Download PDF
ads:
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC – SP
RENATO CASEMIRO
CONSONÂNCIAS PLANETÁRIAS:
APRESENTAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO DA “TERCEIRA LEI” DO
MOVIMENTO PLANETÁRIO NO LIVRO V DO HARMONICES MUNDI (1619)
DE JOHANNES KEPLER (1571 – 1630)
MESTRADO EM HISTÓRIA DA CIÊNCIA
São Paulo
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC – SP
RENATO CASEMIRO
CONSONÂNCIAS PLANETÁRIAS:
APRESENTAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO DA “TERCEIRA LEI” DO
MOVIMENTO PLANETÁRIO NO LIVRO V DO HARMONICES MUNDI (1619)
DE JOHANNES KEPLER (1571 – 1630)
MESTRADO EM HISTÓRIA DA CIÊNCIA
Dissertação apresentada à Banda Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para a obtenção do título de Mestre
em História da Ciência, sob a orientação do
Professor Doutor José Luiz Goldfarb.
São Paulo
2007
ads:
BANCA EXAMINADORA
______________________________
______________________________
______________________________
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e
científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação
por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.
______________________________. Local: ________________ data: ______
RESUMO
Palavras-chaves: astronomia, terceira lei de Kepler, harmonia musical
Um dos significados da palavra consonância é harmonia. Harmonia, no
contexto matemático, remete-se a proporção, ordem e simetria. No contexto
musical, harmonia indica uma sucessão lógica dos sons. No contexto espiritual,
denota aproximação com o divino, paz.
A obra de Johannes Kepler (1571 – 1630), Harmonices mundi (1619), é
uma composição harmoniosa destes três contextos aplicados ao cenário
astronômico do século XVII. É neste livro que Kepler apresenta a relação
matemática existente entre os períodos de revolução dos planetas e suas
respectivas distâncias em relação ao Sol – ou como conhecemos nos dias
atuais, terceira lei do movimento planetário, lei harmônica ou terceira lei de
Kepler.
Baseando-se em suas conclusões anteriores, principalmente as que
foram publicadas no Mysterium Cosmographicum (1596), e na hipótese de uma
ligação entre as freqüências das notas musicais e as velocidades assumidas
pelos planetas ao longo de suas trajetórias, Kepler utilizou-se de um arcabouço
teórico característicos de sua época: a mística pitagórica, a filosofia platônica, a
geometria euclidiana, a teoria musical de Ptolomeu e o heliocentrismo de
Copérnico.
O objetivo desta dissertação é examinar a fundamentação teórica e
epistemológica empregada por Kepler na elaboração da “lei harmônica”, bem
como discutir sua relevância na cosmologia kepleriana e para a astronomia da
época.
ABSTRACT
Key-words: astronomy, Kepler´s third law, musical harmony
One of the meanings of the word ‘consonant’ is harmony. Harmony, in a
mathematical context, refers to proportion, order and symmetry. In a musical
context, harmony indicates a logical succession of the sounds. In a spiritual
context, it denotes an approach to the divine, peace.
Johannes Kepler´s work Harmonices mundi (1619) presents a
harmonious composition of these three contexts set in the astronomical scene
of the seventeenth century. In this book Kepler shows the existing mathematical
relation between the planets’ periods of revolution and their respective
distances from the Sun – or as we know at the present time, the third law of the
planetary motion, harmonic law, or Kepler’s third law.
Based on his own previous conclusions, essentially the ones published in
Mysterium Cosmographicum (1596), and on the hypothesis of a relationship
between the musical note frequency and the velocities of the planets in its
orbits, Kepler made use of a theoretical structure typical of his period, which
includes the Pythagoras mystics, the Platonic philosophy, the Euclidian
geometry, the Ptolemaic music theory, and the Copernican heliocentricism.
The aim of this dissertation is to examine the theoretical and
epistemological basis used by Kepler on the development of the “harmonic law”,
and to discuss its significance in the keplerian cosmology and for the astronomy
of the period.
AGRADECIMENTOS
A todos do Programa de Pós-Graduação em História da Ciência da
PUC-SP, em especial às professoras Ana Maria Haddad Baptista, Lilian Al-
Chueyr Pereira Martins e Maria Helena Beltran Roxo pela dedicação e apoio
nesse período de estudos.
Ao Fundo de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo pela bolsa de
estudos oferecida no ano de 2005.
Ao Prof. Dr. Roberto de Andrade Martins pela orientação inicial,
sugestões e críticas que me ajudaram a amadurecer de forma intelectual e
pessoal, bem como à Profa. Dra. Juliana Ferreira pela leitura crítica e
conselhos preciosos na qualificação.
Ao Prof. Dr. José Luiz Goldfarb por ter me aceitado como orientando na
fase final da minha pesquisa e ter depositado em mim sua confiança. Seu
parecer teve grande importância neste trabalho, assim como seu estímulo e
entusiasmo constantes.
Aos professores Walmir T. Cardoso, Cristiane R. Tavolaro, Marisa
Cavalcante e Ricardo Terini, por me servirem de exemplo de dedicação à
Física.
Aos bibliotecários da Biblioteca Marquês de Paranaguá, em particular a
Dona Balbina e Paulo, e da Biblioteca Abaporu, Bit e Cláudia, pela ajuda de
grande valia. Aos amigos do Colégio Rainha da Paz por relevar minhas
eventuais ausências.
Em especial, à minha esposa Ludimila Hashimoto B. Casemiro pelas
conversas de apoio e incentivo, além da revisão e correção dos capítulos.
DEDICATÓRIA
Dedico essa dissertação a três pessoas muito queridas:
minhas duas companheiras de pesquisa nas
madrugadas em claro: Ludimila e Iolanda. Apesar
de tudo meninas, valeu a pena!
meu compreensivo Vô Zeca (em memória): se
você ainda estivesse por aqui, as coisas teriam
sido bem mais simples.
SUMÁRIO
Introdução ....................................................................................................... p. I
Capítulo I – A astronomia na Revolução Científica
1.1 Introdução .............................................................................................. p. 06
1.2 Revolução Científica .............................................................................. p. 06
1.3 A Física e Cosmologia aristotélica ......................................................... p. 09
1.4 O sistema ptolomaico ............................................................................ p. 13
1.4.1 Excêntricos, epiciclos, deferentes e orbes .......................................... p. 14
1.4.2 A cosmologia ptolomaica .................................................................... p. 16
1.5 Astronomia e Física na Idade Média ..................................................... p. 18
1.5.1 Astronomia e Astrologia ...................................................................... p. 23
1.6 O cenário da revolução .......................................................................... p. 27
1.7 O modelo copernicano ........................................................................... p. 32
1.7.1 A hipótese de Copérnico ..................................................................... p. 33
1.7.2 Copérnico, Pitágoras, Platão e os neoplatônicos ............................... p. 39
1.7.3 Prós e contras do modelo copernicano .............................................. p. 41
1.8 Desdobramentos .................................................................................... p. 44
1.9 Conclusão do Capítulo I ......................................................................... p. 47
Capítulo II – Johannes Kepler – Vida e Obra
2.1 Introdução .............................................................................................. p. 52
2.2 Informações pessoais ............................................................................ p. 52
2.3 Contexto regional e histórico ................................................................. p. 53
2.4 Leonberg, período de 1578 a 1583 ........................................................ p. 56
2.5 Adelberg-Maulbronn, período de 1584 a 1587 ...................................... p. 57
2.6 A Universidade de Tübingen .................................................................. p. 58
2.6.1 Michael Mästlin …………………………………………...........…..……...p. 61
2.7 Mudança de rumos: o cargo de mathematicus em Graz ....................... p. 63
2.8 Mysterium cosmographicum .……………….............………….……….... p. 65
2.9 Tycho Brahe ……………...………………………………..……….……….. p. 72
2.10 Mudança de rumos II: vida em Praga …………................…………….. p. 78
2.11 Astronomia Nova................................................................. ………….. p. 80
2.12 Do Astronomia Nova ao Harmonices Mundi: entreato ......................... p. 86
2. 13 Conclusão do Capítulo II ..................................................................... p. 91
Capítulo III – Reflexões sobre a harmonia do mundo
3.1 Introdução .............................................................................................. p. 97
3.2 A idéia inicial do Harmonices mundi e sua produção ............................ p. 98
3.3 Sobre os primeiros quatro livros do Harmonice mundi: início da
fundamentação teórica .............................................................................. p. 101
3.3.1 Sobre o Harmonica de Ptolomeu ...................................................... p. 109
3.4. Análise do livro V do Harmonices mundi ............................................ p. 110
3.5 Resumo da teoria astronômica necessária para o estudo das harmonias
celestes ...................................................................................................... p. 125
3.5.1 Introdução do “Resumo” ................................................................... p. 126
3.5.2 As “condições” para a compreensão da harmonia celestial
.................................................................................................................... p. 127
3.6 Com quais aspectos relacionados aos movimentos dos planetas as
harmonias simples foram expressas, e que todas aquelas que pertencem à
melodia são encontradas nos céus ........................................................... p. 138
3.7 Conclusão do Capítulo III ..................................................................... p. 149
Considerações finais .................................................................................. p. 153
Referência bibliografia ............................................................................... p. 157
SATOR
AREPO
TENET
OPERA
ROTAS
“O criador mantém o mundo em sua órbita”
Introdução
O período compreendido entre os séculos XVI e XVIII é bastante
revisitado pelos historiadores da ciência. Isso não é sem razão. O momento
histórico conhecido como Revolução Científica teve fundamental importância
para a civilização ocidental pois promoveu mudanças significativas em diversas
áreas do conhecimento humano. E “apesar de todos reconhecermos de
imediato a importância da Revolução Científica, quanto mais estudamos suas
origens, menos estamos seguros de compreender as suas causas”
1
. A
complexidade dessa fase inicial é, em grande parte, decorrente da postura
intelectual e filosófica dos pensadores frente às transformações estabelecidas
por um contexto político, econômico, religioso e social muito peculiar. A
expansão territorial ultramarina dos grandes impérios, o desenvolvimento
obtido à custa das novidades e riquezas trazidas das terras descobertas, a
reforma religiosa luterana e a contra-reforma católica, e o fortalecimento da
classe social burguesa são alguns exemplos.
Acrescenta-se à complexidade deste cenário
“o declínio do mundo mágico e da tradição hermética; as estreitas
conexões entre o nascimento da nova ciência e os problemas da
teologia; as discussões de física e de cosmologia que
acompanharam e determinaram o fim da visão aristotélico-
ptolomaica do Universo; a disputa sobre a infinitude e a
habitabilidade dos mundos e sobre a posição do homem no
cosmos”
2
1
A. G. Debus, El Hombre y la Naturaleza en el Renacimiento, p. 16;
2
P. Rossi, A Ciência e a Filosofia dos Modernos, p. 9;
Engana-se quem acredita que esta transformação foi repentina, ou que
foi gradativamente compreendida e estabelecida. Os cenários descritos
anteriormente coexistiram praticamente durante toda essa época.
É nesse contexto controverso que a principal obra de Nicolau Copérnico
(1473 – 1543), De Revolutionibus Orbium Coelestium (1543), é publicada e
considerada, posteriormente, um dos marcos da Revolução Científica. Neste
livro Copérnico defende, basicamente através de argumentos matemáticos, o
movimento da Terra ao redor do Sol. O que torna especial o modelo
copernicano de Universo (heliostático) frente ao modelo geocêntrico de
Ptolomeu, vigente por praticamente quinze séculos, ou de outros modelos
heliocêntricos que foram propostos anteriormente
3
, é que existe nesta obra a
tentativa – ainda que bastante superficial – de se descrever uma nova
realidade física para os corpos celestes
4
, numa época em que a astronomia era
feita por astrônomos-matemáticos cujo interesse era dar conta de explicar os
fenômenos observáveis da melhor forma possível
5
.
Segundo Kuhn,
“embora o seu De Revolutionibus consista principalmente em
fórmulas matemáticas, tabelas e diagramas, só poderia ser
assimilado por homens capazes de criar uma nova concepção de
espaço, e uma nova idéia sobre a relação do homem com Deus”
6
.
Entre estes homens está Johannes Kepler (1571 – 1630):
ao conhecer sua biografia e estudar o conjunto de sua
obra, torna-se fácil colocá-lo entre aqueles que fizeram com
3
Como os modelos de Pitágoras, Heráclides do Ponto e Aristarco de Samos na Antiguidade;
4
Sobre esta questão, ver o capítulo 1 desta dissertação;
5
R. Martins in N. Copérnico, Commentariolus, p. 80;
6
T. Kuhn, A Revolução Copernicana, p. 10;
que o modelo copernicano se tornasse o símbolo da
mudança de um paradigma. O astrônomo e matemático
austro-germânico
“encontrou uma astronomia com mecanismos planetários
geocêntricos ou heliostáticos desajeitados e que apresentavam
erros de vários graus, e deixou-a com um sistema heliocêntrico
unificado e fisicamente fundamentado, aproximadamente cem
vezes mais preciso.”
7
Esta dissertação de Mestrado em História da Ciência estuda o livro V do
Harmonices Mundi (1619), mais precisamente o que diz respeito à
fundamentação teórica utilizada pelo autor na apresentação do seu conjunto de
idéias sobre o movimento planetário, tendo em destaque aquela que viria a ser
conhecida como a “terceira lei de Kepler” ou “lei harmônica”
8
.
Comparando a quantidade de estudos em livros e artigos a respeito das
“leis” de Kepler, a “lei harmônica” é descrita de forma superficial pela maioria
dos historiadores que se dedicaram à História da Física e da Astronomia desse
período, muitas vezes sendo referida apenas como a lei que “dará a Newton o
melhor indício da lei da Gravitação Universal”
9
. É mais comum encontrar
estudos pormenorizados sobre o primeiro livro de Kepler – Mysterium
Cosmographicum (1596) – no qual o matemático descreve pela primeira vez
sua idéia dos sólidos regulares como representação matemática das órbitas
dos planetas, e sobre o segundo livro – Astronomia Novae (1609) – no qual são
7
O. Gingerich, “Kepler”, in American Council of Learned Society, Dictionary of Scientific
Biography, vol. 7, p.289;
8
As outras “leis” de Kepler são conhecidas como primeira lei ou Lei das Órbitas: as órbitas
descritas pelos planetas ao redor do Sol têm forma elíptica; segunda lei ou Lei das Áreas: o
raio vetor que une o Sol aos planetas varre áreas iguais em tempos iguais; terceira lei de
Kepler ou Lei Harmônica: a razão entre o quadrado do período de revolução de um planeta e o
cubo de sua distância média em relação ao Sol é constante;
9
J-P. Verdet, Uma história da Astronomia, p. 131;
apresentadas suas novas conclusões a respeito das órbitas dos planetas ou,
como são conhecidas, “lei das órbitas” e “lei das áreas”.
O objetivo geral desta dissertação é analisar a fundamentação teórica e
epistemológica que Kepler empregou para concluir sua “terceira lei” por meio
do exame de aspectos relevantes ao astrônomo, como, por exemplo, sua
concepção de Universo, a influência do neoplatonismo renascentista, os
ensinamentos astronômicos e religiosos recebidos nos seminários em
Tübingen, a orientação de Mästlin, a importância do contato com Tycho Brahe
e seus dados empíricos, a releitura do livro de Ptolomeu, Harmonica, entre
outros.
A dissertação é composta por três capítulos, sendo o primeiro reservado
à história da Astronomia no cenário europeu dos séculos XVI e XVII, com a
observação das principais críticas e defesas aos sistemas geocêntrico de
Ptolomeu e heliostático de Copérnico, da importância dos dados empíricos de
Tycho Brahe e o seu modelo alternativo para o Universo e das idéias de Kepler
em defesa do modelo copernicano. No segundo capítulo é apresentada uma
pequena biografia de Kepler, com a análise de fatores relevantes de sua vida
pessoal e intelectual, permeados pelo contexto histórico, social, político e
religioso. No terceiro e último capítulo, é discutido o conteúdo do livro V do
Harmonices mundi, a apresentação da “lei harmônica” e a sua validabilidade
segundo Kepler.
O Harmonices Mundi de Johannes Kepler é uma obra composta por
cinco livros que descrevem a fundamentação geométrica e aritmética das
figuras sólidas, a harmonia musical e a origem dos aspectos astrológicos e do
movimento periódico dos planetas, e um apêndice, que compara o Harmonices
mundi com o Harmonia de Ptolomeu e com as especulações harmônicas do
micro e macrocosmos propostas por Robert Fludd (1574 – 1637).
Originalmente planejada como “uma série de tratados cosmográficos que
lidaria mais minuciosamente com os assuntos do De Caelo e De Generatione
de Aristóteles”
10
, em 1598, foi apenas em 1618 que essa obra foi concluída e,
no ano seguinte, publicada. Durante esse período de vinte anos, Kepler pôde
aperfeiçoar os seus estudos e desenvolver aquilo em que acreditava mais: ser
o mundo “uma expressão de Deus, simbolizando a trindade e materializando
em sua estrutura uma ordem e harmonia matemática”
11
.
10
E. J. Aiton & A. M. Duncan & J. V. Field, “Introdução e Notas” in J. Kepler, Harmony of the
World, p. XVI;
11
A. Koyré, Do Mundo fechado ao Universo infinito, p. 63.
6
Capítulo I – A astronomia na Revolução Científica
1.1 – Introdução
Como historiadores da ciência, não podemos nos furtar da
responsabilidade de revisitar certos períodos históricos, reinterpretar a
formação de certos conceitos e questionar o porquê da preeminência de
algumas idéias em relação a outras. Não há exceção de caso, uma vez que a
própria História da Ciência se ocupou de objetivos e metodologias diferentes ao
longo de sua própria história.
“Esquecer o que sabemos”
1
é a forma encontrada por Paolo Rossi para
descrever o tipo de cuidado que se deve ter ao pesquisar um tema em História
da Ciência, por mais que haja inúmeras obras e estudos sobre o mesmo.
Para esta dissertação de Mestrado será preciso, portanto, revisitar o
período histórico cunhado como Revolução Científica para compreender a
trajetória epistemológica seguida por Johannes Kepler (1571 – 1630) em
astronomia até a enunciação do que conhecemos hoje como “terceira lei de
Kepler”.
1.2 – Revolução Científica
Logo na apresentação desta pesquisa chamamos atenção ao fato de
que, apesar desse período ter contribuído definitivamente na formação do
conhecimento científico ocidental, é um período de transição. Isso torna a
tarefa do historiador da ciência ainda mais árdua, pois dois universos cognitivos
1
P. Rossi, O nascimento da ciência moderna na Europa, p. 29;
7
– o antigo e o moderno – coabitam a mente daqueles que investigam e tentam
explicar a razão dos desdobramentos nas diversas áreas do conhecimento.
Nesse “labirinto que os historiadores da ciência, dedicados aos estudos das
origens da Ciência Moderna, têm de enfrentar”
2
, nosso olhar se dirige quase
que exclusivamente para aqueles que contribuíram nas questões da
astronomia (em primeiro plano) e da física (em segundo plano), mas não ignora
que as transformações desse período se deram em maior escala.
As novidades trazidas pelas grandes navegações e pela releitura dos
textos clássicos gregos em latim tiveram, de certa, forma tanta importância que
estimularam alguns pensadores a estabelecer um novo caminho dentro das
diversas áreas de conhecimento. É justamente a escolha desses caminhos que
separara os “antigos” dos “modernos”. Para os primeiros, “a ciência deveria
nascer dos conhecimentos clássicos”
3
e para os outros, “as novidades de um
mundo com o qual os antigos não haviam nem sonhado deveriam ser
conhecidas de uma forma também inteiramente nova”
4
. Acontece que, como
todo e qualquer labirinto, nem sempre o caminho escolhido leva diretamente à
saída. Há muitas passagens fechadas, pontos de encontro e volta às origens.
Para não ocorrermos em erro, não especificaremos nem o início nem o
término da Revolução Científica, uma vez que “a história não opera através de
saltos bruscos; e as divisões nítidas em períodos e épocas só existem em
manuais escolares”
5
. Entretanto, decidindo estudar o intervalo entre os séculos
XV e XVII, abrangemos uma série de fatos, idéias e teorias que seguramente
2
A. M. Alfonso-Goldfarb, O que é história da ciência, p. 16;
3
Ibid., p. 18;
4
Ibid., p. 18;
5
A. Koyré, Estudos de História do Pensamento Científico, p. 15;
8
ajudam a caracterizá-la. “As mudanças imperceptíveis em curto espaço de
tempo engendram, a longo prazo, uma diversidade muito nítida; (...) Correntes
de pensamento atravessam séculos inteiros, se superpõem e se entrecruzam.”
6
Assim, cabe aos historiadores da Ciência mais caracterizá-la do que defini-la:
Debus, pensando no desenrolar histórico, a retrata como o
“efeito que teve o humanismo nas ciências, a busca de um novo
método científico, e o diálogo constante entre os defensores de
uma concepção mística e oculta do mundo e aqueles que
buscavam um novo enfoque para estudar a natureza baseada na
matemática e na observação.”
7
Thomas Kuhn generaliza e explica que
“a ciência normal desorienta-se seguidamente. E quando isso
ocorre – isto é, quando os membros da profissão não podem mais
esquivar-se das anomalias que subvertem a tradição existente da
prática científica – então começam as investigações
extraordinárias que finalmente conduzem a profissão a um novo
conjunto de compromissos, a uma nova base para a prática da
ciência.”
8
Caso voltássemos nossa atenção à área da anatomia humana em
Medicina, teríamos como referência a obra de Andreas Vesalius (1514 – 1564),
De fabrica Corporis Humani (1543). Ao nos concentrarmos na astronomia e na
física desse período, no entanto, a Revolução Científica funde-se – ou
confunde-se – com a Revolução Copernicana, uma vez que a obra de Nicolau
Copérnico (1473 – 1543), De Revolutionibus Orbium Coelestium (1543) é
considerada marco de tal revolução.
Utilizando os parâmetros de Kuhn, a hipótese copernicana foi – mas não
sozinha – a base da investigação extraordinária que conduziria a um novo
6
Ibid., p. 16;
7
A. G. Debus, El Hombre y la Naturaleza en el Renacimiento, p. 10;
8
T. S. Kuhn, A estrutura das revoluções científicas, p. 24;
9
conjunto de compromissos frente às anomalias trazidas de duas concepções
antigas: a ptolomaica em astronomia e a aristotélica na física. É justamente
argumentar sobre como esses aspectos se relacionam com os trabalhos de
Kepler, em particular o Hamonices Mundi, o objetivo primeiro desse capítulo.
1.3 – A Física e a Cosmologia aristotélica
Como não nos propomos aqui a pormenorizar a obra aristotélica,
procuraremos mostrar seus pontos de maior importância; aqueles que fizeram
de Aristóteles (384 – 322 a.C.) uma autoridade, mas que, ao mesmo tempo,
necessitava ser transposta:
“Dele [Aristóteles] provém o primeiro esforço de explicação
sistemática do desenvolvimento das idéias filosóficas. Não
apenas informações esparsas – como já haviam aparecido em
escritos de outros filósofos, particularmente em Platão –, mas
uma tentativa de encadeamento das diversas doutrinas
anteriores, com base numa explicação dos próprios motivos que
teriam levado os homens, desde fases pré-filosóficas, a elaborar
sucessivas e cada vez mais aprofundadas concepções.
Mostrando a chave desse processo, Aristóteles, por isso mesmo,
apresenta-se como seu ponto terminal: em sua obra, as tentativas
do passado teriam atingido plena e satisfatória formulação. Em
nome dessa verdade alcançada – a sua verdade, a verdade de
seu sistema filosófico –, Aristóteles pretende então julgar as
filosofias de seus predecessores, mostrando-lhes as falhas e os
equívocos.”
9
Estudar Aristóteles não é tarefa das mais simples: sua contribuição para
a formação do conhecimento é muito grande, seja pela abrangência das suas
obras ou pela profundidade dos seus ensinamentos. Além de ter estudado com
Platão (426c. – 348c. a. C.), foi fundador da sua própria escola em Atenas, o
Liceu. É nesse período que Aristóteles rompe com as idéias de seu mestre
9
Coleção Os Pensadores, Aristóteles, p. 13;
10
Platão. “Ao contrário da Academia [de Platão], voltada fundamentalmente para
investigações matemáticas, o Liceu transformou-se num centro de estudos
dedicados principalmente às ciências naturais”
10
. Além de divergir sobre o
pensamento político, Aristóteles difere sobre a construção dos conceitos
universais: “essa diferença pode estar relacionada com os modelos que cada
um utilizou para a construção do conhecimento: Platão enfatizou a matemática,
Aristóteles, a explicação dos seres vivos.”
11
A diferença entre o pensamento
platônico e aristotélico é tão importante que foi imortalizado num afresco
pintado em 1509 pelo pintor italiano Rafael, na Sala da Assinatura no Vaticano.
No centro da pintura “Escola de Atenas” encontram-se Platão e Aristóteles:
Platão aponta para cima – simbolizando o mundo das idéias – e, Aristóteles,
para baixo – simbolizando o mundo das causas.
Sabe-se que a obra de Aristóteles se divide em duas amplas categorias:
as que tinham por finalidade atingir o grande público – obras conhecidas como
exotéricas
12
– e as dirigidas aos seus discípulos, conhecidas como
acroamáticas
13
. O Corpus aristotelicum tem a seguinte distribuição sistemática:
Organon, conjunto de tratados de lógica; de Anima – mais conhecido como
Parva naturalia –, conjunto de tratados sobre o mundo vivo; Metafísica,
conjunto de tratados sobre a filosofia teórica; obras sobre filosofia prática como
Ética e Política; e finalmente, Física, conjunto de tratados sobre o estudo da
Natureza, entre eles De Caelo, De Generatione et Corruptione, Metereologiae.
10
Ibid., p. 8;
11
M. A. Andery... et alii, Para compreender a ciência – uma perspectiva histórica, p. 79;
12
Basicamente diálogos, como fazia Platão: Eudemo, Protético e Sobre a Filosofia;
13
Recebe esse nome pois era comum entre as escolas da época que seus alunos realizassem
seus debates [ensino oral] enquanto passeavam. Daí o termo peripatéticos, “aqueles que
passeiam”;
11
“O biologismo era mais que uma perspectiva da escola [Liceu]:
tornou-se marca central da própria visão científica e filosófica de
Aristóteles, que transpôs para toda a Natureza categorias
explicativas pertencentes originariamente ao domínio da vida. Em
particular, a noção de espécies fixas – sugerida pela observação
do mundo vegetal e animal – exercerá decisiva influência sobre a
física e a metafísica aristotélicas, na medida em que se reflete na
doutrina do movimento, elaborada por Aristóteles.”
14
A questão relativa ao movimento dos corpos está presente na filosofia
grega desde os pré-socráticos. Aristóteles a interpreta como a “passagem da
potência ao ato (...) circunscrito à substância ”
15
, ou seja, o movimento se dá a
medida que a substância em si apresenta potencial [potência] para a
transformação e cessa no momento em que atinge seu lugar comum, natural.
Essa idéia se torna mais clara quando se compreende a noção de “elemento”
para Aristóteles:
“o conjunto do universo físico estaria dividido em duas regiões
distintas: a sublunar, constituída pelos quatro elementos herdados
da cosmologia de Empédocles – a água, o ar, a terra e o fogo – e
caracterizada por movimentos retilíneos e descontínuos; e a
supralunar, constituída por uma “quinta essência”, o éter, e
caracterizada por movimentos circulares e contínuos”
16
.
Portanto se elevarmos uma pedra [substância terra] a uma determinada
altura, ela deve voltar para o seu lugar comum, o solo, descrevendo um
movimento retilíneo para baixo, pois é da natureza [potência] da pedra
procurar voltar [passagem] ao seu lugar comum. A chama de uma vela, por sua
vez, apontará para cima independentemente da posição da vela, mesmo se a
colocarmos de cabeça para baixo, pois é na vertical e para cima o movimento
retilíneo do fogo. O mundo sublunar é constituído de elementos corruptíveis,
14
Coleção Os Pensadores, Aristóteles, pp. 8-9;
15
Ibid., p. 23;
12
por isso os seus movimentos são também passíveis de alterações. Já o mundo
supralunar – o mundo da Lua, do Sol, dos planetas e das estrelas – por sua
essência incorruptível, não altera seus movimentos: são circulares – começam
e terminam no mesmo ponto –, e conseqüentemente, eternos, porém finitos,
uma vez que descrevem sempre as mesmas trajetórias.
Na cosmologia aristotélica, os planetas e outros astros giram ao redor da
Terra por meio de 56 esferas concêntricas. Seu universo é único e finito, sendo
a última esfera a que contém as estrelas. Diferentemente de Eudoxus,
Aristóteles acreditava serem reais e constituídas por éter as esferas que
continham os astros. A Terra, desprovida de qualquer movimento, ocupa o
centro dessas esferas concêntricas (geocentrismo estático). A Terra está
parada porque, se girasse, um objeto abandonado de uma certa altura não
atingiria o ponto verticalmente abaixo de sua origem, uma vez que, durante a
queda do corpo, a Terra se movimentaria no sentido oeste-leste. Como isso
não ocorre na experiência, Aristóteles conclui que a Terra é estática. “A Terra
está no centro porque, por força de sua natureza, ou seja, porque ela é pesada,
deve achar-se no centro. (...) eles [os corpos pesados] se dirigem ao centro
porque é sua natureza que para lá os impele.”
17
Como nos explica Roberto
Martins,
“[Aristóteles] mostrava que a própria configuração esférica do
universo poderia produzir três tipos de movimentos naturais,
simples: em direção ao centro do universo; para longe do centro
do universo (radialmente, para fora); ou em torno do centro. Ora,
observamos na natureza alguns corpos que tendem a se
aproximar de um centro (os corpos pesados, que caem para o
centro da Terra); outros que tendem a se afastar de um centro (os
corpos quentes, como o ar e o fogo, que tendem a subir
16
Ibid., p. 25;
17
A. Koyré, Estudos de História do Pensamento Científico, p. 50;
13
verticalmente); e outros que giram em torno de um centro (os
astros). Associando as observações à teoria, Aristóteles conclui
que a Terra está no centro do universo.”
18
Como sabemos, os ensinamentos de Aristóteles influenciaram
enormemente o mundo grego. Suas diversas releituras – principalmente
aquelas oriundas das traduções dos árabes – perduraram nas universidades
durante toda a Idade Média e Renascimento. Segundo Koyré, é justamente a
concepção inversa ao pensamento de Aristóteles que permitiu os sistemas
astronômicos substituírem gradualmente o ponto de vista cosmológico pelo
ponto de vista físico. Uma transformação que muitos associam erroneamente a
Copérnico, como veremos no decorrer do texto.
1.4 – O sistema ptolomaico
Da mesma forma que Aristóteles é a autoridade a ser transposta a favor
de uma nova concepção física da natureza, Ptolomeu (100c. – 170c. d.C.) é a
autoridade a ser transposta em astronomia a favor de um novo modelo de
universo. “O que Euclides foi para a geometria, Ptolomeu foi para a
astronomia.”
19
O trabalho de Ptolomeu é considerado o ponto mais alto de toda a
astronomia clássica. Sua obra (Megiste) Sintaxis Mathematica (127c.- 151c.) ,
mais conhecida por seu nome árabe Almagesto contém um grande tratado
matemático sobre a astronomia do período: com um grande número de
diagramas, fórmulas e tabelas, foi traduzido para o árabe por volta do ano 800
e para o latim no final do século XIII.
18
R. A. Martins in N. Copérnico, Comentariolus, p. 34;
14
“Quem nunca sequer folheou o Almagesto de Ptolomeu
dificilmente poderá imaginar o esforço titânico que encerra.
Enorme número de dados cuidadosamente selecionados; um
rigoroso tratamento matemático (com o uso de trigonometria
esférica); uma genial intuição para vislumbrar arranjos
geométricos simples capazes de descrever os fenômenos; o uso
desses arranjos para fazer previsões astronômicas. (...) A
proposta de Ptolomeu é ciência, do mais alto nível.”
20
Nesta dissertação, interessa-nos particularmente outra de suas obras:
Harmonia, um tratado matemático sobre a música e as composições. Outra
referência às obras de Ptolomeu é o Tetrabiblos, um estudo específico sobre a
astrologia.
O sistema de mundo ptolomaico é geostático, ou seja, assim como
Aristóteles, Ptolomeu parte do princípio de que a Terra está parada. Difere,
entretanto, sobre ela ser o centro dos movimentos, uma vez que o astrônomo
se vale de vários recursos matemáticos para descrever os movimentos dos
astros em relação a esse referencial. Tais recursos matemáticos – excêntricos,
epiciclos, deferentes e orbes – serão descritos e caracterizados a seguir, por se
tratarem de conceitos astronômicos largamente utilizados até o século XVII e
que foram abandonados ou substituídos ao longo da história mais recente da
astronomia.
1.4.1 – Excêntricos, epiciclos, deferentes e orbes
O excêntrico foi uma solução matemática largamente utilizada pelos
astrônomos gregos por volta do ano 150 d.C. para contornar o problema da
obrigatoriedade do movimento circular uniforme dos astros no firmamento. De
19
M. J. Crowe, Theories of the World – from Antiquity to the Copernican Revolution, p. 42;
20
R. A. Martins in N. Copérnico, Comentariolus, p. 65;
15
acordo com Platão e Aristóteles, todos os astros deveriam percorrer suas
trajetórias no céu com velocidade constante, o que contrariava as observações.
Para conciliar teoria e prática, os astrônomos deslocam o lugar geométrico da
Terra: ela não ocupa mais o centro das trajetórias dos astros, mas um lugar
próximo dele. A menor distância entre a Terra e a trajetória descrita pelo astro
recebe o nome de perigeu, e a maior distância, apogeu. Dessa forma,
aparentemente – pois os arcos descritos em relação à Terra têm tamanhos
diferentes – o astro aumenta a sua velocidade à medida que se afasta do
apogeu e se aproxima do perigeu, e diminui à medida que se afasta do perigeu
e se aproxima do apogeu.
Outro método de grande valia é o sistema epiciclo-deferente: a trajetória
retrógrada descrita pelos planetas também diferia das previsões teóricas das
“leis físicas” do mundo supralunar aristotélico. A laçada planetária – como era
conhecido o movimento retrógrado dos planetas – é o deslocamento de leste
para oeste que se pode notar quando se observam sistematicamente as
posições assumidas por um planeta ao longo dos dias. Para descrever esse
movimento nos termos da física aristotélica do movimento circular e uniforme,
era necessário, então, adotar círculos auxiliares. Segundo esse modelo, cada
planeta gira em movimento circular uniforme em torno de um ponto – essa
trajetória recebe o nome de epiciclo – que, por sua vez, gira em movimento
circular em torno da Terra – essa trajetória chama-se deferente.
Com o passar do tempo, as observações tornavam-se cada vez
mais precisas, de modo que a previsão necessitava também ser
melhorada: um único epiciclo não conseguia explicar as
diferenças observacionais; foi necessária a incorporação de vários
epiciclos e deferentes para um mesmo planeta. Com exceção do
último epiciclo, os outros eram também deferentes do epiciclo
16
seguinte. Assim a posição final do planeta era a soma das
posições dadas pelos diversos epiciclos e deferentes.”
21
Por sua vez, orbe, do latim “orbis”, é o termo empregado pelos
astrônomos para representar a casca esférica oca, de pequena espessura –
mas não desprezível – nas quais estariam “encaixados” os planetas, a Lua, o
Sol e as estrelas fixas. Os orbes serviram tanto a Ptolomeu como Copérnico
nas suas representações de sistema de mundo.
1.4.2 – A cosmologia ptolomaica
Em mais um livro essencial, As hipóteses dos planetas, Ptolomeu
descreve, entre outras coisas, o sistema do mecanismo de movimento das
esferas celestes.
“Muitas vezes se dá exclusiva atenção à contribuição matemático-
astronômica de Ptolomeu, deixando-se de lado suas idéias sobre
os mecanismos celestes. Não há dúvidas que o Almagesto é mais
conhecido do que As hipóteses dos planetas. No entanto, durante
a Idade Média, ambas as obras foram estudadas e traduzidas
pelos árabes, que viram como uma unidade indissolúvel esses
dois aspectos do trabalho de Ptolomeu.”
22
De forma bastante complexa, Ptolomeu caracteriza seu modelo de
universo por meio dos orbes celestes, perfeitamente encaixados uns nos outros
de modo a não restar espaços vazios entre eles e preenchidos por éter –
substância descrita por Aristóteles como a matéria do mundo supralunar.
“Ptolomeu desenvolveu uma compreensão física do seu modelo
matemático por meio de um sistema de cascas esferas sólidas,
que continham um planeta e corpos esféricos adicionais
representando seus deferentes e epiciclos. Uma vez que as
superfícies internas e externas dessas cascas esféricas eram
concêntricas com a Terra, Ptolomeu pôde aninhar os astros Lua,
21
R. Boczko, Conceitos de Astronomia, p. 261;
22
R. A. Martins in Copérnico, Commentariolus, p. 69;
17
Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno para chegar a um
cosmo de esferas concêntricas das quais o ponto mais afastado
era 19.865 vezes o raio da Terra.”
23
Como citado nos parágrafos acima, o modelo ptolomaico é complexo por
não se tratar apenas de um único sistema de movimento, mas de um conjunto
de sistemas – praticamente um para cada astro. É importante salientar que os
epiciclos, deferentes e excêntricos sempre foram para Ptolomeu uma
representação matemática do movimento dos planetas (tal como eram vistos
tendo a Terra como referencial) e nunca uma realidade física. Se fôssemos
levados a pensar o contrário, o sistema proposto para o movimento da Lua
seria a ruína de seu modelo, pois durante sua trajetória o tamanho aparente
desse astro variaria em até duas vezes devido à aproximação ou afastamento
da Terra. O próprio Ptolomeu afirma, no prefácio do Almagesto, que a
matemática é superior às outras divisões da filosofia teórica (física e teologia),
pois estas se ocupam das coisas invisíveis e fora do alcance (teologia) e
instáveis e incertas (física) – ou seja, conjecturas, e não conhecimento.
“Acredito eu que os verdadeiros filósofos e Syrus estavam certos
em distinguir, na filosofia, a parte teórica da prática. (...)
Aristóteles também divide a filosofia teórica, muito
convenientemente, em três categorias primárias: física,
matemática e teologia; pois tudo que existe é composto por
matéria, forma e movimento; nenhum desses pode ser observado
separado dos outros: eles só podem ser imaginados. Assim
sendo, a causa primeira do primeiro movimento do universo, se
alguém o cogita tolamente, pode ser pensado como uma deidade
invisível e sem movimento; a divisão [da filosofia teórica]
interessada em investigar isso [pode ser chamada] ‘teologia’, uma
vez que este tipo de atividade, em algum lugar nos mais altos
limites do universo, pode apenas ser imaginado e está
completamente separado da realidade perceptível. A divisão que
investiga a natureza material e do movimento, e que se ocupa
com ’branco’, ‘quente’, ‘doce’, ‘leve’ e outras qualidades pode ser
23
S. C. McCluskey, Astronomies and Cultures in Early Medieval Europe, p. 22;
18
chamada de ‘física’; tal classe da natureza está situada (a maior
parte) entre os corpos corruptíveis e abaixo da esfera lunar. A
divisão que determina a natureza envolvida em formas e
movimentos de um lugar para outro, e serve para investigar
forma, número, tamanho, posição, tempo e coisas do gênero,
pode ser definida como ‘matemática’. O estudo da matemática se
encaixa no meio das duas outras, uma vez que, primeiro, pode
ser concebido a partir delas com ou sem o auxílio dos sentidos, e,
segundo, é um atributo de tudo que existe sem exceção, mortal
ou imortal: pois a matemática se modifica tal qual as coisas que
estão em perpétua transformação, enquanto se mantém
inalterada para as coisas que são eternas.”
