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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
MARIA IMACULADA AZEVEDO FERNANDES
INTERIORIDADE E CONHECIMENTO EM
AGOSTINHO DE HIPONA
MESTRADO EM FILOSOFIA
SÃO PAULO
2007
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
MARIA IMACULADA AZEVEDO FERNANDES
INTERIORIDADE E CONHECIMENTO EM
AGOSTINHO DE HIPONA
MESTRADO EM FILOSOFIA
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção
do título de Mestre em Filosofia sob
orientação do Prof. Doutor Marcelo
Perine
SÃO PAULO
2007
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Banca Examinadora
__________________________________________
__________________________________________
__________________________________________
Para Erimá,
meu sol,
minha luz.
Para Juninho e João,
razão de tudo.
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Marcelo Perine, pela orientação sempre segura, serena e encorajadora.
À Telma de Souza Birchal, professora do departamento de filosofia da Universidade
Federal de Minas Gerais, por conduzir meus primeiros passos rumo ao pensamento de
Agostinho.
À minha irmã, pela incondicionalidade do apoio.
Ao meu pai e minha mãe. Ao meu pai por sua agradável e generosa companhia em
tantas viagens a São Paulo. Por oferecer apoio e segurança sempre. À minha mãe pela
paciência e boa vontade de ler e comentar meus textos, pela dedicação, pelo incentivo.
Pelo francês, inglês, latim e cada vírgula colocada ou retirada. Por sofrer comigo nas
dificuldades, por comemorar por mim as vitórias.
Ao Erimá por sua constante presença.
ESTE TRABALHO CONTOU COM O FINANCIAMENTO DO CNPq
RESUMO
Esse trabalho tem como objetivo investigar a questão da interioridade agostiniana
através do problema do conhecimento.
Interioridade e conhecimento representam duas peças-chave do pensamento de
Agostinho e trazem um enigma com o qual nos ocuparemos em compreender. Refere-se
à forma aparentemente antagônica de conciliar a atividade humana do conhecimento
através do cogito agostiniano com a teoria da iluminação divina. Investigaremos qual é
o estatuto do conhecimento no pensamento agostiniano; o que implica dizer que a
interioridade é, ao mesmo tempo, o lugar do conhecimento e o caminho para Deus; e se
é possível conceber o conhecimento como uma função do intelecto humano e uma
intuição do conteúdo das idéias vindas de Deus.
PALAVRAS-CHAVE: Agostinho, cogito, iluminação, interioridade.
ABSTRACT
This work has as a purpose to research the question of Augustin interiority
through the problem of the knowledge.
Both interiority and knowledge represent the key-pieces of Augustin thought and
they bring an enigma which we’ll be busy in understanding. It refers to the apparently
antagonistic form to conciliate the human activity of the knowledge through the cogito of
Augustin with the theory of the divine illumination. We’ll research which is the statute of
knowledge in Augustin thought; what it implies to say that the interiority is, at the same
time, the place of the knowledge and the way to God; and if it is possible to conceive the
knowledge as a function of the human intellect and an intuition of the contents of ideas
coming from God.
KEY-WORDS: Augustin, cogito, illumination, interiority.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................................08
CAPÍTULO 1: O HOMEM E A CRIAÇÃO
1. A criação ex nihilo.........................................................................13
2. A natureza do homem....................................................................17
3. O homem e a imagem da Trindade................................................20
4. A natureza do mal..........................................................................25
5. A graça...........................................................................................30
6. A salvação pelo conhecimento de Deus.........................................37
CAPÍTULO 2: INTERIORIDADE E PRESENÇA DE DEUS
1. A questão da interioridade..............................................................45
2. O homem interior e o homem exterior...........................................48
3. O itinerário da alma a si mesmo: a visão da imagem.....................52
4. O conhecimento de si.....................................................................56
5. Do conhecimento de si ao conhecimento de Deus.........................58
6. O “Conhece-te a ti mesmo”............................................................62
CAPÍTULO 3: CONHECIMENTO E PRESENÇA DE DEUS
1. A procura da verdade.....................................................................66
2. A iluminação..................................................................................69
3. A natureza do olhar........................................................................72
4. Iluminação e conhecimento de Deus.............................................74
5. O mestre interior............................................................................76
6. O conhecimento de si.....................................................................82
7. Memória, inteligência e vontade....................................................86
8. Interioridade e conhecimento.........................................................89
CONCLUSÃO ......................................................................................................96
BIBLIOGRAFIA...................................................................................................100
8
INTRODUÇÃO
De qualquer maneira que queiramos interpretar o pensamento de Agostinho,
deparamos com problemas que singularizam e ao mesmo tempo limitam uma análise
que vise abranger um número muito grande de textos da obra desse grande doutor, pai
da Igreja Católica do Ocidente. A começar pelo fato de que Agostinho não escreveu
com o objetivo de elaborar um sistema filosófico propriamente dito. Suas reflexões são
quase sempre respostas a problemas gerados do envolvimento com as grandes questões
doutrinais da Igreja de sua época. Assim, com os mais variados tipos de textos como
cartas para amigos e pessoas da comunidade onde trabalhou, sermões que por vezes
parecem verdadeiros tratados, diálogos de cunho tanto filosófico como didático,
dissertações e outros, Agostinho vai tecendo suas reflexões ao longo de uma jornada de
vida e trabalho pela Igreja, procurando abordar os mais diversos e diferentes assuntos.
Não é difícil de concluir, portanto, que o pensamento de Agostinho foi evoluindo e
se modificando com o passar dos anos. Dos seus primeiros escritos elaborados após sua
recente conversão até os últimos, já Bispo em Hipona, percebemos fortes influências de
correntes filosóficas importantes como a estóica por meio de livros de Cícero e
neoplatônica mediante os Platonicorum libri a que teve acesso. Não obstante, o
pensamento agostiniano à medida que encontrava seus próprios contornos tendeu a ir se
distanciando das bases filosóficas pagãs na mesma proporção em que se firmou no
pensamento filosófico cristão, inclusive com uma considerável intensificação dos
dogmas religiosos. Por isso, não é incomum depararmos com justaposições de diversos
raciocínios, evolução de conceitos e até mesmo certa ausência de unidade em seus
diversos textos.
Sem querer negligenciar toda complexidade que a obra apresenta e cuja análise
mais completa exigiria uma inspeção bastante cuidadosa dos diversos e diferentes
escritos de Agostinho, limitamos nosso estudo em apenas dois de seus principais textos:
Confissões e A Trindade. Ambas são classificadas pelos historiadores do pensamento
agostiniano como escritos da maturidade, e o motivo da escolha dessas obras se resume
na forma como o hiponense aborda tanto a questão da interioridade como a questão do
9
conhecimento. Outras obras como O livre arbítrio, A graça, Solilóquios e De Magistro
foram por vezes também usadas como referência, mas não com a mesma intensidade,
por uma questão mais de enriquecimento e esclarecimento de determinados pontos que
julgamos ser importante tratar.
Interioridade e conhecimento representam, a nosso ver, duas peças-chave do
pensamento de Agostinho e trazem um enigma com o qual nos ocupamos em
compreender ao longo desse trabalho. Refere-se à forma aparentemente antagônica de
conciliar a atividade humana do conhecimento através do cogito agostiniano, atividade
essa que exige um esforço pessoal do sujeito que conhece, com a teoria da iluminação
divina.
O cogito agostiniano representa o movimento de coligir da alma que lembra, junta
e recolhe dados de conhecimentos latentes e escondidos na memória. Pode ser
considerado como uma atividade intelectiva totalmente interna e através da qual a alma
se conhece, pensando em si mesma, apreende sua própria existência por uma
experiência imediata e se encontra com Deus.
A iluminação divina representa a forma mais imediata da presença de Deus na
alma. Ela é o ponto de inserção entre a mente e as verdades inteligíveis. A luz irradiada
por Deus ilumina as verdades, o que pressupõe que a luz capacita a alma a ver as leis e
regras gerais segundo as quais podemos perceber, julgar e apreender os objetos de
conhecimento.
De forma geral, os intérpretes do pensamento agostiniano afirmam que a teoria da
iluminação divina é uma herança da teoria platônica da reminiscência. De fato,
Agostinho herda de Platão tanto as dicotomias entre sensível e inteligível, eterno e
temporal, mutável e imutável, como o conceito de Idéia associado principalmente à
criação ex nihilo. Mas a teoria platônica da reminiscência, além de ser incompatível
com a teoria da salvação cristã, não consegue explicar como o espírito toma contato
com as verdades eternas.
Para Agostinho, a capacidade de ver as verdades inteligíveis está em nós, bastando
para isso que a coloquemos na direção certa, ou seja, em direção ao mundo existente
com a alma. O interior é, pois, o lugar onde a esfera do inteligível se dá ao
conhecimento. Ainda que se possa vislumbrar toda beleza e perfeição na ordem cósmica
criada por Deus, o conhecimento das verdades eternas se dá mediante um ato consciente
10
de interiorização. Assim poderemos ver que a teoria da iluminação divina tem um
caráter genuinamente cristão e inovador na medida em que inclui uma noção de
interioridade tal, antes não considerada pelos gregos e seus seguidores.
Enquanto a interioridade em Agostinho é o lugar do encontro com a Verdade e,
por isso mesmo, encontro com Deus, a fonte mesma desse encontro, sede do
conhecimento, é o transcendente, o que leva a alma buscar em si uma força maior que a
si mesma. Uma frase famosa pode sintetizar o que precisamos saber sobre a força
interior através da qual o homem adquire o domínio das verdades transcendentes em
Agostinho: “Noli foras ire, in teipsum redi; in interiori homini habitat veritas.” (Não vá
para fora, volte-se para dentro de si mesmo. No homem interior mora a verdade).
1
Tudo
que precisamos está intus, no homem interior, no espírito, lugar de penetração da
memória, da razão, da dileção e da vontade, porque Deus está presente ali e pode ser
consultado sempre que quisermos.
Deus não é apenas o que ansiamos em ver e conhecer, mas a força subjacente à
própria capacidade de tudo compreender. Deus é a própria luz interior que ilumina a
razão, capacitando-a a enxergar as verdades inteligíveis dentro e fora de si.
É assim que a fórmula da iluminação divina, antes de dispensar a atividade
humana, ao contrário, exige um esforço radicalmente reflexivo. Se Deus está presente
no interior do espírito e se podemos por meio de Sua presença ultrapassar os limites de
nossa existência temporal e mundana e atingir as verdades inteligíveis, a atividade de
conhecer apresenta-se como uma experiência totalmente individualizada. Cada um de
nós tem de voltar-se para sua própria atividade de conhecer, adotando uma atitude
reflexiva de atenção a si mesmo.
Tomar posição de um ponto de vista de primeira pessoa, dar atenção à forma como
o mundo aparece e pode ser pensado por cada um de nós, eis o que afinal a fórmula
significa. Assim, o ponto central do conhecimento ou da consciência em Agostinho é
justamente aquilo que nas ciências modernas ficaria de fora, a saber, a visão a partir do
que o “eu” pensa. Acostumados às fórmulas objetivadas do mundo moderno,
desconsideramos a dimensão pessoal e particular das formas intuitivas do conhecimento
e concentramo-nos nos objetos experimentados. Agostinho nos chama a fazer o
1
AGOSTINHO. De vera Religione, XXXIX: 72. Citado por TAYLOR. In interiore homine, p. 172.
11
caminho contrário: concentrar na forma como os objetos aparecem para nós, fazer da
experiência de conhecer o próprio objeto do conhecimento, tomar consciência de nossa
consciência, experimentar nossa própria experiência.
Mas como em Agostinho em termos de atividade cognitiva e do conhecimento, o
que separa a ação do homem da ação de Deus é uma linha muito tênue e sutil, todo
apelo à atenção a si mesmo é também um apelo a Deus. A verdade está dentro do
homem e pode ser conhecida por meio de sua razão, mas também está acima, pois Deus
é a própria Verdade. É a verdade de Deus que serve de critério e modelo ao qual a razão
deve se curvar e reconhecer.
Agostinho precisava demonstrar que Deus pode ser visto no mundo criado em
uma ordem perfeita e espetacular, mas também e mais importante na intimidade da
presença da própria pessoa diante de si mesma. Deus como Verdade apresenta-nos os
modelos e princípios de toda razão e julgamento corretos, o que nos faz produzir idéias
dos elementos observados. As idéias, no entanto, não surgem dos objetos observados e
sim daquela luz incorpórea pela qual a mente humana é iluminada. Deus é a fonte da luz
e raiz de toda atividade cognitiva, de todo julgamento correto e de toda Verdade.
Ao propor uma investigação sobre a questão do conhecimento em Agostinho de
Hipona, dirigimos nosso olhar para o universo conceitual que resume as características
essenciais do pensamento filosófico do pai do cristianismo as quais aparecem
associadas a importantes questões teológicas. De todas essas questões, a primeira e
principal delas parece-nos ser a relação entre o homem e Deus, o que implica saber qual
é a posição da criatura face ao criador. A segunda e não menos importante, parece-nos
ser a introdução de uma linguagem da interioridade até então desconhecida no cenário
filosófico. Agostinho é o fundador de uma linha de espiritualidade filosófica que afirma
a certeza de Deus no interior da alma e isso traz uma mudança tanto na concepção de
Deus como na concepção de homem em todo pensamento ocidental.
Com o olhar sobre esses dois eixos de reflexão, procuramos estruturar esse
trabalho dividindo-o em três partes: a primeira, fazendo jus ao universo conceitual
referido acima, visa explicitar as bases do pensamento filosófico e teológico de
Agostinho, tendo como ponto central o estatuto do homem na teoria da criação. A
segunda procura explicar como o Bispo de Hipona concebe e apresenta a noção de
interior. A terceira, enfim, trata exclusivamente da questão do conhecimento:
12
conhecimento sensível, conhecimento racional, conhecimento de si e conhecimento de
Deus.
Porque em todas essas formas de conhecimento a percepção e apreensão do objeto
passam necessariamente por dentro, Agostinho faz do conhecimento de si um dos fins
privilegiados da consciência. Por meio do conhecimento de si e da conseqüente
realização da identidade do sujeito face ao objeto de conhecimento revelam-se as
condições de possibilidade da Verdade. Significa, pois, que para além dos limites do
espírito está a possibilidade de apreensão daquelas normas que transcendem e permitem
julgar as atividades de sensação, lembrança, pensamento e raciocínio da alma. Podemos
dizer que o que faz transcender os limites do próprio espírito é a luz divina e o que faz o
homem alcançar a luz é uma capacidade inerente à alma humana.
O pensamento de Agostinho quer demonstrar que entre o homem e Deus há um
elo de união cujo ponto de interseção se inscreve em uma possibilidade de ultrapassar os
limites temporais e corpóreos da vida humana. O elo é, pois, resultado da constituição
da mens, parte superior da alma humana e potencialidade capaz de ver as realidades
incorpóreas e imutáveis.
13
CAPÍTULO 1
O HOMEM E A CRIAÇÃO
“CRIASTES-NOS PARA VÓS E O NOSSO CORAÇÃO
VIVE INQUIETO, ENQUANTO NÃO REPOUSA EM VÓS”
(CONFISSÕES I:1, 1)
1. A criação ex nihilo
Embora Agostinho não tenha elaborado, sistematicamente, uma doutrina da
criação, encontramos em diversas de suas obras comentários de suma importância que
nos fazem entender sua concepção de natureza humana e cósmica. Diferentemente de
muitos filósofos da tradição grega, cujos representantes tiveram a preocupação de
elaborar uma ‘teoria da natureza’, Agostinho procurava, principalmente, responder a
dúvidas e interrogações em relação a certas passagens das Escrituras, combater o
dualismo estóico e o materialismo dos maniqueus e ainda mostrar a inviabilidade das
idéias necessitaristas e emanatistas de um mundo eternamente existente dos
neoplatônicos.
É, pois, seguindo a tradição cristã que o santo Bispo compreendia a doutrina da
criação, não tanto como um ensinamento filosófico, mas como a própria experiência de
Deus e da salvação. Segundo a concepção cristã, a criação é o resultado do ato livre de
Deus, fruto do amor e da manifestação da Trindade
2
divina.
No vocábulo “Deus”, eu entendia já o Pai que criou todas as coisas; e pela
palavra “princípio” significava o Filho, no qual tudo foi criado pelo Pai. E,
2
A Trindade é o dogma de um só Deus em três pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo, reconhecidas
como distintas em uma mesma unidade, natureza, essência ou substância. O leque de interpretações a
respeito dessa doutrina levou Agostinho a escrever o seu tratado sobre a Trindade (De Trinitate) cujas
bases instauram-se tanto nas Escrituras como no neoplatonismo (LACOSTE. Dicionário crítico de
Teologia). A trindade neoplatônica se expressa na teoria das três hipóstases de Plotino. Da primeira
hipóstase – o Uno – procede o seu verbo – o Intelecto –, e deste seu Verbo – a Alma universal
(MONDOLFO, p. 207). Se significativas diferenças entre as duas trindades podem ser assinaladas,
devemos ressaltar a grande proximidade entre a segunda pessoa da trindade cristã e a segunda hipóstase
neoplatônica, ambas associadas à inteligência, sabedoria e verbo de Deus-Uno.
14
como eu acreditasse que o meu Deus é trino, procurava a Trindade nas vossas
Escrituras e via que o vosso Espírito “pairava sobre as águas”. Eis a vossa
Trindade, meu Deus: Pai, Filho e Espírito Santo. Eis o Criador de toda
criatura.
3
No livro XI das Confissões, ao comentar o Gênesis 1,1, Agostinho ressalta que o
ato de criação foi o ato de falar, expressão do Verbo Divino. “Criastes, ó Deus, o céu e
a terra, neste princípio, no vosso Verbo, no vosso Filho, na vossa Virtude, na vossa
Sabedoria, falando e agindo de um modo admirável”
4
. O Verbo, atribuído à segunda
pessoa da Trindade é, portanto, o mediador do ato criador. “... falastes, e os seres foram
criados. Vós os criastes pela vossa palavra”
5
.
De acordo com a interpretação dada por Agostinho, a criação pela Palavra
demonstra que Deus criou todas as coisas a partir do nada ou, se quisermos ser mais
específicos, a partir de sua própria vontade e próprias idéias. Criou toda matéria, toda
forma – e a própria possibilidade de formação da matéria e das formas – sem o indício
de qualquer obrigação ou necessidade, mas como resultado da bondade e do amor. É,
pois atribuído ao Espírito Santo esse amor.
Quando no relato da criação, expresso nos capítulos iniciais do livro do Gênesis,
Deus contempla sua criação e classifica como boas as criaturas, é o Espírito, cuja obra é
associada à do Pai e do Filho, que se manifesta para que a criação aconteça e se
conserve. Segundo o Hiponense, portanto, ao dizer que uma criatura é boa, Deus está
afirmando que ela pode permanecer.
É assinalada, nesse sentido, a presença constante de Deus em sua obra. Deus cria
todas as coisas e permanece junto delas; é responsável pela permanência e conservação
de tudo o que é criado sem, no entanto, ser parte integrante dessa criação.
Ressaltamos aqui a diferença fundamental entre a concepção de criação adotada
por Agostinho e aquela defendida pelos neoplatônicos. O conceito de criação, além de
ressaltar o ato livre pelo qual Deus teria criado sem a presença anterior de qualquer
forma e qualquer matéria, assinala a impossibilidade de haver consubstancialidade entre
criador e criatura.
3
AGOSTINHO. Confissões XIII: 5,6.
4
AGOSTINHO. Confissões XI: 9, 11.
5
AGOSTINHO. Confissões XI: 5, 7.
15
Criastes, sim, o céu e a terra, sem os tirardes de Vós. Doutro modo, seriam
iguais ao vosso Filho Unigênito, e, por isso mesmo, iguais a Vós o que não é
da vossa substância. Nada havia, fora de Vós com que os pudésseis criar, ó
Trindade Una e Unidade Trina. Do nada, pois, fizestes o céu e a terra, àquele,
grande, e a esta, pequena. Só Vós existíeis, e nada mais6.
Nas Enéadas V podemos encontrar o conceito de emanação defendido por Plotino:
Todos os seres que já são perfeitos geram. Ora, o que é sempre perfeito gera
constantemente e eternamente, e gera um inferior a si mesmo (V, 1º, 6). Então,
se Ele (Uno), permanecendo em si mesmo, gerar alguma coisa, gera-a de si
mesmo, pois Ele é por excelência aquele que é (V, 4º, 2). 7
Na idéia de criação, Deus é anterior e independente de qualquer criatura existente.
É nesse sentido que Agostinho afirma que se todos os nossos conceitos derivam de
nossas experiências corporais ou espirituais, experiências ligadas à matéria e ao tempo,
suas modalidades não se aplicam de forma alguma a Deus, pois Deus transcende o
nosso entendimento na mesma medida e proporção que transcende o nosso ser
8
. Em
uma belíssima passagem das Confissões podemos ver como era cara para Agostinho a
idéia de Deus como um Ser superior e independente das criaturas.
(Quem é Deus?) Perguntei-o à terra e disse-me: “Eu não sou”. E tudo o que
nela existe respondeu-me o mesmo. Interroguei o mar, os abismos e os répteis
animados e vivos e responderam-me: Não somos o teu Deus; busca-o acima
de nós”. Perguntei aos ventos que sopram; e o ar, com seus habitantes,
respondeu-me: “Anaxímenes está enganado; eu não sou o teu Deus”.
Interroguei o céu, o Sol, a Lua, as estrelas e disseram-me: “Nós também não
somos o Deus que procuras”. Disse a todos os seres que me rodeiam as portas
da carne: “Já que não sois o meu Deus, falai-me do meu Deus, dizei-me, ao
menos, alguma coisa d’Ele. E exclamaram com alarido: “Foi Ele quem nos
criou9.
Sabendo da criação ex nihilo, podemos nos perguntar, no entanto, se a forma
como Agostinho concebe a criação pode ser tomada como um ato atemporal e único de
Deus ou se o seu ato permanece eternamente.
No capítulo 4 do livro XI das Confissões, Agostinho faz referência às rationes
seminales ou forças germinativas. “Ainda mesmo o que não foi criado e todavia existe
nada tem em si que antes não existisse. Portanto sofreu mudança e passou por
6
AGOSTINHO. Confissões XII: 7, 7.
7
MONDOLFO. O pensamento antigo, v. II, p. 204
8
AGOSTINHO. A Trindade V: 1, 2.
16
vicissitudes
10
. As rationes seminales, segundo Boehner e Gilson, são um indício de que
“o mundo e as coisas teriam sido criadas graças à ação ininterrupta de Deus”
11
.
Embora o mundo e todas as coisas tenham sido criados simultaneamente,
podemos observar o surgimento de seres provindos dessas forças germinativas. Assim
temos entre as criaturas aquelas que foram criadas desde o início na plena perfeição de
suas formas (os anjos, o firmamento, a terra, o ar, o fogo, os astros e a alma humana), e
as que foram “esboçadas”, cabendo a uma evolução natural fazê-las surgir no seu tempo
certo (o corpo de Adão e de todos os homens e os germes originais dos seres vivos).
As forças germinativas contêm as sementes evolutivas daqueles seres que foram
criados em estado de uma preformação, mas fariam cumprir, tão somente, os
desdobramentos dos conteúdos espirituais já depositados por Deus no instante eterno e
ininterrupto do seu ato criador
12
. A criação seria nada menos, portanto, que a expressão
maior da eternidade, pois se faria continuamente no eterno presente de Deus.
Mas, enquanto não há diferença entre o dizer e o criar, pois o dizer simultâneo e
sempiterno tem o sentido do nosso mandar, o realizar-se acontece dentro de uma
ordenação temporal. Isso porque, ao criar o mundo, Deus criou o tempo e tudo passou a
se submeter inexoravelmente à temporalidade para que se realizasse a história da
salvação. É ressaltado, portanto, por Agostinho, o existir dinâmico de um tempo que se
define justamente por sua sucessão ordenada em direção ao futuro escatológico, o que
nos traz imediatamente a idéia de volta ao criador.
No primeiro capítulo das suas Confissões, lemos sobre essa idéia da volta, que será
uma de suas idéias mais centrais e que nos permitirá fazer os mais variados
desdobramentos. “... criastes-nos para Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto
não repousa em Vós”.
13
A criação será a base do plano da salvação de Deus na medida
em que exorta, necessariamente, o retorno de toda criatura à sua unidade de origem.
Ainda segundo Boehner e Gilson, a idéia do retorno ou da ascensão a Deus
provém de Plotino, mas em Agostinho essa idéia se reveste de um significado
profundamente cristão na medida em que contrapõe a criação à concepção pagã de um
9
AGOSTINHO. Confissões X: 6,9.
10
AGOSTINHO. Confissões XI: 4, 6.
11
BOHENER & GILSON. História da Filosofia Cristã, p. 178 e 179.
12
Ibidem.
13
AGOSTINHO. Confissões I: 1,1.
17
mundo eternamente existente. Assim, ao passo que em Plotino o retorno ao Uno (que
pode ser considerado como correspondente a Deus
14
) se faz sob a idéia de um “ser como
ato puro”
15
, Agostinho condiciona o retorno à pureza de espírito, à caridade
16
e
humildade que mantêm o homem no lugar devido dentro da ordem cósmica: acima dos
animais e abaixo dos anjos e santos – superior a tudo o que é terreno e inferior a tudo o
que é celeste.
É dessa forma que o homem poderá contemplar a Deus nas obras em que Ele
criou, mas jamais conhecê-Lo nelas.
17
Aqui, justamente nesse ponto, que a criação do
homem terá uma significação totalmente singular em relação ao universo criado. Existe
uma possibilidade latente no homem que o torna potencialmente capaz de conhecer a
Deus ou ao menos reconhecer a Sua inteligibilidade e transcendência. Essa capacidade
resulta da fórmula Imago Dei, cuja reflexão passaremos a seguir.
2. A natureza do homem
Toda a doutrina agostiniana sobre a natureza humana fundamenta-se no trecho do
Gênesis 1,26 que diz: “Façamos o homem à nossa imagem, segundo a nossa
semelhança”. Apoiado nas Escrituras, Agostinho tinha muito claro que o homem
pertence a um estatuto superior da criação, pois Deus, tendo criado do nada (criação ex
nihilo), conferiu a todas as criaturas certa participação de seu “ser”. Contudo, somente
ao homem Deus conferiu mais do que uma simples participação, mas o
compartilhamento da sua própria essência trina. Assim, ainda que toda a criação se
14
BEIERWALTES. Agostino e il Neoplatonismo cristiano, p.96.
15
Para Plotino “o Uno é o Ser em ato por si mesmo. Por si dá a substância a si mesmo, sendo o ato
congênito com ele (...). Ele é ato que transcende o intelecto, a razão e a vida; estes nascem dele e não de
outro. Portanto, vem-lhe o ser por virtude de si mesmo, a si mesmo e por si mesmo; não é tal como lhe
coube ser, mas como ele quis ser, assim é... Conduz ele a si mesmo quase no interior de si mesmo,
amando-se a si mesmo, luz pura sendo ele mesmo aquele que ama (...). Mais ainda, se ele, sobretudo,
existe, enquanto tem seu fundamento em si mesmo, e quase olha para si mesmo, e o seu quase ser é este
contemplar-se a si mesmo, então, ele quase se cria a si mesmo”. (Enéadas VI, 8º, 6 in MONDOLFO, 201)
16
Em Agostinho a palavra caridade (caritas) tem o sentido do verdadeiro amor que aspira à eternidade, o
qual se contrapõe à cobiça (cupiditas) amor que se prende ao mundo em como tal é transitório. Para saber
mais ver: ARENDT. O conceito de amor em Santo Agostinho.
