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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LEITURA E COGNIÇÃO
Rodrigo Martins Ruiz
A TEMÁTICA DA VIOLÊNCIA NO TEXTO DRAMÁTICO ROBERTO ZUCCO, DE
BERNARD-MARIE KOLTÈS E A PRODUÇÃO DE SENTIDO
Santa Cruz do Sul, outubro de 2007
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Rodrigo Martins Ruiz
A TEMÁTICA DA VIOLÊNCIA NO TEXTO DRAMÁTICO ROBERTO ZUCCO, DE
BERNARD-MARIE KOLTÈS E A PRODUÇÃO DE SENTIDO
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras – Área de
Concentração em Leitura e Cognição,
Universidade de Santa Cruz do Sul –
UNISC, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientador: Profa. Dra. Eunice Terezinha
Piazza Gai
Santa Cruz do Sul, outubro de 2007
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Bibliotecária : Solange Padilha Ortiz CRB 10/1211
R934t Ruiz, Rodrigo Martins
A temática da violência no texto dramático Roberto Zucco, de Bernard-Marie
Koltès e a produção de sentido / Rodrigo Martins Ruiz; orientadora, Eunice Piazza Gai.
- 2007.
101 p.
Dissertação (mestrado) – Universidade de Santa Cruz do Sul, 2007.
Bibliografia.
1.Teatro (Literatura) – História e crítica. 2. Koltès, Bernard-Marie – Crítica e
interpretação. 3. Violência na literatura. 4. Dramaturgia. 5.Cognição. I. Gai, Eunice
Piazza. II.
Universidade de Santa Cruz do Sul. Programa de Pós-Graduação
em Letras.
CDD: 809.2
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Rodrigo Martins Ruiz
A TEMÁTICA DA VIOLÊNCIA NO TEXTO DRAMÁTICO ROBERTO ZUCCO, DE
BERNARD-MARIE KOLTÈS E A PRODUÇÃO DE SENTIDO
Esta Dissertação foi submetida ao
Programa de Pós-Graduação em Letras –
Área de Concentração em Leitura e
Cognição, Universidade de Santa Cruz do
Sul – UNISC, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Letras.
Dr. Eunice Terezinha Piazza Gai
Professor Orientador
Dr. Marta Isaacsson de Souza e Silva
Dr. Norberto Perkoski
5
Dedico este trabalho a alguém que realmente fez toda
a diferença para a realização desta dissertação,
Rudimar Serpa de Abreu.
6
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus familiares e amigos pelo incentivo e aos professores do
Programa de Pós-Graduação em Letras – Mestrado, pelo ensinamento e amizade e,
em especial, a professora Dr. Eunice Terezinha Piazza Gai, pela sabedoria e pelo
encorajamento na realização deste trabalho.
Do mesmo modo, destaco a contribuição e apoio dos colegas Sandra Braum,
Karen Santoro, Julio de Castilhos, Marileda Borba, Fabiana Beber, Marília Nunes,
em especial, Alda Marici da Silva Silveira, pela grande parceria que se estendeu
desde o ingresso neste curso até a realização desta dissertação.
Este trabalho não seria possível se também não contasse com o apoio de
Suzana Speroni, com a tolerância de Paula Ynajá Vieira Nunes, com a ajuda de
Selma Brenner Acosta e as reflexões com Magda Scarpatti.
7
Na heróica impulsão do singular para o geral, na tentativa de
ultrapassar o encanto da individuação e de querer ser ele
mesmo a única essência do mundo, padece ele em si a
contradição primordial oculta nas coisas, isto é, comete
sacrilégio e sofre.
(NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia)
8
RESUMO
Este estudo apresenta uma análise do texto dramático Roberto Zucco, de
Bernard-Marie Koltès, dramaturgo francês falecido em 1989, com o objetivo de
verificar a presença da temática da violência. Este tema exerce relevante papel na
historicidade da forma dramática e tem no gênero trágico um forte referente. Por
isso, primeiramente foi realizado um estudo das especificidades do texto teatral,
recuperando as principais questões teóricas envolvidas na sua historicidade, bem
como seu processo de construção de sentido. Em seguida foi realizado um
levantamento da fortuna crítica acerca do autor e do tema violência, a fim de
fornecer o embasamento teórico necessário à realização do trabalho. Após essa
etapa, foi realizada a análise dos aspectos formais da obra, tais como: didascálias,
personagens, tempo, espaço, divisão e nomeação das partes do texto, e enredo.
Com base no cruzamento do referencial teórico levantado e os aspectos formais
identificados foi possível discorrer a respeito do modo como a temática da violência
emerge de Roberto Zucco. Na última etapa da dissertação, apresentamos algumas
considerações a respeito das estratégias metacognitivas suscitadas pela leitura da
obra, de modo a investigar a articulação dessas estratégias com o processo de
significações construído na leitura deste texto dramático. Ao analisarmos a obra foi
possível constatar a intenção do autor em aproximar o protagonista Roberto Zucco à
figura do herói, sem vinculá-lo a uma ótica moralizante. Apresenta um agir que se
opõe ao socialmente aceito. Ele comete crimes hediondos friamente e sem uma
motivação consistente. A personagem se mostra plenamente consciente de suas
atitudes, no entanto é incapaz de modificar-se, assim como a personagem trágica,
que está invariavelmente presa ao seu destino.
PALAVRAS-CHAVE: violência, Koltès, teatro, dramaturgia, cognição
9
ABSTRACT
This study presents an analysis of the dramatic text Roberto Zucco, by
Bernard-Marie Koltès, a French playwright died in 1989, with the objective of
verifying the presence of the theme of the violence. This theme exercises relevant
role in the historicity in the dramatic way and has in the tragic gender its greatest
referring. Therefore, firstly it was accomplished a study of the specificities of the
theatrical text, recovering the main theoretical matters involved in its historicity, as
well as its process of sense construction. Soon afterwards it was accomplished a
rising of the critical fortune regarding the author and the violence theme, in order to
supply the necessary theoretical basis for the accomplishment of the work. After that
stage it was accomplished, the analysis of the formal aspects of the work, such as:
characters, time, space, division and nomination of the parts of the text, and plot.
Based on the crossing of the raised theoretical referential and the identified formal
aspects it was possible to discourse regarding to the way as the theme of the
violence emerges from Roberto Zucco. In the last stage of the dissertation, we
presented some considerations concerning to the metacognitive strategies raised by
the reading of the work, in order to investigate the articulation of those strategies with
the process of significances built in the reading of this dramatic text. When analyzing
the work it was possible to verify the author's intention in approximating the
protagonist Roberto Zucco to the illustration of the hero, without linking him to an
moralizing optics. He presents a way to act that is opposed to the socially accepted
one. He commits vile crimes frigidly and without a solid motivation. The character is
shown fully conscious of his attitudes, however he is unable to modify, as well as the
tragic character, that is invariably attached to his destiny.
KEY-WORDS: violence, Koltès, theater, dramaturgy, cognition
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11
1 PRESSUPOSTOS PARA A LEITURA DO TEXTO DRAMÁTICO .......................... 16
1.1 Os gêneros literários e a origem da escritura trágica .......................................... 16
1.2 Vida e obra de Bernard-Marie Koltès .................................................................. 29
1.3 Sinopse de Roberto Zucco .................................................................................. 34
2 ROBERTO ZUCCO E A VIOLÊNCIA ..................................................................... 37
2.1 Perspectivas teóricas sobre a violência .............................................................. 37
2.2 A violência em Roberto Zucco ............................................................................. 47
2.3 A personagem Roberto Zucco ............................................................................. 61
3 ALGUMAS ESTRATÉGIAS DE COGNIÇÃO ENVOLVIDAS NA OBRA ................ 70
3.1 As metáforas ....................................................................................................... 71
3.2 Mecanismo de antecipação ................................................................................. 81
3.3 Espaço simbólico e espaço pragmático .............................................................. 84
3.4 Unidade temática ................................................................................................ 86
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 90
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 99
11
INTRODUÇÃO
Há bastante tempo aceitamos a afirmação de que literatura é sinônimo de
conhecimento e que por meio dela ampliamos nossa capacidade de entender o
mundo, ou ao menos de percebê-lo. Ainda que tal afirmativa seja legítima, ela
generaliza um processo que na prática se mostra mais complexo. Quando
observamos a multiplicidade das formas que a literatura assume, verificamos
diferentes estatutos na difusão do conhecimento.
Poesia, romance, conto, novela, drama, entre outras, são algumas
materialidades que a forma literária assume para comunicar-se com seus leitores.
Marcuschi (2003) afirma que os gêneros textuais constituem fenômenos históricos,
que organizam as atividades comunicativas do dia-a-dia. Estes, assim como a vida
cultural e social dos povos, possuem forma dinâmica, o que os mantém em sintonia
com as transformações históricas. Ainda de acordo com Marcuschi (2003), desde a
invenção da escrita alfabética por volta do século VII a.C., multiplicam-se os
gêneros, surgindo as diferentes formas da escritura.
Esta dissertação se caracteriza como uma investigação bibliográfica
focalizada no gênero dramático, por meio da análise da obra Roberto Zucco, de
Marie-Bernard Koltès, apresentando como eixo temático a violência.
A exemplo do que propõe Ubersfeld (2005), partimos do pressuposto de que
o texto de teatro contém matrizes textuais que o capacitam à representação, sendo
12
sua análise de acordo com procedimentos capazes de contemplar os núcleos de
teatralidade da obra. Contudo, essa especificidade não é definida pelo texto em si,
mas através da leitura que ele propicia.
Ao realizarmos a leitura de um texto dramático, faz-se necessário situarmos a
imagem que as palavras denotam no contexto da representação teatral. O processo
de decodificação acionado pela leitura diferencia-se do que ocorre ao efetuarmos a
leitura de um romance, por exemplo. Isso ocorre na medida em que o conteúdo da
obra participa, no plano imaginário, de um universo deslocado do real, ainda que
mantenha proximidade denotativa. A esse respeito, Oscar Tacca (1983) afirma que o
teatro é reflexão e o romance, por sua vez, refração.
Ainda que não desejado, é fato que a violência é um componente bastante
presente na vida cotidiana. Sua freqüência é sentida não só no plano material, mas
também na subjetividade dos homens. Pensar violência é refletir sobre as relações
sociais que moldam o pensamento social.
Para que um ato seja legitimamente aceito como violência é necessário um
conjunto de normas e esquemas de conduta que servem de parâmetro para uma
sociedade ou grupo. Será a partir da não concordância a essas normas que a
transgressão passa a significar violência. Conforme explicitam Almeida, Pacheco e
Garcia (2006), cada sociedade ou cada cultura, no decorrer de sua história, em um
interminável processo de negociação entre seus membros, é levada a escolher
determinado conjunto de valores e práticas em detrimento de outros.
Essa negociação constrói os instrumentos simbólicos, que permitem à
sociedade estabelecer as divisões entre aqueles que, segundo determinado padrão,
enquadram-se ou não. Essas mesmas construções simbólicas desempenham uma
função relevante no estabelecimento do senso comum, também chamado de
representações sociais. São esses mecanismos de conhecimento assumidos
culturalmente o objeto de estudo da Teoria das Representações Sociais:
As representações sociais referem-se aos processos sociocognitivos que
envolvem a pertença social dos indivíduos, suas histórias de vida, suas
13
práticas sociais, bem como os modelos de conduta e pensamento que são
socialmente transmitidos pela comunicação social e que participam da
construção da realidade. Assim, estudar cientificamente o senso comum
equivale, na TRS [teoria das representações sociais], a compreender a
construção psicológica e social de uma determinada realidade.
(MOSCOVICI, 1961 apud ALMEIDA, A.; PACHECO, J.; GARCIA, L., 2006,
p.135-6)
Se analisarmos a obra Roberto Zucco a partir das chamadas teorias do senso
comum ou representações sociais é possível identificar em algumas passagens
conceitos oriundos desses esquemas de conhecimentos coletivos, a respeito das
causas e as razões da violência.
A relação teatro e violência é bastante antiga, como nos mostram os textos
trágicos. A civilização helena, que tanto influencia a cultura ocidental, deixou-nos um
importante legado, por meio da tragédia clássica. Esses textos trágicos estão na
própria origem da forma dramática. Seus enredos, erigidos a partir da mitologia,
formularam as primeiras características do texto teatral. Desde aquele tempo, a
violência se afirma como uma importante fonte de conflito dramático. No seio das
duas famílias que dominam o drama trágico, Atridas e Labdácias, encontramos uma
série de histórias carregadas de violência, onde assassinatos ocorrem: entre irmãos,
entre esposos, entre pais e filhos.
O drama trágico, nascido de contingências históricas gregas, ainda desperta
em nós grande interesse, pois sabe abordar a fragilidade humana diante daquilo que
nos ultrapassa.
Roberto Zucco, evidentemente, não se trata de uma tragédia no sentido
clássico, mas apresenta algumas características que o aproximam da escrita trágica.
Acreditamos que essa obra oferece uma importante discussão sobre a natureza
humana, em especial nossa vocação à violência, promovendo, em certa medida,
uma atualização do modelo trágico grego.
A obra tem a habilidade de abordar o tema violência sem emitir juízos ou
empregar esquemas já conhecidos. Roberto Zucco propicia ao leitor acompanhar a
14
trajetória de um jovem que, impelido por vontades irracionais, passa a cometer
assassinatos.
Como forma de melhor apresentar a investigação empreendida neste
trabalho, optamos por agrupar em três seções os aspectos levantados. Iniciamos a
dissertação apresentando dois campos que permeiam o conjunto do trabalho. O
primeiro diz respeito à especificidade da forma dramática, que apresentamos
situando o leitor acerca da historicidade da mesma, bem como das principais
problemáticas que estão envolvidas no ato de ler um texto que se destina ao palco.
O segundo aborda mais especificamente a vida de Bernard-Marie Koltès, suas
produção literária e a obra Roberto Zucco, que vem a ser o objeto de estudo desta
dissertação. Encerramos essa primeira seção analisando as transformações que o
autor propõe na obra dos fatos verídicos que lhe serviram de inspiração ao compor
sua criação poética
Na segunda seção discorremos a respeito do conceito de violência.
Subsidiamos essa etapa do trabalho nos estudos dos Roger Dadoun, Nilo Odália e
René Girard. Tendo em vista o propósito maior deste trabalho, que é investigar os
aspectos cognitivos envolvidos na leitura da obra Roberto Zucco a partir da temática
da violência, primeiramente exploramos alguns elementos envolvidos na
conceituação do vocábulo violência para após analisar como tais conceitos são
apropriados pela obra em questão. Foi a partir dessas contribuições que passamos
a aprofundar a articulação entre a temática da violência e os aspectos formais da
obra Roberto Zucco, bem como considerar uma possível filiação com os textos
trágicos. Estabelecemos a trajetória do protagonista como o eixo referencial, que
tanto definiu como organizou a maior parte das análises.
Na terceira e última etapa da dissertação passamos a investigar as
estratégias cognitivas envolvidas na leitura de Roberto Zucco. Algumas
características dramatúrgicas identificadas foram agrupadas de modo a observar
como o tema da violência se apresenta na carpintaria desse texto. A primeira delas é
a metáfora, presente tanto nos diálogos das personagens como nas relações
espaciais do texto. Outra característica identificada é o mecanismo de antecipação,
utilizado pelo autor a fim de anunciar ao leitor aspectos que serão revelados
15
posteriormente pelo enredo. Analisamos também as relações espaciais articuladas
com o agir das personagens, ou seja, a dimensão pragmática e a dimensão
simbólica presentes no decorrer da obra. A última das características levantadas diz
respeito ao modo como a violência se manifesta no conjunto textual, principalmente
no que diz respeito ao conteúdo das falas das personagens e das suas ações,
contribuindo para o estabelecimento de uma unidade temática.
Por fim, vale destacar que a interpretação apresentada da obra Roberto
Zucco nesta dissertação nasce das vivências construídas enquanto ator e diretor de
teatro. O texto dramático é aceito neste trabalho como a parte literária de uma obra
artística que contém uma virtualidade potencial acionada pela sua encenação.
Sendo Roberto Zucco uma obra destinada ao palco, é através da sua materialidade
voltada à representação que focalizamos o trabalho, embora isso não signifique
metodologicamente que o estudo se perfilha à estética da recepção, já que o
apresentado aqui tem caráter eminentemente interpretativo.
16
1 PRESSUPOSTOS PARA A LEITURA DO TEXTO DRAMÁTICO
Este capítulo foi organizado em três partes. Na primeira, abordaremos as
características do texto teatral, fazendo um resgate das principais questões teóricas
envolvidas na sua historicidade, bem como uma breve explanação acerca das
especificidades da forma dramática e seu processo de construção de sentido. Já na
segunda, oferecemos algumas informações a respeito de Bernard-Marie Koltès, sua
biografia e características de sua produção. A última parte apresenta a sinopse da
obra analisada nesta dissertação, Roberto Zucco.
1.1 Os gêneros literários e a origem da escritura trágica
Em um sentido bem abrangente, literatura vem a ser todo o material fixado
por meio de letras, ou seja, um amplo acervo produzido a partir do surgimento do
alfabeto (CÂNDIDO, et al., 2005). Todavia, esse sentido abrangente ignora as
diferenças de finalidade e formato presentes nesse material. Fez-se necessário,
então, a adoção de parâmetros que pudessem submeter a produção literária a
classificações segundo suas especificidades. Essa necessidade teórica originou o
debate a respeito dos gêneros literários.
Apesar de a discussão sobre os gêneros literários ocorrer há bastante tempo,
ainda não foi possível esgotá-la devido ao grande dinamismo que os modos de
escrita possuem. A multiplicidade da produção literária, ao mesmo tempo em que
17
supera as conceituações teóricas, promove o surgimento de novas conceituações,
colaborando, dessa maneira, para a continuidade do debate sobre suas formas.
Ao resgatarmos o início da discussão sobre os gêneros literários, chegamos a
Aristóteles que formulou duas categorias elementares a esse respeito, uma narrativa
e outra dramática, utilizando, como critério para chegar a essa divisão, os modos de
imitar. Mais tarde, como ressalta Cunha (1999), a partir da Poética de Horácio, os
críticos renascentistas incluíram o lírico entre os gêneros, propiciando o início da
divisão tripartida sobre a produção literária, a saber, lírica, épica e dramática. Apesar
dos muitos debates sobre a matéria, a maior parte dos estudos sobre os gêneros
literários reitera essa divisão.
Para estabelecer a diferenciação entre os gêneros literários, Aristóteles
adotou a noção de ação (práxis) que, agregada ao conceito de imitação ou
representação (mimese), permitiu-lhe identificar dois modos elementares de
imitar/representar: narrando [epopéia] ou agindo [tragédia].
Apesar da objetividade da separação estabelecida a partir dos modos de
imitar/representar, ao verificarmos a estrutura formal de uma obra dramática, que é o
objeto de estudo deste trabalho, identificaremos nela a presença de elementos que
também remetem ao gênero narrativo ou épico.
Ryngaert, ao discutir as especificidades do gênero dramático, salienta: “A
impossibilidade de realizar presentemente todos os eventos que compõem a fábula
faz com que algumas passagens sejam transmitidas sob a forma de narração no
lugar da ação” (1996, p. 9-10). Mesmo no interior do gênero dramático é possível
encontrarmos características que, a princípio, pertenceriam ao gênero épico, ao
menos, no sentido clássico do termo.
Portanto, verifica-se na prática que os gêneros literários tendem mais a um
hibridismo do que a um hermetismo conceitual, residindo talvez nesse ponto sua
maior riqueza e também a origem de sua complexidade: “Toda obra pertence a um
ramo genérico cuja essência se revela em caráter prioritário, todavia participa
18
também da essência ou dos traços particulares dos outros gêneros”. (CUNHA, 1999,
p. 96)
Foi o crescente consenso sobre a necessidade de noções mais flexíveis,
como a de Staiger
1
, que viabilizou o estudo dos gêneros literários a partir de
conceituações menos restritivas em oposição ao difundido pelos renascentistas e
classicistas. Assim, foi possível desfazer a artificialidade dos enfoques tradicionais e,
ao mesmo tempo, reconhecer a adaptabilidade dos gêneros às contingências sócio-
históricas às quais estão submetidos.
Dentre os três gêneros literários, será no dramático que a necessidade de
presentificação determinará sua especificidade ao longo dos tempos. Apesar de
estarmos constantemente cercados pela comunicação dramática, como a
teledramaturgia ou mesmo os anúncios de rádio ou televisão, ainda parece
problemática a definição exata para o termo “drama”.
De Aristóteles aos dias de hoje, muitas iniciativas em estabelecer um conceito
preciso e bem aceito foram empreendidas. No entanto, ao que parece, essa tarefa
não é a das mais fáceis, como bem salienta Martin Esslin:
[...] a arte – atividade, anseio humano ou instinto – que se corporifica no
drama é tão profundamente emaranhada na própria natureza humana, e
em tal multiplicidade de inquietações humanas, que é praticamente
impossível traçar uma linha divisória precisa no ponto em que termina uma
espécie de atividade mais geral e começa o drama propriamente dito.
(1986, p.12)
O conceito de texto dramático, por exemplo, se for compreendido apenas pela
presença de diálogo contextualizado por elementos cênicos como gestos, figurinos
ou cenários, mostra-se incapaz de contemplar as manifestações que dispensam tal
relação e ainda assim são rotuladas como dramáticas.
Para exemplificar esse ponto de vista, evocamos os espetáculos de
pantomima, onde a palavra é dispensada; as encenações teatrais desprovidas de
1
Staiger condiciona o funcionamento da divisão tripartida a partir dos elementos substantivos (características
formais) e adjetivos (fenômeno estilístico) de uma obra. (Ibid. p. 96)
19
cenário ou figurino; a dança. Em todas essas manifestações artísticas é possível
reconhecer estruturas de cunho dramático, independente da presença da palavra
escrita.
Partindo então para orientações mais genéricas, é possível aceitar o drama
como manifestação da aptidão humana ao jogo, como fazem as crianças quando
simulam ao brincar seus futuros papéis sociais, ou ainda, nas manifestações
ritualísticas. Nesse sentido, drama também é concebido como algo a ser mostrado.
Retornamos assim à noção de ação e seu encontro com o gênero dramático.
Aceitando que o drama não está sob o monopólio da experiência teatral, visto que
ele se revela também em outras linguagens, optamos então por detalhar mais
especificamente as relações entre drama e a tragédia clássica. Passemos agora a
algumas considerações presentes na Poética de Aristóteles que apresenta como
abordagem o estudo da tragédia a partir da comparação dos gêneros trágico e
épico.
O gênero teatral acumula em sua historicidade um corpus dramático em que
o tema da violência é abordado criativamente pelos artistas de modo a retratar a
natureza humana e sua complexidade. Um exemplo encontra-se na tragédia grega,
onde o trágico é produzido por um conflito inevitável e insolúvel.