24
Em suma, o modelo cosmológico de Ptolomeu tem a Terra redonda
25
e
parada e no centro do mundo, mas que não coincide com o centro único dos
movimentos circulares
26
dos corpos celestes. A descrição dos movimentos do
Sol e da Lua é a mesma que a atribuída a Hiparco – inclusive com os mesmos
erros. Quanto à descrição do movimento dos planetas, Ptolomeu a faz de
acordo com sua teoria dos epiciclos, e o faz muito bem: eles davam conta de
explicar variações de brilho dos planetas, as retrogradações planetárias, e
ainda apresentavam o movimento circular uniforme, o qual os astrônomos
gregos faziam tanta questão de manter.
1.5 – Astronomia e Física na Idade Média
A divisão do Império Romano em duas partes – a parte ocidental,
centrada em Roma, sob a administração de Dioclesiano e a parte oriental,
24
Ptolomeu, The Almagest in R. M. Hutchins, Great Books of the Western World, pp. 5-6;
25
“Pois, se fosse côncava, as estrelas que nascem apareceriam primeiro para aqueles que
estão na direção ocidente; se fosse plana, as estrelas nasceriam e se poriam para todas as
pessoas da mesma forma e ao mesmo tempo (...), mas nada disso parece acontecer.”
Ptolomeu, The Almagest in R. M. Hutchins, Great Books of the Western World, p. 9;
26
“Se qualquer outra forma que não a esférica fosse assumida para o movimento dos céus,
deveriam aparecer distâncias lineares desiguais entre a Terra e as partes dos céus, de forma
que as magnitudes e as distâncias angulares das estrelas em relação umas às outras
19
centrada inicialmente em Bizâncio e, em seguida, em Constantinopla, sob a
administração de Constantino – visando à manutenção da hegemonia romana
–, não logrou êxito e, no ano 476 da nossa era, o Império do Ocidente foi
dissolvido pela ação dos Godos. O Império Oriental ou Império Bizantino
perduraria por quase mil anos, até a sua conquista pelos Otomanos (1453). A
partir de então, uma nova ordem passou a ser estabelecida na Europa:
“nesse período (séculos V a XV), coexistiram civilizações com
organizações econômico-político-sociais diferentes: as
civilizações ocidentais, oriundas do antigo Império Romano do
Ocidente; as orientais, oriundas do antigo Império Romano do
Oriente, como é o caso da civilização bizantina; e as civilizações
orientais que não faziam parte do antigo Império Romano, como é
o caso da civilização muçulmana e das civilizações da Ásia
oriental.”
27
Essa nova ordem também origina implicações na prática científica:
enquanto as partes ocidental e bizantina estavam subordinadas à Igreja – e
esta subordinada ao Estado – o saber estava ligado aos mosteiros, às escolas
catedrais e, por fim, às universidades, e, naturalmente, encontrou maiores
obstáculos para o seu adiantamento. “Uma grande parte do saber científico
antigo, que nunca tinha sido traduzido para o latim porque os letrados romanos
liam corretamente o grego, caiu rapidamente no esquecimento”
28
. Do outro
lado, o contato com outras civilizações permitiu que o conhecimento ligado à
técnica continuasse a se desenvolver, como no caso da navegação (bússola
chinesa), astronomia (astrolábio) e matemática (álgebra).
apareceriam desiguais para as mesmas pessoas a cada revolução. Mas isso não se observa.”
Ptolomeu, The Almagest in R. M. Hutchins, Great Books of the Western World, p. 8;
27
M. A. Andery... et alii, op. cit., p. 133;
28
Y. Gingras, P. Keating e C. Limoges, Do Escriba ao Sábio: os Detentores do Saber da
Antiguidade à Revolução Industrial, p. 98;
20
Dessa forma, é impossível desvincular a Idade Média do seu espaço,
enquanto local, e do seu tempo. Se por muito tempo a Idade Média foi
considerada um “período de trevas”, no qual o conhecimento científico
conheceu seu retrocesso, a História da Ciência – esse bom e velho labirinto
que insistimos em percorrer – oferece-nos atualmente uma nova versão,
menos sombria.
“Nos textos da Renascença e do século XVI, as universidades
medievais são descritas como lugares de conflito em torno de
falsos problemas, com escolásticos paralisados pelas referências
às “autoridades” e incapazes de elaborar um pensamento original.
Isso foi revisto no fim do século passado [século XX]: grandes
textos medievais foram descobertos por Pierre Duhem, para quem
escolásticos como Jean Buridan e Nicolau de Oresme foram
precursores de Copérnico (pela rotação da Terra), de Galileu
(pela queda dos corpos) e de Descartes (pela geometria
analítica)”
29
Uma possível hipótese para o mito do retrocesso científico na Idade
Média – inferido principalmente pela manutenção do ensinamento dos textos
clássicos grego e romano – estaria ligada aos objetivos profissionais das
universidades. Se, por um aspecto, podemos aceitar tal retrocesso como
verdadeiro, devido ao fato de as disciplinas técnicas terem sido banidas do
currículo universitário, por outro, devemos relembrar a qualidade dos trabalhos
teóricos dos clássicos.
“Formou-se um sólido sistema de pensamento que foi conservado
e aperfeiçoado pelos filósofos, matemáticos e médicos islâmicos
durante a Idade Média. Não foi por simples preguiça ou
comodismo que as pessoas aceitaram durante séculos essa
tradição antiga – ela era uma realização notável que parecia
destinada a durar para sempre.”
30
29
D. Boquin e J. Celeyrette in “A lógica na Idade Média”, Revista Scientific American Especial,
A ciência na Idade Média, p. 25;
30
R. A. Martins in “A Torre de Babel Científica”, Revista Scientific American Especial, Grandes
Erros da Ciência, p. 9;
21
Vejamos o caso da astronomia e da física, que é o que mais nos
interessa. As universidades, voltadas à formação de uma elite intelectual leiga,
tornaram-se centros de conhecimento voltados para a formação das únicas
profissões da época: teologia, medicina e direito. Mas, para atingir esse nível,
os alunos deveriam completar a Faculdade de Artes, cujo currículo se dividia
em Trivium (lógica, gramática e retórica) – artes da palavra – e Quadrivium
(música, aritmética, geometria e astronomia) – artes dos números. Ou seja,
tanto os conteúdos ministrados nas aulas – clássicos como Platão, Aristóteles
e Ptolomeu – quanto a metodologia de ensino – escolástica
31
- da universidade
medieval estavam direcionados à formação de teólogos, médicos e advogados,
e não de astrônomos e físicos. Essas funções eram ocupadas por professores
que obtinham esse certificado ao concluírem o curso de dois ou três anos de
Licenciatura, após a Faculdade de Artes. Vale a pena lembrar que,
socialmente, o cargo de professor era inferior aos cargos de médico, advogado
e teólogo. Assim, a física e a astronomia nas universidades eram tidas como
formação cultural e não objeto de estudo.
“Ao nível do bacharelato, o ensino das disciplinas matemáticas (o
quadrivium) estava reduzido a oito ou dez semanas num curso de
duração de quatro anos. Pelo contrário, o programa valorizava
mais a astronomia, dada a sua importância para a astrologia, para
a medicina e para o estabelecimento de calendários religiosos.”
32
Se, por um lado, a astronomia tem um pequeno destaque por ter
vínculos com os conhecimentos de mais prestígio, a física, por sua vez, recebe
severas críticas dada a incompatibilidade entre certos conhecimentos
31
Caracteriza-se sobretudo pela leitura e interpretação de textos, seguidas de debate sobre
seus conteúdos;
22
aristotélicos e a doutrina cristã, a ponto de, em 1215, as obras Metafísica e
Filosofia Natural de Aristóteles serem proibidas na Universidade de Paris
33
. Os
temas movimento, tempo, espaço e infinito estão entre os mais questionados
34
.
Para minimizar as disputas entre dialéticos e teólogos, iniciou-se a
cristianização da filosofia aristotélica, “que só veio a se tornar possível graças
ao espírito analítico, à capacidade de ordenação metódica e à habilidade
dialética de Tomás de Aquino, que ele aliava a um profundo sentimento de fé
cristã”
35
.
Segundo Luca Bianchi, a influência da fé cristã nos estudos da Física foi
benéfica, pois obrigou os filósofos a repensarem Aristóteles. Os pensadores
medievais contribuíram principalmente com as reformulações das idéias das
causas e composições dos movimentos. Entre eles se destacam Jean Philopon
(490-570), Franciscus de Marquia (1320 – 1330) e Jean Buridan (1295 – 1385),
que, em resumo, questionaram os movimentos violentos
36
. Buridan e Nicolau
Oresme (1320 – 1382) questionaram também a ausência de movimento da
32
Y. Gingras, P. Keating e C. Limoges, op. cit., p. 112;
33
O estudo do conjunto das obras conhecidas de Aristóteles foi retomado em 1255;
34
Principalmente nas universidades de Oxford e Paris, durante o século XIV. Como explica
Luca Biachi, “William Heytesbury, John Dumbleton e Richard Swineshead formularam entre
1330 e 1340 a regra da velocidade média, que Oresme demonstraria em seguida pelo método
geométrico. Esse teorema tem origem numa discussão sobre o aumento e a diminuição das
qualidades. Como a quantidade e a qualidade representavam para Aristóteles duas categorias
distintas, vários pensadores do século XIII supunham que a alteração de uma qualidade
deveria se fazer acompanhar da perda de um atributo – por exemplo, uma quantidade dada de
calor – e da aquisição de um novo atributo – uma outra quantidade de calor. Logo surgiu uma
teoria que atribuía tal alteração a uma adição ou a uma subtração de graduações, quer dizer,
de partes de uma única qualidade.” L. Bianchi, “A física do movimento” in Revista Scientific
American Especial, A ciência na Idade Média, p. 43;
35
Coleção Os Pensadores, Tomás de Aquino, p. 8;
36
Para Aristóteles, os movimentos se dividiam em naturais e violentos. Já discutimos os
movimentos naturais na página 11 desta dissertação. Os movimentos violentos ou não-naturais
dependem de uma força-motora que tirem os corpos do seu estado de repouso. Porém, para
Aristóteles, a continuação do movimento depende da presença da força-motora, ou seja, o
corpo em movimento precisa estar sempre em contato direto com aquilo que o faz mover. Não
existe força de ação à distância em Aristóteles, muito menos o princípio de inércia como
23
Terra: “as passagens nas quais Buridan ou Oresme se interrogam sobre a
rotação da Terra constituem o apogeu da “nova física” do século XIV, (...),
segundo alguns, eles teriam sido fonte inspiradora de Nicolau Copérnico”
37
.
Apesar da grande relevância desse assunto, trataremos de outras
questões relativas à Idade Média (como as argumentações neoplatônicas de
Santo Agostinho e São Tomás de Aquino) em outro momento. Para os estudos
de Kepler, o vínculo da astronomia com a astrologia tem um valor especial,
portanto é mais relevante compreendermos aqui esta co-dependência.
1.5.1 – Astronomia e Astrologia
Não trataremos aqui da distinção entre astrologia e astronomia porque
em nenhum período histórico anterior ao final da Idade Moderna essas duas
ciências
38
traçaram caminhos separados. Tanto a astrologia como a astronomia
são feitas por meio da observação do céu, ou seja, da interpretação da posição
dos astros (direta ou indiretamente, por meio das tábuas de dados) e da
periodicidade de seus movimentos. A interpretação das previsões obtidas por
meio desses dados é que pode receber tratamento diferenciado. Verdet,
discutindo a astronomia babilônica, explica:
“Os dados astronômicos são acompanhados de presságios que
relacionam os acontecimentos políticos importantes com os
fenômenos celestes observados. Os homens da Mesopotâmia
acreditavam que todo acontecimento natural é não somente a
conseqüência de causas específicas, mesmo desconhecidas, mas
igualmente o sinal de que uma força superior se dirige a nós para
manifestar suas intenções”
39
.
conhecemos hoje. Assim, o ar deslocado pelo objeto em movimento seria responsável pela
continuação da aplicação da força;
37
L. Bianchi, op. cit., p. 42;
38
A palavra “ciência” é usada aqui no sentido de “conhecimento”.
39
J-P Verdet, Uma história da Astronomia, p. 15;
24
Para concluir, usamos as seguintes palavras de Rossi:
“os nomes dos planetas não são meros ‘signos’; as ‘figuras’ não
são símbolos convencionalmente aceitos: têm poder evocativo,
seduzem e aprisionam a mente, ‘representam’ o objeto no sentido
pleno da palavra, isto é, tornam real sua presença. Revelam as
qualidades essenciais dos seres que se identificam com as
estrelas e nelas se incorporam”
40
.
A observação astronômica, além de ser objeto de especulação filosófica,
pode ter fins práticos como a formulação de calendários (lunar, solar ou
lunissolar), a determinação precisa do início das estações do ano e datas
religiosas comemorativas, eclipses lunares e solares, entre outros. A
interpretação astrológica sempre foi vista como um caminho de união entre o
homem e os céus: os maus presságios e as bem-aventuranças poderiam ser
revelados a partir de uma leitura particular da posição dos astros.
Pode-se afirmar que as críticas à astrologia partiram sempre de grupos
minoritários, uma vez que a prática era amplamente disseminada em quase
todas as culturas:
“A astrologia tinha vindo do Médio Oriente (...) seu surgimento em
Roma data do século III antes da nossa era, e o sucesso das
doutrinas astrológicas, que pretendiam prever o futuro – uma
prática perigosa do ponto político em determinadas situações –
tinha levado à promulgação de um édito de expulsão de todos os
astrólogos em 139 a.C., uma medida cujo efeito acabou por ser
efêmero”
41
.
Como citado anteriormente no item destinado ao astrônomo Ptolomeu,
seu trabalho Tetrabiblos é uma obra de referência em astrologia – mais um
40
P. Rossi, A ciência e a filosofia dos modernos, p. 36;
25
indício da não-divisão entre essas duas ciências. Logo no prefácio do primeiro
livro, Ptolomeu caracteriza as funções do Sol, da Lua e das estrelas:
“o Sol, sempre agindo em conexão com o ambiente, contribui com
a regulação de todas as coisas terrestres: não é somente pela
alternância das estações que ele traz com perfeição os filhotes
dos animais, os insetos das plantas, o nascer das águas e a
alteração dos corpos, mas no seu progresso diário ele também
opera outras mudanças na luz, no calor, na umidade, na aridez e
no frio; dependendo da sua situação em relação ao zênite. A Lua,
sendo de todos os corpos celestes o que está mais perto da
Terra, também exerce muita influência; e coisas animadas e
inanimadas simpatizam e discordam com ela. Pela mudança na
sua iluminação, rios se enchem e se reduzem; as marés do mar
são reguladas pelos seus nasceres e poentes, e plantas e animais
são aumentados ou diminuídos, se não totalmente, pelo menos
em algumas partes, quando ela cresce ou míngua. As estrelas
igualmente, (tanto as estrelas fixas como os planetas), ao realizar
sua revolução, produzem muitas marcas no ambiente. Elas
causam calores, ventos e tempestades às influências que cada
coisa terrestre está concordantemente sujeitada.”
42
Se durante o período romano a astrologia teve sua importância no
âmbito intelectual e político, na Idade Média não haveria de ser diferente,
principalmente no tocante à prática médica: “o homem era concebido como um
pequeno mundo (microcosmo) que, como criatura de Deus, espelhava em si
toda a Criação, o macrocosmo. A astrologia, embora condenada pela Igreja,
era um instrumento para desvendar esse jogo”
43
. Como explica Riha: “para o
cristão devoto, a saúde e a salvação estavam alegoricamente ligadas: a
medicina cuidava do corpo que perecia, e a religião, da alma imortal”
44
.
O estudante de medicina, recém formado na faculdade de artes, tinha
contato com os ensinamentos deixados por Hipócrates (c. 460 – 377 a.C.),
41
Y. Gingras, P. Keating e C. Limoges, op. cit., p. 78;
42
Ptolomeu, Tetrabiblos, pp. 84;
43
Coleção Os Pensadores, História da Filosofia, pp. 135-6;
26
Galeno (129 – 199) e Avicena (980 – 1037), estes dois últimos influenciados
pela filosofia aristotélica. Devido à metodologia escolástica das universidades,
os estudos médicos tinham caráter filosófico: relacionava-se a natureza da
doença ao desequilíbrio dos quatro humores corporais
45
(sangue, muco, bílis
amarela e bílis negra) e este às seis coisas não-naturais: qualidade do ar,
alimento e bebida, quietude e movimento, sono e vigília, preenchimento e
esvaziamento do corpo e aos movimentos da alma. “Para uma medicina na
qual é o doente e não a doença que está no centro do exame, as perguntas
“Por que estou doente?” e “O que vai acontecer?” eram pontos de referência
fundamentais”
46
.
É justamente nesse aspecto que se dá o vínculo entre astrologia e
medicina. Como os astros podem influenciar a vida dos homens tanto no
âmbito individual como no coletivo, as doenças e epidemias poderiam ser
acentuadas ou amenizadas graças à sua configuração. Cabia ao médico,
portanto, conhecer tais configurações e saber interpretá-las. Isso ajudava a
explicar, por exemplo, por que uma mesma prática médica era mais ou menos
eficaz em diferentes pacientes ou em determinadas épocas do ano. “A escolha
dos medicamentos nunca era uma escolha meramente empírica, mas tinha em
atenção textos antigos e instruções sobre os dias bons e maus para a sua
preparação e administração”
47
.
44
O. Riha in Medicina dos Humores e Símbolos, Revista Scientific American Especial, A
ciência na Idade Média, p. 52;
45
Os humores são intimamente ligados aos quatro elementos aristotélicos (água, terra, ar e
fogo) e às suas qualidades (quente, frio, seco e úmido);
46
Y. Gingras, P. Keating e C. Limoges, op. cit., p. 122;
47
Ibid., p. 123;
27
Sendo assim, a astrologia estava intimamente ligada a outros saberes, e
era objeto de estudo sério de qualquer um que tivesse acesso ao
conhecimento acadêmico. Como veremos nesta dissertação, a astrologia
exercerá um papel significativo na vida e na obra de Johannes Kepler – não em
medicina, uma vez que Kepler só freqüentou as faculdades das artes e tinha
como objetivo seguir a formação teológica – mas no campo da astronomia e
confecção de calendários enquanto mathematicus em Graz.
“A opinião pessoal de Kepler sobre a astrologia estava dividida.
Rejeitava a maior parte das regras geralmente aceitas, e referia-
se repetidamente à astrologia como a pequena filha tola da
respeitável astronomia. (...) Apesar disso, seu profundo
sentimento de uma harmonia do Universo incluía a crença em
uma poderosa consonância entre o cosmo e o indivíduo. Estas
visões encontraram o seu desenvolvimento mais completo no livro
Harmonice mundi. Além disso, seus palpites astrológicos lhe
proporcionavam continuamente uma bem-vinda renda adicional e,
mais tarde, tornaram-se uma importante justificativa para seu
emprego de matemático imperial.”
48
1.6 – O cenário da revolução
Encerramos a discussão sobre astronomia, física e astrologia na Idade
Média mostrando a forma pela qual os assuntos relativos a essas disciplinas
eram aprendidos e discutindo algumas das possíveis relações entre esses
conhecimentos. Posto isso, cabe-nos uma pergunta antes de introduzir o
modelo copernicano: como surgiu a necessidade de se repensar o modelo
cosmológico, se até então o vigente [ptolomaico] dava conta de responder a
um grande número de questões astronômicas, satisfazia a Igreja por se
aproximar das idéias presentes nas Sagradas Escrituras e era amplamente
aceito tanto pela cultura ocidental como pela oriental?
28
A resposta não nos parece tão óbvia – pois, como está colocado acima,
ainda havia questões a serem resolvidas. Além disso, o Almagesto seria uma
obra difícil demais para ser compreendida na íntegra na Idade Média –
inclusive nos tempos atuais – pois exigiria dos seus críticos um rigor
matemático muito difícil de se conseguir por meio das Faculdades de Artes.
Cabe aqui ressaltar que o Almagesto não era largamente estudado nas aulas
de astronomia como se presume: o “livro-texto” referência na estrutura do
Quadrivium foi o Tractatus de Sphera (1230) de Johannes de Sacrobosco
(1195 – 1236). “Ele foi usado desde o início do século XIII até o final do século
XVII como livro introdutório básico ao estudo da Astronomia”
49
. Em outra
observação feita por Carlos Ziller Camenietzk na apresentação da tradução
contemporânea do Tratado da Esfera:
“do ponto de vista pedagógico, é particularmente importante
atentar para a seleção de conteúdos da obra, para os exemplos e
justificativas que, na maior parte dos casos, se prendem ao visível
imediato, prescindindo do concurso de instrumentos ou cálculos
muito complexos. As demonstrações geométricas inexistem. Uma
exceção é o cálculo do diâmetro da Terra que é detalhadamente
seguido pelo autor; as demais explicações e demonstrações
primam pela simplicidade: um barco próximo à costa, uma moeda
imersa na água, a Lua nos eclipses, etc.”
50
Mais uma vez, como é particular nas pesquisas em História da Ciência,
as respostas que podemos sugerir estão agregadas a diversas áreas do
conhecimento, permeadas por contextos históricos particulares. As críticas e as
novas interpretações dadas à física até então aristotélica, a retomada da leitura
dos textos originais gregos e, conseqüentemente, o ressurgimento de textos
48
O. Gingerich, “KEPLER”, in American Council of Learned Society, Dictionary of Scientific
Biography, T. VII, p. 289b;
49
C. Z. Camenietzk in J. Sacrobosco, Tratado da Esfera, p. 12;
29
como os de Platão e Arquimedes, as novidades trazidas pelas grandes
navegações, um novo método de se buscar a “verdade” através da abstração
matemática, da observação e da experimentação e, como defende muito bem
Allen G. Debus na sua obra El hombre y la naturaleza en el Renacimiento, “o
renovado interesse renascentista por uma concepção mística da natureza”
51
tudo isso em conjunto poderia nos ajudar a entender a relevância do
questionamento do modelo ptolomaico e a proposta de substituição desse
modelo pelo de Copérnico.
“Nesse fim de Idade Média, a situação parecia paralisada. A
herança aristotélico-ptolomaica exerceu tal dominação sobre a
astronomia que parecia impossível sair dela. A insuficiência das
tabelas astronômicas, tornada patente pela incapacidade de
prever corretamente os fenômenos celestes maiores, alimentou
em certos autores o sentimento de que uma reforma profunda na
astronomia e em seu status lado a lado com a física era
necessária.”
52
Com a retomada da leitura dos textos originais gregos, Platão e
Arquimedes ressurgem como uma nova possibilidade de interpretação do
mundo: “se a escolástica incorporou o aristotelismo ao cristianismo, no
Renascimento a contraposição a esses “tempos obscuros” fez-se a partir dessa
“reabilitação” de Platão”.
53
Arquimedes, por sua vez, é visto como “o autor
grego cujo método mais se aproximava ao da nova ciência”.
54
Ambos os
autores têm uma relação muito íntima com a matemática, e esta, por sua vez,
uma função fundamental nesse período histórico.
50
Ibid., Tratado da Esfera, p. 13;
51
A. G. Debus, op. cit., p. 34;
52
D. Savoie, Os estudos no Ocidente in Revista Scientific American Especial, A ciência na
Idade Média, p. 9;
53
Coleção Os Pensadores, História da Filosofia, p. 137;
54
A. G. Debus, op. cit., p. 31;
30
Arquimedes de Siracusa (287c. a.C – 212 a.C.) é reconhecido como
matemático, geômetra, engenheiro e tecnólogo. Entre suas obras, aquelas que
são consideradas mais “práticas” (A medida do círculo, Sobre a esfera e o
cilindro) foram as que mais se destacaram no universo da cultura humanista.
“As crescentes necessidades práticas geradas pela ascensão da burguesia,
aliadas à crença na capacidade do conhecimento para transformar a realidade,
foram responsáveis pelo interesse no desenvolvimento técnico”.
55
Compulsoriamente deixadas em segundo plano durante a Idade Média, as
ocupações ditas técnicas têm seu reconhecimento no Renascimento, como no
caso dos artesãos, dos engenheiros, dos inventores e principalmente dos
navegadores. Por intermédio destes profissionais, viu-se também o
desenvolvimento da prática algébrica – cálculo de custos, juros, pesos e
volumes e medidas de distâncias.
Platão já era conhecido pelos filósofos da Idade Média, mas estes, por
sua vez, só conheciam Platão através de comentários e de seguidores de sua
filosofia (neoplatonismo)
56
, como é o caso de Plotino (205 – 270) e Santo
Agostinho
57
(354 – 430). Iniciada a tradução de suas obras, muitos tornaram-se
seguidores de sua filosofia e influenciaram o pensamento da época.
55
M. A. Andery... et alii, op. cit., p. 175;
56
“Ao contrário do que possa sugerir o termo neoplatonismo, Plotino não representa apenas
uma retomada do platonismo. Ele, na verdade, evita o dualismo de Platão, que, ao separar tão
radicalmente o mundo inteligível do mundo sensível, foi obrigado a admitir a existência do
Outro das idéias. (...) É por isso que nele se reconhecem temas de Parmênides e de Platão, de
Aristóteles e dos estóicos, mas ordenados num pensamento inovador. É como se Plotino
fizesse um resumo dessa tradição e a ultrapassasse para além dos limites a que ela havia
chegado.” Coleção Os Pensadores, História da Filosofia, p. 89;
57
“Para explicar como é possível ao homem receber de Deus o conhecimento das verdades
eternas, Agostinho elabora a doutrina da iluminação divina. Trata-se de uma metáfora recebida
de Platão, que na célebre alegoria da caverna mostra ser o conhecimento, em última instância,
o resultado do bem, considerado como um sol que ilumina o mundo inteligível.” Idem, Santo
Agostinho, p. 16;
31
De forma bastante simplista, podemos afirmar que nos diálogos de
Platão há uma distinção clara entre o mundo material, sensível, corpóreo e o
mundo das idéias, do divino e do perfeito. Para Platão, o homem é oriundo do
mundo das idéias e momentaneamente habita o mundo dos sentidos. Desta
forma, o homem poderia restabelecer o contato com as suas origens por meio
de sua conduta moral, política e filosófica. “Conhecer seria então lembrar,
reconhecer”.
58
Esse pensamento platônico é bem-vindo no contexto
renascentista:
“É à dignidade humana que se voltam principalmente os
platônicos renascentistas (...) – como Marsílio Ficino (1433-1499)
e Pico della Mirandola (1463-1494) (...). Para eles, Platão mostra
a capacidade de o ser humano elevar-se ao mundo inteligível e,
assim, unir-se a Deus. (...) Essas idéias, que enaltecem a
potência humana, associam-se à magia, à tradição mística judaica
(a Cabala) e à tradição supostamente egípcia (o hermetismo), das
quais Ficino e Mirandola são adeptos. Para eles, tais práticas
constituem meios de o homem invocar as forças da natureza em
seu proveito. Para Ficino, que era padre, essa assimilação de
elementos alheios ao cristianismo não é de modo algum estranha.
Tradutor de obras de Platão, de Plotino e de textos místicos do
hermetismo (atribuídos ao suposto Hermes Trismegisto, do Egito
antigo), ele considera que nesses escritos encontra-se a prisca
theológica (teologia antiga ou primitiva) que, no fundamental, não
diverge da doutrina cristã.”
59
E ainda,
“o gosto pela observação é também a busca de segredos ocultos
que aproximem todas as coisas. Por acreditar que tudo se
relaciona com o todo e suas partes, o macrocosmo com o
microcosmo, os renascentistas procuram o que há de semelhante
entre aquilo que existe. (...) O que a ‘ciência’ renascentista
investiga não é a causa que relaciona as coisas entre si, mas o
significado comum que nelas se oculta. O mundo é essa relação
de significados secretos, uma espécie de texto a ser decifrado – o
código são as próprias coisas, tomadas como signos.”
60
58
Idem, Platão, p. 20;
59
Idem, História da Filosofia, pp. 139-140;
32
É nesse cenário de transformações, e, pelo que entendemos, somente
nele, que um novo modelo de universo pôde ser apresentado e discutido.
Como mostramos anteriormente, o modelo geostático de Ptolomeu dava conta
de explicar um grande número de fenômenos celestes através de
representações geométricas. Devido à sua importância, esse modelo foi
estudado e reinterpretado – em alguns casos, corrigido – por toda a Idade
Média, por povos do ocidente e do oriente. Após quase mil e quinhentos anos,
as discrepâncias entre o modelo teórico e a realidade observada tornavam-se
cada vez mais evidentes: a indeterminação do posicionamento dos planetas, a
incerteza das tabelas astronômicas e a discrepância entre as datas do
calendário e o inicio das estações do ano eram, como vimos, preocupações
reais de astrônomos, matemáticos, astrólogos, médicos e clérigos.
“Depois de treze séculos de pesquisas infrutíferas, um astrônomo
perceptivo podia bem interrogar-se, como Ptolomeu não o fez, se
mais tentativas dentro da mesma tradição poderiam ter um
sucesso concebível. Além disso, os séculos que decorreram entre
Ptolomeu e Copérnico haviam ampliado os erros da abordagem
tradicional, fornecendo assim uma fonte adicional de
descontentamento. Os movimentos de um sistema de epiciclos e
deferentes não são parecidos com os dos ponteiros de um
relógio, e o erro aparente do relógio aumenta com a passagem do
tempo. Se um relógio se atrasa, digamos, um segundo por
década, o seu atraso pode não ser perceptível no final de um ano,
ou no final de dez. Mas o erro dificilmente pode ser ignorado
depois de um milênio, quando tiver aumentado quase para dois
minutos.”
61
1.7 – O modelo copernicano
Nicolau Copérnico freqüentou a Universidade de Cracóvia, capital do
reino da Polônia, por volta do ano 1491. Como qualquer estudante, recebeu a
60
Ibid., pp. 147-8;
61
T. S. Kuhn, A Revolução Copernicana, p. 166;
33
formação clássica do Trivium e do Quadrivium. Segundo Verdet, a
Universidade de Cracóvia possuía uma escola de astronomia e matemática,
fundada por Albert de Brudzewo (1445 – 1497), mas é impossível se afirmar,
segundo o autor, que Copérnico tenha se beneficiado desse curso particular.
Motivado pelo ideal de ser astrônomo, antes mesmo de concluir a
Faculdade de Artes, Copérnico transferiu-se para a Universidade de Bolonha.
Em 9 de março de 1497 observou a ocultação da estrela Aldebarã pela Lua.
Em seguida, dirigiu-se a Roma – onde pôde presenciar o eclipse lunar parcial
de 6 de novembro de 1500; e depois para Pádua, a fim de concluir sua
formação superior – em medicina!. Acabou, no entanto, por se formar em
direito canônico na Universidade de Ferrara. Na sua volta para a Polônia,
dedicou-se um pouco à medicina e a escrever a obra que o tornaria célebre na
história da humanidade.
O modelo copernicano de universo pode ser abordado de muitas formas,
dada a complexidade do período histórico e os desdobramentos posteriores.
Dividiremos os comentários em três partes para a praticidade de leitura
(subitens 1.7.1 a 1.7.3).
1.7.1 A hipótese de Copérnico
Copérnico havia estudado o modelo geocêntrico de Ptolomeu por meio
das obras Tractatus de Sphera de Johannes de Sacrobosco, Epytomia in
Almagestum Ptolemai de Johannes Regiomontano (1436-1476) e também da
primeira edição impressa do Almagesto (1515). Sabia, portanto, que o modelo
apresentava falhas e que precisava ser reinterpretado:
34
“No concílio de Latrão, em 1514, esse problema [reforma do
calendário juliano] tinha sido levantado, mas sem que chegasse a
uma solução. Depois de consultado, Copérnico sugerira que nada
fosse feito antes de a teoria astronômica ser reformulada.”
62
Na introdução dedicada ao Papa Paulo III, na sua obra De
Revolutionibus Orbium Coelestium, Copérnico apresenta abertamente essa
questão:
“Não pretendo esconder de Vossa Santidade que nada, exceto o
fato de saber que os matemáticos não concordavam uns com os
outros em suas pesquisas, moveu-me a conceber um esquema
diferente para descrever os movimentos das esferas do mundo”
63
Antes da publicação do De Revolutionibus, Copérnico produziu um
pequeno livro de nome Commentariolus (1510c.), com o seguinte subtítulo:
pequeno comentário de Nicolau Copérnico sobre suas próprias hipóteses
acerca dos movimentos celestes. Logo no início dessa obra, Copérnico critica a
larga utilização dos recursos matemáticos pelos astrônomos antigos para
explicar o movimento aparente dos planetas. O grande número de orbes, as
esferas concêntricas, os excêntricos e epiciclos, os círculos equantes – em
suma, tudo aquilo que foi pensado ao longo da história da astronomia com o
objetivo de “salvar os fenômenos” celestes – é citado. Segue, então, sua
motivação inicial:
“pensei se era possível encontrar um sistema mais racional de
círculos dos quais dependesse toda irregularidade aparente,
movimentando-se todos eles uniformemente em torno de si [dos
seus centros], como exige a regra do movimento absoluto.”
64
62
Y. Gingras, P. Keating e C. Limoges, op. cit., p. 195;
63
N. Copérnico, Das revoluções das Esferas Celestes (livro um) in S. W. Hawking, Os gênios
da ciência: Sobre o ombro de Gigantes, p. 11;
64
N. Copérnico, Commentariolus, p. 113;
35
Para tal, era preciso aceitar sete exigências
65
, a saber:
1. Não existe um centro único de todos os orbes ou esferas celestes.
Copérnico não traz nada de novo, apenas confirma o consenso da
maioria dos pensadores – o próprio Ptolomeu já considerava em seu modelo
que a Terra não era o centro do movimento.
2. O centro da Terra não é o centro do mundo, mas apenas o da gravidade e
do orbe lunar.
Inicia-se aqui o primeiro ataque à física e à cosmologia aristotélica, uma
vez que, para Aristóteles, os corpos “pesados” se dirigem para o centro da
Terra e esta ocupa o centro do Universo [mundo]. Ora, se a Terra não ocupa
mais o centro – e pela primeira exigência, não há um centro específico – para
onde devem ir os corpos “pesados”? Copérnico concede à Terra duas
propriedades: a de ser o centro da gravidade – para onde se dirigem os corpos
“pesados” – e de ser o centro da trajetória da Lua.
3. Todos os orbes giram em torno do Sol, como se ele estivesse no meio de
todos; portanto, o centro do mundo está perto do Sol;
Talvez essa exigência seja a de maior relevância, a que realmente
iniciará a grande mudança do paradigma da astronomia. As interpretações
dadas a esta idéia são muitas, impossíveis de serem desassociadas do
contexto histórico. Discutiremos essa exigência no subitem 1.7.2.
65
Ibid., pp. 114-7;
36
4. A razão entre a distância do Sol à Terra e a altura do firmamento é menor do
que a razão entre o raio da Terra e a sua distância do Sol; e com muito mais
razão esta é insensível confrontada com a altura do firmamento;
Martins explica que essa exigência não foi bem recebida pelos
astrônomos da época. Para que o modelo de Copérnico fosse compatível com
as observações astronômicas, “se a Terra se movesse em torno do Sol a uma
distância comparável à do “firmamento”, nunca se veria, à noite, metade da
esfera celeste, e sim uma parcela menor do que a metade.”
66
5. Qualquer movimento aparente no firmamento não pertence a ele, mas à
Terra, que com elementos adjacentes, gira em torno dos seus pólos invariáveis
em um movimento diário, ficando permanentemente imóveis o firmamento e o
último céu;
6. Qualquer movimento aparente do Sol não é causado por ele, mas pela Terra
e pelo nosso orbe, com o qual giramos em torno do Sol como qualquer outro
planeta. Assim, a Terra é transportada por vários movimentos;
7. Os movimentos aparentes de retrogressão e progressão dos errantes não
pertencem a eles, mas à Terra. Apenas o movimento desta é suficiente para
explicar muitas irregularidades aparentes no céu.
Nessas últimas três exigências, Copérnico concede ao planeta Terra
dois movimentos (serão três no De Revolutionibus): o de rotação e o de
37
revolução. Esse seria o último ataque presente nas exigências à física
aristotélica – ao afirmar que os elementos adjacentes (as coisas que estão na
Terra) giram junto com ela – e ao modelo ptolomaico – pois afirma que as
irregularidades do seu modelo provêm da posição ocupada pela Terra e da
ausência movimento dela.
Ainda nas exigências, Copérnico faz uma última consideração a respeito
da falta ou da pouca quantidade de demonstrações matemáticas no livro, pois,
ao que veremos a seguir, já pensava em escrever o De Revolutionibus.:
“Assim, portanto, com essas premissas, tentarei mostrar
brevemente como pode ser conservada a uniformidade dos
movimentos, de um modo sistemático. Porém, para ser breve,
julguei que as demonstrações matemáticas devem ser omitidas
aqui, tendo-as destinado para um volume maior. No entanto,
serão colocadas aqui, na explicação dos círculos, as medidas dos
semidiâmetros dos orbes, através das quais aquele que não
ignorar a ciência matemática facilmente perceberá o quanto tal
composição dos círculos se ajusta aos dados numéricos e às
observações.”
67
Em 1543, ano da morte de Copérnico, foi publicado o De Revolutionibus
Orbium Coelestium em seis livros, sob os cuidados de seu único discípulo,
Georg Joachim Rheticus (1514 – 1574), e de Andreas Osiander (1498 – 1552)
que, sem a permissão de Copérnico, escreveu uma introdução – até então
anônima – alertando que a obra deveria ser compreendida como uma nova
hipótese matemática sobre os movimentos celestes. Segundo Verdet, “em
1539, o essencial do De Revolutionibus já estava com certeza redigido”
68
, mas
66
R. A. Martins in N. Copérnico, Commentariolus, p. 116;
67
N. Copérnico, Commentariolus, pp. 117-8;
68
J-P Verdet, op. cit., p. 65;
38
na publicação posterior foi necessário trabalhar mais as conclusões dos livros
V e VI
69
.
De início, Copérnico apresenta, no livro I, as características de seu
sistema: um mundo esférico e muito superior à magnitude da Terra, sendo esta
esférica e dotada de movimento diurno de oeste para leste, com os orbes
dispostos na seguinte ordem (do mais afastado para o mais próximo do Sol):
estrelas fixas, Saturno, Júpiter, Marte, Terra, Vênus e Mercúrio. Critica e dá
respostas aos modelos antigos e ao fato de a física aristotélica sobre a Terra
ser desprovida de movimento e ser o centro do mundo:
“por conseguinte, uma vez que são tantos e tão importantes os
testemunhos dos planetas a favor da mobilidade da Terra,
faremos agora um resumo desse movimento, na medida em que
os fenômenos podem ser revelados por seu movimento, aceito
como hipótese. Devemos admitir um movimento triplo. O primeiro
(...) é o circuito próprio do dia e da noite, que vai de oeste para
leste em torno do eixo da Terra (...) – e descreve o equador ou
círculo equinocial. O segundo é o movimento anual do centro, que
descreve o círculo dos signos (do zodíaco) em torno do Sol
igualmente de oeste para leste, isto é, em direção aos signos que
seguem (de Áries para Touro), e se move, como dissemos, entre
Vênus e Marte, junto com os corpos que o acompanham. (...) É
preciso entender que o equador e o eixo da Terra têm uma
inclinação variável em relação ao círculo e ao plano da eclíptica.
