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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE O PAULO
PUC-SP
HECI REGINA CANDIANI
A MENSAGEM RECALCADA
O mal-estar cultural
em textos jornalísticos sobre violência
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
SÃO PAULO
2007
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1
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
HECI REGINA CANDIANI
A MENSAGEM RECALCADA
O mal-estar cultural
em textos jornalísticos sobre violência
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Ponticia Universidade
Católica de São Paulo como exigência
parcial para obtenção do título de MESTRE
em Ciências Sociais, sob a orientação da
Profa. Doutora Caterina Koltai
SÃO PAULO
2007
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2
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
________________________________________
________________________________________
3
Para minha mãe, Alaíde Nowaski Candiani,
e para minhas avós (in memoriam)
Maria do Rosário Candiani
e Clara dos Santos Nowaski
4
AGRADECIMENTOS
À professora Doutora Caterina Koltai, pela orientação dedicada e por
compartilhar comigo conhecimentos que me acompanharão para além destas
páginas.
Aos meus pais Alaíde Nowaski Candiani e Hermelindo Candiani (in
memoriam), pelo amor e pelo legado.
A Jannine Albuquerque L'Amour, pela revisão atenta do meu trabalho, pela
confiança, pelo apoio e, principalmente, pela amizade.
Aos professores do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências
Sociais da PUC-SP, pelas aulas, comentários, observações e palavras que
certamente foram fundamentais para este trabalho.
À professora Marijane Lisboa e ao professor Miguel Chaia, pelas importantes
sugestões durante o exame de qualificação.
Ao CNPq, pela bolsa que possibilitou a conclusão desta dissertação.
A Flávia Melo Cunha, Sandra Soares, Yara Rodrigues Andrade e Teresinha
Leite Matos, colegas de aulas e de Anpocs.
A Wagner Antonio dos Santos, pelos questionamentos.
A Marino Maradei Junior, pelas músicas, filmes e obras literárias com que me
demonstrou seu apoio e também por ler e comentar meus textos.
A Ley Sander, pelo incentivo, pela ajuda, pela leitura de trechos deste trabalho
e, principalmente, por acreditar que não existem pessoas invisíveis.
5
É impossível passar os olhos por qualquer jornal
de qualquer dia, mês ou ano, sem deparar em cada linha
com os traços mais pavorosos de perversidade humana [...]
Todos os jornais, da primeira à última linha, não passam
de um tecido de horrores. Guerras, crimes, roubos, devassidões,
torturas, os maus atos de príncipes, de nações, de indivíduos particulares;
uma orgia de atrocidade universal. E é com tal aperitivo abomivel
que o homem civilizado diariamente rega seu repasto matinal.
Charles Baudelaire (1821-1867), em seus Diários
A imprensa é a luz da liberdade.
John Milton (1608-1674), poeta inglês
Algumas pessoas matam. As outras pessoas se
satisfazem lendo as nocias dos assassinatos.
Millôr Fernandes (1923), jornalista brasileiro
Três jornais hostis devem ser mais temidos que mil baionetas.
Atribuída a Napolo Bonaparte (1769-1821)
6
R
ESUMO
Fenômeno estrutural da civilização, o mal-estar está relacionado às
dificuldades dos indivíduos em lidarem com os sacricios impostos pela vida em
sociedade. O conceito de mal-estar remete, assim, ao conflito entre o indivíduo e
seus semelhantes, que tantas vezes se apresentam como irreconciliavelmente
diferentes. Esse conflito pode ser percebido em algumas reivindicações de liberdade
ilimitada do indivíduo, em sua oposição às regras e normas sociais, em anseios e
movimentos antidemocráticos, no forte apelo à ação repressiva extrema do Estado,
na violência desmedida em atos e palavras do cotidiano e na indiferença em relação
ao outro. Tais aspectos das relações sociais têm sido largamente estudados pela
sociologia e se revelam em alguns padrões de sociabilidade contemporâneos. O
objetivo é compreender como o mal-estar principalmente sob as formas da
violência exacerbada e da indiferença – pode ser contextualizado na atualidade
brasileira e como pode ser apreendido a partir dos textos jornalísticos. O discurso
jornalístico é, antes de uma narrativa que busca reconstituir de modo objetivo os
fatos, um modo de representação dos indivíduos e das relações sociais e, nesse
sentido, pode ser investigado como uma das formas de expressar o mal-estar. Nesta
sondagem, por meio da hermeutica em profundidade, tal como proposta por John
B. Thompson, foram analisados textos de dois jornais brasileiros, Folha de S. Paulo
e O Globo, relativos a casos de violência ocorridos em São Paulo e Rio de Janeiro
em 2004.
Palavras-chave
: mal-estar, violência, jornalismo, mídia, modernidade.
7
A
BSTRACT
As a structural phenomenon affecting civilization, discontent is related to the
difficulties of individuals in dealing with the demands imposed by living in societal
settings. The concept of discontent refers to the conflict between individuals and
peers, who are often taken as irreconcilable differents. This conflict can be seen in
some claims for unlimited individual freedom, in the antagonism to established social
rules, in the cravings for illiberal tendencies, in the yearnings for a repressive state, in
the excessive physical and verbal hostility in routine tasks and in the indifference
towards others. Such aspects of social relations have been widely assessed by
sociology and are exposed in some standards of contemporary sociability. The
objective is to understand how discontent mainly under the forms of exacerbated
violence and of indifference can be placed into the Brazilian contemporary context
and how can it be picked out in journalistic texts. The journalistic discourse consists
of individual representation and reflects social relations rather than being a narrative
that tries to re-enact objectively the facts. In this sense, it can be probed as a form of
expressed discontent. This survey reviews, by means of depth hermeneutics, as
proposed by John B. Thompson, texts of two Brazilian newspapers, Folha de S.
Paulo and O Globo, covering cases of violence which occurred in São Paulo and Rio
de Janeiro in 2004.
Keywords
: discontent, violence, journalism, media, modernity.
8
S
UMÁRIO
Introdução
9
Capítulo 1: Um muro é um sintoma
32
1.1
Um muro cerca a Rocinha
44
1.2
Barreiras invisíveis
50
1.3
Do lado de dentro dos muros
56
1.4
Do lado de fora dos muros
62
Capítulo 2: Mal-Estar em conflito com o outro
70
2.1
O mal-estar na modernidade
73
2.1.1
A felicidade sempre restrita
80
2.2
O outro e a violência
85
2.2.1
Indiferença, uma das faces da violência
88
Capítulo 3: Mídia, modernidade e ideologia
95
3.1
Experiências compartilhadas
98
3.2
Os meios de comunicação e o mal-estar
107
3.2.1
O discurso da imprensa
119
3.3
Interpretação – notas metodológicas
124
3.3.1
Ideologia e mídia: abordagem hermenêutica
125
Capítulo 4: O mal-estar em palavras
131
4.1
Do "lado de lá", a Rocinha
138
4.1.1
Reféns na cidade, reféns na favela
141
4.1.2
Guerra é guerra
150
4.1.3
A polícia (o) salva
155
4.2
A rebelião dos rbaros
161
4.2.1
O Estado como Outro
163
4.2.2
Rebeldes, bárbaros
171
4.2.3
Deus, Demônio e Pombajira
174
4.3
Moradores de rua: invisibilidade na primeira página
178
4.3.1
"Nós o queremos só albergues"
183
4.3.2
A linguagem que diferencia
190
4.3.3
Enquanto isso, PT e PSDB...
196
4.3.4
Falas da resistência
201
4.4
Questão de opinião
204
Considerações finais: O permanente mal-estar
212
Referências Bibliográficas
223
9
I
NTRODUÇÃO
"Tem que matar, mesmo" ou "Deixa morrer, ninguém vai sentir falta". Ao longo
dos anos de 2003 e 2004, foram muitas as vezes em que ouvi afirmações
assustadoras como estas de amigos e parentes enquanto comentávamos nocias
dos jornais e da TV. Especialmente quando os fatos narrados eram relacionados à
violência – rebeliões em presídios, ações armadas do tráfico de drogas, crimes
envolvendo adolescentes em conflito com a lei, massacres e chacinas , a conversa
acabava invariavelmente em palavras como esses.
Como jornalista, me perguntei se as nocias embasavam tais comentários,
fornecendo recursos para sustentá-los. A questão passou a me inquietar cada vez
mais e minha formação paralela em ciências sociais indicava que havia nessas
formulações algo mais complexo a ser investigado. De alguma forma, aquelas
palavras carregadas de intolerância tiravam sua força do noticiário ou apoiavam-se
nele para se justificarem e produzirem legitimidade e consenso, embora refletissem
algo muito mais complexo e arraigado na sociabilidade brasileira: a certeza de que a
violência é a maneira mais adequada para lidar com conflitos e com a diferença. Mas
por que a produção do consenso passava pela idéia de que algumas vidas
exatamente aquelas vidas perdidas em situações violentas eram desprovidas de
valor?
Em seu livro Vidas Desperdiçadas (2005), Zygmunt Bauman mostra como a
desvalorização de determinados grupos e indivíduos é construída socialmente e é
indissociável da modernidade: os ideais de ordem e progresso econômico têm como
conseqüência incontáveis refugos, entre eles seres humanos que, porque não se
encaixam no modo como o mundo é organizado, são vistos e tratados como
10
redundantes, degradados e indesejáveis. Bauman mostra como a modernização, a
colonização e a globalização todas representando diferentes fases da
modernidade – sempre produzem pessoas que vivem nas ruas, sem casa, sem
emprego e sem família, nos presídios superpovoados, nos bairros periféricos onde a
escola, o trabalho, a polícia, o Estado e a lei chegam quase sempre sob as formas
de má qualidade de ensino, informalidade, abuso de poder, assistencialismo e
repressão policial. Ora vítimas ora protagonistas das cenas e histórias de violência
do noticiário, não por acaso essas pessoas têm mortes trágicas e, sobretudo,
numerosas. Estes anônimos são excedentes, restos da vida social moderna e da
forma como nela se organizam as relações econômicas e políticas. Uma
organização que marginaliza.
Essencialmente, o confronto com essas vidas desperdiçadas é o confronto
com a diferença, com o outro coletivo, excessivo, que está fora da ordem e produz
medo, asco, insegurança e estranhamento. Esta diferença que se imprime em
muitos rostos na multidão, é a base sobre a qual se funda uma tensão permanente
nas relações sociais à qual Freud deu o nome de mal-estar.
Ao elaborar tal conceito, em 1929, Freud buscava explicar o eterno conflito
entre indivíduo e sociedade. Sem autonomia para viver só, o indivíduo precisa dos
outros e as bases para que as relações sejam seguras são dadas pelas normas
sociais. Mas, se as regras de convivência estabelecem ordem, limpeza, organização
das relações de poder, trabalho e família, tamm restringem a liberdade do
indivíduo e seus anseios de uma satisfação plena, que não leve em consideração os
outros. A segurança da vida em comum impõe limites aos desejos e impulsos
agressivos e sexuais do sujeito. Instaura-se, assim, uma tensão entre o indivíduo e a
sociedade e uma ambiidade na relação com o outro, sempre conflituosa. Uma das
11
formas sob as quais essa tensão social se evidencia, é a violência exacerbada:
assassinatos nas ruas e guetos, o não reconhecimento do valor das vidas alheias
pelo discurso, a violência física ou simlica, tudo isso é expressão do mal-estar. Se,
como mostra Bauman, as vidas desperdiçadas são produto de processos
econômicos e políticos da modernidade, as reflexões de Freud indicam que tais
vidas são também resultado desse mal-estar.
Neste trabalho, a proposta é sondar a cultura, o simbólico, a interpretação da
experiência
1
e mostrar que as formas simlicas
2
modernas têm papel importante na
construção e justificação dos conflitos sociais. Toda ação, imagem ou fala que tem
como objetivo reforçar, enfatizar ou reproduzir as diferenças é manifestação do
conflito com o outro. O problema a ser investigado, então, é como o discurso, em
especial o discurso jornalístico, reproduz esse conflito, dando espaço para que o
mal-estar contemporâneo se manifeste. Por meio da interpretação, a iia é
evidenciar como este elemento de tensão nas relações sociais transparece nas
falas, nos enunciados e relatos do texto jornalístico "produzido para ser lido", uma
das várias facetas do discurso midiático.
Entre televisão, jornais, revistas, rádio, internet, livros, imprensa alternativa,
emissões das rádios livres, cinema e tantas outras peças do que chamamos mídia,
escolhi concentrar a análise nos jornais. Minha atuação como jornalista sempre
esteve ligada ao jornalismo impresso e, assim, todos os meus questionamentos a
1
"Uma experiência é o encontro da mente com o mundo, no qual nem este nem aquela são jamais
simples ou totalmente transparentes." É assim que Peter Gay (1988, p. 19) inicia sua definição do
conceito de experiência. E continua: "Seja como evento isolado, seja ligada a outros eventos, a
experiência é portanto muito mais do que mero desejo ou percepção fortuita; é, antes, uma
organização de exigências apaixonadas e atitudes persistentes no modo de encarar as coisas, e de
realidades objetivas que jamais serão refutadas."
2
Como define John B. Thompson (1998, p. 79), as formas simbólicas são "ações, falas, imagens e
textos reconhecidos como elementos com significado".
12
respeito do discurso midiático convergem, imediatamente, para o texto jornalístico,
mais do que para as imagens que, nos jornais, são suplementos do discurso.
Os meros mostram que, diante da televisão, os jornais têm um alcance
muito limitado de público. Há pelo menos um aparelho de TV em 93,5% dos
domicílios brasileiros enquanto 7,23 milhões de exemplares de jornais circulam
todos os dias, a grande maioria dos títulos com circulação limitada e regional
3
. Os
grandes jornais que são objeto de estudo aqui , e que têm circulação mais ampla,
falam a uma camada abastada da população, aquela que tem acesso à
compreensão e ao hábito da leitura, bem como à satisfação de mais necessidades e
desejos do que a maioria dos brasileiros e, por isso, que pode pagar pela aquisição
diária ou eventual de jornais.
Ainda que seja um meio de comunicação de alcance restrito, o jornal tem uma
importância central nos estudos sobre a mídia e a modernidade. A cultura letrada
está estreitamente ligada ao projeto moderno de sociedade no Ocidente e se
identifica plenamente com o anseio iluminista de democracia, igualdade,
universalismo. Os jornais abraçaram, então, este projeto e se transformaram em
veículos para divul-lo. Mesmo depois de tantas mudanças sociais e mesmo diante
do questionamento desses ideais, o jornalismo permanece como herdeiro desse
projeto de sociedade e suas contradições internas tamm refletem como esses
ideais se desenvolveram e se frustraram.
Além disso, é sobretudo o jornal que cria e organiza, para os jornalistas, aquilo
que Pierre Bourdieu chama de habitus: o conjunto de disposições, práticas, crenças,
3
Os dados sobre aparelhos de televisão nos domicílios brasileiros são da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílio (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) relativa ao ano
de 2006 e divulgada em 2007. Os números sobre circulação de jornais são do Instituto Verificador
de Circulação (IVC) no mesmo ano. Em 2004, ano do noticiário em alise, a TV estava em 90,3%
dos domicílios e a circulação de jornais era de 6,52 milhões de exemplares diários.
13
valores, autonomias e dependências comuns a todos os profissionais, que irão
reproduzi-los e legitimá-los nas demais mídias. Não é por acaso que, como já se
tornou uma piada autodepreciativa comum nas redações, "ningm lê jornal". O que
não deixa de ser verdade. Como o próprio Bourdieu lembra em seu A Influência do
Jornalismo (1997), os principais leitores de jornais são os jornalistas. São eles que
mais lêem, comentam e criticam os jornais, em seu trabalho cotidiano.
Ningm lê tanto os jornais quanto os jornalistas que, de resto, tendem a
pensar que todo mundo lê todos os jornais. [...] Para os jornalistas, a leitura
dos jornais é uma atividade indispensável e o clipping um instrumento de
trabalho: para saber o que se vai dizer é preciso saber o que os outros
disseram. Este é um dos mecanismos pelos quais se gera a
homogeneidade dos produtos propostos. (BOURDIEU, 1997, p. 32)
Mesmo com todas essas restrições de abranncia, o jornal merece atenção
detalhada. Para Bourdieu, as mídias são interdependentes e, neste sentido, uma
análise da imprensa leva a conclusões que podem ser úteis para a compreensão
dos meios de comunicação em conjunto. Por ter se tornado uma referência
profissional, e tamm pela própria dinâmica das mídias, alterada pelas novas
tecnologias de comunicação, o texto do jornal o está mais restrito às ginas dos
exemplares que circulam pelas ruas. O jornal está na internet e levou para o meio
eletrônico sua autoridade e credibilidade, construídas justamente por sua
identificação com o projeto moderno. Os jornais escolhidos para esta análise, por
exemplo os dois de maior circulação no País
4
, Folha de S. Paulo e O Globo ,
estão na íntegra, diariamente, na internet, além de manterem online arquivos de
4
Segundo dados do Instituto Verificador de Circulação (IVC), em 2004, ano a que se refere esta
pesquisa, a circulação da
Folha de S. Paulo
(
FSP
) foi de 307.703 exemplares diários e de
O Globo
(OG), 257.451 exemplares diários. Em 2006, a Folha colocava no mercado 309.383 exemplares por
dia e
O Globo
, 276.385 exemplares.
O Globo
, entretanto, representa a empresa de comunicação
mais poderosa do País, que atua em todos os segmentos do mercado – TV, internet, rádios, livros,
jornais e revistas. As Organizações Globo detêm ainda o terceiro maior jornal do País, o
Extra
(267.225 exemplares diários em 2006). Já a
Folha
atua nos segmentos de livros, jornais e internet.
Isso mostra que o jornal não é apenas um produto, uma mercadoria, mas uma mercadoria que está
ligada à lógica e aos interesses de grandes empresas. Cada jornal é uma peça a mais na
reprodução da lógica cultural do capitalismo contemporâneo.
14
edições desde 1997 e produzirem noticiário connuo online, preparado pelos
mesmos jornalistas dos veículos impressos.
Outro aspecto que torna relevante a análise do jornal é o fato de que, uma vez
impressos, se tornam documentos. Historiadores, cientistas sociais, geógrafos,
psicólogos freentemente recorrem a jornais do passado em busca dos fatos. O
que encontram são versões dos fatos e as análises que evidenciam essas versões
são importantes para determinar os limites dos jornais como fontes de pesquisa.
As nocias de jornal privilegiam a fala de autoridades ligadas ao Estado, à
Igreja, às Organizações Não-Governamentais (Ongs) e outras instituições: é a
"sociedade formal" que fala. Ainda que não ausentes, personagens que têm suas
vidas refugadas raramente falam ou repercutem suas experiências nos jornais. Isto
representa a seletividade do discurso. Ao selecionar quem fala por meio de suas
páginas e o que é dito, o jornal propõe uma percepção particular do mundo e das
relações sociais.
A pesquisa sobre como Folha e O Globo tratam a questão da violência se
sustenta no pressuposto de que tanto o desenvolvimento dos meios de comunicação
quanto o acirramento do mal-estar são constitutivos das relações sociais modernas.
Os meios de comunicação, que juntos constituem uma grande conquista técnica da
modernidade, registram e divulgam a experiência da vida em comum e as reflexões
sobre a sociedade mas, sobretudo, refletem o jogo de forças que nela atua. O mal-
estar é um elemento imaterial, inconsciente e simlico dessas relações de força.
É por esta dimensão social que o conceito freudiano foi apropriado por vários
pensadores da cultura – psicanalistas, filósofos, cientistas políticos e sociólogos
entre eles Dennis Wrong, Herbert Marcuse, Norbert Elias, Zygmunt Bauman, Joel
Birman, Sergio Paulo Rouanet, Slavoj Zizek.
15
Ao se debruçar sobre o conceito de mal-estar, o pensamento social desvenda
traços que estão além dos processos psíquicos do indivíduo e que se ligam à
construção da subjetividade e das relações sociais. A aproximação da psicalise
impõe às ciências sociais um dilema: tentar responder suas questões clássicas
como é possível construir uma sociedade mais justa, igualitária e mais democrática;
como é possível manter a coesão social de modo que os indivíduos encontrem
satisfação nas instituições diante de um elemento teórico novo e perturbador. Este
elemento é a pulsão de morte, fenômeno irreduvel por meio da cultura e que exerce
uma constante pressão sobre os indivíduos no sentido da quebra dos laços sociais.
É justamente este dilema que, ao mesmo tempo em que aponta para uma
complementaridade das teorias sociológica e psicanalítica, cria barreiras para a
apropriação dos conceitos de uma dessas formas de conhecimento pela outra.
O pensamento social sempre buscou compreender os elementos que
sustentam o laço social em sua universalidade, ao mesmo tempo em que refletia
sobre a alienação do homem moderno, as oposições nas relações sociais, a
dificuldade da plena realização da autonomia e da liberdade dos indivíduos.
Durkheim, Marx e Weber ofereceram respostas paradigmáticas a essas questões.
Em linhas gerais, pode-se dizer que Durkheim, a partir de seu conceito de
solidariedade orgânica como aspecto característico das sociedades industriais,
projetava um mecanismo que fosse capaz de garantir a coesão social. Baseado na
interdepenncia entre os indivíduos e nascido da divisão do trabalho, esse tipo de
solidariedade ainda não havia realizado todas as suas potencialidades diante da
rápida industrialização e da inadequação de regras políticas e ecomicas,
explicava Durkheim, e era esta a origem dos conflitos. Por mais que Durkheim
esperasse que, à medida que tais regras fossem estabelecidas e consolidadas, a
16
harmonia social se instalaria, se viu obrigado a encarar a alienação do homem
moderno, causada por uma solidariedade sempre insuficiente.
Para Weber, as respostas para as questões da coesão e oposição social
estão na ambigüidade do processo de racionalização. Este, ao mesmo tempo em
que permite a integração, padronização e progressivo desenvolvimento do controle
da natureza pelo homem, pode redundar num mundo burocrático, sem sentido,
incapaz de transformar a ciência em vocação, ou seja, de produzir um conhecimento
que não se deixe dominar pela lógica da racionalidade técnica, mas que seja
norteado pela busca do sentido, da interpretação.
Em Marx, as mesmas questões passam por uma complexa teorização que
explicita como a organização social se reproduz de modo a reproduzir uma
percepção distorcida das relações sociais. Esta "falsa consciência" mascara as
contradições das práticas características do capitalismo e encobre os conflitos de
classe sob a aparência de coesão social.
Tanto Marx, como Weber e Durkheim, denunciaram e procuraram explicar a
alienação do indivíduo na modernidade. Embora os aspectos dessa alienação sejam
diferentes em cada uma das teorias, todas apontam para uma impotência do
indivíduo em transformar os processos sociais, um isolamento em relação à
coletividade, um trabalho desprovido de sentido e de prazer, motivado apenas pela
necessidade, e tamm para processos que subjugam o indivíduo à ordem social.
A preocupação com a alienação do indivíduo, embora o nomeada nesses
termos, tamm está presente nas reflexões de Freud ao elaborar o conceito de
mal-estar, em que procura explicitar os movimentos psíquicos de repressão das
pulsões de vida e de morte – a sexualidade e a agressividade promovidos pelas
regras sociais.
17
Freud mostra como esse processo impõe pesados sacricios ao indivíduo
que, apesar de pagar esse preço, ainda assim, inconscientemente, deseja
justamente o oposto daquilo por que se sacrificou: a satisfação pulsional plena, uma
ilusão. O conceito de mal-estar revela, assim, que o indivíduo está subjugado não
apenas à ordem social, mas ao seu próprio psiquismo.
Esta preocupação com a alienação, comum às ciências sociais, que o
conceito psicanalítico de mal-estar carrega, faz com que seja apropriado pelos
pensadores sociais de modo distinto em pelo menos dois momentos da história da
sociologia.
O primeiro deles é quando, a partir das cadas de 30 e 40, a Escola de
Frankfurt se propõe a criar uma teoria crítica da sociedade moderna com base nas
análises de Freud e Marx. A combinação de marxismo e psicanálise se torna o ponto
de partida para uma multiplicidade de reflexões sobre os efeitos e dicotomias da
racionalidade técnica que se desdobram na compreensão de que a produção
cultural repete a mesma lógica da indústria – daí a idéia de indústria cultural e,
portanto, as mesmas relações de dominação que marcam todo o sistema capitalista.
Destacam-se aí a teoria de Adorno e Horkheimer sobre a dialética do
esclarecimento, em 1947 e, principalmente, o texto Eros e Civilização, de 1955, de
Herbert Marcuse, além de suas análises sobre o homem unidimensional, de 1964.
Uma das principais contribuições dos frankfurtianos ao debate sobre o mal-
estar como elemento importante das relações sociais é justamente o conceito de
instria cultural de Adorno e Horkheimer. Para os autores, sob a onipresença dos
meios de comunicação, o indivíduo se torna dominado pela lógica da mercadoria, vê
sua capacidade de resistência e sua autonomia serem anuladas e reprimidas.
18
Pode-se perceber que o conceito de indústria cultural dialoga com o conceito
de mal-estar ao compreender o indivíduo como subjugado à dominação da cultura
de tal forma que nem mesmo a sublimação pela arte e pela reflexão, apontada por
Freud como mecanismo de liberação da pulsão de vida e de satisfação pulsional,
encontra espaço. A cultura deixa de ser algo que o indivíduo pode produzir e se
torna algo que ele consome, que determina suas reações, anula seu pensamento e
sua autonomia. Se o indivíduo freudiano é reprimido, o indivíduo frankfurtiano é
ainda mais reprimido.
A importância de Marcuse é justamente a de teorizar sobre esse excesso de
repressão que ele denomina, em analogia com o conceito de mais-valia elaborado
por Marx, de "mais-repressão". Marcuse irá marcar o mal-estar como um fenômeno
especificamente moderno. Se Freud não aponta possibilidades para uma redução do
mal-estar deixando claro que se trata de um fenômeno estrutural da civilização,
não conjuntural , Marcuse irá dizer o contrário e defender que a intensidade de
repressão pulsional que o origina é, no capitalismo, excessiva, é a "mais-repressão".
Marcuse argumenta que este excesso pode ser superado em um contexto cultural
em que a sexualidade seja menos reprimida de modo que a pulsão de morte que a
acompanha também se enfraqueça.
As concepções da Escola de Frankfurt foram bastante difundidas, mas logo
levantaram oposições. Adorno e Horkheimer são acusados de uma compreensão
considerada determinista do papel dos meios de comunicação. O blico, nas
análises frankfurtianas, é muito passivo, permeável a todas as informações da
instria cultural, dizem os críticos. Marcuse, por sua vez, foi acusado de uma
compreensão utópica do mal-estar, já que nada na teoria freudiana – nem mesmo a
idéia de sublimação – apontaria para a possibilidade de redução da pulsão de morte.
19
Freud é específico quanto ao fato de que a sublimação é um caminho para a
liberação da pulsão de vida, da sexualidade reprimida que irá restabelecer os laços
sociais por meio da criação. Ao mesmo tempo, a teoria freudiana insiste que a
pulsão de morte, a agressividade, reprimida não encontra caminhos de liberação
pulsional e atua no sentido do rompimento dos laços sociais.
Em A Instituição Imaginária da Sociedade, de 1975, Castoriadis irá propor
uma via de comunicação entre as idéias de Freud e de Marcuse. Explica ele que o
movimento psíquico do inconsciente o é marcado pelas cisões e rupturas
características das contradições. O psiquismo opera em fluxo connuo o que faz
com que repressão e sublimação não sejam excludentes, mas simultâneas. Não
existe uma coisa ou outra para o inconsciente, uma pulsão que é reprimida pelo
mundo social para depois ser sublimada no universo individual. Tudo ocorre ao
mesmo tempo. Castoriadis chega a propor que acontece uma socialização do
processo psíquico e que as repressões sucessivas implicam em movimentos
sucessivos de sublimação.
Esse movimento, posto em palavras, parece contraditório, mas o inconsciente
desconhece o contraditório, diz Castoriadis. O que acontece não é nem a primazia
de uma repressão social implacável da pulsão sexual, à qual apenas eventualmente
se apresenta a possibilidade de liberação dessexualizada, nem a possibilidade de
uma redução culturalmente determinada dessa repressão. A sublimação, de acordo
com Castoriadis, não passa apenas por uma transformação da renúncia da
exploração do corpo do outro para a satisfação própria ou pela formação de laços
sociais em que o componente sexual se transforma em criação, como na arte. A
sublimação passa também e simultaneamente pelo reconhecimento do outro como
um semelhante, não como um objeto. Tal reconhecimento pode se dar pela via do
20
imaginário radical que é capaz de romper com as representações que se repetem e
que apontam sempre para a mesma lógica da diferenciação. O imaginário radical é
individual, mas também instituinte de uma sociedade diferente.
Ainda nesse primeiro momento de apropriação do conceito de mal-estar pela
sociologia, em 1961, o sociólogo Dennis Wrong ira discutir a iia de que a
sociologia exagera a importância da socialização dos indivíduos, no sentido de o
conseguir conceber que uma parte do psiquismo individual escapa à socialização.
Wrong defende que é a psicalise freudiana – sobretudo a partir do conceito de
mal-estar que dará a chave para a sociologia refletir sobre a incompletude do
processo de socialização e sobre os conflitos que daí decorrem.
O segundo momento de aproximação entre sociologia e psicanálise é
contemporâneo e começa a se evidenciar a partir de diversas publicações da
década de 90, em especial as reflexões de Zygmunt Bauman, Joel Birman e Sergio
Paulo Rouanet. O conceito de mal-estar é retomado por estes pensadores sociais,
mas já descolado do marxismo e associado menos às discussões sobre a
racionalidade técnica e mais à trama das relações sociais e à experiência da
insegurança, da exclusão, da diferença, da falência dos projetos da modernidade.
Nesta segunda fase do debate sociológico em torno do mal-estar, as reflexões
são perpassadas por toda a discussão em torno do conceito de pós-modernidade,
que altera profundamente as teorias sociais. Nas teorias s-modernas, a
contemporaneidade é compreendida como marcada pela falência dos ideais
modernos, pela mudança de paradigmas, pela implosão dos grandes sistemas
explicativos sobre a vida social e pelo avanço vertiginoso das tecnologias.
De modo esquemático, pode-se reconhecer claramente a existência de três
linhas de pensamento relativas à s-modernidade. A primeira assume
21
integralmente a pós-modernidade como uma ruptura radical com os preceitos da
modernidade. A era contemporânea é uma outra era que lida com os escombros de
um projeto de sociedade que ruiu e que o cumpriu nenhuma de suas promessas
nem consegue se manter erguido. Outra linha de pensamento argumenta que a
atualidade testemunha uma transição entre duas eras a moderna e a pós-
moderna. Nessa viagem de um lado a outro, carregamos na bagagem velhos e
novos ideais que se contradizem, entram em choque, produzem novos conflitos
diante dos quais nos surpreendemos e perdemos muitas das referências da vida
social. Mas, ao propor a idéia de transição, é preciso considerar que os processos
transitórios históricos são lentos, demorados, diceis e, principalmente, o
marcados por rupturas, e sim pela tensão entre o passado e algo que se delineia
mas ainda não é o futuro.
Uma terceira vertente de pensamento propõe a compreensão da chamada
s-modernidade como um processo de radicalização dos pressupostos da
modernidade. Não existe ruptura nem transição, e sim a consciência clara de todas
as promessas que o se realizaram. Esta consciência vem acompanhada de uma
autocrítica contundente dos projetos societários, o que o deixa de ser uma
experiência desestabilizadora.
É com esta visão que se alinham teoricamente as reflexões aqui
desenvolvidas. Um ponto do debate, entretanto, que não é abandonado – talvez
mais importante do que nomear a contemporaneidade – é que cada uma das três
vertentes busca enfatizar, a seu modo, as mudanças que ocorrem na sociedade
contemporânea. Pode-se dizer que pós-modernidade, sociedade industrial,
sociedade programada, modernidade líquida, modernidade tardia e outros tantos
22
conceitos destacam aspectos dessas transformações e enfatizam alguns de seus
elementos, ajudando a compreender o presente.
Todas as formas de pensar a contemporaneidade – seja pela iia de ruptura,
de transição ou de autoconsciência – atentam principalmente para a mudança
social. A questão em que ainda não se chegou a um consenso é se essa mudança é
realmente tão radical a ponto de se poder falar de uma nova época. Acredito que
não, e que as origens de todo os questionamentos e dos padrões de sociabilidade e
organização social ainda se inscrevem no projeto moderno de vida em comum. As
mudanças que ocorrem estão dentro de uma mesma matriz, o que não as torna
menos importantes, pelo contrário.
As reflexões sobre a pós-modernidade mostram que nenhuma outra época
teve tantos recursos, principalmente teóricos, para compreender a si mesma,
recursos esses gerados pelo próprio projeto moderno que implica numa pluralidade
de vozes, de manifestações arsticas, de narrativas tricas das quais o próprio
conceito de pós-modernidade é um exemplo.
Alinho este trabalho aos pensadores que, sempre sem desconsiderar as
contribuições que o conceito de pós-modernidade agrega à teoria social,
compreendem estas cadas de passagem de século como um momento em que a
modernidade se debruça sobre si mesma e toma consciência de suas contradições,
antagonismos, complexidades, fracassos.
É nesse contexto de um debate complexo, fragmentado, multifacetado que se
inserem os pensadores que promoveram uma nova reapropriação do conceito de
mal-estar pela sociologia. Independentemente da denominação que usam para
nomear a contemporaneidade, esses pensadores destacam que o mal-estar
contemporâneo é já diferente daquele descrito por Freud ou, posteriormente, pelos
23
pensadores da Escola de Frankfurt. Agora, o mal-estar cultural irá se associar a um
aspecto fundamental das relações sociais que é a exacerbação das desigualdades e
da compreensão das diferenças como demarcatórias de verdadeiras barreiras à
formação dos laços sociais. Na formulação de Zygmunt Bauman
5
, se o mal-estar
como descrito por Freud era marcado por um embate do indivíduo para conquistar a
liberdade e nesse sentido o desejo era de explorar o corpo ou a mão-de-obra
alheia a fim de obter plena satisfação e de exercer a liberdade como dominação – na
atualidade o mal-estar é um embate pela segurança. O desejo é de aniquilar o outro,
de destruí-lo, porque ele representa uma ameaça.
É nessa linha de reflexão que serão estudadas as relações entre mídia e mal-
estar ao longo da alise. Tais relações ainda não têm sido detalhadamente
exploradas por esta tenncia contemporânea de pensamento social. Na produção
recente brasileira, o localizei teses ou dissertações que se dedicassem
diretamente ao tema, mas existem dois trabalhos que merecem ser destacados.
Adriana Bacellar Leite e Santos em seu Os Meios de Comunicação como
Extensões do Mal-Estar (2002) analisa as novas tecnologias de comunicação. Numa
reflexão alinhada à tradição das teorias sobre a racionalidade técnica e a indústria
cultural, ela defende que a TV e a internet excluem as capacidades de discernimento
e de subjetivação do blico. Os meios de comunicação, segundo ela, pregam uma
fusão entre o eu e o outro, a satisfação plena dos desejos. A mídia teria como papel
principal divulgar a satisfação imediata dos desejos pelo consumo e, com isso,
encobriria os conflitos da vida em sociedade. O trabalho é, sobretudo, um esforço de
5
Bauman (1998) inicia suas reflexões sobre o mal-estar utilizando o conceito de pós-modernidade
mas, posteriormente em sua obra, retorna ao conceito de modernidade, agora modernidade líquida,
em que incorpora aspectos da indefinição e das incertezas que marcariam a pós-modernidade.
24
reflexão filosófica sobre a comunicação, sem se debruçar sobre o contdo das
mensagens e defende que os conflitos, encobertos, ampliam o mal-estar.
Na análise dos textos dos jornais, identifiquei que os meios de comunicação,
longe de pregar uma fusão do eu com o outro, promovem a diferenciação e a
separação e retiram justamente daí os elementos para propor uma satisfação dos
desejos. Mesmo nos momentos em que proem uma unificação, o fazem para
posteriormente indicar a impossibilidade de que esta se complete. É verdade que o
mal-estar é encoberto nesses momentos, mas a relação do discurso midiático é mais
complexa. Por vezes o conflito é justificado, sustentado, incitado pela mídia. A
ampliação do mal-estar se dá principalmente porque o conflito, recalcado, retorna
em palavras de intolerância, de preconceito, de segregação.
Lucia Santaella tamm recorre ao conceito de origem freudiana para analisar
as representações na contemporaneidade. Em Corpo e comunicação – sintoma da
cultura (2004), a autora investiga, a partir do referencial da semiótica, a
representação do corpo na tecnologia, na arte, na bioarte, na moda e nas mídias e
mostra como, especialmente neste caso, o corpo aparece como um elemento de
exploração do outro pelo desejo. O outro aparece como objeto de satisfação do
sujeito, algo que Freud reconhece como elemento importante do mal-estar, em que a
busca por satisfação implica na aniquilação do outro. Na contemporaneidade, mostra
Santaella, tal aniquilação não precisa ser necessariamente concretizada em ato,
mas pode ser representada, principalmente pela imagem.
Neste trabalho, o campo de reflexão sobre a comunicação não é nem a
filosofia nem a semiótica, mas a sociologia. O conceito de mal-estar, apropriado da
psicanálise, contribui sobretudo por destacar a presença de um conflito permanente
nas relações sociais, que não é anômico ou passível de eliminação. Indica que os
25
conflitos são intrínsecos às relações sociais e, na modernidade, estão ligados às
desigualdades e diferenças entre os indivíduos e os grupos. O conceito de mal-estar
nos diz que tal conflito irá sempre deixar sua marca, ainda que de forma variada de
acordo com o contexto histórico. Acredito que esta é a maior contribuição do
conceito para as análises sociológicas. Sua relevância para a compreensão de
aspectos sociais está em dotar a relação com o outro de conflitos e ambigüidades.
Para as ciências sociais, hoje, o conceito pode propor uma série de reflexões.
Na sociologia, uma das questões pode ser pensar a idéia de que o indivíduo não é
totalmente socializado e algumas implicações disso, como o fato de que a
internalização das regras sociais não é garantia da produção de consenso e de que
nem mesmo o consenso é garantia de um conflito apaziguado. Existirá sempre uma
parte do indivíduo que será marcada pelo mal-estar e pela oposição às regras
sociais e, em geral, a integração à sociedade implica no recalque, na transferência
para o inconsciente, dessa oposição. Este recalque mantém uma permanente
tensão no sentido do rompimento dos laços sociais. O mal-estar nos fala, assim, da
fragilidade dos consensos, dos laços, e de uma tensão que pode resultar em ruptura
diante de algumas situações. Quais seriam elas?
A identificação do mal-estar implica em assumir que os conflitos sociais o
são todos passíveis de solução e que, muitas vezes, o apelo por uma definição o
negociada reflete justamente o desejo de destruição, numa fantasia de que é
possível restabelecer a ordem absoluta e a coesão social perfeita se algumas
oposições forem eliminadas. Em geral, essa eliminação passa pelo não-
reconhecimento da legitimidade dos desejos e interesses do outro.
As sociedades modernas colocaram a igualdade em um horizonte a ser
alcançado, mas tal projeto ignora algo o que o conceito de mal-estar sempre
26
relembra: cada indivíduo, por mais democrático que seja em suas convicções, tende
a identificar nas diferenças do outro uma oposição e uma ameaça. Tal ameaça se
torna muito mais desafiadora quanto menores forem as diferenças entre os
indivíduos em contraposição.
Se "Narciso acha feio o que não é espelho", como escreveu Caetano Veloso,
mais feia lhe parecerá a imagem que é quase um reflexo perfeito de si mesmo. Os
menores desvios evidenciam a impossibilidade de identificação; sempre faltará ou
sobrará algo neste outro tão semelhante, mas desigual. É o que a psicalise
denominou como "narcisismo das pequenas diferenças", que está diretamente ligado
à violência: na impossibilidade de me reconhecer no outro, volto para ele meu
desejo de destruição. No contexto das relações sociais modernas, as pequenas
diferenças representarão oposições irreconciliáveis em um projeto igualitário de
sociedade, o outro será sempre construído como um estranho e a ser isolado,
excluído, responsabilizado pelos erros.
Se as pequenas diferenças se prestam a comparações mais complexas, o
conceito de mal-estar pode ser útil também para pensar a prática da antropologia
que irá produzir, por meio da etnografia, a representação do modo de viver do outro.
O antropólogo pode se valer do mal-estar para pensar em que medida as diferenças
que se identificam no outro estão relacionadas ao lugar do qual se faz essa
identificação.
O conceito de mal-estar indica que muitas das diferenças que percebemos
são construídas para a satisfação das pulsões agressivas reprimidas e é possível
pensar como esta construção pode ampliar a eficácia de operação do poder e a
ambivalência das classes poderosas em relação à regimes mais democráticos.
27
O mal-estar pode, assim, ser apropriado pela ciência política para explicar as
tentativas do poder nem sempre bem-sucedidas de impor práticas o-
democráticas no interior de regimes democráticos. O mal-estar pode também ser
compreendido como um dos possíveis elementos de sustentação dos aspectos
totalitários do poder. Apelando ao mal-estar constitutivo das relações, os "donos do
poder" podem obter apoio a suas práticas antidemocráticas e a políticas repressivas.
O conceito talvez possa ajudar, ainda, a explicar comportamentos eleitorais, a
apatia política, a adesão a propostas antidemocráticas como a de supressão de
direitos humanos, políticos e civis para determinadas populações. É um fio que pode
desenroscar a meada das oposições aos ideais igualitários que ganham força
coletivamente.
[...] a democracia, ao proclamar que todo homem é um ser dotado de razão
e desejos, colocou o conflito como fundamento da sociedade. Cada um
entra em conflito com todos os outros (competição política ou esportiva,
concorrência econômica, emulação pedagógica, distinção social...). Tudo
acontece como se a democracia se baseasse no conflito generalizado
(tendo no mérito e na confiança as regras do jogo, é claro) que tende, no fim
das contas, a uma harmonia generalizada (a um equilíbrio geral não só
ecomico de tipo walrasiano), resultado de não se sabe que "mão
invisível" [...] (ENRIQUEZ, 2004, p. 53)
A formulação teórica do conceito de mal-estar indica que a "mão-invisível"
harmonizadora não existe, mas que ao contrário existem aspectos não racionais do
indivíduo que se opõem a todas as formulações da democracia. O mal-estar
denuncia a impossibilidade do projeto universalista moderno, de criar laços sociais
estáveis, pacíficos e inabaláveis baseados na autonomia do indivíduo.
O mal-estar como elemento constitutivo das relações sociais não é encoberto
apenas pelos ideais modernos de democracia. A mídia, com seu discurso
mercadológico e a utilização das representações da sexualidade e da agressividade
como mecanismos de satisfação dos desejos, também tenta encobri-lo. Mas o
28
conflito entre o indivíduo e a sociedade, entre o indivíduo e um outro coletivo
transparece em algum momento do discurso. Um desses momentos é quando a
questão racial, a violência, a guerra, os sacricios de vidas humanas se tornam
nocia, quando o conflito se impõe no noticiário sem possibilidade de ser ignorado
ou amenizado.
A forte marca social do conceito de mal-estar o torna uma categoria
interessante de alise que rne e contrapõe, ao mesmo tempo, aspectos das
teorias sociológica e psicanalítica, das reflexões filosóficas e políticas, enriquecendo
o debate sobre a contemporaneidade.
A pesquisa para esta dissertação tentará levantar algumas evidências de
como a mídia reflete aspectos nem sempre conscientes das relações sociais. Se as
reflexões que estão propostas aqui puderem contribuir para uma leitura crítica das
mensagens midiáticas e se levarem a novas reflexões sobre o exercício da
alteridade na construção do discurso, o objetivo do trabalho terá sido alcançado.
Para chegar à compreensão do mal-estar que se revela, sob diversas formas,
no texto jornalístico, a dissertação foi organizada em cinco capítulos. O primeiro
pretende apresentar os episódios que se tornaram objeto da análise,
contextualizando-os no momento sócio-histórico brasileiro.
Uma proposta que me foi apresentada no momento do exame de qualificação
foi entrevistar testemunhas dos fatos para que esta apresentação fosse baseada em
descrições descoladas da ideologia do discurso jornalístico. A realização das
entrevistas, entretanto, se tornou inviável. A principal dificuldade foi o acesso a
pessoas dispostas a relatarem os acontecimentos em dois dos três casos em estudo
(os episódios na Rocinha e na Casa de Custódia Benfica). Na busca por fontes,
29
contatei pesquisadores que trabalham com a questão da violência no Rio de Janeiro,
associações de moradores e pessoas que trabalham na Rocinha, sem sucesso.
Optei, então, por utilizar trabalhos acadêmicos, relatórios e artigos de crítica
jornalística. Com isso, pretendi alcançar uma maior variedade de pontos de vista e
informações sobre os casos, evitando reproduzir as versões da mídia. Para o
capítulo inicial foram consultados textos dos sites Agência Carta Maior, Observatório
da Imprensa, VivaFavela e NoMínimo. Mas as fontes principais foram artigos
acadêmicos, dissertações e teses sobre crime e violência, relatórios da Câmara dos
Deputados, do Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP), do Instituto de Estudos
da Religião (ISER) e das ancias Anistia Internacional, Fórum Centro Vivo e Justiça
Global. O capítulo 1 procura mostrar quais são as condições e os padrões da
sociedade na qual irá se produzir o tipo de discurso jornalístico analisado.
O capítulo 2 é dedicado a uma reflexão sobre o conceito de mal-estar, sua
relação com a modernidade, com a violência e sua importância para a compreensão
do momento histórico e social contemporâneo. O capítulo 3 apresenta uma reflexão
sobre a mídia e sua relação com a modernidade, a ideologia e o mal-estar.
No capítulo 4 são relatadas as interpretações relativas à leitura dos textos
jornalísticos de O Globo e Folha de S. Paulo sobre o caso. O material para análise
foi obtido do arquivo digital integral dos dois jornais, que pode ser acessado pela
internet. Uma das vantagens desse sistema é a possibilidade de obter todas as
informações relativas ao texto (data, gina de publicação, nomes dos autores,
clic, quadros, cartas de leitor, chamadas de primeira página e legendas que
eventualmente constituíam edição impressa). A desvantagem é que o tive acesso
às fotos que ilustravam as ginas, o que não influi na alise uma vez que a
proposta se limitava à análise do discurso. Mas a linguagem visual do jornal talvez
30
trouxesse elementos novos à interpretação. Isso porque na imagem enquadrada
pelo misculo retângulo que a câmera alcança – e que se propõe a resumir o
mundo – a dor e o gozo do outro surgem "em instantâneo" e falam a todos. A
palavra é posterior à imagem, mesmo quando, no caso do jornal, a fotografia tem um
caráter de suplemento à mensagem. Embora a imagem acompanhe a palavra, o
leitor vê a foto e depois lê a legenda ou o texto. (Na TV, acontece o contrário: a
palavra se sobrepõe à imagem na fala do apresentador ou do personagem.)
O levantamento nos arquivos digitais resultou em cerca de 600 textos, desde
notas até reportagens especiais, que foram selecionados a partir de uma leitura
preliminar. Excluí da análise artigos, reportagens, editoriais e cartas em que os
casos eram citados apenas em caráter ilustrativo, mas não constituíam o tema
principal da mensagem, ou quando foram citados em colunas humorísticas. Ao final
desta seleção, obtive um volume de 469, textos, sendo:
1) sobre os atentados aos moradores de rua: 21 em O Globo (20 matérias e 1
editorial) e 111 na Folha de S. Paulo (89 matérias, 1 entrevista com especialista, 3
notas em colunas ou seções, 3 notas noticiosas, 2 chamadas de capa que não
constituíram manchetes, 2 quadros explicativos, 3 artigos, 13 cartas do leitor e 3
editoriais);
2) sobre a disputa na Rocinha: 116 textos em O Globo (46 matérias, 6 artigos
de opinião, 1 editorial, 6 chamadas de capa e 58 cartas de leitores) e 93 na Folha de
S. Paulo (69 matérias, 5 chamadas de capa, 8 artigos de opinião, 9 notas em
colunas ou seções, 1 editorial e 1 carta do leitor);
3) sobre a rebelião na Casa de Custódia Benfica: 64 textos de O Globo (40
matérias, 3 artigos de opinião, 8 chamadas de capa, 5 editoriais, 8 cartas do leitor) e
31
64 de Folha de S. Paulo (49 matérias, 1 entrevista exclusiva com um dos
personagens envolvidos, 4 artigos de opinião, 2 editoriais, 8 chamadas de capa).
Na segunda leitura dos textos selecionados, procedi a uma crítica das
mensagens. Anotei todos os aspectos que considerei relevantes para a
compreensão de como o mal-estar se apresenta no discurso jornalístico: aspectos
de linguagem, relevância dada ao texto, fontes utilizadas, formas de representação
de personagens, do Estado, das autoridades e detalhes sobre os acontecimentos.
Após realizar uma reflexão metodológica de como as categorias da
hermenêutica em profundidade proposta por John B. Thompson (1995) poderiam
ajudar a compreender a presença do mal-estar nos textos, procedi ao trabalho de
análise propriamente dito, com o cruzamento entre as observações de leitura e as
categorias de análise, trabalho que constitui o capítulo 4.
Algumas reflexões adicionais sobre a análise dos textos e sobre os limites
desta dissertação são apresentadas nas Considerações Finais.
32
C
APÍTULO
1
U
M MURO É UM SINTOMA
No ano de 2004, as autoridades do Rio de Janeiro apresentaram uma curiosa
proposta de combate à violência urbana: construir um muro em torno da Rocinha
6
.
Na maior favela da América Latina, os 56 mil moradores
7
ficariam, então, isolados da
cidade por um paredão de concreto de três metros de altura que demarcaria uma
área onde equipes do governo estadual realizariam uma ocupação "social e policial".
A proposta do muro em torno da Rocinha foi lançada num momento em que a
favela enfrentava uma de suas mais graves crises ligadas ao narcotráfico.
Responsáveis pelo comércio de drogas no local morreram. Foi um período
determinante para uma cisão no Comando Vermelho (CV) e para o enfraquecimento
do grupo, que perdeu o controle do comércio de drogas em vários pontos do Rio.
A idéia chamou a atenção o tanto pelo ineditismo, mas pela surpreendente
semelhança com obstáculos de concreto, arame e barras de ferro que existem ou
existiram em outros lugares do mundo: o extinto muro de Berlim; a barreira entre
Estados Unidos e México (a fim de impedir a imigração de latino-americanos); o
muro na fronteira israelense da Faixa de Gaza (isolando os palestinos dos judeus) e
as cercas em Ceuta e Melilla (cidades autônomas espanholas incrustadas no
6
A iia foi apresentada pelo então vice-governador do Rio, Luiz Paulo Conde, e teve apoio da
governadora Rosinha Matheus e do secretário de Segurança Anthony Garotinho. O vice-governador
justificou a proposta como uma maneira de diminuir a violência e limitar a expansão da favela, que
cresce em direção à mata da Tijuca, considerada a maior floresta urbana do mundo. Além da
Rocinha, tamm seriam parcialmente muradas e ocupadas as favelas do Vidigal, do Parque da
Cidade, na Gávea, e da Chácara do Céu, no Leblon.
7
Segundo os dados do censo de 2000, a favela da Rocinha tinha, então cerca de 56 mil moradores.
Mas, de acordo com a Associação de Moradores da Rocinha, a população local era de 200 mil
pessoas na época. Alguns veículos da imprensa divulgaram, sem citar fontes, os meros de 120
mil e 180 mil moradores. A discrencia e a diversidade das estasticas revelam a dificuldade das
instituições em definir os limites espaciais da Rocinha e a falta de conhecimento sobre as pessoas
que vivem ali.
33
território do Marrocos consideradas potenciais portas de entrada para imigrantes
marroquinos e subsaarianos na Europa).
No caso do Rio de Janeiro, era a primeira vez que a intenção de segregar
uma comunidade era expressa de forma tão clara. O muro foi apresentado pelo
Estado, criticado e sem efetivas propostas para a segurança pública, como a
solução para separar e proteger a sociedade da "violência urbana" ou da "ação do
narcotráfico", femenos que se equivalem nos discursos do senso comum
(MACHADO DA SILVA, 2004a). A proposta carregava a idéia de que o narcotráfico e
a comunidade por ele afetada, danosos e potencialmente perigosos para a
sociedade, poderiam ser se não extirpados , ao menos vigiados e controlados.
Extirpar, isolar e controlar: procedimentos que, não por acaso, são utilizados
pela medicina para lidar com muitas doenças não apenas porque servem para
combatê-las, mas porque servem ao exercício do poder. A "ocupação social e
policial" da favela levaria esses procedimentos para a Rocinha, com médicos e
dentistas que realizariam atendimentos médico e odontológico aos moradores, e
policiais que teriam a tarefa de "identificar e prender" as pessoas envolvidas com o
tráfico de drogas.
A estratégia, em termos de exercício de poder, não é inovadora. Em Os
Anormais (2002b), Foucault mostra como os métodos oficiais para lidar com as
doenças revelam mecanismos de controle dos indivíduos bem demarcados: o da
exclusão do leproso e o da inclusão do pestífero. Tais modelos se desenvolveram
em momentos diferentes da história, mas podem aparecer alternados ou
sobrepostos nas relações de poder da sociedade moderna.
A exclusão foi a prática adotada na Idade Média para afastar o perigo da lepra
e comportava não apenas o banimento do indivíduo contaminado para um território
34
isolado, como também um ritual que simbolizava sua morte para a comunidade. No
início do século XVIII, diante do perigo da peste, uma outra estratégia se
consolidava, a da inclusão: um certo território ameaçado era colocado em
quarentena: "circunscrevia-se e aí encerrava-se bem encerrado certo território: o
de uma cidade, eventualmente o de uma cidade e de seus surbios, e esse
território era constituído como território fechado" (FOUCAULT, 2002b, p.55).
Construía-se, assim, uma escie de muro invisível em torno daquela comunidade.