O legado deixado pelos tragediógrafos denota o fascínio que a forma
dramática possui por levar ao palco temas controversos que, seguidamente,
desembocam em ações de caráter violento. Do gênero trágico, pela presença de
muitas mortes – ainda que nunca levada diante do espectador de forma explícita – o
senso comum formulou a noção de que acontecimentos trágicos são aqueles que
envolvem muitas mortes e/ou de grande apelo emocional. Apesar desse uso do
termo “trágico” não ser adequado à forma teatral clássica, por simplificar
demasiadamente a questão, é inegável a associação estabelecida entre teatro e
sociedade.
Foram os gregos do período clássico que proporcionaram a maturidade do
drama ao fazerem a transição do ritual para a arte, constituindo, assim, no primeiro
20
passo para o surgimento de um discurso amplamente humano. Contudo, pouco
restou de toda produção escrita acerca do gênero trágico. Do trabalho de todos os
dramaturgos gregos premiados nas Dionisíacas
2
, restaram apenas as obras de
Ésquilo, Sófocles, Eurípides e Aristófanes e mesmo esses escritores são
representados por uma pequena fração daquilo que produziram, já que, conforme
Gassner “das noventa e duas peças de Ésquilo, somente sete chegaram a nós”.
(2005, p. 34)
Além das centenas de fragmentos que nos informam um pouco sobre o que
foi a arte trágica, a fonte mais empregada, além das obras que restaram, é a Poética
de Aristóteles, conforme já citado. Escrita no século IV a. C., essa obra, ainda que
inacabada, apresenta os princípios da dramaturgia grega até aquele momento. De
acordo com Gassner (2005), apesar de tardias, as definições de Aristóteles são
lúcidas e se constituem em um marco da história da crítica teatral a ponto de
afetarem o curso da dramaturgia clássica, que já não contava mais com a arte dos
grandes tragediógrafos.
Aristóteles, no sexto capítulo da Poética, define a tragédia como:
a “imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão,
em linguagem ornamentada e com as varias espécies de ornamentos
distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efetua] não
por narrativa, mas mediante atores, e que suscitando o “terror e a piedade”,
tem por efeito a purificação dessas emoções. (1968, p.74, acréscimos do
tradutor)
Como aponta Daisi Malhadas (2003) o termo “MÍMĒSIS” geralmente é
traduzido como imitação, mas também pode ser entendido como representação. O
mesmo se aplica à acepção do verbo “MIMEÎSTHAI”, passando de imitar para
representar. Esses ajustes permitem vislumbrar melhor o caráter criador do artefato
poético.
2
Também chamadas de Dionisíacas Urbanas, ou Grandes Dionisíacas, eram celebrações ritualísticas em honra a
Dionísio onde as representações teatrais foram inseridas através de concursos, provavelmente por obra de
Pisístrato. Eram celebradas na primavera, fins de março, quando o mar se tornava navegável e Atenas se via
cheia de estrangeiros. (MALHADAS, 2003)
21
Aristóteles afirma que o homem tem uma tendência natural a representar e é
esta habilidade que permite a existência da poesia. Mas cada espécie de poesia é
representada por meios, objetos ou modos diferentes. A característica da tragédia é
representar por meio da ação.
Ao se referir à noção da tragédia aristotélica, Malhadas aponta que “logo de
início, na definição, fica estabelecida a preeminência do enredo (MŶTHOS) sobre os
caracteres (THĒ), embora estes, como também o pensamento (DIÁNOIA), sejam
objetos.” (2003, p. 19, destaques da autora)
As partes que compõem a tragédia seriam então: mito, caráter, elocução,
pensamento, espetáculo e melopéia. Aristóteles emprega o termo “mito” sob duas
acepções, ora como a representação das ações, ora como a composição dos atos.
Sob esse aspecto Malhadas (2003) esclarece melhor se referindo a esse termo
como “objeto modelo”, na primeira acepção e “objeto produto”, na segunda
definição. Sendo o objeto produto o enredo propriamente dito.
Aristóteles considera como elemento mais importante a “trama dos fatos”,
pois entende que a tragédia não é a representação de homens, “mas de ações e de
vida, de felicidades [e infelicidade; mas, felicidade] ou infelicidade reside na ação, e
a própria finalidade da vida é uma ação, não uma qualidade.” (1968, p.75, acréscimo
do tradutor)
Ainda que no sexto capítulo Aristóteles não esclareça o que entende por
“ação de caráter elevado”, ao interpretar as suas afirmações do segundo capítulo
somos levados a concluir que estas seriam as ações realizadas por personagens
sérias, nobres. A respeito do efeito geral que compete a obra trágica produzir,
Aristóteles apresenta o princípio da catarse, segundo a qual a tragédia purifica as
emoções através da “piedade” e do “terror”.
Ainda que os gregos tenham sido os criadores da arte trágica, eles não
chegaram a estabelecer uma teoria a respeito do trágico capaz de atingir uma
concepção de mundo. Tanto é assim que “a elevada concepção do acontecer
trágico, que se revela na tragédia clássica em multivariadas refrações, mas sempre
22
como majestosa grandeza, perdeu-se em boa parte no helenismo posterior”.
(LESKY, 2003, p. 24)
A carga moderna da cosmovisão que projetamos na noção de trágico não
está explícita em Aristóteles. No máximo temos uma indicação quando o pensador,
no capítulo treze, ao abordar a situação trágica, recomenda:
Resta portanto a situação intermediária. É a do homem que não se
distingue muito pela virtude e pela justiça; se cai no infortúnio, tal acontece,
não porque seja vil ou malvado, mas por força de algum erro; e esse
homem há de ser algum daqueles que gozam de grande reputação e
fortuna, como Édipo e Tiestes ou outros insignes representantes de famílias
ilustres. (1968, p. 82)
Em Édipo Rei, o destino passa a ser núcleo do enredo trágico. A infortunada
queda não se deve a um defeito moral. Mas, como aponta Lesky “se refere a uma
‘falha’ no sentido da incapacidade humana de reconhecer aquilo que é correto e
obter uma orientação segura.” (2003, p. 29-30, grifo autor)
Essa interpretação, apesar de apontar uma situação trágica da existência
humana, é exemplificada por Aristóteles por meio de uma comparação que hoje nos
é vedada. Temos acesso ao rei Édipo, mas o mesmo não ocorre com Tiestes, tendo
em vista que dessa obra nos foram legados apenas poucos fragmentos.
De toda forma, a queda a qual Aristóteles se refere é de alguém “de caráter
elevado”. Por bastante tempo foi aceito que os temas trágicos diziam respeito
somente a uma casta social. Contudo, o advento da tragédia burguesa, na Europa, a
partir do século XIX, “pôs fim à idéia de que os protagonistas do acontecer trágico
deviam ser reis, homens de estado, ou heróis.” (LESKY, 2003, p. 32)
Essa inovação permitiu que interpretássemos o texto trágico sob o ponto de
vista novo. A queda deixou de ser a de um rei ou herói para ser a de um mundo
ilusório de segurança e felicidade. Como aponta Szondi (2004) foi a partir do final do
século XVIII que surgiu uma filosofia do trágico: “Desde Aristóteles há uma poética
da tragédia; apenas desde Schilling uma filosofia do trágico.” (p.23)
23
De acordo com Szondi (2004) os sistemas filosóficos de Schelling e Hegel
contribuíram para uma concepção dos gêneros poéticos que ultrapassou a
determinação das formas e regras que compõem tais obras, passando a focar-se
nos conceitos que estão integrados aos gêneros literários.
“Nesse caso, uma poética filosófica investiga as tragédias como exemplos,
a partir dos quais se pode extrair a concepção do trágico que, em vez de
apenas determinar um gênero poético, diz respeito à relação dialética entre
o absoluto e o individual, entre o divino e as suas manifestações, entre o
universal e o particular.” (2004, p. 17, grifo do autor)
Dadas essas explanações acerca da tragédia abordadas até aqui,
passaremos, a partir de agora, a elucidar aspectos relativos à articulação entre ação
dramática e o conteúdo textual.
A afirmação de Umberto Eco de que “todo o texto é uma máquina preguiçosa
pedindo ao leitor que faça uma parte de seu trabalho” (1994, p. 9) pode ser ampliada
quando nos referimos ao texto teatral. É possível identificarmos nesse tipo de escrita
espaço para muitas inferências devido ao conjunto de signos não-verbais com os
quais os signos verbais necessariamente estarão relacionados no momento da
representação. É por esse motivo que a representação e o texto permanecem
unidos por relações complexas, embora submetidos a perspectivas históricas que
definirão seu estatuto conceitual.
Na Poética, Aristóteles ao diferenciar drama de epopéia, afirma que drama é
a obra que imita ou representa pessoas fazendo alguma coisa, enquanto, epopéia a
obra que imita por narrativa. Mas, como já foi mencionado anteriormente, essa
distinção é menos precisa do que parece. Examinando um texto dramático,
verificaremos que, apesar de as falas e/ou as rubricas ditarem as ações executadas
pelas personagens, será por meio da narração que as ações passadas fora de cena
serão reveladas ao destinatário.
Vale salientar que o conceito de ação no contexto teatral adquire um sentido
mais amplo na medida em que tanto a personagem que age ao falar ou o recitador
que se limita a dizer estão investidos de valor simbólico que transforma toda
24
enunciação em ação. O emprego da ação como critério de diferenciação do texto
dramático não seria suficiente o para evidenciar sua singularidade diante de
qualquer outro, pois todo o texto inserido numa representação configura-se
simbolicamente em ação.
Também é possível pela dissociação entre texto e ação abrir caminho para a
representação de qualquer obra literária, mesmo aquela que originalmente não foi
concebida como escritura dramática. Assim, a dissociação invalida também a
presença textual da ação como critério único para determinarmos a natureza do
gênero dramático. Mesmo quando aquilo que é dito não corresponde ao mostrado, é
possível existir dramaticidade na sua encenação, como abordaremos a seguir.
As obras concebidas segundo a tradição do “Teatro de Absurdo”
3
oferecem
exemplos capazes de corroborar esse ponto de vista. Autores como Eugène
Ionesco, Samuel Beckett, Harold Pinter, Arthur Adamov, Fernando Arrabal, entre
outros, exploram essa dissociação, buscando estabelecer sentido para suas peças
naquilo que foi omitido, naquilo que era esperado, e deixou de ser concretizado no
contexto da cena.
Esse estilo de escrita instaura uma lógica onde a ausência é a grande
responsável pela significância da obra. A partir deste mecanismo estilístico, o
“falatório”, em alguns casos, ou a “agitação”, em outros, transparece uma
significância para além daquilo que a aparência evidencia. O agir do ator no texto de
Teatro Absurdo, subverte o sentido esperado ao mesmo tempo em que promove um
afastamento do metro realístico. Quando essa lógica passa a ser assimilada pelo
destinatário, este reconhece a chave que assegurará a comunicabilidade da obra.
Porém, esse mecanismo está presente em outros estilos dramáticos, como
nas peças realistas. Ao observarmos como se desenvolvem os textos de Tchecov,
por exemplo, identificaremos discrepâncias entre aquilo que é enunciado pela
personagem e suas vontades interiores. Indo mais além, é possível identificar ainda
o mesmo mecanismo definindo a ação dramática. Toda vez que um gesto ou palavra
3
O termo apareceu pela primeira vez em 1962 no título de uma obra de Martin Esslin para designar dramaturgos
completamente diferentes, mas que tinham em comum o tratamento de forma inusitada da realidade.
25
adquire um significado não reduzido à sua conformação imediata, o destinatário
estará diante de uma ação portadora de carga dramática.
Exemplificando, quando uma personagem inquirida por outra, antes de
responder toma um gole d’água, a ação de beber não comunica sede – como
normalmente seria o esperado – mas contrariedade ou embaraço. Beber a água é
fugir ou ganhar tempo para elaborar a resposta, ou seja, denota um sentido não
expresso no caráter pragmático da ação.
A ação dramática mantém uma relação com o conteúdo textual de modo
bastante complexo. A ação que o gênero dramático veicula não está expressa
explicitamente no diálogo, embora mantenha relação com este, sendo capaz de
ampliar sua significação. Pois do mesmo modo que a mensagem lingüística nada
significa quando isolada do seu contexto de enunciação, no teatro, o sentido de uma
cena é construído a partir da disposição de elementos que tornam preciso tal
contexto enunciativo.
Outro agente também atua na significação de uma cena, o ator. Este, através
do subtexto, imprime um traço psicológico ou psicanalítico durante a atuação. O
subtexto também não está presente explicitamente no texto dramático, mas fica
evidenciado pelo modo como o texto é interpretado pelo ator. (PAVIS, 2003)
Perguntamo-nos, então, qual seria o traço distintivo entre o texto dramático e
outros textos e se haveria, além da presença de ações, outras especificidades do
texto dramático, ou uma marca capaz de definir sua topologia textual. Ao
examinarmos a maioria dos textos dramáticos, observaremos que a presença do
diálogo é uma constante e por isso pode servir como um indício para respondermos
aos questionamentos acima.
Conta-nos a História da Antigüidade Clássica que por volta de 550 a.C.
Téspis promoveu a introdução do ditirambo na Ática propiciando o surgimento do
diálogo entre ator e o coro. Por meio do recurso do diálogo, a palavra do autor
encontra-se encoberta e fracionada entre múltiplos emissores.
26
Porém, o diálogo também não pode ser aceito como o critério absoluto. Os
monólogos nos mostram que é possível haver dramaticidade mesmo diante da
ausência de trocas verbais entre personagens. O público poderia ser encarado
nessas obras como o substituto do diálogo entre as personagens.
Isso não seria totalmente aceitável tendo em vista que a platéia não possui
falas estabelecidas a priori. Sua participação é legítima, mas ocorre de forma velada,
em outro nível de “diálogo” que se afasta do verificado na topologia visível do gênero
dramático. Além do mais, em última análise, todo o discurso da representação está
direcionado ao público, estando ele estruturado sob a forma de diálogo ou não.
Ryngaert nos lembra ainda que:
diversas formas teatrais antigas comprovam que, com freqüência, os
autores deixam de dirigir-se ao público indiretamente, privilegiando-o como
interlocutor direto. É o caso de todas as formas monologadas da Idade
Média e das tradições populares das pantomimas, de todas as escritas que
utilizam um recitador, dos usos diversos dos apartes e outras confidências
insinuadas mais ou menos discretamente para o público. (1996, p. 12)
O mesmo se verifica na forma épica de escrita concebida por Bertold Brecht.
Nela o ator não ignora a presença do público, como no efeito da quarta parede. Sob
essa forma de escritura teatral a platéia transforma-se na testemunha da ação, sem
o “disfarce” do diálogo.
A diferenciação entre a forma dramática (que finge não se comunicar com o
público) e a forma épica (que estabelece como interlocutor único o espectador) não
é verificada de modo tão preciso na prática. O que ocorre na maioria das vezes é a
alternância de ambos os efeitos ao longo da peça, pois é vedado ao texto dramático
deixar de narrar, mesmo quando ele se encontra estruturado segundo a forma
dialogada.
Fica, arriscado, portanto, atribuirmos ao diálogo o critério absoluto para
designar uma obra teatral. A prática nos mostra que mesmo um texto não dialogado
pode ser aceito como representante do gênero dramático, como é o caso dos
monólogos. Todo texto escrito para o teatro apresenta, ainda que de modo bastante
27
variado e segundo preceitos estilísticos, dois componentes distintos e indissociáveis:
diálogo e didascálias. Elas revelam o contexto da comunicação, as condições
concretas dos usos da fala.
As didascálias constituem um precioso indício sobre quem é o autor. Através
delas sua “voz” é “ouvida” sem a intermediação das personagens, permitindo que
seus desígnios sejam informados mais diretamente. O termo em grego significa
ensinamento e vem a ser o conjunto de indicações ao leitor, um texto metalingüístico
à leitura da obra. Esse texto “secundário” (INGARDEN, 1971 apud PAVIS, 2003)
contém todo o tipo de explicações e orientações que contextualizam a cena.
Chegamos a esse ponto da discussão aceitando que drama, ação e diálogo,
enquanto estruturas morfológicas independentes, não são capazes de definir um
texto dramático. No entanto, a presença desses três elementos associados prova o
contrário. Toda a obra literária aceita como dramática conterá tais elementos sob as
mais diversas ênfases ou conjugações, contribuindo dessa maneira para a
interpretação do texto dramático.
Podemos nos perguntar então qual seria a especificidade da escritura teatral.
Anne Ubersfeld
4
, na obra Para ler o teatro, defende que a maior especificidade do
gênero teatral não reside na sua escritura e sim em seu processo de leitura.
Segundo a autora, todo o texto pode ser teatro, porém desde que lido como teatro.
Esse ponto de vista, apesar de não responder ao nosso objetivo de encontrar a
especificidade da escrita teatral, introduz em nosso caminho uma reflexão sobre o
conteúdo não-textual que esse tipo de obra aciona.
Sendo o teatro uma atividade eminentemente social, não podemos deixar de
considerar os elementos que estão fora do código lingüístico, mas que atuam no seu
processo de significação. Por essa razão, tomaremos emprestado da semiologia a
noção de signo para abordar outros elementos de significância contidos na obra
dramática.
4
Autora francesa pioneira da Semiologia Teatral e autora de várias obras no campo da Teoria do Teatro.
28
Os signos textuais e os signos não-verbais assumem diferentes funções no
fenômeno teatral. Enquanto para o texto a sintaxe é o mais expressivo índice para a
construção de sentido, no instante da representação será a proxêmica
5
quem
desempenhará tal tarefa. Texto e teatralidade ocupam papéis distintos, mas que se
sobrepõem para a comunicabilidade de uma obra.
A escritura por si só não é suficiente para assegurar a teatralidade, tendo em
vista que ela é um atributo da representação. Porém, isso não significa que texto e
teatralidade desempenhem funções independentes ou dissociadas. Como
mencionado antes, ambos trabalham de modo conjugado, aportando à obra
elementos de acordo com suas características estilísticas.
O conjunto de signos visuais, auditivos e musicais criados pelo encenador,
atores, figurinista constitui um sentido que independe do conjunto textual. Ao mesmo
tempo, a carga poética da mensagem literária não pode ser captada integralmente
no interior do sistema da representação. Ainda que fosse possível a representação
“dizer” tudo que o texto diria, o espectador não ouviria o texto na íntegra, pois “A arte
do encenador e do ator consiste, em grande parte, na escolha daquilo que não é
preciso fazer ouvir”. (UBERSFELD, 2005, p.3, grifo do autor)
Na representação teatral o texto está presente sob a forma de voz. Porém, ao
mesmo tempo em que acompanha a representação, ele a precede, tendo em vista,
em tese, sua forma fixa. Enquanto a representação é instantânea, o texto possui
existência concreta. A significância funda-se não só do processo de identificação
(racional), mas também opera no plano da empatia (emocional).
Os estudos empreendidos pelo estruturalismo e a semiologia contribuíram
sobremaneira para o avanço teórico a respeito do texto de teatro. É reconhecida a
especificidade do texto teatral, apesar de na prática sua abordagem continuar sendo
problemática, como se fosse absolutamente necessário contar com a representação
para que o objeto torne-se completo e satisfatório.
5
Estudo das relações entre os homens baseado na distância física.
29
Nesta etapa discorremos a respeito das especificidades do gênero dramático,
apresentando considerações sobre os elementos envolvidos na comunicação teatral,
bem como sua evolução histórica. Tal discussão teve por propósito fornecer ao leitor
as diferentes características presentes na leitura de um texto teatral, além de
demonstrar algumas prerrogativas que subsidiaram a análise do texto dramático
Roberto Zucco. Apresentaremos, a seguir, algumas informações a respeito da
biografia e produção literária de Bernard-Marie Koltès, enfatizando a obra Roberto
Zucco, objeto de estudo desta dissertação.
1.2 Vida e obras de Bernard-Marie Koltès
Bernard-Marie Koltès, francês de nascimento, é considerado um dos maiores
dramaturgos contemporâneos. Atingiu tal status por meio de uma obra curta, mas de
grande riqueza literária. Estreou sua primeira peça em 1970, mas só se tornou um
autor conhecido verdadeiramente a partir de 1983 quando o texto dramático
Combate de negros e de cães foi encenada por Patrice Chéreau
6
. Atores como
Michel Piccoli
7
e Maria Casares
8
, que figuram entre os artistas europeus mais
respeitados devido a suas memoráveis performances, atuaram em suas peças, tanto
no teatro quanto em transmissões radiofônicas da Rádio France Culture.
O dramaturgo passou pelo curso de direção e dramaturgia da Escola do
Théâtre National de Strasbourg (TNS), não chegando a concluí-lo, no início dos
anos 70. Suas peças foram encenadas pelos mais importantes diretores do mundo
como Lluis Pascal (Teatre Lliure, de Barcelona e Teatro Maly, de São Petesburgo),
Françoise Kourilsky (La Mamma, de Nova Iorque) e Peter Stein (Schaubühne, de
Berlim).
6
Ator, diretor e cineasta francês. Chéreau lançou Bernard-Marie Koltès, de quem dirigiu todas as peças de
teatro. Entre outros é o diretor dos filmes La Reine Margot (A Rainha Margot -1994), Ceux Qui M’Aiment
Prendront le Train (Os Que Me Amam Tomarão o Trem - 1998) , Intimité (Intimidade - 2001), vencedor do Urso
de Ouro no Festival de Berlim, e, Son Frère (Seu Irmão), Urso de Prata no Festival de Berlim em 2003.
7
Michel Piccoli, nascido em 27 de dezembro de 1925, é ator, produtor e diretor francês. Possui uma das carreias
mais extensas e respeitadas em todo mundo, já atuou mais de 200 filmes para o cinema e televisão, além de
inúmeros espetáculos de teatro.
8
María Casares (1922-1997), atriz francesa de origem galega que foi um dos grandes mitos do teatro francês.
30
Koltès é considerado um dos maiores autores franceses do século XX,
traduzido em mais de trinta idiomas e montado em cerca de cinqüenta países.
Nascido em 1948, morreu em quinze de abril 1989, aos 41 anos, vitimado pelo HIV,
antes de ver encenado seu último texto, Roberto Zucco, que estrearia um ano
depois sob a direção do alemão Peter Stein.
O autor francês nasceu em uma família pequeno-burguesa, católica. Seu pai
atuou como oficial nas campanhas na Indochina e Argélia. Koltès se lamentava por
sua mãe preferir não seguir o pai nos territórios em guerra. Sentia a ausência dele,
que fora preenchida pela figura materna. O fim dos conflitos trouxe o pai de volta,
mas na condição de um soldado diminuído pela derrota, retornando para uma
França que ele já não entendia direito e para uma família que aprendeu a viver sem
sua presença. A guerra da Argélia
9
também marcou sua infância.