Pois, se eles permanecessem fixos e simplesmente seguissem o
movimento do centro, nenhuma desigualdade entre os dias e as
noites seria aparente, mas sempre haveria o solstício de verão ou
o solstício de inverno, ou alguma outra estação do ano que
permaneceria sempre a mesma. Segue-se daí, então, o terceiro
movimento, que é a declinação: é também uma revolução anual,
mas em direção aos signos que precedem (de Áries para Peixes),
ou em direção a oeste, isto é, em sentido contrário ao movimento
do centro; e como conseqüência desses dois movimentos que são
quase iguais um ao outro, mas em direções opostas, segue-se
que o eixo da Terra e o maior dos círculos paralelos, o equador,
sempre olham aproximadamente em direção à mesma parte do
69
Alguns autores como Arthur Koestler (Os sonâmbulos) e Charles Glenn Wallis (na tradução e
notas da versão On the Revolutions of the Heavenly Spheres do ‘Great Books of the Western
World’ da ‘Encyclopaedia Britannica’) afirmam que a demora da publicação também se deu por
motivos religiosos, uma vez esse trabalho poderia questionar a autoridade da Igreja Católica.
39
mundo, como se permanecessem imóveis. Enquanto isso, vê-se o
Sol mover-se ao longo da eclíptica oblíqua com aquele movimento
com que se move o centro da Terra, como se o centro da Terra
fosse o centro do mundo – desde que nos lembremos que a
distância entre o Sol e a Terra, em comparação à esfera das
estrelas fixas, é imperceptível para nós.”
70
A se julgar pelas discussões do primeiro livro de Copérnico, muitos
questionamentos seriam feitos e novas respostas seriam necessárias. Como
veremos no subitem 1.7.3, Copérnico não conseguiu dar todas as respostas
necessárias e seu modelo não se tornou, num primeiro momento, a solução da
interpretação do mundo.
1.7.2 Copérnico, Pitágoras, Platão e os neoplatônicos
Como frisamos anteriormente
71
, a revolução copernicana tem inúmeras
interpretações. Uma delas é a conjetura envolvendo Copérnico, Pitágoras,
Platão, a filosofia neoplatônica e o contexto do Renascimento.
“Devido à sua pluralidade, a Revolução Copernicana oferece uma
oportunidade ideal para descobrir como, e com que efeito, os
conceitos de campos muito diferentes se entrelaçam numa única
linha de pensamento. O próprio Copérnico era um especialista,
um astrônomo matemático preocupado em corrigir as técnicas
esotéricas das tabelas de cálculos das posições planetárias. Mas
a orientação de sua pesquisa foi muitas vezes determinada por
desenvolvimentos bastante estranhos à astronomia. Entre eles
estavam as mudanças medievais das análises a meteoritos
caídos, a renovação renascentista de uma antiga filosofia mística
que considerava o sol como a imagem de Deus, e as viagens
atlânticas que alargavam os horizontes terrestres do homem
renascentista.”
72
70
N. Copérnico, Das revoluções das Esferas Celestes (livro um) in S. W. Hawking, Os gênios
da ciência: Sobre o ombro de Gigantes, pp. 37-8;
71
Páginas 32 e 34 dessa dissertação;
72
T. S. Kuhn, A Revolução Copernicana, p. 9;
40
Se o Renascimento foi um período propício para o ressurgimento de
concepções mais amplas sobre questões envolvendo a interpretação da
natureza, era de se supor que muitos autores escolhessem o modelo
copernicano como representante digno, uma vez que é possível encontrar em
sua concepção referências pouco convencionais, como as citadas acima.
Veremos que não foi bem assim.
A idéia de que a Terra possui movimento não é inédito na história da
Astronomia – outros filósofos anteriores a Copérnico, como Pitágoras de
Samos (571c. a.C – 497c. a.C) e Heráclides do Ponto (387 a.C. – 312 a.C.), já
haviam discutido essa possibilidade; nem o heliocentrismo é algo novo –
Aristarco de Samos (310c. a.C – 230c. a.C.) já havia proposto um modelo em
que a Terra gira ao redor do Sol; mas é justamente por essa aproximação com
esses filósofos específicos que se identifica Copérnico ao platonismo e ao
neoplatonismo. A visão de mundo de Pitágoras é bem conhecida e
compartilhada por Platão: o mundo das almas, a necessidade de se alcançar a
pureza (algo só atingido pelos “iniciados”), a harmonia na música e, portanto,
na matemática e no cosmo, além da crença em um demiurgo bom, sábio e
racional. É possível interpretar no texto de Copérnico esses mesmos
elementos
73
, além de encontrar menções explícitas a esses filósofos
74
.
73
Como, por exemplo, a questão dos iniciados: “pois sabe-se muito bem que Lactantius,
escritor sob outros aspectos eminente, mas dificilmente um matemático, fala de maneira
inteiramente pueril sobre a forma da Terra, quando ri daqueles que haviam afirmado que
aTerra tinha a forma de um globo. E, assim, os estudiosos não devem surpreender-se se
pessoas como essas rirem de nós. A matemática é escrita para matemáticos; e entre eles, se
não estou enganado, será reconhecida a contribuição de meus trabalhos para a comunidade
eclesiástica...” (N. Copérnico, Das revoluções das Esferas Celestes (livro um) in S. W.
Hawking, Os gênios da ciência: Sobre o ombro de Gigantes, p. 14) e a questão do demiurgo
racional: “assim, quando meditei sobre essa falta de certeza da matemática tradicional no que
concerne à composição dos movimentos das esferas do mundo, comecei a me aborrecer com
o fato de os filósofos, que a outros respeitos haviam empreendido um exame muito cuidadoso
41
Entendendo a impossibilidade de se desassociar o que é “física” do que
é “metafísica” no trabalho de Copérnico (e muito provavelmente em muitas
obras escritas ao longo do Renascimento), devemos aceitar sem maiores
preocupações a associação de Copérnico com a filosofia platônica e
neoplatônica, pois mesmo que seu trabalho seja interpretado como uma nova
astronomia (sistema de mundo heliostático), baseado em uma nova hipótese
física (a dos movimentos da Terra) e demonstrado através de complicados
cálculos matemáticos e algumas observações, trata-se também de uma obra
que explicita os valores da filosofia clássica e do pensamento cristão, uma vez
que, tanto para Platão como para a Igreja, o Sol representa o Bem
75
.
“No centro de tudo, repousa o Sol. Pois quem poria essa luminária
de um belíssimo templo em outro lugar ou em lugar melhor do que
esse de onde ela pode tudo iluminar ao mesmo tempo? Na
verdade, não é com impropriedade que alguns o chamam de a
lanterna; outros, de o espírito e outros ainda, de piloto do mundo.
Trismegisto o chama de um “deus visível”; a Eletra, de Sófocles,
de “aquele que lança seu olhar sobre todas as coisas”. E assim o
dos mínimos detalhes do mundo, não haverem descoberto nenhum esquema seguro dos
movimentos da máquina do mundo que foi construída para nós por aquele que, de todos, é o
Melhor e Mais Metódico Artífice.” (N. Copérnico, Das revoluções das Esferas Celestes (livro
um) in S. W. Hawking, Os gênios da ciência: Sobre o ombro de Gigantes, p. 12);
74
Exemplo: “Há opiniões diferentes quanto a Vênus e Mercúrio, à medida que eles não têm
toda a gama de elongações angulares em relação ao Sol que têm os outros. Daí alguns os
situarem acima do Sol, como o faz Timeu, em Platão; alguns, abaixo do Sol, como Ptolomeu e
boa parte dos modernos. Alpetragius faz Vênus mais alto do que o Sol e Mercúrio mais baixo.
Desse modo, como os seguidores de Platão supõem que todos os planetas – que no mais são
corpos escuros – brilham com a luz recebida do Sol, eles acham que se os planetas
estivessem abaixo do Sol, devido à sua pequena distância do Sol, seriam vistos como apenas
metade – ou pelo menos apenas parcialmente – esféricos.” (N. Copérnico, Das revoluções das
Esferas Celestes (livro um) in S. W. Hawking, Os gênios da ciência: Sobre o ombro de
Gigantes, p. 29);
75
De acordo com o livro do Gênesis – Antigo Testamento, Deus disse: "Façam-se luzeiros no
firmamento do céu para separar o dia da noite. Que sirvam de sinal para marcar as festas, os
dias e os anos. E, como luzeiros no firmamento do céu, sirvam para iluminar a terra". E assim
se fez. Deus fez os dois grandes luzeiros: o luzeiro maior para governar o dia e o luzeiro menor
para governar a noite, e as estrelas. Deus os colocou no firmamento do céu para alumiar a
terra, governar o dia e a noite e separar a luz das trevas. E Deus viu que era bom. Fez-se tarde
e veio a manhã: o quarto dia.
42
Sol, como se repousasse no trono de um rei, governa a família de
estrelas que gira ao seu redor.”
76
1.7.3 Prós e contras do modelo copernicano
Copérnico em suas duas obras tinha a intenção de explicar corretamente
o movimento dos corpos celestes. O grande número de artifícios matemáticos,
a imprecisão dos dados tabulados disponíveis e a falta da regularidade dos
movimentos não agradavam o astrônomo polonês. Copérnico acreditava que o
seu modelo heliostático, além de ser mais simples que o modelo geostático
ptolomaico, poderia resolver esses problemas.
O método empregado por Copérnico para a reformulação do sistema de
mundo é a reinterpretação dos dados de Ptolomeu, tendo como referência os
movimentos da Terra. Dessa forma, esse estudo é fundamentado puramente
em cálculos matemáticos: as vinte e sete observações diretas relatadas por
Copérnico no De Revolutionibus não são essenciais para formalizar o modelo
heliostático.
A favor do modelo copernicano destacam-se a afirmação dos
movimentos da Terra e a tentativa de se criar um modelo mais simplificado e
preciso do ponto de vista teórico: movimentos circulares e uniformes, um
menor número de círculos
77
e o mesmo tratamento teórico para os movimentos
dos planetas.
“Outro ponto importante a favor de Copérnico é que seu sistema
permite, pela primeira vez, comparar as diferenças planetárias
entre si. (...), as observações astronômicas antigas nada diziam
sobre as distâncias dos planetas à Terra – nem mesmo era
76
N. Copérnico, Das revoluções das Esferas Celestes (livro um) in S. W. Hawking, Os gênios
da ciência: Sobre o ombro de Gigantes, pp. 34-5;
77
No Commentariolus, Copérnico afirma que 34 círculos são suficientes, contra 43 de
Ptolomeu;
43
possível afirmar se Vênus estava mais próximo de nós do que o
Sol, ou o contrário. As teorias procuravam dar conta apenas de
deslocamentos angulares.”
78
Para o movimento da Lua, o calcanhar-de-aquiles do modelo ptolomaico,
Copérnico tem a seguinte solução: “um deferente concêntrico à Terra e dois
pequenos epiciclos (...), as variações de distância entre a Lua e a Terra são,
portanto, sempre pequenas”
79
Nota-se que Copérnico utiliza dos mesmos artifícios geométricos dos
antigos para defender seu ponto de vista astronômico. Não tinha por que ser
diferente, uma vez que a astronomia havia sido e ainda era construída por
argumentações matemáticas, e não físicas. Esperava-se de Copérnico um
novo tratamento para essas questões, já que suas críticas ao sistema
geostático de Ptolomeu eram acompanhadas de críticas à física de Aristóteles.
Mas Copérnico não fez isso. Como conseqüência, foi baixa a aceitação de seu
modelo – principalmente no que diz respeito às formulações físicas – nos anos
que se seguiram à publicação. Em geral, os astrônomos apreciam a eficiência
matemática do modelo, mas se reservam a comentar o movimento da Terra.
“Uma das ironias da situação é que um entendimento das
questões matemáticas discutidas até esse ponto revela que as
considerações matemáticas não conseguem determinar qual
sistema é correto. (...) Seu livro é repleto de esquemas
matemáticos tradicionais dos antigos astrônomos gregos; as
páginas são preenchidas por excêntricos, deferentes e epiciclos.
Copérnico alegou ter eximido de usar o equante, mas isso tem
sido questionado.”
80
78
R. A. Martins in N. Copérnico, Commentariolus, pp. 85-6;
79
R. A. Martins in N. Copérnico, Commentariolus, pp. 82-3;
80
M. J. Crowe, op. cit., p. 86;
44
Por outro lado, há críticas ainda mais severas à hipótese copernicana,
como nos mostra Rossi:
“A simplicidade do novo sistema, no entanto, era mais aparente
do que real: para justificar os dados das observações, Copérnico
foi forçado, em primeiro lugar, a não fazer coincidir o centro do
universo com o Sol, mas com o ponto central da órbita terrestre;
em segundo lugar, foi obrigado a introduzir de novo, como em
Ptolomeu, uma série de círculos girando em torno de outros
círculos; e finalmente atribuir à Terra (além do movimento de
rotação ao redor do seu eixo e de translação ao redor do Sol) um
terceiro movimento de declinação para justificar a invariabilidade
do eixo terrestre com relação à esfera das estrelas fixas.”
81
Da publicação do Commentariolus à publicação do De Revolutionibus
passaram-se cerca de trinta e três anos. Durante esse tempo, Copérnico não
se dedicou exclusivamente à sua obra. Mesmo que o fizesse, não daria conta
de dar todas as respostas que os astrônomos e teólogos exigiriam de seu
modelo. Seria preciso mais tempo, novas idéias e novos dados – em suma –
seria preciso um Tycho Brahe, um Johannes Kepler, um Galileu Galilei e um
Isaac Newton.
1.8 Desdobramentos
Era papel de Copérnico substituir ao mesmo tempo a física aristotélica e
a cosmologia ptolomaica? Difícil responder. Martins afirma que “se o objetivo
de Copérnico tivesse sido apenas o de propor um esquema matemático de
cálculo, nada disso poderia ser exigido. Porém, como ele pretendia descrever a
realidade, precisaria de boas respostas para certas perguntas.”
82
Para Gingras,
Keating e Limoges, “ao situar a Terra, por assim dizer, “no céu”, o Copérnico-
81
P. Rossi, O nascimento da ciência moderna na Europa, p. 120;
82
R. A. Martins in N. Copérnico, Commentariolus, p. 91;
45
astrônomo não podia deixar de suscitar questões da física às quais não estava
em condições de responder”.
83
Verdet suaviza:
“se é verdade que a obra de Copérnico é desorientadora –
desorientadora por sua própria exigüidade, pelas condições em
que apareceu e, é preciso confessá-lo, por algumas de suas
fraquezas – se é verdade que Copérnico era às vezes ignorante
das próprias riquezas – um Copérnico mau copernicano –, a
simples objetividade obriga a esta constatação: com Copérnico, e
somente com ele, se iniciou uma subversão da qual irão sair a
astronomia e a física modernas. Os julgamentos e as escolhas de
Galileu e de Kepler pesam mais fortemente na balança do que as
argúcias dos contadores de epiciclos!”
84
Entendemos, portanto, que a obra de Copérnico por si só não foi
suficiente para se estabelecer nem uma nova astronomia, nem uma nova
física, mas nem por isso ela não perde seu status de “revolucionária”, uma vez
que, sem ela, a parte mais importante para a mudança de um paradigma (a
crítica elementar dos fundamentos do paradigma vigente), não seria possível,
baseado, é claro, na publicação das obras e disseminação das idéias do
mesmo período. Agrada-nos as palavras de Paulo Rossi:
“A chamada Revolução Científica – (...) – teve realmente o caráter
‘revolucionário’ que foi tantas vezes sublinhado, porque não
consistiu na modificação de resultados parciais no âmbito de um
sistema aceito, mas no questionamento de todo esse sistema, na
adoção de princípios contrários à ‘razão’ e à ‘experiência’, tal
como vinham se configurando dentro da tradição, na construção
de um novo quadro do mundo no qual se tornam problemáticas ou
privadas de sentido muitas ‘verdades’ que tinham sido óbvias por
quase dois milênios, enfim, na elaboração de um novo conceito
de ‘razão’, de experiência’, de ‘natureza’, de ‘lei natural’.”
85
A obra de Copérnico fez com que surgisse uma nova alternativa de
interpretação do mundo baseada em argumentos matemáticos e na filosofia
83
Y. Gingras, P. Keating e C. Limoges, op. cit., p. 200;
84
J-P Verdet, op. cit., p. 72;
46
clássica aceita e bem-vinda em sua época. A crítica ao movimento da Terra
não impediu que os astrônomos usassem seu modelo como uma nova fonte de
pesquisa. Erasmo Reinhold (1511 – 1553), professor da Universidade de
Württemberg, publicou as primeiras tabelas astronômicas tendo como base o
modelo copernicano, Prutenicae tabulae coelestium motuum (1551).
Copérnico de alguma forma sabia que a sua obra era apenas um passo
em direção a um novo rumo, como é possível ler ainda na introdução do De
Revolutionibus;
“eles [Nicholas Schonberg, Tiedeman Giese, entre outros] diziam
que quanto mais absurdos parecessem agora, para muitas
pessoas, meus ensinamentos sobre o movimento da Terra, de
mais admiração e agradecimentos eles seriam objeto, quando,
publicados meus comentários, essa mesmas pessoas vissem a
neblina do absurdo ser dissipada por minhas luminosas
demonstrações.”
86
Além de Schonberg e Giese, Rheticus foi o primeiro astrônomo a
concordar – ainda que parcialmente – com o modelo copernicano. No seu
Narratio Prima (1540)
87
, Rheticus evita comentar os movimentos da Terra,
concentrando-se nos movimentos do Sol e das estrelas. Professor da
Universidade de Württemberg, sua obra foi por muito tempo o único comentário
sobre o sistema heliostático – Michael Mästlin e Johannes Kepler viriam a ser
seus leitores. Interessante lembrar que, nem Rheticus e nem Mästlin
ensinavam a astronomia copernicana em suas aulas. O próprio Erasmo
Reinhold também se manteve afastado da primeira hipótese de Copérnico.
85
P. Rossi, A ciência e a filosofia dos modernos, p. 34.
86
N. Copérnico, Das revoluções das Esferas Celestes (livro um) in S. W. Hawking, Os gênios
da ciência: Sobre o ombro de Gigantes, p. 11;
87
Rheticus teve acesso aos manuscritos do Commentariolus, por isso a publicação do Narratio
Prima em 1540;
47
Tycho Brahe (1546 – 1601), o famoso astrônomo dinamarquês, também
teve acesso aos manuscritos de Copérnico, mas não aceitou a sua hipótese.
Tycho apresentaria ao mundo, além de uma nova gama de dados
astronômicos originários de observações muito precisas, um outro modelo de
universo: a Terra, parada, é o centro do movimento da Lua e do Sol. Este, por
sua vez, é o centro do movimento dos planetas.
O maior apoio ao modelo copernicano veio da Universidade de
Tübingen, mas não de um professor de astronomia ou matemática, e sim de
um aluno aspirante a teólogo, que ao longo da sua trajetória acadêmica e
profissional, defendeu e reformulou a hipótese heliocêntrica e ajudou a colocá-
la na História da Astronomia: Johannes Kepler.
1.9 Conclusão do Capítulo I
Encerramos o primeiro capítulo desta dissertação com a certeza de ter
apresentado e analisado, ainda que de forma sucinta, temas da História da
Ciência relativos à astronomia e à física que servirão de base para o leitor
compreender melhor as questões que cercam Kepler na sua narrativa de
interpretação do Universo. Com base nas informações apresentadas,
tentaremos esboçar nessa conclusão o papel de Kepler na “revolução”
apresentada.
Kepler iniciou seus estudos na Universidade de Tübingen, universidade
protestante, assim como a Universidade de Württemberg. O currículo
pedagógico também era baseado no Trivium e no Quadrivium de modo que
Kepler estudou, ainda que de forma superficial, geometria, aritmética, música,
astronomia e astrologia. O reconhecido astrônomo Michael Mästlin foi seu
48
principal professor, e apesar de ser um dos poucos que conheciam a fundo as
propostas de Copérnico, não ensinava a hipótese heliocêntrica em suas aulas.
Assim como outros catedráticos, ensinava o modelo ptolomaico por meio da
leitura dos tratados clássicos. Mas em particular, Mästlin apresentou o modelo
copernicano a Kepler justamente por este destacar-se nas questões relativas à
matemática. O jovem aluno acabou se convencendo da superioridade desse
modelo e foi seu fiel defensor, mesmo quando trabalhou como assistente de
Tycho Brahe.
Devemos recordar, mais uma vez, que as ambições de Kepler eram no
campo da formação teológica. Portanto, dedicava-se a estudar em
profundidade as questões divinas segundo a prática luterana. Inspirado a
compreender a lógica do Criador, Kepler aventurou-se por questões relativas à
concepção do mundo, pois era um campo da teologia no qual suas facilidades
em matemática poderiam ajudá-lo. Para ele, deveria haver um motivo particular
para a existência de seis (e apenas seis) planetas, para ocuparem esse espaço
(e não outro), para demorarem o tempo que levam (nem mais, nem menos)
para completar as suas revoluções.
O ideal luterano permitia que seus seguidores estudassem as Sagradas
Escrituras de modo a compreendê-la sem intermediários. A filosofia humanista
tinha como motor o pensamento convincente (seja através da palavra ou pelo
cálculo), o neoplatonismo cristão e a busca dos elementos secretos da
Natureza.
“Agrada-lhe o grande? Não há nada maior que este universo, não
há nada mais extenso. Deseja a dignidade? Não há nada mais
preciso, nem mais bonito que este deslumbrante templo de Deus.
Prefere conhecer as coisas ocultas? Não há nem houve mais
49
mistério na natureza. Somente uma coisa em tudo isso não
satisfaz a todos, é que, para os irreflexivos, sua utilidade não está
clara. Mas aqui está aquele livro da natureza, tão celebrado nos
discursos sagrados proposto por Saulo aos gentis e no qual se
contempla a Deus como ao Sol em um espelho ou na água. Pois,
por quê, nós cristãos nos deleitaremos menos nessa
contemplação, sendo nosso acordo celebrar a Deus com
verdadeiro culto, venerá-lo e admirá-lo? Isto se faz com ânimo
ainda mais devotado tanto quanto entendemos mais corretamente
quais e quantas coisas tem criado nosso Deus.”
88
Assim sendo, logo no seu primeiro trabalho (Mysterium
Cosmographicum), vemos um autor preocupado em revelar aos seus leitores
alguns dos mistérios do Universo e provar a inteligência superior do Criador,
expressa pela regularidade e harmonia aritméticas e geométricas. Mais que um
defensor de Copérnico, Kepler era um cristão devoto. Talvez até caiba aqui
uma inversão, que será justificada a seguir: o modelo heliocêntrico era o mais
adequado para realizar o desejo de harmonia e perfeição de Kepler:
“Um astrônomo sem o neoplatonismo de Copérnico conviveria
bem com a idéia da impossibilidade da construção de uma
astronomia, que fosse simultaneamente simples, precisa e
harmônica. (...) Um contemporâneo de Copérnico, sem o
neoplatonismo deste, diante das pequenas discrepâncias da
teoria ptolomaica, poderia reconhecê-las enquanto anomalias,
porém provavelmente tentaria reduzi-las, sem alterar o núcleo da
teoria astronômica-cosmológica dominante.”
89
Como veremos pormenorizado no segundo capítulo, algumas
conclusões apresentadas no Mysterium Cosmographicum não satisfizeram o
desejo de Kepler por ordem e harmonia. Para ele, era preciso continuar
procurando. Mais confiante na suas idéias do que na hipótese copernicana
(pois a conhecia bem), procurou encontrar novas informações que dessem
88
J. Kepler, El Secreto del Universo, p. 55;
89
F. R. R. Évora, A Revolução Copernicana-Galileana, p. 85;
50
sentido à sua busca. Ao associar-se a Tycho Brahe, teve acesso a dados
empíricos mais precisos. Esse encontro (entre Kepler e os dados de Tycho
Brahe – a relação pessoal entre eles não era das melhores) rendeu a Kepler a
conclusão de dois aspectos do movimento planetário (conhecidas atualmente
como primeira e segunda leis de Kepler) e, por conseguinte, a reformulação do
modelo heliocêntrico.
Mesmo com os resultados publicados no seu Astronomia Novae, Kepler
não conseguiu expressar dentro de sua lógica e cálculos a perfeição dos
movimentos planetários. A relação entre a distância dos planetas e seus
períodos de revolução (questão originária, mas não resolvida desde o
Mysterium Cosmographicum) ainda precisava de reformulações. Em 1619,
Kepler publica o Harmonices mundi, um conjunto de cinco livros que tinha
como objetivos a discussão minunciosa do De caelo e do De Generatione de
Aristóteles, e a continuação (e correção) das questões levantas no Mysterium
Cosmographicum. Nota-se que além da dedicação à construção de uma
cosmologia harmônica, Kepler também deseja harmonizar a relação entre os
céus e a terra. Tal preocupação já estava presente na sua primeira obra:
“no seu tratado Mysterium Cosmographicum Kepler não pesquisa
somente as leis da estrutura do cosmos, mas aborda também o
problema da razão dos movimentos dos planetas e da sua velocidade
(que é tanto menor na medida em que os planetas ficam mais distantes
do Sol). Por isso ele acredita ser preciso aceitar necessariamente uma
das seguintes afirmações: ou as almas que dão movimento a cada
planeta individual são mais fracas na medida da sua maior distância ao
Sol, ou existe somente uma alma motora, posta no centro de todos os
mundos, ou seja, o Sol, que movimenta cada corpo: com maior força os
corpos vizinhos, com força menor aqueles mais distantes, em virtude da
diminuição da força causada pela distância. Kepler decide pela segunda
hipótese...”
90
51
Apesar de essa obra conter a conclusão que chamamos hoje de
“terceira lei de Kepler”, a “lei” que servirá de base para as argumentações de
Isaac Newton sobre a gravitação dos corpos celestes, ela não é vista como o
maior trabalho de Kepler. O Epitome Astronomiae Copernicae (1618-21) e o
Tabulae Rudolphine (1627) são tidos por alguns como representantes mais
dignos da “nova ciência” que estaria por vir. Os aspectos “místicos-pitagóricos”
das idéias de Kepler – como a relação entre as velocidades dos planetas e as
notas musicais – bem como a teoria aristotélica do movimento na qual Kepler
baseia seu trabalho são consideradas obsoletas. Mesmo assim, como Edmund
Halley escreveu na sua resenha sobre o Principia de Newton, as onze
primeiras proposições do físico inglês estavam de acordo com a descrição dos
fenômenos planetários propostos por Kepler.
Concluímos, portanto, que seria muito difícil discutir qualquer aspecto da
“terceira lei” do movimento planetário – seja sua apresentação ou sua
fundamentação teórica – sem conhecer a forma pela qual a física e a
astronomia foram estruturadas até os séculos XVI e XVII. Iniciar a discussão a
partir da própria lei, seguindo à risca as palavras de Kepler, poderia nos levar
por um caminho já conhecido na História da Ciência: “muitos [historiadores]
insistiram sobre a incrível tenacidade com que ele [Kepler] procura dados que
se adaptem a imaginosas hipóteses metafísicas e sirvam para confirmá-las.”
91
O texto de Kepler é realmente cativante e correríamos o risco de somente
concordar com suas exposições. Conhecendo as bases de sua formação e o
90
P. Rossi, O nascimento da ciência moderna na Europa, p. 135;
91
P. Rossi, O nascimento da ciência moderna na Europa, p. 143.
52
pensamento da época, podemos ser mais críticos a respeito de suas escolhas
e conclusões.
Capítulo II – Johannes Kepler: Vida e Obra
2.1 Introdução
Devido à sua importância para a Astronomia, é comum encontrarmos
nas obras de historiadores que estudam o período da Revolução Científica,
uma pequena biografia de Kepler. Entre eles podemos citar Debus (El hombre
y la naturaleza en el Renacimiento), Dreyer (A History of Astronomy from
Thales to Kepler), Koestler (Os Sonâmbulos), Rossi (O nascimento da ciência
moderna na Europa) e Verdet (Uma história da Astronomia). Outra indicação
de uma breve biografia, porém mais completa, é o verbete ‘Kepler’ no
53
Dictionary of Scientific Biography do American Council of Learned Society. Para
um estudo mais aprofundado da vida do astrônomo, recomendamos a leitura
da obra de Caspar (Kepler), reconhecida como um dos melhores trabalhos
sobre o tema. Nesta dissertação, apresentamos superficialmente aspectos da
vida pessoal de Kepler e aprofundamos questões relativas à sua formação e
sua produção acadêmica em astronomia até o período da produção do
Harmonices Mundi. Inicialmente, apresentaremos uma descrição dos fatos
mais relevantes para depois fazermos uma análise mais ampla sobre quem foi
Kepler e a importância do seu trabalho.
2.2 Informações pessoais
Johannes Kepler nasceu em Weil, hoje Weil der Standt, sudoeste da
Alemanha, em 27 de dezembro de 1571. Na época, Weil fazia parte do ducado
de Württemberg que, por sua vez, integrava o Sacro Império Romano-
Germânico, cuja capital era Praga.
Filho de Heinrich Kepler e Katherine Guldenman, foi o primeiro dos sete
filhos do casal, dos quais apenas quatro chegariam à idade adulta. Casou-se
duas vezes: primeiro com Bárbara Muller, em 1597, com quem teve cinco filhos
(apenas dois sobreviveram) e depois com Suzanna Reuttinger, em 1613, com
quem teve mais 6 filhos (apenas três sobreviveram). Faleceu em 15 de
novembro de 1630, na cidade de Regensburg, Alemanha. Definiu-se uma vez
desta forma:
“Este homem nasceu destinado a passar muito tempo em tarefas
difíceis evitadas por outros. (...) A princípio, os seus esforços
foram dedicados a acrósticos e anagramas. (...) Gostava de
enigmas. (...) Gostava de compor paradoxos e ... preferia a
54
matemática a qualquer outro estudo. (...) Explorou vários campos
da matemática como se fosse o primeiro homem a fazê-lo (e fez
certo número de descobrimentos), e verificou, mais tarde, que os
seus descobrimentos já tinham sido descobertos antes.”
92
2.3 Contexto regional e histórico
Kepler viveu num período e num local fortemente influenciados pelos
resultados da Reforma Protestante. “É particularmente impossível compreender
as influências de Johannes Kepler sem desenvolver uma aproximação
interdisciplinar entre a História da Ciência e a História da Igreja.”
93
Durante os séculos XIV e XVI, a Europa Ocidental de maneira geral –
com exceção da Itália – estava descontente com o papel da Igreja Católica e
questionava a autoridade do Papa. Do ponto de vista político, a soberania
papal confrontava a soberania dos reis. Do ponto de vista teológico, alguns
grupos se levantaram contra a hierarquia eclesiástica. “Esses movimentos,
cujas idéias seriam retomadas pela Reforma Protestante, representavam o
anseio dos cristãos por uma participação mais ativa na vida religiosa.”
94
A crítica mais severa ao modelo católico da época foi feita por Martinho
Lutero (1483 – 1546), em 1517, em Württemberg. Lutero investiu contra os
abusos da Igreja, principalmente no que diz respeito à venda de indulgências e
à adulteração da “palavra sagrada”. Lutero também era contra a hierarquia da
Igreja: sua convicção na doutrina de Santo Agostinho levava-o a entender o
homem como seu único e próprio salvador, sem intermediação e
intermediários.
92
A. Koestler, Os sonâmbulos, p. 163.
93
C. Methuen, Kepler´s Tübingen, p. 1
94
Coleção Os Pensadores, História da Filosofia, p. 170.
55
Sua obra de 1525, De Servo Arbitrio, apesar de ser destinada a uma
reforma religiosa, vem ao encontro dos anseios da sociedade alemã, tornando-
se uma expressão de caráter social e econômico, pois
“a Alemanha é um palco propício para a propagação das idéias de
Lutero. Embora pertença formalmente ao Sacro Império Romano-
Germânico, ela é um mosaico de Estados e cidades que buscam
afirmar sua soberania. Isso se traduz também nos anseios de
rompimento com o papado, que cobra cada vez mais tributos
desses Estados. Neles, os cavaleiros (representantes da pequena
nobreza) opõem-se aos grandes proprietários, cuja maioria é
formada por membros da Igreja. Por fim, na parte mais baixa da
hierarquia social, os camponeses ainda se encontram submetidos
aos laços medievais de servidão, que lhes impõem pesadas
obrigações.”
95
A família de Kepler – principalmente o avô, Sebald – seguia os
ensinamentos luteranos da Igreja Protestante. “Ainda que Weil der Stadt fosse
pequena e super populosa, seus habitantes, todavia, viviam inspirados pela
alto-estima e orgulho de sua independência, como cidadãos privilegiados de
uma cidade imperial livre.”
96
Isso permitia, entre outras coisas, que os cidadãos
escolhessem qual religião seguir. “Weil der Stadt permaneceu católica durante
a Reforma, e aparentemente Kepler foi batizado na Igreja Católica, embora
seus pais fossem luteranos.”
97
O duque de Württemberg, Herzog Christoph, também era protestante e,
de acordo com os valores da filosofia luterana, introduziu nas escolas primárias
um sistema de educação que iniciaria a formação de novos clérigos. “Todas as
95
Ibid., p. 174;
96
M. Caspar, Kepler, p. 32.
97
C. Methuen, op. cit., p. 29.
56
crianças podiam freqüentar gratuitamente um primeiro ciclo de três anos de
estudos, em que se aprendia a ler, escrever e calcular.”
98
“O trabalho de Philip Melanchthon (1497 – 1560) a esse respeito foi
particularmente significante. Como humanista convicto, assegurar provisões
para uma boa educação era para ele de importância vital. (...) Apesar de seu
trabalho teológico desempenhar uma parte importante da sistematização da
teologia luterana, sua influência educacional também deu forma ao futuro do
luteranismo.”
99
O ducado contava com um seminário teológico – o curso inferior em
Adelberg e o superior em Maulbronn – e duas universidades protestantes,
Württemberg e Tübingen. “As universidades protestantes em Württenberg e
Tübingen eram os arsenais intelectuais do novo credo”
100
. Kepler iniciou seus
estudos na cidade de Leonberg, em 1578. Motivos familiares fizeram com que
ele só conseguisse encerrar o período de três anos letivos em 1583. No ano
seguinte, iniciou o seminário teológico, completando-o em 1587. Apesar de ter
sido aprovado para freqüentar a Universidade de Tübingen ainda naquele ano,
só conseguiu fazê-lo em 1589.
2.4 Leonberg, período de 1578 a 1583
Kepler iniciou a escola primária em Leonberg aos sete anos de idade.
Há de se destacar a importância dada ao latim por esta instituição, pois como
já comentamos anteriormente, fazia parte do plano maior da Reforma:
“O curriculum no seminário era em latim, e os discípulos se
obrigavam rigorosamente a empregar apenas o latim até entre si.
Já na escola primária, tinham de ler as comédias de Plauto e
Terêncio, a fim de unirem a fluência conversacional à precisão
acadêmica. O alemão, embora tivesse adquirido nova dignidade
98
Scientific American: Kepler, “Os anos de juventude”, p.9;
99
C. Methuen, op. cit., p. 30.
100
A. Koestler, op. cit., p. 158;
57
com a tradução da Bíblia por Lutero não era todavia considerado
um meio digno de expressão para os acadêmicos.”
101
Sabemos que sobre a vida e obra de Kepler existe um grande material
preservado. Segundo Max Caspar, são cerca de 400 cartas de sua autoria e
mais de 700 cartas endereçadas a ele, além de horóscopos, mapas astrais,
diários e, obviamente, os textos acadêmicos.
“Muitos outros documentos, relatando sua vida, mostram sua
situação econômica, sua atividade profissional, sua relação com
príncipes e autoridades com os quais tinha obrigações, assim
como alguns eventos familiares.”
102
Desse período, o próprio Kepler descreve dois eventos que marcaram
sua infância de forma positiva
?
: as observações da passagem de um cometa
em 1577 e de um eclipse lunar em 1580.
2.5 Adelberg-Maulbronn, período de 1584 a 1587
A escolha por uma carreira religiosa era a mais adequada para um
jovem cuja família vivia em condições financeiras e emocionais lastimáveis. O
pai de Kepler, Heinrich, era soldado profissional – um mercenário – que se
ausentava de casa por grandes períodos. A mãe, Katherine, ocupava-se em
fazer remédios caseiros que eram interpretados pela comunidade como poções
mágicas e feitiçaria. Johannes ainda tinha uma irmã caçula e um irmão
epilético. Por muito tempo foi criado pelos avós, que não possuíam grandes
posses. Os pais de Kepler viviam discutindo e muitas vezes Katherine
abandonou o seu lar para ir ao encontro do marido. Dessa forma, pode-se
101
Ibid.., p. 158;
102
M. Caspar, op. cit., p. 14;
58
presumir que a escolha de passar a vida num seminário foi a melhor decisão
feita por esta família para o jovem Kepler.
O seminário teológico, que ele freqüentou dos treze aos dezessete anos,
dividia-se em curso inferior (Adelberg) e curso superior (Maulbronn). Viver em
um seminário também não era fácil. A disciplina era muito rígida e o currículo
extenso tinha objetivos de formação humanista e confessional.
“O ensino era ministrado por tutores, muitas vezes jovens
teólogos recém-formados em Tübingen. O latim era empregado
constantemente, até na conversa diária dos estudantes. Também
se acrescentara o ensino do grego. As jovens mentes eram
formadas por meio da leitura atenta dos clássicos
103
, sobretudo
Cícero, Virgílio, Xenófones e Demóstenes. De acordo com os
esquemas do trivium
104
e do quadrivium
105
, a retórica, a dialética
e a música eram ensinadas na seqüência, e no seminário maior,
os elementos da esfera e aritmética.”
106
Kepler se destacava dos outros alunos quanto à sua natureza
introspectiva, sua capacidade de raciocínio e argumentação e sua devoção
religiosa. Seu bom desempenho nos estudos assegurou-lhe uma vaga na
Universidade de Tübingen.
2.6 A Universidade de Tübingen
103
Charlotte Methuen lista uma série de obras presentes no currículo do seminário teológico,
cursos inferior e superior: Cícero, De amicitia, De senectute e De officiis; Virgílio, Aeneid;
Xenófones, Paidéia; as fábulas de Aesop e alguns textos de Melanchthon. Methuen também
explica que as ciências matemáticas não faziam parte do currículo, mas que os estudantes se
preparavam para os exames que levavam à Universidade – no mínimo por três semestres –
lendo as obras Organon e Física de Aristóteles e Elementos, de Euclides. Kepler não chegou a
estudar a obra de Euclides nessa época de sua vida acadêmica.
104
Trivium: três disciplinas lingüísticas das “artes liberais” – gramática, retórica e lógica.
105
Quadrivium: quatro disciplinas matemáticas das “artes liberais” – geometria, aritmética,
astronomia e música;
106
M. Caspar, op. cit., pp. 38-9;
59
A Universidade de Tübingen
107
foi criada em 1477 por Eberhard im Bart,
Conde e depois Duque de Württemberg. Kepler realizou seus estudos nessa
universidade no período de 1589 a 1593, sendo depois chamado para ocupar o
cargo de mathematicus
108
em Graz.
Caspar lamenta o fato de que os relatos de Kepler sobre seus estudos
em Tübingen foram feitos de forma incompleta: “tudo que ele nos diz sobre
seus estudos em filosofia é que, dos trabalhos de Aristóteles, ele leu
principalmente o Analytica posteriora e o Física, deixando de lado Ética e
Tópicos”.
