural na modernidade e Mirna
Busse Pereira
58
que buscou refletir sobre o modo como a cultura foi entendida, os projetos
47
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. A Política dos Outros O Cotidiano dos Moradores da Periferia e o
que Pensam do Poder e dos Poderosos. São Paulo: Brasiliense, 1984.
48
FONSECA, Maria Cecília Londres Fonseca. O Patrimônio em Processo.Trajetória da política federal de
preservação no Brasil. Rio de Janeiro: MinC-IPHAN, 1997.
49
NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos. O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional- SPHAN
e a Redescoberta do Brasil A Sacralização da Memória em Pedra e Cal. Dissertação de Mestrado em
História Social. São Paulo: PUC – 1995.
50
CAMARGO, Célia Reis. À Margem do Patrimônio Cultural. Estudo sobre a rede institucional de
preservação do patrimônio histórico no Brasil (1838 – 1980)
51
RODRIGUES. Marly. Imagens do Passado- A Instituição do Patrimônio em o Paulo, 1969-1987.São
Paulo: UNESP, Imprensa Oficial do Estado, Condephaat, FAPESP, 2000.
52
PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente in Projeto História 14. o Paulo: Educ,
1997.
53
FERREIRA, Marieta de Moraes. História (org.) Entre-vistas: abordagens e usos da história oral. Rio de
Janeiro: FGV, 1994.
54
DPH Departamento do Patrimônio Histórico. O Direito à Memória Patrimônio Histórico e Cidadania
CUNHA, Maria Clementina Pereira (org.) São Paulo: DPH/SMC, 1991.
55
FENELON, a Ribeiro e outros (orgs). Muitas memórias, Outras Histórias. São Paulo: Olho D’Agua,
2004.
56
ARANTES, Antonio Augusto (org.) Produzindo o Passado. São Paulo: Brasiliense, 1984.
_________, Paisagens Paulistanas, Transformação do Espaço Público. Campinas: Unicamp, 2000.
57
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
58
PEREIRA, Mirna Busse. Cultura e Cidade: Prática e política Cultural na São Paulo do Século XX. São
Paulo: Puc, 2005, Doutorado em História Social.
35
culturais propostos e as práticas pelas quais os responsáveis pelo governo concretizaram
diferentes projetos e atividades culturais na cidade de São Paulo, durante o século XX,
também ofereceram elementos para reflexão sobre o objeto de pesquisa; e ainda, Olga
Brites
59
nas discussões sobre memória, preservação e tradições populares.
Este trabalho está organizado em três capítulos. No primeiro, “Um Ururaí que
atravessou séculos” contextualizo o processo de ocupão do bairro de São Miguel
Paulista e a presença da Capela como elemento agregador de ações sociais. Relaciono as
experiências sociais que ocorrem em relação à Capela e busco os sentidos a ela atribuídos.
Para tanto, foi necessário estabelecer a história da construção da mesma e da constituição
do bairro de São Miguel Paulista, buscando entender como o bairro é configurado hoje.
No capítulo 2, “Tempos, espaços e memórias – Histórias de São Miguel” – procuro
entender como se processam as interlocuções que elegem a Capela de São Miguel Arcanjo
como patrimônio cultural, estabelecendo reflexões sobre como as políticas de preservação
e como as propostas de intervenção são discutidas e compartilhadas pelos sujeitos sociais.
Destaco, neste capítulo, os desdobramentos e meandros do atual processo de
restauração, e as dimensões desse projeto. Merecem atenção outras práticas que
constituíram as histórias de São Miguel Paulista, como o Movimento Popular de Arte”; a
“Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra e a Praça do Forró”; a “Câmara Distrital Simbólica”;
a festa do padroeiro “São Miguel Arcanjo” e o aniversário do bairro, na tentativa de
compreender como estas práticas se constituíram e quais suas funções políticas e sociais.
No capítulo 3, “Um exercício do olhar – Produtos que evocam memórias da
Capela”, estabeleço diálogo com as produções existentes que a fazem veicular como
produtos de consumo no mercado: A embalagem de leite longa-vida GEGE” e o Jornal
“Acontece Agora”
60
; o bilhete da Loteria Federal; o Carimbo Comemorativo e o Bloco
Comemorativo (selo) da Empresa de Correios; os Cartões Telefônicos (uma série de
quatro cartões); a Insígnia do “29º Batalhão de Polícia Militar do Estado de São Paulo”,
sediado em São Miguel Paulista; o pavilhão do “Grêmio Recreativo e Escola de Samba
Unidos de São Miguel”;o lenço e a bandeira do Grupo Escoteiro Padre Aleixo”; a revista
59
SILVA, Olga Brites. Memória, preservação e tradições populares. In: O direito à memória – Patrimônio
Histórico e cidadania. São Paulo: DPH, 1992.
60
Jornal Acontece Agora circula em o Miguel Paulista quinzenalmente mensalmente e tem como
logotipo a Capela de São Miguel Arcanjo.
36
“Mania de Pintar Telas”
61
e as telas produzidas pela artista plástica Adinéia Batatinha dos
Santos
62
.
Sobre essas produções procurei perceber as estratégias de preservação, as tensões
existentes e as intenções presentes em cada tipo de iniciativa. Coube ainda, interpretar o
que essas produções revelam em termos dos interesses que representam e que visões de
patrimônio, cultura e cidadania expressam. Importante destacar, que interessou à pesquisa,
o processo de produção dessas imagens, como aponta Khoury:
... as imagens permeiam, expressam, aproximam relações cotidianas [...] são
expressões de olhares, de maneiras de ver, de intenções, propostas, estratégias,
tradições e formações, de bagagens afetivas e culturais alternativas. Seus
significados também se reelaboram, conforme o olhar e as perspectivas dos que
os perscrutam.
63
Para perscrutar as intenções presentes nessas iniciativas, foi necessário, esmiuçar
significados do tempo vivido por diversos moradores do bairro, redescobrindo
experiências sociais, perceber como construíram culturas, tradições, modos de ser e viver
cotidianamente, e como essas ações foram associadas à Capela de São Miguel Arcanjo.
Tarefa gratificante porém nada fácil, de tentar encontrar, as articulações entre o
cotidiano dos moradores de São Miguel Paulista e a Capela de São Miguel Arcanjo, ainda
que seja uma verdade processual e provisória porém, com a amplitude e ambição de
pensar sobre a preservação da Capela de São Miguel Arcanjo em uma sociedade onde
existe, segundo Nora, a ilusão de eternidade (...) que valoriza o mais novo, o jovem, o
futuro”
64
. Abordar a constituição da memória cultural, a partir da análise das práticas de
preservação de um patrimônio que apesar da “condição de humildade e fragilidade
atravessou séculos...”
65
é, segundo Rodrigues
66
, uma ação voltada para o presente, tempo
de viver e construir o passado para que os indivíduos e as sociedades possam sentir a
continuidade da vida e projetar que, como seus antepassados, não “morrerão” se forem
lembrados.
61
Revista “Mania de Pintar Telas” Editora Minuano, Ano 1 nº 5
62
A artista plástica “Little Potato” pseudônimo de Adinéia Batatinha dos Santos tem ateliê em o Miguel
Paulista e fez várias telas com o tema “A Capela de São Miguel Arcanjo”. Uma dessas obras compõe o
Acervo Artístico do Palácio Nove de Julho, conforme o Diário Oficial do Poder Legislativo de 13.04.2004.
63
KHOURY, Yara Aun. História e Imagem.. Projeto Historia 21. São Paulo: Educ-Fapesp, 2000.
64
NORA, Pierre. Entre Memória e História A problemática dos lugares. In Projeto História 10. o
Paulo: EDUC, 1993. p.13.
65
ARROYO, Leonardo. Igrejas de São Paulo Introdução ao estudo dos templos mais característicos de
São Paulo e suas relações com a crônica da cidade. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954. p.65.
66
RODRIGUES, Marly. O caso do patrimônio cultural. Palestra proferida na PUC COGEAE, setembro
2001.
37
CAPÍTULO I
UM URURAÍ QUE ATRAVESSOU OS SÉCULOS...
"#  $    %   
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Neste capítulo procuro relacionar às experiências sociais que ocorrem em relação à
Capela de São Miguel Arcanjo, os sentidos atribuídos a ela. Para tanto, foi necessário
refletir sobre a constituição do bairro de São Miguel Paulista, situando os moradores e
seus lugares nesse espaço, a partir das experiências vivenciadas por eles, sem a
preocupação com a seqüência cronológica e sim, com o tempo histórico vivido. Busco
pensar elementos diversos, que marcam as mudanças e transformações ocorridas, a
organização sócio cultural dos moradores e a Capela como elemento agregador de ações
sociais. Ecléa Bosi, quando reflete sobre a memória como um intermediário cultural,
aponta que... o bairro tem sua infância, juventude e velhice. Esta, como a das árvores, é
a quadra mais bela, uma vez que sua memória se constituiu [...]. Assim, através das
lembranças da quadra mais bela”, São Miguel Paulista, se reconstituiu, uma vez que “...
nas histórias de vida podemos acompanhar as transformações do espaço urbano; a relva
que cresce livre, a ponte lançada sobre o córrego, a divisão dos terrenos, a primeira
venda, o primeiro bazar.”
67
A tentativa é compreender, através de memórias e dos usos do lugar, como esses
moradores, viveram e vivem, experimentaram e experimentam; práticas diversas nos
diferentes espaços que constituíram o bairro e os significados que lhe são atribuídos. É
necessário compreender que não é possível pensar as dimensões bairro/cidade de maneira
isolada, pois a todo momento percebemos suas interface e imbricamentos e que história,
memória e patrimônio formam um espaço de sentidos múltiplos que envolvem uma cultura
plural e conflitante.
67
BOSI, Ecléa. Memória da Cidade: Lembranças Paulistanas. In O direito à memória – Patrimônio
Histórico e Cidadania. São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, 1992 p.147.
38
1.1. São Miguel Paulista, um fragmento da cidade
*()))"#*(
#(-# )
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-
&
01
Para Cavenacci
69
, “Compreender uma cidade significa colher fragmentos. E
lançar sobre eles estranhas pontes, por intermédio das quais seja possível encontrar uma
pluralidade de significados. Ou de encruzilhadas herméticas”. Colhendo fragmentos e
decifrando as encruzilhadas lançadas pela memória, procuro recompor, através das
múltiplas tensões e diferenças, os tempos e espaços transformados por diferentes sujeitos
em São Miguel Paulista. Segundo Azevedo
70
,entre as várzeas dos rios Jacu e Itaquera, no
ponto em que a colina entra em contacto com a planície do Tietê, que lhe fica ao norte,
ergue-se a pequena “cidade” de São Miguel, hoje oficialmente denominada Baquirivu
71
.
Ao tempo da escrita de Azevedo, São Miguel denominava-se Baquirivu e, nas memórias
de alguns moradores que viveram aquele período , o nome não foi de agrado da maioria da
população que se movimentou para mudá-lo.Sobre a denominação Baquirivu Dona Lyris
se recorda:
São Miguel ele foi chamado Baquirivu... Na época que eu estava na escola era
Baquirivu, ficou um ano... O povo não quis, fez tirar e voltar São Miguel
novamente... a turma se revoltava na época... voltou novamente a São Miguel e
está até hoje... Agora puseram São Miguel Paulista... Baquirivu é nome de
índio... se eu não me engano parece que tem um rio com esse nome...
72
68
MENDONÇA, Marcos. Coleção 450 anos Reconstruindo Sonhos – São Miguel. Coordenadoria de
Educação da Subprefeitura de São Miguel. Prefeitura do Município de São Paulo. São Paulo: 2004, p.9.
69
CANEVACCI, Massimo. A Cidade Polifônica. Ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana.. São
Paulo: Nobel, 1993, p. 35.
70
AZEVEDO, Aroldo Edgard de. Subúrbios Orientais de São Paulo. o Paulo: USP, doutorado em
Geografia, FFCL, 1945, p. 129.
71
O bairro recebeu o nome de Baquirivu pelo Decreto-lei 14334 de 30/11/44 (que fixou a Divisão
Territorial do Estado a vigorar de 01/01/1945 a 31/12/1948, publicação da Imprensa oficial do Estado, São
Paulo, 1945) e teve seu nome mudado para o Miguel pela Lei n. 233 de 24 /12/1948(que fixa o quadro
territorial, administrativo e judiciário do Estado a vigorar no qüinqüênio 1949-1953, publicação da Imprensa
Oficial do Estado, São Paulo, 1948.
72
Trecho do depoimento concedido em 20/09/2004 por Lyris Rodrigues Ruott, nascida em o Miguel em
1912, viúva, morava no bairro da Penha em o Paulo. Recebeu homenagem aos pioneiros nos festejos de
aniversário de São Miguel em 2004, um troféu alusivo aos 382 anos do bairro de São Miguel Paulista e dos
450 anos da Cidade de São Paulo.Dona Lyris relembrou fatos acontecidos durante o século passado que se
relacionam com São Miguel, com a Capela e com sua vida. Foi batizada, casou-se e participou do coral da
igreja. Seu bisavô doou a área para a construção do primeiro Cemitério de São Miguel (hoje não existe
mais). Uma rua do bairro recebe o seu nome: Rua Beraldo Marcondes. A depoente faleceu em 16/02/2007.
39
Ao rememorar o nome do lugar Dona Lyris, nascida em São Miguel em 1912, se
posiciona com relação às reivindicações da época que eram para ela, claras, legitimas e
mostram o poder da “turma” ao se revoltar e fazer voltar novamente o antigo nome do
bairro revelando as disputas e tensões em torno do nome do bairro. Segundo Portelli “o
fato de um relato ser um confronto com o tempo está implícito na tentativa de guardar um
tempo especial que pode ser o tempo de suas recordações pessoais
73
”. Dona Lyris recorda
o tempo da mudança do nome do bairro apoiada em fatos que aconteceram em sua vida
pessoal “a época em que estava na escola”. Além disso suas memórias transitam entre o
tempo passado, aquilo que aconteceu e o agora, indicando que estas se apóiam no presente
para relembrar o passado.
Sobre o assunto, José Caldini Filho, de 80 anos, morador em São Miguel Paulista
desde 1935, também se recorda e relata a atuação dos moradores que se envolveram na
disputa pela mudança do nome que não agradava à maioria dos moradores:
É, aqui embaixo tem a rua... deixa ver se lembro o nome... perto da Levesa, ali...
tem uma rua ali que era... agora não vou lembrar o nome... esse cidadão é que
fez... é que ficava na frente da padaria... da nossa padaria... com uma mesinha e
um abaixo assinado... entendeu... quando o pessoal saia da estação ele pedia pro
pessoal assinar pra mudar o nome de São Miguel, depois que passou pra
Baquirivu... lembra? Passou pra Baquirivu, não sei porque cargas d’água...
parece que tinha uma tribo de índio... mas ficava do outro lado do Tietê em
Guarulhos... e puseram o nome de Baquirivu e ai ele ficou fazendo abaixo-
assinado pra retornar o nome de São Miguel, entendeu... ele que fez esse
movimento todo e o pessoal chamava ele de “prefeito de São Miguel” ele mexia
com tudo que tinha a ver com São Miguel... tou tentando lembrar o nome dele
... ele que fez mudar o nome...
74
O relato de Caldini permite visualizar e ajuda a entender e revelar dimensões de
lutas vividas pelos moradores na defesa de seus interesses. Esse episódio serviu para
mobilizar os moradores do bairro, quando em 1944 foi feita uma mudança do nome do
bairro, sem consulta pública, passando de São Miguel de Ururaí para Baquirivu, nome que
permaneceu durante quatro anos e após protestos dos moradores o bairro passou a chamar-
se São Miguel Paulista.
73
PORTELLI, Alessandro. O Momento de Minha Vida”: Funções do Tempo na História Oral” in Muitas
Memórias, Outras Histórias. FENELON, Déa Ribeiro e outros (orgs.)São Paulo: Olho D’Agua, 2004.p.296.
74
Trecho do depoimento de José Caldini Filho, advogado, nascido na cidade de Votorantim (SP) em 1927,
morador em São Miguel desde 1935. Exerce atualmente a função de advogado, participou de várias atividades
em São Miguel, como a fundação do Rotary Club de São Miguel, do Movimento Popular Autonomista, foi um
dos organizadores do primeiro desfile comemorativo do aniversário de São Miguel em 1967. Foi um dos
homenageados como “pioneiro” por ocasião dos festejos dos 382 anos do bairro de São Miguel Paulista e dos
450 anos da cidade de São Paulo em 2004. Seu pai veio para São Miguel trazido pelo sr. Antonio Ermírio, dono
da Cia Nitro Química. É um estudioso da história do bairro, possui uma coleção de fotografias onde estão
registradas varias situações do cotidiano, além de vários documentos que registram a memória do bairro.
40
A narrativa de Caldini evidencia que as pessoas do bairro não se identificavam
com o nome dado ao local e revela a existência de pessoas que moveram ações para o
retorno do antigo nome. O depoente desenha, por meio de suas lembranças, o local onde
estas ações se configuraram e, ainda, relembra de pessoas como o “prefeito”, sujeito que
demonstrava sua luta pelos interesses do bairro e a intenção da permanência do nome de
tradição, São Miguel.
A explicação para a mudança do nome que Caldini se refere a não sei por que
cargas d’água”, para o Sr. Jesuíno Braga
75
e Eurico dos Santos
76
é a seguinte: Baquirivu é
o nome de um rio que passa na divisa entre Guarulhos e São Miguel. O município de
Guarulhos, na época, estava interessado em anexar o distrito de São Miguel ao seu
território e, portanto, a mudança de nome aproximava os dois territórios. Era, portanto,
uma questão geopolítica, aumento de território para o município de Guarulhos. Desse
modo, entendendo que as imagens de um lugar são construídas por referentes materiais e
simbólicos, determinadas questões narradas podem o ter acontecido ou deslocam-se na
sua temporalidade, porém é nessa troca de sentidos ou de temporalidade que elas ganham
sentido.
Seu Jesuíno ainda uma outra explicação para o fato. Diz ele que “naquele
tempo” era comum as cartas endereçadas à São Miguel Paulista serem extraviadas para
75
Jesuíno Braga, nascido em São Paulo, em 1930, veio morar em São Miguel ainda criança, em meados
de 1934. É viúvo e casado novamente com Madalena. Residia nas proximidades da Capela na época em
que esta foi restaurada em 1939 e relembra de vários fatos acontecidos durante esse período. Montou uma
maquete com detalhes sobre a praça e a Capela da época em que ele era criança, segundo sua lembrança.
Mandou fazer impressos sobre a sua maquete e sobre o Frei Leão Mei (sacerdote que foi vigário da igreja
em 38/39) e sobre o Padre Aleixo (sacerdote da igreja por um período de mais de 20 anos). É um artista
plástico que recolhe troncos de árvores que foram derrubadas e constrói imagens de santos (os que haviam
na capela), índios, sacerdotes. Tem uma preocupação muito grande com o bairro e pesquisa a história de
São Miguel Paulista, estabelecendo correlação entre os acontecimentos, argumentando sobre eles,
considerando-os verdadeiros ou não, de acordo com suas pesquisas e aquilo que vIvenciou. Atualmente
(2007) está pesquisando a história da Capela de Itaquaquecetuba, que, segundo ele é da mesma época que a
de o Miguel. Está escrevendo também, um livro de memórias sobre sua vida e a história de São Miguel
Paulista. Depoimento concedido à pesquisadora em 22/07/2004.
76
Eurico dos Santos em depoimento à pesquisadora em 09/07/2005. Nascido em o Miguel Paulista em
1944, aposentado da Sabesp por tempo de serviço, é filatelista e tomou a iniciativa de solicitar à empresa de
Correios a emissão de um selo da Capela de São Miguel Arcanjo em julho de 1993. Conseguiu a confecção
de um carimbo comemorativo em 2003 e o lançamento da Emissão Especial do Bloco com um selo e do
Carimbo de Primeiro Dia de Circulação em 2004. É um dos responsáveis pela publicação da estampa Capela
no bilhete da Loteria Federal em 2000 e do lançamento de quatro cartões telefônicos com imagens da Capela
em 2005. Além disso, possui um arquivo pessoal onde guarda tudo que se refere à o Miguel: notícias em
jornais, desenhos, publicações, livros (vai pesquisar em órgãos públicos para conseguir essa documentação).
Coordenou a obtenção de votos em 2005 na campanha da ECT “Vote no Melhor Selo” para que o selo
referente à Capela de São Miguel fosse o ganhador. Participa da “Associação Cultural Beato José de
Anchieta” e é um dos organizadores da Festa de Aniversário de São Miguel Paulista.
41
uma outra localidade, São Miguel Arcanjo, cidade do interior do Estado de São Paulo. A
mudança do nome para Baquirivu facilitaria o envio das correspondências para o local
correto. Ao relembrar estas questões, Jesuíno significado às suas experiências.
Reconstrói suas lembranças, reelaborando-as e dando interpretações que estão baseadas
em seu cotidiano vivido. Mais adiante, Jesuíno conta sobre como as cartas chegavam em
São Miguel por meio dos trens e a espera da correspondência por sua mãe, que tinha
parentes no interior do Estado.
Nas pesquisas sobre o assunto, não encontrei nenhum documento que justificasse a
mudança de nome; apenas consegui localizar o decreto-lei e decreto que tratam do assunto
(ver nota de rodapé 70). As explicações dada por Jesuíno e Eurico demonstram que os
sujeitos se apropriam dos fatos, elaboram justificativas sobre eles e lhes dão diferentes
significados. Para o pesquisador o que importa, são as versões e o porquê dessas versões.
Há nos relatos e nas explicações construídas, a expectativa de mostrar luta, determinação e
participação ativa das pessoas, que buscavam garantir para o bairro, um nome
consagrado pelo seu uso através dos tempos.
Caldeira ao reconstituir esse percurso, diz o seguinte:
São Miguel, ali por volta de 1945, com a revisão da nomenclatura das cidades,
perdeu o seu velho nome de guerra. Deram-lhe o apelido indígena: Baquirivu,
que evidentemente não pegou. Houve, porém, reação inteligente. Retificou-se o
nome para São Miguel Paulista, que é o seu registro definitivo, em harmonia
com a história e a prosperidade atual. Porque São Miguel não importa que os
poderes públicos quase a releguem a completo abandono significa exatamente
o que é ser paulista em termos deste século dinâmico e nada poético.
77
Sobre o relato de antigos moradores a autora comenta:
... a mudança do nome causou descontentamento geral no bairro. A maioria
queria de volta o “São Miguel” e realizou-se um movimento de coleta de
assinaturas para ser encaminhado ao Poder Público com o pedido de mudança
de nome. Segundo os moradores, cogitava-se pelo menos três nomes
alternativos a Baquirivu: São Miguel Paulista, o Miguel Bahia e o Miguel
Baquirivu. Foi escolhido o primeiro deles, pois conseguiu reunir o maior
número de assinaturas.
78
A denominação do distrito sofreu sucessivas alterações. A mais antiga referência
nominal à região é Ururaí
79
. Com a formação da aldeia cristã, surgiu São Miguel de
Ururaí, que segundo Stella,
... em 1560, com a transferência da vila de Santo André da Borda do Campo
para São Paulo de Piratininga, Piquerobi, irmão de Tibiriçá, e seus seguidores
deixaram a região do Pátio do Colégio para se instalarem nas proximidades do
77
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. A Política dos Outros O Cotidiano dos Moradores da Periferia e o
que Pensam do Poder e dos Poderosos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984, p.40.
78
Caldeira, Teresa Pires do Rio, op.cit., p.40-41
79
Segundo Leonardo Arroyo, Ururaí quer dizer “filho de passarinho” . No Dicionário de Tupi moderno,
Urú – nome de várias perdizes pequenas, espécie de nambuzinho: Uru-a’i – Urwa’i: nambuzinho. BOUDIN,
Max Henri. Dicionário de Tupi moderno Governo do Estado Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de
Presidente Prudente. São Paulo, 1966
42
rio Ururaí, em uma região que lhes era familiar. No mesmo ano José de
Anchieta reencontra esses índios, atendendo a uma solicitação do padre Manoel
da Nóbrega para que os antigos discípulos fossem visitados [...] a opção deste
Arcanjo para orago da aldeia pode ser atribuída ao fato dos nativos chefiados
por Piquerobi se identificarem com a figura de o Miguel por seu espírito
guerreiro. O arcanjo também representa a vitória do bem sobre o mal, e este era
o caso da missão dos jesuítas com respeito aos indígenas dissidentes do Pátio do
Colégio e reencontrados em Ururaí.
80
Bomtempi, estudioso da história do bairro, também escreve sobre a escolha do
nome para a região:
A escolha do orago lembra a presença de Anchieta. Nascido em Tenerife, seus
primeiros passos devocionais foram sob o teto da igreja da Imaculada Conceição
de Maria e da ermida de São Miguel, em São Cristóvão da Laguna, na Praça do
Adelantado, bem próximo de sua casa.
81
Mais tarde, em terras do Brasil, para
onde viera acalentado na alma as gratas reminiscências religiosas da infância,
recomendará as duas principais aldeias de Piratininga aos oragos de sua
preferência: Nossa Senhora da Conceição (Pinheiros) e São Miguel (Ururaí)
82
.
No ano de 1967, por ocasião do aniversário do bairro, João Salgado Rosa,
Presidente do Rotary Club de São Miguel Paulista escreve: Homenagem a São Miguel
Arcanjo – Padroeiro de São Miguel Paulista”:
É opinião de muitos que a o Miguel é reservado um papel saliente no último
combate, pois é o protetor das almas justas e o protetor dos corpos dominados à
eterna glória. Motiva esta suposição um fato, cuja descrição se encontra na
epístola de São Judas Tadeu. Moisés morrera e o demônio pretextando o fato de
Moisés ter matado um egípcio, disputou o cadáver do profeta. o Miguel,
porém, opôs-se-lhe e afugentou o demônio com as palavras: “O Senhor te
reprima” . A católica conclui daí que São Miguel dispensa uma proteção
especial aos moribundos e isto muito de acordo com os dizeres Ofício da festa
do Arcanjo: “Eu te constituí como protetor das almas prestes a serem recebidas
no céu”. Pedro Lombardo enumera quatro atribuições de que São Miguel é
possuidor. Primeiro, combateu o dragão infernal; segundo, este combate
continua, na defesa das almas contra as influências diabólicas; terceiro, São
Miguel é o grande protetor da família de Deus sobre a terra; quarto, é o príncipe
das almas no paraíso. Assim se explica a grande veneração de que o Miguel
goza na Igreja Católica. Muitos altares, muitas capelas e muitas igrejas que lhe
são dedicadas, entre estas a nossa velha matriz, fundada em de julho de 1622.
Nesta data em que comemoram os 345 anos daquela efeméride, a homenagem
da família Rotarya de São Miguel Paulista.
83
Essas narrativas permitem pensar no imaginário social elaborado pelas pessoas
relacionadas ao bairro, que se traduzem em formas de representação que as possibilitam
compreenderem e situarem-se em seus universos reais e imaginários. Elas traduzem a
importância dada ao Arcanjo Miguel na constituição do bairro. Desse modo, a constituição
do nome do bairro que traz para o autor do texto acima, a afirmação do local com
80
STELLA, Roseli Santaella. Anchieta e São Miguel: Fundação e Capela in Encontro com Canárias no
Aniversário de São Paulo. São Paulo: Centros Canários do Brasil. s/d
81
Conforme Hélio Abranches Viotti, S.J., Anchieta, o Apóstolo do Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1966.
82
BOMTEMPI, Sylvio. O Bairro de São Miguel Paulista. São Paulo: Prefeitura Municipal, Secretaria de
Educação e Cultura. 1970, p.33.
83
ROTARY CLUB DE O MIGUEL PAULISTA. Boletim Mensal (Número Especial). A Matriz Rotária.
São Paulo, Rotary Club, 1967. A ortografia foi mantida conforme o documento.
43
“características” guerreira, lutadora, combativa, inerentes ao santo e que se perderiam com
a mudança do nome do bairro para Baquirivu.
Atualmente, a Subprefeitura de São Miguel, localizada a leste do Município de São
Paulo, a aproximadamente 21 quilômetros em linha reta da Praça da Sé, a uma altitude de
753 metros do nível do mar, compreende um território de 2430 ha, representando cerca de
2% da área total do município de São Paulo, tem uma população de 378.438 habitantes,
distribuída pelos seus três distritos, Jardim Helena, com 139.106 habitantes; São Miguel,
com 93.373 habitantes; e Vila Jacuí, com 141.959 habitantes.
84
São seus vizinhos ao norte,
a cidade de Guarulhos; a leste a Subprefeitura de Itaim Paulista e o município de
Itaquaquecetuba e ao sul, a Subprefeitura de Itaquera.
Sobre as transformações do bairro, Osvaldo Pires Holanda, poeta e advogado,
nascido em 1923 em Acopiara (CE), morador de São Miguel desde 1945, declara:
Eu tenho um carinho muito grande pelo bairro e... porque acompanhei é... com
entusiasmo esse crescimento. São Miguel hoje tem foros de cidade, né. É um
bairro com foros de cidade e tudo que a gente queria adquirir no centro da
cidade, nós encontramos em lojas aqui de São Miguel.
85
Nesta fala, Osvaldo exprime sua forma de pensar e sentir o bairro hoje, pelo
entusiasmo declarado às mudanças ocorridas, como o aumento do número de lojas,
restaurantes, supermercados, que para ele significam crescimento e implicam na
comodidade de se obter, no próprio bairro, tudo de que se necessita para viver na
metrópole, ou seja, não mais necessidade de se transportar para outros centros urbanos
na busca da aquisição dos bens de consumo necessários. Essa forma de pensar e sentir o
bairro é resultado da experiência de vida do depoente, que assimilou os padrões de
consumo difundidos pela indústria cultural. O depoente participou da vida social do bairro
dos anos quarenta até a atualidade e visualiza as transformações ocorridas que implicam,
para ele, em benfeitorias urbanas caracterizadoras do progresso” do bairro e, portanto, de
mudança nas maneiras de se relacionar com a cidade. O depoente é um advogado bem
84
Fonte: Deinfo - Departamento de Informações da Secretaria Municipal de Planejamento Urbano da
Prefeitura de o Paulo. Dados básicos para elaboração dos Planos Regionais das Subprefeituras volume
II – outubro de 2002.
85
Osvaldo Pires Holanda, em depoimento concedido à pesquisadora em 18/07/2005. Poeta e advogado, nascido
em Acopiara (CE), em 1923 veio para o Miguel em 1945. Participou do Movimento Popular Autonomista”
em 1962 que propunha a emancipação de São Miguel Paulista. É fundador do “ESPERANTA KLUBO
ZAMENHOF”, Clube de Esperanto existente em o Miguel Paulista. Tem vários livros publicados dentre eles
“Poemas Satânicos” que na opinião do depoente abriu suas portas para a participação de várias Academias de
Letras, porque é um livro polêmico. Participou de atividades do MPA (Movimento Popular de Arte) que
ocorriam na Capela intituladas “Noites poéticas”.
44
sucedido” e não sofre as dificuldades da maioria da população, moradora do bairro, daí sua
interpretação ser diferente de Rocha, quando aborda em sua pesquisa o bairro de São
Miguel Paulista, e afirma que, “a escassez dos meios de transportes coletivos, a
ineficiência de assistência médica gratuita e os poucos recursos educacionais, culturais, de
lazer e sociais, fazem com que o bairro de São Miguel Paulista se posicione ao lado dos
bairros mais carentes da cidade de São Paulo”.
86
D. Lyris recorda-se dum tempo diferente, em que tinha que ir para a “cidade” fazer
as compras:
O comércio era em outro lugar que fazia... [...] minha mãe ia todo mês no
mercado municipal... (...) em o Miguel a gente só tinha arroz e feijão, ... E
a mamãe vinha buscar carne... buscar... aquelas coisas melhor... e a gente,
então... foi acostumada assim, né... então ela vinha todo mês fazer compra aí...
Ah... ela conservava a carne assim... cortava tudo e retalhava a carne e... meu pai
fazia umas varinhas e ela espetava tudo... salgava, temperava e punha na
cumieira, dava pra uns quinze dias... e comia tudo, depois a gente tinha porco,
também matava galinha... e tinha o pomar, tinha a horta com tudo quanto era
verdura, nos fundos, plantava, meu pai plantava feijão... tudo... eu fui criada
assim...
87
Dona Lyris caracteriza o bairro de quando era criança e estabelece as relações de
produção e comércio, salientando o que era produzido no próprio bairro pelo trabalho de
seus moradores e os produtos que tinham que ser adquiridos no Mercado Municipal,
porque o bairro não oferecia os bens de consumo que sua família precisava ou valorizava.
A depoente revela uma experiência de vida no bairro próxima de uma vida rural em que
homens e mulheres criam porcos, cultivam horta e pomar, algo que foi se perdendo com as
mudanças ocorridas no local. Ao compararmos o depoimento de Lyris e Osvaldo e as
conclusões de Sarah, podemos perceber as transformações pelas quais o bairro passou e
os valores dados pelos sujeitos a essas transformações, vistas ora com entusiasmo, ora
ressaltando os problemas vividos pelos moradores e momentos de recordação da infância,
dos pais e de sua criação e das relações com outros lugares da cidade.
Num trecho do seu depoimento, Sr. Jesuíno Braga conta como era a região quando
veio morar em São Miguel, em meados da década de 30:
- Não tinha nada, querida... era a praça ali, Aleixo Mafra e mais nada. Você saia
ali na pracinha era tudo casa de pau-a-pique em volta, sabe... era o centro e a
igreja no centro... não tinha mais nada, você saia dali não tinha mais nada...[...] -
Era mato, tudo mato... aonde nós estamos aqui era um brejão que ainda hoje é,
se você cavocar aqui meio metro, sai água...[...] É barro preto igual aqui, por
86
ROCHA, Antonia Sarah Aziz. O Bairro à Sombra da Chaminé um estudo sobre a formação da classe
trabalhadora da Companhia Nitro Química Brasileira de São Miguel Paulista (1935 a 1960). São Paulo:
PUC, 1992, Dissertação de mestrado, p.45
87
Lyris Rodrigues Ruot, em depoimento citado.
45
causa desse rio, o vale do rio emendando com o vale do Tietê, né... porque esse
rio passa aqui atrás...
88
O Sr. Jesuíno, na qualidade de artesão, reproduziu em maquete, em 2004, a praça
Padre Aleixo e a Capela em conformidade com suas lembranças, forma de rememorar o
período de sua infância (1935), época das brincadeiras na praça, da lembrança do Fr. Leão
Mei, que sempre trazia balas para as crianças, quando visitava o bairro. A figura a seguir,
apresenta cópia do folheto que tem a maquete como representação visual, editado pelo Sr.
Jesuino. No verso do folheto, Sr. Jesuíno homenageou Pe. Leão Mei, com os seguintes
dizeres: “Lembrança da restauração da tradicional e histórica Parochia de São Miguel
Archanjo e de posse de seu primeiro vigário Fr. Leão Mei O.F.M.”. Procurou assim,
recompor experiências vividas, especialmente ligadas ao caráter afetivo que elas
representam e que permanecem como referências importantes para o artesão.
Pelo ângulo dessa narrativa, revemos a região, cujo centro social era a Igreja e a
praça. Era para esse espaço que convergiam as relações de sociabilidade do local. Esse
sentido aglutinador da Igreja em torno da vida urbana local é percebido também, pela fala
de Osvaldo Pires Holanda:
Campos Sales
89
era praticamente o centro de São Miguel, girava em torno da
Capela, não é? É qualquer festa, as festas da igreja atraia toda a população pra...
89
Praça Campos Sales foi o antigo nome da Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra, nome oficial da praça que
é também conhecida como Praça do Forró.
Figura 3 – Maquete da Capela de São Miguel Arcanjo
elaborada pelo Sr. Jesuíno.
46
pra Capela... muitos anos depois foi que construíram a matriz, hoje uma bela
igreja, né... mas tudo se concentrava em torno da Capela de São Miguel.
90
Assim, a praça e a Capela são situadas pelos depoentes como espaços onde se
desenvolveram formas de sociabilidades, como as festas, os encontros, práticas sociais
que, ao longo do tempo se transformaram ou foram recriadas pelos seus freqüentadores.
O Diário Oficial da Cidade de São Paulo
91
traz numa reportagem sobre São Miguel
Paulista, que apresenta Katsuhiko Toda de 77 anos, morador na rua Guchi Toda, nome de
seu pai, migrante japonês que chegou ao bairro em 1947 e recorda os primeiros tempos da
região e do primeiro emprego como cobrador da Viação Penha São Miguel, até abrir
uma lavanderia no bairro em 1950. “A Nitro era cercada de arame farpado, as vias ao
redor eram de terra: se chovesse, empoçava água e o ônibus não saía”.
Essas transformações ocorridas no bairro, demonstradas nos depoimentos traduzem
os lugares vividos e experienciados pelos depoentes com práticas diferenciadas, que
revelam o cotidiano e permitem reflexões sobre as mudanças pelas quais São Miguel
Paulista foi passando. A presença da Nitro Química representa um antes e um depois,
nesse processo, quando não havia nada”, as ruas eram de terra e a sua transformação no
presente, representada por ruas e avenidas asfaltadas, comércio, afluxo de pessoas, meios
de transporte. No bojo dessas transformações, aparecem a Capela de São Miguel Arcanjo e
a Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra como locais que a princípio aglutinavam as relações
sociais existentes no bairro; no entanto, com o aumento da população, com a presença da
Companhia Nitro Química Brasileira, com a necessidade de linha de ônibus para
transporte, outros elementos vão gerar novos locais para os quais podem se direcionar as
relações sociais que se engendram no bairro.
Ainda sobre o desenvolvimento do bairro, Osvaldo relata:
Eu sei que São Miguel custou muito a se desenvolver, foi mesmo de 50 anos pra
cá... porque São Miguel, como pela igreja... a igreja é de 1622, o bairro
existiu, mas aqui tinha só olarias...é... comércio era mínimo... era barzinhos...
padaria só existia uma, que era do seu Caldini... farmácia existia uma que era
do senhor Armando Righeti, né... e... casa de móveis tinha uma só que era dum
turco... era do Miguelão... e os ônibus ... aqui tinha uma linha de ônibus...
tinha dois ônibus, um que saia da Penha e outro que saia de São Miguel no
mesmo horário, eles se cruzavam na Ponte Rasa ... ali na Ponte Rasa existia um
bar chamavam “Sindicato dos Bêbados” (risos) é, era conhecido com esse nome
e daqui aSão Miguel... daqui aa Penha não existia uma casa ... você nao
avistava... era aquela escuridão...terrível... a terra... a estrada era de chão
batido...
92
90
Osvaldo Pires Holanda, depoimento citado.
91
Diário Oficial da Cidade de o Paulo, 26/11/2005, p.II. As decisões dos Poderes Executivos e
Legislativo do município (leis, decretos, portarias, despachos, resoluções, comunicados, licitações) são
publicadas no Diário Oficial da Cidade (DOC), de terça-feira a sábado.
92
Osvaldo Pires Holanda em depoimento citado.
47
Se compararmos esse trecho do depoimento com o trecho anterior, observamos que
este demonstra, através de suas vivências as transformações ocorridas no bairro que em
1945, ano em que veio para São Miguel Paulista, havia um comércio diminuto, poucas
casas e, uma escuridão terrívele que o bairro atual que adquiriu foros de cidadee a
percepção que ele tem do bairro de tempos antigos e dos tempos atuais. Em sua fala,
Osvaldo situa a Capela, no período de sua chegada, pelo que ela significava, como centro
do bairro, onde se realizavam os eventos que atraiam a população e o crescimento do
bairro, as modificações nos costumes. O aumento da população e o crescimento da cidade
reduzem o espaço quantitativo. No bairro, novas paisagens, vitrines, indústrias, vão se
apossando do lugar que ocupava a Capela de São Miguel Arcanjo e outros interesses
centralizam a atenção dos moradores.
O Plano Regional Estratégico (PRE) da Subprefeitura de São Miguel Paulista, do
ano de 2004, traz esclarecimentos importantes que permitem buscar o sentido de São
Miguel Paulista em relação à cidade de São Paulo. Esclarece o PRE que o pólo regional da
Subprefeitura de São Miguel Paulista é o Distrito de São Miguel, onde estão concentrados
os setores comerciais e de serviços. Tem menor número de habitantes e, desde a década de
1980, a taxa de crescimento populacional vem diminuindo e, com o crescimento da
ocupação populacional em áreas além de São Miguel, a leste, como Itaim Paulista,
Guaianazes, Itaquaquecetuba, transforma o centro de São Miguel em local de intensa
circulação e passagem.
93
Sobre o PRE da Subprefeitura de São Miguel, Eurico dos Santos encaminhou um
Termo de Declaração para a Ouvidoria Geral da Prefeitura da Cidade de São Paulo com os
seguintes dizeres:
Na presente data estamos cadastrando sugestão nos seguintes termos: “Em
28/12/2006 compareceu perante esta Ouvidoria Geral o Sr.Eurico dos Santos
para reclamar dos erros contidos na publicação Série Documentos, da PMSP-
SEMPLA, Planos Regionais Estratégicos-PRE, referente a São Miguel Paulista,
a saber: pg.6 e 22 as fotos são do Casarão da Fazenda Biacica
94
e não da Capela
de São Miguel como consta; pg.16/18 – são páginas em duplicidade e o mapa de
abrangência da SP-MP está incorreto, faltando do Distrito do Jardim Helena,
omissão essa encontrada em todos os mapas referentes à região abrangida pela
SP-MP; pg.45 – a legenda das fotos indica que a foto central é da SP, mas é uma
ponte (deveria ser a da esquerda), e a da esquerda refere-se ao futuro terminal de
93
Planos Regionais Estratégicos (PRE) Subprefeitura de São Miguel – Série Documentos. São Paulo:
Secretaria Municipal de Planejamento Urbano, 2004, p. 14.
94
A Fazenda Biacica , situada no distrito do Jardim Helena, ocupa uma área de 100 mil m². De propriedade
particular, está sem uso algumas décadas, o que vem comprometendo sua conservação e integridade. O
Conpresp reconheceu o valor cultural e ambiental da chácara através do tombamento em 1994, preocupação
que Mário de Andrade expressara em 1937 quando a visitou como técnico do SPHAN. Fonte: Um Olhar
sobre o Miguel Projeto o Miguel Paulista e Brasileiro. o Paulo: Fundação Tide Setúbal, 2006, ps.
25-26.
48
ônibus e não Vila Jacuí, como consta; pg.46-47 – a área em destaque nos mapas,
refere-se à Subprefeitura de São Mateus e não de São Miguel como consta;
pg.49 na Ficha Técnica consta, como Assessor de Gabinete, o nome da Sra.
Zilah Maria Ramalho Teixeira, sendo que, à época da publicação (nov/2004),
era o Sr.Evandro Reis, além de, no item Fotos, estar indicado que a publicação
refere-se a São Mateus, mas tratando-se de o Miguel Paulista. Declara, ainda,
que os erros são imperdoáveis, pois se trata de falta de revisão em publicação de
alto custo, publicação essa feita com o dinheiro público”.
95
A reclamação evidencia a existência de indivíduos que lêem, observam,
questionam e tomam decisões a respeito dos veículos usados pelo poder público para se
comunicar com os cidadãos. O reclamante demonstra clareza do descuido e
desconhecimento das pessoas que elaboram esses materiais, que permitem levar a erros
gritantes como os que aparecem na impressão do PRE. Além disso, o reclamante
demonstra percepção dos valores e de onde vêm as verbas gastas com esse tipo de
publicação. No dia 08 de maio de 2006 Eurico volta novamente à Ouvidoria Geral,
solicitando a reabertura da reclamação acima, tendo em vista que mesmo tendo havido
esclarecimentos quanto aos erros cometidos na edição do Planos Regionais Estratégicos,
não houve as correções solicitadas”
96
.
Em vários depoimentos, aparece a divisão da cidade de São Paulo em
Subprefeituras; assim o Distrito de São Miguel Paulista que envolvia vários bairros acabou
perdendo-os para outras subprefeituras
97
como é o caso de Ermelino Matarazzo que é um
bairro mais novo, pertencia a São Miguel Paulista e agora é uma subprefeitura da cidade
de São Paulo. Jesuíno argumenta:
Ermelino Matarazzo veio muito depois. Agora tem uma outra história aí, [...]
que o Miguel ta perdendo território [...] São Miguel nasceu primeiro que
qualquer um em volta aqui[...] quando eu cheguei em São Miguel, onde passa
o Jacu Pêssego, ali ficava um casarão e ali ficava um funcionário da Prefeitura
de São Paulo que era o responsável por São Miguel, ali tinha as máquinas da
95
Termo de Declaração protocolado sob o nº O.G. nº 010403/2006 de 28/12/2006.
96
Eurico dos Santos em carta à Ouvidoria Geral do Município de São Paulo, protocolo O.G.
001416/2005, em 02 de março de 2005.
97
A descentralização administrativa em São Paulo teve início em 1965, através do Decreto n.6236, de
13/10/1965 na gestão do Prefeito José Vicente de Faria Lima com a subdivisão do Município em sete
Regiões Administrativas, para a execução de obras, serviços, fiscalização e implantação de equipamentos
sociais. Em 1969, com o surgimento do Plano Urbanístico Básico, realizado por um consórcio de empresas
com a finalidade de melhorar a qualidade dos serviços públicos, sobretudo o atendimento da população, a
prefeitura deveria criar órgãos e ampliar gradualmente o número de Administrações Regionais. Assim, a
cada gestão administrativa o município foi dividido em administrações regionais, muitas vezes atendendo a
interesses político eleitorais do que critérios de planejamento urbano ambiental. Com a aprovação da Lei
Orgânica do Município LOM, em 04 de abril de 1990, os critérios para divisão do Município foram
reorganizados e legitimados, ficando estabelecido que a administração municipal deveria ser exercida
localmente por Subprefeituras, cujas atribuições e competências,inclusive o número e abrangência
territorial, deveriam ser instituídas por lei e ainda que as diretrizes para o planejamento municipal deveriam
ser elaboradas pelas subprefeituras e demais órgãos municipais, por meio de amplos processos de discussão
com a sociedade civil. Planos Regionais Estratégicos (PRE), Município de São Paulo, Subprefeitura de São
Miguel, Série Documentos, 2004, p.8.
49
prefeitura e tudo que precisava... ele era um senhor, Seu Adolfo, me lembro bem
... ele é que... que... a gente ia la... naquele tempo era tudo de terra, se a rua
ficava esburacada, entrava lá, falava com o Seu Rodolfo, ele mandava o trator
plana a rua ou carpi as ruas, carpi os matos em volta das ruas ... ele que fazia
tudo aqui em São Miguel, esse Seu Adolfo... ele era funcionário da prefeitura na
época ... então, era o depósito da prefeitura e ele era o responsável, sabe, ali...
então tudo isso... Ermelino Matarazzo não existia prá começa ... era São Miguel,
depois vinha a estação de Engenheiro Goulart, depois vinha a Penha ... e
Ermelino Matarazzo não existia... sabe quando começou existir Ermelino
Matarazzo? Quando o Matarazzo montou a fábrica aqui em Ermelino ... que
puseram o nome de Ermelino Matarazzo por causa que ele trouxe essa fábrica
pra cá...aí é que puseram o nome e a estação Ermelino Matarazzo... porque antes
era tudo São Miguel, querida...
98
O depoente se reporta ao período em que São Miguel Paulista era um bairro com
grande extensão territorial, considerado Distrito de São Miguel Paulista e abrangia os
bairros que agora pertencem a outras subprefeituras. Em 2002,
99
território de São Miguel
Paulista foi dividido, criando-se as Subprefeituras de Ermelino Matarazzo e Itaim Paulista.
O depoimento revela um tempo em que as relações eram mais próximas e os funcionários
da Prefeitura eram conhecidos pelo nome e acena para transformações ocorridas, como a
montagem da fábrica Celosul
100
que atrai para a região novos personagens com outros
interesses, criando novos espaços, com outras denominações.
... hoje, a subprefeitura aí, que você ai, antigamente, primeiro foi onde eu
te contei...depois quando fizeram o mercado de São Miguel a prefeitura passou a
funcionar atrás do mercado que hoje é um sacolão ... ali era a prefeitura... daí
fizeram a subprefeitura lá, que era a regional... era a regional... tudo era
comandado dali, tudo era subdistrito de São Miguel ... Itaim, Ermelino
Matarazzo, até chega na divisa de Itaquaquecetuba, era tudo subdistrito de o
Miguel, entendeu... hoje, ali naquele morro ali, é a Vila Curuçá... aquilo ali era a
fazenda do Lara Campos uma família tradicional de São Paulo ... ali era a
fazenda do Senhor Lara Campos, eles vinham aqui no fim de semana, andar a
cavalo, o diabo a quatro e aonde, não sei se você conhece o Chico Mendes? [...]
ali era a casa da fazenda, casa grande, entendeu? E a Curuçá toda era São
Miguel ...
101
Jesuíno expressa as características físicas de São Miguel quando era distrito e
abarcava toda a região que vai até a divisa com Itaquequecetuba. Sua narrativa revela
disputas, tensões entre os bairros e o poder público municipal. O depoente reclama da falta
de participação popular na divisão do município e ainda, a perda de referências que
98
Jesuíno Braga, depoimento citado.
99
A Lei 13399 promulgada em 01/08/2002 criou na cidade de São Paulo 31 subprefeituras. Fonte: PRE do
Município de São Paulo – Subprefeitura de São Miguel Paulista, p.8.
100
O nome do bairro é uma homenagem ao neto do Conde Francisco Matarazzo que foi um dos diretores do
grupo. O bairro Ermelino Matarazzo situa-se na zona leste da cidade de São Paulo e teve um aumento
populacional a partir de 1941 quando foi inaugurada uma fábrica das Indústrias Matarazzo, a “Celosul”,
única produtora de papel celofane da América do Sul. No início dos anos 70 a Celosul viveu seu ápice para
entrar em decadência alguns anos depois, com a crise do Grupo Matarazzo. Foi a partir dessa época que
Ermelino Matarazzo foi separado de São Miguel e ganhou administração própria. Hoje a Celosul se mantém
ativa mas sob o comando de uma cooperativa.
<http://portal.prefeitura.sp.gov.br/ subprefeituras/spem/dados/histórico/000l>.
101
Jesuíno Braga, em depoimento citado.
50
exercem poder simbólico para a população como é o caso da sede da subprefeitura e do
Hospital Tide Setúbal.
102
Assim procedendo, ele se coloca como alguém comprometido
com as questões que se referem ao bairro.
Hoje, hoje, São Miguel ta terminando aí,[...] então a vila Curuçá agora é Itaim...
Da Imperador pra é Itaquera, que sempre foi São Miguel... é Itaquera... aonde
tá a antiga regional que hoje é subprefeitura pertence a Ermelino Matarazzo pois
tiveram o capricho, o Hospital, aí, o Tide Setúbal, sempre de foi São Miguel,
foi construído pra São Miguel, que que é hoje, querida...comandado por
Ermelino Matarazzo...
103
E continua: “... tomaram o território de São Miguel... e acaba a identidade
querida... quem é que grita? Se aqui tem forasteiro... quem é que grita? Vou eu grita no
meio da rua ?”
104
. Revoltado com a incapacidade de organização da população para
reclamar daquilo que considera ruim para o bairro, se coloca como uma espécie de
guardião, sujeito que grita sozinho frente ao desinteresse de outros que não são do lugar e
que, portanto, não se identificam com os interesses do bairro e que acabam sucumbindo
aos interesses dos políticos. A referência a “forasteiros” aos que não são do bairro, vieram
bem depois, diferentes dele que viveu experiências no bairro desde a infância e, portanto,
conhece a sua história.
Um outro depoente, Albertino Nobre, morador em São Miguel desde 1948, natural
de Senhor do Bonfim (BA) assim se coloca:
A senhora nem queira saber a minha tristeza quando eu vejo que o Miguel se
limita ali a Itaquera Mirim... não... São Miguel ia divisa lá com Ferraz de
Vasconcelos, com Poá, com tudo... Itaquá... hoje se restringe aqui a Itaquera
Mirim... ali já é Itaim... você vai pra cá termina no Jacu Pêssego... dali pra lá já é
Ermelino Matarazzo... São Miguel ficou sufocado... então São Miguel, o que
sobrou pra São Miguel foi o Pantanal... começando aqui no Jardim Helena e a
Vila Jacui, o resto... cabou... não tem mais São Miguel... é triste... mas o que vai
fazer...
105
Esses depoimentos demonstram a valorização do território como marco da
importância política de São Miguel na composição da cidade. Ao perder território, entra
em jogo a hegemonia de São Miguel frente a outros bairros da região. Albertino, ao
assinalar que para São Miguel só sobrou o Pantanal”, refere-se ao Jardim Helena, bairro
102
O Hospital Tide Setúbal iniciou suas atividades com funcionamento em 1959, precariamente instalado à
Rua Beraldo Marcondes em São Miguel Paulista. É um dos primeiros hospitais da região e necessita de
reformas e atualização tecnológica. Sua estrutura é insuficiente para o atendimento realizado.
www.portal.prefeitura.sp.gov.br .
103
Jesuíno Braga, em depoimento citado.
104
Idem.
105
Albertino Alves Nobre 30/01/2007Ex-vereador da cidade de São Paulo. Morador de São Miguel desde 1948 para onde
veio como migrante da região de Senhor do Bonfim, no estado da Bahia. Trabalhou na Cia Nitro Química por 34 anos, fato
que declara com muito orgulho. Declara ter participado de todas as festas realizadas em homenagem ao padroeiro do bairro,
São Miguel Arcanjo e do lançamento da pedra fundamental para a construção da nova igreja em 1952 e da sua inauguração
em 1965, depoimento em 30/01/2007.
51
que compõe a Subprefeitura de São Miguel e que abriga uma das maiores áreas da região
submetida ao processo de favelização, que ocorre nas grandes cidades brasileiras e que
traz para os bairros os problemas inerentes a esse processo de exclusão social. Este fato
parece que, para o depoente, diminui ainda mais a importância de São Miguel perante
outros bairros da região.
Segundo o jornal “Diário do Comércio”, em matéria publicada sobre a região por
ocasião da comemoração dos 450 anos da cidade de São Paulo,
... não é exagero dizer que os camelôs dominam o comércio local. A
conseqüência de tudo é o aumento da violência principalmente na periferia de
São Miguel onde está instalada uma das maiores e mais violentas favelas deo
Paulo, a Pantanal.
106
A reportagem repete e reforça estereótipos construídos sobre a favela e seus
moradores e os alia à presença de camelôs, indivíduos que exercem atividades informais
no bairro. É bom lembrar que o jornal representa a associação de comerciantes legalmente
estabelecidos na região e que, por isso, nesses moradores indivíduos com práticas que
interferem no comércio dos estabelecimentos locais.
No olhar desses dois depoentes Jesuíno e Albertino as modificações do bairro
ganham diferentes significados. Para Jesuíno, as lembranças de São Miguel Paulista
recompõem as ões sociais em torno do bairro: sujeitos que resolviam os problemas de
urbanização, a instalação da fábrica em Ermelino Matarazzo, o Mercado Municipal, a
fazenda Lara Campos onde se andava a cavalo, o Hospital Tide Setúbal. Albertino, ao
pensar no São Miguel do passado é compará-lo com o que sobrou para o São Miguel atual,
sufocadopor outros bairros e pelo Jardim Helena que concentra grande contingente de
população vivendo em precárias condições. Avaliar o que São Miguel perdeu, faz parte do
processo histórico de constituição da memória do bairro hoje e representa diversos olhares
sobre o bairro, apropriados por diferentes sujeitos e que nem sempre conferem com as
explicações e asões do poder público sobre essas mudanças. As imagens de São Miguel
de um tempo passado são construídas por referencias materiais e simbólicos que
demonstram a grandeza de São Miguel Paulista pelo espaço físico e político que o bairro
abrangia; desse modo, esses novos equipamentos surgidos no bairro e o afluxo de outros
moradores com interesses diferenciados, e ainda, novos pólos de centralização de poderes
106
Caderno Especial do dia 03/06/2004.“Diário do Comércio”. De Anchieta aos novos tempos. vai o
Bonde para a Europa do Leste de SP Penha, Mooca, Tatuapé e o Miguel. Textos de Denise
Ramiro.Segundo essa edição, a Distrital de São Miguel Paulista da Associação Comercial de o Paulo foi
fundada em 1982. Nesses anos todos tem participado ativamente de vários projetos de melhoria do bairro e
regiões vizinhas, como Itaim Paulista, Guaianazes, São Mateus, Itaquera e Ermelino Matarazzo. A atual
gestão também trabalha na atração de novos associados e hoje conta com 1650 empresários.
52
e administração da cidade, dividem o espaço e os interesses com a Capela de São Miguel
Arcanjo e a praça, que passam a ter outros valores para os moradores que têm outros locais
e outros interesses para se identificarem.
A questão da divisão da cidade em subprefeituras nem sempre é incorporada pelos
moradores. Estes continuam a fazer referências a São Miguel, mesmo que os locais não
estejam mais sob sua jurisdição. Um exemplo, é a Vila Curuçá, que pela nova divisão
pertence à Subprefeitura de Itaim Paulista e no entanto, abriga o “Grêmio Recreativo
Cultural e Escola de Samba Unidos de São Miguel”
107
e a “Casa Brunhosinho”
108
que são
equipamentos públicos referentes a São Miguel Paulista e região.
Ao buscar as razões explicitadas pelo poder público para a instituição das
Subprefeituras, encontrei como exposição dos motivos o seguinte:
A implantação das Subprefeituras com as decorrentes descentralizações,
desburocratização e desconcentração de equipamentos e atividades, serviços e
pessoal significará uma verdadeira revolução político-administrativa na
Cidade de São Paulo, não só em virtude dos ganhos com a simplificação,
eficácia e eficiência da gestão da coisa pública, mas, sobretudo, por propiciar
efetivos mecanismos de participação popular no governo.
109
Segundo a exposição dos motivos, no Projeto de Lei 546/2001, o poder público
demonstra intenções de articular as ações da Subprefeitura com os Conselhos de
Representantes, com o Orçamento Participativo e outros mecanismos de participação
popular na formulação e implementação de políticas públicas, promovendo no município
amplo processo de reformas democrático-populares, consubstanciado no controle social do
Estado. Essa descentralização implica em um tratamento diferenciado nas distintas
realidades socioeconômicas da cidade, sem deixar de centralizar as diretrizes políticas na
área de atuação da Prefeitura, vencendo simultaneamente a ótica estanque da ação do
Executivo e a indevida homogeneização de realidades diversas. Além disso, a
descentralização em áreas menores propicia a otimização dos recursos públicos,
melhorando a qualidade dos serviços prestados, viabilizando a universalização do seu
acesso à população, condição para uma qualidade de vida digna na Cidade.
110
Segundo a Secretaria Municipal de Coordenação das Subprefeituras, os critérios
que definiram a implementação do projeto de organização da cidade em subprefeituras
107
O “Grêmio Recreativo Cultural e Escola de Samba Unidos de São Miguel” foi fundado em 05/07/1977 e
traz no seu estandarte a Capela de São Miguel Arcanjo. Este assunto será abordado, nesta pesquisa, Capítulo
III – Um Exercício do Olhar – Produtos que Evocam a Capela.
108
Casa de Brunhosinho é uma associação cultural e recreativa sem fins lucrativos, fundada em 1991 em um
espaço doado pela família Pantaleão, que veio para São Miguel em 196l. Sobre o assunto ver Capítulo III –
Um Exercício do Olhar – Produtos que Evocam a Capela.
109
Projeto de Lei 546/2001 da Prefeitura do Município de São Paulo – Subprefeituras, Exposição de
Motivos, p. 12-13.
110
Projeto de Lei 546/2001. op.cit.
53
foram: respeito aos limites dos distritos, prioridade de implementação nas áreas
periféricas, Administrações Regionais como refencia, identidade política e cultural dos
distritos, atenção para as áreas de preservação ambiental, combinação de áreas com
diferentes graus de desenvolvimento, limite em torno de 500 mil habitantes, população
flutuante, existência de pólos de atração comercial e de serviços, vias de acesso e sistema
viário. De acordo com o critério de escolha, define-se que as ões serão da seguinte
maneira: Os subprefeitos serão indicados pelo prefeito, a subprefeitura será a prefeitura da
região e haverá um conselho de representantes eleitos em cada subprefeitura.
111
Sobre essas questões, percebe-se que as explicações dadas pelo poder público para
a redistribuição da cidade em subprefeituras e, portanto, mudanças na organização
político-administrativa da cidade, são sentidas pelos depoentes que, o observam
mudanças qualitativas no atendimento oferecido pelo poder público. Não sentem as
articulações entre uma participação popular efetiva e os órgãos administrativos como
indicam as razões dadas para a criação das subprefeituras. uma distância entre o que
um propõe e o que o outro observa e deseja.
Exemplo de conflito que envolve os territórios do bairro, é a denominação da
avenida Marechal Tito, que antes era a velha estrada de ligação de São Paulo ao Rio de
Janeiro. Segundo o PRE, esta via “tem papel de via arterial aglutinadora de atividades
centrais e dos vetores mais dinâmicos das atividades econômicas de comércio , serviços e
pequenos estabelecimentos”
112
do bairro de São Miguel Paulista. A mudança do nome de
Estrada Velha São Paulo Rio para Avenida Marechal Tito traduz conflitos, jogo de
interesses e disputas pelos nomes de ruas e avenidas do bairro.
Alguns depoentes fazem referências sobre a Av. Marechal Tito
113
como um nome
que foi colocado na antiga Estrada São Paulo Rio por interesses particulares de um
vereador da região em homenagem a um líder comunista da Iugoslávia.
Pois é... foi o Aurelino que colocou esse nome aí... um ditador sanguinário... não
tem nada a ver com a gente daqui... Marechal Tito
114
... não, o era da ditadura
111
Considerações retiradas de Prefeitura.SP – Critérios de escolha. Prefeitura.sp.gov.br.
112
PRE, p.15, op.cit.
113
O Decreto-lei 16880 de 08/09/1980 dispõe sobre a denominação de Av. Marechal Tito a Estrada
conhecida por “São Paulo-Rio”, que começa na Praça Pe. Aleixo Monteiro Mafra, entre as ruas Beraldo
Marcondes e José Dias Miranda e termina na divisa com Itaquaquecetuba, no Distrito São Miguel
Paulista.
114
Segundo a Grande Enciclopédia Larousse Cultural, o Marechal foi um estadista iugoslavo que aderiu ao
Partido Comunista Iugoslavo em 1920 tornando-se seu secretário-geral em 1936.Durante a II Guerra
Mundial organizou um exército com quase l milhão de homens e, em 1943 tomou a direção do Comitê
Nacional, foi nomeado marechal, proclamou a destituição da monarquia e a criação da República Federativa
Popular da Iugoslávia. Em 1948, a Iugoslávia rompeu com a URSS, continuou socialista mas sem fazer
parte do Pacto de Varsóvia.
54
brasileira, era estrangeiro... o tem nada a ver com São Miguel nem com o
Brasil ... era da Iugoslávia... Era a antiga o Paulo-Rio... Av São Paulo-Rio
tava muito bem... menos Marechal Tito... mas o coisas que a gente não
consegue... foi triste...
115
Sobre o assunto, Izaltino Ribeiro, conhecido como Izal, professor e produtor
cultural estabelece a seguinte reflexão:
[...] e essa questão das mudanças de nomes aqui ficou conflitante, porque é
assim... você tinha Lajeado que ligava o centro de o Miguel até Guaianazes e
a Lajeado se tornou Nordestina, né ... o pessoal fala que as pessoas são contra os
nordestinos, o tem nada a ver uma coisa é você homenagear, reconhecer uma
qualidade cultural outra coisa é você matar uma identidade também ... ah
porque existe um outro bairro Lajeado mas era uma coisa que existia que tinha
certa.... uma coisa mata a outra, aí, fica assim poxa, ninguém teve coragem de
ter chegado ... por que Marechal Tito que era a antiga São Paulo-Rio, durante o
militarismo você coloca o nome de um cara que era general militar da cortina de
ferro... sei até que ponto era comunista de fato? Mas porque o colocaram
Nordestina na avenida principal do bairro... aí é que de fato queriam acabar com
a memória... quer homenagear, vamos colocar a relação identitária...
116
Sobre as denominações das ruas citadas, a atual Avenida Marechal Tito chamava-
se Estrada São Paulo-Rio (era a antiga estrada que levara ao Rio de Janeiro e que foi
substituída pela Rodovia Presidente Dutra) e a atual Avenida Nordestina chamava-se
Estrada do Lajeado. Segundo o raciocínio de Izal, trocar o nome da Estrada do Lajeado
quebrou a relação de identidade entre os usuários da via que era conhecida como Lajeado
e leva aos bairros de Itaquera e Guaianazes. Por outro lado, para o depoente, colocar
Avenida Nordestina, nome que tem a ver com uma presença intensa dos nordestinos na
região, no lugar de Marechal Tito também seria uma ação não condizente com o tipo de
memória que se pretende perpetuar, visto que é uma das artérias principais do bairro e não
receberia um nome de sujeitos sociais que representam uma parcela de moradores
migrante, empobrecida e que veio para a região procurando novas formas de
sobrevivência. Nesse sentido, o depoente demonstra reflexão sobre como os lugares são
apropriados pelos moradores, que memórias se pretende perpetuar e o que é valorizado, de
acordo com os grupos que estão no poder.
O mesmo aconteceu com as Ruas Estiva, Extrema e Camanducaia que ficam
próximas ao Pronto Socorro Municipal e receberam esses nomes em homenagem ao grupo
de primeiros migrantes que vieram dessas cidades do Estado de Minas Gerais para
trabalhar na Nitro Química e tiveram seus nomes trocados por nomes de pessoas
desconhecidas dos moradores, simplesmente por motivos eleitoreiros.
115
Albertino Nobre, depoimento citado.
116
Depoimento Izaltino Ribeiro, concedido à pesquisadora em 04/09/2004. Professor e produtor Cultural,
morador em o Miguel Paulista desde 1965, participante de movimentos sociais da região. Participou do
MPA (Movimento Popular de Arte), assunto que será tratado no capítulo II dessa pesquisa: Tempos,
Espaços e Memórias: Histórias de São Miguel.
55
Os espaços do bairro evidenciam nomes de dirigentes políticos que se destacaram
em determinadas épocas, escolhas muitas vezes realizadas pela importância do
homenageado ou por vontade de pessoas ou grupos que pretendem estabelecer
determinadas memórias. A memória institucionalizada não evidencia as batalhas
empreendidas por segmentos pouco visíveis na realidade de São Miguel Paulista, ainda
que estes, através de seus trabalhos e de suas ações sociais, muitas vezes ocultas, sejam
sujeitos que mereçam essas reverências.
Segundo o Diário Oficial da Cidade de São Paulo
117
o distrito de São Miguel abriga
o Hospital Municipal Tide Setúbal, O Hospital Da Saúde Mental, dois dos cinco
Telecentros da região e o Centro de Referência da Criança e do Adolescente, inaugurado
em agosto para acolher crianças e adolescentes em situações de risco ou de rua. O centro
de São Miguel, nos arredores da Praça do Forró
118
, é atualmente um importante lo
comercial e residencial, com quatro avenidas principais: Nordestina, São Miguel, Pires do
Rio e Marechal Tito. A Estação de Trem, utilizada pela linha F da Companhia de Trens
Metropolitanos (CPTM) desde 1994, também está nessa área. Segundo a mesma edição do
Diário Oficial, o Jardim Helena é o Distrito com maior índice de exclusão social e com
equipamentos públicos de saúde e educação em menor número. o distrito de Vila Jacuí,
abriga a sede da subprefeitura e a nova Casa de Cultura
119
entre outras unidades da
prefeitura. As ligações viárias ao sul, as avenidas Águia de Haia e Jacu-Pêssego possuem
fluxo intenso de veículos e atuam como vetores na expansão habitacional, sobretudo com
o surgimento do metrô Itaquera. É uma região com estruturação viária incipiente e sem
articulação entre si, aliada à crescente ocupação habitacional, fruto das diversas etapas de
implantação e à falta de equipamentos sociais e de subcentros de serviços. Na parcela
norte, devido à ocupação mais recente e ao corte representado pela via férrea e pela
limitação oferecida pelo rio Tietê e suas enchentes sistemáticas, a situação é mais precária,
tanto no que se refere aos equipamentos sociais, serviços e centros de consumo como no
que se refere a uma estruturação urbana, agravada por se constituir em uma longa faixa
estreita e isolada que vai de Ermelino Matarazzo a Itaquaquecetuba.
117
Diário Oficial da Cidade de São Paulo, 26/11/2005, p.II
118
O nome oficial da Praça do Forró” é “Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra” e nela está situada a
“Capela de São Miguel Arcanjo” esse assunto será discutido no Capítulo II desse trabalho: Tempos,
Espaços e Memórias: Histórias de São Miguel..
119
A Casa de Cultura de São Miguel Paulista passou a chamar-se “Casa de Cultura Antonio Marcos”
nascido em São Miguel Paulista, em 08/11/1945 e faleceu em 05/04/1992, foi um ator, compositor,
violinista, humorista e cantor brasileiro. DOM 29/08/2007, nº 160, p. 131
56
Entre tantas lembranças, remotas e recentes, São Miguel de tempos antigos vai
entrelaçando-se com o São Miguel atual, por meio daqueles que viveram e vivem, até os
dias de hoje, experiências diversas. Refazer as memórias da vida cotidiana desse bairro
atrelada à presença da Capela de São Miguel Arcanjo como aglutinadora de ações sociais
que ocorrem nesse espaço urbano, apreendendo os significados que os moradores
atribuíram às suas experiências, compreendendo que estas estavam impregnadas de outras
experiências cotidianas e que, segundo Hall podem divergir, considerando a
temporalidade, o espaço e a relação social
120
, foi preciso entender que o passado
expresso nas narrativas é elaborado com base na vivência do presente e, portanto,
selecionado e avaliado pelos valores de quem os vivenciou, e que, à medida em que os
sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por
uma multiplicidade de identidades possíveis, ao menos temporariamente.
121
Nesse sentido,
busco refletir sobre as diversas identidades formadas e transformadas continuamente pelos
moradores de São Miguel Paulista, assumidas em diferentes momentos e nos diferentes
espaços do bairro.
Analisar esse “fragmento da cidade”, se fez necessário para a compreensão dos
níveis de determinação que atuam em São Miguel Paulista, que vão da articulação com a
metrópole numa dimensão macroregional, passando por níveis intermediários como os da
interligação metropolitana e os da estruturação da zona leste da cidade até às questões
mais vividas pelos moradores como: falta de equipamentos sociais; tempo excessivo
empregado nos veículos de comunicação de massa; falta de segurança pública e a
existência de áreas extensas de ocupação habitacional precária como por exemplo, a região
do Pantanal. A esses aspectos soma-se a incapacidade da região de absorver parcelas
maiores de sua população economicamente ativa, vinculando a organização do espaço
social à difícil interação com outros espaços da grande São Paulo, seja para o trabalho,
lazer, estudo ou qualquer outro tipo de experiência que seus moradores necessitam ou
desejam realizar.
120
Hall, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade.Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2005, p. 13.
121
Hall, Stuart, op.cit.
57
1.2. Um bairro distante, uma origem remota
Da origem rebelde ao descaso é o título de um trecho da matéria do jornal
Diário do Comércio que dá indicações sobre as condições da Capela no período da
publicação do jornal. Sobre sua origem, diz a matéria:
A primeira construção de São Miguel foi uma capela feita em taipa de pilão
pelos índios e inaugurada pelos jesuítas em 1622, considerada marco da
fundação do bairro, localizado no extremo leste de o Paulo. Muitos povoados
catequizados surgiram da mesma forma. O curioso em o Miguel é que a
capela, ainda permanece ali, cercada de estabelecimentos comerciais por todos
os lados. Tombada pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional desde 1938,
ela é tida pelos historiadores como um exemplar único da arquitetura colonial
brasileira e a construção original mais antiga da cidade de São Paulo.