17
BOHENER & GILSON. História da Filosofia Cristã, p. 187
18
assemelhe de certo modo ao Criador, é o homem que herda a imagem de Deus que vem
impressa na sua alma.
O que o Hiponense ressalta em várias de suas obras é que o homem, tendo sido
criado à imagem e semelhança de Deus, recebeu um espírito intelectual acima de todos
os outros seres para que pudesse reconhecer as obras divinas, louvar e seguir os planos
de salvação. É o que justifica o fato de o santo Bispo colocar o homem como figura
absolutamente central nas suas investigações.
Essa proximidade entre o homem e Deus, embora seja própria da natureza
humana, não pode ser descrita como uma cópia da perfeição divina.
(...) fixemo-nos nas três realidades que parece termos encontrado em nós. Não
vamos falar ainda das realidades supremas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
Mas vamos nos referir agora à imagem imperfeita, contudo imagem, ou seja, à
criatura humana18.
A alma do homem será sempre uma imagem imperfeita, não só porque o homem
conheceu a queda e o pecado, mas porque a plenitude do Ser somente existe em Deus. A
própria forma como Agostinho concebe a alma humana demonstra que não é a alma
toda que é o reflexo da Trindade, pois há nela uma porção inferior e outra superior. A
porção superior, que ele define como mens, é que pode ser descrita como a imagem de
Deus.
(...) cada homem é denominado imagem de Deus, não devido a toda a sua
natureza, mas apenas quanto à mente. E ele não é senão uma pessoa, sendo a
imagem da Trindade, pela mente19.
A imagem, propriamente dita, aquela que apesar de toda a imperfeição se
aproxima mais da verdadeira imagem de Deus, encontra-se no homem interior, em seu
espírito. Ora, sendo Deus entendido sempre como o Deus Trino – três pessoas numa
mesma substancialidade – o homem reproduzirá o modelo trino. A alma do homem é
como o reflexo de toda a Trindade. “Devemos entender o homem feito à imagem da
Trindade, isto é, à imagem de Deus”
20
.
18
AGOSTINHO. A Trindade IX: 2, 2.
19
AGOSTINHO. A Trindade XV: 7,11.
20
AGOSTINHO. A Trindade XII: 7,9.
19
Segundo Somers
21
podemos apontar três aspectos importantes na doutrina da
imagem em Agostinho. Primeiramente, a imagem é signe (marca) da divindade –
remete-nos a Deus e nos revela sua natureza – é, portanto, possibilidade de
conhecimento, gnose e sabedoria porque é participação da sabedoria divina. Acrescenta-
se aqui a noção de dualismo, que segundo Somers, Agostinho teria herdado do
platonismo. A imagem não é mais o homem inteiro, mas somente o espírito, sujeito da
iluminação, à exclusão do corpo.
Em segundo lugar a imagem é effige (figura) de Deus, sua representação real. Se
Deus é trino, a imagem também é trina. A expressão máxima e superior da imagem de
Deus no homem está na trindade: memória, inteligência e vontade. Assim não é na fé,
mas na própria estrutura trinitária da alma (estrutura esta que diferencia o homem de
todos os outros animais) que o homem pode conhecer a Deus.
Por fim a imagem é miroir (espelho) de Deus, porque é o instrumento pelo qual o
homem pode contemplar o semblante de Deus. A alma como espelho capta o reflexo da
luz divina, permitindo pressentir o “Ser” enigmático da presença. A imagem, nesse
sentido, não é exclusivamente uma semelhança nem uma participação da luz eterna. Ela
é a própria presença real da Trindade.
Nesse sentido, não é exercendo a virtude de fé que a alma é a imagem da
Trindade. Também não é percebendo o sensível, nem alcançando a ciência do que lhe é
exterior, pois o que lhe é exterior não faz parte da constituição humana. A verdadeira
imagem, aquela que a Trindade criadora quis realizar em nós, nos é consubstancial a
ponto de fazer parte de nosso ser.
Não obstante, o homem não é só a alma. Esta se serve de um corpo, é superior a
ele, mas não é sem ele. Portanto, para o Hiponense, o corpo também faz parte da
natureza humana, embora seja reconhecido que deva ser governado pela alma.
A posição adotada por Agostinho quando se trata da distância entre corpo e alma é
tomada em um sentido “nitidamente antropológico”
22
e pode também ter suas bases na
tradição platônica, na medida em que defende que a relação entre alma e corpo não se
21
SOMERS. La gnose augustinienne : sens et valeur de la doctrine de l’image, p. 1-4.
22
LADARIA. In: O homem e sua salvação, p. 104. O autor chama nossa atenção para uma aparente
ruptura entre o pensamento paulino, que influenciou e suscitou importantes reflexões na tradição
patrística e a forma como Agostinho aborda o tema. Enquanto em são Paulo o uso dos termos – carne e
20
fundamenta em dimensões completamente opostas entre si, pois a alma governa o corpo
e tende a se unir àquilo que lhe é consubstancial. Assim, por ser uma substância
imaterial, a alma deverá tender naturalmente às realidades também imateriais e daí fazer
com que o corpo não fique apegado às coisas materiais e terrenas. Todo desvio é fruto
não de uma tendência má do corpo e sim de um desequilíbrio da própria alma que se
esqueceu de sua verdadeira natureza.
Para o Hiponense, ainda que o corpo tenda para o mal, é fruto da criação e como
tal é bom. O que torna o corpo verdadeiramente mau é o mau uso da vontade, quando o
espírito, deixando-se governar somente com base na liberdade humana, deixa-se levar
pela tendência má.
Nesse sentido, mesmo que se reconheça forte influência de um dualismo que pode
ter suas origens no pensamento platônico ou, mais especificamente, neoplatônico, a
concepção de natureza humana do Hiponense toma o sentido do espiritualismo cristão,
no qual alma e corpo constituem o homem criado por Deus. Não um corpo separado de
uma alma ou uma alma que se viu prisioneira de um corpo, mas um indivíduo único e
singular criado à imagem de Deus.
Das duas substâncias, alma e corpo, aquela não só é superior, como é a parte que
se liga a Deus e participa ativamente da verdade eterna e imaterial. Nesse sentido,
“ainda que a alma seja uma substância completa, ela se une a um corpo para formar com
ele uma nova substância. A alma, nesse sentido, tem a função de ser a substância
animadora e vivificadora do corpo e é graças a essa união, que a natureza inferior ou
corporal se une, por intermédio da natureza superior da alma, à natureza suprema de
Deus”
23
.
3. O homem e a imagem da Trindade
espírito – demonstram uma oposição de profundo radicalismo, em Agostinho os termos usados são corpo
e alma, prefigurando muito mais o sentido usado na tradição filosófica pagã.
23
BOEHNER e GILSON. História da Filosofia Cristã, p. 182.
21
A partir do capítulo IX de A Trindade Agostinho, ao procurar conhecer a Deus e
os mistérios de sua Trindade, mostra como a estrutura da alma humana se assemelha à
estrutura trina de Deus e a maneira pela qual aquela participa de um plano maior da
criação. Agostinho sabe que embora possamos perceber a presença de Deus nas
maravilhas que ele criou, é no interior da alma que se pode reconhecê-lo, pois a imagem
de Deus está no homem interior, no espírito. Assim, mesmo que não se possa encontrar
a imagem da verdadeira Trindade, aquela que somente pode ser reconhecida somente
em Deus, é possível encontrar o lugar onde ela está presente. A reflexão sobre o amor
da alma a si mesma será o ponto de partida.
Quando amo algo, encontro três realidades: eu, aquilo que amo e o próprio
amor. Pois não amo o amor, se não amo, eu que amo: não há amor onde nada
é amado. São portanto três os elementos: o que ama, o que é amado e o
amor24.
Agostinho aponta-nos a primeira tríade interior: inteligência, amor e conhecimento
(mens, amor e notitia) como correspondentes aos três elementos encontrados na alma:
aquele que ama, o amado e o próprio amor. Essas três realidades, apesar de serem
inseparáveis e estarem em estreita relação umas com as outras, têm cada uma o seu ser
próprio, pertencem ao homem, apesar de não constituírem o homem. Em Deus, ao
contrário, há três pessoas que são o próprio e único Deus.
Mas resguardadas as diferenças, fixemo-nos no seguinte ponto: Agostinho afirma
serem essas três realidades – mens, notitia e amor – iguais e ao mesmo tempo distintas
umas das outras. No capítulo VIII Agostinho já havia falado que o amor pressupõe, por
si mesmo, o conhecimento.
Pode-se conhecer algo e não o amar. Pergunto, porém, se é possível amar
algo que se ignora porque se isso (não) for possível, ninguém é capaz de amar
a Deus, antes de conhecê-lo. E o que é conhecer a Deus, senão o contemplar e
perceber com firmeza, com os olhos da mente?”. (...) Ama-se, portanto, o que
se desconhece, mas se c25.
..........................................................................................................................
24
AGOSTINHO. A Trindade IX: 2, 2.
25
AGOSTINHO. A Trindade, VIII: 4, 6. O amor é, para Agostinho, o ponto de partida para o
conhecimento, pois amar é a condição do desejo de buscar e nesta busca se manifesta a própria presença
do objeto amado. O desejo de conhecer pressupõe algum saber prévio, o qual é comparável à teoria da
reminiscência de Platão, porém Agostinho recusa a reminiscência no sentido de serem as lembranças de
uma outra vida e afirma serem essas lembranças a própria experiência de Deus no nosso interior.
22
Entretanto, acreditamos com firmeza em todas aquelas coisas pensadas,
porque as representamos conforme um conhecimento específico ou genérico,
que para nós possui cunho de certeza26.
...........................................................................................................................
A questão, porém, reside em sabermos de que semelhança ou comparação
com as coisas conhecidas havemos de lançar mão para crer e amar ao Deus
ainda não conhecido27.
Deparamo-nos aqui com dois pontos importantes. O primeiro diz respeito ao lugar
e estatuto da fé no pensamento agostiniano. Se for inegável, por um lado, que é preciso
crer para conhecer, por outro, se afirma que a fé não pode ser cega.
Se pudermos contemplar e perceber a Deus _ na medida que ele pode ser visto
e percebido _ favor reservado aos puros de coração – pois: ‘Bem aventurados
os puros de coração, porque verão a Deus’ (Mt 5, 8) _, temos de amá-lo,
apoiados pela fé. (...)
...............................................................................................................
Entretanto, deve-se cuidar de que a alma ao crer no que não vê, não imagine
coisas irreais, e dê um falso objetivo à sua esperança e a seu amor. Nesse
caso, a caridade não procederia de coração puro, de consciência reta e de
sem hipocrisia, (...)28.
O segundo ponto é que o conhecimento sempre decorre de certa analogia a um
outro conhecimento já constituído. É nesse sentido que se poderá pensar na
possibilidade de conhecer a Deus, pois a alma humana é a própria imagem como
espelho da Trindade Divina e representa um conhecimento manifesto.
Ao dizer que sabemos o que é uma alma (animus), não o dizemos com
incoerência, pois nós temos uma alma. Não porque a tenhamos visto com os
olhos do corpo, e tampouco por termos percebido por uma noção geral ou
especial, ou pela semelhança com outras muitas coisas por nós vistas. Mas,
como acabo de dizer, sabemos por termos uma alma. O que há que se conheça
mais intimamente e leve a pessoa a sentir-se ela mesma do que esse princípio
que nos faz sentir as demais coisas? Conhecemos, por comparação a nós
mesmos, os movimentos dos corpos que nos fazem perceber que outros além
de nós estão vivos (...) Conhecemos, portanto, a alma (animus) dos outros pela
nossa. E pela nossa acreditamos na alma dos outros as quais não conhecemos.
Temos portanto uma alma29.
26
AGOSTINHO. A Trindade VIII: 5, 7b.
27
AGOSTINHO. A Trindade VIII: 5, 8.
28
AGOSTINHO. A Trindade VIII: 4, 6.
23
Com efeito, saber o que é uma alma ainda está longe de saber o que se é e,
portanto, longe de poder amar a si mesmo, pois “a mente não pode amar a si mesma, se
não conhecer a si mesma”
30
. Precisamos saber quem somos para conhecer o objeto do
nosso amor.
O amor de si mesmo pressupõe a mens e seu amor, mas também pressupõe a mens
e o seu conhecimento. No ato de amar a si mesmo, sujeito e objeto parecem ser
indistintos, porém não há alma amante sem seu amor, nem amor sem a alma amante.
Como também não há amor nem alma que ama se não há conhecimento, porque só se
conhece o que se ama. Nesse sentido Agostinho afirma:
Assim como são duas as realidades: a mente e seu amor, quando a mente se
ama a si mesma, também são duas: a mente e seu conhecimento, quando ela se
conhece a si mesma. Portanto, a mente, o seu amor e o seu conhecimento
formam três realidades. Essas três coisas, porém, são uma única unidade. E
quando perfeitas, também são iguais31.
..............................................................................................................................
(...) Mas quando a mente se conhece e se ama, aquelas três realidades: a
mente, o conhecimento e o amor permanecem uma trindade e não se dá
nenhuma mistura ou confusão. Cada uma dessas realidades está em si, e
contudo estão mutuamente cada uma inteiramente nas outras de modo total;
cada uma nas duas outras, ou as duas outras em cada uma delas. Portanto,
todas em todas32.
Para ser imagem essa primeira tríade deve exprimir tanto a natureza da alma
humana como o semblante da Trindade divina. Portanto, os três elementos: a mens, seu
amor e seu conhecimento devem ser distintos e sob qualquer proporção pertencerem à
mesma essência. Um sinal manifesto da distinção dos três termos é podermos falar de
igualdade e desigualdade entre eles, pois “onde falta a distinção real, a desigualdade é
impossível”
33
.
A igualdade provém do verdadeiro conhecimento e do verdadeiro amor da alma a
si mesma. Quando o conhecimento que a alma tem dela mesma é ordenado, o
conhecimento é perfeito e igual à sua alma. O mesmo se diz do amor: ele é perfeito e
igual à alma quando não se confunde com o corpo ou com as coisas corporais.
29
AGOSTINHO. A Trindade VIII: 6, 9.
30
AGOSTINHO. A Trindade IX: 3, 3.
31
AGOSTINHO. A Trindade IX: 4, 4.
32
AGOSTINHO. A Trindade IX: 5, 8.
24
Alguns passos mais adiante e Agostinho nos apontará outra trindade, mais
completa e mais manifesta, mas estreitamente ligada à anterior. Essa segunda tríade da
alma, minuciosamente tratada no capítulo X de A Trindade, será um dos pontos-eixos
da obra, pois ali temos a “teoria do conhecimento” agostiniana. Toda a investigação em
torno dessa segunda trindade visa descobrir a maneira pela qual ela pode ser diferente e
mais reveladora que a primeira.
Em ambos os casos o que prevalece como figuração da natureza humana é o caráter
uno e trino dos seus elementos. No primeiro a mens, o amor e o conhecimento. No
segundo a memória, a inteligência e a vontade.
Nos capítulos seguintes Agostinho fará ainda outras analogias trinitárias,
mostrando que há algo na alma humana que fala da natureza de Deus. Agostinho une o
conhecimento da alma ao conhecimento de Deus e demonstra nas diferentes analogias
trinitárias, que por meio das diversas atividades da alma, podemos encontrar aquilo que
nos faz semelhantes a Deus. Assim temos: amante, amado e amor; mens, notitia e amor;
memória, inteligência e vontade; memória sensível, visão interior e vontade; memória
de Deus, inteligência de Deus e amor a Deus.
Segundo Gilson, “qualquer que seja a imagem que Agostinho analise, deve
manifestar sua existência no interior da mens em três termos consubstanciais, apesar de
sua distinção, sendo iguais e com relações mútuas entre si”
34
. Dessa forma, a imagem da
Trindade na alma humana exige que haja três realidades distintas numa única
substância, porque as três são relativas umas às outras. Não há três substâncias, mas três
realidades distintas e opostas como termos de relações recíprocas. Dessa forma o
conhecimento e o amor não se encontram na mente como uma substância. Eles são, com
a mens, uma só e mesma substância.
Mas afinal, o que é a mens? O termo mens no contexto do pensamento agostiniano
não pode ser definido por uma simples oposição ao corpo
35
. Agostinho identifica a mens
com a parte superior da alma humana. “A mens não é a alma, mas o que há de mais
nobre na alma”
36
.
33
BOYER. L’Image de la Trinité: synthèse de la pensée augustinienne, p. 95.
34
GILSON. Introduction à l’étude de Saint Augustin, p. 290.
35
ANDRADE. O autoconhecimento da mens no livro X do De Trinitate de Santo Agostinho, p.83.
36
AGOSTINHO. A Trindade XV: 7, 11.
25
É pela singularidade da mens que o homem tem definido seu papel e posição
diante de toda criação. A mens ultrapassa tudo que há de inferior na própria alma como
as percepções dos sentidos corporais – atributos comuns também aos animais – e se
insere na capacidade de alcançar certa visão das coisas invisíveis, soberanas e
incorpóreas. De todas as atividades triádicas atribuídas à mens, no entanto, podemos
perceber que, além de elementos intelectivos, há sempre a presença do elemento
vontade ou amor (que é uma vontade com vigor maior
37
) Considerando que a mens não
se compõe somente de elementos que normalmente atribuímos ao conceito de mente e
que o termo traz em si uma riqueza de significado que ultrapassa o sentido restrito de
cognição, tal qual costumamos entender hoje, é que alguns comentadores do
pensamento agostiniano preferem não traduzir a palavra mens para não fazer parecer
que o termo foi empregado somente para expressar uma parte da alma puramente
intelectual, excluindo dela a vontade
38
.
Nos capítulos seguintes trataremos mais profundamente da atividade da mens por
meio da relação entre as realidades da tríade memória, inteligência e vontade, mas por
enquanto continuaremos nossa reflexão sobre a concepção de natureza humana do
Bispo de Hipona, agora em relação à questão do mal.
4. A natureza do mal
Partindo da difícil questão sobre a origem do mal - que jamais poderia vir de Deus
porque “Deus é bom
39
-, Agostinho pretendia combater as idéias materialistas e
dualistas do maniqueísmo e resolver o embate sobre o “pecado original” com Pelágio
40
,
um dos seus maiores opositores.
37
Ibidem, XV: 21, 41.
38
A esse respeito ver: CUNHA. O movimento da alma.
39
AGOSTINHO. Confissões VII: 5, 7
40
O monge inglês Pelágio defendia a posição de que o pecado de Adão fora o resultado de um ato
individual que não podia ser transposto a toda humanidade. Pelágio não foi o único a se posicionar contra
o dogma do pecado original, assim a história dessa discussão é bastante complexa e envolve diversas
questões a respeito da hermenêutica bíblica da Igreja dos primeiros séculos e os diversos pontos de
discussão levantados pelos “pelagianos”. Negando a transmissão do pecado das origens, os pelagianos
comprometiam a doutrina da graça divina. Diante disso, Agostinho combateu rigorosamente o
26
O Hiponense nega a materialização do mal, ou seja, que o mal seja um princípio
ou uma substância preexistente no mundo em contraposição a um bem, e nega o
dualismo que vê a separação material entre corpo e alma. Para Agostinho o mal é a
expressão da finitude das criaturas, ou seja, uma ausência de perfeição
41
. Mesmo que o
homem seja mais perfeito que os outros seres e tenha herdado a imagem de Deus, não é
idêntico ao seu Criador. Essa falta é o que acarreta o mal.
Podemos dizer então que em Agostinho o mal, propriamente dito, não existe
42
, e o
que existe é uma predisposição da vontade para praticá-lo. O mal seria, em suma, um
desvio da vontade e um distanciamento de Deus pelo pecado. “Procurei o que era a
maldade e não encontrei uma substância, mas sim uma perversão desviada da
substância suprema...”
43
, escreve Agostinho nas Confissões, confirmando que o mal
não preexiste ao mundo como uma força, como afirmavam os maniqueístas, mas que
está dentro de nós.
Trazendo a origem do mal para o interior do homem, Agostinho vem reafirmar o
caráter dinâmico da natureza humana. O homem não é uma criatura passiva diante dos
imperativos de um bem ou de um mal existente fora de nós, mas dono de uma vontade
que decide entre um e outro. A vontade é, pois, uma faculdade constitutiva do espírito
que nos possibilita fazer escolhas independentemente do mundo exterior.
Essa forma de pensar rompe definitivamente tanto com as concepções filosóficas
maniqueístas como com a tradição grega que associa o desejo do bem ao conhecimento.
Em Agostinho a vontade não depende somente do conhecimento, mas principalmente de
uma decisão pessoal que muitas vezes gera ou é gerada de um conflito. O conflito,
porém, não é causado pelas maleficências do corpo, pois este é inferior à alma e, sendo
inferior não tem autoridade sobre aquilo que é superior. O conflito é gerado na própria
alma que decide entre isto ou aquilo, visando, entre outras coisas, também as
solicitações do corpo
44
.
movimento, insistindo na vinculação de toda humanidade ao pecado de Adão e na necessidade da
libertação através da redenção de Cristo e misericórdia de Deus.
41
NOVAES. Vontade e contra vontade, p. 63
42
Ibidem, p. 64.
43
AGOSTINHO. Confissões VII: 16, 22.
44
NOVAES. Vontade e contra vontade, p. 63.
27
Nesse sentido podemos dizer que o bem e o mal existem dentro de nós em forma
de duas vontades, uma que tende ao pecado e à carne, outra que tende à benevolência e
ao espírito.
Assim, (existiam) duas vontades, uma concupiscente, outra dominada, uma
carnal e outra espiritual, batalhavam mutuamente em mim.
Discordando, dilaceravam-me45.
A alma vive um conflito constante entre essas duas tendências. Luta consigo
mesma comandando o corpo, mas não domina a si mesma
46
. Essa luta traduz um
paradoxo dentro do pensamento agostiniano, na medida em que se coloca um obstáculo
entre o querer e o poder realizar. Não realizo se não quero, mas também não faço tudo
que quero, porque a razão não governa e sim, a vontade
47
.
Assim temos em um trecho dos mais significativos a este respeito nas Confissões:
A alma manda ao corpo, e este imediatamente lhe obedece; alma dá uma
ordem a si mesma, e resiste! (...) A alma ordena que a alma queira; e sendo a
mesma, não obedece. (...) Repito: a alma ordena que queira
porque se não
quisesse não mandaria
, e não executa o que lhe manda!
Mas não quer totalmente. Portanto, também não ordena terminantemente.
Manda na proporção do querer. Não executa o que ela ordena enquanto ela
não quiser, porque a vontade é que manda que seja vontade. Não é outra
alma, mas é ela própria. Se fosse plena, não ordenaria que fosse vontade,
porque já o era. Portanto, não é prodígio nenhum em parte querer e em parte
não querer, mas doença da alma. Com efeito, esta, sobrecarregada pelo
hábito, não se levanta totalmente, apesar de socorrida pela verdade. São, pois,
duas vontades. Porque uma delas não é completa, encerra o que falta à
outra48.
A alma domina o corpo porque é superior e sendo superior não se submete a ele.
Mas não domina a si mesma, porque em todo ato de vontade existe um querer e um não
querer. O problema é que, a alma, acostumada às concupiscências, entra em conflito
consigo mesma e permanece na dúvida até que a vontade superior vença.
A afirmação acima pressupõe que a vontade é livre para exercer ou não o seu
poder de escolha, livre em relação a si mesma. Podemos obrigar alguém a fazer alguma
coisa, mas nunca a querê-la. Assim a vontade é alheia a qualquer manifestação do
45
AGOSTINHO. Confissões VIII: 5, 10.
46
ARENDT. A descoberta do homem interior, p. 251.
47
Ibidem.
48
AGOSTINHO. Confissões VIII: 9, 21.
28
mundo exterior e livre em sua essência. Resta, porém, analisarmos a questão entre o
“querer” e o “poder” e isso implica considerarmos o valor da ação no pensamento
agostiniano.
Agostinho em momento algum nega que a vida contemplativa, guiada pela busca
da verdade, seja a negação da vida sensível. O homem é um ser no mundo e enquanto
tal está sujeito aos desejos e paixões e, mais ainda é compelido a discernir, entre as
coisas sensíveis as que remetem ao bem e as que remetem ao mal. E, mesmo
conhecendo o bem, ou seja, mesmo sabendo como se deve agir em conformidade com a
lei, o homem pode escolher fazer o mal, ou ainda, pode fazer o bem porque conhece a
lei, e ter a vontade de praticar o mal.
(...) considera um homem que está impossibilitado de abusar da mulher de seu
próximo. Todavia, se for demonstrado, de um modo ou de outro, qual o seu
intuito e que o teria realizado se o pudesse, segue-se que ele não é menos
culpado por aí do que se tivesse sido apanhado em flagrante delito49.
Existe uma vontade que é sempre capaz de visar ao bem, mas para se ter acesso a
essa vontade “perfeita” a alma tem de estar preparada, pura, livre do pecado e das
tentações, estado alcançado somente pela graça. A consciência da verdade deve ser
buscada, portanto, em Deus para que Ele guie não as nossas ações, mas a nossa vontade.
Agostinho se baseia na própria experiência de conversão para suas conclusões. E
bem se sabe o quanto essa experiência lhe causou sofrimento e angústia na “guerra” que
travava consigo mesmo antes e após sua conversão. Assim, em termos de concepção
filosófica, Agostinho transfere o embate entre o bem e o mal do maniqueísmo para
dentro de si mesmo. Esse embate acontece independentemente do consentimento ou não
da razão e do entendimento. O embate é entre a alma e ela mesma, entre essas duas
vontades que comandam o agir e o pensar.
Segundo Ricoeur, a filosofia de Agostinho, ao refletir em torno da natureza do mal
tinha o objetivo apologético
50
não só de combater as idéias maniqueístas, que
49
AGOSTINHO. O Livre-arbítrio I: 3, 8.
50
O movimento apologético aconteceu durante os primeiros séculos da era cristã através dos primeiros
padres, pais da Igreja, que tinham como objetivo forjar, construir e defender a fé, a liturgia, a disciplina,
os costumes e dogmas cristãos constituindo, assim, as bases do cristianismo.
29
materializavam a figura do mal mas principalmente, de criar um conceito de pecado
original.
51
Para os gnósticos o mal é uma realidade física, uma potencialidade procedente do
mundo que atinge os homens. Sem possibilidade de ser uma conseqüência da liberdade
humana, a confissão não tem uma finalidade ética, pois o pecado provém do próprio
estar no mundo, não é fazer, mas ser.
Para os cristãos, ao contrário, o mal não tem natureza, não é uma coisa, não é uma
matéria, não é uma substância, não é mundo, mas entrou no mundo por meio da
fraqueza humana. Daí, o mito adâmico se tornar o símbolo de que o homem é a causa e
a origem radical do mal. A figura de Adão é arquetípica, pois representa toda
humanidade e, na obra de Agostinho, representa a natureza de pecado que herdamos
como dado biológico que, associado à vontade – outra natureza –, ganha também o
estatuto jurídico de culpabilidade individual. Assim, o pecado original foi herdado pelos
cristãos como uma categoria jurídica de dívida e uma categoria biológica de herança.