109
Entretanto, sabe-se que o trabalho de Kepler é fortemente
influenciado por questões pitagóricas, platônicas e neoplatônicas – como
veremos nos tópicos relativos aos seus trabalhos acadêmicos. Charlotte
Methuen acredita que algumas questões sobre as possíveis influências de
Kepler podem ser respondidas se limitarmos a investigação sobre a
interação entre teologia, filosofia natural, lógica e matemática e, em particular,
astronomia, como elas aparecem nos trabalhos dos professores de Tübingen.
“É necessário perguntar se os escritos de Aristóteles e, em
particular, Platão, Plínio, Plutarco e outros podem ser
considerados como representantes da verdade na filosofia
natural. Nem todos os estudiosos estavam preparados para
discutir essa questão, e os que estavam tinham que procurar não
só uma justificativa teológica, mas também filosófica para o que
estavam fazendo”
110
.
Na universidade, os professores ministravam palestras sobre as leituras
obrigatórias. Além de tecer suas opiniões e destacar dos textos o que
107
Atual Eberhard-Karls-Universität;
108
Mathematicus era o termo usado para designar a função e o cargo de professor de
matemática e astronomia na escola protestante de Graz;
109
M. Caspar, op. cit., p. 44;
110
C. Methuen, op. cit., p. 159;
60
consideravam mais importante, enfatizavam a exatidão destes, comentando
aspectos gramaticais e relacionando-os com outras áreas do conhecimento.
Devido à complexidade deste sistema, as palestras eram seguidas de aulas
que recobravam o que havia sido discutido nas palestras, e nessas aulas os
alunos tinham que participar efetivamente de debates e disputas. Martin
Crusius (1526–1607) era responsável por preparar os alunos da faculdade de
artes para essas tarefas. Entre os textos escolhidos estavam Ilíada, Odisséia e
Batrachomyomachia de Homero. Samuel Heiland e Vitus Müller foram
responsáveis por Ética de Aristóteles, enquanto Georg Liebler tratava de Física
e De caelo. Andréas Planer se concentrava no Analytica posteriora, enquanto
Jacob Heerbrand e Matthias Hafenreffer ensinavam teologia. E, finalmente,
Michael Mästlin, o mais importante entre todos eles – devido à influência que
teve sobre Kepler – responsável pelas áreas de matemática e astronomia.
Há de se destacar outros dois estudos significativos desse período: a
astrologia e a religião. Kepler ocupou-se da astrologia por um bom tempo,
tendo como base o livro Theoricae planetarum de George Peuerbach. Sobre
religião, Kepler foi um aluno bastante dedicado, já que seu coração e mente
estavam mergulhados nas mais diversas questões teológicas
111
. Merece
destaque o jovem professor Matthias Hafenreffer, cuja sinceridade e talentos
intelectuais cativaram Kepler.
Como discutimos anteriormente, é impossível separar a História da
Ciência da História da Igreja. Tübigen é reduto luterano e foi Philip
Melanchthon quem estabeleceu as normas para a Educação. Se por um lado
alguns filósofos naturais estavam interessados em uma nova forma de se
61
interpretar a natureza, havia também outros humanistas que se mantiveram
fiéis aos estudos escolásticos.
“Juan Luis Vives (1492-1540), incontestavelmente o mais notável
dos educadores do Renascimento, concordava plenamente com
ele [Erasmo (1466-1536)], ao combater o estudo das
matemáticas, argumentando que estas tendem a ‘desviar a mente
dos fins práticos da vida’ e tornava-se “menos apta para desfazer
as realidades concretas e mundanas.”
112
Já para Melanchthon,
“a prova matemática é a mais clara das provas, porque
demonstra como coisas confusas podem ser reveladas e
entendidas. (...) apesar das dificuldades iniciais associadas com
sua aprendizagem, os benefícios desse conhecimento são mais
admiráveis que aqueles que podem surgir da leitura de qualquer
livro. Por meio desta disciplina, é permitido entender todo o
Universo e os trabalhos mais bonitos de Deus: as outras artes se
dirigem à Terra, enquanto as matemáticas libertam a mente
humana para apreciar o extraordinário espetáculo dos trabalhos
de Deus”
113
.
Assim, entende-se que os professores em Tübingen,
independentemente da disciplina que lecionavam, direcionavam suas aulas
para a compreensão maior da filosofia luterana, portanto trabalhavam em
conformidade com os ensinamentos das Sagradas Escrituras.
2.6.1 Michael Mästlin
Michael Mästlin (1550-1631) nasceu em Göppingen, foi diácono em
Backnang e professor de matemática em Heidelberg antes de assumir o posto
em Tübingen em 1583. Na universidade, sucedeu Philip Apian, astrônomo
renomado.
111
Abordaremos novas e mais idéias sobre essas questões ao longo desse capítulo;
112
A.G. Debus, El hombre y la naturaleza en el Renacimiento, p. 19;
113
C. Methuen, op. cit., pp. 166-7;
62
“Mästlin foi um dos melhores astrônomos de seu tempo e
desfrutou de grande estima no mundo acadêmico. Como era de
costume naquele tempo, seu curso de introdução à geometria era
baseado nos Elementos de Euclides, ao qual provavelmente
adicionava algumas idéias de Arquimedes e Apolônio. Em
continuidade, ele introduzia a sua audiência aos elementos da
trigonometria. Para o seu curso de leituras astronômicas, ele
utilizava um livro didático, Epitomae Astronomiae, original de
1582 e que foi reimpresso muitas vezes durante décadas.”
114
Mästlin havia estudado, em 1572, as medidas de paralaxe de dois
cometas e de uma nova, e concluiu que se tratavam de fenômenos
supralunares, o que contrariava os ensinamentos de Aristóteles sobre esses
eventos celestes
115
. Para ele, isso não representava um grande problema, pois
acreditava
“que a exatidão das observações por meio das quais ele havia
medido a paralaxe, combinada com o uso de demonstrações
geométricas e aritméticas, permitia a ele tirar conclusões cuja
verdade e precisão eram de maior valia que a autoridade das
opiniões de Aristóteles, Plínio e outros filósofos clássicos”.
116
Anos mais tarde, Mästlin justificou o movimento do cometa observado
em 1577-78 por meio do modelo copernicano, concluindo que o mesmo estava
situado na região da esfera de Vênus. Sobre o cometa de 1581, Mästlin voltou
a argumentar contra a astronomia aristotélica e, mais uma vez, usou “do
testemunho bíblico sobre a criação dos céus por Deus para argumentar que
observações exatas dos movimentos dos corpos celestes eram
necessárias”
117
.
114
M. Caspar, op. cit., p. 46.
115
Para Aristóteles, os cometas e a nova eram fenômenos atmosféricos, pertenciam ao mundo
sublunar, o mundo dos elementos corruptíveis. O mundo supralunar, por sua vez, era
incorruptível, ou seja, inalterável, eterno.
116
Methuen, C. op. cit., pp. 171-2;
117
Ibid., p. 176;
63
Mäestlin foi, sem dúvida, a maior influência de Kepler no período da
universidade – e depois dela também. Kepler tornou-se um copernicano graças
ao seu mestre. “O De Revolutionibus de 1543 que ele [Mästlin] possuía é
provavelmente o exemplar mais amplamente anotado que existe”
118
. Mästlin
sabia do risco que corria ao dissertar sobre o sistema copernicano, já que este
era considerado contrário aos ensinamentos bíblicos, por isso o fazia com
descrição. Como conhecia o potencial de Kepler para questões matemáticas e
religiosas, tratou de ensinar o modelo heliostático para o jovem estudante.
Este, por sua vez, não o decepcionou: “com exceção de Rheticus, Kepler
tornou-se o primeiro entusiasta de Copérnico depois do próprio Copérnico”
119
.
Algum tempo depois, Kepler escreveria as seguintes palavras sobre
esse período e sobre o modelo copernicano:
“Quando eu estudava sob a orientação do afamado Michael
Mästlin em Tübingen, há seis anos, notando as muitas
inconveniências da teoria do universo que era geralmente aceita,
fiquei tão encantado com Copérnico, que Mästlin freqüentemente
mencionava em suas aulas, que muitas vezes defendi suas
opiniões nos debates dos estudantes sobre física. Cheguei até a
escrever uma cuidadosa discussão sobre o primeiro movimento,
defendendo que ele ocorre por causa da rotação da Terra.
Gradualmente, em parte pelo que ouvi de Mästlin, em parte por
mim mesmo, coletei todas as vantagens que Copérnico tem sobre
Ptolomeu.”
120
2.7 Mudança de rumos: o cargo de mathematicus em Graz
Em 11 de agosto de 1591, Kepler concluiu a Faculdade de Artes da
Universidade de Tübingen, obtendo o grau de mestre e, em seguida, ingressou
no curso de teologia, seu real objetivo. Vale a pena recordar que “Kepler não
118
O. Gingerich, “KEPLER”, in American Council of Learned Society, Dictionary of Scientific
Biography, T. VII, p. 289b;
119
Ibid., p. 289a.
64
cursou Tübingen para se tornar filósofo, matemático ou astrônomo. Tudo que
assimilou na Faculdade de Artes serviu apenas de preparação para os estudos
teológicos”
121
. Porém, em 1593, um evento em particular acompanhado de um
pedido, mudou os rumos do jovem Kepler.
Graz, capital da província austríaca da Estíria, possuía duas
universidades: uma católica, outra protestante. Quando Georgius Stadius,
professor de matemática da universidade luterana, faleceu, “pediram os
governantes, como costumavam fazer, à universidade protestante de Tübingen
que lhes recomendasse um candidato.”
122
Kepler foi o escolhido.
Num primeiro momento, Kepler hesitou em aceitar o convite. Imaginava-
se clérigo, não professor. Pôs em questão se seus conhecimentos matemáticos
eram suficientes para assumir tal função. Acabou por aceitar a proposta
impondo a condição de que poderia voltar a Tübingen para concluir seus
estudos religiosos. O senado de Tübingen aprovou a condição e, “em 23 de
março de 1594, Kepler deixou sua universidade adorada sem imaginar que
jamais voltaria a viver em Würtemberg”
123
. Chegou a Graz em 11 de abril de
1594: tinha 23 anos.
‘Mathematicus provincial’ era o termo usado para designar a função e o
cargo de professor de matemática e astronomia. Além de ministrar aulas, era
também função do mathematicus a publicação anual de um calendário com
previsões astrológicas.
“Tanto as funções como a remuneração de 200 florins anuais são
modestas: ensinar os rudimentos de astronomia a jovens nobres
120
J. Kepler apud O. Gingerich, op. cit., p.289b;
121
M. Caspar, op. cit., p. 48;
122
A. Koestler, op. cit., p. 163;
123
Scientific American: Kepler, op. cit., p.11;
65
protestantes e compor um calendário acompanhado de um
prognóstico para o ano seguinte, o que ainda assim lhe valia 20
florins suplementares!”
124
Kepler obteve certa popularidade quando algumas de suas previsões
para o ano de 1595 se concretizaram, mas seu grande feito ocorreria alguns
meses depois, mais precisamente em 9 de julho de 1595. Como escreveu
Arthur Koestler no seu Os Sonâmbulos, Kepler teve “uma idéia [que] lhe cruzou
a mente com tamanha força que sentiu estar de posse da chave do segredo da
criação”
125
.
2.8 Mysterium Cosmographicum (1596)
Os primeiros dois anos de Kepler como professor na Universidade de
Graz foram bem difíceis. Além de receber um salário inferior ao de seu
antecessor, foi recebido como “estagiário” por um ou dois meses antes de ser
considerado ideal para o cargo. As disciplinas que lecionava – matemática e
astronomia – não estavam entre as mais agradáveis da lista dos estudantes,
por isso o número de alunos era bem reduzido. Para que esses não tivessem
tanta dificuldade em seguir o curso, propôs um curso introdutório de seis aulas
sobre aritmética, Virgílio e retórica.
Para estimular ainda mais seus alunos, tratou também de questões
astrológicas. Certa aula, ao descrever um padrão nas conjunções de Júpiter e
Saturno – cada conjunção ocorre oito signos zodiacais distantes do anterior e
num intervalo de tempo de aproximadamente 20 anos – , “desenhou no
124
J-P. Verdet, Uma história da Astronomia, p. 100;
125
A. Koestler, op. cit., p. 168;
66
quadro-negro uma longa seqüência de triângulos inscritos em um círculo”
126
. O
resultado deste desenho foi semelhante ao da figura abaixo e pode ser
interpretado da seguinte forma: triângulos delimitados por um círculo inscrito
(interno) e um circunscrito (externo). Kepler percebeu então que a proporção
entre os raios dos círculos era quase idêntica à dos orbes de Saturno e Júpiter.
Figura – Diagrama de Kepler das conjunções de Júpiter e Saturno in Michael J.
Crowe, Theories of the World, p. 149. O número 1 indica a conjunção do ano
de 1583 sobre o signo de Áries; o 2, a de 1603 sobre o signo de Sagitário; o 3,
a de 1623 sobre o signo de Leão , o 4; a de 1643 sobre o signo de Áries, e
assim por diante. Os “triângulos” são formados a partir da união dos pontos 1,
2, 3.
Nas palavras do próprio Kepler (relato condensado):
“No ano de 1595 em Graz, em umas férias, refleti a respeito
desse assunto [superioridade do modelo de copérnico frente ao
de Ptolomeu] com toda a energia de minha mente. E havia,
sobretudo, três coisas das quais eu buscava as causas – por que
era desse jeito e não de outro – que eram o número, as
dimensões e os movimentos dos orbes celestes. (...) Quase todo
126
J-P. Verdet, op. cit., p. 100;
67
o verão foi perdido com este angustiante trabalho. Por fim, numa
ocasião nada especial, cheguei mais perto da verdade. Acredito
que a Divina Providência interveio, de modo que descobri, por
acaso, aquilo que jamais poderia ter conseguido com os meus
próprios esforços. Acredito nisso ainda mais porque sempre pedi
em orações a Deus para que pudesse ser bem sucedido, se o
que Copérnico havia dito fosse verdade. Dessa maneira,
aconteceu em 19 de julho de 1595, quando mostrava em minha
aula como as grandes conjunções [de Saturno e Júpiter] ocorrem
sucessivamente de oito em oito signos zodiacais e como passam
gradualmente de um trígono a outro, que eu inscrevi dentro de um
círculo muitos triângulos (ou quase-triângulos, de modo que o
final de um fosse o começo do próximo). Desse modo, foi
esboçado um círculo menor pelos pontos onde as linhas dos
triângulos se entrecruzavam.”
127
Seguindo a lógica de Kepler, se os raios dos orbes de Saturno e Júpiter
– planetas mais externos
128
nos dois modelos, copernicano ou ptolomaico, –
possuíam uma relação entre si que permitia circunscrever e inscrever um
triângulo eqüilátero no intervalo desses dois orbes, os raios dos outros orbes
deveriam também possuir relações geométricas entre si, delimitando outras
figuras. Kepler tentou, então, dar seqüência a esse raciocínio, tentando
encaixar outras figuras planas. Não obteve êxito, mas não desistiu tão
facilmente da tarefa. “Então, novamente, fiquei impressionado: por que colocar
figuras geométricas planas entre orbes tridimensionais?”
129
Estava lançada a
base do seu primeiro trabalho: Prodomus Dissertationum Cosmographicarum
continens Mysterium Cosmographicum de admirabili Proportione Orbium
127
J. Kepler apud. O. Gingerich, op. cit., p. 290a.
128
A astronomia desse período só conhece os planetas visíveis a olho nu. Mais detalhes no
capítulo I dessa dissertação;
129
J. Kepler apud. O. Gingerich, op. cit., p. 290b;
68
Coelestium deque Causis Coelorum numeri, magnitudinis, motuumque corpora
Geometrica
130
.
Em suas palavras:
“Veja, leitor, a invenção e toda a substância deste pequeno livro!
Como lembrança deste acontecimento, estou registrando para
você a frase com as palavras exatas daquele momento em que a
concebi: A órbita da Terra é a medida de todas as coisas;
circunscreva em torno dela um dodecaedro e o círculo que o
contém será o de Marte; circunscreva em torno [do orbe] de Marte
um tetraedro e o círculo que o contém será o de Júpiter;
circunscreva em torno [do orbe] de Júpiter um cubo e o círculo
que o contém será o de Saturno. Agora, inscreva dentro [do orbe]
da Terra um icosaedro e o círculo nele contido será o de Vênus;
inscreva dentro [do orbe de] de Vênus um octaedro e o círculo
nele contido será o de Mercúrio. Agora você tem a explicação do
número de planetas. Tais foram a ocasião e o sucesso dos meus
esforços. Nunca será possível exprimir em palavras a intensidade
do meu prazer por esta descoberta. Não lamentei mais pelo
tempo perdido. Os cálculos me consumiram dia e noite, para ver
se essa idéia concordaria com as órbitas de Copérnico ou se
minha alegria seria levada pelo vento. Em poucos dias tudo
estava funcionando e pude observar como um corpo [poliedro]
após outro se ajustava exatamente no seu lugar entre os
planetas.”
131
Apesar do relato emocionado sobre esta descoberta, os resultados não
se “encaixavam” tão bem quanto Kepler previa, ou melhor, gostaria. A razão
entre o raio do orbe de Vênus e o de Mercúrio era menor do que se esperava,
e a razão entre o raio de Saturno e o de Júpiter, muito maior. As proporções
calculadas para os outros planetas pareciam estar de acordo e confirmar, com
erros de no máximo 5%, a hipótese de Copérnico.
Tabela I - Razões das órbitas planetárias adjacentes
132
130
Precursor dos Trabalhos Cosmográficos contendo o Mistério Cósmico das admiráveis
proporções entre as Órbitas Celestes e as verdadeiras e corretas razões dos seus números,
Grandezas e Movimentos Periódicos”, tradução encontrada em A. Koestler, op. cit., p. 168;
131
J. Kepler apud. O. Gingerich, op. cit., p. 290b;
132
Modificado de O. Gingerich, op. cit., p. 291a;
69
Planeta mais
externo
Poliedro que
se encaixa
entre os orbes
Planeta mais
interno
Cálculo de
Kepler para a
razão entre os
raios dos
orbes*
Valores que
estariam de
acordo com
Copérnico
Saturno
Cubo Júpiter 577 635
Júpiter
Tetraedro Marte 333 333
Marte
Dodecaedro Terra 795 757
Terra
Icosaedro Vênus 795 794
Vênus
Octaedro Mercúrio 577 ou 707 723
* adotando o valor 1000 para o raio do orbe interno
Kepler entendia que a discordância entre as suas previsões e os dados
de Copérnico não tornava sua hipótese errada. Como havia se tornado um
especialista no modelo copernicano, conhecia igualmente seus pontos fortes e
fracos. Sabia, por exemplo, que os dados de Copérnico foram computados
tendo como referência central o orbe da Terra, e não o centro do Sol como
proposto em sua própria teoria.
“Embora Kepler ficasse célebre pela concepção do sistema planetário centrado
no Sol, ele era bastante crítico quanto ao sistema matemático que Copérnico
desenvolveu. Os textos de Kepler salientavam repetidamente que Copérnico,
após o seu primeiro passo arrojado, a transposição do Sol e da Terra, ficara
muito perto de Ptolomeu ao explanar os pormenores do seu sistema.”
133
Com a ajuda de Mästlin, Kepler recalculou as posições dos planetas tendo o Sol como
centro, e como era de se esperar, os resultados foram bem diferentes.
“Mästlin chamou a atenção de Kepler para as afirmações de
Copérnico relatadas por Rheticus, as quais demonstravam que o
grande mestre estivera bastante consciente da insuficiência de
133
T. S. Kuhn, A revolução copernicana, p. 242;
70
informação sobre as quais desenvolvera e à qual ele atribuíra três
causas: primeiro, que algumas observações dos antigos não
tinham sido relatadas de forma honesta, mas modificadas para se
adequarem as suas teorias; segundo, que a região das estrelas
dos antigos poderia ter um erro de 10´ (minutos); e, terceiro, que
não havia nenhuma observação existente comparativamente
recente tais como as que Ptolomeu tinha tido ao seu dispor.”
134
Mesmo com a divergência entre a hipótese dos sólidos regulares e os
dados “não tão confiáveis” de Copérnico, o Mysterium Cosmographicum tem
um grande valor para a Astronomia: segundo J. L. E. Dreyer no seu livro A
History of Astronomy from Thales to Kepler, Kepler consegue com grande
lucidez, logo no primeiro capítulo, demonstrar as razões para se abandonar o
sistema ptolomaico em favor do copernicano.
“Por meio de dois diagramas, ele [Kepler] mostra que os epiciclos ptolomaicos
dos planetas externos são vistos exatamente do mesmo ângulo da Terra da
mesma forma como a órbita da Terra é vista de um ponto qualquer em cada
uma das órbitas dos planetas externos, e mostra também como isto explica o
fato de Marte ter um epiciclo tão grande, enquanto Júpiter tem um epiciclo
pequeno e Saturno um menor ainda, embora seus excêntricos sejam maiores
que de Marte.”
135
Mas como Paolo Rossi afirma na sua obra O nascimento da ciência
moderna na Europa,
“a finalidade principal do Mysterium Cosmographicum não é
defender Copérnico, mas sim demonstrar que, na criação do
mundo e na disposição dos céus, Deus “olhou para aqueles cinco
corpos regulares que gozaram de tão grande fama desde os
tempos de Pitágoras e de Platão, concedendo à sua natureza o
número, a proporção e as relações dos movimentos celestes”
136
.
Não só isso: Kepler atribuiu ao Sol o motivo dos movimentos dos
planetas. Na cosmologia kepleriana, o Sol é responsável pela força que anima
134
J. L. E. Dreyer, A history of astronomy from Thales to Kepler, p. 378;
135
Ibid., p. 373;
71
esses astros. Os planetas mais próximos possuem os menores períodos de
revolução, pois são mais influenciados por esta ação do Sol – e os mais
distantes possuem os maiores períodos de revolução, portanto são mais lentos.
Essa conclusão em particular é vista pelos historiadores da ciência como um
importante passo rumo à nova concepção científica, uma vez que associa uma
explicação física a uma constatação astronômica.
Para nós, nesta dissertação, essa idéia é de vital importância, pois
impulsionou Kepler a procurar uma relação exata entre os períodos de
revolução dos planetas e as suas distâncias em relação ao Sol. Como
sabemos, Kepler precisaria de mais vinte anos de pesquisas sobre o seu
próprio modelo para publicar corretamente, em 1619 no Harmonices Mundi, a
relação conhecida como “terceira lei de Kepler”, mas a sua primeira tentativa é
feita no Mysterium Cosmographicum. Em suas palavras: “a maior distância do
Sol atua duas vezes para aumentar o período e, inversamente, metade do
aumento do período é proporcional ao aumento da distância”
137
. Podemos
reescrever a citação acima na linguagem matemática atual da seguinte
maneira:
Equação 1: Relação entre as distâncias dos planetas e seus períodos no
Myseterium Cosmographicum. Na equação, R simboliza a distância do planeta
em relação ao Sol e T, o seu período de revolução.
136
P. Rossi, O nascimento da ciência moderna na Europa, p. 134;
137
Kepler apud. J. L. E. Dreyer, op. cit., p. 379;
1
2
2
1
2
1
1
2
2
1
T
T
R
R
T
T
R
R
=
=
72
Como nos relata Caspar, o trabalho de Kepler foi analisado por vários
pensadores da época, uma vez que o próprio Kepler se encarregou de distribuir
cópias do Mysterium Cosmographicum. As reações a essa obra foram as mais
diversas. Como era de se esperar, Michael Mästlin o apoiou completamente. O
professor Johannes Praetorius de Altdorf, por outro lado, desaprovou sua obra.
“Em sua opinião, estas coisas [causas dos movimentos] pertenciam à física,
não à astronomia, na qual, como uma ciência prática, não se obtém proveito de
tais especulações”
138
. Georg Limnäus, professor em Jena, ficou muito feliz ao
ler uma obra que revivia a arte platônica de se filosofar. “Galilei, que viu o livro,
escreveu a Kepler parabenizando-o pela sua adesão ao copernicanismo. Mas,
com toda a probabilidade, ele ainda não tinha lido o livro.”
139
Tycho Brahe, sem
sombra de dúvidas um dos mais importantes astrônomos de sua época,
enviou-lhe uma longa carta expressando sua opinião, balanceando
cuidadosamente críticas positivas e negativas.
Embora discordasse do movimento da Terra no sistema copernicano,
Tycho Brahe viu na obra de Kepler o potencial argumentativo e matemático do
jovem mathematicus. Kepler, por sua vez, desejava aperfeiçoar o seu modelo
por meio de dados mais confiáveis – e o astrônomo dinamarquês dispunha dos
melhores instrumentos de observação. “Após deixar a Dinamarca e se
estabelecer na Boêmia como matemático imperial, Brahe ofereceu a Kepler um
emprego de assistente”
140
. Surge aqui uma parceria que expandiria ainda mais
os horizontes astronômicos.
138
M. Caspar, op. cit., p. 69;
139
P. Rossi, op. cit., p. 136;
73
2.9 Tycho Brahe
Assim como Michael Mästlin, Brahe merece, nesta dissertação, um lugar
de destaque, pois também foi muito influente na vida e na obra de Kepler.
Tycho Brahe (1546 – 1601) estudou na Universidade de Copenhague,
mas não para se tornar astrônomo – era do interesse da família que seguisse
carreira político-administrativa –, porém, ao contemplar um eclipse solar parcial
em 21 de agosto de 1560, ficou impressionado com a capacidade dos
matemáticos e astrônomos de prever tal fenômeno. Decidiu então estudar
astronomia por conta própria. De posse de exemplares do Tábuas Afonsinas e
das Prutenicae tabulae coelestium motuum (Tábuas Prussianas), Tycho
observou a conjunção de Saturno e Júpiter em 1563. Diante das diferenças
entre suas observações e os números publicados nas tabelas, motivou-se a
aprimorar os dados astronômicos por meio da observação. Gozando de uma
herança deixada pelo tio falecido, Brahe comprou livros e instrumentos
astronômicos em suas viagens pela Europa:
“dispunha de um exemplar das Efemérides de Stadius, baseadas
nas Tábuas prussianas, logo, no heliocentrismo, e, sinal de suas
preocupações observacionais, não se contentou com essas
Efemérides; adquiriu também Tábuas Afonsinas, as próprias
Tábuas prussianas e as Efemérides de G. B. Carellus. (...) Desde
1564, Tycho adquirira em Leipzig uma balestilha cujo grande
braço tinha um metro de comprimento (...). Cinco anos depois, em
1569, Tycho começou a construir seus próprios instrumentos:
primeiro, um meio-sextante de madeira, cujo raio ultrapassava um
metro e meio.”
141
Em 1572, Tycho Brahe observou aquilo que viriaa a se tornar uma das
suas maiores contribuições para a astronomia no século XVI. A noroeste da
140
P. Rossi, op. cit., p. 137;
74
constelação de Cassiopéia surgira uma “nova estrela”. Apesar do célebre
Michael Mästlin e Thomas Digges também terem visto e deduzido que tal brilho
era de fato de uma estrela, foi Brahe que por dezoito meses observou e
acompanhou o seu movimento no céu, e que publicou, em 1573, suas
conclusões na obra De stella nova.
O objetivo principal da observação sistemática dessa “nova estrela” era
verificar, através da medição da paralaxe, se o fenômeno era relativo ao mundo
sublunar, como no caso dos arco-íris e meteoros
142
, ou do mundo supralunar,
ambiente dos planetas e da esfera das estrelas. Um astrônomo puramente
aristotélico não se preocuparia tanto como o novo evento, uma vez que, para
Aristóteles, os céus são imutáveis. Porém, a conclusão apresentada pelos três
astrônomos era a mesma e contundente: não havia paralaxe detectável, por
isso, era um evento do mundo supralunar.
Tycho Brahe classificou essa descoberta como a “fundação do
renascimento da Astronomia”
143
, mas não pelo fato de que essa “nova estrela”
desmentiria o modelo aristotélico, mas porque possuía dados suficientes para
confirmar suas conclusões. Como nos conta Verdet,
“o fato de Tycho Brahe julgar que a nova estrela era um milagre
enfraquecia a sua conclusão: aliás Maestlin, que chegara às
mesmas conclusões, não deduziu daí que o “milagre” pudesse
refutar a cosmologia de Aristóteles. De fato, desse ponto de vista,
uma estrela nova não punha em risco a imutabilidade dos céus,
como a ressurreição de Lázaro não faria duvidar da mortalidade
humana. (...) Cinco anos depois, a aparição de um cometa dará a
141
J-P. Verdet, op. cit., pp. 97-8;
142
No século XVI os astrônomos achavam que os cometas eram fenômenos do mundo
sublunar. Tycho Brahe também estudou os cometas e concluiu que se tratavam de corpos
celestes do mundo supralunar. Sobre esse tema, Cibelle Celestino Silva escreveu um artigo
bastante interessante intitulado “A natureza dos cometas e o “escorregão” de Galileu” na
Revista Scientific American Brasil: Os grande erros da ciência: 20-5;
143
Tycho Brahe apud M. B. Hall, The Scientific Renaissance 1450 – 1630, p. 111;
75
Tycho a oportunidade de renovar sua exploração observacional e
iconoclasta”.
144
A fama obtida por meio da publicação do De Stella Nova ajudou Tycho
Brahe a continuar sua prática empírica. Frederick II, rei da Dinamarca, ofereceu
ao astrônomo todo o feudo da ilha de Hveen. Lá ele mandou construir o castelo
de Uraniborg, com observatórios e oficinas para a confecção de grandes
instrumentos astronômicos.
Em Uraniborg, Brahe foi capaz de catalogar mais de 700 estrelas,
mapear os movimentos do Sol, da Lua e dos planetas, além de apurar as
medidas das posições dos astros até o limite da precisão do olho humano por
meio de novas técnicas que ele mesmo desenvolveu. Também acompanhou a
passagem de seis cometas, sempre concluindo que se tratava de eventos
ocorridos acima da esfera da Lua. Mais do que isso,
“tentando determinar suas trajetórias, concluiu que esses corpos
celestes se moviam ao redor do Sol em percursos alongados, que
pensou serem ovais. Além disso, verificou que eles chegavam a
distâncias próximas ao Sol, depois se afastavam muito – o que
era incompatível com a idéia de que existiam, no céu, esferas
transparentes que transportavam os astros”.
145
Essa conclusão se tornou o segundo e decisivo golpe contra suas
crenças em alguns tópicos da cosmologia aristotélica. Como descreveu na sua
obra De Mundi Aetherei Recentioribus Phaenomenis de 1588:
“Não há realmente nenhum orbe [esferas] no Céu... estes, os
quais os Autores [filósofos] inventaram para salvar as aparências,
só existem na imaginação, de forma que os movimentos dos
planetas em suas trajetórias devem ser compreendidos pelo
intelecto, e podem ser (depois de uma interpretação geométrica)
144
J-P. Verdet, op. cit., p. 108;
145
C. C. Silva, “A natureza dos cometas e o escorregão de Galileu” in Revista Scientific
American Brasil: Grandes erros da Ciência, p. 25;
76
resolvidos pela aritmética na forma de números. Deste modo,
parece em vão empreender o trabalho de tentar descobrir o
verdadeiro orbe ao qual o cometa deve estar associado, para que
girem juntos. Esses filósofos modernos concordam com a crença
quase universal da antiguidade que assegurava como certo e
irrefutável que os céus estavam divididos em vários orbes de dura
e impenetrável matéria, de modo que as estrelas [astros] estão
forçados a girar com elas. Mas mesmo se não existisse nenhuma
outra evidência, os próprios cometas poderiam nos convencer de
forma lúcida que esta opinião não corresponde à verdade. Pois os
cometas por muitas vezes já foram discernidos, como resultado
da maioria das observações e demonstrações, ao completar seus
trajetos no mais elevado Éter, e não podem, forma alguma, ser
arranjados ao redor de nenhum outro orbe.”146
Se as esferas de cristal (orbes) não podem mais existir, o que está
sustentando os planetas e as estrelas, o Sol e a Lua no mundo supralunar?
Interessado por essas questões, Brahe elaborou e publicou na obra
anteriormente citada um modelo de universo que, segundo ele, era compatível
com a Física e a Matemática conhecidas, bem como com as Sagradas
Escrituras. Tycho Brahe era contra o modelo de Copérnico, principalmente no
que diz respeito ao movimento da Terra. A constatação do movimento dos
cometas independente de um condutor era mais um fator contra a hipótese
copernicana, uma vez que nesse modelo, a Terra e os outros astros eram
movidos pelos seus orbes.
“Dados de confiança, extensos e atualizados são a primeira
contribuição de Brahe para a solução do problema dos planetas.
Mas ele tem outro papel e maior na Revolução Copernicana como
autor de um sistema astronômico que rapidamente substituiu o
sistema de Ptolomeu como ponto de reunião para aqueles
astrônomos eficientes que, como o próprio Brahe, não podiam
aceitar o movimento da Terra.”
147
146
T. Brahe apud M. B. Hall, op. cit., p. 114;
147
T. S. Kuhn, op. cit., p. 234;
77
Na sua hipótese, Saturno, Júpiter e Marte giram ao redor do Sol (central)
num movimento anti-horário, em grandes órbitas. Vênus e Mercúrio também,
mas em órbitas menores, mais próximas do Sol do que da Terra. O Sol, por
sua vez, gira em uma órbita centrada na Terra, carregando consigo os planetas
já descritos. No sistema ticônico (como ficou conhecido), como a Terra não
possui movimento, todo o resto do arranjo deveria circular ao redor dela em
apenas um dia, para explicar o “movimento diário da esfera celeste”.
Brahe acreditava que seu sistema estava livre dos erros que havia
encontrado tanto no sistema copernicano como no ptolomaico. Porém, a
análise do seu modelo levantava outras questões que não existiam
anteriormente, como por exemplo, o fato da órbita de Marte interceptar a órbita
do Sol: não poderiam estes dois astros se chocar?
Embora prometesse que em sua próxima obra apresentaria detalhes
mais acertados do seu sistema, isso nunca veio a acontecer. Tycho Brahe não
tinha conhecimento matemático suficiente para solucionar os problemas que
seu modelo apresentaria. Apesar de ser o retentor dos dados mais precisos de
sua época, não possuía a habilidade teórica de manejá-los a favor de seu
sistema. Por ser um astrônomo renomado, seu modelo cativou muitos
astrônomos que também discordavam do “primeiro movimento” da teoria
copernicana, mas eram atraídos pela sua eficiência matemática.
Foi nesse ínterim que Tycho Brahe teve acesso ao Mysterium
Cosmographicum. Como vimos, Kepler sabia muito bem manipular os dados
empíricos em função de suas hipóteses. Em 1599, agora como Matemático
Imperial de Praga, Brahe convidou Kepler para fazer parte de sua equipe.
78
Estava assim determinada uma parceria que duraria até 1601, com a morte de
Tycho Brahe.
2.10 Mudança de rumos II: vida em Praga
Enquanto Brahe recebia total apoio do imperador Rodolfo II em Praga
para continuar suas atividades de pesquisa astronômica, Kepler vivia um
momento de crise em Graz. As mudanças impostas pela Contra-Reforma
católica, na figura do arquiduque Ferdinando de Habsburgo (1503 – 1564) (que
em seguida se tornaria Imperador Ferdinando II), culminaram no fechamento
da Universidade de Graz. Apesar das suas boas relações com o próprio
arquiduque e com o chanceler da Bavária, Herwart von Hohenburg, Kepler
sabia que deveria procurar um novo lugar para continuar seu trabalho.
Resolveu então responder ao convite de Tycho Brahe, feito em 1599.
Em 4 de fevereiro de 1600, Tycho Brahe e Johannes Kepler finalmente
se conheceram pessoalmente. Brahe confiou a Kepler o estudo da órbita de
Marte, o planeta mais difícil de ser analisado segundo o modelo ticônico. Mas
determinar as características da órbita de Marte não era o objetivo real de
Kepler: o motivo pelo qual ele havia se associado ao astrônomo dinamarquês
era a qualidade e quantidade dos dados empíricos coletados pelo mesmo em
muitos anos de observação dos céus. Kepler tece os seguintes comentários
sobre Brahe em dois momentos distintos. Antes de conhecê-lo:
“Calemo-nos e ouçamos Ticho, que dedicou trinta e cinco anos às
observações... Somente por Ticho é que eu espero; ele me
explicará a ordem e a disposição das órbitas... Espero, então, um
dia, se Deus me der vida, erguer um admirável edifício.”
148
,
e após iniciar os trabalhos com ele:
148
J. Kepler apud A. Koestler, op. cit., p. 190;
79
“Ticho possui as melhores observações, e, por assim dizer, o
material para a construção do novo edifício; possui também
colaboradores e tudo quanto deseja. Falta-lhe apenas o arquiteto
capaz de pôr tudo isso em uso, em conformidade com o seu
projeto, porque, apesar de dispor de uma feliz inclinação e
verdadeira habilidade arquitetural, está obstaculizado no
progresso pela multidão dos fenômenos e pelo fato de se
encontrar a verdade profundamente oculta neles. Agora, a velhice
o persegue, enfraquecendo-lhe o espírito e as faculdades.”
149
A tarefa de determinar a órbita real de Marte levou mais tempo do que
Kepler esperava e a relação entre os dois astrônomos começou a ficar
fragilizada. Afora as discussões mais subjetivas (que não trataremos nesta
dissertação), Brahe sabia que Kepler não abriria mão de defender o sistema
copernicano em favor do seu próprio e, por isso, dificultou-lhe o acesso aos
dados. De mais a mais, eles divergiam na forma de elaborar suas teorias
astronômicas: Johannes Kepler, até então, elaborava uma astronomia a priori,
ou seja, suas hipóteses eram confirmadas ou refutadas pelos dados
observados, enquanto Tycho Brahe dedicava-se a uma astronomia a posteriori,
ou seja, a teoria era modelada a partir dos dados coletados em suas
observações. O problema de Marte ajuda a explicar essa consideração:
“Quando Kepler se juntou a Tycho no castelo de Benatky
(fevereiro de 1600), Marte acabara de entrar em oposição ao sol,
e uma tabela de oposições com observações feitas desde 1580
havia sido preparada; uma teoria também havia sido desenvolvida
e representava muito bem as longitudes em oposição, com erros
de apenas 2 minutos de arco. Mas as latitudes e as paralaxes
anuais não podiam ser representadas pela teoria, e Kepler
começou a cogitar se a idéia não estaria, afinal, errada, ainda que
predissesse tão bem as longitudes de oposição. Havia alguns
aspectos particulares da teoria com os quais Kepler discordava.
Em primeiro lugar, Tycho tinha submetido, assim como
Copérnico, o movimento dos planetas a um ponto próximo do sol.
Kepler rejeitou essa idéia no seu livro, pois inferia um movimento
ao redor de um ponto matemático em vez do grande astro sol.
149
Ibid., p. 208;
80
Mas também havia uma objeção de ordem prática a esse
princípio. O tempo havia sido deduzido das observações das
oposições – quando Marte diferia em 180
o
da longitude média do
sol –, e foi preciso supor, portanto, que o movimento do sol (ou
melhor, da terra) fosse uma quantidade conhecida”
150
,
Conforme J. L. E. Dryer apresenta, é possível concluir que Brahe não
iria desfazer-se de cerca de vinte anos de observações sistemáticas em favor
de uma idéia pré-concebida. Seguir a hipótese de Kepler significaria recalcular
todo o conjunto de informações, correndo o risco de se perder a conformidade
das longitudes. Antes de ser uma disputa idiossincrásica, o enfrentamento é
uma demanda filosófica.