A Argélia era uma província qualquer que até então parecia nem existir até os
cafés franceses começarem a explodir, numa violência que uma criança, ainda que
a sentisse, não podia compreender. (UBERSFELD, 2001)
Aos dez anos de idade Koltès ingressou no colégio Saint-Clément, um
pensionato de orientação jesuítica, mas situado num bairro árabe. Desenvolveu o
gosto musical através do piano, mas logo abandonou o instrumento. No entanto, a
paixão pela música o acompanhava: gostava de Bach, Scarlatti e Chopin. Anos
depois tornou-se um apaixonado pelo jazz americano, pelo blues, pelo reggae e rap.
Como qualquer adolescente do seu tempo, adorava Jules Verne, descobrindo
também Os Miseráveis, de Vitor Hugo. Mais adiante, aos dezesseis anos, entrou em
contato com a obra do poeta da revolta, Rimbaud. Dizia que com ele aprendera que
para ser escritor é necessário ser antes poeta. Conheceu o teatro por meio das
obras de Molière. Talvez tenha se apoiado nos textos desse dramaturgo a origem de
9
A guerra na Argélia (1954-1961) foi a última batalha travada pelo colonialismo francês, mais ainda do que a
derrota na Indochina em 1954, dilacerou a França. As denuncias sobre as torturas praticadas pelas forças
repressivas da metrópole contra os árabes insurgentes da FLN (Frente de Libertação Nacional) da Argélia gerou
forte descontentamento entre os intelectuais franceses. Católicos como François Mauriac e liberais como
Raymond Aron, juntaram-se a Sartre na oposição à continuidade do conflito, que para eles, expunha a nação dos
Direitos do Homem e do Cidadão às suas maiores contradições.
31
sua tendência para escrever obras dramáticas de acordo com o padrão clássico, ao
menos enquanto estrutura formal.
Por indicação de um professor, passou a escrever críticas de cinema a uma
revista especializada. Assim, entrou em contato com o cinema italiano, cujas
características como a predileção pela realidade diária e a violência doméstica
influenciaram a sua criação poética.
Em 1967, aos dezenove anos, conheceu a cidade de Nova Iorque. Na
América, ingressou numa escola de jornalismo, mas não permaneceu por muito
tempo no curso. Nesse momento de sua vida, estava convencido de que aquela não
seria sua profissão, apesar de ser do seu agrado escrever. Só em 1969 escreveu o
seu primeiro texto dramático. A essa altura de sua vida, o conhecimento que tinha
das comédias de Molière somou-se à leitura das obras completas de Shakespeare,
em inglês. O seu primeiro estímulo nasceu do desempenho de Maria Casarès
interpretando Medéia, de Sêneca, numa adaptação de Jean Vauthier, sob a direção
de Jorge Lavelli.
Koltès nos legou uma quantidade pequena de textos. Freqüentemente,
enquanto autor, posicionava-se ao lado dos marginais, dos estrangeiros, dos
excluídos, mas nem por isso fazia de suas obras um panfleto político. Dizia que “não
se escreve peças com idéias, a gente escreve peças com pessoas”
10
. Ele sabia que
o público de hoje tem muitas referências visuais, por causa da televisão e do
cinema, e que, por isso, trata-se de um público com um vocabulário e um
conhecimento mais rico. Suas peças não subestimam a capacidade do espectador.
Ao contrário disso, nelas a história é desenvolvida de forma surpreendente e
impactante. Passadas quase duas décadas de seu falecimento, ele continua sendo
um dos dramaturgos contemporâneos mais encenados em todo o mundo,
convertendo-se num clássico contemporâneo. O mesmo fenômeno vem se repetindo
no Brasil, mais especificamente a partir do começo da década de 1990, com várias
montagens e adaptações dos textos de Koltès por grupos teatrais espalhados por
todo país.
10
Em entrevista a Gronau e Sabine Seifert, em 1º de outubro de 1988.
32
Em 1995 a Editora Hucitec, de São Paulo, chegou a lançar a publicação
Teatro de Bernard-Marie Koltès, com cinco traduções assinadas por Letícia Goura
das obras, Tabataba, O Retorno ao deserto, Na solidão dos campos de algodão,
Combate de negro e de cães e Roberto Zucco, publicação utilizada nesta
dissertação. No entanto, essa compilação foi retirada do mercado por
desentendimentos entre a editora brasileira e a família de Koltès. Desde então, não
existem traduções oficiais para a língua portuguesa, no Brasil.
O autor, já há algum tempo, tem se revelado um fenômeno editorial. De
acordo com uma matéria publicada pelo Le Monde, em 02 de março de 2001, até
essa data a editora francesa, que ainda publica as obras do autor, tinha vendido
mais de quarenta e oito mil exemplares do texto dramático Na solidão dos campos
de algodão, trinta e seis mil de Roberto Zucco, vinte e sete mil e quinhentos de Cais
Oeste, dezenove mil de O Retorno ao deserto e dezessete mil de Combate de
negros e de cães. A mesma matéria afirma que, em média, uma peça de teatro de
autor contemporâneo vende, na França, em torno de quinhentos exemplares.
A obra de Koltès funciona com um espelho que reflete o mundo
contemporâneo. Seus textos têm a capacidade de conter perguntas fundamentais
sobre a condição humana, sem com isso pretender apresentar as respostas. Uma
obra que não pode ser compreendida como prescritiva, pois não contém fórmulas
prontas, “apenas” conduz o leitor à reflexão. A maioria de suas peças centra-se na
figura de um jovem confrontando-se com a morte. Uma morte preta e masculina,
possível influência da cultura alemã, tendo em vista a proximidade da cidade natal
de Koltèz, Metz, com a Alemanha.
O autor trata da violência urbana com uma linguagem ao mesmo tempo
corrosiva e poética. As obras escritas por Koltès são, com poucas exceções, de uma
absoluta contemporaneidade. Mesmo partindo de histórias atuais para criar suas
peças, estas mantêm relações com os mitos fundadores da humanidade. Apesar de
apresentar na estrutura de seus textos características que o aproximam da escritura
clássica, a maneira como aborda os temas em sua obra pode ser considerada
inovadora e moderna. Podemos compreender suas peças como tragédias modernas
33
que abordam a solidão, o racismo, a violência, com uma crueza e urgência
raramente vistas no teatro de hoje.
A seguir estão relacionadas as obras de Bernard-Marie Koltès, organizadas
cronologicamente, com data de criação e, em alguns casos, de publicação. Para as
datas de publicação foram considerados como fonte o ano de lançamento da
Editions de Minuit, editora que detém os direitos na França das obras originais do
autor.
1970 Les amertumes (adaptação de A infância, de Gorki), publicada em
1998.
1970 La marche (adaptação Le cantique des cantiques), publicada em
2003.
1971 Procès ivre (adaptação de Crime e castigo, de Dostoïevski), publicada
em 2001.
1972 L'Héritage, publicada em 1998.
1973 Des voix sourdes.
1974 La fuite à cheval très loin dans la ville, sua única novela, publicada em
1984.
1974 Le jour des meurtres dans l'histoire d'Hamlet adaptação de Hamlet, de
Shakespeare. Publicada em 2006.
1977 Sallinger, encenado pela primeira vez Lion sob a direção de Bruno
Boëglin. Foi publicada em 1995.
1977 La nuit juste avant les forêts (A noite logo antes das florestas),
monólogo que estreou na programação Off do Festival de d'Avignon daquele
ano. Foi publicada em 1988.
1979 Combat de nègre et de chiens (Combate de negros e de cães). A peça
estreou em 1983 sob a direção de Patrice Chéreau, com Michel Piccoli e
Philippe Léotard. Foi a primeira montagem do Théâtre Nanterre-Amandiers. O
texto foi publicado em 1990.
34
1981 Quai oues (Cais Oeste) escrito a convite da Comédie-Française.
Publicada em 1985.
1985 Dans la solitude des champs de coton (Na solidão dos campos de
algodão). Publicada em 1987.
1986 Tabataba. Publicada em 1988.
1986 Prologue, novela incompleta. Publicada em 1991 com outros textos
curtos: Le coup dans la gueule; Jeet-Kune-Do; Last, Last dragon; Le coup
fantôme.
1988 – traduz “Conto de inferno”, de Shakespeare. Publicada no mesmo ano.
1988 Le retour au désert (O retorno ao deserto)
1988 Roberto Zucco, encenado pela primeira vez em 1990, em Berlim sob a
direção de Peter Stein. Texto publicado em 1990.
Apresentados elementos referentes à biografia de Bernard-Marie Koltès e
ainda sua produção literária, passaremos, a seguir, para a síntese de Roberto
Zucco, obra escolhida para a realização deste trabalho de dissertação.
1.3 Sinopse de Roberto Zucco
Esta que foi a última obra de Koltès retrata a trajetória de Roberto Zucco, um
rapaz suburbano de classe média que levava uma vida como a da maioria dos
jovens de sua faixa etária. Aos vinte e quatro anos de idade cometeu o primeiro de
seus delitos: o assassinato do próprio pai. Esses dados não são fornecidos de
imediato, já que a trama inicia com a fuga de Zucco da prisão.
Logo após ter conseguido escapar do cárcere, Zucco retorna à casa dos pais
para tentar reaver seu uniforme de combate. No encontro com a mãe, inicia-se uma
discussão: a mãe passa a acusá-lo pela morte do pai, enquanto o rapaz insiste
veementemente na recuperação de seu traje militar. A mãe de Zucco, dando-se por
vencida, realiza o pedido do filho, indicando-lhe o local em que se encontrava a
35
roupa que procurava. Antes disso, revela que quer vê-lo longe de seu convívio e que
não o perdoa por ter estrangulado o próprio pai. Ao se despedir da mãe, Zucco
comete o seu segundo crime, matando-a, no que parecia ser apenas um abraço.
Após abandonar a casa dos pais, Zucco, agora sem paradeiro certo, envolve-
se com uma jovem, a Menina
11
. Sem o consentimento da família, a Menina leva
Zucco para dentro de sua casa, escondendo-o debaixo da mesa da cozinha. Zucco
havia se apresentado à Menina como um agente secreto, mas acaba revelando o
seu verdadeiro nome à jovem que, escondida com ele, sob a mesa, entrega a sua
virgindade ao rapaz.
Na seqüência de informações presentes no texto, Zucco volta a matar. A
vítima, desta vez, é um Inspetor de polícia que morre apunhalado pelas costas. O
Inspetor estava hospedado no mesmo hotel de prostitutas em que se encontrava
Zucco. A morte dessa personagem é apresentada no texto por meio do relato de
uma testemunha ocular à proprietária do hotel. É possível constatar que o
assassinato ocorreu à luz do dia, diante de todo o bairro, ocasionando um estado de
assombro geral.
Em outra parte do texto, Zucco aparece numa estação de metrô sentado ao
lado de um homem de mais idade, denominado o Senhor. Esse “Senhor” havia se
perdido nos corredores da estação e aguardava a hora de ela abrir. No diálogo
travado entre eles, Zucco declara-se um rapaz normal e sensato, que não quer ser
herói, e sim transparente, revelando que todos os heróis têm as roupas manchadas
de sangue. O diálogo prossegue até que as luzes da estação se acendem e Zucco
auxilia o Senhor a embarcar no metrô.
Em outra seqüência, Zucco, completamente embriagado, envolve-se em uma
briga, num bar da cidade, durante a noite. Nesse confronto, é possível perceber a
desvantagem física entre ele e seu oponente. Zucco enfrenta alguém de porte maior
que ele, chamado pelo autor de Fortão. Mesmo após ser lançado pela vidraça para
11
Todos os nomes das personagens serão citados com iniciais maiúsculas, conforme o texto original, apesar de
não serem substantivos próprios.
36
fora do bar, Zucco continua provocando seu oponente, desconsiderando os apelos
de uma Puta.
Por força dos crimes que cometera, Zucco passa a ser procurado pela polícia
e vários cartazes com a sua fotografia são espalhados pela cidade. A menina, com
quem Zucco havia se relacionado anteriormente, após tê-lo reconhecido nas
imagens expostas na rua, é levada à delegacia pelo Irmão a fim de fornecer às
autoridades a identidade de Zucco.
Outro crime cometido por Roberto Zucco acontece num parque, em pleno dia,
quando assalta uma Senhora e seu filho. De posse de uma arma, ameaça matar os
dois, enquanto anônimos, que criticam a atuação da policia, acompanham de longe
o assalto. Depois de se certificar acerca da marca do carro da Senhora, Zucco mata
com um tiro na nuca o filho dela e a leva como refém.
Com o intuito de reencontrar Zucco, a Menina, por intermédio do Irmão,
ingressa num bordel de um bairro marginal, chamado Pequeno Chicago. Esse local
é vigiado por policias que estão à procura de Zucco. Ao se aproximar do bordel, a
Menina vai em direção a Zucco e lhe dá um beijo. Essa ação revela a identidade de
Zucco aos policiais que, ao ser interpelado, enumera os crimes que cometeu,
assumindo a sua condição de matador.
Após confessar os seus delitos, Zucco é preso mais uma vez. Assim que
chega à prisão, empreende uma nova fuga, deixando todos perplexos com a rapidez
com que tudo acontece. Alguns prisioneiros comentam a fuga, outros indagam a
respeito dos crimes cometidos, chegando a dirigirem as suas perguntas ao próprio
Zucco, enquanto este escala a sua fuga. Ao meio-dia, Zucco consegue subir no
telhado. Vozes de guardas e de presos se misturam. A luz do sol aumenta e, com
ela, a admiração de Zucco que passa a narrar o que está vendo, em meio a gritos
dos presos que o aconselham a descer. A luz do sol aumenta até o ponto em que a
personagem cai.
37
2 ROBERTO ZUCCO E A VIOLÊNCIA
Como forma de melhor demonstrarmos as análises empreendidas nesta
dissertação e darmos continuidade à estruturação da mesma, novamente optamos
por organizar o capítulo em três distintos momentos. Inicialmente vamos abordar os
princípios teóricos acerca da violência, apresentando as concepções de Roger
Dadoun, Nilo Odália e René Girard. Na segunda etapa apresentaremos uma análise
de Roberto Zucco articulando os aspectos apresentados, tanto no primeiro, como
neste segundo capítulo. Por fim, será abordada a trajetória do protagonista
relacionando-o às noções a respeito da violência apresentadas neste estudo.
2.1 Perspectivas teóricas sobre a violência
Poderíamos correr o risco de simplificar a obra Roberto Zucco se lêssemos
seu conteúdo apenas sob o ponto de vista de uma concepção dualista. As ações
criminosas do protagonista são contextualizadas de tal maneira que o pacto de
leitura exige um estatuto de significância mais complexo. Por essa razão, buscamos
autores que pudessem lançar alguma luz sobre a concepção de violência que Koltès
retrata nessa obra.
Dentre as noções referentes à violência, três foram os autores escolhidos, a
saber: Roger Dadoun, Nilo Odália e René Girard. Para esses autores, as raízes da
violência se relacionam com a natureza individual do ser humano e são expressas
38
no seu processo de sociabilização. Girard introduz a hipótese do desejo como a
mola deflagradora da violência entre seres humanos.
O francês Roger Dadoun, filósofo, psicanalista e professor emérito de
Literatura Comparada da Universidade de Paris VII, defende a noção do Homo
violens. Para ele, a violência nada mais é do que uma característica constitutiva do
homem, na medida em que somos definidos e estruturados por ela. Acreditamos que
este seja o ponto inicial para lermos a personagem Roberto Zucco, evitando
julgamentos maniqueístas e lugares-comuns, à semelhança do que essa obra de
Koltès também propõe.
Em toda sua complexidade, o ser humano carrega um conjunto de
habilidades que o distingue dos demais seres vivos do planeta. Foi por meio da
posição ereta que a humanidade conseguiu reconhecer “[...] territórios para
percorrer, explorar, conhecer, conquistar!” (DADOUN, 1998, p.5). Pela dinâmica da
evolução, o Homo erectus formula os primeiros questionamentos acerca de sua
condição, adquirindo autoconsciência, atingindo a condição de Homo sapiens.
Através da inteligência, constrói ferramentas e se torna menos dependente das
forças naturais.
Mas a espécie humana não é feita apenas de razão e vocação ao trabalho.
Sua habilidade de “jogar” se revela tão essencial quanto as outras. Este é ponto de
vista do historiador holandês Johan Huizinga (2005). De acordo com o autor, o jogo
é um elemento da cultura. Por meio de uma perspectiva histórica, Huizinga analisa o
jogo enquanto fenômeno cultural responsável pelo desenvolvimento cognitivo da
espécie humana. A partir do jogo o homem transforma não apenas a matéria, mas
também a realidade. Reconhece o mundo do modo diverso, para além do concreto,
extrapolando as formas naturais. Apreende, examina, constrói significações, vivencia
o universo, mobilizando suas potencialidades de ser humano. No entanto, este ser
hábil, inteligente e racional convive de perto com uma característica contraditória: a
mesma sabedoria que o capacita à criação também fomenta o impulso à destruição.
A respeito dessa propensão, Dadoun (1998) emprega, para solidificar sua
hipótese da violência como essência do homem, a Gênese bíblica que contém a
39
origem mítica para diversas civilizações. Dadoun (1998) evoca também a origem
etimológica latina da palavra violência (vis) para lembrar que ela, além de significar
“força”, “vigor”, “potência”, denota “essência”, “caráter essencial”.
Seguindo a perspectiva que Dadoun (1998), é possível encontrarmos a
violência em toda a parte, desde na Gênese Bíblica, na vontade de Deus e em todos
os momentos da vida humana onde há extermínio, terrorismo e mesmo nascimento,
infância, adolescência, sexualidade, trabalho. Ainda segundo o autor toda violência
funcionaria como resistência forte a outra violência.
Ainda que esta forma de ver a violência traga o perigo de naturalizá-la,
tornando-a tão genérica e permanente que fica impossível distinguir e analisar as
suas manifestações concretas, ela também enfatiza a violência como parte da
natureza humana e seu papel na constituição social.
A origem mítica fornecida pela Bíblia também foi objeto de estudo para um
filósofo e historiador brasileiro. Para Nilo Odália (2004), os acontecimentos narrados
na Gênese Bíblica exemplificam a dificuldade em reconhecermos um ato violento,
ponto também corroborado por Dadoun. Para exemplificarmos, podemos citar a
expulsão de Adão e Eva do Paraíso que revela uma violência mais sutil, dificultando
a sua compreensão como fruto de uma manifestação de violência. Adão e Eva
transgrediram uma norma, porém ela foi estabelecida unilateralmente. Uma vez
estabelecida, a norma parece ganhar sua própria legitimidade, o que valida a
existência de penalidades quando transgredida.
O “bem” e o “mal”, enquanto normas de conduta, eram desconhecidos para o
homem, que passa a se igualar a Deus a partir do instante em que desobedece à
proibição de comer o fruto proibido. O “mal” passa a existir a partir da transgressão,
apesar de ele sempre existir como uma possibilidade não revelada pela divindade.
Quando come o fruto, o homem concretiza o “mal” que desconhecia e por isso é
duplamente punido. Perde o paraíso e passa a conhecer o “mal”. Nesse exemplo
podemos ver uma situação onde a facilidade de se identificar a violência numa
instância, contribui para o encobrimento de outra ainda maior.
40
O homem errou quando desobedeceu a uma regra. Contudo, tal regra foi
fixada arbitrariamente, cuja existência apenas se justifica por uma vontade unilateral.
Se observarmos apenas a desobediência humana, aceitaremos o castigo. No
entanto, quando consideramos as diferenças de poder entre divindade e homem,
novas interpretações podem surgir. Ao estabelecer uma regra que só ela conhecia a
divindade passa a legitimar seu poder de punição. O faz a partir de uma
diferenciação de status, que lhe faculta o direito de julgar o ato de Adão e Eva como
sendo uma infração. Além das várias camadas interpretativas que um ato violento
pode significar, o exemplo contribui também para observarmos as diferenças de
poder que estão envolvidas nessas situações.
Variados são os usos para o termo “violência”. De modo geral, é possível
observarmos duas orientações conceptuais: a violência é produto ou conseqüência
da vida em sociedade? Ou seria um traço da condição humana? “O viver em
sociedade foi sempre um viver violento. Por mais que recuemos no tempo, a
violência está sempre presente, ela sempre aparece em suas várias facetas”
(Odália, 2004, p. 13). A violência não pode ser definida com uma característica de
uma época, como ilustram alguns exemplos citados por Odália. Partindo das
sociedades mais primitivas até o homem de hoje, a violência sempre esteve, ou
está, presente.
Ao compreendermos violência a partir de seu percurso sócio-histórico,
passamos a reconhecer o processo contextual no qual ela ocorre e suas implicações
à ordem social. Nesse sentido, violência pode ser compreendida enquanto
manifestação inserida num processo de transformações históricas da vida em
sociedade. Assim, é possível obtermos um retrato sociológico e antropológico das
manifestações de violência e podemos também enfocá-la como uma faceta
comportamental do individuo. Produzir violência é uma característica do ser humano
que o distingue dos animais, na medida em que ele é capaz de atingir um grau
destrutivo ímpar, a ponto de atentar contra sua própria existência.
A complexidade do conceito acerca do vocábulo “violência” não reside apenas
no fato de ser possível percebermos duas instâncias de abrangência: uma social
(externa) e outra individual (subjetiva). Um olhar menos atento poderia concluir que
41
as manifestações de violência são sempre claramente demarcadas. Se assim fosse,
sua identificação seria algo bastante simples de ser feito. Todavia, nem sempre é
possível reconhecê-la, pois:
O ato violento se insinua, freqüentemente, como um ato natural, cuja
essência passa despercebida. [...] Razões, costumes, tradições, leis
explícitas ou implícitas, que encobrem certas práticas violentas normais na
vida em sociedade, dificultam compreender de imediato seu caráter.
(ODÁLIA, 2004, p. 22)
Uma situação que exemplifica esse ponto de vista é o assassinato, transposto
a situação de guerra. Nesse contexto, ele muda de sentido: a preservação de
valores ideológicos ou econômicos supera o respeito à vida humana. Matar deixa de
ser um crime e converte-se em um ato heróico. Essa característica de como
socialmente legitimamos um ato de violência – ainda que em termos gerais – abre
caminho para uma naturalização dessas manifestações que dificultam seu
reconhecimento.
O paradoxo do reconhecimento da violência possibilita uma manipulação, por
parte de alguns grupos, que perpetuam historicamente a prática de dominação entre
desiguais. Seria, portanto, também o resultado de uma diferenciação de poder.