Adão representa a queda, o iniciador e nós, na medida em que também pecamos,
não iniciamos, mas damos continuidade ao erro primordial. Foi por meio do primeiro
homem que o pecado entrou no mundo, bem como o poder de liberdade e de escolha
dos homens.
Em conseqüência à interpretação de Agostinho do mito adâmico, o mal deixa de
ter dimensão cosmológica, como na concepção gnóstica, para se revestir de um caráter
puramente ético, pois enquanto o homem é integralmente responsável por sua queda, é
co-autor do pecado. Agostinho inaugura a visão ética do mal na medida em que atribui
ao homem a plena responsabilidade de seus atos, mostrando que a natureza do homem
não é má, má é a sua vontade.
Longe de se admitir, ainda, uma contingência do mal, prevalecem na interpretação
agostiniana traços nitidamente neoplatônicos. O mal é uma inclinação do “ser” para o
“não ser” ou uma inclinação para o nada, entendendo como “nada” uma aversão a Deus.
É o movimento de aversão que constitui o pecado. Tal movimento, logicamente, não
poderia vir de Deus.
51
RICOEUR. A simbólica do mal interpretada, p. 227-265.
30
Para Agostinho seria, portanto, menos difícil aceitar que o pecado e o mal
entraram no mundo com a queda de Adão e a idéia de que o gênero humano inteiro está
em estado de condenação como resultado do erro primordial, do que entender como o
homem pode ser afligido por tantos males quando a graça e a misericórdia divina agem
nele. Deus não pode ter criado o mal, porque este é uma inclinação para o nada. Assim,
não pode haver começo individual do mal, pois este é uma continuação, uma
perpetuação, uma marca hereditária transmitida a todo gênero humano pelo primeiro
homem.
A coação, representada pela serpente, dá a idéia de que o mal é exterior ao homem
e, como tal, superior e mais forte. Por outro lado, Adão cede às seduções desse mal
exterior e daí nasce a culpa. Entre estas duas tendências – mal para além do humano e
mal que decorre de uma escolha má – se concentra o sofrimento humano que só é
superado através da experiência dolorosa da consciência culpada que busca a graça e a
salvação divina.
5. A graça
Agostinho é reconhecido como o “doutor da graça” por ter sido o primeiro a levar
até às últimas conseqüências a defesa da necessidade e realidade da graça divina. O
problema e o cenário em torno do qual o assunto emergira era tão polêmico quanto a
própria “doutrina da graça” que o hiponense formulou e procurou justificar. O embate
era principalmente com Pelágio, apresentado anteriormente como o grande opositor da
doutrina do “pecado original” e, agora, como o defensor incondicional da liberdade de
escolha do homem.
A reflexão que faremos a seguir não quer se ocupar do contexto ou dos
pormenores da polêmica e sim expor de maneira resumida a forma como Agostinho
procurou solucionar o problema da difícil conciliação entre graça, predestinação e livre-
arbítrio sem, contudo, aprofundar nas lacunas e contradições de sua doutrina.
Pretendemos apenas seguir o fio condutor da reflexão agostiniana sobre a graça, a fim
31
de compreendermos o peso que tal doutrina representa dentro do pensamento do
filósofo.
Tendo em vista a criação cristã, tudo que Deus deu ao homem poderia ser
considerado um dom gratuito, uma graça. A própria natureza do homem, sua
constituição física, mental e espiritual, poderia ser considerada como uma graça
universal e comum a todos desde o momento da criação. Acima dessa graça, no entanto,
se encontra uma outra bem diferente e que incorpora o sentido pleno que o Hiponense
quer demonstrar quando se refere à dádiva maior recebida de Deus pelo homem. Trata-
se não mais daquela graça através da qual o Verbo divino fez todos os homens à sua
imagem, mas de uma outra que tem o poder de transformar alguns homens seguidores
de Deus e da verdade. Tal é a graça propriamente dita.
Agostinho parte do pressuposto de que Deus criou o primeiro homem em um
estado muito superior ao estado atual. Antes do pecado original o homem gozava de um
amor pleno a Deus, não cometia pecado algum e, por isso, não conhecia a tristeza ou a
dor. Criado em um estado de pura retidão, usufruía de uma sabedoria sem esforço,
evitava naturalmente o erro e gozava de uma subordinação perfeita de seu corpo à sua
alma.
O homem aderia a Deus como seu bem mais absoluto. Assim sem luta ou
perturbação interiores, sem tentações em seu redor, vivia em paz e no lugar que lhe era
devido, na sua beatitude.
A constituição exata do ato que modificou tão profundamente o estado de natureza
primitiva do homem é bastante complexa e não pode ser resumida na simples
transgressão de uma ordem. A proibição de se comer de certo fruto significa a
imposição de um ato de obediência tal que é a prova do exercício de uma virtude
entendida como superior a qualquer outra virtude. A imposição é um preceito, uma
regra de procedência, uma forma de assegurar, na própria obediência, a posição do ser
humano em relação ao Criador.
Ora, o primeiro homem vivia em um lugar em que não lhe faltava nada, não havia
carências e podia usufruir de todas as dádivas da criação. Suprido, assim, de tantos dons
é de se admirar que o homem tenha preferido se desviar de Deus e pecar. Resultado do
enfraquecimento do livre-arbítrio, o homem conheceu a queda mesmo tendo recebido
tudo que precisava para evitar o erro. Não é, portanto, pela dificuldade do preceito, nem
32
por uma insubordinação qualquer da carne que se encontra a origem do mal, mas na
vontade do homem, que desejando uma independência, tentou se elevar a uma posição
que não era a sua. Assim, na concepção agostiniana o homem pecou por orgulho, por
uma autoconfiança demasiada em si mesmo, o que o fez desertar do princípio ao qual
ele deveria se agarrar, fazendo de si mesmo o seu próprio princípio.
No orgulho de tentar ver em si mesmo sua própria luz, o homem teria
demonstrado nada menos que o mal vinha de seu próprio interior. Segundo Gilson
52
, o
erro primordial representa para Agostinho uma falta tão profunda que pode ser
incorporado e representado de uma forma inconsciente de sua verdadeira natureza, pois
em lugar de abominar sua fraqueza, o homem a apresenta como desculpa: “... fui
seduzido”
53
. O orgulho faz colocar sobre um outro a própria culpa, mas a transgressão
voluntária da ordem não deixa dúvidas de que ela própria se acusa no momento da
desculpa.
É por isso que Agostinho insiste em afirmar que o pecado original é uma
conseqüência do livre-arbítrio. “Deus não fez nada que não fosse bom e o movimento
que separa o homem de seu fim vem do homem mesmo. Foi por um ato voluntário que
o homem se desviou de Deus, subvertendo a ordem divina, preferindo a obra ao seu
Criador”
54
.
Agostinho associa sempre a concupiscência e a ignorância ao pecado original. Ao
criar o homem, Deus certamente excluíra esses dois vícios da natureza humana. Com a
queda, no entanto, Adão e toda sua descendência passaram a enfrentar a ignorância e o
esforço de se sair dela, bem como a revolta do corpo contra o espírito. O mal que existia
em Adão se propagou até nós e se transformou num mal de segunda natureza. Uma
natureza viciada, mas em última instância, uma natureza criada como imagem de Deus e
que não pode ter sido totalmente destruída pelo pecado.
Na visão de Agostinho, a natureza consentida tão gratuitamente ao primeiro
homem não perdeu o caráter de ser dom de Deus, mesmo depois da queda. Ao contrário,
dotado de capacidades bem diferentes das dos animais, o homem pode adquirir lenta e
progressivamente, por meio de longos exercícios, as artes, as ciências e as virtudes. Se
52
GILSON. Introduction à l’étude de Saint Augustin, p. 188.
53
Gn 3, 12.13.
54
GILSON. Introduction à l’étude de Saint Augustin, p. 188.
33
existem virtudes naturais no homem decaído como força, temperança, justiça, prudência
e senso é porque essas virtudes são ainda vestígios de uma ordem quase destruída, mas
restaurável, que Deus conservou justamente para esse fim. Trata-se de um resto de
disposição habitual ou de uma força excepcional capaz de ser testemunha ou a própria
conclusão do amor e do dom de Deus.
O reconhecimento do que Deus conserva da antiga natureza do homem, no
entanto, não deve encobrir o fato de que sem Deus não há salvação.
A natureza do homem foi criada no princípio sem culpa e sem nenhum vício.
Mas a atual natureza, com a qual todos vêm ao mundo como descendentes de
Adão, tem agora necessidade de médico55.
As virtudes que subsistiram à queda não conseguem encontrar seu valor primitivo,
a não ser que Deus o devolva por um socorro especial. Esse socorro é a verdadeira
graça, descrita anteriormente, pois é a adaptação da dádiva à natureza decaída.
Assim quando Deus criou o primeiro homem encheu-o de graça para que ele
pudesse viver eternamente sua beatificação. No estado de natureza decaída Deus atribui
a graça a fim de tornar possível a salvação antes perdida. O que há de comum em ambos
os casos é a gratuidade absoluta com que Deus concede os dons; no entanto a verdadeira
graça será sempre aquela em que os dons são distribuídos não em função da
constituição, mas da restauração da natureza perdida.
Sustentando agora uma natureza pervertida pelo pecado, a graça não tem mais o
objetivo de construir a obra de Deus, mas de restabelecer a desordem da qual o homem
é o único autor.
Nesse sentido, a graça em Agostinho se distingue radicalmente de tudo o que Deus
empresta ao ser das criaturas no momento da constituição de sua natureza e se justifica
somente como dom restaurador de uma natureza que se perdeu.
O primeiro passo para essa recuperação encontra-se na história da salvação
bíblica, quando Deus promulgou a lei para o povo que queria segui-lo. A lei não foi
criada para extinguir o pecado, – afinal este só pode ser extinto por meio da graça – mas
para mostrar ao homem sua culpa e a necessidade inexorável da salvação.
34
(...) a intenção da lei proibitiva é que se recorra à graça do Senhor
misericordioso por aquilo que se comete com freqüência. Pois a lei age como
um guia que nos dirige na própria fé (...)56.
Portanto, em termos de atitudes dos homens perante a lei, Deus espera não o seu
cumprimento cego, mas principalmente o temor e a fé.
Pelo temor pedimos a Deus que ordene o que quer que façamos. Pela fé esperamos
que Deus conceda a possibilidade do cumprimento daquilo que Ele ordena. “Dai-me o
que me ordenais, e ordenai-me o que quiserdes”, diz Agostinho nas Confissões
57
.
O temor é necessário para que o homem não se encha de orgulho e jamais se
esqueça do que não é capaz. A fé é necessária para que o homem seja sempre receptível
à vontade de Deus.
A aquisição da graça é, pois, uma condição sine qua non para o cumprimento da
vontade divina e para o próprio cumprimento da vontade humana, quando se trata de
cumprir a vontade de Deus. Para os que crêem adquiri-la por meio das boas obras, é
preciso lembrar que isso inverte indevidamente os termos, pois a graça não seria gratuita
se estivesse associada a méritos.
A graça de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, a fim de que entendêssemos
que a concessão da vida eterna por Deus não é por nossos méritos, mas pela
sua misericórdia. (...) É Deus quem opera em vós o querer, segundo a sua
vontade (Fl 2,13). (...)
Pelo fato de dizer que é Deus quem opera em vós o querer e o operar, segundo
sua vontade, não se há de concluir pela exclusão de livre-arbítrio. Se assim
fosse, não teria dito acima: Operai a vossa salvação com temor e tremor (Fl
2,12). Quando se ordena o trabalho, supõe-se o livre-arbítrio, mas com temor
e tremor, a fim de se evitar atribuir a si mesmo a boa obra e se orgulhar de
sua prática (...) Portanto, se temeis e tremeis, não vos ensoberbecereis das
boas obras como se fossem vossas, porque é Deus quem opera em vós
58
.
Podemos concluir a partir disso que o ponto de partida para a aquisição da graça
será acima de tudo a fé. Assim a fé será anterior às obras não para dispensá-las, mas
para poder preparar o interior a fim de receber a graça e daí poder fazer boas obras. Vale
dizer que ninguém é capaz de fazer boas obras a menos que tenha fé e,
conseqüentemente, tenha recebido a graça.
55
AGOSTINHO. A natureza e a graça III, 3.
56
AGOSTINHO. A natureza da graça XII, 13.
57
AGOSTINHO. Confissões X: 29, 40.
58
AGOSTINHO. A graça e a liberdade IX, 21.
35
Se a graça precede as obras, precede também o mérito, o que significa dizer que
em torno da graça há uma espécie de eleição. O problema, nesse sentido, parece
bastante complexo visto que toda eleição pressupõe uma escolha que não só parece ser
incompatível com a gratuidade pura da graça como com o próprio conceito de justiça na
doutrina agostiniana. “A justiça de Deus é entendida por Agostinho como misericórdia
que perdoa”
59
. Desse modo podemos pensar que não podendo a eleição preceder a
justiça, Deus confere a justiça antes de proceder a eleição, o que pressupõe a existência
da predestinação no ato da justificação divina. O problema será tornar a predestinação
divina compatível com a livre escolha do homem.
Se conseguirmos considerar que as circunstâncias nas quais se prevê exatamente
aquilo que nossa vontade se decidirá não interferem no querer, então a liberdade poderá
ficar assegurada e a justiça divina chegará na medida das próprias decisões do homem.
Ainda que a vontade esteja submetida à influência das graças que Deus sabe que
deverão ser consentidas para o projeto se realizar, não se pode acusar a vontade de não
ser livre. A predestinação divina é a previsão infalível das obras futuras que, para serem
realizadas, precisam das circunstâncias e das graças salutares preparadas por Deus para
seus escolhidos. Ela não é, pois, uma eleição e sim a presciência daquele que sabe qual
será exatamente a resposta para o seu chamado.
Foi por meio da conciliação entre a presciência divina e a liberdade humana que
Agostinho tentou encontrar resposta para a angustiante questão sobre o porquê de Deus
justificar mais a uns que a outros. Se Deus sabe por antecedência quais serão todas as
nossas respostas, não pode errar em saber quais graças deverá nos oferecer. Deus sabe
exatamente a medida da graça oferecida a fim de que ela se torne libertadora sem ser em
momento algum constrangedora. Deus jamais age por constrangimento, pois é na
vontade que ele age.
Para Agostinho a exata previsibilidade dos atos humanos por Deus não altera a
vontade do homem, ao contrário, concilia a possibilidade e a necessidade da graça com
o livre-arbítrio da vontade. Mas fica a dúvida se o homem ainda conserva a liberdade
quando seus atos se submetem à influência da graça. O problema não nasce do percurso
entre a graça e o livre-arbítrio, pois estes se encontram conciliados, mas entre a graça e
59
GROSSI e SESBOÜÉ. In: O homem e sua salvação, p. 246.
36
a liberdade. O livre-arbítrio é a faculdade de escolha do homem. Agostinho defende
essa faculdade como um dom dado por Deus a todo homem desde o momento em que
nasce.
A liberdade não é, a rigor, um poder de escolha, mas um estado da vontade
voltado e orientado para o bem – que em última instância é sempre Deus. Agostinho
parece penetrar no labirinto desses dois conceitos por meio do texto de São Paulo que
diz: “... não faço o bem que quero e faço o mal que não quero”
60
. Para não
comprometer o livre-arbítrio, o Hiponense afirma que o homem somente pode fazer o
que Deus lhe dá força para fazer. Assim, o que marca a diferença entre o homem que
tem a graça e aquele que não a tem não será a possessão ou não possessão de seu livre-
arbítrio, mas a eficácia de sua vontade. A graça é, pois, aquilo que confere à vontade,
seja a força de querer o bem, seja a força que possibilita sua conclusão.
É dessa dupla força que a liberdade agostiniana se define, pois afinal receber a
graça é antes de tudo aceitá-la, como consentir significa agir de acordo com seu querer.
Deus dá a vontade de querer e ajuda a fazer aquilo que se quer. A vontade, assim,
agindo de acordo com o seu próprio querer, testemunha por si mesma a liberdade do
livre-arbítrio, porque Deus auxilia quem quer agir, não para dispensar a ação voluntária
humana e sim para permitir que a ação se conclua. Mesmo submetida à graça, a vontade
tem de estar presente sempre, afinal:
Tudo provém de Deus, mas não como se estivéssemos dormindo, apáticos,
abúlicos. Sem tua vontade não estará em ti a justiça de Deus. Certamente a
vontade não é senão tua, a justiça não é senão de Deus. Pode existir a justiça
de Deus sem a tua vontade, embora não possa dar-se em ti à margem da tua
vontade... Serás obra de Deus, não só por seres homem, mas por seres justo.
Melhor é para ti ser justo do que ser homem. Se o ser homem é obra de Deus e
o ser justo é obra tua, ao menos essa obra tua é maior que a de Deus.
Porém, Deus te fez sem ti... Quem te fez sem ti não te justificará sem ti.
Fez o inconsciente, justifica o consciente (querente). Mas a justiça não é tua,
ele é quem justifica61.
Quando o homem se entrega ao pecado, age livremente, pois escolheu por si
mesmo recusar o dom divino da graça. Quando, porém, entende e resolve seguir o
chamado da graça, é por amor ao bem e à justiça que o faz. Em ambos os casos a alma
se vê encantada. Tanto o encantamento pelo pecado como pelo bem que a graça oferece
60
Rm 7, 19.
37
são a própria manifestação da espontaneidade da decisão. A diferença entre ambos é
que, no primeiro caso, o homem acaba por se ver preso a toda sorte de obscuridade e
perversão da carne, enquanto no segundo, ele experimenta a verdadeira liberdade,
porque faz que o seu objeto de encantamento seja precisamente sua liberdade.
Por ela mesma, a vontade nem sempre é boa. Por vezes, mesmo querendo o bem
não pode alcançá-lo. Toda essa ausência de liberdade se dá pelo pecado que contamina
nossa vontade. Também o livre-arbítrio pode amar e procurar algo além de si mesmo,
mas por suas próprias forças não é capaz de amar a Deus. Reportamo-nos então
novamente ao texto das Confissões, que a todo instante nos lembra que a queda e o
afastamento de Deus têm dimensões infinitas, a menos que Deus nos estenda a mão e
nos levante. Restaurando em nós o amor a Deus de que nossa vontade primeira era
capaz, a graça nos dá forças para vencer todo tipo de tentação, transformando nossa
vontade em “boa vontade”. É somente através da boa vontade que o livre-arbítrio se vê
livre. É somente tendo em vista a noção de liberdade no sentido propriamente
agostiniano que se pode dar sentido às fórmulas aparentemente tão paradoxais dessa
doutrina.
Na doutrina agostiniana a liberdade se confunde com a eficácia de um livre-
arbítrio orientado para o Bem. Eficácia essa totalmente subordinada à autoridade da
graça. Ora, se o ofício da graça é justamente atribuir eficácia ao livre-arbítrio, quanto
mais graças se recebe mais livre o homem se torna.
6. A salvação pelo conhecimento de Deus
A doutrina da criação pressupõe que Deus pode criar com base no modelo das
suas próprias idéias, porque elas são os pensamentos e a voz de Deus dizendo que elas
se façam. As coisas criadas, na medida em que recebem sua forma e seu ser do Criador,
tornam-se vestígios de Deus porque participam das idéias divinas. O que Agostinho
mostra, afinal, é que todas as coisas criadas possuem uma dependência ontológica em
61
Sermão 169, 13.
38
relação a Deus, porque são a própria realização da ordem racional de Deus no universo.
Mas essa dependência ultrapassa o campo dos movimentos inerentes à ordem do
universo para constituir-se em uma dependência também de ordem espiritual.
Sendo dependentes ontológica e espiritualmente, as criaturas somente adquirem
sua plenitude pelo encontro ou, se quisermos utilizar uma terminologia neoplatônica,
pela volta da criatura ao seu criador.
O mundo criado apresenta uma ordem perfeita, porque participa das idéias de
Deus e a lei eterna implica ordem, perfeição e harmonia. Por isso os seres humanos, que
na escala de participação ocupam o degrau máximo da criação, são convidados a ver,
respeitar e a querer essa ordem. Não obstante, a procura pela ordem ou razão do mundo
confunde-se sempre com a procura de Deus, princípio e causa de tudo.
Ora, se Deus criou a partir do modelo de suas próprias idéias, a sabedoria, objeto
da filosofia, não se encontra nas coisas criadas, mas no próprio criador. É no criador que
encontramos a resposta para toda e qualquer especulação. Mas como conhecer a Deus?
Como penetrar nos mistérios mais insondáveis e daí conhecer sua obra?
Agostinho defende com base nos relatos bíblicos que assim como Deus nos
revelou a criação e muitas outras coisas, afim de que possamos concebê-lo,
reconhecendo-o como o Ser por excelência, também revela quem ele é por meio de
Moisés em Êxodo 3,14 – Ego sum qui sum – “Eu sou quem sou”.
Por meio dessa revelação Agostinho é levado a defender a posição de que Deus é a
verdadeira essência, pois na máxima “Ego sum qui sum” Deus estaria revelando que “o
ato de existir é precisamente o que designa a palavra essência”
62
. Deus é, portanto o
“Ser” por excelência, o que significa ser eterno, imutável e perfeito.
Pode-se perceber por essa interpretação, certo ponto de encontro entre a filosofia
de Agostinho e a dos neoplatônicos, pois para Plotino o termo Uno, na forma como
Porfírio o traduziu, pode ser interpretado ao mesmo tempo como espírito, ser pensante,
eterno e imutável
63
. Ora, ao tomar Deus como uma unidade trina, Agostinho está
reunindo no Criador todas as qualidades relativas ao Uno neoplatônico. Dessa forma o
Deus cristão será o princípio eterno e imutável de todas as coisas e espírito unificador
de si mesmo, porque simplesmente “é o que é”: eterno, imutável, perfeito e completo.
62
BEIERWALTES. Agostino e il Neoplatonismo Cristiano, p. 107.
63
GILSON. Introduction à l’étude de Saint Augustin, p. 290.
39
Entre o princípio unificador e o mundo subjacente a esse princípio encontramos, como
nos gregos, uma divisão: de um lado, o mundo dos entes submetidos ao tempo e do
outro, o princípio e fundamento desses entes, ou seja, o ser que é intemporal porque é
divino.
Mas se a forma pela qual Agostinho interpreta o trecho de Êxodo 3,14 pode ser
enquadrada no universo conceitual neoplatônico, não se pode negligenciar as diferenças,
especialmente quando se trata do estatuto dado ao homem diante da figura do divino.
Deus, de acordo com o sentido cristão reconhecido por Agostinho, é também
benevolência e cuidado, porque permitiu que as criaturas tivessem participação no seu
ser. Assim a busca do homem pela ordem do inteligível, tão cara para os gregos, é
substituída por uma busca pessoal e ardente por algo que ultrapassa o humano, mas que
não está fora dele.
Como na concepção cristã da queda e do pecado, a tradição neoplatônica também
acreditava que o afastamento de Deus consistia na dispersão da alma na materialidade e
na diversidade do mundo sensível; e que a via da aproximação consistiria no retorno a
Deus e reencontro de seu verdadeiro ser. Agostinho não somente absorveu os princípios
teóricos da unidade da alma e sua semelhança em relação à transcendência divina da
filosofia neoplatônica como usou terminologias e conceitos próprios dessa filosofia
como é o caso do termo dispersão.
A dispersão está relacionada à perda da unidade de origem da alma face à
diversidade e materialidade do mundo, e o reencontro está relacionado ao
reconhecimento da unidade que faz os homens semelhantes a Deus. Esse reencontro em
ambos os casos se daria por degraus de ascensão e estaria condicionado a uma
descoberta que deveria acontecer ainda nessa vida. A diferença é que na tradição
neoplatônica a subida e o encontro somente são possíveis aos filósofos e pessoas cultas,
enquanto para Agostinho ela é acessível a todos aqueles que têm fé
64
.
Podemos perceber, portanto, que por meio de Agostinho toda a relação com o
mundo temporal e intemporal muda radicalmente e é isso que nos possibilita falar de um
retorno a Deus como plano de salvação. Para os gregos o retorno à unidade de origem
faz parte de um movimento intrínseco e imanente a ele mesmo, enquanto em Agostinho
64
MORESCHINI. História da literatura cristã grega e latina, 2002.
40
o sentido é de uma volta à verdadeira natureza, aquela que foi criada fora e
anteriormente ao pecado e à corrupção original. A filosofia de Agostinho procura, nesse
sentido, percorrer o caminho capaz de levar o homem à sua forma mais primitiva. Como
afirma Gilson, ela “visa fins práticos e seu ponto de aplicação imediata é o homem”
65
.
A filosofia foi o ponto de partida para a descoberta da sabedoria e será o
instrumento que Agostinho utilizará para conduzi-lo até Deus. Ela será nada menos que
a procura de um conhecimento que possa fazer com que o homem seja melhor, mais
próximo do bem e, por conseguinte, mais próximo a Deus.
Mas poderíamos nos perguntar, no entanto, como se dá essa procura ou como o
homem se torna consciente do caminho que deverá percorrer até a sua salvação.
Para Agostinho a idéia de Deus surge de um conhecimento universal e
naturalmente inseparável do espírito humano. Assim, ele jamais colocou em dúvida a
existência de um Deus Criador. Mas embora esse não fosse um problema pessoal, o
Hiponense nunca deixou de se interessar pelo assunto, a ponto de mostrar, pela
elaboração de uma prova, não tanto a necessidade da existência de Deus, mas o fato
mesmo de sua existência
66
. Partir deste pressuposto significa dizer, portanto, que
Agostinho quer tornar mais claro e evidente para a apreensão humana aquilo que já é
um dado interior.
Boyer chama nossa atenção, no entanto, para o perigo de tomarmos essa forma de
conhecimento por um saber intuitivo da presença de Deus no espírito, pois esse tipo de
interpretação leva conseqüentemente à afirmação de que Deus pode ser visto por uma
via imediata e direta. Boyer acredita, como a maioria dos intérpretes do pensamento
agostiniano, que não se pode atribuir ao santo Bispo uma doutrina da visão imediata e
intuitiva como conhecimento de Deus dentro de uma ordem natural e espontânea da
razão
67
. Assim o autor defende que a ascensão da alma em direção a Deus se opera por
degraus.
A alma parte primeiramente da consciência das coisas visíveis e sensíveis, cujo
conhecimento apela para imagens e representações. Nesse primeiro degrau a alma está
65
GILSON. Introduction à l’étude de Saint Augustin, p. 1.
66
BOEHNER, P. História da Filosofia Cristã, p. 157.
67
BOYER, La preuve de Dieu augustinienne, p. 107.
41
sujeita a dúvidas e incertezas, mas pode lançar os olhos sobre o universo a fim de
reconhecer que Deus é o seu autor.
Em seguida a alma passa pelo reconhecimento de si. Nessa etapa a memória será
intermediária entre a realidade exterior e interior; entre a realidade em si mesma e o que
se guardou no seu interior. É nessa etapa que a alma percebe sua superioridade em
relação às outras criaturas e se vê diante de algo que ultrapassa a si mesma.