Após o falecimento de Tycho Brahe, Kepler teve acesso
151
a todas as
informações coletadas pelo astrônomo dinamarquês e, com elas, produziu
mudanças significativas no pensamento astronômico da época que duram até
os dias atuais. Kepler parecia ter certeza de que era realmente o “arquiteto”
predestinado a construir o “edifício” da Astronomia.
2.11 Astronomia nova
Marte ainda era um problema a ser solucionado. Nenhum sistema de
mundo até então conhecido dava conta de explicar com exatidão o movimento
deste planeta. Brahe havia feito uma série de observações especiais para
tentar, a posteriori, elucidar essa questão com seu modelo. Não conseguiu.
Kepler tentou de várias formas conciliar a órbita de Marte com o referencial
150
J. L. E. Dryer, op. cit., p. 380;
151
É fato que Kepler teve acesso aos dados de Tycho Brahe, mas não foi fácil obtê-los, uma
vez que o direito do uso das informações coletadas passou a ser da família, como acontece
com as heranças. Foi preciso que o próprio Imperador Rodolfo II interviesse na questão,
adquirindo da família tanto os dados, assim como os instrumentos. Kepler também se
81
terrestre, assim como exigia o modelo ticônico. Por mais que tentasse
encontrar um conjunto de círculos que “salvasse os fenômenos”, os resultados
obtidos apontavam erros superiores àqueles que Kepler considerava dignos de
fazer jus ao trabalho de Tycho Brahe.
“Desenvolver a teoria de Marte significava, conseqüentemente,
calcular a posição da linha das apsides
152
e o valor da
excentricidade. Como o círculo é definido por três pontos, para
resolver este problema era necessário conhecer três pontos da
órbita desse planeta. Esses pontos foram obtidos nas
observações da oposição, porque (para usar as palavras de
Copérnico), na oposição, é indiferente ter o observador em uma
terra em movimento ou em um sol estacionário, visto que, nessa
configuração, planeta, terra e sol situam-se em uma linha reta.
Tycho Brahe tinha um conjunto de dez dessas oposições de
Marte dos anos de 1580 a 1600 (mais tarde em 1602 e 1604,
Kepler adicionou mais duas). (...) Naturalmente o resultado tinha
que ser o mesmo a cada tentativa – sem importar qual grupo de
três oposições era tido como base – se e somente se as
hipóteses do formato da órbita e do tipo de movimento
estivessem corretas.”
153
A revisão do modelo inicial parecia ser a solução mais indicada: “de
todos os planetas observáveis (...), Marte é o que tem a órbita mais excêntrica;
aliás, é devido a essa particularidade que a descrição de seu movimento por
combinações de movimentos circulares é tão difícil.”
154
Como já discutimos
anteriormente, os movimentos dos planetas deveriam sempre ser circulares e
uniformes, ou seja, de acordo com a física aristotélica. Revisar o modelo inicial
significa, portanto, repensar forma e princípio: talvez as órbitas não devessem
comprometeu a utilizar os dados não em benefício próprio, mas para engrandecer o trabalho de
Brahe.
152
A linha de apside é a linha que passa pelos pontos de máxima aproximação e afastamento
de um planeta em relação ao Sol;
153
M. Caspar, op. cit., p. 126;
154
J-P. Verdet, op. cit., p. 118;
82
ser necessariamente circulares, nem as velocidades dos planetas constantes,
talvez ambas as considerações devessem ser notadas.
Mas, lembremos o que aconteceu com Copérnico – mudar um
paradigma implica também em substituí-lo completamente, ou sofrer as
conseqüências. Kepler, no Mysterium Cosmographicum, já tinha atribuído ao
Sol uma propriedade elementar: a de ser a alma motora dos planetas
155
.
Portanto, com as órbitas centradas no Sol (e não num ponto geométrico como
propuseram Copérnico e Brahe – o Sol mediano), os planetas teriam suas
velocidades alteradas quando estivessem mais perto (aumento da velocidade)
ou mais afastados (diminuição da velocidade) dele. Seria o fim da
obrigatoriedade da uniformidade do movimento no éter? Quais argumentos
teóricos sustentariam essa idéia?
Em 1600, William Gilbert publicou De Magnete, uma obra sobre a
propriedade dos ímãs baseado em observações e experiências que ele próprio
fizera. Nessa obra, Gilbert comparou a Terra a um imenso ímã, com um pólo
norte e um pólo sul, e explicou por que as bússolas não apontavam de maneira
precisa para o Norte. “Em sua descrição, a Terra era um ímã e o magnetismo
era mais bem compreendido se concebido como uma força animista.”
156
Essa
idéia animou Kepler, que elegeu a força magnética, oriunda do Sol, a
responsável pelo movimento de todos os planetas.
Dessa forma, Kepler introduziu uma concepção física nos conceitos
astronômicos – exatamente o que se esperava de Copérnico. Em seu
benefício, essa análise não feria como um todo a física aristotélica, uma vez
155
Cap. I, p. 49;
156
A. G. Debus, op. cit., p. 162;
83
que, em Aristóteles, a força é proporcional à velocidade. “Para explicar por que
razão estes [planetas] não giram todos à mesma velocidade como os raios de
uma roda, invoca a inércia, que é distinta para cada planeta e que faz com que
eles se atrasem mais ou menos em relação à velocidade de rotação do Sol.”
157
Cabe aqui explicarmos a questão da inércia para Kepler. Para tanto,
utilizaremos as palavras de Koyré:
“A inércia kepleriana, como bem se sabe, é algo muito diferente
da inércia da [atual] física clássica. A inércia kepleriana exprime a
resistência do corpo grave ao movimento (e não ao seu pôr-se
em movimento ou aceleração), a sua tendência natural para o
repouso. E assim – graças à inércia –, todo o movimento implica
um motor, e privado deste, acaba por se consumir e por
desaparecer. A persistência eterna de um movimento – qualquer
que seja – é inconcebível para Kepler. A inércia, resistência
interna ao movimento, desempenha na física de Kepler um papel
análogo àquele que a resistência externa do meio desempenha
na de Aristóteles; assim, Kepler estima que se os corpos não
fossem dotados de inércia, o movimento seria instantâneo.”
158
Nesse ponto, Kepler é inovador em relação à física aristotélica, pois não
relaciona o estado de repouso de um corpo com o seu “lugar natural”. Assim, a
divisão dos movimentos (naturais ou violentos do mundo sublunar e naturais
uniformes do mundo supralunar) não cabem nem na física, nem na cosmologia
de Kepler.
Se Kepler viu no Sol uma solução para a variação da velocidade dos
planetas, restava-lhe ainda encontrar a melhor forma para as órbitas. Sabemos
que Kepler era um excelente matemático e habilidoso com os números. Em
suas tentativas, estabeleceu um método de verificação que consistia em medir
a distância dos planetas em relação ao Sol em pontos específicos de sua
157
Y. Gingras, P. Keating e C. Limoges, Do Escriba ao Sábio: os Detentores do Saber da
Antiguidade à Revolução Industrial, p. 212;
84
órbita. O somatório dessas distâncias correspondia ao tempo empregado pelo
planeta para percorrer sua órbita.
“Ele dividiu metade da órbita circular começando de um apside
até 180
o
, calculou a distância até o sol de cada um desses
pequenos arcos graduados (fazendo com que o semi-diâmetro
(raio) da órbita fosse igual a um) e somou esses 180 números.
Esta soma forneceu a ele o intervalo de tempo que leva a Terra
para completar metade de sua órbita. Se ele quisesse calcular o
tempo gasto pela Terra para percorrer 50
o
a partir do apside, ele
somava os 50 primeiros valores de distância. A razão, portanto,
dessa soma em relação à anterior é a mesma que a do tempo
transcorrido até a metade do período de revolução”
159
.
Tal cálculo era demasiadamente extenso e cansativo. Na procura por
um atalho, Kepler lembrou-se de um trabalho de Arquimedes
160
e substituiu o
somatório das distâncias pela área correspondente, que era mais simples de
ser calculada. Estava lançada a base do que conhecemos hoje como “Segunda
Lei de Kepler” ou “lei das áreas”: o raio vetor descreve áreas iguais em tempos
iguais.
Este procedimento trazia bons resultados para a órbita da Terra (para a
precisão da época), mas só um planeta com grande excentricidade como Marte
poderia confirmar se a substituição do somatório pela área seria válida. Seria
preciso, mais uma vez, rever as hipóteses originais.
Definitivamente, a órbita de Marte não poderia ser uma circunferência. A
equação da circunferência pode ser obtida através do conhecimento de três
pontos, como vimos anteriormente. Porém, ao substituir qualquer um dos três
158
A. Koyré, Estudos Galilaicos, p. 231;
159
M. Caspar, op. cit., p. 132;
160
“Desde que eu estive ciente do fato de que há uma infinidade de pontos numa órbita e
consequentemente infinitas distâncias, pensei que todas essas distâncias estão contidas no
plano da órbita. Lembro-me que uma vez Arquimedes também dividiu o círculo em infinitos
triângulos da mesma maneira porque ele tentou encontrar a razão entre a área da
circunferência e o diâmetro” in Kepler apud M. Caspar, op. cit., p. 132;
85
dados necessários por outro, Kepler obtinha uma equação diferente, ou seja,
uma circunferência diferente. Resolveu focar seu esforço nos dados de afélio e
periélio: determinando a distância da linha das apsides, era possível encontrar
o raio da órbita do planeta e com ele calcular a área de acordo com sua última
conclusão. Os resultados encontrados não eram favoráveis às suas hipóteses.
Kepler não mediu esforços para encontrar a forma real da órbita do
planeta vermelho: recalculou posições, testou os dados em algumas formas
ovais, obteve novos dados de observação, e até cogitou utilizar-se de um
epiciclo para solucionar esse complicado enigma. Chegou a escrever para um
amigo o seguinte comentário: “Se a órbita fosse somente uma elipse, o
problema já teria sido resolvido por Arquimedes e Apolônio”
161
. Mas não seria
bem assim. Após muitas idas e vindas, Kepler conseguiu descrever a órbita de
Marte por meio de uma elipse matematicamente correta e generalizou sua
descoberta ao afirmar, como atualmente conhecemos como “Primeira Lei de
Kepler”, que os planetas descrevem trajetórias elípticas tendo o Sol em um dos
focos.
Todas essas considerações formam o Astronomia Nova
αιτιολογητοζ
seu Physica Coelestis, tradita commentariis de Motibus stellae Martis (1609).
Composta por setenta capítulos, essa obra apresenta não só as suas idéias de
uma Astronomia em harmonia com a Física, mas a longa e penosa trajetória
que teve de percorrer para, entre outros, cumprir com a promessa que fez a
Tycho Brahe de usar os seus dados a favor de seu modelo, discutindo também
161
M. Caspar, op. cit., p. 133;
86
os modelos de Copérnico e o de Ptolomeu, além de tratar das suas próprias
concepções de universo.
2.12 Do Astronomia Nova ao Harmonices Mundi: entreato
Muito aconteceu na vida de Kepler no período que se estende da
publicação do Astronomia Nova ao Harmonices Mundi. Relatar aqui todos os
acontecimentos significativos seria impossível. Portanto apresentaremos os
que consideramos mais importantes.
Com o falecimento de Tycho Brahe (1601), Kepler assumiu o posto de
matemático imperial em Praga. Para poder apossar-se dos dados de seu
mestre, Kepler precisou comprometer-se com a família de Brahe a completar e
publicar a obra iniciada por ele, o Tabulae Rudolphinae. Isso só viria a
acontecer no ano de 1627.
“As novas tabelas planetárias, o Tabulae Rudolphinae, na qual
Kepler trabalhou por tantos anos, foram publicadas em 1627 em
Ulm, sendo impressas sob a supervisão pessoal de Kepler, que
deixara Linz para Ulm no final do ano anterior. É peculiar da
nobre mente do autor que ele exprima, na primeira página, que as
tabelas contêm a restauração da astronomia, concebida e
conduzida “a Phoenice illo astronomorum TYCHONE
162
163
.
Mesmo determinado a encontrar a forma exata da órbita dos planetas e
outros mistérios do universo, Kepler também se ocupou de outros assuntos –
todos relacionados com a astronomia. Para acompanhar o eclipse solar de 10
de julho de 1600, construiu seus próprios instrumentos e realizou desenhos
com o auxílio de uma câmera escura de orifício. Apesar de serem estudados
desde a Antigüidade, os eclipses solares e lunares ainda não estavam
162
Pode ser assim interpretado: na figura única do astrônomo Tycho Brahe;
87
totalmente elucidados, tanto que o próprio Tycho Brahe negara a possibilidade
da ocorrência de eclipses solares totais.
“As muitas observações cuidadosamente reunidas por Kepler,
tanto da literatura clássica quanto dos relatos contemporâneos,
ou não se correspondiam com freqüência ou não estavam de
acordo com os cálculos no que se refere à passagem do tempo e
ao tamanho do obscurecimento, conforme o grau exigido por uma
boa teoria. Poderia haver várias razões para essas discordâncias.
Elas poderiam originar-se do fato de que os valores numéricos
em que se basearam os cálculos de tamanho e distâncias dos
dois corpos celestes eram inexatos, ou do fato de que o
fenômeno dos movimentos do sol e da lua ainda não havia sido
dominado. A causa poderia, no entanto, também estar num
procedimento de observação demasiadamente rústico que não
levou em consideração certas circunstâncias externas e se
baseou excessivamente em estimativas em vez de métodos de
medição pesados.”
164
Kepler então se dedicou a estudar o fenômeno óptico da refração para
melhorar ainda mais a experiência da observação astronômica. Examinou com
cuidado a obra de Pólo Witelo (Vitellio) (1230c. – 1275c.), de 1270, na qual o
autor, conhecedor dos tratados ópticos de outros pensadores como Al-Hazem,
Ptolomeu e Euclides, trata dos temas de aspectos físicos da óptica e fisiologia
da visão. Suas conclusões foram publicadas no Ad Vitellionem Paralipomena,
quibus Astronomiae Pars Optica traditur (1604): entre elas, sua concepção
metafísica sobre a natureza da luz – modo pelo qual Deus forma todas as
coisas e lhes dá vida –, a compreensão que a intensidade da luz é
inversamente proporcional ao quadrado da distância, e a observação criteriosa
dos diâmetros aparentes dos corpos celestes e dos eclipses.
Em 1610, Kepler fora informado que em Pádua, Galileo Galilei (1564 –
1642) havia descoberto quatro novos planetas observando o céu por meio de
163
J. L. E. Dryer, op. cit., p. 404;
88
uma luneta. A notícia deixou Kepler ansioso por mais informações, uma vez
que, no seu Mysterium Cosmographicum, havia justificado a razão pela qual a
quantidade e a ordem dos planetas eram aquelas conhecidas.
Galileu havia realizado uma série de observações do céu com um “tubo
óptico” (luneta ou telescópio refrator) com capacidade de aumento de vinte
vezes. Com ela, foi capaz de verificar que a superfície da Lua era constituída
por crateras e montanhas; que inúmeras outras estrelas, invisíveis aos olhos
nus, apareciam próximas às estrelas conhecidas em seu campo de visão; e
que a Via-Láctea era constituída por um conjunto de milhares de estrelas. Mas
a principal descoberta de Galileu tratava-se da observação de Júpiter: ao longo
de uma semana, percebera que o planeta era circulado por quatro “outras
estrelas”, que batizou com o nome de “Medicea Siderea” em homenagem ao
Grão Duque de Toscana. A apresentação das suas observações são relatadas
na obra Sidereus Nuncius (1610).
Kepler, que já havia tentado estabelecer contato com Galileu na época
da publicação do Mysterium Cosmograficum, obteve uma cópia do Sidereus
Nuncius por meio do embaixador da Toscana, Juliano de Médicis. Em poucos
dias, escreveu uma carta conhecida como Dissertatio cum nuncio sidereo, na
qual dava apoio incondicional às descobertas feitas pelo astrônomo italiano e
aproveitava para relatar suas próprias experiências com os cálculos da órbita
de Marte e com a refração da luz.
“Não há dúvida (como você, Galileu, elegantemente infere) que
se há quatro corpos orbitando ao redor de Júpiter, enquanto este
segue um curso de 12 anos, não será absurdo o que disse
164
M. Caspar, op. cit., p. 143;
89
Copérnico: que há mesmo uma Lua que acompanha a Terra em
seu movimento anual”
165
.
Desta vez – treze anos depois da primeira tentativa de Kepler – Galileu
respondeu a essa carta agradecendo a iniciativa da defesa de suas
conclusões
166
. Mas foi só. Os dois astrônomos diferiam muito na sua forma de
pensar o Universo e, por mais que Kepler insistisse, Galileu mantinha-se
distante: “é claro que compartilhava com Kepler a fé no heliocentrismo, mas as
justificativas místicas, astrológicas e musicais da estrutura poliédrica do mundo
só o faziam pôr-se em guarda contra um espírito tão distante do seu”.
167
Indiretamente, por meio de amigos em comum, como Juliano de Médicis,
Kepler ainda soube que Galileu “descobrira”
168
os anéis de Saturno e que,
como a Lua, Vênus possuía fases.
Kepler também pôde fazer observações do céu com o uso de uma
luneta – emprestada pelo duque da Baviera, Ernst de Colônia. Ao longo de dez
dias, ele observou Júpiter e, no relatório de nome Narratio de Jovis satellibus
(1611), confirmou empiricamente as descobertas de Galileu. Mas a principal
contribuição de Kepler viria em seguida: Dioptrice, de 1611, obra na qual ele
165
J. Kepler, Dissertatio cum nuncio sidereo, p. 144;
166
Visualizar os céus com uma luneta não era tarefa simples: a luneta era um instrumento
relativamente novo, usado mais para se olhar os objetos na terra mesmo. Muitos daqueles que
eram convidados por Galileu a olhar pelo instrumento não conseguiam tirar proveito do mesmo.
“Um assistente de Magini disse a Kepler que tinha testado de diversas maneiras o instrumento
de Galileu fazendo observações do céu e de objetos terrestres. Chegara à conclusão de que,
na Terra, o aparelho era maravilhoso, mas que no céu era enganoso porque desdobrava as
estrelas. Por isso, na sua opinião, os satélites de Júpiter eram fictícios.” Y. Gingras, P. Keating
e C. Limoges, op. cit., p. 218;
167
J-P. Verdet, op. cit., p. 128;
168
Na verdade, Galileu acreditara que havia descoberto dois satélites de Saturno, como relata
num anagrama enviado para Kepler: smaismrmilmepoetaleumibunenugttaurias, ou melhor,
altissimum planetarum tergeminum observavi, ou seja, observei o mais alto planeta sob forma
tríplice. A descoberta das fases de Vênus também chegou a Kepler na forma de anagrama:
Haec immatura a me iam frustra legunturoy, ou melhor, Cynthiae figuras aemulatur mater
amorum, isto é, a mãe dos amores imita as formas de Cynthia.
90
explica matematicamente o funcionamento das lentes nos telescópios
refratores. Interessante registrar que, na época, os filósofos naturais se
interessavam mais pela reflexão dos espelhos esféricos que pelas imagens
deformadas conjugadas pelas lentes alongadas, isso porque, na obra de
bastante prestígio intitulada Magia naturalis (1589) de Giambattista della Porta,
o autor relata que as lentes só serviam àqueles que quisessem impressionar
um auditório com a ajuda de truques e artifícios. Aos filósofos naturais os
espelhos, aos mágicos, as lentes!
Ao contrário do que se possa imaginar, Kepler não se dedicava apenas
a uma obra de cada vez. Seus projetos eram muitos e a sua produção
incansável. Ao mesmo tempo em que se dedicou a completar as Tabulae
Rudolphinae (1627), publicou duas obras muito significativas: em 1619, o
Harmonice mundi librum V e, em 1621, o Epítome Astronomia Copernicae.
Neste último, Kepler dedicou-se a retratar o modelo copernicano de universo
de acordo com as próprias conclusões abordadas no Mysterium
Cosmographicum, Astronomia Nova e Harmonice mundi. Como sabemos, é no
Harmonice mundi que o objeto de estudo desta dissertação, a “terceira lei”, é
apresentado pela primeira vez. Vamos, portanto, a ele.
2. 13 Conclusão do Capítulo II
Após termos percorrido uma parte expressiva da biografia de Kepler,
precisamos condensar aqui certas particularidades da sua personalidade e do
seu trabalho, e relacioná-las com as características do período histórico para
que possamos continuar com a nossa investigação.
91
Kepler viveu num período marcado por transformações políticas, sociais,
religiosas, educacionais e científicas. Sua formação e produção intelectual
estão intrinsecamente ligadas ao pensamento de sua época – e esta é uma
época de transição. “Tradição e reforma”, “antigos e modernos”, “clássico e
novo” são termos antagônicos largamente usados pelos historiadores da
ciência na tentativa de caracterizar o Renascimento.
Seguramente é um período de incertezas: os modelos clássicos são
constantemente questionados e outras interpretações do mundo são
anunciadas. As novas informações – oriundas de diversas fontes, como a
releitura dos originais gregos, de análises matemáticas, de experimentações e
observações – não promovem uma ruptura definitiva com o pensamento
anterior, mas criam a instabilidade necessária para originar uma nova forma de
pensar.
O De Revolutionibus de Copérnico (uma reinterpretação filosófica,
religiosa e matemática do modelo de Ptolomeu), não conseguiu, sozinho,
decretar a nova ordem do mundo, mas desestabilizou o cenário da astronomia
e da física aristotélicas ao colocar o Sol como centro dos movimentos
planetários e a Terra em movimento. Tycho Brahe, astrônomo excelente e
publicamente contrário à hipótese copernicana do movimento da Terra,
também contribuiu para essa instabilidade ao analisar os movimentos dos
cometas, o surgimento de novas estrelas, e ao propor um modelo no qual os
planetas giram ao redor do Sol. Galileo Galilei, um copernicano comedido,
trouxe à tona quatro satélites que giravam ao redor de Júpiter e um novo
aspecto para a Lua, mas permaneceu fiel à física aristotélica ao manter a
92
hipótese dos cometas serem fenômenos atmosféricos e da existência dos
orbes celestes.
Eis um dos motivos de tanta incerteza: nesse período não há uma teoria
que explique conjuntamente a dinâmica dos céus e da Terra como fizera
Aristóteles. As novas cosmologias não trazem consigo uma nova física, e as
teorias acabam sendo apenas parcialmente aceitas pelos filósofos.
“Esta revolução conceitual [revolução astronômica] realizou-se
numa época em que o estatuto social do detentor do saber não
era diferente da Idade Média e podemos dizer que Copérnico e os
grandes astrônomos da geração seguinte, como Tycho Brahe e
Johannes Kepler, foram figuras de transição. Ganhando raízes no
quadro universitário medieval, mas influenciados pelo
neoplatonismo do Renascimento, os seus trabalhos destruíram o
cosmos ptolomaico sem todavia o conseguirem substituir por uma
nova ordem tão coerente como a que fora dada por
Aristóteles.”
169
Não haveria de ser diferente para Kepler: copernicano convicto,
justificou e reformou o modelo heliostático segundo as suas próprias
conclusões. Apesar de ter atribuído causas físicas a algumas de suas
hipóteses – por exemplo, a variação da velocidade dos planetas em suas
órbitas é justificada pela força que o Sol exerce sobre eles – e ter rompido com
a tradição do movimento circular uniforme dos corpos etéreos, recorreu
também à mística pitagórica e platônica dos sólidos regulares, bem como das
proporções harmônicas.
Essa forma de agrupar e relacionar teorias de diversas origens é uma
das características do Renascimento, o que faz de Kepler mais um
169
Y. Gingras, P. Keating e C. Limoges, Do Escriba ao Sábio: os Detentores do Saber da
Antiguidade à Revolução Industrial, p. 193;
93
representante do período, nem o melhor, nem o pior. Intriga-nos as palavras de
Maria Boas Hall:
“De todos os astrônomos do período pós-copernicano, o mais
difícil de estimar e apreciar é Johannes Kepler. Não foi um grande
astrônomo empírico – a visão deficiente poderia tê-lo impedido de
tentar – insistia, entretanto, na concordância justa entre a teoria e
a observação mais do que qualquer outro astrônomo anterior ao
seu tempo. Um calculador apaixonadamente devotado e um
místico matemático neoplatônico extremo: só se importava com
aquelas representações matemáticas dos céus que ofereciam a
possibilidade da interpretação por termos físicos. Místico e
racional, matemático e semi-empírico, ele constantemente
transformou aparentes absurdos metafísicos em relações
astronômicas da mais alta importância e originalidade.
Imensamente arrogante na sua convicção de que possuía a
chave certa para os mistérios do universo, e até mesmo para a
estrutura planejada por Deus no momento da criação, sempre
reconheceu sua dívida com os seus predecessores. Realizou
suas façanhas com a mais alta seriedade, e deixou uma
elaborada trilha de procedimentos pelos quais chegou às leis do
comportamento planetário, que levam seu nome e pelas quais é
lembrado; ainda que nunca as tivesse chamado de leis, nem
distinguido essas das outras, igualmente preciosas para ele,
grande parte das quais foram acertadamente esquecidas. Seu
melhor trabalho foi totalmente dependente das observações de
Tycho Brahe, além de ser um copernicano firme e decidido. Foi
um trabalhador prodigioso, autor de cerca de doze livros sobre
astronomia, óptica, matemática e religião, e, ao mesmo tempo,
administrou uma volumosa correspondência. Ainda que suas
teorias tivessem tido pouca influência sobre seus
contemporâneos, pois os trabalhos nos quais elas estavam
inseridas possuíam um estilo excêntrico para os mais capazes
astrônomos de sua época – homens cautelosos demais e que
muito desprezavam as noções ocultas e místicas e que, por essa
razão, não se dariam ao trabalho de analisá-las de forma
apropriada; e a geração dos copernicanos místicos como Digges
e Gilbert estava quase toda morta por volta de 1600 – antes, por
assim dizer, que Kepler tivesse feito qualquer contribuição real
para a astronomia teórica. Paradoxalmente, as idéias de Kepler
foram realmente apreciadas pela primeira vez pela geração
intensamente racional de cientistas que vieram após 1660, que
viram a possibilidade de aplicá-las ao sistema mecânico de
universo e as retiraram do contexto místico no qual Kepler as
inseriu.”
170
94
Apesar dessa excelente descrição do perfil intelectual e emocional de
Kepler, ela tenciona – no início e no final da sua descrição – deslocá-lo de seu
tempo e espaço. Perguntamo-nos: estaria Kepler, ao mesmo tempo, atrasado e
adiantado em relação aos seus contemporâneos? Atrasado, pois como a
autora sugere, foi um dos últimos copernicanos místicos a contribuir com a
astronomia do período. Adiantado, pois algumas de suas conclusões foram
apreciadas pela geração sucessora de pensadores que primavam pelo
racionalismo. Se empregarmos a lógica da autora, não estaria Kepler
justamente adiantado em relação aos copernicanos místicos de sua época por
ter conseguido reunir em seus trabalhos um maior número de evidências –
teóricas, empíricas, místicas e religiosas – que efetivamente fortaleceram a
hipótese de Copérnico em relação à astronomia e à física aristotélicas? Por
outro lado, não estaria Kepler atrasado em relação aos seus sucessores, pois
sua astronomia a priori precisava estar de acordo com o ideal pitagórico e
platônico de um Deus geômetra e bom?
Além das considerações feitas acima, podemos nos perguntar se Kepler
teria tido êxito no seu trabalho se não fosse por sua motivação mística e
religiosa. Que outros caminhos Kepler poderia ter trilhado para chegar às
mesmas conclusões? A “ciência moderna” é enfraquecida por ter como base as
conclusões provenientes do pensamento místico de Kepler? Ou ainda, cabe
aqui uma pergunta ainda mais primária: o que são, efetivamente, o
“pensamento místico” e a “ciência” nos séculos XVI e XVII?
Se a mística de Kepler teve origem no pensamento pitagórico e
platônico, ela era necessariamente fruto de seu tempo e de seu espaço. Se
170
M. B. Hall, op. cit., pp. 287-8;
95
durante a Idade Média o mundo ocidental dedicou-se a estudar Aristóteles, no
Renascimento, Platão foi redescoberto e, com ele, o neoplotanismo de Plotino,
as idéias de Santo Agostinho e outros autores medievais como Nicolau de
Cusa. Em comum, a crença na superioridade divina e o esforço de
compreendê-la na sua totalidade. Para tanto, era preciso ter liberdade religiosa
para que essas discussões tivessem sentido. Na Europa renascentista, isso era
mais presente nas cidades que adotaram o credo luterano que nas cidades
católicas. Portanto, é impossível deslocar Kepler do seu tempo e do seu
espaço. Se a “ciência” no Renascimento apresentou-se nas tentativas de
retratar o mundo de acordo com modelos matemáticos, nos cálculos e
experimentos que buscavam aproximar os homens de Deus e na revelação dos
segredos ocultos na natureza, então, mais uma vez, é impossível deslocar
Kepler do seu tempo e do seu espaço.
“O Renascimento, ao contrário do que se costuma imaginar, não
representa a grande arrancada inicial da ciência moderna, que,
na verdade, teve de romper com essa concepção do mundo de
semelhanças. Mas, aqui e acolá, de um modo difuso, o
Renascimento já prepara o terreno para essa ruptura.”
171
Consideramos bastante acertadas as palavras de J. E. McGuire e P. M.
Rattansi no artigo “Newton e as Flautas de Pã”, publicado no Notes and
Records of the Royal Society 21 (1966) e reproduzido na obra Newton: textos,
antecedentes e comentários de I. B. Cohen e R. S. Westfall:
“A aparente contradição entre essa filosofia neoplatônica
tradicional e o severo indutivismo dos Principia desfaz-se ao
examinarmos mais de perto o modo como Newton modificou a
filosofia “mecânica” da natureza que era corrente em anos
anteriores do século. Em certo sentido, ele a ampliou, permitindo
a entrada de forças inexplicadas em suas explicações dos
171
Coleção Os Pensadores, op. cit., p. 148;
96
fenômenos; mas, em um sentido mais profundo, restringiu-a,
especialmente em suas pretensões de conhecimento do mundo
natural. Um sinal dessa abordagem restritiva surgiu em seu
trabalho inicial em óptica. Neste, Newton rejeitou as hipóteses
arbitrariamente formuladas por filósofos como Descartes e Hooke,
porque estes não poderiam deduzir delas os fenômenos da
natureza, e porque seus mecanismos pictóricos eram
incompatíveis com as leis desses fenômenos. Para Newton, a
fonte do erro desses filósofos estava em não reconhecerem
suficientemente que a filosofia mecânica, rigorosamente
concebida, era apenas a estimativa das forças da natureza por
cálculos geométricos, em termos da matéria em movimento.”
172
Analisando a citação e relacionando-a com o que discutimos sobre
Kepler nos dois primeiros capítulos desta dissertação, entendemos que, assim
como Newton, Kepler soube selecionar e utilizar de maneira precisa o
pensamento de sua época para desenvolver sua própria cosmologia: foi
defensor de Copérnico, mas, conhecendo os defeitos de sua hipótese, corrigiu-
os e tornou-a mais ampla; da filosofia pitagórica, valeu-se da combinação
harmoniosa dos números; de Platão, deu nova razão aos sólidos regulares; de
Ptolomeu, apropriou-se da Astrologia e da Música; de Aristóteles, aceitou a
negação da infinitude do mundo; de Gilbert, usou a força magnética para
invocar o poder do Sol; de Brahe, empregou seus dados para a reformulação
do cosmos; entre outros. Um trabalho digno de seu tempo, algo que só Kepler
e sua “imensa arrogância e convicção de possuir a chave dos segredos do
Universo” poderia realizar.
172
J. E. McGuire & P. M. Rattansi, “Newton e as “Flautas de Pã” in I. B. Cohen e R. S. Westfall,
Newton: textos, antecedentes e comentários, pp. 141-2;
97
Capítulo 3 – Reflexões sobre a harmonia do mundo
3.1 Introdução
Neste terceiro e último capítulo, apresentaremos nossos estudos sobre a obra
Harmonices mundi (1619) de Johannes Kepler. Concentramos a nossa pesquisa no livro V
desta obra – o livro astronômico e metafísico – mais especificamente no capítulo terceiro,
intitulado “Resumo da Teoria Astronômica necessária para o estudo das harmonias celestes”. É
neste capítulo que Kepler apresenta a relação matemática entre os períodos e as distâncias
médias de dois planetas quaisquer: aquela que conhecemos nos dias de hoje por “terceira lei
de Kepler” ou “terceira lei do movimento planetário”, ou somente, “lei harmônica”.
Inicialmente faremos uma breve apresentação desta obra e do seu momento histórico
particular. Em seguida, exploraremos os dez capítulos do livro V dando ênfase aos capítulos III
e IV por acreditarmos que neles obtivemos as justificativas que formalizam o campo teórico e
epistemológico da “terceira lei”. Por fim, apresentaremos nossa conclusão, tal como fizemos
nos dois capítulos anteriores.
Por se tratar da fonte primária essencial desta pesquisa, destacaremos os comentários
e análises de Kepler a respeito de suas próprias idéias. Prevalecerá, portanto, o texto original,
ou seja, um relato carregado de emoção e de razão, de fé religiosa e de certeza “científica”, de
crença e de “provas” matemáticas:
“Veja, eu lanço o dado e escrevo o livro – não faz diferença se ele será lido
pelos meus contemporâneos ou pelas pessoas que virão: deixe-o esperar pelo
seu leitor por cem anos, já que o próprio Deus esperou por seis mil anos por
alguém que O interpretasse.
173
3.2 A idéia inicial do Harmonices mundi e sua produção
173
J. Kepler, Harmony of the World, p. 391;
98
O Harmonices mundi foi planejado em 1599 como uma seqüência
174
ao Mysterium
Cosmographicum. Como vimos
175
no capítulo I desta dissertação, o objetivo inicial do
Harmonices mundi era discutir as obras De Caelo e De Generatione de Aristóteles e aprofundar
algumas questões presentes no Mysterium Cosmographicum. Na sua correspondência com
Edmund Bruce em Pádua, Herwart von Hohenburg em Munique, e Michael Maestlin em
Tübingen, no período de agosto a dezembro de 1599, ele mencionou suas idéias sobre a
produção de um tratado cosmográfico com o título De harmonice mundi. Tal obra seria
baseada no Quadrivium e composta de cinco partes. Porém, a determinação da forma real da
órbita de Marte e suas pesquisas sobre a refração da luz atrasaram Kepler nesse intento, e a
conclusão dessa obra data de 1619.
“Poucas semanas depois da descoberta da órbita elíptica de Marte, Kepler
expressou a Christopher Heydon a esperança que Deus o libertasse da
astronomia para que ele pudesse retomar sua atenção ao trabalho sobre
harmonia.”
176
Foi somente em 1618, mais precisamente no dia 15 de maio, que Kepler encontrou a
razão exata entre os tempos de revolução dos planetas e suas distâncias médias ao Sol. Após
um período infeliz de sua vida pessoal – com o falecimento de sua filha e o julgamento de sua
mãe acusada de feitiçaria – a “terceira lei” confirmaria a Kepler, mais uma vez em sua trajetória
de investigações, uma descoberta astronômica estabelecida a priori:
“Os frutos de seus trabalhos nos domínios astronômico, matemático e filosófico
encheram e alimentaram seu estoque de idéias harmônicas, forneceram-lhes
clareza, correção, abertura e profundidade, ofereceram suportes e
apresentaram novas combinações de pensamento.”
177
Kepler intitulou os cinco livros que formam o Harmonices mundi desta forma:
1. O primeiro é geométrico, sobre a origem e construções das figuras regulares com as quais
se estabelecem as proporções harmônicas;
174
É possível encontrar algumas referências ao Harmonices mundi na segunda edição do
Mysterium Cosmographicum (1621). Entre elas, escolhemos a seguinte: “O leitor, por outro
lado, poderá considerar minha obra astronômicauma continuação genuína e adequada deste
livrinho, e, principalmente, os livros do meu Harmonices, visto que ambos seguiram o mesmo
caminho” in J. Kepler, El secreto del universo, p. 53;
175
Conclusão do Capítulo I, p. 50;
176
E. J. Aiton, A. M. Duncan e J. V. Field in J. Kepler, op. cit., p. XX;
177
M. Caspar, Kepler, p. 265;
99
2. O segundo é arquitetônico, ou parte da geometria das figuras, sobre a congruência das
figuras regulares no plano ou no sólido;
3. O terceiro é essencialmente harmônico, sobre a origem das proporções harmônicas nas
figuras, e sobre a natureza e caráter peculiar dos assuntos relacionados a música, em oposição
aos antigos;
4. O quarto é metafísico, psicológico e astrológico, sobre a essência mental das harmonias e
sobre os tipos de harmonias no mundo, especialmente sobre a harmonia dos raios que
descendem dos corpos celestes à Terra, e sobre seus efeitos na natureza ou no mundo
sublunar e na alma humana;
5. O quinto é astronômico e metafísico, sobre a mais perfeita harmonia dos movimentos
celestes, e a origem das excentricidades nas proporções harmônicas;
6. O apêndice contém uma comparação deste trabalho com o livro III do Harmonias de
Claudius Ptolomeu e com as especulações harmônicas de Robert Floods, conhecido como
Fludd, o físico de Oxford, inserida no seu livro sobre o macro e o microcosmos.
O Harmonices mundi foi dedicado ao Rei James I da Grã-Bretanha, França e Irlanda,
como ele prometera havia algum tempo. Kepler preocupava-se com a crescente tensão entre
católicos e luteranos e via em James a possibilidade de união entre esses dois credos, além de
saber dos interesses do rei nos assuntos filosóficos:
“Pois, primeiro, não considerei inconsistente com meu dever que uma pessoa
que recebesse um salário do Caesar por matemática (...) devesse portanto
mostrar ao mundo externo também que providência perspicaz o Príncipe deste
estado cristão tomou em favor de tais estudos divinos, e que ele deveria
entender a partir do progresso ininterrupto das manifestações da paz por todas
essas províncias que o rumor da guerra civil sem dúvida logo estaria extinto
junto com sua realidade. (...) E, que essa discordância levemente árdua
demais, como numa melodia emocional, encontra-se no ponto exato de uma
resolução em agradável cadência. (...) Quem, de fato seria um assessor da
benevolência imperial mais valioso que um grande rei? Que patrono mais
apropriado eu poderia escolher para um trabalho sobre a harmonia dos céus,
com seus traços de Pitágoras e Platão, que o rei que deu testemunho de seus
estudos de conhecimentos platônicos nos parâmetros domésticos, do qual
ficamos sabendo também devido à veneração pública de seus súditos? Quem,
quando ainda jovem, considerou a astronomia de Tycho Brahe, na qual este
trabalho se baseia, digna da superioridade de sua inclinação? Quem, de fato,
ao tornar-se um homem quando no comando de seu reino, assinalou os
excessos da astrologia com desaprovação pública, os quais são de fato
claramente revelados no livro IV deste trabalho, em que as verdadeiras bases
dos efeitos das estrelas são reveladas. Assim, ninguém pode ter nenhuma
100
dúvida de que você terá completo entendimento do conjunto deste trabalho e
de todas as suas partes.