Neste estudo, este aspecto relaciona-se à distinção entre força e violência defendida
no âmbito social por Georges Sorel. Segundo ele, força são os atos cometidos pela
autoridade, e violência os atos de revolta. “Diríamos, portanto, que a força tem por
objetivo impor a organização de certa ordem social na qual uma minoria governa,
enquanto a violência tende à destruição dessa ordem”. (1992, p. 195)
Mesmo em sociedades consideradas democráticas, as práticas de sujeição
estão presentes, como mostram as pesquisas de Michel Foucault
12
sobre os
delineamentos gerais do poder “disciplinar” – poder que se aplica singularmente aos
corpos pelas técnicas de vigilâncias, pelas punições normalizadoras, pela
organização panóptica das instituições punitivas – chegando até ao conceito de
“biopoder” – poder aplicado globalmente a toda população. A identificação de uma
12
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.
42
manifestação de violência exige, então, uma contextualização para que tal ato possa
ser compreendido a partir dos códigos e condutas vigentes no espectro sócio-
cultural.
Um exemplo dessa duplicidade de sentidos pode ser encontrada estampada
diariamente nos noticiários, o ato terrorista. As ações desses grupos são definidas,
para aqueles que lhes servem de alvo, como atos bárbaros, primitivos, bestiais,
indignos, ou seja, uma ação encarada sob o prisma destrutivo. No entanto, a mesma
ação, para aqueles que a praticam, adquire um sentido diverso, pois reconhecem
nela um ato heróico, destemido, altruísta, abnegado, ou seja, comprometido com
valores que ultrapassam a vontade individual.
O terrorismo revela, segundo seus pares, a vontade “pura” do homem,
desprendida de desejos individualistas. E, nesse sentido, revelador de um caráter
essencial da conduta humana.
É evidente a presença da violência no nosso cotidiano. Ela está tão
entranhada em nossa convivência diária que pensar e agir em função dela deixou de
ser um ato circunstancial, e até por isso, “configura nosso modo de ver e de viver o
mundo”. (ODÁLIA, 2004, p. 9)
Novamente exemplificando esse ponto de vista, Odália (2004) cita as
transformações verificadas na paisagem urbana que nas décadas anteriores
mantinham uma relação com o espaço exterior contrária à observada hoje. Antes as
residências eram projetadas para fora, absorvendo o espaço a seu redor. Hoje a
arquitetura do espaço aberto cede seu lugar a uma arquitetura de defesa e proteção.
Moramos em fortalezas, o que de certo modo, resgatou “uma concepção de moradia
que se aproxima à concepção medieval” (ODÁLIA, 2004, p. 11).
Estabelecido esse comparativo entre o hoje e ontem, o Odália (2004) discorre
sobre as implicações conceituais da noção de espaço. Numa se verifica uma relação
onde o espaço é “algo a ser conquistado, a ser incorporado e absorvido pela casa,
[...] na outra, o espaço é contido e prisioneiro, os jardins são engolidos por grossas e
altas muralhas”. (p. 11-12)
43
Essa maneira como nos relacionamos com o espaço urbano é encontrada
nos bairros de classe média e alta das áreas urbanas. No entanto, também nas
favelas o convívio com a violência configura comportamentos. A maior proximidade
com as manifestações de violência institui uma naturalização de sua presença nas
relações entre os homens. A impossibilidade de afastá-la do ambiente pode até
mesmo criar a falsa impressão de segurança, forjada pela sua presença recorrente
no ambiente.
Ainda que seja possível levantar mais características a respeito do conceito
de violência, destacamos dois aspectos que orientarão a análise apresentada neste
capitulo: a mobilidade do conceito violência em relação ao código moral e a
observância de motivações ora individuais, ora sociais, relacionadas com as
manifestações de violência. Esses dois aspectos são especialmente relevantes ao
trabalho, tendo em vista o propósito de verificarmos o conhecimento vinculado à
temática da violência no texto dramático Roberto Zucco.
É importante salientar que até o presente momento, salvo a citação bíblica,
foram feitas considerações a respeito de uma violência não textual, ou seja, não
representada simbolicamente. Quando configurada textualmente, a violência tem
seu efeito impactante estabelecido em uma medida diferenciada, se comparada ao
verificado na experiência real. Todavia, é justamente pelo filtro simbólico que as
conotações à ordem social são potencializadas na recepção.
Nesse processo de recepção estética, a violência desempenha um papel
catártico à semelhança do que propõe René Girard (1998) que procura explicar a
origem da cultura e da estrutura da violência a partir da sua relação com o sagrado.
Para o autor, o sagrado nada mais é do que uma ferramenta reguladora criada pelas
sociedades para controlar a ameaça da violência e é sobre este processo que a
sociedades estão erigidas.
Embora considerando a violência também como fundadora da sociedade,
Girard (1998) mostra que ela tem uma saída sacrificial na religião, através dos bodes
expiatórios, pois o assassinato e o sacrifício são aparentados, levando o ser humano
44
a buscar substitutivos para a violência como uma válvula de escape que serve de
mediação entre o sacrificador e a divindade, o sacrificado e a sociedade.
Ainda hoje, essa mediação está presente no imaginário da sociedade, nos
inúmeros rituais sacrificiais existentes, simbólicos ou não. Deus, para apaziguar sua
cólera, exigiria o sacrifício na mentalidade ancestral dos homens que sempre
exigiriam reparação daqueles que ofendem suas punições. A própria justiça tem o
papel de uma vingança pública, ao substituir a vingança com as próprias mãos.
De acordo com Girard (1998), a violência nasceria do desejo mimético que
está estruturado a partir de três eixos: sujeito, objeto e mediador. O sujeito deseja o
objeto de um outro sujeito, sem desejar o objeto em si. É a partir da relação de
disputa entre os sujeitos que se estabelece a rivalidade mimética.
Os dois sujeitos se tornam rivais devido ao mimetismo do desejo, na disputa
pelo mesmo objeto, embora esse sentimento esteja arraigado não no objeto, mas na
imitação do desejo do outro. Ou seja, aquilo que um sujeito deseja, em relação ao
outro, já não é o objeto, mas o desejo de possuir aquilo que o outro possui.
De acordo com essa concepção, a violência nada mais é do que o resultado
do desejo mimético. Abre-se então um perigoso caminho que ameaçaria a estrutura
social, não fossem as soluções sociais pacificadoras expressas na figura do bode
expiatório e do sacrifício.
É a comunidade inteira que o sacrifício protege de sua própria violência, é a
comunidade inteira que se encontra assim direcionada para vítimas
exteriores. O sacrifício polariza sobre a vítima os germes da desavença
espalhados por toda parte, dissipando-os ao propor-lhes uma saciação
parcial. (GIRARD, 1998, p. 19)
Esse expediente não elimina a estrutura do desejo mimético, pois segundo
Girard (1998) este é imutável e universal, mas contribui para regulamentar a
violência, transferindo-a para uma vítima expiatória.
45
O autor exemplifica sua teoria analisando a estrutura dos mitos e relatos
literários como Édipo, Caim e Abel, e a Paixão de Cristo. Segundo Girard (1998), em
todos os mitos é possível encontrar o ponto culminante da crise mimética, quando a
violência põe em risco a manutenção do grupo. Os mitos narrariam, portanto,
processos de crise sacrificial que foram superados, recorrendo aos processos
vitimizadores.
A violência sacrificial e os mitos que a relatam não são violentos em si, mas
estão sempre orientados para a paz. A violência sacrificial é apaziguadora,
reconciliadora, terminal, decisiva. O sacrifício tem sua eficácia enquanto processo
preventivo, coibindo a violência.
Mas a paz é provisória. Quando o sistema ritual perde sua força apaziguante,
renascem as tensões, espalha-se a violência. A sociedade humana estaria, portanto,
construída sobre uma violência originária que o rito ao mesmo tempo encobre e
reproduz.
Essa violência funda-se, essencialmente, numa ilusão. O sacrifício não tem,
por si, o poder de gerar efeitos benéficos. Se estes acabam por se produzir, é por
intermédio da crença generalizada que canalizam os ódios sociais no inocente para
aplacar a violência.
Assim, fecha-se o sistema: o mimetismo causa a insatisfação; a insatisfação
causa as desavenças; as desavenças ameaçam a ordem social; a ordem social se
restaura mediante o sacrifício do inocente, que então vira mais um deus no panteão
do engano universal.
Girard (1998) destaca a origem da palavra “sacrifício” que etimologicamente
significa fazer sagrado. O sacrifício é um mecanismo social produtor de sagrado.
Mas a violência do sacrifício não apenas produz o sagrado como também sacraliza a
própria violência. Banida da sociedade por causa de seus efeitos maléficos, a
violência é ao mesmo tempo venerada pela sua virtude benéfica.
46
Essa condição permite à vítima transitar entre o bem e o mal. Ela tem poder
maléfico por condensar a maldade social enquanto bode expiatório, mas tem poder
redentor ao libertar os perseguidores de suas recriminações recíprocas e, ao mesmo
tempo, trazer benefícios sociais.
Girard (1998) reivindica que esse sistema é universal, regulando todas as
sociedades. Ao analisar um amplo material fenomenológico: peças literárias e mitos
gregos clássicos, europeus, americanos e africanos, o autor encontra, em todos
eles, evidências da estrutura vitimizadora, confirmando a universalidade de sua tese.
No plano social, a violência estetizada pela arte desempenha uma função
análoga ao preconizado pelo sistema girardiano. Revisitando a tragédia grega,
observaremos a recorrência de narrativas onde as personagens estão às voltas com
uma mecânica da violência tão implacável que inviabiliza uma distinção simplista
entre “bons” e “maus”. Ela também é capaz de nos fornecer notáveis exemplos onde
o sacrifício, de homens ou de animais, está presente.
De acordo com Girard (1998) “só é possível ludibriar a violência fornecendo-
lhe uma válvula de escape”. O autor exemplifica esse ponto de vista, fazendo uma
alusão à obra Medéia, de Eurípides. Nesse texto, o principio da substituição, já
evidenciado anteriormente, está presente.
Em Medéia, pode ser encontrada uma passagem em que a Ama, personagem
que cuida dos filhos da personagem título, temendo pela segurança das crianças,
tendo em vista a cólera da patroa, recém abandonada por Jasão, pede ao preceptor
que mantenha os jovens longe da mãe:
Ama: Tenta mantê-los afastados, se possível; não lhes permitas chegar
perto de uma mãe desesperada; vi-a olhando-os ferozmente, como se
meditasse alguma ação funesta. Ela por certo não refreará a cólera até
haver vibrado sobre alguém seus golpes. Que os atos dela ao menos sejam
praticados contra inimigos e jamais contra os amigos! (EURÍPIDES, 2003, p.
23)
47
As preocupações da Ama dizem respeito ao expediente da substituição por
Medéia do verdadeiro objeto de seu ódio, Jasão, pelos seus próprios filhos, já que o
acesso ao homem que ama lhe é vedado.
Tomando como base o exemplo citado, a substituição da vitima, presente no
ritual, equivale à fruição estética na obra trágica. Ambas possuem a capacidade de
canalizar a violência humana para um campo menos doloso. No ritual, a imolação da
vítima inserida num contexto religioso converte a violência em sacrifício. No teatro, a
representação da violência produz certo grau de espelhamento que permite a
reflexão dos princípios sociais vigentes.
A partir dos pressupostos abordados até o presente momento, passaremos,
na próxima seção, à análise da violência presente na obra dramática de Bernard-
Marie Koltès, Roberto Zucco.
2.2 A violência em Roberto Zucco
O ato de ler um texto teatral implica na realização de processos mentais de
ordem distinta daquele verificado em outros textos. Seu processo de construção de
significado está além do documento textual, na medida em que também envolve os
elementos visuais e a performance do ator. Para Ubersfeld (2005) o texto teatral
coloca o leitor “diante de um objeto literário, cujas estruturas são mais densas do
que as de um texto poético, e ainda menos lineares que as de uma narrativa”. (p.
XIII)
A reflexão a respeito do texto teatral esbarra no paradoxo entre a produção
literária e a representação concreta. Tal paradoxo torna a arte teatral eterna (pela
materialidade do objeto escrito, e, portanto, reprodutível infinitamente) e instantânea
(pela efemeridade da encenação, que torna única no hic et huc, logo jamais da
mesma maneira). No presente trabalho serão levadas em consideração as marcas
textuais encontradas na obra Roberto Zucco, seu sistema de cortes, de
encadeamento, ou seja, o modo como o discurso se apresenta no projeto do autor.
48
De acordo com Ryngaert:
Ler um texto de teatro é uma operação que se basta em sim mesma, fora
de qualquer representação efetiva, entendido que ela não se realiza
independentemente da construção de um palco imaginário e da ativação de
processos mentais como em qualquer prática de leitura, mas ordenando-o
num movimento “a caminho” do palco. (1996, p.25)
A primeira marca textual consiste no próprio título da obra: Roberto Zucco.
Essa a primeira referência que o leitor recebe. O autor optou por intitular a obra
através do nome do protagonista, uma prática à qual os leitores já estão habituados.
Em geral, a maior parte das tragédias clássicas são intituladas pelo nome de um
herói ou heroína.
Obras que carregam o nome do protagonista no título podem tanto apoiar-se
na notoriedade da personagem, como ao contrário, torná-la conhecida pelo status
que a condição de título implica. Especificamente em Roberto Zucco, o autor faz
referência a um jovem homicida que foi bastante destacado pela mídia francesa
durante sua vida de crimes, Roberto Succo. Com isso, o autor parece seguir a
tradição histórica da tragédia, ainda que “não nos moldes clássicos e sim mais nos
moldes shakespearianos, pois da mesma maneira que o dramaturgo inglês, Koltès
insere cenas cômicas com o mesmo interesse de atenuar a tensão da tragédia.”
(MACHADO, 2001)
Seguido ao título da obra, o leitor encontra a seguinte epígrafe:
Depois da segunda oração, tu verás subir o disco solar e verás pendurado
nele o phallus, a origem do vento; e se virares teu rosto em direção ao
Oriente, ele mudará de lugar, e se virares teu rosto em direção ao
Ocidente, ele te seguirá. (Liturgia de Mithra, parte do Grand Papyrus
MagiquedeParis. Citado por Carl Jung em sua última entrevista à B.B.C.)
Trata-se de uma didascália situada fora da parte representacional do texto,
como no caso das rubricas de ação. Nela Koltès estabelece uma analogia entre a
hierarquia sacerdotal presente na prática religiosa do Mithriacismo e a trajetória do
protagonista. Conforme elucida Machado (2001), “essa epígrafe, enquanto rubrica,
49
assume uma condição de suporte com elementos sociológicos que transcende o
aspecto funcional.”
Machado (2001) aponta ainda que o Mithriacismo organizava-se em torno da
divindade oriental Mithra, através de um culto antigo, que foi introduzido em Roma
no século III a.C. Nesse período, a sociedade romana encontrava-se saudosa dos
seus valores originais, pois estes vinham perdendo espaço para as culturas
estrangeiras. O mundo cosmopolita daquela época era confrontado com os
princípios dessa religião que propagava a recuperação dos traços identitários.
Machado (2001) salienta que o resgate dessa identidade era justamente
aquilo que os romanos médios desejavam, pois sua condição vinha se
desprestigiando na medida em que qualquer pessoa livre era considerada cidadão
do Império e não mais apenas os nascidos em Roma. A expansão do Império trouxe
para dentro de Roma povos, culturas e costumes estrangeiros. Para os romanos de
nascimento, essa multiplicidade era encarada como perigosa, tendo em vista o fato
de acreditarem que essa miscigenação produzia o enfraquecimento da cultura
tradicional. Ao mesmo tempo em que o Império mantinha um domínio político e
econômico sobre terras estrangeiras, seus traços identitários ficavam sujeitos a
influências culturais cada vez maiores, ou seja, quanto mais o Império se expandia,
mais sua cultura se transformava.
Podemos observar algumas semelhanças entre as características sociais
apresentadas no Mithriacismo romano e o pano de fundo da obra Roberto Zucco.
Koltès apresenta-nos uma sociedade em desequilíbrio, onde as oportunidades não
são as mesmas para todos. Ele leva à cena alguns tipos marginalizados, a começar
pelo protagonista. Vale destacar também que a personagem Roberto Zucco é um
estrangeiro. Seu sobrenome denota a origem italiana, apesar de a maior parte dos
acontecimentos ocorrer na França.
Para a compreensão de como a obra Roberto Zucco se apresenta, é
importante enfatizar o significado do termo “quadro”: “unidade da peça do ponto de
vista das grandes mudanças de lugar, de ambiente ou de época. A cada quadro
corresponde, na maior parte do tempo, um cenário particular. (PAVIS, p. 313, 2003)
50
O texto é composto por quinze quadros, todos intitulados, a exemplo do
explorado na prática brechtiana. A estruturação da obra através de quadros
configura um tratamento que decompõe a situação dramática a partir das rupturas
das ações presentes no enredo. Assim, nesse texto dramático, o enredo se
desenvolve aos saltos e não de modo linear. Por meio da estrutura em quadros, o
autor potencializa a dimensão sociológica na apresentação do tema, pois enfatiza
mais os elementos épicos do que os dramáticos, entrando em acordo com as
concepções pós-Brecht encontradas na maioria dos dramaturgos contemporâneos.
(RYNGAERT, 1996)
O autor utiliza também didascálias durante toda a obra. Essas indicações do
autor acontecem segundo a forma tradicional, ou seja, apresentam as entradas e
saídas das personagens, descrevem o ambiente e oferecem elementos à
interpretação dos quadros.
O texto apresenta um total de dezoito personagens com falas, além dos
figurantes sugeridos em cinco grupos distintos: Homens, Mulheres, Putas, Cafetões
e Vozes, sendo este último subdividido entre prisioneiros e guardas.
A maioria das personagens é nomeada de acordo com suas máscaras
sociais: mãe, pai, irmã, irmão, delegado, guarda, senhora elegante, comissário de
policia, etc. A única exceção é a personagem protagonista, Roberto Zucco, que
possui nome próprio, além de intitular a obra. Dessa maneira, o autor afirma o
propósito de destacar a personagem Zucco, que adquire um estatuto simbólico
ímpar em comparação às demais personagens.
A nomeação a partir das máscaras sociais forma um conjunto coerente
carregado de várias conotações, como é o caso das personagens que atuam em
duplas: Primeiro Guarda / Segundo Guarda; Primeiro Policial / Segundo Policial;
Inspetor / Comissário. Essas personagens apresentam um funcionamento cômico a
exemplo do verificado nos tipos cômicos desde Shakespeare, passando pela
Commedia dell’arte italiana, pelo cinema mudo até as duplas cômicas da tevê.
51
As passagens cômicas protagonizadas por essas figuras, longe de diminuir o
a tragicidade do texto, ampliam sua intensidade: tanto propiciam alívio ao leitor
quanto lhe dão uma condição de superioridade crítica diante dos fatos. Pavis (2003)
afirma que o efeito cômico é produzido através da capacidade humana de perceber
os aspectos insólitos e ridículos da realidade física e social. Enquanto dimensão
psicológica, a percepção de uma ação ou situação cômica está ligada ao julgamento
do observador que se acha superior ao objeto percebido e disso tira uma satisfação
intelectual.
Evidentemente, com já salientava Propp (1992, p. 32), “no âmbito de cada
cultura nacional, diferentes camadas sociais possuirão um sentido um sentido
diferente de humor e diferentes meios para expressá-lo.”
A percepção simpática da inferioridade do outro, e por extensão da nossa
superioridade, situa o efeito cômico entre um processo de identificação e distância
critica com o objeto. De acordo com a classificação de Propp (1992), esse sentido
de superioridade é o resultado do que ele conceitua como riso de zombaria,
caracterizado pelo prazer de ordem moral, “signo da vitória daquilo que ele [o
homem que ri] considera justo”. (1992, p. 181)
Propp afirma ainda que “a linha divisória entre a viciosidade que constitui o nó
da tragédia e os defeitos, que são possíveis na comédia, não pode ser estabelecida
logicamente: quem o decide é o talento e a sensibilidade do escritor”. (1992, p. 135)
Além dos aspectos textuais presentes em Roberto Zucco, são importantes as
demais características que compõem este tipo de obra literária. Tratando-se de um
texto dramático, faz-se necessário discutirmos a respeito das implicações que sua
representação abarca. Devido ao grande número de códigos que atua na
representação, o signo teatral apresenta uma complexa natureza. Ele é construído
tanto pela coexistência, como pela superposição com outros signos.
[...] todo signo teatral é simultaneamente índice e ícone, às vezes símbolo:
ícone, pois o teatro é de certo modo a produção-reprodução das ações
humanas; índice, pois todo elemento da representação insere-se numa
seqüência em que adquire sentido; o traço mais inocente, o mais
52
aparentemente gratuito tende a ser captado pelo espectador como índice de
elementos futuros, mesmo se a expectativa venha ser frustrada.
(UBERSFELD, 2005, p.11)
Agrega-se à dificuldade em analisar o signo teatral sua polissemia. O mesmo
signo está inserido em distintos códigos, como é o caso da indumentária, ou seja, do
figurino. Ainda que inserida em um quadro cênico, sua cor pode remeter a um
código simbólico das cores, enquanto seu uso pragmático, ao lugar social da
personagem.
É possível identificar na obra o emprego dessa característica do signo teatral
no quadro II, “O Assassinato da Mãe”, por meio do uniforme militar que Zucco vai
buscar na casa de sua mãe. A disputa travada entre as personagens potencializa o
sentido figurado daquela indumentária: um traje para os momentos de guerra agrega
tensão e força ao conjunto cênico.
Texto e teatralidade ocupam papéis distintos, mas que se sobrepõem para a
comunicabilidade de uma obra. Na representação teatral, o texto está presente sob
a forma de voz. Porém, ao mesmo tempo em que acompanha a representação, ele a
precede, tendo em vista sua forma fixa.
A segmentação, propiciada pela divisão em quadros, aproxima esse texto
dramático de um roteiro cinematográfico, realizando um percurso que inicia na ação
se dirige à imagem, como pode ser observado na nomeação do primeiro e último
quadro respectivamente: A Fuga e Zucco ao Sol.
Com relação às didascálias, percebe-se o cuidado do autor em propor
indicações precisas sobre a cenografia, o figurino e a realização de efeitos auditivos
e visuais. As rubricas exercem uma função tanto funcional, quanto poética,
rivalizando em significação com o espaço reservado ao diálogo no conjunto da obra.
Ao longo do texto é possível identificar a presença da violência sob duas
formas. A primeira delas está expressa no diálogo entre as personagens, através do
emprego de um linguajar que induz o leitor à criação de imagens de caráter
violentas. A segunda diz respeito às ações físicas que são executadas, na maioria
53
das vezes, pelo protagonista. A violência evocada no diálogo tem sua existência
apenas no plano das palavras e por ocorrer com todas as personagens contribui
para a uniformidade temática que assegura a unidade do discurso. O texto não
apenas é permeado por ações físicas ou dramáticas onde a violência se sobressai,
mas também por acionar no leitor a memória de violências a partir da fruição do
diálogo.