Nesse itinerário o “eu” interior se transforma em um campo infinitamente
explorado, mas cada vez mais misterioso. E é justamente porque a alma se vê maior que
a si mesma – o que é claramente expresso no capítulo X das Confissões – que ela aponta
para o transcendente. A alma não é só a habitação de Deus, ela é a própria imagem de
Deus e, como tal, transcende o mundo e não se reduz a uma simples “natureza”. Os
degraus percorridos são, portanto, nessa ordem: sentidos, memória e razão. Ou se
quisermos variar os termos: mundo sensível, conhecimento de si e apreensão de Deus.
Agostinho demonstra o tempo todo que, por pertencer à parte superior da alma, em
se tratando do homem, nada é superior à razão. Assim, transcender à razão significa
transcender àquilo que pode ao menos parecer atingir a Deus.
Mas o Hiponense mostra, ainda, que a verdade de Deus é algo que também
ultrapassa a própria razão e que descobrir uma realidade superior ao homem não
significa necessariamente descobrir Deus, pois o Criador, na forma como Agostinho o
concebe, se apresenta por um caráter distintivo de um Deus que se faz conhecer para
que o universo não o possa ignorar, mas que se deixa conhecer somente o suficiente
para despertar o desejo do homem de empenhar-se em procurá-lo e o possuir
68
.
Podemos dizer, portanto, que o homem pode não ignorar a Deus, mas que seu
conhecimento será sempre limitado àquilo que lhe é permitido conhecer, o que
pressupõe a interferência da graça.
Para Agostinho não há distinção entre ser sábio e ser beatificado, o que vale dizer
que o conhecimento da verdade já é por si só a manifestação da graça divina.
A sabedoria beatificante deverá ser adquirida juntamente com a recuperação da
unidade de origem por meio do abandono da dispersão. Implica, portanto, um espírito
desapegado da materialidade do mundo.
68
GILSON, Introduction à l’étude de Saint Augustin, p. 11-12.
42
Agostinho apóia-se no testemunho das Escrituras que diz que a verdade é a
sabedoria de Deus. Na primeira carta aos Coríntios 1,24, por exemplo, podemos ler que
a sabedoria de Cristo é a sabedoria de Deus. E em João 14,6, que Cristo é a verdade, a
vida e o caminho para o Pai. Ora, Cristo, segunda pessoa da Trindade, também é Deus,
portanto Deus é a própria verdade e a própria sabedoria. Alcançar a Deus será, enfim,
alcançar a verdade, a sabedoria e a beatitude. Tomando de empréstimo as palavras de
Gilson, “eis o que é possuir a sabedoria: apanhar, agarrar, compreender Deus pelo
pensamento, ou seja, desfrutar dele”
69
.
Há uma espécie de chamado à possessão da verdade, um desejo incondicional que
se mistura e se confunde com a procura da felicidade. Esse desejo sensível, ao mesmo
tempo em que conduz em direção à verdade, submete o homem à ordem da razão,
permitindo-lhe o acesso à beatitude e ao soberano bem. Portanto, o fim último que nos
conduz à sabedoria e à especulação racional é a busca da verdade, que exige o
desenvolvimento espiritual capaz de permitir e preparar o homem para a “fruição de
Deus”
70
.
Independentemente do espírito que regula, a verdade transcende a todo e qualquer
outro saber, porque faz perceber que acima do homem está a eternidade, a imutabilidade
e o necessário – realidades dos atributos de Deus. Vendo a verdade em seu pensamento,
o homem encontra a própria essência de Deus. Agostinho determina, assim, o lugar da
inteligência em sua doutrina, pois a verdade é condição para a beatitude e ambas são
bens a serem conquistados nessa vida. A sabedoria beatificante não é propriamente um
conhecimento, mas a condição que o homem precisa alcançar para se aproximar de
Deus, da felicidade e de sua salvação.
***
Para Agostinho, como para os filósofos da tradição grega, a visão da ordem
cósmica é a visão da razão e o bem significa ver e amar essa ordem. Mas enquanto para
aqueles o que simboliza essa ordem está num plano inteligível e exterior ao homem,
69
GILSON. Introduction à l’étude de Saint Augustin, p 5-6.
70
GILSON. Introduction à l’étude de Saint Augustin, p. 10.
43
para o Bispo de Hipona o bem não se encontra numa realidade exterior, mas no próprio
interior da alma.
Ao procurar a luz ou o Sol que simboliza a idéia de Bem supremo, Agostinho
direciona o olhar para dentro. A criação pode ser conhecida por meio da ordem daquilo
que Deus criou, mas nunca pode ser conhecida diretamente, pois o caminho para o
conhecimento está no interior do homem, por meio da alma, único acesso às idéias
divinas. Deus não será, portanto, apenas objeto transcendente, nem princípio da ordem
nos objetos mais próximos que nos esforçamos por perceber, mas primordialmente o
alicerce básico e o princípio subjacente à nossa atividade cognitiva
71
. Assim, a luz de
Deus não está apenas “lá fora”, em um mundo inteligível, iluminando a ordem do ser,
Ele é a própria “luz interior” que ilumina todo homem que vem ao mundo e que habita
no interior.
Tomar o interior como um espaço, um lugar ou o próprio sítio em que Deus se
faz presente é um problema que será tratado mais adiante. Procuramos nos deter até
agora exclusivamente na forma como Agostinho procura evidenciar a existência de um
desejo de volta da criatura à sua condição de origem e ao seu criador.
O que toda criatura deseja e procura é, em última instância, o encontro da
felicidade, da plenitude e da vida beatificada, mas essa procura jamais é uma busca
cega. Não basta a fé na presença de Deus no interior e a fé na criação. É preciso que o
espírito compreenda o que ele procura, o lugar que ele ocupa dentro da criação e
compreenda em que medida a criatura depende de seu criador.
Essa doutrina visa o discernimento do homem, a imagem da Trindade na alma e
sua atividade, mas também adverte para uma dualidade. A alma é uma potencialidade
voltada para duas vertentes: superior e imaterial de um lado, inferior e sensível de outro.
Se a alma tenderá para o lado superior, isto dependerá menos da vontade do que da
graça, visto ser o homem herdeiro do pecado original.
O que se torna intrigante, por parecer por vezes até contraditório, é que enquanto a
alma se reveste de plena atividade por ser a própria imagem do Deus Trino, é também
dependente de seu Criador. O homem é, em última instância, um ser cuja natureza só se
realiza no encontro com Deus. Assim, o homem terá de transcender o mundo das coisas
71
TAYLOR. In interiore homine, p. 159.
44
para não ser mais reconhecido nem como ‘alma racional’, nem como criatura
participante da ordem hierárquica do cosmo, mas como um ‘ser’ em relação ao outro
‘Ser’
72
, pois a vida espiritual do homem “não parte da simples natureza; ela começa de
algum modo abaixo dela, na corrupção original”
73
. Nesse sentido, se por um lado o
homem é dono de si e de sua vontade, por outro, a realização plena de sua vontade – que
é a volta para o seu criador – só se realiza plenamente pela graça e misericórdia de
Deus.
O que faz o homem merecedor da graça divina será o esforço individual de vencer
a tendência inferior e a coragem de viver uma vida reta sem os excessos da vida
material. Portanto, não é sem um esforço pessoal, mas também não depende somente
deste. É preciso que o homem encontre sua verdadeira imagem pela Graça, como se
pudesse ver a si mesmo através de um espelho, “pois o próprio olho não se enxerga a
não ser por meio de um espelho”.
74
O homem, portanto, será sempre esse ser em busca da remissão e da salvação
restauradora da imagem deformada pelo pecado. Imagem que é inegavelmente a sua
natureza, que não se basta nem se resolve ‘em si’, mas que implica e se define somente
na relação com o Criador.
72
BIRCHAL. Diante de Deus: o eu e o outro em Santo Agostinho, p. 230.
73
BOYER. L’image de la Trinité, p. 132.
74
AGOSTINHO. A Trindade XIV: 6, 8b.
45
CAPÍTULO 2
INTERIORIDADE E PRESENÇA DE DEUS
“VÓS ÉREIS MAIS ÍNTIMO QUE O MEU PRÓPRIO ÍNTIMO
E MAIS SUBLIME QUE O ÁPICE DO MEU SER.”
(CONFISSÕES
III: 6, 11)
1. A questão da interioridade
É comum a afirmação, entre os maiores intérpretes do pensamento agostiniano, de
que Agostinho é o filósofo da interioridade. De fato, para o bispo de Hipona, Deus
habita no interior do homem, de modo que procurar Deus será percorrer o caminho que
leva a si mesmo. Mas como pensar essa interioridade? O interior pode ser concebido
como um lugar, ou um espaço que se pode descrever como um espaço geográfico?
Para Agostinho, a linguagem, embora seja o meio mais habitual de transmissão de
idéias, constitui um problema inseparável da própria existência, porque ela precisa
alcançar a essência da experiência mesma e, ao mesmo tempo, comungar de um sentido
comum entre os homens para que possa haver comunicação. Ao dizer de uma
experiência tão íntima e pessoal como é a experiência de estar diante de seu próprio
interior, não será de estranhar que Agostinho se depare com estes dois pólos de
dificuldade: a dificuldade de traduzir uma experiência que para ele constitui um
mistério, e a dificuldade de encontrar palavras que possam traduzir ou definir aquilo que
é a sua experiência mais íntima e profunda. Para resolver o impasse, no entanto,
Agostinho fará, muitas vezes, o uso de metáforas que definem ou delimitam sua
experiência de interioridade.
Embora seja preciso lançar mão do uso de tantas metáforas, como é o caso da
descrição no livro X das Confissões da atividade da memória, não se pode dizer que o
interior possa ser delimitado espacialmente como se fosse um “lugar”. “É grande esta
46
força da memória, imensamente grande, ó meu Deus. É um santuário infinitamente
amplo. Quem o pode sondar até o profundo?”
75
.
A realidade da experiência de si e, conseqüentemente, a realidade da experiência
de Deus ultrapassam qualquer forma de figuração espacial e a interioridade se mostra
incomparável a qualquer realidade descritível.
Onde residis, senhor, na minha memória? Em que lugar aí estais? Que
esconderijo fabricastes dentro dela para Vós? Que santuário edificastes?
Dignastes-Vos tributar esta honra na minha memória, mas o que eu pretendo
saber é em que parte habitais.
Ao recordar-Vos, ultrapassei todas aquelas partes da memória que os animais
também possuem, porque não Vos encontrava entre as imagens dos seres
corpóreos. Cheguei àquelas regiões onde tinha depositado os afetos da alma.
Nem lá Vos encontrei. Entrei na sede da própria alma, na morada que ela tem
na memória – pois o espírito também se recorda de si mesmo -, e nem aí
estáveis. (...)
Por que procuro eu o lugar onde habitais, como se na memória houvesse
compartimentos? É fora de dúvida que residis dentro dela porque me lembro
de Vós, desde que Vos conheci e encontro-Vos lá dentro, sempre que de Vós
me lembro76.
É neste sentido que podemos afirmar, como Blanchard, que Agostinho fala de dois
mundos completamente distintos entre si
77
. Ele fala de um mundo exterior, sujeito à
ação do tempo, onde se situa toda a matéria e toda a criação. E fala também de um
mundo interior, mundo dos homens e das experiências realmente relevantes. Nas
Confissões, ao relatar a experiência do êxtase em Óstia, vemos exemplificados os dois
mundos dos quais fala Agostinho.
Suponhamos uma alma onde jazem em silêncio a rebelião da carne, as vãs
imaginações da terra, da água, do ar e do céu. Suponhamos que ela guarda
silêncio consigo mesma, que passa para além de si, nem sequer pensando em
si; uma alma na qual se calem igualmente os sonhos e as revelações
imaginárias, toda a palavra humana, todo o sinal, enfim, tudo o que sucede
passageiramente.
Imaginemos que nesta mesma alma existe o silêncio completo porque, se ainda
pode ouvir, todos os seres dizem: “Não nos fizemos a nós mesmos, fez-nos. O
que parece eternamente”. Se ditas estas palavras os seres emudecerem,
porque já escutaram quem os fez, suponhamos então que Deus sozinho fala,
não por essas criaturas, mas diretamente, de modo a ouvirmos a sua palavra,
não pronunciada por uma língua corpórea, nem por voz de anjo, nem pelo
estrondo do trovão, nem por metáforas enigmáticas, mas por Ele mesmo.
Suponhamos que ouvíamos Aquele que amamos nas criaturas, mas sem o
intermédio delas, assim como nós acabamos de experimentar, atingindo, num
relance de pensamento, a Eterna Sabedoria, que permanece imutável sobre os
75
AGOSTINHO. Confissões X: 8, 15.
76
AGOSTINHO. Confissões X: 25, 36.
77
BLANCHARD. “L’espace intérieur d’après les Confessions”, p. 535-542.
47
seres. Se esta contemplação continuasse e se todas as outras visões de ordem
muito inferior cessassem, se unicamente esta arrebatasse a alma e a
absorvesse, de tal modo que a vida eterna fosse semelhante a este vislumbre
intuitivo, pelo qual suspiramos: não seria isto a realização do “entra no gozo
do teu Senhor?” E quando sucederá isto? Será quando todos
“ressuscitarmos”? Mas então não “seremos todos transformados”?78.
O mundo interior é o mundo da meditação, do silêncio e da prece. Nele as
experiências pessoais se desdobram por meio das dimensões espirituais de reflexão e
ascensão. É no espaço de dentro que a matéria ganha qualidade, profundidade, duração
e significado.
A experiência humana encontra-se entre estes dois mundos: entre a
pragmaticidade da vida mundana e a espiritualidade e segredos da consciência. Entre
um e outro o homem tem de viver a experiência de ambos, passar da dispersão à
atenção, da palavra ao silêncio, da exterioridade à interioridade. Entretanto, a
preferência de Agostinho se afirma em uma opção individual. Durante e depois de sua
conversão, em meio a uma forte luta travada consigo mesmo, a opção de Agostinho foi
sempre pela vida interior.
Contra os prazeres da carne e o deleite intelectual da retórica, o Santo Doutor se
depara com a experiência profunda de si mesmo e descobre uma “interioridade
dilacerada”. O interior é o lugar da escuta, do encontro com Deus, lugar do retorno à
natureza primordial, da perfeição e da salvação, mas é também o lugar da surdez, do
distanciamento, do pecado e da perdição. Assim, pela experiência de interiorização,
Agostinho descobre que “a natureza do homem não se resolve em si, não se fecha em si,
mas remete a uma história que implica o outro [Deus] e se define nesta relação”.
79
Pelo mergulho no seu próprio “eu”, Agostinho terá a experiência e a segurança
de poder descer até às profundezas do abismo interior e lá encontrar Deus. Nas suas
Confissões o Hiponense expressa de forma inesquecível esse mergulho em si, pois todo
seu discurso memorialístico é sustentado pela certeza da presença de Deus. Deus é a
garantia da sinceridade e da veracidade do relato, Deus é aquele a quem, de forma direta
e pessoal, Agostinho dirige suas súplicas, Deus escuta e fala no silêncio da alma.
Para Vós, Senhor, a cujos olhos está patente o abismo da consciência
humana, que haveria em mim oculto, ainda que Vo-lo não quisesse confessar?
78
AGOSTINHO. Confissões X: 10, 23-24.
79
BIRCHAL. Diante de Deus: o eu e o outro em Santo Agostinho, p. 231.
48
Poder-Vos-ia ocultar a mim mesmo, mas não poderia esconder-me de Vós.
Agora me iluminais, agradais-me, e eu de tal modo Vos amo e desejo que já
me envergonho de mim. (...) Nenhuma verdade digo aos homens que Vós
antes ma não tenhais ouvido. Nem me ouvis nada que já antes mo não tivésseis
dito80.
Se Deus se comunica e está presente no interior, o mundo interior é infinitamente
melhor e mais perfeito. É nele que o espírito se dilata e descobre a duração em oposição
à finitude e limitação do tempo. Os dois mundos são reais, mas o mundo interior é mais
real, porque está mais próximo de Deus e também porque somente nele a experiência de
si mesmo é manifesta.
2. O homem exterior e o homem interior
Mas enquanto podemos falar da referência a dois mundos no pensamento
agostiniano, o próprio Agostinho faz referência a dois homens: um exterior e outro
interior.
Dirigi-me, então, a mim mesmo, e perguntei-me: “E tu, quem és”? “Um
homem”, respondi. Servem-me um corpo e uma alma; o primeiro é exterior, a
outra interior. Destas duas substâncias, a qual deveria eu perguntar quem é o
meu Deus, que já tinha procurado com o corpo, desde a terra até o céu, a
onde pude enviar, como mensageiros, os raios dos meus olhos? À parte
interior, que é a melhor81.
Tudo o que na alma se assemelha ao animal pertence ao homem exterior que não é
somente definido por seu corpo, mas por tudo aquilo que anima e vivifica a alma. Os
sentidos corporais seriam a principal fonte de conhecimento do homem exterior, embora
limitado a somente aquilo que é mundano.
É por meio do ‘homem interior’ que o homem tem acesso às verdades, tanto
imateriais e imutáveis – verdades de Deus e da alma – como as verdades do próprio
mundo visível. É que, para o Hiponense, ao evoluirmos do mundo exterior ao interior,
introjetamos lembranças e percepções dos dois mundos e somos capazes de
80
AGOSTINHO. Confissões X: 2, 2.
81
AGOSTINHO. Confissões X: 6, 9-10.
49
compreensão e entendimento de ambos. O mundo exterior abriga os objetos corpóreos
que são atingidos pela sensação. O mundo interior abriga a alma e sua atividade.
Os objetos, em si mesmos, são incapazes de produzir conhecimento ou qualquer
tipo de sensação. Tudo que sentimos, vemos, ouvimos ou tocamos é nada menos que a
introjeção do exterior no interior da alma. Assim não são os objetos que produzem
conhecimento no homem, mas o homem que tem uma percepção sensória e interior
sobre os objetos.
Ao afirmar que as sensações são próprias da alma, Agostinho está distinguindo os
objetos sensórios do conhecimento produzido sobre eles, ou seja, a sensação. Os objetos
corpóreos estão no nível do existir ou exterior e as sensações, ao contrário, no nível do
viver, no interior, produzidas pela alma. Dos sentidos corpóreos, por exemplo, o sentido
da visão, pode-se afirmar que qualquer objeto que seja perceptível aos olhos pode existir
mesmo antes de ser visto, mas em termos da visão, enquanto sensação propriamente
dita, a qual não existia antes de ter percebido o objeto, esta é produzida em razão da
atenção da alma que se ocupa daquele objeto.
Ora, se Agostinho concebe o homem como a junção de um corpo e de uma alma,
não nega as informações provindas dos sentidos, mas insiste em afirmar que como fonte
de conhecimento tudo o que se refere ao homem exterior ou ao seu corpo será sempre
inferior ao homem interior ou à sua alma.
Em conseqüência de nossa condição humana, que nos converte em seres
mortais e carnais, lidamos mais fácil e familiarmente com as realidades
visíveis do que com as inteligíveis. Ainda que aquelas sejam exteriores e estas
interiores; e que percebamos aquelas pelos sentidos do corpo, e estas as
compreendamos pela mente. E isso embora sejamos almas não sensíveis, isto
é, corporais, mas sim inteligíveis, que somos vida. Contudo, como disse
anteriormente, estamos tão familiarizados com o que é corporal e de tal modo
nossa atenção resvala com facilidade para o mundo exterior, que ao ser
arrastada da incerteza do mundo corporal para se fixar no espiritual, com
conhecimento muito mais certo e estável, a nossa atenção retorna ao que é
sensível e deseja aí repousar – justamente de onde vem sua fraqueza82.
A alma tem, portanto, papel ativo e o corpo papel passivo no processo de
conhecimento. É a alma que atua como uma sentinela, fazendo do corpo um
instrumento de percepção do mundo sensível. Ambos são ao mesmo tempo necessários:
a alma a fim de interpretar os objetos e o corpo – sentidos corpóreos – para que estes
82
AGOSTINHO. A Trindade XI: 1, 1.
50
objetos possam se manifestar. Assim o homem não é concebido somente por sua alma,
nem o corpo lhe é um mero ornamento. Mas a despeito de toda possível
complementaridade – que não supera um dualismo – a alma será sempre a parte superior
e o corpo a parte inferior do homem.
Enquanto a alma se deixar levar pelos sentidos externos não atingirá o nível da
razão, porque estará totalmente influenciada pelo mundo exterior, pois os dados
captados pelos sentidos corporais são armazenados na memória, mas as imagens
percebidas e incorporadas se referem apenas ao mundo exterior.
Somente o homem interior pode ter acesso às verdades eternas. Somente o homem
interior pode transcender às experiências externas e perceber as razões eternas do
mundo corpóreo, pois pode fixar a atenção além das lembranças, recolhendo e
comparando as informações captadas pelos sentidos. Ele pode, portanto lembrar,
representar, fixar, imaginar e reelaborar todas as informações provindas do mundo
exterior numa ordem racional mais ampla e superior.
Os animais também podem perceber através dos sentidos do corpo os objetos
materiais colocados no mundo exterior, lembrar-se deles, depois de impressos
na sua memória, desejar entre eles os que lhe são úteis e fugir dos que lhe são
nocivos.
Ao contrário, fixar a atenção, reter, além das lembranças captadas
espontaneamente na natureza, como ainda as que foram confiadas
intencionalmente à memória, e quando essas lembranças estão para cair no
esquecimento, lembrá-las e representá-las; além disso, construir visões
imaginárias, recolhendo e como que tecendo tais e tais lembranças tomadas
aqui e ali; ver como nesse gênero de coisas se distingue o verossímil do
verdadeiro, não só no domínio espiritual, mas até no material; todas essas e
outras operações do gênero, ainda que tenham relação com o sensível e com
os conhecimentos que a alma adquire mediante os sentidos, não são estranhas
à razão, nem são comuns a homens e animais83.
Contudo para se fazer juízo sobre as realidades corporais é preciso que a razão
opere em um nível mais elevado ainda. Assim Agostinho fala de uma dupla função da
razão: a inferior e a superior. Ambas são constituídas por uma só substância e
pertencem à alma. A diferença é que a primeira, a razão inferior, tem a função de agir e
estar mais próxima e diretamente ligada ao mundo corpóreo e ao homem exterior. A
segunda, a razão superior, tem a função de reger a primeira, esclarecendo e captando as
verdades eternas.
83
AGOSTINHO. A Trindade XII: 2, 2.
51
Quanto a essa parte de nosso ser que se ocupa da ação das coisas temporais e
corporais e que não nos é comum com os animais, certamente relaciona-se
com a razão. Mas se deriva dessa substância racional de nossa mente, pela
qual aderimos à verdade superior inteligível e imutável, ela está entretanto
como destinada ao trato com as coisas inferiores e aptas a governá-las. (...)
Por isso, esse algo de nossa alma racional – não a ponto de romper a
unidade, mas como delegado para colaborar no bem do conjunto – é repartido
para os encargos de sua ação própria. E assim como o homem e a mulher
formam uma só carne, assim também a única natureza espiritual da alma
abrange a nossa inteligência e nossa ação, ou seja, nosso conselho e
execução; ou ainda, a razão e o apetite racional; ou que se use qualquer outra
expressão mais significativa84.
A razão inferior está diretamente ligada à ação, ao trabalho, esforço e luta. A razão
superior, à verdadeira contemplação, que representa recompensa e repouso pela visão
parcial da realidade sensível. Há, portanto, uma subordinação incondicional da primeira
à segunda
85
, pois é esta que possibilita a contemplação das verdades eternas.
Vale dizer que o sentido interior não pressupõe necessariamente ainda a razão,
pois os sentidos tanto internos como externos são individualizados. A razão, ao
contrário, pode alcançar as verdades racionais e transcendentes, ou seja, aquelas que não
pertencem a nenhuma alma em particular e em todos se fazem presentes. A razão é,
pois, a mediadora entre as verdades dos nossos sentidos internos (verdades da alma) e as
verdades eternas.
Por isso mesmo, a busca pelas verdades eternas começará pela procura laboriosa,
de uma vida interior e pela busca de si. Sem dúvida Agostinho está sempre chamando o
leitor para dentro de si mesmo, porque escolher a via interior é escolher a via do
conhecimento em um plano sempre superior e mais profundo. É escolher a via do
conhecimento de tudo o que lhe transcende e escolher a via do autoconhecimento a fim
de que o conhecimento de si possa ser mediador para o conhecimento de Deus.
84
AGOSTINHO. A Trindade XII: 3, 3.
85
GILSON. Introduction à l’étude de Saint Augustin, p. 143.
52
3. O itinerário da alma a si mesmo: a visão da imagem
A busca de si exige o domínio espiritual e a dissipação de toda imagem, de todo
conceito. Agostinho busca a si “neste lugar que não é lugar
86
, no seu interior, e recusa
que esta busca possa ser feita através de um espelho.
Enxergamos os seres corpóreos por meio dos olhos corporais, mas não
podemos refratar e fazer refletir sobre nós mesmos os raios que emitem e
tocam tudo o que enxergamos, a não ser por meio de um espelho. (...)
Contudo, de qualquer modo que se encare essa força que permite a nossa
visão, seja ela irradiação ou outra coisa, temos a certeza de que se pudermos
ver essa tal força não será com os olhos do corpo. Conseguirmos investigá-la,
só será pela mente. E se possível, também será por meio dela que chegaremos
a compreender a explicação dessa possibilidade. Portanto, assim como a
mente adquire noções sobre coisas corpóreas servindo-se dos sentidos
corporais, do mesmo modo em relação às realidades incorpóreas, ela as
adquire por si mesma, por ser incorpórea. Pois se não se conhecer a si mesma
não poderá amar-se a si mesma87.
O espelho somente pode refletir o que é exterior. A alma, por ser incorpórea, não
pode ser vista através de um espelho. O que torna a alma visível é a atitude de reflexão
sobre ela mesma.
O espelho também tem o sentido de enigma. Agostinho usa a expressão quando se
refere à dificuldade de se compreender o mistério da Trindade, posto que entre o
homem e Deus não há um face a face. Agostinho investiga a Trindade por meio de um
movimento de introspecção no qual revela a própria estrutura triádica da alma humana,
forma pela qual Deus se revela e se dá a conhecer.
Mas quando chegar o dia da visão, face a face (1 Cor 13, 12), a nós
prometida, veremos esta Trindade não somente incorpórea, mas também
deveras inseparável e realmente inalterável. E nós a veremos com muito maior
clareza e certeza do que agora vemos esta sua imagem que somos nós. E
aqueles que agora vêem a Trindade aqui, por esse espelho e nesse enigma –
na medida em que se pode vê-la nesta vida –, não são os que contemplam em
sua mente essas três realidades que assinalamos e comentamos, mas os que a
vêem em sua mente como imagem de Deus e podem relacioná-la àquele do
qual são imagem, tudo o que vêem. De maneira que, por essa imagem que
vêem pela contemplação, podem também pressentir a Deus por conjetura,
posto que ainda não o podem ver “face a face”. Pois, na verdade, o Apóstolo
não disse: “Vemos agora um espelho”, mas Vemos agora por meio de um
espelho (1Cor 13, 12)88.
86
AGOSTINHO. Confissões X: 9, 16.
87
AGOSTINHO. A Trindade IX: 3, 3.
88
AGOSTINHO. A Trindade XV: 23, 44ª.