178
Como última análise deste item, apresentamos uma consideração feita pelo historiador
da Ciência Owen Gingerich, um dos mais conhecidos pesquisadores de Johannes Kepler, a
respeito da escolha do título Harmonices mundi:
“No artigo de George Gibson e Ian Johnston sobre a física da música (Physics
Today, Janeiro de 2002, página 42), o box de número 2 sobre as “Harmonias
do Mundo” de Johannes Kepler contém dois erros interessantes. Como o “s”
final numa palavra de origem latina normalmente designa um plural, numa
primeira impressão, o título do Harmonices mundi libri V de Kepler sugere a
tradução “harmonias”. Entretanto, Kepler sendo um erudito, usou harmonice
como na palavra grega e empregou no seu término o genitivo singular grego.
Devido a sua veemente crença na unidade do cosmos, ele usou a forma
singular; para ele o título era “Os cinco livros da Harmonia do Mundo”
179
.
3.3 Sobre os primeiros quatro livros do Harmonice mundi: início da fundamentação teórica
Por mais que a nossa atenção precise estar voltada para o quinto livro do Harmonices
mundi, faz-se necessário também visitar os outros quatro primeiros, mesmo que brevemente,
para analisarmos a fundamentação teórica utilizada pelo autor.
O primeiro livro, que trataremos apenas por “Geométrico”, é estritamente matemático.
Kepler descreve a construção das figuras regulares por meio de definições (21), proposições
(27), corolários (1) e comparações (2). A forma de apresentação do texto é similar a outros
tratados matemáticos: as definições e proposições são geralmente acompanhadas de
exemplos gráficos ou de citações que atestam as afirmações. Kepler constantemente se refere
à obra Elementos de Euclides. Segundo os comentadores E. J. Aiton, A. M. Duncan e J. V.
Field, Kepler teve acesso a pelo menos duas versões da obra de Euclides: a edição feita a
partir dos textos gregos de Heiberg e outra “editada por Simon Grynaeus, impresso por
Johannes Hervagius em Basel no ano de 1533”
180
. O objetivo deste livro é descrito no primeiro
parágrafo da introdução:
“devemos procurar as causas das proporções harmônicas nas divisões de um
círculo em partes fracionárias iguais, as quais são feitas geometricamente e de
forma acessível ao conhecimento, isto é, a partir das figuras planas regulares
passíveis de construção.”
181
178
J. Kepler, op. cit., pp. 2-3;
179
O. Gingerich, http://www.aip.org/pt/vol-55/iss-8/p76a.html, acessado em 25/01/2006.
180
E. J. Aiton & A. M. Duncan & J. V. Field in J. Kepler, op. cit., p. 24;
181
J. Kepler, op. cit., p. 9;
101
Em particular, há uma passagem da introdução do livro I em que Kepler critica a
análise feita por Petrus Ramus (1515 – 1572) sobre a obra de Proclus, principal comentador da
obra de Euclides. Conforme Kepler, Ramus teria dito que tanto a obra de Proclus como o
décimo livro de Euclides deveriam ser desprezados e rejeitados. Kepler chega a citar um trecho
do livro 21 da obra de Ramus, Scholae Mathematicae, no qual o autor classifica o texto de
Euclides como obscuro, confuso e infectado de superstição pitagórica. A resposta de Kepler é
muito significativa, pois além de explicitar suas convicções na filosofia pitagórica e no trabalho
de Euclides, reforça uma característica da sua personalidade: a de não medir esforços para
verificar as suas hipóteses.
“Mas, meu Deus, Ramus, se você não tivesse acreditado que este livro era
difícil demais para ser compreendido, você nunca o teria difamado com a
acusação de tal obscuridade. Há necessidade de trabalho mais árduo,
necessidade de tranqüilidade, necessidade de concentração e, acima de tudo,
de empenho mental, para se chegar a compreender a intenção do autor.
Quando a mente superior labuta a esse ponto, e depois, por fim, vê que
alcançou a luz da verdade, é jubilosamente inundada de incrível prazer, e
desta, por assim dizer, torre de observação, percebe o mundo inteiro com
todos os traços distintivos de suas partes. Mas a você, que aqui age como o
patrono da ignorância, e à massa de homens que quer tirar proveito de
qualquer coisa, divina ou humana, a vocês, eu digo que pertencem as frases
“sofismas prodigiosos”, “Euclides imoderadamente fazendo mal uso de seu
tempo livre” e “essas sutilezas não têm lugar na geometria”. Que a sua parte
seja criticar aquilo que não compreendem: para mim, um caçador das causas
das coisas, nenhum outro caminho para chegar a elas tinha sido aberto que
não o décimo Livro de Euclides.
“Seguindo Ramus, Lazarus Schöner, em seu Geometria, confessou
que não conseguia ver absolutamente nenhuma utilidade para os cinco sólidos
regulares no mundo, até ler com atenção meu livrinho que intitulei O Segredo
do Universo [Mysterium Cosmographicum], no qual demonstro que o número e
as distâncias dos planetas são tiradas dos cinco sólidos regulares. Veja que
dano causou Ramus, o mestre, a Schöner, o discípulo. Primeiro, Ramus, ao ler
meticulosamente Aristóteles, o qual havia refutado a filosofia pitagórica sobre
as propriedades dos elementos deduzidas dos cinco sólidos, de pronto
produziu em sua mente um desprezo por toda a filosofia pitagórica. E depois,
como sabia que Proclus era sectário de Pitágoras, não acreditou nele quando
afirmou – o que era totalmente verdadeiro – que o objetivo final do trabalho de
Euclides, ao qual todas as proposições de todos os seus livros estavam
relacionadas, eram os cinco sólidos regulares. Por essa razão, surgiu em
Ramus uma convicção muito firme de que os cinco sólidos deveriam ser
removidos do objetivo dos livros dos Elementos de Euclides”
182
.
O segundo livro, o “Arquitetônico”, também segue a mesma linha do primeiro: uma obra
matemática que trata da geometria das figuras, ou seja, de como figuras regulares podem se
102
combinar umas com as outras para a construção de novas figuras, o que é apresentado, mais
uma vez, por meio de definições (13), proposições (14) e axiomas (1) para descrever como a
combinação das figuras pode gerar congruência ou insociabilidade. A congruência das figuras
desempenha um papel importante no pensamento de Kepler, o que nos remete novamente às
suas especulações platônicas:
“a necessidade desta parte da nossa reflexão é distinta da forma geral deste
trabalho. Pois, uma vez que nos encarregamos de explicar a origem da
Harmonia e os seus mais poderosos efeitos no Mundo como um todo, como
poderíamos deixar de mencionar a congruência das figuras que são a fonte das
proporções harmônicas? (...) Uma vez que o efeito que essas figuras têm no
domínio da Geometria – e naquela parte da Arquitetura que lida com os
Arquétipos – é como uma imagem e um prelúdio dos seus efeitos além da
Geometria, além das coisas concebidas na mente, isto é, dos seus efeitos em
coisas naturais e celestiais? (...) Assim, [as propriedades da congruência] têm
se mantido escondidas desde a eternidade na abençoada superioridade da
mente divina, como uma das Idéias, e até então compartilhado na mais alta
benevolência que pode não estar contida ao alcance de sua própria abstração,
mas deve irromper com o trabalho da Criação, induzindo Deus, o Criador, a
gerar sólidos relacionados com figuras particulares.”
183
A descrição e a origem dos cinco sólidos regulares são retomadas na
proposição XXV deste livro. Kepler revisita a discussão iniciada no Mysterium
Cosmographicum sobre esses sólidos serem escolhidos pelo Criador para
gerar o intervalo entre as seis esferas celestes. Outra vez é possível identificar
em Kepler o pensamento de Platão no que diz respeito ao “Corpo do
Cosmos”
184
“o cubo permanecendo de pé em sua base quadrada expressa estabilidade,
que é uma característica da matéria terrestre (...), o octaedro é visto de forma
mais apropriada suspenso por ângulos opostos, (...) o quadrado que repousa
182
Ibid., pp. 10-1;
183
Ibid., pp. 97-8;
184
“Ora, evidentemente, é necessário que o que nasce seja corporal, e, portanto, visível e
tangível. Nenhum ser sensível poderia nascer como tal se estivesse privado de fogo; nem sem
algum sólido, e não existe sólido sem terra. Daí vem que, Deus, começando a construção do
Corpo do Cosmos, principiou para constituí-lo tomando fogo e terra. Mas é impossível que dois
termos formem sós uma composição completa sem um terceiro. (...) Se então o Corpo do todo
devesse ter sido um plano sem espessura, uma só medição bastaria para atribuir-se a unidade
e dá-la aos termos que a acompanham. Mas, com efeito, convinha que esse corpo fosse sólido,
e, para harmonizar os sólidos, uma só mediação nunca bastaria: é necessário sempre duas.
Assim Deus colocou o ar e a água no meio, entre o fogo e a terra, e dispôs esses elementos
uns relacionados com os outros, tanto quanto seria possível numa mesma relação, (...) Por
esses procedimentos e com a ajuda desses corpos assim definidos, em número de quatro, foi
engendrado o Corpo do Cosmos”. Platão, Timeu, pp. 82-3;
103
exatamente entre esses ângulos dividindo a figura em duas partes iguais, (...)
[dá] a imagem de mobilidade, uma vez que o ar é o mais móvel dos elementos,
em velocidade e direção. O número menor de faces no tetraedro é visto com o
significado da secura do fogo, uma vez que as coisas secas, por definição,
mantêm seus limites. O grande número de faces do icosaedro é visto
representando a umidade da água, uma vez que a umidade, por definição, é
retida nos limites das outras coisas. (...) O dodecaedro é reservado para os
corpos celestes, pois tem o mesmo número de faces que os signos do zodíaco.
Pode ser mostrado que o icosaedro tem o maior volume entre as figuras, assim
como o céu que tudo engloba.”
185
Figura 1 – os corpos do mundo: tetraedro: fogo; cubo: terra; octaedro: ar; icosaedro: água;
dodecaedro: quinta essência in J. Kepler, Harmony of the World, p. 397.
Na seqüência, o terceiro livro, o “Harmônico”, cuida da origem das proporções
harmônicas, e da natureza e diferenças das coisas relacionadas à melodia. Este livro é mais
extenso em conteúdo que os dois anteriores, o que faz com que o Kepler o divida em
dezesseis capítulos. Também foi o primeiro a ser impresso, uma vez que consta no final do
livro II: “Segue o livro III, com nova fonte para as letras do alfabeto e um novo início de
numeração para as páginas, porque foi com esse livro que a impressão começou”
186
. Na
introdução que se encontra antes mesmo do sumário, Kepler divaga sobre os tetrácitos
pitagóricos e sua relação com a música.
Sabemos que o fundamento da filosofia pitagórica é o número. Para Pitágoras e seus
seguidores, a natureza se apresenta e se revela através da geometria e das relações entre os
números. Se para Tales de Mileto a água é a substância fundamental pela qual todas as coisas
são formadas, para os pitagóricos, o número não é apenas símbolo: é também “substância”.
185
J. Kepler, op. cit., pp. 114-5;
186
Ibid., p. 125;
104
“Os números não seriam, portanto – como virão a ser mais tarde – meros
símbolos a exprimir o valor das grandezas: para os pitagóricos, eles são reais,
são a própria “alma das coisas”, são entidades corpóreas constituídas pelas
unidades contíguas. Assim, quando os pitagóricos falam que as coisas imitam
os números estariam entendendo essa imitação (mímesis) num sentido
perfeitamente realista: as coisas manifestariam externamente a estrutura
numérica que lhes é inerente.”
187
Na filosofia pitagórica, matemática, música, cosmologia e ciência se misturam de forma
homogênea. A razão entre dois números pode estabelecer consonância ou dissonância entre
duas notas musicais: os números 1, 2, 3 e 4 – conhecidos como tetrácitos – combinados nas
razões 1/2, 2/3 e 3/4 formam, respectivamente, a oitava
188
, a quinta e a quarta notas obtidas a
partir de uma nota musical
189
qualquer. A relação entre o comprimento da corda e a freqüência
da nota emitida por ela também se aplica, na cosmologia pitagórica, ao tamanho das esferas
planetárias. Imperceptíveis aos ouvidos humanos, cada planeta emitiria uma nota musical ao
longo da sua trajetória – os mais lentos, notas mais graves, os mais rápidos, notas mais
agudas – e o Universo seria, portanto, uma sinfonia musical regida pela harmonia matemática.
“No universo pitagórico, o disco faz-se bola esférica. Em torno dela, o sol, a lua
e os planetas giram em círculos concêntricos, cada um preso a uma esfera ou
roda. A rápida revolução de cada um de tais corpos ocasiona no ar um silvo, ou
sussurro musical. Evidentemente cada planeta sussurrará em tom diverso,
dependendo da razão da sua respectiva órbita, assim como o tom de uma
corda depende do seu comprimento. As órbitas em que se movem os planetas
formam uma espécie de imensa lira cujas cordas se curvam em círculo.
Parecia também evidente deverem ser os intervalos entre as cordas orbitais
governados pelas leis da harmonia”
190
.
187
Coleção Os Pensadores, Pré-Socráticos, p. 18;
188
Cabe aqui um adendo: no texto relativo aos tetrácitos, Kepler refere-se à harmonia musical
usando uma terminologia musical típica do século XVII, como diapason, diatessaron e
diapente. Explicam-nos os comentadores E. J. Aiton, A. M. Duncan e J. V. Field: “Diapason,
que literalmente significa “todas as notas de uma oitava”, tem sido traduzido mais comumente
pela mesma palavra em inglês [diapason: diapasão, em português] do que por “oitava”, pois
Kepler não usa as duas palavras como sinônimas. Da mesma forma, as palavras “diatessaron”,
“diapente”, “diahex”, e assim por diante, as quais foram tendência na música do século XVII,
têm sido empregadas mais comumente para traduzir as mesmas palavras em latim por
“quarta”, “quinta”, que pode ser aumentada ou diminuta, e “sexta”, que pode ser maior ou
menor, uma vez que elas não são precisamente equivalentes.” E. J. Aiton & A. M. Duncan & J.
V. Field in J. Kepler, op. cit., p. xl;
189
Utilizando a linguagem musical atual, podemos explicar melhor a relação entre uma nota
musical e suas oitava, quinta e quarta. Tomando a seqüência das sete notas musicais (1. dó, 2.
ré, 3. mi, 4. fá, 5. sol, 6. lá, 7. si) e escolhendo a nota dó como referência (1ª. nota), sua oitava
será um novo dó, com o dobro da freqüência do original (portanto, mais agudo). Para tanto,
será preciso reduzir à metade o comprimento da corda do instrumento para conseguir essa
nota, daí a razão 1/2. A quinta nota a partir do dó é a sol, que é 1,5 vezes mais alta (aguda)
que o dó original e é obtida reduzindo a 3/2 o comprimento da corda. A quarta nota a partir do
dó é o fá, obtida pela razão 4/3 da freqüência, ou 3/4 do comprimento da corda.
190
A. Koestler, Os sonâmbulos, p. 12;
105
No livro “Harmônico”, a fundamentação teórica é mais ampla. Sabemos que Kepler
tomou como principal referência a obra Harmonica de Ptolomeu. Mas antes de receber do
chanceler da Bavária, Johannes George Herwart, uma cópia manuscrita dessa obra em 1607,
Kepler baseou-se, no mínimo, em mais três obras sobre a teoria musical: de Boécio, o De
institutione musica, edições em latim que haviam sido publicadas em Veneza em 1492 e em
Basel em 1546 e 1570, de Gioseffo Zarlino, o Institutioni harmoniche (1558) e, de Vincenzo
Galilei, o Dialogo della musica antica et della moderna (1581). Tais referências levaram Kepler
a dissertar acerca de erros relativos às teorias pitagórica e ptolomaica sobre o número de
harmonias.
O quarto e último livro que nos propusemos a descrever nesta parte da dissertação é o
que Kepler chamou de “Metafísico, Psicológico e Astrológico”. Dividindo-o em sete capítulos,
Kepler discute temas amplos como a essência das proporções harmônicas, o número e o tipo
de faculdades da alma e as causas das configurações astrológicas influentes (aspectos).
Segundo o próprio Kepler, o livro IV
“fornece tudo que é mais importante para a contemplação da natureza, declara
a mais esplêndida ordem das proporções – de acordo com as quais todo o
universo foi construído – e [declara] a analogia das proporções, que conecta
tudo no mundo – assim como Timeu disse em algum lugar–, que repara a
harmonia entre as coisas que estão em conflito, e [repara] relações e afetos
mútuos entre aqueles que estão amplamente separados”
191
.
Como nos livros “matemáticos”, o livro IV apresenta definições (2),
axiomas (3) e proposições (15). Para ilustrar a relação entre geometria e
astrologia, indicamos a proposição IX a seguir – para tanto é preciso comentar
que, segundo os axiomas I e II, um polígono regular inscrito no círculo do
zodíaco define o ângulo de um aspecto e essa é a forma pela qual os aspectos
são definidos. De acordo com Kepler, nas proposições que vão de IX a XIV
192
,
191
J. Kepler, op. cit., p. 281;
192
Ibid., pp. 340-347;
106
as configurações influentes são aquelas que interceptam os seguintes arcos do
círculo zodíaco:
180
o
: oposição, originado do diâmetro do círculo – o primeiro e mais
forte dos graus de influência dos aspectos, que é tanto conjunção
193
como oposição
194
- os planetas ficam separados por um arco de 0
o
(conjunção) ou 180
o
(oposição);
90
o
: a quadratura
195
originada do tetrágono – o segundo dos graus de
influência dos aspectos – o ângulo entre os planetas é reto;
120
o
: o trígono
196
e 60
o
: o sextil
197
, originados do triângulo e do
hexágono – terceiro dos graus de influência dos aspectos. Enquanto o
trígono inscreve no círculo zodiacal um triângulo, é possível também
inscrever no triângulo um hexágono. O sextil mostra-se com a
configuração invertida, como nas figuras abaixo:
193
Conjunção: segundo a Astrologia, a conjunção tende a ser um aspecto harmonioso. A sua
qualidade depende principalmente dos planetas envolvidos, bem como da proximidade do
aspecto. Por exemplo, uma conjunção entre o Sol e Mercúrio, é normalmente vista como
harmoniosa;
194
Oposição: apesar de ser vista normalmente como "desarmoniosa", tem muitas vezes um
efeito bastante motivador e energizante. Aqui também, a qualidade do aspecto depende dos
planetas envolvidos, e o que cada um faz dele;
195
Quadratura: é um aspecto desarmonioso. Os planetas envolvidos parecem estar
"bloqueados". A dificuldade está em conciliar duas forças que querem mover-se em direções
completamente opostas;
196
Trígono: é um aspecto harmonioso, os planetas envolvidos trabalham juntos de uma forma
complementar, enriquecendo-se um ao outro;
197
Sextil: tende a ser um aspecto harmonioso, dependendo é claro dos planetas envolvidos;
107
Figura 2 – Trígono: inscrição de um
triângulo no círculo zodiacal. É possível
inscrever um hexágono neste triângulo
in J. Kepler, Harmony of the World, p.
342.
Figura 3 – Sextil: inscrição de um
hexágono no círculo zodiacal. É
possível inscrever um triângulo neste
hexágono in J. Kepler, Harmony of the
World, p. 343.
45
o
: semiquadratura
198
e 135
o
: sesquiquadratura
199
, originados do
octógono e da estrela;
30
o
: semisextil
200
e 150
o
: quincúncio
201
, originados do decágono e da
sua estrela;
72
o
: quintil
202
e 108
o
: tridecil
203
, originados do pentágono e da estrela do
decágono;
144
o
: biquintil e 36
o
decil, originados da estrela do pentágono e do
decágono.
3.3.1 Sobre o Harmonica de Ptolomeu
198
Semiquadratura: aspecto desarmonioso;
199
Sesquiquadratura: aspecto desarmonioso;
200
Semisextil: neutro;
201
Quincúncio: neutro;
202
Quintil: harmonioso;
203
Tridecil: harmonioso;
108
Não se sabe ao certo quando Ptolomeu iniciou a produção desta obra e especula-se
que ele não tenha conseguido terminá-la
204
. Jon Solomon afirma que o Harmonica é
“um registro indispensável sobre a ciência das harmonias e do seu
desenvolvimento, desde o século VI a. C. com Pitágoras até o século IV [a.C.]
de Archytas e Platão, aos helenistas Aristoxenus e Erastóstenes, até chegar,
enfim, ao século II d.C com Ptolomeu”
205
.
O Harmonica é dividido em três livros, cada qual com 16 capítulos. No primeiro livro
Ptolomeu define harmonia e som, e descreve os sons musicais como proporções matemáticas.
No segundo livro, examina os mais amplos constructos harmônicos da música grega,
especialmente o sistema de duplas oitavas. No terceiro livro, traz os comentários finais sobre
as divisões da oitava e as suas aplicações na música e nos instrumentos, o que “leva a uma
discussão sobre harmonia, razão e sentidos”
206
, e também à aplicação da ciência das
harmonias nas questões relativas à alma humana, à eclíptica, ao zodíaco, às estrelas fixas e
aos planetas.
A respeito do Harmonica, Kepler demonstra claramente que, apesar de ter encontrado
uma obra mais antiga e que trata de questões semelhantes, o conteúdo apresentado por
Ptolomeu está aquém de suas expectativas, afinal, ainda nesse período [antiguidade], muito
faltava para a Astronomia, e Ptolomeu, por meio de uma tentativa infeliz [Harmonica], deve ter
desanimado outros”
207
. Voltaremos a comentá-la mais adiante.
3.4 O conteúdo do livro V do Harmonices mundi
O quinto livro do Harmonices mundi, o “Astronômico e Metafísico”, é o resultado de
vinte e dois anos de especulações astronômicas experimentadas por Kepler, desde que a idéia
da estruturação dos orbes celestes de acordo com os sólidos regulares assaltou a sua mente.
Foi a certeza de que os mistérios do Universo poderiam ser solucionados a partir das hipóteses
levantadas no seu primeiro “livrinho” que o levou a se aproximar de Tycho Brahe e consultar-
204
“a brevidade dos oito últimos capítulos juntamente com a falta de demonstrações e
ilustrações, a ausência de polêmicas e a simplicidade estrutural das comparações feitas entre
as harmonias da música, da alma e dos corpos celestes, não dá ao leitor confiança de que
Ptolomeu tenha se dedicado muito a essas passagens”. J. Solomon, “Introduction” in:
Ptolomeu, Harmonics, pp. XXX-XXXI.
205
Ibid., p. XXI.
206
Ibid., p. XXIV.
109
lhe os dados empíricos mais exatos de sua época. Para Kepler, só as melhores medidas
poderiam comprovar a exatidão do seu pensamento; só um pensamento desprovido de falhas
poderia ser capaz de expressar a lógica do Criador.
O livro se estrutura em dez capítulos
208
, da seguinte forma:
Capítulo I: sobre os cinco sólidos regulares;
Capítulo II: sobre a relação dos cinco sólidos regulares com as proporções harmônicas;
Capítulo III: resumo da teoria astronômica necessária para o estudo das harmonias
celestes;
Capítulo IV: sobre com quais aspectos relacionados aos movimentos dos planetas as
harmonias simples foram expressas, e o fato de que todas aquelas que pertencem à
melodia são encontradas nos céus;
Capítulo V: sobre as notas da escala musical maiores ou menores, isto é, as posições
no sistema e os tipos de harmonias e o fato de que foram expressas por certos
movimentos;
Capítulo VI: sobre os tons ou modos musicais, que são individualmente expressos de
uma maneira própria por cada planeta;
Capítulo VII: sobre a possibilidade de haver contraponto, ou harmonia universal, entre
todos os planetas, e que eles podem ser diferentes uns dos outros;
Capítulo VIII: sobre as qualidades das quatro vozes – soprano, alto, tenor e baixo – nos
planetas e sua expressão;
Capítulo IX: demonstração de que, para produzir este arranjo harmônico, os
excêntricos dos planetas têm que ser determinados da forma que são atualmente, e
não de outra forma;
Capítulo X: epílogo sobre o Sol, de acordo com conjecturas altamente sugestivas;
207
Ailton, Duncan, Field, in: J. Kepler, op.cit., p. 391;
208
E um apêndice que trata de três temas: I. Uma versão do terceiro livro do Harmonica de
Ptolomeu, a partir do livro III, que lida com o mesmo assunto; II. Uma complementação do texto
ptolomaico, dos três últimos capítulos do livro de Ptolomeu, nos quais Ptolomeu forneceu só os
lemas; III. Notas sobre esta parte da Harmonia, no qual Kepler explica o autor [Robert Fludd],
110
Kepler, no título do livro V, proclama:
“sobre a mais perfeita harmonia dos movimentos celestiais e sobre a origem,
nos mesmos, das excentricidades, semidiâmetros e períodos, de acordo com
os preceitos dos ensinamentos astronômicos mais completamente corrigidos
dos dias atuais, e com as hipóteses de Copérnico, mas também com as de
Tycho Brahe, qualquer uma das quais é hoje publicamente aceita como
verdadeira, suplantando as de Ptolomeu”
209
.
Ao retomar a discussão sobre a origem dos excêntricos e dos semidiâmetros (distância
média em relação ao Sol) dos planetas, Kepler revisita suas conclusões publicadas no
Mysterium Cosmographicum e no Astronomia Novae. Desta vez, elas estão amparadas pelas
suas idéias a respeito da harmonia do mundo. Essa nova interpretação é decorrente da
descoberta da relação matemática entre os tempos de revolução e os raios das órbitas dos
planetas. Kepler afirma, na introdução do livro V, que sua descoberta se deu de forma diferente
à esperada, mas também de maneira muito boa.
“No Mysterium Cosmographicum, Kepler supôs que as distâncias planetárias
eram determinadas exclusivamente pela interpolação dos cinco sólidos
platônicos entre as esferas planetárias e havia buscado, no capítulo 12, ajustar
a harmonia musical aos sólidos. (...) Agora ele supõe que a interpolação dos
sólidos apenas dava uma orientação tosca (um esboço preliminar do cosmos,
por assim dizer), enquanto as distâncias eram realmente determinadas de
acordo com as relações harmônicas dos movimentos dos planetas”
210
.
Ainda de acordo com o título, não podemos deixar de comentar que as idéias
publicadas no livro V do Harmonices mundi que estão em concordância com o conhecimento
astronômico vigente da época, para Kepler, são os aperfeiçoamentos recebidos pelas
hipóteses de Nicolau Copérnico e de Tycho Brahe sobre o sistema de mundo – por isso ele
usa, em seu texto, o termo “corrigido”. Como discutimos no primeiro capítulo, Kepler sempre foi
um defensor da hipótese copernicana e a considerava a melhor substituta do modelo
ptolomaico. Sabemos das inúmeras críticas, principalmente sobre os movimentos da Terra, que
o modelo heliostático recebeu por grande parte de seus contemporâneos (Brahe foi um deles)
e da baixa adesão explícita, mais pela força do pensamento aristotélico do que das imposições
da Igreja Católica, em defesa desta causa. Entendemos que Kepler, com a afirmação de que o
modelo ptolomaico está suplantado e com as conclusões apresentadas no livro V, está
refutando-o, e comparando suas descobertas ou experiências com as suas. Apesar de estar
assim dividido no sumário do livro V, não há tais divisões no texto do apêndice;
209
J. Kepler, op. cit., p. 387;
111
investindo de forma incisiva contra a astronomia clássica. É isso o que o torna um autor
especial para o período.
Há também duas citações dignas de comentários: a primeira, que aparece logo após o
título, é de Galeno
211
, retirada do terceiro livro do Sobre a função das partes e, a segunda, após
o sumário do livro V, é de Platão
212
, da obra Timaeu. Acreditamos que Kepler tenha usado
esses dois autores por compartilhar com eles o sentimento enaltecido da descoberta e a
obrigação de render homenagens à fonte inspiradora, pois como o próprio Kepler escreve na
introdução do livro V:
“como Deus o Melhor e Maior, sendo Ele quem inspirou minha mente e atiçou
meu grande desejo, prolongou minha vida e força de vontade e providenciou os
outros meios (...) Estou livre para renunciar à loucura sagrada, estou livre para
provocar os mortais com a franca confissão de que eu estou roubando as naus
douradas dos egípcios, de forma a construir com elas um templo para meu
Deus, longe do território do Egito. (...) Veja, eu lanço o dado e escrevo o
livro...”
213
Remetendo-se tanto ao Mysterium Cosmographicum quanto ao livro II do Harmonices
mundi, e prometendo uma continuação desse tema no Epitome astronomiae Copernicae,
Kepler classifica os cinco sólidos regulares em duas classes: primária e secundária. A primária
é constituída por três sólidos (cubo, tetraedro e dodecaedro) e a secundária pelos dois
restantes (octaedro e icosaedro). A classe primária é constituída pelos sólidos que possuem
“faces de formas diferentes e vértices comuns a três faces, número mínimo necessário para
210
E. J. Aiton, A. M. Duncan e J. V. Field in J. Kepler, op. cit., p.389;
211
“Eu começo um discurso sagrado, um hino dos mais verdadeiros, para Deus, o Fundador, e
considero devoção não sacrificar muitas hecatombes de touros para Ele e queimar incensos de
perfumes inumeráveis e cássia, mas primeiro aprender eu mesmo, e então ensinar aos outros
também, o quão grande Ele é na sabedoria, quão grande em poder, e de que magnitude em
bondade. Pois querer adornar de todas as formas possíveis aquelas coisas que devem receber
adornos, e não invejar nada – isso eu coloco como sinal da maior bondade, e por causa disso
louvo-o como bondoso, já que nas alturas de Sua sabedoria Ele molda tudo de forma que cada
coisa pode ser adornada ao máximo e Ele possa fazer com Seu poder inconquistável tudo o
que Ele decretou.” Galeno in J. Kepler, op. cit., p. 387;
212
“Mas, Sócrates, todos os homens, por menos que participem da sabedoria, ou quando estão
a ponto de encetar um empreendimento pequeno ou grande, sempre de alguma maneira,
invocam a divindade. Quanto a nós, que discorremos sobre o mundo, dizer como nasceu, ou se
porventura chegou a nascer, por mais forte razão devemos, se é que de todo não perdemos o
espírito, chamar pelo auxílio dos deuses e deusas, rogar-lhes que nossos propósitos sejam
sempre em tudo que os toque, antes de tudo conforme o seu pensar, e quanto ao que nos
concerne, logicamente ordenados. No tocante aos Deuses, seja então essa a nossa invocação.
E quanto ao que nos concerne, invoquemo-los também a fim de que pronto compreendais, e
que eu exponha o mais claramente possível o que penso sobre este assunto.” Platão, Timeu,
pp. 77-8;
112
formar um ângulo sólido”
214
. A classe secundária é formada pelos sólidos que possuem “faces
de formas iguais e vértices comuns a quatro ou cinco faces”
215
.
A seguir, apresentamos um quadro comparativo que servirá como referência para as
próximas considerações:
Sólido Classe Características Gênero
1. Cubo
6 faces quadrangulares,
12 arestas,
8 vértices
Primário
É o mais externo e espaçoso;
Tem a natureza do todo;
É o primeiro na ordem da
geração;
Macho
2. Tetraedro
4 faces triangulares,
6 arestas.
4 vértices
Primário
Parte do cubo;
Hermafrodita
3. Dodecaedro
12 faces pentagonais,
30 arestas,
20 vértices
Primário
Está dentro do tetraedro;
Sólido composto de partes de
um cubo e partes similares de
um tetraedro, ou seja, de
tetraedros irregulares, com os
quais o cubo por dentro é
fechado.
Macho
4. Icosaedro
20 faces triangulares,
30 arestas,
12 vértices
Secundário
Último das figuras secundárias
que adotam um ângulo sólido
feito por três ou mais linhas;
Fêmea
5. Octaedro
8 faces triangulares,
12 arestas,
6 vértices
Secundário
É o mais interno;
Similar ao cubo e ao
icosaedro;
Fêmea
As descrições feitas anteriormente estão acompanhadas por cinco ilustrações dos
sólidos regulares e duas figuras comparativas. Não é possível identificar qual dessas figuras foi
desenhada pelo próprio Kepler, ou por “seu amigo Wilhelm Schickard (1592-1635), professor
de matemática em Tübingen”
216
. De acordo com J. V. Field,
“Kepler parece ter sido muito bom desenhista, a julgar por seu croqui para a
segunda capa do Tábuas Rudolfinas (Ulm, 1627) (...) entretanto, a facilidade
técnica de Kepler [para o desenho] é menos relevante que o seu claro
213
J. Kepler, op. cit., pp. 391;
214
E. J. Aiton, A. M. Duncan e J. V. Field in J. Kepler, op. cit., p. 395;
215
Ibid., p. 395;
216
J. V. Field, “Rediscovering the Archimedean Polyhedra: Piero della Francesca, Luca Pacioli,
Leonardo da Vinci, Albrecht Dürer, Daniele Barbaro, and Johannes Kepler”, Arquive for History
of Exact Science, vol. 50, n
o
3-4, 1997, p. 275;
113
interesse no uso de ilustrações e diagramas nos seus trabalhos. A gravura
elegante mostrando a teoria dos poliedros no Mysterium Cosmographicum
pode ser considerada de caráter essencialmente decorativo e designada para
ajudar a vender o livro. Entretanto, o livro também contém um bom número de
outros diagramas que não são estritamente necessários, e à medida que
Kepler vai ficando mais velho (...) os seus trabalhos vão recebendo mais
ilustrações.
217
Chama-nos a atenção a classificação dos sólidos regulares por gênero. Segundo Aiton,
Duncan e Field, esta é a primeira vez que Kepler a faz:
“Evidentemente, os vértices são os símbolos sexuais masculinos e, as faces,
os femininos. Nota-se que os poliedros masculinos têm mais vértices que
faces. Os poliedros femininos, por sua vez, têm mais faces do que vértices,
enquanto o poliedro hermafrodita tem o mesmo número de cada”
218
.
Kepler acrescenta ainda duas combinações de poliedros, chamando-as de
“casamentos notáveis”
219
– cubo e octaedro, dodecaedro e icosaedro – e uma relação
“celibatária ou hermafrodita”
220
– tetraedro e tetraedro. Essas combinações são formadas com
base em fatores comuns:
“os poliedros machos têm o mesmo número de vértices que os poliedros
fêmeas têm de faces e, quando a figura feminina é inscrita na masculina, os
símbolos femininos e masculinos ficam um de frente para o outro”
221
e
“o tetraedro [celibatário ou hermafrodita] é inscrito em si mesmo, assim como
se inscreve nas figuras femininas e masculinas, e tem os símbolos sexuais
femininos do seu sexo em oposição aos masculinos”
222
.
Figura 4 – casamento entre o cubo e o
octaedro. A oposição entre os vértices
e as faces demonstra a oposição entre
macho e fêmea. J. Kepler, Harmonices
mundi, p. 396.
217
Ibid., p. 275;
218
E. J. Aiton, A. M. Duncan e J. V. Field in J. Kepler, op. cit., p. 396-7;
219
J. Kepler, op. cit., p. 396;
220
Ibid., p. 397;
221
E. J. Aiton, A. M. Duncan e J. V. Field in J. Kepler, op. cit., p. 397;
222
J. Kepler, op. cit., p. 397;
114
Figura 5 – casamento entre o
dodecaedro e o icosaedro. A fêmea
(neste caso, o icosaedro) é sempre
inscrita no macho (neste caso, o
dodecaedro). J. Kepler, Harmonices
mundi, p. 396.
Figura 6 – o hermafroditismo do
tetraedro justifica-se pelo número de
vértices ser igual ao número de faces.
J. Kepler, Harmonices mundi, p. 396.
A última figura do capítulo I é a estrela sólida, que provém do casamento
entre o dodecaedro e icosaedro, “sua geração é decorrente da continuação das
cinco faces do dodecaedro até que eles encontrem um ponto em comum.”
223
Figura 7 – a estrela sólida, um novo tipo de poliedro descoberto por Kepler in
J. Kepler, Harmonices mundi, p. 397.
Mas, qual é a essência disso tudo? De que servem essas classificações
e arranjos? Na lógica de Kepler, as classificações e combinações apresentadas
são estabelecidas de acordo com as relações matemáticas existente entre os
223
Ibid., pp. 397-8;
115
sólidos e entre os sólidos e as esferas que os circunscrevem. Nas palavras de
Kepler, temos:
“A principal diferença entre os casais ou famílias [dos casamentos
apresentados] consiste no seguinte: que a relação entre a família do cubo é, de
fato, exprimível, pois o [volume do] tetraedro é um terço do [volume do] cubo, o
[volume do] octaedro é metade do [volume do] tetraedro, e um sexto do
[volume do] cubo. Entretanto, a proporção do casamento do dodecaedro é, de
fato, inexprimível, mas divina.”
224
e
“Por último, devemos notar as proporções entre as esferas circunscritas e
inscritas nos poliedros. No tetraedro [a proporção] é exprimível, assim como
100 000 está para 33 333, ou 3 para 1: no casamento do cubo [a proporção] é
inexprimível, mas o quadrado do raio da circunferência inscrita é exprimível,
assim como a raiz quadrada de um terço do diâmetro, isto quer dizer 100 000
para 57 735; no casamento do dodecaedro é claramente inexprimível, assim
como 100 000 está para 79 465 (...)”
225
Os termos ‘exprimível’, ‘inexprimível’ e ‘divina’ representam graus de conhecimento
apresentados no primeiro livro do Harmonices mundi. Os oito graus de conhecimento estão
descritos nas definições de XII a XX. ‘Exprimível’ está descrito na definição XIII e indica que o
número que representa o estudo em questão – no caso dos casamentos dos poliedros, a razão
entre os volumes dos sólidos machos e fêmeas – pode ser expresso, em notação moderna, por
meio de uma fração racional. ‘Inexprimível’, descrito na definição XV, refere-se aos números
que não podem ser descritos por uma fração racional, ou seja, números irracionais. Para esse
caso particular, é interessante ver como Kepler se posiciona frente ao uso do termo ‘irracional’
para ‘inexprimível’:
“Tradutores latinos traduzem este termo [inexprimível] como “Irracional” [aspas
do original], correndo um grande risco de ambigüidade e absurdidade. Vamos
abandonar este uso, porque há muitas linhas que, embora sejam inexprimíveis,
são definidas pelos melhores cálculos. Aritméticos, por meio de uma tradução
similar, chamam-nos de números surdos, isto é, números que não conseguem
falar nada mais que um homem surdo pode ouvir: mas esta denominação inclui
somente números exprimíveis ao quadrado, assim como quantidades
inexprimíveis.”
226
A ‘proporção divina’ está descrita na definição e comparação XXVI. Ela
se remete à ‘razão média e extrema’ de Euclides, ou como é mais conhecida,
224
Ibid., p. 397;
225
Ibid., p. 398;
226
Ibid., p. 21;
116
‘razão áurea’. Em Kepler, ela assume caráter metafísico e estético para
justificar o casamento entre o dodecaedro e o icosaedro. Em Euclides,
“essa proporção completava um dos resultados dos Elementos
[XIII-17], segundo o qual, ao dividir a aresta de um cubo em razão
média e extrema, o segmento maior é igual à aresta do
dodecaedro inscrito na mesma esfera do cubo. (...) A divisão em
razão média e extrema aparece na construção do pentágono
regular, e na construção dos dois sólidos regulares complexos, o
icosaedro e o dodecaedro. Diversas proposições dos livros XIII e
XIV são dedicadas a essa proporção.”
227
.