Agentes policiais organizados em uma estrutura hierarquizada e minuciosa
vigiavam os indivíduos daquele local, conferindo constantemente a presença e
condição de saúde de cada um e produzindo dados e conhecimento sobre aquele
grupo. Cada pessoa ausente do espaço que lhe era destinado – uma determinada
janela da casa em determinadas horas do dia era considerada doente, perigosa, e
deflagrava-se, então, a intervenção (a triagem e remoção da pessoa contaminada
para a manutenção da força dos indivíduos saudáveis). Neste modelo, o saber
médico, individualizado, se encontra com o exercício do poder organizador do
Estado.
Não se trata de expulsar, trata-se de estabelecer, de fixar, de atribuir um
lugar, de definir presenças, e presenças controladas. Não rejeição, mas
inclusão. Vocês estão vendo que não se trata tampouco de uma escie de
demarcação maciça entre dois tipos, dois grupos da população: a que é
pura e a que é impura, a que tem lepra e a que o tem. Trata-se, ao
contrário, de uma série de diferenças sutis, e constantemente observadas,
entre indivíduos que estão doentes e os que não estão. [...] Enquanto a
lepra pede distância, a peste implica uma aproximação cada vez mais sutil
do poder aos indivíduos, uma observação cada vez mais constante, mais
insistente (FOUCAULT, 2002b, pp. 57-58).
O perigo então representado pela peste é comparável ao que se atribui
atualmente ao narcotráfico. A presença do tráfico transforma comunidades inteiras
que já carregam a imagem de anti-higiênicas e "incivilizadas" em potencialmente
"contaminadas" e perigosas e a estratégia utilizada pelo Estado para controlar os
35
conflitos, a ocupação policial, pouco difere da ação dos agentes do Estado na
quarentena descrita por Foucault. Os policiais entram nas casas, fazem buscas de
pessoas, drogas e armamentos, dispõem de critérios para determinar a associação
das pessoas ao tráfico e, sobretudo, podem exercer o poder e o controle das
pessoas que vivem no local.
Curiosamente, a idéia de uma ocupação social da Rocinha, tão semelhante à
da quarentena e, até então, ausente das muitas ocupações realizadas pelo Estado,
trazia um outro elemento do saber para reforçar o exercício do poder: a ação dos
médicos
8
. Na grande maioria dos confrontos entre a polícia e os grupos que operam
o tráfico – e mesmo nos conflitos entre facções rivais os indivíduos feridos
enfrentam um problema: buscar atendimento médico em hospitais e clínicas pode
representar uma "confissão" de envolvimento com o tráfico, já que o indivíduo terá
que se identificar e que o próprio tipo de ferimento – em geral por balas, cuja origem
pode ser rastreada – pode denunciá-lo. Por isso, não é incomum que o tráfico tenha
seus médicos próprios, que atendem clandestinamente, e que muitas vezes tamm
oferecem tratamento a membros da comunidade não ligados ao tráfico. A iia de
uma ocupação "social", portanto, poderia representar uma tentativa de que os
próprios médicos identificassem os indivíduos envolvidos com o tráfico.
Nos debates que se seguiram à apresentação da proposta do muro, muitos
leitores, espectadores, especialistas e comentaristas apoiaram e criticaram a iia. A
8
O saber médico tem papel importante na construção social da favela como um espaço
potencialmente doente desde o início do século XX. "A 'problematizacão' da favela, ocorrida quando
o processo de favelização ainda
não se havia
generalizado no Rio de Janeiro, contou com o forte
respaldo do saber médico, em um prolongamento do diagstico feito ao cortiço e à pobreza,
apoiando-se igualmente na engenharia reformista, da qual Everardo Backheuser se fizera um bom
representante. Devemos lembrar que nessa época tais profissionais, portadores de uma concepção
positivista da ciência, não se preocupavam apenas com problemas de ordem técnica, mas eram
tamm atraídos pelo desejo de entender e,sobretudo, explicar os problemas sociais"
(VALLADARES, 2000, p. 14). Já na época, a associação saber-poder era importante para definir o
tratamento dado aos moradores da favela.
36
proposta foi abandonada, mas ningm ficou indiferente àquilo que ela explicitava:
um sentimento difuso, complexo, dicil de colocar em palavras e que, em maior ou
menor medida, dependendo das circunstâncias, é experimentado por todos na forma
de um extremo incômodo e uma constante sensação de ameaça pela proximidade
desse outro que é o morador da favela, que convive diariamente com o crime e
habita as representações sociais como "criminoso", ao menos em potencial.
O muro é um emblema daquilo que Machado da Silva (2004a) chama de
"interpretação dominante" que aparece no senso comum, na mídia e até em
reflexões acadêmicas sobre o que é a violência urbana: a ação de grupos ou
indivíduos, em geral, de uma determinada camada social desfavorecida, no sentido
de ameaçar a ordem blica, a rotina cotidiana e, portanto, a sensação de
segurança, por meio de um tipo específico de violação das regras jurídicas (ou seja,
de crime) necessariamente relacionado à imposição da força
9
. Esta compreensão da
violência como crime está ligada ao padrão da sociabilidade violenta que marca a
ação criminosa, especialmente aquela ligada ao narcotráfico, que faz do recurso
indiscriminado à força e a um excessivo e poderoso armamento não apenas um
mecanismo para garantir as operações, mas o elemento que permeia as relações
sociais.
Na lógica da sociabilidade violenta, a solução de conflitos, na maioria das
vezes, não passa pela negociação, pelo consenso, ou pelo monopólio da violência
pelo Estado, o que alimenta uma representação social de que aqueles que praticam
9
O autor destaca que tal iia de violência é, em certa medida, etnocêntrica, porque pressupõe que
tanto aqueles que violam a lei como aqueles que interpretam tal ação têm os mesmos valores e dão
o mesmo sentido às práticas criminosas. Para Machado da Silva, este é um engano que se reproduz
em explicações que estabelecem relações causais entre a pobreza e a violência, por exemplo. Outro
exemplo pode ser apreendido quando Foucault (2002b, p. 26) mostra como algumas práticas
institucionalizadas como a psiquiatria ajudam a criar a imagem do outro (anormal) como alguém
cujo desejo (em especial o desejo do crime) expressaria uma falha, fraqueza ou incapacidade como
pobreza, feiúra, imaturidade, falta de intelincia, instabilidade de conduta etc.
37
o crime são os "portadores" da ordem social e podem, repentinamente, instaurar a
desordem, fazendo do restante da população seus subalternos. É a idéia,
reproduzida incessantemente, da sociedade refém do crime violento, cuja principal
expressão é a demonstração permanente de força, que muitas vezes faz com que o
crime seja percebido como "organizado" e suas práticas, como gratuitas,
inexplicáveis, sádicas (MACHADO DA SILVA, 2003).
Essa explicação dominante sobre a violência urbana também atribui o caráter
violento e as características assustadoras, espetaculares, da ação criminosa à
ineficácia do controle estatal, da incapacidade do Estado de manter o monopólio da
violência. O Estado é percebido como fraco, ineficiente e mal aparelhado; suas
instituições dispõem de menos recursos que o tráfico; seus agentes são corruptos e
seu sistema de operação promove a impunidade. Todos esses são os argumentos
que – baseados em fatos, meros, estatísticas, relatos reproduzidos nas páginas
dos jornais , sustentam a simplificação de que o crime existe porque a frouxidão
das instituições viabiliza sua disseminação indiscriminada e, portanto, apenas o
recurso à força é capaz de combatê-lo
10
.
Esse pensamento – que não pode ser desqualificado, mas que também não
pode ser considerado expressão da causa do crime – alimenta um outro padrão de
sociabilidade, o institucional-legal, baseado na iia de que o restabelecimento da
ordem, da segurança e das relações sociais pacíficas só pode se dar por meio de
um controle rigoroso do crime por meio de uma repressão policial forte. A ação
institucionalizada não é concebida como violência, porque não é crime, está
10
Estatísticas e relatos carregam uma aura de objetividade que os eleva a elementos centrais dos
discursos sobre as questões sociais. Esses dados, entretanto, podem ser e são produzidos a partir
de pressupostos ideológicos. As estatísticas sobre crimes, por exemplo, são baseadas em registros
da polícia ou em dados da imprensa (em geral, obtidos de fontes policiais). Os fatos, e os
argumentos que neles se baseiam, portanto, são sempre questionáveis.
38
amparada na lei ou, pelo menos, se traveste de legalidade graças ao predomínio da
idéia de que a intervenção repressiva se faz necessária para garantir e defender a
ordem da vida cotidiana, entendida como a integridade sica e a garantia
patrimonial.
Do ponto de vista da intervenção sobre o problema da violência urbana, a
conseqüência dessa linha de raciocínio é clara: supõe-se que as condutas
criminais poderiam ser canceladas, inviabilizadas ou ao menos reduzidas a
proporções toleráveis pela manipulação de variáveis institucionais. O
funcionamento interno dos aparelhos estatais de controle social, portanto,
fica reforçado como objeto privilegiado da atenção [...] (MACHADO DA
SILVA, 2003, p. 13)
Propostas para restringir a liberdade, os direitos e a visibilidade de uma
comunidade, de ocu-la como num conflito militar, sob a justificativa de que ali
estão os responsáveis por atos criminosos, são expressões desse padrão
institucional-legal (que, curiosamente, se baseia num apelo à utilização da força,
mas a força do Estado).
A vida nas grandes cidades apresenta-se, assim, dividida entre esses dois
padrões de sociabilidade (entre muitos outros) que, entretanto, não se excluem, mas
se articulam de forma heteronea, mas em contiidade tensa, e que têm a força, a
violência, como elemento fundamental, que permeia todas as relações. Esses dois
padrões de sociabilidade estão mais ou menos presentes em cada situação, em
cada relação e sustentam discursos que defendem a supressão de direitos, a pena
de morte, a redução da maioridade penal e a repressão policial exacerbada.
A lógica do recurso à força como mecanismo de solução de conflitos, como
elemento que pode substituir a negociação e a mediação, se infiltra nos discursos,
nos olhares, na construção de sentido da vida cotidiana e se manifesta em uma série
de elementos: a violência policial, a produção social do sentimento de insegurança,
a privatização da polícia por meio dos serviços especializados em segurança
39
(TAVARES DOS SANTOS, 2004). A violência permeia, assim, as relações entre os
indivíduos, os grupos, as classes, tornando-se difusa:
[...] as diferentes formas de violência presentes em cada um dos conjuntos
relacionais que estruturam o social podem ser explicadas se
compreendermos a violência como um ato de excesso, qualitativamente
distinto, que se verifica no exercício de cada relação de poder presente nas
relações sociais de produção social. A iia de força, ou de coerção, supõe
um dano que se produz em outro indivíduo ou grupo social, seja
pertencente a uma classe ou categoria social, a um gênero ou a uma etnia,
a um grupo etário ou cultural. Força, coerção e dano, em relação ao outro,
enquanto um ato de excesso presente nas relações de poder tanto nas
estratégias de dominação do poder soberano quanto nas redes de
micropoder entre os grupos sociais caracteriza a violência social
contemporânea. (TAVARES DOS SANTOS, 2002, p. 17)
Um muro pode não ser uma expressão direta de força, mas é a perfeita
imagem da inexistência de mediações de conflitos entre indivíduos ou grupos sociais
diferentes e que se manifesta o só na sociabilidade violenta, mas nas diversas
formas de violência – de gênero, doméstica, familiar, escolar, sexual, policial e
simbólica – e que ainda são muito raramente integradas à representação do senso
comum sobre a violência.
Murar o outro ou murar a si mesmo – por meio dos enclaves fortificados
urbanos (CALDEIRA, 2000) são formas historicamente recorrentes de lidar com os
conflitos e com grupos incômodos, reproduzem as relações com a lepra e a peste
identificadas por Foucault. Cercar comunidades indesejadas ou refugiar-se atrás de
altas paredes eletrificadas são estratégias para ordenar, organizar, limpar a
sociedade de tudo o que é considerado ameaçador, impuro, sujo e perigoso (termos
freqüentemente equivalentes no imagirio social moderno). Um obstáculo sico é a
base da segregação e da discriminação, servindo para acentuar, reforçar, demarcar
e concretizar fronteiras sociais que determinam quem é o outro indivíduo ou grupo
sobre o qual é possível exercer um ato de excesso de poder ou de recurso
indiscriminado à força.
40
O muro em torno da Rocinha, mesmo que não tenha sido erguido, é um
amálgama dessa violência difusa com desejos, crenças, medos, poderes que se
entrelaçam em torno das diferenças construídas no convívio social e que acabam
por produzir e alimentar hierarquias, relações de poder em que alguns são
superiores, dominantes, e outros, inferiores, dominados, subjugados. As mesmas
relações que se observam em muitos espaços blicos, como as ruas, e nas
prisões, cujos muros servem principalmente para esconder o que acontece lá dentro.
Foucault analisou as prisões em 1975, em Vigiar e Punir, e mostrou como a
função desse espaço não é apenas repressiva; é, sobretudo, disciplinar. A prisão é
uma das muitas instituições desenhadas para organizar e controlar as atividades dos
indivíduos, de modo a maximizar a produtividade da força de trabalho de cada um e
a conformidade às regras sociais, tornando-os cada vez mais dóceis, passivos, e
evitando, assim, a revolta, a resistência, o contrapoder. As práticas prisionais se
reproduzem em todas as relações sociais e nas mais variadas instituições de modo
a desenharem uma sociedade em que as regras da disciplina permeiam as relações
sociais. Como a escola, a caserna, os hospitais, a prisão tem um papel importante
que não é a punição, a expulsão dos indivíduos do convívio social, ou sua
"recuperação". Seu principal sentido é a normalização dos comportamentos. Mas
algo diferencia a prisão das demais instituições normalizadoras:
O fracasso foi imediato e registrado quase ao mesmo tempo (em) que o
próprio projeto. Desde 1820 se constata que a prisão, longe de transformar
os criminosos em gente honesta serve, apenas, para fabricar novos
criminosos ou para afundá-los ainda mais na criminalidade. Foi então que
houve, como sempre nos mecanismos de poder, uma utilização estratégica
daquilo que era um inconveniente. A prisão fabrica delinqüentes, mas os
delinqüentes são úteis tanto no domínio econômico como no político
(FOUCAULT, 2001 [1979], pp. 131-132).
A delinqüência é uma ilegalidade que pode ser controlada, que ajuda a
reproduzir a moralidade; os "criminosos" representam uma ameaça constante à vida,
41
ao patrimônio e ao acesso a postos de trabalho, o que ajuda a reforçar, do lado de
fora das prisões, a conformidade com as normas e o poder ordenador. Nesse
sentido, mesmo tendo fracassado, as prisões continuam servindo ao poder
disciplinar e à docilização e normalização dos comportamentos. Mas servem
também a outro tipo de poder que é uma escie de intensificação, ampliação, do
encontro do saber com o poder.
Foucault mostra como o controle dos indivíduos, no modelo da inclusão,
implica em cada vez mais detalhadas e numerosas medições, estimativas,
estatísticas relativas às vidas das pessoas em especial à sua saúde, mas não só.
Essa constante e detalhada produção de informações passa a servir de fonte para o
conhecimento de detalhes sobre grupos cada vez mais amplos, não mais apenas
sobre os indivíduos. Cria-se, assim, condições para o controle da vida, do ponto de
vista biológico, de populações inteiras, suas taxas de natalidade, de morbidade,
suas epidemias. O poder político adquire a "posse da vida", é o biopoder
11
, e uma de
suas atribuições é decidir quem deve viver e quem deve morrer, de manter e de tirar
a vida não de um indivíduo, mas de um grupo.
É claro, por tirar a vida não entendo simplesmente o assassínio direto, mas
tamm tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de
multiplicar para alguns o risco da morte ou, pura e simplesmente, a morte
política, a expulsão, a rejeição, etc. (FOUCAULT, 2002a, p. 306)
11
Giorgio Agamben (2002 [1993]) analisa como essa atribuição do poder irá se desdobrar até que a
política se aproprie de milhares de vidas, de pessoas cujas existências não têm valor, os
homini
sacri
cujas vidas são descartáveis e que Zygmunt Bauman (2005) vai designar como "refugos
humanos" ou "vidas desperdiçadas". Bauman estabelece o paralelo entre seu conceito e o de
Agamben: "O
homo sacer
é a principal categoria do refugo humano estabelecida no curso da
moderna produção de domínios soberanos ordeiros" (BAUMAN, 2005, p. 44). Para Bauman, os
homini sacri
são o principal alvo dos projetos de construção da ordem, do biopoder, mas a lógica do
refugo humano é mais abrangente e afeta vidas que estão na fronteira entre o descartável e o útil,
como a população das favelas, que representa um potencial de consumo e inserção na lógica da
ordem, mas de forma oscilante. Ao longo do trabalho, será utilizado o conceito de Bauman que, por
ser mais abrangente, se aplica com mais propriedade à variedade de fatos e de grupos sociais que
aparecem nas notícias analisadas.
42
Esses dois tipos de poder não se excluem, segundo o autor, mas se articulam
um ao outro por meio das normas, que servem para a distinção constante entre o
certo e o errado, o normal e o patológico, o aceitável e o inaceitável na sociedade. É
a intrincada relação entre a norma de comportamento, central no poder disciplinar, e
a norma étnica, social, higiênica, cultural e de sde, fundamental para o exercício
do biopoder, que vai produzir e sustentar, com base em conhecimento, os critérios
de quem deve morrer e quem deve viver
12
. E um dos principais critérios é a
percepção de que determinadas mortes podem contribuir para tornar o restante da
sociedade mais sadia, mais organizada e sem conflitos, mais "limpa" e menos sujeita
a desvios.
A idéia de uma parede que separa as pessoas em grupos, que isola um deles
para facilitar seu controle – numa prisão, numa favela e que simboliza a segurança
de uma comunidade remete, assim, à organização dos poderes na sociedade.
Remete também aos discursos que se constroem para justificar a ordem e que
tomam forma em frases como "tem que matar mesmo" ou "deixa morrer, ninguém
vai sentir falta". O muro remete também aos obstáculos que criamos nas relações
sociais e que inviabilizam ou fragilizam os laços, que garantem uma separação
supostamente instransponível entre o "eu" e o "outro".
Um muro é um sintoma no sentido de que revela a intenção de marcar
diferenças, reforçar e separar as forças nas relações sociais, estabelecendo as
fronteiras entre irreconciliáveis entre o eu e o outro. Esta é a forma pela qual o
12
A partir da observação de como se organiza o poder dos grupos que controlam o narcotráfico, por
exemplo, que muitas vezes definem quem deve viver ou morrer, e também levando em
consideração as alises de Foucault sobre o poder como um elemento difuso na sociedade, é
possível inferir que o biopoder não é uma exclusividade do Estado, embora seja em suas mãos que
ele seja mais facilmente reconhecido.
43
sintoma revela sua dimensão social, ao se inserir no contexto histórico, ao revelar
um modo específico de lidar com os conflitos. Como explica Koltai (2000):
O sintoma é justamente aquilo que impede o sujeito de realizar o que seu
tempo lhe prescreve. E o que prescreve o discurso do nosso tempo? Uma
uniformização cada vez maior da vida cotidiana que, com a globalização em
curso, vai atingindo todo o planeta; uniformização de todos os modos de
vida, inclusive as formas de desejo e gozo. (KOLTAI, 2000, pp. 111-112)
O que um sintoma social revela não é a manifestação de uma anomia a ser
solucionada, de uma "doença" ou "disfunção" da sociedade. De acordo com a
tradição freudiana, o sintoma é o elemento que faz emergir conteúdos o
expressos claramente nos discursos, sentimentos encobertos, e que se revelam nas
entrelinhas do que é dito ou representado
13
. Um muro pode ser a imagem que
condensa significados que, de tão escondidos, negados, voltam várias vezes na
forma de uma mensagem cifrada a ser interpretada o "retorno do recalcado" com
insistência e força. Interpretar essa mensagem não significa eliminar o conflito e
"ordenar" as relações sociais, porque o conflito não é anômico e não pode ser
eliminado. Mas, sendo o conflito constitutivo das relações sociais, mesmo as
relações de cooperação e solidariedade, a tarefa de desvendar as formas como o
conflito é vivenciado pela sociedade – e que são reveladas pelos sintomas sociais
permite que as oposições sejam reconhecidas e, talvez, negociadas, o que
representa admitir a posição do outro, sem negá-la ou ignorá-la.
Um sintoma social é, assim, uma pista para compreender como se constrói a
dimica das relações sociais num determinado contexto, como são constituídos e
representados o "eu" e o outro e como são simbolizados o conflito e as "soluções"
imaginadas para ele.
13
O conceito de sintoma social é complexo e tem várias definições. Freud identificou o sintoma, mas
posteriormente outros tricos trabalharam com o conceito reforçando sua característica histórica e
social. Esta definição é baseada em Melman (2000). Outras definições e considerações sobre as
diversas formas desse conceito são encontradas em Koltai (2000), Kehl (2004c) e Vanier (2002).
44
Um muro material ou imaterial pode ser o sintoma de como a violência
difusa é apreendida nas relações sociais e depois retorna nos pensamentos, nas
simbolizações, nas mensagens, nas palavras. O muro revela que a sociedade
brasileira está ainda arraigada ao mito do "homem cordial", uma auto-imagem que
só se sustenta pela existência dos criminosos, dos "marginais" que encarnam
sozinhos e como exceção – a responsabilidade pelos atos violentos, crimes, regras
violadas. A ligação a esse mito potencializa as reações de segregação, de ódio, de
preconceito em relação ao diferente e serve de base para definir o que é "defesa da
ordem" e o que é "violência". Os muros concretizarem o desejo de esconder
pensamentos e atos violentos cotidianos, voltados intencionalmente para atingir o
outro e para representá-lo como portador único da agressividade e do perigo.
Muitos espaços são cenários de acontecimentos que incitam a manifestação
desse sintoma. Em 2004, a Rocinha, a antiga Casa de Custódia Benfica, no Rio de
Janeiro, e os arredores da praça da Sé, em São Paulo, foram apenas alguns deles.
1.1 Um muro cerca a Rocinha
Na Sexta-Feira Santa, 9 de abril de 2004, eclodiu um conflito pelo qual os
moradores da Rocinha aguardavam desde que, em fevereiro, integrantes do
Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) da Polícia Militar realizaram uma
série de incursões no morro. O objetivo do Bope era encontrar e deter Eduíno
Eustáquio de Arjo, o Dudu, morador da favela e ex-líder do tráfico na Rocinha,
que havia fugido da prisão em janeiro, no dia em que recebeu o benecio de sair
para visitar a família.
Os policiais do Bope o encontraram Dudu, mas promoveram um confronto
na favela em que pessoas foram mortas e detidas. Dudu, claro, o estava na
45
Rocinha, primeiro lugar onde seria procurado. Importante membro do Comando
Vermelho, ele encontrou proteção em outra área onde o comércio de drogas era
controlado pela facção, o Complexo do Alemão. Dudu queria retornar ao controle do
tráfico na Rocinha. Quando foi preso, ele havia recebido a promessa da facção de
que retomaria o posto quando estivesse em liberdade.
Entre a prisão e a liberdade, se passaram quase dez anos e suas antigas
funções eram agora exercidas por outro integrante do CV, Luciano Barbosa, o Lulu.
Como Lulu se recusou a deixar o comando do tráfico, Dudu recrutou aliados em
outras localidades do Rio para invadir a Rocinha.
Encontrar aliados dentro da facção não foi muito dicil porque, de acordo com
informações divulgadas pela polícia, Lulu não era muito bem visto dentro do CV. Ele
supostamente iniciara um perigoso flerte com a facção Amigos dos Amigos (ADA) e,
se trocasse de faão, facilitaria a tomada do comércio de drogas da Rocinha pelos
rivais. Um negócio que, segundo a Polícia Civil, correspondia na época a 60% das
atividades do narcotráfico no Rio, cerca de 500 quilos de cocaína por mês e
faturamento de R$ 10 milhões por semana. Lulu ainda carregava uma péssima fama
de delator, promovida pelas autoridades policiais, e comentava-se que ele teria
deixado de mandar dinheiro para os membros do CV que estavam na prisão.
Por tudo isso, o CV simplesmente não se opôs ao plano de Dudu, que
conseguiu formar um grupo de 60 pessoas e deflagrou a operação naquele feriado
de abril bloqueando o trânsito da avenida Niemeyer, entre a Barra da Tijuca e São
Conrado, com o objetivo de obter carros para subir à favela. Houve pânico, medo,
indignação. Uma motorista, Telma Veloso, teria se recusado a parar no bloqueio e foi
atingida por um tiro de fuzil. Dudu e seu grupo subiram o morro, onde já eram
esperados por cerca de 200 (alguns relatos dizem 500) homens aliados de Lulu.
46
O confronto violento entre os dois grupos e a necessidade de dar uma
resposta imediata à morte de Telma fizeram com que o governo estadual autorizasse
o deslocamento de 1.200 policiais militares para invadir a Rocinha. A ação, agora,
era em nome do Estado e, por isso, o era chamada de invasão, e sim de
ocupação.
Nomes diferentes que não significavam a redução no número de disparos na
favela. Nas primeiras 24 horas de conflito, nas trocas de tiros entre grupos rivais e
policiais, dois moradores, um homem e uma mulher que estavam em uma moto,
foram atingidos por balas e não sobreviveram. Cinco supostos traficantes foram
presos, dois policiais do Bope morreram.
Após uma semana de ação policial na favela, as trocas de tiros continuavam,
16 pessoas foram presas e 15 haviam morrido, entre elas o próprio Lulu. No auge
desse conflito apareceu a proposta de murar a Rocinha, o que ampliou ainda mais o
destaque que a favela tinha na mídia.
A produção de notícias era incessante: o fechamento do comércio (em sinal
de luto pela morte do líder, para alguns, sob ordem violenta do tráfico, para outros); a
suspensão das aulas nas escolas dos arredores; o êxodo dos moradores,
aterrorizados, para outras comunidades; o espetáculo do enterro de Lulu,
acompanhado por uma multidão de moradores da Rocinha, que chegaram ao
cemitério em ônibus escoltados pela polícia, fazendo o sinal "CV" com as mãos e
gritando "Aha, uhu, é o bonde do Lulu". Em meio aos gritos, alguns moradores
anunciavam que ficaria mais fácil para Dudu retornar ao comando do comércio de
drogas na favela, já que os dois substitutos de Lulu – Adriano da Costa Brito, o
Zarur, e Erismar Rodrigues Moreira, o Bem-te-vi o tinham a mesma força do
chefe morto.
47
Figura incontroversa na favela, Lulu era tido como um "bom traficante" pelos
moradores. Além da postura de evitar os conflitos com a polícia e a ação ostensiva
do tráfico, ele incentivava o comércio local e tinha até criado uma "ouvidoria", que
funcionava todas as segundas-feiras, atendendo moradores que tivessem alguma
desavença com um vizinho ou alguma outra queixa relativa à convivência na
comunidade. O "ouvidor" era um membro de seu grupo ou ele mesmo, em casos
graves que escutava os dois lados da questão e determinava uma solução
mediada para o conflito. Com a ouvidoria, evitava-se a presença da polícia na
Rocinha – o que atrapalha o comércio de drogas , e mantinha-se a tranilidade
entre os moradores.
Se Lulu era tido como um traficante "bom", assistencialista, pacífico, promotor
da estabilidade na favela, Dudu era temido. Vários depoimentos, de especialistas e
de moradores da Rocinha, apareceram na imprensa descrevendo-o como "mau",
torturador, sanguinário. Entre outras atrocidades que lhe eram atribuídas, dizia-se
que ele escolhia as jovens da Rocinha que seriam suas companheiras e, se a família
se opusesse ao relacionamento, era toda executada. Alguns comentários,
entretanto, eram de que as declarações eram manipuladas pelos sucessores de Lulu
e por líderes de associações de moradores que apoiavam o grupo.
As descrições dos estilos de comando de Dudu e Lulu, manipuladas ou não,
correspondem a uma tipologia conhecida dos especialistas. Segundo o sociólogo
Michel Misse (2000), existem quatro tipos sicos de comando dos gerentes do
tráfico: o mandonismo (em geral o negócio é uma herança familiar e o líder é
reconhecido por uma parte da comunidade e questionado por outra); a dominação
não-legítima com pretensão de legitimidade (exercida por pessoas nascidas e
criadas na comunidade, que investem em melhoramentos, ajudam os moradores em
48
situações mais diceis, respeitam a comunidade e tendem a protegê-la de outros
grupos, mas mesmo tendo forte influência política não conseguem obter o apoio de
todos os moradores); tirania centralizada (o líder assume o controle do tráfico
geralmente após invadir a área de um rival, impõe-se pelo medo e pela força, mas
fica isolado e seu contato com a comunidade é feito por meio de seus subordinados,
que transmitem as ordens e regras); e tirania segmentada (os líderes vêm de fora da
comunidade e compartilham o comércio de drogas enquanto disputam entre si o
domínio de todo o território, produzindo conflitos permanentes).
Lulu era do tipo que buscava legitimidade para sua liderança, Dudu já havia
exercido e prometia restaurar a tirania centralizada. O estilo de comando de Lulu era
mencionado na mídia como uma prova do "pulso fraco" do Estado no combate à
criminalidade. Mas, como mostra Misse (2000), o que está por trás da definição dos
estilos de comando é muito mais complexo e não depende apenas da personalidade
do líder ou da ação do Estado.
A necessidade de constituir relações de confiança na comunidade, por
exemplo, fez com que estilos como o de Lulu predominassem especialmente quando
o tráfico pretendia se fixar em determinadas localidades. Outro aspecto importante é
o valor e importância das relações de amizade e parentesco para a definição de
quem vai exercer as posições mais elevadas de direção e gerenciamento do
comércio de drogas.
Lulu, por exemplo, era nascido na Rocinha, foi "instruído" no tráfico por
parentes e amigos e assumiu o controle depois de um período de comando
centralizador de Dudu. O fato de ter suas relações familiares e de amizade ali e de
ter substituído um "tirano" o colocavam numa posição de precisar legitimar sua
liderança e, por isso, adotou o assistencialismo.
49
Mas também é verdade que o modo como o Estado combate o tráfico
influencia o estilo de comando.
No Rio de Janeiro, a tenncia que acompanhou o aumento da repressão
ao tráfico e a concorrência belicosa dos vários grupos e redes pode ser
caracterizada por uma transição do mandonismo ou da dominação não-
legítima com pretensão de legitimidade para a tirania centralizada e a tirania
segmentada em quase todas as áreas. [...] As sucessivas prisões dos
traficantes mais velhos e experientes abriu caminho para essa transição
entre os dois tipos de dominação e para a juvenilização do movimento a
partir de 1986-87. A generalização da extorsão policial e da compra de
mercadorias políticas contribuiu para a reprodução ampliada das redes e
para a generalização do emprego da violência na resolução de conflitos
(MISSE, 2000, pp. 7-8).
Acusado de falhar na repressão ao tráfico na Rocinha, o Estado precisava dar
demonstrações de sua força, mas a dificuldade em encontrar Dudu reforçava a
imagem de incompetência. A ocupação policial da Rocinha se expandiu para outras
comunidades: 300 policiais ocuparam já nos primeiros dias o morro do Vidigal.
Depois, foram enviados policiais para os morros da Grota e Vila Cruzeiro e,
finalmente, para o Complexo do Alemão. Foi instituída uma recompensa de R$ 5 mil
para quem oferecesse à polícia, pelo Disque-Denúncia, informações que levassem à
prisão de Dudu. Em menos de um mês, o valor da recompensa subiu para R$ 50 mil.
Mas Dudu continuava foragido.
Até o fim de 2004, depois de uma gradual redução do mero de policiais na
Rocinha, 27 pessoas haviam morrido, entre elas Zarur, que dividiu com Bem-te-vi o
posto que tinha sido de Lulu. Compartilhar o poder não era uma missão tranila.
Ambos temiam uma nova invasão do grupo de Dudu e acabaram se desentendendo
e dividindo o controle do tráfico, enfraquecendo o CV. Zarur foi assassinado. A ADA
passou a controlar o tráfico no local. Dudu só foi preso em 31 de dezembro de 2004
e, em 8 de dezembro de 2005, condenado a 73 anos e quatro meses de prisão.
Bem-Te-Vi foi morto em outubro de 2005. Mas nada disso colocou fim ao conflito,
50
que se estendeu para o Morro do Vidigal e outros locais do Rio, numa tentativa da
ADA de expandir a dominação dos pontos de tráfico que eram gerenciados pelo CV.
1.2 Barreiras invisíveis
Ainda que não tenha sido erguido um muro em torno da Rocinha, a ocupação
policial da favela fazia as vezes de uma barreira semelhante, invisível e sem sua
contrapartida "social". As 27 pessoas que morreram em oito meses são as vítimas
dos padrões de sociabilidade coexistentes de que fala Machado da Silva (2003,
2004a, 2004b): a sociabilidade violenta do tráfico e a defesa institucional-legal da
ordem por meio da força da ocupação policial.
Freqüentemente, nas operações de invasão, a polícia lança mão de alguns
instrumentos que justificam o confronto e que garantem o registro oficial apenas de
suas versões dos fatos.
O relatório Eles entram atirando, da Anistia Internacional (2005), revela que o
policiamento baseado em invasões tem como uma de suas bases os mandados
coletivos de busca e apreensão. Estes instrumentos contrariam a lei segundo a
qual um mandado desse tipo deve especificar o endereço e o nome da pessoa
contra a qual foi emitido – porque permitem aos policiais entrarem nas casas de
qualquer morador da favela sem que exista uma suspeita específica contra cada um
deles. São documentos que "discriminam comunidades inteiras com um único golpe"
(AI, 2005, p.1). É como etiquetar toda a população local como responsável ou
cúmplice de uma ação criminosa, violando seus direitos fundamentais.
Outra estratégia policial reconhecida nas invasões é o enquadramento penal
indiscriminado de manifestações que acontecem na favela. Durante o ano de 2004,
moradores da Rocinha procuraram o serviço Disque-Denúncia para relatar abusos
51
policiais. Foram acusados de agirem em associação com o tráfico, mas as
dencias anônimas em muitos casos impediram o indiciamento criminal. Também
os moradores que participaram do verdadeiro ato coletivo em que se transformou o
enterro de Lulu foram ameaçados de indiciamento por associação ao tráfico, que
diferentemente dos crimes comuns, é inafiançável.
Nos casos em que há confrontos armados, segundo relatório da Justiça
Global (2004), também há outro mecanismo para distorcer o registro dos fatos como
os que aconteceram nos confrontos entre os grupos de Dudu e Lulu: documentos
policiais chamados de autos de resistência.
O formulário tem o propósito de relatar eventos de resistência armada durante
uma operação policial. Mas segundo a ONG, tal documento é utilizado
indiscriminadamente para registrar qualquer morte cuja responsabilidade é de um
policial, mesmo quando não há resistência ou confronto armado. Com isso, retira-se
da polícia em geral, e dos policiais especificamente envolvidos, o peso de uma ação
judicial por mortes ocorridas em ocupações.
De acordo com a interpretação dominante sobre o que é violência, a ação
policial não merece esta classificação. Se o objetivo é a manutenção ou o resgate da
ordem, a ação policial, por mais truculenta que seja, é entendida como um mal
necessário o que acaba por facilitar que a força se infiltre nas relações sociais. Os
instrumentos legais o auto de resistência, os mandados coletivos e os
enquadramentos no crime de associação com o tráfico são manipulados de modo
a reforçar tal interpretação. O fato de a mídia ter limites na cobertura de confrontos
e, muitas vezes, contar com a própria polícia como única fonte de informação agrava
o problema. A violência difusa ganha, assim, um reforço substancial no discurso
midiático.
52
Os mecanismos utilizados pela polícia para justificar o recurso à força não são
instrumentos isolados do contexto social brasileiro. Suas origens são históricas e,
nesse sentido, o ano de 2004 é simlico, porque não foi apenas aquele em que
Dudu, Lulu e tantos outros personagens travaram seu conflito e encontraram seus
destinos. Foi tamm a data em que o golpe que instaurou o regime militar no Brasil
completou 40 anos.
As duas décadas de ditadura militar deixaram resquícios de autoritarismo que
ainda hoje podem ser percebidos nas instituições públicas, na organização dos
poderes, na participação (ou não-participação) política, no funcionamento da
economia, na cidadania e na experiência social da violência no Brasil.
O histórico de autoritarismo não é a causa da violência difusa, mas contribui
para reforçá-la porque deixou brechas para o recurso à força nas instituições e em
práticas e normas que legitimam as constantes violações de direitos civis. A
repressão, a tortura e as "regras de exceção" se tornaram comuns na vida cotidiana
durante o regime, tendo como alvo declarado a oposição, principal responsável pela
"desordem" de então. Prisões arbitrárias, desaparecimentos, espancamentos e
outras técnicas de provocar dor para obter informações estavam, então, associados
à ordem em termos políticos.
O País se redemocratizou e houve um gradual deslocamento da noção de
ordem. O sentido da palavra, que antes representava a estabilidade ou segurança
política, foi transferido para o contexto da vida cotidiana, da rotina, sobretudo dos
grandes centros urbanos.
As instituições ainda carregam a herança da "exceção", mas agora
transportada para o contexto das relações sociais, jurídicas e penais, para a ação
policial em todos os níveis. A redemocratização coincidiu com um aumento da
53
criminalidade violenta, especialmente relacionada ao crescimento do tráfico de
drogas nas principais regiões metropolitanas do País, pelos crimes contra o
patrimônio, como roubos e seqüestros, pelas violações de direitos humanos e pela
mortalidade em conflitos nas relações intersubjetivas.
A democratização trouxe mais complexidade às relações de classe no País,
as desigualdades se aprofundaram e os conflitos sociais se agravaram (ADORNO,
2002 e ANISTIA INTERNACIONAL, 2005) e esse contexto ajudou a promover o
crescimento das taxas de violência. A adoção de diretrizes neoliberais para a
economia, além da própria lógica democrática – na qual a oposição política faz parte
da normalidade e não da exceção contribuiu para a redefinição do sentido de
ordem.
As correlações entre as heranças políticas e sociais do regime militar e a
experiência contemporânea da violência na sociedade brasileira são analisadas de
modo detalhado por Caldeira (2000). A autora mostra como as várias leis de
exceção os atos institucionais do período legitimaram ações autoritárias e
repressivas nas mais variadas esferas, da organização dos poderes à ação policial.
Ela ressalta a criação de uma justiça especial para a polícia militar (que foi
normatizada pela Constituição de 1988) a fim de permitir as violações de direitos
sem a punição dos violadores que "cumpriam ordens".
A análise mostra ainda como as instituições e as relações sociais do País,
após a redemocratização, ainda são marcadas pela lógica da "exceção", em
especial sob a forma de violência policial, descumprimento dos direitos civis quando
o cidadão está sob custódia do Estado, oposição aos defensores dos direitos
humanos e defesa da pena de morte. Estes seriam alguns aspectos da democracia
do País, marcada por contradições e movimentos de expansão e desrespeito aos
54
direitos civis: "embora o Brasil seja uma democracia política e embora os direitos
sociais sejam razoavelmente legitimados, os aspectos civis da cidadania são
continuamente violados" (CALDEIRA, 2000, p. 343)
14
.
Este legado sobrevive numa série de contradições, uma delas é a
contraposição entre um discurso político que defende a igualdade e a idéia de que é
pela arbitrariedade e o desrespeito aos direitos que se combate a criminalidade com
eficácia.
Tal contradição se expressa em iias que caíram no senso comum: "bandido
bom é bandido morto"
15
, os defensores de direitos humanos defendem "os
criminosos", a pena de morte pode solucionar o problema da criminalidade no País.
A defesa da democracia convive com uma percepção de que a sociedade se divide
entre aqueles que merecem ter seus direitos respeitados e aqueles que não
merecem ter nenhum direito garantido, por ter infringido regras e normas da
sociedade. Nesses casos, o uso da violência pelas autoridades como forma de
repressão e controle é considerado legítimo e necessário, ao mesmo tempo em que
a vingança "privada" é considerada justa.
O Brasil redemocratizado assiste também à introdução gradual do modelo
econômico neoliberal marcado pela redução da participação do Estado nas
questões econômicas e sociais que se fortalece e consolida a partir de 1990,
14
A visão da autora é corroborada pelo relatório da Justiça Global (2004), específico sobre a violência
no Rio de Janeiro, mas que aborda tamm as raízes dessa violência na sociedade brasileira.
15
Exemplos de como essas visões prevalecem na sociedade brasileira são as pesquisas de opinião
feitas pelos jornais
Folha de S. Paulo
e
O Estado de S. Paulo
em 1992, logo após o assassinato de
detentos no Carandiru. À
Folha
, 33% dos entrevistados por telefone disse que apoiava a ação da
polícia no caso. Ao
Estado
, 44% dos entrevistados manifestaram apoio ao que depois se chamou
"massacre" (citado por Caldeira, 2000, p. 176). Em 2005, o
Estado
fez uma nova enquete com 2.364
leitores e obteve de 30% deles a concorncia com a idéia. ("Bandido bom é bandido morto, dizem
30% dos brasileiros",
O Estado de S. Paulo
, 5 de março de 2005). Tais pesquisas ilustram o
pensamento e as análises aprofundadas de outros autores como Misse (1993) e Silva (2004).
55
ligada ao processo de globalização
16
. A lógica do neoliberalismo, como tem
destacado Zygmunt Bauman (1998, 2000, 2003, 2005), reproduz e reforça as
desigualdades sociais ao mesmo tempo em que a solidariedade entre as classes
mais privilegiadas empurra para um plano inferior a solução de questões como
desigualdade de renda, segurança e direitos. Bauman revela como essa camada da
população se torna ao mesmo tempo excluída e potencialmente criminosa
17
. Os
pobres, no neoliberalismo, são os "fora da ordem", porque sob esse modelo
econômico, esta se redefine pela reprodução do potencial de consumo e de sua
ostentação em tudo que possa ser materializado. Sem a possibilidade de consumir
de modo constante e variado, os pobres são aqueles que ameaçam a ordem, são
vistos como potencialmente criminosos e precisam ser retirados de cena.
As pessoas supérfluas estão numa situação em que é impossível ganhar.
Se tentam alinhar-se com as formas de vida hoje louvadas, são logo
acusadas de arrogância pecaminosa, falsas aparências e da desfaçatez de
reclamarem prêmios imerecidos senão de intenções criminosas. Caso se
queixem abertamente e se recusem a honrar aquelas formas que podem ser
saboreadas pelos ricos, mas que para eles, os despossuídos, são mais
como veneno, isso é visto de pronto como prova daquilo que a "opinião
pública" (mais corretamente, seus porta-vozes eleitos ou autoproclamados)
"já tinha advertido" que os supérfluos não são apenas um corpo estranho,
mas um tumor canceroso que corrói os tecidos sociais saudáveis e inimigos
jurados do "nosso modo de vida" e "daquilo que respeitamos" (BAUMAN,
2005, p. 55).
A violência policial testemunhada nas ruas, nas invasões de favelas ou de
presídios em rebelião – é herdeira dessa triste comuno de uma violência difusa
16
Segundo Luiz Filgueiras (2006), que analisa como se deu a introdução do neoliberalismo no Brasil,
o processo "redefiniu as relações políticas entre as classes e frações de classes que constituíam a
sociedade brasileira. A vitória desse projeto expressou, ao mesmo tempo em que estimulou um
processo de transnacionalização dos grandes grupos ecomicos nacionais e seu fortalecimento no
interior do bloco dominante, além de exprimir, tamm, a fragilidade financeira do Estado e a
subordinação crescente da economia brasileira aos fluxos internacionais de capitais. Em particular,
reconfigurou o bloco dominante e a sua fração de classe hegemônica, com destaque para a
consolidação dos grandes grupos ecomicos nacionais, produtivos e financeiros".
17
A associação entre crime e pobreza é complexa e está relacionada com a concepção de que o
criminoso é aquele que, por não ter encontrado outros meios para a própria subsistência, precisa
recorrer ao crime. O crime é considerado conseqüência da necessidade e é, portanto, inevitável a
menos que o potencial criminoso esteja sob a vigilância do Estado. O tema da criminalização da
pobreza é longamente abordado não apenas por Bauman, mas também por Loïc Wacquant (2001) e
pela Justiça Global (2004).
56
que se fortalece nos resquícios institucionalizados do regime autoritário e de um
modelo ecomico que iguala a pobreza às práticas criminosas. A ação policial
caracterizada pela generalizada violação de direitos de um grupo ajuda a construir a
imagem de que todos os seus membros são potenciais inimigos e a dar forma a este
outro difuso. O outro é aquele que representa ameaça e uma das maneiras de
reconhecê-lo é pelo tratamento que ele recebe das instituições, das autoridades, dos
"guardiões" da ordem. Esse tratamento institucionalizado, quando caracterizado pelo
recurso à força, pela indiferença, pelo assistencialismo e pelo isolamento funciona
como um muro, ainda que invisível.
1.3 Do lado de dentro dos muros
Edificações ambíguas que ao mesmo tempo representam segurança e medo.
Assim são os elevados e eletrificados muros das prisões: indicam que o perigo foi
confinado, isolado, separado da sociedade que tem assim, a liberdade e a
segurança garantidas. Mas indicam também que o perigo existe e está presente,
embora não possa ser visto.
É apenas quando acontece uma fuga ou uma rebelião, quando a realidade
nunca vista do sistema carcerário extrapola seus limites, invadindo a rotina social,
que se evidencia a fragilidade da idéia de segurança que as prisões representam.
Foi o que aconteceu na manhã do sábado de 29 de maio de 2004, quando os
detentos da Casa de Custódia Benfica iniciaram uma confusão e atiraram nos
agentes de segurança a fim de permitir uma fuga em massa. A ação foi frustrada
depois que 14 pessoas haviam conseguido fugir e os presos iniciaram uma rebelião.
A Casa de Custódia Benfica, inaugurada pouco mais de um mês antes do
episódio, foi instalada num antigo prédio da PM e ainda estava em obras de
57
adequação das instalações. A construção tinha como objetivo retirar das delegacias
superlotadas os presos sem situação judicial definida (presos em flagrante, em
regime de prisão temporária ou preventiva, por exemplo). Mas aparentemente a
estrutura do edicio da Casa de Custódia tamm não era adequada para abrigar
pelo menos naquele momento, em que ainda estava em obras as 868 pessoas
que estavam ali e que eram separadas em celas de acordo com a facção a que
declaravam pertencer
18
: o Comando Vermelho (CV) e o Terceiro Comando (TC). A
segurança no local era realizada por uma cooperativa formada por policiais militares
e agentes penitenciários aposentados e que foi contratada para a função sem
licitação.
Como a Casa de Custódia foi criada para receber presos em situação
provisória, a maioria dos presos que foram mortos estava no local por crimes como o
furto de um par de tênis na loja de um shopping center, roubos de quantias o
superiores a R$ 100, de mochilas, relógios, celulares, de uma placa de inauguração,
por porte de drogas. Alguns dos presos já estavam condenados por crimes como
homicídio e porte ilegal de armas, e aguardavam a execução da sentença judicial.
18
Uma das práticas reveladas como comuns no interrogatório dos presos no Rio de Janeiro é
perguntar a qual facção eles são associados. Os detentos são praticamente obrigados a declarar
sua adesão a uma das três facções que atuam no Rio (Anistia Internacional, 2005, p.20). A
informação é utilizada como critério para definir o destino do preso. Em geral, os detentos das
mesma facção são colocados juntos. Um dossiê do ISER (2006) aponta para o problema desse
critério. "Esse ponto teve um impacto muito grande no debate que seguiu. Ao assumir a Secretaria
de Administração Penitenciária, Astério Pereira já tinha anunciado sua intenção de acabar com o
uso das faões como critério para a distribuição de presos. Em princípio uma idéia justificável, ela
não poderia, no entanto, ser implementada simplesmente juntando presos de facções anteriormente
separadas num mesmo presídio, pois isso poderia colocar em grave risco a vida e a integridade dos
internos sob custódia do estado" (ISER, 2006, p.115). Ainda segundo o dossiê, nos meses
anteriores à rebelião, a mesma Secretaria havia adotado o procedimento de colocar presos de
facções diferentes nas mesmas prisões, separando-os apenas por alas. "Diversos órgãos, entre eles
o Conselho da Comunidade, alertaram para o risco de massacre entre presos de faões diversas,
obrigados, de repente, a conviver na mesma unidade. Inclusive, o poder judiciário interessou-se pela
questão, mas o poder executivo afirmou garantir a segurança dos internos naquelas novas
condições". (idem, p.115)
58
Durante a rebelião, integrantes do CV, que teriam iniciado o plano de fuga,
entraram nas celas ocupadas por membros do Terceiro Comando (TC) e realizaram
um julgamentodos "rivais" e decidiram executá-los. De acordo com relatório da
Comissão Externa da Câmara dos Deputados (2004a), os detentos do TC foram
amarrados, torturados e, alguns atingidos com marretas e outras ferramentas que
estavam no local para a realização da reforma (Câmara dos Deputados, 2004b).
Relatórios do NEV-USP e ISER afirmam ainda que alguns presos tiveram
seus corpos incendiados, outros foram esfaqueados, degolados ou mutilados,
amarrados a botijões de s ou pendurados no teto amarrados pelos pés.
A rebelião começou no sábado, mas as negociações entre PM e presos só
foram iniciadas no domingo por policiais do grupo de negociadores de rebeliões do
BOPE. Havia a possibilidade de invasão policial do edifício, e as conversas foram
complicadas pelo fato de as duas facções inimigas estarem em conflito dentro da
prisão e não encontrarem líderes que representassem os dois grupos para realizar
as negociações. Em meio às conversações, um dos agentes penitenciários tomados
como reféns recebeu um tiro pelas costas e morreu a caminho do hospital.
As conversas entre a PM e os presos foram interrompidas na segunda-feira,
quando o secretário de Segurança do Rio na época, Anthony Garotinho, enviou ao
local um pastor da Igreja Assembléia de Deus dos Últimos Dias para conversar com
os detentos. O pastor, que era conhecido dos presos, chegou ao local de
helicóptero, acompanhado por dois coronéis da PM e duas fiéis da igreja (os relatos
são contraditórios e, em alguns casos, elas são identificadas como irmãs do
conhecido líder do tráfico Marcinho VP, em outros como parentes do pastor ou fiéis
ligadas à igreja). Ele entrou no edicio e pediu o afastamento da polícia. Alguns
minutos depois, foi anunciada a rendição dos presos.
59
A rebelião durou três dias, com a morte de 30 presos dois deles
esquartejados e de um agente penitenciário, além de quinze detentos feridos.
Aparentemente, todas as mortes e ferimentos foram causados pelos conflitos entre
os próprios presos.
Após o fim da rebelião, o governo não permitiu o acesso de diversas
instituições oficiais de fiscalização, como a Promotoria Pública e o Conselho
da Comunidade. Esses órgãos e outros acabaram entrando algum tempo
depois. Os obstáculos ao trabalho das instituições que desenvolvem um
controle externo do sistema prisional afetam gravemente a transparência do
poder público e geram a suspeita de que ele tem muito a esconder dos
olhos dos cidadãos. (ISER, 2006, p. 117)
Os acontecimentos na Casa de Custódia trouxeram à mídia a condição do
sistema carcerário e da administração penitenciária do Rio de Janeiro – que, além
da dificuldade em lidar com a rivalidade das facções não difere muito da situação
de presídios e detenções de outras localidades do País. Em Benfica, muitos
problemas podem ser considerados agravantes: a reunião de facções rivais num
edicio sem estrutura para abrigar detentos com paredes sem reforço e
perfuradas, em obras e com ferramentas perigosas ao alcance dos presos , a
vigilância realizada por uma cooperativa com profissionais despreparados para o
trabalho e em número reduzido além da proximidade do prédio a uma favela
controlada pelo tráfico de drogas (ISER, 2006, p. 116) e a ausência de controle
adequado das pessoas que entravam e saíam (CÂMARA DOS DEPUTADOS,
2004a, p. 3).
Tudo isso, entretanto, pode também ser entendido como apenas uma das
inúmeras versões de violações de direitos fundamentais que acontecem nos
presídios brasileiros que, se servem para garantir a segurança de quem está do lado
de fora, deveriam servir também para garantir a integridade de quem está do lado de
dentro. O que o acontece.
60
De acordo com o 3º Relatório nacional sobre os direitos humanos no Brasil,
em comparação a outras rebeliões que aconteceram no Estado do Rio de Janeiro
entre 2002 e 2004, a da Casa de Custódia Benfica é importante porque:
[...] foi uma das mais significativas no sentido de demonstrar os problemas
existentes no sistema prisional. Entre estes problemas, se destacam:
superlotação, espancamentos, falta de assistência jurídica e médica, falta
de condições de habitabilidade e higiene, aprisionamento de presos
condenados com outros esperando julgamento, suspensão de direitos,
maus-tratos a parentes visitantes, controle de unidades prisionais por
facções criminosas, manutenção de presos de facções criminosas rivais em
uma mesma unidade prisional, e conflitos entre facções criminosas. (NEV-
USP, 2006, p. 69)
As ssimas condições das prisões e as constantes violações de direitos que
acontecem em cada uma delas deixam claro que seus muros servem mais para
esconder e encobrir um problema do que para ajudar a solucioná-lo. Na maioria das
vezes, servem inclusive para agravar o problema da criminalidade.
É de dentro das prisões que o tráfico de drogas e a ação das facções são
controlados. Em sua reflexão sobre as rebeliões nas prisões brasileiras, Salla (2006)
mostra que, muitas vezes, estas se transformam em estratégia para um grupo que
pretende ampliar sua liderança sobre a população carcerária local ou forçar as
autoridades a reconhecerem tal liderança e a reduzirem interferências.
Virar a casa, ou seja, provocar uma rebelião, é tamm uma forma de criar
um caos momentâneo que permita ampliar as chances de fuga. Líderes de
grupos criminosos, envolvidos com tráfico de drogas, roubo de cargas,
assalto a bancos, seestros, com freqüência conseguem fugir das prisões
brasileiras contando com a rede de ilegalidades e de corrupção existente
nestes estabelecimentos. Assim, conseguem subornar guardas, obter
celulares, armas, planejar a fuga contando com apoio externo e interno.
Tudo sugere que passou a ser uma estratégia de gerenciamento das
prisões deixar que o quotidiano seja administrado pelos próprios presos, por
suas lideranças, que são sempre construídas a partir do prestígio adquirido
nas atividades criminosas (SALLA, 2006, p. 294).