53
O homem só é capaz de conhecer a Trindade por meio da imagem que é o próprio
homem. A verdadeira visão – no face a face – parece estar reservada para o futuro.
Nesse sentido, ao invés de a alma apreender sua própria existência através de um
espelho, ela mesma se torna espelho e reflete a imagem de Deus. A alma do homem é,
pois, como um reflexo e a imagem de toda Trindade.
Segundo Somers
89
, a doutrina da imagem não é um tema especificamente
agostiniano, pois tem suas origens em tempos bem mais remotos, cerca de 2000 antes de
Cristo, nos povos sumerianos, povos não semíticos, não indo-europeus, mas que
desenvolveram uma influência decisiva sobre a civilização do Oriente antigo. Os mitos
dos sumerianos autóctones que falam do homem feito pelos Deuses a partir da lama são
a expressão mais primitiva e concreta do tema da imagem e foram, de certa forma,
assimilados e incorporados nos textos bíblicos, também pelo maniqueísmo e pela
filosofia platônica, mais especificamente a filosofia plotiniana. O tema da imagem é,
portanto, um dos pivôs dessas três tradições que parecem ter uma origem comum.
Somers acredita ainda que os mitos e relatos religiosos os quais esquecemos
podem já ser o resultado de um sincretismo primitivo, que com o passar do tempo
ganharam desdobramentos cada vez mais abstratos e complexos. Mas é sob essa
perspectiva mesma que acreditamos ser difícil dizer o quanto a doutrina da imagem
agostiniana foi influenciada ou não por outras culturas e como ela adquiriu seus
próprios contornos.
Para se ter a noção da doutrina dada por Agostinho é preciso sobretudo identificar
o espelho com a alma humana. “Deus é a luz que clareia a alma e esta o espelho que
reflete a imagem de Deus e através do qual o espírito pode contemplar, por uma
reflexão total sobre si, indiretamente, mas distintamente, a imagem de Deus”
90
.
Pode-se dizer com certeza, no entanto, por termos registros bastante explícitos
sobre isso, que São Paulo abriu para Agostinho o caminho para sua própria
interpretação da doutrina da imagem. No capítulo 8 do livro XV de A Trindade,
Agostinho faz longo comentário sobre as cartas aos Coríntios, procurando dar sentido
ao que o Apóstolo diz quando se refere a “imagem”e a “espelho”.
89
SOMERS. Imagem de Deus e iluminação divina, p. 451-454.
90
SOMERS. Imagem de Deus e iluminação divina, p. 453.
54
Ao investigarmos qual seja esse espelho e como é ele, o primeiro pensamento
que nos ocorre é que nos espelhos apenas vemos uma imagem. Envidamos
então nossos esforços neste sentido: pela imagem que somos nós, ver de algum
modo, como em espelho, aquele que nos criou. (...)
Contemplamos, disse ele, como em espelho (per speculum), e não:
contemplamos como de um mirante (de specula). O idioma grego, de onde
foram traduzidas as cartas apostólicas, não dá lugar a ambigüidade alguma.
Há um termo para espelho (speculum) onde se vêem as imagens das coisas e
outro para mirante (specula), altura de onde se pode divisar mais ao longe. E
os dois termos diferem inclusive no som. (...)
Somos transformados nessa mesma imagem, diz ele, isto é, somos
transfigurados de uma forma para outra, de uma aparência obscura para uma
aparência resplandecente. Embora seja obscura, é uma imagem de Deus. E se
é imagem, é também a sua glória, conforme à qual os homens foram criados,
sendo superiores aos demais animais91.
Agostinho percebe nesse espelho a alma que traz em si a imagem de Deus, mas
antes do Bispo de Hipona, os padres apologistas e gregos, a exemplo de São Paulo,
reconheciam no homem a imagem do Verbo e no Verbo a imagem do Pai. A tradição
Alexandrina, com Justino, Clemente de Alexandria, Orígenes e Atanásio já havia
defendido a tese de que a imagem de Deus está no espírito do homem, e apologistas
como Clemente de Roma, Inácio de Antioquia, Taciano, Irineu e Tertuliano, menos
radicais no estabelecimento de uma cisão entre alma e corpo, não hesitaram em
defender a supremacia do espiritual sobre o material. A imagem, portanto, está no
espírito daqueles que buscam a vida sem pecado.
92
Não obstante, Agostinho reelabora e aprofunda todas as interpretações
anteriores, formando aquilo que tradicionalmente é denominado de “síntese do
pensamento cristão”. Com argumentos fundamentalmente mais consistentes, o Bispo de
Hipona toma os elementos já prontos e os reconstrói com a habilidade e a solidez de
quem não quer somente crer, mas conhecer profundamente.
Se procurarmos o que possa existir de superior a essa natureza racional [a
alma], e se investigarmos a verdade, encontraremos que essa verdade é Deus,
ou seja, não uma natureza criada, mas criadora. Que essa seja a Trindade,
devemos demonstrar agora, não só para os que crêem, apoiados na
autoridade da Escritura divina, mas também para os homens dotados de
entendimento, apoiados em argumentos de razão, isso se pudermos93.
91
AGOSTINHO. A Trindade XV: 8, 14.
92
LADARIA. In: O homem e sua salvação, p. 87-102.
93
AGOSTINHO. A Trindade XV: 1, 1.
55
Podemos observar dois períodos distintos na elaboração do conceito de imagem
em Agostinho: o primeiro, entre 378 e 400, quando o Hiponense redigiu seus primeiros
escritos, entre eles, as Confissões, prevalece a concepção, por sinal bastante paulina, de
que a imagem ocupa um lugar na razão, no espírito ou no homem interior, mas que não
passa de uma impressão da figura de Deus, porque a alma perdeu sua natureza pelo
pecado. Podemos somar a esta concepção, a partir de 388, duas características
helenísticas e neoplatônicas. A primeira delas é a semelhança à Deus pela imortalidade
da alma e a segunda a idéia de que se pode encontrar a semelhança por meio da reflexão
ou Cogito.
A semelhança pela imortalidade não será reafirmada em A Trindade, obra que
constitui o que estamos considerando a segunda fase, cuja maturidade e segurança
trazem fundamentos bem mais sólidos a respeito da doutrina da imagem.
A imagem será uma imagem trinitária que constitui o ser do homem. Neste
segundo período prevalece a idéia de que a imagem se realiza primordialmente na
mente ou na inteligência. Nesse sentido, quando pecamos não perdemos nossa imagem,
mas uma parte de nossa inteligência.
A defesa de uma natureza humana racional conduz, conseqüentemente, a
possibilidades diversas, entre elas, à capacidade de conversão pela razão. O pecado,
nesse sentido, não destruiria, mas apenas deformaria a imagem do homem.
O fato de o homem ser o próprio espelho da imagem de Deus, independentemente
de a alma estar ou não deformada pelo pecado, mostra que a antropologia agostiniana dá
ao homem um status tal que toda sua filosofia passa necessariamente pelo homem
94
. O
eixo único em torno do qual ela gira é Deus
95
, mas para se chegar até Deus é preciso
reconhecer o lugar onde Seu semblante está espelhado, ou seja, no interior de todo
homem que à Sua imagem foi criado.
94
LADARIA, In: O homem e sua salvação, p. 103.
95
BOEHNER E GILSON, História da Filosofia Cristã, p. 142.
56
4. O conhecimento de si
A doutrina da imagem agostiniana toma o caráter do “realismo cristão”
96
na
medida em que o homem é verdadeiramente imagem de Deus. Assim a questão se
coloca da seguinte forma: se Deus é trino, a imagem também deverá ser trina. De fato,
Agostinho descobre e demonstra uma série de estruturas trinitárias no homem.
Há, em última instância, um espírito o qual procede uma trindade humana e que
nela engendra uma consciência de si
97
. Trata-se de uma força consciente interior que
sabe de sua própria existência e que afirma essa existência a todo instante.
Os homens duvidaram se a faculdade de viver, recordar, entender, querer,
pensar, saber e julgar provinha do ar, do fogo, do cérebro, do sangue, dos
átomos (...); e houve quem defendesse esta ou aquela opinião. Não obstante,
quem jamais duvidou que vive, recorda, entende, quer, pensa, conhece e
julga? Posto que, se duvida, vive; se está em dúvida acerca daquilo que
duvida, recorda sua dúvida; se duvida, sabe que duvida; se duvida, quer estar
certo; se duvida, pensa; se duvida, sabe que não sabe; se duvida, julga que
não convém assentir temerariamente. E ainda que duvide de todas as demais
coisas, destas jamais deve duvidar, porque se não existissem, seria impossível
a dúvida
98
.
96
Cayré explica no capítulo IV do seu livro Dieu présent dans la vie de l’esprit, p. 88 a 111, que o
realismo cristão surge da idéia de criação ex nihilo. Neste sentido Deus não é uma abstração, mas a mais
eficaz de todas as realidades, ainda que considerado na sua pura e necessária transcendência.
Também o mundo criado traz, em si, o caráter do realismo, pois não é uma parcela degradada da
divindade, mas sua obra e todas as criaturas não são tiradas de sua substância, mas fruto de sua ação.
Considerando de uma forma muito mais filosófica do que doutrinal, Agostinho aprofunda a teoria da
criação cristã e revela que entre Deus e as criaturas o ponto de contato essencial é o ‘ser’, com a diferença
que no Criador o ser é absolutamente ‘ser sempre’. E cita: “Vi claramente que todas as coisas que se
corrompem são boas: não se poderiam corromper se fossem sumamente boas, nem absolutamente boas.
Com efeito, se fossem absolutamente boas, seriam incorruptíveis, e se não tivessem nenhum bem, nada
haveria nelas que se corrompesse. (...) Vi, pois, e pareceu-me evidente que criastes boas todas as coisas,
e que certissimamente não existe nenhuma substância que Vós não criásseis. E, porque as não criastes
todas iguais, por esta razão, todas elas, ainda que boas em particular, tomadas conjuntamente são muito
boas, pois o nosso Deus criou todas as coisas muito boas.” (Confissões VII: 12, 18) Todo ser é um,
porque participa do semblante de Deus, todas as coisas são verdadeiras porque são um ser. À diferença
das criaturas, o Criador é o ser por essência, imutável e superior.
A partir da concepção de criação é que Agostinho funda sua moral sobre uma verdade libertadora e exige
um verdadeiro amor ao bem e a Deus que é o princípio e o regulador supremo. Deus é a verdade da
existência e a verdade é o suporte de toda procura e toda especulação. A verdade é a própria realidade
identificada com o ser conhecido pelo espírito e na medida em que pode ser conhecido porque Deus é
eterno, ou seja está fora do tempo e acima da compreensão do que é temporal e é também a caridade
perfeita. Verdade, eternidade e caridade são, pois, conjuntamente a fórmula da constituição divina, a qual
assimila uma verdade que é ao mesmo tempo realidade e transcendência.
97
SOMERS. Imagem de Deus e iluminação divina, p. 459.
98
AGOSTINHO. A Trindade X: 10, 14.
57
Essa consciência de si é primeiramente memória de si mesmo, ou seja, permanente
identidade do espírito consigo mesmo que faz despertar uma inteligência capaz de
armazenar e discernir as verdades de sua própria essência
99
. O espírito humano, na
forma como Agostinho o concebe, é necessariamente consciente e presente a si
mediante uma estrutura trinitária mais completa e essencial: memória, inteligência e
vontade. Mas o homem não é necessariamente sempre consciente de si. Para que a alma
não esqueça de si mesma e não esqueça o amor que sente por saber de si é preciso que a
outra estrutura já mencionada – mente, conhecimento e amor –, esteja em constante
atividade.
No desdobramento dessas duas atividades trinitárias, Agostinho reconhece a
existência, nas profundezas do espírito, de uma memória, uma inteligência e uma
vontade interiores, onde reside toda a ciência escondida e de onde nascerá o pensamento
e seu conteúdo.
No livro X de A Trindade, Agostinho constata que a alma se conhece sempre e
toda inteira por meio de sua realidade trinitária. Realidade pela qual a alma sabe que
conhece, lembra, deseja conhecer e por conseqüência sabe que vive e existe. Memória,
inteligência e vontade implicam antes de tudo que é preciso “ser”.
Ninguém duvida que aquele que entende está vivo; e aquele que está vivo é
porque existe. (...)
Do mesmo modo toda alma humana sabe que quer, sabe igualmente que para
querer é preciso ser, é preciso viver. Mas desta vez ainda, ela refere o ato de
querer ao objeto que a vontade lhe faz querer. A alma sabe igualmente que se
recorda, mas ai ainda, ela sabe que para se recordar é preciso ser, é preciso
viver100.
A intuição que a alma tem dela mesma revela sua essência mesma, a saber, de ser
um só e mesmo espírito nessas três realidades. Cada uma delas se distingue das outras e,
ao mesmo tempo, todas são estreitamente implicadas entre si. Dizer que se lembra é
referir-se a um saber, ou seja, é lembrar que se sabe. Querer e amar é girar em direção
àquilo que se lembra conhecer. Memória, inteligência e vontade são realidades que se
contrastam como termos de relações recíprocas, cuja estrutura desenha a imagem da
Trindade divina, pois os três termos são distintos, mas constitutivos de uma mesma e
única substância.
99
SOMERS. Imagem de Deus e iluminação divina, p. 459-560.
58
5. Do conhecimento de si ao conhecimento de Deus
O conhecimento de si no pensamento agostiniano aponta para dois pólos de
relações recíprocas – o eu interior e Deus –, mostrando que o conhecimento de si está
intimamente ligado ao conhecimento de Deus. “Deus sempre o mesmo: que eu me
conheça a mim mesmo, que eu te conheça
101
. É preciso se conhecer para descobrir
Deus e é preciso conhecer Deus se quisermos descobrir nosso eu mais profundo, pois é
o próprio Deus que nos faz conhecer a nós mesmos e se dá a conhecer, falando e
iluminando nosso coração.
Eis a razão das diversas invocações agostinianas a Deus ao longo de suas obras.
As preces auxiliam Agostinho a dobrar-se sobre si mesmo, desviando sua atenção dos
objetos sensíveis, num mergulho, ao mesmo tempo, em si e em Deus.
Deus das virtudes, convertei-nos, mostrai-nos a vossa face, e seremos salvos.
Para qualquer parte que se volte a alma humana, é à dor que se agarra, se
não se fixa em vós, ainda mesmo que se agarre às belezas existentes fora de
Vós e de si mesma102.
Mas enquanto esse mergulho em si mesmo é, nas Confissões, um mergulho sem
limites, ou seja, um mergulho daquele que se ergueu das “profundezas do abismo” para
uma entrega e uma abertura de seus segredos mais íntimos, em A Trindade Agostinho
tem muito claro que o conhecimento de si e de Deus se fará mediante um esforço
intelectivo, pois é pela atividade da mente que o conhecimento se dá. O que não difere é
que em ambas as obras, tanto o conhecimento ‘de si’ mesmo como o conhecimento de
Deus ‘em si’ tem seus limites.
Nas Confissões o Bispo de Hipona afirmou que Deus era o alimento que mata a
fome, o remédio para todos os males e aquele que jamais se afasta de nós.
... ó meu Deus, luz da minha alma, pão da boca interior do meu espírito, poder
fecundante da minha inteligência e seio do meu pensamento103.
..............................................................................................................................
Impelido por uma necessidade secreta, enraivecia-me contra mim mesmo por
não me sentir mais faminto de amor. Gostando de amar, procurava um objeto
100
AGOSTINHO. A Trindade X: 10, 13.
101
AGOSTINHO. Solilóquios II: 1, 1.
102
AGOSTINHO. Confissões III: 10, 15.
103
AGOSTINHO. Confissões I: 13, 21.
59
para esse amor: odiava a minha vida estável e o caminho isento de risco,
porque sentia dentro de mim uma fome de alimento interior – de Vós, ó meu
Deus. Não tinha fome desta fome, porque estava sem apetite de alimentos
incorruptíveis, não porque deles transbordasse, mas porque, quanto mais
vazio, tanto mais enfastiado me sentia. Por isso minha alma não tinha saúde, e
ulcerosa, lançava-se para fora, ávida de se roçar miseravelmente aos objetos
sensíveis. Mas se estes não tivessem alma, com certeza não seriam
amados104.
..............................................................................................................................
Onde estava quando Vos procurava? Vós estáveis diante de mim; porém eu
apartava-me de mim e, se nem sequer me encontrava a mim mesmo, muito
menos a Vós!105.
Agostinho, em todo relato das Confissões carrega uma certeza ardente da presença
de Deus no seu interior. Vós éreis mais íntimo que o meu próprio íntimo e mais sublime
que o ápice do meu ser
106
. Mas afirma ainda que se quisermos alcançar a Deus é preciso
primeiramente conhecer nossos desejos e necessidades mais profundas, saber o que
somos e, principalmente, preparar nosso interior para recebê-Lo.
Fazei que eu Vos conheça, ó Conhecedor de mim mesmo, sim, que Vos
conheça como de Vós sou conhecido. Ó virtude da minha alma, entrai nela,
adaptai-a a Vós, para a terdes e possuirdes sem mancha nem ruga107.
...............................................................................................................
Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Eis que
habitáveis dentro de mim, e eu lá fora a procurar-Vos! Disforme, lançava-me
sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo, e eu não estava
convosco!
Retinha-me longe de Vós aquilo que não existia se não existisse em Vós.
Porém chamaste-me com uma voz tão forte que rompestes a minha surdez!
Brilhastes, cintilastes e logo afugentastes a minha cegueira! Exalastes
perfume: respirei-o, suspirando por Vós. Saboreei-Vos, e agora tenho fome e
sede de Vós. Tocastes-me e ardi no desejo da vossa paz108.
O conhecimento de si e o conhecimento de Deus, nesse sentido, se confundem na
medida em que conhecer a si é, necessariamente, conhecer o objeto do seu amor. É
importante lembrar que para Agostinho amor e conhecimento estão sempre associados
entre si, um implica o outro. E Agostinho declara que o que ele sabe de si é que ama a
Deus.
104
AGOSTINHO. Confissões III: 1, 1.
105
AGOSTINHO. Confissões V: 2, 2.
106
AGOSTINHO. Confissões III: 6, 11.
107
AGOSTINHO. Confissões X: 1, 1.
60
A minha consciência, Senhor, não duvida, antes tem a certeza de que Vos ama.
Feriste-me o coração com a vossa palavra e amei-Vos. O céu, a terra e tudo o
que neles existe dizem-me por toda parte que vos ame109.
Ora, este sentimento pode ser descrito como uma experiência profunda da
manifestação de fé, mas não é isso que transparece visto que Agostinho associa sempre
o amor ao conhecimento. Não se ama o que é desconhecido. É, então, que o santo Bispo
quer ter claro o que ele ama quando ama a Deus.
Que amo eu, quando Vos amo? Não amo a formosura corporal, nem a glória
temporal, nem a claridade da luz, tão amiga destes meus olhos, nem as
melodias das canções de todo o gênero, nem o suave cheiro das flores, dos
perfumes ou dos aromas, nem o maná ou o mel, nem os membros tão flexíveis
aos abraços da carne. Nada disto amo, quando amo o seu Deus. E, contudo
amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento e um abraço, quando amo
meu Deus, luz, voz, perfume e abraço do homem interior, onde brilha para a
minha alma uma luz que nenhum espaço contém, onde ressoa uma voz que o
tempo não arrebata, onde se exala um perfume que o vento não esparge, onde
se saboreia uma comida que a sofreguidão não diminui, onde se sente um
contato que a saciedade não desfaz. Eis o que amo quando amo o meu
Deus110.
Deus é amado como luz, voz, odor – sensações do homem interior. Experiência
puramente individual e intransponível. Se o amor pressupõe posse, o homem ama a
Deus como quem possui a eternidade e a permanência. Diferentemente das sensações
externas, constantemente arrebatadas pelo tempo, as sensações internas levam à
verdadeira fruição da eternidade de Deus.
Em A Trindade, o princípio de conhecimento é o mesmo: de si a si e de si a Deus.
Porém, não encontramos nessa obra um eu aflito e dilacerado em busca da salvação por
tanto tempo renunciada, mas um Agostinho maduro e consciente de seu lugar diante do
criador e das outras criaturas. O caminho que se há de percorrer, portanto, de si a Deus
toma cunho e dimensões bem mais racionais do que emocionais.
É preciso conhecer a Deus, posto que Deus é o objeto do amor. Mas não se pode
conhecer a Deus em si, pois a mente humana, limitada e imperfeita, é incapaz de
alcançar a perfeição divina.
No capítulo IX (12, 18) de A Trindade, Santo Agostinho fala do desejo que inspira
a busca. A mens, quando se conhece é pai de seu conhecimento. O amor não gera seu
108
AGOSTINHO. Confissões X: 27, 38.
109
AGOSTINHO. Confissões X: 6, 8.
110
AGOSTINHO. Confissões X: 6, 8.
61
próprio amor, mas já existe antes do parto do verbo. É o amor que inclina a mens a gerar
o verbo e une o pai ao seu filho.
Todo conhecimento gerado interiormente é o que desejamos possuir. O amor,
pois, está duplamente ligado à geração: como desejo, ele é aspiração e causa do
conhecimento; como dileção ele é apego ao fruto conseguido. Assim, o amor é o
movimento da alma, estímulo e impulso que busca o que lhe falta e descanso, fruição e
repouso na posse do que lhe foi alcançado. Mas como o conhecimento de Deus está
acima da capacidade natural da mente humana, Agostinho propõe seu conhecimento por
meio da imago Dei.
O reconhecimento da Trindade divina através da imagem no homem será um
caminho mais curto e mais fácil para a apreensão humana. “Voltemos,
portanto, àquela imagem criada, ou seja, à investigação e consideração da
alma racional acerca desse assunto. Na alma, com efeito, o conhecimento de
certas realidades que antes não eram conhecidas e o amor de outras que antes
não eram amadas, produzem-se no tempo e facilitam-nos a descobrir mais
distintamente o que devemos dizer – pois a linguagem, que também ela se
desenvolve no tempo –, explica melhor as realidades que se encerram na
ordem do tempo111.
O homem pode reconhecer na sua própria imagem uma idéia cuja forma deve se
aproximar daquilo que Deus é na sua apreensão mais imediata, mas para isso é preciso,
em primeiro lugar, descartar qualquer tipo de imagem corpórea.
Se nos esforçarmos em imaginar a Deus, na medida em que ele nos dê a graça
e o dom, não pensemos em contatos ou abrangências e espaços locais, como
se ele fosse um ser em três corpos. Pelo contrário, tudo o que ocorrer ao
espírito que importe em maior grandeza nos três, do que em cada um; mais
inferioridade em um, do que nos dois outros; deve ser rechaçado, sem
qualquer tentação de dúvida, assim como se deve repudiar da mente todo
elemento corpóreo. (...) Pois Deus certamente não é nem a terra, o céu, nem
algo parecido ao que vemos no céu, nem ao que aí não vemos, e que talvez ali
esteja112.
Mesmo concebendo Deus como luz, denominação usual nos textos Agostinianos,
essa luz não pode ser tomada como luz material, capaz de ser percebida pelos olhos do
corpo. A luz da qual fala Agostinho é aquela “que só o coração vê
113
.
111
AGOSTINHO. A Trindade IX: 12, 17.
112
AGOSTINHO. A Trindade VIII: 2, 3.
113
AGOSTINHO. A Trindade VIII: 2, 3.
62
Para encontrar a Deus é preciso encontrar a sua imagem no próprio interior. A
imagem é o reflexo de Deus e o ponto de aplicação de sua presença, onde Deus toca e
ilumina a alma. Deus clareia a alma porque Ele é Luz.
Desse modo, Deus não mais será uma figura exterior e distante, mas um Ser
espiritual presente e pessoal que se manifesta no próprio íntimo dos homens. Deus se
manifesta por meio de sua luz inteligível a qual ilumina e toca a alma humana.
Mas porque a visão da luz divina somente se dá indiretamente, através do espelho
que é a própria alma humana, a imagem apresenta-se de forma muitas vezes obscura e
enigmática. É preciso restaurar a imagem de Deus no homem pela remissão e
purificação do espírito.
O preceito socrático Conhece-te a ti mesmo, terá um importante papel nesse
sentido, na medida em que ele ativa o intelecto humano para uma capacidade latente
que precisa ser despertada. A alma apreende sua existência no ato mesmo de pensar, não
exigindo para isso nenhum espelho. A partir daí ela se torna o próprio espelho que
reflete Deus – imago Dei. A alma revela, nesse movimento de introspecção, por meio de
sua estrutura triádica, a sombra e a transcendência de Deus. Mas também, como afirma
Courcelle, descobre uma realidade de duas faces: a de que o homem vive a guerra
interior entre carne e espírito, compreendendo a profunda diferença de natureza entre o
homem e a divindade, por um lado, e a inexorável presença de Deus no seu interior, de
outro. Eis que habitáveis dentro de mim, e eu lá fora a procurar-Vos!
114
. A primeira faz
descobrir a profunda diferença de natureza entre o homem e a divindade, a segunda
nossa grandeza por sermos seres criados à imagem de Deus e superiores aos animais
115
.
6. O “Conhece-te a ti mesmo”
A alma humana precisa se conhecer para diferenciar o conhecimento que ela tem
de si do conhecimento que ela adquire de outras experiências sensitivas e intelectivas,
114
AGOSTINHO. Confissões X: 27, 38.
115
COURCELLE. Connais-toi toi même. De Socrate a Saint Bernard, p. 144-147.
63
pois a alma recolhe por ela mesma todos os conhecimentos das realidades incorporais,
entre eles o conhecimento que ela tem de si mesma.
Como é possível uma mente conhecer outras mentes, se não se conhece a si
mesma? Não se diga que é como acontece com o olho do corpo, que pode ver
os olhos dos outros sem que veja os seus próprios. Enxergamos os seres
corpóreos por meio dos olhos corporais, mas não podemos refratar e fazer
refletir sobre nós mesmos os raios que emitem e tocam tudo o que
enxergamos, a não ser por meio de um espelho. (...) Contudo, de qualquer
modo que se encare essa força que permite a nossa visão, seja ela irradiação
ou outra coisa, temos a certeza de que se pudermos ver essa tal força não será
com os olhos do corpo. (...) Portanto, assim como a mente adquire noções
sobre coisas corpóreas servindo-se dos sentidos corporais, do mesmo modo,
em relação às realidades incorpóreas, ela as adquire por si mesma. Logo, a
mente conhece-se a si mesma, por si mesma, por ser incorpórea. Pois se não
se conhecer a si mesma não poderá amar a si mesma116.
Porque a alma se conhece por si mesma, sem a mediação de qualquer coisa que
seja ela mesma, nada é mais manifesto que a sua própria existência.
Ao dizer que sabemos o que é uma alma (animus), não o dizemos com
incoerência, pois nós também temos uma alma. Não porque a tenhamos visto
com os olhos do corpo e tampouco por termos percebido por uma noção geral
ou especial, ou pela semelhança com outras muitas coisas por nós vistas. Mas
como acabo de dizer, sabemos por termos uma alma. O que há que se conheça
mais intimamente e leve a pessoa a sentir-se ela mesma do que esse princípio
que nos faz sentir as demais coisas? Conhecemos por comparação a nós
mesmos, os movimentos dos corpos que nos fazem perceber que outros além
de nós estão vivos117.