Em suma, Kepler classifica e organiza os sólidos regulares, e justifica suas escolhas
baseando-se em propriedades matemáticas provenientes das relações entre os próprios
sólidos regulares e entre as esferas circunscritas neles. Na seqüência, mostra que a sua
hipótese da interposição dos sólidos regulares entre as esferas dos planetas não dá conta,
sozinha, de explicar com perfeição a razão entre as distâncias planetárias. É preciso
complementar esta hipótese com outras idéias que se harmonizem com o seu modelo
cosmológico. A proporção harmônica aplicada às razões entre as esferas circunscritas e
inscritas foi a solução encontrada por ele para atingir esse objetivo. Antes, porém, Kepler
conduz uma explicação sobre todos os tipos de proporções harmônicas existentes nos sólidos
regulares, para só depois, discutir o caso dos poliedros e das esferas.
“Esta relação é diversa e variada. No entanto, há quatro graus principais de
relação, pois [1
o
] ou a marca da relação é tomada exclusivamente pela
aparência que as figuras têm, ou [2
o
] juntamente com a construção real dos
lados, as mesmas proporções emergem e também são harmônicas, ou [3
o
] elas
resultam de figuras que já foram construídas ou separadamente ou em
conjunção, ou, finalmente, [4
o
] elas são iguais ou próximas às proporções das
esferas da figura.”
228
O primeiro grau de relação, o que leva em conta a aparência, reúne num mesmo grupo
o tetraedro, o octaedro e o icosaedro pois “a característica ou termo maior é igual a 3,
[portanto] têm afinidade com os sólidos de faces triangulares”
229
. Por sua vez, o cubo e o
227
Scientific American História: “Construir e Comparar”, vol.3, p. 68;
228
J. Kepler, op. cit., p. 399;
229
Ibid., p. 399;
117
dodecaedro encontram-se em grupos isolados, “aqueles que têm o termo maior igual a 4 (...) e
igual a 5”
230
, devido às suas faces quadrangulares e pentagonais.
Este grau se estende em dois sub-níveis de afinidade: termo menor da proporção e
ângulo sólido.:
“esta similaridade da face também pode ser estendida para o termo menor da
proporção. Uma vez que o termo 3 é encontrado próximo de um termo na
proporção dos duplos contínuos [múltiplos de 2], esta proporção é considerada
relativa às três primeiras figuras descritas [tetraedro, octaedro e icosaedro], tal
qual 1:3, 2:3, 4:3, 8:3, etc. Se o termo 5 for encontrado, a proporção se encaixa
no casamento do dodecaedro, tal qual 2:5, 4:5 e 8:5, assim como 3:5, 3:10 e
6:5, 12:5, 24:5. (...) O ângulo sólido é similar: é trilinear nas figuras primárias
[cubo, tetraedro e dodecaedro], quadrilinear no octaedro e quinquelinear no
icosaedro. (...) No caso dos sólidos femininos esta relação aparenta ser mais
atraente, pois o aspecto do ângulo é também adotado pela figura característica,
escondida internamente, [como no caso do] quadrado no octaedro e o
pentágono no icosaedro. Então 3:5 pertenceria ao icosaedro, pelos dois
motivos.”
231
O segundo grau de relação leva em consideração a origem dos sólidos e aproxima as
proporções harmônicas aos casamentos das figuras, assim como Kepler havia descrito no
capítulo I. As proporções perfeitas estão associadas ao cubo e as que podem ser descritas por
uma série de números, tal como na proporção divina, estão associadas ao dodecaedro.
“Além do mais, para estabelecer o lado da figura, o diâmetro da esfera deve ser
cortado. Para o octaedro é preciso dividir [o diâmetro] pela metade, para o cubo
e o tetraedro em três, e o dodecaedro em cinco. Conseqüentemente, as
proporções são distribuídas entre as figuras de acordo com estes números, que
expressam as proporções. Também por uma certa parcela, o quadrado do
diâmetro é dividido, ou o quadrado dos lados da figura é formado. E então os
quadrados dos lados são comparados com o quadrado do diâmetro, e
estabelecem as seguintes proporções: para o cubo, 1:3; para o tetraedro, 2:3;
para o octaedro, 1:2. Por isso, pela combinação dos pares, para o cubo e o
tetraedro, 1:2; para o cubo e o octaedro, 2:3; para o octaedro e tetraedro, 3:4.
Os lados do casamento dodecaedro são inexprimíveis“
232
Entendemos que o segundo grau de relação está relacionado com a tentativa de Kepler
de estabelecer a proporção harmônica através da divisão do círculo a partir de polígonos que
podem ser construídos por régua e compasso. No livro I do Harmonices mundi, Kepler “introduz
230
Ibid., p. 399;
231
Ibid., p. 400;
232
Ibid., pp. 400-1;
118
o conceito de quantidades geométricas que são conhecíveis
233
. De fato, essas são quantidades
que podem ser construídas com régua e compasso”
234
. O segundo grau de relação, portanto,
harmoniza-se com o conceito de quantidades geométricas conhecíveis, também em seus
diversos graus de cognoscibilidade:
“O primeiro e o mais imediato grau de cognoscibilidade ocorre quando a
linha é igual ao diâmetro ou uma área é igual ao quadrado do diâmetro.
Não tão imediato é o segundo grau de cognoscibilidade, quando a linha
ou a área é igual a um certo número de partes de um diâmetro ou de um
quadrado. Neste caso, a linha é chamada exprimível em comprimento e
a área é chamada simplesmente de exprimível. O terceiro grau possível
ocorre quando a linha é inexprimível em comprimento mas o quadrado é
exprimível. Tal linha é chamada de quadrado exprimível. Todos os
outros graus de cognoscibilidade envolvem quantidades que são
inexprimíveis. Por exemplo, no caso do quarto grau, nem a linha nem
seu quadrado são exprimíveis mas o quadrado pode ser transformado
em um retângulo cujos lados são exprimíveis como um quadrado”
235
.
O terceiro grau de relação é dado pela análise das figuras já
estabelecidas, levando em consideração um conjunto de fatores: (1) o número
de lados da face (nlf) e o número total de arestas (nta), ou (2) o número de
lados da face é comparado com o número de faces (nf), ou (3) o número de
vértices da face (nvf) ou ângulo da face é comparado com o número de
ângulos sólidos (nas), ou (4) o número de faces (nf) é comparado com o
número de ângulos sólidos, ou (5) o número total de lados (ntl) é comparado
com o número de ângulos sólidos. Em resumo:
Fatores
Sólido nlf nta nf Nvf nas ntl
nlf:nta nlf:nf nvf:nas nf:nas ntl:nas
236
Cubo 4 12 6 4 8 12
4:12
ou
1:3
4:6
ou
2:3
4:8 ou
1:2
6:8
3:4
8:12 ou
2:3
233
Definição VIII: “Uma quantidade é conhecida se pode ser deduzida, através de algumas
seqüências de operações, tanto a partir do diâmetro de um círculo, se for uma linha, ou a partir
do quadrado do diâmetro, se for uma área”. J. Kepler, op. cit., p. 19;
234
E. J. Aiton, A. M. Duncan e J. V. Field in J. Kepler, op. cit., p. XXV;
235
Ibid., p. XXV;
236
A relação numérica está invertida propositadamente, pois segue o texto original das duas
traduções para o inglês consultadas;
119
Octaedro 3 12 8 3 6 12
3:12
ou
1:4
3:8
3:6 ou
1:2
6:12 ou
1:2
Tetraedro 3 6 4 3 4 6
3:6
ou
1:2
3:4 3:4 1:1
4:6 ou
2:3
Dodecaedro 5 30 12 5 20 30
5:30
ou
1:6
5:12
20:30 ou
2:3
Icosaedro 3 30 20 3 12 30
3:30
ou
1:10
3:20
5:20 e
3:12
ou
1:4
12:20
ou
3:5
12:30 ou
2:5
O quadro comparativo anterior foi montado de acordo com o
apresentado por Kepler. Notamos que para o dodecaedro e o icosaedro no
fator 3, Kepler usa como recurso comparativo os casamentos entre essas
figuras. O mesmo acontece no fator 4, desta vez, com todos os casamentos (o
tetraedro faz par com ele mesmo, portanto a proporção é a igualdade).
Percebemos também que Kepler acaba invertendo a proporção no fator 5. Do
texto original, “o número de todos os lados é comparado com o número de
ângulos sólidos; e o cubo origina 8:12 ou 2:3, o tetraedro 4:6 ou 2:3, o octaedro
6:12 ou 1:2, o dodecaedro 20:30 ou 2:3, o icosaedro 12:30 ou 2:5”
237
, a ordem
está invertida, pois o número de lados de um cubo é 12 e 8 são os seus
ângulos sólidos – como descritos nos fatores 3 e 4 –, o número de lados de um
tetraedro é 6 e 4 são os seus ângulos sólidos e assim se repete até o
icosaedro.
Como adiantamos no início deste item, o quarto grau de relação é o que
Kepler define como “o mais apropriado para este trabalho”
238
. Este grau define
a proporção resultante entre as esferas inscritas e circunscritas aos sólidos, “e
237
J. Kepler, op. cit., p. 401;
120
o que é calculado são as proporções harmônicas que se aproximam destas”
239
.
Kepler apresenta as razões entre as esferas inscritas e circunscritas dos
sólidos regulares e seus casamentos e classifica-as segundo os graus de
conhecimento, mas ainda não as relaciona com as razões entre as órbitas
planetárias, como veremos a seguir:
“Somente no tetraedro o diâmetro da esfera inscrita é exprimível,
isto é um terço da esfera circunscrita; mas no casamento do cubo
a proporção, que é única neste caso, é similar a linhas que são
exprimíveis somente ao quadrado. Pois o diâmetro da esfera
inscrita está para o diâmetro da esfera circunscrita na proporção
semitripla [isto é, a raiz quadrada de 1/3]. E se você comparar as
proporções reais de cada um, a proporção das esferas do
tetraedro é o quadrado da proporção das esferas do cubo. No
casamento do dodecaedro, a proporção das esferas também é
única, mas inexprimível, um pouco maior que 4:5. Portanto, as
proporções harmônicas que são próximas da proporção das
esferas do cubo e do octaedro são as seguintes: 1:2 como a
próxima maior e 3:5 como a próxima menor; enquanto as
harmonias que são próximas à proporção das esferas do
dodecaedro são 4:5 e 5:6, como próxima menor, e 3:4 e 5:8 como
a próxima maior.”
Desta forma, Kepler continuou trabalhando os pormenores geométricos e harmônicos
da sua teoria no segundo capítulo do livro V. Para nós que buscamos compreender as etapas
do seu raciocínio, acabamos por cair nos calabouços da mente de Kepler e na lógica da
“Revolução Científica” que constrói seus argumentos utilizando-se dos conhecimentos antigos
e modernos. É na análise do terceiro capítulo que discutimos efetivamente o nosso objeto de
estudo.
3.5 Resumo da teoria astronômica necessária para o estudo das harmonias celestes
Neste capítulo, Kepler apresenta os treze argumentos que resumem sua concepção
cosmológica. Mais especificamente no oitavo argumento, ele nos revela a descoberta ocorrida
em 15 de maio de 1618:
238
Ibid., p. 401;
121
“a proporção entre o período de quaisquer dois planetas é precisamente a
razão sesquiáltera [potência de 3/2] das suas distâncias médias, isto é, das
próprias esferas, embora tendo isto em mente, que a média aritmética entre os
dois diâmetros da órbita elíptica é um pouco menor que o diâmetro mais
longo”
240
Como defenderemos a seguir, apesar do destaque dado pelos astrônomos e físicos
das gerações posteriores a Kepler e a verificação (também posterior) de que este argumento
poderia ser empregado de forma generalizada para qualquer corpo celeste (natural ou artificial)
contido em uma órbita determinada – o que o “promove” ao status de “lei” física – Kepler
considera seu oitavo argumento não menos importante que os outros doze apresentados. O
único destaque que o próprio Kepler dá a este argumento foi relatado parcialmente no
parágrafo anterior: as datas de concepção (8/3/1618) e verificação (15/5/1618) do mesmo.
Para que a leitura se torne menos cansativa, dividiremos a análise do capítulo III do
livro V do Harmonices mundi em novos subitens. Cabe-nos lembrar ao leitor que as
pormenorizações das concepções astronômicas tratadas aqui foram feitas no capítulo I desta
dissertação.
3.5.1 Introdução do “Resumo”
Logo no primeiro parágrafo deste terceiro capítulo, Kepler avisa aos seus leitores que
as hipóteses ptolomaicas foram completamente banidas deste estudo sobre a harmonia dos
céus –
“as hipóteses astronômicas de Ptolomeu, da forma que foram expostas no
Theoricae de Peurbach e em outros escritores de epítomes, devem ser
totalmente excluídas desta discussão e arrancadas do pensamento; pois não
transmitem nem a verdadeira disposição dos corpos no mundo, nem a
comunidade dos movimentos”
241
– algo nada surpreendente para quem, no título deste livro V, afirmou que tais hipóteses foram
suplantadas pelas de Copérnico e Tycho Brahe. Aparentemente, essa forma um tanto quanto
“agressiva” de Kepler se expor contrário às idéias ptolomaicas seria justificada logo após, na
primeira “condição”, quando comunicou aos leitores que estava estabelecido “entre todos os
239
Ibid., p. 402;
240
Ibid., p. 411;
241
Ibid., p. 403;
122
astrônomos, que todos os planetas giram ao redor do Sol”
242
. Obviamente, consideramos esta
afirmação não-verdadeira; interpretamo-na simplesmente como a manifestação da opinião
pessoal de Kepler sobre os astrônomos que defendiam o sistema geostático: a de que não
poderiam ser considerados astrônomos!
Para Kepler, sua harmonia celeste encaixa-se tanto nas doutrinas de Copérnico quanto
nas de Tycho Brahe, uma vez que, na hipótese ticônica, o movimento anual da Terra da
hipótese copernicana é transferido para todo o sistema das esferas planetárias e para o Sol:
“de fato, assim como alguém que desenha um círculo no papel move a parte do
compasso que escreve ao redor da ponta seca, ao passo que alguém que
prende o papel a uma superfície que gira descreve o mesmo círculo – sem
mover nenhuma das duas partes do compasso – no papel que gira; da mesma
forma, neste caso, para Copérnico, a Terra de fato descreve um círculo por
meio de um movimento real de seu próprio corpo, passando entre os círculos
de Marte externamente e os de Vênus internamente; mas para Tycho Brahe,
todo o sistema planetário (no qual, entre outros, estão também os círculos de
Marte e Vênus) gira, como o papel na roda, colocando a Terra imóvel, como se
ela fosse a ponta que escreve, em contato com o espaço vazio entre os
círculos de Marte e Vênus. “
243
3.5.2 As “condições” para a compreensão da harmonia celestial
Tomamos a liberdade de chamar de “condição” à forma pela qual Kepler revisa alguns
pontos teoria astronômica para fundamentar a harmonia celestial. Por se tratar de um resumo,
Kepler apresenta essas condições de forma ordenada, e acreditamos que o esteja fazendo da
condição mais básica – a que os planetas giram ao redor do sol (primeira condição) – à mais
complexa – a relação entre as proporções das distâncias entre dois planetas e o Sol em
relação a proporção de seus movimentos aparentes (décima terceira condição).
Interessante notar que este resumo não traz somente uma compilação de informações
já conhecidas entre os estudiosos: Kepler escolheu o resumo também para apresentar suas
novas conclusões, que se dão a partir da oitava condição (“terceira lei” do movimento
planetário) até a décima terceira. Isso nos leva a crer que Kepler, ao mesmo tempo em que não
dá, em seu texto, um destaque especial à “terceira lei”, já a tem, em sua lógica, como condição
fundamental para a compreensão da teoria astronômica.
Vejamos as condições:
242
Ibid., p. 405;
243
Ibid., p. 404
123
1ª: A primeira condição trata da aceitação incondicional de que os planetas, inclusive a Terra,
giram ao redor do Sol. O modelo heliocêntrico sempre foi a base da cosmologia kepleriana. Só
pela hipótese copernicana que a interpolação dos sólidos regulares entre as esferas celestes é
justificável, portanto, Kepler prefere Copérnico à Brahe;
2ª: A segunda condição diz respeito à excentricidade das órbitas, isto é, que os
planetas ao longo de sua trajetória anual, aproximam-se e se afastam do Sol.
Kepler faz uso de uma ilustração para demonstrar essas variações de posição.
Nota-se na ilustração a indicação para a disposição dos sólidos regulares entre
os planetas.
“No diagrama, três círculos foram construídos para cada um dos planetas.
Nenhum deles indica a verdadeira rota excêntrica do planeta, mas de fato o do
meio, como por exemplo o BE no caso de Marte, é equivalente à órbita
excêntrica, a respeito do seu maior diâmetro; mas a órbita verdadeira, no caso
AD, toca o círculo superior, AF, no lado A, e o círculo inferior CD no lado
oposto, em D. O círculo pontilhado GH desenhado passando pelo centro do
Sol, indica a trajetória do Sol de acordo com Tycho Brahe. Se o Sol se move
neste trajeto, todos os pontos do sistema planetário aqui representado
procedem num caminho equivalente, cada um em sua própria rota. (...) Devido
ao pouco espaço entre os três círculos de Vênus, os mesmos acabaram por se
juntar em um só, contrário à minha intenção”
244
.
3ª: Na terceira condição, Kepler relembra as suas conclusões publicadas no Mysterium
Cosmographicum, “de que o número de planetas, ou o número de órbitas em torno do Sol foi
tirado, pelo mais sábio Criador, dos cinco sólidos regulares”
245
. Kepler aproveita para dar os
créditos a Euclides, o geômetra que descreveu a construção dos mesmos;
244
Ibid., p. 405;
245
Ibid., p. 406.
124
Figura 8: Modelo copernicano de Universo, adaptado às concepções cosmológicas de Kepler.
Vemos na figura: a indicação da ordem dos sólidos regulares nas órbitas planetárias; a suposta
órbita do Sol no modelo de Tycho Brahe; e os três círculos que representam o maior e o menor
distanciamento do planeta em relação ao Sol, bem como o seu trajeto intermediário. Como
descrevemos na página 2, os três círculos de Vênus são tão próximos que se fundem em um
único in J. Kepler, Harmony of the World, p. 405.
4ª: Na quarta condição, Kepler admite que somente a intercalação dos sólidos
regulares nas órbitas planetárias, como se elas fossem as esferas inscritas e
circunscritas de cada sólido, não gera a proporção ideal que justifique os dados
125
astronômicos empíricos. Kepler relata uma série de considerações sobre esse
fato, como por exemplo, “se os vértices do tetraedro forem posicionados no
círculo interno de Júpiter, os centros das faces do tetraedro quase tocam o
círculo externo de Marte”
246
.
Mas, como o “Criador não se afasta do seu próprio arquétipo”
247
, Kepler
apresenta uma nova hipótese a priori que justificaria a manutenção da
intercalação dos sólidos regulares:
“pelo fato de que os planetas mudam seus intervalos
[velocidades] ao longo de períodos de tempo definidos, de tal
forma que cada um deles tem duas distâncias distintas do Sol, a
maior [afélio] e a menor [periélio], e que a comparação das
distâncias a partir do Sol entre dois pares de planetas é possível
de quatro formas [afélio-afélio, afélio-periélio, periélio-afélio,
periélio-periélio] (...). Assim, as comparações par a par de
planetas vizinhos são vinte ao todo, considerando que, por outro
lado, há apenas cinco sólidos regulares. Entretanto, é apropriado
que o Criador, que se preocupou com a proporção das órbitas
como um todo, também se preocupou em particular com a
proporção entre as variadas distâncias das órbitas individuais, e a
atenção deve ser a mesma em cada caso, e esta deve estar
ligada à oura. Sobre cuidadosa consideração, devemos
claramente obter a seguinte conclusão, que para estabelecer
tanto os diâmetros como os excêntricos das órbitas em
conjunção, são necessários mais princípios básicos em
complemento aos cinco sólidos regulares”
248
.
5ª: A quinta condição trata dos movimentos reais dos planetas, já discutidos
anteriormente no Astronomia Novae, ou como se refere à obra o autor no texto
original, Commentarius de stella Martis. Chamamos a atenção para os axiomas
1 e 4, em que Kepler declara que o Sol é a fonte do movimento dos planetas
249
,
e 3 e 4 (novamente), nos quais Kepler refere-se ao que é conhecido
246
Ibid., p. 406;
247
Ibid., p. 407;
248
Ibid., p. 407;
249
Mais referências sobre isso, ver nesta dissertação o capítulo I, item 1.7.2 e capítulo II, item
2.11;
126
atualmente como “1
a
lei de Kepler ou Lei das Órbitas”, isto é, que a órbita
descrita pelos planetas ao redor do Sol é elíptica, com o Sol ocupando um dos
focos da mesma. A base para todos os axiomas é descrita separadamente: “os
arcos diários são iguais se tomados sobre o mesmo excêntrico, não são
atravessados com a mesma velocidade”
250
, e é completada pelas seguintes
conclusões
251
:
1. “mas que esses períodos diferenciados despendidos nas partes iguais
do excêntrico obedecem à proporção das suas próprias distâncias em
relação ao Sol, fonte do movimento;
2. e, por sua vez, que períodos supostamente iguais, digamos, um dia
natural em cada caso, os verdadeiros arcos diários correspondentes de
uma única órbita excêntrica têm entre si uma proporção que é inversa à
proporção de duas vezes a distância do Sol.
3. ao mesmo tempo, entretanto, foi por mim mostrado que a órbita do
planeta é elíptica,
4. e o Sol, a fonte do movimento, está em um dos focos da elipse;
5. e assim, quando o planeta completa, de todo o trajeto, um quadrante
com origem no seu afélio, ele está precisamente a meia distância do Sol,
entre a sua maior distância do afélio e a menor distância do periélio.
6. Por esses dois axiomas pode-se concluir que o movimento diário médio
de um planeta no seu excêntrico, é o mesmo que o movimento diário
verdadeiro, naqueles momentos em que o planeta está no final do
quadrante do seu excêntrico, considerado como origem o afélio, mesmo
que o verdadeiro quadrante continue parecendo menor que o próprio
quadrante.
7. Além disso, resulta que quaisquer dois arcos diários verdadeiros do
excêntrico, que realmente estão à mesma distância, um no afélio e outro
no periélio, quando somados, são iguais a dois arcos diários médios.
8. Em conseqüência, desde que a proporção dos círculos é a mesma que a
proporção dos seus diâmetros, a proporção entre um arco diário médio e
a soma de todos os arcos diários médios que formam todo o trajeto e
que são iguais, é a mesma entre o arco diário médio e a soma de todos
os arcos diários verdadeiros no excêntrico, que são iguais em número
mas diferentes entre eles. É necessário conhecer antecipadamente os
arcos diários verdadeiros e os movimentos verdadeiros, para que
possamos agora compreender, por meio deles, os movimentos
aparentes, como se colocássemos um olho no Sol”
252
.
250
Ibid., p. 408;
251
Todas as palavras grafadas em itálico obedecem à tradução do texto original;
252
Ibid., p. 408;
127
6ª: Na sexta condição, Kepler comenta que os arcos aparentes, vistos do Sol, parecem ser
menores e mais lentos no afélio e maiores e mais rápidos no periélio, para um observador
posto no centro do mundo
253
. São apresentados outros seis axiomas, como por exemplo, “que
a proporção entre o arco diário aparente de um dado excêntrico é satisfatória e precisamente o
quadrado do inverso da proporção das suas distâncias ao Sol”
254
, que os arcos excêntricos não
devem ser tão grandes, nem os excêntricos tão achatados
255
.
7ª: A sétima condição retoma a rejeição dos movimentos aparentes dos planetas, como o de
retrogração. Como sabemos, esses movimentos são resultados exclusivos do movimento da
Terra em torno de seu eixo e ao redor do Sol. Retomar esse tópico é importante porque, como
comentam Aiton, Duncan e Field,
“pelo fato de que as harmonias celestes seriam percebidas apenas a partir do
Sol, pareceria possível concluir que Kepler considerou-as objetos da mente e
não dos sentidos. Embora a alma-terra pudesse perceber e ser influenciada
pelo aspetos astrológicos (a manifestação da harmonia na natureza), pareceria
que apenas as mentes inteligentes poderiam entender e reconhecer as
harmonias celestes, uma vez que tivessem sido trazidas à luz.”
256
8ª: Finalmente, na oitava condição, Kepler faz o estudo conjunto dos arcos das órbitas de dois
planetas, relacionando o período de revolução dos mesmos e a distância média que os
separam do Sol. Kepler sabe que está diante de uma verdadeira descoberta astronômica, algo
muito superior às suas hipóteses sobre os sólidos regulares:
“pois quando as verdadeiras distâncias entre as esferas foram
determinadas por meio das observações de Brahe, pelo trabalho
contínuo de longa data, enfim, enfim
257
a verdadeira proporção
entre os períodos e as esferas – e se você [leitor] quiser o
momento exato, ela foi concebida mentalmente em 8 de março
deste ano de 1618, mas submetida aos cálculos de forma errônea
e assim tida como falsa, e finalmente retomada em 15 de maio,
adotando uma nova linha de pensamento, vencendo a escuridão
da minha mente.”
258
253
Ibid., p. 409;
254
Ibid., p. 409;
255
Ibid., p. 409;
256
E. J. Aiton, A. M. Duncan e J. V. Field in J. Kepler, op. cit., p. 410;
257
Do texto em inglês: “by continuous toil for a very long time, at last, at last, the genuine
proportion of the periodic times (…)”, Ibid., p. 411;
258
Ibid., p. 412;
128
Antes, ainda, apresenta quatro definições necessárias para as futuras
argumentações:
1. “Apside mais próxima de dois planetas: periélio do planeta superior, afélio do
planeta inferior, não obstante o fato que eles tendam a não estar na mesma
região do mundo, mas em diferentes, e por ventura até em lados opostos.
2. Movimentos extremos: o mais lento e o mais rápido de toda a trajetória
orbital.
3. Movimentos convergentes ou de aproximação: aqueles que estão o mais
próximo do apside, isto é, no periélio do planeta superior e no afélio do inferior.
4. Movimentos divergentes ou de afastamento: aqueles que estão no apside
oposto, ou seja, no afélio do planeta superior e periélio do inferior.”
259
E, assim, anuncia:
“a proporção entre o período de quaisquer dois planetas é
precisamente a razão de 3/2 (sesquiáltera) das suas distâncias
médias, isto é, das próprias esferas, embora tendo isto em mente,
que a média aritmética entre os dois diâmetros da órbita elíptica é
um pouco menor que o diâmetro mais longo.”
260
Na seqüência, Kepler faz um estudo de caso (Saturno e Terra) no qual
aplica os valores aproximados dos períodos de revolução destes dois planetas
e justifica numericamente a sua descoberta. Tomamos a liberdade de usar a
terminologia matemática moderna para ilustrar este exemplo e o fizemos da
mesma forma empregada por Norberto de Paula Lima nos seus comentários
sobre Timeu e Crítias ou A Atlântida
261
de Platão.
“Se qualquer um tomar um terço da proporção do período, por
exemplo, da Terra, que é um ano, e fizer o mesmo com o período
259
Ibid., p. 411;
260
Ibid., p. 411;
261
Consultar bibliografia no final desta dissertação;
129
de Saturno, trinta anos, isto é, as raízes cúbicas, e tomar um
duplo desta proporção, elevando ao quadrado as raízes, terá
como resultado números que correspondem exatamente às
distâncias médias da Terra e Saturno em relação ao Sol, pois a
raiz cúbica de 1 é 1, e o quadrado disto é 1. Também a raiz
cúbica de 30 é maior que três, e assim, o quadrado dela é maior
que 9. E Saturno, em sua distância média em relação ao Sol, é
um pouco maior que 9 vezes a distância média do Sol à Terra.”
262
9ª: Na nona condição, Kepler afirma que para “conhecer as verdadeiras
trajetórias de cada planeta através do éter, duas razões devem ser
combinadas, a razão dos arcos diários reais do excêntrico e a razão das
distâncias médias de cada planeta em relação ao Sol.”
263
É desta forma que se
avaliará depois se as trajetórias descritas pelos planetas estão ou não estão
em harmonia;
10ª: A décima condição trata do tamanho dos arcos diurnos reais para um
observador posicionado no Sol: “para encontrar definitivamente o tamanho
aparente de qualquer arco diário, (...) multiplique a proporção dos arcos pela
proporção inversa, não da média, mas das distâncias reais, pois elas
encontram-se em qualquer ponto do excêntrico.”
264
Período da Terra (1 ano) T
Terra
= 1
Período de Saturno (30 anos) T
Saturno
= 30
“se qualquer um tomar um terço da
proporção do período, (...) isto é, as
raízes cúbicas”
3
Saturno
Terra
T
T
“e tomar um duplo desta proporção,
elevando ao quadrado as raízes”
2
3
1
Saturno
3
1
Terra
T
T
“terá como resultado números que
correspondem exatamente às
distâncias médias da Terra e Saturno
em relação ao Sol.”
3
2
Saturno
3
2
Terra
Saturno
Terra
T
T
R
R
= , ou como foi
primeiramente enunciado,
262
J. Kepler, op. cit., p. 412 – nesta dissertação, página 136;
263
Ibid, p. 412;
264
Ibid, p. 412;
130
2
3
Saturno
2
3
Terra
Saturno
Terra
R
R
T
T
=
“pois a raiz cúbica de 1 é 1, e o
quadrado disto é 1."
1)1(
11
2
3
=
=
“também a raiz cúbica de 30 é maior
que três, e assim, o quadrado dela é
maior que 9.”
967,967,9)11,3(
311,311,330
2
3
>
>
“e Saturno em sua distância média em
relação ao Sol é um pouco maior que 9
vezes a distância média do Sol a
Terra.”
TerraSaturno
Saturno
Terra
R.67,9R
67,9
1
R
R
==
11ª: Na décima primeira condição, Kepler apresenta o cálculo de como a razão
entre as distâncias entre os afélios e periélios de dois planetas podem ser
obtidas a partir dos movimentos aparentes. Assim como na oitava condição,
propõe um exemplo numérico. Decidimos expô-lo aqui por tratar-se de uma
aplicação direta da condição de número oito:
“Tomemos dois planetas cujos períodos de revolução sejam 27 e
8. Assim, a razão do movimento diário médio do primeiro para o
segundo é 8 para 27. Consequentemente, [a razão entre] os
semidiâmetros das órbitas será de 9 para 4. Pois a raiz cúbica de
27 é 3 e a raiz cúbica de 8 é 2, e o quadrado dessas raízes são 9
e 4. Agora, deixe que o movimento aparente no afélio de um seja
2 e no periélio do outro 33 e um terço. As proporções médias
entre os movimentos médios 8 e 27, e estes, aparentes, serão de
4 e 30. Portanto, se a proporção média 4 corresponde a uma
distância média de 9 para o planeta, então o movimento médio de
8 resulta numa distância do afélio de 18, o que corresponde ao
movimento aparente de 2; e se a outra proporção média de 30 dá
ao outro planeta uma distância média de 4, então o seu
movimento médio de 27 irá resultar em um intervalo periélio de 3
e três quintos. Portanto, digo que a distância do afélio está para a
distância do periélio como 18 está para 3 e três quintos. Disso se
torna evidente que as harmonias impostas entre os movimentos
extremos desses dois e os períodos determinados em cada caso
acarretam as distâncias extremas e médias, assim como as
excentricidades.”
265
131
Em notação moderna, esse parágrafo fica mais fácil de ser interpretado
:
“Tomemos dois planetas cujos
períodos de revolução sejam 27 e
8”
Período de revolução do planeta mais afastado do Sol (T):
27;
Período de revolução do planeta mais próximo do Sol (t): 8;
“a razão do movimento diário
médio do primeiro para o segundo
é 8 para 27”
Movimento Diário Médio do planeta mais afastado do Sol
(M): 8
Movimento Diário Médio do planeta mais próximo do Sol (m):
27
T
t
m
M
=
“Consequentemente, [a razão
entre] os semidiâmetros das
órbitas será de 9 para 4”
Semidiâmetro do planeta mais afastado do Sol (R): 9;
Semidiâmetro do planeta mais próximo do Sol (r): 4;
4
9
8
27
3
2
3
2
3
2
3
2
===
r
R
r
R
t
T
r
R
(uso direto da condição 8)
“Agora, deixe que o movimento
aparente no afélio de um seja 2 e
no periélio do outro 33 e um terço”
Movimento aparente no afélio do planeta mais afastado
(MA): 2;
Movimento aparente no periélio do planeta mais próximo
(ma): 33
1/3
“As proporções médias entre os
movimentos médios 8 e 27, e
estes, aparentes, serão de 4 e 30”
Nesta passagem específica, é preciso empregar o primeiro
axioma que descrevemos na sexta condição:
“a proporção entre o arco diário aparente de um dado
excêntrico é satisfatória e precisamente o quadrado do
inverso da proporção das suas distâncias ao Sol”, ou seja,
2
2
R
A
R
M
MA
=
ou
2
2
ra
r
M
ma
=
e
2
2
RP
R
M
MP
=
ou
2
2
rp
r
M
mp
=
Onde:
MA: movimento no afélio do planeta mais afastado do Sol;
ma: movimento no afélio do planeta mais próximo do Sol;
RA: distância do afélio do planeta mais afastado do Sol;
ra: distância do afélio do planeta mais próximo do Sol;
MP: movimento no periélio do planeta mais afastado do Sol;
mp: movimento no periélio do planeta mais próximo do Sol;
RP: distância do periélio do planeta mais afastado do Sol;
rp: distância do periélio do planeta mais próximo do Sol;
Os valores 4 e 30 são as razões aparentes, obtidas da
seguinte forma:
265
Ibid., p. 413;
132
4
.
8.2
.
).(
..
).(
).(
).(
).(
).(
).(
2
2
2
2
2
22
2
2
2
==
==
==
===
R
A
MR
R
A
MR
MMA
RA
MR
RA
MR
MMA
RA
R
M
MMA
RA
R
M
MMA
RA
R
M
MMA
RA
R
MM
MMA
RA
R
M
MA
e
30
.
27.
3
1
33
.
==
rp
mr
rp
mr
“Portanto, se a proporção média 4
corresponde a uma distância
média de 9 para o planeta, então o
movimento médio de 8 resulta
numa distância do afélio de 18, o
que corresponde ao movimento
aparente de 2; e se a outra
proporção média de 30 dá ao
outro planeta uma distância média
de 4, então o seu movimento
médio de 27 irá resultar em um
intervalo periélio de 3 e três
quintos”
18
4
8.9
4
.
4
.
==== RARA
MR
RA
RA
MR
e
5
1
3
30
27.4
30
.
30
.
==== rprp
mr
rp
rp
mr
12
a
: Na décima segunda condição, Kepler afirma ser possível obter o
movimento médio de um planeta a partir dos seus movimentos extremos:
“neste caso, não é precisamente a média aritmética entre os movimentos
extremos, nem precisamente a média geométrica; mas é tanto menor que a
média geométrica quanto a média geométrica é menor que a média (aritmética)
entre as duas médias”
266
.
13ª: Kepler encerra o capítulo III com a condição que dá os parâmetros
matemáticos das suas conclusões:
“a proporção de dois movimentos extremos aparentes
convergentes é sempre menor que a razão sesquiáltera dos
intervalos correspondentes a estes movimentos extremos; e em
que razão o produto das duas razões dos intervalos
266
Ibid., p. 413;
133
correspondentes aos dois intervalos médios ou aos
semidiâmetros das duas esferas não chega a alcançar a razão
das raízes quadradas das esferas, nesta razão é que as razões
dos dois movimentos extremos convergentes excedem a razão
dos intervalos correspondentes; mas se esta razão composta
excedesse a razão das raízes quadradas das esferas, então a
razão dos movimentos convergentes seria menor que a razão de
seus intervalos”
267
.
3.6 Com quais aspectos relacionados aos movimentos dos planetas as harmonias simples
foram expressas, e que todas aquelas que pertencem à melodia são encontradas nos céus
As considerações sobre as consonâncias planetárias, sendo que estas são definidas
em função das condições discutidas no capítulo III, são apresentadas neste capítulo. Sobre o
título “Com quais aspectos relacionados aos movimentos dos planetas as harmonias simples
foram expressas, e que todas aquelas que pertencem à melodia são encontradas nos céus”,
Kepler argumenta que, de todas as coisas que são relativas aos planetas, como “suas
distâncias do Sol, seus períodos, arcos excêntricos diários, tempos gastos nestes arcos,
ângulos em relação ao Sol – ou arcos diários aparentes vistos por um observador no Sol –
(...)“
268
, os períodos dos planetas são os que realmente importam para a determinação das
proporções harmônicas.
Mas há muitas formas de se estudar a relação dos períodos dos
planetas e, como é típico da escrita de Kepler, ele descreve os pormenores dos
seus sucessos e também dos seus fracassos. Aiton, Duncan e Field,
antecipam
269
, em nota de rodapé, que apenas o período, ou as distâncias de
afélio e periélio, ou o arco diurno verdadeiro no afélio e periélio, não resultarão
na harmonia esperada por Kepler. Esta só ocorre, de acordo com Kepler,
quando a comparação é feita entre as velocidades [angulares] no afélio e
periélio, estando o observador no Sol, ou seja, nos movimentos diários
aparentes. Antes de analisá-la, seria conveniente explicar o método utilizado
267
Ibid., p. 414;
134
por Kepler no capítulo IV em um estudo que não resultará nas consonâncias
planetárias, mas ajudará na compreensão de como se estrutura a harmonia
musical na cosmologia kepleriana. Para isso escolhemos a primeira hipótese,
dos períodos de revolução serem harmônicos por si só.
São apresentadas duas tabelas
270
: a primeira com os dados dos
períodos de revolução dos planetas e as velocidades angulares médias, e a
segunda com a interpretação harmônica dos valores dos períodos.
Período Velocidades médias diárias
Dias Minutos
271
Minutos Segundos Terços de
minuto
272
Saturno 10759 12 2 0 27
Júpiter 4332 37 4 59 8
Marte 686 59 31 26 31
Terra com
Lua
365 15 59 8 11
Vênus 224 42 96 7 39
Mercúrio 87 58 245 32 25
Saturno Júpiter Marte Terra Vênus Mercúrio
10759. 12
5379. 36 4332. 37 87. 58
2689. 48 2166. 19 224. 42 175. 56
1344. 54 1083. 10 686. 59 365. 15 449. 24 351. 52
Metades
672. 27 541. 35
Dobros
268
Ibid., p. 417;
269
E. J. Aiton, A. M. Duncan e J. V. Field in J. Kepler, op. cit., p. 418;
270
Ibid., p. 418;
271
Do texto em inglês ‘Sixtieths of a day’, ou seja, sexagésima parte de um dia.
135
A tabela acima é construída de seguinte maneira: o período de Saturno
é dividido pelo valor 2 repetidas vezes, pois como se sabe, na escala musical,
uma nota e sua oitava – que numa corda, por exemplo, é obtida pela divisão da
mesma ao meio – são interpretadas pelo ouvido humano como sons musicais
idênticos. Desta forma, Kepler determina quatro oitavas para Saturno. O
mesmo procedimento é repetido para o cálculo das três oitavas de Júpiter.
Para Vênus e Mercúrio, o procedimento é parecido, só que desta vez,
multiplica-se o período pelo valor 2, já que é possível obter tanto as oitavas
mais agudas
273
(dividindo-se a corda ao meio), como as mais graves
274
(dobrando o tamanho da corda). O motivo pelo qual o período de Saturno é
dividido até a sua “quarta oitava acima” e Mercúrio, até a sua “terceira oitava
abaixo” é para que esses valores possam respeitar o intervalo de uma oitava,
estabelecido em função do período da Terra (365 dias e 15 segundos), ou seja,
mínimo de 182 dias e 37,5 segundos e máximo de 730 dias e 30 segundos.
