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4. O conhecimento de si
A doutrina da imagem agostiniana toma o caráter do “realismo cristão”
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na
medida em que o homem é verdadeiramente imagem de Deus. Assim a questão se
coloca da seguinte forma: se Deus é trino, a imagem também deverá ser trina. De fato,
Agostinho descobre e demonstra uma série de estruturas trinitárias no homem.
Há, em última instância, um espírito o qual procede uma trindade humana e que
nela engendra uma consciência de si
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. Trata-se de uma força consciente interior que
sabe de sua própria existência e que afirma essa existência a todo instante.
Os homens duvidaram se a faculdade de viver, recordar, entender, querer,
pensar, saber e julgar provinha do ar, do fogo, do cérebro, do sangue, dos
átomos (...); e houve quem defendesse esta ou aquela opinião. Não obstante,
quem jamais duvidou que vive, recorda, entende, quer, pensa, conhece e
julga? Posto que, se duvida, vive; se está em dúvida acerca daquilo que
duvida, recorda sua dúvida; se duvida, sabe que duvida; se duvida, quer estar
certo; se duvida, pensa; se duvida, sabe que não sabe; se duvida, julga que
não convém assentir temerariamente. E ainda que duvide de todas as demais
coisas, destas jamais deve duvidar, porque se não existissem, seria impossível
a dúvida
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.
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Cayré explica no capítulo IV do seu livro Dieu présent dans la vie de l’esprit, p. 88 a 111, que o
realismo cristão surge da idéia de criação ex nihilo. Neste sentido Deus não é uma abstração, mas a mais
eficaz de todas as realidades, ainda que considerado na sua pura e necessária transcendência.
Também o mundo criado traz, em si, o caráter do realismo, pois não é uma parcela degradada da
divindade, mas sua obra e todas as criaturas não são tiradas de sua substância, mas fruto de sua ação.
Considerando de uma forma muito mais filosófica do que doutrinal, Agostinho aprofunda a teoria da
criação cristã e revela que entre Deus e as criaturas o ponto de contato essencial é o ‘ser’, com a diferença
que no Criador o ser é absolutamente ‘ser sempre’. E cita: “Vi claramente que todas as coisas que se
corrompem são boas: não se poderiam corromper se fossem sumamente boas, nem absolutamente boas.
Com efeito, se fossem absolutamente boas, seriam incorruptíveis, e se não tivessem nenhum bem, nada
haveria nelas que se corrompesse. (...) Vi, pois, e pareceu-me evidente que criastes boas todas as coisas,
e que certissimamente não existe nenhuma substância que Vós não criásseis. E, porque as não criastes
todas iguais, por esta razão, todas elas, ainda que boas em particular, tomadas conjuntamente são muito
boas, pois o nosso Deus criou todas as coisas muito boas.” (Confissões VII: 12, 18) Todo ser é um,
porque participa do semblante de Deus, todas as coisas são verdadeiras porque são um ser. À diferença
das criaturas, o Criador é o ser por essência, imutável e superior.
A partir da concepção de criação é que Agostinho funda sua moral sobre uma verdade libertadora e exige
um verdadeiro amor ao bem e a Deus que é o princípio e o regulador supremo. Deus é a verdade da
existência e a verdade é o suporte de toda procura e toda especulação. A verdade é a própria realidade
identificada com o ser conhecido pelo espírito e na medida em que pode ser conhecido porque Deus é
eterno, ou seja está fora do tempo e acima da compreensão do que é temporal e é também a caridade
perfeita. Verdade, eternidade e caridade são, pois, conjuntamente a fórmula da constituição divina, a qual
assimila uma verdade que é ao mesmo tempo realidade e transcendência.
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SOMERS. Imagem de Deus e iluminação divina, p. 459.
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AGOSTINHO. A Trindade X: 10, 14.