A alma sabe que vive e que é, mas muitas vezes faz uma imagem distorcida de si
mesma. A alma precisa do preceito para jamais se esquecer que ocupa um lugar
intermediário entre Deus que a rege e os seres que são por ela regidos.
Por que então é dado um preceito à alma para que se conheça a si mesma?
Conforme creio, é para ela se pensar em si mesma e viver de acordo com sua
natureza, ou seja, para que se deixe governar por aquele a quem deve estar
sujeita, e acima das coisas que deve dominar. Sob aquele por quem deve ser
dirigida e sobre aquilo que ela deve dirigir118.
É preciso pensar sobre sua própria existência para que, sabendo o que é, viva
conforme sua natureza. “Uma coisa é não se conhecer e outra não pensar sobre si
116
AGOSTINHO. A Trindade IX: 3, 3.
117
AGOSTINHO. A Trindade VIII: 6, 9.
64
mesma
119
. A alma deve, pois, pensar em si mesma, cuidando para não se apegar às
imagens corpóreas.
Mas como (a alma) se habituou a colocar amor nas coisas em que pensa com
amor, ou seja, às coisas sensíveis ou corporais, não consegue pensar em si
mesma sem essas imagens corporais. Daí nasce o vergonhoso erro de ver-se
impotente para afastar de si as imagens das coisas sensíveis, a fim de
contemplar-se a si mesma em sua pureza120.
Julgando ser um corpo ou confundindo-se com as coisas sensíveis, a alma erra na
forma de se reconhecer, daí a importância do preceito para que a alma jamais esqueça
do que realmente é. O “conhece-te a ti mesmo” é, portanto, a via da autoconsciência e
não a prova de sua existência, uma ascese e não uma descoberta, quando a alma se
aplica em discernir o que ela é daquilo que ela não é.
Para além de qualquer ligação com uma purificação moral, o preceito busca
assegurar à mens o conhecimento ordenado de si. É acima de tudo um convite para
realizar uma conversão a si, quando a mens, saindo de si mesma, inclinou-se à
exterioridade.
O preceito exorta a alma a fazer a passagem da notitia sui ao cogitatio sui, o que
equivale a fazer um giro para a interioridade e à reflexão.
Mas se o espelho não pode ser referência para o conhecimento de si mesma, a
alma se conhece por uma intuição dela mesma, pois ela está presente a si mesma no
momento em que se procura.
É, portanto, um conhecimento que se desenvolve no ato mesmo de se conhecer,
quando a alma, toda inteira, se conhece intuitivamente, pois “quando se diz: “conhece-
te a ti mesma”, no mesmo ato em que ela entende: “ti mesma”, ela se intui e não por
outra razão do que pelo fato de estar presente a si mesma”
121
.
Enquanto o olho não pode se ver senão por espelho, a alma pode se perceber, ela
mesma, pela inteligência. Nesse sentido ela não conhece somente uma parte dela mesma
por uma outra parte dela mesma como queriam os céticos. Agostinho compara esse
conhecimento implícito que o homem tem de si mesmo com a memória que contém as
118
AGOSTINHO. A Trindade X: 5, 7.
119
AGOSTINHO. A Trindade X: 5, 7.
120
AGOSTINHO. A Trindade X: 5, 7.
121
AGOSTINHO. A Trindade X: 9, 12.
65
lembranças que nos levam a nos chamar por nós mesmos, fazendo-nos observar, que a
alma jamais se ignora plenamente.
Quando sabe algo de si, é impossível não o saber a alma toda. É a alma toda
que se sabe. Ora, sabe-se sabendo algo e é impossível que não o saiba a alma
toda. Portanto, conhece-se a si mesma, toda inteira. E o que lhe é mais
conhecido do que saber que vive? (...) Além disso, como sabe que ainda não se
encontrou toda, ela sabe qual é a sua grandeza. E assim busca o que lhe falta
a seu conhecimento. (...) Contudo, é toda inteira que ela se busca. Pois está
toda presente a si mesma122.
Assim, é pelo cogito que a alma se vê, se compreende e se reconhece, sabendo que
ela já se conhecia, antes, implicitamente, passando da memória implícita à descoberta.
É por meio do cogito que a alma se conhece como sujeito pensando em si mesmo
e se encontra com Deus. O pensamento apreende sua própria existência por uma
experiência imediata – presença a si da alma – e daí reconhece o que é e o que não é. A
verdade de si é, portanto, condição primeira, fundamental e indispensável para o
conhecimento de Deus.
122
AGOSTINHO. A Trindade X: 4, 6.
66
CAPÍTULO 3
CONHECIMENTO E PRESENÇA DE DEUS
“DEUS SEMPRE O MESMO: QUE EU ME CONHEÇA
A MIM MESMO; QUE EU TE CONHEÇA.”
(SOLILÓQUIOS II: 1, 1)
1. A descoberta da verdade
Toda a doutrina agostiniana do conhecimento está estreitamente ligada à forma
como o homem conhece a Deus. Dessa maneira, a forma como se processa o
conhecimento humano confunde-se com a busca e com a forma como o homem alcança
a sabedoria, a qual é associada à verdade, à felicidade e à beatitude que vem da fruição
de Deus.
A possibilidade do conhecimento de Deus, salvo todas as limitações humanas, põe
em relevo o caráter singular do pensamento agostiniano, considerado do ponto de vista
filosófico como do teológico. Deus não será mais o Ser incognoscível e exterior ao
homem e este poderá trilhar o caminho da salvação por uma razão que se alia e até
mesmo complementa a fé.
Apesar de considerar a fé como condição primeira para alcançar as verdades
reveladas, Agostinho defende a necessidade de compreender o que se crê, porque
considera que o entendimento proporciona o progresso espiritual necessário para a
posse das verdades que vêm de Deus.
O próprio nosso Senhor, tanto por suas palavras quanto por seus atos,
primeiramente exortou a crer àqueles a quem chamou à salvação. Mas em
seguida, no momento de falar sobre esse dom precioso que havia de oferecer
aos fiéis, ele não disse: “A vida eterna consiste em crer,” mas sim: “A vida
eterna é esta: que eles te conheçam a ti, único Deus verdadeiro e aquele que
tu enviaste, Jesus Cristo” (Jô 17,3). Depois disse àqueles que já eram crentes:
“Procurai e encontrareis” (Mt 7,7). Pois não se pode considerar como
67
encontrado aquilo em que se acredita sem entender. E ninguém se torna capaz
de encontrar a Deus se antes não crer no que há de compreender123.
Agostinho aliou como ninguém o desejo de possuir a verdade a partir desta vida,
verdade nascida da tradição filosófica, com a necessidade de alcançar essa verdade por
meio do desenvolvimento espiritual e moral. O que ele procura é um bem tal que sua
posse traga paz, felicidade, retidão, senso de justiça e entrega total a Deus.
O ponto de partida para nossa reflexão está no capítulo VII das Confissões quando
o Bispo descreve sua conversão ao neoplatonismo.
Em seguida, aconselhado a voltar a mim mesmo, recolhi-me ao coração,
conduzido por Vós. Pude fazê-lo, porque Vós tornastes meu auxílio.
Entrei, e, com aquela vista de minha alma, vi, acima dos meus olhos interiores
e acima do meu espírito, a Luz imutável. Esta não era o brilho vulgar que é
visível a todo o homem, nem era do mesmo gênero, embora fosse maior. Era
como se brilhasse muito mais clara e abrangesse tudo com a sua grandeza.
(...)
Quem conhece a Verdade conhece a Luz Imutável, e quem a conhece, conhece
a Eternidade. O Amor a conhece! Ó Verdade eterna, Amor verdadeiro,
Eternidade adorável! Vós sois o meu Deus!124
Agostinho descobre a verdade nele mesmo, mediante o olho do espírito, que
também pode ser interpretado como o olho da inteligência. Fixando-se ainda única e
exclusivamente no fato dessa visão, sem se preocupar com a natureza desse olhar,
Agostinho demonstra que embora a luz possa ser vista internamente, está acima de
nossas mentes. Trata-se de um fenômeno transcendente ao espírito. Uma luz metafísica,
incorporal, imutável e espiritual, totalmente distinta daquela que os olhos corporais
percebem sensivelmente. Essa luz será a causa e o princípio revelador da verdade de
todo e qualquer conhecimento.
Assim, diante da Luz, Agostinho se depara com uma realidade triádica
fundamental: a Verdade, que é o Ser atingido pelo espírito, a Eternidade, característica
intrínseca à Verdade e o Amor, ponto de partida ou movimento que impulsiona a alma
em direção ao bem que representa a Verdade eterna. Ao associar as realidades duas a
duas, longe de fazer um simples jogo de retórica, Agostinho ressalta o grau de relações
recíprocas entre elas e, conseqüentemente, a profundidade dessa descoberta.
A descoberta da Luz mostra que o espírito é capaz de se elevar, mesmo por
alguns instantes, à percepção da verdade. Isso demonstra, portanto, que a verdade é
123
AGOSTINHO. O Livre-arbítrio I: 2, 6.
68
independente e transcendente ao espírito, não nasce do interior. Ela passa por aí por um
mistério que é a própria presença daquela luz.
Agostinho afirma simplesmente que, desejando a verdade, a alma vê uma lei que
lhe é superior e uma natureza imutável que é Deus. O que a alma atinge é um conteúdo
de nossa razão que não pode ser explicado do ponto de vista da própria razão e que nos
obriga, por conseqüência, a transcendê-la para afirmar a existência de uma luz que
clareia a verdade subsistente. É, portanto, a possessão ou não da luz que distingue uma
consciência perfeita de outra imperfeita, pois uma visão ofuscada é sempre uma visão
parcial, incompleta e sujeita a enganos desastrosos à consciência humana.
Porque é interior, a certeza da verdade iluminada por essa luz será sempre
superior a qualquer outra certeza. O que vale dizer que a luz abre à consciência humana
uma verdade de evidências intuitivas. Cabe a nós perguntar, no entanto, de onde vem
esse conhecimento intuitivo da verdade.
As respostas que vêm sendo investigadas pelos intérpretes do pensamento
agostiniano apresentam sempre duas faces: por um lado a natureza divina da luz – teoria
da iluminação divina – e, por outro, a exata posição que o intelecto humano ocupa
dentro da doutrina. De fato, há uma ligação muito estreita entre o homem e Deus no
plano da inteligência. Agostinho penetrou em sua alma e lá encontrou a verdade numa
dimensão entre o humano e o divino. Assim nossas questões ganham desdobramentos
ao se procurar estabelecer exatamente em que ponto se assentam as fronteiras entre a
realidade ininteligível de Deus e o mundo inteligível interior presente na alma, e entre
este e a realidade exterior do mundo sensível.
Quando trata do conhecimento, Agostinho se ocupa em primeiro plano daquilo
que pertence ao mundo superior, procurando ver as relações existentes entre a realidade
inteligível que está no homem e a realidade inteligível que está em Deus.
124
AGOSTINHO. Confissões VII: 10, 16.
69
2. A iluminação
Segundo Plotino, o princípio subjacente a tudo que existe no mundo sensível é a
ordem e o bem. A visão da ordem é a idéia do bem representada pela imagem
metafórica do Sol que, permanecendo luz em si, irradia de si fulgor em todas as
direções. Todas as coisas nascem de Deus, portanto, pertencem e derivam dele. Mas a
própria ordem hierárquica que cada ser ocupa no universo revela um descenso
progressivo
125
. Assim, como a luz vai se ofuscando na medida em que nos afastamos de
sua fonte, também o afastamento do esplendor da singularidade absoluta do Uno nos
leva para a escuridão de uma crescente distinção e multiplicidade.
Agostinho de certa forma adotou essa imagem, adaptando-a ao cristianismo. As
idéias são os próprios pensamentos de Deus, causa da luz, porque é o princípio supremo
do Ser e do conhecimento, ou seja, Deus é a própria fonte da luz.
A principal fonte inspiradora para a adaptação e formulação da doutrina
agostiniana da iluminação parece ser o Evangelho de São João
126
, mas devemos lembrar
que o uso de metáforas que associam o conhecimento à visão, à claridade e à
luminosidade é tão remoto quanto a própria história do pensamento.
127
(...) cada um abarca aquele bem singular e verdadeiro de acordo com o seu
estado de saúde e firmeza. Ela é uma espécie de luz inevitável da mente. A luz
comum, à medida que pode, nos indica como é a aquela luz. Pois há alguns
olhos tão sãos e vivos que, ao se abrirem, fixam-se no próprio sol sem
nenhuma perturbação. Para esses a própria luz é, de algum modo, saúde, sem
necessidade de alguém que lhes ensine, senão talvez apenas de alguma
exortação. Para eles é suficiente crer, esperar, amar. Ao passo que outros são
feridos pelo próprio brilho que desejam imensamente ver, mas não
conseguindo ver, com freqüência retornam às trevas com prazer.128
125
O descenso do Uno apresenta três graus: o Intelecto, a Alma universal e mundo corpóreo. Os dois
primeiros formam com o Uno A Trindade divina, o terceiro está fora do mundo inteligível e é
considerado não-ser.
126
Houve um homem enviado por Deus; seu nome era João. Ele veio como testemunha, para dar
testemunho da luz, a fim de que todos cressem por ele. Ele não era luz, mas devia dar testemunho da luz
(Jo 1, 6-9).
127
Sobre a relação entre as metáforas da visão e o conhecimento ver: CHAUÍ, Marilena. Janela da alma,
espelho do mundo, p. 31-63.
128
AGOSTINHO. Solilóquios I: XIII, 23.
70
Encontramos especificamente nesse trecho do Solilóquios uma referência à luz,
fazendo alusão à caverna de Platão. A filosofia agostiniana segue, portanto, o mesmo
princípio de ser e saber estabelecidos em uma inteligibilidade descrita pela imagem do
sol, à diferença que em Agostinho a alma precisa buscar a luz por meio de um giro, para
o interior. O bem mediado pela luz não se encontra na ordem cósmica subjacente aos
objetos que procuramos conhecer, nem no campo das Idéias e sim no próprio Deus que
ilumina a alma humana.
Deus, Pai da verdade, Pai da sabedoria, pai da verdadeira e suprema vida,
Pai da felicidade, Pai do que é bom e belo, Pai da luz inteligível, Pai do nosso
desvelo e iluminação, Pai da garantia pela qual somos aconselhados a
retornar a ti.129
Ao comparar Deus à luz inteligível, Agostinho marca a nítida diferença entre o
que é luminoso por si e, portanto, visível por natureza, e o que somente pode ser visível
por uma luz emprestada. O sol é luminoso e torna os objetos luminosos e visíveis. Da
mesma forma Deus é inteligível e empresta a inteligibilidade às verdades percebidas
pela alma.
Agostinho utiliza essas comparações para distinguir e determinar o papel da
atividade divina em relação ao intelecto humano. Por isso é necessário destacar bem a
distinção entre o intelecto humano e a luz divina.
Partindo de algumas passagens do Solilóquios é possível pensar que a atividade
divina se sobrepõe à atividade do intelecto humano.
_ Agora eu gostaria que me respondesses: na tua opinião, quem sente, o corpo
ou a alma?
_ Parece-me que é a alma.
_ E achas que o entendimento pertence à alma?
_ Acho que a nenhuma outra coisa senão à alma, a não ser a Deus, em quem,
creio, se situa o intelecto130.
Gilson, no entanto, nega essa possibilidade de interpretação, visto que toma o
termo iluminação como uma metáfora e assim afirma:
Por uma espécie de inversão da metáfora a influência divina vem a ser o
termo positivo do qual a luz visível seria a imagem derivada. Não é mais Deus
que procede como o sol, mas o sol que procede como Deus. De qualquer
129
AGOSTINHO. Solilóquios I: I, 2.
130
AGOSTINHO. Solilóquios II: III, 3.
71
maneira e em qualquer sentido que se interprete, a fórmula supõe que um de
seus termos seja tomado em sentido figurado; ela permanece, pois,
inevitavelmente uma comparação.
A dificuldade real começa quando se procura precisar o que compete a Deus e
o que compete ao homem no ato do conhecimento. Em primeiro lugar é
preciso notar que longe de dispensar o homem de ter um intelecto próprio, a
iluminação divina o supõe. Não poderia, portanto, haver confusão entre o
pensamento humano e a luz divina; ao contrário, uma coisa é ser uma luz que
ilumina, outra coisa é ser o que essa luz ilumina; os olhos não são o sol e,
portanto, não há nenhum erro nesse ponto. Disso procedem as explicações
que Agostinho repetidamente apresentou para afastar toda incerteza sobre o
sentido verdadeiro de seu pensamento. Mesmo que todos os textos invocados
em apoio dessa interpretação não a provem, há um número suficiente de
textos irrecusáveis para que a existência de uma mens intelectualis distinta da
iluminação que ela recebe não possa ser posta em questão 131.
Se Deus não substitui nosso intelecto, mesmo quando atingimos a Verdade, a
iluminação não pode ser tomada como um poder sobrenatural dado ao homem. Todo
processo cognitivo humano se desenvolve nos limites da própria natureza. Da mesma
forma que o homem nasce com um intelecto próprio, também nasce com a capacidade
de ver a luz sem ser ofuscado por ela.
Assim, é preferível acreditar que a natureza da alma intelectiva foi criada de
tal modo que, aplicada ao inteligível segundo sua natureza, e tendo assim
disposto o Criador, possa ver esses conhecimentos em certa luz incorpórea de
sua própria natureza. Assim acontece com o olho do corpo que vê os objetos
que o cercam na luz natural, pois pode-se acomodar a essa luz, já que para
ela foi feito132.
A luz brilha para todos os homens dotados naturalmente de um intelecto. Nesse
sentido a iluminação também não pode ser tomada como um dom gerado por qualquer
tipo de merecimento. É o próprio homem que requisita a iluminação para tornar seu
131
GILSON, Introduction à l’étude de Saint Augustin, p. 107-108. “Par une sorte de renversement de la
métaphore, l’influence divine devient le terme positif dont la lumière visible serait l’image dérivée; ce
n’est plus Dieu qui fait comme le soleil, mais le soleil que fait comme Dieu. De toute maniére, et en
quelque sens qu’on l’interprète, la formule suppose que l’un des termes soit pris au sens figuré; elle reste
donc inévitablement une comparaison. La difficuité réelle commence lorsque l’on cherche à préciser ce
qui revient à Dieu et ce qui revient dans l’acte de connaissance. Il est d’abord bon de noter que, bien loin
de dispenser l’homme d’avoir un intellect que lui soit propre, l’illumination divine le suppose. Il ne
saurait donc y avoir confusion entre la pensée humaine et la lumière divine; tout au contraire, autre chose
est d´être une lumière qui illumine, autre chose être ce que cette lumière illumine; les yeux ne son pas le
soleil et il n’y a donc aucune erreur sur ce point. De lá les précisions qu’Augustin a maintes fois apportées
pour éloigner toute incertitude sur le sens véritable de sa pensée. Même si tous les textes invoqués à
l’appui de cette interprétation ne la prouvent pas, il en reste assez d’irrécusables pour que l’existence
d’une mens intellectualis distincte de l’illumination qu’elle reçoit ne puisse être mise en question.”
132
AGOSTINHO. A Trindade XII: 15, 24.
72
intelecto capaz de ver a verdade em virtude de uma ordem natural expressamente
estabelecida por Deus.
3. A natureza do olhar
Para buscar o sentido exato que Agostinho quis dar para a iluminação,
partiremos do pressuposto que ela é uma percepção intelectual das verdades vindas de
Deus ou a possibilidade de compreensão das verdades transcendentes que fundamentam
todos os outros saberes. Assim, a iluminação deverá ser compreendida como um fato,
uma ação de dois pólos – ação de Deus e ação do homem.
Para Agostinho, a ação de Divina que possibilita o conhecimento tem uma relação
direta com o próprio ato da criação, que se faz fora do tempo, no eterno presente de
Deus. A ação divina, nesse sentido, é causal em um duplo aspecto: na criação e na
iluminação. Deus age sobre a possibilidade de se conhecer na medida em que cria
[sempiternamente] a razão humana e também na medida em que torna o objeto de
conhecimento visível aos olhos interiores.
Como já vimos, a ação divina jamais interfere na ação intelectiva do homem. Ao
contrário, veremos mais adiante que a ação intelectiva do espírito está diretamente
ligada à vontade. O que há é uma ação nas condições de possibilidade da razão humana.
Deus capacita o olho do espírito para que o homem passe das verdades percebidas pelo
espírito à Verdade que o ultrapassa.
A ação do espírito deverá ser, portanto, uma ação de busca a essa determinada
visão que ultrapassa as percepções imediatas. Trata-se aqui não de abstrações de
realidades sensíveis e sim da própria intelecção de realidades de base, como a percepção
de sua própria existência ou a capacidade de fazer julgamentos universais. Ainda que
possamos distinguir os dois exemplos dados acima como o primeiro, diretamente
percebido pelo espírito e o segundo, como um produto moral ou intelectivamente
produzido pela inteligência – aquilo que Agostinho define por Sabedoria –, ambos
podem ser categorizados como verdades que manifestam a Verdade. Agostinho
demonstra que das verdades vistas pelo espírito pode-se passar para a Verdade
transcendente. Há nesse sentido um trânsito natural de uma a outra como se houvesse
entre uma e outra um jogo – claro, não retórico – de evidências.
73
Onde, pois, estarão escritas essas regras? Elas que possibilitam ao injusto
reconhecer o que é justo, descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo
não possui? Onde hão de estar escritas senão no livro daquela luz que se
chama Verdade? Nesse livro é que se baseia toda lei justa que é transcrita e se
transfere para o coração do homem que pratica a justiça. Não como se ela
emigrasse de um lado para o outro, mas a modo de impressão na alma. Tal
como a imagem de um anel fica impressa na cera, sem se apagar do anel133.
É essa capacidade perceptiva do espírito que estamos denominando, a exemplo de
Cayré, de intuição
134
. Por intuição podemos entender o ato de olhar atentamente,
observar, examinar e também o ato de ver, descobrir ou avistar internamente. O termo
parece, portanto, trazer o sentido exato do que Agostinho quis dizer ao se referir à
iluminação que traz à mente a visão de Deus.
Acima de todo pressuposto filosófico e religioso, a doutrina convida a uma
experiência mística da percepção de Deus vivo na alma. A mente humana, nesse
sentido, não pode ser tomada simplesmente como um agente passivo diante da
iluminação e sim o instrumento cuja função será de fazer apelo às capacidades naturais
e superiores da alma, que supõem um espírito capaz de produzir espontaneamente,
quando se realizam as condições externas e internas indispensáveis à sua atividade. A
intuição pressupõe, portanto, uma atividade intensa do espírito apoiada pela vontade e
que encontra socorro na ação iluminadora de Deus. Enquanto socorro, a iluminação é,
ao mesmo tempo, fonte inspiradora para o querer e via para o alcance da Verdade
transcendente.
Ainda que Deus ocupe um papel ativo na iluminação e ainda que esse papel
represente uma via mística dentro da doutrina, nada certifica que a iluminação seja um
recurso complementar fundado sobre uma deficiência natural das faculdades humanas.
Toda deficiência provém do pecado, mas este não subtrai da natureza o poder de
entender certas verdades. Se a natureza tornou-se insuficiente pelo pecado, a iluminação
compensa toda e qualquer falta, fixando a alma na posição exata de possessão da
Verdade. Assim, em uma ordem puramente natural, a intuição busca socorro na ação
divina. O movimento é sempre ascensional: do exterior ao interior, do interior ao
133
AGOSTINHO. A Trindade XIV: 15, 21.
134
CAYRÉ, Initiation a la philosophie de Saint Augustin, p. 234-243.
74
superior; das experiências intelectivas mais imediatas à Verdade de Deus presente na
alma.
4. Iluminação e conhecimento de Deus
Podemos conferir nos textos agostinianos que quase sempre a análise profunda do
conhecimento verdadeiro culmina na prova da existência de Deus. Como a prova acaba
sendo conseqüência de uma contra-argumentação aos céticos, antes de estabelecer a
certeza na existência de Deus, Agostinho trata de provar a possibilidade da certeza em
geral, apoderando-se da primeira e maior de todas as certezas: sua própria existência.
Será sob o contexto do engano e da dúvida que Agostinho afirmará a indubitabilidade
da existência de si, pois para se enganar é preciso antes de tudo ‘ser’.
Vejamos como Agostinho articula sua argumentação:
Ag. – Assim, pois, para partirmos de uma verdade evidente, eu te perguntaria,
primeiramente, se existes. Ou talvez, temas ser vítima de engano ao responder
a essa questão? Todavia, não te poderias enganar de modo algum, se não
existisses.
Ev. – É melhor passares logo adiante, às demais questões.
Ag. – Então, visto ser claro que existes – e disso não poderias ter certeza tão
manifesta, caso não vivesses – é, também coisa clara que vives. Compreendes
bem, que há aí duas realidades muito verdadeiras?
Ev. – Compreendo-o perfeitamente.
Logo, é também manifesta terceira verdade, a saber, que tu entendes?
Ev. – É claro
Ag. – Qual dessas três realidades (existir, viver e entender) parece a ti a mais
excelente?
Ev. O entender135.
Se fica assegurada a abjeção aos céticos por meio dessa apreensão primeira, é
preciso ainda dar um passo adiante para justificar a existência de algo, superior à
própria razão, capaz de reger a tudo sem ser regido por nada. É nesse sentido que
Agostinho estabelece duas regras de base. A primeira delas diz que “aquilo que inclui
135
AGOSTINHO. O Livre-arbítrio II: 3,7.
75
certas outras perfeições, sem estar incluído nelas, é mais perfeito que estas”
136
, e a
segunda, que “aquilo que julga de outras coisas é mais perfeito que as coisas sujeitas ao
seu julgamento”
137
. Ora, das três realidades de base referidas acima: o ser, a vida e o
conhecimento, este último será o mais elevado, pois o conhecimento implica a vida e o
ser, ao passo que nem o ser nem a vida implicam o conhecimento. É possível ser sem
viver e conhecer, como a pedra. Também é possível ser e viver sem conhecer, como os
animais. Porém não se pode conhecer sem ser e sem viver. Assim, o conhecimento,
atributo do homem implica os outros dois conceitos sendo, portanto, o mais perfeito de
todos.
Na mesma perspectiva Agostinho estabelece uma ordem hierárquica do saber. O
conhecimento sensível, apesar de ser o mais evidente, é sempre limitado ao objeto e ao
seu órgão respectivo de percepção. Os sons dependem somente do ouvido, já as figuras
e as formas podem ser percebidas pelos olhos e pelo tato. Esse tipo de conhecimento é,
no entanto, comum a todos, o que implica a existência de uma força superior e interior
capaz de sentir os objetos exteriores.
Os objetos corpóreos são atingidos pelas sensações. Em si mesmos são incapazes
de produzir conhecimento, pois estão no nível tão somente do existir. As sensações, ao
contrário, estão no nível do viver. Elas, sim, produzem conhecimento, porque pertencem
à alma.
Apesar de afirmar que as sensações são próprias da alma e, conseqüentemente,
superiores aos objetos que sensoriam, ainda estamos falando, aqui, de um tipo de
percepção também presente nos animais. O que transcende a esse sentido interno é o
que julga de outro sem ser julgado por ele, a saber, a razão que, de acordo com a regra,
será o que há de mais elevado no homem. A razão é uma terceira verdade, superior a
todas as outras, que está presente somente no homem. É, pois, por meio dela que o
homem sabe que existe e vive.
