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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
ELIANE FERREIRA SILVA
A GEOGRAFIA DE UMA TRAJETÓRIA: MEMÓRIAS DE UM GRUPO DE PROFESSORAS QUE
PERMANECEM EM UM CIEP NO COMPLEXO DA MARÉ
NITERÓI, 2007
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ELIANE FERREIRA SILVA
A GEOGRAFIA DE UMA TRAJETÓRIA: MEMÓRIAS DE UM GRUPO DE PROFESSORAS QUE
PERMANECEM EM UM CIEP NO COMPLEXO DA MARÉ
Orientador: Professor Doutor João Baptista de Oliveira Bastos
NITERÓI, 2007
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
Dissertação apresentada à Pós-
Graduação da Faculdade de Educação
da Universidade Federal Fluminense
como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Educação.
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ELIANE FERREIRA SILVA
A GEOGRAFIA DE UMA TRAJETÓRIA: MEMÓRIAS DE UM GRUPO DE PROFESSORAS QUE
PERMANECEM EM UM CIEP NO COMPLEXO DA MARÉ
Parecer da Banca Examinadora _________________________________________
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
Banca Examinadora
___________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
NITERÓI, 2007
Dissertação apresentada à Pós-
Graduação da Faculdade de
Educação da Universidade
Federal Fluminense como
requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Educação.
Aos que alimentam seus sonhos na ousadia de acreditar
que uma outra história é possível, reanimando as
utopias que nos põe em movimento em direção à escrita
de nossas próprias memórias.
AGRADECIMENTOS
Ao meu querido Orientador João Baptista, pela simplicidade, humildade e paciência com que
conduziu os caminhos dessa dissertação, me ajudando a enfrentar meus limites e
potencializando minhas possibilidades.
Aos meus dois grandes amores Elisia e Lucas, minha querida mãe e meu querido filho
passado e futuro que se encontram, me retroalimentando e inspirando a exercer o melhor de
mim no presente, na perspectiva de um devir.
A todas as minhas irmãs, irmãos, sobrinhos, cunhados e cunhadas pela torcida desde sempre
solidária, orgulhosa e incentivadora da minha trajetória profissional.
Às professoras do Campo do Cotidiano com as quais aprendi que sob a palavra, tantas outras
palavras e sentidos a serem (re)significados, desdobrados, desvelados.
Á Professora Regina Leite Garcia que conjuga a dureza da palavra que desestabiliza nossas
verdades, choca, faz doer, com a firmeza de um olhar que nos põe de pé e diz: vai, eu acredito
em você.
À professora Janete Trajano pela leitura crítica que muito contribui para eu compreender o
paradigma da complexidade que sustenta as diversas possibilidades de leituras do real.
A todos os professores, funcionários, responsáveis e amigos do Capanema pela contribuição
direta e indireta que deram a esse trabalho, com um especial destaque ao Aurelino e a Tuty:
verdadeiros arcanjos da nossa escola.
Às “minhas meninas”: Eliene, Cláudia, Carmen, Lúcia e Mônica diretoras potenciais do
Capanema por me incentivarem nesse trabalho de pesquisa, garantindo uma retaguarda
irretocável nos momentos em que precisei estar ausente. À vocês toda a minha gratidão,
respeito e reconhecimento.
Ao Gerson, meu querido amigo, amor, amigo pela presença viva e para sempre em minha
vida.
Ao que o futuro nos reserva de possibilidades de continuar a (re)escrita dessas e de tantas
outras histórias que nos torne mais livres, mais vivos, mais seres, sendo.
Às professoras colaboradoras dessa pesquisa: Carmen, Cláudia, Eliane Vilela, Eliene, Lúcia,
Maria de Lourdes, Rosane Borges, Tânia Cristina e Waldaira. A vocês que fizeram da
permanência histórias, toda a minha homenagem por se permitirem ser, estar, ficar, sonhar e
falar, dando vida e sentido a esse trabalho de pesquisa.
E por fim, eles: minhas queridas joaninhas, borboletas, grilos, alunos do Capanema. Para que
tenham sempre a coragem de dizer a sua palavra, , seus modos se ver, ser e viver, sem que
isso represente uma ameaça a sua permanência onde quer que estejam.
ESCREVA SUA HISTÓRIA
Escreva sua história na praia
Para que as ondas a levem através dos sete mares
Até tornar-se lenda na boca de estrelas cadentes.
Conte sua história ao vento
Cante-a nos bares para os rudes marujos
Aqueles cujos olhos são faróis sujos, sem brilho.
Escreva no asfalto, com sangue,
Grite bem alto a sua história
Antes que ela seja varrida na manhã seguinte pelos garis.
Abra o peito na direção dos canhões!
Suba nos tanques de Pequim!
Derrube os muros de Berlim!
Destrua as cátedras de Paris!
Defenda sua palavra.
A vida não vale nada
Se você não tem uma história para contar.
(Claufe Rodrigues)
RESUMO
Este texto é o resultado de um trabalho de pesquisa realizado em um Centro Integrado
de Educação Pública (CIEP), localizado no Complexo da Maré. Trata-se de uma investigação
que se propôs a reconstituir a história da escola, se utilizando, principalmente, de narrativas de
memórias que trazem experiências individuais e coletivas inscritas em um espaço onde muitas
desistiram ou resistem em estar. A pesquisa se desenvolve em 3 eixos: tempo, espaço e
sujeitos, considerando estas dimensões fundamentais para a proposta desse trabalho. A opção
por narrar essa experiência é, sobretudo, o desejo e o compromisso com a memória de um
lugar no qual traçamos e trançamos nossas histórias em uma mesma trama – cenário de dores
e delícias onde nos constituímos ora sujeitos ora sujeitados. A perspectiva é a de que esse
trabalho não represente apenas o registro de um modo de ver e viver uma experiência em
educação. Espera-se que ele provoque nos possíveis leitores o desejo de contar suas histórias
ao vento, escrevendo-a na praia para que as ondas as levem aos sete mares.
PALAVRAS-CHAVE: Memória, permanência, cotidiano
ABSTRACT
This text is the result of a research work accomplished in a Center Integrated of
Public Education (CIEP), located in the Tide Complex. It is an investigation that it proposed
to reconstitute the school history, using itself, mostly, of memory narratives that bring
individual and collective experiences registered in a space where many gave up or resist in be.
The research develops in 3 axises: Time, space and subject, considering these fundamental
dimensions for the proposal of this work. The option for narrating this experience is, above
all, the wish and the commitment with the memory of a place in which we trace and we braid
our histories in a pains and delights same woof scenery where constitute us sometimes
subject sometimes subjected. The perspective is the one of that that work does not represent
only the record of a way of see and to live an experience in education. I hope that it provokes
in the possible readers wish it to tell his histories to the wind, writing her on the beach so that
the waves carry them at seven seas.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO: ENTRE MAPAS E PERCURSOS_______________________________ 2
CAPÍTULO I - PRA COMEÇAR...ESCREVER É PRECISO_______________________ 8
CAPÍTULO II - NA NARRATIVA O TEXTO FALA POR SI______________________ 19
CAPÍTULO III – “COMPLEXUS” DA MARÉ_________________________________ 27
3.1 - A violência, um desafio à permanência _____________________________________ 36
CAPÍTULO IV - FOMOS NOS ACON(CHEGANDO)___________________________ 42
4.1 - Assim chegamos na Maré..._____________________________________________ 43
4.2 - Ser, Estar, Permanecer: opções dos que decidem ficar ________________________ 53
CAPÍTULO V - CENTRO (DES)INTEGRADO DE EDUCAÇÃO PÚBLICA_________ 57
5.1. - Centro de Estudos: compartilhando saberes_________________________________ 72
5.1.1 - O GAPA: investigando a própria prática__________________________________ 81
5.2. - Uma história de parcerias _______________________________________________ 86
CAPÍTULO VI - COMPARTILHANDO AS ANGÚSTIAS,
MAS CANTANDO A ESPERANÇA __________________________________________98
CONCLUSÃO: um novo tempo, apresar dos perigos_____________________________ 109
BIBLIOGRAFIA_________________________________________________________ 117
INTRODUÇÃO
“A introdução deve ser a última coisa a ser feita. Não comece por ela, a pesquisa
no cotidiano desvela tantas surpresas que terá de refazê-la”
Ao iniciar a dissertação final desse trabalho de pesquisa achei oportuno dividir
com os possíveis leitores minhas aventuras no exercício de decifrar os mapas e percursos que
me guiaram durante as investigações. O trecho que trago acima para dar início a essa escrita
me causou estranheza na primeira vez que o ouvi. Afinal, nesse mundo de verdades
verdadeiras, como poderia pensar a introdução no final?
Essa era apenas uma das surpresas que a experiência da escrita e da pesquisa me
reservavam. No momento de organizar os registros dos materiais colhidos durante a pesquisa,
outra descoberta: os materiais colhidos não me davam condições para uma organização
cronológica simples e linear. Até mesmo porque os caminhos que percorri durante as
investigações não seguiram roteiros pré-estabelecidos. As fontes e os caminhos não foram
previamente selecionados para a busca das pistas que me auxiliariam na compreensão do real.
Aos poucos, fui me dando conta de que a compreensão da pesquisa com/no cotidiano se dá no
próprio movimento da pesquisa. Era a máxima de José Machado que se confirmava para mim:
“Caminhante, não há caminho; o caminho se faz ao caminhar”.
Ao perceber que “não havia caminho”, fui me deixando levar pelo que se
levantava de possibilidades de leituras da realidade, ainda que nem sempre tivesse claro onde
algumas pistas me levariam e muitas vezes me levaram a lugar nenhum, tendo que
abandoná-las mais adiante. Pude perceber também que a pesquisa com/no cotidiano não se
à lógica do “preestabelecido; mas a lógica da descoberta. (PAIS, 2003, 17). As conversas
informais coma as professoras no cafezinho, no portão, na sala dos professores, no almoço,
nas idas e vindas à escola, para citar algumas fontes, foram preenchendo os vazios de minhas
inquietações, mostrando o conteúdo que habita o aparentemente desprezível (GINSZBURG,
1989). Por vezes, parecia ‘moda de viola”: uma professora chegava e comentava um “causo”
vivido no passado ou no presente; outra se achegava e completava com uma outra
informação; dali passávamos para outros assuntos e, assim, o texto ia ganhando corpo. De
fuxico em fuxico
1
fui urdindo com fios das memórias o tecido da história; da nossa hiastória.
1
Refiro-me aqui à técnica artesanal de remendar vários pedacinhos de tecidos alinhavados uns aos outros,
formando um tecido maior.
O desafio de registrar trajetórias individuais e coletivas, das quais sou parte, foi
me mostrando que era preciso deixar que o sentido do vivido desse o sentido do texto.
Duelando entre os arbítrios da escrita formal de um texto acadêmico e a espontaneidade de
nossas narrativas, fui sendo abatida pelo que de significante de nossas experiências foi se
tornando palavras. E se a experiência é o que se passa numa viagem (LARROSA, 2004, p.53),
foi preciso viajar para dentro de mim mesma, me deixando abater pelos sentidos, para que a
escrita desse trabalho fosse se insurgindo.
Ainda assim, talvez pela impossibilidade de abandono total do modo como nos
constituímos leitores, escritores, ou por uma necessidade pessoal de buscar uma organização
que não me deixasse perder o “tal fio da meada”, busquei trabalhar na dissertação com a
temporalidade dos fatos, narrando os acontecimentos na cronologia em que eles brotaram,
rizomáticos
2
, durante a escrita dessa história. Nessa perspectiva, fui me dando conta de que a
própria idéia de história radicada em minha formação (narração metódica de fatos), criava em
mim uma dificuldade para fugir das linearidades na dissertação.
Mas a simultaneidade de alguns acontecimentos e fatos captados durante a
pesquisa me desafiava a buscar outras formas de escrita. Busquei nos significados que as
palavras emprestam aos fatos, conferindo-lhes alguns sentidos e refutando tantos outros, o
signo que me pareceu mais coerente para expressar o modo como organizaria os
acontecimentos para narrá-los. Nessa busca fui percebendo que o tempo dos acontecimentos
trazidos nas narrativas e em outras pistas não era compreensível apenas cronologicamente,
mas também geograficamente. Nossos relatos trouxeram experiências vividas em família, na
escola, nas diversas funções que ocupamos e em tantos outros espaços onde fomos nos
constituindo sujeitos de memórias, produtores de histórias. Desse movimento de pensamento
cheguei ao título “a geografia de uma trajetória”.
Boaventura ao citar Berger (1997) me ajuda a pensar essa questão ao dizer que
as pessoas não deveriam fazer suas histórias, sem antes traçar sua geografia. Nossas
trajetórias coletivas e pessoais estão cada vez mais marcadas pela simultaneidade de nossas
2
Utilizo-me do conceito de Deleuze e Guatarri (2004) que traz um conceito da botânica que exprime um tipo de
caule que cresce no sentido horizontal, para defender a produção de conhecimentos como um processo que se
na multiplicidade de interações, contrapondo-se a idéia de conhecimento arbóreo, que se expande no sentido
vertical.
experiências. As experiências que se marcam em nossas memórias, vividas em diferentes
contextos convocam espaços específicos que conferem uma materialidade própria às
relações sociais que nele tem lugar. A sucessão de tempos é também uma sucessão de
espaços que percorremos e nos percorrem, deixando em nós as marcas que deixamos neles”.
(BOAVENTURA, 2002, p.194)
Assim, nossa passagem pela escola pública no lugar da aluna, nossas experiências
como mãe, mulher, tia, irmã e tantos outros sujeitos que habitam em nós, foram tomados de
empréstimo para entendermos muitas de nossas ações naquele contexto. Ao falar de espaço,
refiro-me a um dos eixos norteadores dessa dissertação, esclarecendo que não me refiro
somente, mas, também, ao espaço no sentido geográfico. Nessa compreensão, a própria
memória passa a ser entendida como lócus privilegiado de arquivo de nossas experiências
pessoais e coletivas.
Penso que o mais significativo desses relatos orais foi a possibilidade de
rompermos com a pasteurização das narrativas que nos explicam, transformando nossas
histórias em coisas. O resgate de nossas memórias subalternas/subalternizadas devolveu a
complexidade de nossas relações, possibilitando uma compreensão maior de nossa
permanência por tantos anos nessa escola. Uma possibilidade que se abriu para nós,
professoras, de dizermos a nossa palavra (FREIRE), ultrapassando os porões do silêncio e
assumindo o leme dessa viagem ao encontro de nós mesmas. Da releitura do que parecia
decifrável.
Trabalhar nessa perspectiva trouxe à luz um outro cotidiano: complexo, opaco,
escondido em verdades que legalizam e regulam os nossos olhares. A cegueira
epistemológica cedeu lugar a uma nova postura diante do que à priori tão bem explicava o
real. (BOAVENTURA, 2002, p.225). Fui percebendo nossos limites e, ao mesmo tempo, me
dando conta do que fomos transformando em possibilidades, a partir de uma ousadia inscrita
em nossas práticas, em nossas crenças, em nossas paredes e nas experiências partilhadas
durante todos esses anos. “Saberes que nos chegam sob forma de histórias simples, de
narrativas corriqueiras, mas que nos permitem recuperar nossa capacidade de narrar”.
(PÉREZ, 2005). Apropriando-me dessas histórias simples, fui reconstituindo as nossas
trajetórias e, em um tempo, dando nossa contribuição para a construção das memórias do
CIEP Ministro Gustavo Capanema.
Quando fazemos perguntas, sobretudo se elas tentam compreender nossa(s)
própria(s) maneira(s) de sermos e de estarmos no mundo acreditamos na importância desse
movimento de pensar para a abertura de reflexões que nos auxilie no entendimento das
relações que estabelecemos nos diversos espaços por onde nos enredamos. Somos sujeitos
históricos, produzimos histórias. Nossas vozes precisam se fazer registros para que outros
delas se utilizem para compreenderem o que fomos, o que somos e o que podemos vir a ser.
Sabendo que ao falar de nós, estamos falando dos outros e, sobretudo, da memória de nossa
escola. As escolas são prédios, suas memórias são as pessoas e as relações que se
estabelecem. Por tudo isso: somos a memória da escola.
Na organização dos capítulos dessa dissertação começo apresentando o porquê da
opção de trabalhar com a pesquisa com/no cotidiano. Apresento os caminhos que percorri até
a escrita final desse trabalho, trazendo algumas inquietações, opções e abandonos que fiz
durante o percurso da investigação. Resgato um pouco da minha trajetória e os espaços que
ocupei nessa escola. Apresento também os critérios dos quais me vali para a escolha das
professoras-colaboradoras que me acompanharam até o final da pesquisa e as razões que me
moveram a realizá-la. No segundo Capítulo trago uma reflexão sobre os desafios e a opção
pela escrita narrativa, além da importância do registro das experiências guardadas em nossas
memórias individuais e coletivas para a construção do devir de nossa escola.
No capítulo três, considerando a importância do lugar de onde falamos para a
compreensão do que falamos, situo o território onde a escola está inserida: Complexo da
Maré. Percebi nas diversas vozes que compõem essa dissertação o quanto a história do CIEP
Ministro Gustavo Capanema está atravessada na formação daquela comunidade. Nossos
relatos trouxeram experiências que falam de um território que nos desafia mesmo antes de
chegarmos à escola. Os medos, os modos, a opção de ficar, ou a opção de partir são aspectos
que encontram condicionantes na complexidade daquela região. A Maré é um território
marcado pela violência das quadrilhas rivais que disputam o domínio do tráfico de drogas no
local, e das incursões intempestivas da segurança pública. Esses fatores desafiam à
permanência de muitos profissionais naquele território.
Mas quando decidimos pela permanência, como se essa opção? Como chegamos?
Que fios nos ligam por tantos anos a um território, um lugar, a um espaço onde muitos
desistem ou resistem em estar? Detenho-me a essa questão no capítulo quatro. Nossas vozes,
trouxeram histórias que contam nossa chegada, nossas dúvidas e incertezas, a formação dos
coletivos, nossas tessituras.
No quinto capítulo volto no tempo para resgatar a trajetória do CIEP Ministro Gustavo
Capanema, em um período que vai de sua fundação ao seu décimo aniversário. Utilizei-me na
investigação desse período dos acontecimentos que foram trazidos em nossas memórias como
marcas de um passado importante em nossas trajetórias. Nos documentos encontrados nos
arquivos da escola também busquei pistas que pudessem desvelar elementos de um
passado/presente, com vistas a construção de um futuro.
Os primeiros dez anos de funcionamento do Ciep foram descritos pelas pessoas
que atravessaram esse tempo como momentos de euforia, tensões, conflitos, contradições,
relações de saberes e poderes, resistências e desistências de pessoas que ousaram acreditar em
uma proposta de educação para as classes populares. Refiro-me ao Programa Especial de
Educação (PEE), implantado no Estado e Municípios do Rio de Janeiro, na década de 80.
Essas pessoas também presenciaram o esfacelamento da proposta original dos cieps, e os
impactos para o seu funcionamento, sobretudo a partir da década de 90. Neste período, no
bojo de uma nova ordem mundial globaliza, surgem novas demandas para organização dos
sistemas de ensino, impactando o atendimento do Ciep em tempo integral. Ainda nesse
capítulo trago também um breve histórico do Programa Especial de Educação, evidenciando
aspectos gerais e específicos presentes na trajetória do Gustavo Capanema.
Mesmo antes de iniciar a escrita final da dissertação, um outro texto, invisível,
mas compreensível em seu todo me conduzia aos rumos que a pesquisa foi tomando. As
escolhas que fazia ia dando forma e conteúdo à pesquisa. A leitura dos documentos e dos
acontecimentos recorrentes que apareceram nas conversas com as professoras desvelaram
rupturas no tempo que divide nossa história em dois momentos: uma que vai da fundação do
Ciep, em 1985, até o ano de 1995; e um segundo momento que vai do ano de 1996 em
diante. Entretanto, é Morin que nos adverte que o pensamento simplificador desintegra a
complexidade de uma realidade que é plural, multifacetada. Desse modo, esclareço que a
opção que fiz por considerar essa divisão na organização dos capítulos se deve a uma mera
necessidade de organizar e dar uma estrutura objetiva ao conjunto da dissertação. Na escrita
busquei passear por entre os espaços/tempos do Ciep para registrar nossa trajetória, me
deixando levar menos pelo tempo, e mais pelos sentidos.
Essa percepção me levou a dois movimentos: um de tentar captar nas dobras de
nossos cotidianos as continuidades no presente, do que pensamos passado.; e um outro de
desdobrar o real para descobrir as rupturas e as continuidades que se escondem e se revelam
no claro-escuro dos enigmas presentes em de nossos movimentos complexos (PAIS, 2003,
p.62).
No sexto capítulo, então, optei por fazer uma reflexão estabelecendo relações entre os
elementos trazidos nas memórias das professoras sobre nossas ações e práticas nos primeiros
dez anos de funcionamento do Ciep e os movimentos mais amplos de mudanças registrados
na segunda década. Nessa aproximação do macro com o micro, fui compondo a compreensão
dos acontecimentos, conjugando passado e presente de nossas memórias.
Utilizei-me de diversos registros para compor as fontes das quais me vali durante a
realização desse trabalho: escritos, conversas, entrevistas, bilhetinhos, cartas, cadernos de
planejamento, caderno de circulares, ofícios, atas, relatórios, olhares, gestos, imagéticos...
Ancorei minha escrita nas narrativas das professoras por me trazerem elementos que me
lançavam à busca de outras pistas. Embora traga nesse trabalho as vozes de nove professoras-
colaboradoras, deixei que os próprios caminhos da investigação definissem os fragmentos das
entrevistas e conversas que foram sendo trazidos para o texto final. Com isso, algumas
professoras vão aparecer mais que outras durante as investigações. Algumas não tiveram suas
falas trazidas para dentro do texto, mas trago em anexo todas as entrevistas na íntegra.
Embora tenha optado por trabalhar apenas com as nove professoras, algumas
entrevistas e capturas que fiz durante a pesquisa com outros profissionais e responsáveis da
escola foram trazidos por entender que se tratavam de depoimentos da maior importância para
o teor da pesquisa. Minha expectativa é a de que esse trabalho, embora escrito e relatado por
alguns, se traduza em possibilidades para todos e todas que nele se reconheça e deseje
continuar tecendo nossas/suas/outras histórias, brotadas da experiência viva.
CAPÍTULO I
PARA COMEÇAR...ESCREVER É PRECISO
Não transição que não implique um ponto de partida, um processo
e um ponto de chegada. Todo amanhã se cria num ontem, através de
um hoje. De modo que o nosso futuro baseia-se no passado e se
corporifica no presente. Temos de saber o que fomos e o que somos,
para saber o que seremos. (FREIRE, 2005 P.33)
“Esse Ciep é uma cachaça!/ Só penso em sair daqui quando me
aposentar.../ Esse é meu último ano, dessa vez falo sério./ Ah, não. Eu
fico por aqui mesmo. Todo mundo me conhece, sabe tudo da
minha vida...Já pensou ir para outro lugar e ter que contar tuuuudinho
de novo?/ Por que você continua lá na Maré, não tem outro lugar para
você trabalhar?/ Ah, eu gosto daqui, das crianças, de vocês.../ Deus
me livre, Maré e “Brizolão”, ninguém merece!.../ Às vezes penso em
sair, conhecer outra realidade...mas tenho medo de me arrepender/ Ah,
sei acostumei aqui com o povo/Minha história é aqui, tô
enraizada aqui/ Me constituí profissionalmente aqui, tudo que sei
aprendi aqui: nesse Ciep.../ Aqui a gente vive uma relação de amor e
ódio...e vai vivendo, vivendo, quando vê, é,
passou..”.(informação verbal)
Para dar início a esta dissertação, trago alguns fragmentos de vozes ouvidas por mim
ao longo destes 16 anos em que estou no Ciep Ministro Gustavo Capanema, escola da Rede
Municipal de Ensino, em funcionamento desde 1985, no Complexo da Maré. Confesso que
algum ou alguns desses fragmentos já saiu/saíram da minha boca em determinados momentos.
Falas soltas, ditas em lapsos de alegrias, conflitos, tristezas, aparentemente sem a menor
importância ou sentido. Hoje entendo portadoras de muitos significados. Palavras repletas de
ideologias, marcadas por histórias pessoais e coletivas que são uma espécie de ponte lançada
entre mim e os outros (Bakhtin, 1995, p.113), mostrando-me a todo instante que não sendo
únicas, se constituem “em território comum do locutor e interlocutor” e que, embora ditas no
mesmo território, manifestam a complexidade do lugar e das relações que nele se dão.
Há tantos anos atuando em uma mesma escola, fazendo sempre o mesmo
trajeto, vendo as mesmas pessoas, no mesmo lugar, vamos pensando também que tudo nos
é tão familiar que temos o domínio das situações, que já conhecemos suficientemente as
pessoas com quem lidamos no dia-a-dia, e que sabemos até a maioria das respostas para os
questionamentos cotidianos que surgem nessa relação. Aos poucos, sorrateiramente, essa
rotina começa a nos desafiar com perguntas – das mais simples, inclusive – e você se dá conta
de que faltam respostas. Nesse momento, paro e penso: a rotina me colocava questões...ou
eram minhas certezas que eram colocadas em questão? Nesse movimento de pensamento
pergunto e reflito. Mas a inquietação continua mostrando que “o que sempre vemos e
encontramos pode ser familiar, mas não é necessariamente conhecido” (VELHO,1978).
Então, paro, penso, pergunto, reflito e problematizo. É nesse momento que me torno uma
pesquisadora.
Quais foram os primeiros pensamentos que me levaram a pesquisar a realidade?
Quais questões me desafiaram e me fizeram sair do lugar confortável de “minhas certezas”?
Como cheguei à questão que desencadeou a escrita final desse trabalho de investigação?
Para responder a essas questões, é preciso voltar para o ano de 1991. Durante
todos esses 16 anos em que trabalhei no Ciep ocupei várias funções: Professora Regente em
turma de alfabetização, Orientadora Pedagógica, Professora do Projeto de Educação de Jovens
e Adultos e, atualmente, Diretora. Em cada uma delas aprendi a dizer e ver a nossa realidade e
seus diversos sujeitos de um ângulo diferente. Certamente, também fui lida e dita de diversas
maneiras por tantos outros que também me olhavam, me desestabilizavam, me inquietavam.
Larrosa (1998) nos ensina que nessa troca de olhares, nas imagens que temos dos outros e
deles de nós habitam valores, histórias de vida, e tantas outras referências que podemos
transformar em manifestações sutis e práticas de negação e exclusão do outro. Mas ao mesmo
tempo, podemos transformá-la em modos diferentes de conhecer, perceber, entender, ver o
outro.
Da sala de aula acreditava não poder realizar, fazer, acontecer coisas que hoje, na
Direção, penso que podemos auxiliar nas soluções que partem da sensibilidade da
professora. Concordo com Arroyo (2002) que quanto mais nos aproximamos do cotidiano
escolar mais nos convencemos de que ainda a escola gira em torno dos professores, de seu
ofício, de sua qualificação e profissionalismo. São eles e elas que a fazem e reinventam
(p.19).
Ao assumir a Orientação Pedagógica nossas experiências me colocavam
conflitos que nasciam das angústias que cada uma de nós experimentava diante das
dificuldades de encontrar um modo de fazer (a prática) que melhorasse o nosso desempenho e
a aprendizagem das crianças com as quais trabalhamos.
Mas foi em 1998, quando resolvi mudar os rumos de minha vida profissional,
que o destino me pregou uma peça, pois, paradoxalmente, me envolvi ainda mais na história
desse Ciep. Minha mudança tinha um nome: Lucas. Agora eu tinha um filho e voltava da
licença maternidade. Naquele momento, eu só queria ser a mãe do Lucas, uma função que me
tomava um tempo muito grande.
Por essa razão, optei em não assumir nenhuma função que ampliasse meu tempo de
permanência diária no Ciep. Nesse período assumi uma Classe de Alfabetização. Ainda assim,
vivia aquele Ciep de forma intensa, com hora para chegar, mas, nem sempre, com hora para
sair. Embora não estivesse mais na função de Professora Orientadora, a relação estabelecida
com a direção fazia com que eu me sentisse comprometida com algumas ações e questões
daquele cotidiano: era um pai que chegava, a CRE
3
que ligava, um professor que perdia a
chave ou queria conversar sobre sua turma. Era como se eu tivesse saído da função, mas ela
ainda não havia saído de mim.