Ainda que muitos dos acontecimentos apresentados na obra tenham origem
em fatos verídicos, como veremos a seguir, o autor não se mantém fiel àqueles
eventos. Ao contrário, enfatiza a dimensão mítica e poética presente na jornada do
protagonista.
Para isso, Koltès concebe um assassino que não se aproxima da imagem de
um monstro, tão pouco a de um herói, assim o autor reivindica a condição ficcional
da obra Roberto Zucco
A trama de Koltès nasceu de várias fontes. Uma delas emerge de fatos
verídicos. Outras, das próprias vivências do autor, como por exemplo, a sua fixação
pelo continente africano. Essa mistura está na própria essência da obra literária,
como afirma Reis:
O texto literário é pluristratificado, no sentido em que é formado por
diversos estratos integrados por elementos diversos. Desempenhando
funções específicas e diferenciadas, esses elementos articulam-se entre si
de maneira não raro extremamente complexa e formam, desse modo, uma
entidade orgânica e polifónica. (1995, p. 177, grifos do autor)
Retomando a discussão sobre a relação personagem e realidade, podemos
salientar que esse tema não é novo na tradição literária. Vários estudos assumiram
a tarefa de teorizar sobre a matéria em diferentes períodos, privilegiando uma ou
outra orientação conceitual. Tratar as personagens apenas como entidades pintadas
num papel, seria utilizar um discurso redutor. Seu funcionamento textual permite que
“esses edifícios de palavras congreguem vida ficcional e realidade material.” (BRAIT,
2002, p. 9)
54
O teatro, assim como as demais formas literárias, usa a realidade como
pressuposto comum entre autor e leitor para tornar possível a leitura do texto
dramático. Dessa maneira, é reforçado o efeito do real na obra. A realidade tomada
como referência pela ficção constrói simultaneamente contexto ideológico, histórico
e o intertexto. Um exemplo explícito de intertexto aparece no quadro XIII
denonimado Ofélia, uma clara referência a personagem shakespeariana, o quadro é
ambientando numa estação de trem ao som da chuva que é saudada pela
personagem por conta das propriedades de limpeza e purificação que água pode
produzir: “Tudo é sujo aqui. Essa cidade toda é suja e cheia de machos. Que chova,
que chova muito, que a chuva lave um pouco a minha rolinha na fossa imunda onde
ela está”. A relação entre a água e a Ofélia shakespeariana em Roberto Zucco
reforça a amargura da “Irmã mais velha” com os homens.
Para Olmi (2003, p. 268) “O intertexto é a percepção, por parte do leitor, de
relações entre uma obra e outra antecedente ou posterior, chegando a identificar,
nessa perspectiva, a intertextualidade com a própria literalidade [...]” É através de
todas as mediações e transformações possíveis na leitura do texto dramático que
ele ganha significado.
No teatro, o que se encontra fora do texto escrito é essencial para
compreender o que há tanto no texto escrito, quanto no representado, pois as
personagens atuam na comunicação teatral também pelo contágio passional: tudo o
que emana do corpo do ator e incute a emoção no corpo e no psiquismo do
espectador. A platéia vivencia emoções distintas daquelas que se apresentam no
palco, ainda que mantenham relações com as primeiras. (UBERSFELD, 2005)
As personagens são o principal veículo de significação de um texto narrativo.
(SCHOLES e KELLOGG, 1977, p.72). Lê-se narrativo aqui como sinônimo de fábula
e não como gênero literário. Em Roberto Zucco temos um protagonista inspirado em
fatos verídicos. No entanto, a obra não pretende ser totalmente fiel a esses fatos. Ao
contrário disso, conjuga aspectos verídicos e ficcionais. Como em toda fábula ao
atribuir um sentido, o leitor está associando ao universo ficcional criado pelo autor a
realidade concreta que vivencia cotidianamente.
55
Uma das especificidades do gênero teatral é a importância que a personagem
assume para a constituição da obra, pois nada existe a não ser através dela
(PRADO, p. 84). As ações, que caracterizam o gênero, são executadas através das
personagens. São elas que se dirigem ao público sem a mediação de um narrador.
Dessa maneira, o texto é mostrado e não narrado, assumindo uma carga persuasiva
relevante.
Por meio da personagem, a narrativa, em estado de ação, impele o
espectador à crença de que tudo é verdade. Porém, quando falamos em
personagem, não podemos esquecer suas diversas variações: tipo, figura, máscara
e protagonista. Estas diferenciações são utilizadas para caracterizar o grau de
desenvolvimento psicológico que tais criações literárias possuem.
A mais tradicional variação acerca da personagem refere-se à noção de
protagonista. Para os gregos do período clássico, protagonista era o ator que fazia o
papel principal. A origem etimológica está na junção dos vocábulos prôtos, primeiro,
e agonizesthai, combater (PAVIS, p. 310). Apesar de os gregos empregarem o
termo para referirem-se ao ator, atualmente ele é também usado para indicar a
personagem principal de uma obra literária. Essa dupla referência, ator e texto,
parece-nos bastante adequada e justifica nossa preferência em utilizarmos, sempre
que possível, o vocábulo protagonista, ao longo deste trabalho.
Dados esses aspectos, analisaremos como o autor mescla elementos reais
de vida de Roberto Succo ao conceber a trajetória da personagem Roberto Zucco.
Desse modo, esperamos demarcar algumas escolhas que caracterizam o trabalho
criativo do autor, bem como as significâncias resultantes de tais escolhas.
De acordo com Peixoto (1995), a inspiração para Koltès criar a personagem
central de seu texto dramático ocorreu no começo de 1988, após ver no metrô de
Paris um cartaz de “PROCURA-SE”. O cartaz mostrava quatro fotos de um jovem
sem nome que havia assassinado um policial. Koltès ficou imediatamente fascinado
pela beleza do jovem e pelo seu ar sereno e tranqüilo. Dias depois, Koltès assistiu,
num noticiário de televisão, ao mesmo rapaz, escapando pelos telhados da prisão
de Treviso, uma província italiana da região de Vêneto.
56
Segundo Machado (2001), durante mais de uma hora, o prisioneiro, na sua
tentativa de fuga, dirigiu-se aos jornalistas, arremessou telhas às viaturas policiais,
chegando a ficar quase sem roupa, até ser recapturado, após cair de um cabo
elétrico que se rompeu. Voltando a ser preso, o rapaz foi enviado a um hospital
psiquiátrico, em cujo local cometeu suicídio por estrangulamento. Foi também por
estrangulamento que Succo cometeu seu primeiro crime, aos quinze anos, ao matar
seu próprio pai (PEIXOTO, 1995).
Na obra de Koltès, verificamos uma transposição dessa realidade para a
ficção, já que o pai da personagem Roberto Zucco também é assassinado pelo filho
por estrangulamento. Um diferencial entre realidade e ficção reside na idade dos
matadores: Succo cometeu seu primeiro crime aos quinze anos; Roberto Zucco, aos
vinte e quatro, conforme apontam os dados presentes nos dois primeiros quadros da
obra dramática em estudo.
No primeiro deles, “A Fuga”, Zucco surge, de madrugada, andando no alto do
telhado da prisão, como uma aparição. Os guardas, apesar de logo avistarem o
prisioneiro, não dão crédito ao que vêem, pois estão convencidos de que aquela é
uma prisão muito moderna, cujas fugas são impossíveis. Após um determinado
tempo, o Segundo Guarda diz o seguinte: “Eu diria mesmo que era o Roberto Zucco,
aquele que foi preso essa tarde pelo assassinato do pai. Uma besta furiosa, uma
besta selvagem”. Conforme o autor aponta, através de uma didascália, Zucco
desaparece tranqüilamente atrás de uma chaminé e é só então que os guardas
identificam a fuga em curso.
No segundo quadro, novamente o homicídio do pai é mencionado. Neste
quadro, intitulado “O assassinato da mãe”, Zucco quer entrar em casa, mas é
barrado pela sua progenitora. É ela quem informa o leitor sobre o impacto que o
crime do filho causou: “Você estava mais seguro na prisão, porque se virem você,
você vai ser linchado: não se admite aqui que alguém mate o próprio pai. Até os
cachorros, nesse bairro, vão te olhar atravessado”.
Nas falas dos guardas também encontramos refletidas as discussões infladas
pela mídia quando os fatos aconteceram com Succo e que, de certa forma, estão
57
subjacentes ao discurso da obra, como no questionamento da personagem ao final
do diálogo:
Segundo Guarda — Mas não há fuga aqui. É impossível. A prisão é
moderna demais. Mesmo um prisioneiro bem pequenininho não poderia
fugir. Mesmo um prisioneiro tão pequeno quanto um rato. Se ele passasse
pelas grades maiores, depois, tem as grades mais finas, como num coador,
e depois mais finas ainda, como uma peneira. Teria que ser líquido pra
poder passar entre elas. E uma mão que esfaqueou, um braço que
estrangulou, não podem ser feitos de líquido. Ao contrário, eles devem ficar
grandes e pesados. Como você acha que alguém pode ter a idéia de
esfaquear ou estrangular, primeiro a idéia, e depois passar pra ação?
Mais adiante o autor retrata uma noção, extraída do senso comum, a respeito
do caráter violento: a de que existiria uma marca física que denotaria a
predisposição à violência. O autor aqui desmistifica esse ponto de vista, fazendo-nos
perceber que a questão ultrapassa os rótulos socais.
Segundo Guarda — Eu que sou um guarda já faz seis anos, eu sempre
olhei os assassinos procurando onde poderia estar o que faz com que eles
sejam diferentes de mim, vigia de prisão, incapaz de esfaquear ou
estrangular, incapaz até de ter a idéia de fazer isso. Eu pensei, eu procurei,
eu fiquei até olhando quando eles tomavam banho, porque me disseram
que era no sexo que o instinto assassino se alojava. Eu vi mais de
seiscentos, e nenhum ponto em comum entre eles; tem gordo, pequeno,
magro, bem pequeno, redondo, pontudo, tem ainda os enormes, e não dá
pra chegar a nenhuma conclusão a partir disso.
Outro elemento começa a aparecer na obra, a eroticidade. Ao fazer
comentários que poderiam ser entendidos como referências ao falo dos prisioneiros,
o autor faz uma alusão indireta ao strip-tease televisionado de Succo, quando fugiu
da prisão italiana. Koltès também aproveita esse fato para agregar comicidade ao
quadro, como revela o jogo de duplo sentido das palavras na citação referida.
De volta aos elementos que influenciaram a criação do dramaturgo, Machado
(2001) relata que a jornalista Pascale Froment também estava interessada na
história de Roberto Succo. Contudo, sua intenção era de reconstruir o itinerário real
daquele jovem. Desse interesse resultou a obra Histoire vraie de Roberto Succo,
assassin sans raison. Dez anos depois da publicação desse livro, Cédric Kahn,
cineasta francês, realizou a adaptação fílmica do livro da autora, intitulado Roberto
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Succo. Essa obra cinematográfica participou da mostra competitiva do Festival de
Cannes, na edição de 2001.
Foi Pascale Froment quem forneceu diversas informações a Koltès, que são
referidas no texto dramático, como o fato de a polícia ter podido identificar o foragido
pelo depoimento de uma namorada sua que, a princípio, referiu-se a ele como
Roberto Juce, já que não se lembrava do verdadeiro nome de seu amante. No
decorrer do depoimento, a moça, pressionada pela polícia, lembrou que na verdade
o sobrenome do rapaz era Succo. A associação de um nome ao outro deu-se na
medida em que “jus”, do francês, equivale a “succo”, do italiano, que significa suco
de fruta.
Como os jornalistas que noticiaram os fatos referentes a Succo não
conheciam bem o episódio, escreviam seu nome de duas maneiras: ora Succo, ora
Zucco. Koltès, ao usar o “z” na grafia do nome da personagem, manteve a referência
verídica da confusão e, ao mesmo tempo, demarcou o caráter fictício da sua criação.
A confusão em torno do sobrenome também está presente no texto, mais
especificamente numa passagem do quadro IX, “Dalila”. Nele, A Menina, instigada
pelo Irmão vai até uma delegacia, afirma conhecer o rosto estampado nos cartazes
de espalhados pela polícia. Ela, para se recordar do nome do procurado, faz um
jogo de palavras à semelhança do episódio verídico.
Vale destacar também que o nome do quadro induz o leitor a reconhecer na
ação da Menina uma traição. Isso ocorre na referência à personagem bíblica que
desgraçou Sansão, Dalila, o arquétipo da mulher inescrupulosa, que usa de seus
encantos para atrair os homens fortes à ruína. O título do quadro é uma informação
que normalmente não estaria acessível ao espectador. Contudo, a referencia bíblica
também é corroborada por várias passagens nos diálogos, como as que
apresentaremos a seguir:
DELEGADO — Então, ele te disse que era agente secreto. É estranho.
Em princípio, um agente secreto deve permanecer secreto.
A MENINA — Eu disse pra ele que eu guardaria esse segredo a qualquer
custo.
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COMISSÁRIO — Bravo. Se todos os segredos fossem guardados como
esse o nosso trabalho seria fácil.
Mas adiante, no quadro XIV, “A prisão”, nova referência bíblica, quando A
Menina dá um beijo em Zucco permitindo, dessa forma, que os policiais o
identifiquem. Novamente ela é pivô de uma traição. Por fim, no quadro XV, “ Zucco
ao sol”, a lenda será referida explicitamente no diálogo entre as personagens
secundárias.
UMA VOZ — Você é um herói, Zucco.
UMA VOZ — É o Golias.
UMA VOZ — É Sansão.
UMA VOZ — Quem é Sansão?
UMA VOZ — Um mau elemento de Marselha.
UMA VOZ — Eu o conheci na prisão. Uma verdadeira besta. Ele podia
quebrar a cara de dez pessoas de uma vez.
UMA VOZ — Mentiroso.
UMA VOZ — Só com os seus socos.
UMA VOZ — Não, com um maxilar de asno. E ele não era de Marselha.
UMA VOZ — Ele foi beijado por uma mulher.
UMA VOZ — Dalila. Uma história de cabelos. Eu conheço.
UMA VOZ — Tem sempre uma mulher para trair.
De acordo com Machado (2001), a jornalista Pascale também forneceu à
Koltès uma fita cassete gravada pelo próprio Succo, da qual o dramaturgo
incorporou ao seu texto dramático algumas frases no diálogo do protagonista. No
quadro VIII, “Logo antes de morrer”, vemos Zucco falando ao telefone com um
interlocutor imaginário, já que o aparelho está estragado. Destacamos na fala da
personagem o trecho da referida gravação:
ZUCCO — Eu quero ir embora. E preciso ir embora logo. Faz muito calor
nesta merda de cidade. Eu quero ir para a neve da África. É preciso que
eu vá embora porque eu vou morrer. De qualquer forma, ninguém se
interessa por ninguém. Ninguém. Os homens precisam de mulheres e as
mulheres precisam de homens. Mas amor, não há. Com as mulheres, é
por pena que meu pau sobe. Eu gostaria de nascer de novo como um
cachorro para ser menos infeliz. Cachorro de rua, remexendo no lixo;
ninguém me notaria. Eu gostaria de ser um cachorro amarelo, cheio de
sarna, um cachorro jogado fora sem importância. Eu gostaria de ser um
vira-lata remexendo no lixo por toda a eternidade. Eu acho que não há
palavras, não há nada a dizer. É preciso parar de ensinar as palavras.
E preciso fechar as escolas e aumentar os cemitérios. De qualquer
forma, um ano, cem anos, é tudo a mesma coisa; mais cedo ou mais
tarde todos nós devemos morrer, todos. E isso, isso faz os pássaros
cantarem, faz os pássaros rirem.
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O título do quadro pode ser compreendido como um comentário poético do
autor sobre a trajetória do protagonista. Dessa maneira, há uma antecipação ao
leitor sobre o destino da personagem, acentuando a carga dramática do enredo.
Porém, é possível também lermos no título uma referência ao estado psicológico de
Zucco. Pois a causa de seu descontentamento reside justamente na certeza da
morte.
Como já foi dito, no teatro, habitualmente é omitido ao espectador a
nomeação dos quadros. No entanto, isso não significa que este dado permaneça
ignorado na comunicação teatral. Pelo contrário, o título dos quadros se faz presente
na representação através das escolhas estéticas desenvolvidas no processo de
criação da cena pelos artistas.
Outra característica que interessa a Koltès consiste na dimensão espetacular
desses acontecimentos. O autor revela a fascinação que exerce a violência sobre a
multidão, colocando em cena pessoas ao redor de um cadáver. Tal situação aparece
por duas vezes na obra, nos quadros X e XV, “O refém” e “Zucco ao Sol”. De acordo
com Machado (2001), o quadro X foi inspirado no assalto a um banco seguido da
tomada de reféns, ocorrido em Gladbeck, em agosto de 1988. Durante esse assalto,
alguns reféns foram executados em público e a cena veiculada pelos noticiários de
tevê, gerando grande comoção.
Ao reunir todos esses dados sobre Succo, Koltès alcançou um extraordinário
conhecimento acerca do criminoso. Apesar disso, não interessava ao dramaturgo,
explorar apenas essa realidade perversa, que fazia de Succo um assassino e a
encarnação do mal absoluto, reforçada pela mídia. O autor não desenvolve a obra
buscando apontar justificativas para os atos de seu protagonista e está mais
interessado em criar uma obra mais provocativa do que numa tendência a dar
explicações. Tanto pode ser assim, que se no contexto da mídia Roberto era visto
com um criminoso perigoso, no texto dramático ele ganha contornos de herói.
Koltès elabora uma obra que explora a constituição psicológica do criminoso.
Porém, “o que o autor diz pode ser verdadeiro, mas de modo algum a verdade”
(FOSTER, 1969, p. 56). Ainda que Foster se refira ao oficio do romancista ao fazer
61
tal afirmação, ela também se aplica ao verificado em Roberto Zucco. O crivo criativo
do autor enriquece a história, problematizando seus matizes. Mais do que contar a
história “real”, temos nesta obra um retrato da complexidade humana. Nesse
sentido, o gênero dramático mostra-se especialmente adequado, pois, como afirma
Ryngaert, “o texto de teatro não imita a realidade, ele propõe uma construção para
ela, uma réplica verbal prestes a se desenrolar em cena.” (1998, p. 5)
A seguir apresentaremos um perfil com os principais aspectos relativos à
constituição da personagem Roberto Zucco, tendo como premissa sua filiação à
escrita contemporânea. Será igualmente abordada a especificidade da escritura
teatral, tomando como eixo a relação entre personagem e presença cênica.
2.3 A personagem Roberto Zucco
Zucco é uma personagem construída apenas no agir devido à ausência de
motivações aparentes. Essa característica amplia a tensão entre obra e leitor na
medida em que o segundo é instigado a inferir as razões para o comportamento do
protagonista.
O mesmo recurso é explorado em outros textos contemporâneos, embora
tenha sua origem no passado. Aristóteles, na Poética, ao se referir às características
do texto trágico, já afirmava que “não agem as personagens para imitar caracteres,
mas assumem caracteres para efetuar certas ações, por isso as ações e mito
[enredo] constituem a finalidade da tragédia.” (1968, p. 75)
De acordo com essa concepção, a personagem é o principal elemento para
revelar o encadeamento da intriga, enquanto a ação funciona como o “motor do
drama”. Esse entendimento é recuperado por dramaturgos e encenadores na
atualidade, resultando em dramas cujas ações são apresentadas objetivamente, não
estando justificadas por meio de um estudo psicológico de suas motivações (PAVIS,
2003). Koltès, por meio de Zucco, filia-se a essa corrente, concebendo uma
62
personagem que exige do leitor uma atitude mais ativa para que se atinja o sentido
da obra.
Roberto Zucco é um rapaz de 24 anos. Filho único de uma família suburbana.
A respeito do pai, a obra pouco informa, além do fato de ter sido estrangulado por
Roberto, o que motivou sua primeira prisão. Sobre a mãe, também as informações
são esparsas. Ela, do mesmo modo, é assassinada pelo filho, no final do segundo e
único quadro em que aparece, não havendo mais menções a essas personagens
nos quadros posteriores.
Além de assassinar por estrangulamento pai e mãe, Roberto comete outros
dois crimes: dispara um tiro à queima roupa contra uma criança, completamente
indefesa, e assassina um inspetor de polícia, pelas costas, a golpes de faca, razão
pela qual passa a ser procurado. Todas essas transgressões apontam para um
caminho sem volta. Ao assassinar os pais, elimina sua origem e se lança para a
sociedade onde novamente expressa seu desajuste.
A descrição dos traços físicos de Zucco também apresenta características
ambivalentes. As personagens femininas salientam sua beleza andrógina, seu olhar
doce, sua “cara de bebê”, e suas mãos grandes e fortes. A brutalidade de seus atos
contrasta com sua beleza, despertando repulsa e atração nas demais personagens.
No plano amoroso, o protagonista revela-se distante, apesar dos assédios da
Menina e da Madame. A primeira, após perder a virgindade com ele, passa a
procurá-lo e, nessa busca, sela o destino de Zucco propiciando, mesmo sem querer,
informações à polícia que resultam no seu retorno à prisão. Quanto à Madame, há
apenas insinuações de seu desejo, não correspondido, por Zucco,
Ainda no plano das relações com outras personagens, será durante o
encontro com um senhor mais velho perdido numa estação de metrô, o momento em
que o protagonista declara alguns aspectos a respeito de si mesmo. Afirma, entre
outras coisas, que é preciso ser invisível para estar na Sorbone. Há também uma
autodefinição de Zucco como um ser pacífico e normal. Durante todo esse quadro,
“Metrô”, o protagonista mostra-se educado, servil e interessado.
63
Novamente não há razões aparentes para que Zucco tome essa atitude. No
entanto, esse comportamento, por estranhamento, acentua no leitor a impressão de
crítica social. À trivialidade com que o diálogo se desenvolve contrasta a potência
violenta de Zucco, gerando um estado de tensão.
Esse contraste entre o comportamento de Zucco e sua enunciação, somado
ao cartaz que anuncia a sua condição de foragido (que se encontra atrás do banco
onde a situação dialogada ocorre) concede ao leitor uma consciência dos fatos
ignorada pelas personagens. Essa consciência é parcial, na medida em que se
aplica apenas à ameaça que Zucco poderia significar ao Senhor. As razões para
essa ameaça ou para o teor das declarações permanecem ignoradas.
O conjunto de elementos apontados ressalta a crítica ao processo de
sociabilidade que despreza as diferenças. O ascender socialmente, figurado pela
Sorbone, para ser alcançado, exige do indivíduo sua despersonalização,
convertendo-o em um ser invisível. Esse é o desejo manifesto da personagem, no
entanto o leitor poderá ter a consciência de que Zucco não se enquadra nesse
modelo.