122
Nas reportagens de jornais e revistas sobre a Capela de São Miguel Arcanjo, é
freqüente a abordagem do seu aspecto arquitetônico, o caráter de antiguidade, marco da
fundação do bairro, por ser construída por índios e o fato de ser tombada pelo IPHAN. A
Capela é sempre objeto de reportagem para exaltá-la como símbolo de memória do bairro,
da cidade de São Paulo e até do Brasil; para evidenciar seu estado de abandono; ou ainda,
para denunciar atos de vandalismos. Recentemente, a Capela de São Miguel Arcanjo foi
evidenciada nos jornais locais e na grande imprensa, pelas obras de restauração. No
entanto, os sujeitos que fazem parte da dinâmica social que a envolve raramente são
evidenciados .
Stella e Bomtempi referenciam que muitos bairros da cidade de São Paulo
surgiram da transformação de aldeamentos indígenas em povoados de brancos. Esse fato,
largamente encontrado na formação social brasileira, é um importante elemento que
caracteriza a origem histórica de muitas cidades brasileiras,
123
inclusive do bairro de São
Miguel Paulista.
Um dos depoentes, Jesuíno elabora reflexões sobre como vê hoje, o início do
bairro, atrelado ao Pátio do Colégio e ao sentido de proteção contra os índios Tamoios:
... e começou a... catequização aqui... agora também querida... (aos sussurros)
vou te contar uma coisa... o vai pensando que os índios fizeram aquilo ali...
tudo bonitinho porque quiseram, de graça, o... sabe... saiu muita bandeira dali
daquele largo da igreja ... deve ter saído muita bandeira dali pra caça índio nas
mata... escraviza e traze eles pra trabalha forçado... porque as parede ali querida,
tem quase um metro de de... largura... sabe... um metro de largura, naquela
altura... tudo de terra socada, querida... é terra que o acaba mais e água pra
122
Diário do Comércio do dia 03/06/2004 citado anteriormente.
123
Segundo os autores. A reconstrução da igreja foi inspirada pelo padre João Álvares e executada pelo
bandeirante Fernão Munhoz, provavelmente no mesmo local onde havia uma capela mais antiga e que tinha
como santo padroeiro São Miguel Arcanjo. As proporções da igreja levantada para substituir a primitiva, se
comparada à do Pátio do Colégio, demonstram a importância da região. Na época da reconstrução São
Miguel não era um aldeamento indígena, adquirindo características de povoamento de brancos, daí a
necessidade de uma igreja que atendesse a demanda populacional, mais adequada à celebração da liturgia
católica .
58
faze o barro e onde eles iam busca a terra? Aonde eles iam busca barro? O Tietê
passava ai em baixo mas pra vim de de baixo do Tietê carregando água até ali
pra faze barro ... será? Será que os índio ia faze numa boa? Que o índio também
não gostava muito de trabalhar não viu ... e principalmente ser escravo... eles
não gostavam o... o vai me dizer que o índio fez numa boa aquilo ali o...
fez obrigado... fez obrigado... sabe...
124
O depoente atribui, no relato, aos índios a realização do trabalho mais árduo;
demonstra clareza de que os índios foram explorados, escravizados; percebe a dificuldade
para fazer esse trabalho de construção cujas paredes tem quase um metro de largurae
que portanto, foi um trabalho penoso. Seu falar sussurrando é como se estivesse
desvelando um segredo, um conhecimento importante, que demonstra entender as
dinâmicas pelas quais passavam os índios ao serem catequizados pelos europeus.
Evidencia reconhecer os detalhes da construção da Capela, a geopolítica da região, o uso
do rio Tietê, sua distância aa Capela e a percepção de que, já no início da colonização
brasileira, houve tensões entre colonizador e colonizado na ocupação do território e na
construção da Capela.
No decorrer da pesquisa procurei não usar categorias culturais prontas para tirar
conclusões sobre outras culturas, nem usar de hierarquias frente às diferenças e, além
disso, analisei todos diferentes tipos de fontes procurando indícios que levassem a refletir
sobre suas ações, desvelando as experiências dos moradores do bairro e das pessoas que se
relacionam a ele e à Capela, para representar o cotidiano.
Eis uma frase significativa de dona Lyris, que apresenta a Capela de São Miguel
Arcanjo como referência cultural, além de patrimônio instituído:
Ah, eu adoro São Miguel... A capela também, desde que eu me conheço por
gente eu vejo aquela capela, nunca foi demolida, nunca, sempre foi assim,
fizeram uma reforminha no chão, um médico que morava lá perto de nós, ele fez
uma reforma lá, no chão, porque era daqueles tijolos antigos de índio né, e ele
fez essa reforma isso... ela nunca foi demolida, imagine que eu tenho uns
parentes, ouviu falar numa senhora chamada Caló, era minha tia avó, ela era
filha do mais velho de São Miguel, o Beraldo Marcondes...
125
Para Dona Lyris, a Capela nunca foi demolida, foi preservada, em função de ações
das pessoas com quem convivia na época e atribui a mudança do piso da Capela como
uma reforminha”, referindo-se a esta ação, no diminutivo, de maneira carinhosa como se
falasse dos cuidados com sua casa. A depoente estabelece uma relação de afeto com o
bairro e com a Capela, valorizando a presença de sua família na história do bairro.
Estabelece nas suas lembranças um elo de ligação a um passado que se evidencia através
da presença da Capela.
124
Depoimento do Jesuino Braga, citado anteriormente.
125
Dona Lyris Rodrigues Ruott , depoimento citado.
59
Seus parentes, conhecidos como pioneiros do lugar, eram importantes na vida
social de São Miguel. Seu bisavô, “Beraldo Marcondes” que segundo a depoente era o
mais velho de São Miguel, nomeia uma rua do bairro, próxima à Capela de São Miguel
Arcanjo. A rua “Beraldo Marcondes”
126
chamava-se rua 5 e foi renomeada pela
institucionalização da administração urbana. Segundo seu Jesuíno, a “rua Beraldo
Marcondes principiava na Praça da Igreja e terminava na frente do Cemitério Velho e era
conhecida pelos antigos por rua do Cemitério
127
.
Na sua biografia, lida por ocasião da homenagem que recebeu como “Pioneira do
Bairro” em 2004 nas comemorações do aniversário de São Miguel Paulista, aparece a
interferência da iniciativa privada para a realização de benfeitoria no bairro a doação de
terra para a construção do cemitério”. Esta ação demonstra a preocupação dos moradores
de então, com suas raízes e a apropriação de espaços e construção de equipamentos
públicos no bairro.
Foi o bisavô da Sra. Lyris, o senhor Beraldo Marcondes, quem doou a área para
a construção do primeiro Cemitério Oficial em São Miguel que, até pouco
tempo existia na rua Daniel Bernardo, antiga rua 9. Esse cemitério era cercado
com arames farpados que constantemente eram arrebentados por boiadas que o
invadiam, pisoteando todas as sepulturas ali existentes. Antes de sua existência,
os mortos eram enterrados no Pátio da Matriz e no interior da Capela.
128
Sobre o primeiro cemitério existente em São Miguel Paulista, Caldini relata:
Não queriam, não queriam não, derrubaram mas no fim... tava pequeno
demais...mas podiam ter conservado e fazer outro cemitério... no lugar fizeram
uma escola, fizeram uma escola... teve uma polêmica também na época... o sr.
Aurelino... não, ele realmente prestou um grande desserviço embora ficasse
quarenta anos como vereador ...
129
O depoente elabora seu pensamento no sentido da preservação de monumentos do
bairro que, segundo ele, não precisavam ser derrubados e revela os conflitos com o poder
político local que acaba priorizando ações de acordo com seus interesses, em detrimento
dos interesses da maioria dos moradores.
126
A Rua Beraldo Marcondes recebeu esse nome pelo Decreto 7094 de 21/07/1967 que dispõe sobre
denominação de logradouros públicos a saber: Rua Beraldo Marcondes, a atual rua, que leva o mesmo nome
e Rua “5”. Começa na Rua Santa Izabel e termina na Estrada São Paulo-Rio, situando-se entre a Estrada São
Paulo-Rio e Rua Arlindo Colaço.
127
Jesuíno Braga, em depoimento citado.
128
Trecho da biografia de Dona Lyris Rodrigues Ruott lida por ocasião da cerimônia em homenagem aos
pioneiros ocorrida na Catedral de o Miguel, no dia 24/09/2004, dentro da programação dos 382 anos do
aniversário do bairro de São Miguel Paulista e dos 450 anos da cidade de São Paulo, publicada no Diário
Oficial do Município de São Paulo, de 04/11/2004.
129
Depoimento José Caldini Filho, citado anteriormente.
60
Dona Lyris também elabora reflexões sobre o cemitério e uma capelinha que,
segundo ela, existia perto e que durante o mês de maio se realizavam festas:
Tinha uma rua que ia pro cemitério e minha madrinha a Caló, eles dizem Calo...
então ela tinha uma capelinha também lá, bem assim, perto do cemitério... ela
tinha uma capelinha e todo... maio... faziam festinha lá... tinha a capelinha... essa
tiraram ... tiraram porque agora esta diferente... [...] Tiraram o cemitério... quase
tiraram a Capela... O cemitério eu senti muito... no cemitério... ficou muita gente
minha lá... ficou... o Beraldo Marcondes mesmo, ta lá, em terra já, ... nem em
... ta na terra... hoje tem escola, em cima...fizeram escola, fizeram
biblioteca em cima...
130
Essas falas, indicam a significação do cemitério a partir de relações afetivas e que
sua demolição não levou em consideração as experiências e os valores afetivos em relação
aos mortos, fatores presentes nas falas dos depoentes. A demolição do cemitério antigo e a
construção de escola no seu lugar propiciou uma nova configuração do lugar, assentado
num duplo movimento, que de um lado retira o componente territorial das relações
afetivas e transforma-o num lugar que deverá ser reapropriado, por de novos usos, pelos
moradores; por outro lado, um outro local para o “Cemitério da Saudade” revela, também,
as transformações ocorridas no bairro em que novos locais precisam ser criados para
atender às demandas do grande afluxo de pessoas e adequar-se a elas.
O jornal “Gazeta do Tatuapé Zona Leste” publicou na edição 1652, na seção
“Há 30 Anos – Os principais fatos da região foram:”
São Paulo, 1º a 7 de maio de 1977 – Ano III – nº 105
CEMITÉRIO DEMOLIDO
O Cemitério de São Miguel Paulista, um dos mais antigos de São Paulo, será
extinto dentro em breve. Em sua área atual a Prefeitura vai construir uma
biblioteca e, provavelmente, a sede da Administração Regional. Para isso, o
prefeito Olavo Setúbal assinou a lei para a abertura de crédito no valor de 2
milhões de cruzeiros, importância que será aplicada na construção de túmulos
em outros cemitérios.
131
Além dessa notícia, o jornal destaca também, a Festa em Ermelino”, em
comemoração ao “Dia do Trabalho”, ocorrida em de maio de 1977. A matéria
publicada, sobre a demolição do cemitério, que foi destaque do jornal à época, não indica
nenhuma preocupação com a preservação de espaços com significado afetivo para os
130
Depoimento Lyris Rodrigues Ruott, citado anteriormente.
131
O Jornal “Gazeta do Tatuapé Zona Leste, fundado em 1974 , com linha editorial regional e
suprapartidária, prima efetivamente pela cobertura e divulgação de fatos pertinentes à Zona Leste de o
Paulo, tendo também, seções de interesse geral como Opinião, Esportes, Turismo, Informática, Receitas,
Veículos, Notas Sociais, Feminina, entre outras. O jornal tem uma circulação supervisionada em toda a
Zona Leste da Capital, com distribuição gratuita nas bancas de jornais (65%), em edifícios (10%), em postos
de gasolina (20%) e nos restaurantes da região (5%). Um ano mais tarde, após a fundação do primeiro jornal
do grupo, a empresa, atendendo às expectativas do mercado lançou um segundo título: Gazeta da Zona
Leste. O novo jornal surgiu para suprir uma lacuna existente na forma de distribuição e no conteúdo
editorial de seu co-irmão. Os dois jornais têm abrangência nos bairros da zona leste da cidade de São Paulo.
61
moradores. O jornal simplesmente anuncia aquilo que o poder público irá fazer, sem
questionar essas ações ou colocar em pauta uma discussão com outros setores da
sociedade sobre essas medidas, o que demonstra que dá legitimidade ao poder público.
No vai e vem dessas lembranças e interpretações do passado, percebe-se como o
depoimento pessoal está intrinsecamente ligado à própria história do bairro e da Capela.
As transformações ocorridas no bairro, a luta ou o sentimento de perda por certos bens
“que poderiam ser preservados” revelam as referências culturais que indicam a
preservação desses lugares ligadas a laços afetivos com relação ao passado. Surgem as
emoções, as sensações, as releituras do passado, a compreensão do presente.
Ao rememorar, Dona Lyris retoma o presente como tempo de mudança, de
transformação, em que local foi ocupado por outras pessoas que não conhece, que não
pertencem ao seu círculo familiar ou de amigos:
E agora você vê, quando eu vou para São Miguel, não conheço mais ninguém, é
gente do nordeste, só... não conheço mais ninguém... eu tenho muitas amigas
e também alguns parentes, mas não conheço mais ninguém de pessoas
antigas... não existe mais ninguém, morreu todo mundo...
132
O afluxo de pessoas diferenciadas no bairro, identificadas por Lyris como
“nordestinos” leva a um não reconhecimento dessas pessoas, com as quais não se
identifica, porque chegaram ao bairro depois dela, tinham outros objetivos relacionados ao
trabalho na Nitro Química ou à procura de local para moradia.
Dona Lyris, ao ficar viúva, foi morar com a sua nora e sua neta no bairro da Penha
133
e ao referir-se a São Miguel, demonstra perder as referências que possuía do antigo
lugar. Aponta as novas pessoas que vieram morar no bairro, que nem sempre vieram de
regiões do nordeste, mas que acabou se generalizando como “nordestinos” e que criaram
várias formas de sociabilidade e pertencimento, às quais Dona Lyris não referenda. As
transformações pelas quais o bairro foi passando atenuaram esses laços de ligação,
valorização e parentesco compartilhados pela depoente.
Se, por um lado, as referências sobre a Capela de São Miguel Arcanjo fazem
emergir sentimentos de pertencimento, saudosismo, nostalgia e perda, apareceram
também, depoimentos diferenciados sobre o uso da Capela e o afluxo de pessoas de outros
lugares para o bairro, que provoca a desvalorização do bem cultural.
132
Lyris Rodrigues Ruott, em depoimento citado.
133
A referência expressa mais antiga quanto aos limites do bairro da Penha está registrada no termo de
medição de 1769. De acordo com essa medição, a sesmaria de São Miguel confinaria com o bairro da Penha
na altura do córrego Ticoatira. BONTEMPI, Sylvio, O Bairro de São Miguel Paulista. Secretaria de
Educação e Cultura, Prefeitura do Município de São Paulo. São Paulo: 1970, p.127.
62
No depoimento de Izal aparece uma memória que não foi realimentada, não foi
partilhada, difundida e socializada e, associada às transformações físicas e sociais pelas
quais o bairro foi passando, possibilitaram a perda desses laços de ligação e valorização do
bem cultural em questão e, ainda, permite perceber como a experiência no bairro e a
ligação com a Capela mudam através das gerações.
É porque uma coisa curiosa... agora eu vejo isso... que as pessoas que migraram
para nos anos 60... veio muita gente... ainda o chegou a pegar esse... não
chegou a freqüentar a Capela... a minha geração, por exemplo, não chegou a ter
uma freqüência porque a matriz estava feita e parece que a gente cresceu sem
cultivar essa relação... os mais velhos não, o pessoal freqüentava, nas festas...
134
O depoente num outro momento colocou a questão da recorrência do assunto
“Capela” no bairro:
... sendo sincero para você, o tema Capela, às vezes ele enche, enche as
paciências, fica Capela e Nitro Química é muita coisa, foi muita gente que
escreveu sobre a Capela, às vezes no mesmo enfoque, então, o que não deva
ser tocado, mas é que está um tema meio complicado assim a Cúria fica assim
ela regula... um pouquinho... a utilização como espaço social, a Roseli Santaella
tem aquele projeto de museu, a Unicsul
135
cuida mas não cuida muito. A gente
entrou sábado e tem escola lá... umas brechas que cabem dois dedos, não sei
se vocês viram quando passa o trânsito trepida e... bem não uma política
definida mesmo, pra restauração... e usos sociais...
136
Ao elaborar essas questões o depoente evidencia as relações conflituosas entre o
uso social que a Capela, para ele, deveria ter e o modo como os órgãos responsáveis pela
sua preservação prestam esse serviço. Para ele, o assunto é recorrente, os temas abordados
são sempre os mesmos porque priorizam uma história consentida, enaltecem ou criticam a
atenção para com esse bem cultural. Nessas reflexões, Izal está evidenciando que não
uma abordagem que reflita sobre a atuação dos sujeitos sociais com ela envolvidos, que
procure alternativas para um uso social, que permita a participação direta dos vários
segmentos sociais.
Procurar dar resposta às questões sobre a preservação deste patrimônio histórico
singular favoreceu também a compreensão da geopolítica dessa região da cidade, através
das transformações ocorridas pela ocupação desses espaços. Neste sentido, observou-se a
importância estratégica de São Miguel Paulista nos primeiros anos da colonização, cuja
ocupação demonstra que a cidade não se formou apenas a partir do Pátio do Colégio, mas
que existiam núcleos populacionais em lugares de interesses estratégicos, seja para defesa
134
Izaltino Ribeiro, em depoimento citado.
135
A Universidade Cruzeiro do Sul (Unicsul) cuidava da Capela de São Miguel Arcanjo até o ano de 2006
quando foram iniciadas as obras de restauração pelo IPHAN, mantendo um funcionário diariamente como
segurança da Capela. Informações citadas anteriormente no depoimento de João Feher.
136
Depoimento concedido por Izaltino Ribeiro, citado anteriormente.
63
do território, seja para efetivar a conquista cristã no planalto de Piratininga, ou ainda como
núcleo econômico, tendo em vista que a região foi considerada Aldeia de Padroado
Real
137
dado o interesse direto da Coroa Portuguesa pelo local. “Este espaço urbano,
distante do centro da cidade de São Paulo, teve um papel sócio-agregador e religioso-
defensivo e econômico na história da cidade de São Paulo”.
138
Diante da expansão populacional da cidade de São Paulo no início do século XX,
São Miguel do Ururaí começa a sentir os reflexos desse novo tempo. Suas matas começam
a ser abatidas para suprir o comércio de madeira e a atividade de extração de areia e das
olarias são intensificadas para atender à demanda da construção civil.
Sobre esse período de transformação do bairro, Jesuíno relata sua experiência, no
período em que veio morar em São Miguel Paulista, por volta de 1934:
(...) o desemprego era grande em São Paulo e ele (o seu pai) arrumou, se
empregou lá no no Parque da Água Branca que naquele tempo era mesmo que o
... chamavam de feira de amostra, que ali traziam os animais, planta, criação,
pra, pra expor para os compradores, [...] era ali na Água Branca...Ali perto do
Matarazzo, né o Parque Antártica. [...] e a Nitro química começou a ser
construída... e precisava muito material de construção, areia, então o meu tio
com outro senhor aqui, resolveu fazer uma sociedade e botar uma draga numa
lagoa que tinha aqui perto do Tietê. O Tietê fazia uma curva ali... e.. jogava, na
enchente e jogava toda a areia para fora e formava uma lagoa, então eles
montaram uma draga... [...]o meu pai era motorista naquele tempo e meu pai
veio trabalhar pra eles... Então o meu pai veio... nós viemos para cá... no, na
metade do ano de 34 pra 35... aí, [...]não deu certo a sociedade... meu pai ficou
desempregado, mas teve sorte que nesse tempo a Nitro começou a pegar...
tinha a parte toda construída e montada, começou a funcionar... meu pai se
empregou na Nitroquímica. Aí nós ficamos aqui...
139
O modo de viver dos moradores de São Miguel Paulista foi modificado em relação
à expansão da cidade de São Paulo que, com o aumento populacional e as mudanças nas
relações de trabalho, leva à procura de bairros afastados da região central para construção
de moradias e indústrias e, portanto, traz a necessidade de areia para uso na construção
civil.
Segundo Caldeira, durante as três primeiras décadas do século XX, o
desenvolvimento da cidade não alcançou a região de forma direta. No ano de 1920, o
distrito de São Miguel que incluía Itaquera e Guaianazes abrigava uma população de 4 702
pessoas segundo o Recenseamento Geral do Brasil e, em 1925 foram ensaiados os
137
O Padroado Real, segundo Boris Fausto consistiu numa ampla concessão da Igreja de Roma ao Estado
português, em troca de garantia de que a Coroa promoveria e asseguraria os direitos e a organização da
Igreja em todas as terras descobertas. O rei de Portugal ficava com o direito de recolher tributo devido pelos
súditos da Igreja conhecido como dízimo, correspondente a um décimo dos ganhos obtidos em qualquer
atividade. Cabia à Coroa criar dioceses e nomear bispos. FAUSTO, Boris.História do Brasil, o Paulo:
Edusp, 2000, p.8.
138
STELLA, Roseli Santaella. Anchieta e a Fundação de São Miguel de Ururaí, Atas do Congresso
Internacional – Anchieta 400 Anos. São Paulo: FJB Editora, 1998, p.329.
139
Jesuíno Braga, em depoimento citado.
64
primeiros loteamentos ao longo do rio Tietê, mas permaneceram desocupados. O bairro
ainda teria de esperar o início dos anos 30 para se expandir. Um dos seus entrevistados
conta como era o bairro antes de formar a cidade”: “as casas e a igreja de taipa, a praça
onde todos iam, as festas religiosas, a calma de uma vida pacata de aldeia”.
140
1.3. Rumo a São Miguel: o bairro na década de 30
2345 6      7 
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?@-
2A2
Na tentativa de compreender as dinâmicas sociais pelas quais interagem os
habitantes de São Miguel Paulista busco acompanhar o surgimento de novos modos de
viver neste local, refletindo sobre as narrativas e as vivências de quem as experimentou,
num esforço de perceber as transformações no espaço urbano, a partir da década de 30,
período em que surgem novas formas de sociabilidade, com mudanças no modo de
trabalho, nas construções, no comércio; indicando, assim, os contrastes, os conflitos e
novas configurações sociais nesse espaço urbano.
A década de 30 constituiu-se num marco importante. Marcada por lutas na
memória dos moradores, por ser carregada de significados e interpretações, e mudanças
em relação aos viveres do bairro, leva a observação, a partir desse período, da diversidade
de práticas sociais de São Miguel Paulista, quando ali se operam transformações marcadas
pela propaganda do progresso e desenvolvimento”, entendidos como industrialização e
oferta de empregos.
Nesse processo de transformação do bairro, aparecem outros elementos como a
fábrica, o comércio, o aumento populacional, novos interesses que dividiram as ações
140
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio, op.cit.
141
JATOBÁ, Roniwalter. Crônicas da Vida Operária. o Paulo: Círculo do Livro, 1979, p.33. Nascido em
Campanário, norte de Minas Gerais em 22/07/1949, veio para São Paulo aos 21 anos e empregou-se como
operário na Karman Ghia do Brasil, em São Bernardo do Campo. Morou em São Miguel Paulista, em frente
a uma indústria química e seu cotidiano foi sendo formado pela observação de homens e mulheres, expulsos
pela miséria e perseguindo um futuro melhor na cidade grande: os retirantes nordestinos.
65
sociais que se estabeleceram no bairro. A Capela de São Miguel Arcanjo que até aquele
momento centralizava as atividades sociais do bairro passou a dividir essa condição, com
outros núcleos de interesse para os quais os moradores se voltavam.
Aroldo de Azevedo reforça essa interpretação, pesquisa de 1945, que aponta para
as transformações ocorridas, assim se expressando, “não longe da veneranda igreja
seiscentista aparecem as modernas habitações do bairro operário”.
142
. Diz mais, “o trecho
antigo de São Miguel ainda guarda sua fisionomia própria, contrastando fortemente com
os trechos novos, surgidos notadamente em torno das instalações monumentais da Nitro
Química Brasileira [...]:
143
A foto que segue, aponta para a região da Capela de São Miguel Arcanjo, ainda
sem as características de um bairro industrializado e populoso em que se tornaria no
decorrer das décadas seguintes, observa-se as ruas de terra, poucas moradias, a Capela
praticamente sozinha na praça, sem os elementos que constituiriam o bairro a partir da
instalação de indústrias e afluxo de pessoas para a região.
Figura 4 – Exterior da Capela – foto de 1941 – Acervo Unicsul.
142
AZEVEDO, Aroldo, op.cit. p.130
143
AZEVEDO, Aroldo, op.cit.p.129
66
E Azevedo continua, detalhando suas impressões sobre aquele contexto:
Ao lado da pequena minoria que se dedica ao amanho da terra e à exploração do
solo (olarias), vamos encontrar numerosa população que vive em função das
atividades industriais ali instaladas, quer diretamente do trabalho nas fábricas,
quer do comércio que as mesmas alimentam.
Com efeito, duas grandes fábricas, a “Nitro Química” e a “Celosul” deram uma
nota característica à região, com suas monumentais instalações e os bairros
residenciais que vieram criar. Sobre a planura da várzea do Tietê, no sopé das
colinas, suas altas chaminés e suas estruturas de concreto armado como que
anulam e fazem desaparecer as modestas olarias e as pequenas extensões
cultivadas.”
144
Os depoimentos de pessoas mais velhas, que trabalharam na Nitro Química ou que
moraram no bairro nessa época, trouxeram significados para a pesquisa, relatando por
força de suas memórias, o trabalho a que se dedicaram, bem como suas lutas, que
ocorreram entrelaçadas com as modificações pelas quais o bairro foi passando.
No período compreendido entre as décadas de 30 e 70, o bairro de São Miguel
Paulista viveu a fase de industrialização, quando ali se instalou a Cia. Nitro Química
Brasileira do Grupo Votorantin, visando produzir o rayon, uma espécie de seda artificial
produzida à base de nitroglicerina, com menor custo de produção do aquele decorrente da
utilização do fio de seda natural. A Cia. Nitro Química se constituiu a partir da
transferência de uma brica inteira dos Estados Unidos para o Brasil a Tubise
Chantillon produtora de fios, seda artificial e outros produtos têxteis e químicos,
ocorrida em 1935
145
, inaugurando, no bairro, sua fase industrial.
Dona Tereza Pilon, que veio para São Miguel em 1948, quando ainda não tinha 18
anos, relata os motivos pelos quais ela e sua família saíram de Qua(SP) e vieram para
São Paulo:
Não, tinha 18 anos... era jovem... vim com meu pai, toda minha família...
viemos tudo junto... Porque onde que nós morava s trabalhava assim em
fábrica de bicho-de-seda, né...e... fechou... por causo que começou a ... abrir as
firmas raion, os fio raion... e naquele tempo quem trabalhava com a seda
natural... o fio... fechou tudo... e então nós não tínhamos pra onde ir ... aí
viemos pra São Paulo... Graças a Deus... nós viemos pra trabalhar... mas não
sabíamos que ia trabalhar na Nitro... aí nós... chegamos aqui numa semana... na
outra semana estávamos tudo empregado trabalhando na Nitro... Deus colocou
a mão... nós éramos em quatro... cinco... meu pai não trabalhava mais... meu pai
ficou numa gurita pra vender esses terrenos tudo aqui... ele que levava a
turma... os terrenos tudo aqui foi ele que levou os comprador... o tinha nada
de casa... aqui não... aqui tinha só a nossa casa... mais duas casas na frente, só...
depois fez um barzinho aí... uma casinha aqui no fundo... o pessoal passava ai
144
AZEVEDO, Aroldo, op.cit. p. 129.
145
ROCHA, Antonia Sarah Aziz. O Bairro à Sombra da Chaminé: um estudo sobre a formação da classe
trabalhadora da Companhia Nitro Química Brasileira de São Miguel Paulista (1935 a 1960) o Paulo:
PUC,Dissertação de Mestrado em Filosofia da Educação, 1992, p. 2.
67
no fundo do nosso quintal pra ir pra... pra São Miguel... pro centro ... não
tinha portão... não tinha... não tinha muro... não existia... tudo aberto....
146
Tereza Pilon revela as transformações sociais pelas quais vão passando os lugares,
estabelecendo as relações entre a cidade de São Paulo e outras cidades do Estado. No
lugar onde morava, não havia mais a atividade com o fio da seda natural tendo em vista a
instalação de indústria que fabricaria o fio artificial em São Miguel Paulista, produzindo
um material mais barato. Daí a necessidade de sua família vir para São Paulo à procura de
outras atividades que lhes garantissem o sustento. Nessa dinâmica, a venda de terrenos é
uma outra atividade que aparece no seu relato e que mostra a variação de atividades das
pessoas, que ao se mudarem para São Miguel Paulista, se apropriaram de outras
atividades que não aquelas a que estavam acostumadas e refazem essa dinâmica social,
ligadas às transformações pelas quais o bairro passa, em que os loteamentos vão surgindo
e dando lugar a casas construídas rapidamente para abrigar os trabalhadores que
chegavam. Esse cotidiano relatado evidencia laços de vizinhança e respeito,
característicos de locais pouco povoados, bem diferente do bairro hoje que tem
características mais semelhantes ao que Caldeira relata: “as transformações recentes estão
gerando espaços nos quais os diferentes grupos sociais estão muitas vezes próximos, mas
estão separados por muros e tecnologias de segurança , e tendem a não circular ou
interagir em áreas comuns”.
147
Na perspectiva da reconstituição das dinâmicas desses movimentos percebo, no
depoimento, a migração como projeto familiar; a redefinição da família na apropriação de
novo espaço de sociabilidade; a construção da casa própria e o lugar da família, núcleo
referencial básico, sendo o trabalho de cada um visto como forma de ajudar a família, em
que todos se apóiam.
A inauguração dessa fase industrial concorreu para o crescimento populacional
vertiginoso, praticamente estagnado durante séculos, conforme menciona o Jornal “O
Estado de São Paulo” em matéria publicada em 16 de agosto de 1957:
... entre 1937 e 1939 acrescentaram-se cerca de 500 prédios novos às duas
centenas de residências que existiam até aí. A paisagem do bairro começou a ser
146
Depoimento de Dona Tereza Pilon, concedido à pesquisadora em 06/02/2007.nascida em Quatá (SP) em
1930, moradora em São Miguel 60anos, frequentadora da Igreja de São Miguel desde que chegou no
bairro, exercendo o cargo de secretaria da “Pia União das Filhas de Maria”, foi catequista e participante do
coral da Igreja e trabalhou pessoalmente com o Pe. Aleixo Monteiro Mafra. Mora atualmente no mesmo
local onde veio morar quando chegou em São Miguel Paulista.
147
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio, Cidade de Muros: Crime, segregação e cidadania em São Paulo. São
Paulo: Editora 34/Edusp, 2000, p. 211.
68
modificada, tanto pelo incremento dos núcleos habitacionais já existentes quanto
pela criação de novos, que se multiplicavam em todas as direções.
148
Rocha, ao discutir a formação da classe trabalhadora da Cia. Nitro Química, aponta
para a “instalação da fábrica e também a própria expansão da cidade de São Paulo na
década de 30 contribuíram para o crescimento populacional do bairro, pois se dirigiam
para São Miguel Paulista o só aquelas pessoas que necessitavam de um emprego, como
também aquelas que procuravam um local de moradia mais barata e até certo ponto mais
cômoda”
149
e mesmo nesse contexto, a Capela de São Miguel Arcanjo permaneceu como
elemento representativo dos anos iniciais de ocupação da cidade, encontrando-se associada
ao movimento de expansão do bairro.
Albertino Nobre descreve como veio para São Paulo trabalhar na Nitro Química:
É, eu sou do nordeste... acontece o seguinte, a gente não vem do norte por
querer, a gente vem do norte por causa da situação... eu sou da cidade de Senhor
do Bonfim da Bahia... Bonfim é apenas 90 km de Juazeiro e Petrolina e hoje é
um polo excelente da região que é Petrolina ... mas na minha cidade não tem
onde acomodar os rapazes que vão chegando a idade para trabalho... então
quando eu fiz 18 anos ... eu fiz 18 anos eu vim pra São Paulo através de um
amigo me trouxe até São Miguel e aqui meu primeiro emprego foi a Nitro
Química ... meu primeiro emprego foi aqui na Nitro Química, onde eu tive a
honra de trabalhar trinta e quatro longos anos...
150
Reconhecendo a profunda desigualdade e o lugar desfavorável em que se
encontravam os que vinham de outras regiões, principalmente do nordeste brasileiro, é que
Albertino se refere à sua vinda para São Paulo, tendo a capital paulista como referência
para seu “sucesso”. E, mais adiante, o depoente continua:
E aqui em São Paulo, trabalhando na Nitro Química lutando, casei-me tive a
honra de ser casado pelo Pe. Aleixo ... Monteiro Mafra e inclusive naquela
Capela famosa de 1622 ...naquela época, a praça hoje Pe Aleixo... e chamava-se
Campos Sales ... com mais uma novidade que a estação de o Miguel também
naquela época era Baquirivu, o era São Miguel, depois foi que se tornou São
Miguel... mas era em homenagem aos índios Baquirivus que habitavam aqui a
região de o Miguel e Guarulhos, então pra mim foi uma alegria enorme, sou
um dos poucos nordestinos a ... não é vencer na vida... como é que eu digo... a
progredir na vida... a triunfar... porque trabalhando na Nitro Química tornei-me
advogado, estudei naquela época em Mogi das Cruzes... um sacrifício imenso...
me tornei advogado... e de advogado me tornei vereador de o Paulo. Esses é
um dos pontos que mais me alegram.
151
São Miguel Paulista é traduzido para o depoente como o bairro da cidade de São
Paulo que o acolheu, que lhe proporcionou condições de trabalho e estudo, possibilitando
148
Jornal “O Estado de São Paulo, de 16/08/1957, Apud CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. A Política dos
Outros O Cotidiano dos Moradores da Periferia e o que Pensam do Poder e dos Poderosos. São Paulo:
Brasiliense, 1984, p. 37.
149
ROCHA, Antonia Sarah Aziz, op.cit. p. 20
150
Albertino Nobre, em depoimento citado.
151
Idem
69
seu sustento e seu futuro, vinculados ao orgulho do sucesso profissional e sua importância
no processo de trabalho, que lhe garantiram significativas melhorias de condições de vida
material. Percebe a Capela como parte dessa experiência de vida, local em que se
constituiu parte de sua inserção individual na rede de sociabilidades proporcionada, sendo
portanto, um dos lugares de definição de suas identidades; tornar-se vereador da cidade é o
ápice para ele de uma trajetória bem sucedida.
As representações sobre a mobilidade social têm no relato de Albertino, algumas
características que Caldeira salienta em sua obra. Em primeiro lugar, o instrumento para
melhorar de vida é o trabalho, ou seja, o meio pelo qual se obtém dinheiro para manter-se.
Por outro lado, apenas o trabalho não essa garantia e precisa ser sempre auxiliado por
alguns mecanismos que garantam as condições de melhor remuneração , como o estudo e
a formação profissional. Além disso, a ajuda divina e a persistência também são elementos
que irão ajudar a “vencer na vida”.
152
Rocha descreve o bairro com o advento da Nitro Química:
O Bairro de São Miguel Paulista cresceu com abrica. Sua diminuta população
composta de algumas poucas famílias que moravam ao redor da antiga capela,
começa a se expandir e um novo centro localizado nas proximidades da Estação
Rodoviária e da Fábrica começa a se formar. Nesse novo centro o que
predomina é o comércio. No início esparso e pouco diferenciado, com o passar
dos anos mais consistente e desenvolvido. Junto a ele, as residências casas
contíguas, às lojas, aos bares, às farmácias e às padarias.
153
A autora menciona a expansão do bairro ao redor da Capela, novo centro
comercial, junto à estação rodoviária e à fábrica que se apresentam como novos lugares de
relações sociais. A Capela e a praça deixam de ser os únicos locais de referência para esses
moradores.
Jesuíno rememora um período em que o bairro era composto pela Igreja e casas de
pau-a-pique e atribui ao progressodo bairro, a presença da maior indústria do país no
momento, a Nitro Química. A instalação da empresa trouxe o “progresso” para São
Miguel, entendido como possibilidade de emprego, de aquisição de objetos mais
“modernos”, aumento da população e do comércio, instalação da luz elétrica, construção
de estradas e ferrovia. É impossível desvincular a presença da Nitro Química e a
urbanização de São Miguel Paulista do afluxo de pessoas para a região, vindas com o
objetivo de trabalho.
Então isso daqui era mato, quem trouxe o progresso para o Miguel foi a Nitro
Química... naquele tempo era a maior indústria do país... foi quando ela
152
Conforme Caldeira, op.cit. p.169.
153
ROCHA, Antonia Sarah Aziz, op.cit. p. 21
70
começou a funcionar, se o me falha a memória... porque ela funcionava 24
horas, o podia parar... parece que naquela época tinha 7 mil empregados...
a Nitro Química tinha diversos caminhões naquele tempo eles não compravam
ônibus, ela tinha diversos caminhões punha cobertura de lona e dois bancos e ia
buscar gente para trabalhar... na Penha, em Itaquera...em Itaquecetuba...
154
O transporte das pessoas, contudo, era quase impraticável e esse problema tornava-
se cada vez mais grave. As olarias haviam provocado um incremento populacional e as
charretes não eram suficientes para transportar os moradores até as estações de trem em
Itaquera e Lajeado ou até a Penha, onde podiam tomar os bondes elétricos para o centro.
Para locomover-se, os habitantes do bairro eram obrigados a enfrentar longas
caminhadas.
155
Diante da necessidade do transporte de pessoas para o trabalho na indústria e para
facilitar a circulação em diferentes lugares de São Paulo, por volta de 1930 foi inaugurada
a primeira linha de ônibus Penha-São Miguel. Em 1932, foi inaugurada a primeira estação
ferroviária (variante Poá Estrada de Ferro Central do Brasil), que passou a ser utilizada
pela população do bairro e adjacências.
Nas suas lembranças, Jesuíno consegue visualizar a geopolítica da região, tanto do
ponto de vista das vias de rodagem como da linha férrea. Demonstra a importância do trem
naquela época, ao citar a quantidade de estações pelas quais passava para se chegar ao
Brás que era o ponto final, e ao mesmo tempo, a continuação do acesso outras localidades
pára além de São Miguel Paulista até Mogi das Cruzes. No entanto, por estrada de
rodagem, a próxima localidade era a Penha de França e daí se conseguia chegar ao centro
da cidade.
Desse modo vão surgindo, segundo Azevedo, em São Miguel Paulista, resultantes
da instalação dos estabelecimentos da “Companhia Nitro Química Brasileira”, bairros
novos de traçado pré-estabelecido, com suas habitações em estilo moderno, uma vida
ativa, com elevado número de casas comerciais e movimento das ruas. o longe da
estação, estava a Vila Nitro-Química, prolongada pela Vila Americana. Do outro lado da
via férrea, encontrava-se a chamada Cidade Nitro-Química, destinada aos operários e
continuada a leste pelo Parque Paulistano ainda em formação. Ao longo da Rodovia São
Paulo Rio, outras “vilas” operárias também existiam: a Cidade Nitroperária e a Vila
Curuçá.
156
154
Jesuíno Braga, em depoimento citado.
155
Conforme CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. A Política dos Outros o cotidiano dos moradores da
periferia e o que pensam do poder e dos poderosos. Editora Brasiliense, São Paulo: 1984
156
Considerações retiradas de AZEVEDO, Aroldo. Op.cit.
71
O Sr. Eurico, que também vivenciou esse período em São Miguel, assim descreve
estas vilas:
Na vila Nitro Química moravam os operários especializados, os mecânicos,
eletricistas, encanadores, pedreiros, enfim aqueles que tinham alguma
especialização. Na vila Nitro Operária moravam os trabalhadores braçais, que
faziam o serviço mais pesado. Geralmente não tinha instrução e vinham do
norte/nordeste de pau-de-arara. A vila Americana era reservada aos engenheiros,
os diretores, funcionários de alto escalão da Nitro Química, geralmente pessoas
com vel superior... médicos, químicos. o Parque Paulistano era na época a
região rural, com chácaras, gado que fornecia leite para a região.
157
Ainda, segundo Azevedo, algumas das “vilas” desse período dispõem de vantagens
que outros muitos subúrbios o conhecem: é o caso da água encanada e da luz elétrica,
além de centros de recreação e assistência (estádio, clube, restaurante, etc.), equipamentos
que reforçam os contrastes existentes na região. Refletindo sobre essas afirmações, as
habitações em estilo “moderno”, combinam com um estilo de vida ativa, comércio,
movimento nas ruas, clubes, restaurantes relatados pelo autor que, ao mesmo tempo,
traduz esse moderno como rejeição ao passado do bairro, em que se configuravam outras
relações sociais.
Sobre a presença de vilas operárias ou casas de moradias dos trabalhadores em
locais próximos à Indústria Nitro Química, pode-se pensar sobre as condições de
habitações melhores e mais estáveis, que permitiam fugir dos cortiços, moradia da grande
maioria dos trabalhadores, que o contavam com habitações fornecidas pela indústria,
aliadas ao controle e regulamentação da vida operária fora do recinto da fábrica. Em
primeiro lugar, a empresa era altamente perigosa, segundo relato dos moradores, exigindo
a presença de funcionários a qualquer momento em que ocorresse algum acidente. Por
outro lado, os relatos indicam como era difícil o transporte a São Miguel Paulista; a
presença dos operários em bairros próximos facilitava a locomoção e atendia aos
interesses da indústria. Além disso, a vida operária era controlada também nas vilas
operárias por meio da creche, da escola, dos equipamentos de lazer, sendo os costumes
policiados por um bom desempenho e produtividade no trabalho. A disciplina do interior
das fábricas era estendida para fora delas, nas vilas que constituíam um prolongamento do
universo fabril.
Paulo Pontes relata na sua pesquisa sobre as lutas operárias na empresa Nitro
Química, a existência de um completo aparato social dentro da empresa:
A partir dos anos 40, a Nitro estruturou um aparato assistencialista para seus
trabalhadores e, em muitos casos, para a população de São Miguel. Moradias em
157
Eurico dos Santos, em depoimento para a pesquisadora em 08/06/2007.
72
vilas operárias, serviço médico e prevenção de acidentes, berçário e assistência à
infância e gestantes, cooperativa, jornal da empresa, restaurante, clube de
esporte e lazer e Escola Senai compunham uma ampla gama de benefícios que
no início da década de 50 foram centralizados em um único setor diretamente
ligado à diretoria geral da empresa denominado Serviço Social.
158
Segundo Pontes, os benefícios sociais apareciam como uma marca registrada da
companhia para os trabalhadores, elemento fundamental que legitimava a dominação e
compensava a condição de periculosidade em que viviam os trabalhadores; era também
uma forma de aumentar a produtividade garantida pelo bem estar dos empregados.
Com o mapa do local na cabeça, Jesuíno identifica experiências do que não existe
mais e que só o presente vivido faz voltar ao passado:
No meu tempo de garoto, tinha um ônibus que ia até na Penha o bonde fazia...
fazia a volta ali no largo da Penha, Largo Oito de Setembro... ele fazia o balão
ali, e o ponto do ônibus São Miguel era ali, na rua Penha de França... então
tinha o ônibus de o Miguel até a Penha de França, se quisesse ir pra cidade
ou você tomava um ônibus na Penha prá a cidade ou então você ia de bonde...
era o transporte que tinha. Quando chovia não tinha ônibus em São Miguel pra
Penha porque o ônibus não conseguia chegar na Penha, porque era tudo terra... a
estrada era tudo terra... Então tinha um núcleo que era São Miguel, pra não
tinha mais nada, o outro núcleo era a Penha... Era a Penha, era a Penha... e por
estrada de ferro, tinha o Miguel, Engenheiro Goulart, Engenheiro Trindade
que é a Penha, depois vinha Quarta Parada que é a Quarta Parada ainda, não,
vinha a Quinta Parada, depois a Quarta Parada ... depois o Brás, que era o ponto
final do trem. Era isso , naquele tempo... e daqui de São Miguel pra lá, tinha
Itaim, Itaquaquecetuba, Manoel Freire, Brás Cubas e Mogi das Cruzes e
Jundiapeba e Manoel Feio.
159
Sobre essas experiências, o Sr. Jesuíno registrou no seu livro de memórias e
enviou-me por correio seus escritos:
No ano de 1927 meu tio Paulo Braga monta em o Miguel a primeira oficina
mecânica, localizada próxima à Praça da Igreja para conserto de automóveis e
outras máquinas usadas na época.
Existia na estrada de Bom Sucesso uma fazenda[...] de propriedade da família
Franco [...] era o ano de 1929 este senhor Estevão Franco convida meu tio
Paulo para comprar um ônibus e tirar licença de uma linha Penha-São Miguel, o
senhor Paulo não aceitou o convite. Achava ele que era perder dinheiro pois São
Miguel não tinha população para sustentar uma linha de ônibus e a estrada era
muito ruim, quando chovia era intransitável. O senhor Estevão chamou outro
amigo motorista Sr. Antonio que aceitou o convite. Compraram este ônibus que
você vê na foto em 1930.
No começo eram duas viagens por dia e dividiam cada um fazia uma viagem
[...] quem saia de São Miguel para o centro da cidade era um sonho realizado,
não existia outra condução. No ano seguinte, estes pioneiros compraram outros
ônibus.[...] o demorou muito para meu tio se arrepender. Em 1935 com a
construção das obras da Nitro Química a Prefeitura de o Paulo se interessa
pela manutenção da estrada com homens sempre conservando. Neste ano de
1935 os pioneiros tinham 10 ônibus na linha pois houve uma explosão na
população de o Miguel que não parou mais de crescer e a empresa de ônibus
acompanhou. E meu tio sempre se lamentava nunca esqueceu. Dizia ele, foi a
158
FONTES, Paulo. Op cit p.69.
159
Jesuíno Braga, em depoimento citado.
73
maior burrada que fiz na vida e se condenava dizendo, “o pior é que eu tinha o
dinheiro”.
Recordo-me do nome dos primeiros motoristas não tinha cobrador, era bilhete o
motorista cobrava e dava o bilhete, o nome dos primeiros.
Sr. Estevão e Antonio, os donos, Sr Luiz, Miguel, Armando, Romeu. Este Sr.
Romeu era esposo da Sra Lyris. O Sr. Romeu se aposentou na empresa. Teve
dois filhos, colocou-os na empresa aprenderam a profissão e aposentaram-se. Os
três são falecidos e há pouco nos deixou a Sra. Lyris.
São Miguel, 11/06/2007 – Jesuíno Braga
160
Ao escrever suas lembranças em função de experiências significativamente
vivenciadas, atreladas às relações de parentesco, Jesuíno traduziu um processo vivenciado
e contado pelo seu pai e seu tio. Os episódios narrados são selecionados no tempo
presente, com as recentes incorporações sociais vividas e emergem da necessidade de
fazer com que o sejam esquecidos. Na sua narrativa, Jesuíno consegue evidenciar as
dinâmicas sociais pelas quais a localidade passa em função das necessidades que as
transformações do bairro vão exigindo. No seu relato, emergem as relações pessoais, os
acordos financeiros, as necessidades do bairro e suas transformações. Aparece ainda, a
praça da Igreja como local de inter-relações com os bairros vizinhos, especialmente com a
Penha, para onde se dirigiam os ônibus. Outra questão para reflexão é a limpeza e
conservação da estrada pela prefeitura, para atender às necessidades do bairro, geradas
pelo funcionamento da Nitro Química, que exigia uma maior funcionalidade no local, com
ruas e estradas melhores conservadas para maior fluidez dos veículos e pessoas.
Eurico dos Santos também relata essas experiências relacionadas ao seu tempo
vivido entre os anos de 1954 e 1958.
Eram dois ônibus um que ia deo Miguel até a Penha e outro que voltava da
Penha até São Miguel. O local de partida de o Miguel era na “Praça Um” que
hoje é a “Praça Getúlio Vargas Filho” (que foi um dos primeiros engenheiros da
Cia Nitro Química). Era também conhecida como ”Praça das Promessas”
Porque o local onde os políticos faziam seus discursos à época das eleições. Na
praça, havia uma pequena oficina, com tambores de água para por nos
radiadores dos ônibus e óleo para a manutenção, além de borracheiro e outros
equipamentos para a manutenção e conserto dos ônibus.
O transporte coletivo melhorou um pouco, porém, as vias de acesso não
favoreciam, eram de terra e quando chovia colocavam correntes nos pneus para
não derrapar. Quando o ônibus quebrava tinha que esperar comunicação com a
empresa, que era a “Empresa Auto Ônibus São Miguel”, que existe até hoje.
Para a comunicação, geralmente o cobrador ou o motorista pegava o ônibus que
vinha em sentido contrário para avisar sobre o incidente e trazer socorro. Às
vezes o motorista e o cobrador não abandonavam o local. Esperavam que
passasse um outro veículo para dar o recado na empresa. Os motoristas e os
cobradores usavam farda de brim cáqui, quepe e gravata.
161
160
Jesuíno Braga, em correspondência com a pesquisadora.
161
Eurico dos Santos, em depoimento citado.
74
Essas relações com outros bairros, relatadas por Eurico, ocasionadas
principalmente pela necessidade de atender à demanda de trabalhadores para a Cia. Nitro
Química, estão relacionadas com outras experiências sociais que envolviam os
trabalhadores, como relata Jesuíno Braga:
... Mas aí, o que que acontecia... muito desastre aí... e os paulistas o queria
mais trabalhar e começou a faltar gente... e o que que o Ermírio de Morais não
esse Antonio, esse Antonio é do meu tempo... O pai do Antonio, o Dr. Ermírio,
o que que o Dr. Ermírio fez, ele mandou buscar gente no nordeste, pegou uns
caminhões... aqui tinha... naquele tempo era linha de tiro né, podia servir o
exército e podia servir... fazer a linha de tiro... era o tiro de guerra e, naquele
tempo... tinha um sargento que fazia o tiro de guerra em o Miguel e o
Ermírio de Morais pegou ele e os caminhões e pagava pra ele pra ir pro nordeste
trazer gente de lá para trabalhar aqui e toda semana chegava pau-de-arara... toda
semana, e foi... por isso que eu te falo que aqui, só tem forasteiro... querida,
sabe... só tem forasteiro... É porque aí as pessoas vão chegando e o tem
identidade com o lugar, né, não são daqui...
162
O depoente revela São Miguel atrelado às suas experiências de vida, ou seja, a
instalação da Nitro Química, a necessidade de mão-de-obra para suprir o mercado de
trabalho e, ao mesmo tempo, à vinda de pessoas “forasteiras”, sem nenhum vínculo com o
local, referindo-se aos nordestinos, sujeitos nem sempre bem vistos, nas representações
dos moradores antigos, que traziam junto com as condições de locomoção nos trágicos
paus-de-arara”, a imagem dos lugares de habitação a eles destinados, geralmente barracos,
cortiços ou qualquer terreno baldio, que abrigariam inúmeras famílias. Esses migrantes
evidenciam experiências culturais inteiramente diversas daquelas que o depoente valoriza,
expressando estigmas que marcam a vida dos nordestinos.
Os acidentes provocados pela explosão, ocorrida na Nitro Química, citada por
Jesuíno, “são cantados em verso e prosa (de um modo bem nordestino) pelas ruas e bares
de São Miguel Paulista”:
163
Terrível explosão sacudiu
A Nitro Química Brasileira
Juntamente com todo pavilhão
Foi pelos ares a caldeira
(...)
No dia 18 de junho,
No dia de quarta-feira,
Eram 12 horas e dez minutos,
Eu estava em uma cadeira
Quando ouviu-se um grande estrondo
Que foi notado redondo
Na Nitro Química Brasileira.
[...]
Que abalou Baquirivu
Vitimando dezoito operários
Todos eles se achavam
162
idem
163
FONTES, Paulo. Op.cit., p.41.
75
Firmemente em seus horários
Sem pensar em tal sorte
Encarando estava a morte
Prá nossos correligionários
[...]
Supõe que seja manipulação
De ácido em demasia
Que causou a explosão
Se fosse menos não fazia
Isto mesmo tenho pensado
Nesta minha poesia.
164
O modo de relatar o acontecimento pela da literatura de cordel demonstra a
apropriação de lugares e experiências vividas por outros indivíduos, que chegaram ao local
e possuem outras formas de expressar seus sentimentos e revelar os conflitos do cotidiano
do bairro.
Caldeira alia o aumento populacional, também a outros fatores que dizem respeito
à cidade de São Paulo como um todo. Diz a autora: o início da expansão de São Miguel
pode ser vinculado a um fator local, a instalação da Nitro Química, porém a partir da
década de 40 o crescimento de São Miguel não pode ser dissociado do crescimento da
cidade de São Paulo. Para São Miguel iam as levas de migrantes que chegavam à cidade,
sobretudo, à procura de um local de moradia. A autora atribui a expansão a partir de 1940
ao “fenômeno dos loteamentos” que vai marcar definitivamente a paisagem , provocando o
surgimento de inúmeras vilas e jardins sem qualquer infra-estrutura, a não ser o
arruamento precário.
165
Um depoente, José Vitorino dos Santos, 80 anos, veio da cidade de Barbalha (CE)
de pau-de-arara, em 1951; trabalhou na Nitro Química por 29 anos e numa imobiliária por
23 anos tendo, conseqüentemente, dupla jornada de trabalho. Conta como veio para São
Miguel, acompanhado da mulher:
Não, eu tinha um cunhado que trabaiava aí... e me chamou, né? Eu casei e ai ele
me chamou pra vim pra cá, né... e veja só, eu disse eu quero ir, né... a muié
veio grávida e quando chegou aqui foi janeiro e em março ela ganhou nenê... a
menina, é essa que aí... eu vim de pau-de-arara... e ela também... veio em
cima do caminhão... quando tinha que descê do caminhão, eu pegava ela
assim... aí depois tinha que pô de novo em cima do caminhão... ela era baxinha e
com a barriga grande, né ...Gastemo oito dias... saímos de lá no dia 22 de
dezembro de 51 quando chego no dia 29 de dezembro de 51... nós cheguemo
aqui ... Parava, dormia... as vezes a gente não tinha dinheiro pra pagá a pensão,
o hotel, né... a gente dormia no acolchoado... botava lá, debaixo do caminhão...
quando o dia clareava, acordava...
166
164
Cordel: A Grande Explosão da Nitro Química Brasileira, Baquirivu, 15 de agosto de 1947, São Paulo.
Apud FONTES, Paulo, op.cit. ps. 41-42.
165
Considerações baseadas em Caldeira, op.cit. p.39
166
José Vitorino dos Santos, natural de Barbalha(CE) nascido em 08/04/1927, foi um dos primeiros moradores
do Jardim São Vicente, São Miguel Paulista, trabalhou na Nitro Química por 29 anos, empresa na qual se
aposentou. Relata quais eram as dificuldades para os moradores construírem suas casas, como conseguiu
76
Esse relato das experiências de José Vitorino indica o apoio dos laços de
parentesco no caminho até a cidade grande. O querer vir para São Paulo significa querer
mudar de vida, ter acesso aos direitos sociais e, principalmente, ao trabalho como meio de
garantir a sobrevivência. O enfrentamento das maiores dificuldades dos oito dias de
viagem são relatados com naturalidade, como parte do processo de mudança.
O depoente, hoje viúvo, foi um dos primeiros moradores do Jardim São Vicente,
bairro pertencente a São Miguel Paulista e ainda trabalha na mesma imobiliária “para não
ficar em casa parado”; continua relatando como foi experiência ao chegar no bairro e
conseguir moradia:
é, eu cheguei aqui, mais ou menos... não to lembrado, mais em 55 ... foi em 55
mesmo... se falta não fais não, né? Em 55 eu cheguei aqui no Jd S Vicente...
no começo eu ficava na companhia, né.. depois fiz um barraquinho lá ... e fiquei
morando lá e tô até hoje...Naquela rua, Afonso Mamede...É.. a casa... uma
casinha, pequinininha mais é uma casinha...Aí aumentei, com o tempo e...
depois com dez anos, tinha uma casa, né...Dois filhos... nasceu mais um com
dois meses morreu, né. Depois nasceu mais um... e morreu...E os dois filhos
vevi comigo, na minha casa... a filha casou, mas mora aqui nessa rua, no
ultimo... e o meu filho mora comigo... ele tem a casinha dele e eu tenho a minha
... eu moro sozinho...É ela faleceu, vai completa 9 ano agora ... é... e eu fiquei
numa saudade danada .... idade muito avança, né... tou com 80 anos... não
vou casa mai não...
167
Essas experiências de procurar trabalho e arrumar moradia, em que estão presentes
representações que expressam uma alteração de padrões culturais, indicam um processo
de nova sociabilidade pelo qual passou o depoente e seus familiares,na fuga dos aluguéis.
O depoente relata a constrão da casa própria, à custa de muito sacrifício e energia de
uma vida inteira. A fala do depoente demonstra que a obtenção da moradia assinala o
sucesso do migrante na cidade grande.
E continua seu relato:
eu cheguei aqui... assim que cheguei, cheguei no dia 22 de dezembro... de
51... quando era 25 de janeiro de 52 comecei trabalha na Nitro ... trabalhei até...
29 anos, né... ai me chamaram pra acordo... É mais ou menos... 79, é 79... quase
80, né.. Aí cheguei aqui e trabaieie e comprei o material na Companhia
mesmo, e fiz o barraquinho que eu falei pra você... Deu o material e eu que
fiz, eu mesmo... porque eu não sabia trabaia com isso aqui ...e fui pegar o
cimento com a mão... cimento com areia misturado...com a mão, né...
rebocando, a parede... mas me estourou a o todinha... passei 15 dias...17
dias no seguro de empregado com a mão na carne pura... por causa... não
sabia... nós fazia de barro, né... Não sabia... nós fazia lá de barro, né ... podia
pegar a criançada e enchia ... é pau-a-pique... amarra assim, aem cima, né, e
dinheiro para a compra do terreno e o trajeto do local onde mora para a fábrica. É viúvo, tem dois filhos, mora
no bairro 56 anos. Atualmente cuida de um imóvel no jardim o Vicente que está à venda, mostrando-o e
encaminhando as pessoas interessadas para a compra. Nesse local o depoimento foi concedido em 02/02/2007.
167
José Vitorino dos Santos, em depoimento citado.
77
enchia de barro... E o cal comeu a o ...Aí eu fiquei no seguro... e mas
depois eu fui aprendendo e fui fazendo, o pus mais a mão no cal... tem a
colher, né ... depois eu fui aprendendo até terminar a casa... ia subindo e
rebocando...Foi, eu pagava aluguel... eu pagava duzentos e vinte , duzentos e
cinqüenta, não to lembrado... porque morei na Vila São Silvestre, tem uma
vila aqui em cima que chama S Silvestre e passei um ano ou dois lá... e
fiquei morando lá, e aí com um ano e pouco eu vim pra qui... Antes de
terminar... só cubri, peguei levantar os tijolos... depois é que fui rebocar.... já, já
tava morando... porque pra pagar meu salário não dá... não sei se era mirreis ou
era cruzeiro... ai não dava... Não tinha nada, nem asfalto, nem água, nem
nada... No poço... furamos o poço... depois com o tempo... depois veio um
japoneis da avenida e emprestou a luz... a luz... a água não... pagava por
mês pagava pra ele... não era pra Light nada disso... depois que nós pagava
ele ia intalar lá... sofri muito aqui... mas achei melhor que no Ceará... no Ceará
a gente sofria mais...
168
Ao rememorar José Vitorino ou “o Compadre” como todo mundo o chama,
recorda a busca de novos lugares, sem infra-estrutura, menos equipados e por isso, mais
acessíveis aos seu recursos. Relata experiências que demonstram os impactos da chegada
a um mundo diverso do seu, em que se defrontam padrões de conduta com os quais o
estava habituado. Para viver na cidade, o depoente usa como base sua cultura rural de
fabricação de moradia, a auto-construção da casa própria, que demonstra aprendizagem e
luta para inserir-se na vida urbana. As narrativas do Compadre” explicitam a tensão
humana implicada na busca e construção de um lugar para morar e a necessidade de suprir
esse lugar de luz elétricas e água, experiências que o depoente foi superando apesar de
sofrer muito. No entanto, esse sofrimento é, por ele superado, pelas conquistas
evidenciadas no depoimento, daí achar que no Ceará “sofria mais”
Roniwalter Jatobá, consegue expressar no romance Filhos do Medo” a satisfação
do personagem João, ao pensar na sua propriedade, um cantinho em São Miguel para ficar
com sua família, sem pagar aluguel.
De longe, a vila de o Miguel é bela... [...] E ali estava São Miguel. Do alto do
morro a vila aparecia em toda a sua extensão, as curvas do rio Tietê
desembocando no vale aberto, e bem próximo, se repartindo em dois. Perto da
vila o rio unia as duas partes e subia com suas águas sujas e podres de resíduo
das indústrias.
[...] Aqui está São Miguel inundada de claridade. Dentro da cabina João sentiu-
se importante quando o caminhão começou a rodar pelas ruas da vila, o braço
pendido fora da janela, o cigarro aceso se queimando ao vento.
- por ser meu, aqui é muito melhor! disse para si próprio olhando o sorriso
satisfeito de Elvira como se ela estivesse escutando o seu pensamento.”
169
Nesse sentido, observo que o bairro de São Miguel Paulista sofreu as
transformações radicais relatadas e a Capela de São Miguel Arcanjo, que à época era a
“Igreja” do bairro, apesar de ainda se configurar como elemento centralizador de ações
168
Idem.
169
JATOBÁ, Roniwalter. Filhos do Medo Um Romance Suburbano. São Paulo: Círculo do Livro, 1978
p.90-91.
78
sociais, como festas, rituais religiosos, procissões, encontros, também divide esse espaço
com novos elementos culturais resultantes do afluxo de pessoas diferenciadas para o
bairro, além de novos lugares de convívio, como a indústria, escola, clube, berçário.
Assim, São Miguel Paulista desse período, representou para muitos, o bóia fria, o
ex-camponês que virou metalúrgico ou peão de obra que se perdeu na cidade grande, a
promessa de moradia, emprego e melhor qualidade de vida.
1.3.1. Da Igreja à Capela
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Um visitante da Capela de São Miguel Arcanjo, morador de São Miguel Paulista
acompanhado de seu filho de oito anos, informou que aos sábados gosta de levar o filho
para passear e que veio até a Capela para trazê-lo para ver “uma parte da minha infância”,
e continua, “Nasci, nasci em São Miguel. É o marco da existência né, do bairro... é São
Miguel lembra a Capela... é a referência de São Miguel..
170
. Esse depoimento colhido
na espontaneidade de uma visita à Capela, tanto da pesquisadora quanto do visitante,
revela que as ões dos sujeitos sociais às vezes podem se diferenciar das verdades
consagradas, quando revelam o desconhecimento, a falta de interesse da população pela
Capela e que, as experiências sociais anteriormente vividas, são realimentadas e
perpetuadas por pequenas ações como as descritas acima, que indicam a valorização da
Capela como marco da existência e referência do bairro.
José Caldini Filho, relembra:
São Miguel indígena né, o núcleo indígena ali... tinha uma Capela... e a cidade
cresceu em torno aí da pracinha, né...a pracinha e foi... tinha a capelinha,
depois aí, tinha aquela... acho que 12 casas no larguinho da igreja, lampiãozinho
a querosene eu lembro...
171
No ato de relembrar, Caldini mistura experiências vivenciadas, como as casas, o
largo, o lampiãozinho a querosene; com relatos e experiências que ele próprio não
170
Depoimento gravado no interior da Capela de São Miguel Arcanjo, concedido por Ronaldo Araújo
Calixto, 48 anos, visitante da Capela, nascido e morador em São Miguel Paulista, acompanhado de seu filho
de 8 anos, no dia 03 de setembro de 2005.
171
José Caldini Filho, depoimento citado.
79
vivenciou, mas que se apropria como se fizesse parte de sua história, como se tivesse
vivenciado o acontecimento que faz parte de sua memória.
As lembranças comuns de antigos moradores, marcadas em seus relatos, fotos e
objetos fortalecem as memórias de outros sujeitos, que as recompõem apoiados nas
lembranças dos antigos, que se encantam com a São Miguel existente e que viram mudar.
Essas lembranças vão evidenciando traços que se redefinem em meio a novas
práticas e, nesse vai e vem de lembranças, percebe-se como o depoimento pessoal esta
intrinsecamente ligado à própria história de São Miguel Paulista:
... toda a comunidade... ali antigamente... era o ponto dos namorados, não tinha
onde ir em São Miguel, então à noite se reunia ali e ficavam conversando ali...ou
então ia na estação ver os trens chega e passa, porque também trem quase não
tinha naquela época... era... era ... passavam em São Miguel, três trens por dia,
um de madrugada, outro duas hora da tarde, outro seis horas da tarde, era a hora
que a turma ia na estação... Não tinha correio, o correio era na estação... você
queria saber se tinha carta para você, ce tinha que ir na estação, perguntar, é
que ficavam as carta, não tinha correio... e quando você queria endereçar uma
carta, você endereçava também pela estação... às vezes, a carta nem chegava...
[...] ou quando você, igual no caso da minha mãe que o pai dela morava em
São José do Rio Preto, a minha mãe ia no correio, ia na estação... toda semana
sabê se tinha alguma carta pra ela...
172
Ao rememorar, Jesuíno revela uma dinâmica social traduzida pelo movimento das
pessoas que chegam e que vão pelo trem, das correspondência entre os parentes, dos
encontros na praça, nas idas aa estação e a Capela como o centro social, a igreja do
local, o lugar dos encontros e das despedidas, dos namoros e das conversas, também
evidenciados por Caldini.
Entre tantas lembranças, passando por ou partindo da Capela, outros lugares
assumem importância no depoimento e fazem parte do cotidiano lembrado pelo depoente:
a estação de trem, a fábrica, o rio Tietê, os bairros vizinhos, os laços de parentescos, as
relações pessoais e as ações que se engendravam nesses locais, o que demonstra a
significação da história pelos depoentes não reduzida à Capela, mas contextualizada numa
rede de relações, que remetem a outros elementos do bairro.
Esses elementos do bairro têm sua importância vinculada a determinado tempo,
com movimentos específicos, que se transformam à medida que outros moradores e outros
tempos vão surgindo. As experiências de outros sujeitos, ao longo do tempo, perdem
lugares em favor de outras experiências nem sempre validadas pelos moradores que
estavam, gerando tensões que revelam disputas pelos espaços do bairro.
172
Jesuíno Braga, em depoimento citado.
80
Canclini faz discussão a respeito desses processos socioculturais, que define por
hibridação, “nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada,
se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas”.
173
Dessa forma, novas experiências resultantes dos processos migratórios serão
aglutinadas em torno do bairro, da Capela e da praça; trarão suas vivências e experiências,
usando de estratégias de reconversão para reinserí-las em novas condições, revendo e
construindo seus saberes para viver nesse novo local, nesse bairro que faz parte da cidade
de São Paulo.
Alguns moradores reassumem lugares e significados importantes ao relembrar.
João Feher, zelador da Capela durante dez anos, refere-se a ela com afeto. Acostumado a
receber visitas diárias de pessoas interessadas em conhecer a Capela e devotos de São
Miguel Arcanjo, tem histórias importantes para contar. E ele conta:
Isso, tem uma senhora de idade, também da Inglaterra ... turista, né... e ela veio
junto com o professor... então eu ficava mostrando, explicando pro professor e
ele traduzia pra ela ... e ela tirou muitas fotos... qualquer detalhe que eu
mostrava assim ela fazia questão de tirar fotografia... nós fomos mostrar pra
eles pro lado de fora... ali tem o jardim ... um pedaço ali que não tinha nada
plantado e só tinha terra, né... e ao lado tinha um saquinho de supermercado mas
tudo sujo empoeirado, fazia meses que tava ali abandonado, né... ela se agachou,
começou limpar e tal... eu falei pro professor: - Pergunta pra ela o que ela
quer com aquele saquinho do supermercado? ela tava dizendo o seguinte, ela
me falou que além das fotografias que ela tirou... que ela queria levar um
pouquinho de terra também ... se eu desse permissão... eu falei: - Ah, pois não,
eu tenho saquinho de supermercado limpo, né... arrumei pra ela... pus dois
meados de terra... ela ficou tudo contente ... então ela levou um pouco de terra
daqui de São Miguel pra Inglaterra... Muito bonito isso aí, né ...
174
Ao relatar suas lembranças, emergem experiências que são traduzidas com
grandiosidade pelo depoente, que constrói no campo das significações os valores que dão
sentido a essas experiências. E continua:
Mas infelizmente não é todos que pensam assim. Ela é vítima de vandalismo, de
apedrejamento, quantas vezes eu cheguei de manhã encontrei janelas
arrebentadas, portas laterais arrebentadas. teve até pessoa assim, um senhor aí
falou pra mim: - É, o governo devia demolir esse prédio aí, isso é um casarão
antigo ... e podia construir uma escola. Eu falei: _ Olha, mas tem tanto espaço
pra se construir escola, o senhor não sabe o valor que isso tem pra gente. Ele
falou: - Pra mim não tem valor nenhum, isso é um casarão antigo. Eu falei: -
173
CANCLINI, Nestor García. Op.cit. p.XIX. O autor esclarece que as estruturas chamadas discretas foram
resultado de hibridações, razão pela qual não podem ser chamadas de fontes puras. Uma forma de descrever
esse trânsito do discreto ao brido, e a novas formas discretas, é a fórmula “ciclos de hibridação” proposta
por Brian Stross, segundo a qual, na história passamos de formas mais heterogêneas a outras mais
homogêneas, e depois a outras relativamente mais heterogêneas, sem que nenhuma seja “pura” ou
plenamente homogênea.
174
João Feher, foi zelador da Capela de São Miguel por 11 anos, tendo com esta uma relação afetiva muito
grande. Nesse período, desenvolveu ações no sentido de preservá-la e divulgá-la, esclarecendo as pessoas
sobre sua importância, distribuindo folhetos explicativos, cuidando de sua limpeza, colhendo assinaturas.
Depoimento concedido no dia 14/06/2005.
81
Bom, licença, não tem diálogo com o senhor... que vi que o senhor não
entende, né... enquanto que o senhor acha que isso é um casarão, muita gente...
ne...
175
O depoimento revela valores antagônicos dados à Capela. Enquanto um acha que
ela tem que ser preservada e luta para isso, outro valoriza e até leva um pouco de terra
para outro país, existem outros que não lhe atribui valor algum. São valores diferenciados
sobre a preservação da Capela, que possibilitam entender a forma como os sujeitos sociais
atribuem sentidos a ela, demonstrando aspectos diferenciados da construção da vida
urbana.
A referência mais antiga sobre a Paróquia de o Miguel Arcanjo diz que ela foi
criada em 1779 e pertenceu ao clero secular
176
. Em 1908, foi anexada à Paróquia de Penha
de França
177
. Na década de 30, a Paróquia de São Miguel Arcanjo foi recriada pelo
Arcebispo de São Paulo, mas ainda não tinha um vigário residente. Jesuíno se recorda
dessa época e relata:
Então naquele tempo, quando terminou a reforma da igreja... que eles
começaram a reforma em 38... isso eu me lembro, eu tinha oito ano, eu tinha
entrado no grupo escolar, fazia um ano que eu tava no grupo escolar... e então,
quando eles terminaram em 1940 é que como o frei Leão parece que gostava da
... e a gente também gostava do frei Leão... porque naquele tempo só tinha trem,
acho que ele vinha de trem... porque quando corria o boato que o frei Leão
tinha chegado, a molecada corria tudo pra, pra encontrar o frei Leão, pedia a
benção pra ele, mas sabe por que? (risos) A troco de bala, querida... (risos)
Porque a gente pedia a benção e ele dava bala, então pra nós era uma festa,
então todo mundo gostava do frei Leão, sabe... era o único que vinha aqui de
vez em quando... e nomearam ele como primeiro pároco da igreja de São
Miguel... Infelizmente ele ficou um ano só,,, ele ficou parece de 38 a 39...