De responsáveis por custodiar os detentos, os governantes passam, então, ao
papel de cúmplices de ilegalidades. Os crimes que acontecem do lado de dentro dos
muros dos presídios não são, portanto, praticados apenas pelos detentos e são uma
61
perfeita manifestação do biopoder do Estado, de sua prerrogativa de "fazer viver" e
de "deixar morrer". A inexistência de programas penais que definam uma política de
reintegração dos presos, o nivelamento de todos os tipos de crime no interior das
unidades prisionais e as ssimas condições de higiene e saúde, além da falta de
acompanhamento da situação judicial dos presos, constituem manifestações desse
"método de gerenciamento" das unidades prisionais adotado pelo Estado.
A o-intervenção não representa exatamente uma fraqueza do Estado. É
antes uma opção de fortalecimento de seu poder, o biopoder. Wacquant (2001, pp.
8-9) vai mais longe e mostra que, no Estado moderno neoliberal, a construção dessa
estratégia de operação do poder coincide com o "tratamento social da miséria". Essa
coincidência se reflete no aumento da população penitenciária
19
a taxas constantes e
também reproduz nas burocracias policial e judiciária um "recorte da hierarquia de
classes e da estratificação etnorracial" baseado na discriminação social e que afeta
diretamente as camadas sociais mais pobres da população e os negros.
As prisões cumprem, assim, adequadamente sua função principal: recolher e
isolar aqueles que não se inserem na idéia institucionalizada e dominante de ordem,
de normalidade, ou seja, os outros da vida em comum. As prisões são concebidas
justamente para abrigar todos aqueles que representam o que há de sujo,
desordenado, infecto, ambíguo, inadequado na sociedade e, nesse sentido, apenas
reproduzem essas características, refletem a imagem que se constrói socialmente
desse outro.
19
Relatório do Ministério da Justiça (DEPEN, 2007) que compara os dados do sistema penitenciário
brasileiro de 2005 e 2006 mostra que em 2005, a população penitenciária, incluindo carceragens
estaduais e federais e presos em todos os tipos de regime de cumprimento de pena, era de 361.402
pessoas e passou em 2006 para 401.236 pessoas. De acordo com o relatório da organização
Human Rights Watch (1998), a população carcerária no Brasil é formada principalmente por jovens
(mais da metade dos detentos tem menos de 30 anos), pobres (95%), do sexo masculino (95%).
Dois terços da população carcerária não completou o primeiro grau e cerca de 12% são analfabetos.
Os dados são baseados no Censo Penitenciário Nacional de 1997.
62
1.4 Do lado de fora dos muros
O outro que está nas prisões o difere daquele que insiste em habitar os
espaços públicos. Aparentemente inserido nas relações cotidianas, o morador de rua
está isolado por muros, grades e pela atitude higienista que é adotada pelas
autoridades e apoiada pela população das grandes cidades (GIORGETTI, 2006). A
atitude higienista é apenas mais uma manifestação do desejo de produção e
reprodução da ordem cuja principal técnica é a da segregação.
A segregação – tanto social quanto espacial é uma característica
importante das cidades. As regras que organizam o espaço urbano são
basicamente padrões de diferenciação social e de separação. Essas regras
variam cultural e historicamente, revelam os princípios que estruturam a
vida pública e indicam como os grupos sociais se inter-relacionam no
espaço da cidade (CALDEIRA, 2000, p. 211).
O morador de rua representa um grande incômodo social justamente porque
ele simboliza que houve uma falha nesse processo de diferenciação social. Sua
presença indica que o processo de produção da ordem fracassou em manter o
espaço da cidade completamente organizado e "limpo".
É por isso que, quanto mais os moradores ocupam o espaço público ruas,
praças, marquises , mais este se organiza para isolá-lo, afastá-lo. Se não é
possível retirar esse outro das ruas, é possível ao menos deslegitimar sua presença,
tornando-o praticamente invisível. Esse processo pode ser observado nas praças
que já não têm bancos que possam servir de camas, nas soleiras de portas
protegidas por grades, nos baixos de viadutos que são fechados com tijolos para
que não se transformem em morada e nas ruas fechadas e vigiadas, nas marquises
que liberam jatos d'água durante a noite para que ninguém se abrigue sob elas.
Tudo isso acaba por obrigar a população de rua a migrar constantemente pela
cidade e contraria a própria idéia de espaço blico e reproduz a mensagem de que
63
os moradores de rua estão fora de lugar. As pessoas em situação de rua perdem,
assim, seu direito à cidade (FÓRUM CENTRO VIVO; 2005; CALDEIRA, 2000) e têm
sua existência negada o pela ausência – na verdade eles existem e são bastante
numerosos mas porque a cidade se organiza de modo a que sua aparência de
necessidade e falta (de dinheiro, de dignidade, de lugar na vida cotidiana) o esteja
ao alcance do olhar.
Entre os dias 19 e 22 de agosto de 2004, entretanto, todos os olhares se
voltaram para a população que vive nas ruas, se não diretamente, pela
intermediação das fotografias dos jornais e imagens de TV que acompanhavam o
noticiário. Nesses dois dias, sete moradores de rua foram assassinados nos
arredores da praça da Sé, centro de São Paulo. As mortes foram provocadas por
golpes na cabeça, que também causaram ferimentos em outras oito pessoas que
dormiam nas ruas centrais da cidade.
O primeiro ataque aconteceu na madrugada do dia 19 de agosto. Pelo menos
dez moradores de rua foram agredidos, três pessoas morreram e sete ficaram
gravemente feridas. Os laudos apresentados pelo Instituto Médico Legal (IML)
apontaram o uso de "instrumentos contundentes" como paus, barras de ferro e
marretas nas agressões, que resultaram em traumatismo craniano em todos os
casos. Como a maioria dos moradores de rua atacados não tinha documentos,
muitos só puderam ser identificados por moradores, comerciantes ou funcionários
dos prédios das proximidades. Eles eram conhecidos na região central e prestavam
pequenos serviços à comunidade, como varrer calçadas, em troca de comida, café e
cigarros.
As autoridades, a mídia e a sociedade ainda tentavam encontrar explicações
para as mortes dizia-se que os ataques estavam relacionados a brigas entre os
64
próprios moradores de rua, ao preconceito, à falta de vagas em albergues ou à
suposta resistência da população de rua em procurar os albergues quando, na
madrugada do dia 22, ocorreram novos ataques. Dois homens e duas mulheres que
dormiam nos arredores da praça da Sé foram atacados exatamente da mesma
forma que no ataque anterior: com golpes na cabeça por instrumentos contundentes.
Uma das mulheres morreu no local e os demais moradores feridos foram
hospitalizados.
As imediações da praça da Sé constituem um espaço representativo de como
se constituem as relações sociais entre as diferentes camadas da população em São
Paulo e, nesse sentido, é interessante observar que os ataques tenham acontecido
nessa região. As mesmas ruas em que os moradores de rua atacados foram
encontrados de madrugada concentram durante o dia um grande número de
pessoas de todos os níveis da estratificação social da cidade: bancos e instituições
financeiras como a Bolsa de Valores e os principais óros do Judiciário fóruns,
tribunais etc. o que atrai profissionais dos quadros executivos das empresas,
corretores de ações, analistas financeiros, advogados; um comércio popular
dimico e a conexão entre linhas de metrô e ônibus, o que transforma a rua em
local de passagem para os trabalhadores e órgãos blicos e serviços de
assistência social como albergues, o que faz com que os moradores de rua se
concentrem na região.
A grande concentração de pessoas tamm faz com que ali aconteçam
roubos cotidianos de carteiras, relógios, jóias que são vendidos nas diversas lojas
locais que compram ouro e prata em pequenas quantidades. A praça da Sé é,
também, a praça das manifestações públicas, atos de protesto, concentração para
passeatas e movimentos sociais. A mobilização popular pelas eleições diretas, por
65
exemplo, e as manifestações pelo impeachment do presidente Fernando Collor
fizeram da praça um espaço político importante.
A praça da Sé simboliza, de um lado, a reapropriação política do espaço
público pelos cidadãos na transição para a democracia. Por outro, ela
representa a deterioração do espaço público, perigo, crimes, ansiedades em
relação ao declínio social e o empobrecimento dos trabalhadores, que
continuam a usá-la nas idas e vindas do trabalho, e que trabalham no
mercado informal ou consomem seus produtos baratos. Ela simboliza tanto
a força como a deterioração do espaço público e é, conseentemente, um
símbolo do caráter disjuntivo da democracia brasileira (CALDEIRA, 2000, p.
327).
Tentar afastar ou isolar os moradores de rua desse espaço significa, portanto,
não apenas impedir que tenham acesso à cidade como à democracia que deveria
caracterizar o espaço público. Deveria, porque a praça da Sé é um dos espaços
pelo menos durante o dia mais ostensivamente policiados da cidade. Além da
ação de policiais militares e de guardas civis na repressão aos camelôs e aos
pequenos roubos existe um numeroso contingente de seguranças particulares em
lojas e prédios. Todos personagens coadjuvantes da violência difusa que caracteriza
a sociabilidade urbana e que muitas vezes não precisa ser praticada, apenas exibida
como potencial de recurso à força.
Depois da segunda série de ataques aos moradores de rua, os governos
estadual e municipal anunciaram o reforço no policiamento, com o deslocamento de
mais PMs e guardas civis que patrulhavam o centro da cidade. A nocia talvez o
fosse tão boa, já que a polícia não representava exatamente uma proteção aos
moradores de rua. As investigações realizadas pelo Departamento de Homicídios e
de Proteção à Pessoa (DHPP) e pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da
Pessoa Humana (Condepe) de São Paulo indicaram que as agressões foram
praticadas justamente por policiais militares. Cinco PMs e um homem que atuava
clandestinamente como segurança na região foram indicados para indiciamento.
66
Três eram as hipóteses principais levantadas nas investigações: alguns dos
moradores de rua teriam sido assassinados porque sabiam do envolvimento dos
policiais militares com o tráfico de drogas, e outros teriam sido atacados apenas para
prejudicar as investigações; o objetivo dos ataques seria uma espécie de "cobrança"
de dívidas que esses moradores teriam com traficantes de drogas, entre os quais
existe a prática de aterrorizar usuários que não quitam seus débitos, e os ataques
teriam sido realizados por um dos grupos que oferecem serviços de segurança
clandestina aos lojistas da região central de São Paulo para demonstrar controle da
área e disposição em eliminar os moradores de rua no local.
Os ataques evidenciaram o envolvimento de policiais militares com o crime e
no tráfico de drogas e também os conflitos entre as polícias civil e militar. Além disso,
as mortes de moradores de rua no centro de São Paulo serviram especificamente a
um confronto político entre os governos municipal e estadual. Como 2004 foi um ano
eleitoral e as mortes aconteceram no fim de agosto, às vésperas do início do período
de campanha, os dois partidos responsáveis pela administração local (PT na
prefeitura e PSDB no governo do estado) temiam que a repercussão negativa
ressoasse na cobertura da mídia (o que de fato aconteceu) atrapalhando a imagem
dos candidatos. Ao longo das investigações, uma declaração em especial dos
moradores de rua à polícia foi usada como "bola" no conhecido jogo de "empurra"
entre as autoridades: a de que os agressores usavam uniformes policiais. O governo
estadual apontava a afirmação como prova de que os agressores seriam da Guarda
Municipal, sob responsabilidade da prefeitura, que apontava para o envolvimento de
policiais militares, sob o comando das autoridades de segurança do estado
20
.
20
As acusações da prefeitura sobre o envolvimento de integrantes da PM no caso acabaram por ser
confirmadas pelas investigações, o que não isenta a administração municipal de sua
responsabilidade em relação aos albergues e ao tipo de assistência neles prestada.
67
Semanas após os ataques, três pessoas o segurança e dois policiais
militares foram presas temporariamente e soltas depois que o Tribunal de Justiça
de São Paulo (TJSP) revogou a prisão por falta de provas. Uma denúncia do
Ministério Público Estadual (MPE) contra os três suspeitos o foi acatada pelo
TJSP sob a mesma alegação.
Diante do descaso com as mortes, duas instituições, a Fundação
Interamericana de Direitos Humanos e do Centro Santo Dias de Direitos Humanos
da Arquidiocese de São Paulo, apresentaram ao Ministério Público Federal (MPF) a
solicitação de que as investigações fossem federalizadas, mas a solicitação foi
arquivada pelo então procurador-geral da República, Cláudio Fonteles.
Um longo processo se seguiu no Judiciário de São Paulo, com novas
dencias apresentadas pelo MPE, contestando o argumento da falta de provas, até
que, em dezembro de 2006, o Tribunal de Justiça de São Paulo acatou a dencia
contra quatro PMs e um segurança pelos ataques. Em julho de 2007, um policial
militar foi condenado a 19 anos e 20 dias de prisão. Ele foi considerado co-
responsável pela morte de uma testemunha dos ataques em maio de 2005. Os
demais acusados tiveram seus julgamentos adiados.
A impunidade no caso é mais uma agravante à situação da população de rua
numa grande cidade como São Paulo. Vistos como mendigos, assaltantes e
praticantes de pequenos furtos, os moradores de rua raramente são referidos nos
discursos da mídia ou das autoridades como cidadãos que, pela perda de
emprego, pelo envolvimento com as drogas e o álcool, pela estigmatização da
doença mental e até pela migração, passaram pela experiência de rompimento de
vínculos familiares e afetivos que dificultam sua integração à dinâmica da vida
cotidiana da sociedade.
68
A seqüência de rompimentos de laços sociais e a violência a que ficam
sujeitos nas ruas produzem um círculo vicioso de perda de identidade
21
, anonimato,
solidão, exposição e vulnerabilidade ao tráfico de drogas e à dependência do álcool,
acesso restrito a serviços de atendimento em saúde física e mental. Nos albergues,
onde teoricamente os moradores de rua poderiam encontrar assistência, as
condições não são muito diferentes daquelas encontradas nas prisões em relação
às questões de higiene e acomodação.
É bastante discutida e controversa a questão do funcionamento dos
albergues municipais, devido às péssimas condições de vida oferecidas
nestes estabelecimentos, onde temas relacionados à saúde não são
discutidos ou abordados. Não há espaços de ouvidoria para receber as
reclamações e sugestões dos albergados. [...]
O fato é que, se os albergues
constituem alternativa (ou falta de) principalmente nas noites mais frias de
inverno, eles não oferecem um acolhimento que respeite a privacidade, a
diversidade e especificidades de situações existentes hoje na população em
situação de rua, como a presença de famílias, deficientes físicos e mentais,
idosos e dependentes químicos
(FCV, 2005, pp. 136-137).
Os albergues acabam funcionando como desitos de moradores de rua
porque as políticas públicas que teriam como ponto de partida esses espaços e
serviriam para redefinir alternativas à situação de rua simplesmente inexistem ou são
descontinuadas e reiniciadas com freqüência, seja na transição entre administrações
municipais seja ao longo de uma mesma administração. Os albergues acabam
representando, assim, a fixação de muitos de seus usuários na situação de rua. Eles
moram nas ruas, compartilham os espaços da cidade, mas o participam da vida
urbana, estão presos do "lado de lá" da ordem.
21
Muito freqüentemente, essa perda de identidade é representada por uma das primeiras agressões
que uma pessoa sofre ao chegar à situação de rua: o roubo de seus documentos, RG ou carteira de
trabalho. Um fato que ilustra isso é que apenas um dos moradores de rua agredidos na série de
ataques chegou ao hospital portando documentos. A perda de documentos e o fato de não
possuírem endereço fixo são as primeiras evidências de que os moradores de rua deixam de ter
direito à condição de cidaos, a uma eventual, embora rara, oportunidade de emprego e até a
serviços públicos de assistência à sde, por exemplo.
69
Os muros sicos ou simbólicos que separam os moradores de rua, os
detentos e os moradores das favelas da vida da cidade operam como elementos que
marcam, enfatizam as diferenças, tornando-as irreconciliáveis, opondo "limpeza e
sujeira", "ordem e desordem", "pureza e impureza", "cidade e favela", "honesto e
desonesto", "criminosos e vítimas", "civilizados" e "incivilizados".
70
C
APÍTULO
2
M
AL
-
ESTAR
EM CONFLITO E O OUTRO
Processo civilizador ou civilização e cultura são conceitos-chave que
balizam o projeto da modernidade
22
, voltado, ao mesmo tempo, para o avanço
técnico e material, para o refinamento de costumes e relações e para a idealização
da vida em comum. Mas a relação entre os dois termos é tão complexa e
controversa quanto a polissemia dessas palavras e tem alimentado o debate entre
os pensadores que se dedicam a refletir sobre a sociedade.
Sigmund Freud foi um desses pensadores. Civilização e cultura são conceitos
fundamentais em O futuro de uma ilusão (1927) e O mal-estar na civilização (1929)
duas de suas obras que mais influenciaram o pensamento social. O autor,
entretanto, se recusou a diferenciar os conceitos ou detalhar-lhes o significado.
Jacques Le Rider (2002) lembra que, com tal atitude, Freud evitava entrar numa
longa polêmica sobre as origens dos termos em francês e alemão, que dão margens
a interpretações diversas e conflitantes
23
. Freud escreve tais obras no período entre
as duas grandes guerras, marcado por uma decepção quase generalizada com a
idéia de civilização, tão defendida e propagada nos meios intelectuais, mas abalada
pela brutalidade do conflito e pela insegurança latente.
Apesar de usar, em alguns momentos, os dois termos como sinônimos, Freud
reconhecia a diferença. Em termos gerais, o processo civilizatório estaria ligado ao
22
O debate sobre os conceitos de modernidade e s-modernidade é extenso. As reflexões teóricas
aqui desenvolvidas se alinham com a vertente de pensamento que compreende a
contemporaneidade como uma radicalização dos pressupostos da modernidade. Atual fase da
modernidade, contemporaneidade, sociedade contemporânea serão termos usados aqui para
incorporar algumas das reflexões e também para diferenciar a atualidade daquela de
desenvolvimento e consolidação da modernidade, na esteira do que idealizavam os primeiros
modernos.
23
Le Rider faz uma detalhada análise sobre o uso de ambos os termos no conjunto da obra de Freud.
Embora, em alguns momentos sejam usados como sinônimos, não são intercambiáveis. A diferença
de significado, entretanto, também não os torna totalmente distintos.
71
controle adquirido pelo homem sobre a natureza e que passou a ser compartilhado
por todas as culturas, como o domínio do fogo, o cultivo das plantas, a domesticação
dos animais e o próprio estabelecimento de limites sicos na convivência humana. A
civilização é tomada por Freud em referência às constantes transformações
promovidas pela ciência, pelo conhecimento e pelos avanços tecnológicos na
dimensão material da vida. À cultura estariam relacionados os aspectos imateriais,
espirituais, os processos psíquicos, os desejos e o simbólico. Essa separação,
entretanto, é artificial e Freud, em seus escritos, indica isso. Civilização e cultura são
inseparáveis, não porque os termos sejam sinônimos, mas porque são aspectos que
se articulam de modo que a cultura dá sentido aos recursos materiais e que estes
alteram os aspectos imateriais da vida, como explicam Norbert Elias (1994a [1939])
24
e Gabriel Cohn (2004). Para este autor, a cultura é a tradução da experiência social.
Para além, e mais fundo, de constituir um complexo de normas, valores e
regras de conduta, a cultura é um conjunto de padrões de interpretação da
experiência. Mais do que molde rígido, é travessia constante da fronteira
entre as sensações brutas e os significados compartilhados. Não há, pois,
como contrapor civilização e cultura, nem mesmo separá-las [...] (COHN,
2004, p.83)
No mundo moderno, as narrativas e imagens veiculadas pelos meios de
comunicação assumem a primazia na difusão dos "padrões de interpretação da
experiência"
25
, de acordo com os quais se organizam vida cotidiana, opiniões, visões
de mundo, ideais, projetos, conformismos e resistências. É também essa cultura
veiculada pelos meios de comunicação que ajuda os indivíduos a compartilhar os
"modos de agir e pensar" contemporâneos e a refletir sobre as relações sociais. A
24
Ao longo do texto, nas referências a obras clássicas, as datas entre colchetes indicam a primeira
edição em idioma original, informação que pode ser relevante para a compreensão mais
aprofundada do texto.
25
As mensagens divulgadas pelos meios de comunicação têm o papel de estruturar a cultura,
segundo autores como Cooley (1992 [1909]), McLuhan (1969 [1964]), Kerckhove (1997) e Kellner
(2001). Mas talvez a iia de estruturação seja determinista demais. É fato, entretanto, que a
difusão de informação, entretenimento e iias pela mídia tem papel central na dinâmica cultural
contemporânea.
72
mídia divulga – e, para alguns pensadores, até impõe – os padrões de interpretação
múltiplos da modernidade e, com isso, permite construir relações de identificação,
aproximação e alteridade, ao mesmo tempo em que traz elementos para o
estranhamento, a diferenciação, a exclusão e a indiferença na relação com o outro.
Em sua teoria da cultura, Freud aponta os limites e a dialética dessa relação,
revelando um intricado processo psíquico e social ao qual denomina mal-estar.
A inevitável ambivalência em relação à existência do outro está na base do
pensamento social [de Freud]: os outros são necessários à sobrevivência
sica e afetiva de cada um, uma vez que proporcionam a cooperação, a
proteção, a satisfação e o amor buscados. Ao mesmo tempo, contudo, sua
existência é também vivida como uma provação, já que eles podem
constituir uma ameaça ou um fardo, impondo exincias e cerceando a
liberdade. (BRUNNER, 2000, p. 76)
O mal-estar é a vivência dessa ambigüidade, tão claramente expressa por
Brunner. As restrições impostas pelos outros próximos e concretos que se diluem
na noção abstrata de sociedade, do outro coletivo são assimiladas de forma
dolorosa pelo indivíduo. A vida em sociedade é um eterno incomodar-se e admirar-
se com o outro, e também a dificuldade de reconhecê-lo como semelhante. É por
suas diferenças que o outro se faz ao mesmo tempo inoportuno e intrigante, nos
confronta e ameaça, coloca em dúvida nossos desejos, estabilidade e crenças. Essa
ambígua relação torna o convívio social, embora necessário, indesejado.
Com o conceito de mal-estar Freud nomeia essa experiência; nos fala, assim,
de um conflito interno à cultura e mostra que esta não é um território pacificado, e
sim marcado pela dicotomia, pela insatisfação. O mal-estar é permanente na vida
social, diz ele
26
. Na modernidade, esse aspecto adquire uma roupagem específica.
26
Freud, segundo seus intérpretes e comentadores, expressaria o máximo de seu pessimismo com
esse conceito de mal-estar, porque ele acredita que o conflito é perene e insolúvel. Isso não
significa, entretanto, que seja imutável. O mal-estar é estrutural e assume características específicas
em cada contexto sócio-histórico.
73
2.1 O mal-estar na modernidade
A idéia de que existe um conflito interno à sociedade que causa sofrimento
aos indivíduos o mal-estar é, como diz Bauman, um "provocador desafio de
Freud ao folclore da modernidade" e está intrinsecamente associada à nossa época
porque apenas "a sociedade moderna pensou em si mesma como uma atividade da
'cultura' ou da 'civilização' e agiu sobre este conhecimento com os resultados que
Freud passou a estudar [...]" (BAUMAN, 1998, p.7).
O mal-estar é uma categoria da teoria freudiana que buscava investigar como
a psique reage à sociedade e à convivência. Freud é claro: a sociedade só se
mantém coesa porque exerce uma coerção sobre os indivíduos, incitando-os a
cumprir regras e satisfazer exigências das quais estariam livres se pudessem atuar
com plena liberdade. Mas o sujeito não é totalmente maleável à coerção, ele tem
impulsos de resistência às regras e a sua insatisfação vem justamente da renúncia a
essas pulsões.
O autor parte, assim, do social para o particular e mostra que as normas
sociais, que viabilizam a convivência humana, acarretam uma frustração de impulsos
elementares da psique humana – a sexualidade e a agressividade , o que
desencadeia uma hostilidade em relação à sociedade.
No momento em que Freud reflete sobre o mal-estar o fim da segunda
década do século 20 o Ocidente está mergulhado em conceitos, crenças e ideais
modernos e tamm no choque que representou a Primeira Guerra Mundial. É um
momento de imprecisões e incertezas. Os ideais expressavam a esperança no
progresso, na ordem e no avanço em direção a melhores condições de vida para
todos. Projetava-se a emancipação do sujeito sob o reinado da razão e da ciência.
Mas a guerra e sua violência inédita representaram a negação de tudo isso e
74
levantaram dúvidas incômodas sobre as conquistas civilizatórias e a efetiva proteção
oferecida pela sociedade aos indivíduos.
Nesse contexto de frustração com a civilização, o mal-estar integra a teoria
freudiana como tentativa de compreender a eterna insatisfação do indivíduo com a
sociedade. As categorias centrais do conceito de mal-estar são os mesmos do
pensamento social moderno: indivíduo e sociedade
27
.
Na era moderna, o termo "sociedade" designa características específicas da
vida em comum: alto grau de complexidade das relações, racionalidade como valor,
divisão do trabalho, organização da produção e do consumo, divisão e conflito de
classes sociais e um processo que Weber (1989 [1920]) denominou o
"desencantamento do mundo" em que o ambiente social se torna menos mágico e
mais dominado pela razão.
O termo "indivíduo" também assume um sentido específico: não se refere a
uma parcula dissolvida no amálgama da sociedade, mas a um sujeito único,
independente, capaz de construir sua liberdade por meio da razão e de alcançar sua
autonomia em relação ao grupo, aos padrões tradicionais da vida social e à religião.
Conceitualmente, está representada a complexidade desta dicotomia.
Indivíduo e sociedade não são independentes, existem na mesma esfera, estão
submetidos aos mesmos processos e contextos, são interdependentes. Mas a
imagem que a época moderna constrói para o indivíduo o coloca em choque com a
sociedade: ele deve buscar sua liberdade, sua autonomia. O conflito se dá, como
avalia Simmel (2006 [1917]), porque a sociedade é inerente ao indivíduo, que busca
outra coisa:
27
Elias (1994b [1939]) mostra como esses conceitos se constroem e se transformam ao longo da
modernidade. Aqui cabe apenas sublinhar alguns de seus aspectos mais relevantes para a análise.
75
A sociedade quer ser uma totalidade e uma unidade ornica, de maneira
que cada um de seus indivíduos seja apenas um membro dela; a sociedade
demanda que o indivíduo empregue todas as suas forças a serviço da
função especial que ele deve exercer como seu integrante; desse modo, ele
tamm se transforma até se tornar o veículo mais apropriado para essa
função. Não há dúvida de que o impulso de unidade e totalidade que é
característico do indivíduo se rebela contra esse papel. Ele quer ser pleno
em si mesmo, e não somente ajudar a sociedade a se tornar plena: ele quer
desenvolver a totalidade de suas capacidades, sem levar em consideração
qualquer adiamento exigido pelo interesse da sociedade. A contraposição
entre o todo que exige de seus elementos a unilateralidade das funções
parciais e a parte que pretende ser ela mesma um todo – não se resolve a
princípio [...] (SIMMEL, 2006 [1917], p. 84)
Cada vez mais ansioso por autonomia, na modernidade, o indivíduo chega a
ser imaginado como existindo "fora" da sociedade, além dela, independente. Sem
tocar o abstrato corpo social, o indivíduo estaria livre de entrar em conflito contra ele.
Mas este é apenas mais um ideal moderno que se revela impossível. A imagem de
um indivíduo "destacado" da sociedade não corresponde à experiência; ao contrário,
o que acontece é que, quanto mais autônomo se torna em relação á sociedade, mas
as regras sociais pesam sobre o indivíduo.
Elias (1994b [1939], p. 106) fala em um "abismo" que se cria entre "a parte
'interna' do indivíduo e o mundo externo". Internamente, o indivíduo constrói sua
autonomia; externamente, ocupa um espaço na vida social que muitas vezes o nega
como autônomo, exigindo dele aprendizado, interiorização e reprodução de regras
além de uma existência interdependente. Esse processo de socialização é marcado,
como mostra Freud, pela repressão às pulsões agressivas e sexuais do indivíduo.
Esta repressão não é abstrata, ela é encarnada pelos outros indivíduos e pela
sociedade que representam os limites à satisfação dos desejos e a negação da
autonomia idealizada como característica do sujeito.
O processo civilizatório é, assim, a origem de uma frustração imensa para o
indivíduo que, como diz Simmel, quer realizar suas capacidades sem adiá-las em
76
nome de interesses da sociedade. Mas não pode fazer isso. A civilização oferece
soluções para a redução do sofrimento individual pelo controle da natureza, das
doenças, pelo conhecimento, pela satisfação de desejos e por oferecer condições
para intensificar o prazer do indivíduo com conforto material, regras de coexistência
mais pacíficas e até mesmo a possibilidade de mais liberdade. Ao mesmo tempo, e
exatamente pelos mesmos mecanismos, também exige que ele abra mão de sua
sexualidade e de sua agressividade Eros e Tânatos, pulsão de vida e pulsão de
morte – em nome da ordem e da convivência. A velha iia de que a liberdade de
um termina onde começa a do outro encontra aí sua expressão e suas
conseqüências.
Em sociedade, em grupo, em contato com o outro, seja ele quem for, os
indivíduos têm de lidar com a restrição de suas pulsões e com a decisão de escolher
quando e como é melhor para sua felicidade e bem-estar renunciar voluntariamente
à satisfação de um impulso. Muito do que é desejado, portanto, não é realizado. E
isto, diz Freud, não acontece impunemente. A vida em sociedade é um jogo de
perdas e ganhos: os impulsos reprimidos funcionariam como o amálgama da vida
em comum e as regras e leis têm a função de controlar tais impulsos. Mas este
controle não é total e a sobra desse processo é uma hostilidade do indivíduo em
relação aos outros.
Segundo Dennis Wrong (1976 [1961]), uma das utopias da civilização
moderna é a iia de uma socialização completa do indivíduo. Não se trata de negar
a socialização, diz ele, apenas de reconhecer que o homem é, sim, um animal
social, mas sem ser completamente socializado; sua própria natureza social é fonte
de conflitos, antagonismos, que criam uma resistência à socialização "total". A
internalização das regras sociais não garante a conformidade com elas, explica
77
Wrong. O que acontece é que, não importa quanto o indivíduo aceite e reproduza as
normas sociais, sempre haverá nele algo que se opõe à sociedade. Ainda segundo o
autor, os indivíduos que aparentam ser mais "conformados" são aqueles mais
assolados pela culpa. Aqui, o superego, o juiz interno que vigia ações e
pensamentos do indivíduo, tem papel fundamental. "Segundo Freud, é justamente o
homem que tem o superego mais severo, o que internalizou mais completamente e
que se conformou às normas societárias, o mais torturado pela culpa e ansiedade",
diz Wrong (1976, p. 37).
A atuação do superego está por trás do fato de que o indivíduo em
conformidade com a sociedade o está necessariamente bem, integrado, feliz, em
harmonia com a sociedade. O que ocorre é, talvez, justamente o contrário.
E assim, Wrong conclui, "quando Freud definiu a psicalise como o estudo
das 'vicissitudes dos instintos', estava confirmando, o negando, a
'plasticidade' da natureza humana sobre a qual os cientistas sociais
insistem. As pulsões ou 'instintos' da psicanálise o são disposições fixas
para comportar-se de uma forma particular; são totalmente sujeitos a serem
canalizados e transformados socialmente, e não se revelariam no
comportamento sem a moldura social". (GAY, 1989, p. 141)
Ao mesmo tempo em que constrói a figura do indivíduo independente e
autônomo como um valor, a modernidade atualiza, a cada instante, as restrições às
pulsões e desejos, reforçando elementos de um projeto de vida social integrada.
Este descompasso reforça o mal-estar, que é individual, mas também uma
experiência comum a todos, compartilhada em grupo, principalmente entre sujeitos
que vislumbram projetos semelhantes de vida. Dependente da vida em sociedade, o
indivíduo moderno se associa a seus semelhantes, que confirmam a mesma lógica
de renúncias e satisfações pulsionais, e se afasta de tudo que lhe é estranho,
diferente e, sobretudo, antagônico ao seu modo de lidar com as rencias impostas
e satisfações desejadas.
78
O social é múltiplo e essa pluralidade entra em tensão com o particular da
subjetividade de cada um. A diferença se apresenta como obstáculo aos
ideais de homogeneidade e coloca em evidência que, para além de um Eros
unificador, cada indivíduo se sustenta com seu próprio modo de conseguir
satisfações. Trata-se daquilo que Freud chamou felicidade e que, segundo
ele, decorre da economia libidinal do sujeito. E é a isso, a essa felicidade,
que ninguém está disposto a renunciar em nome da comunidade. (KOLTAI,
2000, p. 24)
A concepção que a ciência moderna constrói do indivíduo e da sociedade
coloca os dois elementos em contraposição, ao mesmo tempo em que projeta sua
união. O conceito de mal-estar explicita que esta é uma construção ambígua que
ignora o fato de que o sujeito está ligado à comunidade por uma falta, uma rencia
pulsional que jamais é completa, porque a rencia não elimina as pulsões. Estas
continuam presentes, exigindo satisfação. Está relacionado, ainda ao fato de que,
como lembra Koltai (2000, p. 111), as próprias exincias contrárias à pulsão são
fonte de satisfação ao superego, que irá nos incomodar com a culpa. Mas a culpa,
em si, pode ser o ponto final do processo.
Em regra, a culpa não produz ação, mas descarrego. Funciona da seguinte
maneira: somos autorizados a fazer pouco ou nada para que a situação
mude porque o sofrimento de nossa consciência nos absolve.
(CALLIGARIS, 2007)
Todos esses aspectos mostram a sutileza da relação do indivíduo com a
sociedade: não é uma contraposição, não é uma complementaridade, não é
depenncia nem independência. Tudo isso se mistura na relação com o outro de
modo indissociável. Na atualidade, este nó é ainda mais dicil de ser compreendido,
porque o indivíduo tem ainda mais a ilusão de independência. Como mostra Sergio
Paulo Rouanet (2003), o projeto civilizatório da modernidade – que é baseado nos
princípios da igualdade universal, da individualidade e da autonomia de pensamento
e ação – ruiu e esses princípios se transformaram em seus opostos, o que está
ligado a uma recusa dos valores da modernidade.
79
A cultura, centrada na figura do indivíduo – e não da comunidade –, reproduz
de forma tão exacerbada o individualismo que acaba suprimindo a percepção da
alteridade, da vida em grupo. Os efeitos desse processo são o esvaziamento das
discussões políticas e a apatia em relação a questões de interesse comum dando
lugar ao isolamento e a uma forma de satisfação que se dá pela conquista de
objetos que não ameacem a subjetividade autocentrada, o consumismo.
Na contemporaneidade, o anseio por um indivíduo autônomo que se
autoconstrói e que, estando fora da sociedade, a domina, é ainda mais exacerbado.
A satisfação dos desejos encontra sempre uma possibilidade no mercado em que se
vende praticamente tudo, desde os itens de primeira necessidade à possibilidade de
realizar fantasias sexuais, de transgredir as regras em jogos virtuais e até de
consumir apenas para aplacar anseios difusos e nem sempre reconhecidos.
Aparentemente, a sociedade é menos proibitiva. Mas o que acontece, como
mostra Zygmunt Bauman (1998), é que a natureza das restrições mudou. Os
primeiros modernos estavam asfixiados pelas normas e regras da coesa sociedade
tradicional e se viam dispostos a abrir mão desse ambiente seguro porque ansiavam
por mais liberdade.
Foi no século XVIII que a necessidade suprema de liberdade encontrou sua
consciência mais desenvolvida e seus efeitos mais acentuados, com uma
necessidade de se livrar das amarras com as quais a sociedade enquanto
tal atou o indivíduo. Essa exigência fundamental é constatável na
abordagem econômica dos fisiocratas, que preconizavam a livre
concorrência como a ordem natural das coisas, é evidente na elaboração
sentimental de Rousseau, para quem a violação do ser humano pela
sociedade histórica estava na origem de toda decadência e de todo o mal;
tamm é perceptível na formação política da Revolução Francesa, que
levou ao ápice a liberdade individual [...] (SIMMEL, 2006 [1917], pp. 91-92)
Na sociedade contemporânea, o indivíduo se livrou de diversas dessas
amarras, a liberdade individual tão almejada no século XVIII foi conquistada, mas
acaba por transformar cada um em potencial objeto da satisfação alheia, o que
80
significa que se posso obter minha satisfação do outro, esta verdade também vale
para ele em relação a mim. A segurança está ameaçada.
Tanto o valor do indivíduo autônomo, uma herança do discurso científico
moderno, quanto a experiência individual do sujeito contemporâneo, que leva sua
autonomia ao extremo e que encontra as promessas de satisfação materializadas no
mercado todo-poderoso, se chocam com os limites impostos à plena satisfação dos
impulsos. Em um extremo ou no oposto, o choque é sempre com o outro.
2.1.1 A felicidade sempre restrita
Em seus estudos sobre o mal-estar, Freud fala sobre o forte apelo da busca
da felicidade na era moderna e sobre a impossibilidade de ser feliz. Isso porque,
segundo ele, a satisfação das necessidades pulsionais a "verdadeira" felicidade –
se vê limitada pelas restrições sociais e pelos outros.
Mas, ainda que impossível, a felicidade é uma promessa da civilização: um
futuro sempre melhor, com menos sofrimento, mais liberdade e o direito irrestrito de
cada pessoa a seu quinhão de bem-estar. Os indivíduos engajam-se na busca desse
direito que, na contemporaneidade, acaba se transformando em dever
28
, além de
carregar consigo um permanente sentimento de culpa.
Em O Mal-estar na Civilização, Freud analisa como a sexualidade contida
amplia a unidade cultural, porque está ligada à proibição do incesto, à formação dos
vínculos monogâmicos e heterossexuais que são a base da família e da organização
28
Pascal Bruckner (2002) faz uma extensa e reveladora análise de como a felicidade se transforma,
na modernidade, não apenas numa necessidade, num desejo e num projeto, mas mobiliza esforços
como se fosse um imperativo, uma verdadeira obrigação. As conquistas da ciência, a suposta
autonomia do indivíduo, o mercado que oferece soluções para todos os tipos de problemas,
medicamentos que aliviam as doenças, beleza, conforto e bem-estar colocariam a felicidade ao
alcance das mãos de todos nós bastando um movimento mínimo em sua direção. A repetição
incessante desse movimento molda em grande medida as relações sociais contemporâneas, como
ele mostra no texto, porque é em torno dela que se constroem e destroem expectativas, vínculos e
valores.
81
social moderna. Sacrificada a sexualidade, criam-se as bases da comunidade, o que
não seria possível de outro modo, e a pulsão reprimida pode ser sublimada
29
na
forma de arte ou ciência, criações humanas que aliviariam o peso da coerção e
operam no sentido de formar e reforçar os laços sociais. A sexualidade, Eros, diz
Freud, quando restrita, exerce a função unificadora na sociedade, está na base dos
laços sociais duradouros.
Já a agressividade, Tânatos, é principalmente uma ameaça à ordem social.
Para Freud, a agressão é a pulsão original do indivíduo no sentido de preservar a
própria vida e o maior "inimigo" da civilização, porque impulsiona a dissolução dos
laços sociais e a aniquilação do outro. "Os homens o são criaturas gentis", lembra
Freud (1997b [1929], p. 67), sem se ater às questões morais sobre bem e mal. Antes
de "amar o próximo" o indivíduo o enxerga como um ajudante, um objeto de
satisfação sexual, uma força de trabalho a ser explorada ou uma ameaça contra a
qual é preciso defender-se. É na busca de proteger-se contra tudo isso – inclusive
de se transformar efetivamente em objeto de satisfação alheia – que o sujeito volta
ao outro seus impulsos agressivos. Esta seria a "natureza humana"
30
, à qual o
processo civilizador ime suas restrições, normas e regras. Preso entre a pulsão
agressiva e a coerção social, o indivíduo fica dividido. Se pudesse ser simplificado
em poucas palavras, o desejo do indivíduo se formularia como a intenção de obter
tudo: a possibilidade de agir de modo a satisfazer suas pulsões, sem respeitar as
normas sociais e, ainda assim, contar com o amor e a proteção dos outros.
29
Elisabeth Roudinesco e Michel Plon definem o termo no
Dicionário de Psicanálise
(1998, p. 734):
"Sigmund Freud conceituou o termo em 1905 para dar conta de um tipo particular de atividade
humana (criação literária, artística, intelectual) que não tem nenhuma relação aparente com a
sexualidade, mas extrai sua força da pulsão sexual, na medida em que esta se desloca para um
alvo não sexual, investindo objetos socialmente valorizados".
30
O debate entre psicanalistas e sociólogos sobre a natureza humana é extenso e complexo.
Entretanto, ainda que a iia de um conjunto de determinantes pré-existentes ao próprio indivíduo
seja inaceitável para alguns, é possível pensar nessas características enumeradas por Freud como
construídas socialmente.
82
Eros e Tânatos aparentemente estariam agindo em sentidos contrários mas,
na teoria de Freud, a destrutividade é a outra face da moeda da sexualidade: as
duas andam juntas e é isso que transforma o sacricio pulsional seja ele da
agressividade ou da sexualidade – em uma experiência tão ambígua e inquietante.
Qualquer frustração de um impulso mobiliza ambas as pulsões, o que significa que
não existe uma saída viável para o conflito.
Quando renuncia à agressividade, o sujeito continua sob a pressão dos
impulsos destrutivos e do desejo de explorar o próximo. Este desejo é o motor do
sentimento de culpa. Mas se cede ao impulso agressivo, este mesmo sujeito se vê
culpado por transgredir as normas sociais, tendo o outro – a sociedade inteira –
como vigia, um superego poderoso. É isso que torna o sentimento de culpa "o mais
importante problema no desenvolvimento da civilização" (FREUD, 1997 [1929], p.
97), porque é ele que "põe ordem" em nosso desejo e impede que os laços sociais
se destruam, mas é ele tamm que indica que a intenção destrutiva permanece
presente e desperta o mal-estar.
O outro é aquele que é diferente, não-familiar, que impõe a vida, a incerteza
e um desejo alheio ao Eu. Uma forma de negá-lo é dirigir a ele a agressividade
31
.
Embora seja figura universal, o outro é também particular. Cada sociedade define,
de acordo com seus padrões morais, sociais, econômicos e até estéticos, quem é
seu outro, aquele que não se encaixa nos limites do que é aceito e, portanto, se
torna um estranho. Em todos os contextos, é este estranho que se torna fonte de
insegurança, de medo, e alvo de violência e indiferença, porque nada nos garante
31
Especificamente em relação às transformações da agressividade na era moderna, Norbert (1994a
[1939], pp. 189-202) faz uma breve alise mostrando como os impulsos agressivos estão ligados
ao prazer e à satisfação de desejos e, tamm, como a passagem para a modernidade altera os
comportamentos sociais transformando o que era "normal" atitudes destrutivas em relação a
outros seres humanos e animais em "anormal" e rejeitado pela sociedade européia.
83
que dele não virá uma ameaça sica ou simbólica. É deste outro que dependemos
para obter amor, amparo, ajuda, colaboração, prazer, sobrevivência; é ele que nos
atrai e que nos repele. Os indivíduos todos, e inconscientemente – vivem esta
ambivalência perene, insolúvel, que mistura admiração e repulsa e logo se
transforma em culpa, num processo inconsciente ou, como diz Freud:
[...] é bastante concebível que tampouco o sentimento de culpa produzido
pela civilização seja percebido como tal, e em grande parte permaneça
inconsciente, ou apareça como uma espécie de mal-estar, uma insatisfação
para a qual as pessoas buscam outras motivações. (FREUD, 1997 [1929],
p. 99)
Tudo isso se interpõe aos anseios de felicidade como satisfação plena, sem
obstáculos. A felicidade é sempre restrita. A restrição à felicidade é ainda mais
incômoda, porque não é apenas o outro que nos desperta a culpa. Existe tamm o
Outro. Na psicanálise lacaniana, o Grande Outro, ou apenas o Outro (grafado em
maiúscula) é representado pela linguagem. É ainda assumido pelas figuras da lei, da
autoridade, do Estado, dos governantes e, ainda, por Deus. É este Outro, que
representa nossa inserção na cultura, nossa submissão a suas regras e que se
apresenta ao longo do tempo nas várias figuras de autoridade (pai, mãe,
professores, governantes).
O Outro representa o lugar da proteção, do amparo, do pertencimento e não
se confunde, portanto, com o outro coletivo, que representa a dualidade em relação
ao semelhante e cujo desejo anula o reconhecimento do meu desejo como absoluto
e predominante. Mas o Outro representa tamm uma ameaça, porque se com sua
autoridade se transforma em referência para a própria existência, sua ausência ou
fraqueza empurra o indivíduo para o desamparo.
Na contemporaneidade, a ausência do outro é sentida nas profundas
transformações das instituições como a família e a escola. A percepção que temos é
84
a de que os limites externos são menos rígidos, que não existe mais a forte
referência do Outro (SALECL, 2005). Esta experiência confere mais complexidade
às relações sociais porque, se a ausência de limites pode ser dolorosa, deixa espaço
para a constituição de novas referências. Na organização da sociedade pelo
consumo, uma dessas referências é o mercado que oferece satisfações imediatas a
muitos desejos e impõe novas barreiras à satisfação. A primeira delas é a própria
lógica da insatisfação que rege o consumo, e que propõe sempre produtos novos
para saciar antigos desejos.
A satisfação se torna aparentemente muito simples: basta escolher a
mercadoria que melhor nos convém. Mas a escolha carrega, em si, uma
insatisfação, representa abrir mão de várias outras possibilidades de satisfação em
favor de apenas uma que, além do mais, será logo tornada obsoleta pelos avanços
tecnológicos. A escolha é, portanto, uma limitação auto-imposta.
O ato de escolha é traumático precisamente porque não há um Grande
Outro: fazer uma escolha é sempre uma prova de fé onde não existe
nenhuma garantia. Quando tentamos criar mecanismos pessoais que nos
ajudarão a sentir satisfação com nossas escolhas e menos obsessão com o
ato de escolher, estamos apenas "escolhendo" um Grande outro, isto é,
inventando uma estrutura simbólica que supostamente aliviará nossa
ansiedade diante do abismo da escolha. (SALECL, 2005, p. 20)
A escolha confere um poder enorme ao sujeito, exceto o efetivo poder de
encontrar a satisfação. Segundo Salecl, essa impossibilidade é o motor de uma
ansiedade contemporânea que leva os indivíduos a uma forte identificação com
alguma idéia, projeto, pessoa, instituição ou modelo que possa nortear, dar
coerência às escolhas e, assim, tor-las justificáveis, aceitáveis.
O problema é que esta identificação, além de não garantir a felicidade, é
também um mecanismo de segregação do outro, de outras lógicas de escolha, de
diferenças. O mercado, diz Salecl, assume o lugar de modelo e de referência para
85
as escolhas do sujeito na contemporaneidade e, quando esta lógica predomina,
defende Bauman (1998), o outro, o diferente, se torna aquele que não tem acesso a
suas possibilidades. Na busca de sua satisfação plena do impossível, como
anunciou Freud – o sujeito se aparta do outro. E permanece infeliz.
2.2 O outro e a violência
A exposição da idéia de uma agressividade sempre latente nas relações
sociais é um dos momentos da teoria de Freud mais comentados da literatura,
porque o aproxima das reflexões de Thomas Hobbes sobre o Leviatã. Embora Freud
não se concentre na alise da relação das pulsões humanas com a organização
política, segue uma mesma linha de raciocínio sobre a sociedade.
Para Hobbes, o estado de natureza, caracterizado pela destruição e a guerra
entre os homens, se instala porque os desejos são semelhantes, os recursos,
escassos, e a concorrência, portanto, acirrada. Esta situação é pacificada pelo
contrato social, que confere ao Estado uma autoridade superior e a possibilidade de
aplicar a força em nome da ordem. Mas Hobbes enfatiza que tal contrato não apaga
totalmente a possibilidade dos conflitos. A "guerra de todos contra todos" se mantém
potencial, uma ameaça e, quando irrompe, o faz na forma da violência
32
. Afinal,
como Freud e Hobbes dão a entender, ainda que o sujeito não esteja disposto a agir
com agressividade para obter seu quinhão dos escassos recursos, ele estará
32
É possível discordar da iia de que a violência esteja ligada à natureza humana, como acreditam
Freud e Hobbes quando falam da constituição da vida social. Para muitos pensadores, a violência é
um reflexo da desigualdade social e econômica. Uma concepção não exclui a outra e é consenso
entre a maioria dos pesquisadores contemporâneos que a violência é multideterminada, assim como
é consenso que muito do que se apresenta como "natural" é, na verdade, aprendido socialmente.
Contingente ou natural, a violência está ligada à concorrência por recursos e satisfação em sentido
amplo, que inclui não apenas a satisfação de necessidades materiais mas tamm do desejo de
poder e de manutenção deste. O sentido de violência, assim, se amplia para as relações sociais.
86
sempre em vida sobre a real ambição alheia e até onde os outros podem chegar
para conseguirem o que desejam.
Quando falam em violência, os dois autores se referem à agressão sica,
entendida especificamente como a intenção de causar sofrimento ou morte.
Violência, entretanto, é um termo que carrega uma infinidade de significados e
nuances
33
e o próprio Freud reconhece uma outra concepção: a violência entendida
como o "fracasso da palavra". É no momento em que um ato violento irrompe, seja
ele qual for, que as possibilidades de dialogar e formar vínculos com o outro se
tornam inviáveis.
Alba Zaluar (1999, p. 12) ao se referir à polissemia da palavra violência e à
sua multiplicidade de manifestações, tamm destaca esse aspecto do fenômeno:
muitas vezes a questão da violência, diz ela, está "na sua forma de manifestação,
que possibilita ou não a negociação pela palavra e que envolve diferentes
personagens e relações". Esta é a iia que remete à compreensão da violência
como a anulação da alteridade, do reconhecimento do outro e como base da
intolerância.
Para alguns autores, como Birman (2001), o individualismo contemporâneo é
tão extremado e poderoso que além de se tornar um modelo de existir na atualidade,
transforma o prazer de negar o outro numa das expressões mais claras da
subjetividade. O outro só pode ser admitido se for passivo. Mas neste caso ele já
não existe.
33
Michaud (1989) lembra que violência é aquilo que cada sociedade ou cultura reconhece como tal e
que este reconhecimento varia em relação a vários aspectos da vida social, inclusive o momento
histórico. Já Porto (2000) lembra a dificuldade de definir uma categoria que corresponde à
experiência concreta e cujo termo é de uso corrente e cotidiano. Zaluar (1999, p. 8) destaca que a
etimologia latina da palavra remete ao emprego da força física e acrescenta: "Esta força torna-se
violência quando ultrapassa um limite ou perturba acordos tácitos e regras que ordenam relações,
adquirindo carga negativa ou maléfica. É, portanto, a percepção do limite e da perturbação (ou do
sofrimento que provoca) que vai caracterizar um ato como violento [...]".
87
Assim, a violência, a indiferença, a hostilidade em relação ao outro marcam
profundamente a contemporaneidade e seriam as contrapartidas da insegurança,
inclusive em relação à manutenção da posição social. É este individualismo
extremado que faz com que o outro seja entendido como potencialmente perigoso
34
e, portanto, seja alvo da intolerância.
A insegurança, mostra Bauman (1998), tem diversos aspectos: está
relacionada às condições ecomicas contemporâneas, às transformações no
mundo do trabalho – com o emprego se tornando cada vez mais escasso –, às
incertezas sobre o futuro, às transformações aceleradas da vida moderna. Está
também ligada a uma reorganização da complexidade social de modo a ampliar ao
contrário do que postulavam os ideais modernos as desigualdades sociais. A vida
em sociedade tornou-se muito incerta justamente porque os indivíduos conquistaram
muita liberdade, que permite pouca segurança e impede a aceitação "pacífica" dos
limites que o outro necessariamente impõe à satisfação dos desejos. E, na
contemporaneidade, satisfação é quase sempre sinônimo de consumo. A
insegurança imposta pelo outro o mal-estar, portanto –, é reforçada ou alimentada
pela própria ordem econômica. Como analisa Márcia Regina da Costa (1999):
De qualquer maneira, graças ao capitalismo, idealizamos em escala mundial
o lucro como valor supremo e o consumo como fonte mágica de superação
de dores e angústias em direção ao prazer e à felicidade. [...] O problema é
que essa "ideologia" capitalista está tão entranhada em nossos corpos e
consciências que, em geral, acabamos por atribuir um caráter não
ideológico a muitas dessas violências contemporâneas. O ódio ao outro, a
negação do outro, o prazer em destruir o semelhante, presentes em muitas
das violências contemporâneas podem o ser ideológicas apenas em um
sentido restrito do termo. Esses atos desnudam a face sombria presente
nessas sociedades em que a solidariedade e a identificação com o outro
são um constante perigo. (COSTA, 1999, pp.10-11)
34
Freud (1999 [1914]), em sua mitologia do surgimento da humanidade, chama a atenção para o fato
de que a civilização se inaugura pelo assassinato do pai da "horda primitiva", colocando a barrie
como anterior e fundadora da civilização. É esta violência, sempre latente, que origem ao pacto
social refletido no sexto mandamento: "Não matarás".
88
O que está em jogo é uma uniformização dos padrões de comportamento, das
identidades, das características aceitas, por um lado, contra aquelas que são
rejeitadas. A uniformização, entretanto, é cada vez mais o motor da segregação,
porque a semelhança em que se baseia é uma frágil construção. Freud alerta que,
para que possa haver união entre determinados grupos constituídos a partir de
semelhanças de classe, de condição social, de interesses, de visões de mundo é
necessário que exista um elemento externo que receberá as manifestações da
agressividade.
Assim, o amor é sempre amor ao semelhante e o ódio se volta para o
diferente. Para Freud esses sentimentos não são independentes: constituem-se em
manifestações do dualismo entre Eros e Tânatos que, igualmente, caminham juntos,
inseparáveis. Esse elemento é aquele que desperta medo e precisa ser eliminado. A
idéia de que é preciso eliminar para unir não é apenas da psicanálise e é registrada
em uma série de estudos sociológicos, como aponta Zaluar (1999).