Ainda que o leitor desconheça o grau de consciência que a personagem tem
de seus atos, mesmo que Zucco queira assumir essa condição, sua incapacidade de
ajuste o impede de obtê-la. Se julgarmos que a transparência signifique um
comentário irônico de Zucco para o velho, outra, entre o protagonista e o leitor, se
sobrepõe. Em ambos os casos a crítica social do autor prevalece.
Enquanto efeito dramático, o dramaturgo estrutura uma situação carente de
ação física (as personagens permanecem sentadas durante a maior parte do
quadro), mas de grande impacto dramático (resultado do jogo de tensões exposto
acima). Esse resultado tem na figura de Zucco seu principal agente.
A personagem de teatro é uma entidade literária para ser lida e para ser vista.
Seu código se caracteriza pela mediação de um ator. “A personagem cênica
adquire, graças ao ator, uma precisão e uma consciência que a fazem passar do
estado virtual ao estado real e icônico.” (PAVIS, 2003, p. 288)
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Pavis (2003) salienta também que tudo o que na literatura é lido nas
entrelinhas, na encenação estará determinado. Essa característica tende a diminuir
a percepção imaginária, mas acrescenta novas perspectivas ao modificar a situação
de enunciação, reelaborando a cada encenação a interpretação do texto falado.
A personagem textual, para adquirir visualidade, necessita de informações
explicitamente enunciadas a respeito da sua composição física e moral. Para que o
leitor possa reconstruir a imagem da personagem, é necessário que ele recorra a um
processo de inferências e generalizações.
Todavia, para a personagem em cena, o que não falta são detalhes visuais.
Para que alcance seu significado, o espectador necessita fazer um ajustamento
entre a figura mostrada e o texto dramático, perfazendo um processo de
simplificação da imagem rumo ao universo literário.
Conforme já explicitado, a ação em Zucco é um fim em si mesma, na medida
em que a obra não apresenta motivações explícitas para o seu agir. Tentar
encontrar as razões do agir na estrutura da obra seria então um exercício inútil. Por
esse motivo tentaremos ponderar a respeito das implicações desse agir sem causa
para a interpretação da obra. Um importante indicativo nesse sentido pode ser
encontrado no décimo quadro, intitulado “O Refém”, que termina com a morte
gratuita de uma criança, visto que ela, totalmente rendida e apática não oferecia
risco à Zucco.
Ainda que o protagonista não tenha nenhuma necessidade pragmática em
cometer o ato, tal ação tem um valor específico naquele contexto. É ela quem
espetaculariza o seqüestro, encerrando o conjunto deflagrado pelas outras
personagens.
Por meio das personagens secundárias, a atuação do protagonista e da
polícia ecoa através de todo o tipo de comentários. A cena em questão, uma das
mais extensas da obra, inicialmente explora o efeito cômico dessa situação até o
instante final quando uma didascália informa que Zucco, com um revólver na mão,
toma o menino pelos cabelos, desferindo-lhe um tiro na nuca.
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Ao configurar a espetacularização da violência pela ação do protagonista, o
autor impõe uma situação onde o agir de Zucco contrasta com a passividade das
outras personagens. Enquanto Zucco não pode sair da condição de agente, já que
essa é sua gênese, as demais personagens não podem renunciar à condição de
espectadores.
A máquina de matar automatizada e as personagens, que apenas “assistem”
à ação, espelham ao leitor uma sociedade que transforma o humano em um ser
passivo, incapaz de mudar seus condicionamentos.
Paradoxalmente, a passividade é criticada pela insistência em agir do
protagonista. Quanto mais ele replica o comportamento violento ao longo da
trajetória, mas evidente se torna a passividade.
Passamos agora a traçar as possibilidades de significações presentes no
desenvolvimento do protagonista. Para alcançarmos tal propósito, recorremos à
tradição teatral, mais especificamente, à tragédia clássica e ao conceito de herói por
ela moldado. Acreditamos que, desse modo, poderemos aprofundar um pouco mais
o aspecto mítico que envolve o protagonista, desde os primeiros instantes desse
texto dramático até a sua conclusão.
A teoria freudiana vê o homem civilizado em contradição com seus instintos
primários. As subjugações das necessidades instintivas afirmam a incompatibilidade
entre sociedade civilizada e indivíduo. Contudo, o domínio da razão repressiva é
historicamente contestado pelos heróis culturais, criações literárias que se rebelam
contra os deuses. (MARCUSE, 1981)
Os heróis culturais simbolizam a produtividade, o esforço para dominar a vida,
uma produtividade que interliga trabalho e progresso. Como o ícone do herói cultural
do esforço laborioso temos Prometeu e, como antagonista, Dionísio. Essa
separação talvez explique a não consolidação da figura dionisíaca como um herói
cultural num mundo ocidental. Sua imagem é a da alegria e da fruição, da união do
homem com o divino, com o natural (MARCUSE, 1981).
66
Em contraste com as imagens dos heróis da cultura que se apóia no mito de
Prometeu, as do mundo dionisíaco são essencialmente irreais e irrealistas.
Designam uma atitude e existência impossíveis, como as verificadas na trajetória de
Zucco, capaz de ultrapassar grades ou fugir de uma prisão onde as fugas seriam
impossíveis. Ainda que os heróis de origem prometeica também apresentem feitos
sobre-humanos, seu significado está em concordância com a realidade,
fortalecendo-a, ao invés de relativizá-la, como fazem os heróis dionisíacos.
Na arte teatral, a personagem está em condições de assumir os traços e a
voz do ator, de modo que, aparentemente, isso não pareça problemático. No
entanto, apesar da evidente distinção entre a identidade do homem vivo e uma
personagem, esta última, nos primórdios do drama, não era mais do que uma
máscara. Pavis (2003) enfatiza que no teatro grego, a persona é a máscara, o papel
dramático assumido pelo ator, ou seja, o termo não se aplicava à personagem
esboçada pelo autor no texto dramático. Para essa acepção, o ator e a personagem
estariam nitidamente separados, sendo o primeiro tão somente o executante do
segundo.
Ao observarmos o desenvolvimento do teatro ocidental até os nossos dias,
verificaremos que foi empreendida uma inversão nessa perspectiva. Cada vez mais
a personagem foi se identificando com o ator que a encarna. As personagens
tornaram-se entidades psicológicas mais amplas, espelhando posicionamentos
morais mais próximos aos dos homens. Essa evolução só fez aumentar o efeito de
identificação entre leitor e personagem.
Entretanto, a identificação com o herói é um fenômeno que tem raízes
profundas no inconsciente e se relaciona com o princípio catártico já apontado por
Aristóteles na Poética. Segundo Nietzsche (2006), o prazer de identificação com a
personagem é um fenômeno dramático fundamental na comunicação teatral. De
acordo com este autor, mesmo a figura mais repulsiva contém um poder mágico que
supera:
toda e qualquer lei, toda e qualquer ordem natural e até o mundo moral,
mas exatamente por essa atuação é traçado um circulo mágico superior de
67
efeitos que fundam um novo mundo sobre as ruínas do velho mundo que foi
derrubado (NIETZSCHE, 2006, p. 64).
Essa habilidade presente no gênero dramático, que de forma alguma é
exclusividade do teatro, permite alcançar o sublime a partir do horrível, já apontava
Aristóteles. Especificamente no caso de Roberto Zucco, a mesma característica
possibilita ao leitor aceitar a violência exposta na obra através de um viés contrário
ao que ela seria na vida cotidiana. Enquanto corriqueiramente violência é sinônimo
de destruição, na obra de arte ela assume a tarefa edificante, construtiva, pois
permite a produção de autoconhecimento.
As ações de violência representadas em Roberto Zucco adquirem um sentido
simbólico que ultrapassa os limites da ficção. Desse modo, a obra promove um
movimento de retorno à realidade, local, aliás, de onde o autor encontrou a
inspiração para conceber a obra.
A ficção nascida de fatos não-ficcionais se reencontra com a realidade
através de um sentimento de inquietação que o discurso produz ao revelar que as
manifestações de violência do protagonista refletem a nossa própria violência. A
identificação com Zucco potencializa esse processo e reforça a sensação de que
qualquer um poderia estar naquela situação, seja na condição de algoz, seja na
condição de vítima.
Todo herói trágico possui uma origem incomum. Fruto da união entre o divino
e terreno, ele é o templo de vários contrários. Aristóteles indica a esse respeito à
necessidade do meio termo: nem tão bom, nem tão mau assim. Contudo, no herói
trágico, essa inclinação híbrida, longe de harmonizar seu ímpeto, é o ponto
nevrálgico de sua natureza. É ela que o impele ao erro.
Sabemos que Zucco não descende de deuses, sua matéria é a mesma de
qualquer outra personagem realista. Um jovem não muito diferente de qualquer
rapaz que habita a realidade. Sua peculiaridade reside na natureza criminosa que,
sem explicações, manifesta-se pela primeira vez ao assassinar o pai.
68
Mas o traço incomum de sua constituição, além da inclinação à violência,
também aparece nos contornos do enredo, que do primeiro ao último quadro,
enfatizam a ambigüidade em suas várias dimensões. Seu primeiro crime é contra ele
mesmo: mata o pai e, no regresso à casa materna, após ser renegado, assassina a
própria mãe.
Habilmente, o dramaturgo aproveita os problemas que em geral os heróis têm
com seus laços familiares, para fundar a ação propulsora ao texto dramático. Após
Zucco exterminar o referente máximo de sua origem, passa a vagar pela paisagem
urbana: aparece na casa da Menina; num hotel de putas; num bar; num parque
público; numa estação de trem; na rua.
O final apoteótico da peça também denota a influência de um recurso
característico da tragédia, o deus ex machina ou, literalmente, o deus que desce
numa máquina. No gênero trágico esse era um recurso dramatúrgico que precipitava
o fim da peça através do aparecimento de uma personagem.
Eurípides destacou-se na utilização do deus ex machina. Um exemplo
clássico disso é o final da tragédia Medéia. Após assassinar os próprios filhos, a
heroína é retirada de cena num carro do sol. Nas encenações de tragédias gregas
recorria-se a um aparato suspenso que funcionava como uma grua, que literalmente
trazia para o palco uma divindade capaz de resolver os conflitos.
Segundo Pavis, “o deus ex machina é usado, muitas vezes, quando o
dramaturgo encontra dificuldade para achar uma conclusão lógica e quando procura
um meio eficaz para resolver de uma só vez todos os conflitos e contradições.”
(2003, p. 92)
A subida de Zucco ao alto do telhado da prisão, que resultará na queda, é
motivada por um súbito e inédito interesse pelo Sol. Ele passa a descrevê-lo na
tentativa de alcançá-lo e cai. Ainda que nem todos os pré-requisitos para que essa
ação se configure como um deus ex machina estejam contemplados, ainda é
possível identificarmos as semelhanças.
69
Em Roberto Zucco, a presença da polícia, desta vez, prenuncia o fracasso da
fuga. O autor “tira” de cena as demais personagens, convertendo-as em várias
vozes, concentrando, dessa maneira, a atenção dos espectadores apenas na figura
do protagonista. Com isso, há uma ampliação do grau de tensão na cena. Esses
elementos abrem terreno para a utilização do deus ex machina. Enquanto recurso
dramático, Koltès cria um conjunto de condições semelhantes à situação-limite que
na tragédia grega é resolvida pelo deus ex machina.
No que se refere ao uso de recursos cenográficos também é possível
estabelecermos analogias. Tanto o Sol como o deus ex machina exigem solução
cênica: enquanto a luz do sol aumenta ao ponto de dificultar a visão da platéia, ou
seja, constitui-se num efeito luminoso, o deus ex machina consistia em um aparato
cenográfico igualmente independente dos elementos textuais.
Essas características apresentadas, somadas ao efeito gerado pela trajetória
do protagonista, permitem reconhecer na estrutura dramatúrgica da obra Roberto
Zucco um projeto de atualização do gênero trágico, ainda que em bases
contemporâneas.
No capítulo a seguir apresentaremos um estudo a respeito dos aspectos
envolvidos na caracterização da temática da violência na estrutura da obra Roberto
Zucco e suas implicações cognocentes.
70
3 ALGUMAS ESTRATÉGIAS DE COGNIÇÃO ENVOLVIDAS NA OBRA
Passaremos agora a tecer algumas considerações a respeito das estratégias
metacognitivas suscitadas pela leitura da obra Roberto Zucco. Nosso propósito
consiste em investigar a articulação dessas estratégias com o processo de
significações construído na leitura deste texto dramático. Tais estratégias estão
diretamente relacionadas à interpretação postulada no âmbito deste trabalho, não
tendo, portanto, a pretensão de esgotar o assunto. Ao contrário, muitos poderiam ser
os enfoques válidos e, conseqüentemente, as estratégias de leitura e significações
identificadas.
Durante o processo de análise individual, a partir da segmentação em
quadros proposta por Koltès, foi possível identificar a presença de diferentes campos
indutores de significância que, devido às suas especificidades, foram divididos em
quatro grupos, a saber: as metáforas, mecanismo de antecipação; espaço simbólico
e espaço pragmático; e unidade temática.
Denominamos esses quatro grupos de “estratégias de cognição” por
reconhecermos neles importantes aportes à elaboração de sentidos suscitados pelo
texto dramático. A atuação de cada uma das estratégias segue suas peculiaridades,
reforçando ou acomodando aspectos da narrativa, contribuindo, portanto, à
construção do discurso. Passemos agora à análise individualizada de cada uma das
estratégias cognitivas identificadas no texto dramático.
71
3.1 As Metáforas
Ainda dentro dos estratagemas que Koltès emprega, abordaremos a tipologia
das metáforas na obra. Em última análise, toda a obra poderia ser entendida como
uma grande metáfora. No entanto, focalizaremos aquelas que são suscitadas pelos
diálogos e pelas relações espaciais. Tal distinção teve por propósito apenas
organizar a análise, não havendo entre elas uma relação hierárquica qualquer.
Valemos-nos das considerações de Searle (2002) para analisar as metáforas
no âmbito do diálogo, visto que este apresenta um consistente estudo a respeito do
sentido metafórico das palavras. No tocante, as relações contextuais entre fala e
espaço cênico, os apontamentos de George Lakoff e Mark Johnson (2002)
mostraram-se especialmente úteis, na medida em que apresentam uma concepção
a respeito da metáfora menos restrita ao sentido literal, abrangendo o campo das
significações figuradas ou poéticas. Dessa maneira, as concepções desses autores
foram empregadas na análise como complementares.
De acordo com Searle (2002) o problema de explicar como as metáforas
funcionam no cotidiano da linguagem é uma questão a parte quando se pensa a
distinção entre o significado do falante e o significado das sentenças e palavras. Em
termos mais rigorosos, expressões, sentenças e palavras possuem um significado
específico. Contudo, quando nos referimos ao significado metafórico da palavra,
estamos mencionando aquilo que um falante poderia querer expressar ao emitir tal
expressão, sentença ou palavra, em divergência com o que ela realmente significa.
Ou seja, existe o significado da emissão do falante e o significado de palavras ou
significado de sentenças. Assim, segundo este autor, o significado metafórico será
sempre um significado da emissão de um falante.
Searle (2002) salienta ainda que a tarefa de construir uma teoria da metáfora
consiste em tentar expressar os princípios que relacionam o significado literal da
sentença ao significado metafórico da emissão. Do ponto de vista do ouvinte, o
problema de uma teoria da metáfora é explicar como ele pode compreender o
72
significado da emissão do falante, já que tudo o que ouve não passa de uma
sentença associada a significados de palavras e a um significado sentencial.
Do ponto de vista do falante, o problema é explicar como ele pode querer
significar algo diferente dos significados das palavras e do significado sentencial da
sentença que emite. Em termos teóricos, a questão sobre o funcionamento da
metáfora precisa, então, elucidar como ocorre a compreensão entre falante e ouvinte
na emissão metafórica e quais são as distinções entre ela e outros tipos de emissão
onde o significado do falante não coincide com o significado literal.
Searle (2002) aponta também que dentre as teorias sobre a metáfora, de
Aristóteles até hoje, são duas as correntes dominantes: as teorias da comparação,
que afirmam que as emissões metafóricas envolvem uma comparação ou
semelhança entre dois ou mais objetos; as teorias da interação semântica, que
sustentam que a metáfora envolve uma oposição verbal ou interação verbal entre
dois conteúdos semânticos: o da expressão usada metaforicamente e o do contexto
literal circundante.
As teorias da comparação não cobrem o principio da inferência na construção
do significado do enunciado, deixando de fora instâncias responsáveis pelo
processo de compreensão, com base no qual o falante produz e o ouvinte
compreende a metáfora. Já as teorias da interação semântica não consideram a
distinção entre o significado da sentença ou da palavra (que nunca é metafórico) e o
significado do falante ou da emissão (que pode ser metafórico).
O que a emissão metafórica significa é diferente do significado das palavras e
sentenças, não porque tenham mudado os significados dos elementos lexicais, e
sim, porque o falante quer significar com elas outra coisa.
Por essa razão, o significado do falante nem sempre coincide com o
significado das sentenças ou palavras. De acordo com Searle (2002), este é o ponto
principal para o problema da metáfora: explicar como o significado do falante e o
significado da sentença diferem e como estão, ainda assim, relacionados.
73
Searle (2002) afirma também que a teoria da interação não é suficiente para
explicar como o falante e o ouvinte são capazes de compreender uma metáfora.
Dizer que determinado sentido literal pode ser compreendido por semelhança não
resolve, mas transfere a outro estágio a questão, pois a semelhança é um predicado
genérico: duas coisas quaisquer podem ser semelhantes sob algum aspecto.
Apesar das dificuldades em se explicar teoricamente o funcionamento da
metáfora, ela é bastante presente na linguagem. Segundo Georges Lakoff e Mark
Johnson (2002), a metáfora está infiltrada na vida cotidiana, não somente na
linguagem, mas também no pensamento e na ação.
O sistema conceitual humano funcionaria de modo metafórico, condicionando
o modo como pensamos e sentimos a vida. Como tal sistema conceitual nem
sempre é acessado conscientemente, a linguagem é o instrumento pelo qual a
metáfora pode ser melhor identificada na vida cotidiana. (LAKOFF e JOHNSON,
2002)
Fundamentalmente, a metáfora consiste numa habilidade lingüística que nos
permite “compreender e experienciar uma coisa em termos de outra” (LAKOFF e
JOHNSON, 2002, p. 48). Os autores vão mais longe e afirmam que a própria
estrutura da linguagem é metafórica, assim com a grande parte dos processos do
pensamento.
“Um conceito metafórico pode nos impedir de focalizar outros aspectos desse
mesmo conceito que sejam inconsistentes com essa metáfora”. (LAKOFF e
JOHNSON, 2002, p. 53) O sentido produzido por uma metáfora tanto “encobre
determinados aspectos de um conceito, com faz “revelar” outros. Conceitos
metafóricos podem também ser entendidos para além do campo literal cotidiano,
passando para o campo figurado ou poético. (LAKOFF e JOHNSON, 2002, p. 57)
Lakoff e Johnson (2002) reuniram as metáforas em distintos grupos a partir de
suas especificidades. Segundo eles, além das metáforas que estruturam um
conceito em termos de outro existem as metáforas orientacionais que organizam
todo um sistema de conceitos em relação a outro.
74
A maior característica desse tipo de metáfora é estar relacionada com a
orientação espacial no nosso ambiente físico (para cima – para baixo, dentro – fora,
frente – trás, em cima de – fora de (on-off), fundo – raso, central – periférico). Assim,
o conceito de “feliz” recebe uma orientação espacial equivalente a “para cima” na
expressão “Estou me sentido para cima hoje”. (LAKOFF e JOHNSON, 2002, p. 59)
Esta associação entre um conceito e uma orientação espacial é fruto das
nossas experiências físicas e culturais. As metáforas de espacialização para cima –
para baixo são estruturadas a partir da coerência entre constatações e associações
de ordem física e social com o culturalmente estabelecido. Por isso nenhuma
metáfora pode ser compreendida, ou mesmo representada de forma adequada,
independente da base experiencial do destinatário.
Além das metáforas de orientação, os autores apresentam as do tipo
ontológicas que se caracterizam por conceberem eventos, atividades, emoções,
idéias, etc., como entidades discretas ou substâncias de uma espécie uniforme:
Uma vez que as experiências são identificadas como entidades ou
substâncias, podemos referir-nos a elas, categorizá-las, agrupá-las e
quantificá-las – e, dessa forma, raciocinar sobre elas. Também servem para:
referi-se, quantificar, identificar aspectos, identificar causas, traçar objetivos
e motivar ações. (LAKOFF e JOHNSON, 2002)
Sua ocorrência é tão comum que quase sempre não são percebidas enquanto
metáforas. As metáforas ontológicas auxiliam o homem a lidar racionalmente com as
experiências cotidianas.
Nossa constituição física permite aceitar o mundo reconhecendo sua
separação entre nós e os objetos que nos cercam. “Cada um de nós é um recipiente
com uma superfície demarcadora e uma orientação dentro-fora”. (LAKOFF e
JOHNSON, 2002, p. 81) Projetamos nossa experiência dentro-fora a partir da
relação como outros ambientes. A possibilidade de quantificarmos então nossa
experiência advém dessa estratégia racional de delimitação das coisas.
75
As metáforas ontológicas mais óbvias talvez sejam as que concebem pessoas
como objetos físicos. Elas nos permitem a variabilidade das experiências
concernentes a entidades não-humanas em termos de motivações, características e
atividades humanas. Desse modo, experiências não-humanas adquirem status
humano num processo de personificação coerente à situação metafórica proposta.
Lakoff e Johnson (2002) também estabelecem uma distinção entre metáfora e
metonímia. A metáfora é, grosso modo, uma maneira de conceber uma coisa em
termos de outra, e sua função primordial é a compreensão. A metonímia, por sua
vez, tem função referencial, ou seja, permite-nos usar “uma entidade para nos
referirmos a outra [...] relacionada a ela” (LAKOFF e JOHNSON, 2002, p. 91-92).
A metonímia possui, em parte, semelhante uso da metáfora. No entanto,
permite-nos focalizar mais especificamente em determinadas características as
quais nos referimos. Ela, do mesmo modo que a metáfora, denota a maneira como
agimos, pensamos e falamos no dia-a-dia.
Foi a partir dessas considerações que procurarmos identificar as principais
metáforas da obra Roberto Zucco, relacionando-as não apenas aos aspectos
literários, mas também visuais: característica de todo texto pertencente ao gênero
dramático.