É exatamente nesse ponto que Agostinho encontra lugar para a argumentação da
prova da existência de Deus. Acima da razão deve existir algo que a julga e não é
136
BOHENER & GILSON. História da Filosofia Cristã, p. 154.
137
Ibidem.
76
julgado por ela, e esse algo é a Verdade. “Acima da razão está a Verdade, que julga e
modera a razão”
138
.
Voltando um passo atrás, dizemos que a razão é superior aos sentidos, como a
Verdade é superior à razão. Ao falarmos de uma sensação proveniente de um objeto
sensível, expomos uma experiência de domínio totalmente interno. Ainda que o objeto
da sensação seja comum a todos, a experiência sensitiva é sempre particular.
Mas ao se procurar aqueles parâmetros que regram o conteúdo dessas sensações, o
homem percebe a superioridade do universal sobre o particular, do eterno sobre o
temporal, ou que sete mais três são dez. O homem descobre que a Verdade não depende
dele, pois o verdadeiro é eternamente verdadeiro e subsiste independentemente de se ter
ou não sua posse.
As diferentes verdades provenientes das realidades sensíveis são eminentemente
provisórias e isoladas das experiências individuais. Uma vez que se submeta essas
experiências aos padrões inteligíveis do conhecimento, os conhecimentos podem, enfim,
ser compartilhados com outros.
Independente do espírito, a Verdade é tanto transcendente como reguladora.
Assim que, ao procurar a Verdade inteligível, o espírito descobre uma lei que lhe é
superior e uma natureza imutável que é Deus. Não se chega à Verdade por meio de um
salto no transcendente, mas sim pela elevação gradual do espírito em direção à luz
iluminadora dessa Verdade transcendente. O conhecimento, nesse sentido, é produto da
ação reguladora da Verdade eterna e imutável e da ação do espírito que se predispõe a
procurá-la. Em suma, o conhecimento será para Agostinho a descoberta da Verdade que
se confunde com a própria descoberta de Deus.
5. O mestre interior
Para Agostinho, ainda que a linguagem seja o meio mais ordinário de transmissão
de idéias, não é possível afirmar, sem objeções, que exista uma relação muito estreita
138
Ibidem, p. 155.
77
entre linguagem, pensamento e correspondência de idéias. Agostinho viu que as
conversações se reduzem freqüentemente a monólogos paralelos em que se crê trocar
idéias, se crê entender quem ouvimos e ser entendidos por quem nos ouve, mas que nos
levam a freqüentes equívocos e mal entendidos. Em uma análise da linguagem no De
Magistro, o Hiponense não põe em jogo a verdade dos pensamentos e sim a significação
mesma dos signos, concluindo que nem sempre a linguagem consegue traduzir a
intencionalidade das idéias.
Se a linguagem tem assim seus limites, podemos nos perguntar como Agostinho
concebe o ato de ensinar e aprender. Para o Hiponense não se ensina uma idéia sem
fazer com que o aprendiz a descubra nele mesmo. Conhecer um objeto da inteligência,
como uma fórmula matemática, ou um objeto dos sentidos, como certa melodia, são
processos operados no interior. Ainda que a alma se ampare numa rede de signos e
códigos lingüísticos para interpretar determinados objetos, é sempre de dentro que ela
tira a substância mesma que parece perceber. Nessa medida é possível se perguntar de
onde vem essa capacidade irredutível à alma humana que a faz perceber de uma forma
aparentemente tão espontânea o conteúdo dos objetos.
Levando-se em conta uma possível influência da doutrina platônica no
pensamento de Agostinho, poderíamos sugerir uma referência à reminiscência no
sentido de uma preexistência. De fato, podemos observar os termos lembrança e
esquecimento sendo usados com certa freqüência nos textos agostinianos, mas não em
um sentido que se pareça tão próximo daquele usado por Platão.
Em A Trindade, Agostinho nega muito claramente que sua concepção tenha
alguma semelhança com a preexistência da alma de Platão. Nesse sentido o texto fala
por si mesmo:
Não se há de acreditar nos que afirmam que Pitágoras de Samos se lembrava
de sensações experimentadas quando estava revestido de outro corpo aqui na
terra; nem acreditar em outros que falam de pessoas que passaram por
experiências semelhantes.
Essas reminiscências são falsas e parecidas às que experimentamos em
sonhos, quando cremos recordar ter feito ou visto o que na realidade não
fizemos nem vimos. (...) Se de fato se recordassem do que viram aqui em
corpos anteriores, tal experiência aconteceria a muitos, e mesmo a quase
todos, pois nesse caso, deveria haver um trânsito contínuo de vivos pra
78
mortos, de mortos para vivos, tal como se passa do estado de vigília para o
sono e do sono para a vigília139.
Tendo contemplado as idéias, a alma, uma vez prisioneira de um corpo, deveria
possuir em si a totalidade dos conhecimentos acessíveis ao homem. A experiência
descrita por Sócrates no Ménon traz à memória somente aqueles conhecimentos
inteligíveis, acessíveis somente ao intelecto, como é o caso dos conhecimentos em
geometria ou matemática. No caso dos conhecimentos relativos à ordem do sensível é
necessário a experiência temporal.
Mas dado que o pensamento tira dele mesmo o que parece receber, é possível
ainda se pensar que as idéias sejam pré-formadas na alma desde o tempo de seu
nascimento. Assim, a hipótese de recorrer a uma teoria do inatismo não seria infrutífera
se atribuíssemos a formação das primeiras idéias inteligíveis a uma ação divina que as
teria depositado na alma no momento da concepção ou do nascimento. Desse ponto de
vista, o conhecimento decorreria de uma memória sem preexistência.
O caráter contraditório de uma alma temporal, engendrando em si as verdades
eternas, seria um ponto de conformação entre a teoria agostiniana e as duas hipóteses de
interpretação. Certamente não há, para Agostinho, conhecimentos eternos que possam
ser produzidos, pois a razão humana não cria a Verdade, ela a encontra.
Parece, contudo, que nenhuma das duas formas de interpretação seja totalmente
adequada à fórmula agostiniana da iluminação. Tanto a reminiscência como o inatismo
sugerem uma alma refratária aos dados vindos do seu exterior, cabendo a ela somente a
ação de relembrar. Agostinho, ao contrário de negar, defende que a alma seja capaz de
produzir conhecimentos pelos sentidos externos, os quais, uma vez interiorizados, são
também individualizados.
Mas a razão não é senão mediadora entre nosso sentido interior e as verdades
eternas, imutáveis e universais que estão presentes em todos os homens, não como
reminiscência ou recordação, mas por iluminação divina na mente do homem. Assim, a
Verdade, própria à realidade universal, impõe-se à razão humana e o pensamento
concebe a Verdade em forma de leis ou normas racionais.
139
AGOSTINHO. A Trindade: XII 15, 24.
79
... de modo algum poderias negar a existência de uma verdade imutável que
contém em si todas as coisas mutáveis e verdadeiras. E não as poderás
considerar como sendo tua ou como exclusivamente minha, nem de ninguém.
Pelo contrário, apresenta-se ela e oferece-se universalmente a todos os que
são capazes de contemplar realidades invariavelmente verdadeiras. É ela
semelhante a uma luz admiravelmente secreta e pública ao mesmo tempo.
Ora, a respeito de algo que pertence assim universalmente a todos os que
raciocinam e compreendem, poder-se-ia dizer que pertence como própria à
natureza particular de alguém?140
É justamente porque a razão tem de se submeter às leis da Verdade que a
comunicação entre os homens se faz possível. O que garante o entendimento entre os
falantes é um acordo, uma verdade em comum e maior que qualquer opinião particular,
maior que a própria razão.
Também na ordem do sensível, ainda que existam formas de percepções sensíveis
individuais e particulares entre os diversos espíritos, existem evidências comuns entre
indivíduos diferentes.
A respeito daqueles objetos que percebemos em comum pelos sentidos da vista
ou do ouvido, tal como as cores e os sons, nós os vemos ou entendemos
conjuntamente, tanto eu como tu. E contudo, esses objetos não pertencem à
natureza de nossos olhos ou ouvidos, mas nos são comuns, enquanto objetos
de percepção. Assim, não dirias sobre esses objetos que nós percebemos um e
outro em comum, cada um com sua própria mente, que eles constituam a
natureza individual da mente de qualquer de nós. Porque se os olhos de duas
pessoas vêem juntos, ao mesmo tempo, um objeto, será impossível esse objeto
ser identificado com os olhos desta ou daquela. Será esse objeto terceira coisa
para a qual se dirigem os olhares de uma pessoa e outra141.
O que torna um objeto perceptível é o fato de o objeto ser um outro, distinto da
consciência que o percebe. Da mesma forma, no âmbito dos conhecimentos inteligíveis,
as verdades percebidas pelos diferentes espíritos são necessariamente distintas de cada
um deles.
O encontro com a Verdade se dá na alma e preside a própria alma. É o encontro
com o verdadeiro Mestre, chamado de “Mestre interior”. Temos somente um mestre: a
Verdade interior ou o próprio verbo de Deus que a todo instante é consultado pelo
espírito de acordo com sua boa ou má vontade. Dessa forma, a linguagem cumpre tão
somente o papel de estímulo nos processos de aprendizagem. A partir das palavras do
mestre exterior os discípulos examinam se o que ele diz é ou não verdade. Esse exame é
140
AGOSTINHO. O Livre-arbítrio II: 12, 33.
80
feito “considerando consigo mesmos se as coisas ditas são verdadeiras, contemplando
segundo as suas forças, a verdade interior
142
.
Na análise exaustiva do conhecimento verdadeiro, Agostinho se depara mais uma
vez com a presença de Deus no interior. Platão acertou quando percebeu que a alma
encontra nela mesma a verdade inteligível, mas não por meio da memória de uma outra
vida. A alma racional abriga a Verdade graças ao Mestre interior, bastando para isso
somente que prestemos atenção às verdades que ele coloca em evidência. Se há o uso
das palavras memória e reminiscência, Gilson explica, é para referir-se à memória do
presente, cujo papel é nos fazer lembrar que para além do que sabemos e pensamos há
sempre aquilo que não pensamos, mas poderíamos saber porque Deus não cessa de nos
ensinar: o aprender do Verbo que Agostinho nomeia indiferentemente aprender,
recordar ou mesmo, simplesmente, pensar
143
. Deus não é somente objeto transcendente,
mas o princípio subjacente à própria capacidade de conhecer. Assim não basta girar o
foco da atenção para o domínio da razão sobre a realidade inteligível. Agostinho mostra
que o olho do espírito tem também de estar atento ao que o próprio Deus diz e mostra.
Não é caso, no entanto, de substituirmos a preexistência pelo inatismo. Deus não
depositou no homem idéias tão prontas que a mente não precisasse se esforçar para
encontrá-las e sim a capacidade de encontrar a Verdade de acordo com a própria
capacidade de amar e desejar essas Verdades. Tanto os conhecimentos do mundo
interior como do exterior pressupõem a atividade da alma. Ainda que Agostinho não
dispense as informações vindas das experiências sensitivas, e as use em analogia ao
conhecimento inteligível, para conhecer é preciso explorar o conteúdo de nossa
consciência, usando de todas as verdades já conhecidas.
Que amo eu, quando Vos amo? Não amo a formosura corporal, nem a glória
temporal, nem a claridade da luz, tão amiga destes meus olhos, nem as doces
melodias das canções de todo o gênero, nem o suave cheiro das flores, dos
perfumes ou dos aromas, nem o maná ou o mel, nem os membros tão flexíveis
aos abraços da carne. Nada disto amo, quando amo o meu Deus. E contudo,
amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento e um abraço, quando amo o
meu Deus, luz, voz, perfume e abraço do homem do homem interior (...)144.
141
AGOSTINHO. O Livre-arbítrio II: 12, 33.
142
AGOSTINHO. De Magistro XIV, 45.
143
GILSON, Introduction à l’étude de Saint Augustin, p. 100 .
144
AGOSTINHO. Confissões X: 6, 8.
81
A alma conhece pelos sentidos corporais tudo o que pertence à ordem do corpo e
por ela mesma tudo o que pertence à ordem do pensamento. Como “os sentidos não
podem ser sensoriados pelos próprios sentidos
145
, Agostinho exige que para explicar o
conteúdo de nosso conhecimento tudo passe pela alma.
Quem de nós falaria voluntariamente da tristeza e do temor, se fôssemos
obrigados a entristecer-nos e a temer, sempre que falamos de tristeza ou
temor? Contudo, não os traríamos à conversa se não encontrássemos na nossa
memória, não só os sons destas palavras, conforme as imagens gravadas em
nós pelos sentidos corporais, mas também a noção desses mesmos
sentimentos. As noções não as alcançamos por nenhuma porta da carne, mas
foi o espírito que, pela experiência das próprias emoções, as sentiu e confiou à
memória; ou então foi a própria memória que as reteve sem que ninguém lhas
entregasse146.
Assim, ainda que a Verdade seja anterior à nossa origem e se faça presente desde
o momento de nosso nascimento, não se pode dizer que ela nos pertença. A Verdade
pertence e vem de Deus, Verbo eterno, para se depositar na alma. Assim, em todo
conhecimento verdadeiro se encontra um elemento cuja origem não está nem dentro das
coisas, nem em nós mesmos e, sim, em uma fonte que nos é mais interior que nosso
próprio interior. Para alcançá-la é preciso que a alma se volte para si mesma para poder
sair de si. A alma passa por ela mesma para poder se ultrapassar.
(...) de qualquer modo que se encare essa força que permite a nossa visão,
seja ela irradiação ou outra coisa, temos a certeza de que se pudermos ver
essa tal força não será com os olhos do corpo. Se conseguirmos investigá-la,
será pela mente. E se possível, também será por meio dela que chegaremos a
compreender a explicação dessa possibilidade. Portanto, assim como a mente
adquire noções sobre coisas corpóreas servindo-se dos sentidos corporais, do
mesmo modo, em relação às realidades incorpóreas, ela as adquire por si
mesma147.
É nesse interior e nessa força interior vinda de Deus que podemos ir ao encontro
do Mestre. Deus é o mestre interior que se faz entender por uma espécie de luz que
ilumina a razão e a desperta em nós. Agostinho usa a metáfora da iluminação porque
supõe que o ato pelo qual o pensamento conhece a verdade seja comparável àquele em
que os olhos vêem os corpos.
145
AGOSTINHO. O Livre-arbítrio II: 4, 10.
146
AGOSTINHO. Confissões X: 14, 22.
82
Como os objetos tornam-se visíveis pela luz, as verdades científicas tornam-se
inteligíveis por uma espécie de luz para serem apreendidas pelo pensamento. Como o
sol, que como fonte de luz corporal torna as coisas visíveis, Deus é a fonte da luz
espiritual que torna as ciências inteligíveis ao pensamento.
Deus é inteligível e também inteligíveis são as proposições das ciências,
porém, diferem em muito. Pois a terra é visível, como também o é a luz; mas a
terra não pode ser vista se não for iluminada pela luz. Por isso, as coisas que
alguém entende, que são ensinadas nas ciências, sem dúvida alguma ele as
admite como verdadeiras, mas deve-se crer que elas não podem ser entendidas
se não forem esclarecidas por outro, como que por um sol148.
Apreendemos o inteligível não apenas porque o olho de nossa alma está voltado
para ele mas, principalmente, porque somos dirigidos pelo Mestre interior. Deus está
por trás do olho e pode ser encontrado na intimidade de uma autopresença. Na verdade
Ele está mais próximo da realidade de uma experiência de si mesmo, apesar de estar
infinitamente acima dela. Agostinho muda o foco do campo dos objetos conhecidos
para a própria atividade de conhecer, assim a mudança de direção passa pela atenção
que prestamos a nós mesmos enquanto interior.
6. O conhecimento de si
No livro X de A Trindade encontramos a análise mais profunda do sentido da auto
presença na obra agostiniana. Essa análise, centrada na consciência de si, coloca o
espírito em presença de si mesmo, de sua interioridade e de sua imanência. Agostinho
demonstra como em sua própria presença o homem reflete mais claramente a imagem
de Deus. É preciso conhecer e pensar na alma toda por inteiro, a fim de vê-la como
imagem, ou seja, apreendendo a realidade divina como transcendente e infinitamente
superior.
147
AGOSTINHO. A Trindade IX: 3, 3.
148
AGOSTINHO. Solilóquios I: VIII, 15.
83
No desenvolvimento do texto, observamos três momentos da trajetória de
argumentação sobre o conhecimento de si. O primeiro deles demonstra que a alma está
sempre e imediatamente presente a si mesma. Nesse sentido, o amor é o ponto de
partida para análise inicial do conhecimento. O segundo, ao contrário, demonstra que
apesar de estar sempre presente a si, a alma erra na forma de se conhecer. E enfim, o
terceiro, Agostinho faz coincidir pensamento e conhecimento. É o momento de
conclusão do cogito, cuja atividade leva o espírito a entender sua verdadeira natureza.
Todo o texto tem como pano de fundo a necessidade de refutar as objeções dos
Céticos que negavam a possibilidade de o espírito se conhecer.
Ora, certos homens duvidaram se a faculdade de viver, recordar, entender,
querer, pensar, saber e julgar não provinha do ar, do fogo, do cérebro, do
sangue, dos átomos (...). Uns defenderam tal opinião, outros tal outra. Quem,
porém, pode duvidar que a alma vive, recorda, entende, quer, pensa, conhece
e julga? Pois, mesmo se duvida, vive; se duvida, lembra-se do motivo de sua
dúvida; se duvida, entende que duvida; se duvida, quer estar certo; se duvida,
julga que não deve consentir temerariamente. Ainda que duvide de outras
coisas não deve duvidar de sua dúvida. Visto que se não existisse, seria
impossível duvidar de alguma coisa149.
Como herdeiro dos antigos debates sobre o conhecimento de si, Agostinho
desenvolve sua argumentação sobre o caráter essencialmente refutativo e aporético do
emblema socrático “Conhece-te a ti mesmo”. A questão que Agostinho coloca como
ponto de partida é a mesma que leva à paradoxal conclusão de que a alma já é
conhecida a si mesma quando se procura.“O que, pois, ama a alma, quando com afinco
procura-se a si mesma para se conhecer, sendo-lhe ela desconhecida?”
150
Agostinho não pergunta se a alma quer conhecer a si mesma, nem se ela se ama.
Para o Hiponense, não há dúvida de que a alma se procura e é fato que ela se ama, posto
que ao se procurar, a alma o faz com desejo. E como ninguém pode amar algo
totalmente desconhecido, fica garantido que a alma, de alguma forma, já se conhece.
Toda operação intelectual visa descobrir uma verdade desconhecida, de sorte que
o homem está destinado a uma constante procura. Podemos nos perguntar, no entanto,
como é possível procurar aquilo que ignoramos, se para procurar é preciso, ao menos,
saber o que se procura.
149
AGOSTINHO. A Trindade X: 10, 14.
150
AGOSTINHO. A Trindade X: 3, 5.
84
Ora, não procuramos conhecer o que já é conhecido. Não desejamos aprender o
que já sabemos. Mas para desejar conhecer alguma coisa é preciso, em certo sentido, já
termos um conhecimento dela. Se somos levados pelo desconhecido, é porque
percebemos a existência do que ignoramos.
Agostinho não quer supor que a dúvida seja o princípio motor da atividade de
conhecer. O homem procura saber, não porque se sente atraído pela dúvida, mas porque
ama ardentemente o saber. O homem não ama o desconhecido, nem mesmo pelo desafio
que ele representa. Ao contrário, ele não suporta sua presença. O desconhecido só pode
representar a possibilidade de conhecer, pois o que o homem deseja é o saber.
Assim, certa consciência, necessariamente, precede o desejo de conhecimento: a
consciência de que existem coisas desconhecidas, a consciência do que é saber, a
distinção entre aquilo que se ignora e aquilo que se sabe. O espírito conhece o que é
conhecer por meio de um experiência imediata “e, amando o conhecer, deseja também
conhecer-se”
151
.
[A alma], sabe que conhece outras coisas, embora não se conheça a si mesma.
Portanto, é em si que ela sabe o que é conhecer. De que modo, porém, sabe o
que seja conhecer, quem não se conhece? Pois não conhece outra alma capaz
de conhecer, mas a si mesma. Portanto, conhece a si mesma. Por isso, ao se
buscar para se conhecer já se conhece procurando-se para se conhecer. Logo,
já se conhece. Assim, não pode ignorar-se totalmente a alma que, ao saber
que se ignora a si mesma, já se conhece por si mesma152.
É a partir do exame de sua própria consciência que o espírito percebe que não
poderia conhecer coisa alguma se não soubesse o que é conhecer. Ora, saber o que é
conhecer não é um saber que vem do exterior e sim um saber que se experiencia
imediatamente. A experiência de si mesmo, nesse sentido, é predisposição e vem
necessariamente acompanhada do ato de se conhecer, pois o espírito sabe que não é
outro espírito que sabe, mas ele mesmo.
Enquanto se procura, a fim de se conhecer, a alma já se conhece. Ela se conhece
procurando-se e sabe de si toda por inteiro. Seria um absurdo dizer-se que a alma não
151
AGOSTINHO. A Trindade X: 3, 5.
152
AGOSTINHO. A Trindade X: 3, 5.
85
sabe toda inteira o que sabe. Não digo: ‘sabe a totalidade do que é’, mas: ‘o que sabe,
é a alma toda que sabe’
153
.
Foi diante da apreensão de uma primeira e mais fundamental verdade, a saber, a
presença da alma a si mesma, que Agostinho afirmou a possibilidade da consciência de
si. Tal será um saber que se diferencia do saber de qualquer outro objeto, inclusive
daquelas representações objetivantes da própria alma em relação a si mesma, pois“(...) o
que está mais presente ao pensamento, a não ser o que existe na alma? E o que está
mais presente à alma do que a própria alma?
154
Que a alma conheça-se, portanto, a si mesma, e não se busque como se
vivesse ausente, mas fixe em si mesma a intenção da vontade que vagueia por
outras coisas e pense em si mesma. Verá assim que nunca deixou de se amar
nem de se conhecer, mas ao amar outras coisas confundiu-se com elas e, de
certo modo, com elas adquiriu consistência155.
O conhecimento de si é distinto dos outros conhecimentos exteriores, seja em
relação a objetos, seja em relação a outros homens, pois a alma está presente ao nosso
intelecto sem intermediários. O fato, absolutamente contingente, é que muitas vezes a
alma erra na forma de se conhecer porque se confunde com outros objetos ou situações
conhecidas. A história da filosofia está repleta desses enganos. Os erros dos numerosos
filósofos quanto à natureza da alma provêm da forma inadequada na qual o espírito
pensa em si mesmo. Assim, são coisas diferentes, o conhecer (nosse) e o pensar
(cogitare).
Não se pode dizer que a alma não se conhece quando não pensa em si mesma.
Uma coisa é ignorar, outra é se esquecer temporariamente, pois um homem não ignora a
gramática porque não está pensando nela, nem um outro ignora a medicina porque sua
atenção está voltada para outra coisa. Como a alma não pensa todo tempo nela mesma,
deve seguir o preceito de conhecer-se para que pense em si e viva conforme sua própria
natureza, ou seja, em superioridade ao que lhe é inferior e em submissão ao que lhe é
superior. Nesse sentido, da mesma forma que reconhecerá que deve viver governando
seu corpo, a alma saberá que não se encontrou toda inteira. Ela procurará o que falta e
descobrirá que é apenas uma imagem imperfeita daquele que a criou. O pensamento
153
AGOSTINHO. A Trindade X: 4, 6.
154
AGOSTINHO. A Trindade X: 7, 10.
155
AGOSTINHO. A Trindade X: 8, 11.
86
(cogito) será, portanto, o movimento de interiorização cuja atividade fará vir à mente –
ou ao espírito - a condição real do humano.
Que a alma não procure enxergar-se como se estivesse ausente, mas cuide de
se discernir como presente. Nem procure se conhecer como se não se
conhecesse. Basta desapegar-se do que sabe não ser ela mesma. (...)
Tampouco como quando é dito a alguém: “olha o teu rosto”, o que não se
pode fazer, a não ser por meio de um espelho. Visto que o nosso próprio rosto
está ausente de nossos olhos, dado que não há neles como o enfocar.
Entretanto quando se diz: “conhece-te a ti mesma”, no mesmo ato em que ela
entende: “ti mesma”, ela se intui e não por outra razão do que pelo fato de
estar presente a si mesma156.
O cogito representa a trajetória de si a si do conhecimento, cuja capacidade de
apreensão é particularizada. Significa, pois, um exercício de apuração intelectiva,
fazendo da experiência de conhecer o próprio objeto de conhecimento. É o movimento
de coligir da alma que lembra, junta e recolhe, fixando seu olhar em todos os
conhecimentos latentes, mas ainda não discernidos
157
. O conhecimento resulta, portanto,
de um exercício de apuração dos olhos interiores, o que Taylor chama de “reflexão
radical”. A atitude é radical, quando se adota o ponto de vista da primeira pessoa,
fazendo da experiência de conhecer o próprio objeto de conhecimento. É tomar
consciência de nossa consciência, experimentar nossa experiência, concentrar na forma
como o mundo é para nós.
A reflexão radical traz para o primeiro plano uma espécie de presença para a
pessoa, que é inseparável do fato de essa pessoa ser o agente da experiência,
algo cujo acesso é, por sua própria natureza, assimétrico: há uma diferença
crucial entre a forma de eu experienciar minha atividade, pensamento e
sentimento, e a forma pela qual você ou qualquer outro o faz. É isso que me
torna um ser que pode falar de si na primeira pessoa158.
Através do cogito, a alma se conhece pensando em si mesma. O pensamento
apreende sua própria existência por uma experiência imediata e daí reconhece e
distingue o que é do que não é.
A origem do movimento que leva a alma a pensar em si é a presença sempre
latente de sua própria lembrança. Lembrança essa a que na maioria das vezes a alma não
156
AGOSTINHO. A Trindade X: 9, 12.
157
GILSON. Introduction à l
étude de Saint Agustín, p. 100.
158
TAYLOR. In Interiore homine, p. 174.
87
presta muita atenção. O conhecimento de si exigirá, portanto, uma atividade da alma em
relação a si mesma. Exigirá a memória de si, o pensamento de si e o desejo de se
procurar e de se conhecer.
7. Memória, inteligência e vontade
Na análise do conhecimento de si, Agostinho demonstra uma série de analogias
trinitárias, mostrando que por meio das diversas atividades da alma, podemos encontrar
aquilo que nos faz semelhantes a Deus. De todas as analogias apresentadas, a tríade
memória, inteligência e vontade será apresentada como a síntese mais evidente e
perfeita da imagem de Deus e o ponto mais elevado do conhecimento de si.
Se a alma conhece imediatamente a si mesma no momento em que compreende o
sentido do preceito socrático, Agostinho indica como a alma pode aprofundar o
conhecimento que ela tem de si, reconhecendo-se como memória de si, inteligência de
si e desejo de si.