Os estudos sobre o medo e o apoio dado pela sociedade a políticas
desticas ou extremamente repressivas devido à crise conduzem autores a
qualificar a sociedade brasileira como o antônimo da cordialidade e da
cooperação. (ZALUAR, 1999, p.5)
35
2.2.1 Indiferença, uma das faces da violência
Bauman articula a análise sobre o outro à questão da supremacia da lógica de
mercado na contemporaneidade. O mercado não tem apenas uma função concreta
de ordenar o consumo e a produção, mas também a função simbólica de representar
a ordem, a pureza, o certo, o justo, a segurança. Pessoas incapazes de
35
A autora faz uma revisão dos principais caminhos percorridos pelos estudos sobre violência nas
ciências humanas brasileiras para afirmar isso. Mas ela chama a atenção para algumas armadilhas
que esse caminho de reflexão pode representar para os estudiosos menos atentos. A principal
delas, aponta, é o dogmatismo teórico que pode vir a dividir a sociedade em duas categorias
antagônicas e estanques. Embora haja o consenso de que a cordialidade e a cooperação não são a
"marca" da sociedade brasileira, isso não torna viável assumir que esta é totalmente violenta e
destica.
89
corresponder a este simbolismo – porque não podem consumir, porque não
produzem, porque não se comportam de acordo com as regras desse jogo –, estão
"fora de lugar" na sociedade contemporânea o que, segundo o autor, tamm
equivaleria a dizer que são sujeira, impureza, desordem e insegurança. Elementos,
que, pela lógica moderna, devem ser separados, segregados, já que nem todos
podem ser integrados no jogo. Não há lugar para todos.
A essa lógica se agrega um outro aspecto da vida social analisado por Freud,
o fato de que os grupos se reforçam a partir da segregação:
[...] a unidade do grupo se estrutura por considerar inimigos, logo
estrangeiros, os que permanecem fora do grupo. É sempre possível, nos
ensina Freud, unir os homens uns aos outros à condição de deixar outros
tantos de fora, tanto mais que a agressividade no humano não é simples
reação de defesa do indivíduo em perigo, mas está no âmago do desejo
humano, instrumento e causa de prazer. Já dizia Freud que, à condição de
encontrar aí algum gozo, meu próximo o terá nenhum escrúpulo em me
ofender, explorar, tanto ecomica quanto sexualmente, apropriar-se dos
meus bens, martirizar-me e até matar-me. [...] É possível concluir, pois, que
só é possível unir os homens em grupos cada vez maiores à condição que
sobre alguns excluídos da ciranda de amor, contra os quais se possa dirigir
nossa agressividade [...] (KOLTAI, 1998, p. 107)
À primeira vista, temos a tenncia a limitar a idéia de segregação a aspectos
econômicos ou raciais, mas trata-se de algo muito mais amplo e complexo, mostra
Freud. E Bauman vai além ao mostrar que a segregação tem também aspectos
políticos; não se limita a critérios como renda, pobreza, poder aquisitivo, condições
de vida que são negadas a algumas camadas da sociedade, mas chega à restrição
do próprio direito à liberdade individual.
Analisando a sociedade euroia, em que o Estado de bem-estar social foi
uma realidade, aos poucos desmantelada com a retirada gradual do Estado da
função de "oferecer segurança", Bauman aponta para uma privatização dessa
função. A segurança não é mais algo que é oferecido pelo Estado, mas algo que
cada um deve buscar por si, e que instituições especializadas vendem no mercado.
90
Quem o pode comprá-la está "fora" do grupo. São aqueles que Bauman (2005)
descreve como "refugos" da modernidade.
O que, na sociedade européia, é promovido pela redução da intervenção do
Estado a privatização da segurança , em contextos nos quais não se
desenvolveu plenamente o projeto do bem-estar social, como o brasileiro, é
representado pela ausência ou ineficiência do Estado. Na sociedade européia, a
proteção estatal, que era oferecida a várias camadas da população, tornou-se
onerosa e inviável. Por isso, a privatização da segurança. Aqui, o que se percebe é
que, sem nunca ter existido amplamente, esse tipo de proteção é cada vez mais
falho e se volta contra as camadas desprivilegiadas
36
.
Em ambos os casos, o outro é um conjunto indeterminado, mas numeroso,
formado por pessoas que não conquistaram ou perderam os beneciosda
modernidade – emprego, acesso a moradia, educação, sde, direitos e poder de
consumo.
Bauman destaca particularmente como a exclusão do mercado de trabalho
num contexto de mudança das relações de produção e de redução cada vez maior
no mero de postos , é determinante na definição de quem é o outro na
contemporaneidade: indivíduos desprovidos de cidadania, de condições
econômicas, da proteção do Estado, e que não se integram às lógicas do trabalho e
do consumo. São os "refugos" produzidos pelo sistema político e econômico
contemporâneo, "depositados" nos espaços destinados a manter a ordem: as
prisões, as favelas, os campos de refugiados, as ruas, como já havia mostrado
Foucault em suas análises sobre a exclusão que se modifica na modernidade até
36
Adorno (2002) mostra detalhadamente o aprofundamento das desigualdades sociais no Brasil e
articula este e outros aspectos da exclusão social, como a crise no sistema de justiça e a
segregação urbana, à violência.
91
atingir as classes sociais e os comportamentos fora do padrão. Este outro encarna
duplamente a insegurança do sujeito, porque é uma ameaça à sua concepção de
ordem e representa algo que todos tememos vir a ser: excluídos.
E por isso tendemos a procurar remédio para o desconforto da insegurança
numa busca de proteção, isto é, com a integridade de nosso corpo e de
todas suas extensões e trincheiras avançadas nossa casa, nossas
posses, nosso bairro. À medida que o fazemos, começamos a suspeitar dos
outros à nossa volta, em especial dos estranhos entre eles, portadores e
corporificações do não-previsto e do imprevisível. Os estranhos são a falta
de proteção encarnada e assim, por extensão, da insegurança que
assombra nossas vidas. De forma bizarra e ao mesmo tempo perversa, sua
presença é um conforto: os temores difusos e esparsos, difíceis de apontar
e nomear, ganham um alvo visível, sabemos onde estão os perigos e não
precisamos mais aceitar os golpes do destino placidamente. (BAUMAN,
2003, p. 130)
Em geral, a segregação, entendida como a condição de outro, é a daqueles
que se mobilizam mais livremente em relação às regras sociais e, principalmente,
daqueles que as questionam, as colocam em xeque ou, como diz Bauman:
A mais odiosa impureza da versão pós-moderna da pureza não são os
revoluciorios, mas aqueles que ou desrespeitam a lei ou fazem a lei com
suas próprias mãos assaltantes, gatunos, ladrões de carro... (BAUMAN,
1998, p. 26).
Isto acontece porque, como mostra Rouanet (2003, p. 115), a falta de acesso
às "benesses" modernas é a causa do recrudescimento das frustrações pulsionais e,
por isso, as classes que vivem nessas condições agiriam com mais freqüência e
intensidade contra a sociedade. Em O Futuro de uma Ilusão, escrito em 1927, Freud
mostra que a coerção social e, portanto, as frustrações pulsionais, são diferentes
para diferentes grupos (ou classes) sociais e que isso resulta numa hostilidade das
classes desprivilegiadas contra a cultura, que se manifesta na não internalização das
regras da civilização. Passa a valer a transgressão e não a regra. Ao mesmo tempo,
as classes privilegiadas enxergam nessa transgressão um elemento a mais da
constituição dos desprivilegiados em um outro que, se o é inimigo, certamente não
aceito. A sensação de ameaça se torna assim mais concreta.
92
O conflito entre indivíduo e sociedade – estrutural em todas as sociedades e
central no conceito de mal-estar se acirra, portanto, na contemporaneidade como
conseqüência das relações ecomicas em que prevalece a lógica do consumo, que
define zonas concretas de diferenciação.
Uma 'mudança nas relações de propriedade', como diz Freud com todas as
letras, repartindo de modo mais eitativo os sacrifícios requeridos pela vida
em sociedade, contribuiria para reduzir pela raiz grande parte do mal-estar
global. (ROUANET, 2003, p. 115)
A resposta que a sociedade contemporânea ao mal-estar, ao contrário do
que sonha Rouanet de carona nas reflexões de Freud, não é a "mudança das
relações de propriedade", mas a segregação, uma violência que é paga com mais
violência, nos anseios de repressão, de punição exagerada, no recrudescimento
agressivo que está na base do mal-estar.
Não se trata de imaginar que padrões de sociabilidade menos violentos
eliminariam o mal-estar, elemento estrutural do psiquismo e da cultura. Mas, como
destaca Rouanet, é possível que o mal-estar fique menos aflorado nas relações
cotidianas. Se a segregação é uma das faces da violência, o é a única. Muitas
vezes, não é necessariamente pela exclusão do outro que se dá a agressão, mas
pela indiferença: não reconhecer o lugar do outro do lado de cá dos muros que
erguemos nas relações sociais, construir um discurso no qual ele o tem voz ou um
comportamento que é imune à sua existência, isto tudo é tamm violência, como
sugerem Caterina Koltai (1999) e Gabriel Cohn (2004).
Para Gabriel Cohn, a indiferença é um traço estrutural da forma de
organização contemporânea das sociedades capitalistas, em que o poder de
decisão se concentra nas mãos de poucos agentes sejam eles autoridades
políticas, atores do mercado globalizado, grandes conglomerados industriais ou
93
financeiros etc que desencadeiam efeitos secunrios aos quais esses mesmos
agentes são indiferentes. Um desses efeitos pode ser percebido nas vidas
desperdiçadas de milhões de pessoas de que fala Bauman (2005).
Para Koltai, a indiferença permeia aspectos ainda mais profundos e
complexos das relações sociais e está ligada à dificuldade de assimilar que os
sonhos e ideologias típicos da modernidade são impossíveis de serem
concretizados. Em grande parte, ignorar o outro é uma escie de mecanismo
inconsciente para evitar a consciência de desamparo, de fragilidade e de
vulnerabilidade que a modernidade ime aos indivíduos. O outro é a representação
concreta dessa frustração, sua presença impede que nossa imagem de uma
sociedade fundada na igualdade, na justiça e na racionalidade se concretize. Mas
antes de questionarmos o ideal de vida social, preferimos ignorar tudo aquilo que o
evidencia como distante, irrealizável.
Os dois autores relacionam a indiferença aos mesmos aspectos detalhados
por Bauman: a organização econômica do capitalismo e o projeto de modernidade
frágil, em ruínas. Ao mesmo tempo, com a idéia de indiferença, concebem a
exclusão sob um novo aspecto, dando vida nova a um conceito em si tão
polissêmico e complexo. A indiferença não é apenas passar pela vida sem olhar
para o outro, sem enxer-lo, sem reconhecer nele outro humano. Trata-se
principalmente de negar seu lugar, sua visibilidade nas relações cotidianas. O outro
será negado de modo radical, porque sua vida e sua morte são banais.
As três alises não se contraem, mas se complementam de tal forma que
expõem à luz a condição mais inquietante da existência dessas pessoas que
Bauman classifica como "refugos humanos". Esses grupos já não são mais
simplesmente excluídos, são totalmente irrelevantes, vidas humanas sem valor e
94
indiferenciadas submetidas a condições extremas de insegurança ao serem
relegadas aos espaços em que esta é mais frágil e à tutela do Estado enfraquecido
e ausente.
Colocar o outro no lugar da irrelevância é uma maneira brutal de negar-lhe a
existência, simlica e fisicamente; é dizer, mesmo que sem palavras, mas muitas
vezes com palavras, que podem ser mortos porque "ninguém sentirá sua falta", eles
são muito numerosos e a indiferença é tanta que ningm perceberia que aquelas
vidas se perderam.
É especialmente sob a face dessa indiferença que a violência se instala nas
relações e tamm no discurso. A irrelevância do outro é construída também pela
linguagem; sua negação e sua ausência de valor, aparecem como legítimas,
naturais, encobrindo o fato de serem produzidas por um encadeamento de
desigualdades construídas nas relações sociais.
95
C
APÍTULO
3
M
ÍDIA
, M
ODERNIDADE E
I
DEOLOGIA
Nenhuma outra época produziu mensagens em escala tão ampla como a
modernidade, que passou a dispor dos meios técnicos, instituições específicas e
uma variedade de formas de circulação de informações que hoje definimos como
mídia. Os meios técnicos de comunicação se transformaram, gradualmente, no
modo quase onipresente de produzir e fazer circular formas simlicas
37
,
determinando em grande medida como se dá a transmissão de informações, de
conhecimento e de entretenimento na modernidade, além de alterarem muitas das
experiências sociais.
As demandas por uma mídia comprometida com objetividade, informação e
reflexão são, também, heranças do projeto iluminista, esclarecido, para a
modernidade. Os meios de comunicação em particular o jornal se consolidaram
simultaneamente à constituição da sociedade secularizada, racionalizada, aberta ao
debate político e de opiniões, que tinha na imprensa o espaço para a troca de iias
e informações e, principalmente, uma possibilidade de padronização e
racionalização das narrativas sobre as experiências culturais.
A expectativa que se constrói em torno dos meios de comunicação – em
consonância com todas as expectativas da modernidade – é a de criar mecanismos
que possam ajudar na criação de consenso, no controle do conflito. O ideal de uma
"imprensa objetiva" é o que melhor incorpora essa idéia: existe um anseio por uma
imprensa neutra, pedagica, progressista, que possa disseminar o conhecimento e
a razão para todos os indivíduos, bem como uma verdade única e inquestiovel.
Bucci mostra como na atualidade esse ideal de jornalismo ainda sobrevive:
37
Formas simlicas, segundo Thompson, são ações, discursos, imagens e textos com significado
reconhecido.
96
[...] é inevitável notar que, talvez, o discurso jornalístico seja hoje um dos
poucos redutos do positivismo, num tempo em que até mesmo o discurso
das ciências exatas já aceita mergulhar na inexatidão do caos ou na
incerteza das probabilidades quânticas. O jornalismo resiste como um
campo discursivo que ainda carrega a pretensão de, no interior do relato
que propõe, conter, sistematizar e representar de modo inteiramente neutro
a objetividade dos fatos. Como se essa objetividade neutra fosse possível.
O discurso jornalístico, agora como antes, muitas vezes se vê erguido sobre
uma ilusão: descrever a realidade sem nela interferir. (KEHL; BUCCI, 2004c,
p.30)
Adorno e Horkheimer (1985 [1947]) já atentavam para as contradições que
existiam neste projeto de objetividade. Segundo eles, a proposta de disseminar o
conhecimento, a informação neutra, contêm em si o "germe da regressão". É a
"dialética do esclarecimento" que dá título à obra mais influente dos dois
pensadores.
Com o desenvolvimento dos meios de comunicação, as informações sobre o
conhecimento produzido se tornam acessíveis, potencialmente, a todos os
indivíduos. O conhecimento passa a ser produzido e disseminado em escala
"industrial", de acordo com as regras da "racionalidade técnica", mas ambas são
dotadas de características autodestrutivas: atrofiam o pensamento crítico,
transformam a produção de idéias em um processo mecânico, padronizado,
totalizante. A razão funciona, assim, de modo a destruir as singularidades, as
nuances, os desvios.
Esta visão de Adorno e Horkheimer indica que os indivíduos já o disem
mais de autonomia diante das informações divulgadas pela mídia. O fluxo de
recepção é tão grande e tão massificado que as interpretações criativas, a
compreensão transformadora do contdo simplesmente desaparecem. Embora
tenham recebido críticas de muitos pensadores contemporâneos
38
, as reflexões de
Adorno e Horkheimer dissecaram os aspectos mais perturbadores do papel dos
38
As referências principais neste trabalho são Thompson (1998) e Kellner (2001).
97
meios de comunicação para a vida moderna, sua atuação no sentido de reforçar a
lógica da mercadoria, predominante no capitalismo, e de transferir para o âmbito da
cultura esta lógica. As obras culturais deixam de ser criações, entendem os dois
pensadores, para se tornarem produtos como quaisquer outros.
Como produtora de bens, a mídia se interliga às demais instituições do
capitalismo por relações complexas, tanto de autonomia quanto de dependência, o
que tem reflexos na forma como a informação é difundida e na concepção das
relações sociais que reproduz e que divulga.
O comprometimento dos meios de comunicação com grupos sociais
dominantes na sociedade torna inevitável a reprodução de seus interesses. O
financiamento dos produtos culturais por grupos ecomicos e o gerenciamento dos
veículos como empresas, em que pesem todas as implicações e conflitos que isso
representa para um serviço público, tamm tornam inevitável que a "objetividade"
passe por um recorte que limite ou elimine a representação dos grupos que não têm
acesso a formas de poder instituído.
As relações com autoridades e representantes do poder do Estado serão
marcadas por trocas e conflitos que turvam as intenções de neutralidade. A narrativa
jornalística é ordenada, assim, de um modo bastante peculiar que, em muitos
sentidos, procura esconder os conflitos de interesses e a estrutura desigual das
sociedades.
Tudo isso demonstra, em linhas gerais, como o desenvolvimento da mídia
está relacionado com vários aspectos da modernidade: as relações de produção e
de organização da sociedade em grupos de interesse ecomico e poder, o
desencantamento, a racionalização e, principalmente, uma profunda transformação
da experiência do tempo e do espaço e das esferas pública e privada.
98
3.1 Experiências compartilhadas
Retraçando momentos da história do desenvolvimento dos meios de
comunicação, vários autores
39
mostram como os avanços técnicos estão ligados a
uma reformulação da experiência social do espaço e do tempo e das esferas pública
e privada. É pelo uso ou consumo das mensagens veiculadas pela mídia que os
indivíduos vivem formas de interação social diferentes daquela face-a-face,
comunicam-se com quem está fisicamente distante, deixam registros de suas ações
para as gerações futuros e, sobretudo, encontram novas formas de exercer o poder.
Os meios de comunicação permitem compartilhar histórias, iias, imagens,
conceitos sem que o espaço seja compartilhado; permitem testemunhar fatos sem
participar deles. O passado pode ser resgatado no presente; passamos a pertencer
a grupos que não existem concretamente, mas se constituem a partir de iias e
opiniões em comum. Tudo isso caracteriza a reorganização do contexto espaço-
temporal, segundo Harvey (1992). O tempo, em princípio, se encurta, porque as
experiências se transmitem com maior velocidade pelos meios de comunicação,
transformando-se numa connua sucessão de fatos presentes ao alcance da leitura
ou de uma imagem na tela. Os atentados em Nova York na manhã de 11 de
setembro de 2001 foram dados a conhecer ao mundo inteiro no mesmo instante. O
espaço deixa de estar atrelado à noção de território, as distâncias também se
encurtam e diante de determinados acontecimentos, como aqueles de 2001, todos
estão com as atenções voltadas para um mesmo lugar. É o que Harvey chama de
compressão espaço-temporal que, na contemporaneidade, se acelera.
Desde os primeiros veículos impressos, os meios de comunicação sempre
promoveram a compressão do tempo e do espaço, colocando à disposição de
39
Entre eles Habermas (1984 [1962]), Harvey (1992), DeFleur e Ball-Rokeach (1993), Lasch (1995),
Mattelart e Mattelart (1999), Thompson (1998) e Wolf (2003).
99
grupos sociais ou indivíduos diferentes, em contextos diferenciados, a mesma
experiência e o mesmo conhecimento. Isto implica em um novo relacionamento com
o passado, a História, a memória e também com o presente e o conhecimento
científico, porque o acesso às mesmas informações, formuladas da mesma maneira,
é possível a pessoas que jamais poderiam compartilhar uma mesma época ou um
mesmo lugar; fatos e idéias adquirem relevância independentemente da
possibilidade de serem testemunhados diretamente.
Uma das inúmeras conseqüências disso é que a noção de pertencimento se
altera, já não fica restrita à participação em uma comunidade com a mesma origem
ou as mesmas referências locais; a identificação se dá com pessoas que acreditam
nas mesmas idéias, conceitos e opiniões, mesmo que não as tenham produzido.
Bernard Stiegler (2004), seguindo a linha traçada por Adorno e Horkheimer,
afirma que essa transformação, sobretudo do tempo, ameaça as capacidades
intelectuais, afetivas e estéticas da humanidade. Para ele, este é um fenômeno que
se fortalece na contemporaneidade, sobretudo após 1968, quando se reproduz
insistentemente uma nova fábula ocidental, segundo a qual teríamos entrado na era
do "tempo livre", da "permissividade", da "flexibilidade" das estruturas sociais, do
prazer e do individualismo. A instituição do "é proibido proibir" inaugura uma era em
que "tudo é possível".
Stiegler diz que se trata de uma fábula porque, além de reproduzir agora
levada ao extremo – a idéia do indivíduo autônomo e independente, tão cara ao
projeto moderno, essa percepção do mundo tamm esconde o fato de que, sob a
onipresença dos meios de comunicação, as camadas médias e mais numerosas da
população efetivamente não têm acesso a toda esta liberdade. Seu tempo livre, de
lazer ou de atividades pessoais, é ocupado pelos meios de comunicação que, o
100
tempo todo, relembram a este sujeito diante da tela todos os limites a que está
atrelado – limites econômicos, sociais, estéticos. Mas estes limites são apresentados
não como barreiras, e sim como ideais a serem perseguidos.
Submetendo a maior parte da população às mesmas formas simbólicas e aos
mesmos contdos ideológicos, a mídia solapa aquela que seria a iia central do
individualismo proposto pelo iluminismo: o indivíduo se empenharia na construção
de seu ser, de sua autonomia e sua independência. Para Stiegler, o fato de estarmos
todos ligados nas mesmas nocias e nos mesmos programas culturais destrói a
possibilidade de que tal indivíduo venha, um dia, a existir.
Freud escreveu em 1930 que, dotado pelas tecnologias industriais dos
atributos do divino, e ainda que se pareça com um deus, o homem de hoje
não se sente feliz. É exatamente o que a sociedade hiperindustrial faz com
os seres humanos: ao privá-los da individualidade, ela gera rebanhos de
seres com dificuldade de ser; e com dificuldade de se tornar algo, ou seja,
seres sem futuro. Esses rebanhos desumanos tenderão cada vez mais a se
tornar furiosos [...] (STIEGLER, 2004, p.24)
A indústria cultural integra a lógica produtiva global da padronização dos bens.
Assim, o indivíduo imagina-se independente ao escolher um produto cultural
qualquer, mas consome o mesmo produto que milhares ou milhões de outros
indivíduos consomem, ao mesmo tempo. Repetida por anos, por décadas, essa
submissão voluntária acabaria por massacrar os desejos, uma vez que estes
suem singularidade. É o que Stiegler chama de "hipersincronização do tempo da
consciência", homogeneização do passado, massificação.
Trata-se de uma economia antilibidinal: só é desejável aquilo que é singular
e, sob esse ponto de vista, excepcional. Eu só desejo o que me parece
excepcional. Não há o desejo da banalidade, mas sim uma compulsão de
repetição que tende para a banalidade: a psique é constituída por Eros e
Tânatos, duas tenncias que se combinam sem cessar. A indústria cultural
e o marketing visam o desenvolvimento do desejo do consumo, mas, de
fato, reforçam a pulsão de morte para provocar e explorar o femeno
compulsivo da repetição. Dessa forma, contrariam a pulsão de vida: nisso, e
porque o desejo é essencial ao consumo, esse processo é autodestruidor,
ou, como diria Jacques Derrida, auto-imunitário. (STIEGLER, 2004, p. 8)
101
A lógica da repetição da instria cultural contribui, assim, para manter
aflorada a pulsão de morte, que opera no sentido da destruição dos laços sociais.
Se, como defende o autor, as singularidades são destruídas e, sobretudo, as
diferenças não são aceitas e a banalidade é valorizada, o processo de comunicação
produz um resto, um refugo. Comportamentos, aparências, pensamentos diferentes
ou dissonantes são ignorados, eliminados ou atribuídos a um desvio, um erro, ou
aos indivíduos que não participam nem nunca vão participar desse jogo. Novamente,
a modernidade se revela criando e isolando restos humanos, agora não apenas pelo
modo de produção capitalista, mas pela maneira como este se reproduz nas formas
simbólicas, nas mensagens compartilhadas por todos. A massificação de que fala
Stiegler contribui para o recrudescimento do mal-estar cultural, por meio da
insistência da diferenciação, e para a intolerância à diferença.
Como apontaram diversos analistas da teoria crítica e como insiste Thompson
(1995 e 1998), a massificação não é absoluta. É preciso levar em consideração o
fato de que o indivíduo dispõe de seus mecanismos particulares de resistência e de
crítica e que, assim como sua socialização não é absoluta, sua consciência não
pode, a priori, ser compreendida como homogeneizada. Mas o que Stiegler, Adorno,
Horkheimer e muitos outros pensadores destacam é uma forte tendência que,
somada a tantas outras algumas das quais destacadas anteriormente –, ampliam e
reforçam no indivíduo sua pulsão de morte. Num imaginário cabo de força entre Eros
e Tânatos, na sociedade contemporânea, os elementos mais fortes e valorizados
estão, certamente, do lado de Tânatos.
Além de promover as mudanças na percepção do espaço e do tempo, que
levam a esta valorização da pulsão de morte, os meios de comunicação participam
também de um outro processo de transformação da experiência das esferas pública
102
e privada. Tal processo é destaco por Hannah Arendt, em A Condição Humana
(1989 [1958]). Arendt descreve como uma esfera intermediária, a social, se constitui
a partir do momento de ascensão da burguesia na Europa, quando a administração
doméstica, suas atividades, problemas e recursos organizacionais deixam de ser
assuntos exclusivamente privados e se tornam parte do debate público. Esse
processo levaria à constituição da sociedade moderna.
Na polis grega, a esfera blica era o espaço onde os poucos iguais tinham a
possibilidade de exercer sua individualidade, explica Arendt, sob a forma de
singularidade, expressa em seus feitos e realizações. Entre pares, os homens
buscavam se diferenciar uns dos outros. No momento em que a esfera privada – a
do lar, da intimidade – avança, e preocupações com a família, a educação se tornam
objetos de debate público, constitui-se o que a autora define como esfera social.
Esse processo tem um papel fundamental na definição das regras sociais.
O número de restrições, normas e regras que recaem sobre o indivíduo se
amplia a fim de "'normalizar' seus membros, a fazê-los 'comportarem-se', a abolir a
ação espontânea ou a reação inusitada" (ARENDT, 1989 [1958], p.50) de modo que,
"quanto mais pessoas existem, maior é a possibilidade de que se comportem e
menor a possibilidade de que tolerem o não comportamento" (ARENDT, 1989 [1958],
p. 53). Assim se construiria a igualdade moderna, baseada no conformismo às
regras e na redução da diversidade de interesses, típica da esfera pública, a poucos
elementos comuns a todos. Tudo isso contribui para a redução e negação das
diferenças que, segundo Arendt, passam a ser relegadas à esfera privada.
Desse processo descrito pela autora podem ser pinçados alguns elementos
que encontramos na leitura que Freud faz da sociedade moderna, a idéia de
restrições à ação espontânea corresponde, em termos psíquicos, à restrição das
103
pulsões; a intolerância ao "não comportamento" e às diferenças, a necessidade de
eliminar da esfera pública, comum, tudo aquilo que é dissonante. O que fica evidente
em ambas as abordagens é que as singularidades e a tolerância ao que é diferente
são efetivamente destruídas no processo de modernização.
Em relação à mídia, isso tem uma conseência importante, para além
daquela já destaca por Stiegler, que é o da constituição do discurso jornalístico como
o discurso objetivo de acesso universal. (O discurso científico é também objetivo,
mas o acesso a ele não é tão universalizado.)
A esfera pública – que nesse momento de ascensão burguesa está
intimamente ligada à imprensa, aos clubes, aos cafés e salões, refletindo o acesso
dessa camada à cultura letrada , passa a ser mobilizada também pela crítica e o
questionamento do papel do Estado e dá visibilidade a quem exerce o poder.
A imprensa assume, então, uma função importante para a reorganização das
relações de poder, por um lado defendendo o acesso universal à educação, à
alfabetização – ainda que este acesso estivesse restrito aos grupos com recursos
econômicos e, por outro, fazendo com que a aristocracia ligada ao Estado fosse
obrigada a administrar sua própria imagem. A crítica focada na autoridade expressa
do Estado, ligada à teoria liberal, ainda que de forma velada, reflete interesses de
um determinado grupo social em ascensão. Mas nem isto nem a transformação
posterior da nocia em mercadoria foram considerados entraves ao desenvolvimento
democrático da imprensa, ainda que instalasse um paradoxo no centro dessa
instituição.
É só com a crítica da teoria liberal e com os debates em torno da teoria
marxista e de sua concepção de ideologia que esta ambiidade da imprensa vem à
tona como um ponto negativo e, ainda que ela tente se adaptar a estes
104
questionamentos, a imprensa nunca deixa de estar ligada a uma certa camada
social e a seus interesses
40
.
O desenvolvimento tecnológico, a valorização da leitura, da cultura e do
convívio social nesse período inicial da modernidade, lembra Jürgen Habermas
(1984 [1962]), tornam-se as bases de uma sociedade em que a profusão de
opiniões, o debate e o posicionamento político ganham espaço privilegiado. Mas
este espaço se reduz gradualmente, na medida em que a organização dos Estados
passa a regulamentar e regular a vida social, alterando a compreensão do que é
público e do que é privado.
O crescimento do Estado e das instituições comerciais ao longo dos séculos
19 e 20, posterior à formação da esfera social, acaba por reduzir o potencial
questionador da esfera pública. Assim, o jornalismo é atravessado por uma forte
contradição: nasce associado à defesa de ideais democráticos e se transforma num
dos mecanismos de vigilância do Estado e do poder. Mas sua expansão, viabilizada
por investimentos de determinada classe, reduz cada vez mais sua autonomia e seu
caráter crítico. Nem todos os interesses ganham representatividade. Reencontramos
então Hannah Arendt quando descreve, como um dos processos modernos, a
redução das diferenças como um dos aspectos da constituição da esfera social.
Neste caso específico, esta redução se dá pelo discurso socialmente reconhecido.
É paralelamente a todas essas transformações do espaço público e à
constituição do espaço social que o conceito de indivíduo começa a se formar.
40
As análises e comentários deste trabalho vão se concentrar na imprensa porque este é o objeto de
estudo. Mas em grande medida, parte das observações pode ser ampliada para os meios
eletrônicos de comunicação, a partir do telégrafo, que participam das transformações nas relações
de poder, além de serem influenciados e influenciarem a globalização e o fluxo de mensagens
ideológicas em dimensão mundial. O jornal contemporâneo, ao mesmo tempo em que carrega toda
a herança dos primeiros veículos impressos, também se transformou sob influência de novas
tecnologias de comunicação e integra a mesma lógica cultural das mídias eletrônicas. O conteúdo
passa a ser influenciado por aspectos novos como um equilíbrio maior entre imagens e texto, pelo
apelo estético maior, um texto mais conciso e simples, para citar apenas alguns exemplos.
105
Intimidade e indivíduo formam um universo que gradativamente se define em
oposição ao par conceitual blico e sociedade. O indivíduo está e deve estar cada
vez mais distanciado da sociedade, tornando-se um elemento fragmentado que se
diferencia dos outros por seu universo particular e íntimo – que é o que define a
esfera privada. Mas ao mesmo tempo, no contexto social e político, o indivíduo é –
ou deve ser igual a todos os outros. Paralelamente, o acesso à cultura da mídia, à
informação e às iias mediadas, trabalhadas pela mídia, contribui para a formação
do indivíduo, porque o capacita a interpretar, receber, compreender as mensagens.
Ao mesmo tempo, tamm sob influência da mídia, o indivíduo se torna menos
questionador, mais passivo.
Esse processo de formação do indivíduo sob os processos de transformação
das esferas da vida e sob o desenvolvimento dos meios de comunicação, cheio de
contradições, chega a um ponto em que os indivíduos, iguais em direitos e deveres,
tornam-se praticamente inertes diante dos problemas políticos e sociais, como
mostra Rouanet (1993). Os indivíduos passam a enxergar no conhecimento apenas
uma ferramenta de atuação individual, e não política, o que esvazia o debate de
opiniões e a exposição de idéias.
Habermas e Thompson divergem em relação às conseências desse
processo. Para o primeiro, a inércia toma conta dos indivíduos a tal ponto que estes
já não fazem mais uma reflexão sobre a cultura. Seguindo a trajetória que o liga à
Escola de Frankfurt, Habermas enfatiza o caráter de dominação e controle social das
mensagens dos meios de comunicação.
Já para Thompson, embora isto de fato aconteça porque as instituições da
mídia utilizam técnicas para cultivar e promover os interesses dominantes e esvaziar
o conflito – não é o fato de serem tratados como consumidores passivos que
106
transforma os indivíduos em uma massa despolitizada e alheia aos debates. Para
ele, o femeno não é tão linear e a inércia individual é resultado de um processo
inerente à contemporaneidade em que a simples idéia de participação e debate
deixa de fazer sentido. Com indivíduos cada vez mais centrados em sua própria
independência, o debate deixa de ter a mesma relevância que tinha para a
experiência dos primeiros modernos. Os indivíduos não perdem a capacidade de
criticar e resistir às idéias e padrões de interpretação veiculados pela mídia, apenas,
talvez, o seja esta sua prioridade. Esse é um dos motivos que faz Thompson
discordar da conceituação dos meios de comunicação como massificados
41
.
Thompson (1995 e 1998) concorda que as mensagens divulgadas têm, sim, a
função de reproduzir e legitimar o status quo, mas reforça que o processo de
assimilação e interpretação das formas simbólicas é complexo demais para ser
reduzido à total apatia e à assimilação inerte de todo o contdo transmitido. Para
que a predomincia da mídia se constitua como tal, as mensagens transmitidas
precisam ser apropriadas, incorporadas na vida cotidiana. Elas ganham significado
por meio desse processo, que nada tem de apático, é ativo e, embora muitas vezes
as técnicas de comunicação sejam usadas para produzir o consenso, este não é
uma certeza, apenas uma probabilidade. Os indivíduos resistem sempre, em certa
medida, ao que é transmitido.
Esta análise é mais condizente com uma compreensão da sociedade como o
espaço do conflito e com a iia de que os indivíduos o são totalmente
41
Não apenas Thompson, mas tamm Kellner e diversos outros autores discordam dos termos
massa e massificação. Em primeiro lugar, porque a palavra uma iia de indiferenciação e de
aglomerado que o corresponde à real experiência das relações sociais. A segunda restrição,
ainda mais importante, é que o termo associado à idéia de mero, de quantidade, nem sempre
corresponde à realidade. Os jornais, por exemplo, que circulam entre uma parcela mínima do
público, não são menos importantes ou influentes por isso e têm uma função de determinar, em
grande medida, o que será veiculado nos outros meios e como isso acontece. O que os termos
massa e massificação definem, portanto, são aspectos e processos da vida social que, vistos de
perto, são complexos.
107
socializados. Entretanto, é fato também que a resistência, ainda que potencial, é
raramente predominante, porque toda forma de dissonância é ignorada e
desencorajada em todos os âmbitos, como característica da modernização que
reproduz a repetição e a mesmice.
Isso não exime o analista, o pesquisador, de mostrar como as mensagens são
construídas pelos meios de comunicação, como as relações assimétricas de poder
estão ali representadas, como o acesso diferenciado a recursos e oportunidades
pode ser justificado pelo discurso e, principalmente, como os mecanismos de
produção, transmissão e reprodução das formas simbólicas são institucionalizados.
Kellner (2001) inclusive chama a atenção para a importância desse tipo de análise,
como forma de levantar o debate sobre a reprodução do conformismo e apontar
elementos que reforcem a percepção e a manifestação de críticas e resistências.
3.2 Os meios de comunicação e o mal-estar
"Sabemos, desde A interpretação dos sonhos de Freud, que o desejo não tem
que se realizar necessariamente em ato. Pode bastar-lhe a linguagem", explica
Maria Rita Kehl (KEHL; BUCCI, 2004c, p. 90) indicando que a representação de um
desejo pode dar a resposta positiva à insatisfação causada pelas pulsões
reprimidas, uma das principais características do mal-estar.
Se a linguagem produz satisfação, tamm produz mecanismos de repressão
das pulsões ao reforçar as regras sociais válidas e que devem ser cumpridas para a
inserção social. A linguagem opera, em certo sentido, como uma consciência moral
da sociedade, como uma autoridade que define as regras e, portanto, os prazeres
legítimos, as satisfações possíveis. Constitui-se assim em uma escie de referência
para o comportamento.
108
A representação do outro pela mídia, portanto, tem múltiplos aspectos: servirá
para validar as escolhas do indivíduo em relação à sociedade, para indicar de modo
exemplar os caminhos ilegítimos, para reforçar o mecanismo de repressão pulsional
e, ao mesmo tempo, para oferecer uma satisfação em relação a essas pulsões
reprimidas. O indivíduo retira da mídia, assim, prazer e desprazer. Mas é importante
perceber que esses não são processos desconectados, separados, distintos,
acontecem simultaneamente.
É sobretudo como diferente que o outro é representado na mídia, como
aquele com o qual não me identifico e a quem posso impor sofrimento. Mas o outro
não é jamais uma só coisa, ele é ao mesmo tempo diferente e semelhante, e é
justamente a redução à diferença pela representação que permitirá encobrir esta
ambiidade. É neste jogo da representação que a complexidade da relação entre
mídia e mal-estar se revela. Ao caracterizar o outro como inimigo, todos esses
processos de satisfação/insatisfação se condensam.
Nessa condensação de prazer e desprazer, a onipresença da televisão
confere às imagens um caráter privilegiado. A imagem é imediata e não exige de
qualquer entendimento ou reflexão. Ela se apresenta ao olhar como a realidade.
Uma cena de morte vista na tela é absolutamente idêntica à real, mais até, porque
da tela nenhum detalhe escapa: a arma, o dedo que aperta o gatilho, a trajetória da
bala, seu impacto ao atingir o corpo, o sangue, a queda. Todos os elementos estão
presentes, o registro é coeso.
Diante de uma transmissão televisiva direta por satélite para todo o País (que
geralmente recebe a rubrica de "ao vivo"), o que difere o telespectador do
espectador é apenas que este o está no lugar onde os fatos se dão. Mas ambos
vêem o mesmo acontecimento, são "testemunhas" do fato.
109
A experiência de testemunhar um acontecimento é única e imediata. Enquanto
um texto exige a reflexão, a imaginação, a transformação de palavras em cenas que
cada leitor irá recriar a seu modo, a imagem televisiva torna os processos mentais
mais complexos totalmente desnecessários. "Ver" substitui qualquer dúvida,
qualquer reflexão, qualquer incerteza.
É por sua capacidade de oferecer satisfação de forma imediata, sem trilhar o
tortuoso caminho do pensamento, que a imagem televisiva adquire tanta força. Mas
tal força é tamm resultado de técnicas de produção de discurso. O discurso
imagético passa pelo enquadramento, pela seleção e edição de cenas, por uma
construção narrativa específica e trabalhosa na qual a ideologia vai deixar suas
marcas. Em outras palavras, o basta ter em mãos uma câmera ligada voltada para
a ação que se desenrola para produzir imagens televisivas de uma operação policial
na favela, por exemplo. É preciso saber captar as imagens de acordo com as regras
do discurso, conseguir o melhor detalhe, a imagem do rosto atemorizado do cidao
que ouve os tiros, a tomada geral que mostrará não um, mas vários cidadãos
correndo e se escondendo. As imagens se apresentam freqüentemente ao
telespectador como aquilo que aconteceu, mas na verdade não passam de uma
seleção dos "melhores momentos" dos fatos. Isso demonstra que a TV tem outra
característica importante: ela consegue encobrir o modo como é produzida e se
transforma no fato. Imeras vezes repetidas, as imagens de violência substituirão
outros referenciais da realidade, nos acostumamos a aceitar que aquilo que vemos é
o que de fato acontece enquanto estamos diante da TV testemunhando tudo.
A TV é, assim, provavelmente o mais eficaz canal de comunicação na relação
do indivíduo e da coletividade com seu mal-estar. Por meio das imagens, ela
apresenta o incômodo e a solução desse incômodo, "o certo e o errado". Ao
110
apresentar o outro como personagem principal de ações como matar ou morrer,
sofrer, violentar, subjugar, explorar, "barbarizar", a televisão traz os elementos que
correspondem a uma percepção do mundo dividido entre o eu e o outro, em que
este ocupa o lugar do indesejado, do erro, do ódio, daquilo a ser evitado e banido. E
imediatamente apresenta a punição deste outro, que é também o pobre, o traficante
assassinado, o bandido preso.
A representação midiática – em especial a imagem televisiva – traz assim uma
satisfação imediata ao desejo ao mesmo tempo em que reforça que o espaço do
outro não está vazio. Ao insistir em representar esse outro sempre presente – ora é
o traficante ora o maníaco, o morador de rua, o detento confinado e rebelado – a
televisão, não apenas pelo jornalismo, mas tamm por suas novelas, séries e até
programas de humor substitui a compreensão do fato por um raciocínio pronto e
inquestionável: o outro é perigoso e é preciso eliminá-lo. A imagem consegue
transformar em natural a diferença do outro. Afinal, invariavelmente, nos filmes, nas
novelas, nas obras de ficção televisiva, os mocinhos são "felizes para sempre" e os
bandidos são punidos exemplarmente.
A programação televisiva é infinitamente variada e é possível supor que as
formas de apresentação do mal-estar na TV também variem, o que apenas uma
análise detalhada de cada tipo de programa poderia esclarecer. Mas um aspecto
fundamental da televisão, que pode ser reconhecido em quase todos os tipos de
programação, é a equivalência – em apelo à atenção do público, em qualidade e em
quantidade de imagens entre real e ficção. Muitas vezes, os programas de
conteúdo ficcional funcionam justamente para identificar como aspectos da
"realidade" um pouco distantes do cotidiano de parte dos telespectadores (a
violência armada do narcotráfico, por exemplo) pode afetar a rotina, as escolhas, a
111
vida de todos nós, ou ao menos, de "gente como a gente". Esta é uma
representação também importante, já que a esfera pública – o espaço em que se
compartilham as experiências para além da mídia
42
é atualmente menos
valorizada.
Nos momentos em que a programação enovela o ficcional com o real, se
proe a reconstituir os fatos com uma encenação ou "reconstituição" dos fatos,
esse movimento potencializa seu efeito. O ator que irá representar o outro poderá
conferir ao personagem tudo aquilo que a ele se atribui: a aparência de mau, as
atitudes questioveis, a característica de extrair prazer do horror, o sorriso
perverso.
Pelo casamento da ficção com o jornalismo, que acontece em programas
como Linha Direta, da TV Globo, ou quando uma novela se proe a mostrar "a
realidade" de algum aspecto das relações sociais, como o homossexualismo, os
bastidores da política, do tráfico ou do crime. Quando o outro vira personagem, ele
se torna, pelo menos uma vez e para a total segurança de todos, integralmente outro
e contra ele a violência se justifica. Nesse sentido, a representação da violência na
TV é profundamente poderosa, como lembra Maria Rita Kehl:
Com a exposição repetida às representações da violência, tendemos a nos
habituar e a tolerar cenas que nos horrorizariam dez anos, vinte anos.
Hoje, assistimos tranqüilamente a cenas que nos fariam sair da sala alguns
anos atrás. Essa elevação do padrão de tolerância em relação ao horror me
preocupa muito. Vamos nos acostumando à violência, como se fosse a
única linguagem eficiente para lidar com a diferença; vamos achando
normal que, na fião, todos os conflitos terminem com a eliminação ou a
violação do corpo do outro. (KEHL; BUCCI, 2004c, p. 89)
A relação com o mal-estar passa por mecanismos complexos de
encobrimento das relações sociais e de construção de credibilidade que, na
42
A inversão da lógica é, aqui, proposital, para indicar a prevalência da mídia nas experiências
compartilhadas.
112
televisão, são aspectos praticamente dados na TV. A repetição faz o papel das
imagens, naturaliza os fatos, desvia os questionamentos, permite que a mensagem
transmita seu conteúdo. No texto, portanto, diversas informações, descrições,
palavras e figuras de linguagem, até mesmo as informações contraditórias irão
convergir para uma mesma representação do outro a fim de condensar a
diferenciação.
No rádio, a mediação é ainda mais complexa. As TVs transmitem suas
mensagens em rede e de modo massificado; os jornais a um grupo selecionado e o
rádio, em milhares de pequenas emissoras, muitas vezes combinado programação
local ou regional com a retransmissão de programas de grandes redes.
O rádio é privilegiadamente descentralizado, local embora existam
programações retransmitidas em todo o País e isso o transforma em um meio de
comunicação bastante específico, embora pouco estudado
43
. Uma das
especificidades é a programação muito diversificada, algumas vezes para atender
características e necessidades do público local. A linguagem tamm é marcada
pelos regionalismos da oralidade e pelos valores específicos de cada região, embora
nos grandes centros urbanos existam padrões de linguagem e programação. O rádio
busca, o tempo todo, falar diretamente ao indivíduo, nele os ouvintes têm nomes,
são identificados pelos bairros onde vivem e existe um esforço para incorporar suas
manifestações, opiniões e informações no discurso, que não deixa de ser
homogêneo, mas tira parte de sua homogeneidade pela evidência da concorncia
do ouvinte.
Exatamente porque a oralidade é o elemento central da comunicação, em um
contexto social global em que prevalecem as imagens e, particularmente no Brasil,
43
Por isso, talvez valha a pena uma reflexão um pouco mais demorada sobre suas características.
113
onde a televisão é o grande meio de integração nacional, o rádio ainda é
subestimado em relação à imprensa (o rádio o depende de uma distinção social
básica que é a alfabetização) e à televisão (porque não tem apelo estético, é
invisível). A radiodifusão recebe a menor parcela dos recursos publicitários que
financiam os meios de comunicação. É também considerada um tipo de
comunicação exclusivamente popular e, por isso, a maioria dos programas se volta
para este público.
Embora existam muitas emissoras dedicadas a apenas um tipo de programa
como os religiosos, os musicais, esportivos ou os de notícias grande parte das
emissoras procura misturar pelo menos dois ou mais tipos de programa na grade.
Existe também uma marcante segmentação das rádios. Muitas apostam em uma
programação mais popular. Nestas são privilegiados os programas policiais, de
relatos de casos dramáticos e muitas vezes violentos (histórias "reais" de violência
doméstica, sexual, infantil, infelicidades amorosas) e tamm a programação
religiosa. Em geral, esses programas são veículos para a divulgação de uma visão
bastante conservadora da sociedade, fortalecimentos de valores como a família, a
abstincia do álcool e do fumo, a ética do "cidadão trabalhador".
Nos casos de relatos de violência, são conhecidos os locutores de rádio que
usam e abusam da indignação na voz, da repetição à exaustão de descrições de
ações brutais cometidas pelos protagonistas das histórias, da apresentação das
vítimas a partir de estereótipos do ser frágil, generoso, bom, pacato, inofensivo e da
linguagem contundente, preconceituosa até. Existem locutores paradigmáticos
nesse tipo de programação, como Gil Gomes e Afanasio Jazadji que desenvolveram
essas características de apresentação dos programas, tornaram-se populares em
várias camadas sociais e são imitados por todos os locutores de programas
114
policiais
44
. Essa popularidade é, muitas vezes, transformada em capital político e não
são raros os locutores de rádio, não apenas de programas policiais, mas tamm
religiosos, que se elegeram para cargos públicos.
Sobretudo, no rádio, prevalecem os clichês, os lugares comuns e os bores,
como o conhecido "Bandido é na cadeia, gente boa é na rua", de Afanasio Jazadji.
São recursos que, aliados à dramaticidade na voz, têm um forte apelo emocional
que ajuda a quebrar a eventual desatenção do público, mas que tamm despertam
a agressividade reprimida, a resistência em relação à sociedade, a manifestação dos
mesmos desejos de uma ordem social perfeita, da eliminação dos refugos e da
desarmonia. A própria linguagem do rádio, nesse tipo de programação, é assim
atravessada por elementos constitutivos do mal-estar cultural, como a intolerância, a
diferenciação, a percepção de uma sociedade fragmentada em amigos ("gente boa")
e inimigos ("bandidos"). Os lugares comuns reforçam a fronteira entre o eu e o outro,
evidenciando-a.
Algumas dessas características de locução são calcadas na própria
especificidade da linguagem radiofônica. O rádio, em geral, é um eletrodoméstico
barato, portátil e acessível a todas as camadas da população, muito mais do que a
televisão
45
. Além disso, o rádio não exige atenção exclusiva do ouvinte, que pode
estar no trânsito dirigindo o carro, no trabalho, executando desde atividades manuais
até intelectuais, em casa realizando as tarefas cotidianas. Em geral, o ouvinte está
em atividade e ouve o rádio "enquanto" trabalha, dirige, pratica seu esporte, o que
44
A "imitação" de estilos de locução parece ser uma característica do rádio. Alguns locutores utilizam
"fórmulas" de narração que se popularizam e são repetidas por outros numa escie de código de
cada tipo de programação. É assim com os programas esportivos e religiosos, além dos policiais. Na
programação policial, inclusive, o estilo dos locutores acabou por ser adaptado à televisão, que criou
seus próprios nomes como Jos
45
Ainda assim, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2006 (divulgada em
meados de 2007), do IBGE, o rádio está presente em 87,9% dos domicílios brasileiros e a TV, em
93%.
115
faz muito sentido já que o rádio é fundamentalmente um veículo de prestação de
serviço inserindo flashes na programação que indicam, por exemplo, onde encontrar
emprego, como flui o trânsito na cidade, localizando acidentes e falhas no transporte
coletivo, além de servir de espaço para divulgação de campanhas de saúde,
pessoas desaparecidas, denúncias de serviços públicos ineficientes etc.
Já a TV exige uma atenção semi-exclusiva (é possível apenas ouvir a TV, mas
perde-se muito do contdo transmitido) e o jornal exige atenção exclusiva (a leitura
dificilmente se mistura com atividades que exijam atenção, como o trabalho, é
preciso interromper uma ação para executar outra). Isso explica em parte o exagero,
a dramaticidade da locução. Mas não explica tudo. Em muitos sentidos, essa
linguagem é construída para dar satisfação à agressividade reprimida e ao
mecanismo psíquico de projeção no outro do que é inadequado à vida em
sociedade. A escolha dos termos, a freqüência, a ênfase em determinadas palavras
pela entonação, a disposição das palavras na frase são formas que podem atuar
diretamente nas emoções e dar expressão ao mal-estar.
Nas programações voltadas para as elites prevalecem os programas
esportivos, humorísticos e jornalísticos. É principalmente nestes dois últimos que se
pode perceber o contraste em relação aos programas policiais. O humor no rádio
(também na TV) é escrachado, muitas vezes machista e de mau gosto. A
representação do outro pelo humor é, freqüentemente, pela desqualificação, mesmo
que esta tenha a intenção de fazer rir, está presente e o pode ser ignorada. Mas o
outro do humor é bastante específico: o pobre é menos violento do que innuo e
inofensivo, a mulher é invariavelmente burra, bela, doce e generosa. O humor
inverte um pouco a lógica da projeção no sentido de que a malícia, a esperteza, a
má fé, estão em geral naquele que propõe a piada, que promove a desqualificação
116
do outro. Mas, na prática, estas são apresentadas como características de algum
modo desejáveis e valorizadas.
Já os programas jornalísticos têm uma outra característica que marca a
diferença em relação ao restante da programação: a linguagem formal. O jornalismo
no rádio é, em geral, a leitura de textos jornalísticos com uma entonação específica,
pausas e repetições estratégicas. Além disso, o apelo jornalístico do rádio é menos
do detalhe da informação e mais o seu impacto. O rádio exige velocidade – como o
ao vivo da TV e, em geral, a informação é fragmentada ao longo da programação.
Os acontecimentos podem ser narrados à medida que aparecem novas informações,
ao longo da programação.
Outro elemento importante da programação radiofônica é a presença do
Outro. Programas como "Voz do Brasil", "Café com o Presidente" (governo Lula),
"Palavra do Presidente" (FHC)
46
e as versões estaduais de programas de
governadores. Nesse tipo de programação que o é das mais populares tanto
pelo formato enfadonho como por alguns aspectos da apatia política – os
governantes apresentam suas realizações, reafirmam suas promessas eleitorais,
opinam sobre os temas mais debatidos do momento e deixam seu recado para a
sociedade. A programação não tem grande apelo popular, mas marca a presença da
autoridade e, em geral, serve à própria mídia como fonte de declarações dos
governantes. Não é todos os dias que se pode entrevistar o presidente, mas se um
tema exige uma manifestação do governante, esta pode ser extraída desses
46
Impossível não notar a diferenciação na própria imagem do presidente que esses títulos de
programas, por si só, já determinam: o café informal com o presidente de origem nas camadas
populares; a palavra (lei, sabedoria) do presidente intelectual. Aparentemente, esta diferenciação é
positiva para ambos, já que estes títulos são escolhidos pelas equipes de comunicação dos
governantes, evidenciando o tipo de identificação que buscam com a população ou o eleitorado.
117
programas, muito freentemente pontuados por declarações generalistas e por
uma tentativa de justificar ações e acontecimentos.
A ligação desses programas com o mal-estar é intrincada, mas um dos
aspectos que pode ser destacado é que, ao mesmo tempo em que marcam a
presença do Outro, servem justamente aos meios de comunicação para demonstrar
o esvaziamento do discurso da autoridade diante dos acontecimentos. O Outro que
representa a proteção e o reconhecimento, quando se mostra (ou é mostrado) como
ausente, indiferente, quebra a noção do pertencimento e canaliza grande parte da
insatisfação do indivíduo em relação à sociedade.
As características de cada meio de comunicação operam na direção de
unificar o sentido para um público mais ou menos amplo. O que importa é que tanto
no jornal, como no rádio ou na TV, essa unificação do sentido passa por uma
construção de interpretações possíveis e viáveis para os fatos. As respostas
ideológicas prontas mostram a vítima indefesa diante do criminoso mau; o Estado
que não protege o cidadão que paga seus impostos; o pobre que, se não é ainda
criminoso, estará sempre caminhando na corda bamba em que o menor escorreo
o levará para o lado perigoso do crime. São essas interpretações ideológicas que
oferecem o espaço para que o mal-estar seja reforçado, justificado, amplificado ou
encoberto pela mídia.