Como já citado, de modo geral, os estudos de Searle (2002) desempenharam
especial papel ao analisarmos pontualmente as frases, enquanto Lakoff e Johnson
(2002) se mostraram mais decisivos ao ponderarmos a respeito das metáforas para
além do nível frasal.
Dentre o material levantado, apontamos quatro passagens para caracterizar a
ocorrência das metáforas na obra, bem como suas contribuições à construção de
sentido. A primeira diz respeito ao modo como o protagonista é referido, tanto por
ele mesmo, como por outras personagens. A segunda passagem analisada tem
como eixo uma didascália no final do segundo quadro. A terceira análise tem como
referência a presença de um objeto cenográfico, enquanto a última refere-se à
relação entre as didascálias e as falas, no quadro final da obra.
76
O apresentado nesses quatro exemplos procurou contemplar nosso propósito
de observarmos tanto o contexto cênico, como a porção eminentemente literária da
obra. Embora a produção de imagens seja o destino de todo o texto dramático, entre
os exemplos citados salientamos uma diferenciação. Foram consideradas, no
primeiro exemplo, apenas as informações extraídas das elocuções das
personagens. Enquanto nas demais, os aportes fornecidos pelas didascálias foram
incorporados aos elementos analisados.
Numa certa altura do texto dramático, o protagonista se define como um
rinoceronte, uma possível evocação lírica a Ionesco, para refletir uma auto-imagem
que lhe parece adequada: “ZUCCO: Quando eu avanço, eu vou até o fundo, bem
rápido, eu não vejo os obstáculos, e, como eu não olhei pra eles, eles caem
sozinhos na minha frente. Eu sou solitário e forte, eu sou um rinoceronte.”
A projeção dessa auto-imagem que a personagem elabora de si, somada aos
comentários da Mãe, para quem o comportamento do filho é comparável ao de “um
trem que descarrila”, contrastam com as opiniões dos guardas da prisão. Estes, ao
invés da força bruta do animal ou da locomotiva, nomeiam o protagonista como
“uma gota d’água”, ao se referirem à capacidade necessária para aquele que puder
fugir da prisão. No plano metafórico, tais comparações apontam implicitamente uma
noção de movimento, produto da alternância entre o pesado avanço do rinoceronte-
máquina e o fluir da água.
Evidentemente, essa comparação não visa ao efeito de real, na medida em
que não é suficiente para descrever os atributos físicos da personagem.
Metaforicamente, todavia, a comparação reforça o propósito do autor em instaurar
uma dimensão mítica em torno do protagonista, ao lhe agregar atributos sobre-
humanos.
Passemos agora ao segundo exemplo. No quadro II, “O Assassinato da Mãe”,
afirmamos que a disputa pelo uniforme militar carrega um sentido simbólico. Tal
sentido é apresentado ao leitor através de uma didascália, que após informar o
estrangulamento da Mãe descreve a troca de roupa do filho-algoz.
77
Todo o sentido da ação de vestir o uniforme não está manifestado na fala da
personagem. Ele é apenas sugerido pelo dramaturgo por meio da didascália. A
rubrica relata que após o protagonista ter “abraçado” sua mãe, ele “troca” de roupa
diante dos espectadores. Ou seja, ao se vestir, Zucco se reconstrói no plano
metafórico. Aquele que entrou na cena não se parece mais com aquele que saiu. A
condição de filho é substituída pela de assassino. Ainda que a condição de
criminoso já fora anunciada pelo diálogo dos guardas no quadro I, “A Fuga”, a ação
criminosa em si, só se materializa na representação no segundo quadro, com o
deliberado estrangulamento da Mãe.
O ato de vestir o uniforme é a concretização da qualidade de criminoso.
Contudo, não se pode esquecer que o disfarce se dá através de uniforme militar,
símbolo de poder, conquista, sangue e heróis. Essas conotações podem ser todas
agregadas à imagem do protagonista a partir daquele momento.
O terceiro exemplo para caracterizar as especificidades do conteúdo
metafórico da obra toma como elemento referencial o objeto que nomeia o quadro
III, “Embaixo da Mesa”. Koltès, por meio de uma didascália, situa o quadro numa
cozinha que tem ao centro uma mesa coberta com uma toalha que chega até o
chão. Para melhor apresentar o jogo de forças expresso no quadro, detalharemos
um pouco sobre os desdobramentos da cena.
Esta é a única família estruturada (pai, mãe, filhos) presente na obra. A cena
inicia com a Irmã fazendo entrar pela janela a Menina, sua irmã mais nova. A Irmã
repreende a Menina por ela ter não ter voltado para casa dentro do horário
combinado, fazendo um relato bastante dramático das preocupações da família
como o ocorrido, enquanto a Menina permanece em silêncio.
O diálogo é interrompido por um barulho. A Menina se esconde sob a mesa
enquanto a Irmã pensa se tratar do outro irmão. No entanto, quem surge é o pai,
descrito por uma rubrica dessa maneira: “Entra o pai, de pijama, meio dormindo. Ele
atravessa a cozinha, desaparece logo a seguir, atravessa de novo a cozinha e volta
para o seu quarto.” (quadro III)
78
Após a saída do pai, a Irmã continua com a discussão até ser interrompida
pela chegada do Irmão, que também está transtornado. Ela procura acalmá-lo,
dizendo que a Menina está na casa de uma amiga e o adverte: “Está nos
acontecendo uma desgraça. Não grita, por favor, porque depois você poderá se
arrepender e até chorar.” O Irmão não compreende, mas acrescenta: ”Essa é a
primeira vez que ela me escapou, só algumas horas, em todos esses anos em que
eu tomei conta dela. A desgraça precisa de mais tempo pra se abater sobre
alguém.”
Em uma fala, que se parece quase a um aparte, a Irmã diz:
A desgraça não precisa de tempo. Ela vem quando quer, ela transforma
tudo em um instante. Ela destrói em um instante um objeto precioso que a
gente guarda durante anos. (Ela pega um objeto e joga-o no chão.) E a
gente não pode recolher os pedaços. Mesmo gritando, a gente não poderia
recolher os pedaços.
Depois que todos saem da cozinha, a Menina sai debaixo da mesa, dirige-se
até a janela e faz Zucco entrar. Ela faz com que ele esconda-se sob a mesa, pois
percebe a aproximação de alguém. Era a mãe, que antes de sair avista o objeto
quebrado e diz: “Tanto melhor. Tem um bom tempo que eu queria me ver livre dessa
sujeira”. A Menina se aproxima de Zucco e, escondidos pela toalha de mesa, declara
que está entregando sua virgindade a ele.
O título do quadro denota uma escolha mais poética do que descritiva, como
resultado a metáfora visual é enfatizada. A mesa do título se presentificada na mesa
do cenário. Apesar das poucas indicações apresentadas até aqui, fica claro que
existe algo na relação entre esses três irmãos. A fixação dos irmãos pela virgindade
da Menina contrasta com a despreocupação dos pais. Essas divergências se
materializam no objeto quebrado pela Irmã. A pouca importância que a mãe dá ao
fato, somada a entradas do pai na cozinha, demonstram que estes não estão aflitos
pela ausência da filha. Não é possível saber as razões: eles são pais ausentes?
Ignoram o que possa estar acontecendo?
79
A violação da Menina seria a única ação violenta concreta que poderia haver
na cena. Porém, ela fica encoberta pela toalha. Além disso, a Menina, ao deixar
claro que se trata de uma decisão sua, e ainda o completo silêncio de Zucco,
enfatizam mais o aspecto romântico do que transgressor do ato.
Retornando à mesa, pode-se dizer que esse móvel desempenha importantes
funções. É o lugar da segurança, que protege a Menina e Zucco da família. Mas
essa segurança é precária. O simples levantar da toalha seria suficiente para revelá-
los. O sentido metafórico mais enfatizado para aquele objeto é a própria família e
suas relações de aparências. Ao projetarmos o texto para o espaço cênico,
podemos perceber que a mesa, apesar de encobrir tudo, está presente diante dos
olhos do espectador que a tudo vê. Ao mesmo tempo em que a mesa tem a função
de encobrir as personagens, reforça, para o espectador, a presença deles. A mesa-
família expressa a ambivalência dos valores familiares.
O último exemplo se refere aos instantes finais do texto dramático. A metáfora
nesse exemplo é produzida pela soma de vários elementos: diálogos, ação e
didascálias que recorrem a recursos cenográficos para a encenação do quadro.
Esses elementos, por sua vez, estão inseridos num jogo entre aquilo que é dito e o
que é mostrado.
O quadro final é de número quinze e tem o título “Zucco ao Sol”. Uma rubrica
informa que Zucco é a única personagem presente fisicamente na cena. Ele está
sobre o telhado, novamente escapou das grades. Enquanto os guardas estão
perplexos com a ousadia do criminoso, vozes fazem todos os tipos de comentários.
Algumas dessas vozes querem saber como ele conseguiu escapar. Ele então
responde: “Por cima. Não se pode escapar através dos muros, porque depois
desses muros têm outros, tem sempre a prisão. E preciso escapar por cima, em
direção ao sol. Nunca vão pôr um muro entre o sol e a terra”.
As perguntas continuam, querem saber por que ele matou os pais e o menino.
Ele afirma ser “normal matar os próprios pais”. Sobre a morte do menino declara:
80
“Eu não tenho inimigos e eu não ataco. Eu acabo com os outros animais não por
maldade, mas porque eu não os vi e porque eu pisei em cima deles”.
A seguir, as Vozes, ao enaltecerem Zucco passam a compará-lo a heróis
bíblicos como Golias e Sansão. Mencionam a traição de Dalila numa referência aos
acontecimentos de quadros anteriores. Há aí uma nova didascália que desta vez
informa que o sol sobe, brilhante e um forte vento sopra. A partir deste momento
apenas Zucco passa a enxergar os movimentos do sol e, atraído por ele, tenta
alcançá-lo.
Outra rubrica: “Um vento de tempestade sopra. Zucco vacila”. As Vozes
tentam despertá-lo de seu sono hipnótico e outra rubrica informa que a luz do sol
aumenta ao ponto de cegar. Um grito informa que Zucco caiu.
As simbologias são muitas, mas a mais evidente neste quadro já estava
anunciada no seu título. O sol, elemento masculino da força e que também pode
estar associado ao processo de iluminação. Luz que ao mesmo tempo é
conhecimento e risco. O sol, fonte de vida e origem dos ventos, converte-se em um
Apolo, símbolo da beleza masculina que será para Zucco objeto de desejo e causa
da sua morte.
Zucco, ao contrário de suas vitimas, não morre a golpes de faca ou bala, ele
apenas cai. Sua queda é sugerida por uma das vozes. No entanto, considerando a
didascália que informa intensidade da luz “como a explosão de uma bomba
atômica”, o ato em si fica encoberto. Somos sabedores da queda, mas a última ação
mostrada foi a da subida, ou seja, metaforicamente ele cai para cima.
O desfecho da peça não encerra o enredo. Não saberemos precisamente
qual foi o destino de Zucco, em que sua corrida rumo ao sol o transformou. Fim e
redenção, morte e renascimento: ao se misturarem impõem um destino insólito ao
protagonista.
81
3.2 Mecanismo de antecipação
Ao longo dos quinze quadros da obra Roberto Zucco é possível verificar com
freqüência a presença de um recurso estilístico empregado pelo autor: a
antecipação. Por meio desse recurso, o dramaturgo fornece ao leitor algumas
informações que são retomadas em outros momentos do texto, ampliando, dessa
maneira, sua significação.
Isso ocorre devido à influência no modo como as ações das personagens são
recebidas pelo leitor. Por conseqüência, a antecipação, no conjunto textual de
Roberto Zucco, caracteriza-se como um instrumento do dramaturgo capaz de
exercer modificações no modo como o leitor concebe as ações e o desenvolvimento
do enredo.
Para exemplificar esse ponto de vista, analisemos o funcionamento do
mecanismo de antecipação na fala de uma personagem, no quadro I, “A Fuga”:
GUARDA: E uma mão que esfaqueou, um braço que estrangulou, não
podem ser feitos de líquido. Ao contrário, eles devem ficar grandes e
pesados. Como você acha que alguém pode ter a idéia de esfaquear ou
estrangular, primeiro a idéia, e depois passar pra ação?
O fragmento apresentado diz respeito a uma discussão entre os guardas
responsáveis pela vigilância da prisão. Eles discorrem sobre as origens do instinto
criminoso. Nela o autor emprega dois verbos reveladores a respeito do caráter de
Zucco: esfaquear e estrangular.
É preciso salientar que a personagem a que se destinam esses verbos ainda
não está presente no quadro. Sua existência permanece no plano paratextual
13
, ou
seja, como sabemos ser ele o título da obra, em última instância, todo o comentário
no interior do texto terá o protagonista como destinatário.
13
Segundo Genette (1997), citado por Olmi (2003, p. 268) o paratexto pertence “a segunda categoria de
transtextualidade [que] se constitui da relação geralmente menos explícita e mais distanciada, que o texto
propriamente dito mantém com o que pode ser definido como seu paratexto no conjunto formado pela obra
literária”.
82
A informação anunciada pelos guardas também é um prenúncio do que a Mãe
mencionará no segundo quadro da obra. Ela não quer que o filho entre novamente
em casa e o repreende pelo assassinato do próprio pai:
MÃE: Eu reconheço a forma de seu corpo, seu tamanho, a cor dos seus
olhos, a forma das suas mãos, essas grandes mãos fortes que nunca
serviram para outra coisa senão acariciar o pescoço de sua mãe, ou
apertar o de seu pai, que você matou.
Ao mesmo tempo em que a fala da mãe corrobora a dos guardas,
ironicamente a mesma fala contém nova antecipação: Zucco é um estrangulador.
Uma vez que as “grandes mãos fortes que nunca serviram para outra coisa senão
acariciar o pescoço da mãe” executam, logo a seguir, o assassinato da progenitora.
Por intermédio dos guardas, o leitor passa a esperar a brutalidade de um
estrangulamento e a frieza daquele que tem a coragem de cometê-lo. Num processo
de transferência entende que o modo de agir de Zucco é esse. São essas as
prerrogativas que permitem aceitarmos que um inocente abraço entre mãe e filho,
descrito por uma didascália, converta-se num estrangulamento. O rompimento com o
código de afetividade mantém-se verossímil, pois o leitor já sabia que aquele modo
de agir é familiar a Zucco. A menção ao estrangulamento no primeiro quadro,
somada às descrição das mãos do protagonista no segundo, permite ao leitor aceitar
o assassinato como um acontecimento possível à lógica interna da obra.
O mecanismo de antecipação nesta obra afirma-se com um fator que contribui
para o fortalecimento da verossimilhança do texto que, por sua vez, é uma noção
relacionada à recepção da obra na encenação teatral, “mas que impõe ao
dramaturgo inventar uma fábula e motivações que produzirão o efeito e a ilusão da
verdade”. (PAVIS, 2003, p.428)
Tendo em vista os acontecimentos do segundo quadro, os vocábulos
“esfaquear” e “estrangular” podem ser entendidos como sinônimos, pois ambos
participam do mesmo campo semântico: resultam na morte de alguém. Essa
hipótese de leitura permanece válida até o quadro IV, “A melancolia de um inspetor”,
83
quando Zucco comete mais um crime. Neste instante, os vocábulos passam a se
diferenciar, agregando ao ato de matar os instrumentos que resultam em morte: faca
e as próprias mãos. De acordo com o narrado por uma prostituta:
A PUTA: ele anda atrás do inspetor como se fosse a sombra dele; e a
sombra chega perto, como ao meio-dia, cada vez mais perto das costas
curvadas do inspetor, e de repente, ele tira uma faca bem grande de dentro
do bolso, e enfia nas costas do pobre homem.
A partir desse momento, fica consumado o prenúncio do primeiro quadro e,
por transferência, fortalecida a previsão que encerra a cena: “A MADAME: De
qualquer jeito, com o assassinato de um inspetor, esse garoto está perdido”.
A antecipação também pode ser entendida enquanto uma peculiaridade do
enredo elaborado pelo autor. Para Foster (1969, p.69) o enredo consiste numa
“narrativa de acontecimentos, cuja ênfase recai sobre a causalidade”. Em Roberto
Zucco, o recurso da antecipação é empregado, na maioria das vezes, para revelar
aspectos relacionados ao protagonista. Por meio dele, o leitor conhece as
características da personagem principal, bem como precipita sua trajetória. O
dramaturgo, ao empregar o recurso da antecipação, por um lado diminui a surpresa
das ações, mas por outro, prepara o leitor para uma compreensão diferenciada das
mesmas como discutiremos a seguir.
O leitor, de posse de uma parte da informação, retém-na, mantendo-a em
suspensão enquanto direciona sua atenção para outro campo, agora menos
imediato. Ele passa a formular hipóteses. Considerando que o “o quê” já fora
assimilado, compete a obra desenvolver o “como”. Desse modo, o autor libera a
percepção do leitor para uma dimensão de entendimento onde a ação possa ser
recebida e significada de modo diferenciado, sem comprometimento à
verossimilhança do texto. A obra, ao se afastar do significado pragmático das ações,
potencializa a carga metafórica de seu conteúdo. Por esse recurso, o texto permite
ao leitor ultrapassar a esfera do sentido para atingir a da significância.
84
3.3 Espaço simbólico e espaço pragmático
Uma das maiores singularidades de todo texto teatral é sua relação com o
espaço. Diferentemente do romance que, materialmente é sempre plano, o texto
dramático necessita de uma espacialidade para desenvolver as relações físicas
entre as personagens. Sua leitura não é diacrônica e sim sincrônica, ou seja,
disposta no espaço. Para Ubersfeld (2005), “é no nível do espaço, justamente por
ser ele, em grande parte, um não dito do texto, particularmente uma zona de vazios
– o que constitui de fato a carência do texto de teatro –, que se caracteriza a
articulação texto-representação.” (p. 92, grifos da autora)
Os elementos essenciais da espacialidade de um texto teatral são
encontrados nas didascálias que fornecem as indicações mais ou menos precisas a
respeito do espaço das personagens. Elas são empregadas pelo encenador para
construir o espaço onde a ação acontece. Mas esse espaço segue um estatuto
distinto do verificado na leitura do romance. O espaço teatral é o próprio lugar da
mímesis: construído com elementos do texto e possuidor de uma imagem “real” no
mundo.
O lugar textual implica uma espacialidade concreta de duplo referente: o
cenário e aquilo que ele representa. Essas peculiaridades envolvidas na
comunicação teatral permitem ao espaço cênico ser “o lugar da conjunção do
simbólico e do imaginário, do simbolismo comum a todos, e do imaginário próprio de
cada um.” (UBERSFELD, 2005. p. 108)
Ao analisar o conjunto dos quadros, fica evidente a preferência de Koltès em
trabalhar essencialmente o espaço urbano, sendo este demarcado por ambientes
internos e externos, apresentando um desenvolvimento circular. Ela termina onde
começa: Zucco sob o telhado da prisão, um espaço aberto (embora no contexto dos
quadros apareça associado ao confinamento).
85
A capacidade de Zucco em “dissolver” os obstáculos, como denotam as
habilidades em ultrapassar os muros, as grades da prisão, a porta da casa da mãe,
ou mesmo a vidraça do bar, reforça a impressão de agilidade da obra.
O protagonista é uma figura que perambula livremente pela iconografia de um
cenário urbano. Desse modo, o dramaturgo induz à sensação de uma constante
mobilidade, caracterizando espacialmente a trajetória do protagonista.
Em Roberto Zucco, o espaço urbano é caracterizado por ambientes internos e
externos. Nessa divisão, a casa é o espaço interno por excelência e está presente
em quatro dos quinze quadros. Contudo, em apenas um deles a casa apresentada
corresponde à morada do protagonista. As descrições expressas pelo dramaturgo
nas didascálias quase sempre são pouco detalhadas, ainda mais quando se trata
dos espaços internos. Tanto é assim que nem mesmo a casa de Zucco apresenta
maiores descrições. Apenas por dedução é possível saber em qual aposento o
quadro se desenvolve, visto que uma didascália no começo do quadro informa que a
Mãe está de pé diante da porta, sendo possível supor que o espaço retratado
corresponda a uma sala.
Nos quadros III, V e VII a casa apresentada é a da família da Menina. Apesar
de algumas didascálias indicarem outros cômodos: “Entra o pai, de pijama, meio
dormindo. Ele atravessa a cozinha, desaparece alguns segundos, atravessa de novo
a cozinha e volta para o seu quarto. (quadro III, “Embaixo da Mesa”), as cenas
situam-se sempre no mesmo aposento, a cozinha. Nesse cômodo, não é realizada
nenhuma ação diretamente relacionada com sua finalidade, não se cozinha ou se
manipulam alimentos. As entradas e saídas de personagens não parecem estar
diretamente justificadas pela finalidade do aposento. A única descrição nos informa
haver uma mesa (presente no nome do quadro) e, sobre ela, uma longa toalha. Será
sob ela que a Menina e Zucco, na última parte do quadro, terão um envolvimento
sexual.
Ainda que a casa possa ser aceita como a metáfora da intimidade, o que
sobressai dela é sua porção social. A família não está sendo retratada na sua
intimidade, mas na sua dimensão social, ou seja, nos papéis sociais que cada grupo
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assume. A casa não tem a conotação positiva de Bachelard (2005), como refúgio
das adversidades do mundo e a expressão da interioridade daqueles que a habitam.
As casas em Roberto Zucco são “despersonalizadas”, pouco nítidas, não se
constituindo um “lugar”, sendo apenas um “local”. No entanto, se elas não nos
“falam” a respeito de intimidades, fornecem-nos indícios sobre os papéis sociais
daqueles que habitam esses espaços.
Essas casas que não têm alma revelam a predileção do autor em enfatizar o
aspecto social ao invés do psicológico. O autor pouco se interessa pelas
singularidades de história de Succo. O texto não se propõem a escrutinar a mente
de um psicopata. Se assim fosse, a temática da violência se reduziria a um caso
único, restrito. Seria uma exceção, o que limitaria a crítica social subjacente.
Se traçássemos uma linha divisória entre os espaços abertos e os fechados
em que se desenrola a ação dramática, chegaríamos a um saldo quase idêntico.