Nesse ano haveria eleições para diretores de escola. Rosane Dias, a então diretora,
havia anunciado que não tentaria a reeleição. Sua gestão (1997-1998) foi marcada por um
período de profundas mudanças nas atribuições do Diretor Escolar. No segundo ano de sua
gestão, por uma determinação da Prefeitura, os CIEPs que estavam na época com menos de
75% de suas turmas em horário integral, perderam a estrutura administrativa de pessoal para
esse tipo de atendimento. Com isso, o Capanema que nessa época se encontrava nessa
situação não por opção da direção ou da comunidade, mas por falta de professores teve
sua equipe administrativa esfacelada: duas adjuntas são colocadas para assumir turma. É nesse
mesmo período que surge a função do Coordenador Pedagógico, em substituição aos
Professores Orientadores. Outra mudança desse período foi a passagem do diretor escolar de
Função Gratificada para Cargo em Comissão. Além das mudanças administrativas, Rosane
também justificou sua saída para ao grupo da escola alegando cansaço e necessidade de
dedicar à sua família um tempo que a Direção consumia.
3
Coordenadoria Regional de Educação
As novas atribuições na função do diretor escolar precisam ser entendidas dentro de
um movimento mais amplo de mudanças por que vem passando a gestão educacional. Trata-se de
iniciativas que apontam para a redefinição do papel do diretor, com vistas a adequar a escola às
novas tendências, que nesse contexto traz para a escola a responsabilidade com a formação de
sujeitos habilidosos, portadores de conhecimentos úteis, específicos e necessários para
interagirem na máquina do sistema social global (VIEIRA, 2004, p.131).
O Ciep também passava por um período de muito desencanto com as dificuldades
para a manutenção do atendimento em horário integral. Havia um clima de expectativa, pois
ninguém sabia quem seria a próxima diretora. Até as vésperas das eleições não havia nenhuma
candidatura. Somando-se às questões internas, a Maré também vivia um momento muito difícil
com a violência crescente. Aumento da violência, aumento no número de moradores,
principalmente no entorno da escola, aumento no número de matrículas. Essa combinação de
crescentes
4
trazia um sentido de inundação, e não de crescimento. Nos sentíamos invadidas em
nossos sonhos, em nosso trabalho, em nossas perspectivas. As leituras que fazíamos daquela
situação já indiciavam (Ginsburg) as transformações que estavam por vir.
Ainda me lembro das discussões com Eliene
5
enquanto íamos para casa. Dizia ela:
“Vamos Eliane, você vai conseguir. Você está preparada para assumir essa escola. Não devemos
interromper um trabalho de tantos anos...”
Vivi conflitos muito grandes nesse período. Não me via dirigindo a escola; não
naquele momento em que minhas opções pessoais exigiam de mim mais tempo para viver a
maternidade. Além do mais as experiências vividas por mim naquele cotidiano também me
traziam a complexidade das relações que ali se estabeleciam entre os diversos segmentos:
direção, alunos, responsáveis, professores, funcionários, tráfico de drogas, órgãos Central e
Intermediário, entre outros. Ainda tinha muito que aprender – como se fosse possível essa
aprendizagem fora da prática. No entanto, compartilhava com as demais colegas o receio de ver o
4
Refiro-me aqui ao sentido de enchente de rio ou de maré.
Ciep assumido por alguém que interrompesse uma história assentada em concepções que
trançavam nossas trajetórias às daquela escola. Dirigir o Gustavo Capanema não era para nós
uma função, era antes o compromisso com uma história marcada em nossas subjetividades.
Vivendo os conflitos experimentados por quem se percebe entre o medo e a ousadia
(FREIRE, 2006) decidi me candidatar à direção do Ciep, sendo eleita para uma gestão de dois
anos. Assim, saí de uma gestação para uma gestão. E, pensando bem, acho que saí de uma
gestação para outra gestação, pois nesse momento posso dizer que somos mais gestantes do que
gestores do Ciep. Estamos grávidas das histórias por nós vividas naquela escola. E é como
gestante que me coloquei nesse trabalho de pesquisa para resgatar as memórias (nossas) dessa
escola: seu nascimento, seus momentos de crise, artes e manhas. Vivências que geraram e geram
em mim inquietações para as quais eu não conseguia respostas no desenrolar apressado desse
cotidiano que, se pensado pela ótica da quantidade, seja de fato um espaço de repetição, de
norma, de obviedade; mas que na realidade de seu dia-a-dia, nunca se repetem em seu como
(OLIVEIRA, 2000).
Foi com o objetivo de problematizar essas inquietações acumuladas que ingressei no
Mestrado em Educação na UFF, dois anos. Naquele momento, partindo das experiências
vividas na função de Diretora queria discutir os limites e possibilidades do diretor escolar,
considerando atribuições dessa função nos últimos 10 anos. Investida na função de “representante
do poder”, minha questão naquele momento era dialogar com autores que pudessem me ajudar a
pensar os limites e as possibilidades de um diretor no cotidiano da escola. Para tanto, partiria do
relato das ações e práticas cotidianas de minha ppria experiência na gestão do Capanema. Um
trabalho que acontece por entre as brechas de um sistema contraditório e alimentado pelo
discurso de uma autonomia forjada. Acreditava que entender esses aspectos bastaria para dar
conta de minhas inquietações em relação ao que eu não conseguia compreender e superar nas
nossas ações cotidianas. Não que eu tivesse a ilusão de uma teoria salvadora que me dessem
pistas de “como ser um líder”. Ao contrário, estava em busca de interlocuções que me ajudassem
a pensar os desafios que não estão ditos em nenhum “manual de gestão”.
5
Eliene é uma das professoras colaboraboradoras da pesquisa e será apresentada em capítulo mais adiante.
No início, estava certa de que o caminho a ser trilhado era esse. O primeiro título da
pesquisa foi: “Do diretor ao gestor: limites e possibilidades de uma autonomia delegada”.
Segui um tempo na pesquisa em busca de entender o meu objeto, a minha questão.
Os caminhos trilhados por mim iam cada vez mais ampliando minhas inquietações sem, contudo,
deixar claro o ponto de ancoragem de minhas investigações. Durante o percurso fui percebendo,
a partir das leituras e da interlocução com as colegas e professores do campo do cotidiano, que
minhas inquietações apontavam a necessidade de um mergulho (ALVES, 2001) ainda maior na
trajetória daquela escola. Era preciso trazer outras vozes, outros tempos, outros espaços. Nesse
momento entendi que para encontrar as respostas que me inquietavam era preciso (re)encontrar a
escola; voltar no tempo, resgatar a Eliane Eth
6
, que chegou em 1991. Muitas das minhas
inquietações estavam presentes nos nossos encontros pedagógicos, nas nossas contradições,
nos enfrentamentos dentro e fora do Ciep para a manutenção do projeto de escola em tempo
integral. Histórias que, aparentemente esquecidas em mim e em tantos outros, inquietam nossos
movimentos por tantos anos ali, cobrando para si uma identidade, um significado, uma autoria.
Assim, a pesquisa foi aos poucos mostrando que os limites e as possibilidades das
nossas ações no Ciep transcendiam a minha função de diretora. O próprio sentido que eu dava à
gestão da escola, partindo de uma perspectiva que considerava todos os seus movimentos
cotidianos, para além dos mecanismos de representatividade, também apontavam algumas
armadilhas e “becos-sem-saída” nos quais ia me embrenhando durante a pesquisa. Aos poucos fui
percebendo que a realidade é muito mais complexa do que podemos ver através do ponto de vista
de quem a vive.(...) é enigmática porque escapa as palavras e os conceitos (PAIS, 2003, p.60).
A partir do momento em que ficou claro para mim que estava em busca de
compreender a trajetória dos sujeitos que significam o CIEP, conseqüentemente nossa própria
história, passei a conviver com outro desafio: que caminhos percorrer para dar conta desse
trabalho? Em que fontes estariam registradas essas (nossas) histórias? Quais seriam os sujeitos
dessa pesquisa? Seria mesmo esse o caminho? Ainda não estava claro como faria esse percurso.
6
Assim que cheguei ao Ciep fui apelidada de Eliane ETH, numa referência às crianças da Etiópia, com quem me
assemelhava devido a magreza e os cabelos cortados.
Ouvindo e lendo meus professores da UFF e captando as contribuições de outros autores,
fui percebendo o caráter contingente da pesquisa do cotidiano. Assim, fui me desacorrentando
aos poucos de algumas certezas que me impediam de caminhar nas investigações. Era preciso,
então, mergulhar, vasculhar, abandonar alguns achados, se demorar em outros, atentar para o
detalhe, para o aparentemente desprezível, pluralizar as fontes. Isso representava a ausência de
um lugar seguro. Significava trilhar um caminho que se produzia no próprio movimento de
caminhar.
Fui então me permitindo ouvir e, ao mesmo tempo, duvidar de tudo que me parecia
verdadeiro ao primeiro olhar. No primeiro ano da pesquisa, fui (re)significando causos e coisas
acumuladas por vários anos bilhetes, entrevistas, registros de conversas, documentos,
fotografias, falas soltas, insinuações e tudo o que provisoriamente me parecia importante a partir
do que buscava investigar.
Mergulhada nas fontes procurava dar uma forma compreensível e inteligível àquele
material. Nesse momento, me dei conta de que as capturas e escolhas que fiz não foram
aleatórias, elas estavam de acordo com o que me apontavam as leituras e caminhos que percorri.
Essas escolhas tinham histórias, rostos, gostos, cores e sons que me chamavam atenção. Nelas
estavam inscritos momentos, instantes eternizados pelo que de significante deixaram em nossas
lembranças. Nesses achados e perdidos, minhas memórias foram costurando textos, revelando e
produzindo contextos que iam me dando pistas de quem seriam os sujeitos que melhor me
ajudariam a compor as memórias daquele CIEP. Senti-me como um pescador que joga a rede e
quando retorna com ela ao barco, tenta ler as condições de vida no mar pelo que o arrastão trouxe
enredado.
Foi preciso captar nas sutilezas, movimentos que precisavam ser desvelados,
problematizados e comunicados no curto tempo da pesquisa. Esses movimentos, reduzidos aos
seus signos, precisavam ser desvelados, decifrados (PAIS, 2003, p.56)?
Optei pelas dimensões tempo-espaço como eixos norteadores para compreensão do
cotidiano atual de nossa escola, por considerá-las dimensões indissociáveis, e da maior
importância para um trabalho que se propõe a resgatar memórias. Nessa perspectiva, o espaço,
indiciário (GINSBURG,1989) das mudanças ocorridas no tempo, vai ajudando a contar o que
não foi/é dito, mas desde sempre ali alegórico (BENJAMIN,1996), anunciando o passado
palimpsesto
7
no presente, e o presente que habitava o passado. É nesse caminho de volta que nos
reconhecemos no que já não sabíamos ser, não sabíamos ter; é de lá que trazemos reflexões sobre
o cotidiano de nossa escola.
Era preciso definir quem voltaria comigo nessa viagem ao passado em busca da
compreensão do nosso presente. A escolha dos sujeitos da pesquisa considerou o tempo de
permanência dessas pessoas no CIEP. Considerei importante a questão da permanência pelo que
poderiam contribuir com suas memórias para recompor a trajetória da escola e, também, por essa
permanência se dar em uma escola localizada em um contexto difícil, desafiador como o
Complexo da Maré. Optei por convidar um grupo formado por 10 professoras que entraram na
escola entre 1985 e 1989, e que permanecem no Capanema
8
até os dias de hoje. Fui então
construindo essa dissertação entrelaçando nossas memórias com as outras fontes consultadas.
Etimologicamente a palavra permanecer significa: v. pred. 1. Continuar a ser ou ficar;
conservar-se: permanecer quieto, permanecer calado. Int. 2. Demorar-se. T.i. 3. Persistir. No seu
sentido verbal, permanecer é um verbo de ligação que significa estar ligado a algo: predicativo ou
sujeito. Tomando por caminho essa definição fico pensando por que permanecemos no Ciep?
Estamos ligados a quê? Quais concepções e práticas tecem nossos fios emaranhados nessa trama?
Que conjunto de fatores objetivos e subjetivos estão atravessados em nossas relações no
tempo/espaço de nossa escola? Como essa questão da permanência estaria atravessada nos relatos
de nossas histórias? E como abordar esse fenômeno em uma pesquisa com o cotidiano: o lugar da
surpresa, do fugaz, do efêmero, e em um tempo um lugar das ritualidades e das repetições?
(PAIS, 2003, p.29).
7
Utilizo-me de Certeau para definir palimpsesto como marcas deixadas em nossas memórias que desvelam o
passado presente.
8
É assim que nos referimos à escola, e que aparecerá ao longo do texto.
Pais(2003), ao citar Agnes Heller, me ajuda a pensar sobre as características da vida
cotidiana quando diz que: “a característica da vida cotidiana é a espontaneidade(...). O ritmo
fixo, a repetição, a rigorosa regularidade da cotidianidade, não estão, de modo algum, em
contradição com essa espontaneidade, muito pelo contrário, uma coisa implica a outra” (p. 78).
Nossas memórias estão soterradas sob os escombros de informações que a
contemporaneidade nos impõe, sufocando nossa capacidade de narrar. Historicamente, nossos
sentidos foram sendo acostumados a ver, ouvir, sentir e reconhecer aquilo que faz sentido para
os detentores do poder. “Não aprendemos a reconhecer as dobras e menos ainda aprendemos a
desdobrá-las, descobrindo o que está encoberto”. (GARCIA, 2000, p.15). Ao utilizar as minhas
memórias e as de mais 10 professoras do Ciep, não pretendo que nossas narrativas suscitem
apenas o que” de uma trajetória. É preciso registrar o como”, da experiência sensível
escondida, sufocada, a partir de nossas lembranças, sobretudo nos espaços onde nos constituímos
sujeitos produtores de histórias (BENJAMIN,1996).
Cheguei a nove professoras: Carmen, Cláudia, Eliane Vilela, Eliene, Lúcia, de
Lourdes, Rosane, Tânia, Walda. Professoras, es, irmãs, tias, filhas, sobrinhas, mulheres, que
emprestam muito de suas vivências pessoais cotidianas às suas experiências profissionais. Todas
remanescentes de um grupo de professoras que chegou no Ciep ainda com a estrutura de
funcionamento mantida pelo Programa Especial de Educação
9
. Essas professoras atravessaram
toda a trajetória do Capanema, testemunhas dos muitos movimentos ali ocorridos: entrada e saída
de pessoas, o esfacelamento da proposta original da escola em tempo integral, as práticas
pedagógicas compartilhadas pelos sujeitos da escola, o aumento da violência e da população no
Complexo da Maré, para citar alguns.
Embora eu tenha chegado no Ciep em 1991, me situo na pesquisa como sujeito que
também é parte das histórias narradas pelas professoras que me acompanharam nesse trabalho.
Narrar uma trajetória da qual sou parte, traduzindo as impressões do vivido, sentido,
9
Programa elaborado no Governo de Leonel Brizola (1983-1986) que contou com a participação de professores do
Rio de Janeiro, que subsidiou, durante a sua vigência, a política de atendimento aos Centros Integrados de Educação
experimentado também pelo outro – sabendo ainda que o que trazemos na memória não foi o real
vivido, de fato, e sim as lembranças do que vivemos (BENJAMIN, 1996) se constitui um
desafio. No entanto, compartilho da certeza de que somos irremediavelmente parte daquilo que
analisamos e que, tantas vezes, queremos modificar”. (COSTA, 2002, p.36).
Outro desafio foi dialogar com o grupo entrevistado sobre o lugar da Eliane Pesquisadora
e o da Eliane Diretora. Ser pesquisadora de uma realidade onde estou no “lugar do poder
instituído” não foi um detalhe desprezível nesse trabalho. Oliveira (1996) pontua três etapas pelas
quais o pesquisador passa na apreensão dos fenômenos sociais: o olhar, o ouvir e o escrever.
Enquanto no olhar e no ouvir se manifestam as percepções do sujeito, é no escrever, segundo ele,
que o pensamento se exercitará como produtor de um discurso. E é no ato de escrever que,
novamente, o autor distingue duas etapas fundamentais na investigação empírica. A primeira ele
nomeia como fase do “estando lá”, vivendo a situação de estar no campo; e a segunda, que seria a
experiência de trabalhar estando aqui” no meio de seus pares e dos subsídios das fontes para
sua pesquisa.
Ao escrever e reescrever repetidamente o texto, fui buscando recolher alguns indícios,
sinais potenciais, significativos para minhas reflexões. Estava consciente de que minha tarefa não
era exprimir “a verdade”. Mesmo que quisesse não seria possível. No movimento de pesquisa foi
se tornando mais nítida a certeza de que não uma verdade, mas inúmeras verdades, de acordo
com o ponto de vista de quem olha, de quem (não) conta, de quem rememora. A ciência,
portanto, é a busca de verdades e naão a verdade definitiva (GARCIA, 2000, p.122).
Com cada professora participante dessa pesquisa busquei compartilhar a importância
desse movimento para mim, para ela e para a memória de nossa escola. A alegria de lembrar
memórias compartilhadas e guardadas por tantos anos em nós, e também de refletir com/sobre
nossos sucessos, insucessos, segredos sagrados e profanos, nos comprometendo a fazer uso da
liberdade do dizer de nós mesmos e dos outros, foi um exercício da maior importância.
Pública (CIEPs). O programa foi extinto em 1987, no governo de Moreira Franco, sob a alegação de se tratar de um
Nossas conversas foram muito interessantes porque fomos percebendo que não ocupamos
“um lugar”; mas “vários lugares”. Ao trazer o olhar da pesquisadora para aquele cotidiano, assim
como os sujeitos da pesquisa, não uso somente a experiência da diretora, mas tudo o que
aprendi dentro e fora da escola, nas diversas identidades que assumi. Não somos sujeitos com
lugares definidos. Nossas trajetórias são traçadas e trançadas de histórias e experiências
construídas em diferentes tempos/espaços. Trazemos em nossas práticas cotidianas as marcas das
histórias vividas no tempo/espaço da família, da escola quando aprendemos a vê-la do lugar da
aluna, da mãe, da tia e de tantos outros. Somos híbridos, complexos, portadores de um
“conhecimento multidimencional”. (MORIN, 2003. p.177), pois como nas palavras do poeta
Gonzaguinha, também aprendi que se depende sempre, de tanta, muita diferente gente, pois
toda pessoa sempre é as marcas das lições diárias de outras tantas pessoas”.
Pesquisar com o cotidiano é isso. É ver com, através, nos olhos dos outros. É ver de novo
o que de tanto ver não víamos mais. E até descobrir que nunca vimos o que avistamos
muitas vezes. É o estranho e fascinante “ver de cego”. Ver com outros sentidos. É se sentir traído
por si mesmo e pelos outros que lhe ensinaram a ver, não vendo. É desmoronar-se, mas com a
deliciosa sensação de ter tempo para refazer, rever, ver de novo. É também se descobrir no que
não se sabia ser, não se sabia ter. É dar sentido ao que é sentido, vivido. É a dor e a delícia de se
descobrir em sua ignorância ator e autor de sua própria história e assumir de vez sua contação. E
contá-la com emoção, com entonação, assumindo todos os riscos de um final que nem sempre é
feliz, mas legítimo, real no que nos afeta, no que nos provoca a lembrança.
programa caro e com pouca abrangência de atendimento à população (TAVARES, 1989).
CAPÍTULO II
NA NARRATIVA O TEXTO FALA POR SI
A experiência de se expor e escrever com/no cotidiano de um tempo como esse onde
vivemos uma profunda crise de paradigmas, e “um tempo de transição, em sincronia com muita
coisa que está além ou aquém dele, mas descompassado em relação a tudo o que habita”
(SANTOS, 1997, p.76), me traz a sensação de angústia, desafio e desejo de superação.
No momento em que a educação pública vive um dos seus piores momentos de crise e
crítica, em que somos submetidos a cada instante a práticas autoritárias ou não que ditam nosso
futuro. O que nós professoras, tantos anos vivendo a/na escola, temos para dizer? Como nos
movimentamos nesse cotidiano em que tudo acontece, quando nada se parece passar? (PAIS,
2003, p.28).
Eu tinha o desejo de contar essas histórias. muito tempo, vinha me cobrando e
tentando seduzir a nós todos o registro de nossas experiências vividas por tantos anos no
Capanema. Assumir a Direção me colocou mais de perto em contato com um acervo de
fotografias, documentos e objetos que guardam em si fragmentos de uma trajetória que precisava
ser reconstituída. Inquietava-me ver nossas memórias encaixotadas, em envelopes, silenciadas,
esquecidas. Cheguei a propor um trabalho coletivo onde pudéssemos reunir fragmentos de
memórias da escola dispersos em bilhetinhos, atas, circulares, cadernos de plano, na organização
do espaço escolar, nas fotografias. Essa necessidade se confirmava ao perceber o gozo, a
vibração, o pulsar de algumas pessoas do Capanema ao se depararem com coisas, pessoas,
lugares ou situações que detonavam o passado ali, no presente, manifestado em detalhes
desprezíveis, aparentemente insignificantes, mas cheios de significados.
No início, minha intenção não era transformar essa tarefa em um trabalho de
pesquisa de Mestrado, pensava apenas em dar uma organização digna a todo aquele material: um
álbum bonito, uma encadernação criativa onde pudéssemos reunir nossos depoimentos,
fotografias e o que mais pudesse dizer de nossas histórias. Cheguei a propor esse trabalho a duas
instituições que fazem parceria com o Capanema: A Ação Comunitária do Brasil (ACB) e ao
CEASM (Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré). No entanto, logo que iniciaram os
trabalhos de catalogação do material fui percebendo que minha inquietação aumentava. Não se
tratava apenas de uma reunião de fotografias, textos, documentos e de organizar os fatos, mas de
reconstituir os acontecimentos silenciados naquelas fotografias – registros de instantes carregados
de sentidos que poderiam ser significados por nós, que vivemos aquelas experiências. Percebi
então, que para dar dignidade às nossas memórias não bastaria arrumá-las, seria preciso inscrevê-
las, resgatando em nós a capacidade e a necessidade de narrá-las.
Entendi, então, porque as parcerias (CEASM, Ação Comunitária do Brasil), alheias às
nossas trajetórias individuais e coletivas, e ao que delas brotavam, tiveram dificuldades para
compreender o que eu queria com tanta inquietação, andando para e para com aquelas
caixas cheias de Nós. Na verdade, o que poderia dar um caminho inteligível àqueles fragmentos
presentes em caixas, não estava ali nas tais caixas, nos envelopes, nos documentos. Habitava
antes nossas memórias, inquietas, afetadas pelas lembranças. Era a experiência (LARROSA,
2004) que se levantava exigindo para si um enredo, um texto em seu contexto.
Essas histórias que são minhas e das professoras que ajudaram a construí-la, quer ser
também de outras pessoas do Capanema que mesmo não fazendo parte como colaboradoras
diretas dessa pesquisa, também ajudam a escrever o dia-a-dia desse CIEP. Pode ser também de
outros professores que, embora vivendo a cotidianidade de escolas localizadas em outros
contextos, se identifiquem com essas histórias. Por isso, não pretendo uma “contação” de
histórias apenas. Quero narrar e, narrando, traçar uma geografia que explique o que as
linearidades do tempo têm dado conta de responder. Desejo que, ao se utilizar desse trabalho, o
leitor seja levado a erguer os olhos da folha e pegar um atalho completando a leitura do que não
está escrito, mas está dito. Percebo e creio na dimensão utilitária da narrativa . Por assim dizer,
acredito que os “conselhos” que brotam das experiências aqui contadas possam, de algum modo,
contribuir para ajudar a pensar, repensar e (re)significar nossa escola, pois “o conselho tecido na
substância viva da experiência tem um nome: sabedoria” (BENJAMIN, 1996, p.11).
Boaventura (2002) destaca sua preocupação com a dimensão coletiva do trabalho dos
professores, e com a necessidade de se buscar regularidades nas experiências destes profissionais.
Tem sido pouco discutido o caráter coletivo das experiências docentes, uma vez que essas
ocorrem no interior de determinados grupos sociais e culturais, trazendo, portanto, a marca dos
valores e das culturas dos grupos. (...) Sem considerar os aspectos singulares das ações dos
docentes, é importante buscar identificar regularidades em seus comportamentos, concepções e
representações, uma vez que estes são construídos em processos de interação social, sendo
coletivamente compartilhados.
O que diz Boaventura é da maior importância no contexto desta pesquisa, pois o processo
de formação das professoras do Capanema tem no coletivo sua característica mais forte. Durante
as nossas conversas encontrei aspectos que se repetiam e que predominavam no discurso das
professoras. São eles o coletivo, a relação com o passado,, a permanência, o encantamento, a
(des)crença nas políticas públicas pensadas para a escola e o desejo de uma escola que
promovesse uma educação de qualidade.
Nossas falas misturam sentimentos, crenças, valores, contradições. E se assumo o
paradigma da complexidade (MORIN,2003) para compreender o cotidiano não poderia esperar
outra, senão a incerteza, a dúvida, a surpresa como dimensões da realidade vivida. Nesse claro-
escuro (PAIS, 2003) me situei para tentar trazer à claridade o que ficou à sobra, o quase
imperceptível de nossas histórias. Momentos que guardavam detalhes mal resolvidos, ou sequer
lembrados. Olhar o avesso e de arrastar o meu/nosso duplo: o que está onde pensávamos não
estar sendo vistos, o que não está nas palavras registradas, identificadas, mas principalmente
no refúgio dos lapsos, na palavra embargada, na pausa, no silêncio, na escolha do que dizer. Por
debaixo das palavras, outras palavras. A narrativa de cada professora também traz a fala de
outros que consciente ou inconscientemente foram incorporando as suas trajetórias.
A narrativa suscita um trabalho com a subjetividade e com a memória. A imaginação
também tem lugar nessa forma de escrita. Suscita imagens novas e antigas, cores, brilhos, tons,
Essas dimensões se interpenetram, manifestando-se no relato e na escrita da experiência narrada.
Do mesmo modo, o leitor se conecta com o texto captando detalhes que o ajudam a reproduzir as
cenas em que esses detalhes podem ocorrer. É no particular, e não no geral, que se desencadeiam
as emoções (CONNELLY, CLANDININ, 1995)
Vários são os caminhos de registro de uma experiência. Vasculhando documentos,
“lixos” e relatos, fui reconstituindo os pedacinhos de nossa história. Ouvi também alguns alunos,
merendeiras, inspetores, outros professores, responsáveis, pessoas da comunidade. Essas
conversas me trouxeram importantes contribuições para além da pesquisa. Ajudaram-me a pensar
o meu (nosso) lugar no mundo, naquela escola, no imaginário das pessoas.
Alguns desses fragmentos foram inseridos nesse trabalho não apenas para ilustração,
mas por constituírem memórias que, embora não sendo dos sujeitos da pesquisa, julguei da maior
importância para algumas reflexões necessárias. Foram dois anos em que me descobri no olhar do
outro. E, em um só tempo, descobri tantos outros, no que já me parecia familiar. Conheci
também outros finais, outros sentidos para histórias que já me pareciam inteligíveis, decifráveis.
Durante todo esse trabalho, fui pensando que só vale a pena escrever se for para
transformar. E, no que transformo, vou me transformando também. A escrita leva a
responsabilidade de narrar histórias vividas e contadas por um grupo de pessoas que continuam
no mesmo lugar, vivendo em sua cotidianidade as questões aqui trazidas. Pessoas que se dão a
conhecer pelo que se lembram, pelo que relatam. Minha responsabilidade aumenta na medida em
que, sendo também parte dessa história, transformo movimentos, sentimentos, acontecimentos
em palavras. Nesse sentido, minhas palavras precisam passar sentimentos e emoções que
detonarão uma interação com o leitor. É ele quem, interagindo com a minha escrita, vai fazê-la
vibrar onde eu não posso estar. Nesse momento, só ela, a palavra, responde por mim.
Nossas conversas mostraram o quanto a questão da permanência , aparentemente simples,
trouxe elementos para problematizar e refletir sobre as concepções e práticas que sustentam
nossas ações no cotidiano daquela escola. Foi interessante perceber que logo ao serem indagadas,
as professoras demonstravam um certo desdenho pela simplicidade da pergunta “Por que você
permaneceu nesse Ciep?”. Talvez elas esperassem de uma pesquisa acadêmica, uma elaboração
maior. Ou será que viviam as dificuldades de falar sobre coisas que normalmente não julgamos
importantes pensar? O fato é que, paradoxalmente, o desdenho por essa pergunta vinha seguido
de um olhar para o alto, pensativo, talvez, quem sabe, em busca de um tempo perdido, de um
motivo guardado em algum arquivo de memória que pudesse salvá-las do embaraço da
constatação: pergunta simples; respostas nem tão simples. Concordo com Larrosa (2004, p.186)
ao dizer que as palavras mais simples são as mais difíceis de escutar, pois acreditamos que de tão
simples tudo já sabemos e entendemos sobre elas, e logo a abandonamos sem ouvi-las.
Sabemos que a neutralidade absoluta é uma ilusão. Ao narrar as experiências
vividas pelo outro, estou utilizando-me de percepções minhas sobre as impressões que o outro
teve de uma situação que também não expressa a realidade vivida, mas as leituras que dela se
fez. Não há lugar privilegiado de observação do real, nem mesmo o da Direção, como pensava no
início do Mestrado. Contudo, se existe um lugar onde é possível inaugurar um novo modo de
fazer essa leitura, sem as conclusões generalizantes a que nos acostumamos com a Modernidade,
esse lugar, certamente, é o da pesquisa com o cotidiano. E é desse lugar que vou passando a
limpo a trajetória dos que ousaram acreditar em uma escola possível.
Foram várias horas dedicadas a experimentar, apagar e reescrever até achar o “fio da
meada” por onde começaria a narrar essa história. Cada fragmento colhido, cada ponta de fio
poderia dar início a uma narrativa que não se conformava a uma organização linear do tempo e
dos acontecimentos para registrá-la. Foram tantas idas e vindas, até que a tela do computador foi
sendo preenchida pelo que de mais liberdade podemos experimentar: a escrita de nós mesmos.
Outro desafio foi captar nas falas das professoras os sentidos que poderiam responder
a pergunta “Por que permanecemos por tantos anos no Ciep?”. Como captar a importância dos
acontecimentos, das experiências vividas por nós, dando sentido às nossas trajetórias e a memória
dessa escola? Essas perguntas habitavam meus pensamentos. Como entrar por entre as palavras,
fotografias e documentos, e deles arrancar o espírito do tempo” (GINSZBURG, 1989, 75) e lhes
conferir explicações que, transformadas em narrativas, torne o passado/presente compreensível
em seu sentido?
Todas essas questões explodem na angústia da escrita. Foram horas lendo as
entrevistas, tentando ler no escrito o que não foi dito em palavras, mas dito no sussurro, na
respiração, nas exclamações, no corpo que se arruma na cadeira, nas expressões, no aparente
desprezível. Nas leituras de Carlo Ginszburg (1989), busquei interlocução com o paradigma
indiciário, para iluminar os aspectos mais negligenciáveis e os detalhes que fui detectando
durante as investigações. Tornando, assim, inteligível o que se esconde nas entrelinhas, nos
espaços em branco, nos silêncios.
Apropriei-me de uma escrita narrativa pela liberdade que essa forma de escrita
sugere para expressar nossos modos de ver, pensar, agir, sentir e experimentar o mundo. Mas não
foi (não é) fácil lidar com as palavras. A palavra que nos expõe, aprisiona, pode ser a mesma que
nos liberta. Enquanto narramos formamos, e nos informamos. Ao mesmo tempo vamos sendo
“enformados” pelas leituras do outro. Nessas memórias evocadas, o que salta à voz é a aura
(BENJAMIN, 1996) que emana do que de tão distante não podemos tocar, reviver, quase não
lembramos; mas sentimos pulsar na presença viva do que está radicado, do que nos afeta, do que
nos mobiliza, do que dá forma e movimento às nossas ações.
Bakhtin (2004:41) me ajuda a pensar na importância das narrativas orais para
compreensão da realidade, ao considerar:
(...)A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações
quantitativas de mudanças que ainda não tiveram tempo de adquirir uma
nova qualidade ideológica...A palavra é capaz de registrar as fases
transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais.
Envolvida com o material recolhido durante as investigações, fui experimentando
várias possibilidades de organizá-lo, me debatendo entre os limites da linguagem (e de minha
própria escrita) e a liberdade da narrativa que rompe as fronteiras do dizer e exige para si uma
narratividade “artesanal”, rompendo com as formas “sintéticas” de contar. A pesquisa foi
ganhando um formato na medida em que alguns fragmentos recolhidos iam ganhando sentido
para mim. O que me parecia apenas uma questão de forma era um processo que não ocorria
dissociado do conteúdo. Organizava-me e me desorganizava o tempo todo, em um movimento
que, hoje compreendo, era próprio de uma escrita que se pretendia a partir da constituição do
relato das experiências de um grupo de professoras, buscando identificar no passado elementos
que me ajudasse a entender o “tempo de agora”. Esse movimento me exigiu a constituição de
uma “Erfahrung”
10
(BENJAMIN, 1996, p.p. 8-9)
Foi preciso aprender a narrar como minha mãe suas histórias da infância. Precisava
dar um movimento à narrativa que levasse os leitores a trilhar o percurso comigo. Foi preciso
também me desacorrentar da obsessão que a vida moderna nos impõe: a obsessão do explicar.
Precisei abandonar algumas, muitas verdades. À princípio não queria me desfazer de nada. Os
relatos, cada anotação, cada pista que compunha as fontes pelas quais me movimentei tem uma
história, uma descoberta. Até os becos-sem-saída em que me embrenhei durante a pesquisa foram
produtivos. Pois para me livrar deles foi preciso fazer o caminho de volta, até descobrir em que
momento esses atalhos me pareceram o caminho. Aprendi com cada pista, com cada erro, com
cada acerto. É Esteban (2001) quem me diz que nem todas as pistas poderão ser percebidas e
nem todos os fatos serão valorizados de modo uniforme”. Por assim dizer, o que vemos são
percepções parciais, fragmentos de um processo de “permanente construção e desconstrução e
reconstrução cheio de lacunas e rupturas”
Ainda valendo-me das leituras de Esteban(2003) apostei no saber que se hospeda no
erro produzido durante o processo de aquisição do conhecimento. O meu saber traduziu-se em
um não saber que precisei superar epistemologicamente, para poder romper de fato com as
metanarrativas que dominavam minha escrita. Nesse sentido, as contribuições de Boaventura
Santos e Pulo Freire foram leituras necessárias que me fizeram rever concepções paradigmáticas
e a necessidade da reflexão permanente com/sobre minhas/nossas práticas. Assim, nada do que
fui achando pelos caminhos investigativos foi desprezado, mas (res)significado. Fui acumulando
durante esse percurso descobertas, certezas, dúvidas e perguntas.
No entanto, o tempo da pesquisa é breve. É chegado o momento da dissertação. Preciso
comunicar o que encontrei. E do que encontrei fazer minhas escolhas, afinal, fazer pesquisa
10
Experimentar a reconstituição das experiências passadas, se permitindo outras formas de compreensão do vivido e
também uma outra narratividade.
também é fazer escolhas. É nesse momento que me volto no tempo para resgatar o movimento
inicial que me trouxe até aqui: compreender a minha, a nossa permanência no Ciep por tantos
anos e conseqüentemente contar um pouco da sua história.
Para entender o movimento da escola é preciso vivê-la em seus diversos
tempos/espaços. É preciso senti-la pulsar na ira do que nos impele a fazer o que não queremos e
no gozo das astúcias que nos mantêm sonhando e fazendo o que acreditamos preciso e/ou
possível. É preciso percebê-la em suas contradições. Senti-la como rios que precisam das
margens para -lo, mas que transbordam, se preciso for, para garantir o fluxo de seu curso.
Sabendo que transbordando ou se mantendo nos limites marginais, ambos estão dando forma
aquele cotidiano.
E se é verdade que ao contar uma história estamos nos contando, estamos nos
narrando, é preciso que sejamos capazes – alunos, professores, pais, funcionários – que tenhamos
coragem de nos dizer, de nos contar, de nos inscrever em nossas diferenças, em nossas
existências singulares e plurais. Narrar as nossas histórias. E que essas histórias se transformem
em livros livres para serem lidos, escritos e reescritos, sem perder o desejo que nos move em
direção a vontade de querer ser, querer saber, querer fazer, para fazer valer o que de humano
em nós.
CAPÍTULO III
“COMPLEXUS” DA MARÉ
Enquanto organizava o material recolhido durante a pesquisa, uma coisa me chamou
atenção: a dificuldade de separar o que dizia respeito somente à trajetória do Ciep e o que se
referia especificamente ao território da Maré. Fui percebendo que havia uma relação de interação
entre o espaço (Ciep) e o lugar (Maré). Algumas falas traziam uma compreensão de dentro e de
fora da escola, comprovando que os muros não dividem essa escola da comunidade. Nas
narrativas parecemos “demolir” os muros que separam uma da outra. Entretanto, as leituras que
fazemos desse espaço e do lugar onde trabalhamos são plurais. São múltiplos os sentidos e as
formas de ler e compreender a realidade.
Vivemos um processo de mudanças de paradigmas. As relações e as mudanças
criadas, estabelecidas, emitidas e forjadas cotidianamente nos diversos espaço-tempo do
Capanema, precisam ser entendidas a partir de sua complexidade. Ao admitir essa necessidade,
trabalhamos com o pensamento complexo que nos intima a caminhar pelas “incertezas”
esbarrando muitas vezes no “aleatório”. Exercitamos assim a arte da guerra, citada por Morin
(1996, P.191) que é estratégica, pois é “a arte de utilizar as informações que aparecem na ação e
integrá-las, de formular esquemas de ação e de estar apto para reunir o máximo de certezas para
enfrentar a incerteza”.
A maior parte dos relatos fala sobre a chegada no Ciep: do susto, da resistência, da
(falta) de opção pela Maré. As relações que se estabelecem dentro da escola vão dialogar com as
representações que trazemos desse lugar que chega a nós muito antes de chegarmos à ele. Chega
através da mídia e do medo do “outro”, excluído pela violência que segrega, nomeia, marca,
(des)classifica.
Para entender a relação entre escola e comunidade busco em Morin(2000:38) o
conceito de complexus, que significa o que foi tecido junto. A complexidade pressupõe elementos
diferentes, mas inseparáveis na constituição de um todo. Podemos dizer que uma Maré que
está dentro das pessoas e que pessoas que estão dentro da Maré: dois espaços que se fundem
em nossas subjetividades e que vão sendo significados um pelo outro. Espaços que foram e são
produzidos pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a
funcionar em uma unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais
(CERTEAU, 2002, p.202)
Ao trabalhar com a desordem e a incerteza, buscando as “operações” que se dão na
Maré e na escola, ao contrário de estarmos submetendo-nos a elas, construímos caminhos para
um pensar criativo que não se desdobra e se conforma ao determinismo das respostas prontas que
contribuem pouco para que cresçamos. Historicamente buscamos a ordem, a simplificação dos
fatos para compreendê-los. A busca na desordem, nos movimentos não-lineares do cotidiano se
coloca como trilha possível para superação e transformação.
Silva (1995, p.28) nos fala da necessidade dessa busca quando diz:
Educadoras e educadores precisam, mais do que nunca, assumir sua
identidade como trabalhadoras/es culturais envolvidas/os na produção
de uma memória histórica e de sujeitos sociais que criam e recriam o
espaço e a vida sociais. O campo educacional é centralmente cruzado
por relações que conectam poder e cultura, pedagogia e política,
memória e história. Precisamente por isso, é um espaço
permanentemente atravessado por lutas e disputas por hegemonia. Não
assumir nosso lugar e responsabilidade nesse espaço significa entregá-
lo a forças que certamente irão moldá-lo de acordo com seus próprios
objetivos, e esses objetivos podem não ser exatamente os objetivos de
justiça, igualdade e de um futuro melhor para todos.
Localizado na Zona da Leopoldina, o Complexo da Maré contava, no ano de 2000,
segundo dados do Censo Maré, com cerca de 132.000 moradores, distribuídos entre 17
comunidades. Uma população em sua maioria negra e nordestina, com baixa escolaridade, vinda
do Nordeste para o Rio de Janeiro em busca de oportunidades de emprego
11
ou de remoções
11
De acordo com dados do Instituto Pereira Passos, estudo feito entre 28 favelas cariocas apontam o Complexo
da Maré na 11ª posição no Índice de Qualidade de Vida Urbana (A Maré em Dados: Censo 2000).
feitas em outras favelas da cidade. A compreensão de como aquele lugar se tornou no bairro
Maré nos ajuda a entender o contexto do Ciep como espaço que atende às crianças das várias
comunidades da região. Contudo, os moradores da Vila do João e da Vila Pinheiros representam,
juntos, cerca de 90% da população atendida no Ciep. Construídos no início da década de 80, os
conjuntos habitacionais da Vila Pinheiro e Vila do João, são duas das 17 comunidades que
compõem o Complexo:
COMUNIDADES TOTAL
Parque União 17.795
Vila Pinheiros 15.485
Parque União 15.399
Baixa do Sapateiro 11.467
Nova Holanda 11.295
Vila do João 10.651
Rubens Vaz 7.996
Marcílio Dias 7.179
Timbau 6.031
Conjunto Esperança 5.728
Salsa e Merengue 5.309
Praia de Ramos 4.794
Conjunto Pinheiros 4.767
Nova Maré 3.142
Roquete Pinto 2.514
Bento Ribeiro Dantas 2.199
Mandacaru 424
Maré Total: 132.176
Cinco anos após a realização do Censo Maré (2000), estima-se que a população total do bairro
esteja hoje em torno de 150 mil moradores.
As primeiras ocupações populares no Complexo da Maré datam da cada de 50,
precisamente no Morro do Timbau, uma das 17 comunidades do bairro. A proximidade da região
com o Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro porta de entrada da “cidade maravilhosa”
gerou várias ações do governo na tentativa de remover a população daquele local. Segundo relato
de alguns moradores, o processo de ocupação e permanência naquela região se deu através do
enfrentamento e resistência à política de remoção do governo, cuja intenção era ocultar a face
desigual da cidade, deslocando a população para outras áreas menos visíveis.
A história do Complexo da Maré propalada pela imprensa escrita e televisionada não
nos traz os matizes de cores, sabores e emoções que assistimos e sentimos ao ouvi-la nas vozes
dos seus moradores e ao freqüentarmos aquele território com olhos livres de preconceitos. A
Maré contada por ela mesma nos fala de dor, de pobreza, de ausências, mas, ao mesmo tempo,
nos diz de uma população que resiste, que se faz notar, que se (des)organiza para continuar a ser:
Queriam tirar a gente daqui. Eles não queriam que os gringos que vêm
pro Brasil e são obrigados a passar pela ponte da Ilha do governador
vissem essa imagem feia do Rio de Janeiro, que não é igual àquelas que
eles mostram lá fora. Não saímos daqui porque brigamos muito. Por eles
nós íamos para bem longe. (JESSÉ (2005) pai de aluno morador da
comunidade da Vila do João)
Esse território entre a Avenida Brasil e a Baía de Guanabara era repleto de palafitas.
Então, iniciou-se um processo de aterramento, para a construção de casas populares naquela
região. As casas populares foram construídas para abrigar moradores das palafitas (moradias em
madeira construídas sobre as águas da Maré).
Nesta foto, uma mostra dos barracos construídos sobre palafitas nas águas da Maré, na década de
60. (Fonte: Jornal Extra, 07/09/2004, retirado dos arquivos da Rede Memória da Maré).
O aumento vertiginoso da população no Complexo da Maré nos últimos anos mostra
que essa política permanece ativa ainda nos dias de hoje (Silva, 2005). Percebemos isso em 1995,
quando chegaram os caminhões trazendo os novos moradores, população que morava nas ruas,
sob viadutos ou em outras favelas exterminadas, em uma demonstração clara de que o espaço das
favelas, se olhada pelas lentes do poder público, ainda é o lugar de despejo daqueles que residem
em espaços “desautorizados”, privatizados e visíveis da cidade.
Algumas famílias que foram removidas para a Vila dos Pinheiros foram alojadas no
entorno do Ciep, em alojamentos que foram derrubados logo que foi entregue (1999) o conjunto
residencial denominado Salsa e Merengue. Outras foram transferidas para o complexo
habitacional “Nova Sepetiba”, na Zona Oeste da cidade, construído na mesma época do conjunto
Salsa e Merengue.
Esse crescimento populacional vem impactando, sobremaneira, a estrutura de
atendimento de algumas escolas da área. Na medida em que essas famílias vão chegando e se
inserindo na dinâmica daquela comunidade, vão exigindo das escolas outras perspectivas em
relação ao trabalho desenvolvido. O Gustavo Capanema, por exemplo, nos últimos 5 anos
ampliou o número de turmas no período diurno, o que provocou a redução das turmas em horário
integral e abertura de novas turmas parciais. Além disso, recebeu um prédio anexo que atende a
12 turmas de Educação Infantil e dobrou o número de turmas do PEJA
12
, no turno da noite.
Para os primeiros moradores a ocupação daquele território representou uma
resistência à remoção, pois a política remocionista representou mudanças drásticas na vida de
milhares de pessoas:
Os impactos foram profundos: redes sociais desfeitas e a proximidade
do local de trabalho, que propiciava uma economia significativa com o
transporte, não existia mais (...) Para completar as famílias não tinham
mais com que deixar os filhos ou com quem pegar algum dinheiro
emprestado. Toda uma rede de relações criada ao longo de anos na vida
da favela foi esfacelada. (Relato de morador retirado do livro “Favela
– alegria e dor na cidade”)
Para outros assentados a ocupação daquela região representou um despejo
compulsório de famílias invisíveis que ocupavam espaços localizados em pontos visíveis da
cidade. Para algumas dessas famílias que passaram a dirigir-se à escola à procura de vagas para
seus filhos, a política de remoção violou não somente o direito a residir, mas também a resistir e
existir.
“Fomos trazidos pra cá na marra. Meu filho ficou 2 anos para conseguir
vaga aqui nessa escola. onde s morava ele tava na escola. Agora
tiraram a gente de e jogaram aqui, nem perguntaram se nós
trabalhávamos, onde estudava os filho da gente.” (Deusa, mãe de aluno do
Ciep)
Nos últimos anos, o Complexo da Maré passou por uma série de mudanças. O
asfaltamento da Via Principal que corta as Vilas do João e Pinheiros melhorou o sistema de
transporte que atende ao local. Até início da década de 90, chegar ao Ciep era um desafio. A
comunidade só era atendida por uma linha de ônibus: o inferninho
13
.
12
Programa de Educação de Jovens e Adultos.
13
Assim era conhecido o ônibus de cor vermelha que atendia ao local (909- Cordovil/parque
União).
Quando o ônibus atrasava ou nos deixava no ponto, os transtornos eram grandes.
Com poucos ônibus atendendo àquela comunidade, os intervalos entre um e outro eram grandes.
Nesse sentido, a expansão dos transportes alternativos (Kombi, Moto-táxi, Van, ônibus)
contribuiu muito para resolver essa situação. Contudo, a maior parte desses transportes circula em
situação irregular, oferecendo perigo e nenhuma garantia a seus passageiros.
No silêncio das autoridades diante dessa e de outras situações a que os moradores
daquele território são submetidos, percebemos o descaso e a fragilidade com que alguns direitos
são garantidos àquela população. O tráfico, para citar mais um exemplo, representa a presença de
uma ausência (Certeau,2003) sentida em vários momentos na vida daquela comunidade: a do
poder público. Esses conflitos atravessaram nossas histórias naquela escola, produzindo outras
histórias. Isso nos leva a refletir sobre a impossibilidade da escola estar afastada da vida e dos
embates vividos por aqueles e aquelas cujo desafio é ser numa sociedade extremamente
excludente.Nesse espaço onde cotidianamente muitos sujeitos trazem suas histórias, seus valores,
construindo-se e contribuindo para a construção do outro, faz-se necessário compreender o
espaço/tempo global onde essas construções se dão.
Boaventura (1997, p.178) nos ajuda a compreender a importância de conhecermos as
singularidades e as multiplicidades presentes no cotidiano:
“Quando somente estudo o particular não estar sendo holístico, não
estou percebendo o movimento geral. Mas também não posso pensar em
ser holístico sem trabalhar com o particular. E assim estou mantendo o
real, porque o real é o processo de cissiparidade, de subdivisão, de
esfacelamento, de cisão. Não posso falar da totalidade sem falar na
cisão, porque estaria esvaziando o movimento (...). Estaria subtraindo a
história. E é ela que me diz que o uno é múltiplo, no momento seguinte,
para voltar a ser uno, no momento vindouro. Não é só o todo que explica
o múltiplo. O múltiplo explica o todo. Essa é a lei que explica a inserção
de cada lugar no espaço total e o critério de análise que leva em conta o
acontecer concreto em cada ponto da Terra. Na verdade o espaço dá
conta da totalidade, impedindo que apenas seja vista de modo abstrato.
O tempo e suas categorias de análise são instrumentos adequados para
essa compreensão”
Não é possível compreender o particular sem o entendimento da totalidade. O que se
no cotidiano da escola, certamente traz reflexos do que os moradores vivem e do que é
produzido pela sociedade em relação à Maré e aos demais lugares habitados pelas Classes
populares. Da mesma forma, para que essa totalidade seja compreendida, precisamos conhecer a
considerar as especificidades de suas partes. Logo, compreender como a escola se movimenta, se
apresenta e se conta é fator importantes para entender as relações e os processos que ali se dão.
Os acontecimentos cotidianos da escola, certamente, trazem reflexos do que os moradores vivem
e do que é produzido pela sociedade em relação à Maré e aos demais lugares habitados pelas
classes populares. Da mesma forma, para que essa totalidade seja compreendida, precisamos
conhecer e considerar a especificidade de suas partes.
As questões que envolvem a produção da vida diária na Maré estão atravessadas na
trajetória do Gustavo Capanema. E essa ligação se manifesta nos projetos pedagógicos
desenvolvidos na escola no seu dia-a-dia de funcionamento, nas escolhas das pessoas que chegam
para trabalhar e nas opções que as mães fazem por matricular seus filhos nessa escola.
Esta foto mostra parte do Complexo da Maré hoje, com suas 17 comunidades e cerca
de 150.000 moradores(Fonte: Jornal Extra, 07/09/2004)
3.1 - A violência: um desafio à permanência
Sempre morei na Zona da Leopoldina. Ainda menina, na década de 70, ouvia falar
da Maré. Os adultos se referiam a um tal pessoal do outro lado”. Essas pessoas moravam na
Zona da Leopoldina, em um lugar situado entre a Avenida Brasil e a Baía de Guanabara, em uma
extensão que vai do bairro da Penha à altura de Manguinhos área que atualmente representa o
Bairro Maré. O outro lado da Avenida Brasil, como ouvia as pessoas falarem, era citado com
muito preconceito.
Quando criança compreendia o “outro lado” apenas como a extensão da Praia de
Ramos. Os adultos (vizinhos e familiares) quando se encontravam para falar das reminiscências,
dos “bons tempos” de sua infância e juventude traziam a praia de Ramos com muito
saudosismo”:
“Naquele tempo a gente ia pra praia de Ramos se banhar. Não tinha
esse perigo, nem essa sujeira que é hoje, Deus me livre... a gente
levava aquele farnel, ficava o dia todo. Não tinha tiro, não tinha nada. A
praia vinha mais ou menos aaqui à Rua Nossa Senhora das Graças.
Depois aterraram para fazer a Avenida Brasil. Era muito bom. A gente
podia ir sem medo, tinha respeito.” (Maria Emília, moradora de Ramos)
Assim, cresci ouvindo falar da Maré: com as pessoas do lado de se referindo ao
pessoal do outro lado da Avenida Brasil com ressentimentos pelo esgoto lançado na Baía de
Guanabara, e com a ajuda da dia que exerce um poderoso papel na construção desse olhar.
Levando-nos a acreditar ser um lugar de perigo, de sujeira, de miséria e de aberração – quem não
se lembra do “porco com cara de gente?”
14
. Jamais imaginaria que aquele lugar, de onde ouvi
falar de modo tão hostil, teria tanta importância na minha trajetória. Conhecer a Maré por dentro
me ensinou o que nas contribuições de Foucault pude confirmar: O discurso é produtor de
realidade. E o produz porque é feito de palavras que nomeiam, parte por parte, o que é dado à
representações . (FOUCAULT, 2002, p.135 – grifo do autor).
A singularidade, a individualidade não deixa de existir frente a multiplicidade. A
multiplicidade, por sua vez, contém a singularidade. Daí a importância de ouvir, conhecer,
vasculhar nossas memórias na tentativa de escapar às armadilhas da generalização. Ao chegarmos
à Maré descobrimos toda uma trajetória de lutas, de uma população subalternizada, que resiste,
que ensina como criar espaços, como viver na escassez. Aquela gente multiplica as esperanças,
divide as angústias, soma os saberes e segue subtraindo as tristezas de quem se sabe num mundo
de cartas marcadas.
“Do outro lado”, encontro um saber/sendo que só se compreende no diálogo, que é o
encontro dos homens para ser mais. E ser mais não significa transplantar no outro as nossas
convicções, mas estabelecer uma relação de troca entre a sua e a nossa visão de mundo. É Paulo
Freire quem nos adverte que nossa visão de mundo reflete nossa situação no mundo. Com efeito,
a ação educativa que propõe uma prática de liberdade não pode prescindir de conhecer a
realidade das classes populares.
Morin (2002), também me ajuda a pensar sobre a sociedade como um todo e os
indivíduos como partes desta sociedade. Esta interfere desde o nascimento, na vida dos
indivíduos, por meio da linguagem, das normas, dos valores, das culturas que vão assimilando;
no entanto, enquanto sujeitos singulares, “mesmo trazendo as determinações” do todo, não são
simples reflexões deste todo.
No grupo entrevistado foi, recorrente nas falas das professoras a relação entre a
violência do território e o desejo de deixar o Ciep. Para nós, professores, trabalhar na Maré é um
permanente desafio. Nos períodos de tensão, que muitas vezes nos colocam muito próximas aos
conflitos armados, a apreensão toma conta de algumas de nós, nos fazendo pensar no Concurso
de Remoção
15
. Para as escolas localizadas nas periferias das grandes cidades, esses desafios
tornam-se ainda maiores, face às contradições e ás diversidades mais acentuadas entre os grupos
14
Na década de 80 a notícia do nascimento de um porco com feições humanas atraiu muitos curiosos. Essa história
virou lenda, e consta do livro Lendas da Maré (2003).
15
Uma concessão dada a professores e funcionários da rede pública municipal com mais de 5 anos de exercício de
escolher nova lotação para suas matrículas.
que ali se concentram. A procura por escolas “bem localizadas” que, supostamente, atendem à
parcela da população com melhor poder aquisitivo e, conseqüentemente, com menos demandas
sociais, tem seduzido muitos professores. Com efeito, as escolas situadas em contextos mais
violentos têm enfrentado algumas dificuldades para lotação de seus quadros de pessoal.
É recorrente ouvir de muitos professores o desejo de abandonar a escola e procurar
um lugar mais tranqüilo”. Alguns alegam cansaço, outros a pressão permanente de seus
familiares para que deixem o Complexo da Maré. Alguns demonstram também a indignação pelo
descaso das esferas Estadual e Municipal com a segurança da escola e da população em geral, ao
dialogarem com essas comunidades através de um carro blindado. São muitos os medos na vida
dessas pessoas-profissionais: o medo do tráfico, o desafio de chegar ao Ciep, medo do fracasso
escolar tão próximo às camadas populares, medo do desconhecido.
Os laços de afetividades, o medo do novo, as relações de confiança e solidariedade
que se estabelecem no contexto de trabalho, ainda que marcado em alguns momentos por
conflitos e dissonâncias, ocupam também um lugar representativo para pensar a questão da
permanência. Essas dimensões subjetivas geram uma segurança mais significativa que a
insegurança experimentada no entorno da escola. Em nossas conversas a questão do acesso ao
Capanema foi recorrente e mostrou-se um fator importante para pensarmos o modo como as
professoras escolhem as unidades escolares: se o local é próximo à Avenida Brasil, se o local é
bem atendido pelo sistema de transportes, se a escola fica em uma área periférica, se os índices de
violência no entorno são altos, se a escola fica localizada em ruas íngremes, para citar alguns
aspectos considerados na escolha da escola.
Quando estava para tomar posse na Secretaria de Educação, por exemplo, os
professores começavam a trocar informações sobre a localização das escolas na fila. Nesse
momento as escolas já começam a ser disputadas ou rejeitadas, segundo suas “referências”:
Algumas professoras, dependendo da avaliação que era feita de alguma escola ou lugar,
chegavam a optar por escolas mais afastadas de suas casas, mas, supostamente, menos
“desafiadoras”. As informações recebidas através de outros professores que atuam na escola,
dizem respeito, principalmente, aos relacionamentos interpessoais que ali tem lugar. Sobretudo,
as ações do diretor escolar junto aos grupos e destes com a comunidade escolar em geral. Essas
informações são mais valiosas quando a escola está localizada em territórios onde a violência é
mais acentuada. Nesse sentido, a figura do diretor ganha legitimidade pelo que representa de
autoridade junto à comunidade escolar.
Na minha experiência, para citar um exemplo, as referências que recebi do Ciep
vieram por meio de uma colega cuja irmã atuava nessa escola e foram decisivas para a minha
escolha, ainda que essa não fosse a minha primeira opção. Os vínculos que as pessoas
estabelecem com a escola são importantes na medida em que contribuem não para o trabalho
que acontece dentro da escola, mas também para as representações que dela fazem aos que
chegam e que vão compondo seus coletivos.
Para Boaventura (2002:191), as representações são sempre uma forma de olhar.
Quanto maior o poder de representação, maior a profundidade e a transparência do olhar. As
representações sociais que orientam as nossas visões de mundo criam no imaginário dos sujeitos
modos de interagir, interpretar, sentir e dizer. São imagens criadas a partir de estereótipos que
definem as identidades locais, a partir de totalitarismos que apagam a diversidade, a cultura e a
identidade dos sujeitos que ali residem, com seus modos peculiares de morar, se divertir, estudar,
conviver e sobreviver. Para romper com essa visão estigmatizada, é preciso romper com as
certezas que nos fizeram acreditar nesses estereótipos e tecer outras formas de criação e
entendimento do real. O que pressupõe outras perspectivas epistemológicas para lidar com os
saberes produzidos no cotidiano, sem hierarquizá-los, sem desqualificá-los diante de um suposto
saber maior, mais verdadeiro, mais legítimo do que o das (nossas) classes populares.
O estigma de morar num território como o Complexo da Maré é percebido em muitos
de nossos alunos. A baixa auto-estima provoca sentimentos que vão da apatia à reação violenta.
Embora algumas iniciativas, sobretudo da sociedade civil organizada, concentrem suas atividades
em direção à ações que visem desenvolver um sentimento de “pertencimento” e elevação da auto-
estima daqueles moradores, não uma ão mais efetiva do Estado. A falta de condições
básicas, como saneamento, segurança, saúde e empregos, entre outras necessidades, dificulta,
sobremaneira, a vida de parcela significativa daquela população. A prática nos leva a perceber
que os alunos trazem as interfaces de uma violência que está para além das armas, que se
manifesta na negação de direitos básicos, como ir e vir, falar e ser percebido em sua condição
cidadã. Revolvendo essa história me recordo de um comentário muito recorrente entre os alunos
que estudam no PEJA. Um deles traz em seus relatos um bom exemplo dessa situação:
Professora, a gente não pode dizer que mora na Maré quando vai
arrumar emprego. Pensam que aqui tem bandido.A gente tem que
levar a conta de luz de algum parente que more fora daqui. Quando a
gente diz que é da Maré olham pra gente de olho torto. Na época que
o Guanabara inaugurou em Bonsucesso, um monte de gente sobrou na
fila porque declarou que morava na Maré. Eles acham que a gente vai
dar dica pros vagabundo. Isso é preconceito, né? (Rodrigo_ aluno do
PEJA)
Eu gosto muito de trabalhar aqui. Mas acho que a violência atrapalha
muito o andamento pedagógico e as crianças ficam muito agitadas. Uma
vez eu pensei em sair daqui. Cheguei entrar no Concurso de Remoção
16
.
Queria ir para Tijuca, ficar perto de casa. Mas aí me mandaram para o
morro do Borel. Então eu pensei: violência por violência, eu prefiro
ficar na Maré. (...)Ah, porque eu permaneço? Você sabe tudo sobre a
nossa vida. tanto tempo aqui...ah, por que eu gosto
daqui.(...)Quando eu cheguei aqui o prédio ainda estava em construção.
Eu desconhecia esse lugar. Assim que cheguei tive um choque... Mas daí
fui gostando do grupo, fui me ambientando, fui ficando... Eu acompanhei
o crescimento do grupo todo, depois algumas pessoas foram saindo e
indo para outras escolas(...) Muita gente saiu daqui por causa dessa
violência. Quando os “quinderováqueos”
17
vieram para cá muita gente
foi embora, porque previu que o negócio ia ficar feio. A população
16
Uma concessão dada a professores e funcionários da rede pública municipal com mais de 5 anos de exrcício de
escolher nova lotação para suas matrículas.
17
O termo “quinderováqueos” foi utilizado por alguns moradores da Mapara se referirem à chegada das famílias
removidas de vários pontos da cidade e assentadas na região. Esses moradores à princípio colocados em alojamentos,
foram transferidos para casas populares construídas pela Secretaria Municipal de Habitação na Zona Oeste (Nova
Sepetiba) e em uma área livre em frente ao Ciep, inaugurado com o nome de Salsa e Merengue. Os alojamentos
foram apelidados de Kinder Ovo, numa referência ao ovo de chocolate recheado de surpresas. Por suas dimensões
minúsculas, mas contendo muita coisa (pessoas, móveis, animais...) dentro, os alojamentos foram assim chamados
pela população. A chegada desses moradores não foi bem recebida pelos antigos moradores da região, que os
concebiam à princípio como invasores do espaço. Dessa combinação surgiu o termo “Quinderováqueos”.
aumentando, a maioria veio para o Ciep, viu, né, a escola que
tinha falta de professores para manter o horário integral ainda precisou
aumentar turma pra atender aquele povo todo...Sei eu acho essas
mães que vieram nessa leva um pouco frias. Não sei explicar,
antigamente as mães de vez em quando criavam uns problemas também,
mas essas são mais frias, parece que o desenraizadas, não tem aquele
envolvimento com a comunidade, com a escola, com os filhos (...)
(WALDA, 2006 - professora do Ciep)
No cotidiano dessas escolas são as ticas de praticantes que muitas vezes
viabilizam o funcionamento da escola e a permanência, tanto do aluno como das professoras e
funcionários. Sem possibilidades de assegurar uma independência em face das circuntâncias
(CERTEAU, 2003, p.46), as medidas não se conservam, servindo muitas vezes a um instante, a
um período, a uma situação. Atualmente uma das táticas utilizadas pela escola foi adequar
18
o
horário de saída dos alunos, levando em consideração os constantes confrontos que têm ocorrido
nesse momento. Essa medida atende ao pedido de alguns pais e professores.
18
O horário de entrada foi antecipado para que a saída ocorra mais cedo (ainda com a luz do dia).
CAPÍTULO IV
FOMOS NOS ACON(CHEGANDO)...
Como chegamos ao Ciep? Quantas histórias trazidas em nossas bagagens e que se
misturaram a tantas outras, certamente vividas nesse espaço. E do que lembramos? Do que nos
esquecemos? Para falar de nossa permanência, pareceu-me importante rememorar a nossa
chegada. Embora nossas narrativas pareçam trazer os mesmos medos, e as mesmas preocupações
de quem entra pela primeira vez no complexo da Maré, o fato é que cada uma de nós traz
experiências singulares, vividas em outros espaços/tempos, que vão constituindo os modos como
nos posicionamos, entendemos, afirmamos ou negamos o que vivemos nessa escola.
As professoras que dividem comigo essa narrativa são bastante diferentes entre si: jeitos,
gestos, gostos, militâncias, entre outras. Com o tempo, fui percebendo a importância da
diversidade para a composição desse trabalho e na riqueza da própria história, pelo que de
memória coletiva deixou marcado em nós. Cada fragmento trazido por nós professoras tem seu
lugar situado no contexto de nossa trajetória. Nada ficou solto, nossas memórias foram
alinhavando o passado ao presente. Pelo contrário, muitas vezes tive que escolher qual fragmento
me utilizaria para registrar algum relato, devido a semelhança que apresentava com algo que
havia sido mencionado.
Ouvindo esses relatos fui percebendo quantas outras histórias vividas em outros
tempos/espaços guardadas em uma única pergunta: por que permanecemos no Ciep? É como se
puxasse um fio e viesse uma meada embolada em outras tessituras. A cada conversa que tivemos
durante o percurso da pesquisa, as professoras iam trazendo questões que ligavam o passado ao
presente, através de memórias que traziam: lembranças de alunos, trabalhos, eventos, professores
que permanecem ou passaram pelo Ciep. Nossas memórias são rizomas
19
que brotam cada vez
que nossa sensibilidade é detonada por uma
19
Utilizo-me do conceito de Deleuze e Guatarri (2004) que traz um conceito da botânica que exprime um tipo de
caule que cresce no sentido horizontal, para defender a produção de conhecimentos como um processo que se dá na
multiplicidade de interações, contrapondo-se a idéia de conhecimento arbóreo, defendida pela Modernidade.
ex-aluna que chega para visitar, por uma fotografia que pode nos fazer falar ou calar; por uma
cartinha achada amarelada por entre um caderno antigo; por episódios que nos fazem gritar um
lembra daquele ano?!”.
Nessa viagem de volta, nossa bagagem é um olhar do presente. É com ele que voltamos
ao passado para falar da experiência de chegar e ficar na Maré. E tomando o presente como um
produto histórico do passado, vou juntando fragmentos de minhas memórias e das professoras
que me acompanharam nesse percurso para historiar no tempo e no espaço o cotidiano de nossa
escola hoje.
4.1 Assim chegamos à Maré...
Muitos professores chegam à Maré com suas histórias, com seus medos e reservas. Para
muitas de nós, vir para a Maré se deu por falta de outras opções de escolas “bem localizadas” ou
por uma necessidade pessoal de conciliar outros compromissos. O Ciep se tornou um desafio para
os professores, não apenas pela inovação e ousadia de sua proposta pedagógica, mas também por
estar, a maioria, situada em áreas de risco e/ou de difícil acesso, lugares reservados aos mais
pobres
20
. Nossos relatos trouxeram a Maré que está dentro do Ciep, e o Ciep que está dentro da
Maré. E como ambos estão dentro de nós?
Eu fui para Santa Cruz. um grupo de professoras que estava e que
também havia acabado de chegar me disse: Não vamos ficar aqui, nossa
origem é Bonsucesso. Nós vamos para Bonsucesso. que quando fomos
procurar a escola descobrimos que Bonsucesso que eles falavam era aqui na
Maré. Chegamos naquela animação porque nos livramos de Santa Cruz, mas
nem imaginávamos a violência do local. Só depois que fomos nos dando conta
(...) (Rosane,2005)
20
De acordo com a política de implantação dos Cieps, estes seriam instalados em locais de “bolsões de pobreza” _
sentido dado pelo governo a locais com baixo índice de desenvolvimento humano, onde residem, em geral, a
população de baixa, ou nenhuma renda.
Eu era do Samora
21
, mas nos desentendemos com a direção, então
fomos transferidas para cá: eu, Graça e Cláudia Reis. O que mais me
marcou nessa escola foram nossas discussões na época do GAPA. Nos
Centros de Estudos nós trocávamos muito. Aproveitamos muito do que o
horário integral oferecia de vantagens não para as crianças, mas
também pro nosso trabalho. Acho que esse espírito de discussão se
mantém ainda hoje na escola, mas são outros tempos(...)A saída e entrada
de pessoas prejudica um pouco essa dinâmica, mas acho que a escola
conseguiu manter uma marca(...) Porque é um movimento que se manteve
na escola, e as pessoas que chegam ou permanecem sem esse espírito,
acabam tendo que se enquadrar, porque a maioria responde bem a
maneira de ser da escola.Ou então acabam saindo.(...) Eu permaneci aqui
primeiro porque eu tenho uma história de vida na Maré e, segundo,
porque me identifiquei com essa escola. (Eliene).
Eliene ao falar sobre o modo como as pessoas se envolvem na dinâmica da escola traz
a complexidade daquele espaço. Estamos inscritos através de nossas crenças, contradições,
modos e medos na dinâmica do cotidiano do Ciep. Estamos trançadas a diversas redes de
subjetividades que vão condicionando nossa visão de/no mundo. De algum modo vamos nos
identificando (ou não) e nos percebendo como parte do movimento de existir dessa escola.
A provisoriedade de nossos processos de identificação garante o movimento
permanente que nos permite assumir identidades diferentes em momentos e espaços diferentes,
nos deslocando, em meio à complexidade que nos enreda em nossos cotidianos (HALL, 2005,
p.13). A questão do espaço torna-se, por assim dizer, dimensão fundamental para pensarmos a
permanência de nós professoras na escola, principalmente em se tratando de um Ciep, que sofreu
uma série de transformações em sua proposta original e localizado em um território tão marcado
por representações que dele fazem, como o Complexo da Maré.
Quando falamos da escola, estamos falando de nós mesmas. Nesse momento abrimos
possibilidades de pensar o lugar que ocupamos e, ao mesmo tempo, o lugar que legamos ao outro
nessa relação. É nesse momento que a pesquisa ganha importância enquanto espaço de reflexão.
É ela que permite nos libertar das amarras que alienam nossa capacidade de pensar a realidade do
21
Ciep Presidente Samora Machel, situado no Complexo da Maré, na comunidade “Baixa do Sapateiro”.
cotidiano da escola sem as conclusões aligeiradas a que tão bem nos adaptamos pelas
necessidades que temos de “dar respostas”.
Cheguei à Maré atraída por uma afinidade com uma colega de trabalho, de outra
escola na Zona Oeste da cidade. Fátima foi quem me convenceu a ir para o Ciep Ministro
Gustavo Capanema. Três anos depois Fátima, pediu transferência para a Ilha do Governador, e eu
permaneço até hoje. se vão 16 anos... Fui sendo enredada pelas relações ali estabelecidas e
estabelecendo outras identidades: com as crianças, com o trabalho desenvolvido na escola e com
as pessoas. A Maré que habitava em mim foi assumindo outras feições. Os conflitos, as
contradições, as relações de força, os modos de participação na escola são indícios que me
ajudam a pensar como nossos caminhos foram sendo trilhados nessa permanência.
Viver o cotidiano daquela comunidade me fez perceber que, em verdade, nunca
chegaremos em uma única definição sobre a Maré. A Maré sim, nos chega mesmo antes de
conhecê-la. Irradiada pelas antenas de TV, pelo grotesco, pela pobreza, pela violência. Chega
nomeada, marcada, determinada (FOUCAULT, 2005). Percebi, então, que a Maré é um todo
inacabado, plural e complexo que está sempre nos mostrando qual é o nosso lugar naquele
território. Um lugar que precisa ser constantemente (re)significado.
A palavra permanecer, se pensada em sua acepção verbal, indica um verbo que, sem
expressar em si mesmo estado ou qualidade, ganha sentido ligando-se a um predicativo. E nós, a
que ou a quem estamos ligados? Que concepções, práticas e predicativos indicam nossa
permanência por tantos anos ali?
Um momento importante para essas professoras, a fundação do Ciep, é ilustrativo
para mostrar como essas ligações são realizadas, levando em conta a relação passado/presente e
valorização de contar o vivido como forma de resistir e persistir. Nos registros oficiais da escola
consta que o Ciep Ministro Gustavo Capanema foi inaugurado em 12 de dezembro de 1989. Mas
a data que nós, sujeitos praticantes dessa história, consideramos que a data importante para ser
comemorada é 04 de setembro de 1985. Fosse um historiador desavisado resgatar a história dessa
escola considerando apenas os documentos oficiais, perderia a emoção, a euforia do relato que
senti nas vozes das professoras que contam o momento de suas chegadas. São narrativas que
pareciam presas na garganta. Aguardavam o momento de se fazerem histórias (históricas). Tânia
resume em uma frase o sentimento que a invade nesse momento, como que exigindo dessa
história o reconhecimento de que foi uma das primeiras professoras a chegar no Ciep:
“Chegamos no cheiro da tinta”.
E enquanto pesquisava os arquivos da escola, percebi pelas fotos de inauguração que
não havia a presença de crianças. Não constam nos registros da inauguração, mas nos da
fundação sim. Entendi porque essas professoras guardam para si o sentido da primeira data. Nele,
está presente o próprio sentido da escola: a criança. Etimologicamente a palavra inaugurar
significa tornar público, consagrar, a palavra fundar carrega o sentido do construído,
edificante, profundo. Da importância dessa distinção para essas professoras que exigem para si
o título de fundadoras:
Eu e Walda fomos as primeiras a chegar. Não tinha nada do que é hoje.
A obra ainda estava terminando. Era mato pra tudo que é lado, e aquele
Ciep no meio. Os restos das obras ainda estavam por aqui. Ainda
pegamos o cheiro da tinta original. fomos pegar a primeira turma
alguns meses depois. A pressa de inaugurar era tanta que primeiro
começamos a funcionar e só em 1989 é que o Ciep foi inaugurado. Nesse
dia, veio a família de Gustavo Capanema aqui na Maré.(TANIA, 2006)
O comentário de nia traz uma realidade que ainda é possível observar nas políticas
de governo. As obras aligeiradas a que se refere traduzem um momento político que cruza duas
inaugurações: a do CIEP e a dos conjuntos residenciais onde a escola está situada. Ao trazer as
experiências do passado, essas professoras buscam também a manutenção de uma memória que
garante a esse grupo uma identidade ligada às práticas, às condições de trabalho diferentes das
que encontramos hoje. E, na impossibilidade de trazer as condições do passado, o trazem através
do que desse passado permanece atualizado em suas práticas no presente. Ao ler o passado as
professoras vão reconstituindo o vivido através do discurso. Nesse sentido, há diferentes e
diversas leituras, interpretações e visões dos seus fragmentos, que é impossível reconstituí-lo
no todo. Nesse movimento de rememorar vão surgindo variados relatos e diversas leituras sobre
as histórias variadas. Se cada um com os olhos que tem, e interpreta a partir de onde os pés
pisam”, como nos diz Boff (1997), podemos crer que esse passado não é um só; é
ltiplo, pois
inúmeras possibilidades de senti-lo, olhá-lo e interpretá-lo. Portanto, nossas lembranças são
significadas não apenas pela lembrança do vivido, mas pelos significados que damos ao vivido.
Criamos novos sentidos e o reconstruímos constantemente nos momentos em que a narrativa,
lugar onde as lembranças se materializam, acontece. Assim sendo, as professoras trazem
memórias de sobreviventes de um período em que puderam experimentar uma escola em tempo
integral, com todas as possibilidades garantidas pelo Programa Especial de Educação (PEE).
Quando esse programa foi implantado, as professoras recém contratadas pela
Prefeitura do Rio no concurso de 1985 puderam fazer a opção por trabalhar nos Cieps ou nas
escolas convencionais da rede. Naquela época muitas professoras disseram sim a esse programa
ousado de educação integral. Diziam-se atraídas pela promessa de uma escola de qualidade para
atender às classes populares, com infra-estrutura e material didático garantidos pelo governo.
Walda me relatou um pouco dessa experiência:
Eu vim parar aqui no concurso de 1985. A gente participou de um
encontro na UERJ, onde a proposta foi apresentada. Fiquei seduzida.
Vinha de uma escola particular de classe média, com todos os recursos.
Pensar uma escola pública com aquela estrutura e com aquela proposta
de trabalho era tentador. não sabia que ia cair na Maré, né? sei
que quando desci do ônibus o motorista falou: A senhora vai descer
aqui?!!! Fiquei olhando para ele e respondi: Vou trabalhar aqui, moço.
Então ele respondeu: coitada...boa sorte... Isso aconteceu em 1985, mas
até hoje quando alguém diz que trabalha na Maré os lamentos são os
mesmos. É como se nós estivéssemos falando que trabalhamos no
inferno. (Walda, 2005)
Penso ao ouvir Walda que as condições materiais que foram oferecidas pelo PEE, foi
um fator importante para a adesão dos professores, tendo em vista a importância desses materiais
para a realização do trabalho docente. No período de sua implantação (década de 80) a escola
pública passava por sérias críticas no que dizia respeito às condições de trabalho.
Esse sentimento de valorização experimentado pelas professoras, está impregnado
em suas memórias como relíquias de um tempo que as identificam e distinguem na trajetória
profissional dos professores da Rede Pública Municipal do Rio de Janeiro. Nas conversas
cotidianas, é recorrente a referência a um tempo em que as condições oferecidas denotavam a
valorização do trabalho.
Do grupo entrevistado, Tânia é a única que reside e trabalha na Maré. Para ela, a
comodidade de estar perto de casa fez-se opção no momento da escolha da escola. Confessa que
sentiu vontade de deixar o Ciep e a Maré, conhecer outros lugares, outras experiências, outras
pessoas. Mas não teve a aprovação de sua família nessa decisão. Embora a Maré tenha seus
perigos, conclui Tânia, não é um lugar ruim para se morar.
Ah, dei graças à Deus que estava inaugurando essa escola aqui. Eu ia pra
Bangu e, então, consegui a inscrição para cá. Não ser mandada para a
Zona Oeste foi graças à Deus mesmo. Era muito chão para pegar todo
dia. Ia ficar mais tempo no ônibus que na escola...Naquela época os
ônibus demoravam, não havia transporte alternativo como tem
hoje(...)Essa foi minha segunda escola. Antes vinha de uma experiência em
escola particular. que a minha experiência mesmo é daqui do Ciep, e
eu me construí enquanto professora aqui...Mas assim, morar perto da
escola tem suas vantagens e desvantagens. Esse negócio de trabalhar
perto de casa tem suas vantagens e desvantagens. Você perde a sua
identidade de moradora. As pessoas te vêem como a professora. E no
meu caso que fui da direção é pior ainda, as pessoas te associam à
diretora o tempo todo: se você no sacolão o povo quer vaga. Você vai
pro açougue o povo quer saber do aluno. Você vai à igreja e querem saber
quando vão abrir as matrículas...Isso é muito complicado... Ao mesmo
tempo é bacana, você saber que está ali trabalhando para sua
comunidade, minhas filhas estudaram aqui, hoje estão bem, isso uma
legitimidade à escola, ao nosso trabalho, a própria comunidade que vê
que dali pode sair professores e outras profissões dignas.
A fala de Tânia está ancorada em um discurso de que a educação sistêmica, a
educação formal é um valor que dignifica o sujeito. Ao falar da importância de trabalhar e morar
na Maré, ela exalta o fato de se ver como alguém que, “apesar de estar na Maré”, tem uma
família com uma trajetória de sucesso na escola pública. Em uma sociedade em que a escrita
ocupa um lugar privilegiado, a escolarização é muito valorizada. Essa fala suscita várias questões
Assim como Tânia e a despeito das vozes que negam a importância que as classes populares dão
à escola, muitos pais ainda depositam nela os sonhos que sustentam para o futuro de seus filhos.
Entretanto, há que se cuidar para que não negligenciemos as condições concretas de vida das
pessoas que residem nessa localidade e que muitas vezes colaboram para o seu sucesso ou o
fracasso escolar. Diariamente Pois uma história de sucesso dentro da Maré não pode ser
interpretada somente como o resultado de um esforço pessoal. Diariamente assistimos a
eficiência com que são produzidas as diferenças sociais. Nesse sentido, uma história de sucesso
dentro da Maré não pode ser interpretada somente como o resultado de um esforço pessoal.
Percebo isso de forma latente na fala de Eliene: ainda me pego trabalhando a
alfabetização dos alunos que os professores mandam para a direção quando tão dando problema
em sala. Tenho um “Kit” de alfabetização bem ali no meu armário.” Fica evidente na fala dessa
professora, também oriunda da Maré, a importância de sua ão para ajudar, principalmente, aos
alunos que estão com mais dificuldades em permanecer na escola. Ela não utiliza sua trajetória
somente como um exemplo de sucesso na Maré, mas para firmar um compromisso com a
diminuição dos fatores de exclusão que geram os fracasso.
Assim, a questão que se coloca importante para refletir é como essa escola, aparelho
ideológico a serviço do poder hegemônico, pode se insurgir por entre as estruturas macro, abrindo espaços
para que acolha os sonhos, os desejos, os saberes dessas pessoas subalternizadas. O ideal de uma escola
inclusiva ressoa em nossos ouvidos pela própria concepção assente na idealização dos Cieps. O que me
parece mais interessante é refletir sobre a escola que cada um traz dentro de si. Como colocamos em
diálogo essa escola com a que construímos há várias mãos.
Fotografia tirada no dia da inauguração do Ciep, em 1989, com a presença da
família do Ministro Gustavo Capanema, patrono do Ciep. Ao Centro a Senhora
Maria Capanema
Apresentação do Coral da
COMLURB
Secretária de Educação Mariléia
da Cruz – 3ª da esquerda para a
direita
ATA DE INAUGURAÇÃO DO CIEP
4.2 SER, ESTAR, PERMANECER: OPÇÕES DOS QUE DECIDEM FICAR.
Chegar na Maré nem sempre é uma opção. No entanto, permanecer por tantos anos
nesse território, tem significações diversas para as pessoas que fazem essa escolha. Durante as
investigações fui percebendo que vários caminhos poderiam me dar respostas. Nem sempre a
saída das pessoas da Maré pode ser entendida como desistência, do mesmo modo que a
permanência nem sempre denota resistência. Ao contrário disso, essa decisão pode ocultar
medos, insegurança, ausência de outras perspectivas. Seja como for, o Ciep Ministro Gustavo
Capanema é sempre um desafio que se abre em possibilidades de produção de muitos
conhecimentos:
Noutro dia eu estava pensando no quanto eu cresci dentro do Gustavo
Capanema, não por essa experiência de ser professora, mas por ter
assumido outras funções. Isso é bastante interessante. Eu tinha uma
outra realidade que era uma escola com um tamanho micro: seis
turminhas. Olha que sonho? O trabalho poderia ser maravilhoso, mas o
trabalho pedagógico lá não existia. Era cada um por si. Às vezes eu fico
pensando nas coisas que a gente faz aqui, que é dar nó em pingo d`água,
porque as condições muitas vezes não ajudam, com 53 turmas. Acho que
o trabalho aqui não é cil, mas acontece porque nos constituímos assim
, nesses desafios. (CLÁUDIA, 2005)
Dar em pingo d`água. Essa é uma expressão muito recorrente entre as professoras para
definir os desafios que o cotidiano do Ciep nos impõe. Nos últimos 10 anos, o Ciep teve que
reduzir vertiginosamente o atendimento à comunidade em horário integral. Redução que gerou
impacto para alguns pais, que não têm com quem deixar seus filhos enquanto trabalham, e para as
crianças. Elas são as mais afetadas porque essa redução significa o esfacelamento de um trabalho
mais efetivo com crianças para as quais a escola seja, talvez, a única possibilidade de produzir
conhecimentos que as emancipem de uma condição de subalternidade em que se encontram. O
fracasso escolar nessas comunidades acaba sendo tão evidente quanto a necessidade de uma
escola que o acolha considerando o tempo/espaço de suas necessidades.
Mesmo quando nos referimos aos momentos de crise vividos por nós, seja por questões de
ordem macro ou micro, uma certa consciência coletiva de que nossa existência naquele espaço
se explica muito mais a partir do que (re)inventamos de possibilidades, do que pelos limites que
nos condicionam. Construímos uma escola “não autorizada”, que vai acontecendo por entre as
vigas das estruturas que “controlam” nossas ações. Essa escola vai acontecendo no dia-a-dia
quase imperceptível, mas se revela aos olhares mais atentos em seus detalhes, um cotidiano
inventado com mil maneiras de caça não-autorizada. (CERTEAU, 2003, p.38).
(...) essa escola tem um negócio que prende a gente. E a gente “veste a
camisa” de um jeito, que se alguém detona nosso trabalho eu reajo,
porque sei o que a gente vive aqui dentro. A gente “corre muito atrás”
22
.
E tem um negócio aqui que é bacana, que é uma coisa de sempre estar
discutindo as coisas. Não absorvemos e pronto as coisas que chegam.
Estamos sempre em busca de idéias novas, brigando, se desentendendo,
se unindo, mas é legal que não tem muito aquilo de “não quero fazer
nada”. Eu vejo mesmo a galera que chegou à pouco entrando nesse
movimento, inovando. Algumas pessoas não agüentam o pique” e
saem. É como se isso tivesse posto na veia da escola. Mesmo aqueles que
ficam fazendo corpo mole acabam indo na enxurrada. As pessoas que
estão aqui, umas mais atuantes, outras menos; umas falantes, outras
menos; umas mais estudiosas, outras menos. Mas cada uma do seu jeito
percebe o espírito da escola e vai se colocando. (Tânia, 2006)
Ao falar sobre a forma como os sujeitos se movimentam no CIEP –“correndo
muito atrás ou fazendo corpo mole–, Tânia confirma a existência de diversos projetos que são
tecidos muitas vezes em processos contraditórios, conflituosos, que ora se fragmentam, ora se
coletivizam, se constituindo em uma dimensão dialógica, onde cada um percebe “o espírito da
escola e vai se colocando”.
Na ação de refletir com/sobre a capacidade do grupo de se por em movimento, recorro a
Morin(2002) para entender a passagem da dialética à dialógica. Entendendo que nesse
movimento não buscamos eliminar a contradição. Esta acaba sendo integrada como parte de uma
racionalidade aberta à complexidade que comporta dúvidas, limites, conflitos e a diversidade de
histórias trazidas e levadas cotidianamente para aquele espaço. Segundo o autor os elementos
22
Gíria que significa buscar resolver os problemas, atender às necessidades.
contraditórios e antagônicos presentes no pensamento e na ação não devem ser superados, mas
reconhecidos, pois hospedam um potencial produtivo. Ao reconhecê-los, nos aproximamos de
pistas que podem nos ajudar a perceber a existência dessas realidades simultâneas dentro da
escola, que nos auxilia a promover um movimento próprio que mesmo “vestindo a camisa” ou
“sendo levado pela enxurrada” gera um equilíbrio e um desequilíbrio que vão dando forma a esse
cotidiano.
2004 Professoras da Educação Infantil pintando as grades do MEI
(Módulo de Educação Infantil). Prédio anexo, construído em 2002.
Da esquerda para a direita: Tânia, Orádia, Renata, Ana, Maria Cristina.
Passado e presente se encontram no registro de um instante. Nessa foto,
Tânia, a primeira professora a chegar no Ciep em 1985, divide o prazer de cuidar da escola com
Maria Cristina e Ana, que chegaram em 2002. Quem mobiliza quem? Passado e presente se
misturam e se complementam. É o espírito do Ciep” a que se refere Tânia, representado no
sorriso, na predisposição de continuar, mesmo diante dos conflitos, contradições e incertezas da
nossa prática e da complexidade do espaço que habitamos.
A imagem fotográfica representa o poder de transformação de uma prática
bem intencionada que se une para pintar e tornar as grades mais divertidas. Ao mesmo tempo
revela o medo e a insegurança do lugar. Grades que vão inclusive contra a proposta original do
Ciep que pregava a integração escola-comunidade, através de uma filosofia de trabalho que
contemplava as dimensões culturais e espaciais.
Parece-me que esses pormenores, aparentemente sem muita importância quando
pensamos “a escola”, é o que nos permite compreender seu movimento real. Desvelam uma
escola possível que acontece sob as dificuldades de uma outra escola que é representada sob a
ótica de mapas totalizantes, de estatísticas homogeneizantes e de leituras aligeiradas que
reproduzem o sistema a qual pertence e deixa de fora do seu campo a proliferação das histórias
e operações heterogêneas que compõem os “patchworks” do cotidiano. (CERTEAU, 2003,
p.46).
CAPÍTULO V
CENTRO (des)INTEGRADO DE EDUCAÇÃO PÚBLICA
Para entender a proposta educativa que deu origem à implantação dos Centros
Integrados de Educação Pública (Cieps) fui buscar no tempo, fragmentos do passado que
explicam os caminhos percorridos pela sociedade brasileira para organização e consolidação da
escola enquanto sistema de ensino. Nessa perspectiva, o período compreendido entre 1922 a
1935, torna-se de extrema importância pelo que reserva de acontecimentos históricos que
marcaram mudanças na educação no Rio de Janeiro.
A precariedade do ensino primário da escola republicana no início do século passado,
frente a um período em que o desenvolvimento industrial passou a exigir da sociedade
conhecimentos mais sólidos, elaborados e complexos, constituiu o principal fator que
desencadeou as lutas e discussões em torno da criação de um sistema de ensino. Essas lutas foram
marcadas por muitas tensões e conflitos durante as cadas de 20 e 30. No caso do Rio de
Janeiro_ Distrito Federal nesse período _ a organização de um sistema de ensino e as inovações
pedagógicas ocorridas marcaram a administração de três diretores de Instrução: Carneiro Leão
(1922-1926), Fernando de Azevedo (1927-1930) e Anísio Teixeira (1930-1935). As propostas
educacionais elaboradas nesse período tomaram como base filosófica os princípios norteadores
da Escola Nova
23
. Anísio propunha um sistema de ensino que respondesse às demandas sociais
por democracia e modernização. O ideal de escola para todos e com qualidade, eram os
pressupostos de suas propostas. (CHAVES, 2002, p.43)
Avançando no tempo, por não ser objetivo desse trabalho traçar minuciosamente a
trajetória da educação brasileira, mas sem desconsiderar o necessário diálogo passado-presente,
vou para a década de 70. Nesse momento encontro nos movimentos de diversos setores da
população brasileira por maior participação no processo de democratização de um país silenciado
por 20 anos de Ditadura Militar, acontecimentos da maior importância para entendermos mais
adiante o surgimento dos Cieps. Nesse período, os movimentos intelectuais de educadores
sensíveis à educação do país levantaram suas vozes, chamando a atenção para a situação das
escolas públicas. Os baixos índices alcançados pelos alunos, sobretudo, das classes populares
23
De acordo com as definições de Lourenço Filho (1974:18), a expressão escola nova pode ser entendida em seu
sentido mais amplo como novo tratamento dos problemas da educação, em geral. Nessa perspectiva os pressupostos
ligados à “Escola Nova” estão ancorados na transformação das normas tradicionais de organização do espaço
escolar, bem como na ampliação do próprio sentido da escola, enquanto espaço que deve assumir uma dimensão
criadora, de espírito crítico, diferindo-a das tradicionais escolas fechadas, estáticas, acabadas.
davam sinais do fracasso das políticas de educação implementadas durante o Regime Militar.
Nesse período houve protestos de vários educadores brasileiros. Dentre eles, Paulo Freire e Darcy
Ribeiro este último na década de 80 idealiza o Programa Especial de Educação que deu origem
aos Cieps.
Os movimentos de democratização da escola se confunde com o próprio movimento
de democratização do país, que ganhou força durante toda a década de 80. Nesse período a
pressão da sociedade respondeu pela retomada de muitos processos suspensos durante o Regime
Militar. A eleição direta dos governadores dos Estados foi uma dessas reconquistas.
A retomada do processo sucessório para governadores dos Estados brasileiros traz a
candidatura de Leonel de Moura Brizola para o Rio de Janeiro em 1983. Ao lado do professor
Darcy Ribeiro, Brizola organiza sua campanha colocando a educação como seu principal
compromisso político. Vitorioso nas eleições, Leonel Brizola convida Darcy Ribeiro para assumir
a função de Vice-governador. A partir de então, sob o comando do professor Darcy Ribeiro, tem
origem o movimento “Escola Viva-Viva a Escola”, com o lema “Vamos passar a escola à limpo”.
Esse movimento convocou professores de Grau do Rio de Janeiro (Estado e Municípios) para
uma ampla discussão em torno dos principais problemas “do fracasso da escola pública”. Deste,
nasce o Programa Especial de Educação. Naquele momento havia um vínculo partidário entre
Estado e Município do Rio de Janeiro, o que favoreceu as discussões e implantação do Programa
Especial de Educação nesta Prefeitura. O CIEP ministro Gustavo Capanema desde sua
inauguração em 1985, pertence à Rede Municipal do Rio de Janeiro. A construção de prédios
escolares, ampliação do tempo de permanência do aluno da escola, com a oferta do horário
integral, término do terceiro turno nas escolas regulares, material didático e treinamento para os
profissionais de educação. As discussões em torno das propostas do PEE
aconteceram em várias fases. Foram promovidos vários encontros para discutir sua elaboração. O
Programa Especial de Educação surge como programa de governo, com vistas a implementar
uma política para a educação popular no 1° Governo de Leonel Brizola (1983-1986).
A implantação do PEE veio seguida de muitas polêmicas em torno da política do
governo. Uma delas, dizia respeito à própria condição de “programa especial”. Uma das críticas
mais recorrentes dizia respeito a supervalorização da manutenção do Programa, em detrimento
das escolas que existiam na rede. Essa situação gerou um desconforto na categoria de
professores, atingindo o próprio sindicato. Outra crítica disparada contra o PEE se refere ao
anacronismo de seus pressupostos teóricos filosóficos, por pregar uma proposta de trabalho
supostamente democratizadora, em uma sociedade ainda marcada por muitas
desigualdades.(TAVARES, 1989).
Esse programa vai funcionar até 1987, quando então será encerrado no Governo de
Moreira Franco, sob a alegação de se tratar de uma proposta cara e com atendimento à parcela
mínima da população em idade escolar. Vale ressaltar que o PEE foi encerrado, mas os Cieps
continuaram a funcionar. No entanto, sem a estrutura completa pensada no projeto original.
O Ciep Ministro Gustavo Capanema foi construído no grupo de 60 Cieps da
“primeira leva”. Sua estrutura original compreendia 18 salas-padrão, distribuídas em 2 andares,
quadra poliesportiva coberta, sala de leitura, amplo refeitório, copa, cozinha, vestiário
(interditado, necessitando de obras há 17 anos por apresentar problemas na infra-estrtutura),
despensa, almoxarifado, secretaria, sala de direção, sala de professores, banheiros por andar e
pátio coberto. Havia também duas residências no terraço, para atendimento ao projeto PAR
24
,.
Atualmente está em funcionamento a residência destinada às meninas, pois a masculina foi
desativada em 2005, aguardando reformas.
24
A proposta do Programa Aluno Residente (PAR) é o atendimento a alunos matriculados na rede cujas famílias
estejam com alguma dificuldade para manutenção da criança na escola, ou para crianças desassistidas (sem previsão
de retorno à família), encaminhadas pelo JIJ (Juizado da Infância e da Juventude). No primeiro caso, as crianças
permanecem na escola de segunda a sexta-feira estudando e residindo, sob os cuidados de uma mãe ou pai social; no
segundo, a crianças permanecem na residência da escola, sendo que a cada quinze dias vai para outra residência do
projeto passar os finais de semana.
Em seus 22 anos, muito se modificou da arquitetura original. Hoje temos sala de
informática, sala de vídeo e um prédio anexo construído para atendimento à Educação Infantil.
Essas mudanças precisam ser entendidas em sua conjuntura, tendo em vista que elas apresentam
os indícios de uma escola que foi sendo modificada a partir de um conjunto de medidas mais
amplas, voltadas para a ampliação no atendimento à educação básica. É possível também uma
compreensão das políticas de educação a partir de um olhar sobre a natureza dos investimentos
que a escola recebeu nos últimos anos.
Tentando buscar mais informações sobre o início da administração do Ciep, fui então
em busca de capturar memórias de pessoas que pudessem me falar desse momento. Resgatei
então uma entrevista feita com Aurelino, o inspetor de alunos, ainda no início desse trabalho de
pesquisa. Acredito que naquela época, minhas inquietações já me sinalizavam – o que agora
compreendo – que era preciso bisbilhotar essa história. Aurelino é uma presença muito respeitada
no Ciep. Cuida das plantas como se estivesse cuidando dos canteiros de sua casa. Traz a história
daquele Ciep em detalhes, falando de um lugar diferente do ocupado pelas professoras que me
acompanham nessa pesquisa. Aurelino fala do portão, da comunidade, do lugar de quem vive
uma realidade onde desenvolveu um sentimento de pertença. Ex-morador das palafitas, me conta
como chegou ao Ciep para trabalhar, ao mesmo tempo em que me relata suas memórias da
primeira gestão do CIEP. Segundo ele, a ão Comunitária do Brasil (ACB) teve forte inserção
junto aos moradores daquela região durante o processo de transição das palafitas para as casas
populares. Nesse período, a ACB participava tanto na coordenação da organização popular,
quanto na articulação dos moradores a diversas iniciativas. Uma delas está ligada à contratação
de pessoal para trabalhar no CIEP em diversas funções: merendeira, copeiro, inspetor de alunos,
serventes...
Américo, que era o diretor daqui tinha contato com o pessoal da Ação
Comunitária do Brasil. Aí, foi através da ACB que moradores foram
contratados para trabalhar no Ciep que estava perto de ser inaugurado.
Aqui ele ficou pouquinho. Sabe por quê? Ele foi dar uma declaração no
jornal sobre a falta de segurança da escola, ele foi “convidado” a se
retirar. Chamaram ele lá na Secretaria e pronto. Aí veio a Regina para o
lugar dele. Ele era linha dura...
(Aurelino – Inspetor de alunos)
Nesse contexto, um fato chama atenção: no início da implantação do Programa
Especial de Educação, as direções das unidades escolares eram indicadas politicamente. Se por
um lado essa indicação garantia o compromisso com a manutenção ideológica do projeto, por
outro causava, ao que me parece, um certo constrangimento aos demais profissionais da escola.
Pareceu-me ouvindo os relatos das professoras que se sentiam ameaçados por um poder não
legitimado, mas fortalecido por um conjunto de mecanismos de poder garantidos pelo Órgão
Central (Secretaria de Educação).
Em 1988, parte da equipe interventora, que vinha se mantendo desde a saída do
primeiro diretor, sai para assumir outro Ciep em Bonsucesso. Pela primeira vez, três professoras
do quadro permanente da escola são chamadas para compor a equipe na função de Professor
Orientador (PO): Flora, Sheila e Mauricéia. Flora assume a função de Professora Orientadora do
diurno; Sheila para a função de Diretor-adjunto e Mauricéia vai para a função de Professor
Orientador do PEJ. Considero que esse acontecimento é da maior importância para
compreendermos como os professores que permanecem foram se constituindo e ocupando
diversas funções no CIEP: Coordenadores, Diretores, Orientadores.
No relato das professoras fui percebendo que a relação com as primeiras direções era
muito distante. Elas evitam falar desse período e/ou trazem poucas lembranças dele. Esse fato me
chamou atenção por um motivo: ao mesmo tempo em que enfatiza as boas condições do CIEP
nessa época (1985-1989), traz poucas lembranças de seus dirigentes: nomes, linhas de atuação,
momentos coletivos.
Talvez, a convicção do governo de que os problemas educacionais estariam ligados
principalmente ao descompromisso, apatia ou formação profissional do magistério tenham
contribuído para a formação de gestores cujas práticas se traduziam em posições mais rigorosas e
determinantes, diante dos diversos segmentos da escola, com vistas a garantir a execução do
Programa. Assim, a escola estava sujeita a receber profissionais comprometidos com
pressupostos mais voltados para a participação de todos, ou, diferente disso, de posições mais
autoritárias. (TAVARES, 1989)
Além das boas condições materiais que o Programa de Educação Especial ofereceu
no início de sua vigência, outra questão que é bastante recorrente nas falas de quem viveu esse
período diz respeito aos cursos de formação: “os treinamentos”
Onofre, outro inspetor da escola, traz um pouco das experiências de formação
vividas nessa época:
É, mas quem firmava o contrato e treinava a gente era a FAPERJ. Tinha
uns cursos que a gente fazia lá. Era legal, a gente discutia como lidar
com os alunos... Hoje não temos curso. Mas também não somos só
inspetores, viramos um monte de outras coisas, acabaram com aquele
pessoal todo que tinha aqui.
Assim como Aurelino e Onofre, as professoras também trazem em suas falas a
questão da formação oferecida pelo Programa como uma ação importante na valorização da
dimensão técnica profissional ainda que essa formação tenha recebido muitas críticas, por ter
sido entendida por alguns como uma forma de controle tecnicista, devido o acompanhamento
rigoroso das atividades. Suas diretrizes eram definidas pela equipe cnica e encaminhada aos
cursos de capacitação. Sistematicamente as escolas eram “visitadas” por profissionais que
acompanhavam a utilização do material enviado pelo programa.
No cotidiano do Capanema, percebo no dia-a-dia que os profissionais que viveram
essas experiências, trazem em suas memórias, movimentos, palavras e ações marcas de um tempo
que produziram saberes que atravessados por tantos outros, também adquiridos em outros
contextos, vão identificando e inscrevendo tantos suas histórias individuais quanto a coletiva.
Não me refiro apenas aos conhecimentos adquiridos em espaços especializados de formação
profissional centros de estudos, palestras, seminários mas aos saberes das interações
subjetivas e objetivas que estabelecemos no cotidiano entre as diversas redes a que estamos
ligados, dando forma a um saber-fazer que vai conformando nossa competência profissional:
A fala da professora Walda confirma essa tendência:
Essas reuniões, palestras, essas coisas que a gente vai participando, vai
me ajudando a aprimorar a minha prática. Mas eu não fico numa coisa
só; numa mesmice e nem aproveito tudo que eles falam. Eu vou pegando
assim... Eu vejo: isso minha turma pode fazer, mas de outra maneira; ah,
isso acontece na minha sala; aquilo outro não é bem assim. Assim eu
vou adaptando. Tem coisas que a gente ouve que não cabe no
contexto que a gente está. Outras que conforme a gente vai ouvindo, a
gente vai encaixando bonitinho em algumas situações que
aconteceram na nossa sala... (WALDA)
Com o término do PEE, o que vai acontecer em 1987 na Gestão de Moreira Franco
(Governador do Rio de Janeiro), as escolas de horário integral vão começar aos poucos a sentir os
impactos do desmantelamento da proposta original. Isso fica evidente nas relações que a
Secretaria passa a estabelecer com as unidades escolares: o acompanhamento e o apoio dos
órgãos intermediários e central (DECs e Secretaria de Educação) para manutenção dos Cieps
deixa de ter um caráter prioritário.
Com poucos anos de funcionamento começam a aparecer na falta de material, nas
avarias de um prédio sem manutenção, no desânimo e descaso de alguns professores que
começam a abandonar os Cieps, diante das dificuldades que começaram a aumentar. Essa
situação demandou de seus dirigentes uma série de estratégias para manutenção da proposta.
Na década de 90, o Ciep experimentou uma luta muito grande para a manutenção do
atendimento em horário integral. A direção e os professores, que se mantinham em defesa da
proposta, viviam embates freqüentes para sustentar o que ainda se mantinha do projeto original.
Era um trabalho que ia desde a escolha da turma que ficaria em tempo integral, até as estratégias
de reorganização dos professores para garantir a oferta de algumas oficinas. Nesse período,
Rosane lembra de algumas de nossas astúcias:
Aí é quando a gente se divide pra continuar na resistência. um
professor vai dar aula de Artes, daquilo, daquilo outro...Ficamos um
período assim. Depois o contexto vai ficando cada vez mais difícil, as
equipes assumem turmas, as pessoas vão indo embora, ai o movimento
vai enfraquecendo. Quando eu olho todo esse tempo em que vivi aqui eu
vejo assim: primeiro a gente tava naquela euforia, depois a gente
começa a engatinhar na nossa compreensão do que era esse trabalho na
prática, das dificuldades, do pedagógico... quando a gente começa a
construir uma prática dentro dessa proposta a gente começa a perder
tudo. (ROSANE, 2006)
Considero que a primeira metade da década de 90 foi um período muito rico e, ao
mesmo tempo, muito difícil para nós. Tínhamos acesso a cursos e a experiências pedagógicas da
maior importância para nossa formação profissional, e podíamos usufruir ainda do horário
integral. Contudo, vivíamos as angústias de perceber que algumas coisas importantes para a
manutenção do programa estavam com os dias contados. Os problemas se agravavam: o número
de turmas aumentava vertiginosamente, obrigando as professoras das oficinas de múltiplas
linguagens a assumi-las. Além disso, o prédio começava a apresentar problemas mais sérios: era
a bomba que não funcionava, a parte hidráulica que estava precária, as grades por onde saiam os
alunos sem autorização que passaram a resistir ao horário integral, uma vez que as aulas ficaram
enfadonhas. Ficávamos enlouquecidas com essa situação.
Nesse período, eu atuava como Professora Orientadora em um turno e Professora
Regente no outro. Lembro-me que eu e Flora discutíamos junto aos grupos a necessidade de fazer
atividades variadas, de modo que a criança não ficasse sobrecarregada apenas com atividades de
Núcleo Comum o dia inteiro. Percebíamos que algumas turmas conseguiam manter o horário
integral sem maiores problemas. em outras, a resistência era maior. Estávamos diante de uma
escola dividida entre os que acreditavam de algum modo na proposta do Ciep e os que não
acreditavam ou não queriam estar ali naquele momento. E para agravar essa dicotomia que
retesava as relações em muitos momentos, em 1993, na primeira gestão do Prefeito César Maia
que assume a Prefeitura do Rio, fomos surpreendidas pelo fim da equipe das oficinas de múltiplas
linguagens. Essas oficinas contemplavam as dimensões culturais e artísticas previstas nos
pressupostos pedagógicos dos cieps. Cláudia destaca em seus relatos um pouco dessa história:
Foi um momento muito difícil. Muita gente decidiu sair da escola prevendo o que
estava por vir. Ficou difícil trabalhar sem as equipes. Por outro lado, acho que foi
nesse momento que busquei variar mais na minha prática, pois no turno da tarde
permanecia com a mesma turma, então tinha que me desdobrar para que eles não
achassem a aula enfadonha e tentassem ir embora. Lembro-me que encontrei um
caminho legal com minha turma, com joguinhos, brincadeiras... Mas era “pauleira”
mesmo, me lembro que alguns alunos fugiam mesmo pelas grades que cercavam a
escola.
Encontrar caminhos. Buscar atalhos. Reinventar a prática. Assim como Cláudia,
muitos professores transformaram essa situação em oportunidade de reinvenção do seu fazer
uma forma de resistência ao que nos foi retirado. Ao encontrar um caminho para enriquecer o
trabalho junto aos alunos, (res)significamos nossas ações para a manutenção do que
considerávamos importante no processo vivido junto a eles.
Nessa foto vemos alguns alunos da turma 1302 da Professora Cláudia brincando com alguns dos joguinhos
produzidos por ela e utilizados até hoje.
Ao invés de optar apenas pelo discurso da ausência, muitas de nós descobrimos e
potencializamos nossa capacidade de dar sentido à própria prática, através da criação de outras
possibilidades de interação e criação para a produção de conhecimentos.
O trabalho do professor difere de um trabalhador da indústria na medida em que
nesta se pode planejar com fins precisos, operatórios, circunscritos de curto prazo. Já os objetivos
do trabalho do professor lhe exigem dar sentido em situações concretas de trabalho e, ao mesmo
tempo, conceber e construir as situações que possibilitem a sua realização.(TARDIF,2006, p.128)
A extinção das equipes de múltiplas linguagens naquele momento foi uma das ações
do governo para resolver a questão do déficit no número de professores, em função do aumento
na oferta de vagas na rede. Esses números foram ainda mais expressivos no Gustavo Capanema
devido ao crescimento populacional no seu entorno. Víamos a população crescer das janelas. De
95 para cá acompanhamos os campos abertos ganharem aos poucos conjuntos de casas populares,
lojinhas e outras edificações que hoje fazem da Vila Pinheiros a segunda maior Comunidade do
Complexo da Maré, perdendo apenas para o Parque União em número de habitantes. Escudados
pelo evidente aumento da demanda no entorno do CIEP, o órgão intermediário (CRE) e mesmo
as outras escolas próximas ao CIEP, que também viram aumentar vertiginosamente o número de
alunos – algumas inclusive tiveram que manter turmas em compressão de horário
25
passaram a
pressionar para a redução do atendimento em horário integral no Gustavo Capanema. Não
esqueço uma discussão que tive em uma reunião para planejamento de matrículas em setembro
de 1999 com uma diretora de uma escola próxima que gritava: Se o governo não tem condições
de oferecer vaga para todo mundo, então não tem que oferecer horário integral. Temos que
acabar com o horário integral do Capanema, resolvemos o problema.” Naquele momento o
Gustavo Capanema era a única escola que oferecia horário integral para a comunidade da metade
da Baixa do Sapateiro à Vila do João. Os demais situavam-se da outra metade da Baixa à Favela
Roquete Pinto. Lembro-me que nesse dia ficamos durante um longo tempo discutindo essa
questão. Tentava (em vão) mostrar aos diretores que a problemática não estava no horário
integral do Capanema, mas no descumprimento da Lei que define a construção de uma escola à
cada xxxxx moradores assentados em uma determinada região o que foi ocorrer sete anos
depois da chegada dos novos moradores, com a inauguração da Escola Municipal Paulo Freire,
na Vila Pinheiros.
Outro argumento do qual me utilizei naquele momento para defender a manutenção
do horário integral do Capanema era a comparação entre o número de alunos que tínhamos e o
número de outras escolas da região com a mesma capacidade de atendimento contando, apenas,
com cerca da metade do número de alunos atendidos pelo Capanema.
25
Situação em que a carga horária diária de uma turma é reduzida à metade para que o professor lecione em outra
turma na metade restante.
Um dos motivos mais recorrentes para justificar essa disparidade era a falta de
segurança da população para circular por entre as comunidades que compõem o Complexo da
Maré. Diante desses argumentos e da pressão cada vez maior para o fim do horário integral e o
aumento vertiginoso do número de famílias naquela região provocou uma mobilização de nós
diretoras junto à Coordenadoria para a colocação de ônibus escolares para garantir o translado
das crianças entre as escolas da comunidade. Ficava claro para mim e para elas que a questão da
Maré naquele momento, como ainda nos dias de hoje, era menos a falta de escolas; e mais a falta
de segurança.
Nessa queda de braços, vimos diminuir a cada ano o número de turmas em tempo
integral
26
. Mas nunca desistimos dessa proposta. No entanto, sem possibilidades de garantir o
atendimento em horário integral para toda a escola, nem tampouco viabilizar um planejamento
global que até então desse conta de um trabalho que julgávamos importante para as crianças das
classes populares, assumimos o cotidiano como espaço que se inventa com mil maneiras de caça
não autorizada.(CERTEAU, 2002). Entendendo que essas mil maneiras, se traduzem na
produção e na criação de alternativas que, não tendo um lugar próprio, dão-se no espaço
apropriado pelo outro, o do poder. Por assim dizer, lançamos mão das táticas descritas por
Certeau:
Não tem meios para se manter a si mesma, à distância, numa
posição recuada de previsão e de convocação própria: a tática é
movimento ‘dentro do campo de visão do inimigo’ como dia von Büllow,
e no espaço por ele controlado. Ela não tem portanto, a possibilidade de
dar a si mesma um projeto global nem de totalizar o adversário num
espaço distinto, visível e objetivável. Ela opera golpe por golpe, lance
por lance. Aproveita as ocasiões’ e delas depende, sem base para
estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas. O que ela
ganha não se conserva. Este não-lugar lhe permite, sem dúvida
mobilidade, mas numa docilidade aos azares do tempo, para captar no
vôo as possibilidades oferecidas por um instante. Tem que utilizar,
vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na
26
Atualmente das 43 turmas que funcionam no diurno, apenas uma encontra-se em horário integral. Essa turma foi
mantida por fazer parte de um projeto criado pela escola, que prevê uma maior atenção aos alunos em distorção
idade série. Os alunos dessa turma foram escolhidos de acordo com o número de reprovações sucessivas que m
sofrendo em sua permanência na escola e recebeu também alunos de outras escolas da área na mesma situação.
vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas.
Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia. (pp. 100-101).
Essas táticas e astúcias se tornaram na trajetória da escola marcas de um processo de
resistência que foi garantindo à ela a possibilidade de oferecer a algumas turmas o atendimento
dos alunos em tempo integral. Em geral essas turmas são escolhidas de acordo com as
necessidades de um atendimento mais intensivo.
Com o esfacelamento da proposta do horário integral e, conseqüentemente, com as
dificuldades que a escola enfrentava ano à ano, sentíamos a necessidade de pensar uma maneira
de evitar o que parecia inevitável: a remoção em massa. Foi um momento de muitas negociações.
Éramos levadas a negociar e administrar situações de ordem subjetivas e objetivas para a
permanência de muitos professores que anunciavam o desejo de deixar a escola. Rosane comenta
um pouco desse período:
Lembro-me muito bem das aulas de artes, das oficinas, do banho
embaixo. Lembro-me de que os inspetores ficavam com os meninos e a
gente ficava com as meninas.(...) Quando eu olho todo esse tempo que
vivi aqui eu vejo assim: primeiro a gente tava naquela euforia, depois a
gente começa a engatinhar na nossa compreensão do que era esse
trabalho na prática, das dificuldades, do pedagógico... Aí quando a
gente começa a construir uma prática dentro dessa proposta, a gente
começa a perder tudo.
Euforia/desencanto, resistência/desistência. O ano de 1993 definitivamente marcou
nossa trajetória naquela escola. A extinção das oficinas de múltiplas linguagens baqueou
sobremaneira nossa tradição de escola em tempo integral. Além disso, as oportunidades que
criávamos para trocar, elaborar materiais, entre outros, causaram revolta e desânimo em muitos
professores. Nos Centros de Estudos, essas angústias explodiam. Era a bomba d’água que não
funcionava, as meias paredes, a falta de funcionários suficientes para a manutenção de um espaço
de dimensões tão avantajadas como o Ciep, a descarga inoperante dos vasos sanitários, a alta
circulação nos corredores, causando ruídos insuportáveis que comprometiam a concentração.
A questão espacial do CIEP é da maior importância se quisermos entender as táticas,
astúcias, ações e reações de seus sujeitos. A estrutura ousada e suas formas arrojadas, que a
distingue dos modelos tradicionais dos prédios escolares, nos convidam a pensá-lo como cenário
interativo das relações que ali se estabelecem. Estamos o tempo todo fazendo referência às
dimensões edificadas do Ciep, que em seu projeto original pretendeu provocar uma interação
entre o espaço (a escola) e o lugar (Maré). Essa interação, rompe com o panoptismo que marca a
arquitetura das escolas tradicionais. Desse modo, cria uma relação de vigilância de todos para
com todos. (FOUCAULT, 2004)
A perda de alguns funcionários e da extinção de algumas atividades previstos no
projeto original, evidenciou a importância do espaço para compreensão da proposta do Ciep.
Naquele momento, o fortalecimento da busca de parcerias com outras instituições para garantir
as atividades que acabávamos de perder foi a alternativa encontrada. Flora, diretora da escola na
época (1992-1993), passou a estabelecer contatos com algumas instituições para criar outras
oportunidades para nossas crianças. Essa é uma tendência que se mantém até os dias de hoje
como uma marca da escola: a busca de parcerias.
Se por um lado defendíamos a opção pelo horário integral, dada a necessidade que
percebíamos desse atendimento para muitas famílias daquela comunidade e pela crença numa
proposta de trabalho, por outro sabíamos que sua manutenção exigiria, para além da vontade
política, condições estruturais e humanas. Nesse momento, penso que a busca de parcerias e a
garantia, pela direção da escola, dos espaços de discussões pedagógicas foram ações
fundamentais para resistir de algum modo às mudanças. A importância dada aos espaços de
Centros de Estudos e a estrutura de organização do trabalho pedagógico trazem as marcas de um
passado-presente ou, se quisermos, de um presente que habita um passado de resistências de
algumas pessoas que experimentam e acreditam na manutenção desses espaços como sendo da
maior importância para produção de saberes. De acordo com os pressupostos do programa, a
idéia de centro integrado estava assentada no oferecimento de variadas atividades: banho,
atividades culturais, assistência médico-odontológica, lazer, alimentação, horário integral. No
entanto, o que assistimos ao longo de sua história foi o desmantelamento de funções e espaços
fundamentais para sua manutenção.
CAPÍTULO V
RESISTIR É PRECISO...
5.1.1 Centros de Estudos: compartilhando saberes
Tenho muitas recordações de minha chegada ao Ciep em 1991. Assim como as outras
professoras, guardo daquele momento lembranças que me acompanham e que, volta e meia,
surgem detonadas por acontecimentos que desvelam o passado-presente. Chegar ao CIEP me
reservou muitas surpresas: o modo de organização do espaço-tempo escolar, o saber e o poder
que circula entre as relações que se estabelecem entre os diversos segmentos que ali tem lugar,
os limites e possibilidades de nossas ações no espaço-tempo sócio-político em que atuamos
enquanto sujeitos históricos a um só tempo determinantes e determinados pelo sistema.
Nesse momento da pesquisa, me parece bastante evidente o quanto s professoras
lamentamos algumas perdas que foram ocorrendo ao longo de nossas trajetórias pelo Gustavo
Capanema. Ao mesmo tempo, me parece não menos evidente, o quanto o ato de rememorar nos
colocou de novo em roda, em festa, em contato com o quê de nossas experiências não foi
perdido, mas redimensionado, (re)significado. Algumas experiências de tão enraizadas, não se
perderam nem no tempo, nem no espaço das mudanças estruturais sofridas pelo Ciep. Uma
dessas experiências me chamou atenção pela reincidência com que apareceu durante a pesquisa
em nossas vozes: as lembranças das discussões pedagógicas dos Centros de Estudos.
As recordações que trazem referências aos centros de estudos foram me tomando e
arrastando por caminhos que me desvelaram instantes importantes pelo que ocultaram ou
possibilitaram de gritos, insurgências e resistências. A pesquisa trouxe vozes onde o silêncio
guardava as impressões do vivido. Falar sobre o que representou/representa para nossas
trajetórias individuais e coletivas o espaço de centro de estudos me pareceu um exercício da
maior importância para refletirmos com/sobre os modos como nos constituímos e somos
constituídos em nossas práticas cotidianas. Assim, as vozes me trouxeram a importância desse
lugar, mas não ele, enquanto espaço privilegiado de observação pelo que condensa de
movimentos que nos explicam no cotidiano de nossa escola, e pelo que nos ajuda compreender
do contexto político que permeiam as relações dentro e fora da escola. Do ponto de vista
ideológico, os espaços de discussões pedagógicas são da maior importância pelo que representam
de possibilidades de articulação, reflexão, de organização do universo escolar. Embora não seja o
único espaço possível para promoção de encontros e discussões entre os diversos sujeitos da
escola, a garantia dos espaços de centros de estudos representa, sem dúvida, uma tomada de
posição em relação à importância desses momentos para a troca de experiências e estudos, ao
lado de outras ações importantes para a formação continuada de nós professoras.
Ao rememorar minha chegada ao Ciep, vinda de duas experiências anteriores: uma
passagem de 3 anos pela escola regular e 6 meses por um outro Ciep na Zona Oeste da cidade, fui
percebendo que esse movimento de valorização dos espaços de discussões pedagógicas era
imperativo nos Cieps. O pedagógico era uma das dimensões mais valorizadas dentro da proposta
do Programa Especial de Educação. Até hoje é possível perceber como essa proposta se marcou
nas práticas dos professores que viveram essa experiência.
Assumi uma turma de primeira série: turma 103, embora minha preferência fosse por
séries mais altas, pois minha passagem por escolas públicas e particulares até aquele momento
me trouxe mais experiência nessas séries. Mas, como em muitas escolas, ali percebi também que
antiguidade era posto, e que a disputa pelas séries mais altas também era grande. Sem
alternativa, assumi o desafio da alfabetização. No entanto, fui percebendo no decorrer do trabalho
que não estava assumindo “a sobra das turmas”, mas o segmento que recebia da gestão daquela
escola uma atenção muito especial: o trabalho junto às classes de alfabetização.
A participação nesse grupo de professoras alfabetizadoras foi uma experiência que
marcou minha trajetória e de muitas outras. A constatação de que estávamos cara-a-cara com a
“fratura exposta do fracasso escolar”_ as séries iniciais do Ensino Fundamental_ mobilizou
nossas inquietações a buscar respostas para o que mais incomodava: a impotência das práticas de
alfabetização diante dos resultados que o Ciep vinha alcançando desde de sua fundação. Naquele
momento (1991) alguns acontecimentos no contexto político agravavam ainda mais a situação. A
longa greve de 1988/1989 na Rede Municipal de ensino gerou uma série de outros
acontecimentos que marcaram as práticas, discursos e escolhas que nós professores fizemos
naquele período.
No entanto, internamente vivíamos um momento muito interessante de discussões
pedagógicas entre os professores, que diante dos baixos índices registrados nas séries iniciais
buscavam caminhos para reverter essa situação:
As orientações sobre a metodologia pedagógica a ser desenvolvida nas escolas vinham
diretamente da SME. Através de um grupo de apoio pedagógico, os profissionais dos Cieps eram
“treinados” pelas equipes pedagógicas ligadas ao Programa Especial de Educação. O termo
treinamento, inclusive foi utilizado
1985 13%
1986 50%
1987 59%
1988 81%*
1989 56%
1990 68%
* Nesse ano os alunos foram automaticamente promovidos para a série
seguinte, numa decisão da categoria dos professores, após longo período de
greve.
No início da implantação dos Cieps a palavra treinamento era utilizada para designar
os espaços de discussões pedagógicas, que mais tarde passou a ser chamado de Centros de
Estudos.
Nos primeiros anos de sua implantação o Ciep recebia, além das orientações
pedagógicas, todo o material didático que seria utilizado junto aos alunos. No entanto, o
fortalecimento das discussões nos espaços de Centro de Estudos, detonadas, principalmente pela
inquietação da equipe pedagógica diante dos resultados ruins das crianças, iam aos poucos se
revertendo na ampliação das discussões pedagógicas em busca de respostas que pudessem
explicar o fracasso de uma proposta que nasceu cercada de todos os cuidados para que fatores
apontados historicamente em muitas pesquisas como os principais responsáveis pelo fracasso
escolar não inviabilizasse o trabalho: formação dos professores, precária alimentação das
crianças, falta de materiais didáticos, precariedade dos prédios escolares.
O movimento de reflexão sobre os resultados iniciados na escola, ainda na década de
80 vai, aos poucos abrindo caminhos em direção à melhoria dos resultados. Ainda me lembro da
euforia com que Flora comentava em 1991, os bons resultados obtidos no ano anterior nas classes
de alfabetização (68%). Eu estava chegando e aos poucos ia me inteirando daquelas discussões,
tomando o bonde de uma história já em movimento. Esse índice, embora fosse ainda muito baixo,
tornava-se expressivo diante dos 13% de retidos em 1985.
A chegada das contribuições de Emília Ferreiro com seus estudos sobre a teoria da
construção da escrita, que passou a fazer parte dos cursos de aperfeiçoamento pedagógicos
promovidos pela Secretaria, me pareceram da maior importância para as reflexões que muitas de
nós passamos a fazer sobre nossas práticas. Lembro-me que nossas discussões iam para além do
horário. As descobertas trazidas pela psicogênese da língua escrita balançaram nossas convicções
de alfabetizadoras. Fomos nos retroalimentando de nossas próprias experiências e assumindo os
espaços de discussões pedagógicas como espaço de (trans)formação de nossas práticas.
Durante longo tempo as pesquisas voltadas para a formação profissional dos
professores privilegiaram os aspectos tecnicistas e sociologistas em suas análises. Essas
abordagens não consideravam os saberes produzidos na prática cotidiana dos professores. Desse
modo, os professores eram transformados em receptores de conhecimentos técnicos pensados
por especialistas em outros contextos. (TARDIF, 2002, p.115).
Nas últimas duas décadas várias pesquisas vêm se dedicando à compreensão dos
fazeres dessa profissão, partindo da análise de outras dimensões implicadas nessa formação.
Desse modo, é possível encontrar em algumas contribuições teóricas a preocupação com os
modos como os professores produzem seus saberes no cotidiano escolar, a partir de um olhar
sobre sua história de vida (Nóvoa, 1995), considerando aspectos da cultura escolar e dos
professores, entendendo as dimensões políticas implicadas em suas trajetórias (Freire). Essas
perspectivas consideram os professores como sujeitos do conhecimento, também produtores de
saberes que surgem a partir das relações que estabelecem dentro e fora dos contextos escolares.
Entender a nossa formação em seus aspectos mais complexos e subjetivos tem garantido ao nosso
trabalho uma aproximação maior da realidade e, conseqüentemente, das condições reais em que
se a compreensão do nosso fazer. A referência aos momentos de discussões pedagógicas,
numa busca permanente por respostas que desafiam o cotidiano daquela escola, em uma trajetória
marcada por conflitos, insistências, desistências, sabores e dissabores me remete a pensar na
importância que tem esse espaço para a formação de nós professoras e, ao mesmo tempo,
desvela os vários cotidianos em um mesmo cotidiano, das várias escolas em uma mesma escola,
dos vários sujeitos que nos habita, e que ora nos mobiliza, ora nos imobiliza diante desses
confrontos. Nesse movimento de pensamento nós professoras nos fazemos e nos formamos na
história da qual participamos, e que também fazemos acontecer. (ARROYO, 2002, p.137)
Os Centros de Estudos sempre foi um espaço muito valorizado nessa
escola. Mas sempre teve um ou outro professor que não queria participar,
assim como hoje.(...) A grande maioria participa, caminha com
autonomia(...). Acho que o que prende mais a gente aqui é essa formação
de grupo e as concepções pedagógicas da escola (...).(Cláudia, 2007)
Ao rememorar os Centros de Estudos Cláudia traz a diversidade presente nas
relações. Os centros de estudos tornam-se por vezes espaço de catarse, onde explodem todas as
angústias, dificuldades, descrenças, conflitos sabores e dissabores, sem, contudo, deixar de ser
um importante espaço de troca de experiências e produção de novos saberes.
Revisitando os arquivos da memória e os documentos disponíveis no CIEP é possível
perceber o passado-presente em nosso cotidiano, através das marcas deixadas nos modos como
organizamos a escola ainda hoje. Marcas que se presentificam nos critérios que estabelecemos
para organização das turmas, para definição dos professores que assumirão as turmas
27
na criação
de espaços de discussão, no trato com as crianças e comunidade em geral. Marcas de um tempo
inscrito em nossas memórias como lugares de muitos limites, mas de possibilidades de ousar, de
irromper, de criar o novo se movendo por entre as brechas das estruturas que nos submete, mas
não nos determina.
Nossas lembranças trazem recordações do que hoje nos explica. Rememorá-las
renovou nossos espíritos ousados, inquietos, sonhadores. (Re)visitamos lugares onde nos
perdíamos aos prazeres das discussões pedagógicas, éramos alunas que quebrávamos hipóteses,
descobríamos saberes, e nos deixávamos abandonar em nossa pedagogia aventureira. Até início
da década de 90 nossas reuniões pedagógicas eram semanais. Depois passou a ser quinzenal.
Essa mudança foi muito sentida pelos professores, pois reduzia um tempo-espaço da maior
importância dentro do nosso trabalho.
As marcas dos pessupostos teóricos que sustentaram a implantação do Programa
Especial de Educação estão presentes nas palavras de Cláudia. Os pressupostos fundadores da
“Escola Nova” serviram de referência para a tendência filosófica encontrada no PEE. As
proposições em torno de uma escola ativa, moderna, em tempo integral, eram alguns preceitos.
Apesar das dificuldades trazidas pelas mudanças que a escola vem sofrendo em seus
modos de atendimento, a escola segue valorizando os Centros de Estudos como espaço
privilegiado de troca e produção de conhecimentos. A redução no número de P.Os. (professores
Orientadores), o aumento significativo no número de alunos, a reestruturação das equipes
multidisciplinares, e a chegada de novos profissionais na escola tem levado esse espaço a
permanentes reorganizações.
Rosane lembra a importância das contribuições dos estudos de Emília Ferreiro,
Vigotsky, Freinet para as discussões que fazíamos nos centros de estudos.
Acho que um momento muito importante na minha formação nessa escola
foram aquelas discussões daqueles autores que estavam chegando Emília
Ferreiro, Freinet. Eu ouvi falar deles pela primeira vez aqui. Aquelas
questões sobre a escrita de nossas crianças foram importantes para a
gente pensar o erro, como elas aprendiam, como nós ensinávamos. Foi um
momento muito legal, aprendi coisas que uso até hoje. Tivemos muitas
perdas, mas a redução do horário de centros de estudos pra mim foi a pior
delas.
A chegada na Rede Municipal dos “Fundamentos para elaboração do Currículo
Básico” (1991) _documento resultante de oito anos de discussões entre especialistas em educação
e professores dos diversos componentes curriculares
28
da Prefeitura do Rio trazia importantes
contribuições para essas reflexões. A questão da diversidade era referida em vários momentos
desse documento como tema importante a ser considerado, de modo a tornar a escola menos
excludente. Ao rememorar os debates que travamos naquela época, me vêm as críticas mais
recorrentes feitas por muitos de nós professoras a esse documento. A maioria se referia à
formatação dos conteúdos, a pouca participação das professoras que estavam em sala de aula em
sua elaboração e a organização por componentes curriculares, feitas por professoras por área de
disciplina e especialistas em educação o que dava ao documento um construto mais técnico e
fragmentado. Ainda que considere pertinentes algumas críticas feitas aos “Fundamentos”, o fato é
que esse documento contribuiu para enriquecer, ao que me parece, as discussões e reflexões que a
escola vinha fazendo em torno de suas práticas curriculares. Ainda me recordo dos estudos
27
Embora os professores sejam consultados e atendidos, em sua grande maioria, nas opções que fazem pela turmas, a
equipe pedagógica observa alguns critérios ligados ao desempenho do professor de modo a atender ou não à sua
solicitação.
28
Além das disciplinas que compõem a grade curricular do Ensino Fundamental, constam desse documento
também pressupostos para elaboração da Alfabetização, Educação Especial e Educação Religiosa.
que fazíamos nos treinamentos semanais sobre o documento tentando adequá-lo às nossas
concepções, realidade e compreensão.
A participação dos professores nos espaços de discussões pedagógicas é sempre uma
oportunidade interessante para percebermos a diversidade de perspectivas, concepções, e a
complexidade das relações que se estabelecem nas escolas. O Gustavo Capanema sempre se
constituiu assim, em meio a discussões, conflitos, polissemias e tantos outros movimentos que
desvelam os modos diversos de pensar aquela realidade. Essas diferenças exigem um constante
redimensionamento da dinâmica das reuniões pedagógicas. Alguns professores concebem e
valorizam esses encontros para fins de planejamento das atividades práticas; outros preferem as
discussões teóricas. também os que reivindicam que este seja um espaço eminentemente de
troca de experiências.
Esses conflitos revelam, na maioria das vezes, o problema da dicotomia entre teoria e
prática. Um processo que se estabeleceu historicamente por meio de uma visão detentora de uma
racionalidade técnica que transforma os espaços de discussões pedagógicas nas escolas, e
principalmente nos cursos de formação em geral, em centros de recepção de idéias e modelos
pensados por especialistas. A cobrança do “que fazer”, é substituída quando os professores se
percebem como produtores de conhecimentos práticos, capazes de transformação do real, a partir
da ação reflexiva com/sobre suas próprias experiências individuais e coletivas. A teoria isolada
não é o bastante para transformação do real, posto que não é práxis. Por outro lado, a prática
precisa de teoria para também se tornar práxis. O exercício de pensar certo se constrói nas trocas
cotidianas que se estabelecem entre professores e alunos, na medida em que estes se percebem
seres inacabados que estão sendo no mundo. A reflexão crítica sobre a prática contribui para a
aproximação epistemológica entre esta e a teoria, superando o pensar ingênuo.(Freire, 2003,
p.38-39)
A dinâmica desses encontros varia de acordo com as demandas que surgem e que o
grupo entende importante trazer para esses espaços. No Gustavo Capanema, a dinâmica desses
espaços pode ser assumida: pela equipe pedagógica da escola, por algum outro professor, por
palestrantes convidados, por professores das instituições parceiras que desenvolvem alguma
atividade no CIEP, entre outros.
Rememorando essas experiências, percebo o quanto algumas de nós fizemos desse espaço
de discussão uma marca importante no Ciep para enfrentamento dos muitos desafios que o estar
ali nos impõe diante do fracasso escolar sobretudo nas séries iniciais de alfabetização. Um
passado de ousadias, onde o desafio de se tornar professor-investigador já nos mobilizava.
Esse é um passado que se marcou na memória dos que viveram essas experiências.
Ao falar do lugar da experiência, refiro-me ao que nos acontece, nos toca, nos faz sentido, nos
significa e/ou é significado por nós (LAROSSA,2001). Refiro-me a um passado que nos passa
sem ser passado, e que vai perpassando nossos discursos, nossas histórias, nossas práticas. Essa
experiência talvez explique muitas de nós hoje: apaixonadas, que brigam, que insistem, que
vêem, e às vezes não vêem, o que outros sujeitos vêem, ou não vêem. Nesses encontros
discutíamos de tudo: as crianças, o tráfico, nossos saberes, incertezas, o horário integral, o “livro
azul”, a Lei 1.016
29
, construtivismo, as contribuições trazidas por nossas crianças, Vygotsky,
Emília Ferreiro, promoção automática. Momentos ricos em reflexões, conflitos e muitas
aprendizagens. Nesses momentos desvelamos todas as nossas contradições e escolhas; do que
nos distanciamos e do que nos aproximamos; no que apostamos e no que não apostamos; no que
vemos, e no que não vemos; no que cremos e no que não cremos. Nesses momentos em que os
fios de desfiam e se (re)tecem de tantas outras maneiras é que a escola exerce toda a
complexidade de nossas relações.
29
A lei 1.016 referia-se ao Plano de cargos e salários dos professores. O não cumprimento dessa Lei por parte do
poder público provocou uma série de manifestos, revoltas e reações das mais diversas na categoria. A briga na justiça
do Sindicato de Professores (SEPE) com a prefeitura com vistas ao cumprimento da Lei, ocupou o centro dos debates
5.1.2 O GAPA: investigando a própria prática
A chegada nas escolas de alguns estudos sobre a psicogênese da língua escrita e
nossas inquietações diante das dificuldades de muitas de nossas crianças, algumas rios anos
sem conseguir sair das séries iniciais, somadas à disposição de um grupo de professoras em
mergulhar em sua própria prática, transformou nossas angústias em um compromisso coletivo de
investigação para transformação daquela realidade. Uma decisão que não foi tranqüila, posto que
exigiria um colocar-se numa outra perspectiva em relação à escola, àquela comunidade, à nossa
própria formação. Exigiria de nós outros modos de ser, estar, conviver, aprender, ensinar. Uma
verdadeira (des)construção de nossas crenças em tempos de construção do conhecimento. Foi
preciso que nos livrássemos de algumas(muitas) certezas e mitos, para descobrirmos espaços para
entre os professores no início da década de 90. Ainda nos dias de hoje, alguns professores fazem referência a essa
luta.
o novo, para o estranho, para o que até então era invisível: o modo(e o medo) com que aquelas
crianças aprendiam.
Foi preciso compreender que o fracasso daquelas crianças também era o nosso
fracasso. E que os processos vividos naquela realidade que também ajudávamos a construir eram
muito mais complexos do que até então aprendemos a perceber e associar: responsabilizando ou a
família, ou a formação profissional, ou as condições sócio-econômicas. Ainda que sem ter acesso
naquele momento às contribuições de Morin e seus estudos sobre o paradigma da complexidade,
ao rememorar esse passado, me parece que já percebíamos a importância do conflito e do
mergulho nas fissuras das explicações do real que até então nos satisfazia, para a produção de
conhecimentos que melhorassem nosso desempenho e de nossas crianças. Para nós professoras
aquela experiência foi aos poucos confirmando o que Paulo Freire (2006) nos anunciava, que
ninguém chega , partindo de , mas de um certo aqui. Se quisermos levar nossos alunos a, é
preciso partir com, reconhecendo e valorizando os saberes de experiência feitos”. (FREIRE,
2006, p.59).
Nessa época (1992) Nossas reflexões e discussões nos centros de estudos se tornaram
muito intensas, e já mostravam resultados na melhoria do desempenho de nossas crianças.
Lembro-me que Fátima, professora que fazia parte do grupo de discussão, havia fechado o ano
com cerca de 95% de seus alunos alfabetizados. Para uma escola que vinha amargando índices
baixíssimos, esses resultados eram animadores. Os “treinamentos” não eram os únicos espaços de
troca. Nos estendíamos em nossas discussões por outros espaços e para além do horário de saída.
Eliene ao relembrar nossas conversas e nossa permanência, após o horário, trocando experiências
sobre nossos alunos, traz um desses dias, quando Flora propôs que montássemos um grupo de
“estudo de casos” e que as descobertas desse grupo fossem socializadas com o conjunto da
escola. Foi então que veio a idéia de criarmos um grupo de pesquisa após o horário. Assim,
nasceu o “GAPA”. A idéia era que esse grupo investigasse sobre/com as crianças que
permaneciam sem ler e escrever. Nossa meta era a alfabetização de todos os alunos.
Ainda hoje a escola mantém a preocupação em torno da questão da troca de
experiências entre os professores como prática da maior importância para o crescimento do grupo
e fortalecimento da dimensão prática de nossa formação. Atualmente a escola possui um grupo
de discussão formado por um professor representante de cada ano do Ciclo e Educação Infantil
com propostas de pesquisa, articulação e estudos. As POPs, como são chamadas as professoras
que compõem o grupo de Professoras Orientadoras Pedagógicas, reúnem-se com à
Coordenadora Pedagógica Cláudia, pelo menos 1 vez no mês, além dos encontros com todo o
coletivo de professores. Esse grupo representa a importância do resgate da memória para que
possamos desencavar experiências vividas no passado que possam nos auxiliar na compreensão
de muitas de nossas inquietações diante de desafios que nos desafiam, mas não nos determinam
porque o enfrentamos, criando o desafio da permanência do que nos foi retirado e que
julgávamos importante.
Para atender a esses alunos, foi criado, em 1993, o GAPA (Grupo de Apoio a
Professores Alfabetizadores). Esse grupo se reunia após o horário e trabalhava com aqueles
alunos da turma
30
de Eliene que permaneciam, conforme o termo que utilizávamos na época para
designá-los, empacados. Queríamos compreender mais. Diante daqueles alunos que fracassavam
anos a anos diante de nossos olhos, nossas práticas precisavam ser constantemente indagadas,
questionadas, problematizadas. Formávamos um grupo muito apaixonado pelo que fazíamos.
Discutíamos no corredor, no almoço, no banheiro, registrávamos, vibrávamos com cada
conquista. Descobríamos coisas, teorizávamos. Eliene lembra nossa euforia diante dos alunos
que desempacavam
31
:
“Quando a gente conseguia fazer algum aluno avançar, a gente dizia
que ele tinha desempacado. (...)De todos aqueles alunos que atendemos
no GAPA, as mais marcantes para mim foram a Rita Micilene e a
Eliane. A Rita porque era muito magrinha, achávamos que ela era
desnutrida, a gente trazia fruta pra ela. Lembra que a gente brincava
que tinha que trazer pra você também? (Risos...). Já a Eliane porque era
uma menina muito inteligente, participativa, espevitada, liderava e não
conseguia ler. A gente não entendia aquilo. Quando ela conseguiu
avançar fiquei muito feliz. Outro dia ela me disse que ainda tem a carta
que mandei para ela, quando começou a ler.”
30
Era uma turma de 2ª série que reunia vários alunos que vinham sucessivamente repetindo a primeira série.
Chegaram à segunda série através da promoção automática, determinada pela Prefeitura naquele ano.
31
Utilizávamos a expressão “empacados” para designar os alunos renitentes, ou seja, que eram reprovados há vários
anos em uma mesma série.
O carinho com que Eliene resgatou essas experiências de suas/nossas memórias
vividas no GAPA me mobilizou a buscar Eliane. Fiquei curiosa em saber como o outro lado_ a
aluna_ viveu a experiência do trabalho relatado por sua professora Eliene. Seu depoimento foi
mais emocionante ainda:
“Olha, eu passo por 2 escolas antes de chegar aqui no Gustavo
Capanema. Às pessoas me perguntam por que não matriculei minha
filha lá mesmo na Vila do João. Então eu digo a elas que essa escola tem
alguma coisa que eu pude experimentar e que pra mim é muito
importante: os alunos não são olhados como alunos; mas como
pessoas. Eu vivi isso com tia Eliene e vejo minha filha ser tratada assim
também pela professora dela. Aqui eu vejo uma preocupação com o
humano, e isso para mim é muito importante para escolher a escola. Eu
fui acolhida aqui, e não esqueço disso.”(...)
Ao valorizar o aspecto humano que diz ter identificado nas relações que
estabeleceu/estabelece no Ciep, essa mãe confirma o que Paulo Freire nos
anunciava em seu poema “A Escola”:
"Escola é...
o lugar onde se faz amigos
não se trata só de prédios, salas, quadros,
programas, horários, conceitos...
Escola é, sobretudo, gente (...)”(FREIRE)
Essas lembranças compõem um conjunto de fragmentos que vão significando e
dando sentido a nossa permanência por tantos anos nesse CIEP. O carinho da mãe que chega
hoje ontem aluna e que abre um baú de memórias onde nos reconhecemos por entre contos,
fotos, fatos e gestos, que se marcam como testemunhas de um tempo, de um lugar de uma
história que detona tantas outras. Eliane (ex-aluna de Eliene) hoje é estudante do curso de
Psicologia. Guarda com carinho as lembranças dos tempos vividos no Gustavo Capanema e
também a cartinha que recebera de “ tia Eliene”.
A importância da alfabetização em uma sociedade de economia escriturística se torna
fundamental, principalmente para as parcelas da população onde a escola representa, muitas
vezes, a única oportunidade de apropriação desse conhecimento. Ao darmos ênfase ao trabalho de
pesquisa nas séries iniciais sabíamos da importância de nossa ação junto àquelas crianças para
adquirirem essa competência em um tempo em que aprender a ler e escrever “define à iniciação
por excelência em uma sociedade capitalista e conquistadora CERTEAU, 2003, p. 227). No
entanto, nossa prática tateante se sustentava muito mais na vontade de fazer do que nas certezas
do que fazer. Vivemos muitos conflitos experimentando, indo e voltando. Talvez a ausência de
certezas tenha sido o motor que nos pôs/põe em movimento. Essas lembranças alimentam nossas
ações ainda no presente. Queríamos/queremos entender como fazer para que nossas crianças_
muitas muitos anos repetindo a mesma série sem conseguir se alfabetizar_ conseguissem
caminhar, livrando-se do estigma do fracasso e da exclusão que marcam historicamente a
passagem dos grupos menos favorecidos pela escola. Nessa perspectiva concebemos os espaços
de centros de estudos como espaço privilegiado de luta em favor de uma prática bem sucedida
junto àquelas crianças, pelo que representava de possibilidades de troca, encontros, conflitos e
reflexões.
O GAPA tinha 6 pessoas, cada um ficou com 2 alunos em princípio. Na medida em
que os alunos iam avançando, outros eram trazidos para o apoio. A experiência foi muito
interessante. A mobilização das pessoas, a proximidade e dedicação quase que exclusiva
daquelas crianças anos reprovadas, e o desejo que nos movia de vê-las aprendendo, respondia
pela maior parte do sucesso daquele trabalho. Desejávamos aquilo. Naquele momento, as
discussões em torno dos modos como nós e as crianças produzíamos conhecimentos era nossa
preocupação_ eu estava aprendendo tantas coisas novas naquele momento que não poderia me
referir apenas ao aluno como aprendiz. Líamos, decifrávamos as produções de nossas crianças,
acompanhávamos junto aos professores das demais séries seu desempenho. Vibrávamos com
cada descoberta, com cada aluno alfabetizado. Nossos encontros pedagógicos eram aguardados
com ansiedade e não eram nossos únicos espaços de troca. Banheiro, mesa de bar, a caminho de
casa, refeitório. Nesse movimento de professores-aprendizes, estávamos em busca da tal
“dodiscência”, entendendo como Freire (2003, p.28) que não ensino sem pesquisa e pesquisa
sem ensino. É preciso buscar, pesquisar para constatar, e assim educar me educando e comunicar
a descoberta do real.
Sabíamos que nossas ações junto àquelas crianças não eram o bastante para
mudarmos à curto prazo uma realidade marcada por diversas formas de exclusão. Mas também
tínhamos a consciência da importância de nossas interferências. Ao ler esse trecho da pesquisa
Eliene se diz emocionada e entusiasmada em investigar por onde andam outros alunos que
fizeram parte desse trabalho. Entrelaçando essa história com sua própria vida, brinca ao lembrar
que essas crianças eram a maioria nordestina”, o que fazia aumentar sua responsabilidade
diante de seus conterrâneos.
Ao registrar as vozes de experiências como as de Eliene e transformá-las em
narrativas de um passado que se reconhece no presente e, ao mesmo tempo ver o presente
construído no quase esquecido, vou entrelaçando histórias individuais e coletivas que
resgatam o significado de experiências que se compreendem pelo que representou de
significante para cada uma de nós. Entender nossos movimentos no cotidiano daquela escola
exige antes uma compreensão de como vivemos as histórias por nós compartilhadas na geografia
dessa trajetória de espaços-tempos diferentes. E se essas histórias são narradas, escritas por quem
delas fez/faz parte, a narrativa exerce sua dimensão formativa, na medida em que potencializa e
encoraja as professoras a assumirem a contação de suas próprias histórias.(PEREZ, 2003, p.41)
5.2.2 Uma história de parcerias
Buscar parceiros, dividir caminhos, somar esforços, resistir. A opção da escola por
busca de parcerias compreende pelo menos duas dimensões: uma pedagógica e outra política.
A dimensão pedagógica visa ir ao encontro do sentido de participação assente nas
ações pedagógicas previstas pelo PEE:
“(...) O fenômeno educacional transcende a escola, deve ganhar as ruas.
Quanto mais a proposta educacional for includente e reivindicar
participações até de pessoal não especializado, mais se favorecerá a
conscientização de todos quanto ao sentido global da educação. É
preciso acreditar que o atual momento histórico aumenta a participação
comunitária nas principais instituições da sociedade, o que vai ao
encontro da proposta democratizadora do CIEP.” (O livro dos CIEPs,
p.48)
Naquele momento, início da década de 90, me parece que a iniciativa de busca de
parcerias ainda não tinha a expressão e conotação que foi ganhando, sobretudo a partir da
primeira gestão de Fernando Henrique Cardoso, cujo investimento no ensino fundamental voltou-
se principalmente para a difusão da importância do apoio técnico à educação e da participação da
comunidade. Essa perspectiva se materializava, sobretudo, nos investimentos em cartilhas e
outros materiais de apoio enviados às escolas pelo governo federal
32
.
Penso que o diferencial entre as duas formas de ação da escola em direção à busca de
parceiros é a concepção de educação como prática (com)partilhada. No primeiro caso, não se
buscava o voluntariado, o amigo da escola”. O objetivo principal apontava para uma ação da
escola junto à sociedade que garantisse a ampliação dos horizontes educacionais, criando mais
possibilidades aos fazeres da escola. Não se tratava do novo, mas da busca de novos caminhos
para não perdermos o que entendíamos como ganho, conquistas da escola. Nessa perspectiva, a
parceria era pensada de dentro para fora. A partir do trabalho pedagógico da escola é que se
desenhava o tipo de ação fora dela que pudesse vir a contribuir com o trabalho que realizava.
Desse modo, os parceiros eram aceitos ou rejeitados. no segundo caso, a busca de parceiros é
entendida como um substitutivo de um Estado não mais provedor de certos investimentos na
educação.
Ao chegar ao Ciep em 1991, percebia na escola um movimento preocupado em
discutir as ações pedagógicas junto à comunidade. Embora essa fosse a minha segunda passagem
32
A chegada às escolas dos exemplares da coleção Raízes e Asas confirma essa tendência. Esse material elaborado
pelo MEC em parceria com algumas instituições ( Cenpec, Banco Itaú, Fundo das Nações Unidas para a Infância
(Unicef) tinha por objetivo principal contribuir para que as escolas se organizassem com vistas à participação de
outros setores da sociedade no processo educativo.
por esse modelo de escola, a experiência vivida no Gustavo Capanema se distinguia da anterior
pelo nível de envolvimento da direção com as questões pedagógicas, pela participação mais
intensiva dos professores e funcionários nos projetos e, principalmente, pela importância dada às
discussões pedagógicas. Estava diante de uma escola diferente, de uma experiência diferente.
Mas nem tudo era flores. Havia também muitos problemas: a bomba d`água que quase não
funcionava, parte elétrica muito precária, conflitos na comunidade, relações tensas entre as
diversas vozes dissonantes quanto ao funcionamento da escola em tempo integral, para citar
alguns.
Mas a capacidade de não parar de sonhar diante da adversidade e das divergências
sempre foi a força motriz desse CIEP. Em uma de nossas conversas, Tânia fala um pouco dessa
força, ao que chama de espírito da escola:
“(...) Mas essa escola tem um negócio que prende a gente. E a gente
“veste a camisa” de um jeito, que se alguém detona nosso trabalho eu
reajo, porque sei o que a gente vive aqui dentro.A gente “corre muito
atrás”
33
. E tem um negócio aqui que é bacana, que é uma coisa de
sempre estar discutindo as coisas. o absorvemos e pronto as coisas
que chegam. Estamos sempre em busca de idéias novas, brigando, se
desentendendo, se unindo, mas é legal que não tem muito aquilo de “não
quero fazer nada”. Eu vejo mesmo a galera que chegou à pouco
entrando nesse movimento, inovando. Algumas pessoas não agüentam o
“pique” e saem. É como se isso tivesse posto na veia da escola. Mesmo
aqueles que ficam fazendo corpo mole acabam indo na enxurrada. As
pessoas que estão aqui, umas mais atuantes, outras menos; umas
falantes, outras menos; umas mais estudiosas, outras menos. Mas cada
uma do seu jeito percebe o espírito da escola e vai se colocando.”
Talvez o que alimente esse “espírito da escola” a que Tânia se refere seja exatamente
esse movimento de seus sujeitos de estarem buscando, sempre. Admitindo o caráter limitado de
nossas ações, mas, em um tempo reconhecendo a importância da educação no processo de
transformação da sociedade. A busca de caminhos para a afirmação de uma proposta pedagógica,
mesmo diante de todas as adversidades a que estamos cada vez mais expostos, me parece
preservar Tânia e muitas de nós de um otimismo ingênuo. Assumir a educação como ato político,
33
Gíria que significa buscar resolver os problemas, atender às necessidades.
e que por assim dizer, como luta, como desafio, nos afasta de tornarmos professores tão afeitos ao
ceticismo, ao desespero, limitando nossas práticas às salas de aula, esperando que a educação seja
a alavanca da sociedade, sem refletir sobre seus/nossos limites e possibilidades. (FREIRE, 2006,
p.158).
Das lembranças que trazemos dos projetos pedagógicos desenvolvidos na escola
envolvendo outros parceiros fora dela, 3 momentos foram recorrentes em nossas memórias,
acredito que pelo tempo de duração e pela abrangência da participação de sujeitos de dentro e de
fora da escola: GATA, Projeto Minerva e Programa de Criança. Ao recordarmos os tempos-
espaços desses projetos realizados em parceria com outras instituições fomos situando também
historicamente alguns momentos vividos por nós e, ao mesmo tempo entendendo o significado
dessas ações na trajetória do Ciep.
Começo pelo GATA (Grupo de Apoio e Trabalho com os Alunos). Esse projeto teve
início em 1990, se estendendo até 1994. De acordo com os registros que encontrei na escola
sobre o projeto, seu objetivo era criar no aluno e na comunidade em geral uma postura diferente
em relação a vida do homem no planeta”. (retirado do relatório de atividades do Projeto). A
preocupação que essa questão suscitava, naquele momento para o conjunto da sociedade,
mobilizava a escola a levar essa reflexão junto a seus alunos e comunidade em geral. As atas dos
encontros dos sujeitos envolvidos no projeto revelam as várias ações realizadas durante sua
vigência. Uma delas, era a busca de parcerias junto a instituições públicas, privadas e pessoas da
comunidade: Parques e Jardins, Fundação Rio-zoo, Fundação Oswaldo Cruz, LATASA, para
citar algumas.
As questões locais eram trabalhadas com os alunos, criando possibilidades de
refletirem sobre algumas questões ligadas, principalmente ao processo de ocupação do território
onde a escola se encontra:
A questão que me parece importante é o movimento de pensar as práticas curriculares
da escola a partir das demandas locais. Essa concepção curricular coloca o aprendiz em contato
com o real valor do conhecimento, e ao mesmo tempo escapa às artificialidades que rouba o
sentido da escola. (SANTOMÉ, 1993, p.63). Esse movimento que traz o contexto político, social
e cultural para dentro da escola teve um importante momento de consolidação no período em que
a escola contava com o trabalho dos animadores culturais
34
. Até 1991, havia um animador:
Jorge Sorriso. Era ele quem dinamizava junto a equipe de Orientação Pedagógica, alunos e
professores, os projetos da escola.
O Projeto Gata aconteceu até 1993. Com o passar dos anos, fomos encontrando
algumas dificuldades para manutenção da proposta. O desânimo de alguns professores com o
contexto político que implicava em algumas mudanças em nosso trabalho algumas
sinalizadas nessa dissertação em outro momento me parece responder por parte do fim do
projeto. Além disso, já não dávamos conta de algumas ações, como exemplo, a coleta seletiva nas
turmas. O lixo recolhido estava ficando acumulado e causando alguns transtornos para a escola.
Algumas instituições parceiras impunham algumas condições para recolhimento dos materiais
colhidos pelos alunos. A Latasa, para citar um exemplo, exigia que ajuntássemos em torno de
34
Partindo de uma concepção mais abrangente da função escolar, cada CIEP trabalha no sentido de recuperar o papel
político e social da escola, no contexto de uma relação mais ampla com a comunidade. A escola se integra à
comunidade, contribuindo para a educação coletiva. (...) Nesse processo de estreitamento de laços entre a escola e
sua comunidade, as atividades de animação cultural passam a ter especial importância. (O Livro dos CIEPs, 1986,
p.49)
Fonte - Globo Ilha – 09/06/1991
uma tonelada para que viessem à escola fazer o recolhimento. Com isso, sem um lugar adequado
para acondicioná-las, levávamos muito tempo para que fôssemos atendidas. Mesmo assim, esse
projeto trouxe ganhos materiais e pedagógicos da maior importância para a escola: trocamos
latinhas por dois ventiladores e cadernos reciclados. Além disso, o Projeto GATA foi o primeiro
colocado em um concurso de Projetos de Educação Ambiental, recebendo como prêmio uma
máquina copiadora Xerox. Embora o objetivo principal do projeto não fosse a venda dos
materiais recolhidos, a transformação dos esforços coletivos dos alunos, professores e
funcionários em um bem concreto animava a participação do grupo.
Em 1994, fomos procurados por um grupo de professores da UFRJ, oferecendo vagas
para alguns alunos de nossa escola participarem de um projeto de inclusão digital: Projeto
Minerva. Através dessa parceria, algumas crianças tinham aulas de informática nos laboratórios
da faculdade de engenharia da UFRJ. O Gustavo Capanema foi a primeira escola da Prefeitura a
participar desse projeto oferecido pela instituição. Alguns anos depois a coordenação do projeto
montou um laboratório no próprio CIEP, com computadores usados doados pela própria
instituição. Nesse período as aulas de informática eram dadas por alunos bolsistas da Faculdade
de Engenharia, que junto a nós, professoras da escola, planejavam algumas atividades. Em 1996,
ano em que assumi uma das turmas atendidas pelo projeto, chegamos a produzir um software
educativo. Nessa parceria, nós entrávamos com as propostas de atividades e eles com os sistemas
operacionais.
Esse projeto foi apresentado por seus organizadores tendo como objetivo principal a
“inclusão digital”. No entanto, a experiência de levar as crianças da Maré para a UFRJ foi
desvelando outras necessidades de inclusão de modo que uma universidade tão próxima, o se
tornasse tão distante daquela comunidade. No contato dos universitários com as crianças do
Gustavo Capanema percebíamos alguns olhares e comentários que demonstravam o preconceito
com a presença daquelas crianças. Fomos nos dando conta também de que elas haviam criado
outras formas de inclusão integrativa (MARTINS, 1989, p.99) naquele campus universitário
algumas já conhecedoras daquele espaço onde aprenderam a freqüentar como pedintes,
vendedores ambulantes ou apenas para lazer.
Valla (1994) me ajuda a refletir também sobre essa experiência pensando na
necessidade de abertura dos espaços públicos não somente para assimilação das massas, mas,
sobretudo, para compreender seus pensamentos e desejos. É preciso recebê-las e acolhê-las em
suas diferenças, na perspectiva de que os profissionais desses espaços tenham acesso aos
conhecimentos produzidos por elas, e não sobre elas.
Aos poucos, a universidade foi se acostumando com a chegada dos nossos meninos, e
estes aprendendo a perceber naquele espaço outras possibilidades de inserção. Com o tempo,
algumas expressões foram mudando, nossas crianças não assustavam mais a burguesia
universitária. Embora essa experiência tenha sido bastante inicial no que respeita à inclusão e a
disputas mais justas de acesso aos bancos universitários, o fato é que essa experiência marcou
nossas trajetórias e das crianças do CIEP como um importante momento de abertura de
possibilidades de sonhos, desejos e conquistas. Alguns alunos em contato com a escola até hoje,
relembram as aulas, os passeios, o deslumbramento diante de uma telinha que poucas pessoas
tinham acesso naquele momento. Eliane Vilela, uma das professoras da série que participou do
projeto, traz em seus relatos algumas lembranças:
Nós tivemos vários momentos na parceria com a UFRJ. Primeiro as
turmas pegavam o ônibus 901_ Fundão que passava aqui dentro. Era um
inferno, às vezes não queria parar porque eram muitos alunos, um sufoco.
Depois essa linha deixou de Passar aqui dentro, aí as crianças passaram a
ir à pé. Lembro que Mariana era a professora da turma nessa época e
contava pra gente os sufocos que passava com as crianças. Depois
passamos a ir de Kombi, que o projeto alugava. Mais tarde é que a
instituição abraçou mais o projeto e passou a liberar o ônibus. era
tranqüilo. O ônibus vinha aqui na porta buscar e trazer de volta. O
problema era quando atrasava ou quando a universidade não liberava.
Mas as crianças adoravam, naquela época o acesso à informática era uma
novidade para ele e para muitas de nós também. O problema era quando
eles se espalhavam pelo Campus. Até catar todo mundo para vir embora...
O Projeto Minerva aconteceu por 4 anos. Outra dificuldade, além das apresentadas
por Eliane era a manutenção dos micros usados doados para o CIEP. As dificuldades na
manutenção inviabilizavam, muitas vezes as aulas na escola, e as crianças precisavam ser
deslocadas para a universidade. Atualmente a escola está inserida no programa Informática
Educativa da Prefeitura do Rio de Janeiro. A experiência do Ciep junto ao Projeto Minerva com a
informática favoreceu sua escolha para estar entre as 200 primeiras escolas da rede municipal do
Rio a receberem um laboratório de Informática, segundo informações que foram dadas pela
Coodenadoria me reunião com os diretores das escolas contempladas.
Além da UFRJ, a escola seguiu estabelecendo outras parcerias. A refinaria de
Manguinhos, a Ação Comunitária do Brasil, a Novamérica, além do Clube Escolar, passaram a
representar nossas opções para encaminhar os alunos em horários alternativos aos que estão no
CIEP. A divulgação é feita na própria escola para os pais, através de cartazes trazidos pelas
próprias instituições ou nas reuniões de pais.
A Maré recebeu nos últimos anos uma série de iniciativas voltadas para a educação
das crianças.
Outra parceria que está atuando junto à escola desde 1999 é o CEASM _ Centro de
Estudos e Ações Solidárias da Maré. Em parceria com a escola o CEASM desenvolve o
Programa de Crianças, que é formado por diversos projetos que abrange desde o atendimento às
crianças até a dinamização de trabalhos com os pais. A partir de um planejamento que é feito
junto à escola, são organizadas as formas de atuação do programa, que avalia e é avaliado pela
escola. No início tivemos algumas dificuldades junto a esse parceiro, devido a concepção de
atendimento trazida por eles que divergia daquela proposta por nós. Uma dessas divergências
dizia respeito ao planejamento do trabalho. Exigíamos uma participação maior nas atividades que
eram desenvolvidas por eles junto a nossas crianças, assim como abrimos espaços para que
participassem de nossos centros de estudos. Não queríamos que a escola se transformasse em um
lugar de aplicação de oficinas. Com o tempo a relação entre a escola e a parceria foi se
consolidando e as divergências deram lugar a uma ação conjunta que vai se retroalimentando há 8
anos. Todo ano o Programa passa por uma avaliação junto aos pais, alunos e professores da
escola, o que é considerado para o planejamento do ano seguinte:
Grupo de danças MAREFESTAÇÃO
35
_ apresentação de danças da cultura popular de
influências africanas apresentada como parte integrante das atividades desenvolvidas na Sala de
Leitura em comemoração ao “Dia da Consciência Negra”, em novembro de 2006.
No cotidiano do Capanema fomos encontrando meios de resistir às investidas do
poder. utilizando-nos da criatividade do dominado, dos usuários, para dar outros significados aos
produtos recebidos; ao invés da submissão de consumidores passivos e dóceis. Uma produção
não assinada, não legível, o que no dizer de Certeau (2002: 39-40) é uma fabricação poética (do
grego poiein: criar, inventar, gerar), mas que tem por característica estar “escondida”.
Assim, nos Centros de Estudos nos fizemos produtores desconhecidos. Ainda que em
também consumidores, produzimos saberes, através de nossas práticas significadas
cotidianamente. Vitórias do mais fraco sobre o mais forte. Seguimos produzindo pequenos
sucessos, artes de dar golpes, astúcias de caçadores.
Este certificado foi conferido à escola em 1995 pela 4ª Coordenadoria de Educação.
CAPÍTULO VI
COMPATILHANDO AS ANGÚSTIAS, MAS CANTANDO A ESPERANÇA
Nos relatos das professoras a referência a 1994 como um ano difícil foi muito
recorrente. Foi ficando claro para mim a importância de compreender a conjuntura desse período
para podermos pensar as ações da escola nos anos seguintes: seja na busca de novos parceiros,
seja na organização do trabalho da escola, ou mesmo para melhor entender a complexidade das
relações que ali se estabeleceram/estabelecem. Fui então garimpando nas entrevistas gravadas,
nas conversas informais que travamos nos diversos tempo-espaço do Capanema, fragmentos de
um todo que ganha significado em nossas leituras possíveis do vivido. Essas leituras carregam
movimentos ocorridos dentro e fora da escola. Nesse diálogo do macro com o micro, do eu com o
outro, com o dentro e o fora da escola, vão se levantando diferentes modos de compreensão e
interpretação do que experimentamos, desvelando nuances de conflitos, disputas e tensões que
serviram de pano de fundo para um contexto onde habitavam relações retesadas de saber, poder,
paixões, omissões, acomodações, disputas e resistências.
35
Esse grupo é formado por alunos de diferentes anos do Ciclo e pelas meninas integrantes do PAR (Programa
Alunos residentes). O Marefestação é um dos projetos que integra o “Programa de Crianças”.
Ao completar 10 anos, atropelado por uma conjuntura que redefiniu os rumos da
educação e ao mesmo tempo analisando nossos pequenos lances e nuances em um espaço, que
por não ser um próprio, reservou para nós o lugar da espreita, do melhor momento, da astúcia
para fazer o que pensávamos necessário para continuarmos acreditando e permanecendo ali – sem
que tivéssemos condições de conservar o que produzimos para o momento seguinte (CERTEAU,
2003) o CIEP foi exigindo de nós cada vez mais um pôr-se em constante movimento de
produção compreensível no próprio exercício de pensar complexo e contingente nossas ações
naquele cotidiano. O que se conservou desses instantes foi o medo ou a ousadia da tentativa. A
cada instantes, novos lances; e a história dessa escola foi sendo inscrita em nós e por nós e tantos
outros que lá permanecem ou se foram, tecer seus fios em outras tramas.
Para compreender essa história não é o bastante um olhar sobre as estruturas,
conjunturas ou mesmo sobre nossas ações subjetivas/subjetivadas ou mesmo coletivas. Antes me
parece necessário perceber as relações de poder atravessadas nessas relações, sem tentar captá-las
na estrutura, mas admitir o poder que circula nas mais diversas manifestações e práticas. Por
assim dizer, nossas narrativas trazem relatos de experiências que se sustentaram nos
enfrentamentos diários, nas vozes dissonantes no que concordamos ou discordamos. Nas
angústias diante do que perdemos e na esperança do que ousamos reinventar para continuar na
resistência, conforme nos lembra Rosane: Ai é quando a gente se divide para continuar na
resistência”.
Nesse turbilhão, Sheila assume a direção da escola em 1994. No entanto não consegue
levar a gestão até o final. A violência crescente do entorno da escola, e as relações tensionadas
em seu interior fizeram com que pedisse exoneração. A questão do entrono foi o único motivo
que Sheila apresentou ao grupo para sua desistência. Entretanto, lembranças que me trazem as
conversas que tínhamos naquele momento demonstram a fragilidade de Sheila para o
enfrentamento daquelas crises internas. Lúcia então assume o segundo ano para conclusão da
gestão iniciada por Sheila.
Naquele ano o CIEP completaria 10 anos. As relações continuavam tensas. No auge
da crise, as opiniões vão se dividindo cada vez mais em relação à manutenção do horário integral.
integral. Se por um lado defendíamos a proposta, por outro sabíamos que sua manutenção
exigiria, para além da vontade política, condições estruturais e humanas. Contudo, era preciso
resistir, sabíamos que no momento em que cedêssemos à pressão, não conseguiríamos mais voltar
com o horário integral. Muitos professores deixam a escola, apreensivos com as mudanças que se
sucediam no atendimento da escola.
No ano de 1995 o CIEP completou 10 anos. Embora tivéssemos muito o que
comemorar, aquele foi um ano muito difícil. No início de 1996 estávamos diante de um grupo
preocupado. A violência na Maré aumentava na mesma proporção da população que crescia no
entorno da escola. O fim das oficinas de múltiplas linguagens tornava a manutenção do horário
integral cada vez mais difícil. A falta de obras piorava a situação da infra-estrutura, já muito
comprometida. Parte da escola que não concordava com a manutenção do horário integral,
escudados pelo momento difícil que a escola vivia, fomentava discussões em favor do fim do
horário integral. Do outro lado sabíamos que ao nos deixarmos vencer pelo fim do horário
integral dificilmente conseguiríamos reverter a situação. Era preciso brigar até o fim para
manutenção do espaço e do horário.
Nesse ano o CIEP completou 11 anos. Desde o início do ano pensávamos em como
comemoraríamos esse evento. Na época eu atuava como Orientadora Pedagógica (PO) em uma
matrícula. Na outra, ocupava a função de Professora Regente, em uma turma de Série mantida
em horário integral. No turno da manhã essa turma era assumida por Eliene.
Dias desses, voltando para casa, encontro na Kombi Alessandra_ uma de nossas
alunas na turma a que me refiro acima. Dizia ela:
“Nossa, que saudade daquela época. A gente vivia aquela escola. Lembra
o dia do churrasco no terraço do CIEP? E daquela dança do folclore que
a gente apresentou? E da escola de samba?
Naquele momento, Alessandra foi trazendo para mim momentos vividos por nós
naquele CIEP, alguns esquecidos. Fui percebendo na conversa com aquela aluna o quanto
nossas memórias se espraiam pelas Kombis, pelas casas de nossos alunos, nas fotografias que
muitos pais trazem de momentos vividos naquele espaço e que contam de nós e que testemunham
momentos que por muitas vezes registram o que de nós não conseguimos lembrar, mas que ao
serem rememorados nos identificam no tempo que somos, pelo que fomos.
Os fios de nossas memórias se tecem em meio à diversidade de nossas recordações.
Comentando com Eliene o encontro com Alessandra, esta me pergunta sobre o samba enredo que
produzimos junto aos alunos e que acabou sendo trabalhado por toda a escola e culminou com o
regate da história das memórias do CIEP ministro Gustavo Capanema em 1996. Nesse ano, o
projeto pedagógico foi pensado a partir das comemorações dos 11 anos do CIEP. Vivíamos um
momento de baixa-estima, de apreensão com a saída de muitos professores. Precisávamos fazer
algo para resgatar o prazer e vontade de estar ali. Sentíamos que algumas pessoas
vislumbravam a saída do CIEP. Lembro-me que eu mesma, com planos de engravidar naquele
ano, não dava tantas certezas de permanecer naquela escola após a licença maternidade. As
mudanças que vinham se inscrevendo no cotidiano da escola em escala macro, exigia de nós cada
vez mais táticas e astúcias para agir lance, por lance, golpe por golpe, no lugar de visão do
inimigo (CERTEAU, 1994, pp.100-101).
O samba nasceu como uma composição coletiva da turma 402, após um encontro em
que conversamos sobre a trajetória do CIEP durante seus 11 anos. Havia feito um texto para
trabalhar com eles a trajetória da escola. Desse texto saiu a letra do samba. A idéia era trabalhar
essa poesia com a turma e entregar de presente à escola, por ocasião de mais um aniversário. No
entanto, disponibilizamos o texto às outras turmas e, daí surgiu a idéia de fazermos a culminância
como em 1989, quando o desenvolvimento do projeto Formação do Povo Brasileiro,
desenvolvido pelos animadores culturais da época, mobilizou toda a escola na formação de um
bloco.
Alguns professores compraram de imediato a idéia, outros não se empolgaram em
participar da homenagem. Mesmo assim, “botamos o bloco na rua”, digo, na quadra. Divididas
em alas, de acordo com o enredo e a letra do samba, promovemos um desfile em um evento
promovido dentro da escola em comemoração aos 11 anos do CIEP.
A importância maior daquele projeto foi a mobilização em torno da elaboração das
fantasias, os ensaios, o trabalho que alguns professores fizeram com seus alunos a partir da letra
do samba. Ainda me recordo de Mariana às vésperas do desfile colando os adereços junto aos
alunos da ala que representava a Biblioteca; das colheres de pau, adereço da Ala que
homenageava a hora do almoço no CIEP. Dos alunos com vestes esportivas representando a vila
olímpica idealizada em 1991, para ser construída no entorno da escola. Lembranças que nos
falam de um passado que já hospedava um presente, vivido em nossos desejos de fazer.
Bisbilhotando os baús da história, lá está, entre tantos outros momentos em que
cantamos o CIEP, a letra do samba:
UMA HISTÓRIA PARA CANTAR
Fazendo onze anos de história
Nos acolhendo com amor no coração.
CIEP, sua vida e sua glória
Se deve à luta e muita dedicação.
Dos que vieram
Dos que virão
Dos que se foram, ou ficarão
Resistindo...
Resistindo a governantes
Que pouco fazem pelo bem da educação.
É hora do almoço. Oba!!!
Se a merenda é gostosa, vou provar.
Ai, que saudade...
Que saudade da velha biblioteca,
Onde entre livros muitas vezes viajei.
Vila olímpica do papel não saiu
Era mais um sonho da escola que sumiu.
Cata papel, olha o G.A.T.A aí
Recolhe o lixo para não se poluir.
Na aquarela da escola, vi um menino sorrir,
Mas a mol(dura) é a realidade de quem convive ali.
Do JI ao Juvenil
Esse Ciep é o mais querido do Brasil
Na composição final da música uma estrofe foi retirada por fazer menção mais direta
a violência do local. Nesse momento, a ousadia cedeu ao temor de alguma represália por parte do
tráfico de drogas. Dizia assim:
Maré...
Maré, Maré amar a Maré.
É desarmar a Maré.
Maré, Maré amar a Maré é
Trabalhar pra Maré.
Distribuídas em alas, as turmas desfilaram suas fantasias cantando o samba em homenagem aos
11 anos do CIEP Ministro Gustavo Capanema
Ala “Hora do almoço”
“Ala “JI”
Quando o CIEP completou 11 anos, das angústias e incertezas vividas por nós em um
contexto marcado por muitas mudanças
36
nasceu um movimento que nos mobilizou a buscar nas
forças dos que resistem, a esperança para por o grupo novamente em movimento. Víamos nossa
história escorregar entre os dedos. Novas pessoas entraram_ algumas pela primeira vez na rede
pública. Outras transferidas de outras escolas. A redução no número redução nos espaços de
encontro, nos Centros de Estudos_ espaço privilegiado de trocas e estudos_ representou menos
oportunidades de trocas e estudos entre nós professores. No horário integral criávamos
possibilidades não oferecidas pelo poder para promover esses encontros. Nos organizávamos
dentro da própria dinâmica da escola para essa garantia.
36
O ano de 96 ficou marcado pela saída da Diretora, chegada do Núcleo Curricular Básico (Multieducação),
homologação da LDB 9.394/96.
Procurei trazer nessa poesia um pouco das coisas vividas, sonhadas, conquistadas e
perdidas por nós durante todo o percurso. Era preciso renovar as esperanças (inclusive as minhas)
naquele momento. Apostei no dito popular: quem canta seus males espanta.
Mas não era a primeira vez que a escola mostrava que era de samba. Em algumas
conversas, Rosane, Carmen e outras professoras que participaram do desfile promovido pelo
CIEP EM 1989, guardam carinhosamente as lembranças desse momento:
“Ainda me lembro dos eventos que a animação cultural organizava, do
desfile que nós fizemos pela comunidade com o projeto que
desenvolvemos em 1989 “Formação do Povo Brasileiro”. Eu vestida de
empregadinha, gente, imagina...Tinha até porta bandeira!”(Rosane)
Escola de samba Corações Unidos do CIEP
Culminância do Projeto Formação do Povo Brasileiro
(1989)
Na segunda metade da década de 90, mais precisamente no primeiro governo de
Fernando Henrique Cardoso, a educação brasileira sofreu uma série de mudanças. Nesse período,
a promulgação da LDB 9394/96 consolidou um conjunto de políticas que desde o início da
década vinham influenciando os modos como os sistemas de ensino estavam sendo
organizados. A Constituição de 1988 já anunciava em seus artigos a intencionalidade com que os
sistemas de ensino (municipalizados) deveriam ser estruturados. Os termos da lei traduziam as
tendências políticas de descentralização, participação, elaboração, autonomia. Por outro lado a
Constituição Federal não deixava claro em seus artigos como seriam garantidas essas medidas.
Cabendo aos Estados Federados essa organização e garantia.
A chegada dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) às escolas em 1996 trouxe o
núcleo curricular básico de referência, que deveria orientar a organização curricular das redes de
ensino.
Nesse mesmo período (1996), chegava às escolas da Rede de Ensino da Prefeitura do
Rio de Janeiro o documento que passa a ser referência no planejamento curricular: o Núcleo
Curricular Básico: O Multieducação
37
. Esse documento elaborado na gestão César Maia, teve à
frente de sua coordenação geral a Professora Regina de Assis, Secretária de Educação do Rio de
Janeiro (1993-1996). Ele sintetiza a matriz curricular norteadora das ões pedagógicas que são
implementadas nas escolas.
As questões curriculares sempre ganharam destaque em nossos espaços de discussão.
Embora muitas professoras estivessem mais familiarizadas com um modelo de organização
curricular diferente dos moldes mais tradicionais, devido às experiências vividas em anos
anteriores durante as discussões que aconteceram com a chegada do “Livro Azul”
38
às escolas
(1991) , o Multieducação recebeu várias críticas. As mais recorrentes se referiam à amplitude
dos objetivos. Lembro-me que alguns professores diziam se sentirem perdidos diante da proposta
de cruzamento dos Núcleos Conceituais e Princípios Educativos, sem, contudo, negarem a
riqueza do material. Essa mesma discussão surgiu em torno dos PCNs, ao se referirem aos Temas
Transversais. Nesse sentido, lembro que minha última ação como Orientadora Pedagógica foi a
organização junto aos professores de um planejamento que “traduzisse”, tornasse mais claro para
37
A entrega do Multieducação às escolas foi acompanhada de curso de formação remunerado para
entendimento da proposta. Esses cursos à distância eram dados na própria escola. Após o término do expediente
permanecíamos na escola por 2 horas após o horário assistindo pela tv aos programas de formação. Ainda nesse ano,
a rede municipal promoveu uma avaliação para verificação do desempenho dos professores diante da proposta.
o grupo a dimensão prática do nosso planejamento, tendo como referencial o Multieducação.
Assim, aescola promoveu alguns encontros com o grupo de professores para ler, discutir,
compreender e adequar a estrutura de organização curricular do Multieducação.
A despeito de todas as críticas, à elaboração e chegada nas escolas desses dois
documentos, as professoras consideraram que esses momentos foram importantes pelo que
provocaram nas escola em torno das discussões curriculares.
Tanto nas críticas ao Livro Azul, quanto no Multieducação, a questão da autonomia
do professor é colocada em questão na medida em que esses documentos, embora proponham
situações em que os professores possam explorar a produção de conhecimento junto aos seus
alunos, não abrem espaços para valorizar a produção dos conhecimentos práticos do professor.
Nessa perspectiva, utilizo-me das reflexões de Tardif (2006) para compreender as reações das
professoras no sentido de legitimar ou invalidar os documentos curriculares oficiais:
Para esse autor os fundamentos do ensino são sociais, considerando que
os saberes profissionais são adquiridos em tempos-espaços diversos,
através dos vários grupos sociais a que estamos ligados: família,
escola, universidade... Nessa perspectiva, a consciência profissional do
professor se produz a partir das interações que estabelece entre os
saberes adquiridos exteriores à prática docente e os conhecimentos
técnicos adquiridos o longo de sua carreira.
Ainda segundo Tardif, as rotinas são experiências fundamentais para a formação
de saberes práticos, pois considera que os fundamentos do ensino, além de sociais possuem
também uma dimensão pragmática. Dito de outro modo, os saberes que servem de base para o
ensino estão intimamente ligados tanto ao trabalho, quanto à pessoa do trabalhador.
Mergulhada no acervo de fotos da escola, de vez em quando recorro às professoras
colaboradoras da pesquisa para identificar uma pessoa, um evento, um momento. Nesse momento
percebo a ansiedade de cada uma diante da fotografia. Vozes alteradas, risos, coração batendo, a
foto mobiliza sentimentos que fazem falar o que estava calado, recalcado, esquecido. Carmen
38
Fundamentos Para Elaboração do Núcleo Curricular Básico das escolas públicas do Município do Rio de
Janeiro, “O Livro Azul”. Esse documento entregue em 1991 é fruto de discussões iniciadas em 1983 na Rede
chora ao rever ali, diante de seus olhos o registro daquele dia em que fomos à Secretaria de
Educação pedir a ampliação dos segmentos da Educação de Jovens e Adultos: Nossa, lembra
desse dia? Levamos um abaixo assinado para a secretaria pedindo ampliação dos segmentos do
PEJA. Olha aquela nossa aluna Janete(...)”
Por uns instantes Carmen permanece em silêncio, contemplando a fotografia. Passa o
dedo sobre os rostos de seus alunos. Ainda lembra seus nomes, seus rostos, suas histórias. Dessa
lembrança vai a outras, e mais outras. Do que fala já não cabe na foto. Aquele instante congelado
na imagem daquelas pessoas diz muito mais do que a máquina é capaz de captar. A foto não cabe
em si. O que para uns é apenas uma foto com pessoas dançando em algum lugar. Para nós, a
memória de um instante de luta pelo direito à educação das classes populares
39
.
Foto retirada no saguão da Secretaria Municipal de Educação durante a apresentação dos alunos
na EXPO-PEJA/2000. (Carmen está à esquerda de vestido preto)
CONCLUSÃO: um novo tempo, apesar dos perigos...
Municipal, que contou com a participação de Especialistas em Educação e alguns professores regentes.
39
A partir de 2002, atendendo a um abaixo assinado dos alunos dos professores e alunos da escola a SME autoriza a
ampliação do PEJA no CIEP_até 2001 só tínhamos o PEJA I. A partir de 2002 a escola passa a ter o PEJA II, que
equivale ao antigo segundo segmento do Ensino Fundamental.
Nas leituras que fiz das conversas com as professoras durante todo esse trabalho e nas
memórias que trago dessas experiências, vou (re)compondo uma história que me fala de
movimentos possíveis em um tempo de profundas mudanças. A compreensão disso exige que
assuma a impossibilidade de captar todos os lances e nuances dessa trajetória e que me coloque
em uma perspectiva que garanta a compreensão da complexidade das relações em rede que se
tecem nesses momentos, e que vão marcando processos de criação de histórias individuais e
coletivas. São momentos de crises, de avanços e recuos, onde movemos nossos fios na trama do
cotidiano da escola criando modos de permanecer sujeitos praticantes.
Nossas narrativas trouxeram à tona histórias que já estavam esquecidas ou que
precisavam ser costuradas para dar sentido ao que nós mesmos buscávamos entender sobre
nossos próprios jeitos de ser e estar por tantos anos no Ciep. Utilizando-me da metáfora das
costuras, tão afeitas às pesquisas no/do cotidiano, assumi o lugar da bordadeira, que com fios de
memória vai juntando os pedacinhos de histórias que compõem os patchwoks do nosso cotidiano.
(CERTEAU, 2003, p.46)
Durante a pesquisa, fui submetendo os pedacinhos de tecidos que ia montando à
compreensão das professoras que, por vezes, se mostravam surpresas aos se depararem com as
conexões que minhas interpretações deram às nossas falas. Algumas vezes tive que mudar o
caminho, pois ao devolvê-las as interpretações que delas fiz, as professoras pegavam atalhos que
me faziam abandonar um caminho para ir buscar outros. Cheguei duvidar da possibilidade de
chegar à conclusão desse trabalho. Subindo e descendo, passeando por entre cume e sopé (PAIS,
2003, p.55), fui colhendo pequenos detalhes e grandes acontecimentos que se interligavam dando
sentido(s) às minhas capturas. A associação entre o macro e o micro foi desvelando aspectos do
real até então invisíveis nos nossos modos de dizer daquela realidade.
“Creio no sonho, creio no trabalho. Sonhei com
paixão e ousadias. As utopias maiores que poderia
sonhar. E não me arrependo. Utopias indispensáveis
para os incrédulos, utopias impossíveis para os pobres
de coração. Mas estão concretizadas tantas de
minhas utopias.”
(Professor Darcy Ribeiro)
As mudanças ocorridas nas últimas décadas impactaram, sobremaneira, os paradigmas
que sustentam a elaboração das políticas públicas para os diversos setores da sociedade. O final
da década de 70, início de 80, o agravamento da crise financeira do país, a acentuação do fracasso
escolar, sobretudo na educação básica, e os protestos de alguns intelectuais em defesa da escola
pública, dentre eles o Professor Darcy Ribeiro, são alguns dos principais acontecimentos
atravessados na história de surgimento dos Cieps.
A década de 90, no contexto das mudanças iniciadas nos anos 80, se configura numa
série mudanças ocorridas nos vários setores. A década se inicia com um novo presidente, que traz
as marcas políticas de uma economia neoliberal, das Reforma Constitucionais e dos reflexos de
uma crise econômica interna e externa que atinge todos os países, sobretudo os latino-
americanos, assolados por altos índices inflacionários, desemprego, recessão. Nesse contexto, a
educação ganha centralidade nas agendas dos países, como importante aliada na luta pelo
restabelecimento da economia desses países.
Em um encontro que ficou conhecido como Consenso de Washington em 1989, cujo
objetivo era discutir ões para a retomada do crescimento econômico da América latina, foram
sugeridas ações, pautadas em modelos utilizados pela Inglaterra, que reduzissem a carga
tributária do Estado. Com efeito, as políticas sociais passam a ser gestadas a partir desses
modelos. São medidas de impacto que, de um modo mais amplo podem ser definidas pela
redução da carga tributária dos Estados (Estado mínimo). A garantia de acesso da população
excluída aos bancos escolares passa a ser um imperativo nas políticas de governo no decorrer de
toda a década. Entretanto, o que assistimos nos últimos anos nos conta de que, embora tenha
aumentado significativamente o acesso das classes populares à escola, a permanência, a
qualidade e a participação ainda precisam ser devidamente equacionadas para que a escola se
torne um espaço democrático de emancipação dos sujeitos.
Essas mudanças no cenário político, econômico e social vão introduzir outros
elementos na cena social, induzindo à elaboração de outros indicadores, outras formas de
organização da sociedade na perspectiva de formação de outros sujeitos, de outros coletivos. Esse
contexto inaugura uma nova ordem. Toda essa mudança paradigmática vai exigir da escola
outros modos de organização, outros olhares, novos “saberes”, novas “competências”.
Nesse contexto de mudanças(?), as preocupações em torno da formação do sujeito
para os novos tempos tem colocado a escola no centro dos debates dos organismos
internacionais. Em tempos de capital transnacional, os países vão respondendo às demandas
emanadas do poder, onde a escola, epicentro dos paradigmas que sustentam a sociedade, vai
sofrendo todos os impactos das atuais tendências. Vai se configurando uma nova ordem. Entram
em cena novos olhares, novos “saberes”, novas “competências”.
O sistema escolar brasileiro na atual etapa de desenvolvimento econômico é o
aperfeiçoamento burocrático da sua estrutura de forma que possam ser neutralizadas as forças
antagônicas, mediante o estrito controle do processo educativo com a introdução de técnicas de
planejamento e avaliação com vistas a disciplinar a produção do conhecimento. Através de
mecanismos diversos são difundidos os princípios da eficiência e da produtividade, impregnando
o sistema escolar da ideologia da acumulação capitalista.(Félix, 1989, p.32)
Vivemos um tempo em que as sociedades, divididas em comunidades, formam micro-
sociedades em que o outro, estranho, é visto como ameaça, o diferente. Nesse processo de
dissolução das sociedades, impõem-se as reivindicações pelas afirmações dos sujeitos em suas
culturas. Os efeitos esmagadores de um processo de mundialização da economia de massa, que
apaga as diferenças, promovendo as desigualdades, tem provocado, paradoxalmente, o
surgimento de focos de resistências de sujeitos em busca de sentidos, de suas identidades. Saímos
de uma época onde os paradigmas se firmavam “por uma linguagem social, coletiva, para outro
marcado la linguagem cultural, subjetiva: o sujeito se afirma lutando contra aquilo que o aliena.
(TURAINE, 2006, p.26).
Nos últimos 10 anos, a Secretaria de Educação do Rio vem apresentando às suas
escolas propostas pedagógicas com vistas a restabelecer o fluxo das séries iniciais. Foram pelo
menos 6 propostas diferenciadas de enturmação nesse período. O volume de investimentos em
formação profissional e de aquisição de aparelhos elétrico-eletrônicos, além de livros
paradidáticos, não deixam dúvidas quanto aos investimentos e incremento material. No entanto,
ainda convivemos com velhos desafios no cotidiano das escolas, sobretudo o de torná-las uma
escolas voltada para a promoção de todos e de todas.
Concordo com Kamer(1997) ao afirmar que:
“Toda proposta, é uma aposta, , é um caminho, não um lugar, tem uma
história que precisa ser contada. Nasce de uma realidade que pergunta e é
também busca de uma resposta. Toda proposta é situada, traz consigo o
lugar de onde fala e a gama de valores que a constitui; traz também as
dificuldades que enfrenta, os problemas que precisam ser superados e a
direção que o orienta.”
As propostas pedagógicas emanadas pela Secretaria de Educação são adaptadas à
realidade da escola. No cotidiano desafiamos com nossos fazeres ordinários as tecnologias de
poder a que somos constantemente submetidos, através de mapas totalizantes que apagam as
diferenças dos contextos.
O trabalho das escolas junto às classes populares tem sido um desafio à permanência
tanto do aluno, quanto dos professores. A sociedade da “informação” traz para as salas, ainda
escuras das escolas o computador, além de outros aparatos midiáticos capazes de conectar o
complexo da Maré ao outro lado do mundo, em tempo real. Enquanto isso, em algum espaço
daquele território, homens se morrem e se matam uns aos outros, nos becos e nas linhas
imaginárias que demarcam as facções criminosas que atuam no local espalhando o medo e os
modos com cada um deve ser para permanecer.
A reorganização das funções burocráticas, com conseqüente aumento das demandas externas
para elaboração que quadros estatísticos, relatórios e mapas, a serviço do monitoramento das práticas da
gestão escolar tem sobrecarregado os dirigentes escolares de ações burocráticas, em detrimento de uma
maior participação no conjunto de discussões que acontecem nas escolas. Com efeito, a busca de
estratégias para garantia dessas participações tem sido um desafio para as equipes dirigentes das escolas.
Ainda hoje, apesar de estar numa função em que as demandas burocráticas comprometem muitas vezes a
possibilidade de acompanhar mais intensivamente o trabalho pedagógico, procuro sempre participar dos
espaços de discussão pedagógica, entendendo que a gestão de uma escola tem sentido se o diretor
estiver inserido nessas discussões, não só monitorando, conforme se coloca numa perspectiva gerencial. A
esse respeito, a promulgação da constituição de 1988 e da LDB 9.394/96, consolidam em seus artigos
essa tendência administrativa.
No Ciep, algumas alternativas tem sido encontradas para driblar os determinismos
dos princípios da regulação que tentam aprisionar as ações dos sujeitos da escola em estruturas e
modelos de gestão. Os mecanismos de participação dos diversos segmentos nos processos
decisórios da escola são criados e recriados, dada a provisoriedade do cotidiano. Além do
redimensionamento permanente das ações cotidianas, que não podem ser repetidas no seu
“como”. (Oliveira, 2000).
No final de 2003, quando a equipe de direção preparava o plano gestor para as
eleições dos dirigentes escolares daquele ano, a ampliação da participação dos diversos
segmentos nos processos decisórios foi a principal meta traçada para os anos seguintes. Embora
a escola mantenha alguns mecanismos de participação: CEC, grêmio, grupo de pais, reuniões
gerais, reuniões bimestrais de pais, reuniões com alunos representantes, a idéia é que esses
encontros ocorressem de forma mais integrada e com vistas a elaboração do Projeto Pedagógico.
Ao idealizar os encontros e a formação dos grupos, tinha como propósito criar uma
flexibilidade de participação dos diversos sujeitos nas diversas discussões que ocorreriam em
torno da instituição. Uma mobilidade que permitiria um maior número de participantes, além de
uma maior circulação das informações. Os grupos seriam formados a partir de 5 pilares: gestão
pedagógica, gestão de recursos financeiros, gestão de recursos humanos, gestão da rede física.
Esses pilares foram pensados a partir das demandas mais recorrentes percebidas no cotidiano da
escola.
A idéia é que os diversos segmentos se inserissem nos grupos de acordo com as
afinidades com as discussões. A comunicação das discussões travadas em cada grupo se daria a
partir de atas e murais informativos. Cada sujeito, independente do segmento a que pertencesse,
poderia escolher o grupo de sua preferência para participar das discussões. Por m~es seria
garantido um encontro, pelo menos, para troca entre os grupos.
Embora todos os grupos de discussão tenham iniciado na mesma época. Logo nos
primeiros encontros alguns problemas começaram a surgir. No Grupo responsável pelas
discussões acerca da rede física os horários dos participantes o coincidiam, o que fez com que
o grupo fosse se esvaziando. Com efeito, as pessoas desse grupo migraram para o grupo de
recursos humanos. Os demais grupos conseguiram promover alguns encontros até o final do ano.
O ano de 2006 iniciou-se com a promessa de fazermos uma avaliação do projeto.
Somente em maio nos reunimos para discutir o projeto, aproveitando um período forçado de
recesso escolar, devido a problemas na rede física da escola. Nesse encontro, que só fortaleceu
em mim a idéia de que o colegiado precisa se tornar uma realidade naquele espaço de tensões,
contradições, omissões e conflitos, pude perceber quantas questões atravessadas naquela
realidade precisam vir à tona; precisam ser problematizadas. Naquele momento tornou-se claro
para mim o quanto cada um vive aquele lugar, aquelas pessoas, produzem/reproduzem saberes
em lógicas muito diferenciadas. Mas nesse movimento de pensar percebo que é ali nos conflitos,
nas contradições que reside a diversidade, a pluralidade, a riqueza do Capanema. E que para
construção desse espaço é preciso a garantia de que os diferentes dialoguem.
Concluir, fechar, terminar. Palavras que trazem em sua semântica a idéia de
encerramento. No entanto, ao retomar todo percurso feito durante essa pesquisa, a certeza de sua
incompletude me lança em direção ao inacabado, ao transitório, ao cíclico. Durante a vigência
da pesquisa muitos foram os sentimentos que se misturaram, formando muitas vezes enigmas
quase indecifráveis. A palavra desvelou seus sentidos equívocos, ltiplos, polissêmicos,
mostrando que também sabe brincar com as nossas sensações. Exigiram de mim a busca do
contexto para dar-lhes o sentido real do vivido. Negaram as explicações aligeiradas que pareciam
dar conta do experimentado.
Foi preciso voltar no tempo e avançar no tempo para entender um presente, um
passado e criar a esperança de um devir. Histórias quase esquecidas ganharam cores, cheiros e
sabores ao serem tocadas nas memórias de um grupo de professoras sobreviventes da trajetória
de uma escola que começou em uma proposta, que se transformou em aposta e que hoje nos
mobiliza a buscar respostas para o seu futuro.
Talvez ao tocar o passado, o que se levantou foi o presente cobrando de nós um
continuar em frente, combatente na luta pelo que fomos, somos e nos transformamos. Recordo-
me de Boaventura ao dizer que vale a pena voltar ao pasado se for para dele resgatara luta, a
força, o sentido. Aqui pretendi situar no tempo e no espaço algumas de nossas crenças,
diferenças, pretensões e opções por partir, ficar, partir se deixando ficar ou ficar sem estar. As
narrativas alinhavaram os caminhos que foram brotando entre as fontes pesquisadas. As
contribuições teóricas de alguns autores alargaram minha compreensão de mundo, foram
lanternas que me guiaram para tornar compreensível o familiar/estranho e o estranho/familiar.
E qual será o futuro de nossa escola? Daqui à pouco seremos passado, lembradas
talvez, na generosidade dos que nos identificam em marcas e momentos vividos na história do
Ciep Ministro Gustavo Capanema. Ou, quem sabe, em baús de fotografias perdidas, onde as
imagens congelam as emoções de um instante de vida. Outros chegarão tecendo novos fios, e
com suas histórias vão dando outras tessituras a esse cotidiano. Mas certamente não fugirão de
serem tocados pelo espírito de lutas, resistências, sabores e dissabores que marcam o estar ali.
Espíritos alimentados pelos diversos fios a que estamos ligados por redes de solidariedade,
compromisso, identidade, medos, ousadias, conformismos, rebeldias e utopias. Espíritos de
pessoas que, mesmo ausentes, ali se tornaram para sempre pelo que delas deixaram na história
dessa escola. Pessoas como Flora, que com sua paixão pelo Gustavo Capanema ainda alimenta
nossos desejos de continuar acreditando na proposta dos Cieps. Pessoas como Darcy Ribeiro que
nunca desistiu dos seus sonhos, das suas utopias. Pessoas como Fátima e Mariana que partiram
desse mundo, mas volta e meia são lembradas em nossas conversas. Pessoas como nós, que
permanecemos para contar essa história.
E a pergunta volta e a cabeça agita: qual será o futuro de nossa escola. Já não sou
a mesma que iniciou essa pesquisa. Não diminuíram as perguntas que me trouxeram até aqui.
Outras deram lugar a algumas que consegui respostas. E é com elas que penso dar continuidade a
esse trabalho. Que não é meu, mas de todos os que de algum modo contribuíram para essa
narrativa coletiva ou que o considere útil para buscar os tantos outros caminhos que deixei ao
fazer minhas escolhas. Essa é uma versão entre tantas possíveis. Talvez, confesso, uma versão
apaixonada, mas que tentei, me utilizando das contribuições de Azevedo(2003) : fazer com
paixão sem perder a razão.
Ainda Cremos no sonho, ainda cremos nas utopias. Sonhamos com paixões e
ousadias e as concretizamos em muitos de nossos momentos vividos nos Capanema. Talvez
o Professor Darcy Ribeiro tenha partido sem ter tido a dimensão da importância e
significado de suas utopias para a formação e memória de muitas de nós professoras. E se
por alguns momentos dessa dissertação eu tenha fugido aos rigores da pesquisa, talvez
sejam, paradoxalmente, estes os momentos em que mais me sujeitei à ela, me deixando
arrastar pelo que o exercício de rememorar me causou: a emoção de contar minhas/nossas
próprias histórias. E assim, encerro provisoriamente essa dissertação, como nos versos de
Ivan Lins, torcendo: pra que a nossa esperança seja mais que a vingança; seja sempre um
caminho que se deixa de herança...Que venha um novo tempo, apesar dos perigos...
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