Um aspecto importante dos meios de comunicação é que, quanto maior sua
abrangência conquistada ou pretendida, maior é a tenncia a ecoar interpretações
dominantes, evitar transgredir as convenções, buscar um mínimo denominador
comum que consiga atrair um público mais amplo. Tanto na TV quanto no rádio ou
no jornal, é pela repetição incessante das mesmas imagens, palavras e estratégias
de construção do discurso ideológico que se oferecem os elementos para que o mal-
118
estar permaneça constantemente aflorado. A repetição é uma garantia, o
absoluta, mas bastante segura, de homogeneização na interpretação do discurso,
de que o telespectador, o leitor, o ouvinte disem de ferramentas suficientes e
claras para a compreensão da mensagem e do modo – ideológico – como ela foi
construída.
A resistência aos efeitos dessa repetição é possível e cabe aos sujeitos os
indivíduos que têm consciência do mal-estar e o desejo de restabelecer os laços de
alteridade a tarefa de interpretar a mensagem e resistir aos preconceitos, à
indiferença e à intolerância. Mas a resistência depende de uma intervenção do
sujeito que exige fala, escuta e olhar atentos a suas manifestações. E é aí que a
atuação da mídia se torna mais poderosa na sustentação do mal-estar cultural,
porque a mídia tende a inibir o movimento de intervenção da consciência, da
reflexão, no momento da recepção da mensagem, como já alertavam Adorno e
Horkheimer (1985 [1947]).
A resistência depende principalmente da compreensão da forma como é
construído o discurso, mas esta só é possível diante de uma compreensão da
estrutura social, das variáveis e constantes do contexto cultural em que se vive.
Mediados, olhar, escuta e fala transformam o contato com o outro em algo
sempre ameaçador e violento porque amplificam todas as características negativas
do outro. O recorte, a edição, a seleção de imagens, as palavras escolhidas acabam
por simplificar a complexidade do outro em alguns elementos. Essa redução é, em
si, um mecanismo de operação da ideologia, que se produz a partir da valorização
de tudo o que é clichê no comportamento, na aparência e nas características do
outro. A mídia é uma espécie de cúmplice dos lugares-comuns sobre a diferença e
ajuda a reforçá-los, mantê-los válidos e justificá-los.
119
3.2.1 O discurso da imprensa
Entender os meios de comunicação como veículos de transmissão de
informação e entretenimento é enxergar apenas uma parte, a mais superficial, de um
fenômeno complexo. Mais do que isso, os meios de comunicação têm um papel
fundamental na transmissão de cultura. A possibilidade de influenciar na fixação de
padrões culturais, difundir mensagens que trazem interpretações específicas do
mundo, levantar questões que se tornarão tema de debate
47
, recortar aspectos da
realidade que serão tratados como relevantes e, sobretudo, deter o monopólio dos
meios técnicos de produção e difusão das informações é fundamental para definir o
poder das organizações da mídia na sociedade.
Este poder é simbólico: mais do que instrumento de dominação, é um
instrumento para justificar, reproduzir, sustentar a dominação. É também um poder
que se constrói a partir de elementos do discurso e que pode, assim, ser
questionado nas sociedades democráticas.
A base do poder dos meios de comunicação, especialmente no caso dos
textos jornalísticos impressos, é a divulgação de opiniões e fatos, sendo que estes
últimos são, em tese, a matéria-prima do jornal. A reconstituição objetiva dos fatos
dita uma prática jornalística racional, técnica, com uma escrita padronizada,
descritiva e avessa a análises, em geral identificadas com opiniões e, portanto,
expressão de interesses.
47
Esta é a iia de
agenda setting
, a hipótese de que os meios de comunicação selecionam,
apresentam e reforçam os temas sobre os quais o público falará e discutirá. Apesar de largamente
comprovada por uma série de alises empíricas, aceita e estudada, esta hipótese é apenas um dos
modos de analisar as relações entre a mídia e a sociedade. O risco do conceito é cair na certeza de
que tudo o que a mídia aborda fará parte das discussões e das preocupações do público. Isto
acontece, em geral, com temas superexpostos. Wolf (2001) faz uma longa análise da questão do
processo de
agenda setting
.
120
A busca da objetividade é efetivamente questionada como prática jornalística
nos anos 60 do século XX, com o new journalism, uma tentativa dos jornalistas
norte-americanos de dotar as descrições dos fatos de uma narrativa mais subjetiva e
de valorizar as histórias de vida dos personagens mais do que os fatos, numa
aproximação da literatura.
O jornalismo deste tipo, literário e mais subjetivo, pressue uma pesquisa
quase etnográfica, o detalhamento do ponto de vista, do comportamento, das
relações e da história dos personagens. É por isso que este tipo de jornalismo tem
como personagens preferenciais os marginais, os rebeldes, os outsiders, o
voyerismo e o narcisismo. Mas o jornalismo clássico conseguiu se adaptar a esta
prática que surgiu como questionamento das regras e, aos poucos, acabou por ser
incorporada nas práticas tradicionais em textos mais trabalhados, reportagens
especiais ou na submissão das informações obtidas por este método à análise de
especialistas. Ainda assim, o jornalismo literário (ou a literatura de não-fião)
representa caminhos para uma escrita menos amarrada pela lógica do embotamento
do pensamento característica da indústria cultural como apontada por Adorno e
Horkheimer.
A escrita jornalística marcada por uma série de regras da qual a objetividade é
apenas uma. As clássicas seis perguntas fundamentais do primeiro parágrafo – O
quê? Quem? Onde? Como? Quando? Por quê? –, a condensação das informações
principais no início do texto (o lide, do inglês lead = conduzir, guiar) e a lógica da
pirâmide invertida, em que as informações menos relevantes (e quem define a
relevância são critérios aprendidos e constitutivos da prática profissional) vão ao fim
do texto e podem ser cortadas sem dano à essência da informação são outras
características essenciais da construção do discurso jornalístico. (Em geral, os
121
últimos parágrafos são os dedicados à expressão de pontos de vista, quando eles
existem.)
As regras da clareza, do vocabulário simples, explicativo, o uso de aspas, a
apresentação "dos dois lados" de uma questão, sem a reflexão sobre eles, a
prioridade a fontes institucionais, legitimadas, a busca da verossimilhança, a
montagem e o encadeamento de idéias e a acumulação de clichês são alguns dos
aspectos apontados por Barthes (2001 [1985]) como constitutivos do texto
jornalístico que contribuem para que o discurso reproduza a aceitação e valorização
da ordem social estabelecida.
Poder simbólico e uma escrita específica são dois elementos que ilustram as
propriedades do que Bourdieu (1997) chama de "campo jornalístico", um contexto
específico, estruturado e com práticas e crenças institucionalizadas que se relaciona
com outros campos econômico, intelectual, político.
O conceito de campo parece ser hoje o que dá uma visão mais abrangente de
como as características do discurso jornalístico não são aleatórias, mas resultado de
uma infinidade de fatores e de soluções institucionalizadas para conflitos
permanentes.
A organização hierárquica da profissão, a prevalência de uma escrita marcada
pela objetividade, a relação original da imprensa com a idéia de democracia, a
crença na função cívica do jornalismo e o gerenciamento dos veículos como
empresas são alguns desses elementos institucionalizados. Ainda que a idéia de
democracia não corresponda a uma efetiva democratização dos discursos ou que a
objetividade carregue um elevado grau de subjetividade, é a crença nesses
elementos, mais do que sua eficiência e pureza, que tem importância para a
consolidação do campo.
122
Como o campo literário ou artístico, o campo jornalístico é então o lugar de
uma lógica específica, propriamente cultural, que se ime aos jornalistas através
das restrições e dos controles cruzados que eles impõem uns aos outros e cujo
respeito (por vezes designado como deontologia) funda as reputações de
honorabilidade profissional. (BOURDIEU, 1997, p. 105)
A noção de campo também é importante para evitar generalizações e
simplificações. É no mesmo contexto que as lógicas do discurso objetivo e do new
journalism sobrevivem, para citar apenas uma das ambiidades internas ao campo.
Ainda que uma dessas lógicas seja predominante, ambas se influenciam
mutuamente e incorporam fórmulas da outra. A reportagem tradicional e a
reportagem de estilo literário são dois entre os vários estilos de texto jornalístico a
crônica, o artigo, a crítica, a análise são outros que têm mais elementos em
comum e que partem de um mesmo conjunto de técnicas de apuração de
informações.
Isso coloca o texto jornalístico impresso na posição que lhe cabe no universo
da diversidade dos meios de comunicação e na verdadeira overdose midiática da
cultura moderna. A imprensa tem uma inflncia qualitativa em termos de balizar a
informação que será veiculada e, portanto, uma posição de destaque no campo
jornalístico, talvez mais do que em relação ao blico e é isto que torna os estudos
sobre a imprensa tão relevantes quanto as alises sobre outros meios de
comunicação mais populares.
Todos esses aspectos de um aparentemente banal texto de jornal são
importantes para compreender de que modo, nos veículos impressos, a associação
de causalidade que simplifica e reduz a complexidade das relações sociais, entre
elas o próprio processo de produção da notícia.
123
O jornal, no mundo mediado constantemente por imagens, apresenta o
desafio de privilegiar a palavra. A linguagem audiovisual do jornal e da revista imita a
televisão, mas a imagem é mediada pelo texto impresso, se o pela notícia
propriamente dita, por legenda, título, chapéu, linha fina. Se na TV quem diz o texto
é a imagem (do fato, do apresentador, do rerter), no impresso quem dá o contexto
da imagem é o texto. Na TV, testemunhamos imagens. No jornal, "lemos" imagens.
Na TV, vemos o outro, é reservado a ele um espaço, no jornal, falamos sobre o outro
e a sua imagem é agregada ao texto. Em ambos os casos, as imagens marcam a
presença do outro, mas raramente se dá voz a ele.
A construção do outro no jornal exige, assim, uma passagem pela palavra e
por uma série de mecanismos e estratégias de operação da ideologia que
acontecem na produção e se reproduzem na leitura. É preciso ler e acreditar no que
se lê e a imagem no jornal trará elementos para reforçar esta crença.
O momento da leitura é um momento crítico, a qualquer momento a
imaginação e a reflexão podem interferir na mensagem. Se na TV a mensagem é
imediata e a interferência, o questionamento, só podem se dar depois de ver a
imagem, no texto o que ocorre é o contrário: a interferência é imediata, a eficácia da
mensagem, posterior. É por isso que, no texto, os elementos do discurso repetem e
reforçam as mesmas associações, a mesma representação do outro, como
evidenciaram as análises dos jornais Folha de S. Paulo e O Globo.
O mal-estar irá se evidenciar, assim, tanto como elemento que resulta desse
processo, como mostrou Stiegler (2004), por exemplo, como na escolha das
palavras, na formulação das frases, figuras de linguagem, estratégias de
organização do texto que compõem o discurso.
124
3.3 Interpretão Notas Metodológicas
Existem vários modelos tricos com metodologias específicas associadas
para estudos dos meios de comunicação. Todos eles, em geral, utilizam-se de
referenciais teóricos de várias disciplinas, como filosofia, ciência política, ciências
cognitivas, lingüística, antropologia, sociologia, história e psicologia
48
. Em linhas
gerais, o que diferencia cada modelo é a definição de comunicação ou o aspecto do
processo comunicativo privilegiado – emissão, recepção, linguagem, produção,
significado... Mas todos os modelos têm uma característica em comum: estão
relacionados a alguma teoria de interpretação do mundo social.
Antes de ser comunicação de massa, a comunicação é social e, na sociedade
moderna – especialmente no contexto atual, que muitas vezes é descrito como a
"sociedade da informação" os estudos sobre a mídia não podem ser separados de
uma compreensão mais ampla da sociedade.
A multiplicidade de modelos ime um desafio complexo ao pesquisador que
utiliza mensagens midiáticas como objeto de alise ou como fonte documental: a
partir de que aspecto ou aspectos a comunicação será analisada?
Partindo da teoria sobre o mal-estar, que o coloca profundamente ligado à
convivência e relação com o outro, a proposta de analisar o mal-estar nos textos
jornalísticos passava necessariamente pela escolha de um modelo que permitisse a
compreensão de como essa relação é representada. A comunicação é entendida
aqui, portanto, como representação de práticas e valores culturais, como construção
de significados compartilhados, em diálogo direto com a teoria e a metodologia dos
chamados estudos culturais, amplamente influenciados pela teoria social crítica da
Escola de Frankfurt e pelo estruturalismo. No fim dos anos 80 e início dos 90, o
48
Para os vários modelos teóricos na área de comunicação, ver DeFleur e Ball-Rokeach (1993).
125
sociólogo inglês John B. Thompson revisitou todo estes arcabouços teóricos. Na
continuidade das reflexões de Raymond Williams, que enfatizam como o significado
é construído socialmente e, ao mesmo tempo, criticam alguns pressupostos da
análise frankfurtiana, em especial a do determinismo técnico ou tecnológico,
Thompson reelaborou conceitos e construiu uma teoria social da mídia que lança
mão da metodologia da hermenêutica em profundidade aplicada especificamente ao
discurso midiático. É este o referencial trico e metodológico que melhor se aplica a
esta pesquisa.
Em termos teóricos, três são os conceitos-chave em torno dos quais se
concentra o debate: cultura, ideologia e dominação. Em termos metodológicos, três
processos podem ser destacados: a análise estrutural do discurso, a alise sócio-
crítica e a hermenêutica.
3.3.1 Ideologia e mídia: abordagem hermenêutica
O que mais fortalece a utilização do referencial teórico de John B. Thompson
é sua disposição de desenvolver as bases de uma teoria social que não seja
especializada no campo dos estudos da comunicação, mas que confiram à mídia um
papel de destaque na compreensão da sociedade moderna. Não se trata apenas de
estudar os meios de comunicação, mas de compreendê-los como aspectos
fundamentais da configuração da sociedade moderna. Quando Thompson constrói
sua teoria social da mídia, pretende inserir sua proposta no campo das ciências
sociais, o que retira do isolamento os estudos sobre comunicação e permite o
diálogo com pensadores que não estão exclusivamente dedicados a essa área.
Thompson (1995) destaca a dimensão simbólica dos meios de comunicação.
A mídia promove uma organização das formas pelas quais conteúdos simlicos são
126
trocados no interior da sociedade e, portanto, das relações sociais estruturadas.
Mas, para ele, as formas simbólicas imagens, textos, falas e mensagens com
significados são empregadas e articuladas no contexto social de modo ideológico.
Após realizar uma alise dos principais conceitos de ideologia que foram
utilizados ao longo da história, desde Destutt de Tracy, e tamm da ambigüidade de
sentido da palavra na atualidade, Thompson propõe uma nova formulação da
ideologia como atrelada às relações de poder, que vão além das relações de classe.
[...] o conceito de ideologia pode ser usado para se referir às maneiras como
o sentido (significado) serve, em circunstâncias particulares, para
estabelecer e sustentar relações de poder que são sistematicamente
assimétricas que eu chamarei de "relações de dominação". Ideologia,
falando de uma maneira mais ampla, é sentido a serviço do poder.
(THOMPSON, 1995, p. 16)
A proposta de Thompson é analisar as formas simlicas e mostrar como se
dá a construção do sentido e como este é mobilizado para produzir e reproduzir
relações de dominação, que o autor entende não apenas como as relações de
classe, mas todas as relações sociais em que existe desigualdade em determinado
contexto histórico e social por exemplo, relações de gênero, étnicas, entre o
indivíduo e o Estado e até entre Estados. Este conceito implica em compreender a
dominação como um elemento não dado, mas que se reconstrói constantemente.
Kellner (2001), na mesma linha de trabalho de Thompson, enfatiza que os
veículos de comunicação são os meios, por excelência, da transmissão e
compartilhamento de significados na cultura moderna. A mídia determina a
mobilização de sentido, e é por isso que ele fala de uma "cultura da mídia". Esta
onipresença e forte inflncia, entretanto, não significam que existe um receptor
passivo do outro lado da página do jornal ou do aparelho de TV. O contato com as
formas simbólicas exige uma participação ativa do leitor, do espectador, um esforço
127
para compreender e dar sentido ao significado transmitido. Esforço este que nem
sempre é realizado, que não chega a ser estimulado e que pode variar de indivíduo
para indivíduo, de grupo para grupo, mas que não pode simplesmente ser ignorado.
Kellner destaca ainda um aspecto importante da ideologia midiática e que
estabelece uma relação imediata com a compreensão do mal-estar como elemento
constitutivo das relações sociais:
A ideologia pressue que "eu" sou a norma, que todos são como eu, que
qualquer coisa diferente ou outra não é normal. Para a ideologia, porém, o
"eu", a posição da qual a ideologia fala, é (geralmente) a do branco
masculino, ocidental, de classe média ou superior; são posições que vêem
as raças, classes, grupos e sexos diferentes como secundários, derivativos,
inferiores e subservientes. A ideologia, portanto, diferencia e separa grupos
em dominantes/dominados e superiores/inferiores, produzindo hierarquias e
classificações que servem aos interesses das forças e das elites do poder
(KELLNER, 2001, p. 83)
Nessa diferenciação, a ideologia reproduz, também, o mal-estar psíquico que
se alimenta justamente das diferenças sobretudo e mais avidamente, das
pequenas diferenças. Se o mal-estar se refere a uma intolerância em relação ao
diferente, este se exacerba ainda mais quando a diferença é mínima e isso acontece
porque a menor diferença é aquela que coloca em perigo justamente as certezas
mais vitais, aquilo que o indivíduo reconhece como sua identidade.
A ideologia contribui para que se reforcem assim as fronteiras imaginárias
que permitem a manifestação do mal-estar em formas como a indiferença, a
violência, o racismo, a exploração do corpo, da vida, da imagem do outro.
Thompson e Kellner propõem metodologias semelhantes de análise de formas
simbólicas. Thompson é quem, entretanto, sistematiza mais eficientemente esta
metodologia, a hermeutica em profundidade, que para ele prevê três fases: a
análise sócio-histórica, a análise formal ou discursiva e a interpretação. A análise
sócio-histórica tem como objetivo desvendar alguns aspectos das condições de
128
produção, circulação e recepção das formas simlicas. A análise discursiva, que
será o ponto mais importante para esta dissertação, enfoca o significado do que é
dito. A interpretação é uma "explicitação criativa do que é dito ou representado"
sempre com o objetivo de "realçar as maneiras como o sentido serve para
estabelecer e sustentar as relações de dominação" (THOMPSON, 1995, p. 35).
A interpretação não oferece uma explicação causal ou linear de um problema,
mas recolhe elementos, informações sobre um determinado problema. A
interpretação busca sobretudo trazer à tona o o-dito e a principal certeza é de que
esse material também se constitui como um discurso e é, portanto, também passível
de interpretação.
Uma das grandes qualidades da proposta de Thompson é conseguir revisitar
diversos autores e elaborar alguns elementos de grande valor metodológico. Ele
destaca cinco modos principais de operação da ideologia por meio do discurso
(THOMPSON,1995, pp.81-89):
Legitimação: as relações de poder são justificadas por meio de argumentos
racionais, pela universalização, por narrativas que demonstram uma continuidade
entre o passado e o presente, dando a idéia de ordem natural das coisas e tradição.
Dissimulação: por meio de artifícios linísticos e de técnicas de discurso,
como o deslocamento de termos, o uso de eufemismos (por exemplo, descrever
uma prisão como um centro de reabilitação, quando não se trata do caso), as
atenções do leitor ou espectador são desviadas das relações de dominação.
Unificação: cria-se um discurso unificador, que abafa as diferenças, com a
padronização da linguagem e o uso de símbolos de unidade, por exemplo.
Fragmentação: um recurso que, ao contrário do anterior, permite fragmentar
grupos que representam ameaça ao grupo dominante, tendendo a enfatizar as
129
distinções entre pessoas e grupos e reforçar as diferenças, sempre em defesa de
uma manutenção ou recuperação da ordem social estruturada. Este será um modo
de operação da ideologia bastante explorado neste trabalho.
Reificação: retratar uma situação transitória como permanente tende a
caracterizar os processos sociais como naturais, repetitivos, deixando de lado o
contexto histórico e social. É muito freqüente nos discursos de violência que repetem
idéias como a de que a pobreza gera violência e esta aumenta a cada dia, como se
nada pudesse ser feito.
A sistematização desse conhecimento por Thompson é bastante útil para uma
pesquisa qualitativa que utiliza material produzido para a mídia. Pensadas
justamente para este tipo de fonte secundária, as diretrizes de alise que ele
proe realizam já uma seleção de ferramentas de um universo tão amplo, mas
muitas vezes excessivamente complicado para os não-especialistas, como a alise
do discurso e da linguagem. Este foi um dos motivos que determinou a opção por
sua metodologia.
Às categorias destacadas por Thompson, entretanto, é preciso agregar
algumas ressalvas. Uma delas é a percepção de que a linguagem jornalística,
apesar de predominantemente descritiva, é tamm argumentativa. O que não
chega a ser uma prerrogativa da mídia.
Como lembra Ducrot (1987), toda descrição é, também, argumentação, e não
é possível traçar a fronteira entre um e outro nível da linguagem. Isto possibilita que,
em alguns discursos, as descrições tenham um uso ideológico. No caso do texto
jornalístico, isto é importante porque, mesmo nos momentos mais descritivos do
discurso pode-se perceber a operação da ideologia o que, em certa medida, leva a
questionar a intenção de objetividade do texto.
130
Outro adendo importante às reflexões de Thompson é oferecido por Kellner
(2001), ao enfatizar que, diante dos mecanismos do indivíduo de resistência à
dominação e à ideologia, as análises devem evitar a armadilha comum das análises
sobre ideologia: cair num discurso igualmente ideológico que é caracterizado pela
argumentação de que toda forma simlica é ideológica.
Isto não é verdade, argumenta Kellner, é possível produzir um discurso não-
ideológico, especialmente fora do contexto da cultura da mídia. Por isso, é preciso
que o pesquisador tenha em mente que a sua análise deve ter como objetivo reunir
ferramentas que possam alimentar a resistência à dominação. Não se trata apenas
de criticar o discurso ideológico, como se a ele não coubesse uma alternativa, ou
como se ele precisasse ser, também, eliminado. Trata-se de promover uma crítica
que possa levar em conta as subjetividades.
A maioria das pesquisas que utilizam a teoria e a metodologia de Thompson e
Kellner como referência têm como objetivo principal revelar o caráter ideológico das
mensagens da mídia. Mas aqui, o objetivo é ir um pouco além: mostrar como tanto a
ideologia quanto o mal-estar são elementos constitutivos dos laços sociais; ambos
servem aos interesses de grupos sociais que detêm o acesso ao poder e às
instituições, mas ultrapassam esses interesses e integram a trama das relações
sociais.
A relação do sujeito com o outro e a diferença passa pela cultura, sob
constante influência do discurso da mídia. Assim, o objetivo principal da análise será
buscar elementos dos textos jornalísticos que sirvam para reforçar, justificar,
reproduzir, negar ou assimilar a diferença. Sempre, em paralelo à proposta de
Thompson, entendendo a diferença como elemento de conflito, como desigualdade.
131
C
APÍTULO
4
O
MAL
-
ESTAR EM PALAVRAS
A violência excessiva das chacinas, rebeliões, de confrontos armados e
ocupações policiais em favelas merece destaque quase diário na mídia. São
acontecimentos que mobilizam diversas certezas e incertezas sociais e que suscitam
os discursos da indiferença, da crítica à ausência de segurança e do apelo à ação
repressiva do Estado.
Em todos esses casos, e em outros apontados pela alise, percebe-se uma
relação direta com o mal-estar contemporâneo que se manifesta, como diz Bauman
(1998), na valorização da segurança que nos afasta do outro e na desvalorização
das vidas desperdiçadas cujas mortes são aceitas e até desejadas.
O excesso de violência é transforma o fato em extraordinário, elemento
fundamental da nocia, e fala diretamente às pulsões agressivas do sujeito que
tendem a responder com ataque à ameaça que vem do outro.
Por meio dos textos jornalísticos sobre violência, o leitor é convidado a
reafirmar suas posições em relação à sociedade e aos grupos em suas diversas
posições hierárquicas; encontra ainda expressão para suas próprias visões de
mundo relativas ao dilema fundamental que caracteriza a vida contemporânea, que
é a escolha entre mais liberdade ou mais segurança, e conhece quem é o outro:
aquele contra quem é legítimo usar ou desejar aplicar a força de maneira
desmedida.
Os relatos de episódios de violência ainda abrem uma janela para reforçar o
comportamento normalizador, numa escie de justificativa para as escolhas do
indivíduo de se submeter às regras sociais. Como explica Freud (1997b [1929]),
aceitar as regras sociais implica em pagar o indesejado e pesado preço da
132
insatisfação pulsional. Pelo discurso midiático, os dois lados que criam essa tensão
fundadora do mal-estar se reforçam: as normas repressivas das pulsões são
reafirmadas e, ao mesmo tempo, a pulsão de morte, que se volta contra o outro,
ecoada.
O discurso jornalístico ainda apresenta os conflitos sociais como se todos eles
fossem passíveis de solução, bastaria encontrar uma causa e um culpado e agir
contra ele; bastaria que os grupos que apresentam "desvios" de comportamento
fossem confinados, eliminados, retirados da ordem social (pelos mecanismos que
Foucault já revelava em Vigiar e Punir). Os textos dos jornais divulgam a iia de
que a intervenção repressiva é a condição para o restabelecimento da ordem e da
segurança em sociedade.
As relações assimétricas de poder encontram, por essas vias do discurso, um
caminho privilegiado para se reproduzirem e se justificarem. É isto que constitui o
discurso ideológico, de acordo com Thompson (1995 e 1998). A alise das nocias
de Folha de S. Paulo e O Globo relativas aos acontecimentos na Rocinha, na
Casa de Custódia Benfica e nos arredores da praça da Sé, em 2004 mostra como
esse caminho se constrói a partir dos modos gerais de operação da ideologia. A
ponte entre ideologia e mal-estar é estabelecida pelas estratégias de construção
simbólica de modo a se entrelaçar no texto jornalístico.
Um dos modos de operação da ideologia destacados por Thompson (1995,
pp. 82-89) é a legitimação. O discurso que legitima a ordem se aia em estratégias
como: oferecer uma explicação racional aos acontecimentos (racionalização); contar
os fatos como uma história que já tem tradição, que "é sempre a mesma"
(narrativização) ou ainda apresentar os interesses de uma das partes envolvidas nos
fatos como universais (universalização). Tudo isso confere ao discurso uma aura de
133
"verdade", de objetividade e coloca o outro em seu lugar de modo inquestionável,
justificando o mal-estar que deixa então de ser apenas um incômodo em relação ao
outro para se tornar um femeno com explicações racionais, tradicionais,
universais, diante das quais não pode existir vida.
Se essas são as estratégias de elaboração do discurso mais assertivas em
relação ao mal-estar, podem ser, tamm, aquelas que abrem maior espaço para
uma possível conscientização. Quando os jornais buscam ouvir o outro e suas
explicações, se estabelece o conflito entre as visões de mundo do qual pode emergir
um questionamento sobre as relações. Mas esta é apenas uma possibilidade que
encontra duas barreiras imediatamente identificáveis para se realizar.
A primeira, os jornais raramente dão voz ao outro de modo tão profundo.
Geralmente, quando apresenta suas versões dos fatos nos jornais (uma fala sempre
intermediada pela seleção de trechos de seu discurso) o outro acaba por reafirmar-
se na posição de diferente. Uma segunda barreira é que os modos de operação da
ideologia não aparecem isolados nos textos, mas se combinam, muitas vezes
reforçando a mensagem ou desconstruindo, com um conjunto de frases, um sentido
dado anteriormente.
Outro modus operandi da ideologia é a fragmentação. Por estratégias que
apresentam a sociedade como dividida entre grupos com diferenças irreconciliáveis
de comportamento e de constituição (diferenciação) ou pelo direto expurgo do outro,
a ideologia irá reforçar o mal-estar que necessita dessa separação do mundo em
amigos e inimigos para existir.
A ideologia pode ainda servir para sustentar o mal-estar, o necessariamente
reforçando-o mas dando a ele uma base de permancia na qual ele pode se
manter permanentemente apoiado sem alarde. Isso acontece por meio da reificação,
134
em que fatos transitórios, históricos, são apresentados como uma repetição de longa
duração. Esta estratégia implica na simplificação dos acontecimentos e no
estabelecimento de continuidades entre fatos que não estão no mesmo patamar,
ignorando a complexidade do contexto social e histórico.
Em geral, esse tipo de discurso se identifica pelas estratégias de
naturalização, eternização e passivização que podem ser identificadas em
mensagens que transmitem iias como "essas pessoas são assim e sempre
serão", "o Brasil será eternamente...", "nada pode ser feito quanto à impunidade" etc.
Esse tipo de discurso banaliza os acontecimentos e, se não traz o mal-estar
aflorado, contribui para mantê-lo ali, onde sempre esteve, sustentando-o.
Negar o mal-estar pelo discurso jornalístico também é possível. Em geral isso
pode se dar pela ideologia por unificação. Uma estratégia como a simbolização da
unidade cria a imagem da sociedade como coesa, harmônica, sem conflitos. "Somos
todos brasileiros", "somos todos iguais" são iias que podem resumir essa coesão,
que em geral vem associada também a essa primeira pessoa no plural. Tal
estratégia nega as diferenças e aparentemente representaria o reconhecimento do
outro como um de "nós". O mal-estar que se alimenta das diferenças o se
apresenta no discurso, mas permanece ali de modo latente, encoberto. Este "s"
unificado é muito frágil.
Um modo de operação da ideologia bastante semelhante a este é a
dissimulação que, ao deslocar de uma figura para outra as típicas projeções de
culpa e responsabilidade pelos acontecimentos, tamm promove um deslocamento
temporário do mal-estar, encobrindo a tensão que existe nas relações sociais. Um
exemplo típico: quando se projeta no Estado (o Grande Outro) a responsabilidade
pelos fatos. Todas essas estratégias de elaboração das formas simbólicas se
135
sobrepõem, complementam-se e permeiam simultaneamente os textos de modo a
construir os "quebra-cabeças" da ideologia e do mal-estar.
Fatores que ajudam a definir como essa relação dimica entre as formas
simbólicas se apresentará no texto são a linha editorial adotada pelos jornais e seu
posicionamento em relação aos conflitos sociais. Em seu estudo sobre os quatro
principais jornais brasileiros entre eles Folha de S. Paulo e O Globo Fonseca
(2005) mostra que cada veículo adota definidas estratégias a fim de expressar o
só suas posições, de seus leitores, acionistas e anunciantes mas tamm de marcar
suas posições em relação ao poder do Estado.
Em seu estudo, Fonseca mostra como os jornais marcam essa posição em
determinadas questões, como política ecomica, aspectos políticos e questões
como justiça social, relação capital/trabalho, direitos sociais e a concepção de
modernidade. Folha de S. Paulo e O Globo têm em comum uma posição menos
doutrinária em relação aos leitores e mais pragmática, no sentido de defender
abertamente seus interesses.
O Globo que como lembra o autor é o principal jornal da mais poderosa
empresa de comunicação do País e, portanto, reflete interesses bastante específicos
de uma organização, não apenas uma publicação – adota uma postura mais
governista, defendendo uma moderada intervenção estatal na economia, sem a
manutenção de grande coerência com os preceitos liberais. O jornal tende a
deslegitimar os movimentos sociais e trabalhistas, enxergados como "desestímulo
ao capital e aos investimentos" e "ameaçadores dos direitos universais" (FONSECA,
2005, p. 399).
Já a Folha de S. Paulo tem uma postura antigovernista, ainda de acordo com
Fonseca (2005) que analisou diretamente a opinião dos jornais por meio de seu
136
canal principal de expressão, os editoriais. Apesar de conservadora, a Folha evita a
radicalização do discurso e, segundo o autor, é o mais ambíguo dos jornais porque,
ao mesmo tempo, busca resguardar os princípios democráticos mais amplos
(determinação que consta de seu projeto editorial) e sair em defesa dos preceitos
neoliberais, assumindo as contradições dessa tarefa.
O levantamento dos editoriais mostra ainda que "o limite intransponível à
democracia para todos os jornais foi (e ainda é) o conflito de classe" (FONSECA,
2005, p. 444) e isso se reflete em apelos à coerção estatal (especialmente em
relação a movimentos sociais), apoio à minimização do Estado nas relações
econômicas e, ao mesmo tempo, à intervenção nos conflitos sociais e à aplicação de
regras autoritárias herdadas do regime militar como formas de restabelecer a ordem.
Muitas das características identificadas por Fonseca nos editoriais dos jornais
encontram sua contrapartida no tratamento dado aos grupos envolvidos nos casos
de violência analisados aqui.
O Globo, por exemplo, não abre espaço para que o conflito seja visto como
constitutivo das relações sociais e, portanto, passível de negociação. Em geral, o
jornal constrói uma imagem do conflito como catastrófico, absurdo, caótico,
representativo de uma desordem extrema. O Globo ainda radicaliza o discurso e
desqualifica o outro por meio da linguagem, marcando ainda mais as características
dissonantes do conflito de forma a intensificar a percepção de que a reconciliação e
a negociação são impossíveis.
A Folha retoma também no noticiário a ambigüidade que marca seus editoriais
e uma das suas principais manifestações pode ser observada no discurso
"politicamente correto" adotado nos textos. Aparentemente, este é um discurso de
conciliação, mas, muitas vezes, o uso de termos que visam afrouxar a oposição em
137
relação ao outro acabam apenas por encobrir o mal-estar e os conflitos, a ponto de
negar a necessidade do reconhecimento mútuo entre os lados em oposição.
Dizer que os jornais adotam estratégias ideológicas de construção simlica e
defendem determinadas posições em relação, principalmente, ao poder do Estado e
aos conflitos sociais, o significa dizer que os jornais erram, mentem, inventam
nocias.
Para a análise da ideologia, os aspectos de verdade e falsidade das formas
simbólicas são secundários, segundo Thompson (1995). O que interessa,
primordialmente, é a organização do discurso, o modo como palavras, argumentos,
informações e dados são apresentados, entremeados e relacionados, mais do que o
conteúdo e a veracidade dos fatos relatados.
No caso da mídia, particularmente, supor que o caráter ideológico do texto é
resultado de uma falha é simplificar o processo de produção do discurso. Isso
porque o preceito de "veracidade" é fundamental para a imprensa e é este princípio
que a justifica, a fortalece e constitui sua credibilidade. Se a mídia simplesmente
mentisse, seu discurso não se sustentaria.
O que interessa, portanto, é perceber como, a partir da aura de verdade
conferida aos fatos e buscada na produção dos textos, se constrói um discurso que
se pretende neutro, mas não é. A ideologia o pretende forjar relações de
dominação inexistentes, mas sim justificar aquelas que já estão estabelecidas, o que
em última instância torna os conceitos de verdade e falsidade irrelevantes para a
análise.
Não é necessário que as formas simbólicas sejam errôneas ou ilusórias
para que elas sejam ideológicas. Elas
podem
ser errôneas e ilusórias. De
fato, em alguns casos, a ideologia
pode
operar através do ocultamento e do
mascaramento das relações sociais, através do obscurecimento ou da falsa
interpretação das situações; mas essas são possibilidades contingentes, e
não necessárias da ideologia enquanto tal. (THOMPSON, 1995, p. 76)
138
É possível dizer que não é necessário ao jornal criticar o Estado quando este
teve uma atuação irrepreensível ou inventar crimes, atos violentos e abusos de
poder quando esses não existem para transformar sua mensagem em ideológica. O
que é preciso é saber operar as técnicas do discurso para que ele seja construído
com um determinado viés em detrimento de outro, não excluindo nem mesmo a
possibilidade de que diferentes abordagens convivam num mesmo tempo, porque o
aspecto dominante sempre irá prevalecer, como revelam as notícias.
4.1 Do "lado de lá", a Rocinha
Em fevereiro de 2007, o tradicional jornal norte-americano Christian Science
Monitor (CSM) publicou uma reportagem sobre os estrangeiros que procuram as
favelas do Rio de Janeiro para viver e trabalhar
49
. Cidadãos europeus e norte-
americanos afirmam que escolheram morar em favelas porque são espaços com um
apelo "romântico", "exótico" e de rica "diversidade cultural". Esses personagens
deixaram suas carreiras e famílias, se mudaram para favelas cariocas, onde
trabalham em ateliês, pousadas ou ancias de viagem cuja especialidade é receber
turistas estrangeiros interessados em visitar uma favela brasileira.
A reportagem se detém na diferença de percepção dos brasileiros e dos
estrangeiros sobre as favelas. Lugares "sujos, violentos e aterrorizantes", dominados
pela violência do tráfico de drogas, e que por isso despertam "medo, rejeição e até
nojo". Assim são as favelas para os brasileiros das camadas média e alta. Já para
os estrangeiros, as marcas principais dessas localidades são a "vibração" da vida
49
Publicado por uma denominação religiosa, o jornal é um veículo internacional sem cunho religioso.
As opiniões religiosas são restritas a um artigo diário que traz a interpretação e o ponto de vista da
The First Church of Christ, Scientist. O mesmo jornal publicou na mesma semana uma reportagem
sobre a atuação das milícias nas favelas.
139
em comunidade, as relações de proximidade e solidariedade, a variedade de sons e
etnias, embora também mencionem o tráfico e as armas.
A reportagem é uma ilustração da construção social da favela como território
de terror e guerra a partir de parâmetros que não são baseados necessariamente na
experiência, mas nas distinções de classe no interior da sociedade brasileira, na
ordem ecomica e na trajetória histórica das relações de desigualdade nas grandes
cidades do País.
A interpretação de que o narcotráfico domina as favelas não é inverossímil, é
apenas uma – a predominante no contexto nacional das possíveis representações
da vida cotidiana nessas comunidades. As armas imem o modo de viver da
comunidade, mas a vida ali não se resume ao medo e ao terror. Suficientemente
distantes desse universo, os estrangeiros conseguem captar outros aspectos das
relações locais como predominantes: o romantismo, a diversidade, a solidariedade.
O mecanismo que opera aqui é o oposto daquele identificado por Freud no
narcisismo das pequenas diferenças. As grandes diferenças se tornam mais
atraentes para os estrangeiros, e eles mesmos se inserem no contexto da favela de
modo a representar o lado fascinante, interessante daquele que vem de fora.
Para os brasileiros a favela ocupa um espaço importante na representação
social como local da segregação do outro, que tem seus equivalentes tamm em
outros países. A principal marca do outro no ocidente moderno é a pobreza
(BAUMAN, 1998).
Cada contexto social reserva um espaço que é considerado o território por
excelência da pobreza e, por extensão, numa associação perversa e nem sempre
verdadeira, da precariedade material e cultural, da inconseência moral e da
violência. Esses lugares são os banlieues, na França, os barrios, nos Estados
140
Unidos, as shanty towns inglesas, os Vorstädte, na Alemanha, as villas miseria em
vários países latino-americanos, as periferias ou favelas, no Brasil.
A transformação de localidades periféricas e pobres em territórios
emblemáticos do perigo e da "incivilidade" de que o outro é portador se processa
histórica e socialmente.
No caso brasileiro, o crescimento das desigualdades de classe e a inserção
do país no neoliberalismo estão na base dessa transformação. Um fato que ilustra
esse processo é a mudança do significado da palavra favela, que no início do século
XX designava um morro específico do Rio de Janeiro
50
. O termo se generaliza para
designar as áreas residenciais das populações mais pobres, primeiro do Rio, depois
do País. Já na década de 1930 falava-se nos "chefes" das favelas, então não ligados
a atividades ilegais, mas que exerciam o comando da comunidade com a imposição
de autoridade. A partir de meados do século passado o termo passa por uma
transformação:
Gradativamente, o substantivo favela vai ganhando múltiplas conotações
negativas, que funcionam como antônimos de cidade e de tudo que a ela
majoritariamente se atribui: urbanidade, higiene, ética do trabalho,
progresso e civilidade. Ato contínuo, tamm se incorpora ao vocabulário
corrente o verbo "favelizar", e com isso o substantivo favela se vai
emancipando de sua conotação original, presa à descrição do espaço,
assumindo um significado transcendente, que remete à dimensão cultural e
psicológica, a um tipo de subjetividade particular, a do "favelado", homem
construído pela socialização em um espaço marcado pela ausência dos
referenciais da cidade (BURGOS, 2005, p. 190).
Favela e cidade constituem-se, assim, como espaços desconectados, em
certa medida antanicos, na sociedade brasileira. Um estrangeiro, que fora de seu
país é um outro em qualquer território, percebe a complexidade da favela. O
50
A "primeira" favela foi o Morro da Providência, no Rio, chamado no início do século XX de Morro da
Favela, espaço onde as condições de vida eram precárias para os padrões de então. O termo só
chega à linguagem comum como sinônimo de bairros pobres por volta da década de 1930, inclusive
por meio da imprensa. Esse processo é descrito por Valladares (2000).
141
brasileiro só consegue defini-la a partir do lugar que ele mesmo ocupa na estrutura
social. Se este lugar não é a favela, ele a enxerga como uma cisão da ordem.
Em abril de 2004, essa representação da "cidade partida" em dois espaços
que não se comunicam, como se estivessem separados por muros, ocupou as
páginas dos jornais por mais de dois meses, durante a disputa entre dois
personagens marcantes da Rocinha – Dudu e Lulu – pelo controle do comércio local
de drogas. Um dos pontos de destaque dos primeiros dias de cobertura foi uma
morte que aconteceu "do lado de cá" dessa delimitação imagiria do espaço
urbano, o lado da cidade.
4.1.1 Reféns na cidade, reféns na favela
Na cobertura da disputa de poder entre os grupos de Dudu e Lulu, Folha de S.
Paulo (FSP) e O Globo (OG) reproduziram essa lógica da fragmentação territorial a
partir da imagem de uma sociedade refém do tráfico de drogas, de modo a reforçar
as diferenças e a separação entre a cidade e a favela. A ação violenta do tráfico
aparece como a intervenção ilegal na vida cotidiana dos moradores da cidade do Rio
de Janeiro, mas algo diferencia os lados dessa linha invisível que separa os dois
territórios.
Os jornais revelaram que o conflito na favela eclodiu efetivamente quando o
grupo de Dudu ocupou e bloqueou uma das avenidas mais movimentadas do Rio e
depois iniciou a troca de tiros com o grupo de Lulu. Mas, segundo os jornais, os
moradores da Rocinha já sabiam que haveria uma disputa e "esperavam" pelo
confronto armado entre os dois grupos. Só o sabiam quando a briga começaria.
O conflito anunciado na Rocinha era totalmente desconhecido da cidade (com
exceção da polícia, que já sabia da movimentação relativa à invasão). Na cidade
142
desinformada, os motoristas que passavam pela avenida no momento do bloqueio
foram surpreendidos pelos aliados de Dudu, todos fortemente armados e vestindo
coletes da Polícia Civil. A ação "surpresa", quase passível de ser confundida com
uma operação policial, encontrou a cidade toda despreparada, desavisada e sem
saber como reagir. Um dos motoristas, sem saber das possíveis conseqüências do
ato, tentou passar pelo bloqueio.
Furou o bloqueio e morreu
O Citrn em que estava Telma Pinto Veloso, 38, dirigido por Renato
Gonzaga, seu marido, não obedeceu ao mando de parada dos traficantes.
Ela foi morta com um tiro na cabeça. Gonzaga e o sobrinho Bernardo Alves
foram feridos pelos estilhaços. O sobrinho Artur Pinto, 16, foi baleado e está
internado no Hospital Espanhol (centro). O casal, que vivia em Belo
Horizonte (MG), morava no Rio havia três meses. ("Guerra do tráfico na
Rocinha faz 5 vítimas",
FSP
, 10/04/2004, p. C1)
Mulher tenta furar o bloqueio e é morta
Ao se deparar com a cena de guerra, a mineira Telma Veloso Pinto
51
, de 38
anos, tentou furar o bloqueio com seu Citroën. Bandidos fizeram vários
disparos contra o carro e um deles atingiu Telma na cabeça, matando-a na
hora. Outro tiro feriu seu sobrinho Artur Veloso Pinto Zarbo Silva, de 16, na
perna esquerda. Seu marido, o engenheiro Renato Gonzaga, e dois
sobrinhos Bernardo e Vinicius Veloso – foram atingidos por estilhaços. O
veículo, desgovernado, bateu na mureta ("Confronto na Rocinha fecha o
acesso à Barra e deixa 5 mortos e 7 feridos",
OG
, 10/04/2004, p. 11)
O Globo
é mais contundente e transforma a notícia em narrativa, utilizando
termos como "ao deparar-se com a cena de guerra", "bandidos fizeram vários
disparos", "o veículo, desgovernado, bateu". É a própria imagem da cidade
surpreendida pela ação do tráfico, ela própria "desgovernada", transformada em
refém da violência de um grupo perigoso: os "traficantes".
51
O nome da vítima aparece de modo diferente nos dois jornais: Telma Pinto Veloso para a
FSP
;
Telma Veloso Pinto para
OG
. Este não é o único caso de divergência em relação a nomes das
pessoas envolvidas, com exceção dos nomes de autoridades. Ao longo de toda a cobertura
desde pequenas alterações (como ordem trocada de nomes) a grandes divergências (sobrenomes
completamente diferentes). O mesmo problema se verifica em relação a números. As diverncias
impedem de afirmar qual dos dois jornais estaria correto em cada caso. Esses erros podem ser
explicados por fontes diferentes da informação, erros de reportagem ou de edição, mas certamente
indicam um certo descaso em relação à apuração dos nomes de "pessoas comuns". No caso das
autoridades, o fato de já serem conhecidas e de contarem com assessores que produzem e
distribuem material de apoio aos jornalistas facilita a padronização da informação e minimiza os
erros.
143
Nos dois jornais, entretanto, bastou apenas um parágrafo para caracterizar a
vítima – nome e sobrenome de seus parentes, origem da família, profissão de uma
das pessoas que estava no carro. A menção em ambos os jornais da marca do carro
não é apenas uma informação.
O tipo de carro é uma marca de distinção na sociedade; informar esse dado é
um modo de esclarecer aos leitores de que camada social era a vítima. O fato de o
marido ser engenheiro e de a família estar no carro reforça a distinção. Não se trata,
portanto, apenas de mostrar que a cidade é refém do crime, mas de identificar
exatamente quem são as potenciais vítimas da violência nesse território
surpreendido pela desordem.
Outras pessoas morreram naquele mesmo dia, um homem e uma mulher.
Suas histórias quase não receberam destaque nos textos. Eles foram baleados
quando o grupo de Dudu tentava tomar o poder na Rocinha.
Um tiro atingiu o peito de Fabiana Oliveira, 24, que estava em uma moto
com o marido, Edson de Moura. Ela morreu na hora. Moura foi baleado no
cotovelo esquerdo. Outro inocente, Wellington da Silva, foi alvejado e
morreu. ("Guerra do tráfico na Rocinha faz 5 vítimas",
FSP
, 10/04/2004, p.
C1)
Na curva do S, na Estrada da Gávea, a quadrilha fez duas vítimas: a ba
Fabiana dos Santos Oliveira, de 24 anos, foi morta e seu marido, Edson
Souza Bezerra, de 29, foi ferido. (...) Eles fizeram disparos e mataram o
skatista Wellington da Silva, de 27 anos. ("Confronto na Rocinha fecha o
acesso à Barra e deixa 5 mortos e 7 feridos",
OG
, 10/04/2004, p. 11)
Fabiana e Wellington eram moradores da Rocinha e sobre eles pouco se
sabe. Nem
Folha
nem
O Globo
informaram, por exemplo, a marca da moto em que
estavam. Pela lógica da cidade partida, as mortes que acontecem "do lado de lá", o
lado da favela, não são novidade. São apenas números. Quem está na Rocinha
também é refém do tráfico, mas não tem alternativa e, sobretudo, está acostumado à
sua ação, é a regra local. Quem está na cidade, não: ser surpreendido por um tiro
144
representa uma inexplicável e caótica mistura dos dois espaços, uma desordem.
Telma foi uma vítima "extraordiria" da ação do grupo de Dudu; Wellington, só mais
um dos muitos homens jovens que morrem nos episódios de violência das grandes
cidades
52
. Fabiana, apenas mais uma fatalidade, como disse sua sogra à FSP:
"Fabiana foi apenas mais uma vítima, mas nada vai mudar. Nesta semana,
a polícia vai ficar por lá. Quando uma nova matança ocorrer em outra favela,
eles vão deixar o lugar. Todos vão se comover com as outras mortes, e a
Rocinha voltará a ser confusa. Com certeza, a Fabiana não será a última a
morrer lá", disse [Dalmira de] Moura, à tarde, na portaria do Hospital Miguel
Couto (Leblon, zona sul do Rio). ("Parente de morta não crê em solução",
FSP
, 10/04/2004, p. C1)
A FSP entrevistou a sogra de Fabiana para revelar como as mortes na favela
são "corriqueiras". Fabiana foi a quarta pessoa da família que morreu em tiroteios na
favela, revela o jornal, que dedicou cerca de 25 linhas ao depoimento em que a
afirmação principal e recorrente é a de que nada vai mudar. A fala da entrevistada
tem o poder de reforçar essa mensagem e, principalmente, a diferença entre cidade
e favela. A percepção de um território dividido em dois já integra o imagirio social,
mas a mensagem reforça, sedimenta essa visão, tornando-se atrativa justamente
porque corrobora crenças e padrões de relações sociais.
Se a cidade e a favela representam duas diferentes categorias de reféns do
narcotráfico, um dos elementos que marca essa diferença é a maneira como os dois
territórios têm sua rotina afetada durante os conflitos. Na favela, os confrontos,
embora criem confusão, já são previstos, esperados e até mesmo o fato de que
"nada vai acontecer" é aceito com passividade porque aquele é o espaço da
desordem.
52
Analisando a violência nas grandes cidades, em especial os homicídios, Adorno (2002) lembra:
"Em todo o país, o alvo preferencial dessas mortes compreende adolescentes e jovens adultos
masculinos, em especial procedentes das chamadas classes populares urbanas, tendência que vem
sendo observada em inúmeros estudos sobre mortalidade por causas violentas" (ADORNO, 2002, p.
92).
145
Ao usar declarações de moradores da favela – como a da sogra de uma das
vítimas ou dos representantes das associações locais os jornais conseguem
reforçar seu próprio discurso como universal, quase como integrador entre os dois
territórios. Mas os depoimentos todos passam por um processo de seleção e
embora possam trazer visões de outros grupos, são trabalhados e inseridos no texto
como elementos para a construção da mensagem que o jornal representa e quer
transmitir. A fala do outro é incorporada, assim, ao discurso dominante a fim de
reafirmá-lo.
Ao mesmo tempo em que mostram que na favela os confrontos relacionados
ao comércio de drogas e suas conseências são banais, tanto Folha como O Globo
destacam a quebra da rotina da cidade. Dias depois da disputa envolvendo os
grupos de Dudu e Lulu, o tráfego na avenida que foi bloqueada diminuiu, o
movimento no comércio e as aulas nas escolas dos bairros próximos à Rocinha –
Gávea, Leblon e São Conrado – foram afetados.
A guerra do tráfico na Rocinha alterou a rotina dos bairros vizinhos. Em São
Conrado, o shopping Fashion Mall, um dos mais sofisticados da cidade,
ficou vazio, moradores da região não saíram dos condomínios e os
hóspedes do Hotel Intercontinental assistiram dos quartos ao fogo cruzado
dos traficantes. ("Conflito afeta rotina dos vizinhos",
FSP
, 14/04/2004 – p.
C2)
O conflito na Rocinha não só afastou alunos das salas de aula como
provocou queda no faturamento do comércio. Durante o feriado da Semana
Santa, o movimento no Shopping Fashion Mall, por exemplo, teve uma
redução de 20% em relação ao mesmo período do ano passado. ("Violência
urbana altera rotina de escolas no Rio de Janeiro",
OG
, 13/04/2004, p. 13)
Fechada desde o dia 12 passado, por causa da violência na favela da
Rocinha, que teve início na madrugada do dia 8, a Escola Americana, na
Estrada da Gávea, começou a funcionar ontem normalmente. Vários pais
reforçaram a segurança de seus filhos. Alguns deles, com até três
seguranças particulares, tinham nas mãos um rádio Nextel e todos
entravam rapidamente pelo portão principal. No colégio estudam cerca de
mil alunos da classe alta. Duas patrulhas da Polícia Militar foram vistas
subindo e descendo a favela. ("Escola Americana retoma as aulas",
OG
,
27/04/2004, p. 14)
146
O título escolhido pela FSP é revelador: "Conflito afeta a rotina dos vizinhos".
Aparentemente, não afeta o cotidiano da favela. Além disso, os textos jornalísticos
mostram que mesmo quando a escola volta a funcionar "normalmente", a rotina está
afetada porque a segurança é reforçada, os turistas não saem às ruas e assistem ao
espetáculo do Rio pela janela dos quartos.
A cidade está, assim, sob constante ameaça da violência, e é essa ameaça
que altera a rotina, mais do que algum fato que provoque uma efetiva "desordem" no
cotidiano. As escolas, o shopping, as vias de tráfego funcionam, mas o medo faz
com que o cotidiano seja alterado, com a presença de seguranças e, sobretudo, da
Polícia Militar, nos arredores. A vida não volta ao normal porque existe um risco,
ainda que apenas imaginado, e é necessário conviver com a polícia e a segurança
para que as atividades diárias possam ser realizadas.
A alteração da vida cotidiana na favela tamm aparece nos jornais, mas o
enfoque é sutilmente diferente: os confrontos implicam em prejuízos financeiros e
ampliam as condições de vida já diceis na favela, o transporte fica mais dicil, o
comércio básico fica fechado.
"Eles [grupos em conflito] destruíram o carro que minha vizinha, coitada,
está pagando com sacrifício e arrebentaram a lojinha da frente que o dono
reformou". ("Rotina do Rio",
OG
, 17/04/2004, p. 32 – coluna Panorama
Ecomico, de Miriam Leitão)
Os moradores da Rocinha tentam retornar à vida normal, embora ainda em
silêncio. Poucos são os que falam sobre a guerra de traficantes que matou
12 pessoas. Os 2.017 alunos do Ciep Ayrton Senna da Silva, fechado
uma semana, voltaram ontem às aulas. ("Rocinha tenta voltar ao normal,
com as lojas da favela e escolas abertas",
OG
, 20/04/2004, p. 15)
Embora 1.237 policiais estejam percorrendo diariamente a favela da
Rocinha desde a segunda-feira passada, o tráfico de drogas continua a agir,
embora de maneira mais discreta. O comandante da ação policial na favela,
tenente-coronel Jorge Braga, da Polícia Militar, enumerou ontem três
modalidades de tráfico que persistem: o realizado dentro dos imóveis na
Rocinha, o itinerante (o traficante circula pela favela com pequenas
quantidades de maconha e cocaína) e o "delivery" (os clientes recebem a
droga em casa) ("Apesar de ocupação, venda de drogas continua",
FSP
,
16/04/2004, p. C5)
147
Aos poucos, a favela da Rocinha (São Conrado, zona sul) retoma o
cotidiano de antes da tentativa de invasão promovida pelo traficante Eduíno
Eustáquio de Arjo Filho, o Dudu, no último dia 9. As creches, escolas e o
comércio funcionaram ontem normalmente. O último resquício de que ali
houve uma guerra é a presença ostensiva de 1.230 policiais militares,
segundo a Secretaria de Segurança Pública. ("Comércio reabre no 's-
guerra' da Rocinha",
FSP
, 20/04/2004, p. C11)
O retorno à normalidade, no caso da favela, o é apenas voltar a usar o
transporte coletivo e levar as crianças às escolas e creches, mas conviver com a
polícia (a ostensiva presença de mais de mil policiais é considerada um "resquício"
do conflito) e com a manutenção das operações do tráfico. É, sobretudo, manter-se
em silêncio. Em certa medida, diante das ações ilegais praticadas pela polícia e do
medo, é o mesmo que caracterizar como "normal" a violação de direitos de uma
camada da população. É tamm reafirmar a condição dessa população como
subalterna, seja em relação aos aparelhos estatais, seja em relação às assimetrias
nas relações sociais, seja em relação à ordem econômica.
A diferença nas imagens que constroem a "normalidade" da favela e da
cidade mostra claramente uma assimetria nas relações, como se existissem
claramente duas categorias de cidadãos, os da favela e os da cidade, aqueles
inferiores a estes, explicitamente reproduzindo a dominação. Na cidade, conviver
com o policiamento é anormal, simboliza ameaça; na favela, a presença policial é
parte da rotina, o representa alteração da vida cotidiana, quando muito é um
"resquício" do conflito. A presença policial é tão normal que até mesmo o tráfico se
mantém em operação.
Essa série de relatos que constrói a diferenciação das rotinas na favela e na
cidade é baseada em dois mecanismos de operação da ideologia que aparecem
combinados. O primeiro é a reificação, cujas principais formas são a naturalização, a
eternalização e a passivização. As duas primeiras formas aparecem combinadas no
148
discurso em frases como "nada vai mudar", "não será a última a morrer". Já a
passivização é mais sutil e implica a utilização das frases em forma passiva. É
curioso notar que Telma "furou o bloqueio e morreu", enquanto Fabiana "foi morta" e
Wellington "foi alvejado". Os três morreram, mas este articio de construção de frase
dará o tom dessa morte. "Morrer" e "ser morto" dá a medida entre o que é fora da
ordem e o que é rotineiro.
A passivização se dá quando verbos são colocados na voz passiva, como
quando dizemos "o suspeito está sendo investigado", ao invés de "os
policiais estão investigando o suspeito". A nominalização e a passivização
concentram a atenção do ouvinte ou leitor em certos temas com prejuízo de
outros. Elas apagam os atores e a ação e tendem a representar processos
como coisas ou acontecimentos que ocorreram na ausência de um sujeito
que produza essas coisas (THOMPSON, 1995, p. 88).
Enquanto na cidade a vítima é sujeito da ação, na favela, é apenas um
elemento passivo. A própria violência é, assim, de um lado, reforçada, evidenciada,
marcada enquanto do outro, o lado de lá, que não é a cidade, acaba encoberta,
como se o fosse ela a produtora das mortes na favela.
Além desses mecanismos de reificação, outra forma que aparece combinada
nesses discursos que acabam por construir uma visão da cidade cindida em dois
territórios um da ordem e outro da desordem é a dissimulação por
deslocamento:
[...] um termo costumeiramente utilizado para se referir a um determinado
objeto ou pessoa é usado para se referir a um outro, e com isso as
conotações positivas ou negativas do termo são transferidas para o outro
objeto ou pessoa (THOMPSON, 1995, p. 83).
O que aparece deslocado, nos discursos acima, é o próprio sentido dos
termos "normalidade" e "normal". O conceito de normalidade é aplicado claramente
a um contexto que não corresponde a uma situação normal e tranqüila: a ocupação.
A idéia que se transmite é de que se a favela estiver ocupada, mas sem tiroteios,
149
tudo segue o rumo normal. Basta saber que a presença da polícia nas comunidades
não é marcada apenas por tiroteios, mas por revistas indiscriminadas dos moradores
e mandados coletivos, para se perceber que não há normalidade. Mas os leitores
não sabem disso e nem ficam sabendo. Mais perigosa ainda é a idéia de que
enquanto o tráfico está operando, a vida na favela segue seu ritmo normal, porque
associa o cotidiano de toda uma comunidade ao tráfico de drogas, como se todos ali
estivessem de alguma forma ligados ao crime.
Ao reificar a diferença apresentando-a como dada, sustenta-se o mal-estar
como tamm "natural" e abre-se espaço para a indiferença no sentido de que as
condições são percebidas como inalteráveis, imutáveis, e o outro como eternamente
diferente, antagônico e com o qual uma reconciliação é impossível, principalmente
porque ele jamais poderá ocupar o espaço de semelhante. Sua diferença fica
marcada e mantida como palpável, real e indiscuvel. O deslocamento opera quase
da mesma forma, marcando a diferença, mas de um modo mais sutil que encobre o
mal-estar de modo a que este outro é quase um igual. Mas essa igualdade é
conseguida deslocando-se sua verdadeira condição, dando a ela um caráter mais
ameno, menos marcado. A linha que irá separar o outro é quase invisível, sutilmente
fora de registro, mas está lá. O outro e sua diferença aparecem, por meio dessas
estratégias, como praticamente despercebidos, mas continuam presentes
garantindo-se assim o espaço para a manifestação, por meio do discurso, do mal-
estar.
A imagem de que existem diferentes tipos de reféns do tráfico é fortemente
ideológica: reforça aquela interpretação dominante da violência urbana que a
associa apenas a comunidades pobres e torna indissociáveis as figuras do morador
da favela e dos agentes do narcotráfico, como se todos fossem as duas coisas e as
150
mesmas pessoas. Essa associação é falsa, como revelam os olhares estrangeiros
sobre a favela. Mas na forma de palavras bem escolhidas, essa idéia ganha força e
projeção para os brasileiros já acostumados a enxergar na favela o território do
perigo, da desordem, de uma normalidade que nunca corresponderá a um cotidiano
tranilo e pacífico.
Para reforçar ainda mais essa representação e marcar as diferenças, uma
outra linha de abordagem do tema se destaca nos relatos jornalísticos: a atribuição,
aos presos, de uma característica particular e fundamentalmente diferenciadora, a
brutalidade, a barbárie.
4.1.2 Guerra é guerra
A idéia de que pode existir normalidade em plena ocupação policial é
reforçada pela própria cobertura jornalística em que a favela é apresentada como um
território em guerra permanente.
Na guerra, a medida da normalidade é o conflito. Não apenas o conflito entre
os homens, mas sobretudo destes contra a civilização. Em sua correspondência com
Albert Einstein sobre a guerra, Freud (1976 [1933]) explica que entre os diversos
motivos que levam à guerra está a pulsão agressiva, o desejo de destruir e coloca a
guerra como uma oposição do homem às transformações que o processo
civilizatório impõe. É como se o homem quisesse impor limites ao avanço civilizatório
que ameaça uma parte importante de si mesmo, o seu impulso de destruir os laços
sociais.
Nos textos de Folha e O Globo, esse aspecto da guerra aparece nos relatos
sobre os confrontos entre a polícia e o tráfico na Rocinha. O que justifica a violência
da polícia é a violência do inimigo, mas os jornais o chegam a mencionar o
151
aspecto primordial dessa "guerra". A ocupação policial que deveria acabar com os
conflitos armados na comunidade acaba por acirrá-los e por ampliar a destruição de
vidas, não apenas das pessoas que morrem baleadas ou vítimas das "balas
perdidas" (em geral, no noticiário só existem mortes por tiros disparados por
traficantes ou por balas perdidas, a polícia só mata nos casos exemplares), mas
também das famílias dessas pessoas.
Os jornais retratam a ocupação policial como uma ação para prender (ou
matar) os traficantes e as eventuais perdas de vidas de pessoas que não estão
envolvidas com o narcotráfico são retratadas quase como as baixas civis,
consideradas fatalidades inevitáveis de uma guerra, preços a pagar pela "vitória".
Justificar a invasão policial de uma comunidade inteira como uma "caça" aos
traficantes reforça a imagem do tráfico como a atividade predominante, ou única, dos
moradores do local. Para transmitir essa mensagem, a mídia construiu a figura da
"guerra do tráfico" e, então, a violência é a conseência indesejável, mas inevitável,
de uma causa maior que é "vencer o inimigo". Outro fator inevitável da guerra é a
alteração da rotina, a suspensão da liberdade provocada pelo medo e pelo risco, e o
apego a uma figura superior, divina, como representativa da esperança. É pela
percepção de que se processa uma guerra que se concebe como possível, para a
favela, uma ligação entre a normalidade e a presença policial. Em uma localidade
em guerra, as pessoas não saem de casa se não for necessário, o se alarmam
com a presença de "soldados" nas ruas, praticamente esperam por eventuais
mortes.
A "guerra do tráfico" é um fenômeno ambíguo. Na guerra que se estabelece
entre os traficantes, os personagens principais são os policiais que representam a
intervenção, a pacificação, o recurso à força para restabelecimento da ordem. Nos
152
textos jornalísticos, a guerra aparece em referências diretas e indiretas, de forma
exaustiva. Alguns exemplos:
Cerca de 200 policiais das forças de elite das polícias militar e civil entraram
ontem de manna mata no alto da Favela da Rocinha, numa caçada aos
bandidos que estão em guerra pelo controle do tráfico no morro. ("Policiais
caçam traficantes na Rocinha",
OG
, 11/04/2004, p. 31)
De acordo com o presidente de uma das associações de moradores da
Rocinha, William de Oliveira, apesar de a tentativa de invasão do morro ter
sido anunciada, os moradores não esperavam que fosse ocorrer um conflito
tão violento, ainda mais num feriado santo: Em vez de evoluir, a Rocinha
está voltando ao tempo em que havia guerra de traficantes. Hoje os
moradores não dependem apenas de seus trabalhos, mas do turismo que é
realizado na favela. As pessoas estão muito tristes. Pela manhã se sentem
mais seguras, mas na verdade estão com muito medo. Não sabem o que
pode acontecer a qualquer momento. Só estão indo para a rua se for muito
necessário. ("Policiais caçam traficantes na Rocinha",
OG
, 11/04/2004, p.
31)
Divino Alves Cláudio, 42, que trabalhava em obras, estava na varanda de
sua casa, na estrada da Gávea (um dos acessos à favela), quando foi
atingido. Ele foi a oitava vítima da guerra do tráfico que vem aterrorizando a
Rocinha desde a madrugada de sexta-feira. ("Guerra do tráfico na Rocinha
faz 8ª vítima",
FSP
, 12/04/2004, p. C6)
A ocupação na Rocinha pela polícia foi desencadeada para impedir que a
guerra entre traficantes rivais fizesse mais vítimas. Desde sexta-feira, dez
pessoas morreram em confrontos, entre elas três moradores atingidos por
balas perdidas. ("Dos 16 detidos na Rocinha, só 1 segue preso",
FSP
,
14/04/2004, p. C9)
Quando ouviu pela primeira vez, em janeiro passado, a história de
Chapeuzinho Vermelho, A., de 9 anos, já estava no tráfico de drogas havia
dois anos e fora apanhado durante uma tentativa de assalto, sendo levado
para um abrigo. Ele é uma das muitas crianças cujos pais foram
assassinados pelo tráfico. Agora, correm o risco de se tornarem novos
"soldados" da guerra entre quadrilhas. ("Como nascem os bárbaros",
OG
,
04/07/2004, p. 8, Suplemento Especial: Órfãos da Violência)
Estudo mostra que um em cada 14 crianças ou adolescentes envolvidos na
venda de drogas é filho de pais que foram assassinados na guerra do tráfico
("Como nascem os rbaros",
OG
, 04/07/2004, p. 8, Suplemento Especial:
Órfãos da Violência linha fina)
A "guerra do tráfico" é construída pelo discurso não só pelo uso da expressão,
mas pela caracterização do cerio que é produzido por "bárbaros" e produz novos
"bárbaros". O simples uso do termo já denota a desqualificação do outro. Como
mostra Mattéi (2002, pp. 76-92), na Grécia Antiga, em princípio, rbaros eram
aqueles não-gregos de fala rude, incompreensível. O sentido da palavra, entretanto,
153
vai se transformando entre os próprios gregos que acabam por definir esses
estrangeiros negativamente, associando o termo com a covardia, a grosseria, o
apetite desmedido, a brutalidade. Mas essa transformação do significado
corresponde a uma mudança social e serve para justificar a assimetria nas relações,
no caso grego, a escravização desses indivíduos tão desprezíveis em seus
comportamentos e, portanto, indignos. Pode-se dizer que nomear o outro de bárbaro
era uma das estratégias de dominação dos gregos.
O título de O Globo para uma reportagem sobre os órfãos das comunidades
pobres do Rio de Janeiro Como nascem os rbaros, em tom explicativo, de
revelação de uma verdade primordial é, entre milhares de frases produzidas ao
longo dessa cobertura sobre os conflitos na Rocinha pelos dois jornais, a mais
concreta simbolização dessa desqualificação do outro a ponto de justificar sua
posição. O rbaro é o portador da diferença irreconciliável. Da Atenas antiga à
Rocinha no século XXI, a "barrie" é sempre a do outro e, com isso, é possível
negar as intenções mais violentas do "eu". Esta é uma das formas de operação do
mal-estar: transferir para o outro o que em mim não pode ser aceito, pela
conformidade e submissão às convenções e coerções sociais.
A frase "Como nascem os bárbaros" condensa de forma contundente esse
mal-estar nas suas diversas variações de preconceito contra o diferente, o pobre, o
morador da favela, os órfãos. Para justificar essa imagem, o jornal traz os detalhes
de um estudo do Instituto Brasileiro de Inovações em Saúde Social (IBISS) segundo
o qual em cada 14 crianças e adolescentes envolvidos com o tráfico, um perdeu os
pais em conflitos ligados ao comércio ilegal de drogas. Mas para o jornal, a
mensagem principal desse levantamento é apenas uma: a de que a orfandade cria
novos "soldados" dessa "guerra".
154
Na verdade a proporção de 1 para 14 corresponde a 7,14% do total. Mas O
Globo ignora 92,86% das crianças e suas condições familiares, bem como todos os
outros aspectos da vida de 100% dos jovens envolvidos com o narcotráfico para
reduzir a orfandade à associação ao crime e, pior, aos "bárbaros".
A expressão "guerra do tráfico" e sua sobreposição à idéia de barbárie do
outro são formas de reificação que sustentam o mal-estar e a impressão de que os
confrontos armados representam a "ordem natural" de uma guerra: "mais uma
vítima", "a 8ª vítima", "voltando ao tempo em que havia guerra entre os traficantes",
"bandidos que estão em guerra" são expressões que denotam a permanência do
confronto, sua repetição e a duração no tempo, em uma escie de eternalização
das condições do conflito.
O ambiente da favela se torna, assim, um campo de guerra permanente e as
trocas de tiros constantes incitaram, inclusive, comparações da Rocinha com Bagdá.
A eternalização é o principal modo de operação da reificação nesse caso
específico da guerra e aparece no discurso de modo que:
(...) fenômenos sócio-históricos são esvaziados de seu caráter histórico ao
serem apresentados como permanentes, imutáveis, recorrentes. Costumes,
tradições e instituições que parecem prolongar-se indefinidamente em
direção ao passado, de tal forma que todo o traço sobre sua origem fica
perdido e todo questionamento sobre sua finalidade é inimagivel,
adquirem, então, uma rigidez que não pode ser facilmente quebrada. Eles
se cristalizam na vida social, e seu caráter aparentemente a-histórico é
reafirmado através de formas simbólicas que, na sua construção, como
tamm na sua pura repetição, eternalizam [sic] o contingente.
(THOMPSON, 1995, p. 88)
Apesar de usar a expressão "guerra do tráfico", a Folha é menos contundente.
Um dos elementos usados no jornalismo para identificar com facilidade um tema é
criar chapéus, pequenos "slogans" que destacam o assunto que é tratado naquela
página ou reportagem específica, especialmente quando a cobertura do tema se
estende durante dias. A Folha adotou o chapéu "Rio sob tensão" durante grande
155
parte dos dois meses de cobertura. O Globo optou por "Guerra do Rio", mais
enfático.
Quanto mais contundente a reificação, mais a favela se afasta da ordem e
civilidade. A eternalização da favela como um território em guerra permanente e de
barrie tem um desdobramento que acaba por fazer o casamento dos dois padrões
de sociabilidade que se reforçam nos episódios de violência urbana: a sociabilidade
violenta e a defesa institucional-legal da ordem por meio da força da ocupação
policial.
No caso das favelas, segundo Machado da Silva (2004b), esses dois aspectos
das relações sociais se encontram intricados, mas:
[...] embora a sociabilidade violenta seja uma característica geral da
configuração social das cidades brasileiras, ela afeta mais direta e
profundamente as áreas desfavorecidas, em especial as favelas,
provavelmente em virtude da forma urbana típica desses locais, em geral
muito densos e com traçado viário precário, dificultando o acesso das
pessoas que o estão familiarizadas com eles e, portanto, favorecendo o
controle pelos agentes que lograrem estabelecer-se neles. Os (as)
moradores (as) dessas áreas estão mais diretamente submetidos (as) à
sociabilidade violenta (...) (MACHADO DA SILVA, 2004b, p. 42)
As próprias condições da favela, portanto, levam à prevalência de um tipo de
sociabilidade, a violenta, o que acaba sendo usado como justificativa para um apelo
à repressão policial exacerbada.
4.1.3 A pocia (não) salva
Em uma guerra, o recurso à força é obrigatório e a radicalização das medidas
de repressão ao inimigo, desejável. O envolvimento dos aparelhos de Estado é
prioritário, já que a ele cabe a defesa e manutenção da ordem. No discurso
jornalístico sobre a "guerra do tráfico", essas idéias podem se manifestar
principalmente de duas formas: a exaltação do Estado, por meio da ação de um de
156
seus aparelhos, a polícia, e a crítica ao governo e às autoridades, quando
aparentemente não utilizam ou disem da força necessária para eliminar os
confrontos.
Ao mesmo tempo em que se cria esse antagonismo em que o Estado é o
bandido e os policiais, os mocinhos, a cobertura de episódios que envolvem a
violência policial é marcada por outras contradições internas à própria atividade
jornalística.
O relacionamento entre imprensa e polícia é a origem de grande parte dessas
contradições. Os jornais, em alguns momentos, tentam criticar a atuação policial,
sobretudo quando algum acontecimento não foi reprimido. Mas a amplitude da crítica
e as condições em que se produz são reduzidas porque a fonte prioritária das
informações é a própria polícia. É a polícia que informa estratégias de ação de
repressão, que fornece os perfis dos agentes do tráfico, que detém os números
oficiais de mortos e detidos nas operações.
O fato de a polícia ser uma fonte quase exclusiva das informações envolve
uma série de fatos que revelam os limites e a dificuldade da cobertura jornalística. A
imprensa privilegia a objetividade e é, obviamente, a polícia no exercício de seu
saber-poder expresso em registros e autos, relatórios, planejamentos e estatísticas
que dispõe das informações mais organizadas e com maior credibilidade. O acesso
à instituição é muito mais fácil, porque esta dispõe de estrutura como assessores de
imprensa, profissionais designados para fazer o contato com os jornalistas,
organização de entrevistas coletivas etc..
Já o acesso às comunidades em conflito e a seus moradores é dicil. Os
próprios veículos em geral restringem a presença dos jornalistas nas favelas num
momento de conflito, para não colocar em risco a vida dos profissionais. Além disso,
157
poucas são as comunidades que têm representantes, porta-vozes, como a Rocinha
em que há pelo menos duas associações de moradores. As pessoas que estão
envolvidas com o tráfico não estão dispostas a acolher o contato da imprensa.
Outros moradores das comunidades também evitam falar para não sofrerem
represálias, não só do tráfico, mas também da polícia. É comum a referência, nas
suas poucas falas, ao fato de ficarem marcados se forem vistos conversando com
alguém de fora da comunidade.
A cobertura jornalística de crime e violência – que não por acaso recebe no
jaro jornalístico o nome de "cobertura policial" é marcada por complexidades e
contradições que influem no resultado da reportagem. A polícia, fonte mais
facilmente disponível, é também a mais interessada em filtrar as informações que
são reveladas à mídia que, muitas vezes, é transformada em canal para enviar
"recados" ao tráfico.
A todos esses aspectos da cobertura jornalística se liga um outro, talvez
predominante, que é a barreira dos jornalistas em procurar novas fontes de
informação. O tipo de fonte das informações e sua restrição a pessoas com alguma
"credibilidade" autoridades e especialistas, principalmente, e até mesmo "os
excluídos sem voz" reflete a técnica de produção jornalística. É como se estes
elementos integrassem a "linha de montagem" da produção do jornal, porque se
encaixam na rotina da apuração das reportagens, que implica em selecionar um
número reduzido de informações, e na própria lógica de construção do discurso.
O resultado disso é que grande parte da cobertura se concentra nas
"realizações" da polícia. A eficiência no combate ao tráfico é medida pelo número de
mortes e prisões, pelos resultados das buscas e apreensões realizadas durante as
ocupações, e pela marcação freqüente da oposição policial/criminoso, como revelam
158
os títulos, chamadas, textos e linhas finas das reportagens publicadas. Algumas
vezes, a tentativa é de criticar, mas mesmo assim a fonte ainda é a polícia.
Em O Globo, a ação policial é, em geral, apresentada como positiva e voltada
para os interesses da comunidade e, sobretudo, para obstruir a ação do tráfico,
destruindo o prazer que os traficantes teriam em matar, ameaçar, aterrorizar a
comunidade. Em um dos trechos, diz-se até que a interrupção das operações
possibilita que os moradores saiam de casa e aproveitem o "domingo de sol".
Bandido que participou do "bonde" que matou mineira, na Avenida
Niemeyer, é detido em apartamento em Botafogo ("Nove pessoas são
presas na caçada a Dudu",
OG
, 18/04/2004, p. 22)
Numa demonstração de que o trabalho de intelincia começa a surtir
efeito, policiais civis prenderam dois gerentes do tráfico que teriam ajudado
diretamente Dudu ("Fecha o cerco a Dudu",
OG
, 19/04/2004, p. 9).
O chefe de Polícia Civil, delegado Álvaro Lins, suspendeu ontem as
incursões em todas as favelas do Complexo do Alemão, onde desde sexta-
feira a polícia caça o traficante Eduíno Eustáquio de Araújo Filho. Lins disse
que não queria arriscar a vida dos moradores, que aproveitaram o domingo
de sol para sair de casa, no caso de um confronto entre a polícia e os
traficantes ("Polícia suspende incursões no Complexo do Alemão",
OG
,
19/04/2004, p. 9)
Os PMs cercaram a casa, tanto pelas laterais como pelo terraço. Foi neste
momento, por volta das 16h, que os traficantes começaram a atirar na
polícia. Ronaldo dava proteção ao bandido. Cada um estava armado com
um fuzil HK e uma pistola Glock. Havia ainda munição suficiente para
sustentar um tiroteio por mais uma hora. Mas bastaram 15 minutos para a
polícia entrar na casa e encontrar os dois baleados. ("Polícia mata chefe da
Rocinha",
OG
, 15/04/2004, p.11)
Folha adota uma posição menos positiva em relação à polícia, ensaia alguns
questionamentos sobre a instituição policial, mas recai no dilema de criticar sua
principal fonte de informações. O jornal também o chega a exaltar os policiais nem
as operações policiais, mas ainda assim recai na tentação de enumerar mortes,
detenções e apreensões como medidas de eficiência das operações policiais.
Apesar dos alertas da Subsecretaria de Inteligência da pasta estadual, que
investigava as articulações de Dudu com outros líderes da faão CV
(Comando Vermelho), a Polícia Militar foi incapaz de evitar a invasão, os
tiroteios e a morte, até a conclusão desta edição, de três inocentes e dois
159
policiais militares. ("Polícia sabia do planejamento da invasão",
FSP
,
10/04/2004, p. C3)
Segundo a Secretaria de Segurança Pública, 16 supostos traficantes foram
presos na operação de ontem na Rocinha e 28 armas foram apreendidas
(entre elas três fuzis e duas granadas). Quinze veículos roubados foram
recuperados. Nenhum dos presos integraria a cúpula do tráfico. ("1.300
policiais não asseguram paz à Rocinha",
FSP
, 13/04/2004, p. C1)
Os policiais militares que participam da ocupação na Rocinha estão sendo
acusados por moradores de praticarem agressões, extorsões e de
invadirem casas sem autorização. A corporação nega irregularidades na
conduta dos soldados. As supostas extorsões teriam sido impostas a
motoqueiros que trabalham no serviço de mototáxi na favela. Segundo um
deles, que não quis se identificar, os policiais cobram propinas de R$ 3 a R$
5. ("Policiais são acusados de agressão e de extorsão",
FSP
, 15/04/2004, p.
C8)
A operação, chefiada pelo próprio comandante-geral da Polícia Militar,
Renato Hottz, não intimidou os traficantes, que, escondidos no alto da
favela, reagiram a tiros. De manhã, Hottz coordenava uma equipe de
policiais na localidade conhecida como Curva do S quando os criminosos
soltaram fogos e fizeram disparos. Ele se refugiou atrás de uma caçamba
de lixo para não ser atingido. ("1.300 policiais não asseguram paz à
Rocinha",
FSP
, 13/04/2004, p. C1)
As estratégias diferenciadas de abordagem da questão policial pelos dois
jornais revelam posturas diferenciadas, também, em relação à manifestação do mal-
estar no discurso.
O Globo
claramente adota uma forma de operação das formas
simbólicas que é a unificação pela simbolização da unidade, que promove uma
negação do mal-estar em relação aos moradores da Rocinha.
A polícia, uniformizada, armada e corporativa é, em si mesma, um símbolo da
unidade.
O Globo
o aborda – ou pelo menos deixa em plano secunrio – os
conflitos que contrapõem polícia civil e polícia militar e mesmo as contradições
internas das duas corporações. A polícia aparece como uma entidade única,
preparada para agir pelo bem dos cidadãos, matando bandidos perigosos, em
especial aqueles que comprovadamente participaram de algum episódio terrível,
preocupando-se com o bem-estar da comunidade, trabalhando com precisão e
cuidado. Tudo isso confere aos policiais de uma aura de elevada competência e os
160
torna "necessários" no combate ao tráfico. Os moradores da favela e, sobretudo, a
sociedade como um todo, aparecem como beneficiários dessa ação corporativa. Os
conflitos intrínsecos às relações sociais, as diferenças e desigualdades não se
diluem na unificação, ficam apenas encobertos, isso porque a própria ação ostensiva
e freqüente da polícia irá reforçar a segregação da comunidade. O mal-estar
permanece e, se por um lado é eclipsado, por outro é reafirmado.
Já a Folha enfatiza os problemas da corporação, mostrando-a não como uma
unidade, mas como um conjunto fragmentado, dividido, conflituoso e problemático.
Números semelhantes aos que indicam, para O Globo, a eficácia da polícia, para a
Folha são expressão da repressão ineficiente – tantas apreensões e prisões foram
feitas, mas a ação não atinge a cúpula do tráfico , dos problemas estruturais da
corporação, da violência indiscriminada contra os moradores da favela.
Essa fragmentação empreendida nos textos do jornal acaba por produzir o
que Thompson (1995) chama de expurgo do outro, sendo que este outro, no caso, é
a própria polícia, que é desenhada quase como um inimigo, uma ameaça, numa
estratégia totalmente inversa à de O Globo, mas que tem efeitos semelhantes. A
diferenciação em relação ao outro incute o discurso de um apelo velado à união
daqueles que o pertencem a esse grupo expurgado. Assim, cria-se uma escie
de solidariedade com os moradores da favela, expostos a tantos erros e problemas,
e o resultado é que, ao mesmo tempo em que o mal-estar é voltado para a polícia,
encobrem-se os sentimentos ambíguos em relação ao morador da favela. Esta
estratégia o ajuda a evidenciar e revelar o mal-estar e, portanto, embora crie uma
sutil identificação com o outro por excelência dos discursos, não permite seu
reconhecimento como semelhante. Esta "reconciliação" com o outro é apenas
temporária e circunscrita.
161
4.2 A rebelião dos bárbaros
A eclosão da rebelião na Casa de Custódia Benfica, no Rio de Janeiro, o
enfraquecimento do Comando Vermelho (CV), a dificuldade da polícia em encontrar
Dudu e a transferência do comércio de drogas para as mãos de chefes menos
expressivos Zarur e Bem-te-vi colocaram a Rocinha em segundo plano nas
páginas dos jornais no fim de maio.
Durante três meses de maio a agosto de 2004 – a principal referência
midiática em relação à segurança pública era a rebelião, que se seguiu a uma
tentativa de fuga parcialmente frustrada, no presídio que havia sido inaugurado
pouco mais de um mês antes para abrigar homens detentos e que aguardavam a
definição de suas sentenças.
Com capacidade para abrigar cerca de 1,3 mil presos, o prédio uma prisão
adaptada a partir de um edicio onde havia funcionado um batalo da Polícia
Militar era ocupado por quase 900 presos separados em alas de acordo com as
facções criminosas a que declaravam pertencer
53
.
A rebelião teve vários aspectos que podiam ser trabalhados pela mídia para
alimentar o noticiário: um edicio mal adaptado à função e de localização
questionável, uma rebelião que durou mais de dois dias, a ausência e o silêncio do
casal Rosinha Matheus (governadora do Estado) e Anthony Garotinho (secretário de
Segurança e ex-governador) e, principalmente, o relato de atos brutais praticados
pelos detentos contra outros detentos.
53
Um procedimento padrão nas prisões e detenções realizadas por policiais do Rio de Janeiro à
época era perguntar ao acusado a qual facção ele pertencia a fim de desti-lo a uma ala ou
presídio com outros detentos da mesma facção. Medida polêmica que, segundo as autoridades
visava garantir a integridade física do preso e, segundo críticas de ativistas de direitos humanos,
obrigava pessoas sem nenhuma ligação com o tráfico a se associarem a alguma facção em geral
a que dominava na região em que residia.
162
Nos primeiros dias de cobertura, o maior destaque era a "matança" ou a
"barrie" em que 31 pessoas morreram: 30 presos e um agente penitenciário que
era um dos 21 reféns. O fato de o conflito ter terminado em mortes provocadas pelos
próprios presos chamava a atenção da mídia, mas corresponde, já, a um padrão de
rebeliões nas prisões brasileiras:
Nos últimos dez anos, têm sido comuns as rebeliões nas prisões brasileiras
que deixam um sangrento rastro de mortes entre os presos. Tais mortes não
derivam da ação policial de contenção desses movimentos, mas na sua
maioria são provocadas por outros presos, em função de conflitos internos,
das disputas entre grupos criminosos. Assim, além de denunciarem
condições precárias de encarceramento que continuam a predominar no
Brasil, as rebeliões têm revelado uma baixa capacidade do Estado em
controlar a dinâmica prisional, em fazer valer princípios fundamentais de
respeito à integridade sica dos indivíduos presos, permitindo que grupos
criminosos imponham uma ordem interna sobre a massa de presos.
(SALLA, 2006, p. 277)
Pertencer a uma facção não é algo tão banal quanto se declarar membro dela.
O pertencimento não tem relação com a iia que as costumeiras metáforas de
família e de máfia pretendem transmitir.
Segundo Machado da Silva (2003), esses grupos o se organizam segundo
lógicas como a honra ou a irmandade, mas em torno da demonstração de força e de
transformação das outras pessoas inclusive outros membros das facções em
objetos de satisfação de desejos. A força é o meio de coação para que o outro
indivíduo ceda às ordens e desejos dos que a exercem com maior imposição e,
neste sentido, a própria divisão em facções funciona como um código para o
exercício da violência. Pertencer a uma facção significa, assim, assumir as normas
de conduta do grupo em troca de proteção e de direitos de exercer a força da qual
aquele grupo se faz representante.
Na Casa de Custódia Benfica, no dia 29 de maio de 2004, quando eclodiu a
rebelião, estavam detentos dos três principais grupos de comando do tráfico de
163
drogas do Rio: Comando Vermelho (CV), em expressiva maioria, mais de 600
pessoas; Amigos dos Amigos (ADA), cerca de 110 pessoas; e Terceiro Comando
(TC)
54
, cerca de 170 presos.
A política do governo estadual à época era misturar os detentos de várias
facções nas prisões sob a alegação de que isso ajudaria a destitui-las de força. Mas
o que se viu na Casa de Custódia foi algo diferente: seguindo a tendência das
demais rebeliões em presídios no Brasil contemporâneo e as regras de
demonstração de força dos grupos, as facções demonstraram seu poder.
4.2.1 O Estado como Outro
A estratégia de impor a convivência de presos de facções diferentes em um
mesmo espaço foi duramente criticada pelos jornais Folha de S. Paulo e O Globo,
que buscaram a opinião de especialistas em prisões e que procuraram enfatizar a
dificuldade das autoridades estaduais em justificar essa opção de gestão dos
presídios. Ambos os jornais chegaram a mencionar que as mortes dos detentos da
Casa de Custódia Benfica eram "anunciadas", porque algumas entidades de direitos
humanos declararam ter alertado o governo dos riscos que essa política
representava para a integridade sica dos presos.
Oito penitenciárias e uma casa de custódia do Rio misturam em seus
cárceres presos vinculados a diferentes facções criminosas. Com as novas
ameaças de rebelião, há o risco de mais um massacre caso uma das
facções domine a prisão, como ocorreu neste fim de semana na Casa de
Custódia de Benfica (zona norte).
Confinar inimigos em um mesmo presídio é uma política adotada desde o
ano passado pela Secretaria de Administração Penitenciária. O objetivo,
segundo o secretário Astério Pereira dos Santos, é mostrar que quem
manda na prisão é o governo, não os presos e suas faões.
Essa política foi confrontada durante o motim em Benfica. ("Rio mistura
facções em nove presídios",
FSP
, 04/06/2004, p. C4)
54
O Terceiro Comando e o Terceiro Comando Puro (TCP) são faões diferentes, sendo o segundo
uma dissidência do primeiro, que é um dos grupos mais antigos do Rio de Janeiro.
164
Secretário da Administração Penitenciária de São Paulo desde 1999,
Nagashi Furukawa diz que a única forma de conter a guerra entre as
facções é isolar os líderes em presídios de segurança máxima, separar os
grupos e colocar os detentos "neutros" em unidades menores, sem
influência das organizações criminosas. ("Para Planalto, Rio optou por 'alto
risco'",
FSP
, 02/06/2004, p. C4)
Para o defensor público Alexandre Paranhos, que em 11 de abril deste ano
vistoriou Benfica, um dos problemas do sistema carcerário é justamente
essa mistura. "Em Benfica, o pessoal do TC dizia ter medo porque o CV
tinha muito mais presos".
(...)
O presidente da ONG (organização não-governamental) Conselho da
Comunidade, Marcelo Freixo, que também vistoriou a prisão, previu uma
tragédia em Bangu 3: "Misturar faões não enfraquece nenhuma delas.
Pelo contrário, aumenta as rivalidades. É uma disputa sanguinária por
espaço. Aconteceu em Benfica um massacre anunciado. Alertamos para
Bangu 3, onde estão os principais líderes das facções. Nova matança pode
acontecer". ("Rio mistura facções em nove presídios",
FSP
, 04/06/2004, p.
C4)
À tarde, os presos escreveram uma carta listando reivindicações, como o
fim da mistura de presos de faões criminosas rivais numa mesma
unidade. Em faixas mostradas através das grades, eles avisaram: "A
próxima vai ser em Bangu III" - presídio que, como O GLOBO mostrou em
reportagem publicada há uma semana, já abriga internos de duas faões
rivais, separados por uma parede de aço. ("Refém é morto pelas costas",
OG
, 31/05/2004, p. 10)
O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB), Wanderley Rebello Filho, também foi impedido de entrar na
Casa de Custódia. Wanderley Rebello, que foi do Conselho Penitenciário
até 1994, disse que a OAB tamm entrará na Justiça e pedirá a interdição
da casa de custódia, já que as ordens dadas pela PM ontem foram
arbitrárias e o local onde a administração penitenciária misturou presos de
facções criminosas rivais é muito frágil.
- Houve omissões graves do governo. Essa rebelião foi anunciada desde o
dia em que misturaram faões naquele lugar - afirmou. ("Entidades
barradas irão à Justiça",
OG
, 02/06/2004, p. 14)
O deputado federal Mário Heringer (PDT-MG), presidente da Comissão de
Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, criticou ontem a decisão do
governo do estado de misturar facções criminosas rivais dentro de um
mesmo presídio. Em visita à Casa de Custódia de Benfica, ele atacou as
autoridades afirmando que tal atitude facilita ações como a que resultou na
chacina de sábado passado.
- Essa postura é uma omissão premeditada para gerar até mesmo fatos
como o de sábado - acusou o deputado.
Heringer acrescentou que as facções criminosas, soltas nas ruas, são
responsáveis por seus crimes. Mas grupos custodiados pelo estado têm de
ser separados para evitar barbáries como a de Benfica. ("Deputado critica
mistura de faões na prisão",
OG
, 05/06/2004, p. 18)
Praia de Botafogo, dia 5 de julho de 2003, por volta das 10h: com fome e
desarmado, o morador de rua Carlos Alberto Alvarenga, de 22 anos,
passava pela Praia de Botafogo quando decidiu praticar um assalto. Contou
que primeiro pediu dinheiro a uma mulher que passava pelo local naquele
momento, mas, como não foi atendido, exigiu: "Me dá todo o seu dinheiro".
A vítima, uma diarista, entregou tudo que tinha na bolsa, R$ 52. Preso em
165
flagrante, Carlos - um dos detentos mortos no massacre na Casa de
Custódia de Benfica - teoricamente poderia ser condenado a uma pena
alternativa. ("Presos mortos em Benfica poderiam estar cumprindo penas
alternativas",
OG
, 22/06/2004, p. 17)
Folha
e
O Globo
enfatizam, assim, a questão da política de segurança
adotada pelo governo estadual como um dos principais motivos para a rebelião e,
principalmente, para o elevado número de mortos. O ponto principal desses trechos
é que o governo sabia que sua política representava riscos e nada fez para
minimizá-los. Aparentemente, os dois jornais defendem por meio da ênfase no
tema e da compilação de diversos depoimentos com críticas ao Estado a
população carcerária. Mas essa suposta solidariedade em relação aos presos se
dissolve em outros elementos do discurso que deixam bastante clara a diferença
entre quem está do lado de dentro e do lado de fora dos presídios.
O Estado é representado em seu poder soberano de deixar morrer e fazer
viver o biopoder (FOUCAULT, 2002a, p. 305). Tal poder, entretanto, o é
questionado em sua essência, mas é colocado em xeque pela "tragédia" em que a
rebelião se transformou. O que os jornais dizem, sem nomear, é que o governo tinha
o poder de evitar aquelas mortes, mas não o fez. Por que não foram evitadas ou o
que caracteriza esse poder soberano os jornais não chegam a questionar. Essa
forma de crítica sem questionamento se reproduz em um outro aspecto da
cobertura: a referência constante à inadequação da prisão. Não é o sistema prisional
que é questionado, mas a Casa de Custódia Benfica, especificamente, em suas
condições de operação. É desse modo que se constrói a imediata diferenciação
entre quem está fora e quem está dentro da prisão. A prisão representa um potencial
perigo e, se houve neglincia das autoridades com as vidas que estão lá dentro, há
também negligência em relação à população que está do lado de fora.
166
O governo do Estado do Rio gastou R$ 9 miles na transformação de um
quartel da Polícia Militar na casa de custódia em que presos rebelados
desde sábado têm aberto, com facilidade, buracos nas paredes do prédio.
(...)
O projeto original da instalação da Casa de Custódia de Benfica (zona norte
do Rio) no antigo prédio do 22º Batalo da PM, de quatro andares, previa a
instalação de chapas de aço nas paredes.
De acordo com o responsável pelo projeto, César Campos, coordenador do
programa Delegacia Legal, as chapas só foram colocadas nas celas.
("Prisão de R$ 9 mi tem paredes frágeis",
FSP
, 01/06/2004, p. C3)
Em entrevista à tarde, o secretário de Administração Penitenciária, Astério
Pereira dos Santos, disse que a casa de custódia estava funcionando em
"uma situação emergencial" e que as obras de adaptação continuavam.
"Tínhamos que desafogar a situação desumana das carceragens", afirmou o
secretário.
A declaração de Santos irritou a cúpula da Secretaria de Segurança. O
subsecretário Marcelo Itagiba deu entrevista dizendo que o local é
adequado para guardar presos. ("Prisão de R$ 9 mi tem paredes frágeis",
FSP
, 01/06/2004, p. C3)
A iia de construir uma casa de custódia no local, ao lado da Favela Vila
Arará (com 5.116 moradores, segundo o dados do IBGE de 2000), foi do
próprio secretário estadual de Segurança Pública, Anthony Garotinho. O
coronel José Vicente da Silva Filho, ex-secretário Nacional de Segurança
Pública, condenou ontem a instalação de presídios e casas de custódia em
áreas residenciais. Segundo ele, isso torna as fugas não apenas mais fáceis
como dificulta tamm as capturas. ("Moradores desconfiavam que
segurança era frágil",
OG
, 30/05/2004, p. 21)
A rebelião e a fuga de detentos da Casa de Custódia de Benfica expuseram
as más condições de trabalho dos policiais que fazem a segurança do local.
Segundo um PM que trabalha na prisão mas não quis se identificar, os
guardas tiveram que enfrentar os bandidos, armados com fuzis, usando
mosquetões fabricados em 1944, um equipamento que era usado na
Segunda Guerra Mundial. Além disso, ele reclamou que as guaritas não são
protegidas e que o alojamento dos guardas cheira a mofo e não tem sequer
água encanada. ("Armas do tempo da Segunda Guerra",
OG
, 31/05/2004, p.
11)
É, sobretudo, a construção da imagem do Estado como negligente e até
mesmo propositalmente mal-intencionado que servirá ao discurso jornalístico. Ao
longo da cobertura, outro aspecto é abordado a fim de reforçar essa percepção: o
comportamento dos governantes. Diante do comportamento efetivamente
questionável, é possível observar como o relato jornalístico pode se apropriar de
fatos "verdadeiros" para reforçar sua construção ideológica das relações sociais.
Os jornais tamm questionam diretamente as figuras dos governantes:
167
Um dia depois de presos fugirem pela porta da frente da Casa de Custódia
de Benfica, o casal Garotinho escapou pela porta dos fundos. Ao deixarem
ontem a Igreja Presbiteriana Luz do Mundo, em Laranjeiras, a governadora
Rosinha Matheus e o secretário de Segurança Pública, Anthony Garotinho,
saíram de carro pelos fundos para evitar a imprensa. Normalmente, mesmo
quando não concedem entrevistas aos jornalistas, eles deixam o templo
pela porta da frente. Nenhum dos dois prestou qualquer declaração oficial
sobre a rebelião. ("Rosinha e Garotinho saem pelos fundos",
OG
,
31/05/2004, p. 10)
Desde sábado o secretário de Segurança Pública do Estado do Rio,
Anthony Garotinho, e sua mulher, a governadora Rosinha Matheus (PMDB),
sabiam da matança de presos na Casa de Custódia de Benfica (zona norte
do Rio), onde uma rebelião começara às 6h30 daquele dia. Garotinho e
Rosinha não deram entrevistas ontem sobre o tema. O subsecretário de
Segurança, Marcelo Itagiba, negou que tenha sido informado das mortes
com antecedência, embora tenha participado da elaboração de um plano
para invadir o presídio caso os rebelados tamm passassem a matar os
mais de 20 reféns. ("Garotinho sabia da matança desde sábado",
FSP
,
03/06/2004, p. C1)
O casal Garotinho estava, no sábado de manhã, na ilha de Brocoió (baía de
Guanabara), onde o Estado tem uma casa de veraneio. De manhã,
auxiliares informaram Garotinho e Rosinha, por telefone, que uma tentativa
frustrada de fuga em massa no presídio resultara em uma rebelião com
reféns.
(...)
O primeiro casal foi avisado. Como os reféns estavam vivos, e os rebelados
diziam que só os matariam se a prisão fosse invadida por policiais,
Garotinho mandou que as negociações seguissem. ("Garotinho sabia da
matança desde sábado",
FSP
, 03/06/2004, p. C1)
Está montada, assim, a estratégia dos jornais de marcar sua posição em
relação ao Estado o que, entretanto, o significa questionar sua legitimidade e seu
poder (FONSECA, 2005), mas apoiar uma maior presença estatal nas questões
sociais, com medidas mais coercitivas e repressivas. O que acontece aqui é a
construção da imagem dos governantes como inimigos da população
55
e, embora os
dois jornais apresentem esse discurso, é a
Folha
em sua característica
antigovernista que vai aplicar essa estratégia com maior freqüência. Cria-se, assim,
55
O caso da Casa de Custódia Benfica apresentou um aspecto curioso da cobertura jornalística: a
plena identificação do casal Rosinha Matheus e Anthony Garotinho, a ponto de a
Folha
publicar o
título "Pastor afirma que governador o chamou", (02/06/2004, p. C3) para, no dia seguinte corrigir a
informação, lembrando que o Rio de Janeiro era governado, à época, por Rosinha Matheus e
Garotinho, seu marido, era o secretário de Segurança. Seria possível especular aqui sobre como os
jornais tratam a figura da mulher no exercício do poder. O que a cobertura revela é que os jornais
atribuem o tempo todo a Garotinho as decisões e a Rosinha uma presença coadjuvante embora,
hierarquicamente, essas posições fossem, naquele momento, justamente o contrário.
168
uma espécie de solidariedade em relação a este outro que é o preso, o "criminoso"
que habita as cadeias, mas baseada numa espécie de simbolização de que a
sociedade toda está abandonada pela autoridade.
O Globo, entretanto, sofistica essa abordagem e aproveita para dar um recado
que atinge diretamente o sensível bolso de seus leitores. A preocupação se
transfere das mortes e da insegurança para o custo financeiro da rebelião:
O governo do estado inaugurou em abril a Casa de Custódia de Benfica
inacabada; numa área residencial e colada a uma favela; concentrou presos
de faões rivais num mesmo prédio; e confiou a segurança desse barril de
pólvora a PMs reformados, com idade em torno de 60 anos e que
receberam um treinamento-relâmpago para exercer a função. A fórmula que
resultou em fuga de 14 presos, rebelião e 31 mortes - 30 detentos e um
agente penitenciário - no fim de semana começa a apresentar a conta. A
recuperação da cadeia em Benfica custará cerca de R$ 1,5 milhão -
segundo calculou ontem o coordenador do Projeto Delegacia Legal, César
Campos - e os parentes dos mortos já se preparam para entrar na Justiça
com pedido de indenizações contra o estado. De onde virá o dinheiro? De
impostos. ("Quem vai pagar por isso?",
OG
, 03/06/2004, p. 14)
Essa imagem de uma autoridade ausente, em certa medida exploradora do
contribuinte (mais do que do cidadão) é, não apenas socialmente, como
psicologicamente, bastante poderosa. A racionalização do sentimento de
insegurança que é difuso na sociedade, por meio da exposição de causas diretas
para os problemas provocados exclusivamente pelo Estado – permite atribuir a um
só elemento a responsabilidade pela desordem. Cria-se uma iia de unificação,
simboliza-se a imagem de uma sociedade coesa em sua condição de vítima da
insegurança e dos descasos do Estado.
É nesse sentido que opera o ensaio de solidariedade em relação à população
carcerária que aparece em alguns momentos dos textos. Ao mesmo tempo, o
Estado, na figura dos governantes, é revelado em uma imagem cínica, como
ameaçador. A ideologia opera aqui pela fragmentação pelo expurgo do outro: a
sociedade como um todo se fragmenta e alguns de seus elementos aqueles que
169
representam o governo são caracterizados como maus, negligentes. Sobretudo em
relação às autoridades e aos políticos, a fragmentação se dá pela diferenciação,
apoiando aspectos que ajudem a separar em duas categorias o conjunto da
sociedade. Os modos de operação da ideologia aparecem aqui combinados,
portanto, tendo como um mesmo eixo a percepção do Estado como o Outro a ser
criticado. O tema assume formas variadas, entretanto. Combinadas, essas formas
não deixam dúvidas sobre o lugar ocupado também pelos presos nessa
representação da ordem social.
Antes da inauguração da casa de custódia de Benfica, no último dia 7 de
abril, moradores da região já se mostravam apreensivos com a possibilidade
de fuga. Na época, o coordenador do programa Delegacia Legal e
responsável pelo projeto, César Campos, disse que não haveria risco de
fuga porque a casa abrigaria somente presos à espera de julgamento e que
não são de alta periculosidade. Mas os moradores o se tranqüilizaram e,
menos de um mês após a inauguração, previram que uma rebelião poderia
estar prestes a acontecer. ("Moradores desconfiavam que segurança era
frágil",
OG
, 30/05/2004, p. 21)
De manhã e à tarde, os cerca de 800 presos bateram nas grades e gritaram.
Do lado de fora, aproximadamente 50 parentes tamm protestaram,
exigindo o reinício das visitas. A algazarra atrapalhou as aulas nas duas
escolas públicas vizinhas à casa de custódia. Professores e alunos
reclamaram da barulheira, mas as escolas não fecharam, como aconteceu
durante a rebelião. ("Presos de Benfica protestam com gritaria contra
suspensão de visita",
FSP
, 15/06/2004, p. C3)
Um dos aspectos que irá caracterizar o Estado na figura dos governantes e
políticos em Outro, de modo a canalizar para ele o mal-estar que, em relação aos
detentos e seus familiares, o deixa de existir, mas é encoberto é a política dos
jornais de "ouvir o outro lado". Em geral, ouvir o "outro lado" significa buscar uma
declaração daquele que aparece no texto sob alguma acusação, que é citado como
responsável por algum tipo de erro, omissão etc.
A busca pelo contraditório é um dos elementos mais importantes da
construção do conhecimento; o contraponto traz novos elementos para a reflexão.
Entretanto, esta iia de contradição é apropriada pelo jornalismo, na maioria das
170
vezes, de modo distorcido, que acaba por validar eticamente o texto final, dando
provas de que o jornalista foi imparcial na execução de seu trabalho quando nem
sempre é este o caso. Frases ilustrativas de como "o outro lado" é ouvido pelos
jornais demonstram que, muitas vezes, esta é apenas uma operação formal por
meio da qual se polariza o conflito com a contraposição de uma série de informações
bem trabalhadas vindas de "um lado" contra poucas frases, desmentidos ou o
tradicional "não quis se pronunciar" do "outro lado".
A governadora Rosinha Matheus, por meio de sua assessoria de imprensa,
incumbiu o secretário de Administração Penitenciária, Astério Pereira dos
Santos, de falar sobre o assunto. Segundo nota divulgada por Santos, "o
havia mistura de facções [na casa de custódia] e sim 176 presos [no seguro]
que viviam conflitos anteriores, decorrentes da rua, sem nenhuma relação
com o sistema prisional" e que estavam separados de outros presos.
(”Relatório acusa governo por rebelião",
FSP
, 06/07/2004, p. C1)
O secretário de Administração Penitenciária, Astério Pereira dos Santos,
negou que o número de mortos seja superior ao anunciado.- É uma mentira,
um erro que haja mais do que 30 corpos. Nós temos 30 laudos do IML.
Como a Santa Casa pode sepultar mais corpos, se só foram liberados 19
pelo IML? Temos ainda 11 corpos para serem identificados e por isso eles
não foram liberados - garantiu Astério. ("Número de mortos na chacina teria
sido maior",
OG
, 03/06/2004, p. 15)
As críticas à desordem deixam transparecer o desejo de uma autoridade, uma
figura da lei, do Outro, portanto. Os apelos a uma maior intervenção do Estado ou a
crítica a sua atuação remetem ao desejo de mais segurança, ainda que com menos
liberdade que, segundo Bauman, é um ponto fundamental do mal-estar
contemporâneo. É o desejo de mais segurança que justifica fenômenos como a
desvalorização da vida daqueles que representam algum tipo de ameaça à ordem
social. Como explica Kehl:
O Outro é uma instância pública, simlica, todas as figuras que oferecem
suporte para sua encarnação imaginária são presenças mediadoras entre a
pequenez do sujeito e a imensidão do espaço público, espaço onde se
tecem os acordos e se estabelecem as linhas de força que sustentam a vida
de uma sociedade. Neste espaço, algumas pessoas se destacam como
portadoras de discursos capazes de oferecer, ainda que provisoriamente,
sustentação ao laço social. (KEHL; BUCCI, 2004c, p. 149)
171
É neste sentido que há um forte apelo à ação do Estado nos textos
jornalísticos, acompanhada de uma crítica à autoridade ineficiente. A percepção de
uma erosão da autoridade está ligada também a um outro processo, a culpa no
sentido freudiano, de que o indivíduo, diante de seu desejo de destruição dos limites
a sua satisfação, se sente culpado. Uma das maneiras de lidar com esta culpa é
projetá-la na autoridade, de modo que o indivíduo se livra da culpa e de modo que a
destrutividade esteja representada por um outro.