178
O depoente rememora a questão da falta de sacerdote no bairro, ligada às suas
experiências infantis. Essas lembranças trazem outros significados em sua vida,
especialmente por se tratar de tempos da infância, pela religiosidade, que a presença do
frei poderia significar pela proximidade, pelo agrado e convívio afetivo, que o frei
demonstrava para com as crianças. no relato a evidência da dinâmica social no bairro,
com a vinda do frei “de vez em quando”, a recepção das crianças e a nomeação do frei
como primeiro pároco da Igreja. Além disso, o depoente apóia suas lembranças em outros
fatos vividos por ele, como a “reforma” da igreja em 38 e sua entrada no grupo escolar.
175
Jesuíno Braga em depoimento citado.
176
Conjunto de sacerdotes que não pertencem a nenhuma ordem religiosa em particular. HOUAISS,
Antonio e outros. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 739.
177
Considerações baseadas em: ZAMPIERI, Wilson João e AVELAR, Cezar Imamura (coords.), Padre
Aleixo Monteiro Mafra, O Pastor das Almas de São Miguel Paulista. São Paulo, Unicsul, 2000, p.49.
178
Jesuíno Braga em depoimento citado
82
Confirmando o relato de Jesuíno, a paróquia voltou novamente a ficar sem vigário
em 1939 e somente voltou a ter um vigário residente com a posse do Padre Aleixo
Monteiro Mafra em 02 de março de 1941. A Igreja Matriz de São Miguel Paulista era a
velha Capela de São Miguel Arcanjo construída em 1622, que não comportava todos os
fiéis e obrigava o Pe. Aleixo a realizar diversas missas dominicais . O bairro possuía cerca
de oito mil habitantes quando o sacerdote assumiu a paróquia e dez anos depois já eram
quase quarenta mil habitantes. Era preciso pensar, urgentemente, na construção de uma
nova Igreja Matriz que atendesse à realidade dos novos tempos.
179
No Livro do Tombo da Paróquia de São Miguel Arcanjo, o bispo auxiliar da
Arquidiocese de São Paulo, deixou registrado em 1947:
Visitei a velha igreja matriz e suas dependências. Mais do que igreja paroquial,
ela é antes, deveras, monumento histórico, por isso mesmo quase inadaptável ao
movimento da cidade. Esperamos em Deus, logo que termine a demanda
relativa ao terreno ao lado da residência paroquial, se possa cogitar da
construção de uma nova matriz mais adaptada ao surto de progresso desta
paróquia e menos sujeita à vigilância e ingerência do Patrimônio Artístico
Nacional. Fiz crismas na Matriz em número de 539.
180
O registro acima permite perceber como a Capela o dava mais conta de atender
toda a população de São Miguel Paulista. A construção de nova matriz, no entanto,
dependia da resolução de pendências em relação ao terreno que deveria abrigá-la e permite
concluir que a atuação dos órgãos de preservação, de certa forma foi um elemento que
barrou a demolição da Capela para em seu lugar ser construída uma matriz mais
adequada ao surto de progresso
181
, ou seja, mais adequada ao processo de
industrialização do enorme crescimento populacional do bairro.
No dia 13 de janeiro de 1952, Pe. Aleixo finalmente assentou a pedra fundamental
da nova Igreja Matriz. Sobre a construção da nova Igreja, Albertino relata:
... e também não haveria a nossa catedral sem o Pe. Aleixo... ali, aquilo lá. [...] a
igreja, a catedral era um sonho do Pe. Aleixo... porque o bairro foi crescendo e a
Igreja o cabia mais ninguém... ficava do lado de fora ..então começou gente
não ir mais na missa... porque naquele tempo tinha muita garoa e chovia
constantemente... e o pessoal ficava do lado de fora e não ia na igreja, porque
ficava na garoa ... então começou a diminuir, então o Padre... o sonho dele era
ter aquilo ...[...]ele tinha noção especial de que aquilo ia acontecer mesmo..
[...] e hoje já esta pequena ...
182
179
Considerações baseadas em: ZAMPIERI, Wilson João e outro, op.cit.
180
Termo de visita do Bispo Auxiliar da Arquidiocese de São Paulo D. Antonio Maria, São Miguel,
04/11/1947, apud ZAMPIERI, Wilson João e AVELAR, Cezar Imamura (coords.), op.cit. p. 86-87.
181
ZAMPIERI, Wilson João e AVELAR, Cezar Imamura (coords.), op.cit. p. 87.
182
Albertino Nobre em depoimento citado.
83
Albertino visualiza que a construção da Igreja dependeu do poder de liderança e da
relação de proximidade do Pe. Aleixo com os moradores, experiência compartilhada com
outros depoentes, que demonstram a presença intensa do padre nas atividades da Igreja:
... no... último dia da Quaresma ... parece que de sábado pra domingo
tinha Procissão do Encontro às 5 horas da madrugada... Então uma saia com a
Nossa Senhora e a outra saia com Jesus ... Então... os dois se encontravam ali na
igreja...[...] É, em cima ... Então o Padre Aleixo... geralmente fazia pregação
de lá... Pro público lá fora que chegava da procissão e fazia o encontro de Nossa
Senhora com Jesus... e ali tinha... aquele homem era... era... fora de série ... pra
falar era fora de série... tinha gente que chorava... principalmente nessa
procissão... e eu gostava, eu o via a hora que chegava... esse dia pra mim
ouvir o Padre Aleixo falar ... ah... eu não perdia ...[...] Nossa Senhora... o que o
homem falava... o que o homem falava...o homem conhecia a Bíblia...além de
conhecer a Bíblia, ele tinha o dom da palavra ... que ele floreava aquilo ...sabe,
além dele ser conhecedor da causa, ele ainda jogava com o dom que ele tinha ...
e não tinha quem agüentasse, sabe... não tinha quem agüentasse [...] Ou então
quando a procissão se encontrava em outro local, levavam e montavam um
palanque e ele falava do palanque... outra coisa que sumiu da igreja...
183
Jesuíno, que também vivenciou essas experiências relata sobre o dom da palavra
que possuía o Pe. Aleixo e as atividades que liderava e, ainda, relembra o palanque, um
outro bem que sumiu da Igreja e que Jesuíno rememora, fazendo cobrança sobre quem vai
prestar contas dessas coisas que pertencem ao patrimônio público. O depoimento sinaliza
as condições de sociabilidade do bairro, voltadas para atividades e festas religiosas que
eram concentradas em torno da Capela de São Miguel Arcanjo.
No dia 29 de março de 1964, Pe. Aleixo foi afastado da Paróquia de São Miguel
Arcanjo pela Cúria Metropolitana, após 23 anos de serviços prestados. Jesuíno relembra
esse fato:
... acho que veio em 40 prá cá, porque o frei Leão foi embora em 30... bom, acho
que a igreja ficou abandonada sem padre, acho que mais ou menos um ano se eu
me recordo assim, aí veio o padre Aleixo. De quarenta, ele morreu em cinqüenta
e pouco. Se eu não me engano... porque fundou essa igreja aí, em 53 e depois
deu uma bagunça aí, que condenaram o padre Aleixo... Não sei, eu não sou
ninguém pra falar, mas... condenaram o padre Aleixo por uma coisa que ele não
devia, porque nesse ponto ele era muito honesto, o Pe. Aleixo. Ele começou a
construir essa igreja que não era catedral, ele começou a construir essa igreja,
e... a comunidade toda contribuía, e quem casava naquele tempo, que tinha a
matriz antiga... quem se casava naquele tempo deixava uma doação, eu
mesmo fui um deles, eu me casei em 54... e o padre Aleixo tinha iniciado a
igreja em 53 e eu mesmo já deixei doação.
184
Ao rememorar essas experiências, Jesuíno revela tensões dentro da Igreja. O
depoente não fala o motivo pelo qual o Pe. Aleixo foi afastado, mas deixa antever que
houve alguma questão financeira, ao relatar que todos contribuíam, e que o padre foi
183
Jesuíno Braga em depoimento citado.
184
Idem.
84
afastado injustamente. Essa questão é recorrente em outros depoimentos, como de Dona
Tereza Pilon:
... foi assim... tinha um professor aqui... ele se juntou com ... um padre... aí...
um padre Segundo... esse padre Segundo tava na vila Medeiros... então esse
professor queria a sala da catedral aí... que ainda não tava terminada... pra dar
aula... ai o padre Aleixo falou que a sala que estava construindo era para a
residência dos padres que ajudava ele aqui, né... ai ele foi e foi fala que o
padre Aleixo tinha negado ... Professor Alcides se o me engano... ele foi e
foi fala pro cardeal de São Paulo que o Padre Aleixo tinha negado... mas ele
não tinha negado por negar... ele falou que não tava pronta mas que era pros
padres... que vinha ai ficar lá... parece que falaram mais coisa que não
devia falar... o sei o que que falaram lá... sei que chamaram ele e pediu
a... e mandaram ele ... ali pra Ponte Rasa... na Igreja... no morro... não sei
aonde... Nossa Senhora Aparecida... ali na Ponte Rasa... onde o Padre Sabé
hoje... depois como ele ficou lá e ficou muito triste e tava ficando cada vez mais
triste... então a turma foi outra vez com... pelo menos pusesse ele na
Curuçá... aí o Padre ... o bispo autorizou pra ele vim pra Curuçá... ai ele
movimentava a Curuçá... mas deu derrame...
185
Nesse relato, entrecortado por reticências (a voz da depoente muda de tom e
amiúda-se, revelando ao pesquisador um sentimento de tristeza) importa perceber que,
discordâncias, controvérsias e polêmicas foram geradas no período da construção da
Igreja Matriz; o aparecimento de outra congregação, provavelmente com outros
interesses, revelando as disputas de poderes e os conflitos que emergem nas memórias,
revelando-as como um campo de divergências e antagonismos.
... porque o povo não cabia mais na Igreja pequena lá, na Capela que era dos
índios, né... ai ele chamou os padres. de Ppra ajudar ele aqui, porque ele
também não agüentava mais, era muita gente... depois aí trocou... quando a
Igreja estava quase coberta a... o... ele foi ... ele foi chamado pra deixar a
paróquia... estava na cobertura... porque eu pertencia... durante 3 anos eu
pertencia a comissão de obras da catedral eu era secretária. Então o movimento
tudo que saia eu que registrava... o movimento tinha ai de construção tudo eu
registrava no livro... uma vez por mês a gente tinha reunião com o padre e com
a comissão. A comissão era das irmandades ... tinha uma comissão antiga da
Igreja, mas como aquela comissão era muito vagarosa ... então o Pe Aleixo
sugeriu que dentro das irmandades... porque tinha bastante irmandade aqui,
né... sugerisse uma comissão pra ajudar mais aqueles que tava parado. E
fundou essa comissão. Era tudo que pertencia a diretoria das irmandades
formou uma comissão de diretoria das irmandades.
186
todas as irmandades que
trabalhavam ... O padre pediu pro povo se reunir e a gente que era da diretoria
passava pras irmandades o que passava na diretoria e fazíamos campanha...
campanha do tijolinho... campanha do telhado... campanha dos vitrais e assim
foi indo que foi construindo a catedral... agora depois que chegou os padres
Josefinos aqui, era uma irmandade... e começaram a trabalhar, né... ai era
diferente...
187
185
Tereza Pilon, em depoimento citado.
186
Segundo Dona Tereza Pilon., em depoimento citado. as irmandades que haviam na Paróquia de São
Miguel Arcanjo eram: Cruzada Eucarística, Pia União das Filhas de Maria, Marianinhos, Congregados
Marianos, Apostolado da Oração, Legião de Maria, Irmandade do Santíssimo Sacramento, Vicentinos e
Damas de Caridade.
187
Idem.
85
O relato da mesma depoente aponta para as transformações do bairro gerando
outras necessidades para atender ao aumento da população, a que a Igreja de São Miguel
Arcanjo não dava mais conta de atender. Por outro lado, demonstra as experiências sociais
que o forjadas em torno da Igreja, com a participação dos moradores e fiéis organizados
para as campanhas em função da nova construção. Dona Teresa Pilon relata essa
transformação:
É, quando chegamos aqui tinha a capela pequena, nem enchia de gente a capela
... a capela ficava pela metade e olha lá... quando tinha o Pe Aleixo... ai o Pe
Aleixo... começou a aumentar... começo a vim gente da parte do norte,
trabalhar na Nitro... então começou a Igreja ficar pequena... quando a Igreja
ficou pequena Pe Aleixo achou que devia fazer uma Igreja, mas ele nunca
pensava que ia ser uma catedral.. nunca pensava.... assim mesmo ele foi ... um
sacerdote de muita coragem... sim... pra aceitar uma construção desta aqui
naquele ano... que era dos 50 mais ou menos... ele foi um herói...bem dizer...
porque aqui era pobre... alias é um pouco pobre ate hoje, mas agora melhorou
muito...... mas era pobre mesmo... e ele aceitou essa construção ... quer dizer a
estrutura da construção...
188
O aumento da população provoca transformações nas formas de viver no bairro. A
Igreja, que pelo relato de Dona Tereza quando esta chegou ao bairro não enchia de gente,
por volta de 1950 não conseguia acolher toda a população no seu recinto, tornara-se
pequena. Dessa forma, impõem-se a necessidade da construção do novo templo, maior e
com possibilidade de acolher melhor a população de São Miguel Paulista, que aumentara
significativamente.
O Padre Aleixo, em vários depoimentos, é sinônimo de coragem, luta,
determinação, o que evidencia o questionamento em relação a determinados setores da
Igreja que o transferiram de paróquia sem uma explicação convincente para os moradores.
No período relatado, a vida dos moradores girava em torno das atividades
religiosas da Igreja: freqüentar às missas, rezar o terço, fazer parte de uma irmandade,
fazer caridade ao próximo. O próprio calendário anual era religioso; comemorava-se o
dia dos santos com rezas, novenas, procissões, festas e quermesses, que contavam com a
participação de grande parte dos moradores. A Praça Campos Sales era um espaço
público, onde de fato tecia-se uma rie de atividades religiosas e sociais. Nela
aconteciam as festas dos santos, lugar em que as pessoas passeavam e procuravam se
encontrar para conversar e, no caso dos jovens, talvez iniciar um flerte ou namoro.
189
Hoje, ainda existem festas que percorrem as novas historicidades vivenciadas no bairro,
como as quermesses no mês de junho e julho e a festa do Aniversário do Bairro em
188
Tereza Pilon, em depoimento citado.
189
Considerações baseadas em ZAMPIERI, Wilson João e IMAMURA, Avelar Cezar, op. cit. p. 42.
86
setembro, em que também se homenageia o padroeiro do bairro, São Miguel Arcanjo.
Essas manifestações atuais são marcadas por outros elementos que revelam novas práticas
sociais, porém trazem características pretéritas que demonstram a importância que esses
momentos de devoção, lazer e sociabilidades tiveram na vida desses moradores, revelados
em suas memórias, reinscritos no movimento histórico de experiências compartilhadas.
Para alguns depoentes a autoridade maior do bairro nesse período compreendido
entre os anos 30 e 70, era o pároco. Todos recorriam a ele quando necessitavam de um
conforto, ministrar a extrema-unção ou rezar no falecimento de um parente ou amigo. Era
também procurado para realizar casamento ou batizado, ou mesmo dar a bênção por
algum motivo festivo. O pároco servia de árbitro para apaziguar desavenças familiares ou
aconselhamento, quando solicitado. As relações sociais, forjadas no âmbito privado,
estabelecem ações e mecanismos entre os moradores do bairro para solucionar ou
amenizar seus conflitos e tensões dentro do âmago familiar e perpassam por relações de
poder delegadas à intermediação do pároco.
... ai o Pe Aleixo foi pra a Ponte Rasa ... na Igreja Nossa Senhora
Aparecida...depois ele ficou doente... ai voltou aqui pro Curuçá... ele ficou uns
tempos ai na Curuçá ... o Pe Aleixo.. até...uns anos ai... mas deu derrame nele ...
deu derrame e ele ficou mau no hospital muitos ... muito tempo... um hospital
que era de Santa Terezinha aqui.. Era da Nitro... era da Nitro.,.. aí que ele
faleceu... agora dia 11 desse mês vai fazer aniversario de morte... acho que é
quarenta anos de falecimento dele... ele nasceu dia 11 de fevereiro e morreu dia
11 de fevereiro às 6 horas da tarde... um padre bom, trabalhador, bondoso,
caridoso, muito bom... bom mesmo... nossa, tinha gente que vinha da cidade pra
ouvir o sermão dele... tinha o dom da palavra ...não tinha microfone, não tinha
nada, nada... ele falava na praça ... pública e de longe se ouvia a voz
dele... nossa o tinha como... um dos melhores padres que falava sobre o
evangelho era ele... sobre a Igreja...
190
A depoente destaca méritos do padre que parecem perdidos no tempo presente,
com moradores atuais que não conviveram com o sacerdote. Para seu Jesuíno, o fato dele
ser velado na capelinha” e não na Catedral que havia sido construída, deu-se porque a
Capela era o “xodó” dele durante os 23 anos em que esteve em São Miguel.
Por homenagem aos anos que ele ficou na velha Capela, o que foi muito justo.
A praça ficou totalmente tomada, porque dentro da Igreja cabem mais ou
menos umas duzentas pessoas. E depois, não veio gente só de São Miguel, veio
do Itaim, Ermelino Matarazzo, Lageado, Itaquera. Todos conheciam o Pe.
Aleixo... e naquele tempo era mesmo São Miguel, tudo pertencia a São Miguel.
A igreja mais próxima era a da Penha, depois a de Poá e Itaquera.
191
Padre Aristides também relata como ocorreu o anúncio do falecimento do Padre
Aleixo:
190
Depoimento de Tereza Pilon, citado anteriormente.
191
Jesuíno Braga, em depoimento citado.
87
Não tinha nenhum(sacerdote), tava eu aqui. Ai o que eu fiz? Tinha um cara
famoso que tinha um auto falante muito bonito, ele vai lembrar o nome, como
ele chama? Nelson Bernardo, e eu peguei, fui na casa dele e falei: Nelson
Bernardo, fiquei sabendo a notícia que o Pe. Aleixo morreu no hospital Sta
Terezinha, pega esse auto falante, e vamos fazer um barulho agora!” Ai eu
peguei, saí com ele com microfone na mão, falei: “Atenção povo de S. Miguel,
papapapapá [...] e foi o maior volume concentrado na história de S. Miguel... de
pessoas, porque a morte dele, eu acho que foi o início da redenção da história
de São Miguel Paulista, porque ele se tornou o ícone, a igrejinha era um ícone
pra ele e ele era um ícone pra igrejinha.
192
Os relatos demonstram o significado afetivo que o Padre Aleixo tinha para os
moradores de São Miguel Paulista e para a região e que permaneceu associado à praça e à
Capela. O nome da praça, até então Praça Campos Sales, após sua morte passou a chamar-
se Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra o que indica a busca de perpetuação da memória
relacionada ao pároco e à Capela. Esse espaço sagrado, lugar dos encontros, das festas,
das celebrações, dos funerais indica e registra o caráter agregador da Capela. Em torno
dela, os moradores se reuniam, se envolviam, se identificavam.
192
Depoimento de Aristides Pimentel em 30/01/2007 em sua residência em São Miguel Paulista. Ex sacerdote
da Igreja Católica, morador de São Miguel Paulista onde foi vigário auxiliar da Diocese de São Miguel Arcanjo.
É proprietário de um restaurante na região central de São Miguel e ministra aulas de filosofia na Universidade
Mogi das Cruzes. Confecciona maquete em gesso e resina da capela de o Miguel, ato que lhe remete à época
em que morou na Itália e que, segundo ele, em toda a Europa esse costume de fazer réplicas dos
monumentos. Escreve a cronologia da história de São Miguel, baseada na obra de Sylvio Bomtempi e
atualizada segundo sua experiência e também, uma autobiografia.
88
CAPÍTULO II
TEMPOS, ESPAÇOS E MEMÓRIAS: histórias de São Miguel
>((
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C?
Neste capítulo procuro entender como se processam as interlocuções que elegem a
Capela de São Miguel Arcanjo como patrimônio cultural , estabelecendo reflexões sobre
como as políticas de preservação e as propostas de intervenção são discutidas e
compartilhadas pelos sujeitos sociais com ela envolvidos. Busco, no interior das práticas e
embates cotidianos, a iluminação das questões sobre esse patrimônio por experiências
diversificadas, destacando como foram delineadas as políticas de preservação desse bem
cultural e os desdobramentos e meandros do atual projeto de restauração.
As discussões do capítulo buscam identificar como esse bem cultural conseguiu
sobrepujar a tendência devastadora dos bens que representavam o período colonial da qual
foi alvo a cidade de São Paulo, no início do século passado. Tombado no momento de
criação do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional)
193
representou,
em contraposição a necessidade de manter elementos desse passado colonial dentre os
monumentos remanescentes que poderiam representá-lo. Para responder à questão inicial,
que versa sobre como e porque este bem foi preservado e às outras questões levantadas,
procuro estabelecer um diálogo entre os atos oficiais e as dinâmicas sociais que
permitiram a permanência desse bem cultural.
Um outro ato oficializou o tombamento da Capela pelo Conselho de Defesa do
Patrimônio Histórico, Artístico e Arquitetônico do Estado (Condephaat). Segundo
193
O SPHAN foi organizado pelo Decreto nº 25, de 30.11.1937. Em 1946, foi transformado em Diretoria,
sob a sigla DPHAN; em 1970 passou a ser Instituto – IPHAN, e nove anos depois, como Secretaria voltou a
ser SPHAN. Em 198l, mantendo essa sigla, transformou-se em Subsecretaria e, em 1990, passou a
denominar-se Instituto Brasileiro de Patrimônio Cultural (IBPC), voltando a ser, em 1994, Instituto
Histórico e Artístico Nacional IPHAN conforme RODRIGUES, Marli. Imagens do Passado a
instituição do patrimônio em São Paulo 1969-1987. São Paulo: Unesp, 2000, p.26. E ainda, segundo
CASTRO, Sonia Rabelo. O Estado na preservação dos bens culturais: o tombamento. Rio de Janeiro:
Renovar, 1991, p. 1, o Decreto-lei 25/37 é a primeira norma jurídica que dispõe, objetivamente, acerca da
limitação administrativa ao direito de propriedade”.
89
Rodrigues, o Condephaat foi criado no momento em que se acelerava a expansão do
consumo e cultura de massas no país”
194
e absorveu a organização ortodoxa do IPHAN,
propondo-se a salvar a cultura nacional da destruição; as ações do Condephaat voltaram-se
para a valorização da história oficial que evidencia o poder público institucional. Desde
meados da década de 70, porém, renovou-se uma discussão sobre preservação e
tombamento, sendo este órgão o pioneiro no tombamento e preservação de áreas naturais.
Assim, o patrimônio passou a ser entendido como o conjunto da cultura material levado
em consideração pela memória social.
195
A Capela de São Miguel Arcanjo foi um dos bens tombados pelo Condephaat,
nessa ocasião, juntamente com outros bens tombados pelo IPHAN. Tombada em 1974,
embora sendo um monumento representativo do período colonial e memória em pedra e
cal, inseriu-se nessa nova concepção preservacionista, que o tombamento como medida
de proteção ao meio ambiente e a preservação como um direito social. Tombada, também,
pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da
Cidade de São Paulo (Conpresp), órgão colegiado de assessoramento cultural integrante da
estrutura da Secretaria Municipal de Cultura do Município de São Paulo e trata da
preservação de espaços urbanos significativos a nível da identidade cultural. Busco, dessa
forma, compreender como o articuladas as ações dos órgãos públicos e a preservação
desse bem cultural, como direito social dos freqüentadores da Capela e moradores do
bairro de São Miguel Paulista.
Discuto também, as ações da Igreja Católica no sentido de preservar seu
patrimônio cultural (Necessidade e urgência da inventariação e catalogação do patrimônio
cultural da Igreja da “Pontifícia Comissão para os Bens Culturais da Igreja- Cidade do
Vaticano” e “Comissão para os Bens Culturais da Igreja Arquidiocese de São Paulo”).
Merecem atenção ainda, outras práticas que constituíram as histórias de São Miguel, como
a “Festa de São Miguel Arcanjo e o Aniversário do Bairro”, o “Movimento Popular de
Arte” (MPA), a experiência da “Câmara Distrital Simbólica” e a “Praça Padre Aleixo
Monteiro Mafra”, na tentativa de compreender como a multiplicidade de vivências e lutas
que engendram a formação social, articuladas às ações dos órgãos públicos, se
194
RODRIGUES, Marli. Imagens do Passado A instituição do patrimônio em São Paulo 1969-1987.
São Paulo: Unesp/Imprensa Oficial/Fapesp, 2000, p. 57.
195
Conforme Rodrigues, “tecida sob o argumento da perda, buscando a continuidade do que considerava
autêntico[...] essa ortodoxia, [...} valorizava a esfera blica como normativa, orientadora de uma ética [...]
o SPHAN fora organizado nos moldes de uma academia, na qual a estratégia de documentação permitia
comprovar os valores históricos e estéticos nacionais e universais, o que revestia os tombamentos de um
caráter de utilidade pública. RODRIGUES, Marli, op.cit. p.57
90
constituíram e formam elementos significativos para a preservação da Capela de São
Miguel Arcanjo.
Pelos depoimentos e ações, procuro estabelecer a interlocução do que considero
“outras histórias e memórias” com aquelas registradas pelos órgãos públicos. Busco
entender como essa Capela, considerada Patrimônio Cultural, é percebida, assumida ou
combatida pelos moradores e outras pessoas envolvidas com ela e, dessa forma, ampliar a
idéia da produção histórica para além dos limites da escrita da história acadêmica.
2.1. Descortinando outras cenas
2.1.1. A Capela restaurada... uma delícia
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230


Em correspondência com o amigo Paulo Duarte
197
, à época em que havia deixado a
chefia da Divisão Cultural do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, Mario de
Andrade
198
revela um sentimento de alegria pela conclusão da restauração da Capela de
São Miguel e Embu, frente a tristeza que demonstra, em outros momentos da
correspondência, pelo seu afastamento do “Departamento de Cultura”, como define Paulo
Duarte: “o seu, o nosso Departamento de Cultura, que todos nós vivíamos ia começar a
agonia. Havia apenas um mês que nascera o Estado Novo e já era possível antever o que
seria de destruição espiritual”
199
. A expressão do poeta e sua trajetória de luta na
preservação de bens, costumes e culturas indicam o valor que atribui ao bem cultural, um
dos primeiros tombado pelo SPHAN em 1937. Indica, ainda, o contexto de surgimento e
196
DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. São Paulo, Hucitec, 1985, p.134.
197
Paulo Duarte, convidado a ocupar o cargo de chefe de gabinete da gestão de Fábio Prado, nomeado
prefeito da cidade de São Paulo pelo governador Armando Sales de Oliveira em 1935. Conforme
NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos. Por um Inventário dos Sentidos. Mario de Andrade e a concepção
de inventário. Tese de doutorado em História PUC, São Paulo, 2002, p. 176-177.
198
Mario de Andrade foi convidado pessoalmente por Paulo Duarte para ocupar os cargos de Direção e
Chefia da Divisão de Expansão Cultural do Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo. Idem, p. 177.
199
DUARTE, Paulo. Op.cit. p.126
91
consolidação do órgão preservacionista em uma conjuntura muito peculiar como afirma
Gonçalves:
A década de criação do SPHAN caracterizou-se, no plano econômico,
por um quadro otimista, impulsionado por uma ainda incipiente, porém
promissora, industrialização. Associado a este contexto favorável, figurava um
direcionamento político cuja ideologia calcava-se na afirmação dos valores
nacionais e na reformulação da sociedade através da construção de uma
identidade nacional, e cujas bases deveriam apoiar-se na segurança nacional e na
educação “como projeto estratégico da mobilização social”
200
. Era o Estado
promovendo o desenvolvimento da nação, e a palavra-chave era
modernização.
201
A elevação da Capela de São Miguel Arcanjo ao status de patrimônio tombado e,
portanto, reconhecido oficialmente como um bem a ser preservado, coincide com a criação
do SPHAN, com a instituição do Estado Novo em 1937 e, ao mesmo tempo, com a época
em que as concepções sobre patrimônio o adotadas pelos intelectuais paulistas, que a
partir dos anos 20 e 30 se debruçaram sobre a realidade brasileira, buscando apreender e
revalorizar os elementos constitutivos da identidade cultural do país. No contexto em que
o Estado brasileiro começou a por em prática a tarefa de proteção ao patrimônio, ganha
projeção a memória nacional, em especial a arquitetura brasileira, com o tombamento de
bens construídos até o culo XVIII, sendo o barroco e a produção material dos
colonizadores considerados a essência da brasilidade.
Segundo a historiadora Roseli Santaella Stella:
A capela de o Miguel foi o primeiro bem tombado
202
pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 1938, pessoalmente indicado pelo
diretor, o arquiteto Luís Saia, que ainda dirigiu as obras de restauração entre
1939 e 1940.
203
A Igreja de São Miguel, juntamente com o Convento de Embu, inauguraria, então, os
procedimentos de trabalho, as soluções técnicas e o perfil conceitual que nortearia as
futuras intervenções realizadas sob a direção de Luís Saia.
204
Para além da História Oficial, ao escutar as memórias sobre a restauração ocorrida
em 39, Jesuino relembra:
200
ANDRADE, Antonio Luiz Dias de. Um estado completo que jamais existiu. São Paulo: USP-FAU,
doutorado em Arquitetura, 1993, apud GONÇALVES, Cristiane Souza. Restauração Arquitetônica: A
Experiência do SPHAN em São Paulo, 1937-1975. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2007, p. 29.
201
GONÇALVES, Cristiane Souza, op.cit, p. 29.
202
O tombamento significa um conjunto de ações realizadas pelo poder público com o objetivo de
preservar, através da aplicação de legislação específica, bens culturais de valor histórico, cultural,
arquitetônico, ambiental e também de valor afetivo para a população, impedindo que venham a ser
demolidos, destruídos ou mutilados. (Tombamento e Participação Popular, DPH, São Paulo, 2001, p.11).
Tombamento da capela IPHAN Processo n º 180/T, inscrição 211 fls. 38 (21/10/38). Livro História
Livro Belas Artes.
203
STELLA, Roseli Santaella, Anchieta e o Miguel: Fundação e Capela Encontro com Canárias no
Aniversário da Cidade de São Paulo. São Paulo: Etcetera ed. 2002.
204
Considerações baseadas em GONÇALVES, Cristiane Souza, op.cit, p. 65.
92
Eu morava ali na praça... ali era o nosso campinho de futebol da molecada... era
tudo plaininho, né... e onde tinha essas gramas silvestres e... então a gente fazia
o campo de futebol ali. E na restauração... olha... aquela restauração... jogaram
tanta coisa que não deviam ter jogado fora, dali de dentro, sabe...isso ninguém
conta... isso ninguém conta... mas até osso humano de de dentro da igreja
tiraram e jogaram no lixo. Isso eu sei porque eu fiquei chutando osso... sabe o
que que é moleque, aquela brincadeira de moleque de pegar as coisas e um jogar
no outro... o que tinha de batina de padre e pedaço de osso de perna, sabe... e um
andava jogando, (risos) principalmente se pegasse um mais medroso... pra
Cristo, então era nossa brincadeira quando tavam restaurando essa igreja... [...]
Então, eu vou visitar a igreja do Pátio do Colégio, e eu vejo um pedacinho
da batina do Anchieta, ... e quanta batina nós jogamos fora aqui e sabe de
quando era de quem era e foi tudo jogado no lixo aí... eles tiraram de dentro da
igreja, sabe na restauração ... isso eu sei porque eu brinquei com isso... era coisa
histórica que deviam ter pegado... era relíquia, meu Deus.
205
Ao rememorar, Jesuíno demonstra arrependimento de não ter aproveitado ou
guardado certos objetos que hoje considera relíquias, atribuindo-lhes um valor diferente de
outrora, quando brincava com elas e não as guardou. Seu relato mostra um movimento
específico de experiência vivida, que com o tempo foi se transformando e adquirindo
outros significados. Os valores atribuídos aos objetos mudaram em função do tempo
vivido e têm relação com a infância, as brincadeiras e, portanto, com os momentos de
alegria e medo que essas experiências, segundo ele, proporcionavam. É possível identificar
em sua fala, uma crítica veemente aos órgãos de preservação que jogaram no lixo
relíquiasque faziam parte daquela história e que Jesuíno consegue visualizar a partir
do presente.
Então deviam ter pegado... guardado, mas sabe como que é, né... a cultura do
povo naquele tempo, ahoje é ruim, que dirá naquele tempo, uns sessenta
anos atrás... você faz idéia, principalmente quem vinha trabalhar, tudo piãozada,
tudo analfabeto... e acho que os dirigente também pouco ligaram... - Só a
arquitetura, é o que interessava... e que hoje, depois de quarenta pra cá, eles
estão deixando cair querida, sabe... tão deixando cair...... naquele, naquela
época, naquela época é que nomearam, quando terminou a reforma da igreja...
(...) Então naquele tempo, quando terminou a reforma da igreja... que eles
começaram a reforma em 38... isso eu me lembro, eu tinha oito ano, eu tinha
entrado no grupo escolar, fazia um ano que eu tava no grupo escolar...
206
Nesse caminho, refaz as lembranças daquela época, misturando sentimentos de um
tempo em que, para ele, não houve preocupação com as “coisas que não foram
recolhidas, guardadas para um tempo futuro, destacando o pouco interesse dos dirigentes,
dos moradores e até mesmo dos membros da Igreja com os objetos que hoje considera
“relíquias”. Infere sobre o interesse dos órgãos públicos na época, pelo patrimônio
arquitetônico a arquitetura é o que interessava”, ou como relata Nogueira,
205
Jesuíno Braga, depoimento citado.
206
Jesuíno Braga, em depoimento citado.
93
Patrimônio de Pedra e Cal
207
, imprimindo na sua fala, a percepção daquilo que o poder
oficial consagrava na época. Na verdade, o depoente demonstra um saber que reitera as
discussões feitas sobre as concepções de patrimônio que permearam as políticas dos
órgãos responsáveis por essa preservação, demonstrando para o pesquisador, a
importância, como afirma Brites, de ”reconhecer nos trabalhadores a condição de sujeitos
e produtores do conhecimento”.
208
O período em que foi criado o IPHAN, até 1967, dirigido por Rodrigo de Melo
Franco Andrade, é conhecido como “fase heróica” e marcado por um momento de
definição, estruturação e conceituação da instituição, com centenas de bens tombados pelo
país
209
. A memória do país foi pensada segundo a concepção desta instituição e a Capela
de São Miguel Arcanjo, um bem cultural tombado logo após a criação desse órgão, é
exemplo vivo da política de preservação vigente à época.
Nesse período de 30 anos, destacaram-se no SPHAN as atividades em favor da
preservação de bens culturais isolados, que foram estudados, documentados consolidados
e divulgados. Observa-se como preocupações iniciais do órgão responsável, o tombamento
e a preservação de bens móveis e imóveis que representavam os poderes instituídos, ou
seja, poder político, militar e religioso. Foi um período em que, “sob a pressão do tempo
perdido, de séculos de abandono e da carência crônica de dinheiro e de recursos humanos,
a instituição em seus primeiros anos de vida, teve que redobrar os esforços para dar conta
da tarefa a que se propunha.”
210
O arquiteto Luís Saia refere-se à Capela de São Miguel Arcanjo e da Freguesia de
Nossa Senhora da Escada como “dois exemplares da arquitetura tradicional que foram
minuciosamente analisados, centímetro por centímetro, na ocasião das obras neles
207
NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos. O serviço do Patrimônio Histórico e Artístico NacionalSphan e
a redescoberta do Brasil: sacralização da memória em pedra e cal. São Paulo: PUC, 1995. Mestrado em
História Social
208
SILVA, Olga Brites. Memória, preservação e tradições populares. In O Direito à Memória, Patrimônio
Histórico e Cidadania. São Paulo: DPH, 1992, p.18.
209
No Primeiro Relatório enviado ao diretor, Rodrigo M.F.Andrade, em 16 de outubro de 1937, Mário de
Andrade inclui a lista de monumentos significativos do Estado de São Paulo, acompanhado de
documentação fotográfica e ensaio de ficha de tombamento. Neste primeiro levantamento foram mapeados
mais de quarenta exemplares de edifícios religiosos, entre eles a Igreja de São Miguel, em São Paulo; a
Capela de Santo Antônio, em São Roque; a Matriz de São Luiz de Paraitinga e a de Santana do Parnaíba; a
Capela do Pilar, em Taubaté; pouco mais de uma dezena de casas de cadeia e fortes, no litoral; e
pouquíssimos exemplares da arquitetura civil, visivelmente menos detalhados. Aparecem ainda listados os
conjuntos urbanos de Iguape e Cananéia. GONÇALVES, Cristiane Souza, op.cit, p.53
210
Publicação SPHAN 31, op.cit. p. 28
94
executadas pelo SPHAN
211
. Mário de Andrade assim descreve a Capela de São Miguel
Arcanjo, considerando-a “uma das relíquias históricas do Estado”:
Ameaçando ruína, foi com certa inteligência reformada em 1927, reforçando-se-
lhe a taipa com uma esteira de lajes de Itu. não se poderá dizer o mesmo
quanto à pintura interna, que foi desastrosa [...] Situada na localidade de São
Miguel, à beira da estrada de rodagem Rio-S.Paulo, esta igrejinha valiosíssima
sofreu recentemente a perda uma cômoda antiqüíssima e da porta entalhada da
sacristia, vendidas pelo padre que dela tomava conta. Esta igreja foi
fotografada por este Serviço. Envia-se como anexo (foto 1) apenas o entalhe
da mesa de comunhão quer bem prova sua antiguidade [...] Ver-se-á na foto da
fachada a data de 1622.
212
Os olhares de Mário de Andrade e de Luís Saia indicam uma preocupação com a
preservação desse bem cultural, ainda que seja com a sua arquitetura, demonstrando a
visão preservacionista existente à época, cuja intervenção era voltada, segundo Gonçalves
“para o estudo das técnicas utilizadas na recomposição e reintegração dos elementos, para
as consolidações estruturais, enfim, para a recuperação física dos materiais e dos sistemas
presentes naqueles edifícios”.
213
Desse modo, a preocupação era com a intervenção num
imóvel de origem colonial garantindo sua estrutura física, minuciosamente analisada” e
seus bens imóveis como a porta e a cômoda, ou seja, a questão da antiguidade da
edificação, justificando a idéia de seu tombamento e sua inclusão no primeiro
levantamento de bens passíveis de inscrição no Livro do Tombo do SPHAN e, ainda
posteriormente, sua restauração, em 1939.
A análise do processo de tombamento que tornou a Capela um monumento
protegido por lei federal e a bibliografia referente a atuação do órgão de preservação desse
período indicam a ausência de alguns setores, que ficam à margem do processo como por
exemplo, os moradores da região nas decisões sobre a preservação e o tombamento desse
bem. Indica, ainda, pouca definição sobre os motivos dessa escolha, tendo em vista que é
bem sumário, constando as fls. 38 um resumo da história da Capela e da origem do bairro
como justificativa para seu tombamento.
214
Gonçalves reitera que “sem duvida, sua
211
SAIA, Luís. Morada Paulista. São Paulo: Editora Perspectiva, 1995, p.19. a Igreja de Nossa Senhora da
Escada, construída em 1652, situa-se no município de Guararema SP e é uma das poucas igrejas que
possui a imagem de São Longuinho, santo popularmente conhecido por ajudar as pessoas a encontrarem
objetos perdidos. Ao encontrá-los a pessoa deve dar “três pulinhos para São Longuinho”.
212
ANDRADE, Mário de . Mário de Andrade: Cartas de trabalho: correspondência com Rodrigo Mello
Franco de Andrade, 1936-1945. Brasília: Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional: Fundação
Pró-Memória, 1981, apud GONÇALVES, Cristiane Souza. Restauração Arquitetônica: A Experiência do
SPHAN em São Paulo, 1937-1975. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2007, p. 66.
213
GONÇALVES, Cristiane Souza, op.cit, p. 61.
214
A pasta referente ao processo de tombamento (n.180-T-38) foi localizada no arquivo central do IPHAN
(ANS/RJ), porém não constam informações sobre a Igreja de São Miguel, conforme relata GONÇALVES,
Cristiane Souza, op.cit, p. 67.
95
antiguidade foi fator preponderante para a sua inscrição, com consequências diretas para o
partido adotado e para as opções tomadas durante a fase de obras”
215
É importante
lembrar, que mesmo não sendo evidenciadas pelos órgãos públicos, os moradores de São
Miguel Paulista elaboraram e elaboram ações para a preservação da Capela de São Miguel
Arcanjo.
Neste contexto, algumas questões podem ser discutidas sobre a preservação do
bem cultural em estudo. Em primeiro lugar, a intensa urbanização que ocorreu no Brasil
no início do século XX, notadamente no Rio de Janeiro e em São Paulo, provocou a
destruição de parte considerável dos acervos culturais dessas cidades, antes da criação do
SPHAN, principalmente dos bens imóveis das regiões centrais que precisavam ser
remodeladas para atender às necessidades das “cidades modernas”, muito a gosto dos que
queriam “europeizar” a cidade, “assim, os núcleos e acervos urbanos que se conservaram
íntegros, na época de sua fundação. eram os correspondentes a cidades e bairros que, de
alguma forma, haviam ficado estagnados, pelos mais diferentes motivos”
216
A Capela de São Miguel Arcanjo tombada no momento de criação do SPHAN
representou a necessidade de manter elementos do passado colonial dentre os monumentos
remanescentes que a ele poderiam representar, demonstrando a preocupação do órgão de
preservação para com o reforço de uma identidade nacional, que representava
homogeneização das experiências sociais, debruçando-se sobre o caráter arquitetônico dos
bens tombados no período. Apesar do valor histórico da Capéla ser o fator preponderante
para sua preservação, são visíveis as lacunas na documentação hoje existente nos arquivos
do IPHAN, relativas às pesquisas históricas e aos documentos que pudessem elucidar as
questões referentes à construção e às alterações sofridas pelo imóvel.
217
Dentre os motivos da preservação de sítios urbanos, a publicação do SPHAN
218
que trata da proteção e revitalização cita a marginalização do patrimônio cultural, no
processo de desenvolvimento das vias de penetração e a sua substituição por outros
núcleos de interesse; ou ainda, uma degradação do uso dos monumentos devido a mudança
do nível sócio-econômico de seus ocupantes. Nesta linha de raciocínio, encontrei nas
pesquisas sobre a localidade de São Miguel Paulista, registros que indicam um período de
estagnação do bairro entre 1798 e 1891, assinalando o final do século XVIII e o início do
215
GONÇALVES, Cristiane Souza, idem, p. 72. A autora refere-se ao tombamento em 1937 e à obra de
restauração sob a qual passou a Capela de São Miguel Arcanjo, entre 1939/41.
216
Considerações baseadas em“ Publicação SPHAN nº 31, p.30.
217
Conforme GONÇALVES, Cristiane Souza, op.cit. p.72.
218
BRASIL, Ministério da educação e Cultura. SPHAN, 31. Proteção e Revitalização do Patrimônio
Cultural No Brasil. Brasília: Fundação Nacional Pró-Memória, p. 30.
96
século XIX como a perda de todas as características de aldeamento indígena, sendo os
índios dispersados e abandonados à própria sorte. Bomtempi registra, que por volta de
1850, por ordem do ministro Imperial “mandavam-se incorporar as terras dos índios no
patrimônio nacional, por não existirem os aldeamentos, diante da dispersão dos índios
219
”.
Segundo Leonardo Arroyo, “A igreja de São Miguel foi testemunha silenciosa de
vários séculos da história, sobrevivendo para a festa diária dos olhos de hoje que a podem
contemplar na sua tranqüilidade e no sossego das suas paredes brancas atingidas pelo
pó.”
220
O autor analisa que o “Registro Geral da Câmara de São Paulo” informa que em
1678, Barueri, Pinheiros, São Miguel e Conceição, tinham “suas igrejas com todo o
necessário para celebrarem os sacramentos”.
221
Mais tarde, a situação mudara e o autor
informa que em 1691, na sessão da Câmara de 23 de setembro, o procurador do conselho
requeria, especificando as igrejas de São Miguel e Nossa Senhora da Conceição, que visto
estarem aforando-se
222
as terras dos índios era justo que o foro se aplicasse para reparo
das igrejas daquelas aldeias porque estavam em falta de tudo, principalmente de telha.
223
A análise destes registros aponta para a preocupação com a preservação da Capela
de São Miguel Arcanjo no século XVII, atingida pela crise que assolou as igrejas que
ficaram sem a tutela dos jesuítas, expulsos da colônia em 1640 e sem párocos, porque os
clérigos não queriam ser vigários sem côngrua
224
. Os franciscanos assumiram a igreja de
São Miguel Arcanjo no início do século XVIII sob o pagamento de 25 mil réis anuais e
sua assistência perdurará por muitos anos, com alguns intervalos, de acordo com as
possibilidades econômicas e as conveniências das autoridades civis.
225
Sylvio Bomtempi, refere-se ainda à obra de Frei José Mariano da Conceição
Veloso, superior da aldeia de São Miguel em 1781, entregue às tarefas de “arruá-la,
219
BOMTEMPI, Sylvio. Op.cit.p.126.
220
ARROYO, Leonardo. Igrejas de São Paulo Introdução ao estudo dos templos mais característicos de
São Paulo nas suas relações com a crônica da cidade.Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1954,
p.62.
221
Registro Geral da Câmara de São Paulo, Vol III, p.169, Publicação do Arquivo Histórico do
Departamento de Cultura da Prefeitura, São Paulo apud ARROYO, Leonardo op.cit,
222
Segundo a Grande Enciclopédia Larousse Cultural, o aforamento (ato ou efeito de aforar) é um contrato
pelo qual o proprietário transfere o domicílio útil de um imóvel a outra pessoa, ficando esta obrigada a
pagar-lhe anualmente o foro; emprazamento. Grande Enciclopédia Larousse Cultural, o Paulo: Nova
Cultural Ltda, 1998, p.97.
223
Atas da Câmara de São Paulo, vol.VII, p.407, Publicação do Arquivo Histórico do Departamento de
Cultura da Prefeitura de São Paulo apud ARROYO, Leonardo op.cit.
224
Pensão que os párocos recebiam para seu sustento. Grande Enciclopédia Larousse Cultural, São Paulo:
Nova Cultural Ltda, 1998, p.1564.
225
Considerações baseadas em BONTEMPI, Sylvio, O Bairro de São Miguel Paulista. Secretaria de
Educação e Cultura, Prefeitura do Município de São Paulo. São Paulo: 1970.
97
melhorá-la e findar a reforma da igreja”, fato encontrado em cartas enviadas ao vice-rei em
1781.
226
É possível observar que, ao longo do tempo, a Capela de São Miguel Arcanjo
sofreu ações de órgãos públicos e também dos moradores que permitiram sua preservação
e transformação e que, apesar das mudanças ocorridas com as saída e entrada de
determinadas instituições e poderes para conduzir as ações da Igreja, a vida urbana do
bairro permanece e se transforma.
A Capela de São Miguel Arcanjo não possui importância somente como
patrimônio instituído, testemunho histórico de uma época remota, mas também como
referência cultural para os moradores do bairro de São Miguel. É o único exemplar
existente de capela alpendrada, que sobreviveu dentre muitas outras construídas na cidade
de São Paulo e arredores nos primeiros tempos da colonização e constitui-se em um
exemplo da arquitetura jesuítica e colonial do século XVII. A banca de comunhão em
jacarandá esculpido foi considerada pelo arquiteto Lúcio Costa
227
como das mais antigas
e autênticas expressões conhecidas de arte brasileira” e segundo Stella,
228
sugere
semelhanças com construções típicas espanholas e hispano-americanas. Daí o valor do
monumento não apenas pelo que representou no passado, mas também pela relação entre o
segmento que o produziu e outros setores sociais.
A Capela de São Miguel foi um dos bens tombados pelo Condephaat , em 1974,
juntamente com outros bens já tombados pelo SPHAN. As ações do Condephaat se
voltaram para os bens de interesse estadual e estiveram relacionadas à história sócio-
econômica e à arte da terra paulista. A proposta levava em consideração não apenas o
período colonial como também outros períodos, como o da cafeicultura e industrialização
e significou um avanço ao incorporar fases mais recentes da história ainda vivas na
memória urbana. Segundo Lemos, as idéias de Hügues de Varine Bohan trouxeram maior
compreensão sobre a complexidade e a amplitude de ações preservacionistas, posto que
encaravam a problemática do patrimônio cultural de modo abrangente, arrolando os
elementos pertencentes à natureza e os conhecimentos, as técnicas, o saber-fazer e os bens
226
Sobre o assunto, ver Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo Vol.XLIII,
p.390-39l e 399.
227
ARROYO, op..cit. 1954,p.66
228
STELLA, op.cit. 1992, p.697
98
culturais que englobam toda sorte de coisas, objetos, artefatos, construções, obtidas a
partir do meio ambiente e do saber fazer.
229
Um outro órgão de preservação que contempla a Capela de São Miguel Arcanjo é
o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da
Cidade de São Paulo (Conpresp)
230
. Segundo Fenelon, dentro de sua política de atuação, o
Conpresp tem como premissa desmistificar o instrumento legal do tombamento. Para o
órgão, tombar não significa congelar, cristalizar ou perpetuar modos de organização do
espaço urbano com suas edificações e usos. A postura desse Conselho pressupõe que o
tombamento deve ser um instrumento maleável e articulado com a dinâmica da cidade, na
medida em que trata da preservação de espaços urbanos significativos em nível da
identidade cultural.
231
Segue, portanto, as resoluções da ONU e da UNESCO no privilégio
ao tombamento por manchas, sempre que possível, e não de edifícios isolados.
Mudanças teóricas e práticas no campo da preservação procuram estabelecer o que
Cíntia Nigro Rodrigues denomina de processo de democratização do patrimônio”
232
e
que se refere a própria Constituição Brasileira, quando adota a denominação “patrimônio
cultural” no lugar de “histórico, artístico, arquitetônico”, indicando uma abrangência
maior de elementos que vão compor o patrimônio cultural. Desta forma,o artigo 216
seção II – DA CULTURA
233
, demonstra esta ampliação dos bens culturais a serem
preservados, apontando para a constituição do patrimônio cultural brasileiro como sendo
os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto.
Ainda no artigo 216, a Constituição Brasileira no seu parágrafo registra o “poder
público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural
brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação e
de outras formas de acautelamento e preservação”.
234
229
BOHAN, assessor da internacional da Unesco, atuou em lugares os mais diversificados, principalmente
os do terceiro mundo. LEMOS,Carlos. O que é patrimônio histórico. São Paulo: Brasiliense, 1982, p.8-9.
230
O Conpresp, criado através da lei 10032 de 27/12/85, e alterado pela lei 10236 de 16/12/86, é o órgão
colegiado de assessoramento cultural integrante da estrutura Secretaria Municipal de Cultura, composto por
representantes de várias secretarias e entidades da sociedade civil. A Capela de o Miguel Arcanjo é
tombada pelo Conpresp, através da resolução 05/91, publicação DOM de 19.04.91, que traz os bens
tombados pelo Condephaat para o Conpresp.
231
Conforme FENELON. Políticas Culturais e Patrimônio Histórico. In O Direito à Memória – Patrimônio
histórico e cidadania. DPH, Secretaria Municipal de Cultura. São Paulo: DPH/SMC, 1992, p.33.
232
RODRIGUES, Cíntia Nigro. Territórios do Patrimônio – Tombamento e Participação Social na Cidade
de São Paulo. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2001, p.15.
233
BRASIL.Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Rideel, 2002, p. 98.
234
BRASIL. Op.cit.
99
Ao definir a proteção do patrimônio cultural brasileiro como função do poder
público e da comunidade a Constituição Brasileira também estabelece outros mecanismos
de intervenção para a preservação do Patrimônio Cultural Nacional e não apenas o
tombamento. Assim, Luis Muniz Rocha Filho aponta, nos seus estudos sobre o
tombamento como proteção ao patrimônio cultural, o interesse na preservação da memória
nacional que recai sobre toda a sociedade de forma indeterminada, considerando que:
Ao estabelecermos como dever do Poder Público, com a colaboração da
comunidade, preservar o patrimônio cultural, a Constituição Federal ratifica a
natureza jurídica de bem difuso, porquanto este pertence a todos. Um domínio
preenchido pelos elementos de fruição (uso, gozo do bem objeto do direito) sem
comprometimento de sua integridade, para que outros titulares, inclusive os de
gerações vindouras, possam exercer também com plenitude o mesmo direito.
235
Dessa forma, democratizar o patrimônio significa entendê-lo como prática social e
cultural de diversos e múltiplos agentes. No social, esta luta se concretiza entre diferentes
sujeitos históricos, assumindo formas diversas e resultando em diferentes memórias.
Assim, aproximar pesquisadores, estudiosos, acadêmicos, trabalhadores, operários,
religiosos na discussão desse tema, provocará um entendimento de como os valores se
transmitem e são apropriados pelos moradores de São Miguel Paulista e pelas pessoas que
se relacionam com a Capela de São Miguel Arcanjo.
A Capela de São Miguel Arcanjo contou, até o momento do início de sua restauração
em 2006, com a proteção da Universidade Cruzeiro do Sul (Unicsul) que mantinha um
funcionário, o Sr. João Feher, para garantir a sua segurança e alguns cuidados como
limpeza, varrição e atendimento ao público. Até então, ela era aberta e recebia visitação de
pessoas interessadas em conhecê-la e fiéis devotos de São Miguel Arcanjo, como o próprio
senhor João nos conta: “Abro de segunda a sexta das oito às quatro, às dezesseis horas e
sábado é das oito às doze. quando é seis e meia eles abrem novamente pra celebrar a
missa, né... às dezenove horas”.
236
Até ser fechada em virtude do processo de restauração
pelo qual está passando, a Capela de São Miguel Arcanjo era usada para celebrações
litúrgicas, visitas, cursos, reuniões pelos moradores do bairro, visitantes, religiosos, outras
entidades. Após o início da restauração da Capela, o Sr. João foi dispensado desse
trabalho, acontecimento que indica a pouca preocupação com os laços afetivos que
estavam relacionados a esse bem cultural. O Sr. João, que sempre se preocupou e lutou
para que a Capela fosse restaurada e, portanto, preservada, acabou perdendo o trabalho
235
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco, Curso de Direito Ambiental Brasileiro, p.212-213. apud ROCHA
FILHO,Luiz Muniz Rocha. Tombamento: Instrumento de Proteção do Patrimônio Cultural. São Paulo:
PUC, 2005. Mestrado em Direito do Estado p.121.
236
Relato do Sr João Feher, em depoimento citado.
100
que fazia anos e pelo qual tinha o maior envolvimento, como demonstram alguns
trechos do seu depoimento. A restauração desse bem garante a refeitura das paredes de
taipa ou adobe, os ornamentos dos altares, porém deixa de lado o tecido que mantinha
aquele monumento, isto é, as relações humanas estabelecidas que eram, em grande
parte, garantidas pela presença simpática do Sr. João. A valorização desse bem cultural
pode ser percebida pelos seus relatos, visto que diariamente estava a postos recebendo as
pessoas que visitavam a Capela:
Sobre o caso da restauração, isso uns seis anos atrás, sempre o professor
Abelar , um professor de história da Unicsul, ele vinha sempre aqui, e o
professor Wilson também. Agora o professor Wilson não tem vindo mais porque
ele separou da diretoria da Unicsul. Ele sempre falava pra mim: - É essa igreja
precisa ser restaurada mas pra uma pessoa sozinha arcar com a despesa é
grande, tal.um dia eu falei pro professor Avelar, eu falei: - Olha, uma pessoa
interessante, seria se vocês pudessem entrar em contato com o Roberto Marinho,
a gente vê sempre ele inaugurando obras históricas e tudo né. Eu falei, eu não
tenho, eu sou um peão, eu não tenho como entrar em contato com ele. Por
exemplo, uma empresa, vamos supor, uma universidade, vocês tem como entrar
em contato, ainda mais sendo uma escola, uma universidade, né. Aí ele falou pra
mim: - Ah, nós tentamos duas vezes mas não conseguimos. eu falei pra
ele: - Mas tenta, duas vez não deu certo, tenta a terceira, quarta, quinta, sexta
vez, até ...
237
Os dois personagens do depoimento sentem a necessidade da restauração e a
persistência diante das dificuldades que se apresentam para esse tipo de iniciativa na nossa
sociedade e, ainda, João apresenta proposta para se efetivar a restauração demonstrando
como as pessoas elaboram soluções que, segundo seu modo de pensar, resolverão os
problemas sociais apresentados no seu cotidiano.
João Feher continua seu relato, atribuindo importância aos visitantes, mostrando
como vinham de longe para visitar a Capela e a sua forma de resolver as dificuldades
postas no momento, procurando através de relações sociais estabelecidas no momento,
encontrar, novos códigos para se comunicar:
Então, nesses nove anos e meio que eu estou aí, tenho recebido assim, muita
gente assim de muitos países, né. Por exemplo, de Portugal já tiveram aí
bastante gente, da Itália, da Espanha, até da Alemanha, né. Por incrível que
pareça. No ano passado chegaram três pessoas, uma senhora com a filha e o
genro da Alemanha. Eles mal sabiam falar o bom dia, né. E aí, eu mostrando,
gesticulando no modo da gente movimentar ... eles estavam me entendendo e
eu também entendendo eles, depois de um certo tempo eu dei sinal pro rapaz
dizendo se eles teriam uma máquina fotográfica ou filmadora, ele deu sinal
se podia. Eu falei que sim, ele levou uns dez minutos, voltou com a máquina
fotográfica, começaram a tirar as fotos, eu mostrando as partes principal e... aí,
eles tiravam entre eles... aí uma certa hora eu dei sinal se eu podia tirar dos três,
né... eles entenderam, eu tirei várias fotos dos três, eles pediram pra que
eu participasse também, tiraram foto minha, então foi um dia muito bonito...
muito gratificante... a gente sendo assim, zelador, a gente fica muito contente
237
João Feher em depoimento citado.
101
quando recebe pessoas assim, ... e todos acham que é uma construção muito
bonita ...
238
Preocupado com os visitantes que fotografam a Capela, a fotografia adquire para
ele, um sentido de vestígio do real que seeternizado e até mesmo, levado para outro
país. Em outro relato, o Sr. João evidencia que nem sempre as pessoas valorizam a Capela
como ele:
Mas infelizmente não é todos que pensam assim. Ela é vítima de vandalismo,
de apedrejamento, quantas vezes eu cheguei aí de manhã encontrei janelas
arrebentadas, portas laterais arrebentadas. Já teve até pessoa assim, um senhor
aí falou pra mim: - É, o governo devia demolir esse prédio aí, isso é um casarão
antigo ... e podia construir uma escola. Eu falei: _ Olha, mas tem tanto espaço
pra se construir escola, o senhor não sabe o valor que isso tem pra gente. Ele
falou: - Pra mim o tem valor nenhum, isso aí é um casarão antigo. Eu falei: -
Bom, licença, não tem diálogo com o senhor... que vi que o senhor não
entende, né... enquanto que o senhor acha que isso é um casarão, muita gente...
ne...
239
A entrevista com o sr. João ocorreu no interior da Capela de São Miguel Arcanjo e
nesse dia, estava uma pessoa limpando os seus bancos (passando pano, tirando pó) que
o sr, João identifica como um amigo, Rafael, conhecido desde que veio cuidar da Capela
há quase dez anos e que o acompanha desde então.
... Até as quatro horas quando a gente precisa sair, então ele sai, né. E é até bom
que ele... faz companhia pra mim assim, né? [...] Eu sempre dou um lanche pra
ele, né... eu trago lanche, né... eu faço hora corrida eu não paro pra... sair pra
almoçar... então eu trago o lanchinho de casa e dou uns dois lanchinho pra
ele e... duas três vezes por semana eu dou um dinheirinho também pra ele
passar o fim-de-semana, coitado... quanto ao mais aonde ele dorme ali perto do
pronto socorro, do Tide Setúbal... tem várias igrejas, assim... cada dia é uma,
né... à noite eles distribuem marmitex pro pessoal e... como ele é uma boa
pessoa mesmo... o pessoal lá do pronto socorro, médicos, enfermeiros dão
assim um dinheirinho ou dão roupazinha pra ele... e ele vive assim...
240
Esse relato descortina outros horizontes que vão além do uso da Capela como
lugar sagrado ou de fruição de seus objetos e de sua arquitetura. Demonstra existirem
outras relações sociais cotidianas e apontam para uma troca de sociabilidades que passam
por laços de solidariedade e companheirismo. Além disso, o relato dá visibilidade a outros
moradores do bairro, pessoas excluídas dos direitos sociais mais elementares como a
moradia e a alimentação e que, no entanto, conservam, limpam e, portanto, preservam. É
um uso diferenciado. No dizer do sr. João, “a Capela é a casa dele durante o dia...”
Ele diz que se sente bem aqui... aqui ele diz que encontra paz aqui, ne ...
pessoas boas... e ficando lá... no pronto-socorro só tem alcoólatras, usuários de
drogas... agora à noite, coitado ele é obrigado ficar lá... então lá. Então, lá os
guardas como conhecem ele, eles abrem uma exceção ... e ele é a única pessoa
238
João Feher, em depoimento citado.
239
Idem.
240
Idem.
102
que pode ficar sentado onde tem o pessoal que espera a vez da chamada pra ir
no médico... ele fica sentado e dorme assim, sentado coitado.
241
As relações sociais vividas na dinâmica social vão ultrapassando a Capela e a
praça direcionando-se para outros equipamentos do bairro, como o pronto-socorro e a
outras pessoas como guardas, usuários, funcionários. Além disso, oportunizam ao olhar
não a interpretação das fachadas, dos prédios e dos espaços públicos mas o caráter de
mobilidade e marcas de conflitos, que caracterizam as relações sociais.
Foram tomadas, recentemente, medidas no sentido de angariar recursos para
promover a sua restauração da Capela de São Miguel Arcanjo, por meio do Ministério da
Cultura que publicou portaria
242
autorizando o proponente da restauração a captar
recursos mediante doações ou patrocínio através da Lei Ruanet
243
, sob a forma de
incentivos fiscais. Esta proposta de restauração tem como proponente a “Associação
Cultural Beato José de Anchieta”
244
, entidade civil, cujo objetivo geral “é resgatar,
preservar e divulgar o patrimônio cultural da Diocese de São Miguel Paulista”.
Este templo religioso pertence à Diocese de São Miguel Paulista, que também
toma medidas no sentido de sua preservação, como o lançamento do projeto de restauro
realizado em cerimônia no dia 18 em setembro de 2005, iniciado com o discurso da
gerenciadora do projeto pela empresa Format:
Boa noite a todos autoridades públicas presentes. A empresa Format tem um
orgulho muito grande de poder participar desse projeto. Participamos do projeto
da Catedral da Sé, que foi um dos projetos mais bem sucedidos de São Paulo
como projeto cultural, onde foi montada uma equipe executiva, sob
coordenadoria de Dom Cláudio para que os trabalhos pudessem acontecer a
contento. Essa mesma experiência, Dom Fernando legal, conversando com Pe.
Geraldo nos convocou pra que nós também aqui em São Miguel cuidássemos
com esse mesmo olhar de profissionalismo da restauração de uma igreja como
patrimônio da cidade e como patrimônio religioso e que nos pudéssemos
também reproduzir o processo tão bem sucedido da Catedral da Sé. Formou-se
uma comissão nos mesmos moldes onde ... participava como participa hoje
aqui, a Concrejato como executora doas obras, a Format na qualidade de
gerenciadora e viabilizadora financeira junto com essa equipe, Pe.Geraldo que
agradecer por esse evento também estar acontecendo, pelo apoio de todos que
participam da comissão e todas as pessoas que tem a vontade de transformar a
241
Idem.
242
Portaria nº 176 de 26 de abril de 2005 do Ministério da Cultura, em cumprimento ao disposto no
parágrafo do art. 19 da Lei 8313, de 23 de dezembro de 1991 aprova os projetos culturais relacionados
a esta portaria, na forma prevista pelo parágrafo do art.18 e no art.26 da Lei 8313/91, alterada pela Lei
9874/99.
04.2640 Restauração da Capela de São Miguel Associação Cultural Beato José de Anchieta”
CNPJ/CPF: 06.075.379/000l-85 Processo: 01400.004128/04-34 SP São Paulo. Valor do Apoio R$
3.039.656,57 – Prazo de captação: 25/04/2005 a 31/12/2005.
243
Lei Rouanet (Lei 8313/91) Institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura” (PRONAC), cuja
finalidade é canalizar recursos para os projetos culturais. (WWW.cultura.gov.br/corpo.php)
244
Associação Cultural Beato José de Anchieta” (ACBJA), CNPJ: 06.075.379/0001-85, ver nota de
rodapé nº 32.
103
Capela de o Miguel Paulista não a Capela de São Miguel, mas a Capela de
São Paulo e a Capela do Brasil. Essa é a nossa expectativa nesse projeto.
Começamos isso dois anos, iniciou-se chamando arquitetos, muitas reuniões
até chegarmos ao projeto que o IPHAN aprovasse.
245
Na apresentação do projeto e mesmo na análise do processo, não houve proposta
de interação entre os moradores e a equipe técnica responsável pela restauração. Desse
modo, observa-se a memória social tratada como elemento externo a essa relação
patrimônio/preservação/restauro, o que demonstra o quanto a restauração atual desse bem
não expressa outras experiências sociais. A preocupação com o preservação segue
critérios estéticos, detalhados no memorial descritivo, fundamentadas por laudos do
estado de conservação, análises laboratoriais e prospecção arqueológica, visando
identificar antigas reformas e restaurações executadas, indicando a evolução dos sistemas
construtivos e materiais empregados nas paredes e pisos, porém não se percebe nenhuma
ação visando a participação dos moradores do bairro, além da formação da associação
para viabilizar a concretização do restauro.
Assim, a gerenciadora do projeto de restauro continua seu discurso analisando as
maneiras de angariar recursos para viabilizar a restauração, ressaltando os benefícios no
investimento de capital pelas empresas na preservação desse bem cultural, sem
demonstrar qual seria o papel e a participação dos usuários, ou ainda, quando seriam
ouvidos para relatarem suas experiências e aspirações.
Essa Capela é tombada e é uma Capela que é a menina dos olhos do IPHAN
porque foi o primeiro monumento tombado pelo Iphan. Conseguimos a
aprovação do projeto, pelo IPHAN que acompanhou conosco todo esse
processo e encaminhamos a Brasília. Brasília esse ano aprovou o projeto
através da lei de incentivo do Pronac que é a lei Rouanet o que possibilita as
empresas investidoras nesse projeto possam debitar do imposto de renda a
quantia que eles colocarem no projeto, ou seja, as empresas privadas ou estatais
se colocarem l0 reais no projeto, vão poder abater 10 reais do seu imposto de
renda. Isso para as empresas significa que eles vão poder agregar no valor o
potencial que é o valor do patrimônio histórico nosso a Capela de São Miguel À
historia da sua empresa sem fazer investimento, simplesmente, tirando de um
lado e colocando no outro. Acho que esse é um grande recurso de apoio à
cultura e ao patrimônio nacional.
246
Da mesma forma, o discurso do engenheiro diretor da área de patrimônio histórico
da Concrejato revela a importância arquitetônica do bem a ser restaurado, sua
originalidade e permanência durante todos esses anos, mas não visibilidade às pessoas
245
Trecho da palestra proferida por Sra. Rosana de Lellis Gerenciadora do projeto cultural pela Format, por ocasião
da Cerimônia realizada no interior da Capela de São Miguel Arcanjo, 18 no dia de setembro de 2005 em
comemoração aos 386 anos de o Miguel Paulista apresentando o projeto de restauro da Capela liderado
pela Diocese de São Miguel Paulista. Gravado pela pesquisadora.
246
idem
104
que com seu trabalho e ações cotidianas, fizeram com que este bem cultural
permanecesse até os dias de hoje:
A gente ta desenvolvendo um trabalho muitos anos e... um dos trabalhos
mais importantes que nos executamos, foi justamente a restauração da
catedral da e que propiciou realmente que a gente pudesse estender esse
nosso trabalho, culminando com esse trabalho que foi feito aqui. A Catedral da
arquitetonicamente é diferente o trabalho, a arquitetura dessa igreja, que ela
não é a ostentação, né... o que tem a catedral, a imponência da catedral... ela
tem a simplicidade... e essa Capela ela foi anterior até a idade do bairro ela
realmente ela foi construída em cima das ruínas de outra igreja que foi
construída em 1560. [..]e essa Capela ela permaneceu ao longo de de 400 mais
de 400 anos, nesse estado que ela tá, com todas as ... a maioria do que ela tem
de peças e arquiteturas são originais e ela ter permanecido, não ter sido
destruída acho que já vale realmente uma análise de toda a sociedade, da
comunidade como um todo de que realmente, dentro de São Paulo essa igreja
sendo a mais antiga a gente tem a necessidade realmente como comunidade da
gente trabalhar pra preservá-la, porque realmente ela passou quase toda a
história do país do Brasil, quase da idade do Brasil, ela foi toda ela rodeada
por construções, quase foi engolida por elas e na realidade o que a gente quer é
justamente resgatá-la ... ela como a figura principal aqui da praça, do entorno e
que irá gerar a partir dessa restauração uma nova configuração desse entorno,
da praça, do bairro porque ela será originária de todo esse processo, com
certeza ...
247
Na fala do engenheiro, há algumas menções da sociedade e da comunidade, porém
não há demonstração das formas de participação dos moradores, de preocupação com suas
opiniões ou consultas para verificar aquilo que realmente querem para a Capela e para a
praça, como usuários que realmente são desses espaços urbanos.
Sobre o entorno da Capela, ou seja, a Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra, o
projeto prevê algumas demolições: caramanchão, canteiros e palco. Todos os elementos
que se apresentam como barreiras visual ou física, que estão fora de contexto e que
possibilitam a criação de ambientes escondidos serão demolidos para melhorar a
legibilidade da área, dando maior enfoque ao elemento construído que deveria ser o
principal equipamento da praça, a Capela. Desse modo, com a preocupação de ressaltar o
elemento construído, “o principal equipamento da praça, a Capela” o projeto não levou
em consideração outras formas de manifestações, como as apresentações dos grupos de
tocadores de forró, representantes de grupos sociais migrantes, que também ocupam esses
locais a partir da década de 30, desconsiderados nesse processo de revitalização da praça.
247
Discurso pronunciado pelo engenheiro Ronaldo Rich, executor das obras de restauro pela Concrejato por
ocasião da Cerimônia realizada no interior da Capela de o Miguel Arcanjo, no dia 18 de setembro de
2005 em comemoração aos 386 anos de o Miguel Paulista apresentando o projeto de restauro da Capela
liderado pela Diocese de São Miguel Paulista. Gravado pela pesquisadora.
105
O palco que havia na praça e mesmo o caramanchão ao serem subtraídos deixaram a
praça mais limpa, porém sem o encanto das árvores e vegetação que a compunham
248
.
As ões da Diocese de São Miguel Paulista, no sentido de tomar medidas para
restauração e, conseqüentemente, para a preservação da Capela de São Miguel Arcanjo,
vão ao encontro das orientações da Igreja Católica, entidade detentora da propriedade de
vários bens culturais validados pelos órgãos de preservação do patrimônio cultural, que
tem tomado medidas para a conservação desses bens com publicações e orientações
destinadas à formação de presbíteros, atentando para os bens culturais, formação de
bibliotecas e arquivos eclesiásticos.
249
Demonstrando o reconhecimento da necessidade de proteção dos bens da Igreja
Católica nas diversas modalidades culturais, o Papa João Paulo II promoveu ação para
criar a Comissão Pontifícia para os bens culturais da Igreja”
250
, dirigindo sua atenção à
inventariação e catalogação dos bens culturais que pertencem às entidades e instituições
eclesiásticas a fim de tutelar e valorizar o ingente patrimonial histórico e artístico da
Igreja.
251
Dessa forma, a Arquidiocese de São Paulo orientou os Bispos Auxiliares e os
Vigários Episcopais para o funcionamento nas Igrejas de “Comissão de Bens Culturais”
com uma tríplice finalidade: 1) proteger os bens artísticos, arquivísticos e bibliotecários
da Igreja, evitando sua deterioração ou sua depreciação; 2) orientar e formar as pessoas
eclesiásticas ou leigas, a respeito do valor destes bens; 3) orientar os atuais projetistas e
outros profissionais, na produção de novos elementos da arte litúrgica e dos demais bens
culturais da Igreja, a fim de que as construções e reformas de templos, a organização de
arquivos e bibliotecas, as composições musicais e tudo mais que se refere a bens culturais,
sejam feitas dentro de critérios e técnicas apropriadas e assim, sirvam sempre melhor, ao
povo de Deus.
252
Assim, a Igreja Católica seguindo um movimento mundial de busca da
preservação do patrimônio cultural conclama seus porta-vozes para a urgência de
cuidarem do patrimônio que, “para além da “tutela vital” dos bens culturais, é importante
248
Projeto sob a responsabilidade da Associação Cultural Beato José de Anchieta, aprovado pelo IPHAN,
em ofício 269/04-9ª SR/SP- IPHAN de 03 de maio de 2004.
249
“A formação dos futuros presbíteros para a atenção dos bens culturais” de 1992; as “Bibliotecas
Eclesiásticas” de 1994; “A função Pastoral dos Arquivos Eclesiásticos “ de 1997.
250
A Primeira Assembléia Plenária desta comissão ocorreu em 12 de outubro de 1995.
251
Conforme Carta Circular “Necessidade e Urgência de Inventariação e Catalogação do Patrimônio
Cultural da Igreja” da “Pontifícia Comissão para os Bens Culturais da Igreja”, Palazzo Della Cancelleria,
00120 Citta Del Vaticano, 08/123/1999, p.5.
252
Conforme “Comissão para os Bens Culturais da Igreja – Arquidiocese de São Paulo”, de 26/09/2000.
106
a sua “conservação contextual” uma vez que a valorização deve ser entendida no seu
conjunto”, considerando que, a função cultural e eclesial que, incessantemente, caracteriza
os mesmos bens culturais da Igreja representa o melhor suporte para a sua conservação.
253
Nessa época de intensificação do crescimento econômico e integração
internacional que coincidente com um momento de ruptura que vem atravessando a Igreja
Católica e com a abertura de novas formas de percepção e interpretação do universo
religioso, um interesse da Igreja Católica em seus bens patrimoniais. Esse debate é
resultado de novas políticas patrimoniais engendradas na sociedade que põem em
evidência mecanismos de preservação de bens culturais, como a Capela de São Miguel
Arcanjo.
A preservação da Capela de São Miguel Arcanjo é amparada pela legislação
específica de 37, somada a instituição estadual de preservação na década de 70 e pelo
conselho municipal na década de 80. Por outro lado, a questão do tombamento e da
preservação, torna-se ineficaz se estiver dissociada das demais diretrizes da políticas
urbanas, articuladas com as lutas pela qualidade de vida, preservação do meio ambiente,
direito à pluralidade e cidadania cultural.
Desse modo, o interesse pela defesa da Capela de São Miguel Arcanjo decorre da
necessidade de manter laços com o passado, com ões que partem do presente,
entendendo que quem preserva é o sujeito histórico, indivíduo exposto, vulnerável, mas
também capaz de agir. É importante que usos dinâmicos permitam que o patrimônio
ganhe vida e a opção pela recuperação desse patrimônio cultural terá que atender às
necessidades sociais, transformando os moradores da região em protagonistas que têm
direito à preservação desse bem, único meio para evitar a perda definitiva do patrimônio,
lembrando que a perda de um bem cultural acarreta a perda do conhecimento a ser
transmitido para as gerações futuras.
253
Conforme Carta Circular “Necessidade e Urgência de Inventariação e Catalogação do Patrimônio
Cultural da Igreja” da “Pontifícia Comissão para os Bens Culturais da Igreja”, Palazzo Della Cancelleria,
00120 Citta Del Vaticano, 08/123/1999, p.7.
107
2.2. Desvendando outras práticas
2.2.1. Movimento Popular de Arte
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Numa perspectiva de buscar os sentidos das produções artísticas nas políticas
culturais da cidade e refletir sobre experiências realizadas em São Miguel Paulista,
buscando como isso se expressou no bairro, espaço para estas manifestações, e como se
cruzou com a problemática do patrimônio é que merece atenção, nessa pesquisa, o
Movimento Popular de Arte (MPA). Surgido no ano de 1978 no bairro de São Miguel
Paulista, era formado por artistas que buscavam espaço para apresentar suas produções:
músicos, atores, poetas, artistas plásticos, professores que se reuniam para mostrar a
produção cultural existente no bairro, com apresentação de shows musicais, peças teatrais,
brincadeiras infantis, varais de poesia, mostras de pintura e fotografia, filmes ao ar livre
que eram exibidos nas praças de São Miguel Paulista.
Arantes e Andrade
254
relatam que no ano de 1978 foram encarregados de uma
pesquisa pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, preocupada em traçar uma
nova política de revitalização” dos sítios de valor histórico e/ou artístico sob a sua tutela,
localizados em bairros populares: “uma pesquisa sobre a produção artística popular na
região de São Miguel Paulista, a qual nos proporcionou o contacto com diferentes artistas
(músicos, poetas, pintores, bailarinas, atores e fotógrafos) que, em condições
extremamente adversas, têm procurado desenvolver e divulgar seus trabalhos”.
255
Aliada a essa proposta, colocava-se a questão da revitalização de edifícios de
interesse histórico e, no caso de São Miguel, a Capela de São Miguel Arcanjo.
Arantes, no entanto, reflete sobre a concepção de arte e de cultura que embasava a
proposta:
Esse trabalho partia do pressuposto que a meu ver era falso. Os que me
convidavam a fazê-lo consideravam a área onde se localizava esse bem, a Zona
254
Antonio Augusto Arantes, pertencia na época ao Departamento de Antropologia da Universidade
Estadual de Campinas e Marilia Andrade ao Departamento de Psicologia Social da Pontifícia Universidade
Católica de Campinas.
255
ARANTES, Antonio Augusto e ANDRADE, Marília. A Demanda da Igreja Velha: Análise de um
Conflito entre Artistas Populares e Órgãos do Estado. Revista de Antropologia, Separata do volume XXIV.
São Paulo: USP, 1981 p.98.
108
Leste de São Paulo, uma área culturalmente muito pobre, com uma produção
local praticamente inexistente ou muito insignificante. E havia quase como um
corolário dessa concepção, que seria necessário, efetivamente, criar a
possibilidade de se desenvolverem formas de produção artística, enfim,
incentivar a produção artística e as formas de expressão de maneira geral nessa
faixa da população.
256
Observa-se que, para Arantes, a concepção da Secretaria da Cultura é de que o
havia em São Miguel Paulista formas de produção artística e de expressão, porém não foi
preciso muito tempo para que o pesquisador encontrasse uma gama de experiências
sociais diversificadas, contrariando concepções pré-estabelecidas do órgão responsável
pela cultura na cidade, que subestimava as experiências pessoais e sociais dos moradores
de São Miguel. No histórico do Movimento Popular de Arte, encontrei que a pesquisa
realizada pelos antropólogos da Unicamp, visava encontrar uma fórmula de dinamizar a
ocupação da Capela Histórica de São Miguel Paulista, acabou por contactar e detonar o
processo de aglutinação de diversos grupos e artistas individuais existentes na região.
257
Assim, a Capela de São Miguel Arcanjo abrigaria essas ações sociais que aglutinaria
artistas e moradores de São Miguel Paulista em torno dessas experiências.
Desse modo, a partir das discussões mantidas durante os contatos e da
disponibilidade da Capela, surgiu o interesse dos artistas em realizar uma mostra de arte e
no bojo das discussões, a necessidade de união constante, nascendo assim o MPA.
258
Sacha Arcanjo, cantor e compositor, participante do MPA e atualmente
coordenador cultural da “Oficina Cultural Luís Gonzaga”, relata o seguinte:
No início foi o seguinte, nós fizemos um abaixo assinado solicitando um uso
específico, um uso artístico (da Capela) ... que era idéia de manter exposições...
essa coisa de lançamento de livros... leitura de recitais dentro e... música...
mas não música com equipamento de som, nada disso... música com a qual a
gente pudesse auferir o espaço... sei ... canto coral, voz de violão, uma coisa
maneira... teatro, entendeu... mas daí não foi possível.
259
256
ARANTES, Antonio Augusto. (org.) Produzindo o Passado. São Paulo: Brasiliense, 1984, p.150.
257
MPA – Projeto de Ocupação da Capela Histórica de São Miguel Paulista . São Paulo: USP, 1981 p.10.
258
Considerações baseadas em: MPA Projeto de Ocupação da Capela Histórica de São Miguel Paulista .
São Paulo:USP, 1981 p.10.
259
Sacha Arcanjo, cantor e compositor, 57 anos, Coordenador Cultural da Oficina Cultural Luís Gonzaga,
em depoimento para a pesquisadora em 06/02/2007. Veio para o Miguel Paulista em 1966, nasceu em
São Gabriel (BA) em 1949. Cantor e compositor, participou do MPA (Movimento Popular de Arte) junto
com Antonio Augusto Arantes, participa das discussoes sobre as prioridades culturais da regi’ao,
principalmente as programadas pelo Forum Cultural de São Miguel Paulista. A Oficina Cultural Luís
Gonzaga é localizada em o Miguel Paulista, a oficina leva o nome do compositor Luiz Gonzaga, o rei do
baião (1912-1988). Reforçando os laços com a comunidade, a Oficina tem atuado intensamente com cursos
externos, programando atividades em escolas, associações, salões comunitários e outros espaços culturais da
região. São Miguel é um bairro de forte presença nordestina; essa característica sempre se reflete na
programação, com cursos de dança, música, teatro e folclore dedicados à expressão cultural do Nordeste.
http://www.assaoc.org.br/oficinas/capital/luizgonzaga.php - Acesso dia 24/092007.
109
O jornal Folha de São Paulo”, publica que a experiência da Capela deu certo,
segundo os artistas, atraindo mais de quatro mil pessoas e “mostrando que a arte produzida
pela população de uma localidade visando seus problemas identifica o homem dessa
região com seu meio e possui grande penetração mesmo que não haja muita
divulgação”
260
. O êxito foi admitido pelos próprios antropólogos que registraram uma
freqüência maior que no Teatro Martins Pena, na Penha, onde grupos profissionais atraiam
no máximo 2800 pessoas em igual período.
Sposito, em estudo feito sobre o movimento, relata que “ao encerrar-se a Mostra a
Igreja Velha é fechada novamente, a discussão de sua preservação volta a ser para o
DPH
261
, uma questão de domínio das insncias competentes – a Igreja Católica e o
próprio DPH. Enquanto pesquisador, Arantes terminou aí a sua tarefa, porém, o
movimento do qual ele foi um importante protagonista já havia se consolidado.”
262
Apesar disso, os integrantes do movimento continuaram se reunindo nas casas de
um ou outro artista e, por vezes, ao ar livre nas praças e ruas da cidade, com gente como
Akira, 28 anos, borracheiro, Artêmio, 19 anos, gráfico, poeta e ator, Edson Gordo, poeta e
escriturário. Aos poucos eles foram definindo claramente seus objetivos, na explicação da
“Folha de São Paulo”:
Revitalizar a arte popular como forma de resistência aos padrões culturais
alienantes, impostos pelos meios de comunicação de massa”., “abrir canais de
participação à população na produção artística e cultural da periferia”, abrir
espaço de apresentação da arte em ruas, praças, jardins, entidades de bairro e
onde mais for possível, fazendo das apresentações um ponto de reflexão da
realidade cultural do bairro [...] criar uma sede [...] apoiar outros grupos ou
movimentos cujas atividades concordem com os objetivos do MPA.
263
Esses movimentos culturais são frutos das transformações ocorridas nos anos
posteriores à década de 30 (conforme capítulo I) que alteraram as condições de vida, de
trabalho e as relações sociais, com o advento da industrialização e o aumento da migração
no bairro. Esse processo de transformações sociais se faz sentir nas mudanças de
atividades, no modo de organização para realizá-las e nas disputas pelo uso e controle dos
espaços, nas produções e organização das atividades artísticas e de lazer no bairro. Da
260
Jornal “Folha de São Paulo” de 05/04/1981
261
DPHDepartamento do Patrimônio Histórico – órgão da Secretaria Municipal de Cultura, é responsável
pela preservação de documentos hiostóricos, administração das casas históricas, bem como do acervo de
bens moveis e dos documentos em suporte fotográfico, além da salvaguarda do patrimônio histórico e
cultural. É o órgão técnico de apoio ao Conpresp, conselho responsável pela aplicação da legislação
municipal de tombamento. Realiza pesquisas e pareceres que instruem os pedidos de tombamento, além de
aprovar e orientar as intervenções em bens protegidos.
262
SPOSITO, Marilia Pontes (coord) Memória do Movimento Popular de Arte do Bairro de São Miguel:
Cultura, Arte e Educação. São Paulo: USP – FFCL, 1987, p. 64.
263
Jornal “Folha de São Paulo” 05/04/1981.
110
multiplicidade de vivências e lutas que engendram a formação social, a experiência desses
artistas foi se constituindo e surgindo propostas de projetos para realização das ações. Da
proposta de revitalização dos sítios antigos de São Paulo, surgiu a idéia de aproveitamento
das manifestações existentes nas praças de São Paulo, para fazerem parte de um projeto
maior. Sacha relata:
... depois de uns quatro ou cinco anos de manifestações começou a pintar a idéia
do Anhembi, na época Paulistur, hoje SP Turis, né? Então na época a Paulistur
era com João Dória o presidente da Paulistur, com a idéia de: onde que tem o
que na cidade? Então fomos pesquisar São Paulo, tinha o Bar do Chorinho que
era na Rua Pinheiros e tinha uma esquina onde rolava chorinho, ali ficou, o
Anhembi montou uma estrutura lá que acabou virando Rua do Choro. Aí,
pesquisaram, tinha um lugar, na Praça da Aclimação, que de vez em quando
tinha um show de Rock, eles investiram e virou Praça do Rock e São
Miguel, por conta dessa manifestação nossa, acabou sendo criada a Praça do
Forró.
264
O jornal O Estado de São Paulo” do dia 28/08/87, em matéria intitulada
“S.Miguel, o Nordeste em S.Paulo” assinada por Gilberto Nascimento, traz um panorama
do bairro aliando-o à região nordeste do Brasil “- a maior parte da Bahia como garante o
escrivão José Roberto Bonizi, do Cartório de Registro Civil”
265
. Na reportagem, o jornal
aborda a Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra como o lugar onde os nordestinos podem
dançar forró nas noites de sábado. Segundo o jornal, “ali desde maio de 84 funciona a
“Praça do Forró”, organizada pela Prefeitura. É uma das poucas opções de lazer do bairro,
que o único cinema - Cine Lapenna foi transformado em sede da Igreja Universal do
Reino de Deus”.
266
A mesma matéria indica os usos diferenciados da praça, a organização dos
moradores para se apropriarem e evidenciarem seus costumes, o apoio dos órgãos
municipais nesse processo e, ainda, a reutilização de um espaço próximo à praça
apropriado para outras funções, no caso o prédio onde funcionava o cinema que passa a ser
templo religioso e aborda as atividades artísticas organizadas pelo MPA. De acordo com o
jornal, “o hábito de dançar na praça teve início em 1978 [...] através do MPA. Um palco
improvisado, um microfone, algumas caixas de som emprestadas de amigos e os
instrumentos simples eram suficientes para atrair multidões”.
267
Para Izaltino Ribeiro, conhecido por “Izal”, 52 anos, professor de História da rede
pública estadual, que veio morar em São Miguel com dez anos de idade, preocupado em
264
Sacha Arcanjo, em depoimento citado.
265
Jornal “O Estado de São Paulo” de 28/08/87 – S. Miguel,. O Nordeste em São Paulo.
266
Idem.
267
Idem.
111
registrar a história de São Miguel, especialmente do MPA, aponta dois momentos
diferenciados de intervenção na praça:
... o primeiro com esse processo que é da Secretaria da Cultura Municipal,
bancado pela Unicamp, que é o projeto do Arantes... nessa primeira
intervenção houve um fato interessante, houve uma consideração... e uma
resignificação de agentes históricos mesmo, dos que ocupavam a praça, ou seja,
a gente pega fotos antigas que tem na Unicsul, tem o cinema onde é hoje a
Igreja Universal, o cine Lapenna ... tinha a praça, ali não tinha aquela
avenida, então, o desenho aéreo a praça tinha um parque infantil, sempre que
eu converso com as pessoas ai eles falam que estudaram lá, tinha famílias, tinha
coreto, lambe-lambe, esse lambe-lambe ficou até o MPA, ficava rolando as
coisas, aquela barulheira da turma na praça e ele lá ... nesse sentido, esse
pessoal, faziam apresentações na praça, mas o era assim... nada suntuoso ...
tocava, brincava, e ia embora... e, quando houve essa intervenção que fez que
surgisse o MPA essa manifestação resgata tudo isso, ajuda a resgatar tudo isso...
e isso contribuiu também para que a praça fosse chamada Praça do Forró... na
verdade, pelo uso...
268
Ao elaborar sua reflexão, Izal demonstra um entendimento claro de que o espaço
adquire significado pelo seu uso e pelas relações que nele se estabelecem. Aparecem o
espaço urbano e os sujeitos que nele interferem de forma ativa, nas mais diversas
atividades diárias.
Num outro momento, refletindo sobre a reforma da praça acontecida no início de
2007, da qual retiraram algumas árvores para que a praça ficasse “mais clara” e colocaram
vários bancos, Izal continua:
...eu to percebendo assim, tomara que não, mas por exemplo, vai colocar feira?
Vai fazer eventos? Se você não resignificar, ir lá buscar essas coisas que
aconteceram, estará negando ... e não vai ter vida a praça... não vai ter a função
que algumas pessoas querem... então, um monte de banco que tem ... as
pessoas vão sentar ali, de dia e esperar o que?
269
Na verdade, os argumentos do depoente, ao comparar os dois acontecimentos, o
uso da praça pelo MPA, iniciado em 1978, e a sua reestruturação, ocorrida em 2007,
sinalizam para diferentes modos de se pensar a cidade. No primeiro movimento, a praça e
o bairro eram pensados pelo uso de seus moradores, dos seus modos de expressão, de
ações para eles significativas. Neste segundo, em 2007, o houve participação popular e
nem foi pensado seu uso pela população. Os bancos foram colocados, as árvores retiradas,
porém as atividades sociais que poderiam acontecer não entraram no bojo das discussões;
268
Izaltino Ribeiro, em depoimento à pesquisadora em 06/02/2007. Produtor cultural da Casa de Cultura
Municipal, professor de História da rede pública estadual, veio morar em o Miguel com dez anos de
idade. É um sujeito preocupado em registrar a história de o Miguel e, junto com outras pessoas, organiza
o material oriundo do MPA (Movimento Popular de Arte), coleta de depoimentos, montagem de filmes,
organizando reuniões para a formação de um centro de memória em São Miguel. Nascido no Paraná em
1954. Participa de reuniões para discussão sobre os usos sociais da Praça Pe. Aleixo Monteiro Mafra, junto
com a associação “Amigos da Praça do Forró” assunto tratado no próximo item deste capítulo.
269
Izal Ribeiro, em depoimento citado
112
isso não significa que não haverá, na praça, qualquer manifestação, porque os moradores
arrumam formas de se apropriar dos locais e fazer deles espaço para suas ações.
270
O Diário Oficial da Cidade de São Paulo, do dia 26 de novembro de 2005, traz uma
reportagem que se intitula São Miguel. De Anchieta a Piassi, histórias dos confins da
Zona Leste”. O título da matéria faz referência à família Piassi, proprietária do
“Restaurante Piassi”, no entroncamento da Av. Marechal Tito e Av. Nordestina, instalado
no mesmo local há 50 anos.
A história de São Miguel Paulista, bairro no extremo leste da cidade de São
Paulo, passa pela praça que, oficialmente tem o nome de um religioso e,
popularmente, de um estilo musical brasileiro. É a Praça Padre Aleixo Mafra,
mais conhecida como Praça do Forró. Além de conter a Capela de São Miguel
Arcanjo, reconstrução da igrejinha que foi o marco do bairro em 1560, a praça
também foi palco de muitos shows nas últimas décadas e de manifestações do
Movimento Popular de Arte de São Miguel Paulista, criado na década de 70 por
um grupo de amigos (Edvaldo Santana, Osnofa, Sacha Arcanjo, Akira Yamasaki
e Zulu de Arrebatá, entre outros).
271
O veículo oficial de notícias sobre a cidade indica, no tulo de sua matéria, um
adjetivo pelo qual São Miguel é conhecido: sua distância do centro da cidade. Mesmo
atualmente, com outros meios de transporte, metrô vindo até Itaquera próximo a São
Miguel, o local ainda é apresentado como “confins da Zona Leste”. Uma outra questão que
a reportagem evidencia é a data de construção da Capela. Spósito nas reflexões sobre o
MPA, aponta essa “controvérsia, sobre a construção da Capela Histórica que, oficialmente,
data de 1622”.
272
Nas reflexões da autora a Capela de São Miguel Arcanjo pode ter sido construída
muito antes de 1622. Justificando, Spósito cita o Padre Helio Viotti, que aponta a
construção da Capela com auxílio de índios em 1585 e o Pe. Serafim Leite que também
sugere a construção ainda no século XVI, indicando que o nome de São Miguel aparece
nos catálogos da Cia de Jesus, em 1586, estando à sua frente o padre Diogo Nunes.
273
Embora a primeira atividade do MPA tenha sido a Mostra de Arte, realizada na
Capela em 1978, Arantes e sua equipe fizeram um trabalho anterior no sentido de
270
Sobre a discussão do uso atual da praça, ver item 2 desse capítulo: A Mesma Praça – Praça Padre Aleixo
Monteiro Mafra x Praça do Forró.
271
Diário Oficial da Cidade de São Paulo de 26/11/2005. São Miguel. De Anchieta a Piassi, histórias dos
confins da Zona Leste.
272
SPOSITO, Marilia Pontes (coord), op.cit. p.7.
273
Considerações baseadas em SPOSITO, Marilia Pontes (coord), op.cit. p. 8. Sobre o assunto, ver
ARROYO, Leonardo. Igrejas de São Paulo - introdução ao estudo dos templos mais característicos de São
Paulo e suas relações com a crônica da cidade. Rio de Janeiro: José Olimpo, 1954. Rosel Roseli Santaella
Stella, historiadora que faz pesquisas sobre o bairro de São Miguel Paulista, também afirma ter
“comprovação documental fazendo referência à capela primitiva, dando conta que aqui existiu uma outra
edificação e de que o Miguel foi fundada efetivamente em 1560.” In: Revista Mensal dos “Arautos do
Evangelho” Ano III, nº 36, Dezembro/2004, p.39.
113
conhecer a produção cultural da região e possibilitar a criação de uma rede inicial de
relações entre os diferentes grupos e pessoas. Arantes reuniu, à principio grupos
diferenciados entre si e significativos na produção cultural do bairro: poetas, músicos,
atores, estudantes e membros da escola de idioma Esperanto
274
. Nesses encontros decidiu-
se o objetivo do grupo de fazer um projeto de ocupação da Capela e explicitar a sua
concepção de uso.
Interessante notar, que esse processo de aglutinação em torno de um bem cultural,
no caso a Capela de São Miguel Arcanjo, evidencia a dimensão da luta pelo seu uso: A
desmistificação desse espaço, a dessacralização do espaço sagrado, sem que os moradores
tivessem nesse processo perdido a sua religiosidade e a interação com o Estado mediante
reivindicações junto aos órgãos públicos de equipamentos básicos como luz elétrica, água,
bancos, para o funcionamento desse espaço.
Arantes, em publicação sobre o MPA, argumenta que, embora a pesquisa e a
Programação Experimental tivessem sido realizadas com o patrocínio da Secretaria da
Cultura, a emergência de um grupo de artistas com objetivos, planos de trabalho e
reivindicações específicas, aparentemente, transgrediu os limites da proposta de apoio,
gerando impasse e conflito em torno da posse da Capela. Desse modo, após expirar o
prazo de um mês, as portas da igreja foram fechadas, a luz cortada e condicionou-se o
prosseguimento das atividades na Capela, a um abaixo-assinado e à exigência de que o
Movimento se constituísse como pessoa jurídica. O autor analisa, também, que as relações
de poder entre os grupos envolvidos indicaria, à primeira vista, que os artistas estariam
totalmente desprovidos de recursos para barganhar a utilização da Capela. Após várias
reivindicações e busca de alternativas, estabeleceu-se entre eles a consciência de que o
caminho não seria no apoio que qualquer instituição pudesse oferecer, mas a busca pelo
esforço coletivo, com o apoio de grupos artísticos congêneres e de suas próprias bases
populares. Além disso, o processo de disputa da Capela proporcionou aos artistas uma
forte identidade grupal, e a percepção de que o seu objetivo primordial não deveria ser a
posse de um local privilegiado, e sim o fortalecimento do grupo e a aquisição de maior
poder de barganha.
275
Desse modo, ainda segundo Arantes, “o processo relatado me parece mais
significativo [...] do que propriamente o que finalmente foi produzido, foi apresentado
274
Considerações baseadas em SPOSITO, Marilia Pontes (coord), op.cit. p.59 O “Esperanta Klubo” foi
fundando em São Miguel Paulista em 1949, tendo como um dos fundadores o Sr. Osvaldo pires Holanda,
um dos depoentes dessa pesquisa.
275
Considerações baseadas em ARANTES, Antonio Augusto e ANDRADE, Marília. Op. Cit. p. 104.
114
como produto final. [...] O eixo das preocupações se desloca do produto para a produção, e
o agente da produção é o produtor.
276
Para Arantes, a questão da utilização da Capela perpassa o “lugar que ela ocupa no
espaço político-administrativo da cidade”
277
. Para o autor, é um cruzamento difícil entre a
Administração Municipal, a Cúria e os moradores do bairro, com os quais a comunicação
é não é fácil, porque passa pela exclusão evidenciada na história da praça. Desse modo, o
MPA como grupo que buscava sua autonomia e liberdade de expressão, gestão autônoma
de um centro popular de cultura e, por outro lado, os órgãos públicos, com o interesse
concentrado em torno da legitimação e incorporação da Capela ao seu acervo, demonstram
o difícil cruzamento.
Essas experiências relatadas nos idos dos anos 80, evidenciam disputas entre
setores sociais pela apropriação dos espaços do bairro e, ao mesmo tempo, criam novas
significações para aquele espaço, que acabam mudando as representações que se tem sobre
ele. Segundo Arantes, “essas redes dispersas, acabaram se constituindo um movimento,
uma entidade política no bairro, uma entidade que ocupou, durante algum tempo, o cenário
político do bairro e que soube se manter à margem das manipulações eleitoreiras”.
278
Assim, a configuração desse território se a partir de práticas dos moradores na
busca de constante reapropriação dos espaços do bairro e indica embates, conflitos,
acordos e resistências. Pensar nos usos da praça e da Capela, significa refletir sobre as
vivências citadinas de forma singular, nas relações sociais que aí se estabelecem e nas
medidas de intervenção nesse espaço, visando desmontar grupos sociais e suas práticas
não condizentes com a imagem da praça e a presença da Capela, evidenciando, entretanto,
que esses segmentos não se tornaram simples contempladores de ações intervencionistas.
Por este caminho, é que reflito no próximo item sobre a significação da praça Padre Aleixo
Monteiro Mafra, hoje, seus usos no presente, a capacidade de articulação com redes
informais, com que se produz no dia-a-dia a cultura; em rede de memórias que se
estabelece nesses espaços, ou seja, aspectos mais sutis que merecem atenção, além dos
lugares significativos e suas construções.
276
ARANTES, Antonio Augusto. (org.) Op.cit. p.164.
277
Idem, p.167.
278
Idem, p.173.
115
2.2.2 A mesma praça: Padre Aleixo Monteiro Mafra X Praça do Forró

7+,
Nas reminiscências e interpretações do passado encontram-se elementos que
fazem atentar para as mudanças, para ações sociais e para conflitos presentes nas diversas
dimensões da vida urbana do bairro de São Miguel Paulista, especialmente as que se
deram em torno da Capela de São Miguel Arcanjo e do espaço em que se localiza a praça
no seu entorno. No dizer de Fenelon, “atentos às diferenças sociais que configuram o
presente, é preciso refletir que tal aproximação a partir da categoria memória[...] carrega
sempre uma abordagem política de insurgir-se contra idéias e práticas que buscam destruir
experiências de sujeitos históricos em nome de uma memória única e que, por isso mesmo,
acaba por tornar-se oficial na construção da unidade social e política, que trabalha sempre
no interesse de suprimir a pluralidade e as diferenças do presente.”
279
Sobre a praça Pe.
Aleixo Monteiro Mafra, D. Lyris se recorda:
Ali onde agora é a Praça do Forró era um parque infantil, isso eu me lembro
perfeitamente... Tinha fútil (footing), naquela época... de ficar passeando, né...
os homens ficavam parados de um lado e de outro e as mulher passeavam e
ficavam paquerando, como dizem hoje. que era diferente, era fútil, na
praça, do lado da igreja. Tinha o cinema, né... onde agora é a Igreja Universal...
ela ia direto ate ali, então ia até... e atravessava por trás da igreja, então é onde
tinha os passeios, era um jardim, né... Era um vai e vem, um vai e vem...
280
Dona Lyris avalia o tempo passado através da existência do lazer público: o
passeio pela praça pública, o flerte, os namoros, o cinema da época, o que reflete sua
percepção sobre os papéis sociais desempenhados por homens e mulheres nos passeios
pela praça, que a seu ver eram diferentes dos modos de cortejar hoje, mostrando como
novas formas de relações sociais são criadas e produzidas nesse viver urbano. O
depoimento evidencia outras instituições religiosas existentes hoje, que competem com a
Capela no uso da praça Padre Aleixo Monteiro Mafra, representando novas configurações
religiosas dentro do bairro. A denominação Praça do Forró”, evidencia o contraste do
presente e passado nas lembranças da depoente e a apreensão da paisagem urbana
relaciona-se com os momentos vividos por ela, indicando transformações no bairro que
apresenta certo cosmopolitismo, um esboço de “modernidade”, entendidos como aumento
populacional, transformações dos usos dos espaços e das formas de sociabilidade.
279
FENELON, Déa Ribeiro (org.). Cidades – Pesquisa em História. São Paulo: Olho D”Água, 1999, p.8.
280
Lyris Rodrigues Ruott, depoimento citado.
116
Uma outra depoente, Dona Tereza Pilon também se recorda desse tempo em que na
praça havia um parque infantil:
Nessa época... era ... a praça tava fechada... era parquinho infantil... e tinha
telefone público... tinha aquele telefone... depois que a ... que começou a
instalar os telefones nas casas... só tinha esse telefone aí na praça... quem queria
telefonar tinha que ir na praça...
281
Nas lembranças de Lyris e Tereza aparecem elementos comuns como o parque
infantil e a praça, porém Lyris relembra do tempo das relações pessoais trocadas através
da presença das pessoas, dos passeios na praça e até do cinema, fato que relembra apoiada
em movimentos presentes, como a existência da Igreja Universal no lugar do cinema. Por
outro lado, Tereza relembra de outra forma de sociabilidade, o uso do telefone que servia
de comunicação com outros locais. O telefone, segundo as lembranças do Sr Jesuíno,
pertencia ao parquinho, mas quem precisava telefonar, “não pagava, tirava o telefone do
gancho e a telefonista pedia o número”
282
. Desse modo, o parque infantil além das
funções educacionais servia também para outro tipo de prestação de serviço público. A
concentração de serviços públicos na praça, como o telefone, o parque infantil e o cinema
são referências que davam à praça uma grande importância para os moradores do bairro
nas décadas de 50 e 60, uma vez que assumem significados diversos nas memórias de
seus moradores. Essas memórias em torno de atividades relacionadas à praça determinam
um grau de pertencimento e evidenciam a existência de redes prévias de relações,
marcadas pela afetividade, ancoradas no espaço da praça, mediatizadas por um sistema de
referência entre os freqüentadores que se utilizavam dos equipamentos públicos e os
usavam forma de lazer e troca de sociabilidades.
E Dona Tereza lembra também como era o bairro e as mudanças que foram
ocorrendo:
Não, quando nós chegamos aqui, não tinha espaço... depois que tirou o
parquinho infantil... tiraram o parquinho infantil... ai teve espaço, né... mas
primeiro quando nós chegamos era parquinho infantil... não tinha muita gente
quando nós chegamos aqui... tinha pouca gente... não tinha muita gente... o
sapato ficava com quatro dedos de barro... nenhuma rua era asfaltada... nada ...
tinha a estrada que passava aqui, São Paulo-Rio ... essa estrada aqui ... que
passa aqui agora... a Marechal Tito... era a São Paulo-Rio ... todos os
caminhões, tudo que ia pro Rio passava tudo aqui...
283
Da época em que havia o Parque infantil, o Sr. Eurico dos Santos se recorda.
Segundo ele, o nome do parque infantil era PI 13” e depois passou a chamar-se Parque
281
Tereza Pilon, em depoimento citado.
282
Declarações do Sr.Jesuíno à pesquisadora, em 06/09/2007.
283
Tereza Pilon, em depoimento citado. A rodovia São Paulo-Rio foi substituída pela Rodovia Presidente
Dutra, que acesso de São Paulo ao Rio de Janeiro. A São Paulo-Rio atualmente chama-se Avenida
Marechal Tito.
117
Infantil Castro Alves”. Recorda-se que foi parqueano e que fez o discurso da mudança de
nome; tinha de 11 para 12 anos e relembra, sem esforço, um trecho do discurso por ele
pronunciado: “Há cento e dez anos, no dia de hoje, nascia na Bahia, Antonio de Castro
Alves... um dos poucos poetas, talvez o maior poeta do Brasil.... aí já não lembro mais.”
284
Eurico relata que, no período em que era criança, a única atividade religiosa que
havia em São Miguel Paulista era em torno da Capela de São Miguel Arcanjo; o parque
infantil ficava ao lado da Capela, cercado de árvores e depois por uma cerca de madeira.
Assim, a atividade religiosa podia ser concebida como uma mediação válida na
organização social. A grande força aglutinadora da população de São Miguel Paulista à
época, residia nos eventos na Capela de São Miguel Arcanjo. Eram poucos e precários os
divertimentos públicos do bairro, de tal modo que as atividades religiosas desempenhavam
também, as funções de lazer e diversão pública. Essas atividades eram sempre lideradas
pelo Padre Aleixo, a expressão religiosa local, e se situavam na Igreja e nas suas
imediações, a Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra, que nessa época se chamava Praça
Campos Sales .
Buscando entender como a cidade se transforma, apreendo do relato de D.Tereza
as transformações do bairro com ruas de terra, poucos telefones, pouca gente e, no relato
de Eurico, a força de ações sociais, a liderança do Padre Aleixo, os divertimentos e até
mesmo, a freqüência no parque infantil. Tudo isso em contraposição com um bairro
inserido, hoje, no uso de aparelhos eletrônicos e inovações tecnológicas que reduzem o
convívio social local, sentido por Tereza: “agora não conheço quase ninguém porque
mudou tudo, né... os velhos vão indo, né... cada qual pra pro céu e... quase não têm
mais, né... os velhos mesmos... mais tem bastante novo, que chega... e a gente não
tem mais muita aquela... amizade”.
285
Nas experiências atuais da depoente, apresenta-se
em São Miguel Paulista uma população de rostos novos, desconhecidos e numerosos.
Faz parte das lembranças de Eurico, o período em que saiu do parque infantil para
trabalhar como auxiliar de eletricista de automóvel no “Auto Elétrico Pacheco” ramo de
negócio pertencente à família Pacheco, que existe até hoje em São Miguel. Relata:
Como éramos muito pobres, eu saia do serviço e ia almoçar no parque infantil.
Antes do serviço passava no PI para tomar café da manhã e na hora do almoço,
também ia almoçar, à tarde ia lanchar por volta de 15, 16 horas e o que sobrava
davam pra eu levar pra casa.
286
284
Eurico dos Santos, em depoimento citado.
285
Tereza Pilon, em depoimento citado.
286
Sr. Eurico dos Santos, em depoimento citado.
118
Relembra que, quando o parque infantil foi desativado, um ônibus pegava os
parqueanos na praça e os levava até a Vila Curuçá, onde passou a funcionar o PI 13. Em
2003 foi convidado para participar das festividades em comemoração aos cinqüenta anos
da Escola Municipal de Educação infantil (EMEI) Graciliano Ramos, que é o nome atual
do antigo parque infantil, situada atualmente na Vila Curuçá. Problemas e dificuldades
pontuam suas lembranças, no entanto, permitem vislumbrar uma rede de relações pessoais
que garantia um mínimo de subsistência aos moradores menos afortunados; um certo
modo de viver fundado na solidariedade entre as pessoas e instituições e, portanto, um
sentimento de que em torno dele havia outras pessoas que se preocupavam e lhe eram
solidárias. O senhor Eurico se coloca também como referência no bairro, pelas
experiências construídas ali.
Um outro equipamento de lazer que existia na época, na rua que circunda a praça
era o cinema. Relembrado por alguns depoentes, como Dona Lyris e Sr.Jesuíno e Izal, o
Cine Lapenna era também, o local de encontro dos moradores. Hoje, no seu lugar funciona
a Igreja Universal do Reino de Deus, mudança que representa como os lugares vão sendo
apropriados, vão se transformando e onde se reconhece outros tempos, em que novas
paisagens ficam evidentes nas das falas dos moradores.
A Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra recebe atualmente um outro nome, ou como
dizem alguns, um “apelido”. Esta praça, em que está situada a Capela de São Miguel
Arcanjo, foi durante toda a trajetória do bairro, o lugar da diversão, do lazer, da
solidariedade, da fraternidade e ... do conflito.
O nome oficial da praça é uma homenagem ao padre que foi pároco em São
Miguel Paulista e que, muito respeitado e lembrado pelos moradores mais antigos,
reconhecido como um sacerdote severo, comandante das atividades religiosas e sociais do
bairro. No relato de um morador de São Miguel, freqüentador da Capela, observamos que:
Mas ... o Pe.Aleixo... o Pe. Aleixo, o que eu posso lhe falar... da época que eu
vinha pra cá ... eu tenho ele na minha memória como um padre severo... a feição
dele era uma feição meio ... acho que porque era criança, a gente brincava
muito é ou não é, então incomodava então levava as broncas, então era ....
mas, muito disciplinador, muito bom ... uma figura marcante... é, nesse
sentido...marcante... é ele era uma pessoa marcante, né... na maneira de falar...
Ah sim, foi... a igreja matriz... depois veio o Pe. Segundo Viotti deu seqüência
no projeto ...
287
Assim, este morador rememora e interpreta o passado, evidenciado as diferenças
existentes nas relações sociais que davam ao padre autoridade para disciplinar os
287
Ronaldo Araújo Calixto, em depoimento citado.
119
freqüentadores da igreja, a mesmo as crianças. As mudanças dos usos da praça e da
Capela se dão tanto no espaço físico como nas relações sociais, hoje mais distantes,
individualizadas e que, normalmente, não permitem esse tipo de relação disciplinadora
dado o distanciamento entre as pessoas imposto pelo viver urbano contemporâneo. O
depoimento revela, também, a dinâmica social existente, em que aparecem novas pessoas,
como o Padre Viotti que substituiu o Padre Aleixo, que assumem projetos e dão
continuidade às ações ou as reelaboram, segundo seus posicionamentos.
Buscando aqueles que viveram e vivem o bairro, especialmente a partir da cada
de 50, foi possível perceber significados que a praça oferecia e oferece aos seus habitantes
nos diferentes momentos. A própria mudança do nome da praça em 1973, de Praça
Campos Sales para Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra, indica a intenção de buscar e
solidificar no presente ações passadas, que ocorreram em função de um nome
significativo para os moradores daquele momento e reavivam esse passado,
transformando-o numa memória a ser preservada. A Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra é
atualmente conhecida, também, por Praça do Forró. Esta denominação da praça segundo
Sacha Arcanjo, ocorreu da seguinte forma:
Em 84 nasceu a Praça do Forró. Que foi dentro desse projeto da Anhembi
Turismo... partindo do MPA e aí, até o vereador Valter Feldman na época teve
um mandato, junto com o pessoal da Paulistur que era o João Doria Junior e
outras pessoas mais, e mais aqui ... então o que aconteceu, todo sábado passou a
ter um forró mesmo... as pessoas iam pra e rolava... até meia noite ...
entendeu?
288
E Sacha continua:
Do Anhembi, a estrutura era do Anhembi, cachê, tudo ... era o Anhembi que
tocava... Praça do Forró em o Miguel, Praça do Samba em Perus, Praça do
Rock na Aclimação, Praça do Choro em Pinheiros, Praça Sertaneja, lá na vila
São José na zona sul se eu não lembrar de todas... tinha uma Praça do Pagode,
acho...na Praça Brasil, Cohab II e assim, várias praças ...de acordo com as
características de cada local ... qual é a manifestação que tem? E aí?
Oficializados, não foi... não foi... uma coisa... nós que demos o início mas foi
oficializado pelo Anhembi e pela Prefeitura de São Paulo... tinha uma estrutura,
entende... quer dizer... não é que a praça ... foi mudada a placa da praça de Pe
Aleixo pra Praça do Forró, não... dentro da Praça Padre Aleixo tinha um espaço
chamado Praça do Forró... entende...
289
O depoimento revela que a Praça do Forró segue uma experiência de
reconhecimento das praças, sugerido por diferentes ritmos. Sacha faz essas afirmações em
virtude do conflito entre o uso do nome Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra e Praça do
Forró. Alguns moradores sentem-se agredidos com o uso do segundo nome, tendo em
vista que sempre conheceram a praça com o nome do Padre Aleixo e repudiam outro
288
Sacha Arcanjo, em depoimento citado.
289
Idem..
120
nome. É o caso de Albertino Nobre que é nordestino, mas não concorda com outra
denominação para a praça:
A Praça do Forró... é uma tristeza... chamar aquilo de Praça do Forró... é um a
tristeza... é uma tristeza... eu sou nordestino mas eu lhe digo uma coisa... eu me
lembro bem quando foi criada aqui a ... então foi triste... e eu acho que tem
coisas que não devia ser mexida... eu sou meio tradicionalista nesse negócio...
eu acho que tem coisa que tem que deixar como está ... não precisava...
certo... então eu acho que sou meio tradicionalista ... eu gostaria... um
absurdo... um absurdo... praça do forró não tem sentido... a praça tem um nome
maravilhoso, alguém que representa ... que representou a nossa comunidade
mais de cinquenta anos que é o Pe Aleixo... e não é Pe Aleixo... é Praça do
Forró... Praça do Forró é um apelido... pejorativo... um apelido e pejorativo...
290
Albertino elabora seu pensamento baseado numa experiência passada que, para
ele, deve ser mantida. Ao depoente, que participou de eventos, festas, rituais, explicitados
em outros momentos dessa pesquisa, sob a liderança de Pe.Aleixo, fica difícil se
desvincular dessas experiências, que se referem ao seu passado no bairro e que
representam sucesso em São Paulo. Para ele têm significações afetivas que serão
desfiguradas, caso a praça receba outro nome, portanto “forró” não combina com
“tradições de origens”, as quais ele valoriza.
Sacha Arcanjo, que vivenciou outras experiências, ligadas ao Movimento
Popular de Arte, dá outro valor a elas e tem outra opinião a respeito do assunto:
Quem era Pe Aleixo? Era o Pe.Aleixo São Miguelino? o. O bispo que
aqui é São Miguelino? Não. O Subprefeito é São Miguelino? Não. Então, qual
é? Qual é a discriminação. Por que não pode ser Praça do Forró? É Praça do
Forró e ninguém vai tirar, sabe. Vem no microônibus via Praça do Forró” .
Vamos bota um vereador pra oficializar: “Praça do Forró” eu acho que é
melhor.
291
Novamente Albertino se manifesta, demonstrando os conflitos existentes sobre o
uso do nome da praça e o seu repúdio ao segundo nome, mesmo sendo nordestino e
conhecendo o ritmo do forró:
Porque é pejorativo, porque Praça do Forró... Forró é um tipo de dança que se
dança em todos lugares... não num lugar específico... forró tem no Itaim, tem no
Itaquá, tem na vila ... em Santo Amaro... tem em todo lugar... onde se faz o
forró... é uma dança nordestina... da minha terra... é uma dança nordestina...
certo... e é praticada em todo lugar... mas não tem um lugar específico...
porque... uma praça maravilhosa daquela onde tem nossas tradições, nossas
origens... e chamar-se praça do Forró...lamento... pode fazer umas aspas aí,
“porque praça do Forró o existe” ... sabe o que é... criou um grupo de forró...
e trouxe... e colocou... toda semana tinha grupo de forró que apresentava as
manifestações nordestinas... aaí ... o tem nada a ver .. o povo... não de
um modo geral começou a dizer !ah, não vamos no forró”, “vamos no forró”
e no fim ficou praça do Forró...
292
290
Albertino Nobre, em depoimento citado.
291
Sacha Arcanjo, em depoimento citado.
292
Albertino Nobre, em depoimento citado.
121
Essa disputa pelo nome da praça demonstra que os lugares são apropriados
segundo os significados que têm para determinados grupos. Enquanto Padre Aleixo, a
praça representa a memória daqueles que fizeram parte de uma época e que encontraram,
ao longo do tempo, formação, informação e conformação num universo cultural, cuja
figura do homenageado era significativa; por outro lado, enquanto praça do Forró, outras
memórias são produzidas nesse espaço público, onde o inscritos outros usos e
significados ligados aos grupos populares que se identificam com esse ritmo, trazido pela
presença significativa de nordestinos em função do trabalho nas indústrias e que se
apropriaram desse espaço para preservação de seus costumes. Dessa forma, o que cada
grupo ou pessoa elege como nome mais adequado e o legitima, é o resultado de operações
de seleção e combinação, que muda segundo o objetivo de forças que disputam a
hegemonia e a renovação ou a permanência de seus pactos sociais.
Sacha se refere ao palco construído na praça em 1990, próximo à Capela que era
usado para apresentações musicais de grupos tocadores de forró e outros eventos que
havia na praça:
...é tanto, que depois dessa pressão toda, com a reforma da praça, com o
nascimento daquele palco que era o maior palco do Brasil em praça pública,
entendeu... ele... foi feito aí, já uma pista pra dança, tudo e pra contentar
algumas pessoas, foi mudado de praça do Forró pra Espaço do Forró,
entendeu... mas não teve jeito, pegou...continuou Praça do Forró...
293
O bairro, dessa forma, transforma-se num espaço polissêmico, donde se pode
ouvir/perceber várias vozes que comportam as maneiras de ser de São Miguel Paulista.
Constituído por moradores antigos, que em grande parte fazem opção pela permanência e
pelos que chegaram, vieram de lugares distantes e querem manter seus costumes como
forma renovar suas experiências; pelo poder público, que quer deixar sua marca nesse
espaço, através da limpeza da praça evidenciando a Capela; pelos membros da Igreja, que
não querem perder a hegemonia desses espaços conquistados anteriormente; enfim, é na
dinâmica desse bairro que se condensam vários interesses e perspectivas, que não estão
isolados, mas imbricados por saberes e práticas que ora se aliam na reconstrução das
mesmas, ora se confrontam tornando-se espaço de luta pela apropriação desses lugares.
Dona Tereza Pilon também se posiciona com relação ao nome e à existência do
palco na praça:
...a praça era grande... depois fechou, pois parquinho infantil... depois veio a
Erundina, aí e acabou com tudo aí... pôs aquele... trocou o nome pôs Praça do
Forró... mas é praça Pe Aleixo, não tem nada de Forró...... ah, fazer Praça do
forró na frente da Igreja é um absurdo, ... eu acho que é um absurdo... Praça
293
Sacha Arcanjo, em depoimento citado.
122
do Forró faz longe, mas o perto da Igreja, encostado com a Igreja... Praça
do Forró... aquele palco é horrível, ela estragou a praça... agora tirou tudo, deu
um trabalhão danado.
294
Nas memórias de Dona Tereza aparecem as dinâmicas sociais em que os
moradores vivenciam as transformações do espaço urbano. A praça tinha parquinho que
foi demolido, segundo as lembranças de Eurico. O palco construído posteriormente,
também foi demolido. A construção do palco na praça e a mudança do nome, para Tereza
significam que aquilo que ela preservava, o nome original da praça e a Capela como
centro de tudo se transformou, dando lugar a outras significações para aquele espaço. As
atividades realizadas na praça também foram se diferenciando e no lugar das festas
religiosas, no lugar do flerte aparece uma outra atividade, o forró que na sua concepção é
profano e não pode conviver na praça porque esta para ela, representa o lugar do sagrado
da Igreja, da religião. Deste modo, o depoimento demonstra a dificuldade em conviver
com outros grupos que agora ocupam o bairro, os nordestinos.
Por outro lado, “Teotônio dos oito baixos”
295
, natural de Flores (PE), 56 anos,
morador de São Miguel Paulista há 33 anos, tocador na praça quando ocorriam eventos
para divulgação da cultura nordestina, uma vez por mês, tem outra concepção sobre a
mudança da denominação da praça e observa:
Seria melhor ainda... é conhecida como Praça do Forró, né... Se perguntar
Padre Aleixo Monteiro Mafra, ninguém sabe...ninguém sabe... agora se falar
no Largo 13 de Maio... a Praça do Forró ... em São Miguel... Pronto...
296
Neste caso, o depoente tem outra concepção sobre o nome para a praça, que se
projeta para fora do bairro de São Miguel Paulista.
O palco que existia na praça foi demolido no programa de revitalização da praça,
ocorrido em 2007. Este programa faz parte do projeto de restauração da Capela de São
Miguel Arcanjo, ainda em andamento. A praça foi reinaugurada no dia 04/03/2007 e
segundo o jornal Zona Leste News”, a reinauguração se deu “[...] quando o Prefeito
Gilberto Kassab, acompanhado de vários deputados, vereadores e diversas autoridades
civis e militares além de representantes de todos os segmentos sociais da região
acompanhou e participou da missa campal conduzida pelo Bispo Diocesano Dom
294
Tereza Pilon, em depoimento citado.
295
João Teotônio de Faria faz parte da “Associação dos Amigos da Praça do Forró” conhecido como
“Teotônio dos Oito Baixos”, é um dos poucos tocadores desse instrumento, que segundo ele, está em
extinção, tem 56 anos, é morador de São Miguel Paulista 33 anos. Depoimento concedido à pesquisadora
em 26/08/2007.
296
Idem.
123
Fernando Legal”
297
. Observa-se nessa ação, a presença da Igreja Católica conduzindo o
ato litúrgico e a presença de “autoridades municipais” indicando a participação do poder
instituído na praça, agora reinaugurada para atender aos projetos desses órgãos públicos.
Fez parte do processo de reinauguração da praça a demolição do palco e a
derrubada do caramanchão que ali existia, bem como a remoção de algumas árvores que,
segundo o projeto de revitalização, daria mais visibilidade à Capela. O “Boletim da
Subprefeitura de São Miguel informação à comunidade”, através a manchete: “Uma
velha praça, com cara nova, a reforma transformou a antiga praça em um lugar muito
agradável”, informa que “Nasceu uma nova praça em São Miguel. O espaço que durante
muito tempo abrigou bailes de forró foi totalmente reformado e entregue à população no
início de março. [...] As obras eliminaram os desníveis existentes na praça, que
atrapalhavam a vida dos idosos e portadores de deficiência. O palco que havia ali foi
desmontado e as escadas, retiradas; a praça ganhou bancos, piso de concreto e novo
paisagismo. Foi instalado, ainda, novo sistema de iluminação. A reforma transformou a
praça em um agradável lugar de lazer.[...]”
298
O boletim, nitidamente voltado para a propaganda da atual administração, apesar
de logo no início fazer referência “aos bailes de forró”, não faz menção a como ficariam
esses eventos após a reinauguração da praça e permite uma pergunta: Esse plano para
transformar a praça é um plano para responder a quais exigências? O boletim diz que o
local se transformou num agradável lugar de lazer, porém não aborda que tipo de lazer
haverá na praça, quais medidas serão tomadas pela administração municipal para torná-la
realmente em equipamento social de lazer para os moradores, ou seja, transforma-se a
praça para fazer o que dela? Apenas colocar bancos e iluminação, não garante lazer para a
população, além disso essas transformações ignoraram completamente grupos sociais que
tinham atividades culturais na praça e que ficaram alijados desse contexto de
“transformação da praça”. A utilização de uma nova forma de espaço social, para
esconder as “ações” do outro, o forró, o nordeste, as manifestações diferenciadas daquelas
a que se propõe determinar para o uso da Capela e da praça, é evidente. A “velha praça
que se torna “mais limpa”, menos arborizada, representa a solução “moderna” da praça.
Para Izal, essa concepção fica evidente quando afirma:
... hoje a questão é pra mim ... cheira tudo... na base de um projeto eugenista,
tipo assim, vamos recuperar a praça mas vamos acabar com os vagabundos ...
diferentemente dessa visão que se no Arantes, essa na tem essa intenção de
297
Jornal Zona Leste News, Ano XI – edição 169, 1ª quinzena abril 2007, p.6.
298
Prefeitura da Cidade de São Paulo - Boletim da Subprefeitura de São Miguel, março de 2007.
124
resgatar, de resgatar por exemplo o pessoal que fazia forró, que fazia teatro, do
Movimento Popular de Arte, porque não existia equipamentos públicos de
cultura, a praça era do povo, outras utilizações ...... pra fazer isso... que essa
visão agora, ela é monetarista e ela não conta com esse acúmulo que já tem, das
comunidades, do forró, do MPA, de outras coisas que ... dos usos
diferenciados...
299
Assim como existem pessoas que eram a favor da demolição do palco, achando
que ele “enfeiava” a praça e tirava a visibilidade da Capela, outras pessoas foram contra
porque o usavam como espaço para lazer e divulgação de suas culturas. Dentre esses
moradores, estão os membros da associação “Amigos da Praça do Forró”
300
que se
sentiram prejudicados com a demolição do palco, porque perderam espaço para suas
manifestações culturais.
Desse modo, os papéis sociais, as experiências dos moradores de São Miguel, não
são prescritas por uma ordem pré estabelecida, mas inventadas e reinventadas
diariamente, nas formas de organização das relações sociais e que, por outro lado, o
escapam às tensões cotidianas e expressam relações de dominação e poder.
Segundo “Teotônio dos Oito Baixos”, a associação foi criada “pra poder ter voz
ativa, poder entrar nos recintos públicos, tem CNPJ, com sócios, colaboradores”
301
Ednaldo Queiroz , vocalista do grupo “Brasas do Nordeste”
302
, aposentado como
motorista de ônibus da (Companhia Metropolitana de Transportes Coletivos) CMTC,
natural de Custódia (PE), morador em São Miguel 47 anos, começa seu depoimento
lamentando a derrubada do palco:
Olha, quando foi tirado aquele palco da Praça do Forró, eu vi muita gente
chorar ali, inclusive nós... que foi um dos primeiros a fazer apresentação...
ficamos muito chocado com aquilo... porque tirou um pedacinho da gente... eu
sou do “Brasa do Nordeste”, vocalista do grupo e não eu, mas o grupo todo
ficou muito chocado com isso daí... depois que tiraram o palco, acabou a
praça... entendeu... não sei porque fizeram esse absurdo ali na praça...
303
299
Izaltino Ribeiro, em depoimento citado.
300
Associação Amigos da Praça do Forró, fundada em 26/07/2005, CNPJ 07.889.515/0001-33, com sede na
Praça Padre Aleixo Mafra, 128, tem como Presidente Cícero Sebastião de Souza (Cícero do Norte) e Vice
Presidente Alzira Viana. Cícero do Norte nasceu em Custódia (PE) em 1938. Mora em São Miguel Paulista
desde 1960. Sempre aliou seu trabalho como marceneiro e decorador com o trabalho no rádio como
assistente de produção e divulgação da música nordestina. Alzira Viana dos Santos, nasceu em Vitória da
Conquista (BA) em 1947, mora em São Miguel Paulista desde 1960, é viúva e aposentada, apresentadora e
produtora de eventos. Depoimentos concedidos à pesquisadora em 26/08/2007.
301
Teotônio dos Oito Baixos, em depoimento citado.
302
O grupo musical Brasa do Nordeste” existe 40 anos e 10 anos mantém a formação atual, com
quatro músicos e um vocalista. Lançou em 2007 o cd “Cultura Brasileira”, pela gravadora Pop Music.
303
Depoimento de Ednaldo Alexandre de Queiroz, nome artístico “Ednaldo Queiroz”, vocalista do grupo
“Asas do Nordeste”, morador em o Miguel 37 anos, natural de Pernambuco (PE), aposentado da
CMTC, sempre trabalhando no meio artístico, divulgando a música nordestina, especialmente o forró pé-de-
serra. Depoimento em 26/08/2007.
125
Se para a Subprefeitura de São Miguel Paulista a praça ganhou vida, se
transformou num agradável lugar de lazer”, para o depoente essa transformação tem outro
significado: a praça se acabou” quando retiraram o palco e as apresentações não foram
mais possíveis. Por outro lado, Dona Tereza Pilon usa a expressão “e acabou com tudo aí”
referindo-se à construção do palco em épocas passadas . Nessa dinâmica, demonstrada por
interesses diversos, podemos observar as múltiplas dimensões que ganham as
experiências humanas pautadas por valores e interesses também diferenciados que geram
tensões entre forças sociais diversas.
Nesses relatos e interpretações, vamos percebe-se um bairro histórico, onde a
arquitetura assumia todas as forças simbólicas coletivas. O bairro cresceu em torno de um
espaço e de uma construção tradicional, com uma somatória de valores dirigida para um
lugar comum, a Capela de São Miguel Arcanjo. Com o advento da Nitro-Química, a vinda
de outros grupos oriundos de outros locais do Brasil e mesmo de São Paulo, que
trouxeram outras experiências e interesses, a Capela começa a perder essa força
simbólica, dividindo com outros bens o destaque que possuía. Nesse sentido, o palco
representava um elemento a concorrer com a Capela na evidência desses valores, e tirá-lo,
extirpá-lo, significou retirar da praça e negar a existência dos nordestinos. Dessa forma,
outros costumes, provindos de outras regiões do país, que também ganharam expressão no
cotidiano da cidade, entraram em confronto com o projeto urbanizador da praça, pensado
pelo poder público.
Teotônio dos Oito Baixos, se refere à praça quando da inauguração do palco:
Aquilo ali na praça do Forró, era uma mão só, ali, tinha árvores, aquelas árvores
bem grandonas... tinha um ponto de ônibus, então, onde tinha o ponto de ônibus
é onde tinha os banheiros que fizeram o palco... então aquilo ali foi... teve uma
festa muito grande quando foi feito aquilo ali... e, o Cícero do Norte, Alzira
Viana, Dr. Zenildo... a gente faz parte da associação do grupo de nordestinos de
São Miguel e isso daí tirou um pedacinho da gente... tocava no palco... o
nosso é forró pé-de-serra
304
, era o último sábado de cada mês.
305
Rememorando as transformações pelas quais passaram a praça e a alegria pela
construção do palco, demonstrada pela realização de festa, torna a mostrar seu
ressentimento pela destruição de local para tocar seu instrumento, que se traduz na
privação de evidenciar sua cultura e na desvalorização de sua pessoa e de seu grupo que
304
O forró Pé-de-Serra, no Brasil e Nordeste, teve como principal representante Luiz Gonzaga, o Rei do
Baião como era mais conhecido. Associado à música, a rica poesia de Catulo da Paixão Cearense, Patativa
do Assaré, Lourival batista, Job Patriota, Limeira da Paraíba e todos os contemporâneos forrozeiros que
fazem a eterna cena do forró nordestino do pé-da-serra, novos compositores não se rendem a modismos e
compõem o forró por pura identificação artística. http://www.saladereboco.com.br
305
Teotônio dos Oito Baixos, em depoimento citado.
126
“tocava no palco”. Por outro lado, ao mencionar uma “associação do grupo”, deixa
evidente que resistências contra essas forças sociais contrárias aos interesses do seu
grupo social.
Ednaldo Queiroz também observa mudanças na música cantada por ele:
A gente nasceu no forró pé-de-serra, é um forró mais compacto... mais
harmonioso... é uma melodia que você consegue entender e gostar daqueles
sons que é emitido. no forró universitário não, o som... meio... e não bate
bem... não cai muito bem... o forró pé-de-serra, se tem letra tem história, se tem
melodia é uma melodia agradável no seu ouvido... é aquele tradicional... do – re
mi sol si... geralmente sempre conta uma história, seja de amor, seja
de coisas, traição...
306
Ao mencionar o forró pé-de-serra, Ednaldo se volta para a tradição da música
tocada por ele e aponta as mudanças que o ocorrendo, quando novos grupos, de outras
idades, se apossam desse ritmo e imprimem uma marca mais urbana, talvez da grande
cidade, usando além da sanfona, do zabumba e do triângulo, outros instrumentos
eletrônicos que vão cair no gosto popular dos mais jovens, fazendo o sucesso do chamado
“forró universitário”. Um site de informação sobre o forró, diz o seguinte:"Ser autêntico
no forró é não mudar o ritmo. O Trio Nordestino gravou com baixo e bateria, Luiz
Gonzaga usou guitarra em O Fole Roncou. Tem que ter zabumba, triângulo e sanfona, não
importa o que venha na cozinha".
307
Nesse jogo de transformações, vão se misturando o
novo com o velho, o residual com o emergente; essa construção híbrida vai se tornando
parte da cultura urbana carregada de significados de outras culturas como no caso, a
nordestina. Essa imposição de novos elementos na música nordestina faz parte de uma
lógica natural em que se envolvem formas de viver e interpretar o meio urbano e, por
outro lado, ajuda também a reavivar a cultura nordestina, popularizando-a em outros
grupos sociais. O depoente porém, tem dificuldade em perceber essas transformações que
ocorrem no ritmo do forró como em qualquer atividade humana.
Os grupos nordestinos que evidenciam a suas culturas impregnada no cotidiano
urbano de São Miguel Paulista, demonstram sentimento de tristeza e perda, pela
demolição do palco, que simbolizava o lugar do pertencimento, onde faziam aquilo que
gostavam, manifestavam sua cultura, se apropriavam do lugar. Alzira, que é produtora de
eventos e vice-presidente da “Associação Amigos da praça do Forró”,moradora em São
Miguel desde 1960 demonstra no seu relato:
306
Ednaldo Alexandre de Queiroz, em depoimento citado.
307
http://cliquemusic.uol.com.br/br/Acontecendo/Acontecendo.asp?Nu_materia=1940, acesso em
29/08/2007
127
Lógico! Eu chorei tanto! Eu chorei tanto! Eu chorei tanto... quando ligaram pra
mim e falaram.... olha, tinham derrubado o palco... todo mundo chorou... todos
os músicos... a gente tem lembrança, tem recordação... aquilo ali gente... ali foi
criado muita coisa...
308
As memórias que esse grupo quer preservar são outras, trazidas de lugares de
onde vieram e diferenciam-se das memórias que outros moradores desejam perpetuar e
que remetem a experiências anteriormente vivenciadas. À medida que o bairro foi
crescendo, foram ocorrendo mudanças percebidas no jeito de se comunicar, falar,
trabalhar, divertir-se, transformando velhos hábitos e costumes, que por vezes, entram
em choque com os interesses de “antigos” moradores.
Segundo Alzira Viana, o palco foi construído na administração da Prefeita Luisa
Erundina (1989 e 1993) e durante a administração da Prefeita Marta Suplicy (2001 a
2004), grupo começou a fazer eventos com autorização da Casa de Cultura de São Miguel
(hoje intitulada Casa de Cultura Antonio Marcos) e da subprefeitura que dava apoio,
mandando os equipamentos de som e iluminação. Quando mudou a administração, o
veio mais verba para o som... “ninguém proibiu, não veio mais verba para o som...” e
continua: “proibir não proibiram, mas também não fizeram nada, o teve apoio
nenhum...”
309
e Teotônio completa a gente fica triste, né... não tem pessoas específicas
pra gente culpar, pra discernir quem é o culpado, né... a gente só sente a falta...”
310
Esse processo de exclusão se revela no instante em que não houve condições para
as apresentações dos grupos no palco da praça e é reforçado quando se efetuam
modificações, “revitalizações” de espaços da cidade. No entanto, não se pode pensar
apenas nessa perspectiva. por parte daqueles que se sentiram expropriados uma
resistência velada, que é revelada pela presença do grupo de tocadores num bar em frente
à praça, ao lado da Igreja Universal do Reino de Deus, ainda que apertados e sem
condições para apresentar seus shows. O local que abriga os tocadores é o bar do
“Carequinha”, no qual estive para desenvolver a pesquisa. estavam tocadores, suas
famílias, crianças, esposas e mães que foram acompanhá-los e participar desses momentos
de lazer. Alguns vieram de locais distantes, como Itaquaquecetuba e Diadema. Apesar da
falta de condições para continuarem se apresentado na praça devido à falta de palco,
iluminação, instrumentos, o grupo de artistas encontrou uma outra forma de resistência
silenciosa. A presença desses músicos demonstra que a retirada do palco e a falta de
308
Alzira Viana, em depoimento citado.
309
Idem.
310
Idem.
128
condições da praça não silenciou a manifestação dos forrozeiros, que continuam
articulando ações para permanência e novas elaborações de suas práticas.
Alzira relata o processo de constituição desses grupos musicais, que encontrando
espaço para manifestar suas músicas, foram se tornando conhecidos e passaram a se
apresentar em outros lugares
... na época da Marta... todo último sábado... antes era de quinze em quinze dia,
mas a gente precisa dos músicos, o é?... muitos foram subindo de cargo ali,
muitos foram tocar... fora, sabe... a Casa de Cultura mandava a gente ...
porque a gente... essa associação foi criada por causa dos músicos que foi
criado ali... antigamente, não é do meu tempo... eles tocavam lá, sem luz,
sem nada, tocava na raça... o Luizinho de Nazaré, mesmo Diva... e porque essa
associação foi criada, por causa disso, agora vem outra pessoas de lá, ah! o...
não desmereceno ele... ele também não pode desmerecê a nós... mas nós não
tamo atingindo...
311
Nas tensas relações cotidianas, a depoente vivencia diariamente a luta em prol de
direitos sociais de obtenção de espaços para divulgação de sua música; sentidas como
discriminação não para ela como para o grupo todo: eu acho isso aí uma
discriminação... não prá mim como prá todo mundo que foi da praça... era multidão de
gente, sabe...”
312
E continua: “... os artistas não recebia nada... nunca recebi nada, eu
trabalhava por amor... amor a cultura nordestina... eu queria mostrar meu trabalho...
isso aí já vem de um dom...”
313
Uma outra forma de organização e resistência é a criação da associação Amigos
da Praça do Forró”. Com a fundação dessa associação em 2005, os artistas locais,
identificados com esse gênero musical procuraram resguardar seus interesses,
principalmente no tocante ao uso da praça. O seu uso representa a conquista de espaço
para suas manifestações artísticas e significa permanências e sobrevivências que
provocam, portanto, maior visibilidade desse grupo no bairro e na cidade, identificados,
na maioria das vezes, por serem de outras regiões do país, organizando vivências comuns,
que focalizam na música e no ritmo, seus lugares de origem.
Lembrando que o palco onde se produziam as apresentações de grupos de
tocadores de forró, ficava na praça Padre Aleixo Monteiro Mafra, num local próximo a
Capela de São Miguel Arcanjo, e que um dos argumentos do projeto de restauro era,
justamente dar visibilidade à Capela. Mesmo neste contexto, a Praça do Forró não exclui a
Capela de São Miguel Arcanjo. A Capela está lá, é fonte de referência e elemento
simbólico que representa relações afetivas dos moradores com o local, mesmo os que
311
Idem.
312
Idem.
313
Idem.
129
vieram “depois”, como os tocadores que usavam a praça e dão a ela outra denominação e
que fazem referência à Capela como diz Ednaldo Queiroz:
Ninguém mexia não, de jeito nenhum... então quando tinha esses shows
grandes, o que que eles faziam... tinha barracas com comidas picas,
artesanato, entendeu... mas nada que fosse debandar pro lado da Capela... o
pessoal tinha o maior carinho com a Capela, ninguém mexia... não sei porque
isso... não sei porque isso... o show do forró é um negócio sadio ... não tem
nada disso daí... eu no forró até hoje e nunca tive problema, muita família...
muita família...
314
Alzira também se refere à praça como espaço cuidado pelos tocadores: não tava
prejudicando a praça, pelo contrário, a gente zelava...” E continua seu desabafo, indicando
os mecanismos usados para que as apresentações não acontecessem por falta de
condições e a responsabilidade das autoridades” sobre a questão, apontando que é uma
falta de respeito para com ela, que como cidadã, paga imposto e não o retorno no
momento em que precisa usar um equipamento público por uma vez só no mês:
... e quem vai lá, tocá no cru, sem nada... até o poste tirou... eu sou do tipo
assim... sou curta e grossa, respeito todas autoridade, sabe... do maior ao menor,
com seu cargo, sabe... mas eu acho que todo mundo tem seu direito... todo
mundo tem o seu direito e eu vou morrer na tecla... cobrando isso aí... porque
eu acho assim... tem dinheiro pra tudo... é imposto por cima de imposto... tudo
que tira da gente é cobrado, porque na hora que a gente precisa... uma vez por
mês...
315
E Teotônio continua a fala de Alzira:
Pra nós é uma coisa bonita, eu gosto, me sinto bem... cada música tem seu
público... as pessoas me recebem muito bem... mas cadê o nosso espaço... eu
toco oito baixos, oito baixos toca sozinho, toca... o que a gente reivindica ,
não é o palco... é que tenha um lugar pra gente... um lugar pra gente fazer
nossos eventos... ficava lotado de gente, crianças... nunca atrapalhou nada... tem
muito espaço... infelizmente não tá tendo nada... já faz um tempinho...
316
Dessa maneira, Alzira e Teotônio elaboram seus depoimentos relatando os
embates que se tornam visíveis quando um determinado grupo, no caso o poder público,
procura tornar sua leitura da cidade e do bairro a única possível e indica que os espaços da
cidade são hierarquicamente estabelecidos para atender às exigências dos grupos de maior
destaque na sociedade local.
A Roseli, eu participei de muitas reuniões com ela, ela falou que fazia questão
daquela praça ser desativada porque ali tinha ossos mortais de índios, que
antigamente ali tinha índio, sei lá...mas é que nem eu falei nas reuniões... se
ela queria que esses ossos fossem desossados, porque não pediu antes quando
fez o palco... né... porque não pediu antes a exumação deles... sei lá, se ela sabia
que ali tinha índio enterrado, sabe... inclusive eu falei pra ela um dia... Roseli...
me disculpa, me perdoe, mas se você tem esse patrocinador e faz muitos anos
que tem esse processo, porque não pediu no tempo que fez o palco, que talvez a
314
Ednaldo Alexandre de Queiroz, em depoimento citado.
315
Teotônio dos oito baixos, em depoimento citado.
316
Idem.
130
praça hoje o precisava nunca mais mexer... porque a praça foi mexida por
causa disso aí... agora não sei se achou osso, sei lá se achou... ou não...
317
Pelo depoimento, podemos apreender os significados das transformações do bairro
como campo privilegiado para examinar as forças sociais que aí se desenrolam,
principalmente daqueles que sofrem os impactos destas propostas, como no caso de
Alzira, quando postas em prática. Observa-se o contraponto entre a visão de um morador
que busca a expressão de um passado a ser alcançado através de restos deste, em ossos e
vestígios antigos e, de outro lado, das expressões de segmentos sociais que buscam nesses
mesmos locais, espaços para suas práticas sociais e com elas perpetuar sua cultura e,
ainda, as maneiras como esses moradores se apropriam desse cotidiano urbano, ocupam
espaços, inventam projetos e se relacionam com outros segmentos sociais, na busca do
que consideram seu direito.
Ah, foi reunião dos grandes, reunião na Câmara dos Vereadô, minha filha, eu
enfrentei, na cidade... muita reunião, reunião forte, no Salão do Bolacha,
aquele salaozão... reunião forte mesmo... pra mim não tinha importância que
tirasse ou não... mas que deixasse um coreto pra gente... que eles deixou a
gente no mundo com a cara...
318
Nesse movimento de idéias e ações, vão aparecendo formas que expõem a
dominação: o poder de um lado e a resistência de outro. Mesmo que esse grupo o
tivesse poder de gerência na modificação da praça, em se tratando de seus interesses,
procuram os órgãos blicos como a Câmara dos Vereadores, fazendo emergir sua
concepção de cidade e o que acham que deveria ser preservado como espaço para suas
manifestações: o palco, a praça, as condições para suas apresentações.
... ninguém tava tirando nada de ninguém... olha aí quem é a prova disso, disso
aí... muitos anos, ninguém nunca tiro dez centavos de ninguém... era uma
diversão que a gente tinha, caramba... isso é uma coisa nordestina... você
fique sabendo que aqui na zona leste é... 90% é de nordestino... deixou nós aí...
com a cara pra cima... sabe... que nem uns otário...
319
Locais de lazer, configurados numa forma particular de desfrutá-lo, no qual o
encontro, a troca, o reforço dos vínculos de sociabilidade urbana, onde se estabelecem
redes de solidariedade, a praça e o palco promoviam ainda, a comunicação e circulação de
pessoas entre os bairros da cidade e de outros locais próximos a São Paulo. É o que se
observa no relato de Teotônio:
... qualquer morador de o Miguel que conhece aquela praça, com os eventos
fim-de-semana, atividade, se perguntar vai falar a mesma coisa que eu... cao
317
Alzira Viana, em depoimento citado.
318
Idem.
319
Idem.
131
lazer... não tem mais... a gente fica... não tem nem o que dizer... porque ...
faltando... todos daqui de São Miguel... vem convidados de Itapecerica da
Serra, Itapevi, Jandira... tem muita gente o nosso grupo... vem, o falta... tem
de Santana, Guarulhos... e na praça vinham também... eram os primeiros a
chegar, quanto mais longe mais cedo chegavam! Agora não tem mais nada,
sozinha, só espaço... vamos ver qual é a intenção deles...
320
Alzira relembra como foi o começo do uso da praça pelos artistas, evidenciando a
luta e os conflitos existentes, porque interesses diferenciados, por espaços são disputados:
... foi menina, aqui na subprefeitura (o começo)... o subprefeito era o Samuel
que tava aí... ele ligou na minha casa... eu vim... mostrei pra ele o jornal, fotos...
eu tenho foto da praça, dos eventos, dos maquinários, das mesas... eu tenho
tudo... álbuns de fotos, sabe.. isso aí,,, tudo foi pra casa de... como é... na
câmara dos deputados, levei tudo lá, foi montado um projeto lá também, sabe...
mas mudou de secretaria, minha filha, um foi prum lado, outro foi pro
outro...
321
O relato revela como o poder público lida com as questões culturais de acordo com
aqueles que estão no poder. Não há preocupação com a continuidade de projetos ao mudar
a administração municipal. Cada prefeito escolhe seu secretariado, que não se preocupa
em dar continuidade às ações de outros governos, pelo contrário, geralmente o que vinha
sendo feito é esquecido, transformado ou proibido. Ainda sobre o relato, é interessante
observar como a depoente se manifesta sobre os materiais que guarda, revelando que tem
um arquivo pessoal sobre os eventos, como uma forma de perpetuar essa memória e
indica que os eventos na praça ocorriam antes da construção do palco, o que Alzira
demonstra pelo material que tem guardado e que também são relatados por Sacha e Izal
que fizeram parte do MPA.
Sacha Arcanjo evidencia, no seu depoimento, as intenções de rediscutir os usos da
praça evidenciando como, no entanto, em cada lugar novas referências são teimosamente
recriadas:
... e aí, assim ... o que será possível, a proposta nossa prá depois dessa reforma é
criar uma feira de artes ... criar, não recriar, porque nos criamos ... não
tivemos apoio suficiente, mas nos vamos recriar ... a praça de artes, artesanatos
e cultura popular ... a idéia e rediscutir a idéia de feira, conforme a estrutura de
São Miguel e da região [...]retomar essa discussão e retomar a idéia a feira
porque... a Capela sozinha ela não vai atrair o turista, se a gente recriar e
conseguir estruturar a feira eu acho que a feira vai ajudar a atrair esse turista pra
São Miguel esse turista, digo o é o turista alemão, o italiano ... o turista pode
ser aquele cara que vem de Guarulhos e de Mogi, que venha da Penha que
venha de algum lugar pra ver a feira e visitar a Capela... ou do próprio bairro...
porque as pessoas estão ali na outra rua e ignoram a capela...
322
320
Teotônio dos oito baixos, em depoimento citado.
321
Alzira Viana, em depoimento citado.
322
Sacha Arcanjo, em depoimento citado.
132
O depoente evidencia que o espaço da praça precisa ser vivido no presente, a partir
de vários interesses. Para ele, a Capela o atrai pessoas; precisa haver implementação
de outros usos, outras ações, que evidenciarão a Capela e com ela, comporão esse espaço
de forma que ele tenha um uso social.
Essas tensões em torno do uso da praça e do palco tornam-se visíveis por meio de
publicações nos jornais, como é o caso da maria publicada no Jornal da Tarde de
23/04/2007, sob a manchete: Vetada a Praça do Forró. São Miguel Paulista, preservação
da capela de 1622 fez a prefeitura acabar com as festanças na área:
Entre a cruz e a sanfona. Os moradores de São Miguel Paulista, na Zona Leste,
vivem o dilema de decidir se a mais famosa praça da região é da fé ou da farra.
Se o local deve justificar seu nome oficial, Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra,
ou abraçar o apelido, Praça do Forró. No último s de março, a subprefeitura
fez sua opção. [...] O palco que existia por lá, em forma de chapéu de couro, foi
demolido e os shows estão suspensos. [...] A partir de agora a grande
estrela da praça é a Capela de São Miguel Arcanjo, uma construção de 1622[...]
aliás, foi a preservação da capela a principal justificativa para o fim do forró.
Mas um bito não se muda por decreto. Freqüentadores da praça estão
divididos quanto à atitude da subprefeitura. [...] O subprefeito garante que um
novo local será destinado ao forró. “Já temos um terreno, às margens da Jacu-
Pêssego em vista. É o Parque Primavera que, embora conhecido como parque,
ainda não funciona como tal. São 110 mil m2, com espaços para shows e
estacionamento”, comentou.
323
Segundo a matéria, não possibilidade de se coadunar o uso da Capela com
outras manifestações como o forró na praça, ou seja, não se pode disputar com a Capela o
lugar; a praça deve ser identificada com a Capela exclusivamente. Segundo o jornal, a
opção pelo uso foi da subprefeitura, que demoliu o espaço para as apresentações e
encontrou um outro local para as mesmas. O agora denominado Parque Primavera
324
, é o
antigo Aterro Sanitário Jacuí , segundo a “Secretaria do Verde e do Meio Ambiente e a
Subprefeitura de São Miguel Paulista, dependem do laudo técnico da Companhia de
Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), para então definir a viabilidade do
Projeto Parque Primavera”.
325
De qualquer forma, concentrar as atividades do forró no
Parque Primavera, que ainda não está em condições de ser utilizado, é bem mais político e
seguro, porque joga para o futuro esta decisão e estabelece espaços definidos para os
323
Jornal da Tarde, 23/04/2007.
324
O Antigo Aterro Sanitário Jacuí (lixão) localizado na Av Mimo de Vênus, Jardim Pedro Nunes em São
Miguel Paulista, ex-porto de areia, desativado de 1979, e a partir daí, durante nove anos foi decretado como
depósito de lixo – aterro sanitário – de toda a cidade de São Paulo [...] No dia 31 de agosto de 1988, diante a
grande mobilização e luta da comunidade, o famigerado lixão finalmente foi desativado. Jornal Pedro
Nunes – nº 73, p.3.
325
Jornal Pedro Nunes Defendendo a Comunidade, 73. Informativo mensal do Jardim Pedro José
Nunes, setembro/outubro – 2005 com a manchete: Antigo Lixão está com “Cara de Parque”.
133
“bailes de forró”, longe de locais como a Praça, julgados o condizentes com esse tipo
de manifestação.
Se é evidente que notória dificuldade em reconstruir as memórias e as
tradições, quando elas se plasmam em objetos materiais, como o patrimônio arquitetônico,
o que dizer das manifestações menos palpáveis, como as tradições populares
326
. Os
aspectos dessas reflexões dão a dimensão da complexidade cultural e dos meios utilizados
por esses tocadores para se apropriarem dos espaços públicos e como o poder constituído
atende a esses interesses. A forma como esse processo de expropriação foi conduzido,
revela um conceito de patrimônio que se reduz à preservação das edificações, como é o
caso da Capela de São Miguel Arcanjo e não levou em consideração outras manifestações
culturais, reveladas pelas formas de expressão dos artistas que divulgam a música
nordestina, em especial o forró. Muito embora nesse universo que envolve tensões, esses
grupos populares nunca tenham deixado de lutar pelo espaço de onde foram expulsos por
projetos políticos, que os excluem das decisões e encaminhamentos sobre o uso dos
espaços do bairro e, por meio de suas experiências cotidianas criaram estratégias próprias
para desestabilizar as estruturas de poder , em outras palavras, garantir o direito à cidade.
Apesar de tudo, articulam-se, pondo em evidência desejos, projetos, expectativas e
necessidades. Nesse emaranhado de relações, nos deparamos com memórias em luta, que
expõem as contradições e os conflitos advindos de interesses diversificados na
constituição do bairro de São Miguel Paulista. As transformações da praça são evidentes;
o parque infantil não existe mais; as formas de sociabilidade como o flerte, o passeio nas
noites de domingo também não, pelo menos da forma como se davam nos tempos
pretéritos; o palco onde se faziam apresentações e shows de forró, também não. A praça
da Capela, provavelmente, soterra outras lembranças que não couberam no âmbito dessa
pesquisa.
326
Conforme GARCIA, Marco Aurélio. Tradição, memória e história dos trabalhadores. In: O Direito à
Memória, Patrimônio Histórico e Cidadania. São Paulo: DPH, 1992, p. 169.
134
2.2.3. Câmara Distrital (Simbólica) de São Miguel Paulista
"I
-!*
Na busca de compreender os elementos articuladores que possibilitaram a
existência de práticas diferenciadas, plenas de significados do ponto de vista da
experiência e identidade cultural, encontro no bairro de São Miguel Paulista formas de
ação que mostram como experiências em locais longínquos evidenciam relações sociais
que interagem no espaço da cidade. Uma das experiências, segundo a memória de alguns
depoentes, do início da década de 1960, é denominada “Câmara Distrital de São Miguel
Paulista”. No artigo do seu estatuto, aparece o que é a entidade e quais são os seus
objetivos:
... É uma sociedade civil brasileira, de caráter reivindicatório, sem fins
lucrativos, de duração por tempo indeterminado, com sede e foro jurídico na
Capital do Estado de São Paulo, instalada provisoriamente à Estrada de São
Miguel, 9642 e tem por finalidade:
a) Apresentar reivindicações de interesse blico junto aos poderes
constituídos, colaborar na promoção do bem-estar da comunidade, incentivar
todas as boas iniciativas de interesse do Bairro, promover atividades culturais,
cívicas, sociais, recreativas, esportivas, enfim, todos os problemas relacionados
com a melhoria e o bem-estar do Distrito Eleitoral.
327
Segundo o Sr. Eurico, um dos componentes da “Câmara Distrital” esta era assim
organizada:
...as reuniões tinham o mesmo caráter da Câmara Municipal dos Vereadores, era
composta por trinta e três “Edis Simbólicos”
328
efetivos e onze suplentes, que
deveriam acatar as normas estabelecidas no Regimento Interno da “Câmara
Simbólica”. Nas reuniões eram discutidas e aprovadas as solicitações que seriam
encaminhadas para os órgãos públicos competentes e depois, o secretário e o
presidente controlavam e cobravam as providências”
329
.
Refletindo sobre essas ações, podemos inferir que um grupo de moradores de São
Miguel Paulista, à época, apropriou-se de um esquema de organização da Câmara
Municipal como forma de se articular para atendimento das suas necessidades,
327
A “Câmara Distrital de São Miguel Paulistatem seu estatuto registrado no Cartório Adalberto Netto,
Registro Civil de Pessoas Jurídicas Ofício em 07/06/1973, com publicação do extrato do estatuto no
Diário Oficial do Estado de 07/06/1973. No entanto, há documentos (ofícios, cartas) que indicam seu
funcionamento desde 1965.
328
Edil, na Roma antiga, magistrado encarregado da polícia, da inspeção dos jogos públicos e do
abastecimento. Vereador Municipal. Grande Enciclopédia Larousse Cultural, São Paulo: Nova Cultural
Ltda, 1998, p.2020.
329
Depoimento de Eurico dos Santos, para a pesquisadora em 18/07/2007. A documentação atual sobre a
“Câmara Distrital” pertence ao Sr. Eurico que guardou alguns ofícios e cartas, recortes de jornais e cópias
do estatuto e da publicação no D.O.E. Documentação gentilmente cedida, a título de empréstimo à
pesquisadora.
135
estabelecendo estratégias de inserção nos meandros do poder público municipal, para
apresentar suas reivindicações. Sr. Eurico relembra, também, que naquela época não
havia nem Administração Regional nem Subprefeituras, em São Paulo. Desse modo, a
Câmara Distrital facilitava aos moradores evidenciarem suas necessidade ao poder público
e representou resposta criativa dada por eles para solucionar os embates cotidianos, por
meio de reivindicações dirigidas aos poderes públicos competentes.
O depoente relembra que a Câmara Distrital “foi criada em 1963, porque logo após
veio o golpe de 64 e houve uma parada na organização, depois em 65 continuaram,
funcionando sem o estatuto até 1973, quando foi registrado no cartório”.
330
No ato da relembrança, o sr. Eurico apóia sua memória em outros fatos sociais que
aconteceram no país e que foram decisivos para a mudança de rumo da política brasileira,
como o golpe de 1964 que instalou a ditadura no país por vinte anos. Deixa claro que
nesse momento de ruptura e conflito houve uma parada na organização, demonstrando
como os grupos sociais se articulam usando mecanismos para não correrem riscos, num
momento em que o sabiam muito bem o terreno que pisavam, mas depois que
perceberam que esse tipo de organização não causaria nenhum estranhamento à política
vigente, continuaram a se organizar.
O jornal “Brasil Semanal” publicou uma matéria sobre essa experiência, relatando:
Interessante experiência política está sendo feita em São Miguel Paulista. Em
vez de um “centro de melhoramentos” à feição antiga, com uma diretoria
reduzida, deliberando por conta própria, seus moradores organizaram-se numa
Câmara Distrital Simbólica, que funciona nos mesmos moldes das edilidades
brasileiras, obedecendo a um Regimento Interno que dita as normas dos
trabalhos e estabelece os direitos, deveres e obrigações dos membros da casa. O
original Parlamento compõe-se de 21 edis, que debatem, discutem e aprovam ou
rejeitam, os requerimentos e indicações feitos pelos seus colegas, a fim de serem
encaminhados às autoridades competentes.
331
Continuando a notícia, o jornal faz referência às reivindicações em andamento que
“dão bem a idéia do grande serviço que a Câmara está prestando à população de São
Miguel”: construção de um grupo escolar, na Vila Nova Curuçá; construção de uma ponte
ligando a Vila Curuçá e Parada XV de Novembro; restabelecimento da iluminação pública
da Praça Campos Sales; reforma do pontilhão sobre os trilhos da EFCB
332
na Vila Nitro
Operária; instalação de uma biblioteca circulante; curso de alfabetização de adultos;
330
Eurico dos Santos, em depoimento citado.
331
Jornal Brasil Semanal semana outubro de 1965 Uma interessante experiência: A Câmara Distrital
(Simbólica) de São Miguel Paulista.
332
EFCB – Estrada de Ferro Central do Brasil, atual Companhia Paulista de Trens Metropolitanos
(CPTM)empresa vinculada à Secretaria dos Transportes metropolitanos do Estado de São Paulo.
136
ampliação do serviço telefônico local; construção do Mercado Municipal de São Miguel
Paulista e outras.
Observo que as reivindicações eram voltadas para as necessidades locais
demonstrando estratégias para intervenção na construção da cidade, vinculadas àquilo que
os moradores ou um grupo de moradores julgavam importantes para a vida social do bairro
naquele momento, ou seja, a conquista de melhorias que resultavam, segundo suas
concepções, em mudanças positivas na qualidade da vida urbana.
Uma das ações da Câmara Distrital, relatada por Eurico foi a seguinte: Havia em
São Miguel Paulista, Eurico o lembra o ano, mas sabe que foi antes de 1973, uma balsa
para atravessar as pessoas para o outro lado do Rio Tietê, que foi desativada porque o rio
baixou muito e desativaram as olarias. Havia um barquinho que transportava as pessoas e
cobrava pelo transporte. Porém o barqueiro só vinha para atravessar, quando havia cinco
ou seis pessoas para a travessia e as pessoas ficavam, então, dependendo da sua boa
vontade. A Câmara Simbólica solicitou a construção de uma ponte sobre tambores em
substituição ao barco, que era arriscado e, além disso, demorado.
Uma outra conquista que Eurico atribui à Câmara Distrital foi a passarela da
estrada de ferro Central do Brasil, na Vila Lília. Conta que no local havia uma passarela
utilizada para a travessia dos moradores, em especial dos trabalhadores da Nitro Química
porque dava acesso à fábrica. Essa passarela era feita de tubos de ferro que corroíam com
facilidade, tinham pouca duração, impossibilitando a travessia. A Câmara Distrital
solicitou a ponte de concreto que foi construída, facilitando a travessia dos moradores.
Segundo as lembranças de Sr.Eurico, quem teve a idéia de organizar essa entidade
no bairro foi o Sebastião Palmeira Júnior, que no entendimento do depoente, “era um
idealista, tinha várias revistinhas sobre São Miguel”. De acordo com o Jornal do Brasil,
em junho de 1965 Sebastião Palmeira Junior era o presidente da entidade e André A.
Cavaliere Vice-Presidente.
Albertino Nobre, citado no jornal como secretário, diz o seguinte: lógico... eu
participei, Eurípedes Sales, Sebastião Gouveia, o Palmeira, os mais velhos aqui... nós
fizemos um movimento aqui ... um movimento jovem... nós éramos jovens vereadores...
era o Edil Simbólico”
333
e lembra que as reuniões eram abertas à população que podia
participar, dar sugestões, reivindicar, não podia votar. O tempo de juventude vem à
tona na memória do ex-vereador, através de ações marcadas por esse tempo pretérito e
333
Albertino Nobre, em depoimento citado.
137
enquanto sua vida mudava, para torná-lo e a seus companheiros “os mais velhos aqui”
demonstrando que assim como o tempo, suas ações e o espaço em que se realizavam,
também se modificaram.
A mudança do nome da Praça Campos Sales para Praça Padre Aleixo Monteiro
Mafra, ocorreu por solicitação da Câmara Distrital, no governo do Prefeito Faria Lima
(1965-1968), e segundo o Sr. Eurico, os componentes falaram direto com o Vereador João
Carlos de Souza Meireles. Aparece novamente, a intenção de perpetuar uma memória
afinada com esse grupo de pessoas, que conviveu com o Padre Aleixo e promoveu ações
para perpetuar o seu nome através da nomenclatura da praça mais importante do bairro que
carrega um bem cultural reconhecido como patrimônio federal. Dessa forma, para se
perceber as feições urbanas de outras épocas refletindo sobre o bairro hoje, e as dinâmica
das transformações urbanas cruzando-se com as experiências dos moradores.
Sr Eurico lembra-se que criou uma bandeira e o juramento interno, que hoje não
existem mais e que o Mercado municipal “Dr. Américo Sugai”
334
também foi uma
conquista da Câmara Distrital. Sobre o assunto, o Jornal do Brasil de agosto de 1965 traz
matéria intitulada “A Câmara de São Miguel e o Mercado Municipal” que relata sobre a
promessa feita pelo secretário do abastecimento do município, em relação à construção de
um prédio para o funcionamento do Mercado Municipal de São Miguel Paulista, cancelada
pelo sr. Prefeito, com a justificativa de que o preço elevadíssimo inviabilizava a obra e a
prefeitura não poderia arcar com esse ônus. Segundo a matéria assinada pela Câmara
Distrital de São Miguel Paulista, surpresa maior ocorreu porque fora publicada nos diários
da capital, autorização para construção de mercado distrital na Penha, Tatuapé, Brás,
Ipiranga, Lapa e outros bairros de São Paulo. A reportagem termina com a Câmara distrital
“convidando o povo, que sempre tem cerrado fileiras, na conquista de suas reivindicações
para integrar as comissões sociais a fim de tornar realidade, um sonho que vem durando há
mais de 15 anos e torturando mais de 150mil habitantes”.
335
334
O mercado municipal de São Miguel Paulista foi inaugurado em 06/07/1967, durante a gestão do Prefeito
Faria Lima. Passou a denominar-se Mercado Municipal “Dr. Américo Sugai” através do Decreto 8874/70,
assinado pelo então prefeito Paulo Salim Maluf, sendo uma homenagem póstuma ao homem blico que
ocupou o mandato de vereador da Câmara Municipal de São Paulo, chegando a exercer o cargo de
secretário municipal de abastecimento, tendo falecido em desastre automobilístico. Fonte: Jornal “Saúde &
Bem- Estar”, 1ª quinzena de junho de 2007, p.6. O jornal “Saúde & Bem-Estar” leva informações gratuitas a
respeito de temas relacionados à saúde aos moradores de São Miguel Paulista e adjacências. É uma
publicação quinzenal, com tiragem de 10.000 exemplares. Distribuição gratuita, responsável: Ivo Cordeiro.
335
Recorte de jornal sem referência, de agosto de 1965,arquivado pelo Sr. Eurico.
138
A notícia do jornal explicita a luta e o poder de articulação dos moradores de São
Miguel Paulista para consolidar suas ões, no sentido de obter melhorias para o bairro e
evidencia tensões com outros bairros da cidade na disputa por equipamentos públicos.
Em setembro de 1965, houve pedido da Câmara Simbólica para criação de linha
de ônibus partindo de São Miguel a Pinheiros Justificativa: Para servir as pessoas que
dependem do Hospital das Clínicas, sanando assim, as dificuldades daquelas pessoas que
necessitam tomar três conduções para dirigirem-se àquele hospital”
336
e nessa mesma data,
a “solicitação de um “pronto-socorro” para atender os chamados em caso de defeitos nas
instalações elétricas que são constantes [...] até que cheguem os socorros da Penha”.
337
Uma outra notícia veiculada no jornal, sob o título “Candidato Popular Sempre em
Campanha”
338
, informa sobre a campanha eleitoral do Deputado Herbert Levy que visitara
várias cidades do litoral sul e da Baixada Santista. O jornal informa que encerrando seu
programa de visitação, o candidato visitou São Miguel Paulista, distrito de São Paulo em
vias de emancipação. Segundo a matéria, o candidato recebeu tributada recepção da
Câmara Distrital , cujos componentes destacaram “decidido apoio na sua campanha ao
governo do Estado de São Paulo e ainda, a situação de abandono em que se encontra São
Miguel Paulista”
339
O candidato, segundo o jornal, assim se expressou: “Congratulo-me,
pois, com todos os senhores e afirmo que estou ao lado dos que lutam pela autonomia de
São Miguel Paulista, que não pode permanecer nesta situação de abandono.”
340
O
candidato a deputado refere-se ao Movimento Popular Autonomista (MPA) que, a
exemplo de Osasco, pretendia a emancipação política de São Miguel Paulista, no ano de
1964.
Uma das pessoas que deu importante depoimento dessas ações, por ter participado
diretamente desse movimento social, foi o senhor Osvaldo Pires Holanda, citado
anteriormente nesta pesquisa. Sr. Osvaldo relata como foi o início desse movimento:
“...era o “Movimento Popular Autonomista” porque São Miguel vivia totalmente
abandonado dos poderes públicos e nós não tínhamos nenhuma benfeitoria no bairro e
isso... preocupava algumas pessoas e... então nós decidimos fazer uma luta pela autonomia
... “
341
336
Conforme requerimento ao Sr. Prefeito do Município de São Paulo de 14/09/65.
337
Conforme requerimento a São Paulo Light S/A de 14/09/1965.
338
Sobre esse recorte de jornal não há indicação da fonte nem da data do mesmo. Pela citação da matéria,
para saber que foi na gestão do Prefeito Faria Lima que ocorreu entre os anos de 1965 e 1969.
339
Idem.
340
Idem.
341
Albertino Nobre, em depoimento citado.
139
A luta pela autonomia de São Miguel Paulista, no início da cada de 60,
representou a necessidade de organização dos moradores para gerenciar o espaço urbano,
apoiados em exemplos de outros recém criados municípios e que alterariam de forma
concreta esse viver urbano. Dessa forma procuro entender esse Movimento Popular
Autonomista, no espaço em que se situava o bairro de São Miguel, possuidor à época, de
grandes indústrias, população que a cada dia aumentava na busca de trabalho e local de
moradia e comércio intenso.
Segundo a revista “Historio de Esperanta Klubo Zamenhof”
342
, o Movimento
Popular Autonomista realizou vinte e sete comícios nos principais locais do bairro e desse
modo conseguiu mobilizar a população durante dois anos e vinte dias, quando perdeu a
última batalha jurídica contra a Assembléia Legislativa do Estado.
Apesar do insucesso, Sr Osvaldo considera que o bairro se “desenvolveu
praticamente depois de 64” e a revista Historio de Esperanta acrescenta: “felizmente os
esforços não foram em o, pois após aquele movimento as autoridades administrativas
que não queriam perder importante colégio eleitoral, despertaram e então começaram a
aparecer os primeiros melhoramentos públicos”.
343
Levando em consideração que a constituição do espaço urbano se no conjunto
de experiências sociais atuantes de forma articulada e não isolada como ato de apenas uma
pessoa ou um grupo de pessoas, é preciso pensar que o depoente não leva em consideração
outros movimentos que reivindicavam projetos sociais para o bairro, como por exemplo, a
experiência já citada anteriormente da “Câmara Distrital”.
Observando como o bairro foi se transformando desde 1962, época em que chegou
a São Miguel Paulista, após 29 dias de viagem, vindo do Ceará, o depoente faz conjecturas
sobre a possível emancipação do bairro e evidencia, novamente, a questão da divisão
territorial que abarcava os bairros de Ermelino Matarazzo, Itaquera, Guaianazes e Itaim
Paulista e que, do ponto de vista do depoente, formariam junto com São Miguel um outro
município politicamente independente, a exemplo de outros que hoje fazem parte da
Grande São Paulo:
342
Revista Historio de Esperanta Klubo “Zamenhof” – Edição Comemorativa do Jubileu de Ouro. São
Paulo: São Miguel Paulista, 1999, p.4.
343
Idem. A revista cita os seguintes melhoramentos públicos: em 23/03/58, foi inaugurada a Escola e
Ginásio Municipal Arquiteto Luís Saia; em 15/03/60, a Escola de Segundo Grau D.Pedro I; Mercado
Municipal a 06/07/67; Delegacia de polícia a 23/03/69 e, na mesma data a instalação da Companhia do
BPM/M; Distrito Regional da Companhia de Saneamento Básico de o Paulo somente a 27/05/78;
Destacamento de Bombeiros a 25/01/81; Ambulatório Municipal em abril de 1982 e a Agência da
Companhia de Energia Elétrica em 17/09/94, anteriormente, amesmo o pagamento do consumo de
energia doméstica, era feito no centro de São Paulo.
140
... se tivesse passado... tivesse se emancipado... nós hoje seríamos um grande
município porque naquele tempo São Miguel era distrito e Ermelino Matarazzo,
Itaquera, Guainases e Itaim Paulista eram subdistritos de São Miguel... hoje, nós
perdemos todos esses subdistritos que se tornaram distritos e São Miguel ficou
menor, muito menor do que era... mas eu conheci São Miguel é... com um
comércio é... constituído de três lojas... o resto era pequenos botecos... é, porque
existia uma loja que chamava-se “Para Todos” outra que era “A “Econômica
do do Povo” e outra que era “Loja São José” eram os estabelecimentos...
344
Através das memórias do Sr. Osvaldo, pode-se perceber, que o pretendido era
transformação do espaço e da sociedade perpassados por redefinições nos aspectos
políticos, capazes de provocar deslocamento no campo do poder das instituições , e
evidenciar diferentes veis de experiências, voltadas para interesses particulares de cada
grupo em confronto. Como aponta Sevcenko: “o espaço é um campo de forças em tensões
interativas e arranjos contingentes”.
345
E Sr. Osvaldo evidencia no relato esses “campos de
forças”
... e a população de São Miguel é... dividiu-se ... porque aqui nós tínhamos dois
representantes políticos, dos vereadores... um era o Aurelino Soares de Andrade
e o outro Otacílio Bernardes. O Aurelino que sempre foi muito...é... interesseiro
pessoalmente...é... não queria a emancipação porque era muito mais vantagem
pra ele ser vereador de São Paulo do que futuramente vir a ser é... um vereador
de São Miguel. E eles espalharam uma notícia que bairro que influiu muito... é...
no ânimo das pessoas... foi que se São Miguel passasse a município o ordenado.
O salário dos operários seria diminuído... e naquele tempo São Miguel era um
bairro operário e vivia em torno da Nitro Química que possuía naquele tempo
um quadro de trabalhadores , é... de sete mil pessoas [...]Então, com essa notícia
que a emancipação diminuiria o salário é... o pessoal se dividiu e fizeram uma
campanha... além disso existia uma campanha muito forte na... na câmara.
346
Nesse sentido, se à princípio o bairro era apenas o ponto de chegada de pessoas
vindas de outros lugares atraídas pelo trabalho nas indústrias, principalmente na Nitro
Química, vai aos poucos se tornando espaço de novas e conflituosas relações, que se
estabelecem a partir da luta do migrante na conquista de espaço nesse viver urbano. E
Osvaldo continua relatando essa relação com o bairro, vim pra direto. Minha
relação com o bairro é de sessenta anos, . Eu gosto muito de São Miguel, aqui tenho
grandes amizades e gosto disso aqui como se eu tivesse nascido aqui”
Sobre as transformações dos espaços do bairro, o depoente pontua a necessidade
de se estabelecer uma organização espacial identificada com o novo e com o moderno,
formando no centro do bairro uma área comercial, um centro de consumo:
... mas... quando é por exemplo um monumento só, uma casa, por exemplo, no
caso aqui da Igreja... é apenas a Igreja, mas uma cidade como São Luís, que são
344
Osvaldo Pires Holanda, em depoimento citado.
345
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo sociedade e cultura nos frementes anos
20. São Paulo: Cia das letras, 1992, p.177.
346
Idem.
141
ruas inteiras... não é? Aquelas casas velhas... caindo, quando poderia demolir
aquilo... aqui em São Paulo a gente constantemente demolições de casas
velhas e tudo construindo prédios novos... aqui em São Miguel mesmo tá
assim... não sei quantas construções novas... isso sim é que evidencia o
progresso... imaginou conservar uma cidade com aquelas casas velhas,
caindo... eu não dou valor a isso não... sinceramente.
347
Apontando para a percepção dos lugares como um campo de conflitos e
divergências, o Sr. Osvaldo reconhece que concepções diferentes das suas e se diz
deslocado com o seu modo de pensar sobre a Capela evidenciando que não o muitas as
pessoas que pensam igual a ele, que não se incomodaria se, no lugar da Capela fosse
construído um supermercado. Continua o depoente:
É, renovar, exato. Imagina se ali no lugar da Igreja fizessem um supermercado
novo, uma coisa... bonita, né... eu acho que evidencia mais o progresso do que
conservar aquilo... mas tem muita gente que valor... eu não discordo de que
as pessoas tenham as suas concepções... eu acho que cada mente deve ser livre
para pensar e... mas de certo modo... eu me sinto é ... deslocado...
348
Se, a preservação do passado entendido como manifestação arquitetônica tem para
o depoente pouco significado diante do que constitui para ele o moderno e a modernidade,
por outro lado o depoente revela que não tem o hábito de jogar fora nenhuma
correspondência que recebe, diz que guarda tudo, pessoas que faleceram 50 , 60
anos eu conservo a correspondência, nunca jogo forae confessa que “de vez em quando
eu pego uma pasta daquelas e começo a recordar”.
O Sr. Osvaldo conta que toda a documentação do Movimento Popular Autonomista
está no Esperanta Klubo Zamenhof, que aceitou tornar-se depositário e “depois que se
instalou a revolução acabou o movimento político, nunca mais ninguém se reuniu, porque
não dava... não podia mesmo, porque ia preso”.E Osvaldo pires Holanda, confessa seu
sentimento em relação à autonomia de São Miguel Paulista:
Na época eu senti muito... mas confesso que o progresso que observamos
daquela época pra cá, me convenceram que não é mais vantagem, primeiro
porque o distrito ficou restrito a São Miguel... nós perdemos uma área enorme,
Itaquera, Guaianazes, Itaim Paulista, Ermelino Matarazzo... e então, hoje se
houvesse um movimento para autonomia eu seria contra porque São Miguel
dificilmente teria condições de manter o município com as mesmas benfeitorias
que nós temos, quer dizer, as despesas do bairro aqui eu acho que deve ser
muito grande para a prefeitura... e à prefeitura não interessa abrir mão de um
bairro como esse porque sabe que aqui é um colégio eleitoral muito
importante...
349
Desse modo, visualiza-se ações dos moradores de São Miguel no sentido de
garantir alguns equipamentos públicos e melhor qualidade de vida no bairro, pela
organização dos moradores, que não ficaram indiferentes e criaram formas locais de
347
Osvaldo Pires Holanda, em depoimento citado.
348
Idem.
349
Idem.
142
interferirem na dinâmica do bairro e demonstraram suas lutas para conseguirem as
mudanças que consideravam necessárias. Essas ações fazem refletir sobre o processo de
constituição do bairro pautado pela sua constituição física, mais visível e nas construções
simbólicas e imaginadas, que permitem compreendê-lo na sua multiplicidade. Desse
modo, a cultura tem que ser vista como um processo dinâmico, carregado de diferenças
que se evidenciam nos espaços do bairro pelos valores e pelas histórias que o configuram.
2.2.4. Vinha gente de todo lugar, né...
Dentre as vivências de São Miguel Paulista, as festividades que comemoram o
padroeiro “São Miguel Arcanjo” e o aniversário do bairro foram sendo historicamente
construídas e ganharam contornos diferenciados no decorrer dos tempos. Essas práticas
tornaram-se fontes de estudo dos processos sociais de construção das memórias e não
devem ser vistas como mero divertimento de grupos populares ou apenas lugares onde se
mantêm “tradições arcaicas”, entendidas como algo congelado no passado e que não
pressupõe mudança, mas como produções histórico-sociais que dimensionam os modos de
vida evidenciados nos desfiles, procissões, novenas, celebrações, cartazes e folhetos que
circulam pelo bairro por ocasião das comemorações.
Essas manifestações, além de possibilitar vislumbrar costumes, crenças, valores e
tradições, permitem, também visualizar formas de dominação, transgressão, hierarquia e
poder entre os moradores e/ou participantes das festividades que precisam ser lidas como
processos sociais que emergem de diferentes estratégias de manutenção de poder e
distinções sociais e, ainda, elementos de construção de encontros, sociabilidades e
afetividades.
Interessante estudo de Amaral
350
, indica que a festa, “[...] tem sido desde o período
colonial, um fator constitutivo de relações e modos de ão e de comportamento, ela é
uma das linguagens favoritas do povo brasileiro”. A autora elabora uma reflexão sobre o
caráter da festa no Brasil, onde tudo acaba em festa”, que, ao contrário da idéia de
alienação que envolvem as reflexões sobre a festividade, pode ser percebida como uma
dimensão de aprendizagem da cidadania e apropriação de sua história por parte do povo
brasileiro.
350
AMARAL, Rita de Cássia Melo Peixoto. Festa à Brasileira – Significados do festejar, no País quenão
é sério”. São Paulo, USP- FFLCH. Tese de Doutorado, Departamento de Antropologia, p.7,8.
143
José Caldini Filho, participou da fundação do Rotary Club de São Miguel e da
organização do primeiro desfile comemorativo do aniversário do bairro. Criou a flâmula
do clube nela introduzindo “nossa velha Capela de tantas tradições históricas e religiosas,
SÍMBOLO MAIOR DE NOSSA COMUNIDADE” e o símbolo do Rotary Club de São
Miguel que apresenta a estampa da Capela de São Miguel Arcanjo.
O depoente rememora afirmando sua memória no relato da gravação de Francisco
Lapenna para Maria da Glória Morcilo Lapenna Quaranta (filha de Francisco). Essa
transcrição foi feita por Maria da Glória e encaminhada ao Sr. Caldini para que ele a
publicasse no jornal “O Estudante”.
Essas ações indicam que o Sr. Caldini e Maria da Glória são pessoas interessadas
em perpetuar a memória do bairro. um movimento dessas pessoas no sentido de gravar
a entrevista, mandá-la para o Sr Caldini e este providenciar a publicação. A publicação
aconteceu e o Sr. Caldini não encontrou a cópia da mesma, porém tendo guardado a
transcrição da gravação, cedeu-me uma cópia.
351
O Sr. Caldini um trecho da entrevista do Sr. Francisco Lapenna, em que este
relata as festas de São Miguel, num período em que eram muito concorridas, no início do
século passado:
Quanto às festas do aniversário de São Miguel, elas eram muito concorridas,
apesar de não haver meio de transporte, meu pai e minha mãe contavam isso
quase cem anos... tinha a festa da Penha em 8 de setembro e as pessoas vinham
para São Miguel pois o jogo era livre naquela época – rindo tinha muita
jogatina aqui... a primeira multa que tem na Câmara Municipal de São Paulo,
que consta lá, foi por uma corrida de cavalo no Parque Paulistano...
352
Este trecho do depoimento abre espaço para a reflexão sobre as festividades em
São Miguel nas primeiras décadas do século passado, para onde acorriam pessoas de todo
lugar, apesar de não haver meios de transporte” em função de um acontecimento social,
a festa do padroeiro e, ao mesmo tempo, transgrediam a ordem pré-estabelecida em que a
corrida de cavalos era proibida. O período da festa era, ao mesmo tempo, o período em
que se homenageava o santo, praticava-se a religiosidade, revigorava-se as tradições e se
vivia a transgressão.
É certo que essas manifestações vão se modificando e se transformando. As
lembranças de Albertino revelam essas mudanças e permitem visualizar como vão se
351
A cópia manuscrita tem o seguinte título: Gravação efetuada em 6 de setembro de 1994: Um pouco da
história de São Miguel Paulista – de Francisco Lapenna para Maria da Glória Morcila Lapenna Quaranta
352
José Caldini Filho, em depoimento citado.
144
incorporando, à atividade festeira, novos códigos de comunicação. Assim ele descreve a
festa de São Miguel Arcanjo que ocorria todo ano no mês de setembro, já na década de 60:
enfeitava toda a igreja, botava aquelas bandeirinhas e as barraquinhas era
ali... era no fim de semana... sábado e domingo, durante o mês de setembro... o
mês de aniversário de São Miguel... porque naquela época não festejava o
aniversario de São Miguel como se festeja hoje, né... naquele tempo era a Igreja
que comandava... era o padroeiro... a Semana Santa era... era muita reza...
naquela época tinha... o padre... tinha quermesse... semana santa tinha
quermesse... sempre no fim de semana... sempre sábado e domingo... que São
Paulo sempre foi de gente trabalhador... nada de semana... sempre no sábado e
domingo...
353
O depoente considera a forte presença da Igreja Católica, num período em que a
festa tinha caráter predominantemente religioso, sendo a Igreja de São Miguel Arcanjo o
elemento agregador das atividades que se realizavam na festa. Ao mesmo tempo, deixa
antever o imaginário construído sobre a cidade de São Paulo, como a “cidade que não
pode parar” muito presente nos paulistanos, ou seja, “gente de muito trabalho”.
E continua:
São Miguel é como se fosse um a cidadezinha do interior...aqui quem mandava
era o padre ... como na cidade do interior, quem manda... era o delegado, o
padre e o juiz ... então, como não tem juiz aqui, é so o padre e o delegado que é
nomeado, naquela época o tenente, ne... não era nem o delegado oficial... era
nomeado um sargento pra tomar conta do... daqui... o inspetor de quarteirão...
então o tinha essas coisas ... então... Eram totalmente locais, em função da
Igreja, nada mais, o padre Aleixo...
354
. O depoente elabora e percebe os múltiplos sentidos da festa, como forma de
organização social de grupos locais e reafirmação de valores particulares no contexto
social. Reitera a forte presença da Igreja e do vigário, apoiado em tradições locais que
davam a ele autoridade para tomar decisões sobre o bairro e sobre os moradores.
Demonstra, ainda, a ausência, sem tida por ele, do poder público para com o bairro
distante do centro econômico ou, “cidadezinha do interior” que não recebia visitas de
figuras máximas do município nem do Estado
Por outro lado, o depoente faz reflexões sobre as mudanças ocorridas nas festas,
que vão acompanhando as transformações do lugar. Essas ações, pautadas nas tradições,
estão constantemente em processo de desconstrução e reconstrução, na medida em que
mudam os imperativos do presente e Albertino percebe essas transformações, ao julgar
que a descontinuidade das festas foi sentida quando da saída do Padre Aleixo:
Continuaram, continuaram, o Pe. Segundo
355
, mas ele foi mudando, porque cada
um que chega, quer deixar a sua marca... ele foi mudando... se não me engano, o
353
Albertino Nobre, em depoimento citado.
354
Albertino Nobre, idem.
355
O Padre Segundo Piotti foi o sucessor do Pe. Aleixo na Paróquia de o Miguel Paulista a partir de 05
de abril de 1964.
145
primeiro ano dele, ou o segundo parece que o teve... uma coisa assim ... isso
ai eu não lembro muito não... faz muitos anos já.. a gente ... mas... ... a
tendência é ir acabando, mesmo... Ferraz de Vasconcelos a festa da uva,
Itaquera a festa do pêssego ... e vai acabando... aos pouquinhos vão terminando
... a festa da uva não tem mais... e era um espetáculo, muito conhecida ...
Ao relembrar as festas religiosas em torno da Igreja de São Miguel Arcanjo,
Albertino elabora questões sobre o antes e o depois: quando no passado, lideradas pelo Pe.
Aleixo, as festas contavam com a participação de todos; depois as transformações desses
festejos tradicionais quando aparecem novas pessoas como o Padre Segundo Viotti,
substituto do Pe. Aleixo em 1964. Por outro lado, as lembranças de Albertino transitam no
tempo presente com festas tradicionais em outros bairros, que também vão se acabando.
Essa mudança é em função do próprio progresso do bairro ... ela foi mudando
por conta do próprio progresso ... porque... como era uma coisinha local,
pequena ... onde o padre comandava... ai o padre saiu ... veio padre novo... o
padre veio com outras idéias ... padre italiano... com outras idéias, com outros
conhecimentos ... e trouxe outras experiências... então e ai as coisas antigas vão
sempre mudando...as coisas vão ficando mais pra traz ...
356
As mudanças evidenciadas entre as festas passadas e atuais vão demonstrando as
transformações ocorridas no espaço urbano. São Miguel Paulista de antigamente, onde
todos se conheciam, não existe mais. Emerge agora um bairro superpovoado de pessoas
com interesses diferenciados ou não articulados. As transformações do bairro, o aumento
da população, os novos modos do fazer do bairro vem sendo percebidos pelos
moradores que registram esses fatores em suas falas. Nesse processo de mudança, que
Canclini chama de reconversão, ocorrem transferências da cultura de um lugar para outro e
vice-versa, sem, no entanto, se estabelecer uma relação dicotômica desses vários modos
culturais.
357
Com o decorrer dos tempos, essas festas foram perdendo a característica religiosa e
a elas foram incorporados novos elementos. Caldini se recorda da organização da primeira
festa de aniversário do bairro, ocorrida em 1967, promovida pelo Rotary Club de São
Miguel Paulista:
Esse é o santinho de São Miguel Arcanjo “Lembrança da festa de São Miguel
realizada a 8 de outubro de 1950, São Miguel Paulista. Festeiros: João Caldini,
José Caldini.. era o s inteiro,...não era brincadeira não... era de de
setembro e vai embora ... geralmente 29 de setembro... era o ultimo domingo do
mês... era o aniversário do santo, de o Miguel que e o padroeiro mas era o
desfile... o desfile que fechava... o desfile ... participava... bom pra começar que
o primeiro, participou desfilando sete mil pessoas... desfilando heim.
358
356
Albertino Nobre, em depoimento citado.
357
CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas, estratégias para entrar e sair da modernidade. o Paulo:
EDUSP, 2003, p.22.
358
José Caldini Filho, em depoimento citado.
146
No ato da relembrança Caldini, num movimento próprio da memória, mistura
elementos das festas ocorridas em 1950, sob a liderança do Padre Aleixo em que um dos
festeiros era seu pai, José Caldini e o primeiro desfile organizado pelo Rotary Club em
1967, do qual participou como um dos organizadores. Ainda tentando entender os aspectos
da reconversão da Festa de São Miguel Arcanjo, no depoimento de Caldini relata que o
tempo da festa prolongava-se o mês todo; é importante notar que, atualmente, a festa do
aniversário do bairro também tem a duração do s todo; é um dos aspectos de
permanência da festa, que não sofreu modificação.
No Boletim Mensal do Rotary Club de São Miguel Paulista, intitulado: A Matriz
Rotáriaque é um número especial do Rotary Club de São Miguel Paulista, consta além
do calendário da festa de aniversário do bairro, a primeira festa organizada pelo Rotary
Club de São Miguel, em 1967, uma homenagem à Capela de São Miguel Arcanjo
intitulada: “Por que a Igreja Como Símbolo?”:
Perguntará alguém, porque escolheu o Rotary Club de o Miguel Paulista a
velha Igreja como símbolo e não a indústria, uma personalidade marcante ou
mesmo a nova monumental MATRIZ, ao invés desse desajeitado casarão, que
nem mesmo aspécto arquitetônico tem de casa de religião, e nós muito a
vontade, orgulhosos e transbordando civismo, respondemos: Procuramos dentro
de nóssa comunidade, aquilo que mais de positivo pudésse contar, alguma coisa
que mais benefício tivésse sido à nossa coletividade, um bem que não fôsse
medido ou pesado pelo seu valor material alguma coisa que contivésse no seu
bôjo, o princípio básico Rotário DAR DE SI SEM PENSAR EM SI, um símbolo
que, casado ao nosso emblema, ao contemplá-lo sentíssemos orgulho, vibração e
novas forças para levar ao bom têrmo o mister de servir apenas a que nos
propusemos.
Por isso tudo, pela sua tradição, pelo seu valor como patrimônio histórico,
que, nossa ermida hoje, em sua humildade caipira é um dos mais sugestivos
documentos vivos e palpáveis dos idos seiscentistas.[...]
Velha igreja que desde 1.622, vem ensinando e pregando o amor entre os
homens, nada mais justo, cívico, e patriótico, do que quebrar esse silencio que a
manteve no anonimato até agora, desconhecida pela maioria como um
monumento histórico, pela falta de carinho com que obrigatoriamente deveria
ser cultuada.
Nosso objetivo maior em colocá-la como mbolo é o de divulgá-la, fazê-la
vibrar no coração de nossos estudantes, que pouco ou quase nunca, ouviram sua
história, torná-la conhecida aos que nos visitam, fazer com que todo cidadão de
São Miguel Paulista, seja sentinela na defesa de seu patrimônio, instar as
autoridades competentes, sempre que sua conservação assim a exija,[...] Eis,
porque a escolhemos como símbolo. (J.CALDINI FILHO)”
359
359
José Caldini Filho fazia parte da Comissão dos Festejos da Festa de São Miguel Arcanjo no ano de 1967.
147
Essa ação permite avaliar o envolvimento do
depoente nas ações do bairro e o valor dado ao
símbolo religioso, como parte do símbolo de uma
instituição leiga , o Rotary Club de São Miguel
Paulista.
As lembranças das alegrias vividas nas antigas
festas, em que o aspecto religioso permeava as
atividades, se entrecruzam com as experiências atuais
que passam pelo processo de “reconversão”, sendo
transformadas, diversificadas mantendo elementos do
antigo e do novo numa “trama majoritariamente urbana
em que se dispõe de uma oferta simbólica heterogênea, renovada por uma constante
interação do local com redes nacionais e transnacionais de comunicação”
360
. Dessa
maneira, as homenagens ao santo padroeiro se mantêm, bem como a procissão de
encerramento e são incorporadas outras formas de sociabilização mais características da
entidade que promove a festa, como o desfile cívico, homenagens às autoridades.
Um exemplo de transformações pelas quais passaram as comemorações de
aniversário do bairro, é a confecção de tapetes, como noticia o jornal de setembro de
1976:
A praça Padre Aleixo Mafra, última etapa da procissão de São Miguel Arcanjo,
estava decorada com tapetes em toda sua extensão. Os tapetes foram feitos de
serragem, cal, tampinhas der garrafa e pó de café, além de tinta colorida. Na sua
elaboração trabalharam durante toda a noite de sábado, integrantes da
comunidade jovem da paróquia e alunos das escolas próximas à matriz. A rua
ficou fechada até a passagem da procissão que acabou desmanchando tudo.
361
A confecção dos tapetes, era um aspecto da cultura do bairro que satisfazia outras
necessidades. Uma produção esteticamente satisfatória e instrumento de estabelecimento
de relações sociais, para admiração, colaboração e competição entre os moradores.Muito
trabalho era investido nessa confecção dos tapetes, destruídos rapidamente ao passar da
procissão; era no entanto, uma relação de prazer com o objeto construído, que dizia muito
sobre as pessoas, para outras pessoas, e uma atividade social que não se manteve até os
dias de hoje.
A Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra, junto com outras referências espaço-
temporais, permite identificar dois momentos do bairro articulados e contrapostos nos
360
CANCLINI, op.cit. p.285.
361
Reportagem sem referência ao Jornal. Data: 28/09/1976. “São Miguel faz sua festa de 354º aniversário.
Figura 5 – Símbolo do Rotary
Club, criado em 1967 por José
Caldini Filho
148
depoimentos acima. De um lado, um São Miguel de ontem, caracterizado a partir de
espaços vivenciados na infância e juventude dos depoentes e que se referem aos anos 30
até a década de 60. De outro, um São Miguel de hoje, entendido como um bairro que se
imbricou ao antigo, indicando mudanças e permanências e que é percebido pelos
depoentes a partir dos anos 50 e 60.
No período em que Caldini relata o desfile, até meados da década de 90, o desfecho
era o andor com a imagem de São Miguel Arcanjo, escoltado pelo pelotão da Polícia
Militar do Estado de São Paulo. Atualmente, conforme relata Eurico: o desfile é sempre
encerrado com a imagem de São Miguel Arcanjo. tempos a imagem era escoltada pela
cavalaria da Força Pública do Estado de São Paulo. Hoje é escoltada pelo grupo
“Morumbizinho Moto Club”... o chefe é o Arlindo Miragaia”
362
. As transformações e as
permanências que ocorreram nas festas vão se evidenciado. O desfecho do desfile com o
andor da imagem de São Miguel Arcanjo permanece até hoje, porém o veículo para seu
transporte se modificou, passou de uma entidade pública com sua cavalaria, para um
cortejo de motocicletas com condutores que são moradores da região.
O Sr. Arlindo Miragaia, por telefone, relatou que o “Murumbizinho Moto Club”
existe desde 1984; é uma organização informal, não tem estatuto registrado e mais ou
menos oito anos fecha, junto com outros moto clubs a festa de aniversário do bairro,
acompanhando o andor de São Miguel Arcanjo no desfile de encerramento. A imagem do
padroeiro é levada em uma caminhonete do Sr. Arlindo que é enfeitada para ficar como se
fosse um andor e acompanhada pelas motocicletas. Após a procissão, há uma festa na sede
da organização em comemoração ao encerramento da festa e à participação do grupo de
motocicletas.
Essas ações surpreendem porque se analisar a foto da figura 6, referente à festa do
padroeiro ocorrida em 1938, veremos o carro enfeitado para a procissão que, segundo as
lembranças do Sr. Jesuíno, carregava o andor com a imagem de São Miguel Arcanjo. São
aspectos da festa que se mantém e ao mesmo tempo sofrem rearranjos para adaptá-los aos
interesses atuais, como por exemplo,a participação das motos, tipo de veículo que exerce
atração nos dias atuais, principalmente sobre as camadas mais jovens da população.
A princípio, os festejos de São Miguel eram realizados em comemoração ao
padroeiro do bairro São Miguel Arcanjo. Com as transformações ocorridas no bairro, o
aumento da população, a construção de nova Igreja que hoje funciona como catedral da
362
Eurico dos Santos, em depoimento citado.
149
Diocese de São Miguel Paulista, a festa ganha novos contornos e sem deixar totalmente o
caráter religioso, vai girar em torno do aniversário do bairro, que coincide com o mês de
setembro, mês de aniversário do padroeiro. A festa vai, ao longo do tempo, incorporando
novos códigos, mais compatíveis com os interesses que as transformações do bairro vão
evidenciando.
Sobre sua participação nas festas em São Miguel Paulista, Albertino se coloca:
Todas. Olha eu cheguei em o Miguel em 1948. De para eu participei de
todas as festas porque eu .. eu como era... como era não... como sou até hoje
Católico... Apostólico Romano e ninguém me tira disso... já teve muitas
propostas... mas o meu princípio... eu fui coroinha na minha terra, ajudei a
missa e tal... como curiosidade ... aquela igreja da Vila Curuçá o Pe Aleixo, o Pe
Aleixo, nós fizemos uma procissão pra levar o cruzeiro pra lá... na época nos
levamos... eu como era jovem... nós levamos o cruzeiro nas costas... daqui de
São Miguel da capela velha até o local onde hoje é aquela igreja de Nsa. Sra. de
Fátima. Foi feito um cruzeiro pra levar pra lá... como sendo a pedra
fundamental ... da pedra fundamental da igreja matriz,. Eu participei da pedra
fundamental da igreja matriz de o Miguel... onde estava presente o
governador... (...) entendeu, então ...
363
No falar de Albertino, se antevê a expansão do bairro para além da Capela de São
Miguel Arcanjo; o próprio Padre Aleixo colocou a pedra fundamental da nova Igreja de
São Miguel Arcanjo, que hoje é a Catedral e também a pedra fundamental da igreja Nossa
Senhora de Fátima, na Vila Curuçá, que hoje pertence à Subprefeitura de Itaim Paulista.
Nas memórias de Jesuíno, as festas do padroeiro anteriores aos anos 60,
começavam uma semana antes e terminavam com a procissão no dia 29 de setembro,
consagrado ao padroeiro. A procissão saia da Igreja, por baixo da praça, pegava a rua
Beraldo Marcondes, entrava onde é hoje a Av Marechal Tito, descia a rua Arlindo Colaço
(que se chamava Rua da Fábrica), descia a Rua da Estação, hoje Salvador de Medeiros e
subia a Estrada de Santa Isabel que é hoje a Salvador Medeiros e terminava na Igreja
novamente.
Neste rememorar, o depoente se reporta ao passado para localizar o trajeto da festa
e procura localizar esses lugares com referências do presente, tentando se recordar das
denominações antigas e atuais das ruas, numa constante construção e reconstrução do
espaço urbano, baseado nos tempos passado e presente. O trajeto da procissão reveste-se
de um sentido sagrado; compreende um marco de partida, a praça da Igreja de onde a
imagem do padroeiro sai e é transportada num itinerário estabelecido, e outro de chegada,
quando retorna novamente ao ponto de partida.
363
Albertino Nobre, em depoimento citado.
150
Como preparação para a festa, haviam pregações nas cerimônias que antecediam o
mês de setembro, que chamavam os fiéis à participação. A Igreja era enfeitada durante o
mês, sendo preparada para as festividades. Um trator raspava as ruas ao redor da Igreja
para ficarem limpas e mais bonitas.
E Jesuíno continua:
Uma semana ou duas antes dos festejos, a Antarctica trazia os geradores...
dentro da Igreja também era iluminado por esses geradores. A saída da
procissão era enfeitada por fogos de artifícios e rojões e na chegada, um show
pirotécnico encerrava as festividades. Isso acontecia no último dia à noite. Ao
acabar os fogos, acabava também a festa. No outro dia, não tinha mais luz
elétrica em São Miguel Paulista.
364
No período relatado por Jesuíno as ruas do bairro eram de terra, daí a necessidade
do trator limpá-las e não havia luz elétrica, que chegou em São Miguel, conforme
Jesuíno, “no ano de 1940 quando chegou a luz elétrica que veio abastecer a Nitro Química
e também serviu para São Miguel Paulista”
365
. A presença da Nitro Química, mais uma
vez, marca processo de transformações do bairro, beneficiando os moradores com a
energia elétrica, em virtude da necessidade para o funcionamento da indústria. Por outro
lado, as festividades terminam com o desfile do padroeiro, que permanece ainda hoje
como término dos festejos, apontando aspectos de permanência nas comemorações.
364
Jesuíno Braga, em depoimento citado
365
Idem.
151
Sobre a organização da quermesse na década de 40, Jesuíno se recorda que as
barracas vinham da Antárctica e quem se candidatava a fazer as comidas alugava a barraca
e parte do arrecadado se revertia para a Igreja. Havia comida em abundância: doce feito
em casa, pipoca, queijadinha, algodão doce, peixe pegado nas lagoas, cuscuz, bolo de
milho... faziam cesta de papel crepom que enfeitava e doavam para o leilão. Davam porco,
cabrito, leitão assado, frango assado... vinha gente de longe, o santo era famoso e a festa
coincidia com um s que não tinha festas em outros lugares. Os festeiros, que segundo
Jesuíno a maioria das vezes eram os Lapenna”, patrocinavam a festa, entravam com uma
verba e pediam para a população que mandasse oferendas para serem leiloadas para a
conservação da Igreja.
A comida adquire no relato, um caráter simbólico de alta importância. Através
desse compartilhar de alimentos existente nas festas, revigoram-se os laços afetivos, de
solidariedade e pertencimento. Através da comida farta, se estabelecia a criação de novas
relações, os modos de fazer dos moradores, que resultavam em novas ões, novas regras
e novas hierarquias.
Sobre os festeiros, o próprio Francisco Lapenna conta no seu depoimento:
Figura 6 – São Miguel Paulista, 1938.
152
Os festeiros e a comissão encarregada da organização da festa tinham que
hospedar o padre e dar condução e comida também para a banda de música que
vinha de Guarulhos. Os festeiros que arcavam com todas as despesas eram
sempre os mesmos: meu pai, o Sr. Ângelo Lapenna, o Manequinho, chefe
político e subdelegado e outro comerciante o Sr. Antonio Gonçalves Castanheira
Era obrigação dos festeiros, encarregados de organizar a festa, hospedar os
padres, dar condução e comida e também abrigar e receber a banda de música
que vinha de Guarulhos.
366
Caldini, que lia esse trecho do depoimento, completa: “esse Castanheira dizem que
era o dono do terreno onde tem a casa paroquial hoje”.
367
Remete sua memória ao presente
ao fazer essa afirmação, mostrando como o ato de rememorar possui esta dinâmica que vai
do presente ao passado e volta para o presente.
As lembranças de Lyris permitem visualizar a presença intensa nas atividades da
festa de São Miguel, como apropriação coletiva, dos moradores, dos espaços do bairro:
Eu tenho saudades... a gente freqüentava... tinha um cruzeiro lá em frente,
tiraram... esse tiraram pra fazer a ... tinha os lampião de querosene... é isso aí, e
as festas, quando tinha festas lá, era meu tio que acendia o lampião, meu tio
Domingos...- O sino, o sino... era todo... quando morria uma pessoa tocava o
sino e nas festas tudo, era quem tomava conta da igreja um rapazinho assim que
tomava conta da igreja... minha madrinha mandava ele e ele ia repicar o sino
pras missas, né... cada pessoa que morria lá, repicavam o sino... e tinha que ir na
igreja, naquele tempo...né. naquele tempo.
368
Emerge das memórias de Lyris, um tempo em que se freqüentava a capela e a
perda daquilo que lá existiu, como aspectos importantes do festejar, como acender o
lampião de querosene, o repicar do sino, tarefas atribuídas a sujeitos sociais conhecidos
que as executavam. Emergem também, aspectos de poder , de mando que algumas pessoas
exerciam em eventos e hábitos praticados por sujeitos sociais: o repicar do sino. O sino da
Igreja, naquele tempo ajudava a fixar, junto com o espetáculo visual da procissão, os
fragmentos do bairro na memória dos moradores, e ainda, em outras ocasiões,
acompanhava as cerimônias da Igreja, anunciando as horas canônicas, convocando para a
missa ou anunciando um enterro. Nesse sentido, o repicar do sino para os moradores,
exercia funções de comunicação e controle do tempo, ultrapassando o sentido litúrgico
para orientar os sujeitos no que se refere às horas do dia, realização de cerimônias,
projetando-se desse modo, nos logradouros e espaços públicos situados no entorno da
Capela.
Caldini também relembra do tempo dos lampiões e da pracinha:
...e a cidade cresceu em torno da pracinha, né...a pracinha e foi... tinha a
Capelinha, depois aí, tinha aquela... acho que 12 casas no larguinho da igreja,
366
Francisco Lapenna, em depoimento à sua filha Maria da Gloria em 06/09/94.
367
José Caldini Filho, depoimento citado
368
Lyris Rodrigues Ruott, em depoimento citado.
153
lampiãozinho a querosene eu lembro ... o lampiãozinho a querosene que a gente
ia mexer... ia atrás da pessoa que era empregado da prefeitura ... que todo dia lá
pelas seis horas pegava a escadinha, punha nas costas, um litro de querosene e ia
lá abastecer os lampiõezinhos..;. e a molecada ia atrás do... chamava nho Tico ...
nho Tico ah, deixa o pavio um pouquinho mais alto, senão não adianta nada...
pra não gastar querosene... então você via só aquele lumezinho de fogo né ... não
iluminava nada, você via só aquele... aquela luzinha pequenininha ali... a gente
ia atrás que era pra ele deixar mais alto... a gente queria brincar... queria brincar
na rua e não podia, tudo escuro... os animais andavam por ... na rua...
deitado por lá... aquelas vaca, cavalo, entendeu e a gente não podia brincar...
então era uma fase da nossa historia... né... nho Tico...
369
Nessas memórias, Caldini relembra atividades sociais que ainda não tinham
passado por processos de transformação econômica e social próprios do São Miguel
Paulista atual. Não havia luz elétrica, a iluminação, ainda que pouca, era gerada através da
ação de “Nho Tico”; a rua era o lugar da recreação, podia-se brincar à noite, deparava-se
com animais que atrapalhavam as brincadeiras; tempos e espaços se misturam nas
lembranças da infância, e não havia o meio mais popular de diversão das classes
trabalhadoras atuais, a televisão.
As relações sociais apontadas pelos depoimentos acima, são bem diferentes das
que refletem o cotidiano do bairro atualmente. Essas novas atividades são resultantes de
uma relação com a mídia e com o mercado e que alteraram a relação dos indivíduos com a
natureza, o trabalho, a casa, a festa e todas as outras manifestações da coletividade local.
Dessa forma, a festa apresenta novos códigos que, ano após ano, vem alteram a rotina de
atividades em função de novos elementos incorporados à vida social urbana. Os
elementos inovadores, que aos poucos vão compondo a estrutura organizacional da festa
sao aspectos da reconversão.
Um outro depoente, José Vitorino relembra das festas e conta:
Eu gostava, assistia a missa, gostava, tinha festa, quermesse. O Pe. Aleixo fazia
umas quermesse bonita... era fim de semana... mais de bado domingo... que
sábado e domingo tem gente parada sem trabalhar, né... hoje muita gente
trabalha... Comprava o que o dinheiro dava,um agradinho pros meninos. Ia todo
mundo, as crianças, até minha mulher, mas depois que ela passou a Testemunha
de Jeová ela não foi mais... não quis mais ir não. Mas antes ela ia mais eu e as
crianças... eu comprava umas balinhas ... ai depois vinha pra casa... eu achava
bom ... a família é sagrado... minhas crianças foi batizada tudo aí... tudinho...
agora minhas netas, minhas bisnetinhas tem oito mês... não batizou ainda, vai
batiza o sei quando... diz que que batiza quando sabe... entende... entende
direito... Minha tataraneta coitadinha, nenhuma foi batizada ainda... uma tá com
quase dois anos...
370
José Vitorino consegue visualizar mudanças ocorridas no tempo do trabalho,
quando o sábado e domingo era para o descanso, e aponta para o presente, onde o se
369
José Caldini Filho, depoimento citado.
370
José Vitorino, em depoimento para a pesquisadora, em 25/06/2007.
154
respeita mais esse tempo e se trabalha em qualquer dia da semana. Ainda o depoimento
indica como eram determinados os gastos da família, que se adaptavam às condições
dadas para participar do consumo que a festa exigia. Refere-se também, às transformações
religiosas, ao aparecimento de novos grupos não católicos indicados no fato das netinhas
ainda não serem batizadas e na esposa que passou para outra religião. A família é tida
como sede de sua experiência coletiva, das relações que valorizam cada pessoa, na qual o
depoente se apóia, através das relações afetivas do parentesco, para afirmar sua
identidade.
Os preparativos da Festa do Aniversário de São Miguel Paulista, atualmente,
começam no s de junho. É escolhida uma comissão organizadora para tomar frente do
planejamento e da realização do evento. São cerca de quinze pessoas, dentre comerciantes,
funcionários da subprefeitura, empresários, pessoas interessadas.
Com ela inicia-se um processo de atividades que envolve desde a obtenção de
recursos econômicos até providências com infra-estrutura: sinalização de ruas, preparo
(limpeza, pintura) da praça; mudança do tráfego de veículos, preparo e distribuição de
alimentos, etc.
A Igreja de São Miguel Arcanjo era a entidade que produzia a festa do padroeiro ,
até meados da década de 60; deu lugar ao Rotary Club como organizador do desfile de
aniversário do bairro, que com o passar do tempo cedeu para a Subprefeitura de São
Miguel. Nesse movimento, percebemos como as ações sobre a festa foram se
transformando, passando de uma atividade religiosa para outras atividades de interesse de
quem as organizava. Na organização rotariana, percebe-se nítido caráter vico, bem de
acordo com os princípios da instituição. Na festa atual, existe uma participação mais
efetiva dos órgãos públicos, representado pela Subprefeitura de São Miguel Paulista e a
festa ganha feições do governo que está no poder. Desse modo, as festividades em
homenagem a São Miguel Arcanjo, santo padroeiro e do de aniversário do bairro ganham
novos contornos, perdendo o caráter exclusivamente religioso, que foi se imbricando com
outras ações que ocorrem no bairro em virtude das transformações pelas quais este vai
passando. Esse processo se deu em virtude do aumento da população de São Miguel
Paulista, da urbanização acelerada pela qual o bairro passou, pelas mudanças no ritmo de
trabalho e do tempo, e a vinda de outros sujeitos para esse local, com outros valores e
outras perspectivas.
São colaboradoras permanentes na captação de recursos e nas prestações de
serviços, nas festividades atuais, as seguintes empresas: Companhia Nitro Química
155
Brasileira, Universidade Cruzeiro do Sul, D’Avó Supermercados, Companhia de
Saneamento Básico do Estado de São Paulo, Associação Comercial de São Paulo,
Empresa Auto ônibus São Miguel, Conselhos Comunitários de Segurança (Conseg)
371
.
Além disso, a Diocese de São Miguel Paulista, a Subprefeitura de São Miguel Paulista, a
Polícia Militar do Estado de São Paulo trazem contribuições importantes, como recursos
financeiros, destino da mão de obra, auxílio na estruturação do evento, que muitas vezes
passa por um processo burocrático e político que limita a participação.
Atualmente, os festejos do aniversário do bairro são coordenados pela
Subprefeitura de São Miguel Paulista, sobre o que o Sr. Eurico diz:
Saliento e ratifico que sem a participação da subprefeitura, de sua infraestrutura
e de todo o seu aparato, não como realizar a festa. de mão-de-obra, a
subprefeitura mobiliza mais de duzentos funcionários desde: o subprefeito e sua
equipe, pessoal administrativo, engenheiros, eletricistas, mecânicos, pedreiros,
marceneiros, encanadores, cozinheiros, serventes e coordenadores de toas as
secretarias.
372
Pelo relato de Eurico, visualiza-se o número de pessoas envolvidas com a
realização do evento e o aparato administrativo que os organizadores dispõem para o
evento acontecer, destacando a participação da subprefeitura, que é o órgão público
municipal. Dessa forma, observo que os moradores recorrem ao poder público para efetuar
suas ações e este dispõe de pessoas como Sr Eurico, que
participa da organização e do próprio evento, pelo simples prazer
em participar e ser útil para o bairro de São Miguel Paulista.
Todos os anos, desde 1967, a festa de São Miguel é
veiculada através de cartazes que chamam a atenção dos
moradores para as atividades desenvolvidas e neles aparece a
Capela de São Miguel Arcanjo como elemento constituidor da
mensagem sobre o bairro. Em alguns folders aparecem ao lado
da Capela, a Cia Nitro Química e o rio Tietê. Nas comemorações
dos 382 anos do aniversário de São Miguel, apareceu no folder a
Estrada Jacu-Pêssego que ligará São Miguel Paulista à rodovia
Airton Sena, em Guarulhos e que está em fase de construção, o
que indica novos equipamentos sendo inseridos como elemento
371
Os Consegs são grupos de pessoas do mesmo bairro ou município que se reúnem para discutir e analisar,
planejar e acompanhar a solução de seus problemas comunitários de segurança, desenvolver campanhas
educativas e estreitar laços de atendimento e cooperação entre as vária localidades. Fonte:
http://www.conseg.sp.gov.br/conseg/default.aspx
372
Eurico dos Santos, em depoimento citado.
Figura 7 – Folder de
comemoração dos 382
anos de São Miguel
Paulista.
156
identificadores do bairro. Importante destacar, que o logotipo da festa é a Capela de São
Miguel Arcanjo e, portanto, nos convites, cartazes, folderes, faixas e nos troféus que são
concedidos aos participantes é obrigatório a estampa da Capela como logotipo.
Essas ações levam à reflexão sobre como as atividades do bairro são pensadas e
articuladas, tendo como referência a Capela de São Miguel Arcanjo. A festa de São
Miguel, com o passar do tempo, ganha novos contornos, adquire outras configurações
sociais e a Capela de São Miguel Arcanjo continua sendo elemento articulador dessas
memórias pautadas, também, em outras referências da vida urbana atual, como no caso, a
Estrada Jacu-Pêssego.
373
Segundo o Sr. Eurico, um dos participantes da comissão do evento, anualmente,
no início do segundo semestre, a Subprefeitura de São Miguel Paulista convidava alguns
moradores e as entidades representantes do bairro parta definir e elaborar a programação
referente ao aniversário de São Miguel Paulista. Eurico afirma que “as comissões são
compostas de vinte a trinta pessoas que vão diminuindo, diminuindo, restando no ximo
dez pessoas que realmente tocam a festa”.
374
E evidencia conflitos e tensões na
organização dos festejos:
Atualmente, 2005 e 2006, a subprefeitura suprimiu a comissão dos festejos,
abarcando para si toda a organização da programação que são discutidos e
aprovados dentro de gabinetes, as carreiras, sem os devidos cuidados na
elaboração da programação e principalmente com a nossa gramática, quando
erros crassos de impressão dos convites, cartazes e folderes que são distribuídos
à população e encaminhado às autoridades e à imprensa.
375
O depoente se posiciona quanto à participação dos moradores na organização da festa
nos últimos dois anos e é exigente inclusive com o material de divulgação da festa que,
para ele, apresenta erros ortográficos incompatíveis com o evento a que se propõe
divulgar. Ao avaliar a impressão do material de divulgação e a pouca participação dos
moradores na organização das comemorações, Eurico se sente à margem da organização
da festa, a que grande importância, porque é um morador realmente envolvido com as
questões do bairro.
Fazem parte do calendário das festas atuais, alguns eventos que são permanentes,
como as festas das colônias japonesa, portuguesa e libanesa, além da homenagem aos
373
Na década de 20, imigrantes japoneses se instalaram em uma área verde no extremo leste da capital.
Notabilizaram-se pela produção de pêssegos. Para comercializarem as frutas, abriram uma pequena estrada
de terra, à margem do Rio Jacu. O afluente do Tietê, hoje canalizado, devia seu nome a um pássaro comum
naquelas paragens. em 1996 a antiga estrada recebeu o nome de Avenida Jacu-Pêssego.
http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/vejasp/450_anos/textos/memorias/como_surgiu.html
374
Eurico dos Santos, em depoimento citado.
375
Idem.
157
pioneiros, passeio ciclístico, desfile cívico e as cerimônias religiosas da Igreja Católica,
como a missa de abertura, procissão e missa de encerramento dos eventos. Faz parte
também, o Festival de Bandas e Fanfarras, um evento patrocinado pela Secretaria de
Educação do Estado de São Paulo. As três melhores fanfarras pontuadas participam do
Festival Estadual de Fanfarras. Há, também, durante as comemorações a realização de um
Culto Evangélico e de acordo com o poder político que esteja à frente da subprefeitura,
são inseridos na programação outros acontecimentos como inauguração de equipamento
público, palestras de interesse geral, por exemplo.
Durante o mês das comemorações, realiza-se uma “homenagem aos pioneiros do
bairro”, pessoas que serão homenageadas em solenidade que acontece na Catedral de São
Miguel Arcanjo. No decorrer da cerimônia, o homenageado recebe um troféu que a cada
ano tem um formato diferente, porém em todos os anos a figura da Capela de São Miguel
Arcanjo está representada. A intenção dessa cerimônia era, a princípio, homenagear
moradores pioneiros e que tiveram suas vidas relacionadas ao bairro de São Miguel
Paulista. Atualmente, são escolhidas algumas pessoas que não fazem parte do cotidiano do
bairro, que não têm proximidade com as ões realizadas em São Miguel. Geralmente são
escolhidas para agradar algumas pessoas com elas envolvidas ou porque, no momento,
estão em destaque em alguma atividade desenvolvida no bairro. É uma questão que
evidencia poder e jogo de interesses, campos de decisão que evidenciam atritos entre os
segmentos religiosos, o poder público ou o orgulho localista dos moradores. Desse
modo,os eventos da festa contribuem para renovar vínculos de sociabilidade como também
para definir um campo de competição e disputa.
Esse festejar no bairro segue um ritual , uma preparação que evidencia dança, música,
reza, procissão, gincana, brincadeira, comida, bebida e uma infinidade de produtos de
consumo. Existem lugares no espaço e no tempo para cada aspecto da manifestação que
faz com que alguns elementos adquiram significado especial, como a Capela e o Santo. O
período da festa possibilita que lugares e objetos da cotidianidade sejam convertidos,
buscando a participação do sagrado com a inclusão de códigos externos, com outras
significações. O urbano e o global vão se articulando com rituais sagrados e profanos e
estabelecem novas formas de organização das festividades e, portanto, da cultura local.
158
CAPÍTULO III
UM EXERCÍCIO DO OLHAR: produtos que evocam a Capela
DE2J$
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Este capítulo pretende dar visibilidade às vivências dos moradores de São Miguel
Paulista e redescobrir suportes que contribuem para a preservação da Capela de São
Miguel Arcanjo. Por meio de estampas, obras plásticas, publicações, desenhos que
aparecem muitas vezes em lugares pouco visíveis, por meio de manifestações às vezes
solitárias e aparentemente corriqueiras, por pessoas que, em São Miguel Paulista, fazem
com que essa memória se manifeste, em suas atividades, pensamentos e sentimentos
cotidianos. Segundo Willi Bolle, “a quantidade de textos pertencentes à escrita da
cidade”, onipresentes diante dos olhos do cidadão e lidos por ele a toda hora,
distraidamente e repercutindo no seu inconsciente [...] exige uma revisão da cultura letrada
tradicional...”
376
Dessa forma, as manifestações em torno da Capela de São Miguel Arcanjo evocam
uma memória que se “enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem e no
objeto”.
377
e provoca a aproximação cada vez maior da história com territórios antes
inexplorados, onde novos domínios historiográficos são difundidos, tais como a relação
história-imagem que, ultrapassa os limites impostos pela escrita e é fonte legítima e
fundamental para a investigação e reflexão sobre a história. Assim, múltiplas formas de
experiências tomam o bairro e a Capela de São Miguel Arcanjo como referência,
compondo o cotidiano desses lugares, em diversas temporalidades e expressam
movimentos, projetos e configurações valorativas heterogêneas.
376
BOLLE, Willi. A cidade como escrita. In O Direito à Memória – Patrimônio histórico e cidadania.
DPH, Secretaria Municipal de Cultura. São Paulo: DPH/SMC, 1992, p.140.
377
NORRA, Pierre. Entre Memória e História A Problemática dos Lugares. In Projeto História 10. o
Paulo: PUC, 1993, p.9.
159
Assim, significados novos vão emergindo nesses espaços que dão visibilidade ou
ocultam ações desses moradores nas suas lutas para representar o cotidiano. Esses sujeitos
recorrem à própria cultura instituída, reproduzida através de uma multiplicidade de
agências culturais para representar suas práticas de resistência e projetos de ruptura,
abrindo espaços para elaboração de experiências até então silenciadas ou então
interpretadas de outro modo, emergindo produção e reprodução de lugares e práticas
materiais que estabelecem novas reelaborações , abordando diversamente a realidade.
Procurei, dessa forma, os significados desses processos para apreender, em cada
caso, as vivências, os valores, os objetivos e as conclamações desses sujeitos, nesse espaço
da cidade, em diferentes tempos. Assim, a perspectiva de pensar a Capela, representada
por outras linguagens veiculadas em produtos que são usados como consumo, é posta na
problemática que a Capela de São Miguel Arcanjo também, como geradora de produtos
ofertados no mercado. Desse modo, as preocupações giraram em torno de diferenciadas
manifestações efetivadas por pessoas que exprimem suas ações no bairro de São Miguel
Paulista e na cidade de São Paulo, dispondo-me como historiador/pesquisador “a
reaprender seu ofício diante do desafio de novas linguagens”.
378
3.1. Um filatelista persistente
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A imagem da Capela de São Miguel Arcanjo contemplada pela Emissão Especial
de um selo pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), no ano de 2003, teve
como principal agente o Sr. Eurico dos Santos, nascido em 1944 no bairro de São Miguel
Paulista em São Paulo. Filatelista, Eurico relata sua iniciativa de proposta para emissão de
um selo com a estampa da Capela de São Miguel Arcanjo, “a fim de que a Capela fosse
divulgada para o mundo, através dos selos postais da Empresa Brasileira de Correios e
Telégrafos”
379
.
Eurico arquivou todos os documentos relativos a essa iniciativa, selecionando de
sua experiência vivida aqueles, cuja importância foram para ele vitais na reconstrução do
processo de conquista da emissão do selo sobre a Capela de São Miguel Arcanjo. A
378
BOLLE, Willi, op.cit.
379
Eurico dos Santos em depoimento à pesquisadora em 09/07/2005.
160
organização desses arquivos mostra a necessidade de documentar e registrar os meandros
pelos quais se infiltrou até seu desejo se realizar. Os documentos arquivados revelam as
experiências vivenciadas pelo próprio Eurico, por meio de relações sociais estabelecidas,
nem sempre harmoniosas, entre ele e os setores públicos ou privados, que estiveram
envolvidos nesse processo de luta. que se pensar as ações do filatelista no tempo
presente, demonstradas por sua posição política e formação dos seus modos de agir,
pensar, relacionar, trabalhar, enfim, nos elementos que constituem sua cultura, ao
perpetuar nas páginas de seu arquivo os objetos representativos de sua memória.
Por meio da consulta aos seus arquivos é possível percebê-lo como uma pessoa
engajada e preocupada com a vida social e política do bairro de São Miguel Paulista,
especialmente no que se refere à preservação da Capela de São Miguel Arcanjo. Nesse
sentido, me identifico com Khoury ao afirmar que, “ao longo desse processo podemos
notar a emergência de indivíduos diferenciados, expressando vontades, assumindo
visibilidades na cena histórica, ainda que sem destaque na memória oficial da
sociedade”.
380
A saga do Sr. Eurico para obtenção da estampa do selo, começa em 1993 com a
formalização do pedido da emissão do selo com a estampa da Capela. Somente após doze
anos de persistente busca, envio de ofícios, pedidos, documentação e participação em
audiências públicas, demonstração de insatisfação, é que o filatelista viu seu desejo se
realizar.
Ele relata o início dessa experiência:
Por volta de 1992 tornei-me filatelista, exclusivamente de selos brasileiros e
depois de verificar a confecção de vários selos, inclusive de coisas que nada
tinha a ver, eu ficava perguntando: por que a Capela de São Miguel Arcanjo
de o Miguel Paulista, apesar de ser um patrimônio histórico, o havia sido
estampada ainda pelos selos dos Correios? Aí, tomei a iniciativa em junho de
1993, precisamente dia 19. Mandei uma carta para os Correios em Brasília e
eles responderam que não era possível, aquela coisa toda. Tudo bem. Aí, eu
voltei a insistir em setembro de 1993, não, não, desculpe, desculpe. Essa carta
que eu mandei no dia 19 de junho de 1993, responderam-me no dia 17 de
setembro de 93 dizendo que não era possível e umas respostas que não me
convenceram.
381
Seu relato demonstra que, apesar da negativa na resposta, o solicitante continuou
insistindo, numa batalha árdua para conseguir seu intento. O depoente deixa claro seu
380
KHOURY, Iara Aun. Documentos Orais e Visuais: Organização e usos coletivos, in Revista do Arquivo
Municipal, Memória e Ação Cultural, v.200. São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico DPH,
1991, p.83.
381
Eurico dos Santos, em depoimento citado.
161
empenho e participação em conseguir a emissão do selo que resulta em luta permanente e
negociação com as esferas públicas para conseguir o que objetiva.
Como resposta a esse pedido, a ECT encaminhou uma correspondência , datada de
19 de julho de 1993 acusando o recebimento de sua solicitação e informando que:
...as emissões de selos comemorativos desta Empresa são aprovadas por uma
Comissão Filatélica, sempre em exercício anterior ao lançamento, de
conformidade com as normas estabelecidas nos Decretos s 44745 e 83858 de
24/10/58 e 15/08/79, respectivamente. Diante do Exposto, informo que aquele
Colegiado devereunir-se no mês de agosto próximo para elaborar o programa
de emissões 1994, oportunidade em que o pleito de V.Sa. será devidamente
analisado.
382
Eurico relata que não obteve mais respostas ao pedido apesar de ter participado de
todas audiências públicas
383
, que ocorrem uma vez por ano e declara ter a intenção de
“catalogar todas as audiências públicas que participei e não obtive resposta e nas quais
entregava farta documentação sobre a Capela”
384
As questões apresentadas mostram um
empenho do depoente em manter vivas suas experiências, ao adotar práticas diferenciadas,
destinadas a construir sua própria memória da Capela e revelá-la para além de São Miguel
Paulista, preservando registros que são plenos de significado do ponto de vista de sua
experiência e da identidade cultural com o bairro.
Não, não, o, eu encaminhei a documentação. Eu cheguei inclusive a
falar pro pessoal, que essa comissão era suspeita porque não sabia quais o os
critérios que eles usam pra lançamento de selo porque eu achava um absurdo a
Capela de São Miguel Arcanjo, com a idade que ela tem, um patrimônio
histórico ainda não ter sido divulgada pelos Correios.
385
Demonstra seu inconformismo em não ser atendido em um pedido que considera
inquestionável. Esse sentimento está ligado aos laços afetivos que mantém com a Capela e
com o bairro, que fazem parte de sua experiência pessoal demonstrada pela da
preocupação em preservar essa memória. E Eurico continua relatando sua insistência: “Até
que, em junho de 2000 solicitei novamente a impressão da estampa da Capela nos selos
do Correios”.
386
A ECT respondeu-lhe encaminhando convite para participar das
382
CORREIOS - Carta 1848/SUFIL da Superintendência de Filatelia .
383
Sobre as audiências públicas, o departamento de filatelia informa em carta encaminhada em 2001ao Sr
Eurico que: Os correios, uma empresa que interage com a comunidade, m promovido, desde junho de
1997, Audiências Públicas com o objetivo de levar ao conhecimento de representantes dos diversos
segmentos da sociedade aspectos relacionados aos temas, grafismo e design dos selos brasileiros. Nesses
eventos também tem sido discutidos importantes aspectos relacionados ao programa de emissões
anualmente desenvolvido, com o objetivo de torná-lo cada vez mais temático e condizente com as
expectativas do universo filatélico nacional. Departamento de Filatelia, SBN.01 Conj. 3 Bloco A 12º Andar
– Edifício Sede, Brasília – DF.
384
Eurico dos Santos em depoimento citado
385
Idem.
386
Idem.
162
Audiências Públicas “sobre as diretrizes para emissão de selos postais brasileiros e os
aspectos relacionados aos temas a serem focalizados em 2001”
387
Em 2001, o Sr. Eurico encaminha nova solicitação que aponta para uma percepção
de cidadão com direitos, que luta para que o bairro e a Capela sejam evidenciados e
apresenta justificativas para isso, fundamentadas na relevância histórica e no conjunto
arquitetônico de importância nacional, destacando-o como um patrimônio cultural que
não sofreu alterações durante os séculos:
Filho de o Miguel Paulista, sempre participei de iniciativas que apontam a
relevância histórica do bairro e de seu patrimônio arquitetônico no conjunto de
bens de importância nacional.
E, é por isso que encaminho a documentação em anexo sobre um dos raros
templos religiosos mais antigos do Brasil, ainda existente na plenitude de suas
formas originais: trata-se da CAPELA DE SÃO MIGUEL PAULISTA,
tombada pelo IPHAN, em 1938, tão logo o referido órgão foi criado.
388
[grifos
do autor].
Essas manifestações evidenciadas pela participação em audiências e envio de
solicitações, apontam para um morador de São Miguel Paulista que reivindica o direito de
participação nas decisões de política cultural, um dos aspectos considerados por Chauí
como “prática da Cidadania Cultural que define a cultura como direito do cidadão”.
389
Em maio de 2002, o Sr. Eurico encaminha novamente o pedido de emissão do selo,
salientando que “pelo quarto ano consecutivo envio a essa divisão de Filatelia, farta
documentação referente a alta relevância e origem da CAPELA DE SÃO MIGUEL
ARCANJO na história de nosso país”
390
e após ressaltar a ausência de respostas, lança as
seguintes questões: “Por quê? O que é exigido para que a postulação seja deferida? Falta
algum aval ou influência? Quem sabe outras provas? Enfim, quais são os critérios
adotados por essa Divisão para se atender semelhante anseio da comunidade?”.
391
O depoente estabelece um debate com o órgão responsável pela produção do selo,
elaborando perguntas questionadoras, exigindo respostas, demonstrando uma relação
conflituosa diante da ausência de respostas às suas solicitações. nessa ação a indicação
387
Convite da ECT, enviado ao Sr. Eurico no dia 06/06/2000 Audiências Públicas O selo brasileiro no
século XXI, Departamento de Filatelia.
388
Carta enviada por Eurico dos Santos ao Sr. Egydio Bianchi, Presidente da Empresa Brasileira de
Correios e Telégrafos, em 24 de maio de 200l.
389
CHAUÍ, Marilena. Política Cultural, Cultura Política e Patrimônio Histórico. In O Direito à Memória
Patrimônio histórico e cidadania. DPH, Secretaria Municipal de Cultura. São Paulo: DPH/SMC, 1992,
p.39. Chauí, então Secretária Municipal de Cultura de São Paulo estabelece como diretriz política a idéia e a
prática da Cidadania Cultural que define a cultura como direito do cidadão e determina esse direito sob três
aspectos: como direito de acesso à informação e de fruição da criação cultural; como direito da produção de
obras culturais e como direito de participação nas decisões de política cultural.
390
Carta enviada pelo Sr. Eurico dos Santos à ECT – Departamento de Filatelia em 22/05/2003
391
Idem.
163
de um sentimento, por parte de Eurico, de descontinuidade e desvalorização, que o
depoente expressa, indicando sentir-se mutilado em seus sentimentos com relação ao
passado e ao presente de São Miguel Paulista.
Diante do exposto, verifica-se a persistência do solicitante, que não se conforma
com o fato de que o valor atribuído por ele ao monumento em questão, não seja também
reconhecido pelo órgão responsável pela emissão de selos. Essas questões ajudam a
refletir sobre como se estabelecem as lutas para a preservação da memória da Capela de
São Miguel Arcanjo e como, muitas vezes, essas lutas dependem de esforços individuais,
de sujeitos anônimos e, ainda, como essas questões são tratadas pelos órgãos públicos. Há
uma discrepância entre o interesse dos órgãos públicos e indivíduos comuns, como o Sr.
Eurico, em perpetuar a memória social. Indicam também, marcas da luta pela apropriação
de locais da cidade visando resguardar seus significados culturais, por ações que buscam
preservar, testemunhar experiências e modos de vida.
Importante destacar que o Sr. Eurico, dentre outros materiais que guarda com
relação ao bairro de São Miguel Paulista e à Capela de São Miguel Arcanjo, organizou um
arquivo contendo toda a documentação encaminhada à ECT relativa ao pedido de emissão
do selo da Capela de São Miguel Arcanjo. Como afirma De Decca, “poderíamos dizer que
hoje a memória coletiva encontra-se refugiada em lugares pouco visíveis”
392
e, essa
preocupação demonstrada por Eurico em preservar esse material, indica a produção de
“lugares de memória” e atesta para essa nova percepção de ruptura em que o cidadão tem
plena consciência da impossibilidade de uma memória espontânea, garantida por suportes
sociais e coletivos.
393
Em maio de 2003, precisamente no dia 6 voltei a escrever outra vez para o
Departamento de Correios e Telégrafos, nada aconteceu. Até que, encontrei-me
com um amigo que é Assessor Especial do Gabinete Pessoal da Presidência da
República em São Paulo e amigo do presidente Luís Inácio Lula da Silva. Aí,
conversando com esse meu amigo, falei: - Espinoza, estou vários anos
querendo ver a Capela de São Miguel Arcanjo divulgada através dos Correios e
não consigo e eu fiquei sabendo que através do presidente isso é possível,
porque ninguém fala o ao presidente. Disse-me o meu amigo: - Eurico, faça
novamente um processo, em minhas mãos que eu garanto pra você que você
obterá êxito. E foi o que aconteceu. Isso ocorreu no dia 6 de junho de 2003.
394
392
DE DECCA, Edgar S. Memória e Cidadania. In O Direito à Memória – Patrimônio histórico e
cidadania. DPH, Secretaria Municipal de Cultura. São Paulo: DPH/SMC, 1992, p.130.
393
Idem
394
Eurico dos Santos, em depoimento citado.
164
O Sr Eurico conta que conhece o Sr. José Carlos Espinoza
395
porque trabalharam
juntos, na década de 70 na Sabesp; ele era fiscal de obras e Eurico inspetor de instalações
prediais. Ambos fiscalizavam obras de esgotos, serviços que as empreiteiras prestavam
para a Sabesp. Desse modo, as relações sociais se ampliam para outras atividades da vida
cotidiana e laços afetivos conquistados em situações do passado reaparecem no presente
para consolidar outras ações.
Até que recebi o ofício assinado pelo senhor Miro Teixeira
396
, então ministro
das Comunicações que acusava o recebimento do expediente com relação ao
selo e que assim que houvesse uma resposta melhor voltaria a entrar em contato
comigo. Aí, aconteceu o seguinte, esse pedido foi feito em junho e eu queria o
lançamento do selo em setembro de 2003, ocorreu ...Porque era dentro das
comemorações do aniversário de São Miguel Paulista. Eu queria que fosse
inserido nessa festa. Aí, de acordo com o Correio estava muito em cima... e não
haveria tempo para fazer um serviço bem feito, um serviço bonito e implicaria
numa série de coisas. Mas, se eu fizesse questão realmente, eles fariam o
possível para que eu fosse atendido. Bom, nessas alturas eles não estavam
atendendo a mim, estavam atendendo a um pedido do Presidente da República.
(risos)
397
As falas anteriores deixam transparecer que, muitas vezes, as garantias de
atendimento às solicitações públicas dos cidadãos, ocorrem por relações de poder que
permeiam a sociedade e que são atendidas por uma questão de “quem manda”, mantendo
com os cidadãos relações pessoais de favor e tutela, mais do que por um direito do
cidadão. Jovchelovitch trata desse assunto ao abordar: “Na sociedade brasileira, um
código constitucional explícito e escrito, e um código de práticas implícito, não escrito e
largamente aceito em relação à esfera pública, onde o público torna-se uma questão
pessoal como resultado de uma rede de relações pessoais que terminam por constituir a
ordem pública”.
398
Por outro lado, para vislumbrar, nesta ação do Presidente da
República, sua sensibilidade ao atender à solicitação de Eurico e mobilizar ões para
que esta ocorresse considerando o patrimônio cultural em questão merecedor da
publicação de sua imagem nos selos da ECT. Também podemos visualizar uma relação do
395
José Carlos Espinoza Conforme a revista Isto é On Line” Edição 1726, é umas das pessoas em
quem Lula mais confia. Exigente, meticuloso, este ex-sindicalista da Companhia de Saneamento do Estado
de São Paulo (Sabesp) não tem uma, mas mil funções: anima comícios, organiza as viagens em todos os
seus detalhes e cuida com maestria do esquema de segurança de Lula.
http://www.terra.com.br/istoe/1726/governo/1726_equipe_time_do_presidente_03.htm, acesso em
15/09/2007.
396
Ofício 25/2003/MC, de 23/07/2003 do Sr Miro Teixeira, Ministro de Estado das Comunicações,
Esplanada dos Ministérios, Ministério das Comunicações, Brasília-DF, encaminhado ao Sr. Eurico dos
Santos.
397
Sr Eurico dos Santos, em depoimento citado.
398
JOVCHELOVITCH, Sandra. Representações Sociais e Esfera Pública A construção simbólica dos
espaços públicos no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p.186.
165
presidente com o bairro distante do grande centro e compromissos políticos que priorizam
os sujeitos que habitam nestas regiões.
Entretanto, a quase unanimidade sobre a importância excepcional desse bem
cultural não está ancorada no consenso abrigando, desta forma, interesses e estratégias em
conflito. disputas entre o depoente que exige visibilidade da Capela perante a emissão
dos selos; por outro lado, a ECT tem interesse em publicar outros temas nos seus selos e
ainda, o órgão público federal que toma ações para a emissão do selo, ancorado num
pedido pessoal do amigo do presidente.
... aconteceu o seguinte... como estava muito em cima, propuseram-me que
se lançasse um carimbo comemorativo
399
, alusivo ao aniversário e à Capela.
Eu, como sou filatelista e conheço bem como funciona a coisa, disse-lhes o
seguinte: que o carimbo custaria três mil e quatrocentos reais e que eu não
arcaria com essa despesa e nem sairia de pires na mão pedindo patrocínio. Aí,
dissera-me o seguinte, que o carimbo sairia gratuito para mim. Mais uma vez,
não para mim, para o Presidente da República. (risos) E foi o que realmente
aconteceu...Ou para a população de o Miguel. Aí... informaram-me que foi
acatado o meu pedido que lançariam um carimbo e que o selo ficaria para o
mês de janeiro dentro do aniversário da cidade de São Paulo.
400
O relato indica práticas sociais submetidas às regras do comércio e da publicidade
a que estaria sujeito o lançamento do carimbo comemorativo. Aponta também, para uma
prática social comum, que consiste na colaboração de várias pessoas com recursos para
determinada finalidade, indicando formas de sociabilidade estruturadas primordialmente,
pelo e para o consumo.
Sobre a emissão do Carimbo Comemorativo, o Sr. Eurico informa que não aceitou
a primeira imagem apresentada, solicitando à ECT “eliminar o poste e a respectiva fiação”
do modelo apresentado para que fosse por ele aprovado. Assim, o depoente não obteve
o que desejava como pode interferir para que o carimbo saísse com qualidade, de acordo
com seu critério de avaliação, ou seja, “expressa sua vontade e assume visibilidade dentro
da cena histórica”.
401
O lançamento do Carimbo Comemorativo alusivo à Capela de São Miguel
Arcanjo nos 381 anos do Bairro de o Miguel Paulista” ocorreu no dia 06 de
setembro, às 9h30min dentro das dependências da Capela de São Miguel
Arcanjo, numa cerimônia “[...]simples, porém formal; sendo necessário o apoio
de um mestre de cerimônias que conduzirá o ritual de lançamento[...] e mais,
399
Carimbo comemorativo carimbo obliterador, com tempo determinado de utilização, destinado a
comemorar um acontecimento ou acompanhar o lançamento de um selo ou série de selos. Além dos dizeres,
o carimbo comemorativo quase sempre estampa um desenho alusivo ao acontecimento. A história registra
com tendo sido a Itália o país a usar pela primeira vez um carimbo comemorativo para assinalar a realização
da Exposição Marítima Internacional, em Nápoles. Conforme: QUEIROZ, Raymundo Galvão de.
Dicionário do Filatelista. Brasília: Thesaurus, 1998, p. C/60.
400
Eurico dos Santos, depoimento citado.
401
KHOURY, Iara Aun, op.cit.
166
após a composição da mesa, o mestre de cerimônias passou a palavra para
autoridades e em determinado momento passou a palavra para o representante
dos Correios que fez um breve discurso e [...] convida a maior autoridade
presente para lançar/emitir o Selo/carimbo, obliterando/carimbando
402
uma
peça (envelope comemorativo ou cartela selada). Em seguida, presenteia a
autoridade com a referida peça.”
403
Entendendo que as cerimônias de comemoração são espaços privilegiados de
afirmação da dominação, as orientações do Correio sobre a cerimônia de lançamento do
carimbo comemorativo indicam essas relações, na homenagem e congratulações às
autoridades,num ritual que evidencia relações de poder e construção da memória social
pela articulação da cultura e política ao mercado.
Nesta cerimônia, Sr. Eurico tem a palavra e finaliza da seguinte maneira:
... Estou muito feliz, porque através do aparato dos Correios, iremos divulgar
nossa história, nossa Capela e São Miguel para o Brasil e para o mundo.
Estou vivendo um sonho do qual acordarei quando a nossa Capela de São
Miguel Arcanjo for estampada nos selos da Empresa Brasileira de Correios e
Telégrafos [...] Agradeço a todos os presentes. Uma única goa. Se não fosse
o crédito do meu amigo Espinoza, o aval e a sensibilidade do senhor Presidente
da República, eu Eurico, na qualidade de cidadão comum jamais teria
conseguido este propósito. Valeu, vale e sempre valerá a velha máxima
popular: “Quem tem padrinho não morre pagão”. Muito obrigado, senhor
Presidente.
404
O depoente, apesar de agradecer ao Presidente da
República na cerimônia de lançamento do carimbo
comemorativo, fala de práticas sociais que se repetem e parece
não identificar no Presidente Lula o compromisso com as
memórias de quem não tem visibilidade pública.
Após o lançamento do carimbo comemorativo, Eurico
relata que começou a batalha parar a emissão do selo. Segundo ele, Marta Suplicy,
prefeita da cidade de São Paulo à época, decretou que todas as subprefeituras existentes
deveriam participar do aniversário da cidade com um evento comemorativo
405
. O evento
ao qual a Subprefeitura de São Miguel Paulista participou nas comemorações dos 450
anos da Cidade de São Paulo foi o lançamento do selo com a estampa da Capela de São
Miguel Arcanjo.
402
Obliteração, ato ou efeito de carimbar um selo. Conforme: QUEIROZ, Raymundo Galvão de. Dicionário
do Filatelista. Brasília: Thesaurus, 1998, p. C/60.
403
Conforme orientação da ECT em Roteiro de Solenidade de Lançamento do Selo/Carimbo
Comemorativo” em pasta sobre o evento, organizada pelo Sr. Eurico dos Santos.
404
Trecho do discurso, conforme pia arquivada na pasta de materiais sobre o evento, organizada pelo Sr.
Eurico dos Santos.
405
Decreto nº 44.240 de 11/12/2003. Publicado no Diário Oficial do Município de 12/12/2003.
Figura 8 – Carimbo
comemorativo da ECT
167
Ainda sobre o lançamento do Carimbo Comemorativo dentro das festividades do
aniversário de São Miguel Paulista e do bloco comemorativo dentro das festividades do
aniversário de 450 anos da cidade de São Paulo, confere-se à celebração e à
comemoração, a “memória da memória” que sentido de recordação e celebração do
futuro.
406
Eurico continua seu relato, colocando as dificuldades e impasses que teve que
enfrentar:
Ah, foi muito difícil, eu tive que brigar com o Correio. Eu não aceitei o trabalho
que eles fizeram, inclusive... o selo o saiu com a qualidade que deveria ter
saído...Não, o gostei, acho que deveria ter sido melhor...É porque eles
mandaram um trabalho pra eu aprovar o que seria aquilo que seria estampado
no selo... E eu não concordei porque o trabalho que eles mandaram... estava
mutilado, conforme a documentação que eu tenho em mãos. Eles me disseram o
seguinte, que eu não deveria me preocupar que eles tinham vasta experiência
nisso... que eu deveria aceitar ou não aceitar o trabalho deles. E eu recusei o
trabalho deles. Aí, então... ficou muito apertado... tive que mandar uma foto pra
lá e a foto não tinha auto definição, eles não aceitaram... pediram que eu
mandasse uma outra foto, foi feita outra foto correndo, às pressas e, por isso, o
trabalho não saiu bem feito... poderia ter sido artisticamente melhor
elaborado...
407
Dessa forma, o Sr. Eurico não insiste, por muitos anos, na elaboração do selo
como interfere na realização do produto, tomando providências para a garantia da
qualidade.
Em carta enviada à ECT, o Sr Eurico se posiciona da seguinte maneira:
Muito Bom dia!
Mas por favor: socorro, socorro!
Parem as máquinas!
Tá tudo errado!
O trabalho apresentado é uma aberração. O esboço do Bloco Filatélico da
Capela de São Miguel Arcanjo” está mais para ser comparado ao o jogo dos
sete erros” do que qualquer outra coisa.
O “artista” ou a artista” Oliveira que sobrepõe o seu nome no protótipo do
supracitado Bloco, negligenciou grosseiramente na sua configuração.
Se Jô Oliveira, tivesse atentado mesmo que aleatoriamente nas várias cópias
estampadas, impressas e xerocopiadas, apensadas nas duas pastas em vosso
poder, não teria cometido os seguintes erros:
01 - A Capela está fora de sua escala original. (muito alta e acentuadamente
estreitada)
02 – Onde foi parar o outro coqueiro existente no lado direito de quem entra na
Capela?
03 – A árvore da lateral está fora do lugar;
04 – Os vãos entre as colunas estão desproporcionalmente muito estreitos;
05 Os coqueiros (falta um) o mais altos do que a Capela. Mais o como
apresenta-se o coqueiro demonstrado nesse esboço;
406
JANCSÓ, István e KANTOR. Íris (orgs.). Festa cultura & sociabilidade na América Portuguesa. São
Paulo: Hucitec, Edusp, Fapesp, Imprensa Oficial, 2001, p.19.
407
Sr. Eurico dos Santos em depoimento citado.
168
06 – A capela está “muito certinha”. Lembro-lhes que ela foi projetada e
construída por índios e padres do século XVI e o por arquitetos do século
XXI.
Apontados os erros, fica patente que houve uma grande falta de atenção das
pessoas envolvidas nesta elaboração e em quem os Correios confiaram.
Porque antes de mandar para a Casa da Moeda do Brasil, o mandaram a idéia
para que eu pudesse opinar e fizesse as devidas correções?
Como ficaríamos se o Bloco estivesse impresso da maneira como está sendo-
me apresentado?
Diante do exposto, outra alternativa o nos resta, se na providenciarmos um
novo trabalho. De preferência fotográfico.
Estou indignado, sentindo-me preterido.
São Miguel Paulista, São Paulo, 04 de dezembro de 2003
Atenciosamente
Eurico dos Santos
408
Eurico considera que o desenho apresentado para a estampa do selo estava
“hilário”, “eles fizeram um desenho...e esse desenho eu considerei muito hilário, como de
fato estava muito hilário... como prova aqui uma carta”
409
, e demonstra através da carta
enviada a ECT, sua indignação. O depoente tem uma postura exigente, detalhista,
interessado em que o objeto representado seja visível da forma que considera correta,
indicando sua preocupação em relação à representação da Capela. Na verdade, por se
tratar de uma produção para o consumo visual, a imagem da Capela assume marcas
próprias, passíveis de identificação que para Eurico não eram reconhecidas no desenho
realizado, o qual descaracterizava aspectos físicos da Capela e representavam mais a obra
do desenhista do que a Capela feita por índios no passado. Observamos pelo exposto, que
para o Sr. Eurico não bastava conseguir autorização para que fosse estampado o selo. Ele
acompanhou todo o processo de elaboração do mesmo, apoiando ou repudiando as ações
que se foram sucedendo, na perspectiva de que o trabalho saísse o melhor possível. Essas
ações evidenciam o campo conflituoso da memória. No momento em que se faz visível o
esforço de Eurico para construir uma memória que revela concepções de História, o artista
dos Correios marca sua presença, reinventa uma outra memória destituída dos atributos
que Eurico considera importante. Para ele, o selo tem que dar legibilidade à Capela e os
erros apontados, são repudiados, porque fazem emergir nas pessoas a inegibilidade da
Capela e não representa a necessária visibilidade requerida pelo documento/monumento.
Exatamente. Retrucaram que se eu o estivesse contente com o trabalho por
eles apresentado, que eu apresentasse um trabalho melhor... o que foi feito com
o envio de uma foto que eles recusaram alegando que a foto não tinha qualidade
devido ao excesso de brilho, e que eu providenciasse uma nova foto e que pela
exigüidade do tempo , pois eles o tinham profissionais para deslocar-se até
São Miguel Paulista para fotografar a Capela. Intimaram-me a entregar esta
408
Carta enviada a Sra. Maria de Lourdes Torres de Almeida Fonseca, Subchefe do Departamento de
Filatelia (Defil) em 04/12/2003.
409
Eurico dos Santos, em depoimento citado.
169
foto até o começo de dezembro, porque os funcionários da Casa da Moeda onde
o selo é estampado sairiam de férias coletivas e correríamos o risco do selo não
ficar pronto no s de janeiro dentro das comemorações do aniversário da
cidade de São Paulo. Providenciei uma nova foto da qual não gostei, mas foi
por eles aceita. Apesar de batalhar 12 anos e por incrível que pareça, o selo foi
feito às pressas, na correira. Poderia ter sido melhor.
410
Por outro lado, apesar dos contratempos, percebe-se também a importância da
negociação estabelecida nas relações sociais tensas, que visavam a possibilidade da
emissão do selo dentro do prazo estipulado.
Junto com a emissão do bloco filatélico
411
, foi lançado também, o carimbo
“Primeiro Dia de Circulação”, que é um carimbo obliterador, confeccionado
exclusivamente para acompanhar e registrar o dia de lançamento de um selo e que, por
isso mesmo, só pode ser utilizado no dia da emissão e sobre o selo ao qual se refere.
412
Apesar dos contratempos, eu fiquei muito feliz por ver meu sonho realizado e
por causa dessa minha perseverança a Capela de São Miguel Arcanjo através
dos selos dos Correios está sendo divulgada e perpetuada pelos filatelistas do
Brasil e do mundo. Possuo toda a documentação provando ser eu o proponente
e o conseguidor junto a ECT, do selo alusivo à Capela de o Miguel Arcanjo.
Além desta documentação meu nome nem aparece em nenhum lugar. Não
tenho essa coisa de ego ferido. o sou ególatra. O que eu queria era ver a
Capela sendo divulgada por um selo e, isto eu consegui.
413
A ausência de investimentos do poder público em questões que dizem respeito à
preservação dos bens culturais brasileiros, fica muito clara quando Eurico aponta que os
gastos decorrentes desse processo ficaram sob a sua responsabilidade “[...] foi tudo por
minha conta. Exato, montagem de processo, papelada toda, tudo por minha conta”
414
.
Por outro lado, a constituição do acervo revela a atuação de Eurico no bairro e sua
pretensão em deixar para a família todo o material compilado, como obra pessoal, que
busca o reconhecimento das ações por ele praticadas. Esta é uma forma indicativa de
como o depoente deseja entrar para a história e se tornar orgulho dos filhos, netos e
porque não, dos que residem no bairro e também da importância que atribui aos
documentos para a História; guardá-los significa revelar experiências do passado.
Esta preocupação é para deixar patente que quem conseguiu a emissão do selo
da Capela de São Miguel Arcanjo fui eu. Não sou cabotino mas é a verdade.
Espero que os meus netos e demais descendentes saibam desse feito e sigam os
meus passos em prol da Capela e de São Miguel Paulista...
415
410
Eurico dos Santos, em depoimento citado.
411
Bloco comemorativo ou bloco filatélico é o conjunto de um ou mais selos impressos em pequena folha,
picotadas ou não, que pode ser usado no todo ou em parte no posteamento da correspondência. O bloco
comemorativo, tal como o selo, é emitido para assinalar um acontecimento especial. QUEIROZ, Raymundo
Galvão de. Dicionário do Filatelista. Brasília: Thesaurus, 1998, p. B/40.
412
QUEIROZ, Raymundo Galvão de. Op.cit. p.C/60.
413
Eurico dos Santos, em depoimento citado.
414
Idem.
415
Idem.
170
Ante o exposto, Eurico evidencia que não pretende que suas memórias fiquem
confinadas em formas culturais privadas, pretende sim, que sejam divulgadas em lugar
apropriado para uso da população. Inclusive, ao fornecer a pasta para uso desta pesquisa,
deixou muito claro, que se acontecesse alguma coisa com ele durante o período, a
pesquisadora estava encarregada de entregar todo o material para sua filha, que está
ciente do que tem que fazer, ou seja, assim que houver em São Miguel um museu ou um
centro cultural, a pasta deverá ser para encaminhada. Seus registros e arquivos
emergem como tentativa de fazer com essas experiências não sejam esquecidas.
Estas pastas são para mim como jóias valiosíssimas. Elas têm valores
inestimáveis. E quando eu partir para outra espero que os meus netos e seus
descendentes delas tomem conta sendo os guardiões passando de geração a
geração, até o dia em que São Miguel Paulista tenha um museu seguro e
adequado para guardar estas pastas compostas de documentos, recortes, jornais,
revistas, xerox, etc, etc... que foram juntados, colecionados e arquivados com
muito capricho e afirmo sem medo de errar: com muito amor.
416
Para Eurico, a emissão da estampa da Capela nos selos postais, indica que ela se
divulgada internacionalmente:
Ah, sim. Só no dia do lançamento na capela foram vendidos seiscentos
blocos... é um selo especial, é um selo internacional. Foram vendidos seiscentos
blocos ao preço de R$ l,50 cada .Os filatelistas, as pessoas presentes, os
colecionadores... aqueles que compram pra levar , pra mandar pra família que
mora em outras regiões. E a Capela, através do selo está sendo divulgada para o
mundo, porque é um selo internacional.
417
Desde 1973, anualmente, os Correios promovem o concurso “Melhor Selo do
Ano”. Trata-se de uma iniciativa que envolve os filatelistas, os artistas e os clientes dos
Correios em geral, que são incentivados a votar no selo de sua preferência. Os selos
vencedores desse Concurso representam o Brasil em certames internacionais e
conquistaram prêmios importantes como o Asiago (Itália), considerado o Oscar da
Filatelia. Até 1984, a escolha do Melhor Selo do Ano” era feita por artistas, críticos de
arte, professores, jornalistas e personalidades ligadas à Filatelia. Em 1985, começou a
votação popular, com a utilização de dulas distribuídas ao público em agências dos
Correios de todo o país. O processo foi se aprimorando e em 2000, a votação chegou
também à internet.
418
Em 2004, ao ser lançada a campanha “Vote no selo de sua
preferência” o Sr Eurico liderou a campanha entre os moradores de São Miguel e pessoas
conhecidas para que o selo da Capela fosse o vencedor e “através dessa votação, da
416
Idem.
417
Eurico dos Santos, em depoimento citado.
418
Fonte: http://www.correios.com.br/selos/melhor_selo_ano/default.cfm, acesso em 20/08/2007.
171
participação de vários amigos e outras entidades consegui 9.554 votos”
419
e o Sr. Eurico
justifica que: “como eu sou bairrista e sou amante da Capela... nosso empenho foi em
conseguir o maior número de votos em prol da Capela e dentro dos quarenta e dois selos
lançados em 2003... então nós fizemos a campanha em prol, do número 37 que era o da
Capela”
420
. Dos selos editados em 2003, apenas dois são blocos comemorativos: a Capela
de São Miguel Arcanjo e a Preservação dos Manguezais de Zonas de Marés. Dentre os
selos que concorreram naquele ano, estão selos de grande consagração popular, como
“Allan Kardec”, “Centenário de Nossa Senhora Aparecida” e “Fifa”.
Eurico conta que depois que conseguiu organizar todas as cédulas em pacotes, foi
aos Correios e protocolou a entrega das mesmas. Antes, porém levou-as para o Padre
Geraldo benzê-las:
Levei para o padre, eu estava encrencado com ele e nós acabamos fazendo as
pazes...ah, sim, eu tentei conversar com o padre, falei que eu precisava
conversar com ele urgente que eu queria que ele tomasse conhecimento da
votação e que dela participasse, ajudando a angariar votos. E eu não sei, ele
estava relutando em me receber, o sei o porquê... até que liguei pra e falei
pra secretária: - É o seguinte, ó se ele vai falar comigo, que fale e marque o dia.
Se ele não quiser falar que fale “Não quero falar com ele” e eu não insisto mais,
ora. No dia seguinte ele me chamou lá, pra saber do que se tratava e tivemos
um encontro amistoso. Terminada a votação, solicitei ao Pe. Geraldo que antes
de encaminhá-las a Brasília, as cédulas fossem benzidas. E ele disse: - Vem na
missa de quarta-feira às 19 horas que nós faremos isso. E foi o que aconteceu.
Eu levei os votos, tá documentado, tá fotografado ...
421
419
Eurico do Santos, em depoimento citado.
420
Idem.
421
Idem.
Bloco comemorativo
Figura 9 – Bloco comemorativo da ECT.
172
Além de evidenciar dinâmicas sociais, como a organização dos pacotes, levar para
o padre benzer, protocolar nos Correios, o depoimento indica as tensões, os conflitos
existentes nas relações sociais e, ainda, a reapropriação de tradições, com a bênção das
cédulas que envolve ao mesmo tempo, aspectos pragmáticos e simbólicos da vida social, e
também, o reconhecimento do caráter religioso da Capela, a reconciliação com o padre e
mobilização do bairro na realização do evento.
Eurico conta que organizou os votos em pacotes, “fiz pacotinhos de cem e de
mil...contei, recontei... contei, recontei ... (o padre) benzeu todos os pacotes... molhou...
não faltou vontade de molhar, não viu? Jogou água como nunca.... (risos)” E o depoente
continua relatando sua “luta”: “no dia seguinte levei no correio e esses votos o contados
em Brasília e por conta e expensas dos Correios que foram encaminhados pra lá”.
O Senhor Eurico é também um dos responsáveis pela publicação da estampa da
Capela de São Miguel no Bilhete da Loteria Federal e responsável direto junto à
Telefônica pelo lançamento de uma série de quatro cartões telefônicos da supracitada
Capela. Sobre a loteria federal , ele relata a experiência:
Não, eu participei da comissão, porque na época não era subprefeitura, era
administração regional. O administrador regional era o Engº Rubens Rubio, ele
nos chamou e falou o seguinte: - Olha tem um pedido meu aqui de um
processo para que a Capela seja estampada no bilhete da loteria federal e como
eu estou saindo vou deixar você incumbido disso e nós nos desincumbimos da
tarefa. Quer dizer, começou com um administrador e foi lançado na gestão de
um outro administrador, o senhor Avelino Benvenho.
A solicitação a Eurico se deu em decorrência das suas ações anteriores. O
administrador regional deixou a continuidade do processo nas mãos de pessoa que ele
sabia, daria andamento ao pedido. Assim, o bilhete da Loteria Federal em homenagem aos
378 anos do bairro de São Miguel Paulista foi lançado na extração 3490-8 do dia 23 de
setembro de 2000. “Não, aqui não houve cerimônia. Só foi o lançamento. A gente só ficou
sabendo quando foi lançado. Não houve cerimônia”.
422
Nesse sentido, a Capela é também
revelação do tempo presente, manifestado em várias ações que a divulgam.
422
Idem.
173
Eurico deixa bem claro seu objetivo em divulgar a Capela e relata:
Meu objetivo é divulgar a Capela. Em setembro de 2005, dentro das
comemorações do aniversário de São Miguel, 382 anos... a Capela vai ser
divulgada em quatro cartões telefônicos. Vai sair estampada nos cartões
telefônicos. A princípio seria um só, mas agora serão quatro cartões telefônicos.
Ele vai ser lançado em setembro, dia 16 de setembro. Dentro das
comemorações dos 382 anos do Bairro de São Miguel... No CEU
423
São
Carlos.
424
E continua, incansável: “Ah, tá. Então, já tem cartão, já tem selo, já tem bilhete de
loteria... falta agora o bilhete do metrô.É falta o bilhete do metrô e outros que a gente vai
pensar ...”
425
Inclusive, esqueci de um detalhe... quando um carimbo comemorativo é
lançado, o solicitante paga por ele... e não é barato. Na cerimônia de
lançamento, o solicitante é contemplado com uma réplica do mesmo. No meu
caso, o carimbo comemorativo foi confeccionado às expensas dos Correios...
portanto, eu não tinha direito à réplica do mesmo. Alguns dias após a cerimônia
do lançamento do carimbo fui chamado à agência filatélica D.Pedro II de São
Paulo, onde deram-me uma réplica do carimbo comemorativo. Segundo a
direção dos Correios eu sou o único solicitante que não pagou pelo carimbo e
tem a sua réplica...
426
Segundo Arantes, são sem dúvida a circulação e o consumo de bens culturais um
dos principais ingredientes das mudanças que ocorrem nos estilos de vida e na formação
de fronteiras simbólicas”.
427
Para Eurico, esse produto mercadológico tem sentido
próprio, é um marcador de identidade e ainda produz a diferença que o destaca nessas
423
CEU – Centro Educacional Unificado – CEU São Carlos inaugurado em São Miguel Paulista em 2003.
424
Eurico dos Santos, em depoimento citado.
425
Idem.
426
Idem
427
ARANTES, Antonio Augusto. Paisagem de História: A devoração dos 500 anos. In Projeto História 20.
São Paulo, PUC, 2000, p. 64.
Figura 10 – Estampa da Capela no bilhete da Loteria Federal.
174
experiências, quando só ele, Eurico, não pagou e tem a réplica do carimbo. Desse modo, a
narrativa valoriza suas ações, tornando-o único nesta luta.
Esse material aqui é do lançamento do cartão telefônico, ele era pra ser lançado
no aniversário de 381 anos de São Miguel, como foi um ano político, acharam
por bem não lançar porque podia ficar caracterizado que era propaganda
política do partido que estava no governo ... então acharam por bem não fazer o
lançamento nessa época e deixar para o ano seguinte que é agora...A alta cúpula
da Telefônica... Me chamaram lá, conversaram comigo... eu entendi a situação,
... não questionei, não criei caso, aceitei as ponderações deles e deixei o barco
correr...
428
Eurico relata que começou a se preocupar com o registro das memórias sobre São
Miguel, depois que se aposentou e lamenta-se:
... infelizmente eu comecei tarde... Poderia ter começado muito antes. Mas a
gente era tão pobre, não tinha como adquirir uma máquina fotográfica, não
tinha como comprar um filme e se tinha o filme, depois não tinha como
revelar... era muito caro..não tinha xerox, era fotocópia. A senhora tirava uma
fotocópia e tinha o negativo disso...bem, pra época era bem moderno... mas
nem essa coisa a gente não podia ter acesso... Pra senhora ter idéia, meu
primário eu fiz praticamente de pé descalço, não tinha sapatos. Eu estudei
primário, ginásio, colégio, Senai, tudo em São Miguel.
429
O depoente reconhece que é o presente que lhe possibilita estas ações, hoje tem
xerox, filmes, máquinas de fotografia, já que o passado vivido foi pautado por privações e
falta de recursos e ainda evidencia uma familiaridade mais completa com o bairro onde
estudou e viveu, como afirma Lowenthal,“somos a qualquer momento a soma de todos os
nossos momentos, o produto de todas as nossas experiências”.
430
428
Eurico dos Santos, em depoimento citado.
429
Idem.
430
LOWENTHAL, David. Como Conhecemos o Passado, in Revista Projeto História - Trabalhos da
memória, nº 17. São Paulo: Educ/Fapesp, 1998, p. 64.
Figura 11 – Cartão telefônico com a estampa da Capela de São Miguel Arcanjo.
175
Devo ressaltar que, nesse processo de pesquisa, foram se consolidando relações de
proximidade entre a pesquisadora e o depoente, gerando contatos freqüentes, afeto,
acolhida, solidariedade e, ainda, expectativa pelo trabalho a ser realizado e busca de
materiais que poderiam se tornar fontes para a pesquisa, que se acabam traduzindo em
mais uma forma de eternizar a ele, Eurico, nas ações pela Capela.
Da experiência vivida, da luta pela sobrevivência, do esforço em organizar seus
arquivos, numa dinâmica que faz emergir formas de sociabilidade, afetos, conflitos,
desejos forjados nos espaços da cidade, voltamos novamente, a atenção para a sabedoria
de Eclea Bosi quando afirma: “o passado reconstruído não é um refúgio mas uma fonte,
um manancial de razões para lutar”.
431
3.2. Entre dois amores: São Miguel Paulista e Brunhosinho

7(:
A frase acima, de Domingos Pantaleão
432
, refere-se à Capela de São Miguel Arcanjo e
a Brunhosinho
433
, cidade natal do depoente. Gerente da empresa “Usina de Beneficiamento
Laticínios Gege Ltda.”, e dirigente da Associação Cultural “Casa de Brunhosinho”
434
e
residente em São Miguel desde 1961 e em São Paulo desde 1953, promoveu ações para
estampar na caixa de leite longa-vida de sua empresa, a Capela de São Miguel Arcanjo, com
os dizeres:” No Coração de São Miguel Paulista, um marco histórico do Brasil”.
As interpretações sobre esse patrimônio, a Capela de São Miguel Arcanjo, o
iluminadas por experiências diversas, sobretudo as inscritas em produtos comerciais que
cruzam pela cidade de São Paulo e se tornam possíveis fontes históricas para apreender
valores, interesses e relações sociais que esses produtos evocam.
431
BOSI, Ecléa. Memória da Cidade: Lembranças Paulistanas. In O Direito à Memória – Patrimônio
histórico e cidadania. DPH, Secretaria Municipal de Cultura. São Paulo: DPH/SMC, 1992, p.149.
432
Domingos Pantaleão, em depoimento no dia 24/06/2005, na matriz da empresa, em Vila Curuçá, São
Miguel Paulista Paulista. Gerente da empresa “Usina de Beneficiamento Laticínios Gege Ltda” residente
em São Miguel desde 1961 e em o Paulo desde 1953. É português, da localidade de Brunhosinho. Possui
relações fortalecidas no bairro e traz estampado na caixa de leite de sua empresa, a Capela de o Miguel
Arcanjo, com os dizeres: “No Coração de São Miguel Paulista um marco histórico do Brasil”.
433
Brunhosinho, segundo o depoente, é sua aldeia natal e fica em Portugal, na fronteira com a Espanha.
434
Casa de Brunhosinho é uma associação cultural, dirigida por Domingos Pantaleão, situada em Vila
Curuçá, Itaim Paulista. É mantenedora do “Grupo Rancho Folclórico Casa de Brunhosinho”, que realiza
apresentações, danças, em festas da comunidade luso brasileira.
176
Essas ões encaminham à construção de uma memória social elaborada em torno
do passado e do presente; trazem lembranças que o veiculadas na estampa, na dança, na
festa, no nome e ao fazê-lo transformam a salvaguarda de bens culturais como a Capela
de São Miguel Arcanjo, num imperativo para todos aqueles que assumem a
responsabilidade sobre eles atribuindo-lhes uma dimensão humana e criando em torno
deles uma rede de memórias que se irradia para além do bairro de São Miguel paulista..
A estampa da Capela de São Miguel Arcanjo, impressa na caixa de leite longa-vida
da marca GEGÊ, produzido na cidade de Pardinho, interior do Estado de São Paulo,
435
traz
para o historiador, “a problemática da produção e circulação/apropriação da imagem a fim
de, em última instância, criar aquele quadro indispensável para o entendimento de uma
“cultura visual” nas suas particularidades históricas”.
436
A imagem passa a ser um discurso
histórico, interessando à interpretação daquilo que nela aparece, sobre um determinado
fenômeno histórico, representado no desenho, na foto, no filme ou qualquer outro suporte
em que essa imagem apareça.
Nessa discussão, priorizei a caixa de leite longa vida da marca “GEGE” e o jornal
Acontece Agoraporque ambos usam o logotipo da Capela com dizeres semelhantes
para apresentação da imagem. No depoimento, o Sr. Domingos, gerente da empresa de
leite declarou: “O Divaldo Rosa (dono do jornal) falou: - Eu posso copiar? Eu falei: -
Pode, pois se é para o bem da nação diga ao povo que eu fico... é ou não é? Quanto mais
divulgação melhor, não é?”
437
Além de evidenciar sua intenção em divulgar a Capela através da caixa de leite, o
Sr. Domingos apropria-se de uma história passada e os dizeres de D.Pedro, identificando-
se com ele e sua idéia de povo e não. Ele vê a reprodução da Capela na caixa de leite
como um ato político.
Essas experiências, vem ao encontro de Bolle, que considera a escrita da cidade
como manifestação da cultura, e afirma que “o clima espiritual de uma época, sua cultura
e mentalidade não são mais desvendadas a partir degrandes obras de arte, mas a partir de
documentos triviais da escrita e de gestos e comportamentos “aparentemente
irrelevantes”.
438
435
A matriz da empresa, “Usina de Beneficiamento Laticínios GEGÊ, situa-se em Vila Curuçá Itaim
Paulista.
436
MENESES, Ulpiano T.Bezerra. O Fogão da Société Anonyme Du Gaz Sugestões para uma Leitura
Histórica da Imagem Publicitária. In Projeto História 21 História e Imagem. o Paulo: PUC, 2000,
p.106.
437
Domingos Pantaleão em depoimento citado.
438
BOLLE, Willi. Op.cit.
177
Sobre os motivos do uso dessa imagem na caixa do leite, Domingos, relata:
E a gente resolveu fazer essa homenagem a São Miguel... mesmo porque os
meus pais que já são falecidos também já assistiram muita missa lá na capelinha,
né... então, a gente às vezes acompanhava também às missas e a gente achou
interessante colocar isso no leite, mesmo porque, 45 anos em São Miguel, né...
então essa homenagem foi prestada por isso... homenageando a Capela a gente
também homenageia meu pai porque realmente ele foi... ele gostava muito daqui
de São Miguel... e aquilo ficou na gente também...
439
A capelinhapara o depoente compõe um espaço de pertencimento ao bairro e
revela relações afetivas herdadas. Indica o empenho em preservar, manter vivos esses
lugares carregados de memória da Capela de São Miguel Arcanjo, atrelado ao esforço em
preservar a memória dos que partiram e que permite uma ligação do passado ao presente.
Além disso, são também elos afetivos evocados pela moradia no bairro de São Miguel
Paulista. Recorda-se do período em que imigrou para o Brasil em função de parentes aqui
residentes e do fato de ser bem recebido; segundo ele, “São Miguel, assim a gente
considera a casa da gente”.
440
No bairro está, portanto, a sua história e de sua família.
Rememorando o passado a partir de ações do presente, o depoente relata suas
experiências desde 196l, época em que migrou para São Miguel Paulista. Conta que veio
para o Brasil “por causa daquela guerra de Angola, entre 50 e 53” e “graças a Deus
estamos até hoje, sempre fomos bem recebidos por todos” e continua: “Graças a Deus, a
gente conseguiu ter grandes amizades, ter um convívio na sociedade... e a gente respeita e
é respeitado”.
441
Com as recordações da chegada ao bairro, relembra do período em que, quase uma
criança, veio para o Brasil e manifesta sua percepção sobre a juventude atual, que vive
referências urbanas diferentes daquelas vividas em outro tempo, e que outros valores
para a constituição familiar:
É, um garotinho ainda ... naquele tempo, quinze anos de idade ainda...vivia
agarrado na saia da mãe, né... hoje não, né... hoje é diferente... naquela
altura...mas eu vim pra casa de um tio meu, ... depois procurei a vida por aí e
graças a Deus começou a dar tudo certo...
442
As imagens visuais possuem uma lógica própria diferenciada do texto escrito e é
um desafio para o historiador analisá-las como forma de representação e documentação. A
caixa de leite longa-vida GEGE apresenta o desenho da Capela de São Miguel numa
439
Domingos Pantaleão, em depoimento citado.
440
Idem.
441
Idem.
442
Idem.
178
embalagem cujo desenho foi oferecido por Vera Fausto
443
e, segundo o depoente, retirado
de um documento da Diocese de São Miguel Paulista e que apresenta os dizeres:
IGREJA DE SÃO MIGUEL PAULISTA A capela foi construída no século
XVI pelos índios e reconstruída pelos padres jesuítas João Álvares e Fernão
Munhoz. Possui em seu interior uma mesa de comunhão considerada uma das
mais antigas do Brasil. No Coração de São Miguel um Marco Histórico para o
Brasil.
444
Ao permitir a interlocução entre leitor/consumidor, a estampa e os dizeres
mostram a presença da Capela e a projeção nacional do bairro de São Miguel Paulista, por
abrigar no seu interior um marco da história do Brasil. É uma ação que toma formas
particulares pela qual se afirma a tradição e a memória do bairro, informando aos
consumidores aspectos do bairro e da cidade como detentores de um patrimônio cultural
digno de ser divulgado e conhecido. Nesse sentido, a imagem exerce a condição de difusão
da Capela aos consumidores, valendo destacar a importância de tal ação como forma de
reconhecer, divulgar e conseqüentemente preservar esse bem cultural. nessa ação uma
concepção de história que evoca um passado distante e que destaca como sujeitos jesuítas
e índios. A embalagem ganha sentido próprio, ao mesmo tempo que revela a preocupação
do Sr. Domingos com uma visão da história em que ele próprio e seus familiares se
incluem.
É significativo levar em conta os interesses que envolvem a preservação de uma
história local, na caixa de leite longa-vida que ocupa espaços do dia-a-dia dos paulistanos,
misturadas às necessidades colocadas pelo universo mercantil e impostas pela propaganda.
Por outro lado, adotar esse ponto de vista no mundo
moderno é muito difícil; o olhar é hoje, segundo
Bolle, mercantil, da propaganda e desmantela o
espaço da contemplação desinteressada. Propaganda e
publicidade enquanto idioma da cidade moderna
encontram-se numa posição de esmagadora
superioridade; são submetidas às regras da
economia.
445
No ano de 2006, a caixa de leite ganhou novo
visual. A imagem da Capela aparece representada
numa fotografia na parte de trás da caixa de leite,
443
Segundo o depoente, Vera Fausto e a filha do ex-deputado estadual Fausto Tomaz de Lima.
444
445
BOLLE, Willi. Op.cit. p.138.
Figura 12 – Embalagem da caixa de
leite tipo “Longa Vida”, do laticínio
Gege.
179
apresentando os mesmos dizeres da embalagem anterior. Segundo o depoente, foi a
empresa Tetra
446
quem desenvolveu a embalagem. Houve uma mudança em toda a
embalagem, que se apresenta mais colorida e que atende ao apelo de consumo, por chamar
mais atenção. Segundo o senhor Domingos, “assim vai ficar mais exposto, dum lado e do
outro. Se nós colocássemos do lado, não teria visibilidade da igrejinha...”. Essa ação do
depoente, traduz uma procura de comunicação com os consumidores que vai além do
consumo do leite. Há nessa comunicação, uma demonstração da compreensão de enfatizar
o “direito ao passado”, que desapercebido, passa por nós apesar de tão próximo e por
outro lado, o desenvolvimento do aparato de mercado e da linguagem da propaganda
coloca-se como forte pressão para renovação do visual da caixa de leite. Acompanho,
desse modo, as ações que resultam em produtos que evocam memórias da Capela. Os
produtos apresentados ganham sentido e são compartilhados não como resultado final,
mas como elaboração do dia-a-dia, marcados por tensões e negociações.
Mais uma vez, o Sr. Domingos reitera seu interesse em dar visibilidade à igreja, o
que o motiva a colocá-la como imagem na caixa de leite. Apresenta, também, estratégias
para desenvolver a embalagem, justificando que antes “era bem simplinha” e “como nosso
leite é muito bom, vamos desenvolver uma embalagem mais bonita”
447
, apresentando
estratégias de marketing para divulgação e sedução do consumidor com a mudança da
embalagem, que interfere na forma como se perpetua a memória da Capela. A imagem
deve ser atraente, para sensibilizar o leitor/consumidor e conduzir seu olhar para aquele
bem patrimonial.
É notória essa preocupação com a venda do produto atrelada ao aspecto da
embalagem, quando o depoente afirma que a empresa vai esgotar no mercado a
embalagem antiga, para depois lançar a nova, “porque temos algumas embalagens
antigas... porque essa embalagem é bem atrativa, ... então a gente com medo que às
vezes, ah essa embalagem velha...”
448
Descreve os caminhos percorridos na busca de possibilidades de se fazer a
embalagem, apoiando suas lembranças na caixa da “embalagem antiga”: “aqui é a
446
A empresa Tetra Pak desenvolve embalagens para acondicionar e preservar alimentos. Em 1961 foi
criada a embalagem tipo “longa vida” pelo Dr. Ruben Rausing, que uniu os conceitos de ultrapasteurização
e embalagem asséptica, criando a embalagem que protegeria o leite sem necessidade de conservantes e
refrigeração. Hoje a Tetra Pak está e presente em mais de 165 países, é uma organização global que produz
sistemas interligados para processamento, envase, distribuição e embalagens cartonadas para alimentos
como leite e derivados, sucos, chás, derivados de tomate, cremes, molhos e outros.
<http://www.tetrapak.com.br/sobre/historia/index_historia.asp>.
447
idem
448
Domingos Pantaleão em depoimento citado.
180
capelinha, em cima tem o sol, em cima tem uma cruz, né.... mas é riscos, você não
parede, nada”. Em outro momento, declara a opção pela mudança do desenho pela foto,
“...mas aqui nesta, que nós estamos colocando, ele vai trazer, é foto mesmo...” Nesse
universo, o desenvolvimento da linguagem comercial da propaganda e da imprensa
comercial, emergem como questões fundamentais para a compreensão das novas redes de
comunicação social e de consumo. Nesse caso, a fotografia parece ganhar um valor mais
representativo que o desenho, evidenciando para o depoente, semelhança com o real e,
portanto, desempenhando melhor o papel de apresentar esse bem cultural.
A propaganda do leite GEGE circulou no jornal “Primeira Página História do
Itaim”
449
, publicado em comemoração ao aniversário de Itaim Paulista apresentando, ao
lado da caixa de leite, a figura da Capela de São Miguel Arcanjo, sem qualquer
apresentação por escrito. Apenas a estampa aparece, mostrando que o espaço da
propaganda dá visibilidade ao produto, estabelecendo um movimento de mão dupla entre a
linguagem da mercadoria e a cultura impressa. Ao mesmo tempo, o fato de não aparecer
escrita sobre a Capela indica que os consumidores do leite ou do jornal estão
familiarizados com esse símbolo religioso, que lhes é significativo Mais uma vez, a
questão da divisão em subprefeituras aparece. Nesse caso, a empresa de leite homenageia
um bem cultural de São Miguel Paulista, porém pela nova divisão administrativa, a
empresa situada na Vila Curuçá pertence à Subprefeitura de Itaim Paulista. Isso possibilita
pensar em divisões feitas pelo poder público, que nada têm a ver com as experiências
cotidianas, ou com aquilo que vários sujeitos elegem como lugares significativos para
eles.
Domingos relata essa experiência da estampa da Capela e, ao mesmo tempo,
agrega outras informações sobre a embalagem:
É o pessoal da Tetra quem desenvolveu a embalagem, né. eles fazem de
acordo com o que o dono da empresa pede... como ele pede... (...) aí tem uma
receita de bacalhau no leite, viu ali... (...) tem duas receitas, a cada quatro
meses vai sair uma... tinha que ser bacalhau, né?
Domingos também se apóia na sua experiência de vida para relembrar outros
momentos dessa experiência, ou seja, sua ligação com Portugal, seu país de origem,
quando relata: Porque a nossa embalagem antes era bem simplinha, né... o pessoal.
449
Jornal “Primeira Página História do Itaim” maio/2007. Circulação Itaim Paulista e região. Diretor
Executivo: Sérgio M.Miranda. O jornal contém doze ginas, que contam a história de Itaim Paulista,
relatam acontecimentos do bairro e a programação das festividades em comemoração ao 27ºaniversário de
emancipação de Itaim Paulista. Contém também, diversas propagandas de comércio da região e dentre elas,
a propaganda do leite GEGE, p.5.
181
Ah! Vamos desenvolver, nosso leite é muito bom, vamos desenvolver uma embalagem
mais bonita ... e essa porcaria aqui tanto lembra o Brasil como lembra Portugal, né... e a
vaquinha também, né... “.
Esse movimento progressivo de articulação com a propaganda pode ser percebido
pela evolução da diagramação da caixa de leite, firmando outras práticas de marqueting
mais bem cuidadas, mais chamativas, mais coloridas, com a fotografia substituindo o
desenho, transformando-se numa peça publicitária em que a foto passa a compor uma
linguagem que outra visibilidade ao produto e à Capela. É um trabalho gráfico de fácil
compreensão e assimilação, que divulga o produto e, ao mesmo tempo, a Capela.
O depoente, apesar de demonstrar essa preocupação em perpetuar a memória da
Capela, revela, “faz bastante tempo, acho que uns oito anos que eu não vou lá na igrejinha,
né...”
450
. Usa dessa estratégia para recuperar o passado, criando um espaço simbólico e
visual no qual materializa a Capela distante, numa presença viva e diária. O depoente ao
dizer “e essa porcaria aqui tanto lembra o Brasil como lembra Portugal” refere-se a
estampa da frente da caixa do leite, que tem uma gravura bucólica, campesina, com uma
vaquinha pastando, permitindo a alusão aos campos tanto do Brasil, como de sua terra
natal. Mais uma vez, a memória se apóia na conservação de vestígios do passado
elaborados no presente, de acordo com quem os vivenciou.
Ainda sobre essa ação, o depoente demonstra as tensões envolvidas na produção da
embalagem quando relata que o prefeito de Pardinho (município onde fica a usina de
beneficiamento do leite) quando viu a estampa falou: Pô, desmancha isso aí, a fábrica
não é nem em São Miguel, a fábrica é aqui em Pardinho, põe então a nossa igreja”.
451
E Domingos continua: “Uma igreja muito bonita também, acho que foi construída
pelos franceses, uma igreja muito bonita... ah! Não, é outro valor que dentro da
gente... não é por causa disso nem daquilo...”.
452
Podemos compreender que o que interessa ao Domingos, não é uma igreja bonita
para merecer destaque na embalagem do leite, mas sim a igreja com que ele tem vínculos
afetivos, que remete ao passado, aos seus familiares, às lembranças de outros tempos
vividos. Não é, portanto, qualquer igreja que preencheo espaço da caixa de leite e sim a
igreja que para ele tem um significado especial: “A Capela de São Miguel Arcanjo”, ainda
que, saibamos que esta ação incorpora um conjunto de meios para tornar a empresa ou a
450
Domingos Pantaleão, em depoimento citado.
451
Idem.
452
Idem
182
marca do leite conhecida, vendendo o produto ou valorizando-o, ou seja, é uma tática
mercadológica, tendo em vista que a imagem evidencia o bem arquitetônico e o que ele
representa, como valor simbólico para os que vivem em São Miguel Paulista. Nesse
sentido, a dualidade é dinamizada pelos valores afetivos e mercadológicos e leva a
percepção de que o bem cultural exerce muitas funções sendo a mercantil apenas uma
delas. Pode-se dizer, portanto, que essas dinâmicas constituem-se em formas locais de
enraizamento, definidas por experiências locais representadas por movimentos que
afirmam o lugar, numa época em que a cultura se desterritorializa e as cidades se
reordenam para formar sistemas transnacionais.
453
O Sr. João Feher (segurança da Capela) no seu depoimento, relata a repercussão da
ação sobre a estampa da imagem da capela na caixa de leite:
Olha, agora eu vou fazer um comercial, mas é... não é bem um comercial... o
única divulgação que a gente tem aí, através dessa divulgação muita gente que
não conhecia essa igreja veio através dessa divulgação veio conhecer... é o leite
que tem aí, o leite Gege não sei se a senhora viu no supermercado?Isso, eu
até gostaria de... parabenizar o dono desse laticínio diz que são uma família de
portugueses, né?
454
O olhar mais abrangente e minuncioso das interações urbanas, relativo à circulação
da caixa de leite observado por João, revela que as identidades se estruturam em torno de
marcas históricas compartilhadas dentro de um espaço do bairro, no cotidiano dos que
habitam a cidade, que se articulam para preservar culturas locais.
Por outro lado, o Sr. Domingos relata que algumas pessoas ligam para a empresa
para questionar o porquê da igreja na caixa do leite:
Eu falei, não, não tem significado nenhum, é questão de prestar homenagem a
São Miguel, e a minha família sempre morou aqui, então a gente dá esse tipo de
explicação. Mas tem muita gente que liga pra saber, principalmente porque a
igreja é católica, e uma coisa, o pessoal sabe igreja, a capelinha é católica e
não é evangélica... não minha senhora, não tem nada a ver... vocês não adoram
a Deus, então, a gente também adora a Deus e tudo vai pro mesmo caminho... e
tal. Ah, então tá bom é que pensei que tivesse outro significado, que podia ser...
não sei o que as pessoas pensam também, né. Aí se procura, não é que eu queria
só saber, porque eu dou pra o meu filho... e acha que tem alguma coisa.
455
Nesse sentido, nessas ações aparecem dimensões do viver urbano, num apelo que
enfatiza a qualidade de leite e destaca a importância do bem cultural que a ele está
453
CANCLINI, Nestor García. Consumidores e Cidadãos - Conflitos multiculturais de globalização. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 2006. Sobre o assunto,Canclini aponta dois movimentos atuais: daqueles que crêem
que o global se apresenta como substituto do local e dos que não acreditam que o modo neoliberal de nos
globalizarmos seja o único possível. Para ele, nada disso existe ou se transforma ao ser porque os homens
se relacionam e constroem significados em sociedade. É necessário então, dirigir-se ao núcleo daquilo que na
política é a relação social: o exercício da cidadania, p. 34.
454
João Feher, em depoimento citado.
455
Idem.
183
associado e outro que questiona os elementos religiosos que se desencontram de outros
modos de viver, de crer. Os evangélicos não se sentem ali representados; questionam a
presença da Capela na embalagem do leite, por inscreverem-se no mesmo espaço de
consumo, porém não se identificando com a imagem que o produto de consumo veicula.
O depoente reelabora sua memória e a apóia em fatos importantes ocorridos em
São Miguel, como a construção da catedral e as transformações ocorridas desde o período
em que começou a trabalhar em São Miguel Paulista.
É, eu acho que a nossa obrigação mais foi essa mesmo... quando nós viemos
com o leite aqui pra o Miguel, a o Paulo Rio não tinha asfalto... a Arlindo
Colaço o tinha asfalto, era tudo barro, . Então a população de São Miguel
já era bem grande ... Foi mais ou menos em mil novecentos e sessenta e dois ...
sessenta e três. Tava construindo a catedral ... Então, o negócio é o seguinte,
não tinha leite, nós falamos, ah! Então vamos colocar... a gente pegou a
distribuição do leite e começamos a entregar o leite por aqui... não tinha leite
em o Miguel, os caminhões não vinham pra cá, da Penha pra cá não vinha
ninguém...
456
O depoente revela perspicácia de quem percebe o potencial de mercado existente
em São Miguel Paulista e ainda demonstra o preconceito dos que o moravam no lugar,
ao falar de um bairro distante, violento já naquela época, como indica o depoente:” Não...
São Miguel é violento, já naquela altura, né. Então é, é... eu tinha aqui em mil novecentos
e cinqüenta e cinco eu tinha, eu tinha uma freguesia de pão na cidade e o pessoal
questionava: - pô, mais você... e eu... não, mas... é ali perto, né... então o pessoal falava: -
Pô, vocês moram em São Miguel, um lugar isso, tal, sabe, aquela coisa toda,né”. Mesmo
sem especificar exatamente o que seus conhecidos diziam, para entender nessas
ausências de fala, que o depoente se refere à distância do bairro em relação ao centro da
cidade; à falta de estrutura como saneamento, às ruas de terra,à ausência de transporte; e
ainda, a uma característica pela qual o bairro era conhecido, a violência. Essa percepção
indica que existiam lugares que eram aquinhoados pela administração da cidade, com
outros tipos de estrutura urbanística, mais condizente com o favorecimento do bem estar
de seus moradores.
No entanto, o depoente reitera os laços de sociabilidade formados em São Miguel
Paulista, onde teve outros tipos de comércio e o lugar que encontrou para sobreviver no
Brasil, numa narrativa que vai na contramão dos discursos que desvalorizavam o bairro.
Então às vezes aquilo é que ficou nós mora em São Miguel, porque eu nunca
tive problema em São Miguel, mesmo em matéria de amizade, a convivência,
pra mim sempre foi, sabe, então... por que que vocês falam isso? Então, tive
padaria em o Miguel ali onde é Casas Bahia, na Arlindo Colaço com a São
Paulo Rio, ... aquela padaria foi nossa, nós compramos o prédio do ... a
456
Domingos Pantaleão, em depoimento citado.
184
“Monte Castelo” e depois nos vendemos pra Casas Bahia... então nós nunca
tivemos problema aqui, pô, então tem que gostar, né?Aí, graças a Deus a
gente... É, atender e sobreviver também, né... e foi muito bom pra nós, graças a
Deus...
457
Sobre sua devoção a São Miguel, o depoente afirma que “não escolhe o santo” e
que o “anjo da guarda é aquele mesmo”: ... Nossa Senhora Aparecida, Nossa senhora de
Fátima, né... A padroeira da nossa aldeia em Brunhozinho é Santa Bárbara e São
Sebastião...são as duas festas anuais que tem lá na nossa aldeia onde eu nasci. Ainda nessa
intenção de manter laços identitários o depoente afirma que ajuda a manter a “Casa de
Brunhosinho”:
A gente ajuda, né ... porque se não essas comunidades também não sobrevive...
você tem ir mantendo ...tem os meninos que dançam e a gente vai mantendo,
tem a juventude aí também, se livra às vezes de certos caminhos... que se
desviam às vezes, também...
E termina seu depoimento falando de sua terra natal: Ah, mas é muito bom, é
muito bom ... é muito bom ir ... já faz cinco anos que não vou... já estou com
saudade...”. A narrativa é também uma forma de viver Brunhosinho no presente.
O Jornal “Acontece Agora”, também usa como logotipo a estampa da Capela de
São Miguel Arcanjo. Possuindo registro no Instituto Nacional de Propaganda Industrial
(INPI), sob 1822 de 06 de dezembro de 2005 e fundado em São Miguel Paulista em
1991, pelo Sr. Divaldo Rosa, que afirma tratar-se do maior jornal regional da Capital de
São Paulo, com distribuição gratuita, possuindo 14 anos de circulação quinzenal e tiragem
média de 50.000 exemplares por edição. Divaldo Rosa, presidente fundador do Grupo
“Acontece Agora de Jornais e Revistas” 49 anos, nascido em Tupaciguara (MG) veio para
São Paulo com quinze anos e após morar em alguns bairros veio para São Miguel Paulista
em 1989, “lugar que adotou de coração”
458
. De acordo com o Sr. Divaldo, ao pensar em
um logotipo para seu jornal avaliou entre a Capela de São Miguel Arcanjo e a Igreja do
Rosário na Penha e concluiu que a Capela de São Miguel Arcanjo seria mais
representativa, daí escolhê-la como logomarca de seu jornal, que faz parte de um grupo de
imprensa da região
459
. Não foi possível gravar o depoimento do Sr. Divaldo porém ele
457
Idem.
458
Divaldo Rosa, em depoimento no dia 20/07/2007, 49 anos, nascido em Tupaciguara (MG), morador de
São Miguel desde 1989. É formado em economia e Ciências Contábeis é diretor fundador dos jornais
“Acontece Agora” e “Folha do Curuçá”
459
O Grupo Acontece de Jornais e Revistas, é formado pelos jornais “Acontece Agora” e “A Voz do
Curuçá pela revista Acontece Leste” e Ong IDV “(Instituto Cultural e Educacional Direitos de Viver).
No período de 14 anos de existência, já foram distribuídos gratuitamente, mais de sete milhões de
exemplares de jornais e revistas, constituindo-se num dos mais respeitados grupos de comunicações da
Zona Leste.O Jornal Acontece Agora” tem periodicidade quinzenal, com distribuição gratuita em São
Miguel paulista e região. Segundo o Sr. Divaldo Rosa, quem faz a distribuição são pessoas ligadas às
185
autorizou-me a escrever alguns trechos de nossa conversa telefônica e indicou o site da
empresa, bem como a revista para coleta de alguns dados.
Divaldo Rosa, aponta para aspectos de transformação da zona leste da cidade de São
Paulo. Menciona a interligação da Av. Jacu Pêssego a Santo André que ao estar terminada
vai ser uma nova artéria de ligação com outras regiões da grande São Paulo, o que
proporcionará à região, novas perspectivas econômicas.
As intenções evidenciadas pelo Sr. Divaldo Rosa, indicam uma visão empresarial que
prevê para a zona leste da cidade um pólo de concentração de recursos e consumo dado o
crescimento dos investimentos financeiros nessa região, aliados a uma rede viária que
permitirá a comunicação com outros locais da cidade e municípios próximos. Dessa
forma, o jornal veiculado nessa região com possibilidades comerciais garantidas é um
empreendimento bem sucedido e a Capela de São Miguel Arcanjo, como logomarca do
jornal e do Grupo Acontece de Jornais e Revistas” também circulará, através desses bens
de consumo por outras paragens, não restritas à região do bairro de São Miguel Paulista,
refletindo um movimento dinâmico que é inerente ao próprio veículo de comunicação do
qual ela é símbolo.
Diante do exposto, encontramos a Capela de São Miguel Arcanjo estampada em
diferentes suportes que fazem com pensemos no registro escrito como uma das
modalidades para interpretar as questões ligadas ao patrimônio cultural e reconheçamos
que outras fontes, não necessariamente ligadas às fontes oficiais que apontam para
ações de sujeitos que, ao divulgarem a Capela através de seus produtos, evidenciam um
recurso da propaganda mas também, preservam a memória da Capela de São Miguel
Arcanjo.
Associações de Moradores da região. Fonte: Revista Acontece Leste, p.5 e relato do Sr. Divaldo Rosa.
Figura 13 – Imagem da Capela como logotipo do jornal.
186
3.2.1. “Outras memórias... outras histórias” de São Miguel e da Capela
460
Outras experiências que evocam a Capela de São Miguel Arcanjo de forma
diferenciada daquelas que apresentei até aqui, são abordadas nas discussões, buscando
enfatizar o caráter ativo da memória, e perceber os espaços e formas por meio das quais
essas memórias constituem sua materialidade.
3.2.1.1. “ Escola de Samba Unidos de São Miguel”
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Dentre a multiplicidade de práticas que emergem de uma memória social baseada
em valores locais, quase familiares, e expressam diferentes modalidades de organização
que m a Capela de São Miguel Arcanjo como referência simbólica, destacam-se as
atividades do Grêmio Recreativo Cultural e Escola de Samba Unidos de São Miguel”
fundado em 25 de junho de 1977 para a “divulgação e promoção de atividades recreativas
e de toda e qualquer manifestação de arte e cultura popular brasileira, por meio de
participação em torneios e competições esportivas, rodas de samba, desfiles e concursos
de escolas de samba e datas cívicas.”
461
Considerada por Mário Chagas como espaços culturais polivalentes onde, “a
cultura brasileira tem raízes: lazer, educação, arte, economia e esporte estão unidos;
velhos, adultos, adolescentes e crianças celebram a vida, o aqui e agora, a sobrevivência e
a resistência cultural”
462
e levando em consideração que a escola de samba preserva o
lugar social, os grupos locais e o patrimônio cultural, abrindo um caminho para melhor
entendimento de nossas experiências, das tradições populares e das memórias de camadas
sociais geralmente não privilegiadas por estudos dessa natureza, é que as atividades da
Escola de Samba Unidos de São Miguel merecem destaque neste estudo.
460
O título “Outras memórias... outras histórias” foi inspirado no livro Muitas Memórias, Outras
Histórias”, FENELON, Déa Ribeiro e outros (orgs), São Paulo, Olho D’Água, 2004.
461
Conforme Ata 01 de Fundação do “Grêmio Recreativo Cultural e Escola de Samba Unidos de São
Miguel” registrada sob 8278 do Registro Civil das Pessoas Jurídicas - Cartório de Títulos e
Documentos, São Paulo, 19 de julho de 1977.
462
CHAGAS, Mário. A Escola de Samba como lição de processo museal. In Caderno Virtual de Turismo,
vol. 2, 2. Rio de Janeiro, FAPERJ (Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do
Rio de Janeiro), 2002.
187
As questões levantadas sobre a escola de samba foram obtidas em entrevistas e
conversas informais, sendo os entrevistados os sambistas que compõem a agremiação e
que ocupam uma posição na estrutura da escola, participando das reuniões, festas, ensaios
e estabelecendo vínculos de amizade, além de estarem inseridos num sistema de relações
de fidelidade para com a agremiação. Almir José dos Santos, um dos participantes, conta
como foi o início da escola, originada a partir de um time de futebol:
...nós tínhamos um time de futebol, futebol de salão, na época de 73, 74, de
nome Timbuca e todos nós já de uma forma ou de outra fazia um sambinha, um
cantava e enquanto pessoas que eu falei, [... ] outra pessoa comprou um
instrumento, o Elias comprou um instrumento no intuito de fazermos um samba
na quadra, enquanto estivemos jogando, o time era bastante popular, né, o time
era muito bom e passou a participar muita gente a vila inteira começou
acompanhar, não no campo, não nas quadras, mas como no retorno,
porque tínhamos o samba, e normalmente eram sambas dos outros, sambas de
outras escolas, sambas mesmo que [vinham] tocando e nisso foi se criando uns
sambinhas, um fazia... outro... nós tivemos a felicidade de na época vários
intérpretes, vários, vários, vários intérpretes mesmo. Um dos mais conhecidos é
o Heraldo, que foi presidente, que infelizmente não se encontra mais conosco,
mas a história é muito grande. Por intermédio do Timbuca, do time de futebol,
com esses três instrumentos, desencadeou a participação de toda a vila,
existia a do Itaim, a do Itaim existia, e isso ajudou também, porque o
samba já estava perto, do Itaim tinha e a escola [...] do Jacuí também e
esse grupo de bloco passou a necessidade de desfilar também...
463
No depoimento, percebe-se como novas configurações vão aparecendo no viver
urbano, decorrentes de dinâmicas sociais instaladas, como o samba e o futebol,
permitindo o estabelecimento de novas formas de organização e construção de
significados, como a formação do bloco carnavalesco. Essas ões revelam ainda,
relações sociais que são estabelecidas com outros bairros, principalmente aqueles
próximos a São Miguel Paulçista, como Itaim Paulista e Vila Jacuí, que serviram de
apoio, que possuíam escola organizada, para que o bloco carnavalesco de São Miguel
se constituísse como escola de samba.
E o depoente continua sua reflexão, mostrando como novos hábitos vão surgindo
no bairro, em virtude das transformações urbanas.
O futebol sempre imperou, o esporte sempre imperou aqui na nossa vila. Time
nós nhamos tanto à torto, pra e pra nós trombávamos em campo. Tinha
bastante campo pra nós naquela época. Então o futebol era o esporte que mais
praticava mesmo. Depois desse futebol de campo veio o futebol de salão e
dessa época que o futebol de salão surgiu, surgiu o Timbuca por intermédio do
Timbuca a vontade do samba, a descontração depois dos jogos e durante os
jogos também, a compra de alguns instrumentos, a adesão de outras e outras
463
Depoimento de Almir José dos Santos, 40 anos, vendedor, morador em São Miguel desde 1964, nascido
em Itabuna (BA),estudou na escola Senai da Nitro Química e participa do “Grêmio Recreativo Cultural e
Escola de Samba Unidos de São Miguel desde a sua fundação. Atualmente cuida da ala das crianças,
porém já exerceu outras funções dentro da escola. Depoimento concedido à pesquisadora em 08/04/2007, na
casa de Aidil Celeste da Silva, em São Miguel Paulista.
188
pessoas, e aumentando o número de instrumentos, aumentando o número de
pessoas, a formação do bloco e... [...] na época, era coisa que estava
aparecendo, entendeu, as quadras, o futebol de salão... [...]
464
As transformações oriundas da ocupação dos espaços do bairro, com o aumento
populacional, fizeram com que locais antes utilizados como campos de futebol, os
chamados “campos de várzea” fossem ocupados por novas construções, obrigando seus
usuários a procurar novas formas de organização e lazer, concentrando suas atividades em
quadras fechadas para a prática do futebol de salão” e a organização de atividades para
formação de bloco carnavalesco, que depois passou a ser uma agremiação.
Esses lugares de lazer e diversão, especialmente o futebol, aos poucos foram se
alterando, contudo essa renovação foi acontecendo para que espaços de socialização e
diversão continuassem existindo. Almir prossegue seu relato demonstrando a necessidade
da formação da escola de samba, oriunda do sucesso do time de futebol e da capacidade
de organização gerada dentro do próprio grupo para que surgisse uma outra associação,
com outros objetivos:
E depois a própria necessidade. Tivemos um time de futebol, fomos campeão
na própria Nitro Química, em 78, ou foi 77 mesmo, quer dizer, uma história
muito grande, na época nós fizemos uma festa da cerveja, nós trouxemos a
Dona Zica aqui, não foi...Um intérprete nosso foi até o Rio de Janeiro, no
programa do Chacrinha, né, cantar o nosso samba. estava bem mais...
Então vem da formação da escola ela vem bem disso, do futebol, por
intermédio do futebol a necessidade do próprio lazer da gente, que a gente gosta
de samba na o, batia no copo, na garrafa, aí os instrumentos foram chegando
e cresceu mais em função do futebol, a cada vez que o futebol ficava mais
interessante as pessoas iam participando e nisso o número dos instrumentos foi
surgindo... Na vila Nitro Operária. Foi fundada na vila Nitro Operária...
465
No relato, o Rio de Janeiro aparece como referência na formação das escolas de
samba e o orgulho em poder dividir a história da escola com figura consagrada do samba
carioca como a Tia Zica da Mangueira
466
e participar do programa do Chacrinha
467
,
programa popular de grande audiência na época. A participação de artistas consagrados
464
Almir José dos Santos, em depoimento citado.
465
Idem.
466
Dona Zica era uma das últimas remanescentes da "velha guarda" do samba da Mangueira e foi um ícone
na escola, no morro, no Rio de Janeiro, no país e no mundo. Dona Zica foi casada com compositor Cartola,
uma das mais famosas e queridas personalidades da música brasileira. Dona Zica faleceu em 22/01/2003.
Fonte: Folha On Line de 22/01/2003. Acesso em 14/07/2007.
467Chacrinha José Abelardo Barbosa de Medeiros (Surubim, 20 de janeiro de 1916 Rio de Janeiro, 30
de junho de 1988), o Chacrinha, foi um comunicador de rádio e televisão brasileiro, além de apresentador de
programas de auditório, sucesso na TV dos anos 50 aos 80. Fonte: Wikipédia, a enciclopedia livre. Acesso
em 14/07/2007.
189
transforma-se em elemento de aprovação para os sambistas de São Miguel, simbolizando
um caminho de conquistas no universo carnavalesco.
468
Essas experiências sociais forjadas dentro dos espaços do bairro sinalizam para o
dinamismo das relações reveladas pelos locais de trabalho, conquista de formas de lazer,
busca de espaços para manifestações, organização de festividades, compra de
instrumentos, o uso dos espaços do bairro como a Vila Nitro Operária
469
, dando
oportunidade de se pensar as relações sociais, temporais e espaciais, imbricadas entre si.
O depoente também se refere às dificuldades em conseguir local para ensaio:
... e uma ... que eu fiquei... a escola foi ali no mercadão também, fazia um
samba, que ali reunia para fazer, no mercadão, realmente para fundação da
escola... é no mercado municipal nós ficamos um resto aí, um ano, acho que foi
77 mesmo, 77 nós ficamos na frente do mercado municipal mesmo onde tem as
barracas, onde está fechado, era ali que permitiam que a gente ensaiasse...
escola nunca parou, sempre desfilou direto...nunca parou...
470
E faz questão de frisar que a escola nunca parou, ou seja, mesmo com as
dificuldades encontradas, o desfile sempre aconteceu, apontando para o poder de
resistência ao enfrentar as dificuldades, para a força que a organização social do carnaval
induz, para a capacidade de negociações diante das situações conflitivas, capazes de gerar
soluções originais e criativas.
Maria de Lourdes da Silva, diretora social do grêmio recreativo, moradora em São
Miguel há trinta anos, relata experiências que a escola enfrentou para conseguir se manter
em funcionamento e apresentar o carnaval:
Uma vez que a escola quase que não ia desfilar, em quarenta dias nós fizemos o
desfile. Na época do João Carlos, ninguém queria, ficou aquela briga mas em
40 dias nós fizemos o carnaval e colocamos o carnaval na rua... [...]Teve um
ano que um carro nosso ficou preso na Dutra, o Altieri teve que arrumar um
comandante aqui para ele conseguir levar nosso carro para lá. Teve um ano as
roupas que nós usávamos não é, que .... [...]tivemos a infelicidade de um no
trajeto de volta dos carro alegórico nós perdemos um membro da escola
468 (...)A partir do carnaval de 1968, as escolas de samba paulistanas passaram a ser estruturadas de acordo
com o modelo carioca. As balizas foram relegadas em favor da comissão de frente; o estandarte
definitivamente substituído pela bandeira acompanhada por mestre-sala e, tornou-se obrigatória a presença
das “baianas”. O enredo assumiu importância capital, passando a definir toda a montagem do desfile. A
expressão “ala” torna-se corrente para designar grupo de componentes representando parte do enredo ou não
e a denominação de “bateria” passa a substituir a de “batuque” para o conjunto instrumental. Ficou
definitivamente abolida a participação de qualquer instrumento de sopro na parte musical(...) SIMSON,
Olga Rodrigues Von , Brancos e Negros no Carnaval Popular Paulistano, São Paulo, 1989, tese de
doutorado, FFLCH-USP, apud SOARES, Reinaldo da Silva, O cotidiano de uma escola paulistana: o caso
da Vai-Vai, USP: FFLCH, dissertação de mestrado, 1999, p. 40.
469
Depoimento de Almir José dos Santos
470
Idem. O depoente refere-se ao Mercado Municipal Dr. Américo Sugai de São Miguel Paulista.
190
também, que caiu do carro... são essas coisas que a gente tem que lembrar e fica
mais fácil num número maior...
471
Nesse trecho do relato, Maria de Lourdes destaca que ao apoiar sua memória nas
lembranças de outras pessoas que também vivenciaram determinados fatos, geralmente
difíceis, ficará mais fácil relembrar. Nesse sentido, para a depoente, é preciso ouvir outras
pessoas para refazer aquilo que pode ter sido, para fazer ressurgir na latência da memória
estes ou outros acontecimentos possíveis, cujas lembranças a memória pode ter barrado,
tornando o relato reticente.
Nesse contexto, “o processo de mercantilização das escolas de samba paulistanas
que teve seu início na década de 1970, exigiu que essas agremiações tivessem uma
estrutura organizacional cada vez mais complexa, pois passaram a mobilizar um número
crescente de atores e um grande volume de capitais para realização do espetáculo
carnavalesco”.
472
Na superação das dificuldades, o amor pela escola, a criatividade e a perseverança
jogam com força decisiva, demonstrando como os grupos sociais se organizam e
enfrentam situações para resolução dos impasses que se configuram na experiência
cotidiana. Almir descreve esse sentimento pela escola, demonstrado pela reverência e
pelo respeito à bandeira, considerada o símbolo da escola.
A pessoa que vem de fora, o moço que veio na escola de samba, fez assim:
“fico tão admirado, as pessoas beijam a bandeira com um sentimento tão forte,
né, as pessoas chegam para dar um beijo na bandeira, com aquele sentimento”...
mas isso é uma coisa muito importante, isso é muito forte na vida do sambista.
quem é sambista que valoriza esse amor que sente pela escola. Porque é um
sentimento muito forte que você tem pela escola. Não é assim, ah!! É a escola
de samba. Não! É um amor, é um sentimento. Aquilo faz parte da sua vida.
Então quando você chega, quando você pega assim a bandeira, se pega
realmente com muito carinho.
473
A falta de espaço para os ensaios e de um local para realização de reuniões,
relatados pelos depoentes, são dificuldades sim, porém, o grupo encontra solução para o
problema: a casa de Aidil Celeste da Silva
474
de 75 anos, que também participa da
organização da escola, é usada como sede da agremiação. Desse modo, observa-se como
471
Depoimento de Maria de Lourdes Silva, diretora social do Grêmio Recreativo Cultural e Escola de
Samba Unidos de São Miguel, nascida em Paranavaí (PR) em 1949, é professora de geografia da rede
pública municipal.
472 SOARES, Reinaldo da Silva, op.cit. p. 40.
473 Depoimento de Almir José dos Santos, depoimento citado.
474
Aidil Celeste da Silva, nascida em Caitité (BA) em 1931, morou no Paraná por 40 anos e mora em São
Miguel 30 anos. É uma das fundadoras da escola, sua residência serve de sede para a resolução das
incumbências da escola, desde as reuniões da diretoria, até a confecção de fantasias. É mãe de Maria de
Lourdes Silva, diretora social; de Alessandra Irene Rodrigues, porta-bandeira e de Cláudio Antonio Amadeu
vice-presidente da escola.
191
lideranças femininas, forçadas pela falta de espaço para se organizar, criam esquemas de
reorganização e preparação dos ensaios, transformando a residência em espaço de
produção e troca de sociabilidades.
Olha, todo trabalho da escola é feito sempre aqui. Agora os ensaios da escola,
nós nhamos a nossa quadra que hoje nós não temos mais, que era debaixo do
viaduto da China, ali do lado do Supermercado D’AVÓ. Esse ano nós
acabamos perdendo a quadra...Não, do D’Adaqui, do Itaim. Era ali que nós
fazíamos os nossos ensaios. Agora, a organização da escola, [...] roupa,
trabalho, está tudo aqui.
475
E continua seu relato:
... minha mãe, meus irmãos, eu moro ali em cima, mas é fácil participando
sempre aqui. Então tudo aqui, as decisões, as reuniões, todas, a gente só faz
aqui. Aqui. A documentação tudo vem pra cá. Então aqui realmente é a sede da
escola.
476
Acostumados que estamos, ao carnaval televisivo mostrado pelas grandes
emissoras, que propagam grandes escolas de samba que funcionam como verdadeiras
empresas, que têm a seu favor todo um aparato midiático, difícil fica compreendermos a
luta quase diária, a resistência e a força social que enfrentam as agremiações pequenas,
localizadas em bairros longínquos da cidade, para a apresentação do trabalho anual que,
às vezes, “é uma exposição de curtíssima duração, mas onde um tema é colocado em
pauta, expondo uma idéia, com sons, cores, objetos construídos, indumentárias, músicas,
carros alegóricos e mais, os objetos e a exposição movem-se e o público, a partir das
arquibancadas, se emociona, participa, canta, daa, vaia e aplaude. É uma lição.”
477
Desse modo, a residência como local de organização se apresenta como espaço de
sociabilidade com delimitação do acesso, definindo quem pode ou não ter acesso espaço,
constituindo, dessa forma, espaço de resistência e diferenciação.
Almir conta a trajetória da escola que já foi até do grupo especial e que por
dificuldades foi caindo no grupo, porém ao relatar, mostra a persistência dos sambistas ao
enfrentar as derrotas e tentar subir novamente no grupo das escolas.
Nós saímos da vaga aberta e fomos até o grupo especial porque ela vai vaga
aberta, quarto, terceiro, segundo, primeiro. Hoje nós temos um e depois que vai
no especial. Então nós saímos da vaga aberta e fomos até o especial. Depois nós
demos uma caída, não é, ficamos depois agora subimos mais um
pouquinho e já subimos de novo.
478
475
Maria de Lourdes da Silva, depoimento citado.
476
idem
477
CHAGAS, Mário. Op.cit.
478
Depoimento de Almir José dos Santos, citado anteriormente.
192
A luta dos sambistas para a conquista de lugares mais valorizados na classificação
das escolas de samba está associada a estratégias de resistência, negociações e ações que
se estabelecem num emaranhado de relações sociais que se configuram em tensões, perda
de privilégios e em formas de sociabilidades entre os diversos grupos.
Em meio a todas estas questões que a escola de samba faz emergir, como um
espaço privilegiado para a reflexão de projetos sociais, de ações educativas e de
investimento na memória, aparece a estampa da Capela de São Miguel Arcanjo no
símbolo máximo da escola, que é o seu pavilhão: A “Escola de Samba Unidos de São
Miguel”, tem como “símbolo lançado ao centro, trazendo dois sambistas ao centro deste
círculo, e ao fundo a Igreja Velha de São Miguel, construída pelos índios, em grafite”
479
Sobre a escolha desse símbolo, Almir relata:
Quem fez o emblema a gente conseguiu o nome, o sabe aonde tá...
entendendo... o motivo pelo qual foi feito... foi feito São Miguel mesmo...Era
Ururaí, nós tratávamos muito os enredos nossos eram indígenas, africanos, é
Anchieta, né, muito a fundação de São Miguel, muito a origem de São Miguel, a
gente tratava assim nossos enredos e nada mais justo, nada mais coerente... [...]
É o que eu falei para vocês. Na época nossos sambas eram muito indígenas.
Falavam muito do folclore brasileiro e muito de Anchieta e muito da forma que
São Miguel foi colonizado... é foi colonizado, foi descoberto e o tinha muita
saída a não ser o mbolo [...] que vai a igrejinha porque nosso samba sempre
contou a história de São Miguel. Desde os primeiros...
480
No símbolo da escola encontramos marcas identitárias que lembram expressões
culturais locais, como a Capela de São Miguel Arcanjo e o local onde ela se configura, a
praça, os coqueiros;além das danças e folguedos representados pelos bailarinos, com suas
roupas coloridas, tocando pandeiro, instrumento representativo do samba e do carnaval. A
interculturalidade presente nestas expressões evoca elementos do passado, apresentados na
figura da Capela e elementos atuais, o sambista, representados pelo mestre-sala e porta-
bandeira, fornecendo um elo entre o hoje e o ontem e ainda, o futuro através da herança
cultural preservada nas representações da Capela e dos sambistas. É um exemplo vivo de
preservação e transformação.
Um elemento simbólico bastante presente na manifestação carnavalesca é a
fantasia, a roupa apropriada para representar determinado setor da escola de samba. Nela,
elementos decorativos, o penteado, a dança, a alegoria, os adornos também são marcas
identitárias. Desse modo Alessandra, porta-bandeira da escola conta como foi sua roupa no
último carnaval:
479
Artigo 68 do estatuto do “Grêmio Recreativo Cultural e Escola de Samba Unidos de São Miguel”, pg.
13, registrado no 1º Cartório de Registro de Títulos e Documentos em 19/07/1977.
480
Depoimento Almir José dos Santos, citado anteriormente..
193
Esse ano, como a escola completou trinta anos, a minha roupa de porta-bandeira
é exatamente igual a essa (a da bandeira). E o mestre sala veio com uma roupa
parecida com essa também. A gente fazendo uma homenagem com a própria
escola esse ano. Então nossa roupa é igual, mas saiu toda de vermelho, toda
de amarelo, branco e vermelho. Eu não posso fugir dessas cores. Tem que ser
sempre com essas quatro cores...
481
O Mestre-sala e a Porta-bandeira têm a honra de conduzir a Bandeira, o símbolo
maior da agremiação. A função
do Mestre-sala é cortejar a
Porta-bandeira durante toda a
apresentação, por meio de
gestos e posturas elegantes que
demonstrem a reverência a sua
dama, respeitando e protegendo
o pavilhão. O par apresenta uma
dança com passos e
características básicas próprias,
que vem sendo enriquecida em seus maneios e mesuras, através do tema.
482
Dessa forma,
a fantasia assume importância vital, indica o status dos bailarinos que levam a bandeira da
escola e são quesitos
483
obrigatórios dentro do desfile. Assim, o cuidado com a roupa da
porta-bandeira e do mestre-sala assume importância central e a estampa da Capela remete
à idéia de nacionalidade, retirada de um universo religioso, soma-se à estampa dos
sambistas e constitui-se num elemento representativo do carnaval.
E Almir completa: “... a gente pode colocar nos quesitos. Que que é os quesitos: a
porta-bandeira, a bateria, a comissão de frente. Só pode andar com as cores oficiais. Aí, se
quer usar outra cor, vai ter que colocar na bandeira também...” 484.
Apoiada nas lembranças de Almir, Maria de Lourdes relembra como era a
primeira bandeira:
...então, foi assim. O pavilhão original, até onde eu me lembro, o sei se o
Almir discorda. Ele era dourado, o original, não sei se era o primeiro. O que eu
me lembro, que vem na minha memória é que ele era dourado, tinha uns raios
vermelhos e o vermelho era um pouquinho diferente do que é hoje. Esse
481
Depoimento de Alessandra Irene Rodrigues, nascida em São Miguel Paulista em 1972, trabalha como
enfermeira e é porta-bandeira da escola. É filha de Aidil Celeste da Silva e irde Maria de Lourdes da
Silva.
482 Fonte: Critérios de julgamento de quesitos das escolas de samba – carnaval 2002.
483
Os quesitos, o condições necessárias para a consecução do carnaval nas escolas de samba. Dentre os
quesitos obrigatórios estão: bateria, harmonia, evolução, melodia, letra do samba, mestre-sala e porta-
bandeira, comissão de frente, alegoria, enredo e fantasia. Fonte: www.prefeitura.sp.gov.br, acesso em
07/08/2007.
484
Depoimento de Almir José dos Santos, citado anteriormente.
Figura 14 – Pavilhão da Escola de Samba Unidos de São Miguel
194
desenhos dos bonequinhos aí. por um problema da escola, a escola teve
que sair numa cor azul, porque aqui são as cores oficiais da escola: branco,
amarelo, preto e vermelho. São as cores oficiais da escola. teve um ano que
eu também não lembro, que eles tiveram que introduzir o azul, na escola. Então
eles mudaram a bandeira, onde é amarelo a bandeira ficou azul. Mudaram o
pavilhão. depois também por um motivo que eu o me lembro qual, a
escola voltou a ser amarela de novo, aí, fizeram essa bandeira aqui.
485
O depoimento indica que conforme as circunstâncias, as cores oficiais da escola
podem ser mudadas, e que portanto as ações de homens e mulheres não são condições
fixas, rígidas ou eternas e são experiências que indicam um fazer-se e refazer-se
constantes.
Maria de Lourdes relembra o primeiro samba, que tratava da história de São
Miguel: “Eu acho que o único que é o que fala do bairro de São Miguel é o “Alerta”, não
é. o “Alerta” que fala do bairro de São Miguel, que fala tudo de São Miguel... é o
primeiro samba nosso”
486
.
Nas falas dos depoentes, é recorrente a lembrança do primeiro samba, como marco
fundador da escola, e sempre associado à busca do relato da história de São Miguel
Paulista. Infelizmente, não foi possível localizar a letra desse samba. Ela se tornou
elemento da memória oral, que os antigos vão contando. Uma cópia de letra de samba foi
localizada, porém nenhum dos componentes atuais sabem dizer quando foi composto. O
samba fala do bairro de São Miguel Paulista:
EXALTANDO SÃO MIGUEL PAULISTA
Compositor: Lucio (Mazzarope)
Vamos falar de São Miguel
Um bairro muito querido
Seu povo que trabalha sem lazer
Vamos exaltar você
Chegam as grandes chuvas
Deixando tristezas e lamentos
Quando baixam as águas
Começa o nosso sofrimento
São Miguel Paulista
Pra você eu vou cantar... vou cantar
Em homenagem
Nesta festa popular
Parabéns pra você
Muitos anos de vida
É a singela homenagem
Da Unidos mais querida.
Apesar do título do samba se referir à exaltação a São Miguel Paulista, sua letra
aponta para as dificuldades enfrentadas pelos moradores do bairro à época. Logo na
485
Depoimento de Maria de Lourdes da Silva, citado anteriormente.
486
Idem.
195
primeira estrofe, aparece a questão da falta de equipamentos de lazer no bairro, ou ainda,
como a atividade intensa de trabalho ocupa o dia todo do morador, que não tem espaço e
tempo para o lazer. Logo em seguida, a letra do samba faz alusão às grandes chuvas que
provocavam enchentes e traziam sofrimento ao moradores do bairro. Essas enchentes
ocorriam na Vila Nitro-Operária, local próximo à sede da escola-de-samba. O samba-
enredo aborda, ainda, uma questão que não era apenas do bairro, mas sim de caráter
nacional, a inflação alta que assolava o país nas décadas de 80 e 90 do século passado e
que traziam muitas dificuldades econômicas para os brasileiros, principalmente para
aqueles que tinham suas rendas baseadas no salário mensal. Ao recebê-lo ele havia se
desvalorizado.
E sempre aparece o lado afetivo, de “fazer tudo por amor à escola”, da luta para
conseguir burlar a falta de recursos e o passado que está “guardado” por alguns em forma
de relíquias, e que segundo Almir precisam ser retomadas:
Da nossa escola tem coisas muito boas, uma família muito grande, o samba, o
futebol e o samba sempre teve em o Miguel então a gente fazia por amor
mesmo, por gostar mesmo e tem muita coisas da época que eram muito arcaica
né? Era o carnaval dos tempos passados eram uns caixotes. Hoje a gente olha,
nossa, isso que era bom... e tem muito disso que a pessoa tem lá guardada como
quadrinho ou dentro de um livro que não dá. Quando a gente vai lá, olha, mas
fica olhando... é verdade, é verdade. Essas [quatro] pessoas, se elas vierem eu
tenho certeza que elas possam trazer. É tão bom pra você como é tão bom para
nós do meio.
487
No relembrar, o depoente considera a experiência passada, arcaica, no sentido de
ser precária e aponta para o tempo pretérito baseado nas experiências do presente,
evidenciando que a memória é realimentada por objetos e por pessoas.
Considerando o espaço da escola de samba como lugar de culturas polivalentes e
da apropriação de representação das raízes do lugar, como é o caso da estampa da Capela
de São Miguel Arcanjo, para resignificá-la para o interesse e gosto pelo carnaval que se
movimentam entre a festa e o santo, entre o sagrado e o profano, entre o mundano e o
místico que se hibridizam, como fala Canclini: a combinação de estruturas ou práticas
discretas, que existiam de forma separada, para gerar novas estruturas, objetos ou
práticas.
488
Nesse caso, o patrimônio cultural da escola de samba Unidos de São Miguel é
reforçado por um elemento de identidade no bairro, um símbolo religioso que passou a ser
patrimônio material, arquitetônico, que se interage com outros patrimônios culturais para
cobrir a questão da memória desse grupo social.
487
Almir José dos Santos, em depoimento citado.
488
CANCLINI, Néstor Garcia. Op.cit. p. XIX.
196
Mário Chagas, ajuda a entender questões a respeito do patrimônio da escola de
samba:
O patrimônio cultural da escola de samba é a pessoa, a quadra, a música, a
tradição, a bandeira, o ritmo, o instrumento, a dança, a experiência, o troféu, o
ponto de encontro, a fotografia, a fita, o disco o vídeo, a casa do amigo, a
amizade, o amor e a devoção. O patrimônio é material e imaterial, é vel e
imóvel, é preservado, dentro e fora dos sambistas.
489
Lembrando que as relações sociais não configuram um todo coerente e unitário,
conflitos e disputas também são relatadas pelos componentes:
... é porque, por essa escola nós já choramos de alegria, já choramos de
tristeza... brigamos... corremos pra la, não quero saber.... Tudo isso,
essa escola ... meio coisa de família ...As vezes a gente quer levar trezentos,
quinhentos quer ir... Não tem ônibus, não tem verba... Falta de dinheiro. A
gente põe um, o outro acha que o foi alguma coisa, e tal, e não dava mesmo
pra...
490
E Maria de Lourdes continua, “é que o pessoal é muito melindroso. Qualquer coisa
é motivo pra... é, um buchichinho... pra aumentar o negócio”
491
Questão importante para se pensar nas disputas inerentes aos grupos sociais,
ligadas especialmente à apropriação dos lugares, evidenciada em outros depoimentos
desta pesquisa, é a divisão da cidade em bairros que antigamente pertenciam a São Miguel
Paulista, Maria de Lourdes relata:
Aqui é Itaim Paulista agora... do rio pra é Itaim... mas ninguém gosta dessa
história... eu particularmente para mim moro em São Miguel. Essa divergência
existe... para a escola de samba, como tinha a do Itaim e a de São Miguel
sempre sutilmente existia uma rivalidade entre as escolas e os componentes.
também ...
492
A discussão vem à tona, porque o local onde está situada a sede da escola, a casa
de Dona Aidil, na Vila Curuçá pertencia a São Miguel Paulista e com a subdivisão da
cidade passou a pertencer ao Itaim Paulista, sem contar que a escola, atualmente, está sem
quadra para ensaiar e o local que era usado pertence ao Itaim Paulista:
Monte de fator, virou Itaim, geograficamente. Geograficamente, a uns anos
atrás, era São Miguel ainda, mesmo sendo São Miguel, era quase que a divisa
com Itaim. Mas não tinha, começou essa divergência, de um ano pra cá, dois
anos pra cá. O que era viaduto antes uns cem metros do viaduto já é Itaim.
493
Mais uma vez aparecem as disputas pelos espaços da cidade, que demostram como
as divisões administrativas nem sempre levam em consideração experiências culturais e
interesses dos moradores. Nesse caso, a escola de samba pertence a São Miguel Paulista,
489
CHAGAS, Mário. Op.cit.
490
Depoimento Almir José dos Santos, citado anteriormente.
491
Depoimento de Maria de Lourdes da Silva, citado anteriormente.
492
Idem.
493
Almir José dos Santos, em depoimento citado
197
leva o nome do bairro porém, geograficamente situa-se no bairro do Itaim Paulista, e
como afirma Maria de Lourdes, “ninguém gosta desta história”.
Eram três endereços: era sexta no Esquina Danças, sábado no Pepe, no
estacionamento e no domingo na Praça de São Miguel no escuro também, que
eles apagavam a luz. Mas a gente fazia mesmo assim. Levava os instrumentos
em cima de um carro, meio, que tinha aqui velho. Era um Chevette, aí levava os
instrumentos e fazia. Do mesmo jeito, o ensaio fazia.
494
Nesse momento do depoimento aparece a Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra
como opção para os ensaios da escola, porém, “eles apagavam a luz”, ou seja, não era
proporcionadas condições para os ensaios que tinham que ser realizados às escuras. É um
mecanismo de expulsão dos sambistas do local que, para outros grupos sociais, não
combina com esse tipo de manifestação, desvelando conflitos pelos usos e apropriações
dos lugares. Veremos nas próximas discussões, como esse mesmo mecanismo é utilizado
para que tocadores de “forró” também não se utilizem da praça para suas apresentações.
Almir continua relatando as dificuldades em lidar com as tensões provocadas pelas
disputas por lugares para ensaiar e, muitas vezes, a doação que os componentes têm que
ter, deixando mesmo de participar do desfile para solucionar problemas de participantes,
que se não resolvidos, acarretariam perda de pontuação para a escola:
... e agora é igual ver [...] e o poder ir, né... senão até gente mesmo, várias
vezes, um ano que teve ... que ... tenho raiva mas ao mesmo tempo não tenho.
Nós chegamos atrasados no Anhembi, acho que em 92, 93, um destaque nosso,
um grandão, um bonito. Eu vindo com um pessoal da harmonia e encontro
esse destaque... o cara todo desesperado, um monte de mala, todo desmontado,
eu tava vindo com o meu pessoal da ala, fui ajudar esse cara. Aí, vamo, que eu
vou com você, ajudando levar. E para montar o destaque do cara, que tinha
mais de não sei quantas partes? Aí, você precisa ver o mais triste, na hora em
que nós consegue montar o destaque do cara, o carro caiu embaixo. Nossa! E
eu perdi o carnaval todo.
495
Aparece também, nas falas dos depoentes, o elemento trabalho mostrando que a
diversão, o prazer em desfilar, têm por trás muito trabalho, que exige doação dos
organizadores.
Muito trabalho. É dia e noite sem comer. É época que eu emagreço porque as
vezes... ta com a comida no prato, ce ta comendo, não mas tem que sair
porque... o samba ele tem horário. Ele tem horário de entrar e de sair. Então
você não pode perder um minuto. Então você trabalha dia e noite e às vezes
sem comer porque não dá tempo. É a época em que as pessoas ficam ...
496
Um aspecto observado na entrevista é que os componentes presentes não têm um
acervo organizado sobre as atividades da escola. Aliás, surgiu da coleta dos depoimentos,
a percepção dessa necessidade:
494
Idem.
495
Idem.
496
idem
198
Porque a gente também corre o risco de... de repente... essa até nós acho que
pecamos nisso porque eu acho que esse registro nós nhamos que ter... Nós
pecamos nisso. Era para vocês chegarem e nós só acrescentar, né? É justamente
isso, com a participação de vocês cresceu mais essa vontade de nós termos
essa identidade...Essa identidade já documentada.
497
Constatamos que a principal forma de transmissão de informações é através da
oralidade. Da coleta do depoimento, surgiu a constatação da necessidade da organização
da agremiação no sentido de coletar dados sobre o passado da entidade e organizar um
arquivo que será atualizado todo ano, para o se perder a memória da Escola. Para essa
tarefa, ficou encarregado André Felipe, de dezenove anos, sobrinho de Maria de Lourdes.
Dessa forma, percebemos como a organização da escola vai se configurando num âmbito
familiar e como essas relações com o passado vão passando dos mais velhos para os mais
novos.
Surgem questões de domínio dessa memória, evidenciadas no relato de Almir,
sobre pessoas que possuem material sobre a agremiação mas que não o socializam:
... para ficar mais evidenciado, mais claro, seriam o testemunho das próprias
pessoas que viveram porque muitos documentos, a gente ia atrás de fotos, tem
pessoas que tem mas não dá, sabe, acha que o vai voltar, né? Eu falei ontem
com a Lurdes, a Cida, uma das primeiras porta-bandeira nossa, ela falou que
tem mas tá com a cunhada e a cunhada não deixa nem ela pegar e aí. E nem
para tirar uma cópia? Não dona...
498
E ao mesmo tempo, relata fatos que propiciaram a perda dos arquivos da escola:
... e muito dos nossos registros, muitas coisas, eram da (vila) Nitro Operária,
muitas pessoas mudou da Nitro Operária, e também a Nitro Operária durante
muito tempo foi uma área que não podia ver chuva, sabe, enchente, muita
enchente. Teve época que para nós desfilarmos, nós ter que buscar nossos
couros, nossos couros tavam flutuando, indo embora pro rio, não é
brincadeira. Aquela parte da Nitro Operária, da Marechal, você conhece São
Miguel? Aqui da Marechal Tito, mesmo aqui onde começa a Nitro Operária até
a linha férrea, sofreu muito pelas enchentes. Então, muitos arquivos, muitas
coisas nossas a própria enchente levou, verdade mesmo. A própria enchente
levou...
499
E Maria de Lourdes completa: “tem, tem isso. Quem tem sente dor em entregar. A
pessoa as vezes tem um documento, tem uma foto que ficou, pra ela, [...] sente dor, não
dá”. Isso faz perceber que os registros, álbuns de fotografias, cartas ou outros materiais
produzidos na vida cotidiana e associados ao passado, quando apossados por alguém que
os incorpora para si, e tem medo de perdê-los caso se separe deles, produzem memórias
497
Depoimento de Almir José dos Santos, citado anteriormente.
498
Idem.
499
Idem.
199
que adquirem formas culturais privadas, mantêm-se no nível da lembrança privada. Não é
registrada, e sim, silenciada.
500
Para os depoentes, nesse momento do depoimento, pensar na escola do passado é
relembrar a ausência de materiais que representem esse passado e a luta enfrentada para
concretizar o desfile, recompondo caminhos que significam perda e destruição de
instrumentos pelas enchentes e ainda os arquivos da escola, revelando as precárias
condições do lugar, à época das chuvas.
A Capela de São Miguel Arcanjo representada no pavilhão da escola de samba,
tendo à frente dois sambistas fantasiados com postura de dança carnavalesca, permite
perceber essa ambigüidade de sentidos inerentes às práticas populares forjadas na
confluência das simbologias religiosas e tradições culturais afro-brasileiras. Diante disso,
é preciso pensar em torno dos processos seletivos da memória, que constroem
determinadas associações em relação às tradições, manifestadas através da figura da
Capela e dos sambistas. Essas simbologias ganham sentidos em forma daquilo que
representam para aquele grupo social, ou seja, daquilo que precisa ser conservado,
preservado para aquele grupo: a Capela enquanto símbolo religioso que identidade ao
local e os sambistas enquanto símbolo étnico que expressam formas de agir e de ser.
Ambos porém, são elementos constituidores de identidade desse grupo, manifestados em
atividades da agremiação, evidenciados nas experiências historicamente vivenciadas e
representadas por esses dois símbolos identitários.
Essas injunções permitem, ainda, evidenciar imbricadas relações que se
estabelecem entre o sagrado e o profano, possibilitando descortinar entrelaçamentos de
culturas que permeiam o universo social urbano. No dizer de Maria Clementina Pereira
Cunha, se a folia tem sido tomada como ocasião de construir e exprimir simbolicamente
a “essência do nosso sangue”, ouvir seus ecos em busca de outras sonoridades pode nos
ensinar muito sobre o passado e presente...”
501
Dessa forma, o pavilhão da escola revive
essa história na sua representação da Capela de São Miguel Arcanjo e, ao mesmo tempo,
conta uma nova história, pautada na existência do carnaval simbolizado pelos sambistas,
reinventando uma tradição, que é renovada a cada ano
500
JOHNSON, Richard e DAWSON, Graham. Grupo de Memória Popular. Memória Popular: Teoria,
política e método. In FENELON Déa Ribeiro e outros (orgs) Muitas Memórias, Outras Histórias. São
Paulo: Olho D’Água, 2000, p. 285.
501
CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia – Uma história social do carnaval carioca entre 1880
e 1920. São Paulo: Cia das Letras, 2001, p.14.
200
3.2.1.2. A Insígnia do 29º Batalhão da Policia Militar
8*(L*:
8K.
8*
A frase acima é de Sérgio Lombardi Senedin
502
, 57 anos, nascido em São Paulo,
tenente coronel da reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo, autor do brasão de
armas do 29º Batalhão da Polícia Militar (29º BPM/M)
503
e responsável pela organização
do batalhão em São Miguel Paulista, no ano de 2000. Suas palavras representam os
sentidos dados à Capela. Para ele, a Capela perfil ao bairro, que adquire importância
no contexto da cidade por abrigar uma capela histórica.
O Coronel Senedin conta que no ano de 2000 foi incumbido da missão” de
montar o 29º Batalhão que a princípio funcionou na Rua Vilela, no bairro do Tatuapé.
Como o Tatuapé fica distante de São Miguel Paulista houve empenho do coronel para
conseguir um local no próprio bairro. Dessa forma, conseguiu montar o batalhão numa
área cedida pelo Nitro-Química em regime de comodato. O coronel relata como, após
organizar o batalhão, elaborou o brasão do 29º Batalhão: ...vim para casa e desenhei... foi
definitivo... levei para aprovar na sessão do Estado Maior da Polícia Militar e usei essa
simbologia: o rio Tietê, a Capela e a indústria, que trouxe todo esse povo para essa
área...
504
502
Sérgio Lombardi Senedin é tenente-coronel da reserva da Polícia Militar do estado de São Paulo.
Comandante do 29º Batalhão da Polícia Militar do Estado de o Paulo, sediado em o Miguel Paulista,
organizou, a partir do ano 2000 o 29 º batalhão e o seu Brasão de Armas.
503
A Unidade do 2 BPM/M, foi criada pelo decreto 44.447 de 24/11/1999, publicado no Bol. G PM 249
de 31/12/1999 e é subordinada ao CPA/M4, sediado na Capital, responsável pela policia ostensiva e pela
preservação da ordem pública na Zona Leste da Capital.
504
Coronel Senedin, em depoimento citado
201
O depoente aponta para os elementos valorizados como significativos na
composição da insígnia, que se remetem ao bairro e à área de ocupação do 29º BPM/M
O Sr. João Feher, segurança da Capela, narrou a visita de dois policiais à Capela.
Ele a mostrou, como sempre fazia com aqueles que o procuravam:
É isso daí... um dia vieram uns policiais visita e ... eu olhei assim no brasão,
assim... ué... falei; - Vocês tão sabendo... isso aí?
– Não.
Eu falei:- É essa igreja aí. Aí ele olhou assim ... puxa a gente tem isso aí e não
sabia ...
505
Para o Sr. João, ficou evidente de imediato a estampa da Capela no uniforme dos
policiais visto que mantém com esse bem cultural vínculos afetivos que remontam à sua
infância, ao passo que para os policiais, que nem sempre são indivíduos que residem no
bairro ou têm com ele relações identitárias ou que não participaram da confecção da
insígnia, não houve reconhecimento imediato dos significados da estampa em seus
uniformes.
Dessa forma, buscando as características do discurso histórico imagético e suas
semelhanças e diferenciações em relação a outros discursos históricos, é que procuro
refletir sobre as especificidades e potencialidades dessas imagens. O foco central da
abordagem é a análise e reflexão sobre o uso da insígnia e o que ela representa.
505
João Feher, em depoimento citado.
Figura 15– Insígnia do 29º BPM/M
202
A Unidade responsável pela polícia ostensiva e pela preservação da ordem pública
em parte da zona leste da capital, através do Boletim Geral PM 223 publica a instituição
do Brasão de Armas
506
, o Estandarte
507
e a Insígnia
508
do Comandante do 29º BPM/M.
Sobre esses símbolos usados pelo batalhão militar de São Miguel Paulista, observamos a
seguinte descrição:“O Brasão de Armas do 29º BPM/M será um escudo português
509
clássico, partido e cortado, perfilado em jaine”.
A seguir, o Boletim Geral PM descreve o primeiro campo do brasão; “no primeiro
campo, de goles, cor que simboliza a audácia, grandeza e espírito de luta, duas garruchas
cruzadas em aspas (emblema da Polícia Militar do Estado de Sao Paulo), simbolizando a
nobreza, esplendor, glória e poder”.
Estes predicados: nobreza, esplendor, glória e poder, vistos por quem os elabora,
são condições necessárias para a atuação militar, simbolizam a construção de uma
imagem do Estado e sinalizam para uma relação de domínio deste sobre os segmentos da
população, demonstrada através dos símbolos do uniforme.
Continuando a descrição do brasão de armas, levando sempre em consideração
que ele é parte do uniforme militar e que, portanto, tem sua função ligada ao conjunto da
indumentária, o boletim informa:
No segundo campo, de prata, cor que simboliza a justiça, pureza do ideal, o
dever e a lealdade, o escudo do Brasão de Armas da Polícia Militar do Estado
de São Paulo, para particularizar nossa Corporação, perfilado em jaine, tendo
uma bordadura em goles, carregada de dezoito estrelas de cinco pontas, de
506 Um brasão (também brao de armas ou cota de armas), na tradição européia, é um desenho
especificamente criado - usando símbolos e cores - com a finalidade de identificar indivíduos, famílias, clãs,
cidades, regiões e nações.Não se sabe com rigor quando é que esta prática teve início. O campo de estudo
dos brasões denomina-se heráldica. Os brasões não eram fornecidos ao acaso para as pessoas. Tiveram as
suas origens em atos de coragem e bravura efetuados por grandes cavaleiros. Era uma maneira de os
homenagear e às suas famílias. Com o passar do tempo, como era um ícone de status, passou a ser conferido
a famílias nobres no intuito de identificar o grau social da mesma, assim sendo, somente os heróis ou a
nobreza possuíam tal ícone e o poderiam transmitir a seus descendentes.A partir do séc. XIX, com a
ascensão ao Poder da Burguesia e o declínio da Artistocracia, o Brasão foi perdendo a sua importância.
Atualmente os brasões o muito freqüentes e fáceis de encontrar. Cada autarquia - freguesia, municipio ou
distrito - tem o seu, assim como a sua bandeira, onde figura o brasão, motivo de orgulho para muitos dos
habitantes de cada freguesia. Várias coletividades e Clubes Esportivos também adotaram como símbolo um
brasão que os identifique. Fonte: "http://pt.wikipedia.org/wiki/Bras%C3%A3o”
507
Estandarte, bandeira de regimentos militares (cavalaria e artilharia) insígnia de corporações ou
comunidades religiosas, bandeira em geral. Grande Enciclopédia Larousse Cultural, São Paulo: Nova
Cultural Ltda, 1998, p. 2251.
508
Insígnia, bandeira, estandarte, divisa, legenda, dizeres (inscritos em emblemas, escudos, brasões) sinal
distintivo, emblema. Peça bordada ou de metal aposta aos uniformes para distinguir os graus de hierarquia.
Insígnia de comando, flâmula de forma e cores previstas em regulamento, indicativos da presença dos
oficiais que exercem determinado comando. Grande Enciclopédia Larousse Cultural, São Paulo: Nova
Cultural Ltda, 1998, p.3178.
509
Os escudos heráldicos representam os escudos de guerra, onde os combatentes pintavam suas armas para
serem facilmente identificados, e podem ter diversas formas. Na atualidade, são mais utilizados o modelo
francês e o português (boleado). Fonte: www.genealogias.org
203
prata, representando os marcos históricos da Polícia Militar e no centro do
campo um verguetado
510
de treze listras em sable
511
e prata e acima um
terciado
512
em faixa de blau
513
, a do centro em goles, tudo perfilado em jaine,
cores representativas da Bandeira Paulista.
514
Novamente, a descrição chama a atenção para os ideais militares e para a
constituição do Estado, pelas cores de sua bandeira e dos marcos históricos da Polícia
Militar, que a legitima enquanto instituição que exerce poder sobre a população.
No terceiro campo em blau, cor representativa da justiça, nobreza,
perseverança, constância, zelo e lealdade, tendo no centro a silhueta de uma
Igreja que lembra a primeira construção erguida por volta de 1585, pelos
jesuítas na fundação de São Paulo, ladeado à esquerda por uma chaminé que
simboliza o desenvolvimento industrial da “Nitro-Química”, à direita, um meio
sol nascente, símbolo das qualidades divinas, abaixo uma faixa ondada de prata
que simboliza na heráldica o cinto do cavaleiro e no escudo a passagem do Rio
Tietê, identificando assim a área de Policiamento Militar do 29º BPM/M,
instalado em São Miguel Paulista – Zona Leste da Capital.
515
Junto aos símbolos importantes, como as cores da Bandeira do Estado e os marcos
históricos da Polícia Militar, aparecem elementos que constituem representações sobre
São Miguel Paulista, a Capela, a Nitro Química e o Rio Tietê, identificados como área de
atuação do policiamento do 29º BPM/M. Nesse sentido, é necessário apreender a
importância fundamental que as funções simbólicas da indumentária militar assumem e os
valores a ela associados, numa observação da articulação recíproca entre aquilo que é
olhado e os significados da linguagem visual, importando pensar no sentido de
identificação que as estampas da Capela, da Fábrica e do Rio conferem ao 29º BPM/M,
delimitando seu território de atuação.
Na verdade, o autor do brasão, Cel. Senedin afirmou que a chaminé estampada na
insígnia representa a área industrial do bairro, e não apenas a Cia. Nitro-Química
Brasileira como aparece no Boletim. Este uso leva a refletir como a Nitro-Química
exerce poder simbólico no bairro, conseguindo denominar a torre que representa as
indústrias da região, impondo seu poder econômico, social e político na região. A Nitro-
510
verguetado pala estreita dos escudos. Usado na heráldica. Grande Enciclopédia Larousse Cultural, o
Paulo: Nova Cultural Ltda, 1998, p.5919.
511
sable esmalte de cor negra dos brasões (simboliza luto, aflição; sabedoria e prudência; honestidade e
firmeza). Grande Enciclopédia Larousse Cultural, São Paulo: Nova Cultural Ltda, 1998, p.5173.
512
terciado escudo dividido em três partes iguais. Grande Enciclopédia Larousse Cultural, São Paulo:
Nova Cultural Ltda, 1998, p. 5645.
513
blau relativa a cor azul nos brasões, palavra restrita à heráldica no português. HOUAISS, Antônio e
outros. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 467.
514
Conforme Boletim Geral PM 223 de 21/11/2000.
515
Conforme Boletim Geral PM 223 de 21/11/2000.
204
Química acaba incorporando valores que excluem as outras empresas do contexto
industrial do bairro.
516
.
O uniforme do policial não significa apenas o indivíduo armado e com funções
específicas de garantir a ordem, mas informa, também, sobre um cidadão investido de
responsabilidade e de autoridade, que sem o uniforme não seria reconhecido como tal. Ao
refletir sobre a insígnia é importante ressaltar que ela exerce não apenas as funções
simbólicas de que são investidos os policiais, mas o conjunto todo, a indumentária, o
uniforme que obriga o cidadão a tomar certos padrões de comportamento e lhe dá
reconhecimento social pela posição que ocupa.
Lembrando que os signos do vestuário tornam possíveis múltiplas leituras sobre
seus sentidos, realizar essas leituras pressupõe contextualizar uma linguagem que se
traduz em termos sociais. É preciso entender que a roupa exerce a dupla função de
integrar e diferenciar as pessoas e, no espaço público, funciona como “carteira de
identidade social’. No caso específico do militar a indumentária tem o objetivo de reforçar
a ordem social, visto estar fundamentada na hierarquia e nas relações de poder.
Esta leitura sinaliza para a existência de uma corporação armada, vinculada ao
governo estadual, porém com área de atuação delimitada por elementos indicativos na
insígnia informando, também, as diferenciações internas e distinções entre os
componentes da tropa.
A delimitação territorial que identifica a área de atuação do 29º BPM/M exposta
pela presença da Capela, da Nitro Química e do rio Tietê, incorpora um imaginário
espacial que avança para as raízes históricas do bairro representadas pela estampa da
Capela; para as transformações ocorridas pela presença de indústrias na região que
trouxeram para o bairro novas formas de trabalho, aumento populacional e atividades
diferenciadas daquelas até então desenvolvidas; e para a atuação do rio que servia para
transporte, retirada de areia para as construções e, ainda, para depósito dos detritos das
fábricas que se instalaram às suas margens. A ocorrência desses marcos apropriados pela
corporação militar e inseridos no seu brasão de armas, confere a eles usos e significados
que são específicos de uma corporação militar hierarquizada e que, ao mesmo tempo,
servem como elementos de expressão de valores e significados sociais no bairro e fora
dele, porque são utilizados por uma corporação que tem abrangência estadual.
516
Outras indústrias instaladas na região : TEXIMA - Fabricante de máquinas de beneficiamento têxtil e
prestação de serviço; CELOSUL – fábrica de papel das Indústrias Matarazzo.
205
3.2.1.3. Grupo Escoteiro “Padre Aleixo”
)
:
*,
Abordando experiências sociais que trazem a
imagem da Capela de São Miguel Arcanjo como mbolo
de instituição, é que trago para essa pesquisa reflexões
sobre essas representações, através das praticas sociais
vivenciadas pelo Grupo Escoteiro Padre Aleixo (GEPA),
buscando estabelecer articulações entre essas práticas e a
Capela de São Miguel Arcanjo enquanto elemento
constituidor da memória do bairro. O GEPA , fundado em
2005 tem como Diretora Presidente Suely Brasil, de 54
anos, moradora em São Miguel Paulista vinte e seis anos. O estudo do GEPA é de
interesse para a pesquisa porque a bandeira que o representa e lenço do uniforme trazem a
estampa da Capela de São Miguel Arcanjo, além do significado do nome, que reporta à
memória do Padre Aleixo Monteiro Mafra.
Suely Brasil, diretora presidente do grupo, as razões para o uso da estampa e do
nome do grupo:
...porque é assim, o nome do grupo... Grupo Escoteiro Pe Aleixo, ele foi assim
... a principio...a gente queria algo que retratasse o Miguel e nada mais justo
né... a Capela Velha que é um patrimônio histórico e é assim... é a raiz ... e
então a gente colocou o nome também de Padre Aleixo em homenagem a um
padre que dedicou a vida dele inteiramente a São Miguel.
517
O GEPA procura perpetuar uma memória que representa um monumento
consagrado como patrimônio histórico atrelada à figura de um padre empreendedor,
morador de São Miguel Paulista por vinte anos, que exercia liderança junto aos moradores
do bairro e que iniciou a construção da catedral de São Miguel Arcanjo, local onde o
grupo escoteiro realiza suas atividades; há nisso uma demonstração de valorização e
identificação com elementos da Igreja Católica, entidade que pauta suas atividades em
códigos da tradição, em que se traduzem também, os ideais do escotismo.
517
Sueli Curaça da Silva Brasil, Diretora Presidente do Grupo Escoteiro Padre Aleixo” 323 com sede
na Catedral de São Miguel Arcanjo Praça Padre Aleixo Mafra. Natural de Votuporanga (SP) Nascida em
1952. Mora em São Paulo desde 1960, onde morou na Vila Aricanduva (Vila Matilde) e está em São Miguel
desde 1981, há 26 anos. Mora atualmente no Parque Cruzeiro do Sul bairro que pertence a Ermelino
Matarazzo. É atualmente coordenadora do Catequese e do Movimento Eucarístico da Paróquia de o
Miguel Arcanjo.
Figura 16 – Estampa alusiva
ao 1º aniversário do Grupo
Escoteiro Padre Aleixo.
206
O lenço no escoteiro... o grupo pode ser extinguido um dia... como esse foi e a
gente resgatou o nome... mas... no coração e na mente dessas crianças jamais
vai se acabar... eles o passar pra filhos e pra netos que eles pertenceram a um
grupo de escoteiro Pe Aleixo e que o símbolo era a Capela Velha... o lenço é a
promessa escoteira... ele é uma investidura
518
... quando a criança participa do
grupo escoteiro ela faz a promessa e recebe um lenço... então ... tem criança que
ainda não recebeu a investidura... o que é a investidura... é você tá honrando o
seu grupo.. lutando pelo seu grupo... levando o nome do seu grupo... onde você
for... você vai levar o lenço... entendeu...
519
As atividades do escotismo são pautadas por uma teia de elementos simbólicos
que tornam a interpretação objetiva dessas ações e signos, geradas em outros locais, mais
difíceis. Sem a pretensão de analisar o caráter simbólico dessas ações, porque não é esse o
objetivo desse trabalho, percebe-se a intenção de perpetuar uma memória, que será
transmitida através de gerações ao usar como símbolos a Capela e o nome do Padre
Aleixo.
Continuando seu relato, Sueli conta como foi o início do grupo, nos anos de 87 a
92:
... que... eu participei do escotismo alguns anos atrás... então era o antigo
Padre Aleixo... nos anos de 87 a 92 ...mais ou menos... faz quinze anos... o
antigo grupo... eu coloque a minha filha ela tem vinte e seis anos agora...
naquela época ela tinha cinco ... o grupo chamava-se Grupo Escoteiro Padre
Aleixo , usava o mesmo lenço que não tinha a Capela ... era o lenço
vinho... funcionava em frente à Sabesp... a sede era ali dentro... aí ... por
questão de adultos, de chefe, de chefia desestruturou o grupo acabou, se
extinguiu... foi acabando, acabando...
520
Sueli relata que, mesmo com o grupo terminado, sempre teve vontade de retomar
às atividades, quando o Padre Geraldo a chamou e disse: “toca em frente, está em suas
mãos”.
... ai eu pus a mão na cabeça... eu com minha mãe na cama... com tanta coisa
pra fazer... mas eu pensei... é um projeto bom... e um sonho ... Padre. Aleixo ...
(...)se eu te contar que levei um ano e meio só pra abrir o grupo ... um ano e
meio... só em papelada, burocracia ... reunião, cursos...e qual era minha grande
dificuldade... quando você fala em escotismo... esporte, lazer... tudo radical.. a
um chefe escoteiro... primeiro um homem, saradão, fortão, jovem, que vai
diante de todo o grupo que chega impondo, né... sei lá... abrir um grupo, olha a
518 O conceito de investidura, usado no Escotismo, corresponde, na sua origem, ao acordo que era
estabelecido com os proprietários de terras e homens livres, ou jovens que atingiam idade entre 18 e 20
anos. Era na verdade um contrato em que uma das partes oferecia o seu braço armado e fidelidade em troca
de abrigo, armas e alimentação (possivelmente a participação em saques também). Seu aspecto cerimonioso
era para reforçar o seu aspecto institucional e dar validade ao ato. O conceito de Investidura no Escotismo,
deriva dessa visão da Investidura dos Cavaleiros, surgida por volta do século XI, que corresponde, não mais
ao simples pacto com o Senhor, mas a adesão a um conjunto de regulamentos e a princípios morais e éticos.
No caso das Investiduras Escoteiras, tanto Sênior como Pioneira, a importância está no compromisso
pessoal assumido e na adoção de valores defendidos pelo Movimento, que estão explícitos nos
Fundamentos. Fonte: www.escoteiros.org/programa/ficha 04-2002_investidura, acesso em
10.08.2007.
519
Sueli Curaça da Silva Brasil, em depoimento citado.
520
Idem.
207
minha idade, meu tamanho... tudo que o ajudava ... mas a vontade
prevalecia... eu não vou dar atividade eu vou coordenar um grupo, eu quero
por em prática... eu vou correr atrás... eu consegui... fui atrás de um chefe...
com essa luta, abri o grupo... e o Padre Aleixo eu consegui resgatar só o
nome...
521
Nesta fala, Sueli evidencia sua preocupação em buscar elementos do passado que
pudessem representar o grupo atual. Ao retomar o nome do grupo antigo, também estava
fazendo emergir a lembrança do Padre Aleixo, figura representativa de um passado que se
procurou perpetuar através da denominação do grupo.
...a União dos Escoteiros do Brasil fornece os cursos né, informativos,
preliminar, básico e assim vai subindo... a gente fica em curso, um dia, dois pra
trazer bagagem para as crianças. Temos muitos livros, pesquisas ... muita troca
de experiência com outros grupos... com outros chefes mais velhos... e assim
vai ... ai fui formando a chefia... que é o que a gente precisa pra abrir um grupo
... primeiro, ser indicada por alguém ... como eu havia participado ficou fácil
porque eu tinha muitos contatos... que eu encontrei muita barreira ... é assim
dizer... discriminação também... mas eu sou determinada... quando eu sei que é
bom pra criança e pro jovem, na tem barreira ... eu vou em frente ... ai a
primeira coisa, uma diretoria... de ter gente disposta ... que goste e que queira
assumir um compromisso... porque tem uma escala de hierarquia... então tem o
presidente o subpresidente, tem a diretora financeira, administrativa , então eu
tenho que ter um quadro de pessoas que assumam essa função pra poder
apresentar na UEB pra poder liberar ... ai eu tinha que ter mais ou menos
umas seis crianças que a gente esteja preparando pra poder iniciar no
papel.....
522
Aparece no depoimento os padrões sociais valorizados socialmente, que espera
que as pessoas sejam jovens, elegantes, bonitas, com os padrões de beleza valorizados
pela dia e, ao mesmo tempo, com outros atributos como a responsabilidade,
compromisso, respeito à hierarquia e principalmente a determinação em querer organizar
o que acredita ser importante como participação social. Na narração, a depoente indica a
luta para conquistar o que deseja.
A depoente continua, demonstrando o significado que atribui ao nome do grupo,
revelando sua luta para preservar ou recompor um passado vivido, recuperando
lembranças que são ressignificadas no presente.
... nosso grupo atual é o 323 ... esse numeral distingue cada grupo... é o numero
de registro mundialmente... agora tem buraco no meio... alguns não vão pra
frente ... não foi avante... então cada lugar que você for... o seu 323 todo
mundo vai saber que Pe Aleixo é de São Miguel... O outro grupo chamava
Padre. Aleixo... o nome em si é do Padre Aleixo... uma homenagem a alguém
que dedicou sua vida inteira a São Miguel.
523
Importante destacar, que a depoente o conheceu o Padre Aleixo e que sua busca
em preservar seu nome está ligada à convivência com grupos que validaram essa
521
Idem.
522
Idem.
523
Idem.
208
memória, incorporada e reelaborada à luz do momento atual, articulando-a a novas
experiências e situações vivenciadas no presente.
Não cheguei a conhecer (Padre Aleixo) eu vim pra em ... e outra coisa... que
eu fico aborrecida quando eu vejo a turma falar Praça do Forró... puxa vida,
a gente tem que lutar pelo patrimônio... o rico... essa Igreja ele dedicou a vida
dele toda aí... e assim é uma coisa muito rica... tem que ser valorizada... eu
falei... nada mais justo que colocar o nome do grupo Padre Aleixo... que o
antigo grupo o numeral era ... acho que 62... então ele foi extinguido... foi
uma outra briga... demorou muito... prá eu conseguir o mesmo nome... ai...
ficou assim... o nome voconsegue resgatar que o seu grupo é um grupo
novo...
524
Novamente, a questão do nome da praça discutida no capítulo II, aparece como
elemento de disputa e tensão entre os moradores de São Miguel Paulista. A depoente,
pessoa ligada às atividades da Igreja Católica no bairro, “fica aborrecida” pelo uso de
outro nome para a praça; para ela isto significa perder uma memória que ela própria
procura preservar ao elaborar ações na tentativa de fazer com que o nome do padre e a
Capela de São Miguel Arcanjo não sejam esquecidos e que um remete ao outro. Dar à
praça o nome de Praça do Forró evoca outras experiências rejeitadas pela depoente para
aquele espaço.
O escotismo ou escutismo, fundado por Lorde Robert Stephenson Smyth Baden-
Powell na Inglaterra, em 1907, é um movimento mundial, educacional, voluntariado,
apolítico, sem fins lucrativos. Criado com a proposta de desenvolver o jovem por meio de
um sistema de valores, que prioriza a honra, baseado na Promessa e na Lei Escoteira e
pela prática do trabalho em equipe e da vida ao ar livre, objetiva fazer com que o jovem
assuma seu próprio crescimento, torne-se em exemplo de fraternidade, lealdade,
responsabilidade, respeito e disciplina.
525
Esse quadro aqui, é o distintivo usado em todos os países. Usamos quando nos
fazemos a promessa de escoteiro. Porque tem tudo assim, um preparo...a
criança... tudo depende da criança...se ela quer, se ela gosta realmente, né... o
que que o escotismo proporciona pra criança, né... ele assim, um grupo ... uma
entidade o com fins lucrativos ... o escotismo ele é voltado para o jovem ... e
crianças com a colaboração de adultos... nos somos voluntários e
colaboramos pra formação da criança ...
526
Os valores do escotismo são fundados na Promessa Escoteira que sintetiza o
embasamento moral do Movimento Escoteiro, como uma iniciação do aspirante, um rito
de passagem para ser iniciado no grupo. Os elementos da Promessa Escoteira estão
contidos nos Princípios do Movimento Escoteiro que são: dever para com Deus (crença e
524
Sueli Curaça da Silva Brasil, em depoimento citado.
525
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Escotismo, acesso em 30/07/2007.O movimento escoteiro, com sede
em Genebra na Suíça, possui 28 milhões de associados.
526
Sueli Curaça da Silva Brasil, em depoimento citado.
209
vivência de uma fé, independente de qual seja); dever para com os outros( participação na
sociedade, boa ação, serviço ao próximo); dever para consigo próprio (crescimento
saudável e auto desenvolvimento)
527
.
As atividades do escotismo, caracterizadas por um processo de ritualização e
formalização, são exemplos do que se considera como “invenção das tradições”, cujas
características referem-se ao passado pela imposição da repetição
528
. “Presume-se que se
manifeste de maneira mais nítida quando uma “tradição” é deliberadamente inventada e
estruturada por um único iniciador, como é o caso do escotismo, criado por Baden
Powell”
529
.
Esses princípios são ritualizados e formalizados pela participação de adultos, que
segundo Sueli, têm um papel voluntário. Fazem parte da tradição do movimento, criado
em outro local, possivelmente com outros objetivos e, que em São Miguel adquirem
características próprias, reinventam tradições criadas para esse movimento, de forte poder
simbólico, mesclando-se com outros símbolos ou imagens do passado de São Miguel. O
Grupo Escoteiro tem em sua organização, espaço para a tradição, para o costume
sistematizado, para as referências estáveis, fatores valorizados pelos participantes do
grupo de São Miguel Paulista, que procura reafirmar essas referências ao utilizar como
símbolo a estampa da Capela aliada ao nome do Padre Aleixo.
Importante pensar que o grupo escoteiro usa as dependências da Catedral de São
Miguel Arcanjo para realizar suas atividades apesar de serem acomodações inadequadas,
conforme relato de Suely e mesmo sem nenhum vínculo religioso similaridade entre a
missão do escotismo e os elementos que se encontram também na doutrina católica:crença
em Deus, servir ao próximo, responsabilidade, respeito, disciplina. Essa identidade é
revelada também, no lenço do escoteiro que, além de trazer o nome Padre Aleixo”, traz
ainda a estampa da Capela de São Miguel Arcanjo, símbolo representativo, identificado
com o bairro de São Miguel Paulista que remonta à história do lugar. A Capela esteve,
está e estará lá, indicando uma perenidade representada pelos valores que o grupo
escoteiro indica e se associa. Nesse sentido, ao mesmo tempo que a estampa da Capela
solidifica o grupo pelo que ela significa, representando um apoio popular, uma referência,
527
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Escotismo, acesso em 30/07/2007.
528
Considerações baseadas em HOBSBAWM, Eric e RANGER Terence (orgs). A invenção das tradições.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997, p. 12.
529
HOBSBAWM, Eric e RANGER Terence (orgs), op.cit. O exemplo do escotismo como “tradição
inventada” é citado pelo próprio Hobsbawm na introdução do livro, p.12.
210
o seu uso na vestimenta do grupo também a perpetua, a preserva, a evoca, a pereniza, a
transforma.
...ai pedi auto pro padre, fiz o modelo do lenço ... eu queria que retratasse São
Miguel também... a Igreja Velha... nós fizemos o desenho... o Alexandre fez o
desenho... é o que faz teatro aqui... ai eu coloquei o que eu queria... ele tirou o
risco... aí nos projetamos... fomos adaptando... e assim... Praça do Forró ... e tão
valioso... e uma coisa nossa... pra te falar a verdade... eu nem me considero de
São Miguel...
530
Questões referentes à colaboração e à solidariedade para com os eventos do grupo
também aparecem no depoimento, que mostra como as pessoas se unem e estabelecem
laços afetivos e relações de ajuda mútua para que as atividades do grupo sejam
executadas. Desse modo, formas de organização pensadas para outros locais,
culturalmente diferentes, são apropriadas, reelaboradas e colocadas em prática pela boa
vontade, poder de decisão de pessoas que têm objetivos comuns. E a depoente volta
novamente a refletir sobre o nome da praça, o que significa que para ela é uma questão
conflitante, que incomoda, chamar de Praça do Forró, um lugar para ela, tão valioso,
mesmo confessando que não se considera moradora de São Miguel Paulista.
Nós não temos ajuda financeira... o temos ajuda nenhuma...
patrocinador...nos não conseguimos ainda, né... então como que funciona o
nosso grupo... cada criança paga uma taxa mensal de 15 reais ... esses 15 reais,
ele é mais pra comprar material... que eles mesmo usam, é cola, é bambole,
um monte de coisa é custeado mais pro material deles, ... cada atividade
quando eles terminam eles tem um lanche e porque eles quando vem pra cá,
querem chegar mais cedo, então nem se alimentam direito, então a gente
fornece um lanche também pra eles quando termina a atividade...
531
Incentivadas por interesses e desejos de realizar as atividades com o grupo de
escoteiros as pessoas que as organizam procuram formas de solução para que os eventos
aconteçam. Para isso, reúnem-se, discutem, conversam com os pais, avaliam o que pode
ser feito e encontram mecanismos para solucionar os impasses que se apresentam.
... e assim, agora acampamento, o que que a gente faz... a gente levanta um
custo de lanche e condução... nós alugamos um sítio ... foi em janeiro nós
fizemos um acampamento com eles... a gente faz a reunião de pais e fala...
olha vai sair 1500 reais, vamos supor... então mais a alimentação, condução... a
gente faz o preço, tal... vai dividindo e o que nós fazemos ... fazemos uma
festinha aqui... inclusive agora fizemos festa junina... na catedral, né... so que
assim, ainda não é o suficiente ... é pouco pra o que nós gastamos... mas
ajuda...... então ajuda um pouco... cada pai completa ... inclusive agora
nesse acampamento que teve em S Jose dos Campos saiu no valor, foi 49
reais os três dias ... eles saíram na sexta e voltaram na segunda. , saiu 49 reais, é
café da manhã, almoço, lanche da tarde e janta... condução.
532
530
Sueli Curaça da Silva Brasil, em depoimento citado.
531
Idem.
532
Idem.
211
Na luta para que os objetivos do grupo sejam alcançados, homens e mulheres
dotados de identidades impregnadas do viver urbano, aliam práticas da cultura citadina,
como angariar recursos para determinado passeio, dividir ou ratear as despesas, a partir
de experiências oriundas de vivências em outra cultura e que fazem parte da tradição
escoteira. Conseguem realizar desejos e expectativas em função de atender aos princípios
do Movimento Escoteiro.
Refletindo sobre práticas sociais que nem sempre são concordantes e
homogêneas, Brites quando discute imagens de mulheres construídas pela revista
Sesinho”
533
, indica que “não é possível pensar historicamente em condições masculinas e
femininas abstraídas, com lugares determinados, fixos. É preciso considerá-los nos
quadros de relações de poder, tensões entre sexos e instituições que as formam”.
534
Dessa
forma, os relatos das experiências do GEPA procuram “apagar divergências e construir
imagens de um mundo sem conflitos, onde aqueles poderes existem numa relação
harmoniosa”
535
.
E Sueli continua relatando os princípios do escotismo, baseados em atitudes que
evidenciam a constituição de atributos voltados para a promoção do civismo:
... a partir de sete anos ... então, o que que ele proporciona, né... a amizade,
aventura, lealdade, alegria, cultura.... então isso é pra formar melhor cidadãos, o
escotismo, o objetivo é esse... o escotismo não é uma religião ... aqui tem os
propósitos do grupo...nosso propósito é contribuir para que os jovem assumam
seu próprio desenvolvimento, especialmente o caráter, ajudando-se a realizar
suas plenas potencialidades sicas, intelectuais, sociais, afetivas... espirituais,
como cidadãos responsáveis participantes e úteis em suas comunidades ... é
porque assim, como eu te falei, tem bastante coisa pra você colocar é... o que
somos, né... na realidade é um grupo escoteiro é um movimento de jovens e
para jovens com a colaboração dos adultos, unidos com o compromisso livre e
voluntário...
536
A depoente volta a mencionar a importância da Capela como elemento que
representa São Miguel Paulista, outras coisas podem até representar... mas a Capela
Velha é a raiz, é o que retrata São Miguel, o bairro... é... tem que ser valorizada... né,
passar para essas crianças, esses jovens e perpetuar... não deixar cair no esquecimento,
não”. O uso da palavra “raiz” evoca o começo de tudo, demonstra o interesse em estar
ligado ao passado, indica aos jovens o que deve ser lembrado. uma identificação
imediata da Capela com o Padre Aleixo.
... inclusive muitas atividades de sábado, os maiores fazem lá... (na praça Padre
Aleixo) não fazem aqui... quando avisam que vai ter muita coisa aqui,
533
BRITES, Olga. Mulheres de Sesinho. In Projeto História, 11. São Paulo: PUC, 1994, p. 161.
534
Idem, p.163.
535
Idem, p.164.
536
Idem.
212
casamento... reuniões da diocese...muita gente aqui, a gente combina e
vamos com as crianças e fazemos as atividades na praça... os pequenininhos,
a gente sempre segura um pouco... mais por serem pequenos... tem que ser local
mais fechado... mas mesmo assim, nos já fizemos atividades com eles lá...
Nessa fala aparece a praça Padre Monteiro Aleixo Mafra tendo uma utilidade
social, já discutida em outros momentos.Apesar da depoente afirmar que o é o lugar
ideal porque apresenta pouco espaço sem cimento e as atividades do grupo escoteiro
requererem locais não pavimentados, é uma forma de utilizar a praça para as atividades
com os jovens, dando a ela um sentido social. Um outro aspecto abordado, foi o uso da
Capela de São Miguel Arcanjo para realização das atividades do grupo.
...aí então o que nós fazíamos quando estávamos lá... a gente contava toda a
história da Igreja ... teve um ano que teve uma exposição acho que da Unicsul
foi bem antes desse livro (Pe Aleixo) e nós colocamos as fotos de progresso do
grupo escoteiro ... isso do grupo antigo... e agora pretendemos fazer de
novo...porque temos dois anos de história... e a gente participou de
algumas atividades e tudo é fotografado...tem um chefe nosso ele coloca tudo
em disquete ...
537
O uso da Capela para expor as atividades do grupo e ainda, para contar aos jovens
a história da Igreja revela a preocupação dos dirigentes com a memória do lugar e com a
memória do grupo, visto que alguém é responsável em fotografar e armazenar em
disquete para que essa história não se perca. Há, também, a preocupação do grupo em
participar de atividades de preservação da Capela quando esta estiver restaurada:
“Acredito que quando inaugurar a Capela nós vamos ter um trabalho lá.. inclusive
voluntário... assim pra preservação... vamos sentar ainda com o padre pra ver o que o
grupo de escoteiro pode estar ajudando, né...”
538
.
uma preocupação em preservar a Capela, por meio do trabalho do grupo de
escoteiros que, certamente, por ser voltado para jovens deverá provocar a conscientização
destes para a preservação do patrimônio cultural. É, sem dúvida, uma prática educativa
que, permanente, deveria penetrar no cotidiano dos moradores, evitando o que afirma
Hobsbawn sobre a destruição do passado: Quase todos os jovens de hoje crescem numa
espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da
época em que vivem”.
539
Tais atitudes, voltadas para a preservação da Capela de São Miguel Arcanjo,
enquanto elemento representativo do bairro, são demonstradas por experiências sociais
537
Sueli Curaça da Silva Brasil, em depoimento citado.
538
Idem.
539
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX 1914 1991. São Paulo: Cia das Letras,
1995, p.13.
213
dos moradores do bairro, sem que haja uma interferência direta dos órgãos públicos. A
preservação desse bem cultural contempla, mais uma vez, ações pequenas, locais, que são
produzidas na vida cotidiana e que demonstram um reconhecimento do passado e do
presente e um pensar no futuro, expressos nas ações dos moradores do bairro de São
Miguel Paulista.
3.2.1.4. “Mania de Pintar Telas”
8
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A artista plástica Adinéia Batatinha dos Santos
540
, moradora em Vila Curuçá, é
autora da obra “A Capela de São Miguel Arcanjo” exposta no saguão do “Palácio Nove
de Julho - Assembléia Legislativa”. A autora do quadro tem ligações significativas com
esse bem cultural, visto que nasceu em São Miguel Paulista e mora nas proximidades
cinqüenta anos, freqüentou a Capela desde sua infância e, portanto, tem suas experiências
sociais bastante relacionadas com a Capela e com o bairro de São Miguel Paulista. A
própria artista relata sua preocupação em pintar aquilo que para ela “tenha sentido
histórico”:
540
Depoimento de ADINÉIA BATATINHA DOS SANTOS, artista plástica, moradora em Vila Curuçá ,
autora da obra A Capela de São Miguel Arcanjo doada ao Acervo Artístico do Palácio 9 de Julho –
Assembléia Legislativa – Diário Oficial Poder Legislativo de 13 de abril de 2004. Little Potato, pseudônimo
artístico de Adinéia Batatinha dos Santos, nasceu em São Paulo no ano de 1956. Formou-se em Educação
Artística pela Universidade de Mogi das Cruzes, Pedagogia pela Universidade Francana, e Administração e
Supervisão Escolar pela Universidade Cruzeiro do Sul, e pós-graduação em Artes pela Faculdade Marcelo
Tupinambá. Paralelamente realizou cursos livres com os professores: Paula Soares, Marcos Venelli,
Jandilisa Grassamo Lopes, Gilberto Geraldo, Gandhi Albuquerque e atualmente com o consagrado artista
plástico e professor Maurício Takiguthi. Participou das seguintes exposições: Associação Cristã de Moços,
SP, III Concurso de Revelação da Zona Leste (1981); 8º Salão Poços Caldense de Belas Artes; Universidade
São Judas, Instituto Alberto Mesquita de Camargo e 1ª e 3ª Exposição do Grupo de Arte Renascer, SP (1991
e 1992); 50º Salão Livre Comemorativo, Associação Paulista de Belas Artes, SP; Salão de Artes Plásticas
Brasil-Portugal; Salão Oficial de Belas Artes de Matão; (1992); Espaço Cultural da Caixa Econômica
Federal, Mooca, SP; 51º Salão Livre da Associação Paulista de Belas Artes; Salão de Natureza Morta,
Associação Paulista de Belas Artes; Exposição de Artes Plásticas do Jornal da Zona Leste, SP (1993);
Salão de Outono, Suzano Plaza Shopping; Espaço Cultural, Infraero, Guarulhos; Movimento Espiritualista
Universal, Roma; (1998); Espaço Cultural da Universidade Cruzeiro do Sul, SP (1999); Mostra da Cultura
Árabe, o Miguel Paulista; III e IV Semana do Artista, Espaço Cultural da Universidade Cruzeiro do Sul
(2000 e 2001); III Salão da Primavera, Centro Cultural Aricanduva, SP; 1ª Exposição Brasil Folclore,
Associação Paulista de Belas Artes, Shopping Norte, SP (2001); LX Salão Livre da Associação Paulista de
Belas Artes (2002) e Mostra Itinerante, Prefeitura Municipal de Ferraz de Vasconcelos; Espaço Cultural
D'avó, Mogi das Cruzes; Mostra Nova Era Cultural, VI Salão de Artes Plásticas, Centro Cultural
Aricanduva (2003).
214
É eu sou uma pintora, assim... o a título de decoração. Hoje em dia as
pessoas usam mais a pintura né, como uma pintura decorativa... mas eu tenho
esse lado que eu vou procurar, como os antigos mestres... que ... pra determinar
a época, pra marcar a época ... então eu costumo pintar é ... é... figuras
históricas, né... que tenham um sentido histórico... eno a primeira que eu
pintei, a primeira Capela, que eu acho ela maravilhosa, linda e está aqui, na
minha comunidade... então a primeira foi pintada e hoje está como acervo no
Palácio Nove de Julho ...
541
O objetivo dessa reflexão é abordar as representações da Capela de São Miguel
Arcanjo como produção artística e as ações consequentes, ancoradas na sociedade e na
cultura, vistas como resultado de uma conjuntura específica, que assume a obra de arte
como expressão da presença da memória entrelaçada numa diversidade de significados. A
abordagem volta-se “não apenas a construção das imagens, mas as leituras que se fazem
delas”
542
Adinéia conta no depoimento o que gosta de pintar:
... mas eu gosto muito de pintar assim... as pessoas me procuram pra pintar a
casa onde nasceu... eu gosto de pintar também figuras folclóricas... eu tenho
uma tela que ela foi premiada numa menção honrosa ... é teve aqui em o
Paulo a Primeira Exposição Brasil Folclore e eu ganhei uma menção honrosa
com ela, né... com essa obra e... foi feita pela Comissão Paulista de Belas
Artes... então eu gosto de pintar coisas assim que tenham um fundamento,
...que tenham um fato histórico... (as pessoas) procuram, a casa que nasceu,
figuras antigas... figura humana... eu gosto de pintar figura humana... então as
pessoas me procuram pra tá fazendo esse tipo de trabalho...
543
.
Nesse gosto em pintar as representações dos fatos históricos, a artista demonstra
que o passado está presente nas pessoas e que estas se reportam a ele nas suas formas de
representação. Por outro lado, pessoas que pedem para pintar a casa onde nasceram, ou
figuras humanas, revelam a preocupação em trazer para o presente aquilo que ficou do
passado; é uma forma de rememorar, de reconhecer na tela, aquilo que indica o que foi o
seu passado. Como já foi explicitado anteriormente, é o reconhecimento do passado
também produzido na vida cotidiana.
O objetivo de pintar a Capela de São Miguel Arcanjo é definido pela artista como
“realmente pra retratar ela, e... estar mostrando pra nossa comunidade a importância do
nosso monumento tombado, que é a Capela de São Miguel Arcanjo...” . E continua: “não
só a Capela, já pintei também a igreja Nossa Senhora de Fátima, né... que ela fez
cinqüenta anos agora... daqui pra ver, olha...”.
544
E a artista mostra da janela do seu
541
Adinéia Batatinha dos Santos, em depoimento citado.
542
BUENO, Maria Lucia. As transformações da condição de artista plástico na modernidade. Uma
perspectiva de análise a partir do espaço do ateliê do artista. In, Projeto História 24, Artes da História &
Outras Linguagens. São Paulo: EDUC, 2002, p. 231.
543 Adinéia Batatinha dos Santos, em depoimento citado.
544Adinéia Batatinha dos Santos, em depoimento citado.
215
atelier a Igreja Nossa Senhora de Fátima, bem próxima, fonte de inspiração para sua
pintura. A depoente deixa claro sua intenção e o entendimento que tem ao realizar essas
obras, ligadas a memória, quando afirma: ... porque quando a pessoa pede pra pintar
assim a casa que nasceu... retratar assim... é porque ta bem ligado à memória, ...É,
bem ligado à memória... e eu gosto de trabalhar mesmo, retratar essas memórias...”
545
Ao realizar essas produções, que trazem à tona memórias, esperanças e
sentimentos de indivíduos comuns, compartilhados com a artista no prazer que sente ao
realizá-las e a possibilidade de representação do passado ao qual é atribuído um sentido
simbólico, vêm à tona lutas para preservar tradições historicamente construídas, expressas
na manifestação artística. Nos depoimentos por vezes, parece que a história do bairro está
só ali, na Capela, e que, portanto, História é passado.
A artista plástica Adinéia Batatinha dos Santos em correspondência enviada ao
Deputado Sidney Beraldo, Presidente da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo,
oferece a obra intitulada Capela de São Miguel Arcanjo” (2004) realizada em óleo sobre
tela. E a própria artista conta como foi esse percurso, ao fazer parte do grupo de pintores
do “Atelier Maurício Takiguthi”
546
:
...então quando o professor convidou que eu levasse algum trabalho para o
Palácio Nove de Julho pra ser analisado... então... eu logo imaginei... eu vou
pintar algo que seja daqui da região, uma coisa que tenha um fundamento,
né...
547
545 Idem.
546
Segundo Oscar D’Ambrosio, jornalista, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Arte(ABCA),
Mauricio Takiguthi, nascido em São Paulo em 1972, quando criança, adorava desenhar leões, cavalos e
super-heróis. Aos 14 anos, estimulado pelo irmão, começou a estudar pintura com o artista uruguaio Pedro
Alzaga, que o ensinou a respeitar os mestres da pintura e a conhecer um percurso acadêmico que incluiu o
desenho de peças de gesso e naturezas-mortas a partir do natural, além da prática em desenho em claro e
escuro com carvão. A criatividade do artista pode ser observada em telas como Obasama, que recebeu o
prêmio Pequena Medalha de Ouro no 53º Salão Paulista de Belas Artes, em 2002. Uma idosa oriental é
mostrada com intensa luminosidade, que faz ressaltar o seu cabelo e as veias da região do pescoço, efeito
conseguido ainda pela maneira muito especial como é trabalhado o fundo. Fonte:
http://www.artcanal.com.br/oscardambrosio/pag-base.html
547
Adinéia Batatinha dos Santos, em depoimento citado.
216
Mais uma vez, a artista reitera sua preocupação em pintar temas que tenham
ligação com a região, o que indica seu pertencimento a pontos de origem que marcam as
suas experiências:
Fazia curso com ele, que a Capela realmente eu o tive instrução dele.
Eu fiz sozinha né, enquanto que os outros trabalhos que ele levou, passou por
ele pra depois ir pro Palácio Nove de Julho. Como eu não tinha nenhum
trabalho meu, assim... é que eu tenha feito com ele e que ele tenha visto, eu
falei assim: - Olha eu tenho um único trabalho que eu gostaria de levar, que
eu ainda não mostrei esse trabalho pra você. Ele disse: - Não, mas não tem
problema quem vai analisar não sou eu que sou o professor... e sim, o crítico de
arte que é o Massarani
548
... No fim, eu fiquei até... fiquei bem contente... porque
o professor não analisou, que analisou direto foi o crítico... e acabou ficando
lá.
549
Nesse aspecto, a obra de arte adquire sentido como veículo que marca o
reconhecimento do valor do trabalho do artista por figura consagrada como o crítico de
arte e ganha importância, ainda, pelo local, a Assembléia Legislativa, onde está exposta
e a cujo acervo pertence; símbolo máximo do poder estadual, confere à obra uma
dimensão social e valoração, no circuito de poder político e social.
Sobre a obra da artista, o próprio crítico de arte se manifesta:
548
Emanuel Von Lauenstein Massarani é crítico de arte e superintendente do Patrimônio Cultural da
Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo.
549
Adinéia Batatinha dos Santos, em depoimento citado.
Figura 17 - Reprodução da obra “Capela de São Miguel Arcanjo” de autoria de Adinéia
Batatinha dos Santos.
217
Adinéia Santos é uma pintora que ousa olhar com olhos sonhadores. Com a
alegria de quem sabe ver as maravilhas das coisas envolvidas pela luz, ela pinta
juntando a alegria de viver e a capacidade de sonhar. É exatamente aqui que se
move a sua pesquisa e a sistemática dos valores formais.
A obra A Capela de São Miguel Arcanjo, doada ao Acervo Artístico do Palácio
9 de Julho, reflete uma paciente construção do tema cuja essência é constituída
de luz e onde é evidente um certo primitivismo e uma veia lírica expressiva.
550
A manifestação do crítico de arte, publicada no Diário Oficial do Poder
Legislativo, encontra-se também no site da Assembléia Legislativa, enobrece ainda mais
a obra e a artista, que recebe elogios e reconhecimento pelo seu trabalho. Desse modo, a
Capela de São Miguel Arcanjo, através dessa obra artística é veiculada pelos órgãos
públicos de divulgação de dimensão estadual; é inserida na prática social, em que tanto o
autor quanto os apreciadores da obra, em conexão com outras experiências, determinam
o que é memorável e preservável.
Adinéia revela que depois que fez esse trabalho para a Assembléia Legislativa,
pintou uma segunda réplica que foi doada para a Catedral de São Miguel Arcanjo e vai
ser exposta quando construírem o Museu de São Miguel Paulista; e uma terceira, feita
sob encomenda, para presentear o então prefeito de São Paulo José Serra. Nesse sentido,
a imagem da Capela será exposta em diferentes espaços, num museu, que irá conservar
os fragmentos de um passado do bairro e, também, em caráter oficial representando São
Miguel Paulista para o prefeito da cidade. O Jornal “Folha de São Miguel”
551
faz
referência à visita do prefeito que início a obras de pavimentação no Jardim Helena e
faz parceria com a Companhia Nitro Química para pavimentar trecho, a partir da ponte
Senador José Ermírio de Moraes até a Avenida José Artur da Nova; e com o Banco Itaú
para a reforma do CDM
552
no Jardim São Vicente. Na reportagem aparece o sr. prefeito
recebendo a réplica da Capela, o que leva à reflexão, sobre a notícia, que retira a Capela
do seu contexto original e a projeta em outras dimensões do bairro.
É, dia 25 de setembro eu vou apresentar uma outra, num outro ângulo. E
sempre que eu passo, eu fico olhando... olha eu poderia ta retratando o fundo
dela também, ... a parte do... porque ela é toda bonitinha, né... você pode
550
Fonte: Diário Oficial do Poder Legislativo de l3/04/2004 em matéria com o título: “O primitivismo das
paisagens de Adinéia Santos revela uma veia lírica expressiva”, de autoria de Emanuel Von Lauenstein
Massarani.
551
Folha de São Miguel, jornal de distribuição gratuita e quinzenal por São Miguel e região. Diretor
Presidente: Marcelo Antonio Teixeira – São Paulo, de 15 a 31 de julho de 2005 – Ano 40 – nº 602.
552
Clube da Comunidade Tide Setúbal (antigo CDM Tide Setúbal) pertencente à fundação que leva o
mesmo nome, criada em 2005. A Fundação Tide Setúbal tem como objetivo apoiar o desenvolvimento local
e fortalecer o exercício da cidadania nas comunidades onde atua: São Miguel Paulista, Jardim Helena e Vila
Jacuí, onde estão localizados três equipamentos públicos um hospital, uma escola e um Clube da
Comunidade que levam o nome de Tide Setúbal. Projeto o Miguel Paulista e Brasileiro - “Um olhar
sobre São Miguel”, 2006, p. 5.
218
olhar que cada cantinho dela tem uma coisa especial, né... da Capela, o é
verdade?
553
A artista deixa claro que sua vontade em pintar a Capela de São Miguel Arcanjo
está relacionada ao fato de ter nascido em São Miguel Paulista e de sua família ter vindo
morar neste local há cinqüenta anos:
Meu pai era nordestino, ele chegou aqui em 48 mais ou menos, trabalhou 42
anos na Nitro Química, meu pai saiu do nordeste e foi pra Santos, conheceu
minha mãe e veio prá São Miguel. Já tinha um irmão dele, aqui trabalhando
na Nitro Química e veio pra cá. Prá trabalhar na Nitro Química.... Então minha
mãe mora aqui neste local 50 anos. Minha mãe é santista, meu pai que era
nordestino. É que antes de vir prapra São Paulo, ele passou em Santos, ficou
trabalhando nas pedreiras de Santos e depois veio pra porque tinha um
irmão dele aqui, né. Aí ele ficou.
554
E vai relacionando a história de sua família à historia do bairro. Sua fala revela as
transformações ocorridas desde quando seus pais vieram para São Miguel Paulista até o
momento presente, as experiências no bairro, a Nitro Química como referência
fundamental de mudanças em São Miguel e a vinda de nordestinos à procura de trabalho;
sua fala se vincula, também, à existência de parentes no lugar, que revela passado e
presente entremeados ao movimento das pessoas que passam por lugares, mudam-se e
deixam marcas.
A minha mãe casou com 14 anos...Veio pra não tinha nada... a minha
mãe criou nós com leite de cabra... criava porco, criava galinha... aqui o era
nada... aqui era frio...ela morria de medo, tadinha... veio de uma cidade bonita,
porque Santos é uma cidade bonita, né... então ela veio pra cá... sofreu pra
caramba... mas é ..porque passou a ser Curuçá Velha, porque tem a Curuçá
Nova...mas aqui o é Curuçá Velha, é Vila Curuçá. Aí, determinou-se velha
pra diferenciar da nova... a outra sim, é Vila Curuçá... Aqui, a comunidade é
muito antiga. Todos os nossos vizinhos são vizinhos de 40, 45 anos.
555
A depoente, relembrando sua infância, período escolar e profissional, vai
considerando sua inserção no mundo da pintura e as relações que manteve com o trabalho,
voltado para a manifestação artística atrelado a outras atividades sociais, como o
casamento, a criação dos filhos, o retorno aos estudos. Nesse sentido, evidencia a
relevância da atividade artística como componente de sua vida diária e de outras
experiências que indicam um fazer-se constante, como ser humano que não tem condições
pré fixadas, rígidas, que rememora o passado, vive o presente e faz projeções para o
futuro:
Eu sempre gostei, né eu sempre gostei. Eu falava que eu não gostava de
escrever, eu gostava de desenhar ... são os símbolos... (risos) apesar que a
escrita é um símbolo mas eu sempre fui muito símbolo.[...] No Arquiteto Luís
553
Adinéia Batatinha dos Santos, em depoimento citado.
554
idem
555
Idem
219
Saia
556
quando eu fui pra eu tinha dez anos, no Arquiteto, eu já pintava as
paredes do Arquiteto, né... pena que isso o ficou marcado, fotografado... pra
mostrando... eu sempre gostei de pintar... eu sempre... nunca parei... sempre
tem aquelas paradas, casei, filhos... a gente dá aquelas paradas...mas você volta,
... e depois, quando os filhos cresceram que eu comecei mesmo a toda...
quando comecei dar aula no Centro do Professorado Paulista de pintura em
tela... mas sempre gostei... quando eu tava assim já ... é ... estabilizada na minha
área profissional, que eu fui fazer Artes... então eu comecei mesmo a
trabalhar, tanto é que foi sempre .. . sempre assim ... ai meu futuro, quando eu
me aposentar eu vou ter alguma coisa que eu possa continuar, que eu não quero
parar de trabalhar, né ...
557
Fazendo projeção para o futuro, a depoente reelabora os fatos passados,
manifestando a necessidade de guardar os registros que aparecem como prova do real
vivido, como é o caso da fotografia.
A revista “Mania de Pintar Telas”
558
traz na capa da edição 5 a estampa da
“Capela de São Miguel” , indicando que há etapas e fotos ”passo a passo” da pintura, para
que pessoas interessadas possam orientar-se para realizar este trabalho. No editorial da
revista, assinado por Rosa Buccino a seguinte chamada para o leitor: “Seu eterno
compromisso com a pintura continua firme, e um detalhe chamará sua atenção: o realismo
obtido em telas que são desenvolvidas tendo fotos como referências”
559
. Nesta edição, por
exemplo, duas aulas
560
detalhadas de acordo com esse padrão. Inspire-se e siga essas
matérias atentamente!”
É necessário entender, que a imagem não ilustra nem reproduz a realidade, ela
interpreta o real a partir de uma linguagem própria que é produzida socialmente. Ao
escolher a foto que seria reproduzida na forma de pintura plástica, a artista não o fez de
maneira neutra, assim como também não foi a intenção do fotógrafo. Ambos
privilegiaram, na construção desses registros, um aspecto do bairro para eles significativo.
Neste caso, a Capela de São Miguel Arcanjo pintada pela artista plástica, ganhou novos
contornos ao ser capa de uma revista, ou seja, servir de propaganda para que a revista seja
comprada por pessoas interessadas em pintura evidenciando, portanto, outras experiências
que serão apropriadas por outros grupos humanos.
556
A depoente se refere a Escola Municipal de Ensino Fundamental “Arquiteto Luís Saia” da Secretaria
Municipal de Educação, situada em São Miguel Paulista.
557
Adinéia Batatinha dos Santos, em depoimento citado.
558
Revista “Manias de Pintar Telas” , ano 1 – nº 5. São Paulo: Editora Minuano Ltda, s/d.
559
Idem.
560
As aulas a que faz referência o editorial são: Capela de São Miguel Arcanjo – Little Potato parte de cenas
reais para preencher suas telas de encanto, p.6, e Homenagem a Toy Pintar um belo o é seu próximo
desafio em tela, p.10. Em ambos os casos, há etapas da aula, com fotos passo a passo.
220
A leitura desse material, pode trazer outras interpretações. Faz parte da
reportagem, a matéria intitulada “Um tema histórico”
561
e uma pequena chamada trazendo
sobre o conteúdo da matéria: “Em fevereiro de 2004 a Capela de São Miguel foi mais uma
vez reconhecida como um dos patrimônios históricos mais importantes do Brasil”,
acompanhado do seguinte comentário:
Através do Departamento dos Correios e Telégrafos, o presidente Luis Inácio
Lula da Silva determinou lançamento de um selo postal comemorativo, em
homenagem à Capela de São Miguel Arcanjo. Este verdadeiro patrimônio
histórico nacional, foi originalmente construída em 1622. Localizada no bairro
paulistano de São Miguel Paulista, a capela pertence a Diocese local, e foi um
dos primeiros bens tombados, em 1937 pelo recém-criado Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico (IPHAN). Parabéns São Miguel Paulista!
562
.
Interessante notar, que além da veiculação da estampa da Capela pela revista, esta
ainda forneceu, ao seu leitor, elementos sobre as origens, localização e seu
reconhecimento como patrimônio histórico, daí a relevância de aparecer como pintura. A
reportagem buscou, desta maneira, não apenas os ângulos da produção da obra mas
também o significado cultural que a evidencia. É importante ressaltar, ainda, que sobre a
outra produção que a revista apresenta, não nenhum comentário adicional sobre a
pintura, além daqueles que orientam o pintor, como dicas iniciais, etapas da aula, material
utilizado e dicas finais. Nesse sentido, observa-se uma diferença entre os usos das
imagens , enquanto numa produção é revelada uma dimensão social do objeto
representado, na outra é privilegiado apenas, elementos técnicos e estéticos da obra.
Tentar olhar o significado da obra plástica pela lente do significado da sua
produção e dos usos sociais, deixando de lado um olhar que privilegia os elementos
técnicos e estéticos, buscando refletir sobre lugar da obra de arte no cotidiano, seja no
espaço publico ou privado, é buscar enxergar essa experiência como prática social,
inscrevendo-a no seio da história cultural contemporânea. Dessas reflexões, pode-se
concluir que a atividade artística voltada para a representação da Capela de São Miguel
Arcanjo, torna-a um espaço de onde emergem memórias, menos pela beleza de sua
construção e sim, pelo que vivenciou a artista Adinéia, em termos de relações sociais
que deram sentido àquela obra arquitetônica.
561
Revista “Manias de Pintar Telas” , ano 1 – nº 5. São Paulo: Editora Minuano Ltda, s/d, p. 8.
562
Revista “Manias de Pintar Telas” , op.cit.
221
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para se pensar no bairro de São Miguel Paulista imerso no torvelinho urbano que é
a cidade de São Paulo, da qual faz parte, que se pensar na preservação da Capela de
São Miguel Arcanjo, cuja data de fundação coincide com a do bairro, 1622. Ainda que
existam discussões e embates sobre essa data, com indicação de data anterior, por volta de
1560, o marco de fundação do bairro não deixa de ser a Capela de São Miguel Arcanjo.
A força simbólica exercida pela Capela de São Miguel Arcanjo é tão verdadeira e
arraigada na cultura desse bairro longínquo do centro de São Paulo, que esta pesquisa teve
que ser encerrada, apesar das dúvidas e desconforto em deixar de lado fontes importantes.
Esse contexto histórico possui uma multiplicidade de tramas sociais, que a pesquisa não
conta de revelar em sua totalidade, daí o reconhecimento de sua parcialidade e
limitação.
Junto a esse bem cultural existem variadas formas de vivenciar e de expressar as
experiências sociais da cidade, que estão calcadas no fazer de seus moradores, reveladas
na heterogeneidade de ações que se configuram no bairro, passam pela organização do
próprio espaço urbano e possibilitam percebê-lo como resultante de práticas sociais.
Na perspectiva de pensar esse patrimônio cultural e o bairro em que ele se situa e,
sobretudo, compreendê-lo, busquei reconhecer as forças que participaram de referências
espaciais significativas, que demonstram as ações dos moradores, que os fazem despontar
como autores do processo de transformação do bairro imerso na dinâmica de produção
capitalista a que está sujeita uma grande metrópole como a Cidade de São Paulo.
Assim, os moradores de São Miguel Paulista reconheceram outros tempos, que
emergiram de suas memórias reveladas através de suas narrativas, seus relatos, suas
produções, suas ações , ancorados numa memória capaz de afirmar a diversidade e o
conflito como dimensões da história e que serviram para problematizar a Capela como
referência cultural, como patrimônio histórico e como afirmação de determinadas
experiências sociais dos moradores do bairro.
Entendendo que o patrimônio cultural não se reduz às edificações urbanas mas
que estas, como a Capela de São Miguel Arcanjo, devem ser incluídas nessa preocupação
em preservar, traduzida como memória social que indica os laços que nos ligam ao
passado e ao presente. Rompendo com a visão monumental da preservação que considera
222
um elemento urbano isolado, em contraposição à proteção do patrimônio ambiental
urbano, que compreende o conjunto de bens que caracterizam a vida da cidade, uma
política de preservação tem que ser pautada na apropriação dos sentidos e valores que
diferentes grupos sociais fazem de determinados bens culturais. Entendendo, também, que
desconsiderar a questão do patrimônio é exilar o cidadão, alijá-lo de seu próprio meio e
privá-lo da dimensão fundamental da cidadania, dimensão essa, que significa aceitar a
diversidade, a ambigüidade e o esquecimento é que pude deslindar diversos suportes que
indicam uma multiplicidade de vivências e lutas no bairro de São Miguel Paulista, que
têm a Capela de São Miguel Arcanjo como referência e, ainda, outros olhares (ainda que
poucos) que o consideram “coisa ultrapassada”, não afinada com o “progresso”. Essas
experiências permitem dizer que não se pode subestimar a capacidade criadora dos
moradores que, ao serem analisadas, indicam uma ruptura com a modalidade de registros
escritos como única fonte verdadeira para a reflexão histórica e, ainda, entender que
nenhuma espécie de registro é inferior a outro. Dos pequenos gestos, escondidos em
recônditos do bairro emergem questões que provocam reflexões e entendimento sobre as
ações humanas.
Iluminar experiências como o Movimento Popular de Arte (MPA), cujo objetivo
inicial era o de encontrar uma forma de revitalizar a Capela de São Miguel Arcanjo e cuja
resistência à massificação e ao nivelamento da cultura popular se tornam evidentes, faz
com que voltemos à sabedoria de Ecléa Bosi, “empobrecedora para a nossa cultura é a
cisão com a cultura do povo: não enxergamos que ela nos agora, lições de resistência
como nos mais duros momentos da historia da luta de classe”.
563
Presença social visível no bairro, os migrantes, visíveis no sentido de serem
diferentes dos que estavam e que persistem nos programas de rádio, grupos de forró,
festas típicas, comércio, permanência de hábitos alimentares, fazem de São Miguel
Paulista lugar privilegiado para se observar mudanças e transformações, com raízes nos
movimentos migratórios provocados pela industrialização e a dificuldade da cidade em
absorver esses novos moradores. Esse afluxo de pessoas para São Miguel Paulista, a partir
do final da década de 30, faz emergir no bairro novos interesses, que passam a disputar
espaços com a Capela de São Miguel Arcanjo. Em São Miguel, existem no mesmo lugar
duas praças, a Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra e a Praça do Forró. É o mesmo lugar,
identificado pelos moradores de maneiras diferentes, segundo as suas experiências, seus
563
BOSI, Ecléa. Problemas ligados à cultura das classes populares. In VALLE, Edênio e QUEIROZ, José
(orgs). A cultura do povo. São Paulo: Educ, 1982, p.33.
223
valores, seus interesses. Cada um pretende perpetuar a sua memória e nesse percurso, o
conflito se evidencia.
Praça Padre Aleixo Mafra ou Praça do Forró, lá está a Capela de São Miguel
Arcanjo; para ambas ela é referência, constitui-se num elemento agregador de ações, seja
na luta para usar os espaços da praça para manifestações nordestinas, seja para as saídas
das procissões, seja para atos litúrgicos, seja para um passeio matinal; a praça e a Capela
se confundem.
Considerando espaços de sociabilidade que se diversificaram e onde seus
moradores buscaram soluções criativas para seus problemas cotidianos, a Câmara Distrital
(simbólica) de São Miguel Paulista foi um exemplo de como os moradores conseguiram
se articular em ões que partiram de suas vontades e operaram sobre o bairro para
resolver questões que suscitaram intervenções, imprimindo meios alternativos, soluções
diferentes para resolução de seus problemas urbanos.
Procurar refletir sobre as imagens e a leitura que se pode fazer delas, as
representações da Capela de São Miguel Arcanjo veiculadas em selo, bilhete da loteria
federal, cartões telefônicos, caixa de leite longa-vida, jornal e obras plásticas, revelam
experiências que indicam a capacidade dos seus autores para elaborar significações
através de outros recursos da linguagem e apontam para um apelo à lembrança e à
consagração que a sociedade contemporânea a elas, em detrimento a outros sentidos.
Voltadas para a cultura do espetáculo e do consumo, as imagens são elementos
fundamentais da propaganda e exprimem histórias que falam também das idéias e
significados de determinada época. Desse modo, problematizar diferentes modalidades de
elaboração dessas experiências se traduz no “direito à memória dos moradores de São
Miguel Paulista.
Representada também no lenço e na bandeira do “Grupo Escoteiro Padre Aleixo”,
no pavilhão da “Escola de Samba Unidos de São Miguel” e na insígnia do “29º Batalhão
da Policia Militar”, a Capela de São Miguel Arcanjo é veiculada nesses elementos
simbólicos de instituições sociais diferenciadas e que usam como representação um bem
patrimonial consagrado na região e, por isso, ajudam a preservar essa memória.
As dimensões desse patrimônio instituído e reconhecido pelos órgãos oficiais de
tombamento são imbricadas com as referências culturais dos moradores, que se cruzam e,
em alguns momentos, se aliam e uma contribui com a outra; e em outros, evidenciam
dimensões diferenciadas que se revelam em disputas pela apropriação desses lugares.
224
Nesse sentido, também revelando acordos e tensões, a instituição responsável pela Capela
de São Miguel Arcanjo, a Cúria Metropolitana de São Paulo, também evidencia ações
para sua preservação, como a restauração em processo neste ano e também, busca a
afirmação de determinados grupos em detrimento de outros. As políticas de revitalização
da praça acabam solapando determinadas manifestações populares que se
evidenciavam.
Nessa perspectiva, o bairro foi percebido como resultado de uma dinâmica social
estabelecida pelos moradores e o que busquei foi compreender e analisar alguns desses
processos que estão relacionados à presença da Capela de São Miguel Arcanjo. O espaço
do bairro não surgiu, então, como um espaço onde os moradores se juntavam e realizavam
ações, e sim, como um espaço onde diferentes agentes sociais se posicionam, se
relacionam, fazem acordos, disputam, enfim vivem experiências diversificadas,
imbricadas entre si. Tempo e espaço, desse modo, aparecem como dimensões desse viver
urbano em constante transformação.
Terminando essa pesquisa e essas reflexões, tenho que admitir, que o trabalho
historiográfico também é fruto de uma representação, em que estão implícitas todas as
paixões, emoções e fidelidades do historiador e que a história será sempre revisionada,
reescrita e que não se esgotam sua função de iluminar o presente e aprender com as
experiências de tempos pretéritos.
225
FONTES ORAIS
Para reunir as fontes orais que são utilizadas nesta pesquisa, foram realizadas 31
entrevistas, com 29 pessoas. Todas as pessoas são moradoras de São Miguel ou de regiões
próximas ao bairro.
ADINEIA BATATINHA DOS SANTOS “Little Potato” Depoimento concedido
em 24/08/2005. Moradora em Vila Curuçá - Itaim Paulista, nascida em São Paulo (SP) em
1956, artista plástica, autora da obra A Capela de São Miguel Arcanjo” doada ao acervo
artístico do Palácio 9 de Julho Assembléia Legislativa DO Legislativo de 13/04/2004.
Seu trabalho sobre a Capela foi publicado também, como capa da revista “Mania de Pintar
telas” que é dirigida aos aprendizes de pintura.
ALBERTINO ALVES NOBRE Depoimento concedido em 30/01/2007. Ex-vereador
da cidade de São Paulo. Morador de São Miguel desde 1948 para onde veio como
migrante da região de Senhor do Bonfim (BA). Trabalhou na Cia. Nitro Química por 34
anos, fato que declara com muito orgulho. Declara ter participado de todas as festas
realizadas em homenagem ao padroeiro do bairro, São Miguel Arcanjo e do lançamento
da pedra fundamental para a construção da nova igreja em 1952 e da sua inauguração em
1965.
ARISTIDES PIMENTEL Depoimento concedido em 30/01/2007. Ex sacerdote da
Igreja Católica, morador de São Miguel onde foi vigário auxiliar da Diocese de São
Miguel Paulista. É proprietário de um restaurante na região central de São Miguel Paulista
e ministra aulas de filosofia na Universidade Mogi das Cruzes. Confecciona maquete em
gesso e resina da Capela de São Miguel Arcanjo, ato que lhe remete à época em que
morou na Itália e que, segundo ele, em toda a Europa esse costume de fazer réplicas
dos monumentos. Escreve a cronologia de São Miguel Paulista, baseado na obra de
Sylvio Bomtempi e atualizada segundo sua experiência.
DIVALDO ROSA 49 anos, nascido em Tupaciguara (MG), economista e jornalista, é
“Presidente-fundador do Grupo Acontece de Jornais e Revistas” pelos seguintes veículos:
Jornal Acontece Agora, Jornal Voz do Curuçá e Revista Acontece Leste, distribuídos
gratuitamente na Zona Leste de São Paulo. O Jornal Acontece Agora uso como logomarca
a Capela de São Miguel Arcanjo. veio para São Miguel em 1989. Não foi possível gravar
depoimento com o Sr.Divaldo, os dados foram coletados no jornal, na revista e em
conversa telefônica.
DOMINGOS DOS SANTOS PANTALEÃO Depoimento concedido em 24/06/2005.
Gerente da empresa “Usina de Beneficiamento Laticínios Gege LTDA” e diretor da
Associação Cultural “Casa de Brunhosinho” residente em São Miguel Paulista desde
1961 e em São Paulo desde 1953. É português, da localidade de Brunhosinho. Possui
relações fortalecidas no bairro e traz estampado na caixa de leite de sua empresa, a Capela
de São Miguel Arcanjo, com os dizeres: No Coração de São Miguel Paulista um marco
histórico do Brasil.
EURICO DOS SANTOS – Entrevista realizada em 09/07/2005. Assim como o Sr.
Jesuíno, o depoente estabeleceu com a pesquisadora um vínculo muito próximo, que
possibilitou várias conversas, visitas e coleta de dados e materiais que foram usados na
226
pesquisa. Nascido em São Miguel Paulista (SP) em 1944, aposentado da Sabesp por
tempo de serviço, é filatelista e tomou a iniciativa em julho de 1993 de solicitar à empresa
dos Correios e Telégrafos, a emissão de um selo alusivo à Capela de São Miguel Arcanjo.
Conseguiu em setembro de 2003, o lançamento de um Carimbo Comemorativo
homenageando a Capela e o bairro de São Miguel Paulista. E, em janeiro de 2004, em
comemoração aos 450 anos da cidade de São Paulo, a emissão do selo/bloco
comemorativo e do carimbo Primeiro Dia de Circulação. É também de sua iniciativa a
emissão de quatro cartões telefônicos com imagens diferentes da Capela em homenagem à
Igreja e aos 381 anos do bairro de São Miguel Paulista. Em 2000 deu andamento junto à
Caixa Econômica Federal no processo que levou à publicação da imagem da Capela no
bilhete da Loteria Federal que comemorou os 378 anos do bairro de São Miguel Paulista e
da Capela de São Miguel Arcanjo. Além disso, possui um arquivo pessoal onde guarda
tudo que se refere à São Miguel. Notícias em jornais, desenhos, publicações, livros (vai
pesquisar em órgãos públicos para conseguir essa documentação). Coordenou a obtenção
de votos em 2005 na campanha da ECT “Vote no Melhor Selo” para que o selo referente
à Capela de São Miguel fosse o ganhador. Relações pública da “Associação Cultural
Beato José de Anchieta” que cuida do restauro da Capela; Membro Fundador do Conselho
Consultivo para Eventos de São Miguel Paulista; Conselheiro Consultivo do “CDC Tide
Setúbal” Clube da Comunidade de São Miguel Paulista; Membro Pesquisador da
Sociedade Veteranos do 32 MMDC Núcleo de São Miguel Paulista; Vice-Presidente da
“ACAS” Assistência Comunitária de Ação Social; Relações pública do Colégio Tobias de
Aguiar.
INTEGRANTES DA ASSOCIAÇÃO “AMIGOS DA PRAÇA DO FORRÓ”
depoimentos colhidos no dia 26/08/2007.
Alzira Viana dos Santos - nascida em Vitória da Conquista (BA) em 1947, mora em São
Miguel Paulista desde 1960. É vice-presidente da associação e apresentadora, produtora e
de eventos, trabalha com música e tem a preocupação de divulgar a música nordestina,
especialmente o forró.
Cícero Sebastião Viana (Cícero do Norte) Nascido em Custódia (PE) em 1938. Mora
em São Miguel Paulista 47 anos. É presidente da associação. Trabalha com música e
programas de rádio. Foi assistente de produção do programa “Raul Gil”. É aposentado,
tem um pequeno comércio e procura divulgar a música nordestina através de
apresentações de grupos, principalmente de forró. É um dos fundadores da associação,
que pretende discutir os usos da Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra.
Ednaldo Alexandre de Queiroz Nascido em Custódia (PE), mora em São Miguel
Paulista 37 anos, é vocalista do grupo “Brasas do Nordeste”, grupo musical que existe
40 anos e é formado por quatro músicos e um vocalista. Motorista aposentado,
participa da associação e faz apresentações com o seu grupo.
João Teotônio de Faria (Teotônio dos Oito Baixos), nascido em Flores (PE), 56 anos,
mora em São Miguel há 33 anos. Instrumentista e sanfoneiro, luta para preservar a
“sanfona de oito baixos”, instrumento que está em extinção devido à concorrência dos
instrumentos eletrônicos mais ao gosto dos jovens.
INTEGRANTES DO “GRÊMIO RECREATIVO CULTURAL E ESCOLA DE
SAMBA UNIDOS DE SÃO MIGUEL” – Depoimentos colhidos em 28/04/2007.
Aidil Celeste da Silva, 75 anos, nasceu em 1931 em Caitité (BA), mora em São Miguel
Paulista há 30 anos. É responsável pela ala das baianas, sua residência serve como sede da
entidade.
227
Alessandra Irene Rodrigues, nascida em São Miguel Paulista (SP) em 1972, é
enfermeira e porta-bandeira da agremiação.
Almir José dos Santos, 40 anos, vendedor, nascido em Itabuna (BA) mora em São
Miguel desde 1964, estudou na Escola Senai da Nitro Química Brasileira, é responsável
pela ala das crianças.
Maria de Lourdes da Silva, professora, nascida em Paranavaí (PR) mora em São
Miguel Paulista há 30 anos, é atualmente diretora social da agremiação.
IZALTINO RIBEIRO (Izal) Depoimentos concedidos em 04/09/2004 e 06/02/2007.
Produtor cultural da Casa de Cultura Municipal, professor de História da rede pública
estadual, veio morar em São Miguel Paulista com dez anos de idade. É um sujeito
preocupado em registrar a história de São Miguel e, junto com outras pessoas, organiza o
material oriundo do MPA (Movimento Popular de Arte), coleta de depoimentos,
montagem de filmes, organizando reuniões para a formação de um centro de memória em
São Miguel. Nascido em Congoinhas (PR) em 1954. Participa de reuniões para discussão
sobre os usos sociais da Praça Pe. Aleixo Monteiro Mafra, junto com a associação
“Amigos da Praça do Forró”.
JESUINO BRAGA Depoimento concedido em 22/07/2004. Esse depoente, estabeleceu
com a pesquisadora um vínculo muito próximo, o que possibilitou várias conversas,
visitas e coleta de dados que foram enviados pelo correio, fornecidos por telefone ou
bilhetes. Nascido em São Paulo, em 1930, veio morar em São Miguel ainda criança, em
meados de 1934. É viúvo e casado novamente com Madalena. Residia nas proximidades
da Capela na época em que esta foi restaurada em 1939 e relembra de vários fatos
acontecidos durante esse período. Montou uma maquete com detalhes sobre a praça e a
Capela da época em que ele era criança, segundo sua lembrança. Mandou fazer impressos
sobre a sua maquete e sobre o Frei Leão Mei (sacerdote que foi vigário da igreja em
38/39) e sobre o Padre Aleixo (sacerdote da igreja por um período de mais de 20 anos). É
um artista plástico que recolhe troncos de árvores que foram derrubadas e constrói
imagens de santos (os que haviam na capela), índios, sacerdotes. Tem uma preocupação
muito grande com o bairro e pesquisa a história de São Miguel, estabelecendo correlação
entre os acontecimentos, argumentando sobre eles, considerando-os verdadeiros ou não,
de acordo com suas pesquisas e aquilo que vivenciou. Atualmente (2007) está
pesquisando a história da Capela de Itaquaquecetuba, que, segundo ele é da mesma época
que a de São Miguel. Está escrevendo também, um livro de memórias sobre sua vida a e
história de São Miguel Paulista.
JOAO FEHER Depoimentos concedidos em 14/6/2005 e 27/08/2005. Nascido em São
Miguel Paulista (SP) em 1939, freqüentou a Capela quando era criança porque era
morador do bairro do Itaim Paulista e naquela época havia a Igreja de São Miguel
Paulista na região. Foi segurança da Capela de São Miguel Arcanjo de 1994 até 2006
quando foi dispensado desse serviço devido ao início das obras de restauração da Capela.
Durante esse período, o senhor João exercia a função de vigia e também se incumbia de
mostrar a capela para os interessados, contar sua história, tentar preservar seus objetos,
enfim, cuidava de tudo que se relacionasse ao bem cultural, mantendo uma relação
afetiva com relação a tudo que se relaciona com a Capela e com o bairro.
JOSÉ ANTONIO DE ARAÚJO Depoimento concedido em 30/01/2007. Nascido em
1932 em Três pontas (MG). Veio para São Paulo em 1950, com 17 anos e foi morar em
Campos Elísios. Em 1952 veio para São Miguel Paulista porque comprou uma alfaiataria
no bairro Alfaiataria Ivan”, que depois se tornou “Alfaiataria Araújo”. Mais tarde,
quando o ramo de alfaiataria não dava mais lucro, porque ninguém manda mais fazer
228
roupas, montou uma oficina de consertar máquinas de costura em que trabalha até hoje.
Seu depoimento foi gravado, porque freqüenta a barbearia próxima à sua oficina em que a
pesquisadora estava colhendo o depoimento de José Luiz de Souza e José Antonio
participou da conversa.
JOSÉ CALDINI FILHO Depoimento concedido em 03/09/2005. Advogado, nascido
na cidade de Votorantim, em 1927 morador em São Miguel Paulista desde 1935. Seu pai
veio para São Miguel Paulista trazido pelo Sr. Antonio Ermírio, dono da Cia. Nitro
Química Brasileira. Participou da fundação do Rotary Club de São Miguel, criou a
flâmula de do clube, nela introduzindo “nossa velha capela de tantas tradições históricas e
religiosas, SÍMBOLO MAIOR DE NOSSA COMUNIDADE” e o símbolo do Rotary
Club de São Miguel que apresenta a estampa da Capela de São Miguel Arcanjo.
Participou da organização do primeiro desfile comemorativo do aniversário de São
Miguel Paulista. É um estudioso da história do bairro, possui uma coleção de fotografias
onde estão registradas várias ocasiões do cotidiano, além de vários documentos que
registram a memória do bairro.
JOSÉ LEITE Depoimento concedido em 14/02/2007. Professor José Leite veio morar
em São Miguel em 1962, com 16 anos. Nasceu em Guaxupé (MG) 1922. Veio para São
Paulo porque queria ser professor, desde pequeno e na cidade onde morava o era
possível, em 1940. Conta sua história de vida, sempre como professor em São Miguel.
Relata fatos acontecidos na história da cidade, como a reforma da Praça da Sé, o bonde,
etc. Até hoje, mantém em sua casa uma escola onde dá aulas particulares para pessoas que
vão prestar concursos.
JOSÉ LUIZ DE SOUZA Depoimento concedido em 30/01/2007. Barbeiro em São
Miguel Paulista seus clientes são do bairro, inclusive vários padres da diocese e o Bispo
Dom Fernando Legal. Veio de Irecê (BA) em 1950 porque a situação lá, segundo ele,
estava muito ruim e escolheu São Miguel Paulista porque tinha parentes morando no
bairro. Trabalhou em serviços variados, como calçamento de ruas no bairro do Tatuapé e
morava na própria obra, em barracões de zinco. vinha para São Miguel Paulista no
domingo para passear. Relata que fez o primeiro calçamento em volta do Parque do
Ibirapuera (cimentado) em 1951, 52. Lembra do quarto centenário da cidade de São
Paulo. Sua barbearia fica atualmente na região central de São Miguel e é freqüentada
diariamente por pessoas que passam para cortar o cabelo ou para dar um “dedinho de
prosa”, como é o caso de José Antonio Araújo que também deu sua contribuição para a
pesquisa, “casualmente”.
JOSÉ VITORINO Depoimento concedido em 02/02/2007. Natural de Barbalha (CE),
nascido em 08/04/1927, foi um dos primeiros moradores do Jardim São Vicente, São
Miguel Paulista. Trabalhou na Nitro Química por 29 anos, empresa na qual se aposentou.
Relata quais eram as dificuldades para os moradores construírem suas casas, como
conseguiu dinheiro para a compra do terreno e o trajeto do local onde mora para a fábrica.
É viúvo, tem dois filhos, mora no bairro anos. Atualmente cuida de um imóvel no
jardim São Vicente que está à venda, mostrando-o e encaminhando as pessoas
interessadas para a compra. Foi nesse local que a entrevista foi concedida.
LIRIS RODRIGUES RUOTT Depoimento concedido em 20/09/2004. Nascida em
São Miguel em 1912, relembra de fatos acontecidos durante o século passado que se
relacionam com São Miguel Paulista, com a Capela e com sua vida. Foi batizada, casou-
se e participou também do coral da igreja. Seu bisavô foi um cidadão ilustre de São
Miguel e quem doou a área para a construção do primeiro Cemitério Oficial de São
229
Miguel (hoje o existe mais). Uma rua importante de São Miguel Paulista recebe o seu
nome: Beraldo Marcondes. A depoente faleceu em 16/02/2007.
OSVALDO PIRES HOLANDA Depoimento concedido em 18/07/2005. Poeta e
advogado, nascido em Acopiara, em 1923 veio para São Miguel Paulista em 1945.
Participou do “Movimento Popular Autonomista” em 1962 que propunha a emancipação
de São Miguel Paulista. É fundador do “ESPERANTA KLUBO ZAMENHOF”, Clube de
Esperanto existente em São Miguel Paulista. Tem vários livros publicados dentre eles
“Poemas Satânicos” que na opinião do depoente abriu suas portas para a participação de
várias Academias de Letras, porque é um livro polêmico.
PADRE ANTONIO LUIZ MARCHIORI (Pe. Ticão) Depoimento concedido em
03/09/2005. Nascido em Urupês, Estado de São Paulo, em 12/04/1952, pároco da Igreja
São Francisco de Assis em Ermelino Matarazzo, mantendo-se à frente dessa paróquia
21 anos, dedica-se à Pastoral Social na defesa dos direitos mais pobres, na defesa dos
direitos dos deficientes e idosos, na luta pela moradia e por unidades básicas de saúde,
especialmente na região de Ermelino Matarazzo e São Miguel. Liderou movimentos para
a implantação da Faculdade de Tecnologia (FATEC) e do campus da Universidade de São
Paulo (USP-LESTE) para essa região. O depoimento foi concedido num evento que
estava ocorrendo no palco da Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra, da Associação dos
Deficientes Físicos de São Miguel.
RONALDO ARAUJO CALIXTO - Depoimento concedido em 03/09/2005. Visitante
da capela, acompanhado de seu filho de 8 anos. Exerce a profissão de vendedor, nascido
em São Miguel Paulista, 49 anos, Conheceu o Pe.Aleixo e freqüentou e freqüenta a
Capela. Foi levar o filho para apresentá-la ao menino e relembrar os tempos de sua
infância. Nesse encontro casual permitiu que a pesquisadora gravasse seu depoimento.
SACHA ARCANJO Depoimento concedido em 06/2/2007. Coordenador cultural da
“Oficina Cultural Luiz Gonzaga” de São Miguel Paulista, órgão mantido pelo Governo do
Estado, tem 57 anos, veio para São Miguel Paulista em 1966. Nasceu em São Gabriel
(BA) em 1949, é cantor e compositor de música popular. Participou do MPA (Movimento
popular de Arte) junto com o Antonio Augusto Arantes, participa das discussões sobre as
prioridades culturais da região, principalmente as programadas pelo Fórum Cultural de
São Miguel Paulista.
SERGIO LOMBARD SENEDIN Não foi possível gravar depoimento e o Coronel
Senedin forneceu-me alguns dados por telefone. 57 anos, nascido em São Paulo (SP) foi o
idealizador da insígnia do comandante e do brasão de armas do 29º BPM/M de São
Miguel Paulista, nos quais aparecem a Capela de São Miguel Arcanjo, torre de indústrias
e o Rio Tietê.
SUELI CURAÇA BRASIL – Depoimento concedido em 19/07/2007. Nascida em
Votuporanga (SP) em 1952. Mora em São Miguel Paulista desde 1981. Presidente do
Grupo Escoteiro “Padre Aleixo” 323 com sede na Catedral de São Miguel Arcanjo
Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra. É também coordenadora do Catequese e do
Movimento Eucarístico da Paróquia de São Miguel Arcanjo.
230
PALESTRAS GRAVADAS E DIGITALIZADAS
Palestra proferida pela historiadora Roseli Santaella Stella, na 3ª Semana dos
Museus,no dia 19 de maio de 2005 com o título: “Museu – Alternativa de Lazer e
Turismo na Zona Leste de São Paulo” promovida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional do Ministério da Cultura, em parceria com o Conselho Internacional de
Museus ICOM, a Associação Brasileira de Museologia, o Conselho Federal de
Museologia.
Cerimônia realizada no interior da Capela de São Miguel Arcanjo, 18 no dia de
setembro de 2005 em comemoração aos 386 anos de São Miguel Paulista apresentando o
projeto de restauro da capela liderado pela Diocese de São Miguel Paulista.
Cerimônia de lançamento dos cartões telefônicos com estampas alusivas à Capela de São
Miguel Arcanjo, realizada no CEU São Carlos no dia 17 de setembro de 2005 com início
às 19 horas.
Cerimônia de Reinauguração da Praça Padre Aleixo Mafra no local, dia
04/03/2007.
231
OUTRAS FONTES
1. Coletânea de fotografias de autoria da pesquisadora.
2. Coletânea de fotos arquivo pessoal do Sr. Jesuíno Braga.
3. CD Room São Miguel Paulista em imagens 5 volumes produzidos pelo Labdoc
– Unicsul (Universidade Cruzeiro do Sul).
4. Bloco Comemorativo alusivo à Capela de São Miguel Arcanjo, 2004.
5. Estampa do Carimbo Comemorativo – 06/09/2003.
6. Impressos da campanha “Vote no Melhor Selo” 2004.- ECT.
7. Estampa da capela nos bilhetes da Loteria Federal, extração de 23/09/2000.
8. Série de quatro cartões telefônicos com estampas da Capela lançamento em
17/09/2005- Correspondências entre a comissão de festejos e a Telefônica.
9. Homenagem aos pioneiros de São Miguel Paulista festejos dos 382º aniversário de São
Miguel setembro de 2004.- Convite para a solenidade de homenagem, texto impresso -
apresentação da trajetória dos homenageados, troféu entregue aos homenageados (Capela
de São Miguel Arcanjo).
10. Impressos -
confeccionados pelo Sr. Jesuíno com a foto da maquete e sua assinatura.
11. Caderno de memórias de Jesuíno Braga em 2006 e 2007.
12. Boletim Geral PM 223 - institui o brasão de armas, o estandarte e a insígnia do
comandante. Descrição heráldica do brasão – 29º BPM/M.
13. mara Distrital de São Miguel Paulista - Edil Simbólico - DOE 07/06/1973,
Recortes de jornais, correspondências.
14. Revista “Mania de Pintar Telas” - Editora Minuano LTDA – Ano I, 5, s/d.
15. Correspondência de Adineia Batatinha dos Santos ao Presidente da Assembléia
Legislativa do Estado de São Paulo.
16. Boletim Mensal do Rotary Club de São Miguel Paulista – 1967 nº especial
17. Projeto de reforma da Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra – 1991.
18. Coleção “Meu Bairro, minha cidade”. Prefeitura do Município de São Paulo,
Secretaria Municipal de Educação, 2004.
19. Coleção 450 anos Reconstruindo Sonhos São Miguel - Prefeitura do Município
de São Paulo, Secretaria Municipal da Educação, Programa Circulo de Leituras da
Secretaria Municipal de Educação, 2004.
20. PRE Planos Regionais Estratégicos Subprefeitura de São de São Miguel Série
Documentos – 2004
21. Publicação da Subprefeitura de São Miguel junho de 2004 - São Miguel Paulista
O cenário da reconstrução.
22. Deinfo - Departamento de Informações da Secretaria Municipal de Planejamento
Urbano da Prefeitura de São Paulo. Dados sicos para elaboração dos Planos Regionais
das Subprefeituras – volume II – outubro de 2002.
232
23. Projeto de Lei 546/2001 da Prefeitura do Município de São Paulo Subprefeituras,
Exposição de Motivos.
24. Termos de declaração - “Ouvidoria Geral do Município” Protocolo O.G.
001416/2005 de 02/08/2005 e nº O.G. 010403/2006 de 28/12/2006.
25. Programas das festividades do Aniversário do bairro. 1967, 1981, 1995, 1997, 1998,
1999, 2000, 2001, 2002, 2003, 2004, 2005 e 2006.
26. Projeto de ocupação da Capela Histórica de São Miguel Paulista janeiro de 1981
Movimento popular de Arte.
27. Separata do volume XXIV da Revista de Antropologia Antonio Augusto Arantes e
Marilia de Andrade – “A Demanda da Igreja Velha: Análise de um Conflito entre Artistas
Populares e Órgãos do Estado.
28. Publicação: Projeto São Miguel Paulista e Brasileiro - Um olhar sobre São Miguel.
29. Criação de um centro de documentação – Cedoc
30. Boletim - CDC 2006 – Balanço 1 Ano 1
31. Grêmio Recreativo Cultural e Escola de Samba “Unidos de São Miguel: Atas,
estatuto, registro em cartório, histórico do carnaval de 1982 – Divino Cartola
32. IPHAN Superintendência Regional - Processo 180 T Inscrição 211 - fls. 38
(2l.10.38) Livro História - Livro Belas Artes – Tombamento da Capela
33. IPHAN Superintendência Regional - Pastas s: MTSP 8.3.1 a MTSP 8.3.11.
Monumentos tombados – Capela de São Miguel.
34. Certificado do Ministério da Cultura IPHAN Coordenação Geral de Pesquisa,
documentação e referência certifica que revendo o Livro de Tombo das Belas Artes,
dele consta às folhas 38:Número de inscrição, duzentos e dezenove; obra: Igreja São
Miguel; Natureza da obra: arquitetura religiosa, etc. Obs.O tombamento inclui todo o seu
acervo de acordo com a resolução... etc.
35. Processo 00368/74 - ex-ofício (11.l2.74) tombamento da Capela.
36. Histórico da Igreja de São Miguel Paulista.
37. Certidão 082 Condephaat, nos termos do provimento 7/84 de 09/03/84 da
Corregedoria da Justiça certifico para os devidos fins que a Secretaria de Estado da
Cultura em consonância com o decidido pelo Egrégio Colegiado de sua sessão ordinária
de 11/12/74, ata 240 baixou a decisão ex-oficio de 11/12/74 pela qual foi tombada a Igreja
de São Miguel Paulista.
38. Copia de certidão de tombamento da Capela de São Miguel Arcanjo - Ministério da
Cultura.
39. Resolução n. 05/1991 trás os bens tombados pelo Condephaat para a Conpresp
DOM 10/04/91 Pasta – 03ª.023.1
40. Revista Acrópole/out./62 XXIV n. 287 - Leonardo Arroyo Igrejas de São Paulo
2ª.ed. Ed.Nacional p.41 a 51 – 1966
41. Revista do IPHAN n.5 1941 Sergio Buarque de Holanda Capelas Antigas de São
Paulo p.105 a 109 –
42. Revista Ásia - Helio A Viotti Origens de São Miguel. Periódico do Colégio São
Luís, p.52, 54.
233
43. Separata da Revista Histórica, n.84 SP 1970 – Compromisso de Brasilia
44. Revista SPHAN n.5 - 194l- Lucio Costa, A Arquitetura Jesuítica.
45. Pronac n. 040640 Projeto Restauração da Capela de São Miguel. Processo
01400.004128/04.34
46. Estatuto da Associação Cultural Beato José de Anchieta
47. Convite especial da Associação Cultural Beato Jose de Anchieta para a cerimônia de
apresentação do Projeto de Restauro da Capela de São Miguel Arcanjo.
48. Documento Medialink Lançado o projeto de restauração da Capela de São Miguel
Arcanjo – informe sobre o restauro da capela
49. Revista: Nosso Grupo é você do Grupo Votorantim reportagem sobre a
restauração da Capela e o apoio do Grupo Votorantim.
50. Formarte Projetos, produção & Assessoria - Catálogo explicativo da Formarte sobre
a elaboração de projetos de restauração.
51. Revista Restauro da Capela de São Miguel Arcanjo- quem somos: Associação
Cultural Beato Jose de Anchieta –Formarte – empresa especializada na área cultural tendo
como objeto de sua atuação a preservação da memória e dos bens culturais.
52. Carta circular da Pontifícia Comissão para os bens culturais da Igreja Necessidade e
urgência da inventariação e catalogação do patrimônio cultural da Igreja. Vaticano,
08/12/1999.
53. Comissão para os Bens Culturais da Igreja Arquidiocese de São Paulo de
26/11/2000.
54. Revista “Acontece Leste” , ano 1, nº 1 – junho/2007.
55. Boletim da Subprefeitura de São Miguel Informação à Comunidade Aqui São
Miguel - publicação mensal – ano 2007.
56. Coleção de quatro pastas contendo reportagens sobre São Miguel Paulista e sobre a
Capela de São Miguel Arcanjo:
A Comunidade Nunes
A Voz do Curuçá
Dário Oficial da Cidade de São Paulo
Diário de São Paulo
Diário do Comércio
Diário Oficial do Estado de São Paulo
Diário Oficial do Poder Legislativo
Diário Popular
Folha de São Miguel
Folha de São Paulo
Gazeta do Tatuapé
Gazeta Penhense
Jornal “Acontece Agora”
Jornal Brasil Semanal
Jornal da Tarde
Jornal do Povo
Jornal Primeira Página – História do Itaim
Jornal Zona Leste News
Metro News
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O Estado de São Paulo
São Miguel Agora
São Miguel em Notícias
São Miguel News
Toninho do Jornal
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