Ao pensar sobre si, a própria existência é o saber mais evidente e imediato que
alma tem de si mesma. A alma identifica-se como um ser que vive e existe, mas não se
percebe com a mesma clareza e profundidade como um ser que entende. Agostinho
colocará em evidência, portanto, o funcionamento e relacionamento das potências da
alma, mostrando como há reciprocidade entre elas.
A alma pode atingir o pleno conhecimento de si mesma porque pode articular, em
sua parte superior – mens – por meio da inteligência, as lembranças que tem de si.
Trata-se de um reconhecimento e não de um conhecimento novo, de uma lembrança e
não de uma descoberta.
Portanto, quando a mente se vê pelo pensamento, ela se entende, e se
reconhece, pois gera essa compreensão e esse reconhecimento explícito de si
mesma. Uma realidade incorpórea é vista, quando compreendida; e é
conhecida, quando compreendida. Contudo, o que a mente gera quando está
se pensando, e se vê pela inteligência, não é o conhecimento implícito
(notitia), que ela tem de si mesma. Isso levaria a supor que antes, ela era
88
desconhecida de si mesma. Não, pois ela já se conhecia, como são conhecidas
as realidades contidas na memória, embora não pensadas.159.
A atividade da mens supõe que a alma exerça uma ação reflexiva sobre si mesma.
Quando a mente pensa em si, vê-se, se compreende e se reconhece. É a memória que
gera um pensamento inteligente, produzindo o conhecimento daquilo que estava nos
refolhos da alma. O que temos, portanto, é um conhecimento que vem para a superfície
da consciência e se torna explícito. Uma ação, entre o que gera e o que é gerado; entre a
memória e o pensamento; entre aquilo que já estava depositado no interior da
consciência e a capacidade de penetrar nesse interior.
O movimento de si a si, implícito e presente na memória é a notitia – notoriedade
eternamente presente de si mesma que gera o cogito – pensamento reflexivo que se
reconhece. A relação entre pensamento e memória é a imagem da geração do Filho pelo
Pai e formam, juntos, dois termos da trindade interior. O primeiro termo dessa trindade
interior é a memória, cuja atividade representa o conteúdo permanente de uma presença
de si a si. A memória é o elemento que gera. O segundo é a inteligência, ou seja, aquilo
que torna o homem interior capaz de inteligir e pensar. O terceiro termo, a vontade, é a
faculdade que enlaça o primeiro ao segundo.
Ao falar da vontade, podemos tomar o termo como uma forma de designar uma
relação com um objeto ausente inalcançável. Também podemos relacioná-la com certa
negatividade ou incompletude – desejo gerado de uma falta.
A vontade evocada nos textos agostinianos, no entanto, não se caracteriza somente
por uma falta ou uma incompletude, mas também toma o sentido positivo de um esforço
e de uma procura.
Nesse sentido, a vontade, longe de cumprir um papel secundário, tem relação
imediata com o conhecimento na medida em que propicia a “força unificadora” que leva
o espírito a objetivar-se.
160
Ela é a responsável por incitar o intelecto a recuperar as
lembranças que tem de si. A vontade, assim, está sempre presente na mens como uma
entidade que potencializa a memória e o conhecimento de si.
Toda essa atividade pertence à própria natureza da alma, o que demonstra que sua
existência não precede ao conhecimento de si mesma. Ela é constitutiva da mens e como
159
AGOSTINHO. A Trindade XIV: 6, 8b.
89
tal tem sua origem na criação da própria alma, permanecendo nela, mesmo com o
pecado. Assim, ainda que não saiba como se conhecer ou se engane sobre sua própria
natureza, a alma jamais se vê como algo estranho ou exterior a si.
(...) embora a razão ou inteligência esteja por vezes como que adormecida,
ora pequena, ora grande, a alma humana, contudo, será sempre racional e
inteligente. Donde se segue que, se ela foi criada à imagem de Deus, no
sentido de que pode usar a razão para conhecer e contemplar a Deus,
conseqüentemente, essa natureza tão sublime e admirável, desde quando
começou a existir, sempre existirá, mesmo se ficar tão deteriorada que pareça
quase não existir e seja obscurecida e disforme, ou que seja clara e bela161.
Tendo em vista o princípio da unidade trina que compõe a própria substância
divina, todos esses termos pertencem à alma e compõem, conjuntamente, a mente
humana.
Memória, inteligência e vontade são uma só vida, uma só substância, uma
alma, (...) mas também são três, enquanto consideradas em suas relações
recíprocas, e não se compreenderiam mutuamente, se não fossem iguais162.
Assim, conhecer-se será ver-se como imagem de Deus, ver-se como memória,
inteligência e vontade que expressam precisamente a imagem das relações do Pai, do
Filho e do Espírito Santo. A alma precisa, pois, ter consciência dessas relações para que
a imagem não seja dissipada, pois a alma somente é verdadeiramente imagem da
Trindade, quando, pensando em si mesma e se reconhecendo toda inteira, pode também
recordar, entender e amar o seu Criador. Se a alma não age dessa forma, ainda que se
recorde, se conheça e se ame, será uma ignorante
163
.
8. Interioridade e conhecimento
O que denomino inteligência é aquela faculdade inseparável do pensamento,
quando pela descoberta dos conhecimentos presentes na memória, nosso
160
BERMON. Le cogito dans la pensée de Saint Augustin, p. 362.
161
AGOSTINHO. A Trindade XIV: 4, 6.
162
AGOSTINHO. A Trindade X: 11, 18.
163
AGOSTINHO. A Trindade XIV: 12, 15.
90
pensamento é informado pela recordação do que estava à disposição na
memória, mas não era ainda pensado. E chamo vontade, dileção ou amor, à
faculdade que une o produto da memória à inteligência164.
As atividades da memória, inteligência e vontade que ocorrem no domínio do
conhecimento de si, também estão presentes no domínio do conhecimento temporal. É o
que distingue a sabedoria da ciência. Agostinho chama de sabedoria o conhecimento
ou a contemplação das coisas eternas. Toda experiência de si e de Deus pertence ao
domínio dessa capacidade chamada sabedoria. A ciência é o conhecimento racional das
coisas que pertencem ao mundo criado.
Sabedoria e ciência estão diretamente relacionadas às duas funções da razão que
já mencionamos anteriormente: a função superior, ordenada pela contemplação das
verdades eternas e a função inferior, ordenada pela ação. A ciência, portanto, para
Agostinho, se ocupa dos saberes da vida, das atividades cotidianas e também das
intelectuais. Já falamos que, em grau de importância, tanto em seu valor intrínseco
como em termos de preferência pessoal, tudo que é ligado à razão superior é, para o
Hiponense, objeto de muito mais interesse e especulação. No entanto, os textos
agostinianos demonstram certa preocupação e empenho em apontar o lado bom e
necessário da ciência que, empregada do modo certo, a saber, como instrumento para a
caridade e amor às realidades eternas, pode também ser caminho para a salvação.
A ciência não só não é má em si como é necessária para o bom uso dos bens
materiais deste mundo. Agostinho, não negligenciando o caráter temporal da vida
humana, sugere que nossas ações sejam regidas pela racionalidade. Em termos éticos,
portanto, a ciência deverá reger as ações humanas para o bem supremo que é Deus.
Mas vejamos como Agostinho articula no domínio da ciência a ação do espírito.
Aqui, como no conhecimento de si, o problema gira em torno do conhecer e não pensar
naquilo que se conhece, o que culminará na tese da memória presente.
Quando o homem pensa sobre a natureza de sua alma e encontra a verdade,
encontra em si mesmo não o que ignorava, mas o que ainda não havia pensado, posto
que tudo o que sabemos somente podemos conhecer por meio de nossa mente. Tal
presença a si é própria da natureza da alma, mas exige, mesmo assim, colocar-se em sua
164
AGOSTINHO. A Trindade XIV: 7, 10.
91
própria presença mediante o pensamento. Quando a mente não pensa em si mesma,
certamente não se vê, contudo ela se conhece sendo para si mesma a sua própria
memória.
O mesmo ocorre com uma pessoa versada em diversas disciplinas:
Os conhecimentos adquiridos estão armazenados em sua memória, mas
somente quando pensa em algum deles, haverá algo no olhar de sua mente. Os
demais conhecimentos permanecem ocultos em certo saber secreto,
denominado memória.
Decorre daí o modo como apresentávamos a trindade da alma: a memória,
onde colocávamos o que informa o olhar do pensamento; a forma que
reproduz a imagem impressa na memória; o amor ou vontade que enlaça um a
outro165.
A memória é o elemento que gera não o conhecimento em si, mas o pensamento e
a reflexão sobre aquilo que já se sabe. O conhecimento é gerado das verdades que a
inteligência é capaz de inferir e perceber. É o que Agostinho explica no livro X das
Confissões ao invocar a força da memória a fim de encontrar a Deus. Ao atingir a
memória, o Hiponense vê que se ultrapassou.
Transporei, então, esta força da minha natureza, subindo por degraus até
Àquele que me criou. Chego aos campos e vastos palácios da memória onde
estão tesouros de inumeráveis imagens trazidas por percepções de toda
espécie166.
A memória é a faculdade puramente espiritual capaz de guardar todo tipo de
imagem corpórea, cujo mistério somente é possível penetrar por meio do pensamento.
Quando lá entro, mando comparecer diante de mim todas as imagens que
quero. (...) Não são os próprios objetos que entram, mas as suas imagens:
imagens das coisas sensíveis, sempre prestes a oferecer-se ao pensamento que
as recorda167.
À memória pertence tudo o que está presente à alma. Para Gilson, o termo
corresponderia ao que na psicologia moderna denominamos inconsciente ou
subconsciente.
168
No sentido usual do termo, a palavra memória deveria ser usada
apenas para designar a conservação de lembranças do passado. Agostinho amplia sua
165
AGOSTINHO. A Trindade XIV: 6, 8b.
166
AGOSTINHO. Confissões X: 8, 12.
167
Ibidem.
92
forma de acepção e atribui à memória tudo que está presente à alma. Tudo que
aprendemos, vivemos e experimentamos está depositado nela e dela faz parte.
Oferecendo diversos planos – memória sensitiva, memória das coisas, memória de si,
memória de Deus – a memória é, em última instância, uma atividade intelectiva, porque
pode representar para si mesma tudo o que sabe.
É lá que me encontro a mim mesmo, e recordo as ações que fiz, o seu tempo,
lugar, e até os sentimentos que me dominavam ao praticá-las. (...) Deste
conjunto de idéias, tiro analogias de coisas por mim experimentadas ou em
que acreditei apoiado em experiências anteriores. Teço umas e outras com as
passadas. Medito as ações futuras, os acontecimentos, as esperanças. Reflito
em tudo, como se me estivesse presente169.
A memória guarda os acontecimentos de si e, pensando, reconhece, recorda e
lembra afetada pelas imagens conservadas. Ela é uma força maior que a própria
capacidade de se explicar. Um potência transcendental cujo alcance parece ultrapassar a
própria alma.
É grande esta força da memória, imensamente grande, ó meu Deus. É um
santuário infinitamente amplo. Quem o pode sondar até o profundo? Ora, esta
potência é própria do meu espírito, e pertence à minha natureza. Não chego,
porém, a apreender todo meu ser. Será porque o espírito é demasiado estreito
para se conter a si mesmo?170.
Essa força, completamente distinta de toda espacialidade, pode conservar a
representação de espacialidades imensas. Para pensar a si mesmo é preciso não pensar
em espaços e representações, mas pensar simultaneamente o que está além dele
171
. Essa
potência é capaz de ter presentes e à disposição constante do pensamento os
conhecimentos que a mente possui sem ter sempre consciência deles. Diante dessa
presença sempre latente no pensamento, a alma parece ser mais vasta do que possa crer,
a tal ponto que, ultrapassando-se, ela se sente incapaz de apreender inteiramente seu
próprio conteúdo.
Somos sempre surpreendidos, encontrando toda diversidade de lembranças
conservadas em nós. Já sabemos que os objetos exteriores são percebidos por meio dos
168
GILSON, Introduction à l
étude de Saint Agustin, p. 130ss, nota 2. Também citado por CUNHA, p. 32.
169
AGOSTINHO. Confissões X: 8, 14.
170
AGOSTINHO. Confissões X: 8, 15.
171
GAGNEBIN. Dizer o tempo, p.71.
93
sentidos e na mente são representados por suas imagens, mas quando se trata de
conhecimentos puramente abstratos, evocamos uma potencialidade interior
desconhecida. E é exatamente aí que o caráter de passado cessa de ser constitutivo e a
alma se lembra de tudo que é presente.
Quando ouço dizer que há três espécies de questões, a saber: se uma coisa
existe (an sit?), qual a sua natureza (quid sit?) e qual a sua qualidade (quale
sit?), retenho as imagens dos sons de que se formam estas palavras, e vejo que
eles passaram como ruído através do ar, e já não existem. (...) Escondi na
memória não as suas imagens, mas os próprios objetos. (...) quando as
aprendi, não acreditei nelas fiado num parecer alheio, mas reconheci-as
existentes em mim, admitindo-as como verdadeiras. (...) Estavam lá, portanto,
mesmo antes de as aprender, mas não estavam na minha memória172.
Pode-se dizer que há uma memória do presente muito mais vasta e poderosa que a
própria memória do passado. O que sabemos por nossa capacidade de intuir a verdade;
nossos pensamentos mais abstratos como a idéia de essência, causa e número; aqueles
conhecimentos que poderíamos qualificar como inatos, tudo provém dessa capacidade
chamada memória.
A apreensão dos conteúdos retidos na memória presente é mediada pela luz que
ilumina as verdades. Entre a mente e a luz não há intermediários, o que nos faz concluir
que a compreensão do conhecimento em Agostinho passa pela compreensão do próprio
Deus na memória. Deus é verdadeiramente presente na alma como o Mestre que instrui
e a luz que ilumina. Então, mesmo que a alma não preste atenção a seu ensinamento,
nem volte os olhos em direção à sua luz, a verdade permanece latente nos mais
profundos esconderijos da memória.
A presença imediata de Deus na alma assinala o caráter ao mesmo tempo ativo e
passivo da ação intelectiva do homem. Se, por um lado, Deus não substitui o intelecto
humano, por outro, a alma é diretamente submissa a Deus em relação às realidade
inteligíveis. Designadas com os mais diferentes nomes como: idéias, formas, razão ou
leis, as realidades inteligíveis são as próprias idéias divinas ou o modelo arquetípico de
toda espécie e de todo indivíduo criado.
Tudo foi criado por Deus conforme um modelo próprio e específico, o que dá, a
cada espécie, formas, características e funções que lhe são próprias. As idéias e modelos
172
AGOSTINHO. Confissões X: 10, 17.
94
subsistem na inteligência divina e participam, necessariamente, de seus atributos
essenciais, sendo também eternas, imutáveis e necessárias. Ora, dizer, portanto, que a
ação intelectiva do homem é imediatamente submissa às idéias divinas é afirmar a
possibilidade de participação ao que há de eterno, imutável e necessário.
Naquela Verdade eterna, segundo a qual todas as coisas temporais foram
feitas, é que contemplamos como olhar da mente a forma que serve de modelo
a nosso ser, e conforme à qual fazemos tudo o que realizamos em nós ou nos
corpos, quando agimos segundo a verdadeira e reta razão. Graças a ela, nós
temos em nós conhecimento verdadeiro das coisas, conhecimento que é como
o verbo por nós gerado em uma dicção interior173.
Agostinho fala de uma visão das idéias divinas no pensamento e especifica que
nós não somente vemos a verdade por Deus, mas no próprio Deus. Ora, se é nas idéias
divinas que podemos ver a Verdade, nessa visão concebemos em nós mesmos a mesma
Verdade. Aqui, “ver” significa ver sem olhos, ou seja, intuir em um contato imediato
entre Deus e o pensamento. Com efeito, não vivemos, não existimos e não agimos sem
o que nos dá vida, ser e movimento. Se a operação de Deus cessa, todas as criaturas
deixam de ser e de viver. Se a presença iluminadora de Deus cessa, a mente humana é
fadada à escuridão. Contudo, toda a dependência ontológica da criatura em relação ao
criador não tira o mérito de o homem participar da visão iluminadora.
É nesse sentido que vemos Agostinho se dirigir a Deus como aquele que está
acima e diante de si. Deus é uma entidade infinitamente superior e ao mesmo tempo
presente ao diálogo, à intimidade e ao alcance humano.
Eis o espaço que percorri através da memória, para Vos buscar, Senhor, e não
Vos encontrei fora dela. Nada encontrei que se referisse a Vós de que não me
lembrasse, pois desde que Vos conheci, nunca me esqueci de Vós.
Onde encontrei a verdade, aí encontrei o meu Deus, a mesma verdade. Desde
que a conheci, nunca mais a deixei esquecer. Por isso, desde que Vos conheci,
permaneceis na minha memória, onde Vos encontro sempre que de Vós me
lembro e em Vós me deleito. São estas as minhas santas delícias, que, por
vossa misericórdia, me destes ao olhardes para a minha pobreza174.
A doutrina agostiniana convida o homem a sentir a presença de Deus em seu
interior e a ver seu interior em Deus. Convida a ver a alma como uma potencialidade
173
AGOSTINHO. A Trindade IX: 7, 12.
174
AGOSTINHO. Confissões X: 24, 35.
95
capaz de ultrapassar os limites das realidade sensíveis e temporais e se preparar para
uma verdadeira visão no “face-a-face”. Agostinho não tem certeza se a verdadeira visão
pode ser adquirida na vida temporal, mas sabe que se há uma possibilidade, esta será
indicada pela razão iluminada.
Enquanto a alma ou, mais especificamente, a memória, é apresentada como o
lugar da auto presença e morada do próprio Deus, Agostinho ultrapassa os limites de
uma análise psicológica da alma para apresentar uma metafísica baseada na auto-
reflexão. Henrique Vaz
175
assinala o caráter de “conversão”, cujo conceito adensa o
conteúdo inteligível e religioso da auto-reflexão agostiniana. A conversão, operada em
diversos planos da vida e da conduta do doutor de Hipona, resulta no movimento total
da alma em direção ao interior e daí diretamente ao superior. Assim, o ato religioso se
o mediador entre a razão e uma realidade transcendente vista como luz de toda Verdade,
fim último do exercício da racionalidade, portanto objeto da fé, da inteligência e do
amor.
175
VAZ. A metafísica da interioridade, p. 77 – 81.
96
CONCLUSÃO
Podemos resumir o cerne da teoria agostiniana do conhecimento em uma frase
descrita no primeiro capítulo do segundo livro do Solilóquios: “Deus sempre o mesmo:
que eu me conheça a mim mesmo; que eu te conheça”. O conhecimento de si é
pressuposto para o conhecimento de Deus, o que por sua vez é condição necessária para
o encontro da felicidade e da verdade. Desde os primeiros escritos, a grande preocupação
do filósofo era responder às questões: O que é e onde está a felicidade? Como e onde o
homem pode ser feliz? Em A Vida Feliz, tentando responder a essas questões, depois de
buscar e não encontrar entre os bens materiais, Agostinho conclui que, “se alguém quiser
ser feliz, deverá procurar um bem permanente, que não lhe possa ser retirado em revés
algum da sorte
176
, e que a verdadeira felicidade está em Deus ou, só é verdadeiramente
feliz, quem possui a Deus. Nesse sentido, Agostinho associa a busca da felicidade do
homem à busca de Deus.
Seguindo a problemática platônica, o Bispo de Hipona atesta que quando se trata
da busca de verdades universais há uma forma de saber anterior que assegura a
possibilidade da própria busca. Trata-se de um conhecimento prévio que possibilita
reconhecer a noção de verdade como algo superior e universal no momento mesmo de
se conhecer.
Esse saber prévio não pode ser confundido com a memória de uma outra vida ou
mesmo de cópias das idéias na alma. Agostinho nega a teoria da reminiscência tal qual é
descrita no Mênon de Platão, mas fala de uma recordação ou um saber prévio que se
confunde com a própria experiência de Deus no interior. O conhecimento de Deus
implica, portanto, na real presença do Criador na alma, mas em um sentido que
ultrapassa e transcende ao próprio espírito. É isso que possibilita pressentir e amar a
Deus antes mesmo de conhecê-Lo. É através da atividade da memória que se pode
lembrar que se lembra de Deus.
A memória, segundo a reflexão agostiniana, desempenha uma diversidade de
funções: ela é a ponte entre conhecimento sensível e conhecimento intelectivo –
conhecimento do mundo –, é a consciência psicológica de lembranças afetivas e
176
AGOSTINHO. A Vida Feliz I, 12
97
sensitivas – consciência de si – e restituição das experiências inteligíveis – percepção de
Deus. Como assinala Madec, a memória agostiniana “não designa somente a faculdade
na qual são conservados os resultados das experiências psicológicas e intelectuais do
espírito, mas também a própria ação de se lembrar de suas percepções, de seu saber, de
si mesma e de Deus”
177
. A memória evoca, pois, a atenção do espírito sobre a presença
dos conhecimentos latentes que passam para a consciência na medida em que são
pensados. No momento em que esses conhecimentos revelam-se para a memória, a alma
se vê diante de algo que a ultrapassa. A ultrapassagem de si implica em uma
interiorização e em um exame sobre si que conduz a uma verdade: a de ser interioridade
à imagem de Deus.
Quando Agostinho se eleva a Deus, fica claro que o espírito humano pode
reconhecer em si o melhor de todas as coisas criadas. Mas esse espírito se vê inserido na
dimensão temporal, lugar da passagem, da dispersão e, por isso, sujeito a mudanças.
Assim, ainda que revele uma espécie de natureza espiritual através de uma atividade
totalmente distinta a tudo que vem do corpo, a memória não alcança por ela mesma a
interioridade necessária à consciência de si; e seus produtos, as lembranças, são somente
conhecimentos implícitos. É necessário um esforço de atenção, algo que faça a alma
cair sob seu próprio olhar. O cogito agostiniano conduz a alma ao exercício de uma
consciência de si capaz de tornar claro e explícito tudo que de alguma forma está
depositado na memória.
Diferentemente do cogito cartesiano, o cogito agostiniano não procede de uma
dúvida radical e muito menos substitui uma certeza existencial fundada na intuição de
uma presença a si por uma certeza transcendente. Será a partir da certeza da própria
existência, certeza primeira e mais imediata, que o pensamento será atestado como a via
privilegiada de outras certezas.
O cogito agostiniano se insere, pois, nas diferentes atividades intelectivas e
interiores da alma – lembranças, raciocínios, analogias, inferências, inserções e outras –,
fazendo a memória transformar os objetos das experiências tanto sensitivas como
racionais em idéias, ou seja, em objetos de consciência.
177
MADEC. G. Saint Augustin et la philosophie, p. 89.
98
Devemos nos lembrar, no entanto, que o sujeito sobre o qual a reflexão
agostiniana se debruça não é constituído somente de intelecção e não pode ser reduzido
a um “Eu penso”. Trata-se muito mais de um “Eu quero”, ou mesmo de um “Eu
procuro”, que é despertado pela vontade. O cogito não implica, portanto, em uma
investigação do conteúdo psíquico da memória, mas na busca de uma Verdade presente
no interior.
Como a memória platônica, a memória agostiniana não visa somente organizar a
experiência temporal, ela quer sobretudo ultrapassá-la, sendo que para isso é necessário
encontrar a divindade. O caráter de conversão expresso nas Confissões e também em A
Trindade demonstra a expressão de uma experiência positiva de unidade, verdade e bem
de um espírito que precisa reconhecer sua posição ontológica de criatura abaixo de Deus
e acima do mundo sensível. Ao voltar-se a si mesmo, o homem se depara com sua
realidade fragmentada pela condição de pecado. Conhecendo a si mesmo, o homem
reconhece sua verdadeira natureza e restitui sua unidade perdida.
Mas, porque o objeto plenamente capaz de satisfazer ao que se aspira acha-se
oculto ao olhar da inteligência humana, a busca é acima de tudo inquietude,
desassossego e aflição, o que justifica a frase marcante do livro I das Confissões:
“Criastes-nos para Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em
Vós”.
178
Como morada e imagem de Deus, a alma transcende a si mesma e ao mundo,
mas para tanto não depende somente de si mesma, pois o caminho que leva a alma em
direção a Deus somente se cumpre, plenamente, quando o homem é assistido pela graça
da presença divina.
É no âmbito dessa dupla condição: interioridade pelo exercício do cogito e
interioridade pela percepção da luz divina que ilumina a mens que observamos uma
ambigüidade na constituição da teoria do conhecimento agostiniana. Sem dúvida a ação
do cogito se dá pela atividade intelectual do homem e ocupa um lugar na razão definida
como mens. Mas na medida em que o interior se apresenta não como um lugar, e sim
como uma categoria existencial onde a atividade espiritual se manifesta, fixa-se sobre
um centro. Resta-nos descobrir se o centro é o “si” ou se é “Deus”, ou melhor, qual é o
lugar de cada uma destas instâncias na experiência da interioridade.
178
AGOSTINHO. Confissões I: 1, 1.
99
Para Agostinho o conhecimento é obtido por meio da iluminação divina com a
qual Deus irradia na mente humana as verdades tanto do mundo interior como do
mundo exterior. A luz irradiada por Deus ilumina as verdades, porém “não se poderá
permanecer nessa felicíssima visão senão fixando os olhos com grande amor e não
desviando jamais o olhar”.
179
Assim podemos pressupor que a luz capacita a alma a
ver, porém este conhecimento parte também do esforço interior de quem vê, e o que é
mais importante, vincula-se à atividade da memória. Logo, podemos entender, que para
Agostinho mesmo quando se trata de coisas sensíveis, o homem só consegue
compreender o que os olhos do corpo contemplam se os olhos da mente, iluminados
pela verdade, clareiam sua visão. O que nos parece paradoxal na teoria do conhecimento
formulada por Agostinho e que se tornou o eixo central desse trabalho, refere-se à luz
que ao mesmo tempo em que parece estar no nosso interior, porque é fruto de uma
experiência pessoal de interiorização, é também uma luz indireta porque vem de Deus.
A teoria agostiniana da iluminação nos faz pensar que a luz brilha a um só tempo
na presença de Deus e no interior do homem. Dessa maneira a verdade não se encontra
nem nas coisas externas, nem na razão humana. A verdade parece estar em lugar algum,
ela é o próprio Deus que irradia e ilumina as mentes sãs e capacita o “olho do espírito” a
ver e discernir entre o verdadeiro e o falso. Pois nas palavras do próprio Agostinho,
“sem um sujeito conhecedor, nada pode haver de verdadeiro
180
.Nesse sentido, o
conhecimento é o resultado tanto de um exercício de apuração dos nossos olhos
interiores como da própria manifestação da verdade de Deus.
Deus é o “mestre interior” e a “memória presente” – fonte do saber e da
capacidade de conhecer, o que faz que essa capacidade aflore realmente do interior de
todo homem que por sua razão pensa, lembra e constrói seu próprio entendimento.
A luz divina não é, portanto, resultado da graça, nem pode ser tomada como uma
intervenção sobrenatural e particular, pois ela está disponível a todos que buscam a
verdade na unidade interior. Para Agostinho essa unidade se expressa na interioridade
da imagem de Deus, assim para conhecer, o homem precisa ultrapassar as fronteiras do
“si mesmo” e encontrar a verdade iluminadora de Deus.
179
AGOSTINHO. Solilóquios. I: VII, 14
180
AGOSTINHO. Solilóquios. I: III,3.
100
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