O discurso midiático revela uma espécie de nostalgia de uma autoridade
capaz de ordenar a vida social, de evitar o conflito e os problemas, de uma iia de
que caso o Estado cumprisse suas obrigações e impusesse a ordem (sempre
representada pela limitação das ações do outro), a vida em sociedade poderia ser
diferente. O Estado falha quando o é capaz de sancionar a violência de modo a
manter a distinção entre bem e mal, reproduzir a ordem de modo que a punição e o
sofrimento, a ameaça de morte e a insegurança em relação à vida recaiam apenas
sobre os "maus". Esta é a lógica por traz do discurso que transfere ao Estado todas
as responsabilidades. Não se trata aqui de defender o Estado, mas de atentar para a
forma como suas falhas são usadas no discurso para justificar um apelo à
autoridade.
4.2.2 Rebeldes, bárbaros
O Globo e Folha insistiram na dimensão da rebelião na Casa de Custódia
Benfica: a maior do Rio de Janeiro e a segunda maior do Brasil em mero de
mortos, até então, e a segunda maior do Estado do Rio de Janeiro em duração
(foram 61 horas de conflito contra 75 horas de uma rebelião em Bangu III, em
dezembro de 2003).
172
A grandeza dos acontecimentos é ampliada pelos relatos dos detalhes do que
aconteceu na prisão, que são repetidamente inseridos nos relatos.
Os presos mortos pelos rivais durante a rebelião passaram por uma espécie
de tribunal: depois de escolhidos, foram torturados, amarrados, postos de
joelhos e assassinados com marretadas na cabeça. O relato foi feito por
reféns ao presidente do Sindicato dos Servidores da Secretaria de Justiça,
Paulo Roberto Ferreira. Segundo ele, alguns tiveram ainda os corpos
queimados, foram degolados e receberam estocadas. Pelo menos dez das
vítimas tiveram os corpos cravados com estoques de ferro.
- Eles morreram como gado, com porretadas na cabeça. Os presos mortos
foram selecionados, escolhidos a dedo. Teve preso que mudou de faão
na hora do massacre - afirmou Ferreira. ("O tribunal do massacre",
OG
,
02/06/2004, p. 12)
Laudos cadavéricos e depoimentos comprovam que os rebelados
empregaram violência desmedida contra as vítimas (foram mortos 30 presos
e um agente penitenciário). Mesmo fortemente armados, os amotinados
usaram arma de fogo contra apenas um dos presos, embora ele tenha sido
torturado antes de ser atingido na testa. A vítima ainda não foi identificada.
Uma estaca pontiaguda enterrada no crânio de um homem através da boca,
golpes de facão na cabeça, estocadas no pescoço e estrangulamentos
foram algumas das atrocidades cometidas. ("Testemunhas: evanlicos
foram poupados em Benfica",
OG
, 17/07/2004, p. 12)
O estado dos caveres assustou quem esteve na cadeia e nos necrotérios
para onde eles foram levados. Havia cabeças e membros separados dos
troncos.Muitos corpos estavam carbonizados. Há pelo menos 16 feridos,
vítimas de tiros e queimaduras. ("Guerra de facções causa matança no Rio",
FSP
, 02/06/2004, p. C1)
Os relatos dos momentos da rebelião são narrados pelos dois jornais com a
utilização de termos como "facínoras" e "matança". Imagens de corpos amarrados
por cordas de cabeça para baixo, pessoas presas a botijões de gás, uma cabeça
que foi transformada em bola de futebol ampliam o cenário da barrie.
Embora a
Folha
e
O Globo
não possam ser caracterizados como jornais
sensacionalistas, sobretudo porque no jornalismo brasileiro a produção
sensacionalista é identificada com as publicações populares e de pouca
credibilidade, ambos acabam apelando para uma certa medida de exagero nas
descrições. Abandonando, ainda que momentaneamente, a postura de jornais
elitizados, os dois veículos resvalam para as estratégias sensacionalistas: o clichê, a
imagem chocante, o apelo à emoção.
173
O sensacionalismo também se justifica ao retratar práticas do outro. Uma de
suas funções, aqui, é construir a imagem dos presos como não civilizados, como
bárbaros, reproduzindo aquela transferência do que é mau e inaceitável para o
outro, reconstruindo assim a imagem de normalidade dos que estão do lado de fora
da prisão. Um modo de construção simbólica que também pode ser observado em
relação aos agentes do tráfico na Rocinha e aos parentes dos presos da Casa de
Custódia Benfica nas seguintes passagens:
Dois dias as o fim da rebelião, tumultos ainda aconteciam ontem na praça
em frente à Casa de Custódia de Benfica, onde mulheres e mães de presos
permaneceram em vigília. No fim da man, quase cem parentes de presos
se aglomeravam no lugar em busca de informações sobre os detentos. Ao
longo do dia, as mulheres fizeram vários protestos. Dentro da cadeia,
presos batiam nas grades e gritavam que estavam sem água, sem comida e
com as celas alagadas.
Revoltadas por terem sido impedidas de entregar garrafas de água mineral
para os presos, as mulheres fecharam por cerca de 15 minutos as ruas
Couto de Magalhães e Prefeito Olímpio de Melo. Algumas apedrejaram
carros e deitaram-se na pista, sendo contidas por policiais. ("Tumultos em
frente à cadeia continuam",
OG
, 03/06/2004, p. 16)
Aquilo que
O Globo
chamou de tumulto, a
Folha
chamou de protesto:
Desesperados com a falta de nocias, cerca de 500 parentes de presos
passaram o dia a 100 m da Casa de Custódia de Benfica, contidos pela
polícia. Vários protestos coletivos foram esboçados. Em um deles, um PM
disparou três tiros de fuzil para o alto as levar uma bolsada desferida pela
mulher de um detento. ("Nas ruas, clima continua tenso",
FSP
, 02/06/2004,
p. C1)
Os presos da Casa de Custódia de Benfica (zona norte do Rio) realizaram
ontem um protesto contra a proibição de visitas, determinada pela
Secretaria Estadual de Administração Penitenciária após a rebelião ocorrida
entre os dias 29 e 31 de maio, quando morreram 30 presidiários e um
agente penitenciário. ("Presos de Benfica protestam com gritaria contra
suspensão de visita",
FSP
, 15/06/2004 p. C3)
Todos esses discursos refletem um modo específico de operação da ideologia
que é a fragmentação pela diferenciação, em que se dá ênfase "às distinções,
diferenças e divisões entre pessoas e grupos" (Thompson, 1995, p. 87). O uso da
linguagem de forma estratégica transformou os protestos de familiares e detentos
em "tumultos" e "gritarias" (em geral, característica da grande maioria dos protestos).
174
Pela escolha das palavras, se constrói a diferenciação. As distinções, talvez o por
acaso, estão sobretudo no desvio da norma de comportamento. Os outros são
anormais, no sentido foucaultiano, e o que demonstra isso é o fato de serem
portadores da barbárie, entre outras características.
4.2.3 Deus, Demônio e Pombajira
56
Um episódio marcou a rebelião na Casa de Custódia Benfica foi a atuação de
um pastor evangélico da Assembléia de Deus dos Últimos Dias
57
, Marcos Pereira da
Silva, que foi chamado – de acordo com os jornais pelo secretário de Segurança,
atendendo a um pedido dos detentos para negociar a entrega dos reféns e o fim
da rebelião. Após quase 60 horas de conflito e de um diálogo frustrado entre a
polícia e os presos, o pastor chegou à casa de custódia de helicóptero,
acompanhado de fiéis e de coronéis da PM, entrou no edicio e menos de meia-hora
depois, anunciou o fim da rebelião.
A figura do pastor suscitou todas as hiteses. Ele seria ligado ao chefe do
Comando Vermelho, Marcinho VP, e ao líder da mesma faão, Elias Pereira da
Silva, o Elias Maluco, que ordenou a morte do jornalista da Rede Globo Tim Lopes,
segundo a Folha (O Globo, em nenhum momento, menciona os nomes das faões
na cobertura da rebelião em Benfica, apenas os nomes dos agentes do tráfico). O
CV era a facção mais numerosa na detenção no momento da rebelião. O pastor
Marcos também já teria participado de negociações em outras rebeliões.
Personagem-chave das negociações, o pastor se transformou num elemento
fundamental da cobertura. A Folha publicou uma entrevista com ele:
56
A palavra aceita as grafias pombagira e pombajira, de acordo com o Diciorio Houaiss da Língua
Portuguesa, que recomenda evitar a primeira forma. Nos jornais, aparece ainda sob a forma pomba-
gira e, quando em citação, será assim grafada.
57
Sem relação com a Assembléia de Deus, que é uma das maiores igrejas evanlicas do País.
175
Folha - Então, para o senhor, os traficantes são pessoas boas?
Pereira - O que habita no homem é que faz o homem ser mau. A cocaína é
o Diabo ralado, a cerveja é a Pombajira em líquido. Fumei até os 33 anos.
Era o diabo que fumava pela minha boca. Consigo conscientizá-los de que
até o desejo desordenado da carne é o Demônio.
[...]
Folha - Os fiéis de sua igreja não podem usar preto nem vermelho, não
podem ver TV, não comem carne de porco. Por q?
Pereira - O vermelho é dominado pela Pombajira. No preto habitam as
trevas. Não comemos carne de porco por ser um animal sujo. A TV é
maléfica. As novelas são mentiras, e não precisamos de mentiras. Se você
tira a TV, pode ver os anjos, os arcanjos, os querubins e a glória de Deus.
[...]
Folha - Como o sr. se comunica com eles?
Pereira - Eu mando que eles deixem a boca-de-fumo, o cigarro, a maconha,
a cocaína, para ficar com cara de homem. O verdadeiro macho não é o que
dá tiro, nem o que é traficante. O que faz a vontade de Deus é o macho.
Não critico o traficante. Vou até ele para arrancá-lo das trevas.
[...]
Folha - Mesmo tendo sido chamado para intermediar a rendição de presos
rebelados, o que só confirma a falência da política de segurança do Estado,
o sr. se desdobra em elogios à governadora Rosinha Matheus e ao marido
dela, o secretário de Segurança, Anthony Garotinho. Por que isso?
Pereira - Porque as autoridades são constituição divina. A Bíblia fala que
quem resiste à autoridade resiste à ordenação de Deus. Se ele está sendo
mau governante ou o, quem o colocou lá foi Deus, e quem sou eu para
lutar contra as ordens de Deus? No mundo, rege o maligno. Não adianta
reformar a polícia, trocar de governo, fazer reuniões internacionais. O
mundo terá que se render a Cristo. ("'A cocaína é o demônio ralado, a
cerveja é a Pombajira em líquido'",
FSP
, 06/06/2004, p. C5)
Em sua fala, o pastor revela uma visão religiosa da natureza humana como
essencialmente boa, com o mau se instalando ali pelo desejo, pelos
comportamentos aprendidos socialmente, como o fumo e o consumo de álcool,
como se tudo isso dominasse o indivíduo como um corpo estranho que pode ser
eliminado pela fé. Revela e assume as restrições alimentares e de comportamento
que fazem parte de todas as religiões. As restrições ao consumo de carne de porco
são comuns ao judaísmo e ao islamismo. A simbologia das cores está presente em
diversas seitas e muitos rituais religiosos do catolicismo, por exemplo. O pastor
também expõe a idéia da figura do homem como figura central na relação com Deus,
outro ponto em comum com as diversas religiões. Mas, principalmente, coloca a si
mesmo, a Deus e às autoridades no espaço que lhes cabe: como figuras de
176
referência, que representam a lei, a ordem, a proteção, reforçando a servidão do
indivíduo em relação ao que lhe é superior espiritual ou politicamente.
As perguntas escolhidas pela Folha são menos voltadas para a compreensão
dessa visão de mundo religiosa do que por uma tentativa de desqualificar o pastor e
a religião que representa. Qual a resposta mais adequada a perguntas do tipo "os
traficantes são pessoas boas?" ou "se as autoridades falharam, por que o senhor as
defende?" A combinação desse tipo de pergunta com as respostas do pastor,
repletas de referências ao mal, nas formas como este aparece em outras religiões
o Demônio e a Pombajira – e associado a comportamentos como o consumo de
drogas e álcool acaba por transformar o pastor em uma figura tragicômica.
O que a Folha o diz, mas O Globo, sim, é que essas expressões fazem
parte dos bordões de pregação do pastor:
Durante o culto, Marcos fala sobre sua vida e diz que já foi "muito
endiabrado". Em quase todos os discursos, o pastor conta que foi garçom e
já consumiu drogas. Ele costuma usar metáforas religiosas, misturando
sagrado e profano, como "a cocaína é o demônio ralado. A cerveja é a
pomba-gira em líquido". ("O culto mais simples sai por R$ 7 mil",
OG
,
12/09/2004, p. 20)
O Globo o entrevistou o pastor com exclusividade, mas participou de um
dos cultos realizados por ele e fez uma ampla investigação sobre os negócios da
igreja, apontando diversas práticas suspeitas.
Com a missão de garantir um lugar no céu para ex-traficantes e pessoas
ligadas a facções criminosas, a Assembléia de Deus dos Últimos Dias pode
ter que prestar contas à Justiça dos homens. Fundada em 1991, a igreja,
apesar do visível crescimento na Baixada Fluminense, não tem qualquer
patrimônio, mas se mantém explorando atividades como uma mina de
esmeraldas em Carnaíba, na Bahia, e usando artigos de luxo como carros
importados. Todos os bens, de acordo com levantamento do GLOBO, estão
em nome de fiéis da igreja, alguns investigados pela polícia. ("Pastor de ex-
traficantes usa bens de fiéis",
OG
, 12/09/2004, p. 20)
Dois meses depois de ter sido apontado como o responsável pelo fim da
rebelião da Casa de Custódia, em Benfica, o pastor Marcos Pereira da Silva
voltou ao bairro, desta vez na favela do Parque Arará, atrás do presídio.
Homens armados de fuzis abriram caminho para a Land Rover com o pastor
entrar na favela e chegar até um palco montado no meio da rua. A entrada
177
foi festejada com fogos. O show evangélico mais simples, bancado por
políticos, de acordo com o pastor, custa R$7 mil. Em troca, pede-se votos
aos fiéis. ("O culto mais simples sai por R$ 7 mil",
OG
, 12/09/2004, p. 20)
Em ambos os jornais, o tratamento dado ao pastor difere bastante em tom
daquele dado a autoridades de outras religiões, em especial o catolicismo.
Quatro bispos do Estado do Rio e os coordenadores da Pastoral Carcerária
divulgaram ontem uma "carta aberta" à governadora Rosinha Matheus
(PMDB) acusando o secretário estadual de Segurança Pública, Anthony
Garotinho, de ter "desmoralizado" os negociadores da PM na rebelião na
Casa de Custódia de Benfica.
Segundo o documento, Garotinho passou o comando das negociações a
"pessoas de seu interesse". Os religiosos afirmaram ainda que a pastoral e
as entidades de direitos humanos foram "desrespeitadas" ao serem
impedidas de entrar na casa de custódia, as o fim da rebelião, por "ordem
do secretário de Segurança". ("Garotinho desmoralizou negociadores, diz
católico",
FSP
, 05/06/2004, p. C6)
Bispos ligados à CNBB e à Pastoral Carcerária criticaram duramente ontem
a atuação do governo do estado durante a rebelião na Casa de Custódia de
Benfica, que terminou com 31 mortos. Numa carta aberta à governadora
Rosinha Matheus, eles afirmam ter se sentido desrespeitados pela atitude
de autoridades de Segurança, que afastaram a pastoral (além de outras
instituições) das negociações e convocaram o pastor evangélico Marcos
Pereira da Silva para negociar com os rebelados.
Embora não cite nomes, o documento assinado por quatro bispos e dois
coordenadores da pastoral diz que as ordens partiram do secretário de
Segurança Pública, Anthony Garotinho, que é evangélico. ("Igreja critica em
carta atuação do governo",
OG
, 05/06/2004, p. 16)
Não apenas pela forma como as intervenções das diferentes religiões são
tratadas nos textos jornalísticos, mas tamm pelo caráter folclórico que acaba
sendo relacionado ao pastor evanlico, a mídia reproduz, ainda que para alguns
leitores possa parecer que com muita sutileza, o preconceito religioso. O pastor
evangélico é retratado apenas como um personagem curioso, engraçado, se não
envolvido com ilegalidades. Os bispos católicos como autoridades cujo documento
traz uma crítica válida ao governo.
Mais uma vez, a estratégia é a da diferenciação, refletindo uma fragmentação
da sociedade em duas classes: uma que é correta, civilizada, adequada, com
comportamentos normalizados. A outra que representa a barrie, a desordem, os
178
tumultos, as religiões desorganizadas com personagens caricatos de falas repletas
de metáforas absurdas.
Esta construção ideológica se relaciona com o mal-estar de modo a reforçá-lo.
Ideologicamente, é pela diferenciação do outro que ele se torna identificável como
outro e, ao mesmo tempo, ocupa uma posição com a qual a reconciliação não é
possível. Pela marcação precisa da sua diferença, de seu desejo desviante, de sua
forma diversa, desordenada, questionável de obter satisfação, prazer, alívio para a
dor, de acreditar, de manifestar sua fé e suas crenças, os jornais marcam para seus
leitores de elite a diferença em relação aos "populares". Mais uma vez, as
dicotomias conflituosas e inegociáveis se repetem: cidade e favela, religião e
folclore, sagrado e profano, bem e mal.
4.3 Moradores de Rua: invisibilidade na primeira página
Eles não constam do último censo do IBGE, raramente são vistos nos bairros
residenciais da cidade e suas experiências de vida não ocupam as conversas
cotidianas como acontece com os romances das celebridades e, quando aparecem
nos jornais, estão envolvidos com a violência. Seja no âmbito das instituições, seja
no cotidiano, os moradores de rua são "quase" invisíveis.
Uma rápida caminhada pelo centro de São Paulo, entretanto, confirma que
eles existem. Se o porque ocupam um canto de calçada ou se protegem sob uma
marquise, porque a cidade é marcada pela negação da sua presença. As fachadas
de prédios públicos têm grades para evitar que moradores de rua se abriguem ali.
Em 2006, a praça da Sé perdeu seus poucos bancos e ganhou estreitas estruturas
metálicas que não servem para sentar ou deitar, mas para encostar o corpo quando
se está de pé, evitando que as pessoas durmam na praça. O espelho d'água diante
179
da igreja é rodeado por um fosso, para que ali ninguém tome banho
58
. Ao mesmo
tempo, é no centro da cidade que se concentram os serviços de assistência à
população de rua, como albergues, projetos de assistência social, ação de
organismos que oferecem alimentos e agasalhos e tamm a possibilidade de
ganhar algum dinheiro com trabalhos esporádicos oferecidos por alguns
comerciantes. O centro de São Paulo é o reflexo das contradições que marcam as
relações da cidade com os moradores de rua. É ali que eles se tornam mais visíveis,
porque se fazem presentes, e também porque o espaço e os ânimos se organizam
para expulsá-los.
Tal contradição evidencia que o morador de rua é um outro ambíguo. A
condição de rua não deixa dúvidas de que ele é resultado de uma ordem econômica
e social em que não há lugar nem emprego – para todos. Essa percepção revela
uma sutil capacidade de reconhecê-los como semelhantes apesar das diferenças.
Mas, se são vítimas de algo que foge ao controle, os moradores de rua representam
também a imagem de uma ameaça, a do desemprego, da exclusão da ordem
econômica e, portanto, da insegurança.
É justamente nessa duplicidade – diferentes e como semelhantes ao mesmo
tempo que passam a ser vistos sob a lente do mal-estar, como pessoas que nos
impõem limites, mas que não obedecem aos limites, que ocupam as ruas pelas
quais precisamos passar, obstruindo caminhos; dormem durante o dia nas calçadas,
enquanto trabalhamos; não buscam alternativas para sair daquela situação. Quando
58
Entre 2005 e 2006, após os ataques que ocorreram no centro, houve uma série de transformações
na região que visavam afastar os moradores de rua do local. Em especial em prédios públicos,
como o da Caixa Econômica Federal, e na praça da Sé, reformada em 2006, aconteceram algumas
adaptações no espaço que foram denunciadas como higienistas por organizações ligadas aos
moradores de rua. A tendência higienista na representação social dos moradores de rua em São
Paulo já havia sido apontada por Camila Giorgetti (2004). As transformações no espaço público
apenas confirmariam a relação da cidade com a população em situação de rua.
180
observados como massa, eles perdem o pouco da humanidade que lhes resta,
deixam de ser enxergados como vítimas de uma ordem social
59
e se transformam
num incômodo.
É verdade que nenhuma das duas condições a de vítima ou a de incômodo
refletem quem são os moradores de rua. Estes são apenas estereótipos em torno
dos quais se organiza o imaginário. Pouco se sabe dessas pessoas: de onde
vieram, que profissão têm, que histórias contam, como ou por que chegaram às
ruas. Com a exclusão do mercado de trabalho e do consumo, eles perdem a
individualidade, as diferenças e particularidades de cada um se diluem nos
preconceitos que alimentam o mal-estar, o medo e a indiferença.
Em agosto de 2004, aconteceram no centro de São Paulo duas séries de
agressões contra moradores de rua que retiraram essa população, estimada em
10.394 pessoas
60
, da invisibilidade. Vítimas da violência, elas foram para as
primeiras páginas dos jornais. Na madrugada de uma quinta-feira de agosto, dez
moradores de rua que dormiam nos arredores da praça da Sé foram golpeados na
cabeça com cassetetes. No domingo seguinte, novo ataque com exatamente as
mesmas características. Nas duas madrugadas, foram atingidos 15 moradores de
59
A relação com a vitimização se torna complexa aqui. A posição de vítima é atribuída ao morador de
rua quando nos imaginamos em seu lugar, quando o olhamos como indivíduo e tentamos avaliar as
condições sociais que o levaram às ruas. Trata-se de um processo, em geral, de transferência do
sentimento de culpa para esse "ente" amorfo que é a sociedade. Mas a condição de vítima é
tamm assumida por alguns moradores de rua, em algumas de suas poucas falas que aparecem
na imprensa, o que revela uma escolha de transferir a alguém a mesma sociedade, em geral a
responsabilidade pela situação. A ordem social é, sim, produtora de refugos humanos, mas o que
fica encoberto nesses dois tipos de discursos sobre a vítima é a passividade diante dela.
60
A Fundação Instituto de Pesquisas Ecomicas (Fipe) realizou em 2000 e 2003, por encomenda da
Secretaria Municipal de Assistência Social, duas contagens dos moradores de rua na cidade de São
Paulo. A pesquisa se restringiu ao chamado "centro expandido" da cidade. Em 2003, havia 10.394
pessoas vivendo nas ruas dos 29 distritos da região pesquisada. Desse total, cerca de 2.500
moravam no centro, a poucos quilômetros de distância da praça da Sé, exatamente onde
aconteceram os ataques em 2004. A pesquisa tamm revela que o número de moradores de rua
cresceu 20% em 2003 em relação a 2000 e sugere uma relação direta entre desemprego e aumento
da população de rua. Outros números importantes: do total de pessoas nas ruas, 6.186 eram
albergados e 4.208 dormiam nas ruas.
181
rua, muitos deles não identificados porque não tinham documentos nem puderam
ser reconhecidos por testemunhas ou parentes. Todos sofreram traumatismo
craniano; sete morreram no local ou alguns dias depois dos ataques, nos hospitais.
Folha de S. Paulo (FSP) e O Globo (OG) se referiram aos acontecimentos
como o maior ato de violência contra a maior população de rua do País na maior e
mais rica cidade brasileira. Tudo era tão grande que justificava as chamadas nas
primeiras ginas da FSP
61
e uma intensa produção de nocias sobre o caso, alguns
artigos e poucos editoriais
62
.
A marca principal dessa cobertura jornalística é a mesma ambiidade que se
revela na organização do espaço público e nas representações sociais em relação à
população em situação de rua. A relação com o outro é incômoda tamm para os
jornais que, em alguns momentos, colocam os moradores de rua em segundo plano,
também negando sua existência.
Os jornais, no primeiro momento, buscam uma explicação: como ataques tão
bárbaros podem ser cometidos contra uma população "indefesa", "inofensiva",
"pacífica", "fragilizada"? As nocias se concentram na busca do "culpado" pela
"tragédia", o caso é elevado ao status de um crime de "mistério" a ser desvendado.
Indefesa, frágil, culpado, tradia e mistério são termos que nortearam os
textos jornalísticos sobre o episódio, alguns deles usados explicitamente e outros,
61
Durante os quatro meses de noticiário analisados, duas vezes o caso resultou em chamadas na
capa do jornal
Folha de S. Paulo
. É pouco, aparentemente. Mas para o perfil da
FSP
, bastante. O
jornal o tem cobertura sistemática de casos de crimes e suas capas costumam destacar eventos
de importância nacional, com destaque para a política e a economia, ou grandes eventos
internacionais.
62
A
Folha de S. Paulo
publicou, de 20 de agosto a 21 de novembro de 2004 um total de 111 textos
sobre o caso, incluindo 3 editoriais, 5 artigos e 15 cartas do leitor.
O Globo
publicou apenas 20
textos, sendo um editorial. A diferença se explica pelo fato de a
Folha
estar mais empenhada na
cobertura de acontecimentos na cidade de São Paulo do que
O Globo
, do Rio de Janeiro, e tamm
no viés dado à cobertura. A
Folha de S. Paulo
investiu na cobertura dos desdobramentos que o
caso teve nos bastidores da política regional, o que serviu para produzir uma série de textos não
diretamente ligados ao episódio.
182
apenas sugeridos pelo noticiário. Em conjunto, expressariam a dificuldade de
assumir que tais crimes têm uma raiz social, que não que estão ligados a um desvio
imprevisível da ordem, mas a um conflito intrínseco a ela. Também representam a
dificuldade em lidar com o a presença do outro e todas as limitações que ele impõe.
Como vítimas de uma violência brutal, os moradores de rua encarnam a
imagem da insegurança que ameaça a todos e o conflito se instala: este outro,
muitas vezes considerado perigoso, indesejado, ameaçador, desta vez foi a vítima.
Como lidar com isso? Encontrando o desvio, a desordem, a exceção que causaram
as mortes.
A primeira tentativa dos jornais é a de encontrar uma causa para os ataques e
um culpado que possa encarnar o horror, o excesso de violência, a "barbárie". Opera
aqui o conhecido mecanismo da projeção. A necessidade de punir o culpado é
reforçada pelas autoridades, pelos articulistas, pelos editorialistas e pelos leitores.
Revelar o responsável direto pelas mortes é a única maneira de afirmar a inocência
de todos os demais e, assim, restituir a ordem e a confiança.
A cobertura jornalística que, logo após os ataques, tentou se aproximar dos
moradores de rua para revelar como eles foram afetados e quais eram as condições
dos feridos se volta para detalhes das investigações policiais e declarações ou
ações de integrantes do governo estadual e da prefeitura.
Os moradores de rua deixam, assim, de ser o foco principal, tornando-se
apenas o gancho jornalístico para a abordagem de outros temas sempre centrais na
cobertura jornalística em jornais voltados para leitores das camadas privilegiadas e
médias da população, como a política. A população de rua retorna, assim, à
invisibilidade.
183
4.3.1 "Nós não queremos só albergues"
Em uma entrevista com o padre Júlio Lancelotti, responsável pela Pastoral do
Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo e que acompanhou todo o caso, o então
ombudsman do jornal Folha de S. Paulo, Marcelo Beraba, tenta realizar uma crítica
da cobertura jornalística dos ataques aos moradores de rua. Padre Júlio é enfático
ao apontar um dos maiores problemas da atenção dada pela mídia ao caso: nos
primeiros dias, o assunto principal era, na verdade, uma questão que é secundária
para a população de rua: os albergues, o número de vagas disponíveis, a resistência
do blico-alvo ao serviço.
"Nós o queremos só albergues. Precisamos encontrar saídas. O grande
desafio que se coloca hoje é o que fazer com os mais vulneráveis que
acabam ficando nas ruas". ("Quem são essas pessoas?",
FSP
, 29/08/2004,
p. A6)
Nos dias que se seguiram aos ataques, Folha de S. Paulo e O Globo
insistiram num ponto: a resistência dos moradores de rua a freqüentarem os
albergues municipais, o que os tornaria mais vulneráveis à violência. A reportagem
da Folha circulou pelo centro e entrevistou a população de rua. Segundo o jornal,
com base em dados da prefeitura, havia em 2003 na cidade 7.500 vagas em
albergues, insuficiente para toda a população de rua, o que explicaria a ociosidade
quase nula, cerca de 15 leitos por noite. Os albergues ainda teriam capacidade para
instalar leitos emergenciais. Entretanto, diz o jornal, há "resistência" da população de
rua que, mesmo amedrontada com a seência dos dois ataques, permanece nas
ruas. As citações escolhidas pela Folha de S. Paulo são frases como:
"Dependo dos albergues e não encontro auxílio"; "Nos albergues tem muitas
regras rígidas para nós. Aí o pessoal acaba preferindo a independência e a
liberdade da rua"; "Só pode demorar três minutos no banho. Se chego
atrasado, perco a janta"; "É muito difícil conseguir vagas. Se as pessoas
tivessem como dormir no albergue, muitos desses crimes não teriam
acontecido". ("Medo faz homem dormir de dia",
FSP
, 23/08/2004, pp. C3 e
C4)
184
Em outros depoimentos ao jornal, moradores de rua afirmam:
"Lá só tem bêbado, não é nada seguro"; "Eu estou com medo, claro, mas o
que é que vou fazer? Não tenho alternativa. Vou dormir aqui mesmo" ("Com
medo, mas sem opção, pessoas seguem dormindo na rua",
FSP
,
21/08/2004, p. C1)
Ou ainda:
"Não quero ir para lá porque tenho que obedecer às regras deles". ("Medo e
frio fazem lotar os albergues"
FSP
, 25/08/2004, p. C3)
"O abrigo é bom, porque te protege, mas te escraviza" ("'O abrigo é bom,
mas te escraviza'".
FSP
, 01/09/2004, p. C4)
As declarações revelam dois lados do mal-estar. São falas selecionadas pelos
jornais para demonstrar como são e como se sentem os moradores de rua, e cuja
principal mensagem é a rejeição das "regras" impostas pelas instituições, pela vida
social. O morador de rua expressa, assim, o mal-estar que tamm o atinge em
relação a este outro que lhe impõe limites e regras e que lhe oferece, em sua
percepção, pouco ou nada em troca, ou ao menos nada pelo que ele esteja disposto
a pagar o preço de sua liberdade restrita.
Ao mesmo tempo, ao reduzi-lo a essas frases, a mídia o retrata como uma
ameaça à sociedade, por questionar suas regras e, sobretudo, por não aceitar se
submeter a elas. O mal-estar revela-se, aqui, em uma de suas características
marcantes. Como uma força que se exerce no mesmo sentido, mas em direções
contrárias, ele se interpõe definitivamente entre o eu e o outro duplamente.
A cobertura traz também a transcrição de uma placa que se encontraria nas
paredes dos albergues:
"É proibido falar alto e gritar, fumar nas dependências internas,
desobedecer horários, tomar banho as as 22h e faltar com a higiene
pessoal." ("Medo e frio fazem lotar os albergues",
FSP
, 25/08/2004, p. C3)
Em outra passagem, o texto resume toda a questão:
185
Uma das justificativas para a resistência desses moradores é que os
albergues não admitem o uso de drogas ou de bebidas, separam homens e
mulheres em locais distintos e apenas um deles, na Barra Funda, possui
espaço para que os moradores estacionem suas carroças e deixem seus
cachorros. ("Albergues têm 7.500 vagas para 10 mil",
FSP
, 21/08/2004, p.
C4)
Misto de "resistência" e de falta de assistência. É assim que o jornal explica o
fato de parte da população estar nas ruas. Como é sua política, o jornal também
ouve "o outro lado", no caso a prefeitura, garantindo que ninguém fica sem auxílio ao
buscar os albergues, e uma especialista que afirma que a idéia de que os moradores
de rua não querem ir para os albergues é um "mito"
63
.
Na entrevista com uma moradora de rua que dormia ao lado de uma colega
que foi golpeada na cabeça e morreu no local na madrugada do segundo ataque,
novamente o albergue aparece como tema. A sobrevivente se nega a ir a um
albergue e afirma ficará no mesmo lugar que, segundo o jornal, ainda trazia a
"mancha de sangue" do ataque:
"Tá acontecendo isso [ataque] em todo lugar, prefiro continuar aqui".
("Grupo faz vigília para lembrar vítimas de ataque",
FSP
, 24/08/2004, p. C5)
O Globo
também reproduz este mesmo viés de cobertura, embora o contato
de seus repórteres com os moradores de rua tenha sido, aparentemente, menor, já
que as citações aparecem em menor escala. O jornal assume, por meio de títulos e
frases que funcionam ao mesmo tempo como informação e expressão de uma visão
particular dos acontecimentos, afirmações como:
63
Na verdade, existe, sim uma resistência dos moradores de rua em freqüentar os albergues
municipais, como mostrou a pesquisa da Fipe (2003) sobre a população de rua da cidade de São
Paulo. O que faltou à cobertura jornalística foi expor a verdadeira situação dos albergues, que
segundo o Fórum Centro Vivo (2005, p. 137) "não oferecem um acolhimento que respeite a
privacidade, a diversidade e especificidades de situações existentes hoje na população em situação
de rua, como a presença de famílias, deficientes sicos e mentais, idosos e dependentes químicos".
A interpretação que as reportagens passam é apenas a de que os moradores de rua resistem
porque não querem se submeter à rigidez das regras, como se esta fosse a única questão
envolvida. Tal interpretação ajuda a construir a imagem do morador de rua como alguém que
voluntariamente e "sem motivos" questiona as regras sociais e reforça o mal-estar.
186
Albergues de São Paulo não lotam (
OG
, 20/08/2004, p. 13 - título)
A barbárie (...) não estimulou os mendigos a procurarem albergues da
prefeitura. ("Albergues de São Paulo não lotaram
"
,
OG
, 20/08/2004, p. 13)
Os desvalidos que desafiam o perigo (
OG
, 25/08/2004, p. C3 - título)
O Globo
também atribui a autoridades iias na mesma linha:
Ela [a então secretária municipal de Assistência Social, Aldaíza Sposati]
acredita que os moradores em situação de rua que foram atacados não
freqüentavam os albergues. ("Mendigos assassinados em série em São
Paulo",
OG
, 20/08/2004, p. 12)
Em um dos poucos depoimentos de moradores de rua, a fala escolhida é a
seguinte:
"Ouvimos falar dos matadores, por cima. Temos medo, mas aqui na Sé tem
comida a noite inteira, você dorme e acorda com uma quentinha ao lado. Se
sair, a gente perde o lugar". ("Os desvalidos que desafiam o perigo",
OG
,
26/08/2004, p. 11)
A leitura das notícias deixa bem nítidas as idéias defendidas pelos dois
veículos de comunicação: os moradores de rua não querem ir aos albergues, que
em geral estão lotados e são insuficientes para atender a todos. Mas mesmo que
existam vagas, mesmo que estejam com medo e que tenham visto agressões
acontecerem ao seu lado, eles preferem "a liberdade" a se submeter às "regras
rígidas", que incluem, sobretudo, a proibição do consumo de bebidas e drogas.
Escolher tais afirmações, vindas de autoridades ou dos próprios moradores de rua, é
uma estratégia que confere legitimidade à idéia de resistência. A ideologia, aqui,
opera de modo claro, pela legitimação por racionalização, de acordo com a
classificação de Thompson:
Uma estratégia pica é o que chamamos
racionalização
, através da qual o
produtor de uma forma simlica constrói uma cadeia de raciocínio que
procura defender, ou justificar, um conjunto de relações, ou instituições
sociais, e com isso persuadir uma audiência de que isso é digno de apoio.
(THOMPSON, 1995; pp. 82-83)
187
A racionalização se liga ao mal-estar de modo bastante específico, porque cria
uma cadeia de argumentação aparentemente incontestável, ainda que na realidade
sirva para justificar diferenças e uma determinada ordem. No caso, a afirmação de
que a população de rua é resistente aos albergues deixa uma mensagem clara: os
moradores de rua não querem, não aceitam, o que "a sociedade", "o governo", "a
prefeitura" lhes oferecem: proteção e abrigo num albergue. Pior ainda, deixam a
impressão de que os ataques não aconteceriam se estivessem todos num albergue.
O albergue é cercado por uma representação bastante complexa. Isso porque
os moradores de rua que são atendidos pelo serviço são ainda mais invisíveis, o que
é, aparentemente, desejável. O local é representado como a possibilidade de
proteção para os moradores de rua. Esta é a idéia expressa nos textos. Mas ao
mesmo tempo, é a possibilidade de tirá-los "do caminho". Se eles estão nos
albergues não são vistos, não incomodam e o é preciso se preocupar com eles,
não importando que a assistência oferecida pelo albergue seja restrita a um leito, um
banho e um jantar. Para uma população de "desvalidos", isso deveria bastar.
Uma outra idéia é enfatizada pelos textos: os moradores de rua não querem
procurar esses lugares porque se recusam a se submeter a regras, não querem
deixar de lado sua liberdade. Eles resistem não exatamente ao albergue, mas à
restrição da liberdade; preferem o relento e a insegurança à certeza de uma noite
sem vigília e uma refeição. O desejo de liberdade do indivíduo, como explica Freud
(1997b [1929], p. 50) , sempre se dirige contra as exigências e as formas da vida em
sociedade. Ou seja: os moradores de rua se negam a pagar o preço de uma suposta
proteção que a sociedade tem a lhes oferecer. E desafiam abertamente o mal-estar
cotidiano dos leitores e dos produtores desses textos, que apesar de incomodados
com as restrições impostas pela vida em sociedade, ainda que irritados com as
188
regras rígidas do trabalho e das normas sociais, concordam em se submeter à
privação de liberdade em busca de segurança.
Na cobertura jornalística, a simples questão "por que os moradores de rua não
querem ir para os albergues?" se transforma no ponto de partida para a construção
de um outro que é rebelde, insubordinado e, talvez o que mais incomode, livre.
Algm que não se rende sequer ao medo da violência.
O texto jornalístico joga com a contradição. Em alguns textos, os jornais o a
idéia de que os moradores de rua não têm opção porque os albergues o têm
vagas. Em outros, apontam que há vagas ociosas, que os albergues o lotam, e
mesmo assim os moradores continuam nas ruas. Mas em ambos os casos, o que
prevalece é a mensagem, sempre reforçada em vários textos, de que a população
da rua resiste aos albergues e, sobretudo, não cede em seu desejo.
Ao ouvir um padre que defende abertamente os interesses da população de
rua ou uma especialista que caracteriza como mito a resistência da população em
relação aos albergues, a reportagem da Folha de S. Paulo instala a dúvida em
relação a todo o conteúdo das reportagens. Poderia se impor, aí, um
questionamento. Mas isso o acontece. O que sobressai é, ainda, a idéia de que a
grande maioria dos moradores de rua resiste aos albergues. O Globo chega a
reproduzir meros e estasticas que desmentem essa idéia:
Segundo a Secretaria de Assistência Social (SAS), nos últimos anos os
moradores de rua têm procurado e aceitado melhor os albergues. A SAS
informou que, em 200, 46% das pessoas em situação de rua estavam em
albergues e 54% ficavam nas ruas. Em 2003, esse panorama havia
mudado: 60% das pessoas dormiam em albergues e 40% ficavam nas ruas.
("Mendigos Assassinados em Série em São Paulo",
OG
, 20/08/2004, p.12)
Segundo Adelina Baroni, coordenadora do Programa Acolher Reconstruindo
Vidas, 30% das pessoas que vivem nas ruas se recusam a deixá-las porque
usam drogas, álcool ou têm problemas mentais. ("Albergues de São Paulo
não lotaram
",
OG
, 21/08/2004, p. 13)
189
Uma parcela de 30% é ainda minoritária. Mas tal fala e este percentual tão
objetivo se perdem em toda a construção do discurso.
Ao lado da racionalização, um outro modo de operação da ideologia que
reafirma a condição dos moradores de rua como outro é a reificação pela
naturalização. Thompson caracteriza assim a reificação:
Processos são relatados como coisas, ou como acontecimentos de um tipo
quase natural, de tal modo que seu caráter social e histórico é eclipsado.
(...) Esse modo pode ser expresso em formas simlicas através da
estratégia da naturalização. Um estado de coisas que é uma criação social
e histórica pode ser tratado como um acontecimento natural ou como um
resultado inevitável de características naturais (...) (THOMPSON, 1995; pp.
87-88)
A naturalização se dá, por exemplo, em afirmações do tipo:
"A maioria é alcoólatra e há casos de problemas mentais. Infelizmente, para
estes ainda não temos atendimento específico" diz a secretária da
Assistência Social. ("São Paulo tem 10.394 moradores de rua",
OG
,
25/08/2004, p. 8)
Tais afirmações justificam a situação de rua como algo que não pode ser
transformado. Equivalem a dizer: é assim e sempre será. A naturalização também
uniformiza um universo em que há muita diversidade, atribuindo o alcoolismo que
é uma condição de parte da população de rua – a todos os indivíduos do grupo,
como se as duas condições, morar na rua e ser alcoólatra, fossem indissociáveis,
cada uma reafirmando a outra.
A naturalização é uma forma de dar sustentação ao mal-estar, não é
necessário justificar o que é dito. Apenas são estabelecidas relações que indicam
que as coisas "são assim". A naturalização é simplista: detecta algo dado e não o
questiona, exime de esforços e de dúvidas, em certa medida até mesmo os invalida.
É a construção de uma "zona de conforto" que dá suporte a crenças e certezas.
190
A racionalização justifica o mal-estar e a naturalização o sustenta. Na
naturalização, há a confirmação das reações em relação ao outro. Na
racionalização, há uma demonstração lógica dos motivos que levaram o
estranhamento e o preconceito a se instalarem. Trata-se de uma estratégia que cria
um canal para que o incômodo que este outro nos provoca seja explicado, exime a
responsabilidade coletiva sobre o caso. E as palavras do padre Júlio Lancelotti, que
apela por uma "saída" para "os mais vulneráveis" se perdem. Tal vulnerabilidade não
nos diz respeito, eles mesmos a criam, poderíamos replicar, usando o jornal como
prova de nossos argumentos.
4.3.2 A linguagem que diferencia
Considerado objetivo e, portanto, "neutro" pelo senso comum, o texto
jornalístico deixa incontáveis brechas para a operação da ideologia pela
fragmentação do contexto social por meio da linguagem, que permite criar diferenças
entre o "eu" e o "outro", enfatizá-las, mostrá-las como ameaçadoras, perigosas ou
inaceitáveis e, desse modo, transformar o outro em um inimigo ou, pelo menos, em
alguém diferente, que não pode ser aceito ou reconhecido como semelhante.
Um dos primeiros aspectos que pode ser percebido na linguagem dos jornais
é o modo de nomear o outro. Folha de S. Paulo e O Globo têm posturas bastante
diferenciadas em relação à utilização da linguagem, como se percebe nas nocias
sobre o episódio dos ataques. A Folha utiliza como padrão, na totalidade de seus
textos, o termo "moradores de rua". É a única qualificação que o jornal assume para
a população de rua, tendo mencionado o termo "mendigo" apenas três vezes na
cobertura, sempre em um contexto específico: a citação de uma frase em que o
personagem citado utilizou a expressão ou, em um dos casos, ao reproduzir um
191
texto produzido pela reportagem do Agora São Paulo, jornal popular que pertence ao
mesmo grupo de comunicação. Já O Globo utiliza, quase como padrão, a palavra
"mendigos", outras poucas vezes os termos "indigentes" e "desvalidos" e também a
expressão "moradores de rua"
64
. Os textos de O Globo trazem:
Mendigos assassinados em série em São Paulo (
OG
, 20/08/2004, p.12
título)
Massacre de mendigos mobiliza candidatos (
OG
, 21/08/2004, p.13 – título)
Até agora, 16 mendigos foram atacados e seis morreram por causa dos
ferimentos ("Polícia divulga retrato falado de dois suspeitos",
OG
,
25/08/2004, p. 8)
Homens e mulheres dormem em cômodos separados e, segundo a SAS, é
por causa dessa separação que muitos indigentes se recusam a ir para os
albergues. ("Mendigos assassinados em série em São Paulo",
OG
,
20/08/2004, p.12)
Já, na Folha de S. Paulo, a linguagem é:
Moradores de rua sofrem ataque em série (
FSP
, 20/08/2004, p. C1 – título)
Moradores de rua sofrem novo ataque (
FSP
, 23/08/2004, p. C1 título)
A sessão também foi acompanhada pelo presidente da Casa, o vereador
Arselino Tatto (PT), e pelo vereador Erasmo Dias (PP), que, quando falou
do atendimento ao morador de rua de 30 anos atrás, época em que foi
secretário da Segurança Pública, foi vaiado ao usar a palavra mendigo. "Os
mendigos eram abordados pela polícia, levados para um abrigo e tinham de
tomar banho com neocid [inseticida]", contou Dias. "Depois, os policiais
diziam que, se o sujeito fosse encontrado outra vez, seria autuado por
vadiagem e detido por 30 dias". ("Na Câmara, morador de rua cobra
respeito",
FSP
, 03/09/2004, p. C6)
Essa diferença, na cobertura, é bastante relevante. Os termos "mendigos" e
"indigentes" e "desvalidos" são pejorativos e criam uma imagem do grupo que se
resume à mendicância e à miséria. É como se uma parte daquilo que essas pessoas
64
A utilização de termos levanta algumas hipóteses. É comum, por exemplo, entre os jornalistas, a
argumentação de que uma palavra com menos caracteres facilita e muitas vezes viabiliza a
elaboração de títulos, já que o espaço, no jornal, é reduzido. No caso, entretanto, a explicação não
se aplica. Em primeiro lugar porque os termos "mendigos" e "indigentes" não aparecem apenas nos
títulos, mas de forma recorrente ao longo de vários textos. Em segundo lugar, por mais que seja
difícil fazer com que um título com o termo "moradores de rua", mais longo, caiba no espaço
predefinido, não é impossível, já que a
Folha de S. Paulo
fez isso.
192
são – pobres se transformasse num estigma e em sua única e predominante
característica. Esse tipo de linguagem sustenta o estranhamento, a aversão, a
diferenciação de modo a transferir para o outro uma imagem negativa e a não-
aceitação. O mal-estar, aqui, não é apenas evidenciado e expresso, mas é
fortalecido pelo uso da linguagem.
Já a nomeação "moradores de rua" é menos contundente, remete a um
significado preexistente e já pejorativo
65
. A diferenciação, aqui, ainda que exista, se
dilui e a expressão, relativamente nova, o vem carregada do preconceito histórico
em relação à população de rua. Ao mesmo tempo, isto permite projetar nela o
significado que o leitor quiser atribuir.
Optar por qualificar o outro como "morador de rua" e não "mendigo" não
significa, entretanto, amenizar ou enfraquecer o mal-estar que não é passível de
redução. Tamm não o traz à consciência. Mas demonstra um cuidado maior com a
diversidade dentro de um grupo. Ao mesmo tempo, a utilização do termo "morador
de rua" permite a dissimulação das contradições nas relações sociais e, assim, seria
uma estratégia de encobrimento do mal-estar.
Este é um dos riscos muito criticados pelos especialistas (por exemplo,
POSSENTI, 1995) em relação à linguagem politicamente correta. A iia de que a
simples substituição de um termo por outro não pode influenciar na diminuição dos
preconceitos e que pode até criar uma escie de escudo para as assimetrias nas
65
Quem aponta isso é o padre Júlio Lancelotti, em entrevista à
Folha de S. Paulo
. Segundo ele, os
moradores de rua consideram o termo pejorativo. Perguntado se algo se altera quando a imprensa
utiliza a expressão "mendigo" em vez de "morador de rua", o padre respondeu: "Altera na formação
da opinião pública. Qual o conceito de mendicância? Ele tem um certo sentido pejorativo. Entre eles
[moradores de rua], existem pessoas que vivem na mendicância. Agora, por que continuam na
mendicância? Esse femeno, o drama humano, acaba ofuscado. Quem é essa pessoa? Por que
tem esse comportamento?" (
Quem são essas pessoas?
FSP
, 29/08/2004, p. A6)
193
relações, evitando que as desigualdades sejam expressas, percebidas e, portanto,
eventualmente criticadas.
A utilização de uma expressão menos ofensiva também tem papel
fundamental nas relações sociais. A desqualificação direta do outro pode servir para
estimular o conflito o que, supostamente, não aconteceria com o uso de um termo
supostamente descarregado dos preconceitos. Ao mesmo tempo, o discurso
politicamente correto revela uma recusa em revelar a desqualificação do outro que
faz parte, sim, da ideologia. As palavras adequadas podem servir, assim e em
geral é o que acontece, como mostra a análise –, para "maquiar" a ideologia, o que
apenas contribui para manter o outro em sua posição de diferente e de oposto nas
relações conflituosas cotidianas.
A qualificação do outro como diferente o se dá apenas pela nomeação, mas
também pela caracterização. Neste sentido, O Globo é o que traz mais elementos
para a análise. O jornal cria uma imagem bastante negativa dos moradores de rua.
A cachaça é a companheira da maioria dos moradores de rua que não
consegue abandonar o vício. Uma garrafa de 'barrigudinha' custa R$ 1,00.
("Os desvalidos que desafiam o perigo",
OG
, 26/08/2004, p.11)
Pretos, mulatos, migrantes, alguns homossexuais. Alcoólatras, vítimas de
problemas mentais, ex-presos, solitários e sem emprego. Essas eram
algumas das características dos seis mendigos mortos a marretadas no
Centro de São Paulo. ("Perfil de miséria une vítimas de massacre",
OG
,
25/08/2004, p.8)
As vítimas eram pretas, homossexuais, nordestinas, ex-internos da
Febem, ex-presos, os mesmos alvos de sempre. O fato novo é o recado que
deram com essas matanças: retomaram os esquadrões da morte – afirmou
Daise Benedito, da ONG Fala Preta, que trabalha com moradores da
periferia de São Paulo. ("Perfil de miséria une vítimas de massacre",
OG
,
25/08/2004, p.8)
A descrição das vítimas nestes dois últimos casos (que constam do mesmo
texto, no qual o jornalista visivelmente se inspirou na fala da entrevistada para criar
uma imagem do morador de rua) revela uma característica bastante ardilosa da
194
operação da ideologia por meio da fragmentação. Aparentemente, a primeira
descrição tenta enfatizar a vulnerabilidade social dos moradores de rua. Mas ao
descrevê-los desse modo, alimenta o estranhamento em relação ao outro e até o
preconceito, sugerindo que as pessoas assassinadas fugiam do padrão, da
normalidade, eram exceções, como se em outros grupos ou segmentos sociais o
existissem pessoas com as mesmas características.
A Folha de S. Paulo adota uma estratégia diversa de O Globo ao caracterizar
as vítimas dos ataques. Nada de buscar as características raciais, de classe,
preferências sexuais ou o relacionamento com o álcool ou as drogas das pessoas
que sofreram a violência. O que o jornal busca é tentar retratar como se integravam
à comunidade ao redor e o comportamento que tinham. Para isso, recolhe
depoimentos de colegas dos moradores de rua atacados, descrevendo as vítimas
como pessoas conhecidas na região central e integradas ao cotidiano local:
Não foi dicil para moradores e comerciantes da região central de São
Paulo reconhecer algumas das vítimas dos ataques aos moradores de rua
ocorridos durante a madrugada de ontem. Cosme Rodrigues Machado, 56,
prestava serviços esporádicos na região e costumava dormir no vão de
entrada da oficina onde foi encontrado por volta das 7h. ("Vítimas de ataque
eram conhecidas na área",
FSP
, 20/08/2004, p. C4)
Valéria Boni Abel, 25, que trabalha em uma clínica na mesma rua,
costumava encontrá-lo na região. "Era um homem bom e muito prestativo",
disse ela. ("Vítimas de ataque eram conhecidas na área",
FSP
, 20/08/2004,
p. C4)
"O Pantera era bagunceiro, mas boa pessoa", diz a vendedora Frineas
Feliciano, 43, que trabalha em uma loja de CDs da região. ("Vítimas de
ataque eram conhecidas na área", FSP, 20/08/2004, p. C4)
"Mataram pessoas que não faziam mal e que não brigavam com ningm.
Isso só pode ser coisa de grupo de extermínio", disse o ambulante Silva,
que trabalha na praça João Mendes. ("Vítimas de ataque eram conhecidas
na área",
FSP
, 20/08/2004, p. C4)
Outra vítima conhecida e querida na região é o morador de rua chamado
Gaguinho, que foi socorrido pela manhã, tamm na rua Tabatingüera, por
um grupo de taxistas. "Todos nós confiamos nele. É um homem quieto e
honesto", declarou o taxista Antonio Pereira, 48. ("Vítimas de ataque eram
conhecidas na área",
FSP
, 20/08/2004, p. C4)
195
Proprietária de um café nas imediações da praça João Mendes, Regina
Dantas disse que ele varria a calçada durante o dia em troca de comida,
café e cigarros. ("Vítimas de ataque eram conhecidas na área",
FSP
,
20/08/2004, p. C4)
A mensagem que fica é a de que os moradores de rua atacados eram "gente
como a gente": buscavam trabalho, eram honestos, "boas pessoas", "o faziam mal
a ningm". Dessa forma, o jornal aproxima os moradores de rua da "normalidade".
Eram figuras que compartilhavam do dia-a-dia com os moradores e comerciantes da
região, não representavam ameaça nem problemas.
O modo de operação da ideologia, aqui, é o da unificação pela simbolização
da unidade. Trata-se de uma estratégia que, como explica Thompson, é uma
tentativa de criar uma identidade coletiva, negando ou encobrindo as assimetrias
nas relações sociais.
Esse é um modo de utilização da linguagem que acaba por negar o mal-estar,
construindo uma imagem do outro que corresponde não a seus valores e
expectativas, mas ao nosso modo de existir em sociedade. Talvez, o que mais
reforce isso seja a idéia de que os moradores de rua buscavam trabalhos e
ajudavam com pequenas tarefas a comunidade local.
Este é um modo capcioso de tratar o outro. Aparentemente, o se expressa
o mal-estar quando as diferenças se tornam secundárias e o outro é visto como um
igual, um semelhante. Mas o problema, aqui, é que essa semelhança se constrói
negando sua condição.
Ainda que estejam se relacionando com a comunidade sem conflitos
expressos, isso não significa que essas pessoas estejam integradas à vida social. A
unidade criada o se sustenta e desta forma, o incômodo em relação ao outro é
negado: ele não aparece, mas existe.
196
4.3.3 Enquanto isso, PT e PSDB ...
Logo na primeira semana de cobertura jornalística, a Folha de S. Paulo
identificou e destacou os desdobramentos que os ataques tiveram na política
regional. O que para O Globo foi uma polêmica secundária, mencionada numa única
nocia (Polícia acusa guarda de atacar mendigos. OG, 31/08/2004, p.13), para a
Folha se tornou um dos pontos centrais da cobertura: a troca de acusações entre
representantes da prefeitura e do governo estadual sobre a responsabilidade pelas
mortes. As acusações logo se transformaram numa briga de bastidores entre PT
partido da então prefeita e candidata a reeleição em 2004, Marta Suplicy e PSDB
do candidato a prefeito José Serra e do então governador Geraldo Alckmin.
Para O Globo, a polêmica se iniciou apenas quando a Polícia Civil (ligada ao
governo estadual) divulgou que dois sobreviventes dos ataques teriam afirmado que
foram agredidos por guardas-civis (ligados à prefeitura). A prefeitura acusou a polícia
de obter os depoimentos de modo irregular, no hospital, sem autorização dos
médicos, quando os moradores de rua ainda não tinham condições de falar e
praticamente induzindo a confirmação de que os suspeitos seriam da GCM.
A Folha de S. Paulo destaca a troca de acusações já no segundo dia após o
primeiro ataque, quando a PM passou a recolher moradores de rua e levar aos
albergues. A Secretaria de Segurança Pública (estadual) aparece nos textos
acusando a Secretaria de Assistência Social (municipal) de o dispor de vagas nos
albergues. Na via contrária, a prefeitura teria divulgado notas oficiais
responsabilizando a política estadual de segurança pelas mortes.
A "polêmica" passa a ser mencionada com freqüência pelo jornal, que dedicou
15 das 89 nocias sobre o caso exclusivamente à questão política, mencionando-a
também em outros textos (ou como forma de contextualização ou na busca de novas
197
declarações de autoridades sobre adversários políticos). A politização das agressões
aparece em críticas comuns, como a de que PT e PSDB além de outros partidos
fazem uso eleitoral dos ataques. Está também na relação criada pelo jornal entre as
ações anunciadas pelo governo e pela prefeitura voltadas para a população de rua
como se fossem manobras eleitoreiras e, principalmente, na extensa reprodução de
declarações de representantes do PT e do PSDB que podem ser lidas como críticas
aos adversários.
Isso não significa que o jornal construiu a rivalidade dos dois partidos em torno
do caso, mas que essa dimensão dos acontecimentos, os bastidores da política e da
disputa pelo poder, em certos momentos, se sobrepõe à questão principal que é a
agressão aos moradores de rua. Este viés da cobertura pode ser identificado em
nocias como:
Erundina é única a citar chacina na TV (
FSP
, 21/08/2004, p. A6 – título)
Estado e prefeitura trocam novas acusações (
FSP
, 21/08/2004, p. A6
título)
O ataque acabou provocando novo bate-boca entre a candidata à reeleição
Marta Suplicy (PT) e o secretário estadual da Segurança Pública. A
prefeitura divulgou nota com críticas à ação do Estado, comandado pelo
PSDB, partido de José Serra, principal adversário da petista na disputa.
"É um dever do Estado proteger as pessoas da violência e da criminalidade.
Este brutal assassinato evidencia as terríveis carências em matéria de
segurança pública e exige que todos assumam seu lugar no combate contra
esse flagelo. Só a união de todos pode dar um basta na onda de crimes,
seqüestros, assaltos e assassinatos que tomaram conta do dia-a-dia dos
brasileiros", diz a nota oficial.
No final da noite de ontem, a secretaria divulgou nota rebatendo as
acusações da prefeitura. "O trabalho de combate à criminalidade está sendo
feito. Ressaltamos que a retirada dos menores e moradores de rua é
atribuição da prefeitura, cabendo à polícia a obrigação legal de prender
criminosos". ("Polícia o tem pistas dos autores do crime",
FSP
,
20/08/2004, p. C3)
A troca de acusações entre o governo do Estado e a Prefeitura de São
Paulo relacionadas ao ataque a pelo menos dez moradores de rua no
centro da cidade, na última quinta-feira, pode comprometer o andamento
das investigações.
O alerta foi feito pelo representante da OAB-SP (Ordem dos Advogados do
Brasil), Hédio Silva Júnior, da Comissão de Direitos Humanos da entidade,
que vem acompanhando as investigações. ("Bomba fere morador de rua em
novo ataque",
FSP
, 22/08/2004, p. C8)
198
[Saulo de Castro] Abreu Filho declarou que "vão dizer que estou politizando"
e que fica "chateado" por encarar as críticas como algo da campanha
eleitoral. "Por favor, Marta Suplicy, abra vagas para a polícia poder levar os
moradores de rua", afirmou depois, dizendo desconhecer "a política pública
do município para lidar com a questão". ("Estado anuncia reforço policial no
centro",
FSP
, 23/08/2004, p. C3)
A oposição ao governo do Estado na Assembléia paulista aproveitou ontem
o momento de fragilidade do tucano Geraldo Alckmin no caso do massacre
dos moradores de rua e aprovou a criação de uma comissão para
acompanhar a apuração da polícia.
Foi mais um passo do PT para acuar o governo estadual e "carimbar" a
campanha tucana de José Serra a prefeito paulistano com o caso dos
assassinatos. ("Oposição impõe comissão a Alckmin",
FSP
, 25/08/2004, p.
C4)
O governo paulista acusa o PT de utilizar politicamente os crimes. "A
prefeitura petista está fazendo um uso eleitoral do massacre, dessa coisa
triste, o que o é bom para ninguém", disse o vice-governador do Estado,
Cláudio Lembo, um dos principais líderes paulistas do PFL, partido coligado
com o PSDB na capital. ("Oposição impõe comissão a Alckmin",
FSP
,
25/08/2004, p. C4)
O governo e o PSDB se articulam para reagir, mas, a portas fechadas,
reconhecem que permanecerão em situação difícil enquanto o titular da
Segurança, Saulo de Castro Abreu Filho, o nome mais próximo de Alckmin
no primeiro escalão, não apresentar resultados das investigações.
"Assim que nós apresentarmos os responsáveis, o problema dos moradores
de rua volta para o colo da prefeita imediatamente", disse um dos
coordenadores da campanha de José Serra. ("Oposição impõe comissão a
Alckmin",
FSP
, 25/08/2004, p. C4)
Aparentemente, a dimensão política da cobertura jornalística não tem relação
com o mal-estar, até mesmo porque é inevel que o caso tem, sim, um forte apelo
eleitoral, além de colocar os governantes numa situação delicada, em que são
questionados e incitados a darem explicações. E a explicação mais fácil e, em geral,
menos comprometedora em um momento delicado, é culpar o adversário.
Mas tamm é fato que a questão da segurança pública é uma das moedas
dos candidatos na conquista de votos e as agressões aos moradores de rua
aconteceram pouco menos de dois meses antes do primeiro turno das eleições
municipais. Os candidatos tinham interesse em usar o impacto da violência das
mortes e sua repercussão na mídia como gancho para atrair a atenção de possíveis
199
eleitores. E nesse sentido, a reação inicial de Marta Suplicy e José Serra (candidatos
ligados aos partidos que estavam no comando da prefeitura e do governo estadual
no momento dos ataques) é tamm estratégica: mencionar o caso no horário
eleitoral seria, necessariamente, assumir uma responsabilidade e, então, a omissão
era a melhor estratégia.
Ainda assim, por meio da cobertura jornalística, os dois candidatos tentaram
obter seus dividendos eleitorais por meio das críticas ao adversário. O que é,
também, característico da ação política moderna.
A incerteza, o medo do desconhecido, das ameaças imprevisíveis e
inomiveis ao corpo humano, à propriedade, ao esquema de vida são uma
matéria-prima facilmente reciclada em capital político. A promessa de "ser
duro" com criminosos, estranhos, imigrantes, mendigos e todas as outras
pessoas vistas como incômodos e potenciais perigos se torna uma arma
preferida em disputas políticas. Os governos são capazes de aparecer como
guardiões da segurança e salvadores de catástrofes indizíveis, que, de
outro modo, sem sua vigilância e empenho, poderiam afetar seus súditos,
enquanto os partidos de oposição desenvolvem um "benecio próprio" ao
convencer os cidadãos de que os verdadeiros perigos são muito maiores do
que os governos deixam perceber. Jogar com os sentimentos de
insegurança e os medos resultantes se torna hoje o principal veículo de
dominação política. (Entrevista de Zygmunt Bauman à
Folha de S. Paulo
. "O
homem que inspirou Matrix",
FSP
, 11/03/2004, caderno Mais!, p. 6)
O jornal o cria a polêmica política ou eleitoral, mas faz uso dela
exacerbando-a, dando a ela um lugar de destaque na cobertura e politizando ao
extremo uma questão social. A cobertura jornalística passa a abordar os conflitos
que acontecem no âmbito da política em seu sentido mais rasteiro – o da atuação
dos políticos , deixando de lado o debate sobre os moradores de rua, sua situação,
as condições sociais e ecomicas dessa parcela da população.
Esta é uma forma de organizar o discurso jornalístico que tem reflexos diretos
na relação entre mídia e mal-estar e representa uma escie de estratégia
combinada em que aparecem, ao mesmo tempo, dois mecanismos de construção do
discurso apontados por Thompson (1995). O primeiro é a unificação, que nega a
200
aversão e o estranhamento que os moradores de rua provam e, portanto, o mal-
estar que a eles está relacionado – à medida que aparecem como vítimas do
desentendimento dos políticos e de sua má administração. Assim representadas, as
pessoas em situação de rua são um pouco como toda a sociedade, abandonada
pelas autoridades.
Opera-se tamm uma fragmentação por diferenciação, ao retratar os
políticos e administradores como preocupados apenas com seus próprios interesses,
não com os interesses da sociedade: são oportunistas, inconseentes e utilizam
uma situação preocupante em proveito próprio, calando quando é inconveniente
falar, criticando o adversário quando claramente têm responsabilidade no fato.
Alentadora a abordagem do assunto que permite aos leitores de jornal
negarem o próprio sentimento de culpa em relação aos moradores de rua. Os
culpados e responsáveis são os políticos e, nesse sentido, a fragmentação irá
reforçar o mal-estar em relação a esse grupo num outro processo ideológico que é o
do ressentimento. Os moradores de rua vão, assim, para um segundo plano, deixam
de ser o foco central das matérias e retornam à invisibilidade: o problema se torna
uma questão que envolve a sociedade e os políticos, retratados como interesseiros
que querem tirar vantagens pessoais ou partidárias de um problema social
66
.
O foco das atenções sai da questão social para os bastidores da política, sai
dos personagens "quase" invisíveis do cotidiano, sobre os quais temos poucas
informações, pouca disposição de aproximação e pouco interesse, para se
66
Acredito que a figura do político possa se constituir num outro, também, na atual conjuntura
brasileira. No caso, um outro sobre o qual se projetam comportamentos e atitudes como a
corrupção, o descaso com a sociedade, o oportunismo. Características que nos incomodam e ferem
a imagem que os brasileiros têm de si mesmos e são, por isso, encarnadas nesse outro. Acredito
que este é um femeno relacionado a uma outra característica moderna, o ressentimento, e cuja
relação com os políticos poderia ser estudada, mas que apenas indico aqui, por estar fora do
contexto deste trabalho. Sobre o ressentimento escreveram Kehl (2004b) e Koltai (2004).
201
concentrar nos representantes do status quo: a classe política, os governantes. As
relações assimétricas são justificadas, assim, pelo simples retorno da cobertura
àquilo que é sua condição já conhecida: o destaque dado a quem detém alguma
escie de poder, no caso, o poder político.
Ainda que a cobertura seja crítica à ação dos políticos, não necessariamente
contribui para criar condições de resistência, mas ajuda a negar o conflito nas
relações com o morador de rua e a transportá-lo para o conflito que existe nas
relações internas das camadas mais privilegiadas.
4.3.4 Falas da resistência
Uma vez que o mal-estar o é passível de redução e que o discurso sempre
carrega mensagens inconscientes, ele estará sempre à espreita em qualquer
discurso e pode se manifestar de muitas maneiras, algumas das quais apontadas
aqui.
Isso não significa que todos os discursos ou, em especial, os discursos
midiáticos sejam uma expressão exclusiva do mal-estar. Resistir ao conflito
permanente entre indivíduo e sociedade é uma tarefa possível apenas para o
indivíduo, na medida em que ele tenha consciência desse conflito e interesse em
reduzi-lo. A construção das relações de alteridade, e não de assimetria, dependem
do sujeito. Mas, talvez, ele possa contar com alguns, ainda que poucos, recursos
que estão disponíveis no discurso jornalístico.
A ambigüidade que marca o texto jornalístico é, neste sentido, uma brecha
aberta para a resistência ao mal-estar. Os jornais expressam, em geral pelas falas e
artigos de especialistas que estão atentos à questão do conflito intrínseco às
202
relações sociais, à consciência clara do mal-estar, do preconceito e da indiferença
em relação ao outro, no caso, os moradores de rua.
Embora o apareçam de forma sistemática nem dominem o noticiário,
algumas declarações que puderam ser destacadas no noticiário de Folha de S.
Paulo e O Globo sobre as agressões a moradores de rua expressam as origens
sociais da intolerância e da indiferença, além de apontarem uma responsabilidade
conjunta sobre a violência.
Em geral por meio de uma explicação racional, lógica, as relações sociais
assimétricas são denunciadas, numa estratégia que é a mesma utilizada para
justificá-las: a da legitimação pela racionalização. Exemplos disso são trechos como:
O coordenador da Pastoral do Povo da Rua, padre Júlio Lancelotti, diz que
o perfil dos moradores de rua é complexo. O padre, porém, destaca que os
alvos mais fáceis são justamente os mais frágeis. Ele frisa que a maioria
tem históricos de perdas emocionais e financeiras e de desagregação
familiar. Por isso, muitos acabam se tornando vítimas do alcoolismo. ("Perfil
de miséria une vítimas de massacre",
OG
, 25/08/2004, p. 8)
Quando reconheceremos que os loucos e os perdidos são sujeitos como
nós? (...) aposto que os assassinos desta semana são tão próximos dos
moradores de rua quanto eram de suas vítimas os "skinheads" da praça da
Reblica em 2000
67
. Aposto que são sujeitos de uma pequena classe
média que a falta de perspectivas ameaça com o espectro da miséria.
Aposto que sua fúria homicida é a vontade de apagar a imagem de seu
próprio futuro possível. Matara moradores de rua para "festejar" sua
diferença, da mesma forma que os "skinheads" de 2000 quiseram silenciar o
desejo que os assombrava. (Contardo Calligaris. "Quem tem medo dos
moradores de rua?", FSP, 26/08/2004, p. E8)
Condenados às ruas, esses seres humanos se misturam com sucatas,
insetos e lixo, degradados em sua dignidade. Muitos, como algumas das
vítimas de São Paulo, o são apenas sem-teto. Chegam ao extremo de ser
sem-nome. Por que não mereceram a sorte da loteria biológica: nenhum de
nós escolheu a família e a classe social em que nasceu. Se não estávamos
no lugar daquelas vítimas, foi por mero acaso. (Frei Beto. "Violência
silenciosa",
FSP
, 12/10/2004. p. A3)
As frases e referências mostram que, muitas vezes, os modos de operação da
ideologia carregam em si a própria contradição. A tentativa de explicar um
acontecimento implica na racionalização. No discurso jornalístico, ideológico, muitas
67
O articulista Contardo Calligaris se refere ao assassinato de Edson Neri da Silva em 2000, ligado
ao preconceito contra os homossexuais.
203
vezes essa diversidade fica encoberta pelas idéias predominantes. Estes discursos
evidenciam e explicitam o mal-estar. Chegam a praticamente nomeá-lo, como
acontece no trecho de Contardo Calligaris. E são importantes porque revelam o que
está por traz da violência. Mas, pela própria lógica do texto jornalístico, estas falas
dissonantes do discurso são encobertas por tantas outras estratégias discursivas
ideológicas.
O jornal também cria caminhos para a resistência em trechos da série Vozes
da Rua (FSP, 03/09/2004, p. C6), em que moradores de rua relatam suas histórias
em curtos depoimentos: um ex-porteiro/segurança de supermercado que perdeu o
emprego, brigou com a única parente, a irmã e foi morar na rua; uma mulher
aposentada por invalidez que ficou viúva e também não encontrou acolhida entre
familiares, mas que freenta um curso de alfabetização e "quer melhorar de vida
arranjando outro marido"; o "filho único" que sofre de depressão e não consegue se
manter num emprego porque falta com freqüência, incapacitado pelos sintomas da
doença, e que se ressente da falta de auxílio dos familiares; o graduado em Direito
que, por causa do alcoolismo, teria desestruturado dois casamentos e perdido dois
filhos
68
.
Tais depoimentos tamm apelam para uma identificação: são histórias de
vida semelhantes a muitas que todos conhecemos e que mostram o que há por trás
de algumas experiências reais como o alcoolismo, a desestruturação familiar, o
analfabetismo, desemprego e doenças como a depressão. Todas condições sociais
que estão efetivamente ligadas às vidas desperdiçadas da sociedade moderna e
que conectam diretamente a situação de rua aos conflitos sociais.
68
O texto da
Folha de S. Paulo
afirma que o entrevistado cursou Direito na Universidade de Mogi das
Cruzes. A Universidade enviou uma correspondência ao jornal negando que ele tenha sido aluno da
instituição. Mas não houve outros esclarecimentos sobre as versões conflitantes.
204
A aproximação da reportagem da população de rua, a disposição em ouvi-la,
mostra um aparente reconhecimento desse outro em sua diversidade. A idéia da
reportagem é justamente essa: a observação e a escuta do desconhecido. Nesta
aproximação, que muitas vezes confronta o jornalista com seu próprio mal-estar,
existe uma bifurcação na construção de sentido: um lado indica a possibilidade de
questionar estereótipos e tentar reconstruir a imagem do outro; o caminho alternativo
é reforçar as idéias prontas.
Sejam porque são difíceis de escutar no emaranhado de falas contrárias,
predominantes no discurso jornalístico, ou ainda porque reconhecê-las implica numa
quebra de muitas estruturas, tanto sociais quanto psíquicas, as falas da resistência
são raras. Não chegam a desafiar o mal-estar, porque estamos todos apegados a
ele, não apenas o discurso ideológico.
4.4 Questão de opinião
A manifestação de opiniões nos jornais é quase um tabu entre os jornalistas.
Voltados para o jornalismo "objetivo", os profissionais não admitem abrir as páginas
à manifestação de opiniões próprias. Vale apenas a opinião da fonte, de um
especialista autorizado a emitir juízos sobre determinado tema ou de algm que
esteja respaldado por uma instituição acadêmica ou um movimento social.
As regras do jornalismo implicam em garantir que textos exclusivamente
opinativos estejam identificados graficamente, por meio da localização em seções
específicas ou sob rubricas que indiquem o texto opinativo. Isso não significa dizer
que, na prática, a opinião esteja segregada. Nos grandes jornais, os tulos
freqüentemente expressam opiniões de modo indireto, por meio dos mesmos modos
de operação da ideologia identificados por Thompson (1995).
205
Ao longo da cobertura dos acontecimentos na Rocinha, na Casa de Custódia
Benfica e no centro de São Paulo, Folha e O Globo dedicaram poucas páginas a
textos exclusivamente opinativos. Os principais textos considerados opinativos foram
editoriais, artigos ou comentários e poucas cartas de leitores. O pequeno espaço
dedicado a casos de violência em editoriais e artigos é uma tradição da imprensa
brasileira, como aponta Melo (2003, pp. 103-105) porque, em geral, os jornais se
utilizam desses espaços para discutir temas considerados de interesse mais amplo,
como política e economia. Ainda assim, essas categorias de textos jornalísticos
apresentam algumas diferenças.
Nos editoriais o jornal assume diretamente sua posição, o exatamente
como veículo de comunicação, mas como organização econômica, que defende
determinados interesses políticos e de mercado ligados não apenas à empresa
jornalística em si, mas também a seus acionistas e controladores. Nos artigos
assinados, abre-se espaço para que jornalistas renomados detentores de um
reconhecido saber, portanto , escritores, advogados e outras figuras de destaque
no cerio nacional expressem seus pensamentos sobre os fatos.
Os artigos não expressam a opinião da organização responsável pelo jornal,
mas julgamentos vinculados à figura do articulista. Muitos leitores abrem as páginas
dos jornais para saber como Carlos Heitor Cony (FSP) e Luiz Garcia (OG), para citar
apenas dois exemplos, se posicionam sobre determinado acontecimento. Já as
cartas dos leitores, únicos meios de manifestação do receptor da mensagem no
jornal impresso, têm uma participação praticamente inexpressiva no resultado final
do jornal.
Na grande maioria das vezes, entretanto, os textos opinativos o diferem, em
conteúdo, dos textos informativos (reportagens, nocias, chamadas etc) quanto à
206
representação do outro. Mas é especialmente quanto à questão do Estado como
Outro que os artigos e editoriais trazem contribuições mais relevantes relativas à
análise sobre o mal-estar cultural.
Mais do que falar aos leitores, nos editoriais a organização empresarial que
administra o jornal fala ao Estado (MELO, 2003, p. 105) sobre como gostaria que os
assuntos de seu interesse fossem tratados pelo poder estatal. Esta é a regra: usar o
editorial para pressionar o Estado, para demonstrar sua força de mobilização de
opiniões contra o poder instituído.
Por isso, o que sobressai nos editoriais sobre os três casos é uma dura crítica
em relação à competência do Estado em gerir questões de segurança no País,
algumas vezes resvalando para as diversas formulações possíveis do velho
argumento de que os cidadãos de bem pagam seus impostos e o governo, as
instituições estatais, não oferecem em troca as medidas que seriam sua obrigação
(educação, segurança, emprego).
Proliferam, tamm, ns editoriais, as fórmulas explicativas causais, sendo que
as mais recorrentes podem ser expressas por equações como: polícia ineficiente,
corrupção e justiça morosa resultam em insegurança; ou, desemprego elevado e
educação blica de má qualidade são as causas sociais da criminalidade elevada
nas comunidades pobres. Os dois jornais apelam à constituição de um Estado forte
nas questões sociais e a uma menor intervenção na economia.
Tais argumentos, claro, se expressam em frases sofisticadas e no recurso a
formulações cínicas de pensamento, como:
Depois de ter sido local da maior chacina verificada num presídio
fluminense, Benfica acaba de patrocinar a fuga de 45% dos seus presos,
por meio de singelas cordas de pano. É mesmo séria candidata a entrar no
Guinness no ranking dos piores exemplos em termos de segurança
pública. ("Recorde",
OG
, 12/10/2004, p. 14 – editorial)
207
Um governo não deveria ter de demonstrar a ningm que exerce o controle
sobre seus presídios isso é um pressuposto da autoridade pública. E a
mera proliferação dessas organizações do crime já atesta o grau de
ineficiência das políticas de segurança. Lamentavelmente, é essa a situação
que se tem verificado no país. ("Quem manda",
FSP
, 05/06/2004, p. A2
editorial)
Nos artigos de opinião, uma das prerrogativas do articulista é apresentar-se
como um intelectual que pensa sobre os rumos da sociedade e tem soluções a
oferecer. Na prática, entretanto, são raros os artigos que apresentam propostas mais
efetivas. Muitas das fórmulas de crítica ao Estado se repetem. Mas no editorial
ganha destaque uma instância nova, a sociedade. Os governantes são descritos
como "eles lá em cima", que têm o poder e a obrigação de agir, mas nada fazem, em
contraposição a "nós aqui embaixo" (a sociedade), reféns da inoperância
governamental, algumas vezes apontados também como excessivamente
subservientes. Mas predomina a iia é a de que se "eles lá em cima" fizessem ago,
"nós aqui embaixo" viveríamos melhor.
Se governos cumprissem suas obrigações, em todas as instâncias, talvez
tivéssemos uma sociedade melhor. As armas dos bandidos não são
fabricadas no Rio. Entraram pelas fronteiras, é uma responsabilidade
federal. A responsabilidade de não deixar crescer favelas é da prefeitura.
(Coluna "Toda Mídia", de Nelson de Sá,
FSP
, 14/04/2004, p. A8)
O artigo mais polêmico de toda a cobertura foi publicado por
O Globo
e trazia
a proposta de Luiz Paulo Conde e Sérgio Magales de cercar a Rocinha. Mesmo
sendo à época, respectivamente, vice-governador e subsecretário de
Desenvolvimento Urbano do Estado do Rio de Janeiro, os autores também repetem
a fórmula de crítica ao governo (em outras instâncias que não a estadual) e o apelo
à sociedade.
É preciso reconhecer que a violência instalada na cidade, mas
especialmente nas áreas faveladas, resulta de causas amplas e complexas,
e que seu combate o se dará por mágica. O governo do estado está
cumprindo a sua parte. Todavia, precisamos reconhecer que os três níveis
de governo municipal, estadual e federal têm papéis insubstituíveis a
208
cumprir. O fraquejo de um deles compromete o resultado da construção de
uma sociedade democrática.
A ressurreição do espírito de confiança e de paz é a grande esperança do
carioca. Ela só resultará da união de esforços dos três níveis de governo, e
contará com o apoio da sociedade. (
OG
, 13/04/2004, p. 6)
Uma das poucas possibilidades de interação dos jornais com os leitores, em
épocas de mídias interativas, são as cartas e e-mails. É por meio das
correspondências que o público finalmente se apresenta no jornal e revela o que,
nas nocias, chama sua atenção, como compreende o discurso jornalístico e em que
medida dá seu apoio ou questiona o que foi escrito.
Folha de S. Paulo e O Globo têm políticas bastante diferentes em relação a
esta seção tradicional nos jornais dedicada à manifestação dos leitores. As "Cartas
dos Leitores" (OG) e o "Painel do Leitor" (FSP) diferenciam-se, sobretudo, pela
definição "implícita" da categoria.
A Folha raramente publicou, nos casos analisados, opiniões de pessoas que
não estivessem associadas a algum tipo de organização ou instituição
governamental. Seus leitores falam raramente como cidadãos que leram o jornal e
querem se manifestar. São, na maioria das vezes, pessoas que falam em nome da
instituição em que trabalham ou que representam por ocuparem algum cargo
decisório. São também governantes ou seus assessores que têm a pretensão de
corrigir informações publicadas pelo jornal
69
.
69
Tal política explica, talvez o pequeno mero de cartas do leitor encontradas na
Folha
ao longo da
cobertura dos três episódios: 14, sendo 13 relativas aos assassinatos de moradores de rua no
centro de São Paulo e uma aos episódios na Rocinha. Desse total, 12 cartas eram assinadas por
representantes de secretarias de governo, prefeituras, organizações o-governamentais e óros
públicos; uma delas era de uma leitora identificada como socióloga, mas não vinculada a nenhuma
instituição e uma carta, sobre a Rocinha, de um leitor identificado apenas pelo nome e a localidade.
O Globo
publicou, ao todo, 64 cartas de leitores, nenhuma relativa aos acontecimentos em São
Paulo. O mero de cartas, diante da relevância dos acontecimentos, parece pequeno em ambos os
jornais. Mas é importante lembrar a variedade de assuntos cobertos pelos jornais em outras
editorias e a necessidade de dividir o pequeno espaço das cartas (de um terço a metade de uma
página) com outros temas.
209
Se a leitura dos textos dos leitores da Folha diz pouquíssimo sobre quem são
e como pensam as pessoas que lêem o jornal, permitem muitas inferências sobre
como o jornal quer ser visto: uma publicação de forte inflncia política, lida e
comentada por pessoas que ocupam lugares importantes na sociedade, que têm
poder. Em todos os casos, portanto, os leitores da Folha falaram a partir de um certo
saber, em especial aquele que advém do poder.
Já em O Globo, os leitores são identificados apenas pelo nome e pela
localidade onde moram. Os leitores manifestam suas opiniões em textos bem
escritos, alguns até com pretensões literárias, o que enriquece a seção e tira dela
qualquer caráter burocrático ou oficial
70
. Embora não deixem de reproduzir as críticas
ao Estado e às autoridades, em fórmulas idênticas ou muito semelhantes às dos
textos jornalísticos. Dois pontos merecem maior destaque nas cartas dos leitores: o
apelo a valores tradicionais como o respeito às relações familiares e a não-aceitação
do comportamento de consumir drogas.
As manifestações dos leitores parecem ser mobilizadas diante de alguns tipos
de fatos destacados pela cobertura, e não pelo conjunto dos acontecimentos em si.
Em certa medida, pode-se dizer que os episódios de violência na Rocinha, na Casa
de Custódia Benfica e nos arredores da praça da Sé foram menos inspiradores para
os leitores do que alguns fatos que os caracterizaram e que foram chocantes. Um
desses fatos, tomado aqui como exemplo justamente porque está relacionado ao
aspecto emblemático das barreiras nas relações sociais, foi a proposta de
construção de um muro na favela da Rocinha.
70
Deve-se considerar que as cartas publicadas são selecionadas de uma série e que esta seleção
implica, muitas vezes, em critérios específicos do jornal. Disso decorre outra diferença entre os dois
jornais, relativa às manifestações dos leitores. Na
Folha
, em geral ocorrem críticas ao jornal. Em
O
Globo
, nenhuma carta trazia críticas à publicação.
210
A Folha publicou apenas uma carta relativa ao tema, de um leitor não
relacionado a nenhuma instituição, que criticava a proposta de construção do muro.
Já em O Globo, os leitores se dividiram quanto à proposta
71
. A maioria dos leitores
se manifestou contra a idéia, caracterizando-a – do mesmo modo que o leitor
solitário da Folha como absurda, vergonhosa, relembrando o muro de Berlim,
acusando as autoridades de políticas segregacionistas.
Criar muros que isolem as favelas. Quem é mais louco? Os arquitetos
dessas idéias separatistas ou uma sociedade que se omite diante da
mediocridade de seus administradores públicos, pois se por s (cidadãos
que lhe pagamos os suntuosos salários e aposentadorias) ao menos
tivessem o respeito básico que suas funções nos devem, o ousariam
expor publicamente iias como essa. (
OG
, 13/04/2004, p. 6, comentário de
Claudia Fontes Graça, do Rio)
Algumas vezes, a oposição em relação ao muro, entretanto, o estava
relacionada à proposta em si, mas à recorrente idéia de uma sociedade refém do
tráfico, com ou sem muros:
Construir um muro ao redor das favelas? Estamos falando de bandidos,
marginais fortemente armados. Vamos construir para eles uma fortaleza?
Derrubar um muro para eles é brincadeira de criança. (
OG
, 13/04/2004, p. 6,
comentário de Alexandre Farias, do Rio)
A crítica à proposta também deu lugar a apelos de combate violento ao crime:
A idéia do muro cercando favelas é assombrosamente ridícula. Tem é que
ter política de redução das favelas. Rocinha e Vidigal, por exemplo, teriam
que ser reduzidas para terem o tamanho que tinham em 1982 quando
Brizola foi eleito. De lá para cá a Floresta da Tijuca perdeu mais de 20%. E
é preciso investir firme no planejamento familiar. (
OG
, 13/04/2004, p. 6,
comentário de Marcos A. Moraes, de Juiz de Fora, MG)
Outros leitores preferiram apoiar diretamente a iia:
Parece que a viagem de Rosinha e Anthony Garotinho a Israel deu
resultado. Aprenderam que para proteger pessoas de bem e que
simplesmente querem viver sua vida sem serem mortas no asfalto por
71
Na seção de cartas de
O Globo
, existe um equilíbrio entre o número de textos dos leitores
manifestando opiniões contra o muro e a favor. Mas este equilíbrio pode ser resultado apenas da
edição da seção, sem representatividade para qualquer tipo de conclusão sobre como pensam os
leitores.
211
bandidos ou por terroristas, é necessário que se crie "o muro". Infelizmente
as pessoas de bem é que sofrerão mais num primeiro momento, mas o
importante é que se compreenda que isso reduzirá a liberdade de
movimento dos meliantes. (
OG
, 13/04/2004, p. 6, comentário de David
Axelband, de Hertzlyia, Israel)
Acho válida a idéia de se construir um muro ao redor da Rocinha. É
necessário isolar de fato a favela das residências próximas. O que é mais
impressionante é que de novo vem o PT, por meio de um deputado, dizer
que a idéia é inviável. Inviável é a população desta cidade continuar nessa
situação. (
OG
, 13/04/2004, p. 6, comentário de Luiz Fernando Perdigão
Tostes, do Rio)
Excelente o artigo de Luiz Paulo Conde e Sérgio Magalhães, porque
desmistifica a idéia de que colocar um muro seria uma idéia grotesca.
Somente leigos ou pessoas mal-intencionadas e com interesses políticos
fazem comparações descabidas com o Muro de Berlim e outros absurdos
da Humanidade. O muro é bom, bonito e barato, uma solução simples de
contenção do crescimento de favelas. Depois, como toda qualquer obra
pública, que manter a vigilância e a manutenção. Mas a iia tem mérito.
(
OG
, 14/04/2004, p. 6, comentário de Mauro Chedid, do Rio)
A indignação é o tom predominante nas cartas, mas o mais revelador não é o
fato de que a idéia do muro foi capaz de mobilizar as atenções nem mesmo o fato de
existirem opiniões favoráveis a ele. O que mais chama a atenção é que mesmo nas
opiniões contrárias ao muro permanece um apelo de segregar a população da
Rocinha. Algumas das propostas apresentadas foram a construção de moradias em
bairros mais distantes, pelo Estado, e a transferência de todos os moradores da
favela; reduzir a favela e controlar a natalidade local; reforçar a ação policial no
morro. Ser contrário ao muro talvez seja mais uma questão de agir de acordo com o
que é politicamente correto ou de reagir à incômoda memória da Berlim dividida,
relembrada em vários textos do que de resistir àquilo que o muro representa.
A ideologia que justifica as relações assimétricas se reproduz, assim, também
nos comentários de leitores. Como sintoma atualíssimo do modo como o brasileiro
lida com o outro e com a violência excessiva, o muro persiste nas falas também dos
leitores. Talvez não na forma de paredes concretas, mas na fragmentação da
sociedade em grupos muito distintos.
212
C
ONSIDERAÇÕES
F
INAIS
O
PERMANENTE
M
AL
-
ESTAR
As alises dos textos jornalísticos apontaram para o fato de que a ideologia
não opera apenas no sentido de sustentar assimetrias características da sociedade
capitalista contemporânea, que se reproduzem principalmente nas lógicas do
mercado e do consumo. Existem no discurso da imprensa claras linhas
demarcatórias para as diferenças que naturalizam a hierarquia ecomica e social.
Os textos acabam por reforçar as pequenas e grandes diferenças, a hostilidade, a
indiferença a agressividade. A construção, pela linguagem, das figuras do "eu" e do
"outro" evidencia os movimentos no sentido do rompimento dos laços sociais.
As características com que o outro é representado nos jornais oferecem uma
resposta positiva a uma parte do desejo humano, de aniquilação e exploração dos
demais indivíduos para o próprio prazer. Saber que o outro foi julgado,
desqualificado, eliminado, enfraquecido, humilhado, ainda que por meio de palavras
ou de imagens, é um modo de satisfação. A representação da sociedade como
dividida entre bons e maus e da existência de limites claros de muros entre as
pessoas, forjados a partir de comportamento, condição ecomica ou inserção
social, são formas de dar expressão à pulsão agressiva. Nesse sentido, talvez
mereça algum crédito o recorrente argumento dos produtores da instria cultural
quando inquiridos sobre o excesso de violência na mídia. Dizem eles que apenas
oferecem ao público aquilo que ele deseja. Certamente oferecem aos indivíduos
aquilo que ecoa suas pulsões reprimidas.
Se as formas simbólicas midiáticas trazem uma resposta ao desejo, por que,
então, não conseguem aplacar o mal-estar? Em primeiro lugar, porque este não
pode ser suprimido. Essa mistura de desamparo e ódio em relação àquele que é
213
semelhante e, ao mesmo tempo, diferente; que pode satisfazer os anseios do
sujeito, mas o se coloca incondicionalmente à sua disposição, não é apenas um
sentimento, é um aspecto constitutivo das relações sociais.
Em segundo lugar, as imagens, as falas, as representações que se repetem,
se reproduzem, se atualizam constantemente no noticiário acabam por reforçar o
estranhamento em relação às diferenças, por tor-lo sempre presente e vivo.
Assim, a representação da aniquilação do outro satisfaz mas também decepciona: o
espaço simbólico que o diferente continua no mesmo lugar, haverá sempre alguém
que o substitua com sua diferença, o morador de rua, o detento, o traficante, o
pobre, o estrangeiro, o judeu, o muçulmano... O espaço do outro é sempre
preenchido por alguém. Este espaço existe justamente para sustentar as assimetrias
nas relações sociais e é pela ideologia que serão eleitos os grupos específicos que
podem ocupá-lo. Existe tamm para sustentar mecanismos de projeção dos
desejos de destrutividade do sujeito (ou do grupo) em um inimigo.
Por trás dos textos e das imagens que desqualificam o outro está a tentativa
de esconder o sentimento de culpa em relação ao desejo de desintegração da
sociedade, de desrespeitar as normas, de obter satisfação pela exploração do
semelhante, como relata Freud (1997 [1929]).
Expressões como "tem que matar mesmo" ou "deixa morrer, ninguém vai
sentir falta", tiram sua força da desvalorização do semelhante, um processo que se
repete indefinidamente no texto jornalístico. São frases que deixam transparecer
lógica de que se combate a violência com mais violência, um desejo de eliminação
do conflito social pela eliminação de um dos lados que o representam, o lado cuja
existência não tem valor. Mas revelam tamm que a vida de quem fala é
igualmente sem importância no contexto das relações sociais. A valorização da vida,
214
assim, só se torna possível quando se reconhece a semelhança do outro que,
embora diferente e único, é um representante da humanidade inteira, incluindo a
mim mesmo. Essa "quebra do ciclo" é individual, mas tamm pode ser promovida
pelo pesquisador, pelo professor, por quem dá a conhecer o sentido da ideologia à
coletividade.
Extraídas de manifestações cotidianas e recorrentes, expressões que
expressam o desejo de destruição do outro carregam em si a mesma mensagem
recalcada no discurso jornalístico: existe uma violência intrínseca às próprias
relações sociais. A pulsão de morte se faz presente nos laços sociais, domina os
desejos e exige satisfação na forma de intolerância, de apelo à força, de projeção no
outro de todas as características indesejáveis que a subjetividade contemporânea
não consegue suportar.
A mensagem que retorna e se repete é a de que esta "barbárie" que
atribuímos a alguns como negação da civilização e que justifica a posição em que
estão e os sofrimentos a que são submetidos está em cada um de s, intrínseca
aos mais fiéis representantes da civilização, e deixa seus sinais nas palavras que
escolhemos para representar o mundo.
Nesse sentido, pode-se atribuir à mídia um importante papel que não é
apenas o de fazer dominar o tempo de lazer, disseminar padrões de interpretação da
experiência e de sociabilidade, oferecer modelos de comportamento e a embotar
politicamente os indivíduos. A mídia é, tamm, a ferramenta por meio da qual os
indivíduos têm acesso a formas elaboradas de lidar com seu mal-estar. Se existe
uma fórmula para encobrir o sentimento de culpa e dar vazão à agressividade
reprimida, esta fórmula pode ser encontrada, na modernidade, no discurso midiático.
(Do qual o texto jornalístico é apenas uma das formas.)
215
A cultura moderna é voltada para o "cultivo do ódio" para usar a expressão
que intitula um dos livros de Peter Gay (2001) no qual ele mostra como, no século
XIX, este era um processo que permitiu canalizar a agressividade constitutiva dos
indivíduos para os impulsos progressistas, presentes na exploração da vida humana
para a industrialização, nos ímpetos de construir cidades, ferrovias ou desenvolver a
ciência. Para ele, na era vitoriana, o cultivo do ódio era necessário para construir um
determinado modelo de sociedade, o modelo burgs.
No século XXI, ainda cultivamos o ódio na forma de aversão e agressão ao
diferente, na desvalorização de sua vida, na negação de sua existência e,
principalmente, no caso brasileiro ao menos, em padrões de sociabilidade que são
voltados para a aniquilação do outro pelo recurso excessivo, desmedido, imediato à
força, seja ela dos aparelhos de Estado seja privada na forma de seguranças
particulares, justiça com as próprias mãos, grupos de extermínio, milícias, ação
armada do narcotráfico.
A análise dos textos jornalísticos mostrou que, no discurso sobre a violência
urbana, a imprensa – aparelho privado de hegemonia – indica que o "cultivo do ódio"
aparece sob a forma do "cultivo do mal-estar", expressão agora tomada de
empréstimo de Le Rider (2002). Ele argumenta que o mal-estar é sempre possível e
presente em qualquer contexto cultural e cabe aos mecanismos de fundação da
cultura – a repressão das pulsões e a renúncia pulsional sustentá-lo. Mas cada
contexto cultural é, em si, dimico, mutável e possibilitará diferentes formas de
expressão da "agressividade anti-social".
Os textos jornalísticos tanto justificam como encobrem o mal-estar, que em
ambos os casos se mantém latente, presente, e insistente no discurso. Se dois
séculos a agressividade era necessária ao progresso, como argumenta Gay, hoje ela
216
está voltada, por meio do discurso, para a destruição de determinados laços sociais.
Em muitos momentos, é dos escombros dessa destruição que a ordem econômica,
que as assimetrias sociais, que o poder antidemocrático se alimentam.
A reflexão sobre as diversas formas de manifestação do mal-estar na mídia é,
por isso, elucidativa dos aspectos mais obscuros dos conflitos sociais, de fenômenos
que ajudam a sustentar muitos padrões de sociabilidade, mas que estão além do
político e do ecomico, embora influenciem diretamente essas esferas. Ao mapear
as diversas maneiras pelas quais o mal-estar se evidencia nas palavras o que
pode ser feito também com as imagens emergem elementos novos para a
compreensão da modernidade. O projeto moderno, voltado para a construção de
uma ordem social justa, coesa, positiva, revela que contém, em sua trama, um fio
que exerce constante tensão sobre as relações sociais e contribui para sua
esgarçadura.
Da alise dos textos jornalísticos emerge um dado para a compreensão das
relações sociais que pode ser importante para novas pesquisas. A mídia, mas
sobretudo os jornais, são documentos históricos.
Muitas pesquisas, biografias, relatórios, alises sociais e históricas têm como
fonte documental o texto jornalístico. Costuma-se tomar os jornais como registros
objetivos de determinada época ou como fonte de informação sobre temas
específicos. Mas o pesquisador que esteja interessado em uma compreensão da
sociedade a partir desse tipo específico de documentação sejam artigos,
reportagens, editoriais, ou, dito de outra forma, sejam eles interpretativos,
informativos ou opinativos precisa ter em mente que, ao reproduzir as informações
dos jornais, algo mais pode estar sendo reproduzido. Os jornais não falam apenas
de acontecimentos, números, protagonistas dos fatos e seus interesses imediatos,
217
conscientes, de classe ou de posição social. Falam tamm de um processo
inconsciente que deixa rastros nas construções do discurso.
As estratégias ideológicas que justificam a ordem social e naturalizam as
diferenças indicam a presença do conflito e apontam os culpados. Mas nesse dedo
que aponta existe a intenção de livrar-se da própria culpa, de infligir sofrimento e dor
em nome do próprio prazer e satisfação pulsional, encobrindo a divisão social que
não é passível de solução, a fratura que coloca em lados antagônicos o desejo do
sujeito e a coerção social. O mais desafiador desse processo é que não se trata
exatamente de uma mentira. "O nível fundamental da ideologia [...] não é de uma
ilusão que mascare o verdadeiro estado das coisas, mas de uma fantasia
(inconsciente) que estrutura nossa própria realidade social", diz Zizek (1996b).
Quando a questão é a ordem social e o lugar que cada grupo ou indivíduo
deve ocupar nela, o que se observa é que os jornais são claramente conservadores,
buscam justificar e reproduzir as relações já estabelecidas e a crítica social, quando
aparece, tem um endereço bastante claro: o Estado. A mídia reproduz, assim, o
mesmo processo que se dá no psiquismo e transfere sua responsabilidade ao Outro.
Isso não significa que não haja ao menos uma tentativa em sentido contrário.
Tentativas de buscar explicações de especialistas sobre a violência, de retratar o
modo de vida do grupo que ocupa o lugar do outro (principalmente nos episódios da
Rocinha, no Rio de Janeiro, e da praça da Sé, em São Paulo) aparecem
especialmente na Folha de S. Paulo.
O jornal busca estudos sobre os moradores de rua, ouve seus depoimentos, a
opinião de sociólogos que se debruçaram sobre o tema. Enfoca tamm, com menor
eficácia talvez pela impossibilidade, talvez pelo menor interesse no assunto as
condições de vida dos moradores da Rocinha. Mas estas tentativas esbarram
218
justamente no mal-estar, nas barreiras inconscientes que constituem as relações
sociais e travam os movimentos no sentido da formação e manutenção dos laços
com os mesmos velhos chavões de projeção. O jornal sempre recai nas explicações
que naturalizam as diferenças.
Além disso, a Folha politiza mais os acontecimentos, busca insistentemente
os conflitos políticos no sentido de conflitos que envolvem grupos hegemônicos,
especialmente os partidos por trás dos fatos. Isto não é ruim em si, pelo contrário,
reconhecer como se dá a atuação dos partidos é fundamental para compreender a
cultura política e enfrentar o desafio da construção da democracia.
O problema é que o jornal acaba construindo uma imagem de que todos os
problemas esbarram apenas nos conflitos entre o PT, o PSDB, o PMDB, os partidos
mais fortes e representativos politicamente. Tem-se quase a impressão de que todos
os conflitos sociais só não são solucionados porque os políticos desses partidos
"não fazem nada". Com isso, a atenção que poderia estar voltada para os problemas
sociais se desloca, as vidas desperdiçadas saem de cena e sob as luzes se colocam
os poderosos de sempre. Este mecanismo se alia diretamente ao processo psíquico
que tende a tornar inconsciente as pulsões agressivas e viabiliza todas as projeções
de culpa nas autoridades que governam.
Em O Globo, o aspecto predominante é a escolha da linguagem. Os
moradores de rua são "mendigos" e "indigentes", quem entra em conflito com a lei é
"bandido", "comparsa", "baderneiro" (o máximo da oposição á ordem). O Globo
também explora mais a suposta crueldade ou brutalidade dos presos, dos
traficantes; retrata os detalhes das operações repressivas da polícia e assim
caracteriza abertamente o outro como "bárbaro". O jornal inclusive usa essa palavra,
apela diretamente às pulsões agressivas recalcadas, permite que aflorem
219
diretamente. Talvez por isso (mas tamm por uma escolha deliberada de dar maior
espaço aos leitores anônimos) o jornal consiga como reação a seus textos tantas
mensagens marcadas pela indignação, pela intolerância, por propostas de "soluções
finais"
72
para os conflitos sociais. Na Folha, o uso da linguagem politicamente correta
sofistica esse processo, mas ele também está presente.
A mídia não fornece apenas o material a partir do qual compartilhamos
experiências e ideologias. A representação do outro nos textos jornalísticos, nas
imagens televisivas, nas entonações e expressões radiofônicas e, na atualidade, por
meio de uma combinação de todos esses recursos na internet, é fundamental para
ajudar a construir um ideal de ordem, para definir o que é "bom" e o que é "mau", e
para construir uma imagem de mim mesmo, do grupo ao qual julgo pertencer, da
minha inserção na ordem social.
O discurso de execração vem, desse modo, ocupar o seu lugar, uma vez
que sempre promete alguma coisa: o fim da miséria e dias melhores.
Designa um bode expiatório e autoriza a pulsão agressiva. (ZYGOURIS,
1998, p. 205)
É principalmente por isso que o levantamento de informações críticas sobre a
mídia é importante, coloca em xeque não apenas o lugar que se atribui ao outro e a
lógica de expiação, mas também o lugar que eu mesmo ocupo. Quando essa
percepção toma forma, vem acompanhada de frustração, mas também possibilita
acatar ou rejeitar a ideologia, a resistir às interpretações dominantes e propor uma
nova interpretação. Diante do mal-estar, a percepção do modo de operação da
ideologia pode – no sentido do possível, não do provável servir à conscientização
sobre sua existência e incitar a uma ação no sentido de reforçar os laços sociais.
Esta possibilidade recai sobre o indivíduo.
72
A expressão remete ao termo nazista e carrega em si não apenas o peso da lógica do extermínio
revelada pelo Holocausto, mas a constatação de que esta lógica é constitutiva da civilização.
220
Tem-se a impressão de que Freud o abre outra perspectiva que a do
controle pelo indivíduo de seu destino pessoal. Talvez um bom chefe, um
líder esclarecido, digamos assim, possa sanear a constituição moral do
coletivo, apaziguar o "mal-estar", relançar o processo das formações do
ideal que são a compensação dos sacrifícios pulsionais e das desilusões
infligidas pela
Kultur
. Mas somos obrigados a constatar que Freud não
aprofunda muito esse aspecto "reformador" da psicalise aplicada à teoria
do laço social. (LE RIDER, 2002, p. 111 grifo no original)
A compreensão dos modos de operação da ideologia pelo discurso pode ser
também um caminho para que o indivíduo tome consciência do mal-estar, o que não
significará elimi-lo, mas permitirá lidar com ele de modo a reforçar os laços
sociais.
Se o conteúdo e a forma dos textos jornalísticos reforçam as diferenças e, em
alguns momentos, se oem a qualquer projeto democrático, uma leitura crítica
possibilitaria reconhecer que este discurso o fala apenas do que lhe é externo,
mas tamm de elementos não-racionais e internos determinantes nas formas
socialmente construídas de lidar com os conflitos. Democracia e igualdade são
ideais que desafiam diretamente o desejo dos indivíduos de obter satisfação a partir
do corpo, da mente, dos sentimentos do outro.
O mapeamento das formas de manifestação do mal-estar no discurso dos
jornais proposto pela análise dos textos aponta elementos que podem servir para a
resistência à ideologia, mas está longe de esgotar a questão. Thompson enfatiza
que um estudo profundo das formas simlicas produzidas pela mídia passa
necessariamente pela análise de sua recepção pelos leitores, espectadores ou
ouvintes. Este é um limite desta alise.
Os estudos de recepção exigem metodologias complexas e caras, o trabalho
com grupos representativos estatisticamente, exposição controlada dos indivíduos
às mensagens e definição de mecanismos para medir o impacto desta em seu
conhecimento e comportamento.
221
No processo de pesquisa, tentei observar minhas próprias reações como
receptora das mensagens jornalísticas analisadas. A leitura dos textos dos jornais foi
feita com o olhar colocado sob a lente da metodologia da alise. Mas isso não
evitou que eu cedesse ao apelo que as palavras do mal-estar podem ter. Por
diversas vezes me emocionei com os relatos dos protagonistas das cenas de
violência descritas, tamm me irritei com as autoridades e sua "ausência" ou
"incompetência" e duvidei profundamente das "vantagens" da vida em sociedade, ao
menos nesta sociedade.
Nas primeiras leituras dos textos, senti que, em alguns trechos, me deixei
levar pelas estratégias de operação da ideologia, principalmente quando o que
estava em jogo era a questão da autoridade do Estado não como repressor, mas
como protetor. Só depois de uma terceira ou uma quarta leitura do mesmo trecho,
consegui identificar os aspectos ideológicos do discurso. Muito provavelmente, em
vários outros fragmentos dos textos analisados, os modos de operação da ideologia
ainda me escaparam.
Ao interpretar um discurso não se está imune às reações emocionais e às
conexões racionais imediatas que este suscita. Ao contrário, é necessário um
esforço consciente para desconstruir o que já é dado e este esforço passa
necessariamente pelo uso das ferramentas fornecidas pela metodologia. Isso remete
a mais um limite da interpretação dos textos.
A alise foi produzida por uma jornalista. Os modos de operação da ideologia
fazem parte desse habitus, são constitutivos da prática profissional e do modo de
expressão do jornalista. Uma imagem que pode elucidar como isso acontece,
acredito, é a cena de Tempos Modernos (1936) em que Chaplin passa tanto tempo
na repetida tarefa de apertar parafusos que, mesmo depois que a linha de produção
222
pára de funcionar, seus braços continuam se movimentando como se os parafusos
ainda estivessem ali.
O fato de estar habituada com esse "apertar de parafusos ideológicos" pode
ser desconstruído pela metodologia escolhida, que teve a função de pontuar os
modos de operação da ideologia. O processo de análise exigiu o questionamento
das práticas profissionais, trouxe a consciência de que, imeras vezes, reproduzi
e provavelmente virei a reproduzir as mesmas estratégias que identifiquei nos
textos de meus colegas. Mas também posso dizer que muitas vezes, ao preparar um
texto, tentei intervir nas construções automáticas de frases e da própria lógica do
texto. Em outras palavras, mudar o jornalismo é uma utopia, mas as ferramentas
para transformá-lo existem e passam pela identificação dos modos como a ideologia
se faz presente para justificar e reproduzir as diferenças e o mal-estar cultural que
vem atrelado a elas.
Qualquer projeto – pessoal ou coletivo – de praticar um jornalismo mais
democrático e que desafie os modos institucionalizados de conviver com os conflitos
sociais não se constrói de uma só vez, nem como mágica, mas em cada texto
escrito, em cada opinião emitida, em cada imagem captada pelas lentes das
câmeras.
223
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