São quatro os espaços abertos que se repetem em algumas cenas: a casa da Mãe,
a cozinha da casa da Menina, a recepção do hotel, a delegacia. Os espaços
“abertos” são cinco: os telhados da prisão, a rua do Pequeno Chicago, o exterior do
bar, o parque, a estação de trens. Em meio a isso, a estação de metrô, fechada, à
noite, embora funcione como uma prisão para o Senhor, para Zucco não oferece
qualquer restrição. O protagonista supera todos os obstáculos: pedra, ferro (muros e
as grades da prisão), madeira (a porta da casa da mãe), cristal (os vidros da janela
do bar). Os espaços fechados não afetam Zucco, inconsistente, invisível apesar dele
declarar que “É uma tarefa difícil ser transparente, é um trabalho; um sonho antigo,
muito antigo.” (quadro VI, “O metro”)
3.4 Unidade temática
Como a noção de tema aparece dissolvida no conjunto do texto dramático,
descrever todas as formas sob as quais ela possa ser revelada constitui-se numa
difícil tarefa. Do mesmo modo seria problemático isolar um tema, separando-o de
87
sua forma, tendo em vista a imbricação entre eles. Pois “é o caráter único e não fixo
desta imbricação que atesta a poeticidade do texto”. (PAVIS, 2003, p. 399)
Por essa razão, partiremos para uma análise estrutural que possibilite rastrear
o arranjo arquitetado pelo dramaturgo ao comunicar o tema. De modo geral, a
violência é a presença que configura o universo dramático apresentado. No entanto,
diferentemente do exposto na segunda parte desta dissertação, efetuaremos uma
análise dos elementos que constituem o conteúdo deste tema, ou seja, sua
presença enquanto estrutura textual. Se no segundo capítulo situamos o tema
violência num plano de discussão externo ao da obra, empreenderemos agora o
sentido inverso. Analisaremos o tema violência em seu funcionamento interno, a
partir da sua organização hierárquica e demais características dramatúrgicas.
Com relação às ações, o protagonista é a única personagem que comete
crimes. Ao todo são três assassinatos durante o tempo da obra, além da morte do
pai, que é referida no início da obra, apesar de acontecer cronologicamente antes.
Contudo, isso não significa que as demais personagens deixem de expressar
violência. Ao contrário, salvo o Senhor, todos as demais apresentam elementos que
reforçam o tema da violência. Algumas pelo próprio referente social, como é o caso
dos guardas, das prostitutas, dos policiais, do inspetor, do comissário, do delegado.
Outras nos traços comportamentais, como os membros da família da Menina.
Passemos a análise de cada um dos casos.
Chamaremos as primeiras personagens de homens da lei, a saber, os
guardas, os policiais, inspetor, o comissário e o delegado. Essas possuem uma
atitude combativa que está relacionada com os seus respectivos papéis na
sociedade. São agentes da ordem social, representam o poder coercitivo do coletivo
sobre o indivíduo. Contam com a chancela do Estado para converter suas
manifestações de violência em práticas socialmente legítimas. Mas o propósito do
dramaturgo não é afirmar esse discurso. Ao contrário, empreende uma relativização.
Para isso, emprega duas estratégias dominantes no agir destas personagens: a
caricatura e o abuso de poder.
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Observando os guardas fica evidenciado que essas figuras produzem um
efeito cômico que confere ao leitor certo grau de superioridade. Dessa maneira,
Koltès enfraquece o status social que cerca estas máscaras. Com respeito ao
delegado e ao comissário, percebe-se uma atitude despótica durante o quadro IX,
“Dalila”, sendo a Menina constantemente ameaçada:
DELEGADO — Quem é esse aí, atrás de você?
AMENINA — Meu irmão. Ele veio comigo. Foi ele que me disse para vir
aqui porque eu reconheci essa foto na rua.
DELEGADO — Você sabe que ele está sendo procurado?
A MENINA — Sei; eu também estou procurando.
DELEGADO — É um amigo, você disse?
A MENINA — Um amigo, é, um amigo.
DELEGADO — Um matador de policiais. Você vai ser detida e acusada de
ser cúmplice, de ocultar armas e não denunciar um malfeitor.
A MENINA — Foi meu irmão que me disse para eu vir aqui avisar que eu
conhecia ele. Eu não estou ocultando nada, eu não estou denunciando
ninguém. Eu conheço ele. Só isso.
DELEGADO — Fala para o seu irmão sair.
Os interrogadores ignoram deliberadamente o fato de a Menina ter se
apresentado espontaneamente e continuam inquirindo-a, chegando a intimidá-la:
DELEGADO — Elas estavam exatas, comissário. (Para a Menina:) E o
nome dele, agora. Você sabe? Você deve saber já que ele era seu amigo.
A MENINA — Sim, eu sei.
COMISSÁRIO — Fala.
A MENINA — Eu sei muito bem.
COMISSÁRIO — Você está brincando conosco, menina. Você está
querendo apanhar?
A MENINA — Eu não quero apanhar. Eu sei o nome dele, mas eu não
consigo dizer.
DELEGADO — Como assim, você não consegue dizer?
A MENINA — Eu estou com ele aqui, na ponta da língua.
COMISSÁRIO — Na ponta da língua, na ponta da língua. Você está
querendo apanhar? Quer levar uns socos, e que a gente arranque o seu
cabelo? Nós temos aqui salas equipadas especialmente para isso, você
sabe.
Já em relação aos traços comportamentais, o maior exemplo advém do
tratamento que o dramaturgo emprega nas escolhas para a constituição da família
da Menina. A violência familiar assume ali diferentes abordagens:
O PAI — Sua mãe escondeu a cerveja. Eu vou dar uma surra nela como eu
fazia antes. Por que eu parei um dia? Eu estava com o braço cansado, mas
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eu deveria ter me forçado, feito exercio, feito com que alguém batesse
nela por mim. Eu deveria ter continuado como antes: batendo nela todos os
dias, em horas regulares. Mas tudo bem, eu fui negligente, e agora, ela me
esconde a cerveja, e eu tenho certeza de que vocês são cúmplices. (Ele
olha embaixo da mesa.) Tinha ainda cinco garrafas. Eu vou bater cinco
vezes em cada uma se eu não encontrar. (quadro VII “Duas Irmãs”)
Ainda fazendo uma referência à família da Menina, seu irmão possui uma
fixação incestuosa por ela, enquanto a irmã mais velha de ambos possui aversão
aos homens e é obcecada por limpeza. No fragmento abaixo, ela repreende a
Menina por ter ultrapassado o horário de retorno a casa:
A IRMÃ – Porque os garotos são uns imbecis e tudo o que eles sabem
fazer é passar a mão na bunda das meninas. Eles adoram isso. Eu não sei
que prazer eles têm; na verdade, aliás, eu acho que eles não vêem
nenhum prazer nisso. Faz parte da tradição deles. Eles não podem fazer
nada. Eles são fabricados com imbecilidade. (quadro III “Embaixo da
Mesa”)
O falar dos membros dessa família a todo o momento evoca imagens de
violência, fato que contribui para a unidade temática no interior da escritura. Em
alguns momentos essas imagens de violência conjugam uma forte carga poética,
como é o caso da metáfora sublinhada abaixo:
VOZ DA MENINA — Você, garoto, você me tirou a virgindade, e agora ela
é sua. Não haverá outra pessoa que vai poder tirar isso de mim. Agora ela
é sua até o fim dos seus dias, ela será sua mesmo quando você já tiver me
esquecido, ou morrido. Você está marcado por mim como por uma cicatriz
depois de uma briga. Eu não corro o risco de esquecer, porque eu não
tenho outra pra dar pra ninguém; pronto, está feito, até o fim da minha vida.
Está dada e ela é sua. (quadro III “Embaixo da Mesa”)
Construções metafóricas que remetem a imagens de violência permeiam a
maior parte da obra e são proferidas por todas as personagens nas mais variadas
situações:
A MENINA – Eu queria ser magra. Eu queria ser um galho seco de árvore
que a gente tem medo de quebrar.
A MADAME — Pois bem, eu não. E além do mais, você é redonda hoje,
você pode ser magra amanhã. Uma mulher muda, durante a vida. Ela não
precisa se preocupar com isso. Quando eu era moça como você, eu era
magra, magra, quase dava pra ver através de mim, só um pouco de pele e
alguns ossos. Nem sombra de peito. Reta como um menino. Isso me dava
uma raiva, porque nessa época eu não gostava dos meninos. Eu sonhava
em me arredondar, eu sonhava em ter seios bonitos. Então eu colocava
uns peitos falsos de papelão que eu mesma fabricava. Mas os meninos
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perceberam logo e, cada vez que eles passavam na minha frente, eles me
davam uma cotovelada no peito e destruíam tudo. Depois de algumas
vezes, eu coloquei uma agulha dentro do seio e os gritos se ouviram em
toda a cidade, você pode acreditar. E então, você vê, tudo começou a se
arredondar, a se encher, e eu fiquei bem contente. Pode ficar tranqüila,
meu passarinho atordoado; você é roliça hoje, você pode ser magra
amanhã.
A MENINA — Pouco importa. Hoje eu sou feia, gorda, e infeliz. (quadro XI
“O Negócio”)
Além das ações do protagonista, o tema violência está presente em todas as
demais personagens pelo emprego de argumentações que suscitam imagens de
violências. Através do diálogo das personagens secundárias a violência é evocada
nas suas mais distintas configurações.
Desse modo, é possível afirmar que a obra tanto apresenta violência por meio
das ações de Zucco, como também fala de violência, quando observamos o
conteúdo dos diálogos. O dramaturgo empreende então, uma unidade temática que
mantém o leitor dentro de um campo de significação específico, além de reforçar a
credibilidade do conjunto.
91
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dentre os elementos analisados a respeito da composição da personagem
Roberto Zucco, o seu agir sem motivações aparentes consiste na sua maior
singularidade. Essa condição permite ao protagonista não entrar em contradição
interna, seja psicológica ou em termos dos elementos intrínsecos à lógica da obra,
visto que a ação acaba por ser um fim em si mesma.
A princípio, essa característica não se coaduna com o projeto de atualização
do trágico que cremos ser possível nesta obra. Principalmente quando se observa o
funcionamento das personagens trágicas a partir da relação entre o livre-arbítrio e a
MOÎRA. Acreditamos ser este o ponto crucial para a produção do efeito do trágico.
Pois será dessa relação que nascerá o caráter insolúvel do conflito, expresso pela
contradição.
Para Malhadas (2003) O rei Édipo tem vontade própria, é livre e por isso,
totalmente responsável pela catástrofe. Ainda que a incapacidade do homem de
enxergar para além do visível submeta-o ao espaço da onisciência – que para a
ordem grega se expressa no sagrado – tal submissão não converte o homem
representado pela tragédia em uma marionete dos deuses.
Malhadas (2003) contesta a tradução habitual do termo grego MOÎRA por
destino evocando outra acepção: parte. Sendo o homem impelido pelo destino, este
estaria sempre sujeito à fatalidade, não havendo espaço para uma derradeira
92
tomada de decisão. Ele estaria continuamente agindo à revelia da sua vontade.
Contudo, Malhadas (2003), ao empregar o termo ‘parte’ ao invés de destino
denota que a cada ser, como a cada componente do universo, está ‘destinada’ uma
MOÎRA, uma parte. Quando se refere à Terra, diz que cabe executar os movimentos
de translação e de rotação. Afirma ainda que os deuses são imortais e os homens,
mortais e que nem os deuses podem se furtar à imortalidade, nem os homens, à
condição de mortal.
Além dessa divisão entre imortal e mortal, outra distinção envolve a MOÎRA
dos homens. Os deuses e, também aqueles que lhes são mais próximos, como o
oráculo Tirésias, personagem do texto trágico Édipo Rei, de Sófocles, possuem o
conhecimento integral das coisas, diferentemente dos mortais que podem apenas se
valer dos sentidos e intelecto para concebê-los.
A condição de mortal e o conhecimento limitado são prerrogativas da
natureza humana perfazendo a MOÎRA do homem. Nem mesmo o mais lúcido e
forte entre os homens, como o rei Édipo, está imune a essa MOÎRA.
Na mesma direção aponta Bernard Knox (2002) ao reivindicar uma leitura
para Édipo Rei que ultrapasse a interpretação da obra de acordo com a concepção
da tragédia de destino. Expressão, aliás, que ele julga equivocada por diminuir o
efeito trágico do texto grego.
Segundo Knox (2002) Sófocles ordenou com cuidado o material do mito de
modo a excluir da ação da tragédia o fator externo na vida de Édipo. Esse fato não
se configura na concretização da profecia. Por outro lado, converte-se na descoberta
de que ela já se realizou. Desse modo, a catástrofe de Édipo é justamente descobrir
sua própria identidade e ele é o primeiro e o último responsável por esta revelação.
Para Knox (2002), esse arranjo permitiu que os acontecimentos principais da
obra não fossem expressos pela profecia e, portanto, não sendo possível atribuir ao
“destino” a causa para as ações de Édipo.
93
Trançando um paralelo entre essas considerações e a obra Roberto Zucco foi
possível encontrarmos algumas correspondências que merecem ser destacadas.
Koltès parece projetar o esquema da tragédia para fora da lógica interna da obra,
fazendo com que ele ocorra não pela estrutura da personagem, mas na
interpretação do texto dramático pelo leitor.
Cabe ao processo de leitura de Roberto Zucco reproduzir o trágico e não sua
estrutura formal. Parafraseando Aristóteles, o que faz Zucco ser um assassino são
as ações de matar e não as características exteriores. Ou dito de outro modo, Zucco
é um assassino por ser aquele que mata e não por parecer-se com um assassino.
Quando analisamos os traços distintivos dessa personagem, identificamos
algumas oposições, como o fato de ele ser jovem e belo, em contraste com a
brutalidade de seus atos. No entanto, esses são apenas aspectos secundários da
sua constituição. A contradição que percebemos nesses aspectos é parcial, pois
apenas está relacionada com os esquemas literários tradicionais, princípio
inadequado para avaliar uma obra contemporânea.
Esses aspectos secundários, isoladamente, não são suficientes para
reproduzir a tragicidade, ao menos, tal como ela fora concebida pelos tragediógrafos
gregos. Entretanto, quando passamos a considerar o conjunto das ações
empreendidas na trajetória do protagonista, é possível identificar a presença de uma
tensão entre obra e leitor que torna factível aproximar este texto dramático do
esquema trágico.
Dito de outra maneira, não são os aspectos formais isoladamente da obra
Roberto Zucco que expressam o trágico, mas o pacto de leitura que ela exige do seu
leitor. A habilidade de Koltès reside no fato de estruturar o texto de modo a permitir
que o leitor construa a tragicidade. Dessa maneira, Zucco torna-se um instrumento,
poderoso é bem verdade, capaz de revelar ao leitor sua própria condição trágica.
O gênero trágico, pai do drama moderno, tem seu efeito catártico construído
em torno desse tema – assassinatos, incesto e todo o tipo de situação que remete à
violência produzida pelo homem. Para a dramaturgia da ação, as situações
94
conflituosas são o esteio onde se desenvolve a situação dramática. A obra de Koltès
evidencia essa escolha pela ação. Conquanto, ela não se configura como algo
óbvio, pois a ação que o autor elege está fortemente ligada também à palavra.
Roberto Zucco nasceu do interesse de Koltès por um assassino cujo belo
rosto estava reproduzido em murais que havia visto no metrô de Paris. Pouco
importava a Koltès tratar-se de um assassino.
Koltès levou a cabo um processo de transfiguração sublimada de Succo a
Zucco, a quem converteu em um anjo invertido, um Hamlet voluntariamente marginal
e em perpétuo movimento. Tanto Roberto Zucco como Hamlet iniciam o seu enredo
pela ronda de guardas.
Na identificação de Koltès com Succo transparece um sentido de
destrutividade. Mas, enquanto para o primeiro este sentimento transmuta-se em
criatividade artística, para o segundo é a conseqüência inquietante de uma faceta da
personalidade humana. A violência, no rol das manifestações humanas, compõe
nossa psique e, por isso, enquanto temática, povoa a esfera teatral. Sendo a arte o
produto de homens para outros homens, o jogo de espelhamento entre realidade e
ficção é sempre uma constante mais ou menos evidente.
Retornando à personagem, Zucco não dispõe de tempo, não se permite
refletir como faz o príncipe dinamarquês de Shakespeare. Ao contrário de Hamlet,
Zucco age. Está convencido de que o mundo é uma prisão, que atrás de um muro
se encontra outro e logo mais outro e assim sucessivamente. Ele busca a
transparência, opta por subir até encontrar o sol: um Ícaro movido pela certeza de
que a única verdade é a morte.
Em uma passagem da obra, Zucco declara que não quer morrer, mas tem
consciência de que vai morrer. Essa afirmação da personagem denota as
semelhanças entre a personagem de ficção e o autor da obra. Enquanto Zucco está
consciente de que seu caminho é sem volta, quando decide ser um marginal Koltès,
um homem consciente que sua existência, caminha para o fim, devido a sua
condição de soro-positivo. Naquele tempo a medicina desconhecia o tratamento
95
através do coquetel anti-HIV, o que fazia da síndrome uma irrevogável sentença de
morte.
Conforme Prado (2002) não há em teatro um problema mais antigo e mais
atual do que a história da relação autor-personagem. Essa problemática constitui-se
na própria história da evolução do teatro ocidental, em suas diferentes formas desde
a Grécia até a contemporaneidade.
Na identificação de Koltès com Zucco transparece um sentido de
destrutividade comum a ambos. O dramaturgo consegue, a partir desse sentimento,
alimentar sua força criativa, produzindo uma obra que nasce de uma inquietante
faceta da personalidade humana, sua vocação à violência.
Freud, na tentativa de compreender o sujeito, publicou em 1930 “O mal-estar
na civilização”, onde discutiu as restrições que a civilização moderna impõe ao livre
funcionamento das pulsões sexuais e destrutivas, o que provocaria um mal-estar na
subjetividade. A transgressão presente na força da pulsão de morte implica numa
recusa à ordem civilizatória.
Mas será essa a única forma de pensarmos a pulsão de morte? Há uma
dimensão criadora nessa pulsão? Articular pulsão de morte e criação não é uma
tarefa fácil. Precisamos reconhecer que algo parece trabalhar contra o sujeito, uma
faceta anti-criativa, a destrutividade.
Para que as pulsões de morte possam produzir um trabalho de criação, é
necessário que haja uma ligação com as pulsões de vida, o que implica também
uma ligação com o outro. É nesse espectro de interação entre os indivíduos que a
comunicação teatral atua. A obra koltesiana acrescenta mais uma contribuição ao
longo caminho percorrido pela tradição teatral desde os gregos até hoje. Como
afirma Todorov (1976), cada obra de arte entra em relações complexas com as
obras do passado que formam, segundo as épocas, diferentes hierarquias.
Aceitando o teatro enquanto uma manifestação artística de contato direto
entre as pessoas, torna-se possível aceitarmos uma dimensão cognoscitiva análoga
96
ao efeito psicanalítico da sublimação, ou, se preferirmos nos manter no domínio
literário, o efeito catártico da Poética aristotélica.
De acordo com Pavis (2003), na concepção clássica cabe ao herói realizar a
ação trágica sacrificando uma parte legítima de si e dos interesses superiores,
podendo esse sacrifício ir até a morte. Destino semelhante tem a personagem
Roberto Zucco nos instantes finais quando “cai”, subindo ao céu.
Koltès define algumas rubricas que tornam explícita sua vontade de aproximar
Zucco da figura do herói. Sugere que a personagem esteja descalça e com o peito
nu, uma forma de representá-lo de forma viril (pela exposição do torso) e, ao mesmo
tempo, numa condição de fragilidade (pés descalços). As demais personagens que
compõem a cena final aparecem ao espectador sonoramente, pois o autor nos
aponta que se trata de vozes apenas.
Desse modo, a figura de Zucco se sobressai de forma quase supra-humana
frente aos demais. No último quadro do texto, ele é a única figura humana visível
aos espectadores. Por meio dessas escolhas, o autor confere à cena um caráter
apoteótico e, assim, a morte de Zucco contém uma forte carga trágica.
É possível identificar em Roberto Zucco uma dupla influência. Em termos de
tradição teatral, podemos perceber que o autor elabora seu protagonista inspirado
no herói trágico. Ele centraliza os acontecimentos desencadeando toda a fábula, age
compelido por uma vontade cega, impossível de ser modificada. Em termos de
vivência social, é explícita a alusão à mídia, como na cena em que os transeuntes –
um novo coro trágico? – comentam os feitos do protagonista, quando o ato de
violência é colocado numa dimensão espetacular como uma ação que ocorre diante
da sociedade, na rua, aos olhos de todos.
Mas, paradoxalmente à obra de Koltès, ao mesmo tempo em que, sob alguns
aspectos, identifica-se com a forma clássica, em outros subverte tal forma. O Zucco
da ficção ganha matizes de herói sem estar a serviço de uma ótica moralizante.
Apresenta um agir que se opõe ao socialmente aceito. Ele mata friamente e sem
uma motivação consistente. A personagem se mostra plenamente consciente de
97
suas atitudes, no entanto é incapaz de modificar-se, assim como a personagem
trágica, que está invariavelmente presa ao seu destino, a exemplo de Édipo.
Zucco possui, ao lado de sua natureza destrutiva, características que são bem
aceitas para a sociedade atual: é jovem, belo, naturalmente sedutor. Essas
características contrastam com o caráter da personagem ao mesmo tempo em que
colaboram para um estranhamento à percepção do espectador.
Ao mesclar características desejáveis socialmente na figura de um psicopata,
Koltès subverte os arquétipos bem conhecidos pela audiência e em conseqüência
exige do leitor adequar tais esquemas interpretativos a uma nova condição.
É possível uma identificação com o protagonista através da sua
miserabilidade, seu desacordo com a realidade imediata. Estes elementos
aproximam este psicopata de qualquer sujeito. Por essa razão, um julgamento
valorativo à personagem torna-se, para o leitor, problemático e, exatamente por isso,
a complexidade psicológica humana fica evidenciada.
Os atos violentos de Zucco se perfilam a qualidades como a juventude e a
beleza, formando uma figura contraditória. A violência irracional brota daquele que
menos se esperava: ele alterna entre momentos de sentimentalidade e brutalidade.
Desse modo, o autor nos revela o quão imprevisíveis podemos ser já que qualquer
um poderia ser um Roberto Zucco.
Morto prematuramente quando começava a despontar como dramaturgo,
Bernard-Marie Koltès conseguiu deixar apenas sete textos dramáticos. Desse breve,
mas intenso legado é possível perceber sua apaixonante experiência vital e
descobrir os rincões mais sórdidos da sua própria existência, assim como da nossa.
A solidão, a incomunicabilidade, o amor, a sexualidade, a marginalidade e a
morte, estão presentes em sua vida e em sua obra Roberto Zucco. Essa que foi a
última delas, escrita ao final de seus dias, em 1989, quando a AIDS começava a
devastar seu corpo e a impregnar sua obra. Baseada num fato real toma como
pretexto a cruel história de um amoral psicopata de origem italiana, não para
98
apresentá-lo como um herói ou fazer uma apologia da violência - como uma leitura
mais ingênua poderia supor -, mas para fazer um retrato contundente, mas repleto
de poesia e excelência literária, a respeito da vida e dos comportamentos de uma
sociedade injusta, podre e moribunda, repleta de seres tão deslocados e miseráveis
como o próprio Zucco.
99
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100
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