Mas, como já foi anunciada, essa não é uma relação harmônica. Nas
palavras de Kepler:
“Todos os últimos números são incompatíveis com as proporções
harmônicas, e parecem semelhantes aos números inexprimíveis.
Vamos permitir que o número de dias de Marte, 687, seja medido
em unidades que simbolize 120, que significa a divisão de uma
corda. Nestas unidades, Saturno será representado por um valor
um pouco maior que 117, tomada a décima sexta parte; Júpiter
um pouco menos de 95, tomada a oitava parte; a Terra um pouco
menos de 64; Vênus um pouco mais de 78, tomado o dobro;
Mercúrio, mais de 61, tomado o quádruplo. Ainda que estes
números não formem nenhuma proporção harmônica com 120; os
números vizinhos, 60, 75, 80, e 96 fazem. De forma similar, se
Saturno simbolizar 120, Júpiter será representado por um valor
próximo de 97; a Terra, um valor acima de 65; Vênus, mais de 80;
272
Do texto em inglês ‘Third minutes’, ou seja, terços de minuto.
273
Em linguagem musical, oitava acima.
274
Em linguagem musical, oitava abaixo.
136
Mercúrio, menos de 63. No caso de Júpiter ser 120, a Terra será
menos de 81; Vênus, menos de 100; Mercúrio, menos de 78. Nas
mesmas unidades para Vênus, a Terra será menor que 98;
Mercúrio mais de 94. Por último, se a Terra se tornar 120,
Mercúrio será menor que 116. Mas, se esta livre seleção de
proporções fosse válida, ela estaria absolutamente em perfeita
harmonia, sem excessos ou deficiências. Por essa razão, Deus o
Criador não foi revelado por ter planejado introduzir as proporções
harmônicas entre as somas dos tempos gastos [pelos planetas]
aos tempos periódicos.”
275
O porquê do número 120 é explicado no capítulo IV do Livro III desta
obra: “temos que encontrar para todos os números que representam os mais
nobres termos da divisão harmônica de sete notas, isto é, 2, 3, 4, 5, 6, 5 e 8, o
mínimo múltiplo comum, 120”
276
. Os “nobres termos da divisão harmônica” são
os valores empregados para obter por meio da divisão, dada a primeira nota,
as outras notas da escala em uma oitava. Vejamos como Kepler esquematiza
esta idéia: a nota mais grave representada na partitura no canto superior direito
é um Sol (G). Ela também está representada pela última linha (ou seria uma
corda?) no lado direito da figura. Sua oitava acima é a primeira nota na escala,
e a primeira das linhas. Sua obtenção é conseguida mediante a divisão da
corda pela metade, assim como é indicado na chave do lado esquerdo da
figura (1/2 corresponde à primeira nota na escala) e na primeira linha onde se
consegue ler os números 1 e 2 à esquerda da linha. O resultado desta divisão,
60, é apresentado na segunda chave da esquerda e na própria linha, à direita.
O procedimento se repete para a segunda nota, o Mi sustenido (E#,
equivalente ao fá, F), cuja razão é 5/8 (sétima) e o resultado da divisão é 72;
para o Mi (E), de razão 5/8 (sexta) e valor 75; para o Ré (D), de razão 2/3
275
Ibid., p. 419;
276
Ibid., p. 177;
137
(quinta) e valor 80; para o Dó (C), de razão 3/4 (quarta) e valor 90; para o Si
(B), de razão 4/5 (terça) e valor 96; e, finalmente para o Lá (A), de razão 5/6
(segunda) e valor 100.
“A proporção das partes”
277
é obtida através da razão entre os intervalos
das consonâncias: primeiro, compara-se as consonâncias – B está para A na
razão 96/100 ou 24/25; C está para B na razão 90/96 ou 15/16; D está para C
na razão 80/90 ou 8/9; E está para D na razão 75/80 ou 15/16; e por último, F
está para E na razão 72/75 ou 24/25. Nota-se que os intervalos se repetem:
24/25, 15/16, 8/9, 15/16 e 24/25. A proporção das partes é a razão entre esses
valores, que também se repetem quando ajustados: 9/10, 8/9, 9/10.
Portanto, não formam consonâncias as razões entre os períodos de
Saturno e Marte (117/120), Júpiter e Marte (95/120 ou 19/24), Terra e Marte
(64/120 ou 8/15), Vênus e Marte (78/120 ou 39/60), Mercúrio e Marte (61/120),
Júpiter e Saturno (97/120), Terra e Saturno (65/120 ou 13/24), Vênus e Saturno
(~80/120), Mercúrio e Saturno (63/120), Terra e Júpiter (81/120 ou 27/40),
Vênus e Júpiter (~100/120), Mercúrio e Júpiter (78/120 ou 39/60), Terra e
Vênus (98/120 ou 49/60), Mercúrio e Vênus (94/120 ou 47/60), e, por fim,
Mercúrio e Terra (116/120 ou 29/30).
277
Ibid., p. 177;
138
Figura 9: Descrição da argumentação sobre o número 120, as notas musicais e
seus intervalos. Na escala musical à direita, o primeiro símbolo à esquerda é
uma clave de Fá. O segundo símbolo é a indicação da nota, o terceiro
corresponde ao atual # (sustenido) e a letra b, indica o bemol da nota natural que
se segue. J. Kepler,
Harmony of the world, p. 177.
Para a conclusão deste capítulo, discutiremos as características do
movimento planetário que resultam nas harmonias celestiais. Kepler analisa
assim a questão:
139
“Desde que, entretanto, Deus nada estabeleceu sem uma beleza
geométrica, a menos que esteja relacionada com alguma outra
coisa de maior prioridade, nós prontamente inferimos que os
períodos têm a sua duração, assim como os astros também têm
seus volumes, originados de algo que tem uma existência anterior
no arquétipo. (...) As harmonizações geométricas devem portanto
ser encontradas igualmente nestes tempos [períodos], ou em algo
de maior prioridade na mente do Criador, aparentemente. (...)
Quanto ao que concerne aos planetas individualmente, portanto, a
discussão sobre os arcos, os períodos empregados em arcos
iguais, e o distanciamento dos arcos em relação ao Sol, será
única e a mesma. E porque tudo isto acontece de forma variada
no caso dos planetas, não há dúvida que se estas prescrevem
qualquer beleza geométrica, pelo infalível projeto do Artesão, isto
acontece nos seus extremos, nas distâncias de afélio e periélio,
(...). Portanto, as distâncias extremas (...) baseadas nas
observações muito acuradas de Tycho Brahe, pelo método
explicado no
Comentários sobre Marte e pelo esforço muito
persistente de dezessete anos, (...), não há nenhum planeta
sozinho, com exceção de Marte e Mercúrio, que as distâncias
extremas sugiram a harmonia. Mas, se compararmos entre si as
distâncias extremas de diferentes planetas, alguma luz de
harmonia começa a brilhar adiante.”
278
A seguir veremos como Kepler propõe a unificação da teoria dos sólidos
regulares com as harmonias celestiais
279
. Acreditamos que devemos
apresentar a argumentação por etapas e de forma sucinta, já que Kepler
muitas vezes se dá ao trabalho de “nos divertir com sua narrativa”
280
:
1. Somente as distâncias não são apropriadas para verificar as harmonias, pois
estas estão relacionadas à lentidão ou rapidez do movimento: para justificar
esta afirmação, Kepler descreve, anteriormente, uma tabela com dados
relativos às distâncias de afélio e periélio dos planetas. Por exemplo, são
278
Ibid., pp. 419-21;
279
Ibid., p. 421;
280
Referência a um trecho da obra Astronomia nova, usada no livro de Paolo Rossi, O
nascimento da ciência moderna na Europa, como epígrafe: “Quando Cristóvão Colombo,
Magalhães e os portugueses contaram como perderam o rumo nas suas viagens, nós não só
os desculpamos, mas ficaríamos lamentando não dispormos da sua narrativa, sem a qual toda
a diversão estaria perdida. Por isso, não serei alvo de censura se, induzido pelo mesmo afeto
140
atribuídos a Saturno os valores 10052 para afélio e 8968 para periélio, que não
resultam por si só em consonância, já que a razão destes valores é “maior que
o tom menor 10000/9000 e menor que o tom maior 10000/8935”
281
.
2. Por se tratar de distâncias que simbolizam os diâmetros das esferas, a
proporção dos cinco sólidos regulares deve ter prioridade em ser empregada.
Estes valores devem ser pensados não mais como os raios das esferas, “mas
como medidas do movimento”
282
: ou seja, por analogia, as órbitas excêntricas
são as linhas dos círculos que circunscrevem e se inscrevem nos poliedros. As
“medidas do movimento” deixam de ser tratadas meramente como distâncias e
assumem uma nova interpretação, a dos comportamentos dos astros em suas
órbitas, nas posições extremas. Desta forma, os valores dos arcos excêntricos
expressos em minutos e segundos devem ser empregados segundo a
condição nove expressa no capítulo III do livro V do
Harmonices mundi: “os
movimentos diários de cada planeta devem ser multiplicados pelo
semidiâmetro de suas órbitas”
283
.
Essa nova interpretação também não revela a harmonia esperada. Em
contrapartida, é usada por Kepler para fazer uma referência a Aristóteles:
“Deste modo, Saturno mal completa um sétimo do trajeto de
Mercúrio
284
; e o resultado é o que Aristóteles, no livro II do seu De
Caelo, julgou estar de acordo com a razão, que o planeta mais
próximo ao Sol sempre completa uma distância maior do que
pelos meus leitores, quisesse seguir o mesmo método deles.” J. Kepler in P. Rossi, O
nascimento da ciência moderna na Europa, p. 138;
281
Os valores para os tons maiores e menores são aproximados, ou como Kepler se refere,
valores vizinhos. J. Kepler, op. cit., p. 421;
282
Ibid., p. 421.
283
Ibid., p. 412;
284
Anterior a esta afirmação, Kepler apresenta os dados em uma tabela calculada por meio da
condição nove. Para justificar a afirmação: Saturno: no periélio, arco diário 1074; no afélio, arco
diário 1208 e Mercúrio: no periélio, arco diário 4680; no afélio, arco diário 7148. Portanto, o
arco diário de Saturno é menor que um sétimo do arco diário de Mercúrio;
141
aqueles mais afastados, o que era impossível atingir na
astronomia antiga.”
285
3. As trajetórias verdadeiras dos planetas não devem ser consideradas para as
relações harmônicas, e sim os arcos diários aparentes, aqueles que são
interpretados como se vistos do Sol. Kepler procura convencer os seus leitores
que o tipo de harmonia que estava propondo, até então, não era algo instintivo
como as harmonias que ocorrem naturalmente, tal qual na luz e no som:
“Mas quem se beneficiará das harmonias entre os arcos, ou quem
compreenderá essas harmonias? Há duas coisas que nos
revelam as harmonias em eventos naturais, sejam eles luz ou
som. Aquele é recebido através do olhar, ou de sentidos ocultos
análogos ao olhar; e este, através dos ouvidos. E a compreensão
mental nessas revelações distingue entre instinto (sobre o qual
muito foi dito no Livro IV) ou por raciocínio astronômico ou
harmônico entre o melódico e o não-melódico. Na verdade, não
existe nenhum tipo de som nos céus, e a movimentação não é tão
turbulenta a ponto de produzir um assobio por meio da fricção
com o ar celestial. Resta a luz. Se pode nos ensinar qualquer
coisa sobre os arcos dos planetas, ela nos ensina que os olhos ou
algum órgão sensorial análogo a eles, estão localizados numa
determinada posição; e para que a luz nos informe de imediato e
por iniciativa própria, parece que o órgão sensorial tem de estar
em sua presença. Portanto, haverá um órgão de sentido por todo
o mundo, o que equivale a dizer que, desta forma, um único e
mesmo órgão está presente nas movimentações de todos os
planetas”
286
.
A partir deste parágrafo no texto, há um “ponto de virada” bastante
significativo: Kepler sugere que deixemos um pouco de lado a astronomia
racional e encaremos a harmonia de forma mais instintiva, tal qual a ação dos
aspectos celestiais em nossas vidas terrestres, pois
“assim, esta aparência, trazida pela ação da luz sobre o corpo do
Sol, pode, junto à própria luz, fluir direto para as criaturas vivas,
que compartilham neste instinto, assim como no quarto livro
285
J. Kepler, op.cit., p. 423;
286
Ibid., p. 423;
142
afirmamos que o padrão dos céus flui para um embrião por ação
dos raios”
287
Portanto, a hipótese harmônica recai nos arcos descritos pelos planetas
em seus movimentos diários, tendo como referencial o Sol. Para isso, recorre a
astronomia defendida por Tycho Brahe
288
e apresenta os seguintes dados para
os arcos aparentes:
Harmonias
dos pares
Trajeto diário aparente Harmonias individuais
Div. Conv. Minutos
Segundos
Minutos
Segundos
Saturno No afélio 1.46.a 1.48
No
periélio
2.15.b
Entre
E2.15
4/5, uma terça
maior
d
a
3
1
c
b
2
1
Júpiter No afélio 4.30.c 4.35
No periélio 5.30.d
Entre
E5.30
5/6, uma terça
menor
f
c
8
1
e
d
24
5
Marte No afélio 26.14.e 25.21
No periélio 38.01.f
Entre
E 38.1
2/3, uma quinta
h
e
12
5
g
f
3
2
Terra No afélio 57.03.g 57.28
No periélio 61.18.h
Entre
E 61.18
15/16, um
semitom
k
g
5
3
i
h
8
5
Vênus No afélio 94.50.i 94.50
No periélio 97.37.k
Entre
E 98.47
24/25, um
sustenido
m
i
4
1
l
k
5
3
Mercúrio No afélio 164.0l. 164.0
No periélio 394.0m.
Entre
E 394.0
5/12, oitava e
terça menor
A tabela anterior deve ser interpretada da seguinte maneira:
1. Os intervalos convergentes e divergentes (à esquerda) se referem ao que foi
anteriormente dado como definição na condição 8. Para conseguir estas
287
Ibid., p. 424;
143
relações, os valores devem ser transformados, ou seja, para o primeiro
movimento divergente (a/d), o valor do arco do afélio de Saturno (1min46s)
deve ser interpretado como 106 segundos (1min=60s + 46s = 106s) e o valor
do arco do periélio de Júpiter (5min30s), 330 segundos. Portanto, 106/330
equivale aproximadamente a 1/3.
2. Individualmente e dentro do limite estabelecido (à direita, “entre – e “), cada
planeta é representado por uma consonância dentro da escala. Tomando os
valores da mesma forma que no exemplo anterior, para Saturno, 108 segundos
referentes ao arco diário no afélio e 135 segundos (2min e 15s = 120s + 15s =
135s) referentes ao periélio, equivalem a razão 108/135, ou seja, 4/5.
Nos dois casos, tanto na comparação entre os movimentos extremos de
dois planetas consecutivos em posições opostas (por exemplo, velocidade de
Saturno no afélio e Júpiter no periélio) como na comparação dos movimentos
extremos de cada planeta tomado individualmente, as relações harmônicas se
apresentam claramente e com boa aproximação, com melhores resultados
para o primeiro caso.
“Ademais, existe uma grande distinção entre as harmonias que
foram delimitadas entre planetas individuais e entre planetas
combinados. Pois as primeiras realmente não podem existir no
mesmo momento específico, enquanto o segundo,
absolutamente, pode. Porque o mesmo planeta, quando situado
em seu afélio não pode, ao mesmo tempo, estar também em seu
periélio, que é oposto, mas tratando-se de dois planetas, um pode
estar em seu afélio e o outro, em seu periélio no mesmo momento
específico. Então, a proporção da melodia simples ou monodia,
que chamamos de música coral e que era o único tipo conhecido
pelos antigos, – a melodia de diversas vozes chama-se figurada,
invenção dos séculos recentes – é a mesma que a proporção das
288
“que ensina sobre os movimentos diários dos planetas, abstraindo a partir do movimento
próprio dos planetas as paralaxes da órbita anual, que concede a elas a semelhança das
estações e das regressões.” Ibid., p. 424;
144
harmonias indicadas por planetas individuais às harmonias que
eles indicam em combinação.”
289
3.7 Conclusão do Capítulo III
Ao contrário do que se possa imaginar, o
Harmonices mundi não encerra
a busca de Kepler pela harmonia do mundo. Como vimos, o
Epitome
astronomiae Copernicae e o Tabulae Rudolphinae estavam sendo escritos
paralelamente ao
Harmonices mundi e, nestas duas obras (mais na primeira
que na segunda), Kepler retoma boa parte da discussão sobre os sólidos
regulares, a forma das trajetórias planetárias e a relação harmônica entre
período e distância em relação ao Sol. Até uma segunda versão do
Mysterium
Cosmographicum foi publicada em 1621, revisada e comentada pelo autor, já
adaptado às suas novas conclusões.
As duas tentativas iniciais de Kepler de se estabelecer uma relação
harmônica entre período e distância, publicadas no
Mysterium
Cosmographicum
290
e no Astronomia Nova
291
, são muito inferiores àquela
obtida no
Harmonices mundi. Apesar de todo o detalhamento empregado em
seu texto para apresentar as conclusões a respeito dos movimentos celestes e
dos cálculos apresentados como exemplos da aplicação de sua teoria
astronômica, o livro V termina sem Kepler justificar como chegou à conclusão
da condição oito. Não foi possível saber através da leitura por que a razão
entre os períodos de dois planetas se relaciona com as respectivas distâncias
289
Ibid., p. 430;
290
1
12
1
12
).(2)(
R
RR
T
TT
=
;
145
médias através da potência de 3/2. Não há nenhuma demonstração – nem
geométrica, nem aritmética – nem justificativa de ordem física que caracterizem
este expoente.
Assim sendo, como Kepler obteve êxito? Como Kepler determinou que a
razão entre os quadrados dos períodos é igual à razão entre os cubos das
distâncias médias?
Se lembrarmos do texto original, veremos que em 8 de março de 1618
ele experimentou trabalhar com o expoente 3/2 mas não obteve sucesso por
erros em seus cálculos. Ou seja, Kepler parte de uma hipótese teórica
a priori e
a submete à prova matemática. Também sabemos que Kepler é um hábil
calculador, mas, acima de tudo, é um matemático extremamente motivado a
encontrar os arquétipos estabelecidos pelo Criador na formação do mundo.
Vimos, no capítulo II desta dissertação, o quanto foi trabalhoso para Kepler
calcular as distâncias dos planetas em relação ao Sol em função dos arcos
descritos em suas órbitas, mas que uma mudança na metodologia do cálculo o
fez concluir o que conhecemos hoje como “segunda lei de Kepler” ou “lei das
áreas”. Voltando ao texto original, em 15 de maio Kepler retoma o expoente 3/2
com uma nova linha de pensamento (que não sabemos qual é) e determina a
relação exata.
“A terceira lei é mencionada sem uma explicação do contexto na
qual aparece no livro. Ou seja, a pérola é retirada de seu suporte,
onde, no entanto, todo o seu encanto torna-se importante pela
primeira vez. Mas o estilo de tal suporte não corresponde ao
materialismo de nosso tempo; é repleto de ornamentações, ricas
em referências e com cuja elegância simbólica muitos não sabem
como começar qualquer coisa. É insignificante a objeção à
291
2
2
2
1
2
1
R
R
T
T
=
;
146
concepção de Kepler baseada no argumento de que não existem
apenas seis planetas, que posteriormente dois ou quiçá três
planetas adicionais além da órbita de Saturno e várias centenas
de pequenos planetas entre Marte e Júpiter foram descobertos.
Como se todo sistema científico, no qual concebemos os
fenômenos da natureza, não correspondesse apenas à posição
da pesquisa de seu tempo e não pudesse ser derrubado no dia
seguinte pela descoberta de novos fatos empíricos!”
292
Sorte ou perseverança? Intuição ou iluminação? Ciência ou
adivinhação? Não há respostas exatas para tais perguntas. Segundo Debus,
Kepler é o “paradoxo científico do Renascimento – o excelente matemático cuja
inspiração provinha de sua crença nas harmonias místicas do universo”
293
.
Mas a “terceira lei” não é conhecida como “lei harmônica” apenas por
dar a relação entre períodos e distâncias de dois corpos celestes. Por meio
dela, é possível calcular os movimentos dos planetas no afélio e no periélio, e a
partir destes, revelar ao mundo a harmonia que o adorna.
Os valores obtidos pelas razões entre os movimentos no afélio e periélio
de um só planeta, ou em pares, em situações opostas, assemelham-se com as
proporções simples das notas musicais. Retomando o exemplo de Kepler no
livro III do
Harmonices mundi, sendo Saturno o planeta mais afastado do Sol, e
portanto mais lento, seu menor movimento (afélio: 106 segundos)
corresponderá à nota mais grave do sistema harmônico (sol). A Terra, que
apresenta movimento no afélio semelhante ao de Saturno (afélio: 107
segundos) também corresponderia à nota sol, porém mais aguda (cinco oitavas
acima) pois sua órbita é menor que a de Saturno. Como os planetas variam a
suas velocidades ao longo do seu movimento anual, um conjunto de notas
292
M. Caspar, op. cit., p. 289;
293
A. G. Debus, El hombre y la naturaleza en el Renacimiento, p. 180;
147
podem ser atribuídas aos mesmos, de acordo com os modos maior ou menor:
eis as consonâncias planetárias.
Saturno sol, lá, si,
lá, sol
Júpiter sol, lá, si
bemol, lá,
sol
Marte
(aproximado)
fá, sol, lá, si
bemol, dó,
si bemol,
lá, sol, fá
Terra sol, lá
bemol, sol
Vênus Mi
(uníssono)
Mercúrio dó, ré, mi,
fá, sol, lá,
si, dó, ré,
mi, dó, sol,
mi, dó
Figura 10: Representação das notas musicais que se
assemelham às velocidades angulares dos planetas em
suas órbitas in J. Kepler,
Harmony of the World, p. 439;
“Há ainda outra importante conclusão. Por meio da razão das
velocidades extremas de um planeta, obtém-se (de acordo com a
proposição das áreas) a razão das suas distâncias extremas. Isto
corresponde ao valor do excêntrico. Assim como ele uma vez, no
Mysterium Cosmographicum, acreditou ter revelado o número e
as distâncias dos planetas a partir dos sólidos regulares
a priori,
agora estava convencido de que tinha obtido êxito da mesma
forma com os excêntricos, também com a ajuda da harmonia. Em
seu trabalho da juventude, ele expressou a esperança de que viria
o dia em que esse mistério também fosse revelado, uma vez que,
de fato, Deus não havia distribuído os excêntricos destas
dimensões aos planetas individuais de forma aleatória e sem
razão. Este dia havia chegado, o objetivo foi alcançado.”
294
Apesar de todo esforço de Kepler em consolidar sua cosmologia com
uma série de considerações que estivessem em harmonia com os princípios
geométricos, astronômicos, físicos, matemáticos e religiosos de sua época,
esta obra em particular não recebeu atenção à altura de seu propósito
. O
148
âmbito da astronomia, que carecia de um novo referencial após ter recebido
severas críticas de astrônomos como Nicolau Copérnico, Tycho Brahe e
Galileo Galilei, reconheceu Kepler apenas parcialmente como um sucessor
fidedigno. Como nos conta Bruce Stephenson no seu livro
The Music of the
Heaven,
“em meados do século XVII, os leitores haviam conseguido
desarraigar as três “leis do movimento planetário” dos livros de
Kepler. Era muito mais provável, no entanto, que fizessem
referência ao livro didático de Kepler, o
Epitomae astronomiae
Copernicanae, e às Tábuas Rudolphinas para tais efeitos do que
às fontes originais, o
Astronomia nova e o Harmonice Mundi. As
teorias de Kepler sobre a harmonia celestial, por outro lado,
parecem ter sido amplamente ignoradas. Logo após o
nascimento, parecem ter sido relegadas a uma espécie de limbo,
da qual nunca saíram: técnicas demais para serem lidas por
aqueles que tentam ouvir a música das esferas e peculiar demais
para serem levadas a sério por cientistas com a habilidade técnica
para entendê-las.”
295
Parece até que Kepler já previa que o Harmonices mundi teria uma
aceitação difícil entre os seus pares (“não faz diferença se ele será lido pelos
meus contemporâneos ou pelas pessoas que virão: deixe-o esperar pelo seu
leitor por cem anos, já que o próprio Deus esperou por seis mil anos por
alguém que O interpretasse.”
296
), mas para ele não fazia diferença: estaria
sempre a serviço do Deus Criador, a decifrar e divulgar a Sua obra.
Considerações Finais
294
Ibid., p. 285;
295
B. Stephenson, The Music of the Heaven, pp. 242-3;
296
J. Kepler, op. cit., p. 391;
149
Tínhamos como objetivo desta pesquisa em História da Ciência dissertar
sobre a apresentação e fundamentação teórica e epistemológica empregada
por Johannes Kepler na elaboração da “terceira lei” do movimento planetário. A
fonte primária principal utilizada foi a tradução para o inglês feita por E. J. Aiton,
A. M. Ducan e J. V. Field do original, em latim,
Harmonices mundi, de 1619.
O
Harmonices mundi é uma composição harmoniosa entre matemática,
música e teologia aplicadas ao contexto
astronômico do século XVII. Foi
concebido originalmente como a continuação de um trabalho anterior de
Kepler, o
Mysterium Cosmographicum (1596). Nesta obra Kepler defende
abertamente a hipótese heliostática de Nicolau Copérnico e descreve pela
primeira vez sua idéia dos sólidos regulares como representação matemática
das órbitas dos planetas.
Utilizamos o primeiro capítulo desta dissertação para contextualizar a
Astronomia e a Física no cenário europeu ocidental dos séculos XVI e XVII e
observamos as principais críticas e defesas aos sistemas geocêntrico de
Ptolomeu e heliostático de Copérnico, a importância da coleta sistemática dos
dados astronômicos de Tycho Brahe e alguns dos motivos que levaram Kepler
a se tornar um eterno defensor do modelo copernicano
. Demos ênfase ao fato
de que, apesar do conjunto de mudanças propostas nestes dois campos do
conhecimento, mudanças as quais rompiam com paradigmas anteriormente
aceitos – como, por exemplo, o movimento de rotação e de revolução da Terra,
a abolição dos orbes celestes, o fim do dogma do movimento circular uniforme
para os planetas, os cometas serem corpos celestes “supralunares” e não
fenômenos atmosféricos, o Sol ser responsável direto pelo movimento dos
150
planetas – tais transformações não aconteceram de forma ágil e inesperada,
nem foram ditadas por uma única pessoa.
A contribuição de Johannes Kepler neste panorama foi bastante
significativa: se lembrarmos que as aspirações do jovem estudante austro-
germânico eram do campo da teologia, a sua busca incessante pela
compreensão da lógica do Criador e a sua facilidade de análise das questões
matemáticas resultou, não só no desenvolvimento das três “leis” que levam o
seu nome, mas em todo um lineamento teórico-filosófico influenciado pelo
neoplatonismo renascentista, pelos ensinamentos religiosos luteranos e pela
matemática euclidiana.
No segundo capítulo, tentamos estabelecer uma linha de tempo que
pudesse dar conta da maioria dos eventos significativos que contribuíram para
a formação pessoal e intelectual de Kepler. Por mais que buscássemos, para
fins didáticos, uma linearidade nesses eventos, algumas idas e vindas foram
necessárias para dar conta da complexidade do cenário da Revolução
Científica, reconhecido por muitos autores como um labirinto histórico. Nesse
período, enquanto as transformações políticas, sociais, religiosas, educacionais
e científicas influenciam umas as outras, “antigos” e “modernos” medem força a
respeito das novas interpretações do mundo trazidas pelas grandes
navegações ou pela releitura dos originais gregos ou por outros eventos
impossíveis de serem relegados, como o “surgimento” de uma nova estrela no
céu e a reforma do calendário juliano.
Neste capítulo Kepler é estudado novamente como agente passivo e
ativo desse período, pois é influenciado e influencia o pensamento da época,
151
por exemplo, rompendo com a tradição do movimento circular uniforme dos
corpos etéreos e atribuindo causas físicas aos movimentos planetários, bem
como recorrendo à mística pitagórica e platônica dos sólidos regulares e das
proporções harmônicas.para explicar a ordem e a regularidade destes
movimentos.
Uma vez contempladas as bases astronômicas, físicas e filosóficas,
deixamos para o terceiro e último capítulo desta dissertação a apresentação e
fundamentação teórica mais evidente da “terceira lei de Kepler”.
Ao estudarmos o quinto livro do
Harmonices mundi, a nossa indagação
sobre a menor quantidade de estudos em livros e artigos sobre a “lei
harmônica” em comparação com as outras “leis” se fez patente: é muito difícil
“aos nossos olhos” – e também para muitos contemporâneos de Kepler –
acreditarmos na quantidade de evidências pormenorizadas apresentadas pelo
astrônomo na relação harmônica envolvendo o movimento dos planetas e a
teoria musical. Passamos do “encantamento” à crítica mais severa e de novo,
ao “encantamento” simplesmente ao transitarmos de uma página para a outra:
a “terceira lei”, apresentada no capítulo III, aparece como mais uma das muitas
considerações de Kepler sobre a teoria astronômica; a forma de sua utilização
é demonstrada em exemplos bem construídos; sua aplicabilidade é direta nas
questões relativas aos movimentos diurnos dos planetas no afélio ou periélio;
os resultados obtidos, quando comparados uns com os outros, aproximam-se
muito bem das relações harmônicas entre a consonâncias de acordo com a
teoria musical da época; mesmo com todas essas evidências “bem diante de
152
nossos olhos”, a pergunta permanece: como foi possível chegar à conclusão
que se chegou?
Não é por menos que o
Epitome Astronomiae Copernicae e o Tabulae
Rudolphine (1627) são tidos por alguns como os representantes mais dignos
da “nova ciência” que estaria por vir, apesar de lamentarmos, em parte, essa
consideração. Como expusemos na conclusão do capítulo terceiro, nas
palavras de Max Caspar, o embasamento teórico de Kepler não corresponde
ao materialismo de nosso tempo, por isso dificulta-nos sua compreensão
integral, conforme era o desejo do autor; seu estilo é repleto de
ornamentações, ricas em referências e com cuja elegância simbólica muitos
não sabem como começar qualquer análise. Atentos a isso, procuramos
investigar Kepler apenas em seu contexto, sem torná-lo ícone nem de uma
nova astronomia, nem de uma “magia matemática”.
Portanto, ao repetirmos as perguntas “sorte ou perseverança”, “intuição
ou iluminação”, “ciência ou adivinhação” para o trabalho de Kepler, escolhemos
como única resposta válida “todas as anteriores” e deixamos, para um
momento futuro, novas e outras considerações.
Referência Bibliográfica
ALFONSO-GOLDFARB, A. M. A magia das máquinas: John Wilkins e a origem
da mecânica moderna. São Paulo, Experimento, 1994.
_____, O que é História da Ciência. São Paulo, Brasiliense, 1994.
AMERICAN COUNCIL OF LEARNED SOCIETIES. Dictionary of Scientific
Biography. Nova Iorque, Charles Scribner´s sons, 1981.
ANDERY, M. A. P. A. & N. Micheletto & T. M. A. P. Sério & D. R. Rubano & M.
Moroz & M. E. M, Pereira & S. C. Gioia & M. H. T. A. Gianfaldoni & M. R.
Savioli & M. L. B. Zanotto, orgs. Para compreender a ciência. 6
a
Edição. São
Paulo/Rio de Janeiro, Educ, 1996.
BIANCHI, L., “A física do movimento”. Revista Scientific American Especial: A
ciência na Idade Média: 40-3;
BOCZKO, R. Conceitos de Astronomia. São Paulo, Edgard Blücher, 1984.
BOQUIN, D. & J. Celeyrette, “A lógica na Idade Média”, Revista Scientific
American Especial: A ciência na Idade Média: 24-9.
BUTTERFIELD, H. As origens da ciência moderna. Trad. portuguesa de Teresa
Martinho. Lisboa, Edições 70, 1992.
CASPAR, M. Kepler. Trad. inglesa de C. Doris Hellman. Nova Iorque, Dover
Publications, 1993.
COHEN, I. B. & R. S. Westfall, orgs. Newton: textos, antecedentes,
comentários. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Contraponto/Eduerj, 2002.
COHEN, I. B. Revolution in Science. Cambridge/Massachusetts/Londres,
Harvard University Press, 1985.
COLEÇÃO OS PENSADORES, Aristóteles. São Paulo, Nova Cultural, 2004.
_____, História da Filosofia. São Paulo, Nova Cultural, 2004.
_____, Platão. São Paulo, Nova Cultural, 2004.
_____, Pré-Socráticos. São Paulo, Nova Cultural, 2004.
_____, Santo Agostinho. São Paulo, Nova Cultural, 2004.
_____, Tomás de Aquino. São Paulo, Nova Cultural, 2004.
CONFORD, F. M. Plato´s cosmology: The Timaeus of Plato.
Indianópolis/Cambridge, Hackett Publishing Company, 1977.
COPÉRNICO, N. Commentariolus: pequeno comentário de Nicolau Copérnico
sobre suas próprias hipóteses acerca dos movimentos celestes. Ed.
de Roberto de Andrade Martins. 2
a
Edição. São Paulo, Editora Livraria da
Física, 2003.
_____, On the Revolutions of the Heavenly Spheres. Tradução inglesa
de C. G. Wallis. Chicago/Londres, Enciclopaedia Britannica, 1952 (Col.
Great Books of Western World, Vol. 16)
CROWE, M. J. Theories of the World – from Antiquity to the Copernican
Revolution. 2
a
Edição. Nova Iorque, Dover Publications, 2001.
DEBUS, A. El Hombre y la Naturaleza en el Renacimiento. Trad. espanhola de
S. L. Rendón. 2ª. Edição. México D. F., Fondo de Cultura Económica, 1996.
DREYER, J.L.E. A history of astronomy from Thales to Kepler. 2a. edição, Nova
Iorque, Dover Publications [s.d.]
ÉVORA, F. R. R. A revolução copernicana-galileana. I. Astronomia e
cosmologia pré-galileana. Campinas: Centro de Lógica, Epistemologia e
História da Ciência/UNICAMP, 1988 (Coleção CLE, 3)
FIELD, J. V. “Rediscovering the Archimedean Polyhedra: Piero della
Francesca, Luca Pacioli, Leonardo da Vinci, Albrecht Dürer, Daniele
Barbaro, and Johannes Kepler”, Arquive for History of Exact Science, vol.
50, n
o
3-4, 1997;
GALILEO-KEPLER, El mensaje y el menjareo sideral. Trad. espanhola de C.
S. Santos. Madri, Alianza Editorial, 1984;
GINGRAS, Y. & P. Keating & C. Limoges, Do Escriba ao Sábio: os detentores
do saber da Antiguidade à Revolução Industrial. Trad. portuguesa de Ângelo
dos Santos Pereira. Porto, Porto Editora, 2007.
HALL, M. B., The Scientific Renaissance 1450 – 1630. Nova Iorque, Dover
Publications, 1994.
KEPLER, J. Concerning the more certain fundamentals of astrology: a new brief
dissertation lookings towards a cosmotheory together with a physical
prognosis for the year 1602 from the birth of christ, written to the
philosophers, 1602. Edmonds (WA), Holmes Publishing Group, 2001.
_____, Epitome of Copernican astronomy and Hamonies of the world.
Trad. inglesa Charles G. Wallis. Chicago/Londres, Enciclopaedia
Britannica, 1952. (Col. Great Books of Western World, Vol. 16)
_____, Epitome of Copernican astronomy and Hamonies of the world.
Trad. inglesa Charles G. Wallis. Nova Iorque, Prometheus Books, 1995.
_____, The Harmony of the world. Trad. inglesa E. J. Ailton, A. M. Ducan,
J. V. Field. Filadélfia, American Philosophical Society, 1997.
KOESTLER, A. Os Sonâmbulos. História das idéias do homem sobre o
Universo. Trad. Alberto Denis. São Paulo, Instituição Brasileira de Difusão
Cultural, 1961.
KOYRÉ, A. Do Mundo fechado ao Universo infinito. Trad. Donaldson M.
Garschagen. 3
a
Edição, Rio de Janeiro/São Paulo, Forense Universitária,
2001.
_____, Estudos de História do Pensamento Científico. Trad. Márcio Ramalho.
Rio de Janeiro/Brasília, Editora Forense Universitária/Universidade de
Brasília, 1992.
_____, Estudos Galilaicos, Trad. portuguesa Nuno F. da Fonseca. Lisboa,
Publicações Dom Quixote, 1986;
KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. Trad. Beatriz Vianna Boeira
& Nelson Boeira. 8
a
Edição. São Paulo, Perspectiva, 2003.
______, A Revolução Copernicana. A Astronomia Planetária no
Desenvolvimento do Pensamento Ocidental. Trad. Marília Costa Fontes.
Lisboa, [s.ed.], [s.d.].
MARTENS, R. M. Kepler´s phylosophy and the new astronomy.
Princeton/Oxford, Princeton University Press, 2001.
MARTINS, R. A., “A Torre de Babel Científica”, Revista Scientific American
Especial: Grandes Erros da Ciência: 6-13;
_____, R. A., O Universo. Teorias sobre sua origem e evolução. São Paulo,
Moderna, 1994.
McCLUSKEY, S. C. Astronomies and cultures in early medieval Europe.
Cambridge, Cambridge University Press, 1998.
METHUEN, C. Kepler´s Tübingen: stimulus to theological mathematics? Tese
de Doutorado, Edingburgh, University of Edinburgh, 1994.
PLATÃO, Timeu e Crítias ou a Atlântida. Trad. N. P. Lima. São Paulo, Hemus,
1981.
PTOLOMEU, C. The Almagest. Trad. Inglesa de R. C. Taliaferro.
Chicago/Londres, Enciclopaedia Britannica, 1952. (Col. Great Books of
Western World, Vol. 16)
_____, Harmonics. Trad. inglesa de J. Solomon. Leiden/Boston, Brill, 2000.
_____, Tetrabiblos. Trad. inglesa de F. E. Robbins. Cambridge, Harvard
University Press, 1980.
RIHA, O., “Medicina dos Humores e Símbolos”, Revista Scientific American
Especial: A ciência na Idade Média: 52-7;
ROSSI, P. A ciência e a filosofia dos modernos. Trad. Álvaro Lorencini, 1
a
Reimpressão, São Paulo, Editora Unesp, 1992.
_____. O nascimento da ciência moderna na Europa. Trad. Antonio Angonese.
Bauru/São Paulo, Edusc, 2001.
SACROBOSCO, J. Tratado da Esfera. Trad. Carlos Ziller Camenietzk sobre
Trad. Pedro Nunes. São Paulo/Rio de Janeiro, Editora Unesp/Nova Stella
Editorial/MAST, 1991.
SAVOIE, D., “Os estudos no Ocidente”. Revista Scientific American Especial, A
ciência na Idade Média: 9;
SILVA, C. C., “A natureza dos cometas e o escorregão de Galileu”, Revista
Scientific American Brasil: Grandes erros da Ciência: 20-5;
STEPHENSON, B. The music of the heavens: Kepler´s harmonic astronomy.
Princeton, Princeton University Press, 1994.
VERDET, J. P. Uma História da Astronomia. Trad. Fernando Py. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1991.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo