Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
Departamento de Psicologia Experimental
CAMILA LOUSANA PAVANELLI
A teoria como objeto interno do analista e seus destinos na clínica:
luto e melancolia como metáfora
São Paulo
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
CAMILA LOUSANA PAVANELLI
A teoria como objeto interno do analista e seus destinos na clínica:
luto e melancolia como metáfora
Dissertação apresentada ao Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo para obtenção do título de
Mestre em Psicologia.
Área de concentração: Problemas teóricos em Psicologia
Orientador: Prof. Dr. Luís Claudio Figueiredo
São Paulo
2007
ads:
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA
FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Pavanelli, Camila Lousana.
A teoria como objeto interno do analista e seus destinos na clínica:
luto e melancolia como metáfora / Camila Lousana Pavanelli;
orientador Luís Claudio Mendonça Figueiredo. -- São Paulo, 2007.
139 p.
Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação em
Psicologia. Área de Concentração: Psicologia Experimental) –
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
1. Psicanálise 2. Teoria psicanalítica 3. Luto 4. Relações de
objeto 5. Ogden, Thomas H. I. Título.
RC504
FOLHA DE APROVAÇÃO
Camila Lousana Pavanelli
Dissertação apresentada ao Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo para
obtenção do título de Mestre em Psicologia.
Área de concentração: Problemas teóricos em
Psicologia
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. __________________________________________________________________
Instituição: _____________________________ Assinatura: ______________________
Prof. __________________________________________________________________
Instituição: _____________________________ Assinatura: ______________________
Prof. __________________________________________________________________
Instituição: _____________________________ Assinatura: ______________________
AGRADECIMENTOS
Esta pesquisa – do primeiro parágrafo que escrevi sobre o tema até o ponto final –
compreendeu um período de mais de três anos em minha vida. Este foi um período de grande
crescimento e aprendizado para mim, do qual participaram muitas pessoas. Gostaria de
utilizar este espaço para deixar registrada minha gratidão a algumas delas.
Luís Claudio Figueiredo e os colegas do grupo de orientação acolheram-me com oks
tranqüilizadores e críticas incisivas que me ensinaram o significado da palavra orientar. A
eles vieram se somar Ana Maria Loffredo e Daniel Delouya, cujas leituras cuidadosas
ajudaram-me a vislumbrar novos caminhos para este trabalho.
Maria Cristina Rocha e Joana Tarraf – cujos nomes representam aqui os pacientes que tive
e tenho a oportunidade de atender – ensinaram-me e ensinam-me, junto destes, a trabalhar.
André De Martini ensinou-me a namorar.
Isabel Botter ensina-me diariamente a compartilhar.
Olivio Pavanelli Filho, Eulália Balthazar Lousana, Greyce Lousana e Conceição
Accetturi ensinam-me, pelo cuidado que têm comigo, a cuidar.
Agar Balthazar Lousana Pavanelli ensina-me a conviver com a dor.
A todos, meu muito obrigada.
***
A autora agradece também à CAPES pelo apoio material e financeiro que permitiu a
concretização deste trabalho.
RESUMO
PAVANELLI, Camila Lousana. A teoria como objeto interno do analista e seus destinos
na clínica: luto e melancolia como metáfora. 2007. 139 p. Dissertação (Mestrado) –
Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
As relações que se estabelecem entre teorias e práticas na clínica psicanalítica não costumam
ser abordadas explicitamente nos escritos teóricos de psicanalistas; necessariamente, porém,
elas subjazem às suas práticas e discursos. O presente trabalho propõe-se a investigar a
complexidade inerente a essas relações, que a nosso ver não se restringem a uma concepção
bidirecional e causal. Para tanto, recorremos a conceitos da epistemologia e,
fundamentalmente, da própria psicanálise. O texto “Uma nova leitura das origens da teoria
das relações de objeto” de Ogden permitiu-nos pensar as teorias como objetos passíveis de
sofrerem investimentos libidinais: uma vez perdidas, exigirão do analista um trabalho de luto.
Consideramos que essa perda ocorre quando a teoria deixa de responder às exigências da
clínica, isto é, quando deixa de amparar o analista em seu contato com os pacientes. Luto e
melancolia, assim, serviram-nos como metáfora para investigar os modos pelos quais as
teorias se fazem presentes no analista e, conseqüentemente, na clínica, pois engendram
objetos internos distintos. Se o analista faz o luto da teoria, ela é incorporada a seu
conhecimento subsidiário, provendo as bases para um encontro traumático com os pacientes e
com novas teorias. Se, por outro lado, esse luto não pode ser elaborado, a teoria fica então
cristalizada no conhecimento subsidiário do analista, impedindo a clínica de irromper em sua
dimensão traumática de alteridade.
Palavras-chave: Psicanálise; Teoria psicanalítica; Luto; Relações de objeto; Ogden, Thomas
H.
ABSTRACT
PAVANELLI, Camila Lousana. Theory as the analyst’s internal object and its vicissitudes
in the clinical situation: mourning and melancholia as metaphor. 2007. 139 p.
Dissertation (Master’s Degree) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2007.
Relationships established between theories and practices in the psychoanalytic clinical
situation are not usually explicitly examined in the theoretical writings of psychoanalysts;
such relationships, however, are necessarily implicit to their practices and discourses. The
present work intends to investigate the complexities inherent to these relationships, which in
our view are not limited to a causal and bidirectional conception. In order to do so, we have
referred to concepts from epistemology and, most fundamentally, psychoanalysis itself.
Ogden’s “A new reading of the origins of object relations theory” has allowed us the
consideration of theories as objects liable to receive libidinal cathexes, so that once they are
lost, they will need to be mourned by the analyst. Such a loss occurs once the theory stops
responding to clinical demands, that is, once it stops supporting the analyst in his contact with
patients. Mourning and melancholia have thus served us as a metaphor to investigate the ways
in which theories become present in the analyst and, consequently, in the clinical situation, for
they engender different internal objects. If the analyst mourns the loss of the theory, it gets
incorporated into his subsidiary knowledge, providing thus the bases for traumatic encounters
with patients and new theories. If, on the other hand, the analyst cannot mourn, the theory gets
then rigidly fixed into the analyst’s subsidiary knowledge, therefore preventing the clinical
situation to come forward in its full traumatic otherness.
Keywords: Psychoanalysis; Psychoanalytic theory; Mourning; Object relations; Ogden,
Thomas H.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................................8
CAPÍTULO 1 – Contextualizando o problema a partir de Figueiredo.....................................18
CAPÍTULO 2 – Algumas Considerações de Ordem Semântica e Metodológica....................32
CAPÍTULO 3 – Comentário sobre “Uma nova leitura das origens da teoria das relações de
objeto”, de Thomas Ogden.............................................................................47
3.1.........................................................................................................................................53
3.2.........................................................................................................................................70
3.3.........................................................................................................................................79
3.4.........................................................................................................................................95
3.5.......................................................................................................................................106
CAPÍTULO 4 – Sobre as Relações Transferenciais do Analista com as Teorias..................120
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................130
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................135
8
INTRODUÇÃO
Ao me imaginar escrevendo a introdução desta pesquisa, deparei-me com dificuldades
diferentes das habituais, dentre as quais se destaca a sempre renovada angústia diante da tela
em branco. Diante de tantos textos lidos, e alguns outros por mim escritos – por qual
começar? A quem citar? Meu projeto de iniciação científica era aberto por uma citação de
peso, um verbete do Vocabulário da Psicanálise – modo de iniciar um texto que, se peca pela
falta de originalidade, ao menos já transmite ao leitor, de cara, uma impressão de que “não
estou aqui para brincadeira”.
Mas, e desta vez? A qual autor deveria a introdução inicialmente se reportar, numa
citação ao mesmo tempo significativa e ilustrativa da relevância da pesquisa e de meu
envolvimento com ela?
Então, enquanto lia mais um texto sobre o meu tema, meio distraída (pois que com boa
parte de minha atenção voltada para o texto que eu haveria de escrever), tive a felicidade de
perceber o óbvio: não faria sentido algum começar esta introdução citando quem quer que
fosse. Se já acredito, por princípio, que toda pesquisa tem por base um interesse pessoal, nesta
isso se dá de forma muito explícita. Não posso nem disfarçar dizendo que a questão desta
pesquisa me foi suscitada por leituras aqui e ali. Seria falso – as leituras, os estudos mais ou
menos sistemáticos, com textos enviados ao orientador quinzenalmente, vieram depois. De
início, veio uma grande estupefação diante de experiências contraditórias que tive ao longo de
minha formação, e que serão aqui representadas de forma paradigmática por duas delas.
***
Somente alguns dias depois de escrever o parágrafo acima é que me dei conta do
tamanho da cisão entre teoria e prática que ele pressupõe e engendra, questão tão cara à minha
pesquisa: “primeiro, veio o fazer puro e simples (prática); depois, o pensar sobre ele (teoria)”.
Precisei reler os textos que escrevi para constatar que essa cisão simplesmente não existiu:
desde o começo, li e fiz referência, em meus textos, a autores que muito me ajudaram em meu
esforço de configurar a minha angústia.
9
O que se verifica ao longo da minha trajetória nesta pesquisa é que, de início,
predominaram reflexões sobre a minha experiência, enquanto que posteriormente me dediquei
prioritariamente ao estudo de textos relativos a experiências alheias (relatos de casos clínicos)
e textos específicos sobre a questão das relações possíveis e desejáveis entre teoria e prática
na clínica psicanalítica. Tal mudança não ocorreu, porém, de forma linear e nem pode ser
chamada de evolução, visto que houve idas e vindas entre esses dois tipos de estudo (um mais
pessoal e introspectivo, outro mais teórico e objetivo). Mesmo assim, ainda é de um processo
que estamos falando, pois a partir de um olhar retrospectivo é possível observar (ou seria
construir?) uma certa continuidade entre os textos que escrevi. Todos, afinal, tocam na
questão da experiência clínica – o que é, como se constitui etc. –, seja do ponto de vista da
supervisionanda, da terapeuta iniciante ou da pesquisadora idem.
A necessidade e o desejo desta pesquisa, portanto, foram se constituindo a partir de
uma interação complexa entre as formas de teoria e prática que vivenciei (e não, como eu
havia sugerido anteriormente, a partir de um dilema puramente prático). E é justamente a essa
interação complexa que esta pesquisa pretende se dedicar, embora não no contexto de que
estivemos tratando até aqui (as motivações de um pesquisador em seu trabalho). Pretendo
pesquisar as interações que se dão entre os âmbitos da teoria e da prática no contexto
específico de um atendimento clínico psicanalítico.
***
Por que, então, incluir o parágrafo “errôneo” previamente analisado no texto
definitivo? Decidi mantê-lo porque o considerei altamente representativo de uma concepção
sobre as relações entre teoria e prática que circula pelo curso de graduação em psicologia da
USP. Mais que isso, ele faz bastante justiça à força dessa concepção. Afinal, como é possível,
depois de tanto tempo me dedicando ao estudo desse tema, “deixar passar”, logo na
introdução da pesquisa, uma concepção tão unidirecional da relação que se estabelece entre
teoria e prática? Creio que a emergência dessa concepção simplista em meu texto, mesmo
depois de tanto estudo, tem muito a dizer.
Diz, em primeiro lugar, que tais concepções estão sempre implícitas no discurso. Esse
não é um tema diretamente abordado durante aulas ou supervisões, mas está sempre
necessariamente pressuposto em ambas (assim como em meu já citado parágrafo).
10
Diz também que o que se escreve ou se propaga em alto e bom som a respeito dessas
concepções nem sempre corresponde àquilo que efetivamente se faz (haja vista minha
constatação posterior de que não houve cisão entre prática e pesquisa teórica ao longo de
meus estudos). Isso porque nem sempre estamos plenamente conscientes do que nosso fazer
implica, ou dos nossos pressupostos. Assim, muitas vezes, aquilo que é dito explicitamente
sobre essas concepções (até em nome do politicamente correto, eventualmente) não se
coaduna com o que é transmitido implicitamente durante as aulas e supervisões. Dessa
constatação adveio uma importante opção para o método desta pesquisa: escolhi estudar
textos que não abordam diretamente o assunto, além daqueles que explicitamente o fazem,
para poder depreender dos primeiros as relações entre teoria e prática subjacentes.
Mas o que aquele parágrafo revela, acima de tudo, é o enraizamento de uma
dissociação extrema entre teoria e prática em nós. A única novidade que ele expressa com
relação ao senso-comum é a inversão da ordem de causalidade normalmente atribuída a essas
duas dimensões da experiência. Ordinariamente, pensa-se que a teoria é criada nos recônditos
da mente do cientista para explicar o que acontece no mundo e, a partir daí, orientar nossa
prática (entendida aqui num sentido amplo, como ação no e sobre o mundo). No curso de
graduação em psicologia, o máximo a que conseguimos chegar é a uma inversão do aforismo
do senso-comum: a prática é que determina a teoria. “Freud foi remodelando suas teorias por
conta do que vinha acontecendo na clínica” – e ponto final. Essa concepção, que imbui um
pensamento aparentemente mais sutil, no fundo é tão simplista quanto a do senso comum,
pois a linearidade do processo é mantida: grosso modo, uma coisa leva a outra. Ambas as
concepções, fundamentalmente, não dão conta da complexidade do que está em jogo.
Creio que temos agora um bom gancho para eu começar a contar algo das duas
experiências contraditórias que mencionei no início do texto. Afinal, cada uma delas trazia
imbuída em si uma dessas concepções – que constituem, naturalmente, simplificações toscas
do racionalismo cartesiano e do empirismo inglês. Essas simplificações, freqüentes quando da
transposição de conceitos de uma disciplina para outra, são ainda mais grosseiras no presente
caso, em que concepções epistemológicas são rapidamente assimiladas e propagadas por
correntes da psicologia e da psicanálise.
Isso que já era tosco, apresentei de maneira mais tosca ainda nesta introdução. Decidi
assumir o risco de, ao menos inicialmente, incorrer em reducionismo em prol da clareza,
destacando o essencial das duas concepções para melhor compará-las; ao longo da introdução,
porém, pretendo esclarecer melhor as sutilezas de cada uma delas.
11
Em primeiro lugar, gostaria de deixar registrada minha gratidão a essas duas
experiências. A elas devo parte da experiência clínica que adquiri até agora e,
fundamentalmente, minha iniciação em questões que terei de elaborar por toda a vida. Como a
que relatarei agora.
A primeira experiência foi um estágio que teve início quando eu estava no terceiro ano
do curso. Ele consistia na participação em um projeto de pesquisa e extensão que oferecia
atenção psicológica em uma instituição pública via plantão psicológico. Nele estagiei durante
dois anos, como plantonista e pesquisadora, atendendo em esquema de plantão e sendo
supervisionada semanalmente.
Não é meu objetivo, aqui, relatar em profundidade o que essa experiência significou
para mim. Pretendo falar apenas sobre a dimensão da experiência que se refere diretamente a
esta pesquisa: a relação pressuposta entre teoria e prática nos atendimentos clínicos. Não por
acaso, tratarei principalmente das supervisões, pois foi nelas que tais relações se deixaram
entrever (tal como muitas vezes acontece nos relatos de casos clínicos).
Nesses dois anos em que participei do projeto e estive associada ao laboratório ao qual
o projeto se vinculava, fui solicitada a ler apenas um texto, do filósofo Michel Serres. Essa
solicitação ocorreu logo que fui admitida, juntamente com outros alunos, à equipe de
estagiários do laboratório. Nunca mais o reli, e nem cabe aqui tecer comentários sobre ele;
mais importante, creio, é relembrar alguns aspectos da discussão em grupo que se seguiu à sua
leitura. Um dos primeiros pontos discutidos foi o próprio fato de nós, recém-chegados ao
laboratório ao qual o projeto de extensão se vinculava, termos sido convidados a ler um texto
de filosofia e assistir a dois filmes, em vez de termos sido instruídos a ler e estudar um texto
qualquer da área psi. O objetivo era, justamente, enfatizar a importância de nos mantermos
abertos à experiência durante os plantões, algo que texto algum de psicologia poderia nos
ajudar a fazer – podendo até, inclusive, nos atrapalhar nessa empreitada. Tanto o texto quanto
os filmes retratavam situações de encontro radical com um outro desconhecido, estranho,
estrangeiro. Esse encontro era um se atirar no mar de braços abertos – sem saber nadar e sem
bóia salva-vidas. Tínhamos de partir para a experiência dotados daquilo de que já
dispúnhamos – nossa sensibilidade, disponibilidade, história de vida – e pôr tudo o que de
teoria havíamos aprendido no curso até então entre parênteses ou em suspensão, por assim
dizer. Só assim um real contato com a alteridade seria possível. Esse contato seria
inevitavelmente uma experiência transformadora, da qual sairíamos marcados, tatuados
12
mesmo – mas, em momento algum, nos confundiríamos com o estrangeiro a ponto de nos
convertermos nele.
Bem, essa parecia ser a proposta. Saí da discussão com uma mistura de pensamentos e
sensações. Em primeiro lugar, veio a dúvida de saber se eu seria realmente capaz de me
manter “aberta à experiência e ao encontro com o outro” (o que me parecia quase uma
questão de crença
1
); depois, um questionamento sobre a real utilidade de tudo o que eu havia
aprendido no curso até então; e, certamente o mais importante de tudo na época, uma grande
vontade de atender pela primeira vez.
Relatarei agora algumas características das supervisões, tendo como pano de fundo o
segundo pensamento-sensação que mencionei acima. Elas aconteciam semanalmente, e em
grupo.
As teorias, quaisquer que fossem, pareciam ser vistas como escudos que, se vestidos a
priori, impediriam um real contato com a experiência. Parecia, assim, haver um caminho
claro a ser traçado: primeiro, que venha a experiência! – depois, teorias, as mais diversas.
Tanto que as supervisões eram vistas como um espaço privilegiado para as elaborações
teóricas. Nunca houve teorias prontas às quais remeter os atendimentos: o que contava era o
olhar fenomenológico dispensado a eles. Freqüentemente, fazia-se menção a pensadores da
fenomenologia (principalmente Heidegger) frente a algumas experiências que relatávamos,
mas era só. Nunca ouvi, em supervisão, a menor insinuação de que tal intervenção teria sido
correta em contraposição a uma outra que teria sido errada – pois, dentre outros motivos, não
havia nenhuma teoria já dada para servir de modelo prévio e critério de julgamento. Nas
supervisões, eu ouvia sugestões de intervenções e, principalmente, muitos questionamentos.
Mais importante que decretar se tal ou qual intervenção havia sido correta e / ou bem-
sucedida, era averiguar o porquê de eu ter tomado tal decisão naquele momento e naquela
relação específica.
As primeiras perguntas que eu ouvia na supervisão geralmente se referiam à percepção
que eu tinha de mim mesma durante os atendimentos – bem ao estilo de Clarice Lispector, os
fatos importavam menos do que a repercussão que eles tinham sobre mim. Toda vez que eu
me armava com um seqüencial de fatos, mais cedo ou mais tarde era sempre trazida de volta a
mim mesma, à minha experiência: o que eu havia sentido quando tais fatos me haviam sido
1
A fé em que o encontro com um outro é possível indubitavelmente constitui condição necessária para que o
encontro se dê efetivamente. Naquele momento, porém, esta fé me pareceu, segundo as concepções daquele
laboratório, condição não só necessária como suficiente para o estabelecimento de uma relação terapêutica –
convertendo-se, assim, em crença.
13
relatados durante o atendimento; o que mais me havia chamado a atenção neles etc. Uma
grande lição que aprendi nessas supervisões foi justamente a importância da auto-observação
durante um atendimento.
Creio que, com o que esbocei até agora, pude dar ao leitor uma idéia geral de como eu
vivenciava a supervisão, e do uso que ela fazia de teorias psicológicas (isto é, nenhum). Além
disso, cabe aqui uma ressalva muito importante. A idéia de que a supervisão era um espaço
privilegiado para a construção de teorias jamais deixou de ser exatamente isso: apenas uma
idéia. Jamais construímos teorias. Tomando por base a Escala de Waelder
2
, chegamos no
máximo até o terceiro nível de elaboração teórica – o nível das generalizações clínicas sobre
um grupo determinado. Nunca passamos ao quarto nível, da teoria clínica. E isso não por
incompetência nossa – mas porque, de fato, a proposta não era essa (embora tal fosse a
proposta propagada!). Havia claramente uma discrepância entre o que era pressuposto e o que
era explicitamente dito. O que se fazia, em supervisão, não era teoria, mas uma reflexão sobre
a experiência. Não se tratava pura e simplesmente, portanto, de percorrer um caminho cujo
início estava na prática e cujo término repousava na teoria. Isso é o que era comunicado de
forma mais ou menos explícita; no fundo, entretanto, creio que havia uma tentativa de
integração dessas duas dimensões. Uma discussão dessa tentativa será iniciada mais adiante
(p. 28-29).
Antes de passar para a segunda experiência, cabe ainda comentar um outro aspecto da
minha passagem por esse estágio, referente à dimensão social da prática e pesquisa em
psicologia: a fama que os alunos integrados aos projetos do laboratório em questão adquiriam
pelos corredores da Psico. Por um lado, esses alunos eram vistos como gente descolada,
bacana, que curtia filosofia, que lia Heidegger... Por outro, podiam ser vistos, também, como
gente vagal, desleixada, que não estava a fim de estudar e que encontrava na fenomenologia
existencial a justificativa perfeita para seu pouco interesse por longos e cansativos estudos
teóricos (dado que “estudar mais atrapalha que ajuda” e que “o que importa mesmo é partir de
corpo e alma pra experiência”).
Passemos à outra experiência. Essa teve início no quarto ano, e consistiu no meu
percurso por uma disciplina da graduação, voltada ao atendimento clínico. A disciplina
caracterizou-se por um primeiro semestre predominantemente teórico e um segundo semestre
mais explicitamente voltado para a clínica. Num primeiro momento, assistimos a aulas e
2
Escala que classifica os diferentes níveis de teorização psicanalítica em ordem crescente de abstração (SMITH,
2003, p. 2) – ver p. 32-33 do presente trabalho.
14
participamos de grupos de estudos teóricos, para num segundo momento começar a atender.
Muitos alunos, inclusive, cursavam essa disciplina exatamente por essa característica: diziam
não se sentir preparados para atender antes de adquirirem uma sólida formação teórica para
tal, e depositavam nesse semestre de estudos a esperança de que essa preparação lhes fosse
oferecida.
Essa esperança dos alunos encontrava apoio na fala da própria supervisora da
disciplina. De fato, ela nos deixou cientes desde o início de que só nos confiaria pacientes
quando se sentisse segura de que dominávamos alguns conceitos básicos da psicanálise de
orientação lacaniana. Só éramos autorizados a atender depois de passar por uma espécie de
ritual de iniciação, em que apresentávamos aos colegas do grupo de supervisão algum texto
clínico previamente escolhido. Se tudo transcorria bem (e sempre transcorreu), éramos
declarados não mais simples alunos, mas clínicos em formação – e recebíamos o primeiro
encaminhamento.
No segundo semestre, portanto, passei a atender um paciente duas vezes por semana,
sendo supervisionada uma vez por semana individualmente. Além dos atendimentos e
supervisões, os estudos teóricos prosseguiram, e a eles se somaram apresentações de casos por
ex-alunos (e, posteriormente, pelos próprios alunos que estavam cursando a disciplina naquele
semestre, conforme nossos atendimentos iam evoluindo). Tal foi, em linhas gerais, a estrutura
dessa trajetória.
Como deve ter ficado óbvio para o leitor, o caminho a ser seguido, nesse caso, parecia
ser o oposto do que eu verificara no projeto de pesquisa e extensão: primeiro, é preciso
aprender bem a teoria, para só depois nos lançarmos às aventuras e agruras da prática. Se, no
primeiro caso, era necessário colocar a teoria entre parênteses, nessa segunda experiência se
recomendava destacá-la em negrito.
Passemos agora a algumas características da supervisão, no que diz respeito aos
pressupostos sobre a relação entre teoria e prática estabelecida nos atendimentos. Creio que,
também aqui, se tornarão óbvias para o leitor as diferenças entre essa supervisão e a que me
era oferecida no projeto.
As intervenções relatadas passavam por um julgamento de valor, isto é, eram
consideradas certas ou erradas, tendo como critério a teoria que supostamente as embasava
(supostamente porque, embora fosse essa a proposta, eu não sentia que conseguia orientar
minha escuta e intervenções clínicas por uma teoria qualquer – quanto mais uma que me era
15
praticamente desconhecida). Quando eu apresentava alguma dúvida sobre como pensar ou
intervir sobre uma situação, me era recomendada a leitura de um texto sobre o assunto.
Quando eu apresentava alguma angústia maior, era instruída a levá-la para a minha análise
(que, por sinal, eu não fazia, na época). Um dia, esqueci de levar as anotações que eu havia
feito sobre a sessão que eu vinha relatar. Fui instruída a fazer uma pesquisa sobre ato falho.
Quando minhas intervenções
3
eram consideradas equivocadas, a supervisora me
explicava o porquê, baseada em algum aspecto da teoria, e dizia qual outra intervenção teria
sido correta. Quando minhas intervenções eram consideradas corretas, a supervisora conferia
se o que eu fizera possuía algum embasamento teórico: eu era questionada sobre os motivos
de minhas falas e silêncios em momentos específicos da sessão. Eu tentava encontrar alguma
justificativa ali, no momento mesmo da supervisão: não se tratava de embasamento, portanto,
mas de cobertura. Eu até podia justificar minhas ações teoricamente, mas não podia
honestamente admitir para mim mesma que elas houvessem sido motivadas por preocupações
teóricas. Muitas vezes, porém, nem essa justificação a posteriori eu encontrava para minhas
intervenções. Era-me explicado então algum aspecto da teoria e eu entendia, logicamente, o
porquê de tal intervenção ter sido considerada correta.
Lembro que na primeira supervisão, acostumada ao supervisor do projeto de extensão
e ao pessoal do laboratório, fui logo falando sobre as sensações que o paciente me havia
provocado... Qual não foi minha surpresa quando fui questionada sobre suas palavras exatas, e
sobre as minhas – concreta e objetivamente. Dei-me conta de que não sabia. Nessa
supervisão, aprendi a dar o devido valor às palavras utilizadas – tanto as que proferimos
quanto as que escutamos.
Antes de finalizar o relato sobre essa experiência, creio ser importante deixar
registrado que não se verificava, aqui, a discrepância que percebi com relação ao outro projeto
entre o que era pressuposto e o que era explicitamente dito. Aqui, os pressupostos eram
explicitados, e agia-se absolutamente de acordo com eles. Era-nos transmitida a importância
de conhecermos bem alguns aspectos da teoria (notadamente, a transferência e seu manejo)
para começarmos a atender, e o curso foi pensado para atender exatamente a essa demanda:
passávamos alguns meses nos dedicando ao estudo desses aspectos vistos como necessários
para o atendimento.
3
Intervenção, aqui, é sinônimo de fala ou, mais raramente, silêncio. Nessa disciplina, portanto, a intervenção era
definida como o uso que se faz da linguagem verbal.
16
Por fim, um comentário sobre a já mencionada dimensão social da prática e pesquisa
em psicologia. Não por acaso, creio, os alunos que cursavam essa disciplina acabavam com
uma fama praticamente oposta à dos alunos vinculados ao laboratório em que estagiei. Se, por
um lado, eram vistos como gente responsável, séria, dedicada, estudiosa, também eram vistos
como CDFs, nerds que não tinham coragem de atender e que queriam continuar se refugiando
em aulinhas por mais um semestre.
Muito bem – mas e eu nisso tudo? Honestamente, não me considerava nem vagal, nem
CDF... Não eram apenas os rótulos que não me cabiam: também não me satisfaziam os
caminhos propostos, aparentemente simples, mas efetivamente intransitáveis. Eu não
conseguia me situar nessas tentadoras vias régias que me levariam, de uma vez por todas, ora
da prática à teoria, ora da teoria à prática. O que me parecia mais problemático nesses
caminhos é que, tendo-se bem estabelecido o ponto de partida (pólo da prática ou da teoria),
era quase que dado por garantido que o outro pólo seria alcançado.
Explico: uma vez bem estabelecido o pólo da prática (isto é, uma vez estabelecido um
“real contato com o outro”), parece que daí, quase que por si só, surgiriam teorias
4
. Partindo-
se, por sua vez, do pólo da teoria (isto é, adquirindo-se um profundo conhecimento sobre o
conceito de transferência e seu manejo técnico, por exemplo), o pólo da prática (da boa
prática, bem entendido) seria atingido pela aplicação do conhecimento aprendido. Claro está
que essa aplicação nada tem de simples: para efetuá-la seria preciso abstrair do caos
perturbador que é a vida aqueles elementos formais que são estruturais e se repetem. Mas,
com um pouco de inteligência, muito estudo e muita prática, essa aplicação se tornaria
possível.
Eu tinha de um lado, portanto, o primado da prática; de outro, o primado da teoria.
Nos dois casos, o outro pólo da relação entre teoria e prática aparecia como mera
conseqüência do estabelecimento desse primado: uma boa teoria é conseqüência de uma boa
prática; uma boa prática, conseqüência de uma boa teoria. Haveria outros caminhos possíveis
para se pensar a relação entre teoria e prática na clínica – caminhos passíveis de trânsito, que
não exigissem saltos olímpicos de um pólo a outro?
Comecei, então, a entrar em contato com textos que tratavam diretamente desse
assunto. O primeiro e mais importante deles foi “Teorias e práticas na psicologia clínica: um
4
Já vimos, no entanto, que essa era apenas a proposta explícita do laboratório no qual estagiei, diferente de seus
pressupostos.
17
esforço de interpretação”, de Luís Claudio Figueiredo ([1996a] 2004a). Prosseguirei agora
com um breve resumo e comentário deste texto.
18
CAPÍTULO 1 – Contextualizando o problema a partir de Figueiredo
Nas Considerações Preliminares de “Teorias e práticas na psicologia clínica: um
esforço de interpretação” (FIGUEIREDO, [1996a] 2004a), o autor afirma que uma concepção
bidirecional e causal das relações entre teorias e práticas é insustentável qualquer que seja a
direção pretendida: não só não existe uma psicologia básica cujos conhecimentos teóricos
deveriam ser convertidos em técnicas a serem utilizadas numa psicologia aplicada, como
também não se pode afirmar simplesmente que as práticas dão origem às teorias.
Para propor uma outra possibilidade de compreensão dessas relações, mais condizente
com o que de fato ocorre na prática clínica e nas elaborações teóricas dos psicólogos clínicos
e psicanalistas
5
, o autor introduz dois pares de conceitos cunhados pelo epistemólogo Polanyi,
destinados a elucidar diferentes tipos de conhecimento e modos de conhecer. Vale assinalar
que esses conceitos só podem ser compreendidos enquanto pares, isto é, os termos do par não
existem por si só, mas apenas na relação que estabelecem um com o outro. O primeiro deles é
o par conhecimento tácito (pessoal) e conhecimento explícito (representacional ou teórico).
O conhecimento tácito é aquele que está “[...] incorporado às capacidades afetivas,
cognitivas, motoras e verbais de um sujeito [...]” (FIGUEIREDO, [1996a] 2004a, p. 116, grifo
nosso). A própria referência ao termo incorporação pretende designar que a principal
característica desse tipo de conhecimento é o fato de ele ser pré-reflexivo, ou seja, é um
conhecimento entranhado no corpo, e por isso anterior a qualquer possibilidade de se pensar
sobre ele e capturá-lo numa representação. Quando se tenta fazê-lo, aliás, o conhecimento
deixa de ser tácito e passa a ser explícito, perdendo sua função de sustentação da experiência.
Para transmitir a idéia de conhecimento tácito, aliás, nada melhor do que um exemplo,
por ser esse conhecimento tão avesso às objetivações. É o que autor faz: ele descreve uma
série de habilidades de uma pianista, das quais depende a execução de uma peça musical. As
habilidades da artista (a sincronia entre seus dedos com o que lê na partitura e o que ouve, por
exemplo) são o que garante a possibilidade de ela produzir música. Para a música se fazer
ouvida, no entanto, suas habilidades devem ser silenciadas e se fazer despercebidas – para o
5
No texto “Teorias e práticas [...]” ([1996a] 2004a), Figueiredo tem em vista tanto psicanalistas quanto
psicólogos clínicos. Em um texto subseqüente (2000), porém, o autor dará continuidade à investigação das
relações entre teoria e prática apenas do ponto de vista da psicanálise. Quando o autor se refere a psicólogos
clínicos neste texto inicial, devemos considerar como tais os psicólogos que supõem a existência de uma
subjetividade (e não apenas comportamentos) nos seres humanos (FIGUEIREDO, comunicação pessoal).
19
público tanto quanto para ela mesma. Quanto mais suas habilidades formarem uma unidade
com seu corpo, mais a música poderá ser ouvida. Se essa unidade se romper e qualquer das
habilidades até então silenciadas virar objeto de atenção da pianista (se, por exemplo,
determinado compasso exigir uma agilidade de seus dedos a que ela não está devidamente
preparada e que a faça voltar sua atenção para o manejo técnico daquele trecho), então aquilo
que deveria ser conhecimento tácito passa a ser conhecimento explícito – e, nesse caso, a
música se perde. Isso, bem entendido, independe de a execução do dito compasso ter sido
tecnicamente bem-sucedida ou não – o que importa é que, naquele momento, a música deixou
de estar em foco. Deixou-se de fazer música e passou-se a produzir uma execução técnica.
Como se dá, então, a incorporação dessas habilidades – ou seja, sua assimilação a um
conhecimento tácito? No exemplo acima, a incorporação e o silenciamento das habilidades
intrínsecas à possibilidade de se fazer música dependem fundamentalmente da experiência da
pianista, de seu treino – mais do que qualquer aula ou estudo teórico que ela possa vir a ter.
Por treino, no entanto, não se deve entender apenas e necessariamente a repetição mecânica e
maciça de um determinado exercício para se apreender uma dada habilidade, pois a relação
entre treino e apreensão nunca é direta e exata. O fundamental é que a incorporação e o
silenciamento das habilidades acima referidas só ocorrem a partir da experiência da pianista
com a música, tanto como intérprete quanto como ouvinte.
Com o psicólogo clínico e o psicanalista acontece algo semelhante. Um psicólogo ou
psicanalista não se torna necessariamente mais preparado na mesma proporção em que
aumenta sua clientela, assim como uma pianista que passa oito horas por dia ao piano não será
necessariamente melhor musicista do que quando passava apenas quatro ou nenhuma. Mas,
assim como é somente por meio do contato com a música que a pianista poderá adquirir os
conhecimentos tácitos necessários à sua prática, também para o psicólogo clínico e o
psicanalista se faz necessário o contato com a subjetividade humana para o desenvolvimento
do conhecimento tácito necessário à clínica. É de se fazer notar que esse conhecimento tácito,
portanto, vai muito além daquilo que ele viveu enquanto terapeuta e paciente: esse
conhecimento se desenvolve contínua e progressivamente a partir de todas as suas relações
intersubjetivas. Estas incluem, por exemplo, suas relações com formas de expressão
privilegiadas da subjetividade humana (artísticas, científicas, religiosas etc.).
O conhecimento explícito, por sua vez, é “[...] o conhecimento que se torna disponível
na forma de sistemas de representação, como é o caso de uma teoria [...]” (FIGUEIREDO,
[1996a] 2004a, p. 117). O autor entende teoria como um sistema de representação “[...] onde
20
já se instalou o fosso entre sujeito e objetos” ([1996a] 2004a, p. 117) – ao contrário do que
ocorre no conhecimento tácito, em que objeto e sujeito do conhecimento são uma só e a
mesma coisa (vimos, no exemplo, que as habilidades se entranham no corpo da pianista).
Assim, toda teoria está necessariamente a uma certa distância da realidade, visando a alcançar
um conhecimento objetivo sobre ela – por mais que se reporte à experiência, a teoria se
distancia de seus objetos na medida em que utiliza representações. É claro que o tipo de
representação utilizada faz toda a diferença: o distanciamento da realidade é um, quando a
teoria elege as fórmulas matemáticas como representações últimas da realidade; é outro,
quando se serve predominantemente de narrativas.
***
A própria idéia de supervisão já pressupõe uma valorização desse distanciamento da
experiência (FIGUEIREDO, comunicação pessoal). Mesmo numa abordagem clínica que
postula justamente a abolição de teorias pré-fabricadas, por considerar que elas mais
atravancam do que auxiliam o contato com o outro, quando se estrutura um espaço de
supervisão está-se instituindo um distanciamento entre sujeito e objeto, pois as falas do
supervisor ou dos colegas de supervisão se dão a posteriori. Isso, que parece óbvio, perde um
pouco de sua obviedade se pensarmos que essas abordagens que valorizam a experiência
geralmente não admitem a “intromissão” de um pensamento representacional na clínica;
querendo ou não, isso acontece na supervisão (e, do ponto de vista do autor, é bom que
aconteça).
Passemos agora ao segundo par de conceitos, que estabelece interessantes relações
com o primeiro: trata-se do par de opostos conhecimento focal e conhecimento subsidiário. O
conhecimento focal, como o próprio nome já diz, é aquele que está centrado sobre aspectos
particulares e definidos do objeto. Foco implica nitidez; mas ao centrar o foco num objeto
específico para observá-lo com nitidez, muitas outras coisas necessariamente ficam nebulosas.
E essa nebulosidade não é ruim nem deve ser combatida; ao contrário, é esse baralhamento do
fundo que permite que se distinga a figura com nitidez.
Prosseguindo nessa metáfora, assim como não existe percepção de um objeto “solto no
espaço”, sem nenhum tipo de enquadramento, também no plano do conhecimento não existe
conhecimento de um objeto descontextualizado. É aí que entra o conhecimento subsidiário: é
21
o contexto (“apreensão não temática de partes do mundo”, nas palavras de Figueiredo,
[1996a] 2004a, p. 118) a partir do qual se pode apreender focalmente determinado objeto.
Nesse conhecimento às margens da consciência entra todo o tipo de apreensão não-temática
que realizamos: desde a percepção de nosso corpo até todos os registros culturais que
possuímos
6
, passando pela dimensão ética dos conhecimentos. E, segundo o autor, é preciso
levar realmente a sério a idéia de que sempre haverá aspectos do conhecimento que serão
resistentes à representação (é o que ocorre com o conhecimento subsidiário, tal qual o
conhecimento tácito): já vimos que um objeto jamais poderá ser apreendido, seja pela
percepção seja pelo conhecimento, desprovido de um fundo que lhe garanta um significado. É
claro que sempre é possível eleger algum aspecto do conhecimento subsidiário para
focalização; quando isso é feito, porém, esse conhecimento imediatamente deixa de ter
estatuto de fundo e se converte em objeto focal momentaneamente. O fundo, porém, não
deixa de existir – apenas passa a ser ocupado por outros objetos.
Coerentemente com essa concepção, o psicólogo fará intervenções que, embora
devendo ser justificadas do ponto de vista teórico, serão motivadas primordialmente por esta
dimensão ética subsidiária. Isso nos remete, enfim, à relação entre o par conhecimento focal /
conhecimento subsidiário e os sistemas representacionais (conhecimento explícito).
Ao estudar qualquer teoria, eventualmente elegeremos um objeto para consideração
focal – por exemplo, o conceito de posição esquizo-paranóide na teoria kleiniana. Quando o
fazemos, porém, estamos ao mesmo tempo nos remetendo a todo o conjunto desse sistema
representacional (e, se formos rigorosos, também ao sistema freudiano). Ou seja: os objetos,
além de nunca poderem ser apreendidos de forma descontextualizada, não existem
independentemente do modo como foram produzidos (os resultados de uma pesquisa,
portanto, só podem ser avaliados em sua relação com o método).
Ao considerar a apreensão de uma teoria, vimos que conhecimentos explícitos se
fazem presentes enquanto conhecimentos subsidiários, para que sejam possíveis apreensões
focais sobre aspectos particulares daquela teoria. Aquele conhecimento explícito, então,
tornou-se tácito?
6
Esse trajeto “do corpo até a cultura” pode dar a impressão errônea de que se está querendo dizer “desde aquilo
que me é mais próximo até aquilo que pertence à minha cultura, mas que praticamente não me diz respeito”,
quando basta lembrar que aspectos da cultura considerados distantes limitam nossa possibilidade de percepção
daquilo que nos é mais próximo (o corpo).
22
O conhecimento explícito ele mesmo só opera e só existe como
conhecimento se é também incorporado ao conhecimento subsidiário. A
compreensão de uma teoria não se confunde com a sua mera apreensão
focal. (FIGUEIREDO, [1996a] 2004a, p. 120).
Podemos assim responder afirmativamente a essa pergunta, pois temporariamente
silenciamos aquele conhecimento explícito para centrar o foco de nossa atenção em outras
coisas. A “vantagem” do conhecimento explícito (que é incorporado ao plano subsidiário)
sobre o conhecimento tácito, porém, é que posso trazê-lo novamente a um nível focal – e
submetê-lo a críticas e reflexão. O problema (podemos dizer, o risco) dessa passagem a um
nível subsidiário é que o conhecimento explícito seja incorporado de tal forma que esse
caminho de volta não seja possível: se um conhecimento explícito fica cristalizado nessa
dimensão subsidiária tácita, os objetos só poderão ser apreendidos a partir de um determinado
contexto. A apreensão de novos conhecimentos explícitos, portanto, também ficará
cristalizada e limitada a uma única forma.
Até aqui, viemos pensando as vicissitudes da apreensão de uma teoria. E quando nos
servimos dela na clínica?
***
A experiência pessoal é origem, destino e contexto de significação de toda teoria.
(FIGUEIREDO, [1996a] 2004a, p. 121)
Podemos nos servir de uma teoria de diversas formas – podemos, inclusive, inverter o
jogo inadvertidamente e fazer um paciente servir à sua comprovação.
Para Figueiredo ([1996a] 2004a), uma teoria só produz efeitos na clínica quando é
incorporada ao conhecimento subsidiário. Isso garante que o foco esteja no paciente, ou
melhor, nas idéias que ele evoca no psicólogo ou psicanalista. A teoria deve ser incorporada
ao fundo, para que nela as idéias sobre o paciente encontrem uma morada.
Nesse ponto do texto, o autor afirma:
[A] idéia de um conhecimento subsidiário [...] revela a dominância do
conhecimento tácito sobre o explícito e representacional. [...] A destinação
de todo conhecimento representacional é sua incorporação [...], mas o
23
sentido dos sistemas representacionais e discursos teóricos é dado pela
apreensão não temática que deles somos capazes (FIGUEIREDO, [1996a]
2004a, p. 120).
Ou seja, embora o conhecimento tácito preceda o conhecimento explícito
7
(é nesse
sentido, cremos, que o autor afirma sua dominância), ele não deve reinar soberano na
experiência clínica. Assim como não é possível (nem necessário) transpor o conhecimento
tácito integralmente para um nível representacional, é igualmente impossível incorporar uma
teoria totalmente – ou melhor, uma teoria será incorporada de acordo com as possibilidades
que lhe forem abertas pelos conhecimentos subsidiários. Porém, admitir que a transposição
completa de um domínio ao outro é impossível não significa que não se devam empreender
tentativas de explicitação do que se passa na clínica, pela própria natureza repetitiva e
conservadora do conhecimento tácito.
No fundo, afirmar a dominância do conhecimento tácito sobre o explícito e
representacional significa reconhecer a incidência do inconsciente no campo da
epistemologia. Com esses conceitos, Figueiredo afasta-se de uma “epistemologia forte”,
([1996b] 2004b, p. 43) cuja preocupação é a validação dos conhecimentos e seu repouso em
bases epistemológicas inquestionáveis, para questionar os pressupostos mesmos de tais
epistemologias. Afinal, como forjar um método que construa um “[...] sujeito epistêmico
pleno, sede, fundamento e fiador de todas as certezas [...]” (FIGUEIREDO, [1996b] 2004b, p.
37, grifos no original), se “[...] somos possuídos pelo conhecimento subsidiário em que
vivemos”? (FIGUEIREDO, [1996a] 2004a, p. 119, grifos no original). É exatamente por conta
dessa impossibilidade, aliás, que questões epistemológicas da psicanálise só podem ser
respondidas a partir da própria psicanálise, ao contrário do que ocorre em outras disciplinas:
tais questões são “[...] dificilmente separáveis da própria teoria analítica, [pois] o método
passa pelo contato com a qualidade imediatamente sensível – e, ao mesmo tempo, estrangeira
– de seu objeto, o inconsciente.” (DELOUYA, 2003, p. 39).
Claro está que tal argumento bem pode servir a um uso predominantemente defensivo,
com os psicanalistas desconsiderando críticas à psicanálise provenientes de outras áreas do
conhecimento com o argumento único (e de antemão irrefutável) de que aqueles que as
formularam não são analistas e / ou não foram analisados. Obviamente, este é um argumento
que encerra qualquer discussão, interrompendo um diálogo potencialmente fecundo com
7
Trata-se de uma precedência de ordem lógica e não cronológica, pois os conhecimentos tácitos e explícitos se
sobrepõem temporalmente.
24
outras disciplinas e fechando-se, portanto, a eventuais críticas e reformulações. Deixando de
lado esse uso defensivo, contudo, acreditamos que efetivamente existe uma diferença
qualitativa entre discussões epistemológicas da psicanálise realizadas de dentro e de fora do
campo psicanalítico. No primeiro caso, leva-se em conta a experiência psicanalítica – uma
experiência que necessariamente passa pelo contato com o inconsciente. No segundo, estuda-
se a teoria psicanalítica desvinculada dessa experiência, entendida apenas como uma rede
conceitual mais ou menos bem articulada. Muito se pode aproveitar de um estudo assim, mas
é preciso ter claro que esse estudo não consistirá em uma teoria da e sim sobre a psicanálise.
Voltando à epistemologia fraca de Figueiredo, o autor propõe que os conhecimentos
tácitos e explícitos sejam mantidos em um nível ótimo de tensão. O primeiro benefício que se
obteria com tal tensão seria justamente a suspensão da repetição mecânica e naturalizadora
muitas vezes característica dos conhecimentos tácitos: a teoria introduziria o espaço da dúvida
na clínica, impedindo um espontaneísmo e desalojando os conhecimentos tácitos de sua
posição de saber absoluto. Por outro lado, essa tensão também traria o benefício de ajudar nos
processos de configuração dos fenômenos clínicos.
Como, então, concretizar essa proposta – isto é, manter os conhecimentos tácitos e
explícitos em um nível ótimo de tensão? Para o autor,
[...] as narrativas históricas e as narrativas dramáticas poderiam constituir-se
nos dispositivos representacionais mais convenientes para operar essa
mediação [entre conhecimento tácito e teoria]. Historiais e todo o conceitual
elaborado e usado nas histórias de caso e nos relatos de sessão parecem
colocar-se no nível ótimo de tensão entre tácito e explícito (FIGUEIREDO,
[1996a] 2004a, p. 126).
A escrita de um caso, portanto, pode ser considerada uma forma privilegiada de
mediação e, mais que isso, trânsito entre teoria e prática, constituindo-se assim como uma
importante ferramenta de trabalho do psicólogo clínico e do psicanalista. Devido a esse lugar
peculiar que a escrita de caso ocupa nas relações entre teoria e prática, esta pesquisa também
se ocupará da leitura e análise de algumas vinhetas clínicas.
***
Outro texto do mesmo autor importante para se pensar as relações que se estabelecem
entre teoria e prática é o capítulo “Presença, implicação e reserva” do livro Ética e Técnica em
25
Psicanálise (COELHO JR.; FIGUEIREDO, 2000). Esse capítulo, de certa forma, retoma e dá
continuidade à proposta apresentada no texto sobre teorias e práticas que comentamos
anteriormente. Abordaremos esse novo texto a partir de uma estratégia diversa da adotada
com o texto anterior. Não apresentaremos um resumo entremeado de comentários; em vez
disso, mostraremos como um relato de caso clínico parece se relacionar diretamente com
algumas idéias propostas no texto. O caso a ser comentado, de autoria de Nicole Berry,
chama-se “A experiência de escrever” e encontra-se transcrito no livro Escrever a Clínica, de
Renato Mezan (1998a). Essa transcrição é seguida de comentários do próprio Mezan e de
alguns alunos seus.
O relato se inicia por um parágrafo em prosa poética, mergulhado numa atmosfera de
sonho, pleno de sentimentos e recordações aos quais não é fácil atribuir autoria. Quem lembra
e quem sente? E, sobretudo – quem esquece? Groselhas proustianas são recuperadas, uma
mãe winnicottiana é perdida...
O segundo parágrafo é como um despertar: voltamos ao estado de vigília e aos
processos secundários. A autora se explica: conta que as linhas que acabamos de ler foram
escritas ao longo de um processo de análise. A autora se esconde: ela não revela de imediato
sob quais condições (após tal ou qual sessão em particular) ela começa a escrever. A autora se
revela, assumindo que, para além da função expressiva de suas palavras (suas emoções
encontram aí uma descarga), ela deseja, por meio desse texto, comunicar-se com alguém.
Na verdade, são dois alguéns: ela mesma, em sua luta contra as dificuldades técnicas
que vão surgindo no decorrer da análise a partir da contratransferência, e um hipotético
público psicanalítico – sua dificuldade é tamanha que, para preservar seu orgulho e perseverar
em sua fé na condução daquele tratamento, escrever para um público ainda inexistente faz-lhe
ao menos se sentir útil para alguma coisa. Seu desejo de comunicação com o público
psicanalítico poderia ser expresso de modo aproximado da seguinte forma: “já que não estou
sendo útil para esta paciente, minha experiência deve prestar ao menos para a comunidade
psicanalítica”.
Vamos então, aos poucos, depreendendo a quais anseios e dificuldades a “experiência
de escrever” de Berry vem responder. Já mencionamos a expressão e a comunicação a dois
interlocutores diferentes.
Mas de que lhe adiantava essa expressão? Berry diz que não se tratava simplesmente
de pura descarga, de tirar um peso das costas e finalmente conseguir respirar. A expressão lhe
26
fazia pensar (ou, se quisermos, elaborar): tratava-se, por um lado, de uma evacuação
(descarga do peso) e, por outro, de uma elaboração (de um princípio de atribuição de forma às
imagens e sentimentos disformes que a paciente lhe suscitava). A própria questão que emerge
quase que imediatamente da leitura do primeiro parágrafo do texto (quem é o sujeito e quem o
objeto de tantas recordações e sentimentos) só lhe ocorreu, conta ela, depois de ela o haver
escrito: “Na experiência da escrita, vivida assim posteriormente, fora da vivência da análise,
num outro espaço, outro tempo, surgiu esta questão” (BERRY apud MEZAN, 1998a, p. 218).
Essa é justamente a segunda das funções que Figueiredo ([1996a] 2004a) atribui à
teoria nas práticas psicológicas e psicanalíticas (e, podemos acrescentar, também às
supervisões e aos relatos de casos clínicos, isto é, tudo aquilo que pressuponha um certo
distanciamento e uma reflexão sobre a experiência de atender): introduzir o tempo da espera,
da dúvida, do questionamento, quebrando com o automatismo fácil do ir fazendo-fazendo-
fazendo. “A comunicação com minha paciente não foi prazerosa senão posteriormente; não na
confusão da sessão” (BERRY apud MEZAN, 1998a, p. 218). Foi somente após a conquista
dessa distância (espaço) e desses novos questionamentos (tempo) que a comunicação com a
paciente começou a fluir. Já temos aí, portanto, um terceiro “alguém” envolvido nos
propósitos comunicativos do texto: a própria paciente.
Vimos, portanto, que expressão pode ser mais do que descarga – pode, como foi para
Berry, ser também uma via de elaboração. Mas também a comunicação com um terceiro
assume para Berry uma significação mais ampla: ela visa mais do que satisfazer um orgulho
narcísico. Vejamos:
Se a demanda de palavras torna-se reclamação, reivindicação, exigência
contínua de um preenchimento, é mais para lutar contra a inveja e a
destruição [...]. É a presença de um terceiro que desprende desta
destrutividade instaurando uma outra estrutura relacional. O leitor ou o
amigo pra quem escrevo assume (para mim) esta função de terceiro parceiro.
(BERRY apud MEZAN, 1998a, p. 220).
Isso, de certa forma, articula-se com o que vinha sendo desenvolvido acima: esse
terceiro rompe com a relação dual justamente porque está à distância dela.
É como diz Mezan em seu comentário: “[...] se por um lado escrever sobre um
paciente nos aproxima dele, este mesmo fato também marca um certo desprendimento, no
sentido que ela diz aqui, ‘de uma posição transferencial de proximidade muito grande’ [...]”
(MEZAN, 1998a, p. 239). Ele escreve, então, sobre o conceito antropológico de distância
27
ideal, estudado por Lévi-Strauss; e acrescenta que “[...] escrever serve para estabelecer esta
distância justa, em que o analista retoma, por assim dizer, o seu lugar de analista” (1998a, p.
239). Esse conceito se articula com a dialética da implicação e reserva de Figueiredo (2000).
Criar e manter um espaço de reserva é o contraponto necessário à implicação excessiva em
que o analista se vê envolvido na relação transferencial com o paciente. As reservas, assim,
são fundamentais – “[...] elas se alimentam da implicação, criam as condições para ela e a ela
se contrapõem” (FIGUEIREDO, 2000, p. 37), fundando o espaço da cura. A escrita não deixa
de ser um espaço de reserva para Berry. Além disso, e como ela mesma diz, “[...] a presença
de um terceiro, quer seja da escrita, da palavra, do pensamento, é vital para o desenrolar de
um tratamento” (BERRY apud MEZAN, 1998a, p. 221).
A leitura do caso narrado por Berry contribuiu, assim, para o levantamento da hipótese
de que o relato de um caso clínico pode contribuir para a formação e manutenção das reservas
necessárias à condução de um tratamento. Essa hipótese, como vimos, parece se sustentar
neste caso em particular, cujo relato mantém a tensão que Figueiredo propõe. Teoria e prática,
ali, não são impecavelmente complementares, mas também não são dimensões da experiência
cindidas e incomunicáveis.
Para tentar dar conta dessa relação que não é exatamente complementar, mas também
não é completamente cindida, recorreremos a outro texto de Figueiredo, ainda mais recente:
“Modernidade, trauma e dissociação: a questão do sentido hoje” (2003). A partir dele,
retomaremos também as experiências de minha formação relatadas anteriormente.
Esse artigo não faz qualquer referência à questão que estamos estudando aqui. Não
obstante, nele se encontram muitos subsídios para pensá-la, a começar pelas considerações
sobre a modernidade feitas pelo autor, tendo por base idéias do sociólogo Zygmunt Bauman.
Exporemos aqui três dessas considerações que, no momento, são as que mais nos importam.
Em primeiro lugar, o autor caracteriza a modernidade como uma época marcada pela
distinção conflitiva entre ordem (pólo da cultura, da sociedade, organização política etc.) e
caos (pólo da natureza, das variabilidades, irregularidades etc.). Uma das especificidades da
modernidade, segundo o autor, reside menos nessa distinção em si do que no fato de ela ter se
tornado determinante para essa época. Na modernidade, a ordem é vivida como uma tarefa de
separação e purificação. Os procedimentos dissociativos dão origem a diversas dicotomias
que se constituem como dispositivos ordenadores do caos do mundo. O autor cita diversos
exemplos clássicos de dicotomias marcantes e determinantes da modernidade: sujeito e
objeto, mente e corpo, cultura e natureza. Uma dicotomia que não é citada, porém, é
28
justamente a que estamos estudando aqui: a dicotomia entre teoria e prática. Na modernidade,
essas duas dimensões da experiência encontram-se dissociadas de forma análoga à das
dicotomias já mencionadas. Separa-se a “bagunça” que é a vida (prática) das tentativas de
organização dessa bagunça (as teorias).
Colocado o problema da dissociação e da conseqüente formação de dicotomias, o
autor passa a examinar as diferentes estratégias utilizadas pela modernidade para lidar com as
dissociações que ela mesma engendra. De fato, no momento mesmo em que tais dissociações
são engendradas, surge a necessidade de enfrentá-las e, em certa medida, superá-las. Esse
enfrentamento, porém, não ocorre de forma unívoca. Vejamos as diferentes estratégias de
enfrentamento das dissociações surgidas na modernidade a partir de cada um dos pólos
organizadores do espaço psicológico:
Para os romantismos o sentido [entre as partes dissociadas] dá-se no plano
metafísico e absoluto da Unidade, da coincidência, da harmonia, e ‘fazer
sentido’ é restaurar os vínculos das partes com o Todo. Para os iluminismos,
o sentido é dado e garantido pelo exercício de alguma soberania, em
particular pela soberania do espírito (se possível transcendente) e da
linguagem (se possível matemática). ‘Fazer sentido’ seria reduzir o mundo
ao mental e ao lingüístico. [...] Quanto às disciplinas, o sentido se
identificaria com a funcionalidade e complementaridade das partes, todas
submetidas a um projeto pragmático indiscutível. ‘Fazer sentido’ seria
estabelecer relações funcionais e complementares entre as partes
(FIGUEIREDO, 2003, p. 35).
Atentemos para os modos romântico e iluminista de lidar com as dissociações, e
vejamos como eles se concretizam com relação à dicotomia específica teoria-prática. Para
isso, relacionarei cada um deles às experiências clínicas relatadas na introdução.
Tomemos, primeiramente, os romantismos e seu ideal de unidade entre as partes
dissociadas. Os afetos, nessa perspectiva, ocupam uma posição singular: são resgatados do
não-lugar a que foram relegados na modernidade pelo cartesianismo e convertem-se numa
espécie de “pau para toda obra”. Eles, afinal, seriam os responsáveis pela integração das
partes dissociadas num todo, fazendo a mediação entre os dois pólos originalmente estanques.
Não é difícil identificar a presença dessa postura na supervisão do projeto de pesquisa
e extensão no qual estagiei. Ao relato da experiência do atendimento, ao qual invariavelmente
se seguiam questionamentos sobre minhas sensações (meus afetos) ao atender,
freqüentemente sobrepunham-se comentários de ordem ontológica, sobre a natureza do ser e
29
que-tais. Os afetos, assim, pareciam ser o próprio pavimento de uma estrada que partia da
experiência para chegar, senão a construções teóricas, a reflexões filosóficas.
Mas – e aí reside a sutileza – não se tratava meramente de chegar a Heidegger via
atendimento em plantão psicológico. Creio que o que aqui se visava era a uma integração da
qual os afetos pareciam ser a própria condição de possibilidade. Tratava-se de mais do que um
caminho percorrido da prática em direção à teoria, mas de uma verdadeira tentativa de
integração da experiência ao pensamento de Heidegger. Tal integração, não podendo se dar
inteiramente no âmbito da linguagem, exigia a presença dos afetos como mediadores. Era
preciso, assim, uma linguagem afetada (isto é, carregada de afeto), imbuída da experiência
que relatava, para que atendimento psicológico e Heidegger, juntos, fizessem sentido numa só
experiência
8
.
A experiência na disciplina de graduação, por sua vez, parece afinar-se melhor com o
que é proposto pelos iluminismos. A soberania da teoria sobre a prática, no caso, era clara:
frente a dúvidas e angústias nos atendimentos, me era recomendada a leitura de textos. Aqui,
não mais se visavam aos afetos que a tudo integram, mas à teoria, que explicitamente orienta
a conduta. De fato, a direção do tratamento era dada exatamente pelo psicodiagnóstico: as
intervenções se pautam pela estrutura de personalidade e tipo clínico do paciente. São,
claramente, categorias teóricas, tal qual a psicose ou a neurose obsessiva, que determinam a
direção do tratamento, isto é, a prática.
Essa postura iluminista jamais encontrou ressonância absoluta no criador da
psicanálise. Figueiredo (2003) cita as palavras de ordem “tornar o inconsciente consciente”
como tradutoras exatamente dessa postura. De fato; mas Freud, não obstante, jamais se
submeteu inteiramente a essa estratégia de lidar com as dissociações, subordinando uma das
partes dissociadas à outra. Não podemos nos esquecer de que, numa nota de rodapé d’A
Interpretação dos Sonhos, Freud escreve que “[...] existe pelo menos um ponto em todo sonho
ao qual ele é insondável – um umbigo, por assim dizer, que é seu ponto de contato com o
desconhecido” ([1900] 1996a, p. 145). Isto é, Freud reconhecia a existência de limites às suas
intenções colonizadoras de conscientizar todo o inconsciente. Ele podia até querer interpretar
tudo o que estava em volta do umbigo, isto é, todo o resto do corpo do sonho; mas reconhecia
8
Aqui, portanto, a estratégia principal para lidar com a dissociação era a integração. Contudo, tratava-se de uma
integração – entre a prática e uma determinada filosofia – da qual as teorias propriamente psicológicas estavam
excluídas. Nesse sentido, essa estratégia também se aproxima dos iluminismos, dado que também aí um pólo
(prática) exerce soberania sobre o outro (teoria).
30
que ao menos uma parte desse corpo não era passível de ser inteiramente submetida às hostes
da consciência.
Passemos agora a uma alternativa para lidar com as dissociações modernas que não
esteja inteiramente comprometida com nenhum dos três pólos delimitadores do espaço
psicológico:
Propomos a idéia do fazer sentido como ‘dar passagem’ [...]: que os afetos
passem às linguagens, que as linguagens passem aos corpos, que os corpos
passem aos afetos, que cada um dê passagem aos demais, e assim por diante.
[...] Trata-se de ampliar as vias de trânsito e desembaraçar, dentro de certos
limites, as atividades de fazer sentido (FIGUEIREDO, 2003, p. 36, grifos no
original).
Seguindo o conselho do autor, prossigamos no “assim por diante”: que a prática
passagem à teoria, que um nível de teoria dê passagem a outro...
Retomemos, agora, a proposta de Figueiredo ([1996a] 2004a) segundo a qual teoria e
conhecimento tácito deveriam ser mantidos num nível ótimo de tensão. Por que, afinal, a
escrita de um caso pode contribuir para que tal nível ótimo fosse, ao menos provisoriamente
(afinal, trata-se de um equilíbrio dinâmico), atingido?
A escrita pode contribuir, como já foi hipotetizado antes, para a conquista de um
distanciamento justo entre analista e paciente (ou, melhor dizendo, para a implementação da
dialética de implicação e reserva), auxiliando na constituição das reservas do analista.
Podemos hipotetizar também que, em outros casos, a escrita poderia contribuir para a
implementação dessa dialética justamente pela via oposta: ajudando o analista a se implicar
mais no atendimento. De qualquer forma, trata-se, nos dois casos, da contribuição da escrita –
vista, aqui, como um terceiro que se interpõe entre analista e paciente – para a implementação
e manutenção de uma postura ética do analista.
Mas, além disso, a escrita também pode contribuir para a conquista de um nível ótimo
de tensão entre teoria e conhecimentos tácitos porque a linguagem escrita pode ser um
excelente propiciador de trânsito entre as dimensões da teoria e da prática. A linguagem
escrita é composta por palavras que necessariamente se sucedem umas às outras
horizontalmente – ao contrário da linguagem musical, por exemplo, em que pode haver
verticalidade (diferentes vozes sendo proferidas simultaneamente). Assim, a linguagem
escrita, por sua própria natureza, se furta a tentativas precipitadas de integração, prestando-se
muito melhor ao trânsito de uma dimensão da experiência a outra: tanto da teoria à prática
31
quanto de um nível da teoria a outro. Este, cremos, é um dos diferenciais de bons relatos de
caso como o de Berry: são textos que propiciam, tanto para o autor quanto para os leitores,
passagens bastante fluidas de uma dimensão da experiência à outra: da fala da paciente às
impressões da analista, de citações teóricas à fala da paciente, de confissões da analista às
suas elaborações teóricas. Textos que não se propõem nem a integrar nem a dissociar a teoria
da prática, mas visam fazê-las conversar: “[...] manter a tensão é deixar que a prática seja um
desafio à teoria e que a teoria deixe que irrompam problemas para a prática” (FIGUEIREDO,
[1996a] 2004a, p. 126).
É a um texto assim, em que tais passagens são especialmente fluidas, que se dedicará a
maior parte da presente pesquisa.
32
CAPÍTULO 2 – Algumas Considerações de Ordem Semântica e
Metodológica
Antes de darmos prosseguimento à nossa investigação, julgamos fundamental
estabelecer alguns esclarecimentos e distinções de ordem semântica. Que coisas, afinal,
estamos a chamar de teoria e prática? Principalmente com relação ao termo “teoria”,
pensamos ser necessária alguma elucidação sobre as várias acepções que a ele se acoplam no
campo da psicanálise, para depois expor o que estamos entendendo por teoria neste trabalho.
Para esta tarefa, teremos a companhia de dois artigos fundamentais. Ambos pertencem a um
número especial da revista Psychoanalytic Quarterly (2003), todo ele dedicado ao tema
“como a teoria afeta a prática”, e ocupam respectivamente o lugar de introdução e discussão
desta edição da revista.
O artigo introdutório de Smith (2003) retoma a conhecida escala de Waelder, que
classifica os diferentes níveis de teorização psicanalítica em ordem crescente de abstração.
Utilizaremos esses níveis aqui de modo puramente descritivo, sem nos ocuparmos das
passagens de um nível a outro de teorização e da crítica ao que Waelder entende por
proximidade e distância da teoria em relação à prática. Waelder descreve seis níveis de
abstração na teoria psicanalítica, que abarcam a teorização mais próxima da experiência (o
nível da observação) até a aparentemente mais distante e abstrata, nada relacionada à prática
(o nível das concepções filosóficas gerais). Esse autor supõe, portanto, que a produção de
conhecimento em psicanálise caminha no sentido indutivo: parte-se de observações concretas
para se chegar a teorizações abstratas.
O problema desta concepção não parece se restringir ao fato de que o “caminho de
volta” da escala, no qual se realizam operações dedutivas, é ignorado; o problema maior
parece estar na crença de que a produção de conhecimento em psicanálise – e, para além
disso, o uso que se faz desses conhecimentos na prática clínica – obedece apenas a padrões
lógico-aristotélicos. Nada contra, portanto, os níveis em si, que constituem tão-somente
categorias didáticas úteis para precisarmos melhor o que estamos entendendo por teoria; o
problema está na concepção que se tem de como esses diferentes níveis operam na prática.
Mas, como dissemos há pouco, deixemos as críticas de lado para focarmos os níveis de
33
teorização propriamente. Para tanto, recorreremos não só à ajuda de Smith (2003) como
também à de Mezan (1998b), outro autor que comenta a escala de Waelder.
O primeiro nível, como dissemos, é o nível da observação. Nesse nível encontram-se
todos os dados imediatamente apreendidos na relação com o paciente. Tais dados abrangem
tanto os fatos narrados pelo paciente quanto o contexto transferencial no qual aparecem.
O segundo nível é o da interpretação clínica, no qual o analista organiza esses dados e
os relaciona a outros comportamentos ou conteúdos conscientes, devolvendo-os ao analisando
sob a forma de interpretações
9
.
O terceiro nível é o das generalizações clínicas, que vão se configurando a partir dos
dados da observação e das interpretações. Nesse nível, já se podem fazer afirmações sobre
categorias gerais presentes no atendimento, tais como um sintoma e sua relação com a história
de vida do paciente.
O quarto nível é o da teoria clínica, que também deriva dos dados e das interpretações,
mas já “está fora do campo direto das sessões” (MEZAN, 1998b, p. 175). As interpretações
permitem a formulação de conceitos teóricos que estão a meio caminho entre o
completamente geral e o absolutamente particular. É a teoria clínica que, segundo Mezan,
permite ao analista trabalhar, conectando o geral ao particular: “[...] entre o percebível e o
pensável, alguma coisa deve estabelecer um elo, de forma que o conceito possa se aplicar ao
caso” (1998b, p. 175). Mezan acredita que é neste nível da teorização clínica que reside a
chave para a compreensão das relações entre teoria e prática na clínica.
O quinto nível é o da metapsicologia, que abrange uma conceitualização mais abstrata
e distante da experiência. Neste nível, encontram-se “[...] as grandes hipóteses e conceitos da
disciplina” (MEZAN, 1998b, p. 175), tais como o inconsciente, a pulsão, o desejo, o recalque
etc.
O sexto nível é o das concepções filosóficas gerais. Assim, se tomarmos a pulsão de
morte como um conceito pertencente ao nível da metapsicologia, temos que a concepção de
homem que se reporta a este conceito é “pessimista” (para oferecer um exemplo com a
profundidade de um pires).
Outras distinções entre tipos de teoria são propostas por Michels (2003) no artigo que
fecha a revista. Vamos a elas:
9
É no mínimo curioso notar que Waelder desconsidera a participação do inconsciente nas interpretações
clínicas (!).
34
1-) uma distinção entre as teorias formais, professadas publicamente, e teorias privadas,
freqüentemente inacessíveis à consciência do analista;
2-) uma distinção entre teorias gerais, como a metapsicologia freudiana, e teorias clínicas;
3-) uma distinção entre as “teorias do clínico” e as “teorias do pesquisador”. As primeiras
deveriam ser úteis para a prática clínica dos analistas; as segundas estariam
compromissadas apenas com o progresso do conhecimento científico;
4-) uma distinção entre teorias explicativas e hermenêuticas – as primeiras destinadas a
estabelecer relações de causa e efeito entre fatos, e as segundas de cunho mais
“compreensivo”;
5-) e, finalmente, uma distinção entre teorias que abordam conteúdos (a vida mental do
paciente e sua experiência subjetiva) e teorias que abordam o processo analítico (tudo o
que acontece dentro dos limites do enquadre analítico).
Comentemos brevemente cada uma destas distinções. A primeira delas corresponde
grosso modo à divisão entre conhecimentos explícitos e tácitos proposta por Polanyi e
retomada por Figueiredo: temos aí, portanto, uma distinção baseada em pressupostos de uma
epistemologia fraca (FIGUEIREDO, [1996b] 2004b). A segunda, entre teorias gerais e
clínicas, está no mesmo plano daquela proposta por Waelder: trata-se de diferentes níveis de
abstração.
Já a terceira destas distinções opõe as teorias eticamente, se entendermos por questões
éticas aquelas “[...] que dizem respeito às posições básicas que cada sistema ou teoria ocupa
no contexto da cultura contemporânea diante dos desafios que dela emana” (FIGUEIREDO,
[1996c] 2004c, p. 30). De fato, é eticamente que uma teoria se posiciona quando se propõe a
responder a exigências da clínica, ou quando se propõe a atender a demandas de
cientificidade. Não se trata apenas de distinguir entre uma epistemologia fraca e uma forte na
produção de teorias, ou opor teorias de vocação pragmática a teorias de vocação mais
iluminista: trata-se, isto sim, de identificar a que ou quem essas teorias estão endereçadas.
Podemos opor teorias endereçadas a um “outro pequenino” (FIGUEIREDO, [1996c] 2004c,
p. 28) (isto é, seres humanos concretos que sofrem) a teorias endereçadas a “grandes outros”
(FIGUEIREDO, [1996c] 2004c, p. 28) (a psicanálise, a ciência etc.).
35
A quarta distinção proposta por Michels (2003) é, esta sim, de natureza
eminentemente epistemológica. Ao distinguir teorias explicativas de teorias hermenêuticas,
Michels remete-nos às matrizes do pensamento psicológico: teorias explicativas são
engendradas por matrizes cientificistas, enquanto que teorias hermenêuticas ou compreensivas
são produto de matrizes românticas ou pós-românticas (FIGUEIREDO, 1991). A quinta
distinção, por fim, basicamente opõe discursos clínicos a discursos metapsicológicos. Ambos
pertencem ao campo do conhecimento explícito, embora os primeiros estejam nitidamente
mais próximos de um saber do ofício que os segundos (FIGUEIREDO, [1996a] 2004a, p.
126).
Considerando esses tipos de distinção vistos até agora, podemos propor cinco vieses
principais pelos quais as teorias podem ser pensadas em psicanálise. Em primeiro lugar, pode-
se pensá-las por um viés epistemológico – e isso não corresponde apenas aos níveis da escala
de Waelder. Se, de um lado, tal classificação mostra-se útil para pensarmos de forma bastante
esquemática qualquer teoria em psicanálise, por outro lado ela se afigura enganadora quando
ignoramos que as teorias psicanalíticas partem de matrizes psicológicas díspares
(FIGUEIREDO, 1991) que não se fundamentam em pressupostos idênticos e portanto não
respondem às mesmas exigências. Não são poucos, por exemplo, os psicanalistas que afirmam
não trabalhar com conceitos metapsicológicos – e isso não quer dizer apenas que suas teorias
“vão só até o nível 4 de Waelder”, mas principalmente que elas se filiam em certa medida à
matriz humanista do pensamento psicológico (e, assim sendo, não se propõem a galgar níveis
superiores naquela escala). Assim, se quisermos pensar as teorias em psicanálise sob um viés
epistemológico, Waelder não é suficiente – devemos recorrer também a Figueiredo.
Em segundo lugar, as teorias podem ser pensadas por um viés ético – isto é, podem
estar primariamente compromissadas com a prática clínica ou com a própria teoria
psicanalítica, pensada como um sistema mais amplo. Vale notar que tal distinção é puramente
conceitual, pois as teorias psicanalíticas estarão sempre compromissadas tanto com os grandes
quanto com os pequeninos outros; trata-se, portanto, de uma questão de ênfase.
Em terceiro lugar, podemos pensar as teorias por um viés psicológico, isto é, no
tocante ao modo como os psicanalistas as apreendem (referimo-nos aqui às teorias “públicas”
ou “privadas” de Michels). Se cruzarmos essa classificação de Michels com as distinções
propostas por Polanyi e retomadas por Figueiredo entre tipos de conhecimento ([1996a]
2004a), podemos aproximar as teorias públicas do conceito de conhecimento explícito e as
teorias privadas do conhecimento tácito. Isto é, podemos considerar as teorias que estudamos,
36
produzimos e professamos publicamente como conhecimento de tipo explícito; e aquelas
absolutamente privadas, geralmente alheias à nossa percepção consciente, como teorias que já
foram incorporadas a um nível subsidiário tácito.
O quarto viés, por sua vez, corresponde à forma de exposição das teorias. Teorias
psicanalíticas podem ser expressas por funções (como o faz Bion), matemas (Lacan),
narrativas de casos clínicos e toda uma miríade de outras formas que, no limite, confundem-se
com o estilo de cada autor. Se quisermos transitar por esse limite, podemos afirmar que
existem tantas “formas” de teorias quanto existem autores, ou até mesmo que existem mais
formas do que autores, pois estes escrevem em momentos diferentes, produzindo assim
teorias cujas formas de apresentação também sofrem modificações.
Finalmente, o quinto viés refere-se ao conteúdo
10
das teorias. Também aqui não há
limites para o número de distinções que podem se estabelecer entre as teorias. Há teorias,
como já disse Michels, mais relacionadas ao processo analítico e outras mais relacionadas à
vida objetal intrapsíquica do paciente; há teorias que abordam o indivíduo e teorias que
abordam o grupo; teorias que partem do psiquismo infantil e teorias que partem do psiquismo
já constituído; e por aí vai.
Empreendemos essa tentativa de classificar as teorias sob diferentes vieses ou
perspectivas para que possamos entender melhor o que está sendo chamado, neste trabalho, de
teoria psicanalítica. Por vezes, o leitor encontrará neste trabalho o termo “teoria” em sentido
estrito, designando um sistema teórico que se define por seu autor ou conteúdo (teoria
freudiana, teoria das relações de objeto etc.). Na maioria das vezes, porém, o termo adquirirá
conotação mais ampla. Nesse caso – como acontece, por exemplo, na questão “quais as
relações entre teoria e prática” e suas variações –, o leitor deverá entender por teoria
psicanalítica um sistema representacional mais ou menos completo, fechado e organizado
sobre o homem ou alguma particularidade humana (estamos no nível do conhecimento
explícito, portanto).
Analisemos o termo sob cada um dos vieses acima delineados. Sob uma perspectiva
epistemológica, chamamos de teoria, neste trabalho, apenas os conhecimentos que se situam
no (e a partir do) nível 4 da escala de Waelder (o nível das teorias clínicas),
independentemente da matriz do pensamento psicológico a que se filiem. Sob uma
10
Naturalmente, a distinção entre forma e conteúdo aqui proposta é meramente didática, assim como são
didáticas as distinções anteriores entre o que é epistemológico, psicológico e ético. Tais distinções, como se verá
a seguir, obedecem apenas ao propósito de esclarecer o que estamos chamando de teoria e prática neste trabalho
(às vezes, o esquemático e superficial pode ser útil ao pensamento).
37
perspectiva ética, consideramos tanto as teorias destinadas primordialmente a um outro
concreto quanto aquelas que visam prioritariamente à própria teoria psicanalítica como
igualmente merecedoras do nome de teorias, pois se trata nos dois casos de sistemas de
representação. Sob um ponto de vista psicológico, porém, chamamos de teorias apenas o que
Michels (2003) denomina “teorias públicas” – isto é, consideramos teorias somente aquelas
que repousam no nível do conhecimento explícito
11
. Por fim, estamos considerando como
teoria todo sistema representacional independentemente de sua forma de apresentação e
conteúdo. Assim, nosso interesse sobre a relação da teoria com a prática na clínica abrange
tanto teorias sobre o processo analítico quanto sobre o desenvolvimento psicossexual do
sujeito; teorias expostas de forma hermética e de forma poética etc.
Como vimos, outros autores chamam de teoria coisas que acreditamos necessitarem de
denominação diferente. O principal exemplo disso está nas chamadas “teorias privadas”, que
acreditamos não merecerem o nome de teoria por não constituírem sistemas representacionais
“puros”.
Com relação ao termo “prática”, todas as vezes que ele for utilizado será para denotar
a prática clínica do psicanalista. Não estamos abordando, por exemplo, o uso que os analistas
fazem das teorias psicanalíticas para pensar fenômenos sociais.
Empreenderemos agora uma mudança em nosso rumo, pois deixaremos de lado o
número temático da revista Psychoanalytic Quarterly (2003) para abordar os textos de
Thomas Ogden, psicanalista contemporâneo particularmente interessado na questão da
intersubjetividade na clínica psicanalítica. Nossa aposta é de que, mudando de assunto (isto é,
saindo dos textos da revista), poderemos nos acercar cada vez mais de nosso verdadeiro
assunto – qual seja, as relações entre teoria e prática na clínica psicanalítica. Será necessário,
então, justificar pormenorizadamente a relevância dos textos de Ogden, e especialmente do
texto “Uma nova leitura sobre as origens da teoria das relações de objeto” (2005a)
12
, para a
presente pesquisa.
***
11
Como veremos adiante (p. 67), as teorias que se encontram no nível subsidiário serão consideradas a partir da
teoria das relações de objeto – isto é, serão pensadas como objetos internos, e não mais como sistemas de
representação.
12
“A new reading of the origins of object relations theory”, título que passará a ser referido como “Uma nova
leitura” no presente trabalho.
38
Ogden jamais escreveu um texto que tivesse por tema a relação entre teoria e prática
na clínica psicanalítica. Mas, como todos os seus textos tratam em alguma medida do
processo analítico – e quase todos contêm relatos clínicos –, em todos eles a relação da teoria
com a prática é um problema que se apresenta subterraneamente e neles se imiscui.
Explicitamente, porém, Ogden nem chega a se colocar a questão “como a teoria afeta a
prática”. Os únicos textos em que ele propõe uma questão minimamente aparentada a esta
(embora nunca a responda de maneira conclusiva) são os textos sobre poesia. A questão,
porém, é apenas sugerida; o trabalho de respondê-la fica inteiramente a cargo do leitor. Trata-
se, no caso, de perguntar de que forma a leitura de poesia pode ser proveitosa ao analista.
Poderíamos transformar ligeiramente a pergunta e indagar de que forma a leitura de textos
teóricos da psicanálise poderia ser útil à prática clínica do analista. De qualquer forma, a
questão está no ar:
Escrevi este capítulo pelo puro prazer de ler e escrever sobre poesia e
ofereço-o ao leitor com esse espírito. É um capítulo que foi escrito sem a
preocupação de que fosse ‘útil’ ao leitor psicanalítico. (Deixarei inteiramente
ao leitor o estabelecimento de quaisquer conexões que ele ou ela esteja
inclinado a fazer entre a experiência de ouvir poesia e a experiência de ouvir
a linguagem criada em uma relação analítica). (OGDEN, [1997a] 2004a, p.
235-236)
13
.
Mas quando falamos em usos da teoria, e no proveito que um analista eventualmente
pode tirar dela, estamos nos referindo necessariamente a uma ação que, além de pragmática e
instrumental, é conscientemente motivada. Esses sentidos estão explícitos quando dizemos
que usamos talheres para comer, mas também quando dizemos que uma mulher está usando o
amigo para provocar ciúme no namorado. Num caso como no outro, talher e amigo estão
postos como ferramentas, instrumentos, meios para atingir um determinado fim – a comida
num caso, o namorado no outro.
Ogden retira essa questão de um solo puramente instrumental e pragmático
14
. Em
nenhum momento, ao longo de todos os seus textos sobre poesia, ele se preocupa em aplicar
conhecimentos adquiridos à psicanálise. Sua preocupação centra-se na descrição minuciosa de
sua experiência de leitura dos poemas – assim como boa parte de seu trabalho enquanto
13
“I have written this chapter for the sheer pleasure of reading and writing about poetry and I offer it to the
reader in that spirit. It is a chapter that has been written without the concern that it be ‘useful’ to the analytic
reader. (I will leave it entirely to the reader to make what connection, if any, he or she is inclined to make
between the experience of listening to poetry and the experience of listening to the language created in an
analytic relationship).” As traduções do inglês para o português são de minha autoria.
14
Isso, bem entendido, independe da presença dos verbos “usar” e “utilizar” em seus textos.
39
analista consiste em descrever para si mesmo tão minuciosamente quanto possível a
experiência do terceiro analítico (OGDEN, [1994a] 2003a). Ogden, assim, não oferece
respostas rápidas à questão que estamos nos propondo a investigar; em vez disso, presenteia-
nos com descrições detalhadas de experiências humanas que exigem tempo – e exigem tempo
tanto para serem vividas quanto para serem descritas e posteriormente vivenciadas pelo leitor.
Assim, a desilusão de nossa esperança de que Ogden fosse o autor para responder
prontamente à nossa pergunta só encontra consolo no fato de que ele a reformula. Seremos
muito mais precisos e condizentes com o pensamento de Ogden se, em vez de falarmos em
“utilização” da teoria na prática clínica (ou utilização da poesia para tal fim), pensarmos em
descrever, tão completamente quanto for possível, os modos pelos quais as teorias se fazem
presentes em seu processo de escrita, e os modos pelos quais seu processo de escrita encontra-
se impregnado por sua prática clínica.
Isto posto, esta pesquisa abordará então um trabalho de Ogden (2005a) com o objetivo
de atentar para os modos pelos quais as teorias ali comparecem, bem como os modos pelos
quais sua prática clínica comparece em sua produção teórica. A leitura a que nos propomos
realizar possui características bastante particulares, pois se aproxima muito da escuta; é mais
ouvido que olhos.
O ouvido manda. O ouvido é o único verdadeiro escritor e o único
verdadeiro leitor. Conheci pessoas que liam sem ouvir os sons, e eram os
leitores mais velozes. Esses são os leitores oculares. Eles captam o
significado por vislumbres. Mas são maus leitores porque perdem a melhor
parte do que um bom escritor coloca em suas palavras (FROST, [1914]
1995, p. 677, grifo no original)
15
.
Nossa proposta, assim, é ler com os ouvidos; não queremos capturar significados aqui
e ali com os olhos. Queremos, sim, fazer viver a voz que reside no texto. Para isto, só há um
caminho: escutar pacientemente. Afinal, se “[...] a literatura imaginativa tem a ver com
escutar uma voz [...]” (ALVAREZ, [2005] 2006, p. 17-18)
16
, o mesmo pode ser dito da
literatura psicanalítica. Mas não só isso: o mesmo pode ser dito, também, da própria clínica
psicanalítica contemporânea:
15
“The ear does it. The ear is the only true writer and the only true reader. I have known people who could read
without hearing the sounds and they were the fastest readers. Eye readers we call them. They can get the
meaning by glances. But they are bad readers because they miss the best part of what a good writer puts into his
words.”
16
Alfred Alvarez é um crítico literário inglês interessado na psicanálise e que, por vezes, chega a idéias muito
próximas às de Ogden, embora por caminhos diferentes e sem citá-lo em momento algum.
40
[Atualmente], os psicanalistas tendem a se mostrar menos interessados em
criar uma arqueologia do inconsciente desenterrando o passado. Em vez de
procurar pistas, o terapeuta está ouvindo com atenção, como um poeta ou um
crítico, para detectar os tons e subtons, identificar as notas falsas e os sons
que estejam fora do tom ou sejam dissonantes, distinguindo entre emoções
genuínas e falsas, monitorando quando, como e por que ele está comovido e
– igualmente importante – quando e por que ele está enfastiado. Tudo é
sobre detalhes e nuances – a linguagem corporal e os silêncios, o que é dito e
o que fica sem ser dito. E como na literatura, tudo depende do tom da voz. O
objeto do exercício tanto do paciente quanto do analista é escutar a
verdadeira voz do eu entre muitas outras não-autênticas, encontrá-la e então
agarrar-se a ela – sem alarido, dissimulação, repetitividade nem desculpas.
Em termos de concentração e abertura para experiências novas, e já que
ambos estão, em última instância, preocupados com a verdade dos
sentimentos, o psicanalista em busca de uma cura por intermédio da
conversa e o escritor em busca da voz parecem estar lidando, tão gentilmente
quanto são capazes, com problemas similares (ALVAREZ, [2005] 2006, p.
21-22).
Como teremos a oportunidade de examinar, Ogden também é pródigo em traçar
paralelos entre a experiência de leitura e escrita e a experiência analítica. A grande diferença
dele para Alvarez reside no fato de que, para Ogden, a voz ouvida na leitura do poema é
produto de uma interação dialética entre a voz do leitor e a voz do escritor; para Alvarez,
parece que esta voz já está dada no texto, apenas esperando para ser ouvida pelo leitor. Mas
deixemos isso de lado e consideremos o ponto fundamental em que Ogden e Alvarez
concordam: “Um bom poema é tão difícil de se encontrar quanto um bom analista, mas uma
vez encontrado, o efeito de ambos é tornar você – leitor, paciente – mais integral e
prazerosamente vivo.” (ALVAREZ, [2005] 2006, p. 24).
Nada mais próximo ao que o próprio Ogden define como o objetivo último da análise:
“[...] ajudar o analisando a se tornar humano num sentido mais pleno do que ele foi capaz de
conseguir até este ponto.” (OGDEN, [1997b] 2004b, p.15)
17
.
Como se vê, o próprio método de investigação – “leitura-escuta” de textos – escolhido
para este trabalho teórico compartilha uma característica da situação analítica. Desde o
método, portanto, começamos a vislumbrar imbricações inegáveis deste trabalho com a
clínica psicanalítica.
17
“[...] help the analysand become human in a fuller sense than he has been able to achieve to this point.”
41
***
A maior parte dos escritos de Ogden pós-Sujeitos da Psicanálise (1994) contém
relatos clínicos – e, nessa medida, a escolha de qualquer um deles para uma análise mais
demorada se faria justificada pela estreita relação que se observa entre esses relatos e as idéias
apresentadas nos textos. Algumas vezes, essa relação é bastante convencional, estando o
relato clínico a serviço de uma explicação teórica anterior:
Neste capítulo, delineio os aspectos que considero cruciais a cada um desses
conceitos [holding e continência] e ilustro o modo pelo qual uso essas idéias
em meu trabalho clínico. (OGDEN, 2005b, p. 93)
18
.
Mas mesmo nessa proposta aparentemente convencional (a prática vindo na esteira da
teoria), Ogden foge dos padrões na medida em que os relatos não operam pura e
simplesmente como uma exemplificação da teoria, mas do modo pelo qual essa teoria é por
ele usada
19
na clínica.
Em outros textos, a proposta é menos convencional, pois o autor deixa a cargo do
leitor a tarefa de relacionar o relato clínico às outras seções do texto:
Neste capítulo, pedirei ao leitor que faça algo um pouco diferente. Peço ao
leitor que escute sua própria escuta: isto é, que escute o modo como ele
escuta, e escuta-me ouvindo, um poema; e que então compare esses ‘sons’
ao modo como ele escuta, e escuta-me ouvindo, uma sessão analítica.
Tentarei ficar de fora do caminho do leitor enquanto ele ou ela realiza esse
trabalho, e apenas no final do capítulo oferecerei algumas idéias sobre o que
atualmente imagino que ouvir e dizer um poema têm a ver com ouvir e falar
com um paciente em análise. (OGDEN, 2001a, p. 79)
20
.
Em outros textos, ainda, Ogden faz do relato clínico o veículo através do qual
determinado conceito teórico será transmitido. Não se trata, portanto, de exemplificar o
conceito com o relato clínico, mas realmente de construir o conceito a partir do relato:
18
“In this chapter, I delineate what I believe to be the critical aspects of each of these concepts [holding and
containing] and illustrate the way in which I use these ideas in my clinical work.”
19
Embora Ogden esteja falando em uso de teorias, pensamos que o verbo “usar” aqui transcende a conotação
pragmática de que o investimos anteriormente.
20
“In this chapter, I will be asking the reader to do something a little different. I ask the reader to listen to his
listening: that is, to listen to the way he listens, and hears me listening, to a poem; and then to compare those
‘soundings’ to the ways he listens, and hears me listening, to an analytic session. I will try to stay out of the
reader’s way as he or she does this work, and only at the end of the chapter will I offer some thoughts about what
I currently think listening to and saying a poem have to do with listening to and speaking with a patient in
analysis.”
42
O foco deste capítulo é clínico. Meu esforço não estará em definir a
vivacidade e morbidade psicológicas nem em tentar descrever como
determinamos se, ou em que medida, uma determinada experiência tem a
qualidade de vivacidade ou morbidade. Não é que essas questões sejam
desimportantes. Ao contrário, a melhor forma que possuo de abordá-las é
discutir situações clínicas que acredito envolverem centralmente essas
qualidades da experiência e esperar que as próprias descrições comuniquem
algo do sentimento dos modos pelos quais a vivacidade e a morbidade são
consciente e inconscientemente experimentadas por analista e analisando.
(OGDEN, [1997c] 2004c, p. 26)
21
.
Nos três casos aqui representados, os convites que Ogden faz ao leitor, explícita ou
implicitamente, não poderiam ser mais distintos. No primeiro deles, é como se ele convidasse
o leitor a “to just sit back and enjoy”, pois será ele, o autor, o responsável pela execução da
parte essencial do trabalho – a elucidação dos conceitos e a ilustração de como comparecem
na clínica –, e ao leitor caberá assistir a esse trabalho de um ponto de vista privilegiado.
Essa postura mais passiva que Ogden ali permite ao leitor contrasta nitidamente com a
postura ativa que lhe é exigida no segundo dos textos: aqui, caberá ao leitor fazer
praticamente todo o trabalho. Ogden fornece as peças do quebra-cabeça (a análise de um
poema e uma sessão analítica) e convida o leitor a montá-lo do modo como lhe convier. Isto é,
caberá ao leitor examinar as peças apresentadas e decidir se ou de que maneira o poema e a
sessão estão relacionados. Só ao final do texto Ogden fornecerá algumas diretrizes de como
ele, autor, teria montado esse quebra-cabeça – sem que essas diretrizes se configurem como a
única ou a mais correta solução para o problema. Mesmo oferecendo seu ponto de vista,
portanto, ele não isenta o leitor da responsabilidade de trabalhar para chegar a algo de novo e
próprio.
No terceiro texto mencionado, há como que uma mistura dessas duas propostas
anteriores. Os conceitos a serem trabalhados – os sentimentos de vivacidade e morbidade –
estão ali, mas o leitor que se dirigir ao texto de caneta marca-texto em punho certamente sairá
frustrado, pois os conceitos (que, talvez, Ogden nem chegue a considerar como tais) não são
definidos em momento algum, mas imiscuem-se no relato clínico. Desentranhar o que Ogden
21
“The focus of this chapter is clinical. My effort will not be to define psychological aliveness and deadness or
even to attempt to describe how we determine whether, or to what extent, a given experience has the quality of
aliveness or of deadness. It is not that these questions are unimportant. Rather, the best way I have of addressing
these questions is to discuss clinical situations that I believe centrally involve these qualities of experience and to
hope that the descriptions themselves convey something of a sense of the ways in which aliveness and deadness
are consciously and unconsciously experienced by analyst and analysand.”
43
entende por “sentimentos de vivacidade e morbidade” do relato clínico: é este o trabalho
pedido ao leitor.
Nos três casos, portanto, o trabalho do leitor está suposto (mesmo no primeiro deles –
“assistir” ao trabalho de Ogden é por si só um trabalho). Mas essa suposição comum aos três
textos não deve obscurecer a diferença de ênfase que é dada à participação do leitor no
processo de leitura do texto.
Conforme dissemos, qualquer um desses textos que nos serviram de exemplo até aqui
(bem como vários outros) poderia ter sido selecionado para uma análise mais demorada e
minuciosa na presente pesquisa. O primeiro deles, inclusive, é o que mais parece se adequar à
nossa proposta, pois um dos seus objetivos coincide com o do nosso trabalho: investigar o
modo pelo qual as teorias (dois conceitos em particular, no texto de Ogden) se fazem
presentes em sua clínica. Mas mesmo os outros dois textos poderiam igualmente se prestar a
esse tipo de pesquisa.
No entanto, decidimos comentar um texto no qual os relatos clínicos comparecem
ainda de outra forma. Não existe um comentário a priori na introdução de “Uma nova leitura
das origens da teoria das relações de objeto” (2003) sobre as vinhetas clínicas que serão ali
apresentadas. O texto, ao que tudo indica, será eminentemente teórico – um estudo, como o
próprio título inquestionavelmente afirma, sobre as origens da teoria das relações de objeto.
Partimos para a leitura do texto plenamente convencidos disso. Mas eis que, de repente,
Um sonho de um de meus pacientes vem à mente [...] (OGDEN, 2005a, p.
34)
22
.
E Ogden momentaneamente interrompe sua investigação teórica para relatar uma
sessão de análise. Mais adiante, outra surpresa:
Isso me faz lembrar de uma paciente [...] (OGDEN, 2005a, p. 41)
23
.
Ogden expõe então ao leitor desavisado um caso clínico, em alguns poucos parágrafos.
Poderíamos argumentar que se trata mais uma vez de ilustrações clínicas para
discussões teóricas – e, de fato, não estaríamos equivocados ao pensar assim. No entanto,
22
“A dream of one my patients comes to mind […]”
23
“I am reminded of a patient […]”
44
cremos se tratar de mais do que isso. O modo como esses relatos se iniciam sugere que a
surpresa não é só nossa – é, em certa medida, de Ogden também. Ficamos com a impressão de
que ele mesmo não havia planejado inserir essas duas vinhetas clínicas em seu texto, mas
sentiu-se impelido a isso à medida que foi teorizando. Mais do que ilustrações da teoria, esses
relatos clínicos são associações livres a elas. Verificam-se aqui passagens bastante fluidas
entre discurso teórico e relato clínico (tal como já havíamos constatado no texto de Berry).
Isso tem um sentido bastante particular num texto em que, conforme comentaremos
posteriormente, o processo de escrita está bastante próximo ao próprio processo de
pensamento do autor.
Mas a peculiar forma de inserção dos relatos clínicos no texto “Uma nova leitura” não
foi o principal motivo de sua escolha. Optamos comentá-lo em alguma profundidade por ele
ser o único a trazer uma citação que aborda diretamente o tema das relações entre teoria e
prática na clínica psicanalítica:
O mundo solipsista de um teórico da psicanálise que não está firmemente
assentado sobre a realidade de sua experiência vivida com pacientes é
bastante similar ao melancólico aprisionado em si mesmo que sobrevive em
um mundo objetal interno atemporal e imortal (e, não obstante, morto e
mortificador). (OGDEN, 2005a, p. 43)
24
.
Com isso, acreditamos que essa escolha se nos mostrará particularmente proveitosa
por dois motivos distintos. Além de termos a possibilidade de investigar a presença das teorias
no processo de escrita do autor (possibilidade esta que, de resto, nos seria dada por muitos
outros textos), este texto em particular traz a promessa de oferecer subsídios teóricos para
pensarmos a relação entre teoria e prática na clínica psicanalítica de maneira mais geral.
Antes de passarmos à consideração da importância da citação acima para a presente
pesquisa, é necessário explicitar as relações supostas por Ogden entre o relato clínico e a
prática clínica propriamente dita. Os relatos sem dúvida constituem um meio de acesso
privilegiado à clínica do autor, mas devemos ter em mente que não são uma reprodução da
experiência clínica, e sim uma nova experiência. Sobre a impossibilidade de traduzir uma
experiência em palavras, Ogden tem a dizer:
24
“The solipsistic world of a psychoanalytic theorist who is not firmly grounded in the reality of his lived
experience with patients is very similar to the self-imprisoned melancholic who survives in a timeless, deathless
(and yet dead and deadening) internal object world.”
45
Os nomes que damos aos sentimentos – por exemplo, sentir-se só, sentir-se
solitário, sentir-se atemorizado – são categorias genéricas amplas que dizem
os sentimentos tanto quanto a palavra ‘chocolate’ diz uma experiência de
provar chocolate. Não se pode comunicar em palavras o gosto do chocolate a
uma pessoa que nunca o tenha provado. A experiência de provar, como todas
as outras experiências emocionais e sensoriais, não pode ser dita. (OGDEN,
2005c, p. 125)
25
.
Se a palavra “chocolate” não informa o sabor do chocolate, um relato clínico também
não informa o ocorrido na situação clínica. Que fazer, então, com quem não estava lá, no
momento em que a experiência se deu? Em outras palavras, como conceber o relato clínico, se
não o consideramos um relatório dos fatos ocorridos na análise?
Deixemos Bion responder essa pergunta, pois Ogden é bastante fiel a ele nesse ponto:
Não posso ter tanta confiança em minha habilidade de contar ao leitor o que
aconteceu quanto tenho confiança em minha habilidade de fazer com o leitor
algo que foi feito comigo. Tive uma experiência emocional; sinto-me
confiante em minha habilidade de recriar [na escrita] aquela experiência
emocional, mas não de representá-la (BION apud OGDEN, 2005d, p. 79)
26
.
Ou seja, concebe-se a escrita e a leitura de um relato clínico como uma experiência
emocional, tanto quanto a situação analítica é uma experiência emocional. Ogden enfatiza a
dimensão da linguagem que diz não “o que” as coisas “são”, mas “como” elas “são sentidas”
– a questão “what does it feel like?” tem precedência sobre “what is it?” (OGDEN, 2001b, p.
25).
Essas considerações são importantes para lembrarmos que é à experiência de leitura e
escrita dos relatos clínicos que esta pesquisa tem acesso, e não à experiência clínica em si.
Acontece que, para Ogden, ocorre uma relação significativa entre a experiência com textos e a
experiência com pacientes:
Acredito que existe uma importante e interessante sobreposição entre a
questão ‘como é ler este poema?’ e a questão ‘como é estar com este
paciente?’ Para Brower (1951, 1968) a experiência de leitura não é
fundamentalmente uma questão de descobrir ‘padrões coerentes’ de
25
“The names we give to feelings – for example, feeling alone, feeling lonely, feeling frightened – are broad
generic categories that do not say feelings any more than the word ‘chocolate’ says an experience of tasting
chocolate. One cannot possibly communicate in words the taste of chocolate to a person who has never tasted it.
Tasting, like all other sensory and emotional experiences, cannot be said.”
26
“I cannot have as much confidence in my ability to tell the reader what happened as I have in my ability to do
something to do reader that I have had done to me. I have had an emotional experience; I feel confident in my
ability to recreate [in writing] that emotional experience, but not to represent it.”
46
significado escondidos no texto que devem ser decifrados, decodificados, ou
explicados; em vez disso, a ênfase está na criação de palavras e frases
próprias com as quais descrever o momento presente criado pela colisão de
autor e leitor (OGDEN, [1997d] 2004d, p. 206-207)
27
.
Ogden se utiliza das palavras de um crítico literário sobre o papel do leitor diante do
texto – ou, para sermos mais precisos, sobre o posicionamento ético deste leitor frente a seu
objeto – para falar do posicionamento ético do analista. Tal como Brower, a postura ética que
Ogden espera do analista não é a de um cientista que se vê frente a um objeto de estudo
pronto para ser dissecado, decifrado e explicado, mas de alguém sensível aos efeitos
emocionais da colisão entre as subjetividades de analista e analisando
28
no momento mesmo
da análise, e apto a descrever ao paciente essa experiência emocional.
Assim, para Ogden existe uma convergência ética entre o processo de leitura e escrita
de textos e o processo analítico. É nesse sentido que o estudo deste autor se mostra
particularmente interessante para a presente pesquisa, pois em seus textos opera a mesma
ética que norteia o seu trabalho clínico. Dessa perspectiva, não importa muito que o texto de
Ogden que decidimos ler mais detidamente não seja pródigo em relatos clínicos, pois toda a
sua produção escrita, seja ela predominantemente clínica ou teórica, está impregnada por sua
ética clínica.
27
“I believe that there is an important and interesting overlap between the question ‘What is it like to read this
poem?’ and the question ‘What is it like to be with this patient?’ For Brower (1951, 1968) the experience of
reading is not most fundamentally a matter of uncovering ‘coherent patterns’ of meaning hidden in the text
which must be deciphered, decoded, or explicated; rather, the emphasis is on creating one’s own words and
sentences with which to describe the present moment created by the collision of author and reader.”
28
E, como veremos posteriormente, do terceiro analítico também (p. 61 e seguintes).
47
CAPÍTULO 3 – Comentário sobre “Uma nova leitura das origens da teoria
das relações de objeto”, de Thomas Ogden
O texto de Ogden que será aqui comentado é o único do autor a trazer uma citação que
aborda diretamente o tema das relações entre teoria e prática na clínica psicanalítica:
O mundo solipsista de um teórico da psicanálise que não está firmemente
assentado sobre a realidade de sua experiência vivida com pacientes é
bastante similar ao melancólico auto-aprisionado que sobrevive em um
mundo objetal interno atemporal e imortal (e, não obstante, morto e
mortificador). (OGDEN, 2005a, p. 43)
29
.
Se, por um lado, essa citação versa diretamente sobre o tema desta pesquisa, devemos
também fazer a ressalva de que se trata de uma frase isolada, extraída de um texto cujo
objetivo central é apresentar uma leitura de Ogden de “Luto e Melancolia” (FREUD, [1917a]
2006b). Nada mais sensato, portanto, que façamos justiça ao próprio Freud e nos lembremos,
mesmo que por um instante, dos riscos de incorrer em especulação demasiado precoce.
Ogden, afinal, não desenvolve a idéia exposta acima.
Mas há algo na própria estrutura do texto que nos autoriza a alguma especulação sobre
a relevância dessa frase. O texto é dividido em sete partes. A primeira delas consiste em uma
rápida introdução, na qual o autor apresenta os aspectos do texto de Freud para os quais sua
leitura estará mais atenta. Tais aspectos são fundamentalmente três. O comentário de Ogden
está simultaneamente preocupado com: a) a introdução de uma nova concepção de estrutura
da mente, a partir do delineamento de relações entre objetos internos inconscientes; b) o modo
de pensar freudiano, que aparece com muita clareza em seu modo de escrever; e,
naturalmente, c) as inovações trazidas por Freud relativas aos processos psíquicos
inconscientes dos estados do luto e da melancolia. A introdução oferece ainda alguns dados
sobre o contexto histórico e biográfico no qual “Luto e Melancolia” foi escrito. Já a última
parte do texto consiste em um resumo bastante esquemático de tudo o que foi desenvolvido
anteriormente. Resta, então, o “miolo” do texto: nessas cinco seções intermediárias, Ogden
29
“The solipsistic world of a psychoanalytic theorist who is not firmly grounded in the reality of his lived
experience with patients is very similar to the self-imprisoned melancholic who survives in a timeless, deathless
(and yet dead and deadening) internal object world.”
48
desenvolve seu trabalho de leitura, selecionando trechos específicos do texto de Freud que são
comentados em cada uma delas.
Feito esse comentário sobre a estrutura do texto, resta situar a nossa frase em relação a
ela. Pois bem: esta é a frase que finaliza a quinta seção do miolo do texto. Dado que, depois
dela, só temos um resumo, não é exagero afirmar que tal frase finaliza e conclui o texto.
Ogden é um autor conhecido, dentre outras coisas, pela clareza de suas exposições;
mas, ao mesmo tempo, em seus textos sempre sobra espaço para o surgimento do novo – um
novo que somente o leitor pode produzir. Essa conjunção de clareza e precisão com
obscuridade e espaço para a dúvida acontece precisamente na frase de que estamos tratando.
A clareza está em que, sendo os processos de luto e melancolia e suas implicações para a
metapsicologia o tema central deste texto de Ogden, a metáfora do psicanalista que produz
teorias desvinculadas da experiência vem bem a calhar para se pensar a experiência e a
metapsicologia da melancolia. Não há dúvida, portanto, de que a melancolia é a personagem
principal da explicação.
Mas por que não pensar justamente o contrário – a melancolia como metáfora para
compreendermos a relação que o psicanalista estabelece com as teorias? Este é o convite que
nos é feito e que não devemos recusar. Leremos o texto “Uma nova leitura” pensando-o todo
em relação estreita com a frase que o conclui. Nossa viagem consistirá fundamentalmente em
reconstituir os passos de um percurso alheio: a leitura que Ogden faz do texto freudiano,
mediada pelo pensamento de Melanie Klein. Mas antes, é preciso esclarecer alguns pontos em
relação à frase da qual partiremos.
Em primeiro lugar, Ogden estabelece que, entre o melancólico e o (mau) teórico da
psicanálise, há algo em comum: um mundo objetal interno morto e mortificador (ou, se
preferirmos, desvitalizado e desvitalizante). De um teórico da psicanálise, portanto, Ogden
espera um contato fecundo com a clínica. E quanto a um psicanalista em sua prática clínica –
seria legítimo supor que Ogden espera dele um contato fecundo com a teoria psicanalítica?
Temos motivo para acreditar que sim, pois Ogden afirma noutra parte que determinada
intervenção clínica sua não teria sido possível caso ele não houvesse lido alguns trabalhos de
Winnicott repetidas vezes, chegando inclusive a citar um trecho específico que o influenciara
diretamente naquela intervenção (OGDEN, 2001c, p. 171). Para Ogden, portanto, entre teoria
e prática estabelece-se uma via de mão dupla.
49
Com isso, podemos dar um passo adiante em nossa investigação. Se Ogden compara o
mau teórico da psicanálise ao melancólico, e se para ele a boa clínica está imbuída de leituras
teóricas, parece justo supor que uma clínica na qual a presença de teorias é negada seria uma
clínica deficiente. É necessário perguntar, então, se haveria alguma semelhança entre o mau
clínico e o melancólico. Se tomarmos um psicanalista pouco sensível às teorias psicanalíticas
– estaria também ele aprisionado em um mundo objetal interno morto e mortificador, tal qual
o melancólico?
Cabe aqui uma pequena ressalva a título de esclarecimento: introduzimos os adjetivos
“bom” e “mau” por conta própria. Ogden está pensando em termos de “sentimento de
vivacidade e morbidade” (OGDEN, [1997c] 2004c)
30
, ou seja, de acordo com sua concepção
mais geral sobre psicopatologia. Para Ogden,
[...] toda forma de psicopatologia [...] pode ser pensada como uma forma de
autolimitação inconsciente da capacidade de o indivíduo experienciar o
sentimento de estar vivo como ser humano. A limitação da capacidade do
indivíduo de estar vivo pode se manifestar em uma multiplicidade de formas,
incluindo uma constrição da gama e profundidade de sentimentos,
pensamentos e sensações corporais, uma restrição da vida onírica e de
reveries, um sentimento de irrealidade nas relações consigo mesmo e com
outras pessoas, ou um comprometimento da capacidade de brincar, imaginar
e usar símbolos verbais e não-verbais para criar/representar a experiência.
Nós não apenas aceitamos, mas abraçamos estas e outras limitações de nossa
capacidade de estarmos vivos quando a perspectiva de estar mais plenamente
vivo como ser humano parece envolver uma forma de dor psíquica que
tememos não poder suportar (OGDEN, [1997b] 2004b, p. 18-19)
31
.
Assim, é mais rigoroso para com o pensamento de Ogden caracterizar o teórico da
psicanálise solipsista como alguém que sofre de um “sentimento de morte” do que considerá-
lo mau analista. Por outro lado, é evidente que a predominância de um “sentimento de
morbidade” em um texto ou processo analítico é sinal inequívoco de que as coisas vão mal.
Assim, não se trata nem de patologizar o analista por um trabalho que não vai bem,
assumindo para com ele uma postura condescendente, nem de fornecer um julgamento
30
“Sense of aliveness and deadness.”
31
“[…] every form of psychopathology […] might be thought of as representing a form of unconscious self-
limitation of one’s capacity to experience being alive as a human being. The limitation of the individual’s
capacity to be alive may be manifested in a multitude of forms including a constriction of one’s range and depth
of feeling, thought and bodily sensation, a restriction of one’s dream-life and reverie-life, a sense of unrealness
in one’s relations to oneself and to other people, or a compromise of one’s ability to play, to imagine and to use
verbal and non-verbal symbols to create / represent one’s experience. We not only accept, but embrace these and
other limitations of our capacity to be alive when the prospect of being more fully alive as a human being is felt
to involve a form of psychic pain that we are afraid we cannot endure.”
50
acabado sobre a qualidade deste trabalho – trata-se, isto sim, de considerar cuidadosamente as
nuances que fazem deste trabalho uma experiência viva (isto é, um experimento que se
apoiará amplamente no desconhecido) ou uma transmissão de conhecimento que é morta na
exata medida em que é estanque e avessa a inovações (OGDEN, [1997b] 2004b, p. 8).
Vale lembrar que, para Ogden, esse apoiar-se no desconhecido característico de uma
experiência viva não é considerado fruto da ausência de referências teóricas por parte do
analista, assim como uma transmissão de conhecimento estanque não é por ele atribuída à
presença de teorias na clínica. Permanece, portanto, a questão sobre a validade de
compararmos o mau psicanalista clínico ao melancólico.
O melancólico é aquele que está “[...] aprisionado em si mesmo [...] [e] sobrevive em
um mundo objetal interno atemporal e imortal [...]” (OGDEN, 2005a, p. 43)
32
. Fiquemos por
ora com a primeira parte dessa frase, mais descritiva; a segunda, metapsicológica, só teremos
condições de abordar ao longo do comentário do texto propriamente dito. O melancólico é
alguém que perdeu a liberdade: fez de si próprio uma gaiola. Prendeu-se em si mesmo, e
perdeu o contato com o mundo externo. Com isso, sua realidade está limitada a si próprio –
isto é, realidade para o melancólico é aquilo que ele vive dentro da gaiola. É a essa
característica essencial da melancolia que Ogden chama nossa atenção nessa frase: o
aprisionamento em si mesmo. Em função desse aprisionamento, perde-se o contato com
aquilo que é externo ao eu. É isso que está em jogo na caracterização do teórico solipsista: ele
perdeu o contato com a realidade externa – no caso, a realidade do contato com os pacientes.
Só não podemos concluir apressadamente que o mau teórico é aquele que leva os
livros para a gaiola e deixa os pacientes de fora, sendo o mau clínico aquele que leva os
pacientes e abre mão dos livros. Uma perda semelhante deve ter sido sofrida pelo “clínico
solipsista” (parece-nos possível caracterizar a melancolia conforme compreendida por Ogden
como uma “patologia do solipsismo”). Afinal, que é um psicanalista cujo trabalho passou a
ser uma “transmissão de conhecimentos” ao paciente senão alguém cuja capacidade de entrar
em contato com a realidade desse paciente está muito comprometida? A comparação do mau
clínico com o melancólico se justifica na medida em que ambos compartilham uma perda de
contato com a realidade do outro, uma realidade externa ao eu.
Afinal, é disso que Ogden trata na citação que viemos trabalhando até aqui: o
psicanalista precisa estar “[...] firmemente assentado sobre a realidade de sua experiência
32
“[...] self-imprisoned [...] [and] survives in a timeless, deathless (and yet dead and deadening) internal object
world [...]”
51
vivida com pacientes” (OGDEN, 2005a, p. 43)
33
. A ênfase em nossa leitura deste trecho
34
está na qualidade da experiência vivida com o paciente: é preciso que essa experiência esteja
impregnada de realidade. A realidade do outro, e a realidade que começa a se constituir entre
analista e analisando. Isso nos obriga a estender o pensamento para além de uma leitura que
aproxima pensadores da psicanálise provenientes de outras áreas à melancolia. O problema do
teórico da psicanálise melancólico não está na escassez de pacientes em si, mas na
impossibilidade de ele estar “firmemente assentado sobre a realidade de sua experiência
vivida”. Um psicanalista pode ter uma clínica bastante movimentada – nem por isso ele estará
imune à perda de contato com a realidade característica da melancolia.
***
O leitor há de ter percebido que a caracterização dos nossos hipotéticos psicanalistas
veio mudando: transitamos entre os pares de opostos bom / mau, vivo / morto, aberto às
inovações / preso ao instituído, e agora aberto ao mundo e aos outros (isto é, à alteridade) /
solipsista (aprisionado em si mesmo). O primeiro deles, nitidamente mais tosco e impreciso,
foi de onde partimos, em busca de uma adjetivação mais fina. O segundo par de opostos –
vivo / morto – também é bastante impreciso, porém nada tosco. O sentimento de vivacidade
ou morbidade experimentado a cada momento de uma sessão de análise é para Ogden o
“termômetro” mais importante do processo analítico, e descrevê-lo em palavras um grande
desafio da psicanálise contemporânea (OGDEN, [1997b] 2004b, p. 4).
A dificuldade de descrevê-lo em palavras começa, no presente trabalho, pela
dificuldade em traduzir para o português “sense of aliveness and deadness”. Sentimento,
sensação, percepção ou noção? Vida ou vivacidade? Morte ou morbidade? Saímos desse
emaranhado de dúvidas semânticas com a sensação de que uma tradução poética (e bastante
pessoal e arbitrária) destas palavras acaba sendo tão boa quanto qualquer outra, se o objetivo
for ajudar o leitor a se aproximar do pensamento de Ogden. Precisamos dessa aproximação
para posteriormente trabalhar com as idéias de um mundo objetal interno vivo e um mundo
objetal interno morto, pois elas serão fundamentais para pensarmos a relação do melancólico
com seu objeto, e do psicanalista com as teorias.
33
“[...] firmly grounded in the reality of his lived experience with patients”
34
Mais adiante neste trabalho, a ênfase em nossa leitura deste trecho recairá sobre outro aspecto (ver p. 128-
129).
52
Gosto de pensar em “a sense of aliveness” como “um gosto de sol” (da canção Nada
Será Como Antes, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos); “a sense of deadness”, por sua
vez, remete-me a “um sabor de vidro e corte” (de outra canção de Milton Nascimento, San
Vicente). Esse exercício de tradução está próximo do que Ogden propõe para apreendermos
os sentimentos de vida e de morte presentes em uma análise (OGDEN, [1997c] 2004c, p. 26).
Estes são mais bem comunicados por meio da descrição de situações clínicas do que por meio
de definições, pois as descrições visam facilitar que a experiência vivida na situação clínica
emerja de alguma forma na experiência de leitura do texto. Claro está que não se trata do
deslocamento da experiência ipsis litteris de um plano a outro, mas da criação de uma nova
experiência no processo de escrita do texto que dialogue com a experiência ocorrida na
análise. Aliás, podemos partir dessas considerações para sugerir que definições muito
fechadas e circunscritas têm mais sabor de vidro e corte que gosto de sol.
Isso não nos impede, no entanto, de empreender algumas aproximações mais
denotativas dessas palavras – que é, aliás, o que tentamos fazer com os pares de opostos
“aberto às inovações / preso ao instituído” e “aberto ao mundo e aos outros (à alteridade) /
solipsista (aprisionado em si mesmo)”. Em um dos casos clínicos apresentados no texto
“Analisando formas de vivacidade e morbidade” ([1997c] 2004c)
35
, Ogden aproxima o
sentimento de morbidade às dimensões esquizo-paranóide e autista-contígua da
personalidade, estando a dimensão depressiva no pólo oposto. Por aí já podemos ver que esta
oposição é bastante complexa, pois o próprio Ogden fala numa “[...] inter-relação mutuamente
encobridora entre estar vivo e estar morto [...]” ([1997c] 2004c, p. 61)
36
. No primeiro caso
clínico apresentado nesse texto, foi a paradoxal vivência da morte de forma não-simbolizada
(Ogden chega a dizer, “[...] sepultada [...]”
37
) na análise que possibilitou sua transformação
numa experiência simbolizada e, assim, mais viva ([1997c] 2004c, p. 27, 34-35). Com esse
exemplo, podemos aproximar o sentimento de morbidade aos elementos-beta de Bion, e o
sentimento de vivacidade aos elementos-alfa – ou ainda, dando um passo além, podemos
referir esses sentimentos à capacidade ou incapacidade de oferecer continência aos elementos
não-simbolizados da experiência.
Além de aproximar os sentimentos de vivacidade e morbidade a concepções teóricas
de Melanie Klein (com a teoria das posições esquizo-paranóide e depressiva, acrescida da
posição autista-contígua formulada pelo próprio Ogden) e Bion (teoria do continente-contido),
35
“Analyzing forms of aliveness and deadness”.
36
“[…] mutually obscuring interrelationship between being alive and being dead […]”
37
“[…] entombed […]”.
53
devemos também remontá-los à segunda teoria das pulsões de Freud. Em vários momentos,
Ogden atribui vivacidade a uma experiência de prazer sexual (no sentido psicanalítico mais
amplo), enxergando a morte na recusa desse prazer. Um exemplo particularmente tocante da
imbricação dos sentimentos de vivacidade e morbidade numa sessão analítica está no caso
clínico do texto “Reverie e interpretação” ([1997e] 2004e)
38
. O analista interpreta um gesto da
paciente – o arquear de suas costas – como simultaneamente uma expressão de seu desejo
sexual pelo analista (vivacidade) e uma depreciação desse mesmo desejo (morbidade)
(OGDEN, [1997e] 2004e, p. 194). Podemos acrescentar também que o próprio fato de o
analista poder pensar isso durante a sessão já indica que a análise estava viva naquele
momento.
Feitas essas considerações iniciais, é chegada a hora de passarmos ao texto “Uma nova
leitura das origens da teoria das relações de objeto”.
3.1
O título do texto de Ogden indica claramente o foco principal de sua leitura de “Luto e
Melancolia”. Seu objetivo é depreender do texto de Freud ([1917a] 2006b), os elementos que
serviram de base para a construção de uma teoria das relações de objetos internos
inconscientes. A investigação de uma patologia específica – a melancolia – e do estado
psíquico normal a ela correlato – o luto – é o veículo através do qual Freud começa a
introduzir uma nova concepção de estrutura da mente (OGDEN, 2005a, p. 28). Para realizar
esse trabalho de abstrair do texto os conceitos em statu nascendi que Freud se vê obrigado a
formular para prosseguir na investigação desses dois estados psíquicos, Ogden estará
particularmente atento ao uso da linguagem empreendido por Freud, pois acredita que os
novos conceitos aparecem no texto tanto explícita quanto implicitamente. Nesse
“implicitamente” incluem-se, por exemplo, momentos nos quais Freud antecipa algum
conceito ou sugere alguma idéia através da introdução de uma palavra nova num conjunto de
idéias relativamente estável, ou quando imprime uma cadência diferente numa seqüência de
frases – momentos particularmente ricos do texto nos quais podemos captar algo do próprio
38
“Reverie and interpretation”.
54
modo de pensar de Freud; momentos nos quais ele próprio parece não se dar conta do alcance
de suas palavras.
Mas se o método de Ogden para investigar as origens da teoria das relações de objeto
em Freud consiste justamente num exame da linguagem e do estilo de escrita do autor,
precisamos antes de tudo fazer a crítica desse método, no sentido de apontar seus limites.
Ogden utiliza a tradução de James Strachey para esse estudo; e, embora não consideremos a
leitura de um texto em segunda mão problemática por si só, consideramos altamente criticável
a posição de Ogden segundo a qual “Abordar questões relativas à qualidade dessa tradução
está além do escopo deste capítulo.”
39
(2005a, p. 125).
Em primeiro lugar, esta posição surpreende por ser oposta à adotada por Ogden em
outra ocasião, no texto “Relações de objetos internos”
40
([1986] 1992). É curioso notar que,
ali, Ogden não estava particularmente preocupado com o uso da linguagem empreendido
pelos autores – estava, isso sim, engajado em estabelecer uma linha evolutiva desse ramo de
idéias (a teoria das relações de objeto) na psicanálise em diversos autores, de Freud a Bion,
até oferecer uma visão própria do assunto que procurava sistematizar as concepções
anteriores. Nesse texto, Ogden critica a tradução de Strachey do termo alemão “Ich”,
defendendo que o termo coloquial “I” (eu) estaria muito mais próximo da linguagem utilizada
por Freud que uma transposição do termo para o latim. Ogden considerava que a opção por
um termo ou por outro, com suas diferentes conotações, trazia implicações significativas para
a compreensão do conceito de cisão.
No que concerne à tradução de textos, estamos de acordo com o Ogden de 1986. Não
que a tradução implique necessariamente uma “perda de qualidade” em relação ao texto na
língua em que foi escrito originalmente; mas, se o método de trabalho a ser empregado
consiste justamente num exame minucioso da escrita do autor, pensamos que o mínimo que se
poderia fazer em relação à tradução seria considerá-la algo digno de nota – que é exatamente
o que Ogden não faz, quando a julga irrelevante para os propósitos de seu trabalho. A nosso
ver, a consideração da tradução seria, ao contrário, elemento central à sua pesquisa.
Considerar a tradução algo marginal à compreensão do texto não é uma opção isenta de
conseqüências, como teremos oportunidade de verificar em pelo menos uma ocasião.
Por outro lado, a crítica não deve nos impedir de tentar compreender as motivações de
Ogden para adotar posturas tão diversas em relação à relevância da tradução de Strachey em
39
“It is beyond the scope of this chapter to address questions relating to the quality of that translation.”
40
“Internal object relations”.
55
um texto e em outro. O texto antigo tinha como objetivo organizar uma série de idéias mais
ou menos esparsas ao longo da história da psicanálise (ou seja, tinha por objetivo um
aprofundamento teórico de idéias e conceitos), enquanto que o segundo consiste num
exercício de leitura muito mais próximo do desconstrutivismo. Arriscamos dizer que é como
se Ogden quisesse, nesse segundo texto, dar-se a liberdade necessária para realizar uma leitura
criativa. Isso não justifica, porém, a desconsideração da materialidade na qual o texto foi
produzido. A liberdade que se ganha à custa do rigor é, a nosso ver, uma falsa liberdade.
Podemos agora retomar os três principais aspectos a serem abordados por Ogden em
sua leitura de Freud, para a partir deles introduzirmos e justificarmos aqueles nos quais nossa
leitura estará centrada. Ogden está simultaneamente preocupado com: a-) a introdução de uma
nova concepção de estrutura da mente; b-) o pensamento de Freud, que se manifesta através
da escrita; e c-) os estados psíquicos do luto e da melancolia. Nesse segundo ponto em
particular (mas também nos outros dois, de modo um pouco menos evidente), a análise de sua
escrita desempenhará um papel fundamental.
Nossa leitura de Ogden, por sua vez, estará atenta a aspectos que correm em paralelo
aos que ele investiga em Freud. Em primeiro lugar, e mais obviamente, nossa leitura estará
voltada para a compreensão de Ogden dos estados do luto e da melancolia, pois será a partir
dessa compreensão que teceremos algumas idéias sobre a relação do psicanalista com as
teorias psicanalíticas. Em segundo lugar, também será preciso dar ênfase à compreensão de
Ogden dessa nova concepção de estrutura da mente, se quisermos postular algumas hipóteses
mais gerais sobre o modo pelo qual as teorias se fazem presentes no psiquismo do
psicanalista. Por fim, a análise de sua escrita será particularmente importante para os nossos
propósitos. Isso porque, como já afirmamos anteriormente, acreditamos existir nesse autor
uma convergência entre a ética da psicanálise e a ética da leitura e escrita. Mais do que
analisar as vinhetas clínicas em si, ou o conteúdo dos conceitos, consideramos importante
investigar sua escrita com cuidado, tentando observar o modo como as teorias operam no
texto – seja ele um relato clínico ou não. Em outras palavras, estamos afirmando que os
estudos da forma e do conteúdo do texto de Ogden são em igual medida relevantes para nos
aproximarmos do modo pelo qual as teorias se fazem presentes em sua clínica (e, quem sabe,
do modo pelo qual a clínica se faz presente em sua teorização).
***
56
Ogden inicia seu comentário de “Luto e Melancolia” justamente pela apreciação da
escrita de Freud, deixando-se espantar pela autoridade com que as palavras de Freud ressoam.
A voz de Freud é a voz de uma autoridade conquistada: a voz de quem conquistou para si a
autoridade de ser o criador da psicanálise (OGDEN, 2005a, p. 28). Poderíamos ainda
acrescentar que esta é a voz muito particular de quem está consciente dos próprios méritos e
do potencial da disciplina que criou, sem nenhuma falsa modéstia (beirando, por vezes, os
limites da arrogância) – e, também, igualmente consciente daquilo que essa disciplina ainda
não pôde investigar. Mas note-se bem: ainda. A voz que Freud nos faz ouvir em seus escritos
transmite a confiança tranqüila de que, senão a psicanálise, a ciência haverá de desvendar os
mistérios que por enquanto não podem ser esclarecidos.
Há um ponto em especial que nos interessa aqui, com relação à voz de Freud. Trata-se
do fato de que boa parte das nuances desta voz pode ser ouvida logo nas primeiras sentenças
que abrem seus textos – e “Luto e Melancolia” não foge a esta regra. Com isso, não estamos
dizendo que “tudo já estava lá”, condensado nas primeiras frases – mas apenas que, ouvindo
atentamente, as palavras iniciais de seu texto apontam para muito do que se fará ouvir ao
longo deste, como os harmônicos que se ouvem ao longo do ressoar de uma nota musical.
Vamos então à frase inicial de “Luto e Melancolia” (na verdade, será necessário citar as duas
primeiras frases, pois a primeira frase do texto na tradução inglesa está desdobrada em duas
na tradução para o português)
41
:
Após termos utilizado o sonho como protótipo das perturbações psíquicas
narcísicas, iremos agora tentar esclarecer a natureza da melancolia. Para tal
iremos comparar a melancolia com o afeto que está envolvido no luto
normal. (FREUD, [1917a] 2006b, p. 103).
Que se pode ouvir na voz de Freud já nessas primeiras frases? A segurança de alguém
consciente de ter percorrido uma certa distância na compreensão da vida psíquica humana, e a
confiança em que uma nova distância nesta compreensão está para ser vencida no momento
presente. Algo indubitavelmente já foi conquistado na compreensão da vida psíquica dos
homens a partir do estudo dos sonhos, preparando assim o terreno sobre o qual novas
conquistas poderão ser erigidas. A confiança no progresso da psicanálise se faz ouvir nessas
41
Utilizaremos prioritariamente a tradução de Luiz Hanns nesta dissertação, confrontando-a quando necessário
com as outras traduções para o português que se encontram disponíveis (a de Marilene Carone e a da Edição
Standard Brasileira). A tradução inglesa será consultada apenas indiretamente, através das citações feitas por
Ogden.
57
frases iniciais, reveladoras da crença iluminista de Freud no progresso da ciência como um
todo.
É preciso deixar claro que a escuta desse aspecto em particular da voz de Freud não é
empreendida por Ogden. Julgamos apropriado empreendê-la porque, tal como os textos
freudianos, também os textos de Ogden costumam iniciar por frases em que os harmônicos
ressoam – isto é, as frases iniciais, se ouvidas com cuidado, contêm muito mais do que
pretendem dizer. Evidentemente, a voz é outra; mas ela possui em comum com a de Freud o
fato de se fazer ouvir desde o princípio do texto. Vamos à primeira frase de “Uma nova
leitura”:
Alguns escritores escrevem o que pensam; outros pensam o que escrevem.
(OGDEN, 2005a, p. 27)
42
.
Em muitos de seus escritos mais importantes, prossegue Ogden, Freud é um escritor
deste segundo tipo: seu pensamento é construído a partir do próprio processo de escrita, e os
leitores têm a possibilidade de acompanhar esse processo em toda a sua complexidade, com
suas idas e vindas, argumentos e contra-argumentos. Textos do primeiro tipo seriam
presumivelmente aqueles nos quais Freud apresenta uma visão já acabada sobre determinado
assunto (como acontece, por exemplo, no verbete enciclopédico sobre a histeria).
Mas, se voltarmos à asserção inicial de Ogden – “alguns escritores escrevem o que
pensam; outros pensam o que escrevem” – veremos que ela contém mais do que uma
classificação dos textos de Freud segundo seu método de escrita. Esta frase bastante
condensada remete-nos à teoria de Bion do continente-contido, e em particular à sua
concepção de que a psicanálise antes de Freud era um pensamento desprovido de um
pensador apto a pensá-la (BION apud OGDEN, 2005b, p. 100). A partir dessa frase inicial,
portanto, já podemos apreender algo da leitura de Ogden sobre “Luto e Melancolia”. Mais do
que a simples introdução de idéias inovadoras (o que já seria muito), Ogden julga que a
genialidade do texto de Freud está justamente na criação de um espaço novo (até então
inexistente) onde essas idéias podem então ser pensadas
43
. Essa concepção de Ogden fica
42
“Some writers write what they think; others think what they write.”
43
Ainda com relação à teoria do continente-contido, Ogden acredita que a criação desse novo espaço por Freud
foi significativamente ampliada por Melanie Klein, no que diz respeito à possibilidade de pensar uma teoria das
relações de objetos internos inconscientes. Essas idéias já estariam disponíveis para Freud, que as utilizou
despercebidamente em sua escrita de “Luto e Melancolia”; coube a Klein a tarefa de criar um espaço onde tais
idéias pudessem ser pensadas (OGDEN, 2005e, p. 63). Nesse sentido, portanto – especificamente no que diz
58
evidente no segundo parágrafo do texto, no qual ele comenta aquilo em que acredita constituir
o principal legado de Freud:
[...] uma nova forma de pensar a experiência humana que deu origem a nada
menos que uma nova forma de subjetividade humana (OGDEN, 2005a, p.
27)
44
.
A psicanálise é pensada, portanto, não como ciência, arte ou técnica, mas como modo
de pensar – mais especificamente, um modo de pensar a experiência humana, que
eventualmente levou à criação de uma nova forma de subjetividade (e, além disso, de
intersubjetividade e mesmo de subjetivação). É este o ponto central da análise para Ogden.
Afinado à psicanálise inglesa, ele não acredita que o objetivo principal da análise seja tornar
consciente o inconsciente, mas sim criar uma nova forma de subjetividade (e
intersubjetividade) humana que permita ao paciente viver de forma mais viva e plena. Assim,
se compreendermos a psicanálise como um modo de pensar, teremos de ler os escritos
freudianos sob uma dupla perspectiva:
Cada um dos seus [de Freud] escritos psicanalíticos, deste ponto de vista, é
simultaneamente uma explicação de um conjunto de conceitos e uma
demonstração de um modo recém-criado de pensarmos sobre e
experienciarmos a nós mesmos (OGDEN, 2005a, p. 27)
45
.
Julgamos essa dupla perspectiva digna de nota porque também os textos de Ogden
podem ser lidos sob dois vieses. Embora não se possa dizer que Ogden tenha criado um novo
modo de se conceber a subjetividade humana, é justo tomar seus textos por mais do que
simples exposições de conceitos – só desses parágrafos iniciais, por exemplo, já apreendemos
algo de sua concepção do processo analítico, que envolve centralmente a criação de um
espaço onde possam ser pensados os elementos até então não-simbolizados da experiência
emocional do analisando. Claro está que isso não foi dito com todas as letras no texto “Uma
nova leitura” até aqui – mas claro está também que isso está de alguma forma presente nos
respeito a uma teoria das relações de objetos internos inconscientes –, poderíamos dizer que Freud “escreveu o
que pensou”, em vez de pensar o que escreveu.
44
“[...] a new way of thinking about human experience that gave rise to nothing less than a new form of human
subjectivity.”
45
“Each of his [Freud’s] psychoanalytic writings, from this point of view, is simultaneously an explication of a
set of concepts and a demonstration of a newly created way of thinking about and experiencing ourselves.”
59
dois parágrafos que viemos lendo; uma presença que só pôde vir à tona a partir do nosso
trabalho de leitura. Somos lembrados aqui da seguinte afirmação de Ogden:
Cada trabalho de escrita analítica requer um leitor que assista o autor na
comunicação de algo [...] que o autor sabia, mas não sabia que sabia. Ao
fazê-lo, o leitor torna-se um co-autor silencioso do texto. (OGDEN, 2005e,
p. 63)
46
.
Fica, portanto, a questão: aquilo que veio à tona a partir do trabalho de leitura estava
presente no texto? Dissemos que a concepção sobre o processo analítico estava presente em
seus parágrafos iniciais, “de alguma forma”. Mas que presença é essa? É isso que nos
compete investigar, para respondermos a seguinte questão referente à nossa pesquisa: as
teorias que encontramos na clínica (isto é, que vêm à tona a partir do processo analítico) – de
que maneira estão presentes no analista?
Temos aí a primeira questão relativa à nossa pesquisa que a leitura de Ogden nos
suscitou. Deixemo-la de lado por um instante enquanto retomamos a leitura dos parágrafos
iniciais (com alguns pequenos saltos para momentos posteriores do texto), na esperança de
que surjam novos elementos nessa leitura que nos ajudem a retomar essa questão
oportunamente.
***
Um pequeno salto que pode se mostrar bastante útil é a caracterização da fuga
(composição musical) como paradigma da estrutura de “Luto e Melancolia” (OGDEN, 2005a,
p. 31) – paradigma este que se aplica também ao texto “Uma nova leitura”. Na fuga, “[...] os
temas parecem fugir, ou, mais exatamente, perseguir-se [...]” (ORQUESTRA SINFÔNICA
BRASILEIRA, 2006). E é numa perseguição que o presente texto vai se configurando: nossa
leitura persegue Ogden, que persegue Freud. Mas a perseguição maior é a de cada um dos
autores, atrás de idéias que vão se modificando na medida mesmo em que vão sendo escritas.
Com efeito, sabemos que, muitas vezes, escrever é a melhor – e às vezes a única –
forma de pensar. Muitas idéias (para não dizer a maioria delas) ocorrem-nos apenas no
46
“Every piece of analytic writing requires a reader who assists the author in conveying something [...] that the
author knew, but did not know that he knew. In so doing, the reader becomes a silent co-author of the text.”
60
momento da escrita, e não por acaso. Ogden não poderia estar mais de acordo conosco quando
afirma que os escritores do “segundo tipo” (grupo no qual o estamos incluindo)
[...] parecem realizar seu pensamento no ato mesmo da escrita, como se os
pensamentos surgissem da conjunção entre caneta e papel, o trabalho
surpreendentemente desvelando-se à medida que acontece (OGDEN, 2005a,
p. 27)
47
.
Por mais exaustivamente que tenhamos investigado alguma questão, se ainda
estivermos longe do papel sabemos que esta investigação ainda não está concluída – e não
porque ainda não foi registrada, mas porque invariavelmente, ao escrever, coisas novas
surgem. Quantas vezes tudo parece ir bem – temos a estrutura do texto perfeitamente
delineada em nossa cabeça – até nos defrontarmos com a perturbadora alteridade do papel em
branco. Se falar não é verter conteúdos mentais pela boca, escrever certamente não é imprimir
idéias na página.
Uma ressalva faz-se necessária. Trataremos predominantemente da experiência de
leitura e escrita porque é dela que Ogden se serve como metáfora privilegiada para pensar o
processo analítico. Naturalmente, com isso não estamos supondo que uma investigação clínica
só pode ser realizada por esta via. O importante aqui é perceber a escrita como um terceiro
que se interpõe entre o analista e o problema teórico que a clínica lhe coloca. É esta
terceiridade o fundamental: a possibilidade de se distanciar da experiência clínica para refletir
sobre ela. “[...] A presença de um terceiro, quer seja da escrita, da palavra, do pensamento, é
vital para o desenrolar de um tratamento” (BERRY apud MEZAN, 1998a, p. 221).
Isto posto – se escrever não consiste em imprimir idéias na página, atender um
paciente também não consiste em aplicar as teorias que aprendemos à escuta do paciente e à
nossa fala (só aí, quantos processos já não estão envolvidos, nenhum deles envolvendo uma
transposição límpida de um plano a outro: a leitura de um texto, a escuta de uma fala, a fala
em resposta a essa escuta).
Mas o mito dessa transposição pura e sem distorções do mental ao mundo é mais forte
do que podemos imaginar. Aliás, o mito não está nem no fato de a transposição ter de ser
pura, mas precisamente na idéia de transposição em si. Isso porque até os leitores mais
canônicos admitiriam que a melhor tradução de um texto comporta distorções em relação ao
texto original (assim como a linguagem comportaria distorções em relação ao pensamento, e
47
“[...] seem to do their thinking in the very act of writing, as if thoughts arise from the conjunction of pen and
paper, the work unfolding by surprise as it goes.”
61
assim por diante). Ainda assim, permanece o ideal de que a melhor tradução – seja de um
texto para outro, ou do pensamento para a linguagem – é aquela que traria o mínimo de
distorções possíveis nessa transposição – note-se bem, da mesma coisa – de um plano para o
outro. O modelo que é o texto original (ou o pensamento, ou a teoria psicanalítica) é
transposto para a tradução (ou a linguagem, ou a prática clínica) de modo que permaneça o
mais intacto possível. Afinal, “transpor” significa precisamente mover algo de um lugar para
o outro (mantendo, o mais possível, as mesmas características do objeto antes de ser movido).
Essa concepção do processo de tradução e escrita, que tem conseqüências diretas sobre
a concepção do processo de leitura, não poderia ser mais oposta ao que Ogden apresenta em
seus textos. Da leitura do parágrafo inicial de “Uma nova leitura”, além das outras citações às
quais fomos remetidos (notadamente, aquela que coloca o leitor como co-autor silencioso do
texto), já podemos apreender algumas características dessa concepção. No fundo, estamos
tratando aqui, o tempo todo, do conceito de terceiro analítico, sem que o pudéssemos nomear
com clareza até agora. Para fazê-lo – isto é, para criar no texto um espaço no qual o conceito
de terceiro analítico possa ser pensado –, será necessário traçar um paralelo entre as palavras
iniciais de Sujeitos da Análise e esse conceito, introduzido neste mesmo livro e retomado em
vários textos subseqüentes:
É tarde demais para voltar atrás. Depois de ter lido as palavras iniciais deste
livro, você já começou a adentrar a desconcertante experiência de se
perceber transformado em um sujeito que você ainda não conhece, mas
mesmo assim reconhece. O leitor deste livro precisa criar uma voz com a
qual falar (pensar) as palavras (pensamentos) que o constituem. [...] Você,
leitor, precisa permitir que eu ocupe você, seus pensamentos, sua mente, já
que não tenho outra voz com a qual falar a não ser a sua. Se você for ler este
livro, precisa permitir-se pensar meus pensamentos, enquanto eu preciso
permitir a mim mesmo converter-me em seus pensamentos, e nesse instante
nenhum de nós será capaz de reivindicar o pensamento como sua criação
exclusiva (OGDEN, [1994b] 2003b, p. 1)
48
.
Leitura e escrita, aqui, constituem mais do que meras apreciação ou exposição de
idéias mais ou menos desinteressadas. Trata-se de uma experiência intersubjetiva que dá
origem a um terceiro sujeito – o terceiro sujeito da leitura, se quisermos assim.
48
“It is too late to turn back. Having read the opening words of this book you have already begun to enter into
the unsettling experience of finding yourself becoming a subject whom you have not yet met, but nonetheless
recognize. The reader of this book must create a voice with which to speak (think) the words (thoughts)
comprising it. [...] You, the reader, must allow me to occupy you, your thoughts, your mind, since I have no
voice with which to speak other than yours. If you are to read this book, you must allow yourself to think my
thoughts while I must allow myself to become your thoughts and in that moment neither of us will be able to lay
claim to the thought as our own exclusive creation.”
62
Na análise, algo não muito diferente disso acontece, como o próprio Ogden é o
primeiro a apontar (OGDEN, [1994b] 2003b, p. 2). Também (e ainda mais claramente que na
experiência de leitura) há uma experiência intersubjetiva em jogo, envolvendo
simultaneamente analista e analisando enquanto subjetividades separadas e enquanto um
“composto trans-subjetivo”
49
que encontra seu paradigma na relação primitiva mãe-bebê. Na
experiência intersubjetiva proporcionada pela análise, não compete ao analista resolver o
paradoxo de ser um e ao mesmo tempo dois com o paciente. Em vez disso, cabe ao analista
descrever para si mesmo o mais acuradamente possível a natureza dessa terceira subjetividade
criada na relação com o paciente – subjetividade esta que não corresponde mais nem ao
analista nem ao analisando individualmente, mas a ambos e nenhum deles ao mesmo tempo
(OGDEN, [1994a] 2003a, p. 63-64).
Naturalmente, esse terceiro sujeito sempre conviverá com a inquestionável existência
de dois indivíduos empíricos numa análise. Assim,
O processo analítico reflete a inter-relação de três subjetividades: a
subjetividade do analista, a do analisando e a do terceiro analítico (OGDEN,
[1994a] 2003a, p. 93)
50
.
O terceiro analítico é conjuntamente criado por analista e analisando, mas
experienciado de formas diferentes por cada um deles – não apenas porque se trata de dois
sistemas de personalidade distintos, mas também (e principalmente) porque a análise consiste
numa apreciação do terceiro analítico tendo em vista a melhora do analisando (OGDEN,
[1994a] 2003a, p. 93-94).
Isto posto, podemos retornar à primeira frase do comentário de Ogden sobre “Luto e
Melancolia” e à nossa perplexidade diante do inevitável fato de que todo projeto mental de
escrita acaba sofrendo alterações quando efetivamente nos pomos a escrever. O projeto sofre
alterações porque de fato não se trata de mera transposição de idéias para o papel, mas da
criação de algo novo. E mais: esse algo só poderá ser em sua plenitude quando encontrar um
leitor disposto a dar voz ao texto, criando assim o terceiro sujeito da leitura.
Aliás, melhor reformular a expressão: no momento único em que o leitor encontra o
texto e vice-versa, já não há mais leitura ou escrita, leitor ou escritor, e sim esse terceiro
49
Sobre a trans-subjetividade, ver Coelho Jr. e Figueiredo, 2004.
50
“The analytic process reflects the interplay of three subjectivities: the subjectivity of the analyst, of the
analysand, and of the analytic third.”
63
sujeito, que pode agora ser rebatizado como “terceiro sujeito da leitura e escrita”. Ao mesmo
tempo, obviamente o leitor é uma coisa e o texto é outra: é com seus olhos que o leitor
percorre as palavras no texto, com sua voz interior que as pronuncia, com seu ouvido interno
que as ouve, com suas mãos que vira as páginas. E, é claro, o leitor bem pode fechar o livro e
ir cuidar da vida a qualquer instante, suspendendo temporariamente o paradoxo.
Da mesma forma na análise: o analista percebe-se tanto como individualidade
separada do paciente como coexistindo com ele numa subjetividade só. A análise reflete
precisamente essa tensão dialética instável entre subjetividades mescladas e subjetividades
isoladas.
Essa afirmação é um bom exemplo, inclusive, da insuficiência da conceituação e da
linguagem tradicionais para dar conta da experiência de análise. Quando falamos em
“subjetividades mescladas” e “subjetividades isoladas”, formamos a idéia de duas coisas
distintas que ora se juntam, ora se separam. Pensar assim não é apenas uma questão de
“preconceito filosófico”, mas está de acordo com a gramática utilizada: afinal,
“subjetividades” é o plural de “subjetividade”. Assim, se falo em “subjetividades” preciso
pressupor que se trata de pelo menos duas delas. Nada mais justo e condizente com a
afirmação citada, portanto, que se pense em duas coisas separadas, que às vezes se juntam e
outras vezes se separam – a análise consistindo na superação-conservação resultante desse
processo dialético.
O conceito de terceiro analítico afasta-nos dessa leitura. Os pólos da dialética da
análise não são as subjetividades mescladas e isoladas, mas sim o terceiro analítico e
subjetividades isoladas. Esses pólos só existem na relação de um com o outro: o terceiro
analítico é uma criação de analista e analisando, mas as subjetividades isoladas de analista e
analisando só podem ser criadas a partir do terceiro. O terceiro analítico, portanto, não é o que
há de mais originário no processo analítico. Não existe uma seqüência temporal nesse
processo; não podemos incorrer no erro de supor que um dos pólos da dialética aparece antes
e o outro aparece depois, o segundo em resposta ao primeiro. Num processo analítico em
andamento, onde quer que procuremos, encontraremos o terceiro analítico e as subjetividades
separadas operando simultaneamente, sem jamais encontrar uma resposta para a questão:
“qual dos dois apareceu primeiro?” A questão sobre as origens do processo não deve ser
respondida, cabendo-nos simplesmente conviver com o paradoxo (WINNICOTT, [1968]
2004). Além disso, quando dizemos que o terceiro analítico é criação de analista e analisando,
64
não devemos com isso entender que se trata de “[...] uma relação entre dois sujeitos, mas
justamente [de] um novo sujeito [...]” (COELHO JR., 2002, p. 69, grifos no original).
Nossa incursão pelo conceito do terceiro analítico pode agora nos ajudar a retomar
aquela questão que havíamos deixado em suspenso: “aquilo que veio à tona a partir do
trabalho de leitura estava presente no texto?” Nossa resposta, para ser rigorosa, deverá ser
paradoxal: aquele conteúdo está presente no texto independentemente do advento do leitor,
como pura criação do autor – mas, e ao mesmo tempo, não está, sendo necessária a
constituição de um terceiro sujeito da leitura e escrita para que tal conteúdo seja criado.
E quanto às teorias psicanalíticas que vêm à tona num processo analítico – “estão
presentes no analista?” Por um lado, é claro que as idéias estão presentes no analista
independentemente do advento do analisando ou da análise, pois o analista adentra uma nova
análise imbuído dos conhecimentos (tácitos e explícitos) de que dispõe até aquele momento.
Mas, por outro lado, é preciso responder exatamente o contrário: é só na inter-relação das
subjetividades de analista, analisando e terceiro analítico que as teorias são constituídas.
Podemos considerar o paciente, assim, um co-autor silencioso da teoria psicanalítica.
***
Mas voltemos à leitura de Ogden da frase inicial de “Luto e Melancolia”. Sua leitura
revela que Freud não apenas criou um “[...] revolucionário sistema conceitual [...]”
51
, mas
também “[...] alterou a própria linguagem.” (OGDEN, 2005a, p. 29)
52
. Com efeito, palavras
como “sonho”, “inconsciente” – e, se formos radicais, mesmo “pai” e “mãe” – foram
irremediavelmente modificadas em seus sentidos mais corriqueiros pelo pensamento de
Freud. Ogden explora, então, a sentença inaugural pinçando dela palavras e expressões que
estão entre aquelas que Freud para sempre modificou. Vamos à sentença inicial da edição
standard brasileira, para que haja uma correspondência mais exata com as palavras escolhidas
por Ogden:
Tendo os sonhos nos servido de protótipo das perturbações mentais
narcisistas na vida normal, tentaremos agora lançar alguma luz sobre a
natureza da melancolia, comparando-a com o afeto normal do luto. (FREUD,
[1917b] 1996b, p. 249).
51
“[…] revolutionary conceptual system […]”
52
“[...] has altered language itself.”
65
As palavras são: “sonhos”, “vida normal”, “perturbações mentais” e “narcisistas”.
Ogden aponta que todas estão presentes na primeira parte da frase, que corresponde ao
passado da psicanálise (o que foi feito por esta disciplina até então). A segunda parte,
referente ao que se fará agora, sugere que duas novas palavras irão se juntar à lista das
permanentemente modificadas por Freud: “luto” e “melancolia” (OGDEN, 2005a, p. 29).
Como se vê, Ogden faz uma leitura “vertical” desse trecho (“harmônica” em oposição
a “melódica”, para empregar uma metáfora), pois em vez de tentar apreender o sentido da
frase (o que seria uma leitura “melódica”), Ogden enfatiza a existência de múltiplas
conotações em cada uma das palavras escolhidas: tais palavras seriam como acordes,
formados por três ou mais “notas” – conotações – diferentes. Mas Ogden não estará atento
apenas às “notas” que compõem cada um dos “acordes” – o “encadeamento” desses acordes
uns aos outros lhe é igualmente relevante:
[...] praticamente todas as palavras da sentença de abertura adquiriram, nas
mãos de Freud, novos significados e um novo conjunto de relações, não
apenas com praticamente todas as outras palavras da sentença, mas também
com inúmeras palavras na linguagem como um todo (OGDEN, 2005a, p. 29,
grifos nossos)
53
.
Comparemos essa citação de Ogden com sua definição de objetos internos presente no
texto de 1986:
[...] [objetos internos são] suborganizações do ego dinamicamente
inconscientes capazes de gerar significado e experiência, isto é, capazes de
pensamento, sentimento e percepção. Essas suborganizações empreendem
relações inconscientes umas com as outras [...] (OGDEN, [1986] 1992, p.
132, grifos nossos)
54
.
Somos tomados de espanto ao constatar que Ogden, sem dizê-lo explicitamente, trata
as palavras da sentença de Freud como objetos internos inconscientes: as palavras possuem
novos significados e estabelecem relações umas com as outras; objetos internos, por sua vez,
geram significados e estabelecem relações inconscientes uns com os outros. Temos aí uma
53
“[...] virtually every word in the opening sentence has acquired in Freud’s hands, new meanings and a new set
of relationships, not only to practically every other word in the sentence, but also to innumerable words in
language as a whole.”
54
“[...] dynamically unconscious suborganizations of the ego capable of generating meaning and experience, i.e.,
capable of thought, feeling, and perception. These suborganizations stand in unconscious relationships to one
another […]”
66
teoria específica informando sua prática (no caso, a prática de leitura e escrita) de forma ao
mesmo tempo direta e sutil: direta, pois a analogia entre palavras e objetos internos é clara;
sutil, pois não atropela o que o texto de Freud vinha comunicando. Ficamos com a sensação
de que essa analogia não foi premeditada por Ogden, tendo sido criada no instante mesmo da
“conjunção entre caneta e papel” (OGDEN, 2005a, p. 27).
Seguindo com nossa leitura, Ogden nos remete ao método empreendido por Freud em
“Luto e Melancolia”: trata-se da comparação entre o processo psicológico normal do luto e o
processo psicopatológico da melancolia, comparação esta que será retomada ao longo de todo
o texto, cada vez sob um ponto de vista diferente. Este método é adotado por Freud devido às
semelhanças clínicas entre as duas condições, e ao fato de ambas representarem uma resposta
à perda.
Com relação à natureza dessa perda, Freud deixa claro que, na melancolia, pode se
tratar tanto da morte stricto sensu quanto de uma perda “[...] de natureza mais ideal, o objeto
não morreu realmente, mas perdeu-se como objeto de amor [...]” (FREUD, [1917a] 2006b, p.
105). Também na definição da perda do objeto no parágrafo que descreve o trabalho do luto,
percebemos um cuidado para não restringir essa perda à morte: “[...] o teste de realidade
mostrou que o objeto amado não mais existe, de modo que o respeito pela realidade passa a
exigir a retirada de toda a libido das relações anteriormente mantidas com esse objeto”
([1917a] 2006b, p. 104). A não-existência do objeto não decorre necessariamente da sua
morte: o trabalho de luto faz-se necessário também em perdas de natureza mais ideal. Isso,
aliás, fica implícito quando Freud define o luto de maneira sucinta e introdutória em seu
trabalho: “[...] o luto é, em geral, a reação à perda de uma pessoa amada, ou à perda de
abstrações colocadas em seu lugar, tais como pátria, liberdade, um ideal etc.” ([1917a] 2006b,
p. 103). O próprio objeto do luto, portanto, pode ser um ideal; assim, tanto o objeto quanto a
sua perda podem ser de natureza mais ou menos ideal.
Quanto às semelhanças clínicas verificadas entre as duas condições, Freud percebe
que, comparando o quadro clínico do luto àquele verificado na melancolia, percebemos que
seriam idênticos não fosse por um traço que os distingue: o distúrbio na auto-estima, ausente
no luto e presente na melancolia. É este traço o primeiro ponto teórico do texto de Freud ao
qual Ogden nos convida a atentar.
Já temos aí material suficiente para começarmos a desenvolver a metáfora que
justapõe o analista que faz mau uso de teorias ao melancólico. Comecemos por algumas
indagações. Se a melancolia indica a má apropriação das teorias por parte do analista, seria o
67
luto uma boa metáfora para pensarmos uma boa apropriação? Se assim o for, teremos de
supor que a presença de teorias na clínica envolve necessariamente uma forma de perda. Além
disso, teria a auto-estima do analista algo a ver com o modo pelo qual as teorias se fazem
presentes em sua clínica? Afinal, a depreciação da auto-estima é a primeira diferença entre
luto e melancolia que salta à vista de Freud.
Consideremos primeiramente a perda das teorias – e, ainda antes disso, o estatuto
metapsicológico que estamos atribuindo a elas. Estamos considerando as teorias objetos
passíveis de sofrerem investimentos libidinais: uma vez perdidos, exigirão do analista um
trabalho de luto. Mas o que exatamente significa perder as teorias, no âmbito da clínica
psicanalítica? Em outras palavras – qual é o teste de realidade, no caso das teorias, que
indicaria a sua morte?
Pensamos se tratar do teste da realidade clínica. Uma teoria “morre” quando deixa de
responder às exigências da clínica. E que exigências seriam essas? De modo bastante geral,
podemos dizer que, assim como “[...] a única obrigação que de antemão podemos exigir de
um romance, sem incorrer na acusação de sermos arbitrários, é que ele seja interessante.”
(HENRY JAMES apud OGDEN, [1997b] 2004b, p. 7)
55
, a única coisa que podemos
legitimamente esperar de uma teoria psicanalítica, em nossa prática clínica, é que ela nos
ajude no atendimento dos pacientes. Uma esperança, sem dúvida alguma, bastante justificada.
Mas alto lá: muito embora nossa esperança seja justificada, sabemos também que sua
realização completa é inviável. As teorias, pelo próprio fato de se organizarem em sistemas
representacionais, jamais abarcarão a totalidade da experiência humana. Nesse sentido, todas
as teorias psicanalíticas possuem em comum o fato de que em algum ponto, mais cedo ou
mais tarde, deixarão a desejar. Assim, talvez faça mais sentido falar num abandono das teorias
(elas nos abandonam), o que reforça a natureza ideal dessa perda. Por outro lado, poderíamos
também dizer, não sem certa ironia, que as pessoas, pelo próprio fato de serem pessoas,
também deixarão a desejar mais cedo ou mais tarde. Deixar a desejar: deixar o desejo
pulsando, sem se disponibilizar como o objeto que o saciará. Não preencher esse desejo tão
completamente a ponto de formar uma unidade com o ser desejante. Descolar-se desse desejo,
enfim, e ser algo mais – um objeto que é também um sujeito, com desejos e necessidades
próprias.
55
“The only obligation to which in advance we may hold a novel, without incurring the accusation of being
arbitrary, is that it be interesting.” (tradução de Sérgio Rodrigues).
68
Aqui somos obrigados a interromper momentaneamente nossa comparação entre
teorias e pessoas e refletir um pouco: como assim, relacionar-se com uma teoria como se ela
fosse também um “sujeito, com desejos e necessidades próprias”?
Pensamos que a relação com uma teoria como se ela fosse um “centro de
subjetividade” em si mesma significa considerá-la muito mais do que apenas meu objeto de
leitura e estudo (um “objeto subjetivo” para “consumo próprio”, portanto). A teoria foi criada
por alguém; insere-se num contexto histórico e social determinado; foi elaborada tendo
determinados pacientes em vista; foi lida, comentada e criticada por outros autores; existe,
enfim, independentemente de minha leitura e de meus pacientes. Em suma, a teoria não vem
ao justo encontro de minhas necessidades e desejos: ela é muito mais do que isso. Nesse
sentido, ela tem uma “vida” e “relacionamentos” (com outras teorias, autores, psicanalistas
etc.) próprios. Trata-se, assim, de enfatizar a separação existente entre leitor e texto (analista e
teoria) no processo de leitura – processo este que consiste, como vimos, numa tensão dialética
instável entre os dois pólos da relação (no caso, o analista e a teoria) tomados separadamente
e o terceiro sujeito da leitura e escrita.
É dessa perda que estaremos tratando aqui: uma perda que não é pontual como a
morte, mas que é inerente à verdade parcial de que “[...] se é apenas quem se é e mais
ninguém.” (CAPER, 1999a, p. 96)
56
. Parcial, porque ao mesmo tempo também é verdadeiro
que mãe e bebê, analista e analisando, analista e teoria podem chegar a constituir um sujeito
só (algo que está em jogo no conceito do terceiro sujeito). De qualquer forma, estaremos
tratando neste texto prioritariamente daquilo que é necessariamente vivido pelo sujeito como
uma perda, e que poderia também ser caracterizado como uma separação: a perda do objeto
bom, seu luto e introjeção.
Recapitulando o que reunimos até agora: a teoria inevitavelmente frustrará em alguma
medida o desejo do analista de ser ajudado no contato com o paciente, pelo próprio fato de ser
um sistema representacional. Essa frustração se fará sentir com maior intensidade – deixando
o analista abandonado – precisamente no momento em que a teoria lhe faltar: e estamos
supondo que a teoria faltará em meio ao contato com o paciente. O analista se dá conta então
de que a teoria não corresponde exatamente ao seu desejo; percebe-a respondendo a questões
outras, que ele próprio não saberia formular.
56
“[…] one is only oneself and no one else.” Robert Caper é um psicanalista pós-kleiniano que propõe
pensarmos a psicanálise como o bom objeto interno ao qual o analista deve recorrer para fazer frente às
identificações narcísicas do paciente (CAPER, 1999b).
69
Podemos teorizar também sobre a situação oposta a esta. Imaginemos uma teoria sobre
a qual o analista não tenha expectativa alguma quanto ao seu valor para a sua prática clínica.
Mas eis que surge um paciente novo – ou algo de novo em um paciente antigo – e a teoria,
antes rejeitada, parece ganhar algum sentido. Temos aqui uma teoria que foi reabilitada pela
clínica, tendo vindo ao encontro do analista quando ele mais precisou. É como se a teoria
tivesse sido concebida especialmente para aquela situação e só agora tivesse encontrado sua
verdadeira razão de existir – como um livro que passou anos esquecido em uma prateleira até
ser encontrado por seu único leitor. O que nos importa ressaltar aqui é justamente a
indiferenciação entre analista e teoria que se verifica nessa situação: no momento mesmo em
que a teoria é reabilitada pela clínica, o analista não sabe mais dizer em que medida seus
pensamentos, atuações e interpretações constituem criações próprias e em que medida são o
reflexo daquela teoria da qual ele se apropriou. Isto é, a teoria só lhe ocorreu frente àquela
determinada situação clínica porque já estava, em alguma medida, incorporada ao
conhecimento subsidiário do analista (ou, como veremos mais adiante – p. 101 e seguintes –,
introjetada em seu mundo interno).
Essa indiferenciação, bem entendido, pode surgir em meio à situação clínica ou em
qualquer outro momento da relação do analista com as teorias. Essa indiscriminação entre o
que é meu e o que é do outro (no caso, da teoria) pode perfeitamente se dar num momento em
que o analista está estudando uma teoria qualquer. Aliás, é de se esperar de um processo de
estudo proveitoso que, em algum momento, o estudante deixe de atentar para a autoria das
idéias examinadas. Nesse momento, ele não saberá mais dizer em que medida tais idéias
constituem criação sua e em que medida existem por si próprias, isto é, independentemente de
seu estudo.
A indiferenciação de que viemos falando até aqui também está presente na experiência
do terceiro analítico. Mas uma análise não se reduz à vivência e à descrição do terceiro: a
análise se dá na inter-relação das subjetividades de terceiro analítico, analista e analisando (as
subjetividades individuais de analista e analisando são fundamentais para o processo). Da
mesma forma na relação do analista com as teorias: ao mesmo tempo que a experiência de
“encontro” com as teorias é bem vinda (encontro, aqui, no qual se faz presente a noção de que
a teoria é criação minha e supre perfeitamente minhas necessidades), é igualmente bem vindo
o choque traumático com elas, dado pelo reconhecimento de que são algo completamente
diverso de mim e que não me dizem respeito. Daí a necessidade do luto – a necessidade de
marcar bem a diferença entre analista e teoria, para que a partir da constatação dessa diferença
70
e da perda da teoria enquanto o objeto que corresponde às expectativas do analista (por formar
uma unidade com ele), a teoria possa renascer no eu como objeto interno bom.
3.2
Feitas essas primeiras considerações sobre a perda das teorias, voltemos ao texto
“Uma nova leitura” (abordaremos o problema da auto-estima mais adiante, quando Ogden
voltar a mencioná-lo
57
). Como vimos, Ogden destaca a consideração das semelhanças e
diferenças entre os quadros clínicos do luto e da melancolia. As semelhanças entre os dois
estados são basicamente quatro: “[...] um estado de ânimo profundamente doloroso, [...] uma
suspensão do interesse pelo mundo externo, [...] perda da capacidade de amar, [...] inibição
geral das capacidades de realizar tarefas [...]” (FREUD, [1917a] 2006b, p. 103-104). A
diferença restringe-se à “depreciação do sentimento-de-Si” (p. 103-104) – ou, na tradução
mais simples de Marilene Carone, “rebaixamento do sentimento de auto-estima” (FREUD,
[1917c] 1992, p. 131) –, estando este traço ausente no luto e presente na melancolia.
Partindo dessa comparação, “[...] o texto [de Freud] parece penetrar abruptamente na
exploração do inconsciente.” (OGDEN, 2005a, p. 30)
58
. É difícil apreender o que Ogden
percebe de tão abrupto no movimento do texto. Ao contrário, parece-nos simplesmente que
Freud dá continuidade à sua comparação entre luto e melancolia. Até aqui, Freud tomara esses
processos para exame do ponto de vista de sua fenomenologia; agora, abordá-los-á numa
perspectiva de seu funcionamento dinâmico inconsciente. Primeiramente, descreve-nos sua
compreensão do funcionamento do luto, para em seguida aplicar essa compreensão ao exame
da melancolia. Acompanhemos diretamente Freud nesse trecho, pois Ogden se refere a ele
apenas de passagem.
Freud sintetiza em uma frase elegante e concisa o trabalho que o luto tem de realizar:
“[...] o teste de realidade mostrou que o objeto amado não mais existe, de modo que o respeito
pela realidade passa a exigir a retirada de toda a libido das relações anteriormente mantidas
com esse objeto” (FREUD, [1917a] 2006b, p. 104). Dinamicamente, portanto, o trabalho do
luto pode ser explicado sem grandes dificuldades: trata-se de uma operação de deslocamento
57
Ver p. 76 e 79-80 do presente trabalho.
58
“[...] the paper seems abruptly to plunge into the exploration of the unconscious.”
71
da libido. Mas Freud reconhece não ser fácil explicá-lo em termos de economia: pensar o
trabalho do luto sob uma perspectiva exclusivamente dinâmica não dá conta da intensidade do
afeto envolvido nesse processo. Ele atribui parte dessa dificuldade ao caráter conservador das
pulsões: “[...] o ser humano – mesmo quando um substituto já se delineia no horizonte –
nunca abandona de bom grado uma posição libidinal antes ocupada” (FREUD, [1917a]
2006b, p. 104). Dá-se um embate entre o princípio de prazer – que é pela manutenção dos
laços libidinais com o objeto perdido – e o princípio de realidade – que impõe a dissolução
desses laços em respeito à realidade. Ao final de um processo normal de luto, vence o
princípio de realidade – mas essa vitória nunca é alcançada imediatamente e sem dificuldades.
Perto do final do texto, Freud dá uma dica importante sobre um dos principais elementos que
contribuem para essa vitória: trata-se da soma das satisfações narcísicas que o indivíduo
deriva do fato de estar vivo (FREUD, [1917a] 2006b, p. 114). O Eu consente em abrir mão
dos laços libidinais com os mortos, em última instância, para manter-se vivo entre os vivos.
De fato, pode ser bastante difícil para o analista abrir mão da segurança proporcionada
por uma teoria que aparentemente impõe ordem ao caos acontecimental da sessão. O que pode
ajudá-lo na dissolução dos laços libidinais com a teoria é justamente a satisfação derivada do
fato de estar vivo para o paciente – com a diferença de que, nesse caso, a satisfação não é
narcísica (trata-se de estar vivo para o paciente), o que pode tornar esse luto ainda mais
difícil.
E de que modo se processa essa dissolução dos laços libidinais? Voltemos a Freud
([1917a] 2006b, p. 104-105): “[...] cada uma das lembranças e expectativas que vinculavam a
libido ao objeto é trazida à tona e recebe uma nova camada de carga, isto é, de
sobreinvestimento. Em cada um dos vínculos vai se processando então uma paulatina
dissolução da libido.” Paralelamente a isso, “[...] a existência psíquica do objeto perdido
continua a ser sustentada” ([1917a] 2006b, p. 105). Ao final do processo, “[...] o Eu se torna
efetivamente livre e volta a funcionar sem inibições” ([1917a] 2006b, p. 105).
Entendemos que esta penúltima frase, dita quase que de passagem – “a existência
psíquica do objeto perdido continua a ser sustentada” – é de fundamental importância para
compreendermos o processo de luto em Melanie Klein ([1940] 1984). Para esta autora, o luto
não consiste apenas num processo de desligamento da libido – isto é, não se trata apenas de
um processo “pulsional” –, mas envolve fundamentalmente a introjeção do objeto perdido no
mundo objetal do enlutado. Trata-se, assim, da constituição de uma nova relação de objeto.
Freud fornece as bases para esse pensamento ao dizer que a existência do objeto perdido é
72
sustentada ao longo do processo de luto. O que Freud não disse, e coube a Melanie Klein
dizer, é que, ao término do processo, o Eu fica novamente livre e desinibido não só porque
desligou os laços libidinais com o objeto perdido, mas principalmente porque completou o
processo de introjeção desse objeto no psiquismo (KLEIN, [1940] 1984)
59
.
É isso que caberá ao analista fazer: desligar-se da teoria para poder introjetá-la no Eu,
sendo essa introjeção “a única saída para superar a dor da perda” (CINTRA; FIGUEIREDO,
2004, p. 99). É a partir dessa introjeção, aliás, que a teoria se fará presente na clínica. Com
isso, podemos retomar no plano metapsicológico a afirmação de Figueiredo comentada no
primeiro capítulo deste trabalho: “O conhecimento explícito ele mesmo só opera e só existe
como conhecimento se é também incorporado ao conhecimento subsidiário.” (FIGUEIREDO,
[1996a] 2004a, p. 120, grifos no original). A partir de Freud e Klein, podemos pensar a
assimilação das teorias a um nível subsidiário como um processo inconsciente de introjeção
de objetos. Naturalmente, o objeto interno resultante de um processo de luto bem-sucedido
será bastante diferente do objeto interno que se verificará no melancólico. Mas, nos dois
casos, é de objetos internos inconscientes que se trata.
Voltemos então a Ogden, que agora acompanha de perto a investigação de Freud da
melancolia (baseada, por sua vez, na investigação anterior do luto). Freud distingue três
situações: aquela em que, tal como o luto, a melancolia constitui uma reação à perda de um
objeto amado; uma segunda situação, na qual a perda é de natureza mais ideal; e, finalmente,
distingue os casos nos quais nenhuma perda é reconhecida (FREUD, [1917a] 2006b, p. 105).
Mas – e aí começa a se delinear a primeira diferença fundamental entre luto e melancolia do
ponto de vista metapsicológico – o desconhecimento que caracteriza essa terceira situação não
é exclusiva dela:
Esse desconhecimento ocorre até mesmo quando a perda desencadeadora da
melancolia é conhecida, pois, se o doente sabe quem ele perdeu, não sabe
dizer o que se perdeu com o desaparecimento do objeto amado (FREUD,
[1917a] 2006b, p. 105, grifos no original).
Vejamos a segunda parte desta frase, que Ogden comentará em detalhe, nas outras
traduções que se encontram disponíveis. Na versão de Marilene Carone, “[...] o doente [...]
sabe quem ele perdeu, mas não o que perdeu nele [no objeto]” (FREUD, [1917c] 1992, p.
59
Além da introjeção do objeto perdido, todo novo luto envolveria também uma reintrojeção dos objetos
primários, segundo Klein ([1940] 1984, p. 353). O exame dessa reintrojeção, contudo, não será de muita
importância para os fins do presente trabalho.
73
132
60
). Para a edição standard brasileira, “[...] o paciente [...] sabe quem ele perdeu, mas não
o que perdeu nesse alguém” (FREUD, [1917b] 1996b, p. 251, grifos no original). Devemos
lembrar que a edição standard brasileira consiste numa tradução da tradução inglesa, onde se
lê “[...] he knows whom he has lost but not what he has lost in him” (FREUD apud OGDEN,
2005a, p. 30, grifos no original).
Estas diversas traduções estão sendo apresentadas aqui porque a leitura de Ogden
desta frase centra-se sobre uma ambigüidade presente apenas no texto em inglês. Eis o
argumento de Ogden: a frase dá margem a pensarmos que o melancólico não sabe quais
aspectos ou características perdeu na pessoa que ama (i.e., não sabe qual a importância do
vínculo que o ligava àquela pessoa); e dá margem também a entendermos que o melancólico
não sabe o que perdeu em si mesmo em decorrência da perda da pessoa amada. Ou seja, o
melancólico parece ter perdido não apenas um objeto como também algo em seu próprio Eu,
em resposta à perda daquele objeto. E isso é muito diferente, como vimos, do que acontece ao
término do processo de luto, do qual o Eu sai enriquecido: abre-se mão das ligações libidinais
com o objeto externo que morreu para se construir um novo objeto interno. Também vimos
que esse processo tanto pode se referir a uma perda pontual, como no caso de uma morte,
quanto constante, referente às perdas cotidianas que sofremos na vida.
Aqui percebemos uma diferença entre Freud e Melanie Klein. Aquilo que se perde no
próprio Eu, para Klein, corresponde à desconstrução sofrida pelo mundo objetal interno – e
isso é inerente a todo processo de luto, mesmo os mais saudáveis. Assim, para Melanie Klein,
tanto o melancólico quanto o enlutado sofrem uma perda em seu Eu. A diferença é que este
último consegue reorganizar e reconstituir seu mundo interno, que fica acrescido de um objeto
interno novo. O melancólico, ao contrário, continua a viver em meio ao caos, tentando
organizá-lo onipotentemente através de defesas maníacas (KLEIN, [1940] 1984)
61
.
Desta forma, a leitura de Ogden parece-nos bastante plausível e fecunda, pois nos
levou a novas idéias e considerações. No entanto, será que ela efetivamente se aplicava àquela
frase em particular – isto é, será que o texto autoriza-nos a formular aquela interpretação?
Vejamos se essa mesma leitura pode ser aplicada às outras traduções disponíveis. A
edição standard brasileira não preservou a ambigüidade da tradução inglesa, e Marilene
Carone indica claramente entre chaves que a perda se refere ao objeto, eliminando qualquer
60
Expressão entre chaves da tradutora.
61
Em adição a isso, para Klein todo processo de luto envolve algum triunfo maníaco sobre o objeto. A própria
afirmação narcísica do Eu, que decide abdicar do objeto para continuar vivo, não deixa de ser uma defesa
maníaca para esta autora (KLEIN, [1940] 1984, p. 358).
74
ambigüidade possível. Para um resenhista de Ogden, inclusive, a ambigüidade está
decididamente ausente do texto original (BERMAN, 2007). A mesma opinião é
compartilhada pela tradutora brasileira de Ogden, para quem a “[...] edição inglesa [...] parece
haver introduzido a ambigüidade” (GASTAL, In: OGDEN, [1994c] 2003c, p. 179), ausente
no texto original e nas traduções brasileira, espanhola e francesa. Por outro lado, a tradução de
Luiz Hanns, ao introduzir a partícula apassivadora “se” (“o doente não sabe dizer o que se
perdeu”), permite uma leitura como a de Ogden, pois nos impede a localização precisa de
onde se deu a perda, se no sujeito ou no objeto. Esta tradução, inclusive, nem chega a ser
ambígua, pois nos abre claramente essas duas possibilidades de leitura.
Desta discussão toda, importa-nos notar que Ogden desconsiderou a materialidade do
texto original, isto é, fez sua interpretação sem levar em conta que o texto de Freud poderia
não dar margem a ela. Com isso, não estamos colocando em questão a qualidade de sua
interpretação, que ressalta “[...] a simultaneidade e interdependência de dois aspectos
inconscientes da perda do objeto na melancolia.” (OGDEN, 2005a, p. 30)
62
. Estamos apenas
apontando que Freud desenvolve essa idéia de maneira explícita posteriormente, e Ogden
escolhe mostrar como muito antes disso ela é introduzida no texto através de uma figura de
linguagem. O problema é que essa leitura soa um pouco forçada, na medida em que o autor
não toma o cuidado de confrontar a tradução utilizada com o texto original. Com isso, ele
impõe uma pré-concepção teórica à sua prática de leitura – no caso, sua concepção de que
Freud sutilmente introduz novas idéias no texto a partir de um determinado uso da linguagem,
antes de desenvolvê-las plenamente.
Situação semelhante a essa é a do analista que verbaliza uma interpretação cedo
demais em uma análise. Seguindo o pensamento de Bion ([1962] 1991), a interpretação pode
até ter sido “correta” do ponto de vista de seu conteúdo, mas o paciente ainda não dispunha do
aparelho mental (espaço psíquico) necessário para pensá-la. A conquista desse espaço pode
ser vista como a ampliação da capacidade de continência deste aparelho mental, isto é, como a
ampliação da capacidade de processar a experiência. Nos dois casos, texto e paciente saíram
da experiência de interpretação “atropelados” por uma concepção teórica prévia.
Mas, retornando ao texto de Ogden, há uma citação logo na seqüência em que Freud
fala, inequivocamente, da perda do objeto, pois será essa a primeira distinção que se
estabelecerá entre luto e melancolia do ponto de vista metapsicológico. A conclusão a que
Freud chega é que a perda do objeto é inconsciente para o melancólico, e consciente para o
62
“[...] the simultaneity and interdependence of two unconscious aspects of object loss in melancholia.”
75
enlutado. Mas o que isso implica para pensarmos a relação que o analista estabelece com as
teorias? Não precisamos supor que um “analista enlutado”
63
seja aquele que repita para si
mesmo, a cada momento, que “perdeu a teoria”, senão que podemos caracterizá-lo como
aquele que efetivamente reconhece a insuficiência dos conhecimentos representacionais para
dar conta da complexidade da clínica. O “analista melancólico”, por outro lado, é aquele que
não considera a possibilidade de a teoria ser insuficiente, quando se depara com situações na
clínica que não encontram apoio ou ressonância em conhecimentos representacionais.
Chegamos então ao próximo ponto comentado por Ogden: o rebaixamento do
sentimento de auto-estima no melancólico. Para isso, o autor cita o parágrafo de Freud em que
nos é descrito o tratamento que o melancólico confere ao próprio Eu:
No luto, o mundo tornou-se pobre e vazio; na melancolia, foi o próprio Eu
que se empobreceu. O doente nos descreve seu Eu como não tendo valor,
como sendo incapaz e moralmente reprovável. Ele faz autocensuras e insulta
a si mesmo e espera ser rejeitado e punido. Rebaixa-se perante qualquer
outra pessoa e lamenta pelos seus parentes, por estarem ligados a uma pessoa
tão indigna como ele. O doente não chega a pensar que uma mudança das
circunstâncias de vida se tenha abatido sobre ele; ao contrário, estende sua
autocrítica ao passado e afirma, em verdade, que nunca teria sido melhor.
(FREUD, [1917a] 2006b, p. 105).
Ogden novamente recorre à análise da linguagem empregada por Freud neste trecho:
Há um fluxo contínuo de pareamentos entre sujeito e objeto, eu e mim nesta
passagem: o paciente enquanto sujeito acusa, degrada, vilipendia a si mesmo
enquanto objeto (e estende essas acusações para trás e para frente no tempo).
(OGDEN, 2005a, p. 30)
64
.
Esses pareamentos, que indicam formas de o Eu se relacionar consigo mesmo, seriam
o primeiro indício da idéia de que o Eu pode sofrer uma cisão. Importa aqui a oposição
verificada entre o Eu enquanto sujeito e o Eu enquanto objeto – oposição esta que é dada tanto
pela contraposição entre pronome pessoal do caso reto e pronome pessoal do caso oblíquo
63
A partir deste ponto, empregaremos as expressões “analista enlutado” e “analista melancólico” para
discriminar duas diferentes formas de os analistas se relacionarem com a perda da teoria. Embora essas
expressões nos convidem a imaginar dois indivíduos distintos, é mais realista pensar que se trata de dois aspectos
presentes em todo analista. Assim, cada analista possuiria em si um “analista enlutado” e um “analista
melancólico”.
64
“There is a steady flow of subject-object, I-me pairings in this passage: the patient as subject reproaches,
abases, vilifies himself as object (and extends the reproaches backward and forward in time).”
76
(“ele” e “si”) quanto pelo elemento de composição “auto”. Este prefixo é a tradução do termo
alemão selbst, sobre o qual Marilene Carone diz:
Com Selbstgefühl começa neste texto toda uma série de termos com prefixo
selbst, em geral traduzidos pelo prefixo auto, em português. Assim, por
exemplo: Selbstvorwurf (auto-recriminação), Selbstbeschimpfung (auto-
insulto), Selbstkritik (autocrítica) [...] Esta profusão de termos selbst
certamente encontra seu sentido mais profundo na articulação teórica do
próprio texto e reflete a importância deste movimento de retorno à própria
pessoa, descrito em ‘Pulsões e seus Destinos’ (CARONE, In: FREUD,
[1917c] 1992, p. 131).
Assim, a tradutora ressalta o movimento de retorno da pulsão ao Eu, enquanto a leitura
de Ogden (2005a) centra-se sobre a cisão sofrida pelo Eu. A leitura de Ogden, portanto, não
recai sobre a dimensão pulsional do aparelho psíquico, mas sobre um novo modo de olhar
para esse aparelho que começa a se configurar aqui e culmina na elaboração da segunda
tópica.
Mas voltemos por um instante ao rebaixamento da auto-estima, antes de nos
aprofundarmos nesse problema metapsicológico. Seria o “analista melancólico” tomado por
uma baixa auto-estima profissional? Acreditamos que isso é possível, embora seja tão ou mais
freqüente que “analistas melancólicos” sofram, ao contrário, de uma excessiva autoconfiança.
Essa autoconfiança exacerbada, porém, sempre pode ser vista como uma defesa maníaca
destinada a encobrir uma insegurança básica. Mas seremos obrigados a interromper
momentaneamente essas considerações sobre a baixa auto-estima e a mania, que correm o
risco de ficar muito vagas, até termos condição de abordá-las de um novo patamar.
Voltando à questão metapsicológica, Ogden cita um trecho no qual, três parágrafos
depois daquele que vínhamos estudando, Freud apresenta “[...] uma nova concepção do ego,
que até este ponto havia sido apenas aludida” (OGDEN, 2005a, p. 31)
65
:
[...] a afecção do melancólico nos revela [uma visão] sobre a constituição do
Eu humano. Nesses casos, vemos que uma parte do Eu do paciente se
contrapõe à outra e a avalia de forma crítica, portanto, uma parcela do Eu
trata a outra como se fora um objeto. [...] O que se nos apresenta aqui é a
instância comumente denominada consciência moral [...] e mais adiante
comprovaremos que a consciência moral também pode adoecer
isoladamente. (FREUD, [1917a] 2006b, p. 107, grifos no original).
65
“[...] a new conception of the ego which to this point has only been hinted at:”
77
De uma leitura cuidadosa deste trecho, Ogden extrai “[...] os primeiros de uma série de
princípios subjacentes à emergente teoria psicanalítica freudiana das relações de objetos
internos inconscientes” (2005a, p. 31)
66
. Esses princípios são quatro:
[...] em primeiro lugar, o ego, agora uma estrutura psíquica com
componentes conscientes e inconscientes (‘partes’), pode ser cindido; em
segundo, um aspecto inconsciente cindido do ego tem a capacidade de gerar
pensamentos e sentimentos de forma independente [...]; em terceiro, uma
parte cindida do ego pode estabelecer uma relação inconsciente com outra
parte do ego; e em quarto, um aspecto cindido do ego pode ser saudável ou
patológico. (2005a, p. 33)
67
A formulação desses princípios chama a atenção pelo alcance da leitura de Ogden.
Trata-se de uma leitura que realmente leva a sério e a fundo o que o texto diz, buscando as
implicações últimas das elaborações freudianas. Somos remetidos aqui ao comentário de
Caper sobre a relação entre a teoria kleiniana dos objetos internos e a teoria freudiana da
identificação: “A teoria kleiniana dos objetos internos é uma extensão lógica da teoria sexual
da identificação de Freud: se acreditamos que podemos engolir nossos objetos, devemos então
acreditar que eles residem dentro de nós” (1999a, p. 98)
68
. Preferimos evitar falar em lógica,
pois o termo pode dar a entender que a teoria kleiniana seria então a única possível a partir de
Freud (isto é, a teoria freudiana necessariamente levaria à teoria kleiniana). Sem entrar nessa
polêmica, contudo, gostamos da idéia de que Melanie Klein leva as idéias de Freud às suas
últimas conseqüências, pois acreditamos que Ogden faz algo semelhante com os textos que
comenta – e, principalmente, com seus pacientes. Vale a pena reproduzir aqui uma vinheta
clínica sua na qual isso fica particularmente evidente:
Um paciente recentemente disse que ele teria de escrever cem vezes que
deveria estar sempre atento às suas próprias necessidades em vez de curvar-
se simplesmente aos desejos dos outros. O paciente estava usando esta
metáfora da escrita mecânica e repetitiva para descrever um esforço
imaginário de alterar sua inclinação a substituir os desejos e idéias de outras
pessoas pelos seus próprios. (Até a idéia representada na metáfora possuía
um teor marcadamente clichê). Nesse sentido, o paciente estava usando uma
metáfora de um jeito não-metafórico. Ele não era capaz de
66
“[...] the first of a set of tenets underlying Freud’s emerging psychoanalytic theory of unconscious internal
object relations:”
67
“[...] first, the ego, now a psychic structure with conscious and unconscious components (‘parts’), can be split;
second, an unconscious split-off aspect of the ego has the capacity to generate thoughts and feelings
independently […]; third, a split-off part of the ego may enter into an unconscious relationship to another part of
the ego; and, fourth, a split-off aspect of the ego may be either healthy or pathological.”
68
“Klein’s theory of internal objects is a logical extension of Freud’s sexual theory of identification: if we
believe we can swallow our objects, we must then believe they reside inside us.”
78
ouvir/experienciar o fato de que sua comparação (seu jeito de pensar, falar,
experienciar, e por aí vai) continha um potencial de riqueza que estava sendo
solapado por seu medo (inconsciente) de reconhecer e considerar a
comparação que ele havia feito. Ele questionou irritadamente por que o
analista estava dando tanta importância a algo que era apenas uma ‘figura de
linguagem’. O paciente era incapaz de se permitir ouvir que sua metáfora
poderia ser uma expressão de sua percepção/fantasia inconsciente de que o
modo como ele tenta fazer mudanças psicológicas é tão ineficaz e fadado ao
fracasso quanto as punições da escola primária que tentam promover
mudança através da escrita mecânica e repetitiva de uma resolução de
interromper algum comportamento delinqüente (‘eu não vou conversar
durante a aula, eu não vou conversar durante a aula’). (OGDEN, 2001b, p.
33-34)
69
.
Nesta vinheta, Ogden leva a sério aquilo que o próprio paciente não é capaz de levar a
sério: o uso que faz de metáforas e a mensagem inconsciente que estas comunicam. O estilo
de Ogden é o estilo destemido de um kleiniano que visa à interpretação certeira e pronta das
angústias mais arcaicas e urgentes do paciente: “[...] o analista [kleiniano] move-se orientado
por uma espécie de sensor de angústias apto a captá-las em seus pontos de eclosão, mesmo
quando ainda latentes” (CINTRA; FIGUEIREDO, 2004, p. 174). Na leitura de textos, isso se
manifesta na consideração e interpretação de algumas idéias no momento mesmo em que
aparecem – como, por exemplo, no caso da cisão do Eu, idéia que Ogden “captou” no texto de
Freud antes que ela viesse a ser plenamente definida. O risco desse estilo clínico e de leitura
de textos, como vimos, está em que a interpretação pronta (no sentido de prontidão, presteza)
vire uma interpretação pronta (isto é, acabada e dissociada do objeto da interpretação).
69
“A patient recently said that he would have to write one hundred times that he should always be aware of his
own needs and not simply defer to the wishes of others. The patient was using this metaphor of repeated
mechanical writing to describe an imaginary effort to alter his penchant for substituting the wishes and ideas of
other people for his own. (Even the idea represented in the metaphor had a strikingly clichéd feel to it). In this
instance, the patient was using a metaphor in a nonmetaphoric way. He was not able to hear/experience the fact
that his comparison (his way of thinking, speaking, experiencing, and so on) held a potential for richness that
was being undermined by his (unconscious) fear or recognizing and considering the comparison that he had
made. He irritatedly wondered why the analyst was making such a big deal over what was only a ‘figure of
speech’. The patient was unable to allow himself to hear that his metaphor might be an expression of his
unconscious perception/fantasy that the way he attempts to make psychological changes is as ineffective and
doomed to failure as are the punishments in grade school that attempt to effect change by the mechanical,
repetitive writing of a resolution to stop some delinquent behavior (‘I will not talk in class, I will not talk in
class’).”
79
3.3
Chegamos assim à segunda seção do texto de Ogden, que inicia retomando o sintoma
melancólico do rebaixamento da auto-estima. Freud assinala que as inúmeras auto-
recriminações do melancólico são na verdade “[...] recriminações dirigidas a um objeto
amado, as quais foram retiradas desse objeto e desviadas para o próprio Eu” (FREUD,
[1917a] 2006b, p. 107). Esta descoberta resolve uma contradição anteriormente notada por
Freud, e que só agora Ogden vem a comentar: o rebaixamento do sentimento de auto-estima
vem acompanhado no melancólico por uma notável tendência a se fazer conhecer
publicamente. Não só o melancólico não demonstra a vergonha que seria esperada de uma
pessoa supostamente tão desprezível, como parece inclusive “[...] derivar alguma satisfação
de se auto-expor” (FREUD, [1917a] 2006b, p. 106).
Desta forma, a constatação de que as auto-recriminações do melancólico são
fundamentalmente acusações dirigidas a um objeto amado explica por que o melancólico não
se envergonha em se desnudar moralmente diante dos outros: “[...] tudo de depreciativo que
dizem de si mesmos na verdade estão dizendo de outra pessoa” (FREUD, [1917a] 2006b, p.
108). Assim, o prazer que derivam dessa auto-depreciação consiste num prazer rigorosamente
sadomasoquista – afinal, os objetos internos do melancólico estabelecem uma relação
sadomasoquista entre eles. Como vimos, o Eu foi cindido em duas partes, uma das quais julga
e critica a outra. Se pensarmos que os objetos internos, sejam quais forem, serão sempre
partes do Eu do indivíduo, a satisfação derivada da auto-depreciação pode ser corretamente
considerada como sendo masoquista. Por outro lado, é igualmente correto considerarmos essa
satisfação como sádica, se lembrarmos que a parte do Eu julgada e criticada é a parte
identificada com o objeto perdido. Trata-se, portanto, de um prazer que simultaneamente
satisfaz tendências sádicas e masoquistas do Eu.
Podemos agora reconsiderar a baixa auto-estima do “analista melancólico”. O
rebaixamento do sentimento de auto-estima no “analista melancólico” seria representado
justamente pelo conjunto das críticas que esse analista dirige a si mesmo em sua atuação
profissional e que deveriam, ao contrário, ser endereçadas à teoria da qual nem lhe passa pela
cabeça abrir mão. É claro que muitas dessas autocríticas podem ser perfeitamente justas; mas
Freud adverte-nos de que
80
[...] não devemos nos surpreender se encontrarmos, entre as acusações que se
voltaram contra o próprio Eu, algumas auto-recriminações genuínas; elas
podem estar em primeiro plano apenas para encobrir as outras e tornar
impossível identificar o que realmente está em jogo (FREUD, [1917a]
2006b, p. 107).
E o que, afinal, está em jogo? Isto é – como diferenciar auto-recriminações sensatas de
auto-recriminações masoquistas infrutíferas? Quando, por exemplo, um analista atribui sua
dificuldade no manejo da transferência numa determinada análise ao fato de que “não foi
suficientemente bem analisado” – como decidir se é realmente isso o que está em jogo, ou se
tal declaração esconde em seu fundo uma profunda insatisfação com a teoria ou supervisão a
que ele se reporta?
Naturalmente, só existem respostas singulares para esta questão que é genérica. A
presente pesquisa possui condições de formular explicitamente a questão, mas cada analista
terá de buscar suas respostas em sua própria análise, supervisão e estudos teóricos.
Voltemos ao texto de Ogden, que comentará agora aquilo que o autor considera “[...]
uma concepção radicalmente nova da estrutura do inconsciente” (OGDEN, 2005a, p. 32)
70
.
Consideramos importante reproduzir aqui na íntegra o longo trecho no qual Freud descreve o
processo que leva uma “constelação psíquica de rebelião” (manifesta no sentimento de ultraje
do melancólico, que se comporta como a vítima de uma “grande injustiça”) à “contrição
melancólica” (FREUD, [1917a] 2006b, p.108). Aliás, podemos pensar que as próprias auto-
acusações são formações de compromisso, na medida em que revelam o estado de guerra em
que se encontra o mundo interno do melancólico ao mesmo tempo que o negam (o tom de
ultraje inerente às auto-acusações do melancólico convive com o penoso sentimento de culpa
por ele ser uma pessoa supostamente tão desprezível).
Isto posto, passemos à citação que trata da transformação da “constelação psíquica de
rebelião [...] em contrição melancólica” (FREUD, [1917a] 2006b, p. 108):
Podemos então facilmente reconstruir esse processo. Havia ocorrido uma
escolha de objeto, isto é, o enlaçamento da libido [Bindung] a uma
determinada pessoa. Entretanto, uma ofensa real ou decepção proveniente da
pessoa amada causou um estremecimento dessa relação com o objeto. O
resultado não foi um processo normal de retirada da libido desse objeto e a
seguir seu deslocamento para outro objeto, mas sim algo diverso, que para
ocorrer parece exigir a presença de determinadas condições. O que se seguiu
foi que o investimento de carga no objeto se mostrou pouco resistente e
firme e foi retirado. A libido então liberada, em vez de ser transferida a outro
70
“[...] a radically new conception of the structure of the unconscious.”
81
objeto, foi recolhida para dentro do Eu. Lá essa libido não foi utilizada para
uma função qualquer, e sim para produzir uma identificação do Eu com o
objeto que tinha sido abandonado. Assim, a sombra do objeto caiu sobre o
Eu. A partir daí uma instância especial podia julgar esse Eu como se ele
fosse um objeto, a saber: o objeto abandonado. Desta forma, a perda do
objeto transformou-se num conflito entre a crítica ao Eu e o Eu, modificado
pela identificação. (FREUD, [1917a] 2006b, p. 108, grifos no original.)
O comentário de Ogden deste trecho inicia pela seguinte afirmação:
Estas sentenças representam uma demonstração poderosamente sucinta de
como Freud estava começando a escrever/pensar teórica e clinicamente em
termos de relações entre aspectos inconscientes, pareados e cindidos do ego
(isto é, sobre relações de objetos internos inconscientes). (OGDEN, 2005a,
p. 33)
71
.
Ou seja, Ogden está atento ao modo de escrever e pensar (teórica e clinicamente) de
Freud, mais do que apenas ao conteúdo da teoria que Freud está construindo. É interessante
notar nesta passagem o modo como Ogden relaciona escrita e pensamento, teoria e clínica: ao
colocar o sinal de barra entre escrever e pensar, o autor nos refere à correspondência mútua
que ele percebe existir (e que percebe existir em Freud) entre as duas atividades. Com esta
barra, Ogden sugere que o exercício da escrita pode ser uma atividade clínica, além de teórica.
Ogden prossegue sua análise com uma voz deferente: “Há tanta coisa acontecendo
nesta passagem que é difícil saber por onde começar a discuti-la.” (OGDEN, 2005a, p. 33)
72
.
Mas, além do respeito à genialidade de Freud, o que se ouve também nesta frase é um respeito
aos limites da linguagem. Por mais que desejemos comentar “tudo ao mesmo tempo” e de
uma vez só, somos limitados pela própria natureza da linguagem escrita: será necessário
escolher e comentar um aspecto do texto de cada vez. Esse confronto entre o que é
onipotentemente desejado e o que é efetivamente possível perpassa todo o texto de Freud,
segundo Ogden:
[Freud] está mostrando ao leitor, por meio de seu uso da linguagem, da
estrutura de seu pensamento e de sua escrita, qual a sensação de pensar e
escrever de um jeito que não tenta confundir o que é onipotente e
alucinadamente desejado com o que é real; as palavras são usadas num
71
“These sentences represent a powerfully succinct demonstration of the way Freud in this paper was beginning
to write/think theoretically and clinically in terms of relationships between unconscious, paired, split-off aspects
of the ego (i.e., about unconscious internal object relations).”
72
“There is so much going on in this passage that it is difficult to know where to start in discussing it.”
82
esforço de dar às idéias e situações seus nomes apropriados, de maneira
simples, acurada e clara. (2005a, p. 40)
73
.
Ogden faz algo semelhante na frase que vimos, reconhecendo claramente não só a
importância e o peso do texto freudiano como também as dificuldades envolvidas em sua
interpretação. Será necessário eleger um fio da trama cuidadosamente tecida por Freud para
que, seguindo-o, adentremos a própria lógica de constituição desse tecido teórico.
O fio escolhido é uma sutil e importante “[...] alteração na linguagem que Freud está
usando, que serve para expressar uma reconsideração de um importante aspecto de sua
concepção da melancolia” (OGDEN, 2005a, p. 33)
74
. Ogden chama a nossa atenção para o
modo como Freud, sem maiores comentários ou explicações, passa a falar em “objeto
abandonado” ao se referir ao melancólico (em oposição a “objeto perdido” quando se refere
ao luto).
Não se trata apenas de reconhecer a natureza ideal da perda sofrida pelo melancólico.
Afinal, Freud fala em “ofensa real ou decepção” ([1917a] 2006b, p. 108) por parte da pessoa
amada; inconscientemente, a morte pode ser sentida como uma verdadeira ofensa, como se
fora uma atitude tomada pelo objeto especialmente destinada a castigar o Eu (KLEIN, [1940]
1984). É interessante notar também que, com esta alteração terminológica, Freud já aponta
para a dimensão sádica da melancolia: o Eu melancólico, que havia sido abandonado pelo
objeto, agora o abandona, como que em vingança a ele.
Mas a interpretação de Ogden dessa alteração terminológica está atenta para algo mais.
Ao comparar a perda do objeto no luto com o abandono na melancolia, este autor considera
que o abandono é menos radical que a perda – isto é, o próprio termo “abandono” remete-nos
a um “[...] evento psicológico paradoxal: o objeto abandonado, para o melancólico, é
preservado na forma de uma identificação para com ele.” (OGDEN, 2005a, p. 33, grifos
nossos)
75
.
O comentário prossegue tomando em consideração o recurso de Freud a uma figura de
linguagem: a metáfora da sombra do objeto. Ogden ressalta duas imagens que a metáfora
73
“[Freud] is showing the reader in his use of language, in the structure of his thinking and writing, what it
sounds like and feels like to think and write in a way that does not attempt to confuse what is omnipotently, self-
deceptively, wished for with what is real; words are used in an effort to simply, accurately, clearly give ideas and
situations their proper names.”
74
“[...] shift in the language Freud is using that serves to convey a re-thinking of an important aspect of his
conception of melancholia.”
75
“[…] a paradoxical psychological event: the abandoned object, for the melancholic, is preserved in the form of
an identification with it.”
83
evoca: escuridão e bidimensionalidade. “Na melancolia, o ego não é alterado pelo brilho do
objeto, mas (de forma mais sinistra) pela ‘sombra do objeto’” (OGDEN, 2005a, p. 33)
76
; além
disso, a sombra parece indicar que a relação do melancólico com o objeto abandonado é de
qualidade bidimensional. Ogden está aqui aproximando sombra de bidimensionalidade e
morte, e opondo essa tríade a brilho, tridimensionalidade e vida.
Após esses dois comentários sobre o uso da linguagem por parte de Freud – um
relacionado à substituição do termo “perda” por “abandono”, e o outro referente à metáfora da
sombra do objeto –, Ogden passa a tecer comentários ao texto de ordem mais claramente
teórica. Mas esta passagem é tão sutil que quase passa despercebida:
A metáfora da sombra sugere que a experiência do melancólico de
identificação com o objeto abandonado possui uma qualidade magra e
bidimensional em oposição a um sentimento de tons vivos e robustos. A
dolorosa experiência da perda entra em curto-circuito através da
identificação do melancólico com o objeto, negando assim a separação do
objeto: o objeto sou eu e eu sou o objeto.
(OGDEN, 2005a, p.33)
77
Verifica-se aqui um trânsito bastante fluido entre comentários sobre aspectos formais
do texto e comentários sobre seu conteúdo. A “ponte” desse trânsito, que liga o comentário
sobre a metáfora da sombra ao comentário sobre a natureza da perda melancólica, é o
conceito de identificação. Esse conceito, aliás, opera não apenas a passagem entre forma e
conteúdo nos comentários de Ogden como também entre as dimensões fenomenológica e
metapsicológica da experiência. Na primeira frase, Ogden fala em “experiência de
identificação”; na segunda, fala da “identificação do melancólico com o objeto”. Trata-se,
assim, de entender como o melancólico experiencia (“what it feels like”; nível
fenomenológico) o processo inconsciente de identificação (nível metapsicológico). Em outras
palavras, observamos aqui a passagem do nível 1 ao nível 5 da escala de Waelder.
Façamos também nós uma passagem e tomemos agora o texto de Ogden para
consideração de um ponto de vista fundamentalmente teórico – isto é, estaremos atentos para
a compreensão de Ogden do processo inconsciente subjacente à melancolia:
76
“In melancholia, the ego is altered not by the glow of the object, but (more darkly) by the ‘shadow of the
object’.”
77
“The shadow metaphor suggests that the melancholic’s experience of identifying with the abandoned object
has a thin, two-dimensional quality as opposed to a lively, robust feeling tone. The painful experience of loss is
short-circuited by the melancholic’s identification with the object, thus denying the separateness of the object:
the object is me and I am the object.”
84
A dolorosa experiência da perda entra em curto-circuito através da
identificação do melancólico com o objeto, negando assim a separação do
objeto: o objeto sou eu e eu sou o objeto. Não há perda; um objeto externo (o
objeto abandonado) é onipotentemente substituído por um objeto interno (o
ego-identificado-com-o-objeto).
Assim, em resposta à dor da perda, o ego é partido em dois, formando uma
relação objetal interna na qual uma parte cindida do ego (a instância crítica)
raivosamente (de forma ultrajante) volta-se contra a outra parte cindida do
ego (o ego-identificado-com-o-objeto). (OGDEN, 2005a, p. 33-34)
78
.
Desta forma, vemos que, para Ogden, o melancólico abandona o objeto, em vez de
propriamente perdê-lo, porque não desfaz inteiramente seus vínculos libidinais com ele. Ao
contrário, o melancólico mantém esses vínculos ativos na medida em que cinde o Eu em duas
partes e redireciona a libido originalmente investida no objeto externo a uma dessas partes do
Eu, promovendo assim uma identificação entre tal parte e o objeto externo. Uma vez
estabelecida essa identificação, nega-se a perda: “‘Não perdi o objeto – na verdade, não posso
perdê-lo, já que eu sou o objeto’” (CAPER, 1999a, p. 102, grifo no original)
79
. As duas partes
cindidas do Eu estabelecem então uma relação sadomasoquista, na qual a parte do Eu
identificada com o objeto sofre as recriminações da instância crítica.
A identificação efetuada pelo melancólico resolve também uma contradição com a
qual nos deparamos anteriormente neste estudo (ver p. 75): “No luto, o mundo tornou-se
pobre e vazio; na melancolia, foi o próprio Eu que se empobreceu” (FREUD, [1917a] 2006b,
p. 105). Ora, na melancolia foi o Eu que se empobreceu justamente porque ele está
identificado com o objeto “abandonado” (que o melancólico não consegue experienciar como
tendo sido perdido). Para o enlutado, porém, o objeto foi efetivamente subtraído do mundo
externo; por esta razão o mundo se torna pobre e vazio.
Podemos ainda acrescentar aos comentários de Ogden que a relação objetal interna
verificada entre a instância crítica e a parte do Eu identificada com o objeto constitui uma
espécie de “vingança” inconsciente do melancólico ao objeto amado. No mundo externo, uma
das partes da relação (o objeto amado) desapontou a outra (o sujeito melancólico); no mundo
interno, uma das partes do Eu (a instância crítica, isto é, o Eu enquanto sujeito) critica a outra
78
“The painful experience of loss is short-circuited by the melancholic’s identification with the object, thus
denying the separateness of the object: the object is me and I am the object. There is no loss; an external object
(the abandoned object) is omnipotently replaced by an internal one (the ego-identified-with-the-object).
So, in response to the pain of loss, the ego is twice split forming an internal object relationship in which one
split-off part of the ego (the critical agency) angrily (with outrage) turns on another split-off part of the ego (the
ego-identified-with-the-object).”
79
“‘I have not lost the object – in fact, I cannot lose the object, since I am the object’.”
85
(o Eu identificado com o objeto) por esse desapontamento. Já temos aqui um prenúncio do
sadismo inerente às relações objetais internas do melancólico.
Mas o ponto essencial para Ogden, aqui, é que o melancólico precisa evadir a dor da
perda – ou melhor, o melancólico é alguém que não suporta / não consegue estar vivo para a
dor da perda. Conforme nos alerta Caper, de forma bastante precisa, a melancolia “[...] não
deriva da perda do objeto, mas da perda da capacidade de reconhecer que um objeto que se
ama foi perdido [...]” (1999a, p. 101)
80
.
Tendo em mente este ponto essencial, Ogden retoma então aquilo que considera ser a
característica comum a toda forma de psicopatologia: uma “[...] auto-limitação inconsciente
da capacidade de o indivíduo experienciar o sentimento de estar vivo como ser humano.”
(OGDEN, [1997b] 2004b, p. 18)
81
. Para este autor,
[...] a relação objetal interna é criada com o propósito de escapar ao doloroso
sentimento da perda do objeto. [...] Em troca da evasão à dor da perda do
objeto, o melancólico é condenado a experienciar o sentimento de
desvitalização que advém de seu desligamento de amplas parcelas da
realidade externa. [...] O mundo interno do melancólico é poderosamente
moldado pelo desejo de manter o objeto cativo na forma de um substituto
imaginário – o ego-identificado-com-o-objeto. (OGDEN, 2005a, p. 34)
82
.
Nestas duas últimas frases, o autor já nos aproxima dos aspectos mais psicóticos da
melancolia: a fuga da realidade (“desligamento de amplas parcelas da realidade externa”) e o
controle maníaco sobre o mundo objetal interno (“desejo de manter o objeto cativo”) (KLEIN,
[1940] 1984). É importante termos claro que o melancólico “paga o preço” do desligamento
da realidade e do dispêndio de energia destinado a manter seu mundo objetal interno sob
controle para evadir “[...] uma forma de dor psíquica que [ele teme] não poder suportar”
(OGDEN, [1997b] 2004b, p. 19)
83
: a dor da perda do objeto. O melancólico mortifica-se para
“[...] a realidade de sua experiência vivida [...]” (OGDEN, 2005a, p. 43)
84
para que o objeto
não possa morrer.
80
“[...] arises not from the loss of the object, but from the loss of the capacity to acknowledge that an object that
one loves has been lost […]”
81
“[...] unconscious self-limitation of one’s capacity to experience being alive as a human being.”
82
“[...] the internal object relationship is created for purposes of evading the painful feeling of object-loss. [...] In
exchange for the evasion of the pain of object-loss, the melancholic is doomed to experience the sense of
lifelessness that comes as a consequence of disconnecting oneself from large portions of external reality. [...] The
internal world of the melancholic is powerfully shaped by the wish to hold captive the object in the form of an
imaginary substitute for it – the ego-identified-with-the-object.”
83
“[...] a form of psychic pain that [he is] afraid [he] cannot endure.”
84
“[...] the reality of his lived experience [...]”
86
Passamos assim à primeira vinheta clínica do texto, que parafrasearemos aqui
entremeando-a de comentários. O relato se inicia pela descrição de um sonho do paciente,
cuja análise começou um ano após a morte de sua esposa. No sonho, o paciente, Sr. K, estava
em um evento onde seria prestada homenagem a alguém cuja identidade lhe era desconhecida.
Justo quando as solenidades estavam para começar, um homem se levantou em meio à platéia
para discorrer elogiosamente sobre o excelente caráter e as importantes realizações do
paciente. Quando o homem concluiu o discurso, o paciente levantou-se, agradeceu a louvação
e lembrou a todos que o propósito da reunião era render tributo ao convidado de honra, a
quem eles deveriam, portanto, voltar a sua atenção. O paciente, então, voltou a se sentar –
momento no qual outra pessoa se levantou e novamente louvou o paciente demoradamente. O
Sr. K novamente se levantou, repetiu seu discurso de agradecimento e redirecionou a atenção
dos convivas ao convidado de honra. “Esta seqüência foi repetida indefinidamente, até que o
paciente chegou à aterrorizante constatação (no sonho) de que esta seqüência continuaria
eternamente.” (OGDEN, 2005a, p. 34)
85
. O paciente despertou deste sonho em pânico e com
o batimento cardíaco acelerado.
É curioso notar que, no sonho que Ogden escolhe apresentar, acontece coisa
aparentemente oposta ao que Freud fala sobre o melancólico. Em vez de se auto-recriminar,
no sonho o paciente é elogiado por outros (isto é, toma-se como objeto de elogio). Ogden não
o diz, mas podemos supor que tenha havido no sonho uma transformação das críticas em seu
oposto (formação reativa), para que o sonho pudesse ser levado a cabo – do contrário, talvez
tivesse sido insuportável para o paciente. De qualquer forma, o que o sonho não consegue
disfarçar – o que escapa à censura superegóica – é o sentimento de terror provocado pelo
aprisionamento a algo eterno e imutável. É este o ponto essencial para Ogden, não as auto-
recriminações em si. Auto-recriminações ou auto-elogios, o importante aqui é o prefixo
“auto”: o terror está no aprisionamento a si mesmo, ao próprio mundo objetal interno.
Ogden nos informa então de alguns eventos ocorridos nas sessões anteriores à do
relato do sonho. Não sabemos se esses eventos foram relembrados durante a sessão em si (o
analista pensando neles à medida que ouvia o relato), ou se tais acontecimentos somente lhe
ocorreram a posteriori, no momento mesmo da escrita (neste caso, a escrita teria demandado
do analista a explicitação de conhecimentos que lhe estavam tácitos, no “calor” da sessão
analítica). De qualquer forma, tais lembranças foram retiradas de um fundo de conhecimentos
85
“This sequence was repeated again and again until the patient had the terrifying realization (in the dream) that
this sequence would go on forever.
87
subsidiários tácitos e trazidas para o foco. Veremos como a interpretação será baseada nessas
associações do analista, bem como em conhecimentos teóricos que, embora não se façam
presentes explicitamente, sob a forma de lembranças, também participam da composição da
interpretação.
Ogden não adota aqui a técnica clássica de pedir ao paciente que associe ao sonho,
pois como bem nos lembra em outro texto,
É importante ter em mente a natureza atemporal dos sonhos e das
associações aos sonhos [...]. Se o analista está focado nos eventos
associativos que se seguem ao relato do sonho pelo paciente, ele pode perder
de vista o modo pelo qual o paciente já pode ter associado ao sonho [...]
(OGDEN, [1997f] 2004f, p. 151)
86
.
Além disso, as associações do analista ao sonho devem ser levadas em consideração
tanto quanto as do próprio paciente, já que tanto o sonho quanto as associações a ele não
constituem criação exclusiva de nenhum dos integrantes da análise tomados isoladamente, e
sim uma produção do terceiro analítico (OGDEN, [1997f] 2004f, p. 142-143).
Assim, as associações ao sonho que Ogden recupera das sessões anteriores são o
desespero do paciente ao se questionar sobre sua capacidade de um dia poder vir a amar outra
mulher; sua expectativa renovada a cada dia de que a esposa fosse chegar em casa
pontualmente para o jantar; sua experiência das reuniões familiares como eventos destinados
unicamente a lhe relembrar que sua mulher estava ausente. O questionamento do paciente,
enfim, centrava-se sobre sua capacidade (ou falta desta) de “[...] ‘recomeçar a vida’”
(OGDEN, 2005a, p. 34)
87
a partir do ponto em que fora interrompida.
O analista intervém dizendo que o sonho parecia capturar o modo como o paciente se
sentia
[...] aprisionado em sua incapacidade de genuinamente se interessar, quanto
mais honrar, novas experiências com as pessoas. No sonho, ele, sob a forma
dos convidados prestando interminável homenagem a ele, dirigia a si mesmo
o que poderia ter sido um interesse voltado para alguém exterior a si próprio,
alguém que estivesse de fora de sua relação internamente congelada com a
esposa (OGDEN, 2005a, p. 34-35)
88
.
86
“It is important to bear in mind the atemporal nature of dreams and dream associations [...] If the analyst is
focused on the associational events following the patient’s telling of the dream, he may lose sight of the way in
which the patient may have already associated to the dream [...]
87
“[...] ‘resume life’.”
88
“[...] imprisoned in his inability genuinely to be interested in, much less honor, new experiences with people.
In the dream, he, in the form of the guests paying endless homage to him, directed to himself what might have
88
O analista aponta ainda a notável ausência de dados sobre o homenageado, a quem não
eram atribuídas qualidades humanas; e acrescenta que o horror sentido ao final do sonho
parecia refletir “[...] sua percepção de que o estático estado de auto-aprisionamento em que
vivia era potencialmente interminável” (OGDEN, 2005a, p. 35)
89
. Ogden fornece então ao
leitor outro elemento dos “bastidores” de seu trabalho: ele nos diz que boa parte dessa
interpretação referia-se a discussões prévias que havia mantido com o paciente a respeito de
seu “[...] ‘empacamento’ em um mundo que não mais existia” (2005a, p. 35)
90
.
O paciente responde à interpretação com a lembrança / criação de outra cena do sonho:
“[...] uma única imagem estática de si mesmo, atrelado a pesadas correntes e incapaz de
mover um músculo sequer de seu corpo” (OGDEN, 2005a, p. 35)
91
. Em um outro nível,
poderíamos dizer que a resposta do paciente à interpretação consistiu em um relaxamento do
controle sobre seu mundo objetal interno (KLEIN, [1940] 1984), já que o Sr. K referiu alívio
de pesarosos sentimentos e sensações corporais: as separações do analista tornaram-se menos
desoladoras, e a sensação de peso em seu peito com que convivia desde a morte da esposa
chegou a desaparecer em alguns momentos.
Para comentar esta vinheta clínica, será necessário retrocedermos um pouco para
entendermos quais os sentidos clínico e teórico que os sonhos apresentam para Ogden. Sobre
o sentido clínico já falamos um pouco: Ogden considera que a visão clássica segundo a qual
os sonhos devem ser interpretados a partir das associações fornecidas pelo paciente precisa ser
“[...] suplementada [por] uma perspectiva que insere a análise dos sonhos no contexto de uma
compreensão do sonho como um evento analítico intersubjetivo” ([1997f] 2004f, p. 139)
92
. A
partir dessa compreensão suplementar, o sonho deixa de ser considerado produção exclusiva
do analisando e torna-se uma criação do terceiro analítico. Sendo assim, a interpretação do
sonho pelo analista na ausência das associações livres do paciente deixa de ser considerada
uma forma de “análise selvagem”: as associações do analista, nessa perspectiva, constituem
material de análise igualmente relevante.
been interest paid to someone outside of himself, someone outside of his internally frozen relationship with his
wife.”
89
“[...] his awareness that the static state of self-imprisonment in which he lives is potentially endless.”
90
“[...] his state of being ‘stuck’ in a world that no longer existed.”
91
“[...] a single still image of himself wrapped in heavy chains unable to move even a single muscle of his
body.”
92
“[...] supplement [this view] with a perspective that places the analysis of dreams in the context of an
understanding of the dream as an intersubjective analytic event.”
89
Com relação ao sentido teórico dos sonhos, pode-se dizer de forma bastante resumida
que Ogden, seguindo Bion ([1962] 1991), considera-os o produto de um trabalho inconsciente
de ligação dos elementos da experiência (OGDEN, 2005f) – ou, como define Figueiredo
(2006, p. 85, grifos no original), “[...] sonhos [...] funcionam como mediações transitivas
necessárias para a elaboração de elementos beta e sua transformação em elementos alpha.
Tomemos esta definição de Figueiredo, condizente com a proposta de Bion e Ogden, e
deixemo-nos temporariamente levar por este seu trabalho
93
, que aborda justamente as
múltiplas possibilidades interpretativas que os sonhos pedem e propiciam. Ali, o autor nos
lembra que os sonhos trazidos a uma análise devem ter falhado em suas funções de mediação
e ligação dos elementos da experiência. Ou, como diz Ogden,
Uma pessoa consulta um psicanalista porque está sofrendo emocionalmente
– uma dor que, sem que ela mesma saiba, ela é incapaz de sonhar (i.e., é
incapaz de realizar um trabalho psíquico inconsciente com ela), ou está tão
perturbada pelo conteúdo do que está sonhando que o sonhar é interrompido.
(2005c, p. 1-2)
94
.
Assim, “[...] há sonhos que solicitam suplementos para poderem exercer plenamente
sua função de mediação transitiva” (FIGUEIREDO, 2006, p. 85). A pessoa consulta o
psicanalista, afinal, para que “[...] possa tornar-se mais capacitada a sonhar seus sonhos não-
sonhados e interrompidos.” (OGDEN, 2005c, p. 2)
95
. Os sonhos levados a uma análise, então,
freqüentemente constituem experiências que necessitam da interpretação do analista para que
possam “voltar a fluir”. A interpretação do sonho é vista aqui como uma tentativa de restituir
ao sonho sua função mediadora.
Como vimos, Figueiredo também está atento à dimensão intersubjetiva do sonhar. Este
autor distingue três modalidades de interpretação de sonhos, sustentadas por diferentes
matrizes da intersubjetividade (COELHO JR.; FIGUEIREDO, 2004):
Há, por exemplo, interpretações ensonhantes, em que o analista se mantém
muito próximo aos processos primários, tanto os seus quanto os do paciente,
criando um campo comum de rêverie que expande e enriquece o sonho
narrado e gera um ambiente de acolhimento transubjetivo de subjetivação.
[...] Há, de outro lado, interpretações confrontadoras, inquietantes e, no
93
"A questão do sentido, a intersubjetividade e as teorias das relações de objeto" (2006).
94
“A person consults a psychoanalyst because he is in emotional pain, which unbeknownst to him, he is either
unable to dream (i.e. unable to do unconscious psychological work) or is so disturbed by what he is dreaming
that his dreaming is disrupted.”
95
“[...] may become better able to dream his undreamt and interrupted dreams.”
90
limite, traumáticas, capazes de propiciar novas disseminações e novas
inflexões ao trabalho psíquico, surpreendendo o paciente e, eventualmente, o
próprio analista. [...] Há, finalmente, interpretações voltadas para o
reconhecimento e para o testemunho das quais, mais claramente, podem
emergir compreensões relativamente esclarecedoras do que se passou e está
passando no mundo interno do indivíduo. (FIGUEIREDO, 2006, p. 85).
Pensamos que a interpretação de Ogden ao sonho do Sr. K constitui um belo exemplo
de uma interpretação deste terceiro tipo. Ogden atribui sentido a algo que inicialmente era um
terror sem nome e desesperado. Aquilo que era um terror puramente somático (estado de
pânico, coração acelerado) é nomeado pela interpretação e encontra uma morada no
psiquismo. Os efeitos desta nomeação e atribuição de lugar à angústia reverberaram pela vida
do paciente, que passou a suportar melhor as separações do analista e a sofrer menos de dores
no peito. Ou seja, “[...] não se trata apenas ou necessariamente de fazer sentido do sonho,
compreendê-lo, mas de fazer do sonho um elo dos processos psíquicos capazes de enfrentar o
mal-estar psíquico” (FIGUEIREDO, 2006, p. 85). A interpretação do sonho propiciou uma
mediação entre somático e psíquico, respondendo ao pedido de reconhecimento do
analisando:
Quanto mais os afetos associados à inclusão e / ou à exclusão preponderam,
mais as funções de reconhecimento e associadas a ele tornam-se necessárias
para liberar o sonhador para novos caminhos associativos e disseminativos
(FIGUEIREDO, 2006, p. 85).
O sonho do Sr. K parece-nos em seu ponto mais central envolver afetos ligados à
inclusão e à exclusão: qual o lugar do Sr. K na festa, e qual o lugar do convidado de honra? O
convidado deve ou não comparecer à festa e ser homenageado? Isto é, o sonho parece centrar-
se sobre a possibilidade (ou falta desta) de que novas pessoas e experiências sejam incluídas
(“homenageadas”) no mundo interno do paciente. Com uma interpretação atenta a este
dinamismo psíquico entre os mundos interno e externo – ou melhor, à ausência de uma tal
dinâmica, manifestada no sonho pelo aprisionamento do paciente a uma situação
potencialmente infindável –, o analista efetivamente ajuda o sonhador a percorrer novos
caminhos associativos. Após esta interpretação geradora de reconhecimento, o paciente
lembra-se de uma nova imagem do sonho, que representa de forma particularmente pungente
o estado de auto-aprisionamento em que se encontra: a imagem estática de si próprio
aprisionado em correntes. Ou seja, quanto mais claramente a angústia aparece – isto é, quanto
mais o paciente torna-se capaz de sonhar a sua angústia –, mais ela se torna uma experiência
91
integrada ao psiquismo, com a qual se podem realizar atividades psicológicas conscientes e
inconscientes que resultarão em crescimento emocional (OGDEN, 2005f).
Resta-nos agora investigar de que forma e em que medida a teoria psicanalítica
comparece nesta interpretação de Ogden ao sonho. Nesta investigação, não tentaremos
discriminar “o que veio da teoria” e “o que veio da prática” (isto é, o que veio
predominantemente da experiência do analista com textos, aulas etc. e o que
predominantemente emergiu a partir de seu contato com o paciente). Em vez disso, nos
esforçaremos em descrever a imbricação dessas duas dimensões da experiência no âmbito da
clínica.
Por exemplo, quando o analista diz ao paciente que o sonho comunicava o quanto ele
se sentia genuinamente incapaz de se interessar pelas pessoas e iniciar novas experiências
com elas. Aqui, o analista claramente está se reportando ao sonho, onde tudo se voltava para a
pessoa do paciente. Ao mesmo tempo, porém, esta fala também se refere ao aspecto da teoria
segundo o qual o mundo objetal interno do paciente melancólico encontra-se “fechado” para
novas trocas com o mundo externo.
Só com este exemplo, já começamos a nos aproximar dos limites de uma classificação
das teorias tal como a proposta por Waelder. A interpretação clínica que estamos
considerando aqui, longe de apenas “organizar os dados imediatamente apreendidos na
relação com o paciente” (nível 1), traz embutida em si uma teoria clínica (dos processos
inconscientes do luto e da melancolia – nível 4) e pressupostos metapsicológicos (sobre um
mundo objetal interno inconsciente – nível 5).
Vamos a outro exemplo. A escuta de Ogden foi sensível a um determinado aspecto do
conteúdo do sonho: a ausência de características humanas no convidado de honra. O
homenageado – tal qual a “casa muito engraçada” que “não tinha teto, não tinha nada”
96
– era
absolutamente desprovido de qualidades que pudessem provocar qualquer tipo de resposta
emocional no paciente. De onde provém esta intervenção? Ou, refinando a questão – quais
são as vozes que a constituem?
Tomemos para consideração não apenas esta fala em particular, mas o conjunto das
falas que compõem a interpretação do sonho. Nele, ouvimos quatro vozes sendo proferidas
simultaneamente, como numa fuga. Em primeiro lugar, temos a voz do paciente, que às vezes
se faz ouvir justamente por seu silêncio (a ausência de informações sobre o convidado de
96
Versos extraídos da canção “A Casa”, de Vinícius de Moraes.
92
honra). Os silêncios – as pausas – são tão constituintes das vozes na fuga quanto as notas
propriamente ditas / tocadas.
Em segundo lugar, temos a singular voz do analista Ogden, que atua como
contraponto ao silêncio do paciente. Ogden pode se contrapor a esse silêncio justamente por
estar especialmente atento à psicopatologia como uma forma de auto-limitação – e, se
quisermos também, auto-amortecimento e dessensibilização – aos “prazeres e dores, alturas e
profundezas” (GOETHE apud OGDEN, [1997b] 2004b)
97
da experiência humana.
Em terceiro lugar, temos Melanie Klein, cuja voz comparece inequivocamente na
menção à “relação internamente congelada” do paciente com a esposa. Esta é a voz que canta
a existência de um mundo interno povoado por objetos inconscientes.
Finalmente, há a voz de Freud. Se quisermos prosseguir em nossa metáfora musical, é
como se esta voz fosse o baixo que provê sustentação às vozes soprano, tenor e contralto de
Sr. K, Ogden e Klein. A metáfora da fuga é particularmente fecunda para pensarmos a
imbricação dessas vozes porque nossos ouvidos ordinariamente são capturados pelos sons
agudos mais do que pelos graves. Assim, a primeira audição de uma fuga tende a estar
centrada na voz soprano – mas o tema pode estar sendo exposto no baixo, ou numa voz
intermediária. Analogamente, poderíamos considerar a voz de Freud como subterrânea à
interpretação de Ogden, prioritariamente centrada na voz (que inclui o silêncio) do paciente e,
secundariamente, nas suas auto-limitações inconscientes e na dinâmica de seu mundo interno.
Mas embora esta leitura seja correta, ela não é suficiente: é preciso ainda considerar que a voz
freudiana é a primeira a se fazer ouvir dentre todas as outras (o tema desta fuga apareceu
primeiramente no baixo): a interpretação de Ogden inicia justamente pela consideração da
“suspensão do interesse [do paciente] pelo mundo externo” (FREUD, [1917a] 2006b, p. 103).
Contudo, como bem nos lembra Robert Frost, “[...] toda metáfora se quebra em algum
lugar” (apud OGDEN, 2001a, p. 26)
98
. Um dos inúmeros pontos em que a metáfora da fuga se
mostra inadequada para pensarmos o processo analítico é que ela consiste numa composição
musical que foi premeditada e escrita, o que não poderia ser mais diferente do que ocorre
numa análise. Quando viva, uma análise é um processo em permanente construção,
desconstrução e reconstrução. Se quiséssemos nos manter no campo da música, seria
necessário aproximá-la a algum gênero em que a improvisação é essencial ao mesmo tempo
97
“[...] the joys and griefs (sic), the heights and depths”.
98
“[...] all metaphor breaks down somewhere.”
93
em que delimitada por alguns parâmetros bem definidos (vem-nos à mente a improvisação
que se conforma à estrutura harmônica da música).
Estas considerações são importantes porque as vozes que descrevemos anteriormente
não estavam necessariamente presentes desde o início da sessão, mas foram se constituindo à
medida mesma que dialogavam. Isto é, acreditamos que o contato com o sonho do paciente
possibilitou que uma nova voz teórica emergisse em Ogden: a voz que diz “[...] o melancólico
auto-aprisionado [...] sobrevive em um mundo objetal interno atemporal e imortal (e, não
obstante, morto e mortificador)” (2005a, p. 43)
99
. Tal frase constitui um bom exemplo da
participação do analisando como co-autor silencioso da teoria: se Freud já nos alertava para a
inoperância das categorias lógicas no inconsciente, no sonho o Sr. K vive a aterrorizante
experiência de aprisionamento em um mundo extemporâneo. Tanto Freud quanto o Sr. K,
portanto, fornecem a Ogden elementos importantes em sua elaboração de uma teoria da
melancolia.
Por fim, resta-nos considerar a linguagem utilizada por Ogden na enunciação da
interpretação ao paciente. Chama-nos a atenção o fato de sua linguagem estar bastante
próxima da experiência do paciente, ao mesmo tempo que distante o suficiente para introduzir
elementos na linguagem estranhos ao paciente e à linguagem do sonho. Exemplo disso está na
menção do analista ao paciente de que este “[...] dirigia a si mesmo o que poderia ter sido um
interesse voltado para alguém exterior a si próprio, alguém que estivesse de fora de sua
relação internamente congelada com a esposa” (OGDEN, 2005a, p. 35)
100
.
Quando o analista fala em “alguém exterior a si próprio”, está se referindo mais
diretamente às imagens contidas no sonho. Mas quando fala em “relação internamente
congelada”, fica claro que essa fala está informada por uma teoria determinada: sabemos, só
por estas palavras, que não se trata de uma intervenção de um psicólogo comportamental ou
humanista, pois estes jamais pensariam a experiência do paciente nesses termos. Ao mesmo
tempo, porém, Ogden fala na “relação internamente congelada” do paciente com sua esposa,
isto é, traz a teoria clínica psicanalítica ao plano da experiência daquele indivíduo em
particular. Ao formular a interpretação, portanto, o analista estava suficientemente implicado
no atendimento para estar atento às imagens e palavras utilizadas pelo paciente no relato do
sonho (e assim reutilizar algumas delas na interpretação); ao mesmo tempo, porém, ele
99
“[...] the self-imprisoned melancholic [...] survives in a timeless, deathless (and yet dead and deadening)
internal object world.”
100
“[...] directed to himself what might have been interested paid to someone outside of himself, someone
outside of his internally frozen relationship with his wife.”
94
também estava suficientemente reservado do contato com o paciente para conseguir
estabelecer contato com a teoria psicanalítica, entendida aqui como um objeto interno fonte de
possibilidades interpretativas
101
. Esta dialética entre implicação e reserva (FIGUEIREDO,
2000) é bastante bem exemplificada por uma interpretação que, como vimos, mistura “relação
internamente congelada” e “estado de auto-aprisionamento” a “convidados prestando uma
homenagem infinita ao paciente”.
Mas voltemos a uma linha de pensamento que deixamos de lado há pouco. Trata-se da
consideração de que a escuta analítica de Ogden foi sensível a um determinado aspecto do
sonho dentre vários outros: a ausência de características humanas no convidado de honra.
Com isso queremos dizer que o analista tomou esse elemento do conteúdo do sonho para
consideração em vez de um outro qualquer – por exemplo, o “senta e levanta” constante dos
convidados e do próprio paciente no sonho. Com a atenção flutuante, o analista torna-se
potencialmente aberto a qualquer coisa que venha a acontecer na sessão – isto é, o analista
torna-se aberto “[...] a todas as diferenças, mas também a todas as semelhanças. Uma atenção
que precisa não se deter, para poder se deter em algo” (COELHO JR., 2000, p. 82). Podemos
perguntar então pelo critério que fez sua atenção se deter naquele aspecto em particular.
Pensamos que um dos elementos que pode contribuir para que a atenção do analista
seja fisgada aqui ou ali é justamente o conhecimento teórico subsidiário que informa sua
escuta. Esse conhecimento atua como um fundo sobre o qual irão se destacar determinados
aspectos da fala ou do comportamento do paciente. Alguns fundos “pedem” determinadas
figuras, e vice-versa. Exige-se do analista, então, uma dupla tarefa: de um lado, apreender as
teorias de forma a incorporá-las a um conhecimento subsidiário, para que possam fornecer um
contexto sobre o qual a clínica ganhe algum sentido; de outro, “desapreendê-las”, isto é,
promover um trânsito suficientemente móvel entre diversas teorias nesse fundo tácito, para
que os objetos da clínica possam ser contextualizados em diferentes cenários, comunicando
assim diferentes sentidos.
101
Sobre esta última idéia, ver p. 104 do presente estudo.
95
3.4
Uma vez findo o relato, Ogden retoma o comentário do texto de Freud, que agora
retomará conceitos introduzidos em “À Guisa de Introdução ao Narcisismo” ([1914] 2006a).
Ogden traça uma distinção entre os modos de Freud abordar o problema do luto e da
melancolia. Se a chave para o quadro clínico da doença está na identificação inconsciente do
melancólico com o objeto perdido / abandonado (FREUD, [1917a] 2006b, p. 107), a chave
para o problema teórico será encontrada no tipo de vínculo que o sujeito estabelecia com o
objeto antes que ele fosse perdido. Ao distinguir o quadro clínico da melancolia do problema
teórico que ela representa, Ogden ajuda-nos a ver que, para Freud, esses dois problemas estão
necessariamente relacionados, uma vez que “a chave para o quadro da doença” (FREUD,
[1917a] 2006b, p. 107) abre uma porta que leva a um novo problema teórico:
Por um lado, é necessário que tenha havido uma forte fixação [...] no objeto
de amor, mas, por outro, e em contradição com esta premissa, é preciso que
haja concomitantemente uma fraca resistência e aderência do investimento
depositado no objeto. FREUD, [1917a] 2006b, p. 108)
A resolução desta contradição envolve o conceito de narcisismo, que Ogden retoma
didaticamente em seguida. O interesse do texto sobre o narcisismo para a presente discussão
está na linha evolutiva esboçada por Freud entre os diferentes tipos de ligação que o Eu
estabelece com o objeto. Trata-se da passagem do narcisismo para a identificação narcísica,
desta para a relação de objeto de tipo narcísica e, finalmente, desta para a relação de objeto
por veiculação sustentada (FREUD, [1914] 2006a). Podemos pensar estas passagens como
sempre envolvendo um maior “[...] reconhecimento e investimento emocional na alteridade
do objeto” (OGDEN, 2005a, p. 36)
102
:
A criança inicialmente vive num estado de narcisismo primário, no qual toma o
próprio Eu como seu único objeto de investimento libidinal. Ela começa então a empreender
identificações narcísicas, nas quais o objeto é tratado como uma extensão do Eu. A partir
dessas identificações, a criança pode começar a estabelecer ligações com o objeto que, por
conter algum grau de reconhecimento de sua alteridade, podem apropriadamente ser
denominadas relações: trata-se da relação de objeto de tipo narcísica. Neste tipo de relação, o
102
“[...] recognition of, and emotional investment in, the otherness of the object.”
96
objeto recebe o investimento libidinal que originalmente era direcionado ao Eu. A alteridade
está em que a libido pode ser efetivamente investida em outro objeto, mas ela encontra seu
limite no fato de que este objeto atua como um substituto do próprio Eu. Por fim, na relação
de objeto por veiculação sustentada este é experienciado como sendo externo ao Eu: está fora
do campo de controle onipotente do sujeito
103
.
É interessante notar a seguinte mudança terminológica no texto de Ogden: quando o
autor se refere à identificação narcísica, ele fala em “ligação com o objeto” (“object tie”).
Quando se refere à relação de objeto por veiculação sustentada, fala em “amor pelo objeto”
(“object love”). Esta mudança possui em comum com aquela efetuada por Freud – passagem
do termo “perdido” para “abandonado” ([1917a] 2006b, p. 108) – o fato de não merecer
nenhum comentário por parte do autor: a mudança de “ligação” para “amor” dá-se en passant,
soando bastante natural e corriqueira aos ouvidos do leitor. Todavia, acreditamos que essa
alteração na linguagem encerra um sentido teórico mais profundo: Ogden só utiliza a palavra
“amor” para caracterizar uma relação de objeto em que a alteridade deste é plenamente
reconhecida; para uma relação em que sujeito e objeto encontram-se indiferenciados, reserva
a palavra “ligação”.
Podemos assim sintetizar esta linha evolutiva que considera as relações do Eu com
seus objetos: parte-se da ausência de reconhecimento do outro para uma certa indiferenciação
entre Eu e outro, chegando a um progressivo reconhecimento de sua alteridade
104
. Assim,
uma maior maturidade emocional é conquistada à medida que a pessoa pode ir se percebendo
“[...] apenas quem se é [...]” (CAPER, 1999a, p. 96)
105
e nada além disso, e pode portanto se
relacionar com os objetos em sua alteridade (o objeto deixa de ser um mero substituto do Eu).
Mas esses dois tipos de relação de objeto (narcísica e por veiculação sustentada)
106
não podem ser pensados apenas de um ponto de vista evolutivo diacrônico, sendo o primeiro
mais original e primitivo que o segundo. O indivíduo saudável, para Ogden, atinge “[...] uma
103
Este tipo de relação de objeto recebe esse nome porque as pulsões sexuais, aqui, “apóiam-se [...] no processo
de satisfação das pulsões do Eu para veicularem-se” (FREUD, [1914] 2006a, p. 107). Isso significa que o objeto
sexual deste tipo de relação de objeto satisfaz necessidades relativas à autoconservação do bebê. Aqui, portanto,
o objeto sexual deixa de ser o próprio Eu do sujeito e passa a ser a pessoa que dele cuida.
104
Por outro lado, podemos também afirmar, seguindo Coelho Jr. e Figueiredo (2004), que a matriz traumática
da intersubjetividade está operando desde o princípio – isto é, desde o princípio o sujeito se veria eticamente
interpelado pela alteridade do objeto. A lógica da suplementaridade inerente às matrizes da intersubjetividade
permite-nos pôr a linha evolutiva acima delineada em perspectiva: não se trata de um julgamento acabado sobre
o desenvolvimento do Eu, mas de uma linha de pensamento entre outras.
105
“[…] only oneself [...]”
106
O narcisismo primário e a identificação narcísica não chegam a ser considerados tipos de relação de objeto,
na medida em que não há diferenciação suficiente entre sujeito e objeto nesses casos para que se possa falar
numa relação entre ambos (afinal, “o objeto sou eu e eu sou o objeto” – Ogden, 2005a, p. 33).
97
diferenciação e complementaridade entre libido egóica e libido objetal” (OGDEN, 2005a, p.
36)
107
: “Na saúde, as duas formas de relação objetal – narcísica e vincular – desenvolvem-se
‘lado a lado’” (2005a, p. 126)
108
. Podemos inferir daí não apenas que o indivíduo saudável
relaciona-se com alguns objetos de forma narcísica, e com outros de forma mais madura, por
“veiculação sustentada” – mas também, e principalmente, que esses dois tipos coexistem na
forma de este indivíduo se relacionar com um mesmo objeto. Isto é, dificilmente
encontraremos na prática uma relação de objeto que seja puramente narcísica ou puramente
por veiculação sustentada: provavelmente, teremos que parte da libido investida neste objeto
será libido objetal, e parte libido do Eu, deslocada para o objeto. É mais preciso, portanto,
falarmos em relações de objeto “predominantemente” narcísicas ou por veiculação sustentada
(em oposição a relações de objeto “puramente” de um tipo ou de outro).
No entanto, isso é “[...] quando tudo vai bem [...]” (WINNICOTT, 1965, p. 56)
109
. Se,
por outro lado, “As circunstâncias ambientais ou biológicas [forem] desfavoráveis, o bebê
pode desenvolver uma psicopatologia caracterizada pelo recurso quase exclusivo a relações
objetais narcísicas [...]” (OGDEN, 2005a, p. 126)
110
.
Com isso, podemos voltar à contradição suscitada pela melancolia, que envolve uma
ligação com o objeto ao mesmo tempo “forte” e “fraca”: é forte a fixação ao objeto, porém é
fraca a resistência do vínculo frente a obstáculos que se interponham entre sujeito e objeto. O
tipo de ligação com o objeto que atende a esses dois pré-requisitos é a relação de objeto de
tipo narcísica: temos aí uma “forte fixação” na medida em que o objeto investido ocupa o
lugar do Eu; ao mesmo tempo, o vínculo possui fraco poder de resistência porque a libido, ao
se deparar com qualquer obstáculo (por exemplo, o abandono ou a morte), pode muito
rapidamente retornar ao Eu. A “metáfora do protozoário” nos é aqui de especial relevância
para compreendermos essa regressão:
[...] originalmente o Eu é investido de libido e [...] uma parte dessa libido é
depois repassada aos objetos; contudo, essencialmente, a libido permanece
retida no Eu. Poderíamos dizer que ela se relaciona com os investimentos [de
tipo narcísico] realizados nos objetos de modo análogo àquele com que o
corpo de um protozoário se relaciona com os pseudópodes que projeta em
direção aos objetos. (FREUD, [1914] 2006a, p. 99).
107
“[...] a differentiation and complementarity between ego-libido and object-libido.”
108
“In health, the two forms of object relatedness – narcissistic and attachment-type – develop ‘side by side’.”
109
“[…] when all goes well […]”.
110
“Under less than optimal environmental or biological circumstances, the infant may develop psychopathology
characterized by an almost exclusive reliance on narcissistic object relatedness [...]”
98
Ou seja: diante de qualquer obstáculo, a libido retorna para o Eu, do qual nunca se
havia verdadeiramente distanciado (isto é, trata-se aqui de libido do Eu deslocada para os
objetos, e não de libido objetal) – tal qual os pseudópodes do protozoário, que se retraem
quando na presença de alguma ameaça externa.
Assim, o paciente melancólico é alguém que “[...] foi incapaz de progredir
satisfatoriamente do narcisismo ao amor pelo objeto” (OGDEN, 2005a, p. 36)
111
, de forma
que, ao ser confrontado com a perda ou desapontamento pelo objeto, não pode fazer o luto
dele, pois não pode reconhecê-lo como diferente do próprio Eu. Em vez de fazer o luto, isto é,
em vez de chorar a perda do objeto amado, o melancólico defende-se da dor dessa perda
através da regressão para uma identificação narcísica de parte do Eu com o objeto perdido /
abandonado. O Eu aprisiona o objeto em si próprio por meio dessa identificação narcísica
(impedindo, portanto, que ele morra) – mas, ao mesmo tempo, o sujeito torna-se preso a esta
(ou ainda, presa desta) relação inconsciente, já que para mantê-la será necessário sacrificar a
percepção da realidade de que o objeto não existe mais.
“A identificação narcísica com o objeto torna-se um substituto do investimento
amoroso anteriormente depositado, permitindo que – apesar do conflito com o objeto de amor
– não seja preciso renunciar à relação amorosa em si” (FREUD, [1917a] 2006b, p. 108-109).
Para Ogden, é este “[...] o ponto central da tese de Freud” (OGDEN, 2005a, p. 37)
112
:
A natureza narcísica da personalidade do melancólico lhe confere uma
incapacidade de manter uma conexão firme com a dolorosa realidade da
irrevogável perda do objeto, conexão esta que é necessária para o luto. A
melancolia envolve o recurso rápido e reflexo à regressão para a
identificação narcísica como uma forma de não experienciar a amargura
implicada no reconhecimento da própria inabilidade para desfazer o fato de
que o objeto foi perdido. (OGDEN, 2005a, p. 37)
113
Para compreendermos bem o alcance dessa tese, será necessário mais uma vez
retornarmos a idéias discutidas anteriormente. Nesse processo de retorno da libido ao Eu, é
importante lembrarmos que o Eu sofreu uma cisão. Para Ogden, esta cisão deu origem a duas
“partes do Eu” (isto é, dois objetos internos) que reproduzem internamente a relação que se
111
“[...] was unable to move successfully from narcissism to object-love.”
112
“[…] the central point of Freud’s thesis”.
113
“The narcissistic nature of the melancholic’s personality renders him incapable of maintaining a firm
connection with the painful reality of the irrevocable loss of the object which is necessary for mourning.
Melancholia involves ready, reflexive recourse to regression to narcissistic identification as a way of not
experiencing the hard edge of recognition of one’s inability to undo the fact of the loss of the object.”
99
dava na realidade externa. Retomemos o trecho de Freud de onde Ogden depreende essa cisão
que recria a realidade externa no mundo interno:
A libido então liberada, em vez de ser transferida a outro objeto, foi
recolhida para dentro do Eu. Lá essa libido não foi utilizada para uma função
qualquer, e sim para produzir uma identificação do Eu com o objeto que
tinha sido abandonado. [...] A partir daí uma instância especial podia julgar
esse Eu como se ele fosse um objeto, a saber: o objeto abandonado. Desta
forma, a perda do objeto transformou-se num conflito entre a crítica ao Eu e
o Eu, modificado pela identificação (FREUD, [1917a] 2006b, p. 108).
No mundo externo, o sujeito é desapontado por um objeto de amor que morreu ou o
abandonou. De forma análoga, teremos no mundo interno uma cisão que resultará numa parte
do Eu identificada com o sujeito (desapontado pelo objeto), e numa parte do Eu identificada
com o objeto (que abandonou o sujeito).
Pensamos que o exame dessa cisão e das partes do Eu que dela se originam são de
fundamental importância para compreendermos a seguinte afirmação de Freud: “[...] o
investimento erótico no objeto do melancólico tem um duplo destino: em parte ele regrediu à
identificação, em parte, porém, foi remetido [...] ao sadismo” ([1917a] 2006b, p. 110).
Acreditamos que a libido que regrediu à identificação é a libido que foi redirecionada à parte
do Eu identificada com o objeto (que abandonou o sujeito). Já a libido que regrediu ao
sadismo é a libido que foi redirecionada à parte do Eu identificada com o sujeito (abandonado
pelo objeto). Desta forma, o Eu-identificado-com-o-sujeito deprecia, degrada (de certa forma,
abandona) o Eu-identificado-com-o-objeto. Assim, as críticas que o melancólico dirige a si
mesmo são as críticas do Eu-identificado-com-o-sujeito ao Eu-identificado-com-o-objeto.
Temos portanto uma outra possibilidade de compreensão da passagem efetuada por
Freud do termo “perdido” para “abandonado”, quando do estudo do processo inconsciente da
melancolia. Levando-se em conta a realidade externa, é justo falar que o objeto amado do
melancólico é um objeto abandonador, e não abandonado (pois o objeto abandonou o sujeito,
dando origem assim ao estado melancólico). Mas, do ponto de vista da realidade interna, o
objeto, sob a forma do Eu-identificado-com-o-objeto, é abandonado pelo Eu-identificado-
com-o-sujeito, que se encontra sob a influência do sadismo. Desta forma, o “objeto
abandonador” da realidade externa converte-se no “objeto abandonado” da realidade interna.
Mas deixemos o sadismo de lado por enquanto para retornarmos ao tema de nossa
pesquisa. Antes disso, porém, será necessário retomar uma idéia de Melanie Klein. Isso
100
porque Ogden, ao falar da introjeção narcísica do objeto na melancolia (ou melhor, da
identificação regressiva de parte do Eu ao objeto), não aborda a introjeção análoga que se
passa no luto – sendo que, neste último, não se trata de introjeção narcísica, e sim da
introjeção de um objeto bom. Ou seja, a introjeção do objeto perdido na pessoa enlutada é
fruto do tipo de relação que o sujeito mantinha com aquele objeto: fundamentalmente, uma
relação na qual a alteridade do objeto pode ser reconhecida e sustentada.
Vejamos o significado e as implicações da introjeção do bom objeto para dois
comentadores contemporâneos de Klein. Deve-se ter em mente que os autores estão se
referindo à introjeção do “primeiro” (entre aspas, aqui, para nos lembrarmos da condição ideal
e teórica desta formulação) objeto bom na vida de uma pessoa. Será necessário transpor suas
considerações para outros objetos – especificamente, teorias:
A introjeção do objeto bom é a colocação, para dentro do aparelho psíquico,
de todas as experiências de prazer formando um registro dinâmico bem
estabelecido, isto é, uma ‘reserva’ interna de experiências de prazer que pode
funcionar como uma garantia de acesso ao prazer e à segurança, aumentando
a capacidade de se tolerar estados transitórios de privação ou frustração.
Nessa medida, o bom objeto é mais que o mero registro das experiências de
satisfação, pois tem uma eficácia e um dinamismo próprios. O objeto bom é,
assim, o nome da experiência de satisfação introjetada e convertida em uma
fonte de bem-estar e segurança, é o nome do que resulta da introjeção da
experiência de encontro entre a necessidade da criança e o que o ambiente
pôde efetivamente proporcionar a ela. Esse objeto bom introjetado será a
fonte das pulsões de vida e do amor. (CINTRA; FIGUEIREDO, 2004, p. 84,
grifos no original).
Partiremos do conjunto de idéias apresentado até agora sobre os processos
inconscientes do luto e da melancolia, acrescido da idéia kleiniana da introjeção do objeto
bom no luto, para abordarmos o tema de nossa pesquisa desde este novo patamar teórico.
Agora estamos em condição de formular e responder a seguinte pergunta: o que todas essas
idéias implicam para pensarmos o que acontece na clínica quando a teoria é perdida, isto é,
quando não mais responde às exigências da clínica? Será preciso entender as vicissitudes
sofridas pela teoria perdida no psiquismo do analista – e, a partir daí, os destinos que lhe serão
dados na clínica.
Em se tratando de uma relação de objeto predominantemente narcísica, já temos uma
idéia do que acontece: o objeto perdido é “mantido vivo” via uma identificação narcísica
regressiva a parte do Eu. Mas o que isso significa, se o objeto for uma teoria? Em que consiste
a identificação narcísica a uma teoria?
101
Pensamos que isso equivale a cristalizar a teoria no conhecimento subsidiário.
Estamos cunhando esse termo aqui para caracterizar um determinado tipo de relação com a
teoria na qual a identificação com ela é tão profunda (“a teoria sou eu e eu sou a teoria”), que
qualquer olhar objetivo e crítico para ela se torna inviável. A teoria fica de tal forma arraigada
ao conhecimento subsidiário que o trânsito entre este nível do conhecimento e o
conhecimento explícito fica interrompido – assim como fica interrompido o trânsito entre
mundo externo (as exigências da clínica) e mundo interno do analista (no qual o analista-
teoria, que são nesse plano uma só e a mesma coisa, está aprisionado).
A teoria está tão entranhada ao corpo do analista que este não mais a percebe como um
conjunto de idéias, mas como a própria natureza das coisas. Desta forma, os objetos da clínica
que se relacionam àquela teoria tenderão a ser focalizados sempre da mesma maneira, sem
que o analista se dê conta de que isso não se deve a um padrão daqueles objetos, e sim à
fixidez do fundo. Além disso (ou melhor, exatamente por isso, isto é, devido a essa
naturalização do conhecimento), o analista fica incapacitado de efetuar um deslocamento
libidinal desta teoria para outras, quando a teoria em questão “morre”: novos investimentos
libidinais em outras teorias não são possíveis (nem necessários) na medida em que a teoria
com a qual se estabelece uma relação narcísica está rigidamente entranhada no Eu do analista
– estará, eternamente, “dando conta de tudo”. Ou seja, a manutenção da teoria no mundo
interno via identificação narcísica a uma parte do Eu (isto é, sua cristalização no
conhecimento subsidiário) se dará ao preço de um contato empobrecido do analista com o
mundo externo (isto é, com a realidade clínica). O analista, nesse caso, impede a clínica de
irromper em sua dimensão traumática de alteridade: a escuta analítica deixou de ser guiada
pela atenção flutuante e passou a focar-se exclusivamente nos objetos visados pela teoria. A
clínica converte-se assim numa apresentação sucessiva de dados e pacientes que já se conhece
antes mesmo que se possa ouvi-los.
Respondida essa primeira questão, passemos agora à que lhe é correlata: em que
consiste a introjeção da teoria como objeto bom?
Tal introjeção nada tem a ver com a cristalização da teoria no conhecimento
subsidiário; trata-se, a nosso ver, de processo correspondente àquele que Figueiredo ([1996a]
2004a) denominara “incorporação da teoria ao conhecimento subsidiário”. Acompanhemos
passo a passo as considerações de Cintra e Figueiredo (2004) sobre a introjeção do objeto
bom, para que possamos compreender o significado e as implicações de se introjetar uma
teoria como um objeto bom no psiquismo:
102
“A introjeção do objeto bom é a colocação, para dentro do aparelho psíquico, de todas
as experiências de prazer formando um registro dinâmico bem estabelecido [...]” (2004, p.
84). Detenhamo-nos em dois pontos. Em primeiro lugar, quais são as “experiências de prazer”
que uma teoria pode proporcionar? Além disso, que seria a formação de um “registro
dinâmico bem estabelecido”?
A resposta à primeira destas questões será baseada naquilo que anteriormente (p. 67)
comentamos ser “a única coisa que podemos legitimamente esperar de uma teoria
psicanalítica em nossa prática clínica”: que ela nos ajude no atendimento dos pacientes.
Assim, estamos sugerindo que derivamos prazer de uma teoria sempre que ela nos ajuda na
clínica – seja “[fornecendo] critérios de focalização, ajudando os processos de configuração
dos fenômenos clínicos” (FIGUEIREDO, [1996a] 2004a, p. 124) ou “[desalojando] os
conhecimentos tácitos impregnados nas práticas mecanizadas, reintroduzindo nelas o espaço
do encontro com o inesperado” ([1996a] 2004a, p. 124).
Que seria, então, a formação de um “registro dinâmico bem estabelecido” no aparelho
psíquico? Acreditamos que com isso os autores estão se referindo ao dinamismo e à lógica de
funcionamento próprios aos objetos internos, que “[...] passam a observar leis e
funcionamentos peculiares e desconhecidos no mundo externo” (COELHO JR.;
FIGUEIREDO, 2004, p. 23).
Portanto, a colocação para dentro do aparelho psíquico das experiências de prazer
proporcionadas pela teoria – isto é, experiências nas quais ela veio ao encontro das
necessidades impostas pela clínica – implica que a teoria passará a operar no aparelho
psíquico como um objeto interno que obedece a uma lógica de funcionamento própria.
A citação de Cintra e Figueiredo continua da seguinte forma: “[...] isto é, uma
‘reserva’ interna de experiências de prazer que pode funcionar como uma garantia de acesso
ao prazer e à segurança, aumentando a capacidade de se tolerar estados transitórios de
privação ou frustração” (2004, p. 84). Assim, parte do dinamismo característico da teoria
enquanto objeto interno está em sua propriedade de atuar como uma garantia de que, mesmo
nas situações clínicas em que o analista se encontra mais implicado e “perdido”, alguma
organização daquela experiência será possível. Isso confere ao analista a segurança necessária
para ele se distanciar minimamente daquela situação e poder estar vivo com e para o paciente
sem se confundir com ele. Nas palavras de Caper,
103
À medida que o analista é capaz de se distanciar das projeções do paciente,
ele está em posição de interpretá-las. A habilidade do analista em fazê-lo
depende de ele possuir ligações com objetos internos que sobrevivam às
projeções do paciente e suas manipulações inconscientes. Especialmente
importante é sua ligação com a psicanálise como um objeto interno bom [...]
(1999b, p. 125)
114
.
Ou seja, a firme instalação da teoria enquanto objeto interno bom no psiquismo do
analista (isto é, sua incorporação ao conhecimento subsidiário) constitui-se, em termos
metapsicológicos, como responsável pela criação e manutenção de um espaço psíquico de
reserva no analista
115
. A introjeção da teoria enquanto objeto interno bom proporciona ainda o
aumento de sua “[...] capacidade de [...] tolerar estados transitórios de privação ou frustração”
(CINTRA; FIGUEIREDO, 2004, p. 84). Na prática, isso significa que o analista estará mais
capacitado para tolerar seus sentimentos de desconhecimento e ignorância na clínica (isto é,
sua sensação de não ter a menor idéia do que se está passando com aquele paciente) – estará,
portanto, aberto à possibilidade de um encontro traumático com o outro. Em termos
bionianos, poderíamos dizer que sua capacidade de continência fica expandida pela firme
introjeção da teoria enquanto objeto interno bom: o analista é capaz de conter seus
sentimentos em vez de atuá-los na relação com o paciente.
Prosseguindo na citação de Cintra e Figueiredo (2004, p. 84, grifos no original), “[...]
o bom objeto é mais que o mero registro das experiências de satisfação, pois tem uma eficácia
e um dinamismo próprios.” Isto é, introjetar a teoria como um objeto interno bom – incorporá-
la ao conhecimento subsidiário – não significa apenas dispor de um conjunto de lembranças
pré-conscientes de “experiências de satisfação” com a teoria (situações clínicas, por exemplo,
em que intervenções claramente baseadas em determinadas teorias produziram efeitos
significativos no paciente). Não; essa introjeção implica principalmente o estabelecimento de
um espaço psíquico de reserva no analista, que “[favoreça] a [sua] sensibilidade ao que se dá
como conhecimento subsidiário, instaurando uma permanente oscilação entre figura e fundo,
entre as vozes e os seus silêncios, ou seja, instaurando um permanente descentramento da
escuta em relação a si mesma” (FIGUEIREDO, [1996a] 2004a, p. 127, grifos no original).
Como o analista está suficientemente seguro de que alguma ordem emergirá do caos
114
“Insofar as the analyst is able to distance himself from the patient’s projections, he is in a position to interpret
them. The analyst’s ability to do this depends on his having links to his internal objects that survive the patient’s
projections and unconscious manipulations. Especially important is his link to psychoanalysis as a good internal
object […]”. Deve-se fazer a ressalva de que o autor não está se referindo aqui à teoria psicanalítica
propriamente, mas à psicanálise enquanto “um tipo específico de investigação empírica” (“a specific type of
empirical investigation” – Caper, 1999b, p. 118).
115
Com isso, não estamos advogando para a teoria o estatuto de “única” ou mesmo de “principal” responsável
pela criação e manutenção de um espaço psíquico de reserva.
104
acontecimental da sessão, sua escuta pode ficar livre o suficiente para focalizar aspectos
marginais ao discurso e à postura do paciente.
“O objeto bom é, assim, o nome da experiência de satisfação introjetada e convertida
em uma fonte de bem-estar e segurança [...]” (CINTRA; FIGUEIREDO, 2004, p. 84, grifos
no original). Como vimos, a introjeção do objeto bom supõe uma transformação do conjunto
de experiências de satisfação adquiridas em um registro dinâmico dotado de um modo de
funcionamento próprio: no caso das teorias, estamos supondo que sua introjeção é uma das
condições para o estabelecimento de um espaço psíquico de reserva no analista.
“[O objeto bom] é o nome do que resulta da introjeção da experiência de encontro
entre a necessidade da criança e o que o ambiente pôde efetivamente proporcionar a ela”
(CINTRA; FIGUEIREDO, 2004, p. 84). Os autores estão abordando aqui o correlato externo
de um objeto bom introjetado: é necessário que esse objeto “efetivamente” tenha
proporcionado algum grau de satisfação ao sujeito (no nosso caso, o analista). Por outro lado,
se o objeto externo “efetivamente” lhe proporcionou alguma satisfação, também é necessário
supor, pela condição mesma desse objeto (externo e, portanto, “[...] mortal e por vezes
decepcionante [...]” – Ogden, 2005a, p. 37
116
), que ele tenha “deixado o analista a desejar”. É
justamente aí que a teoria “morre”, isto é, se perde para o analista. Ele terá então de fazer o
luto dela, introjetando-a naquilo em que correspondeu a uma experiência de satisfação.
“Esse objeto bom introjetado será a fonte das pulsões de vida e do amor.” (CINTRA;
FIGUEIREDO, 2004, p. 84). Além de considerarmos a teoria introjetada como “fonte” de um
espaço de reserva no psiquismo, podemos ainda considerá-la fonte de diversas intervenções
do analista, na medida em que ela também é um conjunto de idéias que atuará junto ao
conhecimento subsidiário, constituindo-se assim como parte do “fundo” de onde emergirão
idéias, sentimentos e sensações sobre o paciente.
Por fim, resta-nos lembrar que, uma vez realizado o luto da teoria como objeto externo
(com sua concomitante introjeção como objeto interno), o Eu ficará efetivamente livre para
realizar novos investimentos libidinais em outras teorias. O trânsito entre mundo externo e
interno, portanto, fica preservado: novas teorias poderão ser introjetadas no mundo interno do
analista, assim como novas experiências com os pacientes. Mas não é apenas esse fluxo que
fica preservado: a teoria que foi introjetada como objeto bom foi incorporada, e não
cristalizada no conhecimento subsidiário. Assim, essa teoria pode, com algum esforço por
116
“[…] mortal and at times disappointing [external object] […]”
105
parte do analista, ser remetida de volta ao nível explícito – e, portanto, ser submetida a críticas
e reformulações. Quando o analista pode fazer o luto da teoria, portanto, ele pode estar
sensível à alteridade intrínseca às teorias e aos pacientes, pois fundamentalmente se deixa
afetar por ambos.
***
Chegamos assim à terceira seção do texto de Ogden, que se centra sobre o sadismo.
Nesta seção, estaremos atentos principalmente ao uso que o autor faz da linguagem, e em
especial ao contraste que se cria como efeito de linguagem na passagem desta seção para a
próxima, que aborda a mania.
Ogden define o sadismo como
[...] uma forma de ligação objetal na qual o ódio (o sentimento de ultraje do
melancólico em relação ao objeto) torna-se inextricavelmente entrelaçado
com o amor erótico, e neste estado combinado pode constituir uma força de
ligação ainda mais poderosa (de uma forma sufocante, subjugadora e
tirânica) que os laços do amor tão-somente (2005a, p. 38)
117
.
A força deste tipo de vínculo é responsável, prossegue o autor, “[...] tanto pela
estabilidade da estruturação patológica da organização de personalidade do paciente, quanto
por alguns dos impasses transferenciais e contratransferenciais mais intratáveis que
encontramos no trabalho analítico” (OGDEN, 2005a, p. 38)
118
. Isto é, a relação intrapsíquica
entre os objetos internos do melancólico reproduz-se “no aqui e agora” da transferência, com
o analista sentindo-se “de mãos atadas” por um paciente que o tortura sadicamente através da
exposição de seu próprio sofrimento, sem oferecer ao analista os meios para tratá-lo.
Mas o mais interessante é perceber que o sadismo inerente à relação objetal interna do
melancólico contamina também a experiência de escrita (e, conseqüentemente, de leitura) de
Ogden, que produz um texto com uma conotação muito mais sombria do que vinha sendo
observado até aqui. Esta seção termina com a constatação de que a mistura entre amor e ódio
está presente nas relações entre abusado e abusador: “O abuso é inconscientemente
117
“[...] a form of object tie in which hate (the melancholic’s outrage at the object) becomes inextricably
intertwined with erotic love, and in this combined state can be an even more powerful binding force (in a
suffocating, subjugating, tyrannizing way) than the ties of love alone.”
118
“[…] for both the stability of the pathological structure of the patient’s personality organization, and for some
of the most intractable transference-countertransference that we encounter in analytic work.”
106
experimentado tanto pelo abusado quanto pelo abusador como ódio amoroso e amor odioso –
ambos os quais são amplamente preferíveis a nenhuma relação objetal” (OGDEN, 2005a, p.
38)
119
.
O leitor sente-se assim de mãos atadas, junto com o analista. Afinal, que fazer frente a
esses impasses transferenciais se a mistura entre amor e ódio é a única forma de relação
objetal que o paciente conhece – e, sendo assim, incomensuravelmente preferível à ausência
de relações objetais? Como ajudar o paciente a descobrir novas formas de se relacionar com
os objetos? Esta seção do texto de Ogden nos leva a crer que se trata de uma tarefa próxima
do impossível, causando no leitor um desânimo assemelhado à perda de interesse pelo mundo
externo do melancólico – já que, nessa hora, tudo parece indicar que a psicanálise não vale a
pena.
Mas eis que começa uma nova seção do texto: “Empregando uma de suas metáforas
preferidas – o analista como detetive –, Freud cria em sua escrita uma sensação de aventura,
riscos e mesmo suspense [...]”(OGDEN, 2005a, p. 38)
120
.
Passamos assim de um desânimo quase total a “aventura, riscos e suspense”.
Parafraseando Ogden, haveria maneira mais apropriada de introduzir no texto “[...] a mais
curiosa [...] peculiaridade da melancolia: [...] sua tendência de se transformar no estado
sintomaticamente oposto da mania”? (FREUD, [1917a] 2006b, p. 112)
121
.
3.5
As duas seções restantes do texto de Ogden abordam, portanto, a mania. Elas serão
relevantes para a presente pesquisa na medida em que enfocam a patologia mais comum no
que se refere à relação do analista com as teorias. Dificilmente encontraremos um analista
melancólico stricto sensu. Talvez, como já apontamos anteriormente (p. 80), o analista possa
dirigir indagações a respeito de sua própria conduta clínica sem se dar conta de que tais
119
“The abuse is unconsciously experienced by both abused and abuser as loving hate and hateful love – both of
which are far preferable to no object relationship at all.”
120
“Employing one of his favorite extended metaphors – the analyst as detective – Freud creates in his writing a
sense of adventure, risk-taking and even surprise […]
121
A paráfrase refere-se à seguinte frase: “Haveria maneira mais apropriada de finalizar um trabalho sobre a dor
de encarar a realidade e as conseqüências das tentativas de se evadir a ela?” (“How better to end a paper on the
pain of facing reality and the consequences of the attempts to evade it?” – Ogden, 2005a, p. 43).
107
questionamentos deveriam ser endereçados à teoria que a informa. Mas, de maneira geral, o
mais comum é o analista envolver-se em uma relação de objeto maníaca com a teoria, que
iremos descrever a seguir.
Na mania, “[...] cada um dos conflitos de ambivalência afrouxa a fixação da libido ao
objeto, desvalorizando-o, rebaixando-o, como que matando-o a pancadas” (FREUD, [1917a]
2006b, p. 115). Neste ponto, Ogden faz interessante menção a Melanie Klein:
O leitor pode ouvir a voz de Melanie Klein (1935, 1940) nesta parte dos
comentários de Freud sobre a mania. Todos os três elementos da conhecida
tríade clínica de Klein que caracteriza a mania e a defesa maníaca – controle,
desprezo e triunfo – podem ser encontrados em forma nascente na concepção
freudiana da mania (OGDEN, 2005a, p. 126)
122
.
Se continuarmos na trilha do pensamento kleiniano, teremos que a contraparte do
objeto depreciado é um objeto excessivamente idealizado: “É freqüente observarmos o
trabalho de autodepreciação das melancolias, sem que se possa detectar com clareza que o ego
denegrido e diminuído está sendo inconscientemente comparado com o objeto idealizado”
(CINTRA; FIGUEIREDO, 2004, p. 118).
Esta é uma interessante leitura da teoria freudiana que viemos examinando até agora.
O objeto idealizado, aqui, é o objeto amado e perdido, com o qual o melancólico se
identificou regressivamente. Trata-se de ressaltar a comparação inconsciente efetuada entre o
objeto externo (em que se havia depositado um grande investimento libidinal) e o Eu (que se
autodeprecia a partir do momento em que esse objeto o frustra, abandona ou morre). O que
nos importa neste momento é a colocação dos autores de que a contraparte necessária da
depreciação (seja do Eu ou de um objeto) é a idealização de algum outro objeto (sendo que
por idealização estamos entendendo sua valorização enquanto algo sumamente bom).
Assim, na melancolia temos a depreciação do Eu e a idealização do objeto que se
perdeu – o que parece ser o caso do primeiro paciente que Ogden nos apresentou. Havia uma
intensa valorização da esposa que faleceu: amar outra mulher e recomeçar a vida pareciam
tarefas impossíveis
123
. Na mania, por outro lado, a depreciação é explicitamente dirigida ao
122
“The reader can hear the voice of Melanie Klein (1935, 1940) in this part of Freud’s comments on mania. All
three elements of Klein’s (1935) well-known clinical triad characterizing mania and the manic defense – control,
contempt, and triumph – can be found in nascent form in Freud’s conception of mania.”
123
Para Klein, idealizar a pessoa que se perdeu é um passo necessário no processo do luto, que culmina com a
introjeção do objeto perdido no Eu. Entretanto, se a idealização for excessiva tal objeto permanecerá cindido do
Eu – “uma forma de enclave superegóico” (CINTRA; FIGUEIREDO, 2004, p. 119) – e não poderá ser
108
objeto, estando a idealização reservada ao Eu. Teremos ocasião de observar essa dinâmica na
segunda vinheta clínica apresentada por Ogden, que comentaremos em breve (p. 111).
Embora Freud não equacione o problema nesses termos, cremos que é a essa diferença
na depreciação ou idealização do Eu (e, conseqüentemente, na idealização ou depreciação do
objeto) que ele se refere no seguinte trecho: “[...] a mania teria o mesmo conteúdo que a
melancolia, [...] as duas afecções lutariam contra o mesmo ‘complexo’, porém, no caso da
melancolia, o Eu provavelmente foi subjugado pelo complexo, enquanto na mania o Eu dele
se assenhorou ou mesmo o desalojou” (FREUD, [1917a] 2006b, p. 112). Isto é, na melancolia
o Eu é subjugado pelo peso de um objeto idealizado carregado como um enclave superegóico
– enquanto que, na mania, o Eu tenta a todo custo matar esse objeto “grudado” (identificado)
a ele, depreciando-o.
O importante a reter aqui é que “[...] o problema de construir um objeto sumamente
bom é que alguém tem de ocupar a posição oposta. O mais comum é que, paralelamente à
criação do objeto ideal capaz de reter em si todas as qualidades, o ego passe a ser visto como
não tendo valor” (CINTRA; FIGUEIREDO, 2004, p. 118). Ou seja: onde há idealização, há
depreciação, e vice-versa.
Veremos agora como esse tipo de relação de objeto – maníaca – pode nos ajudar a
compreender as relações com as teorias vividas nas experiências relatadas na introdução desta
dissertação. Temos agora condição de construir uma crítica teórica das relações que se
interprendiam com as teorias nas duas situações.
Na primeira experiência relatada, as teorias eram claramente depreciadas em favor da
abertura para a experiência. Esse era, portanto, o objeto depreciado: teorias, quaisquer que
fossem. A contraparte dessa depreciação estava na idealização (valorização extrema) de outro
pressuposto teórico: a abertura para a experiência era alçada à categoria de única condição
necessária para o estabelecimento de uma relação terapêutica. Mas, na medida em que esses
pressupostos estavam cristalizados no conhecimento subsidiário dos psicólogos clínicos em
questão, confundiam-se com seu próprio Eu: assim, a idealização desses pressupostos era a
idealização de seu próprio Eu – suas próprias capacidades de estabelecer contato com a
experiência e a alteridade.
introjetado como um objeto bom (“as energias pulsionais que [produz] não ficam à disposição do ego” – 2004, p.
119).
109
Mas nos deparamos aqui com uma limitação à nossa atual teoria: ao falarmos em
cristalização de uma teoria no nível do conhecimento subsidiário, estávamos supondo uma
dificuldade em trazê-la de volta ao nível explícito para submetê-la a críticas e reflexões.
Porém, acabamos de perceber que, nesse caso, os pressupostos teóricos em questão eram
remetidos ao nível explícito, pois era dito claramente que teorias são construções destinadas a
impedir o contato com a experiência. Ainda assim, acreditamos que, paradoxalmente, esses
pressupostos aproximavam-se mais de um conhecimento tácito do que explícito, na medida
em que se mostravam indisponíveis a questionamentos e avaliações
124
.
Na segunda experiência, salta primeiramente à vista a idealização da teoria lacaniana.
Se olhada de perto, contudo, veremos que tal idealização era acompanhada de uma
depreciação de todos os outros sistemas teóricos psicanalíticos ou psicológicos. Em última
instância, tal idealização da teoria também acaba culminando numa idealização do Eu –
afinal, o Eu está aqui sumamente identificado (melancolicamente) a ela.
***
A melancolia e a mania, portanto, lidam com a mesma problemática (ou, se quisermos,
com o mesmo complexo): a incapacidade de suportar a dor da perda do objeto amado
(CAPER, 1999a), e a conseqüente evasão dessa dor e da realidade externa, na medida em que
esta confirma a ausência do objeto. Estas evasões (idéia que Ogden empresta de Bion)
apontam para o aspecto psicótico da melancolia e da mania. Para Ogden, Freud se aproxima
desse aspecto quando se refere à subjugação da dor da perda pelo Eu do paciente maníaco,
“[transformando] o que poderia se tornar um sentimento terrível de desapontamento, solidão e
raiva impotente em um estado que lembra a ‘alegria, a exultação e o triunfo’.” (OGDEN,
2005a, p. 40)
125
.
Na clínica psicanalítica, acreditamos que a incapacidade de conviver com a dor da
perda da teoria – a incapacidade de “[...] viver com [essa dor] e realizar um trabalho psíquico
genuíno com ela ao longo do tempo” (OGDEN, 2005a, p. 40)
126
– está relacionada à
incapacidade de não saber. “Nesse estado psíquico, [o analista] é capaz de maravilhar-se com
124
Esperamos ter deixado claro a esta altura do texto que não discordamos do fato de que as teorias podem se
prestar a um uso defensivo. O que nos parece problemático, contudo, é a suposição de que elas se prestariam
apenas e exclusivamente (ou mesmo prioritariamente) a tal uso.
125
“[transforming] what might become a feeling of terrible disappointment, aloneness and impotent rage into a
state resembling ‘joy, exultation or triumph’.”
126
“[...] live with [this pain], and do genuine psychological work with it over time.”
110
o mistério, a absoluta imprevisibilidade e o poder do inconsciente que pode ser sentido, mas
nunca conhecido” (OGDEN, 2005g, p. 25)
127
. O que o analista melancólico / maníaco não
pode suportar é a imprevisibilidade da clínica, refugiando-se assim numa teoria (com a qual
está inconscientemente identificado) que lhe dirá de antemão, “[...] mesmo antes de o
analisando chegar para sua sessão de segunda-feira, que o paciente [...] se sentiu solitário e
com um ciúme intenso da esposa (imaginada) do analista” (OGDEN, 2005g, p. 25)
128
. A
imprevisibilidade da clínica é justamente aquilo que confirma ao analista a morte da teoria –
isto é, seus limites e sua falibilidade –, pois as teorias são incapazes de prever (e prover
completamente) a realidade da clínica. Numa relação melancólica / maníaca com a teoria, não
só esta não se alimenta da realidade externa, como os objetos externos (os pacientes) não são
afetados pela teoria internalizada – ou melhor, serão afetados sempre da mesma forma. A
teoria cristalizada no conhecimento subsidiário só admitirá um enquadre determinado para os
fenômenos da clínica.
Cabe-nos ainda dizer que, ao caracterizar a relação maníaca com as teorias como
patológica, não estamos pensando num desvio em relação à normalidade, e sim numa “[...]
forma de auto-limitação inconsciente da capacidade de o indivíduo experienciar o sentimento
de estar vivo como ser humano” (OGDEN, [1997b] 2004b, p. 18-19)
129
. Numa relação
maníaca com as teorias, o analista inconscientemente limita sua própria capacidade de estar
vivo como analista. Seus mundos interno e externo ficam empobrecidos:
O mundo das relações objetais externas torna-se debilitado como
conseqüência de haver sido desconectado do mundo objetal interno
inconsciente do indivíduo. [...] Inversamente, o mundo objetal interno
inconsciente, tendo sido apartado do mundo dos objetos externos, não pode
crescer [...] (OGDEN, 2005a, p. 40-41)
130
.
O mundo das relações objetais externas do analista melancólico / maníaco fica
empobrecido na medida em que está rigidamente determinado pelas teorias com as quais o
analista está identificado – a irrupção de diferenças em teorias ou pacientes externos ao
analista fica comprometida pela eterna captura do mesmo promovida por teorias cristalizadas
127
“In this state of mind, one is capable of marveling at the mystery, the utter unpredictability, and the power of
the unconscious which can be felt, but never known.”
128
“[...] even before the analysand arrives for his Monday session that the patient [...] has felt lonely and
intensely jealous of the analyst’s (imagined) wife.”
129
“[...] a form of unconscious self-limitation of one’s capacity to experience being alive as a human being.”
130
“The world of external object relations becomes depleted as a consequence of its having been disconnected
from the individual’s unconscious internal object world. [...] Conversely, the unconscious internal object world,
having been cut off from the world of external objects, cannot grow [...]”
111
no conhecimento subsidiário. Ao mesmo tempo, as teorias operantes no analista melancólico /
maníaco como objetos internos aos quais o Eu está identificado “não podem crescer”, pois
não estão em contato com o mundo dos objetos externos do analista (onde habitam tanto os
pacientes quanto outras teorias).
***
Podemos passar agora ao comentário da segunda vinheta clínica apresentada por
Ogden, ligeiramente mais concisa do que a primeira. Conforme adiantamos anteriormente (p.
108), trata-se de uma paciente mais próxima da mania que da melancolia, embora Ogden faça
questão de ressaltar que não considera a Sra. G propriamente maníaca. Ao longo de três
parágrafos, Ogden cria uma imagem vívida desta mulher e de seu luto pela morte do marido.
Ao final da vinheta, Ogden afirma que ela teve por objetivo ilustrar a ambivalência vivida
pelo melancólico, que envolve “[...] o desejo de viver a vida entre os vivos – internamente e
externamente – e, por outro lado, o desejo de existir com os mortos em um mundo objetal
interno atemporal, morto e mortificador” (OGDEN, 2005a, p. 42)
131
.
Num primeiro momento – no primeiro parágrafo –, não percebemos tal ambivalência
imediatamente: a paciente conta uma história dando-nos a entender que tal conflito de
ambivalência foi superado, tendo a Sra. G se decidido, não sem muita dor, a viver entre os
vivos. Esta é uma passagem por demais primorosa para ser parafraseada. Ei-la traduzida:
A Sra. G disse-me que, não muito tempo depois da morte de seu marido, ela
passou um fim de semana sozinha em um lago, onde em cada um dos quinze
anos que precederam a morte dele, ela e o marido alugaram uma cabana. Ela
me disse que durante uma viagem para o lago logo após a morte dele, ela
havia saído sozinha num barco e dirigido-se a um labirinto de pequenas ilhas
e tortuosos canais que ela e o marido haviam explorado inúmeras vezes. A
Sra. G disse que lhe ocorreu uma idéia, com um teor de absoluta certeza, de
que seu marido estava naquela afluência de canais, e que se ela tivesse
entrado naquela parte do lago, ela jamais teria saído, porque não teria sido
capaz de ‘separar-se’ dele. Ela me disse que teve de lutar com toda a sua
força para não ir ficar com o marido. (OGDEN, 2005a, p. 41-42)
132
.
131
“[...] the wish to live life among the living – internally and externallyand, on the other hand, the wish to
exist with the dead in a timeless dead and deadening internal object world.”
132
“Ms G told me that not long after her husband’s death, she had spent a weekend alone at a lake where for
each of the fifteen years before his death, she and her husband had rented a cabin. She told me that during a trip
to the lake soon after his death, she had set out alone in a motorboat and headed toward a labyrinth of small
islands and tortuous waterways that she and her husband had explored many times. Ms G said that the idea had
come to her with a sense of absolute certainty that her husband was in that set of waterways, and that if she were
112
Nosso espanto diante deste trecho do relato talvez guarde alguma semelhança com o
espanto de Ogden frente ao parágrafo de Freud que descreve o processo inconsciente da
melancolia: “Há tanta coisa acontecendo nesta passagem que é difícil saber por onde começar
a discuti-la” (OGDEN, 2005a, p. 33)
133
. Também nós não sabemos muito bem por onde
começar – ou o que fazer – com a passagem acima. Poderíamos investigar os três sentidos que
a palavra “tear” (traduzida por “separar”) evoca neste contexto: separação abrupta e violenta;
dúvida entre duas opções; lágrima. Desta vez, contudo, seguiremos a trilha proposta por uma
imagem, em vez de seguir a trilha do uso da linguagem. Preferimos chamar a atenção do leitor
para a força da imagem desta mulher sozinha num barco em meio às águas, sem saber que
destino dar à morte do marido. Que outras imagens, ou cenas, esta imagem evoca? Não se
trata aqui de propor uma interpretação alternativa à situação narrada pela paciente, mas de nos
aprofundarmos em algo suscitado por nossa experiência de leitura do texto de Ogden. Desta
forma, poderemos perceber como, já no primeiro parágrafo, a ambivalência característica do
paciente maníaco se faz presente no texto, ainda que de forma subterrânea (pois apenas um
dos pólos do conflito está em evidência).
Em primeiro lugar, o marido escondido em meio às águas – e a paciente que tem de
usar de toda a sua força para não se unir a ele – remete-nos imediatamente à clássica cena de
Ulisses resistindo ao canto da sereia. É esse o sentido que fica realçado neste primeiro
parágrafo – pois, como vimos, a paciente consegue “resistir ao canto da sereia”; tira de algum
lugar dentro de si tampões de ouvido imaginários, e consegue retornar à cabana.
Mas, além desse primeiro sentido, o marido escondido em meio às águas – e a
paciente que deseja se unir a ele – lembra-nos uma outra cena clássica: o batismo cristão,
através do qual a pessoa renasce purificada de seus pecados. Esta cena aponta para a
emergência de uma defesa maníaca, como “[...] forma de não experienciar a amargura
implicada no reconhecimento da própria inabilidade para desfazer o fato de que o objeto foi
perdido.” (OGDEN, 2005a, p. 37)
134
. Defesas maníacas, afinal, “[...] têm [...] onipotência para
desfazer a morte e anular, curando-os, todos os ferimentos” (CINTRA; FIGUEIREDO, 2004,
p. 82). O relato de Ogden, portanto, comporta desde o início os dois pólos da luta ambivalente
to have entered that part of the lake, she never would have come out because she would not have been able to
‘tear’ herself away from him. She told me that she had had to fight with all her might not to go to be with her
husband.”
133
“There is so much going on in this passage that it is difficult to know where to start in discussing it.”
134
“[...] a way of not experiencing the hard edge of recognition of one’s inability to undo the fact of the loss of
the object.”
113
do paciente maníaco. Mas o segundo desses sentidos por nós apontado só ficara explícito nos
próximos parágrafos do relato.
Ogden nos conta que o evento do lago passou a simbolizar coisas opostas na análise da
Sra. G: “[...] a escolha da paciente de viver sua vida em um mundo repleto da dor do luto e de
suas lembranças vivas do marido, [e] a incompletude de seu ato de ‘separar-se’ do marido
após sua morte” (OGDEN, 2005a, p. 42)
135
. A análise foi deixando claro que “[...] uma parte
dela havia partido com o marido para a morte, isto é, um aspecto dela havia sido amortecido e
ela havia considerado isso ‘normal’ até aquele ponto da análise” (OGDEN, 2005a, p. 42)
136
.
Ogden afirma que a paciente, após a morte do marido, havia levado uma vida bastante restrita,
tanto do ponto de vista emocional quanto intelectual. Sua capacidade de estar viva em suas
experiências cotidianas, bem como suas capacidades intelectuais e artísticas, haviam
permanecido amortecidas durante anos.
Esse relato mostra, de maneira bastante sutil, a “tríade clínica” kleiniana à qual Ogden
chamará nossa atenção logo após o término do relato: controle, desprezo e triunfo. Mas
Ogden deixa inteiramente a cargo do leitor a identificação dessas defesas maníacas (que,
como ele mesmo aponta, não foram utilizadas maciçamente pela paciente) – seu interesse está
em exemplificar, de forma bastante viva, o conflito entre vida e morte vivido pelos pacientes
maníacos e melancólicos. Ao fazê-lo, porém, necessariamente ele esbarra nas defesas
maníacas (muito embora sutis e deslocadas) de que a paciente lança mão.
A palavra “normal” (“alright”) nos dá o leve tom do triunfo sobre a perda do objeto e
da depreciação dessa perda. A depreciação não é do objeto em si, mas do impacto que sua
perda representou e representa na vida da paciente: ela deixou seus talentos artísticos de lado
desde que o marido morreu, “but it’s alright” (“tudo bem, é assim mesmo”). Através da
análise, a Sra. G pôde dar livre curso à dor de sua perda – não só do marido, mas também de
si própria (da parte de si que havia morrido com o marido). Mas, até então, a paciente
mantinha o marido sob controle em seu mundo objetal interno, na medida em que se
identificava com ele; depreciava-o indiretamente, ao negar o impacto de sua perda (negando,
por tabela, sua importância); e triunfava sobre o marido uma vez que não via diferença
alguma em sua vida antes e depois de sua perda (isto é, na medida em que negava o
amortecimento por que havia passado).
135
“[...] the patient’s choosing to live her life in a world filled with the pain of grief and her living memories of
her husband, [and] the incompleteness of her act of ‘tearing’ herself away from her husband after his death.”
136
“[...] a part of herself had gone with her husband into death, that is, an aspect of herself had been deadened
and that had been ‘alright’ with her until that juncture in the analysis”.
114
Desta forma – por meio dessas defesas maníacas –, a paciente fazia o marido
“ressurgir das águas” em si própria, mas como um objeto interno morto e mortificador (pois
que limitava as possibilidades da paciente de viver a vida – e viver, inclusive, a dor da perda).
A identificação inconsciente de parte da Sra. G ao marido morto tentava negar
onipotentemente a sua morte, restituindo o marido à vida de forma mágica e maníaca.
Assim, ao oferecer-nos um exemplo do conflito de ambivalência vivido pelo paciente
maníaco, Ogden oferece-nos muito mais. É possível identificar como as defesas maníacas se
fazem sub-repticiamente presentes no próprio uso da linguagem do autor (a palavra “alright
serviu como disparadora para esta parte de nossa investigação). Além disso, pudemos
observar a passagem da mania no primeiro parágrafo, quando a paciente imaginava-se bem
resolvida em seu processo de luto, para a melancolia dos dois parágrafos seguintes, quando
ela se dá conta das múltiplas formas pelas quais vinha se amortecendo para a vida desde a
morte do marido.
***
E será mais uma vez atentando para o uso da linguagem que encerraremos este
capítulo, já encaminhando nossa discussão para os capítulos conclusivos. Para levarmos a
bom termo nossa discussão sobre a relação entre teorias e práticas na clínica psicanalítica,
será necessário recolocar a questão transferencial, investigando um pouco mais detidamente
as relações transferenciais que os analistas estabelecem com as teorias (sejam as que estudam
ou as que eles próprios criam). Deixamos propositadamente de lado até aqui o início da
discussão realizada por Ogden sobre a mania, pois num primeiro momento o autor não estava
tão interessado em investigar o problema teórico da mania quanto o modo pelo qual ela
comparece no texto freudiano. Pensamos que este é o momento oportuno de retomá-la, pois
tomaremos carona nessa discussão de Ogden sobre o uso da linguagem por Freud para
abordar justamente a relação transferencial que este último estabelece com sua teoria do luto e
da melancolia.
Ogden inicia por chamar a nossa atenção para os exemplos do
[...] pobre-diabo [que] ganha subitamente muito dinheiro e deixa de ter a
preocupação crônica com o pão de cada dia, ou quando uma longa e
cansativa luta é afinal coroada de êxito, ou ainda quando se logra
115
subitamente eliminar uma compulsão opressiva, ou nos casos em que uma
dissimulação longamente mantida se torna desnecessária, enfim, nas mais
diversas situações desse tipo. (FREUD, [1917a] 2006b, p. 112).
Com essas imagens, diz Ogden, Freud faz mais do que simplesmente exemplificar a
situação econômica na qual uma grande quantidade de energia psíquica antes empregada para
um determinado fim fica disponível para uso. Para Ogden, essa sucessão de imagens
corresponde à “[...] bolha expansiva da mania [...]” (2005a, p. 39)
137
, cujo inevitável colapso é
comunicado pelo próprio uso da linguagem por Freud. Depois da série de imagens que
começa com o pobre-diabo feito milionário, Freud se curva à complexidade dos fatos e admite
que sua solução para o problema – equiparar a mania a situações de alívio súbito da dor –
comporta mais dúvidas que respostas. O que está implícito aí é o colapso de nossa esperança
maníaca e onipotente de que o problema do luto e da melancolia seria esgotado no espaço de
um texto. Para Ogden, o ponto fundamental da discussão de Freud sobre a mania está em
mostrar ao leitor,
[...] por meio de seu uso da linguagem, da estrutura de seu pensamento e de
sua escrita, qual a sensação de pensar e escrever de um jeito que não tenta
confundir o que é onipotente e alucinadamente desejado com o que é real; as
palavras são usadas num esforço de dar às idéias e situações seus nomes
apropriados, de maneira simples, acurada e clara (OGDEN, 2005a, p. 40)
138
.
Esta discriminação – entre o que é onipotentemente desejado e o que é efetivamente
passível de realização – percebida por Ogden no uso da linguagem parece-nos perpassar todo
o texto freudiano. Tal discriminação está operando, por exemplo, na seguinte ressalva:
Do ponto de vista lógico, a nossa teoria exigiria que chegássemos à
conclusão de que a predisposição à afecção melancólica (ou uma parte dela)
é derivada da predominância da escolha objetal de tipo narcísico.
Infelizmente, essa conclusão ainda carece de confirmação por meio de
investigações mais exaustivas (FREUD, [1917a] 2006b, p. 109).
E, de forma implícita, também se faz presente nestes dois questionamentos:
137
“[...] expanding bubble of mania [...]
138
“[…] in his use of language, in the structure of his thinking and writing, what it sounds like and feels like to
think and write in a way that does not attempt to confuse what is omnipotently, self-deceptively, wished for with
what is real; words are used in an effort to simply, accurately, clearly give ideas and situations their proper
names.”
116
Ainda outra questão é saber se há um fator – provavelmente somático e
inexplicável do ponto de vista psicogênico – que faz com que regularmente
esse estado [o quadro clínico da melancolia] se amenize à noite. A essas
diversas considerações soma-se ainda outra pergunta: para produzir o quadro
da melancolia é suficiente ocorrer um prejuízo de um Eu que ignora o objeto
(isto é, basta uma mágoa de natureza puramente narcísica causada ao Eu), ou
também algum fator tóxico capaz de causar um empobrecimento na libido do
Eu pode produzir diretamente determinadas formas dessa afecção? (FREUD,
[1917a] 2006b, p. 112).
Nessas duas passagens, Freud nos dá viva mostra da sua capacidade de distanciamento
da teoria. Não sem dor e amargura, ele olha a teoria de uma certa distância, que lhe permite
enxergá-la como aquilo que realmente é: um conjunto de idéias que não só não esgota o
problema teórico do luto e da melancolia como também não fornece diretrizes precisas para a
clínica. Nesses apartes ao texto, todo um brilhante esforço de argumentação é relativizado e
remetido ao seu devido lugar: trata-se apenas de conjecturas e hipóteses que só ganham algum
sentido quando confrontadas com a clínica. Freud expressa uma relação de luto com a teoria,
pois consegue abrir mão dela (“essa conclusão [teórica] ainda carece de confirmação”)
quando a força da realidade se impõe
139
. Na experiência de leitura, cria-se um efeito de
castração: somos defrontados com os próprios limites da teoria psicanalítica ao constatar que
hipóteses tão arduamente elaboradas são apenas isso – hipóteses –, sendo que nem as
hipóteses psicogênicas mais perspicazes poderão dar conta do fator somático da melancolia.
Por outro lado, encontramos também no texto de Freud inúmeros momentos nos quais
a voz do autor e a teorização que ela enuncia caminham tão juntas que parecem formar uma
unidade – como, por exemplo, na frase que introduz a descrição do processo inconsciente
implicado na melancolia: “Podemos então facilmente reconstruir esse processo” (FREUD,
[1917a] 2006b, p. 108). O próprio Ogden reconhece um “[...] inconfundível entusiasmo na
voz de Freud [nessa] sentença. [...] As idéias estão se encaixando. Uma certa clareza está
emergindo de um emaranhado de observações aparentemente contraditórias [...]” (2005a, p.
32)
140
. Saímos da leitura do trecho de Freud acima referido imbuídos da certeza de que as
idéias psicanalíticas, em seu preciso encadeamento lógico, desvendarão o problema da
melancolia. O leitor se deixa levar por uma onda de entusiasmo que se diferencia da “bolha
expansiva da mania” justamente porque esse entusiasmo está temperado por ressalvas mais
139
A realidade, aqui, é a realidade vivida no contato transferencial e contratransferencial com os pacientes: as
“investigações mais exaustivas” a que Freud conclama são investigações de natureza clínica.
140
“[...] unmistakable excitement in Freud’s voice in [that] sentence […]. Ideas are falling into place. A certain
clarity is emerging from the tangle of seemingly contradictory observations […]”
117
“depressivas” (KLEIN, [1940] 1984), nas quais Freud reconhece os limites da investigação
que se está propondo a realizar.
Seguem outras passagens do texto freudiano nas quais um entusiasmo similar nos é
transmitido: “Na verdade, a contradição anteriormente mencionada entre a perda do objeto e a
perda ocorrida no Eu pode ser esclarecida a partir de observações relativamente fáceis de
fazer” ([1917a] 2006b, p. 107). “Sempre que se examinam mais a fundo esses conteúdos [as
auto-recriminações do melancólico], o doente acaba por confirmar essa suposição [de que tais
recriminações não se aplicam à própria pessoa, e sim a um objeto amado]” ([1917a] 2006b, p.
107).
Acreditamos que esses momentos do texto em que se percebe extrema convicção e
segurança na voz de Freud – a convicção e a segurança de que a teoria explicará, organizará e
adequar-se-á, enfim, à prática – indicam uma relação transferencial narcísica com a teoria.
Esses são momentos nos quais o autor está muito próximo à sua teorização. Já as passagens
anteriores, nas quais ressalvas importantes são feitas, representam um “passo atrás” nessa
relação, para que a teoria seja olhada de uma certa distância e então retomada a partir de outra
perspectiva.
Assim, a dialética da implicação e reserva que Figueiredo (2000) propõe para a clínica
psicanalítica pode ser igualmente bem aproveitada para pensarmos a relação do analista com
as teorias. Estamos propondo que, também com as teorias (sejam as que se está estudando ou
as que se está produzindo), seja estabelecida uma relação de implicação permanentemente
sustentada por uma reserva psíquica em relação a elas. Nos termos da teoria psicanalítica, isso
implica uma relação transferencial com a teoria na qual aspectos narcísicos possam dar lugar
a aspectos não-narcísicos, e vice-versa (tema ao qual retornaremos no capítulo seguinte). Em
termos epistemológicos, a dialética da implicação e reserva pode ser traduzida como uma
dialética na qual as teorias transitam entre os níveis tácito e explícito, subsidiário e focal.
Detenhamo-nos brevemente na natureza dessa dialética de que nos fala Figueiredo.
Trata-se de um processo que incessantemente clama por correções e acréscimos a cada
tentativa que se faz de descrevê-lo, aproximando-se do que Derrida (apud COELHO JR.;
FIGUEIREDO, 2004) descreve como lógica da suplementaridade. Essa lógica supõe que
qualquer campo produz elementos que não são por ele comportados e o ultrapassam,
funcionando como um apelo para a constituição de outro campo. No caso de que estamos
tratando aqui – a implicação e a reserva na relação do analista com as teorias –, a lógica da
suplementaridade indica que o analista estabelecerá relações transferenciais
118
predominantemente narcísicas com as teorias que deverão ser suplementadas por relações
transferenciais predominantemente não-narcísicas (e vice-versa).
Ou seja, a predominância de aspectos narcísicos na transferência funciona como apelo
para a constituição de uma outra relação transferencial (predominantemente não-narcísica).
Assim, uma modalidade transferencial sempre endereça um pedido de suplemento à outra;
esta outra modalidade atua, então, como resposta à primeira, exigindo por sua vez nova
resposta, numa sucessão infinita de apelos, respostas e suplementos. Vale notar que as
relações que se estabelecem entre as duas modalidades de transferência não são
complementares (isto é, os aspectos narcísicos e não-narcísicos não se complementam para
dar origem a uma relação transferencial “ideal” com as teorias), e sim suplementares (isto é,
uma transferência saturada de aspectos narcísicos “clama” por uma transferência não-
narcísica, e vice-versa). Trata-se, portanto, de uma dialética sem síntese.
Como vimos, a asserção de Freud segundo a qual o luto é um processo fácil de ser
reconstruído pede o suplemento, encontrado no final do texto, de que “[...] o contexto dos
intrincados problemas psíquicos com os quais lidamos sempre nos obriga a deixar inconclusa
cada uma das nossas investigações e a aguardar até que algum outro novo estudo nos possa
fornecer resultados que nos permitam retomá-las” (FREUD, [1917a] 2006b, p. 116). Ao
mesmo tempo, porém, esta mesma frase exige, para não desabar numa inércia melancólica, o
suplemento de que as contradições clínicas apresentadas pela melancolia podem ser
solucionadas de um ponto de vista teórico, bem como o suplemento de que os processos de
luto e melancolia podem ser reconstruídos teoricamente.
Assim, num primeiro momento estudamos o papel da teoria na constituição de um
espaço psíquico de reserva do analista, apoiados em Figueiredo (2000) e Caper (1999b)
141
.
Para este último, “Aquilo que denominamos distância emocional ou barreira entre analista e
paciente é um modo de falar dessas ligações [do analista] com seus objetos internos” (1999b,
p. 118)
142
. Isto é, as reservas do analista são criadas através de suas ligações com seus objetos
internos, dentre os quais vigora a psicanálise como objeto bom. Reciprocamente, poder-se-ia
dizer que aquilo que denominamos implicação do analista na relação analítica é a sua “[...]
sensibilidade às projeções do paciente [...]” (1999b, p. 118)
143
.
141
Ver p. 103 do presente estudo.
142
“What we call the emotional distance or barrier between analyst and patient is a way of speaking of these
links to his internal objects.”
143
“[…] sensitivity to the patient’s projections […]”.
119
Figueiredo (2000) descreve a postura ética do analista como envolvendo a manutenção
de uma dialética sem síntese entre essas duas posições, implicada e reservada, na relação com
o paciente. O que estamos propondo agora é a dialética da implicação e reserva como forma
de caracterizar a postura ética do analista também em sua relação com a teoria psicanalítica (e
não apenas com os pacientes). Desta forma, podemos pensar que também na relação com as
teorias é necessária certa reserva, para além da implicação obviamente encontrada numa
relação transferencial narcísica com a teoria; e esta reserva do analista em relação às teorias
que professa e estuda pode ser proporcionada justamente por seu contato com os pacientes.
Assim como uma “[...] teoria na clínica psicanalítica [deve] nutrir e proteger as ‘reservas de
mente’ necessárias à sustentação da posição do analista” (FIGUEIREDO, 2000, p. 35, grifos
no original), acreditamos que é apenas o contato com a realidade clínica que poderá instituir
uma reserva de mente necessária à sustentação da “posição de leitor e formulador da teoria”
do analista (isto é, sua posição enquanto teórico da psicanálise). De fato, nada melhor do que
o contato vivo com a realidade da clínica para desimplicar-se de uma teoria e não levá-la tão a
sério em suas promessas explicativas e organizadoras.
Chegamos assim ao final (ou seria o começo?) de nossa leitura do texto de Ogden,
pois estas últimas considerações novamente nos conduziram à frase disparadora do presente
capítulo:
O mundo solipsista de um teórico da psicanálise que não está firmemente
assentado sobre a realidade de sua experiência vivida com pacientes é
bastante similar ao melancólico auto-aprisionado que sobrevive em um
mundo objetal interno atemporal e imortal (e, não obstante, morto e
mortificador). (OGDEN, 2005a, p. 43)
144
.
No próximo capítulo, portanto, investigaremos mais detidamente em que consistem os
já referidos aspectos narcísicos e não-narcísicos da transferência do analista com as teorias.
144
“The solipsistic world of a psychoanalytic theorist who is not firmly grounded in the reality of his lived
experience with patients is very similar to the self-imprisoned melancholic who survives in a timeless, deathless
(and yet dead and deadening) internal object world.”
120
CAPÍTULO 4 – Sobre as Relações Transferenciais do Analista com as
Teorias
O texto “Uma mente própria” de Robert Caper (1999b) propõe-se a estudar as relações
entre a elaboração da posição depressiva e a travessia do complexo de Édipo. Para isso, o
autor investiga a relação transferencial em seus aspectos narcísicos, não-narcísicos e
edipianos. É essa estratégia argumentativa do autor que nos será de interesse aqui: estamos
nos propondo a investigar os aspectos narcísicos e não-narcísicos da transferência, que já
viemos apontando na relação transferencial que Freud estabelece com sua própria teoria do
luto e da melancolia. Quanto aos aspectos edipianos, acreditamos que Caper dá este nome a
uma relação transferencial na qual os aspectos narcísicos e não-narcísicos da transferência
encontram-se em um nível ótimo de tensão. Não se trata de chegar a uma síntese entre
aspectos narcísicos e não-narcísicos, e sim de manter uma relação dialética sempre instável e
dinâmica entre esses dois pólos.
Passemos portanto à investigação de cada um desses pólos – que se definem, em
grande medida, por sua relação com o pólo oposto – para a partir daí examinarmos como os
aspectos narcísicos e não-narcísicos do analista se fazem presentes em suas relações
transferenciais com as teorias. Uma primeira observação a ser feita é que Caper tem em vista,
neste texto, a transferência do paciente com o analista (e o modo como o analista responde a
essa transferência). A presente pesquisa, por sua vez, está interessada na transferência do
analista com as teorias. Portanto, a leitura que propomos do texto de Caper precisará operar
constantes ajustes e deslocamentos, derivados antes de tudo do fato de que estamos pensando
a transferência com um objeto cultural, que não responde ao analista
contratransferencialmente.
