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“Os números não seriam, portanto – como virão a ser mais tarde – meros
símbolos a exprimir o valor das grandezas: para os pitagóricos, eles são reais,
são a própria “alma das coisas”, são entidades corpóreas constituídas pelas
unidades contíguas. Assim, quando os pitagóricos falam que as coisas imitam
os números estariam entendendo essa imitação (mímesis) num sentido
perfeitamente realista: as coisas manifestariam externamente a estrutura
numérica que lhes é inerente.”
187
Na filosofia pitagórica, matemática, música, cosmologia e ciência se misturam de forma
homogênea. A razão entre dois números pode estabelecer consonância ou dissonância entre
duas notas musicais: os números 1, 2, 3 e 4 – conhecidos como tetrácitos – combinados nas
razões 1/2, 2/3 e 3/4 formam, respectivamente, a oitava
188
, a quinta e a quarta notas obtidas a
partir de uma nota musical
189
qualquer. A relação entre o comprimento da corda e a freqüência
da nota emitida por ela também se aplica, na cosmologia pitagórica, ao tamanho das esferas
planetárias. Imperceptíveis aos ouvidos humanos, cada planeta emitiria uma nota musical ao
longo da sua trajetória – os mais lentos, notas mais graves, os mais rápidos, notas mais
agudas – e o Universo seria, portanto, uma sinfonia musical regida pela harmonia matemática.
“No universo pitagórico, o disco faz-se bola esférica. Em torno dela, o sol, a lua
e os planetas giram em círculos concêntricos, cada um preso a uma esfera ou
roda. A rápida revolução de cada um de tais corpos ocasiona no ar um silvo, ou
sussurro musical. Evidentemente cada planeta sussurrará em tom diverso,
dependendo da razão da sua respectiva órbita, assim como o tom de uma
corda depende do seu comprimento. As órbitas em que se movem os planetas
formam uma espécie de imensa lira cujas cordas se curvam em círculo.
Parecia também evidente deverem ser os intervalos entre as cordas orbitais
governados pelas leis da harmonia”
190
.
187
Coleção Os Pensadores, Pré-Socráticos, p. 18;
188
Cabe aqui um adendo: no texto relativo aos tetrácitos, Kepler refere-se à harmonia musical
usando uma terminologia musical típica do século XVII, como diapason, diatessaron e
diapente. Explicam-nos os comentadores E. J. Aiton, A. M. Duncan e J. V. Field: “Diapason,
que literalmente significa “todas as notas de uma oitava”, tem sido traduzido mais comumente
pela mesma palavra em inglês [diapason: diapasão, em português] do que por “oitava”, pois
Kepler não usa as duas palavras como sinônimas. Da mesma forma, as palavras “diatessaron”,
“diapente”, “diahex”, e assim por diante, as quais foram tendência na música do século XVII,
têm sido empregadas mais comumente para traduzir as mesmas palavras em latim por
“quarta”, “quinta”, que pode ser aumentada ou diminuta, e “sexta”, que pode ser maior ou
menor, uma vez que elas não são precisamente equivalentes.” E. J. Aiton & A. M. Duncan & J.
V. Field in J. Kepler, op. cit., p. xl;
189
Utilizando a linguagem musical atual, podemos explicar melhor a relação entre uma nota
musical e suas oitava, quinta e quarta. Tomando a seqüência das sete notas musicais (1. dó, 2.
ré, 3. mi, 4. fá, 5. sol, 6. lá, 7. si) e escolhendo a nota dó como referência (1ª. nota), sua oitava
será um novo dó, com o dobro da freqüência do original (portanto, mais agudo). Para tanto,
será preciso reduzir à metade o comprimento da corda do instrumento para conseguir essa
nota, daí a razão 1/2. A quinta nota a partir do dó é a sol, que é 1,5 vezes mais alta (aguda)
que o dó original e é obtida reduzindo a 3/2 o comprimento da corda. A quarta nota a partir do
dó é o fá, obtida pela razão 4/3 da freqüência, ou 3/4 do comprimento da corda.
190
A. Koestler, Os sonâmbulos, p. 12;