Abordaremos primeiramente os aspectos narcísicos da transferência:
Na transferência, o paciente projeta no analista (em fantasia) alguns de seus
objetos internos, que são, como sabemos, partes de si mesmo. Ele passa
então a experienciar inconscientemente o analista – um objeto externo –
como a parte de si mesmo que ele projetou. [...] Essas projeções
transformam o analista [...] num objeto externo da fantasia, um objeto que é
121
experienciado como uma versão externa de um objeto interno. (CAPER,
1999b, p. 112-113)
145
.
A projeção dos próprios objetos internos
146
na teoria estudada é precisamente o que
caracteriza uma relação transferencial narcísica com a teoria. O analista acaba encontrando na
teoria, esse objeto externo, nada mais que uma reprodução de seu mundo interno. É este, aliás,
“[...] o problema de toda relação narcisista [...]: o objeto não pode ser levado em
consideração, ele é um mero suporte para que eu tenha um endereço para onde enviar minhas
projeções [...]” (CINTRA; FIGUEIREDO, 2004, p. 115).
Para Caper, o paciente transforma o analista em objeto externo da fantasia por duas
vias distintas (ambas inconscientes). Em primeiro lugar, o paciente “só ouve o que quer”:
atribui grande importância aos comportamentos do analista que se coadunam à sua fantasia,
ignorando todos os outros que se contrapõem a ela. A isto Caper denomina “atenção seletiva”
(1999b, p. 113). Em segundo lugar, o paciente lança mão de identificações projetivas,
induzindo no analista estados mentais específicos que o fazem corresponder, na realidade,
àquilo que o paciente espera dele na fantasia.
Na relação com as teorias, o analista certamente pode fazer uso de atenção seletiva,
centrando-se principalmente nos aspectos da teoria que correspondem às suas próprias
expectativas. É impossível, contudo, recorrer a identificações projetivas, pois este é um
mecanismo de defesa necessariamente intersubjetivo. Ainda assim, acreditamos que algumas
teorias, por sua própria natureza, são mais permeáveis às projeções do analista do que outras.
Essa permeabilidade pode ser igualmente bem caracterizada como o “grau de abertura” da
teoria ao leitor: algumas teorias mostram-se mais convidativas que outras, conclamando o
leitor à co-construção da teoria a partir de sua própria experiência. Acreditamos que teorias
deste tipo são mais propensas a servir de base para uma relação transferencial narcísica com o
analista, pois implicitamente (e às vezes até explicitamente, como Winnicott e mesmo Ogden
freqüentemente o fazem) convidam o leitor a projetar sua própria experiência na teoria. Por
outro lado, há teorias que – seja pela linguagem utilizada, seja pelos problemas teóricos que
145
“In the transference, the patient projects into the analyst (in phantasy) one or another of his internal objects,
which are, as we know, parts of himself. He then comes to experience the analyst – an external object –
unconsciously as the part of himself that he has projected. […] These projections turn the analyst […] into […]
an external fantasy object, an object that is experienced as an external version of an internal object.”
146
Ou, de forma mais ampla, de aspectos do self – entendido aqui, seguindo Cintra e Figueiredo (2004, p.119),
como um “ego-id” indiferenciado.
122
abordam – admitem a participação do leitor em grau muito menor (como é o caso, por
exemplo, das teorias de Lacan e Bion)
147
.
Para que isso não fique muito vago, exemplifiquemos o que estamos chamando de
“permeabilidade da teoria às projeções do analista” com teorias de Ogden e Bion – que, no
tocante a essa permeabilidade, assumem posições opostas. Ogden, como já apontamos no
presente trabalho, é pródigo em deixar espaços no texto a serem ocupados pelo leitor. Ele
mesmo reclama a participação ativa deste na leitura de alguns de seus textos:
Neste capítulo, pedirei ao leitor que faça algo um pouco diferente. Peço ao
leitor que escute sua própria escuta: isto é, que escute o modo como ele
escuta, e escuta-me ouvindo, um poema; e que então compare esses ‘sons’
ao modo como ele escuta, e escuta-me ouvindo, uma sessão analítica.
(OGDEN, 2001a, p. 79)
148
.
Nesse trecho, portanto, Ogden explicitamente pede ao leitor que projete sua própria
experiência sobre o texto teórico. Mas mesmo nos textos em que Ogden não demanda
explicitamente do leitor uma participação tão ativa (tal é o caso, aliás, de “Uma nova leitura”,
2005a), ele considera o papel do leitor no processo de leitura e escrita, deixando-o sempre em
posição confortável – como, por exemplo, quando retoma didaticamente conceitos
introduzidos por Freud em outro texto, facilitando assim o trabalho do leitor. Desta forma,
Ogden cria um texto propício ao estabelecimento de uma relação transferencial de tonalidade
afetiva próxima e amigável, que quase nunca passa pelo estranhamento.
Coisa bem diferente acontece na escolha de Bion dos termos “alfa” e “beta” para
caracterizar processos e fenômenos psíquicos que nos são desconhecidos: tais termos
ressaltam justamente a dimensão estranha e desconhecida desses fenômenos e processos
(OGDEN, 2005c). Com eles, Bion conclama o analista justamente a não projetar na teoria
suas próprias pré-concepções do que sejam “função alfa” ou “elementos-beta”. Trata-se,
portanto, de estilos opostos, que fomentam relações transferenciais diferentes.
Já um autor cujo estilo parece-nos bastante propício ao estabelecimento de relações
transferenciais pautadas tanto por aspectos narcísicos quanto não-narcísicos é o próprio Freud.
Como vimos, a relação transferencial que Freud estabelece com sua própria teoria do luto e da
147
Investigar razões de outras ordens (sociais, políticas) que fomentam ou desencorajam identificações narcísicas
com as teorias foge aos propósitos deste trabalho.
148
“In this chapter, I will be asking the reader to do something a little different. I ask the reader to listen to his
listening: that is, to listen to the way he listens, and hears me listening, to a poem; and then to compare those
‘soundings’ to the ways he listens, and hears me listening, to an analytic session.”
123
melancolia comporta aspectos narcísicos e não-narcísicos (ver p. 116 e seguintes).
Acreditamos que a escrita de Freud, coloquial sem deixar de ser erudita, convida o leitor a
uma aproximação na medida justa. Essa aproximação que deixa espaço para o distanciamento
(ou, em termos metapsicológicos, a possibilidade de projetar aspectos do self sobre a teoria ao
mesmo tempo que a percebendo como um objeto externo ao Eu) também é facilitada por suas
formulações teóricas metapsicológicas, que “[resistem] a qualquer tentativa de assimilação
precipitada ao campo das experiências” (FIGUEIREDO, [1996a] 2004a, p. 126).
Nunca é demais lembrar, porém, que a teoria sempre precisará encontrar um analista
disposto a aceitar (ou recusar) os convites que lhe são feitos. O fato de uma teoria ser mais ou
menos aberta à participação do analista (isto é, mais ou menos permeável às suas projeções)
de forma alguma determina a relação transferencial que o analista estabelecerá com ela.
Voltemos então aos aspectos narcísicos da transferência. Eis como Caper caracteriza a
tonalidade emocional característica de uma relação transferencial predominantemente
narcísica (lembrando sempre que o autor está se referindo à transferência do paciente com o
analista):
[...] há um sentimento de identificação mútua, de uma relação entre duas
pessoas que conhecem, entendem e amam uma à outra. [...] O paciente pode
sentir que o analista foi capaz de articular o que ele sempre soube e quis
dizer para si mesmo, mas até então não fora capaz de encontrar as palavras
para tal. (CAPER, 1999b, p. 115)
149
.
Esse “sentimento de identificação mútua” – particularmente a sensação de encontrar
no outro aquilo que no fundo sempre se soube sobre si mesmo – permeia também a relação
transferencial narcísica do analista com as teorias. A teoria parece dizer ao analista aquilo que
ele mesmo já sabia, mas ainda não tinha sido capaz de formular. Nesse estado emocional –
nessa dimensão da relação transferencial com as teorias em que os aspectos narcísicos do
analista se fazem presentes – a questão da autoria das idéias torna-se irrespondível. A teoria
apenas sistematizou idéias que já eram do analista, ou efetivamente lhe trouxe contribuições
novas? Uma questão como essa não faz sentido quando eu e outro – analista e teoria –
encontram-se profundamente indiferenciados.
149
“[...] there is a feeling of mutual identification, of a relationship between two people who know, understand
and love each other. […] the patient may feel that the analyst has been able to articulate what he has always
known and wanted to articulate for himself, but has not theretofore been able to find the words for.”
124
Mas “O que está faltando nesse estado emocional é tão digno de nota quanto o que
está presente: não há ansiedade, culpa, depressão [...]” (CAPER, 1999b, p. 115)
150
. Se a
identificação narcísica com a teoria é muito profunda – isto é, se não há nenhuma
possibilidade de distanciamento dela –, a teoria se ajusta perfeitamente às idéias do analista, e
ambas (que, nesse plano, são uma só e a mesma coisa) se ajustam perfeitamente à realidade
clínica. Aqui, analista, teoria e clínica (con)fundem-se de maneira absolutamente harmoniosa
e desprovida de conflitos. Naturalmente, isso só é possível porque se estão negando as
diferenças – as separações – existentes entre esses três pólos.
Entretanto,
Estas considerações aplicam-se a situações transferenciais em que o analista
é o objeto (ou self/objeto) narcísico bom do paciente. Existem, é claro, outras
situações transferenciais em que o analista é o objeto mau do paciente.
Nesses casos, o paciente possui alguma outra coisa que não o analista como
um self/objeto bom. (CAPER, 1999b, p. 116)
151
.
Até aqui, portanto, viemos falando de uma relação em que a teoria ocupa na
transferência a posição de objeto (narcísico) bom do analista – o que parece ser o caso da
segunda experiência relatada na introdução deste trabalho. Ali, as teorias adequavam-se
perfeitamente à realidade da clínica, sem espaço para dissonâncias, dúvidas ou angústia: havia
uma concepção de que as dúvidas suscitadas pela clínica seriam categoricamente respondidas
por textos teóricos.
Mas, conforme nos alerta Caper, também há situações em que a teoria pode ocupar
transferencialmente o lugar de objeto mau. Esse parece ser o caso da primeira experiência
relatada na introdução, em que as teorias psicológicas ou psicanalíticas eram vistas como
construções destinadas a impedir o contato com a alteridade. Ali, como vimos (p. 108), a
posição de objeto narcísico bom era ocupada por outro pressuposto teórico: a necessidade da
abertura para a experiência.
Curiosamente, o caso clínico apresentado por Caper no texto “Uma mente própria”
trata de uma paciente que, dentre outros sintomas, estabelecera uma relação estritamente
narcísica com a teoria de um determinado autor (a paciente era historiadora). A relação
150
“What is missing from this emotional state is just as noteworthy as what is present: there is no anxiety, guilt,
depression […]”
151
“These considerations apply to transference situations in which the analyst is the patient’s narcissistic good
object (or self/object). There are, of course, other transference situations in which the analyst is the patient’s bad
object. In these cases, the patient has something other than the analyst as a good self/object.”
125
transferencial da paciente com essa teoria ilustra particularmente bem como ela pode ser
impeditiva do pensamento. A paciente negava ativamente tudo aquilo que, nas idéias do autor,
pudesse ser conflituoso com suas próprias idéias. Contudo,
Não é que ela sabia o que pensava, e achou que as idéias do autor estavam
em concordância com as suas por ter tido um delírio de que o autor
concordava com ela. Ela simplesmente era incapaz de pensar com clareza
sobre esse assunto – ela era incapaz de ter uma idéia clara do que qualquer
um dos dois pensava (CAPER, 1999b, p. 121-122, grifos no original)
152
.
Ou seja, a paciente não passou a negar ativamente os aspectos discordantes da teoria
depois de perceber uma discordância originária entre suas idéias e as do autor (e, portanto,
uma diferenciação e separação entre ambas). A indiferenciação entre seu próprio pensamento
e a teoria é primária, a ponto de impedir a paciente de pensar claramente sobre o assunto em
questão. “Por detrás do clima superficialmente acolhedor da união narcísica” (CAPER,
1999b, p. 123-124)
153
entrevê-se a paralisação do pensamento: o sujeito torna-se presa da
união narcísica entre suas idéias e a teoria, da mesma forma que a teoria se torna presa dessa
união (pois não pode ser vista como um objeto distinto do Eu, passível de ser submetido a
críticas).
Passemos agora aos aspectos não-narcísicos da transferência:
Ao lado do aspecto narcísico da personalidade do paciente, existe um
aspecto não-narcísico que é capaz de formar uma relação com o analista que
não é de identificação ou união. [...] Para o aspecto não-narcísico do
paciente, o analista é um objeto distinto dele, algo que poderíamos
denominar objeto externo próprio
(CAPER, 1999b, p. 116-117)
154
.
Existe, portanto, um aspecto não-narcísico na personalidade do analista capaz de
estabelecer uma relação transferencial com a teoria que não é de indiferenciação e fusão
harmoniosa. Este aspecto de sua personalidade trata a teoria como um objeto externo ao Eu –
que pode, portanto, ser perdido, e a partir daí introjetado. Se a teoria pode ser percebida como
152
“It was not that she knew what she thought, and that she felt the author’s ideas agreed with hers because she
had a delusion that the author agreed with her. She was simply unable to think clearly in this area at all – she was
unable to have a clear idea of what either of them thought.”
153
“Behind the superficially warm ambience of the narcissistic union […]”
154
“Alongside the narcissistic aspect of the patient’s personality, there is a non-narcissistic aspect that is capable
of forming a relationship with the analyst other than identification or union. […] For the non-narcissistic aspect
of the patient, the analyst is an object that is distinct from itself, what we might call a proper external object.”
126
um objeto distinto do Eu, o analista está em posição privilegiada para estudá-la objetivamente
e submetê-la a críticas.
A tonalidade emocional desse tipo de relação, diferentemente daquela
associada à identificação narcísica, é complexa e contém elementos
dolorosos, mas o aspecto não-narcísico do paciente aceita-a porque, dentre
outras coisas, se o paciente não está confundido com o analista em um
sistema de identificação, ele pode ter uma identidade e uma mente próprias.
(CAPER, 1999b, p. 117)
155
.
A dor advinda da dimensão não-narcísica de uma relação transferencial refere-se
justamente à separação que ali vigora entre sujeito e objeto (analista e teoria)
156
. Se teoria e
analista não são uma só e a mesma coisa – isto é, se a teoria não diz apenas e exatamente o
que o analista já sabia –, isso significa que a teoria diz também coisas que o analista não
entende, não consegue, ou não quer ouvir. Entrar em contato com tudo aquilo da teoria que é
diferente de mim implica entrar em contato, portanto, com as próprias limitações, pois a teoria
em algum momento apontará para o que me é desconhecido e incompreensível – para coisas,
enfim, que fogem ao controle onipotente do analista. Ao mesmo tempo, perceber que a teoria
é distinta de mim também implica a percepção de que ela é distinta da realidade clínica –
jamais esgotará, portanto, o que os pacientes têm a comunicar.
Mas, ao entrar em contato com a barreira existente entre si próprio e as teorias (e,
conseqüentemente, com suas próprias – do analista e da teoria – limitações e falibilidade), o
analista adquire uma mente e uma identidade próprias. Isso significa que o analista consegue
manter-se vivo para a experiência (tanto a experiência com o paciente, quanto com as teorias)
– isto é, está mais capacitado a vivenciar os extremos “[...] os prazeres e dores, alturas e
profundezas [...]” (GOETHE apud OGDEN, [1997b] 2004b)
157
da experiência humana.
Ter uma mente própria como analista significa ter uma mente que não está aprisionada
numa identificação narcísica com a teoria, sendo portanto livre para operar deslocamentos
(isto é, estabelecer relações transferenciais com outras teorias). Pois um dos problemas da
identificação narcísica com a teoria é justamente o represamento de todo o investimento
libidinal do analista naquela teoria específica. A energia psíquica do analista fica depositada
155
“The emotional tone of this type of relationship, unlike that associated with narcissistic identification, is
complex and contains painful elements, but the non-narcissistic aspect of the patient welcomes it because, among
other things, if the patient is not confused with the analyst in a system of identification, he can have an identity
and a mind of his own.”
156
Conferir as “ressalvas depressivas” que Freud contrapõe aos momentos de maior identificação narcísica com
sua teoria do luto e melancolia (p. 116 e seguintes).
157
“[…] the joys and griefs (sic), the heights and depths […]”
127
na teoria com a qual ele está identificado melancolicamente, não podendo ser deslocada para
novos objetos. E, quando o analista está identificado (narcísica e melancolicamente) a uma
determinada teoria, os objetos da clínica tenderão a ser focalizados sempre de uma mesma
maneira, pasteurizando assim aquilo que poderia ser a multiplicidade da clínica.
Aos poucos viemos nos aproximando, portanto, dos assim chamados aspectos
edipianos da transferência. Vale lembrar que a tese principal do texto de Caper é justamente o
reconhecimento da interdependência entre os processos de elaboração da posição depressiva
(o reconhecimento da separação entre sujeito e objeto) e a travessia do Édipo (a participação
numa relação triádica onde está presente a inclusão na exclusão). Assim, ao falarmos dos
aspectos não-narcísicos da transferência do analista com as teorias – que supõem a separação
daquele em relação a estas – acabamos por esbarrar justamente na emergência de um terceiro.
Isso porque a constatação de que a teoria não se reduz às minhas projeções (isto é, o
reconhecimento de sua alteridade) passa necessariamente pelo reconhecimento de que ela
estabelece relações com outros objetos (outras idéias, autores etc.)
158
às quais o Eu não tem
acesso. A constatação de que a teoria é ligada a outros objetos, por sua vez, “libera” o analista
para estabelecer relações com novos objetos (novas teorias, aspectos inomináveis e
incompreensíveis dos pacientes) das quais aquela teoria estará excluída.
É justamente do estabelecimento de uma terceiridade que a seguinte citação trata:
[...] o analista está ligado ao paciente através de sua sensibilidade às
projeções deste, mas, ao mesmo tempo, ele possui uma ligação com seus
próprios objetos internos, da qual o paciente está excluído. Aquilo que
denominamos distância emocional ou barreira entre analista e paciente é um
modo de falar dessas ligações [do analista] com seus objetos internos
(CAPER, 1999b, p. 117-118)
159
.
Aqui, Caper mudou o foco de sua investigação: ele não mais está se referindo ao
paciente que estabelece uma relação transferencial com o analista, e sim ao analista que deve
manejar a transferência do paciente. Cabe ao analista colocar-se em um “[...] estado mental
que [o permita] a estar receptivo às projeções do paciente e ao mesmo tempo distanciar-se
delas” (CAPER, 1999b, p. 117)
160
. Tal estado será compreendido, no que diz respeito à
158
Sobre isso, ver p. 68 do presente estudo.
159
[…] the analyst is linked to the patient via his sensitivity to the patient’s projections, but at the same time he
has a link with his own internal objects, from which the patient is excluded. What we call the emotional distance
or barrier between analyst and patient is a way of speaking of these links to his internal objects.”
160
“[...] state of mind that allows the analyst to be receptive to the patient’s projections and at the same time to
distance himself from them.”
128
relação do analista com as teorias, como o estado que permite ao analista projetar seus objetos
internos na teoria ao mesmo tempo que o permite olhar para ela como algo diferente de si, isto
é, como algo que em muito ultrapassa suas projeções. O analista liga-se à teoria pelos
aspectos de sua própria experiência que ele pode projetar nela; mas, ao mesmo tempo, o
analista está ligado contratransferencialmente a seus pacientes, numa relação da qual a teoria
está excluída. A distância emocional entre analista e teoria é dada pela ligação do analista
com seus pacientes.
Ou seja, uma relação transferencial com a teoria dotada de aspectos narcísicos do
analista (suas projeções na teoria) e não-narcísicos (percepção da teoria como algo
independente dessas projeções) é uma relação transferencial na qual está pressuposto o
Complexo de Édipo. Chegamos assim à idéia de que a clínica opera como o terceiro ao qual o
analista deve estar sempre voltado em sua relação com as teorias. Caper (1999b, p. 119)
retoma a concepção de Bion segundo a qual a mãe só pode cuidar do bebê porque ama o pai –
isto é, porque estabelece relações fecundas com outros objetos, internos e externos, distintos
do bebê. Tais relações são fundamentais para que a mãe possa estar receptiva às projeções do
bebê sem fundir-se a ele numa identificação narcísica, pois suas ligações com seus objetos
internos e externos (seu “amor pelo pai”) barram uma tal fusão.
Analogamente, o analista só pode cuidar do paciente porque “ama” as teorias: “[...] o
objeto interno que ajuda o analista a sustentar sua barreira interna contra as projeções do
paciente é a própria psicanálise enquanto um tipo específico de investigação empírica”
(CAPER, 1999b, p. 118)
161
. Com a proposta de que o analista deve “amar as teorias”, estamos
nos afastando ligeiramente de Caper – pois que ele trata aqui da psicanálise em sua dimensão
metodológica – e nos aproximando de Figueiredo (2000), que pensa ser justamente essa uma
das principais funções da teoria na clínica: a constituição de um espaço de reserva no analista,
interditor de uma implicação excessiva no atendimento.
Assim, o presente trabalho desloca a formulação de Bion anteriormente citada para a
relação do analista com as teorias. Estamos propondo que o analista só poderá relacionar-se
de forma satisfatória com as teorias se estiver “[...] firmemente assentado sobre a realidade de
sua experiência vivida com pacientes” (OGDEN, 2005a, p. 43)
162
. Estamos enfatizando,
161
“[...] the internal object that helps the analyst sustain his internal barrier against the patient’s projections is
psychoanalysis itself as a specific type of empirical investigation.”
162
“[...] firmly grounded in the reality of his lived experience with patients”
129
agora, o termo “pacientes”: o analista só será capaz de aprender com as teorias se for
igualmente capaz de aprender com seus pacientes.
130
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É chegada a hora de recapitularmos o que desenvolvemos até aqui.
Partimos de dois relatos de experiências clínicas – uma na psicologia fenomenológico-
existencial e outra na psicanálise – dotadas de visões bastante distintas sobre o papel a ser
desempenhado pelas teorias na clínica. Na primeira experiência relatada, as teorias deveriam
ser deixadas de lado (ou “colocadas entre parênteses”) durante os atendimentos, caso
contrário atrapalhariam o contato com o cliente. Na segunda experiência, entretanto, as teorias
deveriam nortear a prática clínica do analista. Tinha-se de um lado, portanto, o primado da
prática; de outro, o primado da teoria. Nos dois casos, o outro pólo da relação entre teoria e
prática aparecia como mera conseqüência do estabelecimento desse primado: uma boa teoria é
conseqüência de uma boa prática; uma boa prática, conseqüência de uma boa teoria. Ambas
as posições pareceram-nos insuficientes, levando-nos à realização da presente pesquisa (agora
no âmbito exclusivo da teoria e da clínica psicanalítica).
Com o objetivo de investigar outras relações possíveis entre teoria e prática na clínica
psicanalítica, recorremos a dois pares de conceitos importados da epistemologia de Polanyi
(apud FIGUEIREDO, [1996a] 2004a): conhecimentos tácitos e explícitos, e conhecimentos
focais e subsidiários. Vimos que o destino de todo conhecimento explícito e representacional
é sua incorporação, sendo que as teorias só operam na clínica a partir dessa incorporação a um
nível subsidiário
163
; ao mesmo tempo, porém, o sentido dos conhecimentos explícitos a serem
incorporados é dado por conhecimentos de um nível tácito e subsidiário.
Assim, Figueiredo ([1996a] 2004a) propõe que conhecimentos tácitos e explícitos
sejam mantidos em um nível ótimo de tensão, para que as teorias que vão sendo incorporadas
– e a partir daí vão dando sentido à experiência – possam ser remetidas novamente a um nível
explícito e assim serem submetidas a críticas e reformulações. O autor destaca ainda duas
funções básicas da teoria na clínica: ajudar nos processos de configuração dos fenômenos
clínicos, e introduzir o tempo da espera em práticas que, de tão impregnadas por
conhecimentos tácitos, já se encontram automatizadas. A segunda dessas funções é retomada
em um texto posterior (FIGUEIREDO, 2000), no qual o autor aponta a importância das
163
Ver p. 22 do presente estudo.
131
teorias na constituição de um espaço psíquico de reserva do analista que atue como
contraponto dialético à sua implicação no atendimento.
Faltava-nos ainda, porém, uma teorização mais ampla sobre o tema que partisse de
dentro da própria psicanálise. Foi nesse momento que entramos em contato com o texto “Uma
nova leitura das origens da teoria das relações de objeto” (OGDEN, 2005a), que nos acenou
para a possibilidade de pensarmos as teorias psicanalíticas como objetos internos do analista.
Paralelamente a esta investigação, procuramos realizar uma leitura desse texto que estivesse
atenta aos modos pelos quais as teorias se fazem presentes no processo de escrita do autor,
além dos modos pelos quais esse processo de escrita encontra-se impregnado por sua prática
clínica.
Com esse texto, portanto, Ogden permitiu-nos pensar as teorias como objetos passíveis
de sofrerem investimentos libidinais: uma vez perdidas, as teorias exigirão do analista um
trabalho de luto. Consideramos que essa perda ocorre quando a teoria deixa de responder às
exigências da clínica, isto é, quando deixa de amparar o analista em seu contato com os
pacientes. Assim, para compreendermos o que acontece na clínica quando a teoria é perdida,
foi preciso compreender as vicissitudes sofridas pela teoria no psiquismo do analista.
A teoria perdida pode dar origem a dois objetos internos distintos. Quando o processo
de luto da teoria é levado a bom termo, ela é introjetada no mundo interno do analista como
objeto bom, liberando o Eu para novos investimentos libidinais. Se, por outro lado, o analista
é incapaz de fazer esse luto, a teoria é mantida “viva” em seu mundo interno via uma
identificação narcísica regressiva a parte do Eu.
Dotados dessa nova compreensão teórica, procedemos então à articulação dos
conceitos oriundos da epistemologia com esses dois processos inconscientes de introjeção do
objeto (a introjeção do objeto bom resultante do luto e a identificação narcísica característica
da melancolia).
Comecemos pelo segundo desses processos. Pensamos que a identificação narcísica a
uma teoria equivale à cristalização da teoria no conhecimento subsidiário. Estamos cunhando
esse termo aqui para caracterizar um determinado tipo de relação com a teoria na qual a
identificação com ela é tão profunda (“a teoria sou eu e eu sou a teoria”), que qualquer olhar
objetivo e crítico para ela se torna inviável. A teoria fica de tal forma arraigada ao
conhecimento subsidiário que o trânsito entre este nível do conhecimento e o conhecimento
explícito fica interrompido – assim como fica interrompido o trânsito entre mundo externo (as
132
exigências da clínica) e mundo interno do analista (no qual o analista-teoria, que são nesse
plano uma só e a mesma coisa, está aprisionado).
A teoria está tão entranhada ao corpo do analista que este não mais a percebe como um
conjunto de idéias, mas como a própria natureza das coisas. Desta forma, os objetos da clínica
que se relacionam àquela teoria tenderão a ser focalizados sempre da mesma maneira, sem
que o analista se dê conta de que isso não se deve a um padrão daqueles objetos, e sim à
fixidez do fundo. Além disso (ou melhor, exatamente por isso, isto é, devido a essa
naturalização do conhecimento), o analista fica incapacitado de efetuar um deslocamento
libidinal desta teoria para outras, quando a teoria em questão “morre”: novos investimentos
libidinais em outras teorias não são possíveis (nem necessários) na medida em que a teoria
com a qual se estabelece uma relação narcísica está rigidamente entranhada no Eu do analista
– estará, eternamente, “dando conta de tudo”. Ou seja, a manutenção da teoria no mundo
interno via identificação narcísica a uma parte do Eu (isto é, sua cristalização ao
conhecimento subsidiário) se dará ao preço de um contato empobrecido do analista com o
mundo externo (isto é, com a realidade clínica). O analista, nesse caso, impede a clínica de
irromper em sua dimensão traumática de alteridade: a escuta analítica deixou de ser guiada
pela atenção flutuante e passou a focar-se exclusivamente nos objetos visados pela teoria. A
clínica converte-se assim numa apresentação sucessiva de dados e pacientes que já se conhece
antes mesmo que se possa ouvi-los.
Já a introjeção da teoria como objeto bom equivale à sua incorporação ao
conhecimento subsidiário. A introjeção da teoria como objeto bom implica a colocação para
dentro do aparelho psíquico das “experiências de prazer” por ela proporcionadas – isto é,
experiências nas quais a teoria veio ao encontro das necessidades impostas pela clínica –,
levando-a a operar no aparelho psíquico como um objeto interno dotado de uma lógica de
funcionamento própria. Parte do dinamismo característico da teoria enquanto objeto interno
bom está em sua propriedade de atuar como uma garantia de que, mesmo nas situações
clínicas em que o analista se encontra mais implicado e “perdido”, alguma organização
daquela experiência será possível. Isso confere ao analista a segurança necessária para ele se
distanciar minimamente daquela situação e poder estar vivo com e para o paciente sem se
confundir com ele.
Assim, a firme instalação da teoria como objeto interno bom no psiquismo do analista
(isto é, sua incorporação ao conhecimento subsidiário) constitui-se, em termos
metapsicológicos, como responsável pela criação e manutenção de um espaço psíquico de
133
reserva no analista. A introjeção da teoria como objeto interno bom proporciona ainda o
aumento de sua “[...] capacidade de [...] tolerar estados transitórios de privação ou frustração”
(CINTRA; FIGUEIREDO, 2004, p. 84). Na prática, isso significa que o analista estará mais
capacitado para tolerar seus sentimentos de desconhecimento e ignorância na clínica (isto é,
sua sensação de não ter a menor idéia do que se está passando com aquele paciente). Como o
analista está suficientemente seguro de que alguma ordem emergirá do caos acontecimental
da sessão, sua escuta pode ficar livre o suficiente para focalizar aspectos marginais ao
discurso e à postura do paciente. O analista estará, portanto, aberto à possibilidade de um
encontro traumático com o outro.
Por fim, a introjeção da teoria como objeto bom libera o Eu para realizar novos
investimentos libidinais em outras teorias. O trânsito entre mundo externo e interno, portanto,
fica preservado: novas teorias poderão ser introjetadas no mundo interno do analista, assim
como novas experiências com os pacientes. Mas não é apenas esse fluxo que fica preservado:
a teoria que foi introjetada como objeto bom foi incorporada, e não cristalizada ao
conhecimento subsidiário. Assim, essa teoria pode, com algum esforço por parte do analista,
ser remetida de volta ao nível explícito – e, portanto, ser submetida a críticas e reformulações.
Quando o analista pode fazer o luto da teoria, portanto, ele pode estar sensível à alteridade
intrínseca às teorias e aos pacientes, pois fundamentalmente se deixa afetar por ambos.
Mas a relação patológica dos analistas com a teoria geralmente assume a forma de
mania. Vimos (p. 107) que a contraparte necessária da depreciação (do Eu ou de um objeto) é
a idealização de algum outro objeto (sendo que por idealização estamos entendendo sua
valorização enquanto algo sumamente bom). Assim, na melancolia temos a depreciação do Eu
e a idealização do objeto que se perdeu. Na mania, por outro lado, a depreciação é
explicitamente dirigida ao objeto, estando a idealização reservada ao Eu. No que se refere à
apreensão de teorias, isso implica que uma determinada teoria será depreciada pelo analista,
em contraposição a uma outra que será por ele idealizada. Mas essa teoria idealizada estará
identificada a parte do Eu do analista; a idealização da teoria converte-se, assim, na
idealização do próprio Eu.
Por fim, pusemo-nos a investigar a relação entre teoria e prática na clínica
psicanalítica do ponto de vista da relação transferencial que o analista estabelece com as
teorias, pois o conceito de escolha de objeto (e em especial a escolha de objeto por veiculação
sustentada) pareceu-nos insuficiente para o exame desse problema. Assim, procedemos ao
comentário dos aspectos narcísicos, não-narcísicos e edipianos da transferência conforme
134
propostos por Caper em “Uma mente própria” (1999b). Estes últimos fazem-se presentes em
uma relação transferencial na qual os aspectos narcísicos e não-narcísicos da transferência
encontram-se em um nível ótimo de tensão.
Os aspectos narcísicos da transferência com a teoria referem-se à possibilidade de o
analista projetar seus próprios objetos internos sobre ela. Os aspectos não-narcísicos referem-
se à sua capacidade de perceber a teoria como um objeto independente de suas projeções. Os
aspectos edipianos, por fim, referem-se à possibilidade de o analista colocar-se em um estado
mental que o permita projetar seus objetos internos na teoria ao mesmo tempo que
percebendo-a como algo distinto de si e de suas projeções.
Mas o reconhecimento de que a teoria é distinta de si implica o reconhecimento de que
ela estabelece relações com outros objetos, das quais o analista está excluído. Tal
reconhecimento, por sua vez, permite ao analista estabelecer relações com novos objetos
(novas teorias, aspectos inomináveis e incompreensíveis dos pacientes) das quais aquela
teoria estará excluída. Assim, o analista liga-se à teoria pelos aspectos de sua própria
experiência que ele pode projetar nela; mas, ao mesmo tempo, o analista está ligado
contratransferencialmente a seus pacientes, numa relação da qual a teoria está excluída. Assim
como dizemos que a distância emocional entre analista e paciente é dada pela ligação do
analista com seus objetos internos (dentre os quais se destaca a teoria psicanalítica), podemos
também dizer que a necessária distância emocional entre analista e teoria é dada pela viva
ligação do analista com seus pacientes.
135
REFERÊNCIAS
ALVAREZ, A. A voz do escritor. [2005]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
BERMAN, E. Book review: This art of psychoanalysis: dreaming undreamt dreams and
interrupted cries. International Journal of Psychoanalysis, Londres, v.88, n.1 p.255-261,
2007.
BION, W. R. Learning from experience. [1962]. Londres: Karnac, 1991.
CAPER, R. Internal objects. In: _____. A mind of one’s own. Londres & Nova York:
Routledge. 1999a.
______. A mind of one’s own. In: _____. A mind of one’s own. Londres & Nova York:
Routledge, 1999b.
CINTRA, E.M.U.; FIGUEIREDO, L.C. Melanie Klein. Estilo e pensamento. São Paulo:
Escuta, 2004.
COELHO, Jr. N. Fala, escuta e campo terapêutico em psicanálise. In: FIGUEIREDO, L. C.;
COELHO Jr., N. Ética e técnica em psicanálise. São Paulo: Escuta, 2000.
______. Intersubjetividade: conceito e experiência em psicanálise. Psicologia Clínica, Rio de
Janeiro, v. 14, n. 1, p. 61-74, 2002.
COELHO Jr., N.; FIGUEIREDO, L. C. Figuras da intersubjetividade na constituição
subjetiva: dimensões da alteridade. Interações: Estudos e Pesquisas em Psicologia, São Paulo,
v. IX, n. 17, p. 9-28, 2004.
DELOUYA, D. Epistemopatia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.
FIGUEIREDO, L. C. Matrizes do pensamento psicológico. Petrópolis: Vozes, 1991.
______. Teorias e práticas na psicologia clínica: um esforço de interpretação. [1996a].
In:_____. Revisitando as Psicologias. Petrópolis: Vozes, 2004a.
136
______. Os lugares da psicologia. In:_____. Revisitando as psicologias. [1996b]. Petrópolis:
Vozes, 2004b.
FIGUEIREDO, L. C. Convergências e divergências: a questão das correntes de pensamento
em psicologia. [1996c]. In: _____. Revisitando as psicologias. Petrópolis: Vozes, 2004c.
______. Presença, implicação e reserva. In: FIGUEIREDO, L. C.; COELHO Jr., N. Ética e
técnica em psicanálise. São Paulo: Escuta, 2000.
______. Modernidade, trauma e dissociação: a questão do sentido hoje. In: _____.
Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea. São Paulo: Escuta, 2003.
______. A questão do sentido, a intersubjetividade e as teorias das relações de objeto. Revista
Brasileira de Psicanálise, São Paulo, v. 39, n. 4, p. 79-88, 2006.
FREUD, S. A interpretação dos sonhos. [1900]. In: _____. Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996a.
__________ À Guisa de introdução ao Narcisismo. [1914]. Coordenação da Trad. Luiz
Hanns. In: _____. Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Volume I: 1911-1915. Rio de
Janeiro: Imago, 2006a.
__________ Luto e melancolia. [1917a]. Coordenação da Trad. Luiz Hanns. In: _____.
Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Volume II: 1915-1920. Rio de Janeiro: Imago,
2006b.
__________ Luto e melancolia. [1917b]. In: _____. Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996b.
__________ Luto e melancolia. [1917c]. Trad. Marilene Carone. Revista Novos Estudos, São
Paulo, n. 32, p. 130-142, mar. 1992.
FROST, R. Letter to John T. Bartlett, February 22, 1914. In: Robert Frost: collected poems,
prose, and plays. Ed. R. Poirier & M. Richardson. New York: Library of America, 1995.
137
KLEIN, M. Mourning and its relation to manic-depressive states. [1940]. In: The Writings of
Melanie Klein, vol. I. Love, guilt, and reparation, and other works, 1921-1945 / by Melanie
Klein ; with an introduction by R.E. Money-Kyrle. New York: Free Press, 1984.
LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. [1982]. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
MEZAN, R.M. Contratransferência, catarse e elaboração. In: _____. Escrever a clínica. São
Paulo: Casa do Psicólogo, 1998a.
______. Do relato à teorização. In: _____. Escrever a clínica. São Paulo: Casa do Psicólogo,
1998b.
MICHELS, R. The Several relationships of theory and practice. The Psychoanalytic
Quarterly, New York, v.72, n.1, p. 275-285, 2003.
MORAES, V. de. A Casa. [1980]. A Arca de Noé. São Paulo: Polygram, 1993. 1 CD.
NASCIMENTO, M. San Vicente. [1972]. Clube da Esquina. São Paulo: EMI, 1995. 1 CD.
NASCIMENTO, M.; BASTOS, R. Nada Será Como Antes. [1972]. Clube da Esquina. São
Paulo: EMI, 1995. 1 CD.
OGDEN, T. Internal object relations. [1986]. In: _____. The matrix of the mind. Londres:
Maresfield Library, 1992.
______. The analytic third: working with intersubjective clinical facts. [1994a]. In: _____.
Subjects of analysis. Londres: Karnac, 2003a.
______. On becoming a subject. [1994b]. In: _____. Subjects of analysis. Londres: Karnac,
2003b.
_____. Subjects of analysis. [1994c]. Londres: Karnac, 2003c.
______. Listening: three Frost poems. [1997a]. In: _____. Reverie and Interpretation.
Lanham: Jason Aronson, 2004a.
138
______. On the art of psychoanalysis. [1997b]. In: _____. Reverie and Interpretation.
Lanham: Jason Aronson, 2004b.
______. Analyzing forms of aliveness and deadness. [1997c]. In: _____. Reverie and
Interpretation. Lanham: Jason Aronson, 2004c.
OGDEN, T. On the use of language in psychoanalysis. [1997d]. In: _____. Reverie and
Interpretation. Lanham: Jason Aronson, 2004d.
______. Reverie and interpretation. [1997e]. In: _____. Reverie and interpretation. Lanham:
Jason Aronson, 2004e.
______. Dream associations. [1997f]. In: _____. Reverie and interpretation. Lanham: Jason
Aronson, 2004f.
_____. Reverie and Interpretation. [1997g]. Lanham: Jason Aronson, 2004g.
______ “The Music of What Happens” in Poetry and Psychoanalysis. In: _____;
Conversations at the Frontier of Dreaming. Northvale & Londres: Jason Aronson. 2001a.
______. Reverie and metaphor: some thoughts on how I work as a psychoanalyst. In: _____.
Conversations at the frontier of dreaming. Northvale & Londres: Jason Aronson. 2001b.
______. Re-minding the body. In: _____. Conversations at the frontier of dreaming.
Northvale & Londres: Jason Aronson. 2001c.
_____. Conversations at the frontier of dreaming. Northvale & Londres: Jason Aronson.
2001d.
______. Uma nova leitura das origens da teoria das relações de objeto. Trad. Maria Luiza
Gastal. Alter – Jornal de Estudos Psicanalíticos, Brasília, v. XXII, n. 2, p. 175-195, dez.
2003.
______. A new reading of the origins of object relations theory. In: _____. This art of
psychoanalysis: dreaming undreamt dreams and interrupted cries. Londres & Nova York:
Routledge. 2005a.
139
______. On holding and containing, being and dreaming. In: _____. This art of
psychoanalysis: dreaming undreamt dreams and interrupted cries. Londres & Nova York:
Routledge. 2005b.
______. This art of psychoanalysis: dreaming undreamt dreams and interrupted cries. In:
_____. This art of psychoanalysis: dreaming undreamt dreams and interrupted cries. Londres
& Nova York: Routledge. 2005c.
OGDEN, T. Reading Bion. In: _____. This art of psychoanalysis: dreaming undreamt dreams
and interrupted cries. Londres & Nova York: Routledge. 2005d.
______. What’s true and whose idea was it? In: _____. This art of psychoanalysis: dreaming
undreamt dreams and interrupted cries. Londres & Nova York: Routledge. 2005e.
______. On not being able to dream. In: _____. This art of Psychoanalysis: dreaming
undreamt dreams and interrupted cries. Londres & Nova York: Routledge. 2005f.
______. What I would not part with. In: _____. This Art of Psychoanalysis: dreaming
undreamt dreams and interrupted cries. Londres & Nova York: Routledge. 2005g.
______. This Art of Psychoanalysis: dreaming undreamt dreams and interrupted cries.
Londres & Nova York: Routledge. 2005h.
ORQUESTRA SINFÔNICA BRASILEIRA. Glossário. Disponível em:
<
http://www.osb.com.br/glossario.htm>. Acesso em: 20 jun. 2006.
PSYCHOANALYTIC QUARTERLY. New York, v. 72, n. 1, 2003.
SMITH, H. Theory and practice: intimate partnership or false connection? The Psychoanalytic
Quarterly, New York, v. 72, p. 1-12, 2003.
WINNICOTT, D. W. Ego integration in child development. In: _____. The maturational
processes and the facilitating environment. Londres: Hogarth Press, 1965.
______. The use of an object and relating through identifications. [1968]. In: _____. Playing
and reality. New York: Brunner-Routledge, 2004.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo